Caça Aos Turistas - Carl Hiaasen

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Para meu filho Scott

Na manhã de 1º. de dezembro, um homem chamado Theodore Bellamy


resolveu nadar no oceano Atlântico, no litoral Sul da Flórida. Bellamy era
um nadador medíocre, mas um bom corretor de imóveis e um shriner[1]
dedicado.
Os shriners o tinham em tão alta estima que pagaram sua passagem de
avião para vir desde Evanston, em Illinois, até Miami Beach, onde estava
sendo realizada uma grande convenção de shriners. Bellamy e sua mulher,
Nell, fizeram disso uma segunda lua de mel, e ocuparam um agradável
quarto de casal no Holiday Inn. A vista não era lá grande coisa; um grande
terreno baldio era tudo o que podiam ver pela janela, mas os Bellamy não se
queixaram. Estavam determinados a amar a Flórida.
Na noite de 30 de novembro, os shriners organizaram um pequeno
desfile na avenida Collins. Theodore Bellamy enfiou seu fez cor de malva e
sua jaqueta de motoqueiro prateada, e ficou circulando com sua Harley
Davidson de cromados reluzentes (todos os shriners importantes tinham
mandado trazer suas motos de caminhão) para cima e para baixo na avenida
Collins, traçando círculos e oitos, tocando a buzina e piscando os faróis.
Mais tarde, Bellamy e seus companheiros encheram a cara e foram para o
Place Pigalle ver uma mulher de cento e trinta quilos fazer strip-tease.
Bellamy estava tão bêbado que não deu a mínima para a consumação de dez
dólares.
Nell Bellamy foi para a cama cedo. Quando seu marido chegou
capotando às quatro e sete da madrugada, ela não disse nada. Na verdade,
deve ter dado um sorrisinho consigo mesma.
O despertador soou infernal, como um foguete de Redstone, exatamente
às oito horas. Vamos nadar, anunciou Nell. Theodore estava derrubado, na
fase Deus-me-acuda-nunca-farei-isso-outra-vez de sua ressaca, quando a
mulher o arrancou da cama. Quando se deu conta, estava na praia, de calção
xadrez, enquanto Nell o empurrava, aos cutucões, na direção das ondas:
Você primeiro, Teddy, diga-me se a água está suficientemente quente.
A água estava bastante quente, mas também repleta de águas-vivas
venenosas flutuando na superfície como balões azuis brilhantes. Theodore
Bellamy rapidamente tornou-se uma presa nos escaldantes tentáculos de
uma daquelas criaturinhas. Ele se debateu para fora do mar, sua barriga
branca marcada com vergões, a água-viva grudada no seu ombro nu. Ele
chorava. Seu fez estava ensopado.
A princípio, Nell Bellamy ficou só desconcertada, mas depois percebeu
que aquilo não era uma dorzinha de ressaca qualquer; aquilo era mesmo de
verdade. Levou o marido até a toalha de praia da Disney World, e lá o
confortou até que dois salva-vidas correram em sua direção com um kit de
primeiros socorros.
Mais tarde, Nell se lembraria de que aqueles não eram os salva-vidas
tradicionais com cabelos clareados pelo sol a que ela estava acostumada.
Um era negro e o outro parecia não falar inglês, mas, que diabos, isto era
Miami. Ela viera para cá disposta a não se surpreender com nada, e esta foi
a atitude que manteve enquanto os homens se ajoelhavam sobre seu marido
prostrado. Além disso, eles estavam usando autênticas camisetas de salva-
vidas, não estavam?
Depois de dez minutos de auxílio e vaselina, os salva-vidas informaram
a Nell que teriam que levar seu marido ao pronto-socorro mais próximo.
Disseram que ele precisava de medicamentos para conter a ação do veneno
das águas-vivas. Nell quis ir junto, mas eles a convenceram a esperar, e lhe
asseguraram que não se tratava de nada mais sério. Theodore disse: Não
seja boba, cuide de seu bronzeado, ficarei bem.
E eles se afastaram, Theodore com as pernas cambaleando e a barriga
coberta de vergões, um salva-vidas de cada lado, andando praia afora.
Isso foi às oito e quarenta e quatro da manhã.
Nell Bellamy jamais voltou a ver o marido.
Às dez horas em ponto ela saiu atrás dos salva-vidas, sem nenhum
sucesso, e, depois de andar um bom percurso de mais ou menos três
quilômetros na praia, chamou a polícia. Um patrulheiro foi ao Holiday Inn e
preencheu um formulário de pessoas desaparecidas. Nell mencionou a
ressaca de Theodore e ressaltou sua mediocridade como nadador. O policial
disse à sra. Bellamy que seu marido muito provavelmente tentou voltar para
a água e teve problemas com as ondas mais fortes. Quando a sra. Bellamy
descreveu os dois salva-vidas, o policial a olhou de um jeito esquisito.
O caso Theodore Bellamy não foi tratado com prioridade pelo
departamento de polícia de Miami Beach, onde os agentes tinham coisas
mais catastróficas com que se preocupar. Não tinham tempo a perder com
um shriner bêbado perdido no mar.
A polícia estava mais preocupada em desvendar o paradeiro de B. D.
“Sparky” Harper, uma das mais proeminentes figuras de toda a Flórida;
Harper, pela primeira vez em vinte e um anos, deixara de aparecer em seu
escritório. Todos os investigadores disponíveis estavam em campo,
chacoalhando as palmeiras à caça de Sparky.
Quando se tornou claro que a polícia estava preocupada demais com
outros assuntos para deflagrar uma operação a fim de resgatar seu marido,
Nell Bellamy mobilizou os shriners. Eles invadiram a praia em bando,
alguns a pé, outros de motocicleta, uns poucos em minicarros vermelhos
que tinham tendência a atolar na areia. Os shriners pareciam resolutos e
convictos em sua busca; afinal, Teddy Bellamy era um deles.
Os shriners foram minuciosos, e conseguiram resultados. Nell chorou
quando ouviu as notícias.
Eles haviam encontrado o fez de Theodore na praia, à beira d’água.
Nell pensou: Então ele se afogou mesmo, aquele maluco.
Mais tarde, os shriners se reuniram no Lummus Park para um ato de fé.
Alguém depositou uma coroa de flores no guidão da bem-cuidada Harley de
Bellamy.
Ninguém poderia nem sequer sonhar com o que realmente sucedeu a
Theodore Bellamy. Mas isso era apenas o começo.

Sparky Harper foi encontrado na tarde daquele mesmo dia, uma tarde
ensolarada, sem nuvens.
Uma brisa fresca lambia o mar suavemente encrespado no canal de
Pines, onde a mala de viagem flutuava, meio submersa, invisível para o
adolescente sobre seus esquis. Ele esquiava ali perto, a uns quarenta nós,
quando resvalou na bagagem e foi lançado num espetacular salto-mortal
triplo.
Seus amigos manobraram a lancha para apanhá-lo e dar-lhe os
cumprimentos. Depois voltaram um pouco mais para pegar a mala, que
exigiu o esforço dos três para ser trazida até o barco; eles logo imaginaram
que ela deveria estar repleta de dólares ou drogas.
O esquiador tirou uma chave de fenda da caixa de ferramentas e forçou
os fechos da mala.
“Vamos ver o que tem dentro”, disse ele ansiosamente.
E lá dentro, dobrado como Charlie McCarthy, estava B. D. “Sparky”
Harper.
“Um anão morto!”, berrou o piloto da lancha.
“Isto não é um anão”, disse o esquiador. “É uma pessoa de verdade.”
“Minha nossa! Temos que chamar a polícia. Vamos lá, ajudem-me a
fechar esta porcaria.”
Mas, com Sparky Harper inchando, a mala não fechava e, além disso, os
fechos estavam quebrados; assim, durante todo o percurso de volta para o
cais, os três garotos ficaram sentados em cima da mala para manter o anão
morto do lado de dentro.

Dois investigadores de Dade County dirigiram-se para a ilha Virginia


Key a fim de apanhar a Samsonite Royal Tourister vermelha. Tomaram o
depoimento do esquiador, colocaram a mala no bagageiro de seu Plymouth
chapa fria e rumaram para o centro da cidade.
Um dos policiais, um massudo de cabelos ruivos, caminhou até o
laboratório do médico-legista carregando a Samsonite como se não
houvesse nada de errado.
“Este é o terminal da Pan Am?”, gracejou, com expressão impassível,
para a primeira secretária que viu.
A mala foi levada ao necrotério e depositada sobre uma brilhante mesa
de autópsias, de aço. O dr. Joe Allen, chefe do departamento de medicina
legal, reconheceu Sparky Harper imediatamente.
“A primeira coisa que temos que fazer”, disse o dr. Allen calçando luvas
de borracha, “é tirá-lo daí.”
Quem quer que tivesse assassinado o presidente da Câmara de
Comércio da Grande Miami deve ter tido um trabalho considerável para
enfiá-lo na Samsonite vermelha. Sparky tinha apenas 1,64 m, mas pesava
quase noventa quilos, a maior parte deles concentrada na barriga. Tê-lo
espremido daquela forma numa mala, mesmo sendo uma mala de tamanho
família, foi um feito que despertou os comentários admirados da calejada
equipe de legistas. Um dos auxiliares usou dois rolos de filme
documentando o destrinchamento.
Finalmente o cadáver foi removido e mais ou menos esticado sobre a
mesa. Foi então que algo da admiração se desfez: as pernas de Harper, do
joelho para baixo, não estavam ali. Essa foi a maneira encontrada pelo
assassino para colocá-lo na mala.
Um dos policiais cochichou:
“Olhe para essas roupas, doutor.”
Era esquisito. Sparky Harper morreu vestindo uma camisa com flores
supercoloridas e uma bermuda baggy. Óculos escuros tipo esporte
escondiam suas pupilas dilatadas. Ele se assemelhava a um velho turista
qualquer de Milwaukee.
A autópsia levou duas horas e vinte minutos. Dentro de Sparky Harper,
o dr. Allen encontrou dois cálculos, quarenta e sete gramas de siri
parcialmente digeridos e quatrocentos gramas de Pouilly-Fuissé. Mas o
legista não encontrou nenhuma bala, nenhuma perfuração, nenhum sinal de
traumatismo além das amputações, que eram grosseiras mas não
necessariamente fatais.
“Ele deve ter morrido de tanto sangrar”, sugeriu o policial ruivo.
“Não creio”, disse o dr. Allen.
“Aposto que se afogou”, disse o outro policial.
“Não, senhor”, disse o dr. Allen, àquela altura desentranhando os
pulmões do defunto.
O dr. Allen não era exatamente um entusiasta de ter gente fungando no
seu cangote enquanto trabalhava. Isso o fazia sentir-se como se estivesse
num palco, como um mágico tirando coelhinhos da cartola. Não se
importava quando se tratava de estudantes de medicina, porque estes eram
sempre solenes durante uma autópsia. Com policiais era diferente,
despejavam uma piada infame atrás da outra. O dr. Allen nunca descobriu
por que os policiais ficam tão patetas num necrotério.
“O que é essa coisa gordurosa espalhada por toda a pele dele?”,
perguntou o investigador ruivo.
“Essência de Cadáver”, disse o outro policial.
“Cheira a coco”, disse o ruivo. “Estou falando sério, doutor, dê uma
fungada.”
“Não, obrigado”, disse o dr. Allen conclusivamente.
“Não sinto cheiro nenhum”, disse o médico assistente, “exceto o do
defunto.”
“É coco, com certeza”, disse o outro tira, fungando. “Talvez ele tenha se
afogado em piña colada.”
Ninguém poderia ter imaginado o que realmente matara Sparky Harper.
Era flexível e verde, e media exatamente 13,33 centímetros. O dr. Allen o
encontrou alojado na traqueia. A princípio pensou que fosse um pedaço
grande de comida, mas não era.
Era um jacaré de borracha, um brinquedo. Custara setenta e nove cents
numa loja de souvenirs para turistas da Tamiami Trail. A etiqueta com o
preço ainda estava grudada em sua cauda enrugada.
B. D. “Sparky” Harper, o presidente da mais poderosa câmara de
comércio de toda a Flórida, morreu sufocado por um jacaré de borracha.
Ora, vejam só, pensava o dr. Allen enquanto balançava o pequeno troféu
para que seus protegidos o vissem, aqui está algo para a minha série de
slides na convenção do mês que vem.
2

A notícia da morte de B. D. Harper apareceu na primeira página do


Miami Sun com uma fotografia retocada que o fazia parecer um Gene
Hackman flatulento. Os detalhes do crime eram escassos, e o que foi
publicado trazia pouca novidade:
Harper tinha sido visto pela última vez na noite de 30 de novembro
saindo de carro do restaurante Joe’s Stone Crab, em South Miami Beach.
Ele disse a seus amigos que estava indo para o Fontainebleau Hilton para
tomar uns drinques com alguns dos organizadores da convenção dos
International Elks.
Harper não estava usando uma camisa espalhafatosa e bermudas; na
verdade, estava vestido com um terno azul de costura dupla comprado na J.
C. Penney’s.
Não parecia estar bêbado.
Não estava usando óculos escuros esportivos.
Não estava carregando uma Samsonite vermelha.
Não exibiu nenhum jacaré de borracha durante toda a noite.
Na reportagem do jornal, foi citado um investigador dizendo: “Este caso
é um mistério daqueles” — isso era o que tinham mandado o investigador
responder cada vez que os jornalistas fizessem alguma pergunta.
Neste caso, o jornalista era Ricky Bloodworth.
Bloodworth carregava no rosto aquele olhar de ambição obsessivo e
pálido tão comum nas redações dos grandes jornais. Era baixo e ossudo,
com cabelos negros encaracolados e uma cara de esquilo frequentemente
pontilhada de espinhas temporãs. Era um tipo frenético, saltando do
telefone para a máquina de escrever e daí para o copidesque indistintamente
— ainda assim, ele era diferente da maior parte de seus colegas. Ricky
Bloodworth queria ser muito mais que um simples repórter; queria ser uma
autêntica figura. Tentou, várias vezes, panamás, coletes de seda, um tapa-
olho negro, sapatos de jóquei, um Vandyke — ninguém nunca notava.
Chegou até mesmo a experimentar cigarros turcos (achando que isso era
charmoso) e acabou num balão de oxigênio no hospital Mercy. Mesmo
aqueles que não gostavam de Bloodworth, e eram muitos, sentiam pena
dele; o coitado queria ser um tipo interessante do pior modo possível. Mas,
estilisticamente, o máximo que ele conseguia fazer era batucar com o lápis
e sugar quantidades inacreditáveis de Seven-up. Não era muito, mas isso o
fazia sentir-se como se estivesse contribuindo, de alguma forma, para a
sinergia da redação.
Ricky Bloodworth achava que tinha feito um trabalho respeitável na
primeira reportagem sobre Sparky Harper (tendo em vista os prazos que
recebeu, é claro), mas agora, na manhã de 2 de dezembro, ele estava pronto
para agir. As ex-esposas de Harper tinham que ser localizadas e
entrevistadas, seus colaboradores tinham que ser questionados, e um lote de
líderes cívicos semiconsternados permanecia de prontidão para oferecer
suas opiniões sobre o terrível crime.
Mas o dr. Allen vinha em primeiro lugar. Ricky Bloodworth tinha o
telefone do legista na ponta da língua; memorizá-lo foi uma das primeiras
coisas que fez quando começou a trabalhar no jornal.
Quando o dr. Allen atendeu, Bloodworth perguntou:
“Qual é a sua hipótese, doutor?”
“Alguém amarrou Sparky e enfiou um jacaré de borracha em sua
garganta”, disse o legista.
“Qual a causa da morte?”
“Asfixia.”
“Como é que você sabe que ele não engoliu o negócio de propósito?”
“Ele cortaria fora as próprias pernas também?”
“Nunca se sabe”, disse Bloodworth. “Talvez a coisa tenha começado
com algum tipo de perversão sexual. Ou talvez fosse vodu, com todos esses
haitianos que estão por aí. Ou santería.”
“Sparky era batista, e a polícia está dizendo que o que aconteceu foi
homicídio.”
“Eles já se enganaram antes.”
Ricky Bloodworth não era um dos jornalistas favoritos do dr. Allen. O
dr. Allen o considerava tão desprovido de charme quanto arrogante. Em
algumas ocasiões, quando a perspectiva de uma reportagem de primeira
página surgia, o dr. Allen quase podia jurar que via flocos de espuma
brotarem dos lábios de Bloodworth.
Agora, o legista ouvia Bloodworth datilografando do outro lado da
linha, e imaginava o quanto suas palavras deviam estar sendo deturpadas.
“Ricky”, disse ele com impaciência. “Os pulsos da vítima tinham
marcas de amarramento...”
“Qualquer garoto de dez anos pode se amarrar sozinho.”
“E pode se enfiar dentro de uma mala, também?”
O ritmo das teclas da máquina de escrever ficou mais rápido.
“A vítima já estava morta quando foi colocada na mala”, disse o dr.
Allen. “Mais alguma coisa?”
“E o tal do óleo? Um dos tiras disse que o corpo estava coberto de
óleo.”
“Não era óleo”, disse o dr. Allen. “Era uma combinação de
benzofenona, ácidos esteáricos e lanolina.”
“E o que é isso?”
“Bronzeador”, disse o legista. “Com óleo de coco.”

Ricky Bloodworth estava trabalhando com afinco em seu terminal de


computador quando percebeu um vulto às suas costas. Voltou-se
ligeiramente, e avistou o rosto marcante de Skip Wiley. Mesmo com uma
barba de dois dias, era uma visão atordoante: longo, pardo e de aparência
tosca; uma maravilha genética, cada uma das feições plagiada de ancestrais
disparatados. Os ossos da face eram altos e bem definidos, o nariz era reto
como um lápis mas comprido e chato, a boca terminava em duas pequenas
vírgulas, uma em cada bochecha, e os olhos desarmavam — pequenos e
penetrantes, cor de café forte; cheios de vida e algo mais. Skip Wiley tinha
trinta e sete anos, mas os olhos de um velho cigano.
Bloodworth ficava anormalmente agitado e inseguro quando Skip Wiley
lia por cima de seu ombro. Wiley escrevia uma coluna diária para o Sun e
era, provavelmente, o jornalista mais conhecido de Miami. Sem dúvida era
um escritor talentoso, mas visto na redação como uma figura estranha e
imprevisível. O comportamento de Wiley tornara-se tão esquisito
ultimamente que os jornalistas mais jovens, que antes procuravam seus
conselhos, tinham agora medo de seus ataques de fúria, e o evitavam.
“Óleo de coco?”, disse Wiley jocosamente. “E sem as pernas!”
“Skip, por favor.”
Wiley puxou uma cadeira.
“Acho que você devia abrir o artigo com esse negócio do óleo de coco.”
Bloodworth sentiu suas mãos ficarem úmidas.
Wiley disse:
“Isto está horrível, Ricky: ‘Amigos e colegas de B. D. Harper
expressaram consternação e indignação na terça-feira...’. Minha nossa,
quem quer saber disso? Dê óleo de coco para o pessoal!”
“Isto aqui é um lead de segundo dia, Skip...”
“Lá vem você de novo, senhor Escola de Jornalismo.” Wiley estava
mordendo o lábio inferior, um hábito manifestado somente quando escrevia
um artigo. “Você arranjou uns detalhes legais aí. Aquela mala Royal
Tourister vermelha. Os ray-ban pretos. Isso é uma beleza, Ricky. Por que
você não joga fora toda essa merda que está escrevendo e bota o bom lá em
cima? Faça um favor para os leitores, pelo menos desta vez. Não obrigue o
pessoal a ir caçar a parte mais gostosa.”
Bloodworth estava ficando nauseado. Queria se defender, mas era
loucura discutir com Wiley.
“Mais tarde, Skip. Eu tenho que fechar isso aqui para o primeiro
clichê.”
Wiley tamborilou com um lápis na tela de vídeo, que exibia a
reportagem de Bloodworth num luminoso texto verde.
“Brutal? Não é esse o adjetivo que você precisa. Quando leio brutal,
penso em serras elétricas, picadores de gelo, machadinhas. Não em jacarés
de borracha. Não, não, isto tudo é misterioso, você não acha?”
“Que tal bizarro?”
“Um pouco batido, mas não é ruim. Quando foi a última vez que você
usou bizarro?”
“Não lembro, Skip.”
“Foi na semana passada, naquela história do assassinato na Jacuzzi em
Hialeah. Lembra? É muito cedo para usar bizarro de novo. Acho que
misterioso é a pedida.”
“Como você quiser, Skip.”
Quando queria, Wiley conseguia deixar qualquer um confuso.
“Qual é a sua hipótese, Ricky?”
“Alguma coisa ligada a sexo. Sparky pega uma puta em algum lugar,
veste aquelas roupas de idiota...”
“Talvez um pouquinho de sadomasô?”
“É isso aí. As coisas vão um pouco longe demais, ele engasga com o
jacaré, a menina entra em pânico e vai buscar ajuda. O cafetão chega,
esquarteja o Sparky, enfia o que sobrou na mala e joga tudo na baía de
Biscayne. Aí os caras pegam a menina e caem fora no carro de Sparky.”
Wiley encarou-o.
“Então, você acha que não foi assassinato?”
“Homicídio acidental. Meu prognóstico é esse.”
Bloodworth estava começando a relaxar. Wiley balançava na cadeira,
com um ar de divertimento no rosto. Bloodworth notou que a longa juba
encaracolada de Wiley estava começando a mostrar fios grisalhos no meio
dos loiros.
Bloodworth falou, um pouco mais confiante:
“Acho que a morte do Harper foi um acidente esquisito. Acho que a
garota vai se apresentar logo, e tudo vai ser esclarecido.”
Wiley riu, matreiro.
“Grande história.” Ele se levantou e agarrou afetuosamente os ombros
de Ricky. “Mas eu não preciso dizer para você como escrever tudo isso,
preciso?”
Para o primeiro clichê, Ricky Bloodworth levou o parágrafo do óleo de
coco para o topo do artigo e trocou a palavra brutal por misterioso no lead.
Bloodworth passou o resto da tarde no telefone, juntando comentários
lacrimosos sobre Sparky Harper, que parecia ser venerado por todos exceto
por suas ex-mulheres. Quanto a parentes sanguíneos, o máximo que
Bloodworth conseguiu foi um filho adulto, advogado em Marco Island, que
disse de seu pai: “Ele era um sonhador, e cheio de boas intenções”.
Não era exatamente algo que pudesse arrancar lágrimas dos leitores,
mas de qualquer forma Bloodworth enfiou a frase no artigo.
Depois de terminar, releu a história mais uma vez. Tinha um fluxo legal,
pensou, e o tom cuidadosamente graduado: choca primeiro, depois causa
indignação e, por fim, pena.
Está bom, vai poder brigar por uma primeira página, disse Bloodworth a
si mesmo enquanto caminhava em direção à máquina de coca-cola.
Enquanto ele estava longe, Skip Wiley apareceu e surrupiou a
reportagem impressa da mesa de Ricky. Fingia fazer marcas no artigo com
um lápis azul quando Bloodworth voltou.
“O que é agora, Skip?”
“Seu lead não está legal.”
“Mas olha, eu já te falei que...”
“Ei, campeão, não é mais uma reportagem de segundo dia. Aconteceram
coisas enquanto você estava rebolando por aí. Costumam chamar esse
negócio de notícia. Dê uma checada no departamento de polícia, você vai
ver.”
“Do que é que você está falando?”
Wiley riu e jogou as páginas no colo de Ricky Bloodworth.
“Os tiras pegaram o cara”, disse. “Não faz nem dez minutos.”
3

Brian Keyes desabou desengonçado num banco surrado da sala de


espera do presídio de Dade County, esperando para ver o coitado que
acabara de ser preso pelos policiais. Keyes olhou para o relógio de pulso.
Resmungou. Vinte minutos. Vinte malditos minutos desde que dera seu
nome ao sargento de olhos apáticos atrás do vidro à prova de bala.
Keyes enfrentara problema semelhante antes; tinha algo a ver com sua
aparência. Embora tivesse quase 1,80 m de altura, de algum modo ele não
conseguia inspirar a autoridade tão necessária para a sobrevivência em
bares barra-pesada, becos, delegacias de polícia, cadeias e drive-throughs
do McDonald’s. Keyes era adolescentemente esbelto, com olhos azuis e
uma cara de bundinha de nenê. Parecia mais jovem que seus trinta e dois
anos, o que, em seu métier, não era nenhum trunfo que pudesse ser levado
em conta. Certa vez, uma de suas ex-namoradas dissera-lhe, já de saída, que
ele a fazia lembrar um cara que tinha acabado de pular o muro de um
seminário jesuíta. Para esconder um pouco do seu jeito de crianção, Brian
Keyes escolhera naquele dia um paletó marrom com uma fina gravata
listrada Pierre Cardin. Estava bem barbeado, os cabelos castanhos lisos
impecavelmente penteados. Ainda assim, tinha a sensação de que aquele
visual era inadequado — não alinhado o suficiente para um advogado, não
esfarrapado o suficiente para um assistente social, e não velho o suficiente
para um detetive particular. O que de fato ele era.
Portanto, o sargento de olhos de tartaruga o ignorou.
Keyes estava cercado pela miséria. À sua esquerda, uma rotunda mulher
latina se lamentava, esfregando a cara com um lenço bordado; rezava um
terço:
“Pobrecito, ele está na cadeia de novo.”
Do outro lado, um adolescente de aparência anêmica e dentes amarelos
talhava uma obscenidade qualquer no banco de madeira com a ponta de
uma chave Phillips. Keyes o estudou de forma neutra até que o garoto
resolveu encará-lo, falando bruscamente:
“Meu irmão está aí dentro por assalto a mão armada.”
“Você deve se sentir muito orgulhoso”, disse Keyes.
Aquele lugar não mudava nunca. O zunido e o som metálico das portas
eletrônicas eram suficientes para rachar o crânio de uma pessoa, mas o
fantasma da violência na sala de espera era bem pior, pior ainda que nos
próprios blocos de celas. A sala de espera estava impregnada de almas
amargas, confusas, cada uma delas na triste busca de um perdedor.
Namoradas, ex-mulheres, mães, irmãos, financiadores de fiança,
advogados, cafetões, agentes de condicionais.
E eu, pensou Keyes. O escritório do defensor público tentara fazer o
caso parecer interessante, mas Keyes sacou logo que deveria se tratar de
uma causa perdida. Haveria um pouco de publicidade, o que ele dispensava,
mas a grana era muito bem-vinda. O certo é que este era um caso e tanto.
Um idiota faz picadinho do presidente da Câmara de Comércio e depois
joga-o na baía — justamente o que o Sul da Flórida precisava, outro
assassinato macabro. Keyes se perguntou se algum dia a técnica da
mutilação sairia de moda.
Começando pelo governador, todo mundo queria a resolução desse caso
o mais depressa possível. E a polícia entrou no espírito da coisa.
“Senhor Keyes!”, ecoou a voz do sargento, vinda de um alto-falante
barato pendurado no teto.
Keyes assinou o livro de controle, fixou na lapela o crachá de visitante e
começou a andar, passando por três recintos divididos por barulhentos
portões de ferro. Um preso que por bom comportamento fazia as vezes de
carcereiro acompanhou Keyes até o elevador, que cheirava a vestiário de
time de futebol. Pararam no quinto andar.
Ernesto Cabal, vulgo Ernestinho, vulgo José de Jeito Nenhum,
encontrava-se desconsoladamente sentado na privada quando o duble de
carcereiro abriu a porta da cela para Brian Keyes.
Ernesto estendeu uma mão flácida e úmida. Keyes sentou numa cadeira
dobrável de madeira.
“Fala inglês?”
“Claro”, disse Ernesto. “Moro aqui há dezesseis anos. Aqui, quero dizer,
neste país.” Cabal ergueu as calças, deu a descarga e se esticou numa
espécie de catre metálico. “Estão dizendo que apaguei o tal de Harper.”
“É o que dizem.”
“Não apaguei.”
Ernesto era um sujeito pequeno, arredio e fazia a linha durão, deixando
trair-se apenas pelos olhos. Muitos prisioneiros tinham olhos de coelho, mas
este aqui não, pensou Keyes. Os olhos castanhos de Ernesto eram grandes e
úmidos, como os olhos assustados de um cachorrinho.
Keyes abriu sua pasta.
“É advogado, senhor Keyes?”
“Não, sou detetive. Fui contratado pelos seus advogados para ajudá-lo.”
“Verdade?”
“É isso aí.”
“Me parece um cara muito jovem para ser detetive”, disse Ernesto.
“Quantos anos? Trinta, trinta e um?”
“Chegou perto.”
Ernesto sentou-se.
“E é dos bons?”
“Não, sou um incompetente completo. Um imbecil de carteirinha. Bem,
agora tenho uma pergunta para lhe fazer, chico. Foi você?”
“Já disse que não.”
“Ótimo.” Keyes abriu uma pequena pasta de arquivo em forma de fole e
tirou uma cópia do mandado de prisão, em papel de seda cor-de-rosa.
Inclinando-se, Ernesto tentou dar uma espiada no documento.
“Eu sei o que é isto, cara.”
“Ótimo, então explique.”
“Estava dirigindo o carro e um tira me parou para uma inspeção de
trânsito de rotina...”
Ah! rapaz, pensou Keyes, inspeção de trânsito de rotina! Esse cara já
esteve aqui antes.
“... aí veio com a história de que eu estava dirigindo um veículo
roubado. Quando dei por mim, estava aqui nesta cela, acusado de homicídio
em primeiro grau, roubo e essa coisarada toda.”
“Como conseguiu um Oldsmobile Delta 88 1984 para sair dirigindo por
aí?”
“Comprei.”
“Entendo. Ernesto, o que faz para ganhar a vida?”
“Sou fruteiro.”
“Ah!”
“Estou sempre lá na Estrada LeJeune na hora do rush para quem quiser
ver. Vendo sacolas de frutas.”
Em algum lugar no mesmo bloco de celas, um outro prisioneiro
começou a bater nas grades e a gritar que sua TV estava quebrada.
“Ernesto”, disse Keyes. “quanto lhe rende a sacola mais cara? A mais-
mais?”
“Mangas ou mandiocas?”
“Tanto faz. A melhor.”
“Talvez um dólar... Tá legal, sei aonde quer chegar. Certo, não faço
muito dinheiro com isso. Mas aquele Oldsmobile foi uma pechincha. Pode
acreditar.”
“Não é fácil, meu chapa.”
“Comprei o carro de um crioulo.”
“Por?”
“Duzentas pratas.”
Ernesto percebeu que estava se entregando.
“Até me aparecer um negócio desses, também achava que era
impossível.”
“Eu não disse”, interveio Keyes, “que não acreditava em você. Mas,
segundo os tiras, você foi preso na avenida Collins, em Miami Beach.
Ultrapassou um monte de faróis vermelhos.”
“Já era madrugada, cara, três da matina. Não tinha ninguém na rua.”
“Onde você conheceu o sujeito de quem comprou o carro?”
“Na Collins, exatamente lá. Duas noites antes de me pegarem. Conheci
o cara a uns poucos quarteirões do Fontainebleau, perto de um
estacionamento onde costumo ficar.”
“Aquele onde costuma fazer os seus bicos, você quer dizer?”
“Merda! Fala igualzinho aos tiras.”
“Preciso saber tudo, Ernesto, senão não tenho como ajudar. Vamos
pensar juntos. OK, você está por ali, arrombando carros, puxando uns
Blaupunkts ou coisa que o valha. Ai aparece o cara negro num Olds
novinho em folha e diz: ‘Ei, Ernestinho, quer comprar essa belezinha por
duas pratas?’. É por aí?”
“É, mas o meu nome ele não sabia.”
“Suponho”, disse Keyes, “que você não perguntou ao cavalheiro onde é
que ele havia arranjado aquele carro, perguntou?”
Ernesto riu — a boca de rato, os dentes pequenos e amarelados — e
balançou negativamente a cabeça.
“O nome dele você também se esqueceu de perguntar?”
“Não, não perguntei, cara.”
“Também não creio que fosse capaz de reconhecer o cara se o visse
outra vez.”
Ernesto inclinou-se para a frente e coçou pensativamente o queixo. Belo
gesto, pensou Keyes. Cagney em White heat.
“Vi o cara em algum lugar antes”, disse Ernesto. “Não sei bem de onde,
mas conheço o cara. Grande sujeito. Grande crioulo. Corrente de ouro,
óculos Carrera, elegante, o cara! Tem uns braços que são uma beleza, tão
grossos quanto uma jiboia depois do jantar. É, acho que poderia reconhecer
o cara se o visse de novo. É, é isso aí.”
“Você desconfiava que o carro era roubado, não?”, disse Keyes.
Ernesto, intimidado, balançou a cabeça afirmativamente.
“Por que não se livrou da mercadoria?”
“Eu ia, cara. Mais um dia ou dois e tchauzinho... Ah! Era um carrão,
precisava ver. Não adianta, você não entenderia uma coisa dessa. Com
certeza tem um Rolls-Royce ou coisa parecida. Nunca tive na mão uma joia
daquelas, cara. Só queria dar umas voltinhas, só isso. Ia me livrar dele mais
tarde.”
Keyes guardou o documento na pasta e pegou uma foto recente de B. D.
Harper.
“Já viu este homem, Ernesto?”
“Não.” Os olhos de cachorrinho nem sequer piscaram.
“Já matou alguém?”
“De propósito?”
“De propósito, por acidente, sei lá, de qualquer jeito.”
“Não, senhor!”, disse Ernesto rispidamente. “Uma vez atirei no saco de
um cara. Quer saber por quê?”
“Não, obrigado, não quero. Li tudo sobre o caso na sua ficha. Uma rixa
pessoal, creio.”
“É isso aí.”
Keyes se levantou dando sinais de que ia sair e chamou um guarda.
Depois voltou-se para dizer:
“Ernesto, você acredita em magia negra?”
O cubano deu um sorriso forçado.
“Santería. Claro. Não frequento essas coisas, mas é besteira dizer que
não acredito. Meu tio era um santero, um padre. Uma vez trouxe uma
caveira e umas moedas para a casa da minha mãe. Matou uma galinha no
quintal — fez isso usando apenas os dentes — e aí lambuzou as moedas no
sangue. Dois dias depois o senhorio caiu mortinho da silva.” Ernesto Cabal
fez um gesto cortante com a mão. “Assim.”
“Sabe aonde eu quero chegar, não sabe?”
“Sei, sim, senhor Keyes. Nunca ouvi falar de um santero que usa
bronzeador para alguma coisa...”
Keyes não conseguiu segurar o riso.
“OK, Ernesto. Manterei contato.”
“Não se esqueça de mim, senhor Keyes. Isto aqui é um lugarzinho do
cão para um homem inocente.”

Ao ganhar a rua, deixando atrás de si o presídio, Brian Keyes contornou


a esquina em direção ao quartel-general da polícia de Metro-Dade, outro
lugarzinho do cão para um homem inocente. Dividiu o elevador com uma
patrulheira alta e esbelta. Keyes ficou impressionado com o trabalhão que
ela teve para fingir não notá-lo. Ela saltou no segundo andar. Keyes
continuou subindo até o Departamento de Homicídios.
Al García o cumprimentou com um sorriso e um tapinha nas costas.
“Café?”
“Por favor”, disse Keyes.
García andava bem mais fraternal desde que Keyes abandonara a
carreira jornalística. Nos velhos tempos, ele era como uma esfinge. Agora,
quando começava a falar, era difícil calar a boca. Keyes previu que as
coisas seriam diferentes desta vez.
“Como vão os negócios?”, perguntou García.
“Não estão grande coisa, Al.”
“Leva tempo. Você está nisso só há — quanto? — dois anos. Além
disso, o que não falta na cidade é concorrência.”
Eu que o diga, pensou Keyes. Ele tinha chegado a Miami em 1979,
vindo de um jornal suburbano de Baltimore. Não havia nada de original nos
motivos que o trouxeram à Flórida — um emprego melhor, livrar-se da
neve, fartura de sol. No seu primeiro dia no Miami Sun, Keyes ocupou uma
mesa que ficava ao lado da de Skip Wiley — o equivalente, na redação, ao
Centro de Triagem de Imigrantes de Parris Island. Keyes começou cobrindo
a ação diária da polícia. Depois passou para a cobertura dos tribunais. E
depois para Política Local. Suas reportagens eram sólidas, os textos bem-
acabados, mas pouco originais. Os editores jamais questionaram seu
talento, apenas seu estômago.
Havia duas histórias bastante conhecidas que corriam de boca em boca
na redação do Miami Sun. A primeira aconteceu um ano depois de sua
chegada, quando um 727 completamente lotado explodiu ao cair na baía da
Flórida. Keyes alugou uma lancha e correu para o local do acidente.
Escreveu uma reportagem soberba, cheia de detalhes fascinantes. Mas, em
seguida, quase teve que ser hospitalizado. Durante os seis meses
subsequentes, teve alucinações, em que pernas e braços queimados saíam
de sob os móveis de seu quarto.
A segunda história era mais conhecida. Até mesmo Al García sabia
sobre Callie Davenport. Era uma garota de quatro anos que fora raptada na
escola por um mecânico especializado no reparo e manutenção de
extintores. Ao que se sabe, um maníaco. Ao sequestrá-la, o lunático a jogou
num caminhão, tomou a direção e rumou para a região dos pântanos. Lá,
assassinou Davenport. Depois que alguns caçadores de cervos encontraram
o corpo, Cab Mulcahy, o editor-chefe, disse a Brian Keyes que fosse
entrevistar os inconsoláveis pais da garotinha. Keyes escreveu outra
reportagem de cortar o coração, exatamente como o velho Cab queria. Mas,
na mesma noite, Keyes entrou na sala de Mulcahy e pediu demissão.
Quando deixou a redação, a passos largos, todos perceberam que estivera
chorando. “Aquele jovem”, observou Skip Wiley vendo-o partir, “é muito
impressionável para ser um grande jornalista.”
Além do próprio Keyes, Skip Wiley era a única pessoa no mundo que
conhecia a verdadeira razão daquelas lágrimas. Mas ele guardava segredo.
Poucos meses depois, Keyes obteve sua licença de detetive particular.
Seus amigos no jornal até que acharam a coisa divertida. Mas se
perguntavam como é que Keyes aguentaria trabalhar para um bando de
advogados desleixados e para financiadores de fiança. Brian Keyes se
perguntava a mesma coisa e acabava evitando os casos mais espinhosos,
que eram os mais rendosos.
“Continua fazendo divórcios?”, perguntou Al García.
“Uns e outros.”
Keyes detestava admitir, mas eram os divórcios que seguravam suas
pontas: tornara-se um craque em flagrar, com sua Nikon de lentes de
trezentos milímetros, casais em motéis na hora do almoço. Esta era a outra
razão para a amabilidade de García. Havia um ano, ele mesmo contratara
Keyes para seguir os passos de seu novo genro. García não suportava o
rapaz e estava a ponto de querer matá-lo quando resolveu pedir ajuda a
Keyes. Este fez um belo trabalho: um dia seguiu o rapaz até uma clínica de
tratamento de doenças venéreas em Homestead. A filha de Al não gostou da
notícia, mas García adorou. O divórcio se consumou em quatro semanas,
um novo recorde para o tribunal de Dade County.
Depois disso, Brian Keyes selou, para toda a vida, sua amizade com Al
García.
García serviu o café.
“Então você pegou um filé mignon, Brian.”
“Fale-me sobre ele.”
“É algo muito delicado. Não posso falar muito, especialmente agora que
você está alinhado do outro lado.”
“Você trabalhou no caso Harper?”
“Ora, todo mundo aqui mexeu nesse caso.”
Keyes tentou sorver o café e quase queimou o lábio superior.
“Ei”, disse García, “aquele arremedo de jornal onde você desperdiçava
o seu talento até que conseguiu publicar algo de inteligente esta manhã,
você viu?”
“Meu exemplar estava numa poça d’água.”
“Mesmo assim, deveria ter dado uma olhadinha. Wiley, o imbecil que
escreve aquela coluna. Normalmente não suporto aquele cara, mas hoje ele
foi brilhante.”
Keyes não queria falar de Skip Wiley.
“Escreveu sobre o caso”, prosseguiu García. “Sobre aquele patifezinho
que prendemos.”
“Vou arranjar um exemplar”, disse Keyes.
“Bem, não estava cem por cento certo, havia umas poucas coisas em
que ele errou feio, mas no geral fez um bom trabalho. Recortei a coluna e
colei na porta da geladeira. Quero que meu filho leia quando chegar da
escola. Deixa ele ver o que seu velho faz para viver.”
“Estou certo de que ele tirará uma lição disso, Al. Fale-me de Ernesto
Cabal.”
“Um ladrãozinho barato.”
“Ele estava na sua lista de suspeitos?”
“O que você quer dizer?”, perguntou García.
“Quero dizer que você tem trinta investigadores trabalhando nesse caso,
certo? Você deve ter uma lista de suspeitos.”
“Não neste caso.”
“Bem, então estamos falando de um golpe de sorte. Um tira agarra um
cara que está ultrapassando o farol vermelho e, bingo! lá está o carro
desaparecido do senhor Sparky Harper.”
“Sorte foi só uma parte do negócio”, disse García, irritado.
“Você apanhou Cabal no carro da vítima, mas e daí?”
“O que mais precisamos?”
“Uma ou duas testemunhas poderia ser recomendável.”
“Paciência, Brian. Estamos trabalhando nisso.”
“E o motivo?”
García ergueu as mãos:
“Roubo, é claro.”
“Vamos lá, Al, aquilo não foi uma coisa qualquer. Trata-se do
assassinato ritual de um cidadão proeminente. Como Harper se enfiou
dentro daquelas roupas ridículas? Quem o lambuzou de bronzeador? Quem,
diabos, enfiou um jacaré de brinquedo na goela dele? Quem decepou suas
pernas? Você está me dizendo que um puxador de carros barato armou tudo
isso?”
“Você não sabe o que as pessoas são capazes de fazer por um
Oldsmobile novo, meu velho.”
“Você é um caso perdido”, disse Keyes.
“Não venha me dizer que você acredita na história de Cabal. Brian,
você tem que se livrar desse espírito liberal-salvador. Pensei que dois anos
longe daquele jornal iam te curar.”
“Você tem que admitir, é um caso muito esquisito. Vocês devem ter
procedido a uma perícia geral no carro, certo?”
“Não encontramos nada, a não ser as impressões de Cabal.”
Keyes sacou um bloco de anotações e começou a escrever.
“E a mala?”
“Nenhuma impressão. O número de fábrica e o modelo correspondem a
um lote vendido para a Jordan Marsh há cerca de um ano, mas não temos
certeza. Poderia perfeitamente ter vindo da Macy’s.”
“E as pernas amputadas, algum sinal delas?”, disse Keyes.
“Nadinha.”
“Vocês investigaram aquele maravilhoso modelito havaiano?”
“Hum-hum.” García passou as pontas dos dedos nos lábios, simulando
fechar um zíper.
“OK, Al. Vocês conseguiram alguma coisa, hein? Uma loja, talvez. Ou
quem sabe um vendedor que se lembre de alguma coisa estranha sobre
aquele freguês em particular...”
“Brian, devagar. Este caso é muito delicado. Se o chefe chegar a sonhar
que eu andei abrindo a boca, posso ficar arrombando parquímetros pelo
resto da vida. É melhor darmos o assunto por encerrado hoje.”
Keyes enfiou o bloco de volta na pasta.
“Desculpe, Al. Agradeço o que está fazendo.”
Keyes estava sendo sincero. García não lhe devia mais nada.
“Normalmente eu não me importaria, Brian. Mas este caso é do Hal. Ele
é o investigador-chefe. Foi ao local do crime e tudo o mais. Não quero
estragar as coisas.”
“Entendo. E o que sobrou para você?”
García piscou os olhos.
“Checar o beco sem saída. Dê uma olhada nisso.” E García passou-lhe
um pedaço de papel por cima da mesa.
Era uma carta datilografada. Keyes leu-a rapidamente. Ia começar a
releitura quando García a arrebatou de volta.
“Maluco, não te parece? Veio na correspondência de hoje cedo.”
Keyes pediu um xerox.
“De jeito nenhum, Brian. O defensor público iria babar de felicidade se
soubesse disso. Além do mais, não passa de uma bobagem, acredite em
mim. Isto aqui vai direto para o velho arquivo circular, tão logo eu faça um
par de ligações de rotina para os federais.”
“Leia em voz alta”, disse Keyes.
“Eu negaria até mesmo ter visto essa coisa algum dia na minha vida”,
disse García.
“OK, Al, você tem minha palavra. Leia, por favor.”
García colocou os óculos e leu a carta:

À Câmara de Comércio de Miami,


Bem-vinda à Revolução.
A morte do sr. B. D. Harper foi um marco. Pode ter parecido uma
atrocidade para vocês; para nós, foi poesia. Ao contrário do que vocês
gostariam de acreditar, isto não foi o ato de um psicopata, mas a fúria
de uma nova e poderosa organização.
A morte do sr. Harper não foi dolorosa, mas foi incomum, e, temos
certeza, chamou sua atenção. Em breve, começaremos o jogo para
valer. Espere pelo número três!
El Fuego,
Comandante, Las Noches de Diciembre

Al García removeu seus óculos de leitura e disse:


“Nada mau, para um começo.”
“Sem dúvida”, concordou Keyes. “O que você acha desse negócio de
número três? Quem foi a vítima número dois?”
“Ninguém, que eu saiba.”
“Então, quem são os Noites de Dezembro?”, perguntou Keyes.
“Produto da imaginação de algum doido. ‘O Fogo’, como ele chama a si
mesmo. El Fuego o cacete! Vou checar com a Central, só por desencargo de
consciência, mas nem o próprio J. Edgar teria levado esta carta a sério.
Ainda assim, devo consultar os caras do esquadrão antiterrorismo.”
“E depois?”, perguntou Keyes.
“Um papel amassado”, disse García. “Direto para o lixo.”
4

Cab Mulcahy serviu o café. Skip Wiley bebeu.


“A barba é invenção nova, não é?”
“Preciso dela”, disse Wiley, “para uma tarefa.”
“Ah. E que tarefa seria essa?”
“Seria confidencial”, disse Wiley, desconversando.
Cab Mulcahy era um homem paciente, especialmente para um editor-
chefe. Passara toda a sua vida adulta em jornais, e praticamente nada era
capaz de provocá-lo. Mesmo quando o pior tipo de loucura atacava a
redação, Mulcahy emergia para tomar conta da situação, instaurando um
ambiente racional e controlado instantaneamente. Era um homem
ponderado numa profissão não muito afeita à ponderação. Cab Mulcahy
também era astuto. Adorava Skip Wiley, mas desconfiava dele do fundo do
coração.
“Creme?”, ofereceu Mulcahy.
“Não, obrigado.” Wiley esfregou a testa bruscamente. Ele sabia que o
efeito disso era distorcer grotescamente seu rosto, como se estivesse
esticando massa. Ele observou Mulcahy observando-o.
“Você perdeu o horário do fechamento ontem, Skip.”
“Eu estava ajudando o Bloodworth com a reportagem dele. O garoto é
incorrigível, Cab. Você gostou da minha coluna?”
“Acho que temos que conversar um pouco a respeito disso”, disse
Mulcahy.
“Ótimo”, disse Wiley. “Pode falar.”
“O que é que você sabe sobre o caso Harper?”
“Eu tenho as minhas fontes.”
Mulcahy sorriu paternalmente. A coluna de Wiley estava sobre sua
mesa. Repousava lá como cocô de passarinho, a primeira coisa que
Mulcahy viu quando entrou na sala. Ele a lera três vezes.
“A minha preocupação”, começou Mulcahy, “é que você conseguiu
condenar o senhor Cabal na edição de hoje, sem nenhum julgamento. Você,
digamos, na falta de uma palavra mais adequada, reconstruiu habilmente o
assassinato de B. D. Harper, no estilo primoroso de sempre...”
“Obrigado, Cab.”
“... sem qualquer consideração para com os fatos. Esse negócio de
tortura sexual, de onde você tirou isso?”
“Não posso contar”, disse Wiley.
“Skip, vamos ler isto em voz alta: ‘Harper foi amarrado, braços e pernas
abertos, e submetido a viciosos e indizíveis assaltos homossexuais por não
menos que cinco horas’. Agora, antes de você começar a reclamar, fique
sabendo que tomei a liberdade de telefonar para o médico-legista. A
autópsia não demonstrou nenhum sinal de sodomia.”
“Ah, são as imagens que contam, Cab. A inominável humilhação desse
homem amável. Sodomizado ou não, você vai negar que ele foi humilhado
de um jeito horripilante por esse crime?”
“A sua preocupação com a dignidade post-mortem do senhor Harper é
tocante”, disse Mulcahy. Ele voltou sua atenção para uma pilha de recortes
de jornal no outro canto de sua mesa. Silenciosamente, revirou a pilha.
Wiley sabia do que se tratava: mais colunas.
“Vamos ver isto”, disse Mulcahy levantando uma delas. “No que diz
respeito ao assunto B. D. ‘Sparky’ Harper, isto aqui é o que você escreveu
há menos de três meses: ‘Se alguma vez houve um cretino mais míope,
insensível e avarento para liderar nossa Câmara de Comércio, eu não
consigo me lembrar dele. Sparky Harper leva o troféu — e qualquer outra
coisa que esteja dando sopa. Ele é o Sultão da Bandalheira, o perfeito porta-
voz dos empreiteiros, hoteleiros, banqueiros e advogados de olhos famintos
que fizeram do Sul da Flórida o que ele é hoje: uma Newark cheia de
palmeiras’.”
“Eu lembro dessa coluna, Cab. Você me obrigou a pedir desculpas para
o departamento de turismo de Nova Jersey.”
Mulcahy recostou-se e deu uma olhada severa para Skip Wiley.
Wiley se defendeu:
“Acho que você quer saber por que crucifiquei o Harper há alguns
meses e hoje transformei o cara num herói. É simples, Cab. Uma licença
poética. Você não ia entender.”
“Eu já li um ou dois livros. Talvez mereça algum crédito.”
“Eu fiz isso para dramatizar o problema do crime”, disse Wiley. “O
assassinato de Harper simboliza essa violência horrorosa das ruas. Você não
percebe? Para fazer as pessoas se tocarem um pouco, precisei pintar o
Harper e o assassino com cores mais fortes. Não me olhe assim, Cab. Você
acha que eu sou hipócrita? É claro que o Harper era um balofo idiota. Mas,
se eu colocasse isso no jornal, ninguém ia ligar para nada. Eu quis deixar
todo mundo arrepiado, Cab.”
“Como nos velhos tempos”, disse Mulcahy com um suspiro.
“O que é que você quer dizer com isso? Eu recebi mais cartas do que
nunca. As pessoas estão ligadíssimas na coluna. Você devia ir ver a
correspondência.”
“O problema é esse, Skip. Eu vi a correspondência. As pessoas estão
começando a odiar você. Estou falando sério, odiar você de verdade. Não
são só os malucos de sempre.”
Não é verdade, disse Wiley para si mesmo. As pessoas que contavam
estavam do seu lado.
“Então você está levando uns puxões de orelha, hein?”
Mulcahy olhou para o outro lado, através da janela, em direção à baía.
“Alguns anúncios cancelados, talvez? Talvez a continha da loja de
departamentos Richmond...”
“Skip, isso é só um dos quarenta itens da minha lista. A coisa já perdeu
a graça. Você está constantemente pisando no tomate. Você atrasa o
fechamento, difama todo mundo, inventa fatos absurdos e coloca essas
coisas no jornal. Eu tenho um advogado no andar de baixo que não faz
outra coisa senão lidar com os processos que chegam contra a sua coluna.
Tivemos que publicar sete retratações em quatro meses — aliás, isto é um
recorde. Nenhum outro editor-chefe na história deste jornal superou essa
marca.”
Wiley estava começando a sentir um pouco de pena de Mulcahy, a quem
conhecia de longa data. Cab era o editor de Cidades quando Wiley veio
trabalhar no Sun. Eles foram companheiros de copo na época, e
costumavam sair para pescar nos Everglades.
Era uma pena que o velho garotão não entendesse o que tinha que ser
feito, pensou Wiley. Era uma pena que o jornal tivesse exercido poder tão
frio e absoluto sobre sua alma.
“O escritório do defensor público ligou para mim hoje de manhã”,
continuou Mulcahy. “O advogado do senhor Cabal não gostou muito da
descrição que você fez do cliente dele, ‘verme de barriga amarela vomitado
do caldeirão fedorento das cadeias de Fidel Castro para a vergonhosa
enseada de Mariel’. A Liga Hispânica Antidifamação mandou um
telegrama com reclamações parecidas. A liga também disse que o señor
Cabal não é refugiado de Mariel. Ele chegou aos Estados Unidos em 1966
junto com a família, e veio de Havana. Mais tarde o irmão mais velho dele
recebeu uma medalha de honra por seus feitos na guerra do Vietnã.”
“Talvez eu tenha carregado um pouco na coisa”, disse Wiley.
“Que droga, Skip.” A voz de Mulcahy estava cansada e marcada pela
tristeza. “Acho que estamos com um grande problema. E acho que vamos
ter que fazer alguma coisa. Logo.”
Este tipo de conversa eles vinham tendo com mais e mais frequência,
tantas vezes que Wiley tinha parado de levá-la a sério. Ele recebia mais
cartas que qualquer outro escritor, e o dono do jornal dava tanto valor à
correspondência quanto às assinaturas, e assinaturas eram dinheiro. Wiley
sabia que não lhe enfiariam uma mordaça. Ele sabia que era uma estrela, do
mesmo modo como sabia que era alto e tinha olhos castanhos; era só mais
uma coisa que ele podia ver no espelho todas as manhãs, claro como o dia.
Ele nem mesmo notava mais isso. Isso só contava quando estava em apuros.
Como agora.
“Você não vai ficar ameaçando me demitir de novo, vai?”
“Vou”, disse Mulcahy.
“Acho que você quer que eu peça desculpas para alguém.”
Mulcahy passou uma lista para Wiley.
“Vou cuidar disso já...”
“Sente aí, Skip. Eu não acabei de falar.” Mulcahy permaneceu de pé,
brandindo o maço de colunas. “Você sabe o que me deixa mais triste? Você
é um escritor extraordinário, bom demais para ficar vomitando merda desse
tipo. Alguma coisa andou acontecendo com você, você está pirando. Acho
que está doente.”
Wiley estremeceu.
“Doente?”
Mulcahy era um homem esbelto, grisalho e charmoso. Antes de se
tornar editor, tivera uma carreira notável como correspondente
internacional; cobriu duas guerras e meia dúzia de golpes de Estado, e tinha
até mesmo sido baleado três vezes. Wiley sempre sentira inveja desse
currículo; em todos os seus anos de jornalismo, não tinha sido baleado nem
uma única vez. Nunca desviara de uma bala de verdade. Mas Cab Mulcahy
sim, e escrevera poeticamente sobre a experiência. Wiley o admirava, e o
magoava ver o velho garotão falando daquele jeito.
“Peguei todas as suas colunas dos últimos quatro meses”, disse
Mulcahy, “e entreguei para o doutor Courtney, o psiquiatra.”
“Meu Deus do céu! Ele é completamente maluco, Cab. O cara gosta de
transar com animais. Eu ouvi isso de umas sete ou oito pessoas. Patos,
gansos, coisas assim. O jornal tem que se livrar dele antes que aconteça
algum escândalo...”
Mulcahy agitou as mãos, um sinal para que Skip calasse a boca.
“O doutor Courtney leu todas essas colunas e diz que pode mapear a sua
doença, começando por setembro.”
Wiley cerrou os dentes com tamanha força que suas obturações quase
quebraram.
“Não tem nada de errado comigo, Cab.”
“Quero que você procure um médico.”
“Não o Courtney, por favor.”
“O Sun vai pagar.”
Bem, o jornal tem que pagar, pensou Wiley. Se estou pancada, a culpa é
deste lugar.
“Eu também quero que você procure um clínico. Courtney diz que a
degeneração mental foi tão rápida que pode ser física. Um tumor ou coisa
assim.”
“Um cara que trepa com animais diz que eu sou doente.”
“Ele ganha dinheiro por suas opiniões”, disse Mulcahy.
“Ele detesta a minha coluna”, disse Wiley. “Sempre detestou.” Apontou
para o monte de recortes. “Eu sei o que tem aí, Cab. Aquela que escrevi há
seis semanas sobre os psiquiatras. Courtney ainda está louco por causa
disso. Ele está tentando descontar em cima de mim.”
“Ele não mencionou essa”, disse Mulcahy, “embora ela fosse uma obra-
prima de maldade. ‘Charlatães gananciosos, sugadores de almas’ — não foi
isso o que você escreveu dos psiquiatras?”
“É, algo do gênero.”
“Se eu estivesse aqui naquele dia, teria cortado aquela coluna”, disse
Mulcahy calmamente.
“Ha!”
“Skip, o negócio é o seguinte. Vá procurar os médicos e você poderá
ficar com a sua coluna, pelo menos até a gente descobrir que merda está
funcionando mal na sua cabeça. Nesse meio tempo, cada palavra que você
escrever vai passar por mim, pessoalmente. Nada que sair do seu terminal,
nem que seja um obituário de merda, vai sair no jornal sem a minha
autorização.”
Wiley parecia atordoado. Encolheu-se na cadeira.
“Minha nossa, Cab, por que você não corta meu saco fora e guarda
como troféu de uma vez?”
Mulcahy conduziu-o até a porta.
“Você não escreve mais nada sobre o caso Harper, Skip”, disse ele
asperamente. “O doutor Courtney está esperando você amanhã de manhã.
Às dez em ponto.”

Brian Keyes leu a coluna de Skip Wiley logo que voltou ao escritório.
Não conseguiu conter as gargalhadas. Ficara assombrado — não havia outra
palavra para aquilo — com o extremo a que Wiley levara as coisas sem ser
importunado.
Keyes se perguntou se Ernesto Cabal tinha lido o jornal. Esperava que
não. A coluna de Wiley estragaria totalmente o dia do rapaz.
Considerando-se que Ernesto era inocente — e Keyes estava tendendo
nessa direção —, o passo seguinte era descobrir quem teria desejado ver B.
D. Harper morto. Era um assassinato bastante incomum, e roubo parecia um
motivo pouco provável. Espremer o corpo numa mala de luxo era coisa da
Máfia, pensou Keyes, mas a Máfia não tinha muito senso de humor; a
Máfia não teria vestido Sparky com aquelas roupas horrorosas, ou lhe
enfiado um jacaré de borracha goela abaixo.
Encontrar um bom suspeito além de Ernesto Cabal não seria muito fácil.
B. D. Harper não chegara ao topo de seu negócio fazendo inimigos. Sua
missão, de fato, fora exatamente o oposto: fazer tantos amigos quanto
possível e não ofender ninguém. Harper tinha sido bom nisso. Era um poço
de amabilidade.
Sparky tinha vivido e respirado turismo. Seu único objetivo fora atrair o
máximo de pessoas para o Sul da Flórida, para que gastassem tanto dinheiro
quanto fosse humanamente possível em quatro dias e três noites. Passava
noites em claro traçando planos para atrair as pessoas ao coração tropical de
Miami.
Como repórter, Brian Keyes chegara a conhecer B. D. Harper
razoavelmente bem. Não havia, nele, nada para não gostar; simplesmente,
não havia nada de mais. Ele era um homenzinho rotundo, inócuo, que se
enchia de felicidade quando a Flórida estava fervilhando de turistas
branquelos fugindo do frio. Durante anos, Harper administrara com sucesso
sua própria firma de relações públicas, fazendo promoções estúpidas e
previsíveis, como colocar uma máquina de neve na praia em janeiro, ou
enviar pelo correio uma laranja madura da Flórida para cada ser humano da
baía de Prudhoe, no Alasca. Isto foi nos dias de glória de Miami, e, de certa
forma, Sparky Harper fora um orgulhoso pioneiro do esforço
desavergonhado e tolo que fizera a Flórida se desenvolver.
Nos últimos anos, como cabeça da Câmara de Comércio, a principal
tarefa de Harper era bolar um atraente adesivo de para-choque por ano:
“Miami — Quente Demais para Agarrar!”; “A Flórida É... A Terra
Prometida!”; “Miami Derrete na Sua Boca!”.
O predileto de Brian Keyes era “A Mais Emocionante Cidade da
América”, que Sparky introduziu muito oportunamente um mês depois do
pior conflito racial já verificado em Miami.
Harper espalhara com muita astúcia seus slogans capengas, fixando-os
em pôsteres coloridos de mulheres peitudas tomando sol na praia,
sacudindo-os sobre as proas de veleiros ou puxando-os pelas caudas de
planadores — qualquer coisa que Sparky pudesse arranjar. As mulheres
eram sempre bonitas, porque a Câmara de Comércio podia pagar pelas top
models.
O descerramento anual do novo pôster turístico não trazia controvérsia
nem impopularidade a Sparky. A julgar pelo que todo mundo dizia, era a
única coisa palpável que ele fazia durante o ano inteiro, para ganhar seu
salário de quarenta e dois mil dólares anuais.
Quanto ao assassinato, Keyes pensou nas possibilidades triviais de
sempre: um marido ciumento, um agiota impaciente, uma namorada ou um
namorado que levou um pé na bunda. Nada parecia encaixar. Sparky era
divorciado, dono de um poodle francês chamado Bambi. Quando saía com
mulheres, era com viúvas ou prostitutas. Sabia-se que às vezes enchia a
cara, mas nunca se fez de otário em público. E não era um jogador, portanto
era improvável que a Máfia estivesse atrás dele.
Keyes pensou que quem quer que tivesse matado Harper provavelmente
não o conhecia pessoalmente, mas com certeza sabia quem ele era. Com a
metodologia extravagante, o assassino parecia estar querendo dizer alguma
coisa muito especial, razão pela qual Keyes não podia ignorar a carta dos
Noites de Dezembro, por mais maluco que isso fosse.
Keyes concluiu que precisava ver o relatório da autópsia. Dirigiu-se ao
escritório do legista e pediu uma cópia. O dr. Joe Allen não estava, e Keyes
resolveu esperar. Sentado numa sala azulejada que cheirava a formol,
começou a ler o relatório de Allen linha por linha. Na metade da leitura, sua
curiosidade atingiu o limite, e ele desembainhou os slides coloridos. Um
por um, Keyes os apontou contra a luz.
Quanto mais estudava as fotos repulsivas, mais Keyes se convencia de
que Ernesto Cabal estava falando a verdade: ele não tivera nada a ver com o
assassinato de B. D. Harper. Estava além da imaginação embotada de
Ernesto conceber algo daquele tipo.
“Não suje os meus slides!” O dr. Joe Allen estava na porta, abarrotado
de pastas.
“Bom dia, doutor.”
“Bem, Brian. Ouvi dizer que você agarrou sua grande chance.”
Joe Allen sempre gostara de Brian Keyes. Keyes fora um repórter
sólido, e era uma pena que tivesse pulado fora para se tornar um detetive
particular. Joe Allen não era muito chegado a detetives particulares.
“Isto aqui não foi roubo, Joe.”
“Não sei o que pode ter sido”, disse o dr. Allen, “exceto que,
definitivamente, foi morte por asfixia.”
“Alguma vez você ouviu falar de um arrombador de carro capaz de
mostrar um talento desses?”, perguntou Keyes.
“Parece que essa é a opinião da polícia.”
“Estou pedindo a sua, Joe.”
O dr. Joe Allen autopsiara três mil, setecentas e doze vítimas de
assassinato durante sua longa carreira como legista de Dade County,
portanto tinha visto mais carnificinas indescritíveis do que, talvez, qualquer
outro ser humano em todos os Estados Unidos. Através dos anos, Joe Allen
mapeara o progresso do Sul da Flórida observando os que jaziam mortos
em suas mesas de aço, e já superara havia muito tempo o ponto de ficar
chocado ou nauseado. Realizava cirurgias meticulosas, mantinha arquivos
precisos, tirava fotografias irretocáveis e compilava dados inestimáveis de
morbidez, que lhe angariavam reputação nacional. Por exemplo, o dr. Allen
descobrira que a Grande Miami tinha mais homicídios com mutilação per
capita do que qualquer outra cidade norte-americana, um fato que ele
atribuía ao excelente clima da região. Nos trópicos, notou Allen, não havia
elementos climáticos que inibissem um lunático de passar seis, sete, oito
horas esquartejando uma vítima; experimente fazer isso em Buffalo e você
vira picolé. Depois de o dr. Allen ter apresentado suas conclusões numa
grande convenção de patologistas, vários outros legistas da Faixa do Sol
conduziram seus próprios estudos e confirmaram aquilo que se tornou
conhecido como Teorema da Mutilação de Allen.
Ao longo dos anos, alguns poucos casos espetaculares permaneceram
vívidos nas reminiscências de Joe Allen, mas o restante não passou de
etiquetas no dedão do pé. Brian Keyes esperava que com Sparky Harper
fosse diferente.
O legista colocou seus óculos e ergueu dois dos slides mais nauseantes,
como que para refrescar sua memória.
“Brian”, disse, “acho que eles não colocaram o cara certo no xadrez.”
“Então, como faço para livrá-lo desta?”
“Arranje um suspeito mais convincente.”
“Vamos lá, Joe. Alguém em particular?”
“Na minha opinião, o senhor Harper foi vítima de um assassinato
ritualístico. Eu diria que várias pessoas estavam envolvidas. E diria também
que o motivo nada teve que ver com roubo ou ataque sexual. Eu não
descartaria a possibilidade de um ritual secreto, possivelmente até um
sacrifício humano. Por outro lado, o corpo não mostrava os sinais comuns
de tortura — nada de queimaduras de cigarro, vergões ou contusões
ordinárias. Mas não se pode ignorar o que aconteceu com as pernas.”
Keyes perguntou:
“O que aconteceu de fato com as pernas?”
“As pernas foram removidas depois que a morte estava consumada,
provavelmente para que o corpo pudesse caber na mala. Mas o interessante
é o jeito de remover as pernas.”
Keyes disse:
“Joe, você está fazendo isso só para me deixar enojado?”
“As pernas não foram cortadas com machado, que é o método mais
eficiente”, disse o dr. Allen, interrompendo-se para escolher melhor as
palavras. “Pelas feridas, as pernas de Sparky parecem ter sido removidas
por um animal bem grande. Na verdade, elas podem ter sido... arrancadas.”
“Meu Deus do céu! Comidas por cães selvagens?”
O dr. Allen balançou a cabeça sombriamente.
“A julgar pelo padrão da mordida, não foi nenhum cão. Foi alguma
coisa muito maior. Não me pergunte o quê, Brian, porque eu simplesmente
não sei.”
“Joe, você sempre ilumina o meu dia.”
“Boa caçada, meu amigo.”
5

O escritório de Brian Keyes ficava no sexto andar de um melancólico


edifício bancário no centro da cidade, ao lado da Segunda Avenida SW,
perto do rio Miami. O consulado de El Salvador localizava-se no fim do
corredor, e, por causa disso, a maioria dos outros inquilinos vivia em
perpétuo pânico de um ataque terrorista, e se comportava de acordo com
esse pânico. Todos eles tinham se cotizado para contratar guardas de
segurança extras para a entrada do prédio, mas os seguranças acabaram se
revelando ladrões profissionais quando numa noite limparam o prédio
inteiro, levando todos os aparelhos IBM que encontraram nos escritórios.
Brian Keyes não foi afetado por esse crime, porque a única máquina de
escrever que existia em seu escritório era uma velha Olivetti portátil, uma
lembrancinha dos dias em que cobria política para o Miami Sun. Os outros
itens de valor potencial eram uma antiga luminária de escrivaninha e um
gravador de conversas telefônicas, mas a primeira estava quebrada e o
segundo tinha sido fabricado na Coreia, portanto os ladrões não tiveram
nenhum interesse por eles.
O ponto alto do escritório era um aquário marinho de duzentos e vinte e
cinco litros, presente de despedida de seus amigos do jornal. Keyes o
montou no vestíbulo, onde uma secretária deveria normalmente estar, e o
encheu de peixes-gato espinhentos que sugavam as algas do vidro.
Exceto pelo aquário, o local era tão exíguo, malajambrado e depressivo
quanto Keyes temera que seria. Quase nunca ia lá. Mesmo quando não tinha
nada para fazer, ele encontrava uma desculpa para sair do prédio e dar uma
volta pelo centro da cidade. Tinha um serviço de chamadas, e um bip
eletrônico enfiado no cinto. O bip não fazia com que Keyes se sentisse
particularmente importante; todos os advogados de porta de cadeia,
traficantes de drogas e agentes secretos de Dade County usavam bip. Era
obrigatório.
Na manhã de 5 de dezembro, Keyes, que tinha descido até o Bayfront
Park, mastigando um sanduíche e observando os rebocadores, ouviu o bip
em seu cinto disparar tão estridentemente que acordou um mendigo que
descansava dois bancos adiante.
Keyes descobriu uma cabine telefônica e ligou para seu serviço. Al
García estava tentando encontrá-lo. Era importante. Keyes ligou para a
Homicídios.
“Me encontra na praia”, disse García. “O Flamingo Isles, perto da
esquina da 68 com a Collins. Procure os carros da polícia. Eles vão estar lá
na frente.”
O Flamingo Isles não era um clássico motel de Miami Beach. Não havia
nada de atraente na cor (lodosa) ou na arquitetura (estilo Texaco antigo).
Naquele motel não havia toldos de lona listrados, nem aposentados
encarquilhados rondando o lobby, nem cadeiras de praia alinhadas em
frente ao pórtico, nem nenhum pórtico, por mais vagabundo que fosse.
Basicamente, o Flamingo Isles era uma espelunca para cafetões, caçadores
de putas e as próprias. Os quartos custavam dez dólares a hora, quinze se
tivessem vídeo pornô. Corria o boato de que alguns dos dormitórios eram
equipados com câmeras de filmar escondidas para gravar em segredo as
aberrações sexuais dos turistas da Flórida. Não era um bom lugar para um
homem inocente, mas Keyes tinha esperanças de que aquele fosse o lugar
onde Sparky Harper passara suas últimas horas na terra. Se fosse assim, isto
significaria que Harper tinha, provavelmente, morrido em algum acidente
sexual bizarro, e não nas mãos gatunas de Ernesto Cabal.
Keyes enfiou seu pequeno MG conversível na avenida e o conduziu para
o motel em dezoito minutos redondos. Al García já estava interrogando
uma camareira jamaicana no lobby. Ele pedia um intérprete e a camareira
insistia, em inglês perfeito, que falava inglês perfeito, mas García não
acreditava nela. Por fim, ele trouxe um investigador negro de Miami Beach
para tomar o depoimento da camareira, e subiu para o andar de cima, com
Keyes logo atrás. Eles entraram no quarto 223.
“Aí está”, disse García.
Uma pilha de roupas masculinas jazia no meio do assoalho: meias de
seda azuis viradas do avesso; uma camiseta; um par de cuecas tipo jóquei
manchadas; e um terno azul com a etiqueta de J. C. Penney. As pernas do
terno tinham sido rasgadas logo abaixo do joelho. Sob as roupas estava um
par de sapatos Florsheims pretos perfeitamente engraxados.
O quarto não mostrava sinais de luta corporal. Havia uma garrafa de
Seagram’s cheia até a metade e um par de latas de refrigerante na cômoda.
No quarto de dormir, perto do painel de controle do vibrador, encontravam-
se três frascos plásticos de bronzeador Coppertone com óleo de coco. Um
perito em impressões digitais jogava cuidadosamente pó nos vasilhames;
estava sentado nos calcanhares, esquecido do resto do mundo.
Com uma longa pinça, García apanhou um saco plástico do chão. No
saco, uma inscrição vermelha e branca dizia: “Novidades Everglades”.
“Isto”, anunciou majestosamente García, “foi usado para transportar o
instrumento do crime.”
“O jacaré de brinquedo?”
García assentiu com a cabeça.
“Então, foi aqui que a coisa aconteceu.”
“O assassinato? Não, a gente está achando que não.”
Repentinamente, um grande tira de cabelos ruivos emergiu do banheiro.
Era Harold Keefe, o investigador-chefe.
“Quem é você?”, perguntou ele a Keyes.
“Um amigo do Al.” Keyes olhou para García. Alguma coisa nos olhos
deste parecia dizer ai, caralho!
“Não toque em nada”, rosnou Keefe ao sair do quarto. “Al, não deixa
ele tocar em nada, entendeu?”
García checou o banheiro para se certificar de que nenhum outro
investigador estava farejando por lá. Não disse nada até que o perito
embalasse seu kit e saísse.
“Puta merda! Eu não sabia que o filho da puta estava mijando.”
“Calma, Al. Ele não sabe quem eu sou.”
García começou a enfiar as roupas de B. D. Harper num saco plástico de
coleta de provas. “Dê uma olhada nas manchas no chão”, disse ele a Keyes.
Duas faixas de sangue coagulado formavam uma trilha sinuosa, do
quarto até o banheiro. Não era muito sangue, certamente bem menos do que
se poderia esperar.
“Os caras do laboratório estão chegando”, disse García, “e eu vou dar
umas dicas para você. Aí você sai antes que eu acabe arranjando encrenca.”
“Tudo bem, Al.”
“Na noite de 30 de novembro, dois homens alugaram este quarto por
uma semana. Pagaram adiantado, com dinheiro, trezentos e sessenta paus.”
“Como eram esses caras?”
“Um era um negro forte usando um pulôver amarelo bem apertado”,
disse García, “e o outro era um hispânico jovem, de calças jeans.”
Keyes fez uma careta.
“Imagino que você tenha mostrado para a recepcionista a foto do Cabal
tirada na polícia.”
“Mostrei. Ela tem setenta e cinco por cento de certeza de que é ele.”
“Setenta e cinco por cento não conta no tribunal, Al.”
“Não esquente a cabeça. Ela vai chegar nos cem por cento quando o
caso estiver em julgamento.”
“Alguém viu os caras que estavam com B. D. Harper?”
“Achamos um casal de bichas no quarto 225 que viu um hispânico
entrar neste quarto aqui lá pelas onze da noite com um cara branco, gordo,
descrição que bate com a de Harper. Eles ouviram gente falando alto, e
depois a porta bateu. As bichinhas deram uma olhada e viram o Harper
sendo arrastado escada abaixo pelo negrão e o cubaninho. Ah, o tal cubano
estava carregando uma mala Samsonite vermelha.”
“Então eles levaram o Harper para algum lugar, mataram o cara,
cortaram as pernas, enfiaram o presunto na mala e...”
“Trouxeram para cá de novo”, completou García. “Foi aqui que
aconteceu a parte estranha. Esse sangue no chão está aí porque eles
arrastaram o corpo até o banheiro. Foi lá que eles botaram aquela camiseta
florida ridícula nele e passaram o Coppertone, e depois enfiaram o cara na
mala.”
“Não esqueça os óculos escuros”, disse Keyes.
“OK. Depois eles foram de carro para Key Biscayne e jogaram Harper
no mar.”
“Por que toda essa trabalheira?”
García disse:
“É o que está me intrigando. Mas, seja lá como for, o negrão e o cubano
não voltaram mais depois do dia 1º. de dezembro. A camareira só abriu ó
quarto hoje. Ela viu o sangue no chão e chamou a polícia.”
“Mas essas são notícias do cacete, Al.”
“E eu nem terminei. Lembra que eu te falei que tinha uma pista em
relação àquelas roupas debiloides? Bom, eu descobri uma vendedora numa
espelunca lá no fim da rua que disse que vendeu tudo aquilo para um
cubano magrelo no dia 29 de novembro.”
“Era o Ernesto?”
“Ela tem oitenta por cento de certeza. O tonto estava usando um chapéu
que escondia um pouco a cara, por isso ela não tem certeza absoluta.”
“É só dar um tempo pra ela”, resmungou Keyes.
As coisas estavam ficando feias para o señor Cabal. Keyes se perguntou
se estivera errado o tempo todo a respeito do sujeito. Talvez ele não fosse só
um arrombador de carros pé de chinelo tentando descolar algum.
García fechou o saco de provas com um nó e deu uma olhada no quarto
para ter certeza de que não tinha deixado passar nada.
“Está na hora de você pegar a estrada”, disse ele a Keyes. “E vê se não
esquece, eu nem te conheço, nem sei teu nome.”
“Tá bem, Al.”
Keyes estava no estacionamento, caminhando lentamente em direção ao
MG, quando ouviu García chamar, do alto de uma sacada.
“Ei, Brian, quer ajudar de verdade o seu cliente?”
“Claro que sim.”
“É fácil”, berrou García. “Encontre o tal do negrão.”

Keyes chegou à cadeia do distrito exatamente no mesmo instante em


que Mitch Klein estava saindo de lá. Klein era um jovem advogado
maltrapilho do escritório do defensor público que, aparentemente, não tinha
tido sorte na hora de ver quem cuidaria do caso de Ernesto Cabal. Enquanto
caminhava para fora da cadeia, com a camisa suada e a gravata frouxa,
Klein não parecia estar exatamente transbordando de felicidade. Ele parecia
ser um homem que não via a hora de começar a advogar em seu próprio
escritório.
Klein cumprimentou Keyes com um aceno lúgubre e disse:
“Quais são as más notícias do dia?”
“Encontraram um quarto de motel lá na praia com as roupas do Harper e
sangue no chão. Um carinha cubano alugou o quarto um dia antes do
Harper sumir.”
“Que lindo”, grunhiu Klein.
“A boa notícia é que um crioulo estava junto com o cubano. A descrição
bate com a do cara que o Ernesto diz que vendeu o Oldsmobile para ele.
Pode ser que eu o encontre.”
Klein virou os olhos e fez um movimento obsceno com a mão direita.
“Acho que o Ernesto não passa de um cascateiro”, disse ele.
Que maravilha, pensou Keyes, o próprio advogado do cara está cagando
na cabeça dele.
Quando Keyes entrou na cela, notou que Ernesto estava deitado,
totalmente pelado, na cama. Ernesto piscou diante de Keyes como se fosse
um lagarto surpreendido pela luz do sol.
“Levaram a minha roupa.”
“Por quê?”
“Estão com medo que eu tente me enforcar.”
“Você vai fazer isso?”
“Não agora.”
“Muito animador ouvir isso.”
Ernesto rolou sobre a barriga, expondo as nádegas brancas e firmes.
Dois prisioneiros de outra cela manifestaram sua admiração com vaias.
Ernesto os ignorou.
“Aquele cara, o Klein, quer que eu assine uma confissão. Disse que está
tentando salvar minha vida. Falou que vão assar meu rabo na cadeira
elétrica se o caso for a julgamento. Você acha que é isso mesmo?”
Keyes disse:
“Eu não sou advogado.”
“Isso é mau. O tal do Klein, ele tem uns sapatos legais. Você podia usar
uns sapatos legais se fosse, não é?”
Keyes contou a Cabal sobre o motel Flamingo Isles. O cubano se sentou
agitadamente quando ouviu a parte sobre o negrão e B. D. Harper.
“E o crioulo estava usando óculos Carrera?”
“Não sei.”
“Aposto que é o mesmo carinha que me vendeu aquela bosta de carro.”
“Vou tentar encontrar o cara, Ernesto.”
“Você falou com o Klein?”
“Falei.”
“O que ele disse?”
“Disse que o caso está com boas chances.”
“Eu vi esse crioulo antes.”
Ernesto se levantou e começou a andar pela cela. Keyes achou sua
nudez um pouco desconcertante. Isto se devia, em grande parte, à tatuagem:
um retrato do rosto de Fidel Castro reproduzido cuidadosamente na
extremidade do apêndice mais íntimo de Ernesto.
“Tenta lembrar, Ernesto. Onde você viu o cara? Na praia? Num bar? Na
escola dominical?”
“Foi num lugar desses aí.” Ernesto cruzou as mãos por trás das costas e
ficou olhando através das barras da cela. “Vou pensar no assunto.”
Keyes decidiu que era hora de contar as más novas. Ele contou a
Ernesto da recepcionista do Flamingo Isles e da vendedora da loja de
roupas, além de dizer que elas tinham olhado a foto dele e estavam quase
certas de que ele era a mesma pessoa que tinham visto.
“Putas idiotas”, disse Ernesto estoicamente.
Keyes disse:
“Um cubano magrelo alugou o quarto no motel, e um cubano magrelo
comprou aquelas roupas berrantes para B. D. Harper.”
“Não foi este cubano magrelo aqui.”
Ernesto sentou na cama de novo e, piedosamente, cruzou as pernas.
“Quer que eu traga as suas roupas de volta?”
“Quero sim, cara.”
“Onde você acha que eu tenho que começar a procurar aquele vendedor
de carros?”
“Lá no Pauly’s Bar. Só precisa dar uma perguntada. Um crioulo com
óculos escuros. Não tem muitos caras iguais a ele aqui em Miami Beach.”
“Ele tem sotaque?”
Ernesto deu uma risadinha.
“Ele é preto, cara. Claro que tem sotaque.”
“Jamaicano? Haitiano? Americano?”
“Ele não é jamaicano, e não é preto de rua. Esse garoto frequentou a
escola.” Ernesto estava muito seguro de si. “Esse cara é muito esperto.”
Keyes disse a Ernesto que pensasse um pouco mais no assunto. Ia
precisar de toda a ajuda que ele pudesse lhe dar. Especialmente no Pauly’s
Bar.
6

O dr. Remond Courtney nem ao menos piscou. Ele simplesmente disse:


“Acho que não ouvi direito, senhor Wiley.”
“Ah, perdão.” Skip Wiley levantou-se e marchou para o outro lado do
consultório. Inclinou-se para a frente e posicionou seu rosto gigantesco a
cinco centímetros do nariz do médico. “Eu falei”, berrou Wiley, como se
Courtney fosse surdo, “é verdade que você trepa com patos?”
“Não”, replicou Courtney com os lábios trêmulos.
“Com marrecos, então?”
“Não.”
“Ah, então o teu negócio é um rabinho de ganso. Não precisa ter
vergonha.”
“Por favor, senhor Wiley, sente-se. Acho que nós estamos evitando o
assunto, não é mesmo?”
“E que assunto é esse, doutor Enraba-Ganso? Posso chamar você desse
jeito? Você fica chateado?”
Courtney olhou para o caderno em seu colo, como se consultasse algo
importante. Na verdade, a página estava em branco.
“Por que”, disse ele a Skip Wiley, “toda essa hostilidade?”
“Porque nós dois estamos perdendo tempo. Não tem nada de errado
comigo e você sabe muito bem disso. Mas você tinha que bancar o idiota e
ir dizer para o meu chefe que tenho um tumor patológico no cérebro. E
agora estou mesmo doido para fazer uma coisa patológica.” Wiley sorriu e
agarrou o dr. Courtney pelos ombros.
O psiquiatra lutava para manter um ar de superioridade (como se aquilo
tudo fosse apenas uma traquinagem infantil) enquanto tentava se livrar das
garras de Wiley. Mas Wiley era um homem forte, e não teve dificuldades
em levantar o médico de sua poltrona.
“Eu nunca falei que você tinha um tumor, Skip.”
O dr. Remond Courtney estava notavelmente calmo, mas trabalhava no
ramo havia muito tempo. Ganhava a vida como testemunha profissional, era
o psiquiatra de aluguel do tribunal. Seu comportamento nos julgamentos era
impressionante — frio, seguro de si, inabalável. Os advogados adoravam o
dr. Courtney e pagavam uma fortuna a ele para que se sentasse no banco das
testemunhas e dissesse que seus clientes eram loucos de dar dó. Era um
trabalho risivelmente fácil, e Courtney era convenientemente flexível em
suas doutrinas: um dia ele podia ser discípulo de Skinner, no outro, seguidor
ortodoxo de Freud. Tudo dependia do caso (e de quem estivesse pagando os
honorários). O dr. Courtney se tornara uma testemunha-especialista tão
bem-sucedida que conseguira se livrar da maior parte de seus pacientes de
consultório e limitar sua prática psiquiátrica a três ou quatro contratos
lucrativos com empresas ou com o governo. Alimentara esperanças de que
isso minimizaria seu contato com os mais perigosos lunáticos do Sul da
Flórida, mas acabou aprendendo que conseguira exatamente o oposto.
Quando alguma grande empresa decidia mandar um de seus empregados
para um psiquiatra, as alucinações já tinham se estabelecido, e o paciente,
frequentemente, já estava recebendo mensagens telepáticas do planeta
Vênus. A pior coisa que se podia fazer num caso desses, segundo Remond
Courtney, era perder a compostura profissional. Uma vez que o paciente
descobrisse que podia confundir você, você estava acabado como analista.
Dominação exigia compostura, o dr. Courtney gostava de dizer.
“Skip, eu posso lhe assegurar que nunca falei nenhuma palavra a
respeito de tumores no cérebro.”
“Ah, agora é Skip, é? Você aprendeu isso na escola de psiquiatria,
doutor Enraba-Ganso? Quando um paciente fica descontrolado, deve-se
chamá-lo pelo primeiro nome.”
“Você prefere ‘senhor Wiley’?”
“Eu preferia não estar aqui”, disse Wiley, conduzindo o dr. Courtney na
direção da janela do consultório.
Quinze andares abaixo, estava o Biscayne Boulevard. Courtney não
precisava ser lembrado da distância exata (um de seus pacientes pulara,
uma vez), mas, de qualquer jeito, Skip Wiley fez com que ele se recordasse.
Refrescou a memória do dr. Courtney segurando-o de cabeça para baixo
pelos sapatos italianos.
“O que está vendo, doutor?”
“Minha vida”, disse o psiquiatra dependurado, “passando diante dos
meus olhos.”
“Aquilo ali é só um ônibus.”
“Um ônibus, você tem razão. Uma porção de gente andando. Alguns
táxis. Um monte de coisas, senhor Wiley.”
A voz do médico estava trêmula e alta. Ele usava os braços para não se
chocar contra a parede do prédio, e estava se saindo muito bem. Depois de
alguns segundos, a gravata de lã estampada de Courtney escorregou de seu
pescoço e flutuou até o solo como uma borboleta ferida. Skip Wiley teve a
impressão de escutar o médico choramingar.
“Está tudo bem aí embaixo?”
“Não muito”, implorou Courtney. “Senhor Wiley, sua hora já está no
fim.”
Wiley puxou Courtney para cima através da janela.
“Seus tornozelos transpiram, sabia?”
“Isso não é nenhuma surpresa”, disse o médico.
“E então, você vai ficar insistindo nessa ideia de que eu sou louco? Você
vai dizer isso pro Mulcahy?”
Courtney se espanou e alisou as roupas. As palmas de suas mãos
estavam vermelhas e esfoladas, e isso parecia deixá-lo chateado. Ele
endireitou o blazer.
“A sua sorte é que eu não perdi uma das minhas lentes de contato”,
disse ele a Wiley.
“E a sua sorte é não ter perdido essa sua maldita vida.”
Claramente insatisfeito, Wiley sentou-se na mesa do médico. Courtney
reassumiu sua posição na poltrona, com um bloco de anotações no vinho
em folha no colo.
“Na minha opinião, tudo começou com aquela coluna do furacão”, disse
o psiquiatra.
“Cá entre nós, doutor, aquilo ali estava uma beleza.”
“Era muito maldosa e exagerada. ‘O que o Sul da Flórida mais precisa é
de um furacão daqueles de arrasar uma cidade inteira...’ Toda aquela coisa
dos ventos ensurdecedores e dos condomínios devastados. Minha mãe leu
aquela... aquele lixo”, disse o médico, profundamente agitado, “e no dia
seguinte colocou o apartamento à venda. Ela ficou assustada com se tivesse
visto o demo. Um apartamento com vista para o mar, uma hipoteca barata, e
mesmo assim ela não aguentou. Quer se mudar para Tucson, aquele lugar
horrível. Tudo isso por sua causa!”
“Sério?” Wiley parecia singularmente feliz.
“Que tipo de droga”, começou a perguntar o dr. Courtney, “pode
provocar esse tipo de loucura?”
Mas Skip Wiley já estava saindo do consultório, não mais que um vulto
com uma juba cor de mel.

Cab Mulcahy entrou na redação pouco depois das cinco. Ele era uma
presença bem-composta, uma aparência distinta em meio aos jovens
neuróticos que punham o diário para rodar, e vários deles trocavam olhares
como se perguntassem: O que é que o velho tá querendo?
Mulcahy estava à procura de Wiley. Na verdade, ele estava à procura da
coluna de Wiley. Mulcahy receava que Wiley conseguisse dar um jeito de
passar por cima do acordo dos dois e fizesse a coisa ir para a impressão.
O editor de Cidades disse que não tinha visto Wiley naquele dia, e
relatou que nenhuma coluna tinha chegado, via boy, telefone ou telex. O
editor de Cidades também notou que, sem a coluna, ele estava pensando no
que fazer com um buraco de quase quarenta centímetros na primeira página,
com o horário de fechamento já se aproximando.
“O Ricky Bloodworth se ofereceu para fazer a coluna se o Wiley não
aparecer”, disse o editor de Cidades.
“Ele já tem a coluna pronta?”
“Ele fez umas coisinhas nas horas vagas. Eu vi os textos hoje de manhã,
Cab, e não são tão ruins assim. Um pouco exagerados, talvez, mas
interessantes.”
“Sem chance”, disse Mulcahy. “Mas agradeça a ele, de qualquer jeito.”
O editor de Cidades pareceu ficar desapontado; Mulcahy sabia que ele
ansiava por se livrar do Problema Wiley havia muito tempo. O editor de
Cidades não se dava muito bem com Skip Wiley. Era um relacionamento
ruim, que só fez piorar depois que Wiley deixou correr o boato de que
estava ganhando cinco mil dólares a mais por ano do que o editor de
Cidades, sem contar as opções de ações da empresa. Opções de ações! O
editor de Cidades foi para casa naquela noite e encheu de pontapés o
traseiro de seu cocker spaniel.
“Você ligou para a casa do Wiley?”, perguntou Mulcahy.
“A Jenna não o vê desde que ele saiu para ir ao médico de manhã. Ela
disse que ele parecia estar muito bem, feliz e relaxado.”
“Ela disse isso?”
“Sem tirar nem pôr”, disse o editor de Cidades. “Feliz e relaxado.”
Mulcahy ligou para o dr. Remond Courtney e disse a ele que Skip Wiley
não tinha aparecido no trabalho.
“Ah, é?” O dr. Courtney não parecia surpreso, mas era difícil dizer se
estava ou não. Courtney era um expert em mascarar suas reações por meio
de frases como “Ah, é?”, ou “Entendo”, ou “Por que você não fala um
pouco mais sobre o assunto?”.
“Eu estava querendo saber”, disse Mulcahy, impaciente, “como foram
as coisas hoje.”
“Como foram as coisas?”
“Com você e o senhor Wiley. Ele tinha uma consulta hoje, lembra?”
Mais silêncio; depois:
“Ele foi ofensivo.”
“Foi ofensivo? Ele é sempre ofensivo.”
“Fisicamente ofensivo”, disse Courtney. Ele estava tentando manter
uma atitude de clínico, para que Mulcahy não percebesse o quanto ele tinha
ficado assustado. “Acho que ele ameaçou me matar.”
“O que você fez?”
“Conversei com ele até ele mudar de ideia, é claro. Acho que as coisas
já estavam um pouco melhores no final da consulta.”
“É bom saber disso”, disse Mulcahy, pensando: Wiley tinha razão, esse
cara não presta para nada. “Diga uma coisa, o Skip disse para onde ia
depois de sair do consultório?”
“Não. Ele estava com pressa. Tinha sido uma sessão extenuante para
nós dois.”
Mulcahy disse:
“E então, qual é o veredicto?”
“Veredicto?”
“Qual é o problema dele?”
“Stress, fadiga, ansiedade, paranoia. Tudo relacionado com o trabalho.
Eu sugiro que você dê um ano de férias para ele.”
“Não posso fazer isso, doutor. Ele é muito popular. O jornal precisa
dele.”
“Faça o que quiser. Ele é louco de pedra.”
Um louco de pedra que faz o jornal vender, pensou Mulcahy,
amargamente. Depois ele tentou Jenna.
“Ainda não vi o Skip, Cab. Estou um pouco preocupada também. Estou
com uma torta de espinafre no forno.”
Jenna tinha a voz mais deliciosa entre todas as mulheres que Cab
Mulcahy já conhecera; pura seda. Até mesmo expressões como “torta de
espinafre” saíam de sua boca como se fosse “Vamos transar já!” O dia em
que Skip Wiley foi morar junto com Jenna foi o dia em que Cab Mulcahy
concluiu que Deus não existia.
“Ele normalmente telefona?”, perguntou Mulcahy.
“Ele nunca faz nada do jeito normal, Cab, você sabe disso.” Uma risada
sedosa.
Mulcahy suspirou, Até certo ponto, a culpa era dele. Afinal de contas,
não tinha sido ele próprio quem apresentara Jenna a Skip numa noite no
Royal Palm Club?
Jenna disse:
“Skip entra em contato comigo umas duas ou três vezes por dia, de
várias maneiras. Hoje, depois do meio-dia, nada.”
“O que ele disse”, arriscou Mulcahy, “quando... fez contato?”
“Quase nada. Só um segundo, preciso abaixar o fogo... Deixa eu ver se
lembro... Já sei! Ele disse que ia trocar o silencioso do carro e que tinha
matado o psiquiatra. Esta última parte é verdade?”
“Claro que não”, disse Mulcahy.
“Ainda bem. Ele tem um temperamento dos diabos.”
“Jenna, o Skip disse quando entraria em contato de novo?”
“Não, ele nunca faz isso. Ele gosta de fazer surpresas, diz que isso
renova o romance. Às vezes eu fico pensando se ele não está só me
testando. Você sabe, Cab, confiança é uma rua de mão dupla.”
“Mas ele aparece aí para jantar?”
“Quase sempre”, disse Jenna.
“Se ele aparecer esta noite”, disse Mulcahy, ansioso por escapar daquela
conversa, “peça para ele ligar para a redação, por favor. É importante.”
“Estou ficando preocupada, Cab”, disse Jenna de novo. “Este espinafre
está empelotando.”
Que atriz, pensou Mulcahy, ela é simplesmente maravilhosa. Quando
Skip Wiley seduziu Jenna pela primeira vez, ele pensou que estava só
catando uma louraça peituda para dar uma trepada. Foi assim que ele a
descreveu para Mulcahy, que não acreditou. Ele tinha avisado Wiley
também, avisado para que procedesse com a máxima cautela. Mulcahy
tinha visto Jenna em ação uma vez antes; ela era magnética e calculista,
muito mais do que os toscos poderes de compreensão de Skip Wiley
poderiam perceber. Mas Wiley não dera ouvidos ao aviso de Mulcahy, e
cortejou Jenna desavergonhadamente, até que ela se deixou apanhar.
As hipóteses de Mulcahy a respeito das atitudes estranhas de Wiley não
descartavam a possibilidade de que Jenna fosse o xis da questão.
Mulcahy despejou a massa de papéis que estava sobre a mesa dentro de
sua pasta, vestiu o casaco e abriu caminho através da redação em direção
aos elevadores.
“Cab, só um segundo.” Era o editor de Cidades, parecendo febril.
“Se o Wiley não der as caras, coloque alguma matéria bem leve no lugar
da coluna dele”, instruiu Mulcahy sem parar de andar. “Alguma coisa sobre
uma passeata, um negócio moderado nesse gênero. E no pé bote um boxe
em itálico. Diga que o Wiley está fora, doente. Diga que a coluna voltará
em breve.”
O editor de Cidades não desapareceu timidamente, como Mulcahy
esperava que fizesse. Mulcahy parou em frente aos elevadores e perguntou:
“Qual é o problema?”
“A polícia rodoviária acabou de ligar”, disse o editor de Cidades, não
sem dificuldades. “Eles encontraram o carro do Wiley, o Pontiac velho.”
“Onde?”
“No meio da Interestadual 95. Na hora do rush.”
“E nada do Wiley?”
O editor de Cidades sacudiu a cabeça sombriamente.
“O motor estava ligado, e a voz do Eric Clapton explodia no toca-fitas.
O carro estava lá, vazio, no meio do trânsito. Levaram para o quartel da
polícia de Miami. Mandei o Bloodworth ir até lá para ver o que dá para
descobrir. Quer que eu ligue para sua casa mais tarde?”
“Claro”, disse Cab Mulcahy, mais estupefato do que antes.
“Quanto à coluna, Cab...”
“O que é que tem?”
“Tem certeza que não quer dar uma chance para o Ricky?”
Mulcahy raramente franzia a sobrancelha ou levantava a voz, mas
estava prestes a fazer as duas coisas.
“Você tem alguma reportagem sobre passeata para amanhã? Não venha
me dizer que não. Sempre tem uma passeata nesta merda de cidade.”
“Eu sei, Cab. Só que hoje foi uma passeata muito pequena.”
“Não faz mal.”
“Mas Dia do Nacionalismo de Belize?”
“Perfeito. Mande bala. Bote uma foto legal também.”
“Mas, Cab...”
“E ligue para a Jenna. Já.”

A porta do Pauly’s Bar estava coberta de moscas. Dentro havia seis


bancos de bar, uma máquina de fliperama semiarrebentada, uma cabeça de
cervo empalhada e um pôster em tamanho natural de Victoria Principal,
com uma mancha de bourbon no seio direito. O bar era feito de pinho de
segunda e parecia ter sido submetido a reparos recentemente, salpicado de
pregos e parafusos novos. Atrás do balcão havia um longo espelho
horizontal, cheio de fendas suturadas com fita adesiva antifuracão.
À primeira vista, o Pauly’s não era uma espelunca declarada, mas uma
pessoa atenta poderia facilmente sentir a presença de uma sinistra letargia.
Brian Keyes decidiu ser o freguês perfeito. Sacudiu uma nota de vinte
dólares na cara do barman e discretamente assegurou que não, ele não era
um tira, só estava tentando comprar algumas informações.
O barman, que usava uma camiseta regata e uma peruca brilhante, tipo
encomendada pelo correio, até que foi um pouco prestimoso; afinal de
contas, vinte dólares era a renda de uma noite inteira — se fosse boa — no
Pauly’s. Keyes sabia, simplesmente dando uma olhada no lugar, que o
homem que ele caçava seria lembrado ali, e tinha razão.
“Não aparecem muitos negrões fedorentos desse tipo aqui”, notou o
barman, escamoteando a nota no bolso. “Além disso, todo preto parece
grande de noite.” O barman riu, assim como um bêbado viscoso
esparramado sobre um dos bancos. Keyes sorriu e disse: Rá-rá, muito
gozado, mas deste você vai se lembrar, por causa dos óculos escuros.
O barman e o bêbado trocaram olhares, com os respectivos sorrisos
ficando cada vez maiores e mais maliciosos.
“Viceroy!”, disse o barman. “Viceroy Wilson.”
“O jogador de futebol?”
“Claro.”
“Não acredito!”, disse Keyes.
“Então dê uma olhada aqui.” E o barman arremessou uma bola de
futebol oficial da National Football League para Brian Keyes, derrubando
sua Budweiser. Viceroy Wilson, ex-zagueiro e ex-estrela do Miami
Dolphins, tinha autografado a bola com um floreio magnífico, com tinta
vermelha, logo abaixo da costura.
“Ele é freguês antigo”, gabou-se o barman.
“Não!”
“Claro que é!”
“Bom, eu preciso muito falar com ele.”
“Ele não dá autógrafo para qualquer um.”
“Eu não estou atrás de autógrafo.”
“Então por que fica perguntando dele? Ele não gosta que fiquem
perguntando dele.”
“É uma questão pessoal”, disse Keyes. “É muito importante.”
“Deve ser mesmo”, grasnou o bêbado.
Keyes o ignorou. Ele tinha o pressentimento de que aqueles caras
estavam cascateando. Keyes era um fã fervoroso de futebol, e, olhando ao
seu redor, não era capaz de imaginar o grande Viceroy Wilson — mesmo
viciado, falido e tudo — trocando figurinhas com a escória do Pauly’s. Uma
toca de ratos na praia Miami Sul não era lugar para Viceroy Wilson; seu
lugar é no Hall of Fame do futebol, em Canton, Ohio.
“Eu trago ele para você”, ofereceu o bêbado, deslizando para fora do
banco.
“E se ele não quiser ser trazido?”, disse o barman. “O Viceroy é um cara
muito reservado.”
“Vinte pratas”, disse o bêbado.
Keyes passou uma nota para ele e pediu outra cerveja. Parecia que, a
partir daquele instante, vinte dólares era o preço de qualquer coisa no
Pauly’s. O bêbado desapareceu porta afora.
“Dê adeus ao seu dinheiro”, disse o barman com ar de reprovação.
“Fica frio”, disse Keyes, sabendo que isto só teria o efeito exatamente
oposto. O pessoal de bar não gosta que lhe peçam para ficar frio.
“Eu estou começando a achar que você é um policial do departamento
de narcóticos!”, disse o barman, agressivo. Ele acalmou um pouco quando
Keyes botou outra nota de vinte no balcão, perto do copo de cerveja.
Quarenta minutos depois, a porta de tela do bar se abriu com um chiado
e ficou desse jeito por alguns momentos. Uma brisa salgada e fria lambeu a
nuca de Keyes. Ele queria se virar, mas em vez disso simplesmente
bebericou a cerveja, fingindo que o negro de mais de cem quilos (com
óculos de sol Carrera pendurados no peito) que se avolumava no espelho do
bar não estava olhando para ele como se fosse uma bola de futebol prestes a
ser chutada.
“Acho que não te conheço”, rosnou Viceroy Wilson.
Enquanto Brian Keyes girava para trás no banco do bar, prestes a dizer
alguma coisa extremamente espirituosa, um punho negro do mesmo
tamanho e consistência de um bloco de concreto desabou em sua nuca.
No mesmo instante o cérebro de Keyes se transformou num
caleidoscópio, e, mais tarde, ele só conseguiu recuperar uns poucos farrapos
de memória em sua consciência.
O som da porta de tela batendo.
O gosto da calçada.
O som da ignição de um automóvel.
Lembrou de ter aberto um olho com o pensamento assustador de que ia
ser atropelado.
E lembrou de ter dado uma rápida olhada numa ostensiva chapa de
automóvel — GATOR 2 — enquanto este saía cantando os pneus.
Mas Keyes não conseguiu lembrar de ter fechado os olhos e desmaiado
no concreto gelado.

