Cabo Do Medo - John D. Macdonald
Cabo Do Medo - John D. Macdonald
Cabo Do Medo - John D. Macdonald
FOLHA DE ROSTO
DEDICATÓRIA
SUMÁRIO
1 CAPÍTULO UM
2 CAPÍTULO DOIS
3 CAPÍTULO TRÊS
4 CAPÍTULO QUATRO
5 CAPÍTULO CINCO
6 CAPÍTULO SEIS
7 CAPÍTULO SETE
8 CAPÍTULO OITO
9 CAPÍTULO NOVE
10 CAPÍTULO DEZ
11 CAPÍTULO ONZE
12 CAPÍTULO DOZE
13 CAPÍTULO TREZE
Às nove horas, depois de ver que Bucky já estava na cama, Sam atravessou
o corredor até o quarto da filha. Havia uma pilha de discos na prateleira e a
música estava baixa. Nancy sentava-se à mesa, com livro e caderno abertos,
e vestia seu roupão cor-de-rosa. Os cabelos, todos bagunçados. Deu uma
olhada para o pai que transmitia todo seu extremo esgotamento.
“Pronta para as datas?”
“Acho que sim. Provavelmente vou errar metade. Aqui está a lista,
papai.”
“Você pelo menos destacou os números?”
“Eles são diferentes.”
“São, claro. Não ensinam mais caligrafia?”
“Precisa ser legível. É o que eles dizem.”
Ele se aproximou da cama, afastou o indispensável canguru e sentou.
A menina ganhara Sally em seu primeiro aniversário, que desde então
dividia a cama com ela onde quer que fosse. Já não mordiscava mais suas
orelhas. Sobrara muito pouco para mascar.
“Vamos ficar com a trilha sonora desse cavalheiro cheio de
adenoides?”
Nancy se estirou para alcançar a vitrola e desligá-la. “Estou pronta.
Mãos à obra.”
Ele repassou a lista e ela errou cinco. Vinte minutos depois, pegara
todas as datas, não importava se ele bagunçasse a ordem. Ela era uma
menina inteligente e bastante competitiva. A seu próprio modo, tinha uma
mente aguda, lógica, metódica, não criativa. Bucky parecia ser como ela.
Jamie era o sonhador, o aluno desatento, imaginativo.
Levantou-se e entregou a lista a ela, hesitou e sentou-se outra vez.
“Conversa de pai”, ele disse.
“Acho que não falta nada. Por enquanto é isso.”
“Agora são recomendações, querida. Conversa sobre falar com
estranhos.”
“Pai do Céu, a gente já falou disso um zilhão de vezes. Mamãe
também. Não aceite caronas. Não vá na mata sozinha. Não peça carona
nunca. E se alguém agir de modo estranho, corra como o vento.”
“Dessa vez é um pouquinho diferente, Nance. Esse é um estranho
específico. Eu estava pensando em não lhe contar, mas acho que seria
burrice. Esse é um homem que tem ódio de mim.”
“Ódio de você, papai!”
Sentiu-se um pouco irritado. “Há quem possa odiar seu brando,
amável e simples paizinho.”
“Eu não quis dizer isso. Por que ele o odeia?”
“Testemunhei contra ele há muito tempo. Durante a guerra. Não fosse
por mim, ele não teria sido condenado. Esteve em uma prisão militar desde
então. Agora deixaram-no sair, e ele está por perto. Sua mãe e eu
acreditamos que ele veio até aqui, há duas semanas. Ele pode não fazer
absolutamente nada, mas precisamos assumir que ele pode fazer algo.”
“Por que o prenderam?”
Olhou-a por um instante, avaliando o quanto entenderia.
“Estupro. Era uma menina da sua idade.”
“Meu Deus!”
“Ele não é tão alto quanto eu, tem mais ou menos o tamanho de John
Turner, e grande como John, mas não é fraco. É careca e bem bronzeado,
com uma dentadura barata muito branca. Usa roupas vagabundas e fuma
charuto. Consegue se lembrar disso?”
“Claro.”
“Não deixe ninguém com essa descrição chegar nem um pouco perto
de você, qualquer que seja o motivo.”
“Pode deixar. Deus do céu, isso é emocionante, não é?”
“É uma das formas de ver a coisa.”
“Posso contar para as crianças?”
Ficou indeciso. “Não vejo por que não. Vou contar a seus irmãos. O
nome do homem é Cady. Max Cady.”
Levantou-se novamente. “Não estude demais, gatinha. Você vai
melhor na prova se tiver dormido bem.”
“Mal posso esperar para contar para os outros. Uau!”
Sorriu para ela e bagunçou seu cabelo. “Grande história, ahn? Uma
catástrofe surge na vida da adolescente Nancy Ann Bowden. O perigo segue
de perto essa esbelta dama. Sintonize amanhã para mais um capítulo da vida
dessa garota americana que sorri bravamente enquanto…”
“Para com isso, agora!”
“Quer que feche a porta?”
“Ei, quase esqueci. Encontrei Jake no centro. Ele disse que agora pode
tratar do barco, e você sabe como ele é, então falei para que ele fizesse isso
e que nós poderíamos trabalhar nele esse fim de semana. Tudo bem?”
“Está ótimo, gatinha.”
Quando desceu as escadas, Jamie já havia voltado para casa. Carol
estava na missão de enfiá-lo na cama. Sam pediu que ele esperasse um
momento.
“Acabei de contar a Nance sobre Cady”, disse.
Carol fez uma carranca e falou, “Mas você acha que… Certo, entendo.
Acho que é algo inteligente, Sam.”
“O que está acontecendo?”, inquiriu Jamie.
“Ouça com atenção, filho. Vou contar uma coisa e quero que você se
lembre de tudo que eu disser.”
Explicou a situação para Jamie, que escutou atentamente. Sam
terminou dizendo: “Bom, conte para Bucky também, mas não sei que
diferença isso pode fazer para ele. O menino vive no próprio mundo
marciano. Então, quero que você fique mais perto do que nunca do seu
irmãozinho. Sei que isso pode estragar um pouco da sua diversão, mas é
coisa séria, Jamie. Não é um programa de televisão. Você vai fazer isso?”.
“Claro. Por que ele não vai preso?”
“Ele não fez nada.”
“Aposto que poderiam prendê-lo. Os policiais têm armas, viu, que eles
pegam dos assassinos mortos. Então eles vão até o homem e colocam uma
arma no bolso dele, daí podem prendê-lo por carregar uma arma sem
autorização e levam ele para a cadeia, entende? E mandam a arma para o
laboratório e eles a olham através de um negócio e descobrem que é uma
arma assassina, então ele vai para a cadeira elétrica, de manhãzinha no dia
seguinte.”
“Rapaz!”, disse Carol.
“James, meu menino, o motivo pelo qual este é um país muito bom é
porque esse tipo de coisa não pode acontecer. Não prendemos gente
inocente. Não prendemos gente porque pensamos que elas podem fazer
algo. Se isso acontecesse, você, Jamie Bowden, poderia acabar na cadeia
porque alguém mentiu sobre você.”
Jamie pensou sobre o assunto com a cara amarrada, depois concordou.
“Daí Scooter Prescott me colocaria atrás das grades em um segundo.”
“Por quê?”
“Porque agora consigo fazer vinte e oito flexões, viu, e quando eu
puder fazer cinquenta vou até ele e acerto um murro naquela cara gorda.”
“Ele sabe disso?”
“Claro. Contei para ele.”
“Melhor ir para a cama agora, querido”, disse Carol.
Ao pé da escada, Jamie se virou e disse: “Mas tem um problema.
Scooter também está fazendo flexões, diabos”.
Depois que ele subiu, Carol falou: “Como Nancy lidou com isso?”.
“De forma inteligente.”
“Acho que foi prudente contar a eles.”
“Eu sei. Mas faz com que eu me sinta um pouco inútil. Sou o rei desta
pequena tribo. Eu devia ser capaz de lançar a ira de Deus sobre Cady. Mas
não vejo como poderia. Não com esse físico de escritório. Ele parece ter
músculos que ainda nem foram nomeados.”
“É Marilyn?”
Ele foi até a cozinha e deixou que ela entrasse. Abanava o rabo,
alegre, e se atirou para o pote de comida, olhando chocada e descrente para
o espaço vazio nele. Virou-se para olhar para Sam.
“Sem comida, garota. Você está de dieta, lembra?”
Arrastou-se inconsolável até o pote de água, depois até seu canto, deu
três voltinhas e, suspirando, largou-se no chão. Sam sentou-se sobre os
calcanhares, ao seu lado, e cutucou levemente seu estômago com o dedo.
“Vamos recuperar aquela cinturinha, Marilyn. Você tem que se livrar
dessa flacidez.”
Virou os olhos para ele e o rabo comprido, acastanhado, balançou duas
vezes. Ela bocejou, com um uivinho no final, mostrando as longas presas
branquíssimas.
Ele se levantou. “Uma grande fera selvagem. Aterrorizada por
gatinhos. Atormentada por malévolos esquilos. Cada dia é uma dureza,
Marilyn, para uma covarde convicta de quatro anos, não é?”
O rabo balançou ao sabor do sono, e ela fechou os olhos. Ele voltou
para a sala, bocejando. Carol olhou para ele e também bocejou.
“Peguei de Marilyn, passei para você.”
“E eu estou levando para a cama.”
“Vá conferir se Nance já deitou”, ele disse. “Já, já eu subo.”
Apagou as luzes, trancou a porta da frente e depois a abriu de novo.
Saiu para o jardim e vagueou até a rodovia. A chuva limpara o ar, que agora
cheirava a junho e à promessa do verão. As estrelas pareciam minúsculas e
distantes, recém-lustradas. Ouviu um caminhão se afastando pela Rodovia
18 e, depois que o som morreu, o canto de um cachorro longínquo em
alguma fazenda além do vale. Um mosquito zumbiu em seu ouvido e ele o
abanou com a mão.
A noite era escura e o céu amplo, e o mundo era um lugar realmente
grande. Um homem, quase pequeno demais, minúsculo e vulnerável. Sua
prole estava na cama.
Max Cady vivia em algum lugar nessa noite, respirando a escuridão.
Deu um tapa no mosquito e caminhou de volta pela grama úmida até a
casa, trancou-a e foi para a cama.
Sievers se reportou a Sam em seu escritório, às dez da manhã de terça-feira.
Manteve-se com seu jeito muito calmo e não alterou a expressão ao falar
em sua voz baixa e aborrecida.
“Vi-o saindo da pensão às seis horas. Caminhou até o bar do
Nicholson, três quadras depois da rua do Mercado. Saiu de lá às sete e meia
e fez o caminho de volta para pegar o carro, depois voltou ao Nicholson e
parou em fila dupla, buzinando, e uma mulher saiu do bar e entrou no carro
com ele. Uma loira gorda que ria alto. Dirigiu de volta à pensão e
estacionou nos fundos, então eles entraram juntos e saíram de lá uns
quarenta minutos depois. Entraram no carro e eu os segui. Ele começou a
virar várias esquinas. Não sei dizer se ele me viu ou só estava sendo
engraçadinho, ou procurando um lugar para comer. Tive que manter
distância. No fim, seguiram para fora da cidade, pela Rodovia 18. Ele
entrou em uma estrada secundária, sem tráfego. Tentou me pegar ao virar
em uma curva, desacelerando, então precisei passar por ele. Quando saí de
vista, dei meia-volta e apaguei os faróis, mas ele não apareceu. Isso quer
dizer que ele é esperto. Voltei correndo, mas já havia caminhos demais por
onde ele podia ter entrado. Então voltei ao Nicholson. Ele frequenta muito
aquele lugar, fiquei sabendo. Lá, é conhecido apenas por Max. A mulher é
uma daquelas personagens da Market Street. Bessie McGowan. Não
exatamente uma prostituta, mas perto o bastante para não ter muita
diferença. Ele a levou de volta às três da madrugada para a pensão. Ele
estava bem, mas teve de carregá-la para dentro. Fui embora e voltei às dez e
meia da manhã, ontem. Ele apareceu às quinze para o meio-dia, dirigiu até
uma padaria e levou um saco de comida para o quarto. Às cinco, levou a
mulher para um desses hotéis vagabundos na Jefferson Avenue e entrou
com ela. Saíram de lá às sete, e ela havia trocado de roupa. Voltaram para o
Nicholson. Ele saiu sozinho de lá, às nove, e caminhou. Dirigiu-se para a
frente do lago. Estava se divertindo. Atento a cada segundo. É esperto, e é
bom. Olha para todos os lados ao mesmo tempo. E se mexe. Perdi sua pista.
Pensava que havia perdido. Então ele acendeu o maldito charuto bem do
meu lado. Quase pulei de susto. Lançou-me um olhar atento, sorriu e disse
“Noite boa para isso”, daí voltou andando para o bar. Levou a mulher para
jantar em uma churrascaria a oito quilômetros fora da cidade, no lago.
Voltaram para a pensão novamente às três. Imagino que ainda estejam lá.
Eu me atrapalhei e não tenho desculpas. O que você quer que eu faça
agora?”
“A agência não deveria colocar outro homem atrás dele?”
“Sou o melhor, sr. Bowden. Não estou querendo enganá-lo. Ele
enrolaria o próximo com a mesma facilidade, talvez mais.”
“Acho que não estou entendendo. Faz alguma diferença que ele o
tenha visto, que possa reconhecê-lo? Você não pode ficar de olho nele
mesmo assim?”
“Eu poderia organizar uma equipe para isso, mas mesmo assim pode
não funcionar. Três homens e três carros, um segundo turno para que ele
tenha vigilância vinte e quatro horas. Mas há muitos meios pelos quais ele
pode escapar. Entrar no cinema e sair por qualquer saída. Entrar em uma
loja de departamentos, subir as escadas e descer por um caminho diferente,
sair por outra porta. Sair pela cozinha de qualquer bodega. Armar algum
esquema em um hotel. São muitas possibilidades.”
“O que você sugere, Sievers?”
“Desista. Você está desperdiçando dinheiro. Ele sabe que será seguido.
Está à espera disso. Vai continuar de olho. E no momento que resolver
fugir, vai encontrar um jeito. Esse cara é frio e calculista.”
“Você não ajudou muito. Não parece estar entendendo que esse
homem quer me ferir. Por isso ele veio aqui. Pode tentar me atingir pela
minha família. O que você faria?”
Os olhos baços pareceram mudar de cor, assumirem mais brilho.
“Faria com que mudasse de ideia.”
“Como?”
“Não diga que fui eu quem disse. Faria alguns contatos. Se o
mandasse ao hospital umas duas vezes, ele entenderia. Pegá-lo com uma
corrente de bicicleta, por exemplo.”
“Mas… talvez ele não esteja planejando nada.”
“Se você tem certeza.”
“Desculpe, Sievers. Talvez seja fraqueza minha, mas não sei. Não
consigo agir fora da lei. A lei é meu negócio. Acredito nas coisas corretas.”
Sievers se levantou. “O dinheiro é seu. Um tipo desses é um animal.
Então, você luta como um animal. Seja como for, eu faria. Se você mudar
de ideia, podemos ter uma conversa particular. Não será através da agência.
Você vai perder dinheiro se me mantiver em sua cola.”
Parou à porta e olhou para trás, a mão na maçaneta. “Você precisa
assumir uma perspectiva nesse assunto. Já alertou a lei. Se ele fizer algo, é
certo como o inferno que ele vai ser pego. Mas, de novo, talvez ele não dê a
mínima.”
“Quanto custaria aquela equipe?”
“Algo em torno de dois mil por semana.”
Depois que Sievers saiu, Sam tentou se concentrar no trabalho, mas
sua atenção voltava para Cady o tempo inteiro. Enquanto dirigia para casa,
quinta-feira à noite, decidiu que não faria sentido contar a Carol que Sievers
não estava mais no caso. Seria difícil explicar e a deixaria alarmada sem
necessidade.
Quando Sam entrou em casa, Carol havia conseguido acalmar Bucky. Ele
assistia, inerte, à televisão na sala de estar. Seu rosto estava inchado e, a
intervalos metronômicos, um soluço o sacudia inteiro. Carol estava na
cozinha. Ele percebera, com aprovação imediata, que os potes e trapos de
Marilyn já haviam sido tirados de vista.
“Onde estão Nance e Jamie?”
“Nos quartos. O dr. Lowney sabe o que…”
“Estricnina.”
Falavam aos sussurros. Ela se colocou em seus braços e ele a
envolveu. Com o rosto em seu pescoço, ela disse: “Continuo dizendo a mim
mesma que era só uma cachorra idiota. Mas…”.
“Eu sei.”
Ela voltou para a pia. “Quem faria uma coisa horrível dessas, Sam?”
“Difícil dizer. Alguém com a cabeça bagunçada.”
“Mas não é como se ela estivesse por aí matando galinhas ou
destruindo jardins. Ela nunca saía daqui a não ser que fosse com as
crianças.”
“Tem quem simplesmente não goste de cachorros.”
Ela se virou, enxugando as mãos em um pano de prato, a expressão
severa e firme. “Você nunca está em casa quando o ônibus da escola chega,
Sam. Marilyn conhecia o som que ele fazia ao subir a colina. E não
importava onde estivesse, ela sempre corria para o fim da estradinha e
ficava lá esperando até que o ônibus parasse. Se alguém seguisse o ônibus,
de carro, saberia disso. E aí saberia a hora certa de estar lá para jogar aquela
coisa envenenada bem onde a cachorra estaria, quando corresse para esperar
o ônibus.”
“Pode ter sido só uma coincidência.”
“Acho que você sabe mais que isso. Acho que sente a mesma coisa
que eu. Não estou sendo histérica. Há cachorros por toda a Milton Road,
tenho tentado pensar em quem não tem um cão, e os únicos são os Willesey.
E eles moram a mais de um quilômetro daqui, e têm todos aqueles gatos.
Não envenenariam um cachorro, de qualquer modo. Já moramos aqui faz
sete anos, eu nunca ouvi dizer que já aconteceu algo assim. Então, se é a
primeira vez, por que com nossa cachorra?”
“Olha, Carol…”
“Não me venha com ‘olha, Carol…’. Nós dois estamos pensando a
mesma coisa e você sabe disso. Onde está aquele fantasticamente eficiente
detetive particular?”
Sam deu um suspiro. “Tudo bem. Ele não está mais no caso.”
“Quando foi isso?”
“Quarta à noite.”
“E por que ele parou?”
Sam explicou-lhe os motivos de Sievers. Ela ouviu com atenção, sem
esboçar reação, continuando mecanicamente a enxugar as mãos no pano.
“E quando você soube disso tudo?”
“Ontem de manhã.”
“E não disse uma palavra ontem à noite. Era para eu continuar
acreditando que estava tudo ótimo. Você pensou em tudo. Não sou uma
criança nem uma tola, e não gosto de ser… superprotegida.”
“Eu devia ter contado. Desculpe.”
“Daí agora esse Cady pode aparecer por aqui à vontade, envenenar
nossa cachorra e dar um jeito de pegar as crianças. Com quem você acha
que ele vai começar? A mais velha ou o mais novo?”
“Carol, querida, por favor.”
“Sou histérica? Você está coberto de razão. Sou uma mulher
histérica.”
“Não temos prova nenhuma de que foi Cady.”
Ela atirou o pano na pia. “Vê se me escuta. Eu tenho provas de que foi
Cady. Eu tenho essa prova. Não é o tipo de prova que você gosta. Nenhuma
evidência. Nenhum testemunho. Nada legalista. Eu simplesmente sei. Que
tipo de homem é você? Esta é nossa família. Marilyn era parte da nossa
família. Você agora vai dar uma olhada em todos os precedentes e preparar
a causa?”
