FBI - Avalise Cor de Cinza - Lewis Haroe
FBI - Avalise Cor de Cinza - Lewis Haroe
FBI - Avalise Cor de Cinza - Lewis Haroe
Cor de Cinza
Lewis
Haroe
Disponibilização: Luka
Digitalização: Marina
1
Revisora: Caroline Romani
Formatação: Edina
CAPÍTULO I
Não podia haver a menor dúvida de que Lanham Cheson esperava alguém.
Denotava-o os olhares frequentes que lançava ao relógio de pulso e a nervosa
impaciência com que segurava o jornal que percorria com os olhos, mas seu cérebro se
negava a acompanhar, absorvido em outra preocupação.
E o caso não era para menos, porque se o assunto que Lanham planejara
cuidadosamente lhe saísse bem — e não havia o menor motivo para que assim não fosse
— seria o melhor golpe que teria dado em sua já longa vida de ladrão.
Sentado na parte traseira do táxi que o conduzira ao cais, matava da pior maneira,
ou seja, consumindo-se de impaciência, os minutos que faltavam para a chegada do
"King of Califórnia".
Eram cinco da tarde de um dia de novembro. O porto de São Francisco, como toda
a cidade, parecia coberto pela névoa, que deixava cabeleiras de figura do algodão nas
torres das igrejas e nos mastros dos inúmeros barcos ancorados no porto. E no entanto,
minutos antes começara a soprar um cálido vento procedente do mar, comumente
chamado vento comercial, que ia espalhando a neblina reinante. Não fazia frio. Os
homens que circulavam ao redor vestiam impermeáveis, mais para livrarem-se da
umidade do que com outro fim.
Lanham prosseguia montando guarda, pacientemente, em frente ao armazém vinte
e quatro, porque sabia que o "King of Califórnia" ancoraria ali, em vez de no armazém
seis, onde comumente lançava âncora, quando retornava de suas viagens através do
Pacífico.
Novamente olhou para o relógio.
— Este maldito barco já não pode tardar — resmungou — Talvez esteja
atravessando o Golden Gate.
À sua frente as orelhas do motorista, absorto na leitura de uma novela policial,
moviam-se compassadamente, impulsionadas pela incessante mastigação de um
chiclete.
Enquanto isso, o luxuoso transatlântico procedente de Formosa acabava de cruzar
o Golden Gate, a Porta Dourada que faz comunicar a baía de São Francisco com o
Oceano Pacífico, e avançava majestosamente entre os últimos restos de neblina, em
demanda do porto.
Navegando à meia milha da costa passou em frente ao rochedo Anita, que marca
quase o limite oriental da Reserva denominada "O Presídio" e, pouco depois, dobrava o
ângulo da pequena península em que se encontra edificada São Francisco, apitando
alegremente sua sereia, enquanto se dirigia para o sítio onde há seis anos vinha
ancorando.
2
Passou pelo armazém cinco acercando-se do porto e, naquele momento, o
radiotelegrafista aproximou-se do comandante que se encontrava na parte do comando,
dirigindo a manobra.
— Que é que há, Nichols? — perguntou-lhe este. — Acabo de receber uma
mensagem do porto,
comandante — respondeu o operador de rádio, levando a mão ao gorro.
O comandante apanhou o papel que o radiotelegrafista lhe estendia, onde estava
anotada a recente mensagem.
— Temos que ancorar no armazém vinte e quatro — resmungou o comandante,
depois de tê-la lido — não sei que diabo estará acontecendo. Bom, Nichols, responda-
lhes que está bem mas que será preferível que me enviem um prático.
— Disseram que já estava vindo para cá, comandante — respondeu o
radiotelegrafista e, como confirmando suas palavras, chegou-lhes o ruído de uma lancha
a motor, procedente do cais.
Cinco minutos depois o prático estava a bordo e a cara enorme do comandante
Arlo Linker abriu-se em um largo sorriso, enquanto descia até a metade da escada da
ponte para receber o recém-chegado.
— Salve, Stevens! — exclamou apertando-lhe, calorosamente, a mão. — Alegro-
me que o tenham mandado. Que aconteceu no armazém seis?
— Está ocupado. Estão carregando material — baixou a voz para prosseguir —:
Creio que se trata de material de guerra.
Nichols resmungou algo. Pelo caminho cruzara com vários navios mercantes cuja
linha de flutuação estava muito abaixo do nível do mar, o que indicava que iam bem
carregados. Suspeitava qual fosse o carregamento, assim como o ponto de destino, e não
achava nada estranho o que seu amigo Stevens lhe acabava de contar.
— Como foi? — perguntou este a Linker, depois de tomar o leme das mãos do
piloto.
— Regular, nada mais — resmungou o comandante — Tivemos esta maldita
batida no traseiro, logo que saímos de Faitonz.
— Que é que há por Formosa?
— O mesmo de sempre. Fortificando-se a todo o vapor — resmungou Linker —.
Não sei por que nosso governo não se decide a intervir ali, de uma vez.
— Aquilo está muito longe, Linker. Que é que pode nos importar?
— Longe, longe — grunhiu Linker. — Hoje em dia não há mais distâncias, com o
rádio e os aviões.
— Não diga isso, amigo. O Pacífico sempre será o Pacífico.
— Pulf! — fez Linker, cuspindo com desprezo. — O Pacífico não é mais do que
um charco. Um charco tão pequeno quanto a Lagoa Funda. Olhe, Stevens, esta minha
casquinha de ovo o atravessa em dez dias, um avião em trinta e seis horas e o rádio em
alguns segundos. Que lhe parece?
Stevens não respondeu por que estava muito ocupado em chegar o costado de
estibordo do "King of Califórnia" ao cais vinte e quatro. O barco obedecia com
docilidade ao movimento de sua mão no leme, até que por fim, ficou imóvel com um
estremecimento.
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Ato contínuo começou a reinar o maior movimento e animação em redor do
barco. Quando foi colocada a escada os viajantes começaram,a descer, enquanto as
pessoas que estavam no cais procuravam as que tinham ido esperar, promovendo uma
algazarra indescritível, que se misturava aos roucos apitos da sereia e ao rangido dos
guindastes que se preparavam para descarregar.
Um homem alto, forte, de inquietos olhos cinzentos, adiantou-se para a passarela.
Levava na mão uma maleta de couro, com forro cor de cinza e que devia ser muito
pesada. Sua mão segurava-a com firmeza e, já da metade da passarela, olhava por cima
da multidão, procurando um táxi.
Antes que distinguisse a fileira de carros de aluguel, estacionada no outro lado do
cais o olhar vigilante de Lanham Cheson já o descobrira e não perdia de vista o negro
chapéu de feltro, que sobressaía por sobre a muralha de gente que os separava, enquanto
seu dono lutava por abrir caminho entre ela.
Lanham não o perdia de vista um só instante, mas outros quatro olhos que,
embora pequenos não eram menos perspicazes que os seus, espreitavam também o mais
insignificante movimento de Alvin Oakley.
Assim que pôs o pé em terra, dois chineses grudaram-se-lhe aos calcanhares, sem
deixar que a multidão os separasse. Desta maneira Alvin chegou à fila de táxis,
dirigindo-se a um deles. Era precisamente o ocupado por Lanham e este jogou-se para
trás, ocultando se no interior do veículo, pois não lhe interessava ser visto. Numa fração
de segundo, Alvin passeou um olhar inquisidor por sobre aquela figura, depois, sem dar-
lhe mais atenção, dirigiu-se para outro táxi, ao verificar que aquele estava ocupado.
Espreitando pelo vidro traseiro, os olhos de Lanham Cheson pousaram-se
cobiçosos na maleta que o outro trazia na mão. Viu quando o táxi onde Alvin entrara
arrancou saindo da fila, e passar junto ao seu, aumentando a velocidade.
O ladrão ia ordenar ao motorista que o seguisse, mas a palavra morreu-lhe nos
lábios ao ver um pequeno Ford de quatro lugares lançar-se atrás do outro carro.
Pedia ser mera casualidade, mas Lanham desconfiou da possibilidade de serem
outros dedos ágeis. Estava prestes a realizar o maior negócio de sua vida e necessitava
medir bem todas as consequências.
— O senhor falou? — perguntou-lhe o motorista.
— Sim, sim — replicou prontamente Lanham — Eu disse que... Escute, viu
aquele Ford preto e o táxi que saiu à sua frente?
— Vi e ainda estou vendo — respondeu o motorista sem parar de mastigar o
chiclete — Devo arrancar?
— Sim — disse Lanham — Siga-os. Procure não perdê-los de vista.
— Mas se se separarem, qual devo seguir? — perguntou o motorista, enquanto
punha o carro em movimento.
— O táxi que vai na frente — respondeu o passageiro, sem a menor vacilação —.
E pegue estes cinco dólares que me estão atrapalhando. São seus, se não os perder de
vista.
A perseguição foi fácil. Lanham não perdeu de vista os dois carros que rodavam à
sua frente e convenceu-se que o pequeno Ford seguia o táxi, mantendo-se a uma
prudente distância.
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"Isto me cheira mal — pensou —. Que estarão procurando esses amarelos? Se vão
com a mesma finalidade que eu, vou ter que andar rápido".
Os três carros entraram na rua Bryan, logo dobraram a Décima Primeira Avenida,
para atravessarem a Market Street, principal artéria da cidade, alcançando o distrito de
Western Adition, já fora da zona destruída pelo terremoto e pelo incêndio do ano.
A única dificuldade aconteceu no cruzamento da Market Street, onde só graças à
perícia do chofer de Lanham não ficaram separados dos outros dois, pelo brusco
fechamento do sinal luminoso.
Logo o carro de Alvin Oakley, sempre tendo atrás de si os outros dois, entrou pela
Oak Street atravessou Page e Haigt Street, detendo-se em frente a um hotel de segunda
categoria, situado nesta última rua, esquina com o parque de Boa Vista.
Alvin desceu, pagou a corrida e penetrou no estabelecimento, enquanto o pequeno
Ford passava ao largo. Lanham, por sua vez, também desceu do taxi, dirigindo-se para o
hotel, enquanto o Ford perdia-se de vista numa das asfaltadas estradas do parque.
O vestíbulo estava bastante concorrido. Alvin dirigiu-se à gerência, lançando
olhares receosos em volta, mas não viu Lanham, porque este tivera o cuidado de
ocultar-se. Por fim viu o homem que perseguia dirigir-se ao elevador acompanhado por
um boy, e logo encaminhou-se para a gerência. O encarregado perguntou-lhe sorridente:
— O senhor deseja um quarto? — disse em tom meloso.
— Sim, sim, exatamente — respondeu Lanham com ar distraído, enquanto seu
olhar agudo percorria o livro de registro dos viajantes, que permanecia aberto sobre o
balcão.
Não lhe custou o menor trabalho descobrir que tinham dado a Alvin Oakley o
quarto número 386.
— Sim — repetiu, olhando para o empregado — Quero um quarto. Tem alguma
vaga do trezentos e oitenta ao trezentos e noventa. Conheço esta parte e é a que mais me
agrada — mentiu, acentuando o sorriso.
O empregado consultou um livro e logo respondeu:
— Alegro-me em poder servi-lo, senhor, Preciamente temos livres o trezentos e
oitenta e cinco, trezentos e oitenta e oito e trezentos e oitenta e nove. Qual deles deseja?
— O trezentos e oitenta e cinco me parece bem — disse Lanham em tom
displicente, enquanto seu coração batia descompassado ante aquela boa sorte, o que já
lhe parecia um augúrio de êxito.
— O senhor tem bagagem?
— Vai chegar mais tarde. Acabo de desembarcar. Minha bagagem está na
alfândega. Deixei-a entregue a uma agência e creio que não deve demorar.
O empregado fez uma reverência. Em seguida chamou um boy que estava com
um olho num livro e outro na gerência e ordenou-lhe:
— Acompanhe o senhor ao quarto trezentos e oitenta e cinco.
Poucos minutos depois, Lanham encontrava-se só no quanto. Não se preocupou
em ver se este era bom ou mau, se tinha luz ou não, pois pensava ficar nele muito pouco
tempo.
O que, porém, observou com grande alegria é que havia uma porta de
comunicação entre o seu quarto e o de Alvin Oakley. Claro que estava fechada a chave
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tornando impossível a passagem de um quarto para outro, mas aquilo não tinha
importância para Lanham, pois não pensava entrar à força no quarto vizinho.
De um dos bolsos do impermeável retirou um pequeno aparelho, parecido com os
que os médicos usam para auscultar doentes, apoiou-o contra a porta de madeira,
colocando nos ouvidos as duas bolinhas de cristal que terminavam duas largas tiras de
borracha que saíam daquela espécie de auricular.
Imediatamente chegaram aos seus ouvidos até os menores ruídos produzidos no
quarto ao lado. Não havia dúvida que Alvin Oakley estava contente da vida, porque de
seus lábios saía um fraco assobio, enquanto perambulava pela habitação.
Aos ouvidos de Lanham chegou o leve ruído do folhear de algum livro, logo
depois o som do telefone ao ser retirado do gancho e a voz de seu vizinho pedindo à
telefonista do hotel, um determinado número.
A comunicação foi feita imediatamente e Lanham surpreendeu as seguintes
palavras:
— Pronto! — dizia Alvin — Mister Ives está? Deviam ter respondido
afirmativamente, porque ele respondeu:
— Bem. Faça o favor de chamá-lo. É da parte de um cliente... Sim... sim —
seguiu-se uma pausa que deixou Lanham intrigado — Mister Ives? Escute... Estou lhe
telefonando do Hotel Boa Vista... Sim... sim; no parque do mesmo nome. Ouça: o
senhor pode vir ver umas joias?... Se quero vendê-las? Naturalmente que sim, se
chegarmos a um acordo... Muito bem. Espero-o, então, daqui há pouco. Tenho pressa
porque penso sair esta noite de Nova Iorque... Sim..., quarto trezentos e oitenta e seis...
Até logo.
Lanham permaneceu pensativo por um momento. Logo retirou o aparelho da
porta, e seus olhos descansaram no verde do parque olhando através dos vidros da
janela, sem nada ver. Escutara o bastante para saber que Alvin Oakley não planejava
levar a cabo a missão que lhe haviam confiado, mas que se propunha vender as valiosas
joias que trazia na maleta partindo em seguida para Nova Iorque, ou talvez para a
Europa, para desfrutar o prêmio de sua traição.
Bem. Aquilo nada tirava nem acrescentava a seus próprios planos, pois estava
decidido a fazer o mesmo que Alvin, isto é, partir para a Europa com o produto do
roubo e levar vida de príncipe durante os anos que lhe restavam. Agora, porém, o
telefonema de Alvin ao joalheiro introduzira um novo elemento na realização de seus
planos que, bem aproveitados, pô-lo-ia na posse das joias com um risco mínimo, e
conceder-lhe-ia algumas horas de vantagem até que o roubo fosse descoberto.
Sorriu ao pensar no plano que lhe acabava de ocorrer, e tratou de pô-lo
imediatamente em prática.
Olhando para todos os lados, saiu para o corredor. Este estava deserto. Foi um
brinquedo de criança para Lanham trocar o último número das portas, de maneira que
seu quarto se transformasse no trezentos e oitenta e seis, enquanto que o ocupado por
Alvin passava a ser o seu.
Depois, deixando a porta entreaberta, começou a vigiar o comprido corredor, até a
porta do elevador.
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Poucos minutos depois, este parou no terceiro andar e dele saíram algumas
pessoas que se distribuíram pelos diferentes quartos permanecendo apenas uma no
centro.
Lanham não teve dúvidas de que era a pessoa esperada. Avançava devagar pelo
centro do corredor, olhando os números das portas, e o ladrão apressou-se ao seu
encontro ostensivamente, estampando no rosto um sorriso que lhe captara muitas
simpatias entre as velhas de Frisco.
— O senhor é mister Ives? — perguntou ao joalheiro, estendo-lhe a mão.
— O próprio — replicou este, olhando-o inquisidoramente. — Suponho que o
senhor deva ser mister Alvin...
— ... Oakley, para servi-lo — interrompeu-o Lanham. Quer ter a bondade de
passar para o meu quarto? — convidou-o com um gesto.
Mister Ives era um homem comum, de estatura mediana, cuja única nota
apreciável estava em seu trajo impecável.
Com um movimento de cabeça aceitou o convite Lanham Cheson e entrou para o
quarto deste, sem a menor suspeita do que ia acontecer-lhe, especialmente depois de
ver, ao atravessar a porta, que havia ali o número trezentos e oitenta e seis, o que ele
procurava.
Como um homem educado nos hábitos do início do século, ao entrar no quarto
retirou seu macio chapéu, e aquilo facilitou os planos de Lanham, para quem era visível
que tudo ia de vento em popa naquela tarde.
Ives avançou dois passos no quarto, enquanto Lanham fechava cautelosamente a
porta atrás de si. O joalheiro voltou-se, logo, para seu suposto cliente, em tempo de ver
a mão direita deste empunhando uma pistola, descer sobre seu crânio, na velocidade de
um raio.
A pistola, rodeada por centenas de luminosas estrelas de todas as cores
imagináveis, foi a última coisa que o pobre joalheiro viu antes de cair aos pés de
Lanham, sem um único gemido.
Este não perdeu tempo. Desfez a cama e, com os dois lençóis amarrou
conscienciosamente o pobre joalheiro que tão bom negócio pensava realizar no Hotel
Boa Vista.
Depois meteu-lhe na boca seu próprio lenço, tendo o cuidado de não sufocá-lo,
pois não sentia a menor animosidade contra o honrado negociante de joias e, tomando-o
facilmente nos robustos braços, colocou-o dentro do armário embutido, com a mesma
solicitude amorosa com que uma mãe carinhosa leva um filho adormecido para o berço.
Mas como mais tarde se verá, Mister Wallaces Ives, da firma Ives and Ives, joalheiros
desde 1880, não lhe agradeceu em nada aquele carinhoso comportamento.
Assim que tornou a fechar o armário, Lanham arranjou o leve desalinho
provocado em sua vestimenta por aquele trabalho. Abriu a torneira da pia e alisou os
cabelos; em seguida, com a toalha tratou de limpar conscienciosamente o quarto de
qualquer espécie de marcas que poderia ter deixado, pois suas impressões estavam
registradas na polícia e não valia a pena deixar-se apanhar por causa de um simples
detalhe.
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Saiu para o corredor e, sem a menor hesitação, bateu no quarto ocupado por Alvin
Oakley.
Ninguém respondeu, em vista disto repetiu as batidas com mais força; mas, como
na vez anterior, só teve o silêncio como resposta.
— Mister Oakley sou Ives, o joalheiro — disse em voz suficientemente alta para
que pudesse ser ouvido de dentro, embora já em seu ágil cérebro começassem a surgir
suspeitas.
Ninguém respondeu, mas pareceu-lhe ouvir dentro uma espécie de gemido. Em
vista disto e pressentindo algo sinistro, Lanham empurrou a porta, que se abriu com
grande surpresa sua.
Mas a surpresa fugiu-lhe do cérebro com surpreendente rapidez, afugentada por
outra maior causada pelo fato de que, diante de si, estendido na cama, de cabeça para
baixo, jazia o mui pouco honrado mister Alvin Oakley, com um fino punhal cravado nas
costas.
CAPÍTULO II
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Um deles já se encontrava fora da peça, provavelmente trepado na estreita mísula
que passava por baixo da janela, procurando alcançar a escada de incêndio que havia na
parte posterior do hotel, dando para um beco solitário.
O outro estava junto à janela, pronto também para sair. Na mão direita segurava a
maleta que tantos aborrecimentos estava causando a Lanham e, naquele momento,
preparava-se para passá-la ao companheiro.
O ladrão não vacilou. Um segundo mais e as joias teriam passado para as mãos do
chinês que estava fora, o qual trataria de fugir com elas, enquanto o companheiro lhe
cobriria a retirada.
Num salto lançou-se sobre o chinês, agarrou-o por um ombro fazendo-o dar meia-
volta e obrigando-o a afastar-se da janela. Os dedos do outro, que já estendia a mão para
apanhar a maleta, ficaram balançando no ar.
Lanham regalou seu contendor com um valente soco nos queixos, o chinês
retrocedeu violentamente indo bater na parede, mas nem assim largou a maleta. O
ladrão lançou-se outra vez sobre ele antes que pudesse refazer-se, com dois golpes da
direita, enviou o chinês ao país dos sonhos.
Rapidamente arrebatou-lhe a maleta procurando sair do quarto de banho, disposto
a fugir. Haviam feito demasiado barulho e não seria de estranhar que alguém os tivesse
ouvido.
O outro chinês já entrava pela janela, disposto a ajudar o companheiro. Não havia
tempo a perder. Lanham entrou no quarto, encaminhando-se rapidamente para a porta,
mas antes de alcançá-la sentiu um ruído abafado em suas costas, e uma bala passou
assobiando lugubremente por seu ouvido esquerdo, incrustando-se na parede com um
som seco. O outro chinês atirava contra ele, para impedir sua fuga.
Lanham voltou-se e logo se jogou por terra. Quando se ocultou atrás deu uma
poltrona, já estava com a pistola na mão e disparou repetidas vezes sobre o chinês, que
caiu para a frente.
Lanham ergueu-se, agradecendo a Deus por ter tido a ideia de colocar o
silenciador na pistola, pois, de outra maneira, os disparos teriam chamado a atenção de
todos os hóspedes do hotel.
Urgia sair dali o quanto antes. Já tinha a mão no trinco da porta, quando lhe correu
uma ideia.
"Vou preparar um bom quebra cabeça para o tenente Shoat", pensou sorrindo.
O cadáver do chinês que atirara sobre ele estava exatamente em frente ao homem
que jazia na cama, apunhalado. Lanham aproximou-se deste, mudou-lhe levemente a
posição para dar maior exatidão aos detalhes, colocou-lhe sua pistola nas mãos, depois
de fazer desaparecer dela toda sorte de impressões digitais.
Feito isto, dirigiu-se para a porta e saiu para o corredor. Dois homens avançavam
para ele, conversando tranquilamente. Nada haviam percebido. Lanham desceu a
escada, achando-se no vestíbulo. Com a maior tranquilidade aproximou-se da gerência,
entregando a chave ao encarregado, que a recebeu com uma reverência.
Depois levando na mão a maleta com as joias, agora desprovida da capa cor de
cinza que os chineses deviam ter retirado, dirigiu-se à rua Baber, caminhando
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rapidamente atrás de um táxi, sem saber que os olhos oblíquos do chinês, que pusera
fora de combate a socos no quarto de banho, não o perdiam de vista a pouca distância.
» * *
O tenente Shoat, da Brigada de Homicídios da Polícia de São Francisco,
terminava o jantar quando o telefone tocou. Acendeu um cigarro e tomou o aparelho.
— Alô!
Através do fio chegou-lhe a voz rouca do sargento Blesing.
— Tenente Shoat? Escute, telefonaram do Hotel Boa Vista, dizendo que lá foi
cometido um crime. Dois homens mortos; um apunhalado e outro a tiros. O inspetor
Seaman ordenou que o senhor se encarregue da investigação.
— Está bem, sargento.
Shoat desligou o aparelho. Naquele momento sua esposa, uma bela moça com
quem acabara de casar, irrompeu na peça como um turbilhão.
Trazia um elegante vestido, de alta confecção, e estava calçando a luva da mão
direita.
— Quem o chamou, Mike? — perguntou. — Suponho que não...
— Sinto muito, querida — interrompeu-a ele. — Aconteceu algo no Hotel Boa
Vista e devo ir para lá, agora mesmo. Não se preocupe — acrescentou ao ver um gesto
de aborrecimento da esposa. — Vou deixá-la em casa dos Tibb e depois passarei para
buscá-la.
— Oh, Mike! Seria muito mais divertido se você estivesse comigo — respondeu
ela, aproximando-se do marido.
— Eu sei querida, mas... — ergueu os ombros como para exprimir que o caso não
tinha remédio.
Dez minutos depois estacionava o carro em frente ao Hotel Boa Vista. Monroe já
estava lá, esperando-o e conversando com o gerente do hotel, que se mostrava nervoso e
preocupado com as repercussões que aquele fato podia trazer para a fama de seu
estabelecimento.
— Olá, Shoat! — saudou Monroe, levando a mão direita à aba do chapéu. — Um
caso complicado. Acho que vai lhe fazer dar tratos à bola.
— Que aconteceu?