“Olá!”
Brian Keyes arregalou os olhos diante do rosto redondo e amigável de
uma mulher de meia-idade.
“Você está machucado?”, perguntou ela.
“Acho que quebrei a espinha.”
Keyes estava deitado do lado de fora do Pauly’s Bar. O asfalto cheirava
a cerveja choca e mijo. Fragmentos de vidro invisíveis de uma garrafa de
vinho velha estavam cravados em seus ombros. Eram onze horas da noite e
a rua estava muito escura.
“Meu nome é Nell Bellamy.”
“E o meu é Brian Keyes.”
“Quer que eu chame uma ambulância, senhor Keyes?”
Keyes fez que não com a cabeça.
“Estes aqui são meus amigos, Burt e James”, disse Nell Bellamy. Dois
homens com barretes cor de malva se agacharam e encararam Brian Keyes.
Eram shriners.
“O que você está fazendo aqui?”, perguntou um deles com educação.
“Levei uma surra”, replicou Keyes, ainda deitado de costas. “Mas vou
ficar bom daqui a um ou dois meses.” Percorreu as costelas com uma das
mãos, procurando sinais de fraturas. “E o que vocês estão fazendo aqui?”,
perguntou ele para os shriners.
“Estamos procurando o marido dela.”
“Theodore Bellamy”, disse Nell. “Ele desapareceu sábado.”
“Me ajudem a levantar, por favor”, disse Keyes.
Os shriners o colocaram de pé. Eram sujeitos grandes e fortes, e
ampararam Keyes até que a tontura passasse. Do Pauly’s Bar vinham ruídos
de vidros quebrados e gritos em espanhol.
“Vamos andar um pouquinho”, disse Keyes.
“Mas eu queria entrar lá para perguntar”, disse Nell, apontando o bar
com o nariz, “para ver se alguém viu o Teddy.”
“Acho que não é uma ideia das melhores”, grunhiu Keyes.
“Ele tem razão, Nell”, aconselhou um dos shriners.
Assim, eles começaram a descer a avenida Washington. Era um cortejo
estranho, mesmo para os padrões da praia Sul. Keyes caminhava titubeante,
como um bêbado bem vestido, enquanto Nell distribuía folhetos com a foto
de Teddy. Os shriners andavam indiferentes em meio às maltas de
descamisados que se espalhavam do lado de fora de cortiços semidestruídos
e motéis caindo aos pedaços. Os refugiados lançavam sorrisos predatórios e
faziam gracejos em castelhano, mas os shriners eram imperturbáveis.
Nell Bellamy perguntou a Keyes o que tinha acontecido no bar, e ele lhe
contou a respeito de Viceroy Wilson.
“A gente viu um negrão sair acelerando”, disse Nell.
“Num Cadillac”, esclareceu Burt.
“O Burt é vendedor de Cadillacs”, disse Nell a Keyes. “Ele deve saber o
que está dizendo.”
Os quatro tinham alcançado o extremo Sul de Miami Beach, perto do
Joe’s Stone Crab, e estavam sozinhos na calçada. Aquela parte da praia Sul
não era exatamente um calçadão para passeio e, à noite, estava geralmente
deserta, fora os bêbados profissionais, assassinos com machadinhas e
imigrantes ilegais.
Com Nell abrindo caminho, a comitiva caminhou em direção à orla.
Burt notou que uma vez tinha visto os Dolphins jogarem um amistoso
com os Chicago Bears, e que Walter Payton tinha feito Viceroy Wilson
parecer um velhote estropiado.
“Isso foi em 75”, acrescentou o shriner.
“Naquela época os joelhos dele estavam meio chumbados”, disse Keyes
sem muito entusiasmo.
Ele não estava muito a fim de defender nenhum patife que tivesse lhe
dado uma cacetada num lugar como o Pauly’s. Em todos os seus anos como
repórter, nunca tinha sido espancado. Nenhuma vez. Ele tinha sido
perseguido, apedrejado e ameaçado de diversas maneiras, mas jamais
esmurrado de fato. Um murro era uma coisa pessoal demais.
“Você devia dar queixa”, sugeriu Nell.
Keyes sentiu-se um pateta. Lá estava aquela mulher valente procurando
seu marido desaparecido, no meio da noite, em regiões esquecidas por
Deus, enquanto Keyes simplesmente cambaleava junto, sentindo pena de si
mesmo por causa de um calombo horroroso na nuca.
Ele perguntou sobre Theodore a Nell Bellamy. Ela se aprumou e contou,
pela décima sexta vez, tudo sobre a convenção, as águas-vivas venenosas,
os salva-vidas pouco ortodoxos e aquilo que, segundo os tiras, devia ter
acontecido a seu marido.
“Mas nós não acreditamos neles”, disse Burt. “O Teddy não se afogou.”
“Por que não?”
“Onde foi parar o corpo?”, disse Burt, apontando um braço gordo em
direção ao oceano. “Já faz dias que está soprando vento do Leste. O corpo
já devia ter vindo à tona e estar flutuando.”
Nell sentou-se numa mureta na borda da praia e cruzou as pernas. Ela
vestia calças azuis e uma modesta blusa de um vermelho, não muito forte.
Mordendo o lábio, ela se pôs a contemplar a espuma das ondas, visível
mesmo numa noite sem luar como aquela.
Os leais shriners, de pé, mudavam de posição desconfortavelmente,
conscientes de sua dor. Tentando distraí-la, Burt disse:
“Mas o que é mesmo que o senhor faz, senhor Keyes?”
Keyes não queria contar. Sabia exatamente o que aconteceria se o
fizesse: teria nas mãos um caso de desaparecimento que não queria pegar
em absoluto.
“Trabalho para uns advogados na cidade”, disse ele de modo ambíguo.
“Faz pesquisa?”, perguntou Nell.
“É, mais ou menos.”
“Você conhece bastante gente? Gente importante, quer dizer. Policiais,
juízes, esse pessoal?”
Lá vamos nós, pensou Keyes. “Alguns”, disse ele. “Mas não muitos.
Acho que não sou o indivíduo mais popular de Dade County.”
Mas isso não a deteve.
“Quanto você cobra dos advogados?”, perguntou Nell em tom de quem
queria fechar negócio.
“Depende. Duzentos e cinquenta, trezentos por dia. É o que a maioria
dos detetives cobra.” Não fazia sentido esconder a coisa por mais tempo. Se
o preço dos honorários não a assustasse, nada o faria.
Nell levantou-se da mureta e espanou refinadamente a parte de trás das
calças. Pedindo licença, levou os shriners para um lado. Keyes observou-os
cochichando na penumbra sob um poste de luz: uma mulher rechonchuda
de feições agradáveis, daquelas que se encontram em bazares beneficentes
de igreja, e, de cada lado, um robusto habitante do Meio-Oeste, cada um
usando um barrete púrpura. Nell parecia dominar a conversa.
Keyes sentia dores em todo o corpo, mas o pior era a cabeça. Deu uma
conferida no bolso da calça; milagrosamente, sua carteira ainda estava lá. A
simples ideia de caminhar quatro quilômetros de volta até o MG o deixava
exausto.
Algum tempo depois, Nell se aproximou novamente. Estava segurando
um pedaço de papel dobrado.
“Você aceita casos particulares?”
“Eu lembrei de falar que o meu pagamento não inclui as despesas?”
Nell nem vacilou.
“Você está disponível para pegar um caso particular?”
“Mas, senhora Bellamy, a senhora nem me conhece direito...”
“Por favor, senhor Keyes. Eu não conheço ninguém aqui, mas gostei de
você e acho que posso confiar em você. Meus instintos não costumam
falhar. E o mais importante é que eu preciso de alguém que tenha...”
“Colhões”, acudiu Burt prestimosamente.
“Você marchou para dentro daquela taverna horrorosa como um
soldado”, disse Nell. “Precisamos de alguém como você.”
A única coisa decente a fazer era dizer não. Keyes não podia pegar o
dinheiro daquela mulher simpática e alimentar suas falsas esperanças até
que o pobre Teddy finalmente surgisse inchado na praia. Poderia levar
semanas, dependendo das marés e do vento. Seria uma rapinagem, e Keyes
não podia fazer isso.
“Lamento, mas não tenho como ajudar.”
“Eu sei o que você está pensando, mas tem uma coisa aqui que talvez
faça você mudar de ideia.” Nell passou para ele o papel dobrado. “Alguém
deixou isso na minha caixa de cartas lá no hotel”, explicou ela, “na mesma
manhã em que meu marido desapareceu.”
“Leia”, disse o shriner chamado James, quebrando seu silêncio.
Keyes foi para perto do poste de luz e desdobrou a carta. Tinha sido
cuidadosamente datilografada, em espaço três. Keyes a leu duas vezes.
Ainda assim, não conseguia acreditar no que ela dizia:

Cara Senhora Turista:


Bem-vinda à Revolução. Lamentamos muito por perturbar suas
férias, mas tivemos que usar seu marido como exemplo. Volte para o
Norte e vá contar aos amigos o perigo que é andar em Miami.
El Fuego,
Comandante, Las Noches de Diciembre
7

Brian Keyes enviou um xerox da nova carta de El Fuego à Homicídios


na manhã seguinte. Em seguida, foi a seu escritório alimentar os peixinhos
e dar uma olhada nos recados telefônicos. Os shriners tinham ligado do
necrotério para relatar que o inventário dos cadáveres daquela noite em
Dade County não incluía ninguém cuja descrição batesse com a de
Theodore Bellamy. Havia outro recado de ligue-para-mim de Mitch Klein, o
advogado de defesa. Keyes decidiu não retornar a ligação até que soubesse
mais a respeito da carta.
Ao meio-dia, Keyes voltou ao quartel da polícia.
“Vamos comer”, disse Al García, pegando Keyes pelo braço.
García não achava uma boa ideia ser visto no escritório junto com um
detetive particular. Eles foram almoçar no Dodge de García, que não tinha
insígnias da polícia. Sintonizado na estação WQBA, o rádio do carro berrava
sons em espanhol. García desviava-se displicentemente dos motoristas
ensandecidos da Seventh Street, no coração de Little Havana, quando, por
fim, jogou fora a bituca do cigarro e mencionou a carta.
“Era a mesma máquina de escrever da primeira carta”, disse ele.
Keyes não se surpreendeu com isso.
“A polícia está achando que é falsa”, acrescentou García sem muita
convicção.
“E você está achando o quê, Al?”
“Eu acho que é maluca demais para ser falsa. Eu fico pensando, aqui
comigo, como é que esse Fuego ficou sabendo tão depressa do caso
Bellamy? Quase antes da polícia! E fico pensando também? qual é a ligação
desse cara, Bellamy, com o Harper? Eles nem se conheciam e, assim
mesmo, os dois morrem e aparece uma carta dessas para cada um deles. É
muito estranho.”
“Então, você está disposto a soltar o Cabal?”
García deu uma boa risada, inclinando-se sobre o volante.
“Você ainda me mata de rir, Brian.”
“Mas o Ernesto não matou o Harper, e, pelo amor de Deus, não venha
me dizer que ele despachou esse shriner bêbado.”
“Como é que você sabe?”
“Porque”, disse Keyes, “o cara é arrombador de carro, não é psicopata.”
“Sabe o que eu estou achando, cara? Eu acho que o Ernesto é El
Fuego.”
“Sai dessa, Al.”
“Deixa eu terminar meu raciocínio.” García entrou com o Dodge num
shopping center e estacionou perto de um café cubano. Abaixou o vidro da
janela e acendeu outro cigarro. “Eu acho que esse seu cliente sacana é o
Fuego, mas também estou achando que ele não imaginou o esquema todo
sozinho. Concordo com você, o Ernesto não é nenhum mestre do crime, ele
é só um ladrãozinho pé de chinelo, e nem é muito bom nisso. Essa coisa
toda está me cheirando a um puta esquema de extorsão, e o nosso
camaradinha Ernesto não tem cérebro nem para extorquir uma chupetinha
de uma puta sem pernas. Portanto, ele trabalhou com alguém. Quem?, é o
que você perguntaria. Eu não sei assim com certeza, mas aposto que é esse
misterioso crioulão sobre-humano de quem o Ernesto fica falando...”
Keyes relatou seu encontro com Viceroy Wilson no Pauly’s Bar.
“Você bem que merecia uma bifa no meio da orelha por mostrar essa
carinha de anjo naquele covil”, disse García. “Você quer dar queixa do filho
da puta?”
“Só quero que encontre o cara, Al.”
“Sim, senhor, senhor contribuinte, vou atrás dele.”
“Isto aqui pode ajudar.” Keyes passou para García uma nota rabiscada
que dizia GATOR 2. “Essa é a chapa do Cadillac que o Wilson estava
dirigindo.”
“Ei, você trabalha direitinho. Isso vai ser fácil”, disse García. “Vamos
lá, vamos comer um sanduíche e tomar um café.”
Os dois pediram sanduíche cubano apimentado e comeram no carro,
sobre guardanapos de papel esticados no colo.
“Al”, disse Keyes saboreando o sanduíche, “o que é que você acha do
nome desse grupo? Las Noches de Diciembre — o Noites de Dezembro,
não é isso?”
García deu de ombros.
“Geralmente, os grupos cubanos se dão um nome em homenagem a
algum dia muito memorável na história deles, mas a única coisa que eu sei
que aconteceu em dezembro é que Fidel Castro assumiu o poder, e isso eles
não iam comemorar. Mas, é claro, existe outra possibilidade.”
“E qual seria?”
García fez uma pausa para outra mordida gigantesca. De algum modo,
mesmo com a boca abarrotada, ele ainda era capaz de falar.
“Eles têm alguma coisa planejada para este dezembro. Por estes dias. E
se isso que aconteceu até agora serve de amostra”, ele lançou um olhar para
Keyes, “vai ser foda.”

Daniel “Viceroy” Wilson media um metro e noventa de altura, e pesava


cento e quinze quilos. Geralmente usava o cabelo bem curto, num penteado
afro, ou às vezes trançado, mas sempre mantinha uma barba áspera para
parecer quase tão mau quanto realmente era.
Uma das coisas que Wilson mais desejava naquela tarde, quando estava
de tocaia no estacionamento do mundialmente famoso Seaquarium de
Miami, era que pudesse se tornar dono do belo Cadillac que estava
dirigindo. Não parecia correto que aquela belezinha pertencesse ao índio,
que não a apreciava, que nem mesmo usava o tape deck. Uma vez, Wilson
tinha deixado uma fita de Herbie Hancock no banco da frente, e ó índio a
jogara pela janela na rodovia I-95, junto com uma porção de embalagens de
Juicy Fruit e cartelas de bingo. Naquele momento, Wilson contemplara a
possibilidade de matar o índio, mas, como se tratava de um semínole, era
preciso ser cuidadoso. Havia um monte de feitiçaria braba a ser
considerada: penas de águia, glândulas sexuais de pantera, e assim por
diante. Wilson tinha muito mais medo de magia índia do que de cadeia,
portanto deixou o episódio da fita de Herbie Hancock passar em brancas
nuvens. Além disso, pela primeira vez em muitos anos, Wilson tinha
alguma meta a ser alcançada. Ele não queria foder a coisa toda só por causa
do índio.
Mesmo assim, ele adoraria ser dono do Cadillac.
A vida não tinha sido generosa com Viceroy Wilson desde que ele fora
cortado da equipe do Miami Dolphins durante a pré-temporada de 1978, um
mês antes que o seu próprio Cadillac Seville lhe fosse confiscado. Desde
então, Wilson passara por três casamentos, duas falências humilhantes,
dependência de heroína, e um tiro quase fatal. Mesmo com tudo isso, de
algum modo ele conseguira manter seu físico formidável em forma, a ponto
de ainda impor silêncio num restaurante lotado pelo simples fato de entrar
nele. O rosto um tanto chumbado de Wilson o fazia lembrar a todo instante
dos seus trinta e seis anos, embora seu corpo tivesse se mantido
praticamente inalterado desde os dias de glória como estrela do ataque:
musculatura rígida e bem definida; um par de quadris de adolescente; e uma
caixa torácica perfeita e enorme. A força de Wilson vinha da parte superior
de seu corpo, sempre fora assim; os ombros tinham sido suas melhores
armas dentro da linha dos dezoito metros.
Por princípio, Wilson não costumava sair por aí destroçando estranhos
dentro de tavernas imundas. Ele acreditava na eterna discrição. Não sentia
falta do vestiário do Orange Bowl,[2] e muito menos da algazarra da
distribuição de autógrafos. Uma caixa de cerveja Colt 45 foi a única razão
que o levou a assinar aquela bola do Pauly’s Bar. Normalmente, Viceroy
Wilson acreditava que quanto menos fosse reconhecido em público melhor.
Em parte, essa postura era uma preferência pessoal (autógrafos eram uma
lembrança amarga dos anos do Super Bowl),[3] e em parte era um ajuste
necessário para que se pudesse tocar uma carreira bem-sucedida no mundo
do crime.
Quanto ao motivo exato pelo qual espancara o branco magrelo no
Pauly’s, Wilson não estava bem certo. Alguma coisa — instinto de rua,
talvez — dissera a ele para não deixar o sujeito dar uma boa olhada em sua
cara. Alguma coisa na parte de trás daquela cabeça cheirava a problema:
cabelos castanhos grossos, brilhantes, lisos, cortados à navalha, penteados
cuidadosamente ao redor do colarinho. Sim, era aquilo. Os tiras tinham
corte de cabelo parecido com aquele. Wilson estava certo de que aquele
homem não era um tira, o que o tornava ainda mais babaca e inútil. Quem
mais teria um corte de cabelo como aquele? Só de pensar nisso, Viceroy
Wilson ficava aborrecido, e ele estava feliz por ter nocauteado o cara e
posto fim à sua curiosidade. O momento não era propício para ter um
estranho de cabelo bem penteado nos seus calcanhares fazendo perguntas de
tira.
Viceroy Wilson não se via como um criminoso comum. Desde que
deixara a NFL (depois de oito temporadas de arrebentar os ossos, setenta e
três gols e sete mil, duzentos e doze metros), Wilson se tornara um
anarquista convicto. Chegara à conclusão de que qualquer tipo de crime era
perfeitamente aceitável se fosse cometido contra gente rica, embora o termo
rico fosse sabidamente subjetivo e variasse de uma noite para outra.
O próprio Wilson já não era rico, tendo sido meticulosamente aliviado
de suas posses por agentes esportivos, cirurgiões ortopédicos, ex-esposas,
ex-advogados, contadores, companhias hipotecárias, corretores
inescrupulosos e um variado grupo de malandros que abrangiam a faixa que
ia de Coconut Grove até Liberty City. Com tal mudança em seu destino
econômico, Wilson fora obrigado a abandonar a heroína, acabando por se
dedicar à leitura em suas horas livres. Passava horas e horas na antiga
biblioteca pública de Bayfront Park, no meio de bêbados fedorentos e
velhinhas, e foi ali que Wilson decidiu que a América era uma merda,
especialmente a América branca. Foi ali que Viceroy Wilson decidiu tornar-
se um radical.
Muito rapidamente, ele sacou duas coisas: primeiro, que estava pelo
menos dez anos atrasado para ingressar em qualquer movimento radical do
país, e, segundo, que não havia, no Sul da Flórida, nenhum movimento
radical cujos membros falassem inglês.
Portanto, durante anos, Viceroy Wilson, silenciosamente, assaltou
apartamentos, vendeu drogas e arrombou carros, sempre nutrindo
românticas esperanças de um dia infligir um golpe realmente sério no
establishment dos brancos, que havia fodido com seu joelho e arruinado sua
vida. Wilson continuava orgulhoso por nunca ter roubado uma loja de
bebidas ou puxado um carro com mais de oito anos de uso, ou roubado uma
bolsa abarrotada de vales-refeição. Politicamente, ele era cuidadoso na
seleção de suas vítimas.
Então surgiu El Fuego, e Viceroy Wilson sentiu-se redimido.
Na verdade, ele nem sequer sabia o que o nome El Fuego significava
realmente, mas era certo que a palavra soava de forma terrível, e, desde que
não fosse traduzível por algo como “O Peido”, Wilson podia conviver com
ela. O nome era deles todos, de qualquer forma. Eram um time. Muito mais
do que a porra do Dolphins jamais fora.
O relógio digital do Cadillac marcava quatro e meia, e o último show de
golfinhos tinha terminado no Seaquarium. Os turistas estavam começando a
se espalhar, numa inundação de cores pavorosas.
Viceroy Wilson ajustou seus óculos de sol Carrera, acendeu um
baseado, ligou o ar condicionado e se ocultou atrás dos vidros azulados do
Cadillac. Ele se imaginava como uma presença invisível, fatal. Aquilo era
divertido. Ele gostava do trabalho sujo. “Trinta e um Z-direita”, era como
chamava a coisa. Esta tinha sido sua camisa no Dolphins: número 31. E
“Trinta e um Z-direita” significava cabeça-baixa-pela-ala-direita, uma
bomba arrasa-quarteirão com a bola. Cinco, seis, sete metros duramente
conquistados de cada vez. Viceroy Wilson amara isso, com todo o seu
coração.
“Pegue uma bem pálida.” Estas foram as ordens que recebera para
aquele dia. “Pálida e bonita.” Agora, que porra isto significava? Afinal,
pálido era pálido.
Wilson estudava os turistas enquanto passavam vasculhando o
estacionamento atrás de seus preciosos carros alugados. O chefe estava
certo: aquela era uma manada muito generosa. Num piscar de olhos Wilson
selecionou uma ruiva alta de pele macia, com montes de sardas cor de
canela. Os cabelos dela eram grossos e armados para cima numa
permanente; usava um modelito frente-única vermelho-escuro sobre um
short de jogging de seda azul. Minneapolis, pensou Wilson, talvez Quebec.
Uma legítima estrangeira. O melhor de tudo era que seu marido, ou
namorado, ou a porra que fosse, tinha menos de um metro e sessenta de
altura, e uns cinquenta quilos, no máximo. Ele estava lá protegendo seus
olhos do sol da tarde, franzindo a cara toda como um idiota enquanto
procurava pelo Granada castanho ou qualquer que fosse o carro que
estivesse dirigindo.
Viceroy Wilson livrou-se do baseado e saiu do Cadillac. Aquele rosnado
velho e familiar estava palpitando em sua garganta.
“Trinta e um Z-direita!”

Brian Keyes sentia-se incomodado sempre que se aventurava a voltar à


redação. De certo modo, sentia falta daquele caos e da camaradagem
adrenalizante; afinal de contas, o que o aguardava? Vivia só, naquele seu
escritório minúsculo cheio de bagres comedores de algas.
Sempre que Keyes revisitava o Sun, os velhos colegas o rodeavam,
davam-lhe tapinhas amigos, informavam das últimas atrocidades cometidas
contra a verdade e a justiça, e se ofereciam para um drinque no bar da
esquina. Keyes lhes era grato pelo comportamento amigável, mas aquilo
tudo o fazia sentir-se esquisito. Ele era como um estranho agora, não mais
comprometido com a Informação Séria, a moeda corrente do jornalismo das
metrópoles. Apesar disso, ficava feliz quando eles acenavam
cumprimentando-o.
Desta vez, Ricky Bloodworth foi o primeiro a cercá-lo.
“Fale alguma coisa sobre o Ernesto Cabal”, disse ele, quase perdendo o
fôlego. “Estou fazendo uma matéria especial de fim de semana sobre o caso
Harper.”
“Não posso te ajudar, Ricky. Sinto muito, mas ele é meu cliente.”
A voz de Bloodworth descambou para uma choramingação.
“Você agora está falando como um advogado, não como o Brian que eu
costumava ver todo dia.”
Keyes deu de ombros. Bloodworth era perfeitamente chato.
“Ao menos me diz se você acha que ele é culpado. Isto com certeza
você pode fazer, não pode?”
“Acho que ele é inocente”, disse Keyes.
“Certo”, disse Bloodworth com uma piscadela exagerada. “Com
certeza, Brian.” E voltou correndo para a sua mesa.
Keyes calculou que os tiras não haviam mencionado a Bloodworth as
cartas de El Fuego, o que era muito bom. Bloodworth teria fundido os
miolos com a coisa, e a cidade inteira estaria fazendo o mesmo. Nada como
um pequeno pânico para foder com uma investigação.
Cab Mulcahy estava esperando em seu escritório. Terno cor de ardósia,
camisa branca brilhante, gravata azul-marinho. O mesmo aperto de mão
civilizado, o mesmo sorriso marcado por incontáveis rugas. E lá estava a
cafeteira soltando vapor no canto da mesa. No mesmo lugar em que estava
na noite em que Brian Keyes entrou na sala para pedir demissão.
“Ótimo que tenha vindo tão rápido. Você se importa se eu fechar a
porta?”
“Claro que não, Cab.”
Keyes se surpreendera ao receber o recado através do bip; ficou
pensando nele durante toda a tarde. Uma nova oferta de trabalho — isto era
tudo o que ele podia imaginar. Mas por que razão o Sun iria querê-lo de
volta? O lugar estava transbordando de talentos, uma rapaziada realmente
batalhadora.
“Cab, você vai me pedir para voltar a trabalhar aqui?”
Mulcahy sorriu, gentil, e mudou levemente de posição na cadeira.
“Para ser honesto, Brian, não tinha pensado nisso. Mas, se você está
interessado, tenho certeza de que podemos...”
“Não. Não estou.” Keyes se perguntou por que não se sentia mais
aliviado com essa resposta. “Eu só estava curioso.”
“Eu chamei você”, disse Mulcahy, “porque quero seus serviços como
detetive particular. Temos um caso muito delicado. Você é o único que pode
lidar com ele.”
Keyes era muito versado nas técnicas rudimentares de retórica-
baboseira que o Sun ensinava a todos os seus principais editores. A frase
“Você é o único que pode fazê-lo” geralmente podia ser traduzida por
“Ninguém mais faria isso”. Mas, desta vez, Mulcahy não parecia estar
empurrando nenhuma tarefa desagradável. Ele parecia estar sinceramente
aborrecido.
“Brian, Skip Wiley desapareceu.”
Keyes não moveu um músculo. Simplesmente olhou para Mulcahy; um
olhar de desapontamento, para não dizer de quem se sentia traído. Cab
Mulcahy já sabia que isso podia acontecer. Ele receava isso, mas não havia
outro caminho.
“Sinto muito, Brian, nunca teria pedido se nós não estivéssemos
desesperados.”
“Desapareceu?”
“Sumiu. Encontraram o carro dele ontem, no meio da rodovia I-95. Não
deu as caras em casa na noite passada.”
Casa. Keyes ironizou para si mesmo: Vamos lá, Cab, pode falar, eu não
vou me debulhar em lágrimas. Wiley não apareceu na casa de Jenna na
noite passada. Minha nossa, o velho era engraçado às vezes, pensou Keyes.
Tentando me poupar de um pouco de dor. Fazia dois anos que Jenna o
jogara fora por causa de Wiley — com tanta gente, justamente Wiley. Por
que não podia ter sido um artista, um músico de concerto ou algum poeta
anoréxico do Grove? Qualquer um, menos Skip Wiley — e justamente na
pior parte da amarga história de Callie Davenport. Que casal: Jenna, que
adorava Godunov e Bergman; e Wiley, que uma vez lançara uma campanha
em prol de um Oscar para Marilyn Chambers.
“Você chamou os tiras?”, perguntou Keyes.
Mulcahy negou com a cabeça e pegou um café.
“Decidimos não chamar. Estou quase cem por cento seguro de que não
se trata de um crime.” Ele contou a Keyes sobre o comportamento
excêntrico de Wiley, e sobre sua visita ao psiquiatra no dia anterior.
“Então, você acha que ele está se escondendo?”
“Acho que sim. E o doutor Courtney também.”
A opinião do dr. Remond Courtney não importava muito para Keyes,
que tinha noção do escasso talento do médico. Durante as consequências do
terrível desastre do 727, quando Keyes estava sendo cutucado por pernas e
braços imaginários, o dr. Courtney o aconselhara, como método terapêutico,
a arranjar um emprego como controlador de tráfego aéreo.
“Esqueça esse psiquiatra imbecil”, disse Keyes. “E Jenna, o que ela
acha?”
“Ela está bastante preocupada”, disse Mulcahy. “Acha que o Skip pode
fazer alguma loucura.”
“Isso seria uma surpresa para você, Cab? Wiley pode ser talentoso,
prolífico, durão e tudo isso que vocês endeusam, mas ele também tem titica
de galinha na cabeça. Ele pode estar em qualquer lugar. Las Vegas, Nassau,
Juarez, quem sabe? Por que você não espera mais uns dias? Ele vai se sentir
tão infeliz por não ver suas linhas no jornal que voltará correndo com um
monte de colunas fresquinhas.”
“Acho que não”, disse Mulcahy. “Eu espero que você tenha razão, mas,
na verdade, não acredito nisso. Preciso dele de volta, aqui, agora mesmo —
bem aqui, onde nós podemos ficar de olho nele.”
Então é isso, pensou Keyes. Mulcahy estava mais preocupado com os
problemas que um homem como Wiley poderia causar do que com o seu
bem-estar. Wiley representava um problema de relações públicas explosivo
para o Miami Sun; nenhum jornal poderia arcar com as consequências de ter
seu maior colunista transformado em personagem tão caricatural quanto um
franco-atirador em um pátio de escola.
E, no caso de Skip Wiley, outro fator contava ainda mais: ele tinha um
enorme público leitor. Se a sua coluna não aparecesse por mais alguns dias,
muitos leitores parariam de comprar o Sun. Se esses dias se transformassem
em semanas, o caso com certeza entraria na próxima pesquisa da ABC. E, se
isso acontecesse, Cab Mulcahy teria que prestar contas às mais altas
autoridades possíveis; bom jornalismo é bacana, mas a circulação é sagrada.
Não era de admirar que Mulcahy estivesse nervoso.
“Você conhece o Skip mais do que qualquer um de nós aqui dentro”,
disse Mulcahy. “Você ficou três anos sentado ao lado dele nesta redação.
Você é capaz de reconhecer o estado de humor dele, saber como ele pensa,
saber se ele pensa...”
“Eu não vejo o Skip desde que saí do jornal.”
Mulcahy se inclinou para a frente.
“Ele não mudou muito nesse tempo, Brian. Bem, é verdade, o
comportamento dele está um pouco mais extremado, e seus textos estão
muito mais irresponsáveis, mas ainda é o mesmo Skip Wiley.”
“Cab, você está falando com a pessoa menos adequada possível. Você
deveria saber que eu não posso pegar este caso. Não estou preparado para
lidar com ele.” Keyes levantou-se para sair. “Por que, Cab? Por que você
faria uma coisa dessas comigo?”
“Porque a Jenna pediu você.”
Keyes sentou-se bruscamente. Seu coração, agora, batia num ritmo
agradável. Tudo o que podia pensar era: Cab, é melhor que você não esteja
mentindo.
“Eu falei para ela que não achava isso justo”, disse Mulcahy com um
suspiro. “Mas ela está muito preocupada com ele. Ela disse que eu estaria
prestando um grande favor se pedisse para você dar uma avaliada na
situação, em vez de um estranho qualquer.”
Keyes sabia que de nada adiantaria ficar se precavendo contra os riscos
do assunto “Jenna”, e não fazia o menor sentido agir como se fosse sair
valsando do escritório de Mulcahy e esquecer aquela coisa toda. O velho
tinha razão: não era justo.
Mulcahy foi cuidadoso em não ir muito longe em relação a Jenna.
“Por favor, Brian, tente encontrar o Wiley. Vamos pagar quinhentos
dólares por dia, mais as despesas.”
“Nossa. Vocês estão preocupados mesmo com o que ele pode fazer.”
Mulcahy concordou, desalentado.
“Ele tem um temperamento terrível, como você sabe muito bem.
Durante os últimos meses, foi muito preocupante ver o que ele fazia, para
dizer o mínimo. Eu tenho certeza de que você leu aquela coluna horrorosa
sobre o furacão, ou alguma das outras. ‘Ratos do tamanho de buldogues
invadem condomínios.’ ‘Cobras infestam banheiros em hotel de luxo.’
‘Doença misteriosa arrasa Torneio de Marelas.’ Wiley era muito esperto ao
escrever. Um dia fazia uma coluna positiva, do tipo Bom Samaritano,
depois uma matéria divertida sobre um homem na rua, depois uma coisa
comovente sobre algum menininho com câncer... e de repente ele
introduzia, na maior moita, uma dessas joias. Ele ficou obcecado por essas
coisas. Ele ficou... perverso.” O editor baixou a voz. “Acho que esse
desaparecimento dele faz parte de algum plano. Acho que ele quer causar
dificuldades para o jornal, de alguma forma impensável.”
“Você não acha que ele está fazendo esse joguinho só para conseguir um
aumento?”
Mulcahy balançou a cabeça firmemente.
“E que tal pensar na possibilidade de alguma coisa ter acontecido de
verdade? Talvez o Skip tenha sido raptado.”
“Talvez isso seja exatamente o que ele quer que a gente pense”, disse
Mulcahy, “mas eu não entro nessa, Brian. Não. Se eu conheço o Wiley, ele
está por aí”, Mulcahy apontou na direção da janela com sua mão
impecavelmente tratada, “esperando e se divertindo à larga com esta
situação. E eu quero que ele seja encontrado.”
“Suponhamos que eu encontre o Skip”, disse Keyes.
“Ligue para mim imediatamente. Não precisa fazer mais nada. Eu não
quero que você brigue com ele, eu nunca pediria uma coisa dessas.
Encontre o Skip e me conte onde ele está, e aí pode deixar o resto com a
gente.”
“A gente é você e Jenna?”
“Ele ouve o que ela diz”, disse Mulcahy em tom de desculpas.
“Ele venera a Jenna”, disse Keyes. “Não é a mesma coisa.”
“Você aceita o caso?”
Keyes não respondeu imediatamente, mas sabia o que ia dizer. É claro
que ele aceitaria o caso. Em parte pelo dinheiro, em parte por Jenna, e uma
terceira razão era o brilhante filho da puta Wiley. Há muito tempo atrás
aquilo seria uma simples brincadeira, seguir os rastros de um velho
camarada perdido numa farra. Mas isso era antes de Jenna. Brincadeira,
agora, estava fora de cogitação.
Keyes disse a si mesmo: Isto vai ser um teste, e pronto. Para ver se a
ferida realmente cicatrizou.
“Vamos esperar mais algum tempo, Cab, um dia, que seja. Enquanto
isso, por que você não publica uma coluna do Ricky Bloodworth no espaço
do Wiley amanhã? Publique a foto do garoto também. Se isso não fizer o
Wiley mostrar as caras, então talvez você tenha razão. Talvez seja algo mais
sério desta vez.”
“Brian, quanto ao Bloodworth, eu não sei se...”
“O que eu sei é que ele está babando por uma chance. Portanto,
publique uma das obras-primas dele. E, se isso não trouxer o Wiley
espumando amanhã de manhã na redação, eu aceito o caso.”
“Bem, de acordo. E você começa já na primeira hora de amanhã.”
“Vamos ver”, disse Keyes. “Você pode não acreditar, Cab, mas tenho
outros clientes com problemas bem piores que os seus.”
“O que poderia ser pior do que um maníaco como o Wiley?”
“Para começar, tenho uma senhora muito simpática cujo marido
desapareceu na praia, em plena luz do dia, e tenho também um cubano não
tão simpático assim na cadeia municipal, respondendo por assassinato em
primeiro grau.”
“Não tem mais.” Era o próprio Bloodworth enfiando sua cara de roedor
por uma pequena abertura na porta.
“Esta é uma conversa particular!”, latiu Mulcahy.
“Espere um pouco. Ricky, o que foi?”
“Achei que você devia saber, Brian. Acabei de ligar para a polícia.”
Bloodworth acenou com um bloco de anotações. “Ernesto Cabal se matou
há mais ou menos uma hora.”
8

Viceroy Wilson entrou no quarto usando cuecas vermelhas


apertadíssimas e nada mais. Essa imagem teria provocado gritos de alegria
ou de horror na maioria das mulheres, mas Renée LeVoux ficou muda.
Viceroy Wilson tinha enfiado uma toalha em sua boca antes de amarrá-la na
cama na noite anterior.
Renée estava estupefata e com medo. Não sabia quem era aquele cara,
ou onde ela estava, ou muito menos o que estava prestes a acontecer. Tinha
apenas uma certeza: suas férias estavam arruinadas.
No estacionamento do Seaquarium de Miami, ela mal pudera ver o
espectro negro que a jogara para dentro do carro e prometera matá-la se ela
desse um gritinho que fosse ou mesmo se apenas movesse os lábios.
O porta-malas do carro era desconfortável e bagunçado, mas tinha
cheiro de carro novo, o que Renée pensou ser um bom sinal. Ela fechou os
olhos e tentou não chorar muito alto. Tudo o que conseguia ouvir era
Wilson Pickett cantando “Wait till the midnight hour”, que o toca-fitas de
seu raptor não parava de tocar no último volume.
Embora tenha parecido uma eternidade, Renée LeVoux, na verdade,
passou apenas vinte e sete minutos no porta-malas do Cadillac. Viceroy
Wilson foi direto do estacionamento do Seaquarium para um motel barato
na Tamiami Trail. Lá, abriu o porta-malas e carregou Renée num ombro,
como se ela fosse um saco de batatas.
No quarto, ele removeu silenciosamente o seu colete e os shorts,
amordaçou-a e a amarrou na cama. Wilson percebeu que ela estava
tremendo. Por isso, cobriu parte do seu corpo com um cobertor fino,
colocado transversalmente, como se fosse um cavalo.
Renée dormiu com um olho aberto e outro fechado, debatendo-se com
as cordas, certa de que seria acordada a qualquer momento para ser
estuprada pelo maior negrão que ela já vira.
Mas nada aconteceu. Fora o fato de ficar a toda hora checando os nós
nos pulsos e nos tornozelos dela, Viceroy Wilson não prestou praticamente
nenhuma atenção em sua bela cativa. Em vez disso, assistiu Mary Tyler
Moore na televisão, folheou o New Republic e fez cem flexões, no bom
estilo do exército.
Na manhã seguinte, quando Renée ouviu Wilson no chuveiro, começou
a chorar novamente. Viceroy Wilson colocou sua cabeça gigantesca para
fora do banheiro lançando-lhe um olhar furioso. Depois, colocou um dedo
nos lábios. Renée obedeceu, intimidada, e permaneceu quieta.
Viceroy Wilson não tinha nenhum interesse em garotas brancas pálidas
de cabelo cor de morango. No seu tempo de NFL, conhecera uma variedade
assustadora de mulheres, com uma variedade de apetites sexuais igualmente
assustadora. A coisa, no final, ficou chata, além de perigosa. Quando
Wilson detonou seu joelho direito de novo, antes do jogo final com os
Pittsburgh Steelers, em 1977, o Miami Dolphins distribuiu uma declaração
à imprensa dizendo que a contusão acontecera num choque durante um
treino — quando, na verdade, o joelho de Wilson tinha sofrido uma luxação
em uma cama de água, debaixo de duas ágeis irmãs que trabalhavam numa
fundição no Allegheny.
Mais tarde, quando se tornou um revolucionário, Viceroy Wilson fez
voto de não misturar sexo e sedição. Queria ser lembrado como um
terrorista extremamente profissional.
Não atribuía nenhum simbolismo especial às cuecas vermelhas.
“O que está olhando?”, perguntou a Renée LeVoux enquanto se
enxugava.
Na cama, sua prisioneira apenas arregalava os olhos, petrificada.
Momentos depois, uma chave girou na fechadura e outro homem entrou
no quarto do motel. Viceroy Wilson o cumprimentou com um ronco e um
movimento de cabeça. Renée ficou espantada com a diferença entre as duas
figuras e achou estranho que pudessem ser parceiros. O companheiro de
Wilson era um homem magro mas forte, de aparência latina, que falava de
modo sibilante e se movia como um gato pelo quarto. Levantando sua nuca
da cama, Renée pôde ver os dois parlamentando na minúscula cozinha.
Logo sentiu cheiro de café e bacon, e seu estômago começou a fazer ruídos.
Viceroy Wilson se aproximou da cama e retirou a mordaça de sua boca.
“Se você gritar, está morta.”
“Não grito, prometo.”
“Seu nome é Renée?”
Ela balançou a cabeça afirmativamente; era óbvio que eles já tinham
fuçado na sua bolsa.
“Podem pegar todo o dinheiro”, ofereceu ela.
“Não queremos o seu dinheiro.” Viceroy Wilson meteu uma das mãos
atrás da cabeça dela, erguendo-a suavemente do travesseiro; com a outra
mão, levou uma caneca de café aos lábios de Renée. Ela sorveu o líquido
temerosamente.
“Obrigada.”
“Como se chama o seu namorado?”
Wilson colocou a caneca de café no chão. Renée LeVoux notou que ele
segurava um lápis e um pedaço de papel.
“Por que você quer saber?”, perguntou ela.
“Vamos escrever uma carta para ele, contando que você está bem.”
“Ah, não!”
“Ah, sim.”
Agora, havia duas faces apontadas para ela, uma negra e indiferente, a
outra magra e feroz. O homem magro estava se divertindo. Puxou o lençol e
viu que Renée estava só de calcinha.
“Não me machuque!”, suplicou Renée.
O magrelo empunhava uma faca reluzente.
“Por favor, não”, gritou ela.
O crioulo agarrou ferozmente o magrelo pelo pulso e torceu seu braço.
O magrelo gemeu e a faca caiu sobre a cama.
“Olha aqui, meu chapa, nunca mais tente fazer uma merda dessas”,
disse Viceroy Wilson. Depois, pensou com seus botões: Este é o problema
quando se trabalha com cubanos lunáticos. Eles não conseguem ficar cinco
minutos sem sacar um revólver ou uma navalha. Eles não conseguem evitar
— deve ser algo congênito, está em suas moléculas de DNA.
“Renée, meu nome é Wilson, e este cara aqui é o senhor Bernal.”
“Olá, como vão?”, disse Renée.
Wilson suspirou.
“Precisamos do nome do seu namorado, e precisamos disso agora.”
“Não vou dizer, não quero que vocês o machuquem.”
“Menina, nós não queremos machucar o cara. Queremos que ele fique
sabendo o que aconteceu com você.”
Intrigada, ela perguntou:
“Mas o que aconteceu comigo?”
“Você foi sequestrada por um grupo de radicais muito perigosos.”
“Meu Deus, mas eu não sou ninguém.”
“Isso é verdade”, disse Jesús Bernal, pescando sua navalha da cama.
“Por que eu? Eu sou só uma turista.”
“Você gostou do show dos golfinhos?”, perguntou Bernal.
Renée balançou apreensivamente a cabeça.
“Sim, gostei muito. E também da baleia treinada.”
“Shamu”, disse Bernal. “É esse o nome da baleia.”
Esse cara é insuportável, pensou Wilson. Talvez até valesse a pena
matá-lo um dia desses.
“Você andou no monotrilho?”, continuou gracejando Bernal. Ele sorria
maldosamente.
“Não, David queria ver o fosso dos tubarões.”
“Agora estamos chegando a algum lugar”, murmurou Wilson. “David
de quê?”
“Não vou dizer!”
Wilson colocou uma das mãos ao redor da nuca sardenta de Renée. Era
suave e fria. Ele deu um aperto brusco, como que espremendo uma bola de
tênis; isso foi o bastante.
“David Richaud”, disse Renée, começando a soluçar. “R-i-c-h-a-u-d.”
Viceroy Wilson escreveu o nome cuidadosamente no papel.
“E onde vocês estão hospedados?”
“No Royal Sonesta.”
“Obrigado, Renée, meu docinho”, disse Jesús Bernal, batendo no pé da
cama.
“Cale a boca e datilografe”, disse Wilson, atirando o papel em seu
parceiro.
Bernal se esgueirou para a mesa da cozinha e se sentou em frente a uma
máquina de escrever elétrica portátil.
Viceroy Wilson virou-se para sua vítima e disse:
“Você acredita que aquele cabeça-oca estudou em Dartmouth?”
Jesús Bernal podia ter chegado à Causa com credenciais de expressão,
mas não era lá muito respeitado por Wilson. Bernal uma vez ostentara o
título de ministro da Defesa de um hidrófobo grupo terrorista anti-Fidel
Castro denominado Movimento 7 de Julho. O nome do grupo fazia
referência ao dia em que, em 1972, seus fundadores tinham lançado um
custoso e desafortunado ataque a um barco de guerra cubano ao largo da
ilha de Pinos. Anos mais tarde, surgiu uma séria disputa a respeito do nome
do grupo, com alguns membros afirmando que o ataque na ilha de Pinos
tinha acontecido, na verdade, no dia 6 de julho, e exigindo que o grupo
fosse renomeado. Um acordo foi, por fim, alcançado, e a partir daí o grupo
se tornou conhecido com o nome de Movimento Primeiro Fim de Semana
de Julho.
Ao longo do fim da década de 70, esta organização reivindicou a autoria
de vários ataques a bomba, tiroteios e tentativas de assassinato em Miami e
Nova York. Segundo o índio, Bernal fora nomeado ministro da Defesa
principalmente devido a suas habilidades como datilógrafo com diploma
universitário. Como Viceroy Wilson sabia, uma das funções mais vitais
dentro de qualquer grupo terrorista era a redação das cartas, de modo que
todos soubessem quem eram os autores da violência. As cartas tinham que
ser ominosas, evasivas e caprichosamente datilografadas. Jesús Bernal era
muito eficiente nessa tarefa.
Ele fora recrutado no Las Noches de Diciembre depois de um amargo
arranca-rabo com seus ex-camaradas do Movimento Primeiro Fim de
Semana de Julho. Na verdade, Bernal fora expurgado do grupo, mas nunca
falou sobre os motivos, e Viceroy Wilson fora avisado para não perguntar.
Ele tolerava Bernal, mas não tinha nenhum temor instintivo, ou qualquer
temor que fosse, em relação ao cubano. E já estava ficando com o saco
inacreditavelmente cheio de toda aquela baboseira de navalha de macho.
“Vamos sair logo”, disse Wilson a Renée LeVoux. Enrolou a toalha e
começou a enfiá-la de volta na boca de Renée.
“Espere”, sussurrou ela. “Por que vocês me contaram os nomes de
vocês?”
Wilson deu de ombros.
“Vocês vão me matar, não vão?”
“Não se você souber nadar”, disse Wilson, enfiando a mordaça. “E
nadar rápido.”
Os olhos de Renée se esbugalharam e ela tentou gritar. Quanto mais
tentava, mais vermelha ficava, e o que vinha para fora não passava de um
rosnado felino que preenchia o quarto do motel. Ela se debateu para a frente
e para trás sobre a cama, lutando com as cordas, tentando cuspir a mordaça,
até que Viceroy Wilson finalmente disse: “Merda!” e a nocauteou com um
direto no queixo, deixando-a fria como um barril de gelo.
Enquanto isso, concentrado em frente à Smith-Corona, o homem que
escrevia para El Fuego começou a datilografar:

Prezado Monsieur Richaud:


Seja bem-vindo à Revolução!

Quatro artigos de especial interesse para Brian Keyes apareceram no


Miami Sun de 6 de dezembro.
Um deles era uma longa reportagem de primeira página a respeito do
suicídio de Ernesto Cabal, suposto assassino de B. D. “Sparky” Harper.
Uma hora antes do trágico incidente, Cabal tinha reclamado de dores no
estômago, e fora transportado para a enfermaria, onde bebeu meio litro de
Pepto-Bismol e se declarou curado. Enquanto esteve confinado na clínica,
entretanto, Ernesto, aparentemente, surrupiou um longo rolo de tubulação
intravenosa, que contrabandeou para sua cela. Ninguém prestou atenção
nele durante horas, até que o encontraram gelado e morto na hora do jantar.
Usando o tubo intravenoso como nó corredio, Cabal tinha conseguido se
enforcar, pelado como sempre, pendurando-se numa tubulação de água. O
sargento de plantão notou, em seu depoimento ao Sun, que era muito difícil
fazer um nó corredio realmente bom com uma tubulação de plástico, mas,
de alguma forma, Cabal tinha conseguido fazê-lo. Interrogado a respeito do
motivo por que nenhum dos companheiros do bloco de cela de Cabal deu
qualquer alerta sobre as asneiras do cubano, o sargento explicou que
Ernesto “não era lá muito popular”.
O segundo artigo a chamar a atenção de Keyes (ele estava lendo deitado
num sofá puído próximo ao aquário em seu escritório, onde tinha passado a
noite) foi a coluna de estreia de Ricky Bloodworth. A manchete anunciava:
“Miami dorme melhor com o fim do mistério Harper”. A coluna era um
tributo enojantemente servil ao trabalho brilhante da polícia, que tinha
enfiado Ernesto Cabal na cadeia e o conduzido à morte. “Ele sabia que as
provas eram arrasadoras, e sabia que sua liberdade estava encerrada”,
escreveu Bloodworth, “e então se enforcou. Estava nu, sozinho e culpado.”
Então vinha uma declaração do investigador ruivo, Hal, que dizia que o
caso de Harper estava encerrado, até onde lhe dizia respeito. “Este é um
daqueles raros momentos em que a justiça triunfa”, arrotava Hal.
Keyes notou que não havia nenhuma declaração de Al García. E não
havia nenhuma menção às cartas de El Fuego.
O terceiro artigo de interesse não era muito longo, e não estava disposto
de maneira destacada. A reportagem estava no pé da página 3-B, debaixo de
uma pequena manchete: “Polícia procura mulher desaparecida”. O artigo
relatava que uma tal Renée LeVoux, de vinte e quatro anos, visitante de
Montreal, tinha sido raptada no estacionamento do mundialmente famoso
Seaquarium de Miami, pouco depois das cinco horas da tarde da véspera.
Incrivelmente, não havia testemunhas do crime. O companheiro da srta.
LeVoux, que a polícia se recusou a identificar, tinha sido nocauteado por
um único golpe na parte de trás do pescoço, e nada pôde fazer para evitar o
rapto. Solicitava-se a qualquer pessoa que tivesse informações sobre o
paradeiro da srta. LeVoux que ligasse para um telefone dos Inimigos do
Crime.
Brian Keyes anotou mentalmente que deveria tentar descobrir mais
sobre aquilo.
Finalmente, deu de cara com a única notícia que estivera procurando de
fato. Piedosamente, estava impressa na 5-B, perto dos anúncios de cadeiras
de rodas motorizadas.
O título dizia: “Advogado do Município apunhalado em briga”.
Maravilhoso, pensou Keyes pesarosamente, eles conseguiram enfiar isso no
segundo clichê, depois de tudo. Keyes se perguntou se o Sun tinha feito
uma reportagem exata, e se forçou a ler:

Um advogado do departamento de defesa pública de Dade County foi


atacado na noite de quarta-feira no Royal Palm Club.
Mitchell P. Klein, vinte e seis, estava no bar quando foi
repentinamente atacado por outro frequentador, segundo a polícia. O
atacante agarrou Klein pelos cabelos, rasgou suas roupas e tentou
esganá-lo, de acordo com as testemunhas. Enquanto Klein tentava se
livrar, seu atacante o atirou ao chão e o acertou na língua com um
garfo de salada, segundo a polícia.
O suspeito, descrito como um homem branco bem vestido, com
cerca de trinta anos, escapou antes da chegada da polícia. As
testemunhas disseram que o homem não parecia estar drogado. Klein
foi levado ao Flagler Memorial Hospital, onde foi tratado de ferimentos
leves e liberado no início desta manhã. Devido à cirurgia bucal, ele não
pôde fazer comentários sobre o caso.

Reportagem descuidada, rosnou Keyes, como de costume.


Em primeiro lugar, não tinha sido um garfo de salada, mas um daqueles
talheres de prata brilhantes projetados para coquetéis de camarão e lagosta.
Em segundo, ele e Mitch Klein não estavam no balcão do bar; estavam
sentados numa mesa.
Ainda assim, aquilo tinha sido um gesto destemperado, algo que o
próprio Skip Wiley poderia ter tentado. Keyes se perguntou o que poderia
ter acontecido consigo. Será que estava finalmente perdendo o controle?
Atacar um funcionário do tribunal num nightclub, pelo amor de Deus, e
diante de dezenas de testemunhas. Ainda não conseguia acreditar que tinha
feito aquilo, mas na hora também não conseguia acreditar no que Klein
disse quando eles estavam conversando sobre o suicídio de Ernesto.
“A única razão que te faz ficar chateado”, dissera Klein, “é que o caso
está encerrado, e o teu pagamento também.”
Isso depois de Keyes ter contado tudo sobre as cartas de Fuego, tudo
sobre Viceroy Wilson, tudo sobre a opinião do dr. Joe Allen de que Ernesto
Cabal era o homem errado. Depois de tudo isso — e quatro martínis —,
Mitch Klein ainda tivera a audácia estarrecedora de dizer: “Brian, não
venha me dizer que você estava ligando para aquele montinho de bosta lá
na cadeia”.
Foi naquele momento que Keyes debruçou-se sobre a mesa, agarrou os
cabelos lustrosos de Klein e trespassou habilmente a língua do advogado
com o garfo de coquetel. Nada de esganamento. Nada de destruição de
roupas. Nada de combate no chão. Houve, entretanto, um bocado de sangue
fresco, cuja visão, certamente, contribuiu para os floreios posteriores feitos
pelas testemunhas oculares.
Keyes tinha simplesmente se levantado e deixado Mitch Klein se
debatendo na mesa, o garfo prateado pendendo de sua língua, o sangue se
espalhando sobre as ostras Bienville.
E esse tinha sido o final da história.
Agora, na manhã seguinte, Keyes estava certo de que a polícia ia chegar
a qualquer instante, com um mandado de prisão.
Na verdade, aconteceu de chegar Al García, completamente sozinho.
Ele bateu duas vezes e entrou.
“Minha nossa, que pocilga!”, disse ele olhando em volta.
“É muita gentileza sua, Al.”
García postou-se atentamente diante do tenebroso tanque de peixes.
“Não vá manchar o vidro”, disse Keyes.
“São as criaturinhas mais horrorosas que eu já vi”, disse García.
“São bagres”, disse Keyes. “Eles comem o limo.”
“Bem, acho que não estão lá muito empenhados. Parece que alguém
mijou nesse aquário.”
“Tudo é possível”, murmurou Keyes.
Estava deitado no sofá, com o jornal esparramado sobre o peito. García
apanhou o jornal e apontou para o artigo que falava de Mitch Klein.
“Você fez isso, Brian?”
“Fiquei puto. Klein foi ver o Ernesto ontem e disse que o caso estava
perdido. Disse que ele não tinha a menor chance de sair da encrenca. Disse
a ele para se confessar culpado, senão ia acabar na cadeira elétrica. Ernesto
queria enfrentar as acusações, mas Klein disse a ele para esquecer disso
enquanto ainda era possível. O Ernesto estava ficando doido na cadeia,
todas as bichas estavam perseguindo ele. Ele tinha aquela tatuagem incrível
no pinto, aquela que eu te falei.”
“A cara do Fidel Castro.”
“É”, disse Keyes. “Bom, algum maníaco tentou arrancar fora o pinto
dele com os dentes, uma noite, no chuveiro. Pensou que se arrancasse o pau
do Ernesto estaria matando o verdadeiro Fidel em Havana. Feitiçaria, sabe
como é. De algum jeito Ernesto escapou do cara dessa vez, mas estava
assustado demais. Disse que faria qualquer coisa pra sair da cadeia. Aí
chegou o Klein e disse para ele ir se preparando para 25 anos ou mais de
prisão, e foi assim que o Ernesto escolheu morrer de uma vez.”
“Mas, Brian...”
“Por que aquele babaca do Klein não conversou comigo antes de ir até a
cadeia? O caso não estava perdido, de jeito nenhum. Você sabe que eu
tenho razão, Al.”
“Tudo o que eu sei”, disse o policial, “é que nós nunca vamos saber da
verdade. É melhor você se acalmar, mano.”
Keyes fechou os olhos.
“Talvez eu esteja puto comigo mesmo. Eu deveria ter falado do El
Fuego pro Klein logo que vi a segunda carta. Mas como eu ia saber que o
filho da puta estava com tanta pressa para se livrar do caso? Alguém já
ouviu falar de um advogado que força o cliente a confessar cinco dias
depois do crime, porra?”
“Ele pensou que não tinha jeito”, disse García. “Ele só estava tentando
agilizar as coisas.”
Keyes sentou-se furioso, a aparência esfarrapada.
“Agilizar as coisas, é? Bem, o que agilizou foi a ida do cliente dele
direto pro necrotério.”
García deu de ombros.
“Você está com fome?”
“Pensei que você tinha vindo me prender.”
“Não. O Klein está fazendo um barulhão danado, querendo fazer uma
acusação formal. Tentativa qualificada de homicídio com garfo de coquetel,
alguma coisa assim. Só que, para sua sorte, ninguém lá na defesa pública
gosta muito do merdinha, e ele não está conseguindo o mandado. Ele talvez
esqueça a coisa toda se você pagar a conta do hospital. Não pode ser muito
caro, foram só uns seis ou sete pontos na língua.”
Keyes sorriu pela primeira vez.
“Acho que é o mínimo que eu deveria fazer.”
“Ofereça isso pra ele”, aconselhou García. “Se tiver sorte, não vai
precisar nem pedir desculpas.”
“E quanto ao caso do Harper?”
“Você leu o jornal. Está tudo encerrado, cara. Não posso fazer nada.”
“Mas e o Bellamy e a outra carta do Fuego?”
“Fale com o departamento de pessoas desaparecidas”, disse García
secamente, “e eles vão dizer que o Bellamy se afogou acidentalmente.
Quanto à carta, vão perguntar: ‘Que história de carta é essa?’.”
O investigador perambulou pelo escritório todo, remexendo em livros e
gavetas, folheando caderninhos de notas, ganhando tempo. Keyes podia
sentir que algo estava encafifando García.
“Sei que não importa muito”, disse finalmente García, “mas concordo
com você. Tem muito mais coisa por trás do caso Harper do que o nosso
finado Ernesto Cabal. Eu chiei e enchi o saco para deixarem o caso em
aberto, mas fui voto vencido.”
“Mas do que é que eles têm medo?”
“É começo de temporada”, disse García. “Turistas em penca, dólares,
meu caro. Do que é que eles têm medo? Quartos de hotel vazios, é isso.
Uma gangue de sequestradores assassinos não é bem o sonho de um
relações-públicas, é? Os caras lá da Câmara de Comércio beberiam mijo
para evitar manchetes sobre El Fuego. Não agora, Brian, não no começo da
temporada.”
“Então, eu vou ter que virar o Cavaleiro Solitário”, disse Keyes.
“Eu ajudo como puder”, disse García, “na moita.”
“Beleza. Será que você consegue convencer o governo a pagar os meus
honorários?”
O investigador riu.
“Não, mas trouxe um presente para você. Uma pista absolutamente
honesta e segura. Lembra da chapa do Cadillac no Pauly’s Bar?”
“Claro”, disse Keyes, “GATOR 2.”
“Bem, pergunte a quem isso nos leva.”
“Ao lendário Viceroy Wilson!”
“Nada disso. À corporação Nação Seminole da Flórida.”
“Maravilha”, disse Keyes, deitando de novo no divã. “Essa pista é uma
maravilha, Tonto.”

Cab Mulcahy chegou cedo ao trabalho, cancelou duas reuniões e pediu


à secretária que não lhe passasse nenhuma ligação, exceto uma. Durante as
três horas seguintes, Mulcahy ficou sentado em seu escritório olhando para
o telefone. Afrouxou a gravata e fingiu que estava trabalhando em alguma
correspondência, mas por fim simplesmente fechou as cortinas (para se
isolar do resto da redação) e se sentou numa cadeira, no canto da sala. Do
outro lado da janela, a baía de Biscayne estava radiante com uma regata de
veleiros; Hobies deslizavam e traçavam círculos rápidos, cruzando as
esteiras de espuma uns dos outros, suas velas cor de laranja e limão
estufadas pela brisa quente da manhã. Era uma belíssima corrida sob um
céu azul infinito, mas Cab Mulcahy não prestou atenção em nada disso.
Aquele era um dos dias mais negros de sua carreira. A coluna de Ricky
Bloodworth se mostrara tão mal cozida, fora de foco e vulgar quanto
Mulcahy sabia que seria. Ainda assim, ele jogou pela janela vinte e dois
anos de integridade profissional e mandou rodar a coisa.
Por quê?
Para arrancar Skip Wiley de seu esconderijo.
Parecia ser um bom plano. Não fazia sentido culpar Keyes.
Mas o que Mulcahy tinha feito? Tinha criado um monstro, era isso. Deu
outra olhada no telefone. Onde, diabos, estava Wiley? Como ele podia ficar
sentado enquanto um imbecil como Bloodworth tomava seu lugar?
Mulcahy ponderou uma explicação plausível: Skip Wiley estava morto.
Só aquilo poderia explicar seu silêncio. Talvez um assaltante o tivesse
arrancado do carro na estrada e o assassinado. Não era uma ideia agradável,
mas certamente respondia à grande questão. Mulcahy imaginou que só a
morte poderia deixar Wiley quieto num dia como aquele. Quanto mais
Mulcahy pensava sobre esta possibilidade, mais envergonhado ficava de sua
própria ambivalência.
Escutava o telefone tocar a cada dois minutos do outro lado da porta, na
mesa de sua secretária. Leitores, pensou ele, leitores furiosos. Como é que
ele poderia dizer a eles que, sim, ele concordava, o texto de Bloodworth era
uma desgraça total. Sim, era uma imitação horrorosa. Sim, Bloodworth é
um imbecil congênito e não está a nossa altura publicar um lixo como
aquele.
Embora quisesse muito, Mulcahy não poderia nunca dizer tudo aquilo,
porque não era o jornalismo que estava em questão naquele momento.
Houve uma firme e bem ensaiada batida na porta. Antes que Mulcahy
pudesse se levantar, Ricky Bloodworth enfiou a cabeça na sala.
“Eu odeio quando você faz isso”, disse Mulcahy.
“Desculpe.” Bloodworth passou uma pilha de colunas para ele. “Achei
que você poderia querer dar uma olhada nestas aqui.”
“Ótimo. Agora pode ir.”
“Claro, senhor Mulcahy. Está se sentindo bem?”
“Só estou um pouco cansado. Por favor, feche a porta quando sair.”
“Qualquer uma dessas pode sair amanhã”, disse Bloodworth. “Nenhuma
está muito datada.”
“Pode deixar.”
Mulcahy debruçou-se sobre a mesa e examinou as colunas. A cada
frase, crescia sua náusea. Bloodworth, generosamente, fornecera suas
próprias sugestões de título em vistosos traços a lápis, no alto de cada texto:
“Aborto: qual é o problema?”; “Pena de morte: será que a cadeira elétrica é
o bastante?”; “Vietnã: hora de tentar de novo?”.
Mulcahy sentiu-se exausto. Chamou a secretária.
“Setenta e sete ligações para falar da coluna de hoje”, relatou ela. “Só
três pessoas gostaram, e uma dessas achou que era brincadeira do jornal.”
“Alguém ligou”, perguntou Mulcahy, “com uma voz pelo menos
parecida com a do senhor Wiley?”
“Acho que não, senhor.”
O estômago de Mulcahy estava em brasa; o café descia como se fosse
óleo diesel. Abriu as cortinas e perscrutou a redação, com um
pressentimento de desastre. Ricky Bloodworth estava atrás de sua mesa,
entrevistando, com ar de extrema seriedade, dois homens rudes, com
barretes vermelhos. Mulcahy sentiu-se à beira do pânico.
“Ligue para Brian Keyes”, disse ele à secretária.
Aquilo já era o bastante — tinha concedido a Keyes suas infames vinte
e quatro horas. Agora era hora de encontrar Skip Wiley, vivo ou morto.
9

“Que tal o peixe?”, disse Jenna.


“Muito bom”, disse Brian Keyes.
“É garoupa. O homem do mercado garantiu que estava bem fresca. E o
molho de limão?”
“Muito bom”, disse Keyes.
“Está um pouco sem gosto.”
“Está ótimo, Jenna.”
Ela baixou os olhos e deu um tímido sorriso que trouxe de volta um
milhão de lembranças. Um sorriso desenhado para pulverizar seu coração.
Para desviar-se dele, Keyes pegou um garfo e cortou o peixe estudadamente
em pedacinhos idênticos.
“Eu gostava mais do seu cabelo quando era mais despenteado”, disse
Jenna. “Agora você está parecendo um vendedor de apólices de seguro.”
“É que tenho frequentado muito o tribunal ultimamente. Tenho que
parecer correto e confiável no banco das testemunhas.”
Keyes se perguntou quanta conversa ainda teriam que jogar fora até que
passassem às perguntas mais constrangedoras: Onde você tem andado? O
que você está fazendo? Você recebeu o cartão de Natal que a gente
mandou? Ele não era muito bom em jogar conversa fora, e Jenna também
não. Ela gostava de ir direto ao assunto.
“Você está saindo com alguém?”
“Ultimamente não”, disse Keyes.
“Ouvi dizer que você estava saindo com uma moça, uma advogada.
Uma tal de Sheila, parece.”
“Ela se mudou”, disse Keyes, “para Jacksonville. Conseguiu emprego
numa boa empresa. Mas ainda somos bons amigos.” Certamente, pensou
ele, Jenna percebia como aquilo era desconfortável.
“Então, você está morando sozinho”, disse ela sem rudeza.
“Sim, digamos que a maior parte das noites.”
“Você podia dar uma ligada para bater um papo.”
“O Skip não ia gostar”, disse Keyes.
“Ele não ia se importar”, disse Jenna, “se fosse só de vez em quando.”
Mas, na verdade, quando Jenna o trocou por Skip Wiley, Brian Keyes
telefonou todas as noites durante três semanas, infeliz e louco de amor. Por
fim, Wiley começou a atender o telefone de Jenna cantando “When you
walk through a storm”. Imediatamente, Keyes parou com suas chamadas.
“Parece que você emagreceu uns quatro quilos”, notou Jenna,
estudando-o do outro lado da mesa.
“Cinco”, disse Keyes, impressionado. “Você também está muito bem.”
O elogio menos generoso do século.
Ela viera direto da aula de jazz, que ministrava quatro vezes por
semana. Estava usando um colante cor de alfazema, polainas de ginástica de
tricô cor-de-rosa e tênis brancos. Seu cabelo louro estava armado para cima,
e ela usava minúsculos brincos de ouro, que refletiam a luz cada vez que
virava a cabeça. Keyes percebeu uma fina camada de batom recém-
aplicado, e o aroma de um perfume impossível de captar. Como se não
bastasse, ela estava com um bronzeado sensacional, que fascinou Keyes,
porque Jenna não costumava frequentar a praia.
“Já passou um bom tempo desde que você esteve aqui”, disse ela,
servindo vinho branco.
“E você deu uma boa mudada neste lugar.”
“Estragada, você quer dizer. A maior parte disso aí é invenção do Skip.”
Keyes apontou para uma série de marcas circulares no alto da parede da
sala de estar, bem debaixo de uma barracuda empalhada de boca gigantesca.
“Aqueles buracos não são de bala, são?”
“Não vá ficar preocupado com isso.”
Keyes levantou-se para olhar mais de perto.
“Parecem ser de um calibre 38.”
“Ele ficou doido uma noite, quando estava vendo o jornal da televisão.
O governador estava falando de crescimento econômico, de como o
crescimento era importantíssimo. O governador disse que mil pessoas por
dia se mudam para a Flórida. A opinião do Skip sobre o assunto não era
exatamente a mesma do governador. O Skip achava que o governador não
deveria estar tão satisfeito assim.”
“Por que ele atirou na parede?”, perguntou Keyes.
“Porque ele não teve coragem para atirar na televisão, uma Sony
Trinitron, no vinha em folha”, disse Jenna. “Esqueci que você não gosta de
espinafre.”
“Está ótimo. Jenna, por que esse caixão está aqui na sua sala?”
“Eu também detesto esse negócio. O Skip acha que é uma mesa para
drinques legal. Ele comprou no mercado de pulgas. Os recortes de jornal
dele estão aí dentro.”
“É um pouco esquisito, você não acha?”, disse Keyes.
“Pelo menos ele devia ter dado uma reformada nesse troço.”
Keyes começou a comer mais rápido. A coisa estava mais traumática do
que ele esperava. Encontrar-se com ela na casa dela — o lugar que ela
dividia com Wiley — não tinha sido ideia de Keyes. Jenna é que tinha
insistido. Ela disse que queria estar lá caso Skip ligasse.
Se Jenna parecia estar genuinamente preocupada com o paradeiro de
seu amante, Keyes não estava. Seu coração estava com o caso de Ernesto
Cabal — ou com o que tinha sobrado do caso —, e rastrear Skip Wiley era
só um passatempo, uma ajuda para pagar umas contas... e ver Jenna de
novo.
Keyes tinha uma hipótese simples sobre o desaparecimento de Wiley.
Ele calculava que Skip tinha orquestrado a coisa toda para ganhar um
salário mais gordo do Miami Sun. A estratégia usual de Wiley, quando
queria mais dinheiro, era pedir a amigos do Washington Post e do New York
Times que ligassem com ofertas de trabalho irrecusáveis. Então, ele
assediava a sala de Cab Mulcahy e ameaçava pedir demissão. Mulcahy
tinha parado de cair no conto da Oferta de Emprego Fantástica havia cerca
de dois anos, e, portanto, Keyes pensava que Wiley estava, simplesmente,
tentando um esquema novo.
Keyes, agora, também percebia que a ideia de publicar uma coluna de
Ricky Bloodworth pode ter sido um tiro pela culatra, e que Wiley devia
estar entocado em algum lugar, morrendo de dar risada do tormento de
Mulcahy. Keyes, agora, acreditava — embora não ousasse dizer a Mulcahy
— que Wiley poderia esperar semanas para dar as caras. Ele provavelmente
esperaria até que seus leitores começassem a depredar o jornal.
E Keyes também acreditava que Jenna podia estar envolvida no
negócio.
“Você me amou, Brian?”
“Sim.” Ele começou a engasgar. Esperava que fosse apenas uma
espinha do peixe descendo pelo caminho errado.
Jenna deu a volta na mesa e começou a bater levemente em suas costas.
“Respire fundo”, disse ela com delicadeza. “Não coma tão rápido
assim.”
“Por que”, balbuciou Keyes, “você me perguntou aquilo?”
“O Skip diz que você era loucamente apaixonado por mim.”
“Mas eu mesmo disse isso para você”, disse Keyes, “umas trinta mil
vezes.”
“Eu me lembro, Brian,”
Meu Deus, lá vem o sorriso de novo.
“Mas e agora?”, perguntou Jenna. “Você ainda sente a mesma coisa por
mim?”
Ah, não, não sente, não. Keyes passou para o gênero sou-durão.
“Isto aqui é negócio, Jenna. Vamos falar sobre o Skip. Onde você acha
que ele pode estar?”
“Não sei.”
“Ah, não sabe?”
“Brian! Isso não tem graça nenhuma. Acho que ele está metido em
alguma encrenca. Acho que alguém pegou o Skip.”
“Por quê?”
“Porque ele é um alvo bom”, disse Jenna. Ela começou a tirar a mesa.
“Pode ficar sentado, deixe que eu faço isso. Vamos ver, você gosta de café
bem forte, sem leite ou açúcar...”
“Com creme e açúcar”, disse Keyes dolorosamente. “Mas acho que não
quero já.”
“Está bem. Bom, como eu estava dizendo, o Skip é uma pessoa muito
conhecida, uma verdadeira celebridade. Isso faz dele um alvo perfeito para
qualquer sequestrador. Você lembra da Patty Hearst?”
“Ou do Frank Sinatra Júnior”, disse Keyes.
“Exato.”
“Você já leu O resgate do Chefe Vermelho?”
“Claro”, disse Jenna. “O que você quer dizer com isso?”
“Nada.”
A quase todo momento a atenção de Keyes era desviada para o caixão,
que dominava a sala de estar de Jenna, que sem ele até que seria bem
aconchegante. O caixão era simples e claro, feito de pinho de Dade County.
Um caixão de pobre. Jenna tinha realizado um trabalho duro na tentativa de
disfarçá-lo de mobília normal. Ela havia colocado descansos para drinques
de modo caprichoso em cada canto da tampa, e no centro pusera um vaso de
porcelana Ming azul com girassóis frescos. Para efeito de maior
camuflagem, ela adicionara uma bem disposta pilha de revistas, com a
Town and Country no topo. Apesar de tudo isso, não havia jeito de
confundir o caixão com qualquer outra coisa. Keyes se perguntou
morbidamente se não deveria dar uma olhada dentro dele, só para ter
certeza de que o próprio Wiley não estava ali.
“Não chegou nenhum pedido de resgate até agora, certo?”, perguntou
ele a Jenna.
“Ainda não. Vamos sentar no sofá.” Jenna colocou um disco de James
Taylor no estéreo e foi para o quarto. Quando voltou, seus cabelos estavam
soltos e ela estava descalça.
“Se o Skip não foi raptado”, disse ela, “então talvez o Cab tenha razão.
Pode ser que ele tenha ficado louco e esteja andando sem rumo por aí.” Ela
se aninhou no sofá. “Adoraria ter uma lareira aqui.”
“Lá fora está fazendo trinta graus”, disse Keyes.
“Mas o que aconteceu com o meu jovem romântico?”
Keyes sorriu acanhadamente; meu Deus, ela não dá trégua. Ele lutou
para manter um tom apropriado em sua voz.
“Bem, é possível que... vocês dois estavam bem?”
“Melhor do que nunca”, disse Jenna, “Nós transamos na tarde em que
ele sumiu. Duas vezes!”
“Ah.”
“Bem aí, onde você está sentado.”
“Desculpe por perguntar.”
Keyes continuava a esperar que Jenna dissesse: “Eu sei como foi difícil
para você pegar este caso”. Mas ela não o fez, e não deu nenhum sinal de
compreender sua dor.
“Você tem que encontrar o Skip, Brian. Eu não quero que a polícia se
envolva nisso, e não quero nem ouvir falar de divulgação. Isso pode acabar
com a carreira dele.”
Ou salvá-la, ironizou Keyes consigo mesmo. Ele perguntou:
“Você acha que ele ficou maluco?”
“Para falar a verdade, não sei se eu iria notar alguma diferença.”
Jenna tirou os brincos e os colocou sobre o caixão. Elegantemente,
encheu novamente seu copo de vinho. Keyes sorveu o líquido
cautelosamente. O Chablis dava uma perigosa premência à sua solidão.
Jenna disse:
“Ultimamente o Skip estava mais selvagem do que o normal. Ele acorda
resmungando e vai para a cama resmungando. Você sabe, é o mesmo
assunto de sempre: lixo tóxico, derramamento de petróleo, o condor da
Califórnia, o Biscayne Aquifer. O apocalipse em geral. Há uma semana,
mais ou menos, um homem apareceu aqui vendendo quotas de uma colônia
de férias em Key Largo, e Skip atacou o cara com um arpão de fisgar
marlins.”
Keyes perguntou:
“Ele fica incoerente?”
Jenna riu levemente.
“Nunca. Ele é uma pessoa muito convincente, até mesmo quando tem
ataques de violência. As atitudes dele sempre fazem sentido.”
“Bem, se ele foi raptado, e eu não acho que isso tenha acontecido, tudo
o que podemos fazer é esperar o pedido de resgate. Mas, se ele está por aí
enlouquecido, temos que encontrá-lo antes que ele acabe ferindo alguém de
fato. Jenna, eu preciso de algumas dicas. Onde é que ele poderia estar?”
“Lá no meio do mato”, disse ela pensativamente, olhando fixo para sua
lareira imaginária. “É lá que você tem que começar a procurar.”
“Você está dizendo os Everglades?”
“Claro, onde mais poderia ser? É o único mato que sobrou. O resto foi
tudo destruído.”
Jenna era vice-secretária do Sierra Club local, e, portanto, Keyes sabia
que não era preciso muito para lançá-la num discurso longuíssimo. Ele
tinha que ser cuidadoso.
“Jenna, os Everglades são três vezes maiores que Rhode Island”, disse
ele. “Eu preciso de mais algumas pistas.”
“Ah, não sei”, disse ela. O vinho tinha quase acabado. Ela foi até a
geladeira e abriu outra garrafa.
Lembrando como Jenna ficava quando bebia, Keyes pensou: Isto está
ficando promissor.
“Tive uma ideia”, disse Jenna enquanto enchia os copos. “Aqui, segure
isto um pouco.” Rapidamente, ela limpou o topo do caixão, levantando o
vaso, reunindo os suportes de garrafas, derrubando as revistas no carpete.
Então destrancou as fechaduras e abriu a tampa. Ela havia contado a
verdade: o caixão estava cheio de recortes de jornal.
Jenna se ajoelhou com o copo de vinho equilibrado em sua mão
esquerda. Metodicamente, começou a explorar a estranha biblioteca pessoal
de Skip Wiley.
“Há alguns meses”, disse ela, “ele fez uma coluna falando de um lugar
perto do dique.”
Keyes se ajoelhou perto dela e ajudou na procura. Concentração era
algo impossível, com Jenna do jeito que estava, exalando calor e
familiaridade.
“Ele costumava sair para pescar nesse lugar”, ela estava dizendo,
“quando era criança. Não faz muito tempo ele descobriu que tinham
construído um imenso condomínio lá perto do dique velho, lá na beira dos
Glades. Uma comunidade de aposentados, foi o que disseram, com três mil
velhotes de Nova Jersey. Skip ficou pálido quando soube disso.”
“Eu lembro dessa coluna”, disse Keyes. “‘Varicose Village’.”
“É isso! Esse seria um bom lugar para começar a procurar. Pode ser que
ele esteja acampado lá, planejando alguma coisa.”
“Minha nossa”, disse Keyes.
De algum modo, Jenna localizou a coluna em meio ao lixo caótico do
caixão de Wiley. Ela se esticou de tal modo para mostrar a Keyes, que
praticamente se encaixou em seu colo. Ele não tinha certeza se ela estava
fazendo aquilo por piedade ou para espicaçá-lo. Preferiu acreditar que nada
de mais estava acontecendo. E também queria pegá-la nos braços e fazê-la
esquecer tudo o que se referisse a Skip Wiley.
“Este é o nome do lugar”, disse Jenna, toda corada pelo vinho, “Otter
Creek Village. Fica a quatro quilômetros da Rodovia Estadual 84, pelo que
diz aqui. Perto da velha área dos bombardeios.”
“Dá para encontrar.”
“Ele cresceu naquela região”, disse Jenna. “E a família dele tinha uma
casinha em Sawgrass.”
“OK, vou dar uma olhada lá amanhã.”
“Obrigada, Brian”, disse Jenna.
Ela o beijou suavemente nos lábios e recostou a cabeça em seu ombro.
Keyes envolveu-a com o braço direito; foi um abraço mais fraternal que
qualquer outra coisa, e nem foi muito bom. Ele desejou não estar tão
nervoso. Ainda assim, estava adorando estar lá, sozinho com Jenna, sem
nenhum Wiley maluco, só com o velho Taylor cantando “Fire and rain” no
estéreo. Keyes adorava o perfume do pescoço de Jenna, e o doce e
hipnótico som de sua respiração. Ele poderia ficar naquela posição durante
horas, inapelavelmente consumido pela presença dela, abraçando-a como a
um ursinho de pelúcia. Em relação a Keyes, nada mudara; quanto a Jenna,
era difícil saber.
“Brian?”
“O que é, Jenna?”
“Estou ficando com sono.” Ela olhou para cima. “Acho melhor ir para a
cama.”
Ela se contorceu como uma gata, esticando o colante cor de alfazema de
uma dúzia de maneiras de tirar o fôlego. Fechou o caixão, bocejou e disse:
“Bem...”
Keyes esperou, aferrado à sua esperança.
Mas então ela disse:
“Acho que já é hora de você ir para casa descansar um pouco.”
“Boa ideia”, disse Keyes com um bravo sorriso.
Ele saiu em seu carro numa ansiedade louca — eufórico, suicida,
horrivelmente confuso. Tudo de novo, pensou ele. Que Deus me ajude.
10

O tempo esfriou no transcorrer da noite, e um vento fresco vindo do


Norte trouxe o prenúncio do inverno.
Brian Keyes acordou com o nascer do sol, surpreso com o frio seco.
Meteu-se em seus jeans, agasalhou-se com um suéter e saiu para tentar ligar
o carro. O velho MG era uma maravilha no verão, mas o motor latia feito um
cão pulguento nas manhãs frias. Keyes o manteve em aquecimento por uns
bons dez minutos, durante os quais ficou matando o tempo do modo mais
imprudente possível, lembrando-se do jantar com Jenna e planejando
estratégias românticas.
De Miami ele tomou a via expressa norte para a Rodovia 84, uma
movimentada rota de caminhões que atravessa o estado partindo de Fort
Lauderdale. Apesar do céu fortemente carregado, cinzento, e do vento
cortante, a rodovia estava congestionada com os furgões personalizados e as
peruas rebocando barcos de pesca de cor púrpura metálica — os
costumeiros farofeiros de fim de semana.
Ao longo dos anos, a civilização acompanhara obstinadamente a
Rodovia 84, rumo à ponta dos Everglades. Viajando para o Oeste, Keyes
podia mapear a marcha das serras elétricas e dos buldôzeres. O que um dia
fora terra pastoril e barreiras de pinheiros envolvidos por nevoeiros agora
era um fulgurante estacionamento de trailers; vastidões de ciprestes
medievais deram lugar a lojas de conveniência 7-Eleven e lavanderias
automáticas. E, espalhado como esporos por toda a paisagem heterogênea,
estava o sonho sublime de todos os incorporadores: os complexos de
condomínios.
Mais tarde, enquanto caminhava pelo dique, as mãos nos bolsos, Keyes
maravilhou-se com o contraste: olhando para o Oeste, nada havia a não ser
o pântano silencioso, com seus chumaços de mato e vegetação rebelde; no
lado leste, guindastes a diesel, blocos de concreto e edifícios altos. Nem
uma centena de metros permaneceu intocada entre as obras e a última das
regiões selvagens do Sul da Flórida. Havia muito tempo Keyes não ia tão
longe em direção ao Oeste, e estava espantado com o que via. Não se podia
negar a legitimidade da raiva de Skip Wiley.
Keyes estava a uns três quilômetros de onde estacionara o carro quando
chegou ao condomínio Otter Creek. Ele sorriu, lembrando-se da maliciosa
coluna de. Wiley. “Não me falem sobre propaganda enganosa. Não há
nenhum riacho lá, e com certeza nenhuma lontra — nem viva nem morta.”
Otter Creek Village consistia em três melancólicos edifícios localizados
lado a lado em ângulos moderados. Cada prédio tinha cinco andares e era
pintado de branco com molduras de portas e janelas de amarelo-canário.
Cada um dos apartamentos tinha uma minúscula sacada, com vista para um
pouco bucólico estacionamento. Do dique, Keyes podia ver uma grande
área coberta por quadras de jogo de marelas, grupos de cadeiras de jardim
de alumínio e uma enorme piscina, parecida com uma úlcera. No centro do
complexo, contornada por um alambrado de seis metros de altura, havia
uma quadra de tênis de cimento, com as linhas se apagando e sem rede. A
área de recreação inteira estava vestida de guarda-sóis listrados de mesa,
que pareciam brotar do concreto como cogumelos em dia de festa.
Mas Otter Creek estava calmo hoje. Ninguém se esbaldava na piscina, e
as quadras de marelas estavam desertas; o frio recolhera os condôminos.
Keyes finalmente avistou um cavalheiro, já idoso, trajando uma capa de
chuva fluorescente e levando um terrier hiperativo para passear nas margens
de um escuro canal artificial. “Boa pescaria em seu próprio quintal!”, era o
que prometiam as propagandas do Otter Creek. Keyes não entendia lhufas
de pescaria, mas tinha sérias dúvidas sobre qualquer criatura gerada numa
água fétida como aquela.
Do outro lado do dique, nos Glades, o vento provocava ondulação ao
longo do denso capinzal. Keyes apanhou o binóculo e começou a vasculhar
o charco. Não muito longe de onde ele estava, ficava a choupana da família
Wiley. Jenna dissera que ela podia ser avistada com um bom par de lentes,
por isso Keyes trouxera o binóculo Nikon.
Depois de algum tempo, Keyes viu uma fila de garçotas brancas,
acocoradas ao longo de uma cerca; não era propriamente uma cerca, mas
um telhado de casa, cuja forma se destacava no meio de arbustos e moitas.
Keyes desceu pelo dique para enxergar melhor. Quanto mais perto chegava,
mais tinha a sensação de que a choupana flutuava sobre o brejo. As paredes
eram de madeira compensada e o telhado de chapa de zinco ondulada.
Havia uma varanda quase desmoronando, um pequeno anexo em muito mau
estado, e telas rasgadas nas janelas.
O que mais impressionava Keyes era o fato de a casa ter sido construída
sobre estacas de ciprestes, bem no meio do charco. Não havia como chegar
lá a pé.
Ele avançou em direção à choupana até onde pôde, no dique; do telhado
as garçotas o olharam cautelosas, eriçando as plumas do pescoço. Keyes
calculou que estava ainda a uns cem metros, com nada a não ser a lama e
folhas de nenúfar boiando entre ele e a cabana. Armou novamente o
binóculo e procurou algum sinal de vida.
O lugar parecia vazio e sem uso. Na porta, havia um cadeado
enferrujado dependurado, e o corrimão da varanda estava coberto de cocô
de ave petrificado. Não havia nenhum barco por perto, nenhuma fumaça na
chaminé, nenhum rastro de presença humana.
A não ser as botas.
Brian Keyes ajoelhou-se no cascalho do dique e brincou com o anel de
foco do binóculo.
Eram botas mesmo. Botas marrons de vaqueiro, novas em folha, a
julgar pelo brilho das biqueiras. As botas estavam sobre um jirau abaixo da
porta empenada do anexo, e pelas condições em que se encontravam
(nenhum sinal de dejetos de aves sobre elas), não deveriam estar ali há
muito tempo.
Keyes sabia o que devia fazer agora; devia encontrar uma maneira bem
astuta de chegar à choupana de Wiley. Nadar estava fora de cogitação. Ele
não havia abandonado o jornalismo para pular feito um sapo no meio de
brejos, nem mesmo por quinhentas pratas por dia.
Sendo assim, Brian Keyes foi procurar um barco.

“Sente-se, García.”
Al García sentou-se na cadeira. Harold Keefe, o investigador ruivo,
limpou a garganta como se tivesse ensaiado o gesto. Apanhou um exemplar
do Miami Sun e o balançou na cara de García.
“Você pode explicar isto?”
“Explicar o que, Hal?”
“Esta declaração dada por um certo Alberto García da Polícia de Dade.
‘O caso ainda está sendo investigado: não posso comentá-lo.’ Pode explicar
isso?!”
“Sem comentários”, disse García, “é o que posso dizer. Essa é a política
do departamento. Está lá na porra do boletim.”
Hal enrolou o jornal e bateu com ele violentamente na mesa, como se
estivesse matando uma barata.
“Neste caso não tem política de departamento. Este caso está encerrado,
lembra?”
García rangeu os dentes e tentou ficar de bico calado, para não dizer
algo de que se arrependesse mais tarde.
“Hal, esse sujeito, o Bloodworth, liga para mim altas horas da noite,
certo? Diz que conversou com esses dois caras, uns shriners, que falaram
para ele sobre o companheiro desaparecido, o senhor Bellamy. Você lembra
do Bellamy, não?”
Hal fez um gesto evasivo e balançou a cabeça.
“Bem”, disse García, “esse maluco do Bloodworth afirma que ouviu
alguém dizer que há alguma ligação entre o caso deste Bellamy e o de
Harper. Algo sobre cartas extorsivas, foi o que ouviu. E diz que está
escrevendo uma reportagem sobre o desaparecimento de Bellamy.”
“Ah, e foi o que ele fez.” Hal bateu no jornal com os dedos. “Imprimiu
fotos do senhor Bellamy, ofereceu cinco mil dólares de recompensa por
qualquer informação etc. Nada de errado com isso, García. Mas você não
tinha que dizer o que disse, especialmente do jeito que disse.”
“Tudo o que eu disse é que não tinha nada a declarar.”
“E onde aprendeu como fazer isso, na Escola de Relações Públicas de
Meyer Lansky? Você deu a entender que estamos escondendo alguma
coisa.” Hal se levantou. “Por que não disse simplesmente que o caso estava
arquivado? Diga que pegamos o assassino e que ele acabou com a porra da
vida dele na cadeia. Este é o último capítulo da história do caso Harper.
Ponto final.”
“E o Bellamy?”, perguntou García.
A cara de Hal ficou mais vermelha do que García jamais imaginou que
pudesse ficar, e enormes manchas de suor, do tamanho de bolas de
basquete, desenharam-se debaixo das mangas de sua camisa de poliéster
azul. Obviamente, Hal estava num dia infernal.
“Bellamy era um bêbado. Caiu no mar e se afogou”, disse Hal.
“Esqueça esse puto do Bellamy.”
“E as cartas de El Fuego?”
Hal cerrou as mãos num gesto planejado de civilidade. Harold Keefe
não era um homem que sugerisse naturalidade quando de mãos cerradas.
“Fico feliz por ter mencionado as cartas”, disse Hal. “Concluímos que
elas são trotes.”
García ergueu as sobrancelhas, mas não disse nada. Percebeu que Hal
avançava para algo memorável.
“Mostramos as cartas de El Fuego para o doutor Remond Courtney, o
famoso psiquiatra. Ele diz que as cartas são falsas, e os caras do laboratório
concordaram. O que não me surpreendeu, já que não houve nenhum pedido
de resgate, nem corpos...”
“A não ser o de Harper”, resmungou García.
“Esquece o Harper, porra! Estou falando de Bellamy e da outra.”
“Que outra?”
“Veja aqui. Apareceu esta manhã.” Hal passou uma cópia xerox por
cima da mesa.
A carta era idêntica às outras.
“Quem é senhor Richaud?”, perguntou García tentando não demonstrar
muito interesse.
“David Richaud é o amiguinho de uma certa Renée LeVoux.” Hal
pronunciou Leivox. “A senhorita LeVoux desapareceu há três dias, no
estacionamento do Seaquarium. Richaud deu queixa no departamento de
pessoas desaparecidas. Ontem, esta carta foi entregue no hotel onde ele
está, em Key Biscayne.”
“O que diz o sujeito?”, perguntou García.
“Diz que a mulher foi raptada. Queixa-se que o autor do rapto deu um
murro na cabeça dele e aí ele desmaiou.”
“Você não acredita muito nele, parece.”
Hal riu causticamente.
“Tem muito papo furado em toda essa merda amadora que ele contou.
Eles tiveram uma briga, ela tomou um táxi e deu o fora para o Sul com a
grana das férias. Richaud fica furioso e saca que a melhor maneira de
encontrá-la é envolvendo a polícia. Muito óbvio, eu diria.”
“Hum”, rosnou García.
“O que nos conduz às cartas.” Hal abriu uma gaveta de arquivo e tirou
uma pasta. García sabia que aquele era o momento de começar a se
preocupar.
“Tive uma conversinha com o chefe esta manhã”, disse Hal. Al García
não se perturbou; Hal estava sempre tendo conversinhas com o chefe.
“Parece que o chefe”, disse Hal, “acha que estas cartas estão sendo
geradas aqui dentro do departamento de polícia.”
García bufou.
“Ele acha que El Fuego é um tira?”
“O chefe”, disse Hal com austeridade, “está seriamente preocupado.
Ordenou que eu fizesse uma investigação interna. Ele acredita que alguém
daqui está escrevendo estas cartas falsas para manter o caso Sparky Harper
em aberto.”
“Por quê?”
Ele encolheu os ombros de modo pretensamente ingênuo.
“Ambição, rancor, talvez mesmo ciúme profissional. Quem sabe? Em
todo caso, a teoria do chefe faz bastante sentido. Quem quer que esteja
enviando essas cartas loucas está pegando os destinatários da lista de
pessoas desaparecidas lá no departamento.”
Isso já é demais, pensou García.
“Hal”, disse ele, “você é um puta cascateiro. E o chefe também.”
O rosto de Hal ganhou um colorido semelhante ao do suco de uva.
“Alguém está raptando turistas”, disse García. “E tudo o que vocês
querem fazer é pôr uma pá de cal em cima. Tenho uma ideia melhor: por
que não vamos para a rua e apanhamos esses sequestradores filhos da puta?
Vamos lá, Hal, vai ser divertido. Como nos velhos tempos, quando você era
um tira e não um politiqueiro de gabinete.”
Funestamente, Hal abriu a pasta. Dentro havia um memorando cor-de-
rosa, nada mais.
“Investigador García”, disse ele, “a partir de hoje seus deveres estão
restringidos por tempo indefinido, até que termine nossa investigação. A
corregedoria quer levar um papo com você, portanto você deveria pensar na
ideia de procurar um advogado.”
“Lindo, lindo mesmo”, resmungou García.
Hal fechou a pasta de supetão.
“Você trabalhará no turno da noite”, disse ele, “na equipe de apoio à
patrulha.”
“Ah, sim, a zona de combate.”
“Não é tão terrível assim... ah, sim, alguns policiais vão visitar sua casa
mais tarde. Só para dar uma olhadinha.”
“Hal, eles vão perder tempo. Eu não tenho máquina de escrever.”
“Não importa. Tente cooperar.”
“Mas, Hal...”
“Pode ir embora agora”, disse Harold Keefe, no melhor tom de sua voz
de diretor de escola secundária, “e tente evitar encrencas até que tudo esteja
esclarecido. Não fale com nenhum outro repórter... ou, para todos os fins,
com detetives particulares.”
García se inclinou e bateu sonoramente com os nós dos dedos na mesa.
“Hal”, disse ele, “você é tapado demais para enxergar o que está
acontecendo, mas essa merda toda vai explodir bem na sua cara balofa de
irlandês.”

