Follet, Ken - Martelo Do Eden
Follet, Ken - Martelo Do Eden
Follet, Ken - Martelo Do Eden
Traduo de HAROLDO NETTO Orelha do livro Uma secreta comunidade hippie, num longnquo vale na Califrnia, tem sua existncia ameaada quando o Estado decide construir uma usina eltrica em seu territrio. Priest, o carismtico lder da comunidade, decide proteger seu reduto a qualquer preo e considera que a ameaa de um terremoto seria uma forma eficaz de chantagear o Governo e persuadi-lo a abandonar o projeto. Quando o polmico radialista John Truth leva ao ar a ameaa de provocar um terremoto feita por provveis terroristas, poucas pessoas o levam a srio. Judy Maddox, uma jovem agente do FBI, extremamente competente, recebe a misso de rastrear o sinistro grupo. O chefe de Judy, que no gosta dela, acha que lhe deu uma tarefa intil e insignificante, que resultar apenas em perda de tempo. As pesquisas da investigadora, no entanto, a conduzem ao sismlogo Michael Quercus, que lhe d a chocante notcia de que perfeitamente possvel, mesmo para um leigo, provocar um terremoto. E no momento em que um tremor num longnquo deserto da Califrnia exibe provas de ter sido provocado pela mo do homem, Judy certifica-se de que a terrvel ameaa verdadeira. Subitamente responsvel por uma investigao de vida ou morte, Judy precisa identificar, com precso, o prximo alvo dos terroristas, e para isso conta com a ajuda do atraente Michael. O irresistvel envolvimento romntico dos dois se desenrola medida que tenta impedir o desastre iminente. Com um grau inigualvel de suspense, intriga e romance, Ken Follett mais uma vez brinda o leitor com uma sofisticada trama de ao, capaz de proporcionar inesquecveis momentos de entretenimento. SUMRIO PARTE 1 QUATRO SEMANAS PARTE 2 SETE DIAS PARTE 3 QUARENTA E OITO HORAS
PARTE 1
Quatro Semanas 1 Quando ele deita para dormir, esta paisagem est sempre na sua mente: Uma floresta de pinheiros cobre as montanhas, densa como o plo do dorso de um urso. O cu to azul, o ar da montanha to claro que di a vista olhar para cima. A quilmetros da estrada h um vale secreto cujas margens so ngremes e em cuja calha corre um rio. Ali, escondida dos olhos de estranhos, uma encosta voltada para o sul foi limpa e nela crescem, em fileiras meticulosamente alinhadas, as videiras. Quando se lembra de como aquilo bonito, sente que o corao quer se partir. Homens, mulheres e crianas deslocam-se vagarosamente por entre as videiras, cuidando das plantas. So seus amigos, suas amantes, sua famlia. Uma das mulheres ri. uma mulher grande com cabelos escuros e longos, e ele sente uma afeio especial por ela. A mulher joga a cabea para trs e abre bem a boca, e a sua voz clara flutua pelo vale como o canto de um pssaro. Alguns dos homens enunciam, enquanto trabalham uma boa safra. Aos ps deles, resistem, ainda visveis e imensos, alguns tocos de rvores, para lembrar a eles o trabalho angustiante que tiveram para limpar aquele terreno vinte e cinco anos atrs. O solo pedregoso mas bom, porque as pedras retm o calor do sol e aquecem as razes das videiras, protegendo-as do congelamento mortal. Alm dos vinhedos h um grupo de edificaes de madeira, simples, mas bem construdas e prova d'gua. Uma coluna de fumaa sobe da cozinha, isolada em uma cabana. Em uma clareira, uma mulher ensina um menino a fazer barris. Aquele um lugar sagrado. Protegido pelo segredo e pelas oraes, ele permaneceu puro, seu povo livre enquanto o mundo alm do vale degenerou-se, vtima da corrupo e hipocrisia, ganncia e imoralidade. Mas agora a viso muda. Aconteceu algo ao veloz curso de gua que ziguezagueava pelo vale. Seu rudo foi silenciado, sua pressa repentinamente detida. Em vez de uma corrente de guas claras, o que h uma extenso de gua escura, silenciosa e parada, cujas margens parecem estticas, mas que, se ele olhar com ateno por uns instantes, ver que a gua represada aumenta. Logo forado a retrair para cima de uma colina. Ele no conseque entender por que os outros no notam aquela mar ascendente. Quando a gua negra atinge a primeira fila de videiras, eles continuam trabalhando com os ps mergulhados na gua. As casas so cercadas e depois inundadas. O fogo da cozinha apagado e barris vazios flutuam no lago cada vez maior. Por que no fogem? Ele pergunta a si prprio, e o pnico que sente sobe sua garganta e ameaa impedi-lo de respirar. O cu escurece, coberto de nuvens cor de ferro, e o vento frio fustiga as roupas das pessoas, mas elas continuam a se deslocar ao longo das videiras, abaixando-se e levantando-se, sorrindo umas para outras e falando com vozes discretas, normais. Ele o nico que pode ver o perigo, e percebe que deve pegar uma, duas ou mesmo trs das crianas e salv-las, no deixar que se afoguem. Tenta correr
na direo da filha, mas descobre que tem os ps presos na lama e no pode se mover; seu corao se enche de pavor. Nos vinhedos a gua sobe altura dos joelhos dos trabalhadores, depois chega s suas cinturas e vai at os pescoos. Ele tenta gritar para as pessoas a quem ama, dizer que elas tm que fazer qualquer coisa agora, rapidamente, nos prximos segundos, ou morreram, mas embora abra a boca e se esforce, no conseque produzir um nico som. O terror o domina. A gua atinge sua boca e comea a afog-lo. quando acorda. pgina 11 Um homem chamado Priest puxou o chapu de caubi para a frente e contemplou o deserto do sul do Texas, plano e poeirento. As touceiras do espinhento algarobo e de artemsia espalhavam-se em todas as direes at onde sua vista alcanava. Na frente dele, uma trilha cheia de sulcos, com uns trs metros de largura, fora aberta atravs da vegetao. Trilhas como aquela eram chamadas de senderos pelos tratoristas hispnicos que as cortavam em linhas brutalmente retas. De um lado, em intervalos precisos de cinqenta metros, bandeirolas de plstico cor-de-rosa se agitavam, presas em pedaos de arame, marcando o caminho. Um caminho deslocava-se lentamente ao longo do sendero. Priest tinha que roubar o caminho. Ele roubara seu primeiro veculo aos onze anos de idade, um Lincoln Continental branco novo em folha, estacionado com as chaves na ignio, em frente ao Cinema Roxy, na parte sul da Broadway, em Los Angeles. Priest, que naquele tempo era chamado de Ricky, mal podia enxergar por cima do volante. Sentia tanto medo que quase se urinara, mas conseguira andar dez quarteires e entregara, orgulhosamente, as chaves a Jimmy "Cara de Porco" Riley, que lhe deu cinco pratas e depois levou a namorada para dar uma volta e espatifou o carro na rodovia da Costa do Pacfico. Fora assim que Ricky tornara-se membro da ganque Cara de Porco. pgina 12 Mas aquele caminho no era um veculo comum. Enquanto Priest observava, a poderosa maquinaria localizada atrs da cabina do motorista abaixou lentamente uma placa de ao macio, com um pouco menos de dois metros quadrados, at o cho. Houve uma pausa, um rudo surdo e prolongado. Uma nuvem de poeira levantou-se em torno do caminho quando a placa comeou a bater ritmadamente na terra. O cho tremeu sob seus ps. Aquilo era um vibrador ssmico, uma mquina para enviar ondas de choque atravs da crosta terrestre. Priest nunca tivera muito estudo; exceto no tocante ao furto de carros, mas era a pessoa mais esperta que ele prprio conhecera e compreendeu como o vibrador funcionava. Era similar ao radar e ao sonar. As ondas de choque refletiam-se na composio do solo - rocha ou lquido - e voltavam para
a superfcie, onde eram captadas por aparelhos de escuta chamados geofones. Priest trabalhava na equipe de geofones. Tinham plantado mais de mil deles em intervalos medidos com preciso em uma grade com uma milha mil e seiscentos metros - de lado. Cada vez que o vibrador sacudia o solo, os reflexos eram captados pelos geofones e gravados por um supervisor que trabalhava em um treiler conhecido como casa do cachorro. Todos esses dados mais tarde iriam alimentar um supercomputador em Houston, que produziria um mapa tridimensional do que se encontrava sob a superfcie da terra. O mapa seria vendido a uma companhia de petrleo. O tom das vibraes tornou-se mais agudo, produzindo um barulho que lembrava os poderosos motores de um transatlntico ganhando velocidade. Depois o barulho cessou abruptamente. Priest correu ao longo do sendero at o caminho, sentindo os olhos arderem por causa da nuvem de poeira. Abril a porta e subiu com dificuldade na cabina. Um homem corpulento e de cabelos negros, com cerca de trinta anos, estava direo. - Ei, Mario - disse Priest, sentando-se do lado do motorista. - Ei, Ricky. Richard Granger era o nome na carteira de motorista de Priest (categoria B). A carteira era forjada, mas o nome, real. pgina 13 Ele carregava um pacote de cigarros Marlboro, a marca que Mario fumava. Jogou o pacote em cima do painel. - Aqui, trouxe uma coisa pra voc. - Ei, cara, voc no precisa me comprar cigarros. - Estou sempre filando seus cigarros - ele pegou o mao aberto em cima do painel, sacudiu at aparecer um cigarro, que ps na boca. Mario sorriu. - Por que voc no compra os seus cigarros? - De jeito nenhum, cara. No posso fumar. - Voc maluco, cara - Mario deu uma risada. Priest acendeu o cigarro. Sempre teve facilidade em relacionar-se com as pessoas, fazer com que gostassem dele. Nas ruas onde crescera, os outros batiam em voc se no gostassem da sua cara, e ele fora um garoto mido. Por isso desenvolvera a capacidade intuitivamente o que as pessoas queriam dele - deferncia, afeio, humor, o que fosse - e o hbito de proporcionar-lhes rapidamente essas coisas. No campo petrolfero, o que unia os homens era o humor: geralmente zombeteiro, s vezes inteligente e quase sempre obsceno. Embora estivesse ali apenas h duas semanas, Priest ganhara a confiana dos colegas. Mas ainda no tinha imaginado um modo de roubar o vibrador ssmico. E tinha de faz-lo nas prximas horas, pois no dia seguinte o caminho deveria ser levado para um novo local, a mil e duzentos quilmetros de distncia, perto de Clovis no estado de Novo Mxico.
Seu vago plano era pegar uma carona com Mario. A viagem levaria dois ou trs dias - o caminho, que pesava dezoito toneladas, desenvolvia na estrada sessenta e cinco quilmetros por hora. Em algum ponto daria um jeito para Mario tomar um porre ou qualquer coisa e a sumiria com o caminho. Tinha esperanas de que um plano melhor lhe ocorresse, mas at agora faltara inspirao. - Meu carro anda morrendo - disse. - Quer me dar uma carona at San Antonio amanh? Mario ficou surpreso. - Voc no vai at Clovis, vai? pgina 14 - Nada disso - ele gesticulou na direo da paisagem rida do deserto. - Olha s isso a - disse. - O Texas to bonito, no quero ir embora nunca. Mario deu de ombros. No havia nada de estranho em um trabalhador temporrio, naquela linha de trabalho, sentir-se irrequieto. - Claro, eu dou a carona - era contra as regras da companhia levar passageiros, mas os motoristas faziam isso o tempo todo. - Encontra comigo no vazadouro. Priest fez que sim. O vazadouro de lixo era um buraco desolado, cheio de picapes enferrujadas, aparelhos de televiso esmagados e colches infestados de bichos, nas cercanias de Liberty, a cidadezinha mais prxima. Ningum estaria l para ver Mario peg-lo a menos que houvesse por l uma dupla de garotos matando cobras com uma espingarda calibre 22. - A que horas? - Digamos que s seis. - Eu levo caf. Priest precisava daquele caminho. Sentia que sua vida dependia dele. As palmas de suas mos coavam de vontade de pegar Mario naquele instante mesmo, jog-lo para fora da cabina e dar o fora. Mas no adiantava. Para comear, Mario era quase vinte anos mais moo que Priest e podia no se deixar jogar para fora da cabina com facilidade. Outra coisa que o roubo s podia ser descoberto aps alguns dias. Priest precisava dirigir o caminho at a Califrnia e escond-lo antes que a polcia de todo o pas fosse alertada para descobrir o paradeiro de um vibrador ssmico roubado. Ouviu-se um bipe no rdio, isto indicava que o supervisor na casinha de cachorro checara os dados da ltima vibrao e no encontrara problemas. Mario levantou a placa, engrenou o caminho e adiantou-se cinqenta metros, parando exatamente do lado da bandeirola cor-de-rosa seguinte. Em seguida abaixou a placa de novo e enviou um sinal de pronto. Priest a tudo observou cuidadosamente, como fizera diversas vezes antes, assegurando-se de que decorava a ordem em que Mario movimentava as alavancas e acionava os interruptores. Se esquecesse alguma coisa mais tarde, no haveria ningum a quem pudesse perguntar. pgina 15
Esperaram pelo sinal de rdio vindo da casa de cachorro e que daria incio prxima vibrao. Podia ser feito pelo motorista no caminho, mas geralmente os supervisores preferiam reter o comando e dar incio ao processo pelo controle remoto. Priest terminou o cigarro e jogou a ponta pela janela. Mario indicou o carro de Priest, estacionado uns seiscentos metros adiante na estrada de asfalto de duas pistas. - Aquela a sua mulher? Priest deu uma olhada. Star saltara do Honda Civic azul claro imundo e estava encostada no cap, abanando o rosto com o chapu de palha. - , ela sim - respondeu. - Deixa eu lhe mostrar uma foto - Mario pegou no bolso da cala-jeans uma carteira velha de onde tirou uma foto que passou para Priest. - Esta Isabella - disse, orgulhosamente. Priest viu uma bonita garota mexicana com seus vinte e poucos anos, com um vestido amarelo e um arco tambm amarelo no cabelo. Segurava um beb apoiado no quadril e tinha um menino de cabelo bem escuro de p, timidamente a seu lado. - Seus filhos? Ele fez que sim. - Ross e Betty. Priest resistiu tentao de sorrir ao ouvir os nomes ingleses. - Bonitas crianas. Ele pensou nos prprios filhos e quase falou com Mario a respeito deles, mas deteve-se a tempo. - Onde moram? - El Paso. O germe de uma idia pipocou na cabea dele. - Voc os v com freqncia? Mario sacudiu a cabea. - Eu s fao trabalhar, cara. Economizando dinheiro para comprar uma casa para eles. Uma casa boa, com uma cozinha grande e uma piscina no quintal. Eles merecem. pgina 16 A idia desabrochou. Priest conteve a excitao e manteve o tom de voz casual, prosseguindo com o papo furado. - , uma bela casa para uma bela familia. Certo? - o que penso. O rdio emitiu um outro bipe e o caminho comeou a sacudir. O barulho era como o de um trovo, s que mais regular. Comeou num tom grave de baixo profundo e foi lentamente subindo. Exatamente depois de catorze segundos, parou. No silncio que se seguiu, Priest estalou os dedos. - Ei, tenho uma idia... no, acho que no. - O que? - No sei se ia funcionar.
- O qu, homem, o qu? - Eu s pensei que, voc sabe, sua mulher sendo to bonita e seus filhos tambm, est errado voc no ver sua famlia com mais freqncia. - esta a sua idia? - No, minha idia que eu podia dirigir o caminho at o Novo Mxico enquanto voc vai visit-los, mais nada - era importante no parecer muito entusiasmado, disse Priest a si prprio. - Mas acho que no ia dar certo - acrescentou, num tom de voz que traduzia indiferena. - No, cara, no mesmo possvel. - Provavelmente no. Vejamos, se sairmos amanh cedo e dirigirmos at San Antonio juntos, eu podia deixar voc l no aeroporto e voc chegaria em El Paso ao meio-dia. Brincava com as crianas, almoava com sua mulher, passava a noite, tomava um avio no de Lubbock a Clovis? - Uns cento e quarenta, talvez, cento e sessenta quilmetros. - Poderamos estar em Clovis na mesma noite, ou na manh seguinte, no mais tardar, e ningum saber que voc no dirigiu todo o trajeto. - Mas voc quer ir para San Antonio. Droga. Priest no pensara nos detalhes; ia inventando medida que falava. pgina 17 - Ei, nunca estive em Lubbock - disse, alegremente. - onde nasceu Buddy Holly. - Quem diabos Buddy Holly? Priest cantou: - "I love you, Peggy Sue." Buddy Holly morreu antes de voc nascer, Mario. Eu gostava mais dele do que do Elvis. E no me pergunte quem foi Elvis. - Voc dirigiria toda essa distncia s por minha causa? Priest perguntou-se, ansioso, se Mario estaria desconfiado ou apenas grato. - Claro que sim - respondeu. - Desde que voc me deixe fumar os seus Marlboros. Mario sacudiu a cabea, assombrado. - Voc um sujeito e tanto, Ricky. Mas eu no sei. No estava desconfiado, ento, s apreensivo. E provavelmente no podia ser forado a tomar uma deciso. Priest mascarou sua frustrao com um show de indiferena. - Bem, pense nisso - disse. - Se alguma coisa sair errado, no quero perder meu emprego. - Voc est certo - Priest lutou para conter a impacincia. - Eu lhe digo, a gente conversa mais tarde. Vai ao bar de noite? - Claro. - Por que no me d a resposta l? - OK, estamos combinados. O rdio transmitiu o bipe que sinalizava tudo bem e Mario acionou a alavanca que levantava a placa do cho. - Preciso voltar para a equipe dos geofones - disse Priest. - Temos que enrolar alguns quilmetros de cabos antes da noite cair. Ele devolveu a foto da famlia de Mario e abriu a porta. - Vou lhe
dizer uma coisa, cara, se eu tivesse uma garota to bonita assim, nem saa de casa. Priest sorriu, pulou para o cho e bateu a porta. O caminho deslocou-se na direo da bandeirola seguinte enquanto Priest se afastava, as botas de caubi chutando a poeira. pgina 18 Enquanto percorria o sendero que ia dar onde o carro estava estacionado, viu que Star comeava a andar de um lado para o outro, impaciente e ansiosa. Star tinha sido famosa, mesmo que por um breve perodo. No auge da era hippie morava em Haight-Ashbury, um bairro de San Francisco. Priest no a conhecia nesse tempo - ele gastara o final dos anos 60 ganhando o seu primeiro milho de dlares - mas tinha tomado conhecimento das histrias dela. Fora uma mulher linda, alta e de cabelos escuros, com um perfil generoso que lembrava uma ampulheta. Tinha gravado um disco recitando poesia com um fundo de msica psicodlica executada pela banda Raining Fresh Daisies. O disco fizera certo sucesso, e Star fora uma celebridade por uns dias. Mas o que a transformara numa lenda fora sua insacivel promiscuidade sexual. Fazia sexo com quem cismasse: ansiosos garotos de doze anos e espantados homens de sessenta, rapazes que pensavam ser gays e garotas que no sabiam que eram lsbicas, amigos que conhecia havia anos e estranhos que apanhava nas ruas. Isso fora muito tempo atrs. Agora ela estava a poucas semanas de completar o qinquagsimo aniversrio e havia faixas grisalhas no seu cabelo. A silhueta ainda era generosa, embora no mais lembrasse uma ampulheta: pesava oitenta quilos. Mas ainda exercia um extraordinrio magnetismo sexual. Quando entrava num bar todos os homens olhavam para ela. Mesmo agora, inquieta e encalorada, havia um qu de sexual no jeito como andava e se virava ao lado do carro velho e barato, um convite evidente no movimento de suas carnes sob o algodo fino do vestido, e Priest sentiu o impulso de agarr-la ali mesmo. - O que aconteceu? - perguntou ela assim que achou que ele podia ouvi-la. Priest sempre era otimista. - Tudo bem - disse ele. - O que parece ruim - disse ela, ceticamente. Sabia que no devia acreditar em tudo o que ouvia. pgina 19 Ele lhe contou a proposta que fizera a Mario. - O bom da histria que o Mario que levar a culpa acrescentou. - Como assim? - Pense no seguinte. Ele chega a Lubbock, me procura, no estou l, tampouco o caminho. Ele imagina que foi tapeado. O que faz? Seque para Clovis e diz companhia que perdeu o caminho? Acho que no. Na melhor
das hipteses, ser despedido. Na pior, poder ser acusado de ter roubado o caminho e ser jogado na cadeia. aposto como ele nem ir a Clovis. Voltar para o avio, seguir para El Paso, coloca mulher e filhos no carro e desaparece. A a polcia vai ter certeza de que ele roubou o caminho. E Ricky Granger no ser sequer um suspeito. Ela franziu a testa. - um grande plano, mas ele morder a isca? - Acho que sim. Star ficou mais ansiosa e bateu no teto sujo do carro com a palma da mo. - Merda, temos que pegar aquele maldito caminho! Ele estava to preocupado quanto ela, mas disfarou com um ar confiante. - Vamos pegar - disse ele. - Se no for de um jeito, ser de outro. Ela ps o chapu de palha na cabea, recostou-se no carro e fechou os olhos. - Quisera eu ter certeza. Priest fez um carinho no rosto dela. - Precisa de uma carona, senhora? - Sim, por favor. Leve-me para o meu quarto de hotel com ar-condicionado. - Haver um preo a pagar. Ela abriu os olhos com fingida inocncia. - Terei que fazer alguma coisa indecente, senhor? Ele deslizou a mo por entre os seios de Star. - Ter, sim. - Oh, mas que droga - disse ela, levantando a saia at a cintura. pgina 20 Estava sem calcinhas. Priest sorriu e desabotoou sua Levis. - O que que o Mario vai pensar se nos vir? - Sentir cimes - disse Priest, ao mesmo tempo em que a penetrava. Eram quase da mesma altura e se ajustavam com a facilidade da longa prtica. Star beijou-lhe a boca. Poucos momentos depois ele ouviu um veculo se aproximando pela estrada. Os dois olharam sem interromper o que estavam fazendo. Era uma picape com trs trabalhadores no banco da frente. Os homens puderam ver o que estava acontecendo e eles gritaram e fizeram algazarra pelas janelas abertas quando passaram. Star acenou para eles, gritando: - Ei, caras! Priest riu tanto que gozou. *** A crise tinha entrado na fase final e decisiva exatamente trs semanas antes.
Eles estavam sentados na mesa comprida na cabana onde funcionava a cozinha, comendo a refeio do meio-dia, um apimentado ensopado de lentilhas e legumes com po recm-sado do forno, quando Paul Beale entrou com um envelope na mo. Paul engarrafava o vinho que a comunidade de Priest produzia - mas ia alm disso. Era o vnculo deles com o exterior, que os capacitava a negociar com o mundo mas mantendo-o distncia. Um homem calvo e barbado, de jaqueta de couro, amigo de Priest desde que os dois eram arruaceiros de catorze anos, rolando embriagados pelas ruas miserveis de L.A., no incio dos anos 60. Priest adivinhou que Paul recebera a carta naquela manh e tinha imediatamente entrado no carro e vindo de Napa. Adivinhou tambm o que havia na carta, mas esperou que Paul explicasse. pgina 21 - do Bureau de Administrao de Terras - disse Paul. Endereada a Stella Higgins. Ele a entregou a Star, sentada em uma das extremidades da mesa, em frente a Priest. Stella Higgins era seu nome verdadeiro, o nome que usara ao arrendar aquela extenso de terra ao Departamento do Interior, no outono de 1969. Ao redor da mesa todos ficaram em silncio. At mesmo as crianas calaram a boca, sentindo a atmosfera de medo e alarme. Star rasgou o envelope e tirou uma folha. Leu o texto com uma nica olhada. - Sete de junho - disse. Priest disse: - Sete semanas e dois dias a partir de hoje - este tipo de clculo era feito automaticamente por ele. Diversas pessoas gemeram, em desespero. Uma mulher chamada Song comeou a chorar silenciosamente. Um dos filhos de Priest, um menino de dez anos chamado Ringo, perguntou: - Por qu, Star, por qu? Priest percebeu que era alvo do olhar de Melanie, a mais recente integrante da comunidade. Era alta e magra, com vinte e oito anos de idade e dona de uma aparncia admirvel: pele muito clara, cabelos compridos cor de pprica, e corpo de modelo. Dusty, o filho de cinco anos de idade, estava sentado ao seu lado. - O qu? - perguntou Melanie, chocada. - O que isso? Todo mundo sabia que aquilo aconteceria, mas era deprimente demais falar a respeito e no tinham contado a Melanie. Priest explicou: - Temos que abandonar o vale. Sinto muito, Melanie. Star leu a carta. - A acima referida extenso de terra tornar-se- perigosa para habitao humana aps o dia 7 de junho, e, assim sendo, o seu perodo de arrendamento terminar naquela data, de acordo com a clusula nove, parte B, pargrafo dois, do seu contrato. pgina 22
Melanie levantou-se. Sua pele alva ficou vermelha e o rosto bonito retorceu-se num sbito acesso de dio. - No! - gritou ela. - No! No podem fazer isso comigo , acabei de encontrar vocs! No acredito, mentira - ela voltou sua fria contra Paul. - Mentiroso! - gritou. - Seu filho da puta mentiroso! O filho dela comeou a chorar. - Ei, pra com isso! - exclamou Paul, indignado. - Sou apenas a droga do carteiro! Todo mundo comeou a gritar ao mesmo tempo. Priest colocou-se ao lado de Melanie com duas passadas. Passou o brao em torno dela e falou baixinho no seu ouvido. - Voc est assustando o Dusty - disse. - Sente-se, agora. Voc tem direito de estar furiosa, ns todos estamos loucos de raiva. - Diga-me que no verdade - disse ela. Priest empurrou-a delicadamente de volta para a cadeira. - verdade, Melanie. verdade. Quando todos se aquietaram, Priest disse: - Vamos embora, todo mundo, vamos lavar os pratos e voltar para o trabalho. - Por qu? - quis saber Dale. Ele era o vinhateiro. No um dos fundadores, tinha chegado aos anos 80, desiludido com o mundo comercial. Depois de Priest e Star, era a pessoa mais importante do grupo. - No estaremos aqui para a vindima - prosseguiu. - Temos que ir embora em cinco semanas. Por que trabalhar? Priest imobilizou-o com o olhar, a mirada hipntica que s no intimidava as pessoas dotadas de mais fora de vontade. Deixou que a sala ficasse em silncio, para que todos pudessem ouvir. E por fim disse: - Porque milagres acontecem. *** Uma postura local proibia a venda de bebidas alcolicas na cidadezinha de Shiloh, no Texas, mas logo do outro lado do limite urbano havia um bar chamado Doodlebug, com chope barato, uma banda country-faroeste e garonetes vestindo calas blue jeans apertadas e botas de cauboi. pgina 23 Priest foi sozinho. No queria que Star mostrasse o rosto, correndo o risco de que se lembrassem dela mais tarde. Gostaria que ela no tivesse vindo para o Texas. Mas precisava de algum que o ajudasse a levar o vibrador ssmico de volta. Iam dirigir dia e noite, alternando-se ao volante, usando drogas para permanecerem acordados. Queriam chegar antes de que dessem por falta da mquina. Lamentava a indiscrio daquela tarde. Mario vira Star a uns quatrocentos metros de distncia e os trs trabalhadores na picape a tinham apenas vislumbrado ao passarem, mas sua aparncia era marcante e provavelmente seriam capazes de descrev-la aproximadamente: uma mulher
branca, alta, corpulenta, de cabelos escuros compridos... Priest mudara de aparncia antes de chegar em Liberty. Deixara crescer o bigode e uma barba cerrada e prendera o cabelo comprido numa trana apertada que mantinha enfiada dentro do chapu. No entanto, se tudo corresse de acordo com o seu plano, ningum pediria descries dele ou de Star. Quando chegou no Doodlebug, Mario j estava l, sentado a uma mesa com cinco ou seis sujeitos da equipe de geofones e o chefe do grupo, Lenny Petersen, que controlava toda a equipe de explorao ssmica. Para no parecer demasiado ansioso, Priest pediu uma Lone Star de gargalo comprido e ficou no bar por algum tempo, tomando a cerveja direto na garrafa e conversando com a garonete antes de se integrar mesa de Mario. Lenny era um sujeito careca, de nariz vermelho. Tinha sido ele quem dera o emprego a Priest, duas semanas antes. Priest passara uma noite no bar, bebendo moderadamente, sendo amvel com a equipe, aprendendo uma ou outra palavra do jargo da explorao ssmica e rindo alto das piadas de Lenny. Na manh seguinte o encontrara no campo petrolfero e pedira um emprego. pgina 24 - Vou aceitar voc a ttulo de experincia - dissera Lenny. Era tudo de que Priest precisava. Ele era trabalhador, aprendia depressa e era uma pessoa fcil de lidar; em poucos dias foi aceito como membro regular da equipe. Ao sentar-se, Lenny dirigiu-se a ele com seu sotaque arrastado do Texas: - Ento, Ricky, voc no vai conosco a Clovis. - isso a - confirmou Priest. - Gosto demais do tempo aqui para sair. - Bem, eu s gostaria de dizer, com toda a sinceridade, que foi um verdadeiro privilgio e um prazer conhecer voc, mesmo que por um perodo de tempo to curto. Os outros riram. Lenny fizera a piada usando um lugar-comum. Todos olharam para Priest aguardando sua rplica. Priest fez uma cara solene e disse: - Lenny, voc to bom pra mim que eu vou lhe perguntar mais uma vez. Quer se casar comigo? Todos deram risada. Mario deu um tapa nas costas de Priest. Lenny pareceu ficar perturbado e disse: - Voc sabe que no posso me casar com voc, Ricky. E eu j lhe disse qual o motivo - ele fez uma pausa para aumentar o efeito dramtico e todos se inclinaram um pouco para a frente a fim de no deixarem de escutar o desfecho. - Sou lsbica. Desta vez eles chegaram a urrar de tanto rir. Priest deu um sorriso melanclico, reconhecendo a derrota, e pediu um jarro de chope para a mesa. A conversa passou para o beisebol. A maioria ali torcia pelos Astros de Houston, mas Lenny era de Arlington e preferia os Rangers do Texas.
Priest no tinha interesse por esportes, de modo que aguardou impacientemente, intervindo de vez em quando com um a tempo, tinham sido bem pagos e era uma noite de sexta-feira. Priest bebericou lentamente sua cerveja. Nunca bebia muito; detestava perder o controle. Observou Mario bebendo. Quando Tammy, a garonete deles, trouxe outro jarro, Mario contemplou, com um olhar de desejo, os seios dela, sob a camisa xadrez. Continue desejando, Mario - voc poderia estar na cama com sua mulher amanh. pgina 25 Depois de uma hora, Mario foi ao banheiro. Priest seguiu-o. Ao inferno com esta espera, est na hora de decidir. Colocou-se ao lado de Mario e disse: - Acho que a Tammy est usando roupa de baixo preta. - Como que voc sabe? - Dei uma espiada quando ela se abaixou. Adoro ver um suti rendado. Mario suspirou. Priest continuou. - Voc gosta de mulher com roupa de baixo preta? - Vermelha - disse Mario, decidido. - , vermelho bonito tambm. Dizem que um sinal de que a mulher realmente est a fim de voc, quando veste roupa de baixo vermelha. - mesmo? - o hlito de cerveja de Mario veio um pouco mais depressa. - E, ouvi isso no sei onde. - Priest abotoou-se. - Escute, tenho que ir. Minha mulher est me esperando no motel. Mario fez uma careta e enxugou o suor da testa. - Vi voc e ela hoje de tarde, cara. Priest sacudiu a cabea fingindo arrependimento. - minha fraqueza. Eu simplesmente no sei dizer no para uma cara bonita. - Vocs estavam transando, no estavam, na maldita estrada? - ... Bem, quando voc no v uma mulher h algum tempo, ela fica meio frentica querendo, entende o que quero dizer? Vamos, Mario, v se entende onde estou querendo chegar! - Sim, eu sei. Olha, a respeito de amanh... Priest prendeu a respirao. - Bem, se voc ainda est querendo fazer o que disse... Sim! Sim! pgina 26 - Vamos em frente, certo? Priest resistiu tentao de abraar o outro. Mario perguntou ansiosamente. - Voc ainda est disposto, no est? - Claro que sim - Priest passou o brao pelos ombros de Mario quando os dois saram do banheiro. - Ei, para que servem os amigos, entende o que quero dizer? - Obrigado, cara - havia lgrimas nos olhos de Mario. Voc um
sujeito e tanto, Ricky. *** Lavaram as tigelas de cermica e as colheres de pau em uma grande banheira de gua morna e secaram em uma toalha feita de uma velha camisa de trabalho. Melanie disse a Priest: - Bem, comearemos de novo em algum outro lugar! Arranjamos um pedao de terra, construmos cabanas de madeiras, plantamos videiras, fazemos vinho. Por que no? o que voc fez todos estes anos. - - disse Priest. Ps sua tigela numa prateleira e jogou a colher numa caixa. Por um momento era novamente jovem, forte como um pnei e dono de uma energia ilimitada, certo de que seria capaz de resolver qualquer problema que a vida lhe oferecesse. Lembrou do corpo jovem de Star, suando quando cavava o solo; da maconha deles, plantada em uma clareira no meio do mato e a doura embriagadora das uvas quando esmagadas. Depois voltou ao presente e sentou-se mesa. - Todos estes anos - ele repetiu - ns alugamos esta terra do governo por quase nada, e depois eles se esqueceram de ns. Star interveio: - Nunca um aumento do aluguel, em vinte e nove anos. Priest continuou: - Limpamos a floresta graas ao trabalho de trinta ou quarenta jovens que queriam trabalhar em liberdade, doze a catorze horas por dia, por um ideal. pgina 27 Paul Beale fez uma careta. - Minhas costas ainda doem quando penso nisso. - Conseguimos nossas parreiras de graa, dadas por um bondoso vinicultor do vale do Napa que queria encorajar gente jovem a fazer algo construtivo em vez de ficar sentada tomando drogas o dia inteiro. - O velho Raymond Dellavalle - disse Paul. - J morreu, que Deus o tenha. - E o mais importante foi que ns nos determinamos e fomos capazes de viver na linha da pobreza, meio famintos, dormindo no cho, buracos nas solas dos sapatos, por cinco longos anos at colhermos nossa primeira safra vendvel. Star pegou um beb que engatinhava pelo cho, limpou o nariz dele e disse: - E ns no tnhamos filhos com que nos preocupar. - Exatamente - concordou Priest. - Se pudssemos reproduzir todas aquelas condies, poderamos comear tudo de novo. Melanie no ficou satisfeita. - Tem que haver um jeito! - Bem, h um outro jeito - disse Priest. - Paul sabe como . Paul balanou a cabea afirmativamente. - Voc pode organizar uma corporao, pedir um emprstimo de um quarto
de milho de dlares a um banco, contratar a mo-de-obra e tornar-se como qualquer outro capitalista ganancioso cuidando das margens de lucro. - E isso - arrematou Priest - seria o mesmo que desistir. *** Ainda estava escuro quando Priest e Star se levantaram na manh de sbado em Liberty. Priest tomou caf na lanchonete do lado do motel. Quando ele voltou, Star estudava um mapa rodovirio luz do abajur. - Voc dever deixar Mario no Aeroporto Internacional de San Antonio por volta das nove e meia, dez horas da manh de hoje - disse ela. Depois vai querer deixar a cidade pela Interestadual 10. pgina 28 Priest no olhou para o mapa. Mapas o confundiam. Podia seguir as placas indicando a I-10. - Onde nos encontraremos? Star calculou. - Eu deverei estar mais ou menos uma hora na sua frente - ela ps o dedo num ponto do mapa. - H um lugar chamado Leon Springs, a cerca de vinte e quatro quilmetros do aeroporto. Estacionarei l onde voc com certeza ver o carro. - Parece bom. Estavam tensos e excitados. Roubar o caminho do Mario era apenas o primeiro passo do plano, mas era crucial; tudo o mais dependia disso. Star estava preocupada com coisas prticas. - O que vamos fazer com o Honda? Priest comprara o carro trs semanas atrs por mil dlares em dinheiro. - Vai ser difcil vender. Se passarmos por uma revenda de carros usados, podemos conseguir uns quinhentos dlares por ele. Caso contrrio, achamos uma regio arborizada perto da estrada e o largamos l. - Podemos ficar sem o dinheiro? - Dinheiro faz voc pobre - Priest citou um dos Cinco Paradoxos de Baghram, o guru cujos ensinamentos eles seguiam. Priest sabia quanto dinheiro tinham at o ltimo centavo, mas conservava todos os demais na ignorncia. A maioria dos membros da comunidade nem sequer sabia da existncia de uma conta bancria. E ningum no mundo tinha conhecimento da verba de emergncia de Priest, dez mil dlares em notas de vinte, presos com fita adesiva no interior de uma velha guitarra acstica pendurada em um prego na parede da sua cabana. Star deu de ombros. - No me preocupei com dinheiro nos ltimos vinte e cinco anos, de modo que acho que no vou comear agora. - ela tirou os culos de leitura. Priest sorriu para ela.
pgina 29 - Voc fica bonitinha de culos. Star lhe dirigiu um olhar enviesado e fez uma pergunta surpreendente: - Est ansioso para ver Melanie? Priest e Melanie eram amantes. Ele segurou a mo de Star. - Claro. - Gosto de ver voc com ela. Ela o faz feliz. Uma lembrana sbita de Melanie passou como um relmpago pela memria de Priest. Ela estava deitada de bruos, atravessada na cama dele, dormindo, com o sol da manh entrando, oblquo, na cabana. Ele estava sentado tomando caf, observando-a, deleitando-se com a textura da sua pele branca, a curva perfeita do seu traseiro, o modo como o cabelo vermelho comprido se espalhava numa trama confusa. Em mais um momento sentiria o cheiro do caf, rolaria o corpo e abriria os olhos, e a ele voltaria para a cama e faria amor com ela. Mas por ora, ele se comprazia com a antecipao, planejando como a tocaria e a excitaria, saboreando o momento delicioso como um copo de bom vinho. A viso desvaneceu-se, e ele viu o rosto de Star com quarenta e nove anos de idade no quarto barato de um motel do Texas. - Voc no est chateada por causa da Melanie, est? - O casamento a maior das infidelidades - disse ela, citando outro dos Paradoxos. Ele assentiu. Nunca tinham pedido um ao outro para serem fiis. No princpio fora Star quem desprezara a idia de se comprometer com um nico amante. A, depois que fez trinta anos e comeou a se acalmar, Priest testara a sua permissividade desfilando com outras mulheres em sua frente. Mas nos ltimos anos, embora ainda acreditassem no amor livre, nenhum dos dois realmente havia tirado partido disso. Assim, Melanie viera como uma espcie de choque para Star. Mas tudo bem. De qualquer maneira a relao deles estava sedimentada. Priest no gostava que ningum achasse que podia prever o que ele ia fazer. Amava Star, mas a mal disfarada ansiedade nos olhos dela lhe dava uma agradvel sensao de controle. pgina 30 Ela brincou com a xcara de plstico. - Eu s queria saber como Flower se sente a respeito disso tudo. Flower era a filha deles, que, com treze anos de idade, era a criana mais velha da comunidade. - Ela no foi criada em uma famlia nuclear - disse ele. - Ns no fizemos dela uma escrava das convenes burguesas. Esta a vantagem de uma comunidade. - Pode ser - concordou Star, mas no o bastante. - Eu s no quero que ela perca voc, mais nada. Ele acariciou a mo dela. - Isto no acontecer. Star apertou os dedos dele. - Obrigada.
- Temos que ir - disse ele, levantando-se. Seus poucos pertences tinham sido acondicionados em trs sacolas plsticas de compras. Priest pegou-as e jogou dentro do Honda. Star foi atrs. Tinham pago a conta na noite anterior. O escritrio agora estava fechado e ningum viu quando Star sentou-se ao volante e eles desapareceram na primeira luz da manh. Shiloh era uma cidadezinha de duas ruas, com um nico sinal onde elas cruzavam. No havia muitos veculos circulando quela hora em uma manh de sbado. Star avanou o sinal e saiu da cidade. Chegaram no vazadouro poucos minutos antes das seis horas. No havia placa do lado da estrada, nem cerca ou porto, s uma trilha onde a vegetao fora esmagada pelos pneus das picapes. Star seguiu a trilha at uma ligeira elevao. O vazadouro ficava numa reentrncia, escondido da estrada. Ela parou ao lado de uma pilha de lixo que ardia sem chama. Nem sinal de Mario ou do vibrador ssmico. Priest podia ver que Star ainda estava perturbada. Tinha que acalm-la, pensou, preocupado. Ela no podia se dar ao luxo de ter a ateno desviada, logo hoje. Se alguma coisa desse errado, ela teria que estar alerta, concentrada. - Flower no vai me perder - disse ele. pgina 31 - Que bom - replicou ela, cautelosa. - Vamos ficar juntos, ns trs. Sabe por qu? - Voc me diz. - Porque ns nos amamos. Ele viu o alvio drenar a tenso do rosto de Star. Ela lutou para no chorar. - Muito obrigada - agradeceu. Ele sentiu-se seguro outra vez. Dera o que ela precisava. Star estaria bem agora. Ele a beijou. - Mario chegar a qualquer instante. Voc vai seguindo, agora. Ganhe alguns quilmetros de vantagem. - No quer que eu espere at que ele chegue? - Ele no deve ver voc de perto. No se pode adivinhar o futuro e no quero que ele seja capaz de identificar voc. - Est bem. Priest saltou do carro. - Ei - exclamou Star -, no se esquea do caf do Mario - ela lhe passou o saco de papel. - Obrigado - ele pegou o saco e bateu a porta do carro. Ela fez um giro amplo e afastou-se depressa, levantando uma nuvem de poeira do deserto do Texas. Priest olhou em torno. Era espantoso que uma cidadezinha to pequena pudesse produzir tamanha quantidade de lixo. Viu bicicletas retorcidas e carrinhos de beb com aparncia de novos, sofs todos manchados e geladeiras antiquadas, alm de, pelo menos, dez carrinhos de
supermercado. O lugar estava cheio de embalagens de papelo para sistemas de som, pedaos de poliestireno que pareciam esculturas abstratas, sacolas de papel e de plstico, restos de papel-alumnio e uma quantidade imensa de frascos plsticos que originalmente continham substncias que Priest jamais usara: hidratante, condicionador de cabelos, amaciante de roupas, tinta para fax. Viu um castelo de fadas cor-de-rosa feito de plstico, presumivelmente o brinquedo de alguma criana, e maravilhou-se com o desperdcio extravagante de uma construo to elaborada. No tinham muito lixo em Silver River Valley. No usavam carrinhos de bebs ou geladeiras e raramente compravam alguma coisa que viesse dentro de uma embalagem. As crianas usavam a imaginao para construrem um castelo de fadas a partir de uma rvore, um barril ou uma viga. pgina 32 Um enevoado sol vermelho apareceu por cima da elevao, lanando a sombra comprida de Priest no estrado enferrujado de uma cama. Aquilo fez com que se lembrasse do nascer do sol sobre os picos brancos da Sierra Nevada e ele sentiu um aperto no corao, Alguma coisa brilhou de repente aos seus ps. Era um objeto de metal reluzente, meio enterrado. Sem ter o que fazer, escavou a terra seca com a ponta da bota, depois inclinou-se e pegou o objeto. Era uma chave inglesa pesada, que parecia nova. Mario podia achar que fosse til, pensou Priest: era mais ou menos do tamanho adequado para a maquinaria de grande escala do vibrador ssmico. Mas claro que o caminho devia ter um conjunto completo de ferramentas adequadas a cada porca ou arruela usada na sua fabricao. Mario no precisaria de uma ferramenta achada no lixo. Priest largou a chave. Nesta hora ele ouviu o motor de um veculo, mas no lhe pareceu que fosse um caminho grande. Levantou a cabea. Um momento depois, uma picape bege ultrapassou a crista da elevao e veio se sacudindo pela trilha irregular. Era uma Dodge Ram com o pra-brisa rachado: o carro de Mario. Priest sentiu uma pontada de apreenso. O que significava aquilo? Mario deveria aparecer ali dirigindo o caminho com o vibrador ssmico. O carro dele seria levado para o norte por um dos seus companheiros de trabalho, a menos que ele tivesse decidido vend-lo ali mesmo e comprar outro em Clovis. - Merda - exclamou Priest. - Merda. Conteve os sentimentos de raiva e frustrao quando Mario parou e saltou da picape. - Trouxe o seu caf - disse, passando o saco de papel para as mos de Mario. - O que que h? pgina 33 Mario no abriu o saco. Sacudiu a cabea tristemente. - No posso fazer, cara. Merda.
Mario continuou. - Sinceramente fiquei agradecido com a sua oferta, mas tenho que dizer que no. O que diabo est havendo? Priest cerrou os dentes e fez com que a voz soasse casual. - O que foi que aconteceu para fazer voc mudar de idia, companheiro? - Depois que voc saiu do bar ontem noite, Lenny fez um discurso que no acabava nunca sobre quanto o caminho custava e como eu no tenho que dar carona, nem pegar ningum pedindo carona na estrada, e como ele confia em mim, essas coisas todas. Posso imaginar Lenny num porre federal, todo meloso, deve ter levado voc s lgrimas, seu filho da puta burro. - Voc sabe como , Ricky. Este emprego legal - trabalho duro e o horrio puxado, mas o pagamento muito bom. - Ei, no tem problema - disse Priest, forando um tom despreocupado. - Desde que voc ainda possa me levar a San Antonio. Pensarei em alguma coisa daqui at l. Mario sacudiu a cabea. - melhor no levar, no depois do que o Lenny falou. No vou levar ningum a parte alguma naquele caminho. por isso que vim no meu carro, para poder lhe dar uma carona de volta cidade. E o que que vou fazer agora, pelo amor de Deus? - E ento, o que que voc diz, vai querer ir? E depois, o qu? Priest tinha construdo um castelo nas nuvens, que agora via agonizar e dissipar-se brisa leve da conscincia culpada de Mario. Passara duas semanas naquele deserto quente e poeirento, trabalhando num servio burro e intil, alm de ter desperdiado centenas de dlares em passagens areas, contas de motel e uma comida nojenta. No dispunha de tempo para fazer tudo isso de novo. pgina 34 O prazo fatal se esgotava em duas semanas e um dia. Mario fechou a cara. - Como , homem, vamos. *** - Eu no vou desistir deste lugar - Star dissera a Priest no dia em que a carta chegara. Estava sentada do lado dele em cima do tapete de agulhas de pinheiro que forrava o solo na orla do parreiral, durante o perodo do descanso do meio da tarde, tomando gua fresca e comendo passas de uvas do ano anterior. - Isto aqui no s uma fazenda destinada produo de vinho, no s mais um vale e tambm no s uma comunidade. Isto aqui toda a minha vida. Viemos para c, h tanto tempo, porque acreditvamos que nossos pais tinham criado uma sociedade distorcida e corrupta e envenenada. E tnhamos razo, pelo amor de Deus! O rosto dela ficou congestionado quando deixou transparecer toda a sua paixo, e Priest pensou como Star era bonita, ainda.
- Olha s o que aconteceu ao mundo l fora - prosseguiu ela, erguendo a voz. - Violncia e feira e poluio, presidentes que mentem e violam a lei, violentos distrbios da ordem, crime e pobreza. Enquanto isso, vivamos aqui em paz e harmonia, ano aps ano, sem dinheiro, sem cimes sexuais, sem regras conformistas. Dizamos que tudo de que precisvamos era amor, e nos chamavam de ingnuos, mas estvamos certos e eles errados. Ns sabemos que descobrimos o modo de viver - ns provamos isso. A voz dela tornara-se muito precisa, traindo suas origens. O pai de Star descendia de famlia rica mas passara a vida como mdico em uma favela. Star herdara seu idealismo. - Farei qualquer coisa para salvar nossa casa e nosso meio de vida continuou ela. - Morrerei por isso, se nossos filhos puderem continuar a morar aqui - em seguida a voz prosseguiu mais contida, mas as palavras foram claras e ela falou com determinao, sem remorsos. - Chegarei inclusive a matar disse. - Voc est entendendo, Priest? Farei qualquer coisa. pgina 35 *** - Voc est me ouvindo? - indagou Mario. - Quer uma carona at a cidade ou no? - Claro - respondeu Priest. Claro, seu covarde filho da me, seu vira-lata poltro, seu maldito refugo da terra, eu quero uma carona. Mario virou-se. Os olhos de Priest deram com a chave que ele deixara cair no cho poucos minutos antes. Um novo plano desenrolou-se, completamente formado, na sua cabea. Quando Mario deu trs passos na direo da sua picape, Priest abaixou-se e pegou a ferramenta. Tinha cerca de quarenta e cinco centmetros de comprimento e pesava pouco mais de dois quilos. A maior parte do peso ficava do lado das garras ajustveis para porcas hexagonais. Era feita de ao. Ele deu uma olhada alm do ponto onde se encontrava Mario, ao longo da trilha que dava na estrada. Ningum vista. Sem testemunhas. Priest deu um passo a frente justo quando Mario abaixou-se para abrir a porta da picape. Teve uma viso sbita e desconcertante: a foto de uma linda mulher mexicana trajando um vestido amarelo, com uma criana nos braos e outra ao lado, e por uma frao de segundo sua deciso perdeu a fora, ao pensar no sofrimento terrvel que ia causar s suas vidas. Mas logo em seguida teve uma viso pior: uma massa de gua escura subindo lentamente at submergir um parreiral e afogar os homens, mulheres e crianas que ali trabalhavam. Correu para Mario, erguendo a chave de ao bem acima da sua cabea. pgina 36
Mario estava abrindo a porta do carro. Deve ter visto alguma coisa com o canto do olho, pois quando Priest estava quase em cima dele subitamente deixou escapar um urro de medo e abriu totalmente a porta, usando-a como escudo. Priest esbarrou na porta, que voou de encontro a Mario. Era uma porta larga e pesada, e bateu nele de lado. Ambos os homens tropearam. Mario perdeu o equilbrio e caiu de joelhos, de cara para a picape. Seu bon dos Astros de Houston caiu no cho. Priest caiu sentado no cho pedregoso to pesadamente que largou a chave. Ela bateu em um frasco plstico de meio galo de Coca-Cola e voou para longe. - Seu maluco - exclamou Mario, ofegante. Ele apoiou-se num joelho e procurou um ponto de apoio para poder levantar o corpo pesado. Sua mo esquerda agarrou a moldura da porta. Enquanto arquejava, Priest - ainda sentado - encolheu a perna e chutou a porta com toda a fora que tinha, batendo com o calcanhar. A porta bateu nos dedos de Mario e abriu de novo. Mario gritou de dor e ajoelhou outra vez, batendo contra o lado da picape. Priest ps-se de p num pulo. A chave cintilava, prateada, ao sol da manh. Ele pegou-a e olhou para Mario. Ento seu corao encheu-se de dio contra o homem que estragara seu plano to cuidadosamente formulado, pondo com isso seu modo de vida em perigo. Aproximou-se de Mario e levantou a chave. Mario meio que se virou na direo dele. A expresso de seu rosto jovem mostrava um espanto infinito, como se ele no tivesse qualquer entendimento do que estava acontecendo. Abriu a boca e, quando Priest baixou a chave imensa, disse, numa voz indagadora: - Ricky...? A extremidade pesada da chave fez um nauseante barulho surdo quando atingiu a cabea de Mario. O cabelo dele era grosso e brilhoso, mas no fez diferena. O couro cabeludo abriu-se, o crnio rachou e a chave mergulhou no crebro macio que ficava por baixo. Mas ele no morreu. pgina 37 Priest comeou a sentir medo. Os olhos de Mario permaneceram abertos e focalizaram Priest. A expresso aturdida de quem fora trado quase no se alterou. Parecia tentar terminar o que comeara a dizer. Ergueu uma das mos, como se quisesse chamar a ateno de algum. Priest deu um passo para trs, assustado. Mario disse: - Cara... Priest viu-se possudo pelo pnico e ergueu a chave de novo. - Morre, seu filho da puta! - gritou, e golpeou Mario de novo. Desta vez a chave mergulhou ainda mais fundo. Retir-la foi como puxar uma coisa que tivesse mergulhado na lama. Priest sentiu nsias de vmito quando viu a boca ajustvel coberta por uma matria viva cinzenta. Seu estmago deu uma volta e ele engoliu e Mario caiu lentamente de costas e ficou arriado contra o pneu de trs, imvel. Seus braos ficaram moles e o queixo caiu, mas ele continuou
vivo. Os olhos fixaram-se nos de Priest. O sanque jorrava da boca, corria pelo rosto e caa no colarinho aberto da camisa xadrez. Seu fixo aterrorizou Priest. - Morra - suplicou ele - pelo amor de Deus, Mario, por favor, morra! Nada aconteceu. Priest recuou. Os olhos de Mario pareciam suplicar que ele terminasse o servio, mas ele no podia golpe-lo de novo. No tinha uma explicao lgica para aquilo: simplesmente no podia levantar a chave. A ento Mario moveu-se. Sua boca abriu-se, o corpo ficou rgido e da garganta explodiu um estrangulado grito de agonia. Aquilo foi demais para Priest. Ele, tambm, gritou; depois correu para Mario e bateu nele repetidas vezes, no mesmo lugar, praticamente sem v-lo atravs da nvoa de pavor que obscureceu sua viso. Priest parou com a gritaria, e o ataque de dio passou. pgina 38 Ele retrocedeu, largando a chave no cho. O corpo de Mario caiu lentamente de lado at que a coisa que tinha sido sua cabea bateu no cho. A massa cinzenta e mole infiltrou-se no solo seco. Priest caiu de joelhos e fechou os olhos. - Deus Todo-Poderoso, me perdoa - implorou. Ajoelhou-se ali mesmo, tremendo. Tinha medo de, se abrisse os olhos, ver a alma de Mario se elevando aos cus. Para serenar, recitou seu mantra: - Ley, tor, pur-doy-kor... No tinha significado: era por isso que se concentrando com toda a fora produzia um efeito calmante. Tinha o ritmo de um versinho infantil que ele nunca esquecera: Um, dois, feijo com arroz, Trs, quatro, p de pato, Cinco, seis, galinha pedrs, Sete oito, ch com biscoito. Quando estava entoando o mantra sozinho, freqentemente passava para a quadrinha infantil. Funcionava igual. Enquanto as slabas to familiares o acalmavam, ele ia pensando no trajeto do ar no seu corpo, como entrava pelas narinas, seguia atravs das passagens nasais at a parte de trs da boca, prosseguia pela garganta, descia para o peito e, finalmente, penetrava nos mais remotos alvolos dos pulmes e logo em seguida refazia toda a jornada no sentido contrrio: pulmes, garganta, boca, nariz e narinas. Quando se concentrava totalmente na jornada da sua respirao, nada mais conseguia entrar na sua cabea - nenhuma viso, pesadelo ou lembrana. Poucos minutos depois ele se levantou, o corao frio, o rosto exibindo uma expresso determinada. Livrara-se de todas as emoes: no sentia remorso ou piedade. O assassinato pertencia ao passado, e Mario era apenas um lixo de que tinha de se livrar. Pegou o chapu de caubi, espanou a poeira e colocou na cabea. pgina 39
Achou o estojo de ferramentas da picape debaixo do banco do motorista. Pegou a chave de parafusos e usou-a para tirar as placas, da frente e de trs. Depois andou um pouco e enterrou-as numa pilha de lixo que queimava sem chamas, alguns metros adiante. Inclinou-se sobre o corpo. Com a mo direita, agarrou o cinto da cala-jeans de Mario. Com a esquerda, segurou o que pde da camisa xadrez. Levantou o corpo do cho, gemendo quando as costas arcaram com o esforo. Mario era pesado. A porta da picape continuava aberta. Priest balanou o corpo de Mario para trs e para a frente algumas vezes, pegando o ritmo e, com um esforo maior, atirou o corpo dentro da cabina. Ele caiu em cima do banco, com os saltos das botas saindo pela porta aberta e a cabea pendurada no lugar dos ps, do lado do carona. Ela gotejava sangue. Priest atirou a chave na direo do corpo. Agora queria tirar gasolina do tanque. E para isto precisava de um tubo flexvel comprido. Abriu o cap, localizou o lquido de limpeza do pra-brisa e arrancou o tubo de plstico que levava o lquido do reservatrio para os esguichadores. Pegou o frasco de meio galo de Coca-Cola que tinha notado antes, deu a volta at o lado da picape e desatarraxou a tampa do tanque de gasolina. Enfiou o tubo de plstico no tanque, sugou at sentir o gosto da gasolina e a tirou a ponta que estava na boca e colocou na garrafa de Coca-Cola. Lentamente, ela foi se enchendo. A gasolina continuou a derramar no cho enquanto ele esvaziava a garrafa em cima do cadver de Mario. Ouviu o barulho de um carro. Priest olhou para o corpo do morto encharcado de gasolina. Se aparecesse algum naquela hora, no havia nada que pudesse dizer ou fazer para esconder sua culpa. A calma que sustentara escrupulosamente at agora o , abandonou. Comeou a tremer, a garrafa de plstico escorregou de seus dedos e ele se agachou no cho como uma criana assustada. Tremendo, fixou os olhos na trilha que levava estrada. Ser que algum sujeito madrugador tinha vindo se livrar de uma lava-loua obsoleta, ou da casa plstica abandonada pelos filhos, crescidos demais para brincar com ela? Ou, quem sabe, livrar-se dos ternos fora de moda de um av morto? O barulho do motor ficou mais forte quando o carro se aproximou, e Priest fechou os olhos. pgina 40 - Ley, tor, pur-doy-kor... O barulho comeou a desaparecer. O veculo tinha passado pela entrada do vazadouro de lixo e seguido em frente. No passava de trnsito comum. Sentiu que fizera papel de idiota. Levantou-se, recuperando o controle. - Ley, tor, pur-doy-kor... Mas o susto fez com que ele se apressasse. Encheu de novo a garrafa de Coca-Cola e rapidamente embebeu o banco de plstico e todo o interior da cabina com gasolina, reservando um tanto para fazer uma trilha pelo cho at a parte de trs e para jogar o resto
na lateral, perto do tanque. Jogou a garrafa vazia dentro da cabina e recuou. Nesta hora notou o bon dos Astros de Hoston no cho, pegou e o jogou tambm no interior da cabina, em cima do corpo. Em seguida pegou uma carteirinha de fsforos no bolso da cala, acendeu um e com ele todos os outros; depois jogou a carteirinha em chamas para trs. Houve um som sibilante acompanhando uma exploso de labaredas e seguido imediatamente por uma nuvem de fumaa negra. Em questo de um segundo, o interior da cabina transformou-se em uma fornalha. Um momento depois as labaredas serpentearam pelo cho at o tanque de gasolina. Houve outro estouro quando o tanque explodiu, balanando a picape. Os pneus de trs pegaram fogo e as chamas logo lamberam o chassi. Um cheiro enjoativo encheu o ar, quase como de carne sendo assada. Priest engoliu em seco e recuou mais. Aps uns poucos segundos, o fogo tornou-se menos intenso. Os pneus, o banco e o corpo de Mario continuaram a queimar lentamente. Priest esperou uns minutos, observando as chamas, e depois aventurou-se a se aproximar, tentando no respirar fundo para no sentir o fedor. Deu uma olhada no interior da cabina. O corpo e o banco tinham se soldado em uma funesta massa negra de cinzas e plstico derretido. Quando esfriasse, o veculo seria apenas mais uma coisa que as crianas tinham incendiado no vazadouro de lixo. pgina 41 Ele sabia que no conseguira se livrar de todos os indcios de Mario. Uma olhada casual nada revelaria, mas os policiais examinariam a picape, provavelmente encontrariam a fivela do cinto, os trabalhos dentrios e at mesmo os ossos calcinados. Um dia, Priest sabia muito bem, Mario poderia voltar para assombr-lo. Mas ele fizera tudo o que podia para esconder as provas do seu crime. Agora tinha que roubar o caminho de Mario. Deu as costas para o corpo ainda queimando e comeou a andar. *** Na comunidade havia um grupo mais influente chamado de Os Comedores de Arroz. Eram sete, atualmente, os remanescentes dos que tinham sobrevivido ao inverno terrvel de 1972-73, quando foram isolados por uma violenta nevasca e ficaram trs semanas direto sem comer outra coisa que no arroz integral cozido em neve derretida. No dia em que a carta chegou, Os Comedores de Arroz ficaram acordados at tarde da noite, sentados na cozinha, bebendo vinho e fumando maconha. Song, que em 1972 era uma garota de quinze anos de idade fugida de casa, tocava guitarra acstica, tirando uns acordes de blues. Alguns membros do grupo faziam guitarras no inverno. Guardavam as de que gostavam mais, e Paul Beale levava o resto para uma loja em San Francisco, onde eram vendidas por bons preos. Star cantava com a voz rouca de contralto, inventando as palavras: - No vou tomar aquele trem que no presta... - Star tinha a voz mais
sensual do mundo, sempre teve. pgina 42 Melanie estava sentada com eles, embora no fosse uma Comedora de Arroz, porque Priest no se dava ao trabalho de expuls-la e os outros no tinham coragem de desafiar as decises dele. Ela chorava em silncio, as lgrimas densas escorrendo pelo rosto. Repetia o tempo todo: - Acabei de encontrar vocs. - Ns no desistimos - respondeu Priest. - Tem que haver um meio de fazer o governador da Califrnia mudar sua maldita deciso. Oaktree, o carpinteiro, um negro musculoso da mesma idade que Priest, disse, pensativo: - Sabem, no muito difcil fabricar uma bomba nuclear - ele estivera nos Fuzileiros, mas desertara depois de matar um oficial durante um exerccio de treinamento, e vivia ali desde ento. - Eu podia fazer uma, um dia, se tivesse um pouco de plutnio. explodir e mandar Sacramento para o inferno. - No! - exclamou Aneth. Ela estava dando de mamar a uma criana. O menino tinha trs anos de idade, e Priest achava que estava na hora de desmamar, mas Aneth era de opinio que ele devia poder mamar enquanto quisesse. - No se pode salvar o mundo com bombas. Star parou de cantar. - No estamos tentando salvar o mundo. Desisti disso em 1969, depois que a imprensa do mundo todo transformou o movimento hippie em uma piada. Tudo o que quero agora salvar isto. O que ns temos aqui, a nossa vida, para que nossos filhos possam crescer com paz e amor. Priest, que j considerara e rejeitara a idia de fazer uma bomba nuclear, disse: - Arranjar o plutnio a parte mais difcil. Aneth afastou o filho do seio e deu uma palmada nas suas costas. - Esquea isso! - disse. - No quero ter nada a ver com esse troo. mortal ! Star comeou a cantar de novo. pgina 43 - Trem, trem, trem que no presta... Oaktree persistiu. - Eu podia arranjar um emprego em uma usina nuclear e descobrir uma maneira de furar o sistema de segurana. - Eles iam pedir o seu currculo - contraps Priest. - E o que voc ia dizer que fez nos ltimos vinte e cinco anos? Pesquisa nuclear em Berkeley? - Diria que vivi com um bando de pirados que agora precisam explodir Sacramento, de modo que tive que tentar conseguir com eles um pouco de radioatividade, cara. Os outros riram. Oaktree recostou-se na cadeira e comeou a harmonizar com Star:
- No, no, no vou pegar esse trem que no presta... Priest fez cara feia para a atmosfera pouco sria. No podia sorrir. Seu corao estava cheio de dio. Mas sabia que idias inspiradas s vezes nascem de conversas descontradas, de modo que deixou correr. Aneth beijou a cabea do filho e disse: - Podamos seqestrar algum. Priest retrucou: - Quem? O governador provavelmente tem seis guarda-costas. - Que tal o brao direito dele, o tal de Albert Honeymoon? Houve um murmrio de aprovao; todos odiavam Honeymoon. - Ou o presidente da Coastal Electric? Priest fez que sim. Aquilo podia funcionar. Ele conhecia esse tipo de coisa. J fazia muito tempo desde quando vivera na rua, mas se lembrava das regras de uma briga de gangues: planejar cuidadosamente, ficar frio, atacar o alvo de tal forma que ele nem consiga pensar, agir depressa e dar o fora mais depressa ainda. Mas algo o aborrecia. - ... discreto demais - comentou. - Digamos que algum figuro do governo seja seqestrado. E da? Se voc vai assustar as pessoas no pode agir cautelosamente, tem que assustar pra valer. Ele se conteve, no querendo falar mais. Quando voc tem um cara de joelhos, chorando e se urinando e suplicando, implorando que voc no o machuque mais, quando voc diz o que quer; e ele ento ficar to agradecido que chegar a am-lo por dizer-lhe o que ter de fazer para que a dor pare. Mas esse era o tipo de fala errada para algum como Aneth. pgina 44 Neste ponto, Melanie falou de novo. Ela estava sentada no cho com as costas de encontro cadeira de Priest. Aneth ofereceu-lhe o enorme cigarro de maconha que passava de mo em mo. Melanie enxugou as lgrimas, puxou uma tragada funda e passou para Priest. Em seguida soprou uma nuvem de fumaa e disse: - Sabem de uma coisa, h uns dez ou quinze lugares na Califrnia onde as falhas na crosta terrestre se encontram sob uma presso to incrvel, que seria preciso apenas um empurrozinbo, ou algo assim, para fazer com que as placas tectnicas deslizassem, uma pedrinha, mas o gigante to grande que a sua queda sacode a terra. Oaktree parou de cantar tempo bastante para dizer: - Melanie, meu bem, que porra essa que voc est falando? - Estou falando sobre um terremoto - respondeu ela. Oaktree riu. - Pega, pega aquele trem que no presta... Priest no riu. Alguma coisa lhe disse que aquilo era importante. Ele falou com serena intensidade. - O que que voc est dizendo, Melanie? - Esquea essa coisa de seqestros e bombas nucleares disse ela. - Por que no ameaamos o governador com um terremoto? - Ningum pode causar um terremoto - disse Priest. Seria preciso uma
enorme quantidade de energia para fazer a crosta da terra se mexer. - a que voc se engana. Pode precisar apenas de uma quantidade pequena de energia, desde que a fora seja aplicada no lugar certo. - Como que voc sabe tudo isso? - indagou Oaktree. pgina 45 - Estudei. Tenho mestrado em sismologia. Eu deveria estar ensinando em uma universidade, a esta altura. Mas me casei com o professor, e isto foi o fim da minha carreira. Fui rejeitada para um doutorado. Seu tom foi amargo. Priest conversara com ela a este respeito, e sabia que Melanie carregava um profundo ressentimento. O marido integrava o comit universitrio que a rejeitara para o doutorado. Fora obrigado a se retirar da reunio quando o caso dela foi discutido, o que pareceu natural a Priest, mas Melanie achava que o marido de alguma forma devia ter feito algo para garantir seu sucesso. O palpite de Priest que ela no era bastante boa para cursar o doutorado mas ela preferia acreditar em qualquer coisa menos nisso. Assim, ele lhe disse que os homens do comit ficaram to aterrorizados com a combinao de beleza e crebro que ela representava que conspiraram para rejeit-la. Melanie amou-o por permitir que acreditasse nisso. Ela prosseguiu: - Meu marido - em breve meu ex-marido - formulou uma teoria de terremotos chamada de teoria da tenso do desencadeamento. Em certos pontos ao longo das falhas geolgicas, a presso de cisalhamento vai aumentando com o passar do tempo at atingir um nvel muito alto. A ento bastar uma vibrao relativamente fraca na crosta terrestre para desalojar as placas, liberar toda a energia acumulada e causar um terremoto. Priest ficou cativado. Olhou para Star. Ela balanou a cabea, muito sria. Star acreditava no heterodoxo. Era um artigo de f para ela que a teoria bizarra acabasse sendo a verdade, que o modo no convencional de vida fosse o mais feliz, e que o plano mais louco tivesse xito onde as propostas sensatas tivessem falhado. Priest estudou a fisionomia de Melanie. Parecia um ser de outro mundo. Sua pele clara, os olhos verdes espantosos e o cabelo vermelho faziam com que parecesse uma linda aliengena. As primeiras palavras que ele lhe dissera tinham sido: - Voc de Marte? pgina 46 Ser que ela sabia do que falava? Estava chapada de maconha, mas s vezes as pessoas tm suas idias mais criativas nessas horas. Ele perguntou: - Se assim to fcil, como que ainda no o fizeram? - Eu no disse que seria fcil. Voc tem que ser um sismlogo para saber exatamente onde a falha est sob presso crtica. O crebro de Priest disparou. Quando se est verdadeiramente encrencado, a sada s vezes fazer alguma coisa to estranha, to
totalmente inesperada, que seu inimigo fique paralisado pela surpresa. Ele disse para Melanie: - Como se causaria essa vibrao na crosta terrestre? - Esta seria a parte difcil. Pegar, pegar, pegar... Vou pegar aquele trem que no presta... *** Ao caminhar de volta para a cidadezinha de Shiloh, Priest viu- se pensando obsessivamente sobre o crime: o modo como a chave mergulhara nos miolos macios de Mario, a expresso no seu rosto, o sanque pingando no cho do carro. Aquilo no era bom. Ele tinha que permanecer calmo e alerta. Ainda no tinha o vibrador ssmico que ia salvar a comunidade. Matar Mario fora a parte fcil, disse a si mesmo. Agora tinha que iludir Lenny. Mas como? Foi jogado de volta ao presente imediato pelo barulho de um carro. Vinha de trs dele, na direo da cidade. Naquela regio ningum andava. A maior parte das pessoas presumiria que o carro dele tivesse enguiado. Alguns iam parar e oferecer carona. Priest tentou imaginar uma razo pela qual estaria indo para a cidade a p s seis e meia da manh de um sbado. Nada lhe ocorreu. Tentou invocar o deus que lhe inspirara a idia, de matar Mario, mas os deuses estavam mudos. pgina 47 No havia nenhum lugar de onde pudesse estar voltando em um raio de oitenta quilmetros - exceto do nico sobre o qual no podia falar: o vazadouro de lixo onde as cinzas de Mario jaziam no banco da picape incendiada. O carro reduziu a marcha ao aproximar-se. Priest resistiu tentao de puxar o chapu para cima dos olhos. O que eu estava fazendo? - Fui dar uma volta no deserto para observar a natureza. , artemsia e cobras. - Meu carro enguiou. Onde? No vi. - Fui urinar. To longe? Embora o ar da manh estivesse frio, ele comeou a suar. O carro passou por ele lentamente. Era um Dodge Neon, modelo recente, verde-metlico e com placa do Texas. Havia s uma pessoa dentro dele, um homem. Podia v-lo examinando-o pelo espelho. Examinando-o. Podia ser um policial de folga... O pnico o dominou e ele teve que lutar contra o impulso de virar-se e correr. O carro parou e deu marcha r. O motorista abaixou o vidro da direita. Era um jovem de origem asitica, de terno. - Ei, companheiro, quer uma carona? O que que eu vou dizer? No, obrigado, eu adoro andar a p. - Estou um pouco sujo de areia - disse Priest, olhando para a cala
jeans. Ca sentado tentando matar um homem. - Quem no est, nesta regio? Priest entrou no carro. Suas mos tremiam. Colocou o cinto de segurana, s para fazer alguma coisa que pudesse disfarar sua ansiedade. Quando o carro arrancou, o motorista perguntou: - O que diabos est fazendo aqui? Acabei de matar meu amigo Mario com uma chave inglesa. No ltimo segundo, Priest pensou numa histria. pgina 48 - Briguei com minha mulher - disse. - Parei o carro, saltei e fui andando. No esperava que ela fosse embora. Ele agradeceu sabe-se l a que deuses que o tinham ajudado. - Seria uma mulher morena e bonita em um Honda azul que passou por mim uns vinte ou trinta quilmetros atrs? Jesus Cristo, quem voc, com essa memria prodigiosa? O cara sorriu e disse: - Quando se est atravessando o deserto, todo carro interessante. - No, aquela no era ela - retrucou Priest. - Minha mulher est dirigindo minha maldita picape. - No vi nenhuma picape. - timo. Talvez ela no tenha ido muito longe. - Provavelmente estacionou na entrada de alguma fazenda debulhando-se em lgrimas, querendo voc de volta. Priest sorriu aliviado. O cara tinha engolido sua histria. O carro atingiu as cercanias da cidade. - E voc? - perguntou Priest. - Por que est acordado to cedo numa manh de sbado? - Eu no briguei com a minha mulher, estou indo para junto dela, em casa. Moro em Laredo. Viajo vendendo novidades de cermica - pratos decorativos, estatuetas, plaquinhas dizendo "Quarto do Beb", uns troos muito atraentes. - mesmo? Que maneira de desperdiar a vida. - Vendemos principalmente em drugstores. - A de Shiloh ainda no abriu. - No estou trabalhando hoje. Mas posso parar para tomar caf. Alguma recomendao? Priest preferia que o vendedor atravessasse a cidade calado, para que no tivesse oportunidade de falar sobre o cara barbado que pegara perto do vazadouro do lixo. Mas com toda a certeza ele ia ver o Lazy Susan's ao passar, de modo que no adiantava mentir. - Tem um restaurante pequeno. - Que tal a comida? - A canjica boa. logo depois do sinal. Voc pode me deixar l. pgina 49 Um minuto depois o carro parava numa vaga em 45 graus na frente do
Susan's. Priest agradeceu ao vendedor de novidades e saltou. - Bom apetite - disse, e afastou-se. E no vai puxar papo com nenhum habitante local, pelo amor de Deus. A um quarteiro do restaurante ficava a filial de Ritkin Seismex, a pequena firma de explorao sismolgica para quem vinha trabalhando. O escritrio era em um trailer grande, estacionado em um terreno vazio. O vibrador ssmico de Mario estava estacionado ao longo do Pontiac Grand Am vermelho-cereja de Lenny. Priest parou e examinou o caminho por um momento. Tinha dez rodas, com enormes pneus para uso fora de estrada que lembravam a carapaa de um dinossauro. Por baixo da camada de poeira do Texas, era pintado de azul-claro. Teve mpetos de pular na cabina no caminho, o motor possante e a placa macia de ao, o tanque e mangueiras e vlvulas e manmetros. Eu poderia ligar esse motor num minuto, sem precisar das chaves. Mas se o roubasse agora, cada patrulheiro rodovirio do Texas estaria sua procura em poucos minutos. Tinha de ser paciente. Vou fazer a terra tremer e ningum vai me impedir. Entrou no trailer. O escritrio estava movimentado. Havia dois supervisores da equipe de geofones diante de um computador, enquanto um mapa da rea ia saindo lentamente da impressora. Hoje recolheriam o equipamento instalado no campo e comeariam a fazer a transferncia para Clovis. Um outro supervisor falava em espanhol ao telefone, enquanto a secretria de Lenny, Diana, checava uma lista. Lenny transps uma porta aberta que dava numa repartio menor, onde ele tomava caf com um telefone no ouvido. Tinha os olhos vermelhos e o rosto congestionado, sinais da bebida da noite anterior. Reconheceu a presena de Priest com um sinal de cabea Priest parou junto porta, esperando que Lenny terminasse. Tinha o corao na boca. Sabia, grosso modo, o que dizer. Mas Lenny engoliria a isca? Tudo dependia disso. pgina 50 Aps um minuto, Lenny desligou e disse: - Ei, Ricky, viu Mario hoje? - o tom de voz era aborrecido. - Ele devia ter sado daqui meia hora atrs. - , eu o vi - disse Priest. - Detesto lhe dar ms notcias de manh to cedo, mas ele o deixou na mo. - De que voc est falando? Priest contou a histria que lhe viera cabea, numa inspirao sbita, pouco antes de pegar a chave inglesa e atacar Mario. - Ele estava sentindo tanta falta da mulher e dos filhos que pegou sua velha picape e se mandou. - Que merda, s faltava essa. Como foi que voc soube? - Ele passou por mim na rua, hoje cedo, indo para El Paso. - Por que diabos no telefonou para mim? - Muito envergonhado por ter deixado voc na mo. - Bem, s espero que ele continue em frente sempre, atravesse a fronteira e no pare enquanto o carro no cair no mar.
