Caça Aos Turistas - Carl Hiaasen
Caça Aos Turistas - Carl Hiaasen
Caça Aos Turistas - Carl Hiaasen
Sparky Harper foi encontrado na tarde daquele mesmo dia, uma tarde
ensolarada, sem nuvens.
Uma brisa fresca lambia o mar suavemente encrespado no canal de
Pines, onde a mala de viagem flutuava, meio submersa, invisível para o
adolescente sobre seus esquis. Ele esquiava ali perto, a uns quarenta nós,
quando resvalou na bagagem e foi lançado num espetacular salto-mortal
triplo.
Seus amigos manobraram a lancha para apanhá-lo e dar-lhe os
cumprimentos. Depois voltaram um pouco mais para pegar a mala, que
exigiu o esforço dos três para ser trazida até o barco; eles logo imaginaram
que ela deveria estar repleta de dólares ou drogas.
O esquiador tirou uma chave de fenda da caixa de ferramentas e forçou
os fechos da mala.
“Vamos ver o que tem dentro”, disse ele ansiosamente.
E lá dentro, dobrado como Charlie McCarthy, estava B. D. “Sparky”
Harper.
“Um anão morto!”, berrou o piloto da lancha.
“Isto não é um anão”, disse o esquiador. “É uma pessoa de verdade.”
“Minha nossa! Temos que chamar a polícia. Vamos lá, ajudem-me a
fechar esta porcaria.”
Mas, com Sparky Harper inchando, a mala não fechava e, além disso, os
fechos estavam quebrados; assim, durante todo o percurso de volta para o
cais, os três garotos ficaram sentados em cima da mala para manter o anão
morto do lado de dentro.
Brian Keyes leu a coluna de Skip Wiley logo que voltou ao escritório.
Não conseguiu conter as gargalhadas. Ficara assombrado — não havia outra
palavra para aquilo — com o extremo a que Wiley levara as coisas sem ser
importunado.
Keyes se perguntou se Ernesto Cabal tinha lido o jornal. Esperava que
não. A coluna de Wiley estragaria totalmente o dia do rapaz.
Considerando-se que Ernesto era inocente — e Keyes estava tendendo
nessa direção —, o passo seguinte era descobrir quem teria desejado ver B.
D. Harper morto. Era um assassinato bastante incomum, e roubo parecia um
motivo pouco provável. Espremer o corpo numa mala de luxo era coisa da
Máfia, pensou Keyes, mas a Máfia não tinha muito senso de humor; a
Máfia não teria vestido Sparky com aquelas roupas horrorosas, ou lhe
enfiado um jacaré de borracha goela abaixo.
Encontrar um bom suspeito além de Ernesto Cabal não seria muito fácil.
B. D. Harper não chegara ao topo de seu negócio fazendo inimigos. Sua
missão, de fato, fora exatamente o oposto: fazer tantos amigos quanto
possível e não ofender ninguém. Harper tinha sido bom nisso. Era um poço
de amabilidade.
Sparky tinha vivido e respirado turismo. Seu único objetivo fora atrair o
máximo de pessoas para o Sul da Flórida, para que gastassem tanto dinheiro
quanto fosse humanamente possível em quatro dias e três noites. Passava
noites em claro traçando planos para atrair as pessoas ao coração tropical de
Miami.
Como repórter, Brian Keyes chegara a conhecer B. D. Harper
razoavelmente bem. Não havia, nele, nada para não gostar; simplesmente,
não havia nada de mais. Ele era um homenzinho rotundo, inócuo, que se
enchia de felicidade quando a Flórida estava fervilhando de turistas
branquelos fugindo do frio. Durante anos, Harper administrara com sucesso
sua própria firma de relações públicas, fazendo promoções estúpidas e
previsíveis, como colocar uma máquina de neve na praia em janeiro, ou
enviar pelo correio uma laranja madura da Flórida para cada ser humano da
baía de Prudhoe, no Alasca. Isto foi nos dias de glória de Miami, e, de certa
forma, Sparky Harper fora um orgulhoso pioneiro do esforço
desavergonhado e tolo que fizera a Flórida se desenvolver.
Nos últimos anos, como cabeça da Câmara de Comércio, a principal
tarefa de Harper era bolar um atraente adesivo de para-choque por ano:
“Miami — Quente Demais para Agarrar!”; “A Flórida É... A Terra
Prometida!”; “Miami Derrete na Sua Boca!”.
O predileto de Brian Keyes era “A Mais Emocionante Cidade da
América”, que Sparky introduziu muito oportunamente um mês depois do
pior conflito racial já verificado em Miami.
Harper espalhara com muita astúcia seus slogans capengas, fixando-os
em pôsteres coloridos de mulheres peitudas tomando sol na praia,
sacudindo-os sobre as proas de veleiros ou puxando-os pelas caudas de
planadores — qualquer coisa que Sparky pudesse arranjar. As mulheres
eram sempre bonitas, porque a Câmara de Comércio podia pagar pelas top
models.
O descerramento anual do novo pôster turístico não trazia controvérsia
nem impopularidade a Sparky. A julgar pelo que todo mundo dizia, era a
única coisa palpável que ele fazia durante o ano inteiro, para ganhar seu
salário de quarenta e dois mil dólares anuais.
Quanto ao assassinato, Keyes pensou nas possibilidades triviais de
sempre: um marido ciumento, um agiota impaciente, uma namorada ou um
namorado que levou um pé na bunda. Nada parecia encaixar. Sparky era
divorciado, dono de um poodle francês chamado Bambi. Quando saía com
mulheres, era com viúvas ou prostitutas. Sabia-se que às vezes enchia a
cara, mas nunca se fez de otário em público. E não era um jogador, portanto
era improvável que a Máfia estivesse atrás dele.
Keyes pensou que quem quer que tivesse matado Harper provavelmente
não o conhecia pessoalmente, mas com certeza sabia quem ele era. Com a
metodologia extravagante, o assassino parecia estar querendo dizer alguma
coisa muito especial, razão pela qual Keyes não podia ignorar a carta dos
Noites de Dezembro, por mais maluco que isso fosse.
Keyes concluiu que precisava ver o relatório da autópsia. Dirigiu-se ao
escritório do legista e pediu uma cópia. O dr. Joe Allen não estava, e Keyes
resolveu esperar. Sentado numa sala azulejada que cheirava a formol,
começou a ler o relatório de Allen linha por linha. Na metade da leitura, sua
curiosidade atingiu o limite, e ele desembainhou os slides coloridos. Um
por um, Keyes os apontou contra a luz.
Quanto mais estudava as fotos repulsivas, mais Keyes se convencia de
que Ernesto Cabal estava falando a verdade: ele não tivera nada a ver com o
assassinato de B. D. Harper. Estava além da imaginação embotada de
Ernesto conceber algo daquele tipo.
“Não suje os meus slides!” O dr. Joe Allen estava na porta, abarrotado
de pastas.
“Bom dia, doutor.”
“Bem, Brian. Ouvi dizer que você agarrou sua grande chance.”
Joe Allen sempre gostara de Brian Keyes. Keyes fora um repórter
sólido, e era uma pena que tivesse pulado fora para se tornar um detetive
particular. Joe Allen não era muito chegado a detetives particulares.
“Isto aqui não foi roubo, Joe.”
“Não sei o que pode ter sido”, disse o dr. Allen, “exceto que,
definitivamente, foi morte por asfixia.”
“Alguma vez você ouviu falar de um arrombador de carro capaz de
mostrar um talento desses?”, perguntou Keyes.
“Parece que essa é a opinião da polícia.”
“Estou pedindo a sua, Joe.”
O dr. Joe Allen autopsiara três mil, setecentas e doze vítimas de
assassinato durante sua longa carreira como legista de Dade County,
portanto tinha visto mais carnificinas indescritíveis do que, talvez, qualquer
outro ser humano em todos os Estados Unidos. Através dos anos, Joe Allen
mapeara o progresso do Sul da Flórida observando os que jaziam mortos
em suas mesas de aço, e já superara havia muito tempo o ponto de ficar
chocado ou nauseado. Realizava cirurgias meticulosas, mantinha arquivos
precisos, tirava fotografias irretocáveis e compilava dados inestimáveis de
morbidez, que lhe angariavam reputação nacional. Por exemplo, o dr. Allen
descobrira que a Grande Miami tinha mais homicídios com mutilação per
capita do que qualquer outra cidade norte-americana, um fato que ele
atribuía ao excelente clima da região. Nos trópicos, notou Allen, não havia
elementos climáticos que inibissem um lunático de passar seis, sete, oito
horas esquartejando uma vítima; experimente fazer isso em Buffalo e você
vira picolé. Depois de o dr. Allen ter apresentado suas conclusões numa
grande convenção de patologistas, vários outros legistas da Faixa do Sol
conduziram seus próprios estudos e confirmaram aquilo que se tornou
conhecido como Teorema da Mutilação de Allen.
Ao longo dos anos, alguns poucos casos espetaculares permaneceram
vívidos nas reminiscências de Joe Allen, mas o restante não passou de
etiquetas no dedão do pé. Brian Keyes esperava que com Sparky Harper
fosse diferente.
O legista colocou seus óculos e ergueu dois dos slides mais nauseantes,
como que para refrescar sua memória.
“Brian”, disse, “acho que eles não colocaram o cara certo no xadrez.”
“Então, como faço para livrá-lo desta?”
“Arranje um suspeito mais convincente.”
“Vamos lá, Joe. Alguém em particular?”
“Na minha opinião, o senhor Harper foi vítima de um assassinato
ritualístico. Eu diria que várias pessoas estavam envolvidas. E diria também
que o motivo nada teve que ver com roubo ou ataque sexual. Eu não
descartaria a possibilidade de um ritual secreto, possivelmente até um
sacrifício humano. Por outro lado, o corpo não mostrava os sinais comuns
de tortura — nada de queimaduras de cigarro, vergões ou contusões
ordinárias. Mas não se pode ignorar o que aconteceu com as pernas.”
Keyes perguntou:
“O que aconteceu de fato com as pernas?”
“As pernas foram removidas depois que a morte estava consumada,
provavelmente para que o corpo pudesse caber na mala. Mas o interessante
é o jeito de remover as pernas.”
Keyes disse:
“Joe, você está fazendo isso só para me deixar enojado?”
“As pernas não foram cortadas com machado, que é o método mais
eficiente”, disse o dr. Allen, interrompendo-se para escolher melhor as
palavras. “Pelas feridas, as pernas de Sparky parecem ter sido removidas
por um animal bem grande. Na verdade, elas podem ter sido... arrancadas.”
“Meu Deus do céu! Comidas por cães selvagens?”
O dr. Allen balançou a cabeça sombriamente.
“A julgar pelo padrão da mordida, não foi nenhum cão. Foi alguma
coisa muito maior. Não me pergunte o quê, Brian, porque eu simplesmente
não sei.”
“Joe, você sempre ilumina o meu dia.”
“Boa caçada, meu amigo.”
5
Cab Mulcahy entrou na redação pouco depois das cinco. Ele era uma
presença bem-composta, uma aparência distinta em meio aos jovens
neuróticos que punham o diário para rodar, e vários deles trocavam olhares
como se perguntassem: O que é que o velho tá querendo?
Mulcahy estava à procura de Wiley. Na verdade, ele estava à procura da
coluna de Wiley. Mulcahy receava que Wiley conseguisse dar um jeito de
passar por cima do acordo dos dois e fizesse a coisa ir para a impressão.
O editor de Cidades disse que não tinha visto Wiley naquele dia, e
relatou que nenhuma coluna tinha chegado, via boy, telefone ou telex. O
editor de Cidades também notou que, sem a coluna, ele estava pensando no
que fazer com um buraco de quase quarenta centímetros na primeira página,
com o horário de fechamento já se aproximando.
“O Ricky Bloodworth se ofereceu para fazer a coluna se o Wiley não
aparecer”, disse o editor de Cidades.
“Ele já tem a coluna pronta?”
“Ele fez umas coisinhas nas horas vagas. Eu vi os textos hoje de manhã,
Cab, e não são tão ruins assim. Um pouco exagerados, talvez, mas
interessantes.”
“Sem chance”, disse Mulcahy. “Mas agradeça a ele, de qualquer jeito.”
O editor de Cidades pareceu ficar desapontado; Mulcahy sabia que ele
ansiava por se livrar do Problema Wiley havia muito tempo. O editor de
Cidades não se dava muito bem com Skip Wiley. Era um relacionamento
ruim, que só fez piorar depois que Wiley deixou correr o boato de que
estava ganhando cinco mil dólares a mais por ano do que o editor de
Cidades, sem contar as opções de ações da empresa. Opções de ações! O
editor de Cidades foi para casa naquela noite e encheu de pontapés o
traseiro de seu cocker spaniel.
“Você ligou para a casa do Wiley?”, perguntou Mulcahy.
“A Jenna não o vê desde que ele saiu para ir ao médico de manhã. Ela
disse que ele parecia estar muito bem, feliz e relaxado.”
“Ela disse isso?”
“Sem tirar nem pôr”, disse o editor de Cidades. “Feliz e relaxado.”
Mulcahy ligou para o dr. Remond Courtney e disse a ele que Skip Wiley
não tinha aparecido no trabalho.
“Ah, é?” O dr. Courtney não parecia surpreso, mas era difícil dizer se
estava ou não. Courtney era um expert em mascarar suas reações por meio
de frases como “Ah, é?”, ou “Entendo”, ou “Por que você não fala um
pouco mais sobre o assunto?”.
“Eu estava querendo saber”, disse Mulcahy, impaciente, “como foram
as coisas hoje.”
“Como foram as coisas?”
“Com você e o senhor Wiley. Ele tinha uma consulta hoje, lembra?”
Mais silêncio; depois:
“Ele foi ofensivo.”
“Foi ofensivo? Ele é sempre ofensivo.”
“Fisicamente ofensivo”, disse Courtney. Ele estava tentando manter
uma atitude de clínico, para que Mulcahy não percebesse o quanto ele tinha
ficado assustado. “Acho que ele ameaçou me matar.”
“O que você fez?”
“Conversei com ele até ele mudar de ideia, é claro. Acho que as coisas
já estavam um pouco melhores no final da consulta.”
“É bom saber disso”, disse Mulcahy, pensando: Wiley tinha razão, esse
cara não presta para nada. “Diga uma coisa, o Skip disse para onde ia
depois de sair do consultório?”
“Não. Ele estava com pressa. Tinha sido uma sessão extenuante para
nós dois.”
Mulcahy disse:
“E então, qual é o veredicto?”
“Veredicto?”
“Qual é o problema dele?”
“Stress, fadiga, ansiedade, paranoia. Tudo relacionado com o trabalho.
Eu sugiro que você dê um ano de férias para ele.”
“Não posso fazer isso, doutor. Ele é muito popular. O jornal precisa
dele.”
“Faça o que quiser. Ele é louco de pedra.”
Um louco de pedra que faz o jornal vender, pensou Mulcahy,
amargamente. Depois ele tentou Jenna.
“Ainda não vi o Skip, Cab. Estou um pouco preocupada também. Estou
com uma torta de espinafre no forno.”
Jenna tinha a voz mais deliciosa entre todas as mulheres que Cab
Mulcahy já conhecera; pura seda. Até mesmo expressões como “torta de
espinafre” saíam de sua boca como se fosse “Vamos transar já!” O dia em
que Skip Wiley foi morar junto com Jenna foi o dia em que Cab Mulcahy
concluiu que Deus não existia.
“Ele normalmente telefona?”, perguntou Mulcahy.
“Ele nunca faz nada do jeito normal, Cab, você sabe disso.” Uma risada
sedosa.
Mulcahy suspirou, Até certo ponto, a culpa era dele. Afinal de contas,
não tinha sido ele próprio quem apresentara Jenna a Skip numa noite no
Royal Palm Club?
Jenna disse:
“Skip entra em contato comigo umas duas ou três vezes por dia, de
várias maneiras. Hoje, depois do meio-dia, nada.”
“O que ele disse”, arriscou Mulcahy, “quando... fez contato?”
“Quase nada. Só um segundo, preciso abaixar o fogo... Deixa eu ver se
lembro... Já sei! Ele disse que ia trocar o silencioso do carro e que tinha
matado o psiquiatra. Esta última parte é verdade?”
“Claro que não”, disse Mulcahy.
“Ainda bem. Ele tem um temperamento dos diabos.”
“Jenna, o Skip disse quando entraria em contato de novo?”
“Não, ele nunca faz isso. Ele gosta de fazer surpresas, diz que isso
renova o romance. Às vezes eu fico pensando se ele não está só me
testando. Você sabe, Cab, confiança é uma rua de mão dupla.”
“Mas ele aparece aí para jantar?”
“Quase sempre”, disse Jenna.
“Se ele aparecer esta noite”, disse Mulcahy, ansioso por escapar daquela
conversa, “peça para ele ligar para a redação, por favor. É importante.”
“Estou ficando preocupada, Cab”, disse Jenna de novo. “Este espinafre
está empelotando.”
Que atriz, pensou Mulcahy, ela é simplesmente maravilhosa. Quando
Skip Wiley seduziu Jenna pela primeira vez, ele pensou que estava só
catando uma louraça peituda para dar uma trepada. Foi assim que ele a
descreveu para Mulcahy, que não acreditou. Ele tinha avisado Wiley
também, avisado para que procedesse com a máxima cautela. Mulcahy
tinha visto Jenna em ação uma vez antes; ela era magnética e calculista,
muito mais do que os toscos poderes de compreensão de Skip Wiley
poderiam perceber. Mas Wiley não dera ouvidos ao aviso de Mulcahy, e
cortejou Jenna desavergonhadamente, até que ela se deixou apanhar.
As hipóteses de Mulcahy a respeito das atitudes estranhas de Wiley não
descartavam a possibilidade de que Jenna fosse o xis da questão.
Mulcahy despejou a massa de papéis que estava sobre a mesa dentro de
sua pasta, vestiu o casaco e abriu caminho através da redação em direção
aos elevadores.
“Cab, só um segundo.” Era o editor de Cidades, parecendo febril.
“Se o Wiley não der as caras, coloque alguma matéria bem leve no lugar
da coluna dele”, instruiu Mulcahy sem parar de andar. “Alguma coisa sobre
uma passeata, um negócio moderado nesse gênero. E no pé bote um boxe
em itálico. Diga que o Wiley está fora, doente. Diga que a coluna voltará
em breve.”
O editor de Cidades não desapareceu timidamente, como Mulcahy
esperava que fizesse. Mulcahy parou em frente aos elevadores e perguntou:
“Qual é o problema?”
“A polícia rodoviária acabou de ligar”, disse o editor de Cidades, não
sem dificuldades. “Eles encontraram o carro do Wiley, o Pontiac velho.”
“Onde?”
“No meio da Interestadual 95. Na hora do rush.”
“E nada do Wiley?”
O editor de Cidades sacudiu a cabeça sombriamente.
“O motor estava ligado, e a voz do Eric Clapton explodia no toca-fitas.
O carro estava lá, vazio, no meio do trânsito. Levaram para o quartel da
polícia de Miami. Mandei o Bloodworth ir até lá para ver o que dá para
descobrir. Quer que eu ligue para sua casa mais tarde?”
“Claro”, disse Cab Mulcahy, mais estupefato do que antes.
“Quanto à coluna, Cab...”