Brian Keyes dirigiu no sentido oeste numa velocidade animalesca,


tirando o pé em cada cruzamento, observando cada centro comercial
cafona. Finalmente avistou uma placa com os dizeres “Alugam-se canoas” e
saiu da rodovia.
O nome do lugar era Mel’s — Artigos para Pesca, e o próprio Mel
estava bastante ocupado fisgando peixes vivos do poço de iscas. Ele disse a
Keyes que se sentasse perto da máquina de refrigerante e seria atendido em
alguns minutos. Keyes, educadamente, disse a ele que estava com um
pouco de pressa, mas foi como se estivesse falando com o gamo empalhado
na parede.
Depois de mais ou menos quinze minutos, Mel finalmente se livrou de
seus afazeres, guardou sua tarrafa e perguntou a Keyes o que exatamente
poderia fazer por ele.
“Eu gostaria de alugar uma canoa.”
“Vou precisar de um depósito”, disse Mel espiando o cliente. “E
também gostaria de saber como você vai transportar a canoa no seu carro.”
Mel levantara um problema. A canoa era um metro mais comprida que
o MG.
“Vou precisar de algumas cordas emprestadas.”
“Não, o senhor vai ter que comprar.”
“Entendo”, disse Keyes. “E os remos?”
“Os remos eu posso alugar.”
Quando a negociação terminou, Keyes havia desembolsado trinta e sete
dólares e seu cartão American Express fora confiscado como depósito.
Keyes fez uma corajosa tentativa de amarrar sozinho a canoa de
alumínio sobre o MG, mas o barco escorregou e se esborrachou no asfalto. O
barulho fez com que Mel saísse da loja de equipamentos praguejando, aos
berros. Ele era um cinquentão barrigudo, de olhar cansado, mas em matéria
de canoas, demonstrou ser um filho da puta cheio de força. Disse a Keyes
que fosse se sentar lá dentro e lesse algumas revistas, e em cinco minutos o
trabalho estava caprichosamente concluído.
“Deixe-me perguntar uma coisa, se não se importa”, disse Mel. “Não
vejo carretilhas nem rifles nem mesmo um arco e flecha. Portanto, onde,
diabos, você vai com essa canoa, e o que vai fazer quando chegar lá?”
Keyes arrancou do carro o estojo do binóculo e o empunhou de modo
que Mel o visse.
“Eu sou um ornitólogo amador”, disse ele esfuziante.
Mel moveu positivamente a cabeça, mas parecia cético.
“Bem”, disse ele depois de uma pausa, “boa sorte com seus pica-paus
ou seja lá o diabo que for. Mas não vá arranhar esta merda de barco de
novo.”
A canoa foi tão fortemente amarrada no MG que as cordas assobiavam
na estrada. De volta ao dique, Keyes sofreu um bom tempo para desfazer os
nós de Mel. Finalmente conseguiu tirar a canoa de cima do carro e a fez
deslizar pelo barranco até a água. Cambaleando, embarcou segurando os
remos debaixo de um dos braços. Em seguida, foi se abaixando até tocar o
casco com os joelhos. Depois começou a agitar-se cuidadosamente,
testando a estabilidade. Parecia firme.
Keyes tomou o centro da canoa e começou a remar através do canal do
dique rumo à choupana de Wiley.
Aquilo lhe conferia uma sensação de aventura, deslizando lenta e
solitariamente pelos Everglades sozinho. Keyes deixou-se levar por aquele
cenário exuberante, o que lhe pareceu uma distração oportuna para a sua
ansiedade. Atividades campestres não eram o seu forte, mas o desconforto
devia-se mais à falta de familiaridade do que ao medo. Keyes crescera na
agitada região urbana de Washington D. C., e os animais mais ferozes que
enfrentara um dia foram os endiabrados esquilos cinzentos do Rock Creek
Park. Com exceção de um mísero verão num acampamento de garotos
janotas no Norte de Virginia, Keyes praticamente não passara tempo
nenhum fora da cidade. Desde que se mudara para a Flórida passou a ouvir
os incríveis casos tipo “aconteceu comigo” envolvendo panteras, cobras
venenosas e jacarés assassinos, e, embora visse essa patacoada como pura
mitologia, Keyes não apreciava muito a hipótese de um encontro-surpresa.
Wiley, se é que estava por ali, seria animalesco o bastante.
Keyes conseguiu estabelecer um ritmo aos remos, e sua confiança
aumentava a cada remada. Mesmo contra o vento, fazia a coisa funcionar
direitinho canal abaixo. Agora já era uma hora da tarde e as nuvens
carregadas tinham se dissipado; o sol finalmente destruiu as reminiscências
do frio seco daquela manhã. O charco começava a se agitar debaixo do
calor. Cigarras e gafanhotos começaram a surgir das entranhas do matagal,
e de repente uma velha tartaruga caipira rolou dique abaixo feito um
capacete, caindo na água a poucos metros do bico da canoa. No céu, Keyes
divisou uma fileira de abutres planando no ar quente, procurando carniça.
De forma peculiar, o dique isolava os Glades do clamor do subúrbio de
Broward; embora Keyes estivesse a poucos quilômetros da civilização, não
podia vê-la nem ouvi-la. Sentia-se distante, mergulhado na tranquilidade.
Mais de uma hora depois ele localizou a choupana. Intensificou as
remadas, o bico da canoa ia roçando o pântano, quebrando galhos podres. A
uns cinquenta metros ele parou de remar e deixou a canoa deslizar,
enquanto apanhava o binóculo para uma última olhada.
As botas de vaqueiro ainda estavam próximas ao anexo, e a choupana
ainda parecia deserta.
Brian Keyes não notou que as garçotas não estavam mais lá.
Enquanto atracava a canoa a uma estaca apodrecida, um camaleão verde
se desprendeu da varanda para mastigar um besouro na sombra. Keyes foi
saindo suavemente da canoa, mas seu peso ainda fazia o casco balançar. Ele
dava cada passo como se estivesse andando sobre gelo. Ia pensando: Não há
a menor chance de Skip Wiley estar se escondendo por aqui, não é seu
estilo de fazer as coisas.
Keyes testou o cadeado com uma pancada seca e o portão se abriu com
um rangido. Abriu a porta com a ponta do tênis e espiou.
Aquilo parecia uma cela de escoteiros.
Teias de aranha pendiam do teto, e, pendurada em uma viga de pinho,
balançava a casca quebradiça do que fora, muito tempo antes, a pele de uma
cobra. Uma mesa de jogo, usada como mesa de jantar, encontrava-se
dobrada debaixo de latas fechadas de salsicha e Spam, os rótulos
desbotados e enrugados. No fundo da choupana, havia um beliche com os
estrados cobertos por dois colchões de plástico infláveis, murchos e
manchados de bolor. Num canto, havia dois sacos de dormir bem enrolados
e amarrados, salpicados de traças mortas ressecadas. Perto deles, uma pilha
de revistas pornográficas, a mais recente delas uma edição da Playboy de
dezembro de 1978.
Na cozinha, Keyes encontrou uma geladeira portátil de uns quinze
litros. Dentro dela havia uma embalagem de meia dúzia de Budweisers e
três jarras plásticas de água. Keyes estava para abrir uma delas quando
notou um sedimento de origem dúbia suspenso no fundo do casco. A água,
concluiu ele sem experimentá-la, estava lá fazia muito tempo também.
A área da choupana não era maior do que dez por cinco metros, mas
Keyes achou um monte de fendas para fuçar. Na verdade, estava se
divertindo, enfiando a mão em gavetas e armários empoeirados, atrás de
qualquer sinal de Wiley. Sentia-se como um arqueólogo em uma nova
escavação.
O que finalmente o convenceu a se retirar foi o morcego.
Keyes usava uma vara de cana fina e comprida para se livrar dos ninhos
de aranha quando distraidamente cutucou uma enrugada folha de veias
cinzentas debaixo da mesa de jogo. Subitamente, a folha saltou do chão e,
mostrando os dentes, passou farfalhando pelas orelhas de Keyes. Ele se
jogou porta afora, gritando e arremetendo o cano impotentemente no ar.
Furioso, o morcego o seguiu, em mergulhos acentuados, e só desistiu
quando foi atingido pelos raios do sol.
Keyes não estava bem certo do lugar para onde fora a criatura, mas
desconfiadamente procurou-a até na estratosfera. Concluiu que o morcego,
afinal, estava muito bem acostumado àquela solitária choupana; Keyes
decidiu ficar do lado de fora esperando pelo dono das botas, fosse ele Skip
Wiley ou outra criatura qualquer.
A tarde passava lentamente vista pelas lentes do binóculo. Havia um
bom tempo que Keyes não botava os olhos sobre um ser humano; em vez
disso, acabou tornando verdade a mentira que contara, observando os
pássaros dos Everglades: gaviões de ombros vermelhos, gralhas, águias-
pescadoras e uma ajajá rosada. Encontrar os pássaros era um desafio
divertido, mas, uma vez enquadrados no foco, eles não davam propriamente
um show de fazer perder o fôlego. O fato é que a maioria dos pássaros é que
parecia observá-lo.
O detetive finalmente foi forçado a criar coragem e entrar de vez no
anexo — um ato de absoluta valentia. Decidido, ele ainda parou no
caminho para estudar as misteriosas botas de vaqueiro. Eram da marca Tony
Lamas, número 42, sem nenhuma identificação aparente. Keyes teve o
cuidado de não movê-las.
Quando baixou o sol e um crepúsculo esverdeado cobriu a cabana,
Keyes sabia que estava entrando na hora da decisão. Uma vez chegada a
escuridão, não havia maneira de sair dos Glades, a não ser que tivesse a
orientação de um farol. Ele teria que passar a noite ali sem nenhuma
comida, sem água e, o ponto mais crítico, sem repelente contra pernilongos.
Dezembro não era alta temporada para pernilongos, porém uma mutuca já
havia arrancado um naco do seu tornozelo, como que para lembrar Keyes
de que milhões de outros insetos famintos aguardavam sua vez.
Além disso havia Mel, que alertara Keyes para levar a canoa de volta
antes de escurecer, caso contrário... Keyes imaginou também todo o estrago
que um homem como Mel poderia fazer com seu American Express, razão
pela qual decidiu que seu expediente chegara ao fim naquele dia.
Colocou o binóculo no estojo e subiu na canoa esforçando-se para que
ela ficasse inteira na água, já que a proa estava presa no charco. Com a
canoa se distanciando da choupana, Keyes se ajoelhou para apanhar os
remos.
Mas os remos não estavam lá.
Não, não podia ser. Mas era.
Não adiantava olhar, o fundo da canoa estava vazio.
Com cuidado, Keyes virou-se de modo a poder enxergar a choupana —
que não poderia estar a mais de vinte metros. Ele precisava voltar para lá,
para ao menos ficar com os pés em algo sólido. Então, tentaria entender o
que, diabos, estava acontecendo.
Avançou para a proa e ajeitou-se numa posição confortável. Com as
mãos, pôs-se a remar vigorosamente, quebrando a calma das águas. Mesmo
assim, a canoa mal se movia.
O barco se enganchou firmemente num arbusto de jacinto. Um
emaranhado de galhos verdes e cipós prendeu-se ao casco, impedindo
completamente o movimento do barco. Desesperado, Keyes procurou por
algo com que pudesse cortar os galhos e tirar a canoa e a si próprio daquela
encrenca.
O nó que se fez em sua garganta começou a se transfigurar em pânico.
Ainda por cima, Keyes desconfiava de que pudesse estar sendo observado;
quem quer que fosse o dono das botas, provavelmente roubara os remos, e
quem quer que tivesse roubado os remos não queria que ele fosse embora.
“Skip!”, gritou Keyes. “Skip, você está aí?”
Mas o pântano tragava sua voz, e só o canto das cigarras lhe respondia.
Keyes resolveu que o melhor a fazer era não abandonar a canoa.
Considerava-se um nadador competente, mas dava para perceber que
não estava propriamente no lago Louise, no belo Camping Trailblazer —
aquilo era o pântano verdadeiro. Se ao menos estivesse acompanhado, o
que, claro, estava fora de cogitação — a não ser que pudesse contar com a
solidariedade de uma enguia.
Keyes não tinha a menor ideia da profundidade debaixo daquela água
com cara de chá preto, mas ele sabia que nadar em meio àquelas algas seria
perigoso. Temia ficar emaranhado embaixo d’água ou ser sugado pelo lodo.
É verdade que eram apenas vinte metros até a choupana, mas aqueles vinte
metros poderiam se transformar numa eternidade infernal.
Debruçou-se sobre a borda na proa e começou a arrancar os ramos de
jacinto, atirando-os em chumaços o mais distante possível. Arduamente ia
conseguindo desenhar um canal por onde a canoa pudesse se deslocar, mas
a noite caiu rapidamente. Mais uma vez, tentou remar com as mãos: agora,
a canoa deslocou-se por um ou dois metros, até que foi novamente
embaraçada, desta vez por lírios selvagens.
Brian Keyes estava imobilizado. Não se podendo mais distinguir seus
detalhes, a choupana se transformou numa sombra amorfa na escuridão; ao
leste o dique formava um horizonte perfeitamente linear. Keyes sentou-se
sobre seus calcanhares, as mãos pingando água nas beiradas da canoa. Seu
rosto estava empapado de suor e os mosquitos começavam a fazer uma
animada festinha nas proximidades de seus olhos e ouvidos. Mel já não o
preocupava. Ele, na verdade, estava concentrado na possibilidade de aquela
ser a pior noite de sua vida.
Acima, curiangos cortavam o céu, caçando insetos, e uma coruja piou
duas vezes em um carvalho distante. Não havia mais vento, e com isso
Keyes podia ouvir cada murmúrio vindo do pântano. Mas não conseguia
ver praticamente nada. Depois de uma hora ele desistiu definitivamente de
tentar ver o que quer que fosse, e apenas imaginou — imaginou que o nítido
splash próximo ao dique era apenas uma garça bicando um peixe; imaginou
que o ranger de tábuas era apenas um rato roendo a madeira da cabana
vazia; imaginou que o gemido aterrador que percorria todo o Glades era
apenas o barulho provocado por um lince após uma caçada.
Keyes deitou-se na canoa e ajeitou sua cabeça sobre o estojo de couro
do binóculo. Até mesmo o céu era um buraco negro, sem estrelas por causa
das nuvens altas. Com muito esforço conseguiu fechar os olhos e desligar-
se dos movimentos daquele lugar ermo.
Pensou em Jenna e se sentiu estúpido: da acabara de lhe aprontar outra,
apenas com um jantar sem gosto. Se ele estava naquela penúria agora era
porque mais uma vez foi lhe dar ouvidos, e porque ele no fundo gostava da
improvável ideia de que ela precisava dele. Ele deveria ter desconfiado de
que aquele jantar ia lhe trazer dificuldades: o que mais poderia esperar de
Jenna? Keyes imaginou-a naquele exato momento zanzando pela cozinha
enquanto preparava o jantar, ou fazendo uma daquelas porras de flexões da
Jane Fonda estirada no tapete da sala de estar. Se ela estava preocupada
com alguém, era com Skip Wiley, não com ele.
Wiley. Roubar os remos da canoa era o tipo de truque que Wiley
assinaria embaixo, pensou Keyes. Mas como eu não ouvi nada? Onde ele
poderia estar escondido? E o que ele estava esperando para dar as caras?
Pelo amor de Deus, a brincadeira acabou.
Keyes foi lentamente erguendo o corpo. Percebera que subitamente os
grilos e os curiangos mergulharam em profundo silêncio. Os Everglades
encontravam-se em perfeita imobilidade.
Algo estava errado.
Dos filmes de Tarzan que assistia quando garoto, Keyes sabia que
sempre que a floresta tornava-se silenciosa era porque algo terrível estava
prestes a acontecer. Os canibais estavam prontos para atacar, os elefantes a
sair em disparada ou o leopardo a fim de traçar um jantar — sendo qualquer
uma dessas possibilidades preferível a uma visita-surpresa de Skip Wiley.
Keyes desejava como o diabo ter trazido aquele pedaço de pau de cana.
Uma sombra se materializou na varanda da choupana de Wiley.
Era uma forma masculina, ereta e imóvel. No vazio da noite, Keyes
podia ouvir a respiração do homem. Ele também ouvia o frêmito de seu
próprio coração.
“Wiley?”
A figura não se moveu. Um rosto sem contornos parecia observá-lo com
os braços cruzados.
“Skip, me tira daqui, porra.” Keyes forçou uma risada, que saiu
revestida de medo. Com os nós dos dedos, àquela altura petrificados, Keyes
segurou-se na borda da canoa. “Skip?”
Na varanda, o vulto moveu-se para trás até ocupar todo o espaço da
porta da choupana. Com os músculos chacoalhando, Keyes encarou aquela
forma muda. Sentiu uma sutil e fria gota de suor correr-lhe pela espinha,
fazendo-o encolher-se arrepiado. Estava pronto para se atirar no pântano ao
menor barulho de uma arma.
“Olhe aqui, não sei quem é você, mas não tenho qualquer má intenção”,
disse Keyes.
Nada veio do espectro.
“Por favor, acene com a mão se pode me ouvir”, implorou Keyes.
Para seu mais completo espanto, a figura acenou-lhe com a mão direita.
Keyes sorriu para si mesmo e pensou: Um progresso, finalmente — sem
compreender que o gesto do homem não fora um aceno, mas um sinal.
Como um perfeito idiota, Keyes acenou sua própria mão direita
devolvendo o suposto gesto amigável. Ele permanecia tão transtornado pela
figura da choupana que não viu o que deveria ter visto: uma lisa e brilhante
mão negra brotando da água e agarrando a canoa por uma de suas bordas,
exatamente onde havia pouco estivera a sua própria mão.
Quando Keyes finalmente tirou os olhos da figura hipnotizante, não foi
por causa de outra visão ou barulho, mas por uma paralisante sensação de
estar sendo centrifugado.
A canoa estava girando debaixo dele.
Ele estava no ar.
Ele estava na água.
Ele estava cego e asfixiado.
Ele fora tragado para a garganta do pântano.
11

“Acorde, Menino das Selvas!”


Brian Keyes piscou rápida e doloridamente os olhos e começou a tossir
lama do pântano.
“Ora, que educação é essa? Não vai me dar nem um alô?”
“Como vai, Skip?”, disse Keyes entre uma tossida e outra.
Eles estavam numa clareira que se abria no meio de um emaranhado de
ciprestes. A fumaça provocada por uma pequena fogueira se misturava
docemente ao ar da noite, lançando fagulhas na abertura de lona. Com as
mãos amarradas, Keyes estava sentado na terra, encostado no tronco de um
cipreste anão. Uma brisa suave anunciava que ele estava usando apenas as
cuecas. Um galhinho de erva hidrila permanecia pendurado em sua testa.
“Me desamarre, Skip.”
Wiley sorriu, o rosto imenso e elástico repleto de bom humor.
“O que você acha da barba, Brian?”
“Está linda. Me desamarre, seu babaca.”
Rindo, Wiley andou lentamente até a fogueira. Keyes percebeu que ele
não estava sozinho; outras figuras rondavam silenciosamente pelas bordas
da clareira, conversando baixinho. Wiley retornou com uma caneca.
“Chá quente”, disse ele. “Feito com ervas naturais. Tome, vai ajudá-lo a
aprumar-se.”
Keyes meneou a cabeça.
“Não, obrigado.”
“E então, como vão os negócios no mundo dos detetives particulares?”
“No momento, um pouco estranhos.”
Wiley estava descalço. Usava uma calça cáqui pregueada e uma bata
branco-sujo, com duas listras horizontais vermelhas (pseudoafricana,
deduziu Keyes). Seus cabelos rebeldes tinham sido penteados para trás,
adquirindo a aparência de um capacete aloirado, e a barba nova eriçava-se
grossa e arruivada. Keyes tinha que admitir que Skip Wiley ainda era um
homem de considerável presença.
“Acho que você quer uma explicação.”
“Que é isso”, disse Keyes. “Essas coisas acontecem o tempo todo.”
“Você está no coração dos Everglades”, disse Wiley. “Este é o meu
acampamento. Estou me escondendo.”
“E fazendo o pior Kurtz que eu já vi.”
“Vamos esperar pela história para fazer esse julgamento. E pare com
essas gracinhas que está fazendo com as mãos. Isso aí não é corda, é um
cipó azeitado. Se continuar tentando livrar-se o cipó vai acabar cortando as
veias do seu pulso e você vai sangrar até a morte, em mais ou menos nove
minutos.”
Keyes deu uma olhada por sobre o ombro e percebeu que Wiley não
estava brincando. Deu um fim às suas tentativas.
“Onde puseram as minhas roupas?”
“Nós penduramos perto do fogo, para secar.”
“Nós?”
“Las Noches de Diciembre. As Noites de Dezembro.”
“Ah, não, Skip, não brinca com isso”, lamentou-se Keyes com o espírito
em farrapos. Ainda não tinha passado por sua cabeça que Wiley pudesse
estar envolvido com os raptos, embora isso fizesse sentido. Wiley nunca
fora previsível, exceto em sua paixão pelos extremos. O simbolismo de
Harper e Bellamy era tão óbvio que Keyes se sentiu um perfeito
incompetente, estúpido mesmo.
“Não fique com essa cara de espantado”, disse Wiley. “Agora, chegou a
hora de conhecer o resto do pessoal.” Ele bateu palmas com suas enormes
mãos. Três figuras saíram das sombras e se agruparam atrás de Wiley.
Keyes olhou para aquelas caras, a imagem pouco nítida por causa da
contraluz do fogo.
“Brian, gostaria que você conhecesse o grupo. Aquele cara grandão ali é
o Viceroy Wilson — você já deve ter ouvido falar dele.”
“Acho que a gente se conheceu no Pauly’s Bar”, disse Keyes.
“É isso aí”, disse Wilson, “meu punho conheceu sua cabeça.”
“E este”, disse Wiley educadamente, “é Jesús Bernal.”
Bernal era um latino agitado trajando uma camiseta de redinha. Keyes
notou imediatamente que a estatura e a compleição dele faziam lembrar
Ernesto Cabal; não admirava que a testemunha de Al García estivesse
oitenta por cento certa.
Jesús Bernal lançou um olhar rancoroso sobre Keyes, para depois se
imiscuir novamente na sombra. Wilson o seguiu mal-encarado.
“Viceroy te detesta porque acha que você tem cara de tira e o nosso
amigo Bernal é apenas um pouco tímido”, explicou Wiley. Ele passou o
braço por sobre o ombro do terceiro homem. “Mas este é o cara que fez
tudo isso ser possível. Tom Rabo-de-Tigre. Tommy, fala oi para o senhor
Keyes.”
Tommy Rabo-de-Tigre curvou-se para a frente para estudar o
prisioneiro seminu. Tommy era um bonito jovem semínole: quase trinta
anos, estatura mediana, esbelto mas com uma considerável musculatura à
mostra. Tinha cabelos longos e negros, e uma cara típica de índio Creek,
com as maçãs do rosto salientes e os olhos orientais. Usava jeans, sem
camisa, apenas uma toalha pendurada na nuca.
“Você não está machucado”, disse ele a Keyes.
“Só um pouco enjoado.”
“Você foi uma briga foda”, disse Tommy. “Engoliu meio pântano.”
“Era você que estava embaixo da canoa?”
Wiley interveio.
“Tommy é um puta dum nadador.”
Sem qualquer expressão na cara, Tommy caminhou de volta até o fogo
para se juntar aos outros.
“Este jovem”, murmurou orgulhosamente Wiley, “vale pelo menos
cinco milhões de dólares. Dá pra acreditar nisso? Ele ganhou tudo no bingo
dos índios. Tem quatro casas de bingo no Sul da Flórida — você sabe, o
jogo é legal nas reservas. Perfeitamente legal. Você não pode instalar um
cassino em Miami Beach, mas pode abrir um no meio do Grande Cipreste.
É uma puta ironia, não acha, Brian? Velhos caras-pálidas de cabelos
tingidos de azul dos quatro cantos do mundo vêm apostar no bingo
semínole e os índios fazem fortuna. Sim, enterrem meu coração na matriz
do Chase Manhattan! Tommy é quem toca o negócio, por isso a tribo deixa
para ele a maior parte. E ele já abocanhou cinco milhões de dólares,
cacete!”
“Se é assim, por que ele ainda está aqui, em vez de ir para o Galt Ocean
Mile?”
Wiley pareceu desapontado com a observação.
“Tommy está por aqui”, disse ele, “porque ele acredita em mim. Ele
acredita no que estamos fazendo.”
“E o que estão fazendo exatamente, Skip?”
“Bem, no caso de Tommy estamos lançando a Quarta Grande Guerra
semínole. No caso do meu amiguinho cubano, estamos lutando pela causa
do terrorismo de direita internacional. E, no que tange às preocupações do
senhor Viceroy Wilson, estamos dando uma puta surra nos branquelos.”
Wiley se curvou e voltou a sussurrar. “Veja, Brian, cada um desses caras
tem seu eleitorado particular. Meu trabalho, esta é a minha visão, é fazer
eles se sentirem igualmente importantes. É um equilíbrio delicado, pode
acreditar. Estes não são os seres humanos mais estáveis da face da terra,
mas têm um puta reservatório de energia. Isso é inspirador pra caramba.”
“E você, Skip? Qual é o seu eleitorado?”, disse Keyes.
“Ora!”, Wiley enrugou a testa. “Você não sabe?”
De algum lugar no meio do mato ouviu-se o trote de um animal, que
emitiu um grito agudo e bem definido. Keyes olhou apreensivamente ao seu
redor, notando apenas a escuridão da noite.
“Relaxe”, disse Wiley. “É só um guaxinim. Meu eleitorado, Brian. Junto
com as águias, os gambás, as lontras, as serpentes e até os bútios. Tudo isto
e muito mais é deles. Cada merda de hectare, daqui para o Oeste até Miami
Beach e para o Norte até o grande lago, tudo pertence a eles. Tudo isto foi
roubado, e o que vamos fazer...”, Wiley cerrou os punhos num gesto de
vibração, “... é devolver tudo.”
Keyes pensou: Um misto de Dr. Dolittle e Che Guevara. Espere só até
eu contar a Cab Mulcahy.
“Não me olhe como se eu fosse um pobre garoto doente”, disse Wiley.
“Estou muito bem, não podia estar melhor. Você é que está com problemas,
Brian. Um puta dum problema, eu diria. Antes desse negócio acabar, você
vai querer voltar pro Sun, para cobrir os imbecis da campanha para a
prefeitura.”
“Acho que vou aceitar um pouco desse chá”, disse Keyes.
Ele estava tentando acalmar Wiley, evitando que ficasse muito excitado.
Keyes se lembrou de como Wiley poderia ficar durante uma de suas súbitas
explosões, com toda a sua fúria inconsequente.
Wiley levou a caneca quente aos lábios de Keyes e deixou que ele
sorvesse.
“Brian”, disse ele vertiginosamente, “vamos limpar este Estado inteiro.
Vamos devolver tudo para Tom e o povo dele. Devolver para os malditos
guaxinins. Imagine: todos os condomínios, os hotéis grã-finos, os campings
de trailer, os estacionamentos, as casas de campo, a merda da Disney World
— uma cidade-fantasma, cara. Todos os idiotas que invadiram a Flórida
nesses trinta anos e transformaram tudo num monte de bosta vão para longe
daqui... isto é, aqueles que não morrerem no estouro da manada.”
Os olhos castanhos de Wiley estavam firmes e intensos; ele estava
perfeitamente sério. Brian Keyes se perguntou se não estava cara a cara
com a materialização da insanidade.
“E como você vai conseguir esse milagre?”, perguntou ele.
“Publicidade, meu caro. Publicidade negativa”, grasnou Wiley. “É a
minha especialidade, esqueceu? Vamos virar todos os cartões-postais do
avesso. O sol tropical, as palmeiras alegres, as ondas murmurantes — daqui
para a frente, vai ser a Transilvânia do Sul.”
Um cartão-postal para pôr um fim em todos os outros, pensou Keyes.
“Quando digo publicidade negativa”, continuou Wiley, “quero que
busque os limites da sua imaginação. Faça uma retrospectiva e pense nos
grandes desastres do planeta — a peste negra, Pompeia, Hiroshima.
Imagine ser secretário de Turismo em Hiroshima em 1946! O que você
faria, Brian? Ou pense nos tempos modernos: tente vender quotas de um
condomínio em Beirute Ocidental. Claro, não seria uma tarefa das mais
fáceis, mas não dá para comparar com o que isso aqui vai ser quando eu e
os rapazes terminarmos o trabalho. Quando tivermos concluído, meu chapa,
Marge e Fred e as crianças vão querer passar as férias na puta que pariu, na
tundra do Círculo Ártico em vez de pensar em pôr os pés em Miami
Beach.”
Wiley estava andando de um lado para outro perto da fogueira, sua voz
se espalhando pelo matagal. Viceroy Wilson encontrava-se sentado
impassível na raiz de uma árvore, limpando as lentes de seus óculos
escuros. Jesús Bernal, nas proximidades da fogueira, movimentava-se como
um louco, ora brigando com os insetos, ora atirando a faca no tronco de
uma árvore. Tommy Rabo-de-Tigre estava nas redondezas, mas Brian
Keyes não conseguia vê-lo.
“Você matou Sparky Harper?”, perguntou Keyes a Skip Wiley.
“Ora, ora, ora.”
O bronzeador, o jacaré de borracha, a camisa havaiana cafona. Keyes
pensou: Quem mais, a não ser Wiley?
“E Ted Bellamy, o shriner?”
“Acho que ele está morto”, disse Wiley, jogando um galho na fogueira.
“E a garota no estacionamento do Seaquarium?”, perguntou Keyes.
“Brian, fique calmo. Nós só estamos tentando impor respeito. Ninguém
nos levou a sério no caso de Harper. Jesús, amigo, traga minha maleta.”
“Meu Deus, Skip, você está falando de assassinato! Três pessoas
inocentes — quatro se contar Ernesto Cabal. Você armou para ele, não foi?”
“Livrar-se do carro foi ideia de Viceroy”, reconheceu Wiley. “Ele era
seu cliente, eu sei, e sinto muito que ele tenha se matado. Por falar nisso,
você espetou mesmo a língua do advogado dele com um garfo de camarão?
Aquilo foi maravilhoso, Brian, fiquei muito orgulhoso quando me
contaram. Me passou pela cabeça que você deve ter aprendido alguma coisa
durante todo aquele tempo que passou sentado ao meu lado. Para sua
informação, tínhamos planejado libertar Cabal quando chegasse o momento
certo.”
“Es verdad”, disse Jesús, entregando a maleta.
“Fale inglês, seu pateta”, esbravejou Wiley. Ele se voltou para Keyes,
queixando-se: “O homem nasceu em Trenton e ainda faz o gênero Desi
Arnaz. Me tira do sério”.
Jesús Bernal foi se distanciando como um cachorro rejeitado. Wiley
abriu a maleta e disse:
“Vamos dispensar as preliminares. Preste atenção, Brian.” Wiley
segurou um calção de banho xadrez. “Theodore Bellamy”, disse ele.
“Acredito em você”, disse Keyes.
Wiley mostrou então uma peça frente-única de mulher e disse: “Renée
não-sei-do-que, a garota canadense.”
Com as duas mãos, Wiley balançou um colar de prata masculino com
um vistoso amuleto octogonal.
“Sparky Harper estava usando isto”, disse Wiley examinando o colar na
luz da fogueira. “Tem uma inscrição, ‘Promotor do Ano — Estado da
Flórida, 1977’. Tem o nome dele gravado atrás. Não esqueça de ressaltar
isto.”
Wiley repôs as coisas na maleta e a fechou.
“Você pode levar estas coisas de volta para Miami, por gentileza.”
Keyes sentiu-se aliviado. Estivera pensando na possibilidade de ser
morto no meio do pântano e não gostou muito da ideia, assassinado e
trajando apenas suas cuecas, com a boca cheia de formigas.
“Vi a coluna de Bloodworth”, disse Wiley. “Quanta vulgaridade!”
“Ele não é da sua estirpe, isto é certo.”
“Ele é um débil mental que não sabe nem escrever o nome.
‘Estrangulou-se até a morte’ é redundante, será que ele não sabe disso?”,
esbravejou Wiley. “Se fosse você, teria juntado as peças em dois dias. Você
teria percebido a ligação, Harper, Bellamy, Renée. Merda, você teria
mandado imprimir nossas cartas.”
“E você ia adorar isso”, disse Keyes.
Wiley não estava ouvindo.
“Brian, eu sei que você ainda tem boas fontes na polícia. O que é que
você tem escutado entre eles?”
Viceroy Wilson aproximou-se um pouco. Ele sempre estava interessado
em notícias da polícia.
“A Homicídios arquivou o caso de Harper quando Ernesto morreu”,
disse Keyes. “Quanto aos outros dois, nada de nada. Pessoas desaparecidas,
só isso.”
“Merda!”, explodiu Wiley. “Aqueles imbecis do cacete estão com
terroristas assassinos fazendo a festa e nem sabem disso! Está vendo o que
eu quero dizer quando falo de impor respeito, Brian? O que temos que
fazer? Diga, Viceroy, você é o historiador aqui. O Exército Simbionês de
Libertação teve esse problema?”
“Não, eles tinham a Patty Hearst”, replicou Wilson laconicamente. “Foi
um barulhão danado. Talvez a gente possa fazer uma lavagem cerebral em
alguma putinha branca famosa.”
“Sí”, disse Jesús Bernal, extraindo sua faca do tronco de uma árvore.
“Pia Zadora!”
Wiley sentou-se de pernas cruzadas em frente a Keyes.
“Está vendo o que eu tenho que aguentar?”, sussurrou ele.
“Skip — ou é El Fuego agora?”
“Skip está bom.”
“OK, o que você quer que eu faça?”
“Precisamos de uma testemunha”, disse Wiley enfaticamente. “Alguém
que seja irrepreensível. Alguém que possa voltar para Miami e assegurar
que somos legítimos e que não estamos brincando. Brian, queremos
reconhecimento. Queremos que o pessoal da polícia, da imprensa, da
política e da Secretaria de Turismo leve a gente a sério.”
“Ou seja, vocês querem que os nomes de vocês saiam no jornal.”
“O Noites de Dezembro, sim. O meu, não. Não até a hora chegar.”
Wiley inclinou-se mais para perto. “Se você voltar e contar de mim para os
tiras, vai complicar nossos planos. Pode ferrar tudo. Agora, se você quiser
dar uma de escoteiro e contar tudo, tudo bem. Mas se fizer isso, Brian,
depois vai se arrepender muito. Vamos soltar os demônios do inferno, e
tudo o que aconteceu até agora, os raptos, Sparky Harper, o resto, vai
parecer um episódio dos Waltons. Está entendendo o que eu estou falando?
Se eu pegar o Sun de amanhã e vir minha cara nele, aí eu e meus amigos
partimos para o jogo duro. Vamos jogar a moderação pela janela. E aí temo
que um certo pessoal que você e eu conhecemos, pessoas de quem
gostamos, repentinamente apareçam mortas. Estou falando de massacre
com M maiúsculo.”
Keyes nunca tinha visto Wiley tão cruel, ou escutado sua voz tão
pesada. Ele se perguntou se Wiley estava falando de Jenna, ou Cab, ou
amigos do jornal.
“Brian, se a gente fizer as coisas do meu jeito, no meu esquema, a
violência será reduzida a quase nada. Prometo que será. Se tudo andar do
jeito certo, em poucas semanas a verdade poderá ser publicada. Mas não
agora, é cedo demais. O meu nome só ia desviar as atenções, um fardo para
a organização e também para o meu trabalho aqui dentro. Portanto, que
permaneça como um segredinho só nosso por um tempo. O resto da saga
você pode contar. Aliás, é para isso que te convidamos para vir até aqui.
Aceita um pouco de ensopado de tartaruga?”
Keyes disse:
“Deixa ver se entendi direito. Estou escalado para voltar para Miami e
deixar todo mundo cagando de medo?”
“Exatamente”, disse Wiley.
“Com o quê, Skip? Com uma frente única e a medalhinha fuleira que
você me mostrou?”
Wiley balançou a cabeça.
“Isso aí é só uma colher de chá para os tiras, Brian. A coisa mais
importante que você vai levar, quando voltar para a civilização amanhã,
será seu testemunho.”
Keyes estava ficando cansado. Seus braços estavam adormecidos, seus
pulsos doíam e insetos invisíveis faziam a festa em seu corpo inteiro.
“Tá legal, Skip, eu volto e conto para os policiais que uma gangue de
radicais loucos me tirou de uma canoa, me amarrou em uma árvore e me
deu um chá que parecia mijo de gambá. É isso o que você quer?”
“Não é bem isso”, disse Wiley. Ele sorria malignamente, seus olhos
estavam gelados. “A gente quer que você volte e conte pra todo mundo que
viu um assassinato.”
O sangue de Keyes gelou.
Wiley levantou-se e alisou sua bota pseudoafricana.
“Tommy! Jesús! Viceroy!”, chamou. “Vão pegar a senhora
Kimmelman.”

A manhã, de fato, tinha começado muito bem para Ida Kimmelman. A


chegada dos cheques da pensão era sempre alentadora; além do mais, sua
irmã ligou de Queens, em Nova York, para dizer que Joel, o sobrinho mais
novo de Ida, finalmente conseguira entrar para a faculdade de direito. Não
era uma escola tradicional — ficava em algum lugar de Ohio e tinha um
nome com duas palavras —, mas, de qualquer forma, Ida saiu e comprou
um cartão para enviar a Joel. No geral, Joel era um bom rapaz, um pouco
desrespeitoso talvez, mas merecedor de encorajamento.
A verdade era que Joel, como a maioria dos parentes consanguíneos de
Ida, não podia suportá-la. Todos tinham sido mais chegados em Lou
Kimmelman, um sujeito doce com um aguçado senso de humor, mas ao
longo dos anos todos se perguntavam como ele era capaz de aguentar a voz
de tuba e a falta de charme de Ida. Com a vizinhança do prédio se dava o
mesmo: Lou era popular e com ele todos eram pacientes, enquanto Ida mal
era tolerada.
Quando Lou finalmente passou desta para melhor, os convites sociais
minguaram, o clube de bridge do quarto andar recrutou um novo casal, e
Ida Kimmelman foi praticamente abandonada no apartamento 4-K do
condomínio de Otter Creek Village, restando-lhe apenas a companhia de
seu cachorrinho Skeeter. Por alguma razão, o governo americano não notou
a morte de Lou Kimmelman, e continuou a enviar mensalmente o cheque de
duzentos e noventa e sete dólares e setenta e cinco cents do Seguro Social,
de modo que, com isso, Ida passava muito bem. Ela comprou um elegante
Ford Escort e se associou a um spa, e, toda terceira quinta-feira do mês,
levava Skeeter para passear no Canaã Canino, onde pintavam suas unhinhas
de cachorrinho de azul. Claro que seus vizinhos em Otter Creek
desaprovavam seu comportamento um tanto extravagante e achavam cafona
ela gabar-se tanto por continuar recebendo dois cheques do Seguro Social.
Mas Ida sabia que tinham mesmo era inveja.
Ida era bastante ambivalente em relação à morte de Lou. Em alguns
dias, sentia-se solitária, e imaginava que o que estava sentindo era mesmo a
falta de Lou. Quem mais compartilhara de sua vida por vinte e nove anos?
Lou fora contador de uma grande fábrica de calçados ortopédicos do
Brooklin. Era um trabalhador perseverante, que economizou algum dinheiro
apesar de Ida; Ida, que nunca desejou ter seus próprios filhos, que estava
sempre pensando num carro novo, numa plástica na barriga ou em móveis
novos para a sala de jantar. Quando chegou a hora de se aposentarem, os
Kimmelman discutiram para onde iriam. Todos os moradores do quarteirão
na mesma situação estavam se mudando para a Flórida, mas Ida não
gostava de ninguém do quarteirão e não queria nem pensar em se mudar
para a Flórida. Em vez disso, desejava mudar para o Sul da Califórnia e lá
fazer novos amigos. Mais precisamente, ela queria morar num condomínio
de frente para o mar em La Jolla.
Mas Lou Kimmelman era um contador astuto. Uma dolorosa noite, duas
semanas antes de a empresa ter lhe brindado com o tradicional Seiko de
ouro na festa de despedida, Lou sentou-se com Ida para mostrar-lhe os
extratos das aplicações do casal feitas no Chemical Bank e no Fundo
Keogh, e demonstrou-lhe conclusivamente que não podiam se mudar para a
Califórnia, a não ser que comessem comida de gato desidratada pelo resto
de suas vidas. Relutantemente, Ida aceitou a incontornável mudança para a
Flórida. Afinal, era impensável não se mudarem para qualquer lugar que
fosse depois que o marido se aposentasse.
Foi então que compraram uma pequena unidade de dois quartos no
condomínio de Otter Creek, três portas abaixo do apartamento dos Seligson,
e Lou Kimmelman rapidamente se tornou capitão do time de marelas e
sargento em armas da Associação dos Moradores de Otter Creek.
Quanto ao marido, a única coisa de que Ida Kimmelman realmente não
tinha saudades era das ocasiões em que ele se sentava na sala de estar (em
que mal caberia uma família de esquilos) com suas calças largas de
algodão, para ver TV, e perguntava: “Fale, você não está feliz por termos
vindo morar aqui, no fim das contas?”.
Lou Kimmelman fazia a mesma pergunta pelo menos três vezes por
semana, e Ida odiava isso. Às vezes, ela se perguntava amargamente se
também não odiava o próprio Lou. Ela costumava se espremer na sacada,
que na verdade não passava de uma borda decorada, e mirar o
estacionamento, e, além dele, a vastidão dos Everglades. Nesses momentos,
Ida imaginava como seria maravilhoso ter uma casa em La Jolla, onde se
pode sorver café olhando para todos aqueles jovens bronzeados em suas
coloridas pranchas de surf. Isso era o que ela chamava de aposentadoria.
Mas a realidade é que estava atolada na Flórida.
Depois que Lou morreu, Ida juntou os extratos bancários, mais as
declarações da E. F. Hutton, e apanhou a calculadora para somar todas as
suas posses — só para se dar conta de que Lou Kimmelman, com sua
maldita aritmética, havia sido absolutamente preciso. O Sul da Califórnia,
definitivamente, era tão acessível para Ida quanto um palacete nas margens
do Mediterrâneo.
Por isso, Ida enterrou seu sonho com Lou, e prometeu para si mesma
aproveitar ao máximo o que realmente tinha. Ela jamais admitiria perante
seus vizinhos de Otter Creek que sua infelicidade era tudo menos mágoa de
viúva, ou que, algumas vezes, especialmente durante o calor úmido do
verão da Flórida, ela desejava voltar para o Norte, na cidade, onde é
possível ir andando à mercearia sem ter que abastecer-se em um tanque de
oxigênio.
Dezembro, com suas noites mais frescas, não era assim tão insuportável.
Fugindo do inverno, a turba se transferia para o Sul e o condomínio se
tornava um lugar mais animado que em agosto, quando nada se movia, a
não ser o mercúrio do termômetro. Agora, paulatinamente, Otter Creek
estava acordando, recebendo outros casais que, muito tempo antes,
descobriram a Flórida como turistas ou na lua de mel e estavam voltando, já
aposentados, para tomar posse do lugar.
O centro da vida social era a piscina. Nadar era o que menos se fazia
nela, embora muitos boiassem ou ficassem sentados no rasinho como
profissionais. Havia sobretudo a fofoca, o esporte mais concorrido do
condomínio.
Quando Ida descia para a piscina, o que não era frequente, ela
normalmente acabava dominando os debates sobre o trânsito perigoso, as
taxas de juros inacreditáveis, e também as discussões sobre as criminosas e
gigantescas tarifas cobradas pelos hospitais. Cada fato revoltante era um
anúncio de ruína financeira, que era o tópico favorito das conversas à beira
da piscina. Ultimamente, depois que descobriu que o cheque do Seguro
Social de Lou continuava chegando, a metralhadora giratória de Ida passara
a poupar a economia e ela evitava as discussões de comadre. Ida adorava
expressar suas opiniões, mas também adorava seu spa.
Na manhã de 8 de dezembro, Ida Kimmelman seguiu sua rotina matinal:
rosquinhas quentes, dois copos de café, meio litro de suco de ameixa, TV
com David Hartman e o Sun-Sentinel, de Fort Lauderdale, que tinha
promoções de supermercado incríveis. Às dez horas, Ida costumava estar
maquilada e pronta para levar Skeeter para passear, mas naquele dia ela
estava atrasada, porque tinha que ir à Eckerd Drugs comprar um cartão para
seu sobrinho Joel, o estudante de direito.
Ida voltou ao apartamento às dez e meia, e encontrou um presentinho
mal cheiroso de Skeeter no tapete do quarto. Esta era outra razão pela qual
ela sentia falta de Lou, porque Lou sempre limpava as sujeiras do cachorro;
ele nunca sovava Skeeter ou ameaçava matá-lo do modo que Ida fazia.
Ela ficou tão brava com a gororoba no quarto que enganchou Skeeter na
coleira e o arrastou, ganindo, por quatro lances de escadas. Conduziu o
cachorro pelo canal de Otter Creek Village, perto do dique dos Everglades,
e afrouxou a coleira para deixá-lo correr.
Ida notou que não havia ninguém fora, ao redor da piscina. Pensou:
Esse pessoal! Um pouquinho de frio e eles correm para dentro de casa. A
brisa era agradável, também, embora desmanchasse seu penteado novo.
Depois de quinze minutos, Ida Kimmelman começou a sentir um pouco
de frio e desejou ter trazido um agasalho leve. Ela bateu palmas e gritou por
Skeeter, numa voz de barítono que parecia ter a capacidade de ser ouvida na
região de Orlando.
Mas Skeeter não veio.
Ida andou mais rápido ao longo do canal, com cuidado para não ficar
muito perto dele. Chamou Skeeter novamente, esperando ver, a qualquer
momento, a cara de seu poodle belamente escovado e registrado no Kennel
Club aparecer em meio à grama alta que se estendia nos barrancos do canal.
Mas não havia o menor sinal do cachorrinho.
Ida prosseguiu, berrando, chamando, resmungando, pensando: Ele só
está com raiva por causa do que aconteceu lá na escada. Ele vai voltar.
Logo ela se descobriu parada no meio de uma clareira de arbustos e
palmito, a mais de um quilômetro de Otter Creek. Os carrapichos grudavam
em seus fundilhos, e ela berrou quando uma gorda formiga resolveu
arrancar um bife do seu dedão do pé.
“Skeeter, meu lindinho”, gritou Ida Kimmelman com seu vozeirão já
descaindo, “vem para casa com a mamãe! A mamãe te adora!”
Repentinamente, ela ouviu o ruído de um movimento e se virou para ver
dois homens enfiados no meio dos arbustos; um deles negro e ameaçador, o
outro pequeno e sombrio. Nada assustou Ida Kimmelman tanto quanto o
fato de que o homem pequeno usava uma camiseta tipo regata, a marca
registrada do verdadeiro psicopata.
“Vocês viram meu cachorrinho?”, perguntou Ida nervosamente.
O negro assentiu com a cabeça.
“O Skeeter sofreu um acidente”, disse ele. “É melhor a senhora vir
rápido.”
“Que história é essa de acidente?”, gritou Ida Kimmelman, esquecendo
sua própria segurança e caminhando pesadamente para junto dos homens.
“Eu perguntei que história é essa de acidente.”
“Uma águia”, disse o negro. “Uma águia-pescadora, minha senhora.”
Quando viu o que tinha restado do pobre Skeeter, apresentado a ela
numa caixa de sapatos pelo homem de camiseta, Ida desmaiou. Quando
voltou a abrir os olhos, estava no aerobarco.

Parada diante de Brian Keyes estava uma mulher inteiramente


terrificada, com pouco mais de sessenta anos de idade, levemente acima do
peso ideal, entupida de ruge e creme no rosto. Sua boca estava fechada com
uma fita adesiva antifuracão de cinco centímetros de largura, e as mãos
estavam amarradas com uma corda. Seu cabelo cor de vinho estava
amontoado num nó de um lado de sua cabeça. Ela estava falando bastante
com os olhos.
Jesús Bernal desamarrou Keyes e o fez levantar-se.
Skip Wiley disse:
“Brian, esta é a senhora Kimmelman.”
“Skip, você ficou doido da cabeça?”, disse Keyes. “Isto é sequestro!
Você e os seus parceiros vão acabar indo para a cadeira elétrica lá em
Raiford.”
“A senhora Kimmelman e seu último marido descobriram o Sul da
Flórida em 1962”, disse Wiley, “quando passaram duas semanas na linda e
ensolarada Miami Beach. Eles ficaram no Beau Rivage e fizeram compras
na Lincoln Road. Foram ver um show de Jackie Gleason, não foi assim,
senhora Kimmelman?”
Ida Kimmelman fez que sim com a cabeça.
“Eles gostaram tanto que voltaram um monte de vezes”, disse Wiley, “e,
quando o senhor Kimmelman — que Deus guarde a sua alma — se
aposentou, eles resolveram se mudar para cá. Compraram um apartamento
em Otter Creek por quarenta e dois mil e quinhentos a doze por cento ao
ano. Eu diria que é um lugar de muito bom gosto, senhora Kimmelman.”
“Mmmmmmm”, protestou Ida Kimmelman através da fita adesiva.
“Skip, deixe ela ir embora.”
“Não posso fazer isso, Brian.”
Viceroy Wilson agarrou um dos braços pálidos de Ida Kimmelman, e
Tommy Rabo-de-Tigre o outro. Wiley fez um sinal com a cabeça e eles a
levaram para fora da clareira, penetrando na escuridão.
“Skip, eu não preciso ver mais nada. Deixe ela ir embora e eu faço o
que você está querendo. Eu vou voltar e digo para os tiras que você está
falando sério.”
“Não. Eu acho que você tem que ser convencido disso, convencido de
fato”, disse Wiley. “Eu, pelo menos, teria que ser convencido. Nós dois,
Brian, somos muito céticos. Não botamos a mão no fogo por ninguém. Esta
é a primeira lei do bom jornalismo: se sua mãe diz que te ama, é melhor
você comprovar isso.”
Jesús Bernal passou a Brian Keyes suas calças e disse alguma coisa
ininteligível em espanhol.
“Pode pôr as calças”, traduziu Wiley, “e venha atrás de mim.”
Em grandes passadas, Wiley avançava pelo matagal, enquanto Keyes
lutava para manter o mesmo ritmo. A grama e os espinhos machucavam
seus pés descalços, mas Jesús Bernal permaneceu perto dele com sua amada
faca, perto o suficiente para cutucá-lo com a lâmina a cada passo em falso.
À frente, Wiley saiu da proteção do mato e tomou uma trilha irregular
através da vastidão aberta e plana do pântano. Barulhento como um trator,
ele também era fácil de se seguir visualmente, com sua bata branco-sujo
trepidando na noite escura.
Keyes acelerou o passo para se livrar dos insetos, mas temendo pelo que
o aguardava. Jesús Bernal não dava nenhuma pista, resmungando a cada
passo.
Dez minutos depois, a caminhada foi abruptamente interrompida. A
terra firme chegara ao fim. Pararam diante da água. Keyes reteve a
respiração e estudou o cenário sob a luz amarela de uma lanterna: a sra.
Kimmelman esbaforia-se no chão, onde a tinham jogado; Wiley parecia
maravilhado e profético; Viceroy Wilson estava frio, impassível e
entediado; Tommy Rabo-de-Tigre, mergulhado na água até os joelhos,
estava de costas para a luz; Jesús Bernal expulsava mosquitos de seus
braços suados.
“Tommy”, disse Wiley, ofegante, “faça as honras da casa, por
gentileza.”
Tommy Rabo-de-Tigre agitou a água com as mãos e começou a bater
palmas.
“O que é isso, Skip?”, murmurou Keyes.
“Psiu!”
Tommy levou as mãos à boca e latiu, numa voz grave e profunda:
“Aaaarkk! Aaaarkk!”. Depois bateu na água com os pés.
Skip Wiley estendeu o braço com a lanterna e a apontou para o lodaçal.
“Aqui, rapaz!”, gracejou.
“Jesus Cristo”, disse Brian Keyes.
Uma sombra gigantesca desenhou um V muito bem delineado na água
lodosa, e não fez nenhum barulho enquanto nadava. Seus olhos tinham uma
cor vermelho-rubi, e o serpentear de sua cauda pré-histórica moldava um
sulco turvo no charco.
Agora Brian Keyes sabia o que tinha acontecido a Sparky Harper.
“Ele se chama Pavlov”, disse Wiley. “É um crocodilo norte-americano.
Devem existir só uns trinta iguais a ele no mundo inteiro. Ele mede mais de
seis metros de comprimento e pesa mais ou menos a mesma coisa que um
Porsche 915. Toda essa massa com um cérebro do tamanho de uma
tangerina. A natureza não é maravilhosa, Brian? Quem é que disse que
Deus não tem senso de humor?”
Keyes estava prestes a entrar em estado de choque. Ele observou
Tommy Rabo-de-Tigre inclinar-se para a frente, para acariciar o focinho
encouraçado do gigantesco réptil. De onde estava, Keyes podia ouvir sua
respiração sibilante.
“Essa coisa é... domesticada?”
Wiley riu.
“Deus meu, claro que não! Ele só sabe que o Tommy traz a comida, e
isso é tudo, Brian. Não tem lealdade nenhuma aqui. Veja, os crocodilos são
diferentes dos jacarés. Tommy cresceu junto dos jacarés e pode falar sobre
eles melhor do que eu.”
Sem tirar os olhos da fera, Tommy disse:
“Os crocos são mais maldosos, mais agressivos. Os jacarés engordam e
ficam preguiçosos.”
Wiley disse:
“Você nunca vai ver um semínole encarar um crocodilo numa briga, não
é verdade, Tommy?”
“Nunca”, concordou Tommy. “É preciso ser louco para fazer isso.”
Keyes temia que qualquer coisa que dissesse pudesse apressar a
cerimônia, por isso achou melhor ficar de bico fechado. Talvez, se Wiley
continuasse com sua tagarelice, o crocodilo se entediasse e fosse embora.
Nesse meio tempo, Ida Kimmelman estava soluçando e Jesús Bernal a
vigiava atentamente, para o caso de ela tentar levantar e correr. Keyes se
perguntava se Ida já se dera conta das intenções de seus sequestradores.
“Isto não é assassinato”, declarou Wiley, “é darwinismo social. São duas
espécies em perigo, Pavlov e a senhora Kimmelman, ambos no ringue para
um combate mortal. Ao vencedor, cabe esta gleba. É assim que tem que ser,
Brian.”
“Isso não é justo, Skip.”
“Não é justo? Existem nove milhões de senhoras Kimmelman, desde
esta região aqui até o Tallahassee, e só trinta malditos crocodilos. Isso é
justo? Quem tem mais direito de estar aqui? De quem é este lugar, afinal?”
Wiley já estava atingido uma velocidade perversa. Keyes recuou e
tentou outra estratégia.
“Senhor Wilson, por favor”, disse ele, “não deixe isto acontecer.”
Viceroy Wilson só queria mesmo que a coisa toda se desse logo por
encerrada, para que pudesse voltar ao acampamento, fumar um baseado e
puxar uma palha. Não fora ideia dele fazer a coisa daquele modo. A cena
que estavam presenciando fora bolada por Wiley e o índio. Viceroy Wilson
concordou visando acelerar o processo revolucionário e também evitar que
o índio se irritasse; o índio que, afinal, era muito generoso com seu
Cadillac.
Por essas razões, Viceroy Wilson disse o seguinte a Keyes:
“Se você não gosta disso, feche os olhos e não encha, cara.” Era
exatamente o que Viceroy Wilson planejava fazer.
Quanto a Pavlov, de parecia flutuar com prazer no charco, não muito
distante dos tornozelos de Tom Rabo-de-Tigre. Os olhos de monstro, duas
pelotas em brasa, estavam absolutamente indiferentes. Keyes imaginou que
via um certo divertimento neles — como se o dinossauro carnívoro
estivesse trabalhando junto com os esquemas de Skip Wiley.
Por ordem de Wiley, Jesús Bernal arrancou a fita adesiva da boca de Ida
Kimmelman e cortou as cordas que amarravam seus pulsos. Imediatamente,
ela começou a gritar tão alto que o barulho fez o crocodilo se aproximar da
margem.
“Por favor, fique quieta!”, ordenou Wiley.
“Quem você pensa que é...”
“Cale a boca, senhora Kimmelman! Vai ser uma luta justa, apesar do
que o senhor Keyes falou. A senhora e Pavlov vão dar uma nadadinha
juntos. Se a senhora sobreviver, pode voltar para casa.”
“Mas o que significa tudo isso?”, gritou Ida.
Wiley enrijeceu o queixo e massageou as têmporas.
“Significa uma disputa, pura e simplesmente isso. A senhora e Pavlov
lutam pelo mesmo território”, ele acenou sua mão para os Glades, “e estas
disputas devem sempre ser resolvidas em batalhas. Dois animais primitivos
lutando por necessidades elementares. É a ordem natural das coisas. Está
satisfeita com esse significado?”
“Mas eu não sei nadar!”, disse Ida Kimmelman.
“E daí? Pavlov não sabe jogar bridge. O que me leva a crer que vocês
dois estão quites.” Wiley estalou os dedos. “Viceroy!”
Viceroy Wilson segurou a sra. Kimmelman pelos ombros e começou a
conduzi-la firmemente na direção da água. Tommy Rabo-de-Tigre se
afastou do charco, secando os braços com a toalha.
“Brian, a cena vai ser um pouquinho pesada”, preveniu Wiley. “É
melhor você sentar.”
Keyes sentia-se nauseado e trêmulo. Abriu a boca, mas não pôde emitir
nenhum som. Deu um passo enojado em direção a Viceroy Wilson, depois
outro, e finalmente um grito lancinante saiu de sua garganta, e ele se viu
tomado por uma força incontrolável, arremetendo contra o corpo do jogador
de futebol.
Ele foi para cima de Wilson com as duas mãos, rosnando e sentindo as
próprias unhas penetrando a carne do jogador. Pela aparência de seu rosto,
Viceroy Wilson estava obviamente surpreso com a força de Keyes.
Keyes sentiu as artérias do pescoço do atleta sendo amassadas por seu
aperto, e viu a senhora Kimmelman atirando-se no chão de modo a se
colocar entre eles. A luz da lanterna piscou, e em seguida ouviu-se um
grito:
“Não, Jesús, pare!”
Era a voz de Skip Wiley, chegando tarde demais para deter Jesús
Bernal.
Keyes sentiu o ardor de um rasgo debaixo de sua axila direita, e dentro
dele alguma coisa metálica raspou suas costelas. Suas mãos se retraíram e
ele caiu para trás, ofegante. Uma onda de calor atingia seu flanco. Mesmo
com Wiley e o cubano nas suas costas, Keyes de algum modo manteve o
equilíbrio, até que Viceroy Wilson o colocou definitivamente no chão com
um vingativo cruzado de direita no queixo.
Rastejando depois do impacto, Keyes desejou profundamente que
Wilson o tivesse nocauteado. Tudo o que ele queria era acordar mais tarde,
quando tudo estivesse acabado, à luz do dia e da sanidade.
Mas Brian Keyes não estava inconsciente.
Ele estava deitado sobre o lado direito de seu corpo, encolhido,
empapado de sangue, olhando para o pântano enevoado, iluminado pela
lanterna. Keyes observou, impotente, quando Viceroy Wilson e Jesús
Bernal conduziram a sra. Kimmelman para a água. Pavlov submergiu
lentamente, deixando bolhas alegres no charco. Em pânico, Keyes observou
o cubano pegar a sra. Kimmelman pelos pés e o jogador de futebol agarrá-la
pelas mãos, e a balançarem duas vezes no ar e a soltarem — como se faz
nas festas de confraternização ao redor de uma piscina. Ela desabou na
superfície da água lamacenta como uma abóbora gigante caindo num
tanque, com a diferença de que esperneava enlouquecida e gritava como um
trovão.
“Vamos, pare com isso”, instruiu Wiley, fazendo o papel de técnico de
natação. “Bata as pernas e mantenha sua cabeça aprumada, para cima.”
Desordenadamente, a sra. Kimmelman tentava se aproximar da
margem, debatendo-se para vencer o lodaçal e transformando-o num monte
de espuma. O crocodilo gigante não estava visível em nenhum lugar, mas
horripilantes nuvens de lodo, vindas do fundo, turvavam a água. Então, a
superfície lugubremente aveludada do charco pareceu inchar.
“Socorro!”, suplicou a sra. Kimmelman.
“Continue nadando”, aconselhou Wiley. “Está indo bem, vamos lá, não
desista.”
Brian Keyes fechou os olhos quando a água finalmente explodiu.
Enquanto ia sendo tragada para o fundo, Ida Kimmelman pensou: Lou,
seu desgraçado, está feliz agora?
12

Brian Keyes tremia no convés do veloz aerobarco e observou o pálido


céu dos Everglades tornar-se alaranjado e vermelho com a aurora. No
assento do piloto estava Tommy Rabo-de-Tigre, seus cabelos esvoaçavam e
brilhavam de tão negros.
Keyes levantou a cabeça com um grunhido, mas o índio não podia ouvi-
lo por causa do ronco do motor. Tommy mantinha um ar sereno enquanto
fazia o barco deslizar agilmente através dos carriços.
Se Skip Wiley era o nervo central e exaltado do Las Noches de
Diciembre, Tommy Rabo-de-Tigre era a alma. Ele era um homem de
temperamento incomum — taciturno, às vezes pensativo, embora gracioso
externamente, até mesmo caloroso, poder-se-ia dizer. Era caladão, não
porque fosse tímido ou estranho, como cochicharia Jesús Bernal; Tommy
era calado porque era um observador. Nunca relaxe, nunca disperse o olhar,
nunca confie numa alma branca — as caras lições da história. Tommy
Rabo-de-Tigre não carregava o fardo de dor de seus antepassados para
estranhos verem; ele o carregava em seu coração e em seus sonhos, que o
martirizavam. Ele era atormentado pelo pesadelo de seu trisavô, o cacique
Rabo-de-Tigre, morrendo na horrível miséria de um pavilhão de prisão em
Nova Orleans. Rabo-de-Tigre, que nunca se entregou como Coacoochee, ou
foi ingenuamente atraído para uma emboscada e em seguida capturado,
como o eloquente Osceola; Rabo-de-Tigre, que repudiou a exigência, feita
pelo exército, de abandonar a Flórida esquecida por Deus, com sua febre e
mosquitos, e reconstruir a nação semínole no Arkansas, entre tantos outros
lugares. Arkansas! Rabo-de-Tigre, que desde o começo sentiu a
mendacidade do homem branco e lutou brilhantemente contra ela até o fim,
quando não sobrava praticamente nenhum guerreiro. Rabo-de-Tigre, que
fora capturado na batalha de Palatka e transportado de navio para uma
masmorra no Mississippi, onde logo morreu, tuberculoso, com saudades do
lar e falido.
Ao crescer, Tommy Rabo-de-Tigre memorizara os acordos rompidos —
Camp Moultrie, Payne’s Landing, Fort Gibson e os demais. Esses tinham
sido os dispositivos que varreram do paraíso todos os semínoles, com
exceção de uns trezentos guerreiros indomáveis, entre eles o bisavô de
Tommy, então um adolescente, que se escondera e lutara, e jamais assinara
um tratado com os Estados Unidos.
Viceroy Wilson havia lido sobre os semínoles, que o impressionaram
como alguns dos mais hábeis filhos da puta que já tinham manejado um
rifle. Quanto mais lia, mais Wilson se convencia de que o povo de Tommy
tinha tanta fúria para queimar quanto os negros americanos. Viceroy Wilson
temia pelo dia em que o ódio do índio se filtrasse em violência crua ou
magia sinistra, mas até agora Tommy se mantinha sob controle. Moderação
e boas maneiras lhe caíam bem. Ele se deslocava tão bem através do
emaranhado financeiro dos homens brancos quanto o fazia através das
trilhas do Grande Cipreste. Foi Tommy Rabo-de-Tigre quem fez do bingo, o
atávico fetiche dos idosos da Flórida, um grande e próspero negócio para os
semínoles; logo depois de o jogo ter sido legalizado nas reservas indígenas,
Tommy converteu alguns velhos hangares nas maiores casas de bingo do
mundo todo. Engenhosamente ele as adaptou aos vários segmentos de
mercado do Sul da Flórida: bingo judeu, bingo cubano, bingo do Brooklyn,
bingo dos vaqueiros. A tribo enriqueceu, e Tommy Rabo-de-Tigre
transformou-se num magnata, ainda que não se esforçasse muito para isso.
Era o dinheiro do bingo que bancava Las Noches de Diciembre, mas
Tommy parecia não se importar muito com a maneira como era gasto. Ele
falava pouco, e obedecia às ordens extravagantes de Skip Wiley com
impassível resignação. Nas reuniões noturnas dentro da floresta, em torno
da fogueira, era Wiley quem despertava a ira fulminante, quem punha raiva
e paixão nas palavras, mas era o espírito de Tommy Rabo-de-Tigre que
parecia predominar; foi nos olhos abrasados de Rabo-de-Tigre que Wiley
pareceu encontrar o objetivo puro de sua cruzada.
Enquanto seu aerobarco deslizava através da neblina da manhã, Tommy
Rabo-de-Tigre pensou pela centésima vez: É uma pena que o bisavô não
tivesse um barco desses. Eles jamais o pegariam.
“Mais devagar”, grasnou Brian Keyes batendo os dentes.
Tommy Rabo-de-Tigre deu uma olhada em seu prisioneiro.
Keyes desenhou nos lábios a palavra socorro.
O índio desligou o motor, e o aerobarco encostou para uma parada. O
silêncio pareceu repentino e imenso.
Tommy se livrou do cinto de segurança e se curvou sobre Keyes.
“Estou sangrando e vou morrer”, disse Keyes, apontando para sua
camisa encharcada.
“Não vai”, disse Tommy Rabo-de-Tigre. “Eu mesmo fiz o curativo na
ferida. E fui eu quem te medicou.”
“Não me lembro.”
“Gema de ovo de serpente e casca de salgueiro.” Tommy levantou a
camisa de Keyes e estudou o ferimento de faca. Gentilmente, colocou sua
mão na barriga de Keyes. “Você está gelado”, disse ele. “Vamos dar um
tempo, então.” Abriu o cantil de pele de toupeira e o levou à boca de Keyes.
O líquido estava quente e tinha gosto de fumaça, mais forte que qualquer
café conhecido pelo homem.
“Chá preto”, explicou Tommy Rabo-de-Tigre, “para cessar o delírio.”
“Tarde demais para isso”, disse Keyes num suspiro.
O semínole usava uma camisa de flanela de mangas compridas,
macacão de algodão rústico e botas de vaqueiro — as mesmas malditas
botas que estavam na choupana de Wiley. Tommy Rabo-de-Tigre não se
parecia com nenhum outro milionário da Flórida já visto por Brian Keyes.
O índio inspecionou o pântano.
“Estamos a seis quilômetros da estrada.” Tomou o assento do piloto e
embicou rumo ao sol nascente.
“Quando eu era garoto”, disse ele, “um rebanho de cervos de rabo
branco vivia aqui. Três machos, muitas fêmeas. Os corços raramente se
viam. No inverno, quando a água sumia, eu sempre encontrava o bando
pastando nestas margens. Quando fiz quinze anos era chegada a hora de
matar um deles, e foi o que eu fiz.”
Keyes sentou-se, revitalizado pelo estranho chá. Em circunstâncias
diferentes, a versão de Tommy para Bambi o teria tocado, mas Keyes mal
podia ouvi-lo. Estava preocupado com a egoísta noção de que deveria ser
levado para um hospital o mais rápido possível.
“Três anos atrás”, disse Tommy Rabo-de-Tigre, “os cervos morreram.
Cinco homens brancos vieram, forçaram todos a ir para a água e os
mataram a tiros. Os machos também. Eu fiquei observando deste lugar
aqui.” O índio descrevia a carnificina sem emoção, como se fosse algo que
ele esperara por toda a vida. Isto provocou em Keyes um gélido arrepio.
“Você deve estar imaginando o que estou fazendo com o senhor Wiley”,
disse o semínole. “Você não perguntou, mas imaginou do mesmo jeito. Esta
é a minha resposta: seu amigo, o senhor Wiley, acha que há uma chance de
rearranjar as coisas, de fazer com que aqueles que não são daqui vão
embora para sempre.”
“Mas isso é fantasia”, disse Keyes.
Tommy Rabo-de-Tigre sorriu um bonito sorriso, sua face de caramelo
brilhando.
“Claro que é fantasia. Claro que sim!” Ele riu suavemente, um riso
carregado de ironia. “Pergunte a qualquer um”, disse ele. “A Flórida é o
lugar onde as fantasias se tornam realidade. Agora deite-se, senhor Keyes,
estamos partindo.”
Com isso o índio ligou o motor e ambos se viram mergulhados no
barulho. O aerobarco fazia um voo rasante sobre o charco, e o vento parecia
atingir até a espinha de Brian Keyes. Ele se encolheu, colocando o rosto
sobre o frio convés de alumínio, e passou a contar baixinho os quilômetros
que ainda faltavam.

Pouco depois do meio-dia de 9 de dezembro, a enfermeira-chefe da


unidade de emergência do Flagler Memorial Hospital foi notificada por um
policial de que “um ônibus escolar com feridos graves” estava a caminho
do hospital.
Pensando no pior, que é a única maneira sã de fazer as coisas
funcionarem em Miami, a enfermeira imediatamente deflagrou a Operação
Laranja e recrutou cada um dos cirurgiões, anestesistas, atendentes de
enfermagem e técnicos de laboratório disponíveis do hospital. Os demais
pacientes — uma miscelânea de feridos abala, vítimas de overdose e
adolescentes em trabalho de parto — foram tirados do caminho, e a eles se
pediu que segurassem as pontas o máximo que pudessem. O Flagler
Memorial preparou-se para o mais alto grau de carnificina e catástrofe
possível.
Em segundos, a sala de emergência do hospital se encheu de repórteres,
equipes de televisão, fotógrafos e advogados. Depois de uma hora de
espera, todos estavam irritados, querendo saber afinal qual era a história do
tal ônibus repleto de órfãos mutilados. Onde estavam os helicópteros? E as
ambulâncias? Onde, diabos, estavam os condoídos pais das vítimas?
A enfermeira-chefe estava sendo olhada de modo pouco amigável pelos
cirurgiões ortopédicos (“Pelo amor de Deus! É domingo!”) quando
finalmente o ônibus encostou em frente à porta da sala de emergência.
Não era um ônibus escolar, embora possa tê-lo sido um dia. E, justiça
seja feita ao policial que passara a mensagem pelo rádio, o ônibus tinha as
cores certas: amarelo e preto, sendo o amarelo pintura e o preto ferrugem.
O motorista, um cara fleumático com uma Budweiser na mão, parecia
extremamente surpreso por ser recebido pelo brilho das luzes, por câmeras
e por aquele exército de gente tensa vestida de branco. Bêbado como
estava, o motorista podia sentir a decepção coletiva.
Na verdade, o ônibus não estava lotado com crianças mutiladas, mas
com trabalhadores perfeitamente saudáveis — jamaicanos, haitianos,
dominicanos e mexicanos, todos suados, empoeirados e irritados por terem
tido sua jornada diária de trabalho nos campos de tomates reduzida.
“Não estou entendendo”, disse a enfermeira, olhando para aquelas faces
escuras. “Cadê a emergência?”
“Olha lá a porra da emergência”, disse o motorista acenando o braço
gordo. “Lá em cima.”
A enfermeira levantou-se nas pontas de seus sapatos brancos e viu
aquilo a que o motorista estava se referindo: um rapaz amarrado no
bagageiro do ônibus. Ele parecia atordoado e semiconsciente, suas roupas
ensopadas de sangue. Por alguma razão, uma maleta fora colocada sob sua
cabeça estirada.
“Ã-ham!”, balbuciou a enfermeira dirigindo-se à multidão. “Podem
ficar calmos agora.”
Imediatamente dois atendentes subiram ao teto do ônibus e
desamarraram Brian Keyes. Quando o colocaram numa maca e o levaram
para dentro do hospital, a sala de emergência se esvaziou com um
murmúrio em uníssono. Permaneceu na sala apenas um repórter disposto a
fazer perguntas: Ricky Bloodworth.
Ninguém se deu o trabalho de apanhar a maleta do teto do ônibus de
imigrantes. Por milagre ela permaneceu lá, sem nada que a prendesse, até
quase a metade do caminho de volta para o Immokalee, onde
acidentalmente o ônibus atropelou um gambá ao cruzar a Estrada 41. A
freada lançou a maleta — que continha todas as provas fatais de Skip Wiley
— no canal Tamiami, onde ela afundou, ainda fechada, e foi parar numa
toca de jacaré.
Al García estava com o humor belicoso. Ele odiava o turno da noite
quando não podia ir para a rua, e não podia estar na rua porque estava
encarregado da equipe de apoio à patrulha motorizada. A equipe de apoio
era um lugar tedioso para um investigador; não havia nada para investigar.
O ponto alto da noite foi quando um dos caras do grupo de cães chegou
com o banco de trás do carro do esquadrão repleto de pedaços de um gato
morto. O policial disse que o gato tivera um ataque de loucura e avançara
sobre seu pastor alemão, sem que o cão tivesse outra alternativa senão
revidar — foi algo horrível de se presenciar. García disse: “Deve ter sido
mesmo, companheiro”, e anotou o ocorrido, meditando sobre as mais
nojentas possibilidades.
Al García não suportava a ideia de sua carreira terminar dessa forma,
num escritório molambento dentro de um estacionamento lotado de
camburões.
Ele ainda estava furioso com os dois gorilas da corregedoria que
invadiram sua casa à procura de uma máquina de escrever que não estava
lá. Cada um deles tinha levado cópias das cartas de El Fuego para comparar
as letras com qualquer coisa que encontrassem. Mas tudo o que
encontraram foi um maço de cartas cheias de ódio garatujadas
manualmente, que García havia escrito para Lee Iacocca, o presidente da
Chrysler. Por alguma razão, quase todos os carros de polícia do país são da
Chrysler, e Al García calculava que passara pelo menos quarenta mil horas
de sua vida dirigindo automóveis fabricados pela Chrysler: Furies,
LeBarons, Diplomatas, Monacos, Darts e quantos outros você queira. Al
García era um especialista em Chryslers, os quais ele na verdade detestava.
Detestava os volantes, detestava os amortecedores, os freios e os rádios. Em
especial, García detestava os assentos. Ele tinha hemorroidas do tamanho
de pimentões e isso era tudo culpa de Lee Iacocca. Por isso, García esboçou
um punhado de cartas bem apropriadas, que sabiamente jamais enviou.
Tradicionalmente, as cartas costumavam começar assim: “Prezado Cabeça-
de-Bagre”. Por algum motivo, os caras da corregedoria acharam isso
fascinante. Eles enfiaram as cartas em saquinhos plásticos de coleta de
provas e trocaram sussurros de congratulação. García os mandou tomar no
cu quando estavam a caminho da porta.
Ele não esperava encontrar os caras da corregedoria de novo tão cedo,
por isso ficou surpreso quando um dos babacas apareceu no departamento
de patrulha motorizada naquela noite. García se lembrou que o seu nome
era tenente Bozeman. Era muito jovem para ser tenente, e bem vestido
demais para ser um bom tira.
“Espero que você esteja precisando de um carro”, disse García. “Você
gosta de gatos?”
Bozeman sentou-se sem ser convidado. Tirou um bloco de anotações do
bolso do casaco.
“Só algumas perguntas, sargento, se o senhor não se importar.”
“Me importo sim, paspalho. Estou muito ocupado agora, caso você não
tenha percebido. Tenho seis unidades esperando para fazer o rodízio dos
pneus, o para-choques de um camburão para repor, e no meio da
Rickenbacker Causeway a transmissão de uma viatura pifou. Eu adoraria
poder ajudar você, mas não tenho tempo.”
Bozeman disse:
“Harold Keefe acha que você escreveu as cartas de El Fuego.”
“Por que eu faria uma coisa estúpida dessas?”
“Para colocar Hal em maus lençóis.”
“Para isso, ele não precisa da minha ajuda.”
Bozeman rabiscou algo no bloco de anotações.
“Você não foi reprovado para a promoção do ano passado?”
“Hum-hum!”, disse García. “Fui mal na competição de natação. E daí?”
Rabiscos, rabiscos. A fricção da caneta dava nos nervos de García.
“Você não vai muito com a cara do detetive Keefe, não é, García?”
“Eu adoro o detetive Keefe”, disse García. Ele ergueu o corpo e apontou
um dedo marrom e gordo para Bozeman. “Gosto muito do Hal”, sussurrou
García. “Na verdade, eu quero ele.”
“Isso não tem graça”, disse Bozeman cerimoniosamente.
“Tem razão, isso é muito triste. Imagine, Hal não me quer... Como você
disse que é o seu primeiro nome mesmo?”
“Eu não disse.”
Bozeman começou a anotar novamente. García o tomou pelo braço,
firme.
“Gosto de você também, tenente.”
“Pare com isso.”
“Ora, não seja tímido. Você é casado?”
“Sargento, chega!”
“Você também não me quer?”, disse García franzindo as sobrancelhas.
“Não.”
“Então o que é isso aí inchando debaixo da sua calça, minha boneca?”
Bozeman se esquivou, como se tivesse esbarrado num forno. García
quase morreu de rir e sentou na mesa.
“Você!” Bozeman tentou, com muita dificuldade, parecer durão, à la
Charles Bronson, mas foi traído pelo rubor que lhe subiu à face. “Você não
passa de um psicopata, sargento García.”
“E você não passa de um monte de bosta bem vestida.” García se
levantou e manteve a respiração bem no rosto do tenente. “Agora cai fora
daqui antes que eu enfie esta caneta Bic nos fundilhos do seu terno Brooks
Brothers. E anote isto: quem quer que tenha escrito as cartas de Fuego é
mais louco que eu, e ele não está brincando.”
Depois que o cara da corregedoria saiu, García não tinha muito o que
fazer, então apanhou um manual de polícia e abriu no capítulo “Depravação
moral”. A definição não era lá tão ruim, mas, Deus do Céu, esse par de
palavras de fato saltava da página. Especialmente depravação, que
inspirava imagens de cães dinamarqueses com dançarinas cheias de
elasticidade. Certamente, eles não iriam tão fundo a ponto de investigar o
que se passava entre as quatro paredes da própria casa de Al. Se a
corregedoria resolver me fichar, pensou García, talvez tenham a decência de
alegar uma simples “insubordinação”. Com um bundão como Bozeman,
tudo era possível.

A reportagem de Ricky Bloodworth começava mais ou menos assim:

Um detetive particular local foi esfaqueado e deixado como morto


numa rodovia ao longo dos Everglades no domingo.
Disse a polícia que Brian Keyes, trinta e dois, foi atacado e
abandonado na Tamiami Trail, a cerca de vinte e três quilômetros a
leste de Naples. Keyes foi avistado por um motorista de ônibus que
passava no local e transportado para o Flagler Memorial Hospital,
onde foi considerado em condições estáveis logo depois de uma
cirurgia.
Keyes, ex-repórter de Miami, disse ao Sun que estava passeando
numa canoa quando foi sequestrado, roubado e espancado por dois
homens eslavos, que usavam perucas e máscaras de Halloween.
Bloodworth acabou de datilografar sua reportagem e a levou para a sala
de Cab Mulcahy. Mulcahy encontrava-se sentado atrás da mesa, ditando
cartas, tentando ocultar seu verdadeiro estado de penúria. Usava uma
luxuosa camisa de malha esporte — de um formidável limão-pastel,
impecável.
O velho garoto jamais aparecia na redação nos finais de semana;
Bloodworth se perguntou o que estaria acontecendo.
“O senhor disse que queria ver isto?”
“Sim, Ricky, sente um pouco.” Mulcahy pegou a reportagem e a leu,
Levou um longo tempo nisso; parecia ler cada frase duas vezes.
“A dúvida é com a assinatura?”, perguntou Bloodworth, preocupado.
Mulcahy enrugou a testa.
“O quê?”
“Minha assinatura. Eu mudei.” Bloodworth levantou-se, deu a volta na
mesa e apontou para a assinatura por sobre o ombro do editor. “Está vendo?
Richard L. Bloodworth em vez de Ricky.”
“Ah, sim.”
“Acho que fica melhor”, disse Bloodworth. “Mais profissional.”
O que realmente aconteceu foi isto: Ricky Bloodworth tomou café da
manhã com um correspondente do New York Times, que lhe explicou que o
Times simplesmente não emprega gente chamada Ricky. Que tal assinar
apenas Rick?, perguntou Bloodworth. Bem, Rick era um nome sonoro para
um técnico de futebol da segunda divisão, disse o repórter, da forma mais
gentil que pôde, mas de fato não era um nome apropriado para um jornalista
de classe internacional. Bloodworth sentiu-se desolado com essa revelação,
pois passara metade de sua vida adulta enviando seu currículo para Abe
Rosenthal, o editor do New York Times, sem receber nem sequer um cartão-
postal em resposta. Agora ele sabia por quê. Ele pressionou o homem do
Times para mais umas dicas e o sujeito lhe contou que todo mundo no Times
usava uma inicial no meio da assinatura, porque pesquisas indicavam que
iniciais no meio proporcionam credibilidade junto a vinte e três por cento
dos leitores do jornal.
Ricky Bloodworth achou que essa era uma grande ideia e rapidamente
se apaixonou pelo efeito de Richard L. Bloodworth na tela do terminal.
“E então, gostou?”
“Está interessante”, disse distraidamente Mulcahy. Pessoalmente, ele
não se importava se Bloodworth chamasse a si mesmo de Richard L. Ducha
de Água Fria. Mulcahy estava mesmo era preocupado com Brian Keyes.
“O que mais ele disse?”
“Não muito. Deram-lhe um tranquilizante lá no hospital e ele estava
meio grogue”, disse Bloodworth. “Ficou perguntando pela Jenna.”
Mulcahy deu um suspiro introspectivo.
“Ele mencionou mais alguém?”
“Não. Essa história está muito mal contada. O que você acha que ele
estava fazendo por lá numa canoa?”
“Não faço ideia.” Mulcahy devolveu a Bloodworth sua reportagem.
“Bom trabalho, Richard L. A nova assinatura me parece esplêndida.”
“Obrigado”, disse Bloodworth, encantado. “Vou usá-la também na
coluna.”
A úlcera de Cab Mulcahy gemeu.
“Ricky, queria te dizer que a coluna foi suspensa. Precisamos de você na
cobertura do dia a dia.”
“Claro, Cab”, disse Bloodworth com a voz magoada. Depois, voltou à
carga: “Queria dizer que vou ver Brian Keyes outra vez amanhã. Tentar
uma entrevista com todos os detalhes.”
Mulcahy balançou a cabeça.
“Deixe ele descansar.”
“Mas seria uma cobertura de segundo dia ótima...”
“O homem simplesmente teve seu tórax dilacerado. Dá um tempo,
certo? Além disso, alguém é esfaqueado a cada trinta segundos em Miami.
Não é mais notícia. Talvez ainda seja em Spudville, no Iowa, mas não
aqui.”
Não é notícia. Isso era tudo o que Bloodworth precisava ouvir.
Ele voltou à sua mesa e se pôs a praticar a nova assinatura. Chegou a
experimentá-la com outras iniciais no meio, apenas para checar o efeito:
Richard A. Bloodworth, Richard B. Bloodworth, Richard C. Bloodworth, e
assim por diante. Havia algo de interessante numa vogal como inicial do
meio, e ele se perguntou se sua mãe ficaria magoada se ele mudasse seu
nome do meio para Attenborough em vez de Leon.
Bloodworth ainda estava às voltas com o assunto uma hora depois,
quando um editor lhe entregou um boletim policial sobre uma velha senhora
que desaparecera de seu condomínio em Broward. Ao ler o relato da polícia
sobre o desaparecimento da sra. Kimmelman, Bloodworth de repente se
lembrou de que do alto do seu delírio, provocado pelo Demerol, Brian
Keyes, na maca, lhe sussurrara algo mais do que o negócio dos raptores
eslavos.
“Ida está morta”, Keyes lhe dissera.
Richard L. Bloodworth apagou o que havia escrito e começou a
telefonar como um louco.
13

Skip Wiley tinha um plano.


Isso era o que dizia a eles — o índio, o jogador de futebol e o cubano —
sempre que se mostravam impacientes.
“Confiem em mim, rapazes, eu tenho um plano!”
E ele era um excêntrico tão convincente que normalmente eles se
acalmavam. Wiley os dominava — até mesmo a Viceroy Wilson, que
pensava que Wiley daria um virtuoso telepastor. De todos os membros do
Las Noches de Diciembre, apenas Wilson estava absolutamente convencido
da sanidade de Wiley. Mesmo odiando “brancos”, Wilson achava Skip
Wiley tremendamente divertido.
Jesús Bernal, por sua vez, não via graça nenhuma. Achava Wiley um
lunático irresponsável, e jamais perdia a oportunidade de dizer isso. Bernal
acreditava que a disciplina era essencial para a revolução; Wiley, claro,
pensava exatamente o contrário.
Geralmente era Viceroy Wilson que tinha de aguentar o mau humor do
cubano, já que o índio simplesmente os ignorava. Sem Wiley por perto,
Tommy Rabo-de-Tigre invariavelmente subia em seu aerobarco e sumia
pelos Everglades sem dizer uma palavra. Viceroy Wilson não se importava,
desde que Tommy deixasse a chave do Cadillac.
Na manhã de 10 de dezembro, Skip Wiley saíra e o índio desaparecera,
deixando Viceroy Wilson sozinho com Jesús Bernal. Instruídos por Wiley,
os dois rumavam para Miami para uma importante missão.
“Ele está loco”, dizia Bernal. “Você viu os olhos dele?”
“Apenas bebeu uma meia dúzia”, lembrou-lhe Wilson.
“Louco filho da mãe. Todo esse trabalho, e o que conseguimos com
isso? Nada. Lembra de toda a publicidade que ele prometeu? NBC! Geraldo
Rivera! Revista Mother Jones! Cadê?”
Jesús Bernal não falava mais espanhol na presença de Viceroy Wilson,
porque Wilson prometera matá-lo se o fizesse. O simples som de alguém
falando espanhol dava a Wilson uma enxaqueca desgraçada. A ópera tinha
o mesmo efeito.
“O homem tem um plano”, disse Wilson. “Por isso, dá um tempo.”
“Que plano? Ele é doido!” Nervosamente, Bernal amarrou as
extremidades de sua camiseta. “Ainda acabamos todos na cadeia, menos
ele. Ele vai ficar na clínica de Betty Ford, enquanto eu e você pegamos
vinte e cinco anos na prisão de Raiford, levando no cu na hora do banho.”
“Seria uma boa experiência para você.”
“Não me venha falar de planos”, bradou o cubano.
Viceroy Wilson colocou uma fita de Lionel Richie.
“Abaixa o volume dessa coisa.” Jesús Bernal esticou o braço na direção
do botão de volume, mas foi bruscamente interceptado por Wilson. “OK, OK!
Santo Deus, vai com calma.” Bernal não conseguia ver os olhos de Wilson
atrás dos óculos de sol Carrera; o que era, na verdade, uma vantagem.
“Que tal falar sobre Dartmouth?”, disse Wilson num tom artificial que
lembrava o da Ivy League. “Você se destacou?”
“Aquele não era eu, mas outro Jesús Bernal. Sou uma pessoa diferente
agora.”
“Que pena”, disse Wilson. “Fale um pouco do Movimento Primeiro Fim
de Semana de Julho.”
“Nem pensar!”
Wilson riu secamente. Ele havia consultado livros na Biblioteca
Municipal de Miami.
“Por que eles te expulsaram?”
“Eles não me expulsaram, coño, eu é que caí fora!”
Viceroy Wilson não gostou do som que a palavra coño causou em seus
ouvidos, mas deixou isso para lá. Estava se divertindo bastante. Esperava
por isso desde a primeira vez que Jesús Bernal sacara sua navalha. Bernal
era um valentão, suas atitudes de homem mau eram cuidadosamente
ensaiadas; Viceroy Wilson teria adorado jogar futebol com Jesús Bernal. Só
uma jogada. Trinta e um Z-direita.
“Então, me conte sobre as bombas.”
Bernal fez uma careta.
“Vamos lá, Jesús. Eu li que você era o encarregado das munições.”
“O meu cargo era o de ministro da Defesa!”
“Sim, isso foi mais tarde. Estou falando de 1978, junho de 1978.”
O lábio superior de Bernal estremeceu. Ficou olhando pelo vidro do
carro e começou a cantarolar “All night long”, batucando nos joelhos.
“Quinze de junho de 1978”, disse Viceroy Wilson.
“Aumente o volume do toca-fitas.”
Eis o que aconteceu na tarde de 15 de junho de 1978: Jesús Bernal
fabricou uma carta-bomba destinada a matar um famoso apresentador de
televisão de Miami. Essa celebridade televisiva fora atrevida a ponto de
sugerir que os Estados Unidos deveriam enviar medicamentos de
emergência para uma província de Cuba, onde um surto de gripe castigava
centenas de crianças.
O programa de TV realmente fizera esse apelo em favor de Cuba no ar.
Em Dade County, na Flórida.
Jesús Bernal, o homem da munição do Movimento Primeiro Fim de
Semana de Julho, viu o apresentador e imediatamente entrou em ação. Ele
levou apenas duas horas para confeccionar uma imperceptível carta com
pólvora, C-4, vidro moído, arame e cápsulas explosivas. Enviou a carta para
o apresentador no estúdio, colocando-a numa caixa do correio no
cruzamento da Southwest Eighth Street com a Estrada LeJeune (o mesmo
cruzamento no qual, anos depois, o pobre Ernesto Cabal mascatearia suas
mangas e mandiocas).
Às quatro horas e dez minutos do dia 15 de junho de 1978 — dez
minutos depois de Jesús Bernal ter depositado o envelope letal — a caixa
do correio explodiu. Ninguém morreu. Ninguém foi ferido. E nem sequer
foi uma explosão barulhenta, pelos padrões de Miami.
Jesús Bernal sabia que estava em apuros. Freneticamente, telefonara
para meia dúzia de estações de rádio cubanas anunciando que o Movimento
Primeiro Fim de Semana de Julho se responsabilizava pela bomba. E todos
perguntavam: que bomba?
Dois dias depois, por ordens superiores, Jesús Bernal teve que tentar de
novo, Outra carta-bomba, outra caixa do correio. Outra detonação
prematura. Desta vez conseguiu a seguinte manchete nos jornais: “Federais
procuram vândalos das caixas postais”.
Quando Jesús Bernal teve que traduzir essa manchete para o
comandante do Movimento Primeiro Fim de Semana de Julho, o velho
irrompeu em fúria, chacoalhando o jornal com os pulsos cheios de
cicatrizes, tremendo. Somos terroristas, não vândalos! E você, Jesús, é um
maricón. Faça outra bomba, uma grande bomba, e mate o coño da televisão,
ou você verá o que vai te acontecer... O comandante era um respeitado
veterano da baía dos Porcos, e devia ser obedecido de qualquer maneira.
Jesús trabalhou rapidamente.
Foi a terceira bomba a responsável por páginas no Times e na U. S.
News & World Report, nos quais Viceroy Wilson leu a respeito anos depois,
nas prateleiras da Biblioteca Municipal. A terceira bomba era um
dispositivo delicado, embora extremamente poderoso, com o poder de fazer
um carro voar pelos ares. Jesús Bernal passou quatro dias construindo a
bomba na cozinha de uma pensão em Little Havana. Ele transportou
pessoalmente o dispositivo para a emissora de televisão, onde,
meticulosamente, colocou-o dentro de um El Dorado verde-escuro, o qual,
na escuridão da noite, pareceu-lhe idêntico ao do sedicioso apresentador.
Infelizmente, o El Dorado não era idêntico; na verdade, não se tratava
do mesmo automóvel. O El Dorado que explodiu na Via Expressa Dolphin
em 22 de junho de 1978 pertencia a um homem chamado Salvatore “O
Talhador” Buscante, um notório agiota e pornógrafo que frequentemente
jogava baralho com Meyer Lansky.
As manchetes do dia seguinte diziam: “Terroristas anti-Castro
reivindicam autoria de atentado contra mafioso”; “Polícia tenta desvendar
conexão cubana”.
Jesús Bernal foi imediatamente expulso do Movimento Primeiro Fim de
Semana de Julho e convidado, sob ameaça de morte, a deixar a Flórida. Ele
passou dez meses malditos em Union City, até ser chamado novamente pelo
comandante, que sentia falta da sagacidade de Jesús Bernal como relações-
públicas. E daí que ele mandara o cara errado pelos ares? Ele conseguiu
publicidade, não conseguiu?
Sob os protestos de quase todos os guerrilheiros durões do Movimento
Primeiro Fim de Semana de Julho, o comandante promoveu Bernal ao
cargo de ministro da Defesa e lhe comprou uma Selectric da IBM. Daí em
diante, o Primeiro Fim de Semana passou a ser conhecido por ter os mais
impecáveis press-releases do hemisfério. Neste novo papel, Jesús Bernal foi
um inovador: chegava a mandar comunicados com tipologia apropriada —
itálico para atentados a bomba, negrito para assassinatos políticos. Mesmo
os durões mais céticos tiveram que admitir que o rapaz de Dartmouth tinha
estilo. Rapidamente o Primeiro Fim de Semana de Julho se tornou o mais
proeminente movimento anti-Castro dos Estados Unidos.
No verão de 1981, sob o inspirado comando de Bernal, os terroristas
deflagraram uma ambiciosa campanha de relações públicas para
desacreditar Fidel Castro. Embora esse esforço tenha conseguido
publicidade nacional, também acabou causando a segunda e definitiva
expulsão de Jesús Bernal do Movimento Primeiro Fim de Semana de Julho.
O primeiro fato importante da campanha foi uma “carta” de um
renomado médico suíço afirmando que Fidel Castro estava morrendo de
uma rara doença venérea transmitida por galinhas. O mal era supostamente
diagnosticado por um grotesco número de sintomas, sendo o mais ameno
deles acentuada insanidade. Evidentemente, a carta do médico suíço não
passava de uma invenção de ninguém menos que Jesús Bernal, mas o
documento foi tão inquestionavelmente aceito em Miami e com tanto fervor
patriótico que Bernal resolveu divulgá-lo também em Cuba. Ele montou um
ousado esquema e persuadiu o comandante a doar dezenove mil e vinte e
dois dólares — que representavam, tristemente, todo o caixa do Movimento
Primeiro Fim de Semana de Julho para a operação.
Não por acaso, Jesús Bernal escolheu o primeiro fim de semana de julho
de 1981 para a data do ataque: o fim de semana em que Fidel finalmente
cairia. Em Little Havana, o clima era de júbilo e conspiração.
Mas isso não duraria muito. Em 4 de julho de 1981, um avião DC-3 de
carga, voando a baixa altitude, espalhou seis toneladas de folhetos anti-
Castro sobre a cidade turística de Kingston, na Jamaica. A população da
cidade ficou perplexa, uma vez que o folheto fora escrito em espanhol;
apenas as palavras Castro e sífilis diziam alguma coisa aos jamaicanos. Um
dos folhetos foi mostrado ao primeiro-ministro da ilha, que imediatamente
contatou Fidel Castro para expressar seus sentimentos a respeito de sua
infeliz doença.
Mais tarde, sob a pressão humilhante do comandante, Jesús Bernal
admitiu que, não, ele jamais estudara navegação aérea em Dartmouth.
Bernal argumentou que tudo não passara de um erro honesto — a treze mil
pés de distância, Kingston não era assim tão diferente de Havana. Foi aí que
Jesús sacou seu trunfo: um exemplar do New York Times. Três parágrafos na
página 15-A, no resumo das notícias internacionais: “Ônibus de turistas cai
danificado por queda de carga aérea”.
Mas o comandante e seus homens não se acalmaram: Jesús Bernal foi
definitivamente expulso do Movimento Primeiro Fim de Semana de Julho.
“Sei tudo sobre as bombas”, disse Viceroy Wilson enquanto rumavam
para Miami, anos depois. “Você só está fazendo isso para se redimir.”
“Ha! Eu sou um herói para todos os combatentes da liberdade.”
“Você me dá pena, seu bundão”, disse Wilson.
“Olha só quem está falando, logo você que não passa de um viciado.”
“O que você disse?”
Por sorte, a música estava bem alta.
“Nada”, disse Jesús Bernal. “Você passou batido pela maldita saída.”
Ele estava se irritando com Viceroy Wilson. “Você nem mesmo diz
obrigado.”
“Obrigado por quê?”, perguntou Wilson por detrás de seus óculos de
sol.
“Por ter lhe salvado a vida quando aquele cara tentou estrangulá-lo.”
Wilson deu uma gargalhada.
“O cara não passava de um mosquito, meu chapa!”
“Mas você pareceu bastante assustado quando o mosquito agarrou seu
pescoço. Seus olhos quase saltaram para fora dessa sua cara de chocolate
que aquele mosquito estava apertando tão forte.”
“Meeerda...”
“É isso aí, me deve uma, compadre.”
“Se alguém tem que agradecer alguma coisa esse alguém é você. Você
passou toda a sua vidinha cubana esperando para apunhalar alguém pelas
costas e eu te dei essa oportunidade. Imagino que isso te faz se sentir
homem, não faz? Por que não procura seus velhos camaradas e vê se te
aceitam de volta?”, aconselhou Viceroy Wilson em franca zombaria.
“Talvez lhe deem o cargo de ministro das Navalhas.”
Jesús Bernal olhou zangado e resmungou algo grosseiro em espanhol.
“Eu cuspiria na mãe deles”, declarou. “Ainda que me implorassem de
joelhos, mesmo assim eu não voltaria. Nunca!”
Isso era uma grande mentira: Jesús Bernal ansiava por abandonar o
circo de Skip Wiley e se juntar outra vez à sua velha gangue de
chantagistas, terroristas especializados em bombas e incendiários
profissionais. No fundo do seu coração, Jesús Bernal acreditava que seus
talentos especiais estavam sendo desperdiçados. Cada vez que pensava nos
planos de Skip Wiley, materializava-se em seu estômago uma grande
úlcera. De certa forma, não conseguia imaginar as massas se mobilizando
atrás do El Fuego; além disso, se os métodos de Wiley fossem utilizados,
não sobraria nenhuma massa para ser mobilizada — todos teriam rumado
de volta para o Norte. Essas dúvidas começaram logo depois que Ernesto
Cabal se matou; culpa era uma emoção mortal para um valoroso terrorista,
mas culpa era o que Jesús Bernal sentia. Ele também não se sentia muito
bem em alimentar um crocodilo com pessoas estranhas. Não porque o
cubano simpatizasse com turistas gringos, mas porque o método peculiar de
assassinato de Wiley não se coadunava muito com o tipo de “mensagem”
política que o Las Noches de Diciembre deveria transmitir. E Jesús Bernal
se julgava, acima de tudo, um especialista em “mensagens” políticas.
“Este é o lugar”, anunciou Viceroy Wilson.
Ótimo, pensou Jesús Bernal. Tudo o que ele desejava no momento era
que Wiley o tivesse deixado sozinho com a máquina de escrever e os
explosivos.
Wilson estacionou o carro em frente a um prédio de escritórios de dois
andares que ficava na Biscayne Boulevard com a rua 79. Uma placa na
frente anunciava “Comissão Organizadora Orange Bowl da Grande
Miami”.
“Ajeite seu cabelo”, recomendou Wilson.
“Não enche!”
“Está parecendo um Marielito.”
“E você se parece com o jardineiro do meu pai.”
A recepcionista não gostou da aparência de nenhum deles.
“Sim?”, disse ela num polido sotaque sulista, inconfundível em seu
escárnio.
“Viemos por causa do anúncio”, explicou Viceroy Wilson, tirando seus
Carrera.
“Sim?”
“O anúncio para guardas de segurança”, disse Jesús Bernal.
“Guardas de segurança para o desfile do Orange Bowl”, disse Wilson.
“Entendo”, disse a moça sulina, cautelosamente entregando a ambos
uma ficha de pedido de emprego. “E os dois têm alguma experiência?”
“Nunca fizemos outra coisa na vida”, disse Viceroy Wilson, sorrindo
seu sorriso de goleador na hora do gol.

Quando Brian Keyes acordou, a primeira coisa que notou foi a presença
de uma mulher montada nele na cama do hospital. Sua cabeça loira
repousava sobre o ombro dele, e ela parecia estar dormindo. Keyes tentou
torcer o pescoço para verificar quem era, mas cada pequeno movimento que
fazia redundava em dores descomunais.
Todo o peso da mulher parecia concentrar-se sobre seu peito: as costelas
de Keyes ainda doíam em função da cirurgia. À procura de pistas, ele
começou a passar uma das mãos pelos cabelos suaves da mulher e a inspirar
a fragrância de seu perfume; fazer isso tudo não foi fácil, especialmente
com o tubo enfiado em seu nariz.
“Jenna?”, arriscou.
A mulher se ergueu resmungando um “hum” como resposta.
“Jenna, então é você?”
Ela lhe disse um “olá” com os olhos sonolentos.
“Sua voz está parecida com a do George Burns. Quer um pouco de
água?”
Keyes aceitou a água com um aceno e suspirou quando Jenna desceu da
cama.
“Onde conseguiu esse uniforme de enfermeira?”
“Gostou?”, perguntou ela fazendo uma pose. “Olhe só as meias
brancas.”
Keyes sorveu a água fria; sua garganta estava um forno.
“Que horas são? Que dia é hoje?”
“Dez de dezembro, meu querido. São dez e meia da noite. Aliás, já
acabou o horário de visita, por isso tive que usar esse uniforme.”
“Você daria uma enfermeira espetacular. Estou ficando melhor a cada
segundo.”
Jenna enrubesceu. Ela se sentou no pé da cama.
“Você estava tão gracinha enquanto dormia.”
Keyes fechou os olhos e simulou um ronco.
“Pare com isso!”, disse Jenna gracejando. “Você é gracinha de qualquer
jeito. Ah, Brian, sinto muito. O que aconteceu lá?”
“Skip não te contou?”
Ela virou a cara.
“Não falei com ele.”
Ela deve pensar que sofri uma lobotomia, pensou Keyes.
“O que aconteceu?”, insistiu ela.
“Fui esfaqueado por um dos caballeros de Skip.”
“Não posso acreditar”, disse Jenna.
Interrompendo-se apenas para goles de água, Keyes relatou a triste
história da sra. Kimmelman. Desta vez, Jenna pareceu atenta a cada palavra.
Ela se mostrou curiosa, mas não chocada.
“Coitada daquela mulher. Você acha que ela morreu?”
Keyes balançou a cabeça pacientemente.
“Tenho certeza absoluta.”
Jenna se levantou e caminhou até a janela.
“O tempo esquentou de novo”, notou ela. “Três dias de meia-estação,
tão gostoso, e pronto, a cidade-sauna outra vez. Minha família já está com
meio metro de neve no quintal.”
“Jenna?”
Quando ela se virou para encará-lo, seus olhos estavam úmidos. Ela
estava tentando segurar as lágrimas, tentando recuperar a magnífica atriz
que costumava ser.
“Sinto muito, muito”, gaguejou. “Eu não sabia que você ia se
machucar.”
Keyes estendeu a mão.
“Eu estou legal. Vem cá.”
Ela subiu na cama novamente, soluçando no ombro dele. A princípio a
dor era assassina, mas o perfume de Jenna era melhor que morfina. Keyes
pensou no que diria se uma enfermeira de verdade entrasse.
“Como o Skip está?”, soluçou Jenna.
“O Skip está um pouco louco, Jenna.”
“Mas é claro que está.”
“Um pouquinho mais louco do que de costume”, disse Keyes. “Ele está
assassinando os turistas.”
“Eu imaginei que fosse alguma coisa assim. Mas não se trata de
assassinato de verdade, não é? Quero dizer, assassinato no sentido
criminoso.”
“Jenna, ele deu uma senhora para um crocodilo comer!”
“Ele me mandou um telegrama”, disse ela.
“Um telegrama?”
“Dizia isso: ‘Querida Jenna, queime todas as fichas da minha agenda
Rolodex imediatamente. Te amo, Skip’.”
Keyes perguntou:
“E você queimou? Queimou as fichas?”
“Claro que não”, disse Jenna, como se a sugestão fosse absurda.
“Obviamente, a mensagem estava em código, um código que eu ainda não
consegui decifrar. Além disso, ele guarda a agenda naquele caixão que me
mata de medo.”
Keyes fez uma careta, mas não de dor.
“Olhe para todos estes tubos”, disse Jenna. “Tem um no seu peito, um
no seu nariz e outro na veia do seu braço. O que tem naquele frasco?”
“Glicose. Amanhã posso voltar a comer e em três dias poderei sair
daqui. Jenna, onde está o Skip neste momento?”
“Não faço ideia.”
“Você tem que encontrá-lo. Ele matou quatro pessoas.”
“Não, pessoalmente ele não matou ninguém.” Jenna puxou o lençol.
“Deixe-me ver seus pontos.”
Keyes se virou de lado e ergueu o braço direito.
“Minha nossa”, disse Jenna, assobiando.
“Feio, não?”
“Parece um trilho de ferrovia.” Com um dedo leve como pluma, ela
contornou a ferida. Keyes sentiu um prazeroso arrepio.
“A faca chegou a atingir seu pulmão? Quero dizer, foi mesmo uma
faca?”, perguntou Jenna.
“Só raspou de leve”, disse Keyes.
“Ai”, sussurrou Jenna. Ela acariciou-lhe a testa e sorriu. “Como você se
sente, quero dizer, no fundo da alma?”
Keyes se excitou. Ele sabia o que ela queria dizer. Do fundo da alma.
“Meio tonto”, disse ele, pensando: Algo de extraordinário está
acontecendo aqui; talvez Wiley esteja debaixo da cama.
“Muito tonto? E se eu tirasse esse tubo aqui... você aguentaria?
Conseguiria respirar?”
“Bem, podemos tentar”, disse Keyes. Claro que ela não poderia estar
falando sério. Não naquele lugar. Ele removeu o tubo de oxigênio e
respirou profundamente três vezes.
“Tudo bem?”, perguntou Jenna.
Keyes balançou afirmativamente; era uma dor suportável.
Jenna esgueirou-se para fora da cama e começou a desabotoar o
uniforme engomado de enfermeira. De repente lá estava ela metida apenas
em suas roupas íntimas e na meia branca de hospital. A expressão de
malícia em seu rosto era deliciosa. Uma expressão que Keyes não se
lembrava de ter visto antes.
“Que tal se a gente transasse?”, propôs Jenna.
Keyes ficou estupefato. Considerando os fatos ocorridos nos últimos
dias, até que ele era merecedor de um milagre desses. Talvez essa fosse a
maneira de Deus equilibrar o destino. Ou talvez fosse qualquer outra coisa.
Keyes não se importou; era, talvez, a última chance de ele ter um prazer
infinito até que Skip Wiley fosse finalmente preso ou morto.
“É possível que eu ainda ame você, Brian”, disse Jenna, tirando seu
sutiã. “Você se importa se eu trancar a porta?”
“E as enfermeiras?”
“Vamos ficar bem quietinhos.” Jenna saiu de suas calcinhas, que
ficaram jogadas no chão. Ela estava radiante, com suas novas linhas de
bronzeado proporcionando uma aula fenomenal de contraste. Keyes nunca
tinha visto sua barriga tão escura, nem seus peitos tão brancos.
“Estou um bagaço, preciso fazer a barba”, disse ele, para em seguida
acrescentar: “Na verdade, não sei se vou conseguir fazer isso.”
Então ele decidiu calar a boca e deixar as coisas acontecerem, mesmo
porque de não estava cem por cento certo de que tudo aquilo não era apenas
um delírio provocado pelo Dilaudid e de que Jenna não era apenas uma das
miragens costumeiras de estadas em hospitais.
Ela o estudava numa pose artística, os braços cruzados, um dedo nos
lábios.
“Isto vai ser um pouco complicado. Acho melhor eu ficar por cima”. E
foi o que fez.
Mergulhado em prazer, Keyes beijou o pescoço e a garganta e o ombro
de Jenna, e tudo aquilo que sua boca podia alcançar. Ele a tinha meio
abraçada, usando para isso o braço não conectado ao tubo intravenoso, e,
com os dedos, acariciava a coluna de Jenna, que parecia extasiada com essa
manobra. Ela se curvou e o pressionou para baixo com seus lábios. Sua
mira foi perfeita.
“Você sentiu minha falta, Brian?”
“Sim!”, respondeu com o pouco fôlego que lhe restara.
Jenna sentou-se, cavalgando-o. Seus olhos estavam úmidos e, a
princípio, não muito distantes. Ela segurava suavemente nas grades laterais
da cama, como se estivesse passeando num trenó.
“Estou te machucando?”, perguntou ela com um de seus sorrisos fatais.
“Acho que não, não é?”
Em parte por causa daquele louco momento de paixão e em parte para
aliviar seu diafragma esmagado, Keyes a puxou para si. Ele beijou
delicadamente sua boca e imediatamente ela fechou os olhos. No princípio
ela parecia tatear, talvez até estivesse um pouco nervosa, mas não demorou
e Jenna começou a repetir as coisas incríveis que costumava fazer quando
eram amantes. Coisas que ele jamais tinha esquecido mas que pensou que
jamais voltaria a vivenciar.
Fazer amor com Jenna sempre fora uma espécie de exercício emocional
para Brian Keyes — terapia de choque para o seu coração. Para ser mais
exato, seu cérebro parecia atrofiar quando ela o tocava. Ele se esqueceu
totalmente de onde estava e do motivo por que estava lá. Esqueceu-se dos
pontos, do pulmão afetado e do tubo que pendia do seu lado. Esqueceu-se
da enfermeira, que estava batendo na porta. Esqueceu-se até mesmo de Ida
Kimmelman e do maldito crocodilo.
Esqueceu-se de tudo, exceto de Jenna e Wiley.
“E o Skip?”, sussurrou ele entre mordidas. “Eu pensei que você
estivesse loucamente apaixonada por ele.”
“Fique quieto agora”, disse Jenna, conduzindo a mão desocupada de
Keyes. “E tente não chutar o tubo.”
14

Graças a Ricky Bloodworth, Jesús Bernal finalmente ganhou mais uma


chance para provar que, em se tratando de bombas, ele era mesmo o bom.
Na manhã de 12 de dezembro, o Miami Sun publicou sua primeira
reportagem de capa sobre Las Noches de Diciembre. Jornalisticamente, o
texto não era nenhum primor, mas era interessante o suficiente para
provocar excitação no acampamento de Skip Wiley, nos Everglades.
O lead da reportagem falava de uma atrevida carta de El Fuego,
encontrada na caixa de correio do condomínio de Ida Kimmelman. Um
investigador de Broward County, que Ricky julgava ser uma fonte
confiável, lera o conteúdo para o repórter (Caros Membros do Clube de
Marelas de Otter Creek, Bem-Vindos à Revolução!) e Bloodworth
compreendeu então que estava diante de um furo quentíssimo. Bastou esse
insight para se debruçar sobre o telefone e, à sua maneira bastante peculiar,
começar a trabalhar estabanada e entusiasticamente, entrevistando cada
policial que conhecera ao longo de sua carreira. Fez isso até descobrir que
essa se tratava da quarta carta de El Fuego. Assim, o assassinato de B. D.
“Sparky” Harper finalmente foi ligado ao desaparecimento de Theodore
Bellamy, ao sequestro da canadense no Seaquarium e agora ao não
resolvido rapto de Ida Kimmelman. Evidentemente, nem a polícia nem
Bloodworth sabiam o que de fato acontecera às três últimas vítimas —
quem poderia imaginar? —, mas ainda assim tratava-se de uma lista e tanto.
Especialmente se se levasse em conta o ataque selvagem sofrido pelo
detetive particular Brian Keyes.
Esta reportagem de capa mexeu com a emoção de Skip Wiley, e, numa
pequena cerimônia no acampamento, ele agradeceu a seus camaradas
radicais pela paciência e dedicação que vinham demonstrando para com a
causa. “Gravem esse dia em suas memórias!”, disse ele. “É o dia em que
nascemos para os olhos dos Estados Unidos. Hoje, o Miami Sun, amanhã o
USA Today!”
Nenhum dos componentes do grupo fora identificado na reportagem de
Bloodworth, e a descrição dos “eslavos”, que Brian Keyes fizera de seus
sequestradores, foi repetida ad nauseam como um fato verdadeiro. Wiley
apreciou a lorota de Keyes, considerando-a um rompante de originalidade.
Mas havia um erro significativo na reportagem de Ricky Bloodworth,
um erro que, quando lido em voz alta por Jesús Bernal, fez com que Skip
Wiley revirasse os olhos, Viceroy Wilson risse às gargalhadas e Tommy
Rabo-de-Tigre encolhesse os ombros, um gesto com o qual ele pretendeu
demonstrar sua indignação diante da extremada burrice do comportamento
do homem branco. Ricky Bloodworth, de algum modo, tinha conseguido
grafar o nome do grupo de Wiley — e escrevê-lo ao longo da reportagem
inteira — da seguinte forma: Las Nachos de Diciembre, cuja tradução é
exatamente aquela que todo mundo imagina. Skip Wiley trabalhara muito
tempo em jornalismo, de modo que não podia estar surpreso ou chocado
com isso, mas Jesús Bernal teve um ataque de apoplexia.
“Nachos!”, grunhiu ele. “É esse o seu brilhante golpe de publicidade?
Agora somos nachos internacionalmente conhecidos!” Com isto, Jesús
Bernal amassou o jornal e disse que jamais experimentara tamanha
humilhação em toda a sua vida no mundo do terrorismo.
Skip Wiley suspeitou que, mais do que qualquer outra coisa, Bernal se
irritou com a insinuação de que seriam mexicanos.
“Relaxe”, disse ele a Jesús. “Vamos resolver isso muito em breve, está
bem?”
Muitas pessoas ficaram profundamente desconfortadas ao ler a
reportagem de Bloodworth. Uma delas foi Cab Mulcahy, que pressentiu a
sanha demente de Skip Wiley por trás dos crimes de El Fuego. Mulcahy
sentia que vinha desgraça a caminho. Para o jornal. Para ele próprio. E para
toda a população de Miami. Ele arrepiou-se ao visualizar a cena em que
Skip Wiley, algemado, era arrastado pelas escadas do tribunal de Dade
County — os olhos selvagens e a boca espumando, soltando um de seus
sombrios axiomas. Todos os grandes jornais dos Estados Unidos
acompanhariam a extravagância: “Colunista vai a julgamento por
assassinato em massa”. Seria mais retumbante que Manson, uma vez que
Wiley era mais coerente, mais racional. Skip Wiley seria um autor de frases
excelentes para citação em reportagens.
A despeito de suas premonições, Cab Mulcahy sabia que havia pouco
que poderia fazer, ao menos até que estivesse absolutamente seguro de suas
suspeitas.
Outra pessoa que se inquietou ao ler o que vinha abaixo da assinatura de
Richard L. Bloodworth foi o policial Harold Keefe, que tinha estado muito
perto de convencer toda a hierarquia policial de que aquelas cartas malucas
tinham sido escritas por um tira renegado e delirante. Harold Keefe se
recusara a falar com Bloodworth na noite anterior e agora se lamentava por
isso. Keefe poderia ter aproveitado a oportunidade para derramar a merda
toda sobre Al García e acabar de vez com toda aquela baboseira de Las
Noches. Agora era tarde demais, um desastre irreparável. O chefe estava
furioso, a corregedoria estava em alerta vermelho e a Câmara de Comércio
distribuía cápsulas de cianureto.
Enquanto Harold Keefe estudava a primeira página do Miami Sun,
decidiu retaliar imediatamente, utilizando o vasto aparato de subterfúgios
da polícia. Iria escrever uma declaração pública, colocando todo o caso
Nachos numa perspectiva sóbria. O texto seria arriscado, considerando toda
a publicidade do caso, mas Keefe insistiria na plataforma original: o
assassinato de B. D. Harper não tem relação com o subsequente
desaparecimento dos turistas... Nenhuma prova de complô... As cartas de El
Fuego são obra de um policial com um parafuso a menos (para sustentar
essa tese, uma citação do relatório do dr. Remond Courtney aos
superiores)... E terminaria dizendo que todo o problema permanecia sob
investigação... e investigação interna. Perfeito, pensou Keefe.
Gravou duas versões para seu pronunciamento: um take de trinta
segundos para o rádio e dois de quinze para a TV. As fitas foram copiadas e
distribuídas para os repórteres no salão do quartel-general da polícia.
Cópias integrais do texto dos press-releases (em inglês, espanhol e em
dialeto crioulo) foram entregues pessoalmente em todas as redações de
jornais de Miami; no kit estava convenientemente incluída uma foto de
meio-corpo de Harold Keefe.
A declaração de Keefe foi liberada em tempo para ser incluída nos
noticiários do meio-dia das rádios e televisões.
Tommy Rabo-de-Tigre dirigia tranquilamente para o Leste, pela
Rodovia Alligator, quando ouviu o noticiário. Fez meia-volta, achando que
Skip Wiley deveria ser informado.
“Droga, parece que tem mais gente precisando de publicidade”,
exclamou Wiley.
O índio o encontrara pescando próximo ao acampamento secreto. Wiley
vestia um jaquetão de couro e um calção Fila, próprio para jogar tênis.
Usava chapéu de palha australiano com um emblema vermelho na copa.
Ouviu atentamente o relato de Tommy Rabo-de-Tigre sobre o
pronunciamento da polícia, e estremeceu à menção do nome do dr. Remond
Courtney.
“Eu gostaria de saber o que aconteceu com o Brian”, disse Skip irritado.
“Ele era o nosso tiro na mosca, nosso toque de tambor, nossa impressão
digital. Cheguei até a entregar a maleta para ele, com todas as provas que
esses tiras imbecis precisavam.”
“E então, o que vamos fazer?”, perguntou o índio.
“Atacar de novo”, interveio Jesús Bernal, saindo do matagal para se
intrometer na conversa. “Atacar de novo e desta vez pra valer, a sério,
dramaticamente.”
Uma ideia macabra pareceu se desenhar no semblante barbudo de
Wiley.
“Jesús, mi hermano, ainda sobrou um pouco de C-4?”
“Sí.”
“Bueno”, disse Wiley em espanhol, para excitar Bernal. “Construa uma
bomba para mim.”
“É para já, señor!”, respondeu Bernal, sem conseguir esconder o êxtase,
“Que tipo de bomba?”
“Uma bomba que exploda quando tiver que explodir.”
“Claro! Deixa comigo!”
“Por favor, não vá explodir essa joça no meu carro”, advertiu Tommy
Rabo-de-Tigre.
Entre aqueles que não tinham a menor intenção de esperar por uma
bomba estavam os moradores de Otter Creek Village, onde o sequestro de
Ida Kimmelman desencadeara um pequeno pânico. Seguranças particulares
recém-contratados passaram a patrulhar as quadras de marelas até a meia-
noite — seguranças particulares armados! Além disso, o Comitê de
Segurança de Otter Creek recomendou a todos os condôminos que, dali em
diante, saíssem em massa para passear com seus cachorros, para fins de
proteção. Essa medida drástica só fez aumentar a histeria em Otter Creek —
uma horda de mini-poodles saltitantes, que latia interminavelmente,
espalhou-se pela paisagem próxima ao condomínio, arrastando aposentados
para lá e para cá. Temerosos dos sequestros, alguns dos idosos armaram-se
com guarda-chuvas pontiagudos ou bengalas que frequentemente usavam
em si mesmos no calor da competição por arbustos e hidrantes para os
cachorrinhos. Indelével terror se apossou dos moradores quando os jornais
estamparam a carta de El Fuego. Em questão de horas, quarenta e sete
unidades do condomínio foram colocadas à venda. Os contratos de compra
de catorze outros apartamentos, entre os quais uma cobertura com piscina,
foram cancelados. À noite, o estacionamento foi tomado por caminhões de
mudança e furgões cor de mostarda com placa de Nova York.
Esta foi a primeira onda de retirantes da Flórida.
O plano de Skip Wiley começava a funcionar, exatamente do modo
como ele sonhara.