Lenny esfregou os olhos com os ns dos dedos. Priest comeou a improvisar. - Puxa, Lenny, o cara tem famlia jovem, no seja muito duro com ele. - Duro? Est falando srio? Ele j era. - Ele precisa realmente deste emprego. - E eu preciso de algum para dirigir o seu caminho daqui at o Novo Mxico. - Ele est economizando para comprar uma casa com piscina. Lenny tornou-se sarcstico. - Deixa disso, Ricky, est me fazendo chorar. - Ento v se gosta desta - Priest engoliu em seco e tentou parecer casual. - Eu levo o maldito caminho para Clovis se voc prometer conservar o emprego de Mario. Lenny olhou fixamente para Priest sem dizer nada. - Mario no um mau sujeito, voc sabe disso - continuou Priest. No atropele as palavras, voc est parecendo nervoso, tente parecer relaxado! pgina 51 - Voc tem carteira de motorista comercial, categoria B? - Desde os meus vinte e um anos - Priest pegou a carteira de dinheiro, tirou a licena de motorista e jogou em cima da escrivaninha. Era falsa. Star tambm tinha uma daquelas. Tambm falsa. Paul Beale sabia onde conseguir essas coisas. Lenny examinou-a, ergueu os olhos e perguntou, desconfiado: - Mas afinal, voc est a fim de qu? Pensei que no queria ir ao Novo Mxico. No me enche o saco, Lenny, diga-me logo sim ou no! - De repente quinhentas pratas extras no me fariam mal. - No sei... Seu filho da me, matei um homem por causa disso, vamos l! - Voc iria por duzentos? Sim! Muito obrigado! Muito obrigado! Ele fingiu hesitar. - Duzentos pouco para trs dias de trabalho. - So dois dias, talvez dois e meio. Duzentos e cinqenta. Qualquer coisa! Basta me dar as chaves! - Escuta, eu vou levar o caminho de qualquer maneira, seja o que for que voc me pague, porque Mario um garoto legal e eu quero ajud-lo. Assim, quero que voc me paque o que sinceramente achar que o trabalho vale. - Est certo seu filho da me espertalho, trezentos. - Voc tem um motorista. E eu tenho um vibrador ssmico. Lenny disse: - Ei, obrigado por me ajudar. Fico muito agradecido a voc. Priest tentou conter um sorriso radiante. - Certo. Lenny abriu uma gaveta, pegou uma folha de papel e jogou-a em cima da mesa. - Preencha esta folha para o seguro.
Priest gelou. No sabia ler nem escrever. pgina 52 Olhou apavorado para a folha de papel. Lenny disse, impaciente: - Vamos, peque isso a, pelo amor de Deus, no uma cascavel. - No consigo entender nada, esses rabiscos e linhas no papel pulam e danam, e no sou capaz de fazer com que fiquem quietos! Lenny olhou para a parede e dirigiu-se a uma platia invisvel: - Um minuto atrs eu seria capaz de jurar que o homem estava acordado! Ley tor, pur-doy-kor... Priest esticou a mo devagar e pegou a folha de papel. Lenny perguntou: - Por que foi to difcil fazer isso? - Bem, que eu estava pensando no Mario - respondeu Priest. - Voc acha que ele est legal? - Esquea ele. Preencha esse papel e se mande. Quero ver aquele caminho em Clovis. - Tudo bem - Priest se levantou. - Vou preencher l fora. - Isso mesmo, assim posso atacar meus outros cinqenta e sete problemas. Priest saiu da sala de Lenny e entrou no escritrio principal. Voc j viveu esta cena cem vezes, calma, voc sabe lidar com isso. Parou diante da porta de Lenny. Ningum tinha prestado ateno nele; todos estavam ocupados. Deu uma olhada no formulrio. As letras grandes tinham que se destacar como rvores num capinzal. Se estavam crescendo para baixo que o papel estava ao contrrio. Ele estava mesmo com o papel de cabea para baixo. Consertou-o. s vezes h um X bem grande, em negrito ou escrito a lpis ou tinta vermelha, para lhe mostrar onde assinar; mas este formulrio no tinha uma marca para tornar as coisas mais fceis. Priest sabia escrever o nome, mais ou menos. Era demorado e ele sabia pgina 53 No entanto, no conseguia escrever mais nada. Quando garoto, era to esperto que no precisava ler ou escrever. Podia fazer contas de cabea mais depressa do que qualquer um, muito embora no conseguisse ler os nmeros no papel. Sua memria era infalvel. Sempre conseguia com que as pessoas fizesse o que desejava sem ter que escrever nada. Na escola encontrava maneiras de no ter que ler em voz alta. Quando o dever era para escrever qualquer coisa, arranjava para um colega fazer por ele, mas se isto falhasse, tinha mil desculpas, e os professores acabavam por dar de ombros e dizer que, se uma criana no quisesse realmente trabalhar, no podiam forar. Ganhou a reputao de preguioso e quando via uma crise se aproximando, faltava aula. Tempos depois, conseguiu dirigir um prspero negcio de atacado de
bebidas. Nunca escreveu uma carta. Fazia tudo pelo telefone e em pessoa. Guardou de cabea dezenas de nmeros de telefone at que pde pagar uma secretria para fazer as ligaes para ele. Sabia exatamente quanto dinheiro havia na gaveta e quanto havia no banco. Se um vendedor lhe apresentava uma ordem de compra, ele dizia: "Vou lhe dizer o que preciso e voc preenche para mim." Contratou um contador e um advogado para lidar com o governo. Tinha ganho um milho de dlares aos vinte e um anos de idade. Mas j perdera tudo quando conheceu Star e passou a integrar a comunidade - no porque fosse analfabeto, mas por ter fraudado seus clientes, deixado de pagar impostos e apanhado dinheiro emprestado com a Mfia. Conseguir que um formulrio de seguro fosse preenchido tinha que ser fcil. Sentou-se em frente mesa da secretria de Lenny e sorriu para Diana. - Est com um certo ar de cansada, querida - disse. Ela suspirou. Era uma loura gorducha de trinta e tantos anos, casada com um sujeito que trabalhava como mo-de-obra no qualificada e que tinha trs filhos adolescentes. Reagia prontamente s gracinhas dos homens que vinham ao trailer, mas Priest sabia que era sensvel a um charme polido. pgina 54 - Ricky, tenho tanto o que fazer hoje de manh que gostaria de ter dois crebros. Ele fez uma cara de quem ficara profundamente desapontado. - M notcia: eu ia lhe pedir para me ajudar com uma coisa. Ela hesitou e depois sorriu, melanclica. - O que ? - Minha letra to horrorosa que eu queria que voc preenchesse isto aqui pra mim. Mas odeio atrapalhar vendo que voc est to ocupada. - Bem, fao um negcio com voc - ela apontou para uma pilha de caixas de papelo cuidadosamente etiquetadas, encostadas na parede. - Ajudo voc com o formulrio se voc puser todos aqueles arquivos no Chevy Astro Van verde que est l fora. - Negcio fechado - disse Priest, agradecido. Entregou a folha de papel a ela. Ela examinou o formulrio. - Voc vai dirigir o vibrador ssmico? - Vou. Mario ficou com tanta saudade de casa que foi para El Paso. Ela fechou a cara. - Ele no disso. - Claro que no . Espero que esteja bem. Ela deu de ombros e pegou a caneta. - Agora, a primeira coisa de que precisamos o seu nome completo, data e lugar de nascimento. Priest deu a informao e ela preencheu os espaos em branco. Fcil. Por que entrara em pnico? S porque aquilo tinha sido inesperado. Lenny o surpreendera com o formulrio do seguro, e ele cedera ao medo. Estava acostumado a ocultar sua incapacidade. Chegava inclusive a freqentar bibliotecas. Foi como descobriu os vibradores ssmicos. Fora
biblioteca central na rua I, no centro de Sacramento - um lugar grande e movimentado onde seu rosto provavelmente no seria lembrado. Na mesa de recepo soubera que os livros de cincia ficavam no segundo andar. L, sentira uma pontada de ansiedade ao ver as estantes compridas e a fila de gente que consultava os computadores. Depois atrara a ateno de uma mulher de aspecto amistoso e que teria mais ou menos a sua idade. pgina 55 - Estou procurando informaes sobre explorao ssmica - dissera, com um sorriso caloroso. - Ser que voc pode me ajudar? Ela o levou prateleira certa, pegou um livro e, com um pouco de encorajamento, encontrou o captulo que interessava. - Estou interessado em saber como as ondas de choque so provocadas explicara. - Gostaria de saber se este livro tem esse tipo de informao. Ela folheou o livro com ele. - Parece haver trs modos - disse. - Uma exploso subterrnea, o baque de um peso e um vibrador ssmico. - Vibrador ssmico? - exclamara ele, com os olhos brilhantes. - O que isso? Ela apontara para uma fotografia. Priest ficou fascinado. A bibliotecria dissera: - Parece bastante com um caminho. Para Priest pareceu um milagre. - Posso xerocar umas pginas? - Claro. Sempre h um jeito de fazer com que outra pessoa escreva e leia para voc, se voc for esperto. Diana terminou de preencher o formulrio, fez um X bem grande perto de uma linha pontilhada e disse: - Voc assina aqui. Ele pegou a caneta e escreveu o nome, com muita dificuldade. O "R" de Richard era como uma corista de seios grandes levantando uma perna. O G de "Granger" era uma espcie de foice com a lmina redonda e bem grande e cabo pequeno. Depois do "RG" limitou-se a fazer uma linha sinuosa, como uma cobrinha. No era bonito, mas todo mundo aceitava. Muita gente assina fazendo uns garranchos, ele sabia disso: as assinaturas no tinham que ser escritas claramente, graas a Deus. Era por isto que sua licena de motorista falsificada tivera que ser no seu nome verdadeiro era o nico que ele sabia escrever. Levantou os olhos. Diana o observava com um olhar . curioso, estranhando como escrevia devagar. Quando a surpreendeu, ela ficou ruborizada e desviou o rosto. pgina 56 Devolveu o formulrio, agradecendo: - Muito obrigado pela sua ajuda, Diana. Fico muito agradecido a voc. - No foi nada. Vou buscar as chaves do caminho assim que Lenny sair do telefone - as chaves eram guardadas no escritrio do chefe. Priest lembrou do que prometera. Pegou um dos arquivos , e levou para
fora. A van verde estava estacionada no ptio com a porta de trs aberta. Deixou a caixa e voltou para pegar outra. A cada vez que voltava, espiava a mesa. O formulrio continuava l e no havia chaves visveis. Depois de ter carregado todas as caixas, sentou-se em frente a ela de novo. Estava ao telefone, falando com algum sobre reservas em um hotel de Clovis. Priest cerrou os dentes. Estava quase l, tinha praticamente as chaves do caminho e era obrigado a ficar ouvindo aquela besteirada sobre quartos de hotel! Obrigou-se a ficar sentado, quieto. Finalmente ela desligou. - Vou pedir as chaves a Lenny - disse, levando o formulrio para a sala interna. Chew, um sujeito gordo que dirigia buldzer, entrou. O trailer sacudiu com o impacto de suas botas de trabalho no piso. - Ei, Ricky - disse -, no sabia que voc era casado - ele . deu uma risada. Os outros homens presentes no escritrio olharam, interessados. Merda, que negcio esse? Priest disse: - Onde foi que voc ouviu essa histria? - Vi voc saltando de um carro em frente a Susan, h algum tempo. Depois tomei o caf da manh com o vendedor que lhe deu uma carona. pgina 57 Droga, o que foi que ele lhe disse? Diana saiu do escritrio de Lenny com um molho de chaves. Priest teve mpetos de arranc-lo da mo dela, mas fingiu estar mais interessado em conversar com Chew. Chew continuou. - Sabe, a omelete rancheiro de Susan realmente uma coisa. - ele ergueu uma das pernas e soltou um peido. Quando olhou para cima viu a secretria parada no portal, escutando. - Desculpe, Diana. Bem, seja como for, o tal rapaz me contou como pegou voc perto do vazadouro de lixo. Porra! - Voc estava andando no deserto sozinho s seis e meia da manh por conta de ter brigado com sua mulher. Voc parou o carro, largou a mulher l e foi .embora - ele abriu um sorriso largo e os outros riram. Priest levantou-se. No queria que lembrassem de que ele estava perto do vazadouro no dia do desaparecimento de Mario. Precisava acabar com aquela conversa. Fez uma cara de magoado. - Olha, Chew, vou lhe dizer uma coisa. Se algum dia eu vier a saber de alguma coisa da sua vida particular, especialmente se for vergonhosa, prometo que no vou contar aos berros para todo o pessoal que estiver no escritrio ouvir. Agora me diz, o que que voc acha disso? Chew retrucou: - No precisa ser to sensvel. Os outros homens pareceram ficar encabulados. Ningum mais quis falar sobre aquilo. Houve um silncio contrafeito. Priest no quis deixar um clima ruim, e por isso falou:
- Diabos, Chew, sem ressentimentos. Chew deu de ombros. - No tive inteno de ofender, Ricky. A tenso cedeu. Diana deu a Priest as chaves do vibrador ssmico. pgina 58 Ele fechou a mo em torno do molho de chaves. - Muito obrigado - agradeceu, tentando no demonstrar o entusiasmo que sentia. Mal podia esperar para sair dali e sentar-se atrs do volante. At breve, pessoal. Vejo vocs no Novo Mxico. - V se dirige com segurana, est ouvindo? - disse Diana, quando ele chegou na porta. - Deixe comigo - respondeu Priest. - Pode ter certeza de que vou ter muito cuidado. Ele pisou do lado de fora. O sol estava alto e o dia ficava mais quente. Ele resistiu tentao de fazer uma dana da vitria em torno do caminho. Subiu para a cabina e ligou o motor. Verificou os mostradores. Mario devia ter enchido o tanque na vspera. O caminho estava pronto para enfrentar a estrada. No pde deixar de sorrir quando saiu do ptio. Deixou a cidade e foi para o norte, seguindo a rota que Star fizera no Honda. Ao se aproximar da sada para o vazadouro, comeou a sentir-se estranho. Imaginou Mario ao lado da estrada, com os miolos cinzentos aparecendo no buraco da cabea. Era uma superstio idiota, pensou, mas no conseguia se livrar dela. O estmago comeou a dar voltas. Por um momento sentiu-se fraco, fraco demais para dirigir. Logo em seguida recuperou o autocontrole. Mario no era o primeiro homem que tinha matado. Jack Kassner era policial e roubara a me de Priest. A me de Priest era prostituta. Tinha apenas treze anos de idade ao tornar-se me dele. Quando Ricky completou quinze anos ela trabalhava com trs outras mulheres sediada em um apartamento em cima de uma livraria porn na zona onde morava a escria, Kassner aparecia uma vez por ms para recolher o dinheiro. Geralmente nesse dia ganhava um boquete. Um dia ele viu a me de Priest pegar o dinheiro em uma caixa no quarto dos fundos. Na noite em que o pessoal da Costumes estourou o apartamento, Kassner roubou mil e quinhentos dlares, que era um bocado de dinheiro na dcada de 1960. A me de Priest no se importava de passar uns dias na cadeia, mas ficou desolada por perder todo o dinheiro que economizara. Kassner dizia s mulheres que, se elas se queixassem, ele as acusaria de trfico de drogas e iriam todas passar uns anos na cadeia. pgina 59 Kassner achava que trs garotas de bar e um garoto no representavam perigo para ele. Mas na noite seguinte, quando estava no toalete do bar
Blue Light urinando algumas cervejas que tomara, o pequenino Ricky Granger enfiou-lhe uma faca de quinze centmetros afiada como uma navalha. Depois de cortar, com facilidade, o palet de mohair preto e a camisa de nilon branca, a lmina penetrou no rim. A dor que Kassner sentiu foi tamanha que ele nem chegou a sacar a arma. Ricky esfaqueou-o mais algumas vezes, rapidamente, enquanto o detetive jazia no piso de concreto molhado do toalete, vomitando sangue. Depois lavou a lmina na torneira e foi embora. Ao relembrar este episdio, Priest maravilhava-se com a calma segurana que tivera, aos quinze anos. Foi necessrio apenas quinze ou vinte segundos, mas durante este tempo qualquer um podia ter entrado. .Ele, no entanto, no sentira medo, vergonha ou culpa S que depois passou a ter medo do escuro. Naquele tempo ele no ficava muito no escuro. As luzes geralmente ficavam acesas a noite inteira no apartamento de sua me. Mas s vezes ele acordava um pouco antes do raiar do dia em uma noite de pouco movimento, como as de segunda-feira, e via que todo mundo estava dormindo e as luzes apagadas; a se via possudo por um terror cego e irracional e ficava andando s tontas pelo quarto, esbarrando em criaturas peludas e tocando em estranhas superfcies frias e midas, at encontrar o interruptor e se sentar na beira da cama, arquejante e suando, para se recuperar lentamente ao ver que a superfcie fria e mida era o espelho, e a criatura peluda, sua jaqueta forrada de l de carneiro. Sentiu medo do escuro at encontrar Star. Lembrou de uma cano que fizera muito sucesso no ano em que a conhecera e comeou a cantar: pgina 60 - Fumaa na gua... - a banda era a Deep Purple e todo mundo tocou esse disco naquele vero. Era uma boa cano apocalptica para cantar ao volante de um vibrador ssmico. - Fumaa na gua Incndio no cu Passou pela entrada do vazadouro e seguiu em frente, rumo ao norte. *** - Vai ser hoje noite - dissera Priest. - Vamos dizer ao governador que haver um terremoto daqui a quatro semanas. Star ficou em dvida. - No temos nem certeza se isto possvel. Talvez devssemos fazer as outras coisas primeiro e, quando estivesse tudo em ordem, expedir o ultimato. - De jeito nenhum! - retrucou Priest. A sugesto o enfureceu. Sabia que o grupo tinha de ser liderado. Todos ali precisavam se comprometer. Tinham que optar por uma situao perigosa, assumir um risco e sentir que no havia como voltar atrs. De outro modo, amanh pensariam numa poro de razes para se assustarem e baterem em retirada.
Agora os nimos de todos estavam exaltados. A carta chegara hoje, e os deixara furiosos e desesperados. Star ficara intensamente determinada; Melanie, uma fria; Oaktree, pronto para declarar guerra; Paul Beale comeara a reverter a seu tipo de malandro de rua. Song mal falara, mas ela era a criana desamparada do grupo e seguiria o que os outros fizessem. S Aneth se opusera, mas uma oposio seria fraca porque ela era uma pessoa fraca. Seria rpida para colocar objees, mas recuaria mais depressa ainda. Quanto ao prprio Priest, sabia com fria certeza que se aquele lugar cessasse de existir sua vida estaria acabada. Foi Aneth quem falou: pgina 61 - Mas um terremoto pode matar gente. - Vou lhe dizer como imagino que isso ter xito - respondeu Priest. Acho que teremos que causar um tremor pequeno e inofensivo, em algum ponto do deserto, s para provar que somos capazes. A, quando ameaarmos um segundo, o governador negociar. Aneth desviou a ateno para o filho. Oaktree disse: - Estou com o Priest. Hoje noite. Star cedeu. - Como deveremos fazer a ameaa? - Um telefonema annimo ou uma carta, eu acho - respondeu Priest. Mas tem que ser impossvel rastrear. - Podemos colocar em um BBS, como so conhecidos na Internet os chamados quadros de avisos. Se usarmos meu laptop e o telefone celular, ningum poder rastrear. Priest nunca vira um computador at a chegada de Melanie. Lanou um olhar indagador para Paul Beale, que sabia tudo sobre essas coisas. Paul balanou a cabea e disse: - Boa idia. - Est certo - disse Priest. - Peque seus troos. Melanie saiu. - Como assinaremos a mensagem? - quis saber Star. Precisamos de um nome. Song disse: - Algo que simbolize um grupo amante de paz que foi forado a tomar medidas extremas. - Eu sei - disse Priest. - Ns nos chamaremos de o Martelo do den. Isso se passou pouco antes da meia-noite do dia primeiro de maio. *** Priest ficou tenso quando chegou nas cercanias de San Antonio. No plano original, Mario teria dirigido o caminho at o aeroporto. Mas agora Priest estava sozinho ao entrar no emaranhado de rodovias que envolvem a cidade, e comeou a suar. pgina 62 No havia jeito dele conseguir ler um mapa.
Quando tinha que dirigir em uma estrada desconhecida, sempre levava Star junto para atuar como navegadora. Ela e os outros Comedores de Arroz sabiam que ele no era capaz de ler. A ltima vez que dirigira sozinho em estradas desconhecidas tinha sido no final do outono de 1972, quando fugira de Los Angeles e terminara, acidentalmente, na comunidade de Silver River Valley. Naquela ocasio, no se preocupara com seu destino. Na verdade, ficaria contente se viesse a morrer. Mas agora queria viver. At mesmo as placas na estrada eram difceis para ele. Se parasse e se concentrasse por um instante, poderia distinguir "Leste" de "Oeste" ou "Norte" de "Sul". A despeito de sua notvel capacidade para fazer contas de cabea, no podia ler nmeros sem olhar fixamente e pensar bastante tempo. Com algum esforo, era capaz de reconhecer os sinais indicando a Rota 10: um pauzinho com uma bola. Mas havia uma poro de outras coisas nas placas que nada significavam para ele e confundiam o quadro. Tentou manter-se calmo. Mas era difcil. Gostava de manter o controle sobre o que fazia e sentia-se louco de dio com a sensao de desamparo e o atordoamento que o dominavam quando se perdia. Sabia, orientado pelo sol, onde ficava o norte. Quando achava que alguma coisa estava saindo errada, parava no primeiro posto de gasolina ou centro comercial e pedia instrues. Detestava fazer isso, porque as pessoas reparavam no vibrador ssmico - era um caminho enorme, e a maquinaria montada em cima dele era meio intrigante. Alm do mais, havia o perigo de ser reconhecido. Mas tinha de arriscar. E as instrues nem sempre eram teis. Os frentistas dos postos de gasolina diziam coisas do tipo: "Fcil, basta seguir a estrada para Corpus Christi at ver uma placa indicando a Base Area de Brooks." Priest obrigou-se a conservar a calma, a continuar fazendo perguntas e a ocultar sua frustrao e ansiedade. Desempenhou o papel de um motorista de caminho amvel mas burro, o tipo da pessoa que seria esquecida no dia seguinte. E acabou chegando a San Antonio pela estrada certa, enviando preces de agradecimentos aos deuses que o poderiam estar escutando. pgina 63 Poucos minutos mais tarde, passando por uma cidadezinha, sentiu-se aliviado ao ver o Honda azul estacionado junto a um McDonald. Ele abraou Star agradecido. - O que foi que aconteceu, droga? - perguntou ela, preocupada. - Achei que voc chegaria duas horas atrs. Ele decidiu no contar que matara Mario. - Eu me perdi em San Antonio - disse. - Tive medo disso. Na vinda para c vi como complicado o sistema rodovirio. - Acho que no nem a metade da complicao do de San Francisco, mas eu conheo San Francisco. - Bem, agora est aqui. Vamos pedir um caf e acalmar voc. Priest comeu um hambrguer de carne vegetal e ganhou um palhacinho de plstico que guardou cuidadosamente, no bolso, para Smiler, o filho de
seis anos. Quando voltaram para a estrada, Star assumiu o volante do caminho. O plano era ir direto at a Califrnia. Levaria pelo menos duas noites e dois dias, talvez mais. Um dormia enquanto o outro dirigia. Tinham trazido anfetaminas para combater o sono. Deixaram o Honda no estacionamento do McDonald's. Quando se afastaram, Star entregou a Priest um saco de papel, dizendo: - Trouxe um presente para voc. Dentro havia uma tesoura e um barbeador a pilha. - Agora pode tirar essa maldita barba - disse ela. Ele sorriu. Virou o espelho retrovisor para poder se ver e comeou a cortar. Os grossos plos da barba cresciam depressa, e a barba cerrada e o bigode tinham feito com que ficasse com a cara redonda. Agora o seu verdadeiro rosto foi gradualmente reaparecendo. Com a tesoura ele baixou bem a barba e depois usou o barbeador para completar o servio. Por fim tirou o chapu de caubi e soltou o cabelo, desfazendo a trana. Jogou o chapu pela janela e examinou sua imagem. O cabelo, penteado para trs, caa em ondas em torno de um rosto magro e anguloso com a testa alta. O nariz lembrava uma lmina, as faces eram cavadas, mas tinha uma boca sensual. pgina 64 - muitas mulheres lhe tinham dito isso. No entanto, era sobre seus olhos que costumavam falar. Eram castanhos, bem escuros, quase pretos, e as pessoas diziam que tinham tal fora que podiam hipnotizar. Priest sabia que no eram os olhos em si, mas a intensidade do olhar que podia cativar uma mulher: dava a sensao de que se concentrava exclusivamente nela. Podia fazer isso com homens tambm. Praticou o olhar ali mesmo, no espelho do caminho. - Demnio bonito - disse Star, rindo dele, mas de um jeito afetuoso. - E esperto tambm - acrescentou Priest. - Acho que voc , sim. Conseguiu pegar o caminho afinal. Priest balanou a cabea. - E voc ainda no viu nada. *** pgina 65 2 Na manh de segunda-feira bem cedo, a agente do FBI Judy Maddox esperava sentada na sala de um tribunal situado no dcimo quinto andar do Federal Building, nmero 450 da avenida Golden Gate, em San Francisco. O acabamento da sala era em madeira clara. O acabamento dos tribunais novos sempre em madeira clara. Geralmente no tm janelas, de modo que os arquitetos tentam faz-los mais alegres usando cores claras. Era a
teoria dela. Judy passava um bocado de tempo esperando em salas de tribunal. Como, alias, a maior parte do pessoal que trabalha em rgos com atribuies policiais. Estava preocupada. Nestas ocasies costumava ficar preocupada. Meses de trabalho, s vezes anos, eram gastos na preparao de um processo, mas no havia como dizer o que aconteceria uma vez que o processo chegasse ao tribunal. A defesa podia estar inspirada ou ser incompetente, o juiz ser um sbio de olhar penetrante ou um velho tolo esclerosado e o jri podia ser um grupo de cidados inteligentes e responsveis ou um bando de marginais que deviam estar, eles prprios, atrs das grades. Quatro homens seriam julgados hoje: John Parton, Ernest "Taxman" Dias, Foong Lee e Foong Ho. Os irmos Foong eram os bandides, os outros dois seus executivos. Em colaborao com uma trinca de Hong Kong, tinham montado um esquema para lavagem do dinheiro oriundo da rede de trfico de drogas do norte da Califrnia. Judy precisara de um ano para descobrir como operavam e um outro ano para provar o que descobrira. pgina 66 Ela desfrutava de uma grande vantagem quando investigava bandidos asiticos: suas feies orientais. O pai de Judy era irlands tpico, de olhos verdes, mas ela sara mais parecida com a finada me, vietnamita. Judy era esguia e de cabelos escuros, com os olhos oblquos. Os gngsteres chineses de meia-idade que investigara nunca suspeitaram que aquela bonita garota meio asitica era uma excepcional agente do FBI. Judy trabalhava com um assistente de promotor federal que conhecia muitssimo. O nome dele era Don Riley e at um ano atrs moravam juntos. Don tinha a sua idade, trinta e seis anos, e era experiente, enrgico e dono de uma inteligncia rpida como um azougue. Ela pensara que tinham um caso prova de furos. Mas os acusados tinham contratado a melhor firma de criminalistas da cidade e sua defesa foi inteligente e vigorosa. Seus advogados minaram a credibilidade das testemunhas que haviam sido, inevitavelmente, arrebanhadas no meio de criminosos semelhantes aos integrantes da quadrilha a ser julgada. Alm do mais, tinham explorado a massa de provas documentais coletada por Judy e usado isso para confundir e perturbar o jri. Agora nem Judy nem Don eram capazes de adivinhar qual seria o resultado. Judy tinha uma razo especial para se preocupar com aquele caso. Seu chefe imediato, o supervisor do grupo encarregado de investigar as atividades do Crime Organizado Asitico, estava prestes a se aposentar e ela se candidatara ao lugar dele. O chefe geral do escritrio de San Francisco, o agente especial encarregado ou AEE, apoiaria sua pretenso, ela sabia, mas Judy tinha um rival: Marvin Hayes, outro destacado agente na mesma faixa etria. Marvin tambm tinha um apoio poderoso: seu melhor amigo, assistente do encarregado, era o responsvel por todos os grupos que trabalhavam investigando o crime organizado e os crimes de colarinho branco. As promoes eram decididas por uma junta de carreira, mas as
opinies dos agentes especiais encarregados e de seus assistentes tinham muito peso. Neste exato momento a competio entre Judy e Marvin Hayes era acirrada. pgina 67 Queria aquela promoo. Queria subir muito e depressa no FBI. Era uma boa agente, seria uma supervisora destacada e em breve seria a melhor AEE que o bureau j tivera. Sentia orgulho do FBI, mas sabia que podia ser melhor, com a introduo mais acelerada de novas tcnicas como tabelas e grficos para anlise de dados pessoais caractersticos por meio do uso de sistemas de gerenciamento simplificados e - acima de tudo - livrando-se de agentes como Marvin Hayes. Hayes era o tpico policial da velha guarda: preguioso, brutal e inescrupuloso. No tinha prendido tantos bandidos quanto Judy, mas fizera prises mais notrias. Era timo em insinuar-se at conseguir ser nomeado para uma investigao glamourosa e rpido para distanciar-se de um caso destinado a encalhar. O encarregado dera a entender a Judy que ela ficaria com o posto, e no Marvin, se ganhasse o caso hoje. No tribunal, ao lado de Judy, estava quase toda a equipe do caso Foong: seu supervisor, os outros agentes que trabalharam com ela, um intrprete, a secretria do grupo e dois detetives do Departamento de Polcia da cidade de San Francisco. Para sua surpresa, nem o encarregado nem seu assistente tinham aparecido. Aquele era um caso de grande destaque e o resultado era importante para ambos. Judy sentiu uma pontada de apreenso e perguntou-se se no estaria acontecendo alguma coisa no escritrio que no soubesse. Decidiu dar uma sada e telefonar. Mas antes que chegasse na porta, o oficial de justia do tribunal entrou e anunciou que o jri ia retornar. Sentou de novo. Um momento depois Don reapareceu, cheirando a cigarro: tinha voltado a fumar depois da separao. Fez um carinho encorajador no ombro dela, que respondeu com um sorriso. Ele estava bonito, com o cabelo curto muito bem cortado, terno azul-marinho, a camisa branca e a gravata vinho. Mas no houve qumica, nem troca de energia, nem nada. Judy no sentia mais vontade de despentear o cabelo dele, desfazer o lao da sua gravata ou enfiar a mo por baixo da camisa branca. pgina 68 Os advogados de defesa regressaram primeiro, depois os de acusao, em seguida o jri e finalmente o juiz surgiu pela porta da sua sala privativa e sentou-se. Judy cruzou os dedos por baixo da mesa. O oficial de justia levantou-se. - Senhores membros do jri, chegaram a um veredicto? Um silncio absoluto abateu-se sobre a sala. Judy percebeu que estava batendo com o p no cho. Parou. O primeiro jurado, um comerciante chins, levantou-se. Judy passara muitas horas especulando se ele ia ficar com pena dos acusados pelo fato
de dois deles serem chineses, ou se os odiaria por terem desonrado a raa. Com voz serena, ele respondeu: - Chegamos. - E qual foi esse veredicto: culpados ou inocentes? - Culpados, segundo a acusao. Houve um segundo de silncio at que a notcia fosse assimilada. s suas costas, Judy ouviu um grunhido partindo do reservado que se destinava aos rus. Resistiu ao impulso de dar um pulo de alegria e olhou para Don, que lhe dirigiu um sorriso largo. Os carssimos advogados de defesa ajeitaram seus papis, evitando olhar nos olhos um do outro. Dois reprteres levantaram-se e saram apressadamente, dirigindo-se para os telefones. O juiz, um homem magro, com ar de desiludido, agradeceu ao jri, suspendeu o julgamento e determinou nova sesso em uma semana, quando decretaria a sentena. Consegui, pensou Judy, ganhei o caso. Pus os bandidos na cadeia e minha promoo est no papo. Agente Especial de Superviso Judy Maddox, com apenas trinta e seis anos, uma estrela em ascenso. - Todos de p - disse o oficial de justia. O juiz saiu. Don abraou-a. - Voc fez um grande trabalho - ela lhe disse. - Obrigada. - Voc me deu um grande caso - retrucou ele. Ela pde ver que ele queria beij-la, e por isso recuou um passo. pgina 69 - Bem, ns dois nos samos bem. Judy voltou-se para seus colegas e saiu apertando mos, dando abraos e agradecendo a todos pelo trabalho realizado. Em seguida os advogados de defesa se aproximaram. O mais velho era David Fielding, scio da Brooks Fielding. Era um homem com aparncia distinta e cerca de sessenta anos de idade. - Parabns, Srta. Maddox, pela vitria merecida - disse ele. - Muito obrigada - agradeceu ela. - Foi mais difcil do que eu pensava. Achava que o caso era uma questo liquidada at que o senhor comeou a defesa. Ele agradeceu o cumprimento com um discreto gesto da cabea bem penteada. - Sua preparao foi irrepreensvel. advogada? - Estudei na Faculdade de Direito de Stanford. - Bem que achei que devia ser bacharel em direito. Bem, se algum dia se cansar do FBI, venha me ver, por favor. Trabalhando em minha firma poder ganhar trs vezes o seu salrio atual em menos de um ano. Ela se sentiu lisonjeada, mas ao mesmo tempo tambm sentiu-se tratada com condescendncia, de modo que sua resposta foi cortante. - uma bela oferta, mas quero pr os bandidos na cadeia, no mant-los fora dela. - Admiro seu idealismo - disse ele, suavemente, e virou-se para falar com Don.
Judy percebeu que fora dura demais. Era um defeito seu, sabia disso. Mas que diabos, no queria um emprego em Brooks Fielding. Pegou sua pasta. Estava ansiosa por celebrar sua vitria com o AEE. A filial do FBI em San Francisco era no mesmo edifcio do tribunal, dois andares abaixo. Quando se virou para ir embora, Don pegou-a pelo brao. - Janta comigo? - perguntou. - Temos que comemorar. Ela no tinha compromisso. - Claro. - Fao as reservas e depois telefono para voc. pgina 70 Depois que saiu, lembrou-se da sensao que ele lhe passara, a de que queria beij-la e arrependeu-se por no ter inventado uma desculpa. Quando entrou no saguo do escritrio do FBI, perguntou-se de novo por que o encarregado e seu assistente no teriam ido corte para assistir ao veredicto. No havia sinal de atividades anormais. Os corredores acarpetados estavam em silncio. O rob carteiro, um carrinho motorizado, zumbia, parando de porta em porta na rota predeterminada. Para uma agncia dedicada a fazer cumprir a lei, tinham instalaes finamente decoradas. A diferena entre o FBI e uma delegacia de polcia comum era a mesma que h entre a sede de uma firma gigantesca e o galpo da fbrica. Dirigiu-se para a sala do encarregado. Milty Lestrange sempre tivera uma certa queda por ela. Desde o princpio ele apoiara a existncia de mulheres agentes, que agora, por sinal, somavam dez por cento do total de agentes. Alguns encarregados berravam as ordens como generais do Exrcito. Milty era sempre calmo e atencioso. Assim que entrou na ante-sala do escritrio dele, viu que havia algo errado. Sua secretria, evidentemente, estivera chorando. Judy perguntou: - Linda, voc est bem? A secretria, uma mulher de meia-idade que em geral era friamente eficiente, irrompeu em lgrimas. Judy adiantou-se para consol-la, mas ela acenou para que se afastasse e apontou para a porta da sala do chefe. Judy entrou. Era uma sala grande, decorada com uma verba generosa, mobiliada com uma escrivaninha grande e uma bela mesa de reunies. Sentado mesa de Lestrange, sem palet e com o lao da gravata afrouxado, estava Brian Kincaid, um dos assistentes do encarregado, um homem grande e corpulento com uma farta cabeleira branca. Ele levantou os olhos e disse: - Entre, Judy. - O que que est acontecendo? Onde est Milt? - Tenho ms notcias - disse ele, embora seu ar no fosse muito triste. pgina 71
- Milt est no hospital. Diagnosticaram cncer no pncreas. - Oh, meu Deus. - Judy sentou-se. Lestrange fora ao hospital na vspera - para um check-up de rotina, ele dissera. Mas j devia estar sabendo que havia algo de errado. Kincaid prosseguiu: - Ele vai ser operado, algo como um desvio intestinal, e, na melhor das hipteses, no voltar to cedo ao trabalho. - Pobre Milt! - Judy estava chocada. Ele dava a impresso de estar no apogeu: em forma fsica, vigoroso e um bom chefe. Agora recebia o diagnstico de uma enfermidade fatal. Gostaria de fazer algo para reconfort-lo, mas sentia-se impotente. - Jessica deve estar l - disse ela. Jessica era a segunda mulher de Milt. - Sim, e o irmo dele est vindo de Los Angeles ainda hoje. Aqui no escritrio... - E a primeira mulher dele? Kincaid pareceu ficar irritado. - No sei dela. Falei com Jessica. - Algum devia contar a ela. Vou ver se consigo seu telefone. - Seja o que for - Kincaid estava impaciente para se livrar do assunto pessoal e voltar a falar sobre o trabalho. - Aqui no escritrio haver, inevitavelmente, algumas mudanas. Passarei a ser o encarregado, na ausncia de Milt. O corao de Judy ficou apertado. - Parabns - disse, procurando manter um tom neutro. - Estou transferindo voc para a carteira do Terrorismo Domstico. A princpio Judy ficou intrigada. - Para qu? - Acho que voc vai se dar bem l - ele pegou o telefone e falou com Linda. - Pea a Matt Peters para vir me ver imediatamente. - Peters era o supervisor do grupo de Terrorismo Domstico. - Mas acabo de ganhar o meu caso - exclamou Judy, indignada. - Pus os irmos Foong na cadeia hoje! pgina 72 - Bom trabalho. Mas no altera minha deciso. - Espere um pouco. Voc sabe que me candidatei funo de supervisor no grupo do Crime Organizado Asitico. Se eu for transferida daqui agora vai parecer que tive um problema qualquer. - Acho que voc precisa ampliar sua experincia. - E eu acho que voc quer que Marvin ocupe a funo l. - Tem razo. Acredito que Marvin seja a melhor pessoa para aquele trabalho. Com um movimento brusco involuntrio, Judy pensou, furiosa. O cara substitui o chefe e a primeira coisa que faz promover o amiguinho. - Voc no pode fazer uma coisa dessas - disse ela. - Ns aqui seguimos as regras da lei de Oportunidades de Emprego Iguais. - V em frente, apresente uma queixa. - disse Kincaid. - Marvin mais
qualificado que voc. - Prendi um monte de bandidos a mais que ele. Kincaid deu-lhe um sorriso complacente e jogou seu trunfo: - Mas ele passou dois anos no quartel-general em Washington. Ele tinha razo, pensou Judy, desesperada. Ela nunca havia trabalhado no quartel-general do FBI. E embora no fosse um detalhe impeditivo, acreditava-se que a experincia no quartel-general fosse essencial funo de supervisor. Assim, no havia como apresentar queixa. Todo mundo sabia que ela era melhor agente, mas no papel Marvin parecia melhor. Judy lutou para conter as lgrimas. Trabalhara desesperadamente durante dois anos e conseguira uma vitria importante contra o crime organizado e agora estava sendo fraudada na recompensa que lhe era devida. Matt Peters entrou. Era um sujeito corpulento de mais ou menos cinqenta e cinco anos, careca, usando camisa de manga curta e gravata. Como Marvin Hayes, era ntimo de Kincaid. Judy comeou a se sentir cercada. - Congratulaes por ter ganho o seu caso - disse Peters a ela. - Ser um prazer t-la no meu grupo. pgina 73 - Muito obrigada - Judy no pde imaginar outra coisa para dizer. Peters tinha uma pasta debaixo do brao. - O governador recebeu uma ameaa terrorista de um grupo que se autodenomina O Martelo do den. Judy abriu a pasta, mas mal conseguiu discernir as palavras. Tremia de raiva e sentia-se dominada por uma esmagadora sensao de insignificncia. Para disfarar suas emoes, tentou falar sobre o caso. - O que esto exigindo? - Que seja suspensa a construo de novas usinas eltricas na Califrnia. - Usinas nucleares? - Qualquer tipo. Do o prazo de quatro semanas para terem a sua exigncia atendida. Dizem que so o brao radical da Campanha Califrnia Verde. Judy tentou concentrar-se. Califrnia Verde era um grupo de presso ambiental legtimo baseado em San Francisco. Difcil acreditar que fossem fazer algo assim. Mas todas as organizaes do gnero so capazes de atrair gente maluca. - E qual a ameaa? - Um terremoto. Ela levantou os olhos. - Voc est brincando comigo. Matt sacudiu a cabea calva. Por estar furiosa e perturbada, ela no se deu ao trabalho de amenizar suas palavras. - Isto burrice - disse, sem rodeios. - Ningum pode causar um terremoto. Seria a mesma coisa que nos ameaar com um metro de neve. Ele deu de ombros.
- Verifique voc mesma. Judy sabia que os polticos importantes recebiam ameaas todos os dias. Mensagens de malucos no eram investigadas pelo FBI, a menos que houvesse nelas algo de especial. - Como esta ameaa foi enviada? - Apareceu num BBS no dia primeiro de maio. Est tudo a na pasta. pgina 74 Ela o encarou diretamente nos olhos. No estava disposta a engolir papo furado. - H qualquer coisa que voc no est me contando. Esta ameaa no tem a menor credibilidade - ela consultou o relgio. - Hoje dia vinte e cinco. Ignoramos a mensagem por trs semanas e meia. Agora, subitamente, com quatro dias para o prazo fatal, por que nos preocupamos? - John Truth viu o BBS - surfando na Rede, eu acho. Talvez estivesse desesperado por um assunto quente. De qualquer forma, falou sobre a ameaa no seu programa da noite de sexta-feira e recebeu muitos telefonemas. - Entendi - John Truth era um entrevistador de rdio muito discutido. Seu programa era irradiado a partir de San Francisco, mas redistribudo por uma poro de outras estaes na Califrnia. Judy ficou ainda mais furiosa. - John Truth pressionou o governador para fazer alguma coisa a respeito da mensagem. - O governador respondeu chamando o FBI para investigar. Assim, temos que cumprir toda a sistemtica de uma investigao na qual ningum realmente acredita. - por a. Judy respirou fundo e dirigiu-se a Kincaid e no a Peters, porque sabia que aquilo era obra dele. - Esta agncia vem tentando pegar os irmos Foong h vinte anos. Hoje eu os pus na cadeia - ela levantou a voz. - E agora vocs me do um caso de mentira como este aqui? Kincaid pareceu secretamente satisfeito consigo mesmo. - Se quer permanecer no Bureau, tem que aprender a aceitar o nus junto com o bnus. - J aprendi isso, Brian! - No me diga. - Aprendi - repetiu ela, falando mais baixo - h dez anos, quando era nova e inexperiente e meu supervisor no sabia exatamente o quanto podia confiar em mim. Recebi, ento, misses como esta, e as realizei de bom grado e conscienciosamente, provando que merecia muito bem ser encarregada de trabalhos de verdade! pgina 75 - Dez anos no so nada - disse Kincaid. - Trabalho aqui h vinte e cinco. Ela tentou ponderar. - Olha, voc acabou de ser designado para responder por este
escritrio. Seu primeiro ato dar a um de seus melhores agentes uma misso que deveria atribuir a um recruta. Todo mundo vai saber o que fez. As pessoas pensaro que por trs disso houve um certo ressentimento. - Voc est certa. Acabo de assumir esta chefia. E voc j est me dizendo como agir. Volte para o trabalho, Maddox. Ela o encarou com um olhar fixo. No era possvel que ele fosse simplesmente dispens-la. Ele acrescentou: - A reunio est encerrada. Judy no podia agentar aquilo. Tinha que extravasar sua raiva. - No s a reunio que est encerrada - disse ela. Levantou-se. - V se foder, Kincaid. Uma expresso de assombro surgiu no rosto dele. Judy finalizou: - Eu me demito. E saiu pisando firme. *** - Voc disse mesmo isso? - quis saber o pai dela. - Disse. Sabia que voc ia desaprovar. - Tinha toda a razo. Estavam sentados na cozinha, bebendo ch verde. O pai de Judy era detetive da polcia de San Francisco e fazia muitos trabalhos na qualidade de agente secreto. Era um homem de constituio vigorosa, em boa forma fsica para a idade, olhos verdes e o cabelo grisalho preso atrs num rabo-de-cavalo. Estava prestes a se aposentar, mas tinha medo da aposentadoria. A vida de policial era tudo para ele. Pelo seu gosto, continuaria a exercer a profisso at completar os setenta anos. pgina 76 Ficou horrorizado ao saber que a filha demitira-se voluntariamente. Os pais de Judy tinham se conhecido em Saigon. Ele esteve l no tempo em que os militares americanos ainda eram chamados de "assessores". A me vinha de uma famlia vietnamita de classe mdia. O av de Judy trabalhara como contador no Ministrio das Finanas de l. O pai de Judy trouxera sua noiva para casa, e Judy nasceu em San Francisco. Quando pequenina chamava os pais de Bo e Me, o equivalente vietnamita a papai e mame. Os policiais se basearam nisso para chamar o pai dela de Bo Maddox. Judy o adorava. Quando tinha treze anos, sua me morrera num acidente de carro. Desde ento ficara muito ligada a Bo. Depois de romper com Don Riley um ano atrs, mudara-se para a casa do pai e desde ento no tivera razo para sair de l. Ela suspirou. - No sempre que perco a calma, voc tem que admitir. - disse. - S quando realmente importante. - Mas agora que eu disse a Kincaid que vou embora, acho que vou mesmo. - Agora que voc o xingou desse jeito, acho que se ver obrigada a sair. Judy levantou-se e serviu mais ch para ambos. Ainda fervia de raiva por dentro.
- Ele um idiota rematado. - Deve ser mesmo, porque acaba de perder uma boa agente - Bo tomou um gole do ch. - Mas voc ainda pior do que ele - acaba de perder um grande emprego. - Ofereceram-me um melhor hoje. - Onde? - Brooks Fielding, a firma de advocacia. Posso vir a ganhar trs vezes o meu salrio do FBI. - Salvando mafiosos da cadeia! - exclamou Bo, indignado. - Todo mundo tem direito a uma boa defesa. - Por que no se casa com Don Riley e tem filhos? Com netos eu teria o que fazer na aposentadoria. pgina 77 Judy estremeceu. No contara a Bo a histria verdadeira do seu rompimento com Don. A verdade pura e simples era que ele teve um caso. Sentindo-se culpado, confessara. Foi apenas uma breve escapada com uma colega, e Judy tentou perdo-lo, mas seus sentimentos por ele nunca mais foram os mesmos. Nunca mais sentiu vontade intensa de fazer amor com ele. Tampouco se sentira atrada por outra pessoa. Era como se tivessem acionado um interruptor qualquer dentro dela, desligando seu impulso sexual. Bo no sabia nada disso. Via Don Riley como o marido perfeito: bonito, inteligente, bem-sucedido e trabalhando para fazer com que a lei fosse cumprida. Judy disse: - Don me convidou para um jantar comemorativo, mas creio que vou cancelar. - Acho que eu devia saber que no tenho nada que lhe dizer com quem se casar - admitiu ele, com um sorriso melanclico. Levantou-se. - melhor eu ir andando. Temos uma batida hoje de noite. Ela no gostava quando o pai trabalhava de noite. - Voc j comeu? - perguntou, ansiosa. - Quer que eu faa uns ovos mexidos? - No, obrigado, querida. Como um sanduche mais tarde - ele vestiu uma jaqueta de couro e beijou-a no rosto. - Amo voc. - At logo. Quando a porta bateu, o telefone tocou. Era Don. - Reservei uma mesa no Masa's. Judy suspirou. Era um restaurante finssimo. - Don, detesto deix-lo, mas prefiro no ir. - Srio? Praticamente tive que oferecer minha irm ao maitre para conseguir uma mesa assim to em cima da hora. - No estou com disposio para celebrar. Aconteceu um problema no trabalho hoje. Ela contou a histria do cncer de Lestrange e Kincaid lhe ter dado uma misso imbecil. - E por isso estou deixando o Bureau.
pgina 78 Don ficou chocado. - No acredito! Voc ama o FBI. - Amava. - Que coisa mais terrvel! - No to terrvel assim. J est na hora de eu fazer algum dinheiro, afinal. Fui excelente aluna na faculdade de Direito, voc sabe disso. Tive melhores notas do que muita gente que est ganhando fortunas atualmente. - Claro, ajudam um assassino a no ir para a cadeia, escrevem um livro a respeito, ganham um milho de dlares... o que voc quer? Estou falando mesmo com Judy Maddox? Al? - No sei, Don, mas com tanta coisa na minha cabea no me sinto em condies de esprito apropriadas para jantar fora. Seguiu-se uma pausa. Judy sabia que Don estava se resignando ao inevitvel. Depois de um momento, ele disse: - Est bem, mas voc vai ter que compensar um outro dia. Amanh? Judy no teve energia para continuar negando. - Claro - concordou. - Obrigado. Ela desligou. Ligou a televiso e deu uma olhada na geladeira, pensando no jantar. Mas no estava com fome. Abriu uma lata de cerveja. Assistiu televiso por trs ou quatro minutos, quando se deu conta de que o programa era em espanhol. Decidiu que no queria a cerveja. Desligou a televiso e derramou a cerveja na pia. Pensou em ir ao Everton's, o bar favorito dos agentes do FBI. Gostava de l, para passar tempo, bebendo cerveja, comendo hambrgueres e trocando histrias. Mas no tinha certeza se seria bem-vinda agora, especialmente se Kincaid estivesse l. J comeava a se sentir excluda. Decidiu fazer seu currculo. Iria para o escritrio sentar-se ao computador. Melhor fazer qualquer coisa do que ficar trancada em casa com claustrofobia. Pegou a arma mas hesitou. Os agentes do FBI eram considerados de servio vinte e quatro horas por dia e eram obrigados a andar sempre armados, exceto no tribunal, dentro de uma cadeia ou no escritrio do Bureau. Mas se eu no for mais uma agente, no tenho que andar armada. Em seguida ela mudou de idia. Droga, se eu vir um roubo em andamento e tiver que passar direto por ter deixado a arma em casa, vou me sentir uma perfeita idiota. pgina 79 Era uma arma de distribuio padronizada no FBI, uma pistola SIG-Sauer P228 com capacidade para pentes de 13 cartuchos, mas Judy sempre colocava o primeiro na cmara, removia o pente e adicionava um extra, fazendo um total de catorze. Tinha tambm uma espingarda Remington modelo 870 com uma cmara capacitada para cinco cartuchos. Como todos os agentes, fazia exerccio de tiro uma vez por ms, geralmente no estande do xerife em Santa Rita. Sua pontaria era testada
quatro vezes por ano. Era hbil e nunca tivera qualquer problema: tinha um olhar apurado, a mo firme e reflexos rpidos. Como a maioria dos agentes, jamais disparara suas armas seno nos treinamentos. Os agentes do FBI eram investigadores. Todos tinham um alto nvel de educao formal e eram bem pagos. No se vestiam para combate. Era perfeitamente normal fazer uma carreira de vinte e cinco anos no Bureau e jamais se envolver em um tiroteio ou mesmo uma briga comum. Mas tinham que estar preparados. Judy ps a arma em uma bolsa a tiracolo. Vestia um ao dai, uma roupa vietnamita tradicional que lembrava uma blusa comprida, com gola alta e aberturas laterais, sempre usada por cima de calas baggy. Era seu traje favorito por ser muito confortvel, mas Judy tambm sabia que ficava bem com ele: o tecido branco destacava o cabelo preto que descia at os ombros e a pele cor de mel. Como o ao dai era justo, favorecia seu tipo pequeno. Normalmente no vestiria aquilo para ir trabalhar, mas j era tarde da noite e, de qualquer modo, tinha pedido demisso. Seu Chevrolet Monte Carlo estava estacionado junto ao meio-fio. Era um carro do FBI e no lamentaria perd-lo. Quando fosse advogada de defesa poderia comprar algo mais excitante - um pequeno carro esporte europeu, talvez, um Porsche ou um MG. pgina 80 A casa do seu pai ficava no bairro de Richmond. No era muito elegante mas um policial honesto jamais enriquece. Judy foi para o centro da cidade pela via direta Geary. A hora do movimento maior j passara, de modo que chegou ao Federal Building em questo de minutos. Estacionou na garagem do subsolo e pegou o elevador para o dcimo segundo andar. Agora que ia sair do Bureau, o escritrio assumiu um ar de familiaridade to acolhedora que a fez sentir-se nostlgica. O carpete cinza, as portas cuidadosamente numeradas, os armrios, arquivos e os computadores, tudo aquilo era uma expresso de uma organizao poderosa e bem dotada de recursos, confiante e dedicada. Havia umas poucas pessoas fazendo sero. Ela entrou na sala do grupo do Crime Organizado Asitico. Estava vazia. Acendeu as luzes, sentou-se sua mesa e inicializou o computador. Quando pensou no que iria incluir no currculo, deu um branco na sua cabea. No havia muito o que dizer a respeito de sua vida antes do FBI: s a faculdade de Direito e dois anos tediosos no departamento jurdico de uma companhia de seguros, a Mutual American Insurance. Precisava redigir uma narrativa clara dos dez anos passado invs de uma narrativa ordenada, sua memria produziu uma srie desconexa de flashbacks: o estuprador serial que lhe agradecera do banco dos rus por t-lo posto na cadeia, onde no poderia mais fazer mal a ningum; uma firma chamada Investimentos Bblia Sagrada que roubara as economias de dezenas de vivas idosas; a vez em que se vira sozinha num quarto com um homem armado que seqestrara duas crianas e o persuadira a entregar a arma... No podia dar conhecimento desses episdios a uma firma de advogados. L o que queriam era Perry Mason, no Wyatt Earp. Decidiu redigir primeiro sua carta formal de demisso. Escreveu a data e depois: "Ao Agente
Especial Encarregado em exerccio." Prosseguiu: "Caro Brian: este documento confirma meu pedido de demisso." pgina 81 Sentia-se magoada. Dera dez anos da sua vida ao FBI. Outras mulheres tinham se casado e tido filhos, ou comeado o prprio negcio, ou escrito um romance, ou velejado em torno do mundo. Ela no - dedicara-se inteiramente tarefa de se transformar numa agente do primeiro time. E agora estava jogando tudo fora. O pensamento trouxe-lhe lgrimas aos olhos. Que tipo de idiota sou eu, sentada sozinha no meu escritrio, chorando diante do maldito computador? Foi quando Simon Sparrow entrou. Era um homem muito musculoso. Com o cabelo curto bem cortado e bigode. Um ou dois anos mais velho que Judy. Como ela, estava vestido informalmente, de cala de brim bege e camisa esporte de manga curta. Simon tinha doutorado em lingstica e trabalhara cinco anos na Unidade de Cincia Comportamental na Academia do FBI em Quantico, Virgnia. Sua especialidade era anlise de ameaas. Ele gostava de Judy e ela dele. Com os homens da agncia ele falava assuntos de homem, futebol, armas e carros, mas quando estava com Judy notava e comentava a roupa ou as jias dela como se fosse uma amiga. Simon tinha uma pasta nas mos. - Sua ameaa de terremoto fascinante - disse, com os olhos brilhando de entusiasmo. Judy assoou o nariz. Simon certamente percebera que ela estava chorando mas, diplomaticamente, fingiu no ter visto. Simon continuou: - Eu ia deixar isto em cima da sua mesa, mas fico feliz por t-la encontrado. Obviamente trabalhara at tarde para ultimar seu relatrio, e Judy no queria desapont-lo contando que estava se demitindo. - Sente-se - convidou, controlando-se. - Parabns por ter ganho seu caso hoje! - Obrigada. - Voc devia estar feliz. pgina 82 - Devia. Mas tive uma briga com Brian Kincaid logo depois. - Oh, ele - Simon fez um gesto como se afastasse o chefe com o dorso da mo. - Se voc pedir desculpas direitinho, ele ter que perdo-la. No pode se dar ao luxo de perd-la. Voc boa demais. A reao dele foi inesperada. Simon normalmente era muito mais compreensivo. Era quase como se j tivesse sabido o que houvera. Mas se sabia da briga, sabia tambm que ela se demitira. Por que lhe trouxera ento o relatrio? Intrigada, Judy pediu: - Fale-me sobre sua anlise da ameaa. - Ela me deixou sem saber o que pensar por algum tempo - Simon lhe
entregou uma folha com a mensagem impressa, tal como aparecera originalmente na Internet. - O pessoal de Quantico tambm ficou intrigado - acrescentou. Judy sabia que Simon teria consultado automaticamente o pessoal da Academia. Ela vira a mensagem antes: estava na pasta que Matt Peters lhe dera. Estudou-a de novo. PRIMEIRO DE MAIO AO GOVERNADOR DO ESTADO Oi! Voc diz que se importa com a poluio e o meio ambiente, mas no nunca faz nada a respeito; assim, ns vamos obrigar voc. A sociedade de consumo est envenenando o planeta porque vocs so gananciosos demais, e tm que parar com isso j! Ns somos o Martelo do den, o brao radical da Campanha Califrnia Verde. pgina 83 Estamos dizendo a voc para anunciar uma paralisao imediata da construo de usinas eltricas. Nada de usinas novas. Ponto final. Seno! Seno o que, voc vai dizer? Seno ns causaremos um terremoto Exatamente daqui a quatro semanas Estejam avisados! Ns realmente estamos falando a srio! - O Martelo do den Aquilo no lhe dizia muita coisa, mas Judy tinha certeza de que Simon estudaria cada palavra e cada vrgula at encontrar o verdadeiro significado. - O que que voc acha disso? - perguntou ele. Ela pensou por um minuto. - Vejo um estudante nada atraente, jovem, com o cabelo sujo e oleoso, usando uma camiseta surrada do Guns n' Roses, sentado diante do computador, criando uma fantasia na qual o mundo ir obedecer a ele, ao invs de ignor-lo do jeito como sempre ignorou. - Bem, seria praticamente impossvel errar mais - disse Simon, com um sorriso. - Trata-se de um homem sem instruo nos seus quarenta e tantos anos. Judy sacudiu a cabea, assombrada. Sempre se espantava com o modo pelo qual Simon extraa concluses de indcios que ela nem sequer conseguia enxergar. - Como que voc sabe? - O vocabulrio e a estrutura da frase. Olha s a saudao. Gente com dinheiro no comea uma carta com "Oi", o normal seria "Prezado Senhor". E uma pessoa com terceiro grau no costuma usar duas negativas juntas como "no nunca faz nada". Judy balanou a cabea, concordando. - Ento voc est procurando um Z Operrio, com quarenta e cinco anos de idade. O que me parece bastante direto. O que foi que o intrigou? pgina 84
- As indicaes contraditrias. Outros elementos na mensagem sugerem uma mulher jovem de classe mdia. A ortografia perfeita. H um ponto e vrgula na primeira orao, o que indica algum estudo. E o nmero de pontos de exclamao sugere uma mulher. Desculpe, Judy, mas a verdade. - Como voc sabe que ela jovem? - As pessoas mais velhas normalmente usam letras maisculas apenas nas iniciais de expresses como "Governador do Estado", em vez de escreverem tudo em maisculas, como foi feito. E tambm o uso do computador e da Internet sugere algum ao mesmo tempo jovem e com algum estudo. Ela examinou Simon. Estaria ele deliberadamente despertando-lhe o interesse para que ela no se demitisse? Se fosse, no ia adiantar. Uma vez que tomava uma deciso, detestava mudar de idia. Mas estava fascinada pelo mistrio que Simon mostrara. - Voc est prestes a me dizer que a mensagem foi escrita por algum com personalidade mltipla? - De jeito nenhum. Mais simples que isso. Foi escrito por duas pessoas: o homem ditando, a mulher escrevendo. - Esperto! - Judy comeava a ver o quadro dos dois indivduos por trs daquela ameaa. Como perdigueiro que fareja a presa, ela sentiu-se tensa, alerta, a antecipao da caada correndo pelas veias. Posso sentir o cheiro dessas duas pessoas, quero saber onde se encontram, tenho certeza de que sou capaz de encontr-las. Mas eu pedi demisso. - Pergunto-me por que ele dita - prosseguiu Simon. Seria a idia normal se fosse um executivo acostumado a ter secretria, mas esse cara um sujeito comum. Simon falou superficialmente, como se aquilo no passasse de uma especulao sem fundamento, mas Judy sabia que suas intuies sempre eram inspiradas. - Alguma teoria? - Ser que ele analfabeto? - Pode ser simplesmente preguioso. - Verdade - Simon deu de ombros. - S,tenho um palpite. pgina 85 - Est certo - disse Judy. - Voc tem uma garota com faculdade que, de alguma forma, est nas garras de um cara das ruas. Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Mau. Ela provavelmente corre perigo, mas algum mais corre? A ameaa de um terremoto simplesmente no parece real. Simon sacudiu a cabea. - Acho que temos que lev-la a srio. Judy no pde conter a curiosidade. - Por qu? - Como voc sabe, analisamos as ameaas de acordo com sua motivao, inteno e seleo do alvo. Judy balanou a cabea. Aquilo era o b-a-b do estudo das ameaas. - A motivao ou emocional ou de ordem prtica. Em outras palavras, quem ameaa est fazendo aquilo para se sentir bem, ou porque quer alguma coisa?