“O que é que tem?”
“Tem certeza que não quer dar uma chance para o Ricky?”
Mulcahy raramente franzia a sobrancelha ou levantava a voz, mas
estava prestes a fazer as duas coisas.
“Você tem alguma reportagem sobre passeata para amanhã? Não venha
me dizer que não. Sempre tem uma passeata nesta merda de cidade.”
“Eu sei, Cab. Só que hoje foi uma passeata muito pequena.”
“Não faz mal.”
“Mas Dia do Nacionalismo de Belize?”
“Perfeito. Mande bala. Bote uma foto legal também.”
“Mas, Cab...”
“E ligue para a Jenna. Já.”
“Olá!”
Brian Keyes arregalou os olhos diante do rosto redondo e amigável de
uma mulher de meia-idade.
“Você está machucado?”, perguntou ela.
“Acho que quebrei a espinha.”
Keyes estava deitado do lado de fora do Pauly’s Bar. O asfalto cheirava
a cerveja choca e mijo. Fragmentos de vidro invisíveis de uma garrafa de
vinho velha estavam cravados em seus ombros. Eram onze horas da noite e
a rua estava muito escura.
“Meu nome é Nell Bellamy.”
“E o meu é Brian Keyes.”
“Quer que eu chame uma ambulância, senhor Keyes?”
Keyes fez que não com a cabeça.
“Estes aqui são meus amigos, Burt e James”, disse Nell Bellamy. Dois
homens com barretes cor de malva se agacharam e encararam Brian Keyes.
Eram shriners.
“O que você está fazendo aqui?”, perguntou um deles com educação.
“Levei uma surra”, replicou Keyes, ainda deitado de costas. “Mas vou
ficar bom daqui a um ou dois meses.” Percorreu as costelas com uma das
mãos, procurando sinais de fraturas. “E o que vocês estão fazendo aqui?”,
perguntou ele para os shriners.
“Estamos procurando o marido dela.”
“Theodore Bellamy”, disse Nell. “Ele desapareceu sábado.”
“Me ajudem a levantar, por favor”, disse Keyes.
Os shriners o colocaram de pé. Eram sujeitos grandes e fortes, e
ampararam Keyes até que a tontura passasse. Do Pauly’s Bar vinham ruídos
de vidros quebrados e gritos em espanhol.
“Vamos andar um pouquinho”, disse Keyes.
“Mas eu queria entrar lá para perguntar”, disse Nell, apontando o bar
com o nariz, “para ver se alguém viu o Teddy.”
“Acho que não é uma ideia das melhores”, grunhiu Keyes.
“Ele tem razão, Nell”, aconselhou um dos shriners.
Assim, eles começaram a descer a avenida Washington. Era um cortejo
estranho, mesmo para os padrões da praia Sul. Keyes caminhava titubeante,
como um bêbado bem vestido, enquanto Nell distribuía folhetos com a foto
de Teddy. Os shriners andavam indiferentes em meio às maltas de
descamisados que se espalhavam do lado de fora de cortiços semidestruídos
e motéis caindo aos pedaços. Os refugiados lançavam sorrisos predatórios e
faziam gracejos em castelhano, mas os shriners eram imperturbáveis.
Nell Bellamy perguntou a Keyes o que tinha acontecido no bar, e ele lhe
contou a respeito de Viceroy Wilson.
“A gente viu um negrão sair acelerando”, disse Nell.
“Num Cadillac”, esclareceu Burt.
“O Burt é vendedor de Cadillacs”, disse Nell a Keyes. “Ele deve saber o
que está dizendo.”
Os quatro tinham alcançado o extremo Sul de Miami Beach, perto do
Joe’s Stone Crab, e estavam sozinhos na calçada. Aquela parte da praia Sul
não era exatamente um calçadão para passeio e, à noite, estava geralmente
deserta, fora os bêbados profissionais, assassinos com machadinhas e
imigrantes ilegais.
Com Nell abrindo caminho, a comitiva caminhou em direção à orla.
Burt notou que uma vez tinha visto os Dolphins jogarem um amistoso
com os Chicago Bears, e que Walter Payton tinha feito Viceroy Wilson
parecer um velhote estropiado.
“Isso foi em 75”, acrescentou o shriner.
“Naquela época os joelhos dele estavam meio chumbados”, disse Keyes
sem muito entusiasmo.
Ele não estava muito a fim de defender nenhum patife que tivesse lhe
dado uma cacetada num lugar como o Pauly’s. Em todos os seus anos como
repórter, nunca tinha sido espancado. Nenhuma vez. Ele tinha sido
perseguido, apedrejado e ameaçado de diversas maneiras, mas jamais
esmurrado de fato. Um murro era uma coisa pessoal demais.
“Você devia dar queixa”, sugeriu Nell.
Keyes sentiu-se um pateta. Lá estava aquela mulher valente procurando
seu marido desaparecido, no meio da noite, em regiões esquecidas por
Deus, enquanto Keyes simplesmente cambaleava junto, sentindo pena de si
mesmo por causa de um calombo horroroso na nuca.
Ele perguntou sobre Theodore a Nell Bellamy. Ela se aprumou e contou,
pela décima sexta vez, tudo sobre a convenção, as águas-vivas venenosas,
os salva-vidas pouco ortodoxos e aquilo que, segundo os tiras, devia ter
acontecido a seu marido.
“Mas nós não acreditamos neles”, disse Burt. “O Teddy não se afogou.”
“Por que não?”
“Onde foi parar o corpo?”, disse Burt, apontando um braço gordo em
direção ao oceano. “Já faz dias que está soprando vento do Leste. O corpo
já devia ter vindo à tona e estar flutuando.”
Nell sentou-se numa mureta na borda da praia e cruzou as pernas. Ela
vestia calças azuis e uma modesta blusa de um vermelho, não muito forte.
Mordendo o lábio, ela se pôs a contemplar a espuma das ondas, visível
mesmo numa noite sem luar como aquela.
Os leais shriners, de pé, mudavam de posição desconfortavelmente,
conscientes de sua dor. Tentando distraí-la, Burt disse:
“Mas o que é mesmo que o senhor faz, senhor Keyes?”
Keyes não queria contar. Sabia exatamente o que aconteceria se o
fizesse: teria nas mãos um caso de desaparecimento que não queria pegar
em absoluto.
“Trabalho para uns advogados na cidade”, disse ele de modo ambíguo.
“Faz pesquisa?”, perguntou Nell.
“É, mais ou menos.”
“Você conhece bastante gente? Gente importante, quer dizer. Policiais,
juízes, esse pessoal?”
Lá vamos nós, pensou Keyes. “Alguns”, disse ele. “Mas não muitos.
Acho que não sou o indivíduo mais popular de Dade County.”
Mas isso não a deteve.
“Quanto você cobra dos advogados?”, perguntou Nell em tom de quem
queria fechar negócio.
“Depende. Duzentos e cinquenta, trezentos por dia. É o que a maioria
dos detetives cobra.” Não fazia sentido esconder a coisa por mais tempo. Se
o preço dos honorários não a assustasse, nada o faria.
Nell levantou-se da mureta e espanou refinadamente a parte de trás das
calças. Pedindo licença, levou os shriners para um lado. Keyes observou-os
cochichando na penumbra sob um poste de luz: uma mulher rechonchuda
de feições agradáveis, daquelas que se encontram em bazares beneficentes
de igreja, e, de cada lado, um robusto habitante do Meio-Oeste, cada um
usando um barrete púrpura. Nell parecia dominar a conversa.
Keyes sentia dores em todo o corpo, mas o pior era a cabeça. Deu uma
conferida no bolso da calça; milagrosamente, sua carteira ainda estava lá. A
simples ideia de caminhar quatro quilômetros de volta até o MG o deixava
exausto.
Algum tempo depois, Nell se aproximou novamente. Estava segurando
um pedaço de papel dobrado.
“Você aceita casos particulares?”
“Eu lembrei de falar que o meu pagamento não inclui as despesas?”
Nell nem vacilou.
“Você está disponível para pegar um caso particular?”
“Mas, senhora Bellamy, a senhora nem me conhece direito...”
“Por favor, senhor Keyes. Eu não conheço ninguém aqui, mas gostei de
você e acho que posso confiar em você. Meus instintos não costumam
falhar. E o mais importante é que eu preciso de alguém que tenha...”
“Colhões”, acudiu Burt prestimosamente.
“Você marchou para dentro daquela taverna horrorosa como um
soldado”, disse Nell. “Precisamos de alguém como você.”
A única coisa decente a fazer era dizer não. Keyes não podia pegar o
dinheiro daquela mulher simpática e alimentar suas falsas esperanças até
que o pobre Teddy finalmente surgisse inchado na praia. Poderia levar
semanas, dependendo das marés e do vento. Seria uma rapinagem, e Keyes
não podia fazer isso.
“Lamento, mas não tenho como ajudar.”
“Eu sei o que você está pensando, mas tem uma coisa aqui que talvez
faça você mudar de ideia.” Nell passou para ele o papel dobrado. “Alguém
deixou isso na minha caixa de cartas lá no hotel”, explicou ela, “na mesma
manhã em que meu marido desapareceu.”
“Leia”, disse o shriner chamado James, quebrando seu silêncio.
Keyes foi para perto do poste de luz e desdobrou a carta. Tinha sido
cuidadosamente datilografada, em espaço três. Keyes a leu duas vezes.
Ainda assim, não conseguia acreditar no que ela dizia:
“Sente-se, García.”
Al García sentou-se na cadeira. Harold Keefe, o investigador ruivo,
limpou a garganta como se tivesse ensaiado o gesto. Apanhou um exemplar
do Miami Sun e o balançou na cara de García.
“Você pode explicar isto?”
“Explicar o que, Hal?”
“Esta declaração dada por um certo Alberto García da Polícia de Dade.
‘O caso ainda está sendo investigado: não posso comentá-lo.’ Pode explicar
isso?!”
“Sem comentários”, disse García, “é o que posso dizer. Essa é a política
do departamento. Está lá na porra do boletim.”
Hal enrolou o jornal e bateu com ele violentamente na mesa, como se
estivesse matando uma barata.
“Neste caso não tem política de departamento. Este caso está encerrado,
lembra?”
García rangeu os dentes e tentou ficar de bico calado, para não dizer
algo de que se arrependesse mais tarde.
“Hal, esse sujeito, o Bloodworth, liga para mim altas horas da noite,
certo? Diz que conversou com esses dois caras, uns shriners, que falaram
para ele sobre o companheiro desaparecido, o senhor Bellamy. Você lembra
do Bellamy, não?”
Hal fez um gesto evasivo e balançou a cabeça.
“Bem”, disse García, “esse maluco do Bloodworth afirma que ouviu
alguém dizer que há alguma ligação entre o caso deste Bellamy e o de
Harper. Algo sobre cartas extorsivas, foi o que ouviu. E diz que está
escrevendo uma reportagem sobre o desaparecimento de Bellamy.”
“Ah, e foi o que ele fez.” Hal bateu no jornal com os dedos. “Imprimiu
fotos do senhor Bellamy, ofereceu cinco mil dólares de recompensa por
qualquer informação etc. Nada de errado com isso, García. Mas você não
tinha que dizer o que disse, especialmente do jeito que disse.”
“Tudo o que eu disse é que não tinha nada a declarar.”
“E onde aprendeu como fazer isso, na Escola de Relações Públicas de
Meyer Lansky? Você deu a entender que estamos escondendo alguma
coisa.” Hal se levantou. “Por que não disse simplesmente que o caso estava
arquivado? Diga que pegamos o assassino e que ele acabou com a porra da
vida dele na cadeia. Este é o último capítulo da história do caso Harper.
Ponto final.”
“E o Bellamy?”, perguntou García.
A cara de Hal ficou mais vermelha do que García jamais imaginou que
pudesse ficar, e enormes manchas de suor, do tamanho de bolas de
basquete, desenharam-se debaixo das mangas de sua camisa de poliéster
azul. Obviamente, Hal estava num dia infernal.
“Bellamy era um bêbado. Caiu no mar e se afogou”, disse Hal.
“Esqueça esse puto do Bellamy.”
“E as cartas de El Fuego?”
Hal cerrou as mãos num gesto planejado de civilidade. Harold Keefe
não era um homem que sugerisse naturalidade quando de mãos cerradas.
“Fico feliz por ter mencionado as cartas”, disse Hal. “Concluímos que
elas são trotes.”
García ergueu as sobrancelhas, mas não disse nada. Percebeu que Hal
avançava para algo memorável.
“Mostramos as cartas de El Fuego para o doutor Remond Courtney, o
famoso psiquiatra. Ele diz que as cartas são falsas, e os caras do laboratório
concordaram. O que não me surpreendeu, já que não houve nenhum pedido
de resgate, nem corpos...”
“A não ser o de Harper”, resmungou García.
“Esquece o Harper, porra! Estou falando de Bellamy e da outra.”
“Que outra?”
“Veja aqui. Apareceu esta manhã.” Hal passou uma cópia xerox por
cima da mesa.
A carta era idêntica às outras.
“Quem é senhor Richaud?”, perguntou García tentando não demonstrar
muito interesse.
“David Richaud é o amiguinho de uma certa Renée LeVoux.” Hal
pronunciou Leivox. “A senhorita LeVoux desapareceu há três dias, no
estacionamento do Seaquarium. Richaud deu queixa no departamento de
pessoas desaparecidas. Ontem, esta carta foi entregue no hotel onde ele
está, em Key Biscayne.”
“O que diz o sujeito?”, perguntou García.
“Diz que a mulher foi raptada. Queixa-se que o autor do rapto deu um
murro na cabeça dele e aí ele desmaiou.”
“Você não acredita muito nele, parece.”
Hal riu causticamente.
“Tem muito papo furado em toda essa merda amadora que ele contou.
Eles tiveram uma briga, ela tomou um táxi e deu o fora para o Sul com a
grana das férias. Richaud fica furioso e saca que a melhor maneira de
encontrá-la é envolvendo a polícia. Muito óbvio, eu diria.”
“Hum”, rosnou García.
“O que nos conduz às cartas.” Hal abriu uma gaveta de arquivo e tirou
uma pasta. García sabia que aquele era o momento de começar a se
preocupar.
“Tive uma conversinha com o chefe esta manhã”, disse Hal. Al García
não se perturbou; Hal estava sempre tendo conversinhas com o chefe.
“Parece que o chefe”, disse Hal, “acha que estas cartas estão sendo
geradas aqui dentro do departamento de polícia.”
García bufou.
“Ele acha que El Fuego é um tira?”
“O chefe”, disse Hal com austeridade, “está seriamente preocupado.
Ordenou que eu fizesse uma investigação interna. Ele acredita que alguém
daqui está escrevendo estas cartas falsas para manter o caso Sparky Harper
em aberto.”
“Por quê?”
Ele encolheu os ombros de modo pretensamente ingênuo.
“Ambição, rancor, talvez mesmo ciúme profissional. Quem sabe? Em
todo caso, a teoria do chefe faz bastante sentido. Quem quer que esteja
enviando essas cartas loucas está pegando os destinatários da lista de
pessoas desaparecidas lá no departamento.”
Isso já é demais, pensou García.
“Hal”, disse ele, “você é um puta cascateiro. E o chefe também.”
O rosto de Hal ganhou um colorido semelhante ao do suco de uva.
“Alguém está raptando turistas”, disse García. “E tudo o que vocês
querem fazer é pôr uma pá de cal em cima. Tenho uma ideia melhor: por
que não vamos para a rua e apanhamos esses sequestradores filhos da puta?
Vamos lá, Hal, vai ser divertido. Como nos velhos tempos, quando você era
um tira e não um politiqueiro de gabinete.”
Funestamente, Hal abriu a pasta. Dentro havia um memorando cor-de-
rosa, nada mais.
“Investigador García”, disse ele, “a partir de hoje seus deveres estão
restringidos por tempo indefinido, até que termine nossa investigação. A
corregedoria quer levar um papo com você, portanto você deveria pensar na
ideia de procurar um advogado.”
“Lindo, lindo mesmo”, resmungou García.
Hal fechou a pasta de supetão.
“Você trabalhará no turno da noite”, disse ele, “na equipe de apoio à
patrulha.”
“Ah, sim, a zona de combate.”
“Não é tão terrível assim... ah, sim, alguns policiais vão visitar sua casa
mais tarde. Só para dar uma olhadinha.”
“Hal, eles vão perder tempo. Eu não tenho máquina de escrever.”
“Não importa. Tente cooperar.”
“Mas, Hal...”
“Pode ir embora agora”, disse Harold Keefe, no melhor tom de sua voz
de diretor de escola secundária, “e tente evitar encrencas até que tudo esteja
esclarecido. Não fale com nenhum outro repórter... ou, para todos os fins,
com detetives particulares.”
García se inclinou e bateu sonoramente com os nós dos dedos na mesa.
“Hal”, disse ele, “você é tapado demais para enxergar o que está
acontecendo, mas essa merda toda vai explodir bem na sua cara balofa de
irlandês.”
Quando Brian Keyes acordou, a primeira coisa que notou foi a presença
de uma mulher montada nele na cama do hospital. Sua cabeça loira
repousava sobre o ombro dele, e ela parecia estar dormindo. Keyes tentou
torcer o pescoço para verificar quem era, mas cada pequeno movimento que
fazia redundava em dores descomunais.
Todo o peso da mulher parecia concentrar-se sobre seu peito: as costelas
de Keyes ainda doíam em função da cirurgia. À procura de pistas, ele
começou a passar uma das mãos pelos cabelos suaves da mulher e a inspirar
a fragrância de seu perfume; fazer isso tudo não foi fácil, especialmente
com o tubo enfiado em seu nariz.
“Jenna?”, arriscou.
A mulher se ergueu resmungando um “hum” como resposta.
“Jenna, então é você?”
Ela lhe disse um “olá” com os olhos sonolentos.
“Sua voz está parecida com a do George Burns. Quer um pouco de
água?”
Keyes aceitou a água com um aceno e suspirou quando Jenna desceu da
cama.
“Onde conseguiu esse uniforme de enfermeira?”
“Gostou?”, perguntou ela fazendo uma pose. “Olhe só as meias
brancas.”
Keyes sorveu a água fria; sua garganta estava um forno.
“Que horas são? Que dia é hoje?”
“Dez de dezembro, meu querido. São dez e meia da noite. Aliás, já
acabou o horário de visita, por isso tive que usar esse uniforme.”
“Você daria uma enfermeira espetacular. Estou ficando melhor a cada
segundo.”
Jenna enrubesceu. Ela se sentou no pé da cama.
“Você estava tão gracinha enquanto dormia.”
Keyes fechou os olhos e simulou um ronco.
“Pare com isso!”, disse Jenna gracejando. “Você é gracinha de qualquer
jeito. Ah, Brian, sinto muito. O que aconteceu lá?”
“Skip não te contou?”
Ela virou a cara.
“Não falei com ele.”
Ela deve pensar que sofri uma lobotomia, pensou Keyes.
“O que aconteceu?”, insistiu ela.
“Fui esfaqueado por um dos caballeros de Skip.”
“Não posso acreditar”, disse Jenna.
Interrompendo-se apenas para goles de água, Keyes relatou a triste
história da sra. Kimmelman. Desta vez, Jenna pareceu atenta a cada palavra.
Ela se mostrou curiosa, mas não chocada.