Uma manhã Brian Keyes abriu os olhos e deparou com a bolachuda e


simpática cara de Nell Bellamy. Por um instante, pensou estar de volta à
calçada do Pauly’s Bar.
“Olá, mais uma vez.”
“Oi”, disse Keyes.
“Eu li sobre o seu acidente.”
“Não foi exatamente um acidente”, disse Keyes. “Por que a senhora está
sussurrando?”
“Isto aqui é um hospital. Eu sempre falo baixinho em hospitais.” Nell
Bellamy parecia envergonhada.
Keyes disse:
“Foi muita gentileza sua ter vindo.”
“Como você está se sentindo? As enfermeiras disseram que você teve
uma pequena recaída.”
“Arrebentei uns pontos na outra noite. Essas coisas acontecem.” Foi o
preço da celestial visita de Jenna; na manhã seguinte, sentia-se como um
peixe descamado.
Nell enfiou outro travesseiro debaixo da cabeça do paciente.
“Você leu o jornal? Eles acham que é uma quadrilha de... maníacos.”
Brian Keyes sabia a razão da visita de Nell Bellamy, e já era hora de
contar-lhe toda a verdade. Como repórter, ele sempre tentava transmitir
essas melancólicas informações por telefone, nunca pessoalmente. No
telefone, você podia simplesmente fechar os olhos, engolir em seco para
tirar o nó da garganta e dizer: “Madame, sinto muito por ter que lhe contar
isto, mas...”, e então as notícias medonhas. Seu filho foi atropelado por um
caminhão. Sua irmã estava a bordo daquele Boeing 727. Encontraram o
corpo de sua filha, senhora Davenport. Às vezes, Keyes não arranjava
forças para fazer tais coisas, e jogava com seu editor o jogo da linha
ocupada. “Desculpe, não deu para pegar o depoimento da família, o
telefone estava ocupado a tarde toda.” E então, se o editor insistisse, Keyes
ligava para o próprio telefone onde estava e erguia o telefone para que o
sinal de linha ocupada chegasse aos ouvidos do editor.
Infelizmente, a conversa com Nell Bellamy não era por telefone. Estava
ansiosamente debruçada sobre a cabeceira da cama, preparando-se para o
que o seu superdetetive particular tinha a dizer.
“Senhor Keyes, tenho um pressentimento de que o senhor descobriu
algo de importante.”
Keyes não suportou olhar nos olhos da mulher. Por isso, concentrou-se
nos botões de sua blusa rendada.
“Senhora Bellamy, sinto muito por ter que lhe dizer isso, mas seu
marido está morto. Acho que ele foi assassinado.”
Nell Bellamy deixou-se cair pesadamente na cadeira próxima à janela.
“Meu Deus! Teddy!”, disse baixinho.
Naquele exato momento, Brian Keyes poderia ter trucidado Skip Wiley,
poderia ter agarrado sua juba loura selvagem e rasgado sua garganta de
orelha a orelha. Em sua loucura, Wiley passara a ver a si próprio como uma
manchete de jornal, cada dia mais sensacionalista. Tudo o que El Fuego
dizia e fazia — ou mandava fazer — tinha uma única intenção: saber como
ficaria nas páginas de um jornal. Sparky Harper com o jacaré na garganta,
por exemplo — magistral, de certa forma. Durante dias, Keyes esteve
pensando sobre a macabra realidade de primeira página de Wiley. Agora,
pensava: Skip deveria estar aqui, olhando para esta mulher em prantos.
“Creio que foram as mesmas pessoas que me espancaram”, disse Keyes.
“Eles são muito perigosos, senhora Bellamy. São fanáticos.”
“Os Nachos?”, perguntou Nell. “Mas por que matariam meu marido?
Ele era só um corretor de imóveis.”
“Eles estão matando turistas”, disse Keyes.
Nell balançou a cabeça como se tivesse entendido, como se a Flórida
estivesse finalmente fazendo sentido.
“Bem, a polícia me disse para não acreditar nos jornais.”
“A polícia está equivocada, senhora Bellamy.”
“Um investigador me contou que Teddy deve ter se afogado. Disse
ainda que esses tais de Nachos simplesmente não existem.”
“Eles estavam com o calção do Teddy”, disse Keyes.
“Oh, não!”, disse Nell estarrecida. “O que fizeram com ele? Quero
dizer, como...?”
Keyes se sentiu arrasado. Ergueu sua mão e Nell Bellamy a tomou para
si.
“Eles me disseram que foi rápido e sem dor”, disse ele. “Sinto muito,
sinto muito mesmo.”
Como se os tirasse do nada, Nell puxou um monte de lenços Kleenex
cor-de-rosa e começou a enxugar os olhos.
“O senhor é um homem corajoso, senhor Keyes. Arriscando sua vida
dessa maneira.” Recompondo-se, apanhou um talão de cheques de sua
bolsa. “Quanto lhe devo?”
“Guarde isso”, disse Keyes. “Por favor, guarde isso, senhora Bellamy.”
“Você é muito bondoso.”
Não, não sou, disse Keyes a si mesmo.
“Existe alguma chance de encontrar o corpo de Teddy?”, perguntou Nell
Bellamy.
“Nenhuma”, respondeu Keyes pensando em Pavlov, o crocodilo.
A porta do quarto se abriu de repente e os dois shriners musculosos
entraram, usando ternos de executivo e barretes cor de malva.
“Você é um cara famoso”, disse o shriner Burt. “Dezenas de visitas. O
senhor Mulcahy, do jornal, esteve aqui. Também o detetive Keefe. Depois
veio também um sargento García, aliás, um cara meio grosso. Sem falar dos
repórteres de televisão pedindo insistentemente entrevistas. Acho que
daqueles programas tipo a vida como ela é.”
“Dissemos para voltarem outro dia”, disse o shriner chamado James,
“quando você estiver em forma de novo.”
“Pedi para o Burt e o James vigiarem a porta”, explicou Nell Bellamy.
“Espero que não se zangue com isso.”
“De jeito nenhum, obrigado.” Keyes sabia o que Al García e os outros
queriam: um relato em primeira mão de sua noche com Las Noches. Cab
Mulcahy, sem sombra de dúvida, se dera conta da ligação de Wiley com os
crimes. Keyes se perguntava o que o velho garotão ia fazer agora.
“A gente sabia que isto aqui ia ficar parecido com a Grand Central
Station depois do artigo do jornal”, disse Burt. “Imaginamos que fosse
gostar de um pouco de paz e tranquilidade.” Olhou para a sra. Nell Bellamy
e disse: “Então, qual o veredicto, Nellie?”
“O senhor Keyes disse que o jornal estava certo.”
“Assassinos eslavos! Usando perucas!?”
“Não”, disse Brian Keyes. “Essa parte estava errada.”
“Mas a parte que falava da morte do Teddy é verdade”, explicou Nell
aos shriners. “Eles roubaram o calção dele!”
“Por Deus”, disse Burt, “aqueles bastardos!”
James colocou seu braço carnudo sobre os ombros de Nell Bellamy e
ela voltou a usar os Kleenex.
Burt aguardou uma brecha apropriada e então perguntou:
“Quais as chances que a polícia tem de apanhar esse bando?”
“Cinquenta por cento”, replicou Keyes sem convicção.
“Cinquenta por cento é pouco”, disse James.
“Filhos da mãe”, esbravejou Burt. “Senhor Keyes, quais são os seus
planos? Vai continuar com este caso?”
“Claro que sim.”
“Bem, se é assim, gostaríamos de acompanhá-lo.”
“Nellie está voltando para Evanston”, disse James, em tom protetor.
“Esta noite.”
“Mas nós vamos ficar, temos contas a acertar”, declarou Burt. “Que
pensa disso, senhor Keyes? Não somos profissionais como o senhor, mas
sabemos cuidar de nós mesmos. Sou bastante bom com uma pistola...”
“Bom!”, exclamou James. “Deus do céu, bom!!!”
“E o James tem experiência em artes marciais. Faixa preta, faixa
amarela ou seja como for que se chama isso. Além disso, tem brevê de
piloto. Que tal, senhor Keyes, quer contar com uma mãozinha?”
“Seja o que Deus quiser”, pensou Keyes, “por que não?”
“Ficaria imensamente grato”, respondeu Keyes.
“Feito.”
“Ah, só uma coisinha...”
“Pois não, senhor Keyes?”
“Esses bonés, precisam usá-los o tempo todo?”
Houve um embaraçoso momento de silêncio, como se Keyes tivesse
dito uma heresia contra as convicções dos shriners. Burt e James se
entreolharam e até mesmo Nell Bellamy pareceu desnorteada, com seu
rosto em grande parte escondido atrás de uma massa de papel cor-de-rosa.
“Isto é um fez”, disse Burt, alisando a copa púrpura. “Algum
problema?”
“Gostaria de usar um?”, ofereceu James. “Talvez um sem a borla.”
“Tudo bem”, disse Keyes, apertando o botão para chamar a enfermeira.
Era hora de deixar o hospital.

O concurso anual da rainha do Orange Bowl de Miami atraiu o coro


costumeiro de debutantes, modelos, ex-dançarinas, animadoras de torcidas e
de grêmios estudantis.
Jesús Bernal, que passara o dia todo fabricando uma bomba, estava
encantado. Até onde sabia, estar ali a poucos metros das participantes do
concurso era a melhor forma de descansar a cabeça da tensão causada pelo
manuseio de explosivos.
“Aposto que você nunca viu tantas xotas de uma só vez”, disse ele a
Viceroy Wilson.
“É que você não esteve em Dallas na Finalíssima do Campeonato nº. 8,
meu chapa”, disse Wilson.
Dois gols, três chupetinhas e um sanduíche de vaqueiras. Deus do céu,
ele era mesmo um depravado naqueles velhos e bons tempos. O pau sempre
duro e a cabeça oca. Wilson chacoalhou a cabeça para dissipar as
lembranças e acendeu um baseado.
“Aqui não”, berrou Jesús Bernal. “Já se esqueceu que somos guardas de
segurança?”
“Então. Eu estou me sentindo tão seguro que vou fumar uma erva.”
Eles permaneceram na escuridão, nos fundos do Centro Cívico. O palco
estava banhado de holofotes. Como era apenas um ensaio, o auditório
estava vazio, exceto pelo esqueleto de uma orquestra, alguns técnicos de TV
e as próprias candidatas. Algumas delas passeavam no palco, exibindo suas
tanguinhas coloridas e ajeitando os cabelos com as mãos. O ar-
condicionado estava funcionando a toda, e Jesús Bernal nunca tinha visto
tantos bicos de seios eretos numa só congregação.
“A quarta contando da esquerda”, disse Bernal. “O nome dela é Maria.”
“Sem chance”, disse Viceroy Wilson. Ele, na verdade, não conseguia
enxergar um palmo diante de seu nariz com aqueles óculos escuros.
“Que tal a ruiva, a Rory Mc-sei-lá-o-quê?”
“Esqueça, Re-ssus. Ela não tem a menor chance. Sardas ficam horríveis
na TV.”
“Ela chegou nas semifinais”, disse Bernal.
“Foi voto de caridade, escreve o que eu digo.”
Viceroy Wilson estava se divertindo tanto quanto permitia sua ética
revolucionária abstêmia. Sempre que se via atraído pela luxúria, tentava
sublimá-la rigorosamente. E, sempre que sublimava, era tomado por um
desejo vestigial de correr com uma bola de futebol. Naquele exato momento
ele queria disparar pelo corredor central, pular no palco e passar feito um
trator por cima do apresentador, cuja voz parecia ser capaz de tirar a tinta de
um carro.
“Vão te despedir se não apagar essa coisa”, advertiu Bernal. “Você tem
mesmo o dom de foder com tudo!”
“Sabe do que você está precisando, sabe? De uns oito comprimidos de
Valium! Vê se sossega esse rabo cubano.”
Jesús Bernal ficava estarrecido com a falta de disciplina que imperava
dentro do Las Noches de Diciembre. Viceroy Wilson, que personificava
essa insubordinação, não duraria dez minutos sob as rígidas leis do
Movimento Primeiro Fim de Semana de Julho. Usar drogas durante uma
missão! Os cubanos o teriam expulsado com um pé no rabo em dois
tempos!
“Alguma das irmãs negras chegou nas semifinais?”, perguntou Wilson.
“Nadie”, respondeu Jesús Bernal. “Sete brancas, três cubanas.”
“Merda. É sempre assim.”
Jesús Bernal não podia mais ver o rosto de Viceroy Wilson, apenas uma
nuvem de fumaça azulada emoldurando os óculos escuros. Bernal sabia que
Wilson estava preocupado com o Cadillac do índio, que eles tinham
estacionado em fila dupla em frente do Hyatt Regency. O próprio Bernal
também estava ansioso em relação ao carro, e pela mesma razão. E a fila
dupla nada tinha a ver com isso.
A última ordem que receberam de Skip Wiley fora a de interromper
momentaneamente a missão e dar uma parada no Centro Cívico. “Um
importante trabalho de coleta de informações”, explicara Wiley, “muito
importante.”
“Dirijam com cuidado”, acrescentara Wiley. “Com muito cuidado.”
Isso só fez aumentar a convicção de Jesús Bernal em relação a Wiley,
que, segundo ele, era absolutamente irresponsável quando se tratava de
arriscar o cu dos outros. Um terrorista de respeito simplesmente não tinha
nada que ficar dando voltinhas pelo centro de Miami com uma bomba
fresquinha no porta-malas de seu Cadillac. Bombas, como pizzas, são feitas
para entrega imediata.
“Preste atenção”, disse Wilson, jogando fora o baseado. “Está vindo
alguém.”
Um homem de walkie-talkie na mão se aproximou. Era o chefe da
segurança das festividades do Orange Bowl.
“Que cheiro é esse?”, perguntou olhando diretamente para Jesús Bernal.
“No sé”, respondeu Bernal.
“Peguei uns garotos fumando maconha lá nos fundos. Coloquei a
meninada pra correr”, disse Wilson. “Claro que antes de botá-los pra fora
quebrei alguns dedos deles.”
“Bom trabalho, senhor Wilson.”
O chefe da segurança era um fã fanático dos Dolphins. Por isso, estava
tremendamente satisfeito por ter o lendário Viceroy Wilson em seu staff.
“E então, gostando do concurso?”, perguntou ele.
“Adorando!”, disse Wilson. “Qual é a sua favorita?”
“Rory McAllister, aquela ruivinha de bunda bonita. A segunda, da
direita para a esquerda.”
“Sí, es muy bonita”, disse Jesús Bernal.
“Me fale uma coisa, meu chapa, por que não tem nenhuma negra no
palco?”
O chefe da segurança perdeu seu ar de descontração e se afastou alguns
passos para trás.
“Sei lá, nossa, agora você me pegou. Quer que eu pergunte para os
jurados?”
“Eu ficaria agradecido”, disse Viceroy Wilson. “Faça isso.”
“É pra já, senhor Wilson. Bom trabalho com os garotos drogados, muito
bom mesmo.” O chefe da segurança se retirou apressado.
Jesús Bernal e Viceroy Wilson andaram até a ponta do palco, de olhos
arregalados para as concorrentes do concurso, que estavam ensaiando os
passos que faria aquela que fosse a vencedora: costas retas, peitos para
cima, bunda arrebitada e um imenso sorriso. Para Jesús Bernal cada mulher
parecia ter um metro e oitenta de altura, eram perfeitas e impenetráveis.
“A número cinco”, disse Wilson num tom displicente. “Esta é a
vencedora.”
Jesús Bernal apanhou um programa do concurso e começou a ler em
voz alta:
“Kara Lynn Shivers, estudante, Universidade de Miami. Graduanda em
relações públicas. Hobbies: nadar, mímica, trompa. Cabelos: loiros. Olhos:
castanhos.”
“Altura?”, disse Wilson.
“Um metro e setenta e cinco.”
“Ela pesa cinquenta e quatro quilos.”
“Quarenta e nove”, disse Bernal. “É o que está escrito aqui.”
“Vaidade”, tossiu Wilson. “A puta deu informação errada.”
Bernal ponderou:
“Pode ser. Cinquenta e quatro é pesado demais?”
Wilson sorriu, pensando em todos aqueles zagueiros da NFL. “Corta”,
gritou alguém, e o apresentador jactou-se no meio do palco, segurando um
microfone. Ele se inclinou e gritou para Wilson e Jesús.
“Vocês aí, caras, estão muito próximos da cena. Pegamos a cabeça de
vocês nesta última tomada.”
O apresentador soava absolutamente irritado. Viceroy Wilson nunca
tinha visto dentes tão grandes e brilhantes como aqueles numa pessoa
branca. Daria para azulejar uma piscina inteira com aqueles dentes.
Jesús Bernal estufou o peito e deu tapinhas no emblema bordado do
uniforme cinzento da segurança.
O apresentador disse:
“Ei, caras, tá legal, estou superimpressionado com vocês, mas agora se
afastem do palco, certo? Vocês estão deixando as garotas nervosas e estão
fodendo o take. Comprende?”
De dentro de Viceroy Wilson subiu um rugido retumbante. Jesús Bernal
agarrou-o pelo braço e tentou afastá-lo do palco, mas seu gesto chegou
tarde demais. Wilson deu um salto para cima e agarrou um dos tornozelos
de nylon preto do apresentador.
“Solte-me”, gritou o apresentador.
“Solte o cara, Viceroy”, implorou Jesús Bernal.
“Arrr!!! Arrrr!!!”, disse Viceroy Wilson.
Então o apresentador se transformou numa mancha, o microfone voou
para um lado, o sapato preto para outro. A cabeça de cabelos armados do
apresentador atingiu o assoalho do palco com um barulho que se espalhou
por todos os cantos do auditório de acústica perfeita. Algumas das beldades
concorrentes exclamaram um “Oh! Jerry!” e saíram em socorro do jovem
apresentador; outras apenas arregalaram os olhos, com expressão pesarosa,
ao ver seu luxuoso smoking sendo arrastado.
O chefe da segurança pulou para cima do palco.
“Meu Deus, o que aconteceu aqui? Para trás, meninas, para trás,
deixem-no respirar. Respirar.”
Jesús Bernal olhou para Viceroy Wilson e pensou: O animal idiota
acabou de arruinar tudo.
“O cara escorregou numa poça”, disse Bernal ao chefe de segurança.
“Não, foi um ataque epilético”, disse Viceroy Wilson.
“Chamem um médico”, ordenou o chefe de segurança pelo walkie-
talkie K-Mart. “Alguém chame um médico.”
“Um médico de epilepsia”, aconselhou Viceroy Wilson.
Kara Lynn Shivers ajoelhou-se e carinhosamente acariciou a cabeça do
apresentador. Discretamente, ela apanhou um pedaço de tecido de seu traje
de desfile e começou a secar a testa do apresentador. O homem ferido olhou
para os peitos perfeitos da estudante Kara Lynn com um olhar atordoado
mas tranquilo.
“Eu te disse que ela vai vencer”, murmurou Viceroy Wilson. “Isto
estava na cara.”
“Vamos cair fora”, disse Jesús Bernal, no estilo comando. “Temos que
achar o campo de golfe antes que escureça.”
“Re-sus”, disse Wilson, se divertindo. “Se a sua caixinha de brinquedo
explodir antes da gente chegar lá, só lembre que a última coisa que você vai
ver neste mundo vai ser a minha cara preta — e eu vou sapatear em cima
das suas tripas durante todo o caminho até o inferno.”
15

Como todos os maus jogadores de golfe, o dr. Remond Courtney


acreditava que nada era extravagante demais para um jogador como ele. Ele
usava suéter Arnold Palmer e sapatos de golfe Tom Watson, e carregava um
conjunto completo de tacos marca Jack Nicklaus MacGregors, incluindo o
taco de madeira sextavada que nem o próprio Golden Bear conseguiria usar,
mesmo que sua vida dependesse disso.
E, como todos os maus jogadores de golfe, o dr. Courtney preferia jogar
bem cedinho pela manhã, confiante na teoria de que as bolas de golfe voam
mais longe quando o tempo está ameno. Como não tinha verdadeiros
amigos no Palmetto Country Club, o dr. Courtney normalmente recrutava
seus pacientes para jogar golfe com ele. Isto funcionava bem quando se
tratava de pacientes razoavelmente estáveis, mas ocasionalmente um ou
outro entrava em surto durante a partida. Isto normalmente ocorria no
buraco nove, que era dificílimo por causa dos obstáculos de água, e o dr.
Courtney acenava para os demais jogadores dizendo que continuassem
jogando enquanto ele tranquilizaria o paciente. Em algumas quintas-feiras,
uma partida de golfe para o dr. Courtney podia ser tão exaustiva quanto um
dia inteiro de trabalho, motivo pelo qual ele não tinha pruridos quando
considerava as notas de seus MacGregors dedutíveis de seu imposto de
renda.
No dia 13 de dezembro, o dr. Remond Courtney enfiou sua pretensiosa
calça de tweed e saiu para o jogo às sete horas e oito minutos. Entre os seus
três parceiros estava um de seus pacientes — um esquizofrênico que havia
melhorado muito chamado Mario Groppo — e dois estranhos de Seattle. Os
estranhos eram engenheiros da Boeing, a companhia aeroespacial, e
tendiam a despachar a bola para longe dos alvos. Previsivelmente, Mario
Groppo levantaria a bola de um buraco e a despacharia para longe na tacada
seguinte. Na verdade, os quatro jogadores eram notórios pernas de pau.
Quanto ao dr. Remond Courtney, seu golpe com o taco era tão esquisito
que, visto jogando à distância, parecia, ao observador que assistia, alguém
matando uma cobra. Era um golpe tremendamente violento para um
psiquiatra. Ele conseguiu chegar ao primeiro buraco em oito tacadas, e
ainda assim chegou na frente com duas tacadas de vantagem. Tudo levava a
crer que aquela seria uma longa manhã.
No quinto buraco, o dr. Courtney tornou-se tão confiante na inaptidão
de seus parceiros que começou a apostar em cada buraco, como se fosse um
franco-atirador. O pobre Mario Groppo de cara desembolsou trinta dólares e
pareceu estar se encaminhando para um grave ataque de ansiedade; os
turistas de Seattle foram muito cedo à garrafinha de bourbon, e,
consequentemente, perderam aquela amável disposição comum nos turistas.
Sempre que o dr. Courtney se curvava para mais uma tacada, um deles
peidava ou fazia piadinhas, em flagrante violação da boa etiqueta do golfe.
Estoicamente, o psiquiatra ignorava essa rudeza, não importava quantas
facadas isso lhe custasse.
A primeira etapa da partida chegou ao fim com o dr. Courtney batendo
os engenheiros de Seattle por quatro e sete jogadas respectivamente,
enquanto Mario Groppo, a alguns metros do dr. Courtney, suava gotas do
tamanho de uvas.
Quanto ao clima, fazia um dia bastante agradável na Flórida. O céu
estava escancaradamente azul e uma leve brisa amenizava a umidade fatal.
Ao passarem pela décima segunda fairway — a parte lisa do campo de
golfe, que fica entre os buracos e ondulações —, o psiquiatra se pôs ao lado
de Groppo e disse:
“Como estamos nos sentindo hoje, senhor Groppo?”
“Bem, muito bem”, replicou Mario, curvando-se para pescar em sua
mochila o taco de aço número cinco.
“Vamos lá, fale comigo”, disse o dr. Courtney. “Tem alguma coisa te
preocupando, não é?”
“Eu perdi três bolas no matagal. É isto o que está me preocupando.”
“Tem certeza? Eu tenho alguns Thorazine no meu saco de golfe.”
“Estou bem”, disse Mario impacientemente. “Bem, de qualquer forma,
obrigado.”
O dr. Courtney deu um tapinha em suas costas e, doutoralmente, piscou
um olho.
“Quando estiver a fim de conversar, me avise, reservarei uma hora.”
O dr. Courtney e os engenheiros aeronáuticos lançaram suas bolas na
grama, enquanto a bola arremessada por Groppo com seu taco de aço
número cinco foi parar no banco de areia posterior.
“Muita força”, notou o psiquiatra.
“Muita falação”, soltou um dos engenheiros.
O dr. Courtney suspirou com desprezo e se dirigiu para a grama, o taco
balançando como um mosquete sobre o ombro.
Enquanto os demais golfistas alinhavam para seus arremessos, o pobre
Mario Groppo meteu-se no meio do tanque de areia onde estava sua bola,
um cânion de onde mal dava para ver a luz do sol.
“Vou erguer a bandeira”, gritou o dr. Courtney.
Do fundo do tanque de areia, Mario pôde ver a ponta da bandeirola, a
cara rosada do dr. Courtney e, mais além, as viseiras dos dois turistas de
Seattle, esperando sua vez.
O psiquiatra não parava de berrar conselhos:
“Curve o joelho esquerdo, mantenha a face do taco aberta! Bata atrás da
bola!”
“Cale a boca”, disse Mario Groppo. Ele fazia caretas só de pensar na
ideia de passar outros dez dólares para as mãos do dr. Courtney.
Mario abaixou os olhos para a bola parcialmente enterrada e
vigorosamente afundou as travas dos sapatos na areia. Deu uma última
olhadinha para a bandeira, e então golpeou a bola com um poderoso
gemido.
Para a surpresa de todos, a bola de golfe de Mario alçou voo do tanque
de areia, beijou a grama e rolou calma e inexoravelmente para o buraco.
“Bravos!”, exclamou um dos turistas de Seattle.
“Não posso acreditar nisso”, choramingou o dr. Courtney quando a bola
de Mario caiu dentro do buraco, produzindo um ruído seco.
Neste exato momento o gramado do Palmetto Country Club explodiu,
em meio a um ribombo infernal. A bomba, escondida no fundo do buraco,
lançou a bandeirola como um foguete. O ar crepitou como uma pluma cor
de laranja desfraldada sobre o delicado gramado do clube.
Não houve tempo para correr, nem para gritar.
Com o rosto esfolado e o cabelo fumegando, o pobre Mario Groppo se
viu perdido numa cratera. Desesperadamente girou em círculos, usando o
taco especial para areia como bengala.
“Santo Deus!”, ele bradou, esbaforindo-se através da fumaça e dos
resíduos de silicato, em busca de algum sinal do malfadado trio. “Santo
Cristo Deus!”, disse ele, enquando do céu choviam torrões de grama
molhada, pedaços de carne humana, tacos de golfe e retorcidos retalhos de
camisas Izod.
Mario sentou-se na poeira. Em delírio, julgou ouvir a voz de um
homem, e pensou se algum dos outros jogadores havia sido poupado.
“Ei, eu estou aqui!”, gritou Mario. “Aqui!”
Mas a voz que lhe respondeu estava bastante afastada, e também
saudável demais. A voz ribombou no décimo terceiro campo, vinda de trás
de uma faixa de eucaliptos.
“Bon voyage, doutor Enraba-Ganso!”, cantou a voz lá de longe. “Seja
bem-vindo à Revolução!”

Jenna se prostrou diante da porta com as mãos nas ancas.


“Rapaz, todo mundo em Miami está atrás de você!” Ela usava uma
malha de dança azul e uma fita branca felpuda em torno da cabeça. Sua
testa estava úmida; a fita de Jane Fonda girava no cabeçote do vídeo.
“Posso entrar?”, perguntou Brian Keyes.
“Claro. Estou fazendo barras de granola. Vamos conversar na cozinha.”
Jenna estava em seu meio, e Keyes sabia que teria que conduzir
calmamente as coisas, caso contrário estaria tudo perdido.
“Cab ligou. Está te procurando que nem louco.”
“Aposto que sim.”
“O que você acha desses policiais?” Jenna esvaziou uma caixa de uvas
passas dentro de uma tigela. “Cab disse que os tiras querem falar contigo
sobre o que aconteceu. Está ouvindo? Está se sentindo bem? Como
conseguiu alta tão depressa do hospital?”
“Eu me recuperei bem”, disse Keyes, “graças àquela incrível
enfermeira.”
Nenhuma reação. Jenna permaneceu em frente à pia da cozinha, com as
costas viradas para ele. Ela estava batendo a mistura de granola.
“Você é realmente inacreditável”, disse Keyes jocosamente. “Eu me
encrenquei de tudo quanto foi jeito, sabia?”
“Que tipo de encrenca?”
“Os médicos me deram a maior bronca, me trocaram de quarto, me
botaram num quarto particular e disseram que nós violamos cerca de
quinhentas regras do hospital. A ala inteira falava do que aconteceu.”
“É mesmo? Você gosta de alfarroba? Vou botar um pouco de alfarroba.”
“Eu detesto granola.”
“Essa é caseira.” A batida de Jenna se tornou rítmica. “Eu falei com o
Skip hoje.” Por sobre os ombros, ela buscou Keyes com os olhos. “Ele
pediu que eu te dissesse o quanto ele lamentou a atitude do cubano para
com você. O Skip disse que o cubano não é tão ruim assim; ele só fica meio
maluco com aquela faca. Eu falei para o Skip que você estava se
recuperando e ele ficou muito aliviado. Quer que você saiba que isto jamais
voltará a acontecer.”
“Quanta gentileza!”, disse Keyes acidamente. “Onde está o Louco de
Miami, afinal?”
“Não falamos disso”, disse Jenna. Descalça, ela andava de um lado para
outro na cozinha, com roupas de ginástica. “Skip instituiu uma série de
novas regras”, disse ela. “Regra número um: não perguntar onde ele está.
Regra número dois: não mencionar o nome dele no telefone. Regra número
três: não escrever mais cartas de amor tesudas.”
“Jenna, você precisa me ajudar a encontrá-lo.”
“Por quê? Ele não fez nada de errado. Ele me disse que está com a
consciência tranquila. Quer provar a granola?” Ela enfiou uma colher de
madeira em sua boca. “Experimente, veja como está boa.”
“Até que não está mau”, disse Keyes, pensando: lá vem ela de novo.
Jenna colocou a massa de granola dentro de uma fôrma e levou-a ao
forno. Apanhou uma garrafa de vinho branco da geladeira e serviu um copo
para si mesma.
“Menos calorias do que você pensa”, disse ela, seus olhos verdes
cintilando através do copo de cristal.
“Você está realmente ótima.”
“Assim que as barras de granola ficarem prontas, vou sair da cidade”,
anunciou Jenna.
Keyes permaneceu calado.
“Eu gostaria de convidá-lo para ficar pro jantar, mas tenho que tomar
um avião.”
“Entendo”, disse Keyes. “Para onde você está indo?”
“Para Wisconsin, ver minha família.”
Nenhuma hesitação; ela havia planejado tudo antes. Keyes admirava sua
capacidade. Se não a conhecesse tão bem, poderia até ter acreditado nela.
Tentou prolongar a conversa.
“Posso beber um pouco de vinho?”
“Hm-hm”, disse Jenna. “Acho melhor não. Você sabe como você fica.”
“Sonolento, é assim que eu fico.”
“Não, você fica sensual e romântico, é assim que você fica.”
“E o que tem de errado nisso?”
“O erro está em ficar assim esta noite.”
“Não foi errado no hospital, foi?”
“Não, de jeito nenhum”, disse Jenna. “Foi tudo perfeito no hospital.”
Ela o beijou na testa; um educado beijinho que avisou Keyes de que seu
tempo estava acabando. Ela poderia, igualmente, ter batido o pé e mostrado
o relógio.
Ele levantou e pegou as mãos dela.
“Você precisa me ajudar, por favor.”
“Não posso”, disse Jenna decidida. Ela o olhou diretamente nos olhos, e
Keyes compreendeu que, para ela, aquilo não era nenhum dilema. Ela não
tinha responsabilidades nos ombros, não se sentia dividida. Skip Wiley
vinha em primeiro, segundo e terceiro lugares.
Keyes imaginou como aquilo deveria ter começado: o estalo de uma
ideia — talvez de Jenna, talvez de Skip —, alguma coisa mencionada
durante o jantar, talvez mesmo na cama. Uma fantástica noção de retroceder
no tempo, de expulsar de uma vez e para sempre os farofeiros, de retomar a
terra pintando-a como horrorosa e inabitável. E fazer tudo isso com astúcia,
através de perversas maquinações, o Apocalipse multiplicando-se. Wiley
teria abraçado a ideia, adornando-a, dando-lhe vida, transformando-a em
realidade, fazendo-a parecer viável. E Jenna, a dona da ideia ou ao menos
sua incentivadora, teria recuado para ver seu gênio passional tornar o
capricho realidade — observando com amor e assombro, mas não prestando
a atenção devida. E, quando a matança começou e ela finalmente notou o
quanto ele tinha ido longe com o esquema, não havia nada a fazer a não ser
deixá-lo ir até o fim. A alternativa era traição: destruir Skip e deixar órfão
este sonho, aquilo que eles tinham criado juntos.
“Ele vai parar com essa loucura?”, perguntou Keyes.
“Acho que não”, disse Jenna com o olhar perdido.
“Então ele vai ser preso”, disse Keyes, “ou liquidado.”
“Ah, eu duvido que isso aconteça.” Ela retirou a fita da cabeça e
desatarraxou os finos brincos de ouro. “Conheço Skip e ele está à frente de
todos nós. Até de você, meu amor. Agora, dê o fora daqui e me deixe fazer
as malas. Tenho que pegar o avião às dez.”
Brian Keyes foi para a sala de estar e sentou-se desleixadamente sobre o
caixão transformado em mesa de café.
“O que você está fazendo?”, perguntou Jenna da porta da cozinha.
“Brian, tá na hora de você ir embora.”
“Você ouviu o que aconteceu hoje? Hoje foi uma maldita bomba. Três
pessoas foram destroçadas. Isto é estar à frente de todo mundo? O velho
senso de humor de Wiley — você acha as bombas divertidas?”
“Não em particular.” Jenna fez uma pausa, franzindo brevemente as
sobrancelhas, e algo se desenhou em seu rosto, algo que Keyes jamais vira
antes. Culpa, remorso... algo assim. “Não tire conclusões precipitadas
acusando o Skip”, disse ela por fim. “Aquele psiquiatra tinha um monte de
inimigos.”
“Isto não é um joguinho de charadas”, disse Keyes. “Seu namorado se
transformou num assassino.”
“Não é seu gênero ficar tão melodramático”, disse Jenna
impacientemente. “Por que você não esquece tudo isso? Ocupe-se com seus
outros casos e esqueça tudo isso: você fez o seu trabalho, encontrou o Skip.
Quando ele estiver pronto para voltar, ele o fará. Foi o que eu disse para o
Cab hoje de manhã, mas ele é igual a você. Ele acha que Skip tem uma
espécie de instinto assassino enlouquecido. É a coisa mais estúpida que se
poderia dizer, Brian. Estou muito desapontada com vocês dois.” Ela estava
rodopiando a fita no dedo indicador, e demonstrando uma tremenda
segurança. “Brian, você tem dois problemas que o Skip não tem.”
“E quais são?”, perguntou Keyes, sentindo-se derrotado.
“Seu ego e seu coração.”
“É mesmo? Peço desculpas.” Agora era realmente hora de ir. Ele não
tinha que ouvir esta merda toda tipo Joyce Brothers de uma mulher que
adora fazer granola em casa.
A meio caminho da porta, ele se voltou e disse:
“Jenna, e aquilo que aconteceu lá no hospital? O que era tudo aquilo?”
“Aquilo era um momento, Brian, seu e meu.” Ela sorriu; o primeiro
sorriso suave daquela noite inteira. “Foi um momento encantador, e isso é
tudo. Por que teria que ter alguma coisa mais? Por que vocês, homens,
sempre esperam um Sonho Dourado? Honestamente, Brian, às vezes eu
acho que aquele jornal fodeu para sempre com a sua cabeça.”
Jenna raramente usava a expressão foder. Keyes percebeu que ela devia
estar realmente agitada.
“Tenha uma boa viagem”, disse ele. “Dê lembranças aos seus pais.”
“Nossa, como você é doce”, disse Jenna. “E vê se descansa enquanto eu
estiver fora. Esqueça o Skip. Esqueça o ‘Sonho Dourado’ entre nós, me
esqueça. Você vai ver como tudo vai acabar bem.”

Noventa minutos mais tarde, ela deixou a casa carregando uma bolsa de
viagem de napa e uma lata com as barras de granola. Usava calças jeans
apertadas, uma blusa longa e confortável e sapatos de salto brancos. Os
cabelos estavam arranjados num coque portentoso.
No percurso até o aeroporto, Jenna dirigiu o carro no seu estilo peculiar
— nenhum reconhecimento ou consideração pela calçada, pelos sinais de
“pare”, pelos faróis ou mesmo pelos pedestres. Brian Keyes mantinha uma
distância de uns dois ou três quarteirões, encolhendo-se de susto toda vez
que Jenna escapava por um triz de um acidente. Ele havia tomado de
empréstimo o carro alugado de um dos shriners, porque Jenna certamente
reconheceria o velho MG só de ouvir o ronco do motor.
Ela estacionou na garagem especial para longa permanência do
Aeroporto Internacional de Miami. Abaixando-se no assento do motorista,
Keyes passou por ela rapidamente e foi encontrar uma vaga no andar de
cima. Saltou do carro, desceu velozmente pela escada rolante e ainda viu a
imagem de Jenna desaparecendo dentro do elevador. Correu todo o percurso
até o terminal de passageiros e lá se plantou em vigília.
Mesmo no meio da multidão, era impossível perder Jenna. Ela ostentava
um jeito clássico de andar em aeroportos, sensual mas indiferente; os
homens sempre abriam caminho e davam aquela olhadinha para ver aonde
estavam indo os jeans de Jenna, balançando de um lado para o outro, um
divino metrônomo natural.
Keyes a seguiu até que ela parou no guichê de compra de passagens da
Bahamasair. Ele se escondeu atrás de uma pilastra, procurando por Skip
Wiley.
“Precisa de uma mãozinha?”
Keyes voltou-se.
“Meu Deus!”
“Não queria assustá-lo.”
Era Burt, o shriner.
“De onde você surgiu?”, perguntou Keyes.
“Estava bem atrás de você, desde que você entrou.”
“E o seu parceiro?”
“Ele está por aí. Com os olhos grudados naquela fulana, sua amiga.”
Keyes estava impressionado; aqueles caras não eram tão ruins assim.
“Ela está indo para Nassau”, relatou Burt. “Sua passagem já estava paga
previamente.”
“Por quem?”
“Pela Corporação Nação Semínole da Flórida. Isto faz algum sentido,
senhor Keyes?”
“Eu explico depois.”
Keyes espiou cautelosamente o guichê da Bahamasair por trás da
pilastra, mas Jenna havia sumido.
“Merda!”
“Não se preocupe”, disse Burt. “James está no encalço dela.”
“Estamos muito atrasados.” Keyes saiu em disparada.
Devido ao fenomenal número de sequestros de aviões que decolavam de
Miami, o Departamento de Aviação Civil tinha implantado sofisticadas
medidas de segurança projetadas para impedir que qualquer pessoa
portando bombas, armas ou passagens vencidas entrasse no terminal de
embarque. A mais efetiva de todas essas medidas foi o emprego de pelotões
de mulheres estrangeiras gordas, com cara de bravas, para obstruir todos os
corredores e assediar todos os passageiros.
Na trilha de Jenna, James, o shriner, foi bloqueado no Corredor G, onde
uma corpulenta guarda de segurança chamada Lupee o encostou na parede e
energicamente começou a interrogá-lo em português. O ponto central de
suas preocupações era o fez que James estava usando, o qual ela arrancou
de sua cabeça e imediatamente fez passar diversas vezes pela máquina de
raio X, esmagando-o nesse processo. Nesse meio tempo, o voo 123 da
Bahamasair para Nassau partiu.
“Estraguei tudo”, desculpou-se James mais tarde num quiosque de café.
“Lamento.”
“Não se preocupe”, disse Keyes. “Você não tinha chance.”
“Não mesmo”, concordou Burt. “Senhor Keyes, nossa informação diz
que sua mulher está viajando sozinha.”
De alguma forma, Burt conseguira uma cópia da lista de passageiros
(ele não diria como o fez, mas Keyes concluiu que se tratava de alguma
conexão maçônica com um dos atendentes no aeroporto). Com os shriners
olhando por sobre seu ombro, Keyes correu o dedo pela lista de
passageiros. Wiley não estaria usando seu verdadeiro nome, e muito menos
teria adotado um simples Smith ou Jones como nome falso.
“Quem estamos procurando?”, perguntou Burt.
“Um maluco muito astuto.”
“Como você disse que era o nome dele mesmo?”
“Eu não disse”, replicou Keyes.
Ele finalmente encontrou aqueles que estava procurando, nos assentos
15-A e 15-B:
“Karamazov, Viceroy.”
“Karamazov, Skip.”
Keyes amassou a lista de passageiros até que ela se transformasse numa
bola e, enojado, jogou-a no lixo por trás do ombro. Os shriners a
recuperaram e estudaram os nomes.
“Muito espertinho, esse seu amigo”, disse Burt. “Parece que ele está se
divertindo muito com isso tudo, não é?”
“É mesmo o que parece”, rosnou Keyes, tentando se lembrar onde,
diabos, havia deixado seu passaporte.
16

Encontraram Skip Wiley roncando debaixo de um guarda-sol azul-nenê


em Cable Beach. Ele vestia bermudas cortadas de jeans e estava sem
camisa. Um romance pornográfico intitulado O romper da aurora estava
aberto em seu colo. Uma garrafa de rum Myers pela metade — protegida
pela sombra do torso de Wiley — transpirava dentro de um balde plástico
cheio de gelo.
Brian Keyes removeu a garrafa de rum e derramou o gelo sobre o peito
nu de Wiley.
“Puta que o pariu!” Wiley sentou-se como um raio.
“Como vai, Skip?”
“Você é um filho da mãe cruel.” Wiley apanhou uma toalha. “Não vai
me apresentar os seus amigos?”
“Este é o Burt e este é o James.”
“Adorei esses bonés, rapazes. Pena que perdi a liquidação.” Wiley
apertou a mão dos shriners. “Sentem-se. A vista é maravilhosa, exatamente
como no seriado Barco do amor, não acham?”
Silenciosamente Burt e James concordaram. Eles jamais tinham visto o
oceano tão transparente e com um azul tão cristalino. Sem dúvida, tratava-
se de um paraíso tropical. Depois que o taxista disse que um dos filmes de
James Bond fora rodado naquela angra, os shriners sentiram que estavam
realmente metidos numa grande aventura. Eles não sabiam exatamente
quem era o cara sentado sob o guarda-sol, mas já haviam concordado em
deixar que Brian Keyes falasse o que tivesse que ser falado.
“Onde está Jenna?”, perguntou Keyes. Ele queria começar com as
perguntas mais simples.
“Está procurando uma casa”, disse Wiley. “Não suporto esse maldito
hotel. Está cheio de jecas e imbecis americanos, que estão torrando a
poupança destinada à faculdade dos filhinhos nas mesas de pôquer. É
patético.” Wiley se serviu de um copo de rum sem gelo misturado com suco
de uva. “Como vão as costelas, Brian?”
“Melhorando.” Keyes estava observando a praia.
“Não se preocupe, ele não está aqui.”
“Ele quem?”
“Viceroy, ora bolas! Portanto, pode sossegar o seu rabo. Eu o mandei
passear por aí em troca de um pouco de privacidade, mas me aparece você
com esses dois armários.”
“São amigos de Theodore Bellamy.”
“Sei”, disse Wiley levando as mãos à cabeça. “Então quer dizer que
estamos aqui para uma desforra, é isso? Brian, quero que você avise aos
seus companheiros que eles estão em solo estrangeiro, solo este, meu caro,
que tem uma visão muito bem definida em relação a sequestros e
assassinatos. Um país que respeita os direitos dos estrangeiros e segue à
risca o item de sua Constituição que trata de extradição.”
“E esse artigo diz exatamente o quê?”, perguntou Burt.
“Diz que você e seu amigo cabeça de bagre vão direto para o presídio
de Fox Hill se se meterem comigo”, disse Skip Wiley, agitando seu copo de
rum. “Eu sou um hóspede aqui, um hóspede de honra, aliás.”
Este pequeno detalhe ocorrera a Brian Keyes logo que ele pusera os pés
em Nassau. De fato, ele não fazia ideia de como alguém poderia sequestrar
Skip Wiley e levá-lo de volta à Flórida. De barco? De jangada? Helicóptero
particular? E ainda que alguém o fizesse, no que daria isso? Não havia
nenhuma prova contra Skip Wiley, nem nenhuma acusação formal lançada
contra ele nos Estados Unidos, porque ninguém, a não ser Keyes, e
possivelmente Cab Mulcahy, sabia a verdadeira identidade de El Fuego.
“Você matou o doutor Courtney?”, perguntou Keyes.
“Quá, quá, quá.”
“Por que você fez isso?”
“Por favor”, disse Wiley, levantando a mão, “não vamos falar disso de
novo.”
“Você está precisando de ajuda, Skip.”
“Eu já disponho de toda a ajuda que preciso, campeão. Olhe aqui, você
tem sorte de eu ainda estar conversando com você. Eu lhe dei tudo o que
você precisava para orientar as investigações daqueles tiras idiotas.”
“Eu perdi a maleta.”
“Formidável, formidável mesmo.” Wiley sorriu cinicamente. “Que
espécie de detetive você se saiu, hein, Keyes? Mas uma coisa eu admito: foi
realmente espetacular aquela sua contribuição à reportagem de Bloodworth.
Aquela história de eslavos loucozoides com perucas foi mesmo espetacular.
Um toque perfeito de xenofobia latente.”
“Eu estava torcendo para que ninguém acreditasse.”
O sorriso cavernoso de Wiley desapareceu subitamente e seus olhos
vivamente castanhos endureceram.
“Peça a seus amigos para darem uma volta”, disse ele. “Quero falar com
você.”
Keyes confabulou com os shriners e eles caminharam para a praia, mas
a cada três passos olhavam para trás por sobre os ombros.
“Pronto, pode falar”, disse Keyes a Wiley.
“Você acha que eu sou só um egomaníaco enlouquecido, não?”
“Oh! de forma alguma, Skip. Você é completamente normal. Cada
jornal tem no mínimo um ou dois repórteres que de noite se transformam
em assassinos contumazes. É uma terapia ocupacional bastante conhecida.”
Wiley fungou com escárnio.
“Permita-me garantir-lhe, meu jovem amigo, que não sou louco. Sei o
que estou fazendo, e sei o que já fiz. Você está apaixonado por essa palavra,
assassino — certo. Pode me chamar do que você bem entender. O
fanatismo pode ser estafante, não tenha dúvida; não pense que não
prejudica a psique — ou a consciência. Mas, só para registrar, não é o meu
nome que é importante, mas o do grupo. Reconhecimento é essencial à
moral, Brian, e moral é vital para a causa. Esses caras merecem um pouco
de reconhecimento.”
“Mas uma revolução? Skip, você está falando sério?”
“Revolução?... talvez você tenha razão; talvez esse negócio de
revolução seja um exagero. Mas Jesús e Viceroy adoram imagens e tudo o
que tenho a fazer é dá-las a eles.” Wiley atirou o copo de rum na areia.
“Portanto, não haverá nenhuma revolução no sentido clássico do termo, a
não ser caos. Isso você pode apostar. Medo. Pânico. Fugas. Desastre
econômico.”
“Deveras ambicioso”, disse Keyes.
“É o mínimo que posso fazer”, disse Wiley. “Brian, e o que é a Flórida,
afinal de contas? Um imenso mictório ensolarado onde milhões de turistas
mijam seu dinheiro e congelam os melhores momentos em filmes Kodak. A
receita da redenção é simples: espante os turistas e logo depois os
incorporadores também estarão espantados. Saindo os incorporadores, saem
os banqueiros. Saindo os banqueiros, saem os advogados. Saindo os
advogados, saem os traficantes de drogas. Toda a porra da economia
implode! Agora me diga, estou louco?”
Brian Keyes sabia que era melhor ficar quieto.
Os longos cabelos de Wiley reluziam feito ouro sob o sol das Bahamas.
Ele ostentava a autoconfiança de um leão.
“Portanto, a questão”, prosseguiu ele, “é como espantar os turistas.”
“Matando alguns deles”, disse Keyes.
“Para começar.”
“Skip, tem que existir uma maneira melhor.”
“Não!”, gritou Wiley, levantando-se e arrancando o guarda-sol da areia
com a cabeça ao fazê-lo. “Não... há... nenhuma... outra... maneira! Pense
nisso, seu cérebro de molusco! O que produz manchetes? Assassinatos,
caos e loucura — os pontos cardeais de uma redação. É isso que aterroriza
os agentes de viagens de todo o mundo. É isso que dá discurso no
Congresso e faz nascer comissões contra a criminalidade. É isso que
espanta os membros de uma convenção de shriners imbecis. É uma pena,
eu concordo com você. É uma pena que eu não possa simplesmente
participar da próxima reunião da comissão municipal e pedir aos nossos
respeitáveis servidores públicos que parem de destruir o planeta, por favor.
É uma pena que o pessoal que emporcalhou este paraíso simplesmente não
peça desculpas e pegue suas caminhonetes para voltar para a fumaça e o
barulho lá do Norte. É um fato comprovado que não sairão até que alguém
acenda uma fogueira debaixo deles. E é aí que entra o Las Noches de
Diciembre. ‘Polícia procura o abominável assassino da maleta’; ‘Velhinha é
raptada e vira comida de crocodilo’; ‘Bomba no buraco 12 do campo de
golfe mata três jogadores’; ‘Terroristas alucinados espantam turistas da
Flórida’.” Wiley estava praticamente cantando as manchetes, exatamente
como se as estivesse vendo saindo da prensa do New York Post.
“Está certo, foi muito sangue-frio”, disse ele, “mas este é o jogo do
jornalismo. É o único jogo que eu conheço, mas sei como vencer.”
“A velha metralhadora de palavras”, disse Keyes.
“É isso aí, campeão!” Wiley deu-lhe um tapinha nos ombros. “Vamos
procurar aqueles seus amigos engraçados.”
Eles caminharam pela Cable Beach. Keyes seguia tentando se livrar das
ondas, mas Wiley ia em frente sem se importar com elas, chutando a água
com seus enormes pés. Ele mantinha sua cabeça bem erguida, seu queixo
apontando para o sol.
“Se você odeia tanto os turistas”, disse Keyes, “por que é que veio
justamente para cá?”
“Soberania”, replicou Wiley, “e conveniência. Além disso, as Bahamas
são bem diferentes da Flórida. O CBQ daqui é só quarenta e dois.”
CBQ, lembrou-se Keyes, costumava ser, para Skip, o Coeficiente de
Babaquice. Skip Wiley tinha uma teoria muito conhecida, segundo a qual a
qualidade de vida declinava em proporção direta ao crescimento do
Coeficiente de Babaquice. De acordo com as estatísticas de Wiley, Miami
tinha cento e trinta e quatro babacas completos para cada 2,6 quilômetros
quadrados, sendo o pior índice em toda a América do Norte. Em segundo
lugar aparecia Aspen, no Colorado (cento e um), com Malibu Beach, na
Califórnia, ficando em terceiro com noventa e sete.
A cada ano, Skip publicava em sua coluna um ranking dos dez lugares
mais intoleráveis do continente segundo a teoria do CBQ, e a cada ano o
editor de Cidades diligentemente mudava “Coeficiente de Babaquice” para
“Coeficiente de Ignorância” antes que a coluna fosse publicada. Na coluna
do dia seguinte, Wiley ia logo se desculpando com os leitores, dizendo que
esquecera de incluir mais um babaca completo na contagem final — o
próprio editor de Cidades. Evidentemente, o editor de Wiley imediatamente
suprimia isso também. Depois de alguns anos, ficou óbvio que nem mesmo
Skip Wiley poderia escrever a palavra babaca no Miami Sun, mas a cada
ano toda a redação aguardava ansiosa a disputa.
“O grande lance nas Bahamas”, ia dizendo Wiley, “é que eles não
deixam os turistas ficarem. Tentar comprar uma propriedade por aqui é
como pedir uma audiência pessoal com o papa. Praticamente impossível, se
você não tiver as amizades certas. Por isso, o senhor e a senhora Mickey
Mouse, de Akron, podem vir e torrar todo o seu dinheiro, mas é só isso e
tchauzinho, podem enfiar o traseiro dentro do avião e cair fora. Isso
impossibilita a imigração. É uma pena que não tenham pensado neste
sistema para a Flórida.”
“A Flórida não é uma ilha, Skip.”
Wiley pulou por cima de duas crianças das Bahamas que estavam
brincando de luta na água. Seu riso melódico e grave se misturou aos
trinados das crianças e se espalhou pelas ondas.
“Você não acha que tudo isto já foi longe demais?”, perguntou Keyes.
“Eu estava esperando você dizer isso”, disse Wiley sem parar a
caminhada. “Senhor Eu-Só-Quero-Ajudar, é isso o que você é. Um
verdadeiro desmancha-prazeres.”
Keyes parou. A água azul encrespou-se sobre seus tênis.
“Detesto ver pessoas morrendo, é só isso”, disse ele a Wiley.
“Eu sei que você detesta”, disse Wiley, olhando para trás. “Eu também
detesto. Acredite ou não.” Ele não precisava dizer mais nada. Ambos
estavam se recordando do caso da pequena Callie Davenport.
Logo acima de onde eles estavam, alguns banhistas se aglomeravam
ruidosamente fechando um círculo. Keyes e Wiley ouviram homens
gritando e em seguida o som de uma sirene.
Keyes pensou em Burt e James e saiu em disparada, com seus tênis
afundando na areia. Wiley deu um pique, alcançando-o e segurando-o pelo
braço.
“Espere um momentinho aí, campeão, é melhor deixar eu dar uma
checada nisso.”
No meio do tumulto, Keyes contou quatro policiais das Bahamas, cada
um deles usando um robusto capacete e uniforme branco viçoso. Portavam
truculentos cassetetes, mas não usavam armas na cintura. Wiley aproximou-
se dos policiais e começou a conversar com um deles. Depois, voltou com
as más notícias.
“Temo que seus amigos tenham que aprender as regras das ilhas pela
força.”
À distância, Keyes observou os policiais retirando Burt e James da
praia. Os barretes púrpuros eram fáceis de ser acompanhados com os olhos,
pois sobressaíam no meio da multidão.
“Que diabos aconteceu?”, perguntou Keyes, pensando numa tentativa de
resgatá-los.
“Fique aqui”, preveniu Wiley, “a menos que curta ficar preso.”
O que houve foi o seguinte: em sua indesejada caminhada Cable Beach
abaixo, os shriners de olhos aguçados tinham avistado ninguém menos que
Viceroy Wilson, o ex-astro de futebol, agora um fugitivo, caminhando na
direção deles. Como de costume, Wilson estava embalado dentro de seus
óculos escuros Carrera e, também como de costume, já estava muito louco,
tendo, com certeza, descolado algum fumo jamaicano de primeira de algum
serviçal do hotel. Viceroy Wilson jamais estivera nas ilhas, e o fulgurante
mostruário da mulherada das Bahamas na praia tinha desviado seriamente
sua atenção dos propósitos da revolução. Wilson estava tão maravilhado
com aquele cenário que nem sequer atentara para os dois brutamontes de
roupas cinzentas que o seguiam no meio dos banhistas.
Os shriners atacaram agilmente. Burt, pela lateral, agarrou o braço
esquerdo de Wilson, James se encarregou do outro, e ambos começaram a
girá-lo e torcê-lo numa sofisticadíssima manobra de caratê. Infelizmente, o
pessoal que inventou o caratê nunca teve que praticá-lo com um ex-atacante
da NFL de mais de cem quilos e com braços do tamanho de uma sucuri.
Viceroy Wilson, com a diplomacia costumeira, esborrachou os shriners e se
mandou de volta para o hotel. Destituído de agilidade por causa da
maconha, ele tropeçou numa geladeira portátil e caiu. Os shriners caíram
sobre ele inesperadamente, bufando, grunhindo e se agarrando ao seu
poderoso torso. De alguma forma, Viceroy Wilson conseguiu se pôr de pé e
mexer suas famosas pernas. Os velhos reflexos tinham sido resgatados; com
os shriners pendurados em suas coxas, Wilson sacudiu a poeira e saiu em
disparada pela praia. Foi um combate memorável, com vários turistas
focando a ação dos lutadores com suas câmeras de vídeo caseiro. Viceroy
Wilson era todo cotovelos, joelhos e rapidez, e os shriners eram arrastados,
com as borlas dos chapéus agitando-se. Em seguida, a polícia chegou e
prendeu Burt e James por tentativa de agressão. Os policiais se desculparam
profusamente com Skip Wiley, pois eles haviam sido especialmente
recrutados para ficarem de olho na comitiva de Wiley, um compromisso
garantido por uma bela soma em dinheiro vivo.
“Eu disse para os seus macacos se comportarem”, disse Wiley com
reprovação enquanto eles assistiam à retirada do carro de polícia.
“E eles estão indo para a cadeia?”, perguntou Keyes fatigado.
“Não, para o aeroporto. Eles serão deportados como indesejáveis. Acho
que não há discussão a esse respeito.”
Eles voltaram à sombra do guarda-sol azul. Keyes se sentou na areia
fresca. Wiley se esticou na sua cadeira de praia.
“Eles vão saber que o seu dedo está por trás de tudo isso”, disse Keyes.
“A polícia, a imprensa. Alguém vai juntar as peças do quebra-cabeça.”
“Isso ainda vai levar muito tempo.” Wiley inclinou-se para o sol. “Você
não estava pensando em me dedurar, estava?”
Keyes balançou a cabeça e olhou para o mar, observando as tranquilas
ondas. É evidente que eu estou pensando nisso, seu idiota.
“É aquilo que eu falei antes”, disse Wiley. “Se os tiras me apanharem
cedo demais, teremos problemas. E, se eles me apanharem, eu vou saber
que foi você. E ninguém mais.”
“Mas, Skip, tem um monte de pistas por aí. Wilson e o cubano, eles
estão deixando um rastro...”
“Certo, mas nenhum problema. Podemos sobreviver a isso. Além disso,
intimamente eles estão morrendo para serem famosos outra vez. Quanto a
mim, bem, tenho que trabalhar nos bastidores por enquanto. Muito
planejamento para fazer, mexer os pauzinhos aqui e ali. Eu não suportaria
ter a Central de Homicídios bisbilhotando os meus passos; isso abala o
processo criativo. Veja, se eu for exposto como sendo El Fuego, perderei o
controle da turma. Isso significará que não sou tão esperto, tão inteligente,
tão insubstituível. Vão parar de me dar ouvidos, Brian, e isto vai ser um
puta problema. As coisas que esses caras querem fazer, as pessoas que eles
querem apagar! Se você me perder, você estará perdendo também a voz da
razão, e aí, campeão, teremos um banho de sangue, e isso não é um
daqueles exageros-padrão de Wiley. Isso é um fato.”
Keyes estudou seu amigo desnorteado e pensou no ritual de Ida
Kimmelman. A ameaça de Skip de promover um massacre soou-lhe séria
demais para não ficar preocupado.
“Se você tem os caras na palma da mão, porque não convence todo
mundo a parar?”, disse Keyes.
Wiley respondeu com uma bufada.
“Nunca! A causa é justa. O sonho é puro.” Apontou o dedo para Keyes.
“Cabe a você e ao Cab pôr um ponto final na violência. Como? Aceitem o
Noites de Dezembro como um legítimo grupo terrorista. Deem um fórum
para a gente. Passem a mensagem de que não estamos brincando em
serviço, que somos sérios e que nossa campanha não vai parar até que o
êxodo esteja em pleno andamento. Ah! Imagine: congestionamentos de Key
West até Jacksonville: caminhonetes, caminhões, aviões, trens, ônibus,
trailers, furgões. Todos a caminho do Norte!” Wiley sentou-se
animadamente. “Brian, estamos falando faz uma hora; neste tempo 41,6
idiotas se mudaram para a Flórida. Estão chegando a um índice de mil por
dia. Mil a cada dia! Não há mais lugar para colocá-los! A terra está se
encolhendo sob nossos pés, a água está envenenada, o ar ficou poluído. A
natureza está querendo nos dizer que é hora de fazermos alguma coisa.”
Wiley jogou a cabeça para trás. “Meu Deus, é uma equação tão simples.”
“O último dos malthusianos”, disse Keyes.
“Ora, Malthus apenas sonhou um pesadelo como a Interestadual 95.
Nunca teve que dirigir nela.”
Keyes pensou: Ele parece estar com a cabeça feita. Talvez eu tenha que
matá-lo em algum momento. Certamente não agora, não numa praia lotada
à tarde. Mas talvez mais cedo do que espero.
Wiley descansou seu queixo barbado nas mãos e ficou em silêncio.
Observou a chegada ao porto de um deslumbrante navio de cruzeiro. O
convés de alabastro do navio estava repleto de turistas espalhafatosos,
tirando fotos e distribuindo “olás” idióticos aos camelôs que aguardavam no
cais. Wiley parecia se divertir com a cena. Brian Keyes desejou ser uma
sonda ainda não inventada pela ciência para perscrutar o cérebro lodoso de
seu velho amigo; ele se sentia mais impotente que nunca.
“Suponho que você queira saber o que vai acontecer em seguida”, disse
Wiley.
“Pode crer.”
“Vai ser uma beleza!”
“Vamos lá, conte a beleza.”
“Está bem”, disse Wiley. “Vamos violentar a mais sagrada virgem de
toda a cidade de Miami.”
“Você poderia ser um pouco mais claro?”
“Creio que não, Brian. Você é um jovem brilhante, é capaz de adivinhar
sozinho.”
“Quando você diz violentar, está querendo dizer estupro?”
“Não, meu Deus!” Wiley estava indignado. “Não posso crer que você
pense uma coisa dessas. Depois de todos esses anos que nos conhecemos...
Deus do céu, eu tenho cara de estuprador?”
Keyes não respondeu porque, às vezes, Wiley realmente se parecia
muito com um estuprador.
“A palavra violentar...”
“Tire a poeira do seu dicionário, campeão. Vamos dessacralizar uma
princesa imaculada. Essas são todas as pistas que posso dar para você.”
Wiley fuçou em seus jeans e sacou um apito de tráfego prateado, o qual
ele apitou três vezes, bem alto.
“Que diabo é isso?”, perguntou Keyes, percebendo que era tarde
demais.
“Está na hora de você se despedir da Goombayland.”
Keyes visualizou quatro policiais bahamianos de camisas engomadas
correndo em direção à praia, seus coturnos levantando areia atrás de si e
acenando com cassetetes.
“Merda!”, murmurou Keyes.
“Olhe como correm”, maravilhou-se Wiley. “O suborno não é uma coisa
maravilhosa?!”
Keyes, rapidamente, reviu suas opções. Resistência física estava fora de
cogitação; os policiais pareciam quatro locomotivas negras desgovernadas.
Correr também lhe pareceu fútil — não havia nenhum lugar para onde
pudesse ir sem que não parecesse uma enorme lâmpada branca de duzentos
watts. Considerou a hipótese de mergulhar por sob uma onda e conquistar,
finalmente, a liberdade, mas foi dissuadido da ideia quando pensou na
hipótese de se tornar isca de tubarão, ou ser atropelado por um esquiador.
No final das contas, o melhor foi se apresentar ele mesmo aos policiais. O
brilho do sol tropical pareceu se evaporar quando os quatro o encurralaram
num círculo.
“Vão com calma, rapazes”, disse Skip Wiley, saindo da cadeira de praia.
“Como vocês estão vendo, ele é inofensivo.”
Oito mãos duras como rochas caíram sobre Brian Keyes.
“Imagino que isto significa que você e a Jenna não estão me convidando
para a sopa de mariscos no jantar.”
“Temo que seja isso mesmo, Brian”, pestanejou Wiley, esticando seus
braços bronzeados. “Tenha uma viagem tranquila de volta ao lar.”
“Quando te vejo de novo, Skip?”
“Muito breve”, disse Wiley. “Em rede nacional de televisão. Agora, se
você me der licença, estou atrasado para minha aula de windsurfe.”
17

“Kara Lynn.”
“Pois não, senhor prefeito.”
“O que você pensa sobre a fome?”
Kara Lynn Shivers considerou cuidadosamente a questão.
“Que fome, senhor prefeito?”
“A fome do mundo em geral”, disse o prefeito.
“Bem, em geral”, disse Kara Lynn, “acho que a fome é realmente uma
coisa terrível.”
“Se você fosse escolhida nossa rainha do Orange Bowl”, continuou o
prefeito, “você trabalharia para acabar com a fome no mundo?”
“Incansavelmente, senhor prefeito.”
Os demais jurados balançaram afirmativamente as cabeças. Eles
gostavam de Kara Lynn mais do que de qualquer outra semifinalista, e já
haviam se decidido. Se ao menos o prefeito fosse menos prolixo na última
entrevista.
“E como você faria isso?”, perguntou o prefeito.
“Faria o quê?”, disse Kara Lynn.
“Dar um basta na fome.”
“Eu não disse que daria um basta”, disse Kara Lynn com um traço de
sarcasmo. Na terceira fila, ela visualizou seu pai, que, intimidador, simulava
o movimento de uma faca deslizando sobre sua garganta.
“Mas eu certamente tentaria”, disse ela, amaciando. “Como o senhor
sabe, estou estudando relações públicas, senhor prefeito, e poderia usar
esses conhecimentos especiais para chamar a atenção do mundo para o
sofrimento das crianças famintas. Eu faria disso minha primeira prioridade
como rainha do Orange Bowl.”
O prefeito sorriu. O pai de Kara Lynn deixou escapar um suspiro de
alívio.
“Obrigado, Kara Lynn”, disse o prefeito. “Vamos fazer uma pausa até a
noite.”
“Obrigada, senhor prefeito”, disse Kara Lynn. E então, curvando-se
num doce agradecimento diante dos outros jurados: “Obrigada a todos
vocês.”
E agora, pensou ela, vocês todos podem voltar para o Hyatt e ir se foder.
Kara Lynn Shivers, dezenove anos, loira, olhos de avelã, um metro e
setenta e cinco de altura e cinquenta e cinco quilos (Viceroy Wilson estava
com a mão no dinheiro), transformara-se numa jovem cínica. Desprezava
concursos de beleza e todas as encenações fúteis que eles exigiam. Embora
tivesse ganho vários títulos — Miss Transporte de Massa Mirim, Miss
Anglo Miami e, claro, Rainha do Caranguejo —, cada nova coroa que
ganhava apenas fazia aumentar o profundo tédio de Kara Lynn. Atrás do
palco, ela não sorria, não fingia charme, nem paciência. Ela ficava farta de
tudo.
A culpa era de seu pai. Fora ele quem a fizera aprender a tocar “Eleanor
Rigby” na trompa. “Os juízes vão adorar isso”, ele dissera, e eles sempre
adoravam.
Fora seu pai quem a fizera, aos seis anos, mudar seu nome de Karen
Noreen, porque “Noreen pertence à Federação de Bandeirantes, não a
Atlantic City”.
Fora seu pai quem a arrastara para Genebra, aos nove anos, para ser
tratada pelo “mais famoso ortodontista ambidestro de toda a Europa”.
Kara Lynn Shivers suspeitava haver algo de muito esquisito com o
comportamento do pai — não por ele desejar que sua princesinha se
tornasse uma estrela (diga-se, uma fantasia inofensiva), mas por sugerir que
nenhum preço era alto demais para isso.
Fora seu pai quem enviara pacotes de retratos feitos em polaroide de
Kara Lynn de biquíni para a Playboy, depois para a Penthouse e finalmente
para a Oui, e depois de incontáveis recusas resolveu que Kara Lynn
precisava de seios mais suculentos, que, aliás, era tudo o que ela julgava
não precisar. Seus peitinhos eram simplesmente excelentes: redondinhos,
empinadinhos, perfeitinhos. Ninguém jamais se queixara de seus seios,
exceto seu pai, mesmo só os tendo visto nus quando da ainda era pouco
mais que um bebê.
Certa tarde, poucos meses antes do concurso do Orange Bowl, o pai de
Kara Lynn convidou secretamente um renomado cirurgião plástico para vir
à sua casa. Kara Lynn acabara de chegar da aula de ginástica, e estava
usando um colante cor-de-rosa. Ela estava na cozinha, preparando uma jarra
de chá gelado, quando os dois homens apareceram de repente atrás dela.
“E então, o que o senhor acha?”, perguntara seu pai.
“Moleza”, disse o cirurgião. “Prefere um tamanho B arredondado ou um
C?”
“Fiquem longe dos meus peitos!”, gritou Kara Lynn, apanhando uma
faca de cortar bife.
“Mas, docinho, eu só estou tentando ajudar.”
“Os peitos são meus, papai. Fique longe deles!”
“Quarenta milhões de pessoas vão ver aquela parada na véspera de Ano
Novo. Você não quer causar uma boa impressão?”
A mãe de Kara Lynn não ajudou muito.
“Seu pai só quer o melhor para você, querida”, disse ela. “O que há de
errado nisso?”
“Mamãe!”
“Vai ser um adorável presente de Natal.”
“Mas eu não quero ganhar melões novos no Natal”, disse Kara Lynn.
“Eu quero é um Volkswagen.”
Na noite de 16 de dezembro, Kara Lynn Shivers e seus peitos originais
encantaram uma pequena mas entusiástica plateia no Centro Cívico, e os
jurados, por unanimidade, coroaram-na rainha do Orange Bowl de Miami.
Um convidado surpresa, Julio Iglesias, presenteou Kara Lynn com um
buquê de rosas. Ela sorriu habilmente e aceitou o beijo de Julio, mas seu
coração não balançou. Depois que se apagaram os refletores das televisões,
Jerry, o apresentador seboso, agradeceu a Kara Lynn por tê-lo reanimado
depois do entrevero que tivera com o segurança negro. Jerry disse a Kara
Lynn que estava absolutamente “embriagado” pela sua performance de
“Eleanor Rigby”, e a convidou para um drinque.
“O que você quer é uma chupetinha”, disse Kara Lynn. “O que isto tem
a ver com a fome mundial?”
Kara Lynn Shivers resolveu que o Orange Bowl seria o seu último
concurso de beleza. E ela estava certa.

O dia 16 de dezembro caiu numa das semanas mais agitadas da agenda


do Las Noches de Diciembre. Mais três turistas desapareceram, um
estudante bêbado foi comido vivo por um crocodilo selvagem, e o bucólico
Hibiscus Kennel Club foi o palco de um virulento episódio que ficou
conhecido como o Massacre de Trifeta. As agências de notícias, aos poucos,
estavam acordando para a nova onda de crimes que vinha assolando a
Flórida, e ninguém menos que o influente New York Times publicou o seu
próprio e inestimável relato dos fatos: “Sequestros de turistas na Flórida
preocupam autoridades”.
Foi a pior semana de toda a vida do detetive Harold Keefe.
Com Skip Wiley fora do país, Jesús Bernal sentia-se livre para pôr seus
relogiozinhos explosivos para funcionar. Construiu três deles, e datilografou
uma lista preliminar de alvos:
1. Detetive Harold Keefe.
2. Qualquer lugar cheio de turistas.
3. Qualquer lugar cheio de comunistas.
A primeira bomba não foi o que se poderia chamar de um sucesso total.
Na manhã de 17 de dezembro, Harold Keefe deixou sua casa na hora de
sempre e tomou o caminho costumeiro para o departamento de polícia de
Dade. Depois de um levantamento acurado, Jesús Bernal concluiu que entre
sete e trinta e oito e sete e quarenta e seis da manhã o detetive Keefe
passaria pelo pedágio na Via Expressa Dolphin. Também sabia que o
detetive passaria pelo desvio lateral exclusivo para pesagem de caminhões.
Jesús Bernal estava pronto. Chegou à cabine do pedágio às sete e vinte e
cinco, amarrou o caixeiro e pôs-se a esperar pelo Plymouth Volare preto
chapa-fria de Harold Keefe.
Harold Keefe ainda não tinha todos os seus reflexos alertas durante a
manhã. Ele mal olhou para o magro caixa cubano que deixou cair seu troco
— “Desculpe, patrão!” — e se enfiou debaixo de seu carro, tateando (Keefe
presumiu) em busca da moedinha. E Keefe também não atinou no ligeiro
estalo de metal com metal.
Era o som de Jesús Bernal fixando a bomba acionada por controle
remoto.
“Tenha um bom dia!”, acenou Bernal enquanto Harold Keefe se
distanciava.
Sessenta segundos depois a bomba explodiu, lançando o Volare preto
para fora do tráfego da hora do rush e atirando-o numa vala de drenagem.
Harold Keefe não morreu. O Miami Sun descreveu o que lhe aconteceu
como “graves ferimentos nos pés”, o que era outra forma de dizer que os
dedos dos pés do detetive foram para o brejo, sem ter sobrado um para
contar a história; no mais, Harold Keefe saiu do incidente sem ter sofrido
nenhum outro arranhão. Foi um dos mais estranhos ataques a bomba de que
já se ouviu falar, e não era o que Jesús Bernal tinha planejado.
A segunda bomba era mais poderosa e seus resultados foram mais
espetaculares. Explodiu na noite de 18 de dezembro durante o primeiro
páreo no Centro de Corridas de Cachorros do Hibiscus Kennel Club, diante
de um público recorde de catorze mil quinhentos e um espectadores
(incluindo dois terços da comissão municipal). A bomba do Kennel Club
era, na verdade, uma pequena mina de guerra, uma imitação rudimentar de
um espadão escocês medieval, a qual Jesús Bernal enterrou na segunda
curva da pista. O galgo que acionou a mina foi um animal veloz chamado
Blistered Sister, que estava pagando vinte para um. Ali estavam oito
cachorros de raça em disparada ao longo da pista e de repente seus ossos
chuviscavam no ar, com as vísceras viradas do avesso. Foi um inferno. A
explosão abriu uma cratera de três metros de diâmetro na pista de corrida e
as apostas ficaram suspensas durante horas. Blistered Sister, cuja carcaça
carbonizada foi a que aterrissou mais perto da fita de chegada, foi declarado
vencedor e pagou quarenta dólares e seis cents para cada bilhete de dois
dólares. Enquanto os funcionários do clube limpavam e recuperavam a pista
danificada com pás e ancinhos, uma voz cavernosa, que não soava familiar,
ecoou pelo sistema de som da pista e se dirigiu ao público:
“Hola, Senhores Pensionistas do Fundo Pari-Mutuel”, disse a voz.
“Sejam bem-vindos à Revolução!”
Apenas as autoridades municipais pareceram alarmadas.
A terceira bomba Jesús Bernal resolveu não usar. Ele procurara em toda
a Miami uma aglomeração de comunistas para explodir, mas não encontrou
nenhuma. Ele sabia que eles estavam lá — eles tinham que estar em algum
lugar. Bernal não queria desperdiçar essa bomba, porque ela era uma
verdadeira obra-prima. Era sua passagem de volta para o Primeiro Fim de
Semana de Julho. Ele decidiu guardar a bomba até que alguns comunistas
pusessem as manguinhas de fora. Na pior das hipóteses, sempre tinha a
alternativa de plantá-la na Central Sindical.
Enquanto Jesús Bernal rondava pela cidade com seus C-4 e suas
cápsulas explosivas, Tommy Rabo-de-Tigre e Viceroy Wilson (de volta de
Nassau, ainda celibatário) apagaram mais três turistas.
“Precisamos de estatísticas que impressionem”, urgiu Skip Wiley por
telegrama.
“Estatísticas?”, murmurou o índio.
Viceroy Wilson havia compreendido perfeitamente.
Os raptos nada tinham de sofisticados: um jovem surfista no píer de
Pompano, atraído para um Cadillac estacionado com um carregamento de
maconha colombiana fresquinha; e um casal de meia-idade de White Plains,
que misteriosamente sumiu da mesa de primeira fila em que se encontrava
durante o segundo show de Jackie Mason no Diplomat.
No meio da semana, Tommy Rabo-de-Tigre trouxe algumas notícias
sombrias.
“Pavlov está doente”, contou ele a Viceroy Wilson no acampamento dos
Everglades.
“Aposto que foi aquele maldito surfista”, disse Wilson.
“Não”, disse o índio, “é a água. Ele precisa de água salgada.”
Viceroy Wilson procurou no lago em busca do ominoso cepo marrom
que era o focinho de Pavlov. De longe — uma distância segura —, o
mostrengo parecia ótimo.
“Este é um crocodilo norte-americano. Seu hábitat é água salgada”,
explicou Tommy. “Ele está aqui nesse lago há duas semanas e agora precisa
ir para casa.”
“Por mim, tudo bem”, disse Viceroy Wilson.
No momento em que eles passaram as cordas em Pavlov, Wilson
entendeu o que o índio estava falando. O crocodilão estava grogue e com os
olhos anuviados. Até mesmo o seu sibilar parecia anêmico.
Transportar Pavlov dos pântanos dos Everglades para as praias da baía
de Biscayne resultou num dia de inimaginável esforço. Mesmo em estado
de letargia, o crocodilo era uma carga formidável, e seu estado não
melhorou muito durante a viagem. O índio alugara uma carreta fechada
para essa viagem, mas não havia espaço suficiente na cabine para os três
soldados. Viceroy Wilson resolveu que Jesús Bernal, por sua agilidade com
a navalha, estaria mais bem preparado para viajar na carreta com o réptil
gigante. Cada vez que Tommy passava por um buraco, a carreta adquiria
vida, com sibilos e resmungos em espanhol.
Já sob o crepúsculo eles saíram da marginal da rua 79, tiraram Pavlov
da carreta e o soltaram nas águas salgadas da baía de Biscayne. O crocodilo
nadou para o Leste, sem olhar para trás, impulsionado por sua gigantesca
cauda serpenteante. Pavlov não parou de nadar por trinta horas. Atravessou
a baía, adentrou o Atlântico pelo Haulover Cut e ganhou o Norte ao longo
da Gold Coast. Era como se, Skip Wiley refletiria mais tarde, a grande fera
estivesse, de algum modo, imbuída do espírito do Las Noches; como se
tivesse se inspirado em seus captores.
Para Viceroy Wilson, a explicação era mais elementar: mágica
semínole. O maldito índio tinha dado algum passe.
Pavlov parou de nadar quando atingiu a famosa praia de Fort
Lauderdale. Lá, na escuridão, arrastou os seus quinhentos quilos para a
areia e dirigiu-se para as luzes festivas do Barbary Coast Hotel. Um pouco
mais tarde, já à luz do dia, os banhistas seguiriam o trajeto fatal do
crocodilo pela trilha deixada na areia.
Deixando de lado os conceitos místicos de Wiley, o que provavelmente
aconteceu foi que o crocodilo simplesmente se cansou de lutar contra a
corrente marítima e chegou à praia para descansar. Uma vez em terra firme,
suas narinas farejaram as luxuriantes águas salgadas da piscina do Barbary,
e Pavlov decidiu se divertir.
Além de ser jovem, estúpido e bêbado, Kyle Griffith (Universidade da
Geórgia, turma de 1987) não tinha nenhum bom motivo para estar naquela
piscina às quatro horas da madrugada. Um péssimo motivo para estar lá —
nu, protegido apenas por um boné de borracha enrugado em cuja copa
estava escrito “Go Bulldawgs!” — era que os companheiros de Griffith no
grêmio Sigma Nu desafiaram-no a mergulhar na piscina pulando da sacada
do quarto, a dez metros de altura. A escuridão que cobria a água era tanta
que mesmo um crocodilo de seis metros de comprimento conseguia ficar
invisível.
Tendo se alimentado prodigiosamente nos últimos dias, Pavlov não
estava com tanta fome. Um petisco cairia bem, talvez um galeirão ou uma
pequena sardinha. Mas, depois que Kyle Griffith caiu na água, os instintos
dinossáuricos de Pavlov começaram a agir. O crocodilo apanhou as pernas
do desnorteadíssimo Sigma Nu e o mergulhou até o fundo da piscina, onde
permaneceu imóvel por vários minutos, como que contemplando a
sabedoria de sua própria gulodice. No fim, claro, o universitário foi
devidamente devorado, sendo que seu estúpido boné de borracha causou
uma indigestão em Pavlov e foi regurgitado.

Esta avalanche de ataques violentos e estranhos destruiu a teoria (para


não mencionar a carreira) inventada pelo detetive Harold Keefe, e
convenceu os líderes cívicos de Dade County de que um cruel bando de
psicopatas estava de fato alucinado nas ruas.
Sem artelhos e atordoado, Keefe, poupado da vergonha de ser
rebaixado, foi convencido pelo departamento de polícia a aceitar uma
generosa licença por incapacitação.
Na manhã de 20 de dezembro, enquanto Brian Keyes falava ao telefone
com o Departamento de Estado dos Estados Unidos, três oficiais de polícia
devidamente uniformizados chegaram a seu escritório e educadamente
convidaram-no a acompanhá-los até o centro da cidade. Keyes esperava que
isso fosse acontecer, e estava sem disposição para resistir. Passara toda a
semana se esquivando de Ricky Bloodworth e tentando negociar a
libertação dos dois shriners detidos num presídio das Bahamas, onde eram
mantidos pela vaga acusação de espionagem e caça ilegal de lagostas.
Keyes mandou um aviso para Skip Wiley dizendo que aquilo já tinha
passado dos limites, que a brincadeira não tinha mais graça, mas tudo o que
recebeu de volta foi um cabograma que dizia: “Você não tem mais o que
fazer?” Finalmente Burt e James foram extorquidos em cinco mil dólares —
cada um — de fiança e em seguida colocados num voo sem escala para
Chicago. Keyes estava jogando pesado com o Departamento de Estado
quando os policiais chegaram.
No quartel-general da polícia, Keyes foi conduzido a uma sala de
reuniões à prova de som, onde pediram que ele aguardasse. A sala, sem
janelas, fora recentemente acarpetada e cheirava a tinta fresca. Na parede
havia um quadro-negro no qual alguém tinha escrito as palavras “Las
Noches de Diciembre? Noites de Dezembro?”. Depois de alguns minutos,
Al García entrou, sorrindo feito uma baleia.
“Equipe de apoio, nunca mais!”, soltou ele. “Atenção, marginais, Al
García está de volta às ruas.”
“Na ativa de novo, Al?”
“Agora tenho meu próprio esquadrão especial. Pode acreditar numa
coisa dessas, Brian? Eles me colocaram no comando.”
“No comando de quê?”
“Das investigações dos crimes do Las Noches.”
“Sem querer ofender, Al”, disse Keyes, “mas por que você?”
“Bem, a quadrilha tem um nome em espanhol. Eu sou um tira
hispânico.” García riu até ficar vermelho. Sentou-se na cabeceira de uma
longa mesa e acendeu um cigarro. “Tudo isso é top secret, esse esquadrão
especial, e vamos manter a coisa assim. Não queremos causar pânico,
fechar os hotéis, Deus nos livre. É a temporada, você sabe.”
García ainda estava zombando. Keyes sabia que ele não dava a mínima
para os hotéis.
“Qual a dimensão de seu esquadrão especial?”
“Quatro investigadores, incluindo eu, mais um cara do FBI se
precisarmos dele. Já temos codinome e tudo o mais: Fuego Um.”
“Gostei disso”, disse Keyes. Chegava a hora da grande decisão. García
estava fechando o círculo.
“Então, meu amigo, você andou se divertindo pra cacete, hein?”
“Uma experiência do cacete”, concordou Keyes.
“Vamos conversar um pouquinho sobre o caso.” García pescou um
bloco de anotações de sua jaqueta. “O que você sabe sobre essa história?”
“Sei que armaram pro Ernesto Cabal. O pobre coitado nada tinha que
ver com a morte do Sparky Harper, exatamente como tentei te alertar
semanas atrás.”
García pestanejou.
“Sinto muito, meu caro. Sério. Ele parecia ser o cara e era tudo o que
tínhamos à mão naquela hora.”
“E isso é tudo. Adiós, Ernesto.”
“O que você quer, cinco ave-marias? Eu disse que sinto muito, e sinto.
Não se esqueça que Ernesto se suicidou, não fui eu quem matou o cara,
Brian. Mais um pouco de paciência e o hijo de puta poderia sair livre
dessa.”
“Ele estava assustado, foi isso”, disse Keyes.
“Bem, meu chapa, eu também estou com um pouco de medo. Estou com
medo de que estes idiotas matem mais pessoas inocentes. E estou com
medo de ter que olhar para outros corpos mortos sem as pernas ou
deformados. Mas, acima de tudo, estou com medo do que a minha mulher
vai fazer quando eu contar que estarei de plantão no Natal. Portanto,
descanse em paz e me perdoe, Ernesto” — García fez um perfunctório sinal
da cruz — “mas tenho que botar a mão na massa.”
“Eu vou tentar ajudar, Al.”
“Excelente. Pode começar me contando quem você viu lá nos Glades.
Alguém em especial?”
“Um cara chamado Jesús Bernal.”
“Ah, o cara das bombas! Um filho da puta espalha-merda, também.
Deixou impressões digitais por todo lado. Compra os equipamentos na
Hialeah.” García correu a caneta pelo bloco de anotações. “Foi ele quem te
espetou nas costelas?”
“Acho que foi”, disse Keyes.
“E o seu amigo do Pauly’s, o craque do futebol?”
“Viceroy Wilson. Sim, ele também.”
“Ele deve ser El Fuego.”
Keyes pensou: Aqui estamos. Hora de ficar de bico calado ou entregar
Wiley. Uma vez feita a coisa, não haveria volta.
“Al, eu não tenho muita certeza.”
“Sobre o quê?”
“Sobre El Fuego. Olhe, tinha quatro caras lá, e eles nunca mencionaram
isso.”
O cigarro de García era excitadamente tragado.
“Quatro caras! Quem eram os outros dois?”
“Tinha um índio.”
“Um pele-vermelha ou um Tonto?”
“Um semínole. Tommy Rabo-de-Tigre, é como o chamavam.”
“O cara do Cadillac”, disse García. Ele anotou o nome de Tommy e
perguntou: “E o quarto cara?”
“É um homem branco, quase quarenta anos”, Keyes dissimulou.
“Estava muito escuro, como eu disse.”
Portanto, essa era a decisão: apanhar Skip Wiley ele mesmo. Keyes
sabia que tinha mais chances de pegá-lo se agisse em silêncio, sem o
barulho das sirenes. Mais que tudo, ele estava preocupado com a ameaça de
um banho de sangue feita por Wiley; afinal, o que parecera inimaginável
três semanas antes parecia iminente agora.
García sentou-se novamente e apertou uma na outra suas mãos
gordinhas.
“Tem uma coisa que não se encaixa, amigo. Fico pensando com meus
botões: por que esses maníacos sequestrariam o nosso bem-educado Brian
Keyes entre tantas pessoas? Quero dizer, se não iam te matar, então por que
se arriscar? Eles só queriam conversar ou o quê?”
“Eles me queriam para testemunhar um assassinato”, disse Keyes.
“E você testemunhou?”
“Sim, acho que sim. Ida Kimmelman era o nome da mulher.”
“A rainha do condomínio Broward”, murmurou García, anotando
freneticamente.
“Eles deram-na de comida a um crocodilo”, disse Keyes.
“Eles quem?”
“Wilson e Bernal. Eles a jogaram num lago... por que está me olhando
desse jeito?”
Al García tamborilou com a caneta.
“Vá em frente, Brian.”
“Eu não estou inventando isso. Eles jogaram Ida na água e um crocodilo
a comeu.”
Perdido em pensamentos, García estava roendo a unha do polegar. Ele
tinha ouvido falar do universitário que foi devorado em Lauderdale e
ponderou sobre uma possível conexão — afinal de contas, quantos
crocodilos poderiam existir?
Keyes disse:
“Eles fizeram isso para chamar atenção, é só isso. Para conseguir
manchetes.”
“Por que você não relatou isso uma semana atrás?”
“E ler sobre isso na primeira página? De jeito nenhum, isso era
justamente o que eles queriam. Eu não estava a fim de deixar que eles me
usassem.”
“Muito nobre”, disse García causticamente. “Mostrou para eles quem dá
as cartas. Por falar nisso, ás indomável, você leu a porra dos jornais esta
semana? Seus amigos lá do pântano fazem um genocídio ficar parecendo
brincadeira de roda.”
“Pelo amor de Deus, Al, eu não estava de férias ou coisa parecida. O
que você pensa que eu estive fazendo?”
“Conte mais.”
“Eu bem que gostaria.”
“Excelente.” García jogou a caneta na mesa.
“Al, eles estão armando uma grande jogada.” Sem mencionar Skip
Wiley, Keyes falou sobre a enigmática ameaça de “violentar a mais sagrada
das virgens de Miami”.
“Soa como a Cidade dos Estupros.”
“Acho que é pior que isso.”
“Talvez você possa achar aquele acampamento de novo.”
“Nem em um milhão de anos”, disse Keyes. Estava sendo sincero.
“Eu poderia arranjar um helicóptero e um esquadrão da SWAT.”
“Que tal a Guarda Nacional?”
“Deixe de gozação”, disse García. “Eles me prometeram qualquer coisa
que eu venha a precisar.”
“Encontre o cubano e o jogador de futebol”, aconselhou Keyes, “e será
o fim de tudo. Raptos nunca mais.”
“Brian, estou com a sensação de que você está escondendo alguma
coisa.” García olhou por sobre seus óculos de leitura. “Diga que não está
escondendo nada.”
“Al, eu não me lembro de muita coisa. Eu estava ocupado perdendo uns
dois litros de sangue.”
“OK, está bem, talvez você se recorde de mais alguma coisa.” García
deu tchauzinho com o cigarro que tinha entre os dedos. “Voltamos a falar.
Sanchez vai te dar uma carona até a cidade.”
Keyes começou a se levantar.
“A propósito”, disse García, “saiu um puta troço engraçado no Sun de
hoje. Você viu?”
“Meu jornal caiu numa poça d’água.”
“Bem, eu estou com o recorte aqui no bolso do meu casaco. Aqui está...
Detesto admitir, mas eu realmente comecei a sentir falta da coluna desse
babaca enquanto ele esteve doente.”
“Posso?”, pediu Keyes. Apreensivamente ele retirou o recorte dobrado
de jornal da mão parda de García e o abriu com os braços esticados, como
se aquilo fosse material radiativo.
“Vá em frente, leia”, disse García. “É gozado pra caramba. Tudo sobre
as férias dele nas Bahamas. O cara tem um talento especial com as
palavras.”
“De fato tem”, disse Brian Keyes tentando não demonstrar que ficara
atônito com o que estava vendo.
Impresso.
Com uma foto de estúdio.
Sob uma manchete que dizia:
O retorno de Wiley.
18

Nassau — A pior coisa que o visitante das Bahamas vai encontrar pela
frente são americanos, como eu. Os hotéis estão abarrotados por nós.
Americanos de educação abominável.
Americanos que falam como se o resto do mundo fosse surdo.
Americanos que se vestem como se o resto do mundo fosse cego.
Vim para as Bahamas em busca de tranquilidade e solidão, em
busca de um oásis para minha recuperação. E o que foi que consegui?
Uma dor de cabeça persistente como as badaladas de um sino de
igreja. Da Bay Street aos salões de bacará, não há como escapar dessa
praga que atende pelo nome de turista.
Na Flórida, nos acostumamos ao comportamento barulhento dos
turistas (e os toleramos por causa da ganância), mas há algo de
obsceno em testemunhar sua ação em plagas estrangeiras.
Francamente, devemos nos envergonhar de nós mesmos.
Talvez os americanos sejam compelidos por um impulso atávico que
os leva a evacuar suas cidades durante as temporadas de férias e sair
para explorar novas terras. Ótimo. Mas como explicar as bermudas
fluorescentes? Ou as sandálias de praia que o próprio E. T. não usaria?
O que nos dá o direito de, tão acintosamente, ofender o resto da
civilização?
Dir-se-á: ora, vejam só quem está falando!
Outro dia tentei praticar windsurfe — um esporte absurdo que exige
que nos equilibremos arriscadamente sobre um pedaço de fibra de vidro
no formato de uma banana enquanto controlamos os ventos e as ondas
com uma ridícula vela de náilon quase transparente.
As lições de windsurfe nas Bahamas custam quarenta e cinco
dólares, uma pechincha para os otários que durante as férias acreditam
piamente que, quanto mais perigosa uma empreitada, mais se deve
pagar para experimentá-la. E para alguém de trinta e sete anos
degenerado e em precárias condições como eu, o windsurfe é repleto de
excitantes pequenos perigos: lacerações, fraturas expostas, ínguas,
paralisia vertebral — isto para não mencionar a toxicidade das águas-
vivas, os tubarões assassinos e os raios ultravioletas.
Windsurfe provavelmente não é tão perigoso quanto, digamos,
sobrevoar a ilha de Cuba num lento U-2, mas quem há de encontrar um
piloto da força aérea que já teve de se preocupar com o fato de perder
seus calções de banho (e sua autoestima) na frente de uma multidão de
turistas apalermados, que não sabem rir e parecem camarões
descascados?
Foi o que aconteceu comigo ontem em plena luz da tarde, quando
fiquei momentaneamente cego por causa do baque de uma onda que
arrebentou sobre mim.
Meu instrutor de windsurfe, Rudy, teve, claro, todo o direito de se
matar de rir; foi mesmo um incrível espetáculo vespertino.
Depois de meu rodopio (e quase afogamento), eu o acusei em altos
brados de ter me fornecido equipamento defeituoso, Mas Rudy
argumentou: “O único equipamento defeituoso, campeão, é o seu velho
corpo bêbado”.
Ele tinha razão. Não se pode surfar com uma garrafa de rum Myers
debaixo do sovaco. Turista estúpido este.