Foi o gerente quem respondeu:
— No quarto número trezentos e oitenta e seis há dois homens mortos. Um deles é
chinês e foi morto a tiros. O outro foi apunhalado. Fechei a porta a chave.
— Fez muito bem. Como foi descoberto... ?
— De uma maneira indireta, senhor — retorquiu o gerente. — E isto é o mais
extraordinário. Um cliente do hotel passava diante da porta do quarto trezentos e oitenta
e cinco, contígua à dos assassinatos, quando ouviu fortes golpes vindos de dentro. A
porta estava aberta e dentro do quarto não encontrou ninguém, mas os golpes
continuavam, até que percebeu que eles vinham do interior do armário embutido. Então
abriu-o e um homem atado e amordaçado...
— Era eu — interveio furioso mister Ives, o joalheiro, avançando para Shoat,
vindo do segundo plano onde se encontrava — eu, em pessoa, fui quem caiu rodando do
armário para o chão.
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— Que estava fazendo lá? Quem o meteu no armário?
Ives lançou um bufado.
— Esses policias são sempre assim — grunhiu. — Só o que sabem é fazer
perguntas e mais perguntas. Que fazia ali? — perguntou por sua vez. — Não acabou de
ouvir que eu estava atado e amordaçado? Ou imagina que estava esperando algum
amigo, para jogar pôquer, hein, tenente? — perguntou com ar velhaco. — E quanto a
sua secunda pergunta, digo-lhe que em toda a minha vida nunca tinha visto o homem
que me atacou. Minutos antes chamaram-me pelo telefone, pedindo-me que viesse ver
umas joias que ele desejava vender. Quando entrei em seu quarto, que era o trezentos e
oitenta e seis, golpeou-me a cabeça, e isso é tudo. Que lhe parece? Posso ir-me?
— Receio que não, mister Ives — replicou Shoat, com delicadeza. — Explicou-
me muito bem como foi encontrado, mas não como descobriram os assassinados.
— Isso foi coisa minha — respondeu o gerente. — Mister Ives disse-me que viera
ao hotel para ver uma joias, que ia vender-lhe o hóspede do quarto trezentos e oitenta e
seis. Eu fiz-lhe ver que o quarto onde ele fora encontrado era o trezentos e oitenta e
cinco, mas ele me jurou que olhara para o número antes de entrar e que era o trezentos e
oitenta e seis. Em vista disto, olhamos para a porta e, efetivamente, o número que há
nela é este, mas porque alguém deve tê-los trocado.
— O senhor quer dizer que alguém pôs o número 385 no quarto 386 e vice-versa?
— perguntou Shoat, com interesse.
— Isso mesmo, senhor — contestou o gerente —. Bastou-lhe trocar a última cifra,
pois as outras duas são iguais. Não sei com que objetivo o faria...
— Acho que posso compreender — respondeu Shoat —. Certamente sabia que ia
ser realizada a venda das joias e quis atrair mister Ives para seu quarto, para depois
fazer-se passar por ele e apoderar-se delas. Quem ocupava estes quartos?
— Mister Alvin Oakley foi o primeiro a chegar — disse o gerente, consultando
uma nota que tinha nas mãos —. Foi-lhe dado o quarto 386. Logo depois chegou o
outro. Inscreveu-se com o nome de... — olhou novamente para a lista — de mister
Cotton Miers, e disse que acabava de desembarcar.
— Provavelmente deve ser falso — disse Shoat, e o gerente continuou:
— Pediu ao encarregado da gerência que lhe informasse quais os quartos livres
entre o trezentos e oitenta e trezentos e noventa, e escolheu o trezentos e oitenta e
cinco...
— Para ficar junto ao outro — interrompeu Monroe —. Vê-se que já tinha os
planos estudados de antemão.
— Pois em vista do que mister Ives nos disse e da troca de números — prosseguiu
o gerente, dando a entender claramente com um gesto que tantas interrupções o
aborreciam —, fomos ao quarto 386. A porta estava aberta e encontramos ali dois
cadáveres. Um era do chinês, como eu lhe disse, e o outro de mister Alvin Oakley. Este
estava sobre a cama, apunhalado.
— O senhor o viu, mister Ives? — perguntou Shoat ao joalheiro.
— Sim senhor — replicou este — E posso garantir-lhe que não era o mesmo que
me atacou, se é isto que o senhor quer saber. Observei bem a ambos. Eram da mesma
estatura, aproximadamente, mas seus rostos diferiam bastante.
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— Bem — decidiu Shoat —. Vamos subir. O senhor, mister Ives, pode ir embora.
Se precisar de você, convoco-o à chefatura.
Mister Ives retirou-se precipitadamente, enquanto Shoat seguido por Monroe e
seus auxiliares da equipe de impressões digitais, o gerente do hotel e alguns curiosos,
precipitaram-se escadas acima, não podendo, dada sua impaciência, deter-se para
esperar o elevador.
Mike Shoat era um homem ativo. Na idade de trinta anos chegara a ser um dos
mais considerados oficiais da Polícia de São Francisco, o que provava sua inteligência e
valor. Os casos mais intrincados e difíceis eram entregues a ele, e seus chefes tinham a
máxima confiança em sua experiência e habilidade. Isto tudo lisonjeava a Shoat mas, ao
mesmo tempo, causava-lhe muitos aborrecimentos.
O gerente, adiantando-se abriu a porta do quarto e acendeu a luz. Shoat e os
demais entraram, fechando a porta atrás de si, no nariz de alguns curiosos que haviam
acorrido ao local do crime.
Shoat examinou todo o quarto com um rápido olhar. A cama estava em frente à
porta, entre duas janelas. À esquerda abria-se uma porta que devia levar ao banheiro e,
em frente a ela, estava estendido, de boca para baixo, um homem imóvel.
O gerente lançou um grito de surpresa e, antes que explicasse o que tanto o
surpreendera, Shoat já o sabia, pois ele também havia observado que sobre a cama não
estava o corpo do homem que nela jazia, apunhalado.
O gerente olhou-o, mostrando a cama, com mão trêmula.
— Juro que estava ali, tenente — disse com voz trêmula — Vi-o muito bem e
mister Ives também o viu. Não podemos ter-nos enganado...
— Não se preocupe com isso — respondeu Shoat, que avançara para a cama — A
colcha está empapada de sangue, e isto me basta para saber que é verdade. Monroe,
comece a agir. Tire todas as impressões digitais que encontrar. Será conveniente que
também explore o banheiro. Já sabe a rotina de costume. Avise-me quando tiver
acabado.
Sentou-se comodamente numa poltrona, fumando um cigarro, enquanto meditava
seriamente. O gerente olhou-o assombrado de que pudesse permanecer tão tranquilo em
presença daquele sinistro mistério, sem pensar que aquilo era para Shoat o pão nosso de
cada dia.
De súbito, os olhos do tenente fixaram-se na parede. A pintura e o gesso da parede
haviam caído no chão, junto à porta, deixando perto do teto uma falha do tamanho da
palma da mão, em cujo centro via-se um furo.
— Quero que me matem se isso não foi feito por uma bala — murmurou.
Subindo em uma poltrona, enfiou o dedo mínimo no orifício, logo encontrando
um corpo sólido. Com o auxílio de um canivete extraiu o projétil, que estava incrustado
na parede.
Brincando com ele voltou para a poltrona, onde se sentou para esperar o fim do
trabalho de Monroe.
Este e seus auxiliares não haviam deixado sem explorar nem uma só superfície
polida, onde pudesse haver ficado fixado impressão digital, e, por algum tempo, Shoat
ouviu os secos estampidos do magnésio das máquinas fotográficas.
12
— Terminamos, Mike — anunciou Monroe, pouco depois.
— Bem — disse este, erguendo-se da poltrona — Faça o mesmo no quarto onde
foi encontrado o joalheiro. O gerente vai acompanhá-lo.
Desejava ficar só para explorar, à vontade, a habitação.
Inclinou-se primeiramente para o corpo do homem que jazia morto no chão junto
à porta do banheiro, e virou-lhe o rosto para cima. Ao fazer isto, o braço direito do
morto que ao cair ficara escondido pelo corpo, descobriu-se e Shoat, com um assobio de
surpresa, viu que empunhava uma pistola.
Envolvendo-a com um lenço, arrancou-lha das mãos com certa dificuldade. Era
uma Browning sete setenta e cinco, e comprovou que lhe faltava uma bala.
— Certamente é a que acabei de retirar da parede — murmurou colocando a arma
sobre a mesa e procurando não tocá-la — Mas, então, quem deu a punhalada? Seria o
indivíduo que levou as joias?
Pois estava certo que as tinham levado; e, efetivamente, nem com a cuidadosa
busca que realizou no quarto não conseguiu descobri-la. Em compensação, encontrou
um forro cor de cinza, sem dúvida pertencente à maleta, e guardou-o no bolso. Monroe
voltou naquele instante, resmungando.
— Não teve sorte, Mon? —. perguntou-lhe o tenente.
— Nenhuma. Esse sujeito deixou tudo na mais perfeita limpeza. Não conseguimos
encontrar nem uma única impressão digital.
— Não fique preocupado por isso meu caro — respondeu-lhe Shoat sorrindo —
Olhe e veja se encontra algo nesta pistola — Monroe recolheu as marcas que havia na
arma e logo acercou-se de Shoat.
— Já procedeu ao estudo do local, Mike? — perguntou-lhe.
— Sim — respondeu este —, mas espero que ela forneça as impressões para
confirmar minha suposição.
— Não vai olhar o outro quarto?
— Para que? — replicou o tenente, dando de ombros — Já tenho minha teoria
formada e só o que falta é que revele estas marcas.
— Esteve no banheiro? — perguntou Monroe —. Há sinais de luta.
— Já vi. Certamente houve luta entre o chinês que está aqui morto e o outro
ladrão que levou as joias. No fim de contas, não deu resultado seu estratagema de fazer
passar pelo joalheiro e teve de recorrer à força. Bom. Aqui não há mais nada a fazer.
Vamos.
Meia hora depois, Shoat encontrava-se diante do inspetor Seaman para
comunicar-lhe o resultado das investigações.
Com suas próprias observações e as recolhidas pelo sargento Blesing, a quem
mandara investigar a escada de incêndios que havia junto à janela do quarto de banho,
terminando num beco, já havia forjado uma história e só esperava as impressões que
Monroe havia recolhido para confirmar se estava perto da realidade dos acontecimentos.
— Encontrou algo, Shoat? — perguntou o inspetor.
— Muitas coisas, senhor; mas permita-me esperar a vinda de Monroe, antes de
começar o relato. Há dois ou três detalhes que gostarei de confirmar com os resultados
que ele trouxer.
13
Durante uma meia hora conversaram sobre assuntos triviais. Mas Shoat,
lembrando-se repentinamente de sua esposa, dirigiu-se ao telefone e ligou para a casa
dos amigos onde se realizava a festa, dizendo-lhe que em seguida iria buscá-la.
Monroe entrou, por fim. Trazia nas mãos vários cartões, que colocou diante do
inspetor. Shoat inclinou-se atrás dele, examinando as marcas, sorriu ao ver confirmada
sua hipótese e ao ouvir as explicações de Monroe.
— Agora posso explicar o acontecimento e estou seguro de não me ter enganado
muito — disse, acenando com o dedo indicador. — Esse Alvin Oakley chegou com as
joias. Queria vendê-las e chamou mister Ives; mas o outro que, como o senhor pode ver
é um indivíduo chamado Lanham Cheson, conforme Monroe pôde comprovar em seus
arquivos, escutou a conversa com o joalheiro. Trocou, então, os números dos quartos e
agrediu mister Ives. Pensava fazer-se passar por ele e levar as joias tranquilamente,
fazendo com Oakley o mesmo que com o joalheiro. Esse Oakley não deve ter
antecedentes, porque suas impressões não estão registradas como as de Lanham, não é
verdade, Monroe?
— Exato — confirmou este.
— Mas de qualquer forma, o senhor deve enviá-las a Nova Iorque e Washington
— aconselhou Shoat ao inspetor —. Mas nem tudo correu tão bem quanto Lanham
previra, porque foi atacado por dois sujeitos. Provavelmente pensavam fazer o mesmo
que ele, e o atacaram quando entrou no quarto. Talvez já tivessem mesmo apunhalado
Oakley, ou o fizessem depois; mas o certo é que ao se verem surpreendidos por
Lanham, ou este por eles, lutaram. Lanham pôs um deles fora de combate no quarto de
banho, e quando, se dirigia para a porta, o outro atirou nele.
— Não pode ter sido Lanham quem matou Oakley? — perguntou o inspetor.
— É possível — respondeu Shoat — mas tudo me leva a crer que foram os
chineses, e que Lanham os surpreendeu. A princípio pensei que fosse um só, mas as
impressões digitais trazidas por Monroe, convenceram-me que havia dois. O outro
conseguiu escapar pela escada de incêndio.
— E Oakley?
— Seguiu o mesmo caminho. Devia estar apenas ferido e quando recobrou os
sentidos, pensou que não seria conveniente que o encontrassem ali. Não sei qual o
motivo, mas isto logo averiguaremos assim que o encontrarmos. O fato é que saiu pela
escada de incêndio. Blesing encontrou manchas de sangue nela. Além disso, Oakley
estava sem o impermeável quando o gerente e mister Ives entraram no quarto e, não o
encontrei quando revistei a peça.
— Quem pode ter levado as joias?
— Lanham. É quase certo — disse Shoat —. Há alguns pontos escuros em meu
relatório, mas serão esclarecidos logo que conseguirmos deter Lanham Cheson.
— Isso não é nada fácil — disse Monroe —. A estas horas já deve estar bem
longe de São Francisco.
— É provável, mas não é certo — replicou Shoat —. Primeiro vou mandar que
sejam vigiadas as estações, as estradas e os aeroportos. Depois tratarei de encontrar esse
tal de Oakley. Se recebeu socorros médicos em algum lugar, isso não me será nada
difícil.
14
Naquele momento o telefone tocou. O inspetor tomou o receptor e, em seguida,
alguém começou a falar-lhe com voz agitada. Shoat e Monroe notaram a emoção de seu
interlocutor, assim como os sinais de assombro na fisionomia do inspetor Seaman.
Por fim este desligou o aparelho e encarou Shoat, terrivelmente pálido.
— Era do aeroporto — disse, referindo-se à chamada. — Comunicaram-me o
avião que saiu para Nova Iorque, há poucos segundos, acabou de explodir no ar, pouco
depois da decolagem. Todos seus ocupantes e a tripulação morreram — acrescentou
com voz rouca —. Shoat, vá imediatamente ao aeroporto. Deixe o outro assunto em
minhas mãos. Encarregarei Rudolf de se ocupar dele.
— Adeus, noitada — respondeu o tenente —. E minha esposa que me espera...
Bem, chefe, não pode ter sido um simples acidente? Refiro-me ao avião.
Shoat tinha a esperança que assim fosse para poder ir buscar sua mulher, como lhe
havia prometido; mas sua última esperança se desvaneceu ante as palavras do inspetor:
— Não foi um acidente casual, Shoat. Vá imediatamente. Eu mesmo irei buscar
sua mulher e deixá-la em casa. O avião caiu porque uma bomba explodiu dentro dele, e
suponho que teria sido colocada por alguém. O piloto não morreu em seguida, e por
suas declarações sabe-se que era uma bomba de extraordinária potência.
CAPITULO III
Quando saiu do Hotel Boa Vista Lanham tomou um táxi no primeiro ponto que
encontrou e fez-se conduzir a um pequeno apartamento que possuía na zona sul de São
Francisco, numa ruela afastada, perto da doca sul, onde costumava retirar-se depois de
cada um de seus golpes, para meditar no que lhe convinha fazer.
Desta vez sabia bem qual o passo seguinte que devia dar. Certamente àquela hora
outros inimigos seus, mais perigosos que a própria polícia, estariam em sua pista e não
tinha um minuto a perder. Planejara cuidadosamente o roubo, mas não contava com a
intromissão dos chineses que, certamente, representavam a alguém muito poderoso,
também teria grande interesse em fazer passar as joias para seu poder.
Sabia que dentro de meia hora um avião partiria para Nova Iorque e pensava dar
adeus a São Francisco já a bordo do mesmo, porque os ares do velho Frisco ser-lhe-iam
por demais perigosos de agora em diante. A Polícia era a quem menos temia. Esta só
age de acordo com a lei e, se o apanhasse, o máximo que poderia acontecer-lhe era
passar uma temporada à sombra, mas havia outros inimigos. Em primeiro lugar, o
próprio Ling-Tsé-Chiang, o poderoso autocrata do bairro chinês, a quem eram
destinadas as joias, que não tardaria a pôr em pé de guerra seus inúmeros espiões para
encontrarem o homem que, com tanta audácia, havia arrebatado as joias de sua família.
Em segundo lugar, o homem que ordenou aos dois chineses que seguissem Alvin para
se apoderarem das joias.
Quando desceu do táxi, a dois passos de sua casa na rua B e seguiu andando até
ela, com a maleta fortemente segura, não percebeu que estava sendo seguido pelo
chinês, que não o perdera de vista desde sua saída do hotel.
Assim que Lanham se perdeu nas profundidades do sujo e malcheiroso portal, o
oriental penetrou atrás dele, disposto a remendar o erro anterior, antes de apresentar-se
ao chefe de mãos vazias.
15
Quando subia a estreita e rangente escada, Lanham teve a sensação de que o
perigo andava atrás de si, com passos de lobo. Um sexto sentido o avisava e Lanham,
que confiava muito em seus pressentimentos, jogou-se ao chão sem saber por que,
obedecendo somente a um impulso misterioso e irracional que, naquela ocasião, lhe
salvou a vida.
Algo passou assobiando junto à sua cabeça, recebendo um raio de luz da lâmpada
colocada num recanto superior da escada. Em seguida, um punhal, agudo como um
estilete, cravou-se na parede, oscilou um momento e por fim caiu no chão.
Lanham lançou-se escadas acima sem abandonar a mala, abriu rapidamente a
porta de seu apartamento e nele penetrou, fechando-a trás de si, enquanto o chinês,
vendo fracassada sua segunda tentativa, corria a telefonar ao chefe pedindo-lhe ordens.
Aquele ataque acabou de convencer o ladrão que devia abandonar São Francisco,
sem a menor demora. Precipitadamente apanhou algumas roupas que meteu em uma
maleta e, sem se preocupar em abrir a que continha as joias para certificar-se de seu
conteúdo, abandonou a casa.
Desceu a escada com precaução, temendo que seu atacante estivesse emboscado
para corrigir a falha, mas nada aconteceu. Entretanto, uma sensação indefinível
continuava prevenindo Lanham da presença de um perigo e, em previsão do que poderia
acontecer, redobrou as precauções.
Chegava já ao final da escada, quando um carro grande parou em frente à porta da
rua. Lanham deteve-se rígido, procurando com o olhar um lugar onde pudesse ocultar a
maleta com as joias. Rapidamente o encontrou. Era uma espécie de caixa de madeira
embutida na parede, que resguardava o contador de água de casa. Abriu-a
precipitadamente, socando a maleta naquele reduzido espaço. Depois continuou a andar
para a rua. Agora sua vida estava relativamente garantida, pois ninguém tentaria matá-
lo, enquanto conservasse em segredo o lugar onde guardara as joias.
O carro desaparecera da porta, mas aquilo não tranquilizou Lanham.
Aparentemente calmo aproximou-se da porta... mas alguém ali estava, cortando-lhe a
saída.
Lanham sorriu. À sua frente estava um oriental, vestido à europeia, mas com
roupas tão mal cortadas que pareciam dependuradas em seu corpo, dando-lhe um aspeto
ridículo. Mas o ladrão não se deixou enganar por aquela aparência, nem pelo sorriso que
assomava sob os longos bigodes do chinês e ainda muito menos por sua voz melíflua,
pois conhecia muito bem Ling-Tsé-Chiang e sabia que era um homem sumamente
perigoso, sem cuja permissão não se movia uma única palha no bairro chinês de São
Francisco.
Filho de uma nobre e antiga família do país onde mais nobres e antigas são as
famílias, Ling-Tsé-Chiang chegara à América do Norte há trinta anos atrás para estudar
leis e de lá nunca mais saíra. Simpatizava com a América, simpatizava com os
americanos e agradava-lhe, especialmente, a extraordinária liberdade que se desfrutava
nos Estados Unidos, que contrastava tanto com a rígida etiqueta imperante na China.
Em pouco tempo conseguiu um grande prestígio em Chinatown e, no momento
atual podia-se dizer que reinava ali sobre milhares de filhos do Celeste Império, que
moravam em São Francisco.
16
Era de grande utilidade para as autoridades e mais de um malfeitor caíra em mãos
da polícia graças a seus conselhos ou suas informações, mas em muitas ocasiões sua
casa servira de refúgio a outros a quem nunca fora possível encontrar. Numa palavra,
acendia uma vela a Deus e outra ao diabo, mas era influente e poderoso e as autoridades
faziam vista grossa ante algumas de suas atividades, porque Ling compensava
sobejamente aquela espécie de passividade.
Tudo isso Lanham o sabia, como o sabiam todos os malfeitores e habitantes dos
bairros humildes de São Francisco, mas ninguém se atrevia e exigir-lhe contas de suas
relações com a Justiça, porque era sabido que aquele que tal coisa fizesse podia
despedir-se da vida, lograsse ou não seus propósitos.
Era baixo e gorducho. Sua cara de lua cheia sorria placidamente sob o chapéu
desabado, reminiscência de seus tempos de Universidade, e falava em voz baixa e
suave, agradável e convincente... para quem não o conhecesse tão bem quanto Lanham,
que mais de uma ocasião trabalhara para ele. Foi durante um destes trabalhos que ficou
sabendo que Alvin Oakley viria de Formosa trazendo as joias da família Tse-Chiang,
que o irmão de Ling conseguira retirar da China antes que os exércitos de Mao-Tse-
Tung delas se apoderassem. Alvim fora encarregado pelo chinês de levá-las de Formosa
para São Francisco e na mente de Lanham surgiu a ideia de apoderar-se delas em
proveito próprio.
Como teria podido o chinês descobrir, tão rapidamente, o ladrão e seu paradeiro?
No momento isso constituía um mistério para ele, mas talvez pudesse aclará-lo...
A voz amável e macia de Ling-Tse-Chiang cortou o fio de seus rápidos
pensamentos.
Falava um inglês corretíssimo, no qual apenas se notava um leve sotaque
estrangeiro.
— Oh! Mas é mister Lanham — dizia. — Que feliz casualidade! É um prazer para
mim tornar a vê-lo!
Lanham esteve a ponto de dizer-lhe que para ele o prazer não era o mesmo, mas se
conteve.
— O senhor estava me procurando? — perguntou.
— Sim. Sim. Claro que sim — respondeu o oriental. — Queria perguntar-lhe
algo...se é que pode conceder alguns minutos a este seu humilde amigo.
Lanham compreendeu a ordem que encerravam aquelas palavras. Na realidade
Ling queria dizer: "Tem que responder a umas perguntas que lhe vou fazer, assim é que
se disponha a fazê-lo."
— Claro que disponho de tempo, mister Ling — respondeu. — Tanto tempo
quando o senhor desejar... O que quer de mim?
Estavam no portal da casa. Ling mostrou a rua com um sorriso.
— Tenho aí fora meu humilde carro. Se o senhor quisesse acompanhar-me até ele,
poderia levá-lo ao lugar aonde pretende ir.
Era, na realidade, uma ordem e Lanham obedeceu. Saíram ambos para a rua. Com
o canto dos olhos Lanham notou vários chineses que procuravam ocultar-se e concluiu
que não se havia enganado ao pensar que Ling teria as costas bem guardadas.
17
O chofer, também chinês, abriu-lhes a porta e Ling deu-lhe uma ordem em seu
idioma vernáculo.
— Que lhe ordenou? — perguntou Lanham, inquieto.
— Que desse umas voltas por aí, enquanto o senhor e eu conversamos
amigavelmente — explicou-lhe Ling.
O carro rodou um bom momento, antes que o chinês voltasse a falar. Lanham
esperou pacientemente.
— Veja, Lanham — disse, por fim, Ling: — o caso é que um amigo meu perdeu
umas joias. Umas joias de família que preza muito e eu pensei que, talvez, o senhor
pudesse me dar alguma notícia delas.
— E por que o senhor pensou isso de mim? — perguntou o ladrão, mais
preocupado do que queria confessar, ante a suavidade de Ling.