“Coitada daquela mulher. Você acha que ela morreu?”
Keyes balançou a cabeça pacientemente.
“Tenho certeza absoluta.”
Jenna se levantou e caminhou até a janela.
“O tempo esquentou de novo”, notou ela. “Três dias de meia-estação,
tão gostoso, e pronto, a cidade-sauna outra vez. Minha família já está com
meio metro de neve no quintal.”
“Jenna?”
Quando ela se virou para encará-lo, seus olhos estavam úmidos. Ela
estava tentando segurar as lágrimas, tentando recuperar a magnífica atriz
que costumava ser.
“Sinto muito, muito”, gaguejou. “Eu não sabia que você ia se
machucar.”
Keyes estendeu a mão.
“Eu estou legal. Vem cá.”
Ela subiu na cama novamente, soluçando no ombro dele. A princípio a
dor era assassina, mas o perfume de Jenna era melhor que morfina. Keyes
pensou no que diria se uma enfermeira de verdade entrasse.
“Como o Skip está?”, soluçou Jenna.
“O Skip está um pouco louco, Jenna.”
“Mas é claro que está.”
“Um pouquinho mais louco do que de costume”, disse Keyes. “Ele está
assassinando os turistas.”
“Eu imaginei que fosse alguma coisa assim. Mas não se trata de
assassinato de verdade, não é? Quero dizer, assassinato no sentido
criminoso.”
“Jenna, ele deu uma senhora para um crocodilo comer!”
“Ele me mandou um telegrama”, disse ela.
“Um telegrama?”
“Dizia isso: ‘Querida Jenna, queime todas as fichas da minha agenda
Rolodex imediatamente. Te amo, Skip’.”
Keyes perguntou:
“E você queimou? Queimou as fichas?”
“Claro que não”, disse Jenna, como se a sugestão fosse absurda.
“Obviamente, a mensagem estava em código, um código que eu ainda não
consegui decifrar. Além disso, ele guarda a agenda naquele caixão que me
mata de medo.”
Keyes fez uma careta, mas não de dor.
“Olhe para todos estes tubos”, disse Jenna. “Tem um no seu peito, um
no seu nariz e outro na veia do seu braço. O que tem naquele frasco?”
“Glicose. Amanhã posso voltar a comer e em três dias poderei sair
daqui. Jenna, onde está o Skip neste momento?”
“Não faço ideia.”
“Você tem que encontrá-lo. Ele matou quatro pessoas.”
“Não, pessoalmente ele não matou ninguém.” Jenna puxou o lençol.
“Deixe-me ver seus pontos.”
Keyes se virou de lado e ergueu o braço direito.
“Minha nossa”, disse Jenna, assobiando.
“Feio, não?”
“Parece um trilho de ferrovia.” Com um dedo leve como pluma, ela
contornou a ferida. Keyes sentiu um prazeroso arrepio.
“A faca chegou a atingir seu pulmão? Quero dizer, foi mesmo uma
faca?”, perguntou Jenna.
“Só raspou de leve”, disse Keyes.
“Ai”, sussurrou Jenna. Ela acariciou-lhe a testa e sorriu. “Como você se
sente, quero dizer, no fundo da alma?”
Keyes se excitou. Ele sabia o que ela queria dizer. Do fundo da alma.
“Meio tonto”, disse ele, pensando: Algo de extraordinário está
acontecendo aqui; talvez Wiley esteja debaixo da cama.
“Muito tonto? E se eu tirasse esse tubo aqui... você aguentaria?
Conseguiria respirar?”
“Bem, podemos tentar”, disse Keyes. Claro que ela não poderia estar
falando sério. Não naquele lugar. Ele removeu o tubo de oxigênio e
respirou profundamente três vezes.
“Tudo bem?”, perguntou Jenna.
Keyes balançou afirmativamente; era uma dor suportável.
Jenna esgueirou-se para fora da cama e começou a desabotoar o
uniforme engomado de enfermeira. De repente lá estava ela metida apenas
em suas roupas íntimas e na meia branca de hospital. A expressão de
malícia em seu rosto era deliciosa. Uma expressão que Keyes não se
lembrava de ter visto antes.
“Que tal se a gente transasse?”, propôs Jenna.
Keyes ficou estupefato. Considerando os fatos ocorridos nos últimos
dias, até que ele era merecedor de um milagre desses. Talvez essa fosse a
maneira de Deus equilibrar o destino. Ou talvez fosse qualquer outra coisa.
Keyes não se importou; era, talvez, a última chance de ele ter um prazer
infinito até que Skip Wiley fosse finalmente preso ou morto.
“É possível que eu ainda ame você, Brian”, disse Jenna, tirando seu
sutiã. “Você se importa se eu trancar a porta?”
“E as enfermeiras?”
“Vamos ficar bem quietinhos.” Jenna saiu de suas calcinhas, que
ficaram jogadas no chão. Ela estava radiante, com suas novas linhas de
bronzeado proporcionando uma aula fenomenal de contraste. Keyes nunca
tinha visto sua barriga tão escura, nem seus peitos tão brancos.
“Estou um bagaço, preciso fazer a barba”, disse ele, para em seguida
acrescentar: “Na verdade, não sei se vou conseguir fazer isso.”
Então ele decidiu calar a boca e deixar as coisas acontecerem, mesmo
porque de não estava cem por cento certo de que tudo aquilo não era apenas
um delírio provocado pelo Dilaudid e de que Jenna não era apenas uma das
miragens costumeiras de estadas em hospitais.
Ela o estudava numa pose artística, os braços cruzados, um dedo nos
lábios.
“Isto vai ser um pouco complicado. Acho melhor eu ficar por cima”. E
foi o que fez.
Mergulhado em prazer, Keyes beijou o pescoço e a garganta e o ombro
de Jenna, e tudo aquilo que sua boca podia alcançar. Ele a tinha meio
abraçada, usando para isso o braço não conectado ao tubo intravenoso, e,
com os dedos, acariciava a coluna de Jenna, que parecia extasiada com essa
manobra. Ela se curvou e o pressionou para baixo com seus lábios. Sua
mira foi perfeita.
“Você sentiu minha falta, Brian?”
“Sim!”, respondeu com o pouco fôlego que lhe restara.
Jenna sentou-se, cavalgando-o. Seus olhos estavam úmidos e, a
princípio, não muito distantes. Ela segurava suavemente nas grades laterais
da cama, como se estivesse passeando num trenó.
“Estou te machucando?”, perguntou ela com um de seus sorrisos fatais.
“Acho que não, não é?”
Em parte por causa daquele louco momento de paixão e em parte para
aliviar seu diafragma esmagado, Keyes a puxou para si. Ele beijou
delicadamente sua boca e imediatamente ela fechou os olhos. No princípio
ela parecia tatear, talvez até estivesse um pouco nervosa, mas não demorou
e Jenna começou a repetir as coisas incríveis que costumava fazer quando
eram amantes. Coisas que ele jamais tinha esquecido mas que pensou que
jamais voltaria a vivenciar.
Fazer amor com Jenna sempre fora uma espécie de exercício emocional
para Brian Keyes — terapia de choque para o seu coração. Para ser mais
exato, seu cérebro parecia atrofiar quando ela o tocava. Ele se esqueceu
totalmente de onde estava e do motivo por que estava lá. Esqueceu-se dos
pontos, do pulmão afetado e do tubo que pendia do seu lado. Esqueceu-se
da enfermeira, que estava batendo na porta. Esqueceu-se até mesmo de Ida
Kimmelman e do maldito crocodilo.
Esqueceu-se de tudo, exceto de Jenna e Wiley.
“E o Skip?”, sussurrou ele entre mordidas. “Eu pensei que você
estivesse loucamente apaixonada por ele.”
“Fique quieto agora”, disse Jenna, conduzindo a mão desocupada de
Keyes. “E tente não chutar o tubo.”
14
Noventa minutos mais tarde, ela deixou a casa carregando uma bolsa de
viagem de napa e uma lata com as barras de granola. Usava calças jeans
apertadas, uma blusa longa e confortável e sapatos de salto brancos. Os
cabelos estavam arranjados num coque portentoso.
No percurso até o aeroporto, Jenna dirigiu o carro no seu estilo peculiar
— nenhum reconhecimento ou consideração pela calçada, pelos sinais de
“pare”, pelos faróis ou mesmo pelos pedestres. Brian Keyes mantinha uma
distância de uns dois ou três quarteirões, encolhendo-se de susto toda vez
que Jenna escapava por um triz de um acidente. Ele havia tomado de
empréstimo o carro alugado de um dos shriners, porque Jenna certamente
reconheceria o velho MG só de ouvir o ronco do motor.
Ela estacionou na garagem especial para longa permanência do
Aeroporto Internacional de Miami. Abaixando-se no assento do motorista,
Keyes passou por ela rapidamente e foi encontrar uma vaga no andar de
cima. Saltou do carro, desceu velozmente pela escada rolante e ainda viu a
imagem de Jenna desaparecendo dentro do elevador. Correu todo o percurso
até o terminal de passageiros e lá se plantou em vigília.
Mesmo no meio da multidão, era impossível perder Jenna. Ela ostentava
um jeito clássico de andar em aeroportos, sensual mas indiferente; os
homens sempre abriam caminho e davam aquela olhadinha para ver aonde
estavam indo os jeans de Jenna, balançando de um lado para o outro, um
divino metrônomo natural.
Keyes a seguiu até que ela parou no guichê de compra de passagens da
Bahamasair. Ele se escondeu atrás de uma pilastra, procurando por Skip
Wiley.
“Precisa de uma mãozinha?”
Keyes voltou-se.
“Meu Deus!”
“Não queria assustá-lo.”
Era Burt, o shriner.
“De onde você surgiu?”, perguntou Keyes.
“Estava bem atrás de você, desde que você entrou.”
“E o seu parceiro?”
“Ele está por aí. Com os olhos grudados naquela fulana, sua amiga.”
Keyes estava impressionado; aqueles caras não eram tão ruins assim.
“Ela está indo para Nassau”, relatou Burt. “Sua passagem já estava paga
previamente.”
“Por quem?”
“Pela Corporação Nação Semínole da Flórida. Isto faz algum sentido,
senhor Keyes?”
“Eu explico depois.”
Keyes espiou cautelosamente o guichê da Bahamasair por trás da
pilastra, mas Jenna havia sumido.
“Merda!”
“Não se preocupe”, disse Burt. “James está no encalço dela.”
“Estamos muito atrasados.” Keyes saiu em disparada.
Devido ao fenomenal número de sequestros de aviões que decolavam de
Miami, o Departamento de Aviação Civil tinha implantado sofisticadas
medidas de segurança projetadas para impedir que qualquer pessoa
portando bombas, armas ou passagens vencidas entrasse no terminal de
embarque. A mais efetiva de todas essas medidas foi o emprego de pelotões
de mulheres estrangeiras gordas, com cara de bravas, para obstruir todos os
corredores e assediar todos os passageiros.
Na trilha de Jenna, James, o shriner, foi bloqueado no Corredor G, onde
uma corpulenta guarda de segurança chamada Lupee o encostou na parede e
energicamente começou a interrogá-lo em português. O ponto central de
suas preocupações era o fez que James estava usando, o qual ela arrancou
de sua cabeça e imediatamente fez passar diversas vezes pela máquina de
raio X, esmagando-o nesse processo. Nesse meio tempo, o voo 123 da
Bahamasair para Nassau partiu.
“Estraguei tudo”, desculpou-se James mais tarde num quiosque de café.
“Lamento.”
“Não se preocupe”, disse Keyes. “Você não tinha chance.”
“Não mesmo”, concordou Burt. “Senhor Keyes, nossa informação diz
que sua mulher está viajando sozinha.”
De alguma forma, Burt conseguira uma cópia da lista de passageiros
(ele não diria como o fez, mas Keyes concluiu que se tratava de alguma
conexão maçônica com um dos atendentes no aeroporto). Com os shriners
olhando por sobre seu ombro, Keyes correu o dedo pela lista de
passageiros. Wiley não estaria usando seu verdadeiro nome, e muito menos
teria adotado um simples Smith ou Jones como nome falso.
“Quem estamos procurando?”, perguntou Burt.
“Um maluco muito astuto.”
“Como você disse que era o nome dele mesmo?”
“Eu não disse”, replicou Keyes.
Ele finalmente encontrou aqueles que estava procurando, nos assentos
15-A e 15-B:
“Karamazov, Viceroy.”
“Karamazov, Skip.”
Keyes amassou a lista de passageiros até que ela se transformasse numa
bola e, enojado, jogou-a no lixo por trás do ombro. Os shriners a
recuperaram e estudaram os nomes.
“Muito espertinho, esse seu amigo”, disse Burt. “Parece que ele está se
divertindo muito com isso tudo, não é?”
“É mesmo o que parece”, rosnou Keyes, tentando se lembrar onde,
diabos, havia deixado seu passaporte.
16
“Kara Lynn.”
“Pois não, senhor prefeito.”
“O que você pensa sobre a fome?”
Kara Lynn Shivers considerou cuidadosamente a questão.
“Que fome, senhor prefeito?”
“A fome do mundo em geral”, disse o prefeito.
“Bem, em geral”, disse Kara Lynn, “acho que a fome é realmente uma
coisa terrível.”
“Se você fosse escolhida nossa rainha do Orange Bowl”, continuou o
prefeito, “você trabalharia para acabar com a fome no mundo?”
“Incansavelmente, senhor prefeito.”
Os demais jurados balançaram afirmativamente as cabeças. Eles
gostavam de Kara Lynn mais do que de qualquer outra semifinalista, e já
haviam se decidido. Se ao menos o prefeito fosse menos prolixo na última
entrevista.
“E como você faria isso?”, perguntou o prefeito.
“Faria o quê?”, disse Kara Lynn.
“Dar um basta na fome.”
“Eu não disse que daria um basta”, disse Kara Lynn com um traço de
sarcasmo. Na terceira fila, ela visualizou seu pai, que, intimidador, simulava
o movimento de uma faca deslizando sobre sua garganta.
“Mas eu certamente tentaria”, disse ela, amaciando. “Como o senhor
sabe, estou estudando relações públicas, senhor prefeito, e poderia usar
esses conhecimentos especiais para chamar a atenção do mundo para o
sofrimento das crianças famintas. Eu faria disso minha primeira prioridade
como rainha do Orange Bowl.”
O prefeito sorriu. O pai de Kara Lynn deixou escapar um suspiro de
alívio.
“Obrigado, Kara Lynn”, disse o prefeito. “Vamos fazer uma pausa até a
noite.”
“Obrigada, senhor prefeito”, disse Kara Lynn. E então, curvando-se
num doce agradecimento diante dos outros jurados: “Obrigada a todos
vocês.”
E agora, pensou ela, vocês todos podem voltar para o Hyatt e ir se foder.
Kara Lynn Shivers, dezenove anos, loira, olhos de avelã, um metro e
setenta e cinco de altura e cinquenta e cinco quilos (Viceroy Wilson estava
com a mão no dinheiro), transformara-se numa jovem cínica. Desprezava
concursos de beleza e todas as encenações fúteis que eles exigiam. Embora
tivesse ganho vários títulos — Miss Transporte de Massa Mirim, Miss
Anglo Miami e, claro, Rainha do Caranguejo —, cada nova coroa que
ganhava apenas fazia aumentar o profundo tédio de Kara Lynn. Atrás do
palco, ela não sorria, não fingia charme, nem paciência. Ela ficava farta de
tudo.
A culpa era de seu pai. Fora ele quem a fizera aprender a tocar “Eleanor
Rigby” na trompa. “Os juízes vão adorar isso”, ele dissera, e eles sempre
adoravam.
Fora seu pai quem a fizera, aos seis anos, mudar seu nome de Karen
Noreen, porque “Noreen pertence à Federação de Bandeirantes, não a
Atlantic City”.
Fora seu pai quem a arrastara para Genebra, aos nove anos, para ser
tratada pelo “mais famoso ortodontista ambidestro de toda a Europa”.
Kara Lynn Shivers suspeitava haver algo de muito esquisito com o
comportamento do pai — não por ele desejar que sua princesinha se
tornasse uma estrela (diga-se, uma fantasia inofensiva), mas por sugerir que
nenhum preço era alto demais para isso.
Fora seu pai quem enviara pacotes de retratos feitos em polaroide de
Kara Lynn de biquíni para a Playboy, depois para a Penthouse e finalmente
para a Oui, e depois de incontáveis recusas resolveu que Kara Lynn
precisava de seios mais suculentos, que, aliás, era tudo o que ela julgava
não precisar. Seus peitinhos eram simplesmente excelentes: redondinhos,
empinadinhos, perfeitinhos. Ninguém jamais se queixara de seus seios,
exceto seu pai, mesmo só os tendo visto nus quando da ainda era pouco
mais que um bebê.
Certa tarde, poucos meses antes do concurso do Orange Bowl, o pai de
Kara Lynn convidou secretamente um renomado cirurgião plástico para vir
à sua casa. Kara Lynn acabara de chegar da aula de ginástica, e estava
usando um colante cor-de-rosa. Ela estava na cozinha, preparando uma jarra
de chá gelado, quando os dois homens apareceram de repente atrás dela.
“E então, o que o senhor acha?”, perguntara seu pai.
“Moleza”, disse o cirurgião. “Prefere um tamanho B arredondado ou um
C?”
“Fiquem longe dos meus peitos!”, gritou Kara Lynn, apanhando uma
faca de cortar bife.
“Mas, docinho, eu só estou tentando ajudar.”
“Os peitos são meus, papai. Fique longe deles!”
“Quarenta milhões de pessoas vão ver aquela parada na véspera de Ano
Novo. Você não quer causar uma boa impressão?”
A mãe de Kara Lynn não ajudou muito.
“Seu pai só quer o melhor para você, querida”, disse ela. “O que há de
errado nisso?”
“Mamãe!”
“Vai ser um adorável presente de Natal.”
“Mas eu não quero ganhar melões novos no Natal”, disse Kara Lynn.
“Eu quero é um Volkswagen.”
Na noite de 16 de dezembro, Kara Lynn Shivers e seus peitos originais
encantaram uma pequena mas entusiástica plateia no Centro Cívico, e os
jurados, por unanimidade, coroaram-na rainha do Orange Bowl de Miami.
Um convidado surpresa, Julio Iglesias, presenteou Kara Lynn com um
buquê de rosas. Ela sorriu habilmente e aceitou o beijo de Julio, mas seu
coração não balançou. Depois que se apagaram os refletores das televisões,
Jerry, o apresentador seboso, agradeceu a Kara Lynn por tê-lo reanimado
depois do entrevero que tivera com o segurança negro. Jerry disse a Kara
Lynn que estava absolutamente “embriagado” pela sua performance de
“Eleanor Rigby”, e a convidou para um drinque.
“O que você quer é uma chupetinha”, disse Kara Lynn. “O que isto tem
a ver com a fome mundial?”
Kara Lynn Shivers resolveu que o Orange Bowl seria o seu último
concurso de beleza. E ela estava certa.
Nassau — A pior coisa que o visitante das Bahamas vai encontrar pela
frente são americanos, como eu. Os hotéis estão abarrotados por nós.
Americanos de educação abominável.
Americanos que falam como se o resto do mundo fosse surdo.
Americanos que se vestem como se o resto do mundo fosse cego.