Judy achou que neste caso a resposta era bastante bvia. - Tendo em vista a ameaa essas pessoas tm um objetivo especfico. Querem que o estado pare de construir usinas hidreltricas. - Exato. E isto significa que no querem machucar ningum. Esperam atingir seu objetivo apenas fazendo uma ameaa. - Enquanto tipos mais emocionais iriam preferir matar gente. - Exatamente. A seguir, temos a inteno, que pode ser poltica, criminosa ou prpria de quem mentalmente perturbado. - Poltica, neste caso, pelo menos superficialmente. - Certo. Idias polticas podem ser pretexto para um ato que seja basicamente insano, mas no tenho esta sensao aqui, voc tem? Judy viu onde ele queria chegar. - Voc est tentando me dizer que essas pessoas so racionais. Mas insano ameaar com um terremoto. - Voltarei a isso depois, OK? Finalmente, a seleo do alvo especfica ou aleatria. Tentar matar o presidente especfico; sair disparando uma metralhadora na Disneylndia aleatrio. Levando a srio a ameaa s para poder argumentar, bvio que um terremoto mataria uma poro de pessoas indiscriminadamente, donde se conclui que aleatria. pgina 86 Judy inclinou-se para a frente. - Muito bem, voc tem inteno prtica, motivao poltica e alvo indeterminado. O que isto significa para voc? - Os manuais dizem que essas pessoas ou esto barganhando ou buscam publicidade. Eu digo que esto barganhando. Se quisessem publicidade no teriam optado por colocar a ameaa em um obscuro BBS na Internet, teriam ido para a televiso ou os jornais. Mas no foram. De modo que eu penso que simplesmente queriam se comunicar com o governador. - So ingnuos se pensam que o governador l as mensagens que lhe so destinadas. - Concordo. Essas pessoas exibem uma estranha combinao de sofisticao e ignorncia. - Mas esto agindo a srio. - Sim, e tenho outro motivo para pensar deste modo. A exigncia cessar a construo de novas usinas de eletricidade - no o tipo de coisa que se escolheria normalmente como pretexto. muito terra-a-terra. Se fosse apenas um pretexto, iriam preferir algo mais chamativo, como, por exemplo, banir os aparelhos de ar-condicionado de Beverly Hills. - Que diabo de gente essa ento? - No sabemos. O terrorista tpico exibe um padro ascendente. Comea com telefonemas ameaadores e cartas annimas; depois escreve para os jornais e as estaes de televiso; em seguida comea a rodear os prdios do governo. Na hora em que aparece para uma visita turstica na Casa Branca, carregando uma pistola barata numa sacola de compras, j temos grande parte do seu trabalho nos computadores do FBI. Mas no este o caso aqui. Mandei cotejar as caractersticas lingsticas com os
registros que temos em Quantico, mas no apareceu nada. Essas pessoas so novas. - Ento no sabemos nada a respeito delas? - Sabemos bastante. Moram na Califrnia, claro. pgina 87 - A mensagem endereada "Ao governador do estado". Se fossem de fora, colocariam: "Ao governador da Califrnia". - O que mais? - So americanos, e no h indicao de qualquer grupo tnico em particular; a linguagem no demonstra nada caracteristicamente negro, asitico ou hispnico. - Voc deixou uma coisa de fora. - O qu? - So malucos. Ele sacudiu a cabea. - Ora, Simon, deixa disso! Eles pensam que so capazes de causar um terremoto. Tm que ser malucos! Ele disse teimosamente: - No sei nada de sismologia, mas conheo psicologia e no me sinto confortvel com a teoria de que essas pessoas estejam fora do seu juzo. So mentalmente ss, falam srio e esto perfeitamente orientadas no sentido do que desejam. O que significa que so perigosas. - No concordo. Ele se levantou. - Eu me rendo. Topa uma cerveja? - Hoje, no, Simon, mas obrigada. E obrigada tambm pelo relatrio. Voc timo. - Sem dvida. Ento, at logo. Judy ps os ps em cima da mesa e examinou os sapatos. Tinha certeza agora de que Simon estivera tentando persuadi-la a no se demitir. Kincaid podia pensar que aquele caso no passava de uma fantasia, mas a mensagem de Simon era de que o Martelo do den podia representar uma ameaa genuna, partindo de um grupo que realmente precisava ser encontrado e posto fora de ao. E neste caso sua carreira no FBI no estava obrigatoriamente encerrada. Podia transformar em uma vitria um caso que lhe fora dado como um insulto propositado. O que a tornaria uma agente magnfica ao mesmo tempo que faria com que Kincaid parecesse um imbecil. A perspectiva era tentadora. Abaixou os ps e deu uma olhada no monitor. Por no ter tocado nas teclas por algum tempo, o protetor de tela fora inicializado. Era uma foto de Judy aos sete anos, com as falhas caractersticas nos dentes e um arco plstico prendendo o cabelo. Estava sentada no joelho do pai, que ainda era patrulheiro, com o uniforme da polcia de San Francisco. Ela havia tirado o bon dele e tentava coloc-lo na prpria cabea. A foto fora tirada pela sua me. pgina 88
Imaginou-se trabalhando para Brooks Fielding, dirigindo um Porsche e indo ao tribunal a fim de defender gente como os irmos Foong. Tocou na barra espacejadora e o protetor de tela desapareceu, permitindo que lesse as palavras que escrevera: "Caro Brian: este documento confirma meu pedido de demisso." Suas mos pairaram sobre o teclado. Aps uma longa pausa, ela disse em voz alta: - Droga, com os diabos. Em seguida apagou a frase e escreveu: "Gostaria de pedir desculpas pela minha rudeza..." *** pgina 89 3 O sol da manh de tera-feira se levantava sobre a rodovia interestadual I-80. O Plymouth OCuda 1971 de Priest rumava para San Francisco com o motor roncando tanto que fazia os oitenta quilmetros por hora parecerem cento e cinqenta. Ele comprara aquele carro no tempo em que se encontrava no auge da carreira comercial. Depois, com o negcio do atacado de bebidas na crise final e o Imposto de Renda prestes a prend-lo, fugiu levando apenas a roupa do corpo - um terno azul-marinho de lapelas largas e calas de boca larga - e o carro. Ainda tinha ambos. Durante a era hippie, o nico carro maneiro era o Fusca. Dirigindo o OCuda amarelo radiante, Priest parecia um cafeto, Star lhe dizia sempre. Por isso, tinham feito no carro uma pintura psicodlica: planetas no teto, flores na tampa da mala e uma deusa indiana com oito braos que se estendiam sobre os pra-lamas, tudo em prpura, rosa e turquesa. Em vinte e cinco anos as cores tinham desbotado e se transformado em diferentes tonalidades de marrom, mas ainda era possvel distinguir o desenho se examinado de perto. E agora o carro passara a ser de colecionador. Ele tinha iniciado a viagem s trs da madrugada e Melanie dormira o tempo todo. Estava deitada com a cabea no seu colo, as pernas fabulosamente compridas dobradas em cima do surrado estofamento preto. Enquanto dirigia, ia brincando com o cabelo dela. Melanie tinha os cabelos no estilo dos anos sessenta, fio longo e reto repartido no meio, embora tivesse nascido mais ou menos na poca em que os Beatles se separaram. O garoto tambm dormia, esticado no banco de trs, boca aberta. O pastor alemo de Priest, Spirit, ia ao seu lado, quieto. Mas toda vez que Priest olhava para trs, abria um olho. pgina 90 Priest sentia-se ansioso. Disse a si mesmo que devia sentir-se bem.
Era como nos velhos tempos. Na juventude sempre tinha algo em andamento, algum golpe, projeto, um plano qualquer para fazer ou roubar dinheiro, dar uma festa ou iniciar um tumulto. Depois descobrira a paz. Mas s vezes achava que a vida tinha se tornado demasiadamente pacfica. O roubo do vibrador ssmico o fizera rever sua antiga personalidade. Sentia-se mais vivo agora, com uma garota bonita ao lado e uma batalha de inteligncias adiante. Assim mesmo estava preocupado. Mergulhara naquilo at o pescoo. Gabara-se de que podia dobrar o governador da Califrnia e prometera um terremoto. Se falhasse, estaria terminado. Perderia tudo o que lhe era caro e, se fosse apanhado, ficaria preso at a velhice. Mas ele era extraordinrio. Sempre soubera no ser igual aos outros homens. Regras no se aplicavam a ele. Fazia coisas em que mais ningum pensava. E j estava a meio caminho do seu objetivo. Roubara um vibrador ssmico. Matara um homem por causa disso, mas se safara. No houve repercusses, exceto os pesadelos ocasionais em que Mario saa da picape em chamas com as roupas incandescentes e sangue pingando da cabea esmagada para ir atrs de Priest, cambaleando. O caminho estava escondido em um vale isolado nos contrafortes da Serra Nevada. Hoje, Priest ia descobrir onde exatamente coloc-lo para provocar um terremoto. E era o marido de Melanie quem forneceria essa informao. Segundo Melanie, Michael Quercus sabia mais do que qualquer outra pessoa no mundo sobre a falha de Santo Andr. Os dados que acumulara estavam armazenados no computador dele. E Priest queria roubar o disquete com a cpia de segurana desses dados. De quebra, tinha que se assegurar de que Michael jamais viesse a saber o que acontecera. pgina 91 Para tanto, precisava de Melanie. E era por isso que se preocupava. Priest a conhecia havia apenas umas poucas semanas. Neste curto perodo tornara-se a pessoa dominante na vida dela, sabia disso; mas nunca a submetera a um teste como este agora. E ela fora casada com Michael durante seis anos. Podia de repente arrepender-se de ter deixado o marido; podia descobrir o quanto sentia falta da mquina de lavar loua ; e do aparelho de televiso; podia perceber todo o perigo e a ilegalidade do que ela e Priest estavam fazendo; no havia como prever o que podia acontecer a uma pessoa to amarga, confusa e perturbada quanto Melanie. No banco de trs, seu filho, de cinco anos de idade, acordou. Spirit, o cachorro, moveu-se primeiro e Priest ouviu o barulho das suas garras arranhando o plstico do banco. Em seguida, o bocejo da criana. Dustin, conhecido como Dusty, era um garoto azarado. Sofria de alergias mltiplas. Priest ainda no vira um dos seus ataques, mas Melanie os descrevera: o menino fungava incontrolavelmente, os olhos inchavam e as erupes na pele provocavam fortes coceiras. Ela carregava remdios fortes para conter a alergia mas disse que mitigavam os sintomas apenas parcialmente. Dusty comeou a ficar inquieto. - Mame, tou com sede - disse ele.
Melanie acordou. Endireitou-se no banco, espreguiando-se e Priest deu uma espiada de relance no contorno dos seus seios sob a camiseta apertada. Ela virou-se e disse: - Beba um pouco d'gua, Dusty, voc tem uma garrafa. - No quero gua - choramingou ele. - Quero suco de laranja. - No temos nenhuma droga de suco - retrucou ela, rspida. Dusty comeou a chorar. Melanie era uma me nervosa, com medo de agir erroneamente. Era obsessiva com a sade do filho, e por isto superprotetora, mas, ao mesmo tempo, a tenso fazia com que fosse mal-humorada com ele. Certa de que o marido um dia tentaria tirar o menino de sua guarda, tinha pavor de fazer qualquer coisa que possibilitasse que ele dissesse que no era boa me. pgina 92 Priest assumiu o controle. - Ei, espera a, que negcio esse que apareceu atrs de ns? - do jeito que falou parecia que ele estava realmente assustado. Melanie deu uma espiada. - s um caminho. - Isso o que voc pensa. Est disfarado de caminho, mas na verdade uma espaonave de combate de Centauro com torpedos impulsionados a ftons. Dusty, preciso que voc bata trs vezes no vidro de trs para levantar nosso escudo magntico invisvel. - Agora, se virmos uma luz laranja piscando num dos pra-lamas sinal de que ele disparou um torpedo. melhor voc tomar conta disso, Dusty. O caminho aproximava-se depressa, e um minuto mais tarde a lanterna sinalizadora da esquerda piscou e ele comeou a ultrapassagem. - Est disparando, est disparando! - gritou Dusty. - Tudo bem, tentarei segurar o escudo magntico enquanto voc atira nele tambm! Aquela garrafa d'gua na verdade uma pistola a laser! Dusty apontou a garrafa para o caminho e fez barulhos de tiros eletrnicos. Spirit entrou na brincadeira, latindo furiosamente para o caminho quando passou. Melanie comeou a rir. Quando o caminho tomou a pista da direita frente deles, Priest disse: - Puxa, conseguimos! Tivemos sorte de sair desta inteiros. Acho que por ora eles desistiram. - Tem mais espaonaves de Centauro? - Voc e Spirit tomam conta da retaguarda e me dizem o que virem, OK? - OK. Melanie sorriu e disse baixinho: - Obrigada. Voc muito bom com ele. pgina 93 Sou bom com todo mundo: homens, mulheres, crianas e animais de estimao. Tenho carisma. No nasci com ele aprendi. s uma maneira de
conseguir que as outras pessoas faam o que voc quiser. Qualquer coisa. Desde convencer uma mulher fiel a cometer adultrio at fazer com que uma criana chata pare de choramingar. Tudo que voc precisa charme. - Me avisa quando estiver na hora de sair da estrada. - disse Priest. - Basta seguir as placas que indicam Berkeley. Ela no sabia que ele era incapaz de ler. - Provavelmente h mais do que uma placa. S quero que diga onde que eu viro. Poucos minutos mais tarde eles deixaram a rodovia principal e entraram na arborizada cidade universitria. Priest pde sentir que a tenso de Melanie aumentou. Ele sabia que toda a raiva dela contra a sociedade e o seu desapontamento com a vida de alguma maneira se concentravam no homem a quem deixara seis meses atrs. Ela orientou Priest,pelas intersees at a avenida Euclid, uma via de casas modestas e edifcios de apartamentos provavelmente alugados por estudantes e professores mais jovens. - Ainda acho que eu deveria entrar sozinha - disse ela. Estava fora de questo. Melanie no era estvel o bastante. Priest no podia confiar nela quando estava ao seu lado, de modo que no havia como confiar nela sozinha. - No - disse ele. - Talvez eu.. . Ele permitiu que Melanie visse um lampejo de raiva. - No! - Tudo bem, tudo bem - disse ela, apressadamente. Mordeu o lbio. Dusty ficou entusiasmado. - Ei, aqui que o papai mora! - Isso mesmo, querido - concordou Melanie. Ela indicou um edifcio de apartamentos de poucos andares e Priest estacionou na frente. pgina 94 Melanie virou-se para Dusty mas Priest antecedeu-se. - Ele fica no carro. - No tenho certeza se seguro. - Ele tem o co. - Mas pode ficar com medo. Priest virou-se para falar com o menino. - Ei, tenente, preciso que voc e o cabo Spirit fiquem de guarda tomando conta da nossa espaonave enquanto o imediato Mame e eu entramos no espao porto. - Eu vou falar com o papai? - Claro. Mas eu gostaria de ter uns momentos com ele primeiro. Acha que pode dar conta do servio de guarda? - Deixa comigo! - Na marinha espacial, voc tem que dizer "Sim senhor!", e no "Deixa comigo". - Sim senhor! - Muito bem. Assuma o comando - Priest saltou do carro. Melanie tambm saltou, mas parecia preocupada.
- Pelo amor de Deus, no deixe Michael saber que deixamos o filho dele no carro - disse. Voc pode estar com medo de ofender Michael, baby, mas eu no ligo a mnima. Melanie pegou a bolsa no banco e passou a ala pelo ombro. Dirigiram-se para a porta do prdio. Melanie apertou a campainha do interfone e a manteve comprimida. Seu marido era um cara de vida noturna, ela dissera a Priest. Gostava de trabalhar noite e dormir at tarde. Por isso tinham decidido chegar antes das sete horas da manh. Priest esperava que Michael estivesse com tanto sono que no imaginaria que a visita pudesse ter um propsito oculto. Se ficasse desconfiado, roubar o disquete talvez fosse impossvel. Melanie disse tambm que ele era um workaholic, relembrou Priest enquanto esperava que Michael atendesse. Passava os dias rodando de carro pela Califrnia, checando os instrumentos que mediam movimentos geolgicos na falha de Santo Andr ou qualquer outra, e as noites alimentando o computador com os dados colhidos. pgina 95 Mas o que acabara fazendo com que o deixasse foi um incidente com Dusty. Ela e a criana eram vegetarianos havia dois anos e comiam apenas comida orgnica e produtos de lojas de alimentos naturais. Melanie acreditava que a dieta rigorosa reduzira os ataques de alergia do filho, embora Michael fosse ctico. Ento, um dia, Melanie descobriu que Michael dera um hambrguer para o menino. Para ela, foi o mesmo que envenen-lo. Ainda tremia de raiva quando contava a histria. Sara de casa no mesmo dia, levando Dusty. Priest achava que ela podia estar certa a respeito dos ataques de alergia. A comunidade era vegetariana desde o incio dos anos 70, quando ser vegetariano era uma excentricidade. Na poca, Priest duvidara do valor da dieta mas fora favorvel a uma disciplina que os separasse do resto do mundo. As uvas plantadas por eles eram cultivadas sem a ajuda de produtos qumicos simplesmente porque no havia dinheiro para compr-los, e, assim, tinham transformado em virtude uma necessidade e chamaram o vinho que produziam de orgnico, o que acabou tornando-se uma forte motivao das vendas. Mas ele no pde deixar de notar que aps um quarto de sculo daquela vida, os integrantes da comunidade formavam um grupo dono de uma notvel sade. Era raro que tivessem uma emergncia mdica que eles prprios no pudessem resolver: Priest duvidava que isto acontecesse em mdia mais que uma vez por ano. Assim, agora estava convencido. Mas, ao contrrio de Melanie, no era obsessivo com essa coisa de dieta. Ainda gostava de peixe e, de vez em quando, embora sem querer, comia carne numa sopa ou num sanduche e no ligava. Mas se Melanie descobrisse que sua omelete de cogumelos tinha sido preparada com gordura de bacon, vomitava tudo. Ouviram uma voz irritada no interfone. - Quem ? - Melanie.
Aps um zumbido, a porta do edifcio abriu-se. Priest seguiu Melanie escada acima. Michael Quercus estava de p, parado no portal de um apartamento no segundo andar. pgina 96 Priest espantou-se com a aparncia dele. Havia esperado um tipo professoral, provavelmente careca, vestindo roupa marrom. Quercus tinha uns trinta e cinco anos. Alto e atltico, tinha os cabelos curtos e ondulados e a sombra de uma barba cerrada no rosto. Estava com uma toalha amarrada na cintura, de modo que Priest pde ver que tinha ombros largos e musculosos e uma barriga chata. Devem ter formado um casal bonito. Quando Melanie atingiu o topo da escada, Michael disse: - Estava muito preocupado, onde diabos voc tem andado? Melanie perguntou: - Voc no pode vestir qualquer coisa? - Voc no disse que tinha companhia - respondeu ele, friamente. Permaneceu no portal. - Vai responder minha pergunta? Priest viu que ele mal conseguia conter a raiva acumulada. - Estou aqui para explicar - disse Melanie. Ela estava gostando da fria de Michael. Que casamento esculhambado. - Este meu amigo Priest. Podemos entrar? Michael olhou para ela furioso. - melhor que seja uma explicao muito boa, Melani - ele virou de costas e entrou. Melanie e Priest o seguiram no pequeno hall de entrada. Ele abriu a porta do banheiro, pegou um robe de algodo azul-marinho de um cabide e vestiu-o, sem pressa. Depois livrou-se da toalha e amarrou o cinto. Por fim, conduziu-os at a sala. Ali era, evidentemente, o escritrio. Alm do sof e do aparelho de televiso, havia um monitor e um teclado em cima da mesa e uma fileira de aparelhos eletrnicos com luzes que piscavam em uma prateleira larga. Em algum lugar naquelas caixas cinza-claro to comuns estava armazenada a informao de que Priest precisava. Sentiu-se atormentado por ter o que tanto desejava absolutamente fora do seu alcance. No havia como consegui-lo sem ajuda. Tinha que depender de Melanie. Uma parede era inteiramente tomada por um imenso mapa. - Que diabo aquilo l? - perguntou Priest. pgina 97 Michael limitou-se a dar-lhe um olhar tipo "quem-vocpensa-que-, porra" e nada disse, mas Melanie respondeu: - a falha de Santo Andr - ela apontou. - Comea no farol de Ponta Arena a cento e sessenta quilmetros ao norte daqui no condado de Mendocino, vai toda vida para o sul e o leste, passa por Los Angeles e seque at San Bernardino. Uma falha na crosta terrestre com mais de mil e cem quilmetros de comprimento. Melanie explicara o trabalho de Michael a Priest. Sua especialidade
era calcular a presso em diferentes lugares ao longo de falhas ssmicas. Tratava-se de medir com preciso os pequenos movimentos na crosta terrestre, assim como estimar a energia acumulada com base no lapso de tempo decorrido desde o ltimo terremoto. Com esse trabalho, ele conquistara vrios prmios acadmicos, mas um ano atrs deixara a universidade para trabalhar por conta prpria, oferecendo consultoria sobre riscos de terremotos a firmas de construo e companhias de seguros. Melanie era especializada em computao e o ajudara muito. Fora ela quem programara a mquina para fazer uma cpia de segurana entre as quatro e as seis horas da manh, quando ele dormia. Tudo no seu computador, ela explicara a Priest, era copiado em um disquete tico. Quando ele ligava o monitor de manh, retirava o disquete e colocava em uma caixa prova de fogo. Desse modo, se a mquina quebrasse ou a casa pegasse fogo, os preciosos dados no se perderiam. Para Priest era fantstico que as informaes sobre a falha de Santo Andr pudessem caber em um simples disquete, mas os livros tambm eram um mistrio para ele. Tinha simplesmente que aceitar o que lhe era dito. O importante era que Melanie, de posse do disquete de Michael, fosse capaz de orient-lo sobre onde colocar o vibrador ssmico. Tinham agora que dar um jeito para afastar Michael dali, tempo suficiente para que ela pegasse o disquete. pgina 98 - Me diz uma coisa, Michael. Esses troos todos - exclamou Priest, indicando com um gesto o mapa e os computadores e depois fixando nele o Olhar - como que fazem voc se sentir? As pessoas costumavam ficar nervosas quando Priest lhes dirigia o Olhar e fazia uma pergunta pessoal. s vezes davam uma resposta reveladora por ficarem to desconcertadas. Mas Michael pareceu imune. Limitou-se a fitar Priest com um olhar inexpressivo e disse: - No sinto nada, eu uso - e depois, virando-se para Melanie, perguntou: - E agora, vai me contar por que desapareceu? Filho da puta arrogante. - Muito simples - disse ela. - Um amigo ofereceu a mim e a Dusty sua cabana nas montanhas. - Priest recomendara para que no dissesse que montanhas eram. - Foi um cancelamento de ltima hora de uma locao seu tom de voz indicava que ela no via por que tinha de explicar uma coisa to simples. - Como no podemos nos dar ao luxo de tirar frias, aproveitei a chance. Foi quando Priest a encontrara. Ela e Dusty foram andar na floresta e ficaram completamente perdidos. Melanie era uma garota da cidade e no sabia se orientar pelo sol. Priest naquele dia fora pescar salmo sozinho. Era uma tarde perfeita de primavera, ensolarada e com a temperatura amena. Ele estava sentado na margem do regato, fumando um baseado, quando ouviu o choro de uma criana. Sabia que no era uma das crianas da comunidade, cujas vozes teria reconhecido. Seguindo o som, encontrou Dusty e Melanie. Ela estava
beira das lgrimas e quando viu Priest exclamou: - Graas a Deus, pensei que fssemos morrer aqui! Ele a examinou por um longo momento. Ela era um tanto estranha, com o cabelo ruivo comprido e olhos verdes, mas um bocado apetitosa, de frente-nica e cala-jeans transformada em bermudas. Era meio mgico esbarrar numa donzela em apuros no dia em que sa mesmo, no macio colcho de agulhas de pinheiro, ao lado do regato rumorejante. Foi quando lhe perguntara se era de Marte. pgina 99 - No. De Oakland. Priest sabia onde ficavam as cabanas para frias. Pegou o canio e conduziu-a pela floresta, seguindo as trilhas e elevaes que lhe eram to familiares. Foi uma longa caminhada e durante todo o percurso em que foi conversando, fazendo perguntas compree a respeito dela. Era uma mulher metida num tremendo problema. Deixara o marido e passara a viver com um cara que tocava baixo em uma banda de rock, mas o sujeito a pusera para fora aps algumas semanas. No tinha a quem recorrer: o pai era falecido e a me morava em No com um sujeito que tentara se meter na sua cama na nica noite em que dormira no apartamento deles. Tinha exaurido a hospitalidade dos amigos e pedira emprestado todo o dinheiro que eles tinham capacidade de emprestar. Sua carreira era um fracasso total, e ela trabalhava em um supermercado, recompletando as prateleiras, deixando Dusty com uma vizinha o dia inteiro. Morava num lugar to sujo que o menino vivia constantemente sofrendo ataques de alergia. Precisava se mudar para onde houvesse ar puro, mas no conseguia encontrar um emprego fora da cidade. Estava num beco sem sada e desesperada. Tentava calcular a exata overdose de plulas para dormir que a matasse e criana, quando uma amiga lhe oferecera aqueles dias de frias. Priest gostava de pessoas em dificuldades. Sabia como se relacionar com elas. Tudo o que tinha de fazer era oferecer-lhes aquilo de que precisavam, e elas se tornavam suas escravas. No se sentia vontade com tipos confiantes e auto-suficientes - eram difceis de controlar. Quando chegaram cabana, j era hora de cear. Melanie preparou massa e salada e ps Dusty na cama. Quando a criana dormiu, Priest seduziu-a em cima do tapete. Ela estava frentica de desejo. Toda a sua carga emocional reprimida foi liberada pelo sexo, e ela fez amor com ele como se fosse sua ltima oportunidade, arranhando suas costas e mordendo seus ombros, alm de pux-lo fundo para dentro de si, como se quisesse engoli-lo. Foi o encontro mais excitante que Priest era capaz de lembrar. pgina 100
O arrogante marido de Melanie estava reclamando. - Isso foi h cinco semanas. Voc no pode simplesmente pegar meu filho e desaparecer sem sequer um telefonema! - Voc podia ter me telefonado. - Eu no sabia onde voc estava! - Tenho um celular. - Tentei. Mas no tive resposta. - O servio foi cortado porque voc no pagou a conta. Voc ficou de pagar, foi o que combinamos. - Eu s me atrasei dois dias, mais nada! O telefone deve estar funcionando de novo. - Bem, voc telefonou quando estava fora do ar, acho eu. Aquela briga de famlia no estava aproximando Priest do tal disquete, pensou ele, irritado. Michael tem que sair desta sala, de algum modo, de qualquer modo. Interrompeu para sugerir: - Por que no vamos todos tomar um caf? - queria que Michael fosse para a cozinha fazer o caf. Michael sacudiu o polegar por cima do ombro. - Sirva-se - disse, btuscamente. Droga. Michael voltou-se de novo para Melanie. - No interessa o motivo pelo qual no consegui falar com voc. No pude. por este motivo que voc tem que ligar para mim antes de levar Dusty para outro lugar de frias. Melanie disse: - Escuta, Michael, tem uma coisa que eu ainda no lhe contei. Michael pareceu ficar ainda mais exasperado, depois suspirou e disse: - Sentem-se, por que no se sentam? Melanie afundou num canto do sof, sentada em cima das pernas dobradas de um jeito que fez com que Priest pensasse que aquele era o seu lugar habitual. Priest acomodou-se no brao do sof, no querendo sentar-se em nvel mais baixo que Michael. No sou capaz nem de imaginar em qual dessas mquinas est o tal disquete. vamos, Melanie, livre-se desse seu maldito marido! pgina 101 O tom de voz dele sugeriu que j passara diversas vezes antes por cenas como aquela com Melanie. - Est certo, pode falar - disse, cansado. - O que desta vez? - Vou me mudar para as montanhas, permanentemente. Estou morando com Priest e uma poro de pessoas. - Onde? Foi Priest quem respondeu. No queria que Michael soubesse onde viviam. - em Del Norte - o que era o mesmo que dizer que ficava na regio das sequias, extremidade norte da Califrnia. Na verdade a comunidade vivia em Sierra, nos contrafortes de Sierra Nevada, perto da fronteira oriental do estado. Os dois condados ficavam muito longe de Berkeley. Michael sentiu-se ultrajado.
- Voc no pode levar Dusty para morar a centenas de quilmetros do pai dele! - H um motivo - insistiu Melanie. - Nas ltimas cinco semanas Dusty no teve um nico ataque de alergia. Ele saudvel nas montanhas, Michael. Priest acrescentou: - Provavelmente o ar puro e a gua. Sem poluio. Michael mostrou-se ctico. - o deserto, e no as montanhas, que normalmente mostra-se benfico para pessoas alrgicas. - No me fale sobre normalmente! - explodiu Melanie. No posso ir para o deserto - no tenho dinheiro. Este o nico lugar que posso pagar e onde Dusty pode ser saudvel! - Priest est pagando o seu aluguel? V em frente, seu panaca, me insulte, fale sobre mim como se eu no estivesse aqui dentro, e eu simplesmente continuarei comendo sua mulher gostosa. Melanie disse: - uma comunidade. pgina 102 - Pelo amor de Deus, Melanie, com que espcie de gente voc foi se meter agora? Primeiro foi um guitarrista drogado... - Espera um minuto - Blade no era um guitarrista drogado. . . - agora uma comunidade hippie perdida! Melanie estava to envolvida na discusso que esquecera o motivo pelo qual viera. O disquete, Melanie, o maldito disquete! Priest interrompeu de novo. - Por que no pergunta a Dusty como se sente a respeito disto, Michael? - Vou perguntar. Melanie dirigiu a Priest um olhar de desespero. Ele a ignorou. - Dusty est logo a fora, no meu carro. Michael ficou vermelho de dio. - Voc deixou meu filho a fora dentro do carro? - Ele est bem, meu cachorro est com ele. Michael olhou furiosamente para Melanie. - O que diabo est errado em voc? - gritou. Priest disse: - Por que voc no sai e vai busc-lo? - No preciso da porra da sua permisso para pegar o meu filho. D-me as chaves do carro. - No est trancado - retrucou Priest, em tom ameno. Michael saiu pisando forte. - Eu disse a voc para no falar que o Dusty estava a fora lamuriou-se Melanie. - Por que fez isso? - Para tirar o sujeito desta maldita sala - respondeu Priest. - Agora peque o disquete. - Mas voc o enfureceu tanto!
- Ele j estava irado! - No adiantava, Priest concluiu logo. Ela podia estar amedrontada demais para fazer o que ele precisava. Levantou-se. Segurou-lhe as mos, obrigou-a a aprumar-se e lhe deu o Olhar. - Voc no tem que sentir medo dele. Est comigo - Mas... pgina 103 - Diga. - Lat hoo, dat soo. - Continua. - Lat hoo, dat soo, lat hoo, dat soo - ela comeou a se acalmar. - Agora peque o disquete. Ela fez que sim. Ainda dizendo o mantra baixinho, aproximou-se da fileira de mquinas na prateleira. Apertou um boto e um disquete de plstico chato e quadrado pulou para fora de uma fenda. Priest j notara que no mundo dos computadores os disquetes sempre eram quadrados. Ela abriu a bolsa e pegou outro disquete que parecia similar. - Merda! - exclamou. - O qu? - apressou-se a perguntar Priest. - O que est errado? - Ele mudou de marca! Priest olhou os dois disquetes. Pareciam iguais para ele. - Qual a diferena? - Olha, o meu um Sony, mas o de Michael Philips. - Ele vai notar? - Pode ser. - Droga - era vital que Michael no soubesse que seus ddos haviam sido furtados. - Ele provavelmente comear a trabalhar assim que tivermos sado. Ejetar o disquete e o trocar com o que est na caixa prova de fogo, e, se olhar para eles, ver que so diferentes. - E sem dvida nenhuma ir relacionar o acontecido nossa presena aqui - Priest sentiu uma onda de pnico. Tudo estava saindo errado. Melanie disse: - Eu podia comprar um Philips e voltar outro dia. Priest sacudiu a cabea. - No quero fazer isto de novo. Podemos falhar outra vez. E estamos ficando sem tempo. O prazo termina em trs dias. Ele tem disquetes sobressalentes? pgina 104 - Deve ter. s vezes o disquete apresenta defeito - ela olhou em torno. - Eu gostaria de saber onde esto. - Ela parou no meio da sala, desorientada. Priest teve mpetos de dar um grito de frustrao. Tinha receado algo assim. Melanie ficara totalmente descontrolada e eles no tinham muito mais que um minuto. Era preciso acalm-la rapidamente. - Melanie - disse, esforando-se para a voz sair grave e tranqilizadora -, voc tem dois disquetes na mo. Ponha ambos dentro da
bolsa. Ela obedeceu automaticamente. - Agora feche a bolsa. Ela fechou. Priest ouviu a porta do prdio bater. Michael estava voltando. Priest sentiu a nuca ficar molhada de suor. - Pense - quando voc morava aqui. Michael tinha um armrio com material de escritrio? - Tinha, sim. Bem, uma gaveta. - E ento? Acorde, garota! Onde est? Ela apontou para um armrio branco barato encostado na parede. Priest abriu a gaveta de cima. Viu um pacote de blocos amarelos tamanho ofcio, uma caixa de esferogrficas de plstico, umas duas resmas de papel branco, alguns envelopes - e uma caixa aberta de disquetes. Ele ouviu a voz do menino. Parecia vir do vestbulo, na entrada do apartamento. Com os dedos trmulos, ele tirou um disquete da caixa e passou para Melanie. - Este servir? - Sim, um Philips. Priest fechou a gaveta. Michael entrou com Dusty nos braos. Melanie ficou imvel com o disquete na mo. Pelo amor de Deus, Melanie, faa alguma coisa! - E voc sabe de uma coisa, papai? Eu no espirrei nem uma vez nas montanhas - dizia Dusty. pgina 105 A ateno de Michael estava concentrada em Dusty. - Que legal, no mesmo? Melanie recuperou o controle. Quando Michael inclinou-se para sentar Dusty no sof, ela enfiou o disquete virgem que tinha na mo dentro da mesma fenda de onde sara o outro, o que tinha os dados. A mquina zumbiu suavemente e sugou o disquete, como uma cobra comendo um rato. - Voc no espirrou? - perguntou Michael ao filho. Nem uma vez? - Isso mesmo. Melanie endireitou-se. Michael no vira o que ela fizera. Priest fechou os olhos. A sensao de alvio parecia esmag-lo. Tinham conseguido. Pegaram os dados de Michael - e ele jamais saberia. Michael continuou: - E o cachorro, no fez voc espirrar? - No, Spirit um cachorro limpo. Priest faz ele tomar banho no regato e depois ele sai e se sacode e uma chuvarada! - Dusty riu com prazer quando rememorou a cena. - mesmo? - disse o pai. - Eu falei, Michael - disse Melanie. A voz dela saiu meio trmula, mas Michael no pareceu notar. - Est bem, est bem - disse ele, em tom conciliatrio. - Se faz tanta diferena assim para a sade de Dusty, temos que achar uma soluo.
Ela pareceu aliviada. - Obrigada. Priest permitiu-se a sugesto de um sorriso. Estava acabado. Seu plano avanara mais um passo crucial. Agora s tinham que torcer para o computador de Michael no travar. Se isto acontecesse e ele tentasse recuperar os dados armazenados no disquete, descobriria que estava em branco. Mas Melanie disse que era raro isto acontecer. Com toda a probabilidade no aconteceria logo hoje. E noite o computador produziria uma nova cpia de segurana, enchendo o disquete em branco com os dados de Michael. No dia seguinte a esta hora seria impossvel dizer que uma troca fora feita. pgina 106 Michael continuou: - Bem, pelo menos voc veio aqui para dar a notcia pessoalmente. Muito obrigado. Priest sabia que Melanie preferia ter falado com o marido pelo telefone. Mas a mudana dela para a comunidade fora um pretexto perfeito para visitar Michael. Ele e Melanie nunca poderiam ter feito uma visita social ao marido dela sem despertar suspeitas. Mas neste caso no ocorreria a Michael desconfiar do motivo que os trouxera. Na verdade, Michael no era do tipo desconfiado, Priest tinha certeza. Era um cara inteligente mas ingnuo. No tinha capacidade de enxergar sob a superfcie e ver o que realmente se passava no corao de outro ser humano. Quanto a Priest, era extremamente bem dotado desta capacidade. Melanie estava falando: - Trarei Dusty para v-lo com a freqncia que voc quiser. Eu mesma virei dirigindo. Priest era capaz de ler o que se passava no corao dela. Estava sendo boazinha com o marido, agora que ele lhe dera o que queria - tinha a cabea meio de lado e sorria um sorriso bonito para ele - mas no o amava, no o amava mais. Michael era diferente. Estava furioso por ela t-lo deixado, sem dvida. Mas ainda se importava com ela. Ainda no se livrara de Melanie, no totalmente. Uma parte dele ainda a queria de volta. Podia at ter pedido, mas era muito orgulhoso. Priest sentiu cimes. Odeio voc, Michael. *** pgina 107 Judy acordou cedo na tera-feira, perguntando-se se ainda teria um emprego. Na vspera dissera que se demitia. Mas estava com raiva e frustrada. Hoje tinha certeza de que no queria deixar o FBI. A perspectiva de passar a vida defendendo criminosos, ao invs de prendendo, a deprimia. Teria mudado de idia tarde demais? Na noite seu pedido de desculpas? Ou
insistiria na sua demisso? Bo chegou s seis da manh e Judy esquentou para ele um pouco de pho, a sopa de talharim fininho que os vietnamitas tomam no desjejum. Em seguida, vestiu sua roupa mais elegante, um conjunto Armani azul-marinho de saia curta. Num dia bom ele lhe dava um ar sofisticado, autoritrio e sexy, tudo ao mesmo tempo. Se vou ser despedida, bom que tenha a aparncia de uma pessoa cuja falta vo sentir. Seu corpo doa de tenso ao dirigir o carro para o trabalho. Estacionou na garagem subterrnea do Federal Building e pegou o elevador para o andar do FBI. Foi diretamente para a sala do encarregado. Brian Kincaid estava atrs da mesa enorme, de camisa branca e suspensrios vermelhos. Levantou a cabea para ver quem era. - Bom dia - disse, friamente. - Bom d. .. - com a boca seca, Judy engoliu e comeou de novo. - Bom dia, Brian. Leu meu bilhete? - Li, sim. Obviamente ele no ia facilitar as coisas. pgina 108 Judy foi incapaz de imaginar algo diferente para dizer, e limitou-se, portanto, a ficar olhando para ele e a esperar. Ao cabo de algum tempo ele falou: - Seu pedido de desculpas foi aceito. Ela sentiu-se fraca de to aliviada. - Muito obrigada. - Pode transferir suas coisas pessoais para a sala do Terrorismo Domstico. - OK - havia destinos piores, refletiu ela. Havia diversas pessoas de quem gostava no grupo do Terrorismo Domstico. Comeou a relaxar. Kincaid acrescentou: - Comece a trabalhar no Martelo do den imediatamente. Precisamos dizer qualquer coisa ao governador. Judy ficou surpresa. - Voc vai falar com o governador? - Com o secretrio dele - Brian verificou uma anotao em cima da mesa. - Um certo Sr. Albert Honeymoon. - J ouvi falar dele - Honeymoon era a mo direita do governador. O caso ento assumira um perfil mais destacado, deduziu Judy. - Quero seu relatrio amanh de noite. O que praticamente no lhe assegurava tempo para fazer qualquer progresso, tendo em vista o pouco que tinha para comear. O dia seguinte era uma quarta-feira. - Mas o prazo termina na sexta. - O encontro com Honeymoon na quinta-feira. - Vou lhe arranjar algo de concreto para dar a ele. - Voc vai poder entregar pessoalmente. O Sr. Honeymoon insiste em falar com a pessoa que ele considera que esteja realmente na ponta da cadeia de comando. Temos que estar no gabinete do governador, em Sacramento, ao meio-dia em
ponto. - Uau. OK. - Alguma pergunta? Ela sacudiu a cabea. - Vou comear agora. pgina 109 Quando saiu, sentia-se feliz por no ter perdido o emprego mas apreensiva com a notcia de que teria que se reportar ao assistente do governador do estado. No era provvel que conseguisse pegar quem estava por trs daquela ameaa em apenas dois dias, de modo que parecia destinada a relatar o prprio fracasso. Esvaziou a gaveta na sala do Crime Organizado Asitico e carregou suas coisas at o Terrorismo Domstico, no fim do corredor. O novo supervisor, Matt Peters, destinou-lhe uma mesa. Ela conhecia todos os agentes, que a cumprimentaram pelo sucesso no caso dos irmos Foong, mesmo que em tom contido, j que todo mundo sabia da sua briga com Kincaid na vspera. Peters designou um jovem agente para trabalhar com ela no caso do Martelo do den. Era Raja Khan, um indiano com diploma de mestre em administrao e que falava muito depressa. Tinha vinte e seis anos. Judy ficou satisfeita. Embora inexperiente, era inteligente e perspicaz. Ela o instruiu sobre o caso e mandou que verificasse a Campanha Califrnia Verde. - Seja bonzinho - aconselhou. - Diga que no acredita que estejam envolvidos, mas que precisa eliminar qualquer dvida. - O que estou procurando? - Um casal: um homem, talvez trabalhador braal, de cerca de quarenta e cinco anos, e que pode ser analfabeto, e uma mulher instruda, com cerca de trinta anos, que provavelmente dominada por ele. Mas no creio que os encontre l. Seria fcil demais. - A alternativa . - A coisa mais til que voc pode fazer conseguir os nomes das pessoas que trabalham na organizao, pagas ou voluntrias, e cotej-las com o nosso banco de dados para ver se alguma tem registro de atividade criminosa ou subversiva. - Deixe comigo - disse Raja. - O que que voc vai fazer? - Vou estudar terremotos. pgina 110 *** Judy estivera em um terremoto importante. O terremoto de Santa Rosa causou seis milhes de dlares de prejuzos - no muito, comparando-se com o valor que essas coisas costumam atingir - e fora sentido em uma rea relativamente pequena de trinta e um mil quilmetros quadrados. A famlia Maddox nesse tempo morava em Marin, ao norte de San Francisco, e Judy estava no primeiro grau. Foi um tremor
pequeno, sabia agora. Mas naquele tempo tinha seis anos de idade e lhe parecera o fim do mundo. Primeiro ouviu-se um barulho que lembrava um trem, mas muito de perto, e ela acordou depressa e olhou em torno do quarto de dormir, luz clara da madrugada, procurando a origem do barulho, morta de medo. Em seguida, a casa comeou a tremer. A luminria do teto, com franjas cor-de-rosa, balanava violentamente de um lado para o outro. Sobre a mesinha-de-cabeceira, Os melhores contos de fadas saltou no ar como um livro mgico e desceu aberto no "Pequeno polegar", a histria que Bo lera para ela na noite anterior. Sua escova de cabelo e o estojo de pintura de brinquedo danavam em cima do tampo de frmica da cmoda. O cavalo de madeira balanou furiosamente, sem ter ningum montado. Uma fileira de bonecas caiu da prateleira, como se quisessem mergulhar no tapete, e Judy achou que elas tinham ganho vida, como brinquedos de uma fbula. At que por fim encontrou a voz e gritou: "PAPAI! ! !" Do quarto ao lado ouviu o pai praguejar e depois o barulho surdo dos ps dele batendo no cho. O barulho e os tremores pioraram, e Judy ouviu a me chorar. Bo tentou girar a maaneta da porta do quarto da filha mas no conseguiu. A menina ouviu outro baque quando o pai meteu o ombro na porta, que no cedeu. A janela rompeu-se e os estilhaos de vidro caram para o lado de dentro, acumulando-se na cadeira onde a roupa com que iria escola na manh seguinte estava cuidadosamente dobrada: saia cinza, blusa branca, suter verde com decote em V, roupa ntima azul-marinho e meias brancas. O cavalo de madeira balanou tanto que caiu em cima da casa de bonecas, esmagando o telhado. Mas Judy sabia que o telhado da sua casa de verdade podia ser esmagado com a mesma facilidade. O retrato emoldurado de um menino mexicano de bochechas rosadas soltou-se do gancho na parede, saiu voando e a atingiu na cabea. Ela gritou de dor. pgina 111 Foi nesta hora que a cmoda comeou a andar. Era uma velha cmoda de pinho, com a frente cncava, que sua me comprara numa loja de mveis usados e pintara de branco. Tinha trs gavetas e se apoiava nas pernas curtas que terminavam em patas como as de um leo. A princpio pareceu danar no mesmo lugar, incansavelmente apoiada nos quatro ps. Depois deslizou de um lado para o outro, como uma pessoa hesitando, nervosa, em uma porta. At que, por'fim, comeou a dirigir-se para Judy. Ela gritou de novo. A porta do quarto sacudia enquanto Bo tentava quebr-la. A cmoda foi avanando aos poucos na direo dela. Judy teve esperana de que o tapete detivesse seu avano, mas a cmoda simplesmente foi empurrando o tapete com as patas de leo. A cama sacudiu com tanta violncia que Judy caiu. A poltrona j estava a poucos centmetros dela quando parou. A gaveta do meio abriu-se como se fosse uma boca aberta, pronta para engolir a menina. Judy gritou com toda a fora.
A porta estilhaou-se e Bo entrou. A o terremoto cessou. *** Trinta anos mais tarde ainda era capaz de sentir o terror que a dominara enquanto o mundo desmoronava em torno dela. Passou a sentir medo de fechar a porta do quarto de dormir durante muitos anos depois daquilo e at hoje tinha medo de terremotos. Na Califrnia, sentir o solo se mover em um tremor de pequena intensidade era uma coisa muito comum, mas Judy nunca conseguira realmente se acostumar. E quando sentia a terra tremer, ou via pela televiso imagens de prdios desmoronados, o medo que corria pelas suas veias como uma droga no era o medo de ser esmagada ou de morrer num incndio e sim o pavor cego de uma garotinha cujo mundo de repente comeara a cair. pgina 112 Ainda estava muito tensa naquela noite, ao entrar no sofisticado ambiente do Masa's, usando um vestido justo de seda preta e o colar de prolas que Don Riley lhe dera no Natal, quando moravam juntos. Don pediu um borgonha branco chamado Corton Charlemagne, mas bebeu a garrafa quase sozinho: Judy gostava do seu sabor estimulante, mas no se sentia tranqila bebendo lcool quando levava uma pistola semi-automtica carregada com munio de nove milmetros na bolsa de verniz preto. Ela contou a Don que Brian Kincaid aceitara seu pedido de desculpas e permitira que retirasse o pedido de demisso. - Ele no tinha outra sada - comentou Don. - Recusar seria o mesmo que despedir voc. E no ficaria nada bem para ele perder uma das melhores agentes no primeiro dia em que substituiu o enCarregado da agncia de San Francisco. - Talvez voc tenha razo - disse Judy, pensando, no entanto, que era fcil para Don ser sbio depois do caso passado. - Claro que estou com a razo. - Lembre-se de que Brian preparou-se to bem para a aposentadoria que pode sair do Bureau confortavelmente a qualquer momento que queira. - , mas ele tem o seu orgulho. Imagine s na hora de explicar ao quartel-general como conseguiu deixar voc ir embora. "Ela disse: `V se foder, Kincaid"." Ao que Washington ir contrapor: "E da, o que voc ? Um padre? Nunca ouviu um agente dizer isso antes?" Nada disso. Kincaid faria papel de bobo se recusasse seu pedido de desculpas. - Acho que sim. - De qualquer forma, sinto-me verdadeiramente feliz por saber que em breve estaremos trabalhando juntos de novo - ele levantou o copo. - A muitos outros desempenhos brilhantes da excelente equipe formada pelo assistente de promotor federal Don Riley e p Maddox. pgina 113
Ela bateu o copo no dele e tomou um gole de vinho. Conversaram sobre o caso durante o jantar, rememorando os erros cometidos, as surpresas feitas defesa, os momentos de tenso e triunfo. Na hora do caf, Don perguntou: - Voc sente falta de mim? Judy franziu a testa. Seria cruel dizer que no, e, de qualquer modo, no estaria falando a verdade. Mas no queria encoraj-lo falsamente. - Sinto falta de algumas coisas - respondeu. - Gosto quando voc engraado e inteligente. Sentia falta tambm de ter um corpo quente ao seu lado durante a noite, mas no ia lhe dizer isto. - Sinto falta de falar sobre o meu trabalho - disse ele - e tambm de ouvir voc falando sobre o seu. - Acho que agora eu converso com Bo. - Sinto falta dele tambm. - Ele gosta de voc. Acha que o marido ideal. .. - Eu sou, eu sou! ... para uma mulher que trabalha no FBI. Don deu de ombros. - Isso j me basta. Judy sorriu. - Talvez voc e o Bo devessem se casar. - Ho, ho - ele pagou a conta. - Judy, tem uma coisa que eu quero lhe dizer. - Estou ouvindo. - Acho que estou pronto para ser pai. Por alguma razo aquilo a irritou. - O que acha que eu devo fazer, gritar oba e abrir as pernas? Ele se surpreendeu. - Quer dizer... bem, eu achava que voc queria um compromisso srio. pgina 114 - Compromisso? Don, eu s queria que voc no transasse com a sua secretria, e nem isso voc conseguiu fazer! Ele pareceu mortificado. - OK, no se irrite. Eu s estava tentando lhe dizer que mudei. - E agora espera que eu volte correndo como se nada tivesse acontecido? - Acho que ainda no entendo voc. - Provavelmente jamais entender. - o evidente sofrimento dele a abrandou. - Vamos, levarei voc em casa - quando moravam juntos era sempre ela quem dirigia na volta para casa depois de jantarem fora. Deixaram o restaurante quietos, num silncio contrafeito. No carro ele disse: - Achei que podamos pelo menos conversar a esse respeito. - Don, o advogado, negociando. - Podemos conversar. Mas como posso lhe dizer que meu corao est frio? - O que aconteceu com Paula... foi o pior erro de toda a minha vida. Judy acreditou nele. Don no estava bbado, apenas alto o suficiente para dizer o que sentia. Ela suspirou. Queria v-lo feliz. Gostava dele,
e detestava v-lo sofrendo. Aquilo tambm , a magoava. Parte dela queria conseguir dar-lhe o que ele queria. - Tivemos alguns bons momentos juntos - disse Don, pegando na coxa dela por cima do vestido de seda. - Se me apalpar enquanto eu estiver dirigindo jogo voc para fora do carro. Don sabia que ela era capaz de fazer aquilo. - Como queira - ele tirou a mo. Um momento depois, desejou no ter sido to rude. No era uma coisa ruim, ter a mo de um homem na sua coxa. Don - entusiasmado, mas pouco imaginativo - no era o melhor amante do mundo, mas era melhor do que nada, e nada era o que Judy tinha, desde que o deixara. pgina 115 Por que no tenho um homem? No quero envelhecer sozinha. Haver alguma coisa de errado em mim? Puxa vida, claro que no. Um minuto mais tarde ela encostou o carro diante do prdio dele. - Obrigada, Don - agradeceu. - Por uma grande atuao na promotoria e por um timo jantar. Ele inclinou-se para beij-la. Judy ofereceu-lhe o rosto, mas Don beijou-a nos lbios. Para no fazer daquilo um cavalo de batalha, ela deixou. O beijo dele perdurou at que ela separou-se. Don disse: - Entre um pouco. Preparo um cappuccino para voc. A expresso de desejo nos olhos dele quase fez com que ela cedesse. Que mal tinha? Podia muito bem pr a arma no cofre dele, beber um conhaque duplo, que lhe aquecesse o corao e passar a noite nos braos de um homem decente que a adorava. - No - disse, com firmeza. - Boa noite. Ele a encarou por um longo momento, todo o sofrimento que sentia expresso nos olhos. Ela sustentou o seu olhar, envergonhada e arrependida, mas resoluta. - Boa noite - disse Don por fim. Ele saltou e fechou a porta do carro. Judy afastou-se e quando olhou pelo retrovisor viu-o de p na calada, a mo meio erguida numa espcie de saudao. Avanou um sinal vermelho e virou na primeira esquina. E finalmente sentiu-se sozinha de novo. *** Quando chegou em casa, Bo ria, assistindo ao programa de Conan O'Brien. - Esse cara me faz sair do srio - disse. Assistiram ao monlogo at o intervalo comercial quando Bo desligou a televiso. - Resolvi um assassinato hoje - disse ele. - O que que me diz disso? pgina 116 Judy sabia que ele tinha diversos casos de homicdio no resolvidos.
- Qual? - O estupro seguido de assassinato no Telegraph Hill. - Quem foi? - Um sujeito que j estava na cadeia. Foi preso por perturbar meninas no parque. Tive um palpite e revistei o apartamento dele. Tinha um par de algemas como as da polcia, mas negou tudo e no pude peg-lo. Hoje peguei o resultado do seu teste de DNA no laboratrio. o mesmo do smen encontrado no corpo da vtima. Contei-lhe isto e ele confessou. Bingo. - Parabns! - ela o beijou no topo da cabea. - E voc? - Bem, ainda tenho um emprego, mas ainda resta ver se continuo tendo uma carreira. - Voc tem uma carreira, deixa disso. - No sei no. Se fui rebaixada depois de mandar os irmos Foong para a cadeia, o que faro comigo se eu fracassar? - Voc sofreu um revs. Algo apenas temporrio. Vai se recuperar, eu garanto. Ela sorriu, lembrando do tempo em que achava que no havia nada que o pai no fosse capaz de fazer. - Bem, no progredi muito com o meu caso. - Ontem noite voc achava que no chegava a ter um caso de verdade. - Hoje j no estou to segura. A anlise lingstica mostrou que os envolvidos so pessoas perigosas, sejam quem forem. - Mas no podem causar um terremoto. - No sei. Bo ergueu as sobrancelhas. - Acha possvel? - Passei hoje praticamente o dia inteiro tentando descobrir. Falei com trs especialistas e tive trs respostas diferentes. - Cientistas so assim mesmo. - O que eu realmente queria era que me dissessem firmemente que no possvel. Mas um disse "improvvel", outro disse que a possibilidade era "insignificante", e o terceiro disse que seria possvel com um artefato nuclear. pgina117 - Ser que essa gente - como mesmo que se chamam? - O Martelo do den. - Eles teriam uma bomba nuclear? - possvel. So inteligentes, determinados, srios. Mas se tivessem, por que iriam falar de terremotos, em vez de nos ameaar direto com a bomba? - Tem razo - concordou Bo, pensativo. - A ameaa seria igualmente aterrorizante e muito mais fcil de acreditar. - Mas quem pode dizer como a cabea dessa gente funciona? - Qual o seu prximo passo? - Tenho mais um cientista para ver, um sujeito chamado Michael Quercus. Os outros todos dizem que ele um tipo meio arredio, mas a
maior autoridade em causas de terremotos. Ela j tentara falar com Quercus. No fim da tarde tocara a campainha do seu apartamento. Ele lhe dissera, pelo interfone, que marcasse uma entrevista. - Talvez voc no tenha me ouvido - dissera ela. - Eu sou do FBI. - Isso significa que no tem de marcar entrevistas? Ela praguejara baixinho. Era uma agente da Lei, e no uma vendedora. - Geralmente significa - respondera. - A maioria das pessoas acha que nosso trabalho importante demais para esperar. - No, no acha no - ele replicara. - A maioria das pessoas tem medo de vocs, por isto que deixam que entrem sem marcar hora. Telefone para mim. Meu nome est na lista de assinantes. - Estou aqui devido a uma questo de segurana pblica, professor. Disseram-me que o senhor um perito que pode dar informaes cruciais que ajudaro no nosso trabalho de proteger as pessoas. Desculpe por no ter tido uma oportunidade de telefonar marcando hora, mas agora que estou aqui, ficaria realmente agradecida se o senhor me recebesse por alguns minutos. No houve resposta e ela percebeu que ele desligara. pgina 118 Voltara para o escritrio fervendo de raiva. No marcava entrevistas: agentes do FBI raramente faziam isso. Preferia pegar as pessoas desprevenidas. Quase todo mundo que entrevistava tinha algo para esconder. Quanto menos tempo tinham para se preparar, maior era a probabilidade de cometerem um erro revelador. Mas Quercus estava irritantemente certo: no tinha direito de se impor. Engolindo o orgulho, telefonara para ele e marcara uma entrevista para o dia seguinte. Decidiu no contar a Bo nada daquilo. - O que eu realmente preciso - disse - de uma pessoa que me explique os aspectos cientficos de tal modo que eu possa concluir se um terrorista pode ou no causar um terremoto. - E voc precisa encontrar essas pessoas do tal Martelo do den e prend-las por fazer ameaas. Algum progresso nesta parte? Ela sacudiu a cabea. - Mandei Raja entrevistar todo mundo da Campanha Califrnia Verde. Ningum corresponde ao perfil de quem procuro. Ningum tem ficha na polcia ou registro de atividades subversivas; na verdade, no h nada de suspeito l. Bo aquiesceu. - Sempre foi improvvel que os criminosos tivessem dito a verdade sobre quem eram. Mas no fique desencorajada. Voc s est no caso h um dia e meio. - verdade, mas isso deixa apenas dois dias inteiros at o prazo fatal. E eu tenho que ir na quinta-feira a Sacramento a fim de fazer um relatrio para o gabinete do governador. - melhor comear cedo amanh - ele se levantou do sof. Pai e filha subiram a escada. Judy parou na porta do seu quarto.
- Lembra daquele terremoto, quando eu tinha seis anos? Ele fez que sim. - No foi muito forte, pelos padres da Califrnia, mas voc ficou louca de medo. pgina 119 Judy sorriu. - Pensei que fosse o fim do mundo. - O tremor deve ter afetado um pouco a casa, porque a porta do seu quarto empenou, e eu quase quebrei o ombro na tentativa de derrub-la. - Pensei que tivesse sido voc quem fez cessar o terremoto. Acreditei nisso por muitos anos. - Depois do terremoto voc passou a ter pavor daquela cmoda de que sua me gostava tanto. No queria que ela continuasse na nossa casa. - Pensei que ela quisesse me comer viva. - No final transformei-a em lenha - subitamente Bo pareceu triste. Gostaria de poder viver aqueles anos de novo. Ela sabia que ele estava pensando em sua me. - - disse. - Boa noite, filha - Noite, Bo. *** Enquanto dirigia ao longo da Bay Bridge na manh da quarta-feira, rumando para Berkeley, Judy foi especulando sobre a aparncia de Michael Quercus. Seu jeito irritadio sugeria um professor mal-humorado, de ombros cados e usando roupa barata, olhando para o mundo, irritado, atravs de culos que insistiam em escorregar pelo nariz. Ou podia ser tambm um figuro acadmico, metido num terno de listras, procurando seduzir as pessoas que podiam doar dinheiro para a universidade e contemplando com desdm quem no lhe fosse til. Parou o carro sombra de uma magnlia na avenida Euclid. Ao tocar a campainha teve a sensao horrvel de que ele podia encontrar outra desculpa para mand-la embora, mas quando disse o nome ouviu um zumbido e a porta se abriu. Subiu dois lances de escada e viu que a porta estava aberta. Foi entrando. O apartamento era pequeno e barato. A firma dele no podia estar dando muito dinheiro. Passou por um vestbulo e viu-se na sala de estar que era ao mesmo tempo escritrio. pgina 120 Ele estava sentado mesa, de cala cqui, botas de caminhar bege e uma camisa plo azul-marinho. Michael Quercus no era nem um professor mal-humorado, tampouco um figuro acadmico, ela viu imediatamente. Ele era um gato: alto, atltico, bonito, com o sujeitos que so to grandes, bonitos e confiantes que pensam que podem fazer tudo quanto querem. Ele tambm ficou surpreso. - Voc a agente do FBI? - perguntou.