— Estou certo de que o senhor não está alheio à perda das joias, mister Lanham
— retorquiu Ling, com suavidade. — Alvin tencionava ficar com elas, para o próprio
benefício e o senhor, então, que sempre foi um bom amigo meu, apoderou-se delas para
devolvê-las ao pobre Ling, que tanto as preza, não é verdade?
Lanham olhou-o assombrado. Aquele homem era uma espécie de demônio que,
pelo visto, tudo sabia. Compreendeu que Ling, que continuava sorrindo placidameníe,
acabava de proporcionar-lhe uma saída com aquela sugestão. Não obstante, respondeu-
lhe:
— Suponhamos que eu saiba onde estão as jóias, mister Ling. Suponhamos,
também, que me apoderei delas em seu benefício. Que é que eu ganharia se as
devolvesse?
— Eu já havia pensado nisso — replicou Ling. — Se as joias não aparecerem,
porei um anúncio no jornal oferecendo vinte mil dólares a quem as devolver. Esse
dinheiro poderia ser para o senhor.
— E se eu me recusar a dizer onde estão? Ling acentuou o sorriso, exibindo uns
dentes muito brancos.
— O senhor é um homem inteligente, Lanham e não fará isso, não é?
A ameaça era tão visível que Lanham estremeceu. Pareceu raciocinar um
momento. Estava descoberto. Conhecia e temia Ling, e sabia que já não podia contar
com as joias; portanto, decidiu-se logo. Afinal, eram vinte mil dólares.
— Está bem, mister Ling — disse, voltando-se para seu interlocutor. — Aceito.
Tem o dinheiro?
Como resposta. Ling tirou uma grossa carteira do bolso e separou vinte notas de
mil dólares, que pôs nas mãos de Lanham.
— Com homens como o senhor dá gosto tratar de negócios — disse. — Eu
poderia ter-lhe feito confessar o lugar onde escondeu as joias. Conhece meus métodos,
não é? — Lanham estremeceu. — Mas não quero dar demasiada publicidade ao assunto.
Onde estão?
— Coloquei-as no registro de água da escada — respondeu Lanham, com voz
trêmula.
Ling endireitou-se no assento, dando uma ordem ao chofer, e o carro parou
imediatamente junto à beira da calçada.
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— Agora, pode ir Lanham, e siga meu conselho: saia de São Francisco. Está um
pouco pálido e convém que mude de ares. Se fosse eu, iria agora mesmo para o
aeroporto. Um avião vai sair dentro de poucos minutos e talvez ainda consiga chegar a
tempo de apanhá-lo.
Assustado Lanham desceu do carro e já ia fechar a porta, quando tornou a abri-la
e perguntou a Ling:
— Como soube que Alvin tencionava traí-lo e que eu me apoderei das joias?
— Para mim isso foi como um brinquedo — replicou Ling. — Mandara meu
chofer com este carro ao porto para receber Alvin, mas quando ele desprezou meu
humilde auto e tomou um táxi, meu chofer seguiu a ele, aos outros e ao senhor. Logo
me informou onde estava Alvin. Cheguei tarde para impedir a morte dele, mas foi muito
fácil encontrar sua pista, pelo táxi que o trouxe para casa. E, agora que sua curiosidade
está satisfeita, repito-lhe o conselho: Nova Iorque está deliciosa nesta época do ano e lá
nada tem a temer de Casey Barnett.
O carro afastou-se deixando Lanham parado na calçada, com ar espantado. Então
era Casey Barnett quem lançara aqueles indivíduos contra Alvin!
Sentiu um nó na garganta, chamou o primeiro táxi que passou, ordenando ao
chofer que o conduzisse ao aeroporto. Aquilo estava ficando feio demais, para que
pensasse continuar em São Francisco.
De um lado Ling e do outro Casey, ambos atrás da mesma talhada. Aquilo
significava guerra entre Oriente e Ocidente, num minúsculo campo de batalha e ele não
queria encontrar-se no meio, quando fosse dada a ordem de ataque.
Casey Barnett era um homem cuja poderosa personalidade irradiava força.
Alto, forte, hercúleo, sem um pingo de gordura em seu organismo além da
necessária, vestia-se impecavelmente e espalhava sorrisos a torto e direito.
Era proprietário do "Miami", a mais luxuosa boate de São Francisco e, embora o
negócio lhe proporcionasse lucros muito reduzidos, já o teria abandonado se não lhe
servisse de cobertura para outros assuntos não muito limpos, mas enormemente
rendosos.
Seus gestos eram elegantes e seu rosto simpático, especialmente quando dirigia
uma saudação a algum dos frequentadores da boate, mas seus homens sabiam que
aquele sorriso se transformava em gelo quando Casey não estava contente, e aquilo era
um presságio de morte para quem o tivesse provocado.
O hall do Miami brilhava como uma brasa, à luz das inúmeras lâmpadas dos
enormes e luxuosos lustres de bronze e cristal.
Vários porteiros e garçons ocupavam-se em receber as pessoas que chegavam em
carros, retirar-lhes os agasalhos e acompanhá-las para as mesas reservadas de antemão.
Sob sua aparente máscara de tranquilidade, Casey estava nervoso e lançava
frequentes olhares ao relógio de pulso. Por fim, não pôde mais conter-se e disse ao
homem que estava ao seu lado:
— Leary, vamos ao meu escritório. — Chegados ali, deu vazão à sua impaciência.
— Que terá acontecido? — perguntou em voz alta, andando em grandes passadas
de um lado para outro na ampla sala — Já faz duas horas que Wong nos avisou da
chegada de Alvin com as joias e ainda nada sabemos — Leary tentou tranquiliza-lo,
19
mas sua verve não era muito forte. Na realidade, ele só servia para manejar a pistola e a
metralhadora quando Casey assim lhe ordenasse, sem se preocupar com o motivo da
ordem e era, precisamente por isso que o chefe o tinha a seu serviço.
Passou-se ainda um bom momento, antes que o telefone tocasse.
Casey precipitou-se para ele, e a voz da telefonista do clube foi ouvida no outro
lado do fio:
— Wong quer falar contigo, mister Barnett. Vou lhe passar.
— É o senhor, chefe? — perguntou a voz de Wong.
— Sim. Pro diabo que o carregue! Que foi que aconteceu? Saiu certo.
— Teliam saído se um homem não se tivesse metido no meio, chefe — respondeu
o chinês — Matou meu ilmão e levou as joias, depois foi pala o númelo qualenta e dois,
da lua B, em South São Francisco.
— Está lá agora? — tornou a perguntar Casey cada vez mais nervoso, ao se
inteirar do fracasso de seus homens.
— Esteve pouco tempo, senhol, — disse Wong — Foi-se num grande automóvel
com Ling-Tse-Chiang e ainda não voltou.
— Levava a maleta?
— Levava uma, mas não aquela que tinha as joias.
— Está bem. De onde está me chamando?
— De flente de sua casa.
— Não se mova daí. Dentro de poucos minutos estarei aí. Fique vigiando, Wong,
ou lhe mato.
Desligou o aparelho e voltou-se para Leary.
— As joias estão em poder de Ling-Tse-Chiang — disse. — Ou se não estão,
estarão em seguida. Wong e seu irmão fracassaram. Alguém roubou as joias e logo
depois se encontrou com Ling.
— Se este já as têm, despeça-se delas — comentou Leary que não ignorava o
poder do chinês.
— Despedir-me? Então você pensa que vou deixar que me despojem delas, sem
luta? Vamos, Leary. Estas joias valem um milhão de dólares, mal pagas, e lhe garanto
que serão minhas.
Leary moveu a cabeça ceticamente, enquanto Casey vestia um impermeável sobre
seu traje de rigor.
— Vamos, — disse, e seu subordinado seguiu-o. Um Cadillac azul-escuro
esperava na porta dos fundos e Casey sentou-se ao volante, com Leary ao lado.
Poucos minutos depois, desembocavam na rua B, no mesmo instante em que um
enorme carro negro desaparecia no outro extremo.
Wong correu para Casey, logo que viu o carro surgir. Em seu rosto havia sinais
evidentes de excitação.
— Que foi mais que aconteceu, Wong? — perguntou-lhe Casey.
— Ling voltou depois de mim falá com o senhol. Entrou na casa e saiu em
seguida. Seu auto acaba de sumi pol aquela esquina. Levava a mala das joias, mas sem a
capa.
Casey refletiu um momento.
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— Está bem, Wong — respondeu — Suba para o carro.
Quando regressavam ao Miami, o chinês tentou justificar-se do fracasso, mas
Casey atalhou-o rapidamente, prestando atenção aos sinais do tráfego.
— Está bem, Wong. Vocês fizeram o que puderam. Foi esse intruso quem nos
atrapalhou e juro, que assim que lhe puser os olhos em cima... Sabe quem era?
— Não, senhol. Mim não conhece — respondeu o chinês.
Estavam parados junto a outros carros, esperando que o sinal luminoso se abrisse
para continuarem o caminho, quando Wong aproximou-se de Casey, muito excitado.
— Olhe, chefe — disse rápido — É esse auto, está a esquelda. O homem que está
ali, é o que atacou nós no hotel.
Casey olhou na direção que o chinês lhe apontava. Dentro do veículo Lanham
consumia-se de impaciência, desejando chegar ao aeroporto o quanto antes. Sabia que
Casey agia com rapidez e se chegasse a descobrir quem lhe havia estragado o negócio,
pobre dele!
O sinal luminoso abriu e o taxi lançou-se para a frente, junto com os outros carros.
Casey tratou de não perdê-lo de vista.
— É o nosso grande amigo Lanham, Leary — disse — Você tem certeza que foi
ele?
— Segulo que sim. Me deu dois socos — replicou o chinês — Mim dalia glaças a
Buda, se pode coblá-los.
— Parece-me que já vai poder — disse Casey — Lanham vai para o aeroporto.
Ling deve ter-lhe dado dinheiro e ele tenta sair de São Francisco. Não deve sair, está
ouvindo Wong? Arranje-se como puder, mas este homem deve morrer por ter-nos
estragado o negócio. Use o processo que quiser, mas traga-me a notícia de sua morte.
Ninguém brinca com Casey Barnett, e muito menos um ladrão vulgar como Lanham
Cheson.
Chegaram ao aeroporto. Casey estacionou o carro sob umas árvores, de onde
puderam ver Lanham descendo do taxi e dirigindo-se para o guichê.
Wong deslizou para fora do carro, correu em direção dele e pôde ouvir a voz
excitada de Lanham que perguntava ao empregado da companhia a que horas saía o
primeiro avião de São Francisco
— Para onde? — perguntou o empregado.
— Pra qualquer parte. Isso me é indiferente — replicou Lanham, e o empregado
pensou que ele devia estar louco.
— Se o senhor tivesse chegado cinco minutos antes, poderia ter tomado o último
para Nova Iorque — foi a resposta — Agora, só sai um avião daqui a uma hora, um que
vai para Nova Orleans.
— Esse me serve. Dê-me uma passagem.
Era tudo o que Wong queria saber. Voltou para junto de Casey e contou-lhe tudo
o que tinha ouvido.
— Uma hora — resmungou Casey. — Temos tempo de sobra. Suba, Wong. Já sei
o que vamos fazer. É perigoso, mas seguro. Você fracassou e você é quem o fará; mas
procure não falhar novamente, porque lhe custará a vida.
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Pouco depois chegavam de volta ao clube. Durante o trajeto, Casey não parou de
proferir maldições contra Lanham, ameaçando de matar o chinês se acrescentasse outro
fracasso aos dois anteriores.
Wong entrou com eles pela porta traseira, afastada dos anúncios luminosos da
fachada. Quando Casey abriu a porta, chegou-lhes aos ouvidos os sons fracos da música
que a orquestra executava.
Pouco depois, Wong tornava a sair, acompanhado por Leary. Este sentou-se ao
volante e o chinês instalou-se ao seu lado, colocando sobre os joelhos, com estranho
cuidado, um pacote que trazia.
— Tenha cuidado com isso. Wong — disse Leary, pondo o veículo em marcha —
Não quero ver a cara do Buda, antes do tempo.
Wong riu silenciosamente a estas palavras.
CAPITULO IV
O enorme corpo metálico do avião vibrava levemente sob o influxo dos quatro
poderosos motores em marcha. Era um Fairchild-Parkett, que se preparava para partir
para Nova Orleans.
Os passageiros já estavam em seus lugares e os empregados do aeroporto haviam
retirado a escada portátil que servia para levá-los do solo ao interior.
O piloto acionou os comandos e o enorme pássaro deslizou suavemente pela pista
de cimento, até o extremo da mesma. Uma vez ali, deu meia-volta, instalou-se na pista e
começou a mover-se para a frente cada vez com maior velocidade, entre a dupla fileira
de luzes instaladas no chão, que marcavam o caminho, até que suas rodas se
desprenderam do solo.
Naquele momento Lanham chegava ao aeroporto, dando-se conta, desanimado,
que perdera o avião que devia livrá-lo do vespeiro. Era o último que partia da cidade, o
que significava que ali teria de passar mais uma noite.
Wong retirava-se para o carro que, ocupado por Leary o esperava a pouca
distância do aeroporto quando viu o ladrão, o sorriso que lhe bailava nos lábios apagou-
se de súbito, ao comprovar que o risco que correra tinha sido inútil.
Mal contendo a raiva dirigiu-se para o carro, vociferando maldições, enquanto
Lanham contemplava desesperado o avião que começava a ganhar altura afastando-se
do aeroporto, com suas luzes de posição piscando na noite sem lua.
Vermelho, verde, branco; vermelho, verde, branco; as luzes se acendiam e
apagavam alternadamente, enquanto se extinguia aos poucos o ruído dos motores.
Passou por cima da torre de comando e o piloto balançou levemente o aparelho
em sinal de despedida.
De súbito surgiu uma chama no avião, seguida por uma terrível explosão que
encheu toda a noite com seu ruído.
Lanham e os empregados do aeroporto que já se retiravam para os hangares,
contemplaram horrorizados, ao clarão violeta da terrível explosão, o avião saltando em
mil pedaços. A distância impediu de ouvir os gritos de agonia dos passageiros que não
morreram imediatamente pela explosão. Logo os restos do aparelho caíram em terra
numa velocidade crescente, lançando zumbidos antes de espatifarem-se contra o solo,
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poucas milhas atrás da torre de comando. A continuação, o silêncio tornou a envolver o
aeroporto, mas só por um segundo, pois imediatamente começaram a soar as sirenes das
ambulâncias que se dirigiam ao lugar da catástrofe, embora fossem mínimas as
esperanças de recolherem algum sobrevivente.
Vários refletores iluminaram imediatamente o lugar onde haviam caído os restos
do aparelho, e os que os contemplaram puderam dar-se conta da enormidade da
tragédia.
Os restos do avião e de seus ocupantes estavam esparramados por um perímetro
de mais de três quilômetros. Restos de metal e de madeira misturados com pedaços de
carne e farrapos de roupa manchados de sangue, era tudo o que restava do majestoso
aparelho que segundos antes, fendia orgulhoso a atmosfera.
A meio quilômetro de distância, Leary pôs o motor em marcha e comentou:
— Já está feito, Wong. Você teve muita dificuldade para colocar a bomba?
— Nenhuma — respondeu o chinês — Mas Lanham não estava no avião.
A brusca freada do Cadillac projetou Wong para a frente, fazendo sua cabeça
bater contra o para-brisas.
— O que foi que você disse, filho de Satanás? — perguntou Leary com voz rouca
— Não venha com brincadeiras ou eu...
— Wong não blincar — replicou o chinês — Lanham perdeu avião. Vi quando o
pássalo já estava voando. Mim não ter culpa disso...
Leary compreendeu que o chinês tinha razão, mas também compreendeu que não
podia se apresentar diante de Casey com aquela notícia e assim deu meia-volta ao carro
e, refazendo o caminho andado, voltaram ao aeroporto.
Lanham estava na entrada tomando um táxi que o levaria de volta a São
Francisco, pensando em qual dos sítios que conhecia lhe ofereceria mais segurança.
Logo que o táxi se pôs em marcha, Leary lançou-se atrás dele, dizendo a Wong.
— Debaixo do assento traseiro tem uma "guitarra". Apanhe-a e dispare quando
surgir uma oportunidade. Se você falhar desta vez, chinês maldito, despacho-o para ir
ver as barbas de Confúcio. Está avisado:
Wong pulou para a parte traseira e retirou debaixo do assento uma metralhadora,
que contemplou extasiado. Era um brinquedo que há muito gostaria de ter nas mãos,
mas Casey nunca lhe permitira manejá-lo.
Certificou-se que o pente, que penetrava pela parte inferior da culatra, estava
carregado e puxou o trovão.
Enquanto isso, Leary não perdia o táxi de vista. A perseguição tornou-se mais
difícil ao penetrarem na cidade. Felizmente para eles, o carro que perseguiam
encaminhou-se para Sunsea District, que constitui a parte nova da cidade.
A perseguição durou mais de quinze minutos, no fim dos quais o táxi deteve-se e
Lanham saltou. O veículo logo se afastou o Lanham continuou andando, olhando
amedrontado para os lados.
Já estava perto das grades do Golden Gate Park quando sentiu às costas, o ronco
de um motor. Quis jogar-se por terra, mas já era demasiado tarde. Wong instalou o cano
da metralhadora na janelinha do carro e puxou o gatilho, com grande alegria.
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Lanham lançou um grito, ao sentir-se ferido no ventre. A rajada atingira-o na
altura das cadeiras, fazendo-o dobrar-se para a frente, como uma espiga de milho
ceifada por uma foice.
Com o canto dos olhos. Leary viu-o cair e apertou o acelerador. O Cadillac
perdeu-se pela Frederich Street, em direção ao centro da cidade, enquanto algumas
pessoas corriam para o corpo tombado de Lanham Cheson.
* * *
Logo que Mike Shoat foi informado da explosão do avião, partiu para o aeroporto.
Gostaria de continuar a investigação dos fatos ocorridos no Hotel Boa Vista. Tinha
certeza absoluta da culpabilidade de Lanham e o inspetor já havia mesmo dado ordens
para sua captura.
Consultou o relógio. Eram nove e meia da noite. Recostando-se no assento
traseiro do carro, pensou com nostalgia em sua esposa e em seu lar. Aquilo lembrou-lhe
que há várias horas não se alimentava e decidiu comer um sanduíche antes de chegar ao
aeroporto.
No caminho cruzou com dois carros: um táxi e um Cadillac de cor escura, aos
quais não deu a menor importância, pois não sabia que ao passar por ele estivera a
poucos metros dos três homens responsáveis pelos acontecimentos do Hotel Boa Vista e
da explosão do Fairchild-Parkett no aeroporto.
Quando lá chegou, dirigiu-se ao bar e, durante uns dez minutos ficou mastigando
um sanduíche de presunto, acompanhado por um chopp duplo, enquanto escutava os
comentários que faziam ao redor.
Por fim, decidiu apresentar-se ao diretor do aeroporto que lhe concedeu todas as
facilidades.
— Quer fazer o favor de mostrar-me a lista dos passageiros do avião? — pediu
Shoat, em seguida.
— Sim, senhor. Tenha a bondade de esperar um momento — disse o diretor,
apertando uma campainha.
O tique-taque do relógio ficou ressoando no silêncio do gabinete, até que um
empregado apresentou-se com a lista pedida.
Examinando-a atentamente, Shoat verificou que compreendia vinte e seis nomes.
— Morreram todos? — perguntou.
— Sim, senhor. O piloto viveu uns poucos minutos. O bastante para dizer-nos que
o avião caiu em consequência da explosão de uma bomba colocada na parte posterior do
aparelho.
— Quantos tripulantes levava o avião?
— Dois. O piloto e copiloto.
— Assim o total de mortos sobe a vinte e oito. Os dois tripulantes e os vinte e seis
pas...
— Não, não, senhor — corrigiu o diretor. — Os mortos são vinte e sete. Um dos
passageiros não pôde tomar o avião. Chegou quando este já estava erguendo voo.
Shoat sentiu-se, de súbito, interessado. Aquilo podia constituir uma pista.
— Sabe qual foi?
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— Claro que sim. Conseguimos recolher os documentos de todas as vítimas e aqui
as têm classificadas — acrescentou, mostrando vários papéis que estavam sobre uma
mesa próxima. — Falta os de um tal de... — consultou uma nota que estava à sua frente
— mister Cotton Miers. Comprou a passagem uma hora antes da saída do avião com
destino a Nova Orleans.
— O senhor disse Cotton Miers?... — perguntou Shoat, pondo-se em pé de um
salto.
— Sim respondeu — o diretor. — Pelo menos, esse foi o nome que deu ao
comprar a passagem. Conhece-o ?
— Creio que sim — respondeu, cautelosamente, Shoat. — E quando o encontrar...
se o encontrar vivo, saberei quem colocou a bomba no avião. Volto a São Francisco
porque tenho pressa em encontrar-me com esse homem. Nada mais tenho a fazer aqui.
Cotton Miers era o nome sob o qual Lanham se inscrevera no Hotel Boa Vista,
quando ia atrás do homem que levava as joias. Isso significava que conseguira apoderar-
se delas e que tentara fugir. Por sorte tinha perdido o avião. Por que haviam posto a
bomba no avião? Seria para acabar com a vida do ladrão? Se fosse assim e Lanham
morresse, seus inimigos perdiam a possibilidade de apoderarem-se das joias, o que,
evidentemente, não entrava em seus planos.
Então, por quê? Não era o momento para perder-se em conjecturas. O diretor do
aeroporto estava diante dele e Shoat percorreu, novamente, a lista de passageiros que
tinha à sua frente.
Foi só então que notou que havia dois nomes que pareciam estrangeiros, bastava
olhá-los.
— Quem são esses dois? —perguntou ao diretor.
— Creio que são dois diplomatas turcos — respondeu este.
Shoat deixou escapar um assobio. Não seria aquele o motivo do atentado contra o
avião? Em tal caso, a presença do nome de Lanham entre os passageiros, ficava
reduzida a mera casualidade... mas algo lhe dizia que era a morte do ladrão o que o
criminoso queria.
De qualquer forma, o assunto tomava uma nova feição. Urgia que se comunicasse
com o inspetor Seamann, porque a morte dos dois diplomatas turcos que viajavam a
bordo do "Fairchild", representava uma complicação que poderia dar margem a uma
troca de notas entre as Embaixadas dos dois países, e em tal caso o FBI teria de intervir
para o esclarecimento do assunto.
Assim pensando pôs-se em pé, despediu-se do diretor do aeroporto e encaminhou-
se para o carro. Meia hora depois estava de novo na cidade tentando localizar Seamann
por telefone.
Teve a agradável surpresa de encontrar o inspetor em sua própria casa, onde
chegara acompanhando sua esposa, vindos da festa dos Tibbs.
A conferência realizou-se com ambos instalados em duas confortáveis poltronas,
junto a uma mesa onde Isabel colocara algumas bebidas. Shoat contou ao inspetor tudo
o que sabia e este perguntou-lhe qual era a sua opinião.
25
— Não há mais do que duas explicações — respondeu o tenente: — ou puseram a
bomba para eliminar Lanham, ou por causa dos dois diplomatas turcos. Em qualquer
dos casos, estes morreram, de sorte que o assunto cai sobre a jurisdição do FBI.
— Acho que você tem razão, Shoat; mas se era contra Lanham, por que o
fizeram? Se levava as joias, deviam pensar que estas ficariam destruídas com a explosão
ou, no pior dos casos, cairiam em mãos da polícia. Se não as levava, e as deixou
escondidas em algum lugar antes de empreender a fuga, perdiam a única esperança de
saber onde elas se encontravam.
Shoat estava de acordo com o inspetor, pois, pouco antes, ele próprio chegara à
mesma conclusão.
— Por que não investigamos sobre estes diplomatas, Shoat? — sugeriu Seamann.
— Para que? Isso é assunto do FBI. Em seu lugar, eu telefonaria imediatamente
para Los Angeles. De qualquer forma, o primeiro passo, tanto deles como nosso, é tratar
de encontrar Lanham. Ele poderá explicar-nos o que aconteceu no hotel e, talvez, a
explosão do avião... é essa a minha impressão.
Seamann mostrou-se inclinado a aceitar a sugestão de telefonar para o FBI,
imediatamente. De certo pesou em sua decisão o fato de que, de certa forma, era um
assunto tão complicado como aquele prometia ser.