Vim para as Bahamas em busca de tranquilidade e solidão, em
busca de um oásis para minha recuperação. E o que foi que consegui?
Uma dor de cabeça persistente como as badaladas de um sino de
igreja. Da Bay Street aos salões de bacará, não há como escapar dessa
praga que atende pelo nome de turista.
Na Flórida, nos acostumamos ao comportamento barulhento dos
turistas (e os toleramos por causa da ganância), mas há algo de
obsceno em testemunhar sua ação em plagas estrangeiras.
Francamente, devemos nos envergonhar de nós mesmos.
Talvez os americanos sejam compelidos por um impulso atávico que
os leva a evacuar suas cidades durante as temporadas de férias e sair
para explorar novas terras. Ótimo. Mas como explicar as bermudas
fluorescentes? Ou as sandálias de praia que o próprio E. T. não usaria?
O que nos dá o direito de, tão acintosamente, ofender o resto da
civilização?
Dir-se-á: ora, vejam só quem está falando!
Outro dia tentei praticar windsurfe — um esporte absurdo que exige
que nos equilibremos arriscadamente sobre um pedaço de fibra de vidro
no formato de uma banana enquanto controlamos os ventos e as ondas
com uma ridícula vela de náilon quase transparente.
As lições de windsurfe nas Bahamas custam quarenta e cinco
dólares, uma pechincha para os otários que durante as férias acreditam
piamente que, quanto mais perigosa uma empreitada, mais se deve
pagar para experimentá-la. E para alguém de trinta e sete anos
degenerado e em precárias condições como eu, o windsurfe é repleto de
excitantes pequenos perigos: lacerações, fraturas expostas, ínguas,
paralisia vertebral — isto para não mencionar a toxicidade das águas-
vivas, os tubarões assassinos e os raios ultravioletas.
Windsurfe provavelmente não é tão perigoso quanto, digamos,
sobrevoar a ilha de Cuba num lento U-2, mas quem há de encontrar um
piloto da força aérea que já teve de se preocupar com o fato de perder
seus calções de banho (e sua autoestima) na frente de uma multidão de
turistas apalermados, que não sabem rir e parecem camarões
descascados?
Foi o que aconteceu comigo ontem em plena luz da tarde, quando
fiquei momentaneamente cego por causa do baque de uma onda que
arrebentou sobre mim.
Meu instrutor de windsurfe, Rudy, teve, claro, todo o direito de se
matar de rir; foi mesmo um incrível espetáculo vespertino.
Depois de meu rodopio (e quase afogamento), eu o acusei em altos
brados de ter me fornecido equipamento defeituoso, Mas Rudy
argumentou: “O único equipamento defeituoso, campeão, é o seu velho
corpo bêbado”.
Ele tinha razão. Não se pode surfar com uma garrafa de rum Myers
debaixo do sovaco. Turista estúpido este.
O Retorno de Wiley.
“Como você pôde imprimir uma baboseira dessas?”, quis saber Brian
Keyes.
“Vamos com calma”, disse Mulcahy, “e feche a porta.”
Mas Keyes não podia estar calmo, não com a alongada cara de Wiley
olhando-o de soslaio das páginas do Miami Sun. Que o jornal quisesse
ressuscitar sua coluna era inacreditável, uma monstruosa brincadeira. Wiley
tinha o revólver e Mulcahy lhe dera a munição, embrulhada em papel de
presente.
“Cab, você não sabe onde está se metendo.”
“O pior é que sei.” Mulcahy parecia pesaroso. “O Skip está envolvido
com esses terroristas, não está?”
“Não está simplesmente envolvido, Cab, ele é quem está comandando o
show. É o Nachos número um.”
“Você tem certeza, Brian?”
“Absoluta.”
O editor cerrou os olhos.
“A que ponto de ruindade chegou a coisa?”
“Imagine o general Patton viajando de ácido.”
“Entendo.”
Eles permaneceram sentados num silêncio moroso, fingindo olhar
através da janela da sala de Mulcahy. Na baía de Biscayne, as ondas
cinzentas refletiam os pesados chumaços de nuvens carregadas de chuva,
que avançavam do Leste. Era provável que nas Bahamas estivesse caindo
uma tempestade infernal.
“Ele ligou ontem de Nassau”, começou Mulcahy. “Disse que estava se
sentindo melhor. Sem aquela raiva visceral, ele me disse; estava de volta
para o jornalismo classe A. Ele mandou a coluna por telex — totalmente
inofensiva, sem pregações, sem politiquices. Você tem que admitir, é
excelente para umas boas risadas. Eu disse a ele que iríamos publicá-la
quando ele estivesse de volta à Flórida e tivéssemos uma longa conversa, e
ele só respondeu: ‘Na hora certa’.”
“E você acabou publicando essa merda assim mesmo.”
“Fui voto vencido”, disse Mulcahy.
“Por quem?”
“Pela única pessoa que conta.”
“O Cardoza?”, perguntou Keyes.
Cardoza era o dono do jornal.
“Sim, o príncipe, em pele e osso”, disse Mulcahy. “Duas semanas é
muito tempo para ter sua estrela afastada, Brian. Eu disse para o Cardoza
que o Skip ainda estava estressado e tudo o mais. Mas ele leu a coluna e
argumentou que Skip não parecia nem um pouco estressado e que, portanto,
deveríamos publicar a coluna. E foi isso, sem chance de argumentação.
Escute, estávamos recebendo pilhas de cartas, entre elas um monte de
cancelamentos de assinaturas. Era como se a gente tivesse parado de
publicar as tiras do Doonesbury ou o Charlie Brown.”
“Você contou tudo para o Cardoza?”, disse Keyes.
“Quase tudo o que você contou para os policiais.”
Keyes encolheu os ombros. Touché.
“Isto é fabuloso”, disse Mulcahy sarcasticamente. “Aqui estamos nós,
dois paladinos da verdade com a verdade na mão pela primeira vez na vida
e sem saber o que fazer com ela. E então, o que fazemos? Escondemos o
fato. Engolimos em seco. Disfarçamos. Você deveria estar contando tudo
para a polícia e eu para os meus leitores, mas olhe para nós — os gêmeos
cagões em pele e osso. Ambos estamos preocupados com aquele filho da
puta enlouquecido — como se ele merecesse nossa consideração — e
estamos ambos dizendo a nós mesmos que tem que ter outra saída. O
problema é que não tem outra saída, tem? Isto tudo já foi longe demais.
Gente morta, policiais furiosos, e a cidade em polvorosa. Enquanto isso, o
nosso velho amigo Wiley se esconde em algum lugar por aí, sonhando com
alguma última frase de efeito para esta brincadeira medonha.”
“O que você quer fazer?”, perguntou Keyes.
“Ir até a polícia”, disse Mulcahy. “Neste exato momento.”
Keyes balançou a cabeça para indicar que esta ainda não era a melhor
solução.
“Skip disse que haverá um banho de sangue se o nome dele vier à tona.”
“Banho de sangue — ele usou esta expressão?”, perguntou um
incrédulo Mulcahy.
“Sim, massacre também, se não estou enganado. Temos que pensar
cuidadosamente na situação, Cab. Pensar no que eles já fizeram — os
raptos, as bombas. Veja o que eles fizeram com o doutor Courtney e o
detetive Keefe. Eu acho que o Skip não está blefando quando fala em banho
de sangue. Agora eles têm um currículo.” Keyes não mencionou suas
preocupações quanto às vidas do próprio Mulcahy e de Jenna.
“Está bem, suponha que a gente conte para a polícia mas esconda tudo
da imprensa.”
“Sejamos razoáveis”, disse Keyes. “Assim que os policiais tiverem o
nome do Wiley, isso vai vazar mais que um navio da marinha haitiana. E,
quando o pessoal de rádio e televisão espalhar o zunzunzum, o Sun não vai
ter escolha. Você terá que sair com a história toda. Ir para o front também.”
“Precisamos trazê-lo de volta das Bahamas”, afirmou Mulcahy. “Vou
tentar a embaixada.”
“Isso não vai funcionar, Cab. Lá, o Skip é intocável. Descobri que ele
entrou na ilha com passaporte falso, mas ninguém liga muito para isso em
Nassau. E aparentemente ele subornou todo mundo abaixo do primeiro-
ministro.”
“Então que diabos podemos fazer?”
Keyes disse:
“Acho que devemos jogar duro. Você tem a única coisa com a qual Skip
se importa: sua coluna no jornal.”
“Certo”, disse Mulcahy, “e cada palavra da coluna é antes aprovada por
mim.”
Keyes pensou nisso.
“Sei de algumas coisas interessantes sobre o governo das Bahamas”,
disse ele. “Eles são supersensíveis em relação à sua imagem nacional.”
“O que você está sugerindo?”
“Suponha que você reescrevesse a próxima coluna do Skip.”
“Ou suponha que eu mande o Bloodworth fazer isso”, disse Mulcahy.
“Seria uma paulada.” Nas palavras de Wiley, reescrever era um pecado
mortal, passível de castração. Seria como pichar a Capela Sistina, ele
costumava dizer.
Keyes pensou ter visto os olhos do velho Cab cintilarem.
“Suponha que eu entregue a coluna para o Bloodworth e peça a ele para
trocar a abertura, tornando a coisa mais incisiva. E que eu peça a ele que
reforce algumas das passagens mais energéticas do Skip.”
“Você pode transformar o texto em algo que toque nos brios do pessoal
das Bahamas”, especulou Keyes. “Acabar rapidinho com o amor que as
Bahamas têm pelo Skip.”
“Não posso acreditar que estamos falando essas coisas.”
“Vamos supor que isto dê certo”, disse Keyes. “Digamos que ele volte
para Miami. E então?”
“Nós o interceptamos no aeroporto”, disse Mulcahy. “O entregamos à
polícia e ele sai de circulação. Depois, arranjamos ajuda médica
profissional para ele.”
“Ele sempre vai poder alegar insanidade.”
“Acho que eu vou acabar precisando de ajuda médica”, murmurou
Mulcahy. “Depois de vinte e dois anos, eu já deveria saber como detectar
um psicopata dentro da minha própria redação.”
“Ao contrário”, disse Keyes. “Quanto mais você está no negócio, mais
difícil fica.”
Mulcahy era um daqueles raros editores que se tornam jornalista pelos
motivos certos, com todos os instintos e sensibilidades certas. Ele era um
ser humano maravilhoso — justo mas não fraco, duro mas não embrutecido,
agressivo mas circunspecto. A situação de Wiley o estava deixando
emocionalmente derrubado.
Mulcahy brincou com um memorando, passando o dedo nas
extremidades do papel.
“Eu puxei o arquivo pessoal dele hoje, só para me divertir um pouco.
Deus do céu, Brian, está repleto de loucuras. Coisas que eu tinha esquecido
completamente.”
Os episódios apresentavam uma escala crescente de gravidade:
13 de dezembro de 1978. Skip Wiley repreendido por encarnar o
conselheiro de Segurança Nacional Zbigniew Brzezinski num esforço de
obter camarotes para um jogo das finais da NFL.
17 de abril de 1980. Wiley repreendido depois de preencher sua
declaração de imposto de renda listando suas ocupações como sendo as de
“profeta, redentor e vidente”.
23 de julho de 1982. Wiley suspenso por dois dias, com pagamento,
depois de usar símbolos cuneiformes obscenos para descrever o senador
Jesse Helms, da Carolina do Norte.
7 de março de 1984. Wiley suspenso por cinco dias, com pagamento,
depois de dizer, num programa de entrevistas no rádio, que todo o
manancial de água da Flórida tinha sido envenenado por traficantes de
drogas bolivianos.
3 de outubro de 1984. Wiley suspenso por três dias, sem pagamento, por
atacar uma testemunha de jeová com um arpão de pescar marlin.
“Acho que eu não estava prestando atenção nisso”, disse Mulcahy, “de
propósito.” Ele se inclinou para a frente e baixou o tom de voz,
sussurrando. “Brian, você acha que ele está louco de verdade? Quero dizer,
louco, louco mesmo?”
“Não tenho certeza. Ele não está babando ou andando pelado na rua. Se
estivesse, a gente não teria razões para ficar se preocupando. Você poderia
deixar ele escrever tudo o que quisesse — quem ligaria para isso? Qualquer
coisa que ele escrevesse não faria sentido nenhum, de um jeito ou de outro
— se ele estivesse louco mesmo.”
“Você está dizendo...”
“Que sim, ele sabe muito bem o que está fazendo”, disse Keyes. “O
maldito plano do Wiley faz sentido porque parece que está funcionando. Ele
fez toda a Gold Coast ficar com medo, incluindo o seu venerável jornal. Eu
fiquei sabendo que a grande convenção dos caminhoneiros foi transferida
para Atlantic City...”
Mulcahy fez que sim com a cabeça, com expressão lúgubre.
“E A batalha das estrelas da televisão, ou sei lá o que é isso —
transferida de Key Biscayne para Phoenix, aquele buraco!”
“Tucson”, corrigiu Mulcahy.
“Mas você entende o que estou dizendo.”
“Isso tudo vai passar”, disse Mulcahy. “Com o pânico é sempre assim.”
“Não se os turistas continuarem desaparecendo.”
“Ele vai mandar uma nova coluna amanhã à tarde. Vou dar a coluna
para o Ricky para uma boa mutilada, e vamos publicar no domingo. Vamos
ver se isso não traz o filho da puta de volta das férias tropicais dele.”
Keyes disse:
“Se ele não voltar, vamos ter que pensar em alguma outra coisa.” Ele
fez o alguma outra coisa soar ominoso.
Mulcahy suspirou.
“Eu ainda detestaria a ideia de vê-lo morrer.”
Keyes tinha guardado o pior para o final.
“O Skip está planejando alguma coisa horrenda”, disse ele a Mulcahy.
“Eu não sei os detalhes, mas vai acontecer logo. Ele disse que vai violar
uma virgem sagrada, e eu sei lá o que isso significa.”
Mulcahy considerou as possibilidades.
“A mulher do prefeito?”
“Não, isso não é o estilo do Skip”, disse Keyes.
“Uma freira, talvez — você acha que eles apanhariam uma freira de
verdade?”
“Duvido, Cab. O Skip é todo cheio de simbolismos. Acho que freira não
tem muito a ver.”
“E se for uma celebridade? A Liza Minnelli vai tocar no Eden Roc este
mês.”
“O Skip não suporta a Liza Minnelli”, notou Keyes.
“Então é ela mesmo.”
“A virgem mais sagrada de Miami — Liza Minnelli?”
“Merda”, disse Mulcahy. “Você tem alguma ideia melhor?”
Brian Keyes tinha uma ideia, mas não era nenhuma ideia que Mulcahy
desejasse ouvir. Keyes esperava que Cab percebesse por conta própria.
“Se você fosse o Skip e quisesse ganhar a atenção do mundo inteiro”,
disse Keyes, “você tentaria alguma coisa drástica, alguma coisa além do
meramente violento.”
“Você é mesmo encorajador.”
“E se você fosse o Wiley”, prosseguiu Keyes, “você ia querer — não, ia
exigir — exposição máxima.”
Mulcahy ergueu a cabeça.
“Exposição máxima?”
“Estamos falando de televisão”, disse Keyes. “Televisão em rede
nacional.” Isto era o que Skip tinha prometido em Cable Beach.
“Essa não.” Mulcahy falou como um homem cujo pior pesadelo estava
se transformando em realidade.
“Cab, qual é o espetáculo mais fantástico de Miami, o evento que o país
inteiro assiste todo ano?”
“O desfile do Orange Bowl, é claro.”
“E quem é a estrela da parada?”
“Puta merda”, gemeu Mulcahy. Ele pensou: Se o Brian estiver certo, vai
ser pior do que estuprar uma freira.
“A rainha do Orange Bowl.”
“Exato”, disse Keyes, “e quando vai acontecer o desfile do Orange
Bowl?”
“Na última noite de dezembro!”, exclamou Mulcahy.
“A última noite de dezembro”, disse Brian Keyes. “La ultima noche de
diciembre.”
19
O dia seguinte era véspera de Natal, e Skip Wiley reuniu três quartos do
Noites de Dezembro em sua vila alugada perto de Lyford Cay, nos arredores
de Nassau.
Tommy Rabo-de-Tigre preferiu permanecer embrenhado nos
Everglades, cuidando das casas de bingo, mas Jesús Bernal e Viceroy
Wilson não quiseram perder a oportunidade de dar uma escapadinha do Sul
da Flórida, principalmente porque suas fotografias haviam sido publicadas
na primeira página do Miami Sun. Na verdade, nenhuma das fotos exprimia
com exatidão a aparência dos dois homens sentados no terraço de Skip
Wiley. A fotografia de Jesús Bernal com um bigode a la Snidely Whiplash
fora tirada em 1977 depois de sua prisão pela posse ilegal de uma ogiva de
um míssil terra-ar. Ele aparentava ter catorze anos. A fotografia de Viceroy
Wilson não era melhor; fora, na verdade, tirada de um velho álbum do ano
do Miami Dolphins. Wilson trajava camisa do time e suas ombreiras,
fingindo o gesto de uma jogada. Ostentava aquele mesmo olhar
artificialmente carrancudo que todas as empresas de chicletes querem que
os jogadores de futebol façam nas suas fotos; a carranca natural de Viceroy
Wilson era bem mais convincente.
Nenhuma fotografia do índio apareceu nos jornais de Miami
simplesmente porque não se sabia da existência de fotografias dele.
Skip Wiley parecia não se preocupar muito com as fotos enquanto
contava piadas e erguia Heinekens geladas brindando seus visitantes.
Viceroy Wilson olhou por sobre as lentes de seus óculos escuros.
“Por que os jornais não mencionaram seu nome?”, perguntou a Wiley.
“Provavelmente porque o senhor Brian Keyes está ocultando meu
nome. Não me perguntem por quê, rapazes. Um mal-pensado ato de
amizade, suponho.”
“Os tiras vasculharam a casa de minha mãezinha esta manhã”, disse um
tremendamente zangado Jesús Bernal. “Na noite passada foi a casa de
minha irmã. Estão por toda parte em Little Havana, como ratos, aqueles
tiras.”
“Ossos do ofício”, disse Wiley. “Você já devia estar acostumado com
isso.”
“Mas eles arrebentaram a porta da casa dela!”, gritou Bernal. “Animais
filhos da puta. Este cara García, ele vai pagar caro. ‘Escória do Mundo’, ele
nos chamou. Estava nos jornais. Escória do Mundo! Os cubanos sabem
direitinho o que fazer com traidores como ele.”
“Eta! lá vamos nós de novo”, disse Viceroy Wilson. “O Vingador
Mascarado.”
“Cale a boca!”
Wilson riu e avançou sobre um prato de bolinhos.
“Devagar com o pão”, disse Wiley. “Não se esqueça que você tem que
perder dez quilos esta semana.”
Viceroy Wilson enfiou uma fatia bem grossa na boca.
“E, quem, diabos, você é”, disse ele espalhando migalhas, “Don Shula?”
“Estamos bem nervosinhos esta manhã, não estamos? Vocês devem ter
tido um voo atribulado.” Relaxado, Wiley depositou mais uma das
garrafinhas verdes na pilha de garrafas vazias. “Mas sei de uma coisa que
vai acalmá-los, rapazes. Jenna está fazendo um pudim de ameixas!”