“Você não sabe como…”
“Eu não sei nada. Isso está acontecendo por causa de algo que você
fez há muito tempo.”
“Algo que tive de fazer.”
“Não estou dizendo que não devia. Você diz que o homem o odeia.
Que acha que ele é louco. Então faça alguma coisa a respeito!”
Dera um passo na direção dele, encarando-o furiosa. Então, seu rosto
desmoronou e ela estava outra vez em seus braços, agora tremendo. Ele a
abraçou e a carregou até a bancada próxima à mesa, sentando-se ao lado e
segurando sua mão.
Ela tentou sorrir e disse: “Detesto mulher chorona”.
“Você tem todo o motivo do mundo para estar preocupada, querida.
Sei como se sente. E sei que você tem toda razão em reclamar. Eu dou
roupa, comida e abrigo. Muito civilizado. Seria desgraçadamente mais fácil
lidar com Cady em épocas mais primitivas, ou em alguma parte mais
primitiva do mundo. Sou membro de uma sociedade complexa. Ele é o
forasteiro. Reuniria meu bando e o mataríamos. Eu bem que gostaria de
matá-lo. Pode até ser que eu consiga. Você está reagindo em um nível
primitivo. É isso que seus instintos estão dizendo que eu deveria fazer. Mas
sua razão vai dizer o quanto isso é impossível. Eu seria preso.”
“Eu… eu sei.”
“Você quer que eu seja eficiente e decisivo. É precisamente o que eu
quero ser. Não acho que eu possa assustá-lo. Não posso matá-lo. A polícia
está ajudando menos do que eu esperava. Consigo pensar em duas coisas.
Posso procurar o delegado Dutton na segunda-feira e ver se ele consegue
ajudar como Charlie disse que poderia. E se isso parecer não funcionar,
podemos mudar para longe.”
“Como?”
“As aulas terminam semana que vem.”
“Quarta é o último dia.”
“Você pode pegar as crianças, encontrar um lugar para ficar e me
telefonar quando estiver tudo arranjado.”
“Mas você não iria…”
“Posso fechar a casa e ir para um quarto de hotel na cidade. Serei
cuidadoso. Isso não pode durar para sempre.”
“Mas enquanto isso…”
“Não tenho certeza de nada. Mas posso tentar adivinhar como a mente
dele funciona. Ele não está com pressa. Vai nos dar algum tempo para
pensarmos no que fazer.”
“Podemos ser ainda mais cuidadosos, de todo modo?”
“Eu dirijo o carro na próxima semana. Você leva as crianças na
caminhonete e as busca na saída do colégio. Vou mandar que eles
permaneçam lá. E amanhã você treina a pontaria com a Woodsman.”
Ela entrelaçou seus dedos aos dele. “Desculpe por eu ter estourado.
Não devia. Sei que você vai fazer tudo que puder, Sam.”
“Eu tinha que cavar uma cova para Marilyn. O dr. Lowney deve trazê-
la para cá. Onde você acha que pode ser?”
“Que tal aquela encosta atrás do celeiro, perto das faias? Foi onde
enterraram o passarinho, daquela vez.”
“Vou me trocar.”
Ele vestiu um macacão desbotado e sujo de tinta com a camisa azul
velha. Tinha a sensação de que Carol estava certa. Cady envenenara a
cachorra. Achou curioso estar inclinado a aceitar aquilo com tão pouca
prova. Era o contrário de seu treinamento, de todos os seus instintos.
Foi ver Jamie em seu quarto. O rádio de plástico, sua caixa vermelha
remendada com fita isolante, estava ligado. Jamie folheava um de seus
velhos catálogos de armas, sentado na cama. Olhou para o pai e perguntou:
“Foi mesmo veneno, não foi?”.
“Sim, foi.”
“E aquele homem que odeia a gente fez isso?”
“Não sabemos quem foi, filho.”
Os olhos jovens eram azuis, pálidos e determinados. Estendeu o
catálogo para Sam. “Vê isso aqui? É um bacamarte. Com tambor de latão.
Mike e eu estamos tentando arrumar um pouco de pólvora e esse bacamarte,
e eu vou colocar um carregador duplo nele, daí vou encher tudo com trinta
pregos enferrujados e outras coisas e vou acertar aquele velho do Cady bem
nas tripas. Pow!” Lágrimas se equilibravam em seus olhos.
“Mike sabe disso?”
“Liguei para ele quando você saiu. Ele também chorou, mas estava
fingindo que não. Disse que queria vir aqui, mas falei que eu não queria.”
“Quer me ajudar a escolher um lugar para a cova?”
“Vamos.”
Pegaram uma pá no celeiro. Um montinho de seixos segurava a
cruzinha que marcava o túmulo de Elvis, o periquito morto. Elvis vivia
solto na casa quando Bucky, então com quatro anos, pisou nele. A sensação
de culpa e horror do menino durou por tanto tempo que eles haviam
começado a se preocupar.
Sam cavou um bom pedaço e depois deixou com Jamie. O menino
trabalhou com uma obstinação violenta, a cara fechada. Enquanto Sam
olhava, Nancy se aproximou dele, andando devagar.
“É um bom lugar”, disse. “Você a trouxe de volta?”
“O doutor está para trazê-la.”
“Vi vocês pela janela. Maldito seja isso tudo, a propósito.”
“Calma, garota.”
“Mamãe acha que foi aquele louco que fez isso.”
“Sei que ela acha. Mas não temos provas.”
Jamie parou de cavar. “Eu poderia cavar um buraco maior. Poderia
cavar um buraco maior para ele e jogá-lo nele com cobras e uns negócios, e
encher de pedras e soterrá-lo com tudo.”
Sam podia ver que o menino estava sem fôlego. “Minha vez. Dê essa
pá aqui.”
Ficaram ali, olhando, até que ele terminasse. Lowney chegou. Tinha a
cachorra enrolada em um tapete velho, esfarrapado e cáqui. Sam tirou-a do
carro e a carregou até o buraco. Era extremamente pesada. Cobriu-a
rapidamente e alisou a terra com a pá. O dr. Lowney recusou a bebida que
ofereceram, dirigindo de volta para a cidade.
O jantar foi triste. Durante ele, Sam definiu novas regras. Esperava
uma ou outra objeção, mas as crianças aceitaram tudo sem comentários.
Depois que as crianças estavam na cama, Sam e Carol sentaram-se na
sala de estar.
“É tão difícil para eles”, falou Carol. “Especialmente para Bucky. Ele
tinha dois anos quando a pegamos, era meio que sua cachorra.”
“Vou levá-los para trabalhar amanhã. Fazer com que arrumem o barco.
Vai fazer com que pensem em outra coisa.”
“E um pouco de tiro?”
“Você parece ansiosa. Da última vez, estava bem relutante.”
“Porque não parecia fazer muito sentido.”
Leram por algum tempo. Ele se levantou inquieto e olhou para a noite
pela janela. Havia um estrondo distante de trovões de junho. Soava como se
vindo do norte, além do lago. Marilyn sempre tivera uma reação padrão aos
trovões. A cabeça se levantava, inclinada. Então, as orelhas caíam para trás.
Ela se levantava e soltava um latido longo e artificial, ficava em alerta,
olhava para eles com uma expressão demorada e saracoteava na direção do
sofá. Com outro olhar de desculpas, enfiava-se embaixo dele. Uma vez,
quando um trovão alto veio sem aviso prévio, ela saíra em disparada através
da sala e calculara mal o espaço sob o sofá, batendo a cabeça com força em
sua borda. Ricocheteou, cambaleando, recobrou-se e se arrastou para o
cobertor, com todos rindo a não ser Bucky.
“Era como se fosse um círculo mágico”, disse Carol.
Ele se virou para olhá-la. “Acho que sei o que quer dizer.”
“Os intocáveis. E agora alguma coisa saiu das trevas e arrastou um de
nós. O encanto não está mais funcionando.”
“Esse negócio de viver é uma ocupação bastante precária.”
“Não venha com filosofia para o meu lado. Deixe-me com minhas
superstiçõezinhas ridículas. Tínhamos uma adorável utopiazinha.”
“E teremos de novo.”
“Não vai ser a mesma coisa.”
“Você teve um dia ruim.”
Ela se levantou, espreguiçando-se. “E vou acabar com ele agora
mesmo. Foi realmente um dia estafante. Peculiar.” O trovão soou
novamente, mais perto. “Vamos trancar a casa.”
“Eu faço isso. Pode ir deitar. Eu já vou.”
Depois que ela subiu, ele foi para trás da casa e ficou olhando o céu a
noroeste. Havia clarões rosados além da linha do horizonte. Teria sido mais
fácil para todos eles, pensou, se Marilyn fosse um animal valente,
imponente e corajoso. Mas ela fora uma criatura sem sorte, cheia de sustos
e temores, ganindo a qualquer ameaça de tormento, sempre com o rabo
entre as patas. Era como se todos seus medos tivessem se tornado realidade,
como se ela sempre houvesse sabido da agonia especial que a aguardava.
Todos os cinco Bowden tomaram café da manhã, finalmente, ao mesmo
tempo. Discutiram sobre a violência da tempestade que desabara durante a
noite. Jamie e Bucky não tinham ouvido absolutamente nada. Nancy disse
que acordara com a tempestade, vestira o roupão e sentara à janela para
observar. Nem Sam, nem Carol mencionaram que, acordada pela tormenta,
Carol se enfiara na cama de Sam, agarrando-o bem apertado para acalmar
seu medo. Marilyn não foi mencionada. Mas Bucky tinha olheiras fundas
em seu rosto.
“Tarefas”, disse Sam. “Atenção, todos os Bowden. Nancy vai ajudar a
mãe a arrumar a cozinha e fazer as camas, enquanto os meninos me ajudam
a encontrar as coisas para o barco e a colocá-las no carro. Depois vamos
precisar de um lugar para praticar pontaria. Você está incumbido de achar as
latas, Jamie. Daí vamos trabalhar no barco.”
A linha de tiro ficava um pouco afastada do morro suave que subia
detrás da casa, na frente de um barranco. Jamie arranjou meia dúzia de latas
vazias na lixeira, amarrou-as e as pendurou em um galho de bordo bem
perto do barranco. Usaram uma caixa e meia de munição na automática
calibre .22. Sam e Nancy eram os melhores atiradores. Jamie, como sempre,
ficou furioso consigo mesmo assim que Nancy o superou. Carol se saiu
melhor do que das outras vezes. Não tentou desistir de seu turno. Ouviu
com atenção as dicas que Sam dava. Também não vacilou tanto com o
coice. Sam, de pé atrás dela, podia ver a força em seu maxilar e sua cara de
concentração. As crianças estavam muito mais quietas do que de costume.
Aquilo era um jogo que jogavam muitas vezes. Hoje, era mais que uma
brincadeira. Havia um novo sabor naquilo, que todos sentiam.
No último turno de Bucky, ele acertou três das latas já todas furadas, a
dois metros de altura e com um pente de oito balas. Ficou vermelho de
orgulho e com as congratulações.
“Devo tirar as latas?”, perguntou Jamie.
“Deixe-as lá”, Sam respondeu. “Talvez treinemos um pouco mais
amanhã de manhã. Se terminarmos com o barco.”
“E a lição de casa deles?”
“Hoje e amanhã à noite”, disse Sam.
“Eu ia ao drive-in hoje à noite”, falou Nancy em um tom de
reclamação.
“Já se esqueceu das novas regras?”, quis saber Sam.
“Não, mas poxa, pai, eu já tinha combinado.”
“E de quem é o carro que vai levá-la ao drive-in?”
“Bom, ele se chama Tommy Kent e é mais velho, tem dezoito, então
pode dirigir à noite, daí é um encontro duplo, tipo isso, e Sandra vai com
Bobby.”
“Essa é a família que tem a loja de móveis?”, perguntou Carol.
“Sim, e vai ficar tudo bem, juro. Eles vêm me buscar aqui e me trazem
de volta assim que o filme acabar. É com John Wayne. Eu ia pedir na sexta-
feira, mas… com a história de Marilyn, esqueci. Posso ir, por favor? Só
dessa vez.”
Sam olhou para Carol e viu o quase imperceptível aceno. “Tudo bem.
Mas só dessa vez. E como você foi em História?”
“Muito bem, acho.”
“Crianças, vocês vão se aprontar. Estamos saindo para o estaleiro
agora mesmo.”
Eles correram pela colina. Sam e Carol os seguiram mais devagar. Ele
disse: “Você me desautorizou”.
“Eu sei, mas acho que vai ficar tudo bem. E você não faz a menor
ideia do tanto que ouvi falar em Tommy Kent, Tommy Kent, Tommy Kent.
Antes e durante a época do Pike Foster. Ele é um figurão na escola. Grande
atleta. É quase uma medalha de ouro para alguém do colegial ir a um
encontro com ele.”
“Imagino. Mas eu queria que ela enjoasse desse tipo musculoso.”
“Esse agora não é tão bobo como o coitado do Pike. Tommy me
atendeu na loja, um sábado. Quando fui comprar aquela lâmpada para o
escritório, em agosto. Ele é um jovenzinho bem razoável.”
“Provavelmente razoável demais, diabos. Sofisticado demais para
Nance. Ela só tem catorze anos. Não quero que fique passeando de carro
pela noite, indo a esses drive-in. Como é que chamam esses lugares? Poço
do amor. E fazem piadas sobre nunca verem os filmes.”
“Agora, deixe de ser o pai tradicional, querido. Se não demos a Nance
bons valores morais até agora, já é tarde para começar. Ela tem quase
quinze anos. Sandra vai estar junto. E nenhuma dupla de rapazinhos
determinados vai separá-las. Provavelmente ela vai ser beijada.”
“Tenho calafrios ao pensar nisso.”
“Coragem, querido. Ela vai estar segura, e isso é melhor do que tê-la
melancólica pelos cantos. O sumiço de Pike realmente abalou sua
confiança. E esse encontro consertou tudo de novo.”
“A desgraça do carro provavelmente não tem freios, os faróis devem
ser fracos e os pneus, carecas.”
“Acontece que é um sedan Plymouth novinho em folha, de duas
portas.”
“Esqueci do preço enorme dos móveis. O que Jamie tem?”
Jamie deixara os outros dois seguirem à frente. Havia parado perto da
cova de Marilyn, esperando pelos pais. Quando chegaram, ele disse com
firmeza: “Vamos arrumar um monumento de mármore bem grande. Com
datas e o nome dela”.
“Precisamos mesmo de alguma coisa, filho”, Sam disse. “Mas um
monumento de mármore bem grande seria um exagero, não seria?”
“Como assim?”
“Tem que ser algo mais simples. Aposto que se você e Mike
procurarem pela margem do riacho vão encontrar uma boa pedra lisa. Então
a gente pode gravar o nome nela.”
Quando Jamie pareceu duvidoso, Carol falou: “Acho que vai ficar
muito bonito, meu bem”.
O menino suspirou. “Certo. Vamos procurar. Desde que acordei estou
sentindo como se ela estivesse por aqui. Tipo do meu lado. Como se eu
virasse a cabeça rápido o bastante, daria para vê-la.”
Carol puxou seu corpo contra o dela. “Eu sei, querido. Todos sentimos
a mesma coisa.”
Jamie olhou para o pai, por entre os braços da mãe. “Podemos ver
onde ele come e entrar escondidos na cozinha e colocar alguma coisa na
comida dele, e aí, quando ele comer, a gente vai estar espiando por aquela
janela redonda que eles têm nas portas dos restaurantes, e ele vai se
contorcer e chutar as mesas, e todo mundo vai gritar até que ele fique quieto
e morto.”
“Essas calças são boas demais para trabalhar no barco”, Carol disse.
Deu um empurrãozinho no menino. “Vá correndo para casa e coloque o par
de calças jeans mais carcomido que você encontrar no armário.”
“Aquele que você disse que não dava nem para remendar?”
“Seria perfeito.”
Jamie correu. Carol disse: “Fico me perguntando se ele é saudável,
com o jeito que sua imaginação funciona. Algumas das coisas que inventa
são chocantes”.
“Aos onze anos, civilização ainda é uma capinha fina. Embaixo dela é
tudo selvageria.”
“Senhor, você está falando da criança que amo.”
“Eles andam em bandos, azucrinam os mais fracos e mais diferentes,
divertem-se imaginando as torturas mais horrendas. É parte da
sobrevivência, querida. Em tempos de guerra, nas cidades grandes, eles
sobrevivem, enquanto os menorezinhos, mais suavizados pelos bons modos,
definham.”
“Às vezes você fica ridiculamente objetivo. Estou pensando em Jamie.
Ele tem ideias tão violentas.”
“Falando em ideias violentas, você consegue ficar com a arma sem dar
muito na vista?”
“Acho que sim. Tenho a bolsa grande de palha.”
“Não vai fazê-la parecer muito melodramática?”
“Você não vai me deixar desconfortável com relação a isso. É uma
arma. Ela atira. E eu não sou nada medrosa. Você mostrou como a trava de
segurança funciona, vou manter uma bala carregada. Minhas crias estão sob
ameaça, Samuel, e estou me tornando tão primitiva quanto Jamie. Enquanto
estava atirando lá atrás, fiquei pensando se seria capaz de apontar a arma a
um ser humano, puxar o gatilho, manter a mira e não vacilar. Então pensei
em Marilyn, e agora sei que sou capaz.”
“Você me impressiona.”
O Iate Clube de New Essex fica seis quilômetros a leste da cidade. Possui
uma marina grande, docas, um molhe particular, uma ampla construção para
o clube, com terraços, bares e salões. Os donos de cruzeiros chamam a
tripulação dedicada de Marujos de Magalhães. Os marinheiros chamam os
cruzeiros de iate de Pestilentos. Iates enormes param em New Essex porque
as instalações são boas. No verão, há visitantes de Miami e de Fort
Lauderdale. No inverno, vários dos proprietários locais de cruzeiros grandes
se dirigem para o sul.
Depois que Sam e Carol progrediram do Bela Sioux II — um bote
salva-vidas adaptado, originalmente de uma balsa obsoleta — para o Bela
Sioux III — uma lancha instável de vinte e seis pés, com seus dezesseis
anos e cobertura conversível —, ingressaram no Iate Clube de New Essex.
Os custos eram altos, e a agenda social era intensa. O Bela Sioux, não
importava quão bem pintado e envernizado estivesse, jamais parecia à
vontade em meio a toda aquela teca, latão, cromo e mogno. Tinha uma
aparência larga e indecente, como uma lavadeira vestida para a ópera.
Parecia se ressentir ativamente do novo ambiente. A cada partida,
tentava bordejar e acertar alguma das grandes embarcações atracadas em
volta. Tinha apenas uma hélice e um motor de sessenta e cinco cavalos de
potência que pouca gente conhecia. Era um motor pesado, confiável e
absurdamente silencioso, capaz de propelir o Bela Sioux a bamboleantes
dez nós. Mas no Iate Clube de New Essex, o motor também se rebelara.
Morreu duas vezes, no meio da marina, enquanto eles entravam. E por duas
vezes fora preciso aceitar um reboque. Desde então, Sam mantinha um
motor de popa de cinco cavalos embrulhado e guardado na proa.
O clube custava caro e muitos de seus membros eram exageradamente
enfadonhos. E era uma longa viagem desde Harper. Quando chegou a época
de pagar a segunda anuidade, Sam e Carol conversaram sobre o assunto e
ficaram ambos felizes e surpresos ao descobrirem o quanto o outro
desistiria fácil do clube.