Despediu-se de Shoat e este acompanhou-o até a porta. Vivia num apartamento
muito bom decorado por Isabel, no sexto andar de Satter Cüeet número 10, a quase dois
quilômetros de Market Street a grande artéria da cidade. Quando voltou ao seu
escritório, o relógio da catedral de São Patrício soou lentamente as doze badaladas da
meia-noite.
Que lhe reservaria o dia seguinte? Contra a sua vontade, continuava pensando nos
dois acontecimentos que naquele dia haviam agitado a polícia de São Francisco e cada
vez se convencia mais que havia um ponto de contato entre ambos, e que esse ponto de
contato estava na pessoa de Lanham Cheson. Tinha que encontrá-lo, custasse o que
custasse.
Isabel esperava-o sorridente.
— Divertiu-se muito, minha filha? — perguntou-lhe carinhosamente.
— A festa esteve agradável, Mike; mas, sem você não me divirto em lugar
nenhum, você sabe —. respondeu ela.
Mike Shoat recebeu suas palavras com um abraço.
— Que é que há, Mike? Noto que está... distraído... parece... ausente daqui.
— É por causa desse maldito assunto, Isabel — respondeu ele.
— Não se preocupe, querido. Outros mais graves você já solucionou — consolou-
o ela, passando-lhe a mão pela cabeça. — Além disso, isso já não lhe compete mais.
— O que lamento — replicou Mike Shoat. — Gostaria de acompanhá-lo até o
fim. Agora o FBI vai intervir. Certamente nos mandarão um de seus engomados agentes
especiais, desses que como todos sabem, começam a dar ordens a torto e a direito...
Isabel notou a amargura de suas palavras.
— Talvez não seja assim, Mike — replicou. — Nem todos os agentes do FBI são
como você os pinta. Lembra-se daquele que trabalhou com você no verão passado,
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naquela história de contrabando de armas para o México? Era um rapaz muito
simpático. Como é o nome dele?
— Você se refere a Sidney Eskev? Ah! Não terei a sorte de que enviem um
camarada como ele. Se isso acontecesse, eu ficaria contente. Quer dar-me o chapéu ?
— Vai sair outra vez? — perguntou-lhe a esposa, espantada.
— Sim. Tenho de localizar um homem. Não poderia dormir, sabendo que vai
morrer de um momento para outro e que com ele vai-se tudo o que sabe... que é muito,
garanto-lhe.
Isabel ensaiou um protesto.
— Oh, Mike! — disse. — Eu esperava que passássemos juntos o resto da noite, já
que não pôde acompanhar-me à festa... Você não pode deixar isso para amanhã?
— Isabel — disse Shoat sério. — Você pensa que há alguma coisa no mundo que
me agrade mais do que estar ao seu lado? Se saio agora deixando-a só, é porque é
realmente necessário.
Ela não protestou mais. Ser a esposa de um policial exige, às vezes, sacrifícios
muito grandes, além da eterna preocupação.
Shoat abandonou a casa. Durante duas horas andou vagando pela cidade, visitando
os lugares que sabia freqüentados por Lanham, assim como os refúgios comumente
usados pelo ladrão, sem conseguir o menor resultado. Em nenhuma parte puderam dar-
lhe notícias concretas sobre seu paradeiro, e Shoat convenceu-se que ele se deixara
dominar pelo terror escondendo-se sabe Deus onde, esperando até poder abandonar a
cidade.
Mas, de quem fugia? Quem era o misterioso personagem que lhe movia uma
perseguição de morte, só por ter-se intrometido em seu caminho? Não seria bem obra do
homem que fora deixado como morto, apunhalado sobre a cama de um quarto do hotel?
Ao pensar nisso, deu-se conta de que ainda não conhecia o paradeiro de Alvin
Oakley e decidiu telefonar para a polícia, logo que chegasse em casa, para ver se tinham
alguma novidade a respeito dele.
Isabel saiu ao seu encontro, suspirando aliviada por vê-lo são e salvo.
Shoat beijou-lhe os lábios e depois ela lhe disse:
— Mike telefonaram da delegacia, há mais de meia hora. O sargento Blesing
encarregou-me de dizer-lhe que telefone em seguida para ele.
Shoat desprendeu-se de seus braços. Apanhou o telefone e discou um número.
— O sargento Blesing — pediu à telefonista.
— Alô — falou este, em seguida.
— Blesing. Aqui é Shoat. O que queria dizer-me?
— Duas coisas, uma mais interessante que a outra, tenente. Nossos homens
localizaram o ferido que fugiu do Hotel Boa Vista. Foi medicar-se no Hospital Ave
Maria, mas não quis ficar hospitalizado, embora necessitasse. O mesmo táxi que o levou
ao hospital, logo o transportou, imagine para onde?
— Garanto-lhe Blesing que não tenho a menor vontade de solucionar charadas.
Para onde o levou?
— Para a casa de Ling-Tse-Chiang — respondeu Blesing, como quem joga uma
bomba.
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— Meu Deus do céu! — exclamou Shoat, sem poder controlar-se — Que é que
está me dizendo?
— Isso mesmo, chefe. O motorista que o conduziu para lá atendeu nosso apelo e
está bem certo do que declarou — respondeu o sargento, contente com o efeito causado
pela notícia.
Mais uma complicação. Qual seria o papel de Ling em tudo isso? Se se tratasse de
um delito, podiam agora usar de mãos fortes contra ele. Mas, se seu papel no assunto
das jóias estava claro, tinha certeza de que encontraria nele o maior apoio. Seria Ling
quem lançara aqueles dois chineses contra Alvin? Certamente não, pois nesse caso
aquele não teria ido, depois jogar-se na boca do lobo. Se fora para a casa de Ling, isso
significava que trabalhava para ele.
A confusão estava armada. Devia pensar demoradamente sobre os fatos. A voz de
Blesing chegou-lhe novamente.
— Está me ouvindo, chefe? — perguntou, ante o silêncio de Shoat. — Ainda
tenho outra notícia para dar-lhe.
— Diga, Blesing.
— Trata-se de Lanham Cheson — replicou o sargento. — Está no Hospital da
Marinha. Foi recolhido na rua, ferido pelos disparos de uma metralhadora feito de um
carro por alguém e, aos gritos, está pedindo que chamem a polícia. O inspetor disse que
o senhor devia ir...
— Claro que irei. Agora mesmo — gritou Shoat e sua esposa fez um muxoxo, e
deu um suspiro de resignação ao ouvi-lo dizer isto.
— Mas passe antes por aqui — continuou o sargento Blesing. — Um agente
especial da Divisão de Los Angeles, do FBI, acaba de chegar por avião e o está
esperando.
"Era só o que me faltava — resmungou Shoat desligando o aparelho. — Diabo,
que pressa tiveram!"
CAPÍTULO III
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Logo apareceu à tua frente a figura simpática de Sidney Eskev. Tinha nas mãos
um jornal que jogou na poltrona, dirigindo-se para Shoat com as duas mãos estendidas,
e com um cigarro à boca.
— Sidney! — exclamou Shoat. — É você quem vai se encarregar disso?
— Primeiro um abraço, menino, depois é que respondo — replicou Sidney,
sorrindo.
Os dois amigos se abraçaram, com tapas às costas. Logo Sidney afastou-se um
passo, mantendo entre suas grandes mãos os braços de Shoat e exclamou:
— Puxa, Mike! Você está engordando de uma maneira escandalosa! Vê-se logo
que Isabel o trata bem. E, a propósito, como vai ela?
— Deixei-a em casa. Está muito bem, mas aborrecida. Ser casada com um polícia
não é sopa.
— Por isso é que eu não me caso. Não quero arrastar ninguém comigo para o
sacrifício — brincou Sid.
— Como pôde chegar tão rápido? — perguntou Mike, retirando o chapéu que
ainda trazia vestido. — Faz apenas duas horas que o inspetor Seemann telefonou para
Los Angeles. Realmente, não teria tido tempo de chegar...
— Vinha resolver uns assuntos pessoais em São Francisco quando recebi por
rádio, já no avião, a ordem de apresentar-me ao inspetor Seemann, assim que chegasse.
Fiquei chateado, menino essa é que é a verdade, pois eu tinha quatro dias de licença
para tratar de meus assuntos e já não posso, até que termine este caso. De que se trata?
— É verdade que o inspetor não lhe contou nada?
— Em absoluto — respondeu Sid. — Telefonei-lhe ao chegar e ele me disse que
me entrevistasse com você, que me poria à par dos antecedentes do assunto.
— Bem. Sente-se e lhe explicarei tudo, em poucas palavras. Blesing, chame o
hospital e diga que em seguida vamos para lá.
— Avisaram que era urgente, chefe — replicou o sargento. — O estado de
Lanham é muito grave, e...
— Está bem — decidiu Shoat. — Nesse caso iremos imediatamente. Vamos Sid.
No caminho lhe explicarei tudo.
Shoat abandonou a sala, seguido por Sid, que havia vestido o amplo impermeável
e enfiado o chapéu flexível. Vestido desta maneira, parecia ainda mais corpulento. Seu
andar era ágil e leve e a mão que agarrava o braço de Shoat, grande e forte. Mão de
homem habituado aos esportes, a serviço de músculos fortes e temperados por lutas, e
de cérebro bem equilibrado.
Aos vinte e oito anos, Sidney Eskev era um dos agentes especiais mais
considerados pela Divisão de Los Angeles por seu valor e inteligência, postos à prova
mais de uma dezena de vezes.
Três anos havia que saíra de Quântico e, durante este tempo, a experiência
tornara-o um homem apto para a luta contra o crime e a delinquência.
Sua promoção a inspetor era questão de pouco tempo, se antes uma bala ou um
punhal não terminassem esta brilhante carreira, começada sob tão bons auspícios.
Mas o contínuo risco de vida, a batalha diária pela lei e a justiça — palavras
bonitas para tão ingrata tarefa — não o haviam tornado sombrio, nem perdera o
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arraigado costume de sempre sorrir, contagiando com seu otimismo todos que com ele
trabalhavam. Seu sorriso era aberto e atraente. "Terrivelmente sedutor" — segundo o
elemento feminino de Los Angeles. A cicatriz de uma antiga facada — que Sid ganhara
como prêmio em sua atuação num difícil caso de contra-espionagem —atravessava-lhe
a região molar, exatamente do ângulo interno do olho até embaixo da face direita, o que
longe de enfeia-lo, tornava seu rosto ainda mais atraente, pelo fato de dar-lhe certa
irregularidade do que resultava uma grande simpatia.
Era apaixonado por música. Não pela boa música, se por tal nome deve entender-
se a música clássica. A verdade é que muitas das partituras dos grandes mestres davam-
lhe um terrível sono, embora houvesse outras que escutasse verdadeiramente deleitado.
Em compensação, a música moderna, com ritmos melódicos e suaves, atraiam-no tanto
que “até havia feito algumas composições”, embora conservasse esse detalhe
cuidadosamente secreto, temendo as troças dos companheiros.
O carro arrancou e logo tomou velocidade. O hospital da Marinha era distante da
Delegacia de Polícia, na reserva militar conhecida pelo nome de Presídio, que nada mais
é do que um formoso jardim de várias centenas de acres, de forma retangular, cujo lado
maior estende-se ao largo da costa, desde Golden Gate até o Rochedo Anita.
Dentro deste perímetro encontram-se o presídio de São Francisco que lhe dá o
nome, o hospital da Marinha e alguns outros edifícios rodeados de parques e jardins, de
extraordinária beleza.
Shoat tomou a Franklin Street, até o cruzamento com a Pacific Street, pela qual
entrou a toda velocidade enquanto explicava a Sid os acontecimentos, sem deixar de
contar-lhe o que ocorrera no Hotel Boa Vista.
As ruas que rodeiam o Presídio estavam pouco movimentadas, naquela hora da
noite, e Shoat estacionou ante o hospital da Marinha em menos de quinze minutos,
depois de circundar o lago Mountain.
Uma enfermeira veio ao seu encontro, perguntando-lhes o que desejavam.
— Sou o tenente Shoat da Polícia de São Francisco. Este senhor é um agente do
FBI...
— Ah! — exclamou a enfermeira, olhando como fascinada para o sorridente Sid.
— Vêm ver mister Lanham?
— Sim, beleza. E lhe agradeceríamos se nos levasse a ele o quanto antes —
replicou Sid, e a moça ficou tão aturdida sob o influxo de seu sorriso, que enrubesceu
como uma maçã.
— Desde quando está mister Lanham? — perguntou Shoat por sua vez e a
enfermeira não compreendeu a pergunta. — Quando o trouxeram?
— Já faz algumas horas — respondeu a moça, precedendo-os em direção ao
elevador.
— Como está — perguntou Shoat, enquanto o elevador os transportava para o
quarto andar.
— Muito grave, mas o médico tem esperanças de salvá-lo.
A porta do elevador abriu-se e os três saíram para o corredor, em cujos lados se
alinhavam as brancas portas de alguns quartos.
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A enfermeira caminhava na frente deles, mostrando-lhes o caminho, e suas bem
torneadas pernas sustentavam um corpo que se movia graciosamente ao andar.
Sid postou-se ao lado dela e inclinou-se um pouco em sua direção.
— É você quem cuida desse Lanham? — perguntou lhe.
— Sim — respondeu a loura, sorrindo —. Por quê?
— Então vai curar-se; não tem outro remédio. Se eu estivesse moribundo e você
me olhasse duas vezes, eu me levantaria da cama e me ajoelharia por terra, para
agradecer a Deus por tê-la feito.
A enfermeira soltou uma cristalina gargalhada, olhando-o com os olhos
semicerrados, de um jeito a enlouquecer qualquer homem.
— Escute, menina: estou falando sério: Não me olhe assim, ou perco o controle
dos nervos.
— Não se preocupe. Estamos num hospital — replicou ela, colocando a mão no
trinco de uma porta. — É aqui. Entrem, mas procurem não perturbá-lo muito.
Shoat entrou primeiro. Sid ficou para trás, de chapéu na mão, e tomando o queixo
da enfermeira disse-lhe:
— É a coisa mais bonita que já vi em toda a minha vida.
Ela o fez retirar a mão com um empurrão, não muito brusco e respondeu:
— E você o maior trocista que conheci. Fechou a porta atrás deles e afastou-se
pelo corredor. Shoat e Sid cravaram os olhos no homem que estava à frente deles,
estendido no leito de dor. Um de seus braços estava engessado e suspenso por um fio
metálico, que o prendia a uma armadura de tubo cromado. Devia ter mais ferimentos,
pois um arco de arame erguia a roupa da cama, impedindo que esta lhe roçasse no
corpo.
— Acertaram-te em cheio, hein Lanham? — disse Shoat.
—. Parece, tenente. Trabalho lhes custou, mas no fim me caçaram. Quem é? —
perguntou o ladrão, com um gesto de cabeça para Sid.
— Um agente do FBI — respondeu o próprio Sid. — Podemos sentar-nos?
— Claro que sim — disse Lanham, e os dois agentes sentaram-se ao seu lado. —
Do FBI, hein? — perguntou, e Sid fez um gesto afirmativo. —Alegro-me que vocês
estejam metidos nisso, para que estes tipos tenham o que merecem.
— Ele veio pela história do avião, Lanham — falou Shoat, por sua vez . — Você
sabe algo a respeito disso?
— Claro que sim, — replicou o ladrão. — Estou certo que foi por minha causa.
Estiveram me procurando a tarde inteira. Por que o FBI intervém nisso?
— Morreram dois diplomatas que viajavam no avião — explicou Sid
pacientemente. — De forma, que nós é que devemos agir. Assim o pediu a Embaixada
do país deles. Quem são?
— Não sei — respondeu Lanham, e sua voz soava convincente. — Mas seja quem
for, não dormiram em palhas. Bem que Ling me disse.
— Você viu Ling? — perguntou Shoat. — Vamos, Lanham: é melhor que comece
pelo princípio, não acha?
— Isto é o que estou tentando fazer — replicou este, com voz transtornada pelo
pânico. — Quero contar-lhes tudo, porque não há nada contra mim, exceto o assassinato
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daquele chinês, que foi em legítima defesa. Quero que saibam tudo para que os agarrem
e os trancafiem, antes que se interem que não conseguiram liquidar-me e venham me
procurar de novo.
“Naquela tarde chegou de Formosa um homem que trazia as joias da família de
Ling-Tse-Chiang. Do hotel Boa Vista chamou um joalheiro, pedindo-lhe que fosse ver
as jóias para avaliá-las. Se vocês ainda não sabem, vou dizer-lhes que aquele tipo
planejava trair Ling e fugir com o produto da venda, mas eu ouvi a conversa. Ling
havia-me encarregado de seguir aquele traidor, porque não se fiava muito nele —
mentiu Lanham. — Foi assim que entrei no seu quarto, depois de amordaçar o joalheiro.
Não tive necessidade de fazer-me passar por aquele, porque Alvin jazia sobre a cama,
com um punhal cravado nas costas.”
"Escutei ruídos no banheiro e fui para lá. Os chineses tentavam fugir, levando a
maleta com as joias. Lutei com eles, matei um e levei as joias que entreguei a Ling, e
este me deu a recompensa convencionada, aconselhando-me a sair o quanto antes de
Frisco. Alguém deve ter me seguido, provavelmente o outro chinês que escapou com
vida da luta no hotel, porque me atacaram na escada de minha casa. Aquilo fez com que
eu precipitasse minha fuga. Fui para o aeroporto, comprei uma passagem para Nova
Orleans mas perdi o avião, felizmente para mim — disse, enquanto seu rosto se cobria
de um suor frio ao recordar os fatos. — Não obstante, devem ter sabido que eu não
estava a bordo quando ocorreu a explosão, pois me seguiram quando saí do aeroporto e
me atacaram, disparando de um carro, na rua Frederich, perto das grades do parque.
— Isso é tudo? — perguntou Sid.
— Tudo. Parece-lhe pouco?
— Não é muito, confesso — replicou o agente especial. — Você nos contou todas
suas andanças e os esforços que seus seguidores fizeram para matá-lo, mas não nos
disse nada, nem nos deu o menor detalhe que nos faça supor quem são eles.
— Isso é trabalho de vocês — resmungou Lanham. — Quero ver se são agora tão
espertos como quando se trata de apanhar gatunos.
— Está bem, Lanham — interveio Mike. — Não se altere. Você contou a história
à sua maneira. Modificou-a um pouco para ver se saía com menos culpa, e vamos fingir
que acreditamos...
— Tem que acreditar em mim, tenente — resmungou o ladrão. — Contei-lhe a
verdade. Se não acredita em mim, fale com Ling e ele...
— A propósito de Ling — interveio Sid. — Suponho que se refere ao rei
Chinatown não é? — e ante o gesto afirmativo de Lanham prosseguiu: — Qual a parte
dele nesse assunto?
— Já lhe disse, amigo. Está surdo? As joias são dele.
— Bem — replicou Sid. — Creio que é indispensável uma visita a Ling...
Naquele momento ouviram-se na porta umas batidas discretas.
— Vêm nos avisar que acabou a visita — resmungou Sid. — Entre! — continuou
em voz alta.
Apareceu na porta um enfermeiro, vestido de branco dos pés à cabeça. Trazia na
mão uma seringa cheia de um líquido incolor e um chumaço de algodão.
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— Desculpem-me um momento — disse amável — Tenho que aplicar esta
injeção em mister Lanham. É ordem do médico.
Inclinou-se para o ferido e arregaçou-lhe a manga do pijama, esfregando a pele do
braço com o algodão empapado em álcool. Dispunha-se a dar-lhe a fincada, quando Sid
disse, só para dizer algo.
— Não é aquela enfermeira loura a encarregada de cuidar dele?
Nenhum dos dois notou o leve sobressalto do indivíduo ao sentir-se interpelado
desta maneira.
— Sim, senhor — respondeu, voltando-se ligeiramente para Sid. — Mas está na
enfermaria. Acabaram de trazer um acidentado e pediu-me que viesse aplicar a injeção
em mister Lanham. É... morfina acrescentou, com ar vacilante.
— Está bem — resmungou o ladrão. — Acabe com isso de uma vez.
O enfermeiro aplicou-lhe a injeção e abandonou o quarto um tanto
precipitadamente, na opinião de Sid.
Logo que a porta se fechou atrás dele, os dois amigos voltaram-se para Lanham.
— Está bem — disse Shoat. — Muito obrigado pelas informações e... Lanham!
Que foi?
— Não sei... — replicou este. — Estou mor... vou morrer...
Seu rosto tornara-se cadavérico, ao mesmo tempo que os olhos vidrados fixavam
um ponto indefinido da parede, que estava à sua frente.
Sid inclinou-se para ele e Lanham, num último estertor de agonia, lançou no rosto
do agente do FBI um suspiro impregnado de um forte e característico odor de amêndoas
amargas.
— Deus do Céu! — exclamou Sid soerguendo o corpo. — Envenenaram-no com
cianureto, em nossas barbas. Foi esse...
Não acabou a frase. Sua mão pousou no trinco da porta e puxou-a violentamente.
Enquanto corria, como um louco, pelo corredor, foi retirando o impermeável para ter
mais liberdade de movimentos, dirigindo-se para o elevador.
Uma escada estava ao lado. Sid desceu os degraus de seis em seis, saltando como
uma lebre. Sabia que o assassino ainda devia estar dentro do hospital. Não tinha outro
remédio, pois não lhe haviam dado tempo de sair.
A escada desembocava numa espécie de hall situado no segundo andar, que
correspondia à fachada do hotel. Sid atravessou-o rapidamente, aproximando-se da
ampla janela de vidros coloridos, que formava o escudo da União e abriu-a olhando para
fora. A janela dava exatamente para a entrada principal e o agente observou um
possante Cadillac azul que esperava à porta, junto da escada que dava acesso ao
Hospital.
Passou-lhe pela mente a ideia de que talvez estivessem — esperando o falso
enfermeiro e, com efeito, apenas acabara de se formar esta suposição quando um
homem saiu do hospital, descendo rapidamente as escadas, em direção ao carro. Ao vê-
lo, o motorista, cujo rosto Sid não podia distinguir, pôs o motor em movimento e abriu a
porta do veículo.
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Sid não vacilou. Com um agilíssimo salto pulou a janela, encolhendo o corpo para
cair elasticamente de pé, no centro da porta. Sua mão direita empunhava uma Luger,
com a qual ameaçou o homem que fugia para o carro, gritando-lhe:
— Alto! Alto ou eu atiro!
Disse isso só para amedrontá-lo, pois sua intenção era apanhá-lo vivo. Se tivesse
esta sorte, veria solucionado naquele instante o mistério da explosão do avião. O caso
das joias não o interessava, mas como uma coisa puxaria a outra, Shoat seria
beneficiado com o seu trabalho.
O homem não se deteve, apesar de sua ameaça de fazer fogo e Sid lançou-se
contra ele, tentando agarrá-lo antes que conseguisse alcançar o carro.
De dentro deste partiu um disparo e o projétil passou assobiando, bem perto de
Sid.
— Não contei com o motorista — murmurou. Entretanto não se jogou ao chão, até
que um novo disparo, que soou bem mais perto dele do que o primeiro obrigou-o a isso.
O fugitivo ia escapar. Faltavam-lhe apenas dois ou três passos para chegar ao
carro, e Sid decidiu-se a disparar contra ele pois não poderia apanhá-lo vivo.
A Luger, detonou várias vezes. Algumas das balas atingiram o carro, fazendo
furos na carroçaria, mas os outros cravaram-se no corpo do homem que se dobrou para a
frente, caindo no último degrau, onde permaneceu imóvel.
A porta do carro, correspondente ao lugar do motorista, abriu-se e uma mão puxou
o corpo imóvel que estava ao seu lado tentando metê-lo no veículo, mas Sid ergueu-se
rapidamente disposto a impedi-lo. O chofer do Cadillac, em vista disso, disparou um
tiro na cabeça do homem caído, para que não pudesse falar se ainda lhe restasse um
último alento de vida, e pisando no acelerador, perdeu-se na escuridão.
Lançando uma praga abafada, Sid inclinou-se sobre o falso enfermeiro. Seu tiro
havia-lhe atingido as costas, sob o omoplata direito, atravessando o pulmão do mesmo
lado; mas fora o outro tiro que lhe arrebentara o crânio e que lhe causara a morte.
Quem seria o misterioso assassino, que não vacilava em matar seus próprios
comparsas, desde que não deixassem marcas que pudessem levá-las até ele?