“Estou nessa”, disse Viceroy Wilson.
“E se não me engano acho que há uma coisinha para cada um de vocês
debaixo da árvore de Natal.”
“É mesmo?”, disse Jesús Bernal mudando de humor. “Bem, caras, Deus
abençoe Las Noches de Diciembre, cada uma delas.”
Mas os Noites de Dezembro acabaram não abrindo seus presentes.
Aportando nas bancas de jornais de Nassau naquela tarde, o Miami Sun
trazia a deturpada coluna de Natal de Skip Wiley. Em pouco menos de trinta
minutos, o primeiro-ministro convocou seu ministério para uma reunião de
emergência e declarou que a história do pescador Rollie Artis era “um
insulto à soberania e ao orgulho nacional das Bahamas”. O ministro para os
Assuntos Internos imediatamente despachou uma ordem de deportação, na
qual cada membro do ministério colocou sua assinatura. Aproximadamente
às dezoito horas, exatamente quando o pudim de Jenna começava a
endurecer, seis oficiais da imigração bahamense irromperam na suntuosa e
ensolarada casa de Wiley e o expulsaram para sempre do Commonwealth.
Nenhuma quantia de dinheiro ou cheques de viagens mudariam aquela
determinação.
Mais tarde, no voo da meia-noite para o Haiti, foi que Jenna teve
coragem de mostrar a Skip Wiley o que haviam feito com sua coluna.
“Bloodworth!”, uivou ele. “Aquela ameba!”
“Foi um truque sujo”, disse Jenna.
“Sacrilégio!”, disse Wiley com seus olhos castanhos pegando fogo.
“Mas inteligente”, assinalou Jenna. “Não acha?”
“Bem, agora chegou a nossa vez de sermos inteligentes”, disse Wiley,
guardando a página com sua coluna no bolso do paletó. “Jenna, tão logo
cheguemos em Porto Príncipe, mande uma mensagem para Tommy no
acampamento. Mande ele me enviar por Expresso Federal os índices da
Nielsen do último Reveillon. E também os dos Arbitrons, se ele puder pôr
as mãos neles.”
“O que vai ser agora, Skip?”
“Não se preocupe, querida, a estratégia continua a mesma.” Wiley deu
um tapinha nos joelhos dela. “Para frente, a todo vapor.”
21
De um guerrero y patriota.
De um guerreiro e patriota.
Ricky Bloodworth foi até a porta e espiou o corredor.
Surpreendentemente, as luzes da TV ainda estavam acesas. Pela graça de
Deus, pensou ele, nem mesmo Joe Wambaugh fala tanto.
Bloodworth retornou à escrivaninha e apanhou a caixa marrom. Era
muito mais leve do que havia pensado. Bloodworth a chacoalhou
cuidadosamente no começo, depois bruscamente. Nada. Estava muito bem
embrulhada.
Bloodworth tremia só de pensar no que estava prestes a fazer.
Isto é crime, ele disse a si mesmo. Isto é prova policial, não há dúvida
quanto a isso.
Mas que se foda o García — ele arrebentou com meu gravador.
Ricky Bloodworth pôs a caixa debaixo de um dos braços e saiu
correndo do departamento de homicídios. Desceu três lances de escada e
entrou na divisão de tráfego, que estava deserta. Encontrou um banheiro
vazio e se trancou num cubículo de privada que cheirava a amônia e a
colônia de segunda classe.
O repórter sentou-se na privada e depositou a caixa sobre o colo.
Colocou o bloco de anotações sobre o porta-papel higiênico. Prendeu a
caneta vermelha na orelha.
O coração de Bloodworth estava batendo feito um tambor. Ele até
mesmo sentiu uma ereção — ele amava tanto seu trabalho. Ricky saboreava
seu grande lance: um tesouro cheio de pistas do Noites de Dezembro. Uma
exclusiva, também... esta foi a parte que o deixou de pau duro.
Ele já havia decidido o que faria. Tão logo conferisse o conteúdo,
devolveria o pacote para Al García. Ele o embrulharia exatamente da
mesma forma e colocaria as etiquetas com vapor — quem jamais
desconfiaria?
Carinhosamente Ricky Bloodworth passou os dedos sobre o papel
marrom liso e sobre o barbante já envelhecido.
Então segurou uma ponta do magnífico laço e o puxou; continuou
puxando até que o nó se desfizesse.
Uma verdadeira fornalha o envolveu.
Cortou-lhe o ar dos pulmões.
E estilhaçou suas bochechas.
O mundo tornou-se um breu.
24
Do hospital, Brian Keyes foi de carro direto para Coral Gables. Era
preciso checar como andavam as coisas com Kara Lynn. Ele tocou a
campainha três vezes antes que Reed Shivers viesse atender à porta.
“Muito bom que tenha aparecido”, disse Shivers maliciosamente. Ele
usava um robe cor de vinho com monograma no bolso e chinelos de pele de
bezerro. Um cachimbo de nogueira pendia artificialmente de um canto de
sua boca.
“É bom vê-lo também, senhor Hefner.”
“Não tente ser engraçadinho — onde esteve? Você está ganhando uma
nota preta para ser uma baby-sitter.”
“Houve um outro atentado a bomba”, disse Keyes, passando por
Shivers. “A vítima foi um repórter de jornal.”
“Os Nachos outra vez?” Todos os anglo-saxões em Miami tinham
passado a chamar a gangue de Wiley de Nachos, porque era muito mais
fácil de pronunciar do que Las Noches de Diciembre.
“Onde está Kara Lynn?”, perguntou Keyes.
“Na sala de jogos, tentando se exercitar. Tente não interrompê-la.”
Keyes examinou Reed Shivers como faria com um cupim.
“Depois de tudo isso, ainda quer que sua filha participe daquele
desfile?”
“Eles têm cães, senhor Keyes, cães treinados para farejar bombas.”
“Você é incrível.”
“Estamos falando sobre o futuro de uma carreira.”
“Não, senhor Shivers, estamos falando de assassinatos.”
“Não fale tão alto!”
Keyes ouviu a música vindo da sala de jogos. Parecia ser um dos hits
dos Bee Gees. “Stayin’ alive, stayin’ alive, oooh-oooh-oooh-oooh.” A
batida de baixo atravessava a parede.
“Aeróbica com jazz”, explicou Shivers. “Já que Kara Lynn não pode
sair para ir às aulas, a professora veio aqui. Achei isso uma puta
consideração.”
Keyes se dirigiu à sala de jogos. O estéreo estava estridentemente alto.
A mesa de bilhar fora encostada numa das paredes. No meio do tapete, Kara
Lynn estava esticada, segurando os calcanhares.
Keyes sorriu.
Então, olhou para cima e viu Jenna.
“Oh! não, meu Deus, não!”, disse ele, mas suas palavras se perderam no
meio das notas da canção. Jenna e Kara Lynn estavam tão absorvidas que
nenhuma delas percebeu que ele estava ali de boca escancarada.
A coreografia delas era encantadora: cada uma das mulheres
graciosamente espelhava a outra, esticando-se, curvando-se, sacudindo,
pulando, chutando o ar. Keyes estava passado com aquela visão — ambas
usavam malha de ginástica lisa e praticamente mais nada, ambas com seus
cabelos louros em rabo de cavalo. Claro que não havia como confundir uma
com a outra: Jenna era mais encorpada, mais cheinha nas ancas, e tinha
aqueles brincos de ouro. Kara Lynn era mais alta, com pernas longas,
dignas de um puro-sangue. Pernas de atleta.
Brian Keyes jamais poderia ter sonhado cena mais surpreendente ou
estupefaciente. Ele desligou o estéreo, deixando as bailarinas
desconcertadas no meio de um salto em rodopio.
“O que é isso?”, disse Jenna, deixando seus braços caírem rentes ao
corpo.
“Ei, o que está havendo?” Kara Lynn estava um tanto aborrecida.
“Eu vou explicar”, disse Keyes.
Jenna virou-se e o encarou.
“Brian!” Ela parecia chocada ao vê-lo.
“Alto lá”, disse Keyes. “Desde quando você atende a domicílio?”
“Ah, rapaz!”
Kara Lynn olhou intrigada para Jenna e depois olhou de volta para
Keyes. O silêncio espinhoso foi revelador.
“Então vocês se conhecem”, disse Kara Lynn.
“Já faz um longo tempo”, disse Keyes.
“Ah, não tanto tempo assim”, disse Jenna, falando com os olhos.
Kara Lynn parecia constrangida.
“Vou apanhar um pouco de limonada.”
Quando ela saiu, Jenna disse:
“Como me encontrou aqui?”
“Não se sinta lisonjeada. Eu não estava te procurando.” Keyes sentiu-se
um lixo. E zangado. “Diga-me o que está acontecendo”, disse ele.
Jenna enxugou a testa com uma toalha que combinava com seu batom
cor-de-rosa.
“Kara Lynn é minha aluna há dois anos. Ela é uma boa bailarina e boa
atleta, no caso de você ainda não saber.”
Keyes ignorou a provocação.
“Ela disse que não poderia ir à aula esta semana — algo sobre recolher-
se por causa do desfile — por isso me ofereci para passar aqui para um
pouco de exercício. Não sei por que você está tão zangado.”
“Onde está Skip?” A eterna pergunta; Keyes imaginou por que ele ainda
se dava o trabalho de perguntar.
“Não tenho muita certeza. Esta é uma sala e tanto, não?”
“Jenna!”
“Hora de uns abdominais.”
“Pare.”
Mas num instante ela estava deitada, os braços cruzados atrás do
pescoço.
“Segure minhas pernas, Brian, não seja desagradável.”
Ele ficou de quatro e abraçou seus tornozelos com ambas as mãos. E
pensou: Ela é mesmo de outro planeta.
“Um... dois... três...” Ela era flexível como um chicote.
“Onde está Wiley?”, perguntou Keyes.
“Sete... oito... eu tenho uma pergunta para você... o que você está
fazendo aqui?” A cada flexão, Jenna emitia um grito, meio gemido, meio
rosnado. Keyes conhecia profundamente aqueles sons.
“Fui contratado para manter os olhos em Kara Lynn”, disse ele.
“Você? Ora essa, Bri...”
“O seu namorado descompensado planeja raptá-la durante o desfile do
Orange Bowl, vai dizer que não sabia?”
“Catorze... quinze... Cristo, eu disse para segurar minhas pernas, não
para fraturá-las... você está enganado sobre Skip...”
“Foi ele quem mandou você aqui?”, perguntou Keyes.
“Não seja tolo... ele nem mesmo sabe que eu estou no país... era para eu
estar procurando casa em Porto Príncipe...”
“Santo Cristo.” Keyes não podia imaginar Skip Wiley perambulando
pelas ruas de Porto Príncipe. O governo do Haiti não era propriamente
conhecido pelo seu senso de humor.
“Vinte e quatro... vinte e cinco... Diga-me a verdade, Brian, você está
transando com essa garota?”
“Não.” Por que ele respondeu? — não era da conta dela. “Jenna, só não
quero que ela se machuque.”
“Skip não faria isso...”
“Não? Ele estourou o Ricky Bloodworth esta noite.”
“Uau... completamente?”
“Ele ainda respira, se é isso que quer saber.”
Jenna estava se cansando, mas não muito.
“Trinta e nove... quarenta... Skip prometeu que não iria ferir a garota...
devagar, com calma, levante um pouco a perna esquerda... ei, você ainda
sente saudades de mim?” Exultante, ela flagrou seus olhos. Cheia de
confiança, como se o tivesse controlado na ponta de uma coleira.
“Você quer que o Skip morra?”, disse Keyes, sem qualquer vibração.
Por que, no mínimo, é isso que vai acontecer com ele.
“Quarenta e seis, quarenta e sete... claro que não... e você?”
“Não.” Mas não me pergunte por que não quero, pensou Keyes, porque
o canalha bem que merecia isso.
“Brian... não deixe que nada aconteça a ele.”
Foi a conta. Ao chegar a quarenta e nove, ele a interceptou, segurou sua
cabeça com a mão espalmada e a manteve assim, sentada. Provavelmente
com mais firmeza do que seria necessário.
“Só mais um”, protestou Jenna.
“Sabe o que ele disse, Jenna? Ele disse que haverá um banho de sangue
se eu contar aos policiais sobre ele. Disse que uma boa porção de gente iria
morrer.”
“Bobagem.” Ela lutou contra o agarrão de Keyes. “Ele só está
blefando.”
“Olhe aqui para as minhas roupas, o que você acha que é isso?”, disse
Keyes.
“Respingo de macarrão ao sugo.”
“Isto é sangue, sua cabeça de vento! Sangue humano. Eu me ajoelhei
sobre uma poça de sangue humano ainda quente esta noite no quartel-
general da polícia. Você deveria ter estado lá, o lugar parecia Beirute.”
“Me solte”, disse Jenna.
“Então, o que você diz desses malditos assassinatos?”, perguntou ele.
“São hilários, não?”
“Brian, pare com isso, já!”
“Não, porra nenhuma, olhe para mim!” Mas da não olhava.
“Olhe para estas manchas de sangue e me diga que o Wiley é um herói”,
disse ele possesso. “Diga-me o quanto está orgulhosa, vamos lá, Jenna. O
cara é um gênio, não é mesmo? Precisa ser um verdadeiro visionário para
explodir um otário em um banheiro.”
Com um safanão, ela conseguiu ficar de pé. Sua face estava corada e ela
respirava ofegantemente.
Keyes disse:
“Jenna, você pode acabar com tudo isso — não é tarde demais. Faça um
favor a todos e diga onde ele está.”
Ela chacoalhou a cabeça uma vez e se foi, atravessando a porta.
Quando Al García desligou, ele se repreendeu por não ter dado uma
bronca maior em Brian Keyes. Ele não sabia por que Keyes tinha segurado
informações em relação a Skip Wiley durante todas aquelas semanas, mas
certamente conseguiria descobrir. O joguinho do comércio de informações
sempre irritava García, mas ele o aceitava como essencial para seu trabalho.
Jornalistas, tiras, políticos, detetives particulares — todos tremendamente
talentosos na melindrosa arte do você-conta-para-mim, eu-conto-para-você.
A sequência disso era você se sentir como um oráculo ou uma puta.
García assumiu para si mesmo que devia haver uma razão forte para o
que Keyes tinha feito. Era melhor que houvesse. Uma jogada de algum tipo,
talvez até mesmo extorsão. Wiley parecia capaz de qualquer coisa.
Além disso, a urgência da questão havia diminuído depois do acidente
com o helicóptero. Nem bem a entrevista coletiva de domingo terminou, o
chefe passou para García uma nota seca: “Considere debandado o
Esquadrão Especial. Nós podíamos ter um press-release pronto amanhã de
manhã”.
García tinha aceitado a sugestão sem se comprometer com ela. Como
todos os bons detetives, ele aprendera a sobreviver ao doce-amargo. Caras
legais, caras malvados, você tinha que ficar de olho em seus passos. Ele
conhecera vigaristas a quem tinha confiado sua própria vida, e tiras que
roubariam a esmola de um cego. García era muito pouco comovido pela
prudência de seus superiores, e mais frequentemente seduzido pela
inteligência da mente criminosa. O caso de Fuego tinha sido um desafio
peculiar; durante todo o tempo ele se sentira como se estivesse combatendo
dois lados, Las Noches e o establishment de Miami.
O detetive tinha sentimentos ambíguos a respeito do misterioso acidente
de helicóptero. Uma parte dele queria acreditar que o Noites de Dezembro
estava morto. Não que estivesse pensando no Orange Bowl, ou no júbilo
cívico, ou na preservação do comércio turístico. Para ele, parecia um
exemplo maravilhoso de vilões levando o que mereciam; justiça no sentido
bíblico do termo. E, como questão prática, não havia meio mais asseado de
resolver um homicídio do que ter todos os seus suspeitos repentinamente
reduzidos a pó. Deus sabe a pequena fortuna que isso economizaria aos
contribuintes.
No outro lado estava o orgulho profissional: García não gostava de ver a
Câmara de Comércio abrindo e fechando seus casos de assassinato. O tom
autocongratulatório da entrevista coletiva da televisão tinha sido uma farsa;
a verdade era que o esquadrão de García nunca estivera nem perto de
descobrir, e muito menos de capturar, Las Noches de Diciembre. Tinha sido
uma tarefa frustrante para um tira não acostumado a ser passado para trás, e
García não apreciou o gosto da coisa. Ver Skip Wiley e sua equipe de
doidos destruídos por um velho helicóptero desengonçado do exército
parecia ser um anticlímax ordinário. Na visão de García, teria sido
imensamente mais satisfatório localizar os bastardos em seu esconderijo nos
Everglades e transformá-los todos em fumaça, à bala. Razão pela qual ele
não estava pronto para dizer que estava tudo encerrado.
A intuição dizia a García que esse final não se encaixava. Um bando de
cubanos ou nicaraguenses malucos? — claro, este é o tipo de cagada que
você espera, voar num helicóptero com pouco combustível e se arrebentar.
Mas, desde a primeira vítima, o Noites de Dezembro tinha sido diferente.
Haviam concebido cada ato de violência com uma certa seletividade e élan.
Sufocar Sparky Harper com um jacaré de borracha era mais que
assassinato; era terrorismo com imaginação. Era a têmpera de uma lâmina
forte como Wiley.
Wiley — que, na opinião de García, era esperto demais para cair em
chamas no mar profundo. Seria típico daquele filho da puta matreiro
encenar sua própria morte, para botar todo mundo para dormir e então
aparecer no desfile do Orange Bowl e apanhar a rainha — exatamente como
tinha planejado desde o começo.
Ele então amassou a comunicação do chefe e a jogou numa lata de lixo.
Vasculhou uma pilha de recortes até encontrar a infame coluna do furacão:
No meio do século XIX, Miami era conhecida como Fort Dallas. Era um
barrento, estacionário, sufocante vilarejo de duzentas almas, infestado de
cobras, perenemente sob ataque de semínoles astutos ou arrasada por
epidemias de malária. Isso foi bem antes de Fisher, Flagler e outros
invasores de terras chegarem para sugar suas fortunas do mais famoso
pântano da América do Norte. Era um tempo em que a obsessão local era a
sobrevivência, não metros quadrados, quando o sol não era uma vantagem
condominial mas uma maldição flamejante.
Ninguém sabia o que Fort Dallas poderia eventualmente vir a ser — não
que esse conhecimento fosse alterar o seu futuro. O sonho estava sempre lá,
apoio contra as cruéis vicissitudes. Então, como hoje, o cheiro das
oportunidades era forte demais para ser ignorado, atraindo uma procissão de
negociantes, homens condenados pela justiça, desertores confederados,
eremitas, ladrões de gado, ciganos e mercadores de escravos. Sua
inventividade, tenacidade e total desprezo pela natureza intocada ao redor
deles daria o tom para o desenvolvimento posterior do Sul da Flórida. Eles
preservaram apenas o que era livre e imutável — o sol e o mar — e
reservaram o resto para a destruição, pois de que outra forma poderiam
vender tudo? Em seu estado natural, a encharcada fronteira sul do lago
Okeechobee simplesmente não era negociável. Ainda assim, a
transformação da face da terra começou devagar, não tanto por causa dos
índios ou do terreno, mas devido à atrasada técnica de pilhagem.
Finalmente, com a chegada das rodovias, e o advento da draga e do trator,
veio também o fim de Fort Dallas.