Filiaram-se ao Clube Náutico de Harper. Era dezesseis quilômetros
mais perto, na margem do lago entre New Essex e Harper, ao final da
estrada que saía da Rodovia 18. O prédio do clube podia ser
apropriadamente chamado de cabana. A marina era pequena e tumultuada.
Ao lado do clube ficava o estaleiro de Jake Barnes. Era um
empreendimento informal, uma confusão. Ele vendia barcos, combustível,
óleo, equipamentos, varas de pesca e cerveja gelada. Era um gordo
modorrento que herdara aquele negócio do pai, quando este morrera. Era
um artífice muito bom, mas preguiçoso. Possuía umas estruturas débeis
onde era capaz de içar qualquer coisa mais de dez metros fora d’água. Era
habilidoso com motores marítimos e de popa e, quando pressionado, podia
fazer grandes reparos nos cascos. O lugar era uma incrível bagunça de
madeirames, ferragens corroídas, latas vazias de óleo, cascos já impossíveis
de reparar, linhas apodrecidas e telhas arqueadas cobrindo o depósito.
A maioria dos membros do Clube Náutico de Harper era ardentemente
adepta do faça-você-mesmo. Isso parecia agradar a Jake, que cobrava um
valor simbólico para tirar os barcos da água. Parecia o mais feliz dos
homens quando podia ficar com a camiseta imunda, calças manchadas,
bebendo sua cerveja e vendo a clientela trabalhar nas embarcações. Os
filhos dos membros do clube vizinho adoravam Jake. Ele contava todo o
tipo de mentiras absurdas sobre suas aventuras.
O Bela Sioux aceitou gentilmente a mudança. Aqui, parecia quase
moderno. Depois da ópera, a lavadeira voltara ao boteco familiar e estava
contente. O motor não enguiçava mais. E Sam e Carol se divertiam muito
mais nos eventos do clube. O grupo era mais jovem.
Sam estacionou o carro nos fundos do estaleiro de Jake e conferiu as
coisas que trouxera. Lixa, material de calafetagem, tinta anti-incrustante
para o casco, tinta para o convés e verniz.
Jake, com uma lata de cerveja na mãozona suja, caminhou
vagarosamente para cumprimentá-los enquanto se aproximavam pelo lado
do galpão principal.
“Oi, Sam. Tá boa, sra. Bowden? Olá, crianças.”
“Ele já está fora?”, perguntou Nancy.
“Claro que sim. Lá no último picadeiro. Precisa de alguns reparos
mesmo. Dei uma olhada ontem. Quero mostrar uma coisa, Sam.”
Andaram até o Bela Sioux. Fora da água, parecia ter o dobro do
tamanho e mais metade de feiura.
Jake terminou a cerveja e jogou a lata de lado, pegou um canivete,
abriu-o e se aproximou de uma viga. Com Sam olhando, enfiou a lâmina
atrás da quilha, bem perto da hélice. A lâmina abriu caminho com uma
facilidade alarmante. Jake se levantou e lançou um olhar sugestivo a Sam.
“Podre?”
“Um pouco podre. O último metro, meio metro da quilha.”
“É perigoso?”
“Eu diria que se o camarada deixar desse jeito por muito tempo, pode
ser que uma hora dê dor de cabeça.”
“Devo fazer algo agora?”
“Olha, eu não diria imediatamente agora. Ocupado como estou, essa
altura do ano, demoraria um tempo até que eu conseguisse fazer algo. Então
eu diria para cortar um pedaço aqui. Arranca essa parte toda. Depois
arrumamos um bom pedaço para substituir e o aparafusamos aqui, com
algumas chapas de reforço dos dois lados e parafusos segurando tudo.
Conferi todo o resto e o barco ainda está uma beleza.”
“Quando devo arrumar isso, então, Jake?”
“Eu diria que depois que eu o colocar para fora em outubro é tempo
suficiente. Assim você pode usá-lo o verão inteiro. Agora, venha até aqui e
eu mostro onde está a parte ruim. Bem aqui. Olha. A madeira está um
pouco rachada e se abriu aqui nesta fenda. A água passa direto, bem nesse
ponto.”
“Não é um pouquinho grande para calafetar?”
Jake se abaixou sob o barco e pegou uma ripa de madeira na trave do
picadeiro. “Eu aparei esse pedaço aqui e ele pareceu servir bem. Estava
para cobri-lo de cola à prova d’água e colocá-lo aí, mas não cheguei a fazer
isso. Acho que você consegue se virar. Vou mostrar onde está o pote de
cola, Sam. Agora, quero ver seus meninos trabalhando um pouco hoje.
Nada de ficar correndo por aí como da última vez, Bucky. Lixe direito e
você vai ganhar um montão de músculos. Trouxe a velha Marilyn para
ajudar?… Que foi? Falei algo errado?”
“Vamos pegar aquela cola”, disse Sam. No caminho para o galpão,
contou a Jake sobre a cachorra.
Jake cuspiu certeiro dentro de um tambor vazio de óleo. “Precisa ser
um tipo especial de filho da puta para envenenar um cachorro.”
“Eu sei.”
“Tinha um cara aqui antigamente, na época do meu pai. A maioria das
pessoas diz que peixes não têm sentimentos. Sangue frio e tudo mais. Mas
ele costumava limpar seus peixes aqui, e os tirava do anzol ainda vivos,
limpava as escamas e cortava em postas enquanto ainda se debatiam.
Parecia nem ligar. Finalmente, botamos o cara para correr. Um comprador
de anzol a menos. Tem gente que faz esse tipo de coisa. E tenho certeza de
que foi um inferno para as crianças. Ela não era uma cachorra muito boa
para a briga, mas com certeza era amigável. Aqui está a cola. Deixe-me
pegar a tampa para você. Use esse martelo de borracha e não tente fazer as
coisas muito rápido. Batidinhas, e mantenha nivelado. A cadela perdigueira
do Don Langly teve outra ninhada há duas semanas. Pulou a cerca de novo.
Don acha que foi um chow-chow que a pegou agora, mas os filhotinhos são
lindos. Ele está procurando adoções para quando eles forem desmamados.”
“Obrigado, Jake. Talvez mais para a frente.”
“Às vezes é bom arranjar outro de uma vez. Use um pouco mais de
cola. Encharque mesmo. Você pode tirar o excesso.”
Depois que a família o viu colocar o remendo no lugar, Sam dividiu as
tarefas. Todos passaram a trabalhar, usando as lixas. O sol estava quente e
aquele era um trabalho cansativo. Depois de meia hora, Sam tirou a
camiseta e a pendurou em um cavalete. A brisa fresca do lago gelava o suor
em suas costas. Bucky estava surpreendentemente solene e diligente.
Quando Gil Burman se aproximou, parando, Sam aproveitou a
desculpa para fazerem uma pausa. Jamie e Bucky foram correndo com um
dólar para comprar duas cervejas e três Coca-Colas de Jake.
“Você tem essa tripulação bem organizada”, disse Gil. Aos quarenta e
dois anos, era vice-presidente do Banco Fiduciário de New Essex. Mudara-
se para Harper havia um ano. Era um homem grande, prematuramente
grisalho. Sua esposa era uma ruiva jovial e falante. Sam e Carol gostavam e
se divertiam com Gil e Betty.
“Ele tem o pulso firme”, disse Carol.
“Perdi meus ajudantes para a corrida de carrinhos de bebê, essa tarde.
Eles estão se organizando.”
“O Rainha da Selva precisa de conserto?”
“Alguma vez não precisou? Está com o painel podre, agora. Maldita
máquina velha. Por que a mantemos, nunca vou saber. Carol, Betty já
entrou em contato com você para falar de sexta-feira?”
“Não, ainda não.”
“Um bom e velho churrascão, crianças. Bifes assados no jardim.
Martínis devidamente consumidos. Conversa bêbada e briga entre famílias
no fim. Temos de fazer isso para alguns tipinhos sórdidos, então precisamos
dos amigos por perto para melhorar a situação.”
Carol olhou para Sam e disse a Gil: “Adoraríamos. Mas pode haver
um problema, porque talvez eu esteja fora da cidade. Posso confirmar com
Betty daqui a uns dias?”.
“Assim que puder. É um festão.”
Os meninos voltaram com as cocas e cervejas. Sam se afastou com Gil
para tratar de negócios. O banco agia como fiador em várias causas
representadas por Dorrity, Stetch e Bowden. Enquanto conversavam, Sam
olhou longamente para sua família. Carol os estava levando de volta ao
trabalho. Nancy vestia shorts vermelhos realmente curtos, velhos e
desbotados, e um corpete de linho amarelo. Suas pernas eram compridas,
pardas e elegantes, formosíssimas. Usava a lixa com ambas as mãos, com a
cintura levemente curvada. Os músculos suaves e jovens se contraíam e
estiravam sob o brilho e textura de suas costas.
Quando Gil foi embora, voltou a trabalhar, compenetrado, e à uma da
tarde Carol anunciou ser hora do almoço. Seguiriam para casa, almoçariam
e depois estariam de volta. Foi então que Nancy anunciou, com bastante
afetação, que havia contado a Tommy Kent o que eles estariam fazendo, e
ele dissera que poderia aparecer para ajudar, então, se estivesse tudo bem,
ela ficaria e continuaria trabalhando e eles poderiam trazer um sanduíche na
volta, por favor.
Sam levou Carol e os meninos para casa. Mike Turner estava sentado
na entrada, esperando por Jamie. Carol preparou sanduíches caprichados e
um jarro enorme de chá gelado. Enquanto embrulhava o sanduíche de
Nancy, disse: “Está se coçando para voltar ao trabalho?”.
“Queria pintar aquele casco antes de anoitecer.”
“Vou tentar fazer com que Bucky durma um pouco. Ele está destruído.
Vai reclamar, mas em dez segundos vai estar desmaiado. Você vai na frente,
daqui a mais ou menos uma hora eu volto com os meninos.”
Ele dirigiu de volta ao estaleiro. Caminhou pela lateral do galpão,
carregando o sanduíche e uma garrafinha térmica de chá gelado. Nancy
estava agachada, lixando a parte de baixo do casco, um lugar difícil de
alcançar. Sorriu para ele.
“Nada do boa-pinta?”
“Ainda não, pai. E ninguém mais fala assim.”
“Qual é uma boa expressão?”
“Bom… ele me balança.”
“Pai do céu!”
“Pai, por favor, só deixe essas coisas por ali. Quero terminar este
pedaço antes.”
Afastando-se, colocou o sanduíche e a garrafa térmica sobre o
cavalete. Enquanto desabotoava a camisa, virou-se de costas para Nancy.
Estacou, imóvel, as pontas dos dedos tocando o terceiro botão. Max Cady
estava sentado sobre um amontoado de madeiras, cinco ou seis metros
além. Tinha uma lata de cerveja e um charuto. Vestia uma camiseta de
malha e umas calças muito vincadas, de um tom azul cobalto vagabundo.
Sorria para Sam.
Sam foi em sua direção. Pareceu um tempo enorme para cruzar seis
metros. O sorriso de Cady não se alterou.
“O que está fazendo aqui?”, Sam manteve a voz baixa.
“Bom, estou tomando uma cerveja, tenente, e fumando este charuto
aqui.”
“Não quero você rondando por aqui.”
Cady parecia calmamente distraído. “Então, o homem me vendeu uma
cerveja e estou pensando em talvez alugar um barco. Não pesco desde que
era garoto. É bom de pescar no lago?”
“O que você quer?”
“Aquele é seu barco, é?” Apontou com o charuto, pestanejou de um
modo obsceno e disse: “Belas curvas, tenente”.
Sam olhou para trás e viu Nancy agachada sobre os calcanhares, os
shorts vermelhos e curtos esticados marcando seu quadril jovem.
“Que inferno, Cady, eu…”
“Um homem com uma boa família e um bom barco como esse, um
trabalho de onde possa tirar folgas quando tem vontade, eis uma coisa que
deve ser boa. Ir até o lago e dar umas voltas. Quando você está preso, fica
pensando em coisas assim. Você sabe. É como sonhar.”
“Você está atrás de quê? O que quer?”
Os olhinhos fundos e castanhos mudaram, mas o sorriso ainda
mostrava o branco da dentadura barata. “Estávamos bem empatados lá em
quarenta e três, tenente. Você tinha educação, autoridade e um pouco de
ouro consigo, mas os dois tínhamos mulher e filho. Sabia disso?”
“Lembro de ter ouvido que você era casado.”
“Casei aos vinte anos. O menino tinha quatro quando você me mandou
para a cadeia. Vi-o duas semanas depois. Mary me largou quando peguei
perpétua. Ela nunca me visitou. Eles facilitam essas coisas quando você está
na perpétua. Assinei todos os documentos. E nunca recebi carta nenhuma.
Mas meu irmão me escreveu, dizendo como ela tinha casado de novo. Com
um encanador lá de Charleston, West Virginia. Teve uma ninhada inteira de
filhos. Ele me mandou recortes de jornal quando o menino morreu. Meu
menino. Foi em cinquenta e um. Tinha doze anos, caiu da moto e foi parar
debaixo de um caminhão.”
“Sinto muito por isso.”
“Sente, tenente? Você deve ser um cara legal. Deve ser um cara
realmente legal. Procurei por Mary quando voltei a Charleston. Ela quase
teve um treco quando me reconheceu. As crianças estavam na escola e o
encanador estava fora, encanando. Era fim de setembro. Você sabe, ela
engordou, mas ainda é uma mulher linda. Todas as mulheres Pratt são
lindas. Gente das colinas, lá de Eskdale. Tive que arrombar a porta de tela
para conseguir conversar direito. Daí ela saiu correndo e pegou uma
daquelas coisas de lareira, e tentou acertar aquilo na minha cabeça. Tirei o
negócio das mãos dela, dobrei em dois e joguei no meio da lareira. Então
ela ficou quieta, saiu da casa e entrou no carro. Sempre teve um
temperamento difícil.”
“Por que você está me contando isso?”
“Quero que você entenda o quadro, como eu disse semana passada.
Levei-a de carro até Huntington — fica só a oitenta quilômetros — e
naquela noite fiquei junto no orelhão enquanto ela ligava para o encanador.
Àquela altura ela já estava fazendo tudo que eu mandava, e fiz com que
dissesse que estava tirando umas férias dele e das crianças. Desliguei o
telefone enquanto ele ainda berrava. Mandei que me escrevesse um bilhete
de amor, datado, onde pedia para que eu a levasse por algum tempo. Fiz que
escrevesse uma porção de palavras indecentes. Fiquei com ela por uns três
dias em um hotel de Huntington. Daí fiquei cansado de ouvi-la
choramingando o tempo todo e se debulhando pelos filhos e pelo
encanador. Já não tinha forças para brigar, mas estava marcada por aquele
primeiro dia quando ainda tentou escapar de mim. Está vendo o quadro,
tenente?”
“Acho que sim.”
“Quando fiquei de saco cheio, disse que se ela alguma vez fosse à
polícia eu mandaria uma cópia do bilhete para o encanador. E eu apareceria
para ver se conseguia jogar uns dois dos moleques dele embaixo de um
caminhão. Ela ficou pasma. Tive que enchê-la com quase um litro de licor
antes que apagasse. Daí cruzei o Big Sandy até Kentucky, e quando
encontrei uma daquelas espeluncas de beira de estrada, perto de Grayson,
carreguei-a para fora e a deixei em uma lata-velha parada lá. Um
quilômetro e meio depois eu joguei seus sapatos e vestido em um terreno.
Dei uma chance considerável de que ela voltasse para casa.”
“Imagino que isso devesse me assustar.”
“Não, tenente. Isso é apenas parte do quadro. Tive bastante tempo para
pensar. Você sabe. Lembro de como era quando nos casamos. Eu voltara a
Charleston em uma folga. Tinha vinte anos, era 1939 e faltavam dois anos
de serviço. Eu não esperava casar, mas ela chegou na cidade com seu
pessoal, sábado à noite. Tinha acabado de fazer dezessete e eu era capaz de
dizer, só de olhar, que eles eram do interior. Meu pessoal vivia perto de
Brounland antes de se mudar para Charleston. Segui-os pela cidade, sem
tirar os olhos de Betty. Quando estava preso, à noite eu lembrava daquele
sábado, e de como foi o casamento, e depois de como ela mudou para
Louisiana, onde eram os treinamentos antes de eu embarcar. Ela queria estar
por perto. Era religiosa. Vinha de um clã enorme de pregadores da Bíblia.
Mas isso não a impediu de querer se meter no meio do feno.”
“Não quero ouvir essas coisas.”
“Mas você vai, tenente. Você quer a história, eu tenho a história para
você. Depois que descobri, pelo meu irmão, que ela casara de novo,
planejei a coisa toda, do jeito exato como fiz. Mudei pouca coisa. Eu
pensava em ficar com ela por uma semana, não apenas três dias, mas ela
desistiu de lutar muito rápido.”
“E daí?”
“Você devia ser um advogado muito esperto, tenente. Eu pensei sobre
ela, então naturalmente pensei sobre você.”
“E fez planos para mim?”
“Agora está ficando quente. Mas eu não pude fazer planos porque não
sabia como era sua vida. Não tinha nem certeza de poder encontrá-lo. Rezei
para diabo, esperando que você não tivesse sido morto nem morrido por
doença.”
“Isso é uma ameaça?”
“Não é uma ameaça, tenente. Como eu disse, a gente estava bem
empatado. Agora você está uma esposa e três crianças à minha frente.”
“E você quer que estejamos empatados outra vez.”
“Eu não disse isso.”
Encararam-se, e Cady ainda sorria. Parecia completamente à vontade.
Sam Bowden não encontrava nenhum meio de controlar a situação. “Você
envenenou nossa cachorra?”, exigiu saber, e de imediato se arrependeu de
perguntar.
“Cachorra?” Os olhos de Cady se arregalaram em zombaria.
“Envenenar sua cachorra? Por que, tenente? Isso é uma calúnia.”
“Ah, nem vem!”
“Nem vem com o quê? Não, eu não envenenei sua cachorra mais do
que você colocou polícia à paisana na minha cola. Você não faria uma coisa
dessas!”
“Foi você, seu porco desgraçado!”
“Preciso tomar cuidado. Não posso acertar nenhum murro em você,
tenente. Eu seria preso por agressão. Aceita um charuto? São dos bons.”
Sam se afastou desacorçoado. Nancy deixara de trabalhar. Estava
parada, olhando intensamente para eles, forçando os olhos e mordendo o
lábio inferior.
“Eis uma bela mocinha, tenente. Quase tão gostosa quanto sua
esposa.”
Cego, Sam se virou e desferiu um soco. Cady largou a lata de cerveja
e agarrou o golpe na palma da mão direita, com facilidade.
“Você tem direito a um soco ridículo durante a vida, tenente. Esse foi
o seu.”
“Saia daqui!”
Cady havia se levantado. Colocou o charuto no canto da boca e falou
em volta dele. “Claro. Talvez você veja o quadro inteiro depois de um
tempo, tenente.” Caminhou na direção do barracão, movendo-se com leveza
e desembaraço. Sorriu outra vez para Sam, acenou com o charuto para
Nancy e disse: “Nos vemos por aí, gracinha”.
Nancy se aproximou de Sam. “É ele? É? Pai! Você está tremendo!”
Sam, ignorando-a, seguiu Cady pelo barracão. Ele sentou ao volante
de um velho Chevrolet cinza. Lançou um sorriso para Sam e Nancy, e foi
embora.
“É ele, não é? Ele é horrível! O jeito com que me olhou me fez sentir
calafrios, que nem as minhocas.”
“Esse é Cady”, disse Sam. Sua voz estava inesperadamente áspera.
“Por que ele veio aqui?”