O Retorno de Wiley.
“Como você pôde imprimir uma baboseira dessas?”, quis saber Brian
Keyes.
“Vamos com calma”, disse Mulcahy, “e feche a porta.”
Mas Keyes não podia estar calmo, não com a alongada cara de Wiley
olhando-o de soslaio das páginas do Miami Sun. Que o jornal quisesse
ressuscitar sua coluna era inacreditável, uma monstruosa brincadeira. Wiley
tinha o revólver e Mulcahy lhe dera a munição, embrulhada em papel de
presente.
“Cab, você não sabe onde está se metendo.”
“O pior é que sei.” Mulcahy parecia pesaroso. “O Skip está envolvido
com esses terroristas, não está?”
“Não está simplesmente envolvido, Cab, ele é quem está comandando o
show. É o Nachos número um.”
“Você tem certeza, Brian?”
“Absoluta.”
O editor cerrou os olhos.
“A que ponto de ruindade chegou a coisa?”
“Imagine o general Patton viajando de ácido.”
“Entendo.”
Eles permaneceram sentados num silêncio moroso, fingindo olhar
através da janela da sala de Mulcahy. Na baía de Biscayne, as ondas
cinzentas refletiam os pesados chumaços de nuvens carregadas de chuva,
que avançavam do Leste. Era provável que nas Bahamas estivesse caindo
uma tempestade infernal.
“Ele ligou ontem de Nassau”, começou Mulcahy. “Disse que estava se
sentindo melhor. Sem aquela raiva visceral, ele me disse; estava de volta
para o jornalismo classe A. Ele mandou a coluna por telex — totalmente
inofensiva, sem pregações, sem politiquices. Você tem que admitir, é
excelente para umas boas risadas. Eu disse a ele que iríamos publicá-la
quando ele estivesse de volta à Flórida e tivéssemos uma longa conversa, e
ele só respondeu: ‘Na hora certa’.”
“E você acabou publicando essa merda assim mesmo.”
“Fui voto vencido”, disse Mulcahy.
“Por quem?”
“Pela única pessoa que conta.”
“O Cardoza?”, perguntou Keyes.
Cardoza era o dono do jornal.
“Sim, o príncipe, em pele e osso”, disse Mulcahy. “Duas semanas é
muito tempo para ter sua estrela afastada, Brian. Eu disse para o Cardoza
que o Skip ainda estava estressado e tudo o mais. Mas ele leu a coluna e
argumentou que Skip não parecia nem um pouco estressado e que, portanto,
deveríamos publicar a coluna. E foi isso, sem chance de argumentação.
Escute, estávamos recebendo pilhas de cartas, entre elas um monte de
cancelamentos de assinaturas. Era como se a gente tivesse parado de
publicar as tiras do Doonesbury ou o Charlie Brown.”
“Você contou tudo para o Cardoza?”, disse Keyes.
“Quase tudo o que você contou para os policiais.”
Keyes encolheu os ombros. Touché.
“Isto é fabuloso”, disse Mulcahy sarcasticamente. “Aqui estamos nós,
dois paladinos da verdade com a verdade na mão pela primeira vez na vida
e sem saber o que fazer com ela. E então, o que fazemos? Escondemos o
fato. Engolimos em seco. Disfarçamos. Você deveria estar contando tudo
para a polícia e eu para os meus leitores, mas olhe para nós — os gêmeos
cagões em pele e osso. Ambos estamos preocupados com aquele filho da
puta enlouquecido — como se ele merecesse nossa consideração — e
estamos ambos dizendo a nós mesmos que tem que ter outra saída. O
problema é que não tem outra saída, tem? Isto tudo já foi longe demais.
Gente morta, policiais furiosos, e a cidade em polvorosa. Enquanto isso, o
nosso velho amigo Wiley se esconde em algum lugar por aí, sonhando com
alguma última frase de efeito para esta brincadeira medonha.”
“O que você quer fazer?”, perguntou Keyes.
“Ir até a polícia”, disse Mulcahy. “Neste exato momento.”
Keyes balançou a cabeça para indicar que esta ainda não era a melhor
solução.
“Skip disse que haverá um banho de sangue se o nome dele vier à tona.”
“Banho de sangue — ele usou esta expressão?”, perguntou um
incrédulo Mulcahy.
“Sim, massacre também, se não estou enganado. Temos que pensar
cuidadosamente na situação, Cab. Pensar no que eles já fizeram — os
raptos, as bombas. Veja o que eles fizeram com o doutor Courtney e o
detetive Keefe. Eu acho que o Skip não está blefando quando fala em banho
de sangue. Agora eles têm um currículo.” Keyes não mencionou suas
preocupações quanto às vidas do próprio Mulcahy e de Jenna.
“Está bem, suponha que a gente conte para a polícia mas esconda tudo
da imprensa.”
“Sejamos razoáveis”, disse Keyes. “Assim que os policiais tiverem o
nome do Wiley, isso vai vazar mais que um navio da marinha haitiana. E,
quando o pessoal de rádio e televisão espalhar o zunzunzum, o Sun não vai
ter escolha. Você terá que sair com a história toda. Ir para o front também.”
“Precisamos trazê-lo de volta das Bahamas”, afirmou Mulcahy. “Vou
tentar a embaixada.”
“Isso não vai funcionar, Cab. Lá, o Skip é intocável. Descobri que ele
entrou na ilha com passaporte falso, mas ninguém liga muito para isso em
Nassau. E aparentemente ele subornou todo mundo abaixo do primeiro-
ministro.”
“Então que diabos podemos fazer?”
Keyes disse:
“Acho que devemos jogar duro. Você tem a única coisa com a qual Skip
se importa: sua coluna no jornal.”
“Certo”, disse Mulcahy, “e cada palavra da coluna é antes aprovada por
mim.”
Keyes pensou nisso.
“Sei de algumas coisas interessantes sobre o governo das Bahamas”,
disse ele. “Eles são supersensíveis em relação à sua imagem nacional.”
“O que você está sugerindo?”
“Suponha que você reescrevesse a próxima coluna do Skip.”
“Ou suponha que eu mande o Bloodworth fazer isso”, disse Mulcahy.
“Seria uma paulada.” Nas palavras de Wiley, reescrever era um pecado
mortal, passível de castração. Seria como pichar a Capela Sistina, ele
costumava dizer.
Keyes pensou ter visto os olhos do velho Cab cintilarem.
“Suponha que eu entregue a coluna para o Bloodworth e peça a ele para
trocar a abertura, tornando a coisa mais incisiva. E que eu peça a ele que
reforce algumas das passagens mais energéticas do Skip.”
“Você pode transformar o texto em algo que toque nos brios do pessoal
das Bahamas”, especulou Keyes. “Acabar rapidinho com o amor que as
Bahamas têm pelo Skip.”
“Não posso acreditar que estamos falando essas coisas.”
“Vamos supor que isto dê certo”, disse Keyes. “Digamos que ele volte
para Miami. E então?”
“Nós o interceptamos no aeroporto”, disse Mulcahy. “O entregamos à
polícia e ele sai de circulação. Depois, arranjamos ajuda médica
profissional para ele.”
“Ele sempre vai poder alegar insanidade.”
“Acho que eu vou acabar precisando de ajuda médica”, murmurou
Mulcahy. “Depois de vinte e dois anos, eu já deveria saber como detectar
um psicopata dentro da minha própria redação.”
“Ao contrário”, disse Keyes. “Quanto mais você está no negócio, mais
difícil fica.”
Mulcahy era um daqueles raros editores que se tornam jornalista pelos
motivos certos, com todos os instintos e sensibilidades certas. Ele era um
ser humano maravilhoso — justo mas não fraco, duro mas não embrutecido,
agressivo mas circunspecto. A situação de Wiley o estava deixando
emocionalmente derrubado.
Mulcahy brincou com um memorando, passando o dedo nas
extremidades do papel.
“Eu puxei o arquivo pessoal dele hoje, só para me divertir um pouco.
Deus do céu, Brian, está repleto de loucuras. Coisas que eu tinha esquecido
completamente.”
Os episódios apresentavam uma escala crescente de gravidade:
13 de dezembro de 1978. Skip Wiley repreendido por encarnar o
conselheiro de Segurança Nacional Zbigniew Brzezinski num esforço de
obter camarotes para um jogo das finais da NFL.
17 de abril de 1980. Wiley repreendido depois de preencher sua
declaração de imposto de renda listando suas ocupações como sendo as de
“profeta, redentor e vidente”.
23 de julho de 1982. Wiley suspenso por dois dias, com pagamento,
depois de usar símbolos cuneiformes obscenos para descrever o senador
Jesse Helms, da Carolina do Norte.
7 de março de 1984. Wiley suspenso por cinco dias, com pagamento,
depois de dizer, num programa de entrevistas no rádio, que todo o
manancial de água da Flórida tinha sido envenenado por traficantes de
drogas bolivianos.
3 de outubro de 1984. Wiley suspenso por três dias, sem pagamento, por
atacar uma testemunha de jeová com um arpão de pescar marlin.
“Acho que eu não estava prestando atenção nisso”, disse Mulcahy, “de
propósito.” Ele se inclinou para a frente e baixou o tom de voz,
sussurrando. “Brian, você acha que ele está louco de verdade? Quero dizer,
louco, louco mesmo?”
“Não tenho certeza. Ele não está babando ou andando pelado na rua. Se
estivesse, a gente não teria razões para ficar se preocupando. Você poderia
deixar ele escrever tudo o que quisesse — quem ligaria para isso? Qualquer
coisa que ele escrevesse não faria sentido nenhum, de um jeito ou de outro
— se ele estivesse louco mesmo.”
“Você está dizendo...”
“Que sim, ele sabe muito bem o que está fazendo”, disse Keyes. “O
maldito plano do Wiley faz sentido porque parece que está funcionando. Ele
fez toda a Gold Coast ficar com medo, incluindo o seu venerável jornal. Eu
fiquei sabendo que a grande convenção dos caminhoneiros foi transferida
para Atlantic City...”
Mulcahy fez que sim com a cabeça, com expressão lúgubre.
“E A batalha das estrelas da televisão, ou sei lá o que é isso —
transferida de Key Biscayne para Phoenix, aquele buraco!”
“Tucson”, corrigiu Mulcahy.
“Mas você entende o que estou dizendo.”
“Isso tudo vai passar”, disse Mulcahy. “Com o pânico é sempre assim.”
“Não se os turistas continuarem desaparecendo.”
“Ele vai mandar uma nova coluna amanhã à tarde. Vou dar a coluna
para o Ricky para uma boa mutilada, e vamos publicar no domingo. Vamos
ver se isso não traz o filho da puta de volta das férias tropicais dele.”
Keyes disse:
“Se ele não voltar, vamos ter que pensar em alguma outra coisa.” Ele
fez o alguma outra coisa soar ominoso.
Mulcahy suspirou.
“Eu ainda detestaria a ideia de vê-lo morrer.”
Keyes tinha guardado o pior para o final.
“O Skip está planejando alguma coisa horrenda”, disse ele a Mulcahy.
“Eu não sei os detalhes, mas vai acontecer logo. Ele disse que vai violar
uma virgem sagrada, e eu sei lá o que isso significa.”
Mulcahy considerou as possibilidades.
“A mulher do prefeito?”
“Não, isso não é o estilo do Skip”, disse Keyes.
“Uma freira, talvez — você acha que eles apanhariam uma freira de
verdade?”
“Duvido, Cab. O Skip é todo cheio de simbolismos. Acho que freira não
tem muito a ver.”
“E se for uma celebridade? A Liza Minnelli vai tocar no Eden Roc este
mês.”
“O Skip não suporta a Liza Minnelli”, notou Keyes.
“Então é ela mesmo.”
“A virgem mais sagrada de Miami — Liza Minnelli?”
“Merda”, disse Mulcahy. “Você tem alguma ideia melhor?”
Brian Keyes tinha uma ideia, mas não era nenhuma ideia que Mulcahy
desejasse ouvir. Keyes esperava que Cab percebesse por conta própria.
“Se você fosse o Skip e quisesse ganhar a atenção do mundo inteiro”,
disse Keyes, “você tentaria alguma coisa drástica, alguma coisa além do
meramente violento.”
“Você é mesmo encorajador.”
“E se você fosse o Wiley”, prosseguiu Keyes, “você ia querer — não, ia
exigir — exposição máxima.”
Mulcahy ergueu a cabeça.
“Exposição máxima?”
“Estamos falando de televisão”, disse Keyes. “Televisão em rede
nacional.” Isto era o que Skip tinha prometido em Cable Beach.
“Essa não.” Mulcahy falou como um homem cujo pior pesadelo estava
se transformando em realidade.
“Cab, qual é o espetáculo mais fantástico de Miami, o evento que o país
inteiro assiste todo ano?”
“O desfile do Orange Bowl, é claro.”
“E quem é a estrela da parada?”
“Puta merda”, gemeu Mulcahy. Ele pensou: Se o Brian estiver certo, vai
ser pior do que estuprar uma freira.
“A rainha do Orange Bowl.”
“Exato”, disse Keyes, “e quando vai acontecer o desfile do Orange
Bowl?”
“Na última noite de dezembro!”, exclamou Mulcahy.
“A última noite de dezembro”, disse Brian Keyes. “La ultima noche de
diciembre.”
19

A mesa de reuniões tinha sido esculpida na forma de uma laranja-da-


baía da Flórida. Das grandes. A mesa ocupava a Câmara de Comércio com
sua rotundidade e laranjismo. E, no topo da laranja, onde o ramo que a
prendia à árvore tinha sido cortado, sentava-se o diretor do Comitê do
Orange Bowl.
“Por favor, sente-se, senhor Keyes”, disse ele.
Brian Keyes ajeitou-se numa cadeira de couro. Ele não conseguia tirar
os olhos da maldita mesa. Há muito tempo ela poderia ter sido uma bonita
laje de nogueira branca, antes que eles a tivessem transmutado em tal
atrocidade.
“Você conhece quase todo mundo aqui”, disse o diretor.
Keyes correu os olhos por caras familiares: o chefe de polícia de Miami,
o chefe de polícia de Dade County, dois vice-prefeitos, uns tipos grosseiros
da Câmara de Comércio (incluindo o sucessor do falecido Sparky Harper),
Cab Mulcahy, parecendo nauseado, e, é claro, Al García, do recentemente
mobilizado Esquadrão Especial Fuego Um. García estava sentado no
umbigo da laranja gigante.
O ar estava saturado de fumaça de cigarro e recheado pelo aroma de
café fresco. Cada um deles tinha seu próprio cinzeiro, seu próprio copo de
água gelada e seu próprio pacote de recortes da imprensa sobre os
assassinatos dos turistas. O humor do grupo era funéreo.
“Vamos começar com o sargento García”, disse o diretor do Orange
Bowl, consultando um bloco de rascunho. “Eu pronunciei certo?”
“Sim, senhor.” As palavras sibilaram por entre os dentes cerrados.
García tinha prometido ao chefe que seria educado. O diretor do Orange
Bowl era um homem pastoso de origem pobre nascido na Flórida, com
cabelos brancos, que ainda não estava acostumado com a presença de
cubanos em geral.
“O nome da gangue é Las Noches de Diciembre, ou as Noites de
Dezembro”, começou García. “Trata-se de uma organização extremista,
mas ainda não sabemos bem suas motivações e sua ideologia. O que
sabemos é que suas armas são o assassinato, o sequestro, a tortura e os
atentados a bomba. Até agora, não pediram resgate ou qualquer outra coisa.
Tudo o que eles querem, parece, é publicidade. Os alvos deles são
principalmente os turistas, embora acreditemos que eles também
despacharam o senhor B. D. Harper.”
“Despacharam?”, disse o diretor.
“Assassinaram”, explicou Keyes.
“Sim, assassinaram”, disse Al García, “com A maiúsculo. Esses
lunáticos estão jogando sério.”
“Lunáticos?”, disse inseguro o diretor, lançando olhares ao redor da
mesa.
“Os caras do mal”, explicou Keyes.
“O Las Noches”, disse García.
A apresentação formal de García limitou-se a isso. Ele detestava
reuniões como aquela; elas o faziam lembrar-se da Vila Sésamo. García
tirou seus óculos de leitura e tentou pescar um cigarro no bolso.
O homem do Orange Bowl limpou a garganta e disse:
“Sargento, sabemos exatamente quem são esses homens?”
“Alguns deles, sim.”
García matou o tempo brincando com o isqueiro Bic.
“A gangue tem, pelo menos, quatro membros. Um homem branco, de
cerca de trinta e cinco anos de idade, e identidade ainda desconhecida.”
García procurou Keyes com o rabo do olho. “Há um jovem índio semínole
chamado Rabo-de-Tigre. O fazedor de bombas, que fez o trabalho no
Palmetto Country Club, é um velho conhecido. Um cubano de extrema
direita chamado Jesús Bernal.”
“Como se soletra isso?”, perguntou o diretor, com a caneta pousada
sobre o bloco de rascunho.
“J-e-s-ú-s”, disse García impacientemente.
“Ah. Igual ao nosso Jesus, só que pronunciado diferente.”
“Sim”, disse García. “E o sobrenome é B-e-r-n-a-l.”
“O que isso significa?”, perguntou o diretor. “Em inglês.”
“Significa ‘Jesús Bernal’”, resmungou García. “É a porra do nome do
cara, só isso.”
O chefe de polícia de Dade County pareceu passar mal do estômago.
García disse:
“O quarto suspeito todos vocês conhecem. O nome dele é Daniel
Wilson, vulgo Viceroy.”
“Essa não”, disse o diretor. “Um dos Dolphins.”
“O velho número 31”, lamentou-se um dos vice-prefeitos.
Todo mundo naquela mesa em forma de laranja adorava futebol, e a
menção do nome de Viceroy Wilson detonou um paroxismo de nostalgia.
“É duro de entender”, disse o diretor tristemente. “Nossa cidade foi tão
generosa com aquele garoto.”
Brian Keyes não precisava de nenhum Malcolm X para lhe dizer que
não havia um único rosto negro sentado ao redor da mesa em forma de
laranja.
“Bem”, disse García, “ao que parece o senhor Wilson tem algum
problema com a sociedade. Um problema muito sério. Todos eles têm.”
“Qual deles é El Fuego?”, alguém perguntou.
“Não sabemos”, replicou García.
“O que isso significa, El Fuego?”, perguntou o diretor.
“O Fogo, a Chama, você escolhe.” García estava aborrecido. Ele não
tinha vindo para dar aula de espanhol elementar.
“Quando vocês conseguem prender esses homens?”, exigiu o diretor.
“Quando nós os encontrarmos.” García se voltou para Cab Mulcahy.
“Vai sair uma reportagem no jornal de amanhã, identificando os três
suspeitos conhecidos e pedindo a ajuda do povo para localizar os caras. Nós
mandamos algumas fotografias de manhã, por intermédio do senhor
Bloodworth.”
“Vamos imprimir as fotos”, disse Mulcahy, “na primeira página.”
“Isso vai ajudar”, disse García. “Mas por algum motivo eu acho que
esses caras não vão ficar sentados esperando que os encontremos. Acho que
vamos ter que esperar até que eles resolvam aparecer. E eles vão aparecer.
O senhor Keyes, aqui conosco, é detetive particular, e muito bom. Como
vocês sabem, ele foi raptado pelo Las Noches faz umas duas semanas, e foi
bastante maltratado. Brian, conte as boas notícias.”
Keyes disse:
“Temos fortes razões para acreditar que eles estão planejando raptar a
rainha do Orange Bowl.”
Todos na mesa afundaram em suas cadeiras, como se tivessem levado
cada um um murro no peito. Houve uma porção de cochichos nervosos.
“Essa é a coisa mais doida que eu já escutei”, disse alguém que usava
um blazer brilhante. Na verdade, vários dos homens usavam blazers
brilhantes idênticos. Os blazers eram todos cor de laranja.
“Estamos levando esta ameaça muito a sério”, intrometeu-se o chefe de
polícia de Dade County, sempre inquieto quando estava em meio a líderes
cívicos.
“Achamos que a coisa vai acontecer durante o desfile”, disse Brian
Keyes, arrancando outra rodada de engasgos do establishment branco.
“Pelo Santo Bom Deus!”
“Eles vão sequestrar a rainha do Orange Bowl no meio do desfile?”
“Em rede nacional de televisão? Na frente daquela Jane Pauley de
merda?”
“E do Michael Landon?”
“Receio que sim”, disse Al García.
Jane Pauley e Michael Landon tinham sido escalados para apresentar o
desfile da Festa da Laranja, instalados em uma plataforma elevada no
Biscayne Boulevard. Jane Pauley e Michael Landon eram grandes
celebridades, mas García bateu seu cigarro e espalhou a cinza por sobre a
mesa-laranja para que todos soubessem que de não dava a mínima para isso.
Brian Keyes se admirou com o modo pelo qual García tinha tomado as
rédeas da reunião das mãos dos caras dos blazers.
Um dos vice-prefeitos voltou-se para Keyes e disse:
“Você se encontrou com essa gente. O que é que você acha — eles estão
dispostos a escutar a voz da razão?”
“Isso é duvidoso”, disse Keyes. “Muito duvidoso.” Se necessário, ele
estava preparado para contar a eles o que acontecera a Ida Kimmelman, só
para que eles desistissem da ideia de tentar barganhar com El Fuego.
“Senhor Keyes”, disse um vice-prefeito, “o que é que eles querem,
afinal?”
“Eles querem que a gente vá embora daqui”, disse Keyes.
“Todos nós”, acrescentou García, “desde Palm Beach até Key West.”
“Não estou entendendo”, disse o vice-prefeito.
“Eles querem a Flórida de volta”, disse Keyes, “do jeito que era.”
“Do jeito que era quando?”
“Do jeito que era quando esse monte de gente não tinha fodido com
ela”, disse. García.
A mesa teve uma erupção de risadinhas espremidas e não espremidas, e
os homens nos blazers pareceram sacudir suas cabeças gravemente em
sincronia.
“Por que esse tipo de merda nunca acontece na Disney World?”, disse
um deles pesarosamente.
O diretor do Orange Bowl concluiu que já tinha ouvido notícias tristes
demais daquele detetive particular e do rude sargento, portanto se voltou
para os chefes de polícia em busca de encorajamento.
“Cavalheiros, tenho certeza de que os senhores não vão simplesmente
ficar sentados e esperar que esses marginais deem as caras e acabem com o
desfile. Eles têm que ser presos o mais rápido possível, antes do dia do Ano
Novo. Já é ruim o suficiente que a imprensa esteja sabendo de tudo isso.”
“É muito difícil manter segredo quando o assunto é assassinato em
massa”, assinalou o chefe de polícia de Miami. “Deus sabe que a gente
tentou.”
“Estamos fazendo tudo o que é possível para encontrar esses caras”,
acrescentou o chefe de polícia de Dade County. “Todos os detetives
disponíveis estão trabalhando no caso, mas é muito difícil. Especialmente
agora, perto do Natal. Metade do departamento está de licença.”
O diretor do Orange Bowl disse, mal-humorado:
“Eu não quero saber das desculpas de vocês. O que eu quero saber é o
que exatamente vocês estão fazendo para capturar esses assassinos!”
Os chefes de polícia se voltaram para Al García, que estivera esperando
pacientemente pela bola para devolvê-la a seu modo.
“Neste exato momento, seis tiras à paisana estão em Little Havana
procurando por Jesús Bernal”, disse García. “Temos mais oito caras em
Liberty City, procurando Viceroy Wilson. O índio — bem, ele é um
problema. Parece que ele desapareceu do planeta. De qualquer maneira,
botamos um monte de grana de recompensa nas ruas — não posso dizer
exatamente quanto, mas posso garantir que é mais do que a minha merda de
aposentadoria inteira. Nós dobramos as patrulhas em todas as grandes
atrações turísticas do Sul da Flórida — o Seaquarium, o Ocean World, o Six
Flags, as pistas de corrida, as praias. Correu o rumor de que a Floresta dos
Macacos poderia ser o próximo alvo, então colocamos uma equipe de
atiradores de elite de tocaia lá. Além disso, temos helicópteros e aerobarcos
procurando o acampamento de El Fuego nos Glades. Contratamos até um
guia índio só para nós.”
Um miccosukee meio míope, notou García em silêncio, mas era melhor
do que nada.
Um dos vice-prefeitos sugeriu que fossem colocados avisos em todos os
grandes hotéis de turistas.
“Você ficou maluco?”, ganiu o sucessor de Sparky Harper na Câmara de
Comércio. “Você está tentando causar pânico?”
“Ninguém ficaria em pânico”, disse o vice-prefeito intimidado, “se os
avisos fossem redigidos de modo apropriado.”
“Talvez com letrinhas pequenas”, sugeriu o diretor.
“Ou talvez em caracteres chineses”, disse Al García.
O diretor olhou para ele com uma certa raiva.
“Sargento, parece que o senhor não está entendendo o assunto central
aqui.”
“Vidas humanas”, disse o detetive, levantando as mãos. “Isso é tudo o
que me interessa.”
“É muito mais do que isso”, disparou o diretor do Orange Bowl. “A NBC
está aqui! Não vamos esquecer este fato. E não vamos esquecer o tema do
desfile deste ano: ‘Tranquilidade Tropical’.”
Brian Keyes olhou desesperadamente na direção de Cab Mulcahy, que
estava na outra ponta da mesa. As pálpebras do editor executivo se
fechavam lentamente, como as de um iguana agonizante.
“Vejam”, disse García, “vocês têm que fazer um desfile e eu tenho que
resolver assassinatos. Talvez até mesmo evitá-los, se isso for possível.
Então escutem bem porque o plano é este: nós vamos encher o Biscayne
Boulevard de policiais na véspera do Ano Novo. Nós vamos colocar tantos
policiais em volta da rainha do Orange Bowl que os senhores poderão, se
quiserem, pintar um emblema da polícia no carro alegórico dela. Eu não me
importo se vai ficar ruim na televisão. Foda-se a NBC. Foda-se a Jane
Pauley. Foda-se o Alf Landon.”
“Michael Landon”, sussurrou Keyes.
“Foda-se ele também.”
O diretor do Orange Bowl parecia tão nauseado que poderia tomar um
vidro inteiro de antiácido Maalox. Ele disse:
“Sargento, esse é o pior plano que já ouvi na minha vida. Seria uma
catástrofe, do ponto de vista da nossa imagem.”
“Concordo”, disse o sucessor de Sparky Harper.
“Isto não é para ser um desfile militar”, tossiu outro homem da Câmara
de Comércio.
“Vamos, vamos, esperem um minuto”, disse um dos caras de blazer
laranja. “Talvez possamos fazer um acordo. Suponha que a polícia fique
marchando bem atrás do carro da rainha acenando ritmicamente com
bengalas de fanfarra. Eu diria que isso seria um efeito incrível. E ninguém
suspeitaria de nada.”
“Que tal deixar de lado as macaquices de fanfarra?”, disse Al García.
“Vamos colocar todo mundo à paisana”, sugeriu o chefe de polícia de
Dade County.
“Pode ser”, disse García.
“E colocar o pessoal escondido na multidão”, disse o diretor do Orange
Bowl. “Não no meio do santo desfile.”
“Não vai funcionar”, disse Keyes. “Eu já me meti naquela multidão uma
vez, quando cobri o desfile para o Sun. Ninguém consegue se mexer — é
como uma massa de bolo humana. Se alguma coisa acontecer no carro
alegórico, você demora cinco minutos para chegar até ele, e isso é tempo
demais.”
O diretor do Orange Bowl não se convenceu. Apertou seus olhos de
ameixa-preta e disse:
“Não vai ter polícia nenhuma marchando neste desfile! Nós estamos
vendendo Tranquilidade Tropical, e não Dragnet.”
“OK, se é assim que o senhor quer”, disse García. “Que tal se a gente
enfiar só um anãozinho debaixo do manto da rainha, com uma MAC-10 na
mão?”
“Al, por favor”, grunhiu o chefe de polícia de Dade County.
“Ninguém iria ver nada”, disse García maliciosamente. “Exceto o anão,
claro.”
“Você não tem nenhum outro plano?”, implorou um dos blazers.
“Sim, para falar a verdade, tenho.” García deu uma piscadela para Brian
Keyes. “Claro que tenho.”

A coluna de Natal de Skip Wiley chegou de Nassau via telex no sábado,


dia 22 de dezembro.
Cab Mulcahy a leu cuidadosamente antes de convocar Ricky
Bloodworth ao seu escritório.
“Você fez um trabalho excelente na história dos terroristas”, disse
Mulcahy. Aquilo era uma mentira desavergonhada, mas Mulcahy não tinha
escolha. Bloodworth era uma pessoa ávida por elogios falsos.
“Obrigado, Cab”, disse ele. “Você ficou sabendo? A revista Time
telefonou.”
“Sério?”
“Sim. Eles queriam todos os meus recortes sobre Las Nachos.”
“Las Noches”, corrigiu Mulcahy.
“Isso. Mas isso não é uma beleza? A Time telefonar?”
“Absolutamente maravilhoso”, disse Cab Mulcahy, pensando: Será que
esse cabeça de ostra acredita realmente que a revista Time vai querer
contratá-lo?
“Ricky, eu preciso da sua ajuda.”
As feições de esquilo de Bloodworth se cobriram de vincos.
“Claro, Cab, qualquer coisa que precisar, mesmo.”
“Chegou esta coluna do Skip Wiley”, Mulcahy acenou com o telex, “e,
francamente, não está lá muito boa.”
Ricky Bloodworth não disse nada de imediato, mas seus olhos
brilhantes diziam “é-bom-demais-para-ser-verdade”.
“Você quer colocar uma das minhas no lugar dela!”
“Não exatamente”, disse Mulcahy.
“Eu já tenho uma coluna de Natal prontinha”, insistiu Bloodworth.
“Natal em Palm Beach. Entrevistei o mordomo da Rose Kennedy. É uma
reportagenzinha legal, Cab. Rose Kennedy comprou um Chevrolet para o
mordomo no último Natal, e você sabe o que ele deu para ela? Você nunca
vai adivinhar.”
“Muito provavelmente não.”
“Duas entradas para a Torch song trilogy.”
“Ricky...”
“Você não acha que essa é uma reportagem legal de Natal?”
“É muito comovente, mas não é exatamente o que eu tinha em mente.”
Que Deus me perdoe, pensou Cab Mulcahy ao passar a coluna de Wiley
para Ricky Bloodworth.
“Eu quero que você dê mais vigor para o texto do Skip”, disse Mulcahy.
“Faça esse negócio cantar mesmo.”
Bloodworth passou os olhos pela coluna desconfiadamente. “Puxa, Cab,
eu não sei...”
“Faça, é um favor”, disse Mulcahy, “para mim.”
“Mas o que é que o Skip vai dizer?”
“Pode deixar que eu me preocupo com isso.”
“Ele pode ficar muito bravo, Cab. Ele já me bateu uma vez”, disse
Bloodworth, “perto da virilha.”
“O Skip bateu em você?”
Bloodworth fez que sim.
“Ele falou que eu tinha queimado uma das fontes dele.”
“E você fez isso?”
“Foi um mal-entendido. Eu não sabia que o cara era uma fonte sigilosa.
Além disso, ele tinha me dado uma frase do cacete.”
“E aí”, disse Mulcahy, “você imprimiu o nome do cara na reportagem.”
“É, foi isso.”
“E o que aconteceu?”
“Acho que o cara foi despedido.”
“Sei.”
“E talvez tenha sido indiciado, também”, disse Bloodworth.
“Hum.” Mulcahy pensou: Quando tudo isso estiver terminado, vou me
livrar desse babaca. Vou enviá-lo para o escritório de Okeechobee para
cobrir os jubileus dos Pepinos para o resto da vida.
“A coisa toda foi só um mal-entendido, mas o Skip ficou totalmente
irracional com aquilo. Ele falou que eu era culpado de tudo.”
“E ele já se acalmou?” A úlcera de Mulcahy estava em pleno curto-
circuito.
Bloodworth disse:
“A questão é que eu não quero o Skip em pé de guerra comigo de novo.
Ele é um cara muito violento.”
“Ricky, pode deixar que eu me preocupo com isso. Só dê uma
melhorada na coluna, tudo bem?”
A coluna original era um textinho absolutamente adorável, uma das
tradicionais matérias comoventes de Wiley para as festas. Começava assim:

Rollie Artis ganhou o mar remando na aurora da última quinta-feira.


Era possível vê-lo de Cable Beach, afastando-se suavemente do
porto de Nassau, seus fortes braços negros impulsionando os remos.
Rollie ia à caça de moluscos, seu ganha-pão, assim como fora o de
seu pai. E, assim como seu pai, Rollie Artis era um mergulhador
esplêndido, com pulmões poderosos e olhos agudos, além de um instinto
natural para descobrir os leitos cheios de conchas.
Mas na quinta-feira os ventos estavam fortes e a água enfurecida, e
os outros mergulhadores haviam alertado Rollie para não tentar
naquele dia.
“Mas eu tenho que ir”, disse ele em resposta. “Se eu não for pescar,
não haverá Natal para minhas crianças este ano.”
Ao crepúsculo, Clarisse, esposa de Rollie, esperou nas docas atrás
do Straw Market; esperou, como sempre fazia, pela visão do brilhante
bote de madeira de Rollie.
Mas Rollie Artis nunca retornou. Na manhã seguinte, o mar se
acalmou e os outros pescadores saíram à procura de seu amigo.
Nenhum sinal foi encontrado. Alguns poucos daqueles homens eram
velhos o bastante para lembrar que a mesma coisa tinha acontecido ao
pai de Rollie, em outro dia de inverno. Um ato de Deus, disseram os
velhos mergulhadores; o que mais poderia explicar uma ironia tão
trágica?
Ontem, na casa de Rollie, em Queen’s Park, Clarisse ergueu uma
árvore de Natal e cantou para seus dois filhos pequenos. Cantos de
Natal. E a canção de um pescador.

Ricky Bloodworth levou a coluna de Wiley até sua mesa e chacinou-a.


Levou menos de uma hora na tarefa. Cab Mulcahy ficou surpreso com a
aptidão de Bloodworth para a grandiloquência; a coisa vinha naturalmente
ao garoto.
Isto, sem edição, foi o que ele trouxe de volta:

A guarda costeira das Bahamas deve algumas explicações sérias.


O pescador de Nassau Rollie Artis desapareceu de vista na última
quinta-feira, e ninguém exceto seus companheiros de pesca parece estar
preocupado.
No nosso país, Artis teria sido objeto de uma extensa operação de
resgate por mar e ar. Mas nas Bahamas ninguém é capaz de levantar o
primeiro helicóptero do chão. É dinheiro? Material humano?
Equipamento? Faz você se perguntar para onde estão indo todos
aqueles dólares de impostos dos turistas — especialmente quando você
considera o fato de que eles estão cobrando uma exorbitância por um
quarto de hotel decente atualmente em Paradise Island.
Também faz você se perguntar a respeito de um governo
supostamente moderno que falha em implementar as regulamentações
básicas de segurança para os pescadores. Se uma lei forçasse Rollie
Artis a usar um colete salva-vidas, ele poderia estar vivo hoje. E, se seu
bote fosse apropriadamente equipado com um motor de popa, ele talvez
pudesse ter voltado ao porto.
Ele poderia ter estado em casa no Natal.
Desde sua independência, as Bahamas estão apregoando para a
comunidade mundial que próspera e avançada nação eles se tornaram.
Bem, chegou a hora de começar a agir como uma. Chegou a hora desse
paiseco, que tanto adora os estrangeiros ricos, ter interesse igual pelo
destino de seu próprio povo — especialmente os pobres e sem recursos.

Ao ler a adaptação de Ricky, Cab Mulcahy tanto mordeu os lábios que


quase os furou.
“Eu achei que o Skip estava sendo um pouco sentimental demais”,
explicou Bloodworth. “Acho que ele perdeu a perspectiva mais ampla, na
verdade.”
“Sim”, disse Mulcahy melancolicamente. “Você transformou uma
crônica sentimental a respeito de um pescador desaparecido num ataque
impiedoso contra um governo estrangeiro amigo.”
“Exatamente”, disse Bloodworth, cheio de orgulho. “A coluna ganhou
um pouco de vida agora.”
“Vida.”
“Cab, não era isso que você queria?”
“Claro. Está perfeito.”
“Você sabe”, disse Bloodworth, “normalmente eu pediria para assinar a
coluna, já que reescrevi tudo. Mas, dadas as circunstâncias, acho que quero
deixar meu nome de fora. Que isto fique só entre nós, Cab.”
“É uma decisão inteligente”, disse Mulcahy.
“Do contrário, o Skip poderia fazer uma ideia errada do que aconteceu.”
“Compreendo.”
“Porque, se ele ficar magoado...”
“Eu já disse, eu cuido disso. Não se preocupe.”
“Obrigado, Cab.”
Quarenta minutos depois que Richard L. Bloodworth saiu, Mulcahy
ainda não tinha se movido de sua mesa. Ele parecia ter sido atropelado e
privado de sua alma.
O editor de Cidades entrou e disse:
“Ouvi dizer que o Ricky deu uma polida na coluna do Wiley.”
Apaticamente, Mulcahy passou o texto de Ricky a ele.
O editor de Cidades não sabia o que dizer. Era ele que sempre dizia que
Bloodworth era uma promessa. Consequentemente, ele se sentiu na
obrigação de apresentar alguma coisa de concreto.
“Bem”, disse o editor de Cidades sem tirar os olhos da página, “o Ricky
não é lá muito criativo, hein?”
“Ele é um cretino insensível. Uma ameaça.”
“Ele é um repórter policial muito bom, Cab.”
“Eu nunca disse que não era.”
“E então, o que você quer que eu faça?”
“Corte as arestas disso aí e mande rodar na segunda-feira.”
“Mas é véspera de Natal”, disse o editor de Cidades. “Eu pensei que a
gente ia usar a coluna no dia de Natal.”
“Eu me recuso a fazer isso com os nossos leitores”, disse Mulcahy.
“Não no dia de Natal.”
“Mas o que você vai publicar no espaço do Wiley no dia de Natal?”
“Não faço ideia”, disse Mulcahy. “Uma oração, talvez. Seria bonito.”
20

A família Shivers vivia numa bela casa antiga próxima a um campo de


golfe em Coral Gables. Era um sobrado de dois andares, caiado com
estuque branco da Flórida, com telhado vermelho de telhas arredondadas.
Uma velha figueira sombreava o jardim na entrada. Na garagem havia um
BMW, um Lincoln e um Volkswagen novo. Brian Keyes estacionou atrás do
VW. Um baixinho com um bronzeado fresco e um queixo pontudo abriu a
porta. Ele era bem alinhado, quase jovial e vestia da ponta do dedão ao
último fio de cabelo a grife L. L. Bean de roupas campestres. Não havia
dúvida: ele tinha cara de BMW.
“Reed Shivers”, disse ele com um aperto de mão empolado. “Entre,
senhor Keyes.”
Eles se sentaram numa elegante sala de estar decorada com discreta
mobília de laca. Num canto, estava uma grande árvore de Natal recendendo
a pinheiro; alguns de seus enfeites eram feitos de vidro soprado.
“Chuchuzinho!”, chamou Reed Shivers. “Vem cá!”
A princípio, Keyes pensou que Shivers estivesse chamando seu beagle
de estimação.
“Minha filha”, disse Shivers. “Ela descerá num minuto, já, já. Aceita
um café?”
“Sim, obrigado”, disse Keyes. “Sem açúcar.”
“Isso não entra nesta casa”, disse Shivers. “Observamos
cuidadosamente nossa dieta. Você vai ver com os próprios olhos.”
Shivers serviu o café de um bule de prata.
“Então você é um detetive particular.”
“Sim”, disse Keyes nervosamente.
“Já eu sou advogado tributarista.”
“É, ouvi dizer.”
Shivers esperou, na expectativa de que o detetive particular fosse lhe
perguntar como era a vida de um famoso advogado tributarista em Miami.
Keyes sorveu um trago do café e nada perguntou.
“Só por curiosidade”, disse Shivers, “quanto ganha um detetive
particular?”
“No mínimo um milhão por ano”, disse Keyes. “Às vezes dois milhões.
Perdi a conta.”
Reed Shivers sussurrou.
“Uau! Você deve ter boas alternativas de dedução de imposto, eu
suponho.”
“As melhores.”
“Petróleo, certo?”
“Concreto.”
“Hum”, disse Shivers.
Keyes ficou pensando como um palhaço como Shivers fora aceito no
curso de direito de Yale.
“Chuchuzinho, meu bem!”, gritou Shivers novamente. “Não sei por que
ela está demorando, senhor Keyes.”
“Antes que sua filha desça, gostaria de lhe dar alguns conselhos.”
“Claro, senhor Keyes.”
“Não a deixe participar do desfile do Orange Bowl.”
“Está brincando.”
“Não, senhor, não estou brincando”, disse Keyes. “O pessoal que fez
essa ameaça é extremamente violento. E engenhoso. Ninguém sabe quando
e como vão agir.”
“O sargento García disse que se tratava de algo parecido com
sequestro.”
“É um pouco mais complicado que isso.”
“O senhor acha que eles podem tentar machucar Kara Lynn?”
“É bastante provável”, disse Keyes.
“Mas haverá policiais espalhados por todo canto!”
Keyes livrou-se da xícara de café e pegou um guardanapo de pano.
“Senhor Shivers, só queria deixá-lo consciente dos riscos, que são
bastante sérios.”
Reed Shivers parecia tremendamente aborrecido.
“Grande risco. Um índio, um cubano, e um jogador de futebol aloprado.
Não me diga que um grupo de policiais bem armados não pode deter um
bando de fracassados como este!”
“Senhor Shivers, fracassados também têm sorte. Se um debiloide pode
acertar o maldito presidente em Dealey Plaza, uma gangue de debiloides
pode, não tenha dúvida, roubar a sua pequena Chuchuzinho no Biscayne
Boulevard.”
“Pssss...!”
Kara Lynn Shivers estava diante das portas francesas.
“Bonequinha! Aproxime-se e conheça o senhor Keyes.”
Reed Shivers sussurrou:
“Ela não é estonteante?”
Era. Usava jeans apertados, tênis brancos, e um abrigo cinza com um
desenho do time dos Miami Hurricanes. Kara Lynn Shivers cumprimentou
Brian Keyes com um sorriso profissional. Era um dos melhores sorrisos que
tinha visto nos últimos tempos.
“Então você é meu guarda-costas”, disse ela.
“A ideia não foi minha”, disse Keyes.
“Acho que existem missões piores”, disse Reed Shivers com uma
piscadela de espiador de fechadura.
Keyes disse:
“Kara Lynn, vou repetir a você o que já disse ao seu pai: acho que você
deveria cair fora e não participar do desfile do Orange Bowl na próxima
semana. Acho que está correndo um sério risco.”
Kara Lynn olhou para o pai.
“Já disse a ele”, interveio Shivers. “Esta possibilidade está fora de
discussão.”
“Eu tenho escolha?”
“Claro, meu docinho.”
“Então quero ouvir o que o senhor Keyes tem a dizer.”
Kara Lynn Shivers era realmente bonita, o que não chegava a ser uma
surpresa; não se chega a ser rainha do Orange Bowl com a aparência de
uma marmota. O que surpreendeu Brian Keyes foi a esperteza nos olhos
cinza-esverdeados de Kara Lynn e a força de sua voz. Ele esperava
encontrar um daqueles casos crônicos de cabeça de vento, mas encontrou
exatamente o oposto. Kara Lynn parecia muito segura de si para os seus
apenas dezenove anos e muitos, muitos anos à frente de seu papaizinho.
Ainda assim, Keyes manteve um pé atrás. Havia parado de se apaixonar por
rainhas de concursos de beleza quando tinha vinte e seis anos.
“Uma das razões pelas quais o sargento García pediu-me que ficasse
com um olho em você”, disse Keyes, “é porque sou a única pessoa que viu
os terroristas face a face. Ao menos, sou o único que ainda vive. Eles são
traiçoeiros e imprevisíveis. E espertos — sem exagero, os caras são muito
espertos mesmo. Mas numa coisa seu pai está certo: haverá escoltas de
policiais à paisana em todo o percurso do desfile. Você não os verá, nem as
pessoas que estiverem assistindo pela TV, mas eles estarão lá, armados.
Esperemos que Las Noches saibam disso, daí talvez pensem duas vezes
antes de tentar algo.”
“Papai, e se acontecer alguma coisa?”, disse Kara Lynn.
“Nós pagamos o resgate, claro. Eu já liguei para o Lloyd’s, a companhia
de seguros, solicitando um seguro antissequestro e fechei com o que há de
melhor nesta área — é o mesmo que todas as grandes multinacionais usam
para seus executivos.”
“Não foi isso que eu quis dizer”, disse Kara Lynn enfaticamente.
“Suponha que haja um tiroteio durante a parada, com todos aqueles
garotinhos no meio da multidão. Alguém pode ser morto.”
“Mas, queridinha, há muitos bons atiradores nos quadros da polícia.”
“Senhor Shivers”, disse Keyes, “o senhor tem assistido muita
televisão.”
Kara Lynn começou a sorrir, mas se conteve a tempo.
“Em primeiro lugar, esta gangue não é do tipo que pede resgate. Eles
não querem seu dinheiro”, disse Keyes. “E sua filha está absolutamente
certa quanto ao tiroteio. Uma vez iniciado, pode estar certo de que alguém
vai morrer. E, quanto aos policiais serem bons atiradores, posso lhe garantir
que eles não poderiam acertar nem um transatlântico com uma bazuca
mesmo estando a dois metros dele.”
“Obrigado, senhor Keyes”, disse Reed Shivers acidamente, “por me
tranquilizar.”
“Não sou pago para ficar de conversa fiada.”
“Papai...”, disse Kara Lynn.
“Amorzinho, trata-se do desfile do Orange Bowl. Quarenta milhões de
telespectadores, incluindo todos os olheiros de talentos de Hollywood e
Nova York. O agente de Jane Pauley vai estar lá. Em carne e osso.”
Kara Lynn sabia que quarenta milhões era um pouco de exagero.
“Papai, trata-se de um desfile, não de uma entrega de Oscar.”
A voz de Reed Shivers estremeceu.
“É o momento mais importante de toda sua vida!”
“E talvez o último”, disse Keyes. “Mas não importa, certo? Qualquer
sacrifício é válido para ver o rosto de seu Chuchuzinho publicado na capa
da revista People, certo?
“Cale a boca, seu cretino!” Rosado nas bochechas, Reed Shivers deu um
salto e, nas pontas dos pés, assumiu uma tola posição de combate. Com
uma das mãos, Keyes o empurrou de volta ao sofá.
“Não seja tolo”, disse Keyes. “Estamos falando da vida de sua filha.”
Reed Shivers estava tão nervoso que o seu corpo todo parecia trepidar.
Não era o tipo de imagem que o pessoal da L. L. Bean escolheria para o
catálogo de meia-estação.
“Se é tão perigoso assim, então por que não cancelam o desfile?”, quis
saber Shivers.
Keyes riu.
“Você conhece Miami melhor do que ninguém. O próprio Jesus Cristo
poderia estar carregando a cruz no Biscayne Boulevard e mesmo assim
passariam com o desfile do Orange Bowl por cima dele.”
“Senhor Keyes”, disse Kara Lynn, “posso falar um minutinho em
particular com o meu pai?”
Keyes se dirigiu à sala de jogos, que era revestida de cortiça marrom.
Era domingo, por isso não havia nada a não ser futebol na imensa tela da
TV; Keyes a desligou. Ele contou dezesseis troféus de golfe numa das
estantes. Sobre o balcão do bar havia uma foto colorida de Reed Shivers
abraçado a Bob Hope. Na foto, Shivers parecia bêbado e Hope parecia
empalhado.
Keyes foi até a mesa de snooker e brincou com as bolas. Proteger a
garota fora ideia de García; Keyes não gostou muito disso, mas aceitou
fazê-lo por espírito de colaboração. Com Skip Wiley fora do alcance nas
Bahamas, não havia muito mais o que fazer. Nenhum novo cadáver de
turista havia aparecido nas últimas horas e mesmo as investigações do
Massacre de Trifeta não revelaram nada, sendo que o cara das bombas
conseguiu escapar. Agora era um jogo de espera e Kara Lynn era a isca.
Keyes encaçapava a bola da vez quando ela entrou e fechou a porta
atrás de si.
“Escute, não fique bravo, mas decidi ir em frente e participar do
desfile.”
“Muito bem”, disse Keyes, “espero que seu pai já tenha pago o túmulo.”
“Você realmente está tentando me assustar. Bem, estou assustada, certo?
Honestamente estou.” Ela realmente estava.
“Então não seja teimosa”, disse Keyes depositando o taco num canto da
mesa.
“Espere”, disse Kara Lynn, “se eu cair fora, eles vão atrás de outra, uma
das segundas colocadas. Deixe te dizer uma coisa, senhor Keyes: algumas
daquelas garotas desfilariam não importa a que preço. Elas pagariam por
isso. Portanto, se eu desistir, não vai mudar nada. Os Noites de Dezembro
ainda assim teriam alguém para sequestrar, ou tentar fazê-lo. Então, que
essa pessoa seja eu.”
“Além do mais”, disse Keyes, “vai atrair muita televisão.”
Kara Lynn o olhou fixamente.
“Você realmente acha que eu gosto dessa merda toda?”
“Você não quer ser uma estrela?”
“Prefiro estar viva”, ironizou Kara Lynn. “Meu pai quer ver sua filhinha
na NBC. Deixe ele realizar esse sonho, senhor Keyes. Ele garante que é
seguro.”
“Ah! seu pai de fato é osso duro de roer.”
“Eu disse para não ficar nervoso.”
Keyes sorriu contra a vontade. Não era fácil ser durão.
“Certo, não estou nervoso.”
“Legal.” Kara Lynn se dirigiu ao bar e se serviu de club soda, depois
jogou uma lata de cerveja gelada para Keyes. Ele a apanhou com uma das
mãos.
“Nunca tive um guarda-costas antes”, disse ela. “Como isto funciona?”
“Bem, daqui até a semana que vem ou talvez um pouco mais, seremos
só eu e você, com alguma ajuda discreta do pessoal de elite da polícia de
Dade County. A coisa mais importante é que você não fique sozinha em
nenhuma hipótese quando estiver fora de casa. Queremos que os valentões
percebam que você não é uma isca fácil, que você tem proteção — se é que
posso chamar assim o que estarei fazendo. Quando for às compras, eu
carregarei os pacotes. Quando for jogar tênis, carregarei as raquetes.
Quando for à praia, carregarei o Coppertone.”
“E se eu quiser sair com alguém?”
“Nada de sair com quem quer que seja.”
“Quem disse?”
“A eminente comissão do Orange Bowl. Eles prefeririam que você não
saísse à noite. Acho que é uma boa ideia.”
“Oh! simplesmente maravilhosa.”
“Seu namorado pode visitá-la em sua casa. Assistir televisão. Jogar
buraco. Fumar um baseado. Não me importa.”
“Podemos fazer amor?”
Keyes ficou corado.
“Se vocês não fizerem muito barulho”, disse ele, “devo confessar que
não posso passar sem minhas horas de sono.”
Kara Lynn riu.
“Só estou brincando. Não tenho namorado; rompemos depois que eu
ganhei esse concurso imbecil. Senhor Keyes...”
“Me chame de Brian, por favor. Cada vez que uma garota me chama de
senhor ganho um cabelo branco novo.”
“Certo... Brian, você anda armado?”
“Às vezes. E uso um belo rádio de polícia tipo o de Dick Tracy.”
“Que tipo de arma?”, perguntou Kara Lynn.
“Não interessa.” Era uma Browning nove milímetros. Keyes odiava a
maldita coisa. O coldre manchava todas as suas camisas.
“Posso fazer uma pergunta?”, disse ela. “Não quero ferir seus brios,
mas, quando me falaram de um guarda-costas, pensei em alguém...”
“Mais corpulento?”
“É, digamos, com mais presença.”
“Presença é minha especialidade”, disse Keyes. “Mas você quer saber
por que não mandaram um tira com porte de gorila em vez de um raquítico
detetive particular.”
Kara Lynn assentiu com a cabeça. Seus olhos eram simplesmente
maravilhosos.
Keyes disse:
“A eminente comissão do Orange Bowl acha que isso seria uma
catástrofe, do ponto de vista de imagem, se se tornasse público que a rainha
do Orange Bowl estava sob proteção policial. A eminente comissão acha
que os escroques da imprensa transformariam este pequeno detalhe num
grande caso. Eles temem que cercar uma rainha com policiais armados até
os dentes iria criar o tipo errado de publicidade. Deporia contra o
esplêndido programa que tinham. Assustaria a tal ponto as pessoas que elas
iriam desistir de comparecer ao desfile. Por isso, os patriarcas cívicos
decidiram esconder os policiais e contratar um baby-sitter à paisana. Eu.”
“Inacreditável”, disse Kara Lynn. “Aqueles idiotas.”
“Eu sei que se sentiria mais segura com o Clint Eastwood”, disse Keyes.
“Eu também.”
“Para mim você está ótimo.”
“Seu pai não gosta de mim.”
“Mas eu gosto”, disse Kara Lynn, “e eu sou a rainha, lembra-se?
Quando você começa?”
“Minhas coisas estão no carro.”
“A arma também?”
“Quer esquecer essa história da arma, por favor?”
“Desde que você não se esqueça de quem é o belo traseiro que está em
perigo aqui.” Kara Lynn bateu no seu bumbum protegido pelos blue-jeans.
“É meu! Sei que você não é nenhum Dirty Harry, mas prometa que
realmente sabe como usar uma arma, Brian. Prometa-me ao menos isso.”

O dia seguinte era véspera de Natal, e Skip Wiley reuniu três quartos do
Noites de Dezembro em sua vila alugada perto de Lyford Cay, nos arredores
de Nassau.
Tommy Rabo-de-Tigre preferiu permanecer embrenhado nos
Everglades, cuidando das casas de bingo, mas Jesús Bernal e Viceroy
Wilson não quiseram perder a oportunidade de dar uma escapadinha do Sul
da Flórida, principalmente porque suas fotografias haviam sido publicadas
na primeira página do Miami Sun. Na verdade, nenhuma das fotos exprimia
com exatidão a aparência dos dois homens sentados no terraço de Skip
Wiley. A fotografia de Jesús Bernal com um bigode a la Snidely Whiplash
fora tirada em 1977 depois de sua prisão pela posse ilegal de uma ogiva de
um míssil terra-ar. Ele aparentava ter catorze anos. A fotografia de Viceroy
Wilson não era melhor; fora, na verdade, tirada de um velho álbum do ano
do Miami Dolphins. Wilson trajava camisa do time e suas ombreiras,
fingindo o gesto de uma jogada. Ostentava aquele mesmo olhar
artificialmente carrancudo que todas as empresas de chicletes querem que
os jogadores de futebol façam nas suas fotos; a carranca natural de Viceroy
Wilson era bem mais convincente.
Nenhuma fotografia do índio apareceu nos jornais de Miami
simplesmente porque não se sabia da existência de fotografias dele.
Skip Wiley parecia não se preocupar muito com as fotos enquanto
contava piadas e erguia Heinekens geladas brindando seus visitantes.
Viceroy Wilson olhou por sobre as lentes de seus óculos escuros.
“Por que os jornais não mencionaram seu nome?”, perguntou a Wiley.
“Provavelmente porque o senhor Brian Keyes está ocultando meu
nome. Não me perguntem por quê, rapazes. Um mal-pensado ato de
amizade, suponho.”
“Os tiras vasculharam a casa de minha mãezinha esta manhã”, disse um
tremendamente zangado Jesús Bernal. “Na noite passada foi a casa de
minha irmã. Estão por toda parte em Little Havana, como ratos, aqueles
tiras.”
“Ossos do ofício”, disse Wiley. “Você já devia estar acostumado com
isso.”
“Mas eles arrebentaram a porta da casa dela!”, gritou Bernal. “Animais
filhos da puta. Este cara García, ele vai pagar caro. ‘Escória do Mundo’, ele
nos chamou. Estava nos jornais. Escória do Mundo! Os cubanos sabem
direitinho o que fazer com traidores como ele.”
“Eta! lá vamos nós de novo”, disse Viceroy Wilson. “O Vingador
Mascarado.”
“Cale a boca!”
Wilson riu e avançou sobre um prato de bolinhos.
“Devagar com o pão”, disse Wiley. “Não se esqueça que você tem que
perder dez quilos esta semana.”
Viceroy Wilson enfiou uma fatia bem grossa na boca.
“E, quem, diabos, você é”, disse ele espalhando migalhas, “Don Shula?”
“Estamos bem nervosinhos esta manhã, não estamos? Vocês devem ter
tido um voo atribulado.” Relaxado, Wiley depositou mais uma das
garrafinhas verdes na pilha de garrafas vazias. “Mas sei de uma coisa que
vai acalmá-los, rapazes. Jenna está fazendo um pudim de ameixas!”
“Estou nessa”, disse Viceroy Wilson.
“E se não me engano acho que há uma coisinha para cada um de vocês
debaixo da árvore de Natal.”
“É mesmo?”, disse Jesús Bernal mudando de humor. “Bem, caras, Deus
abençoe Las Noches de Diciembre, cada uma delas.”
Mas os Noites de Dezembro acabaram não abrindo seus presentes.
Aportando nas bancas de jornais de Nassau naquela tarde, o Miami Sun
trazia a deturpada coluna de Natal de Skip Wiley. Em pouco menos de trinta
minutos, o primeiro-ministro convocou seu ministério para uma reunião de
emergência e declarou que a história do pescador Rollie Artis era “um
insulto à soberania e ao orgulho nacional das Bahamas”. O ministro para os
Assuntos Internos imediatamente despachou uma ordem de deportação, na
qual cada membro do ministério colocou sua assinatura. Aproximadamente
às dezoito horas, exatamente quando o pudim de Jenna começava a
endurecer, seis oficiais da imigração bahamense irromperam na suntuosa e
ensolarada casa de Wiley e o expulsaram para sempre do Commonwealth.
Nenhuma quantia de dinheiro ou cheques de viagens mudariam aquela
determinação.
Mais tarde, no voo da meia-noite para o Haiti, foi que Jenna teve
coragem de mostrar a Skip Wiley o que haviam feito com sua coluna.
“Bloodworth!”, uivou ele. “Aquela ameba!”
“Foi um truque sujo”, disse Jenna.
“Sacrilégio!”, disse Wiley com seus olhos castanhos pegando fogo.
“Mas inteligente”, assinalou Jenna. “Não acha?”
“Bem, agora chegou a nossa vez de sermos inteligentes”, disse Wiley,
guardando a página com sua coluna no bolso do paletó. “Jenna, tão logo
cheguemos em Porto Príncipe, mande uma mensagem para Tommy no
acampamento. Mande ele me enviar por Expresso Federal os índices da
Nielsen do último Reveillon. E também os dos Arbitrons, se ele puder pôr
as mãos neles.”
“O que vai ser agora, Skip?”
“Não se preocupe, querida, a estratégia continua a mesma.” Wiley deu
um tapinha nos joelhos dela. “Para frente, a todo vapor.”
21

De um armazém mal iluminado no fim da avenida Miami, Jesús Bernal


fez uma ligação para o quartel-general secreto do Movimento Primeiro Fim
de Semana de Julho.
“El comandante, por favor”, disse ele.
Do outro lado da linha ouvia-se um zunzunzum cucaracho, o som de
cadeiras sendo arrastadas, uma porta se abrindo. O telefone emitiu um
ruído, como se alguém o tivesse derrubado num tambor de aço.
“Ei!”, disse Jesús Bernal irritado. “Oye!”
“Qué pasa, chico?” Era a voz rascante do próprio comandante.
Mentalmente Jesús podia imaginar o velho safado sugando um charuto
molhado, seus dedos nodosos e torcidos segurando o telefone como a garra
de um urubu. Jesús Bernal podia ver os maldosos olhos castanhos apertando
ao som de sua voz.
“Sou eu”, continuou Jesús em espanhol. “Você viu os jornais,
comandante?”
“Sí.”
Orgulhosamente Jesús disse:
“Sou famoso.”
“Ronald McDonald também é.”
“Fui expulso das Bahamas”, declarou Jesús.
“Por quê? Por roubar cocos?”
Jesús começou a fumegar.
“É um trabalho importante.”
“É brincadeira de menina.”
“Eu explodi um policial de Miami!”
“Você só explodiu a merda dos pés dele”, disse o comandante. “Eu leio
os jornais, chico. Depois de todos esses anos você ainda é o pior construtor
de bombas que já vi. Não conseguiria nem estourar um balão.”
Depois de uma pausa o velho disse:
“Diga-me, quem é esse tal El Fuego?”
“Eu sou El Fuego”, respondeu Jesús.
O comandante engasgou.
“Você é um puto de um mentiroso comedor de merda”, disse ele ainda
em espanhol.
Jesús fez uma careta. “Está bem. El Fuego é um figurão americano. Ele
também é louco, quer devolver a Flórida aos índios e guaxinins. Ele me
recrutou para fazer o trabalho sujo.”
“E para escrever os comunicados.”
“Claro.”
“Parece que é o único talento que você tem.”
Jesús Bernal sorriu esperançosamente. Houve um longo silêncio do
outro lado. Ele ouviu o som de um fósforo sendo riscado; a merda do
charuto do velho tinha apagado.
“O FBI tem perguntado por você”, grunhiu o comandante. “Não é uma
boa ideia você ficar telefonando para mim.”
Jesús Bernal engoliu em seco.
“Eu quero voltar para o movimento. O meu trabalho aqui acabou. Esta
organização, ela não é disciplinada, comandante. Tem gente que usa
drogas... e bebe. E o homem doido, El Fuego, ele está o tempo todo fazendo
piadas.”
“Não estou nem um pouco surpreso. É tudo tão engraçado.”
“Por favor, comandante, leia os jornais! Será que eu já não provei o meu
valor?”
“Você explodiu uma porra de campo de golfe”, disse o velho.
“Um alvo estratégico importante”, atalhou Jesús.
“Coño! Um cargueiro russo é um alvo estratégico, um campo de golfe
é... um campo de golfe, cacete. E não foram soldados comunistas que você
matou, foram americanos ricos. Estou surpreso que o próprio Fidel não lhe
mandou uma medalha.”
Nessa altura Jesús estava tremendo. Sua voz afinou como a de um
adolescente. Cobriu a boca com a mão para que Viceroy Wilson não o
ouvisse implorar.
“Por favor, comandante. Eu realizei muitas explosões, raptos, até
assassinatos — tudo em nome da Causa. O que eu preciso fazer para
convencer você a me receber de volta?”
“Faça alguma coisa séria”, disse o velho, seu peito chocalhando. “E faça
direito.”
Jesús Bernal bateu o telefone e praguejou. Voltou à serra de bancada em
que Viceroy Wilson estava trabalhando, pegou um martelo, e começou a
bater em um caibro. O armazém estava nublado por causa da serragem e da
fumaça de maconha.
“Então você não conseguiu o emprego”, disse Wilson com a boca cheia
de pregos.
“Pensei que você não entendia espanhol”, retrucou Bernal.
“Em 1977 nós tivemos um chutador chamado Rivera”, disse Wilson.
“Do México, acho. Ele costumava dar lições de espanhol no meio das
viagens de avião. Num domingo em Kansas City o filho da mãe perdeu
quatro chutes de dentro da linha das trinta jardas e nós perdemos o jogo.
Naquela noite um grupo dos nossos se reuniu e ligou para o departamento
de imigração.”
“Vocês fizeram ele ser preso?”
“No dia seguinte, no treino.” Viceroy Wilson deu de ombros. “Futebol é
um jogo duro, homem.”
“E agora você vai dizer ao Wiley que eu quero cair fora.”
“Não”, disse Wilson. “Não se você ficar até o Ano Novo. Depois disso
não estou nem aí com o que você faz.”
“Estou pensando em fundar meu próprio grupo”, confidenciou Jesús
Bernal.
“Como é que ele vai se chamar?”
“Ainda não decidi.”
“Que tal Ernesto Cabal Cabal?”
“Vá pro inferno”, disse o cubano, ainda magoado com a história de
Ernesto.
“E esse novo grupo”, disse Viceroy Wilson, “qual é a missão desta
vez?”
“Invadir Havana.”
“Naturalmente. Com navalhas, é claro.” Viceroy Wilson começou a
martelar de novo. De quando em quando ele dava um passo para trás para
ver como estava ficando.
Tommy Rabo-de-Tigre estava sentado sobre um cobertor no canto,
embaixo de um daguerreótipo desbotado de Thlocko-Tustenugee, Chefe
Rabo-de-Tigre. Os olhos de Tommy estavam abertos, mas não fixavam
nada; recém-chegado de uma passagem pelos Everglades, ele acabara de
ficar sabendo que Pavlov levara um tiro de uma equipe da SWAT de Fort
Lauderdale na semana anterior, numa piscina de frente para o mar. A
tristeza roubara toda a energia do índio; ele deixou seu martelo e
permaneceu sentado em transe. Temia que aquela fosse ser uma noite cheia
de sonhos, em que seus dedos se agarrariam mais uma vez às grades úmidas
do calabouço em que seu trisavô morrera. Nessas noites, a alma de Tommy
vagava em companhia de seu ancestral guerreiro. Tommy sabia o que ia
acontecer se sua alma não retornasse de sua jornada ao amanhecer: ele se
tornaria parte de seu próprio pesadelo para sempre, e nunca acordaria. Esse
era o destino de muitos semínoles angustiados, cujas almas subitamente
fugiam na noite; para Tommy Rabo-de-Tigre, uma morte assim seria
infinitamente pior do que qualquer coisa que um policial branco pudesse
fazer a ele.
“Olhe aquele bebê chorão”, disse Jesús Bernal zombando do índio
entristecido. “Alguém atirou no lagarto de estimação dele.”
“Vê se cala a boca”, Viceroy Wilson fuzilou o cubano. “Ou eu prego as
bolas de seu saco no seu nariz.”
Tommy Rabo-de-Tigre era a coisa mais próxima de um irmão que
Viceroy encontrara no Noites de Dezembro. Entre eles havia uma ligação
silenciosa que nada tinha a ver com o uso do Cadillac; era uma ligação
histórica. Em seus dias de recuperação da heroína, na biblioteca, Viceroy
Wilson havia estudado as guerras semínoles, e aprendido que o povo de
Tommy lutara não só para preservar suas terras, mas para proteger os
escravos fugitivos que se haviam juntado a eles nas savanas da Flórida. A
magnificência daquela luta não passou despercebida para Viceroy Wilson;
ele sabia que Tommy nunca o deixaria para trás. Viceroy nunca confiara em
alguém tão completamente.
Jesús Bernal percebeu que não seria inteligente, e talvez fosse perigoso,
zombar do índio, e mudou de assunto.
“Vou mostrar ao comandante uma ou duas coisas”, disse ele com
determinação.
“Legal”, disse Viceroy Wilson, voltando ao trabalho, “contanto que
você espere até depois do Ano Novo.”
“Vou pensar no caso, negrito”, disse Jesús corajosamente, depois que
Viceroy Wilson havia ligado a serra circular e não podia ouvi-lo.
22

Brian Keyes nunca se considerou um solitário, mas havia vezes em que


ele se perguntava para onde todos os seus amigos tinham ido.
Normalmente, detetives particulares não recebem uma avalanche de
convites para festas, e isso não o incomodava; ele não era um arroz de festa.
Mas havia noites em que um telefonema de qualquer pessoa decente e
sociável teria sido uma surpresa agradável. Não era propriamente solidão,
mas estar sozinho. Keyes tinha sentido isso logo que deixara o Sun; era
como se o ruído fundamental da vida tivesse de repente perdido cinquenta
decibéis. Algumas vezes a quietude o torturava; o escritório, o apartamento,
as vigias. Algumas vezes ele rodava falando no rádio do carro; às vezes a
porcaria respondia. Dois anos fora do Sun e Keyes ainda sentia saudades da
camaradagem peculiar da redação. Ela comandava toda a sua vida, o jornal,
e, mesmo que fizesse de todos bastardos cínicos e vulgares, ao menos os
bastardos estavam lá nas horas vazias. De dia ou à noite você podia dar um
pulo até o Sun e encontrar alguém pronto para dar uma saidinha para uma
cerveja ou um sanduíche. Atualmente Keyes comia sozinho, ou com
clientes tão atormentados que ele tinha ânsia de vômito depois da primeira
mordida no sanduíche.
E foi por isso que ele veio a gostar de tomar conta de Kara Lynn
Shivers. Nos primeiros dias ela o tratara com a mesma frieza e suspeita que
reservava para a maioria dos homens, mas aos poucos ela relaxou. Quanto
menos eles falavam da balbúrdia no concurso de beleza, mais feliz parecia
Kara Lynn. Ela era boa companhia, o que acabou sendo uma surpresa para
Keyes. Parecia um milagre que ela tivesse saído de sob as asas de Reed
Shivers tão independente, agradável e com tanta classe. Era também
espantoso que seu senso de humor tivesse sobrevivido, e ela tivesse
algumas tiradas sutis e inteligentes. Conversar com Kara Lynn era tão fácil
que Keyes tinha que lembrar a si próprio que não estava na semana do baile
de formatura, mas engajado num trabalho sério, e o serviço não incluía
confissões reais. Ele estava sendo pago — uma pequena fortuna — para
fazer um único serviço: depositar Kara Lynn Shivers sã, salva e magnífica
no interior do carro alegórico da rainha.
Dois dias depois do Natal, cinco dias antes do grande desfile, Kara Lynn
desceu vestindo uma sainha de tênis amarelo-limão e uma malha de tricô
combinando. Ela entregou a Brian Keyes uma das caras raquetes de tênis de
seu pai e disse:
“Vamos lá, Marlowe, estamos de saída para o clube.”
Keyes não estava com ânimo para ir ao clube. Ele tinha passado pela
segunda vez uma manhã inteira no aeroporto, vigiando a alfândega para o
caso de Wiley querer voltar. Como de hábito, o Miami International era um
zoológico — e não havia nem sinal de Skip.
“Estou acabado”, disse Keyes a Kara Lynn. “Além disso, sou péssimo
em tênis.”
“Com essas pernas aposto que não”, disse Kara Lynn. “Agora, vamos
lá.”
Eles entraram no VW dela. Eram apenas dez quadras, uma estrada
sinuosa ao redor do campo de golfe de Coral Gables. Keyes estava ao
volante. Pelo retrovisor, dois carros atrás, havia um Cadillac Seville com
vidros pretos. Keyes nunca tinha visto uma perseguição tão indiscreta — se
é que estavam sendo seguidos. Numa parte vazia da pista, Keyes encostou o
VW e o Caddy ficou atrás uns quatrocentos metros. Então este virou e
desapareceu.
Kara Lynn estava muito tranquila; não tinha se virado nem uma vez
sequer.
“Você está com a sua arma?”, perguntou ela em tom casual.
“Está no porta-malas.”
“Não tem porta-malas.”
“No MG tem”, disse Keyes.
“Brilhante”, disse ela. “Quanto você disse que estavam lhe pagando?”
Keyes a olhou com uma cara de muito-engraçado.
“Quem você acha que estava nos seguindo?”
“Talvez ninguém. Talvez os caras maus.”
“Eles não iam tentar nada agora, não antes do desfile.”
“Quem sabe”, disse Keyes. “Nós estamos lidando com um tipo especial
de maluco.” Ele entrou no estacionamento do clube.
Kara Lynn perguntou:
“Como você vai jogar tênis com esses tênis tão molambentos?”
“Mal, com certeza.” Os tênis não eram o pior de tudo. Keyes estava
usando uns jeans velhos e uma camiseta dos Rolling Stones.
“Entre de braço dado comigo”, disse Kara Lynn, “ou eles vão pensar
que você é apenas um serviçal.”
Keyes se atirou de lá para cá na quadra de tênis por uma hora inteira,
voleando como um louco, muita velocidade e nada de elegância. Seus
pontos latejavam sem parar e seu pulmão direito estava pegando fogo. A
única coisa que o fazia continuar era a silhueta alongada de Kara Lynn
correndo até a rede, seus lábios demonstrando resolução, as bochechas
ficando rosadas, os cabelos loiros brilhando a cada passo. Quando se tratava
de tênis, ela era uma garota séria. Nada de espetacular, ou de força digna de
nota, mas jogadas corretas e precisas. E matreiras, também.
Ela ganhou por 6-4, 3-6, 7-6. Uma deixadinha ao pé da rede acabou
com ele. Ele se esticou para alcançar a bola, mas acabou caindo sobre a
rede. Estava cansado demais para se sentir envergonhado.
Em seguida Kara Lynn o levou até a sede do clube. Keyes deu uma
rápida olhada ao redor e concluiu que ele era a única pessoa no lugar que
não tinha um jacarezinho na camisa. Até o sujeito do bar tinha um. Keyes
pensou que havia morrido e ido direto para o Paraíso dos Janotas.
Vários jovens perfumados pararam Kara Lynn para um beijinho na
bochecha. Beijinho, beijinho. E aí? Você está linda. Até mais. Keyes
também recebeu alguns olhares curiosos.
“Você já viu Adeus, Columbus?”, disse ele a Kara Lynn quando se
sentaram. “Eu me sinto como o babaca do filme, com você no papel da Ali
MacGraw.”
“Ora, por favor!”
“Foi antes do seu tempo. Esqueça.”
“Eu gosto dos Rolling Stones”, arriscou Kara Lynn.
“Mesmo?”
“Sua camiseta é péssima, mas os Stones são legais.”
Ela pediu um club soda. Keyes pediu uma cerveja.
“Estava brincando sobre a camiseta”, disse Kara Lynn.
“E também sobre os tênis.”
“Não, sobre os tênis era sério.” Ela beliscou de leve o braço de Keyes,
que sorriu. Ele estava começando a se sentir tranquilo, descontraído e
incrivelmente engraçado. Hora de tomar cuidado. O Livro de Jenna,
capítulo um.
“Por que você deixou o jornal?”, perguntou Kara Lynn. Um tipo
musculoso, com uma enorme cabeça de cabelos encaracolados, acenou para
ela do outro lado do salão e apontou para o drinque que segurava. Ela fez
que não com a cabeça e virou-se.
“Tudo bem se você quiser ir conversar com ele”, disse Keyes. “Eu
posso ir sentar no bar.”
“Ah, nada disso. Conte por que você saiu do jornal.”
Keyes deu um gole na cerveja.
“Porque eu cometi um erro.”
“Todo mundo comete erros.”
“Mas não dos grandes. Não nesse ramo.”
“Ora, vamos lá. Como podia ser assim tão ruim?”
“Foi o pior.” Keyes largou a caneca e inclinou-se para a frente. “Deixe-
me explicar uma coisa. Seu pai é um grande advogado. Se ele faz alguma
trapalhada, ele dá um pulo até o tribunal, dá entrada numa nova petição e
tudo bem. O cliente nunca fica sabendo. Se um cirurgião pisa no tomate, ele
corta um pouquinho mais, acrescenta uns pontos e fica tudo bem. Na
maioria dos trabalhos é desse jeito — tem sempre uma saída. Mas o que eu
fiz, eu não posso consertar. Está feito para sempre. Uma vez que o jornal sai
da rotativa, acabou. Claro, você pode publicar uma correção ou uma
desculpa, mas não há garantia de que as pessoas certas vão ver. Alguns
caras só vão se lembrar do que você escreveu da primeira vez, e se o que
você escreveu estava errado é disso que eles vão lembrar.”
“Você foi despedido?”
“Eu pedi demissão. Meu chefe nunca soube por quê.”
“Você estava com medo de dizer a ele.”
“Não. Estava com medo de magoá-lo.”
Kara Lynn girou os cubos de gelo em sua soda.
“Você sente saudades do trabalho?”
“Às vezes”, disse ele, “sinto falta das pessoas. Algumas das pessoas
mais inteligentes que eu conheço trabalham no ramo. E algumas das mais
ferradas. É isso que acontece quando você corre atrás da verdade por muito
tempo; você finalmente a encontra e nunca mais vai ser o mesmo. Ferrado
para a vida inteira.” Ele estava pensando em Skip Wiley.
Kara Lynn era uma excelente ouvinte. Era boa demais. Keyes imaginou
se ela não estaria petrificada de tédio.
Mas então ela disse:
“Conte alguma coisa sobre a profissão de detetive.”
“Uma emoção depois da outra: Senhor Keyes, aqui estão dois mil.
Descubra se minha esposa está indo para a cama com o psicólogo dela. Tire
algumas fotos, também.”
“Ainda atrás da verdade”, disse Kara Lynn.
“É, mas são verdadezinhas, mundo-cão. Grudam no seu cabelo e na sua
roupa. Embaixo das unhas. Eu nunca me senti desse jeito quando era
repórter, juro por Deus.”
“Você está bem infeliz, Brian.”
“Então somos dois, Cinderela.”
“Por quê, o que você quer dizer? Eu sou a rainha do Orange Bowl,
lembra? Tenho uma poupança gorda, um guarda-roupa novo, um professor
de canto e uma bolsa de estudos de quatro anos.” Kara Lynn soltou seu rabo
de cavalo e fez uma pose arrogante. “O que mais uma garota poderia
querer?” Então começou a rir.
Keyes também riu.
O gorila com os cabelos loiros encaracolados estava acenando de novo.
“Acho que o Hércules quer lhe pagar uma bebida”, disse Keyes.
“É melhor ir embora.” Kara Lynn assinou a conta. Keyes não se sentiu
nem um pouco incomodado com isso; Reed Shivers ia encontrar um jeito de
descontar do imposto de renda.
“Faça-me um favor, Brian.”
“Claro.”
“Enquanto nós saímos daqui, você segura a minha mão?”
“Por quê?”
“Porque é mais educado do que dizer ‘vá se foder’. É isso que eu queria
dizer a esses imbecis, mas não posso. Não aqui no clube do meu pai.”
Quando eles levantaram da mesa, Keyes pôs a raquete debaixo de seu
braço esquerdo e pôs o braço direito em volta do ombro de Kara Lynn. Eles
saíram desse jeito, bem na frente dos Jacarezinhos. Foi ótimo.
“Você é um cara legal”, disse Kara Lynn quando eles chegaram ao
carro. “E eu estava certa sobre as suas pernas. Você me deixou um caco.”
Brian Keyes não estava ouvindo.
O Seville estava estacionado do outro lado da rua, na sombra de uma
figueira-brava. Um moreno magro de camiseta regata estava sentado no
capô, tamborilando com os dedos na lataria do carro. O homem não estava
prestando atenção; não estava fazendo o que tinha que fazer.
“Entre no carro”, disse Keyes a Kara Lynn. “O rádio da polícia está
embaixo do banco da frente. Tente chamar o García.”
Kara Lynn entrou pelo lado do motorista no VW e abriu a janela. “Aonde
você vai?”
“Aquele é o filho da mãe que me furou.”
“Brian...”
Mas ele já tinha ido, caminhando displicentemente pelo estacionamento.
Aparentava estar perfeitamente calmo, um tenista voltando para casa. Kara
Lynn podia ouvi-lo assobiando uma canção, parecia “Yesterday”. Ela viu
Keyes tirar a capa de couro da raquete de seu pai.
“Essa não”, disse Kara Lynn.
Jesús Bernal não reconheceu Brian Keyes imediatamente. De qualquer
forma, não estaria esperando encontrá-lo ali. A missão de Jesús Bernal era
espreitar por tiras; Skip Wiley queria saber se havia policiais designados
para guardar a moça. Até então, Bernal não tinha visto um único carro-
patrulha; o lunático Wiley estava errado de novo, como de hábito. Bernal
estava pronto para encerrar o dia e voltar ao armazém quando o tenista se
aproximou dele.
“Ei, muchacho, lembra de mim?”
Bernal olhou atentamente para o rosto juvenil e, depois de um instante
ou dois, lembrou-se.
Mas não rápido o bastante.
Keyes brandiu a raquete de tênis e acertou Jesús Bernal em cheio no
rosto. Um bem colocado smash frontal. Quebrou três cordas da raquete.
A cabeça do cubano explodiu do capô. Ele aterrissou de cara no asfalto,
aspirando seu próprio sangue. A camiseta se rasgara, presa na fechadura do
capô.
Keyes debruçou-se sobre Jesús Bernal e atingiu-o novamente, desta vez
um sólido voleio de esquerda na garganta. O cubano mexeu
convulsivamente as pernas e soltou um ruído de triturador de lixo.
“Gggrrrnnnn”, grunhiu ele.
“Você devia ver o meu saque”, disse Brian Keyes.
Kara Lynn Shivers guiou o VW para o lado do Cadillac. Keyes entrou e
ela pisou fundo no acelerador.
“Deus do céu, você o matou!”
“Infelizmente não. Você chamou a polícia?”
“Não, o rádio...” Ela estava nervosa demais para falar.
“Ache uma cabine telefônica”, disse Keyes.
“Brian, ele parecia morto... de verdade!”
“Mas não estava. Faltou muito para isso. Eu preciso falar com o García.
Encontre logo uma cabine.”
Ela fez que sim e continuou fazendo, como uma boneca automática.
Estava apavorada.
“Ele era... um... deles?” Kara Lynn falava aos trancos, como se tivesse
chorado, mas não tinha. Os nós de seus dedos estavam vermelhos
segurando o volante.
Keyes tocou o braço dela, sentiu-a retrair-se.
“Kara Lynn, vai ficar tudo bem.” Mas ele estava pensando: Talvez isto
signifique que o Wiley voltou.
“É assustador”, disse Kara Lynn com voz trêmula, olhando fixamente
para a rua adiante. “É loucura.”
“Juro por Deus, vai ficar tudo bem.”
23

Quando o esquadrão do sargento García finalmente chegou ao clube de


campo, tudo o que encontraram sob a figueira foram marcas de pneus
radiais, uma poça de sangue coagulado, e vários grãos de milho, que logo se
revelaram dentes humanos. A polícia, durante toda a noite, esteve em busca
do Seville. Eles rondaram por Coral Gables e Little Havana em comboios,
parando cada vez que avistavam um Cadillac, dando blitz em qualquer um
que estivesse trajando camiseta.
Ainda assim, o Esquadrão Especial Fuego Um não encontrou o ferido
Jesús Bernal, e por volta das oito horas da manhã seguinte o telefone de Al
García já estava tocando desesperadamente. Reed Shivers. O chefe. O
diretor do Orange Bowl. Ricky Bloodworth. A Câmara de Comércio. Até
mesmo a NBC, por Deus.
García levou três copos de isopor cheios de café preto para seu
escritório e fechou a porta atrás de si. Discou para a casa dos Shivers e
Brian Keyes atendeu na primeira chamada.
“Ele escapou”, disse García.
“Não me diga!”
“Ei, não temos culpa se a Shirley Temple não soube fazer funcionar o
rádio da polícia.”
“Ela estava seriamente assustada”, disse Keyes. “Mas eu liguei cinco
minutos depois. Cinco malditos minutos.”
“Foi o tempo necessário”, disse García. “Se isso o faz sentir-se melhor,
o filho da puta estava sangrando bastante. Ele deve estar sentindo muitas
dores.”
Com dor ou não, era pouco provável que Jesús Bernal fosse entrar num
hospital; ele provavelmente havia se enfurnado nos Glades e estava
bebendo os chás medicinais de Tommy Rabo-de-Tigre. O que significava
que ele muito provavelmente iria se recuperar.
Brian Keyes imaginou que Jesús Bernal, em nome de vingança, não
pouparia ninguém, nem deixaria pedra sobre pedra.
“Al, eles têm que cancelar o desfile.”
“Nem que chova canivetes”, disse García.
“Mas isto faz tudo encaixar-se — está provado que estes idiotas não
estão brincando sobre agarrar Kara Lynn. Depois do que aconteceu ontem,
eles vão tentar com muito mais vontade.”
“Nós estaremos prontos.” García deu um gole no café; ele calculou que
ia precisar de um litro de cafeína para enfrentar a tempestade que estava por
vir.
“Como vai indo nossa rainha?”, perguntou ele.
“Um tanto quanto aterrorizada. De repente, ela não sabe quem é mais
perigoso, Las Noches ou eu. Ela até pensa em desistir dessa porra toda, mas
seu pai joga pesado. A manhã por aqui foi bem agitada.”
García perguntou:
“Você ligou para seus colegas shriners do Norte?”
“Liguei, estão a caminho.”
“Excelente! Lembre-se, chico, nenhuma palavra a vivalma.”
“Fique tranquilo.”
“Os babacas dos blazers laranja estão à beira de um ataque de nervos.”
“Sem falar na palpitação de seu distintivo”, disse Keyes.

Jesús Bernal encontrava-se deitado sem camisa sobre um resto de


carpete azul. Seus olhos estavam fechados e sua respiração atravessava com
dificuldade as gengivas nuas. Sua garganta estava roxa e inchada. De vez
em quando suas mãos tremiam e se cerravam e os pulsos ossudos
sobressaíam. Um macho sonhando, pensou Viceroy Wilson.
Intermitentemente ele dava uma checada em Bernal, e então prosseguia
martelando, serrando e perfurando como se estivesse sozinho no armazém,
que não era maior que uma garagem.
O tempo estava se esgotando. O índio havia mandado madeira e partes
de palmeiras, mas dar duro mesmo neca. Wilson estivera trabalhando feito
cão, e passava apenas com milkshakes com farelo de trigo; perdeu cinco
quilos em dois dias.
O barulho de um automóvel lá fora chamou sua atenção. Não era o
Seville; Wilson conhecia o barulho do motor do Caddy como a voz de sua
mãe. Rapidamente, abandonou as ferramentas e apanhou uma espingarda
com o cano serrado. Ouviu passos na porta do armazém. A fechadura
guizalhou. Wilson aproximou a espingarda do ombro.
A porta se abriu e Skip Wiley entrou.
“Um pouco sobressaltado você, não?”, disse ele.
Tommy Rabo-de-Tigre permaneceu atrás dele.
Eles olharam para Viceroy Wilson até que de abaixou a arma. Wiley se
aproximou e lhe deu um abraço.
“Você está indo muito bem”, disse ele. “Muito bem.”
Viceroy Wilson não era muito chegado em abraços; um aperto de mão
teria sido suficiente.
“Então você voltou dos trópicos”, disse ele a Wiley, “está com um puta
bronzeado.”
“Papo furado. Estou um trapo.” Mas ele não estava. O rosto de Wiley
estava corado e sua barba estava ruivo-dourada por causa do sol. Usava
uma vistosa camisa de futebol listrada com as palavras “Cap Haitien”
impressas sobre o bolso frontal.
“Você esteve num spa?”, disse Wilson.
“Nem deu tempo.” Wiley se prostrou diante do ronco e da forma
empoeirada de Jesús Bernal. “Ele fica ainda mais malvado sem dentes, não
fica?”
“Lamentável cagada”, disse Wilson.
“Eu sei, eu sei. Isto é o primeiro item da agenda.”
Skip Wiley tirou seu panamá e deu uma espiada pelo armazém,
examinando a criação de Viceroy Wilson sob a fraca luz da lâmpada de
meros sessenta watts. Tommy Rabo-de-Tigre permaneceu num canto, suas
feições inescrutáveis naquela penumbra. Viceroy Wilson abriu uma lata de
Heineken e esperou a diversão começar; ele precisava mesmo de um
descanso.
Wiley sentou-se num cavalete e cruzou os braços.
“Acorde-o”, disse ele ao índio.
Tommy cutucou Jesús Bernal com o duro bico de seu coturno. O cubano
resmungou e rolou para o lado, enterrando sua cara debaixo dos braços.
Tommy o cutucou novamente, desta vez para acordá-lo de uma vez por
todas. Jesús sentou bufando e esfregando os olhos. Seu nariz fraturado
estava com a forma de um sapo e o resto de seu rosto parecia uma grade:
trazia a marca perfeita de uma raquete de tênis Spalding.
“Como está se sentindo?”, perguntou Skip Wiley.
“Podido”, disse o cubano. “Muipo podido.”
“Vamos arranjar dentes novos para você”, prometeu Wiley.
“Muipo agradecido.” Jesús Bernal soava como se estivesse com a boca
cheia de bolas de gude.
Wiley ergueu evangelicamente suas mãos.
“Bem”, disse ele, “estou feliz por estarmos todos aqui. A coalizão do
arco-íris, juntos outra vez. E só restam quatro dias!”
“Grapa-a-Deu”, murmurou Jesús Bernal. “A merd esst engrosssands.” A
merda está engrossando, era o que Jesús estava tentando dizer.
Skip Wiley deu um sonoro suspiro e olhou para o assoalho empoeirado.
De uma hora para outra, toda a animação parecia ter evaporado de sua face;
sua boca, sempre com um sorriso engatilhado, de repente ficou fina e
severa; os alegres olhos castanhos se encolheram, perderam o brilho. A
transformação era tão palpável e tão vulcânica que até mesmo Jesús Bernal
ficou em silêncio.
“O motivo pelo qual voltei”, disse Wiley sombriamente, “é para
prevenir um desastre. Para nos salvar de uma humilhação internacional.”
Ao levantar a cabeça, a pálida luz iluminou seu queixo, a ponta de seu
nariz comprido e os cabelos loiros caídos sobre a testa. Os demais estavam
aturdidos pela soturna fisionomia de Wiley. Ele trazia a Jesús Bernal a
lembrança de um padre no confessionário, e a Viceroy Wilson a de um
cantor de bolero da Basin Street. E, quando Tommy Rabo-de-Tigre olhou
para Wiley, ele se lembrou do espírito de um animal que encontrara certa
vez no ritual sagrado de Green Corn.
“Nossa hora se aproxima”, Wiley lhes disse. “E não há tempo para
perder terreno ou para displicência. Tivemos uma semana terrível. Primeiro
fomos expulsos das Bahamas — humilhante, mas não calamitoso — e
depois, ontem, quase pusemos tudo a perder. Ontem”, ele olhou para baixo,
para o cubano, “tivemos um abalo extremo e fodido.”
“Argh!!!”, expressou-se Bernal defensivamente.
“A ideia”, disse Wiley encorpando a voz, “de espionar Kara Lynn era
para checar se ela estava sob proteção policial. Eu presumi que todos nós
havíamos compreendido que era de vital importância permanecermos
invisíveis.”
A palavra invisível pareceu vibrar feito uma corda esticada pelo
armazém e depois contornar o pescoço do cubano.
“Pois bem, Jesús”, prosseguiu Wiley, “já que os seus dentes foram
arrancados e que sua laringe está como um abacate, não vou exigir que me
conte precisamente o que aconteceu. Não agora, quero dizer. Hoje quero
que descanse, e quero que permaneça aqui até eu dizer para sair. Porque,
neste exato momento, cada tira em Dade está no seu rastro. Se você fosse
capturado — e eu compreendo que ser um mártir lhe apetece —, mas, se
você fosse capturado, não há palavras para descrever o que eles fariam para
que você abrisse o bico.”
“Seinm chenncee”, disse Bernal.
“Não vamos correr o risco. Fique aí quietinho, sem sair”, disse Wiley.
“Cavalheiros, tivemos um grande revés, perdemos a vantagem do
anonimato.”
“Mas Keyes já sabia do plano”, disse Tommy Rabo-de-Tigre.
“Claro, claro — mas vejam...” Wiley estava tentando buscar uma
metáfora eficaz, do tipo semínole. “Tommy, é diferente saber que há uma
pantera escondida no pântano e ver essa pantera com os próprios olhos. O
que é mais assustador: imaginar onde ela está ou encontrá-la?”
O índio não precisava que isso lhe fosse perguntado. Nem Viceroy
Wilson. Eles estavam conscientes da magnitude da transgressão de Bernal.
“A julgar pelos jornais desta manhã, o fatídico episódio de ontem
manchou um pouco o brilho de nossa missão”, disse Wiley sarcasticamente.
“Em toda a minha vida nunca ouvi falar de um terrorista profissional
subjugado por um puto qualquer com uma raquete de tênis.”
“Eh, hâmbri”, retrucou Jesús Bernal, provavelmente em espanhol.
“A sorte é que ele não te matou”, disse Viceroy Wilson.
“Sorte é a palavra certa”, Wiley acrescentou. “Sorte que tudo que
perdemos foi um carro.”
“O quê?”, gritou Wilson.
“Sinto muito, meu velho, mas os policiais puseram um exército atrás do
Caddy, por isso tive que pedir a Tommy para se livrar daquela maldita
coisa.”
“Nããoo!”
“Eu o joguei numa pedreira”, disse o índio.
Com um rugido de urso ferido, Viceroy Wilson jogou-se sobre Jesús
Bernal e começou a esmurrá-lo ferozmente nas costelas e no fígado.
“Mi acuindam!”, uivou o cubano banguela. “Tocorro!”
Com grande esforço, Tommy Rabo-de-Tigre conseguiu tirar Viceroy
Wilson de cima de Jesús Bernal. Uma vez separados, os dois
revolucionários encararam um ao outro, arfando como se fossem leopardos.
Skip Wiley levantou-se.
“Olhem para o que está acontecendo aqui! Dez dias atrás Las Noches
era irrefreável, destemido, unido. Agora visamos uns aos outros e tentamos
nos mutilar. Na semana passada éramos primeira página dos jornais e agora
os jornais zombam de nós. Viram o Sun? Viram a porra daquela charge? O
cara de barba parecido com Che Guevara, com uma boina e uma
metralhadora, com a diferença de que tem uma raquete de tênis quebrada
sobre sua cabeça! Engraçado, não? Terroristas-vaudevilles, é isso que
somos. Isso é o Noites de Dezembro. E, em vez de ir à luta e nos
redimirmos com um ataque extremista, o que fazemos? Sentamos nesse
buraco de rato e organizamos nosso próprio torneio de luta livre. Vocês não
percebem, isto é exatamente o que eles querem! Eles estão tentando fazer
com que nos destruamos a nós mesmos!”
Tommy Rabo-de-Tigre achava que Wiley estava exagerando nos
créditos a García e aos outros homens brancos. Brian Keyes era o único que
preocupava Tommy.
“A triste verdade é que nós perdemos a vantagem psicológica”, disse
Skip Wiley, “e temos que recuperá-la. É por isso que costurei um novo
plano.”
“Que novo plano?”, perguntou Viceroy Wilson. Ele não suportava a
ideia de ter que aguentar a explanação de um plano inteiro; para ele, estava
tudo bem com o velho plano.
“Estuipidi! Deve sê estuipidi!”, choramingou Jesús Bernal. Não só era
estúpido como suicida mudar o plano faltando tão pouco tempo para o jogo
começar; isso ia contra todos os manuais de terrorismo. Era impensável.
“Acalmem-se, camaradas”, disse Skip Wiley. “Não estamos jogando
fora o velho plano, apenas tornando-o melhor.”
“Então diz”, pediu o índio. “Então diga logo a eles qual é a ideia.”
Então Wiley lhes disse tudo sobre o plano.
“Não apenas uma princesa, mas duas!”, concluiu ele alegremente.
“Dobra o prazer de vocês, dobra a curtição!”
Viceroy Wilson gostou do que ouviu; o novo plano lhe pareceu uma das
mais inteligentes ideias de Wiley. A Fase um era para armar uma grande
confusão, tirar todo mundo do equilíbrio; era uma cartada perfeita. A
primeira etapa também exigia um helicóptero, e Viceroy Wilson sempre
quis andar de helicóptero. Tommy Rabo-de-Tigre também aprovou o plano,
sobretudo porque permitiria que ele se enfurnasse por uns dois dias nos
Everglades, sozinho, com sua gente.
Apenas Jesús Bernal se opôs ao novo plano de Skip Wiley. Ele estava
deitado sobre o assoalho do armazém, resmungando coisas ininteligíveis,
sentindo-se mais miserável cada vez que Wiley comunicava uma nova
ordem. As porradas que ele recebera daquele maricón do Keyes e a prensa
que recebera de El Fuego levaram Bernal a experimentar novamente uma
familiar sensação de autopiedade. Incapaz de ser compreendido em
qualquer língua, ele se sentia ignorado. E, o que era pior, tratado com
condescendência. O fato de Wiley ter decidido por uma irresponsável
mudança de estratégia sem consultá-lo — ele, o mais experiente de todos os
terroristas! — o deixou furioso. Mais uma vez a desonra; a repetição de
tudo que se passara no Movimento Primeiro Fim de Semana de Julho.
Quando chegou a vez de determinar qual seria o papel do cubano, Skip
Wiley anunciou que o Las Noches mais uma vez iria precisar de suas
inigualáveis habilidades na Smith-Corona; haveria comuniqués históricos a
serem escritos! Jesús Bernal assentiu com indiferença, esperando que à luz
turva os demais conspiradores não pudessem perceber a deslealdade em
seus olhos, ou o seu riso de desprezo e escárnio. Jesús Bernal tomou uma
decisão particular e fatal: prosseguiria com um plano à sua maneira. Ele os
humilharia a todos: o índio arrogante, o negro fedido, maconheiro e maluco
e o policial culebra García. Keyes também; Keyes sofreria aos borbotões. E
quando tudo estivesse acabado, na véspera do Ano Novo, El comandante
imploraria para que Jesús Bernal voltasse e liderasse o sagrado esforço
contra o Barbudo Número 1. Seria um imenso prazer ver o velhão rastejar
aos seus pés.
E Wiley, foda-se ele — quem disse que ele era um gênio? Se Wiley era
tão esperto, pensou Jesús, como ele poderia ter se esquecido da terceira
bomba, a mais poderosa de todas? Como se esquecera de perguntar o que
acontecera com ela? Que tipo negligente de líder era esse que deixava uma
coisa dessas passar em branco?
Mas à noite, quando tiver oportunidade, pensou Jesús Bernal, posso
olhar direto no olho dele, a caminho da porta, e dizer: “Mas, El Fuego, você
nunca perguntou. Você nunca perguntou”.
Richard L. Bloodworth passara o dia no distrito policial de Dade, à
espera do sargento Al García. Bloodworth poderia ser torturantemente
paciente. Ele passou o tempo se apresentando às secretárias e aos
patrulheiros, aos quais distribuía cartões de visita novíssimos em que o
“Ricky” fora substituído por “Richard L.” A maioria daqueles que
receberam o cartão de visita de Bloodworth rasgaram-no minutos depois de
ele ter desaparecido de vista, a não ser uns poucos que o guardaram em uma
gaveta ou na carteira. Algum dia, esperava Bloodworth, um desses caras
iria ligar para ele com uma notícia quente e exclusiva, talvez até um
passaporte para a primeira página.
A princípio Al García não pretendia deixar Ricky Bloodworth sequer se
aproximar dele. O último encontro que tiveram fora breve e infeliz:
Bloodworth: Sargento, estes terroristas agem realmente como a escória
do mundo, não agem?
García: É. Mas cai fora da minha sala.
Na manhã seguinte o detetive apanhou o jornal e viu essa inoportuna
manchete: “Tira rotula terroristas de escória do mundo”.
Al García acreditava que nada de bom podia mesmo sair de uma
entrevista de jornal, e que apenas imbecis dão entrevistas a repórteres de
jornais. Ele explicou isso ao chefe quando o chefe lhe perguntou por que o
Miami Sun estava sendo tão maltratado. Como acontecia frequentemente, o
chefe não concordou com a filosofia de Al García e criticou o
comportamento inadequado do sargento. O chefe argumentou que era
essencial para o Comandante do Esquadrão Especial Fuego. Um manter
uma postura altiva, consoante com sua missão de defensor da lei e da ordem
até o desfile do Orange Bowl. Isso significava cooperar com a imprensa.
Portanto, Ricky Bloodworth finalmente conseguiu uma audiência com o
sargento. O repórter entrou usando um paletó com colete, típico de
advogado. Ele disse “olá” a García e apertaram amigavelmente as mãos,
como se ter sido forçado a esperar sete horas e meia fosse a coisa mais
normal do mundo.
Bloodworth apanhou um bloco de anotações, destampou uma caneta
vermelha e rabiscou o nome de García no topo da página. O detetive
observou o ritual com cara de nojo.
“Antes que me esqueça, gostaria que ficasse com um desses.”
Bloodworth passou-lhe um dos seus cartões.
“Vou guardá-lo como a um tesouro”, disse García. “O que significa o
L?”
“Lancelot”, disse Bloodworth. Esta era uma das desvantagens da nova
assinatura; as pessoas estavam sempre perguntando o que significava a
inicial do meio. Leon, o nome do qual ele se livrou, era imbecil demais.
Lancelot era mais alinhado.
Bloodworth fez sua primeira pergunta.
“Sargento, o que aconteceu precisamente na noite passada?”
“O suspeito escapou.”
“Jesús Bernal, o famoso terrorista?”
“É isso aí.”
“E o homem com a raquete de tênis?”
“Estamos aguardando que ele apareça”, disse García.
Bloodworth rabiscou no bloco de anotações.
“O senhor pretende indiciá-lo?”
“A troco de quê?”
“Agressão, claro. De acordo com testemunhas, ele simplesmente
dirigiu-se ao senhor Bernal e o atingiu sem mais nem menos com a raquete
de tênis, sem que fosse provocado.”
“Isto ainda está sob investigação”, disse García.
Bloodworth anotou um pouco mais. Ele estava começando a lembrar a
García aquele jovem cabeça de merda do Bozeman, do departamento de
Investigações Internas.
“Alguma ideia do que fazia o senhor Bernal em Coral Gables?”
“Nenhuma”, disse García.
Bloodworth cuidadosamente anotou “NENHUMA IDEIA” em seu bloco.
“Sargento, ainda estou intrigado sobre como a coisa foi por água
abaixo.”
García odiava quando idiotas como Bloodworth tentavam falar como
tiras.
“O que você quer dizer com ‘água abaixo’? Abaixo onde?”, disse
García.
“Quero dizer, como pôde acontecer? Aqui estava um dos mais
procurados terroristas da Flórida deitado inconsciente numa poça de sangue
numa rua movimentada — e mesmo assim a polícia consegue deixá-lo
escapar?”
García deu de ombros. Ele pensou: Vamos ver você citar um
movimento de ombros, seu babaca.
“É simplesmente... inconcebível”, assinalou Bloodworth.
Al García compreendeu que, de fato, ele acabara de ser chamado de
policial cérebro de ostra. Esse era o significado de uma bela palavra como
inconcebível.
“A coisa que todo mundo quer saber”, continuou Bloodworth, “é onde o
Noites de Dezembro vai atacar da próxima vez.”
“Eu mesmo gostaria muito de saber.”
“Não tem nenhuma ideia?”
“Nenhuma”, mentiu García.
Novamente Bloodworth escreveu “NENHUMA IDEIA”.
“Quer um cigarro?”, disse o investigador.
“Obrigado, não fumo.”
“Então o que é isso no seu bolso? Parece um maço de cigarros?
Bloodworth sorriu medroso e tirou do bolso um microgravador da Sony.
“É um gravador”, explicou ele desnecessariamente.
“Oh”, disse García. “Está ligado?”
“Bem, sim, está.”
“Posso vê-lo?”
Ricky Bloodworth passou o microgravador para García.
“Engenhoca pequeninha, esta”, disse o detetive. “Você guarda a
Primeira Emenda da Constituição nesta fita, guarda?”
“Muito engraçado.” A boca arroxeada de Bloodworth abriu-se num
amplo sorriso de rato, todo incisivos.
García colocou o gravador sobre a superfície da mesa, seus pequenos
pinos ainda girando. Alcançou o coldre e apanhou sua arma de serviço, um
Smith and Wesson.
“O que o senhor vai fazer?”, perguntou Bloodworth.
“Observe.”
Com a coronha do revólver, García quebrou o gravador em pequenos
pedacinhos. E devolveu os pedaços para Bloodworth, junto com um
emaranhado de fita marrom.
“Não me grave outra vez”, disse García, “não sem antes me pedir.”
Bloodworth olhou com descrença para os caros destroços japoneses.
“Qual é o seu problema?”, gritou ele. “Todo mundo usa gravadores. É
apenas uma ferramenta, pelo amor de Deus... para precisão... para me tornar
um repórter melhor.”
“Uma cirurgia cerebral não o faria um repórter melhor”, disse García.
“Agora cai fora antes que mande revistá-lo por todos os pelos.” Era o fim
da cooperação com a imprensa.
“Isto é... um insulto”, esperneou Bloodworth.
“Simplesmente inconcebível”, concordou García.
Por meia hora, Bloodworth sentou-se nos degraus do distrito policial e
morosamente folheou o bloco de anotações. García praticamente não havia
lhe passado nada, nem uma maldita frase publicável. Havia sido uma
semana seca de notícias quentes. Até a noite passada, Las Noches esteve na
toca: não havia mais raptos ou assassinatos para levar a história de volta
para a primeira página. Bloodworth estava ficando desconfiado. Perguntou-
se se Cab Mulcahy iria deixá-lo escrever uma coluna sobre Al García e o
desastrado Esquadrão Especial Fuego Um. Imaginava o que o chefe de
García diria se soubesse do incidente do microgravador.
Uma equipe da TV local marchou degraus acima, passando por
Bloodworth, para o quartel-general da polícia. Ele pensou: e se García
concedesse uma entrevista para eles também? E se ele de fato desse alguma
declaração importante para a televisão? Identificado El Fuego, por
exemplo? Os músculos da perna de Bloodworth ficaram bambos. Cristo!
Ele se esquecera completamente de perguntar a García sobre El Fuego.
Em pânico, Bloodworth subiu de volta os degraus em correria. Ele não
podia voltar para a redação de mãos vazias, havia muita coisa em jogo
nessa história — uma promoção, uma coluna própria, talvez até um
emprego no The New York Times. As possibilidades eram bastante
fantásticas para deixar um tira cubano imbecil estragar tudo.
Bloodworth saltou do elevador no departamento de homicídios, mas a
equipe de TV não estava lá, ao menos em nenhum lugar que ele pudesse ver.
Bisbilhotou escritório por escritório, sem ser barrado. Ao final de um
saguão comprido, ele finalmente avistou as luzes fortes da TV.
Era tarde demais. Através da janela de uma sala de entrevista à prova de
som, Bloodworth viu Al García falando expansivamente a uma bela
repórter de televisão morena. Ela estava segurando um microfone e ele
estava sorrindo como se estivesse numa festa no Four Seasons. A câmera
registrando tudo.
Bloodworth olhava desesperançadamente, esforçando-se para ler os
lábios do investigador. García olhou para a cara de Bloodworth na janela e
desenhou nos lábios três palavras: “Vai se foder”.
Furioso, Bloodworth marchou de volta ao escritório vazio de García,
onde ele bufou e praguejou enquanto olhava para seu relógio de pulso a
cada trinta segundos. Quanto tempo aquilo ia levar? O que ele estaria
dizendo a ela? Bloodworth sentiu algo estranho correndo pelas costas de
sua camisa. Estava levando uma surra, uma bela surra. De uma boneca de
TV.
Um homem com um distintivo de plástico dizendo “Serviço de
Correspondência” entrou e depositou pacotes e papéis sobre a mesa de
García. Tão logo ele saiu, Bloodworth começou a fuçar em toda aquela
papelada. Um memorando de duas páginas sobre treinamento com armas.
Um memorando de dez páginas sobre pensões. E uma fatura de uniformes
de beisebol amador.
Merda!
Depois ele separou a correspondência fechada, procurando pelo
remetente. Encontrou alguma coisa da seção de impressões digitais do FBI
em Washington e ergueu o envelope contra a luz, sem sucesso; os federais
espertinhos usavam envelope opaco.
Debaixo do monte de cartas estava uma caixa marrom do tamanho de
uma torradeira elétrica.
Um adesivo vermelho do correio estava grudado na caixa: entrega no
mesmo dia: catorze dólares. Estranhamente, quem quer que tivesse
mandado o pacote havia amarrado um luxuoso laço nas bordas, o tipo de
laço que se vê nos pacotes de Natal da Quinta Avenida.
A etiqueta com o endereço fora cuidadosamente datilografada:

Para o Verme e Traidor Sargento Alberto García


Departamento de Porco de Polícia de Dade
Miami, Cidade dos Porcos, Flórida.