Por trinta anos, contando a partir do fim do século, o Sul da Flórida
desenvolveu-se com velocidade assustadora. Oportunistas gananciosos
ocuparam tanta terra quanto puderam, desmataram-na, limparam-na e a
venderam. Onde não havia terra, eles a dragavam do fundo da baía de
Biscayne, a transformavam em ilha artificial, batizavam com o nome de
uma flor ou de uma filha ou com o nome deles mesmos e a ofereciam como
um oásis natural. Tudo isso era feito com grande eficiência e entusiasmo,
mas sem a mínima cautela.
Os especuladores que não estouraram os miolos depois do furacão de 26
ou se enforcaram após as grandes desapropriações foram em seguida
recompensados com riquezas indizíveis. Hoje eles são venerados por sua
perseverança e firmeza de espírito, e alguns até mesmo têm parques
públicos com seus nomes. Essas personagens são vistas como os
verdadeiros pioneiros do Sul da Flórida.
São seus descendentes, os herdeiros do paraíso (e dos bancos e terras),
que criaram o desfile anual do Orange Bowl.
O evento iniciou-se cinquenta anos atrás como um singelo desfile,
entretenimento na rua principal para criancinhas e turistas. Mas, com a
ascensão da televisão, o evento cresceu e mudou de caráter. Gradualmente
ele se tornou um elaborado instrumento de autopromoção, deliberadamente
montado para mostrar ao resto dos Estados Unidos (sofrendo as agruras do
inverno) um santuário ensolarado, cênico e sexy. A ideia era fazer com que
todos pendurassem seus sobretudos e saltassem para o primeiro avião com
destino à Flórida. Para essa finalidade, o desfile do Orange Bowl era tão
meticulosamente orquestrado quanto um ataque nuclear. Aqueles que
apareceriam diante das câmeras eram cuidadosamente selecionados: bandas
colegiais de Bumfuck, no Iowa, irradiando alegria de seus rostos queimados
enquanto marchavam pelo Biscayne Boulevard abaixo; um grupinho de
negros caribenhos e hispânicos sul-americanos, evidência da exótica mas
devidamente supervisionada variedade cultural de Miami; as mais inócuas
das celebridades televisivas, encantadas por auxiliar o escritório de turismo
em troca de amplos quartos no Fontainebleau.
Do ponto de vista da Câmara de Comércio, o ingrediente mais essencial
era o sexo subliminar. Você não pode vender praias ensolaradas sem
mostrar bustos femininos bronzeados; a parte central da América saliva por
eles. Assim, o desfile sempre contava com mulheres em sumários mas não-
tão-acintosos biquínis. A modelo preferida era a loira pneumática e
adolescente, sugestivamente abraçando uma palmeira de borracha ou
montada num jacaré inflável, e sorrindo tão fixamente que qualquer idiota
poderia ver que sua maquilagem tinha sido aplicada com uma pá de
pedreiro.
Todo ano a comissão do Orange Bowl escolhia um ensolarado tema
novo, mas raramente ele se referia à história predatória da Flórida. Guerras
nos pântanos, fugas de escravos e massacres de crianças índias não
pareciam aos pais do Orange Bowl como tópicos adequados a um desfile;
um desfile criado para ser puramente um cartão-postal exibido em horário
nobre.
Como já informado, o slogan do ano era “Tranquilidade Tropical”.
Depois do desfile, Brian Keyes dirigiu de volta para a casa dos Shivers
e começou a fazer as malas. Reed Shivers e sua esposa chegaram meia hora
depois.
“Viu só? Todo aquele pânico por nada”, disse Shivers pretensiosamente.
“Eu sou pago para entrar em pânico”, disse Keyes, enfiando suas roupas
numa mochila de lona. Ele se sentia vazio e esgotado. Não se esperava que
o final fosse ser tão fácil, mas a hora de Wiley tinha chegado e ido embora
— se o desgraçado estivesse vivo, pensou Keyes, ele teria aparecido. Com
todo o estardalhaço possível.
“Onde está a Kara Lynn?”, perguntou Keyes.
“Ela foi numa festa de encerramento com as outras garotas”, disse a sra.
Shivers.
“Uma festa de encerramento.”
“É tradição em concursos de beleza”, explicou a sra. Shivers. “Só
garotas.”
“É melhor você ir embora”, disse Reed Shivers. Ele tentava acender seu
cachimbo, sugando o bocal como um peixe faminto. “Havia uma senhora da
agência Eileen Ford nas arquibancadas — ela descobriu a Kara Lynn na
mesma hora. Estou esperando um telefonema a qualquer momento.”
“Ótimo”, disse Keyes. “Reserve um quarto no Plaza.”
Os Shivers o acompanharam até a porta.
“Seu amigo vai ficar bom?”, perguntou a sra. Shivers. “O policial
cubano.”
“Acho que sim. Ele é forte.”
“Você também é um jovem corajoso”, ela disse. Seu tom de voz deixava
claro que ela estava falando com o detetive contratado. “Obrigada por tudo
o que você fez pela Kara Lynn.”
“Sem dúvida”, disse Reed Shivers de má vontade. Ele estendeu sua mão
bronzeada; o aperto de mão polido mas superior de um profissional
formado em Yale. “Dirija com cuidado”, disse ele.
“Boa noite, senhor e senhora Cleaver.”
Eles acenaram inexpressivamente e fecharam a porta da frente.
Keyes estava de pé ao lado do MG, tentando livrar-se do coldre de
ombro, quando um Buick marrom embicou na garagem e Kara Lynn
desceu. Ela tinha mudado de roupa e vestia jeans e uma blusa branca sem
mangas, cujo tecido parecia papel; carregava seu vestido do Orange Bowl
numa sacola plástica.
“Para onde você está indo, Marlowe?”
“De volta para o outro lado da cidade.”
Uma voz de mulher gritou de dentro do Buick:
“É ele, Kara?”
Kara Lynn sorriu timidamente e acenou para que suas amigas fossem
embora. O Buick buzinou duas vezes e disparou.
“A gente tomou um pouco de vinho”, disse ela. “Eu contei de você para
elas.”
Keyes riu.
“O detetive no polvo.”
Kara Lynn colocou o vestido sobre o capô do carro esporte e deu uma
espiada na casa, procurando seus pais na janela. Então ela colocou seus
braços em volta de Keyes e disse:
“Vamos para algum lugar transar.”
Keyes a beijou suavemente.
“Seus pais estão esperando lá dentro. Alguém de uma agência de
modelos vai telefonar.”
“E quem se importa com isso?”
“Seu pai. Além disso, eu estou acabado.”
“Não faça essa cara triste. Nós conseguimos.” Alegremente ela pegou as
mãos dele e as colocou sobre sua bunda. “A mina está salva”, disse ela
dando-lhe um grande beijo. “Bom trabalho, garoto.”
“Eu ligo amanhã.”
Uma luz amarela se acendeu na varanda.
“Papai está esperando”, disse Kara Lynn franzindo as sobrancelhas.
Keyes entrou no MG e ligou o motor. Kara Lynn apanhou seu vestido e
deu-lhe um beijinho no rosto.
“Será que eu disse”, confessou ela numa aveludada voz de Marilyn,
“que eu não estava usando calcinhas hoje à noite?”
“Eu sei”, disse Keyes. “Não era tão má assim a vista lá do polvo.”
No caminho de volta para o seu apartamento, ele parou no escritório
para checar se havia alguma coisa e apanhar a correspondência, que
consistia em doze contas, dois grandes cheques do Miami Sun e uma
National Geographic com um albino qualquer-coisa na capa. Perdido em
algum lugar entre os detritos da mesa de Keyes havia um talão de cheques
que ele resolveu achar, para o caso de querer comprar verduras de novo.
Depois tentou limpar o aquário, que estava coberto por um limo esverdeado
que ameaçava superar a altura de suas bordas.
Essas tarefas foram iniciadas principalmente para ocupar sua mente com
distrações e atrasar o inevitável. Era quase uma da madrugada quando
Keyes acabou a limpeza, despencou sobre o sofá sujo e caiu no sono. Não
havia passado muito tempo quando ele sentiu o cabo da Browning
semiautomática em sua mão direita. Olhou para baixo e viu que essa mão
estava coberta de lustrosos pernilongos negros, que inflavam um a um até
estourar, como pequenos balões de sangue. Uma marionete de aparência
esquálida apareceu e começou a dançar, e a Browning disparou. As balas
avançavam devagar, deixando atrás de si rastros cor de laranja. Uma após a
outra elas caíam sobre a pedra coberta de limo aos pés da marionete. E
conforme a aparência da marionete se modificava, da de Jesús Bernal para a
de Ernesto Cabal, uma das balas estraçalhou sua cabeça em mil pedaços de
madeira. Os estilhaços voaram em todas as direções, fazendo vibrar os fios
da marionete, que iam até o céu. No sonho, Brian Keyes viu a si próprio
correndo em direção à marionete destruída e tomando seus fios com mãos
sujas de sangue. No momento seguinte estava no céu, sobre o oceano,
tentando segurar em algo para manter-se vivo. Numa nuvem tênue bem no
alto, um homem de aparência familiar com longos cabelos loiros e olhos
ciganos torcia as cordas do boneco e murmurava alguma coisa sobre o
preço vergonhosamente alto dos caixões.
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O Orange Bowl Football Classic é tão famoso por sua rica produção de
intervalo quanto pelo alto nível de seu futebol universitário. O show do
intervalo é infalivelmente mais extravagante e luxuoso do que o desfile da
noite de véspera, porque o Comitê para a Celebração de Intervalo adota
seus próprios temas, contrata seu próprio diretor profissional, recruta seus
próprios novos talentos, e atua para sua própria equipe de televisão. O
efeito é o mesmo de um fatigante show de cassino de Las Vegas, executado
em quarenta mil metros quadrados de gramado esportivo por quatrocentos
“jovens” profissionais que parecem todos ter acabado de obter bolsas de
estudo na Universidade de Brigham Young. Nos últimos anos, profissionais
de televisão haviam concluído que as dublagens dos New Christy Minstrels
e o sapateado de gigantescos ratos vestidos em smokings não eram
suficientes para evitar que milhares de aficionados do futebol fossem ao
banheiro no intervalo e perdessem todos os importantes comerciais de
carros; assim, os produtores do intervalo introduziram queimas de fogos de
artifício e até raios laser no show do Orange Bowl. Isto se mostrou uma
grande tacada e as vendas de carros aumentaram proporcionalmente. A cada
ano, mais e mais efeitos espetaculares eram acrescentados ao programa, e
os temas modernizados, tendo em mente o consumidor de dezoito a trinta e
quatro anos (embora algumas personagens Disney secundárias fossem
acomodadas aqui e ali para as crianças). Na ideia dos organizadores, a
produção ideal de intervalo era conceitualmente moderna, visualmente
excitante, moralmente inofensiva e irremissivelmente classe média.
O mestre de cerimônias do show de intervalo do Orange Bowl era uma
personalidade televisiva chamada John Davidson, selecionada
principalmente por causa de suas covinhas, que podiam ser vistas até
mesmo da última fileira das arquibancadas. De pé, sob um facho de luz
azul, na linha de cinquenta jardas, John Davidson abriu as festividades com
uma tépida mistura de melodias famosas. Pouco depois, ele foi envolvido
por uma trupe de cabriolantes, dançantes, saltitantes, gesticulantes e
encharcadas personagens da Broadway totalmente caracterizadas: gatos
felpudos, violinistas iídiches, deslumbrantes coristas, duas Annies, a
Pequena Órfã, três Homens-Elefante, um Hamlet, um Rei do Sião, e até um
Willy Loman sapateando. O tema da extravaganza de vinte e dois minutos
era “O Mundo é um Palco”, uma sequência ambiciosa dos temas de anos
anteriores do Orange Bowl, como “O Mundo é uma Canção”, “O Mundo é
um Desfile” e, mais recentemente, “O Mundo é um Grande e Belo Planeta”.
O cerne da produção era a reencenação de seis lendários atos teatrais,
cada um deles espremido em oitenta e cinco segundos, mas suplementado
se necessário com elegantes narrativas bilíngues. A vinheta final era um
solilóquio de Hamlet, que não funcionou bem no aguaceiro; fãs nas fileiras
mais altas do estádio não conseguiam enxergar claramente a caveira do
pobre Yorick e acreditaram estar aplaudindo o señor Wences.
Em seguida, todos os participantes se reuniram de braços dados sob
uma vasta armação de néon e, sem que nem sequer uma pessoa se
surpreendesse, cantaram “Give my regards to Broadway”. Então a
intensidade das luzes no estádio diminuiu e as nuvens escuras de chuva
formaram um pano de fundo elísio para o clímax emocional, um tributo
holográfico para a falecida Ethel Merman.
A audiência mal se recuperara desse espantoso espetáculo de mágica
eletrônica — cenas de Gypsy projetadas em três dimensões a grande altitude
— quando as luzes se reacenderam e John Davidson caminhou a passos
largos para o centro do campo.
“Senhoras e senhores”, ele disse, com um sorriso de brancura radiante,
“se me permitem chamar sua atenção para o setor leste, é com imenso
prazer que apresento a rainha do Orange Bowl deste ano, a linda Kara Lynn
Shivers!”
Na arquibancada, Brian Keyes sentiu um arrepio. Em sua obsessão com
o desfile, ele esquecera do jogo e da tradicional apresentação da rainha e
sua corte no intervalo. Era uma cerimônia curta — alguns dos carros
alegóricos premiados circulando uma vez pelo estádio e saindo pelo lado
leste. Como resmungara o pai de Kara Lynn, mal valia a pena fazer todo um
penteado para apenas onze minutos no ar.
Mas onze minutos eram tempo bastante. Uma eternidade, pensou
Keyes. Uma horrível certeza tomou conta dele e ele se levantou num salto.
Onde estavam os policiais — onde estavam os malditos policiais?
O carro da sereia entrou primeiro, ainda fazendo ecoar o canto das
baleias; depois vieram os carros da Cooley Motors, da Nordic Steamship
Lines e da Palm Beach Lawn Polo Society. A procissão deveria acabar com
um modesto contingente de motos dos shriners de Illinois, que haviam sido
premiados com uma brecha no intervalo, aberta pelo cancelamento de
última hora da participação de Bogotá.
Entretanto, algo alienígena seguiu os shriners em sua entrada no
estádio: um estranho carro sem nome. Fãs curiosos, folheando seus Livretes
Programas Oficiais de Lembrança do Orange Bowl, não encontraram
qualquer menção àquele peculiar veículo. Em suas poltronas reservadas
diante da linha de quarenta jardas, membros do comitê organizador do
Orange Bowl apontaram binóculos para o carro e trocaram suspiros
desconsolados. Uma vez que as câmeras da NBC já haviam descoberto o
carro misterioso, uma intervenção ao vivo e em cores estava fora de
cogitação; além disso, não havia razão nenhuma para suspeitar que aquilo
fosse algo mais que uma alegoria inofensiva de alguma república estudantil.
Embora a produção fosse amadorística (desculpável, considerando sua
humilde origem de fundo de quintal), o carro realmente produzia um efeito
esquisito. Tratava-se de um mural dos Everglades, quase infantil em sua
simplicidade. Numa ponta erguia-se uma autêntica chickee de palha, o
tradicional abrigo semínole; ao lado, uma canoa, entalhada a partir de um
cipreste; vapor subia de uma chaleira preta suspensa sobre uma fogueira
falsa. Pastando entre arbustos, onde presumivelmente não poderia ser visto,
estava um veado de cauda branca empalhado; um guaxinim preservado de
maneira similar espreitava por detrás do tronco listrado de uma palmeira
sintética. A peça central era um índio genuíno, perfeitamente vivo e trajado
como os semínoles encontrados no século XIX em entrepostos comerciais:
um chapéu de palha redondo e sem abas, calças largas, camisa de algodão
listrada, lenço vermelho amarrado no pescoço e um manto de couro de
vaca. Com um toque de anacronismo, o índio do século XIX estava
empoleirado no comando de um moderno airboat, deslizando pelo rio
Grass. Uma adaga longa e sem brilho estava enfiada no cinto de couro de
cobra do semínole, e um rifle Winchester de brinquedo estava pousado em
seu colo. Sua face juvenil e macia parecia o retrato da civilidade.
Brian Keyes pulou para o corredor no momento em que viu o índio.
Freneticamente procurou abrir caminho para descer da arquibancada, mas
os torcedores do Nebraska com seus cartazes (Chupem, irlandeses!)
estavam engajados numa acalorada escaramuça com os portadores de
cartazes da torcida do Notre Dame (Morram, Huskers!). Keyes empurrou e
atropelou e acotovelou seu caminho ao longo da fila de cadeiras, mas
mesmo assim ia lento, muito lento, e alguns dos bem nutridos adeptos dos
Cornhuskers decidiram ensinar boas maneiras àquele jovem rude. Eles
simplesmente se recusaram a mover-se. Não para um titica como você,
disseram; sente o seu traseiro.
À medida que os carros alegóricos passavam diante do público, a chuva
e o vento fustigaram os passageiros e fizeram com que os atores da
Broadway de imitação corressem para fora do campo em busca de abrigo.
Kara Lynn estava ensopada e sentindo-se miserável, mas continuou a acenar
valentemente e a sorrir. Por meio de um par de binóculos (e na seca
segurança de um camarote VIP), Reed Shivers examinou a face molhada de
sua filha e notou que sua maquilagem escorria, veios líquidos de rímel
correndo e manchando suas bochechas impecáveis — ela parecia saída de
um filme de Andy Warhol. Reed Shivers perguntou-se ansiosamente se não
seria o momento de convidar a moça da agência Eileen Ford para mais um
drinque.
Reed Shivers e quase todo mundo no Orange Bowl não percebeu que o
Noites de Dezembro estava vivo e bem. Nem souberam com que facilidade
as tropas de Skip Wiley haviam realizado o assalto ao Nordic Princess, a
aterrissagem forçada do Huey roubado e a encenação de suas próprias
mortes: o grupo simplesmente fizera uma performance impecável (menos
Jesús Bernal, que desaparecera antes que Wiley revelasse os últimos ajustes
do esquema, e que desafortunadamente se encaminhara para a morte
acreditando que a queda do helicóptero era um acidente).
Tommy Rabo-de-Tigre desempenhara um papel heroico como capitão
do barco de resgate clandestino, um Mako de vinte e um pés impulsionado
por um Evinrude de duzentos cavalos de força. Posando de pescador, ele
sulcara um mar agitado por uma hora, próximo ao transatlântico mas sem
chamar atenção. Sua visão noturna provara-se crucial quando todos
saltaram do helicóptero, o piloto, Skip Wiley e Viceroy Wilson. O mar se
tornara uma sopa obscura e traiçoeira, abarrotada de destroços de
helicóptero flutuantes e semiafundados, mas em poucos minutos o índio
encontrou todos os seus camaradas e os recolheu a salvo a bordo da lancha.
O ousado piloto do helicóptero fora recompensado com vinte mil
dólares de lucro do bingo, um passaporte falsificado e uma passagem de
primeira classe para Barbados. O Noites de Dezembro secou as roupas, se
registrou num hotel de Coconut Grove e voltou ao trabalho.