“Para pressionar um pouco mais. Só Deus sabe como ele descobriu
que estaríamos aqui. Estou aliviado por sua mãe e os meninos não estarem
aqui.”
Voltaram para o barco. Ele a olhou enquanto ela caminhava a seu lado.
Sua expressão era séria, pensativa. Aquele não era um problema que
afetaria apenas ele e Carol. As crianças estavam envolvidas.
Nancy olhou para ele. “O que você vai fazer sobre isso?”
“Não sei.”
“O que ele vai fazer?”
“Também não sei.”
“Papai, você lembra antigamente quando eu era pequena e tive
pesadelos depois de irmos ao circo?”
“Lembro. Qual era o nome daquele macaco? Gargântua.”
“Isso. O lugar onde ele ficava tinha paredes de vidro e você me levou
lá, de mãos dadas, e ele se virou para olhar direto para mim. Não para mais
ninguém. Direto para mim. Eu senti como se alguma coisa dentro de mim
se contorcesse e morresse. Ele era uma coisa selvagem que não tinha
nenhum direito de estar no mesmo mundo que eu. Sabe o que quero dizer?”
“Claro.”
“Esse homem é mais ou menos assim. Quero dizer, tive um pouco
dessa sensação. A srta. Boyce diria que estou sendo fantasiosa.”
“E quem é a srta. Boyce? Já ouvi esse nome.”
“Ah, é nossa professora de inglês. Disse que a boa ficção é boa porque
desenvolve personagens e mostra que ninguém é completamente bom nem
completamente mau. E na ficção ruim os heróis são cem por cento heroicos
e os vilões são cem por cento malvados. Mas acho que esse homem é
completamente mau.”
Nunca antes, ele pensou, fomos capazes de conversar em um nível
adulto equivalente, sem reservas. “Acho que conseguiria entendê-lo, se
quisesse. Ele estava em um negócio sujo e brutal, e era um caso de fadiga
de guerra. Saiu daquilo diretamente para pegar prisão perpétua e trabalho
forçado. É um ambiente brutalizante. Imagino que não conseguiu pensar
nisso como uma recompensa aos serviços que prestou. Então, tinha de haver
alguém a quem culpar. E ele não podia culpar a si mesmo. Eu virei o
símbolo. Ele não me vê. Não vê Sam Bowden, advogado, mantenedor de
uma casa, pai de família. Vê o tenente, o jovem advogado militar cheio de
retidão puritana que arruinou sua vida. E eu gostaria de poder ser um de
seus heróis cem por cento corretos, nesse caso. Queria não ter uma mente
cheia de reservas e maquinações.”
“Nas aulas de psicologia, o sr. Proctor nos disse que toda doença
mental é uma condição em que o indivíduo é incapaz de uma interpretação
racional da realidade. Tive que decorar isso. Então, se o sr. Cady não
consegue ser racional…”
“Acredito que ele está mentalmente doente.”
“E não precisaria ser tratado?”
“A lei neste estado está organizada para proteger as pessoas de serem
internadas erradamente. Um parente próximo pode assinar documentos de
internação que colocam a pessoa sob um período de observação,
normalmente sessenta dias. Ou, se uma pessoa comete um ato de violência
ou, em público, age de maneira irracional, pode ser internada com base no
testemunho de oficiais da lei que presenciaram a violência ou
irracionalidade. Não há outro jeito.”
Ela se virou e correu os dedos sobre o lado lixado do casco. “Então
não há muito o que fazer.”
“Eu ficaria feliz se você cancelasse seu encontro hoje à noite. Não
estou mandando que faça. Provavelmente seria seguro, mas não teríamos
certeza disso.”
Ela refletiu sobre o assunto, franzindo a testa. “Vou ficar em casa.”
“Acho que podemos voltar à pintura.”
“Tudo bem. Você vai contar a mamãe sobre isso?”
“Sim. Ela tem o direito de saber tudo que acontece.”
Tommy Kent apareceu poucos minutos antes de Carol e os meninos
voltarem. Era um rapaz alto, bonito, bem educado, divertido e respeitoso na
medida certa. Deram-lhe um pincel. Ele e Nancy pintaram o mesmo pedaço
do casco, cada um implicando com o trabalho malfeito do outro. Sam
estava contente de ver como ela lidava com ele. Nenhum olhar derretido.
Nada de adoração. Ela era brusca, envolvendo-o com confiança hábil e um
respeito próprio firme, tranquilamente ciente de sua própria atratividade.
Sam ficou surpreso ao ver que suas jovens armas estavam afiadas de modo
tão profissional e eram manejadas com aquele ar de bastante prática. Ela o
tratava como a um irmão mais velho ligeiramente incompetente, o que era,
claro, a tática precisa para lidar com um figurão da escola como Tommy
Kent. Sam, dando olhadelas de seu posto de trabalho, próximo à proa,
detectava apenas uma falha em sua naturalidade extrema. Ela não assumia
qualquer postura ou atitude que fosse desajeitada ou esquisita. Era
cuidadosa, como se dançasse. Ouviu-a cancelar o encontro, pedindo
desculpas suficientes apenas para evitar parecer rude. E vaga apenas o
bastante para despertar suspeitas e ciúmes. Sam viu a expressão zangada de
Tommy quando Nancy se afastou dele, e pensou, jovenzinho, ela acaba de
jogar a isca. Está segurando a linha, e a rede está perfeitamente a postos.
Quando chegar a hora, ela vai puxar a rede com habilidade, e você vai se
debater no convés do barco, os olhos se revirando e as guelras tremendo.
Pike Foster nunca foi páreo, e agora ela está preparada para uma jogada
maior.
Depois que Carol chegou e fez Nancy dar uma pausa para comer seu
sanduíche e tomar o chá, quando os quatro meninos estavam ocupados com
a pintura, Sam pegou duas cervejas e levou Carol para uma das docas
empenadas de Jake, sentando-se a seu lado com os pés balançando sobre a
água. Contou a ela sobre Max Cady.
“Aqui!”, ela disse, os olhos arregalados. “Bem aqui?”
“Bem aqui, olhando para Nancy quando eu voltei. E quando olhei para
Nancy, pude vê-la como ele via, e ela nunca pareceu menos vestida, nem
mesmo naquele tal biquíni que você a deixa usar quando estamos na ilha
sem convidados.”
Ela cerrou os dedos no pulso de Sam com uma força histérica,
fechando os olhos com força e dizendo: “Isso me deixa louca. Oh, Deus,
Sam! O que nós vamos fazer? Você falou com ele? Você descobriu alguma
coisa sobre a Marilyn?”.
“Falei com ele. Bem no fim, perdi as estribeiras. Tentei socá-lo.
Tremendamente eficaz. Tentei acertá-lo enquanto ele estava sentado.
Poderia ter arremessado uma bola de tênis nele, à traição. A desgraça de
seus antebraços são do tamanho das minhas coxas, e ele é rápido como um
gato.”
“E Marilyn?”
“Ele negou. Mas negou de um jeito que foi o mesmo que ter
admitido.”
“O que mais ele disse? Fez ameaças?”
Por um momento, Sam ficou tentado manter a história da esposa de
Cady em segredo. Mas se esforçou por contá-la, tentando fazer uma
narrativa objetiva e desapaixonada, olhando fixo para a água verde da baía.
Carol não o interrompeu. Quando olhou para ela, foi como se houvesse se
tornado repentina e tragicamente uma mulher mais velha. Ele era bastante
orgulhoso de como ela, aos trinta e sete, não aparentava a idade, parecendo
ter convincentes trinta anos e, em momentos especiais, alegres e milagrosos
vinte e cinco. Agora, com os ombros curvados e o rosto todo ossos e
desolação, ele viu pela primeira vez como ela seria quando se tornasse
bastante velha.
“É terrível!”, ela disse.
“Eu sei.”
“A pobrezinha. E que jeito repugnante de nos ameaçar. Indiretamente.
Nancy soube quem ele era?”
“Ela não o notou até quase o fim. Quando nos viu conversando, deve
ter imaginado. Quando dei meu soco estúpido, ela soube. Depois que ele foi
embora, nós conversamos. Ela foi sensata. Estou orgulhoso dela. Cancelou
o encontro de hoje à noite de boa vontade.”
“Fico feliz. Tommy não é simpático?”
“Bastante, mas não comece a falar como se ela tivesse dezoito. Ele é
melhor que Pike. E ela parece saber lidar bem com ele. Não sei onde
aprendeu.”
“Não é algo que se aprenda.”
“Acho que herdou isso de você, querida. Lá estava eu, cuidando das
minhas coisas, procurando um lugar para sentar no café e…” Tentava ser
alegre, mas sabia estar falhando. A cabeça dela estava baixa e ele viu as
lágrimas inundando seus olhos. Colocou a mão em seu braço.
“Vai ficar tudo bem”, disse. Ela sacudiu a cabeça violentamente.
“Beba sua cerveja, meu bem. Olhe. É sábado. O sol está brilhando. Temos
nossa cria. Vamos dar um jeito. Eles não podem abater os Bowden.”
A voz dela soou abafada. “Volte lá para ajudá-los. Vou ficar mais um
pouco aqui.”
Assim que pegou o pincel, olhou para trás. Ela parecia pequena, nas
docas. Pequena, humilhada e terrivelmente amedrontada.
Conhecera Carol em uma sexta à tarde, no fim de abril de 1942, no café
Horn & Hardart, perto do campus da Universidade da Pensilvânia. Ele
estava no último ano da faculdade de Direito. Ela, prestes a se formar
bacharel.
Não encontrando assento no térreo, ele subiu as escadas com sua
bandeja. Lá em cima estava quase tão cheio quanto o andar de baixo.
Correu os olhos pelo salão e viu uma garota excepcionalmente bonita
sentada sozinha, em uma mesa para dois. Parecia estar lendo uma apostila.
Tivesse sido um ano antes, ele nunca teria se aproximado, apoiado a
bandeja no canto da mesa e dito: “Posso?”. Não era exatamente tímido, mas
ao mesmo tempo sempre achara estranho se aproximar de uma garota que
não conhecesse. Mas era 1942 e havia um clima novo e ousado pelo mundo.
Os padrões estavam mudando muito rapidamente. Ele passara muito tempo
enfiado nos livros, era abril e o cheiro da primavera tomava o ar, e aquela
era uma garota realmente muito bonita.
“Posso?”
Ela lançou um olhar rápido e desinteressado para ele, voltando-se logo
ao livro. “Fique à vontade.”
Pousou sua bandeja sobre a mesa e sentou-se para comer. Ela acabara
de almoçar e comia um cheesecake, aos bocadinhos, fazendo-o durar. Como
não demonstrava intenção de olhá-lo, ele sentiu-se perfeitamente seguro
para encará-la. Ela era ótima de ser olhada. Longos cílios negros, belas
sobrancelhas e os ossos das bochechas salientes. Cabelos negros
curiosamente crespos. Vestia um blazer verde e uma blusa amarela com o
colarinho meio franzido. Desolado, pensou em alguns de seus amigos mais
extrovertidos, em como eles poderiam iniciar uma conversa de forma
tranquila e confiante. Em breve ela terminaria o cheesecake e o café e iria
embora, talvez com mais uma olhadela sem interesse. E ele ficaria sentado
sozinho, pensando no que poderia ter dito.
De repente, reconheceu o texto que ela lia. Usara o mesmo, no
bacharelado. Psicologia Anormal, de Durfey. Após vários ensaios mudos,
falou com a maior casualidade possível: “Passei um mau bocado com esse
curso”.
Ela se virou para ele, como se surpresa de haver mais alguém à mesa.
“Foi.” Olhou de volta para o livro. Não havia sido uma pergunta, mas o fim
de qualquer conversa.
Continuou se atrapalhando, dizendo: “Eu… eu discordava da
imprecisão desse campo. Eles usam rótulos, mas não parecem ser capazes
de medir… coisas”.
Ela fechou o livro devagar, mantendo um dedo na página que lia.
Encarou-o e olhou para seu prato. Ele desejou ter pedido algo um pouco
mais digno do que feijão com salsichas.
“Você não conhece as regras?”
“Que regras?”
“As não escritas. Você não deve puxar conversa com as alunas nesta
grande universidade. Somos umas coisinhas grosseiras, miseráveis, míopes
que os estudantes chamam de papa-livro. Estamos todas abaixo de sua
nobre atenção. Se um caro irmão de fraternidade comete o erro social de
levar uma papa-livros a qualquer evento, é encarado com aversão. Então, vá
tentar a sorte lá na universidade só para moças.”
Ele sentiu o rosto suar, rubro. Ela abrira novamente o livro. Seu
embaraço se transformou lentamente em raiva. “Tudo bem. Então eu puxei
conversa. Se você não quer papo, é só dizer. O fato de ser bonita não lhe dá
nenhum direito especial de ser rude. Não fui eu quem inventou essas regras
não escritas. Não saio com as alunas aqui porque acontece de eu estar
comprometido com uma garota lá em Nova York.”
Não houve qualquer sinal de que ela o estivesse ouvindo. Ele garfou
uma salsicha, que escapou do prato e caiu em seu colo. Enquanto ele a
recolhia, ela disse, sem levantar os olhos, “Então por que tentar algo
comigo?”
“Isso é arrogante para diabo, não?”
Olhou para ele e fez beicinhos. Ele viu que seus olhos eram de um
castanho tão escuro que eram quase negros. “É?”
“Arrogante e também prepotente. Eu não tinha nenhuma intenção de
tentar nada. E se eu tivesse, meu irmão, estou curado.”
E ela sorriu para ele, um sorriso largo e maldoso que fazia troça dele.
“Viu? Você admite que pensou nisso.”
“Admito nada!”
“É quase impossível para a maioria das pessoas neste mundo ser um
tiquinho honesto e franco. Você com certeza não parece ser.”
“Sou completamente honesto comigo mesmo.”
“Duvido. Vamos ver se você consegue. Imagine se, quando você veio
com esse papinho fraco, eu tivesse mordido a isca. E tivéssemos uma
conversa honesta de verdade sobre esse curso. Daí você veria que eu estava
meio que brincando com o cheesecake, levantaria para me buscar mais café
e eu reagiria como se você tivesse atravessado um mar de gente para me
trazer esmeraldas. E aí sairíamos juntos, e digamos que você tivesse uma
aula às duas e nós tivéssemos passeado tanto que você só teria cinco
minutos para chegar nela. Agora, seja honesto. Estaríamos parados ali. E eu
diria, com um risinho bobo, que tudo havia sido muitíssimo interessante.
Esta é sua chance de ser honesto. Você faltaria à aula só para me
acompanhar de volta até meu alojamentozinho medíocre?”
“Claro que não.” Ela o olhou com aquele sorriso exasperador. Ele
remoeu os pensamentos e suspirou.
“Certo. Sim, eu faltaria. Mas tem algo injusto e errado em tudo isso.”
Ela estendeu a mão. “Parabéns. Você é quase honesto. Sou Carol
Whitney.” Seu cumprimento era firme e ela recolheu a mão logo. “E, para
sua informação, estou comprometida com um rapaz maravilhoso que, no
momento, está em Pensacola aprendendo a voar. Então não vai haver
nenhum risinho bobo nem piscadinhas.”
“Sam Bowden”, ele disse, sorrindo. Fez um sinal na direção do livro.
“Passei sufoco com esse curso.”
“Recuperou bem. Acho que gosto de você, Sam Bowden. Acontece
que estou me saindo bastante bem nesse curso. Há quanto tempo foi esse
sufoco?”
“Dois anos. Faço Direito agora. Último ano.”
“E depois?”
“Alguma coisa a ver com a guerra, imagino. Claire insistiu para que eu
terminasse e pegasse o diploma, em vez de, como ela disse, fazer alguma
besteira. O pai dela tem uma fábrica em New Jersey e está lotado de
contratos de guerra. Claire tem insistido para que eu vá trabalhar lá. Ele está
disposto e pode esperar um pouco. Ainda não decidi. Vamos casar assim
que eu consiga o diploma. Todo mundo lhe conta sua história de vida?”
“Sou um tipo simpático. Bill e eu vamos casar assim que ele tiver o
distintivo de piloto da Marinha. Não sou herdeira de uma fábrica de guerra
em Jersey, mas mesmo que eu fosse não poderia mantê-lo longe dessa
coisa. Ele está todo animado. Acho que eu nem tentaria.”
Ele pegou mais café para ela, os dois saíram juntos e ele disse: “Vou
levá-la até seu alojamentozinho medíocre”.
“Sem um conversível vistoso?”
“Sem. Sou da classe trabalhadora.” Caminhou devagar ao lado dela.
“Os primeiros dois anos foram curtos de grana. Depois, meu pai morreu.
Com trabalhos de verão e outros de meio período eu dei um jeito de
continuar. Parei de trabalhar nos últimos três meses porque já tenho o
suficiente para terminar o curso, se for prudente, e quero usar todo o tempo
com os livros. É uma situação engraçada quando o patriotismo entra em
conflito com o dólar.”
“Como assim?”
“Meu irmão e eu temos que ajudar a manter minha mãe. Sua pensão
não é suficiente. Ele tem uma esposa, mas nenhum filho, e nossa mãe mora
com eles em Pasadena. George deve ser convocado logo. Esse é um bom
motivo para eu não poder marchar até o alistamento. O dinheiro de dois
soldados seria realmente pouco.”
“Então a fábrica de Jersey parece boa.”
“Ou pelo menos a comissão, se eu conseguir lidar com isso.”
“Eu não tenho nenhum centavo. Sou filha única. Minha mãe morreu
há dez anos, meu pai consegue mandar o suficiente para eu ir levando. Ele
trabalhou nos campos de petróleo a vida toda. Sempre que consegue juntar
o bastante, ele se mete em operações arriscadas. Os poços estão sempre
secos, mas ele nunca desiste.”
Quando chegaram ao alojamento, ele fez a pergunta decisiva. Ela
hesitou, mas respondeu: “Sim, vou almoçar lá amanhã, à mesma hora”.
No fim da semana eles já passavam juntos todos os momentos livres.
Conversaram sobre todas as coisas sob o sol. Disseram um ao outro que
aquela era uma relação perfeitamente platônica. Contavam sempre de seu
amor e lealdade a Bill e Claire. E diziam que Bill e Claire não poderiam ter
qualquer objeção a uma amizade sincera entre um homem e uma mulher.
Ainda que gastasse o tempo que devia ser dos livros, sua mente estava mais
ágil e fresca do que nunca, e ele era capaz de trabalhar com tanta eficiência
que sabia estar fazendo bem. Não tinham dinheiro, mas era primavera na
Filadélfia, e eles caminharam quilômetros sem fim e sentaram em parques e
conversaram, conversaram e conversaram. Apenas uma amizade sincera.
Não queria dizer nada o fato de ele sentir, quando a via andando em sua
direção, o fôlego se agarrar à garganta.
Ele escreveu e telefonou a Claire como deveria. Ela escreveu a Bill e
leu suas cartas para ele, que ficava tomado de uma fúria cega quando as
partes pessoais eram puladas. Dizia que Bill parecia ser um bom rapaz.
Estava convencido de que Bill era vaidoso e arrogante, um despreocupado,
eterno e incurável adolescente. Como vingança, lia para Carol as cartas
perfumadas de Claire, e sentiu-se embaraçado ao notar como soavam
superficiais.