Ricky Bloodworth excitadamente abriu seu bloco de anotações e copiou


tudo.
No canto superior da esquerda, no topo da caixa, o remetente escreveu:

De um guerrero y patriota.

De um guerreiro e patriota.
Ricky Bloodworth foi até a porta e espiou o corredor.
Surpreendentemente, as luzes da TV ainda estavam acesas. Pela graça de
Deus, pensou ele, nem mesmo Joe Wambaugh fala tanto.
Bloodworth retornou à escrivaninha e apanhou a caixa marrom. Era
muito mais leve do que havia pensado. Bloodworth a chacoalhou
cuidadosamente no começo, depois bruscamente. Nada. Estava muito bem
embrulhada.
Bloodworth tremia só de pensar no que estava prestes a fazer.
Isto é crime, ele disse a si mesmo. Isto é prova policial, não há dúvida
quanto a isso.
Mas que se foda o García — ele arrebentou com meu gravador.
Ricky Bloodworth pôs a caixa debaixo de um dos braços e saiu
correndo do departamento de homicídios. Desceu três lances de escada e
entrou na divisão de tráfego, que estava deserta. Encontrou um banheiro
vazio e se trancou num cubículo de privada que cheirava a amônia e a
colônia de segunda classe.
O repórter sentou-se na privada e depositou a caixa sobre o colo.
Colocou o bloco de anotações sobre o porta-papel higiênico. Prendeu a
caneta vermelha na orelha.
O coração de Bloodworth estava batendo feito um tambor. Ele até
mesmo sentiu uma ereção — ele amava tanto seu trabalho. Ricky saboreava
seu grande lance: um tesouro cheio de pistas do Noites de Dezembro. Uma
exclusiva, também... esta foi a parte que o deixou de pau duro.
Ele já havia decidido o que faria. Tão logo conferisse o conteúdo,
devolveria o pacote para Al García. Ele o embrulharia exatamente da
mesma forma e colocaria as etiquetas com vapor — quem jamais
desconfiaria?
Carinhosamente Ricky Bloodworth passou os dedos sobre o papel
marrom liso e sobre o barbante já envelhecido.
Então segurou uma ponta do magnífico laço e o puxou; continuou
puxando até que o nó se desfizesse.
Uma verdadeira fornalha o envolveu.
Cortou-lhe o ar dos pulmões.
E estilhaçou suas bochechas.
O mundo tornou-se um breu.
24

Sempre intrigara Cab Mulcahy o fato de o sr. Cardoza manter um


interesse tão ardente e pessoal pelo Miami Sun. Tradicionalmente, os
proprietários de veículos de comunicação gostam de se meter nos assuntos
editoriais (porque essa é a parte mais excitante dos jornais, a única parte,
aliás, com a qual vale a pena lidar), mas Cardoza não era um dono de jornal
comum. Ele entendia muito pouco do métier do jornalismo e não tinha a
menor ligação afetiva com o jornal, pois sua fortuna particularmente não
aumentou nem diminuiu com o Sun. Ao contrário, Cardoza era um
empresário que acreditava na diversificação, um homem que amava as
várias formas de se fazer dinheiro; um homem envolvido em dezenas de
atividades díspares. Ele possuía um time de futebol em St. Kitts, um carro
de corrida em Darlington, uma rede de cinemas, uns quatro açougues, um
petroleiro liberiano, três mil máquinas automáticas de venda de camisinha e
uma mina de fosfato. Qualquer uma dessas empresas, pensou Cab Mulcahy,
era infinitamente mais interessante como fábrica de dinheiro do que o
frequentemente combalido Miami Sun, de cujas ações cinquenta e um por
cento pertenciam a Cardoza. O que automaticamente fazia dele um eterno
intrometido na linha editorial.
Na noite de 28 de dezembro, uma sexta-feira, Cab Mulcahy fora
convocado, durante um badalado coquetel antes do Orange Bowl, para
explicar ao sr. Cardoza por que a coluna de Skip Wiley não fora publicada
desde a véspera de Natal.
Cardoza não desejava em especial ver Mulcahy pessoalmente, e
definitivamente também não tinha a intenção de visitar a redação. Ele
preferia cuidar dos negócios no próprio escritório, por telefone — a
distância aumenta as perspectivas, costumava dizer. Ele também se divertia
desligando o telefone na cara das pessoas.
Na hora combinada, Cardoza discou para o ramal de Mulcahy.
“Não gostei muito daquela coluna de véspera de Natal”, começou ele.
“Eu também não”, disse Mulcahy.
“Quem se importa com um pescador nativo que não sabe nadar? Me
parece que o senhor Wiley esteve abaixo de seu potencial.”
“Ele ainda não voltou a ser o mesmo”, disse Mulcahy.
“Ele é pago para ser o mesmo”, disse Cardoza. “Aliás, ele ganha uma
pequena fortuna para ser o que é. E estamos na semana do Natal, temporada
turística, quando nossa circulação costuma atingir o pico, e onde está a
estrela de nossas páginas? Todo dia apanho o jornal e nada. Nada de Skip
Wiley. O Sun morre sem ele. Fica parecendo um montinho de bosta de
cachorro na grama do meu jardim.”
“Francamente, senhor Cardoza, eu não diria isso”, disse Mulcahy.
“Ah! não? Talvez você queira que eu lhe declame a lista de
cancelamentos de assinaturas. Ou talvez queira perder alguns minutos lendo
a correspondência que temos recebido.”
“Não é necessário.”
Durante anos Cab Mulcahy tentara dizer a Cardoza que ele
superestimava a popularidade de Wiley, pois nenhum escritor ou jornalista
sozinho poderia ser responsável por todos os índices de leitura e de
circulação. Se isso era ou não verdade, o que importa é que era no que
acreditava Mulcahy. No entanto, como puro homem de negócios, Cardoza
sentia que apreciava o conceito de Bom Produto melhor do que uma junta
de editores. E, na visão predominante e imutável de Cardoza, o que fazia do
Miami Sun um Bom Produto eram Skip Wiley, Ann Landers e “Belinha e
Alarico”. Em alguns dias Wiley sozinho valia os vinte e cinco centavos que
custava o jornal.
“Onde, diabos, ele está?”, quis saber Cardoza.
“Não sei”, disse Mulcahy. “Esperava-o de volta no dia de Natal.”
“Envie alguém a Nassau”, latiu Cardoza. “Faça tudo o que for
necessário.”
Mulcahy massageou a nuca e fechou os olhos. Felizmente Cardoza não
tinha como vê-lo.
“Skip não está mais nas Bahamas”, disse ele. “Ao que consta ele foi
deportado de lá no dia 24.”
“Deportado!”, surpreendeu-se Cardoza. “Por quê?”
“É uma longa história, senhor.”
“Conte-me o essencial.”
“Tentativa de suborno, posse de material de uso restrito, e
comportamento tido como indesejável, seja lá o que isso signifique. Não sei
se é verdade, mas a embaixada diz que Wiley foi vítima de uma armação.
Aparentemente aquela coluna sobre o pescador não foi bem digerida pelas
autoridades locais.”
“Ah!, agora todo mundo é crítico, é?”, disse Cardoza.
“Tudo que sei é que o colocaram num avião”, disse Mulcahy. “Sob a
mira de armas.”
“Por que não pensamos nisso?”
Apesar de parcimonioso nos elogios, Cardoza intimamente tinha grande
admiração por Cab Mulcahy; ele não podia pensar em outra pessoa com
tanto talento como Cab para administrar gente tão profundamente
perturbada como a que havia naquela redação. Era um local desgovernado,
onde a excentricidade, o torpor, a petulância, mesmo a insubordinação eram
tolerados, portanto Cardoza mantinha distância, protegendo-se daquilo
tudo. Ele preferia ficar perto do dinheiro.
“Deus sabe, Cab, que nunca pensaria em lhe ensinar o que deve ser
feito, mas quero Skip Wiley no meu jornal novamente. Isso significa que é
melhor você o encontrar. Eu quero uma coluna de Ano Novo daquele louco
filho da puta, me entendeu? Não me venha com essa de que ele está doente
ou exausto, e pelo amor de Deus não me diga que ele ainda não voltou a ser
ele. Só me procure para dizer que ele voltou a escrever, entendeu?”
“Sim, senhor, mas ao que parece...”
E Cardoza desligou.
Durante toda a semana Cab Mulcahy ficou esperando por uma ligação
telefônica ou telegrama, esperando por aquela corneta profana que era sua
saudação peculiar. Esperando em vão. Ele não podia acreditar que Skip
Wiley havia aceitado docilmente o estrago na sua coluna de Natal; ele não
podia acreditar que Wiley havia engolido o que certamente causara-lhe uma
raiva homicida.
Será que Skip estava assim tão perdido?
Nesse meio tempo, o Noites de Dezembro havia sossegado e estava fora
das primeiras páginas dos jornais, para alívio dos homens de blazers laranja.
Vários suspeitos haviam sido checados, inclusive alguns homens parecidos
com Jesús Bernal ou com Daniel “Viceroy” Wilson; todos foram soltos ou
indiciados por outros crimes. Houve também uma tentativa de se realizar
uma reunião de cúpula com os patriarcas das tribos semínoles para solicitar
que localizassem Tommy Rabo-de-Tigre, mas os semínoles se recusaram a
se aproximar da Central da Polícia e os policiais tiras se recusaram a entrar
na reserva indígena, portanto a reunião jamais se concretizou.
A edição matinal do Sun trazia quatro reportagens sobre as festividades
do Orange Bowl (incluindo uma fotografia colorida de vinte shriners
recém-chegados, jovialmente polindo suas Harleys), mas em todo o jornal
havia apenas uma matéria sobre Las Noches de Diciembre. A matéria era
acompanhada por uma charge e o título dizia: “Bandido da raquetada é
suspeito de bomba”.
Só agora, relendo aquilo impresso, é que Cab Mulcahy percebera como
a cáustica apresentação do artigo de Ricky Bloodworth — o tom, o título, a
palhaçada da charge — tocava nos brios do Noites de Dezembro. Associado
ao silêncio de Wiley, isso o preocupou profundamente.
Ele deu uma espiada na redação ainda a tempo de ver uma figura esguia
correndo em direção a sua sala, desviando dos terminais e das mesas. Era
Brian Keyes.
“Ele ligou!”, disse Keyes quase sem fôlego. “Há vinte minutos. O filho
da puta deixou uma mensagem no meu bip.”
“O que ele disse?”
“Ele disse que ia ligar pra cá, pro seu escritório. Quer falar conosco.”
“Já não era sem tempo”, disse Mulcahy sentindo-se mais animado com
o panorama. Tirou seu paletó preto social e o dependurou nas costas da
cadeira.
Enquanto aguardavam pelo telefonema, Mulcahy ocupou seu tempo
preparando um bule de café. Enquanto passava o café, suas mãos tremiam
levemente. Keyes levou a mão a uma compoteira da mesa da secretária e
pegou um punhado de balas de hortelã, mastigando-as mecanicamente, uma
por uma.
“O que vamos dizer?”, perguntou Mulcahy. “Quando ele ligar, que
merda devemos dizer?”
“Temos que tentar convencê-lo de que está tudo acabado”, disse Keyes.
“Dizer-lhe que sabemos de todo o plano. Dizer-lhe que, se ele tentar
qualquer coisa durante o desfile, Las Noches estará liquidado. Dizer-lhe que
Bonnie e Clyde se parecerá com um dia no parque perto do que acontecerá
com ele.”
Mulcahy balançou a cabeça demonstrando apenas neutralidade. Pode
funcionar. Ou não. Com Skip, quem o poderia dizer?
“Acho que podemos ceder em questões menores”, sugeriu Mulcahy.
“Ele nunca desistirá se pensar que está diante de uma derrota completa.”
“Você tem razão”, disse Keyes. “Parabenizá-lo por todo o impacto que
conseguiu na mídia. As revistas, o Post, o USA Today. Dizer-lhe que o Noites
de Dezembro cumpriu seu objetivo. Conseguiu a atenção de todo mundo.”
“O que é uma verdade.”
“Claro que é.”
“Mas isso será suficiente para Skip?”
Keyes e Mulcahy olharam um para o outro compactuando da mesma
resposta.
“O que vamos fazer”, disse Keyes, “quando ele nos mandar à puta que
pariu?”
Mulcahy coçou o queixo.
“Ainda podemos falar com Jenna.”
“Esqueça”, disse Keyes convictamente. “Causa perdida.”
“Então estará tudo acabado. Com ou sem banho de sangue, vamos à
polícia.”
“É isso!” Keyes olhou para o telefone.
“Imagine as manchetes, Cab.”
“Que Deus nos ajude.”
O telefone tocou. Duas vezes. Mulcahy respirou fundo e atendeu na
terceira chamada.
“Entendo”, disse ele depois de alguns segundos.
Keyes excitadamente apontou para o alto-falante do telefone. Mulcahy
balançou a cabeça tristemente. Então desligou. Sua cara parecia pizza
embolorada.
“Não era ele”, disse Mulcahy. “Não era Wiley.”
“Quem era então?”
“Sargento García”, disse ele em tom fúnebre. “Ao que parece o Noites
de Dezembro explodiu ninguém menos que o grande Richard L.
Bloodworth.”

A bomba que explodiu no colo de Ricky Bloodworth era poderosa para


os padrões do bairro de Little Havana, mas não totalmente devastadora.
Para construí-la, Jesús Bernal cavou uma boia de isopor para pesca de
lagosta e recheou a esmo seu miolo com uma generosa quantidade de
Semtex-H, C-4 e pólvora velha. Então instalou um fusível no meio e
tampou as extremidades com um pedaço de cueca embebido em gasolina e
duas cápsulas explosivas do exército. Depois Bernal acrescentou
meticulosamente dentro da bola de isopor centenas de pregos baratos (com
as pontas voltadas para fora), além de pedaços de latas de refrigerantes e
sopa. Não era uma bomba projetada para fazer voar embaixadas ou
limusines pelos ares; era, no vocabulário terrorista, um dispositivo contra
agentes. Bernal embrulhou sua boia de pescar lagosta dentro de um tambor
vazio de tinta de um galão e perpassou o fusível através de um buraco na
tampa. O fusível tornou-se parte do magnífico laço que enfeitava a fatal
caixa marrom — um toque de inspiração de que o cubano se orgulhava.
Ainda assim, como sempre, Jesús Bernal teve um problema com o
controle de qualidade. Ele imaginara uma arma que lançaria estilhaços em
todas as direções e com igual força de forma a não deixar nenhum
centímetro de carne humana ileso. A lata de tinta, determinou Bernal, iria se
desintegrar em milhões de fragmentos e se tornaria parte do pacote letal.
Felizmente, para Ricky Bloodworth, não foi o que aconteceu.
Felizmente, Jesús Bernal não soldou adequadamente o fundo da lata, que se
separou no instante da explosão, e deu à bomba algo que ela não deveria
ter: impulso de foguete.
Segundo os cálculos do Esquadrão de Bombas de Dade County, em
menos de dois milésimos de segundo o presente de Jesús Bernal voou do
colo de Bloodworth numa trajetória angular de dezenove graus, atravessou
as paredes de madeira compensada de três cubículos de privada e detonou
no urinol masculino. O banheiro transformou-se literalmente numa poça de
merda e urina.
Uma hora depois, quando Cab Mulcahy e Brian Keyes chegaram,
homens de aventais de laboratório brancos equilibravam-se em escadas
raspando o que pareciam ser pedaços de chicletes cor-de-rosa atirados
contra o chamuscado teto do banheiro.
“São as pontas dos dedos do senhor Bloodworth”, explicou Al García.
“Até agora encontramos sete dos dez.”
“Como está ele?”, perguntou Mulcahy.
“Ele está com um sangramento no nariz que mais parece as cataratas de
Victoria”, disse o detetive, “mas ele vai sair dessa.”
Por sorte, o distrito de polícia ficava a apenas cinco minutos do Flagler
Memorial Hospital. Ricky Bloodworth chegara à sala de emergência
semiconsciente e com ferimentos nas mãos, lacerações e queimaduras de
segundo grau espalhadas por seu rosto e virilha.
“A cabeça do pau dele fritou — não me pergunte como”, disse García.
“Ele também está surdo, mas o médico disse que deve ser temporário.”
Mulcahy avançou pelo cômodo esfumaçado, seus sapatos pisando sobre
um tapete de espelhos quebrados, madeiras chamuscadas, pó de cerâmica.
Retorcidos pela explosão, canos e torneiras se abriram, deixando no chão
um fluido pastoso.
Brian Keyes ajoelhou-se próximo aos agentes do Esquadrão de Bombas
enquanto eles juntavam as ruínas do urinol.
“Olhe para esses montes de pregos”, disse Keyes.
“Duzentos e sete”, disse um dos especialistas, “e ainda não acabamos a
contagem.”
Keyes olhou para cima e viu Mulcahy com seu smoking e meias
francesas arregaçadas. Ele tinha um bloco de anotações nas mãos, e estava
se aproximando de Al García. Keyes teve de admitir: o velho estava se
sentindo em casa.
Mulcahy perguntou a García:
“Como você sabe que isto é obra do Noites de Dezembro?”
“Seu repórter Bloodworth vinha trabalhando na cobertura, certo? Isso
fazia dele um alvo prioritário.” García espiou preocupadamente o bloco de
anotações. “Além disso, os rapazes aqui me dizem que isto parece mais um
trabalho de Jesús Bernal.”
“O que o Ricky estava fazendo exatamente aqui?”, disse Keyes.
“Provavelmente dando uma cagada”, disse García.
“Vamos lá, Al, aqui é o Departamento de Tráfego. Por que ele não
estava lá em cima no departamento de homicídio?”
“Porque eu dei um chute na sua bunda escrota quando ele tentou me
gravar. Tinha um desses aparelhinhos do James Bond em sua roupa.”
Mulcahy pestanejou. “Sinto muito sobre isso, sargento. Isso é
estritamente contra as regras da redação.”
“A número 1.”
“Quando o viu pela última vez”, disse Keyes, “ele estava com algum
pacote?”
“Nenhum”, disse García. “Mas eis aqui minha teoria, Brian. Depois de
eu o ter expulsado daqui, ele vai para casa, encontra esse pacote esquisito
na caixa do correio, e vem correndo de volta para me mostrar. No caminho
do departamento, ele para no banheiro e bang!”
“Como ele teria passado pela segurança no hall de entrada com a
caixa?”, perguntou Mulcahy.
Uma puta pergunta, pensou Keyes.
Mas García não a levou muito a sério.
“Você pode passar por lá bailando com um míssil Pershing e aqueles
imbecis não perceberiam.”
A princípio Keyes não queria acreditar que o próprio Bloodworth havia
sido o alvo, ou que Skip Wiley havia ordenado sua execução. Era algo que
durante anos Wiley havia ameaçado por toda a redação, mas não somente
em relação a Bloodworth. Bloodworth estava sempre na lista negra de todo
mundo.
No entanto, Keyes não podia negar que a bomba fazia total sentido,
considerando o que Bloodworth havia escrito sobre Las Noches, sem falar
no que acontecera à coluna de Natal de Wiley. Keyes sentiu-se culpado
sobre o seu papel no esquema Bahamas; Cab Mulcahy sentiu-se ainda pior.
Através das ruínas os dois homens trocaram olhares angustiados e
compartilharam do mesmo pensamento arrepiante: Skip não estava
brincando sobre o banho de sangue. Imagine uma bomba como esta, no
meio da multidão...
Se esta era a maneira de Wiley avisar Keyes e Mulcahy para que
mantivessem silêncio, funcionou.
Com a mão enluvada, um dos caras do Esquadrão de Bombas mostrou
um fragmento amassado de lata no qual ainda se podia ver um rótulo de
sopa vermelho e branco.
“Minestrone”, anunciou ele. “Este brinquedinho foi afiado com uma
lima de diamante.”
“Que gracinha”, disse Mulcahy, guardando seu bloco de anotações.
“Vamos lá, Brian, vamos ver como está Ricky.”

Em poucos minutos, a sala de emergência do Flagler Memorial tinha


sido ocupada por um clamoroso exército de jornalistas, cada um deles
decidido a fazer de Richard L. Bloodworth um herói do Quarto Poder. Para
a imprensa, daria uma reportagem bem mais interessante se Ricky tivesse
sido morto na hora da explosão (e certamente daria menos trabalho), mas
um quase-mártir era melhor do que nada. O mero fato de que o Noites de
Dezembro havia explodido um repórter era garantia de algumas manchetes
internacionais, e o fato certamente atrairia os Big Boys de Nova York — as
redes, o Times e o Sixty Minutes, cada repórter faria qualquer coisa para sair
de Manhattan no inverno. Os jornalistas locais compreenderam que agora
era hora de conseguir a grande entrevista, antes que Diane Sawyer
resolvesse vir para a cidade e passar a perna neles todos.
Dois policiais escoltaram Brian Keyes e Cab Mulcahy através da
pequena multidão, conduzindo-os pelo elevador da lavanderia. Cinco
minutos depois estavam diante da porta do quarto particular de Bloodworth,
no décimo quarto andar.
O boletim oficial do hospital descrevera como satisfatórias as condições
de Ricky, mas em nenhum sentido da palavra ele parecia de fato
satisfatório. Parecia que ele tinha enfiado a cabeça numa fogueira —
orelhas queimadas parecendo pastéis chineses, pálpebras sem cílios
sensivelmente inchadas, o nariz e as bochechas manchados de vermelho
com líquidos antissépticos. Parecia mesmo uma verruga grelhada.
Cab Mulcahy tremeu com a visão que teve de seu repórter ferido. Como
um pai sentimental, ficou ao lado da cama, tocando suavemente os braços
de Bloodworth por cima dos lençóis.
Bloodworth fez um som musical com o nariz e Keyes se aproximou um
pouco mais da cama. Era difícil afirmar com segurança por causa dos
cortes, mas os olhos de Ricky pareciam abertos.
“Dê um gemido se puder me ouvir”, disse Keyes.
Bloodworth não emitiu qualquer som.
“Brian, ele está surdo, esqueceu?”
“É mesmo.” Keyes fez um sinal de “OK” com seu dedão e o indicador.
Bloodworth sorriu debilitadamente.
“Bom rapaz”, disse Mulcahy. “Você vai ficar bom. Tomaremos conta de
tudo.”
Bloodworth levantou sua mão direita para retribuir o gesto, um pujante
se não desumano esforço. Keyes notou que cada um dos dedos de Ricky
estava enfaixado até a segunda junta; de fato, os dedos pareciam
estranhamente atingidos. Keyes levantou o lençol e checou a mão esquerda
de Bloodworth — a mesma coisa. Al García não estava brincando: a bomba
de Jesús Bernal consumira todas as pontas dos dedos de Ricky. Não
sobraram nem os polegares. Evidentemente ele estava segurando a caixa no
momento da explosão.
“Oh, irmão”, disse Keyes, recolocando o lençol sobre as mãos de Ricky.
“Tudo vai dar certo”, disse Mulcahy para Bloodworth.
“Ele nunca mais vai poder datilografar”, sussurrou Keyes.
“Psssss!”
“Nem mesmo roer as unhas.”
“Vamos conseguir o melhor cirurgião plástico de Miami”, prometeu
Mulcahy. Ele ficou pensando em que poderia servir dentro da redação um
repórter sem as pontas dos dedos e surdo. Pelo seu sofrimento, Ricky
certamente merecia alguma coisa, pensou Mulcahy, algo generoso mas
seguro. Talvez uma eterna coluna na seção de comidas — nem mesmo
Bloodworth conseguiria estragar uma receita.
“Pena que não possa nos contar o que aconteceu”, disse Keyes.
Ricky Bloodworth não tinha a menor intenção de contar a quem quer
que fosse o que de fato acontecera; nem mesmo uma dose de elefante de
anestésicos diminuiria seu senso de sobrevivência. Mutilado ou não, ele
sabia que seria demitido, talvez até mesmo indiciado, se fosse revelado que
ele surrupiara a caixa marrom da mesa do sargento García. Era melhor
deixar que o mundo pensasse que a bomba fora endereçada a ele mesmo —
melhor para sua carreira, melhor para a história. E por que, afinal de contas,
aquele grosseiro García deveria ter qualquer tipo de publicidade?
Através de uma nebulosidade, Bloodworth viu Cab Mulcahy segurando
um bloco de anotações. Nele, o editor havia anotado: “Você vai ficar bom”.
Bloodworth sorriu e deu um trêmulo sinal de positivo com o que lhe
restou do polegar.
Keyes apanhou o bloco e escreveu: “Onde você apanhou o pacote?”
Bloodworth encolheu os ombros sem que o gesto pudesse indicar
qualquer sinal inteligível.
“Acho que ele não se lembra de muita coisa”, disse Mulcahy.
“É, acho que não.”
Em seguida Keyes escreveu: “Você está se sentindo bem o suficiente
para escrever uma mensagem aos policiais?”
Bloodworth deu uma piscadela para o curativo e então balançou
negativamente a cabeça.
“É melhor o deixarmos descansar”, Mulcahy disse.
“Claro.”
“Não sei o que dizer aos lobos lá embaixo”, disse Mulcahy.
“Ora, Cab, eles são concorrentes. Não diga nada.”
“Não posso fazer isso.”
“Por que não? Você é o repórter do Sun nesta história, não é? Portanto,
mantenha a boca fechada e escreva sua reportagem. Escreva uma grande
matéria.”
Animado, Mulcahy disse:
“Bem, por que não?”
Ele piscou para Bloodworth e virou-se para a porta. Bloodworth rosnou
com urgência.
“Ele quer dizer alguma coisa”, disse Keyes. Ele colocou o bloco no
peito de Ricky e fixou a caneta dentro de seu coto recoberto de gazes.
Bloodworth escreveu laboriosamente e em grandes letras quase
garrafais:
“PÁGINA 1?”
Keyes mostrou o bloco para Cab Mulcahy e disse:
“Pode acreditar nisso?”
Uma enfermeira entrou e deu uma enorme picada em Ricky
Bloodworth. Antes de apagar, ele viu Keyes e Mulcahy acenando boa-noite.
Fora do hospital, Keyes disse:
“Está ficando tarde, Cab, é melhor eu voltar à casa.” Lugubremente, ele
imaginou o que uma bomba de pregos poderia fazer à sala de snooker de
cortiça de Reed Shivers.
“Vai em frente”, disse Mulcahy. “Se nosso coleguinha ligar, será o
primeiro a saber.”
De volta à redação, os outros repórteres e editores ficaram de queixo
caído ao ver Cab Mulcahy sentar-se num terminal e começar a escrever.
Não demorou muito para sua presença galvanizar toda a equipe, e o ritmo
da redação naquela sexta-feira ganhou um ar de algo parecido com prazer.
O magia foi interrompida pelo editor de Cidades, que, depois de circular
relutantemente, finalmente parou próximo a Cab para dar-lhe o recado.
“De Wiley”, disse o editor impacientemente. “Ele ligou enquanto você
estava fora.”
A úlcera de Mulcahy deu uma fisgada quando ele viu a mensagem.
“Eu digo sim, você diz não”, leu Mulcahy. “Você diz pare, e eu digo
vou, vou, vou!, como na canção dos Beatles.”
25

Do hospital, Brian Keyes foi de carro direto para Coral Gables. Era
preciso checar como andavam as coisas com Kara Lynn. Ele tocou a
campainha três vezes antes que Reed Shivers viesse atender à porta.
“Muito bom que tenha aparecido”, disse Shivers maliciosamente. Ele
usava um robe cor de vinho com monograma no bolso e chinelos de pele de
bezerro. Um cachimbo de nogueira pendia artificialmente de um canto de
sua boca.
“É bom vê-lo também, senhor Hefner.”
“Não tente ser engraçadinho — onde esteve? Você está ganhando uma
nota preta para ser uma baby-sitter.”
“Houve um outro atentado a bomba”, disse Keyes, passando por
Shivers. “A vítima foi um repórter de jornal.”
“Os Nachos outra vez?” Todos os anglo-saxões em Miami tinham
passado a chamar a gangue de Wiley de Nachos, porque era muito mais
fácil de pronunciar do que Las Noches de Diciembre.
“Onde está Kara Lynn?”, perguntou Keyes.
“Na sala de jogos, tentando se exercitar. Tente não interrompê-la.”
Keyes examinou Reed Shivers como faria com um cupim.
“Depois de tudo isso, ainda quer que sua filha participe daquele
desfile?”
“Eles têm cães, senhor Keyes, cães treinados para farejar bombas.”
“Você é incrível.”
“Estamos falando sobre o futuro de uma carreira.”
“Não, senhor Shivers, estamos falando de assassinatos.”
“Não fale tão alto!”
Keyes ouviu a música vindo da sala de jogos. Parecia ser um dos hits
dos Bee Gees. “Stayin’ alive, stayin’ alive, oooh-oooh-oooh-oooh.” A
batida de baixo atravessava a parede.
“Aeróbica com jazz”, explicou Shivers. “Já que Kara Lynn não pode
sair para ir às aulas, a professora veio aqui. Achei isso uma puta
consideração.”
Keyes se dirigiu à sala de jogos. O estéreo estava estridentemente alto.
A mesa de bilhar fora encostada numa das paredes. No meio do tapete, Kara
Lynn estava esticada, segurando os calcanhares.
Keyes sorriu.
Então, olhou para cima e viu Jenna.
“Oh! não, meu Deus, não!”, disse ele, mas suas palavras se perderam no
meio das notas da canção. Jenna e Kara Lynn estavam tão absorvidas que
nenhuma delas percebeu que ele estava ali de boca escancarada.
A coreografia delas era encantadora: cada uma das mulheres
graciosamente espelhava a outra, esticando-se, curvando-se, sacudindo,
pulando, chutando o ar. Keyes estava passado com aquela visão — ambas
usavam malha de ginástica lisa e praticamente mais nada, ambas com seus
cabelos louros em rabo de cavalo. Claro que não havia como confundir uma
com a outra: Jenna era mais encorpada, mais cheinha nas ancas, e tinha
aqueles brincos de ouro. Kara Lynn era mais alta, com pernas longas,
dignas de um puro-sangue. Pernas de atleta.
Brian Keyes jamais poderia ter sonhado cena mais surpreendente ou
estupefaciente. Ele desligou o estéreo, deixando as bailarinas
desconcertadas no meio de um salto em rodopio.
“O que é isso?”, disse Jenna, deixando seus braços caírem rentes ao
corpo.
“Ei, o que está havendo?” Kara Lynn estava um tanto aborrecida.
“Eu vou explicar”, disse Keyes.
Jenna virou-se e o encarou.
“Brian!” Ela parecia chocada ao vê-lo.
“Alto lá”, disse Keyes. “Desde quando você atende a domicílio?”
“Ah, rapaz!”
Kara Lynn olhou intrigada para Jenna e depois olhou de volta para
Keyes. O silêncio espinhoso foi revelador.
“Então vocês se conhecem”, disse Kara Lynn.
“Já faz um longo tempo”, disse Keyes.
“Ah, não tanto tempo assim”, disse Jenna, falando com os olhos.
Kara Lynn parecia constrangida.
“Vou apanhar um pouco de limonada.”
Quando ela saiu, Jenna disse:
“Como me encontrou aqui?”
“Não se sinta lisonjeada. Eu não estava te procurando.” Keyes sentiu-se
um lixo. E zangado. “Diga-me o que está acontecendo”, disse ele.
Jenna enxugou a testa com uma toalha que combinava com seu batom
cor-de-rosa.
“Kara Lynn é minha aluna há dois anos. Ela é uma boa bailarina e boa
atleta, no caso de você ainda não saber.”
Keyes ignorou a provocação.
“Ela disse que não poderia ir à aula esta semana — algo sobre recolher-
se por causa do desfile — por isso me ofereci para passar aqui para um
pouco de exercício. Não sei por que você está tão zangado.”
“Onde está Skip?” A eterna pergunta; Keyes imaginou por que ele ainda
se dava o trabalho de perguntar.
“Não tenho muita certeza. Esta é uma sala e tanto, não?”
“Jenna!”
“Hora de uns abdominais.”
“Pare.”
Mas num instante ela estava deitada, os braços cruzados atrás do
pescoço.
“Segure minhas pernas, Brian, não seja desagradável.”
Ele ficou de quatro e abraçou seus tornozelos com ambas as mãos. E
pensou: Ela é mesmo de outro planeta.
“Um... dois... três...” Ela era flexível como um chicote.
“Onde está Wiley?”, perguntou Keyes.
“Sete... oito... eu tenho uma pergunta para você... o que você está
fazendo aqui?” A cada flexão, Jenna emitia um grito, meio gemido, meio
rosnado. Keyes conhecia profundamente aqueles sons.
“Fui contratado para manter os olhos em Kara Lynn”, disse ele.
“Você? Ora essa, Bri...”
“O seu namorado descompensado planeja raptá-la durante o desfile do
Orange Bowl, vai dizer que não sabia?”
“Catorze... quinze... Cristo, eu disse para segurar minhas pernas, não
para fraturá-las... você está enganado sobre Skip...”
“Foi ele quem mandou você aqui?”, perguntou Keyes.
“Não seja tolo... ele nem mesmo sabe que eu estou no país... era para eu
estar procurando casa em Porto Príncipe...”
“Santo Cristo.” Keyes não podia imaginar Skip Wiley perambulando
pelas ruas de Porto Príncipe. O governo do Haiti não era propriamente
conhecido pelo seu senso de humor.
“Vinte e quatro... vinte e cinco... Diga-me a verdade, Brian, você está
transando com essa garota?”
“Não.” Por que ele respondeu? — não era da conta dela. “Jenna, só não
quero que ela se machuque.”
“Skip não faria isso...”
“Não? Ele estourou o Ricky Bloodworth esta noite.”
“Uau... completamente?”
“Ele ainda respira, se é isso que quer saber.”
Jenna estava se cansando, mas não muito.
“Trinta e nove... quarenta... Skip prometeu que não iria ferir a garota...
devagar, com calma, levante um pouco a perna esquerda... ei, você ainda
sente saudades de mim?” Exultante, ela flagrou seus olhos. Cheia de
confiança, como se o tivesse controlado na ponta de uma coleira.
“Você quer que o Skip morra?”, disse Keyes, sem qualquer vibração.
Por que, no mínimo, é isso que vai acontecer com ele.
“Quarenta e seis, quarenta e sete... claro que não... e você?”
“Não.” Mas não me pergunte por que não quero, pensou Keyes, porque
o canalha bem que merecia isso.
“Brian... não deixe que nada aconteça a ele.”
Foi a conta. Ao chegar a quarenta e nove, ele a interceptou, segurou sua
cabeça com a mão espalmada e a manteve assim, sentada. Provavelmente
com mais firmeza do que seria necessário.
“Só mais um”, protestou Jenna.
“Sabe o que ele disse, Jenna? Ele disse que haverá um banho de sangue
se eu contar aos policiais sobre ele. Disse que uma boa porção de gente iria
morrer.”
“Bobagem.” Ela lutou contra o agarrão de Keyes. “Ele só está
blefando.”
“Olhe aqui para as minhas roupas, o que você acha que é isso?”, disse
Keyes.
“Respingo de macarrão ao sugo.”
“Isto é sangue, sua cabeça de vento! Sangue humano. Eu me ajoelhei
sobre uma poça de sangue humano ainda quente esta noite no quartel-
general da polícia. Você deveria ter estado lá, o lugar parecia Beirute.”
“Me solte”, disse Jenna.
“Então, o que você diz desses malditos assassinatos?”, perguntou ele.
“São hilários, não?”
“Brian, pare com isso, já!”
“Não, porra nenhuma, olhe para mim!” Mas da não olhava.
“Olhe para estas manchas de sangue e me diga que o Wiley é um herói”,
disse ele possesso. “Diga-me o quanto está orgulhosa, vamos lá, Jenna. O
cara é um gênio, não é mesmo? Precisa ser um verdadeiro visionário para
explodir um otário em um banheiro.”
Com um safanão, ela conseguiu ficar de pé. Sua face estava corada e ela
respirava ofegantemente.
Keyes disse:
“Jenna, você pode acabar com tudo isso — não é tarde demais. Faça um
favor a todos e diga onde ele está.”
Ela chacoalhou a cabeça uma vez e se foi, atravessando a porta.

“Vou comprar uma pizza”, anunciou Kara Lynn.


“Sozinha você não vai”, disse Keyes.
“Desse jeito vai engordar”, Reed Shivers acrescentou. “A única rainha
do Orange Bowl com uma barriga de mozarela.”
“Chega disso, papai, estou com fome.”
“Então vamos pedir a pizza”, disse Keyes. Ele pegou o telefone na sala
de jogos e ficou a observá-lo. O telefone era feito com uma garrafa legítima
da Seagram’s; Reed Shivers a comprara direto de um catálogo de golfe.
“Que pizza você gosta?”, perguntou Keyes.
Kara Lynn deu de ombros, indiferente. “Champignon, anchovas”, disse.
“Nada de pizza”, disse seu pai. “Chuchuzinho, nós teremos fotos de
publicidade amanhã, lembra?”
“Que se danem as fotos”, disse Kara Lynn.
“Bravo. É isso mesmo. Este é o espírito da coisa”, saudou Keyes.
“Mas, mingauzinho, é com maiôs!”, implorou Shivers.
“E eu estarei ótima, sensacional, papai. Tetinhas pequenas e tudo o
mais.”
Keyes desistiu de encomendar a pizza. Kara Lynn, obviamente,
precisava sair um pouco de casa.
“Já esteve no Tony’s?”, disse ele. “Bela pizza.”
“Vam’bora.”
“Pelo menos vá com calma com o queijo”, disse Reed Shivers, fazendo
beicinho no seu cachimbo.
Eles pegaram o MG. Era uma noite agradável, cheia de estrelas. O ar
fresco entrou por um buraco de ferrugem no assoalho, e rapidamente o
carro estava um gelo.
“O aquecedor está estragado”, disse Keyes. “Tenho um suéter extra no
banco de trás.”
“Estou bem.” Kara Lynn fez das mãos uma semiconcha e assoprou
suavemente dentro delas. Keyes podia ver o arrepio em seus braços
descobertos.
“Onde fica o Tony’s?”, quis saber Kara Lynn.
“Não faço ideia”, disse Keyes. “Eu falei Tony’s por falar.”
“Oh!”
“Para nos livrarmos do professor Higgins.”
“Papai não é mau sujeito”, disse Kara Lynn, “mas pode ser um pé no
saco.”
Keyes tomou o rumo norte, Estrada LeJeune abaixo. Só para se
certificar, ele contornou o quarteirão na Miracle Mile para ver se não
estavam sendo seguidos outra vez.
“Um Pizza Hut está bem?”
“Claro”, disse Kara Lynn.
Eles pegaram uma mesa de canto, longe das vitrolas automáticas e dos
vídeo games. Keyes pediu uma pizza com champignon, pepperoni e
anchovas. Kara Lynn parecia que estava congelada em suas roupas de
dança, por isso Keyes foi até o carro e trouxe seu suéter de reserva para ela,
um pulôver cinza.
Com um gesto de agradecimento, ela o vestiu sobre a roupa de dança.
Keyes imaginou por que ela estava tão quieta; não era um silêncio hostil, ou
mesmo zangado ou mal-humorado. Aquilo lhe lembrou seus primeiros dias
na casa, quando ela o estava testando. Kara Lynn era uma profissional
quando se tratava de ser reservada, uma página em branco quando queria.
“O que está pensando?”, ele finalmente perguntou.
“Estava pensando sobre você e Jenna.”
“História antiga.”
“Vá em frente.”
“É entediante.”
“Aposto que sim.”
“E dolorosa.”
“Oh!” Ela sorveu um trago de coca-cola diet, uma concessão ao seu pai.
“Não quis ser indiscreta.”
“Esqueça”, disse Keyes. “Mas me faça um favor: nada de aulas de
aeróbica até depois do desfile do Orange Bowl.”
“Por quê?”
“Digamos que é uma medida de segurança.”
“Pelo amor de Deus, você não está insinuando que a Jenna é perigosa!”
Você não sabe o quanto, pensou Keyes.
“Alguma vez a Jenna disse algo sobre o Orange Bowl?”
“Claro. Ela me desejou boa sorte antes do concurso — até mandou um
buquê de flores do campo ao meu camarim.”
“Ela teria dado uma grande florista.”
“Na verdade foi ela quem me convenceu a participar do concurso. Para
ser honesta, eu estava com o saco cheio dessas coisas. Além disso, não
achei que tivesse chance — você devia ter visto as outras garotas. Mas
Jenna insistiu para que eu tentasse. Mostrar o valor das mulheres de peitos
pequenos, disse ela.”
“Uma grande florista e uma grande psicóloga”, disse Keyes. Então
Jenna estava metida na coisa desde o começo. Que diabos ele esperava? Ele
resolveu parar por ali. Jenna não voltaria, e não havia razão para assustar
Kara Lynn.
“Ela diz que eu me pareço com ela, há uns dez anos.”
“Um pouco, talvez”, disse Keyes. Não era a beleza que elas tinham em
comum, era uma aura — uma aura de controle absoluto. A habilidade de
conquistar com um tímido olhar ou o mais suave dos sorrisos.
“Espero estar bem como ela quando tiver vinte e nove anos”, assinalou
Kara Lynn.
“Estará.”
Uma garçonete trouxe a pizza, quente e fumegando. Eles a atacaram
famintos. Keyes deixou cair molho de tomate em ambas as mangas. Kara
Lynn revirou os olhos, fingindo estar mortificada.
“Você teve muitas namoradas?”, perguntou ela.
“Milhares. Uma vez quase estive noivo de metade das Rockettes.”
“Você não gosta muito desse assunto, não é?”
“Escuta aqui, eu nunca te perguntei como é que é ser a rainha do
Caranguejo, com uma dúzia de jurados asquerosos olhando para a sua
boceta. Nunca perguntei porque me parecia algo pessoal, com que eu nada
tinha a ver, e eu sabia que você não ia gostar de falar a respeito.”
“Você tem razão. Era horrível, por isso não iria gostar mesmo de falar a
respeito.”
“Parece horrível”, disse Keyes. “Não sei como você faz isso.”
Kara Lynn pescou uma anchova da pizza e a derrubou cuidadosamente
num guardanapo; um pequeno cemitério de anchovas.
“É fácil ser a rainha do Caranguejo”, disse ela. “Você só tem que usar
sapatos pretos de salto alto e um biquíni, e aprender a tocar ‘Eleanor Rigby’
na trompa...”
“Tem meu voto.”
“Eu odeio tudo isso.”
“Eu sei.”
“Metade das garotas fazem plástica nos seios ou na bunda”, disse Kara
Lynn. “E ninguém faz nada a respeito.”
“O que acontece a elas quando não há mais concursos de beleza?”
“Dois ou três anos como modelos, alguns comerciais de televisão local
se tiverem sorte. Um cara uma vez me ofereceu três mil dólares para eu
deitar sobre o capô de um caminhão Dodge e dizer: ‘Eu comprei meu
caminhão Ram Charger no Cooley Motors’. Televisão à altura de um
Shakespeare. Papai quase teve um infarto quando soube que não aceitei.”
“O que você realmente quer fazer, Kara Lynn?”
“Acabar com a fome no mundo, claro.”
Keyes riu.
“E depois disso?”
“Viajar pela Europa.”
Keyes cortou outra fatia de pizza, mas saiu grudenta. Uma teia de queijo
pendurava-se elasticamente de sua boca ao prato.
“E você, Brian? Sua vida já está toda traçada?”
Keyes fez uma careta, pensativamente.
“Um dia ainda quero comprar um barco a vela”, disse ele. “Mudar para
Islamorada, viver de algas e lagostas. Deixar o sol me tostar até que minhas
costas fiquem duras como carapaça de tartaruga. Acho que eu daria uma
excelente tartaruga marinha... ei, não me olhe desse jeito.”
“Parece que você fala a sério.”
“Uma tartaruga não tem inimigos naturais”, disse Keyes.
Kara Lynn sentia-se aquecida. Ela gostou do cheiro aconchegante do
suéter.
“Posso ir visitá-lo lá?”
“Claro, claro. Vou preparar um belo prato de sargaço. Vamos nos
fartar.”
Kara Lynn olhava para ele tão de perto que Keyes começou a se sentir
um pouco desconfortável. Ela estava com a mira ligada. As velhas antenas
sintonizadas em Jenna começaram a vibrar.
“O que você acha de mim, Brian?”
“Gosto de você”, disse ele. “Gosto muito de você.”
“Ela magoou você de verdade, não?”
Fora de hora. Exatamente quando ele começava a relaxar.
“Quem?”, disse ele sem convicção.
“Jenna. Basta olhar vocês dois juntos...”
“Esqueça sobre nós dois juntos.”
“Desculpe. Não faço mais novela, eu prometo.” Ela cruzou os braços e
ajeitou-se na cadeira, ficando com o corpo ereto. Seus olhos verde-
acinzentados o capturaram, congelaram-no no lugar. Dezenove anos —
ninguém teria um olhar melhor do que aquele, pensou Keyes.
“Não sei ao certo o que me fez gostar tanto de você”, disse Kara Lynn.
“Mas acho que é a sua postura.”
“Mas eu tenho uma postura pouco nobre.”
“É verdade, você simula um comportamento, mas é tudo bobagem, não
é, Marlowe? Boa parte é uma grande pose.”
“Até que cresça minha carapaça de tartaruga.”
“O que eu gosto”, disse Kara Lynn, “é a sua postura em relação a mim.
Você é o primeiro homem que não me tratou como uma boneca de
porcelana. Você não fica me mimando, não baba e não tenta me
impressionar.”
Keyes sorriu languidamente.
“De alguma forma eu sabia que não havia nenhum perigo disso
acontecer.”
“E gosto da sua maneira de dizer a verdade”, disse ela. “Por exemplo,
acho que você me disse a verdade ainda agora, quando disse que gostava de
mim. Acho que realmente gosta.”
“Claro que sim.”
“Acho que não se importaria se eu o beijasse.”
Keyes abriu a boca, mas nenhuma palavra foi pronunciada. Ele sentiu
um pequeno tremor. Como se fosse a primeira noite, pelo amor de Deus!
Kara Lynn debruçou-se e apanhou seu braço. Ela o puxou gentilmente.
“Venha até a metade”, disse ela.
Eles se beijaram por sobre a mesa. Foi um longo beijo, e Keyes quase se
perdeu nele. Ele ainda conseguiu apoiar o cotovelo esquerdo sobre a pizza.
“Você está nervoso”, disse ela.
“Você é uma cliente. Isso me deixa nervoso.”
“Não. Garotas bonitas o deixam nervoso.”
“Algumas delas sim.”
No MG, a caminho da casa de Kara Lynn, ela se sentou bem mais perto.
“Você está preocupado comigo”, disse Kara Lynn.
“Não queria você naquele desfile estúpido.”
Ela enlaçou o braço direito de Keyes com ambas as mãos.
“Tenho que fazer isto. Sou eu ou outra garota qualquer.”
“Então que seja outra garota.”
“Não, Brian.”
As coisas estavam mudando — não mais que de repente o que estava
em jogo passou a ser muito precioso. Os limites angustiantes de seu
pesadelo tornaram-se perceptíveis; e presos dentro deles estavam Kara Lynn
Shivers e Skip Wiley.
Keyes se perguntou se o maníaco havia ligado para Cab Mulcahy como
prometera.
“Você está amedrontado, não está?”, perguntou Kara Lynn.
“Estou.”
“Vamos nos sair bem”, disse ela. Como Jenna costumava dizer.
A casa estava envolta em escuridão quando Keyes embicou na entrada
da garagem. As palmas de copa exuberante dormiam imóveis na noite
fresca. Melros matraqueavam no alto da velha figueira. De um canteiro de
flores um gato malhado desinteressado observou-os levantarem-se para
entrar.
Keyes esperou no segundo degrau enquanto Kara Lynn destrancava a
porta da frente. Ele foi na frente, acendendo uma pequena lâmpada no hall,
checando tudo ao redor.
“Parece tudo tranquilo”, disse ele. E, como sempre fazia, deu um passo
em direção ao quarto de hóspedes onde dormia.
“Não”, Kara Lynn sussurrou, tomando suas mãos. “Vamos subir.”
26

Skip Wiley entrou como um furacão no armazém pouco depois do


meio-dia de 29 de dezembro, o dia seguinte ao da bomba no quartel-general
da polícia.
“Onde está Jesús?”, quis saber Wiley.
“Não sei”, disse Viceroy Wilson.
“Ele já tinha ido embora quando a gente chegou aqui”, disse Tommy
Rabo-de-Tigre.
Os dois estavam sem camisa, com cintos de carpinteiro pendendo da
cintura. O índio estava com uma bandana vermelha ao redor do pescoço, e
seu peito cor de caramelo estava brilhante de suor. Viceroy Wilson estava
com calças de agasalho esportivo e munhequeiras, para ficar com as mãos
secas.
Eles tinham trabalhado incessantemente desde o nascer do dia, e o
esqueleto da geringonça tinha crescido até ocupar todo o armazém, do chão
até o forro.
“Está ficando uma beleza”, disse Wiley sem entusiasmo. “Vocês estão
indo bem.”
Ele andava de um lado para outro com agitação, mordendo o lábio
inferior, as mãos enfiadas nos bolsos de seus jeans. A cada passo seus
sapatos de montanhismo guinchavam no concreto sujo — um barulho que
só servia para aumentar a tensão. El Fuego estava à beira de uma erupção;
Viceroy Wilson e Tommy Rabo-de-Tigre podiam pressentir isso.
Em câmera lenta, Skip Wiley apanhou uma marreta. Estudou o objeto
metodicamente, pesou-o nas duas mãos, e então começou a golpear a porta
de alumínio como se ela fosse um gongo. A cada golpe vinha uma nova
enxurrada de xingamentos.
“Aquele puto daquele cubano cabeça de merda, descerebrado, cretino,
maluco!”, rugia ele. “Patife, filho da puta, suicida, retardado, imbecil!”
Viceroy Wilson se encolhia cada vez que a marreta ribombava, o
barulho em seu crânio amplificado pelos quarenta miligramas recém-
ingeridos de metanfetamina.
“Por que ele não me falou?”, berrou Wiley. “Quem foi que lhe deu
ordem de ir explodir aquela lagartixa do Bloodworth?”
“Pode ser que ele tenha pensado que isso vingaria as raquetadas”, disse
Tommy Rabo-de-Tigre.
“Asneira! Mesmo depois da minha palestra a respeito de solidariedade,
ele faz uma idiotice dessas! Não admira que aqueles outros cubanos
malucos tenham chutado ele para fora. Eu devia ter previsto isso — eu
devia ter escutado o que vocês diziam, caras.”
Viceroy Wilson resistiu à tentação de fazê-lo sentir-se ainda pior. Na
verdade, ele estava um tanto confuso com a ira de Skip Wiley. Ele
imaginava que, depois de tudo o que havia acontecido, Wiley deveria ficar
eufórico ao ver Ricky Bloodworth virar fumaça. E, se o que Wiley estava
procurando era uma nova onda de contrapublicidade, a bomba tinha caído
como uma luva: Las Noches estava em todos os jornais matutinos e na
televisão. Mas Viceroy Wilson escutou toda a arenga sem questioná-la,
porque simplesmente não conseguia se imaginar defendendo Jesús Bernal.
Ele tinha avisado o filho da puta que desse um tempo até depois do Ano
Novo.
“Insubordinação!”, berrou Wiley. “Um grupo como o nosso não pode
sobreviver com insubordinação. Vocês sabem o que isso significa? Um
teste, é isso. Aquele trouxa de sangue quente está tentando me testar o
máximo que puder. Ele acha que eu não sou duro o suficiente. O que ele
quer é mucho macho. Ele quer machetes e pistolas automáticas e ações
noturnas. Ele quer que a gente se vista em uniformes de guerra e rasteje em
campos minados e arranque a cabeça de galinhas vivas com os dentes. Essa
é a ideia que ele tem de revolução. Nada de sutileza, nada de elegância,
nada de estilo.”
Wiley estava ficando rouco. Ele deixou a marreta cair. Viceroy Wilson
passou para ele uma lata de Gatorade gelado.
“A gente tem que encontrá-lo”, disse o índio.
“E rápido”, acrescentou Wilson.
Wiley enxugou o suor de cima da boca.
“Alguma pista?”
Viceroy Wilson balançou a cabeça. Num canto do armazém, sobre os
farrapos nojentos onde se deitara, jazia a máquina de escrever Smith-
Corona. Estava vazia.
“Ele não vai voltar”, disse Tommy Rabo-de-Tigre.
“Um maluco solto”, grunhiu Wiley, acalmando-se um pouco.
Viceroy Wilson decidiu que não havia mais razão para esconder o
segredo de Jesús Bernal. “Teve uma noite em que ele estava falando no
telefone com os antigos companheiros. Tentando voltar para o time
principal.”
“O Primeiro Fim de Semana de Julho?”
“Eles disseram para ele que de jeito nenhum”, disse Wilson.
“Aí ele decidiu fazer um one-man show”, disse Wiley.
“Parece que sim.”
“Bem, essa é a gratidão dele em relação a vocês.”
“Vamos tentar encontrar o cara”, repetiu desolado Tommy Rabo-de-
Tigre.
“Não tem chance”, disse Skip Wiley. “De um jeito ou de outro, ele vai
rastejar de volta quando se sentir sozinho — ou quando não conseguir mais
aguentar o bafo do García no calcanhar dele.”
“Que maravilha”, resmungou Viceroy Wilson. “Isso é exatamente o que
nós precisamos.”
Wiley disse:
“Além disso, eu detesto a ideia de abandonar completamente o cara.” O
que ele realmente detestava era o pensamento de que alguém podia resistir
ao seu carisma ou enfrentar tão acintosamente sua liderança. Recrutar um
terrorista ultraviolento como Jesús Bernal tinha sido um triunfo pessoal;
perdê-lo era um golpe no ego de Skip Wiley.
“Escutem, eu tenho que saber”, disse ele. “Vocês ainda estão dispostos a
seguir o programa?”
“Mais rigorosamente do que nunca”, disse Viceroy Wilson. O índio
balançou a cabeça concordando.
“E o helicóptero?”
“Na Watson Island. Às nove, hoje à noite”, disse Wilson. “O piloto é
maneiro. Free lance. Faz alguns serviços para a guarda costeira, o DEA e os
navios vindos de Cuba que furam os bloqueios da imigração americana.
Contanto que seja bem pago, claro.”
“E as mercadorias?”, perguntou Wiley.
“Seguras e em ótimo estado”, relatou Tommy Rabo-de-Tigre.
“Ninguém se machucou?”
O índio sorriu — esses brancos!
“Não, claro que não”, disse ele. “Todo mundo se divertiu muito.”
Wiley suspirou.
“Bem, então vamos em frente — com ou sem o nosso amiguinho
cubano.” Ele vasculhou o bolso e veio com alguma coisa na palma da mão.
Para Viceroy Wilson, o objeto parecia uma castanhola cor-de-rosa.
“Oras, e por que não?”, disse Wiley. Ele colocou o objeto
cuidadosamente sobre o teclado da máquina de escrever abandonada de
Jesús Bernal. “Só para o caso de ele voltar.”
Era um par de dentaduras novinho em folha.

Cab Mulcahy tinha esperado a noite inteira por um novo telefonema de


Skip Wiley. Ele ligou um pequeno gravador ao telefone, ao lado de sua
cama, e dormiu sem realmente descansar, se é que chegou a dormir. Não
havia a menor dúvida de que Wiley o chamaria se quisesse — Skip sabia o
número, e nunca foi de pensar duas vezes antes de fazer uma ligação. Na
época em que escrevia em tempo integral, Wiley telefonava para Mulcahy
pelo menos uma vez por semana, para exigir o fuzilamento ou a execração
pública de algum editor intermediário que tivesse ousado alterar sua coluna.
Essas conversas geralmente duravam cerca de trinta minutos, até que a voz
de Wiley sumia e ele desligava. De vez em quando Mulcahy descobria que
Skip tinha razão — alguém, de fato, tinha deturpado uma frase ou até
mesmo incluído um erro factual na coluna; nesses casos, o editor
responsável emitia uma reprimenda firme porém discreta. Wiley, no
entanto, quase nunca ficava satisfeito com isso. Ele estava constantemente
ameaçando assassinar ou mutilar sexualmente alguém na redação, e, numa
ocasião, de fato atirou um arpão num editor desavisado na editoria de
Cidades. Durante semanas falou-se em ação judicial, mas
subsequentemente o pobre e temeroso jornalista simplesmente pediu
demissão e arranjou um emprego numa empresa de relações públicas em
Tampa. Wiley não sentira nenhum remorso; no que lhe dizia respeito, uma
pessoa que não conseguisse suportar um pouco de crítica simplesmente não
tinha lugar no jornalismo. Cab Mulcahy ficou assombrado: atirar um arpão
num editor era um meio infalível de mobilizar os sindicatos. Para punir
Wiley, Mulcahy o forçou a ir até o Deauville Hotel numa certa manhã e
entrevistar Wayne Newton. Como qualquer um poderia esperar, a coluna
resultante era impublicável. O episódio do arpão foi depois perdoado.
De hábito, Skip Wiley só ligava para a casa de Mulcahy nos momentos
de fúria e somente nas implacáveis primeiras horas da manhã, quando
Wiley podia ter a certeza de que teria a atenção do chefe inteiramente para
si.
Foi essa a razão de Cab Mulcahy ter dormido muito pouco na noite de
sexta-feira, e também da sua irritação na manhã de sábado, quando Skip
ainda não tinha ligado. Keyes ligou duas vezes para ver se Wiley tinha feito
algum contato, mas não havia nada a relatar; os dois temiam que Skip
pudesse ter mudado de ideia. No meio da tarde, Mulcahy — ainda com a
barba por fazer e perambulando pela casa num roupão de banho amarrotado
— estava lutando contra uma séria depressão. Ele temia que tivesse perdido
sua única chance de argumentar com Wiley ou de convencê-lo a voltar e
tratar-se.
Ele estava fazendo um sanduíche de atum com torradas quando o
telefone finalmente tocou, às cinco e meia. Ele correu para o quarto, fechou
a porta e acionou o gravador.
“Alô?”
“Sua víbora!”
“Skip?”
“Que tipo de serpente deixaria o Bloodworth sodomizar uma coluna de
Natal!”
“Onde você está, meu caro?”
“No portão do inferno, esperando. Eu disse ao pessoal daqui para
reservar um lugar especial para você.”
Mulcahy estava impressionado com a virulência de Wiley; nada mau
para uma raiva de cinco dias.
“Sinto muito, Skip. Eu nunca deveria ter feito aquilo. Foi um erro.”
“Foi imoral, isso sim.”
“Sim, você tem razão. Peço desculpas. Mas acho que moralidade não é
o seu ponto forte neste momento.”
“Puá”, disse Wiley. “Explodir o Ricky Bloodworth não foi ideia minha,
Cab. Foi uma daquelas coisas que acontecem no calor da revolução. As
medidas corretivas já estão sendo tomadas.”
“Ele vai se recuperar. Você é sortudo pra cacete, Skip.”
“Eu sei, eu fiz uma visitinha no hospital.”
“Você fez? Mas aquele lugar não está sob a guarda da polícia?”
Wiley disse:
“Não fique todo perturbado. O garoto ficou superfeliz quando me viu.
Eu levei um gambá de pelúcia para ele.”
Mulcahy decidiu fazer seu lance. Uma conversa com Wiley era como
um trem saindo da estação: ou você entra logo ou perde a viagem.
“Se você está na cidade, por que não dá uma passadinha aqui em casa?”
“Obrigado, mas eu estou muito ocupado, Cab.”
“Eu poderia encontrar você em algum outro lugar. No clube, pode ser.”
“Vamos deixar de lado a conversa fiada, OK?”
“Claro, Skip.”
“O Keyes não é tão esperto quanto pensa.”
“Oh.”
“Nem você.”
“O que você quer dizer com isso?”
“Quando chegar a hora eu explico, amigão.”
“Por que você está fazendo isso?” A coisa errada a ser dita — Mulcahy
soube disso imediatamente.
“Por que eu estou fazendo isso? Cab, você não lê o seu próprio jornal?
Você está cego? O que você vê quando dá uma espiada na baía pela janela?
Pode ser que você seja incapaz de entender, porque não estava aqui há trinta
anos, quando isto era um paraíso. Antes deles colocarem parquímetros na
praia. Antes da praia desaparecer. Meu Deus, Cab, não me diga que você é
igual ao resto desses babacas migrantes. Eles acham que isso aqui é o
verdadeiro paraíso enquanto o tempo está ensolarado, porque não têm que
colocar correntes de neve no pneu do carro, isso é maravilhoso. Eles acham
que isto é o paraíso porque, comparado com Buffalo, é. Mas, Cab, se a
gente pensar num paraíso de verdade...”
“Skip, eu sei como você se sente, acredite. Mas isso nunca vai dar
certo.”
“Por que não?”
“Você não pode esvaziar o Sul da Flórida, pelo amor de Deus. Essas
pessoas estão aqui para ficar.”
“Foi isso que o homem das cavernas disse a respeito do tiranossauro.”
“Skip, escute o que eu estou dizendo. Eles não vão embora nem depois
de um furacão — o que faz você pensar que eles vão se mudar depois de
umas bombinhas malfeitas?”
“Quando os condomínios desabam, os bancos desabam. Quando os
bancos desabam, adeus, espertalhões.” Wiley parecia impaciente. “Eu
expliquei tudo isso para o Keyes.”
“OK, já entendi”, disse Mulcahy. “Entendi perfeitamente. Mas agora só
me diga uma coisa: que negócio é esse de ‘violar uma virgem sagrada’?
Como isso se encaixa em sua teoria?”
“Eu pensei que os espertinhos daí já tivessem percebido a coisa toda.”
“Bem, se é a rainha do Orange Bowl, pode esquecer. A polícia está
grudada em cima dela.”
“Pode ser que sim, pode ser que não.”
Mulcahy disse:
“Skip, você só vai conseguir levar um balaço na testa.”
“Não é esse o meu plano.”
“O que você está planejando?”
“Sair de novo na primeira página do seu jornal amanhã.”
“Amanhã?” Mulcahy achou difícil soar desinteressado. “Mas o desfile é
daqui a dois dias.”
“Isso é só uma prévia, Cab.”
Mulcahy estava aturdido.
“Que tipo de prévia?”
Wiley disse:
“Você vai ter que esperar para ver. Como cortesia, estou avisando você
para reservar espaço na primeira página de amanhã.”
Mulcahy respirou fundo.
“Não, Skip.”
Houve uma pausa; então Wiley riu desbragadamente.
“O que você quer dizer com não?”
“Eu não vou colocar o Noites de Dezembro na capa. Vou enterrar a
reportagem, e que Deus me ajude a fazer isso.”
“Você não pode”, disse Wiley, parecendo estar se divertindo. “Será que
você não vê? Você não tem poder nenhum. Você não pode ignorar as
notícias a menos que esteja preparado para perder a confiança do público —
e você não está, Cab. Aposto que não. Você é muito cheio de honra, muito
cheio de ética, muito cheio de tudo. A integridade do jornal é sagrada para
você, provavelmente é a única coisa sagrada na sua vida. Mutilar minha
coluna é uma coisa, censura é outra. Você não faria isso, nem em um milhão
de anos. Você está nas mãos das notícias, amigo, e agora a notícia sou eu.”
“Skip, quem manda naquele jornal ainda sou eu”, disse Mulcahy com a
voz tensa. Ele estava esganando o telefone com as duas mãos.
“E você faz um trabalho excelente à frente daquele jornal”, disse Wiley.
“Mas, se você acha que eu não sei fazer uma primeira página depois de
todos esses anos, então é o seu cérebro que virou mingau. Agora eu tenho
que desligar. Meu horário está muito abarrotado hoje.”
“Não, Skip, aguente mais um segundo. Eu quero que você, por favor,
pare de matar essas pessoas inocentes...”
“Porra, eu não fiz isso. Nenhuma era inocente.”
“Então pare com os assassinatos, por favor. Estou pedindo como amigo.
A polícia vai sacar tudo e logo vai encontrá-lo. Por que você não acaba com
isso tudo e se rende? Você precisa...”
“O que eu preciso? De ajuda? Eu preciso de ajuda? Vamos lá, Cab, vê
se você se liga. Melodrama não cai bem em você. Eu tenho que desligar.”
“Skip, se você desligar, eu vou chamar o García. Vou dar o seu nome,
vou contar tudo para ele.”
“Acho que o Brian não explicou direito as regras.”
“Eu não posso aguentar mais isso, com ameaças ou não. Banho de
sangue o cacete — o que mais você pode fazer, Skip? Você já explodiu até
um dos meus repórteres.”
“Então, você vai colocar tudo isso no jornal?”
“Absolutamente tudo.”
“Então me faça um favor”, disse Wiley com seriedade.
“O que é?”
“Bote uma foto legal lá. Eu gostaria mais daquela de perfil do lado
direito, aquela em que eu estou usando o paletó de veludo, o marrom-
escuro.”
“Eu lembro”, disse Mulcahy desanimadamente.
“E quanto ao Cardoza?”
“Ele é o próximo na minha lista, depois dos tiras.”
“E se ele quiser a coluna de Ano Novo?”
“Nem pense nisso”, disse Mulcahy.
“Excelente. Que seja assim, então. A propósito, o jornal está mais sem
graça do que andar de ônibus lotado.”
“Eu cuido do Cardoza”, disse Mulcahy.
“Tenho certeza que sim. Mas nesse meio tempo, Cab, olhe para o céu.”
“O que você quer dizer?”
“Olhe para o céu! Entendeu?”
“Sim”, disse Mulcahy. Ele não gostou daquele jeito de falar. Ele teria
preferido que Wiley não o aborrecesse com mais pistas. “Olhe, Skip, por
que você não telefona para o Brian?”
“Ele está ocupado cuidando de uma ninfeta.”
“Ligue para ele!”
“Não, não vale a pena.”
“OK, então ele me pediu que lhe dissesse uma coisa. Ele me pediu que
lhe dissesse que você não tem mais chances, que o que você está fazendo é
suicídio puro. Ele me pediu que lhe dissesse que, quer você saiba ou não,
acabou tudo.”
“AH-AH-HA”, disse Skip Wiley e desligou.
Imediatamente Cab Mulcahy tentou falar com Al García, mas o
Esquadrão Especial Fuego Um estava inteiro nos Everglades, checando uma
informação. Um caçador de cervos tinha achado um acampamento
recentemente abandonado que parecia promissor; García não deveria voltar
ao escritório até a manhã do dia seguinte. Mulcahy deixou recado pedindo
que ele ligasse urgentemente.
Depois ele tentou Keyes, mas de também tinha saído. Havia uma sessão
de fotografias na praia, explicou Reed Shivers — a rainha do Orange Bowl
à luz do sol poente. A aparência lânguida, tudo muito artístico. Keyes tinha
ido junto para ficar de olho; levara a arma mas não o bip.
“Merda”, disse Mulcahy.
Cardoza foi o lance três. O dono do jornal estava em Palm Beach para
assistir à estreia do novo filme de Burt Reynolds. Depois havia um jantar no
Generoso Pope’s.
Cab Mulcahy preparou um jarro de martíni, colocou Mozart no estéreo
e esperou que o telefone tocasse. Foi a noite de sábado mais desagradável
de sua vida, e estava prestes a ficar pior.

Um dos únicos legados de Sparky Harper foi o Cruzeiro Anual da


Amizade do Orange Bowl. A cada ano, na noite de sábado antes do desfile
de segunda-feira, um grande contingente de dignitários, políticos, VIPS e
turistas ricos partiam do porto de Miami para uma excursão de dois dias
para Freeport e Key West. Sparky Harper tinha inaugurado o Cruzeiro da
Amizade como uma jogada de hospitalidade e publicidade, e também como
um favor secreto para os irmãos de uma de suas ex-esposas, que
administravam uma lucrativa empresa de alimentação que abastecia navios.
Nos primeiros anos, as candidatas ao título de rainha do Orange Bowl
participavam do cruzeiro, assim como todos os jogadores de futebol do
Orange Bowl. Entretanto, a Câmara de Comércio silenciosamente
interrompeu essa política no fim dos anos 70, depois de um episódio
indecoroso envolvendo um bote salva-vidas, uma jovem rainha da beleza e
três zagueiros do time da Universidade de Oklahoma. Depois que as
candidatas a rainha e os jogadores foram banidos do navio, Sparky Harper
descobriu-se com montes de cadeiras vazias e com uma sobra de duzentos
quilos de camarões do Golfo. Foi então que ele teve a ideia de convidar
jornalistas — mas não qualquer jornalista: apenas repórteres de turismo.
Sparky Harper e a Câmara de Comércio adoravam repórteres de turismo,
porque repórteres de turismo nunca escreviam reportagens sobre o crime
nas ruas, a poluição das águas, a matança dos peixes, a erosão das praias, os
refugiados, a epidemia de Aids, os acidentes nucleares, os traficantes de
cocaína, os atiradores, os tumultos raciais. De vez em quando, um repórter
de turismo mais ousado mencionava um desses assuntos de passagem, mas
estritamente no contexto de um contratempo de menor importância, do qual
o Sul da Flórida estava se livrando corajosamente. Por exemplo, quando
grandes pedaços de Miami Beach começaram a desaparecer no oceano, sem
deixar nada a não ser hotéis espalhafatosos na beira do mar, foi tomada a
decisão de se construir rapidamente uma nova praia a partir de rochas,
conchas e detritos de coral dragados do fundo do mar. Uma vez terminado o
trabalho, Sparky Harper enviou pelo correio centenas de impressionantes
fotografias aéreas para os jornais de toda parte. Como se esperava, muitos
repórteres de turismo logo viajaram para Miami e escreveram sobre a
assombrosa nova praia, sem nunca mencionar o fato de que você precisava
de botas de paraquedista para atravessá-la sem lacerar as artérias dos pés.
Como regra, os repórteres de turismo só escreviam sobre as coisas boas;
eles tinham nota 10 no caderninho de Sparky. Assim, com o apoio da
Câmara de Comércio, em 1980 Sparky Harper convidou cinquenta
repórteres de turismo de jornais de toda a América do Norte para vir a
Miami durante a Semana do Orange Bowl e navegar no Cruzeiro da
Amizade. 1980 foi o ano dos tumultos de Liberty City e da chegada dos
refugiados de Mariel, portanto apenas nove repórteres de turismo deram as
caras, vários deles carregando armas de fogo para autoproteção. No ano
seguinte a presença foi muito melhor, e, um ano depois disso, ainda melhor.
Quando Sparky Harper morreu, o Cruzeiro da Amizade era considerado
pelos repórteres de turismo norte-americanos como uma das melhores
excursões do ramo.
Este ano, a Câmara de Comércio decidiu, em votação unânime, dedicar
o evento à memória de Sparky Harper. Na noite de 29 de dezembro, quatro
semanas depois do assassinato de Sparky, uma multidão de setecentas e
cinquenta pessoas se reuniu no porto de Miami e escutou o prefeito ler uma
breve homenagem ao mago das relações públicas assassinado. Em seguida,
a multidão se acotovelou na prancha de embarque e tomou de assalto o SS
Nordic Princess, onde teve início uma orgia de comida e bebida e piadas
sujas.
O SS Nordic Princess era um elegante navio de cruzeiro, e quase
novinho em folha. Construído num fiorde da Noruega, tinha cento e
cinquenta metros de comprimento e tinha capacidade para dezesseis mil e
quinhentas toneladas brutas. Tinha sete conveses, quatrocentas cabines,
duas piscinas aquecidas, cinco restaurantes, oito bares, um spa, uma
biblioteca, uma pista de boliche, cinquenta máquinas caça-níqueis e um
fliperama. Havia também uma agência do Chase Manhattan no mezanino de
apostas. O Nordic Princess era servido por uma marujada de trezentos
tripulantes, a maior parte deles dominicanos e haitianos, com uns poucos
ingleses obrigatórios para servirem de chefes de serviço e maîtres.
Muitos dos passageiros do Cruzeiro da Amizade nunca tinham
navegado num transatlântico antes. Um deles era Mack Dane, o novo
repórter de turismo do Tulsa Express. Dane era um camarada vivo e sério,
lá pelos seus sessenta e poucos anos, que tinha passado a maior parte de sua
carreira jornalística tentando cobrir a indústria de petróleo. Como prêmio
pelos seus trinta e dois anos de serviço (e também para tirá-lo do caminho e
contratar um repórter jovem), o Express o “promovera” à editoria de
Viagens. O Orange Bowl era sua primeira tarefa, e o Cruzeiro da Amizade
sua viagem de estreia.
Como a maioria dos convidados a bordo do Nordic Princess, Mack
Dane estava feliz por estar em Miami em dezembro. Ele tinha acabado de
falar com sua filha em Oklahoma e soube que lá havia quase um metro de
neve fresca, um vento gelado que derrubava o termômetro a trinta graus
abaixo de zero, e que o cachorro tinha congelado na porta de casa.
Enquanto o navio deslizava ao largo de Government Cut, Mack Dane
conseguiu chegar ao convés superior e se posicionou estrategicamente
próximo a uma mesa de siris e camarões tamanho jumbo. As luzes de Natal
pendiam festivamente das chaminés do navio, e uma banda de salsa ao vivo
apresentava um pot-pourri de canções de Jimmy Buffett, num arranjo que
ninguém jamais sonhara ser possível. Uma brisa forte soprava do oceano,
empurrando nuvens e prometendo chuva leve. Mack Dane tomou posse de
outra batida de banana. Ele estava se divertindo às pampas e se perguntou
se alguma de suas colegas repórteres de turismo seria jovem e bonita.
Dois turistas postavam-se na amurada e acenavam para as minúsculas
figuras de pescadores de robalos lá no cais. Mack Dane observou os turistas
por alguns minutos e decidiu entrevistá-los para a reportagem. Eles
pareciam ser um casal razoável.
“Somos os Gilbert”, disseram eles calorosamente. “De Montreal.”
Sam Gilbert tinha cerca de quarenta anos. Usava calças compridas
amarelo-foscas e uma caríssima peruca que tentava se entender com o
vento. À parte este detalhe, era um cavalheiro de aparência gentil, com um
sorriso agradável. Sua esposa parecia ter um pouco menos de quarenta anos.
Ela vestia um elegante conjunto bege, com um lenço de seda envolvendo-
lhe o pescoço. Seu cabelo era tão antinaturalmente loiro que já estava
atraindo insetos, mas, à parte este detalhe, ela parecia ser uma pessoa
amigável e decente.
“Este é o primeiro cruzeiro de vocês?”, perguntou Mack Dane.
“Sim”, disse o sr. Gilbert. “Tivemos que reservar com quatro meses de
antecedência. Essa viagem é muito popular.”
Mack Dane contou a eles que era repórter de turismo, e convidado da
Câmara de Comércio.
“Você não teve que pagar?”, perguntou a sra. Gilbert.
“Bem, na verdade não.”
“Que trabalho bom esse seu”, disse Sam Gilbert.
“Esta é a primeira viagem de vocês para Miami?”, perguntou Mack
Dane.
“Isso”, disse Gilbert. “Estamos aqui para ver os Irish acabarem com os
Huskers.” Notre Dame e Universidade de Nebraska fariam o jogo de
futebol do Orange Bowl, no dia do Ano Novo. De acordo com muitos
repórteres esportivos, deste jogo sairia o futuro campeão nacional do
futebol universitário.
“Eu não gosto de futebol”, confessou a sra. Gilbert. “Estou aqui para
tomar sol e fazer compras.”
“Acabamos de comprar uma casa de inverno em Boca Raton”, disse
Sam Gilbert. “Não uma casa, na verdade, é um apartamento num
condomínio.”
“Sam é médico”, explicou a sra. Gilbert.
Mack Dane queria beber mais um drinque. O Nordic Princess estava se
fazendo ao largo, dirigindo-se suavemente para o mar encrespado de
nordeste. Atrás do navio, o céu de Miami brilhava com o laranja das
lâmpadas públicas de sódio projetadas para coibir crimes.
“Então é certo dizer que vocês estão gostando mesmo desta viagem”,
disse Mack Dane.
“Claro.” A sra. Gilbert atacou barulhentamente uma pata de caranguejo.
Mack Dane se perguntou se ela havia considerado a ideia de remover a
casca primeiro.
“Coloque no seu artigo”, disse ela, “que o doutor e a senhora Samuel
Gilbert, de Montreal, no Canadá, estão tendo a melhor diversão que já
tiveram na vida.”
Sam Gilbert disse:
“Eu não iria tão longe.”
“Senhor Dane, o senhor poderia nos fazer um favor? Poderia tirar uma
foto da gente?”
“Claro.” Mack Dane deixou de lado o bloco de anotações e esfregou as
mãos num guardanapo decorado com o selo do Estado da Flórida. A sra.
Gilbert passou para ele uma pequena câmera de trinta e cinco milímetros
com flash automático, foco automático e fotômetro automático.
Os Gilbert posaram com os braços grudados, encostados na amurada do
navio. Sam Gilbert armou-se de sua cara de médico, enquanto a sra. Gilbert
continuou a ajeitar e dedilhar a peruca dele, que, com o vento forte,
começava a se parecer com um gambá morto.
Mack Dane enfiou o olho no visor da câmera e tentou enquadrar os
Gilbert de modo romântico, com as luzes de Miami brilhando por sobre
seus ombros. A princípio, era uma foto perfeita — mais ainda se a lua
estivesse cheia! Então, alguma coisa pareceu estar errada. Repentinamente,
Mack Dane não conseguiu mais ver os Gilbert; não conseguia ver mais
nada através da câmera, exceto uma luz branca. Ele imaginou que alguma
coisa tinha quebrado no foco automático.
Mas, quando tirou a câmera da frente do rosto, Mack Dane percebeu
que a luz branca era real; um facho baixando do céu. Ou de alguma coisa
que estivesse no céu. Alguma coisa que pairava como uma mutuca sobre o
SS Nordic Princess.
“Um helicóptero”, disse Mack Dane. “E dos grandes.” Ele conhecia
bem o som de um helicóptero. Tinha voado de helicóptero dezenas de vezes
nas suas viagens às plataformas petrolíferas.
Os Gilbert torceram o pescoço e voltaram-se para o céu, procurando
proteger os olhos do poderoso farol do aparelho. Os outros participantes do
cruzeiro se aglomeraram, apontando. A banda de salsa fez uma pausa.
Mack Dane disse:
“Está descendo.”
O helicóptero realmente parecia estar descendo lentamente, mas não
estava mais voando na vertical, e sim num arco muito lento. Presa atrás do
aparelho estava uma longa faixa publicitária.
“Isto é de muito mau gosto”, disse Sam Gilbert.
Mack Dane colocou os óculos e girou em círculos, tentando ler a faixa.
Em letras de um metro, dizia: “ALTO E Ó DE BORDO: BEM-VINDOS À
REVOLU...”.
“Revolu?”, intrigou-se Sam Gilbert.
“Pode ser um perfume novo”, disse sua esposa.
Mack Dane se perguntou se algumas letras não tinham caído do
anúncio.
O helicóptero desceu mais e mais baixo, e logo as vozes dos festeiros a
bordo do Cruzeiro da Amizade se achavam afogadas em silêncio por causa
do barulho do rotor. Quando o aparelho estava a não mais que trinta metros
de distância do convés, a faixa foi solta. Ela flutuou até o mar como se fosse
uma serpentina enorme. A multidão fez “Oooooooooohhh!”, e uns poucos
chegaram até a aplaudir.
Mack Dane notou que o convés superior — o Convés Royal Sun, de
acordo com o guia do navio — estava se enchendo de turistas e VIPS e
repórteres de turismo que tinham vindo de baixo para acompanhar a
comoção. Não demorou muito e as pessoas estavam agora aglomeradas
umas contra as outras. Nesse meio tempo, o capitão do SS Nordic Princess,
preocupado com o helicóptero imprudente, mandou reduzir a velocidade
para oito nós.
“Olá, pessoal!”, disse uma voz masculina estridente. Alguém no
helicóptero possuía um megafone elétrico.
“Estão se divertindo muito na Flórida?”, perguntou a voz.
“Estaaaamos!”, berraram os festeiros, suas faces brilhando. Alguns dos
engomados líderes cívicos — o prefeito, os organizadores do Orange Bowl,
os membros vitalícios da Câmara de Comércio — estavam zangados com a
interrupção do cruzeiro, mas, não querendo estragar a diversão de ninguém,
não disseram nada.
A voz no helicóptero disse:
“Vocês gostariam de ganhar lembrancinhas genuínas da Flórida?”
“Siiiiiim!”, berraram os festeiros.
“Bem, então lá vai!”, disse a voz.
Uma porta no lado do helicóptero se abriu, e um pacote branco flutuou
em direção ao convés do Nordic Princess. Foi seguido por outro e vários
outros. A princípio, Mack Dane pensou que os objetos poderiam ser
paraquedas em miniatura ou toalhas de praia, mas quando um aterrissou
perto de seu pé ele viu que era só um saco de compras da Neiman-Marcus.
Em pouco tempo, o convés estava sendo regado com sacos de compras de
todas as melhores lojas de departamentos — Lord and Taylor,
Bloomingdale’s, Macy’s, Burdine’s, Jordan Marsh, Saks. Quando os
viajantes perceberam o que estava acontecendo, o Cruzeiro da Amizade se
dissolveu rapidamente numa luta frenética pelas mercadorias.
Mack Dane pensou: Isto é algum truque de publicidade.
A sra. Gilbert também teve sua própria competição pessoal. Ela superou
em força muscular um joalheiro do Brooklyn e a maldosa esposa de um
político de Miami para capturar três dos disputados sacos de compras.
“Olha só, Sam!”
“Poxa”, murmurou Sam Gilbert.
“O que você ganhou?”, perguntou Mack Dane.
“Não tenho certeza ainda”, disse a sra. Gilbert. Os sacos de compras
estavam grampeados. Ela rasgou um e tentou pescar alguma coisa dentro.
Sua mão voltou com um bracelete. O bracelete tinha um padrão de
manchas amarelo-foscas, e parecia ser feito de borracha. O estranho era que
parecia estar se mexendo.
Era uma cobra viva.
A sra. Gilbert estava sem fala. Suas pálpebras chacoalharam quando a
serpente coleou ao redor de seu punho branquelo. A língua vermelha do
animal vibrava, para fora e para dentro, sentindo o calor da turista.
“Jesus Cristo”, disse o marido dela.
Não era uma serpente muito grande, talvez com menos de um metro de
comprimento, mas era marrom-escura e gorda como um cano de cozinha. A
cobra estava, em cada fibra do seu ser, tão confusa quanto os Gilbert.
Atrás de Mack Dane uma mulher guinchou. E, do outro lado do convés,
outra. Um homem gritou: “Oh, meu Deus!” e desmaiou de olhos abertos.
Como se tivesse saído de um transe cataléptico, a sra. Gilbert deixou cair a
serpente pardacenta e caminhou para trás; sua mandíbula subia e descia,
mas nenhum som saía lá de dentro.
A esta altura cada um dos sacos de compras (exatamente duzentos ao
todo) já tinha sido aberto, com os mesmos resultados aterradores.
O convés solar do Nordic Princess estava soterrado de serpentes.
Cobras reis, cobras-negras, cobras azuis, cobras de celeiro, cobras-verdes,
cobras-d’água, cobras de anel no pescoço, cobras amarelas, cobras do
milho, cobras índigo, cobras vermelhas. A maioria das serpentes era
inofensiva, com exceção de um lote de cascavéis e cobras boca-de-algodão,
como a que estava no saquinho premiado da sra. Gilbert. Skip Wiley não
tinha planejado jogar cobras venenosas — ele não achava isso necessário
—, mas esqueceu de dizer isso a Tommy Rabo-de-Tigre e sua equipe de
índios caçadores de cobras. Os semínoles não faziam distinção, espiritual
ou taxonômica, entre serpentes peçonhentas e não peçonhentas; todas eram
sagradas.
Enquanto os répteis rastejavam através do madeiramento de teca, a
multidão entrou em pânico. Vários homens tentaram pisar nas cobras;
outros avançavam brandindo cadeiras e extintores de incêndio. Muitas das
cobras ficaram agitadas e começaram a morder em todas as direções.
A sra. Gilbert, entre outros, foi mordida no tornozelo.
Seu marido, o médico, estava parado, sem poder ajudar.
“Eu sou só radiologista”, disse ele a Mack Dane.
Da cabine do timoneiro, o capitão do Nordic Princess olhou para baixo
e viu o tumulto em seu navio. Para restaurar a ordem, tocou o tremendo
apito do navio três vezes.
“O que isso quer dizer?”, berrou Sam Gilbert, que carregava a esposa
nas costas.
Mack Dane não queria admitir que, embora fosse repórter de turismo,
não entendia nada de transatlânticos. Portanto, ele disse: “Acho que
significa abandonar o navio”.
“Abandonar o navio!”, berrou a sra. Gilbert.
E assim fizeram. Eles formaram um vértice voador, centenas deles, e se
arrebentaram através das amuradas e cordas do convés superior. Os Gilbert
estavam entre os primeiros a pular, mergulhando de trinta e cinco metros
para dentro do oceano Atlântico e deixando o navio às cobras danadas.
Assim que atingiu a água, Mack Dane lamentou ter aberto o bico para
falar de pular para fora do barco. A água estava gelada e encrespada, e ele
se perguntou por quanto tempo conseguiria ficar à tona. Também ocorreu a
ele que tubarões poderiam ser infinitamente piores do que uma porção de
serpentes assustadas.
O Nordic Princess estava imóvel na água, despontando como uma
muralha cinzenta sobre os nadadores frenéticos. Sirenes de incêndio
tocaram nas duas extremidades do navio. Mack Dane podia ver membros da
tripulação baixando os botes e atirando boias salva-vidas de todos os
conveses. O oceano estava salpicado de pessoas aos berros, suas cabeças
boiando pareciam um carregamento de cocos jogado ao mar.
Mack Dane notou que o misterioso helicóptero estava circulando de
novo, apontando seu farol branco para a água. Às vezes, o facho se fixava
na cara perturbada de algum turista, que se debatia feito um cachorro.
Do helicóptero saía uma melodia, encoberta pelos motores e deformada
pelo vento. Também não era uma canção reconfortante. Era Pat Boone,
parecendo Brenda Lee. Era o tema do filme Exodus.
Um homem de boa aparência, usando terno de executivo, estava
cuspindo água perto de Mack Dane. Ele levantou seu punho e berrou para o
helicóptero:
“Seus filhos da puta doentes!”
Mack Dane reconheceu o homem como sendo o prefeito de Miami.
“Quem são aqueles caras lá em cima?”, perguntou Mack Dane. Ele
estava pensando na reportagem que teria que escrever, se sobrevivesse.
“São os Nachos de merda”, disse o prefeito. Ele bateu forte as pernas e
nadou em direção ao Nordic Princess.
Mack Dane observou o helicóptero subir rapidamente e se virar para o
Leste, contra o vento. O holofote branco desapareceu e a porta da cabine se
fechou. Em poucos instantes, tudo o que se podia ver eram três pontinhos
de luz — verde, vermelho e branco — na fuselagem, embora o rugir dos
motores permanecesse audível, rompendo o ar da noite.
Um barco salva-vidas vazio flutuou na direção de Mack Dane e ele se
enfiou dentro dele. Tirou o blazer e o colocou sobre o colo. Enquanto
ajudava um jovem casal de Lansing, no Michigan, a subir, Mack Dane viu
uma cascavel nadar por perto. Ela parecia angustiada, fatalmente perdida.
“Que noite”, disse o homem de Lansing.
Alguma coisa no som do helicóptero mudou. Mack Dane procurou pelas
luzes e as localizou a cerca de dois quilômetros a leste do navio, bem baixo
no horizonte púrpura. O motor da hélice principal parecia soar áspero, e
cada vez mais alto.
“Alguma coisa não está certa”, disse Mack Dane.
O som seguinte foi um rugido úmido, morrendo entre as ondas. Então o
céu ficou silencioso e cinzento. O helicóptero tinha caído. Um chumaço de
fumaça se ergueu da água, marcando a sepultura com tanta precisão quanto
uma cruz. Poucos minutos mais tarde, veio a chuva.
27

Miraculosamente, nenhum dos viajantes do Nordic Princess pereceu no


oceano Atlântico. Muitos vestiram coletes salva-vidas antes de pular
n’água; outros se provaram nadadores competentes, embora nada graciosos.
Alguns dos turistas estavam bêbados demais para entrar em pânico, e
simplesmente boiaram nas ondas, como peixes-boi de poliéster, até que o
socorro chegasse. Outros, inclusive os Gilbert, foram salvos pelas fortes
correntes marítimas que os arrastaram até um banco de areia, onde
esperaram, mergulhados na água até a cintura, com o cabelo colado em seus
crânios cor-de-rosa, cada um deles ainda usando um crachá de plástico que
dizia: “Oi! Eu sou...”. Felizmente, um barco da guarda costeira chegou
rapidamente, e lançou lanchas infláveis Zodiac para recolher os passageiros.
Por volta da meia-noite, todas as trezentas e doze pessoas desaparecidas
tinham sido resgatadas. O salvamento tinha se desenrolado tão rapidamente
que todas as treze vítimas de mordidas de cobras venenosas chegaram ao
hospital com tempo de sobra e somente alucinações transitórias. Um
levantamento das outras vítimas revelou um possível ataque cardíaco, sete
fraturas, quatro queimaduras de águas-vivas e uma dúzia de prováveis
ferimentos nas cordas do navio.
Embora os esforços de resgate tenham se concentrado ao redor do
navio, um pequeno contingente da guarda costeira lançou uma busca
separada pelo misterioso helicóptero, a um quilômetro e meio de distância.
Uma chuva atordoante e rajadas de vento de sessenta quilômetros por hora
tornaram a tarefa perigosa e praticamente impossível. Enquanto a noite
avançava, as ondas subiram para dois metros e meio, e a equipe,
relutantemente, desistiu.
Na manhã seguinte, sob chuvisco e nevoeiro, uma traineira de pesca de
camarão, saída de Virginia Key, deu com uma mancha de óleo recente a
poucos quilômetros ao largo de Miami Beach. Flutuando sobre a poça
negro-azulada, estava uma massa de detritos; dois bancos, um emaranhado
das instalações elétricas do helicóptero, uma capa de um velho disco de Pat
Boone, uma camisa de futebol azul-pálida ensanguentada, um chapéu
australiano com um emblema vermelho na copa e duas dúzias de sacos
plásticos vazios da Saks da Quinta Avenida. A julgar pela localização da
mancha, o helicóptero tinha despencado num local em que a profundidade
era de cento e cinquenta metros. Quando o céu clareou, a guarda costeira
enviou dois helicópteros de sua própria frota, mas nenhum outro destroço
foi encontrado. Um especialista forense da marinha relatou mais tarde ao
Esquadrão Especial que ninguém poderia ter sobrevivido ao desastre, e que
não havia praticamente nenhuma chance de recuperar os corpos. A água,
segundo ele, estava cheia de tubarões.

Terroristas podem estar mortos depois de ataque a navio de cruzeiro.