Sid ergueu um punho ameaçador na direção em que o carro havia seguido e
dispunha-se a revistar o morto, quando Shoat apareceu ao seu lado, com um revólver na
mão.
— Chegou um pouco tarde, hein Mike? — disse-lhe Sid, ironicamente e o policial
nada respondeu.
Sid continuou revistando os bolsos do morto. Ainda trazia o uniforme branco
sobre o qual vestira um impermeável e em seus bolsos o agente encontrou vários objetos
de uso corrente: algumas chaves, uma pequena navalha, um caderno em branco para
apontamentos e uma carteira com várias notas de dinheiro, mas nem a menor indicação
que pudesse orientá-lo sobre a personalidade do indivíduo.
— Não há nada para fazer aqui, Shoat — disse, erguendo-se. — Limparam-no
bem de todos os dados, antes de encarregá-lo deste trabalho.
Vários médicos e enfermeiros tinham-se aproximado deles. Shoat e Sid relataram
o ocorrido ao médico de plantão, encarregando-o de mandar recolher o cadáver do
34
gangster, até que os rapazes do gabinete de identificação viessem buscá-lo, para saber
de quem se tratava.
Depois se despediram. A enfermeira loura que cuidava de Lanham estava na
primeira fila. Evidentemente esperava que Sid lhe dissesse algo e ele não a
decepcionou.
— Adeus, mimosa — disse-lhe. — Vai pensar em mim esta noite? Eu já sabia.
Amanhã venho buscá-la para irmos dançar.
Era uma promessa feita sem a intenção de ser cumprida, mas os olhos da loura
brilharam de esperança, seguindo com o olhar o carro que se perdia na escuridão.
Sid ia assobiando uma melodia, enquanto Shoat dirigia em louca velocidade,
furioso por não ter conseguido impedir a morte de Lanham, levada a cabo em sua
presença.
— Quer virar o disco? — disse em tom brusco para Sid. — Estou ficando
enervado com essa musiquinha e vamos acabar nos estranhando.
— Shoat, você é o camarada mais burro de toda a América — resmungou Sid,
movendo a cabeça. — Isso que você chamou de musiquinha, é, nada mais nada menos,
do que a Valsa Triste de Sibelius.
— Bem, e daí? — perguntou Shoat, irritado.
— É a música apropriada para a circunstância, não acha? perguntou Sid
brincalhão. — Está vendo qual a diferença entre nós do FBI e vocês? Ficou num mau
humor dos diabos, só porque despacharam esse tipo, em nossas barbas. Vamos, Mike,
não seja estúpido e acalme os nervos. Aonde me leva?
— Para a casa de Ling — respondeu Shoat. — Felizmente deram tempo a Lanham
para que desembuchasse o que sabia. O chinês está inteirado de muitas coisas, mas é
preciso que no-las queira dizer. Escute, Sid: eu estava pensando no motivo por que o
homem que trouxe as joias foi para a casa de Ling, depois de ter tentado apoderar-se
delas.
— Talvez pensasse que Ling de nada soubesse .— sugeriu Sid.
— Isso é por que você não o conhece. É astuto como uma raposa e tem um
serviço de informações perfeito, que controla tudo o que sucede em São Francisco. Ou
muito me engano, ou já lhe comunicaram a morte de Lanham. Você acreditou na
história que ele nos contou?
— Só pela metade — replicou Sid. — Acho que ele foi roubar as jóias e que
conseguiu, mas que Ling foi informado e obrigou-o a entregá-las, recompensando-o
pelo serviço que lhe prestara, impedindo que esse Alvin ficasse com elas. Isso prova que
este chinês é um homem de verdade, Shoat, pois se quisesse teria arrancado as joias de
Lanham, sem dispender um único centavo. Escute — exclamou de repente — por que
me leva para casa de Ling? Acho que devia me consultar antes, estamos no mesmo
barco e...
— Mas, que besteira está dizendo? — interveio Shoat, diminuindo um pouco a
velocidade do carro.
— Acho que devemos ir...
— ... para a sua casa, para que Isabel me dê algo de comer — interrompeu-o Sid.
— Ouça, Mike: do aeroporto fui direto para a Delegacia para esperar que você chegasse.
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Não comi nada desde às oito horas e estou faminto. Está ouvindo? Fa-min-to! — repetiu
a palavra, destacando-a. — Meu Deus! Acho até que estou com câimbras no estômago
— lamentou-se. — Mike, seja bonzinho e leve-me para ver Isabel. Isso de ir à casa de
Ling pode esperar e, em troca, estou morrendo de vontade de provar os quitutes de
Isabel. Deve ser uma cozinheira maravilhosa, pois você está bem gordo.
— Você continua o mesmo comilão de sempre — replicou Shoat sorrindo, mas
deixando-se convencer pelo amigo.
Torceu a direção do carro e encaminhou-se para sua casa, enquanto Sid, vencedor,
assobiava White Christmas.
Mal podiam saber que aquela demora em visitar Ling-Tse-Chiang teria funestas
consequências para ambos.
CAPÍTULO IV
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Leary olhou-o com ceticismo mas não disse nada, embora pensando que se ele
tivesse a metade do dinheiro de Casey não se meteria em mais nenhuma aventura, de
qualquer tipo que fossem.
Com isso demonstrava ter mais bom senso ou menos ambição do que seu chefe,
mas como era este quem mandava e pagava regiamente, só lhe restava obedecer.
— Reúna os rapazes para daqui há meia hora — ordenou Casey. — Precisamos de
seis ou sete. Rápido.
Leary precisou mais do que o tempo estipulado para reunir a gang e enquanto
esperava sua chamada, Casey ficou refletindo no que planejava fazer.
Sim. Assaltaria a casa de Ling. Sabia muito bem que este vivia só, sem outra
companhia além dos velhos empregados chineses e que seria bastante fácil apoderarem-
se dele e obrigá-lo a confessar onde guardara as joias. Tinha algumas horas pela frente
para conseguir isso e conseguiria ou cortaria o pescoço de Ling. Assim, pelo menos, se
livraria do pior inimigo que tinha em São Francisco.
A boate foi-se esvaziando. Eram cerca de três horas quando a orquestra parou de
tocar e partiram os últimos frequentadores. Naquele momento Leary chamou-o por
telefone, dizendo que os rapazes aguardavam suas ordens.
— Está bem, Leary — respondeu Casey. — Venham cá. Temos que ultimar
alguns detalhes.
Depois, enquanto esperava Leary e os demais, foi recolhendo todo o dinheiro e
objetos de valor que possuía, pois pensava fugir com as joias abandonando seus
homens, assim que fosse realizado
Sidney Eskev dormiu um sono só durante a noite toda, na cama que Isabel
preparara para ele, sem que as preocupações perturbassem seu sono.
Mas Shoat não parou de agitar-se na cama. Todas as horas que, no final da noite,
soaram na catedral de São Patrício, penetraram em seu cérebro, produzindo-lhe o efeito
de uma chamada à luta.
Por fim, não pôde mais suportar a impaciência e ergueu-se na cama. Olhando para
o relógio viu que eram oito horas da manhã e compreendeu que, pelo menos, na última
hora, havia dormido um pouco.
Bateu com os nós dos dedos na porta de Sid. Este era madrugador por
temperamento e já estava levantado, fazendo alguns movimentos de ginástica no centro
da peça.
— Está disposto a trabalhar, Sid? — perguntou-lhe Shoat.
— Estou novo em folha, menino, e louco para agir, assim que quando quiser,
podemos ir ver aquele chinês.
Pouco depois, saiam da casa de Shoat. A manhã estava relativamente fria, para o
clima temperado de São Francisco. Uma neblina procedente do Oceano e da baía
envolvia a cidade, impedindo a visão à larga distância.
Caminharam apressados e ao chegarem a Market Street, Sid quis correr para um
ônibus que começava a movimentar-se.
— Espere, Sid — disse Shoat. — Será melhor tomarmos um táxi... e mesmo assim
tenho pressentimento que vamos chegar tarde.
37
Olhara em volta. Um táxi acabava de parar junto à calçada e um homem descia
dele. Aproximaram-se um pouco e puderam observar o indivíduo pagar a corrida e
afastar-se. Ambos, então, precipitaram-se para o táxi. Sid foi o primeiro a chegar junto a
ele e já abria a porta para entrar, sem perceber que outra pessoa fazia o mesmo pela
porta oposta.
O resultado foi que suas cabeças chocaram-se violentamente. O chapéu de Sid
enterrava-se dois dedos mais para suas orelhas, enquanto a moça com quem se havia
chocado lançava um grito de dor, ao mesmo tempo em que retrocedia violentamente e
era obrigada a agarrar-se na porta para não dar com os ossos no chão molhado pela
neblina.
Furiosa, a moça conseguiu manter o equilíbrio e deixou-se cair no assento do táxi
junto a Sid que fazia o mesmo, enquanto Shoat e o chofer soltavam uma gostosa
gargalhada.
— Você tem a cabeça mais dura do que uma pedra — resmungou Sid.
— E você é o tipo mais grosseiro que já encontrei. Não tem olhos? — respondeu a
moça furiosa.
— Claro que sim. Dois como você. E esse desaforo que acaba de me dizer,
também pode ser aplicado para você.
Bufando ela ia responder-lhe, mas conteve-se e se jogou para trás, no assento. Só
então Sid pôde notar que ela era muito bonita.
O cabelo castanho, bem penteado sobressaía graciosamente de um gorrinho verde,
uma espécie de boina que lhe cobria justamente a parte posterior da cabeça. O narizinho
arrebitado e o queixo saliente davam-lhe um ar decidido, que agradou a Sid. Quanto a
seu corpo devia ser algo divino, a julgar pelas formas que se adivinhavam pelo
entreaberto abrigo de peles que usava. E ainda se correspondia às pernas que Sid estava
contemplando, calçadas por finas meias de nylon e terminadas na parte inferior por pés
pequenos e bem calçados, devia ser algo digno de admirar-se.
Tudo isso Sid viu num rápido olhar; mas, apesar dos encantos da moça, não estava
disposto a ceder-lhe o carro.
— Suba, Mike — disse — A senhorita vai descer.
— Quem foi que lhe disse? — replicou ela, erguendo-se no assento.
— Eu entrei primeiro no táxi — replicou Sid, esquentado.
— Entramos ao mesmo tempo — respondeu ela. — Por isso choquei nesta pedra
que tem um lugar da cabeça. E faça o favor de tirar o chapéu, para que eu não seja
obrigada a rir.
Sid puxou o chapéu com força para cima, colocando-o na posição certa.
Enquanto isso, Shoat entrara no carro, sentando-se num dos banquinhos. Sid e a
moça continuavam discutindo e o chofer, por fim, voltou-se para eles.
— Escutem, vocês aí — disse-lhes. — Pensam que vou ficar aqui toda a manhã
hein? Participo-lhes que o taxímetro está correndo... Por que não se perguntam aonde
vão? Talvez seja o mesmo caminho e -...
— Eu não iria com esse grosseiro senhor nem até a esquina, mesmo que não
houvesse outro táxi em São Francisco — respondeu a moça, com ironia.
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A discussão ia recomeçar e Shoat decidiu-se a intervir. Estava certo de conhecer
aquela moça de algum lugar, mas não podia precisar onde a vira antes.
— Escute, senhorita. Nós temos muita pressa e acho que a senhorita também.
Diga-nos para onde vai. Poderemos deixá-la e depois nós continuaremos — propôs.
Ela se acalmou um pouco, embora continuasse olhando furiosa para Sid.
— Talvez o senhor tenha razão — respondeu. — Vou para o bairro chinês e isto
deve ser uma volta muito grande para os senhores.
Sid deu um pulo do assento.
— Escute, menina. Foi para isso que discutimos tanto? Nós também vamos para
lá, sabe? Só falta que nos diga que vai à casa de Ling-Tse-Chiang.
— É exatamente para onde vou, cavalheiro — replicou a moça com mordacidade,
acentuando a última palavra.
— A estas horas? — perguntou Shoat, achando estranho. — Trabalha lá?
— E já de manhã tenho de encontrar com dois patetas — murmurou ela. —
Perguntas e mais perguntas... Que é que isto lhes interessa?
Shoat voltou-se para o chofer que, sem que ninguém lhe tivesse ordenado, pusera
o carro em movimento ao ver que, finalmente, tinham entrado num acordo, e deu-lhe
instruções sobre o lugar onde devia levá-los.
— E ande depressa, amigo. Por favor.
O chofer resmungou algo, mas pisou no acelerador. À grande velocidade
atravessaram inúmeras ruas até chegarem na parte sul da cidade, onde estava situado o
bairro chinês e depois de passarem a Paul Avenue, penetraram nele.
À medida que avançavam em seu interior, as ruas iam-se tornando mais estreitas e
sujas. Velhos edifícios de dois ou três andares erguiam-se em ambos os lados da rua,
ocupada por uma multidão barulhenta, que falava e discutia em inglês e nos diferentes
dialetos chineses.
Seus trajes eram dos mais variados possíveis. Chineses vestidos à européia
misturavam-se com outros mais velhos que conservavam os trajes típicos, legados por
seus antepassados. Calças estreitas e de cores vivas, blusas sem bolsos que lhes
chegavam até o meio das coxas, com dragões e outros motivos bordados no peito, um
pequeno gorro sobre a cabeça e, como calçado, leves sandálias que deixavam a
descoberto a maior parte dos pés.
Todos eles moviam-se lentamente, como se o tempo tivesse perdido o valor, em
redor de tendas pequenas e escuras em cujo interior eram vendidos os mais variados
artigos. No exterior, grandes cartazes escritos em caracteres chineses e ingleses, serviam
de chamativos anúncios que propagavam a excelência dos produtos que eram ali
vendidos.
Apesar de ser ainda muito cedo, as ruas estavam movimentadas e as pessoas
desciam das calçadas, invadindo o caminho e dificultando a passagem dos veículos. O
chofer buzinava continuamente, mas mesmo assim a marcha era demasiada lenta para a
impaciência de Sid e de Shoat.
Não havia sido trocada mais nenhuma palavra entre eles e a moça, cujo
sobrecenho continuava carregado enquanto olhava pela janela, com ira evidente ar de
desdém estampado no rosto.
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Chegaram, por fim, diante da casa de Ling. Era um edifício de dois andares. A
porta de entrada era de rica madeira trabalhada e se abria no fim de quatro ou cinco
degraus de pedra, limitados nos dois lados por corrimãos de ferro. A um lado da porta
havia duas janelas e outras quatro se abriam no andar superior, mas por nenhuma delas
saía o menor sinal de vida.
Os três desceram do carro e Sid perguntou ao motorista quanto lhe devia.
— Um dólar e dez centavos — disse este, olhando o taxímetro.
Sid ia pagar, mas naquele momento a voz da moça o deteve.
— Correspondem-me cinqüenta e cinco centavos — disse — Aqui estão.
Sid olhou para ela e logo desandou a rir.
— Orgulhosa hein? — disse.
Ela o fixou com altivez e começou a andar em direção à casa, diante da qual
estava Mike, tocando repetidas vezes a campainha.
— Não sei se não há ninguém, ou se não querem abrir — resmungou, quando os
viu ao seu lado.
Tiveram de esperar bastante tempo antes que a porta se abrisse e surgisse no vão a
delgada figura de um chinês, cujos ombros se encurvavam para a frente pelo peso dos
anos. Seus olhos examinaram, alternativamente, os dois homens e a moça,
reconhecendo esta.
Entretanto, não fez o menor movimento para facilitar-lhes a entrada, perguntando-
lhes o que desejavam, em péssimo inglês.
— Ver mister Ling — respondeu Mike, com impaciência.
— Venerável senhol não estar em casa — disse. — Saiu bem cedo e não voltar
antes de muitos dias.
Shoat olhou-o e a moça fez o mesmo perguntando-se por que o velho Sun-Yens
lhe dirigia aqueles sinais com os olhos como se quisesse dizer-lhe algo.
— Está bem, Yun — replicou a moça, iniciando a meia-volta — Voltarei outro
dia. Ling me convocou por telefone, mas deve ter esquecido.
Sid e Mike também se retiraram e a porta tornou a fechar-se, mas mal se tinham
afastado alguns passos quando o primeiro disse:
— Mike, está acontecendo algo estranho na casa desse chinês. Enquanto o velho
nos estava falando, tive a impressão de que queria advertir-nos.
— Que penetração tem o senhor! — exclamou a moça que se havia afastado um
pouco, voltando-se para eles — e agora mesmo vou chamar a polícia. Se Ling me
convocou para esta manhã, é porque iria estar em casa.
— Um momento, senhorita — Interrompeu-a Sid.
— Não tem motivos para chamar a polícia, porque a polícia somos nós, entendeu?
Ela olhou-os com um novo interesse, depois de examinar a placa que Sid tinha nas
mãos.
— Do FBI, hein? — replicou, com sarcasmo — Devia ter suposto isso, ao ver
suas maneiras.
— Não é hora para discussões, beleza — replicou Sid, deixando-a um pouco
zonza —, mas para que nos responda a algumas perguntas.
— Mais ainda? Mas se já passou a manhã perguntando-me.
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— Para que vinha à casa de Ling? — perguntou-lhe Shoat.
— Telefonou-me ontem dizendo-me que viesse vê-lo porque me poderia fornecer
dados muito interessantes sobre o crime do hotel Boa Vista. Suponho que os senhores
sabem a que me refiro não? — seu tom era mordaz mas nenhum dos dois deu-lhe
importância. — Como a polícia sempre é a última a saber...
— A senhora é muito espirituosa — replicou Sid —; mas espere que terminemos
este assunto e lhe contarei outra anedota que vai lhe fazer rir sem parar. Por que lhe
interessam estes detalhes?
— Sou redatora do Weekly Stamp — replicou ela.
— Puxa! — exclamou Shoat — Bem que eu estava pensando que seu rosto não
me era desconhecido. Certamente já andou rodando em volta de mim, mais de uma vez.
Sabe quem sou?
— Claro. O tenente Michael Shoat — replicou ela — Acha que se não o tivesse
reconhecido teria vindo com os senhores? Fiquei curiosa para saber o que é que vinham
falar com Ling e por isso os acompanhei.
— Sid — disse Shoat sorrindo — tenho o prazer de apresentar-lhe a senhorita
Helen Chartier. É jornalista e dirige a seção "Crimes Vividos", numa revista da cidade.
— Tenho grande desgosto em conhecê-la, senhorita Helen — replicou Sid,
agressivo.
— O desgosto é todo meu — respondeu ela no mesmo tom. — Não é nada
agradável encontrar-se com um selvagem, em pleno coração de Frisco.
— Tampouco se encontra todos os dias uma moça histérica, com a cabeça cheia
de crimes e assassinatos — respondeu Sid, mordaz.
— Histérico vai ficar você — contestou Helen, levantando a mão direita.
Sid agarrou-lhe o braço quando a mão da jornalista já estava a poucos centímetros
de seu rosto e apertou-o com tanta força o que a obrigou a soltar um grito de dor.
— Isso que ia fazer, demonstra que está nervosa menina. Vamos, beleza, volte
para casa. Trataremos de lhe servir numa bandeja todos os pormenores do crime, mas
seja boazinha. Dê um beijo no papai aqui e suma em seguida.
Sid falara com voz suave, mas o tom de sua voz desmentia a troça que suas
palavras pareciam encerrar.
— Senhorita — disse Shoat, por sua vez —: vá embora daqui. Vamos entrar na
casa de Ling, e é possível que haja luta.
— Entrarei com vocês — propôs ela, de olhos brilhantes.
— Isto não é para uma menina bonita como você — replicou Sid e, pela primeira
vez, ela percebeu que ele se preocupava com sua segurança.
Mas seus argumentos foram inúteis. Shoat e Sid não deixaram que ela voltasse
com eles para a casa. Claro que aquilo não tinha grande importância para Helen, pois
conhecia de cor e salteado a casa de Ling e sabia que se podia entrar nela pelos fundos.
Entretanto, nada disse aos dois policiais: primeiro porque pensava estar muito
ressentida com eles, especialmente com aquele bruto do FBI, de ombros largos, que se
afastava em direção à casa... mas que era tão atraente! E segundo, porque pensava
utilizar aquele acesso à casa de Ling em proveito próprio.
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"De maneira que isso não são cousas para meninas bonitas, hein? — murmurou.
— Maldita seja tua bela cara! — referia-se a Sid. — Vou te mostrar o que sou capaz de
fazer."
Distraidamente meteu-se por uma ruela transversal, encaminhando-se para a parte
posterior da casa de Ling, que dava para o cais, a poucos passos da doca sul.
Entrementes, Mike e Sid chegaram diante da porta da casa. Este apertou a
campainha e ambos esperaram de nervos tensos, que a porta se abrisse, mas se assim
não acontecesse? Então não teriam outra solução do que entrarem à força na casa.
Sid começou a examinar a fachada, procurando o ponto mais acessível, mas não
tiveram necessidade de usarem aquele recurso extremo, pois a porta se abriu e o mesmo
velho criado chinês apareceu no umbral.
— Já lhes disse que meu amo... — começou ao vê-los, mas Sid interrompeu-o
bruscamente.
— Não importa o que tenha dito. Vamos entrar. Afastou o empregado com um
gesto brusco e empunhou a Luger que trazia no bolso do impermeável, pois, mais ou
menos, já sabia o que iria encontrar por trás da porta.
Mike entrou atrás dele e não estavam enganados em suas suposições. O homem
que controlava escondido as palavras de Sun Yen com uma pistola nas mãos, parou
surpreendido por uma fração de segundo ao ver a atitude de Sid, mas este não lhe deu
tempo de refazer-se. Carregou contra ele como um touro, sem dar-lhe tempo de usar a
arma, descarregando-lhe atrás da orelha uma violenta coronhada, que fez com que o
gangster soltasse um ronco, antes de cair por terra.
Mas alguém, do alto da escada que subia do andar inferior, presenciara a cena.
Uma pistola detonou no minúsculo hall e um projétil assobiou uma canção mortal junto
a eles.
Antes que o indivíduo pudesse disparar de novo, a Luger de Sid detonou várias
vezes enquanto Shoat arrastava Sun Yen para debaixo da escada.
O homem que havia disparado tombou para a frente e rolou pelas escadas até os
pés de Sid, destroncando o pescoço na queda, o que acelerou sua morte.
Sid reuniu-se a Shoat, que interrogava o velho chinês.
— Diz que uns homens assaltaram a casa esta madrugada — explicou ao agente
do FBI. — Não os conhece, mas não são chineses. Apanharam-nos desprevenidos e
interrogaram Ling, procurando averiguar onde estavam as joias; mas este se recusou a
dizer-lhes, em vista do que o estão torturando, sem lhe arrancarem meia palavra. Disse
que revolveram a casa de cima abaixo e que estão furiosos porque não encontraram as
joias. Ouviu que falavam em matar a Ling...
— Espere, Shoat — interrompeu-o Sid. — Esse tipo nos dirá mais coisas. Já
começa a dar sinais de vida.
Correu para a porta, esperando receber algum balaço de algumas das portas que
davam para o hall, mas ninguém atirou. Sujeitando o gangster pela gola do paletó,
levou-o aos empurrões para o abrigo sob a escada, fazendo-o sentar no chão.
Em seguida agachou-se em frente dele, porque o lugar não lhes permitia ficarem
de pé, e perguntou:
— Quem assaltou a casa?
42
O gangster fechou-se num mutismo completo e Sid desferiu-lhe uma violenta
bofetada, o que lhe fez esguichar sangue do nariz.
— Isto não é nada, comparado com o que te espera se não falares — rugiu, mas o
outro não abriu a boca.
Então Sid colocou uma mão sobre seu ombro direito, pegou entre seus fortes
dedos a extremidade do músculo e começou a apertar. A princípio o gangster resistiu ao
apertão, mas, no fim, lançou um gemido e se retorceu, tentando, inutilmente, livrar-se
daqueles dedos de ferro. Sua fronte molhou-se de suor frio, ao mesmo tempo em que
respirava com dificuldade, mas Sid não se deixou comover e continuou apertando, até
que o homem não pôde resistir mais.
— Solte-me — implorou. — Solte-me e lhe direi... — Sid soltou-o e esperou.
— Quem está lá em cima é Casey Barnett — disse o bandido com voz
entrecortada pela dor que ainda sentia no ombro e que se espalhava pelos membros. —
Quer apoderar-se das joias e...
— Há quantos homens com ele? — perguntou Shoat, sem deixar de vigiar as
outras portas do hall.