O inevitável ponto de virada aconteceu em um parque urbano, na
madrugada de uma noite suave e estrelada de fins de maio. Haviam
conversado sobre a guerra e sobre infância e música e pinheiros e a melhor
raça de cachorros. Então ela disse que tinha algo às oito da manhã e os dois
se levantaram, um de frente para o outro, e o rosto dela estava suavemente
iluminado pelo distante poste da rua. Houve um silêncio curiosíssimo e ele
colocou as mãos sobre seus ombros. Ela se moveu com decisão e
vivacidade para seus braços, e o longo e ansioso beijo deixou-os tão
balançados que de fato perderam o equilíbrio. Sentaram-se no banco e ele
segurou sua mão por um longo e maravilhoso silêncio, enquanto ela deitava
a cabeça para trás e olhava diretamente para as estrelas acima. Beijaram-se
novamente e a vontade e urgência cresceram até que ela o empurrasse
suavemente.
“Vai ser uma horror completo contar a Bill”, ela disse.
“E a Claire.”
“Azar da Claire.”
“E do Bill. É um problema simples de matemática. Deixamos dois
felizes e dois infelizes, em vez de quatro infelizes.”
“A racionalização mais antiga do mundo, querido.”
“Por favor, repete isso.”
“A racionalização mais…”
“Só a última palavra.”
“Querido? Deus, tenho lhe chamado assim por semanas, mas não em
voz alta. E há uma porção de outras palavras. Vamos repassar a lista. Você
primeiro.”
Ficaram acordados a noite inteira. Conseguiram seus diplomas. Os
anéis foram enviados de volta pelo correio. Casaram-se. Estavam completa
e supremamente certos de que nenhum outro casal na história da
humanidade sentira mais amor ou combinara mais perfeitamente um com o
outro, em todos os sentidos. Foi um casamento civil tranquilo. O pai dela
enviou um cheque inesperado que os manteve por um tempo enquanto ele
tirava sua licença e se apresentava para o serviço em Washington. O quarto
alugado na casa de tijolos em Arlington foi um paraíso pessoal especial.
Ela o acompanhou à costa Oeste, onde compartilharam as três
semanas de espera enquanto ele ficava na base Anza esperando por
embarcar. George estava no Exército havia seis meses, àquela altura. Carol
encantou a mãe e a cunhada de Sam, e ficou decidido que ela devia morar
com elas em vez de voltar para o Texas, com seu pai. Estava grávida de sete
meses quando ele partiu, bastante satisfeito por ela estar com sua mãe e
Beth.
Embarcou no começo de maio de 1943 e voltou para os Estados
Unidos em setembro de 1945, capitão Bowden, moreníssimo depois de
quarenta dias no convés de um navio de transporte militar — regressou para
um mundo bastante mudado. George fora morto na Itália em 1944, e sua
mãe morrera dois meses depois. O pai de Carol havia morrido em um
acidente com petróleo no Texas, e depois de pagas as despesas com o
enterro e vendidas as suas posses, restaram mil e quinhentos dólares. Sam
solicitou e recebeu sua dispensa na Califórnia. Mudou-se para uma casinha
alugada em Pasadena e começou a se familiarizar com a esposa e a filha
que nunca vira. Duas semanas após chegar, compareceram ao casamento de
Beth. Ela se casou com um homem mais velho, um viúvo que havia sido
gentil com as mulheres que viveram sozinhas.
E duas semanas depois, após longas negociações com Bill Stetch,
estavam em New Essex, em uma casa alugada, e Sam se preparava para seu
exame de advocacia. Na véspera de Natal Carol anunciou, zombando e
fazendo comentários maldosos sobre os militares em geral e sobre um
capitão Bowden em particular, que se encontrava ligeiramente grávida.
Sievers estava parado junto ao balcão quando Sam entrou. Acenou com a
cabeça, esperou que Sam pegasse uma bebida e depois se dirigiram para
uma mesa afastada, bem distante da jukebox e oposta ao banheiro dos
homens.
“Falei com o delegado Dutton hoje. Ele não vai fazer nada.”
“Não vejo como poderia. Se você tivesse mais bala na agulha, talvez
desse para arranjar algo. Mas ele ainda ficaria relutante. Aliás, ele é um
policial de primeira, aquele cara. Tranquilo, calmo e duro feito rocha. Você
quer fazer aquilo sobre o que falamos?”
“Eu… acho que sim.”
Sievers carregava um sorrisinho. “Sem mais conversa sobre os meios
legais?”
“Tive o bastante de conversas desse tipo hoje para me deixar ocupado
por um bom tempo.”
“Você mudou.”
“Por causa do que aconteceu. Na sexta ele apareceu e envenenou
minha cachorra. Cachorra das crianças. Não tenho provas. Sábado, apareceu
no estaleiro, todo durão.”
“Ele vai amolecer.”
“Você pode fazer aquilo que disse?”
“Dá para ser feito por trezentas pratas, Bowden. Não sou eu quem vai
arrumar as coisas. Tenho um amigo. Ele tem os contatos certos. Vai mandar
três para cima dele. Conheço o lugar, é nos fundos da Jaekel Street, 211.
Tem um galpão e uma cerca perto de onde ele deixa o carro. Eles vão
esperar no ângulo certo da cerca e do galpão.”
“Que quê… eles vão fazer?”
“O que diabos você acha? Eles vão encher o cara de porrada. Com
dois canos de ferro e uma corrente de bicicleta, vão fazer como
profissionais. Mandá-lo para o hospital.” Seus olhos mudaram, ficaram
distantes. “Eu fui espancado por profissionais, uma vez. Ah, eu era um
rapaz durão. Tinha certeza de que eles não poderiam me machucar se não
me matassem. Que eu me ergueria num salto, que nem Mike Hammer. Mas
não é assim que funciona, sr. Bowden. Eles lhe acertam e acertam. Acho
que é a dor. E o fato de eles não pararem. Fazem com que você implore, e
ainda assim não param. A coragem e o orgulho vão embora de você. Eu não
prestei para nada por dois longos anos. Estava perfeitamente saudável, mas
vivia assustado. Muito assustado. Não estava pronto para apanhar daquele
jeito outra vez. Então comecei a me recuperar. Aconteceu há dezoito anos, e
mesmo hoje eu não sei se voltei a ser completamente o que era antes. E sou
mais durão que a maioria. Não houve nenhum homem — e, veja bem, eu vi
esses camaradas fazendo o serviço — que não tenha ficado imprestável
depois de passarem por um espancamento profissional. Ficaram
sobressaltados para o resto da vida. Você está fazendo a coisa certa.”
“Há alguma chance de que eles possam matá-lo por acidente?”
“Eles são profissionais, Bowden!”
“Sei disso. Mas pode acontecer.”
“Uma vez a cada dez mil. Mesmo assim, estamos seguros. As ordens
passam por muitos canais. Mesmo se alguém fosse se importar, o que
ninguém vai, eles não chegariam até você.”
“Dou um cheque a você?”
“Deus do céu, não! Dinheiro. Quando você pode arranjá-lo?”
“Amanhã, na hora em que o banco abrir.”
“Traga-o aqui à mesma hora, amanhã. Vou começar a mexer as coisas
ainda hoje.”
“Quando você acha que vai acontecer?”
“Amanhã à noite ou na quarta à noite, não mais que isso.” Terminou
sua bebida, pousou o copo e deslizou para fora da mesa.
Sam olhou para ele, sorriu sem jeito e disse: “Esse tipo de coisa
acontece muito? Sou bastante ingênuo, parece”.
“Acontece. As pessoas ficam muito sabidas, e têm que ser colocadas
no lugar. Às vezes esse é o único jeito de fazê-las captar a mensagem.”
“Essa é uma das expressões preferidas de Cady.”
“Então ele vai ficar bem contente.”
“Pelo quê?”
“Por captar a mensagem.”
Depois que Carol dormiu, ele saiu devagar da cama e sentou-se na cadeira
próxima à janela do quarto, levantou a persiana com cuidado silencioso,
acendeu um cigarro e olhou para fora na direção da estrada prateada e do
muro de pedra. A noite estava vazia. Seus quatro incrivelmente preciosos
reféns da sorte dormiam profundamente. A Terra girava e as estrelas
brilhavam altas. Tudo isso, dizia a si mesmo, era realidade. Noite, Terra,
estrelas e o descanso de sua família. E a outra coisa que sempre parecera tão
valiosa era apenas um código velho e empoeirado que permitia aos homens
viverem perto uns dos outros com alguma paz e segurança. Em tempos
antigos, os anciões da aldeia puniam aqueles que infringiam os tabus. E a
lei inteira era uma superestrutura vasta e sobrecarregada, construída na ideia
básica de que o grupo apoiaria a punição dos dissidentes. Era um rito tribal,
com perucas brancas, togas e juramentos. Acontecia simplesmente de não
se aplicar a sua própria situação. Ainda há dois mil anos ele poderia sentar
no conselho dos anciões, explicar o perigo e ganhar apoio da vila, e o
predador seria apedrejado até a morte. Então essa ação era um
complemento da lei. Portanto, era correta. Mesmo assim, quando voltou
para a cama, ainda não era capaz de aceitar sua racionalização.
Sievers não deu notícias na quarta-feira, e Sam não pôde encontrar nada nos
jornais. Na quinta, às nove e meia da manhã, recebeu uma ligação de
Dutton.
“Aqui é o delegado Dutton, sr. Bowden. Tenho algumas novidades
sobre seu garoto.”
“Sim?”
“Nós o detivemos por desordem, distúrbio à paz e resistência à prisão.
Ele se meteu em uma briga ontem, por volta da meia-noite, no quintal da
pensão da rua Jaekel. Três baderneiros locais o atacaram. Deixaram umas
boas marcas nele antes que pudesse se soltar. Um conseguiu fugir e dois
estão hospitalizados. Um deles foi arremessado pela parede de um galpão,
ganhou ferimentos múltiplos e uma distensão na coluna. O outro está com a
mandíbula fraturada, o pulso quebrado, uma concussão e algumas costelas
arrebentadas. Eles o espancaram com pedaços de cano e rasgaram sua cara
com uma corrente.”
“Ele vai ser preso?”
“Com certeza, sr. Bowden. Ele estava tonto, acho, o quintal estava
escuro e ele esmurrou um policial quando deu com ele, achatou seu nariz
como uma folha de papel. O segundo policial o derrubou com um cassetete,
então o levaram e deram pontos em seu rosto, depois foi trancado no
camburão. O juiz Jamison tem audiência esta noite, vamos ver o que
fazemos com ele hoje. Ele fica gritando por um advogado. Quer pegar o
caso?”
“Não, obrigado.”
“O juiz Jamison não colabora tanto quanto alguns outros, mas acho
que vai fazer um bom serviço. Apareça por volta das oito e meia e você vai
ver como ele trabalha.”
“Estarei lá. Delegado, é cedo demais para perguntar o que descobriram
em Charleston?”
“Não. Aconteceu como eu previa. A mulher foi contatada em casa,
pela polícia de Charleston. Admitiu que foi casada com Cady e afirmou que
não o vê desde que foi preso. Disse nem saber que ele havia sido solto. Uma
pena.”
“Obrigado por tentar.”
“Lamento não ter mais do que isso, sr. Bowden.”
Sievers telefonou às quatro e pediu que Sam o encontrasse no mesmo
lugar. Sam chegou primeiro. Levou sua bebida para a mesma mesa e
esperou. Quando Sievers chegou, sentou-se de frente para Sam e disse:
“Você devia ser reembolsado”.
“O que aconteceu?”
“Eles se descuidaram. Eu mandei o aviso de que o bicho era cascudo.
Tentaram dar umas pancadinhas nele e, quando ele não cedeu, deram mais
algumas. Daí já era tarde. Ele arregaçou aqueles meninos de cima a baixo.
O que fugiu tomou um soco no estômago antes. Ainda não consegue
respirar direito, pelo que ouvi. O pessoal já está comentando. Vai ser difícil
arrumar mais gente para tentar uma segunda vez. Ouvi dizer que quando um
deles atravessou a parede, parecia uma bomba explodindo. Sinto muito por
isso ter dado errado, sr. Bowden.”
“Mas ele vai para a cadeia.”
“E vai ser solto.”
“Então o que eu faço?”
“Pague por outro tratamento, acho. E é melhor gastar uns mil nesse
cara. Ele não vai ser pego desavisado outra vez.”
Quando Sam chegou em casa, Carol já sabia da maior parte das
informações pelo jornal da noite, um único parágrafo na última página que
dava o nome dos dois hospitalizados e a notícia da prisão de Cady.
“Você vai lá?”
“Não sei.”
“Por favor, vá e traga notícias, querido.”
A audiência da noite estava lotada. Sam sentou-se no fundo. Havia um
murmurinho interminável e o arrastar de passos, um ir e vir constante, então
ele não podia ouvir uma palavra do que estava acontecendo. O teto era alto
e as lâmpadas pendentes criavam sombras acentuadas. O juiz Jamison
possuía a maior aparência de tédio que Sam já vira na vida. Os bancos eram
estreitos e duros, a sala cheirava a charuto, poeira e desinfetante. Quando
viu uma oportunidade, correu para a terceira fileira antes da balaustrada. O
caso de Cady seria julgado às nove e quinze. À frente do juiz se alinhavam
um dos promotores públicos, Cady, um advogado jovem que Sam já vira
nos encontros da associação, mas cujo nome não se recordava, e dois
policiais uniformizados.
Sam, esforçando-se o máximo que podia, era capaz de ouvir apenas
uma palavra aqui e outra ali. O advogado de Cady, num tom sincero,
parecia estar reforçando o fato de que o ataque ocorrera em uma
propriedade da qual Cady alugava um quarto. O policial com curativo no
nariz testemunhou em uma monotonia indistinta. Quando o barulho na corte
se elevava demais, o juiz batia seu martelinho de forma indolente.
O promotor e o advogado de defesa debateram vivamente, ignorando
o juiz por algum tempo. Ele bocejou, bateu o martelo novamente e declarou
uma sentença que Sam não conseguiu ouvir. Cady acompanhou seu
advogado e pagou uma taxa para o escrevente sentado a uma mesa. O
meirinho começou a conduzi-los para uma porta lateral, mas Cady estacou e
olhou para trás, aparentemente procurando algo na corte. Atravessando sua
bochecha na diagonal, o curativo era uma grande faixa branca. Seu rosto,
inchado e roxo. Sam tentou se esconder atrás do banco, mas Cady o viu,
ergueu a mão, sorriu e disse de forma bem audível: “E aí, tenente, como vão
as coisas?”.
E foi levado dali. Sam falou com três pessoas antes de descobrir o que
acontecera. Cady fora julgado culpado da agressão ao oficial. As outras
duas queixas haviam sido rejeitadas. Ele foi sentenciado a uma multa de
cem dólares e trinta dias na prisão municipal.
Levou as novidades para Carol. Tentaram se convencer de que eram
boas novas, mas elas não eram muito reconfortantes. Os sorrisos surgiam
rígidos e esmoreciam rapidamente. Mas, pelo menos, seriam trinta dias de
alívio. Trinta dias sem medo. E trinta dias de apreensão pelo medo que
viria. Considerando o moral da casa, Cady não poderia ter planejado
melhor.
A escola havia acabado, as restrições sobre as crianças foram
suspensas e um verão dourado começava. Os trinta dias de Cady
começaram oficialmente no dia dezenove de junho. Seria solto na sexta,
dezenove de julho.
Eles tinham planejado que Nancy iria novamente para o acampamento
de verão, e ela pedira para ficar por lá durante seis semanas, dessa vez, e
não apenas um mês. Seria seu quarto ano em Minnatalla, provavelmente o
último. As seis semanas teriam início no primeiro dia de julho. Jamie
voltaria para seu segundo ano em Gannatalla, o acampamento para meninos
a cinco quilômetros, sob a mesma administração. Os acampamentos
ficavam às margens de um laguinho no sul do estado, duzentos e vinte e
cinco quilômetros de Harper. Os planos para eles haviam sido definidos em
reunião de família, em abril, quando as inscrições tinham de ser feitas.
Depois de pesarem todos os fatores, o pedido de Nancy pelas seis semanas
foi autorizado. Então Jamie reclamou ardentemente por estar limitado a um
mês apenas. Argumentaram que Nancy não tinha autorização de ficar mais
de um mês, na idade dele, e ele fez com que garantissem que se inscreveria
para seis semanas quando fizesse catorze anos. Bucky se manteve
impassível e indignado durante todo o tempo. Não fazia qualquer diferença
para ele que seus acampamentos começassem em três anos. Três anos eram
metade de sua vida inteira. Era uma eternidade. Ele era uma triste vítima de
uma discriminação desnecessária. Todos deveriam ir.
Quando ele finalmente se resignou a passar o verão inteiro em casa,
apareceu com uma série de opiniões convictas sobre acampamentos. Eram
lugares péssimos. Você tinha que dormir na chuva. Os cavalos davam
coices e os barcos tinham furos, e se você não se lavasse seis vezes por dia,
eles lhe batiam e batiam.
Depois que todos os arranjos estavam feitos, Nancy começou, devagar,
a mudar de ideia conforme o verão se aproximava. Seu corpo e emoções
estavam mudando de menina para mulher. Era óbvio, pela sua atitude, que
passara a ver os acampamentos de verão como coisa de criança. Uma
porção da sua turma estaria por Harper durante o verão. Ela mencionou
garotos que começariam a trabalhar na nova estrada, uma super-rodovia que
estava para ser construída e cruzaria a 18 cinco quilômetros ao norte da
cidade. Pensou que talvez pudesse arrumar um trabalho no centro. Mas Sam
e Carol acharam melhor para ela estender sua infância por mais um verão
de natação, cavalgada, trabalhos manuais, culinária, trilhas e cantoria em
volta da fogueira.
Nancy não estava zangada, nem se lastimando. Quando ficou claro
que ela iria de qualquer jeito, entrou no que Sam chamava de condição de
duquesa. Era uma indiferença majestosa e condescendente, pontuada por
suspiros significativos e fungadas quase inaudíveis. Ela estava acima de
todos eles e, claro, seria transigente com quaisquer de suas ideias, não
importava quão infantis fossem.
Mas em algum momento na semana seguinte à prisão de Cady, houve
uma mudança clara de atitude. Nancy se tornou animadíssima com os
planos, excitada, demonstrando um prazer ansioso. A mudança deixou Sam
e Carol intrigados.
Uma noite, Carol disse a Sam: “Mistério desvendado. Coloquei-a
contra a parede hoje. Ela estava pondo o vestido vermelho na mala, com um
jeitinho furtivo que denunciava tudo. Então eu disse que seria um belo de
um traje de gala para escalar montanhas. Daí ela me contou, enérgica e bem
arrogante, que há noites de socialização, quando os dois acampamentos se
juntam. Eu disse que estava bastante ciente disso, e que também estava
ciente de a idade máxima para os jovens cavalheiros de Gannatalla ser
quinze anos. Portanto, o vestido vermelho seria como atirar em grilos com
um rifle de caça. Em vez de ser acusada de baixar as expectativas, ela
confessou que Tommy Kent vai trabalhar como diretor-assistente de
esportes este ano em Gannatalla.”
“Oh!”
“Sim, exatamente. Oh! Os campistas são vigiados de perto, mas as
meninas que trabalham no Minnatalla não têm supervisão tão rígida, e
Tommy provavelmente vai se aproximar muito de alguma delas, de dezoito
ou algo assim, e quebrar o coração da nossa princesinha.”
“É um risco calculado. Mas estou feliz pelo hábito da duquesa ter
terminado, de todo modo. Dia vinte ela faz quinze anos. Que dia da semana
é?”
“Sábado, este ano. Podemos ir até lá, levar presentes.” Parou e deu
uma olhada aflita para ele. “Eu não tinha pensado nisso. É o dia seguinte
à…”
“Eu sei.”
“E agora? Nance e Jamie estarão seguros lá?”