As notícias do destino violento de Jesús Bernal haviam ensombrecido o
ânimo de Skip Wiley, mas ele se recusara a se deixar desanimar. O
passamento de Bernal não tocara Viceroy Wilson do mesmo modo, e ele
simplesmente notou como fora deselegante da parte de Re-sus ter roubado
sua própria carabina, e como fora supremamente estúpido utilizá-la contra
um policial. Tommy Rabo-de-Tigre não tivera absolutamente nada a dizer
sobre a morte do cubano neurótico; ele havia compreendido Jesús ainda
menos do que Jesús o compreendera.
Na verdade, a morte de Bernal não mudara nada. Las Noches fora em
frente com a missão, trabalhando com um vigor e esprit que aqueceram o
coração de Wiley. No vórtice do plano estava um rejuvenescido,
determinado e recentemente livre das drogas Viceroy Wilson, muito mais
que uma sombra de sua antiga identidade.
Viceroy não tivera problemas para escolher o uniforme da Notre Dame
em vez da camisa vermelho-maçã da Universidade de Nebraska.
As razões eram simples. Primeiro, a hegemonia rural-comercial de
Nebraska representava um vil anátema para Wilson, cujas simpatias radicais
eram mais logicamente atraídas pelo Exército Republicano Irlandês, e
portanto para Notre Dame.
Segundo, e mais importante, Notre Dame era o único dos times com um
número 31 em uma de suas camisas.
Na reconstrução dos movimentos de Wilson pelo estádio naquela noite,
concluiu-se que diversos fãs o viram emergir do quartinho de limpeza às
nove e quarenta da noite. Dez minutos mais tarde ele foi visto, de uniforme,
pedindo um suco de laranja tamanho Jumbo na lanchonete do setor oeste.
Quatro minutos depois disso ele foi visto comendo um sonho numa
poltrona de camarote na linha de vinte jardas do Notre Dame. Quando o
ocupante original da poltrona voltou da loja de souvenirs e pediu que
Viceroy saísse dali, Wilson grosseiramente mutilou o guarda-chuva
decorado com o trevo irlandês e o atirou na cara do homem. Ninguém
chamou a polícia; pareceu-lhes mais um assunto para a Associação
Nacional de Esportes Universitários.
Um período de oito minutos se passou sem que nenhuma pessoa tenha
visto o número 31 — então, metade dos lares americanos o viu, cortesia da
NBC.
Enquanto os outros jogadores se agrupavam no túnel sudoeste, Viceroy
Wilson surgiu no campo num trote casual mas confiante. Muitos fãs do
Notre Dame aplaudiram, pensando que o show do intervalo tinha
finalmente acabado mas se perguntando por que o resto dos verde-e-ouro
não o seguiam. Perguntaram-se também por que um perdedor de bolas de
segunda categoria como David Lee teria recebido a honra de liderar os
Fighting Irish na batalha.
Ficaram estupefatos com o que veio depois.
O número 31 correu numa perfeita linha reta até o centro do campo de
futebol, cada passada espalhando a água do gramado encharcado. Para os
fanáticos dos Miami Dolphins, era uma inconfundível, embora
fantasmagórica reprise — o conhecido número na roupa; o ombro direito,
sempre um pouco curvado, como se preparado para trombar com um
adversário; os braços fortes balançando como duas âncoras içadas, as mãos
negras fechadas; e, certamente, aquela tremenda massa de músculos
triangular, dos ombros ao quadril. Tudo o que faltava era uma bola.
No momento em que Viceroy Wilson cruzou a linha das cinquenta
jardas, ele estava em plena corrida e nenhum guarda de segurança de três
dólares e cinquenta a hora sobre a face da terra o teria alcançado. O louco
avanço de Viceroy pareceu congelar as autoridades, que não desejavam
atirar, aleijar ou deter de qualquer forma um jogador do Notre Dame.
Talvez o rapaz só estivesse se estimulando para o jogo, ou apenas querendo
se mostrar para os olheiros dos times profissionais. Afinal, havia câmeras
de TV por toda a parte.
No meio da corrida virtuosística de Viceroy Wilson, dois outros
distúrbios irromperam no estádio.
Primeiro, da alegoria semínole proveio um estrondo e o carro começou
a tremer no final da procissão — parecia estar prestes a explodir. Os
shriners diminuíram a marcha da motocicleta e saíram de formação,
imaginando que o índio sonso tinha acidentalmente dado partida no airboat.
No mesmo instante John Davidson foi abordado no meio do campo por
um careca descalço, de barba ruiva, vestido como o Rei do Sião. Era,
evidentemente, Skip Wiley.
Fragmentos incompreensíveis de sua discussão foram captados pelo
sistema de som do estádio e uma luta começou. Os dois homens se
empurraram para fora do foco de luz.
Segundos mais tarde o Rei do Sião apareceu sozinho, segurando o
microfone sem fio de Davidson.
A multidão parecia confusa, sem saber se isso era parte do programa
oficial; metade aplaudia e metade murmurava.
Skip Wiley sorriu grandiosamente para as arquibancadas e disse:
“Por favor, permitam-me apresentar-me; sou um homem de posses e
bom gosto.”
Brian Keyes se desembaraçara dos torcedores com seus cartazes e se
atirava em direção ao campo, quatro degraus de cada vez, no momento em
que ouviu isso.
Skip Wiley gritou para que o mundo ouvisse:
“Vaguei por muitos e muitos anos. Roubei a alma e a fé de muitos
homens.”
Porra, disse Keyes consigo mesmo, ele está cantando uma dos Stones.
Do topo do carro da rainha, Kara Lynn Shivers parou de acenar para os
aleijados do Cub Scouts na Seção Q e virou-se para ver o que estava
acontecendo. Não se lembrava de ter visto “Sympathy for the Devil” no
programa musical do Orange Bowl. Nem reconheceu o crooner careca em
sua veste oriental.
“Prazer em conhecê-los”, cantou Wiley, “e espero que adivinhem meu
nome...”
No furgão da NBC o produtor-assistente rosnou em seu microfone:
“Mantenham duas câmeras nesse imbecil!” E era esse o sentimento
prevalecente entre seus quarenta e um milhões de espectadores.
A performance de Skip Wiley era excêntrica o bastante para desviar a
atenção de todo mundo de Viceroy Wilson — todos, exceto os shriners.
Reagindo rápido, Burt e James guiaram o esquadrão de motocicletas pelo
setor leste para interceptar o maciço ex-atacante em sua disparada. Era o
teste final para a habilidade renascida de Wilson, ziguezagueando e fintando
no compacto centro da brigada de shriners de Evanston; arremetendo de
braço esticado onde necessário; usando o ombro de profissional para
desequilibrar os motociclistas; uma cotovelada num fez, um murro num
pescoço (nos velhos tempos, punição com perda de quinze jardas e de uma
tentativa). Em cada colisão Viceroy Wilson emitia um grunhido de
satisfação. “Trinta e um Z-direita.” Era a única parte de que ele sentira
saudade, a pureza do contato. Galvanizado pela adrenalina, ele se deliciava
na justiça resplandecente de sua corrida — o herói negro espezinhado
superando em esperteza, força e agilidade os mais brancos do establishment
branco, impotentes diante de seu assalto à preciosa feminilidade perua dos
brancos. No rastro de Wilson os shriners esfolados torciam-se nas poças,
presos sob suas Harleys reluzentes; derrotados, Viceroy se comprazia em
pensar, pelo seu próprio materialismo vistoso. E tudo isso representado com
esplêndida ironia no teatro de suas proezas passadas.
Com os perseguidores lançados no caos, tudo o que restava entre
Viceroy Wilson e a rainha do Orange Bowl era a guarda de honra da
marinha americana, cujos membros não tinham a intenção de quebrar a
formação ou sujar o azul de seus trajes. Wilson desvencilhou-se deles sem
esforço e escalou o carro da sereia.
“Ai, merda”, disse Kara Lynn Shivers.
“Vamos lá, garota”, disse Viceroy Wilson, pegando seu troféu.
“Para onde estamos indo?”, perguntou Kara Lynn.
“Para a história.”
As sereias azuis soltaram gritos agudíssimos quando Wilson jogou a
rainha sobre seus ombros e correu de volta para o campo.
Naquele instante o airboat semínole disparou do carro alegórico dos
Everglades, despedaçando placas de madeira compensada, destripando o
veado empalhado, levando ao chão a tenda indígena; o motor de aeronave
expeliu um sufocante jato de chuva e fumaça de óleo diesel sobre as
arquibancadas. O casco de alumínio do barco aterrissou sobre a grama
escorregadia do campo de futebol e hidroplanou; era perfeito, pensou o
índio ganhando velocidade — não se podia pensar numa superfície melhor.
Brian Keyes finalmente alcançara o final das escadarias, e pulava a
cerca para o campo quando encontrou os tiras que estivera procurando.
Cinco, dos melhores que Miami tinha a oferecer. Cães, cassetetes, o diabo.
Keyes protestou com todo o ar de seus pulmões, mas mesmo assim o
puseram contra a grade e de lá, como um peixe numa rede, ele assistiu ao
desenrolar da terrível cena — o airboat virando em círculos; Viceroy
correndo com Kara Lynn sobre o ombro; Skip cantando no microfone.
No campo, Burt e James tinham levantado suas motocicletas e
reiniciado a perseguição. O elemento-chave agora era a velocidade, não a
agilidade; driblar uma Harley Davidson era uma coisa, superá-la em rapidez
era impossível. Viceroy Wilson não tinha ilusões quanto a isso: e contava
inteiramente com a ajuda do índio.
Tommy Rabo-de-Tigre era um mágico com o airboat. Cortou o campo e
interpôs o barco entre Wilson e os carrancudos motociclistas, com suas
vestes brancas e chapéus roxos. O índio fez com que o barco volteasse
sobre uma poça, atirando uma mistura nojenta de água e terra no focinho
dos shriners. James perdeu o controle e caiu, derrapando da linha de
quarenta jardas do Notre Dame até a linha de trinta e cinco do Nebraska.
Não se levantou. Burt, alerta, desviou-se do jato de popa do airboat e, para
evitar a lama atirada para o ar, buscou proteção curvado atrás do para-brisa
de acrílico feito sob medida para sua moto.
O airboat emparelhou-se com Viceroy Wilson e parou. Wilson atirou
Kara Lynn Shivers sobre ele como se fosse um saco de areia. Nesse
momento, o público já tinha percebido que aquilo não era parte do show e
começou a gritar descontroladamente. O diretor do Orange Bowl estava de
pé, gritando pelos guardas, enquanto o sucessor de Sparky Harper na
Câmara de Comércio tentava freneticamente sabotar os cabos de uma das
minicâmeras portáteis da NBC. Enquanto isso, alguns dos verdadeiros
jogadores do Notre Dame se aproximaram do campo para observar a
confusão; Tommy Rabo-de-Tigre temeu que eles assumissem logo uma
atitude cavalheiresca.
“Rápido”, disse ele a Viceroy Wilson.
Wilson tinha um pé no airboat quando a Harley de Burt zumbiu perto
dele como uma enorme abelha de cromo. Viceroy olhou para baixo e
descobriu que sua perna direita — sua perna ruim — fora firmemente
agarrada no abraço de morte de um shriner. Com sua outra perna, Wilson
chutava e escoiceava como um cavalo de corrida enraivecido. A
motocicleta caiu de sob o atacante de Viceroy, mas de alguma forma Burt
manteve o equilíbrio e conseguiu ficar de pé. Wilson pensou: Esse cara
poderia ter dado um puta dum zagueiro.
“Solte a garota!”, Burt ordenou.
“Suba”, disse Tommy Rabo-de-Tigre a Wilson.
“Não consigo me soltar!”
A dor no joelho de Viceroy — mutilado como todos sabiam,
prematuramente artrítico, agora precariamente mantido por pinos e
parafusos — era insuportável, pior do que qualquer coisa que ele recordava
dos velhos tempos.
“Rápido”, disse o índio. Ele moveu a alavanca e o airboat se pôs em
marcha.
Eles se encontravam num ponto mais seco do gramado e o barco se
movia aos solavancos. Tommy sentia a ânsia de levar logo a máquina à
velocidade máxima; através do aguaceiro ele divisara uma falange de
policiais com capacetes avançando do lado norte. Tremendo sob o dilúvio,
Kara Lynn sentara-se.
“Solte-a!”, Burt rugiu, puxando e torcendo a perna de Wilson, até que o
número 31 se ligava ao casco do barco apenas pelas pontas de seus dedos.
Uma dor profunda começou a turvar a mente de Viceroy e dissolver sua
força de vontade. Subitamente ele se sentiu velho e cansado, e percebeu que
gastara toda a sua histamina naquela corrida gloriosa.
O índio decidiu que era hora de partir — os policiais agora corriam,
com cães pastores de presas amareladas em seus calcanhares. Tommy
abandonou a plataforma do piloto, agarrou Viceroy Wilson pelos pulsos e
puxou com toda a sua força. Burt perdeu sua presa e caiu de costas, o
barrete púrpuro rolando para um lado. Wilson aterrissou no barco com um
gemido.
Kara Lynn tentou engatinhar para fora, mas o airboat já ia muito rápido.
Ela se agachou, as pernas encostadas no peito, as mãos nos ouvidos; o
rugido ensurdecedor do motor era mais uma fonte de dor.
Ela viu o destemido shriner correndo ao lado do barco, as abas de sua
túnica esvoaçando. Ele continuava gritando a Tommy para que parasse.
Tinha uma pequena pistola marrom na mão.
Viceroy Wilson aproximou-se da popa, os fortes braços pendentes ao
lado do corpo, mantendo-se firme mas arrastando a perna direita. Arrancou
o capacete do Notre Dame e atirou-o em vão na direção do ensandecido
shriner.
O crânio de mogno de Viceroy brilhava na chuva; as luzes do estádio
piscavam nas lentes de ébano de seus óculos de sol. Ele desafiou Burt
orgulhosamente e ergueu seu punho direito numa saudação que era, no
mínimo, tradicional, até mesmo gasta.
“Abaixe!”, gritou o índio. O airboat avançava direto para uma das traves
— Tommy teria que fazer uma curva espantosa. “Viceroy, abaixe!”
Kara Lynn viu um flash rosado partindo do cano da pistola de Burt, mas
não ouviu nenhum tiro.
Quando ela se voltou, Viceroy Wilson não estava mais ali.
Com um esgar, Tommy Rabo-de-Tigre mergulhou com o barco num
ousado cavalo de pau. Ele deslizou de lado e foi bater contra a trave
revestida de borracha, ricocheteou e voltou ao seu curso. As malabaristas do
Marching Cornhusker soltaram seus bastões e desfizeram a fileira, abrindo
uma rota de escape para Tommy. Com Kara Lynn encolhida de medo na
proa, o airboat disparou para fora do estádio através do portão leste. Um
trailer com carreta fora estacionado na Seventh Street para eventualidades,
mas o índio sabia que não precisaria dele; havia poças de água de chuva de
vinte centímetros de profundidade e o airboat deslizou suavemente sobre
todo o caminho que o separava do rio Miami.
Kara Lynn pensou ter ouvido mal, ou que talvez fosse um engano
sonoro causado pelo vento.
“Você disse dinamite?”, perguntou ela.
“Quatrocentos quilos”, disse Skip Wiley, “divididos em três cargas.
Uma na ponta nordeste, outra a sudeste. A terceira carga, a maior, está logo
ali, a trinta metros de distância. Você está vendo? Aquela caixa galvanizada
debaixo das árvores.”
De onde estava, Kara Lynn via apenas sombras.
“Eu... eu não...” Ela engasgava de medo, incapaz de falar. Acalme-se,
ela disse a si própria.
“Eles acionam por controle remoto”, explicou Wiley, “de uma lancha.
Nós passamos por ela no caminho, ancorada a cinco quilômetros da ilha.
Você estava dormindo.”
“Oh...” O plano era mais terrível do que ela imaginara; toda a sua
tentativa de retardá-lo fora em vão, uma estratégia inútil.
“A explosão tem que ser feita de madrugada”, prosseguiu Wiley, “por
causa de algum tipo de regra militar. Não podem trazer barcos para mais
perto da ilha porque a explosão arrebentaria os vidros.”
Ele caminhou vagarosamente até a fogueira e permaneceu de costas
para ela por vários instantes. Sua cabeça de cantalupo descoberta movia-se
para lá e para cá, como se ele estivesse falando consigo próprio.
Abruptamente ele se voltou e disse:
“A razão para a dinamite são os corais. Veja...” Ele bateu no chão com o
sapato. “Mais duro que cimento. Eles precisam penetrar sessenta
centímetros para assentar as fundações do condomínio. Não podem nem
arranhar essa coisa com picaretas... eis o porquê da dinamite. Giram um
botão e — puf — transformam este lugar nas planícies de Bonneville.
Quatrocentos quilos é um bom punhado de traques.”
Kara Lynn endireitou-se apenas o bastante para fazer a pergunta mais
vazia de toda a sua vida:
“E eu?”
Wiley abriu os braços.
“Nenhuma forma de vida sobreviverá”, disse ele em tom professoral.
“Nem que seja um percevejo.”
“Por favor, não faça isso”, disse Kara Lynn.
“Não sou eu, bonequinha Barbie, é o progresso. Sua carne está nas mãos
da Puerco Investimentos.”
“Não me deixe aqui”, disse ela, quase suplicante.
“Minha querida, como eu poderia salvar você e não salvar aquela
magnífica águia? Ou os coelhos indefesos e os simpáticos gambás e os
caranguejos? É impossível salvá-los, portanto não vejo como posso salvar
você. Não seria justo. Seria como... brincar de Deus. Assim é melhor, Kara
Lynn. Desse jeito — pela primeira vez em dezenove anos de mimo —, você
é realmente uma parte da ordem natural. Você agora é habitante desta linda
ilhota, e o valor da sua vida é igual ao de todas as outras criaturas daqui. Se
eles forem sobreviver depois da madrugada, você também irá. Senão... bem,
talvez aí a boa gente da Flórida venha finalmente apreciar a magnitude de
seus pecados. Se Osprey Island for aplainada em nome do progresso,
prevejo uma reação cataclísmica, logo que a verdade seja descoberta. A
verdade, no caso, é o fato de eles terem massacrado a única espécie que
realmente lhes importa — um futuro cliente.”
Kara Lynn começava a perder a calma.
“O simbolismo é intrigante”, disse ela, “mas a sua lógica é ridícula.”
“Só escute”, disse Wiley. De um bolso na camisa ele tirou outro recorte
e leu: “‘As autoridades do Sul da Flórida estimam que a publicidade
adversa, devida aos assassinatos de turistas em dezembro, trouxe à região
prejuízos de cerca de dez milhões de dólares’”. Wiley acenou com o papel e
prosseguiu com satisfação maligna. “Nada mau, hein?”
“Estou impressionada”, disse Kara Lynn altivamente. “Um mês de
mortes e tudo o que você conseguiu foi uma notinha da Newsweek.”
“É o item principal da coluna ‘Periscope’!”, disse Wiley na defensiva.
“Sensacional”, disse Kara Lynn. “Olha, por que você não me deixa ir
embora? Você pode fazer muito mais do que isso.”
“Eu acho que não.”
“Eu posso nadar para longe”, declarou ela.