Ela apertou-lhe a mo com firmeza. - Estava esperando alguma outra pessoa? Michael Quercus deu de ombros. - Voc no se parece com Efrem Zimbalist. Zimbalist era o ator que fazia o papel do inspetor Lewis Erskine numa antiga srie de televiso chamada O FBI. Judy respondeu, delicadamente: - Trabalho como agente do FBI h dez anos. Pode imaginar o nmero de pessoas que j fez essa piada? Para sua surpresa, ele abriu um largo sorriso. - Tudo bem, voc me pegou. Melhor assim. Ela reparou numa foto em um porta-retrato em cima da escrivaninha dele. Era de uma bela ruiva com uma criana nos braos. Geralmente todo mundo gosta de falar sobre os filhos. - Quem ? - arriscou ela. - Ningum importante. Quer ir direto ao ponto? Esquea as amabilidades. Ela tomou ao p da letra o que ele dissera e falou: - Quero saber se um grupo terrorista pode desencadear um terremoto. - Vocs souberam de alguma ameaa? Sou eu quem deve fazer as perguntas. - Voc no soube? Foi comentada no rdio. Ouve o programa de John Truth? Ele sacudiu a cabea, negativamente. - srio? pgina 121 - exatamente o que preciso estabelecer. - OK. Bem, a resposta curta sim. Judy sentiu um arrepio de medo. Quercus parecia absolutamente seguro. Quanto a ela, tinha esperado uma resposta diametralmente oposta. - Como? - Peque uma bomba nuclear, coloque no fundo de uma mina bem funda e detone. Mas voc provavelmente quer uma hiptese mais realista. - Sim. Faa de conta que voc quisesse desencadear um terremoto. - Oh, eu seria capaz mesmo. Judy perguntou-se se ele no estaria se vangloriando. - OK - ele abaixou-se e pegou embaixo da escrivaninha um pedao pequeno de madeira e um tijolo comum. Obviamente mantinha aquilo ali justamente com a finalidade de ilustrar aquela explicao. Ps a madeira em cima da escrivaninha e o tijolo em cima da madeira. Depois levantou uma ponta da madeira lentamente at que o tijolo escorregou e caiu em cima do tampo da mesa. - O tijolo desliza quando a gravidade suplanta a frico que o mantinha imvel - disse ele. - Tudo bem at aqui? - Claro. - Uma falha como a de Santo Andr um lugar onde duas lminas adjacentes da crosta terrestre deslocam-se em direes diferentes. Imagine dois icebergs se esfregando um no outro. Eles no deslizam, pelo
contrrio, ficam presos. Depois, enquanto estiverem presos, a presso no sentido de separ-los vai aumentando lenta mas constantemente, ao longo dos anos. - E como isso resulta em um terremoto? - Acontece algo que libera toda a energia acumulada - ele levantou de novo uma ponta da madeira. Desta vez parou pouco antes do tijolo comear a escorregar. - Diversas sees da falha de Santo Andr esto assim? prontas para deslizar, a qualquer dcada - Agora bata com a rgua bem na frente do tijolo. pgina 122 Ela bateu e o tijolo comeou a deslizar. Quercus agarrou-o, impedindo que casse. - Quando a madeira est inclinada, basta uma batidinha com uma rgua de plstico para fazer o tijolo mover-se. E num ponto onde a falha de Santo Andr estiver sob maior presso, um empurrozinho talvez seja o quanto baste para soltar as placas. A elas deslizam e toda a energia acumulada sacode a terra. Quercus podia ser rspido, mas uma vez que comeava a falar sobre a sua especialidade, dava prazer ouvi-lo. Seu pensamento era claro e ele explicava com facilidade, sem o mais leve trao de arrogncia. A despeito do quadro ameaador que estava pintando, Judy tinha de confessar que era prazeroso conversar com ele, no apenas por ser um homem bonito. - isso que acontece na maioria dos terremotos? - Acredito que sim, embora outros sismlogos possam discordar. H vibraes naturais que se propagam pela crosta terrestre de vez em quando. A maioria dos terremotos provavelmente causada pela vibrao certa no lugar adequado no momento oportuno. Como que vou explicar tudo isso ao Sr. Honeymoon? Ele vai querer respostas diretas, sim ou no. - Ento, como isso ajuda os nossos terroristas? - Eles precisam de uma rgua e saber onde bater com ela. - Qual o equivalente da rgua na vida real? Uma bomba nuclear? - No precisa nada to poderoso. S teriam que enviar uma onda de choque atravs da crosta terrestre, mais nada. Se souberem exatamente onde a falha vulnervel, podem causar o terremoto com uma carga de dinamite colocada com preciso. - E qualquer um pode conseguir uma carga de dinamite, se estiver realmente a fim. - A exploso teria que ser subterrnea. Acho que a perfurao necessria para colocar a dinamite l embaixo seria o grande desafio para um grupo terrorista. Judy perguntou-se se o tal trabalhador braal imaginado por Simon Sparrow no seria operador de um equipamento de perfurao. Esses operadores certamente precisariam de uma licena especial para trabalhar. Numa rpida verificao com o Departamento de Veculos a Motor poderia conseguir uma lista de todos os operadores registrados na Califrnia. No podia haver muitos.
pgina 123 Quercus continuou. - Eles obviamente precisariam de um perito em equipamento de perfurao e um pretexto qualquer para conseguir permisso. No eram problemas intransponveis. - realmente to simples assim? - quis saber Judy. - Olha, no estou lhe dizendo que funcionaria. Estou dizendo que seria possvel. Ningum jamais saber ao certo antes de tentar. Posso lhe dar noes de como essas coisas acontecem, mas voc teria que se arriscar com uma avaliao prpria. Judy concordou, balanando a cabea. Usara quase as mesmas palavras na noite anterior para dizer a Bo o que precisava. Quercus podia agir como um panaca de vez em quando mas como o prprio Bo diria, todo mundo precisa de um panaca vez por outra. - Quer dizer ento que saber onde a carga deve ser colocada tudo? - . - Quem tem essa informao? - As universidades, o gelogo do estado... eu. Todos ns temos essa informao. - Algum pode se apossar dela? - No segredo, embora seja preciso algum conhecimento cientfico para interpretar os dados. - Ento, algum no grupo terrorista teria que ser sismlogo. - Sim, podia ser estudante. Judy pensou na mulher de cerca de trinta anos, instruda, que digitara a mensagem, segundo a teoria de Simon. Podia ser universitria. Quantos estudantes de geologia existiriam ali na Califrnia? Quanto tempo levaria para encontrar e entrevistar cada um? pgina 124 Quercus continuou: - E ainda existe um outro fator: as mars da crosta terrestre. Os oceanos se movem sob a influncia gravitacional da Lua e a crosta slida da Terra sujeita s mesmas foras. Duas vezes por dia abre-se uma janela ssmica, quando a linha da falha est submetida presso extra das mars; quando mais provvel - ou mais fcil - a ocorrncia de um terremoto. - possvel que algum tenha obtido esses dados por seu intermdio? - Bem, meu negcio vend-los - ele deu um sorriso melanclico. Mas, como pode ver, meu negcio no est me enriquecendo. Tenho um contrato, com uma grande companhia de seguros, e isto que paga o aluguel, mas, lamentavelmente, s. Minhas teorias sobre janelas ssmicas fazem de mim uma espcie de dissidente, algo que odiado neste pas. O tom de irnico desdm voltado para si mesmo foi surpreendente, e Judy comeou a gostar ainda mais dele. - Algum pode ter conseguido essa informao sem o seu conhecimento. Por acaso voc foi roubado nos ltimos tempos? - Nunca.
- Seus dados podem ter sido copiados por um amigo ou parente? - Acho que no. Ningum fica aqui nesta sala sem que eu esteja presente. Ela pegou a foto na escrivaninha. - Sua mulher, ou namorada? Ele pareceu ficar aborrecido e tirou a foto da mo dela. - Estou separado de minha mulher e no tenho namorada. - mesmo? - Judy j tinha tudo o que precisava dele, e levantou-se. Muito obrigada por ter me concedido tanto tempo, professor. - Por favor, chame-me de Michael. Gostei de falar com voc. Ela ficou surpresa. Ele acrescentou: pgina 125 - Voc compreende depressa. Fica mais divertido. - Bem... que bom. Ele a acompanhou at a porta do apartamento e apertou-lhe a mo. Tinha mos grandes, mas foi surpreendentemente gentil. - Qualquer coisa mais que queira saber, terei muito prazer em ajud-la. Ela arriscou uma piada. - Desde que eu marque hora antes, certo? Ele no sorriu. - Certo. Atravessando a baa na volta, Judy concluiu que o perigo agora estava claro. O grupo terrorista, em princpio, era capaz de causar um terremoto. Seria preciso dispor de dados exatos sobre pontos crticos na linha da falha e talvez sobre as janelas ssmicas, mas isso poderia ser obtido. Era preciso que no grupo 7 houvesse algum capaz de interpretar os dados. E precisavam tambm de um modo pelo qual enviassem ondas de choque atravs da terra. Seria a tarefa mais difcil, talvez, mas nada que estivesse fora de questo. Judy tinha diante de si a desagradvel tarefa de dizer ao assistente do governador que a coisa toda era horrivelmente possvel. *** pgina 126 5 Priest acordou ao raiar do dia na quinta-feira. Ele geralmente acordava cedo, o ano todo. No precisava de muito sono, a menos que estivesse indo muito a festas, o que era raro hoje em dia. Mais um dia. Do gabinete do governador no vinha nada seno um silncio irritante. Agiam como se no tivesse havido ameaa. Assim como o resto do mundo, de um modo geral. O Martelo do den raramente era mencionado nos
noticirios que Priest ouvia no rdio do carro. Apenas John Truth os levara a srio, e ficava instigando o governador em seu programa dirio. At a vspera, tudo o que o governador dizia era que o FBI estava investigando. Mas no ltimo programa, John Truth dissera que o governador prometera uma declarao para hoje. Priest ficou entusiasmado. Mas se na declarao ele no cedesse exigncia feita, Priest teria que causar um terremoto. E no sabia ao certo se conseguiria. Melanie era convincente quando falava sobre a falha e o que seria preciso para ela deslizar. S que ningum jamais tentara aquilo. Mesmo ela, admitia que no podia estar cem por cento certa de que fosse funcionar. E se falhasse? E se funcionasse e eles fossem apanhados? E se funcionasse e ele morresse no terremoto - quem iria cuidar dos integrantes da comunidade e das crianas? Ele rolou sobre o prprio corpo. A cabea de Melanie repousava no travesseiro ao seu lado. Estudou o seu semblante em repouso. A pele era muito branca e os seios quase transparentes. Uma mecha do cabelo comprido, castanho intenso, caa sobre o rosto. Ele abaixou um pouco o lenol e contemplou-lhe os seios, pesados e suaves. Pensou em acord-la. Introduziu a mo sob a coberta e a acariciou, alisando primeiro a barriga e depois o tringulo de plos avermelhados. Ela se remexeu, engoliu, virou-se e se afastou. pgina 127 Priest sentou direito. Encontrava-se na casa de um nico cmodo que tinha sido seu lar nos ltimos vinte e cinco anos. Assim como a cama, tinha um sof velho na frente da lareira e uma mesa a um canto, com uma grossa vela amarela, num castial. No havia luz eltrica. Nos primeiros dias da comunidade, a maioria das pessoas morava em cabanas como aquela, e as crianas dormiam todas juntas em um alojamento coletivo. Mas com o passar dos anos, alguns casais permanentes tinham se formado e construdo cabanas maiores, com cmodos separados para os filhos. Priest e Star conservaram suas casas individuais, mas a tendncia era contrria. O melhor seria no lutar contra o inevitvel: Priest aprendera isso com Star. Havia agora seis casas de famlia assim como as quinze cabanas originais. E atualmente a comunidade era constituda por vinte e cinco adultos e dez crianas, mais Melanie e Dusty. Uma cabana estava vazia. Aquele ambiente lhe era to familiar quanto a palma da sua mo, mas ultimamente os objetos to bem conhecidos tinham adquirido uma nova aura. Durante anos seus olhos passaram por eles sem registr-los: o retrato de Priest pintado por Star pelo seu trigsimo aniversrio; o narguil rebuscadamente decorado deixado por uma garota francesa chamada Marie-Louise; a nada slida prateleira que Flower fizera na aula de trabalhos na madeira; o engradado de frutas em que guardava sua roupa. Agora que sabia que podia ter que ir embora, cada coisa despretensiosa daquelas parecia especial e maravilhosa, e Priest sentia um n na garganta s de olhar. Seu quarto era como um lbum de fotografias em que cada foto desencadeava uma srie de lembranas: o nascimento de Ringo; o
dia em que Smiler quase se afogou no rio; quando fez amor com as gmeas Jane e Eliza; o dia de outono, quente e seco, quando colheram a primeira vindima; o sabor da safra de 89. Quando olhava volta e pensava nas pessoas que queriam lhe tirar aquilo tudo, sentia-se tomado por uma raiva to forte que o queimava por dentro como cido sulfrico. pgina 128 Pegou uma toalha, calou as sandlias e saiu, nu. Spirit, seu cachorro, saudou-o com uma fungadela silenciosa. Era uma manh clara e fria, com fiapos de nuvens altas no cu azul. O sol ainda no aparecera sobre as montanhas e o vale estava na sombra. No havia mais ningum por perto. Descendo a colina, ele atravessou a pequena vila, seguido pelo cachorro. Embora o esprito comunal ainda fosse forte, as pessoas tinham personalizado suas casas com toques individuais. Uma mulher plantara flores e pequenos arbustos em toda a volta da sua, como conseqncia, Priest a batizara de Garden. Dale e Poem, que eram um casal, tinham deixado os filhos pintarem as paredes externas, e o resultado foi uma mixrdia colorida. Um homem chamado Slow, que era retardado, tinha construdo uma varanda torta, sobre a qual se via uma oscilante cadeira de balano feita em casa. Priest sabia que aquele lugar podia no ser bonito aos olhos de outras pessoas. Os caminhos eram lamacentos, as construes, alm de muito frgeis, eram localizadas inteiramente ao acaso. No havia uma lgica no zoneamento - o dormitrio das crianas ficava bem do lado do depsito de vinho, a carpintaria situava-se no meio das cabanas. As privadas eram transferidas todos os anos, mas de nada adiantava: onde quer que estivessem situadas, podia sentir-se seu cheiro num dia quente. Mesmo assim, tudo o que dizia respeito quele lugar aquecia o corao de Priest. E quando olhava mais para longe e via as florestas galgando as encostas ngremes das montanhas at os picos azulados da Sierra Nevada, tinha uma vista to bonita que doa. Mas agora, sempre que olhava para aquilo, a idia de que podia perder tudo o feria com a fora de uma punhalada. pgina 129 Ao lado do rio, um caixote de madeira em cima de uma pedra grande e arredondada continha sabo, lminas baratas e um espelho de mo. Ele ensaboou o rosto e se barbeou, mergulhou na corrente fria e tomou banho. Secou-se logo depois, esfregando-se bruscamente com a toalha de pano spero. No tinham gua encanada ali. No inverno, quando era frio demais para tomar banho no rio, tinham um banho comunal noite duas vezes por semana. Aqueciam, ento, grandes barris de gua na cozinha coletiva para se lavarem uns aos outros: era bastante sexy. Mas no vero s bebs tinham gua morna. Subiu de volta a colina e vestiu rapidamente a cala-jeans azul e a camisa de trabalho que sempre usava. Dirigiu-se cozinha e entrou. A
porta no estava trancada: no havia portas com fechadura na comunidade. Arrumou a lenha no fogo, acendeu o fogo e ps a gua do caf para esquentar. em seguida saiu de novo. e Gostava de perambular enquanto os outros estavam deitados. Sussurrava seus nomes ao passar por onde moravam: Moon. Chocolate. Giggle. Imaginava cada um deitado l dentro, dormindo. Apple, uma garota gorda, deitada de costas com a boca aberta, roncando; Juice e Alaska, duas mulheres de meia-idade, entrelaadas; as crianas no alojamento infantil - os seus filhos, Flower, Ringo e Smiler; Dusty, o filho de Melanie; os gmeos, Bubble e Chip, todos de bochechas rosadas e cabelo despenteado... Minha gente. Que possam todos viver aqui para sempre. Passou pela oficina, onde guardavam enxadas, foices e tesouras de poda; o crculo de concreto onde, em outubro, esmagavam as uvas com os ps e o celeiro onde o vinho da safra do ano anterior ficava em imensos tonis de madeira, decantando lentamente, quela altura quase pronto para ser misturado e engarrafado. Parou do lado de fora do templo. Sentiu-se muito orgulhoso. Desde o princpio tinham falado em construir um templo. Por muitos anos parecera um sonho impossvel. Havia sempre muitas outras coisas para fazer - preparar a terra e plantar as videiras, construir celeiros, tratar da horta, da loja comunitria e das lies das crianas. Cinco anos atrs, no entanto, a comunidade pareceu ter atingido um plat. Pela primeira vez, Priest no se preocupou em saber se teriam ou no o que comer no inverno seguinte. No achou mais que uma safra ruim pudesse acabar com eles. No havia nada por fazer na lista de tarefas urgentes que trazia na cabea. Assim, anunciou que estava na hora de construir o templo. pgina 130 E ali estava. Significava muito para Priest. Demonstrava que a sua comunidade tinha amadurecido. No viviam mais da mo para a boca. Podiam se alimentar e ter tempo e recursos sobrando para construir um lugar de culto. Deixaram de ser um bando de hippies que experimentava viver um sonho. O sonho funcionava; tinham provado isto. O templo era o smbolo do triunfo deles. Ele entrou. Era uma estrutura simples de madeira com uma clarabia e sem moblia. Todo mundo se sentava, para orar, de pernas cruzadas, em crculo, no cho de tbuas. Servia tambm como escola e sala de reunies. A nica decorao era uma faixa que Star fizera. Priest no era capaz de ler, mas sabia o que estava escrito: Meditao vida, tudo mais distrao Dinheiro empobrece Casamento a maior das infidelidades Quando ningum tem nada todos tm tudo Fazer o que se gosta a nica lei Eram os Cinco Paradoxos de Baghram. Priest dissera que os aprendera com um guru indiano de quem fora discpulo em Los Angeles, mas na
verdade ele tinha inventado todos os cinco. Nada mau para um sujeito que no sabe ler. Parou no centro do salo por diversos minutos, olhos fechados, as mos balanando soltas ao lado do corpo, concentrando sua energia. No havia nada de insincero naquilo. Ele aprendera tcnicas de meditao com Star, e a coisa realmente funcionava. Sentiu a mente clarear como vinho nos tonis ao decantar as impurezas. Orou para que o corao do governador Mike Robson se abrandasse e ele anunciasse a suspenso da construo de novas usinas de eletricidade na Califrnia. pgina 131 Imaginou o governador, um homem bonito em seu terno escuro e camisa branca, sentado em uma cadeira de couro atrs de uma mesa imponente, e, em sua viso, o governador disse: "Decidi dar a essas pessoas o que elas querem - no apenas para evitar um terremoto, mas porque, seja como for, faz sentido." Aps alguns minutos, a fora espiritual de Priest estava renovada. Ele sentiu-se alerta, confiante e equilibrado. Quando saiu do templo, resolveu dar uma olhada nos parreirais. Originalmente no havia uvas. Quando Star chegou no vale no havia nada seno uma cabana de caa em runas. Por trs anos a comunidade arrastou-se de crise em crise, cindida pelas brigas arrasada pelas borrascas, sustentada apenas por expedies cidade para pedir esmolas. Foi preciso menos de um ano para Priest ser reconhecido como lder, no mesmo plano que Star. Primeiro ele organizou as viagens para esmolar de modo a obter o mximo de eficincia. Iam para uma cidade como Sacramento ou Stockton em uma manh de sbado, quando as ruas estavam coalhadas de gente fazendo compras. Cada um era destinado a uma esquina diferente. Todos eram obrigados a ter uma histria para contar: Aneth dizia que precisava completar o dinheiro da passagem de nibus para a casa dos pais, em Nova York; Song tocava o violo e cantava "There but for Fortune"; Slow devia dizer que no comia havia trs dias; Bones fazia com que as pessoas sorrissem diante de um cartaz que dizia: "Por que mentir? para a cerveja." Mas mendigar foi apenas um expediente temporrio. Sob a direo de Priest, os hippies cortaram uma srie de terraos na encosta da montanha, desviaram um regato para irrigao e plantaram um parreiral. Agora o chardonnay deles era procurado pelos conhecedores. Priest seguiu ao longo das fileiras cuidadosamente cultivadas. Ervas e flores eram plantadas entre as videiras, em parte por serem teis e bonitas, mas principalmente por atrarem joaninhas e vespas que destruam pulges e outros insetos nocivos. pgina 132 No eram usados produtos qumicos: eles confiavam nos mtodos naturais. Cultivavam trevo tambm, pois fixava o nitrognio do ar. E quando aravam o solo, agia como fertilizante natural. As videiras estavam brotando. Maio ia chegando ao fim, de modo que o
perigo anual de que o frio matasse os novos brotos passara. quela altura do ciclo, a maior parte do trabalho consistia em amarrar os brotos s latadas a fim de orientar seu crescimento e prevenir os danos causados pelo vento. Priest aprendera o que sabia sobre vinho durante seus anos de atacadista de bebidas, e Star estudara o assunto nos livros, mas ambos no teriam conseguido xito sem o velho Raymond Dellavalle, um amvel produtor de vinho que os ajudara porque, pelo menos era este o palpite de Priest, gostaria de ter tido uma juventude mais audaciosa. O vinhedo de Priest salvara a comunidade, mas a comunidade salvara a vida de Priest. Ele chegara ali como fugitivo escapando da Mfia, da polcia de Los Angeles e do Imposto de Renda, todos juntos. Abusava da bebida e da cocana, era um homem s, falido e com tendncias suicidas. Fora de carro pela estrada de terra procurando a comunidade, seguindo algumas orientaes de um sujeito que viajava pegando carona e chegara entre as rvores at encontrar um bando de hippies nus, sentados no cho, cantando. Ficara contemplando a cena por muito tempo, fascinado pelo mantra e pela sensao de calma profunda que se desprendia do grupo como a fumaa se levantada uma fogueira. Um ou dois sorriram para ele, mas continuaram o ritual. Priest acabara tirando a roupa, lentamente, como se estivesse em transe, jogando fora o terno escuro, a gravata rosa, os sapatos plataforma e a cueca tipo sunga vermelha e branca. Depois, nu, sentara-se com eles. Ali encontrara paz, uma nova religio, trabalho, amigos. Numa poca em que estava pronto a se lanar com o Plymouth Cuda 440-6 amarelo de um despenhadeiro, a comunidade dera sentido sua vida. pgina 133 Agora nunca mais haveria outro tipo de existncia para ele. Aquele lugar era tudo o que tinha e Priest morreria para defend-lo. E pode ser que eu tenha mesmo de morrer. Ouviria John Truth noite. Se o governador fosse abrir a porta para negociaes ou fizesse qualquer outra concesso, certamente que seria anunciado ao final do programa. Quando saiu na outra ponta do vinhedo, decidiu verificar o vibrador ssmico. Subiu a montanha. No havia estrada, s uma trilha bem usada atravessando a floresta. Seria impossvel que qualquer veculo fosse at a aldeia da comunidade. A uns seiscentos metros das casas, ele chegou numa clareira lamacenta. Estacionados sob as rvores estavam o seu velho OCuda, uma Kombi ainda mais velha, o Subaru laranja de Melanie e a picape da comunidade, um Ford Ranger verde-escuro. A partir dali uma trilha de terra, sinuosa, avanava pouco mais de trs quilmetros atravs da floresta, subindo e descendo as elevaes, desaparecendo dentro de um lamaal aqui e passando por um regato ali at que por fim chegava estrada do condado, com piso de asfalto e duas pistas. Dezesseis quilmetros era a distncia a at a cidade mais prxima, Silver City.
Uma vez por ano toda a comunidade passava um dia inteiro rolando barris de vinho morro acima e por entre as rvores at aquela clareira, onde seriam transportados no caminho de Paul Beale para sua engarrafadora em Napa. Era um grande dia no calendrio deles, que, com um banquete noite e um feriado no dia seguinte, celebravam mais um ano bem-sucedido. A cerimnia se realizava oito meses depois da vindima, de modo que deveria acontecer em mais alguns dias. Este ano, Priest resolvera, dariam a festa no dia seguinte ao dia em que o governador suspendesse a sentena condenando o vale. Em troca do vinho, Paul Beale trazia gneros alimentcios para a cozinha coletiva e mantinha a loja comunitria estocada: roupas, doces e balas, cigarros, papelaria, livros, absorventes, pasta de dentes, tudo de que qualquer pessoa precisasse. O sistema da contabilidade, e no fim de cada ano depositava o dinheiro que sobrava numa conta bancria de cuja existncia s Star e Priest tinham conhecimento. pgina 134 Da clareira, Priest seguiu a trilha por mil e quinhentos metros, bordejando as poas de gua da chuva e ultrapassando, com dificuldade, os troncos cados, depois desviando-se para continuar por um caminho invisvel por entre as rvores. No havia marcas de pneus porque ele tinha cuidadosamente recolocado o tapete de agulhas de pinheiro que formavam o cho da floresta. Chegou a uma depresso e parou. Tudo o que podia ver era uma pilha de arbustos e galhos quebrados fazendo um monte de quase quatro metros de altura, arrumada de modo a lembrar uma fogueira tradicional. Agora s tinha que galgar a pilha e afastar um pouco os galhos para confirmar se o caminho ainda se encontrava ali, sob a camuflagem. No que achasse que viria algum procurar o caminho. O Ricky Granger, que fora contratado para trabalhar com geofones pela Ritkin Seismex em um campo petrolfero no sul do Texas, no tinha nenhuma ligao passvel de ser rastreada com aquele remoto parreiral no condado de Sierra, estado da Califrnia. No entanto, de vez em quando acontecia de uma dupla de mochileiros se perder e vagar pela terra da comunidade - como acontecera com Melanie - e com certeza se qualquer pessoa visse um caminho com um equipamento to caro ali iria estranhar. Por este motivo, Priest e Os Comedores de Arroz se mataram de trabalhar durante duas horas para esconder o caminho. Priest sentia-se absolutamente seguro de que no poderia ser visto nem de cima. Descobriu uma roda e chutou o pneu, exatamente como um ctico comprador de carro usado. Tinha matado um homem por causa daquele veculo. Pensou por um instante na bonita mulher e nos filhos de Mario sem saber se j teriam se convencido de que ele nunca mais voltaria para casa. Em seguida tirou este pensamento da cabea. Queria ter certeza de que o caminho estaria pronto para sair no dia seguinte de manh. Ficava nervoso s de olhar. Sentia mpetos de sair imediatamente, hoje, agora, s para aliviar a tenso. Mas anunciara um prazo fatal e o tempo seria um fator importante. Aguardar era insuportvel. Pensou em entrar e ligar o motor, s para se assegurar de
que tudo estava certo; mas seria tolice. Aquilo era nervosismo burro. pgina 135 O caminho estava legal. O melhor que fazia era afastar-se e s voltar no dia seguinte. Abriu outro pedao da camuflagem e contemplou o prato de ao que martelava a terra. Se o esquema de Melanie funcionasse, a vibrao desencadearia um terremoto. Havia uma espcie de justia pura no plano. Usariam a energia armazenada pela terra para forar o governador a cuidar do meio ambiente. A terra salvando a terra. Para Priest, to justo, to certo, que chegava a ser quase sagrado. Spirit deu um latido baixo, como se tivesse ouvido alguma coisa. Devia ser um coelho, mas Priest recolocou nervosamente os galhos e iniciou o caminho de volta. Seguiu o caminho por entre as rvores at a trilha e tomou a direo da aldeia. Parou no meio da trilha, espantadssimo. Na ida passara por cima de um tronco cado. O mesmo tronco agora fora removido para o lado. Spirit no latira para nenhum coelho. Havia mais algum por ali. Ele no ouvira nada, mas os sons eram rapidamente abafados pela vegetao densa. Quem era? Algum o seguira? Ser que o tinham visto examinando o vibrador ssmico? Quando tomou o caminho de casa, Spirit ficou agitado. Quando chegaram a um ponto de onde podiam ver o estacionamento, Priest soube por qu. No meio da clareira lamacenta, estacionado ao lado do seu `Cuda, havia um carro da polcia. O corao de Priest parou. To cedo! Como podiam t-lo seguido com tanta rapidez? Fixou a vista no carro-patrulha. Era um Ford Crown Victoria com uma faixa verde pintada na lateral, uma estrela prateada de seis pontas na porta, quatro antenas e um giroscpio no teto com luzes de trs cores: azul, vermelha e laranja. pgina 136 Calma. Tudo passa. A polcia talvez no estivesse ali por causa do vibrador. Podia ter seguido a trilha por simples curiosidade: nunca acontecera antes, mas era possvel. Havia montes de outras razes possveis. Podia estar procurando um turista que se perdera. Um auxiliar do xerife podia estar procurando um lugar secreto para se encontrar com a mulher do vizinho. Podia ser que a polcia nem soubesse que havia uma comunidade ali. E talvez nem precisasse saber. Se se enfiasse de novo na floresta... Tarde demais. No mesmo instante em que a idia entrou na sua cabea, um policial saiu de trs de uma rvore. Spirit latiu furiosamente. - Quieto! - ordenou Priest, e o cachorro ficou em silncio. O policial usava o uniforme cinza-esverdeado de ajudante de xerife, com uma estrela no bolso esquerdo da jaqueta, chapu de caubi e uma arma no cinto. Ele viu Priest e acenou. Priest hesitou, mas acabou levantando a mo vagarosamente e acenando
tambm. Depois, relutante, dirigiu-se para o carro. Priest odiava policiais. Em sua maioria eram truculentos, ladres, e psicopatas. Usavam o uniforme e a posio para ocultar o fato de que eram criminosos piores que as pessoas a quem prendiam. Mas ele se obrigaria a ser polido, exatamente como se fosse um suburbano rico e idiota que imagina que a polcia existe para proteg-lo. Respirou com calma, relaxou os msculos do rosto, sorriu e disse: - Oi. O policial estava sozinho. Era jovem, devia ter, talvez, vinte e cinco ou trinta anos, cabelo castanho-claro-curto. O corpo dentro do uniforme j era volumoso; em mais dez anos teria uma barriga proeminente. - H residncias aqui perto? - perguntou o policial. pgina 137 Priest sentiu-se tentado a mentir, mas ltima hora achou que era muito arriscado. O policial tinha que andar apenas uns quatrocentos metros na direo certa para dar com as casas, e ficaria desconfiado ao descobrir a mentira. Por isso Priest disse a verdade. - Voc no est longe da Vincola Silver River. - Nunca ouvi falar. No por acaso. No catlogo telefnico, o endereo e o nmero eram os de Paul Beale, em Napa. Nenhum dos integrantes da comunidade era registrado para votar. Nenhum pagava imposto, porque ningum tinha renda. Eles sempre tinham sido muito reservados. O h hippie tinha sido destrudo pela superexposio na mdia. Muitos dos integrantes da comunidade, contudo, tinham uma razo para se esconder. Alguns tinham dvidas, outros eram procurados pela polcia. Oaktree era desertor, Song fugira de um tio que abusara dela sexualmente e o marido de Aneth a espancara, jurando que se ela o deixasse iria encontr-la onde quer que estivesse escondida. A comunidade sempre fora tambm um asilo, e alguns dos seus integrantes mais recentes tambm eram fugitivos. A nica maneira pela qual algum podia saber da sua existncia era por intermdio de pessoas como Paul Beale, que vivera ali por algum tempo e retornara para o mundo l fora, mas todos tinham muito cuidado em no divulgar o segredo. Nunca a polcia fora ali. - Como que eu nunca ouvi falar deste lugar? - exclamou o policial. Trabalho aqui h dez anos. - muito pequeno - sugeriu Priest. - Voc o proprietrio? - No, s um trabalhador. - O que que vocs fazem aqui, fabricam vinho? Puxa vida, um gigante intelectual. - , isso mais ou menos resume tudo - o policial no percebeu a ironia e Priest continuou: - O que o traz aqui de manh to cedo? No temos um crime aqui desde que Charlie tomou um porre e votou no Jimmy Carter. pgina 138
Priest sorriu. No havia Charlie algum: s estava tentando fazer o tipo de piada que um policial talvez gostasse. Mas aquele permaneceu srio. - Estou procurando os pais de uma menina que diz se chamar Flower. Um medo terrvel apoderou-se de Priest e de repente ele sentiu-se to frio quanto um tmulo. - Oh, meu Deus, o que foi que aconteceu? - Ela est presa. - Ela est bem? - No sofreu qualquer ferimento ou contuso, se isso que est querendo dizer. - Graas a Deus. Pensei que voc fosse dizer que tinha se envolvido em algum acidente - o crebro de Priest comeou a se recuperar do choque. Como que ela pode estar na cadeia? Pensei que estivesse aqui, dormindo! - Obviamente no est. Qual o seu relacionamento com ela? - Sou seu pai. - Ento vai ter que me acompanhar at Silver City. - Silver City? H quanto tempo ela est l? - Foi s esta noite. No queramos det-la por tanto tempo, mas a princpio ela se recusou a nos dizer qual era o seu endereo. S cedeu h mais ou menos uma hora. O corao de Priest afligiu-se de pensar na sua garotinha presa, tentando guardar o segredo da comunidade. Seus olhos encheram-se de lgrimas. O policial prosseguiu: - Mesmo assim, isto aqui foi muito difcil de achar. No fim, o que resolveu foram as instrues dadas por um bando de caras esquisitos armados a uns oito quilmetros daqui. Priest balanou a cabea. - Los Alamos. - Isso mesmo. Tinha l um cartaz grande dizendo: "No reconhecemos a jurisdio do governo dos Estados Unidos." Panacas. - Conheo eles - disse Priest. Eram elementos de extrema direita que tinham se apossado de uma casa de fazenda grande e velha em uma rea isolada e agora a guardavam com armas de grosso calibre e sonhavam com rechaar uma invaso dos chineses. Lamentavelmente eram os vizinhos mais prximos da comunidade. pgina 139 - Por que Flower est presa? Fez alguma coisa de errado? - a causa usual - respondeu o policial, sarcasticamente. - O que foi que ela fez? - Foi presa roubando uma loja. - Uma loja? - Por que uma criana com acesso a uma loja onde podia pegar o que quisesse ia querer fazer uma coisa dessas? - O que foi que ela roubou? - Uma fotografia grande e colorida de Leonardo DiCaprio.
*** Priest teve vontade de dar um soco na cara do policial, mas isto no teria ajudado Flower, e assim, ao invs de bater, agradeceu ao sujeito por ter ido procur-lo e prometeu que ele e a me de Flower iriam procurar o xerife dentro de uma hora, a fim de apanhar a filha. Satisfeito, o policial foi embora. Priest dirigiu-se para a cabana de Star, que funcionava tambm como clnica da comunidade. Star no tinha treinamento formal na rea de sade, mas aprendera muito com o pai mdico e a me enfermeira. J quando garota, acostumara-se com emergncias mdicas e chegara inclusive a ajudar na realizao de partos. O quarto dela era cheio de caixas de ataduras, frascos de ungentos, aspirinas, remdios para tosse e contraceptivos. Quando Priest acordou-a e lhe deu a m notcia, ela teve um ataque histrico. Star odiava a polcia quase tanto quanto ele. Nos anos 60 fora espancada por policiais em demonstraes, comprara droga de pssima qualidade nas mos de agentes da Narcticos disfarados, e, certa ocasio, fora estuprada por detetives dentro de uma delegacia. Saltou da cama berrando e comeou a agredi-lo. Priest segurou-lhe os pulsos e tentou acalm-la. pgina 140 - Temos que sair agora e tir-la de l! - gritou Star. - Certo - concordou ele. - Mas se vista primeiro, est bem? Ela parou de lutar. - Est bem. Enquanto Star vestia a cala-jeans ele disse: - Voc me contou que foi presa aos treze anos. - , e um sargento velho e sujo com um cigarro pendurado no canto da boca ps as mos nos meus peitos e disse que eu ia ser uma mulher gostosa. - No vai ajudar Flower se voc entrar l furiosa e for presa tambm argumentou ele. Ela conseguiu se controlar. - Tem razo, Priest. Pelo bem dela, temos que cair nas boas graas daqueles filhos da puta - ela penteou o cabelo e olhou-se num espelhinho. - Tudo bem. Estou pronta para engolir minha cota de sapos. Priest sempre acreditara que era melhor vestir-se convencionalmente ao tratar com a polcia. Acordou Dale e pegou com ele o velho terno azul-marinho. Era propriedade coletiva agora, e Dale o usara recentemente para ir ao tribunal quando a mulher a quem deixara vinte anos antes finalmente decidira divorciar-se dele. Priest vestiu o terno por cima da camisa de trabalho e colocou a gravata rosa e verde, j com vinte e cinco anos de idade. Como os sapatos tinham acabado havia muito tempo, calou de novo as sandlias e, junto com Star, foi pegar o `Cuda. Quando chegaram na estrada, Priest perguntou: - Como que pode no termos percebido que ela no estava em casa
ontem noite? - Fui dizer boa-noite, mas Pearl me disse que ela tinha ido privada. - Foi o que ela me disse tambm! Pearl deve ter sabido o que aconteceu e quis proteg-la. Pearl, filha de Dale e Poem, tinha doze anos de idade e era a melhor amiga de Flower. - Voltei mais tarde, mas todas as velas estavam apagadas e o alojamento estava s escuras. No quis acord-las. Jamais imaginei... pgina 141 - E por que deveria? A danada da menina passou todas as noites de sua vida no mesmo lugar - no havia razo para pensar que estivesse fora. Entraram em Silver City. O escritrio do xerife ficava ao lado do tribunal e tinha o saguo melancolicamente decorado com recortes amarelados de crimes antigos. Havia uma mesa de recepo atrs de um guich com um aparelho de intercomunicao, e uma cigarra. Um policial de camisa cqui e gravata verde perguntou: - Em que posso ajud-los? Foi Star quem falou: - Meu nome Stella Higgins e voc est com minha filha aqui. O policial fechou a cara para eles. Priest imaginou que os estivesse avaliando, querendo descobrir que tipo de pais eles eram. Logo pedia licena (S um momento, por favor) e desaparecia. Priest falou com Star em um tom bem baixo. - Acho que deveramos nos comportar como cidados responsveis e obedientes lei, alarmados porque a filha foi presa. No temos nada seno um respeito profundo por quem trabalha para fazer com que a lei seja obedecida. Lamentamos muito por ter causado problema para gente que trabalha tanto. - Deixe comigo - disse Star, muito tensa. Uma porta abriu-se e o policial da recepo fez com que entrassem. - Sr. e Sra. Higgins - disse ele. Priest no o corrigiu. Sigam-me, por favor. Ele os levou at uma sala de reunies acarpetada de cinza e com uma inspida moblia moderna, onde Flower esperava. Ela ia ser formidvel e voluptuosa como a me, mas aos treze anos era uma garota alta, magra e desajeitada. Estava emburrada e chorosa ao mesmo tempo. Mas parecia s e salva. Star abraou-a em silncio e depois Priest fez o mesmo. pgina 142 - Querida, voc passou a noite na cadeia? - perguntou Star. Flower sacudiu a cabea. - Numa casa. O policial explicou. - A lei da Califrnia muito rgida. Menores de idade no podem ficar presos sob o mesmo teto que criminosos adultos. Por isso, temos na cidade algumas pessoas dispostas a dar abrigo a transgressores menores. Flower dormiu na casa da Srta. Waterlow, uma professora que, por acaso,
irm do xerife. Priest dirigiu-se a Flower. - Foi tudo bem l? A criana balanou a cabea, indiferente. Ele comeou a se sentir melhor. Diabos, podem acontecer coisas piores s crianas. O policial pediu que eles se sentassem: - Sentem-se, por favor, Sr. e Sra. Higgins. Sou o encarregado de vigiar os delinqentes primrios cujas penas foram suspensas e faz parte do meu trabalho cuidar dos transgressores juvenis. Eles se sentaram. - Flower acusada de roubar um pster no valor de $9,99 de uma loja de discos, a Silver Disc Music Store. Star virou-se para a filha. - No consigo entender isso - falou. - Por que voc iria roubar um pster de um maldito artista de cinema? Flower de repente encontrou sua voz. - Foi porque eu quis, certo? Foi porque eu quis! - e desatou a chorar. Priest dirigiu-se ao policial. - Ns gostaramos de levar nossa filha para casa o mais cedo possvel. O que precisamos fazer? - Sr. Higgins, devo lembrar-lhe que a penalidade mxima para o que Flower fez seria a priso at completar vinte e um anos. - Jesus Cristo! - exclamou Priest. - Eu, no entanto, no daria uma punio to dura para pgina 143 uma primeira violao da lei. Digam-me uma coisa, Flower j esteve metida em encrenca antes? - Nunca. - Vocs esto surpresos com o que ela fez? - Estamos. - Ns estamos estupefatos - disse Star. O policial fez perguntas sobre a vida domstica deles, tentando estabelecer se Flower era bem cuidada. Priest respondeu maioria das perguntas, dando a impresso de que eram simples trabalhadores agrcolas. Nada falou sobre a vida em comunidade que levavam ou sobre suas crenas. O policial quis saber onde Flower estudava, e Priest explicou que havia uma escola na vincola para os filhos dos trabalhadores. As respostas pareceram satisfaz-lo. Flower teve que assinar uma promessa de aparecer na corte em quatro semanas, s dez horas da manh. O policial pediu para que um dos pais assinasse tambm, e Star fez o que ele pediu. No tiveram que pagar fiana. Estavam fora em menos de uma hora. Uma vez na calada, Priest dirigiu-se filha: - Isto no faz de voc uma m pessoa, Flower. Fez uma burrice, mas continuamos amando voc tanto quanto sempre a amamos. S quero que se lembre disso. E falaremos sobre o que aconteceu quando chegarmos em casa.
Voltaram, ento, para o vale. Durante algum tempo, Priest no conseguira pensar em outra coisa que no fosse a integridade fsica da filha, mas agora que a tinha de volta, comeou a refletir sobre as implicaes mais amplas de sua priso. A comunidade jamais atrara a ateno da polcia. No havia furtos, porque eles no reconheciam a existncia da propriedade privada. s vezes havia brigas a socos, mas os prprios moradores resolviam estas situaes. Ningum morrera ali nunca. No tinham telefone para ligar para a polcia. No desobedeciam leis, exceto as referentes a drogas, e mesmo assim eram discretos quanto a isto. Mas agora o lugar fora colocado no mapa. E no pior momento possvel para que isto acontecesse. Priest, contudo, no podia fazer nada a este respeito, exceto ser mais cauteloso. Resolveu no culpar Flower. Na idade dela era ladro profissional, com uma folha corrida j com trs anos. Se algum pai era capaz de entend-la, era ele. pgina 144 Ligou o rdio do carro. A cada hora certa havia um boletim de notcias. A ltima foi sobre a ameaa do terremoto. - O governador Mike Robson encontra-se com agentes do FBI na manh de hoje a fim de discutir sobre o grupo terrorista O Martelo do den, que ameaou causar um terremoto disse o locutor. - Um porta-voz do Bureau falou que todas as ameaas so levadas a srio mas que no faria nenhum comentrio antes da reunio. O governador faria seu pronunciamento depois de se reunir com o FBI, foi o palpite de Priest. Gostaria que a estao de rdio tivesse dado a hora da reunio. Metade da manh tinha se passado quando chegaram em casa. O carro de Melanie desaparecera do crculo do estacionamento: ela levara Dusty para passar o fim de semana com o pai em San Francisco. Havia um ar contido por toda a parte. Um grupo arrancava ervas daninhas no parreiral, trabalhando sem os cantos e risos costumeiros. Do lado de fora da cabana da cozinha Holly, a me dos outros dois filhos de Priest - Ringo e Smiler fritava cebolas de cara fechada, enquanto Slow, sempre sensvel ao ambiente que o cercava parecia assustado ao colher batatas na horta. At mesmo Oaktree, o carpinteiro, parecia quieto, debruado sobre a bancada, serrando uma tbua. Quando viram Priest e Star retornando com Flower, todos foram encerrando suas tarefas e se dirigindo para o templo. Quando havia uma crise sempre se reuniam para discutir. Se fosse uma questo menor, podia esperar at o fim do dia, mas aquilo era importante demais para ser adiado. No caminho para o templo, Priest e famlia foram interceptados por Dale e Poem, com a filha deles, Pearl. Dale, um homem baixo de cabelo curto e bem penteado era a pessoa mais convencional do grupo. Tinha uma importncia enorme por ser perito na fabricao de vinho e controlar a mistura da safra de cada ano. Mas Dale s vezes tratava a
pgina 145 comunidade como se fosse apenas uma aldeia como as outras. Dale e Poem tinham sido o primeiro casal a construir uma cabana para a famlia. Poem, com a pele escura e sotaque francs, era do gnero meio selvagem Priest sabia, j que dormira com ela muitas vezes - mas com Dale tornara-se meio domesticada. Ela era uma das poucas pessoas que talvez pudesse se reajustar vida normal se tivesse que sair dali. Priest achava que a maioria no conseguiria; muitos terminariam na cadeia, em asilos ou mortos. - Tem uma coisa pra vocs verem - disse Dale. Priest notou uma rpida troca de sinais entre as garotas. Flower dardejou um olhar acusador para Pearl, que fez cara de assustada e culpada. - O que ser agora? - exclamou Star. Dale levou todos para a cabana vazia. Atualmente era usada como local de estudo pelas crianas mais velhas. Havia em seu interior uma mesa rstica, algumas cadeiras e um armrio com livros e lpis. O teto tinha um alapo que dava num espao apertado sob o telhado. O alapo estava aberto e havia uma escada colocada sob ele. Priest teve a horrvel sensao de que sabia o que estava por vir. Dale acendeu uma vela e subiu a escada. Priest e Star o seguiram. No espao entre o teto e o telhado ele viu o esconderijo secreto das meninas, iluminado pela vela trmula: uma caixa cheia de jias baratas, pinturas, roupas da moda e revistas de adolescentes. Priest murmurou: - Todas as coisas que ensinamos que considerassem sem valor. - Elas tm ido de carona para Silver City. Trs vezes nas ltimas quatro semanas. Levam estas roupas e trocam pelos jeans e camisas de trabalho quando chegam l - disse Dale. Star quis saber: - O que elas fazem l? - Andam pelas ruas, falam com os garotos e roubam as lojas. pgina 146 Priest enfiou a mo na caixa e puxou uma camiseta estreita, azul com uma faixa cor de laranja. Era feita de nilon, muito fininha e vagabunda. O tipo de roupa que ele desprezava: no dava calor nem proteo e nada fazia seno cobrir a beleza do corpo humano com uma camada de feira. Com a camiseta na mo, ele desceu pela escada. Star e Dale o seguiram. As duas garotas pareciam mortificadas. Priest disse: - Vamos para o templo discutir isto com o grupo. Quando l chegaram, todos j tinham se reunido, inclusive as crianas. Sentados no cho, pernas cruzadas, esperavam. Priest sentou no meio, como sempre. Em teoria, as discusses eram democrticas, e a comunidade no tinha lderes, mas na prtica ele e Star dominavam todas as reunies. Priest conduzia o dilogo para o resultado que desejava,
geralmente mais pelas perguntas que fazia do que por externar seu ponto de vista. Se gostava de uma idia, encorajava a discusso dos seus benefcios; se queria esmagar uma proposta, perguntava como podiam ter certeza de que aquilo daria certo. E se na reunio todos estivessem contra ele, fingia ter se convencido e depois subvertia a deciso. - Quem quer comear? - perguntou Priest. Aneth apresentou-se. Era um tipo maternal, com uns quarenta e tantos anos e acreditava mais em compreender do que em condenar. Ela disse: - Talvez Flower e Pearl devessem comear contando para ns o motivo pelo qual queriam ir para Silver City. - Para conhecer gente - retrucou Flower, desafiadora. Aneth sorriu. - Voc est querendo dizer, rapazes? Flower encolheu os ombros. Aneth prosseguiu: - Bem, acho que isso compreensvel... mas por que tiveram que roubar? - Para ficar bonitas. Star deu um suspiro exasperado. pgina 147 - O que h de errado com suas roupas comuns? - Mame, v se fala a srio - disse Flower, sarcasticamente. Star adiantou-se um pouco e deu-lhe uma bofetada. Flower deu um grito sufocado. Apareceu uma marca vermelha no seu rosto. - No se atreva a falar comigo desse jeito - disse Star. Voc acaba de ser apanhada roubando e tive que tir-la da cadeia, pois ento no fale comigo como se eu que fosse burra. Pearl comeou a chorar. Priest suspirou. Devia ter previsto aquilo. No havia nada de errado com as roupas da loja comunitria. Tinham jeans em trs cores, azul, preto ou bege. Camisas de trabalho feitas de pano grosso; camisetas brancas, cinzentas, vermelhas e amarelas; sandlias e botas; suteres pesados de l para o inverno; capas impermeveis para trabalhar na chuva. Mas as mesmas roupas eram usadas por todos e havia muitos anos. Claro que as crianas queriam algo diferente. Trinta e cinco anos antes Priest roubara uma jaqueta dos Beatles de uma butique chamada Rave na rua San Pedro. Poem dirigiu-se para a filha: - Pearl, chrie, voc no gosta de suas roupas? Entre soluos, ela disse: - Ns queramos ficar parecidas com Melanie. - Ah - fez Priest, e sacou tudo. Melanie ainda usava as roupas que trouxera: tops parcimoniosos que mostravam a barriga, minissaias e shorts bem curtos, sapatos nada convencionais e bons bonitinhos. Parecia chique e sexy. No era de espantar que as meninas a tivessem tomado por modelo. Dale disse: - Precisamos conversar sobre Melanie - ele parecia apreensivo. A maioria dos integrantes da comunidade receava dizer qualquer coisa que
pudesse ser vista como uma crtica a Priest. Priest caiu na defensiva. Fora ele quem trouxera Melanie e era seu amante. E ela era crucial para o plano. Melanie era a nica capaz de interpretar os dados constantes do disco de Michael, que agora fora copiado no seu laptop. Priest no podia deixar que se virassem contra ela. pgina 148 - Nunca fazemos as pessoas que se juntam a ns trocar de roupa disse. - Elas usam primeiro suas coisas velhas, tem sido sempre esta a regra. Foi Alaska quem falou a seguir. Antiga professora, viera para a comunidade com sua amante, Juice, dez anos antes, depois de terem sido repudiadas na cidadezinha onde moravam por serem lsbicas. - No so apenas as roupas - disse Alaska. - Ela no trabalha muito Juice balanou a cabea para manifestar sua concordncia. Priest argumentou: - Eu a vi na cozinha, lavando pratos e assando biscoitos. Alaska parecia assustada, mas persistiu. - Algumas leves tarefas domsticas. Ela no trabalha no parreiral. Melanie uma passageira, Priest. Star viu Priest comear a ser atacado e veio em seu auxilio. - Tivemos muita gente assim. Lembra como Holly era no princpio? Holly fora um pouco como Melanie, uma garota bonita, que primeiro se sentira atrada por Priest e depois pela comunidade. Holly sorriu, pesarosa. - Admito. Eu era preguiosa. Mas acabei me sentindo mal por no colaborar. Ningum me disse nada. S percebi que seria mais feliz fazendo a minha parte. Foi a vez de Garden falar. Antiga viciada em drogas, tinha vinte e cinco anos mas aparentava quarenta. - Melanie uma m influncia. Conversa com as crianas sobre discos pop, programas de televiso e lixo dessa espcie. Priest disse: - Obviamente precisamos ter uma conversa com Melanie sobre isto quando ela voltar de San Francisco. Sei que vai ficar muito aborrecida quando tomar conhecimento do que Flower e Pearl fizeram. pgina 149 Dale no ficou satisfeito. - O que aborrece muitos de ns... Priest fechou a cara. Tudo indicava que o grupo andara conversando nas suas costas. Jesus, ser que estou s voltas com uma rebelio? Deixou aparecer na sua voz o desprazer que sentia. - E ento? O que aborrece muitos de vocs? Dale engoliu em seco. - O telefone celular dela e o computador.
No havia eletricidade no vale, portanto tinham poucos aparelhos eltricos, e o pessoal da comunidade tinha desenvolvido uma espcie de puritanismo sobre coisas como televiso e vdeo. Tinha-se de recorrer ao rdio do carro para ouvir as notcias. Todos haviam passado a olhar com desprezo qualquer coisa que fosse eltrica. O equipamento de Melanie, que ela recarregava em uma biblioteca pblica de Silver City, atrara alguns olhares de desaprovao. Diversas pessoas balanaram a cabea, em sinal de concordncia com a queixa de Dale. Havia uma razo especial para que Melanie retivesse seu celular e seu computador. Mas Priest no podia explicar isto a Dale. Ele no era um Comedor de Arroz. Embora fosse membro integral do grupo e estivesse ali havia anos, Priest no podia ter certeza de que concordaria com o plano do terremoto. Podia se apavorar. Priest viu que tinha que terminar com aquilo. Estava saindo do controle. Pessoas descontentes tm que ser enfrentadas uma por uma, no em uma discusso coletiva onde um reforava a posio do outro. Mas antes que pudesse falar, Poem fez uma pergunta. - Priest, est acontecendo alguma coisa? Alguma coisa sobre a qual voc no est nos falando? Realmente nunca entendi por que voc e Star tiveram que se afastar durante duas semanas e meia. Song, em apoio a Priest, comentou: - Puxa, que pergunta desconfiada! O grupo estava se dividindo, Priest podia ver. Era a perspectiva iminente de ter que abandonar o vale. No havia sinal do milagre que ele sugerira. Estavam vendo o mundo deles chegar ao fim. pgina 150 Star falou: - Pensei que tivesse dito a todo mundo. Eu tinha um tio que, ao morrer, deixou os negcios numa tremenda confuso, e eu era sua nica parente, de modo que tive que ajudar os advogados a organizarem tudo. Chega. Priest sabia como abafar um protesto. Falou decididamente. - Sinto que estamos discutindo essas coisas em uma atmosfera ruim disse. - Algum concorda comigo? Todos concordavam, claro. A maioria balanou a cabea, afirmativamente. - E o que fazemos ento? - Priest olhou para o filho de dez anos, uma criana sria, de olhos escuros. - O que voc me diz, Ringo? - Ns meditamos juntos - respondeu o menino. Era a resposta que qualquer um daria. Priest olhou em torno. - Algum aprova a idia de Ringo? Todos aprovaram. - Ento vamos nos preparar. Cada um assumiu sua posio favorita. Alguns se deitaram de costas, outros se encolheram em posio fetal, um ou dois se deitaram como se estivessem dormindo. Priest e diversos outros se sentaram de pernas cruzadas, mos soltas sobre os joelhos, olhos fechados, rostos voltados
para o cu. - Relaxem o dedinho pequeno do p esquerdo - disse Priest, falando baixo, com voz penetrante. - Depois o quarto dedo, depois o terceiro, depois o segundo, depois o dedo. Relaxem todo o p... e o tornozelo... e depois a barriga da perna. medida que ele seguia lentamente indicando todo o corpo, uma paz contemplativa desceu sobre a sala. O ritmo da respirao de todos diminuiu e tornou-se regular, os corpos ficaram cada vez mais quietos e os rostos gradualmente tomaram a tranqilidade da meditao. pgina 151 Finalmente Priest disse uma sffaba lenta e grave: - Om. A uma voz, a congregao respondeu: - Ommm... Meu povo. Que eles possam viver aqui para sempre. *** 6 A reunio no gabinete do governador estava marcada para o meio-dia. Sacramento, a capital do estado, ficava a cerca de duas horas de carro de San Francisco. Judy saiu de casa s nove e quarenta e cinco, prevenindo-se para enfrentar o trfego pesado da sada da cidade. O assessor com quem ia se encontrar, Al Honeymoon, era uma figura bem conhecida na poltica da Califrnia. Oficialmente secretrio do gabinete, na verdade era o encarregado das tarefas desagradveis. Sempre que o governador Robson precisava passar uma nova rodovia por um lugar bonito, construir uma usina nuclear, despedir mil empregados do governo ou trair um amigo fiel, mandava Honeymoon fazer o trabalho sujo. Os dois homens eram amigos havia vinte anos. Quando se conheceram, Mike Robson ainda era apenas um deputado estadual e Honeymoon acabara de se formar em Direito. Honeymoon fora selecionado para esse papel de bandido por ser preto, e o governador, astutamente, calculou que justamente por isto a imprensa hesitaria em falar mal dele. Esse tempo de liberalismo j se passara havia muitos anos, mas Honeymoon amadurecera e transformara-se em um poltico de grande habilidade e inexcedvel impiedade. Ningum gostava dele, mas muita gente o temia. Em benefcio do FBI, Judy queria causar boa impresso. No era sempre que os polticos tinham interesse pessoal direto em um caso do FBI. Judy sabia que seu modo de cumprir aquela misso iria caracterizar para sempre a atitude de Honeymoon para com o Bureau em particular e os rgos com atribuies policiais de um modo geral. A experincia pessoal sempre tem mais impacto que relatrios ou estatsticas. pgina 153
O FBI gostava de dar a impresso de ser todo-poderoso e infalvel. Mas ela fizera to pouco progresso naquele caso que ia ser meio difcil desempenhar esse papel, especialmente para um cara duro como Honeymoon. De qualquer modo, no era o estilo dela. Seu plano era simplesmente parecer eficiente e inspirar confiana. Tinha tambm uma outra razo para querer se sair bem. Precisava que a declarao do governador Robson abrisse a porta para um dilogo com o Martelo do den. Uma indicao, por menor que fosse, que o governador talvez negociasse podia persuadir os terroristas a esperar um pouco. E se a reao deles fosse uma tentativa de se comunicar, talvez dessem a Judy novos indcios da identidade do grupo. Por ora, era o nico modo em que podia pensar para peg-los. Todas as outras linhas de investigao tinham levado a becos sem sada. Achava que talvez fosse difcil convencer o governador a dar essa indicao. Ele no ia querer dar a impresso de que ouviria as exigncias dos terroristas, com medo de encorajar outros grupos. Mas deveria haver um jeito de redigir o pronunciamento de modo que a mensagem fosse clara apenas para o pessoal do Martelo do den. No vestira o costume Armani, de executiva poderosa. O instinto lhe disse que era mais provvel que Honeymoon recebesse melhor uma pessoa vestida de trabalhadora comum, e por isso preferira um terninho cinza-escuro e prendera o cabelo num coque atrs da cabea. Quanto arma, ela a levava num coldre de cintura. Para o caso do conjunto ser demasiado severo, colocou brinquinhos de prolas que chamavam a ateno para seu pescoo comprido. Nunca fizera mal parecer atraente. Gostaria de saber se Michael Quercus a achara atraente. Ele era um gato, pena ser to irritante. Sua me o teria aprovado. Judy se lembrava dela dizendo: "Gosto de homens que sabem o que querem." Quercus vestia-se bem, num jeito discreto. Judy gostaria de saber como seria seu corpo por baixo das roupas. Talvez fosse coberto de plos negros, como um macaco: ela no gostava de homens peludos. Talvez fosse plido e mole, mas no parecia: dava a impresso de estar em boa forma fsica. Ao dar-se conta de que estava fantasiando sobre Quercus nu, aborreceu-se consigo mesma. A ltima coisa de que preciso um dolo juvenil malcriado. pgina 154 Decidiu telefonar para saber como poderia estacionar. Discou o nmero do gabinete do governador no seu celular e falou com o secretrio de Honeymoon. - Tenho um encontro ao meio-dia com o Sr. Honeymoon, e gostaria de saber se posso estacionar no prdio do Capitlio. Nunca estive em Sacramento. O secretrio era um rapaz. - No temos estacionamento para visitantes no prdio, mas h um estacionamento coberto no quarteiro seguinte. - Onde, exatamente? - Na entrada da rua onde fica o Capitlio, entre a K e a L. O
Capitlio entre a L e a M. Literalmente um minuto de distncia. Mas seu encontro no ao meio-dia, e sim s onze e meia. - O qu? - Seu encontro est marcado para as onze e meia. - Foi alterado? - No, senhora, sempre foi s onze e meia. Judy ficou furiosa. Chegar tarde criaria m impresso antes mesmo de abrir a boca. Aquilo j estava saindo errado. Ela controlou a raiva. - Acho que algum cometeu um engano - consultou o relgio, voando baixo podia chegar em noventa minutos. - No tem problema, estou adiantada - mentiu. - Chegarei a tempo. - timo. Ela pisou com fora no acelerador e viu o velocmetro do Monte Carlo subir at cento e sessenta. Por sorte, a estrada estava vazia. A maior parte do trfego pela manh era no sentido contrrio, indo para San Francisco. Fora Brian Kincaid quem lhe dissera a hora da entrevista, portanto ele tambm chegaria tarde. Estavam viajando separadamente porque ele tinha um segundo compromisso em Sacramento, no escritrio local do FBI. Judy discou o nmero da agncia de San Francisco e falou com a secretria do encarregado. pgina 155 - Linda, aqui Judy. D para voc ligar para o Brian e dizer que o assessor do governador nos espera s onze e meia e no ao meio-dia, por favor? - Acho que ele sabe disso - respondeu Linda. - No, no sabe. Ele me disse doze horas. V se consegue ligar para ele e avisar, sim? - Pode deixar. - Obrigada - Judy desligou e concentrou-se na estrada. Poucos minutos depois ouviu a sirene da polcia. Olhou pelo espelho e viu a pintura bege familiar da patrulha Rodoviria da Califrnia. - Juro que no acredito! - exclamou ela. Desviou para o acostamento e pisou no freio com fora. O carro da patrulha parou atrs. Ela abriu a porta. Uma voz amplificada disse: - FIQUE NO CARRO. Ela pegou o crach do FBI segurou-o com o brao esticado para que o policial pudesse ver e saltou. - FIQUE NO CARRO! Ela percebeu um toque de medo na voz e viu que o patrulheiro estava sozinho. Suspirou. No era difcil imaginar um recruta puxando a arma e atirando nela de puro nervosismo. Judy levantou mais o escudo do crach para que ele pudesse ver. - FBI! - gritou. - Olha s, pelo amor de Deus! - VOLTE PARA O CARRO! Ela deu uma olhada no relgio. Dez e meia. To frustrada que chegava a tremer, sentou de novo no carro e deixou a porta aberta.
Foi uma espera irritantemente longa. Finalmente o patrulheiro aproximou-se. - A razo pela qual a fiz parar foi que seu carro estava a cento e cinqenta e nove quilmetros por hora... pgina 156 - Olha s para isto aqui - disse ela, levantando o escudo do FBI. - O que ? - Pelo amor de Deus, um escudo do FBI! Sou uma agente em misso urgente e voc acaba de me fazer perder tempo! - Bem, voc com certeza no parece... Ela saltou do carro, assustando-o, e sacudiu o dedo debaixo do seu queixo. - No me diga que no pareo com a porra de um agente. Se voc no reconhece nem o escudo do FBI, como que vai saber que cara tem um agente? - ps as mos nas cadeiras, puxando o palet para trs a fim de que ele pudesse ver o coldre. - Posso ver sua licena, por favor? - Claro que no, droga! Estou saindo e vou para Sacramento a cento e cinqenta e nove quilmetros por hora, est me entendendo? - ela entrou de novo no carro. - Voc no pode fazer isso - disse ele. - Escreva para o seu deputado - retrucou ela, batendo com a porta e acelerando. Desviou para a pista da esquerda, acelerou at cento e sessenta e consultou o relgio. Tinha perdido cerca de cinco minutos. Ainda dava para chegar a tempo. Perdera a calma com o patrulheiro. Ele contaria a seu chefe, que se queixaria ao FBI. Judy receberia uma repreenso. Mas se tivesse sido polida com o cara, ainda estaria l. - Merda - exclamou, sentida. Alcanou a sada para o centro da cidade de Sacramento s onze e vinte. s onze e vinte e cinco estava entrando na garagem. Gastou uns dois minutos para achar uma vaga. Desceu correndo a escada e atravessou a rua. O Capitlio era um palcio de pedra branca que lembrava um bolo de noiva, em meio a um jardim imaculado delimitado por palmeiras gigantescas. Ela atravessou correndo um saguo de mrmore at uma porta dupla com a palavra "GOVERNADOR" entalhada. Parou, respirou fundo para se acalmar e checou o relgio. Exatamente onze e trinta. Chegara a tempo. O FBI no ia parecer incompetente. Abriu a porta e entrou. pgina 157 Viu-se no interior de um imenso saguo onde a figura de maior destaque era um secretrio sentado atrs de uma mesa enorme. De um lado havia uma fila de cadeiras onde, para sua surpresa, viu Brian Kincaid esperando, com ar tranqilo e descansado, metido num terno cinza-grafite impecvel. O cabelo branco penteado cuidadosamente, em nada lembrando uma pessoa
que tivesse acabado de chegar correndo. Subitamente Judy tomou conscincia de que estava suando. Quando Kincaid a encarou, ela viu um relmpago de surpresa brilhar em seus olhos, mas foi rapidamente contido. Ela o cumprimentou: - Oi, Brian. - dia - ele desviou os olhos. No quis agradecer o recado que ela dera dizendo que a reunio seria mais cedo. Ela perguntou: - A que horas voc chegou? - Poucos minutos atrs. Isto significava que ele sabia a hora certa da reunio. Mas dissera que era meia hora mais tarde. Ser que a tinha induzido deliberadamente ao erro? Parecia quase infantil. Antes que ela tivesse tido tempo de chegar a uma concluso, um jovem negro apareceu por uma porta lateral e dirigiu-se a Brian: - Agente Kincaid? Ele se levantou. - Eu mesmo. - Voc deve ser ento a agente Maddox. O Sr. Honeymoon os ver agora. Kincaid e Judy seguiram-no ao longo do corredor. Enquanto andavam, ele disse, pouco antes de virarem direita: - Ns chamamos isto aqui de Ferradura, porque os escritrios do governador so grupados em torno dos trs lados de um retngulo. pgina 158 A meio caminho do segundo lado, eles passaram por outro saguo, ocupado por duas secretrias. Um rapaz segurando uma pasta esperava sentado em um sof de couro. Judy achou que devia ser ali o gabinete pessoal do governador. A poucos passos de distncia, foram introduzidos na sala de Honeymoon. Ele era um homem grande com o cabelo cortado bem curto j ficando branco. Tinha tirado o palet do terno cinza e com isso podiam ser vistos os suspensrios pretos. Ele enrolara as mangas da camisa branca mas conservara impecvel o lao da gravata de seda. Tirou os culos de aro dourado de meia lente e levantou-se. Tinha um rosto de feies fortes com uma expresso permanente de v-se-no-me-enche-o- saco. Podia passar por tenente de polcia, s que estava bem vestido demais. A despeito da aparncia intimidadora, seus modos eram corteses. Apertou as mos de Brian Kincaid e Judy Maddox e agradeceu: - Sou-lhes muito grato por terem vindo de San Francisco conversar conosco. - Tudo bem - disse Kincaid. Eles se sentaram. Sem prembulos, Honeymoon foi logo ao ponto: - Como avaliam a situao? - Bem, senhor, o seu pedido foi para ver o agente que estivesse na extremidade operacional do caso. Sendo assim, vou deixar que Judy faa o seu relato. Judy disse:
- Receio ainda no termos pegado essa gente - e logo se xingou por ter comeado o relatrio com um pedido de desculpas embutido numa frase fraca. Seja positiva! - Estamos razoavelmente seguros de que estes terroristas no esto relacionados com a Campanha da Califrnia Verde isso no passou de uma fraca tentativa para lariar indcios falsos. No sabemos quem so, mas posso lhe contar algumas coisas importantes que descobrimos a respeito deles. Honeymoon disse: - Prossiga, por favor. pgina 159 - Para comear, a anlise lingstica da mensagem contendo a ameaa nos diz que estamos tratando no com um indivduo solitrio, e sim com um grupo. Kincaid interveio: - Bem, com duas pessoas, pelo menos. Judy lanou um olhar furioso para Kincaid, mas ele no a encarou. Honeymoon perguntou, irritado: - O que afinal, dois ou um grupo? Judy sentiu que ficava ruborizada. - A mensagem foi redigida por um homem e digitada por uma mulher, de modo que temos no mnimo duas pessoas. Ainda no sabemos se h mais. - OK. Mas, por favor, seja precisa. Aquilo no estava indo bem. Judy prosseguiu. - Ponto dois: as pessoas a quem nos referimos no so loucas. Kincaid disse: - Bem, clinicamente no. Mas com toda a certeza no podem ser normais - ele riu como se tivesse dito alguma coisa inteligente. Judy amaldioou-o silenciosamente. - As pessoas que cometem crimes de violncia podem ser divididas em duas espcies, as organizadas e as desorganizadas. O tipo desorganizado age segundo o impulso do momento, usa qualquer arma que esteja disponvel e escolhe suas vtimas aleatoriamente. Estas so as pessoas verdadeiramente loucas. Honeymoon interessou-se. - E o outro tipo? - O tipo organizado o que planeja seus crimes, carrega as armas que vai usar e ataca vtimas previamente selecionadas segundo um critrio lgico qualquer. Kincaid interveio de novo: - So loucos de uma maneira diferente. Judy tentou ignor-lo. pgina 160 - Essas pessoas podem ser doentes, mas no so loucas varridas. Podemos pensar nelas como seres racionais e tentar antecipar o que faro.