“Imagino que ele possa descobrir onde eles estão. Quase qualquer um
na cidade sabe para onde eles vão. Pensei sobre isso. Você sabe como as
coisas são por aqui. Eles viajam em bandos. Bandos grandes e barulhentos,
cheios de entusiasmo e energia. Pensei em falar com as crianças e conversar
com a administração quando chegássemos. Mas ter Tommy por lá pode
simplificar as coisas. Posso falar com ele. Acho que gosto daquele menino.
Ele tem um quê de competência.”
“Você tem que se apressar, então. Eles têm um encontro hoje à noite, e
ele parte amanhã cedo. Tem que chegar lá antes para ajudar a preparar o
acampamento. Hoje vão ao baile de caridade dos bombeiros, ele vem buscá-
la às oito.”
“Nunca pensei que essa rotina fosse começar tão logo.”
“Nós garotas de sangue indígena crescemos rápido.”
Naquela noite, Nancy devorou o jantar e estava pronta às quinze para
as oito. Sam abordou-a na sala de estar.
“Bastante rústico”, disse, aprovador.
“Pareço bem?”
“Como se chamam essas coisas?”
“Isto? É uma calça rancheira de garotas. Têm o corte quase que nem o
dos homens.”
“Quase que nem. E apenas para agradar a curiosidade besta deste
velho pai, como exatamente você entra nela?”
“Ah, isso é fácil! Vê aqui na lateral das pernas? Zíperes escondidos,
do joelho até a cintura.”
“Muito eficiente com essa camisa. Parece a toalha de mesa de um
restaurante italiano. Nance, querida, acredito que você tenha contado a
Tommy sobre nosso… problema.”
“Ora, claro!”
“Quando ele chegar, você se incomoda de fingir que não está pronta
ainda? Assim eu posso ter uma conversinha com ele.”
“O carro vai estar cheio de crianças, papai. O que você quer dizer a
ele? Quero dizer, espero que você não soe…”
“Vou levá-lo para longe dos outros, querida, e não vou envergonhá-
la.”
Ainda havia algum sol às oito horas, quando Tommy chegou, e o
longo crepúsculo de verão começava a se tornar sombras azuis sob as
árvores. Sam desceu da varanda e foi ao encontro de Tommy quando ele
estava na metade do jardim, vindo pela estradinha.”
“Fazendeiro Brown, eu presumo”, disse Sam. Tommy vestia uma
jardineira, camisa azul de trabalho e um chapéu de palha.
“Roupinha bem brega, não acha, senhor?”
“Um uniforme apropriado para a ocasião. Nancy estará pronta em
poucos minutos. Eu gostaria de falar com você um minuto, Tommy.”
Notou uma breve expressão apreensiva e por um instante soube
exatamente no que Tommy estava pensando. Sentia no ar aquele papinho de
pai falando sobre a filhinha ser muito nova, sobre não poder ficar fora até
tarde e assim por diante.
“Sim, senhor?”
“Nancy disse que contou a você sobre o homem que está nos
atazanando.”
“Sim, ela contou. Não consigo lembrar o nome. Brady?”
“Cady. Max Cady. Está na cadeia agora. Mas será solto dia dezenove
do mês que vem. Você é crescido o bastante, então posso contar de uma
vez. Eu acho que esse homem é perigoso. Sei que ele é. Quer me atingir
através da minha família. É o jeito que pode me ferir mais. Pode ser que ele
vá ao acampamento. Quero dar uma responsabilidade a mais para você.
Quero colocar Jamie sob sua asa. Tenha certeza de que ele nunca vai estar
sozinho. Pode falar para as outras pessoas de lá. Acredito que você consiga
o maior grau de alerta se disser a eles que há a ameaça de um sequestro.
Minha esposa e eu conversamos sobre isso e achamos que ele vai estar mais
seguro lá do que aqui. Você pode fazer isso?”
“Sim, senhor. Mas e quanto a Nancy?”
“Você vai estar a cinco quilômetros do outro acampamento. Vou
conversar com eles quando levarmos as crianças. Ela é mais velha que
Jamie e é menos provável que esqueça de tomar cuidado. Mas eu acho
que… ela é um alvo mais óbvio. Vou tentar lidar com o problema aqui
quando Cady for solto. Se conseguir, aviso a você na mesma hora, Tommy.”
“Compreendo que não haja muitos homens em Minnatalla”, Tommy
falou, incerto.
“Eu sei disso. Você vai se encontrar bastante com Nancy, imagino.
Lembre-a sempre de estar junto do grupo. Ela já viu Cady. Vai ser de uma
ajuda enorme para ela.” Deu a Tommy uma descrição detalhada do homem
e disse: “Se alguma coisa acontecer, não tente ser impulsivo ou heroico.
Você é forte e atleta, mas não vai ser páreo para ele. O homem tem o
tamanho, a velocidade e a crueldade de um urso. E não acho que você
consiga pará-lo com uma chave grifo”.
“Entendo.”
“E entenda isso também: eu não estou sendo dramático.”
“Sei disso, senhor. Sei sobre a cachorra. Nunca ouvi nada desse tipo
antes. Vou me assegurar de que os dois estejam bem, sr. Bowden. Não vou
pisar na bola.”
“Sei que não vai. E lá vem a dama do fazendeiro.”
Olhou-os caminharem até o carro estacionado. Houve assobios
prolongados quando Nancy se aproximou dele. Depois de partirem,
acenando e gritando, Sam voltou para a varanda.
Quando Carol apareceu, trazendo um copo alto de gim tônica como
inesperada gratificação, ele disse: “Estou pensando sobre pêndulos”.
Sentou-se no parapeito, perto dele. “Palestra do Bowden.”
“Você sempre sabe, não sabe?”
“Claro, querido. Sua voz fica um pouquinho mais grave e você fala de
um jeito mais articulado. Vamos lá.”
“Se eu pudesse ensaiar, acho que seria melhor. Suspeito que estamos
perto do fim dos dias glamourosos de delinquência juvenil. Acho que um
tipo bem incomum de crianças está vindo aí. Boas crianças, mas estranhas.
Ficaram aborrecidos com o desregramento dos mais velhos, com as
filosofias animais dos contemporâneos. Estão cansados de usar o fantasma
do serviço militar como desculpa para criar tumultos e desordens. É um tipo
bastante moral de crianças. São sofisticados, mas escolhem praticar a
moderação. Parecem ter um senso de propósito moral e objetivos decentes
que, sabe Deus, são bons. Mas eles me assustam um pouco. Fazem com que
eu me sinta um velho decrépito e degenerado. Tommy é um bom menino. O
pêndulo está voltando.”
Ela pousou o copo devagar sobre o parapeito e bateu palmas,
solenemente. “Bravo, bravo!”
“Agora pare de me dar ouvidos, sente aqui comigo nessa pintura de
crepúsculo e vamos ouvir os insetos.”
“Essa miríade de insetos, por favor.”
“Dá para saber a temperatura pelos grilos.”
“Foi o que você me disse uma centena de vezes.”
“Outro sinal de velhice. Banalidade e repetição. E esquecimento,
porque nunca consigo lembrar da frase que você usa sobre os grilos.”
“Digamos que quando os grilos cantam lá fora, é quente o bastante.”
“Certo.”
Sentaram-se em silêncio enquanto a noite chegava. Jamie e alguns de
seus amigos brincavam no celeiro. A algazarra de suas vozes se mesclava à
música dos insetos. Sam tentou se afundar por completo nos ritmos sutis da
noite de verão, mas não conseguia parar o tique-taque do relógio no fundo
de sua mente. Cada segundo os levava mais perto da volta do perigo. E ele
sabia que Carol também ouvia esse relógio. Era, pensou, algo como o
conhecimento de uma doença fatal. Fazia as belezas imediatas mais vívidas,
todos os prazeres mais pronunciados, mas ao mesmo tempo maculava essa
beleza e esse prazer com uma pungência desoladora.
Quando o telefone tocou, Carol saiu para atender e voltou dizendo:
“Hora de dispersar. Vá e faça aquele grupo atômico circular, querido”.
“Atômico?”
“Onde você esteve? Eles estão construindo um carro de corridas
atômico.”
Ele dispersou o grupo. As luzes das bicicletas subiram a estrada e
planos para o dia seguinte foram gritados para lá e para cá. Era o mundo
maravilhoso de todos os verões da infância. A televisão, depois de ter sido
fonte de preocupação por algum tempo, estava novamente sob controle.
Verão era época de usar os músculos, tempo de correr e gritar. O verão era a
época em que a cachorra castanha estaria correndo ao lado deles,
trombando nas pernas bronzeadas e fazendo-os cair, suportando o balanço
da corrida no carro atômico, latindo com frustração por não poder subir
junto nas árvores, desabando sobre as patas em seu canto à noite para entrar
em um mundo de sonhos no qual suas patas se agitavam enquanto corria,
com completa bravura, atrás dos monstros que afugentara e que alçaram
voo.
Na volta para casa, depois que Bucky dormiu, Carol disse: “Sei que precisa
ser assim, mas odeio separar a família, sinceramente. Deixa a vida bem
mais fácil, mas também mais vazia. Não quero nem ver o dia em que eles
todos tiverem partido. Penso nisso às vezes, durante o dia, e a casa parece
duas vezes mais vazia”.
“Você pode adiar esse dia, querida esposa.”
“Como?”
“Com um pouco de diligência e cooperação, acho que posso resolver
isso de modo que… Hummm… você tem trinta e sete. Imagine que eles
entrem na faculdade aos dezoito. Dezenove mais trinta e sete. Pronto, meu
bem, você teria cinquenta e seis antes que a casa ficasse completamente
vazia. Quer dizer, considerando que comecemos os trabalhos
imediatamente.”
“Tarado de uma figa! Sua besta!”
“Só descobriu agora?”
Sentou-se mais perto dele. Vinte quilômetros se passaram. Ela disse,
pensativa: “A gente fica sempre cínico e debochado a respeito de outro
bebê. Fazemos piada sobre fraldas e penicos. Mas, sabe, se… esse negócio
com Cady não estivesse acontecendo, eu gostaria de ter outro”.
“Mesmo?”
“Acho que sim. Mesmo tendo que andar com aquele barrigão e tomar
todos os cuidados, depois dar de mamar na madrugada e ainda ficar de olho
para que ele não caia de cabeça. Sim, acho que sim. Porque eles são tão
diferentes. Faz você pensar em como seria o próximo. Nossos três são —
não sei como dizer —, são todos pessoas.”
“Sei o que quer dizer.”
“E fazer pessoas é uma coisa especial. Uma responsabilidade especial
e assustadora.”
“Você disse que Bucky seria o último.”
“Eu sei. E disse por três anos. Mas aí parei de dizer.”
“Você não é uma jovenzinha, querida, mesmo que quase sempre faça
parecer que sim.”
“Os outros foram fáceis.”
“Não foi o que você disse na época.”
“Besteira! Fáceis para índias como eu.”
“Mais vinte minutos e você vai pegar seus mocassins.”
“Nancy ficaria horrorizada. E nossos amigos iam se entreolhar e falar
sobre isso com indiferença.”
“Mas você quer passar por isso ainda assim?”
“Não agora. Não enquanto… não soubermos.”
“Vamos saber, eu acho. Logo, logo.”
“E quando isso tiver terminado, conversamos outra vez, querido?”
“Vamos conversar outra vez.”
“Você devia falar algo. Isso também lhe diz respeito. Vai mudar sua
vida.”
“Quando chegar no ponto em que eu não consiga mais lembrar todos
os nomes, dou um basta nisso.”
Caminhou pela Jaekel Street. O número 211 era uma construção quadrada,
de três andares, pintada de marrom e com as vigas amarelas aparecendo.
Uma placa na janela anunciava ALUGA-SE QUARTO. Um velho estava
sentado em uma cadeira de balanço, no umbral estreito, de olhos fechados.
Havia dois buracos na porta de tela, um deles remendado. Sam apertou a
campainha e a ouviu tocar no fundo da casa. Havia ali um cheiro acre, de
mofo, repolho, lençóis sujos. Uma gritaria soava no andar de cima. Podia
ouvir a voz grave de um homem, lenta e estranhamente calma, e logo uma
reclamação aguda que parecia poder durar para sempre. Ele conseguia
pescar uma ou outra palavra. Podia ver, no corredor, uma mesinha escura
com diversas cartas e a sombra definida de uma luminária acesa.
Uma velha magricela veio pelo corredor, em sua direção. Seus passos
eram assustadoramente pesados. Parou antes da porta de tela e disse:
“Quié?”.
“O sr. Max Cady mora aqui?”
“Nem.”
“Sr. Max Cady?”
“Nem.”
“Mas morou aqui?”
“Foi. Mas não mora mais, não. Eu não o aceitava de volta, se ele
quisesse. Não queremos saber de briga com polícia, Marvin e eu. Não
temos nada a ver com isso. Não, senhor. E esses presos. Era lá que ele
estava. Prisão. Trancafiado. Voltou sexta passada e pegou suas coisas.
Mandei Marvin levar tudo para o porão. Ele não quis pagar nada pelo
espaço que as coisas dele ocuparam fora da casa, mas eu disse que chamava
a polícia de novo sem pestanejar e ele acabou pagando e indo embora e
ponto final.”
“Ele deixou o endereço de correspondência?”
“Isso seria uma coisa perfeitamente estúpida para um homem que
nunca recebe cartas, não seria?”
“Mais alguém veio procurar por ele?”
“Você é o primeiríssimo e eu rezo de verdade para que seja o último
porque Marvin e eu não simpatizamos com esse tipo de gente.”
Telefonou para Dutton na manhã seguinte. Ele disse que tentaria fazer com
que alguém descobrisse algo sobre Cady.
Nada aconteceu até sexta-feira. No sábado, foi de carro até Suffern, e
no domingo eles visitaram Nancy e Jamie. Estava de volta ao escritório na
segunda pela manhã. Não contara a Carol sobre a história que ouvira de
Bessie McGowan. Não queria que ela soubesse que ele fora até a área de
Cady, não queria alarmá-la.
Nada aconteceu na segunda. Ou na terça.
O telefonema do sr. Menard veio na quarta-feira, às dez da manhã do
último dia de julho, o dia em que Carol deveria buscar Jamie à tarde para
levá-lo com ela até Suffern. Era o último dia do acampamento.
Quando se deu conta de quem estava telefonando, sentiu como se seu
coração houvesse parado.
“Sr. Bowden? Jamie se machucou, mas não foi nada sério.”
“Como ele se machucou?”
“Acho que é melhor o senhor vir até aqui, se puder. Ele está a caminho
do hospital de Aldermont, e provavelmente é melhor que o senhor vá direto
para lá. Mas repito, não foi nada sério. Ele não está em perigo. O xerife
Kantz vai querer falar com o senhor mais cedo ou mais tarde. Eu tive que…
dar a ele as informações que eu tinha, naturalmente.”
“Estou saindo daqui agora. Minha esposa já foi avisada?”
“Ela saiu antes de terminar a ligação. Imagino que ela esteja no
caminho para cá. Vou mandá-la para Aldermont e poderemos manter nosso
amiguinho aqui conosco, se ela concordar.”
“Diga a ela que eu acho essa uma boa ideia. Onde está Nancy?”
“No caminho com o irmão e Tommy Kent.”
“Você pode, por favor, me contar o que aconteceu com o menino?”
“Ele foi baleado, sr. Bowden.”
“Baleado!”
“Poderia ter sido mais grave. Muito mais grave. Foi na parte de dentro
do braço esquerdo, uns sete centímetros abaixo do ombro. Fez um talho
bem feio. Ele perdeu sangue e, naturalmente, ficou apavorado.”
“Imagino que sim. Vou para lá o mais rápido que puder.”
“O jovem Kent pode contar o resto da história no hospital. Não corra
na estrada, sr. Bowden.”
Carol já estava no hospital havia quase uma hora quando Sam chegou à
uma e meia. Ela e Nancy estavam no quarto compartilhado, com Jamie,
quando Sam entrou e lhe deu um beijo. Ela parecia completamente sob
controle, mas ele sentiu o tremular de seus lábios quando a beijou. Nancy
tinha uma expressão de pesar e preocupação. O rosto de Jamie sobre o
travesseiro estava pálido o bastante para que, sob a pele bronzeada,
aparentasse lividez. Trazia o braço esquerdo enfaixado, e parecia orgulhoso
e excitado.
“Ei, eu não dei um pio quando eles me deram os pontos, e foram seis.”
“Doeu?”
“Um pouco, mas nada de mais. Caramba, mal posso esperar para
contar às crianças lá do bairro. Uma bala de verdade. Ela atravessou meu
braço e a parede do refeitório, de um lado até o outro — zum — e quando
eles a encontrarem eu vou poder ficar com ela depois que o xerife der uma
olhada naquilo. Quero colocar numa daquelas caixinhas de madeira com um
vidro, no meu quarto.”
“Quem fez isso?”
“Diabos, quem sabe? Aquele cara, eu acho. Aquele Cady. Um monte
de crianças nem ouviu tiro nenhum. Eu não ouvi. Queria ter escutado. Ele
estava bem lonjão, em algum lugar no alto da colina Shadow, é o que o
xerife acha.”
Sam começou a compreender o quadro. “Conte para mim, Jamie,
desde o começo.”
Jamie pareceu desconfortável. “Bom, eu fiz besteira. Peguei a espuma
de barbear do sr. Menard, ia colocar bem na cara do Davey Johnstone e
depois ia devolver, mas daí me pegaram. Então fiquei dez dias lavando
louça, e era o último. Todo mundo odeia lavar as panelas. Precisa usar palha
de aço. E eu fiquei dez dias nisso porque meio que roubei algo, mesmo que
não tenha sido isso. Aí você tem que tirar as panelas do refeitório. Tem uma
torneira lá, e, ah, era mais ou menos nove e meia e eu estava lavando a
louça do café e já tinha quase terminado.
“Eu só estava parado lá, olhando para a última louça, e bam! Pensei
que algum palhaço tinha entrado no refeitório e feito um barulhão para me
assustar. Aí meu braço ficou quentão e esquisito. Olhei para baixo e tinha
sangue esguichando dele, para todo lado. Gritei o mais alto que pude e corri
para a cabana do sr. Menard, e as outras crianças viram todo aquele sangue
e começaram a correr e gritar também, daí puseram um torniquete em mim.
E aí de repente começou a doer de um jeito horrível. Eu chorei, mas não
muito. Nessa hora Tommy já tinha corrido para buscar Nancy e o xerife
chegou e a gente veio todo mundo para cá, no carro do xerife, acho que a
cento e cinquenta por hora e com a sirene apitando. Rapaz, queria poder
fazer isso de novo quando meu braço remendado não estivesse doendo.”
Sam se voltou para Carol. “E agora?”
“O dr. Beattie disse que vai mantê-lo aqui esta noite, e ele
provavelmente vai estar bem para viajar amanhã. Recebeu um pouco de
sangue.”
“Vai ficar cicatriz”, Jamie disse com fervor. “Uma cicatriz de bala de
verdade. Será que vai doer antes das chuvas?”
“Acho que você precisaria estar com a bala no corpo, filho.”
“Tanto faz, nenhum menino que eu conheço tem uma cicatriz de bala.”
Uma enfermeira sorridente se aproximou e disse: “É hora desse
veterano ferido tomar seu remedinho e tirar um bom cochilo”.
“Diabos, não preciso de cochilo nenhum.”
“Quando podemos vê-lo de novo, enfermeira?”, perguntou Carol.
“Às cinco, sra. Bowden,”
Desceram as escadas até o saguão do hospital. Carol, com o rosto
pálido, virou-se para Sam e disse em um tom baixo, que Nancy não poderia
ouvir, mal movendo os lábios sem cor: “E agora? E agora? Quando é que
ele vai matar um deles?”.