“Não toda amarrada como você está”, disse Wiley. “Além disso, a água
está infestada de cações. Você sabia que eles desovam à noite, no raso? São
uns peixinhos agressivos. Uma mordida aqui, outra lá, um pouco de sangue
e logo os peixões sentem o cheiro e aparecem no palco. Tubarões brancos e
tubarões-martelo, grandes o bastante para comer a droga de um Datsun.”
“Isso basta”, disse Kara Lynn.
Um pequeno barulho veio da borda da clareira. Um galho quebrando na
tempestade, ela pensou. Skip Wiley inclinou a cabeça e fixou o olhar na
direção do ruído, mas a chuva forte tornava tudo cinza, borrado e disforme.
Os únicos sons identificáveis eram o de gotas de chuva batendo em folhas e
o assobio das brasas da fogueira, apagada pelo aguaceiro.
Wiley não se contentou com isso. Como um desajeitado arremessador
de beisebol, ele se contorceu e atirou a estaca com a bandeirola em direção
às árvores.
Em resposta ao míssil, veio um estranho e sufocado pio.
Wiley riu.
“Como eu tinha pensado”, disse ele, “era um tordo.”
Nesse instante, a mata se rompeu numa explosão tão grande que Kara
Lynn teve certeza de que Wiley acidentalmente detonara a dinamite.
Quando ela abriu os olhos, ele estava sentado, pálido, o queixo caído. O
lenço vermelho estava enviesado, pendendo frouxo sobre um olho. Suas
pernas estavam esticadas para a frente, como as de um boneco. Ele parecia
paralisado pela visão de alguma coisa muito próxima — uma radiante poça
escarlate e um pedaço amarelo de osso, onde seu joelho direito costumava
estar. De modo ausente, ele introduziu o dedo no buraco em suas calças.
Kara Lynn foi tomada de nojo. Ela tentou respirar fundo.
Brian Keyes saiu rapidamente do meio das árvores.
Seus cabelos castanhos estavam colados à testa; a chuva corria pelo seu
rosto. Sua face não mostrava expressão. Ele andava com deliberação, um
pouco apressado, como se estivesse prestes a perder um avião.
Ele caminhou a passos largos até Skip Wiley, colocou um pé sobre o
peito deste e o fez ficar prostrado, de costas. Uma verdadeira cavalaria de
um homem só! Kara Lynn se mostrava radiante, inundada de alívio. Ela não
notou a Browning na mão direita de Brian até que ele enfiou o cano na boca
de Wiley.
“Olá, Skip”, disse Keyes. “Que tal me dizer onde você ancorou o
barco?”
Os olhos de lobo de Wiley se apertaram de divertimento. Ele grunhiu
uma saudação indecifrável. Keyes retirou vagarosamente a arma, mas a
manteve a centímetros do nariz de Wiley.
“Santo Deus!”, reboou a voz de Wiley enquanto ele se sentava. “E eu
que pensava que você fosse perigoso com uma máquina de escrever.”
“Você está perdendo sangue”, disse Keyes.
“Não acho que deva agradecer-lhe.”
“Onde está o barco?”
“Não tão depressa assim.”
Keyes atirou novamente, a arma tão próxima da face de Wiley que o
estampido o derrubou de novo. Wiley tapou os ouvidos e rolou para o lado,
sobre o afiado e pontiagudo coral. A bala fora se alojar inofensivamente no
entulho da velha cabana.
Kara Lynn gritou involuntariamente — ela receava que teria que ver um
assassinato. Keyes aproximou-se, desamarrou-a e abraçou-a gentilmente.
“Você está bem?”
Ela fez que sim.
“Quero sair daqui. Vão dinamitar este lugar...”
“Eu sei.” Ele tinha que achar o barco de Wiley.
Joey, o pescador de camarões, fora generoso o bastante para dar-lhes
uma lata de atum defumado e um pouco de água antes de desembarcá-los,
mas não fora generoso o bastante para esperar. Murmurando algo a respeito
do preço obsceno do combustível, ele dera meia-volta com o Tina Marie,
deixando pará seus passageiros o trabalho de encontrar um modo de
retornar ao continente.
Keyes aproximou-se de Wiley e ordenou-lhe que se sentasse.
“Você está de mau humor”, disse Wiley, nervoso. Seus ouvidos
zumbiam. Ele se sentia falando no interior de um túnel.
Keyes tirou sua camisa e a amarrou ao redor da perna mutilada de
Wiley.
“Não temos muito tempo”, disse ele.
Wiley estudou Brian atentamente; a arma fazia dele um estranho. A
violenta erupção fora bastante desconcertante, mas o que perturbava Wiley
ainda mais era o olhar de absoluta frieza e indiferença. Não se tratava do
mesmo jovem educado que se sentava perto dele na redação; Wiley temia
perder o controle da situação. Contra aquele Brian Keyes, naquele lugar, as
armas de Wiley se encontravam grandemente limitadas. Imediatamente ele
eliminou o charme, a inteligência e a oratória.
“Como você me encontrou?”
“Não importa”, disse Keyes.
“A Jenna contou, não foi?”
“Não.” Então ela sabia. É claro que sabia. “Me dê a chave do Mako”,
disse Keyes.
Relutantemente, Wiley a entregou.
Ele apontou para Kara Lynn.
“É a garota, não é? Você está ligado nela! Por isso você está com essa
pose de Charles Bronson — defendendo a donzela gentil. É o seu destino,
Brian. Parece que eu estou sempre atrapalhando a sua vida amorosa.”
Keyes não sabia quanto mais conseguiria resistir. Desejava partir agora,
enquanto ainda tinha forças, enquanto ainda era impelido pelo que quer que
fosse que lhe permitiria puxar mais uma vez o gatilho.
“Kara Lynn, você gostaria de conhecer um segredo sobre o senhor
Keyes?”
Ela não respondeu, sabendo que nada tinha terminado ainda. Não
enquanto Wiley conseguisse falar.
“Você não quer ouvir uma história de guerra?”, perguntou Wiley.
“Cale a boca”, disse Keyes.
“Você quer o barco? Então vai ter que ouvir. Educadamente.”
Keyes agarrou o pulso de Wiley e olhou o relógio. Eram cinco e meia;
estavam em cima da hora.
“Há poucos anos atrás, uma garotinha foi raptada e assassinada”, disse
Wiley, voltando-se para Kara Lynn, seu auditório. “Depois que o corpo foi
encontrado, Brian teve que ir entrevistar os pais dela.”
“Os Davenport”, disse Keyes.
“Ei, me deixa contar!”, disse Wiley com indignação.
A chuva diminuíra para um chuvisco sibilante. Keyes rasgou um pedaço
de plástico do poncho improvisado de Kara Lynn e sentou-se sobre ele.
Sentia-se opressivamente letárgico, cansado até a medula.
“Brian retornou com uma grande matéria”, disse Wiley. “A mãe,
chorando histericamente; o pai, cego de raiva. Amanhã seria o quarto
aniversário de Callie Davenport. Seu quarto está cheio de belos presentes,
cada um ternamente embrulhado. Há um boneco do Snoopy, mandado pelo
tio Dennis, um Dr. Seuss mandado pelo vovô. Callie não estará lá para o
seu aniversário, portanto os pacotes podem permanecer fechados por um
longo tempo. Talvez para sempre. Seus pais simplesmente não podem
suportar ir até o quarto dela.”
Keyes encolheu-se. Ele não conseguia acreditar que Wiley lembrava da
reportagem, palavra por palavra. Era espantoso.
“Extremamente comovente”, declarou Wiley. “Naquela manhã, metade
de Miami verteu lágrimas sobre seus sucrilhos.” Ele parecia esquecido da
dor, da poça de sangue que aumentava sob sua perna.
“Kara Lynn”, disse ele, “em meu ramo, a moeda do reino é uma boa
citação — a única coisa que traz vida a uma reportagem de jornal. Uma
frase decente é a diferença entre caviar e comida de cachorro, e a
reportagem de Brian sobre Callie Davenport estava repleta de pérolas
líricas. ‘Tudo o que quero’, soluçou o pai da garotinha, ‘são dez minutos
com o homem que fez isso. Dez minutos e uma marreta.’ Um vizinho levou
a mãe de Callie ao necrotério para identificar sua filha. ‘Eu queria me
deitar ao lado dela’ disse a sra. Davenport. ‘Queria abraçar minha filhinha
e acordá-la...’”
Keyes disse:
“Isso já é o suficiente.”
“Não seja tão modesto”, repreendeu Wiley. “É a única coisa que você
escreveu que me deixou com inveja.”
“Eu inventei tudo”, disse Keyes, tomando a mão de Kara Lynn. Ele
esperava que ela apertasse de volta, e ela o fez.
Wiley parecia perturbado, como se Brian houvesse estragado a grande
frase de efeito.
“Eu fui até a casa”, disse Keyes monotonamente. “Esperava encontrar
uma multidão. Vizinhos, parentes, você sabe. Mas tinha só um carro
estacionado na frente, eles estavam completamente sozinhos... Eu bati na
porta. A senhora Davenport atendeu e eu pude ver, nos olhos dela, que ela
estava atravessando o inferno. Atrás dela, eu vi como eles haviam
espalhado fotografias de Callie pela sala — sobre o piano, os sofás, a
televisão, em toda a parte... Nunca vi tantas fotos de criança. O senhor
Davenport estava sentado no chão com um álbum velho no colo... ele estava
chorando com uma dor tão terrível...
“Com uma voz simpática, a senhora Davenport me perguntou o que eu
queria. De início não consegui dizer nada, e então disse para ela que era
consultor de seguros e estava procurando pela casa dos Smith, e devia ter
pegado o endereço errado. Então voltei para o meu apartamento e inventei
toda a reportagem, todas aquelas frases maravilhosas. Foi isso que o Sun
publicou.”
“A impiedade suprema”, disse Wiley impostando a voz, “o estupro da
verdade.”
“Ele tem razão”, disse Keyes. “Mas eu simplesmente não consegui fazer
o que devia, entrar naquela casa e invadir a dor daquelas pessoas. Por isso,
inventei toda a merda da reportagem.”
“Acho que você precisou de coragem para se virar e ir embora”, disse
Kara Lynn.
“Ora, pelo amor de Deus.” Wiley fez uma careta. “Foi um ato da maior
covardia. Nenhum jornalista com um mínimo de autoestima volta as costas
para a dor e o sofrimento. Foi uma coisa baixa e vergonhosa, Pollyanna, seu
namorado não é nenhum herói.”
Kara Lynn encarou Wiley e disse:
“Você é patético.” Ela o disse com tal mordacidade e desdém que Wiley
retraiu-se.
Obviamente ele a menosprezara, assim como a Keyes. Ele guardara a
história de Callie Davenport por todos aqueles anos, antegozando o
momento em que poderia precisar dela. Entretanto, ela não produzira o
efeito desejado, em absoluto. Ele se sentiu um pouco confuso.
Keyes disse a Kara Lynn:
“Eu tive que sair do jornal. Eu tinha ultrapassado os limites e não havia
como retornar.”
“Ao menos eu espalho a verdade”, interrompeu Wiley. “É essa a base
desta minha campanha — dramatizar as verdadeiras consequências da
loucura.”
Ele se esforçou, tremendo, para ficar de pé. Ganhou equilíbrio
agarrando o tronco de uma árvore e colocando todo o peso do corpo no lado
esquerdo. A outra perna pendia como um apêndice morto e enegrecido.
“Brian, eu não sei se você vai entender algum dia, mas tente. Toda
aquela dor terrível que os Davenport sentiram por sua filha é exatamente o
que sinto quando penso no que aconteceu a este lugar. O mesmo sentimento
de perda, a mesma fúria e o mesmo desejo primitivo de vingança. A
diferença é que não posso dar as costas como você fez. Meu vilão não é um
tatuado sexualmente pervertido, mas uma geração inteira de estupradores
arrumadinhos, com telefones celulares em seus Volvo e linhas de crédito de
cinco milhões de dólares e secretárias que enrabam todo dia. Esses são os
insanos que inventaram o Osprey Club, idiotas que não seriam capazes de
distinguir uma águia-pescadora de uma merda de um periquito.”
Kara Lynn estava admirada com o fervor infatigável de Wiley. Brian
Keyes não estava tocado; ele já ouvira tudo isso antes. Acima, o céu
clareava, enquanto as últimas nuvens de chuva deslizavam para oeste. No
horizonte brilhava uma nesga de magenta, a primeira promessa da aurora. O
tempo estava se esgotando e havia uma última chance.
“Skip...”
“Brian, Kara Lynn, vocês podem imaginar o Quociente de Imbecilidade
nesta ilha daqui a um ano? Vocês vão precisar da repartição do censo só
para contar todas as correntinhas de ouro...”
Keyes guardou a Browning em seu cinto.
“Onde está o barco, Skip?”
“Mudei de ideia”, disse ele com impertinência. “Você vai ter que achar
sozinho. Se não achar, explodimos todos juntos. Uma reportagem bem
melhor, não acha? ‘Explosão na ilha do condomínio mata três.’”
“Mude para quatro”, disse Keyes.
Wiley tocou sua barba. Seus olhos agudos foram de Keyes para Kara
Lynn e voltaram.
“Do que é que você está falando?”
“Ela está aqui, Skip.”
“Jenna?”
Keyes apontou para a mata.
“Jenna está aqui na ilha?”
“Eu achei que a gente poderia jogar um bridge”, disse Keyes.
“Por que você a trouxe!”, exclamou Wiley com raiva.
“Achei que desse jeito estaríamos em pé de igualdade.”
“Brian, eu não fazia a menor ideia de que você fosse um filho da puta
tão baixo”, disse Wiley. Parecia profundamente desapontado.
“Espere aqui”, disse Keyes. Rapidamente, ele caminhou até a mata.
“Você sabia disso?”, Wiley perguntou a Kara Lynn.
“O que é que está te incomodando tanto?”, disse ela. “Isso vai fazer a
reportagem ficar melhor, certo?”
Pesando as opções, Wiley mordia o lábio inferior.
Keyes retornou trazendo Jenna pela mão. Vendo-a, a expressão de
Wiley ensombreceu-se.
“Meu Deus”, disse ele numa voz quase sumida.
“Sinto muito, Skip”, disse Jenna. Ela estava embaraçada, mortificada,
como uma adolescente que tivesse acabado de destruir o carro novo do pai.
“Ela está um pouco envergonhada”, explicou Keyes. “Ela não queria
que você soubesse que ela estava aqui.”
“Eu arruinei tudo”, disse Jenna. Ela engoliu em seco ao ver o joelho
mutilado de Wiley, mas não moveu um dedo para ajudá-lo.
Definitivamente, Jenna não era Florence Nightingale.
Wiley olhou para seu relógio. Eram seis e sete. A aurora viria às seis e
vinte e sete em ponto.
“Skip esgotou sua conversa”, Keyes disse a Jenna. “Ele disse tudo o que
poderia dizer, eu acho. Agora nós quatro vamos entrar no barco e dar o fora
dessa ilha antes que ela vá pelos ares.”
Wiley apertou a barriga de sua perna direita.
“Não consigo acreditar que você atirou em mim”, disse ele.
“Pensei que isso poderia calar a sua boca.”
“Para onde, exatamente, você estava apontando?”
“Qual a diferença?”, disse Keyes.
Kara Lynn subira até onde estivera a velha casa. A elevação era de
poucos metros, mas alta o bastante para proporcionar uma vista das águas
circundantes, agora calmas. Um filete distante de fumaça marrom de óleo
diesel atraiu sua atenção.
“Acho que estou vendo a balsa”, disse ela.
“O que vai ser então, Skip?”, disse Keyes.
Wiley fitou Jenna com os olhos arregalados; Keyes imaginou que era o
momento para um grande abraço choroso. Ambos pareciam ter envelhecido
dez anos, mas ainda não aparentavam ser um casal.
“Tem um trapiche na ponta norte, do lado protegido do vento, o lado
contrário àquele de onde você veio”, disse Wiley num tom cansado. “O
Mako está ancorado lá. Melhor vocês irem.”
“Nós todos vamos”, disse Keyes.
“Não eu”, disse Wiley. “Você não pode me obrigar, camaradinha.” Ele
estava certo. A arma de nada serviria agora.
“Ei, olhem lá uma águia”, disse Jenna.
O pássaro planava, dirigindo-se elegantemente para os pinheiros.
Carregava um peixe prateado em suas garras.
“Mas olhem só aquilo”, maravilhou-se Wiley, seus olhos brilhando sob
a bandana semínole. Ele retirou seu boné de beisebol em saudação.
“É um pássaro maravilhoso”, concordou Kara Lynn, tomando o braço
de Brian. Hora de ir, ela dizia, vamos lá.
“Venha com a gente, Skip”, insistiu Keyes.
“E se eu não for? Você vai atirar em mim de novo?”
“Claro que não.”
Wiley disse:
“Esqueça de mim, colega. Estou começando a gostar daqui.”
Ele abriu os braços e Jenna foi até ele. Wiley a beijou na testa. Tocou
seu cabelo e disse:
“Não creio que você queira fazer companhia a um lunático de uma
perna só.”
Os olhos de Jenna, como de hábito, deram a resposta. Keyes percebeu e
desviou o olhar. Ele já vira isso antes.
“Ora, eu não te culpo”, Wiley disse a ela, “os mosquitos daqui são
terríveis.” Ele deu um tapa no traseiro dela e a deixou ir.
Para Keyes ele sussurrou:
“Por favor, encontre outra mesa de café para ela, OK?”
“Skip, por favor...”
“Não! Vão indo, e depressa. Esses equipamentos controlados por rádio
são muito precisos.”
Keyes guiou as duas mulheres através da clareira. Jenna ia cegamente
adiante, mas Keyes e Kara Lynn fizeram uma pausa ao pé da colina em que
ficava a casa. Olharam para trás e viram Wiley na clareira, apoiado ao
mastro apodrecido. Seus braços estavam cruzados, e em seu rosto havia um
largo, eufórico e incompreensível sorriso.
“Ei, Brian”, ele gritou, “eu não terminei a minha história.”
Keyes quase riu.
“Agora não, filho da mãe!” O sujeito era inacreditável.
“Mas eu nunca te contei — eles telefonaram.”
“Eles quem?”
“Os Davenport. Eles ligaram no dia em que sua matéria saiu, mas você
já tinha ido embora.”
Keyes soltou um gemido — o desgraçado sempre queria ter a última
palavra.
Ansiosamente ele gritou de volta:
“O que eles queriam?”
“Queriam agradecer”, confessou Wiley. “Eu não acreditei! Eles
realmente queriam agradecer. Eles disseram que foi como botar para fora
tudo o que estavam sentindo.”
Keyes acenou uma última vez para seu velho amigo.
Perdido para sempre, sua odisseia medida agora por minutos, Skip
Wiley acenou um braço frouxo e queimado em resposta. Ele ainda
balançava o boné quando Brian Keyes, Jenna e Kara Lynn Shivers
desapareceram nos arbustos.
Título original:
Tourist season
Design de capa:
Andy Newman
Ilustração de capa:
Ross McDonald
Revisão da tradução:
Marcelo Levy
Preparação:
Marcia Copola
Revisão:
Lucíola S. de Morais
Carmen S. da Costa
Hiaasen, Carl
Caça aos turistas / Carl Hiaasen ; tradução Hamilton dos Santos. — São Paulo : Companhia das
Letras, 1993.
ISBN 85-7164-323-7
93-2039 CDD-813.5
[1993]