Skip Wiley tinha razão. A saga selvagem do Nordic Princess apareceu
em letras garrafais na primeira página do Miami Sun da manhã seguinte.
Cab Mulcahy não tivera escolha, uma vez que Wiley tinha astutamente
selecionado o dia da semana em que a oferta de notícias no jornal era mais
anêmica — o presidente estava pronunciando um discurso sobre o aborto,
um ônibus cheio de peregrinos tinha sofrido um desastre na Índia e um
chimpanzé treinado chamado Jack tinha sido lançado no ônibus espacial. A
história sensacional do Las Noches teve grande destaque em todo o país, e
apareceu na primeira página do Washington Post, do Atlanta Journal e do
Atlanta Constitution, do Los Angeles Times, do Chicago Tribune e do
Philadelphia Inquirer. A versão que apareceu no Miami Sun foi, de longe, a
mais detalhada, embora não fizesse nenhuma menção ao papel de Wiley;
Mulcahy ainda estava tentando alcançar Al García para contar tudo a ele.
Apenas um outro jornal devotou tanto espaço à reportagem do Nordic
Princess quanto o Miami Sun, e esse jornal foi o Tulsa Express (o velho
Mack Dane tinha se superado, ditando oitenta centímetros de tirar o fôlego
por meio de um rádio de comunicação da guarda costeira). Quanto à
imprensa televisiva, a NBC aproveitou seu pessoal extra de cobertura do
Orange Bowl, e mandou equipes completas para o porto de Miami, o
quartel da guarda costeira e o Flagler Memorial Hospital. Heróis, vítimas,
testemunhas e parentes distantes correram para as luzes brilhantes da
televisão, com a esperança de serem entrevistados por Jane Pauley ou
alguém igualmente glamouroso. Por volta do meio-dia de domingo, grande
parte dos Estados Unidos já tinha ouvido ou visto a história das serpentes
assassinas vindas do céu e da gangue de malucos do Sul da Flórida
conhecida como Noites de Dezembro.
O diretor da Comissão do Orange Bowl não sabia se dava risada ou se
estourava os miolos. No espaço de quarenta e oito horas, no ápice da
temporada turística, homicidas lunáticos tinham detonado um repórter de
jornal e lançado um ataque aéreo contra um transatlântico norte-americano.
Essas eram as más notícias. As boas notícias eram: os filhos da puta
estavam mortos. O desfile estava salvo.
Às oito e meia da manhã de domingo, 30 de dezembro, uma entrevista
coletiva foi realizada no escritório da Câmara de Comércio de Miami, na
sala santificada com a mesa esculpida em forma de laranja-da-baía gigante.
Sentados ao redor do hemisfério superior da mesa estavam o diretor da
Comissão do Orange Bowl (no raminho da fruta), o sargento Al García, o
sucessor de Sparky Harper na Câmara de Comércio, os prefeitos de Miami
e de Dade County, os chefes de polícia de Miami e Dade County e um
oficial da guarda costeira, que desejava estar em qualquer lugar no mundo
menos naquele. A metade inferior da mesa estava ocupada por repórteres e
câmeras, incluindo uma equipe do Morning News da CBS.
O diretor do Orange Bowl levantou-se e falou nervosamente num
microfone fixado a um pódio portátil. Leu uma declaração preparada
anteriormente:
“Senhoras e senhores, agradeço-lhes por terem vindo com tanta rapidez
e atenção. Aproximadamente às nove horas e dezesseis minutos da noite de
ontem, o navio de cruzeiro SS Nordic Princess foi abordado por um
helicóptero sem prefixo e não identificado ao largo da costa de Miami
Beach, na Flórida. No momento do ataque, o navio estava fretado pela
Câmara de Comércio de Miami, como parte dos eventos da Festa do Orange
Bowl. Como resultado das ações hostis empreendidas pelos ocupantes do
helicóptero, mais de trezentas pessoas foram obrigadas a abandonar o
navio, numa operação de emergência. Fico feliz por dizer que todos esses
passageiros, incluindo eu mesmo e várias outras pessoas presentes nesta
sala, foram resgatados em segurança. Todos nós desejamos agradecer, do
fundo do coração, ao comandante Bob Smythe e à guarda costeira dos
Estados Unidos pela sua ação rápida e decisiva.”
O comandante Bob Smythe sorriu palidamente quando meia dúzia de
Nikons automáticas se precipitaram sobre sua cara. Ele mal podia esperar
pela sua transferência para Charleston, marcada para breve.
“Pouco depois do incidente que envolveu o Nordic Princess”, continuou
a ler o diretor do Orange Bowl, “o helicóptero suspeito voou para longe do
navio em direção ao Leste. Aproximadamente às nove horas e vinte e um
minutos, o aparelho teve problemas no motor e, aparentemente, caiu no
mar. Nenhum contato pelo rádio foi feito com o helicóptero, portanto a
natureza de seu defeito pode nunca vir a ser conhecida.”
O diretor do Orange Bowl fez uma pausa para um gole de água. Ele não
estava satisfeito com o tom do press-release, que tinha sido composto às
pressas por um relações-públicas que cobrava bastante caro por seus
serviços. O RP era ex-editor de uma revista de Washington e tinha a
reputação de ser um modelo de tranquilidade em situações de crise, mas o
diretor do Orange Bowl não estava muito impressionado. O press-release
soava duro e tedioso, como se tivesse sido feito no Pentágono. O diretor do
Orange Bowl não sabia muita coisa a respeito de bons textos, mas ele sabia
o que era “Tranquilidade Tropical” — e aquele texto não era nada disso. Ele
se perguntou por que era tão difícil encontrar um redator bom e barato.
“Aproximadamente às seis horas e sete minutos desta manhã, um barco
de pesca comercial descobriu resíduos de combustível e destroços do
helicóptero a aproximadamente oito quilômetros de Miami Beach. Equipes
da marinha e da guarda costeira vasculharam a área com extremo cuidado e
não acharam nenhum sinal de sobreviventes. Por causa da presença de
espécies carnívoras de águas profundas no local, é altamente improvável
que qualquer resto de corpos humanos seja descoberto.
“Entretanto, um item encontrado entre os destroços foi identificado de
maneira conclusiva como sendo de propriedade de Daniel Wilson, de trinta
e seis anos de idade, ex-jogador de futebol profissional que estava sendo
procurado como suspeito de participar de vários sequestros recentes.”
O diretor do Orange Bowl enfiou o braço num saco de papel pardo e
puxou para fora a camisa manchada do Miami Dolphins que pertencia a
Viceroy Wilson. À visão do número 31, os fotógrafos ficaram ensandecidos.
“De acordo com o sargento Al García, da polícia de Dade County, o
senhor Wilson era membro ativo de um pequeno grupo terrorista conhecido
como Las Noches de Diciembre. Esta organização, também conhecida como
Noites de Dezembro, assumiu a autoria de diversos sequestros, homicídios
e atentados a bomba acontecidos recentemente na área de Miami, incluindo
o chamado Massacre de Trifeta no Hibiscus Kennel Club. O Noites de
Dezembro também é o principal suspeito de um incidente ocorrido há dois
dias, no qual um jornalista local foi seriamente ferido na explosão de uma
bomba. Temos fortes razões para acreditar que o senhor Wilson e os três
outros membros desta célula radical levaram a cabo o ataque da noite
passada ao Nordic Princess, e morreram no desastre de helicóptero que se
seguiu. Embora todos os esforços estejam sendo feitos para comprovar esta
informação, nós podemos anunciar com segurança que uma ameaça sinistra
e perigosa à nossa comunidade foi afastada, e que o povo do Sul da Flórida
pode comemorar o Ano Novo — e o festival do Orange Bowl — sem
nenhum medo ou preocupação. Muito obrigado a todos vocês.”
O diretor do Orange Bowl se sentou e enxugou a nuca com um lenço
branco amarrotado. Ele não tinha nenhuma intenção de pronunciar qualquer
outra palavra, ou fazer qualquer coisa que arruinasse seu trabalho sagaz de
leitura do press-release. Ele tinha até mesmo improvisado um pouco,
trocando a frase “mancha de óleo”, que era feia e assustaria turistas, por
“resíduo de combustível” no terceiro parágrafo.
Assim que os repórteres começaram a disparar perguntas, o diretor do
Orange Bowl convocou Al García ao pódio.
O detetive se aproximou do comprido microfone com extrema cautela,
como se este fosse um lança-chamas.
“E quanto a Jesús Bernal?”, berrou um repórter de TV.
“Nada a declarar”, disse García. Ele sentiu que gostaria de acender um
cigarro, mas o chefe tinha ordenado a ele que não fumasse diante das
câmeras.
“De onde vieram todas aquelas cobras?”, perguntou alguém.
“Não tenho a menor ideia”, disse Al García. O som de duas dúzias de
canetas de pontas porosas anotando dava chicotadas em seus nervos.
“E quanto à faixa?”, disse um repórter de rádio. “Vocês encontraram a
bandeira?”
“Nada a declarar.”
“De onde veio o helicóptero?”
“Nada a declarar.”
Vários repórteres começaram a reclamar de todos aqueles “nada a
declarar” e ameaçaram sair da coletiva. O prefeito de Dade County
sussurrou agitadamente alguma coisa ao chefe de polícia, que se inclinou
para a frente e sussurrou excitadamente alguma coisa para Al García. O
detetive arregalou os olhos para os dois.
“Parece que eu fui autorizado a responder a suas perguntas”, disse
García aos repórteres, “desde que isso não prejudique as investigações.
Quanto ao helicóptero — ainda não conseguimos descobrir de onde ele
veio. Era um Huey 34 adaptado, provavelmente roubado em Lauderdale ou
Palm Beach.”
“E quanto a Jesús Bernal?”, perguntou um homem de uma estação de
rádio cubana.
Al García decidiu dar aos caras de blazers laranja alguma coisa sobre a
qual pudessem meditar.
“Não temos nenhuma prova ou evidência de que o senhor Bernal estava
a bordo daquele helicóptero na noite passada”, disse ele.
O diretor do Orange Bowl levantou-se num pulo.
“Mas provavelmente ele estava lá!”
“Não temos nenhuma evidência disso”, repetiu García.
“E quanto à faixa?”, perguntou o repórter de rádio.
“Nós conseguimos recuperá-la hoje de manhã, enroscada numa linha de
pescar peixe-espada. A faixa foi alugada na tarde de ontem na Cairo
Publicidade, no aeroporto de Opa-Locka. Três indivíduos foram vistos
prendendo as letras nela. Um homem branco, barbado, com mais de trinta
anos de idade, usando um chapéu australiano; um homem negro, com a
mesma idade, aparentemente, mas com porte físico maior, e que estava
usando uma camiseta de futebol; um homem mais jovem, de pele escura,
sem barba, descrito como sendo um mexicano ou um índio norte-
americano. A faixa do helicóptero dizia, basicamente, a mesma coisa de
todos os outros comunicados — ‘Bem-vindos à Revolução’ etc.”
“Esses homens que foram vistos no aeroporto”, disse um repórter de TV,
“eram os Nachos?”
“Las Noches”, disparou García.
“Quem pagou a faixa?”, berrou alguém.
“Aparentemente, o homem branco.”
“Quanto?”
O diretor do Orange Bowl sentia que tinha sido um erro tático deixar Al
García ficar ao microfone. O idiota estava respondendo realmente às
perguntas dos jornalistas. Quanto mais García falava, mais freneticamente
os repórteres escreviam em seus bloquinhos. E, quanto mais eles escreviam
em seus bloquinhos, mais reportagens apareceriam nos jornais e mais tempo
na televisão os Nachos mortos conseguiriam. E isso era tudo o que a
Comissão do Orange Bowl não queria ver.
O diretor levantou-se e disse com um sorriso:
“Acho que isso é tudo por enquanto.” Mas foi completamente ignorado
por todos, inclusive Al García.
“O homem branco suspeito pagou trezentos dólares em dinheiro para
usar a faixa de publicidade”, disse García.
“Esse homem pode ser El Fuego?”, perguntou um repórter.
“Sim, é possível.”
“Ele apresentou seu nome no aeroporto?”
“Sim, apresentou”, disse García.
Então todos de uma vez, como um bando de gralhas:
“Que nome?”
García olhou para o chefe de polícia. O chefe deu de ombros. O diretor
do Orange Bowl agitou sua mão gorda, tentando conseguir a atenção de
alguém.
“O suspeito, de fato, apresentou um nome no aeroporto”, disse García,
“mas acreditamos que seja um nome falso.”
“Que nome era?”
“Na verdade, temos noventa por cento de certeza de que era falso”,
disse o detetive, tentando falar longe do microfone.
“Que nome era esse, Al? Que nome?”
“Bem”, disse García, “o nome que o suspeito registrou foi Hugo. Victor
Hugo.”
Houve uma pausa nas perguntas, enquanto os repórteres explicavam uns
aos outros quem tinha sido Victor Hugo.
“E quanto aos motivos desse grupo ter feito tudo isso?”, berrou alguém
por fim.
“É muito fácil”, replicou García. “Eles atacaram o transatlântico pela
mesma razão que fez com que eles dessem um banho de Coppertone em
Sparky Harper. Publicidade.” Ele sorriu com ironia diante de todos os
bloquinhos cheios de anotações. “E me parece que eles conseguiram
exatamente o que queriam.”
A coletiva estava tomando um rumo extremamente perigoso, e o diretor
do Orange Bowl não podia mais conter seu pânico crescente. Subindo ao
pódio, colocou a mão gordurosa discretamente entre as omoplatas de García
e guiou o detetive para a cadeira mais próxima. Então, o homem do Orange
Bowl audaciosamente tomou ele mesmo o microfone.
“Senhoras e senhores”, disse cordialmente, “vocês não gostariam de
ouvir em primeira mão o relato do prefeito e sua fuga do Nordic Princess?”

Brian Keyes assistiu à coletiva numa televisão no quarto de Kara Lynn


Shivers. O pai dela estava fora jogando golfe, e a mãe estava comendo
quiche com a Liga Inferior.
Kara Lynn estava encolhida na cama, usando calcinhas cavadas e uma
camiseta amarelo-limão. Keyes vestia bermudas, rasgadas de alguma calça
velha. Ele manteve a mão dela apertada na sua enquanto ouvia Al García
falar com os repórteres. Quando o prefeito apareceu e começou a contar
sobre o ataque do helicóptero, Keyes apanhou o controle remoto e mudou
para um jogo de basquete.
Durante um longo tempo ele não disse nada, simplesmente ficou
olhando fixamente para a tela da televisão. Kara Lynn abraçou-o e o beijou
na nuca.
“Acabou, acabou tudo”, sussurrou ela.
“Não sei”, disse Keyes de modo distante. Ele estava visualizando aquele
doido de pedra Wiley, marchando no aeroporto de Opa-Locka com seu
chapéu de mateiro e duzentos sacos de cobras selvagens. Depois, tentou
imaginar a cena seguinte, a bordo do Huey, com Wiley e seu toca-discos
portátil; Wiley tentando explicar Exodus para Viceroy Wilson.
“O único que sobrou é o cubano”, disse Kara Lynn.
“Pode ser.” Keyes tentou imaginar Skip Wiley morto e não conseguiu.
O obstáculo não era a dor; era pura descrença. Não era impossível que
Wiley tivesse alugado um helicóptero velho e perigosamente não confiável,
ou contratado um piloto inepto. O que não era característico era o fato de
Wiley ter se colocado tão escancaradamente em risco. Durante todo o mês
de dezembro ele tinha mantido uma distância segura do terrorismo real,
mandando Wilson ou Bernal ou o semínole assumirem todos os grandes
riscos. Por que aquela coragem súbita?, se perguntava Keyes. E que modo
conveniente de morrer. Ele se sentira um pouco culpado por sentir tão
pouca tristeza pela morte de seu velho amigo — mas, por outro lado, talvez
fosse muito cedo para ficar de luto.
“O finado Victor Hugo”, ironizou Keyes. Wiley devia saber que seus
amigos teriam sorrido diante daquilo; ele estava construindo sua própria
lenda para sempre.
“Les misérables”, disse Kara Lynn. “Parece que o senhor Fuego tinha
senso de humor.”
“Doentio”, disse Keyes. “Doentio, doentio, doentio.” Wiley estaria
melhor morto no mar, pensou ele, antes que a verdade incrível e lúgubre
fosse conhecida. Com Wiley morto, Kara Lynn estaria segura. E do mesmo
modo seria com o jornal; Cab Mulcahy poderia retornar ao mundo do
jornalismo honesto. Seria melhor para quase todo mundo que Wiley
estivesse perdido no mar, para todo mundo exceto Jenna — Jenna era outra
questão. Ela não estava a bordo do helicóptero. Keyes sabia disso
instintivamente. O talento de Jenna era criar catástrofes e depois evitá-las.
“Eu queria que isso fosse o fim”, disse Kara Lynn quase num suspiro.
“Bem, pode ser que seja.”
“Mas você não acredita que eles estejam mortos de verdade”, disse ela.
“Foi o modo como a coisa aconteceu. Foi tudo perfeito demais.”
“O príncipe dos cínicos. Você não acredita que a vida possa ser perfeita
pelo menos uma vez?”
“De jeito nenhum”, disse Keyes. “Nem a morte.”

Mais tarde, quando Kara Lynn estava no chuveiro, Al García telefonou.


“Já era hora”, rosnou Keyes.
“A coisa está meio tumultuada por aqui”, disse o detetive. “Eu vi esse
monte de recados que você e Mulcahy deixaram. Concluí que a consciência
de vocês tinha, finalmente, saído de dentro da toca.”
“Tínhamos nossas razões, Al. Agora chegou a hora de falar tudo.”
“Mal posso esperar. Mas acontece que eu já tenho uma ideia de quem
seja El Fuego.”
Então, García sabia.
Keyes se sentiu péssimo por não ter contado a ele logo no início, mas as
ameaças de Wiley pareciam sérias, e, vistas em retrospecto, perfeitamente
críveis. García teria que entender.
“Quando estávamos fazendo uma checagem de rotina em Wilson e
Bernal, um companheiro meu fez uma investigação nos arquivos do jornal”,
disse o detetive. “É fácil, na verdade. Acho que já está tudo no computador
agora. Coisa engraçada, Brian. Há uns quatro meses atrás, esse seu amigo
babaca, o Wiley, escreve uma história sobre o que tinha acontecido com
Daniel Viceroy Wilson, a famosa estrela do futebol. Muito piedosa. Tempos
difíceis para o nosso problemático atleta negro e tal. A típica bobagem
liberal. De um modo ou de outro, três semanas depois, o que acontece? O
cara faz uma coluna sobre Jesús Bernal. O nosso precioso Jesús. ‘O fogo
inflama o peito de um jovem combatente da liberdade cubano’ — era assim
que a coisa começava. Isso me dá nojo também. Quase me deixou maluco.
Então, fiquei pensando, que coincidência estranha tudo isso: dois dos quatro
elementos do Noites de Dezembro aparecem inteiros no jornal um pouco
antes da merda toda começar. Assim, só para desencargo de consciência, o
que você acha que eu fiz?”
“Pegou todas as colunas do Wiley.”
“Exato. Uma bela pilha de colunas, e elas estão cheias de idiotas e
vigaristas e perdedores... merda, se você juntar todas você tem o maior
ninho de doidos da história do planeta Terra. Levou uma semana para eu
atravessar aquele monte de lixo, também —, o cara sabe escrever, vou te
contar. Ele coloca as palavras de um jeito legal, mas sua postura me tira do
sério. Que puta arrogância. Bem, de um jeito ou de outro, no meio de todas
essas colunas, adivinhe quem vem depois? O seu índio, Brian, o cara do
aerobarco, Tommy Bunda-de-Tigre ou sei lá qual é o nome dele. Um
semínole de merda, cara de sangue quente, que pega jacaré a unha e detesta
brancos. Fiquei sabendo mais coisas a partir da coluna do Wiley do que
consegui arrancar de toda a tribo semínole. Parece que nosso amigo Tommy
é mais rico do que o traficante colombiano médio. E também carrega uma
raiva feroz por toda a merda que aconteceu com seus ancestrais — e eu não
posso culpar o cara por isso, Brian. E foi o seu povo que fez isso, Brian, os
cubanos não têm nada a ver com essa história de arrasar os índios da
Flórida.”
“Al, vamos...”
“Estou quase acabando, amigo. Assim, depois de tudo isso, eu olho na
minha mesa e o que vejo? Vejo um jogador de futebol negro racista furioso,
um revolucionário cubano maluco apaixonado por bombas e um índio cheio
de ódio com um bingo enchendo o cu dele de dinheiro. Três caras, dos
quatro. Portanto, o resto era fácil, mesmo para um tira idiota como eu — o
truque era ler tudo o que o Wiley escreveu nos últimos dois anos. Cristo!
Que cara estranho.”
“Engraçado você não ter mencionado tudo isso na coletiva”, disse
Keyes.
“Puta, acho que esqueci.”
O que significava que García não estava disposto a engolir a história do
desastre de helicóptero.
“Isso me deixa pensando cá comigo”, disse de. “Por que El Fuego ia
usar uma bobagem como aquela para mostrar a cara?”
“Se ao menos eles encontrassem alguns corpos”, disse Keyes. As
palavras soavam ásperas e insensíveis, mas ele estava sendo sincero. Ele
disse a García: “E o que fazemos agora?”.
“Os sabichões metidos a sebo disseram que está tudo acabado.”
“E o que você diz, Al?”
“Digo que nós vamos esperar até o final do desfile antes de abrir o
champanhe.”
“Boa ideia. Enquanto isso eu fico de olho na rainha.”
“Mais uma coisa, Brian. Uma vez que eu sou gente fina o suficiente
para não enfiar o seu rabo no xadrez imediatamente por ocultar
informações, o mínimo que você poderia fazer era dar uma passadinha aqui
mais tarde e me contar mais sobre seu amigo maluco.”
“Farei isso, Al”, disse Keyes, “acho que é melhor mesmo.”
28

Quando Al García desligou, ele se repreendeu por não ter dado uma
bronca maior em Brian Keyes. Ele não sabia por que Keyes tinha segurado
informações em relação a Skip Wiley durante todas aquelas semanas, mas
certamente conseguiria descobrir. O joguinho do comércio de informações
sempre irritava García, mas ele o aceitava como essencial para seu trabalho.
Jornalistas, tiras, políticos, detetives particulares — todos tremendamente
talentosos na melindrosa arte do você-conta-para-mim, eu-conto-para-você.
A sequência disso era você se sentir como um oráculo ou uma puta.
García assumiu para si mesmo que devia haver uma razão forte para o
que Keyes tinha feito. Era melhor que houvesse. Uma jogada de algum tipo,
talvez até mesmo extorsão. Wiley parecia capaz de qualquer coisa.
Além disso, a urgência da questão havia diminuído depois do acidente
com o helicóptero. Nem bem a entrevista coletiva de domingo terminou, o
chefe passou para García uma nota seca: “Considere debandado o
Esquadrão Especial. Nós podíamos ter um press-release pronto amanhã de
manhã”.
García tinha aceitado a sugestão sem se comprometer com ela. Como
todos os bons detetives, ele aprendera a sobreviver ao doce-amargo. Caras
legais, caras malvados, você tinha que ficar de olho em seus passos. Ele
conhecera vigaristas a quem tinha confiado sua própria vida, e tiras que
roubariam a esmola de um cego. García era muito pouco comovido pela
prudência de seus superiores, e mais frequentemente seduzido pela
inteligência da mente criminosa. O caso de Fuego tinha sido um desafio
peculiar; durante todo o tempo ele se sentira como se estivesse combatendo
dois lados, Las Noches e o establishment de Miami.
O detetive tinha sentimentos ambíguos a respeito do misterioso acidente
de helicóptero. Uma parte dele queria acreditar que o Noites de Dezembro
estava morto. Não que estivesse pensando no Orange Bowl, ou no júbilo
cívico, ou na preservação do comércio turístico. Para ele, parecia um
exemplo maravilhoso de vilões levando o que mereciam; justiça no sentido
bíblico do termo. E, como questão prática, não havia meio mais asseado de
resolver um homicídio do que ter todos os seus suspeitos repentinamente
reduzidos a pó. Deus sabe a pequena fortuna que isso economizaria aos
contribuintes.
No outro lado estava o orgulho profissional: García não gostava de ver a
Câmara de Comércio abrindo e fechando seus casos de assassinato. O tom
autocongratulatório da entrevista coletiva da televisão tinha sido uma farsa;
a verdade era que o esquadrão de García nunca estivera nem perto de
descobrir, e muito menos de capturar, Las Noches de Diciembre. Tinha sido
uma tarefa frustrante para um tira não acostumado a ser passado para trás, e
García não apreciou o gosto da coisa. Ver Skip Wiley e sua equipe de
doidos destruídos por um velho helicóptero desengonçado do exército
parecia ser um anticlímax ordinário. Na visão de García, teria sido
imensamente mais satisfatório localizar os bastardos em seu esconderijo nos
Everglades e transformá-los todos em fumaça, à bala. Razão pela qual ele
não estava pronto para dizer que estava tudo encerrado.
A intuição dizia a García que esse final não se encaixava. Um bando de
cubanos ou nicaraguenses malucos? — claro, este é o tipo de cagada que
você espera, voar num helicóptero com pouco combustível e se arrebentar.
Mas, desde a primeira vítima, o Noites de Dezembro tinha sido diferente.
Haviam concebido cada ato de violência com uma certa seletividade e élan.
Sufocar Sparky Harper com um jacaré de borracha era mais que
assassinato; era terrorismo com imaginação. Era a têmpera de uma lâmina
forte como Wiley.
Wiley — que, na opinião de García, era esperto demais para cair em
chamas no mar profundo. Seria típico daquele filho da puta matreiro
encenar sua própria morte, para botar todo mundo para dormir e então
aparecer no desfile do Orange Bowl e apanhar a rainha — exatamente como
tinha planejado desde o começo.
Ele então amassou a comunicação do chefe e a jogou numa lata de lixo.
Vasculhou uma pilha de recortes até encontrar a infame coluna do furacão:

O que o Sul da Flórida mais precisa é de um furacão assassino,


repentino e furioso, uma tempestade implacável que derrube os muros
de concreto na praia e varra para longe a sujeira e a corrupção...
Enquanto lia pela segunda vez, García sentiu o cabelo de sua nuca se
arrepiando.

O vagalhão marítimo, uma gárgula inchada feita de água, nasce além


da corrente do Golfo. Ganhando tamanho e poder a cada minuto, ele
corre sob um vento ensurdecedor em direção à costa adormecida da
Flórida. Na escuridão púrpura da noite, ele pulveriza Miami Beach
com uma muralha de sete metros de água, arrasando a ilha de estrume
de um bilhão de dólares de Carl Fisher. Imagine: cadáver sobre
cadáver, entupindo os saguões inundados dos outrora majestosos
condomínios; sonhadores mortos, inchados, com as veias azuladas,
parecendo carpas fora do lago há dias.
Eles vão morrer na perplexidade, nos braços ferozes do amado
oceano que os trouxe para cá. Imbecis!, vai uivar o vento, todos
imbecis.

García pensou: Estas são as palavras de um homem patologicamente


amargo, se não um siderado perfeito. Ele estava morrendo de vontade de
ouvir o que Keyes poderia lhe contar a respeito do sujeito.
Alguém bateu levemente na porta.
“Pode entrar, Brian”, disse García.
A porta escancarou-se com um estrondo.
A mão esquerda de García encontrou o punho de seu revólver, mas ele
mudou de ideia. Nada como uma arma carabina de cano serrado para
argumentar a favor da prudência.
“Buenas noches”, disse o investigador ao homem de camiseta imunda.
“Olá, verme”, disse Jesús Bernal. “Vamos dar um passeio, só você e
eu.”

Desde que rejeitara o Noites de Dezembro, Jesús Bernal estava


desesperado. Ele havia depositado sua grandiosa esperança de redenção na
última bomba caseira que fizera, apenas para vê-la apanhar a vítima errada,
um reporterzinho de merda. Mais uma vez o acaso havia escarnecido
Bernal, reduzindo seus crimes mais calculados e apaixonados a uma
palhaçada. Sua longa carreira como terrorista havia sido estragada pela
infelicidade de seu destino, e ele mergulhara no temor de que poderia ser
expulso para sempre de seu lugar na história dos radicais, no temor de que
tivesse desperdiçado sua última grande chance. A entrevista coletiva
daquela manhã havia lançado o pequeno cubano para dentro de uma orgia
de autocomiseração — ele havia berrado com a tela da televisão, batido a
cabeça nas paredes, chutado as portas de seu quarto de motel até abrir
buracos nelas. Ele sabia que a tramoia do helicóptero era uma ideia frívola,
que o primeiro plano tinha sido o melhor. Ele havia tentado ensinar aos
outros disciplina e eficiência, e alertar para os perigos mortais da
impetuosidade. Mas aquele cabeça de merda do Wiley estava além da razão,
e aquele negro dopado e o índio imbecil o seguiam como zumbis. Eles eram
crianças jogando um jogo de homens. Agora eles estavam mortos, e, para
todos os efeitos práticos, também estava morto Las Noches de Diciembre,
transformando Jesús Bernal num órfão sem causa. Aniquilado pela dor, de
se perguntou o que os seus ex-camaradas do Movimento Primeiro Fim de
Semana de Julho poderiam estar dizendo dele; quase podia escutar a
gargalhada zombeteira do comandante. E quem poderia culpar o velho?
Apesar de todo o carnaval em torno do Las Noches, nada de histórico tinha
sido provado, nada se conseguiu de permanente. Portanto, não havia
nenhum argumento que pudesse fazer o velho considerar a hipótese de
readmissão.
Bernal sabia que suas opções eram limitadas. Estrategicamente, seria
fútil ressuscitar o nome da organização — para o mundo, o Noites de
Dezembro não existia mais. Até os papéis timbrados de merda eram inúteis
agora.
Uma possibilidade era iniciar seu próprio movimento terrorista
clandestino. Que se fodam os Wileys malucos e os veteranos débeis da Baía
dos Porcos; era hora do impetuoso sangue novo agir. Ainda assim persistia
o problema da credibilidade, e de apagar o estigma dos fracassos recentes.
Razão pela qual Jesús Bernal entrou sorrateiramente no quartel da
polícia de Dade County na noite de domingo, 30 de dezembro.
Se tudo corresse como planejado, Jesús imaginava que nunca mais teria
que se preocupar com seu futuro; ele passaria a ser o Reggie Jackson do
terrorismo do Sul da Flórida, estrela maior dos assassinos. O Primeiro Fim
de Semana de Julho, o Omega Seven, o Alpha 66 — todos eles estariam
batendo na porta de Bernal em minutos. Então talvez ele formasse sua
própria gangue, recrutando apenas os melhores homens dos outros e
deixando os bichas e os velhotes gagás para seus desfiles na Eighth Street.
Mesmo antes do acidente de helicóptero, Jesús Bernal tinha,
unilateralmente, decidido selecionar uma nova vítima. Para impressionar o
comandante, o alvo teria que ser uma pessoa de proeminência e autoridade
formidáveis. E, mais importante, a presa escolhida deveria ser representante
do que é mais abominável para A Causa — fossem lá concessões,
cumplicidade ou apatia.
A mais brilhante esperança de Bernal era o sargento Al García.
O vira-casaca gorducho tinha pedido para arranjar encrenca durante a
entrevista coletiva ao notar que não havia evidências de que Jesús estivesse
a bordo do acidentado Huey. Em seu estado paranoico e emocionalmente
em farrapos, Bernal viu essa observação como uma ofensa, alguma coisa
premeditada para retratá-lo como um covarde desprezível que se escondia
nos fundos enquanto seus confrades arriscavam a vida. Na verdade, García
mencionara Jesús Bernal apenas para incomodar os caras dos blazers
laranja; ele nunca pensou que isso precipitaria esse tipo de visita.
“Vá pelas escadas dos fundos”, comandou Bernal.
A delegacia de polícia estava praticamente vazia na noite de domingo, e
eles não viram ninguém nas escadas. Os dois emergiram de um corredor no
lado noroeste e atravessaram o estacionamento da cadeia, dissimulados por
muro alto. Bernal caminhava de modo rígido, segurando a arma apontada
para baixo e quase colada em sua perna direita; à distância, ele parecia estar
coxeando ligeiramente.
O carro de polícia sem insígnias de García estava estacionado na
Fourteenth Street.
“Você dirige”, disse Bernal. “E fique longe das avenidas.”
Eles se encaminharam para o Sul, cruzaram a ponte levadiça do rio
Miami e pararam num farol movimentado na Northwest Seventh Street.
“Que caminho a gente pega?”, perguntou García.
Jesús Bernal hesitou.
“Só um segundo.” Atravessada sobre seu colo estava a arma, o cano
apoiado na curva de seu braço. A arma era um modelo ultrapassado, com o
cano serrado até trinta centímetros. Al García não precisava de seu manual
de treinamento para imaginar o que uma arma de cano serrado poderia
fazer. Ela estava apontada para seus rins.
“Vire à direita”, disse Bernal asperamente.
García podia ver a leve impressão da raquete de tênis no rosto de seu
raptor. Também notou que o nariz de Bernal estava quebrado da pior
maneira, embora seus dentes fossem retos e brilhantes.
Eles falavam espanhol.
“Aonde estamos indo?”, perguntou García.
“Por quê, você está preocupado?”, disse Bernal de modo tenso. “Você
acha que um distintivo e uma arma transformam você num herói!
Transformam você num americano genuíno! Peço perdão, senhor Policía.
Você não é herói nenhum, você é um covarde. Você deu as costas para seu
país verdadeiro.”
“O que você quer dizer?”, perguntou García, trazendo a raiva de volta
para o estômago.
“Você não tem família em Cuba?”
“Tenho um tio”, replicou o detetive. “E uma irmã.”
Bernal encostou a arma no pescoço de García. O cano era frio e
penetrante.
“Você abandonou sua própria irmã! Você é um verme comedor de
merda, e eu devia te matar neste instante.”
“Ela preferiu ficar lá, minha irmã quis ficar.”
“No creo...”
“É verdade”, disse García. “Ela se casou com um cara do exército.”
“Que bosta! E o seu tio — que mentira você inventou para ele?”
“Ele é médico em Camaguey, com família. Quatro filhos. Isso não é
mentira.”
“Que merda!”
“Bote essa arma para baixo antes que alguém veja”, avisou García.
Relutantemente Jesús Bernal baixou a carabina. Ele a segurou nos
joelhos, abaixo do nível do painel do carro.
“Você pensa que foi fácil para mim?”, disse García. “Você pensa que foi
fácil partir e começar tudo de novo? Eu cheguei aqui sem nada.”
Jesús Bernal não se comoveu.
“Por que você não está lutando pela libertação da sua família?”, quis
saber ele.
Em vez de dizer alguma coisa da qual poderia se arrepender
eternamente, García não disse nada. Psicologia não era o seu forte; ele era
um adepto firme da escola do chute na cara como terapia para criminosos.
Jesús Bernal era um esquálido feixe de nervos à flor da pele. Ele
cheirava como se não tomasse banho havia um mês, e seu cabelo negro era
um gorduroso mato encrespado. Seus tênis de cano alto batucavam no
assoalho do carro, enquanto sua mão livre torcia e retorcia a barra da
camiseta. Estava irrequieto como um garoto cuja bexiga estivesse prestes a
explodir.
“O que você acha disso, senhor Policía? Eu pegando você, em vez de
você me pegar!” Jesús estava com dentaduras novas. “Corte caminho pela
Tamiami e vamos para a Via Expressa.”
“Mas você disse para ficar longe das avenidas.”
“Cale a boca e faça o que eu estou dizendo.” Bernal inclinou-se,
arrancou o microfone do rádio de polícia de García, e arremessou-o pela
janela. “Se você se sentir solitário, converse comigo.”
García deu de ombros.
“A noite está boa para um passeio de carro.”
“Espero que você esteja com o tanque cheio”, disse Bernal. “García, eu
quero te perguntar uma coisa, OK? Como um patife como você consegue
dormir de noite? Que canção de ninar um buitre pode cantar? Quando você
fecha os olhos, você vê a sua irmã e o seu tio em Cuba, hein? Você sente a
tortura e o sofrimento deles enquanto enche o cu de sorvete americano e vai
assistir partidas de jai-alai com seus parceiros brancos, hein? Eu sempre
fiquei imaginando como seriam traidores como você, García.
“Quando eu era muito jovem, meu trabalho era visitar os homens de
negócios e coletar contribuições para La Causa. Eu cobria quatro
quarteirões em Calle Ocho, e mais três na Flagler Street, no centro da
cidade. Um homem chamado Miguel — ele era dono de uma lavanderia
pequena — uma vez deu três mil dólares. E o velho Roberto, ele era dono
de um café. A gente chamava ele de Zorro Rojo, Raposa Vermelha. Roberto
tinha condições financeiras para ser um bom patriota. Nem todos esses
homens de negócios gostavam muito de me ver chegar, mas eles entendiam
a importância do que eu pedia. Eles detestavam Fidel, do fundo do coração,
e assim eles conseguiam arranjar dinheiro. Foi assim que nós sobrevivemos,
enquanto os traidores como você nos ignoravam.”
“Extorsão a troco de titica de galinha”, murmurou García.
“Cale a boca!”
García entrou na Via Expressa pela Tamiami e dirigiu para o Sul. O
trânsito diminuiu, e, nos dois lados da rodovia, os minúsculos apartamentos
espalhafatosos e as casas cafonas deram lugar a pastos, fazendas e
descampados. García, agora, não tinha mais nenhuma dúvida de que Bernal
planejava matá-lo. Ele supôs, cinicamente, que seria provavelmente uma
execução simples; ajoelhar nos cascalhos de alguma rodovia imunda, com
os mosquitos zumbindo em suas orelhas, o estrondo da arma logo devorado
pela noite vazia. Os urubus de merda iriam encontrá-lo primeiro. Os buitres.
Talvez não fosse má ideia confundir o bostinha. Talvez ele ficasse
excitado, talvez um pouco descuidado.
“E então, e aqueles seus companheiros?”
“Idiotas!”, disse Bernal.
“Ah, eu não tenho tanta certeza assim”, disse García. “Algumas
daquelas coisas eram do cacete.”
“Aquilo era meu”, disse Bernal. “O melhor que o grupo fez fui eu que
fiz. O atentado do Kennel Club... foi ideia minha.”
“Uma pilha de cachorros mortos. Que merda isso provou?”
“Quieto, coño. Provou que nenhum lugar era seguro, isso é o que foi
provado. Nenhum lugar era seguro para turistas e traidores e aventureiros
políticos. Qualquer idiota poderia sacar isso.”
García balançou a cabeça. Aventureiros políticos — definitivamente
uma expressão de Skip Wiley.
“Galgos mortos”, disse García sarcasticamente. “Tenho certeza que o
Fidel não conseguiu dormir durante uma semana.”
“Dirija, porra. Apenas dirija.”
“Eu nunca entendi o seu papel no grupo”, prosseguiu García. “Eu
pensava, que diabos um terrorista ultraviolento como Jesús Bernal vai
querer com turistas e condomínios? Eu pensava, talvez ele só queira ver o
nome dele no jornal. Talvez ele não tenha nenhum outro lugar para ir.”
Bernal cerrou o punho e golpeou o painel.
“Olhe só, é por isso que você é um tira tão burro! Pense, García. O que
aconteceu realmente ao movimento? Todo mundo em Miami ficou gordo e
contente, como você. Meio milhão de cubanos — eles poderiam tomar
Havana na hora que quisessem, mas não vão fazer isso porque a maioria
deles é exatamente igual a você. Ambicioso e próspero. A prosperidade está
matando o anticomunismo, García. Se o nosso povo aqui estivesse faminto,
com frio, ou morrendo, você acha que eles não iam querer voltar para
Cuba? Você acha que eles não iam se alistar para a próxima invasão? É
claro que iriam, milhares deles. Mas não agora. Ah, eles não se esquecem
de agitar bandeirolas e dar dinheiro e dizer ‘Morte ao barbudo!’. Mas eles
não acreditam nisso de verdade. Eles têm seus Chevrolets e suas entradas
para os jogos dos Dolphins, e não dão mais a mínima para Cuba. Eles nunca
vão sair da Flórida enquanto a vida aqui for melhor; então a única coisa que
podemos fazer é piorar tudo por aqui. É exatamente isso o que o Noites de
Dezembro tinha em mente. Era um bom plano, antes do grande señor Fuego
pirar, um bom plano baseado em sólida dialética. Se viesse a acontecer que
todos os turistas voltassem para o Norte, levando o dinheiro, então a
economia da Flórida ia se desintegrar e finalmente nosso povo seria forçado
a agir. E Cuba é o único lugar para onde podemos ir.”
A paciência de García estava se esgotando. Ele sabia tudo sobre Jesús
Bernal Rivera, nascido em Trenton, Nova Jersey, filho de um contador
público registrado e formado em uma das melhores universidades dos
Estados Unidos; um homem que nunca tinha colocado os pés na ilha de
Cuba.
“Você é uma farsa”, disse García a ele, “uma farsa de dar pena.”
Bernal levantou a arma e colocou o cano na têmpora direita do detetive.
García fingiu que não notou. Ele dirigia a oitenta quilômetros por hora,
num ritmo constante, as mãos suando ao volante. Bernal nunca atiraria nele
enquanto o carro estivesse indo tão rápido. Mesmo com a arma encostada
em sua cabeça, García estava se sentindo levemente mais otimista a respeito
de suas chances. Durante quinze quilômetros ele estivera observando um
par de faróis pelo espelho retrovisor. Uma vez ele pisou no breque, e quem
quer que estivesse seguindo piscou o farol em resposta. García pensou: Por
favor, que seja um policial.
Depois de uns poucos momentos tensos, Bernal abaixou a arma.
“Não agora”, disse ele, aparentemente para si mesmo. “Ainda não.”
García deu uma olhada e viu que um sorriso perverso tinha aparecido
nas feições manchadas do terrorista.

A Via Expressa terminava em Florida City, e o MG estava quase sem


gasolina. Brian Keyes encostou num posto que ficava aberto a noite inteira,
mas as bombas estavam desligadas e ele teve que esperar na fila para pagar
o frentista. Ele observou, impotente, as luzes traseiras do carro de Al García
desaparecerem, indo em direção a Card Sound.
Alcançá-lo seria um milagre.
Keyes tinha chegado ao quartel da polícia no mesmo instante em que
Jesús Bernal e García estavam entrando no carro. Ele tinha visto a arma de
Bernal, mas não houve tempo de conseguir ajuda; tudo o que podia fazer
era tentar ficar perto e esperar que Bernal não o visse.
Tudo estava indo bem até que ele checou o marcador de combustível.
Keyes abasteceu apressadamente, não mais que cinco dólares. Correu de
volta para a janela à prova de balas onde ficava o caixa e bateu no vidro.
“Chame a polícia!”, gritou ele para o funcionário. O homem não deu
sinais de compreender qualquer língua, ainda menos inglês.
“Um policial está em perigo”, disse Keyes. Apontou para a rodovia.
“Chame ajuda!”
O funcionário do posto balançou a cabeça vagamente.
“Não aceitamos cartões de crédito”, disse ele. “Sinto muito.”
Keyes pulou para dentro do MG e voou na Rodovia US One. Entrou na
Card Sound Road, uma estreita e aparentemente interminável estrada de
mão dupla ladeada por pinheiros em toda a sua extensão. A estrada estava
negra e desolada, sem nenhum outro carro à vista. Keyes pisou fundo no
acelerador e viu o velocímetro subir para cento e vinte. Mosquitos, mutucas
e borrachudos atingiam o carro, e seu sangue de geleia escorria pelo para-
brisa. De vez em quando os faróis paralisavam algum coelho ou gambá na
beira da estrada, mas não havia sinais de vida humana em parte alguma.
Quando a rodovia apontou para o Leste, Keyes diminuiu para conferir
uns carros num bar de siris, e depois no Alabama Jack’s, uma taverna
popular, que estava fechada à noite. No posto do pedágio para a ponte de
Card Sound, ele perguntou a uma caixeira sonolenta branquela se não tinha
visto um Dodge preto passar.
“Dois cubanos”, relatou ela. “Faz cinco minutos. Eu lembro porque eles
não esperaram o troco.”
Keyes cruzou a ponte arrastando-se, estudando as faces noturnas dos
pescadores e caçadores de caranguejos alinhados ao lado da murada. Pouco
depois, ele estava em North Key Largo, e mais sozinho do que nunca.
Aquela extremidade da ilha permanecia uma vastidão de arbustos, mogno,
plátanos e mangue-vermelho. Os últimos crocodilos norte-americanos
viviam naqueles charcos salobros; foi ali que Tommy Rabo-de-Tigre
recrutou Pavlov. Havia também jacarés, ratos-do-mato, raposas, hordas de
guaxinins, e uma ou outra lontra tímida. Mas a maior parte da ilha estava
cheia de pássaros: falcões noturnos, águias-pescadoras, gaios azuis,
papagaios, colhereiros, garças, corvos marinhos, corujas raras. Alguns
dormiam, alguns caçavam e alguns, como os abutres calvos, esperavam
ominosamente pela aurora.
Keyes saiu para a Rodovia Municipal 905, dirigiu cerca de um
quilômetro e estacionou na beira da estrada. Baixou o vidro e o minúsculo
carro esporte imediatamente ficou infestado de insidiosos mosquitos negros.
Keyes começou a matá-los mecanicamente, e tentou escutar, em meio ao
zumbido dos insetos e aos guinchos dos falcões noturnos, alguma coisa que
estivesse fora de lugar. Talvez o som de alguma porta de carro batendo, ou
vozes humanas.
Mas a noite não dava pistas.
Andou mais um quilômetro na estrada e parou de novo; nada ainda,
exceto ruídos silvestres e o cheiro salgado do oceano. Depois de alguns
minutos, um guaxinim barrigudo saiu dos arbustos e ficou de pé nas patas
traseiras para investigar; ele piscou diante de Keyes e foi embora,
guinchando irritado.
Ligou o MG e desceu a 905 em alta velocidade para tirar os mosquitos
do carro. Estava dirigindo tão rápido que quase o perdeu, camuflado no
lado leste da rodovia, enfiado num matagal denso. Um lampejo de cromo
no meio do mato verde-escuro foi o que chamou a atenção de Keyes.
Pisou no freio e abaixou a capota conversível. Deslizou para fora do
carro e abriu o porta-malas. Tateando na escuridão, encontrou o que estava
procurando e rastejou de volta para onde estava o carro.
O Dodge preto estava vazio e seu motor praticamente frio ao toque.

Os dois homens estavam sozinhos, de pé na extremidade de um quebra-


mar desgastado e coberto de limo, como um dedo de pedra enfiado no mar.
Um morno vento agridoce soprava do Nordeste, remexendo o fino cabelo
preto de García. Seu bigode estava úmido de suor, e seus braços nus
coçavam e sangravam por causa da caminhada no matagal. O detetive tinha
abandonado todas as esperanças quanto ao carro do espelho retrovisor; ele
saíra da estrada em Florida City.
Jesús Bernal parecia não notar a nuvem de mosquitos enxameando ao
redor de sua cabeça. García pensou: Talvez eles não o piquem — o sangue
dele está envenenado e os insetos sabem disso.
Febril de excitação, o rosto de Bernal brilhava com os reflexos da água.
Seus olhos dardejavam como os de um rato, e sua cabeça se voltava
bruscamente a cada barulho abafado de animais que vinha do mato atrás
dele. Numa das mãos Bernal carregava a carabina de cano serrado, e com a
outra balançava uma pesada lanterna da polícia, colocando fitas cor de
âmbar na escuridão.
Jesús já estava pensando na jornada de volta para o carro, sozinho. A
arma provavelmente estaria vazia então, e seria inútil. Ele estava cada vez
mais terrificado só de pensar na provação — de que valia uma lanterna
contra as panteras? Imaginou-se aprisionado a noite toda no matagal
impenetrável; a princípio desorientado, depois em pânico. Depois perdido!
Os próprios sons, por si sós, poderiam levá-lo à loucura.
Porque Jesús Bernal tinha medo do escuro.
“Qual é o problema?”, perguntou García.
“Nada.” Bernal rangeu as dentaduras e fez o medo ir embora. “Este é o
lugar onde dizemos adiós.”
“Ah, é?” García pensou que parecia um lugar estranho para uma
execução. O quebra-mar não ajudaria a esconder nada e o eco do disparo
seria levado a quilômetros de distância através da água. Ele tinha a
esperança de que um barco poderia passar logo.
Jesús Bernal tateou em suas calças cáqui e trouxe um envelope pardo
dobrado no meio.
“Abra”, guinchou ele. “Leia em voz alta.” Ele colocou o farol em
posição tal que García pudesse ver o documento, que tinha sido
caprichosamente datilografado. Parecia muito mais longo do que qualquer
um dos comunicados do Noites de Dezembro.
“O que é isso, você está escrevendo um livro?”, resmungou o detetive.
“Leia!”, disse Bernal.
García tirou os óculos de um bolso da camisa.
Havia duas seções idênticas, uma em espanhol e outra em inglês:
“Eu, Alberto García Delgado, aqui confesso ser um traidor do meu país
nativo, Cuba. Admito ter cometido o mais grave dos crimes: perseguir e
assediar aqueles bravos revolucionários que destruiriam o ditador Fidel
Castro e que libertariam nossa nação sofredora de modo que todos os
cubanos a ela pudessem retornar. Com meus crimes vis, desonrei esses
patriotas e envergonhei minhas próprias origens e a do meu pai. Lamento
profundamente meu comportamento sedicioso. Percebo que jamais poderei
ser perdoado por usar minha autoridade policial para obstruir o que era bom
e justo. Por essa razão, concordei em aceitar qualquer punição considerada
adequada por meu juiz, o honrado Jesús Bernal Rivera — um homem que
dedicou corajosamente sua vida aos mais nobres apelos revolucionários.”
García passou o documento de volta para Jesús Bernal e disse:
“Eu não vou assinar isso, chico.” Ele sabia que tinha pouco tempo.
“Ah, eu acho que você vai reconsiderar.”
“De jeito nenhum.”
García pulou para a frente, tentando agarrar a arma. Jesús puxou o
gatilho e uma bola de fogo alaranjada lançou para cima o investigador e o
arremessou ao chão.
Ele caiu de costas, olhando nebulosamente para as estrelas tropicais.
Sua cabeça latejava, e seu lado esquerdo parecia fumegante e ensopado.
Jesús Bernal estava, ele próprio, um pouco cambaleante. Nunca tinha
disparado uma carabina antes, e descobriu que não empunhara a arma de
modo apropriado. O rebote do tiro o golpeara fortemente na barriga,
deixando-o sem fôlego. Passou um minuto inteiro antes que ele conseguisse
falar de novo.
“Levante!”, disse ele a García. “Levante e assine a sua confissão. Ela
vai ser lida em todas as rádios amanhã.”
“Não posso.” García não sentia mais seu lado esquerdo. Tateou
cautelosamente com a mão direita e descobriu que sua camisa estava
retalhada e empapada de sangue. Um osso irregular saía do alto de seu
ombro. Sentia-se atordoado e sem fôlego, e sabia que logo entraria em
estado de choque.
“Levante, traidor!” Jesús Bernal estava de pé, sobre o investigador, e
brandia a arma como se fosse uma espada.
García pensou que, se pelo menos conseguisse ficar de pé, poderia ser
capaz de correr para o mato. Mas, quando tentou se levantar dos cascalhos,
suas pernas fraquejaram num espasmo.
“Não posso me mover”, disse ele fracamente.
Jesús Bernal enfiou raivosamente o documento dentro do bolso.
“Vamos ver”, disse ele. “Vamos ver isso. Você está preparado para
receber a sua sentença?”
“Sim”, gemeu García. “Seja lá que merda for.”
Bernal caminhou para a ponta do quebra-mar.
“Escolhi este lugar por uma razão”, disse ele apontando a arma para o
Atlântico. “La longe está Cuba. A trezentos e vinte quilômetros. É mais
perto que Disney World, senhor Policía. Acho que é hora de você ir para
casa.”
“Não acredito nisso”, disse Al García.
“Você é bom nadador?”, perguntou Jesús Bernal.
“Não quando estou completamente paralisado.”
“Que gracinha. Bem, esta é a sua sentença. A sentença que — você
concordou — é adequada a seus crimes horríveis. Alberto García, verme e
traidor, eu ordeno que você retorne imediatamente a Cuba. Lá você vai se
unir aos comandos clandestinos e combater o demônio em seu próprio
quintal. É assim que você vai se redimir. Talvez assim você possa ser um
herói algum dia. Ou, pelo menos, um homem.”
“E que tal comida de tubarão?”, disse García. Mesmo com os dois
braços em bom estado, ele era um péssimo nadador. Sabia que não
conseguiria nadar nem até o recife Molasses, muito menos até o porto de
Havana. Era uma ideia divertida, de fato. García se escutou gargalhando
alto.
“O que é que é tão engraçado?”
“Nada, comandante.”
O investigador começou a pensar em sua família. Em sonho, retratou
sua esposa e seus filhos do modo como eles estavam na última vez em que
os vira, no jantar, havia duas noites. Eles pareciam estar todos sorrindo. Ele
pensou: Eu deveria ter feito alguma coisa direito.
Abriu os olhos e virou a cabeça para ver os canos dos estúpidos tênis de
Jesús Bernal.
“Levante!”, gritou Bernal. Ele chutou García, uma, duas, três vezes, até
que o detetive perdeu a conta. Não eram chutes fortes, mas diabolicamente
calculados.
Bernal se abaixou até que seu rosto ficou a centímetros de distância do
de García.
“Levante esse seu rabo fedido do chão”, disse Bernal, seu hálito era
amargo e nojento.
Mais uma vez García tentou se sentar, mas caiu e rolou para o lado.
Quase desmaiou quando todo o peso de seu corpo desabou sobre seu braço
ferido.
Bernal recomeçou os chutes e García rolou de novo. As pedras e os
corais penetravam-lhe a carne exposta.
“Vá!”, berrou Bernal, empurrando com o pé. “Vá, vá, vá!”
García caiu na água com um barulho abafado. O sal arranhou suas
feridas e um frio repentino agarrou seu peito, roubando-lhe todo o fôlego.
García não sabia se o mar ali era muito fundo, mas não importava. Ele se
afogaria até numa caçarola. De algum modo ele voltou à superfície e
engoliu um pouco de ar.
Olhou para cima em direção ao quebra-mar e viu a silhueta esquelética
de Bernal, a arma erguida acima de sua cabeça em triunfo. Jesús jogou
fachos de luz através das ondas.
“É melhor você começar!”, disse ele de modo exuberante. “Vá em
direção ao farol de Carysfort. É um bom lugar para descansar. Quando o dia
nascer você vai estar pronto para começar de novo. Rápido, mi guerrero, a
caminho de Cuba! Ela não está tão longe quanto você pensa.”
García estava fraco demais para flutuar, quanto mais para nadar.
Famintamente ele puxava o ar, mas não era suficiente. Uma dor profunda e
atroz começou a toldar seu pensamento consciente, e ele se sentiu perdendo
a consciência. Chapinhou aleatoriamente com o braço bom; não se
importava de estar indo em círculos, desde que sua cabeça ficasse acima da
água.
“Você parece um idiota!”, guinchou jocosamente Jesús Bernal. “Um
palhacinho gordo!”
Outro tiro despedaçou a noite e Jesús Bernal começou a executar uma
dança curiosa, saltitando como uma marionete. Em seu nevoeiro cada vez
mais profundo Al García pensou: O idiota está atirando para o ar, como nas
comemorações de Ano Novo.
Outro tiro ainda veio, e depois mais, até que os estampidos se
misturaram numa ressonância surda, como num sino de igreja. García se
perguntou por que não via os lampejos de fogo saindo da boca dos canos
serrados.
A esquisita dança de Jesús Bernal ficou paralisada. Repentinamente ele
parou de pular, dobrou o corpo e emitiu um uivo horripilante. A arma e o
farol tilintaram nas rochas.
Mas García estava sem forças. Seu braço parecia feito de cimento, e o
desejo de se salvar evaporou-se sob uma onda tépida de fadiga
incontrolável. Ele estava despencando em direção à euforia, para longe de
toda a dor. O oceano tomou-o gentilmente e fechou seus olhos cansados,
mas não antes que ele visse um tiro final arrancar a calota craniana de Jesús
Bernal e deixá-lo em convulsões numa brecha do quebra-mar.
29

“Belo tiro, campeão”, disse Al García debilmente.


“Odeio essa merda de arma.” Brian Keyes precisara de seis disparos da
Browning para colocar a bala onde desejava. Suas mãos ainda formigavam
dos tiros.
“Que hospital fica mais perto daqui?”
“Homestead”, disse García tremendo. “Avise a minha mulher, por
favor.”
“Assim que nós chegarmos lá.”
“Estou puto com você. Por que não me falou de seu coleguinha Wiley?”
“Ele disse que iria matar muito mais gente se eu contasse.”
García tossiu.
“Não poderia ser muito pior do que foi.”
“Ah, não? Viu o estrago que aquela bomba fez naquele banheiro —
agora imagine a mesma bomba no desfile, com todas aquelas crianças. Um
holocausto, Al. Ele parecia ser capaz de fazer qualquer coisa.”
“De qualquer jeito você devia ter me contado”, disse García. “Cacete,
isso dói. Vou tirar uma soneca.” Fechou os olhos e afundou-se no banco de
passageiros. Logo Keyes podia ouvir sua respiração, um som irregular e
rascante.
Keyes dirigia como louco. Gotículas de água salgada pingavam de seu
cabelo na boca e nos olhos; estava ensopado até os ossos. O sangue de
García empapara sua camisa e calças. À medida que o MG avançava de volta
à Rodovia US 1, uma dor aguda fisgou-o sob o braço direito. Keyes pensou
se não teria reaberto a velha ferida ao carregar García nas costas através do
matagal.
A viagem de Key Largo até o Farmer’s Hospital levou vinte minutos.
García estava inconsciente quando eles chegaram ao pronto-socorro, e foi
imediatamente despido e encaminhado para cirurgia.
Keyes ligou para a esposa de García e lhe disse para vir o mais rápido
possível, Al fora ferido. Então ele tentou Jenna. Deixou tocar quinze ou
vinte vezes, mas ninguém atendeu. Ela havia partido? Estava escondida?
Morta? Ele considerou a possibilidade de dirigir até a casa e invadi-la, mas
era muito tarde e ele estava cansado demais.
Deu mais um telefonema, para a delegacia de homicídios de Metro
Dade. Ele lhes disse onde encontrariam o corpo de Jesús Bernal. Logo a
ilha estaria entupida de repórteres.
Keyes olhou para o relógio e sorriu diante da ironia; duas e meia da
manhã. Tarde demais para fazer a coisa entrar nos jornais da manhã.

O telefone arrancou Cab Mulcahy de seu sono às sete e meia.


“Recebi uma mensagem de que você telefonou. O que foi que houve?”
Era Cardoza.
Mulcahy sentou-se curvado na beira da cama, esfregando o sono de seus
olhos.
“É sobre Skip Wiley”, disse molemente.
Ele contou a Cardoza sobre o envolvimento criminoso de Wiley com o
Noites de Dezembro, não omitindo nada exceto o fato de ele mesmo ter
sabido de tudo isso antes.
“Caramba!”, exclamou Cardoza. “Talvez isso explique...”
“O quê?”
“O Wiley me mandou uma coluna de Ano Novo ontem, mas eu quase
rasguei aquilo. Pensei que era falsa, algum imbecil fazendo piada.”
“O que ela diz?”, perguntou Mulcahy. Ele não estava surpreso por
Wiley ter ignorado a cadeia de comando e chamado diretamente o dono do
jornal. Skip sabia o quanto Cardoza gostava de seu trabalho.
Cardoza leu parte da coluna pelo telefone.
“Parece uma confissão”, disse Mulcahy. Era realmente notável. “Senhor
Cardoza, temos que escrever sobre tudo isso.”
“Está brincando.”
“É o nosso trabalho”, disse Mulcahy.
“Fazer um jornal respeitável parecer uma casa de loucos — é esse o
nosso trabalho?”
“Nosso trabalho é publicar a verdade. Mesmo se ela for amarga e nos
fizer parecer um bando de bobos.”
“Fale por você”, disse Cardoza. “Então o que fazemos com este artigo?
Não é nem um pouquinho engraçado, você sabe.”
“Acho que temos que rodar como está — bem do lado de uma
explicação substancial de tudo o que aconteceu no mês passado.”
Cardoza estava bestificado. Em nenhum outro ramo você penduraria sua
própria roupa suja bem na cara dos fregueses; isso não era ética, era
idiotice.
“Não se precipite”, disse Cardoza a Mulcahy. “Eu ouvi no rádio que
toda a gangue está morta. Acho que isso inclui o senhor Wiley também.”
“Bem, hoje é o grande desfile”, disse Mulcahy. “Vamos esperar e ver.”
Cardoza estava pasmo com a revelação sobre Skip Wiley. De todos os
articulistas do jornal, Wiley havia sido o seu favorito, o tempero da receita.
E, embora nunca tivesse se encontrado de fato com o homem, Cardoza
sentia que o conhecia intimamente por meio de seus textos. Sem dúvida
Wiley era impulsivo, irreverente, mesmo grosseiro às vezes — mas
homicida? Ocorreu a Cardoza que um jornal daquele tamanho deveria estar
apinhado de psicopatas disfarçados como Wiley; o potencial para desastres
futuros parecia assustador. Desastres caros, também. Desastres do tipo
jurídico.
“Você tem certeza de que temos que publicar isso?”, disse Cardoza.
“Absoluta”, retrucou Cab Mulcahy.
“Então vá em frente”, rosnou o editor, “mas quando começar a
enxurrada de telefonemas lembre que eu estou fora da cidade.”
O negociante empedernido em Cardoza — ou seja, tudo em Cardoza —
imediatamente pensou em vender o jornal, caindo fora antes que
interditassem todo o prédio. Justamente na semana passada ele recebera
uma excelente oferta da Krolman Corporation, fabricante de bidês franceses
mundialmente famosos. Um pouco supercapitalizada, mas eles haviam
fechado com um lucro de trinta milhões de dólares no ano passado,
descontados os impostos. Cardoza ficara impressionado com a soma —
trinta paus era um tanto de grana. Agora os rapazes da Krolman queriam
diversificar os negócios.
Seus dedos já se movimentavam pela agenda mesmo antes de bater o
telefone na cara de Cab Mulcahy.

Reed Shivers bateu forte na porta do quarto de hóspedes.


“Quero falar com você, rapaz!”
“Mais tarde”, resmungou Keyes.
“Não, sem essa de mais tarde. Agora! Abra essa porta!”
Keyes deixou Shivers entrar e recebeu-o com uma careta.
“Abra já essa porta! E eu tenho cara de quê? Nossa, pai, eu só estava
tirando uma soneca.”
“Já chega, senhor Keyes. Você disse que ia sair por uma hora ontem à
noite — uma hora! A empregada disse que você voltou às seis.”
“Aconteceram algumas coisas. Não pude evitar.”
“Então você simplesmente cai fora e esquece da minha filha”, disse
Reed Shivers.
“Tinha uma viatura em cada esquina no quarteirão.”
“E ela sozinha, uma noite antes do grande desfile!”
“Eu disse que não pude evitar”, disse Keyes.
Kara Lynn aproximou-se usando um mole robe cor-de-rosa e chinelos
fofos. Seu cabelo estava armado num coque e seus olhos sonolentos. Sem
maquilagem, ela parecia ter catorze anos.
“Oi, rapazes”, disse ela. “Qual é o problema?”
Em seguida ela percebeu que Brian havia dormido vestido. Ela fixou a
mancha marrom pegajosa em suas roupas, de algum modo sabendo o que
era. Também notou que ele ainda usava seu coldre de ombro. A Browning
semiautomática estava sobre o criado-mudo. Era a primeira vez que ela a
via. Ela parecia difícil de manejar, e fora de lugar num quarto de dormir.
“O cubano está morto”, disse Keyes secamente.
Reed Shivers coçou o queixo timidamente. Ocorreu-lhe que havia
subestimado Keyes ou, pior, o entendera de modo totalmente errado.
“Bernal raptou García na noite passada e tive que atirar nele”, disse
Keyes.
Kara Lynn deu-lhe um longo abraço, com os olhos fechados. Keyes
permanecia ereto, sem saber como agir diante do pai dela. Reed Shivers
olhou para o outro lado dando um estalinho de desaprovação com a língua.
Keyes disse:
“Acho que uns policiais vão vir até aqui mais tarde para me fazer
algumas perguntas.”
Reed Shivers cruzou os braços e disse:
“Na verdade é uma ótima notícia. Isso quer dizer que todos aqueles
Nachos filhos da mãe estão mortos. De acordo com os jornais, esse cubano
era o último.” Ele puxou sua filha de volta para uma distância segura.
“Minha gatinha, você não percebe? O desfile vai ser maravilhoso — não há
mais ameaça. Não vamos precisar mais do senhor Keyes.”
Kara Lynn olhou para Brian inquisitivamente.
“Vamos ser cautelosos, senhor Shivers. Tenho minhas dúvidas sobre
aquele acidente de helicóptero. O sargento García e eu concordamos que
tudo deve ficar como o combinado para hoje à noite. Não muda nada.”
“Mas deu na TV. Todos aqueles maníacos estão mortos.”
“E se não estiverem?”, disse Kara Lynn. “Pai, eu me sentiria melhor se
a gente seguisse com o plano. Só para hoje à noite.”
“Tudo bem, docinho, se isso faz você dormir melhor. Mas a partir de
amanhã de manhã nada mais de guarda-costas.” Reed Shivers voltou ao
saguão, ainda pensando no abraço.
Brian Keyes fechou a porta cuidadosamente e a trancou. Tomou Kara
Lynn pela mão e a levou até a cama. Eles se deitaram e abraçaram um ao
outro; ele, abraçando um pouco mais forte. Keyes percebeu que cruzara
uma fronteira gelada e não poderia voltar a ser o que era, o que treinara para
ser — um observador profissional, um voyeur inteligentemente afastado
que era especialista em reconstruir a violência depois que ela ocorrera mas
que nunca estava presente ou participando dela. Para repórteres, a proteção
estava em poder ir embora, polir os fatos, esquecer deles. Era tão fácil
quanto desligar a televisão, porque o que quer que estivesse acontecendo,
estava sempre acontecendo a outra pessoa; a realidade era tempo passado, e,
uma vez distante, era algo para ser observado mas não experimentado. Dois
anos atrás, diante de um fato como aquele, o próprio Keyes estaria correndo
para o Sul juntamente com a matilha, acotovelando-se para chegar ao
presunto primeiro, seu caderno aberto, seus olhos ávidos por cada detalhe,
contando os buracos de bala no cadáver, agora cinzento e sem sangue. E
dois anos atrás ele talvez passasse mal diante da cena e fosse vomitar no
mato, onde os outros repórteres não pudessem vê-lo. Mais tarde ele teria
permanecido à distância e estudado a cena da morte, mas apenas poderia
imaginar o que acontecera, ou por quê.
“Nós não temos que falar disso”, disse Kara Lynn. Seu corpo se
aproximou mais do dele. “Vamos só ficar aqui deitados um pouco.”
“Eu não tinha escolha. Ele atirou em García.”
“Esse era o mesmo homem que nós vimos do lado de fora do clube de
campo. Você tem certeza?”
Keyes fez que sim.
Ele disse:
“Talvez eu devesse rezar, ou qualquer coisa desse tipo. Não é isso o que
você deve fazer quando mata alguém?”
“Só em spaghetti westerns.” Ela enlaçou a cintura de Keyes. “Tente
descansar um pouco. Você fez a coisa certa.”
“Eu sei”, ele disse sem vibrar. “A única coisa que me faz sentir culpado
é que eu não me sinto culpado. O filho da puta merecia morrer.”
As palavras foram pronunciadas friamente. Kara Lynn tremeu. Às vezes
ele a assustava, apenas um pouco.
“Ei, Sundance, você quer ver o meu vestido?”
“Claro.”
Ela saltou da cama.
“Fique aí mesmo, não se mexa”, disse ela. “Vou me arrumar para você.”
“Eu gostaria disso”, disse Keyes. “Com certeza.”

Ao meio-dia Al García acordou. Olhou ao redor do quarto de hospital e


sentiu-se aconchegado por suas paredes amarelo-foscas e pelas sombras
listradas projetadas pelas venezianas. Estava muito dopado para prestar
atenção no ardor em seu braço, ou no enorme laço na base de seu pescoço,
ou no som borbulhante que vinha de dentro de seu peito. Em vez disso, o
detetive foi banhado por uma sensação de puro triunfo: ele estava vivo e
Jesús Bernal estava morto. Mais morto que uma barata. Al García saboreou
o papel de sobrevivente, mesmo que devesse sua vida não aos seus próprios
reflexos lentos, mas a Brian Keyes. O garoto tinha mostrado ser firme como
uma rocha e forte como um urso para tirá-lo do mar do jeito como fizera.
Sonolentamente García cumprimentou sua esposa, que ofereceu seu
carinho mas metralhou-o com perguntas que ele fingiu não ouvir. Mais
tarde, um cirurgião ortopédico veio informar que, embora o braço esquerdo
de García houvesse sido salvo, ainda era muito cedo para saber se os
músculos e ossos se recuperariam satisfatoriamente; o ombro estava sendo
mantido inteiro basicamente por pinos de aço e categute. García
preocupadamente perguntou se algum fragmento de bala tinha atingido a
espinha, e o médico disse que não, ainda que a queda inicial sobre o
pescoço houvesse causado alguma perda temporária de sentidos. García
mexeu os dedos de ambos os pés e pareceu satisfeito em saber que poderia
andar de novo.
Ele começava a cair no sono quando o chefe de polícia apareceu. García
evitou olhar para ele.
“Os médicos dizem que você vai sair bem desta”, murmurou o chefe.
“Moleza”, cochichou García.
“Olha, sei que é uma hora ruim, mas a imprensa vai cair com todas as
garras em cima desse tiroteio. Nós estamos tentando compor um
comunicado breve. Há alguma coisa que você possa me dizer sobre o que
aconteceu lá?”
“Vocês encontraram o corpo?”
“Encontramos”, replicou o chefe. “Atingido quatro vezes com uma nove
milímetros. O último tiro acertou mesmo em cheio, esparramou os miolos
dele daqui até metade do caminho para Bimini.”
“O filho da puta atirou em mim com uma de cano serrado.”
“Eu sei”, disse o chefe. “A questão é: quem acabou com ele?”
“Amanhã”, disse García, fechando os olhos.
“Al, por favor.”
“Amanhã, a história toda.” Ou tanto dela quanto fosse absolutamente
necessário.
“OK, mas eu tenho que dizer alguma coisa para a imprensa esta tarde.
Eles estão rondando como um bando de hienas que não comem há meses.”
“Diz pra eles que você não sabe nada. Diz que eu não recobrei a
consciência.”
“Isso pode funcionar”, ruminou o chefe.
“Pode apostar que vai funcionar. Mais uma coisa...” García parou para
ajustar o tubo de plástico em seu nariz. “Diga às enfermeiras que eu quero
uma TV.”
“Parece razoável.”
“Uma TV a cores para hoje à noite.”
“Claro, Al.”
“Eu não quero perder o desfile.”
30

No meio do século XIX, Miami era conhecida como Fort Dallas. Era um
barrento, estacionário, sufocante vilarejo de duzentas almas, infestado de
cobras, perenemente sob ataque de semínoles astutos ou arrasada por
epidemias de malária. Isso foi bem antes de Fisher, Flagler e outros
invasores de terras chegarem para sugar suas fortunas do mais famoso
pântano da América do Norte. Era um tempo em que a obsessão local era a
sobrevivência, não metros quadrados, quando o sol não era uma vantagem
condominial mas uma maldição flamejante.
Ninguém sabia o que Fort Dallas poderia eventualmente vir a ser — não
que esse conhecimento fosse alterar o seu futuro. O sonho estava sempre lá,
apoio contra as cruéis vicissitudes. Então, como hoje, o cheiro das
oportunidades era forte demais para ser ignorado, atraindo uma procissão de
negociantes, homens condenados pela justiça, desertores confederados,
eremitas, ladrões de gado, ciganos e mercadores de escravos. Sua
inventividade, tenacidade e total desprezo pela natureza intocada ao redor
deles daria o tom para o desenvolvimento posterior do Sul da Flórida. Eles
preservaram apenas o que era livre e imutável — o sol e o mar — e
reservaram o resto para a destruição, pois de que outra forma poderiam
vender tudo? Em seu estado natural, a encharcada fronteira sul do lago
Okeechobee simplesmente não era negociável. Ainda assim, a
transformação da face da terra começou devagar, não tanto por causa dos
índios ou do terreno, mas devido à atrasada técnica de pilhagem.
Finalmente, com a chegada das rodovias, e o advento da draga e do trator,
veio também o fim de Fort Dallas.
Por trinta anos, contando a partir do fim do século, o Sul da Flórida
desenvolveu-se com velocidade assustadora. Oportunistas gananciosos
ocuparam tanta terra quanto puderam, desmataram-na, limparam-na e a
venderam. Onde não havia terra, eles a dragavam do fundo da baía de
Biscayne, a transformavam em ilha artificial, batizavam com o nome de
uma flor ou de uma filha ou com o nome deles mesmos e a ofereciam como
um oásis natural. Tudo isso era feito com grande eficiência e entusiasmo,
mas sem a mínima cautela.
Os especuladores que não estouraram os miolos depois do furacão de 26
ou se enforcaram após as grandes desapropriações foram em seguida
recompensados com riquezas indizíveis. Hoje eles são venerados por sua
perseverança e firmeza de espírito, e alguns até mesmo têm parques
públicos com seus nomes. Essas personagens são vistas como os
verdadeiros pioneiros do Sul da Flórida.
São seus descendentes, os herdeiros do paraíso (e dos bancos e terras),
que criaram o desfile anual do Orange Bowl.
O evento iniciou-se cinquenta anos atrás como um singelo desfile,
entretenimento na rua principal para criancinhas e turistas. Mas, com a
ascensão da televisão, o evento cresceu e mudou de caráter. Gradualmente
ele se tornou um elaborado instrumento de autopromoção, deliberadamente
montado para mostrar ao resto dos Estados Unidos (sofrendo as agruras do
inverno) um santuário ensolarado, cênico e sexy. A ideia era fazer com que
todos pendurassem seus sobretudos e saltassem para o primeiro avião com
destino à Flórida. Para essa finalidade, o desfile do Orange Bowl era tão
meticulosamente orquestrado quanto um ataque nuclear. Aqueles que
apareceriam diante das câmeras eram cuidadosamente selecionados: bandas
colegiais de Bumfuck, no Iowa, irradiando alegria de seus rostos queimados
enquanto marchavam pelo Biscayne Boulevard abaixo; um grupinho de
negros caribenhos e hispânicos sul-americanos, evidência da exótica mas
devidamente supervisionada variedade cultural de Miami; as mais inócuas
das celebridades televisivas, encantadas por auxiliar o escritório de turismo
em troca de amplos quartos no Fontainebleau.
Do ponto de vista da Câmara de Comércio, o ingrediente mais essencial
era o sexo subliminar. Você não pode vender praias ensolaradas sem
mostrar bustos femininos bronzeados; a parte central da América saliva por
eles. Assim, o desfile sempre contava com mulheres em sumários mas não-
tão-acintosos biquínis. A modelo preferida era a loira pneumática e
adolescente, sugestivamente abraçando uma palmeira de borracha ou
montada num jacaré inflável, e sorrindo tão fixamente que qualquer idiota
poderia ver que sua maquilagem tinha sido aplicada com uma pá de
pedreiro.
Todo ano a comissão do Orange Bowl escolhia um ensolarado tema
novo, mas raramente ele se referia à história predatória da Flórida. Guerras
nos pântanos, fugas de escravos e massacres de crianças índias não
pareciam aos pais do Orange Bowl como tópicos adequados a um desfile;
um desfile criado para ser puramente um cartão-postal exibido em horário
nobre.
Como já informado, o slogan do ano era “Tranquilidade Tropical”.

Às seis da tarde os carros alegóricos e palhaços e bandas colegiais se


reuniram nos estacionamentos defronte ao Dupont Plaza Hotel. Nuvens
escuras se aproximavam vindas do Norte, encobrindo o crepúsculo
avermelhado e baixando a temperatura. Veio o vento em rajadas geladas;
algumas das garotas de maiô correram de volta para os camarins para
colocar band-aids nos biquinhos de seus seios, para que elas não se
sentissem embaraçadas se esfriasse.
Antes de o desfile começar, um enorme balão, réplica de alguma
personagem de história em quadrinhos, com dentes como os de Erik
Estrada, escapou das cordas que o prendiam e voou em direção aos fios de
alta tensão. Um policial atirou nele com um rifle, fazendo a primeira vítima
da noite.
Tradicionalmente, a marcha começava com uma guarda de honra da
polícia e terminava com o carro da rainha. Nesse ano, a ordem seria
diferente. Al García insistira para que uma tropa de guardas fosse colocada
a distância de um grito de Kara Lynn Shivers, mas a comissão do Orange
Bowl recusou terminantemente, temendo Grandes Problemas de Imagem se
câmeras de TV mostrassem policiais uniformizados no mesmo quadro que a
rainha. Brian Keyes sugerira um termo médio, que foi aceito: um colorido
contingente de shriners em suas motocicletas foi colocado entre o carro da
rainha e o grupo SWAT da cidade de Miami, que também participava do
desfile.
Os shriners seriam guiados, obviamente, por Burt e James, com armas
enfiadas em suas calças largas. Dos quarenta homens que os seguiriam,
apenas vinte pertenceriam realmente ao Grupo Shriner de Evanston; o resto
seria de motociclistas da polícia, secretamente selecionados por Al García.
Essa parte do plano nunca foi revelada ao Comitê do Orange Bowl ou à
Câmara de Comércio. No entanto, para qualquer um que prestasse atenção
nas expressões incomodadas dos rostos incomumente jovens e viris
daqueles shriners, ficaria evidente que alguma coisa não estava certa. A
forma como eles usavam seus barretes, para começar: bem no topo, em vez
do engraçado desvio de dez graus que lhe davam os shriners.
Havia ainda mais poder de fogo: trinta oficiais à paisana, armados com
pistolas automáticas (e com a carranca de Viceroy Wilson marcada a fogo
em suas memórias), se deslocariam na multidão, flanqueando o carro de
Kara Lynn. Do alto, oito atiradores de elite da polícia com miras
infravermelhas observariam o Biscayne Boulevard e a Flagler Street, rotas
do desfile, a partir de vários prédios centrais.
O carro da rainha luzia em dourado e cobalto, graças a setenta mil
pétalas de flores de polietileno aplicadas sobre uma armação de madeira
compensada, gesso e tela de arame. O motivo da decoração era “Mágica de
Sereias”, e trazia Kara Lynn num vestido colante meio ocre, seus cabelos
em cachinhos sob a tiara do Orange Bowl, suas bochechas brilhando como
se beijadas pelo mar. Houvera uma breve discussão sobre se ela deveria ou
não usar uma cauda de peixe de borracha, e, embora seu pai aprovasse a
ideia (“Mais tempo no ar, queridinha”), ela recusou firmemente.
O trono de Kara Lynn era um recife de coral simulado, posto na frente
do carro. Desse poleiro ela sorriria e acenaria para a multidão enquanto um
aparelho oculto emitiria os sons reais, gravados no mar, de baleias
cachalotes em migração. Enquanto isso, as quatro concorrentes
classificadas logo abaixo de Kara Lynn, usando vestidos de sereia azuis
combinando com o cenário, fingiriam brincar numa lagoa imaginária atrás
do recife de Kara Lynn. No ensaio, com todas as rainhas loiras da beleza
fazendo movimentos de nado com os braços, alguém observou que parecia
uma versão sueca do Supremes.
A plataforma da rainha fora construída sobre a carroceria de um
caminhão Datsun, que a levaria ao longo do Biscayne Boulevard. A cabine
do caminhão fora camuflada na aparência de um polvo camarada na lagoa
das sereias; o motorista e Brian Keyes iriam sentados lá dentro. O para-
brisa da cabine fora removido para permitir uma saída rápida, nunca se
sabe.
A despeito dessas extraordinárias precauções e da preponderância de
armas poderosas, a atmosfera na concentração, antes do desfile, era tudo
menos tensa. Mesmo os homens da comissão do Orange Bowl pareciam
tranquilos e confiantes.
A visão de tantos policiais, ou o conhecimento de sua presença, eram
fontes de tranquilidade suficiente para aqueles para quem o desfile
significava tudo. Estes, certamente, eram os otimistas alegres que
acreditavam que os eventos violentos do fim de semana haviam
definitivamente encerrado o drama de Miami.
O desfile deveria começar às sete e meia da noite em ponto, mas
atrasou-se por diversos minutos devido a um problema com um dos carros
alegóricos. Depois de receber um aviso anônimo, agentes alfandegários dos
Estados Unidos haviam barrado a alegoria colorida patrocinada pela cidade
de Bogotá, na Colômbia, e atarefadamente martelavam finos tubos de aço
nos lados do carro à procura de um pó branco especial. Sem obter resultado
assim, eles trouxeram quatro cães sensíveis para farejar cada fresta em
busca de drogas. Embora nenhum contrabando tivesse sido encontrado, um
dos pastores alemães urinou sobre a princesa do café colombiana e o carro
foi imediatamente recolhido. Era o único em todo o evento feito com cravos
verdadeiros.
Às sete e quarenta e sete, a banda colegial de West Stowe, Ohio, e a
Guarda de Honra entraram no Biscayne Boulevard, atacaram conjuntamente
numa versão de “Light my fire” de Jim Morrison, e o desfile do rei da Festa
da Rainha Laranja estava em marcha. O céu estava nublado, mas o vento
aumentara e não havia indício de chuva. De pé ao longo dos dois lados do
boulevard estava uma enorme multidão de duzentas mil pessoas, a maioria
das quais havia pago pelo menos doze dólares para estacionar seus caros
carros último tipo numa das mais perigosas vizinhanças do hemisfério
ocidental.
Precisamente às oito e um, os holofotes se acenderam no palanque azul
da NBC, banhando os apresentadores Jane Pauley e Michael Landon num
infindável clarão branco.
Um “teleprompter” montado sobre as câmeras começou a rodar. Com
suas faces lustrosas e suas madeixas à moda Novo Testamento mostrando
mechas de loiro produzido pelo sol, Michael Landon foi o primeiro a falar
para a América, obedecendo estritamente ao roteiro:

Olá para todos e bem-vindos a Miami, Flórida. Que noite para um


desfile! [Corte para take de três segundos de malabarista com bastão.]
Amenos dezoito graus é a temperatura aqui na Flórida, com uma
aromática brisa marinha nos lembrando de que a baía de Biscayne e o
oceano Atlântico estão logo atrás dos meus ombros. Logo abaixo, no
Biscayne Boulevard, a Festa da Rainha Laranja está indo a todo vapor.
[Corte para take de quatro segundos em palmeiras ondulantes e carro
alegórico da Cooley Motors.] O tema do desfile deste ano é
Tranquilidade Tropical, e na última semana o que experimentei foi
exatamente isso, como vocês podem perceber pelo meu bronzeado
[sorriso meigo]. Agora, gostaria de apresentar minha companheira
desta noite, a linda e talentosa Jane Pauley. [Corte para dose em
Pauley, depois tomada de ambos.]
Pauley: Obrigada, Michael. Tivemos uma grande estada aqui,
embora pareça que você ficou um pouquinho mais no sol do que eu.
[Breve sorriso de Landon.] Há muita animação nesta cidade, e não só
por causa do desfile. Como vocês sabem, amanhã à noite os
Cornhuskers da Universidade de Nebraska e os Fighting Irish de Notre
Dame decidem o campeonato anual de futebol universitário no Orange
Bowl. A NBC transmitirá o jogo ao vivo, e parece que o tempo vai estar
perfeito. Michael, para quem você vai torcer? [Corte para Landon,
close.]
Landon: Gosto do Nebraska, Jane.
Pauley: Bem, eu acho que vou torcer para o Notre Dame.
Landon: Ah, ainda uma garota de Indiana.
Pauley [rindo]: Pode apostar. [Corte de tomada geral para dose.]
Falando sério agora [voltando-se para a câmera], se você acompanhou
os noticiários ultimamente, provavelmente sabe que esta comunidade
do Sul da Flórida tem lutado com uma trágica e assustadora crise no
último mês. Um grupo terrorista autodenominado Noites de Dezembro
assumiu a responsabilidade por diversas explosões, raptos e outros
crimes na área de Miami. Sabe-se que ao menos dez pessoas, muitas
delas turistas, foram assassinadas. Mas, como vocês devem ter ouvido,
acredita-se que vários dos membros desse grupo morreram num
acidente de helicóptero no fim de semana passado. E, na noite de
ontem, o último membro dessa organização extremista foi atingido
mortalmente após tomar como refém um oficial de polícia de Dade
County. Foram dias difíceis para os nossos cidadãos, e apesar de tudo
isso eles ainda conseguiram nos receber num clima acolhedor e
agradável. [Corte para Landon, balançando a cabeça em sinal de
aprovação.] E, Michael, sei que você vai concordar enquanto olhamos
estes sensacionais carros alegóricos passarem: tudo indica que vamos
presenciar outra espetacular festa do Orange Bowl! [Corte para
tomada sobre os ombros de Landon, enquanto ele se diverte com o
desfile.]
Landon [grande sorriso]: Como sempre! E dê uma olhada nessas
maravilhosas garotas de praia! Acho que nunca mais vou voltar para
Malibu.

Vagarosamente, o desfile prosseguiu para o Norte, subindo o boulevard,


passando diante do bloco cinzento da Biblioteca Pública e do Bayfront
Park, a Meca dos bêbados do calçadão do lado leste.
A cabine do caminhão estava opressivamente abafada sob pesadas
camadas de gesso e plástico. Para evitar sufocar-se, Keyes mantinha o rosto
próximo do para-brisa aberto, que também funcionava como a boca
sorridente do polvo camarada. O motorista do carro notou a arma sob a
jaqueta de Keyes, mas não disse nada e parecia despreocupado.
De dentro do carro, Keyes achou difícil ver alguma coisa além dos
traseiros rebolantes das quatro sereias azuis. Ocasionalmente, quando elas
se separavam, ele conseguia vislumbrar os ombros descobertos de Kara
Lynn na frente da plataforma. Quanto à visão periférica, ele não tinha
nenhuma; as faces dos espectadores eram invisíveis para ele.
Para compensar o rugido das Harley Davidsons dos shriners a música
das baleias cachalotes havia sido aumentada até o máximo volume. Keyes
classificava as baleias na mesma categoria de Yoko Ono e das brocas de
dentista de alta rotação. Era necessário todo o esforço de concentração para
seguir os comunicados do rádio de polícia portátil que o ligava à central de
comando. Cada novo quarteirão trazia a mesma informação: tudo calmo até
agora.
Quando o carro alegórico de Kara Lynn alcançou os camarotes, ele
estacionou, de modo que ela e as outras finalistas do Orange Bowl
pudessem acenar para os VIPS e posar para os fotógrafos. Brian Keyes ficou
tenso quando sentiu o Datsun brecando; era durante essa pausa, programada
para durar exatos três minutos, que Keyes esperava uma ação de Skip
Wiley, enquanto as câmeras de TV enfocassem Kara Lynn. Alertados de
antemão, os atiradores da polícia apontaram com suas miras infravermelhas,
enquanto os paisanos deslizaram pela multidão que aplaudia, para assumir
posições pré-indicadas ao longo da via. A um sinal, Burt e James lideraram
o cortejo de shriners numa intrincada manobra na forma de número oito
que teve por efeito circundar o carro da rainha com as motocicletas
ensurdecedoras.
Mas nada aconteceu.
Kara Lynn acenou apropriadamente a todos que pareciam importantes,
flashes espocaram e o desfile prosseguiu. Os carros superaram o
cruzamento da NE Fifth Street e se dirigiram de volta para o Sul, retomando
o boulevard, através da região dos poucos arranha-céus da cidade. Na
Flagler Street a procissão virou para oeste e distanciou-se das fortes luzes
da televisão. Instantaneamente todos relaxaram e a velocidade dos carros
aumentou para o estirão final. Kara Lynn parou de acenar; seus braços a
estavam matando. Era tudo o que ela podia fazer para conseguir sorrir.
Na North Miami Avenue, um dos guardas disfarçados chamou
calmamente pelo rádio pedindo ajuda. Alguns ex-soldados da Guarda
Nacional da Nicarágua faziam piquete diante da repartição de imigração
americana e agora ameaçavam interromper o desfile se não recebessem
imediatamente seus vistos de permanência. Um destacamento de seis
homens respondeu e facilmente dissolveu o distúrbio.
Um quarteirão depois, um dos guardas disfarçados de shriners informou
ter visto um homem negro corpulento, parecido com Daniel “Viceroy”
Wilson, assistindo ao desfile das escadarias do fórum.
Quando o carro da rainha passou pelo prédio, Keyes debruçou-se para
fora da boca do polvo para ver um esquadrão de policiais enxamear
escadaria acima como se fossem saúvas. A busca se mostrou infrutífera, no
entanto; três negros fortes foram detidos brevemente, interrogados e
liberados. Eles eram, em ordem de tamanho, um corretor de ações de Boca
Raton, um conselheiro municipal de Cleveland e um rastafári atacadista de
maconha de um metro e noventa de altura. Nenhum se parecia
minimamente com Viceroy Wilson, e o alerta radiofônico do tira na
motocicleta foi dispensado como alarme falso.

Al García recusou-se a tomar qualquer analgésico enquanto assistia ao


desfile de seu quarto de hospital em Homestead. Queria estar totalmente
alerta, e com a visão clara. Duas jovens enfermeiras perguntaram se
poderiam sentar e assistir com ele, e García estava feliz por ter companhia.
Uma das enfermeiras observou que Michael Landon era o segundo homem
mais bonito da televisão, depois de Rick Springfield, o cantor.
Conforme os carros progrediam, García pacientemente tamborilava com
os dedos no gesso aplicado em seu flanco esquerdo. Preocupava-se com o
fato de que, se uma confusão começasse, as câmeras de TV não iriam
mostrá-la; assim acontecia nos jogos de beisebol, quando os fãs invadiam o
campo. Horário nobre era muito caro para ser desperdiçado com
desajustados.
Finalmente o carro da rainha entrou em cena, emitindo um gemido
trêmulo que García pensou ser problema de freio, e que na verdade era a
música das baleias. Uma das enfermeiras observou como Kara Lynn estava
maravilhosa, mas García não prestava atenção. Pôs seus óculos e perscrutou
o sorriso abobado do polvo até enxergar Keyes lá dentro, seu rosto de
garotinho de escola entrando e saindo da sombra. Apesar da dor, García
tinha que dar risada. O pobre Brian parecia totalmente infeliz.
Às oito e cinquenta e cinco, a última fanfarra surgiu tocando alguma
coisa de Neil Diamond. As câmeras da NBC retornaram a Jane Pauley e
Michael Landon na cabine azul:

Pauley: Mais um eletrizante espetáculo do Orange Bowl! Eu não sei


como eles fazem isso, ano após ano. [Corte para Landon.]
Landon: É espantoso, não é, Jane? Eu gostaria de agradecer à NBC
e aos organizadores do Orange Bowl por nos convidarem para passar a
noite de Ano Novo no lindo Sul da Flórida. Um dos meteorologistas
locais acaba de me entregar uma lista de temperaturas de todo o país e,
antes de nos despedirmos, gostaria de anunciar algumas delas [segura
a lista de temperaturas], Nova York, seis graus abaixo de zero...
Pauley [em off]: Brrrrr.
Landon: Wichita, vinte e dois abaixo de zero; Knoxville, três graus
acima de zero; Chicago, dezesseis graus abaixo de zero e neve!
Indianapolis — Jane, está pronta? [Corte para Pauley.]
Pauley: Bem, vamos encarar.
Landon: Quinze abaixo de zero!
Pauley [espetando na blusa um botton com a inscrição “Vamos lá,
Fighting Irish”]: Lar doce lar. Bem, prometi para todo mundo que ia
levar algumas laranjas maduras, mas infelizmente não tem jeito de
embrulhar um pouco deste magnífico sol de Miami. Obrigado por nos
acompanharem... boa noite a todos.
Landon [foco nos dois, ambos acenando, sorrisos largos]: Até a
próxima, pessoal. Feliz Ano Novo!

García alcançou o controle remoto e mudou de canal. Um programa


sobre videocassetadas engraçadas foi sintonizado e García pediu às
enfermeiras uma dose de Demerol. Ele ficou pensando na morte de Jesús
Bernal e no pacífico desfile, e contemplou a possibilidade de que a loucura
tivesse realmente acabado. Sentiu um alívio imenso.
Dez minutos mais tarde o telefone tocou, soando muito distante. Era o
chefe de polícia.
“E aí, Al, como é que vai?”
“Bem pra caramba, chefe.”
“Conseguimos, não é?”
García não queria brincar.
“Pois é”, ele disse.
“Você assistiu o desfile?”
“Assisti, foi demais.”
“Parece que os Nachos ficaram para trás.”
“Parece”, disse García pensando: Este é o mesmo palhaço que pensou
que eu tinha escrito as cartas de Fuego. Mas desta vez talvez ele estivesse
certo. Parece que Wiley tinha esticado as canelas, afinal.
“O que você acha de desmobilizar a força-tarefa?”, disse o chefe.
“Claro.” Não havia nenhum bom argumento contra isso. O desfile tinha
acabado, a garota estava salva.
“A primeira coisa que eu vou fazer amanhã é liberar um comunicado à
imprensa.”
“Boa, chefe.”
“E, palavra de honra, Al: você está levando todo o crédito desta vez,
todo o crédito que você merece.”
Por quê? García pensava enquanto desligava. Não é como se eu mesmo
tivesse acertado aquele helicóptero safado.

Depois do desfile, Brian Keyes dirigiu de volta para a casa dos Shivers
e começou a fazer as malas. Reed Shivers e sua esposa chegaram meia hora
depois.
“Viu só? Todo aquele pânico por nada”, disse Shivers pretensiosamente.
“Eu sou pago para entrar em pânico”, disse Keyes, enfiando suas roupas
numa mochila de lona. Ele se sentia vazio e esgotado. Não se esperava que
o final fosse ser tão fácil, mas a hora de Wiley tinha chegado e ido embora
— se o desgraçado estivesse vivo, pensou Keyes, ele teria aparecido. Com
todo o estardalhaço possível.
“Onde está a Kara Lynn?”, perguntou Keyes.
“Ela foi numa festa de encerramento com as outras garotas”, disse a sra.
Shivers.
“Uma festa de encerramento.”
“É tradição em concursos de beleza”, explicou a sra. Shivers. “Só
garotas.”
“É melhor você ir embora”, disse Reed Shivers. Ele tentava acender seu
cachimbo, sugando o bocal como um peixe faminto. “Havia uma senhora da
agência Eileen Ford nas arquibancadas — ela descobriu a Kara Lynn na
mesma hora. Estou esperando um telefonema a qualquer momento.”
“Ótimo”, disse Keyes. “Reserve um quarto no Plaza.”
Os Shivers o acompanharam até a porta.
“Seu amigo vai ficar bom?”, perguntou a sra. Shivers. “O policial
cubano.”
“Acho que sim. Ele é forte.”
“Você também é um jovem corajoso”, ela disse. Seu tom de voz deixava
claro que ela estava falando com o detetive contratado. “Obrigada por tudo
o que você fez pela Kara Lynn.”
“Sem dúvida”, disse Reed Shivers de má vontade. Ele estendeu sua mão
bronzeada; o aperto de mão polido mas superior de um profissional
formado em Yale. “Dirija com cuidado”, disse ele.
“Boa noite, senhor e senhora Cleaver.”
Eles acenaram inexpressivamente e fecharam a porta da frente.
Keyes estava de pé ao lado do MG, tentando livrar-se do coldre de
ombro, quando um Buick marrom embicou na garagem e Kara Lynn
desceu. Ela tinha mudado de roupa e vestia jeans e uma blusa branca sem
mangas, cujo tecido parecia papel; carregava seu vestido do Orange Bowl
numa sacola plástica.
“Para onde você está indo, Marlowe?”
“De volta para o outro lado da cidade.”
Uma voz de mulher gritou de dentro do Buick:
“É ele, Kara?”
Kara Lynn sorriu timidamente e acenou para que suas amigas fossem
embora. O Buick buzinou duas vezes e disparou.
“A gente tomou um pouco de vinho”, disse ela. “Eu contei de você para
elas.”
Keyes riu.
“O detetive no polvo.”
Kara Lynn colocou o vestido sobre o capô do carro esporte e deu uma
espiada na casa, procurando seus pais na janela. Então ela colocou seus
braços em volta de Keyes e disse:
“Vamos para algum lugar transar.”
Keyes a beijou suavemente.
“Seus pais estão esperando lá dentro. Alguém de uma agência de
modelos vai telefonar.”
“E quem se importa com isso?”
“Seu pai. Além disso, eu estou acabado.”
“Não faça essa cara triste. Nós conseguimos.” Alegremente ela pegou as
mãos dele e as colocou sobre sua bunda. “A mina está salva”, disse ela
dando-lhe um grande beijo. “Bom trabalho, garoto.”
“Eu ligo amanhã.”
Uma luz amarela se acendeu na varanda.
“Papai está esperando”, disse Kara Lynn franzindo as sobrancelhas.
Keyes entrou no MG e ligou o motor. Kara Lynn apanhou seu vestido e
deu-lhe um beijinho no rosto.
“Será que eu disse”, confessou ela numa aveludada voz de Marilyn,
“que eu não estava usando calcinhas hoje à noite?”
“Eu sei”, disse Keyes. “Não era tão má assim a vista lá do polvo.”
No caminho de volta para o seu apartamento, ele parou no escritório
para checar se havia alguma coisa e apanhar a correspondência, que
consistia em doze contas, dois grandes cheques do Miami Sun e uma
National Geographic com um albino qualquer-coisa na capa. Perdido em
algum lugar entre os detritos da mesa de Keyes havia um talão de cheques
que ele resolveu achar, para o caso de querer comprar verduras de novo.
Depois tentou limpar o aquário, que estava coberto por um limo esverdeado
que ameaçava superar a altura de suas bordas.
Essas tarefas foram iniciadas principalmente para ocupar sua mente com
distrações e atrasar o inevitável. Era quase uma da madrugada quando
Keyes acabou a limpeza, despencou sobre o sofá sujo e caiu no sono. Não
havia passado muito tempo quando ele sentiu o cabo da Browning
semiautomática em sua mão direita. Olhou para baixo e viu que essa mão
estava coberta de lustrosos pernilongos negros, que inflavam um a um até
estourar, como pequenos balões de sangue. Uma marionete de aparência
esquálida apareceu e começou a dançar, e a Browning disparou. As balas
avançavam devagar, deixando atrás de si rastros cor de laranja. Uma após a
outra elas caíam sobre a pedra coberta de limo aos pés da marionete. E
conforme a aparência da marionete se modificava, da de Jesús Bernal para a
de Ernesto Cabal, uma das balas estraçalhou sua cabeça em mil pedaços de
madeira. Os estilhaços voaram em todas as direções, fazendo vibrar os fios
da marionete, que iam até o céu. No sonho, Brian Keyes viu a si próprio
correndo em direção à marionete destruída e tomando seus fios com mãos
sujas de sangue. No momento seguinte estava no céu, sobre o oceano,
tentando segurar em algo para manter-se vivo. Numa nuvem tênue bem no
alto, um homem de aparência familiar com longos cabelos loiros e olhos
ciganos torcia as cordas do boneco e murmurava alguma coisa sobre o
preço vergonhosamente alto dos caixões.
31

Porto Príncipe, Haiti. 28 de dezembro — Quando este texto for


publicado, posso estar morto ou na cadeia, ou escondido em algum
buraco de rato em algum país esquecido, onde nunca o leria, de
qualquer forma. O que seria uma pena.
Mas suponho que venho há muito preparando isso.
Por vários anos escrevi uma coluna diária para este jornal, coluna
que atingiu uma imprevista mas gratificante popularidade. Admito que
nem sempre o trabalho de reportagem era impecável, mas nunca me
desviei demais da verdade. Além do que, vocês sabiam o que estavam
lendo.
Eu, provavelmente, seria capaz de continuar regurgitando trinta e
dois centímetros diários de ultraje, insulto, mordacidade e sarcasmo,
até que ficasse velho e meu cérebro virasse mingau. Vejam, eu tinha
uma situação confortável aqui no jornal. A chefia gostava de mim e,
para me manter contente, pagava um salário aproximadamente
adequado aos meus talentos. É o que acontece quando você vende o
produto: eles lhe dão o que você merece.
Mais ou menos seis semanas atrás alguma coisa mudou. Se foi
minha atitude profissional, dieta espiritual ou equilíbrio moral, não
posso dizer. As coisas saíram dos eixos, creio eu. A hipótese simples e
conveniente é que fiquei louco, louco de raiva, o que é possível mas
improvável. Em meu trabalho você aprende que a sanidade, não o seu
contrário, é a grande charada — e que não há nada mais ameaçador
do que uma pessoa sã subitamente alertada para seu próprio destino.
Uma coisa é certa. Ao longo do tempo vim a perceber o destino da
Flórida num painel singularmente horrível, e tomei medidas para
mudar esse destino. Medidas extremas. Reuni alguns conhecidos
selecionados e fizemos alguns lances, como costumam dizer.
Em meu ardor posso ter cometido alguns crimes indesculpáveis,
mas minha missão era salvar o lugar e inspirar aqueles que se
importavam, e por esse nobre objetivo creio que eu infringiria qualquer
lei. E, de fato, dizem que o fiz.
Ao menos dessa vez, tratava-se de uma guerra justa, ambos os lados
lutando com armas semelhantes: publicidade versus contrapublicidade.
A munição deles era a fantasia e a maquilagem, a nossa, a mais cruel
verdade, o crime aleatório, o terror. O que há de melhor para destruir
truques de ilusionismo aplicados por mala direta?
A realidade odiosa é que vivemos numa península roubada dos
índios, explorada por aventureiros políticos e imoralmente ocupada por
imigrantes ianques que chegam à taxa de mil por dia, imbecis
refestelados em BMWs.
A maioria de nós que nascemos aqui foi educada para idolatrar o
desenvolvimento, ou tolerá-lo sem reclamar. Desenvolvimento
significava prosperidade, que é definida em termos de piscinas e lotes
de frente para o mar, e levar as crianças com sucesso até o fim da
universidade. Assim, quando os primeiros ratos congelados chegaram,
com seus talões de cheque, todos os nativos se viraram para conseguir
licenças para vender imóveis, todo mundo queria saquear a terra. A
cobiça era tão espessa que se podia raspá-la da sola dos sapatos.
A única coisa que se postou entre os incorporadores e um reinado
absoluto foi a amaldiçoada natureza virgem. Onde havia água, ela foi
drenada. Onde havia árvores, elas foram cortadas. Os arbustos
simplesmente queimamos. O buldôzer era a máquina de Deus, portanto
o alimentamos. Malignamente, o progresso roeu seu caminho das costas
para o centro, atropelando a natureza.
Hoje, a Flórida que a maioria de vocês conhece — e criou, na
verdade — é uma tundra suburbana purgada de qualquer beleza
original, exceto a sagrada órbita solar. Por vocês, isto aqui poderia ser
Scottsdale, no Arizona, com praias.
Deixem-me informá-los do que tem acontecido nos últimos anos: os
Glades começaram a secar e a morrer; o suprimento de água potável
está sendo envenenado com lixo tóxico; perto de Orlando eles até
tentaram retificar o curso de um rio; em Miami os hotéis em frente à
praia estão despejando esgoto sem tratamento na corrente do Golfo; em
todo o Estado há um assassinato a cada sete horas; as panteras estão
quase extintas; grotescas trutas radioativas de três cabeças estão sendo
apanhadas na baía de Biscayne; e Dade County passou completamente
para o lado dos republicanos.
Isso é terrível, vocês dizem, mas o que podemos fazer?
Bem, para começar, vocês podem cair fora.
E, já que vocês não vão, vou eu.
Tem sido pura angústia observar a invasão violenta de minha terra
natal, e é impossível não agir em resistência. Talvez, ao resistir, eu
tenha provocado certos eventos que não deveriam ter ocorrido, e
lamento por eles. Infelizmente, o extremismo raramente se acomoda à
disciplina.
De qualquer modo, meus colegas e eu certamente atraímos sua
atenção, não foi?
Quando isto for publicado — se é que vai ser —, certamente não
estarei onde estou agora, portanto não me importo em revelar o local:
uma varanda, ensombrecida por palmeiras, de um velho hotel numa
encosta, que domina a triste cidade de Porto Príncipe. Sobre minha
cabeça há um ventilador com hélices de madeira que não giram desde o
tempo de Papa Doc. É úmido aqui, mas não pior que a SW Eighth Street
em julho, e estou me sentindo bem. Estou sentado numa cadeira de
vime, bebericando um drinque com rum e cor de poliéster, e escuto o
All-Star Game da NBA do ano passado numa transmissão em francês.
No andar de cima, em meu quarto, há três passaportes falsos e quatro
mil dólares, dinheiro vivo. Tenho uma boa ideia do que devo fazer, e de
para onde devo ir.
Evidentemente esta será minha última coluna, mas, o que quer que
vocês façam, não liguem para o jornal cancelando a assinatura. O Sun
é editado por jornalistas decentes e semitalentosos em sua maioria, que
merecem sua atenção. Além disso, se vocês pararem de ler agora,
perderão a melhor parte.
Historicamente, a função de radicais perturbados é pôr em marcha
o que apenas outros podem terminar; é iluminar pelo excesso; é atingir
a consciência e então sumir no exílio. Nesse sentido, o Noites de
Dezembro deixa um legado valioso.
Bem-vindos à Revolução.
Pela primeira vez em quase meio século, a capa do Miami Sun de Ano
Novo não trouxe em destaque uma reportagem ou fotografia do desfile do
Orange Bowl. Em vez disso, o jornal foi dominado por três matérias
jornalísticas incomuns.
A coluna de despedida de Skip Wiley apareceu numa tira vertical no
lado esquerdo, sob a foto-padrão de Wiley. Destacado no topo da página,
sob o cabeçalho e o logotipo do jornal, encontrava-se um artigo
surpreendentemente autocrítico, explicando por que o Sun falhara em
associar Wiley ao Las Noches de Diciembre, mesmo depois de seu
envolvimento se tornar conhecido por um certo editor de alto escalão. Esse
texto foi escrito, e bem escrito, pelo próprio Cab Mulcahy. Através dele, os
chocados leitores de Miami foram informados de que o críptico “o que devo
fazer, e para onde devo ir” de Wiley se referia ao planejado, mas não
consumado, rapto da rainha do Orange Bowl durante o desfile da noite
anterior.
O outro elemento central da primeira página era a narrativa dramática,
mas incompleta, de como o terrorista fugitivo Jesús Bernal fora morto em
North Key Largo. Essa reportagem não trazia assinatura porque foi
produzida por diversos repórteres, um dos quais confirmou o fato de que o
detetive particular Brian Keyes disparara os tiros fatais com uma pistola
Browning de nove milímetros, que ele tinha a devida licença para carregar.
A presença de Keyes naquele local distante não foi explicada, embora o
jornal notasse que ele tinha sido recentemente contratado como parte de
uma equipe secreta de segurança do Orange Bowl. A outra única
testemunha do assassinato de Bernal, o sargento da polícia Alberto García,
estava se recuperando de uma cirurgia e incapaz de fornecer seu
depoimento.