— Éramos oito — informou o gangster. — Surpreendemos Ling e...
— Isso já sabemos. Encontraram as joias?
— Ainda não. Por isso continuamos aqui, apesar do perigo que corremos. Casey
está como louco e jura que matará Ling se este não lhe disser onde estão. O fracasso no
hotel deixou-o furioso e não sabe mais o que faz.
Aquelas palavras esclareceram muitos pontos que ainda estavam escuros para os
agentes sobre os acontecimentos do dia anterior. O gangster estava com a veia de
confissão e era o momento propício para arrancarem dele tudo o que desejavam saber.
— Quem pôs a bomba no avião? — perguntou-lhe Sid, de dentes, cerrados.
Da resposta do gangster é que dependia ele continuar na casa ajudando Mike ou
ter que partir, deixando-o arranjar-se como pudesse.
— Foi Wong. Um chinês — respondeu o bandido, sem vacilar, ao ver que pelo
jeito, aqueles homens estavam inteirados de tudo.
— Foi Casey quem o mandou, não é? — perguntou Shoat, e o outro confirmou
com a cabeça.
— Você tinha razão em suspeitar que os dois acontecimentos estavam
relacionados, Mike — disse Sid. — Agora que já temos certeza que foram os homens
que estão aqui dentro, garanto que não me escaparão. Têm culpa suficiente para irem
para a cadeira elétrica, e juro que eu os levarei de muito boa vontade.
— Se antes eles não acabarem conosco, Sid. Esta calma não me parece nada boa.
Os tiros devem ter sido ouvidos na casa inteira e no entanto, ninguém nos ataca. Sun,
onde está o telefone?
— É inútil, senhol. Coltalam todos os fios — respondeu o chinês.
— Vamos, Mike. Temos que tentar algo por Ling. Devem estar em cima,
proporcionando-lhe torturas infernais.
— Que fazemos com este? — perguntou o tenente, mostrando o prisioneiro.
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— Este eu arranjo em seguida — disse Sid. Voltou-se para o gangster e obrigou-o
a dar meia-volta. Em seguida, sua mão rígida desceu com força, golpeando com o canto
o pescoço do homem que, pela segunda vez em poucos minutos, caiu desmaiado.
— Sun, vigie-o — ordenou Shoat ao velho. — Logo que veja que vai recobrar os
sentidos, dê-lhe com algo na cabeça.
— Mim dar nele, antes que se acolde, senhol — garantiu o velho.
Mas nem Sid, nem Mike já o escutavam porque, de revólver em punho,
começavam a subir as escadas, cautelosamente.
CAPITULO VII
No patamar da escada onde esta dava volta, havia uma janela que iluminava o
hall. Sid aproximou-se dela. A seus pés encontrava-se o cais do porto sul e, um pouco
adiante, o mar. Conseguiu distinguir a branca silhueta do que parecia ser um iate de
recreio, que se balançava a alguns metros do cais, separado dos outros barcos lá
ancorados. Continuou a subida, seguido por Mike Shoat, levando ambos as pistolas
empunhadas.
Aquele silêncio nada de bom anunciava. Teriam preterido os tiros e o ruído da
luta, porque ao menos saberiam como agir, em vez daquele silêncio terrível e opressor
que os rodeava, cheio de sinistros presságios.
Seria possível que tivessem chegado tarde e que Casey Barnett e seus homens
tivessem fugido, amparados pelos dois sequazes que contra eles haviam lançado?
Não o permitisse Deus. Agora que sabiam contra quem lutavam desejavam agir,
mas ninguém saía para enfrentá-los. Entretanto, Sid tinha a impressão que muitos olhos
os vigiavam, e esta sensação aumentou quando chegaram ao final da escada e se
encontraram num hall igual ao primeiro, que havia no segundo andar.
Várias portas alinhavam-se em um dos lados. Sem a menor vacilação, Sid dirigiu-
se para uma delas, abrindo-a com um safanão. Era um gabinete e ali não havia ninguém,
mas apresentava o aspeto como se uma legião de selvagens nele tivesse pernoitado.
As gavetas da mesa estavam jogadas no chão, com todo seu conteúdo espalhado.
Um armário de madeira trabalhada estava aberto e seu interior vazio, com livros e
papéis atirados no chão, perto dele. Uma secretária fora forçada com golpes de armas e
sua tampa aparecia destroçada. Um frasco de tinta derramara-se sobre o tapete,
produzindo sobre ele uma grande mancha azul. O cofre de joias também mostrava suas
entranhas aos olhos assombrados dos dois policiais.
Sid aproximou-se do cofre.
— Belo trabalho, Mike! — exclamou. — Quem fez isto, sabe bem como se abre
um cofre.
— Olhe, Sid. Não respeitaram nem as cortinas, nem os móveis.
Era verdade. As duas poltronas e o sofá de um trio, que formavam um recanto
acolhedor, apareciam destroçados, mostrando suas entranhas de estopa que saíam por
vários rasgões, que alguém fizera no forro de veludo com uma faca.
— Procuraram bem. Estou vendo — respondeu Sid. — Vamos para outra peça.
Será possível que tenham ido embora?
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Mas não. Casey Barnett não se fora. Permanecia na casa com seus sequazes,
fazendo um último esforço para encontrar as joias, e Sid e Mike logo tiveram prova
disso, quando se voltaram para deixarem o gabinete.
Na porta deste, dois homens os contemplavam sorrindo. Um deles empunhava
uma pistola e o outro uma metralhadora, com um dedo no gatilho, pronto para disparar.
— Encontraram o que procuravam? — perguntou o do revólver. — Se assim foi,
tiveram mais sorte do que nós.
Nem Sid, nem seu companheiro, disseram uma única palavra.
— Larguem as armas! — continuou Leary, impassível. — Imediatamente! E
ergam os braços!
Quando obedeceram, aproximou-se deles para revistá-los, enquanto o homem da
metralhadora redobrava a vigilância, desconfiando daquela passividade.
— Vimos como trataram Castle — explicou Leary — e isso vai custar-lhes caro.
Vocês são tiras?
— Que lhe parece? — perguntou Sid, sem o menor sinal de nervosismo ou
intranquilidade.
Examinava friamente a situação. O homem da metralhadora era o primeiro de
quem devia se ocupar, pelo perigo que a arma representava.
— Quem pergunta sou eu — grunhiu Leary. — Vamos, toquem para frente.
Saíram do gabinete, bem vigiados pelos dois bandidos, que não os perdiam de
vista nem um minuto. Leary mostrava-lhes o caminho e o homem da metralhadora ia
atrás, com a arma apontando-lhes à altura da cintura.
Desta maneira chegaram a outra peça de amplas dimensões, cuja porta se abria
para um hall.
Sid passou os olhos pela peça, captando muitos detalhes. Era de amplas
dimensões e supôs que devia ter sido dividida em vários compartimentos por alguns
biombos de belos desenhos, que se viam jogados por terra, junto à parede. Os móveis
eram bons e variados e, entre eles sobressaíam algumas miniaturas e arcas chinesas, que
deviam valer milhões de dólares, mas tudo estava na maior desordem, como no gabinete
que acabavam de deixar. Também por ali havia passado a ânsia febril de Casey para
encontrar as joias.
Havia três homens na peça. Um deles era Ling, estendido numa poltrona de couro.
Vestia um quimono de seda de cor marrom, bordado com grandes flores amarelas e
verdes, mas seu lastimável estado foi o que atraiu a atenção de Sid e Mike.
Seu rosto aparecia ferido, mostrando o terrível tratamento que recebera. Tinha um
olho arroxeado e um filete de sangue escorria-lhe pelas comissuras dos lábios. Sorriu
tristemente ao vê-los chegar e disse em voz fraca:
— Bem-vindo, mister Shoat. O senhor não chega no momento mais apropriado...
O outro homem que ali estava era Casey, em pessoa. Mostrava uma fisionomia
carregada e passeava de um lado para outro, com um cigarro nos lábios, enquanto outro
homem vigiava Ling, com uma pistola nas mãos.
Casey interrompeu o passeio ao vê-los entrar e retirou o cigarro dos lábios.
— Enfim conseguiu apanhá-los, hein Leary? — disse. — Está bem. Instale-os ali.
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Seu dedo mostrava um sofá, que havia perto de Ling. O homem da metralhadora
sentou-se ao lado de outro gangster e os dois ficaram vigiando os três homens que
estavam à frente deles.
— Seldon não voltou? — perguntou Leary.
— Ainda não — respondeu Casey — mas não deve tardar — voltou-se para Ling
e continuou:
— Mas se as joias não estiverem onde você disse, filho de Satanás, vou arrancar-
lhe os olhos com esses dedos.
— Tudo pode ser esperado de um assassino degenerado como você — replicou
Ling, calmamente, e Casey desferiu-lhe uma violenta bofetada em seu inchado rosto, o
que não conseguiu alterar a impassível serenidade de Ling.
Finalmente chegou Seldon, acompanhado por dois homens. Um deles apontava
uma pistola para um velho chinês, muito parecido com o que lhes abrira a porta, que
tremia a olhos vistos. Seldon trazia nas mãos uma maleta e um sorriso de vitória nos
lábios.
— Finalmente encontrei-a, chefe! — exclamou. — Estava onde este sapo disse.
Casey arrebatou-lhe a maleta. Colocou-a sobre uma mesinha de centro e abriu-a,
retirando seu conteúdo. Uma cascata de luz e resplendores surgiu das joias que ia
colocando sobre a mesa. Colares de pérolas de diversos tamanhos, diademas crivados de
pedrarias, broches, pregadores, uma orgia de resplendores e luzes avaliados em um
milhão de dólares, apresentou-se aos olhos assombrados dos presentes.
Casey mergulhou as mãos naquele tesouro, pelo qual lutara e matara e, por um
momento, esqueceu-se de tudo o que o cercava, perdido num êxtase de ambição.
Leary e os dois recém-chegados não puderam reprimir uma exclamação de
assombro ante tanta magnificência, enquanto seus olhos brilhavam de cobiça. Garland e
Huston, que vigiavam os três homens, não puderam deixar de desviar os olhos para
aquele tesouro, relaxando, por um segundo, a vigilância.
Sid não perdeu tempo. Estava sentado em frente a Garland e, rapidamente, suas
pernas se estenderam dando um impulso ao seu corpo, o que fez com que se fosse
chocar, com terrível violência, contra o gangster. O sofá onde Garland estava caiu para
trás e os dois homens rolaram para o chão, perdendo Garland a metralhadora. Shoat
lançou-se em sua direção. Se conseguisse apoderar-se da arma, seria dono da situação,
mas Huston percebera seu propósito e se lançou sobre ele, quando sua mão já tocava a
arma. Ambos caíram por terra, enlaçados numa luta feroz e Leary, Seldon, Clive e o
próprio Casey, saindo de seu êxtase, correram em auxílio dos companheiros enquanto
Ling contemplava a cena, incapaz de mover-se por causa dos castigos recebidos, mas
fez um sinal ao velho criado que desapareceu da peça, imediatamente.
A luta prosseguiu com terrível violência. Sid pôs Garland fora de combate com
uma direita nos queixos e, quando Clive, lançou-se em suas costas, fê-lo dar uma volta
projetando-o contra Leary, que se dispunha a arrebentar o crânio de Shoat, com seu
punho gigantesco.
Mas a situação mostrava-se insustentável. Eram cinco homens contra dois e os
gangsteres, enquanto lutavam, esperavam o momento oportuno para descarregarem suas
armas contra os rivais, sem medo de ferirem os próprios companheiros.
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Uma cortina despencou com o calor da luta. Sid observou que ela ocultava uma
porta e, sem deixar de lutar, foi-se aproximando dela, enquanto Ling fazia sinais de
aprovação com a cabeça.
Sid encostou as costas na porta e empurrou-a. Esta abriu-se sem dificuldade.
Shoat foi-se aproximando dele e os gangsteres percebendo suas intenções lançaram-se
como uma tromba contra eles, tentando impedir lhes a fuga.
O revólver de Casey detonou duas, três vezes, mas já Sid e Mike haviam
transposto a porta com um salto e mergulhavam na penumbra de um corredor, mal
iluminado por uma pequena lâmpada de azeite. No final deste havia uma escada e os
dois amigos lançaram-se por ela, perseguidos por três dos inimigos.
A escada terminava em outro corredor, igual ao primeiro, em cujos lados abriam-
se várias portas. No fim dele havia outra e Sid imaginou que devia levar ao exterior, de
forma que dirigiu-se para esta, seguido por Mike. Chegavam junto à porta, quando os
gangsteres surgiram no extremo do corredor. Assim que os viram começaram a disparar
contra eles, e Sid foi obrigado a renunciar a abrir a porta, em vista do que, com um
salto, meteu-se na primeira peça que viu, seguindo Shoat e fechando a porta atrás de si.
Encontraram-se numa sala desprovida de janelas, de forma que a escuridão mais
completa os cercou. Do outro lado, os gangsteres descarregavam violentos golpes contra
a porta tentando derrubá-la, mas a madeira resistiu a todos seus esforços, em vista do
que Leary ordenou-lhes que se retirassem.
Este, antes de se afastar, apanhou uma corda que havia no chão e amarrou no
trinco, prendendo a outra ponta num enorme gancho que havia na parede oposta do
corredor.
"Isto nos garante algumas horas, até que possam sair", murmurou.
Quando chegou junto a Casey, os dois homens que o haviam acompanhado
estavam lhe relatando o fracasso, mas Casey não se enfureceu por isto.
— Temos as joias, que é o mais importante — disse. — Prefiro, quase, o que você
fez, Leary, pois matar um polícia é negócio muito sério.
Leary olhou-o sem saber se estava falando sério, ou brincando.
— Vamos — disse Casey — Nada mais temos a fazer aqui. O iate está ancorado
no porto? — perguntou.
— Sim — replicou Seldon — Vi-o quando fui buscar as joias. Nelligan também
está no cais, com a lancha.
— Andem, então — ordenou Casey — Leary, agarre Ling.
— Que vai fazer com ele?
— Levá-lo conosco. Depois verei se exijo um resgate por essa figura gorda, ou se
jogo na água para dar um festim aos peixes.
Leary e Seldon arrastaram Ling para fora da sala. Atrás deles saiu Casey,
carregando a maleta nas mãos, enquanto Garland, Huston e Clive caminhavam atrás,
empunhando pistolas para guardarem a retirada.
Desta maneira chegaram a uma porta situada no andar térreo, que se abria para o
cais. A mesma, precisamente, por onde, momentos antes, Helen Chartier penetrara na
casa.
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Já estavam junto a ela quando Casey se deteve, sorrindo ante a ideia que lhe
ocorrera.
— Escute, Huston, fique aqui com Garland. Quando chegarmos ao barco, lhes
mandarei a lancha outra vez. Enquanto isso, vão acumulando coisas combustíveis e
toquem fogo. Depois vocês vão para o barco. Fazendo as coisas com cuidado, ninguém
notará o fogo até que vocês cheguem a bordo.
Nem Huston, nem o companheiro gostaram da ideia, mas não tinham outro
remédio senão obedecerem às ordens de Casey porque o conheciam muito bem e, com
ar aborrecido, viram-no afastar-se em direção à lancha.
Enquanto isto, Sid e Mike, percebendo que os gangsteres se haviam afastado da
porta do quarto onde estavam encerrados, procuraram abri-la, mas esta resistiu a todos
os seus esforços.
— Devem tê-la prendido por fora — comentou Shoat.
— Shoat, você tem um fósforo? Parece-me que não estamos sós aqui — replicou
Sid.
O tenente tomou uma caixa de fósforos, tirou um e riscou-o.
A pequena chama dissipou as trevas que os envolviam, revelando-lhes logo um
quadro macabro.
Diante deles havia um homem estendido no chão, imóvel. Tinha as roupas
empapadas de sangue e um punhal cravado no coração. Seus olhos vidrados estavam
fixos em Sid, mas este estava certo de que já nada viam.
— Quem será? — perguntou.
— Não sei — replicou Shoat — Diabo! — exclamou, ao sentir nos dedos a
queimadura produzida pela chama do fósforo que acabara de consumir-se.
— Olhe bem para ele. Mike! Não nota nada estranho em suas roupas?
Shoat olhou com atenção e teve que acender outro fósforo para continuar
examinando o cadáver.
— Não — replicou, por fim.
— O sangue que empapa suas vestimentas, não saiu todo desta ferida. Tem outra
nas costas, produzida também por uma faca e...
— Então é Alvin Oakley, o homem que trouxe as joias de Formosa — exclamou
Shoat, interrompendo-o.
— Exatamente — concordou Sid. — Não acenda mais fósforos — ao ver que o
tenente jogava fora o último que se apagara — Ainda podem fazer-nos falta.
— Quem o teria matado? — perguntou Shoat, na escuridão — Teria sido Ling?
— Não creio — respondeu Sid — Mas isto não nos importa muito. O principal é
saber como vamos sair daqui.
Os minutos passavam e Sid estava impaciente. Aqueles bandidos teriam tempo de
fugir e depois seria muito difícil seguir-lhes a pista e prendê-los.
De súbito, suas narinas abriram-se, aspirando o ar.
— Não nota nada, Mike? — perguntou.
— Não sei a que se refere — replicou este — Meu Deus! Que escuridão! Podia
ser cortada com uma faca.
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— É fumaça, Mike. Já faz tempo que estou sentindo o cheiro, mas agora só é que
tive certeza. Não está sentindo?
— Sim — replicou Shoat, inquieto — Já estou sentindo, também. Será que vão
nos enfumaçar como chouriço?
— Se fosse só isso — contestou Sid em tom sombrio — Mas receio muito que
não pretendam só nos enfumaçar.
A fumaça aumentava aos poucos dentro da sala escura, fazendo seus olhos
lacrimejarem. Shoat começou a tossir, com espasmos.
— Acenda um fósforo — disse lhe Sid, entre soluços e tosse — Para que ao
menos possamos ver de onde vem.
Shoat obedeceu com dificuldade. A fumaça penetrava por debaixo da porta. Para
que assim fosse, deviam ter acendido muito perto dela uma fogueira, ou tocado fogo na
casa. Sid inclinou-se para esta segunda hipótese, mas não havia tempo para raciocinar e
somente para agirem com rapidez, se não quisessem morrer sufocados.
Olhou para Shoat. O tenente tinha o rosto congestionado pela tosse e falta de ar.
Ele próprio sentia uma terrível ânsia de ar. Shoat levou a mão direita ao pescoço,
rasgando a camisa, enquanto se apoiava à parede para evitar cair.
— Sid... Sid! — exclamou, com voz rouca — Não posso... não posso... mais...
Um acesso de tosse cortou-lhe a voz e jogou o fósforo no chão. Buscando forças
em sua fraqueza, Sid lançou-se contra a porta, dando-lhe violentos golpes com as costas,
sem obter nenhum resultado. Voltou à carga. Nada. A porta resistia aos seus golpes. Sid,
então, desvencilhou-se do impermeável e colocou-se sobre a fresta que havia debaixo da
porta. Assim, pelo menos, evitaria que a atmosfera se tornasse mais viciada. Depois
continuou investindo contra a porta, até que as forças lhe faltaram.
Exausto e sufocado pela violenta tosse que o dominava e pela falta de ar, apoiou-
se contra ela. Era desesperante morrerem assim, presos como ratos naquela armadilha
mortal, enquanto os criminosos fugiam livremente. Decerto haviam ateado fogo à casa e
ela toda, inclusive aquela habitação, seriam tomadas pelas chamas em pouco tempo.
Mas até lá eles já estariam mortos.
Depois encontrariam seus cadáveres carbonizados e quando quisessem identificá-
los se o conseguissem, Casey e seus sequazes estariam bem longe dali.
Lutou heroicamente para livrar-se da modorra que o invadia aos poucos. De
súbito, pareceu que alguém chamava Mike.
— Tenente Shoat, tenente Shoat! — exclamou uma voz fraca que parecia vir de
cima.
Sid olhou naquela direção. Uma tampa abrira-se no teto e por ela assomavam dois
rostos, que mal podia divisar.
— Estamos aqui — gritou com uma voz que ele próprio já não podia reconhecer
como sua. — Pronto. Joguem uma corda.
— Aguentem um pouco. Em seguida irá — replicou a voz de Helen Chartier.
Sid dirigiu-se para o centro da peça. Uma corda caiu, vinda de cima e ficou
balançando à sua frente.
— Levante-se, Mike! — exclamou Sid, aproximando-se do tenente.
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Ajudou-o a chegar ao centro da peça. Shoat agarrou-se desesperadamente à corda,
mas estava tão fraco que não podia subir por ela, em vista do que o puxaram de cima,
enquanto Sid, de baixo, o levantava.
A corda logo tornou a cair e Sid alçou-se por ela, com mil dificuldades. Quando
chegou à beira da abertura, aspirou com avidez o ar relativamente puro do andar de
cima, enquanto Helen e Sun Yen seguravam-no pelos braços, ajudando-o a sair.
Shoat estava deitado no chão, de rosto para cima, respirando com sofreguidão. Sid
olhou para ele, e o tenente sorriu-lhe com dificuldade, movendo a cabeça para os lados.
Um minuto depois Sid já estava bem, embora de vez em quando, tivesse de
aspirar profundamente. Helen estava diante dele, com as mãos na cintura, olhando-o
com ironia. Sid observou-a confuso. Logo depois sua boca abriu-se num largo sorriso e
estendeu a mão para a jornalista.
— Aperte aqui, garota. Retiro tudo quanto lhe disse antes. Agora penso que você é
não só a moça mais bonita de Frisco, como a mais valente e oportuna.
O rosto de Helen suavizou-se ao ouvi-lo e apertou calorosamente a mão que Sid
lhe estendia, mas não pôde privar-se de uma pequena vingança.
— Continua pensando que sou uma menina histérica e que estes assuntos não são
para mim? — perguntou-lhe.
— De maneira alguma. Agora penso que quem está à beira do histerismo, sou eu.
Peço-lhe mil perdões por tudo quanto lhe disse... mas você tem também uma língua que
fere mais do que uma punhalada.
— Retiro, também, tudo o que eu disse — replicou, ela sorrindo — Amigos?
— Amigos — disse Sid — E agora vamos examinar a situação. Como entrou na
casa?
CAPITULO VIII
Helen Chartier conhecia a casa muito bem. Era uma excelente amiga de Ling e
este, com o profundo conhecimento que tinha dos criminosos de São Francisco e seus
poderosos meios de informação, mais de um triunfo proporcionara à jornalista.
Isto fizera com que entre eles se estabelecesse uma mútua e crescente amizade,
que por parte de Ling não tardou em transformar-se em amor pela moça. Entretanto,
como homem inteligente que era, sabia que não podia ter a menor esperança sob este
aspeto.
Por um lado a diferença de raças, por outro a de idades e sua figura pequena e
deselegante, constituíam obstáculos impossíveis de serem vencidos, para que Helen
pudesse aceitá-lo. Ling, então, conformava-se em ser seu amigo, em ajudá-la e vê-la
quase diariamente, alegrando a casa com sua presença, embora não na forma em que ele
desejaria.
Helen sabia que a casa tinha duas saídas para o cais. Uma muito frequentada pelos
empregados de Ling e a outra apenas usada para que por ela entrasse o carvão para a
calefação.
Experimentou entrar por esta, mas estava fechada a chave por dentro e foi-lhe
impossível abri-la. Em vista disso, dirigiu-se para a outra. Com grande surpresa sua, a
porta estava aberta e cedeu assim que a empurrou. Pensou, então, que talvez fosse a
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utilizada pelos homens que estavam lá dentro e suas suposições foram confirmadas ao
verificar que a fechadura tinha sido arrombada.
Um longo corredor estendia-se à sua frente e Helen aventurou-se por ele,
empunhando uma pequena browning, calibre 7,65 que tirou do bolso.
Ninguém a molestou, e desta forma pôde chegar ao "hall" do andar térreo.
Dispunha-se a atravessá-lo, quando ouviu chamarem-na pelo nome.
— Senhorita Helen — chamou Sen Yun.
Helen dirigiu-se para ele. O chinês estava sob a escada, sentado ao lado de um
homem de aspeto repulsivo, apoiado na parede e parecendo desfalecido.
— Que foi que lhe aconteceu, Sun? — perguntou-lhe.
O chinês contou-lhe, em poucas palavras, o ocorrido e disse-lhe que Sid e Mike
estavam em cima.