- Est bem. E os integrantes do Martelo do den so pessoas organizadas? - A julgar pela mensagem contendo a ameaa, sim. - Voc confia muito na anlise lingstica - comentou Honeymoon ceticamente. - uma ferramenta poderosa. - No substitui um cuidadoso trabalho investigativo. Mas neste caso, tudo o que temos - concluiu Kincaid. Era como se eles tivessem que confiar na anlise lingstica porque Judy no fizera o trabalho que devia ter feito. Sentindo-se desesperada, ela insistiu: - Estamos tratando com gente sria - o que significa que, se no puderem provocar um terremoto, podero tentar outra coisa qualquer. - Como por exemplo? - Um dos habituais atentados terroristas. Explodir uma bomba, fazer um refm, assassinar uma figura proeminente. - Presumindo que tenham capacidade para tal, claro. At o presente momento no temos nada indicando esta direo - comentou Kincaid. Judy respirou fundo. Era preciso dizer uma coisa que no podia evitar. - No estou, contudo, preparada para desconsiderar a possibilidade de que eles realmente possam causar um terremoto. Honeymoon disse: - O qu? Kincaid soltou uma risada sarcstica. Judy insistiu: - No provvel, mas concebvel. Foi o que me disse o principal perito no assunto do estado da Califrnia, o professor Quercus. No estaria cumprindo com o meu dever se no lhe dissesse isso. Kincaid recostou-se na cadeira e cruzou as pernas. - Judy lhe deu as respostas que a gente encontra nos livros, Al disse ele, com voz de "menina-no-entra". - Agora talvez eu deva lhe dizer qual o quadro dentro de uma perspectiva de mais idade e experincia. pgina 161 Judy olhou para ele com raiva. vou forra disto nem que seja a ltima coisa que possa fazer na minha vida, Kincaid. Voc levou a tarde inteira querendo me derrubar. Mas e se houver mesmo um terremoto, seu panaca? O que vai dizer aos parentes dos mortos? - Por favor, prossiga - disse Honeymoon. - Essas pessoas no podem causar um terremoto e no do a mnima para usinas de eletricidade. Meu instinto me diz que se trata de um garoto tentando impressionar a namorada. Apavorou o governador, fez o FBI correr de um lado para outro como barata tonta e o que armou assunto toda noite do programa de rdio de John Truth. De repente ele passou a ser um figuro importante e ela ficou deslumbrada. Judy sentiu-se totalmente humilhada. Kincaid deixara que relatasse o que descobrira e depois escarnecera de tudo o que dissera. Obviamente que tinha planejado aquilo, e agora ela no tinha a menor dvida de que deliberadamente a enganara quanto hora do encontro, na esperana de
que chegasse atrasada. A coisa toda no passara de uma manobra destinada a desacredit-la e, ao mesmo tempo, fazer com que Kincaid se sentisse melhor. Judy sentiu-se revoltada. Honeymoon levantou-se bruscamente. - Vou aconselhar o governador a no reagir ameaa disse. - E muito obrigado a ambos - acrescentou, em tom de quem no precisava mais deles. Judy no teve dvida de que era tarde demais para lhe pedir que deixasse aberta a porta do dilogo com os terroristas. O momento passara. E, de qualquer maneira, qualquer sugesto que desse seria ridicularizada por Kincaid. Sentiu-se desesperada. E se a ameaa fosse genuna? E se eles pudessem realmente fazer o que ameaaram? Kincaid disse: - Qualquer hora que precise de ns, s dizer. A expresso de Honeymoon foi vagamente sarcstica. Seria difcil imaginar que precisasse de convite para usar os servios do FBI. Mas, polidamente, estendeu a mo para se despedir. pgina 162 Um momento mais tarde, Judy e Kincaid estavam do lado de fora. Judy permaneceu em silncio enquanto percorriam a Ferradura e atravessavam o saguo. S a Kincaid parou e disse: - Voc se saiu muito bem, Judy. No tem com que se preocupar. Ele no conseguiu esconder o sorriso ostensivamente atrevido. Judy estava determinada a no deixar que Kincaid percebesse o quanto estava irritada. Tinha vontade de berrar, mas forou-se a dizer calmamente: - , acho que cumprimos com a nossa obrigao. - Com certeza. Onde estacionou o carro? - Na garagem do outro lado da rua - ela indicou com o polegar. - Estou do lado oposto. Vejo voc mais tarde. - Claro. Judy observou-o afastar-se e depois virou-se e seguiu na outra direo. Ao atravessar a rua viu uma loja de doces Sei. Entrou e comprou uns bombons. No caminho de volta para San Francisco, comeu a caixa inteira. *** 7 Priest precisava de atividade fsica para no enlouquecer com a tenso. Depois da reunio no templo foi para o parreiral e comeou a trabalhar, arrancando ervas daninhas. Fazia calor e em pouco tempo ele comeou a suar e tirou a camisa. Star trabalhou ao seu lado. Aps uma ou duas horas ela deu uma olhada no relgio. - Hora de fazer uma pausa - disse. - Vamos ouvir as notcias. Sentaram-se no carro de Priest, que ligou o rdio. O noticirio
repetiu o que tinham ouvido antes. Priest rangeu os dentes de tanta frustrao. - Que droga, o governo tem que dizer qualquer coisa logo! Star retrucou: - No esperamos que eles cedam j, esperamos? - No, mas eu esperava que houvesse uma mensagem qualquer, talvez um indcio de uma concesso. Puxa vida, a idia de suspender a construo de novas usinas eltricas no exatamente uma excentricidade. Milhes de pessoas na Califrnia provavelmente concordariam. Star fez que sim. - Respirar em Los Angeles j perigoso, pelo amor de Deus! No posso acreditar que haja quem realmente queira viver desse jeito. - Mas no acontece nada. - Bem, sempre pensamos que precisaramos dar uma demonstrao para que nos ouvissem. pgina 164 - mesmo - Priest hesitou e por fim desabafou: - Acho que estou com medo de que no funcione. - O vibrador ssmico? Ele hesitou de novo. No teria sido assim to franco com ningum, exceto com Star, e mesmo com ela j estava quase arrependido por ter confessado sua dvida. Mas j que comeara, era melhor acabar. - Tudo - explicou. - Tenho medo de que no haja terremoto e a estaremos perdidos. Ele viu que Star ficou um pouco chocada. Estava acostumada a v-lo absolutamente confiante quanto a tudo o que fazia. S que Priest nunca tinha feito uma coisa daquelas. Ao voltarem para o parreiral, ela disse: - Faa qualquer coisa com Flower hoje noite. - Como assim? - Passe algum tempo com ela. Faa alguma coisa com ela. Voc brinca com Dusty o tempo todo. Dusty tinha cinco anos. Era fcil distrair-se com ele. O menino era fascinado por tudo. Flower tinha treze, a idade em que tudo o que os adultos fazem parece burrice. Priest estava prestes a dizer isto, quando percebeu que havia outra razo para o que Star estava dizendo. Ela pensa que eu posso morrer amanh. A idia o atingiu com a fora de um soco. Ele sabia que o plano do terremoto era perigoso, claro, mas tinha considerado principalmente o perigo que ele prprio corria e o risco de deixar a comunidade sem um lder. No tinha imaginado Flower sozinha no mundo aos treze anos de idade. - O que farei com ela? - Ela quer aprender a tocar violo. Aquilo era novidade para Priest. Ele no era um grande violonista, mas sabia tocar canes folclricas e blues simples, o bastante para inici-la, pelo menos. Deu de ombros. - OK, comearemos de noite. Voltaram ao trabalho, mas poucos minutos depois foram
interrompidos quando Slow, com um sorriso que ia de orelha a orelha, gritou: pgina 165 - Ei, olha s quem est a! Priest levantou os olhos. A pessoa pela qual esperava era Melanie. Ela fora a San Francisco entregar Dusty ao pai. Era a nica pessoa capaz de dizer a Priest exatamente onde usar o vibrador ssmico e ele no se sentiria vontade enquanto ela no estivesse de volta. Mas era cedo demais para esper-la, e, de qualquer modo, Slow no se entusiasmaria tanto se fosse Melanie. Ele viu um homem descendo a colina, seguido por uma mulher carregando uma criana. Priest fechou a cara. Era comum que se passasse um ano sem que aparecesse um nico visitante no vale. Naquela manh tinha sido o policial; agora aquelas pessoas. Mas seriam estranhos? Ele estreitou os olhos. O modo de caminhar deslizante do homem era terrivelmente familiar. Quando os vultos chegaram mais perto, Priest disse: - Meu Deus, mesmo o Bones? - ele, sim! - exclamou Star, entusiasmada. - Nossa me! - e saiu correndo na direo dos recm-chegados. Spirit associou-se sua excitao e saiu correndo com ela, latindo. Priest seguiu-os mais devagar. Bones, cujo verdadeiro nome era Bel Owens, fora um Comedor de Arroz. Mas gostava do modo como as coisas eram antes da chegada de Priest. Deliciava-se com a vida da mo para a boca dos primeiros tempos da comunidade. Sentia prazer com as crises constantes e gostava de ficar bbado ou chapado - ou ambos - algumas horas depois de acordar. Tocava blues na gaita de boca com brilho extraordinrio e foi o mendigo mais bem-sucedido que tiveram. Bones no se integrara a uma comunidade para encontrar trabalho, autodisciplina e um ato de devoo dirio. Assim, aps alguns anos, quando se tornou claro que o regime Priest-Star era permanente, Bones foi embora. E nunca mais aparecera. Agora, depois de mais de vinte anos, estava de volta. Star atirou-se a ele, abraou-o com fora e beijou-lhe os lbios. Aqueles dois tinham tido um caso muito srio. Todos os homens na comunidade dormiam com Star naquele tempo, mas ela sempre tivera um fraco por Bones. Priest sentiu uma pontada de cime quando viu Bones apertar o corpo de Star de encontro ao seu. pgina 166 Quando se soltaram, Priest pde ver que Bones no estava bem. Sempre fora magro, mas agora dava a impresso de que estava morrendo de fome. Sempre deixara crescer o cabelo de qualquer maneira, assim como a barba, mas agora esta parecia mais emaranhada que nunca e o cabelo dava a impresso de estar caindo aos montes. A cala-jeans e a camiseta estavam sujos e uma das botas de caubi perdera o salto. Ele veio porque est com problema. Bones apresentou a mulher como Debbie: Era mais moa que ele, no
tinha mais que vinte e cinco anos, bonita, com um jeito tenso, sofrido. A criana teria uns dezoito meses de idade. Tanto ela quanto o beb eram quase to magros e sujos quanto Bones. Estava na hora da refeio do meio-dia. Levaram Bones para a cozinha comunitria. O almoo era uma sopa de cevada em gro, temperada com as ervas cultivadas por Garden. Debbie comeu vorazmente e alimentou a criana, mas Bones s tomou umas colheradas e acendeu um cigarro. Falou-se muito sobre os velhos tempos. Bones disse: - Vou contar para vocs minha lembrana favorita. Uma tarde, bem ali naquela colina, Star me explicou o que era cunilngua. Houve um frouxo de riso em torno da mesa. Tratava-se de uma risada ligeiramente embaraada, mas Bones no percebeu e continuou. - Eu tinha vinte anos de idade e no sabia que as pessoas faziam aquilo. Fiquei chocado. Mas ela me fez experimentar. E o gosto! Que nojo! - Havia muita coisa que voc no sabia - disse Star. Lembro de voc dizendo que no conseguia entender por que s vezes sentia dor de cabea pela manh e eu tive que explicar que isso acontecia sempre que tomava um porre na noite anterior. Voc no sabia o significado da palavra "ressaca". Ela mudara habilmente de assunto. Nos velhos tempos teria sido perfeitamente normal falar sobre cunilngua mesa da comida, mas as coisas tinham mudado desde que Bones se fora. Ningum jamais fizera questo de que a linguagem fosse mais limpa, mas acontecera naturalmente medida que as crianas comearam a ganhar mais entendimento. pgina 167 Bones estava nervoso, rindo muito, esforando-se demais para ser amistoso, irrequieto, fumando um cigarro depois do outro. Ele quer alguma coisa. Mas vai me dizer o que dentro de muito pouco tempo. Quando tiraram a mesa e lavaram as tigelas, Bones levou Priest para um canto e disse: - Tenho uma coisa que quero mostrar a voc. Vamos. Priest deu de ombros e o acompanhou. Priest pegou um saquinho com maconha e um mao de papis de cigarro. Os membros da comunidade geralmente no fumavam maconha durante o dia, porque reduzia o ritmo do trabalho no parreiral, mas hoje era um dia especial e Priest sentiu necessidade de acalmar os nervos. Enquanto subiam a colina e atravessavam as rvores, ele enrolou um baseado com a facilidade conferida pela longa prtica. Bones lambeu os lbios. - Voc no tem nada mais forte, tem? - O que que voc est usando atualmente, Bones? - Um pouquinho de acar mascavo aqui e ali, sabe como , , para manter a cabea limpa. Herona. Ento era isso. Bones virara um adicto, um viciado em herona. - No temos nenhuma herona aqui - disse Priest. - Ningum usa herona. E eu vou me livrar de quem quer que use , mais depressa do que
voc consegue piscar um olho. Priest acendeu o baseado. Quando chegaram na clareira onde os carros estavam estacionados, Bones disse: - L est. A princpio Priest no conseguiu perceber o que ele estava olhando. Tratava-se de um caminho, mas de que tipo? Era pintado com um desenho alegre em vermelho e amarelo e do lado havia a figura de um monstro pondo fogo pela boca e um letreiro nas mesmas cores vulgares. pgina 168 Bones, que sabia que Priest no sabia ler, disse: - A Boca do Drago. um brinquedo de mafu. Priest entendeu ento. Muitos brinquedos pequenos de mafu so montados em caminhes. O motor do caminho serve para acionar o brinquedo. Este pode ser dobrado e transportado pelo prprio caminho quando seque para o novo local. Priest passou o baseado para Bones e perguntou: - seu? Bones puxou uma longa tragada, sustentou a fumaa no pulmo e soprou antes de responder. - Ganhei minha vida com isso a durante dez anos. Mas precisa de manuteno, e no posso pagar. Por isso tenho que vender. Priest pde ver o que estava por vir. Bones puxou outra tragada, mas desta vez no devolveu o baseado. - Provavelmente vale cinqenta mil dlares, mas estou pedindo dez. Priest aquiesceu. - Parece uma pechincha... para algum. - Talvez vocs possam comprar - disse Bones. - Que porra vou fazer com um brinquedo de mafu, Bones? - E um bom investimento. Se voc tiver um mau ano com o vinho, pode sair com ele e fazer algum dinheiro. Eles tinham maus anos, s vezes. Mas Paul Beale estava sempre disposto a lhes dar crdito. Ele acreditava nos ideais da comunidade, muito embora no tivesse sido capaz de viver de acordo com eles. E sabia que sempre haveria uma outra safra no ano seguinte. Priest sacudiu a cabea. - De jeito nenhum. Mas eu lhe desejo sorte, velho camarada. Continue tentando que acabar encontrando um comprador. Bones devia ter imaginado que era uma tentativa com muito pouca chance de sucesso, mas mesmo assim pareceu entrar em pnico. - Ei, Priest, quer saber mesmo a verdade? Estou em pssima situao. Ser que no d para me emprestar mil pratas? J serviria para ajeitar a vida. pgina 169 Serviria para voc ficar chapado, isso que voc quer dizer. Alguns dias depois estaria de volta ao mesmo ponto de antes. - Ns no temos dinheiro - disse Priest. - No usamos dinheiro aqui,
no se lembra? Bones fez uma cara de sabido. - Voc tem que ter uma grana escondida, cara, deixa disso. E voc acha que eu ia lhe contar que tenho? - Desculpe, meu chapa, no posso ajudar. Bones balanou a cabea. - uma situao difcil, cara, srio. Estou metido numa tremenda complicao. - E no vai se aproveitar quando eu estiver de costas para pedir a Star, porque vai ter a mesma resposta - disse Priest, endurecendo a voz. - Est me ouvindo? - Claro, claro - disse Bones, parecendo assustado. - Fica frio, Priest, fica frio, cara. - Estou frio. *** Priest se preocupou com Melanie toda a tarde. Ela podia ter mudado de idia e decidido voltar para o marido ou simplesmente se apavorado e dado o fora no seu carro. Ento, tudo estaria terminado. No havia como ele ou qualquer outra pessoa interpretar os dados do disquete de Michael Quercus e decidir onde instalar o vibrador ssmico. Mas ela apareceu no fim da tarde, para seu grande alvio. Ele contou que Flower fora presa e advertiu-a que uma ou mais pessoas queriam pr a culpa nela e em suas roupas bonitas. Melanie disse que ia pegar umas roupas de trabalho na loja comunitria. Aps a ceia, Priest foi cabana de Song e pegou o violo dela. - Est usando? - perguntou, polidamente. Jamais diria "Posso pegar seu violo emprestado?" porque em teoria toda a propriedade era comum a todos, de modo que o violo era tanto dele quanto dela, mesmo que tivesse sido fabricado pela prpria Song. No entanto, na prtica todos sempre pediam as coisas emprestadas. pgina 170 Sentou diante da sua cabana com Flower e afinou o violo. Spirit, o cachorro, prestou ateno, como se tambm ele fosse aprender a tocar. - A maioria das canes tm trs acordes - comeou Priest. - Se voc souber trs acordes ser capaz de tocar nove em dez canes de todo o mundo. Mostrou o acorde em d. Enquanto ela lutava para comprimir as cordas com as pontas macias dos dedos, ele estudou seu rosto luz do final da tarde: a pele perfeita, o cabelo escuro, os olhos verdes como os de Star, a ruguinha na testa quando se concentrava. Tenho que permanecer vivo para cuidar de voc. Pensou em si prprio com a idade dela, j um criminoso, experiente, treinado, acostumado com a violncia, odiando a polcia e desprezando os cidados comuns, idiotas o bastante para se deixarem ser roubados. Aos treze anos eu j dera errado. Estava determinado a no permitir que acontecesse a mesma coisa com Flower. Ela fora criada em uma comunidade de paz e amor, sem ser
tocada pelo mundo que corrompera o pequeno Ricky Granger e o transformara em bandido antes que lhe crescesse a barba. Voc se dar bem, asseguro isso. Ela tocou o acorde e Priest percebeu que uma determinada cano ecoava em sua cabea desde a chegada de Bones. Era uma cano folclrica dos anos 60 de que Star sempre gostara. Mostre-me a priso Mostre-me a cadeia Mostre-me o prisioneiro Cuja vida estagnou - Vou lhe ensinar uma cano que sua me costumava cantar quando voc era beb - disse ele. Pegou o violo das mos dela. - Voc se lembra disso? - E cantou: pgina 171 Vou lhe mostrar um rapaz Com tantas razes pelas quais Na cabea dele, Priest ouvia a voz inconfundvel de Star, grave e sexy naquele tempo como agora. L, a no ser que a sorte ajude Vai voc ou vou eu Voc ou eu. Priest era mais ou menos da mesma idade de Bones, e Bones estava morrendo. Priest no tinha a menor dvida. Em breve, a garota e a criana o abandonariam. Ele mataria o prprio corpo de fome para alimentar o vcio. Poderia acabar com uma overdose ou se envenenar com drogas de m qualidade, ou ento abusar do organismo at que ele cedesse e sobreviesse uma pneumonia. De um modo ou de outro, era um homem morto. Se eu perder este lugar, seguirei o mesmo caminho de Bones. Enquanto Flower lutava para tocar o acorde de l menor, Priest brincou com a idia de retornar sociedade normal. Imaginou-se indo todo o dia para o trabalho, comprando meias e sapatos de liquidao, dono de um aparelho de televiso e de uma torradeira. O pensamento o deixou nauseado. Nunca vivera certinho. Fora criado num prostbulo, educado nas ruas, tinha sido durante pouco tempo o proprietrio de um negcio semilegtimo e, na maior parte da vida, agira como lder de uma comunidade hippie isolada do mundo. Ainda se lembrava bem do nico emprego certinho que tivera. Aos dezoito anos fora trabalhar para os Jenkinsons, o casal que administrava a loja de bebidas na mesma rua, um pouco mais abaixo. Naquele tempo os considerava velhos, mas via agora que no teriam mais que cinqenta anos. Sua inteno fora trabalhar o tempo suficiente para descobrir onde guardavam o dinheiro e depois roub-lo. Mas a aprendera algo a respeito de si mesmo. pgina 172 Descobriu que tinha um raro talento para aritmtica. A cada manh o Sr. Jenkinson punha dez dlares na mquina registradora para troco. medida que os fregueses compravam suas bebidas, pagavam e tinham troco a receber, ou Priest os servia ele prprio ou ouvia um dos Jenkinsons cantar o total em voz alta: - Um dlar e vinte e nove, por favor, Sra. Roberts - ou: - Trs dlares redondos, senhor.
Os nmeros pareciam se somar sozinhos dentro da sua cabea. Durante o dia inteiro Priest sempre sabia exatamente quanto dinheiro havia para troco e no fim do dia podia dizer o total ao Sr. Jenkinson antes dele contar. De tanto ouvir o Sr. Jenkinson conversar com os vendedores que apareciam na loja, em pouco tempo ele sabia o preo de atacado e de varejo de cada item existente na loja. Da em diante, o contador automtico existente em seu crebro calculava o lucro em cada transao e ele ficou assombrado com quanto dinheiro os Jenkinsons conseguiam fazer sem roubar ningum. Arranjou para que a loja fosse roubada quatro vezes em um ms e depois fez uma oferta para compr-la. Quando negaram, providenciou um quinto assalto e desta vez assegurou-se de que a Sra. Jenkinson levasse uma surra. Dessa vez, ento, o Sr. Jenkinson aceitou sua oferta. Priest pagou o depsito com um emprstimo feito no agiota do bairro e as prestaes com o dinheiro que ganhava com a loja. Embora fosse incapaz de ler ou escrever, sabia sempre com exatido sua posio financeira. Ningum conseguia fraud-lo. Uma vez empregou uma senhora de meia-idade e aparncia respeitvel que roubava um dlar da mquina registradora a cada dia. No fim da semana deduziu cinco dlares do seu salrio, deu-lhe uma surra e disse para que nunca mais aparecesse. Ao longo de um ano ele tinha quatro lojas; dois anos mais tarde tinha um atacado de bebidas; em trs anos era milionrio e no fim do quarto ano transformara-se num fugitivo. s vezes perguntava-se o que podia ter acontecido se tivesse pago tudo ao agiota, fornecido nmeros honestos ao seu contador para fazer a declarao de renda e aceito um acordo com a polcia de Los Angeles por conta das acusaes de fraude. Talvez hoje tivesse uma firma to grande quanto a Coca-Cola e estivesse morando em uma daquelas manses em Beverly Hills, com um jardineiro, um rapaz encarregado da piscina e cinco carros na garagem. pgina 173 Mas ao tentar imaginar esse quadro, sabia que nunca poderia ter acontecido. No seria ele. O cara que descia a escada da manso metido num robe branco e que friamente mandava a criada preparar um copo de suco de laranja tinha o rosto de outra pessoa. Priest nunca poderia viver no mundo quadrado. Sempre tivera problemas com regulamentos; jamais pudera obedecer a regras impostas por outras pessoas. Era este o motivo pelo qual se encontrava ali. Aqui no vale eu fao as regras, eu mudo as regras, eu sou as regras. Flower disse-lhe que os dedos doam. - Ento est na hora de parar - disse Priest. - Se quiser, amanh ensino outra cano. Se eu ainda estiver vivo. - Seus dedos tambm doem? - No, mas porque estou acostumado. Depois de praticar um pouco, crescem uns calos nas pontas dos dedos, assim como a pele do calcanhar fica mais grossa. - Noel Gallagher tem calos duros nas pontas dos dedos?
- Se ele for um guitarrista pop... - Claro! Ele toca na banda Oasis! - Bem, ento tem. Voc acha que gostaria de ser msica? - No. - A resposta foi bastante decidida. Voc tem alguma outra idia? Ela pareceu culpada, como se soubesse que ele ia desaprovar, mas reuniu toda sua coragem e disse: - Quero ser escritora. Ele no sabia ao certo como se sentia. Seu pai jamais conseguir ler o seu trabalho. Mas fingiu entusiasmo. -Legal! Que tipo de escritora? - Dessas que escrevem em revistas. Tipo Teen, talvez. pgina 174 - Por que? - Porque voc conhece estrelas do cinema e televiso e as entrevista e escreve sobre moda e pintura. Priest cerrou os dentes e tentou no demonstrar o nojo que sentia. - Bem, de qualquer maneira gosto da idia de que voc possa vir a ser uma escritora. Se vier a escrever poesia e histrias, em vez de artigos para revistas, poder continuar morando aqui. - sim, talvez - concordou ela, incerta. Priest podia ver que ela no planejava passar ali o resto de sua vida. Mas era jovem demais para entender. Quando tivesse idade suficiente para decidir sozinha, teria um ponto de vista diferente. o que espero. Star aproximou-se. - Hora da verdade - disse. Priest tirou a guitarra de Flower. - V se aprontar para dormir agora - disse. Ele e Star dirigiram-se para o crculo do estacionamento, deixando o violo na cabana de Song. Encontraram Melanie sentada no banco de trs do `Cuda, ouvindo rdio. Vestira uma camiseta amarela e uma cala de brim azul da loja comunitria. Ambas as peas eram grandes demais para ela, que enfiara a camiseta dentro da cala, e a apertara com um cinto, destacando a cintura muito fina. Continuava to sexy quanto antes. John Truth tinha uma voz nasalada que podia tornar-se quase hipntica. Sua especialidade era dizer em voz alta coisas em que seus ouvintes acreditavam do fundo do corao mas que tinham vergonha de admitir. Basicamente repetia bobagens padronizadas caractersticas de porcos fascistas: a AIDS era uma punio para o pecado, a inteligncia era herdada racialmente, o que o mundo precisava era de mais disciplina, todos os polticos eram burros e corruptos e coisas do gnero. Priest imaginava que sua audincia compunha-se basicamente de homens brancos e gordos que aprendiam tudo o que sabiam nos bares. - Esse cara - disse Star- tudo o que odeio neste pas: preconceituoso, hipcrita, moralista e, na verdade, burro pra cacete. pgina 175
- um fato - concordou Priest. - Vamos ouvir. Truth estava dizendo: - Vou ler uma vez mais a declarao feita pelo secretrio do gabinete do governador, o Sr. Honeymoon. Os plos da nuca de Priest se eriaram e Star disse: - Aquele filho da me! - Honeymoon era o homem por trs do esquema da inundao do vale e eles o odiavam. John Truth prosseguiu, falando lenta e ponderadamente, como se cada slaba fosse significativa. - Prestem ateno. "O FBI investigou a ameaa que apareceu num BBS da Internet no dia primeiro de maio. A investigao determinou que no h substncia na ameaa." O corao de Priest ficou pequenino. Era aquilo mesmo que esperava, mas ao mesmo tempo estava assombrado. Tinha esperado pelo menos o indcio qualquer de uma concesso. Honeymoon, contudo, parecia ser completamente intratvel. Truth continuou lendo. - "O governador Mike Robson, seguindo a recomendao do FBI, decidiu no tomar providncias"; esta, meus amigos, foi a declarao em sua totalidade - Truth, bvio, achara que a declarao fora ultrajantemente curta. - Esto satisfeitos? O prazo fatal dos terroristas termina amanh. Vocs se sentem tranqilizados, caros ouvintes? Telefonem para John Truth agora a fim de dizerem ao mundo o que pensam. Priest disse: - Isto significa que vamos ter que agir. Melanie retrucou: - Bem, nunca esperei que o governador fosse ceder sem uma demonstrao. - Eu tambm no, acho - ele franziu a testa. - A declarao mencionou o FBI duas vezes. A mim me parece que Mike Robson est se preparando para culpar os federais se as coisas sarem errado. O que me faz pensar se, no fundo do corao, ele no estar meio inseguro. - Assim, se lhe dermos uma prova de que realmente somos capazes de causar um terremoto... - Talvez ele pense uma segunda vez. Star pareceu deprimida. pgina 176 - Que merda! - exclamou. - Acho que eu tinha esperana de que no tivssemos de fazer isso. Priest ficou alarmado. No queria que Star sentisse medo naquela hora. Seu apoio era necessrio para conduzir os outros Comedores de Arroz. - Podemos fazer isso sem machucar ningum - disse. - Melanie escolheu a locao perfeita - ele virou-se para o banco de trs. - Conte para Star o que conversamos. Melanie inclinou-se para a frente e desdobrou um mapa para que Star e Priest pudessem v-lo. Ela no sabia que Priest no era capaz de ler mapas. - Aqui est a falha do vale de Owens - disse, apontando uma linha vermelha. - Nele houve importantes terremotos em 1790 e 1812, de modo
que outro est por acontecer. Star ficou curiosa. - No vai me dizer que os terremotos acontecem segundo uma tabela previsvel? - No. Mas a histria da falha mostra que se acumula presso suficiente para um terremoto no decurso aproximado de um sculo. O que significa que podemos causar um agora se formos para o local correto. - E onde ? - indagou Star. Melanie indicou um ponto no mapa. - Mais ou menos aqui. - Voc no pode ser exata? - No enquanto eu no chegar l. Os dados de Michael designam um ponto com aproximao de mil e quinhentos metros, mais ou menos. Quando eu olhar a paisagem, serei capaz de precisar o ponto. - Como? - Indcios de terremotos anteriores. - OK. - Agora, a melhor ocasio, segundo a janela ssmica de Michael, ser entre uma e meia e duas e vinte. - Como voc pode ter certeza de que ningum se machucar? - Olha s o mapa. O vale de Owens escassamente povoado, s umas poucas cidadezinhas ao longo de um leito seco. O ponto que escolhi fica a quilmetros de qualquer habitao. pgina 177 Priest acrescentou. - Podemos ter certeza de que o terremoto ser de pequena intensidade. Os efeitos dificilmente sero sentidos na cidade mais prxima - Priest sabia que aquilo no era certo, da mesma forma que Melanie; mas ele lhe dirigiu um olhar penetrante, e ela, portanto, no o contestou. Star disse: - Se os efeitos mal sero sentidos, ningum vai dar a mnima. Por que ento nos darmos ao trabalho? Ela estava sendo do contra, mas era apenas um sinal de como estava tensa. Priest respondeu: - Dissemos que amos causar um terremoto amanh. Assim que tivermos conseguido, ligaremos para John Truth pelo telefone celular de Melanie e lhe diremos que cumprimos nossa promessa. Que momento glorioso ser esse, que sensao! - Ele acreditar em ns? - Vai ter que acreditar - respondeu Melanie - quando consultar o sismgrafo. - Imagine como o governador Robson e sua gente iro se sentir - Priest podia distinguir a exultao na prpria voz. Especialmente aquele panaca do Honeymoon. Vo dizer algo como: "Porra! Esses caras so mesmo capazes de causar terremotos, cara. Que que ns vamos fazer?" - E depois? - quis saber Star. - Depois ameaamos repetir a dose. Mas desta vez no daremos um ms. Daremos a eles uma semana.
- Como faremos a ameaa? Da mesma maneira que antes? Foi Melanie quem respondeu. - Acho que no. Tenho certeza de que eles tm um jeito de monitorar a BBS e rastrear o telefonema. E se usarmos uma outra BBS, correremos o risco de ningum tomar conhecimento da nossa mensagem. Lembrem-se de que se passaram trs semanas at que John Truth veio a saber da primeira. pgina 178 - Quer dizer ento que telefonamos e os ameaamos com um segundo terremoto. Priest interveio. - Mas da prxima vez no ser numa regio remota, e sim num lugar onde possam ser causados danos reais - ele percebeu o olhar apreensivo de Star. - No precisamos falar a srio - acrescentou. - Uma vez que tivermos mostrado nosso poder, apenas a ameaa ter de ser suficiente. Star exclamou: - Inshallah - ela aprendera a palavra com Poem, que era argelina. - Se Deus quiser. *** Estava escuro como breu quando saram na manh seguinte. O vibrador ssmico no fora visto luz do dia em um raio de cento e cinqenta quilmetros do vale, e Priest queria que continuasse assim. Planejava sair e voltar no escuro. A viagem de ida e volta somaria cerca de oitocentos quilmetros, onze horas dirigindo um caminho com a velocidade mxima de setenta quilmetros por hora. Levariam o `Cuda como reforo, Priest decidira. Oaktree iria com eles a fim de compartilhar a tarefa de dirigir. Priest usou a lanterna para iluminar o caminho por entre as rvores at o local onde o caminho ficara escondido. Os quatro iam silenciosos, cheios de ansiedade. Levaram meia hora para remover os galhos que tinham empilhado em cima do veculo. Sentia-se tenso quando finalmente sentou-se atrs do volante, enfiou a chave na ignio e ligou o motor. Funcionou de primeira, com um ronco satisfatrio, e ele exultou. As casas da comunidade ficavam a uns dois quilmetros, e ele tinha certeza de que ningum ouviria o motor quela distncia. A floresta densa abafava o barulho. Mais tarde, claro, todo mundo notaria que quatro membros da comunidade tinham desaparecido. Aneth fora instruda para explicar que eles tinham ido a um parreiral que Paul Beale queria que vissem em Napa, onde fora plantada uma nova videira hbrida. No eram comuns as viagens para fora da comunidade; mas haveria poucas perguntas, porque ningum gostava de desafiar Priest. pgina 179 Ele acendeu os faris e Melanie instalou-se ao seu lado. Depois foi s
engrenar a primeira, dirigir a pesada viatura por entre as rvores at a trilha de terra, subir a elevao e rumar para a estrada. Os pneus apropriados a qualquer terreno ultrapassaram com facilidade as depresses e as imensas poas d'gua. Jesus, eu s queria saber se isso vai funcionar. Um terremoto? Deixa isso! Mas tem que funcionar. Ele pegou a estrada e seguiu na direo leste. Vinte minutos depois tinham sado do vale e chegado na Rota 89. L Priest virou para o sul. Verificou nos espelhos e viu que Star e Oaktree ainda estavam atrs, no `Cuda. Ao seu lado, Melanie mostrava-se muito calma. Sondando delicadamente, ele perguntou: - Dusty estava bem ontem noite? - timo, ele gosta de visitar o pai. Michael sempre conseguiu encontrar tempo para ele, nunca para mim. A amargura de Melanie era costumeira. O que surpreendeu Priest foi sua falta de medo. Ao contrrio dele, no estava muito preocupada com o que aconteceria com o filho caso morresse hoje. Parecia completamente confiante de que nada sairia errado, que o terremoto no a atingiria. Seria por saber mais que Priest? Ou era o tipo de pessoa que simplesmente ignorava os fatos desagradveis? Priest no sabia ao certo. De madrugada eles estavam contornando a extremidade norte do lago Tahoe. A gua imvel parecia um disco de ao polido cado entre as montanhas. O vibrador ssmico era um veculo que se destacava na estrada sinuosa que acompanhava a orla de pinheiros do lago, mas os turistas ainda dormiam e o caminho foi visto apenas por uns poucos trabalhadores de olhos vermelhos de sono, a caminho de seus empregos nos hotis e restaurantes. Quando o sol raiou eles se encontravam na rodovia federal US 395, do outro lado da fronteira, em Nevada, rodando rumo ao sul por uma plancie desrtica. Descansaram um pouco numa parada para caminhes, estacionando o vibrador ssmico em um ponto de onde no podia ser visto da estrada, e comeram um desjejum de omeletes gordurosas moda do oeste e caf aguado. pgina 180 Quando a estrada entrou de novo na Califrnia, subiu a cadeia de montanhas e por umas duas horas o cenrio foi majestoso, com trechos ngremes cobertos de florestas, uma verso maior do vale onde moravam. A parada seguinte foi ao lado de um espelho d'gua prateado que Melanie disse ser o lago Mono. Logo depois, eles se viram em uma estrada de pista dupla que seguia reta ao longo de um vale comprido e poeirento. O vale foi se alargando at que as montanhas do lado mais distante desapareceram em uma nvoa azul no horizonte, depois estreitou-se de novo. O solo de ambos os lados da estrada era bege e pedregoso, com umas touceiras de capim baixo aqui e ali. No havia rio, mas os trechos lisos do terreno onde o sal se depositara lembravam uma distante superfcie de gua.
Melanie disse: - Isto aqui o vale do rio Owens. A paisagem deu a Priest a sensao de que um desastre qualquer ocorrera naquela regio. - O que foi que aconteceu aqui? - perguntou ele. - O rio secou porque a gua foi desviada para Los Angeles h alguns anos. Passavam por uma cidadezinha sonolenta mais ou menos a cada quarenta quilmetros. Agora no havia como passar despercebido. Havia pouco trfego, e o vibrador ssmico atraa olhares curiosos em cada sinal onde paravam. Muitos homens iam se lembrar dele. Sim, eu vi aquele caminho, sim. Parecia desses que trabalham em asfaltamento ou algo assim. O que era, afinal? Melanie ligou o laptop, desdobrou o mapa e disse, em tom de devaneio: - Em algum ponto debaixo de ns, duas vastas placas da crosta terrestre esto presas uma na outra, lutando para se livrarem. pgina 181 A idia gelou Priest. Mal podia acreditar que pretendia liberar toda aquela fora destruidora. Eu devo estar maluco. - Um ponto qualquer nos prximos oito ou dezesseis quilmetros - disse ela. - Que horas so? - Uma e pouco. Tinham conseguido fazer no tempo exato. A janela ssmica se abriria em meia hora e estaria fechada cinqenta minutos mais tarde. Melanie fez Priest pegar uma sada lateral que atravessava o vale. No chegava a ser uma estrada, s uma trilha aberta no meio da vegetao e dos mataces de pedra. Embora o terreno parecesse quase nivelado, a estrada principal desapareceu de vista s costas deles, que agora viam apenas a parte de cima dos caminhes altos que passavam. - Pare aqui - disse Melanie por fim. Priest parou o caminho e os dois saltaram. O sol os castigou, brilhando em um cu impiedoso. O `Cuda parou logo atrs e Star e Oaktree saltaram, esticando os braos e pernas aps a longa viagem. - Olha s aquilo ali - disse Melanie. - Est vendo a ravina seca? Priest viu onde um curso de gua, muito tempo atrs, secara e escavara um canal no solo pedregoso. Mas para onde Melanie apontava, a ravina terminava de forma abrupta, como se tivesse sido represada. - Estranho - comentou ele. - Agora olhe s uns metros direita. Priest seguiu o dedo dela. O canal escavado pela gua comeava de novo to abruptamente quanto terminara e continuava na direo do meio do vale. Priest percebeu o que ela apontava. - Aquela a linha da falha - disse ele. - A ltima vez em que houve um terremoto, todo um lado do vale deslocou-se lateralmente uns cinco metros e se acomodou de novo. - isso a - concordou Melanie.
pgina 182 Oaktree perguntou: - E estamos prestes a fazer com que isso acontea de novo, certo? havia uma nota de assombro na voz dele. - Vamos tentar - disse Priest bruscamente. - E no temos muito tempo ele se virou para Melanie. - O caminho est no lugar certo? - Acho que sim - respondeu Melanie. - Poucos metros para um lado ou para o outro na superfcie no devero fazer muita diferena oito mil metros abaixo do nvel do solo. - OK - ele hesitou. Quase sentia que devia fazer um discurso. Disse: - Bem, vou comear. Entrou na cabina do caminho e ajeitou-se no banco do motorista. Ligou o motor que fazia o vibrador funcionar. Acionou a alavanca que abaixava a placa de ao at o solo. Colocou o vibrador para sacudir por trinta segundos na freqncia mdia. Olhava atravs da janela de trs e verificava os controles. Todas as leituras normais. Por fim, pegou o controle remoto que funcionava por ondas de rdio e saltou do caminho. - Tudo pronto - disse. Os quatro entraram no `Cuda. Oaktree assumiu a direo. Voltaram at a estrada, cruzaram-na e se enfiaram no meio dos arbustos do lado mais distante. Subiram mais ou menos a metade da encosta e, por fim, Melanie disse: - Aqui est bom. Oaktree parou o carro. Priest esperava que no estivessem chamando a ateno de quem passasse na estrada. Se fossem vistos de l, no havia nada que pudesse fazer. Mas as cores esmaecidas da pintura lateral do `Cuda se misturavam bem com a paisagem cor de terra. Oaktree estava nervoso. - Estamos bastante longe? - Acho que sim - respondeu Melanie friamente. Ela no estava nem um pouco amedrontada. Ao contrrio, examinando-lhe o rosto, Priest reconheceu um indcio de louca excitao em seus olhos. Uma coisa quase sexual. Estaria se vingando dos sismlogos que a tinham rejeitado, ou do marido que a desapontara ou do maldito mundo? Qualquer que fosse a explicao, estava se excitando enormemente com o que fazia. pgina 183 Saltaram e se detiveram, contemplando o vale. Podiam ver apenas a parte de cima do caminho. Star dirigiu-se a Priest: - Foi um erro ns dois virmos. Se morrermos, Flower ficar sem ningum. - Ela tem toda a comunidade - retrucou Priest. - Voc e eu no somos os nicos adultos que ela ama e em quem confia. No somos uma famlia nuclear, e a est uma boa razo para no sermos. Melanie pareceu aborrecida. - Estamos a uns quinhentos metros da falha, presumindo que ela corra pela calha do vale - disse, num tom de voz que os advertia para porem um
ponto final naquele papo furado. - Vamos sentir a terra se deslocar, mas no correremos perigo. As pessoas que se ferem em terremotos geralmente so as atingidas por partes de construes: tetos que caem, pontes que desmoronam, vidros que voam, coisas desse gnero. Estaremos seguros aqui. Star olhou para trs, por cima do ombro. - A montanha no vai cair em cima de ns? - Pode ser. Da mesma maneira que todos ns podemos morrer em um acidente no trajeto de volta para Silver River Mas to improvvel que no deveramos perder tempo com isso. - E fcil para voc dizer - o pai do seu filho est a quinhentos quilmetros de distncia, em San Francisco. Priest disse: - No me importo se morrer aqui. No posso criar meus filhos nos subrbios ricos deste pas. Oaktree resmungou: - Isto tem que dar certo. Simplesmente tem que dar certo. - Pelo amor de Deus, Priest, no temos o dia inteiro. Aperte logo o maldito boto - ordenou Melanie. Priest olhou para os dois lados da estrada e esperou que um Jeep Grand Cherokee Limited verde-escuro passasse. - OK - disse, quando a estrada ficou vazia. - isso a. pgina 184 E apertou o boto do controle remoto. Ele ouviu o ronco do vibrador imediatamente, embora amortecido pela distncia. Sentiu tambm a vibrao nas solas dos ps, uma sensao muito tnue, mas definida, de que o cho tremia. - Oh, Deus! - exclamou Star. Uma nuvem de fumaa formou-se em torno do caminho. Os quatro estavam tensos como cordas de um violo, na expectativa do primeiro sinal de que a terra se movimentava. Passaram-se alguns segundos. Os olhos de Priest vasculharam a paisagem, procurando sinais do tremor, embora achasse que o sentiria antes de v-lo. Vamos, vamos! As turmas de explorao ssmica normalmente regulam o vibrador para uma "varredura" de sete segundos. Priest preferira que aquela durasse trinta segundos. Pareceu decorrer uma hora. Finalmente o rudo cessou. Melanie exclamou: - Que droga! O corao de Priest contraiu-se. No havia terremoto. Falhara. Talvez fosse apenas uma idia maluca de hippies, como fazer o Pentgono levitar. - Tente de novo - disse Melanie. Priest olhou para o controle remoto na sua mo. Por que no? Havia um caminho de dezesseis rodas aproximando-se pela US 395, mas desta vez Priest no esperou. Se Melanie estivesse certa, o caminho no seria afetado pelo tremor. Se Melanie estivesse enganada, todos eles
morreriam. Apertou o boto. O roncar distante teve incio, houve uma vibrao perceptvel no solo e uma nuvem de poeira escondeu o vibrador ssmico. Priest perguntou-se se a estrada no iria se abrir sob o caminho de dezesseis rodas. pgina 185 Nada aconteceu. Os trinta segundos decorreram mais rapidamente desta vez. Priest ficou surpreso quando o barulho parou. s isso? O desespero o dominou. Talvez a comunidade deles fosse um sonho que tivesse chegado ao fim. O que que eu vou fazer? Onde vou morar? Como posso evitar ter um fim igual ao de Bones? Mas Melanie no estava pronta para desistir. - Vamos deslocar o caminho um pouco e tentar de novo. - Mas voc disse que a posio exata no importava. "Poucos metros para um lado ou para o outro na superfcie no devero fazer muita diferena a oito mil metros abaixo do nvel do solo", foi o que voc disse. - Ento nos deslocaremos mais alguns poucos metros retrucou Melanie, furiosa. - O tempo est acabando, vamos! Priest no discutiu. Ela estava transformada. Normalmente era dominada por ele. Era uma mocinha em perigo, ele a salvara e ela to agradecida por isso tinha de ser eternamente submissa sua vontade. Mas agora era Melanie quem estava por cima, impaciente e dominadora. Priest podia tolerar isto desde que ela fosse capaz de fazer o que prometera. Depois a colocaria na linha de novo. Entraram no `Cuda e venceram rapidamente a distncia que os separava do vibrador ssmico. Ento, Priest e Melanie subiram na cabina e ela foi dando as instrues enquanto ele dirigia, com Oaktree e Star seguindo de carro. No foram mais pela trilha, e sim cortando caminho direto atravs da vegetao. As enormes rodas do caminho esmagavam os arbustos e rolavam com facilidade por cima das pedras, mas Priest temia que o `Cuda, que era um carro baixo, pudesse ficar danificado. Achou que Oaktree iria buzinar se tivesse algum problema. Melanie examinou a regio em busca de algo que indicasse onde corria a linha da falha. Priest no viu mais leitos de cursos de gua deslocados. Mas uns quinhentos metros depois, Melanie apontou para o que parecia uma mini-escarpa, com cerca de um metro e meio de altura. pgina 186 KEN FOILETT - Conseqncia da falha - disse ela. - Ter uns cem anos de idade. - Estou vendo - confirmou Priest. Havia uma parte cncava na base, lembrando uma tigela; e uma falha irregular na orla da tigela mostrava onde a terra se deslocara lateralmente, como se tivesse havido uma rachadura depois colada desajeitadamente.
- Vamos tentar aqui - disse Melanie. Priest parou o caminho e arriou o prato. Rapidamente ele verificou de novo os medidores e ajustou o vibrador. Desta vez programou uma varredura de sessenta segundos. Quando tudo estava pronto saltou do caminho. Consultou o relgio, ansioso. Duas horas. Restavam apenas vinte minutos. Mais uma vez atravessaram com o `Cuda a US 395 e subiram a colina do outro lado. Os motoristas dos poucos veculos que passavam continuavam a ignor-los. Mas Priest estava nervoso. Mais cedo ou mais tarde algum perguntaria o que faziam ali. No queria ter que se explicar a um policial curioso ou a algum vereador abelhudo. Tinha pronta uma histria plausvel, de uma pesquisa universitria sobre a geologia do leito seco do rio, mas no queria que ningum se lembrasse do seu rosto. Todos saltaram do carro e dirigiram os olhares para o outro lado do vale, perto da escarpa que marcava a falha, onde tinha ficado o vibrador ssmico. Priest desejou de todo o corao que desta vez ele visse a terra se mover e se abrir. Vamos, Deus - me faa esse favor, est bem? Apertou o boto. O caminho roncou, a terra tremeu ligeiramente e a poeira subiu. A vibrao prosseguiu por todo um minuto, em vez de trinta segundos. Mas no houve terremoto. A diferena foi que esperaram mais tempo para se desapontarem. Quando o barulho cessou, Star disse: - Isso no vai dar certo, vai? Melanie dirigiu-lhe um olhar furioso e virou-se para Priest: - Voc pode alterar a freqncia das vibraes? pgina 187 - Posso - respondeu ele. - Deixei ajustado um valor mediano, de modo que posso subir ou descer. Por qu? - H uma teoria que diz que o tom em que produzida a vibrao pode ser um fator crucial. A terra ressoa constantemente com todos os tipos de vibraes. Por que ento no h terremotos o tempo todo? Talvez porque a vibrao tenha que ser no tom exato necessrio para desalojar as placas da falha. Sabe como uma nota musical pode espatifar um clice? - Nunca vi acontecer, exceto em um desenho animado, mas sei o que voc quer dizer. A resposta sim. Quando o vibrador usado em exploraes ssmicas, eles variam a freqncia da vibrao numa varredura de sete segundos. - mesmo? - Melanie ficou curiosa. - Por qu? - No sei. Talvez porque melhore a leitura dos geofones. De qualquer forma, no me pareceu a coisa certa para ns, por isso no selecionei esse recurso, mas possvel. - Vamos tentar. - OK - mas precisamos nos apressar. J so duas e cinco. Eles pularam no carro. Oaktree dirigiu depressa, derrapando na areia do deserto. Priest reconfigurou os comandos do vibrador para uma varredura de freqncia crescente num perodo de sessenta segundos. Quando voltaram correndo para o ponto de observao, consultou o relgio de novo.
- Duas e quinze - disse. - a nossa ltima chance. - No se preocupe - disse Melanie. - Acabou o meu estoque de idias. Se isto no funcionar, eu desisto. Oaktree parou o carro e eles saltaram de novo. A idia de voltar at Silver River sem nada para comemorar deprimiu Priest to profundamente que ele pensou que seria melhor bater com o caminho na estrada e terminar com tudo. Talvez fosse esta a sua sada. Gostaria de saber se Star ia querer morrer com ele. Posso ver a cena: ns dois, uma overdose de analgsicos, uma garrafa de vinho para engolir as plulas... - O que que voc est esperando? - perguntou Melanie. - So duas e vinte. Aperte o maldito boto! Priest apertou o boto. Como antes, o caminho roncou, o cho tremeu e uma nuvem de poeira se levantou da terra ao redor da placa de ao do vibrador. Mas desta vez o ronco no permaneceu no mesmo tom moderado: comeou em um tom muito grave e foi ascendendo gradualmente. pgina 188 A aconteceu. A terra debaixo dos ps de Priest pareceu ondular como um mar agitado. Depois ele sentiu como se algum tivesse segurado suas pernas e o derrubado. Caiu de costas na horizontal, batendo com fora no cho. Chegou a perder o flego. Star e Melanie gritaram ao mesmo tempo. Melanie deu um grito agudo e Star um urro de espanto e medo. Priest viu as duas carem, Melanie junto dele e Star a uns passos de distncia. Oaktree balanou, continuou de p, mas acabou caindo. Priest permaneceu silenciosamente apavorado. Consegui, acabou, vou morrer. Houve um barulho como o de um trem expresso passando bem junto deles. Soltou- se uma nuvem de poeira do solo; pequenos seixos voaram pelo ar e os mataces de pedra rolaram em todos os sentidos. O solo continuou a se mover como se algum tivesse segurado a ponta de um tapete e no parasse de sacudir. O efeito geral era uma sensao inacreditavelmente desorientadora, como se o mundo tivesse se tornado, de repente, um lugar completamente estranho. Apavorante. Eu no estou pronto para morrer. Priest conseguiu recuperar o flego e ajoelhar-se. Depois, quando conseguiu pr a sola de um p no cho, Melanie agarrou-o pelo brao e o puxou de novo para baixo. Ele gritou com ela: - Largue-me sua filha da puta burra! - mas nem ele pde ouvir a prpria voz. O solo subiu e o lanou colina abaixo, para longe do carro. Melanie caiu em cima dele. Priest achou que o carro podia virar por cima dos dois, e tentou rolar para fora da trilha dele. No podia ver Star ou Oaktree. Um graveto passou voando e bateu no seu rosto arranhando-o. A poeira o cegou momentaneamente e ele perdeu todo o senso de direo.
Encolheu-se, formando uma bola, cobrindo o rosto com os braos e esperou pela morte. pgina 189 Cristo, se vou morrer, queria morrer na companhia da Star. As sacudidelas pararam to repentinamente quanto tinham comeado. No fazia idia se haviam durado dez segundos ou dez minutos. Um momento depois o barulho cessou por completo. Priest esfregou os olhos e se levantou. Sua viso foi clareando lentamente. Viu Melanie a seus ps. Estendeu a mo e puxou-a. - Voc est bem? - perguntou. - Acho que sim - replicou ela, trmula. A poeira no ar foi diminuindo e ele viu Oaktree se levantando, meio sem firmeza. Onde estaria Star? S ento a viu a alguns metros de distncia. Estava deitada de costas com os olhos fechados. O corao dele confrangeu-se. Morta no, por favor, Deus, morta no. Ajoelhou-se ao lado dela. - Star! - exclamou, nervoso. - Voc est bem? Ela abriu os olhos. - Jesus - disse -, aquilo foi uma exploso! Priest sorriu, contendo as lgrimas de alvio. Ajudou-a a se levantar. - Estamos todos vivos - disse ele. A poeira estava assentando depressa. Do outro lado do vale, era possvel ver o caminho. De p e aparentemente intocado. A poucos metros dele havia uma grande fenda no solo, que corria na direo norte-sul pelo meio do vale, estendendo-se to longe quanto ele podia ver. - Bem, macacos me mordam - disse ele baixinho. - Olha s para aquilo. - Funcionou - respondeu Melanie. - Conseguimos - disse Oaktree. - Porra, ns causamos um filho da puta de um terremoto! Priest sorriu para todos eles. - verdade! - confirmou. Ele beijou Star, e depois Melanie; em seguida Oaktree beijou ambas e por fim Star beijou Melanie. pgina 190 Todos riram. Ento Priest comeou a danar. Foi uma espcie de dana ndia , ali no meio do vale fraturado, as botas chutando a poeira recm-depositada. Star veio se juntar a ele, e depois Melanie e Oaktree e os quatro rodaram e rodaram em crculo, gritando e berrando e rindo at que seus olhos se encheram de lgrimas. *** pgina 191 pgina 192
PARTE 2 Sete Dias pgina 193 8 Judy Maddox voltava de carro para casa em uma sexta-feira no final da pior semana da sua carreira no FBI. No podia imaginar o que fizera para merecer aquilo. Tudo bem, gritara com seu chefe, mas ele fora hostil com ela antes, de modo que tinha que haver outra razo. Fora a Sacramento na vspera com a inteno de fazer o Bureau parecer eficiente e competente, e acabara dando uma impresso de confuso e impotncia. Sentia-se frustrada e deprimida. Nada de bom lhe acontecera desde o encontro com Al Honeymoon. Ligara para professores de sismologia e os entrevistara pelo telefone. Perguntava se o professor estava trabalhando em locaes de pontos crticos nas linhas que demarcavam as falhas nas placas tectnicas. Em caso afirmativo, quem mais tinha acesso a esses dados? E alguma dessas pessoas teria por acaso conexes com grupos terroristas? Os cientistas no tinham ajudado muito. Os professores de hoje tinham sido estudantes nos anos 60 e 70, quando o FBI pagara a todos os canalhas existentes nos campi universitrios para espionar os movimentos de protesto. Fora h muito tempo, mas eles no tinham esquecido. Para eles o Bureau era o inimigo. Judy compreendia como se sentiam, mas gostaria que no fossem nem passivos nem agressivos com agentes que trabalhavam em prol do interesse pblico. pgina 194 O prazo fatal do Martelo do den terminava hoje, e no tinha havido terremoto. Judy sentia-se profundamente aliviada, muito embora isto significasse que errara ao encarar seriamente a ameaa. Talvez tudo terminasse assim. Disse a si prpria que teria um fim de semana repousante. O tempo estava maravilhoso, ensolarado e quente. Hoje noite faria galinha frita para Bo e abriria uma garrafa de vinho. Amanh tinha que ir ao supermercado, mas no domingo podia pegar o carro e subir a costa at a baa de Bodega e sentar na praia, lendo um livro como uma pessoa normal. Na segunda-feira provavelmente lhe dariam nova misso. Talvez pudesse comear tudo ; de novo. Pensou se valeria a pena telefonar para sua amiga Virgnia para ver se ela queria ir praia. Ginny era sua amiga mais antiga. Tambm filha de policial e da mesma idade que Judy, era diretora de vendas de uma firma de segurana. Mas Judy sabia que no era companhia feminina que queria. Seria timo deitar na praia ao lado de algum com as pernas cabeludas e voz grave. Fazia um ano que brigara com Don: era o perodo de tempo mais longo que ficava sem um amante desde a adolescncia. Na faculdade fora um tanto
desregrada, quase promscua; quando trabalhara numa companhia de seguros, a Mutual American Insurance, tivera um caso com o chefe; depois vivera com Steve Dolen por sete anos e quase se casara com ele. Pensava com freqncia em Steve. Era atraente, inteligente e bom - bom demais, talvez, porque no fim comeara a v-lo como um fraco. Talvez quisesse o impossvel. Talvez todos os homens educados e atenciosos fossem mesmo fracos, e todos os fortes, como Don Riley, terminassem transando com suas secretrias. O telefone do carro tocou. No precisava levantar o aparelho. Aps dois toques o sistema de viva-voz era acionado automaticamente. - Al - disse ela. - Aqui Judy Maddox. - E aqui o seu pai. - Oi, Bo. Vai jantar em casa? Podamos comer... Ele a interrompeu. - Liga o rdio do carro, depressa - disse. - Sintoniza no John Truth. Cristo, o que era agora? Judy acionou o boto do rdio. Entrou uma estao que tocava rock. Pressionou o boto onde estava pr-sintonizada a estao de San Francisco que transmitia John Truth Live. O sotaque nasalado dele encheu o carro. pgina 195 John Truth estava falando do modo dramtico exagerado, que usava para sugerir que o que tinha a dizer era terrivelmente importante. - O Departamento de Sismologia do estado da Califrnia acaba de confirmar que houve um terremoto hoje - exatamente no dia em que o Martelo do den prometeu que faria a terra tremer. O terremoto teve lugar vinte minutos depois das duas horas da tarde em Owens Valley, exatamente como disse o Martelo do den no telefonema dado para este programa h poucos minutos. Meu Deus - eles fizeram o que prometeram. Judy sentiu-se eletrizada. Esqueceu sua frustrao e a depresso desvaneceu- se. Sentia-se viva de novo. John Truth continuou falando: - Mas o mesmo sismlogo do estado negou que este ou qualquer outro terremoto possa ter sido causado por um grupo ' terrorista. Seria verdade? Judy tinha que saber. O que outros sismlogos pensariam? Tinha que dar uns telefonemas. Depois ouviu John Truth dizer: - Em mais um momento tocaremos uma gravao da mensagem deixada pelo Martelo do den. Uma fita com a oz deles! Com isto os terroristas talvez tivessem cometido um erro crucial. Podiam no saber, mas uma voz gravada em fita seria capaz de fornecer uma massa de informaes quando analisada por Simon Sparrow. Truth prosseguiu. - Enquanto isso, o que que voc pensa? Acredita no sismlogo do governo? Ou acha que ele est fingindo no ter medo, como quem passa assobiando pela calada do cemitrio? Talvez voc seja sismlogo e tenha uma opinio sobre as possibilidades tcnicas do caso. Ou, quem sabe, no passa de um
cidado preocupado, que acha que as autoridades deveriam estar to preocupadas quanto voc. Telefone para John Truth Live agora neste nmero e diga ao mundo o que pensa. Entrou um comercial de uma casa de mveis e Judy reduziu o volume. pgina 196 - Ainda est a, Bo? - Claro. - Eles conseguiram, no foi? - Com certeza parece que sim. Ela gostaria de saber se o pai estava sendo sinceramente desconfiado ou se s queria ser cauteloso. - O que diz o seu instinto? Ele deu outra resposta ambgua: - Que essas pessoas so muito perigosas. Judy tentou acalmar o corao em disparada e concentrar-se no que devia fazer em seguida. - Acho melhor ligar para Brian Kincaid... - O que que voc vai dizer a ele? - A notcia... Espere um minuto - Bo estava querendo demonstrar algo. - Voc no acha que eu deva ligar para ele. - Acho que voc s deve telefonar para o seu chefe quando puder lhe dizer algo que ele no possa escutar no rdio. - Voc est certo - Judy se sentiu mais calma quando comeou a avaliar as possibilidades. - Acho que vou voltar para o trabalho - ela fez uma curva para a direita. - OK. Estarei em casa dentro de mais ou menos uma hora. Telefone se quiser comer qualquer coisa. Ela sentiu uma onda de afeio por ele. - Obrigada, Bo. Voc um pai maravilhoso. Ele riu. - E voc tambm uma filha tima. At logo mais. - At logo - ela pressionou o boto que encerrava a ligao e em seguida aumentou o volume do rdio. Ouviu uma voz baixa e sexy falando: - Aqui o Martelo do den com uma mensagem para o governador Mike Robson. A imagem que lhe veio cabea foi de uma mulher madura, com seios grandes e sorriso largo, simptica mas nada convencional. Ser o meu inimigo? O tom mudou e a mulher murmurou. - Que merda, eu no esperava ter que falar num gravador. pgina 197 Ela no o crebro organizacional por trs de tudo isso. bruta demais. Est recebendo instrues de outra pessoa. A mulher retomou a voz formal e continuou: - Conforme prometemos, causamos um terremoto hoje, quatro semanas depois da nossa ltima mensagem. Aconteceu no Owens Valley pouco depois
das duas horas, como podem verificar. Um distante barulho ao fundo fez com que hesitasse. O que fora aquilo? Simon descobrir. Um segundo mais tarde ela prosseguia: - No reconhecemos a jurisdio do governo dos Estados Unidos. Agora que sabe que somos capazes de fazer o que dizemos, melhor pensar de novo na nossa exigncia. Anuncie a cessao da construo de novas usinas eltricas na Califrnia. Tem sete dias para se decidir. Sete dias! A ltima vez nos deram quatro semanas. - Aps esse tempo causaremos outro terremoto. S que o prximo no ser em um lugar desabitado, no meio do nada. Se formos obrigados, causaremos prejuzos reais. Uma escalada cuidadosamente calculada da ameaa. Jesus, essas pessoas me amedrontam. - No gostamos disso, mas o nico jeito. Por favor, faa o que pedimos, para que este pesadelo possa terminar. John Truth retomou o microfone. - O que acabaram de ouvir foi a voz do Martelo do den, o grupo que afirma ter desencadeado o terremoto que sacudiu o vale Owens hoje. Judy precisava daquela fita. Reduziu o volume de novo e discou o nmero da casa de Raja. Ele era solteiro. Podia desistir da noite de sexta-feira. Quando ele atendeu, ela disse: - Oi, aqui a Judy. Ele respondeu imediatamente: - No posso, tenho bilhetes para a pera! Ela hesitou e decidiu aceitar a brincadeira. - Qual pera? pgina 198 - Bem... O casamento de Macbeth. Judy conteve uma risada. - De Ludwig Sebastian Wagner? - Exato. - No existe essa pera, nem esse compositor. Voc vai trabalhar hoje noite. - Droga. - Por que no inventou um grupo de rock? Eu teria acreditado em voc. - Eu sempre me esqueo da sua idade. Ela riu. Raja tinha vinte e seis anos, Judy trinta e seis. - Vou considerar isso como um cumprimento. - Qual a misso? - ele no pareceu relutante. Judy voltou a falar srio. - OK, aqui vai. Houve um terremoto na regio oriental do estado nesta tarde, e o Martelo do den afirma ser o autor do fenmeno. - Uau! Talvez esses caras existam, afinal! - ele parecia mais satisfeito do que assustado. Era jovem e inteligente, mas no pensou nas implicaes.