“Por favor, meu bem.”
“Papai, o xerife Kantz está vindo com Tommy”, disse Nancy.
“Leve sua mãe até aquele sofá e sente-se lá com ela, Nancy, por
favor.”
O xerife era um homem comprido, de botas, calça marrom justa e uma
camisa cáqui. Algo nele parecia estar ao ar livre, trazia uma arma na cintura
e um chapéu de abas largas na mão. Cumprimentou com um aperto de mãos
lento, de um modo quase atencioso. Sua voz era anasalada, com algo de
cansaço.
“Acho que podemos conversar naquele canto, sr. Bowden. Você,
Tommy, pode vir também.”
Juntaram três cadeiras. “Vou lhe contar minhas conclusões, sr.
Bowden, e então gostaria de fazer algumas perguntas. Primeiro de tudo,
parece que a distância era de mais de seiscentos metros. E colina abaixo.
Com um bom rifle, uma boa mira e um homem treinado, esse não é um tiro
nada difícil. Imagino que, se não ventasse demais, eu acertaria praticamente
todos os tiros em um círculo menor que um prato de torta. Se fosse
temporada de caça aos cervos, talvez eu tivesse uma ideia diferente sobre o
assunto. O braço do seu garoto estava bem junto ao corpo. O vento soprava
com um tanto de força pelo sul. O menino estava virado para oeste. Então
parece que uma rajada de vento desviou a bala alguns centímetros.
Ninguém estava tentando dar um susto no garoto. Foi uma tentativa
bastante séria de matá-lo. Se aquela bala entrasse, vamos dizer, uns seis
centímetros mais à direita, aquele menino estaria morto antes que seu corpo
caísse ao chão.”
Sam engoliu em seco e disse: “Você não precisa…”.
“Estou dizendo os fatos, sr. Bowden. Não conto isso para ver quão
aflito você é capaz de ficar. E eu não falaria desse jeito com sua esposa. Se
ele tivesse acertado o menino do jeito que tentou fazer, teríamos muita
dificuldade mesmo para saber de onde o tiro partiu. Mas ele errou, colocou
dois buracos na cabana e isso nos permitiu encontrar uma linha de mira.
Não poderia ter sido direto, pelo jeito como a bala cai, especialmente depois
de atravessar uma tábua de meio centímetro. Isso nos coloca no alto de um
morro que as crianças chamam de Shady. Existem vários caminhos que
saem dali e eu sei que ali há vários pontos de onde observar o
acampamento. Tenho um agente, Ronnie Gideon, que coloquei para
trabalhar nisso, e ele é um cara bom, conhece os bosques e sabe seguir um
rastro. Ele vai encontrar o lugar de onde esse homem mirou. Já é muito
tarde para fazermos bloqueios nas estradas porque não sabemos o que
procurar. Compreendo que você possa nos contar pelo que devemos
procurar, sr. Bowden.”
“Não posso provar que ele deu o tiro. Não posso provar que ele
envenenou nossa cachorra. Mas sei que foi Cady as duas vezes. Max Cady.
Foi solto de uma prisão federal setembro passado, acho. Dirige um sedan
cinza, Chevrolet, modelo de uns oito anos. Pode ligar para o delegado
Dutton em New Essex e ele vai dar as informações de que vocês precisam.”
“Ele deve ter realmente muito ódio de vocês.”
“Eu fui responsável por colocá-lo na prisão perpétua. Mas deixaram
que saísse depois de treze anos. Estava preso pelo estupro de uma
australiana de catorze anos, durante a guerra. E já vem de uma fornada
ruim. É um degenerado e eu acho que não bate bem da cabeça.”
“É inteligente? Esperto?”
“Sim.”
“Vamos considerar essa situação, então. Suponhamos que ele seja
pego. Vai estar a quilômetros daqui, sem um rifle com ele, e vai negar ter
atirado no menino. Deve ter sido uma bala perdida. Vai alegar perseguição.
Não conheço nenhuma boa forma de mantê-lo preso, dentro da lei.”
“É verdade.”
“Agora, você tem que pensar do jeito que esse pessoal pensa. Vamos
lá. Isso foi cuidadosamente planejado. Ele deve ter precisado gastar um
tempo avaliando a situação. Então, deve ter pensado no que faria depois de
matar o menino. Ele sabe que você o apontaria como suspeito, então teria
que encarar a acusação, baseado na falta de evidências contra ele, ou teria
que ter ajeitado tudo para poder se esconder. Matar uma criança chamaria
muita atenção. Ele não poderia ter certeza de não ter sido visto por
ninguém, nos caminhos do morro. Então eu acho que ele encontrou um
lugar onde se esconder. Deve estar todo bem abastecido e vai se manter em
algum canto fora de mão, onde ninguém vá procurá-lo.”
“Você é mesmo otimista.”
“Estou tentando ser prático. Então você pode saber o que esperar.
Aposto que ele está furioso por ter errado o tiro. Acho que ele estava
planejando ser rápido e sair da área. Ele pode tentar continuar a se mexer.
Eu diria que é hora de ser tão cuidadoso quanto possível.”
O xerife se levantou e sorriu de forma exausta. “Vou entrar em contato
com o pessoal lá de New Essex e depois emito uma ordem de prisão. Acho
que a coisa a se fazer pode ser se trancar com sua família.”
“Não me parece algo aflitivamente divertido, xerife.”
“Posso entender que você não tenha muito senso de humor depois
dessa tarde.”
“O que eu posso fazer, senhor?”, Tommy perguntou a Sam.
“Você poderia… não, eu faço isso. Vou buscar Bucky e trazê-lo para
cá. Fique com as moças, Tommy.”
“Certo, sr. Bowden.”
“E obrigado. Muito obrigado.”
Levou pouco mais de meia hora para chegar de carro ao
acampamento. Encontrou o xerife Kantz com o sr. Menard na cabana da
administração. O rapaz com cara de enfado foi apresentado como sendo o
agente Ronnie Gideon.
Menard estava obviamente perturbado. “Eu não sei o que poderíamos
ter feito para evitar isso, sr. Bowden.”
“Não o culpo de jeito nenhum.”
“Estou com muita dificuldade em aceitar o fato de que isso foi
intencional. O xerife Kantz garante que foi.”
O xerife estava atirando um objeto pequeno para o alto e pegando-o na
queda. “Esta é a bala. Completamente deformada. Calibre trinta, eu diria. O
sr. Menard aqui colocou um bando de crianças para procurá-la até que
encontrassem.”
“Estamos dizendo que foi uma bala perdida”, Menard falou. “Todo
mundo já está nervoso o suficiente desse jeito. Mas não sei o que os pais
vão dizer quando receberem cartas dizendo que uma bala perdida atingiu
um dos campistas. Sinto muito, sr. Bowden. Eu não devia estar agarrado a
meus problemas quando os seus são tão maiores.”
“Você encontrou o lugar de onde o tiro partiu?”, Sam quis saber.
O agente fez que sim. “Borda da rocha. De bruços. A uns dez metros
daquela estrada. Amassou o musgo na pedra. Ainda estava marcado. Sem
marcas de carro, nenhum cartucho vazio. Achei um toco de charuto
mascado. Ele o esfregou na pedra. A ponta ainda empapada.”
“Se ele tivesse matado o garoto”, disse o xerife, “nós mandaríamos
isso para o laboratório, para ver se encontrávamos algo na saliva. Mas não
vejo como isso poderia ser melhor.”
“Cady fuma charutos.”
O xerife olhou com brandura a Sam. “Espero que você tenha licença
para essa coisa que está carregando.”
“Quê? Ah, claro. Sim, tenho uma licença.”
“O que planeja fazer agora?”
“Íamos levar Jamie do acampamento hoje, de todo modo. Acho que
vou ao acampamento feminino, pegar a bagagem de Nancy e encerrar seu
período lá.”
“E ir para casa?”
“Não. Vou deixar minha esposa e as crianças no lugar onde… ela tem
estado com nosso caçula.”
“Alguma chance de que esse Cady saiba onde eles estão?”
“Não vejo como poderia.”
O xerife apertou os lábios. “Parece bom para mim. Deixe-os todos lá
até que ele seja encontrado. Mas suponha que ele não seja pego. Como você
vai saber que ele vai desistir e ir embora?”
“Acho que não vamos saber.”
“Não pode deixar sua família escondida para sempre.”
“Eu sei disso. Tenho pensado nisso. Mas o que mais posso fazer? Tem
alguma ideia?”
“A única que tenho não me deixa orgulhoso, sr. Bowden. Pense nele
como se fosse um tigre. Você quer tirá-lo do esconderijo. Então você deixa
uma cabra amarrada e se esconde em uma árvore.”
Sam o encarou. “Se você acha que eu seria capaz de pensar em usar
minha esposa ou filhos como isca para…”
“Eu disse que não tinha orgulho disso. Você pode imaginar o que um
tigre vai fazer, dizem, mas não pode adivinhar o que um maluco fará. Ele
tentou atirar de longe, dessa vez. Da próxima, pode tentar algo diferente.
Acho que é melhor mantê-lo escondido. É o melhor que você pode fazer.”
Sam olhou para o relógio. “Eu queria pegar a mala de Jamie e levar
Bucky, sr. Menard.”
“Mandei que deixassem sua mala arrumada e a colocassem no
refeitório. Bucky está com minha esposa. Vou buscá-lo. Sinto muito que
esse tenha sido um fim tão horrível para o mês de Jamie.”
“Estou feliz por não ter sido pior.”
“Ficaremos ansiosos por tê-lo conosco ano que vem.”
Sam se despediu do xerife e lhe agradeceu. O xerife garantiu que
havia uma boa chance de Cady ser detido para interrogatório. Mas havia um
vazio nessa garantia.
Sam estava de volta ao hospital às quinze para as cinco. Nancy ficou bem
surpresa quando soube que ele a tirara do acampamento, e desapontada por
não ter tido oportunidade de se despedir, mas não demorou a aceitar isso
como uma decisão lógica e inevitável.
Ela acenou com a cabeça e disse: “Eu sei. Tem muitos morros. Eu não
poderia ficar a céu aberto em nenhum lugar, durante o dia, sem pensar
se…”. E estremeceu.
Sam ligou para Bill Stetch de um telefone público no saguão do
hospital, contando a situação a ele e dizendo que não voltaria ao escritório
antes da sexta de manhã.
Depois de verem Jamie outra vez e desejarem boa noite a ele, jantaram
no hotel Aldermont. Sam sugeriu que Carol dirigisse de volta a Suffern com
Nancy e Bucky, e ele ficaria ali para pegar Jamie no dia seguinte. Mas
quando percebeu quão relutante ela estava em se separar dele, dirigiu-se à
recepção do hotel e reservou dois quartos para aquela noite. Tommy Kent
insistiu que poderia pegar um ônibus de volta ao acampamento, mas Sam
levou-o de carro. Nancy quis acompanhá-los, mas Sam mandou que ficasse
com a mãe e Bucky. Preocupava-se com Carol. Ela estava completamente
quieta e abatida. Durante o jantar, participara da conversa de um jeito
mecânico. Parecia estar muito distante de todos eles.
Enquanto dirigia para oeste, rumo ao brilho do ocaso, disse a seu
passageiro calado: “Estou fazendo a coisa certa, Tommy?”.
“Senhor?”
“Tente se pôr no meu lugar. O que você faria?”
“Eu… eu acho que faria o que o senhor está fazendo.”
“Soa como se você tivesse reservas a fazer.”
“Não é isso, exatamente, mas tudo parece tão… o senhor sabe, esperar
em vez de fazer algo.”
“Passivo.”
“Isso. Mas não consigo pensar em nada que o senhor poderia fazer.”
“A sociedade está bem organizada para proteger a mim e a minha
família de roubo, incêndios criminosos ou revoltas populares. Os
criminosos casuais são mantidos razoavelmente sob controle. Mas ela não
está preparada para lidar com um homem que tenta específica e
irracionalmente nos matar. Sei que poderia insistir bastante para colocar
minha família sob proteção oficial, integral. Mas isso só daria a Cady o
prazer de encontrar um jeito de burlar a guarda. E se a polícia for tirada de
cena, eu poderia contratar guarda-costas. Mas seria a mesma história,
infelizmente. E seria um jeito bastante artificial de levar a vida. Haveria
esse terror constante, especialmente depois do que aconteceu.”
“Ele não vai poder descobrir que eles estão em Suffern?”
“Não, a menos que consiga nos seguir quando deixarmos Aldermont.
Mas não acho que ele ainda esteja na área. Acho que ele está sempre meio
passo à minha frente. Acho que ele sabe desgraçadamente bem que eu
tiraria imediatamente as duas crianças do acampamento. Tenho a sensação
de que ele voltou para os lados de Harper. Há bastante terreno
consideravelmente ermo por lá.”
“Eu com certeza não gostaria que nada acontecesse a Nancy.”
“Suffern não me parece tão segura quanto parecia antes. Acho que
devo tirá-los de lá novamente, amanhã.”
“Fico mais aliviado com isso, eu acho.”
Sam estudou um mapa rodoviário por muito tempo antes de partir com a
caravana de dois carros desde Aldermont até Suffern. Jamie estava
animado, e sua cor voltara ao normal. Tinha toda a indiferença
condescendente de um veterano de guerra. Carol ainda estava
estranhamente abatida e apática. Ele dirigiu na frente, com Nancy, e Carol
seguiu com os meninos. Pegou desvios por estradas secundárias, e depois
de parar duas vezes para ter certeza de não estarem sendo seguidos,
prosseguiu com mais confiança. Era uma manhã clara, com o ar tão limpo
que cada detalhe das colinas distantes ficava nítido. As estradas alternativas
passavam por zonas belíssimas. Era o tipo de dia que animaria os espíritos.
Estavam todos juntos. Ele tinha quase certeza de que Cady seria detido, e
quando isso acontecesse, talvez houvesse algum meio legal de examiná-lo
para determinar sua sanidade. Talvez algum tipo de pressão pudesse ser
feito sobre Bessie McGowan para que ela testemunhasse.
Olhava frequentemente pelo retrovisor para ver a que distância Carol
estava. Mais ou menos às onze horas, quando estavam a uns sessenta
quilômetros ao sul de Suffern, ele olhou para trás no momento exato em que
a caminhonete deu uma guinada brusca, tombou em uma vala funda e
capotou. Tudo pareceu acontecer em câmera lenta. Ele pisou fundo no freio.
Nancy olhou para trás e deu um berro. Com a marcha a ré engatada,
acelerou para trás e saiu porta afora, correndo para o carro. Escalou sua
lateral e abriu a porta. Bucky uivava, apavorado. Tirou-o primeiro do carro,
depois Jamie e por fim Carol. Nancy os ajudou a descer. Não havia trânsito.
Sam fez com que os três se sentassem na grama, no alto da vala, próximos
ao resguardo.
Bucky tinha um galo na testa, grande como metade de uma noz. A
boca de Carol sangrava. Jamie parecia não ter se ferido. Mas Carol
desmontara. Completamente. Sua histeria parecia mais assustadora às
crianças do que o acidente. Ele não era capaz de acalmá-la. Um
caminhãozinho veio sacolejando pela estrada. Sam correu para pará-lo. Um
velhinho com a cara azeda estava na direção. Olhava fixo para a frente, os
dentes cerrados, a boca resmungando. Sam teve que pular fora do caminho,
senão seria atropelado. Ficou parado na estrada, trêmulo de raiva,
praguejando alto contra o veículo que ia embora.
O carro seguinte parou. Era um sedan empoeirado. O porta-malas
estava lotado de ferramentas. Dois homenzarrões em roupas de trabalho
desceram tranquilos e se aproximaram. Carol, àquela altura, havia se
exaurido. Deitava de lado, pressionando o lenço de Sam contra os lábios.
“Alguém muito ferido?”
“Um lábio cortado e alguns arranhões. Não estava correndo. Onde
posso achar ajuda?”
“Estamos indo para a cidade. Podemos mandar Charlie Hall aqui com
o guincho. Ed, se você puder esperar aqui e voltar de carona com Charlie,
eu posso levar a senhora e as crianças até o dr. Evans.”
“Eu levei um tiro no braço ontem”, Jamie anunciou.
Os dois homens olharam para ele sem expressão. Um carrão brilhante,
com um casal de idosos dentro, desacelerou um pouco e voltou a acelerar.
Sam ajudou Carol a sair da vala e a colocou no sedan. Ela não
reclamou. Só havia espaço para Bucky entre as ferramentas. Jamie sentou-
se no colo de Nancy, na frente. O motorista entrou e disse: “O dr. Evans fica
do lado esquerdo, em uma casa branca, bem na hora que você chega na
cidade”.
Quando partiram, Sam disse ao homem chamado Ed: “Nem mesmo
lembro de lhe ter agradecido”.
“Não acho que ele ficou magoado. E não consegui entender. Quem
estava dirigindo?”
“Minha esposa dirigia a caminhonete, eu estava no carro com minha
filha. Olhei para trás bem quando aconteceu.”
“Entendi. Coisinha bem difícil, não ter problemas quando você está
sem o pneu da frente.”
“Pneu da frente? Nem notei. O pneu da frente.”
“Deve estar por aqui, em algum lugar. Provavelmente rolou para o
outro lado.” Encontraram-no depois de cinco minutos de busca, a quinze
metros da estrada. O aro cromado refletia o sol e Ed o encontrou. Três
carros pararam e foram mandados embora. Ed desceu na vala e analisou os
parafusos do pneu. Tocou um deles com o dedo gordo.
“Engraçado”, disse.
“Que foi?”
“Não tem nada gasto. As roscas estão meio espanadas. Vieram de
longe?”
“De Aldermont.”
“Bom, acho que você devia estar só com três porcas aqui, e cada uma
apertada só o suficiente para segurar as roscas. Essa molecada anda maluca,
hoje em dia. Mas mesmo que as porcas não estivessem todas bem
apertadas, elas não poderiam se soltar ao mesmo tempo. Molecada danada,
estou dizendo, pregando uma peça sem graça em vocês. Vamos ver se
encontramos a calota.”
O guincho chegou alguns minutos depois de Sam encontrar a calota na
vala do outro lado da estrada. O carro foi eficientemente colocado sobre as
rodas e arrastado para fora do buraco. O lado direito da caminhonete estava
amassado e duas janelas, trincadas. Sam ouviu as instruções sobre como
encontrar a oficina mecânica, agradeceu a Ed e dirigiu para a casa do
médico. O nome da cidadezinha era Ellendon. O do médico, Biscoe. Ele
explicou que estava praticando com o dr. Evans. Era pequeno, escuro, felino
— com um bigode negro e traços de um sotaque impossível de identificar.
Levou Sam para uma salinha de exames, fechou a porta e ofereceu-lhe
um cigarro. “Sr. Bowden, o senhor diria que sua esposa é uma pessoa
nervosa? Tensa?”
“Não.”
“Então ela tem estado sob algum tipo de tensão muito grande,
ultimamente?”
“Sim. Um tensão muito grande mesmo, na verdade.”
Gesticulou com seu cigarro. “Eu percebo — você sabe — indícios. A
ferida de bala do menino. Dei uma olhada para ver se os pontos tinham
aberto. Não é da minha conta. Mas se fosse minha esposa, eu tomaria
cuidado para ver se a tensão acabava. Logo. É como em um combate. Ela se
envolveu com todas as forças. E está totalmente em ação. Pode quebrar.”
“O que você quer dizer?”
“Quem sabe? Fuga da realidade, quando a realidade se torna mais do
que ela gostaria de suportar, ou mais do que seria capaz de suportar.”