Naquele momento o "gangster" começou a dar sinais de vida. Sun apoderou-se da
pistola da moça e desferiu-lhe um forte golpe na cabeça, prolongando seu sonho por
mais alguns minutos. Depois riu silenciosamente, entregando a pistola para a moça.
De súbito, chegou-lhes do andar superior, um ruído abafado.
— Estão lutando, Sun. Não poderíamos ajudá-los? — perguntou Helen, com
ansiedade.
— Acho que não, senholita — replicou o chinês. — Nós espelá aqui. Em cima
não poder fazê nada e dai, quem sabe?
Helen compreendeu que ele tinha razão. Passaram-se alguns minutos trágicos,
angustiantes; logo depois, foi ouvido o rumor de vários passos correndo
precipitadamente. Helen e Sun apertaram-se contra a parede.
Sid e Shoat passaram ao lado deles como um furacão, atravessando o "hall" em
direção ao corredor por onde ela chegara e atrás deles, como uma matilha de cães
raivosos, três homens, empunhando grandes pistolas.
— Foram por ali, Leary — exclamou um deles — Estão tentando abrir a porta.
— Atirem! Rápido! — ordenou Lrary, dando o exemplo — Não devem escapar.
De coração nas mãos Helen ouviu os disparos, pedindo mentalmente a Deus que
não acertassem em nenhum dos dois.
— Meteram-se naquela sala — gritou Leary — Agora sim que não nos escapam.
Correram para lá. Helen assomou a cabeça e viu-os desferindo rudes golpes contra
a rica porta de carvalho; mas como não conseguiram derrubá-la, voltaram para o andar
superior pela escada sob a qual eles estavam escondidos.
Helen quis sair para dirigir-se à habitação onde Sid e Mike estava encerrados, mas
quando já estava na metade do corredor um ruído que sentiu às suas costas, fê-la voltar
para o esconderijo.
Ling passou perto deles num estado lastimável, arrastado por dois homens. Atrás
vinham outros três, aos quais Casey deu uma ordem ao chegarem perto da porta que
dava para o cais.
Dois homens permaneceram ali, entregues a uma estranha operação. Procuravam
todos os objetos capazes de arderem e os amontoavam no centro do corredor.
Helen não compreendeu suas intenções, até que Garland, que procurava pelo
"hall", gritou para o outro:
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— Hei, Huston! Ajude-me a levar esse banco. É de madeira velha e vai arder
como graveto.
Compreendeu, então, o que significavam aqueles preparativos, percebendo,
também, o perigo que Sun e ela corriam se os dois bandidos os descobrissem, enquanto
procuravam combustível.
— Sun, vamos para cima — murmurou.
Deslizaram sem serem vistos, escada acima e acabavam de chegar ao segundo
andar, quando ouviram a voz excitada de Huston.
— Ei, Garland! Venha cá. Olhe quem está aqui.
É Rudy. Acertaram-no em cheio.
Nada mais quis ouvir, refugiando-se com Sun na peça onde, momentos antes,
desenrolara-se a luta.
Passaram-se alguns minutos e de repente a casa começou a encher-se de fumaça.
"Já acenderam a fogueira — pensou. — Canalhas!"
Quis descer, mas Sun a deteve. Embaixo ainda se ouvia o ruído dos passos de
Garland e Huston, indo e vindo, enquanto proferiam pragas.
De súbito, fez-se silêncio. Seguida por Sun, Helen tentou descer pela escada para
ir em socorro de Sid e Shoat, mas o fogo já tomara grandes proporções e era impossível
atravessar o corredor.
Retorcendo as mãos de desespero, voltaram para cima.
— Temos que fazer algo, Sun — disse Helen aflita. — Aqueles dois homens
correm perigo de vida. Vi um dos bandidos prendendo a porta por fora, e vão morrer
sufocados.
Sun sorriu com uma calma desesperante. Tomando-a pela mão, levou-a a um
estreito corredor, que devia coincidir com o de baixo. No fim do mesmo, Sun penetrou
numa sala que se abria para a esquerda e Helen seguiu-o.
— Esta sala ficar em cima da outa onde estão eles — murmurou o chinês. — Aqui
haver uma tampa, que comunica com ela.
Levantou o grosso tapete que cobria o piso e no centro Helen pôde ver a tampa a
qual Sun se referia.
Há muito tempo não devia ser usada, porque foi-lhes difícil levantá-la. Da parte
traseira da casa já lhes chegavam os gritos da multidão, amontoada diante da porta.
Finalmente puderam suspender a pesada laje de cimento e uma cortina de fumaça
subiu da peça embaixo. Helen aproximou-se logo dela e chamou.
— Mister Shoat, tenente Shoat.
Cinco minutos mais tarde, Sid e o tenente estavam ao lado deles, com grande
alegria para a moça e para Sun.
A sala tinha uma janela que dava para o cais. Sid dirigiu-se a ela para abri-la e
tornar o ar mais respirável.
— Podemos sair por aqui — disse. — Muito logo a casa estará ardendo.
Abriu a janela e uma exclamação escapou-lhe dos lábios.
— Olhe, Shoat — exclamou. — Há um iate ancorado ali em frente. Um barco
vem para o cais e três daqueles tipos a estão esperando. Parece-me ainda que... Tem
uma pistola, Helen?
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— Tome — respondeu Helen, pondo-lhe a sua nas mãos.
Sid montou na janela. Depois passou as pernas para fora e deixou-se cair.
Garland, Huston e Rudy estavam na beira do cais observando nervosos o barco
que se aproximava deles lentamente, ao mesmo tempo que lançavam rápidos olhares
para a casa.
Sid ia lançar-se contra os "gangsteres", mas não lhe convinha antes que a lancha
chegasse ao porto, pois o homem que a dirigia podia perceber o que ocorria e dar meia-
volta para avisar os do iate.
Escondeu-se atrás de uma pilha de sacos, que alguns estivadores acabavam de
descarregar, e Shoat reuniu-se a ele.
— Assim que a barca chegar, salte para ela, Mike — disse Sid — Os outros deixe
por minha conta.
Vários policiais chegaram correndo pelo porto, avisados pelo irmão de Sun do que
estava acontecendo dentro da casa; mas só chegaram a tempo de afastar do fogo o grupo
de curiosos, que crescia a cada momento enquanto o irmão de Sun entregava-se ao
desespero crendo que Ling e seu irmão estivessem mortos.
A barca atracou, por fim. O homem que a dirigia fez sinais imperiosos aos três
bandidos para que saltassem logo.
— Agora, Shoat! — exclamou Sid. Os dois homens atravessaram o cais numa
corrida, perseguindo-os. Garland voltou-se ao ouvir, seus passos e deixou escapar um
grito ao reconhecê-los, mas Sid já estava ao seu lado e com uma violenta cabeçada no
ventre jogou-o nas águas sujas da baía.
Shoat saltou para o barco. O marinheiro tentou golpeá-lo com um remo, mas Mike
desviou-se e deu um soco no estômago do rival que se dobrou para a frente, soltando o
remo. Logo, com uma direita nos queixos fê-lo endireitar-se, jogando-o na água.
Sid enquanto isso entendia-se às mil maravilhas com Huston e Rudy. Este ainda
estava meio estonteado pelos golpes recebidos e não foi um sério inimigo para Sid, que
o deixou fora de combate com uma joelhada no rosto. Huston não quis saber mais da
luta e saiu correndo pelo cais, para cair nos braços de vários carregadores que vinham
em auxílio de Sid.
Helen apresentou-se também ao lado do agente do FBI, no momento em que este
ia saltar para o barco.
— Que vai fazer? — perguntou-lhe.
— Vou para o iate, agora mesmo — replicou Sid, já dentro do barco.
Sem prévio aviso, Helen também saltou para dentro. A frágil embarcação esteve a
pique de afundar, e a jornalista caiu nos braços de Sid, que a interpelou rudemente.
— Você está louca, menina?
— Nada disso. Eu também vou para o iate. Sid tentou opor-se, mas fui inútil.
— A única maneira que tem para livrar-se de mim, é me jogando na água, mas
previno-o que não sei nadar — disse Helen, sorrindo.
Sid lançou um bufado e voltou-se para Shoat.
— Mas alguém tem que avisar a polícia do porto. Se ela não quer, você é quem
deve ir, Mike — disse.
Este desandou a rir.
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— Vamos Sid, com o que nos espera ali, pensa que vou deixá-lo só... — retrucou.
— Shoat, vá avisar a Polícia — ordenou Sid.
— Quem é você para me dar ordens? — reclamou Mike enfrentando-o.
Sid resmungou uma praga. Os segundos eram preciosos e ali estavam eles
discutindo como três idiotas.
— Está bem, foi você quem quis isto — murmurou, descarregando a direita nos
queixos de Shoat.
Este, que não esperava semelhante ataque, caiu para trás, mas Sid recolheu-o nos
braços, evitando um mergulho.
Em seguida dirigiu-se aos carregadores que, do cais, contemplavam a cena.
— Querem fazer o favor de recolhê-lo? — disse-lhes, mostrando a Shoat,
desmaiado em seus hercúleos braços. — Digam-lhe, quando acordar, que avise a
polícia.
Um segundo depois, Shoat era içado para o cais. Sid apanhou os remos e a barca
começou a afastar-se da costa, mar a dentro, em direção ao iate que esperava a umas
cem jardas, com a morte em suas entranhas.
Helen olhou-o irritada.
— Você é o maior bruto que já vi em toda a minha vida — disse. — Atacá-lo
assim, quando estava desprevenido.
Sid continuou remando impassível, sem fazer o menor caso da torrente de insultos
que Helen lançava sobre ele, indignada com o que classificava de deslealdade.
Olhando por sobre o ombro da moça. Sid viu os rolos de fumaça que saíam da
casa de Ling, misturados com algumas chamas. O cais estava repleto de gente e a
polícia que viera com o irmão de Sun era impotente para contê-la.
Mais próximo, percebia Shoat que recobrara os sentidos e parecia um ponto a
mais entre os carregadores que o haviam recolhido. Sid viu-o correr para um carro da
polícia, que imediatamente partiu para a parte mais alta do cais, enquanto outros
carregadores caçavam Garland e sujeitavam Rudy, que também recobrara os sentidos.
Dedicou, então, toda a atenção aos remos, e a barca começou a deslizar com maior
velocidade. Helen que se calara por um momento, voltou a insultá-lo quando Sid lhe
disse que Shoat recobrara os sentidos.
— Não quer se calar de uma vez, caturrita? — interrompeu-a Sid, com energia. —
Mike está casado e vai ter um filho. Não podia deixar que ele fosse se meter nesse
inferno.
Ela levou a mão à boca, afogando uma exclamação de admiração e logo começou
a balbuciar:
— Perdoe-me, Sid... eu não sabia...
— Não tem importância, Flor de Lotus — replicou o agente especial. — O que
não entendo é como não fiz o mesmo com você, embora não esteja casada, nem vá ter
um filho.
Ela sorriu maliciosamente.
— O que é que você sabe? — perguntou.
— O primeiro é o que suponho. E o segundo salta aos olhos — replicou Sid,
examinando a harmoniosa cintura da jornalista.
54
Sorriu ao observar o rubor que lhe cobria as faces e começou a assobiar "Lua
amarela", sem que as fortes remadas que dava parecessem afetar em nada seus pulmões.
O iate estava a umas cem jardas. Podiam ver a solitária coberta e todos os detalhes
da mesma. Sid consultou o relógio. Eram onze horas da manhã.
Helen contemplava-o comovida. Sid apresentava um aspecto verdadeiramente
deplorável. Arrancara a gravata, quando a fumaça o sufocava despojando-se também do
paletó ao começar a remar, de maneira que estava em mangas de camisa, com os
possantes músculos marcados por cada esforço, aparecendo através do fino tecido. O
cabelo, revolto e crespo, caía-lhe em mechas na testa suja e cortada por um arranhão
sangrento, que lhe haviam feito em algumas das lutas que sustentara.
Mas seus olhos continuavam brilhando de alegria ante a emoção do desconhecido.
— Que vamos fazer quando chegarmos lá? — perguntou Helen.
— Quando chegarmos? — resmungou Sid. — Está pensando que vou deixá-la
entrar naquela ratoeira?
Helen avançou o queixo, num gesto inconfundível de rebeldia e Sid parou de
remar.
— Escute, menina — disse. — Você não vai subir a bordo. Meta-se isso na
cabeça. Não sei como a deixei vir; mas daí à agora permitir-lhe que...
— Deixou que eu viesse porque tem medo de ir sem mim — replicou ela, com
simplicidade — Já lhe salvei a vida uma vez, e quem sabe se...
— Olhem a presumida — murmurou Sid — Vou jogar-me na água. Certamente
haverá alguém na coberta, esperando nossa chegada, embora não o vejamos, e se nos
vêem vão receber-nos a tiros. Procure segurar os remos, logo que eu salte do barco e
saia rapidamente em direção ao cais. Ouviu?
Ela refletiu um segundo e logo respondeu que sim.
— Se lhe ocorrer a idéia de permanecer aqui, ou aproximar-se do iate, vai se haver
comigo — disse Sid, e logo murmurou: — Se eu sair com vida desta vez.
— Sid dê-me um beijo — pediu ela de repente, e o agente olhou-a sorrindo. Em
seguida, tomou-a nos braços e beijou-lhe os lábios.
— Eu sabia que você não me resistiria — disse, quando a soltou.
— Não é isso, Sid. Foi só uma preliminar para dizer-lhe que quando você se jogar
na água, eu me aproximarei do iate e procurarei subir a bordo. Não quero enganá-lo —
respondeu ela e Sid, furioso, jogou-se à água.
Helen viu-o nadar para o iate, com uma sensação de angústia. Admirava aquele
gigante que arriscava a vida a cada passo, com tanta alegria, sem ignorar onde ia meter-
se. Mas os homens que perseguia estavam dentro daquele barco, e nada poderia
dissuadi-lo de seus propósitos.
Viu-o nadar com energia, afastando-se da barca. Depois, quando estava a poucos
metros de distância, Sid mergulhou e não mais o viu.
O motivo daquele mergulho foi que, ao aproximar-se do iate, Sid viu um homem
que, da coberta espiava os movimentos da barca.
— Deve ser o tipo que a está esperando — pensou — e enchendo de ar os
pulmões, tornou a mergulhar para não ser visto por aquele vigia.
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Nadando por baixo d’água chegou ao casco da embarcação e deu a volta para
subir pelo outro lado. Inspecionou o costado do iate. Nada havia que lhe permitisse
subir para bordo e, em vista disto, continuou nadando para a proa, com máxima
precaução.
Sabia que por ali poderia subir a bordo. Quando chegou à hélice, agarrou-se a ela
e foi se arrastando até conseguir ficar de pé sobre o eixo, pedindo a Deus que ninguém
tivesse a ideia de pôr o iate em marcha, pois morreria esmigalhado.
Do eixo da hélice foi-lhe fácil trepar para um dos ventiladores da máquina,
correndo o risco de que alguém o visse de dentro e desse o alarme. Depois estendeu os
braços para cima e se agarrou ao bordo da cobertura, içando-se para ela com um
impulso.
Meteu-se por baixo da amurada e deixou-se cair sobre a coberta, atrás de um
ventilador, olhando para a frente, sem ver ninguém. Avançou cautelosamente,
aproveitando todos os lugares onde podia ocultar-se, e desta forma chegou ao nível da
solitária coberta.
Dali pôde ver o barco com Helen e o homem que percebera antes inclinado sobre
a amurada, olhando para ela.
Aproximou-se sigilosamente dele, disposto a atirá-lo no mar, mas quando estava a
dois passos do marinheiro, este se voltou de súbito e em seu rosto estampou-se a maior
surpresa. Reagindo em seguida, lançou-se contra Sid, mas este o “esperava disposto
para a luta e deteve sua investida, com um poderoso soco em pleno rosto”.
O marinheiro retrocedeu uns passos, apoiando-se com ambas as mãos, na
amurada. Logo lançou-se de novo ao ataque mas Sid não estava disposto a permitir que
a luta durasse muito tempo, porque podia atrair para eles a atenção de outras pessoas; e
assim, quando o rival chegou à sua altura, desviou rapidamente o corpo e quando o
marinheiro passou junto dele, descarregou um soco, como uma maçã, sobre o crânio do
indivíduo, que caiu de bruços no chão sem dar um único gemido.
Sid amarrou-o fortemente com a extremidade de um rolo de corda, meteu-lhe
parte desta na boca e escondeu-o atrás da escadinha que levava à ponte de comando.
Em seguida, empunhou a pequena pistola que Helen lhe dera. Ao fazer isso,
pensou na moça e olhou em direção ao mar. Helen remava para o iate e Sid amaldiçoou-
a em pensamentos, mas não tinha tempo a perder.
Meteu-se pela escotilha que levava às entranhas do barco e começou a descer a
escada lentamente, enquanto observava a frente, disposto a fazer uso da arma.
Um indivíduo saiu de um quarto que se abria para o corredor e ao ver Sid quis
dizer algo, mas pensando melhor saiu correndo para o fundo do corredor. Sid projetou-
se sobre ele, como uma prancha da metade da escada, e com ambas as mãos agarrou as
pernas do indivíduo, dando-lhe logo com a culatra na cabeça.
Tudo se passara sem o menor ruído. Pelo visto, ninguém percebera nada. A
tripulação devia estar na sala de máquinas, esperando as ordens. De uma dependência
próxima, vinha um rumor de vozes.
Empunhando novamente a pistola, que derrubara com a luta, Sid empurrou a porta
com precaução, olhando pela fresta. Casey estava ali, tranqüilamente apoiado numa
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mesa, falando com outro homem que estava sentado, de costas para Sid. Sobre a mesa
estava a maleta com as joias roubadas da casa de Ling.
— Os outros já devem ter chegado, Leary — dizia Casey, naquele instante — Vá
ver e vamos embora o quanto antes.
Leary ergueu-se da cadeira e dirigiu-se para a porta. Sid encostou-se à parede e
quando o bandido transpôs a porta e se voltou para fechá-la, a culatra da arma que Sid
empunhava, desceu sobre sua cabeça.
— Já se foram três — murmurou, enquanto arrastava o corpo inerte de Leary para
junto do outro marinheiro.
Em seguida abriu a porta com um empurrão e se postou, de pistola na mão, ante o
assombrado Casey, que naquele momento se dirigia para a porta, para investigar a causa
do ruído que ouvira.
— Quieto, Casey! Quieto ou...
O gangster ergueu os braços, lançando para Sid um olhar furioso.
— Caramba! — disse — Mas é o nosso antigo amigo, o polícia. Não se pode dizer
que esteja muito apresentável, amigo.
— Você é muito engraçado, Casey. Veremos se vai ter a mesma disposição para
as brincadeiras quando se sentar na cadeira elétrica.
Casey Barnett teve um tremor, mas não perdeu seu tom jovial.
— Pensa que poderá fazê-lo? — perguntou — Parece que não sabe onde veio se
meter.
— Claro que sei — replicou Sid. — E chega de conversa. Dê-me esta maleta.
Como Casey se negava a fazê-lo, ele próprio avançou para a mesa e tomou a
maleta, sem deixar de apontar para ele. Em seguida, encostou-lhe a pistola nos rins,
dizendo em tom ameaçador:
— Se algum de seus homens fizer a mais leve tentativa, você será o primeiro a
desaparecer deste mundo. Vamos para a coberta.
Casey avançou para a porta e Sid seguiu-o, apontando-lhe a pistola. Assim saíram
para o corredor. Leary já não estava ali, e aquilo obrigou Sid a agir de outro modo. Fez
Casey entrar novamente para a sala e, sem deixar de apontar-lhe a arma, aproximou-se
de uma vigia do camarote. O que viu, fez com que abençoasse mil vezes a hora em que
Helen decidira aproximar-se do iate, pois a jornalista estava justamente em baixo,
procurando uma maneira de subir a bordo.
— Helen — chamou — Helen. Aqui... Ei!... Helen...
Ela ergueu a cabeça e sorriu ao vê-lo. — Ajude-me a entrar, Sid — suplicou.
— Não pode ser, Casey está aqui comigo, mas o alarme já foi dado.
— Que quer que eu faça?
— Aqui vai esta maleta com as joias. Afaste-se em seguida do iate, em direção ao
porto. Não se detenha. Não sei quanto tempo poderei sujeitar estas feras, para evitar que
disparem contra você.
Jogou a maleta para a barca e comprovou, com alegria, que Helen obedecia a suas
ordens, afastando-se do iate.
— Agora vamos dançar um pouco — murmurou. Estava decidido a permanecer
naquele camarote, com Casey servindo-lhe de escudo, até que a polícia do porto
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chegasse ao iate; mas duvidava muito que pudesse consegui-lo. Os "gangsteres" já
sabiam de sua presença a bordo e não tardariam a jogar-se sobre ele, sedentos do sangue
do homem quem lhes fizera fracassar mais uma vez em seu intento de apoderarem-se
das joias de Ling.
CAPITULO IX
Na verdade, Leary não perdera tempo. Quando se recobrou do golpe que Sid lhe
dera, compreendeu a difícil situação em que lhes colocara a chegada a bordo do agente
do FBI, e se dispôs o tomar todas as providências para eliminá-lo.
Reuniu Seldon e Clive e, acompanhados por dois marinheiros e pelo homem que
fazia às vezes de comandante do iate, dirigiu-se para o camarote onde Sid encerrara-se
com Casey.
Leary não perdeu tempo com vacilações. Com dois certeiros disparos, arrebentou
a fechadura, e os seis homens penetraram, como uma tromba, no camarote.
A pequena pistola de Helen lançou um estampido metálico, e dois homens caíram
sob as balas que Sid lhes enviara; mas Casey aproveitou a ocasião para lançar-se sobre
ele e, embora Sid o deixasse imóvel com um soco entre os olhos, entreteve-o o tempo
suficiente para que Leary e os outros três caíssem sobre o agente, golpeando-o sem
piedade.
Alguém descarregou-lhe a culatra do revólver na cabeça e Sid, sentindo violentas
náuseas, percebeu que ia-se perdendo na inconsciência, sem que abrandasse a chuva de
golpes que caía sobre ele, de todas as direções.
— Que faremos com ele? — ouviu Leary perguntar.
Pareceu-lhe que a resposta de Casey vinha de muito longe.
— Levem-no para junto do chinês. Quando estivermos em alto mar, nos
livraremos dos dois. Maldito! Deu as joias para alguém, que as levou.
O pontapé que Casey lhe deu nas costelas, acabou de fazê-lo perder os sentidos.
Quando acordou, encontrou-se numa pequena peça, desprovida de móveis. Estava
atado de pés e mãos e jogado no chão, e fora a frialdade deste que o fizera recobrar os
sentidos.
A luz penetrava por uma pequena janela e notou que o barco movia-se,
lentamente.
— Já acordou? — perguntou alguém ao seu lado — Receei que o tivessem
matado.
Sentia uma dor insuportável nas costelas.
— Devo ter alguma costela quebrada — murmurou.
Com muito trabalho voltou-se para o homem que lhe falara e não se surpreendeu
nem um pouco ao deparar com a cara redonda de Ling, que estava tão amarrado quanto
ele e sentado no chão, com as costas apoiadas na parede.
— Vejo com alegria que os senhores conseguiram escapar de Casey — tornou a
falar o chinês. — Mas agora estou outra vez triste por vê-lo nesta situação.
—. Não é muito melhor do que a sua — replicou Sid, e Ling encolheu os ombros.
— Nós, os orientais, damos muito pouca importância à vida. Acreditamos que
nascer, viver e morrer são apenas capítulos sem importância na vida eterna de um
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homem — respondeu. — Eu morrerei muito logo, mas não tardará muito tempo até que
minha alma se reencarne em outra pessoa. O homem nunca morre. Desaparece o corpo,
mas a alma sobrevive através dos séculos.
— Isso é muito bonito, Ling, mas eu prefiro que minha alma continue vivendo
dentro deste corpo que tenho agora — contestou Sid, e Ling sorriu.
— Quem é o senhor? — perguntou.
— Sidney Eskev, agente especial do FBI — respondeu Sid.
— O que foi que Casey fez para que os senhores tenham sido obrigados a intervir?
— tornou a perguntar Ling. — Não terá sido por causa das minhas joias...
— Por um lado, suas joias e por outro, a ambição de Casey — respondeu Sid. —
Sabe que colocou uma bomba num avião, que explodiu em pleno ar, só para vingar-se
de Lanham?
— Casey nunca se preocupou com delicadezas — sussurrou Ling. — Conseguiu
matá-lo?