- John Truth acaba de reproduzir uma mensagem gravada pelos terroristas. Preciso que voc v estao de rdio e consiga a fita. - Estou a caminho. - Certifique-se de que consegue a original, e no uma cpia. Se quiserem engrossar, diga que conseguimos um mandado judicial em menos de uma hora. - Ningum engrossa comigo. Sou o Raja, lembra? Era verdade. Ele era um sedutor. - Depois leve a fita a Simon Sparrow e diga a ele que vou precisar de qualquer coisa pela manh. - Deixa comigo. Ela desligou o telefone e aumentou o volume do programa de John Truth de novo. Ele estava dizendo: ... um pequeno terremoto, alis, entre grau cinco e seis de magnitude. Como diabos eles conseguiram fazer isso? pgina 199 - Nenhum ferido, nenhum dano a casas ou outras propriedades, mas um tremor que foi indubitavelmente sentido pelos residentes de Bishop, Bigpine, Independence e Lone Pine. Algumas dessas pessoas devem ter visto os terroristas nas ltimas horas, ponderou Judy. Tinha que ir para l e comear a interrog-las o mais cedo possvel. Onde exatamente fora o terremoto? Precisava falar com um perito. A escolha bvia era o sismlogo do estado. Ele, no entanto, parecia ter a mente fechada. J declarara de antemo a impossibilidade do terremoto ter sido causado pela mo do homem. Aquilo a irritava. Queria uma pessoa que estivesse disposta a raciocinar sobre todas as possibilidades. Pensou em Michael Quercus. Ele podia ser um p no saco, mas no tinha medo de especular. Alm do mais ficava logo ali, do outro lado da baa, em Berkeley, enquanto que o sismlogo do Estado tinha sede em Sacramento. Se aparecesse l sem marcar a entrevista, se recusaria a atend-la. Judy suspirou e discou o nmero dele. Por um momento no houve resposta, e ela pensou que ele tivesse sado. Atendeu aps seis toques. - Quercus - disse, parecendo aborrecido com a interrupo. - Aqui Judy Maddox, do FBI. Preciso falar com voc. urgente e eu gostaria de ir para a sua casa imediatamente. - Fora de questo. Estou com uma outra pessoa. Eu devia ter imaginado que seria difcil. - Quem sabe depois que o seu encontro terminar? - No um encontro, e s vai acabar no domingo. , tudo bem. Ele estava com uma mulher, pensou Judy. S que lhe dissera quando se conheceram que no andava vendo ningum. Por uma razo qualquer ela se lembrava exatamente de suas palavras: "Estou separado de minha mulher e no tenho namorada." Talvez tivesse mentido. Ou podia ser uma pessoa nova mesmo que no parecesse, j que esperava que ela ficasse o fim de semana. Por outro lado, Michael era arrogante o suficiente
pgina 200 para presumir que uma garota fosse para a cama com ele no primeiro encontro, da mesma forma que tambm era atraente o bastante para que muitas garotas provavelmente fossem mesmo. No sei por que estou to interessada em sua vida amorosa. - Voc ouviu o rdio? - perguntou. - Houve um terremoto, e o grupo terrorista sobre o qual falamos afirma ter sido o causador. - mesmo? - ele pareceu intrigado, a despeito de si prprio. - E esto falando a verdade? - isso que preciso discutir com voc. - Entendo. vamos, seu filho da me teimoso - ceda, pelo menos uma vez na vida. - realmente importante, professor. - Gostaria de ajud-la... mas realmente no possvel esta noite... No, espera. - A voz dele ficou abafada quando cobriu o bocal com a mo, mas assim mesmo Judy conseguiu distinguir as palavras. - Ei, quer conhecer uma agente do FBI de verdade? - no foi possvel ouvir a resposta, mas aps um momento ele lhe disse: - OK, minha visita gostaria de conhecer voc. Venha. Ela no gostou da idia de desfilar como uma espcie de mulher barbada do circo, mas quela altura no ia dizer isso. - Obrigada, estarei a em vinte minutos - concluiu, desligando o telefone. Enquanto percorria a ponte, ia refletindo que nem Raja nem Michael tinham parecido amedrontados. Raja ficara entusiasmado. Michael, intrigado. Ela, tambm, sentia-se revigorada com o sbito renascimento do seu caso; mas quando lembrou do terremoto de 1989 e das cenas mostradas pela televiso das equipes de salvamento trazendo os corpos das pessoas mortas no desmoronamento do elevado duplo da Nimitz Freeway, ali mesmo em Oakland, e considerou a possibilidade de um grupo terrorista ter como provocar aquilo, sentiu o corao frio e apertado. pgina 201 Para espairecer, tentou adivinhar como seria a namorada de Michael Quercus. Tinha visto o retrato da esposa dele, uma ruiva com corpo de supermodelo e olhar distante. Ele parece gostar do extico. Mas tinham rompido, de modo que ela talvez no fosse o seu tipo de mulher. Judy podia v-lo na companhia de uma professora, de culos de aro fino, desses que esto na moda, cabelo curto bem cortado e sem pintura. S que, por outro lado, esse tipo de mulher no atravessaria sequer a rua para conhecer uma agente do FBI. O mais provvel era que ele tivesse pegado uma garota burrinha mas sexy, capaz de se impressionar facilmente. Judy visualizou uma garota de roupa justa, fumando e mascando goma ao mesmo tempo, dando uma olhada no apartamento dele e perguntando: Voc leu mesmo todos esses livros? No sei por que estou to obcecada com a sua namorada quando tenho tantas outras coisas com que me preocupar.
Parou o carro debaixo do mesmo p de magnlia. Tocou a campainha do apartamento de Michael, que abriu o fecho eltrico da porta da rua e foi esper-la na porta descalo, com uma aparncia agradvel tpica de fim de semana: cala-jeans azul e camiseta branca. Uma garota podia se divertir um bocado se passasse um fim de semana transando com ele. Seguiu-o at o escritrio que servia ao mesmo tempo de sala de estar. Ali, para seu espanto, viu um garotinho de seus cinco anos, a cara cheia de sardas e os cabelos louros, vestindo um pijama estampado de dinossauros. Bastou um momento para reconhec-lo como sendo a criana cuja foto estava na escrivaninha. O filho de Michael. Era ele o seu convidado para o fim de semana. Sentiu vergonha por ter imaginado uma loura burra. Fui um pouco injusta com voc, professor. Michael fez a apresentao: - Dusty, conhea a agente especial Judy Maddox. O menino apertou-lhe polidamente a mo e perguntou: - Voc trabalha mesmo no FBI? - Sim, trabalho. - Uau! - Quer ver meu crach? - ela pegou o escudo na bolsa a tiracolo e deu para ele. O menino o segurou reverentemente. pgina 202 Michael disse: - Dusty gosta de assistir Os Arquivos X. Judy sorriu. - No trabalho no Departamento de Espaonaves Aliengenas. S fao prender criminosos comuns aqui da Terra mesmo. - Posso ver sua arma? Judy hesitou. Sabia que meninos so fascinados por armas, mas no gostava de encorajar esse interesse. Olhou para Michael, que deu de ombros. Desabotoou o casaco e tirou a arma do coldre de ombro. Ao faz-lo, surpreendeu Michael de olho nos seus seios, e sentiu um sbito frmito sexual. Agora que ele no estava mal-humorado, era um homem atraente, com os ps descalos e a camiseta para fora da cala. Ela disse: - Armas so muito perigosas, Dusty, por isso eu vou ficar segurando, mas voc pode olhar. A expresso de Dusty olhando para a pistola foi a mesma do pai quando ela abriu o casaco. O pensamento fez com que risse. Aps um minuto Judy recolocou a pistola no coldre. Dusty disse, com caprichada polidez: - Ns amos comer um pouco de Capn Crunch. Voc gostaria de nos fazer companhia? Judy estava impaciente para interrogar Michael, mas sentiu que seria mais proveitoso se fosse paciente e aceitasse o jogo de Dusty. - muita gentileza sua - disse. - Estou com fome e adoraria comer um pouco de Cap'n Crunch. - Vamos para a cozinha. Os trs se sentaram mesa forrada de plstico na pequena cozinha e comeram cereal e leite em alegres tigelas de cermica azul. Judy deu-se
conta de que estava com fome; j era bem tarde. - Meu Deus - exclamou ela - eu tinha esquecido como Cap'n Crunch era bom! pgina 203 Michael riu. Judy ficou assombrada com a diferena que observou nele. Estava amvel e relaxado. Parecia uma pessoa diferente do sujeito rancoroso que a obrigara a voltar para o escritrio e marcar uma entrevista pelo telefone. Comeava a gostar do professor Michael Quercus. Depois que comeram, Michael foi preparar Dusty para dormir. Dusty perguntou ao pai: - A agente Judy pode me contar uma histria? Judy conteve a impacincia. Tenho sete dias. Posso esperar mais cinco minutos. Ela disse: - Acho que seu pai vai querer contar uma histria para voc, Dusty, porque ele no faz isso com a freqncia que gostaria. - Est tudo bem - disse Michael com um sorriso. - Eu escuto. Os trs foram para o quarto de dormir. - No sei muitas histrias, mas me lembro de uma que mame costumava me contar - disse Judy. - a lenda do drago bonzinho. Gostaria de ouvir? - Sim, por favor - pediu Dusty. - Tambm quero - ecoou Michael. - Era uma vez, muito, mas muito tempo atrs, um drago bonzinho que vivia na China, de onde so todos os drages. Um dia o drago bonzinho saiu passeando sem rumo. Passeou tanto e foi to longe que saiu da China e se perdeu numa terra selvagem. - Aps muitos dias perdido, ele chegou em outro pas, bem mais ao sul, e que era o lugar mais bonito que o drago bonzinho j vira, com florestas, montanhas e vales frteis, e rios onde ele podia tomar banho e chapinhar na gua. Havia bananeiras e amoreiras carregadas de frutos maduros. O tempo era sempre quente com uma brisa agradvel. - Mas havia uma coisa errada. Era uma terra vazia. Ningum vivia l: nem gente nem drages. Assim, embora o drago bonzinho adorasse sua nova terra, sentiu-se tremendamente solitrio. pgina 204 - No entanto, ele no sabia o caminho de volta para casa, de modo que vagava de um lado para outro, procurando algum que lhe fizesse companhia. Finalmente, num dia de sorte, encontrou a nica pessoa que vivia ali - uma princesa que tambm era fada. Era to bonita que se apaixonou por ela imediatamente. A princesa tambm se sentia muito s e embora o drago fosse feio, tinha um corao bondoso e ela o desposou. - O drago bonzinho e a fada princesa se amaram muito e tiveram uma centena de filhos. Todos bravos e bondosos como o pai-drago e lindos como a me-fada. - O drago e a fada cuidaram dos filhos at que todos cresceram. A,
de repente, desapareceram. Foram viver em amor e harmonia no mundo dos espritos por toda a eternidade. E seus filhos tornaram-se o bravo, lindo e bondoso povo do Vietn. A terra onde minha me nasceu. Dusty estava de olhos arregalados. - verdade? Judy sorriu. - Eu no sei, talvez seja. - De qualquer maneira, uma bela histria - disse Michael. Ele deu um beijo de boa noite em Dusty. Quando Judy saiu do quarto, ouviu Dusty cochichar. - Ela mesmo legal, no ? - - respondeu Michael. De volta sala, Michael agradeceu: - Obrigado. Voc foi tima com ele. - No foi nada difcil. Ele encantador. Michael fez que sim. - Saiu me. Judy sorriu. Michael tambm sorriu e comentou: - Noto que voc no questionou o que eu disse. - No conheo sua esposa. No retrato ela linda. - Ela linda. E infiel. Foi uma confidncia inesperada, vinda repentinamente de um homem que considerava to orgulhoso. Deixou-a comovida. Mas no sabia o que responder. Ambos ficaram em silncio por algum tempo e foi Michael quem falou primeiro: pgina 205 - Agora chega da famlia Quercus. Fale-me sobre o terremoto. Finalmente. - Aconteceu em Owens Valley esta tarde, vinte minutos depois das duas horas. - Vamos dar uma olhada no sismgrafo. - Michael sentou-se escrivaninha e ps-se a digitar as teclas do computador. Quando Judy deu por si, estava olhando para seus ps descalos. Alguns homens tm ps feios, mas os dele eram bem modelados e vigorosos, com as unhas bem feitas. A pele era branca e havia um pequeno tufo de plos escuros em cada dedo. Ele no percebeu o exame a que fora submetido. - Quando os seus terroristas fizeram aquela ameaa, quatro semanas atrs, especificaram a localizao? - No. - Na comunidade cientfica dizem que uma previso de terremoto bem-sucedida tem que especificar data, localizao e magnitude. O seu pessoal s deu a data. No muito convincente. H um terremoto em alguma parte da Califrnia mais ou menos todos os dias. Talvez eles tenham se declarado responsveis por um fenmeno acontecido naturalmente. - Pode me dizer exatamente onde o tremor de hoje teve lugar? - Posso. Calcula-se o epicentro por triangulao. Na verdade, o
computador faz isso automaticamente. S tenho que imprimir as coordenadas - aps um instante a impressora comeou a funcionar. - H algum modo - perguntou Judy - de saber como o terremoto foi causado? - Voc quer saber se posso dizer pelo grfico se foi causado pela mo do homem? Sim, devo poder. - Como? Ele deu um clique no mouse e deu as costas tela do monitor para encarar Judy. - Um terremoto normal precedido por uma srie de tremores menores que vo gradualmente ficando mais fortes. Por contraste, quando o terremoto causado por uma exploso, no h esse crescimento gradual - o grfico comea com um ponto alto que lembra uma agulha. Ele virou-se para o computador e Judy ficou pensando que devia ser um bom professor. Explicava as coisas com clareza. Mas devia ser impiedosamente intolerante com os erros dos seus alunos. Do tipo que dava provas de surpresa e se recusava a admitir a entrada na sala de aula de quem chegasse atrasado. pgina 206 - Estranho - disse ele. Judy olhou por cima do seu ombro para a tela. - O que estranho? - O sismgrafo. - No vejo um ponto alto destacado no grfico. - No. No houve uma exploso. Judy no sabia se devia sentir-se aliviada ou desapontada. - Quer dizer ento que o terremoto aconteceu naturalmente? Ele sacudiu a cabea. - No estou seguro. H tremores prvios, sim. Mas nunca vi desse tipo. Judy sentiu-se frustrada. Ele tinha lhe prometido dizer se a afirmativa do Martelo do den era plausvel ou no. Agora mostrava-se irritantemente incerto. - O que que tem de peculiar nos tremores pequenos? - perguntou. - So regulares demais. Parecem artificiais. - Artificiais? Ele fez que sim. - No sei o que foi que causou essas vibraes, mas elas no parecem naturais. Acredito que os seus terroristas fizeram alguma coisa. S no sei o que foi. - Pode descobrir? - Espero que sim. Vou ligar para umas pessoas. Um monte de sismlogos j deve estar estudando estes mesmos dados que tenho aqui. Devemos conseguir chegar a uma concluso sobre o que significam. pgina 207 Michael no parecia muito seguro, mas Judy concluiu que tinha que se contentar com isso por ora. Conseguira dele tudo o que pudera. O que
precisava agora era ir at a cena do crime. Pegou a folha que saiu da impressora. Mostrava uma srie de referncias de mapas. - Obrigada por ter me recebido - disse ela. - Fico-lhe muito agradecida. - Foi um prazer - ele sorriu, um enorme sorriso luminoso a exibir duas fileiras de dentes muito brancos. - Tenha um bom fim de semana com o Dusty. - Obrigado. Ela entrou no carro e voltou para a cidade. Ia para o escritrio verificar na Internet os horrios dos vos, ver se havia um que sasse para um lugar qualquer perto de Owens Valley, no dia seguinte de manh. Precisava tambm verificar qual agncia do FBI tinha jurisdio sobre Owens Valley e avisar o que estava fazendo. Por fim, ligaria para o xerife local e o poria do seu lado. Chegou no nmero 450 da Golden Gate Avenue, estacionou na garagem subterrnea e pegou o elevador. Ao passar pela sala de Brian Kincaid, ouviu vozes. Ele devia estar fazendo sero. Aquela era uma ocasio boa como qualquer outra para coloc-lo a par dos acontecimentos. Entrou na ante-sala e bateu na porta do escritrio dele. - Pode entrar. Ela entrou e ficou desolada quando viu que Kincaid estava com Marvin Hayes. Ela e Marvin se detestavam intensamente. Ele estava sentado diante da mesa de Kincaid, usando um terno de vero bege, camisa branca de boto no colarinho e gravata preta e dourada. Era um homem bonito, com o curto cabelo escuro eriado e bigode bem aparado. Era a imagem da competncia, mas na verdade era tudo o que um agente da lei no devia ser: preguioso, brutal, relaxado e inescrupuloso. Quanto a ele, achava que Judy era excessivamente escrupulosa. Lamentavelmente, Brian Kincaid gostava dele e Brian agora era o chefe. Os dois homens pareceram assustados e cheios de culpa quando Judy entrou e ela percebeu que deviam estar falando a seu respeito. Para deix-los mais contrafeitos, ela perguntou: pgina 208 - Estou interrompendo alguma coisa? - Estvamos falando sobre o terremoto - disse Brian. - Soube da notcia? - Claro. Estava trabalhando nisso. Acabei de entrevistar um sismlogo que diz que os pequenos tremores que anteciparam o terremoto no so parecidos com nada que ele tenha visto antes, e que est certo de que foram causados artificialmente. E me deu as coordenadas com a localizao exata do tremor. Quero ir para Owens Valley amanh de manh procurar testemunhas. Os dois homens trocaram um olhar significativo. Brian disse: - Judy, ningum pode causar um terremoto. - No sabemos disso com certeza. Marvin disse: - Falei pessoalmente com dois sismlogos esta noite e ambos me
disseram que era impossvel. - Os cientistas discordam. Brian disse: - Ns achamos que esse grupo nunca chegou perto de Owens Valley. Souberam do terremoto e assumiram a autoria. Judy fechou a cara. - Esta misso minha. Como que pode o Brian estar telefonando para sismlogos? - Este caso est ganhando muita notoriedade - disse Brian. De repente Judy soube o que estava por vir, e seu corao impotente encheu-se de fria. - Mesmo que no acreditemos que o Martelo do den seja capaz de fazer o que diz que faz, podero conseguir muita publicidade. No tenho certeza se voc ser capaz de lidar com esse tipo de coisa. Judy lutou para controlar a raiva. - Voc no pode me tirar do caso sem um motivo. pgina 209 - Oh, mas eu tenho um motivo - ele pegou um fax que estava em cima da mesa. - Ontem voc teve uma discusso com um patrulheiro rodovirio. Ele a fez parar por excesso de velocidade. De acordo com este fax, voc no se mostrou cooperativa e teve comportamento agressivo, recusando-se a lhe mostrar sua licena de motorista. - Pelo amor de Deus, eu mostrei meu crach do FBI! Brian ignorou o que ela disse. Judy percebeu que ele no estava realmente interessado nos detalhes. O incidente com o patrulheiro era apenas um pretexto. - Estou organizando uma esquadra especial para tratar do caso do Martelo do den. Ele engoliu em seco, nervoso, depois ergueu o queixo num gesto agressivo e completou: - Pedi a Marvin para assumir. Ele no vai precisar da sua ajuda. Voc est fora do caso. *** Priest mal podia acreditar que conseguira. Eu causei um terremoto. De verdade. Eu. Enquanto dirigia o caminho rumo ao norte pela US 395, de volta casa, com Melanie ao seu lado e Star e Oaktree atrs no `Cuda, ele deixou a imaginao solta. Visualizou uma reprter da televiso, cara muito branca, dando a notcia de que o Martelo do den fizera o prometido; distrbios nas ruas quando as pessoas entrassem em pnico ante a ameaa de outro terremoto; e um agitado governador Robson, em frente ao prdio do Capitlio estadual, anunciando a paralisao da construo de novas usinas eltricas no estado. Mas isto talvez fosse demasiado otimista. A opinio pblica podia ainda estar longe de um estado de pnico generalizado. O governador podia no ceder imediatamente. Mas pelo menos seria forado a abrir negociaes com Priest. O que a polcia faria? A opinio pblica ia querer que
pegasse os criminosos. O governador chamara o FBI. Mas eles no tinham idia de quem seria o Martelo do den, tampouco indcios. Sua tarefa seria praticamente impossvel. Uma coisa sara errada hoje e Priest no podia deixar de se preocupar com isso. Quando Star ligara para John Truth no falara com ele em pessoa, deixando uma mensagem gravada na secretria eletrnica. Priest a teria interrompido, mas quando percebeu o que se passava era tarde demais. Uma voz desconhecida numa fita no devia ser muito til para a polcia, era o que ele imaginava. Mesmo assim preferia que no houvessem deixado nem mesmo uma pista tnue como essa. pgina 211 O que Priest achava surpreendente era que o mundo continuava na mesma, como se nada tivesse acontecido. Automveis e caminhes passavam de um lado para outro da rodovia, as pessoas estacionavam no Burger King, a Patrulha Rodoviria parou um rapaz que dirigia um Porsche vermelho, uma turma de operrios cortava arbustos ao lado do acostamento. E todos deviam se encontrar em estado de choque. Ele comeou a duvidar de que o terremoto tivesse acontecido. Ser que imaginara tudo, como num sonho de drogado? Vira com os prprios olhos, a fenda aberta na terra em Owens Valley - e, no entanto, o terremoto parecia agora mais improvvel e impossvel do que quando era uma simples idia. Na verdade, ansiava por uma confirmao pblica; um noticirio de televiso, uma foto na capa de uma revista, pessoas comentando o acontecido num bar ou na fila da mquina registradora do supermercado. No fim da tarde, quando estavam no lado da fronteira que pertencia ao estado de Nevada, Priest parou em um posto de gasolina. O `Cuda parou atrs. Priest e Oaktree encheram os tanques, banhados pelos raios oblquos do sol que se punha, enquanto Melanie e Star iam ao toalete. - Espero que estejamos no noticirio - disse Oaktree, nervoso. Ele estava pensando a mesma coisa que Priest. - Como poderemos no estar? - replicou Priest. - Ns causamos um terremoto ! - As autoridades podem guardar segredo. Como muitos dos hippies da antiga, Oaktree acreditava que o governo controlava as notcias. Quanto a Priest, achava que isso devia ser mais difcil do que Oaktree imaginava e acreditava que a opinio pblica exercia sua prpria censura. As pessoas recusavam-se a comprar jornais ou assistir a programas de televiso que desafiassem seus preconceitos, e, assim, s tomavam conhecimento de idias sem substncia ou real valor. A idia de Oaktree, contudo, tambm o preocupava. No devia ser to difcil encobrir a ocorrncia de um pequeno terremoto em um local afastado. pgina 212 Ele entrou para pagar. O ar condicionado fez com que tremesse. O encarregado tinha um rdio tocando atrs do balco. Ocorreu a Priest
que podia escutar o noticirio. Perguntou as horas: cinco para as seis. Depois de pagar, Priest ficou enrolando, fingindo estudar uma pilha de revistas enquanto ouvia Billy Jo Spears cantando "57 Chevrolet". Melanie e Star saram do toalete juntas. Finalmente o noticirio comeou. Querendo ter uma razo para se demorar mais, Priest escolheu lentamente umas barras de chocolate e levou-as ao balco ao mesmo tempo em que ouvia o rdio. A primeira notcia foi o casamento de dois atores que faziam papis de vizinhos em uma comdia da televiso. Quem se importava com aquilo? Priest ouviu impacientemente, batendo com o p no cho. Depois veio um relatrio da visita do presidente ndia. Tomara que aprendesse um mantra. O encarregado somou os preos das coisas que Priest apanhara e ele pagou. Ser que o terremoto vinha a seguir? Mas a terceira notcia foi a respeito de um tiroteio em uma escola de Chicago. Priest saiu andando lentamente na direo da porta, seguido por Melanie e Star. Outro cliente acabou de encher o tanque do seu Jeep Wrangler e entrou para pagar. Finalmente o locutor falou: - O grupo ambientalista de terroristas autodenominado O Martelo do Eden reivindicou a responsabilidade por um terremoto de pequena intensidade que teve lugar em Owens Valley, na regio leste da Califrnia. Priest sussurrou: - Sim! - e deu um soco na palma da mo esquerda, num gesto de triunfo. - Ns no somos terroristas! - reclamou Star. O locutor prosseguiu: - O tremor ocorreu no dia em que o grupo ameaara provocar um terremoto, mas o sismlogo do estado, Matthew Bird, negou que este ou qualquer outro abalo ssmico possa ser causado pelo homem. - Mentiroso! - reclamou Melanie, num fio de voz. pgina 213 - O Martelo do den reivindicou a autoria do terremoto num telefonema ao programa de entrevistas desta estao, John Truth Live. Justo quando Priest ia chegando na porta, ficou chocado ao ouvir a voz de Star. Parou, imvel. Ela estava dizendo: "No reconhecemos a jurisdio do governo dos Estados Unidos. Agora que voc sabe que somos capazes de fazer o que falamos, melhor que pense de novo sobre a nossa exigncia. Anuncie que no sero mais construdas usinas eltricas na Califrnia. Voc tem sete dias para se decidir." Star explodiu: - Jesus Cristo - sou eu! - Cala a boca! - disse Priest. Ele olhou por cima do ombro. O homem do Jeep Wrangler falava enquanto o gerente da loja passava o carto dele na mquina. Nenhum dos dois parecia ter notado o desabafo de Star. - O governador Mike Robson no respondeu a esta ltima ameaa. No mundo esportivo o dia de hoje... Eles saram. Star disse:
- Meu Deus! Eles irradiaram a minha voz! O que que vou fazer? - Fique calma - disse Priest. Ele prprio no se sentia calmo, mas estava se segurando. Enquanto atravessavam o asfalto na direo dos veculos, disse, num tom de voz controlado e razovel: - Ningum fora da nossa comunidade conhece a sua voz. Voc no disse mais que umas poucas palavras para gente de fora em vinte e cinco anos. E as pessoas que podem se lembrar de voc dos tempos de Haight-Ashbury no sabem onde est vivendo agora. - Acho que voc est certo - disse Star, indecisa. - A nica exceo de que sou capaz de me lembrar Bones. Pode ser que oua a fita e reconhea a sua voz. - Ele nunca nos trairia. Bones um Comedor de Arroz. - No sei no. Viciados em drogas so capazes de qualquer coisa. pgina 214 - E os outros - como Dale e Poem? - , eles me preocupam - admitiu Priest. - No havia rdios nas cabanas, mas havia um rdio na picape da comunidade, que Dale s vezes dirigia. - Se acontecer, teremos que abrir o jogo com eles. Ou recorrer soluo do Mario. No, eu no seria capaz - no com Dale e Poem. Ou seria? Oaktree aguardava ao volante do `Cuda. - Vamos, caras, o que est segurando vocs? Star explicou brevemente o que tinham ouvido. - Por sorte, ningum fora da comunidade conhece minha voz - oh, Cristo, acabo de me lembrar de uma coisa! - ela virou-se para Priest. O policial encarregado dos menores no escritrio do xerife. Priest praguejou. Claro. Star falara com ele ainda na vspera. O medo comprimiu seu corao. Se ele ouvisse o noticirio e lembrasse, o xerife e meia dzia de auxiliares podiam estar na comunidade naquele exato momento, esperando que Star voltasse. Mas podia ser que ele no tivesse ouvido a notcia. Priest tinha de checar. - Vou telefonar para o gabinete do xerife - declarou. - Mas o que que voc vai dizer? - indagou Star. - No sei. Eu penso em algo. Espera aqui. Ele entrou, arranjou troco com o sujeito da lojinha do posto e foi at o telefone pblico. Conseguiu o nmero do gabinete do xerife de Silver City com o servio de informaes estadual. O nome do policial encarregado dos menores de idade voltou sua memria. - Preciso falar com o Sr. Wicks - disse. Uma voz amigvel respondeu: - O Billy no est. - Mas eu o vi ontem. - Ele pegou um avio para Nassau na noite passada. A esta altura est deitado numa praia, bebendo uma cerveja e vendo os biqunis, felizardo. Volta em duas semanas. Algum mais poderia ajud-lo? pgina 215
Priest desligou. Jesus, que sorte. Ele saiu. - Deus est do nosso lado - disse para os outros. - O qu? - Star estava nervosa. - O que foi que aconteceu? - O cara saiu de frias ontem noite. Vai passar duas semanas em Nassau. No creio que estaes do exterior retransmitam a voz de Star. Estamos salvos. Star arriou os ombros, aliviada. - Graas a Deus. Priest abriu a porta do caminho. - Vamos pegar a estrada - disse. *** Era quase meia-noite quando Priest entrou com o vibrador ssmico na trilha sinuosa e irregular que atravessava a floresta at a comunidade. Recolocou o caminho no mesmo esconderijo de antes. Embora estivesse escuro e todos se sentissem exaustos, assegurou-se de que cobriam cada centmetro quadrado do veculo com vegetao, de maneira que ele ficasse invisvel de todos os ngulos e do ar. Depois os quatro entraram no `Cuda para o trecho final. De cerca de dois quilmetros. Priest ligou o rdio do carro para o boletim da meia-noite. Desta vez, o terremoto era o assunto principal. - Nosso programa John Truth Live de hoje desempenhou um papel importantssimo no drama do Martelo do Eden, o grupo ambientalista de terroristas que se diz capaz de provocar terremotos - disse uma voz excitada. - Depois que um terremoto moderado sacudiu Owens Valley, na regio leste da Califrnia, uma mulher alegando representar o grupo telefonou para John Truth e disse que eles, do Martelo do den, tinham causado o tremor. Neste ponto a estao reproduziu integralmente a mensagem de Star. - Droga - resmungou Star ao ouvir a prpria voz. pgina 216 Priest no podia evitar a sensao de alarme. Embora tivesse certeza de que aquilo no iria ajudar polcia, ainda assim odiava ver Star exposta daquela maneira. Parecia torn-la terrivelmente vulnervel e o deixava ansioso para destruir seus inimigos e coloc-la em segurana. Depois de tocar a fita, o locutor acrescentou: - O agente especial Raja Khan levou esta noite a fita que acabaram de ouvir a fim de ser analisada pelos peritos em psicolingstica do FBI. Isto atingiu Priest como um soco no estmago. - Que porra essa de psicolingstica? - exclamou. Foi Melanie quem respondeu: - No conheo a palavra, mas acho que eles estudam a linguagem que voc usa e extraem concluses sobre a sua psicologia. - Eu no sabia que eles eram to espertos - disse Priest preocupado. Oaktree disse:
- Fica frio, cara. Eles podem analisar a cabea da Star tanto quanto quiserem, mas isso no vai revelar o endereo dela. - Acho que no vai. O locutor continuou falando: - Nenhum comentrio ainda foi feito pelo governador Mike Robson, mas o chefe da agncia do FBI em San Francisco prometeu uma entrevista coletiva para amanh de manh. Outras notcias... Priest desligou. Oaktree estacionou o `Cuda ao lado do caminho de Bones. Bones o cobrira com um imenso encerado para esconder a pintura colorida. O que sugeria que ele planejava ficar algum tempo. Desceram a colina e atravessaram o parreiral at a aldeia. A cozinha e o galpo infantil estavam s escuras. A luz de uma vela tremeluzia por trs da janela de Apple - ela sofria de insnia e gostava de ler de madrugada - e suaves acordes de violo vinham da cabana de Song. As outras cabanas, no entanto, estavam escuras e silenciosas. S Spirit, o cachorro de Priest, apareceu para cumpriment-los, sacudindo alegremente a cauda ao luar. Despediram-se com murmrios e se arrastaram at suas casas, cansados demais para celebrarem o triunfo. pgina 217 Era uma noite quente. Priest deitou-se nu, pensando. Nenhum comentrio do governador, mas uma entrevista coletiva do FBI marcada para a manh seguinte. Isso o intrigou. A esta altura do jogo, o governador devia estar em pnico, dizendo: "O FBI falhou, no podemos nos arriscar a ter outro terremoto, tenho de falar com essa gente." O fato de nada saber sobre o que o inimigo estava pensando deixava Priest inquieto. Ele sempre se arranjava na vida lendo os pensamentos das outras pessoas, adivinhando o que elas realmente desejavam. A partir do modo como olhavam, sorriam, cruzavam os braos ou coavam a cabea. Ele estava tentando manipular o governador Robson, mas era difcil, sem um contato visual. E o FBI estaria a fim de qu? E haveria mesmo alguma verdade naquele papo de anlise psicolingstica? Tinha que descobrir mais coisas. No podia ficar parado ali esperando que a oposio agisse. Pensou em telefonar para o gabinete do governador e tentar falar com ele. Conseguiria ser atendido pelo homem em pessoa? E se fosse, descobriria alguma coisa? Talvez valesse a pena tentar. No gostava, contudo, da posio que teria de assumir. Seria um suplicante, implorando o privilgio de falar com o grande homem. E a estratgia era impor sua vontade ao governo e no suplicar um favor. Ocorreu-lhe, ento, que ele poderia ir entrevista coletiva. Seria perigoso; se fosse descoberto, tudo estaria perdido. Mas a idia era atraente. Passar-se por reprter era o tipo de coisa que costumava fazer nos velhos tempos. Tinha se especializado em golpes ousados: roubar o Lincoln branco para dar ao Cara de Porco Riley; esfaquear o detetive Jack Kassner no toalete do bar Blue Light; oferecer-se para comprar dos
Jenkinsons a loja de bebidas. Sempre conseguira se sair bem, com coisas assim. Talvez pudesse se passar por fotgrafo. Podia pedir emprestado a Paul Beale uma cmera especial. Melanie seria a reprter. Era bonita o bastante para fazer qualquer agente do FBI desviar a ateno do que devia. pgina 218 Que horas seria a entrevista coletiva? Priest rolou para fora da cama, calou as sandlias e saiu. Ao luar, encontrou o caminho para a cabana de Melanie. Ela estava sentada na beira da cama, nua, escovando o longo cabelo vermelho. Quando ele entrou, levantou a cabea e sorriu. A luz da vela delineava o seu corpo, lanando uma aura por trs dos ombros bonitos, os mamilos, os ossos dos quadris e o tufo de cabelo vermelho na confluncia das suas coxas. Priest chegou a perder o flego. - Ol - disse ela. Ele precisou de um momento para se lembrar do motivo pelo qual fora ali. - Preciso usar o seu celular - disse. Ela fez um bico, amuada. No era a reao que desejava de um homem que lhe aparecia nu. Ele lhe dirigiu seu sorriso de cara duro. - Mas pode ser que eu resolva atirar voc no cho e estupr-la, para depois usar o telefone. Ela sorriu. - Tudo bem, pode usar o telefone primeiro. Ele pegou o telefone, mas hesitou. Melanie fora agressivamente autoconfiante o dia inteiro e ele tivera que tolerar porque era ela a sismloga; mas acabara. No gostava de que lhe desse permisso para coisa alguma. No era esse o relacionamento que deviam ter. Permaneceu deitado, segurando o telefone e guiou a cabea de Melanie para sua genitlia. Ela hesitou, mas fez o que ele queria. Durante cerca de um minuto Priest deixou-se ficar imvel, desfrutando a sensao. S depois telefonou para informaes. Melanie parou o que estava fazendo, mas ele segurou uma mecha do seu cabelo e manteve a cabea dela no lugar. Melanie hesitou, como se pensando em protestar, mas prosseguiu. Assim melhor. Priest conseguiu o nmero do FBI em San Francisco e discou. Uma voz de homem atendeu: pgina 219 - FBI. Priest teve uma inspirao, como sempre. - Aqui da estao de rdio KCAR de Carson City, Dave Horlock falando - disse. - Queremos mandar um reprter para sua entrevista coletiva
amanh. Poderia me dar o endereo e a hora? - Saram no comunicado - disse o homem. Filho da me preguioso. - No estou no escritrio - improvisou Priest. - E nosso reprter pode ter que sair de manh cedo. - ao meio-dia, aqui no Federal Building, nmero 450 da avenida Golden Gate. - Precisamos de um convite, ou o nosso homem pode simplesmente aparecer a? - No h convites. Tudo o que ele precisa de uma identificao comum de imprensa. - Obrigado pela ajuda. - De que estao mesmo voc disse que era? Priest desligou. Identificao. Como que vou me sair dessa? Melanie parou de chupar e disse: - Espero que no rastreiem esta chamada. Priest espantou-se. - E por que iriam fazer isso? - Sei l. Talvez o FBI rastreie rotineiramente todas as ligaes que recebe. Ele franziu a testa. - E eles tm como fazer isso? - Por meio de computadores, com toda a certeza. - Bem, eu no fiquei na linha tempo bastante. - Priest, no estamos mais nos anos 60. No precisa de tempo, o computador faz o servio em nanossegundos. Eles s tm que consultar os registros que permitem depois cobrar as ligaes efetuadas para saber quem o dono do telefone que ligou para l quando faltavam trs minutos para uma da manh. Priest nunca ouvira a palavra "nanossegundo" antes mas podia adivinhar o que significava. Ele ficou preocupado. pgina 220 - Que merda - disse. - Eles podem descobrir onde voc est? - S enquanto o telefone estiver ligado. Priest desligou rapidamente o celular. Comeava a sentir-se nervoso. Fora surpreendido alm da conta naquele dia: pela gravao da voz de Star, pelo conceito da anlise psicolingstica e agora pela noo do computador rastreando ligaes telefnicas. Haveria mais alguma coisa que ele deixara de antecipar? Sacudiu a cabea. Estava pensando negativamente. Preocupao e cautela em excesso jamais conseguiram realizar alguma coisa. Imaginao e ousadia eram seus pontos fortes. Compareceria entrevista coletiva amanh, daria um jeito de entrar e tomaria conhecimento daquilo que o inimigo estava a fim de fazer. Melanie deitou-se de costas na cama, fechou os olhos e disse: - Foi um dia longo e cansativo.
Priest admirou-lhe o corpo, fascinado. Adorava olhar seus seios. Gostava do modo como se moviam quando ela caminhava, com um balano ritmado lateral. Gostava de v-la tirando o suter por cima da cabea, quando eles, arrastados pelo tecido, ficavam protuberantes como armas apontadas. Gostava tambm de v-la vestir o suti e ajustar os seios dentro das taas para sentir-se mais confortvel. Agora, ali deitada de costas, eles estavam ligeiramente achatados, protuberantes do lado, os mamilos em repouso. Era preciso se livrar das preocupaes, tir-las da cabea. A segunda melhor maneira para fazer isso era a meditao. A melhor estava na frente dele. Priest ajoelhou-se sobre ela. Quando beijou-lhe os seios, Melanie suspirou satisfeita mas no abriu os olhos. De repente ele viu um movimento com o canto do olho. Olhou para a porta e viu Star, vestindo um robe de seda prpura. Priest sorriu. Sabia o que ela tinha em mente: Star j fizera aquele tipo de coisa antes. Ela ergueu as sobrancelhas numa expresso indagadora. Priest balanou afirmativamente a cabea. Ela entrou e fechou a porta silenciosamente. pgina 221 Priest sugou o mamilo cor-de-rosa de Melanie, puxando para dentro da sua boca com os lbios, bem devagar. Depois, quando o deixou escorregar de volta, tocou nele provocantemente com a ponta da lngua, e repetiu isso muitas vezes, num ritmo constante. Ela gemeu de prazer. Star abriu o robe, deixou que casse no cho e ficou olhando, acariciando delicadamente os prprios seios. Seu corpo era muito diferente do de Melanie, a pele levemente bronzeada onde a de Melanie era branca, as cadeiras e os ombros mais largos, o cabelo escuro e grosso onde o de Melanie era vermelho- , dourado e fino. Aps alguns momentos ela se abaixou e beijou a orelha de Priest e passou a mo nas suas costas, ao longo da espinha e entre as pernas, acariciando e apertando. Ele comeou a respirar mais depressa. Devagar, devagar. Saboreie o momento. Star ajoelhou-se ao lado da cama e comeou a acariciar o seio de Melanie enquanto Priest o sugava. Melanie sentiu que havia algo diferente. Parou de gemer, depois abriu os olhos. Quando viu Star, deu um grito abafado. Star sorriu e continuou a acarici-la. - Seu corpo muito lindo - murmurou, a voz grave. Priest contemplou a cena, como que em transe, quando ela se inclinou e abocanhou o outro seio de Melanie. Melanie empurrou os dois e sentou-se direito. - No! - exclamou. - Calma - disse Priest. - Est tudo bem. De verdade - ele passou a mo no seu cabelo. Star acariciou a parte interna da coxa de Melanie. - Voc vai gostar - garantiu. - A mulher pode fazer algumas coisas
muito melhor do que o homem. Voc vai ver. - No - repetiu Melanie fechando as pernas com fora. Priest viu que aquilo no ia dar certo. Sentiu-se frustrado. Adorava ver Star sobre outra mulher, deixando-a louca de prazer. Mas Melanie estava apavorada demais. Star persistiu. Sua mo escorregou para cima da coxa de Melanie e as pontas dos seus dedos tocaram levemente o tufo de plos vermelhos. pgina 222 - No! - exclamou Melanie de novo, afastando a mo de Star com um tapa. Foi um tapa dado com fora e Star disse: - Ai! Por que fez isso comigo? Melanie empurrou-a para um lado e pulou da cama. - Porque voc gorda e velha e eu no quero fazer sexo com voc! Star chegou a perder o flego com o choque e Priest encolheu-se. Melanie saiu correndo para a porta e abriu-a. - Por favor! - disse. - Deixem-me sozinha! Para surpresa de Priest, Star comeou a chorar. Ele exclamou, indignado: - Melanie! Antes que Melanie pudesse responder, Star saiu. Melanie bateu a porta. Priest disse para ela: - Puxa, garota, essa foi cruel. Melanie abriu a porta de novo. - Voc pode ir tambm, se assim que se sente. Deixe- me em paz! Priest sentiu-se chocado. Em vinte e cinco anos ningum nunca lhe dissera para deixar uma casa da comunidade. Agora estava sendo expulso por uma bela garota nua cheia de raiva ou excitao ou ambos. Para se sentir mais humilhado ainda, tinha uma ereo que mais parecia um mastro. Estarei perdendo o pulso? A idia o deixou perturbado. Sempre conseguia que as pessoas fizessem o que desejava, especialmente ali na comunidade. Ficou to espantado que quase obedeceu. Dirigiu-se para a porta sem falar nada. A ento percebeu que no podia ceder. Talvez nunca mais recuperasse o domnio se a deixasse venc-lo agora. E ele precisava ter Melanie sob seu controle. Ela era crucial para o plano. No conseguiria desencadear outro terremoto sem a sua ajuda. No podia permitir que ela afirmasse sua independncia daquela forma. Melanie era demasiado importante. pgina 223 Fez meia-volta j na porta e encarou-a, nua, mos nos quadris. O que ela queria? Estivera no controle o dia inteiro, em Owens Valley, por causa dos seus conhecimentos, e isso lhe dera a coragem para aquela exibio de mau humor. Mas no fundo ela no queria ser independente no estaria ali se quisesse. Preferia que algum com poder lhe dissesse o que devia fazer. Por isso se casara com o seu professor. Ao
abandon-lo, iniciara um relacionamento com outra figura representativa de autoridade, o lder de uma comunidade. Revoltara-se agora porque no queria compartilhar Priest com outra mulher. Provavelmente temera que Star o tomasse dela. Mas a ltima coisa que desejava era que Priest fosse embora. Ele fechou a porta. Atravessou o pequeno cmodo com trs passadas e parou na frente dela. Melanie ainda tinha o rosto congestionado de raiva e respirava com dificuldade. - Deita - ordenou ele. Ela pareceu perturbada, mas deitou-se na cama. - Abre as pernas. Aps um momento ela obedeceu. Priest deitou-se sobre Melanie. Quando penetrou-a, ela subitamente passou os braos em torno dele e segurou-o com fora. Ele se moveu depressa para dentro dela, deliberadamente rude. Ela levantou as pernas e passou em torno da sua cintura. Priest sentiu que cravava os dentes no seu ombro. A mordida doeu, mas ele gostou. Melanie abriu a boca, ofegante. - Porra! - disse, em tom baixo e com a voz gutural. - Priest, seu filho da puta, eu amo voc. *** Quando Priest acordou, foi para a cabana de Star. Ela estava deitada de lado, olhos abertos e fixos na parede. Quando ele deitou na cama ao seu lado, ela comeou a chorar. Ele beijou as lgrimas. Estava tendo uma ereo. - Fale comigo - murmurou. pgina 224 - Voc sabia que foi Flower quem ps Dusty para dormir? Ele no esperava por aquilo. Que importncia tinha? - Eu no sabia. - No gosto. - Por que no? - ele tentou no parecer irritado. - Ontem ns desencadeamos um terremoto e hoje voc vem chorar por causa das crianas? muito melhor do que roubar psteres de artistas de cinema em Silver City. - Mas voc tem uma nova famlia - ela desabafou. - O que diabo voc quer dizer com isso? - Voc e Melanie e Flower e Dusty. Vocs so como uma famlia. E no h lugar nela para mim. Eu no me ajusto nela. - Nada disso - exclamou ele. - Voc a me da minha filha e a mulher que eu amo. Como poderia no se ajustar? - Eu me senti to humilhada ontem noite. Ele acariciou seus seios atravs do tecido de algodo da camisola de dormir. Star cobriu a mo de Priest com a sua e pressionou a palma da mo dele com fora de encontro ao seu corpo. - O grupo a nossa famlia - disse Priest. - Sempre foi assim. No
sofremos com os problemas psicolgicos das famlias de papai-mame-e-dois-filhos dos subrbios confortveis. Ele repetia os ensinamentos que recebera dela muitos anos atrs. - Ns somos uma grande famlia. Amamos todo o grupo e todo mundo cuida de todo mundo. Deste modo no temos que mentir uns aos outros, ou para ns mesmos, a respeito de sexo. Voc poder fazer sexo com Oaktree ou com Song e eu saberei que voc continua ligando para mim e nossa filha. -Mas Priest, ningum jamais rejeitou voc ou eu at hoje. No havia regras a respeito de quem podia ter sexo com quem, mas claro que ningum era obrigado a fazer amor se no quisesse. No entanto, agora que pensava nisso, Priest no conseguiu se lembrar de uma nica ocasio em que uma mulher o rejeitara. Evidentemente o mesmo valia para Star at Melanie. Um sentimento de pnico se apoderou dele. Sentira-se da mesma forma diversas vezes nas ltimas semanas. Era o medo de que a comunidade estivesse ruindo, que estivesse perdendo o controle e que tudo o que amava se encontrasse em perigo. Algo como perder o equilbrio, como se o cho comeasse subitamente a se mover de forma imprevisvel e a terra firme se deslocasse e no mais fosse confivel, exatamente como acontecera na vspera. Priest lutou para controlar sua ansiedade. Tinha que permanecer calmo. pgina 225 Deitou ao lado de Star e acariciou-lhe o cabelo. - Vai dar tudo certo - disse. - Deixamos o governador Robson apavorado ontem. Ele far o que queremos, voc vai ver. - Tem certeza? Ele tomou os seios de Star com ambas as mos. Sentiu-se excitado. - Confia em mim - murmurou. Apertou-a com fora de encontro ao seu corpo para que ela pudesse sentir sua ereo. - Faa amor comigo, Priest - disse ela. Ele lhe deu seu sorriso velhaco. - Como? Ela sorriu tambm, por entre as lgrimas. - De qualquer jeito que voc quiser. *** Ela foi dormir depois. Deitado ao seu lado, Priest ficou pensando no problema da identificao como jornalista at que imaginou uma soluo. A ento levantou-se. Foi at a cabana onde dormiam as crianas e acordou Flower. - Quero que voc v comigo a San Francisco - disse. Vista-se. Fez torrada e suco de laranja na cozinha deserta. Enquanto ela comia, ele disse: - Lembra de uma conversa que tivemos sobre voc ser escritora? E voc me disse que gostaria de trabalhar para uma revista?
pgina 226 - Sim, a revista Teen. - Certo. - Mas voc quer que eu escreva poesia para que possa continuar morando aqui. - E ainda quero, mas hoje voc vai descobrir como ser reprter. Ela pareceu feliz. - Legal! - Vou levar voc a uma entrevista coletiva do FBI. - FBI? - o tipo de coisa que voc teria de fazer se fosse reprter. Ela torceu o nariz. Tal como a me, no gostava de gente que trabalhasse em atividades policiais. - Nunca li nada sobre o FBI na Teen. - Bem, eu verifiquei e o Leonardo DiCaprio no vai dar entrevista coletiva hoje. Ela sorriu envergonhada. - Que pena. - Mas se voc fizer o tipo de perguntas que uma reprter da Teen faria, no tem problema. Flower balanou a cabea, afirmativamente. - Sobre o que a entrevista coletiva? - Um grupo que afirma ter provocado um terremoto. Agora, no quero que voc fale com ningum a este respeito. Tem que ser segredo, OK? - Tudo bem. Ele contaria aos Comedores de Arroz quando voltasse, decidiu. - Pode falar com mame e Melanie sobre isso, e Oaktree e Song, Aneth e Paul Beale, mas ningum mais. realmente importante. - Deixa comigo. Ele sabia que estava se arriscando loucamente. Se as coisas sassem erradas, podia perder tudo. Podia inclusive ser preso na frente da prpria filha. Mas arriscar-se loucamente sempre fora seu estilo. pgina 227 Quando fizera a proposta de plantarem as parreiras, Star lembrara que s tinham um contrato de cesso da terra por um ano. Podiam se matar de trabalhar sem nunca verem o fruto do seu suor. Na opinio dela, deviam negociar uma extenso do prazo de cesso da terra para dez anos, antes de comearem a trabalhar. Parecia sensato, mas Priest viu que seria fatal. Se adiassem o comeo, nunca conseguiriam fazer nada. Ele os persuadira a se arriscarem. No fim daquele ano o grupo tornou-se uma comunidade. E o governo renovara o contrato de Star naquele ano e todos os anos, at agora. Pensou em vestir o terno azul-escuro, mas era to fora de moda que chamaria a ateno em San Francisco. Resolveu, ento, ir com seu costumeiro jeans azul. Embora estivesse quente, vestiu uma camiseta e uma camisa xadrez de flanela com as fraldas compridas, que deixou para fora da cala. No galpo das ferramentas pegou uma faca pesada com uma lmina de dez centmetros, e uma bainha de couro. Enfiou-a na cintura
da cala, nas costas, escondida pela fralda da camisa. A adrenalina correu alta nas veias de Priest durante a viagem de quatro horas at San Francisco. Ele teve vises de pesadelo: os dois sendo presos, ele atirado numa cela, Flower sentada sozinha em uma sala do FBI, sendo interrogada a respeito dos pais. Mas foi agradvel, o medo fez com que se sentisse meio alto, como se tivesse bebido. Chegaram cidade por volta das onze horas da manh. Deixaram o carro em um estacionamento na Golden Gate. Numa loja, Priest comprou um bloco de espiral e dois lpis para Flower. Depois levou-a a um caf. Enquanto ela tomava um refrigerante, ele disse: - J volto - e saiu. Caminhou na direo da Union Square, examinando os rostos dos passantes, procurando um homem que se parecesse com ele. As ruas estavam cheias de gente que tinha ido s compras, e ele tinha centenas de rostos para escolher um. Viu um homem com o rosto magro e cabelo escuro estudando o cardpio do lado de fora de um restaurante, e por um momento pensou ter achado sua vtima. Ligadssimo, ficou observando por alguns segundos; mas a o sujeito virou-se e ele viu que tinha o olho direito permanentemente fechado por um ferimento qualquer. pgina 228 Desapontado, Priest seguiu em frente. Havia muitos homens morenos na casa dos quarenta anos, mas quase todos tinham dez ou quinze quilos a mais que Priest. Viu outro candidato provvel, mas o sujeito tinha uma mquina de retrato pendurada no pescoo. Turista no era uma boa: Priest precisava de algum com credenciais locais. Este um dos maiores centros de compras do mundo, e hoje uma manh de sbado; tem que haver um homem por a parecido comigo. Verificou as horas: onze e meia. O tempo estava acabando. Finalmente, um golpe de sorte: um sujeito de rosto fino, com cerca de cinqenta anos, usando culos de armao grande, caminhando com passo vivo. Vestia uma cala azul-marinho, slacks e uma camisa plo verde, mas carregava uma pasta de executivo bege j bem surrada, e parecia pobre: Priest imaginou que ia at o escritrio botar o servio em dia. Agora preciso da sua carteira. Priest seguiu-o, dobrando a esquina, cada vez mais excitado, esperando uma oportunidade. Estou faminto, desesperado, sou um maluco fugido do asilo, preciso de vinte pratas para uma dose, odeio todo mundo, quero cortar e matar, estou furioso, furioso, furioso... O homem passou pelo local onde o `Cuda ficara estacionado e entrou em uma rua de velhos prdios de escritrios. Por um momento no havia ningum vista. Priest sacou da faca, correu para cima dele e disse: - Ei! O homem parou no reflexo e virou-se. Priest agarrou o homem pela camisa, brandiu a faca na sua cara e gritou: - ME D A PORRA DA CARTEIRA SE NO QUISER QUE EU TE CORTE A MERDA DA
GARGANTA! O sujeito devia ter cado duro de medo, mas no. Jesus, um cara duro. O rosto dele exprimia raiva, no medo. Concentrando-se nos seus olhos, Priest leu o pensamento s um cara, e no tem um revlver. pgina 229 Priest hesitou, subitamente receoso. Que merda, no posso aceitar que isto d errado. Houve um impasse por uma frao de segundo. Um homem vestido informalmente levando uma pasta para trabalhar em uma manh de sbado... seria um detetive, um policial? Mas era tarde demais para mudar de idia. Antes que o sujeito pudesse se mover, Priest passou velozmente a lmina no seu rosto, traando uma linha vermelha de sangue logo abaixo da lente direita dos culos. A coragem do homem evaporou-se e qualquer idia de resistir que ele pudesse ter tido abandonou-o. Seus olhos arregalaram-se de medo e o corpo dele pareceu prostrar-se, sem foras. - Tudo bem! Tudo bem! - ele gritou, com a voz aguda e trmula. No polcia, afinal de contas. Priest gritou: - AGORA! AGORA! PASSA A CARTEIRA! - Est na pasta... Priest tirou a pasta da mo do homem. No ltimo minuto decidiu levar os culos do cara tambm. Arrancou-os do seu rosto, virou-se e saiu correndo. Na esquina olhou para trs. O sujeito estava vomitando na beirada da calada. Priest virou direita. Largou a faca em um depsito de lixo e prosseguiu, caminhando. Na outra esquina parou perto de um prdio em construo e abriu a pasta. Dentro havia uns papis, um caderno e algumas canetas, um embrulho de papel que parecia conter um sanduche e uma carteira de couro. Pegou a carteira e jogou a pasta por cima do tapume da obra. Voltou, ento, para o caf e sentou-se outra vez com Flower. Seu caf ainda estava quente. No perdi o jeito. Trinta anos depois que fiz isto pela ltima vez e ainda consigo apavorar um sujeito. isso a, Ricky. Ele abriu a carteira. Continha dinheiro, cartes de crdito, cartes de visita e um carto de identidade com uma foto. Priest puxou um carto de visita e entregou a Flower. - Meu carto, minha senhora. Ela riu. - Voc Peter Shoebury, da Watkins, Colefax e Brown. pgina 230 - Sou advogado? - Acho que sim. Ele examinou a foto da identidade. Era trs por quatro e tinha sido tirada numa dessas cabines automticas. Achou que devia ter sido tirada havia uns dez anos. No parecia exatamente com Priest, mas
tambm no parecia com Peter Shoebury. Fotos costumam ser assim. Ainda assim, Priest podia melhorar a semelhana. Shoebury tinha o cabelo liso e escuro, mas cortado curto. Priest disse: - Posso usar seu elstico? - Claro - Flower tirou o elstico que prendia o cabelo e sacudiu a cabea, para acertar os cachos ao redor do rosto. Priest fez o contrrio, prendendo o cabelo num rabo-de-cavalo e amarrando com o elstico. A ento ps os culos. Mostrou a foto a Flower. - O que que voc acha da minha identidade secreta? ela deu uma olhada na parte de trs da identidade. - Com isto voc tem acesso ao escritrio do centro da cidade, mas no filial de Oakland. - Acho que posso conviver com esta limitao. Ela riu. - Papai, onde foi que voc conseguiu isto? Ele ergueu uma das sobrancelhas ao fit-la e respondeu: - Pedi emprestado. - Voc bateu a carteira de algum? - Mais ou menos - Priest viu que ela achava esta possibilidade mais brincalhona que propriamente criminosa. Deixou que acreditasse no que quisesse. Deu uma olhada no relgio da parede. Eram onze e quarenta e cinco. - Est pronta? - Claro. Aps uma curta caminhada, entraram no Federal Builbing, um monlito ameaador de granito cinza ocupando todo um quarteiro. Passaram por um detetor de metais no saguo, e Priest ficou satisfeito por ter sido previdente, ao se livrar da faca. Perguntou ao segurana em que andar ficava o FBI. Tomaram o elevador. Priest sentia-se como se estivesse cheio de cocana. O perigo o tornava superalerta. Se este elevador quebrasse, eu seria capaz de mov-lo com a minha energia psquica. Achava que era bom ser autoconfiante, at mesmo um pouco arrogante, j que representava o papel de um advogado. pgina 231 Levou Flower para o interior do escritrio do FBI e seguiu uma placa que indicava a sala de reunies, junto do saguo. No fundo da sala havia uma mesa com microfones. Perto da porta estavam quatro homens, todos altos e com ar de quem estava em plena forma fsica, usando ternos bem passados e gravatas sbrias. Tinham que ser agentes. Se soubessem quem sou, atiravam em mim sem pensar. Fica frio, Priest eles no lem pensamentos, de modo que no podem saber nada a seu respeito. Priest tinha um metro e oitenta e trs, mas todos eram mais altos. Ele sentiu imediatamente que o chefe era o homem mais velho de cabelo branco grosso e meticulosamente repartido e penteado. Conversava com outro de bigode preto. Dois homens mais jovens ouviam com expresses respeitosas. Uma mulher, jovem e carregando uma prancheta, aproximou-se de Priest.
- Oi, posso ajud-lo? - Bem, eu certamente esperaria que sim - respondeu Priest. Os agentes repararam quando falou. Priest percebeu suas reaes quando olharam para ele. Ao verem o rabo-de-cavalo e a cala-jeans azul ficaram na defensiva; depois viram Flower e relaxaram de novo. Um dos mais jovens perguntou: - Est tudo bem aqui? Priest disse: - Meu nome Peter Shoebury, sou advogado da firma Watkins, Colefax e Brown aqui na cidade. Minha filha Florence editora do jornal da escola. Ela ouviu no rdio a notcia da entrevista coletiva e quis cobri-la para o seu jornal. Assim eu imaginei, puxa vida, um evento aberto ao pblico, vamos l. Espero que esteja bem com vocs. Todo mundo olhou para o sujeito de cabea branca, confirmando a intuio de Priest de que ele era o chefe. Seguiu-se um momento horrvel de hesitao. pgina 232 Olha, garoto, voc no advogado coisa nenhuma! Voc Ricky Granger, que vendia anfetaminas no atacado por intermdio de um monte de lojas de bebidas em Los Angeles l pelos anos 60 - voc est metido nessa merda de terremoto? Revistem-no, rapazes, e algemem a garotinha tambm. Vamos prend-los, descobrir o que sabem. O homem de cabelo branco estendeu a mo e disse: - Eu sou o agente especial encarregado, Brian Kincaid, chefe do escritrio do FBI em San Francisco. Priest apertou a mo dele. - Prazer em conhec-lo, Brian. - Para que firma o senhor disse que trabalhava? - Watkins, Colefax e Brown. Kincaid franziu a testa. - Pensei que fossem corretores imobilirios, no advogados. Merda. Priest balanou a cabea e esforou-se para exibir um sorriso confiante. - isso mesmo, e o meu trabalho mant-los longe de encrencas Priest achou que tinha que usar um vocabulrio bem profissional e rebuscou a memria atrs das palavras adequadas. - Sou assessor jurdico da firma, em tempo integral. - Poderia me mostrar uma identidade qualquer? - Oh, claro - ele abriu a carteira roubada e tirou o carto com a foto de Peter Shoebury. Prendeu a respirao. Kincaid examinou a foto e checou a semelhana com Priest. Priest poderia garantir que concluiu algo como: , pode ser ele, sim, eu acho. Devolveu a identidade. Priest respirou de novo. Kincaid virou-se para Flower: - Em que escola voc estuda, Florence? O corao de Priest bateu mais depressa. Inventa qualquer coisa, garota. - Hmm... - Flower hesitou.
Priest j ia responder pela filha quando ela disse: - Eisenhower Junior High. pgina 233 Priest sentiu uma ponta de orgulho. Ela herdara sua coragem. S para o caso de Kincaid conhecer as escolas de San Francisco, ele acrescentou: - em Oakland. Kincaid pareceu satisfeito. - Bem, teremos muito prazer em t-la aqui conosco, Florence - disse ele. Conseguimos! - Muito obrigada, senhor - disse ela. - Se houver alguma pergunta que eu possa responder agora, antes que comece a entrevista coletiva... Priest tivera cuidado de no preparar Flower excessivamente. Na opinio dele, se ela parecesse tmida, ou gaguejasse na hora de fazer as perguntas, seria apenas natural, enquanto que se se mostrasse muito segura e parecesse bem treinada, podia despertar suspeitas. Mas naquele instante sentiu uma ponta de ansiedade por ela, e teve que conter o instinto paternal de se meter e dizer o que fazer. Mordeu o lbio. Ela abriu o bloco de notas. - O senhor o encarregado desta investigao? Priest relaxou um pouco. Ela ia se sair bem. - Este apenas um dos muitos inquritos em que tenho de ficar de olho - respondeu Kincaid, apontando para o homem de bigode escuro. - O agente especial Marvin Hayes o encarregado deste caso. Flower virou-se para Hayes. - Acho que a escola ia querer saber que tipo de homem o senhor , Sr. Hayes. Ela muito criana para flertar com homens adultos, pelo amor de Deus! Mas Hayes engoliu a isca. Pareceu ficar satisfeito e disse: - Claro, v em frente. - O senhor casado? - Sou. Tenho dois filhos, um menino mais ou menos da sua idade e uma garota um pouco mais moa. - Tem algum hobby? - Coleciono suvenires relativos ao boxe. - um hobby pouco comum. pgina 234 - Acho que sim. Priest ficou ao mesmo tempo satisfeito e espantado com a naturalidade com que Flower vivia o papel. Ela boa nisso. Puxa vida, espero no t-la criado todos esses anos para escrever para uma revistinha barata. Ele estudou Hayes enquanto o agente respondia s perguntas inocentes de Flower. Aquele era seu oponente. Hayes estava vestido cuidadosamente, em estilo convencional. O terno marrom-claro, a camisa
branca e a gravata de seda escura provavelmente tinham sido comprados na Brook Brothers. Usava sapatos sociais pretos, muito bem engraxados e com os cordes cuidadosamente atados e apertados. O cabelo e o bigode eram muito bem cortados. Priest, contudo, sentiu que a aparncia ultraconservadora era falsa. A gravata era chamativa demais, ele usava um anel de rubi enorme no dedo mnimo da mo esquerda e o bigode representava um toque de vulgaridade. Priest achou tambm que o tipo aristocrata bem-nascido que Hayes estava tentando imitar no estaria to embonecado em uma manh de sbado, mesmo para uma entrevista coletiva. - Qual o seu restaurante favorito? - perguntou Flower. - Muitos de ns vamos ao Everton's, que realmente mais um pub que um restaurante. A sala onde seria a reunio estava se enchendo de homens e mulheres com blocos de notas e gravadores cassete, fotgrafos assoberbados com cmeras e flashes, reprteres de rdio com microfones grandes e duas equipes de televiso com cmeras manuais de vdeo. Ao entrarem, a moa da prancheta pedia para que assinassem um livro. Priest e Flower pareciam ter passado ao largo desta exigncia. Ainda bem. Ele no seria capaz de escrever "Peter Shoebury" nem que fosse para salvar sua vida. Kincaid, o chefe, tocou no ombro de Hayes. - Precisamos nos preparar agora, Florence. Espero que fique para ouvir a minha declarao. - Ah, sim, muito obrigada. Priest disse: pgina 235 - O senhor foi realmente muito gentil, Sr. Hayes. Os professores de Florence ficaro sinceramente gratos. Os agentes se dirigiram para a mesa no outro lado. Meu Deus, ns os enganamos. Priest e Flower sentaram no fundo e aguardaram. A tenso de Priest diminuiu. Ele realmente conseguira o que queria. Eu sabia que ia conseguir. Ainda no colhera muita informao propriamente dita, mas isso viria com a declarao formal a ser feita para a imprensa. O que tinha conseguido mesmo fora sentir as pessoas com quem estava lidando. Sentiu-se tranqilizado pelo que descobrira. Nem Kincaid nem Hayes lhe pareceram brilhantes. Deram-lhe a impresso de serem policiais comuns, do tipo que vai vivendo segundo uma mistura de rotina obstinada e uma corrupo ocasional. Pouco tinha a temer deles. Kincaid levantou-se e apresentou-se. Pareceu confiante, mas com um pouco de exagero, at meio agressivo. Talvez no estivesse exercendo a funo de chefe h muito tempo. Comeou: - Gostaria de comear deixando uma coisa bem clara. O FBI no acredita que o terremoto de ontem tenha sido causado pela ao de um grupo terrorista. As lmpadas dos flashes pipocaram, as fitas comearam a rodar nos gravadores e os reprteres deram incio s suas anotaes. Priest tentou no deixar que a raiva que sentia transparecesse no seu rosto.