Quando Brian Keyes acordou na sujeira de seu escritório, Jenna estava


sentada à escrivaninha, lendo o jornal da manhã.
“Quando você vai aprender a trancar a porta?”, ela perguntou,
entregando a Keyes a primeira página do jornal. “Dê uma olhada. Jogaram
tudo no ventilador.”
Keyes sentou-se e abriu o jornal sobre seus joelhos. Tentou ler, mas seus
olhos se recusavam a entrar em foco.
“Eu imaginei que você fosse estar toda enfeitada de preto”, disse ele
ainda meio sonado.
“Eu não acredito que ele esteja morto”, disse Jenna. “Não vou acreditar
nisso enquanto o corpo não estiver na minha frente.” Caso encerrado. Ela
forçou um sorriso. “Ei, Bri, parece que você se transformou num grande
herói por ter matado aquele sequestrador cubano.”
“É, eu estou parecido com o Super-Homem, não é?”
Ele deu uma espiada na coluna de Wiley.
“Vinte e oito de dezembro — um dia antes do acidente do helicóptero.
Qual a última vez que você teve notícias dele?”
“Nesse mesmo dia. Recebi um telegrama do Haiti.”
“O que ele disse?”, perguntou Keyes.
“Ele disse para passar inseticida no caixão, por causa dos cupins.”
“Isso é tudo?”
Ela mordeu os lábios.
“Ele também disse que, se alguma coisa acontecesse, ele queria ser
enterrado naquele caixão de pinho que ele conseguiu no mercado das
pulgas. Enterrado, claro, com todos os recortes de jornal.”
“Isso é tocante.”
“Acho que ele roubou a ideia do índio”, disse Jenna. “Os guerreiros
semínoles sempre são enterrados juntos com as armas.”
Keyes cambaleou até a rua e comprou três cafés numa máquina
automática. Jenna deu uma olhada e disse que não queria; Keyes acabou
tomando todos.
Isso o preparou espiritualmente para o artigo de despedida de Skip
Wiley, que Keyes achou sentimentaloide e desorganizado, e apenas
superficialmente revelador. Ele estava mais interessado na reportagem
escrita por Cab Mulcahy. Nela, o editor-chefe explicava que o papel de
Wiley no Noites de Dezembro não fora revelado por causa da ameaça de
que mais turistas e pessoas inocentes seriam assassinadas. Por vários dias, a
informação sobre Wiley fora mantida em segredo enquanto um detetive
contratado pelo Sun o procurava; examinando em retrospecto, Mulcahy
escrevera, essa decisão fora errônea e provavelmente antiética.
“Coitado do Cab”, disse Keyes, não para Jenna mas para si mesmo. Ele
se sentia entristecido e constrangido por seu amigo.
Jenna contornou a escrivaninha e sentou-se no sofá esfarrapado próximo
a Keyes.
“Skip realmente foi longe demais”, ela disse, mostrando apenas um
pouco de remorso.
“E nos deixou a todos”, disse Keyes, “todos os que gostavam dele.
Você, eu, o Mulcahy, o jornal inteiro. Ele nos deixou mergulhados no fundo
da privada.”
“Brian, não fale assim.”
Jenna não estava usando nenhuma maquilagem; parecia que ela não
dormia fazia dois dias.
“Era uma boa causa”, ela disse defensivamente. “Apenas a
administração foi incorreta.”
“O que te faz pensar que ele não está morto?”
“Intuição.”
“Ah, claro.” Keyes observou-a com desagrado, como teria feito com um
gato de rua.
Ele disse:
“Não consigo imaginar o Skip perdendo a chance do desfile. Televisão
em rede nacional, metade do país sintonizada. Era muito bom para resistir
— se ele não está morto, está em coma em algum lugar.”
“Ele não está morto”, disse Jenna.
“Vamos ver.”
Jenna nunca o vira tão cínico.
“O que está acontecendo com você?”, perguntou ela.
“Bem, nada. Estourei os miolos de um cara ontem à noite e ainda me
sinto exausto. Vamos sair e comer alguma coisa?”
Jenna pareceu vacilante.
“Oh, Brian”, disse ela.
Um “oh, Brian” pronunciado em tom de súplica normalmente faria
efeito; amolecimento garantido. Desta vez, porém, Keyes não sentiu nada,
exceto um tédio penetrante; nada de desejo ou ciúmes, raiva ou amargura.
“Ele tinha que me encontrar no Wolfie esta manhã, mas não apareceu”,
admitiu ela. “Estou um pouco preocupada.” Os olhos dela estavam
vermelhos. Keyes sabia que ela estava prestes a abrir as torneirinhas dentro
dos olhos.
“Ele não pode estar morto”, disse ela com a fala entrecortada.
Keyes disse:
“Sinto muito, Jenna, mas você fez a pior coisa possível: você incentivou
o bastardo.”
“Acho que sim”, disse ela, começando a soluçar. “Mas algumas das
coisas que ele dizia pareciam tão inofensivas.”
“O Skip era tão inofensivo quanto um escorpião de noventa quilos.”
“Por exemplo, jogar aquelas cobras no navio”, disse ela. “De certa
forma, não parecia tão terrível quando ele estava preparando a coisa. Do
jeito que ele falava, era para ser até engraçado.”
“Engraçado. Com cascavéis, Jenna?”
“Ele não me contou essa parte. É verdade.” Ela estendeu os braços e o
envolveu. “Me abraça”, murmurou ela.
Normalmente, seria outra sedução irresistível. Keyes tomou a mão dela
e a acariciou como se fosse seu tio. Ele não sabia para onde tinha ido todo o
seu sentimento por ela — só sabia que ele não estava lá agora.
“Nem tudo foi culpado Skip”, chorou Jenna. “Isso tudo foi se
desenvolvendo durante anos, envenenando-o por dentro. Ele sentia como
que uma missão, Brian, a missão de ser a sentinela da indignação. Quem
mais poderia falar em favor desta terra? Dos animais selvagens?”
“Guarde sua conferência Sierra Club para os calouros, OK?”
“O Skip não é um homem mau, ele tem uma noção do que é certo e
errado. Ele é uma pessoa de princípios que levou as coisas muito longe, e
talvez tenha pago pelos seus enganos. Mas ele merece crédito pela coragem,
e por todo o tormento que viveu ele merece compaixão também.”
“O que ele merecia”, disse Keyes, “era prisão perpétua em Raiford.”
Dez pessoas inocentes tinham sido mortas e lá estava Jenna representando
Portia, do Mercador de Veneza. Ele soltou a mão dela e se levantou, sem
querer testar sua força de vontade sentando tão perto, por tanto tempo. “É
melhor você ir embora”, disse ele.
“Eu vim de ônibus”, choramingou Jenna. “Você pode me dar uma
carona?”
“Não, não posso.”
“Mas eu não quero ficar sozinha, Brian. Eu só queria deitar numa
banheira quente e pensar em coisas bonitas, uma banheira quente com sais
de banho. Talvez você pudesse vir à noite e me fazer companhia?”
Na banheira Jenna seria impossível de deter.
“Obrigado de qualquer forma”, disse Keyes, “mas eu vou ao jogo de
futebol.”
Ele deu a ela dez dólares para um táxi.
Ela olhou para o dinheiro, então para Brian. Seu olhar-de-garotinha-
perdida, em fraca interpretação.
“Se ele estiver morto”, disse ela suavemente, “o que vamos fazer?”
“Eu envernizo o caixão”, disse Keyes, “você passa inseticida para matar
os cupins.”
32

O Orange Bowl Football Classic anual começou exatamente às oito da


noite do dia 1º. de janeiro, quando os Fighting Irish de Notre Dame deram a
saída diante dos Cornhuskers da Universidade de Nebraska, perante um
estádio lotado por setenta e três mil quatrocentas e onze pessoas e uma
audiência estimada de quarenta e um milhões de telespectadores do mundo
inteiro. A companhia A. C. Nielsen, que classifica programas de TV baseada
em amostras estatísticas colhidas em lares americanos, calculou mais tarde
que o jogo entre Notre Dame e Nebraska atingiu o arrasador índice de vinte
e três ponto cinco, tendo sido sintonizado por trinta e oito por cento de
todas as casas que assistiam televisão naquela noite de terça-feira. Esses
índices foram ainda mais notáveis levando-se em conta que, por razões
óbvias, o segundo tempo do jogo do Orange Bowl não se realizou.

No meio do primeiro quarto da partida começou a chover; uma chuva


cortante, que provocou um lamento na multidão e fez surgir um mar de
guarda-chuvas.
Brian Keyes espremia-se mal-humorado na chuva e desejava ter ficado
em casa. Tinha decidido assistir ao jogo apenas porque não conseguira
encontrar Kara Lynn, e porque conseguira uma entrada grátis (da Câmara
de Comércio, mostrando sua gratidão). Infelizmente, sua cadeira estava no
meio do setor reservado para a torcida da Universidade de Nebraska, onde
fãs estridentes seguravam cartazes chamativos onde se liam frases mordazes
como “Triturem os irlandeses!” em letras gigantes. Tão logo Keyes sentou-
se, alguns torcedores lhe entregaram dois cartazes perguntando-lhe se não
se importaria em ser o ponto e vírgula da frase. Keyes sentia-se mais do que
miserável.
No campo, Nebraska estava humilhando Notre Dame; nenhuma
surpresa, já que os atarracados Cornhuskers pesavam mais que seus
oponentes numa média de onze quilos cada. Muitos dos fãs, já encharcados
e agora aborrecidos, perguntavam-se de quem fora a brilhante ideia da
sequência de quatro pontos. No fim do primeiro tempo o placar era de 21 a
3.
O running back da segunda fileira do Notre Dame era um rapaz
chamado David Lee, com um metro e noventa de altura e uns graminhas a
menos que noventa quilos, e que era tão irlandês quanto Sonny Liston.
Embora classificado na escalação do time como sendo um veterano
próximo de formar-se, David Lee estava a dezenas de créditos da metade do
curso — isso apesar de concentrar seu currículo nas áreas de educação
física e terapia física. A média geral de David Lee havia recentemente
melhorado para 1.9, aumentando levemente suas chances de se formar na
faculdade antes dos cinquenta anos — dado, logicamente, que ele não fosse
contratado antes por um time de futebol profissional.
Mas isso agora parecia improvável. Durante a primeira metade do jogo
do Orange Bowl, David Lee tentou correr com a bola três vezes. A primeira
tentativa resultou numa perda de cinco jardas, na segunda os adversários
roubaram-lhe a bola. Da terceira vez ele realmente ganhou doze jardas e um
“first down”. Infelizmente, os dois únicos olheiros de times profissionais
presentes no estádio perderam a supercorrida de David Lee, porque
passaram todo o segundo quarto presos numa fila do banheiro dos homens,
disputando os urinóis com uns rapazes da Ku Klux Klan de Perrine.
A sorte de David Lee mudou no intervalo. Quando os dois times
deixavam o campo, atravessando os túneis que levavam aos vestiários, um
segurança musculoso do Orange Bowl puxou o jovem atacante para um
lado e pediu-lhe para falar com ele em particular. O guarda informou David
Lee que havia uma chamada de emergência de seus pais, de Bedford-Stuy, e
o escoltou até um quartinho malcheiroso, onde se guardava material de
limpeza, debaixo das arquibancadas do lado sudoeste do estádio. Uma vez
lá dentro, onde não havia telefone algum, o segurança trancou a porta e
perguntou:
“Você sabe quem eu sou?”
“Não, senhor”, respondeu David Lee educadamente, como até atletas
medíocres do Notre Dame eram ensinados a fazer.
“Eu sou Viceroy Wilson.” E ali estava Wilson, nem um pouquinho
morto.
“Pombas!” Lee sorriu. “Deixa disso, cara!” Ele estudou o rosto sulcado
do segurança e viu qualquer coisa de familiar, até mesmo famosa, nele.
“Cacete, é você mesmo!”, disse Lee. “Não acredito — o Viceroy Wilson.
Cara, como é que você se meteu num empreguinho de merda desses?”
O jovem obviamente não andara lendo nada além da página de esportes
em Miami.
“Tendo uma noite dura hoje?”, perguntou Wilson.
“Isso aí, cara”, disse David Lee. “Aqueles fazendeiros de merda são
mais pesados que um caminhão de lixo.”
“O campo parece bem escorregadio, também. Difícil dar os seus
dribles.”
“Isso aí. Ei, e aquilo sobre os meus pais?”
“Ah, aquilo era mentira. Me deixa ver seu capacete, cara.”
Lee entregou-o.
“Serve bem em você.”
“Verdade”, disse Viceroy Wilson, enfiando o capacete. “Me deixa
comprar esse troço de você.”
“Caceeeete!” David Lee riu. “Você é mesmo uma figura.”
“Estou falando sério, cara.” Viceroy Wilson puxou um maço de notas.
“Mil dólares”, disse, “por todo o uniforme, exceto as chuteiras, que eu
tenho as minhas.”
O dinheiro era ideia de Skip Wiley; para Viceroy daria no mesmo
nocautear o rapaz e pegar suas roupas.
David Lee olhou cobiçosamente para as notas novinhas em folha e
espreitou a face meio escondida pelo capacete do Notre Dame. Ele se
perguntou se os óculos de sol Carrera não estariam escondendo algum tipo
de piada.
“E aí, fechamos o negócio ou não?”, perguntou Wilson.
“Olha, o técnico vai ficar puto. Não pode ser depois do jogo?”
“Isto já é depois do jogo. Pode acreditar, meu filho, o jogo acabou.”
Viceroy Wilson passou displicentemente mais mil dólares para o atacante
universitário.
“Dois contos por um uniforme de futebol!”
“Certíssimo, irmão.”
“Quer a sunga também?”
“Tá loco, cara?
Quando finalmente voltou ao vestiário do Notre Dame, David Lee
estava nu, exceto pelos sapatos e pelo suporte atlético. Depois de se
desculpar por interromper a prece do time, disse sobriamente ao técnico que
fora roubado e molestado por uma gangue de refugiados de Mariel
drogados, e perguntou se não poderia ficar no banco o resto do jogo.

O Orange Bowl Football Classic é tão famoso por sua rica produção de
intervalo quanto pelo alto nível de seu futebol universitário. O show do
intervalo é infalivelmente mais extravagante e luxuoso do que o desfile da
noite de véspera, porque o Comitê para a Celebração de Intervalo adota
seus próprios temas, contrata seu próprio diretor profissional, recruta seus
próprios novos talentos, e atua para sua própria equipe de televisão. O
efeito é o mesmo de um fatigante show de cassino de Las Vegas, executado
em quarenta mil metros quadrados de gramado esportivo por quatrocentos
“jovens” profissionais que parecem todos ter acabado de obter bolsas de
estudo na Universidade de Brigham Young. Nos últimos anos, profissionais
de televisão haviam concluído que as dublagens dos New Christy Minstrels
e o sapateado de gigantescos ratos vestidos em smokings não eram
suficientes para evitar que milhares de aficionados do futebol fossem ao
banheiro no intervalo e perdessem todos os importantes comerciais de
carros; assim, os produtores do intervalo introduziram queimas de fogos de
artifício e até raios laser no show do Orange Bowl. Isto se mostrou uma
grande tacada e as vendas de carros aumentaram proporcionalmente. A cada
ano, mais e mais efeitos espetaculares eram acrescentados ao programa, e
os temas modernizados, tendo em mente o consumidor de dezoito a trinta e
quatro anos (embora algumas personagens Disney secundárias fossem
acomodadas aqui e ali para as crianças). Na ideia dos organizadores, a
produção ideal de intervalo era conceitualmente moderna, visualmente
excitante, moralmente inofensiva e irremissivelmente classe média.
O mestre de cerimônias do show de intervalo do Orange Bowl era uma
personalidade televisiva chamada John Davidson, selecionada
principalmente por causa de suas covinhas, que podiam ser vistas até
mesmo da última fileira das arquibancadas. De pé, sob um facho de luz
azul, na linha de cinquenta jardas, John Davidson abriu as festividades com
uma tépida mistura de melodias famosas. Pouco depois, ele foi envolvido
por uma trupe de cabriolantes, dançantes, saltitantes, gesticulantes e
encharcadas personagens da Broadway totalmente caracterizadas: gatos
felpudos, violinistas iídiches, deslumbrantes coristas, duas Annies, a
Pequena Órfã, três Homens-Elefante, um Hamlet, um Rei do Sião, e até um
Willy Loman sapateando. O tema da extravaganza de vinte e dois minutos
era “O Mundo é um Palco”, uma sequência ambiciosa dos temas de anos
anteriores do Orange Bowl, como “O Mundo é uma Canção”, “O Mundo é
um Desfile” e, mais recentemente, “O Mundo é um Grande e Belo Planeta”.
O cerne da produção era a reencenação de seis lendários atos teatrais,
cada um deles espremido em oitenta e cinco segundos, mas suplementado
se necessário com elegantes narrativas bilíngues. A vinheta final era um
solilóquio de Hamlet, que não funcionou bem no aguaceiro; fãs nas fileiras
mais altas do estádio não conseguiam enxergar claramente a caveira do
pobre Yorick e acreditaram estar aplaudindo o señor Wences.
Em seguida, todos os participantes se reuniram de braços dados sob
uma vasta armação de néon e, sem que nem sequer uma pessoa se
surpreendesse, cantaram “Give my regards to Broadway”. Então a
intensidade das luzes no estádio diminuiu e as nuvens escuras de chuva
formaram um pano de fundo elísio para o clímax emocional, um tributo
holográfico para a falecida Ethel Merman.
A audiência mal se recuperara desse espantoso espetáculo de mágica
eletrônica — cenas de Gypsy projetadas em três dimensões a grande altitude
— quando as luzes se reacenderam e John Davidson caminhou a passos
largos para o centro do campo.
“Senhoras e senhores”, ele disse, com um sorriso de brancura radiante,
“se me permitem chamar sua atenção para o setor leste, é com imenso
prazer que apresento a rainha do Orange Bowl deste ano, a linda Kara Lynn
Shivers!”
Na arquibancada, Brian Keyes sentiu um arrepio. Em sua obsessão com
o desfile, ele esquecera do jogo e da tradicional apresentação da rainha e
sua corte no intervalo. Era uma cerimônia curta — alguns dos carros
alegóricos premiados circulando uma vez pelo estádio e saindo pelo lado
leste. Como resmungara o pai de Kara Lynn, mal valia a pena fazer todo um
penteado para apenas onze minutos no ar.
Mas onze minutos eram tempo bastante. Uma eternidade, pensou
Keyes. Uma horrível certeza tomou conta dele e ele se levantou num salto.
Onde estavam os policiais — onde estavam os malditos policiais?
O carro da sereia entrou primeiro, ainda fazendo ecoar o canto das
baleias; depois vieram os carros da Cooley Motors, da Nordic Steamship
Lines e da Palm Beach Lawn Polo Society. A procissão deveria acabar com
um modesto contingente de motos dos shriners de Illinois, que haviam sido
premiados com uma brecha no intervalo, aberta pelo cancelamento de
última hora da participação de Bogotá.
Entretanto, algo alienígena seguiu os shriners em sua entrada no
estádio: um estranho carro sem nome. Fãs curiosos, folheando seus Livretes
Programas Oficiais de Lembrança do Orange Bowl, não encontraram
qualquer menção àquele peculiar veículo. Em suas poltronas reservadas
diante da linha de quarenta jardas, membros do comitê organizador do
Orange Bowl apontaram binóculos para o carro e trocaram suspiros
desconsolados. Uma vez que as câmeras da NBC já haviam descoberto o
carro misterioso, uma intervenção ao vivo e em cores estava fora de
cogitação; além disso, não havia razão nenhuma para suspeitar que aquilo
fosse algo mais que uma alegoria inofensiva de alguma república estudantil.
Embora a produção fosse amadorística (desculpável, considerando sua
humilde origem de fundo de quintal), o carro realmente produzia um efeito
esquisito. Tratava-se de um mural dos Everglades, quase infantil em sua
simplicidade. Numa ponta erguia-se uma autêntica chickee de palha, o
tradicional abrigo semínole; ao lado, uma canoa, entalhada a partir de um
cipreste; vapor subia de uma chaleira preta suspensa sobre uma fogueira
falsa. Pastando entre arbustos, onde presumivelmente não poderia ser visto,
estava um veado de cauda branca empalhado; um guaxinim preservado de
maneira similar espreitava por detrás do tronco listrado de uma palmeira
sintética. A peça central era um índio genuíno, perfeitamente vivo e trajado
como os semínoles encontrados no século XIX em entrepostos comerciais:
um chapéu de palha redondo e sem abas, calças largas, camisa de algodão
listrada, lenço vermelho amarrado no pescoço e um manto de couro de
vaca. Com um toque de anacronismo, o índio do século XIX estava
empoleirado no comando de um moderno airboat, deslizando pelo rio
Grass. Uma adaga longa e sem brilho estava enfiada no cinto de couro de
cobra do semínole, e um rifle Winchester de brinquedo estava pousado em
seu colo. Sua face juvenil e macia parecia o retrato da civilidade.
Brian Keyes pulou para o corredor no momento em que viu o índio.
Freneticamente procurou abrir caminho para descer da arquibancada, mas
os torcedores do Nebraska com seus cartazes (Chupem, irlandeses!)
estavam engajados numa acalorada escaramuça com os portadores de
cartazes da torcida do Notre Dame (Morram, Huskers!). Keyes empurrou e
atropelou e acotovelou seu caminho ao longo da fila de cadeiras, mas
mesmo assim ia lento, muito lento, e alguns dos bem nutridos adeptos dos
Cornhuskers decidiram ensinar boas maneiras àquele jovem rude. Eles
simplesmente se recusaram a mover-se. Não para um titica como você,
disseram; sente o seu traseiro.
À medida que os carros alegóricos passavam diante do público, a chuva
e o vento fustigaram os passageiros e fizeram com que os atores da
Broadway de imitação corressem para fora do campo em busca de abrigo.
Kara Lynn estava ensopada e sentindo-se miserável, mas continuou a acenar
valentemente e a sorrir. Por meio de um par de binóculos (e na seca
segurança de um camarote VIP), Reed Shivers examinou a face molhada de
sua filha e notou que sua maquilagem escorria, veios líquidos de rímel
correndo e manchando suas bochechas impecáveis — ela parecia saída de
um filme de Andy Warhol. Reed Shivers perguntou-se ansiosamente se não
seria o momento de convidar a moça da agência Eileen Ford para mais um
drinque.

Reed Shivers e quase todo mundo no Orange Bowl não percebeu que o
Noites de Dezembro estava vivo e bem. Nem souberam com que facilidade
as tropas de Skip Wiley haviam realizado o assalto ao Nordic Princess, a
aterrissagem forçada do Huey roubado e a encenação de suas próprias
mortes: o grupo simplesmente fizera uma performance impecável (menos
Jesús Bernal, que desaparecera antes que Wiley revelasse os últimos ajustes
do esquema, e que desafortunadamente se encaminhara para a morte
acreditando que a queda do helicóptero era um acidente).
Tommy Rabo-de-Tigre desempenhara um papel heroico como capitão
do barco de resgate clandestino, um Mako de vinte e um pés impulsionado
por um Evinrude de duzentos cavalos de força. Posando de pescador, ele
sulcara um mar agitado por uma hora, próximo ao transatlântico mas sem
chamar atenção. Sua visão noturna provara-se crucial quando todos
saltaram do helicóptero, o piloto, Skip Wiley e Viceroy Wilson. O mar se
tornara uma sopa obscura e traiçoeira, abarrotada de destroços de
helicóptero flutuantes e semiafundados, mas em poucos minutos o índio
encontrou todos os seus camaradas e os recolheu a salvo a bordo da lancha.
O ousado piloto do helicóptero fora recompensado com vinte mil
dólares de lucro do bingo, um passaporte falsificado e uma passagem de
primeira classe para Barbados. O Noites de Dezembro secou as roupas, se
registrou num hotel de Coconut Grove e voltou ao trabalho.
As notícias do destino violento de Jesús Bernal haviam ensombrecido o
ânimo de Skip Wiley, mas ele se recusara a se deixar desanimar. O
passamento de Bernal não tocara Viceroy Wilson do mesmo modo, e ele
simplesmente notou como fora deselegante da parte de Re-sus ter roubado
sua própria carabina, e como fora supremamente estúpido utilizá-la contra
um policial. Tommy Rabo-de-Tigre não tivera absolutamente nada a dizer
sobre a morte do cubano neurótico; ele havia compreendido Jesús ainda
menos do que Jesús o compreendera.
Na verdade, a morte de Bernal não mudara nada. Las Noches fora em
frente com a missão, trabalhando com um vigor e esprit que aqueceram o
coração de Wiley. No vórtice do plano estava um rejuvenescido,
determinado e recentemente livre das drogas Viceroy Wilson, muito mais
que uma sombra de sua antiga identidade.
Viceroy não tivera problemas para escolher o uniforme da Notre Dame
em vez da camisa vermelho-maçã da Universidade de Nebraska.
As razões eram simples. Primeiro, a hegemonia rural-comercial de
Nebraska representava um vil anátema para Wilson, cujas simpatias radicais
eram mais logicamente atraídas pelo Exército Republicano Irlandês, e
portanto para Notre Dame.
Segundo, e mais importante, Notre Dame era o único dos times com um
número 31 em uma de suas camisas.
Na reconstrução dos movimentos de Wilson pelo estádio naquela noite,
concluiu-se que diversos fãs o viram emergir do quartinho de limpeza às
nove e quarenta da noite. Dez minutos mais tarde ele foi visto, de uniforme,
pedindo um suco de laranja tamanho Jumbo na lanchonete do setor oeste.
Quatro minutos depois disso ele foi visto comendo um sonho numa
poltrona de camarote na linha de vinte jardas do Notre Dame. Quando o
ocupante original da poltrona voltou da loja de souvenirs e pediu que
Viceroy saísse dali, Wilson grosseiramente mutilou o guarda-chuva
decorado com o trevo irlandês e o atirou na cara do homem. Ninguém
chamou a polícia; pareceu-lhes mais um assunto para a Associação
Nacional de Esportes Universitários.
Um período de oito minutos se passou sem que nenhuma pessoa tenha
visto o número 31 — então, metade dos lares americanos o viu, cortesia da
NBC.
Enquanto os outros jogadores se agrupavam no túnel sudoeste, Viceroy
Wilson surgiu no campo num trote casual mas confiante. Muitos fãs do
Notre Dame aplaudiram, pensando que o show do intervalo tinha
finalmente acabado mas se perguntando por que o resto dos verde-e-ouro
não o seguiam. Perguntaram-se também por que um perdedor de bolas de
segunda categoria como David Lee teria recebido a honra de liderar os
Fighting Irish na batalha.
Ficaram estupefatos com o que veio depois.
O número 31 correu numa perfeita linha reta até o centro do campo de
futebol, cada passada espalhando a água do gramado encharcado. Para os
fanáticos dos Miami Dolphins, era uma inconfundível, embora
fantasmagórica reprise — o conhecido número na roupa; o ombro direito,
sempre um pouco curvado, como se preparado para trombar com um
adversário; os braços fortes balançando como duas âncoras içadas, as mãos
negras fechadas; e, certamente, aquela tremenda massa de músculos
triangular, dos ombros ao quadril. Tudo o que faltava era uma bola.
No momento em que Viceroy Wilson cruzou a linha das cinquenta
jardas, ele estava em plena corrida e nenhum guarda de segurança de três
dólares e cinquenta a hora sobre a face da terra o teria alcançado. O louco
avanço de Viceroy pareceu congelar as autoridades, que não desejavam
atirar, aleijar ou deter de qualquer forma um jogador do Notre Dame.
Talvez o rapaz só estivesse se estimulando para o jogo, ou apenas querendo
se mostrar para os olheiros dos times profissionais. Afinal, havia câmeras
de TV por toda a parte.
No meio da corrida virtuosística de Viceroy Wilson, dois outros
distúrbios irromperam no estádio.
Primeiro, da alegoria semínole proveio um estrondo e o carro começou
a tremer no final da procissão — parecia estar prestes a explodir. Os
shriners diminuíram a marcha da motocicleta e saíram de formação,
imaginando que o índio sonso tinha acidentalmente dado partida no airboat.
No mesmo instante John Davidson foi abordado no meio do campo por
um careca descalço, de barba ruiva, vestido como o Rei do Sião. Era,
evidentemente, Skip Wiley.
Fragmentos incompreensíveis de sua discussão foram captados pelo
sistema de som do estádio e uma luta começou. Os dois homens se
empurraram para fora do foco de luz.
Segundos mais tarde o Rei do Sião apareceu sozinho, segurando o
microfone sem fio de Davidson.
A multidão parecia confusa, sem saber se isso era parte do programa
oficial; metade aplaudia e metade murmurava.
Skip Wiley sorriu grandiosamente para as arquibancadas e disse:
“Por favor, permitam-me apresentar-me; sou um homem de posses e
bom gosto.”
Brian Keyes se desembaraçara dos torcedores com seus cartazes e se
atirava em direção ao campo, quatro degraus de cada vez, no momento em
que ouviu isso.
Skip Wiley gritou para que o mundo ouvisse:
“Vaguei por muitos e muitos anos. Roubei a alma e a fé de muitos
homens.”
Porra, disse Keyes consigo mesmo, ele está cantando uma dos Stones.
Do topo do carro da rainha, Kara Lynn Shivers parou de acenar para os
aleijados do Cub Scouts na Seção Q e virou-se para ver o que estava
acontecendo. Não se lembrava de ter visto “Sympathy for the Devil” no
programa musical do Orange Bowl. Nem reconheceu o crooner careca em
sua veste oriental.
“Prazer em conhecê-los”, cantou Wiley, “e espero que adivinhem meu
nome...”
No furgão da NBC o produtor-assistente rosnou em seu microfone:
“Mantenham duas câmeras nesse imbecil!” E era esse o sentimento
prevalecente entre seus quarenta e um milhões de espectadores.
A performance de Skip Wiley era excêntrica o bastante para desviar a
atenção de todo mundo de Viceroy Wilson — todos, exceto os shriners.
Reagindo rápido, Burt e James guiaram o esquadrão de motocicletas pelo
setor leste para interceptar o maciço ex-atacante em sua disparada. Era o
teste final para a habilidade renascida de Wilson, ziguezagueando e fintando
no compacto centro da brigada de shriners de Evanston; arremetendo de
braço esticado onde necessário; usando o ombro de profissional para
desequilibrar os motociclistas; uma cotovelada num fez, um murro num
pescoço (nos velhos tempos, punição com perda de quinze jardas e de uma
tentativa). Em cada colisão Viceroy Wilson emitia um grunhido de
satisfação. “Trinta e um Z-direita.” Era a única parte de que ele sentira
saudade, a pureza do contato. Galvanizado pela adrenalina, ele se deliciava
na justiça resplandecente de sua corrida — o herói negro espezinhado
superando em esperteza, força e agilidade os mais brancos do establishment
branco, impotentes diante de seu assalto à preciosa feminilidade perua dos
brancos. No rastro de Wilson os shriners esfolados torciam-se nas poças,
presos sob suas Harleys reluzentes; derrotados, Viceroy se comprazia em
pensar, pelo seu próprio materialismo vistoso. E tudo isso representado com
esplêndida ironia no teatro de suas proezas passadas.
Com os perseguidores lançados no caos, tudo o que restava entre
Viceroy Wilson e a rainha do Orange Bowl era a guarda de honra da
marinha americana, cujos membros não tinham a intenção de quebrar a
formação ou sujar o azul de seus trajes. Wilson desvencilhou-se deles sem
esforço e escalou o carro da sereia.
“Ai, merda”, disse Kara Lynn Shivers.
“Vamos lá, garota”, disse Viceroy Wilson, pegando seu troféu.
“Para onde estamos indo?”, perguntou Kara Lynn.
“Para a história.”
As sereias azuis soltaram gritos agudíssimos quando Wilson jogou a
rainha sobre seus ombros e correu de volta para o campo.
Naquele instante o airboat semínole disparou do carro alegórico dos
Everglades, despedaçando placas de madeira compensada, destripando o
veado empalhado, levando ao chão a tenda indígena; o motor de aeronave
expeliu um sufocante jato de chuva e fumaça de óleo diesel sobre as
arquibancadas. O casco de alumínio do barco aterrissou sobre a grama
escorregadia do campo de futebol e hidroplanou; era perfeito, pensou o
índio ganhando velocidade — não se podia pensar numa superfície melhor.
Brian Keyes finalmente alcançara o final das escadarias, e pulava a
cerca para o campo quando encontrou os tiras que estivera procurando.
Cinco, dos melhores que Miami tinha a oferecer. Cães, cassetetes, o diabo.
Keyes protestou com todo o ar de seus pulmões, mas mesmo assim o
puseram contra a grade e de lá, como um peixe numa rede, ele assistiu ao
desenrolar da terrível cena — o airboat virando em círculos; Viceroy
correndo com Kara Lynn sobre o ombro; Skip cantando no microfone.
No campo, Burt e James tinham levantado suas motocicletas e
reiniciado a perseguição. O elemento-chave agora era a velocidade, não a
agilidade; driblar uma Harley Davidson era uma coisa, superá-la em rapidez
era impossível. Viceroy Wilson não tinha ilusões quanto a isso: e contava
inteiramente com a ajuda do índio.
Tommy Rabo-de-Tigre era um mágico com o airboat. Cortou o campo e
interpôs o barco entre Wilson e os carrancudos motociclistas, com suas
vestes brancas e chapéus roxos. O índio fez com que o barco volteasse
sobre uma poça, atirando uma mistura nojenta de água e terra no focinho
dos shriners. James perdeu o controle e caiu, derrapando da linha de
quarenta jardas do Notre Dame até a linha de trinta e cinco do Nebraska.
Não se levantou. Burt, alerta, desviou-se do jato de popa do airboat e, para
evitar a lama atirada para o ar, buscou proteção curvado atrás do para-brisa
de acrílico feito sob medida para sua moto.
O airboat emparelhou-se com Viceroy Wilson e parou. Wilson atirou
Kara Lynn Shivers sobre ele como se fosse um saco de areia. Nesse
momento, o público já tinha percebido que aquilo não era parte do show e
começou a gritar descontroladamente. O diretor do Orange Bowl estava de
pé, gritando pelos guardas, enquanto o sucessor de Sparky Harper na
Câmara de Comércio tentava freneticamente sabotar os cabos de uma das
minicâmeras portáteis da NBC. Enquanto isso, alguns dos verdadeiros
jogadores do Notre Dame se aproximaram do campo para observar a
confusão; Tommy Rabo-de-Tigre temeu que eles assumissem logo uma
atitude cavalheiresca.
“Rápido”, disse ele a Viceroy Wilson.
Wilson tinha um pé no airboat quando a Harley de Burt zumbiu perto
dele como uma enorme abelha de cromo. Viceroy olhou para baixo e
descobriu que sua perna direita — sua perna ruim — fora firmemente
agarrada no abraço de morte de um shriner. Com sua outra perna, Wilson
chutava e escoiceava como um cavalo de corrida enraivecido. A
motocicleta caiu de sob o atacante de Viceroy, mas de alguma forma Burt
manteve o equilíbrio e conseguiu ficar de pé. Wilson pensou: Esse cara
poderia ter dado um puta dum zagueiro.
“Solte a garota!”, Burt ordenou.
“Suba”, disse Tommy Rabo-de-Tigre a Wilson.
“Não consigo me soltar!”
A dor no joelho de Viceroy — mutilado como todos sabiam,
prematuramente artrítico, agora precariamente mantido por pinos e
parafusos — era insuportável, pior do que qualquer coisa que ele recordava
dos velhos tempos.
“Rápido”, disse o índio. Ele moveu a alavanca e o airboat se pôs em
marcha.
Eles se encontravam num ponto mais seco do gramado e o barco se
movia aos solavancos. Tommy sentia a ânsia de levar logo a máquina à
velocidade máxima; através do aguaceiro ele divisara uma falange de
policiais com capacetes avançando do lado norte. Tremendo sob o dilúvio,
Kara Lynn sentara-se.
“Solte-a!”, Burt rugiu, puxando e torcendo a perna de Wilson, até que o
número 31 se ligava ao casco do barco apenas pelas pontas de seus dedos.
Uma dor profunda começou a turvar a mente de Viceroy e dissolver sua
força de vontade. Subitamente ele se sentiu velho e cansado, e percebeu que
gastara toda a sua histamina naquela corrida gloriosa.
O índio decidiu que era hora de partir — os policiais agora corriam,
com cães pastores de presas amareladas em seus calcanhares. Tommy
abandonou a plataforma do piloto, agarrou Viceroy Wilson pelos pulsos e
puxou com toda a sua força. Burt perdeu sua presa e caiu de costas, o
barrete púrpuro rolando para um lado. Wilson aterrissou no barco com um
gemido.
Kara Lynn tentou engatinhar para fora, mas o airboat já ia muito rápido.
Ela se agachou, as pernas encostadas no peito, as mãos nos ouvidos; o
rugido ensurdecedor do motor era mais uma fonte de dor.
Ela viu o destemido shriner correndo ao lado do barco, as abas de sua
túnica esvoaçando. Ele continuava gritando a Tommy para que parasse.
Tinha uma pequena pistola marrom na mão.
Viceroy Wilson aproximou-se da popa, os fortes braços pendentes ao
lado do corpo, mantendo-se firme mas arrastando a perna direita. Arrancou
o capacete do Notre Dame e atirou-o em vão na direção do ensandecido
shriner.
O crânio de mogno de Viceroy brilhava na chuva; as luzes do estádio
piscavam nas lentes de ébano de seus óculos de sol. Ele desafiou Burt
orgulhosamente e ergueu seu punho direito numa saudação que era, no
mínimo, tradicional, até mesmo gasta.
“Abaixe!”, gritou o índio. O airboat avançava direto para uma das traves
— Tommy teria que fazer uma curva espantosa. “Viceroy, abaixe!”
Kara Lynn viu um flash rosado partindo do cano da pistola de Burt, mas
não ouviu nenhum tiro.
Quando ela se voltou, Viceroy Wilson não estava mais ali.
Com um esgar, Tommy Rabo-de-Tigre mergulhou com o barco num
ousado cavalo de pau. Ele deslizou de lado e foi bater contra a trave
revestida de borracha, ricocheteou e voltou ao seu curso. As malabaristas do
Marching Cornhusker soltaram seus bastões e desfizeram a fileira, abrindo
uma rota de escape para Tommy. Com Kara Lynn encolhida de medo na
proa, o airboat disparou para fora do estádio através do portão leste. Um
trailer com carreta fora estacionado na Seventh Street para eventualidades,
mas o índio sabia que não precisaria dele; havia poças de água de chuva de
vinte centímetros de profundidade e o airboat deslizou suavemente sobre
todo o caminho que o separava do rio Miami.

Viceroy Wilson jazia morto na zona leste do campo. Do dirigível da


Goodyear parecia que ele estava aplastado diretamente sobre o F de
Fighting Irish, que fora pintado em compridas letras douradas sobre a
grama.
Um barulhento agrupamento de policiais, blazers laranja, fãs bêbados e
shriners exaustos cercara o herói do Super Bowl. Também Brian Keyes
estava lá, ajoelhado e sussurrando ansiosamente no ouvido de Viceroy
Wilson, mas Viceroy Wilson não estava respondendo às perguntas. Deitado
de costas, seus lábios se torciam num sorriso radical de escárnio, digno de
um pôster. Sua mão direita estava tão decididamente fechada que dois
funcionários veteranos do necrotério foram incapazes de abri-la mais tarde.
Centrado entre o três e o um do uniforme verde de futebol havia um único
buraco de bala, objeto de muitos dedos apontados e reações admiradas.
“Estou te dizendo”, o técnico do Notre Dame gritava, “ele não é um dos
nossos.”
Fora do Orange Bowl, na Fourteenth Avenue, o Rei do Sião acenou para
um táxi.
33

Keyes foi do estádio à casa de Jenna em vinte minutos.


“Oi, Brian”, disse ela abrindo a porta. Ela usava um abrigo esportivo
largo sem nada por baixo.
Keyes foi até a sala. O caixão estava trancado.
“Abra isso”, disse ele.
“Mas eu não tenho a chave”, disse Jenna. “Qual é o problema... ele está
vivo, não está?”
“Surpresa, surpresa.”
“Eu te disse!”, exclamou ela.
“Vista-se, diabos.”
Ela fez que sim e foi para o quarto.
“Você tem um martelo?”, Keyes perguntou.
“Na garagem.”
Ele encontrou uma marreta e a levou de volta para a sala. Jenna tirou o
vaso chinês e as revistas de cima da macabra mesa de café. Estava usando
agora um confortável short bege e um pulôver azul-escuro de mangas
compridas. Também tinha vestido sutiã e tênis de corrida.
“Cuidado aí”, disse Keyes. Ele bateu no cadeado três vezes antes que o
ferrolho cedesse.
Dentro do caixão barato, o lixo de Skip Wiley parecia tão confuso e
aleatório quanto antes — recortes amarelados de jornal, cadernos velhos,
livros bolorentos, pastas furtadas do arquivo morto do Sun. Keyes remexeu
tudo em busca de uma pista nova. A melhor que achou foi um recibo de
venda de uma loja de barcos de Fort Lauderdale.
“Skip comprou um barco na semana passada”, disse Keyes. “Um Mako
de vinte e um pés. Dezoito mil e quinhentos, à vista. Algum palpite?”
“Nenhum.”
“Qual foi a última vez que ele esteve aqui?”
“Não estou muito certa”, respondeu Jenna.
Keyes a agarrou pelos braços e lhe deu um safanão violento. Ele a
amedrontou, e era o que queria. Ele a queria fora de seu equilíbrio irritante.
Jenna não sabia como reagir, nunca tinha visto Brian daquele jeito. Seus
olhos estavam ríspidos e cheios de desprezo, e sua voz era a de um invasor.
“Quando o Skip esteve aqui?”, repetiu ele.
“Uma semana atrás, eu acho. Não, na última sexta-feira.”
“O que ele fez?”
“Passou metade do dia lendo o jornal”, disse Jenna. “Disso eu me
lembro.”
“Ah, só isso?”
“OK, deixe-me pensar.” Ela tomou fôlego de maneira teatral e enfiou as
mãos nos bolsos, “OK, ele estava recortando alguma coisa do jornal — isso
eu lembro. E tinha colocado música para tocar. Steppenwolf, muito alto...
Eu fiz ele abaixar um pouco. Depois ele grelhou uns hambúrgueres com
champignon, o índio veio e eles saíram. É o que eu lembro.”
“Ele não falou nada sobre o Noites de Dezembro?”
“Não.”
“E você não perguntou?”
“Não”, disse Jenna. “Achei melhor não. Ele estava muito nervoso,
Brian. Não estava com humor para perguntas.”
“Você é uma inútil, sabia?”
“Brian!”
“Onde está o lixo?”
“Lá fora.” Jenna começou a choramingar; era possível que fosse
autêntico.
Keyes foi até a rua e arrastou o saco de quarenta litros de volta até a
casa. Usou uma chave de carro para rasgá-lo.
“O que você está fazendo agora?”, perguntou Jenna.
“Procurando tampas de sucrilhos Wheaties. Você não ficou sabendo? —
tem um superconcurso com elas.”
Ele chutou cascas de goiaba, queijo apodrecido, cascas de ovo,
saquinhos de chá, cascas de melão, borra de café, copinhos de iogurte,
ossos de galinha e latas de refrigerantes. Os jornais estavam bem no fundo,
mofados e cheirando a ranço. Keyes usou a ponta do sapato para procurar
pela primeira página da sexta-feira, 28 de dezembro. Quando a encontrou,
puxou Jenna para perto. Ela fez uma careta ao passar na ponta dos pés sobre
aquela massa malcheirosa.
“Era desta que ele estava recortando?”, perguntou Keyes.
“Era.”
Keyes se ajoelhou, virando cada uma das páginas encharcadas do jornal.
Jenna recuou e sentou no chão. Mostrar-se amuada seria um desperdício de
energia; Brian quase não notava que ela estava ali.
Ele encontrou os buracos feitos pela tesoura de Skip Wiley na seção de
classificados de imóveis. Um longo artigo fora cortado do pé da primeira
página, e um grande anúncio fora retirado da página F-17.
Keyes levantou os retalhos de jornal para que Jenna visse; ela deu de
ombros e balançou a cabeça.
“Fique aqui”, disse ele. “Preciso usar seu telefone.”
Três minutos depois ele estava de volta. Tomou-a pela mão e disse:
“Vamos, o tempo está se esgotando.” Keyes tinha ligado para um
arquivista do Sun. Ele agora sabia o que Wiley havia recortado. Ele sabia de
tudo.
“E essa bagunça?”, reclamou Jenna.
“Isso não é nada”, disse Keyes, empurrando-a porta afora. “É só um
piquenique.”

Eles chegaram à marina de Virginia Key com uma diferença de minutos,


Skip Wiley de carro, o índio com seu airboat. O chapéu de palha redondo
do índio voara de sua cabeça no caminho, e seu cabelo preto, molhado, fora
soprado pelo vento para trás de suas orelhas. Wiley se trocara; usava agora
uma camisa de flanela, calças de pintor e um boné azul de beisebol, dos
Atlanta Braves.
O Mako havia sido abastecido e estava amarrado ao cais. A marina
estava escura e, depois que Tommy desligou o airboat, silenciosa. Ele
colocou cuidadosamente Kara Lynn na popa; ela estava inerte, um trapo, e
com os olhos fechados. Seu cabelo loiro caía numa mecha sobre metade de
seu rosto.
“Eu dei uma coisa para ela beber”, disse o índio, saltando para fora.
“Ela vai dormir por um tempo.”
“Perfeito”, disse Wiley. “Olha, Tom, sinto muito pelo Viceroy.”
“Foi culpa minha.”
“O cacete. Ele só tinha que se abaixar, mas a besta negra tinha que
puxar um Huey Newton. Ele me desapontou muito, ele e essas asneiras de
Black Power — aquela não era hora nem lugar adequados, mas o filho da
puta não conseguiu resistir. O típico crianção idiota dos anos 60.”
Os olhos de Tommy Rabo-de-Tigre se sombrearam de tristeza.
“Vou sentir falta dele”, disse.
“Eu também, companheiro.”
“Encontrei isso no airboat.” Tommy mostrou os adorados óculos
escuros de Viceroy Wilson.
“Aqui”, disse Wiley. Ele arrumou os Carrera no rosto abatido do índio.
“Ei, parece que saiu da GQ!”
“Onde é isso?”, perguntou Tommy. Com os óculos, ele parecia um
pistoleiro mexicano.
Um par de pelicanos esvoaçou pela doca para ver se os dois homens
eram pescadores generosos. O índio sorriu, olhando para os pássaros de
aparência apalermada, e disse:
“Desculpem, caras, nada de peixe por hoje.”
Uma caminhonete vermelha com pneus gigantescos se aproximou. O
motorista desligou os faróis e permaneceu com o motor ligado.
Wiley olhou preocupado por cima do ombro.
“Tudo bem”, disse Tommy. “É a minha carona.”
“Pra onde você vai?”
“Arranjei um bote que está me esperando em Flamingo, lá no interior.
Tem uma tenda velha às margens do rio Shark que ninguém conhece. Nas
últimas semanas eu abarrotei o lugar de comida — o bastante para durar
para sempre para mim.” Tommy Rabo-de-Tigre havia estocado o bastante
para dois homens. Agora, haveria apenas um.
“Você foi tão generoso”, disse Wiley. “Eu gostaria que pudesse ficar e
assistir a diversão.”
“Se eu ficasse aqui”, disse Tommy, “só traria dor para o meu povo. A
polícia nunca mais deixaria o pessoal em paz. Melhor ir para longe, onde
não posso ser encontrado.”
“Eu sinto muito, realmente”, disse Wiley.
“Por quê?” O índio tinha uma aparência de absoluta serenidade. Numa
voz que trazia uma nota de triunfo íntimo, ele disse: “Você não percebe?
Desse jeito eu não vou morrer na prisão”. Aquilo, ao menos, ele devia a
seus ancestrais.
“Se você algum dia for ao Haiti”, disse Wiley, “procure meu nome na
lista telefônica. Em E de Exílio.”
“Não arranje encrencas”, aconselhou Tommy Rabo-de-Tigre. “E dê um
jeito de ficar livre.”
Wiley coçou o pescoço e sorriu.
“O que acabamos de fazer foi grandiosamente do caralho, não?”
“Sim, do caralho”, disse Tommy. Ele apertou a mão de Wiley e lhe deu
o lenço vermelho que estava amarrado em seu pescoço. “Adeus, Skip.”
“Até, Tom.”
O índio caminhou rapidamente até a caminhonete. Um ancião semínole
de finos cabelos cinzentos e rosto em forma de noz estava na direção.
“Vamos, tio Billie”, disse Tommy.
Eles podiam ver Skip Wiley diante do console do moderno barco,
aquecendo o motor. Ele cantava a plenos pulmões, encobrindo os gritos das
gaivotas e a batida das ondas.
“Rode a tank, held a general’s rank, when the blitzkrieg raged and the
bodies stank...”
“Quem é aquele estranho com a barba?”, quis saber o velho semínole.
“Se eu tiver sorte”, disse Tommy Rabo-de-Tigre afetuosamente, “o
último homem branco que eu vou ver.”

Quando eles chegaram ao pedágio para a Rickenbacker Causeway,


Jenna sentou-se e perguntou:
“Aonde estamos indo?”
“Para um passeio de barco”, replicou Brian Keyes.
“Pensei que a gente estava indo para a polícia. Não acha que é uma
ideia melhor?”
“Os marines seriam uma ideia melhor, se eu tivesse tanto tempo assim.”
Keyes sabia exatamente o que os tiras estavam fazendo — isolando um
vasto e desnecessário perímetro ao redor do Orange Bowl. A cidade uivava
com sirenes; todos os carros da frota policial de Dade County estavam na
rua. Não havia helicópteros por causa do mau tempo — e sem eles, Keyes
sabia, a polícia podia desistir de pegar o índio.
Jenna se movia sem conseguir se ajeitar, de modo apreensivo. Ela disse:
“Acho que você devia me deixar aqui. Tudo isso é entre você e Skip.”
Keyes dirigiu mais rápido trilha abaixo. Anos atrás — muito tempo
atrás —, ele e Jenna costumavam estacionar lá à noite e fazer amor debaixo
das árvores, maravilhando-se depois com a forma como os arranha-céus
brilhavam na baía. Desde então, a trilha se tornara extremamente popular
entre estupradores mascarados e assassinos armados com picadores de gelo,
e poucos casais desarmados iam lá transar agora.
Jenna disse:
“Por que você não me deixa sair?”
“Aqui não, é muito perigoso”, disse ele. “Estou curioso — por que você
passou lá no escritório hoje?”
“Eu só estava me sentindo sozinha”, disse Jenna. “E estava
preocupadíssima com o Skip... Achei que você podia saber de alguma
coisa.”
Keyes olhou para ela e disse:
“A sua choramingação era para me fazer ficar junto com você, certo?”
“Essa é a coisa mais estúpida que eu já ouvi.”
“Você estava metida em tudo, desde o começo.”
“Eu odeio você desse jeito”, disse Jenna furiosamente. “Tão
presunçoso, você acha que sacou tudo. Só que não sacou. Tem uma coisa
que você nunca soube: por que eu te abandonei para ficar com o Skip.”
“Isso é verdade”, disse Keyes, lembrando-se de como ela podia ficar
crua e terrível. Ela se endireitou toda no assento, com o queixo erguido, a
imagem da provocação.
“A escolha foi fácil, Brian. Você é uma pessoa totalmente passiva, um
espião incurável, que fica olhando em buracos de fechaduras.”
Keyes pensou: Isto vai ser uma beleza.
Jenna disse:
“Você é um pau-mandado e um curioso e um cronista da vida de outras
pessoas, mas, merda, você não vai nunca participar. Eu queria alguém que
participasse. Skip não tem medo de entrar na dança. Ele é o tipo de pessoa
que você adora observar, mas você detestaria ser como ele, porque ele
aceita riscos. Ele é um líder, e os líderes não são só seguidos — são
perseguidos. Esse não é o seu estilo, Brian, ser perseguido. O que há de
especial com o Skip é que ele faz as coisas acontecerem.”
“Assim como Juan Corona. Vocês dois fariam um lindo par.”
Keyes descobriu-se estranhamente imperturbado pela arenga
emasculatória de Jenna; talvez ainda houvesse alguma esperança para ele.
Ele pisou no breque e o MG deslizou da estrada para os cascalhos da
margem. Ele deu ré até o portão da marina de Virginia Key.
“Acho que aquele é o seu carro”, disse ele a Jenna.
“Onde?”
Ele apontou.
“Perto da rampa. O Mercury branco.”
“Meu carro está no conserto”, disparou Jenna.
“Mesmo? Será que vamos ter que dar uma checada na placa?”
Jenna virou-se.
“Skip pegou emprestado”, disse ela de forma quase inaudível.
Keyes viu a mão dela se aproximando da maçaneta. Ele avançou por
cima do assento e trancou a porta.
“Ainda não”, ele avisou. “Você não vai a lugar nenhum.”
“O que significa isso?”
“Isso se chama enrascada, e você está bem no meio dela, senhorita Bolo
de Granola.”
“Eu só sabia de detalhes e pedaços”, insistiu ela. “O Skip não me
contava tudo. Ele sempre deixava escapar dicas, mas eu tinha medo de
perguntar mais fundo. Eu não sabia sobre o novo barco e posso garantir que
não sei onde ele está agora. Eu juro, Brian, pensei que o malabarismo com o
transatlântico fosse o grande plano dele e tudo acabasse ali. Eu não sabia
nada sobre hoje à noite, palavra. Eu nem sabia mais se ele ainda estava
vivo.”
Os olhos dela não poderiam estar mais úmidos, nem sua voz mais
implorante. Uma metamorfose em trinta segundos.
Keyes disse:
“Você prometeu que ele não ia machucar Kara Lynn.”
“Talvez ele não machuque”, disse Jenna ingenuamente. “Talvez até já
tenha deixado ela ir embora.”
“É, e talvez eu seja o príncipe de Gales.”
Keyes passou pelo Miami Marine Stadium e virou numa estradinha
volteante de duas mãos. A doca do pescador de camarões estava no fim da
estrada, de frente para uma laguna em forma de lágrima.
O nome do pescador era Joey, e ele era dono de três traineiras pequenas
que faziam sua colheita na baía de Biscayne à noite. Ele trabalhava num
casebre feito de madeira compensada, iluminado por lâmpadas sem lustre e
guardado por um par de cachorros bobalhões e amigáveis.
Joey estava salgando camarões quando Keyes chegou.
“Não sei se você lembra de mim”, disse Keyes. “Eu entrevistei você uns
anos atrás para uma reportagem de jornal.”
“Claro”, disse Joey olhando meio vesgo para além da ponta do seu
cigarro. “Você estava perguntando sobre poluição, um negócio assim.”
“Isso. Olha, eu preciso de um barco. É uma emergência.”
Joey deu uma olhada em Jenna no carro.
“Grande emergência”, disse ele. “Mas o que você precisa é um colchão
d’água, não um barco.”
“Por favor”, disse Keyes. “Precisamos ir até Osprey Island.”
“Você e a garota?”
“É isso aí. Eu pago cem pratas.”
Joey pendurou a rede num prego acima do tanque de camarões.
“Aquela ilha é propriedade particular, filho.”
“Eu sei.”
“É escura que nem cu de urso e cheia de mosquitos. Por que, diabos,
você quer ir lá numa noite destas?”
“Como eu disse, é uma emergência”, disse Keyes. “Caso de vida ou
morte.”
“Naturalmente”, resmungou Joey. Ele pegou os cem dólares e se enfiou
numa capa impermeável. “Vem mais tempo ruim no caminho”, disse ele.
“Vá pegar sua amiga. Vamos no Tina Marie.”

Osprey Island era uma protuberância em forma de remo no Leste da


baía de Biscayne, a uns sete quilômetros ao sul do farol de Cape Florida.
Não tinha praias de areia, pois a ilha era quase só coral duro e rochas — um
longo recife, erguendo-se só um pouco acima do nível da água. As costas
eram margeadas por vegetação de mangue avermelhada; mais para dentro
havia arbustos jovens, nogueiras marinhas e mogno. Um velho que morara
lá por trinta anos, antes de adoecer e retornar à costa, havia plantado uma
fileira de palmeiras e um bosque de pinheiros, estes últimos se erguendo
majestosamente no ponto elevado onde ficava sua casa. Tudo o que restava
desta era uma laje de concreto e quatro pilares de madeira, além de um
tapete de reboque cor-de-rosa caído; um mastro de bandeira de quinze
metros permanecia como o legado, carcomido pelo sal, do patriotismo do
velho, assim como de seu medo indelével de que os russos algum dia
invadissem a Flórida, começando por Osprey Island.
Como quase tudo no Sul da Flórida, a ilhota tinha um nome desonesto.
Não havia “ospreys”, ou águias-pescadoras, vivendo em Osprey Island,
porque as árvores não eram suficientemente altas e maduras para os ninhos.
Alguns poucos pássaros marinhos viviam em Sand Key ou Elliott, bem para
o Sul, e ocasionalmente podiam ser vistos mergulhando no canal e no lodo
ao redor da ilha que tinha o seu nome. Mas, se coubesse aos índios Calusa
batizá-la, eles que haviam se instalado lá a princípio, a ilha provavelmente
teria se chamado Mosquito ou Caranguejo, pois essas eram as formas de
vida predominantes que infestavam os vinte hectares de superfície do lugar.
Não havia docas — o furacão Betsy havia arrancado todas em 1965 —,
mas um atracadouro baixo, suficiente para apenas um barco, fora construído
no coral morto, ao abrigo do vento. Com alguma dificuldade de manobra e
considerável perda de tinta para o casco do barco, Skip Wiley conseguiu
ancorar no escuro. Ele patinhou até a praia com Kara Lynn desfalecida em
seus braços. A trilha até o acampamento era nova e Wiley não teve
problemas em segui-la, embora os galhos afiados prendessem sua roupa e
arranhassem sua cabeça. A cada passo ele vociferava um novo xingamento
e amaldiçoava virulentamente o firmamento.
No acampamento, não muito longe das ruínas da velha cabana, Wiley
colocou Kara Lynn numa cama de pinheiro e a cobriu com um fino cobertor
de lã. Ambos estavam encharcados da caminhada.
Wiley espalmou mosquitos invisíveis por três horas no escuro, até que
ouviu o ruído de um barco a motor que passava. Finalmente!, exclamou ele.
A patrulha marítima em sua ronda noturna. Wiley estivera esperando que os
bastardos passassem; agora estava seguro.
Quando o barco da polícia se foi, ele acendeu uma pequena fogueira de
madeira seca que guardara sob um pedaço de plástico industrial. O vento
soprava para o Leste e estava incrivelmente forte, espalhando fagulhas da
fogueira como se fossem enxames de atordoados vaga-lumes. Wiley
agradeceu o fato de as árvores estarem molhadas.
Ele cozinhava uma panela de sopa instantânea quando Kara Lynn
acordou, surpreendendo-o.
“Olá”, disse Skip Wiley, pensando que fora uma boa ideia amarrar seus
pulsos e tornozelos — ela parecia uma garota forte.
“Sei que esta é uma pergunta estúpida...”, começou Kara Lynn.
“Osprey Island”, disse Wiley.
“Onde é isso?”
“Na baía. Quer um pouco de sopa?”
Wiley a ajudou a sentar e puxou o cobertor para cobrir seus ombros e
costas, que estavam cobertos apenas pelo vestido usado no desfile. Ele
segurou a xícara enquanto ela bebia.
“Eu sei quem você é”, disse Kara Lynn. “Eu li a reportagem no jornal
de hoje... foi hoje?”
Wiley olhou seu relógio de pulso. Três e meia da madrugada.
“Ontem”, disse ele. “E então, o que foi que você achou?”
“Sobre a reportagem?”
“Não, a coluna.”
“Você já fez melhores”, disse Kara Lynn.
“O que você quer dizer com isso?”
“Posso tomar outro gole? Obrigada.” Ela bebeu um pouco mais e disse:
“Você é mais convincente quando não escreve na primeira pessoa”.
Wiley coçou a barba.
“Também não vá se irritar agora”, disse Kara Lynn. “Só que algumas
das transições pareciam artificiais, como se você estivesse se esforçando.”
“Foi um texto que me custou horrores para ser escrito”, disse Wiley,
pensativo.
“Tenho certeza que foi.”
“Quer dizer, não podia ver outra forma de fazê-lo. O uso da primeira
pessoa parecia inevitável.”
“Talvez você esteja certo”, disse Kara Lynn. “Eu só acho que não teve o
mesmo impacto da coluna sobre o furacão.”
Wiley se alegrou.
“Você gostou daquela?”
“Aquela foi de matar”, disse Kara Lynn. “Nós discutimos a coluna na
aula.”
“Sério?” Skip Wiley estava encantado.
Então seu sorriso desbotou e ele permaneceu em silêncio por vários
minutos. A garota não era o que ele esperava, e ele sentiu uma ambivalência
perturbadora a respeito do que estava por vir. Desejou que a poção semínole
para dormir tivesse durado um pouco mais; agora que Kara Lynn estava
acordada, ele pressentiu uma formidável corrente de impressões
contraditórias. Ela era uma pessoa articulada e bem preparada — ele teria
que se cuidar.
“Qual é o problema?”, perguntou Kara Lynn.
“Por que você não está chorando ou algo assim?”, resmungou Wiley.
Kara Lynn olhou ao redor do acampamento.
“De que adiantaria fazer isso?”
Wiley alimentou o fogo e pôs suas mãos contra a chama. O calor era
reconfortante. Ele pensou: Na verdade, não há nada que me impeça de
partir agora. O serviço está feito.
“Você conhece Brian Keyes?”
“Claro”, disse Wiley, “nós trabalhamos juntos.”
“Ele era um bom repórter?”
“O Brian é um bom homem”, disse Wiley, “mas não estou muito certo
de que fosse um bom repórter. Ele não era talhado de verdade para o
negócio.”
“Nem você, aparentemente.”
“Não tem comparação”, ele caçoou. “Não tem a menor comparação.”
“Ah, não tenho muita certeza disso”, disse Kara Lynn. “Eu acho que
você e o Brian são os dois lados da mesma moeda.”
“E eu acho que você andou lendo demais a revista Cosmopolitan.”
Wiley se perguntou por que ela estava tão interessada assim em Keyes.
“E a Jenna?”, perguntou Kara Lynn. “Você é sincero no relacionamento
com ela?”
“O que é isto, o programa de entrevistas do Merv?” Wiley apertou os
dentes. “Olha”, disse ele, “eu gostaria muito de sentar e bater um papo, mas
está na hora de eu cair fora.”
“Você vai me deixar aqui fora na chuva? Sem comida nem água?”
“Você não vai precisar de nada disso”, disse ele. “Aliás, acho que vou
ter que apagar o fogo também.”
“Um verdadeiro cavalheiro”, disse Kara Lynn amargamente. Ela já
estava testando a corda em seus pulsos.
Wiley se preparava para derramar chá sobre o fogo quando se endireitou
e inclinou a cabeça.
“Você ouviu alguma coisa?”, perguntou ele.
“Não”, mentiu Kara Lynn.
“É uma porra de um barco.”
“É só o vento.”
Wiley pôs a chaleira no chão, pegou seu boné de beisebol e saiu em
disparada, sua cabeça descoberta brilhante como um ovo branco,
desaparecendo no mato. Pensando que ele tinha fugido, Kara Lynn
contorceu-se até a fogueira e se virou. Pôs os pulsos sobre a chama azul até
sentir o cheiro de sua carne queimando. Com um grito ela retrocedeu; a
corda continuou firme.
Quando ela olhou para cima, ele estava lá. Ele cruzou os braços e disse:
“Veja o que você fez, você se machucou.” Carregou-a de volta para a
cama e examinou as queimaduras. “Deus do céu, não tenho nem um band-
aid aqui”, disse ele.
“Eu estou bem”, disse Kara Lynn. Seus olhos lacrimejavam por causa
da dor. “O que era o barulho?”
“Nada”, disse Wiley, “só um pesqueiro passando aí pela frente.”
Ele rasgou uma tira de seda laranja da barra do vestido dela. Molhou-a
em água salgada e a amarrou ao redor da queimadura. Então, cortou outro
pedaço de corda e atou novamente seus pulsos, mais apertado que antes.
A chuva recomeçou. Vinha em rajadas, chicoteando horizontalmente.
Wiley cobriu os olhos e disse:
“Merda, não posso dirigir o barco nessa balbúrdia.”
“Por que você não espera até que diminua?”, sugeriu Kara Lynn.
Sua calma era exasperante. Wiley baixou os olhos agudos até ela e
disse:
“Ei, Pollyanna, você está muito tranquila para uma pessoa que foi
raptada. Tomou uma overdose de Midol ou o quê?”
Os olhos de pantera de Kara Lynn devolveram um olhar que o fez
tremer levemente. Ela não estava com medo. Ela não estava com medo.
Que grande garota, pensou Wiley. Que grande pena.
Eles se abrigaram sob um pedaço de plástico opaco, as gotas de chuva
batendo em suas cabeças. Wiley amarrou o lenço vermelho de Tommy ao
redor de sua cabeça para evitar que a água escorresse até os olhos.
“Fale-me um pouco sobre Osprey Island”, disse Kara Lynn, como se
eles estivessem esperando o caminhão de sorvete num balanço na varanda.
“Um lugar especial”, disse ele, melancólico. “Uma gema preciosa da
natureza. Há uma fonte de água fresca ali adiante, você acredita nisso?
Estamos a quilômetros do continente e um lençol de água ainda aflora. Dá
para ver guaxinins, gambás, ratos-do-mato bebendo lá, mas principalmente
pássaros. Cegonhas, garças. Há uma águia-americana na ilha, um jovem
macho. Três metros de envergadura, talvez um pouco mais; um pássaro
glorioso. Ele fica nos pinheiros mais altos, e só pesca na aurora e no
crepúsculo. Ele está lá agora, nas árvores.” Os olhos de Wiley, agora
parecidos com os de um ancião, se dirigiram ao grupo de pinheiros. “Está
ventando demais para ele poder voar, é por isso que tenho certeza de que ele
está lá agora.”
“Eu nunca vi uma águia selvagem”, notou Kara Lynn. “Nasci aqui e
nunca vi uma águia selvagem.”
“Isso é uma pena”, disse Skip Wiley de modo sincero. Sua cabeça
estava curvada. Pequenas bolhas de água pendiam de sua barba
avermelhada. O fato de ela ter nascido aqui não tornava as coisas nem um
pouco mais fáceis, de pensou.
“Logo este lugar não existirá mais”, disse ele. “Daqui a um ano, um
monstro de dezesseis andares estará bem aqui onde estamos.” Ele se pôs de
joelhos e remexeu o bolso de sua calça. Tirou alguns recortes úmidos de
jornal, dobrados num quadrado. “Deixe-me pintar todo o quadro para
você”, disse ele, desdobrando-os, começando a ler. Kara Lynn olhava por
cima do ombro dele.
“Bem-vindo ao Osprey Club... Boa vida, para o morador exigente da
Flórida. Te dá vontade de vomitar.”
“É de muito mau gosto, mesmo”, concordou Kara Lynn.
“Cento e duas unidades, a partir de duzentos e cinquenta mil até um
milhão e seiscentos. Financiamento a perder de vista. Tetos abobadados,
arcos de mármore, salas de estar rebaixadas, banheiras romanas, átrios com
treliças de cedro autêntico, rapaz, mas que beleza.” Wiley levantou o olhar
do anúncio de jornal e observou as sombras das árvores.
“Ninguém pode tentar evitar isso?”, sugeriu Kara Lynn. “O pessoal da
Audubon. Ou talvez o Serviço Nacional de Parques.”
“É tarde demais”, disse Wiley. “Veja, esta é uma ilha particular. Depois
que o velho Bradshaw morreu, os bostinhas dos filhos dele puseram tudo à
venda. Puerco Investimentos a arremata por três milhões e pronto. Em
seguida vem a notícia de que foi feita uma incorporação de um edifício
imenso.”
“Você não escreveu uma coluna sobre isso?”, perguntou ela.
“Lógico que sim.” Uma das muitas ações judiciais pendentes de Wiley:
uma referência gratuita a conexões com a Máfia, impossível de provar.
“De volta aos confortos”, disse ele, “isto aqui vai ter quatro quadras de
squash com ar condicionado, um spa, uma pista de ciclismo, um complexo
de tênis, uma ‘piazza’, duas fontes e uma cachoeira. Pense nisso: eles vão
tapar a fonte natural e construir uma cachoeira de fibra de vidro! Progresso,
meu bem. Aqui diz que eles também vão construir uma coisa chamada
exuberante cordão verde, que é basicamente um lugar onde gente rica vai
levar seus poodles para dar uma cagada.”
Kara Lynn disse:
“Como as pessoas vão chegar aqui?”
“Balsas”, respondeu Wiley. “Veja aqui: Tome uma pitoresca balsa para
sua própria ilha, onde o Mediterrâneo se encontra com Miami! Veja, Kara
Lynn, os bastardos não conseguem mais vender a Flórida, agora tentam
vendê-la como Riviera.”
“Soa um pouco exagerado”, disse ela.
“Oitocentos metros quadrados de exagero”, disse Wiley, “com vista.”
“Mas nenhuma águia-pescadora”, disse Kara Lynn, percebendo a espiral
descendente das emoções dele.
“E nem águia-americana”, disse Wiley sombriamente.
Ele agia como se estivesse prestes a partir, e Kara Lynn sabia que, se ele
o fizesse, tudo estaria acabado.
“Por que você me escolheu?”, perguntou ela.
Wiley voltou-se para olhá-la.
“Porque você é perfeita”, disse ele. “Ou, pelo menos, você representa a
perfeição. Beleza. Castidade. Inocência. Bronzeada e loura, o sonho
dourado americano. Na verdade, é isso que eles prometem com seus
malditos desfiles e sua propaganda gordurosa para turistas. Venha ver
Miami, venha ver as garotas! Mas é tentação barata, meu bem. A Flórida é
só o sonho molhado de algum publicitário filho da puta.”
“Já chega”, disse Kara Lynn, enrubescendo.
“Eu sei que você não se considera apenas uma bunda gostosa.”
“Não, de jeito nenhum.”
“Nem eu”, disse Wiley, “mas definitivamente somos minoria. E é por
isso que estamos aqui agora — uma lição para aqueles pilantras, puxa-
sacos, bandidos filhos da puta.”
Wiley engatinhou para fora da tenda de plástico e ergueu-se todo,
entoando:
“A única maneira de atingir esses pagãos ambiciosos e cegos é atacar
seus princípios mesquinhos.” Ele apontou para o topo das árvores. “Para os
criadores do Osprey Club, aquela preciosa águia não é vida, não tem valor
real. O mesmo vale para os ratos-do-mato e os guaxinins. Comparados com
o valor de um condomínio de dezesseis andares todo vendido, os habitantes
naturais desta ilha não representam vida — não valem merda nenhuma.
Está acompanhando meu raciocínio?”
Kara Lynn assentiu. Ela ainda não conseguia ver o grande voo, aonde
ele queria chegar.
“Agora”, disse Wiley, “se você é o diretor-executivo da Puerco
Investimentos, o que é que tem valor para você além do dinheiro? O que é
uma vida? Entre todas as criaturas, qual não pode ser legalmente extinta em
nome do progresso?” Wiley arqueou as sobrancelhas e apontou um dedo
gotejante para o nariz de Kara Lynn. “Você”, disse ele. “Você é,
presumivelmente, sagrada.”
Pela primeira vez na conversa, ocorreu a Kara Lynn que aquele sujeito
poderia ser louco de verdade.
Wiley piscou para ela.
“Volto já”, disse ele.
Dessa vez ela não se moveu. Molhada e com frio, ela passara a
agradecer pela miserável proteção da cobertura plástica. Wiley retornou
carregando uma curta estaca de madeira, com uma bandeirola de plástico
laranja presa a uma das extremidades.
“Marcos de medição de terra”, disse Kara Lynn.
“Muito bem. Então, você sabe o que isso quer dizer — o início da
construção vai acontecer a qualquer instante.”
“A qualquer instante e quando?”, perguntou ela.
“Amanhã.”
“Eles vão começar amanhã a limpar o terreno?”
“Não, isso foi na noite de Natal. Puramente cerimonial”, disse Wiley.
“Amanhã há algo de muito mais significativo. Amanhã eles começam a
modificação do terreno.”
“O que é isso?”
“É exatamente o que a expressão está dizendo.”
Kara Lynn estava confusa.
“Não estou vendo nenhum buldôzer.”
“Não, as máquinas vão chegar mais tarde, para a limpeza das margens.”
“Então, o que eles vão usar para essa ‘modificação do terreno’?”,
perguntou ela.
“Dinamite”, retrucou Skip Wiley. “Ao amanhecer.”
OSPREY ISLAND

Kara Lynn pensou ter ouvido mal, ou que talvez fosse um engano
sonoro causado pelo vento.
“Você disse dinamite?”, perguntou ela.
“Quatrocentos quilos”, disse Skip Wiley, “divididos em três cargas.
Uma na ponta nordeste, outra a sudeste. A terceira carga, a maior, está logo
ali, a trinta metros de distância. Você está vendo? Aquela caixa galvanizada
debaixo das árvores.”
De onde estava, Kara Lynn via apenas sombras.
“Eu... eu não...” Ela engasgava de medo, incapaz de falar. Acalme-se,
ela disse a si própria.
“Eles acionam por controle remoto”, explicou Wiley, “de uma lancha.
Nós passamos por ela no caminho, ancorada a cinco quilômetros da ilha.
Você estava dormindo.”
“Oh...” O plano era mais terrível do que ela imaginara; toda a sua
tentativa de retardá-lo fora em vão, uma estratégia inútil.
“A explosão tem que ser feita de madrugada”, prosseguiu Wiley, “por
causa de algum tipo de regra militar. Não podem trazer barcos para mais
perto da ilha porque a explosão arrebentaria os vidros.”
Ele caminhou vagarosamente até a fogueira e permaneceu de costas
para ela por vários instantes. Sua cabeça de cantalupo descoberta movia-se
para lá e para cá, como se ele estivesse falando consigo próprio.
Abruptamente ele se voltou e disse:
“A razão para a dinamite são os corais. Veja...” Ele bateu no chão com o
sapato. “Mais duro que cimento. Eles precisam penetrar sessenta
centímetros para assentar as fundações do condomínio. Não podem nem
arranhar essa coisa com picaretas... eis o porquê da dinamite. Giram um
botão e — puf — transformam este lugar nas planícies de Bonneville.
Quatrocentos quilos é um bom punhado de traques.”
Kara Lynn endireitou-se apenas o bastante para fazer a pergunta mais
vazia de toda a sua vida:
“E eu?”
Wiley abriu os braços.
“Nenhuma forma de vida sobreviverá”, disse ele em tom professoral.
“Nem que seja um percevejo.”
“Por favor, não faça isso”, disse Kara Lynn.
“Não sou eu, bonequinha Barbie, é o progresso. Sua carne está nas mãos
da Puerco Investimentos.”
“Não me deixe aqui”, disse ela, quase suplicante.
“Minha querida, como eu poderia salvar você e não salvar aquela
magnífica águia? Ou os coelhos indefesos e os simpáticos gambás e os
caranguejos? É impossível salvá-los, portanto não vejo como posso salvar
você. Não seria justo. Seria como... brincar de Deus. Assim é melhor, Kara
Lynn. Desse jeito — pela primeira vez em dezenove anos de mimo —, você
é realmente uma parte da ordem natural. Você agora é habitante desta linda
ilhota, e o valor da sua vida é igual ao de todas as outras criaturas daqui. Se
eles forem sobreviver depois da madrugada, você também irá. Senão... bem,
talvez aí a boa gente da Flórida venha finalmente apreciar a magnitude de
seus pecados. Se Osprey Island for aplainada em nome do progresso,
prevejo uma reação cataclísmica, logo que a verdade seja descoberta. A
verdade, no caso, é o fato de eles terem massacrado a única espécie que
realmente lhes importa — um futuro cliente.”
Kara Lynn começava a perder a calma.
“O simbolismo é intrigante”, disse ela, “mas a sua lógica é ridícula.”
“Só escute”, disse Wiley. De um bolso na camisa ele tirou outro recorte
e leu: “‘As autoridades do Sul da Flórida estimam que a publicidade
adversa, devida aos assassinatos de turistas em dezembro, trouxe à região
prejuízos de cerca de dez milhões de dólares’”. Wiley acenou com o papel e
prosseguiu com satisfação maligna. “Nada mau, hein?”
“Estou impressionada”, disse Kara Lynn altivamente. “Um mês de
mortes e tudo o que você conseguiu foi uma notinha da Newsweek.”
“É o item principal da coluna ‘Periscope’!”, disse Wiley na defensiva.
“Sensacional”, disse Kara Lynn. “Olha, por que você não me deixa ir
embora? Você pode fazer muito mais do que isso.”
“Eu acho que não.”
“Eu posso nadar para longe”, declarou ela.
“Não toda amarrada como você está”, disse Wiley. “Além disso, a água
está infestada de cações. Você sabia que eles desovam à noite, no raso? São
uns peixinhos agressivos. Uma mordida aqui, outra lá, um pouco de sangue
e logo os peixões sentem o cheiro e aparecem no palco. Tubarões brancos e
tubarões-martelo, grandes o bastante para comer a droga de um Datsun.”
“Isso basta”, disse Kara Lynn.
Um pequeno barulho veio da borda da clareira. Um galho quebrando na
tempestade, ela pensou. Skip Wiley inclinou a cabeça e fixou o olhar na
direção do ruído, mas a chuva forte tornava tudo cinza, borrado e disforme.
Os únicos sons identificáveis eram o de gotas de chuva batendo em folhas e
o assobio das brasas da fogueira, apagada pelo aguaceiro.
Wiley não se contentou com isso. Como um desajeitado arremessador
de beisebol, ele se contorceu e atirou a estaca com a bandeirola em direção
às árvores.
Em resposta ao míssil, veio um estranho e sufocado pio.
Wiley riu.
“Como eu tinha pensado”, disse ele, “era um tordo.”
Nesse instante, a mata se rompeu numa explosão tão grande que Kara
Lynn teve certeza de que Wiley acidentalmente detonara a dinamite.
Quando ela abriu os olhos, ele estava sentado, pálido, o queixo caído. O
lenço vermelho estava enviesado, pendendo frouxo sobre um olho. Suas
pernas estavam esticadas para a frente, como as de um boneco. Ele parecia
paralisado pela visão de alguma coisa muito próxima — uma radiante poça
escarlate e um pedaço amarelo de osso, onde seu joelho direito costumava
estar. De modo ausente, ele introduziu o dedo no buraco em suas calças.
Kara Lynn foi tomada de nojo. Ela tentou respirar fundo.
Brian Keyes saiu rapidamente do meio das árvores.
Seus cabelos castanhos estavam colados à testa; a chuva corria pelo seu
rosto. Sua face não mostrava expressão. Ele andava com deliberação, um
pouco apressado, como se estivesse prestes a perder um avião.
Ele caminhou a passos largos até Skip Wiley, colocou um pé sobre o
peito deste e o fez ficar prostrado, de costas. Uma verdadeira cavalaria de
um homem só! Kara Lynn se mostrava radiante, inundada de alívio. Ela não
notou a Browning na mão direita de Brian até que ele enfiou o cano na boca
de Wiley.
“Olá, Skip”, disse Keyes. “Que tal me dizer onde você ancorou o
barco?”
Os olhos de lobo de Wiley se apertaram de divertimento. Ele grunhiu
uma saudação indecifrável. Keyes retirou vagarosamente a arma, mas a
manteve a centímetros do nariz de Wiley.
“Santo Deus!”, reboou a voz de Wiley enquanto ele se sentava. “E eu
que pensava que você fosse perigoso com uma máquina de escrever.”
“Você está perdendo sangue”, disse Keyes.
“Não acho que deva agradecer-lhe.”
“Onde está o barco?”
“Não tão depressa assim.”
Keyes atirou novamente, a arma tão próxima da face de Wiley que o
estampido o derrubou de novo. Wiley tapou os ouvidos e rolou para o lado,
sobre o afiado e pontiagudo coral. A bala fora se alojar inofensivamente no
entulho da velha cabana.
Kara Lynn gritou involuntariamente — ela receava que teria que ver um
assassinato. Keyes aproximou-se, desamarrou-a e abraçou-a gentilmente.
“Você está bem?”
Ela fez que sim.
“Quero sair daqui. Vão dinamitar este lugar...”
“Eu sei.” Ele tinha que achar o barco de Wiley.
Joey, o pescador de camarões, fora generoso o bastante para dar-lhes
uma lata de atum defumado e um pouco de água antes de desembarcá-los,
mas não fora generoso o bastante para esperar. Murmurando algo a respeito
do preço obsceno do combustível, ele dera meia-volta com o Tina Marie,
deixando pará seus passageiros o trabalho de encontrar um modo de
retornar ao continente.
Keyes aproximou-se de Wiley e ordenou-lhe que se sentasse.
“Você está de mau humor”, disse Wiley, nervoso. Seus ouvidos
zumbiam. Ele se sentia falando no interior de um túnel.
Keyes tirou sua camisa e a amarrou ao redor da perna mutilada de
Wiley.
“Não temos muito tempo”, disse ele.
Wiley estudou Brian atentamente; a arma fazia dele um estranho. A
violenta erupção fora bastante desconcertante, mas o que perturbava Wiley
ainda mais era o olhar de absoluta frieza e indiferença. Não se tratava do
mesmo jovem educado que se sentava perto dele na redação; Wiley temia
perder o controle da situação. Contra aquele Brian Keyes, naquele lugar, as
armas de Wiley se encontravam grandemente limitadas. Imediatamente ele
eliminou o charme, a inteligência e a oratória.
“Como você me encontrou?”
“Não importa”, disse Keyes.
“A Jenna contou, não foi?”
“Não.” Então ela sabia. É claro que sabia. “Me dê a chave do Mako”,
disse Keyes.
Relutantemente, Wiley a entregou.
Ele apontou para Kara Lynn.
“É a garota, não é? Você está ligado nela! Por isso você está com essa
pose de Charles Bronson — defendendo a donzela gentil. É o seu destino,
Brian. Parece que eu estou sempre atrapalhando a sua vida amorosa.”
Keyes não sabia quanto mais conseguiria resistir. Desejava partir agora,
enquanto ainda tinha forças, enquanto ainda era impelido pelo que quer que
fosse que lhe permitiria puxar mais uma vez o gatilho.
“Kara Lynn, você gostaria de conhecer um segredo sobre o senhor
Keyes?”
Ela não respondeu, sabendo que nada tinha terminado ainda. Não
enquanto Wiley conseguisse falar.
“Você não quer ouvir uma história de guerra?”, perguntou Wiley.
“Cale a boca”, disse Keyes.
“Você quer o barco? Então vai ter que ouvir. Educadamente.”
Keyes agarrou o pulso de Wiley e olhou o relógio. Eram cinco e meia;
estavam em cima da hora.
“Há poucos anos atrás, uma garotinha foi raptada e assassinada”, disse
Wiley, voltando-se para Kara Lynn, seu auditório. “Depois que o corpo foi
encontrado, Brian teve que ir entrevistar os pais dela.”
“Os Davenport”, disse Keyes.
“Ei, me deixa contar!”, disse Wiley com indignação.
A chuva diminuíra para um chuvisco sibilante. Keyes rasgou um pedaço
de plástico do poncho improvisado de Kara Lynn e sentou-se sobre ele.
Sentia-se opressivamente letárgico, cansado até a medula.
“Brian retornou com uma grande matéria”, disse Wiley. “A mãe,
chorando histericamente; o pai, cego de raiva. Amanhã seria o quarto
aniversário de Callie Davenport. Seu quarto está cheio de belos presentes,
cada um ternamente embrulhado. Há um boneco do Snoopy, mandado pelo
tio Dennis, um Dr. Seuss mandado pelo vovô. Callie não estará lá para o
seu aniversário, portanto os pacotes podem permanecer fechados por um
longo tempo. Talvez para sempre. Seus pais simplesmente não podem
suportar ir até o quarto dela.”
Keyes encolheu-se. Ele não conseguia acreditar que Wiley lembrava da
reportagem, palavra por palavra. Era espantoso.
“Extremamente comovente”, declarou Wiley. “Naquela manhã, metade
de Miami verteu lágrimas sobre seus sucrilhos.” Ele parecia esquecido da
dor, da poça de sangue que aumentava sob sua perna.
“Kara Lynn”, disse ele, “em meu ramo, a moeda do reino é uma boa
citação — a única coisa que traz vida a uma reportagem de jornal. Uma
frase decente é a diferença entre caviar e comida de cachorro, e a
reportagem de Brian sobre Callie Davenport estava repleta de pérolas
líricas. ‘Tudo o que quero’, soluçou o pai da garotinha, ‘são dez minutos
com o homem que fez isso. Dez minutos e uma marreta.’ Um vizinho levou
a mãe de Callie ao necrotério para identificar sua filha. ‘Eu queria me
deitar ao lado dela’ disse a sra. Davenport. ‘Queria abraçar minha filhinha
e acordá-la...’”
Keyes disse:
“Isso já é o suficiente.”
“Não seja tão modesto”, repreendeu Wiley. “É a única coisa que você
escreveu que me deixou com inveja.”
“Eu inventei tudo”, disse Keyes, tomando a mão de Kara Lynn. Ele
esperava que ela apertasse de volta, e ela o fez.
Wiley parecia perturbado, como se Brian houvesse estragado a grande
frase de efeito.
“Eu fui até a casa”, disse Keyes monotonamente. “Esperava encontrar
uma multidão. Vizinhos, parentes, você sabe. Mas tinha só um carro
estacionado na frente, eles estavam completamente sozinhos... Eu bati na
porta. A senhora Davenport atendeu e eu pude ver, nos olhos dela, que ela
estava atravessando o inferno. Atrás dela, eu vi como eles haviam
espalhado fotografias de Callie pela sala — sobre o piano, os sofás, a
televisão, em toda a parte... Nunca vi tantas fotos de criança. O senhor
Davenport estava sentado no chão com um álbum velho no colo... ele estava
chorando com uma dor tão terrível...
“Com uma voz simpática, a senhora Davenport me perguntou o que eu
queria. De início não consegui dizer nada, e então disse para ela que era
consultor de seguros e estava procurando pela casa dos Smith, e devia ter
pegado o endereço errado. Então voltei para o meu apartamento e inventei
toda a reportagem, todas aquelas frases maravilhosas. Foi isso que o Sun
publicou.”
“A impiedade suprema”, disse Wiley impostando a voz, “o estupro da
verdade.”
“Ele tem razão”, disse Keyes. “Mas eu simplesmente não consegui fazer
o que devia, entrar naquela casa e invadir a dor daquelas pessoas. Por isso,
inventei toda a merda da reportagem.”
“Acho que você precisou de coragem para se virar e ir embora”, disse
Kara Lynn.
“Ora, pelo amor de Deus.” Wiley fez uma careta. “Foi um ato da maior
covardia. Nenhum jornalista com um mínimo de autoestima volta as costas
para a dor e o sofrimento. Foi uma coisa baixa e vergonhosa, Pollyanna, seu
namorado não é nenhum herói.”
Kara Lynn encarou Wiley e disse:
“Você é patético.” Ela o disse com tal mordacidade e desdém que Wiley
retraiu-se.
Obviamente ele a menosprezara, assim como a Keyes. Ele guardara a
história de Callie Davenport por todos aqueles anos, antegozando o
momento em que poderia precisar dela. Entretanto, ela não produzira o
efeito desejado, em absoluto. Ele se sentiu um pouco confuso.
Keyes disse a Kara Lynn:
“Eu tive que sair do jornal. Eu tinha ultrapassado os limites e não havia
como retornar.”
“Ao menos eu espalho a verdade”, interrompeu Wiley. “É essa a base
desta minha campanha — dramatizar as verdadeiras consequências da
loucura.”
Ele se esforçou, tremendo, para ficar de pé. Ganhou equilíbrio
agarrando o tronco de uma árvore e colocando todo o peso do corpo no lado
esquerdo. A outra perna pendia como um apêndice morto e enegrecido.
“Brian, eu não sei se você vai entender algum dia, mas tente. Toda
aquela dor terrível que os Davenport sentiram por sua filha é exatamente o
que sinto quando penso no que aconteceu a este lugar. O mesmo sentimento
de perda, a mesma fúria e o mesmo desejo primitivo de vingança. A
diferença é que não posso dar as costas como você fez. Meu vilão não é um
tatuado sexualmente pervertido, mas uma geração inteira de estupradores
arrumadinhos, com telefones celulares em seus Volvo e linhas de crédito de
cinco milhões de dólares e secretárias que enrabam todo dia. Esses são os
insanos que inventaram o Osprey Club, idiotas que não seriam capazes de
distinguir uma águia-pescadora de uma merda de um periquito.”
Kara Lynn estava admirada com o fervor infatigável de Wiley. Brian
Keyes não estava tocado; ele já ouvira tudo isso antes. Acima, o céu
clareava, enquanto as últimas nuvens de chuva deslizavam para oeste. No
horizonte brilhava uma nesga de magenta, a primeira promessa da aurora. O
tempo estava se esgotando e havia uma última chance.
“Skip...”
“Brian, Kara Lynn, vocês podem imaginar o Quociente de Imbecilidade
nesta ilha daqui a um ano? Vocês vão precisar da repartição do censo só
para contar todas as correntinhas de ouro...”
Keyes guardou a Browning em seu cinto.
“Onde está o barco, Skip?”
“Mudei de ideia”, disse ele com impertinência. “Você vai ter que achar
sozinho. Se não achar, explodimos todos juntos. Uma reportagem bem
melhor, não acha? ‘Explosão na ilha do condomínio mata três.’”
“Mude para quatro”, disse Keyes.
Wiley tocou sua barba. Seus olhos agudos foram de Keyes para Kara
Lynn e voltaram.
“Do que é que você está falando?”
“Ela está aqui, Skip.”
“Jenna?”
Keyes apontou para a mata.
“Jenna está aqui na ilha?”
“Eu achei que a gente poderia jogar um bridge”, disse Keyes.
“Por que você a trouxe!”, exclamou Wiley com raiva.
“Achei que desse jeito estaríamos em pé de igualdade.”
“Brian, eu não fazia a menor ideia de que você fosse um filho da puta
tão baixo”, disse Wiley. Parecia profundamente desapontado.
“Espere aqui”, disse Keyes. Rapidamente, ele caminhou até a mata.
“Você sabia disso?”, Wiley perguntou a Kara Lynn.
“O que é que está te incomodando tanto?”, disse ela. “Isso vai fazer a
reportagem ficar melhor, certo?”
Pesando as opções, Wiley mordia o lábio inferior.
Keyes retornou trazendo Jenna pela mão. Vendo-a, a expressão de
Wiley ensombreceu-se.
“Meu Deus”, disse ele numa voz quase sumida.
“Sinto muito, Skip”, disse Jenna. Ela estava embaraçada, mortificada,
como uma adolescente que tivesse acabado de destruir o carro novo do pai.
“Ela está um pouco envergonhada”, explicou Keyes. “Ela não queria
que você soubesse que ela estava aqui.”
“Eu arruinei tudo”, disse Jenna. Ela engoliu em seco ao ver o joelho
mutilado de Wiley, mas não moveu um dedo para ajudá-lo.
Definitivamente, Jenna não era Florence Nightingale.
Wiley olhou para seu relógio. Eram seis e sete. A aurora viria às seis e
vinte e sete em ponto.
“Skip esgotou sua conversa”, Keyes disse a Jenna. “Ele disse tudo o que
poderia dizer, eu acho. Agora nós quatro vamos entrar no barco e dar o fora
dessa ilha antes que ela vá pelos ares.”
Wiley apertou a barriga de sua perna direita.
“Não consigo acreditar que você atirou em mim”, disse ele.
“Pensei que isso poderia calar a sua boca.”
“Para onde, exatamente, você estava apontando?”
“Qual a diferença?”, disse Keyes.
Kara Lynn subira até onde estivera a velha casa. A elevação era de
poucos metros, mas alta o bastante para proporcionar uma vista das águas
circundantes, agora calmas. Um filete distante de fumaça marrom de óleo
diesel atraiu sua atenção.
“Acho que estou vendo a balsa”, disse ela.
“O que vai ser então, Skip?”, disse Keyes.
Wiley fitou Jenna com os olhos arregalados; Keyes imaginou que era o
momento para um grande abraço choroso. Ambos pareciam ter envelhecido
dez anos, mas ainda não aparentavam ser um casal.
“Tem um trapiche na ponta norte, do lado protegido do vento, o lado
contrário àquele de onde você veio”, disse Wiley num tom cansado. “O
Mako está ancorado lá. Melhor vocês irem.”
“Nós todos vamos”, disse Keyes.
“Não eu”, disse Wiley. “Você não pode me obrigar, camaradinha.” Ele
estava certo. A arma de nada serviria agora.
“Ei, olhem lá uma águia”, disse Jenna.
O pássaro planava, dirigindo-se elegantemente para os pinheiros.
Carregava um peixe prateado em suas garras.
“Mas olhem só aquilo”, maravilhou-se Wiley, seus olhos brilhando sob
a bandana semínole. Ele retirou seu boné de beisebol em saudação.
“É um pássaro maravilhoso”, concordou Kara Lynn, tomando o braço
de Brian. Hora de ir, ela dizia, vamos lá.
“Venha com a gente, Skip”, insistiu Keyes.
“E se eu não for? Você vai atirar em mim de novo?”
“Claro que não.”
Wiley disse:
“Esqueça de mim, colega. Estou começando a gostar daqui.”
Ele abriu os braços e Jenna foi até ele. Wiley a beijou na testa. Tocou
seu cabelo e disse:
“Não creio que você queira fazer companhia a um lunático de uma
perna só.”
Os olhos de Jenna, como de hábito, deram a resposta. Keyes percebeu e
desviou o olhar. Ele já vira isso antes.
“Ora, eu não te culpo”, Wiley disse a ela, “os mosquitos daqui são
terríveis.” Ele deu um tapa no traseiro dela e a deixou ir.
Para Keyes ele sussurrou:
“Por favor, encontre outra mesa de café para ela, OK?”
“Skip, por favor...”
“Não! Vão indo, e depressa. Esses equipamentos controlados por rádio
são muito precisos.”
Keyes guiou as duas mulheres através da clareira. Jenna ia cegamente
adiante, mas Keyes e Kara Lynn fizeram uma pausa ao pé da colina em que
ficava a casa. Olharam para trás e viram Wiley na clareira, apoiado ao
mastro apodrecido. Seus braços estavam cruzados, e em seu rosto havia um
largo, eufórico e incompreensível sorriso.
“Ei, Brian”, ele gritou, “eu não terminei a minha história.”
Keyes quase riu.
“Agora não, filho da mãe!” O sujeito era inacreditável.
“Mas eu nunca te contei — eles telefonaram.”
“Eles quem?”
“Os Davenport. Eles ligaram no dia em que sua matéria saiu, mas você
já tinha ido embora.”
Keyes soltou um gemido — o desgraçado sempre queria ter a última
palavra.
Ansiosamente ele gritou de volta:
“O que eles queriam?”
“Queriam agradecer”, confessou Wiley. “Eu não acreditei! Eles
realmente queriam agradecer. Eles disseram que foi como botar para fora
tudo o que estavam sentindo.”
Keyes acenou uma última vez para seu velho amigo.
Perdido para sempre, sua odisseia medida agora por minutos, Skip
Wiley acenou um braço frouxo e queimado em resposta. Ele ainda
balançava o boné quando Brian Keyes, Jenna e Kara Lynn Shivers
desapareceram nos arbustos.

Eles encontraram a trilha e, dez minutos depois, o ancoradouro onde o


barco estava amarrado. A maré estava alta, por isso tiveram que caminhar
pela água, os pés deslizando no lodo e nas algas. Jenna perdeu o equilíbrio e
afundou, sem uma palavra. Keyes agarrou-a por um braço, Kara Lynn
tomou o outro. Juntos eles a rebocaram até o barco.
O motor estava totalmente frio.
Com dedos trêmulos, Keyes virou a chave vezes e mais vezes. O motor
gemia e tossia, mas não funcionava.
“Você afogou o motor”, disse Kara Lynn. “Deixe parado por uns trinta
segundos.”
Keyes a olhou com curiosidade, mas fez o que ela dizia. Da próxima
vez que ele deu a partida, o Evinrude rugiu.
“Meu pai tem uma lancha para esquiar”, explicou Kara Lynn. “Isso
acontece o tempo todo.”
Keyes empurrou o afogador e o Mako abriu caminho pelo lodo e
vegetação agitados, e deslizou vagarosamente. Finalmente encontrou água
mais funda, e ganhou velocidade. A orla do céu púrpura de inverno já se
tornava dourada.
“Quanto tempo?”, perguntou Jenna entorpecidamente.
“Três, quatro minutos”, arriscou Keyes.
Eles tinham que circundar Osprey Island para chegar ao canal que os
levaria à segurança.
“Brian!”, balbuciou Jenna, apontando.
Keyes diminuiu a aceleração até que o motor parasse. O barco flutuou
em silêncio, a quatrocentos metros da ilhota. Todos olharam para o grupo de
pinheiros.
“Oh, não”, disse Kara Lynn.
Keyes não conseguia acreditar.
Jenna disse:
“Deus, ele nunca desiste.”
Skip Wiley estava nas árvores.
Ele se arrastava para o alto do mais alto pinheiro, galho a galho, como
no dificultoso avanço de uma aranha sobre a teia. Como, com uma perna
tão ferida, Wiley chegara àquela altura, era algo espantoso. Não se tratava
tanto de um feito atlético quanto de uma mostra de energia temerária. Ele
pendia da árvore como um espantalho quebrado; em farrapos, alongado, os
membros dobrados em ângulos estranhos. À distância, seu crânio brilhava
com três cores — a barba ruiva; o rosto saliente e bronzeado; a cabeça de
alabastro. Numa das mãos estava a bandana vermelha de Tommy Rabo-de-
Tigre — Wiley a agitava para lá e para cá e gritava com toda a considerável
força de seus pulmões; uma algaravia impressionante.
“Brian, ele quer que a gente volte para pegá-lo!”
“Não”, disse Keyes, “não é isso.”
Era mais triste que isso.
O objeto da expedição de Wiley se encontrava pousado no topo do
pinheiro de vinte metros. Com seus olhos agudos e infalíveis ele olhava
para aquela criatura ensandecida e ensanguentada, e imaginava o que fazer.
Conforme Skip Wiley avançava, ia urrando, agitando seu lenço de cor viva,
despedaçando galhos — mas o grande predador apenas piscava e
permanecia junto de seu precioso peixe.
“Ele está tentando salvar a águia”, disse Brian Keyes. “Ele está tentando
fazer a águia voar.”
“Meu Deus, é verdade”, disse Kara Lynn.
“Voe”, murmurou Jenna excitadamente. “Vá embora, águia!”
“Oh, por favor”, disse Kara Lynn.
Foi assim que eles o deixaram — Skip Wiley ascendendo, como um
inseto, possuído de vontade e força desconhecidas; a águia o estudando
exasperada, entreabrindo suas asas castanho-douradas, considerando uma
decisão.
Brian Keyes ligou a ignição e o barco disparou num arco sempre maior.
O Mako era muito rápido, e Osprey Island recuava rapidamente na brilhante
espuma ondulada na cauda do barco. Dentro de instantes eles estavam
longe, a salvo, mas nenhum deles ousava olhar para trás.
Além, no horizonte, o sol era filtrado por um céu púrpura.
Em algum lugar na baía de Biscayne, um pequeno barco vermelho
emitiu três longos apitos de alerta, o som mais doloroso que Brian Keyes já
ouvira. Ele se agarrou à direção e esperou.
“Voe!”, ele sussurrou. “Por favor, voe.”
CARL HIAASEN é também autor de Skin tight, Native tongue, Double
whammy e Strip tease. Os dois últimos estão sendo traduzidos pela
Companhia das Letras.
Copyright © 1986 by Carl Hiaasen

Proibida a venda em Portugal

Título original:
Tourist season

Design de capa:
Andy Newman

Ilustração de capa:
Ross McDonald

Revisão da tradução:
Marcelo Levy

Preparação:
Marcia Copola

Revisão:
Lucíola S. de Morais
Carmen S. da Costa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hiaasen, Carl
Caça aos turistas / Carl Hiaasen ; tradução Hamilton dos Santos. — São Paulo : Companhia das
Letras, 1993.

ISBN 85-7164-323-7

1. Romance norte-americano I. Título.

93-2039 CDD-813.5

Índices para catálogo sistemático:


1. Romances : Século 20 : Literatura norte-americana 813.5
2. Século 20 : Romances : Literatura norte-americana 813.5

[1993]

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Rua Tupi, 522
01233-000 — São Paulo — SP
Telefone: (011) 826-1822
Fax: (011) 826-5523
[1] Shriners: Ordem americana estabelecida em 1872 — antiga Ordem Árabe de Nobres do
Santuário Místico. Braço auxiliar da Ordem Maçônica, dedica-se a programas de saúde, caridade e
solidariedade. (N. E.)

[2] Orange Bowl — jogo final do campeonato universitário de futebol americano.

[3] Super Bowl — jogo final do campeonato profissional de futebol americano.

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