— Não — respondeu Sid, contando-lhe tudo o que acontecera com Lanham.
— Era um pobre diabo, mas desta vez me fez um grande favor — disse Ling. —
Embora de nada me tenha servido, Casey conseguiu apoderar-se das joias.
Sid riu silenciosamente e Ling olhou para ele.
— A estas horas, as joias estão a caminho do porto — disse o agente do FBI — E
sabe quem as leva? Uma boa amiga sua: Helen Chartier.
Os olhinhos de Ling brilharam.
— Maravilhosa moça, Helen — exclamou, perdendo, por um momento, a
ileugma.
— Bem, Ling. Creio que chegou o momento para que façamos alguma coisa para
sairmos daqui — sugeriu Sid, e o chinês fez um gesto de fatalista resignação, que
enervou Sid.
— Diabo! — exclamou este. — Se tão pouco apego tem à vida, por que disse
onde estavam as joias, quando Casey ameaçou de matá-lo?
— Em primeiro lugar, não vale a pena perder-se a vida por algumas joias, por
mais que valham — replicou Ling, calmamente. — Em segundo lugar, se eu não tivesse
dito e me tivesse matado, eu já não poderia destruí-las, não lhe parece? E em terceiro
lugar, ele não ameaçou matar-me, mas matar meus fiéis servidores. Casey é esperto e
sabia que me atingia em vivo. Confessei onde estavam escondidas, porque não tenho
direito de dispor da vida de meus empregados.
Sid olhou-o assombrado, descobrindo novas e interessantes particularidades no
rechonchudo homem que estava a seu lado.
— Bem. Por minha parte, vou fazer o possível para conservar a envoltura de
minha alma — disse Sid, em tom brincalhão. — Faça o favor de deitar-se de bruços no
chão.
O chinês obedeceu. Sid aproximou-se dele, arrastando-se pelo chão e apoiando-se
nas costas, tentou desatar com os dentes o nó de cordas que prendiam as mãos de Ling.
O que os dera, devia ser um especialista em nós, talvez um marinheiro, pois
custou-lhe muito trabalho conseguir que Ling se visse livre das ligaduras que lhe
prendiam as mãos.
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Enquanto isto, o iate continuava movendo-se. Shoat não podia tardar a chegar às
dependências da polícia do porto, e quando estes chegassem, eles deviam estar
desatados para se defenderem.
Ling esfregou, vigorosamente, as mãos.
— Agora desate-me — disse Sid, apresentando-lhe as mãos unidas.
O chinês desfez o nó que prendia as mãos do agente às costas, e logo os dois se
dedicaram a desatar os respectivos tornozelos.
Cinco minutos depois, Sid erguia-se, olhando com cautela pela janelinha da
habitação.
Com um olhar, certificou se que esta achava-se na segunda coberta do iate.
Olhando ao longe, viu três lanchas que avançavam em direção à embarcação, ocupadas
por policiais de uniformes.
E viu também algo mais, que o convenceu que Casey estava decidido a matá-los,
para que não pudessem presenciar seu triunfo.
Dois homens subiam pela escada da segunda coberta. Um trazia um revólver na
mão e o outro uma metralhadora debaixo do braço, e suas intenções eram bem claras.
— Ling — exclamou — a coisa vai esquentar, antes de um minuto! A polícia do
porto está vindo e dois homens se dirigem para cá, para matar-nos.
— Está escrito que temos que morrer — replicou o chinês.
— Não seja idiota, homem! Escrito ou não, vou lutar antes que o consigam,
garanto-lhe. —Replicou Sid sacudindo o chinês por um braço.
Arrastou-o, em seguida, para trás de uma porta e, grudados à parede, esperaram
com o coração palpitante de angústia.
Fora, Casey dispusera seus homens para fazerem frente à polícia do porto que
pretendia cortar-lhes a retirada, disposto a vender cara sua vida antes de entregar-se.
Seldon e Clive chegaram à porta da peça onde Sid e Ling estavam encerrados. O
primeiro agarrou o trinco e meteu a chave na fechadura, dando-lhe volta enquanto dizia:
— Já sabe quais as ordens de Casey, Clive; assim, que quando eu abrir a porta,
meta-lhes uma chuva de balas no corpo.
Com um empurrão abriu a porta. Clive empunhou a metralhadora e encheu a peça
de balas. Os estampidos ressoaram sinistramente nos ouvidos dos dois homens, que
estavam escondidos atrás da porta.
Clive adiantou-se e deixou escapar uma exclamação de surpresa.
— Aqui não há ning...
Sid não o deixou terminar. Com a mão esquerda segurou a metralhadora pelo
cano, sem dar-se conta da queimadura que lhe produzira na mão, enquanto que com a
outra enviava uma direita no nariz de Clive, que começou a sangrar como um touro.
Sedon disparou o revólver, mas Ling se havia precipitado sobre ele empurrando-o
violentamente, e ele caiu rolando pela escada.
Clive tentou jogar-se contra Sid, mas este apertou o gatilho da pistola. Quatro
detonações detiveram a carreira de Clive e acabaram com sua vida de criminoso.
Em continuação, Sid voltou a metralhadora contra Seldon que, ao pé da escada,
tentava fazer uso do revólver. O agente tornou a apertar o gatilho, durante um décimo
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de segundo, pois não lhe convinha desperdiçar munições e Seldon recebeu as duas
detonações em pleno peito, caindo para a frente, como um boneco desarticulado.
Uma chuva de balas, procedentes da primeira coberta, passou ao lado de Sid e de
Ling. Os disparos haviam atraído para eles os olhares de Casey, Leary e dos tripulantes
do iate, que disparavam de vários lugares, dando-se conta do perigo que corriam com o
inimigo metido em sua própria casa.
Sid empurrou Ling para dentro da peça que acabavam de abandonar e entrou atrás
dele. Aproximou-se da janela. As lanchas da polícia já chegavam ao costado do iate e
lançavam arpões para a coberta, presos na extremidade de grossas cordas, enquanto que
da coberta abriam sobre eles um fogo cerrado.
As duas lanchas da polícia que haviam ficado para trás, para cobrirem o avanço
dos atrasados, começaram a disparar as metralhadoras "Thompson" de que vinham
providas, sobre a coberta do iate, em vista do que os "gangsteres" viram-se obrigados a
refugiarem-se em todos os lugares que lhes ofereceriam alguma possibilidade de
livrarem-se dos balaços.
Vários agentes puseram os pés na coberta, sendo recebidos pelos disparos dos
facínoras. Dois deles caíram feridos, enquanto os outros tomavam posição atrás dos
ventiladores, estabelecendo-se uma verdadeira batalha a bordo do iate.
Da janela do camarote, Sid contemplava a cena, espreitando a ocasião de intervir,
e esta não se fez esperar.
Shoat avançava pela coberta, à frente de seis policiais. Diante deles
entrincheirados atrás de umas caixas, Casey, Leary e três marinheiros formavam uma
resistência encarniçada. De súbito, Sid viu Leary correr para um lado, com uma
metralhadora na mão. Seus desígnios eram bem claros. Queria surpreender os policiais
pelas costas e varrê-los com o fogo de sua arma.
Sid não esperou mais. Colocou o cano de sua metralhadora pela janelinha e
enviou sobre o "gangster" o último jorro de balas da arma.
Leary virou-se, levemente surpreendido. Em seguida deu uma volta e caiu ao solo,
morto.
Vários outros policiais atingiram a coberta, mas os bandidos seguiam oferecendo
encarniçada resistência da ponte de comando, onde todos os sobreviventes se haviam
refugiado por ordem de Casey, dispostos a morrerem matando.
Shoat avançava destemidamente pela coberta, sem dar-se conta que estava
exposto aos disparos de Casey e seus homens.
— Mike! Mike! — gritou Sid, saindo à porta do camarote.
Mas Shoat não o ouviu ou não entendeu os sinais que Sid lhe estava fazendo para
que se afastasse do centro da coberta, antes que fosse tarde demais. Sid olhou em redor.
Uma corda pendurada na extremidade, da escada de ferro, presa à enorme chaminé do
barco, estava atada na amurada da segunda coberta.
Sid desatou-a rapidamente e subindo na amurada, agarrou a corda com as duas
mãos e lançou-se no ar. A corda tomou a vertical, levando Sid rapidamente pelos ares
até o centro da coberta, onde o agente soltou-se, caindo sobre Shoat.
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A rudeza do golpe fez rolarem os dois, e quando Shoat se ergueu Sid arrastou-o
para trás de um ventilador, ao mesmo tempo que vários projéteis cravaram-se no lugar
ocupado, segundos antes, pelo tenente.
Este voltou-se para Sid, crendo que era um de seus inimigos e o agente teve
dificuldades em deter o primeiro golpe que Mike desferiu-lhe no estômago.
— Sou eu, Mike! — exclamou logo.
— Por que fez isso? Você sempre teatral! — protestou Mike, esfregando o ombro
ainda dolorido pelo golpe.
— Pois é, sou teatral. Você não sabe que vários homens que estão na ponte de
comando, estavam lhe apontando?
Shoat não respondeu. Olhou na direção que Sid apontava e viu vários bandidos
procurando esconder-se na cabine da ponte.
Estavam num plano mais elevado que os policiais e mantinham-nos afastados,
enquanto o comandante manobrava a roda do leme, virando a proa para a outra margem
da baía, num esforço desesperado para poderem chegar à terra e saltarem, antes que a
polícia completasse o cerco da ponte.
— No lugar onde estão são invencíveis, Sid — murmurou Shoat — Não nos
deixam nem assomar a cabeça.
Era verdade. Assim que um policial tirava a cabeça do esconderijo, caía sobre ele,
procedente da ponte de comando, uma chuva de projéteis que o obrigava a esconder-se
cautelosamente.
Sid examinou a situação com olhos críticos, enquanto que uma de suas melodias
preferidas "White Christmas" escapava-lhe dos lábios franzidos. Shoat olhou-o
sorrindo.
— Que travessura está planejando, Sid? — perguntou-lhe.
— Estava pensando em empregar, para chegar lá, o mesmo caminho que utilizei
para jogar-lhe no chão — disse.
— Você está louco! Iriam crivar-lhe o corpo de balas no ar, antes que pusesse os
pés na ponte. Espere um pouco — aconselhou Mike. — Mandei buscar bombas de gás
lacrimogêneo e não devem demorar.
— Não tenho paciência para esperar, Mike — confessou Sid — Vou
experimentar.
— Você não sai daqui, ouviu? — gritou Mike, pondo-lhe a mão no ombro.
— Quer que lhe faça outra vez o que já fiz? — perguntou-lhe Sid brincalhão, e
Mike soltou-o, pondo-lhe uma pistola nas mãos.
— Está bem. Tome e faça o que quiser, cabeçudo, e tomara... — a praga de Mike
não chegou a ser formulada.
Sid segurou o cabo de corda que caia da escadinha da chaminé e afastou-se em
direção ao lugar onde caíra minutos antes, ocultando-se o máximo possível. Alguns dos
bandidos o viram e atiraram contra ele, mas sem nenhum resultado.
Sid chegou à escada da segunda coberta e subiu rapidamente por ela, perseguido
pelas balas dos "gangsteres", ocultos na ponte de comando, situado em frente ao
camarote onde ainda estava Ling.
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O chinês permanecia sentado no chão, fumando tranqüilamente, a espera de que a
batalha acabasse para dali sair, e não se surpreendeu nem um pouco ao ver Sid.
— Puxa, homem! Você tem cigarros? — perguntou-lhe este — Podia já ter dito
isso.
Ling estendeu-lhe um pacote, Sid acendeu um cigarro, deu algumas tragadas e
jogou-o fora.
— O que vai fazer? Outra viagem pelo ar?
Sid não respondeu. De dentro do camarote lançou-se numa corrida para o vão
formado pela escada na amurada e ao chegar aos fundos daquela, segurou fortemente a
corda com as duas mãos.
O impulso que trazia lançou-o ao espaço pela segunda vez, cortando velozmente o
ar. Em seguida percebeu que a corda não era suficientemente longa para levá-lo à ponte,
onde estavam Casey e seus homens, mas compensou esta falha com um grande impulso
do corpo quando a soltou, fendendo o ar e indo cair a poucos metros da cabine do
timoneiro.
Imediatamente jogou-se no chão, ao mesmo tempo em que vários projéteis
passavam assobiando por cima dele. Um ventilador proporcionava-lhe um precário
refúgio contra os agressores e Sid escondeu-se atrás dele.
O comandante do iate continuava agarrado à roda do leme, mantendo o rumo para
a costa. Sid apontou cuidadosamente, atirou e o homem caiu sobre o leme, começando o
iate a navegar sem rumo fixo.
Uma nova chuva de balas obrigou-o a ocultar-se atrás do ventilador e naquele
momento, Shoat deu embaixo, uma ordem de ataque, lançando-se ele em primeiro lugar
em direção à ponte.
Os "gangsteres" quiseram fazer frente àquela nova agressão, mas os disparos
certeiros de Sid, de um dos lados da cabine, impedia-os de fixar a pontaria, e Shoat e
seu homens continuavam avançando implacáveis.
A fisionomia de Casey estava descomposta. Não só havia perdido as joias, como
sua criminosa ambição também ia custar a vida. Seus melhores homens tinham morrido
nas mãos daquele gigante musculoso, que os atacava sem cessar e que, por fim, parece
que ia conseguir a vitória. Um ódio louco apossou-se dele. O ódio de quem, sabendo-se
perdido, só quer arrastar consigo o inimigo, para impedi-lo de gozar o triunfo.
— Se continuarmos aqui, eles vão nos esmigalhar — gritou. — Vamos sair e fora,
cada um se defenda como puder.
Ficou um pouco atrasado, para não ser o primeiro a expor-se aos disparos de Sid.
O primeiro de seus homens que atravessou a porta da cabine caiu mortalmente ferido,
mas os outros, e com eles Casey, conseguiram lançar-se como uma tromba contra Sid.
O agente viu-se cercado por uma legião de demônios que descarregaram sobre ele
inúmeros golpes durante alguns segundos, com o objetivo de deixá-lo aturdido e
poderem saltar para a água.
Sid disparou à queima-roupa e outro marinheiro caiu. Em seguida os outros foram
saltando pela amurada, perseguidos pelos tiros de Sid e dos policiais e se afastaram do
barco, nadando em grandes braçadas, tentando chegar à baia.
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— Para as lanchas! — ordenou Shoat, e seus homens dirigiram-se para as
embarcações, que os haviam trazidos ao iate.
A costa estava distante e podiam perseguir os bandidos, tranquilamente, certos de
que nem um único escaparia com vida. Sid contemplou a caçada, ou melhor, a pescaria
dos sobreviventes, e deixou escapar um suspiro de satisfação ao comprovar que tudo
havia terminado.
De súbito, ouviu um ruído às suas costas. Pensou que fosse Ling que vinha ao seu
encontro, saindo da cabine onde haviam estado encerrados, e voltou-se lentamente.
A cor fugiu-lhe das faces. Casey Barnett estava diante dele, sorrindo com
ferocidade, apontando-lhe uma Parabellum. De onde teria saído?
Como se adivinhasse a muda pergunta, Casey divertiu-se em atormentá-lo.
— Erga os braços, filho da mãe — grunhiu — Quer saber de onde venho, não é?
Ocultei-me numa lancha, aproveitando a luta que travava com meus homens. Tinha a
esperança que vocês tivessem deixado no barco dois ou três homens e eu poderia fugir
quando o iate se acercasse do porto, mas já que ficou aqui, sozinho, vai me pagar a
matança de minha gente.
Seu rosto estava animado por uma resolução homicida. Bastava que Sid
observasse seu olhar para compreendê-lo. Seu paletó branco e de perfeito corte, aparecia
amarrotado e cheio de manchas e o cravo vermelho, que tão orgulhosamente ostentava
na noite anterior, havia desaparecido. Tudo nele indicava o criminoso nato. Despido das
vestimentas e das maneiras educadas, que dissimulavam sua verdadeira maneira de ser,
aparecia em toda a nudez sua alma ruim e miserável.
Lentamente ergueu a pistola.
— Vai morrer — rugiu, respirando ruidosamente, dominado pela paixão que o
consumia — Depois eu me matarei e...
Não pôde terminar a frase. A pistola já estava à altura dos olhos de Sid, quando
este notou que Casey estava pisando na ponta de uma corda, atada no outro extremo à
amurada da coberta, tentadoramente ao alcance de sua mão, e não vacilou.
Baixando com rapidez o braço direito, puxou violentamente a corda, ao mesmo
tempo em que se jogava no chão.
Casey esteve a pique de cair de costas e seu tiro perdeu-se no ar. Deu dois passos;
tentando recuperar o equilíbrio, e naquele momento, Sid lançou-se contra ele, com a
fúria de um touro.
Casey esperou-o firme. A pistola caíra para o chão, cerrou os punhos aguardando
a investida de Sid. Quando o agente esteve ao seu alcance, dirigiu-lhe um valente soco
que a guarda de Sid fez resvalar para o peito.
Durante um segundo, o agente do FBI ficou sem respiração. Depois,
comprovando que tinha de haver-se com um homem forte, que conhecia os segredos do
boxe e da luta, tornou-se mais cauteloso.
Começou, então, uma luta feroz. Uma luta que só poderia terminar pela morte de
um dos contendores, pois ambos estavam possuídos do mais forte espírito homicida.
Observaram-se mutuamente, por alguns segundos, Sid dando voltas em torno de
Casey, esperando o momento oportuno para lançar-se sobre ele.
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Depois, ameaçou atacar-lhe o rosto, Casey descobriu-se um pouco Sid arrojou-se
sobre ele, agarrando-o por uma perna e puxando-a com toda a força, apesar do soco que
Casey lhe acertou na cabeça.
O bandido caiu e Sid montou sobre ele, apertando-lhe o pescoço com as duas
mãos, disposto a estrangulá-lo. O rosto de Casey tornou-se primeiro lívido e depois
arroxeado; mas fazendo um esforço sobre-humano, conseguiu dar meia-volta e lançar
Sid escadas abaixo.
O agente rolou até a metade da escada, mas ali conseguiu agarrar-se à amurada e
erguer-se, a tempo de ver Casey que se jogava sobre ele, do alto da escada. Sid
encolheu-se e o corpo de Casey passou roçando por sobre ele, indo cair ao pé da escada,
onde permaneceu imóvel.
Sid chegou ao seu lado, deixando-se enganar pela aparente imobilidade de Casey,
que o agarrou por uma perna, fazendo-o cair com um violento puxão.
Ambos se ergueram, ficando novamente frente a frente. Suas respirações difíceis e
entrecortadas, produziam o ruído de dois foles.
Casey foi o primeiro a lançar-se ao ataque. Seu punho atingiu o queixo de Sid,
fazendo-o cair de costas. Lançou-se logo sobre ele, mas Sid encolheu as pernas e
quando tornou a estendê-las, o bandido saiu voando como uma seta.
O agente ergueu-se postando-se em frente dele e assim que Casey se pôs de pé, o
punho direito de Sid golpeou-o no rosto; primeiro no nariz, depois nos olhos, sem que
Casey conseguisse proteger-se contra aquela saraivada de golpes que caía em cima dele.
Por fim vacilou e, de novo, caiu, sem sentidos. Sid foi jogar-se contra o bandido,
mas logo sentiu que uma espessa nuvem velava-lhe os olhos, suas pernas se dobraram e
caiu para a frente, desmaiado.
Shoat voltou em seguida para o iate, ao perceber que Sid não estava em nenhuma
das lanchas, nem Casey entre os prisioneiros. Temeu, então, pela vida do amigo e
precipitou-se para o iate, subindo apressadamente para bordo.
O quadro que deparou, encheu-o de assombro, e deixou escapar um assobio.
— Puxa, que luta! — disse aos policiais que o cercavam. — Lutaram até
perderem os sentidos. Agarrem Casey. Eu me encarrego do outro.
CAPITULO X
Quando Sidney Eskev comunicou, por telégrafo, aos seus chefes que o assunto da
explosão do avião estava terminado, responderam-lhe felicitando-o e autorizando-o a
tomar os quatro dias de licença que precisava para resolver seus negócios em São
Francisco.
Quando recebeu o telegrama, sacudiu negativamente a cabeça.
— Para que está dizendo não? — perguntou-lhe Isabel, ocupada em tricotar.
Estavam no pequeno terraço da casa dos Shoat tomando café, numa deliciosa
tarde de inverno, das mais quentes que já houvera em São Francisco.
Ali estavam, também Helen Chartier e Ling-Tse-Chiang, e todos comentavam
animados os acontecimentos do dia anterior.
— Casey será eletrocutado depois de amanhã — anunciou Mike, e o entusiasmo
da reunião esfumou-se como por encanto.
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Nenhum dos presentes sentia a menor simpatia pelo bandido e estavam
convencidos que merecia a morte, mas uma coisa era matar um homem no calor de uma
luta, para defender a vida, e outra saber que ia morrer eletrocutado.
Por fim Isabel, no papel de dona de casa, viu-se obrigada a romper a pesada
atmosfera que a noticia da morte de Casey criara no ambiente.
— Para o que você dizia não, quando leu o telegrama? — perguntou outra vez a
Sid.
— É que só me dão quatro dias de licença — respondeu o agente.
— Bem, e o que é que tem isso? — perguntou Isabel, sem perceber os sinais que
seu marido lhe fazia.
— É muito pouco para uma lua de mel — replicou Sid, olhando para Helen, que
enrubesceu levemente.
— Você vai se casar? — interrogou novamente Isabel, suspendendo o trabalho,
surpreendida com a notícia.
— Sim. Vamos, se Helen quiser — disse Sid, tomando uma das mãos da moça.
Nenhum dos presentes notou a palidez que invadia o semblante de Ling ao ouvir
aquilo.
— É verdade que você quer casar comigo? — perguntou a jornalista, olhando para
Sid.
— Claro que sim, Flor de Chá. Você é tão bonita que não pode sair à rua, sem ter
um homem ao seu lado.
Mike e Isabel desejaram-lhe mil felicidades, unindo-se Ling a eles.
— Desejo-lhes que sejam felizes durante toda uma "kalpa"... e depois também —
disse o chinês, com voz embargada, porque aquele casamento significava o fim de suas
entrevistas com Helen.
— Já vai? — perguntou Isabel, ao ver que Ling se erguia.
— Sim. Tenho que tratar dos meus negócios — replicou o chinês — Adeus,
senhora. Adeus, mister Shoat. Muito obrigado por tudo... Helen... Mister Sidney...
Adeus para todos.
Saiu lentamente da peça. Shoat acompanhou-o até a porta, enquanto os outros o
olhavam perplexos e só Isabel adivinhou o que estava passando pela alma de Lin-Tse-
Chiang.
— Escute, Helen: que foi que Ling quis dizer com esta história de nos desejar
felicidades durante toda uma "kalpa"? — perguntou lhe Sid.
Ela voltou-se para o noivo, radiante de felicidade, e explicou:
— Uma "kalpa" significa para os budistas a duração de um Universo. É um
período de tempo tão longo que para que você tenha uma ideia de sua duração deve
imaginar uma rocha com vinte milhas de altura, de largura e de comprimento, que, cada
cem anos, fosse tocada com uma entalha, e quando a rocha ficasse transformada numa
pedrinha, do tamanho do uma semente de melão, teria transcorrido a quarta parte de
uma "kalpa".
— Raios! — exclamou Sid, mas ante o olhar de reprovação de Isabel, corrigiu sua
exclamação — Perdão, Isabel, eu quis dizer: puxa...
— Isabel, quer vir aqui um momento? — chamou-lhe o marido, da cozinha.
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Sua esposa encaminhou-se para lá.
— Que foi Mike? — perguntou-lhe.
— Nada — respondeu este. — Você não vê que eles estão querendo ficar a sós.
Isabel não respondeu, mas sorriu para o marido e espiou pela fresta da porta da
cozinha.
Sid tinha Helen nos braços e beijava-lhe, sofregamente, os lábios. Esta não devia
sentir-se muito desconfortável naquela posição, pois rodeava-lhe o pescoço com os
braços e apertava seus lábios contra os de Sid.
— Como você beija bem, Sid! — murmurou Helen, quando se soltou de seus
braços — Poderia ficar beijando-o uma "kalpa" inteira.
Sid recostou-se na poltrona e começou a assobiar "White Christmas", sua melodia
preferida, muito contente da vida.
FIM
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