Os filhos da me continuavam a se recusar a lev-lo a srio! - Esta tambm a opinio do sismlogo do estado, que eu acredito esteja disponvel para entrevistas na manh de hoje, em Sacramento. O que tenho de fazer para convencer vocs? Ameacei provocar um terremoto, cumpri a promessa e ainda no acreditam em mim! Ser que vou ter que matar gente para que me ouam ? Kincaid continuou: - Mesmo assim, uma ameaa terrorista foi feita e o Bureau tenciona pegar as pessoas que formularam essa ameaa. Nossa investigao chefiada pelo agente especial Marvin Hayes. com voc agora, Marvin. pgina 236 Hayes tambm se levantou. Estava mais nervoso do que Kincaid, Priest viu de imediato. Leu mecanicamente uma declarao preparada com antecedncia. - Agentes do FBI interrogaram na manh de hoje todos os cinco empregados pagos da Campanha Califrnia Verde nas respectivas casas. Esto colaborando conosco voluntariamente. Priest ficou satisfeito. Deixara uma trilha falsa e os federais a estavam seguindo. Hayes continuou: - Nossos agentes tambm visitaram a sede da campanha aqui em San Francisco e examinaram documentos e registros armazenados em seus computadores. Deviam estar vasculhando a lista de mala direta da organizao em busca de uma pista, imaginou Priest. Ele ainda falou mais, mas foi repetitivo. Os jornalistas reunidos fizeram perguntas que acrescentaram detalhes e um colorido diferente, mas a histria bsica em nada mudou. A tenso de Priest foi crescendo novamente quando ele se viu ali preso numa cadeira, esperando impacientemente uma chance para ir embora sem chamar a ateno. Ficou satisfeito por ver que a investigao do FBI estivesse to fora do rumo - sem que eles tivessem chegado ainda segunda pista falsa que deixara - mas sentia-se furioso por terem se recusado a crer na sua ameaa. Finalmente Kincaid deu a sesso por encerrada e os jornalistas comearam a se levantar e reunir sua tralha. Priest e Flower dirigiram-se para a porta mas foram detidos pela jovem com a prancheta, que sorriu alegremente e disse: - No creio que tenham assinado aqui, assinaram? - ela passou para Priest um livro e uma caneta. - Basta escreverem os seus nomes e a organizao que representam. Priest ficou paralisado pelo medo. No posso, no posso! No entre em pnico. Relaxe. Ley, tor, pur-doy-cor... - Senhor? Dava para fazer o favor de assinar? pgina 237
- Claro - Priest pegou o livro e a caneta. E em seguida passou para Flower. - Acho que Florence devia assinar por ns - afinal, ela que a jornalista - disse ele, lembrando a Flower do seu nome falso. Ocorreu-lhe ento que ela podia ter esquecido o nome da escola que supostamente freqentava. Flower nem piscou. Escreveu no livro e o devolveu. Agora, pelo amor de Deus, podemos ir embora? - O senhor tambm, por favor - insistiu a mulher, dando o livro a Priest. Ele o pegou com relutncia. E agora? Se rabiscasse um garrancho ela podia pedir para que escrevesse o nome com letra de imprensa: isto j lhe acontecera antes. Mas talvez pudesse se recusar e simplesmente dar o fora. Ela era simplesmente uma secretria. Enquanto hesitava, ouviu a voz de Kincaid. - Espero que tenha sido interessante para voc, Florence. Kincaid um agente - faz parte do seu trabalho ser desconfiado. - Sim, senhor, foi - respondeu Flower, polidamente. Priest comeou a suar por baixo da camisa. Rabiscou um garrancho no lugar onde deveria escrever o nome. Em seguida fechou o livro antes de devolv-lo mulher. Kincaid falou com Flower: - Voc vai se lembrar de me mandar um nmero do jornal da sua classe quando for impresso? - Sim, claro. Vamos, vamos! A mulher abriu o livro e disse: - Oh, o senhor me desculpe, mas se incomodaria de escrever seu nome aqui? Receio que sua assinatura no seja realmente clara. O que que eu vou fazer? - Voc vai precisar de um endereo - Kincaid disse a Flower, e pegou um carto de visitas no bolso da lapela do palet. - Aqui est. - Muito obrigada. pgina 238 Priest se lembrou de que Peter Shoebury tambm tinha cartes de visita. A est a resposta - graas a Deus! Abriu a carteira e deu um carto mulher. - Minha letra horrorosa - desculpou-se - use isto aqui. Temos que nos apressar - ele apertou a mo de Kincaid. - O senhor foi maravilhoso. Pode deixar que no vou permitir que Florence se esquea de lhe enviar o recorte com a notcia. Eles saram da sala. Cruzaram o saguo e esperaram o elevador. Priest imaginou Kincaid vindo atrs dele, empunhando uma arma, dizendo: "Que tipo de advogado no capaz de escrever o prprio nome, seu panaca?" Mas o elevador veio, eles desceram, saram do prdio e logo respiravam o ar livre da rua. Flower disse: - Eu tenho o pai mais maluco deste mundo. Priest sorriu para ela. - verdade. - Por que usamos nomes falsos? - Bem, nunca estou a fim de que esses porcos saibam meu nome verdadeiro - respondeu ele. Ela aceitaria isso, pensou Priest. Sabia como os pais se sentiam a
respeito de policiais. Mas ela retrucou: - Assim mesmo, fiquei furiosa com voc. Ele no entendeu. - Por qu? - Nunca vou perdo-lo por ter me chamado de Florence - disse ela. Priest a encarou fixamente por um instante e os dois caram na risada. - Vamos embora, garota - disse ele, amorosamente. - Vamos para casa. *** pgina 239 10 Judy sonhou que passeava na orla da praia com Michael Quercus, e que os ps descalos dele deixavam marcas ntidas e precisas na areia molhada. Na manh de sbado ela ajudara em uma classe de alfabetizao para menores transgressores. Eles a respeitavam porque carregava uma arma. Sentou-se no salo de uma igreja ao lado de um bandido de dezessete anos, ajudando-o a praticar a escrever a data, na esperana de que, de alguma maneira, aquilo tornasse menos provvel que em mais dez anos tivesse que prend-lo. De tarde, pegou o carro para ir fazer compras na Gala Foods perto da casa de Bo, no Geary Boulevard. A rotina dos sbados no conseguiu acalm-la. Estava furiosa com Brian Kincaid por t-la tirado do caso do Martelo do den, mas no havia nada que pudesse fazer a respeito, de modo que saiu pisando forte para cima e para baixo nos corredores da loja e tentou concentrar-se em coisas como Chewy Chips Ahoy, Rice-A-Roni e Zee Decor Collection", toalhas de papel para a cozinha com desenhos estampados em amarelo. Na gndola dos matinais lembrou-se de Dusty, o filho de Michael, e comprou uma caixa do cereal Cap'n Crunch. Mas no conseguia parar de pensar no caso. Haver algum que saiba mesmo causar terremotos? Ou estou maluca? Quando voltou, Bo ajudou-a a descarregar as compras e perguntou como andava a investigao. - Eu soube que Marvin Hayes vasculhou a sede da Campanha da Califrnia Verde. pgina 240 - No deve ter adiantado muito - disse ela. - Eles esto todos limpos. Raja entrevistou-os na tera-feira. Dois homens e trs mulheres, todos acima dos cinqenta anos. Sem pronturio criminal - nem mesmo uma multa por excesso de velocidade - e nenhuma associao com pessoas suspeitas. Se forem terroristas, eu sou o Kojak. - A televiso disse que Hayes est examinando os registros deles.
- Certo. H uma lista de todo mundo que escreveu para eles pedindo informaes, inclusive a Jane Fonda. So dezoito mil nomes e endereos. A equipe de Marvin vai ter que passar cada nome no computador do FBI para ver quem vale a pena entrevistar. Pode levar um ms. A campainha da porta tocou. Judy foi atender e ficou surpresa ao ver Simon Sparrow. Surpresa mas satisfeita. - Ei, Simon, vai entrando! Ele estava usando bermuda preta de ciclista, camiseta e tnis Nike e culos escuros desses inteirios. Mas no tinha vindo de bicicleta: seu Honda del Sol verde-esmeralda podia ser visto estacionado diante do prdio, com a capota abaixada. Judy imaginou o que sua me teria achado de Simon. "Um bom rapaz", talvez dissesse. "Mas no muito msculo." Bo apertou a mo de Simon e, s escondidas, dirigiu filha um olhar que perguntava Quem diabos essa bicha? Judy chocou-o dizendo: - Simon um dos mais importantes analistas de lingstica do FBI. Meio confuso, Bo disse: - Bem, Simon, um prazer conhec-lo, sem dvida nenhuma. Simon mostrou uma fita cassete e um envelope de papel pardo. - Vim lhe trazer meu relatrio sobre a fita do Martelo do den. - Estou fora do caso - disse Judy. - Eu sei, mas achei que voc ainda estaria interessada. As vozes da fita no correspondem a nenhuma existente em nossos arquivos acsticos, infelizmente. pgina 241 - Nada de nomes ento. - No, mas um monte de coisas interessantes. O interesse de Judy foi despertado. - Voc disse "vozes". S ouvi uma. - No, h duas - Simon olhou em torno e viu o radiogravador de Bo em cima da bancada da cozinha. Normalmente era usado para tocar The Greatest Hits of the Everly Brothers. Ele colocou a fita no aparelho. - Deixa eu explicar umas coisas ouvindo a fita. - Eu adoraria, mas Marvin Hayes o encarregado do caso agora. - Eu gostaria de ter sua opinio de qualquer maneira. Judy sacudiu a cabea obstinadamente. - Voc devia falar primeiro com Marvin. - Sei o que voc est dizendo. Mas o Marvin um bosta. Sabe quanto tempo faz que ele no prende nenhum bandido? - Simon, se voc est querendo fazer com que eu trabalhe no caso escondida de Kincaid, pode esquecer! - Basta me ouvir, est certo? No pode fazer mal algum. Simon aumentou o volume e ps a fita para rodar. Judy suspirou. Estava desesperadamente ansiosa para saber o que Simon descobrira a respeito do Martelo do den. Mas se Kincaid soubesse que ele falara com ela antes de procurar Marvin, ia dar uma confuso dos infernos. Ouviu-se uma voz de mulher: - Aqui o Martelo do den, com uma mensagem para o governador Mike
Robson. Simon parou a fita e olhou para Bo. - O que foi que voc visualizou ao ouvir isto? Bo sorriu. - Uma mulher grande, com cerca de cinqenta anos, com um sorriso largo. Meio sexy. Eu me lembro que achei que gostaria - ele deu uma olhada em Judy e concluiu - de conhec-la. Simon concordou. - Seus instintos so confiveis. Mesmo sem treinamento possvel dizer muita coisa a respeito de uma pessoa s por ouvi-la falar. Quase sempre sabe-se se a voz de homem ou de mulher, claro. Mas possvel tambm dizer-se que idade tem e geralmente tambm o peso e a altura. s vezes pode-se at adivinhar o estado de sade. pgina 242 - Voc tem razo - concordou Judy, intrigada, mesmo que contra a vontade. - Sempre que ouo uma voz no telefone imagino a pessoa que falou, at mesmo quando ouo uma gravao. - porque o som da nossa voz produzido pelo corpo. Altura, volume, ressonncia, rouquido, enfim, todas as caractersticas vocais tm uma causa fsica. Quem alto tem um trato vocal mais comprido, velhos tm tecidos enrijecidos e cartilagens que rangem ou chiam, pessoas doentes tm gargantas inflamadas. - Isso faz sentido - disse Judy. - S que na verdade eu jamais tinha pensado nessas coisas. - Meu computador pega os mesmos indcios que as pessoas, e mais preciso - Simon pegou um relatrio impresso no envelope que trouxera. Esta mulher tem entre quarenta e sete e cinqenta e dois anos. alta, com cerca de um metro e oitenta, pouco mais, pouco menos. Est alm do peso ideal, mas no obesa; provavelmente dessas pessoas que so avantajadas de natureza. Bebe e fuma, e mesmo assim saudvel. Judy sentia-se ansiosa mas excitada. Embora achasse que teria sido melhor se no tivesse deixado que Simon comeasse, era fascinante aprender alguma coisa sobre a mulher misteriosa que havia por trs da voz do telefonema. Simon olhou para Bo. - E voc tem razo quando fala no sorriso largo. Ela tem uma cavidade bucal grande e seu discurso no labializado - ou seja, ela no contrai os lbios. - Gosto desta mulher - disse Bo. - O computador diz se ela boa de cama? Simon sorriu. - A razo pela qual voc pensa que ela sexy que sua voz tem qualquer coisa de murmurante. O que pode ser um sinal de excitao sexual. Mas quando uma caracterstica permanente, no indica obrigatoriamente uma qualidade da libido. - Acho que voc est enganado replicou Bo. - Mulheres sexy tm vozes sexy.
pgina 243 - Idem para quem fuma muito. - OK, voc tem razo. Simon rebobinou a fita. - Agora prestem ateno ao sotaque dela. Judy protestou. - Simon, no creio que devamos... - Basta que ouam. Por favor! - Tudo bem, tudo bem. Desta vez ele tocou as duas primeiras frases. "Aqui o Martelo do den com uma mensagem para o governador Mike Robson. Que merda, eu no esperava ter que falar num gravador." Simon parou a fita. - O sotaque do norte da Califrnia, claro. Mas vocs notaram mais alguma coisa? Bo disse: - Ela classe mdia. Judy franziu a testa. - A mim pareceu classe mdia elevada. - Vocs dois tm razo - disse Simon. - O sotaque varia entre a primeira e a segunda orao. - E isto raro? - quis saber Judy. - No. Nosso sotaque sempre resulta, basicamente, da influncia do grupo social em que crescemos, se bem que no decurso da vida o modifiquemos. Geralmente as pessoas tentam melhorar: a classe trabalhadora tenta parecer mais rica, e os novos-ricos tentam falar como se tivessem mais tradio. Ocasionalmente acontece o contrrio: o poltico de uma famlia aristocrtica pode querer fazer com que seu sotaque parea mais comum, para que ele possa passar por um homem do povo, entendem o que estou dizendo? Judy sorriu. - Melhor do que seria desejvel. - O sotaque aprendido usado em situaes formais disse Simon, enquanto rebobinava a fita. - Entra em ao quando o orador est composto, emocionalmente estvel. Mas ns revertemos aos padres de fala da nossa infncia quando sob tenso. Tudo bem at agora? pgina 244 Foi Bo quem respondeu: - Claro. - Esta mulher fez uma reduo no estilo da sua fala. Quis aparentar ser mais da classe trabalhadora do que na realidade . Judy sentia-se fascinada. - Voc acha que ela pode ser uma espcie de reedio da figura de Patty Hearst? - Nessa rea, sim. Ela comea com uma sentena formal ensaiada, pronunciada com sua voz de pessoa comum. Agora, na fala do ingls dos Estados Unidos, quanto mais de classe alta voc , mais nitidamente pronuncia o "r". Com isto em mente, ouam como ela diz a palavra
"governador". Judy ia interromp-lo, mas estava interessada demais. A mulher da fita disse: "Aqui o Martelo do den com uma mensagem para o governador Mike Robson." - Perceberam como ela diz praticamente "governad" Mike? Quase no se ouve o "r" final. Isto a fala das ruas. Mas prestem ateno sentena seguinte. O aviso da secretria eletrnica a surpreende e ela fala com o sotaque original. "Que merda, eu no esperava ter que falar num gravador" - Embora comece com um expletivo chulo, "merda", ela pronuncia a palavra "gravador" muito corretamente. Fosse mesmo de uma classe social baixa, omitiria o ltimo "r" tanto da palavra "gravador" quanto das anteriores "ter" e "falar" O diplomado mediano do terceiro grau pronunciaria todos os "r", sem , dvida, mas somente uma pessoa realmente oriunda de uma classe superior pronunciaria cuidadosamente todos os trs "r". Bo espantou-se. - Quem poderia imaginar que seria possvel voc descobrir tanta coisa em duas frases? Simon sorriu, parecendo satisfeito. - Mas notaram algo no tocante ao vocabulrio? Bo sacudiu a cabea. - Nada que eu seja capaz de apontar precisamente. - O que que a gente normalmente chama de "gravador"? Bo riu. - Bem, "gravador" a palavra mais geral. Minicassete tambm bastante comum. No Vietn eu tive o que era chamado de gravador de fita - um Grundig, do tamanho de uma maleta pequena, com dois carretis na parte de cima. pgina 245 Judy viu onde Simon queria chegar. O termo "gravador" naquele contexto era ultrapassado no tempo. Mesmo que ela tivesse dito "secretria eletrnica" no seria mais o caso. Quando se tratava de uma instituio do porte de um FBI, h muito tempo que o sistema denominado correio de voz registra as mensagens diretamente no disco rgido de um computador. - Ela est vivendo em um desvio do tempo - disse Judy. - O que me faz pensar de novo em Patty Hearst. O que lhe ter acontecido, afinal? Bo disse: - Passou uma temporada na cadeia, saiu, escreveu um livro e apareceu no Geraldo. Bem-vinda Amrica. Judy levantou-se. - Isso foi fascinante, Simon, mas no me sinto vontade com o que estou fazendo. Acho que voc devia se apresentar ao Marvin agora. - S quero mostrar mais uma coisa - insistiu ele, comprimindo o boto que adiantava a fita rapidamente. - Sinceramente... - Oua s isto aqui. A voz da mulher foi ouvida de novo: "Aconteceu no Owens Valley pouco depois das duas horas, conforme podem verificar." Seguiu-se um
intervalo, com um barulho distante ao fundo que fez com que ela hesitasse. Simon comprimiu a pausa. - Aumentei esse barulhinho, na verdade um murmrio. Aqui est, reconstrudo. Ele soltou o boto da pausa. Judy ouviu uma voz de homem, distorcida pelo barulho de fundo mas clara o bastante para se entender o que dizia: "No reconhecemos a jurisdio do governo dos Estados Unidos." O barulho de fundo voltou ao normal, a voz da mulher repetiu esta mesma frase e prosseguiu: "Agora que sabe que somos capazes de fazer o que dizemos, melhor pensar de novo na nossa exigncia." pgina 246 Simon parou a fita. Judy disse: - Ela repetiu um discurso ensinado, esqueceu de algo e ele lembrou o que era. Bo disse: - Voc no achou que a mensagem original da Internet havia sido ditada por um sujeito talvez analfabeto e digitada por uma mulher com instruo? - Achei - concordou Simon. - Mas esta outra mulher - mais velha. - E assim - disse Bo, agora dirigindo-se filha - agora voc est comeando a levantar os perfis de trs indivduos desconhecidos. - No, no estou no - retrucou Judy. - Estou fora do caso. Deixa disso, Simon, voc sabe que isto pode me trazer mais encrenca. - OK - ele tirou a fita do aparelho e se levantou. - De qualquer forma, eu j lhe disse tudo o que havia de importante. Fale comigo se tiver algum insight brilhante que eu possa passar para o Marvin Mogadon. Judy o acompanhou at a porta. - Levarei meu relatrio agora mesmo - Marvin provavelmente ainda estar trabalhando - disse ele. - Depois vou dormir. Passei a noite toda em claro com isso. - ele entrou no seu carro esporte e saiu, com o motor roncando forte. Quando ela voltou, Bo estava fazendo ch verde, ar pensativo. - Ento esse malandro de rua dispe de um bando de damas classudas para escrever o que ele dita. Judy balanou a cabea. - Acho que sei onde voc est querendo chegar. - Pode ser um culto. Eu estava certa em pensar em Patty Hearst. - Ela estremeceu. O homem por trs daquilo tudo devia ser uma figura carismtica com poder sobre as mulheres. No tinha instruo, mas isto no era empecilho, pois tinha outras pessoas para executarem suas ordens. - Mas tem uma coisa que no bate. A exigncia de que seja suspensa a construo de novas usinas de eletricidade - no uma coisa irracional ou pelo menos esquisita, como seria de se esperar. pgina 247
- Concordo - disse Bo. - No nem de grande notoriedade. Acho que devem ter uma razo qualquer concreta e egosta para querer essa paralisao. - No sei, no - cismou Judy - mas talvez tenham interesse em alguma determinada usina. - Judy, essa foi brilhante! Tipo vai poluir o rio onde pescam salmo ou algo assim. - Seja como for, ser um golpe duro para eles - Judy sentia-se enormemente estimulada. Tinha descoberto alguma coisa. - A suspenso das obras de todas as usinas ento no passa de um disfarce. Eles tm medo de dizer o nome daquela em que esto realmente interessados com medo de nos darem uma pista para chegar at o local onde se escondem. - Mas quantas possibilidades pode haver? Usinas eltricas no so construdas todos os dias. E essas coisas so controversas. Qualquer proposta tem de ser relatada. - Vamos verificar. Os dois foram para a saleta da televiso. O laptop de Judy ficava em cima de uma mesinha. Ela s vezes redigia relatrios ali enquanto seu pai assistia ao futebol. A televiso no a distraa e ela gostava de ficar perto dele. Ligou o laptop e enquanto esperava que iniciasse, disse: - Se prepararmos uma lista dos locais onde esto sendo construdas usinas eltricas, o computador do FBI nos dir se h algum culto nas proximidades. Ela acessou os arquivos do San Francisco Chronicle e procurou referncias a usinas eltricas nos trs ltimos anos. A busca produziu um total de 117 artigos. Judy verificou as manchetes, ignorando matrias sobre Pittsburgh e Cuba. - OK, tem aqui um plano para a construo de uma usina nuclear no deserto de Mojave... - ela salvou a histria. - Uma hidreltrica no condado de Sierra... uma usina incendiada perto da fronteira do Oregon... pgina 248 Bo disse: - Sierra? Isso toca uma campainha. Tem a localizao exata? Judy clicou em cima do artigo. - Sim... a proposta represar o rio, Silver River. Ele franziu a testa. - Silver River Valley... Judy desviou o olhar da tela do laptop. - Espera a... isso familiar... No tem um grupo de vigilantes baseado numa grande extenso de terra ali? - Isso mesmo! - exclamou Bo. - So chamados de Los Alamos. Dirigidos por um manaco da velocidade chamado Poco Latella, original de Daly City. por isso que os conheo. - Certo. Vivem armados at os dentes e se recusam a reconhecer o governo dos Estados Unidos... Cristo, chegaram inclusive a usar a frase
na fita: "No reconhecemos a jurisdio do governo dos Estados Unidos." Bo, acho que os pegamos. - O que que voc vai fazer? O corao de Judy ficou pequeno quando ela se lembrou de que estava fora do caso. - Se Kincaid descobrir que andei trabalhando neste caso, - Los Alamos tem que ser investigado. - Vou telefonar para Simon - ela pegou o telefone e ligou para o escritrio. O operador da mesa era um sujeito que ela conhecia. - Ei, Charlie, aqui a Judy. Simon Sparrow est na casa? - Veio mas j saiu - respondeu Charlie. - Quer que eu tente o carro dele? - Por favor. Ela aguardou um pouco e logo voltou a ouvir a voz de Charlie. - No responde. Tentei a casa dele tambm. Quer que eu deixe uma mensagem no seu pager? - Sim, por favor - Judy lembrou que ele havia dito que ia dormir. Mas aposto como vai estar desligado tambm. - Deixo um recado para ele ligar para voc. pgina 249 - Obrigada - ela desligou e virou-se para o pai. - Bo,acho que vou ter que falar com Kincaid. Pode ser que se eu lhe der uma pista quente, ele no fique furioso comigo. Bo limitou-se a encolher os ombros. - Voc no tem escolha, tem? Judy no podia arriscar-se a permitir que morresse gente s porque tinha medo de confessar o que fizera. - No, no tenho escolha - disse. Ela estava com uma cala-jeans preta e uma camiseta cor de morango. A camiseta era justa demais para ir ao escritrio, mesmo em uma manh de sbado. Subiu at o quarto e a trocou por uma plo branca. Depois pegou seu Monte Carlo e foi para o centro da cidade. Marvin teria que organizar uma incurso a Los Alamos. Podia haver encrenca; os vigilantes eram malucos. A incurso precisava ter um efetivo razoavelmente grande e ser meticulosamente organizada. O FBI morria de medo de outro Waco. Todo o pessoal da agncia seria convocado para fazer parte dela. A agncia de Sacramento tambm seria envolvida. Provavelmente a ao seria desencadeada na madrugada do dia seguinte. Foi direto sala de Kincaid. A secretria estava na antesala, trabalhando no computador, trajando uma roupa de sbado, cala-jeans branca e camisa vermelha. Ela pegou o telefone e disse: - Judy Maddox est aqui para ver o senhor - aps um momento desligou e disse para Judy: - Pode entrar. Judy hesitou na porta da sala de Kincaid. Nas duas ltimas vezes em que entrara naquele escritrio, sofrera humilhao e desapontamento. Mas no era supersticiosa. Talvez desta vez ele se mostrasse magnnimo e compreensivo. Ainda a perturbava ver sua figura corpulenta na cadeira que era de
Milton Lestrange, um homem esbelto e elegante no vestir. Deu-se conta neste instante de que ainda no visitara Milt no hospital. Tomou nota mentalmente para visit-lo ainda naquela noite ou no dia seguinte. O cumprimento de Kincaid foi glacial. - O que posso fazer por voc, Judy? pgina 250 - Estive hoje com Simon Sparrow - comeou ela. - Ele me trouxe o relatrio porque no sabia que eu estava fora do caso. Naturalmente que eu lhe disse para entregar a Marvin. - Naturalmente. - Mas ele me contou um pouco do que descobriu, o que me fez imaginar que o Martelo do den deve ser um culto que se sinta de algum modo ameaado pelo projeto de construo de uma usina eltrica. Brian pareceu aborrecido. - Passarei isso para Marvin - disse, impaciente. Judy insistiu, inabalvel. - H diversos projetos de usinas na Califrnia; eu mesma verifiquei. E um deles no vale do rio Silver, onde h um grupo de vigilantes de extrema direita chamado Los Alamos. Brian, eu acho que os Los Alamos devem ser o Martelo do den. Acho que devamos fazer uma incurso l. - isso que voc acha? Oh, que merda. - H alguma falha na minha lgica? - perguntou ela, glacialmente. - Pode apostar como h - ele se levantou. - A falha que voc no tem nada a ver com este maldito caso. - Eu sei - contraps ela. - Mas pensei que. . . Ele a interrompeu, esticando o brao por cima da mesa grande e apontando um dedo acusador contra o seu rosto. - Voc interceptou o relatrio psicolingstico e est tentando dar um jeito para voltar ao caso - e eu sei por qu! Voc acha que um caso que pode lhe trazer notoriedade e quer aparecer. - Para quem? - perguntou Judy, indignada. - A sede do FBI, a imprensa, o governador Robson. - No quero nada! - Oua bem o que vou falar. Voc est fora deste caso. Est me entendendo? F-o-r-a, fora. Voc no fala com seu amigo Simon a respeito do caso. Voc no verifica planos de construo de usinas. E no prope incurses contra sedes de grupos de vigilantes. - Jesus Cristo! pgina 251 - Eis o que voc vai fazer: voc vai para casa. E vai deixar este caso com Marvin e comigo. - Brian... - Adeus, Judy. Tenha um bom fim de semana. Ela o encarou fixamente. Kincaid estava vermelho e respirando com dificuldade. Sentiu-se furiosa mas impotente. Engoliu as respostas furiosas que lhe vieram mente. Tinha sido forada a desculpar-se por
ter xingado Kincaid uma vez e no queria passar pela humilhao de novo. Mordeu os lbios. Aps um longo momento, girou nos calcanhares e saiu da sala. *** Priest parou o velho Plymouth `Cuda no lado da estrada, ao raiar do dia. Pegou a mo de Melanie e levou-a por dentro da floresta. O ar da montanha era frio e eles tremiam em suas camisetas at que o esforo da caminhada aqueceu-lhes os corpos. Aps alguns minutos deram em um penhasco de onde era possvel ver o vale do rio em toda a sua extenso. - O vale do rio Silver - disse Priest. - aqui que querem construir a tal represa para a usina hidreltrica. Justo naquele ponto o vale se estreitava em uma garganta, de tal modo que o outro lado no ficava a mais de quinhentos metros. Ainda estava muito escuro para ver o rio, mas no silncio da manh dava para ouvir o rumorejar das guas l embaixo. Quando o dia clareou mais um pouco, conseguiram distinguir as formas escuras dos guindastes e das gigantescas mquinas de terraplenagem, silenciosas e imveis, como dinossauros adormecidos. Priest praticamente perdera a esperana de que o governador Robson fosse negociar. O terremoto em Owens Valley fora h dois dias e, at agora, nem uma s palavra. No conseguia imaginar qual seria a estratgia do governador, mas com certeza no era de capitulao. Tinha que haver outro terremoto. Mas ele se inquietava. Melanie e Star podiam relutar, em especial porque o segundo tremor teria que causar mais danos que o primeiro. Tinha que revigorar a dedicao delas causa. ha comear com Melanie. pgina 253 - Ser criado um lago com dezesseis quilmetros de comprimento, em toda a extenso do vale - disse ele. Pde ver o rosto oval de Melanie, muito branco, ficar tenso de raiva. - A partir daqui, rio acima, tudo que voc est vendo ficar sob a gua. Depois da garganta, estendia-se o largo fundo do vale. Quando a paisagem ficou visvel, puderam ver as casas dispersas aqui e ali, e alguns campos cuidadosamente cultivados, todos ligados por estradinhas de terra. Melanie disse: - Certamente que algum tentou impedir a construo da represa, no? Priest aquiesceu. - Houve uma enorme batalha legal. Ns no tomamos parte. No acreditamos em tribunais e advogados. E no queramos reprteres e equipes de televiso espalhados por toda a parte como praga - um grande nmero de ns tem segredos para guardar. Este o motivo pelo qual nem dizemos s pessoas que formamos uma comunidade. A maior parte de nossos vizinhos nem sabe que existimos, e outros pensam que o vinhedo administrado de Napa e emprega trabalhadores temporrios. Por isso no participamos do protesto. Mas alguns dos residentes mais ricos contrataram advogados e os grupos ambientalistas ficaram do lado dos
moradores. No adiantou. - Como que pode? - O governador Robson apoiou o projeto da construo da represa e ps esse tal de A1 Honeymoon no caso - Priest odiava Honeymoon. Ele tinha mentido, enganado e manipulado a imprensa impiedosamente. - Honeymoon distorceu a coisa de tal modo que a imprensa fez o pessoal daqui parecer um bando de caras egostas que queriam negar energia eltrica para todos os hospitais e escolas da Califrnia. - Como se tivessem culpa de que as pessoas em Los Angeles pusessem iluminao subaqutica em suas piscinas e tivessem motores eltricos para fechar as cortinas da casa. - Certo. E assim, a Coastal Electric teve permisso para construir a represa. - E todas essas pessoas perdero suas casas. 254 KEN FOIIETT - Alm de um centro hpico, um campo de vida selvagem, diversas cabanas de vero e um bando maluco de vigilantes armados conhecidos como Los Alamos. Todos recebem compensao financeira - exceto ns, porque no somos os proprietrios de nossa terra, s a alugamos na base de contratos de um ano. No receberemos nada - pelo melhor vinhedo entre Napa e Bordeaux. - E o nico lugar onde me senti em paz. Priest murmurou qualquer coisa em sinal de compreenso. Era assim que queria que a conversa se desenrolasse. - Dusty sempre teve aquelas alergias? - Desde que nasceu. Na verdade, ele era alrgico a leite de vaca, mamadeira, at mesmo materno. Sobreviveu base de leite de cabra. Foi quando me dei conta de que a raa humana deve estar fazendo algo de errado para que o mundo esteja to poludo que o prprio leite do meu seio seja venenoso para meu filho. - Mas voc o levou aos mdicos. - Michael insistiu. Eu sabia que no ia adiantar nada. Receitaram remdios para suprimir seu sistema imunolgico e impedir que reagisse aos elementos alergnicos. Que tipo de tratamento esse? O que ele precisava era de gua pura, ar limpo e um modo de vida saudvel. Acho que procurei um lugar assim desde que ele nasceu. - Foi difcil para voc. - Voc no faz idia de como foi difcil. Uma mulher sozinha com um filho doente no conseque permanecer em nenhum emprego, no consegue morar em um apartamento decente, no pode viver. Voc acha que a Amrica um grande lugar, mas tudo a mesma droga. - Voc estava em mau estado quando a encontrei. - Estava prestes a me matar e a Dusty tambm - os olhos dela encheram-se de lgrimas. - A voc encontrou este lugar. O rosto dela ficou vermelho de raiva. - Que agora querem tirar de mim! - O FBI diz que no fomos ns que causamos o terremoto e o governador nada disse.
- Ao inferno com ele, teremos que repetir a dose! S que desta vez de um jeito que no possam ignorar. pgina 255 Era o que ele queria ouvi-la dizer. - Seria preciso causar danos reais, derrubar algumas edificaes. Pode ser que saia gente ferida. - Mas no temos escolha! - Podamos deixar o vale, acabar com a comunidade, voltar ao antigo estilo de vida: empregos normais, dinheiro, ar poludo, cobia, cime e dio. Priest conseguiu assust-la. - No! - exclamou Melanie. - No diga uma coisa dessas! - Acho que voc est certa. No podemos voltar agora. - Eu com certeza no posso. Ele varreu o vale com o olhar novamente. - Vamos nos assegurar de que o vale permanea tal como Deus o fez. Ela fechou os olhos, aliviada, e disse: - Amm. Priest segurou-lhe a mo e conduziu-a de volta por entre as rvores at o carro. Seguindo ao longo da estreita estrada que acompanhava o vale, Priest perguntou: - Voc vai pegar Dusty em San Francisco hoje? - , vou, saio depois do almoo. Priest ouviu um estranho barulho sobrepondo-se ao ronco asmtico do velho motor V8 do `Cuda. Deu uma olhada pela janela lateral e viu um helicptero. - Merda! - exclamou, metendo o p no freio. Melanie foi lanada para a frente. - O que ? - perguntou, assustada. Priest parou o carro e saltou. O helicptero estava desaparecendo na direo norte. Melanie tambm saltou. - O que est havendo? - O que um helicptero est fazendo aqui? - Oh, meu Deus - exclamou ela, a voz trmula. - Acha que est nos procurando? O barulho desapareceu e depois voltou. O helicptero reapareceu de repente sobre as rvores, voando baixo. pgina 256 - Acho que so os federais - disse Priest. - Droga! - Aps a entrevista coletiva desenxabida da vspera ele achara que ia ficar em segurana por mais uns dias. Kincaid e Hayes pareciam longe de descobrir sua pista. Agora estavam ali, no vale. Melanie perguntou: - O que vamos fazer? - Manter a calma. Eles no vieram por nossa causa. - Como que voc sabe?
- Tomei minhas providncias. Ela comeou a chorar. - Priest, por que fica falando comigo por enigmas? - Desculpe - ele se lembrou de que precisava dela para o que ainda tinha que fazer. Por isso tinha que explicar as coisas. Organizou seus pensamentos. - Eles no podem estar vindo atrs de ns porque no sabem de nossa existncia. A comunidade no aparece em nenhum registro do governo - nossa terra cedida para uma pessoa, a Star. No aparecemos nos arquivos da polcia ou do FBI porque nunca despertamos a ateno deles. Nunca houve um artigo de jornal ou um programa de televiso nos focalizando. No somos registrados no Imposto de Renda. Nosso vinhedo no aparece em nenhum mapa. - Ento por que eles esto aqui? - Acho que vieram atrs dos Los Alamos. Aqueles malucos devem estar nos arquivos de todas as agncias policiais dos Estados Unidos. Pelo amor de Deus, eles ficam junto do porto armados at os dentes com rifles de alto calibre s para que todo mundo saiba que l moram uns bandidos perigosos e malucos. - Como voc pode ter certeza de que o FBI est atrs deles? - Simples. Quando Star ligou para o programa do John Truth, fiz com que ela dissesse o slogan do pessoal de Los Alamos: "No reconhecemos a jurisdio do governo dos Estados Unidos." Ou seja, deixei uma pista falsa. - Estamos seguros, ento? - No. Depois que virem que Los Alamos est limpo, os federais podem querer dar uma olhada nas outras pessoas do vale. Vo enxergar o vinhedo do helicptero e nos fazer uma visita. melhor a gente ir para casa e avisar os outros. pgina 257 Priest pulou dentro do carro. Assim que Melanie sentou, ele meteu o p no acelerador. Mas o carro tinha vinte e cinco anos e no fora projetado para correr em estradas sinuosas que cortavam montanhas. Priest amaldioou os carburadores entupidos e a suspenso cambaleante. Enquanto lutava para conservar a velocidade na estrada cheia de curvas, perguntava a si prprio quem no FBI poderia ter ordenado aquela incurso. No esperara que Kincaid ou Hayes fossem ter a intuio de fazer aquilo. Tinha que haver mais algum no caso. Gostaria de saber quem. Surgiu um carro preto por trs dele, andando depressa, faris acesos embora o diaj estivesse claro. Estavam se aproximando de uma curva, mas o motorista buzinou e forou passagem. Quando passou, Priest viu o motorista e seu companheiro, dois homens jovens e corpulentos, vestidos com roupa esporte mas bem barbeados e de cabelos curtos. Imediatamente depois apareceu um segundo carro, buzinando e piscando os faris. - Que merda - exclamou Priest. Quando o FBI estava com pressa, era melhor sair do caminho. Ele freou e desviou, abrindo passagem. As rodas da esquerda do `Cuda subiram, com um solavanco, o terreno gramado ao lado da estrada. Um segundo automvel passou chispando e logo veio um
terceiro. Priest parou totalmente seu velho carro. Ele e Melanie deixaram-se ficar sentados observando a passagem de uma srie de veculos. Assim como automveis de passageiros, havia dois caminhes blindados e trs minivans cheios de homens de expresso sinistra e algumas mulheres. - uma blitz - lamentou-se Melanie. - Puta que pariu, no brinca! - disse Priest, a tenso tornando-o sarcstico. Ela pareceu no notar. pgina 258 Um carro saiu do comboio e parou logo atrs do `Cuda. Priest de repente sentiu medo. Olhou para o carro pelo retrovisor. Era um Buick Regal verde-garrafa. O motorista falava ao telefone. Havia outro homem no banco do carona. Priest no conseguiu distinguir seus rostos. Quisera, de todo corao, no ter ido entrevista coletiva. Um dos caras do Buick podia ter estado l. E nesse caso, com toda certeza ia querer saber o que um advogado de Oakland estava fazendo ali. Dificilmente poderia ser uma coincidncia. Qualquer agente com metade de um crebro poria imediatamente Priest no topo da lista dos suspeitos. O ltimo integrante do comboio passou como um raio. No Buick, o motorista desligou o telefone. A qualquer segundo agora os dois agentes saltariam do carro. Priest debateu-se desesperadamente, procurando inventar uma histria plausvel. Fiquei to interessado no caso, e me lembrei de uma reportagem na televiso sobre esse grupo de vigilantes e seu slogan, isso de no reconhecerem a autoridade do governo, a mesma coisa que a mulher disse na secretria eletrnica do programa do John Truth, que a pensei em bancar o detetive, e verificar eu mesmo o que havia... Mas no iam acreditar. Por mais plausvel que fosse sua histria iam interrog-lo de uma forma to completa que no seria possvel engan-los. Os dois agentes saram do carro. Priest os examinou cuidadosamente pelo espelho. No reconheceu nem um nem outro. Relaxou um pouco. Havia uma camada de suor no seu rosto. Esfregou a testa com as costas da mo. Melanie disse: - Oh, Jesus, o que ser que eles querem? - Fica fria - disse Priest. - No d a impresso de que est louca para se mandar. Vou fingir que estou superinteressado neles. A um ponto tal que far com que queiram se livrar de ns o mais depressa que puderem. Psicologia reversa - ele saiu do carro. - Ei, vocs so da polcia? - disse, entusiasmado. - Tem alguma coisa importante acontecendo? O motorista, um homem magro com culos de armao preta, disse: pgina 259
- Somos agentes federais. Senhor, verificamos sua placa e o seu carro est registrado como pertencente Napa Bottling Company. Paul Beale fazia questo de manter o carro no seguro e totalmente regularizado. - onde sou empregado. - Posso ver sua licena de motorista? - Oh, pois no - Priest pegou a licena no bolso de trs da cala. Aquele helicptero que eu vi era de vocs? - Sim, senhor, era - o agente examinou sua licena e devolveu. - E onde o senhor foi nesta manh? - Trabalhamos num vinhedo mais acima, aqui mesmo no vale. Ei, espero que vocs tenham vindo atrs desses malditos vigilantes. Eles deixam todo mundo por aqui morrendo de medo. Eles... - Onde o senhor foi mesmo nesta manh? - Fomos a uma festa em Silver City ontem noite. Terminou meio tarde. Mas estou sbrio, no se preocupem! - Tudo bem. - Escuta, eu escrevo umas coisinhas para o jornal local, no sei se conhecem, o Silver City Chronicle? Ser que posso ter uma declarao qualquer de vocs a respeito desta blitz? Vai ser a maior notcia do condado em muitos anos! - quando as palavras saram de sua boca ele se deu conta de que aquilo era muito arriscado para um homem que no sabia ler ou escrever. Bateu nos bolsos. - Puxa vida, no tenho nem um lpis. - No podemos dizer nada - retrucou o agente. - O senhor ter que telefonar para a pessoa encarregada das ligaes com a imprensa, no escritrio do Bureau em Sacramento. Priest fingiu desapontamento. - Oh, sim, claro, claro. Eu entendo. - O senhor disse que estava indo para casa. - Sim. OK, acho que vamos andando, sim. Boa sorte com os vigilantes! - Muito obrigado. Os agentes retornaram para o Buick. pgina 260 Eles no tomaram nota do meu nome. Priest voltou para o seu carro. Pelo espelho, ficou observando os agentes. Nenhum dos dois pareceu estar anotando algo. - Jesus Cristo - murmurou, feliz. - Acreditaram na minha histria. Ele saiu, seguido pelo Buick. Ao se aproximar da entrada para Los Alamos, poucos minutos depois, Priest abaixou o vidro da sua janela, para ver se ouvia tiros. No ouviu nada. Parecia que o FBI tinha apanhado os caras dormindo. Depois de uma curva viu dois carros estacionados perto da entrada de Los Alamos. A porteira de cinco paus que bloqueava a trilha fora esmagada: dava para adivinhar que o FBI passara com os carros blindados por cima sem se deter. O porto normalmente era guardado - onde estaria o sentinela? Foi ento que viu um homem de cala camuflada, cara no cho, mos
algemadas nas costas, guardado por quatro agentes. Os federais no queriam se arriscar. Os agentes dirigiram um olhar apreensivo para o `Cuda mas relaxaram quando viram o Buick verde que o seguia. Priest vinha dirigindo lentamente, como um passante curioso. Atrs dele, o Buick saiu da estrada e parou perto da porteira arrombada. Assim que se viu fora do alcance das vistas deles, Priest meteu o p na tbua. *** Quando chegou na comunidade, foi direto cabana de Star, para lhe falar sobre o FBI. Encontrou Star na cama com Bones. Tocou ligeiramente no ombro dela para acord-la e disse: - Precisamos conversar. Espero l fora. Ela fez que sim. Bones nem se mexeu. pgina 261 Priest saiu enquanto Star se vestia. No tinha objeo a que ela renovasse seu relacionamento com Bones, claro. Ele prprio estava dormindo regularmente com Melanie e Star tinha o direito de se distrair com seu antigo amor. Sentia, ao mesmo tempo, um misto de curiosidade e apreenso. Na cama eles seriam apaixonados, famintos um pelo outro, ou relaxados e bem-humorados? Ser que Star pensava em Priest enquanto fazia amor com Bones ou punha todos os outros amantes fora da sua mente e pensava apenas naquele com quem estava? Ser que os compararia mentalmente e classificaria um como mais enrgico, mais terno ou mais competente? Tais perguntas no eram novas. Ele se lembrava de ter os mesmos pensamentos sempre que Star tinha um amante. O que acontecia agora era exatamente como nos primeiros tempos, s que estavam muito mais velhos. Priest sabia que sua comunidade no era como as outras. Paul Beale seguia o destino de outros grupos. No comeo todos perseguiam ideais similares, mas depois tinham cedido. Geralmente ainda oravam juntos, seguindo um guru ou uma disciplina religiosa de alguma espcie, mas tinham revertido propriedade privada e ao uso do dinheiro e no mais praticavam completa liberdade sexual. Eram fracos, no modo de ver de Priest. No tinham tido a fora de vontade para seguirem sempre seus ideais e faz-los funcionar. Em momentos de maior imodstia, dizia para si prprio que era uma questo de liderana. Star saiu envergando sua cala-jeans e um suter azul bem folgado. Para algum que acabara de se levantar, estava tima. Foi o que Priest lhe disse. - Uma boa trepada faz maravilhas pela minha pele - disse ela. Havia qualquer coisa de diferente no seu tom de voz, o bastante para fazer com que Priest pensasse que Bones representava uma espcie de vingana por causa de Melanie. Ser que ia ser uma espcie de fator desestabilizante? Ele j tinha coisas demais com que se preocupar. Por ora, tinha que deixar aquilo de lado. Enquanto caminhavam at a cabana da cozinha, lhe contou sobre a blitz do FBI contra Los Alamos.
pgina 262 - Pode ser que decidam verificar as outras residncias existentes no vale e, neste caso, nos encontraro aqui. No ficaro desconfiados desde que no saibam que somos uma comunidade. S teremos que sustentar nossa fachada habitual. Somos trabalhadores itinerantes sem interesses de longo prazo no vale, e, exatamente por isto, no temos motivos para nos preocuparmos com a represa. Ela aquiesceu. - melhor voc lembrar a todos na hora do caf da manh. Os Comedores de Arroz sabero o que voc realmente tem em mente. Os outros pensaro que nossa poltica costumeira de no dizer nada que possa atrair ateno. - E as crianas? - No vo interrogar as crianas. o FBI, no a Gestapo. - Tudo bem. Eles entraram e comearam o caf. Metade da manh j se passara quando dois agentes desceram a colina tropeando e com lama nos mocassins e carrapichos na bainha das calas. Priest os observou do celeiro. Se reconhecesse algum dos que vira na vspera, seu plano era desaparecer na floresta, fugindo por entre as cabanas. Mas nunca vira aqueles. O mais jovem era alto e largo, com uma aparncia nrdica, cabelo louro bem claro e pele muito branca. O mais velho era oriental, com os cabelos negros j escasseando na parte de cima da cabea. No eram os que o haviam interrogado de manh e ele tinha certeza de que tambm no tinham estado na entrevista coletiva. A maioria dos adultos se encontrava no vinhedo, espargindo molho de pimenta para impedir que os cervos comessem os brotos. As crianas encontravam-se no templo, tendo uma aula de catecismo com Star, que lhes contava a histria de Moiss sendo salvo dentro de uma cestinha. A despeito dos preparativos cuidadosos que fizera, Priest sentiu uma pontada de pnico quando os agentes se aproximaram. Havia vinte e cinco anos que o vale era um lugar secreto e sagrado. At a ltima quinta-feira, quando um policial aparecera procurando os pais de Flower, nenhuma autoridade jamais pusera os ps ali; nenhum superintendente do condado, nenhum carteiro, nem sequer um coletor de lixo. E aqui estava o FBI. Se pudesse fazer com que casse um raio na cabea dos dois agentes, ele o teria feito sem pensar duas vezes. pgina 263 Respirou fundo e cruzou a encosta da elevao dirigindo-se ao vinhedo. Dale cumprimentou os dois agentes, conforme o combinado. Priest encheu um lato d'gua com a soluo de pimenta e comeou a aspergir, movendo-se na direo de Dale para que pudesse ouvir a conversa. O oriental falou, num tom de voz amistoso. - Somos agentes do FBI, fazendo umas indagaes de rotina na rea. Meu nome Bill Ho e este John Aldritch. Aquilo era encorajador, Priest disse a si prprio. Parecia que eles no tinham interesse especial no
vinhedo: estavam s dando uma espiada, na esperana de encontrar alguma pista. Uma sondagem. Mas esta avaliao no fez com que se sentisse menos tenso. Ho deu uma olhada com ar de apreciador. - Que lugar lindo - comentou, com um gesto que abrangia todo o vale. Dale fez que sim. - Somos muito ligados a ele. Vai com calma, Dale - nada de ironias. Isto aqui no uma brincadeira. Aldritch, o agente mais moo, perguntou, impaciente: - voc o encarregado aqui? - ele tinha sotaque do sul. - Sou o capataz - respondeu Dale. - O que posso fazer por vocs? Foi Ho quem falou: - Vocs moram aqui? Priest fingiu continuar trabalhando, mas seu corao batia com mais fora enquanto ele se esforava para ouvir. - A maior parte da turma aqui de trabalhadores temporrios - disse Dale, seguindo o roteiro combinado com Priest. - A companhia proporciona acomodaes porque este lugar muito longe de tudo. - Lugar estranho para uma lavoura de frutas - comentou Aldritch. pgina 264 - No de frutas, isto aqui uma vincola. Gostaria de provar um copo da safra do ano passado? realmente muito bom. - No, obrigado. A menos que voc tenha algum produto sem lcool. - Sinto muito. S temos o artigo verdadeiro. - Quem o dono? - A Napa Bottling Company. Aldritch tomou nota. Ho virou-se para o conjunto de edificaes do outro lado do vinhedo. - Voc se incomoda se eu der uma espiada? Dale deu de ombros. - Claro, v em frente. Priest observou ansiosamente os dois agentes se afastarem. primeira vista, era uma histria plausvel que aquelas pessoas fossem trabalhadores mal pagos vivendo em acomodaes de m qualidade oferecidas por um patro avarento. Mas havia indcios ali espalhados que podiam levar um agente esperto a fazer mais perguntas. O templo era o mais bvio. Star dobrara a velha faixa com os Cinco Paradoxos de Baghram. Assim mesmo, algum com uma mente curiosa podia querer saber por que a escola era uma edificao redonda sem janelas e sem moblia. Havia tambm canteiros de maconha na floresta prxima. Os agentes do FBI no estavam interessados em drogas em quantidade insignificante, mas cultivar droga era uma coisa que no se ajustava fico de uma populao temporria. Quanto loja comunitria, era idntica a qualquer outra loja at voc notar que no havia uma nica etiqueta com preo em qualquer artigo ou mesmo uma caixa registradora. Havia talvez uma centena de outros modos que poderiam fazer a farsa desmoronar ante uma investigao mais meticulosa, mas Priest tinha esperana de que o interesse do FBI fosse nos vigilantes de Los Alamos
e estivesse investigando os vizinhos apenas como uma questo de rotina. Teve de lutar contra a tentao de seguir os agentes. Estava desesperado para ver o que eles iam olhar e ouvir o que diriam um ao outro enquanto caminhavam em torno das cabanas. pgina 265 Mas obrigou-se a continuar aspergindo a soluo de pimenta nas videiras, levantando os olhos a cada um ou dois minutos para ver onde estavam e o que faziam. Entraram na cozinha. Garden e Slow preparavam lasanha para a refeio do meio- dia. O que os agentes estariam dizendo a eles? Garden estaria tagarelando nervosamente e se traindo? Slow teria se esquecido de suas instrues e comeado a balbuciar confusa e entusiasticamente sobre a meditao diria? Os agentes saram da cozinha. Priest concentrou o olhar intensamente neles, tentando adivinhar-lhes os pensamentos, mas estavam longe demais para ler a expresso dos seus rostos e a linguagem corporal de ambos nada transmitia. Comearam a caminhar, dando uma espiada rpida, por entre as cabanas. Impossvel para Priest adivinhar se o que viam faria com que suspeitassem que se encontravam em uma coisa que era algo alm de uma vinicultura. Eles checaram a mquina que prensava as uvas, os galpes onde o vinho era posto para fermentar e os tonis com a safra do ano anterior esperando ser engarrafada. Teriam observado que nada era movido a eletricidade? Abriram a porta do templo. Falariam com as crianas, contrariando a previso de Priest? Ser que Star perderia a calma e os chamaria de porcos fascistas? Priest conteve a respirao. Os agentes fecharam a porta sem entrar. Eles falaram com Oaktree, que cortava aduelas para os tonis no ptio. Oaktree levantou a cabea e falou laconicamente, sem parar de trabalhar. Talvez tivesse imaginado que levantaria suspeitas caso fosse amistoso. Encontraram Aneth pendurando fraldas na corda. Ela se recusava a usar fraldas descartveis. Provavelmente estava explicando isso aos agentes, dizendo que no h no mundo rvores suficientes para que cada criana possa usar fraldas descartveis. Desceram at o regato e estudaram as pedras no leito raso, parecendo pensar sobre a possibilidade de atravessar. A maconha era cultivada do outro lado. Mas os agentes aparentemente no tencionavam molhar os ps e voltaram. pgina 266 Por fim retornaram ao vinhedo. Priest tentou estudar suas feies sem encar-los. Estariam convencidos ou teriam visto algo que os deixara curiosos? O jeito de Aldritch era hostil, enquanto que Ho parecia mais amigvel, mas isto podia ser teatro.
Aldritch dirigiu-se a Dale: - Algumas dessas cabanas so bem enfeitadas para uma acomodao temporria, no acha? Priest gelou. Era uma pergunta ctica, dando a entender que Aldritch no acreditara na histria. Priest comeou a pensar se no haveria algum modo de matar os dois homens do FBI sem ser apanhado. - Bem - disse Dale - alguns de ns voltam a cada ano - ele estava improvisando; nada daquilo tinha sido previsto no roteiro de Priest. - E alguns moram aqui o ano inteiro - Dale no era um mentiroso experiente. Se aquilo continuasse por muito tempo, acabaria se traindo. Aldritch: - Quero uma lista de todos os que moram ou trabalham aqui. A cabea de Priest ps-se a funcionar a toda velocidade. Dale no podia usar os nomes que as pessoas tinham na comunidade, pois isso denunciaria a verdade - e, de qualquer maneira, os agentes insistiriam querendo os nomes verdadeiros. S que alguns ali tinham ficha na polcia, inclusive o prprio Priest. Ser que Dale pensaria rpido o bastante para ver que tinha que inventar nomes para todo mundo? Teria coragem para tanto? Ho acrescentou: - Precisamos tambm das idades e dos endereos permanentes - o tom de voz dele era de quem pedia desculpas. Merda! A coisa est ficando feia. - Vocs podem conseguir isso nos arquivos da firma. No, eles no podem. - Sinto muito - disse Ho - mas precisamos disso agora. Dale pareceu ficar perplexo. - Puxa vida, acho que vocs vo ter que sair andando por a e perguntando ao pessoal. No posso saber o dia do aniversrio de todos. Sou o capataz deles, no o av. pgina 267 Priest se apavorou. Aquilo era perigoso. No podia permitir que os agentes interrogassem todo mundo. Eles se denunciariam dezenas de vezes. Tomou uma deciso rpida e adiantou-se. - Sr. Arnold? - disse, inventando um nome para Dale no impulso do momento. - Talvez eu possa ajudar os cavalheiros - sem planejar, ele adotou a persona de um sujeito amigvel, ansioso por ajudar, mas no muito inteligente. Ele dirigiu-se aos agentes. - J venho aqui h alguns anos, acho que conheo todo mundo e sei a idade tambm. Dale pareceu aliviado de transferir a responsabilidade. - OK, v em frente - disse. - Por que no vamos para a cozinha? - Priest perguntou aos agentes. J que no bebem vinho, aposto como gostariam de tomar um caf. Ho sorriu e disse: - Seria realmente timo. Priest conduziu-os de novo por entre as filas de videiras e os levou para o interior da cozinha.
- Temos que ver uns papis - explicou ele para Garden e Slow. Continuem preparando essa massa com um cheiro maravilhoso, mas faam de conta que no estamos aqui. Ho ofereceu a Priest seu bloco de anotaes. - Por que voc no escreve os nomes, idades e endereos aqui? Ele no pegou o bloco. - Puxa vida, minha caligrafia a pior do mundo - disse, sem se dar por achado. - Agora, vocs se sentam e escrevem enquanto eu fao o caf - ele ps um bule no fogo e os agentes se sentaram a uma mesa de pinho comprida. - O capataz Dale Arnold, tem quarenta e dois anos. Aqueles caras nunca conseguiriam verificar aquilo. Ningum ali tinha o nome em catlogos de telefone ou qualquer tipo de registro. - Endereo permanente? - Ele mora aqui. Todo mundo mora. - Pensei que vocs fossem trabalhadores temporrios. pgina 268 - O due verdade. Mas a maioria vai embora quando chega novembro, a safra j foi colhida e as uvas esmagadas; s que no somos o tipo de gente que pode manter duas casas. Por que pagar aluguel quando voc passa tanto tempo morando em outro lugar? - O endereo permanente para todos seria ento...? - Silver City Valley Winery, Silver City, Califrnia. Mas todo mundo tem a correspondncia enviada para a firma, em Napa, mais seguro. Aldritch estava ficando irritado e ligeiramente confuso, como fora a inteno de Priest. Pessoas rabugentas no tm pacincia com pequenas incoerncias. Ele serviu o caf enquanto ia inventando os nomes. Para se lembrar depois quem era quem, usou variaes dos nomes que as pessoas tinham na comunidade: Dale Arnold, Peggy Star, Richard Priestley, Holly Goldman. Deixou de fora Melanie e Dusty, que estavam ausentes - Dusty na casa do pai e Melanie porque fora busc-lo. Aldritch o interrompeu. - Na minha experincia, a maioria dos trabalhadores rurais temporrios neste estado so mexicanos, ou pelo menos hispnicos. - sim, s que aqui o contrrio - concordou Priest. - A firma tem algumas vincolas, e eu acho que o chefe mantm todos os hispnicos juntos em separado, com capatazes que falam espanhol e pe os outros aqui na nossa equipe. No racismo, entende, s uma coisa prtica. Eles pareceram aceitar a explicao de Priest. Priest prosseguiu lentamente, prolongando a sesso o mximo possvel. Ali na cozinha os agentes no podiam fazer mal. Se ficassem chateados e impacientes para ir embora, tanto melhor. Enquanto ele falava, Garden e Slow continuavam preparando a comida. Garden, silenciosa e inexpressiva, conseguia mexer as panelas com um jeito superior. Slow, nervoso, lanava a todo instante um olhar de pavor para os agentes, mas eles no pareciam ligar. Talvez estivessem acostumados a ver as outras pessoas com medo deles. Talvez gostassem
disso. pgina 269 Priest levou quinze ou vinte minutos para dar os nomes e idades dos vinte e seis adultos da comunidade. Ho j ia fechando o bloco quando Priest disse: - Agora, as crianas. Deixa eu pensar um pouco. Puxa, criana cresce depressa, no mesmo? Aldritch deu um grunhido de exasperao. - Acho que no precisamos saber os nomes das crianas - disse. - Tudo bem - disse Priest, sereno. - Mais caf? - No, obrigado - Aldritch olhou para Ho. - Acho que terminamos aqui. Ho disse: - Quer dizer ento que esta terra de propriedade da Napa Bottling Company? Priest viu uma oportunidade para reparar um erro cometido por Dale. - No, no bem assim - disse. - A companhia opera a vincola, mas acredito que a terra seja de propriedade do governo. - Ento o nome no arrendamento o da Napa Bottling. Priest hesitou. Ho, o mais amigvel, era quem fazia as perguntas realmente perigosas. Mas como responder? Mentir seria arriscado demais. Podiam verificar uma coisa dessas em segundos. Relutantemente, ele disse: - Acho que o nome da pessoa arrendatria Stella Higgins - ele detestou ter que dar o verdadeiro nome de Star para o FBI. - Foi quem comeou a plantao aqui, muitos anos atrs - ele esperava que aquilo no lhes servisse de nada. No podia imaginar como aquela informao poderia ser til. Ho escreveu o nome. - Acho que s - disse. Priest escondeu seu alvio. - Bem, boa sorte para vocs com o resto da investigao - disse, ao conduzi- los para fora da cozinha. Conduziu-os por entre as parreiras. Eles pararam para agradecer a Dale a cooperao. - Afinal, vocs esto atrs de quem? - indagou Dale. pgina 270 - Um grupo terrorista que est tentando chantagear o governador do estado - respondeu Ho. - Bem, fao votos para que os peguem - disse Dale, com sinceridade. No, voc no faz. Finalmente os dois agentes atravessaram o campo e foram embora, tropeando aqui e ali numa irregularidade do terreno e desaparecendo entre as rvores. - Bem, parece que tudo saiu muito bem - disse Dale para Priest, parecendo muito satisfeito consigo prprio. Jesus Cristo Todo-Poderoso, se ao menos voc soubesse.
*** pgina 271 12 Na tarde de domingo, Judy pegou Bo para ver o novo filme do Clint Eastwood no cinema Alexandria, numa esquina da Geary. Para sua surpresa, esqueceu-se de terremotos por duas horas e se distraiu. Depois foram comer um sanduche em um dos botecos que Bo freqentava e cujos clientes eram basicamente policiais. Em cima do bar havia uma televiso e na porta um cartaz dizendo: "Roubamos turistas." Bo terminou seu cheeseburger e tomou um gole de Guinness. - Clint Eastwood devia fazer um filme sobre a histria da minha vida disse. - Deixa disso, Bo. Todo detetive no mundo acha a mesma coisa. - Pode ser, mas eu inclusive sou parecido com ele. Judy deu uma risada. Bo tinha a cara redonda e o nariz pequeno. - Eu preferia que fosse o Mickey Rooney - disse. - Pois eu acho que devia ser possvel a pessoa se divorciar dos filhos - retrucou Bo, dando risada. O noticirio apareceu na televiso. Quando Judy viu as cenas da blitz contra Los Alamos, sorriu, amargurada. Brian Kincaid tinha gritado com ela por interferir no caso - e depois adotara seu plano. No houve, contudo, uma entrevista triunfal com Brian. O que apareceu na tela foi a imagem da porteira esmagada, uma placa que dizia: "No reconhecemos a jurisdio do governo dos Estados Unidos" e uma equipe da SWAT, com coletes prova de balas, retornando do local da operao. Bo comentou: pgina 272 - A mim me parece que no encontraram nada. Aquilo intrigou Judy. - Estou surpresa - disse ela. - Os caras de Los Alamos pareciam realmente ser os suspeitos mais quentes - ela estava desapontada. Pelo visto, sua intuio errara redondamente. O apresentador do noticirio dizia que no fora feita nenhuma priso. - Eles no disseram sequer que foram colhidas provas - comentou Bo. Gostaria de saber qual a histria verdadeira. - Se voc j est acabando aqui, podemos ir saber - disse Judy. Saram do bar e entraram no Monte Carlo de Judy. Ela pegou o telefone do carro e ligou para a casa de Simon Sparrow. - O que que voc sabe sobre a blitz? - perguntou. - Deu em nada. - Foi o que pensei. - No h computadores na rea, portanto fica difcil imaginar como poderiam ter enviado uma mensagem pela Internet. Ningum l passou do segundo grau, e duvido que pelo menos um deles soubesse soletrar a palavra sismlogo. H quatro mulheres no grupo, mas nenhuma se ajusta
aos nossos dois perfis femininos - elas tm quase vinte ou vinte e poucos anos. Alm do mais, os vigilantes no tm queixas da represa. Esto felizes com a indenizao recebida da Coastal Electric pela terra e se mostraram ansiosos para se mudarem. ! - Oh - para terminar, na sexta-feira, s duas e vinte da tarde, seis dos sete homens se encontravam em uma loja chamada Frank's Sporting Weapons em Silver City, comprando munio. Judy sacudiu a cabea. - Bem, de quem foi essa idia burra da blitz em Los Alamos, afinal? Fora dela, claro. Simon disse: - Na manh de hoje, durante o briefing, Marvin afirmou que era sua. - Bem feito que tenha fracassado - Judy franziu a testa. No entendo. Parecia uma pista to boa. pgina 273 - Brian tem outro encontro com o Sr. Honeymoon em Sacramento, amanh de tarde. Parece que ele vai de mos abanando. - O Sr. Honeymoon no vai gostar nada. - Pelo que ouvi dizer ele no o tipo do sujeito muito sensvel e delicado. Judy sorriu, amargurada. No gostava de Kincaid, mas no podia sentir prazer com o fracasso da incurso do FBI em Los Alamos. Significava que o Martelo do den ainda estava solta, em algum lugar, planejando outro terremoto. - Obrigada, Simon. Vejo voc amanh. Assim que desligou, o telefone tocou. Era da mesa do FBI. - Um sujeito chamado professor Quercus deixou um recado que ele disse que era urgente. Tem uma notcia importante para voc. Judy ficou sem saber se ligava para Marvin e passava o recado para ele. Mas a curiosidade para saber o que Michael tinha a dizer foi grande demais. Ligou para a casa dele. Quando Michael atendeu, ela pde ouvir o fundo musical de um desenho animado na televiso. Dusty ainda devia estar l. - Aqui Judy Maddox - disse. - Oi, como vai? Judy levantou as sobrancelhas. Um fim de semana com o filho o adoara. - Estou bem, mas fora do caso - disse ela. - Eu sei. Fiquei horas tentando falar com o sujeito que assumiu a investigao, um tipo com nome de cantor... - Marvin Hayes. - Isso! E agora, "Dancing in the Grapevine, com Marvin Hayes e os Haystacks". Judy riu. Michael prosseguiu. - Mas como ele no retorna meus chamados, estou encalhado com voc. Bem, agora ele voltara ao normal. - OK, o que que voc tem? - Voc pode vir at aqui? Eu realmente teria que lhe mostrar.
pgina 274 Judy ficou satisfeita, at mesmo um pouco excitada com a perspectiva de v-lo de novo. - Voc ainda tem Cap'n Crunch? - Acho que sobrou um pouco. - OK, ento estarei a em quinze ou vinte minutos - ela desligou. -Tenho que ver o meu sismlogo - explicou a Bo. Quer que eu deixe voc no ponto do nibus? - No posso andar de nibus que nem o Jim Rockford. Sou um detetive de San Francisco! - E da? Voc um ser humano. - , mas os caras da rua no sabem disso. - Eles no sabem que voc humano? - Para eles, eu sou um semideus. Ele estava brincando, mas havia alguma verdade no que dissera, Judy reconhecia. O pai vinha botando vagabundo na cadeia daquela cidade havia quase trinta anos. Todo garoto com pedras de crack no bolso da jaqueta tinha medo de Bo Maddox. - Ento quer ir a Berkeley comigo? - Claro, por que no? Estou curioso para conhecer o seu sismlogo bonito. Ela fez um retorno e dirigiu-se para a ponte de Oakland, a Bay Bridge. - O que o faz pensar que ele bonito? Bo sorriu. - O modo pelo qual voc fala com ele - respondeu, com um sorriso astucioso. - Voc no devia usar psicologia de policial com a prpria familia. - Psicologia de policial, uma ova. Voc minha filha e sou capaz de ler seus pensamentos. - Bem, voc est certo. Michael um gato. Mas no gosto muito dele. - No me diga! - retrucou Bo, ctico. - arrogante e difcil. Melhora quando o filho est por perto, o que o suaviza um pouco. - Casado? - Separado. - Separado casado. Judy pde sentir a perda de interesse de Bo em Michael. pgina 275 Era como uma queda de temperatura. Ela sorriu intimamente. O pai ainda estava ansioso por v-la casada, mas tinha seus escrpulos antiquados. Logo chegavam em Berkeley e entravam na rua de Michael, a Euclid. Havia um Subaru laranja parado debaixo da magnlia onde Judy estacionava sempre e ela teve que ir para outra vaga. Quando Michael abriu a porta do apartamento, achou que a fisionomia dele estava tensa. - Oi, Michael, este meu pai, Bo Maddox.