“Mas ela é muito estável.”
Biscoe sorriu. “Mas não estável de um jeito tolo, estúpido. Não.
Inteligente, sensível, imaginativa. Ela está completamente apavorada, sr.
Bowden. Dei-lhe um sedativo suave. Fique com essa receita para ela, por
favor.”
“E sua boca?”
“Não cortou o bastante para dar pontos. Estanquei o sangramento. Vai
ficar inchado por alguns dias. O pequenininho está feliz com seu galo. Fica
se admirando no espelho. Nada além disso.”
“Preciso ir e ver como está o carro. Seria abuso demais se eu pedisse
para deixá-los aqui enquanto confiro isso?”
“De jeito nenhum. A sra. Walker vai lhe dar a conta, sr. Bowden. Sua
esposa está descansando e suas crianças bem comportadas estão no quintal,
admirando minhas lebres.”
A caminhonete estava suspensa, sendo consertada. O administrador
disse: “Não tem muito dano. Precisamos limar um par daquelas roscas
espanadas, até conseguirmos colocar a roda de volta. Vai ser difícil de
alinhar, mas não acho que o chassi esteja empenado. Nenhuma das portas
da direita está abrindo. Repusemos o óleo que vazou, e desamassá-la seria
um trabalho demorado, claro, mas acho que você está querendo voltar para
a estrada.”
“Eu gostaria. Não acho que minha esposa vá querer dirigir. Vocês
podem ficar com meu carro por alguns dias?”
“Mas claro.”
“Quanto tempo ainda vai demorar para ficar pronto?”
“Dê-nos mais uns quarenta minutos.”
“Posso pagar em cheque?”
“Claro.”
Depois de pegar a receita, voltou ao consultório. A enfermeira
mostrou onde Carol descansava. As cortinas estavam cerradas e seus olhos,
fechados, mas ela não dormia. Abriu os olhos quando ele se aproximou da
cama. Havia manchas de sangue seco em sua blusa. Ela sorriu com
desânimo e ele sentou-se na borda da cama, tomando sua mão.
“Acho que eu perdi o controle”, ela disse.
“Você aguentou bastante, não?”
“Estou envergonhada. Mas não é por causa do acidente. Acho que
você sabe. É por causa de Jamie. Desde que aconteceu aquilo. Um
menininho que nem ele. Tentarem matá-lo com uma arma. Tentarem acertar
um tiro nele, como se fosse um animalzinho.”
“Eu sei.”
“Eu só não pude parar de pensar nisso. Minha boca está muito feia?”
“Horrível”, ele disse, arreganhando os dentes.
“Sabe, quando eu olho para baixo consigo ver meu lábio superior. Está
com um corte por dentro. Ele colocou algo nisso. É muito amável.”
“E deu-lhe algo.”
“Eu sei. Amenizou as coisas. Faz com que eu me sinta leve. O carro
ficou destruído?”
“Vai estar pronto para rodar em meia hora. Não muito bem, mas vai
funcionar.”
“Isso é ótimo! Mas… eu não quero dirigi-lo mais hoje.”
“Vou deixar meu carro por aqui e voltamos todos juntos na
caminhonete.”
“Certo, querido.”
“E como aconteceu?”
“Desde o começo ele não estava muito firme. Você sabe, meio que
puxava o volante. Pensei que estivesse desalinhado de novo. Precisei
corrigir a direção toda hora. E aí, nas curvas, fazia uns barulhos estranhos
de algo quebrando, em algum lugar na frente. Daí, bem na hora que
aconteceu, ficou muito pior. Senti uma vibração enorme. Estava prestes a
pisar no freio e buzinar para que você parasse quando vi a roda se soltando
à minha frente. Na hora em que entendi o que estava acontecendo,
começamos a virar e alguma coisa me acertou na boca. Eles sabem o que
aconteceu?”
“Alguém afrouxou a roda.”
Ela o olhou e depois fechou os olhos, apertando a mão com força em
volta de seus dedos. “Deus do céu!”, murmurou.
“Ele conhece o carro. Saberia que o hospital mais próximo era em
Aldermont. Teria como descobrir isso. Aldermont não é grande. Não acho
que eles tenham um segurança à noite, no estacionamento perto do hotel. Se
tivéssemos tomado a rota principal, com todo aquele trânsito pesado, teria
sido uma história bem diferente.”
“Quando foi que ficamos tão sem sorte? Quanto tempo esperamos até
que isso acontecesse?”
“Eles vão prendê-lo.”
“Eles nunca vão prendê-lo. Você sabe disso. Eu sei disso. E se eles o
pegarem, vão deixá-lo ir de novo que nem fizeram da outra vez.”
“Por favor, Carol.”
Ela virou o rosto para o outro lado. Sua voz soava distante. “Acho que
eu tinha sete anos. Minha mãe ainda estava viva. Fomos a um parque de
diversões. Havia um carrossel e meu pai me colocou sentada em um grande
cavalo branco. Foi maravilhoso, durante um tempo. Eu me agarrei ao apoio
e o cavalo subia e descia. Eu não soube, até muito tempo depois, que meu
pai pagara ao homem para que aquela fosse uma volta bem, bem longa.
Depois de um tempo, os rostos das pessoas começaram a ficar embaçados.
A música parecia ficar mais alta. Quando olhei para fora, tudo que via eram
riscos. Queria que aquilo parasse. Na hora que fechei os olhos, senti como
se fosse cair. Ninguém ouvia meu grito. Tive a sensação de que eu estava
indo mais e mais rápido, que a música ficava mais e mais alta e que eu ia
ser arremessada.”
“Meu bem, por favor.”
“Quero que isso pare, Sam. Quero que pare de girar e girar. Quero
parar de ter medo.”
Olhou para ele em um apelo desvalido. Ele nunca se sentira tão
impotente na vida. E nunca a amara tanto.
Quando chegaram a O Vento Oeste, no fim da tarde, o homenzinho agitado
ficou curioso pelo estrago no carro, pelo lábio inchado de Carol e pelo galo
na testa de Bucky. Jamie tinha recebido ordens bem claras e sérias para que
não falasse de sua ferida espetacular. O esforço em não contar nada fazia
parecer que ele explodiria, mas ele conseguiu se conter.
Depois de terem se ajeitado, Sam telefonou para o escritório outra vez
e disse a Bill Stetch sobre o acidente e, num impulso súbito, se ouviu
dizendo: “Sei que isso vai bagunçar bastante com a rotina daí, mas estou
com problemas pessoais, Bill, e queria ficar fora a próxima semana”.
Ouviu-se um silêncio na linha, até que Bill disse: “Você não tem sido
uma grande presença por aqui, ultimamente. Clara sabe quais são seus
compromissos?”.
“Tem a agenda inteira. E ela vai saber quais cancelar e remarcar para
depois, e quais precisam de outro jeito. Ela pode lhe dar as informações de
que vai precisar. Johnny Karick pode ficar com alguns para ele.”
“Certo, parceiro. Espero que você resolva tudo por aí.”
“Estou tentando, Bill. E obrigado.”
Depois de desligar, voltou para o quarto de Carol e se sentou à
mesinha. Com papel e lápis para ajudar na concentração, tentou inferir, pela
lógica, se Cady teria descoberto sobre o esconderijo de Suffern. Fez uma
lista pequena de pessoas que sabiam daquilo. Perguntou a Jamie e Nancy,
mas eles juraram solenemente que não haviam contado a ninguém. A não
ser Tommy. E Nancy tinha certeza de que Tommy não contara a ninguém.
Ele conferiu com o dono do hotel e, usando um par de mentiras inofensivas,
ficou sabendo que ninguém perguntara sobre a sra. Bowden. Todos os
telefonemas foram feitos do escritório, mas fora ele próprio quem ligara. A
correspondência havia sido entregue diretamente no escritório. Ele mesmo
enviara suas cartas para Carol. A possibilidade de Cady segui-los até
Suffern era remota. Pensou e repensou o quanto podia e resolveu que a
chance era remota demais para ser verificada completamente.
No fim, decidiu que Suffern era segura. Tomando cuidado, continuaria
segura. Sabia que nada funcionaria direito se ele se baseasse em intuições e
inquietação supersticiosa. Precisavam de um ponto de partida. Suffern era
segura. Então Suffern era uma base adequada, um lugar de onde operar.
Na sexta, sábado e domingo eles vegetaram. O repouso e o remédio
melhoraram os nervos de Carol. Nadaram ao sol, na chuva e uma vez ao
luar. Comeram muito e dormiram por horas a fio. E devagar, a cada hora, a
resolução cresceu na mente de Sam. Achou quase impossível de encará-la a
princípio. Mas se tornou mais e mais fácil. A ideia era tão alienígena à sua
natureza, que o revoltava. Significava uma inversão de todos os seus
valores, de todas as coisas pelas quais vivia. Sabia que essa luta interna
causava mudanças visíveis em seu comportamento. Por várias vezes
percebeu Carol olhando para ele, observando-o. Ele sabia estar parecendo
taciturno e disperso.
No meio da manhã de segunda-feira, um dia opressivamente quente,
ele tirou Carol de uma de suas partidas de tênis e a levou a um dos
barquinhos amarelos. O céu poente tinha uma cor de cobre e mau agouro.
Um raro vento úmido ondulava a água e depois morria em uma espera de
calmaria. Carol sentou-se na popa, de shorts brancos e corpete vermelho,
com a ponta dos dedos riscando a água enquanto ele remava para o meio do
lago de mais de um quilômetro de comprimento.
Recolheu os remos gotejantes e o barco continuou suavemente, até
parar. Acendeu dois cigarros e entregou um a ela.
“Obrigada. Você está esquisito, você sabe.”
“Sei.”
“E essa é a hora em que você conta tudo?”
“Sim. Mas algumas perguntas antes. Como você está?”
“Melhor, acho. Poderia ficar em cacos de novo, se eu fizesse um
esforço. Desde que você me convenceu de que estamos seguros aqui, e
como estamos todos juntos, eu me sinto melhor. Mas não alegre. Você diz
que é seguro, mas minha cria está lá longe, a meio quilômetro fora da água,
e não me sinto realmente bem se não posso vê-los e tocá-los.”
“Eu sei.”
“Por que você quer saber como estou? Além de curiosidade e
educação.”
“Tem algo que quero fazer. Não posso fazer sozinho.”
“Como assim?”
“Tenho oscilado de um ponto ao outro disso. Quero matar Cady.”
“Claro. Eu também, mas…”
“Não foi uma força de expressão. Quero dizer que pretendo traçar um
plano, montar uma armadilha para matá-lo e descartar o corpo. Quero
cometer assassinato, e acho que sei como fazê-lo.”
Ela o encarou pelo que pareceu ser um longo tempo. E então desviou o
olhar, como se envergonhada. “Assassinato não. Execução.”
“Não me ajude com justificativas. Assassinato. E pode dar errado, mas
não se tivermos cuidado. Você tem estômago para me ajudar?”
“Tenho. Seria algo que fazer. Seria mais do que ficar esperando e
olhando para as crianças e pensando qual deles iríamos perder. Sim, Sam.
Posso ajudar, e você pode confiar em mim e não vai ter nada se desfazendo
em cacos, também. Esperar foi o que me derrubou. Agir, não.”
“Era o que eu esperava. Sua parte é pior que a minha.”
“Conte”, ela disse. Estava debruçada para a frente, os olhos escuros
intensos, inquisidores os braços bronzeados cruzados sobre os joelhos. Ele a
olhou e pensou como suas pernas eram bonitas, e como ela era toda firme e
vibrante. As rajadas de vento haviam virado o barco, e o cobre distante
estava mais alto no céu, e a água no fundo do lago, atrás dela, mais escura.
A água negra e o céu faziam as casas brancas se destacarem claramente na
borda do lago.
Aquele era, para ele, um momento curiosamente significativo, de uma
irrealidade dramática. Estes, pensou, não podem ser Sam e Carol, marido e
mulher. Ele pensara que conhecia a esposa e a si mesmo. Mas era um tempo
de mudança. Havia uma nova qualidade de tensão e excitação entre eles,
mas também algo doentio, um tom de decadência.
“Conte, Sam.”
“Você pode me ajudar a planejar isso. Eu só tenho… uma ideia geral.
Começou com uma coisa que o xerife disse. Eu não pensei nos detalhes.
Nós deixamos as crianças aqui. Nancy pode assumir a responsabilidade.”
“E o que dizemos a eles?”
“Certamente não dizemos o que queremos fazer. Vamos pensar em
algo. Alguma mentira plausível. Você e eu voltamos para casa. Temos que
apostar que ele vai até lá. Especialmente se pensar que você vai estar
sozinha. Precisamos dar um jeito de que pareça isso. Não podemos dar a
chance de que ele faça com você o mesmo tipo de coisa que fez a Jamie.
Estive pensando no plano. Se você estiver no jardim ou no quintal, ele teria
essa chance. Ou muito exposta em alguma janela que dá para os fundos, à
noite.”
“Claro. Onde você vai estar?”
“Devo me esconder em algum lugar da casa. Esperando.”
“E ele não vai saber que é uma armação? Não vai perceber?”
“Talvez. Mas temos que fazer o melhor que pudermos. Foram os
detalhes em que não pensei ainda.”
Ela mordeu a ponta do dedão. “E se você estivesse no alto do celeiro?”
“Estaria muito longe. Preciso estar na casa, com você.”
“Se houvesse algum tipo de sistema de comunicação, não seria tão
longe. Nancy e Sandra não inventaram uma sirene, há uns anos?”
“E me fizeram montar a fiação. Sei que ainda está lá em cima.”
“Eu poderia dormir no quarto de Nancy. Você pode fazer com que
volte a funcionar.”
“Mas por que o celeiro?”
“Pensei sobre como fazer parecer verdade. Você pode pegar o carro.
Daí eu sairia na caminhonete como se estivesse indo às compras. Pegaria
você em algum lugar, você se esconderia no carro e eu dirigiria direto para
o celeiro quando voltasse, e depois seguiria para a casa com um saco de
compras. Poderíamos comprar comida para ficar com você no celeiro. Essa
seria uma forma de voltar sem que ele soubesse.”
“Mas e se ele não me vir saindo?”
“O carro não estaria lá, de qualquer modo, e se fizermos de outro jeito
ele pode vê-lo voltando.”
“Eu poderia esperar até a noite e me esgueirar para a casa.”
“Se é para parecer que eu estou sozinha em casa, a melhor forma é
estar sozinha em casa. E se ele estiver observando, vai ficar satisfeito de me
ver sozinha e vai aparecer atrás de mim.”
“Temos que ter certeza de que podemos com ele.”
“Vou estar com a Woodsman, e você com a arma nova. Há uma porção
de coisas que posso fazer para garantir que estarei segura por um bom
tempo. Como amarrar panelas nas escadas, para que ele faça barulho
quando subir.”
“Você pode lidar com isso, Carol? Pode?”
“Sei que sim.”
“Então há outra parte do problema. Suponha que nós… façamos isso.
E aí?”
“Bom, ele não poderia ser um ladrão? Quer dizer, não se pode atirar
em um ladrão? E a polícia sabe sobre ele, não sabe? É um criminoso. Não
poderíamos simplesmente telefonar para eles?”
“Eu… acho que sim. Acho que não teria problema. Pensei naquela
obra da estrada. Eles estão cavando uma porção de valas.”
“Mas muita coisa pode dar errado, e aí ficaria ruim para nós, não?”
“Você tem razão, claro. Eu não estava pensando direito.”
“Podemos fazer isso, querido. Temos que fazer.”
“E não podemos ser descuidados. Nem por um minuto. Temos que ser
frios como gelo.”
“E se não acontecer nada?”
“Alguma coisa vai acontecer. Ele não pode se dar ao luxo de esperar
muito mais. Deve querer andar logo e acabar com isso. Podemos voltar pela
manhã?”
“Hoje, querido. Por favor. Vamos hoje e já começamos para que isso
acabe logo. Reme de volta, por favor.”
Partiram depois do almoço. No caminho até Ellendon, para pegar o carro,
discutiram se Nancy aceitara completamente a mentira que haviam contado.
Dirigiram devagar, sob uma chuva pesada e constante, com uma ventania
que atirara galhos em meio à pista. Nancy fora bastante séria e escrupulosa
com relação a sua responsabilidade para com os pequenos. E ela tentara
dizer a eles que não achava muito inteligente voltar e pressionar a polícia
para que se esforçassem mais em prender Cady. Achava imprudente tentar
ficar em casa. Disse que eles deviam ficar em um hotel em New Essex. E
desejava que nenhum dos dois fosse embora, mas se era isso que queriam
fazer, ela certamente tomaria conta de Jamie e Bucky e os manteria longe
de problemas.
Chegaram à casa pouco depois das cinco, colocaram os dois carros no
celeiro e correram para a casa com as malas. A chuva parara e as árvores
gotejavam. Enquanto cruzavam o gramado, Sam percebeu que corria com
os ombros curvados, tentando se colocar entre Carol e o morro que se
elevava atrás do celeiro. Sentiu-se aliviado quando alcançaram a relativa
segurança da porta de entrada. Sentiu que era absurdo pensar em Cady de
bruços no alto do morro, o rosto contra a arma, o dedo no gatilho, caçando-
os pela lente da mira. Ele não podia estar tão preparado assim. Mas, por
outro lado, era igualmente absurdo assumir que ele não estaria pronto, que
agiria como se não estivesse.
Antes de anoitecer, Sam subiu à janela do sótão e conferiu o morro
com seus binóculos. Quis que não fosse tão cheio de árvores, que não
houvesse tantas rochas grandes, tanto matagal.
Andaram pela casa juntos, antes que escurecesse, vendo quais lugares
eram seguros. Resolveram ser imprudente usar a cozinha à noite. Ela
poderia usar o escritório e o quarto de Nancy. Quando anoiteceu, ele
arriscou sair da casa para se assegurar de que ela não podia ser vista em
nenhum dos dois aposentos iluminados, desde fora. Rondou a casa com o
revólver na mão, movendo-se com cuidado, parando onde as sombras
noturnas eram mais densas, para esperar e escutar.
Quando voltou para casa, descobriu que havia demorado demais lá
fora. Carol o abraçou forte e ele sentiu seu corpo tremendo. Trancou a casa
com bastante cuidado, conferindo cada porta e janela. Dormiram no próprio
quarto. Carol veio se deitar na cama dele, que a abraçava, a arma sob o
travesseiro, a porta do quarto trancada, uma engenhoca de panelas e cordas
como armadilha nas duas escadas.
DARKSIDEBOOKS.COM
Copyright © Maynard MacDonald 1950
Publicado originalmente na Grã-Bretanha em 1957 por John D. MacDonald
Publishing Inc.
Todos os direitos reservados.
Crédito p. 2-3 © Universal Pictures/Alamy
Diretor Editorial
Christiano Menezes
Diretor Comercial
Chico de Assis
Gerente de Marketing Digital
Mike Ribera
Editores
Bruno Dorigatti
Raquel Moritz
Editores Assistentes
Lielson Zeni
Nilsen Silva
Capa e Projeto Gráfico
Retina 78
Designer Assistente
Pauline Qui
Revisão
Felipe Pontes
Maximo Ribera
MacDonald, John
Cabo do medo / John MacDonald ; tradução de Leandro Durazzo. — Rio de
Janeiro : DarkSide Books, 2019.
ISBN: 978-65-5598-057-8
Título original: Cape Fear
[2019]
Todos os direitos desta edição reservados à
DarkSide® Entretenimento LTDA.
Rua Alcântara Machado, 36, sala 601, Centro
20081-010 – Rio de Janeiro – RJ — Brasil
www.darksidebooks.com