- Entrem - disse Michael, em tom abrupto. O estado de esprito dele parecia ter se alterado por completo no curto espao de tempo que ela levara para chegar. Quando entraram na sala, Judy viu a razo. Dusty estava deitado no sof, com uma aparncia pssima. Tinha os olhos vermelhos e lacrimejantes, alm de parecerem inchados. O nariz estava pingando e ele respirava ruidosamente. A televiso exibia um desenho animado, mas ele no prestava muita ateno. Judy ajoelhou-se do lado dele e passou a mo no seu cabelo. - Coitadinho do Dusty! O que houve? - Ataque de alergia - explicou Michael. - Voc chamou o mdico? - No precisa. J dei a ele o remdio que susta a reao. - Quanto tempo leva para agir? - J est agindo. O pior j passou. Mas pode ser que ele fique assim alguns dias. - Eu gostaria de fazer alguma coisa por voc, rapazinho Judy disse a Dusty. Uma voz de mulher fez-se ouvir. - Eu tomo conta dele, muito obrigada. Judy endireitou-se e virou para trs. A mulher que acabara de entrar dava a impresso de que acabara de descer da passarela de algum grande costureiro. Tinha o rosto oval muito branco e um cabelo vermelho liso que passava dos ombros. Embora fosse alta e magra, o busto era generoso e os quadris cheios. As pernas longas estavam vestidas por uma cala-jeans bem justa de cor bege. Em cima, usava um top verde chique com decote em V. pgina 276 At aquele instante Judy achara que estava bem vestida, com uma bermuda cqui, mocassins claros que destacavam os belos tornozelos e uma camisa plo branca que cintilava em contraste com sua pele morena escura. Sentia-se agora brega, de meia-idade e antiquada, comparando-se com aquela viso da moda chique das ruas. Sem dvida que Michael notaria, por comparao, que ela, Judy, tinha bunda grande e seios pequenos. - Esta Melanie, a me de Dusty - disse Michael. Melanie, esta minha amiga Judy Maddox. Melanie balanou a cabea. Ento esta a sua mulher. Michael no mencionara o fato dela ser do FBI. Ser que queria que Melanie pensasse que Judy era sua namorada? Melanie no se deu ao trabalho de entabular conversa. - Eu j estava de sada - disse ela, carregando uma pequena mochila com um desenho do Pato Donald, obviamente do filho. Judy sentiu-se humilhada pela mulher de Michael, alta e chique. Ficou aborrecida consigo prpria pela reao que teve. Por que eu deveria me incomodar? Melanie esquadrinhou a sala com o olhar e disse: - Michael, onde est o coelho? - Aqui - Michael pegou um boneco encardido que estava em cima da
escrivaninha e deu para ela. Melanie olhou para a criana no sof. - Isto nunca acontece nas montanhas - disse, com frieza. Michael pareceu angustiado. - O que que eu vou fazer, deixar de v-lo? - Teremos de nos encontrar em algum ponto fora da cidade. - Quero que ele fique comigo. No ser a mesma coisa se ele no dormir na minha companhia. - Se ele no dormir, no fica assim. - Eu sei, eu sei. pgina 277 Judy ficou com pena de Michael. Ele estava obviamente angustiado e sua mulher no podia ser mais fria. Melanie enfiou o coelho na mochila e passou o fecho. - Temos de ir. - Eu o carrego at o carro - Michael pegou o filho no sof. - Vamos, tigre, vamos andando. Depois que saram, Bo virou-se para Judy e comentou: - Puxa vida. Que famlia infeliz. Ela concordou. Mas agora gostava de Michael mais do que antes. Gostaria de abra-lo e dizer: Voc est fazendo o melhor que pode, ningum poderia fazer melhor. - Mas, na verdade, ele o seu tipo - disse Bo. - Eu tenho um tipo? - Voc gosta de um desafio. - Porque fui criada por voc. - Eu? - ele fingiu que se sentia ultrajado. - Estraguei voc por completo. Ela deu um beijinho no rosto do pai. - Tambm - disse. Quando Michael retornou, seu rosto estava tenso e preocupado. No ofereceu uma bebida ou um caf a Judy e Bo, e se esqueceu por completo do Cap'n Crunch. Sentou-se diante do computador. - Olha s isto aqui - disse, sem prembulos. Judy e Bo ficaram de p atrs dele, olhando por cima do seu ombro. Apareceu um diagrama na tela. - Aqui est o registro feito pelo sismgrafo do tremor de Owens Valley, com as misteriosas vibraes preliminares que eu no conseguia entender, lembra? - Certamente - disse Judy. - Aqui est um tremor de terra tpico, com mais ou menos a mesma magnitude. S que ele tem vibraes preliminares normais. V a diferena? - Vejo - as normais eram desiguais e espordicas, enquanto as de Owens Valley seguiam um padro regular demais para ser natural. - Agora olha s isto aqui - ele fez aparecer na tela um terceiro diagrama que mostrava um conjunto de vibraes bem regulares, exatamente como as de Owens Valley.
pgina 178 - O que causou estas vibraes? - indagou Judy. - Um vibrador ssmico! - exclamou Michael, triunfante. Bo perguntou: - O que diabo vem a ser isso? Judy quase disse: Eu no sei, mas acho que quero um. Conteve um sorriso. Michael respondeu: - uma mquina usada pela indstria do petrleo para explorar o subsolo. Basicamente, um imenso martelete montado em cima de um caminho. Envia vibraes atravs da crosta terrestre. - E essas vibraes causaram o terremoto? - No creio que possa ser uma coincidncia. Judy fez que sim, balanando a cabea com ar solene. - isso a. Eles realmente so capazes de desencadear terremotos ela sentiu um calafrio quando se deu conta do verdadeiro significado da notcia. Bo disse: - Jesus Cristo, espero que no se desloquem para San Francisco. - Ou Berkeley - disse Michael. - Sabem, embora eu tivesse dito que era possvel, no fundo do corao no acreditava, at agora. Judy: - O tremor foi de intensidade bem pequena. Michael sacudiu a cabea. - No podemos nos tranqilizar com base nisso. A intensidade do tremor de terra no guarda relao com a fora da vibrao que a desencadeia. Depende da presso na falha. O vibrador ssmico pode desencadear qualquer coisa desde um tremor quase imperceptvel at um outro Loma Prieta. Judy se lembrava do terremoto de Loma Prieta ocorrido em 1989 to vivamente quanto se tivesse sido um pesadelo na noite anterior. - Que droga! - exclamou ela. - O que que vamos fazer agora? pgina 279 Bo lembrou: - Voc est fora do caso. Michael franziu a testa, intrigado. - Voc j me disse isso - falou. - Mas no me contou o motivo. - Poltica interna - respondeu Judy. - Temos um chefe novo que no gosta de mim e designou uma pessoa a quem prefere para o meu lugar. - Eu no acredito! - exclamou Michael. - Um grupo terrorista causando terremotos e o FBI s voltas com uma briga de famlia sobre quem vai chefiar a expedio de caa! - O que que eu posso lhe dizer? Os cientistas permitem que suas briguinhas pessoais atrapalhem a busca da verdade? Michael deu um dos seus sorrisos inesperados. - Pode apostar que sim. Mas escuta. Certamente que voc pode passar esta informao para o tal de Marvin-Sei-L-OQue?
- Quando falei com meu chefe sobre Los Alamos, ele mandou que eu no interferisse de novo. - Inacreditvel! - exclamou Michael, enfurecendo-se. Mas voc no pode simplesmente ignorar o que eu lhe disse. - No se preocupe. No farei isso - retrucou Judy, laconicamente. Vamos manter a calma e pensar por um instante. Qual a primeira coisa que precisamos fazer com esta informao? Se pudermos descobrir de onde veio o vibrador ssmico, pode ser que tenhamos uma pista que nos leve ao Martelo do Eden. - Certo - disse Bo. - Ou eles compraram o tal vibrador, ou, o que mais provvel, roubaram. Judy perguntou a Michael: - Quantas dessas mquinas haver no territrio dos Estados Unidos? Uma centena? Um milhar? - Qualquer coisa entre um e outro. - De qualquer forma, no sero muitas. Assim, os fabricantes provavelmente mantero o registro de cada venda. Eu poderia fazer um levantamento disso hoje noite, conseguir que me faam uma lista. E se o caminho foi roubado, a ocorrncia poder estar listada no centro de informaes sobre o crime - o National Crime Information Center, NCIC, administrado pelo FBI em Washington, e que podia ser acessado por qualquer agncia policial. pgina 280 - O NCIC s adianta se a informao foi armazenada l. disse Bo. - No temos uma placa de licena para procurar, e no se pode saber como um veculo desses seria classificado no computador. Eu poderia fazer com que o Departamento de Polcia de San Francisco enviasse um pedido de busca para os demais estados pelo computador do CLETS - CLETS eram as iniciais do sistema de telecomunicaes que atendia s agncias policiais do estado da Califrnia. - E podia tambm fazer com que os jornais imprimissem uma foto de um caminho desses, para que a populao procure. - Espera um minuto - disse Judy. - Se voc fizer isso, Kincaid saber que estou por trs. Michael rolou os olhos para cima numa expresso de desespero. - No obrigatoriamente - ponderou Bo. - No direi aos jornais que o assunto ligado ao Martelo do den. S direi que estamos procurando um vibrador ssmico que foi roubado. E o tipo do roubo pouco usual, eles vo gostar da histria. - timo - apoiou Judy. - E agora, Michael, pode me arranjar os trs grficos que nos mostrou? - Claro - ele acionou uma tecla e a impressora acordou. Judy ps a mo no ombro dele. A pele era quente atravs do algodo da camisa. - Espero que Dusty esteja melhor - disse. Ele cobriu a mo dela com a sua. - Obrigado - o contato foi leve, a palma da mo estava seca. Ela sentiu um arrepio de prazer. Depois ele retirou a mo e disse:
- Bem, talvez voc devesse me dar o nmero do seu pager, para que eu possa entrar em contato com voc um pouco mais depressa, se for necessrio. Ela pegou um carto de visitas. Pensou um momento e escreveu o nmero de casa antes de entreg-lo. Michael disse: - Depois que vocs dois derem todos os telefonemas que tiverem de dar... - ele hesitou. - Gostariam de se encontrar comigo para um drinque, ou talvez jantar? Eu realmente gostaria de saber o andamento da investigao. pgina 281 - Eu no - disse Bo. - Tenho uma partida de boliche. - Judy, e voc? Ser que ele est mesmo me convidando para sair? - Meu plano era visitar uma pessoa no hospital - respondeu ela. Ele ficou sem graa. Judy reconheceu que no haveria coisa no mundo que gostaria mais de fazer do que jantar com Michael Quercus. - Mas acho que no vou levar toda a noite - acrescentou ela. - OK, claro. *** Fazia apenas uma semana que o cncer de Milton Lestrange fora diagnosticado, mas ele j parecia mais magro e mais velho. Talvez fosse o efeito do cenrio hospitalar: os instrumentos, o leito, os lenis brancos. Ou podia ser o pijama azul-beb que revelava um tringulo de pele muito branca logo abaixo do pescoo. Ele perdera todos os seus smbolos do poder: a escrivaninha enorme, a caneta-tinteiro Mont Blanc, a gravata listrada de seda. Judy ficou chocada ao v-lo daquela maneira. - Puxa, Milt, voc no est nenhuma maravilha - desabafou, num impulso. Ele sorriu. - Eu sabia que voc no ia mentir para mim, Judy. Ela ficou envergonhada. - Desculpe, saiu sem querer. - No precisa se desculpar. Na verdade no estou mesmo nada bem. - O que que eles vo fazer? - Vo operar esta semana, no disseram o dia. Mas s para resolver a obstruo do intestino. As perspectivas no so boas. - Como assim? - Noventa por cento dos casos so fatais. pgina 282 Judy engoliu em seco. - Jesus, Milt. - Pode ser que eu tenha um ano. - No sei o que dizer.
Ele no se deteve no prognstico sombrio. - Sandy, minha primeira esposa, veio me visitar ontem. Falou que voc tinha ligado para ela. - , liguei. No tinha idia se ela ia querer v-lo, mas imaginei que no mnimo gostaria de saber que voc se encontrava hospitalizado. Ele pegou a mo de Judy e apertou carinhosamente. - No sei como voc conseque ter tanto discernimento, sendo to jovem. - Que bom que ela veio. Milt mudou de assunto. - Tire a minha cabea dos meus problemas, fale-me sobre o escritrio. - Voc no deveria estar se preocupando. - Uma ova que vou me preocupar. O trabalho no aborrece nem um pouco quando a gente est morrendo. S estou curioso. - Bem, ganhei meu processo. Os irmos Foong provavelmente vo passar a maior parte da prxima dcada na cadeia. - Parabns! - Mas Brian Kincaid recomendou o nome de Marvin Hayes para ser o novo supervisor. - Marvin! No possvel! Brian sabia que voc deveria ser nomeada. - Fale-me sobre isso. - Marvin um cara duro, mas no cuidadoso. Vai atropelando. - Eu no entendo - disse Judy. - Por que Brian o considera tanto? O que que h com aqueles dois - so amantes ou algo semelhante? Milt riu. - No, no so amantes. Mas uma vez, anos atrs, Marvin salvou a vida de Brian. pgina 283 - Fala srio? - Foi um tiroteio. Eu estava presente. Ns emboscamos um barco que descarregava herona na praia de Sonoma, condado de Marin. Era bem cedinho, manh de fevereiro, e o mar estava to frio que chegava a doer. No havia um per, de modo que os caras descarregavam quilos da droga em um bote de borracha para transportar at a praia. Deixamos que eles acabassem o servio e a aparecemos. - Milt suspirou, e uma expresso sonhadora apareceu nos olhos azuis. Ocorreu a Judy que ele nunca mais veria outra emboscada. No momento seguinte ele continuou. - Brian cometeu um erro - deixou um dos bandidos se aproximar demais. Era um italiano pequenino, que o agarrou e encostou-lhe a pistola na cabea. Ns todos estvamos apontando nossas armas, mas se atirssemos contra o italiano, ele provavelmente conseguiria disparar sua pistola antes de morrer, levando Brian consigo. Brian ficou realmente apavorado. Milt abaixou a voz. - Chegou inclusive a fazer xixi nas calas, ns vimos a mancha nas suas calas. Marvin, contudo, mostrou-se mais frio que o demnio. Comeou a andar na direo de Brian e do italiano. Atira em mim, cara - disse ele. - No vai fazer a menor diferena. - Bem - continuou Milt aps uma pequena pausa - nunca vi nada parecido com aquilo. O italiano caiu na esparrela. Girou o brao da arma para
atirar em Marvin. Nessa frao de segundo, cinco dos nossos abateram o cara. Judy aquiesceu. Aquela era uma histria tpica, parecida com as que os agentes contavam no Everton, depois de umas cervejas. Mas no a desconsiderou como sendo uma bravata tpica de homens. No era freqente o envolvimento dos agentes do FBI em tiroteios, de modo que nunca esqueciam a experincia. Podia imaginar Kincaid sentindo-se intensamente ligado a Marvin Hayes depois de uma coisa dessas. - Bem, est explicada a situao difcil que estou vivendo - disse ela. - Brian me deu uma misso pensando que era uma bobagem e depois, quando descobriu que era importante, tirou-a de mim e deu para Marvin. pgina 284 Milt suspirou. - Acho que eu poderia intervir. Tecnicamente ainda sou o encarregado. Mas Kincaid um poltico experiente e sabe que jamais reassumirei a funo. Ele lutaria comigo. E no sei se tenho energia para isso. Judy balanou a cabea. - Nem eu ia querer. Posso cuidar disto. - Qual foi a misso que ele passou para o Marvin? - O Martelo do den, essa gente que provoca terremotos. - Que diz que provoca. - isto que Marvin pensa. Mas ele est enganado. Milt franziu a testa. - Srio? - Totalmente. - O que que voc vai fazer? - Trabalhar no caso nas costas de Brian. Milt demonstrou ter se perturbado. - Isso perigoso. - Tem razo - concordou ela. - Mas no to perigoso quanto um maldito terremoto. *** Michael apareceu com um terno de algodo azul-marinho e camisa branca comum, aberta no pescoo, sem gravata. Teria se vestido de qualquer maneira, sem pensar, ou sabia que aquela combinao o deixava extremamente apetitoso. Quanto a ela, pusera um vestido de seda branca com bolinhas vermelhas. Era perfeito para uma noite de maio, e, sempre que o usava, atraa os olhares dos homens. Ele levou-a a um pequeno restaurante vegetariano no centro da cidade que servia pratos indianos. Como nunca tinha experimentado a comida indiana, deixou que Michael escolhesse. Colocou o telefone celular em cima da mesa. - Sei que falta de educao, mas Bo prometeu me ligar se conseguisse alguma informao sobre vibradores ssmicos roubados - explicou. pgina 285
- Por mim, tudo bem - disse Michael. - Voc entrou em contato com os fabricantes? - Entrei. Falei com um diretor de vendas em casa, assistindo ao beisebol. Prometeu uma lista de compradores para amanh. Pedi para hoje noite mas ele disse que era impossvel - ela fechou a cara, aborrecida. No nos resta muito tempo - cinco dias, agora. - Mesmo assim, me enviou uma foto via fax - ela pegou uma folha de papel dobrada na bolsa e mostrou a ele. Michael deu de ombros. - No passa de um caminho grande equipado com uma mquina. - Mas depois que Bo puser esta foto no computador da polcia, cada agente da lei no estado da Califrnia ficar atento para tentar ver um. E o mesmo ocorrer com metade da populao, se os jornais e a televiso a difundirem. A comida chegou. Mais temperada do que aquela com que estava acostumada, mas deliciosa. Judy comeu com gosto. Aps alguns minutos surpreendeu Michael fitando-a com um leve sorriso nos lbios. Ela ergueu uma sobrancelha. - Falei alguma coisa engraada? - Fico satisfeito porque voc est gostando da comida. Ela sorriu. - assim to evidente? - . - Tentarei ser mais refinada. - No, por favor. um prazer observ-la. Alm do mais... - O qu? - Gosto da sua atitude direta. uma das coisas que me atraem em voc. Parece ter um enorme apetite pela vida. Voc gosta de Dusty, dedica bastante tempo ao pai dele, sente orgulho do FBI e obviamente aprecia as boas roupas... gosta inclusive do Cap'n Crunch. Judy sentiu que corava, mas ficou satisfeita. Gostou do retrato que ele pintou. Perguntou-se qual seria a caracterstica dele que mais a teria atrado. Concluiu que era a sua fora. Ele podia ser irritantemente teimoso, mas numa crise seria como uma rocha. Naquela tarde, quando sua mulher fora to cruel, a maioria dos homens teria partido para a agresso verbal, mas ele s se preocupara com a sade do filho. pgina 286 Alm do mais, o que realmente gostaria, era de meter a mo por dentro da cueca dele. Judith, comporte-se. Ela tomou um gole de vinho e mudou de assunto. - Estamos presumindo que o Martelo do den disponha de dados iguais aos seus sobre os pontos de presso ao longo da falha de Santo Andr. - Devem ter, para escolher as locaes onde o vibrador ssmico poderia detonar um terremoto. - Seria possvel para voc fazer o mesmo exerccio? Estudar os dados e concluir sobre o melhor lugar? - Acho que sim. Provavelmente haveria um conjunto de cinco ou seis
stios possveis - ele viu a direo que o pensamento dela estava seguindo. - Depois, suponho que o FBI poderia vigiar os stios e ver se encontrava um vibrador ssmico. - Sim - se fosse eu a encarregada do caso. - Farei a lista de qualquer maneira. Talvez a mande por fax para o governador Robson. - No deixe que muita gente veja. Pode gerar pnico. - Mas se minha previso for confirmada, poderia dar uma grande ajuda para o meu negcio. - E ele est precisando de ajuda? - Claro. Tenho um contrato grande que paga exclusivamente o aluguel e a conta do celular da minha ex. Pedi dinheiro emprestado a meus pais para dar incio firma, e ainda no comecei a pagar. Minha esperana era conseguir outro cliente importante, a Mutual American Insurance. - Trabalhei l, muito tempo atrs. Mas continue. - Pensei que o negcio estivesse no papo, mas eles esto retardando a assinatura do contrato. Acho que esto querendo mudar de idia. Mas se eu predissesse um terremoto e minha predio se concretizasse, acho que assinariam. E resolveria o meu problema. - Mesmo assim, espero que voc seja discreto. Se todo mundo tentar sair de San Francisco ao mesmo tempo, haver um enorme distrbio nas ruas. pgina 287 Ele deu um sorriso indiferente que foi odiosamente fascinante. - Fiz voc ficar nervosa, no fiz? Judy encolheu os ombros. - Admito que sim. Minha posio no FBI vulnervel. Se eu me envolver em qualquer coisa que provoque um ataque de histeria em massa, no creio que sobreviva. - importante para voc? - Sim e no. Mais cedo ou mais tarde planejo sair e ter filhos. Mas quero sair segundo o meu cronograma, e no segundo o dos outros. - J pensou em algum para ajud-la com o plano de ter filhos? - No - ela o encarou com um olhar absolutamente franco. - difcil encontrar um homem bom. - Imagino que haja uma fila de espera. - Que belo elogio. Gostaria de saber se voc entraria na fila. E se eu ia querer isso. Ele ofereceu mais vinho. - No, obrigada. Eu gostaria de tomar um caf. Ele acenou para um garom. - Ser pai pode ser doloroso, mas ningum se arrepende. - Fale-me sobre Dusty. Ele suspirou. - No tenho cachorro nem gato, no tenho flores no apartamento, muito pouca poeira por causa dos meus computadores. Mas fomos at a livraria, e no caminho de volta para casa ele acariciou um gato. Uma hora mais tarde estava do jeito que , voc viu.
- Que pena. Pobre criana. - A me dele mudou-se recentemente para um lugar nas montanhas, perto da fronteira com o Oregon, e desde ento Dusty passou bem - at hoje. Se ele no pode me visitar sem ter um ataque alrgico, no sei o que fazer. No posso ir morar naquela porra; no h terremotos suficientes no Oregon. A aparncia dele era to perturbada que Judy adiantou-se e apertou-lhe a mo. pgina 288 - Voc vai arranjar uma soluo. evidente que o ama, Michael. Ele sorriu. - verdade. Amo mesmo. Beberam o caf, ele pagou a conta. Depois levou-a at o carro. - A noite passou depressa demais - disse. Acho que esse cara gosta de mim. timo. - Quer ir a um cineminha um dia desses? O velho jogo da seduo. No muda nunca. - At que uma boa idia. - Talvez uma noite desta semana? - Claro. - Eu ligo para voc. - Fechado. - Posso me despedir com um beijo? - Pode - ela sorriu. - Por favor. Michael abaixou a cabea. Foi um beijo suave, uma experincia de beijo. Os lbios dele deslocaram-se delicadamente contra os dela, mas Michael no abriu a boca. Ela retribuiu o beijo da mesma forma. Seus seios ficaram sensveis. Sem pensar, apertou o corpo contra o dele. Ele a abraou com mais fora por um segundo e afastou-se. - Boa noite - disse, finalmente. Depois ficou olhando ela entrar e acenou quando acelerou e foi embora. Judy virou na esquina e parou num sinal vermelho. - Uau - murmurou. *** Na manh de segunda-feira Judy recebeu ordens para integrar uma equipe que investigava um grupo de militantes muulmanos na Universidade de Stanford. Sua primeira tarefa foi examinar os registros de licenas de armas, procurando nomes rabes para averiguar. Ela viu logo que ia ser difcil concentrar-se em um bando relativamente inofensivo de fanticos religiosos quando sabia que o Martelo do den estava planejando o prximo terremoto. pgina 289 Michael telefonou s nove e cinco. - Como vai, agente Judy? O som da voz dele deixou-a feliz.
- Estou legal, muito bem mesmo. - Gostei do nosso encontro. Ela lembrou do beijo e sorriu intimamente. Topo outro beijo daqueles a qualquer hora. - Eu tambm. - Voc est livre amanh? - Acho que sim - a resposta lhe pareceu demasiado fria. - Quer dizer, sim, a menos que acontea alguma coisa com este caso. - Conhece o Morton's? - Claro. - A gente se encontra no bar s seis. Depois podemos ir ao cinema. - Estarei l. Mas aquele foi o nico momento alegre da sua manh. Na hora do almoo, no conseguindo mais se conter, telefonou para Bo, mas ele ainda no conseguira nada. Ela ligou para os fabricantes de vibradores ssmicos que disseram j ter quase completado a lista, que ela receberia sem falta pelo fax no fim do expediente. Mais um maldito dia perdido! Agora s temos quatro dias para pegar aquela gente. Estava preocupada demais para comer. Foi at a sala de Simon Sparrow. Ele estava vestindo uma elegante camisa em estilo ingls, azul com listras cor-de-rosa. Simon ignorava o cdigo oficioso de roupas a serem usadas pelos agentes do FBI, sem que nada lhe acontecesse, provavelmente por ser to bom no que fazia. Ele estava falando ao telefone e observando a tela de um analisador de ondas sonoras ao mesmo tempo. - Pode parecer que vou lhe fazer uma pergunta estranha, Sra. Gorky, mas d para me dizer o que a senhora v da janela da frente da sua casa? - Enquanto ouvia a resposta, Simon analisava o espectro da voz da Sra. Gorky, comparando-a com um outro espectro impresso que ele colara do lado do monitor. pgina 290 Aps alguns momentos, ele desenhou uma linha em torno de um nome constante de uma lista. - Muito obrigado pela sua cooperao, Sra. Gorky. No preciso incomod-la mais. Tenha um bom dia. Judy disse: - Pode parecer uma pergunta estranha, Sr. Sparrow, mas por que precisa saber o que a Sra. Gorky v quando olha pela janela? - No preciso - retrucou Simon. - que essa pergunta geralmente resulta em uma resposta do tamanho adequado para analisar a voz. Quando a pessoa termina de falar, sei se a mulher que estou procurando. - E quem ? - A mulher que ligou para o programa de John Truth, claro - ele deu um tapa num arquivo de folhas soltas em cima da sua mesa. - O Bureau, a polcia e as estaes de rdio que retransmitem o programa at aqui receberam um total de mil duzentos e vinte e nove telefonemas dizendo quem ele . Judy pegou o arquivo e deu uma folheada. Ser que a pista decisiva estaria ali dentro?
Simon mandara sua secretria cotejar e organizar os telefonemas com informaes. Na maioria dos casos havia um nome, endereo e nmero de telefone do denunciante e do suspeito. Em certos casos, havia uma citao de algo importante que o denunciante dissera: Sempre suspeitei que ela era associada Mfia. Ela subversiva. No me surpreende que esteja envolvida em algo assim. Ela parece uma me comum, mas a sua voz - eu seria capaz de jurar pela Bblia. Uma dica especialmente intil no deu nome mas disse: pgina 291 Sei que j ouvi a voz dela no rdio ou algo assim. Era to sexy que me lembrei. Mas foi muito tempo atrs. Talvez tenha sido num disco. Era mesmo uma voz sexy, lembrou Judy. Ela tambm notara isso. Com aquela voz poderia fazer uma fortuna em telemarketing, convencendo executivos a comprar espaos publicitrios de que no precisavam. - At agora - disse Simon - j eliminei uma centena. Acho que vou precisar de ajuda. Judy continuou folheando o arquivo. - Eu ajudaria se pudesse, mas j fui advertida para abandonar o caso. - Puxa vida, obrigado, isto certamente faz com que eu me sinta melhor. - Sabe como vo as coisas? - A equipe de Marvin est telefonando para todas as pessoas constantes da mala direta da Campanha da Califrnia Verde. Ele e Brian acabam de sair para Sacramento, mas no posso imaginar o que vo dizer ao famoso Sr. Honeymoon. - Todos ns sabemos que no so os malditos verdes. - Mas ele no tem outras idias. Judy franziu a testa, olhos fixos numa folha do arquivo. Acabara de dar com outro informe que mencionava um disco. Como antes, no havia nome para a suspeita, mas o denunciante dissera: Ouvi aquela voz em um disco, tenho certeza absoluta. H muito, muito tempo, por volta dos anos 60. Judy perguntou a Simon. - Voc notou que duas dicas mencionam um disco? - mesmo? Deixei passar essa! - Acham que ouviram a voz dela em um disco antigo. Simon ficou animado na mesma hora. - Deve ser um disco falado - algo tipo histrias para dormir, ou Shakespeare, ou algo assim. A voz com que uma pessoa fala muito diferente da voz com que canta. Raja Khan passou pela porta e atraiu o olhar de Judy. pgina 292 - Seu pai telefonou. Pensei que voc estivesse almoando. De repente, ela ficou ofegante, de to ansiosa. Afastou-se de Simon sem uma palavra e correu de volta para sua mesa. Sem se sentar, pegou o telefone e discou o nmero de Bo.
Ele atendeu prontamente. - Tenente Maddox falando. - O que que voc tem a? - Um suspeito. - Jesus - isto timo! - Oua isto. Um vibrador ssmico foi dado como desaparecido duas semanas atrs em algum ponto entre Shiloh, Texas, e Clovis, Novo Mxico. O motorista tambm desapareceu e seu carro foi encontrado incendiado no depsito de lixo local, contendo o que parecem ser suas cinzas. - Ele foi assassinado por causa do maldito caminho? Essa gente no faz prisioneiros, faz? - O principal suspeito um tal Richard Granger, quarenta e oito anos de idade. Chamavam-no de Ricky e pensavam que fosse hispnico, mas com um nome desses podia ser branco com a pele bronzeada. E - espera s ele tem ficha policial! - Voc um gnio, Bo! - Deve estar chegando uma cpia a no seu fax agora. Ele foi um bandido importante em L.A. no final dos anos 60, in- cio dos 70. Prises por assalto, roubo com arrombamento, roubo de automveis. Interrogado a respeito de trs homicdios e tambm trfico de drogas. Mas desapareceu de cena em 1972. A polcia de Los Angeles achou que ele podia ter sido liquidado pela Mfia - o sujeito devia dinheiro aos caras - mas como nunca foi encontrado um corpo, no deram o caso por encerrado. - J sei. Ricky fugiu da Mfia, arranjou uma religio e deu incio a um culto. - Lamentavelmente, no sabemos onde. - Exceto que ele no est no vale do rio Silver. - A polcia de L.A. pode checar seu ltimo endereo conhecido. Provavelmente ser uma perda de tempo, mas assim mesmo vou pedir que chequem. Tem um cara na Homicdios l que me deve um favor. pgina 293 - Temos uma foto desse Ricky? - H uma no arquivo, mas uma foto de um rapaz de dezenove anos de idade. Ele est com quase cinqenta agora, e provavelmente sua aparncia completamente diferente. Por sorte, o xerife em Shiloh preparou um E-fit - E-fit era o programa de computador que substitura o retrato falado feito pelo desenhista da polcia. - Ele prometeu me enviar por fax, mas ainda no chegou. - Retransmita para mim assim que receber, certo? - Claro. - O que que voc vai fazer? - Vou para Sacramento. *** Eram quatro e quinze quando Judy cruzou a porta que tinha a palavra
GOVERNADOR entalhada. Encontrou a mesma secretria sentada atrs da mesa grande. Ela reconheceu Judy e fez ar de surpresa. - Voc do FBI, no ? A reunio com o Sr. Honeymoon comeou dez minutos atrs. - Tudo bem - disse Judy. - Eu trouxe informaes importantes que chegaram no ltimo momento. Mas antes que eu entre, sabe se chegou um fax para mim nos ltimos minutos? Tendo sado da sua sala antes que o retrato de Ricky Granger feito pelo E-fit chegasse, telefonara para o pai do carro e pedira para envi-lo para o gabinete do governador. - Vou verificar - ela falou com algum ao telefone. Sim, seu fax est aqui - um momento depois uma mocinha entrava por uma porta lateral com uma folha de papel. Judy examinou o rosto representado na folha do fax. Aquele era o homem que podia matar milhares de pessoas. Seu inimigo. pgina 294 O que ela viu foi um homem bonito que se dera ao trabalho de esconder o verdadeiro formato do rosto, como se talvez tivesse antecipado aquele momento. Tinha a cabea coberta por um chapu de caubi. O que sugeria que as testemunhas que tinham ajudado o xerife a criar aquele retrato feito pelo computador jamais tinham visto o suspeito sem chapu. Conseqentemente, no havia indicao de como era seu cabelo. Se fosse careca, grisalho ou cacheado ou se tivesse cabelo comprido, seu aspecto seria bem diferente. E a metade inferior do rosto tambm estava bem escondida pela barba cerrada. Ali debaixo o queixo podia ter qualquer formato. A esta altura, Judy achava que ele devia estar com o rosto escanhoado. O homem tinha olhos fundos que se fixavam hipnoticamente em quem visse o retrato. Mas para as pessoas comuns, todos os criminosos tm olhares hipnticos. Fosse como fosse, a foto lhe dizia algumas coisas. Ricky Granger no usava culos habitualmente, era evidente que no se tratava de um afro-americano ou oriental, e como sua barba era preta e densa, provavelmente tinha cabelo escuro. Graas descrio anexada foto, ela viu que se tratava de um homem com pouco mais de um metro e oitenta, magro e aparentemente em boa forma fsica, sem um sotaque destacado. No era muito, mas era melhor do que nada. , E nada era o que Brian e Marvin tinham. O assistente de Honeymoon apareceu e conduziu Judy pelo interior da Ferradura, onde o governador e sua equipe tinham os gabinetes. Judy mordeu o lbio. Estava prestes a violar a primeira regra da burocracia e fazer com que seu chefe passasse por idiota. Provavelmente seria o fim da sua carreira. Azar. Tudo o que queria agora era fazer com que Brian Kincaid encarasse seriamente o Martelo do den antes que aqueles malucos matassem gente. Desde que ele mudasse de atitude, podia despedi-la. Passaram pela entrada da sute pessoal do governador e depois o assistente abriu a porta do gabinete de Honeymoon. Judy entrou.
Por um momento ela se permitiu desfrutar o choque e espanto expressos nos rostos de Brian Kincaid e Marvin Hayes. pgina 295 S depois olhou para Honeymoon. O secretrio do gabinete do governador da Califrnia vestia uma camisa cinza-clara com uma discreta gravata preta-e-branca de bolinhas e suspensrios cinza-escuros com um desenho. Ele olhou para Judy com as sobrancelhas erguidas e disse: - Agente Maddox! O Sr. Kincaid acaba de me contar que a tirou do caso porque a senhorita uma idiota. Judy ficou atnita. Imaginara que fosse controlar a cena. Afinal, fora ela quem os surpreendera irrompendo ali. Mas Honeymoon dera o troco com sobras. No era homem para ser ultrapassado em seu prprio territrio. Ela se recuperou depressa. Tudo bem, Sr. Honeymoon, se quer jogar duro, vamos jogar duro. - Brian no est com nada - retrucou Judy. Kincaid fechou a cara, mas Honeymoon limitou-se a erguer ligeiramente as sobrancelhas. - Eu sou o melhor agente que ele tem, e acabo de provar isto. - mesmo? - disse Honeymoon. - Enquanto Marvin ficou com esse bundo grudado na cadeira como um dois de paus, fingindo que no tinha com que se preocupar, eu resolvi o caso. Kincaid levantou-se, o rosto congestionado e exclamou, furioso: - Maddox, o que diabos voc pensa que est fazendo aqui? Ela o ignorou. - Sei quem est enviando ameaas ao governador Robson - disse, dirigindo-se a Honeymoon. - Marvin e Brian no sabem. O senhor pode chegar sozinho a uma concluso sobre quem idiota aqui. O rosto de Hayes ficou vermelho escarlate. - De que diabos voc est falando? Foi Honeymoon quem falou: - Vamos todos nos sentar. Agora que a Srta. Maddox nos interrompeu, no custa nada ouvir o que ela tem a dizer - ele fez um gesto para o seu assistente. - Feche a porta, John. Agente Maddox, eu a ouvi mesmo dizer que sabe quem est fazendo as ameaas? pgina 296 - Correto - ela ps o fax em cima da mesa de Honeymoon. - Este Richard Granger, um bandido de Los Angeles que, erroneamente, pensou-se que tinha sido liquidado pela Mfia em 1972. - E o que a faz pensar que ele o culpado? - Veja s isto aqui - ela lhe passou outro papel. - Aqui est o sismograma de um terremoto normal. Repare nas vibraes que precedem o tremor. H uma srie muito irregular de diferentes magnitudes. So vibraes preliminares tpicas. Ela lhe mostrou um segundo papel.
- Este o terremoto do Owens Valley. Nada de irregular aqui. Em vez de uma confuso de aparncia natural, uma srie sistemtica de vibraes regulares. Hayes interrompeu. - Ningum pode explicar essas vibraes. Judy virou-se para ele. - Voc no, mas eu posso. Ela ps outra folha de papel na mesa de Honeymoon. - Olhe s este sismograma. Honeymoon estudou o terceiro grfico, comparando com o segundo. - Regular, exatamente como o do Owens Valley. O que provoca vibraes assim? - Uma mquina chamada vibrador ssmico. Hayes conteve uma risada, mas Honeymoon permaneceu absolutamente srio. - O que isso? - Um destes - ela lhe passou a foto enviada por um dos fabricantes. usado em prospeco petrolfera. Honeymoon permaneceu ctico. - Voc est dizendo que foi um terremoto causado pelo homem? - No estou teorizando. Estou lhe dando os fatos. Um vibrador ssmico foi usado naquele local imediatamente antes do terremoto. O senhor pode tirar as prprias concluses quanto causa e efeito. Ele lhe dirigiu um olhar duro e avaliador. Perguntava-se se Judy estaria blefando ou no. Ela sustentou seu olhar e finalmente ele disse: pgina 297 - OK. Como isto nos leva ao sujeito da barba? - Um vibrador ssmico foi roubado uma semana atrs em Shiloh, Texas. Ela ouviu Hayes exclamar: - Droga! Honeymoon disse: - E o sujeito da foto... - Richard Granger o principal suspeito do roubo - e do assassinato do motorista do caminho. Granger trabalhava para a equipe de prospeco de petrleo que estava usando o vibrador. O retrato E-fit baseado nas recordaes dos seus colegas de trabalho. Honeymoon balanou a cabea. - s? - E no o bastante? - retrucou ela. Honeymoon no respondeu a ela e voltou-se para Kincaid. - O que que voc tem a dizer sobre tudo isto? - No me parece que devamos aborrec-lo com questes disciplinares internas - respondeu Kincaid, desorientado. - Oh, eu quero ser aborrecido - contraps Honeymoon. Havia um toque perigoso em sua voz e a temperatura na sala pareceu diminuir. - Veja o caso do meu ponto de vista. Voc vem aqui e me diz que o terremoto definitivamente no foi uma coisa artificial - ele comeou a falar mais alto. - Agora parece, a partir destes indcios, que muito provvel
que tenha sido provocado. Assim, temos um grupo solto por a que tem condies de causar um imenso desastre. - Judy sentiu que ganhara a guerra quando tornou-se claro que Honeymoon acreditara na sua histria. Ele estava furioso com Kincaid. Levantou-se e apontou um dedo para ele. - Voc me diz que no conseque achar os responsveis pelas ameaas e a aparece a agente Maddox com um nome, uma ficha policial e a porra de um retrato. - Acho que eu deveria dizer... - Pois eu acho que voc andou me sacaneando, agente Kincaid - cortou Honeymoon, as feies escurecidas pela raiva. - E quando me sacaneiam eu fico meio irritado. pgina 298 Judy deixou-se ficar em silncio, vendo Honeymoon destruir Kincaid. Se assim que voc fica quando est irritado, Al Honeymoon, eu detestaria v-lo quando voc estiver realmente furioso. Kincaid tentou de novo. - Desculpe-me... - Tambm odeio pessoas que se desculpam - interrompeu Honeymoon. - A inteno do pedido de desculpas fazer com que o transgressor se sinta bem e possa fazer tudo de novo. No se desculpe. Brian Kincaid tentou salvar os ltimos resqucios da sua dignidade. - O que que voc quer que eu diga? - Que est renomeando a agente Maddox encarregada deste caso. Judy olhou para ele espantada. Aquilo era bem melhor do que o que esperara. Para Kincaid foi como se tivesse que ficar nu em plena Union Square. Ele engoliu em seco. Honeymoon insistiu. - Se voc tiver algum problema para fazer isso, basta me dizer, que eu peo que o governador Robson ligue para o diretor do FBI em Washington. O governador poderia, ento, explicar as razes pelas quais estamos fazendo este pedido. - No ser necessrio - disse Kincaid. - Ento nomeie a Maddox encarregada. - OK. - No, nada de "OK". Quero que voc diga isso para ela, aqui mesmo, neste instante. Brian recusou-se a olhar para Judy mas falou: - Agente Maddox, agora voc est encarregada da investigao do Martelo do den. - Muito obrigada - agradeceu Judy. Salva! - Agora, sumam daqui - decretou Honeymoon. Todos se levantaram. Honeymoon chamou: pgina 299 - Maddox. Ela se virou da porta.
- Telefone para mim uma vez por dia. Aquilo significava que ele continuaria a apoi-la. Podia falar com Honeymoon quando precisasse. E Kincaid sabia disso. - Pode deixar - respondeu. Eles finalmente saram. Pouco mais adiante, quando j iam deixar para trs a Ferradura, Judy dirigiu um sorriso doce a Kincaid e repetiu as palavras que ele lhe dissera na ltima vez em que tinham estado naquele mesmo prdio, quatro dias atrs: - Voc se saiu muito bem, Brian. No tem com que se preocupar. *** pgina 300 13 Dusty ficou doente toda a segunda-feira. Melanie pegou o carro e foi a Silver City comprar mais remdio. Deixou o garoto com Flower, que passava por uma sbita fase maternal. Voltou em pnico. Priest estava no depsito de vinho com Dale, que lhe pedira para provar a mistura da ltima safra. Ia ser uma safra nogada, de maturao lenta mas destinada a ter longa vida. Priest sugeriu que fosse usado um pouco mais do mosto mais leve oriundo das encostas mais baixas e sombrias do vale, a fim de tornar o vinho mais atraente logo; mas Dale resistiu. - Isto agora um vinho de conhecedores - disse. - No temos mais que ir atrs dos consumidores de supermercados. Nossos clientes gostam de manter o vinho alguns anos em suas adegas antes de beb-lo. Priest sabia que aquele no era o verdadeiro motivo pelo qual Dale queria falar com ele, mas questionou assim mesmo. - No faa pouco dos compradores de supermercados eles salvaram nossas vidas nos primeiros tempos. - Mas no podem salvar agora - retrucou Dale. - Priest, por que a gente est fazendo isto, porra? Temos que abandonar esta terra no domingo que vem. Priest conteve um suspiro de frustrao. Pelo amor de Deus, me d uma chance! Estou quase conseguindo - o governador no pode ignorar terremotos indefinidamente. S preciso de um pouco mais de tempo. Por que voc no pode ter f? Ele sabia que no era possvel vencer Dale com uma atitude mais agressiva, agrados ou mentiras. S a lgica funcionava com Dale. Priest obrigou-se a falar com calma, a encarnao do raciocnio ponderado e dcil. pgina 301 - Pode ser que voc esteja certo - disse, magnanimamente. Mas depois no resistiu tentao de acrescentar uma ironia. - Os pessimistas com
freqncia esto. - Como assim? - Tudo o que estou lhe dizendo para esperar seis dias. No v agora. D tempo para que possa ocorrer um milagre. Talvez no acontea. Mas talvez acontea. - No sei no. Neste instante Melanie apareceu, ofegante, com um jornal na mo. - Tenho que falar com voc - exclamou. O corao de Priest quase parou. O que tinha acontecido? Tinha que ser algo sobre os terremotos - e Dale no tinha conhecimento do segredo. Priest dirigiu a ele um sorriso que queria dizer As mulheres no so impossveis? E levou Melanie para fora do depsito. - Dale no sabe! - disse, assim que se afastaram o suficiente para no serem mais ouvidos. - O que diabo... - Olha s para isso! - disse ela, brandindo o jornal diante dos olhos de Priest. Ele ficou chocado ao ver a fotografia de um vibrador ssmico. Examinou rapidamente o ptio e as edificaes mais prximas, mas no havia ningum. Assim mesmo, no queria ter aquela conversa com Melanie ao ar livre. - Aqui no! - disse, furioso. - Ponha o maldito jornal debaixo do brao e vamos at a minha cabana. Ela se controlou. Os dois atravessaram o pequeno povoado at chegarem cabana de Priest. Assim que entraram, ele tirou o jornal de Melanie e examinou a foto de novo. No havia a menor dvida. Ele no era capaz de ler a legenda ou a matria que a acompanhava, claro, mas a foto era de um caminho igualzinho ao que ele roubara. pgina 302 - Merda! - exclamou, jogando o jornal em cima da mesa. - Leia! - disse Melanie. - Est muito escuro aqui dentro - replicou ele. - Voc me diz o que tem na notcia. - A polcia est procurando um vibrador ssmico que foi roubado. - Uma ova que est. - No fala nada sobre terremotos - prosseguiu Melanie. - s como uma histria engraada - quem ia querer roubar uma coisa dessas? - No acredito - disse Priest. - No pode ser coincidncia. A histria sobre ns, mesmo que no falem da gente. Eles sabem como fizemos com que o terremoto acontecesse, mas ainda no contaram para a imprensa. Tm medo de criar uma situao de pnico. - Ento por que liberaram esta foto? - Para dificultar as coisas para ns. Com esta foto publicada, fica impossvel dirigir o caminho na estrada. Cada patrulheiro rodovirio do estado da Califrnia est de olho - com a frustrao, ele deu um soco na mesa. - Puta merda, no posso deixar que me detenham assim to
facilmente! - E se dirigirmos noite? Ele tinha pensado nisso. Sacudiu a cabea. - Ainda assim arriscado demais. H polcia na estrada noite. - Tenho que ir ver como est Dusty - disse Melanie. Ela estava beira das lgrimas. - Oh, Priest, ele est to doente - no vamos ter que deixar o vale, vamos? Estou apavorada. Jamais encontrarei outro lugar onde possamos ser felizes, eu sei disso. Priest abraou-a para lhe dar coragem. - Ainda no fui vencido, de jeito nenhum. O que mais diz o artigo? Ela pegou o jornal. - Houve uma demonstrao diante do Federal Building em San Francisco ela sorriu por entre as lgrimas. - Um grupo de pessoas que dizem que o Martelo do den est certo, que o FBI tinha que nos deixar em paz e que o governador Robson devia parar de construir hidreltricas. pgina 303 Priest ficou satisfeito. - Bem, quem diria! Ainda h uns poucos californianos capazes de pensar direito. - Logo ele reassumiu o tom solene. - Mas isso no me ajuda a resolver o problema de sair com o caminho sem ser preso pelo primeiro guarda. - Vou ver o Dusty - insistiu ela. Priest foi com ela. Na cabana da me, Dusty estava deitado na cama, olhos purgando, rosto vermelho, respirando com dificuldade. Sentada ao seu lado, Flower lia em voz alta um livro com o desenho de um pssego gigante na capa. Priest fez um carinho no cabelo da filha. Ela levantou os olhos para ele e sorriu, sem interromper a leitura. Melanie pegou um copo d'gua e deu um comprimido ao filho. Priest sentiu pena do menino, mas no pde deixar de pensar que a doena dele era uma sorte para a comunidade. Melanie fora apanhada em uma armadilha. Acreditava que tinha que viver onde o ar fosse puro, mas no era capaz de conseguir um emprego fora da cidade. A comunidade era sua nica resposta. Se tivesse que ir embora, podia ser que encontrasse outra comunidade que a aceitasse, mas tambm podia ser que no encontrasse. De qualquer forma, estava exausta e desencorajada demais para cair na estrada de novo. E havia mais do que isso, na opinio de Priest. Bem l no fundo dela havia um dio terrvel. Ele no sabia qual era a fonte desse sentimento, mas era forte o bastante para faz-la ansiar por sacudir a terra, incendiar cidades e fazer com que as pessoas fugissem correndo das prprias casas. A maior parte do tempo isso ficava escondido sob a fachada de uma mulher jovem, sexy, mas desorganizada. s vezes, contudo, quando sua vontade enfraquecia e ela se sentia frustrada e impotente, o dio aparecia. pgina 304
Priest deixou-a e foi para a cabana de Star, preocupado com o problema do caminho. Podia ser que Star tivesse alguma idia. Podia ser que houvesse um modo de disfarar um vibrador ssmico de modo que ele parecesse um caminho de Coca-Cola, um guindaste ou qualquer outra coisa. Quando entrou, Star estava pondo um band-aid no joelho de Ringo, algo que ela fazia cerca de uma vez por dia. Priest sorriu para o filho de dez anos e perguntou: - O que que foi desta vez, caubi? - s ento que viu Bones. Ele estava deitado na cama totalmente vestido mas profundamente adormecido. Havia uma garrafa vazia de chardonnay, produzido ali no vale, em cima da mesa de madeira crua. Bones dormia de boca aberta e ressonava alto. Ringo comeou a contar ao pai uma histria comprida sobre tentar atravessar o regato se balanando numa rvore, mas Priest mal ouviu. Bones lhe dera uma inspirao repentina e sua mente trabalhava febrilmente. Depois que o curativo no joelho machucado de Ringo foi feito e o menino saiu correndo porta a fora, Priest contou a Star o problema do vibrador ssmico. E, em seguida, adiantou a soluo. *** Priest, Star e Oaktree ajudaram Bones a retirar a enorme lona de cima do caminho em que ele viera, o caminho com um brinquedo de mafu. Uma vez retirada a lona, o veculo apareceu em todas as suas cores gloriosas e de gosto vulgar: um drago verde lanando pela boca uma labareda vermelha e amarela sobre trs garotas que gritavam, sentadas num balano giratrio, e o letreiro brega, que, segundo Bones leu para Priest, dizia "A Boca do Drago". Priest dirigiu-se a Oaktree: - Subimos um pouco a trilha com o caminho do Bones, de modo que pare do lado do vibrador ssmico. Depois tiramos os painis pintados e prendemos no nosso caminho, cobrindo a maquinaria. Os policiais procuram um vibrador ssmico, no um brinquedo de mafu. pgina 305 Oaktree, que trouxera sua caixa de ferramentas, examinou detidamente os painis e disse, aps um minuto: - No tem problema. Posso fazer isso num dia, com uma ou duas pessoas me ajudando. - E pode pr os painis depois no mesmo lugar, para que o caminho do Bones fique como antes? - Como novo - prometeu Oaktree. Priest olhou para Bones. O grande problema daquele plano era que Bones tinha presena obrigatria nele. Afinal de contas, era um Comedor de Arroz. Talvez no se pudesse garantir que fosse aparecer no prprio casamento, mas era capaz de guardar um segredo. S que, como ele se tornara um drogado, nada era garantido. A herona produz nas pessoas o
mesmo efeito de uma lobotomia. O drogado capaz de roubar a aliana da me. Mas Priest tinha que correr o risco. Estava desesperado. Prometera um terremoto dentro de quatro dias e tinha que cumprir a ameaa. Caso contrrio, tudo estaria perdido. Bones concordou rapidamente com o plano. Priest meio que esperara que ele fosse exigir pagamento. No entanto, como estava morando de graa na comunidade havia quatro dias, era tarde demais para colocar o relacionamento com Priest em termos comerciais. Alm do mais, um cara como ele, que fizera parte da comunidade, sabia que o maior pecado imaginvel era avaliar as coisas em termos de dinheiro. Bones seria mais sutil. Dentro de um ou dois dias pediria dinheiro a Priest para comprar herona. Priest, contudo, decidiu que seria melhor ver o que faria quando a hora chegasse. - Ento vamos at l - disse ele. Oaktree e Star subiram na cabina do caminho de Bones. Melanie e Priest foram no `Cuda. O vibrador ssmico estava escondido a uns mil e quinhentos metros dali. Priest gostaria de saber o que mais o FBI descobrira. Para comear, tinham concludo que o terremoto fora causado por um vibrador ssmico. Teriam ido alm disto? pgina 306 Ligou o rdio do carro, na esperana de ouvir um boletim de notcias. Pegou Connie Francis cantando "Breakin' in a Brand New Broken Heart", um sucesso antigo at mesmo pelos seus padres. O `Cuda foi se sacudindo ao longo da trilha lamacenta que cortava a floresta, atrs do caminho de Bones. Bones dirigia o enorme veculo com segurana, Priest observou, mesmo tendo acabado de acordar de um sono de bbado. Houve um momento em que Priest teve quase certeza de que o caminho com o brinquedo de mafu ia atolar, mas no, atravessou o lameiro direto. O noticirio entrou no ar justo quando estavam se aproximando do esconderijo do vibrador. Priest aumentou o volume. Ficou plido de susto com o que ouviu. - Os agentes federais que investigam o grupo terrorista Martelo do Eden distriburam a imagem fotogrfica do suspeito - disse o locutor. Seu nome deve ser Richard ou Ricky Granger, quarenta e oito anos de idade, originrio de Los Angeles. - Jesus Cristo! - exclamou Priest, metendo o p no freio. - Granger tambm procurado por um assassinato em Shiloh, Texas, nove dias atrs. - O qu? - ningum sabia que ele matara Mario, nem mesmo Star. Os Comedores de Arroz estavam desesperados para causar um terremoto que poderia matar centenas de pessoas, mas ao mesmo tempo ficariam estarrecidos se soubessem que ele batera num homem at a morte com uma chave de roda. O ser humano incoerente. - Isto no verdade - disse Priest. - No matei ningum. Melanie olhava para ele fixamente. - esse o seu nome verdadeiro? - perguntou ela. - Ricky Granger?
Ele tinha esquecido que ela no sabia. - - respondeu, fazendo um tremendo esforo para ver se lembrava de quem sabia seu nome verdadeiro. No o usava havia vinte e cinco anos, exceto em Shiloh. De repente lembrou que tinha ido falar com o xerife de Silver City para tirar Flower da cadeia e seu corao parou por um momento; mas logo se lembrou de que o assistente do xerife pensara que ele tinha o mesmo nome de Star e o chamara de Sr. Higgins. pgina 307 Graas a Deus. - Como foi que arranjaram uma foto sua? - quis saber Melanie. - No foto. uma semelhana fotogrfica. Ou seja, deve ser um desses conjuntos que ajudam a fazer retratos falados. - Sei como - disse ela. - S que em vez de um desenhista, agora feito por um programa de computador. - H um programa de computador para tudo - resmungou Priest. Ainda bem que mudara de aparncia antes de arranjar o emprego em Shiloh. Valera a pena gastar tanto tempo para deixar crescer a barba, o trabalho que era para prender o cabelo diariamente e o aborrecimento de ter que usar chapu o tempo todo. Com sorte, a tal semelhana fotogrfica nem remotamente lembraria a sua aparncia atual. Mas precisava ter certeza. - Preciso ver uma televiso - disse. Ele saltou do carro. O caminho de Bones tinha acabado de estacionar ao lado do vibrador ssmico e Oaktree e Star j se aproximavam. Em poucas palavras ele explicou a situao a eles. - Vocs comeam aqui enquanto dou um pulo em Silver City - concluiu. Vou levar Melanie - quero a opinio dela tambm. Voltou para o carro, saiu da floresta e seguiu para Silver City. Nas cercanias da cidadezinha havia uma loja de eletrodomsticos. Priest estacionou e saltou. Olhou em torno nervosamente. Ainda era claro. E se encontrasse algum que tivesse visto seu rosto na televiso? Tudo dependia da tal imagem ser ou no parecida com ele. Tinha que saber. Precisava se arriscar. Aproximou-se da loja. Na vitrina podiam ser vistos diversos aparelhos de televiso mostrando a mesma coisa, um desses programas de jogos. O apresentador de cabelos prateados e com um terno azul-claro implicava, de brincadeira, com uma mulher de meia-idade que tinha os olhos exageradamente pintados. pgina 308 Priest olhou para os dois lados da calada. No havia ningum vista. Deu uma espiada no relgio: quase sete. O jornal da televiso estaria no ar em poucos segundos. O apresentador passou o brao pelos ombros da mulher e falou dirigindo-se lente da cmera. Seguiu-se uma tomada da platia aplaudindo com entusiasmo histrico. Em seguida apareceu o jornal. Havia dois ncoras, um homem e uma mulher. Eles falaram por alguns segundos.
Logo em seguida todas as telas mostraram o retrato em preto e branco de um homem com uma barba espessa e a cabea metida num chapu de caubi. Priest firmou a vista. A imagem no parecia nem um pouco com ele. - O que que voc acha? - perguntou a Melanie. - Nem mesmo eu saberia que era voc. O alvio que Priest sentiu foi como uma onda que o invadisse. Seu disfarce funcionara. A barba mudara o formato do seu rosto e o chapu escondera sua caracterstica mais marcante, o cabelo longo, grosso e ondulado. Nem mesmo ele teria reconhecido aquela imagem se no soubesse de quem supostamente se tratava. Priest acalmou-se. - Muito obrigado, deus dos hippies - disse. Todas as telas piscaram, e outro retrato apareceu. Priest ficou chocado de ver, reproduzido umas doze vezes, uma foto dele prprio ao dezenove anos, tirada na polcia. Era to magro que seu rosto parecia uma caveira. Era magro atualmente, mas naquele tempo, se enchendo de droga, bebendo e jamais fazendo uma refeio como devia, era um esqueleto. Rosto chupado, expresso ressentida. O cabelo era comprido e fino e sem brilho, com um corte de estilo beatles que j naquele tempo devia estar fora de moda. - Voc me reconheceria? - indagou Priest. - Pelo nariz, sim. Reconheceria. Ele olhou de novo. Melanie tinha razo: a foto mostrava seu nariz caracterstico, W o e recurvo, parecendo uma cimitarra. pgina 309 Melanie acrescentou: - Mas no creio que alguma outra pessoa o reconhecesse, muito menos se for uma estranha. - Foi o que pensei. Ela passou o brao pela cintura de Priest e apertou, afetuosamente. - Voc parecia um garoto muito mau quando era jovem. - Acho que eu era mesmo. - Onde foi que arranjaram aquela foto, afinal? - Estou supondo que foi do meu pronturio policial. Ela levantou os olhos para ele. - Eu no sabia que voc tinha ficha na polcia. Por que o pegaram? - Quer uma lista? Ela pareceu chocada e desapontada. No venha bancar a puritana para cima de mim, garota - lembre-se de quem foi que nos disse como causar um terremoto. - Abandonei a vida de crimes quando vim para o vale disse ele. - No fiz nada de errado nos vinte e cinco anos seguintes at conhecer voc. Ela franziu a testa. Priest percebeu que Melanie no se via como uma criminosa. Aos seus prprios olhos era uma cidad normalmente respeitvel que fora levada a cometer um ato de desespero. Ainda acreditava que era de uma raa diferente daquela a quem pertenciam as
pessoas que roubavam e matavam. Resolva seu problema do jeito que bem entender, meu bem - s no pode desistir do plano. Os dois ncoras reapareceram e a cena mudou para um edifcio alto. Uma linha de palavras apareceu na parte de baixo da tela. Priest no precisava saber o que estava escrito porque reconheceu o lugar. Era o Federal Building, onde o FBI tinha sua agncia em San Francisco. Quando Priest viu uma demonstrao sendo realizada diante do prdio, lembrou do que Melanie lera no jornal. A demonstrao era favorvel ao Martelo do den, ela dissera. Um grupo armado de cartazes e megafones discursava para umas pessoas que entravam no edifcio. pgina 310 A cmera focalizou uma jovem com um toque asitico nas feies. Ela chamou a ateno de Priest porque era bonita maneira extica que o atraa fortemente. Era magra e vestia um elegante terninho escuro, e ele no pde deixar de notar, exibia uma formidvel expresso que dizia a todos v-se-no-me-enche. A cotoveladas, ela abriu caminho por entre a multido com calma insensibilidade. - Oh, meu Deus, ela! - exclamou Melanie. Priest assustou-se. - Voc conhece aquela mulher? - Eu a encontrei no domingo. - Onde? - No apartamento de Michael, quando fui pegar Dusty. - Quem ? - Michael me apresentou s como Judy Maddox, no disse nada a seu respeito. - O que que ela est fazendo no Federal Building? - Diz a na tela, "Agente Judy Maddox, do FBI, encarregada do caso Martelo do den" - ela a detetive que est atrs de ns! Priest estava fascinado. Era ela o inimigo? Pois era uma mulher maravilhosa. S de v-la na tela da televiso dava vontade de acariciar-lhe a pele dourada com a ponta dos dedos. Eu deveria estar assustado, e no excitado. Ela uma detetive e tanto. Chegou na histria do vibrador ssmico, descobriu de onde ele vinha e conseguiu meu nome e retrato. inteligente e trabalha depressa. - E voc a conheceu na casa de Michael? - Conheci. Priest ficou assombrado. Ela estava perto demais - tinha inclusive conhecido Melanie! Sua intuio lhe disse que ele corria grande perigo vindo daquela agente. O fato de ter se sentido to atrado por ela, aps v-la por to pouco tempo na televiso, s servia para tornar as coisas ainda piores. Era como se ela tivesse um poder qualquer sobre ele. Melanie prosseguiu: pgina 311
- Michael no disse que ela trabalhava no FBI. Pensei que fosse uma namorada, e por isso mais ou menos dei um gelo nela. Estava com um cara mais velho que disse ser seu pai, embora no fosse oriental. - Namorada ou no, no gosto de v-la se aproximando tanto de ns! ele virou-se e caminhou lentamente de volta para o carro. Seu crebro trabalhava a toda velocidade. De repente, no tinha nada de espantoso que a agente encarregada do caso procurasse um especialista importante. A agente Maddox falara com Michael pela mesma razo de Priest: Michael era entendido em terremotos. Dava para adivinhar que Michael a ajudara a fazer a ligao com o vibrador ssmico. O que mais teria lhe dito? Sentaram no carro, mas Priest no deu a partida no motor. - Isso muito ruim para ns - disse ele. - Muito ruim. - O que ruim? - retrucou Melanie defensivamente. - ; No acho que tenha nada de mais o Michael trepar com uma agente do FBI. Pode ser que ela enfie a pistola no rabo dele. No me importo. No era prprio de Melanie falar tanto palavro. Ela est realmente chocada. - O que ruim que Michael pode dar a ela a mesma informao que nos deu. Melanie franziu a testa. - No entendi. - Pensa bem. O que que deve estar na cabea da agente Maddox? "Onde o Martelo do den atacar a seguir?" E Michael pode ajud-la com isso. Pode consultar os dados que ele tem arquivados, do mesmo jeito que voc fez e levantar os locais onde h mais probabilidade de ocorrer um terremoto. Em seguida o FBI pode colocar esses locais sob vigilncia e aguardar o aparecimento do vibrador ssmico. - No pensei nisso - Melanie olhou fixamente para Priest. - O filho da puta do meu marido e a galinha do FBI vo nos ferrar, isto o que voc est querendo me dizer? Priest deu uma olhada em Melanie. Parecia prestes a cortar a garganta dele. - V se se acalma, est bem? - Puta merda. pgina 312 - Espera um minuto - Priest teve uma idia. Melanie era o elo. Talvez pudesse descobrir o que Michael dissera linda agente do FBI. - Pode ser que haja como contornar isto. Diga-me uma coisa, como se sente acerca de Michael agora? - No sinto nada. Acabou, e estou feliz. A nica coisa que espero que possamos tratar do nosso divrcio sem muita briga. Priest examinou-a. No acreditava nela. O que Melanie sentia por Michael era raiva. - Temos que saber se o FBI estar vigiando as possveis localizaes de terremotos - e, caso positivo, quais. Acho que ele podia dizer isso
para voc. - E a troco de que ele ia fazer uma coisa dessas? - Acredito que ele ainda sinta teso por voc. Melanie arregalou os olhos para ele. - Priest, o que diabo isso? Priest respirou fundo. - Michael lhe dir qualquer coisa, se voc dormir com ele. - V pra puta que o pariu, Priest. No vou fazer isso! - Detesto ter que pedir-lhe isso - e era verdade. Ele no queria que ela dormisse com Michael. Acreditava que ningum devesse fazer sexo seno quando desejasse. Aprendera com Star que a coisa mais nojenta do casamento era o direito que dava a uma pessoa de fazer sexo com a outra. Assim, aquele esquema era completamente contrrio s suas crenas. Mas no tenho escolha. - Esquece - disse Melanie. - Tudo bem - concordou ele. - Desculpe ter pedido - ele deu a partida no motor do carro. - S queria ser capaz de pensar em outra coisa. Eles seguiram em silncio por alguns momentos, percorrendo o caminho por entre as montanhas. - Desculpe, Priest - disse ela ao cabo de algum tempo. Eu simplesmente no posso fazer isso. - J falei para no se preocupar. pgina 313 Abandonaram a estrada e pegaram a longa trilha irregular que levava comunidade. O caminho com o brinquedo do mafu no era mais visvel da trilha; Priest adivinhou que Oaktree e Star o tinham escondido para a passagem da noite. Estacionou na clareira circular que ficava no fim da trilha. Enquanto atravessavam a floresta no caminho da comunidade, na penumbra do crepsculo, ele segurou a mo de Melanie. Aps um momento de hesitao ela chegou mais para perto de Priest e apertou carinhosamente a mo dele. O trabalho no vinhedo havia terminado. Por causa do tempo quente, a mesa grande fora arrastada de dentro da cozinha para o ptio. Algumas das crianas estavam distribuindo os pratos e os talheres. Slow fatiou um po comprido feito na prpria comunidade. Havia garrafas do vinho deles em cima da mesa e um cheiro estimulante se espalhava por todo o lugar. Priest e Melanie foram at a cabana dela verificar como ia Dusty. Viram imediatamente que estava melhor. O menino dormia pacificamente. A inchao cedera, o nariz parara de escorrer e ele respirava normalmente. Flower dormira na cadeira ao lado da cama, com o livro aberto no colo. Priest observou Melanie ajeitar as cobertas da criana adormecida e beijar-lhe a testa. Depois olhou para Priest e murmurou: - Este o nico lugar em que ele passa bem. - o nico lugar em que eu estive bem - disse Priest, falando baixo. - o nico lugar em que o mundo vai bem. por isso que temos de
salv-lo. - Eu sei - murmurou ela. - Eu sei. *** pgina 313 14 A turma do Terrorismo Domstico da agncia de San Francisco do FBI trabalhava em uma sala estreita que dava para uma fachada lateral do Federal Building. Com suas mesas e divisrias, parecia igual a milhes de outros escritrios, a no ser pelo fato dos rapazes de camisas de mangas curtas e das moas trajando roupas elegantes, que trabalhavam l, usarem armas nos coldres que tinham nos quadris ou debaixo dos braos. s sete horas da manh de tera-feira eles estavam de p, sentados sobre os cantos das mesas, ou encostados na parede, uns bebendo caf nos recipientes de plstico, outros segurando canetas e blocos, prontos para tomar notas. Todos, exceto o supervisor, tinham sido postos sob as ordens de Judy. Era intenso o murmrio na sala. Judy sabia de que estavam falando. Ela se insurgira contra o encarregado em exerccio - e ganhara. No acontecia freqentemente. Dentro de uma hora todo o andar estaria fervendo de boatos e fofocas. Judy no ficaria surpresa de vir a saber, quando o dia terminasse, que sara ganhando porque estava tendo um caso com Al Honeymoon. O barulho cessou quando ela se levantou e disse: - Ateno, por favor. Avaliou o grupo por um instante e experimentou uma emoo j muito conhecida. Todos ali eram bem treinados fisicamente, bem vestidos, honestos e dinmicos, os jovens mais dinmicos do pas. Sentia orgulho em trabalhar com eles. Comeou a falar. pgina 315 - Vamos nos dividir em duas equipes. Peter, Jack, Sally e Lee iro verificar as dicas baseadas nas imagens que temos de Ricky Granger. Judy distribuiu uma folha de instrues que preparara durante a noite. Uma lista de perguntas permitiria que o agente fosse capaz de eliminar a maior parte das denncias, deixando apenas as que mereciam a visita de um agente ou do guarda do bairro. Muitos dos homens identificados como "Ricky Granger" podiam ser desconsiderados primeira vista: afro-americanos, homens com sotaque estrangeiro, na casa dos vinte anos ou de baixa estatura. Por outro lado, os agentes deveriam ser rpidos para visitar qualquer suspeito que se enquadrasse na descrio e tivesse estado fora de casa no perodo de duas semanas nas quais Granger trabalhara em Shiloh, no Texas. - Dave, Louise, Steve e Ashok formaro a outra equipe. Vo trabalhar com Simon Sparrow, verificando dicas baseadas na voz da mulher que telefonou para John Truth. A propsito, algumas das dicas em que Simon
est trabalhando mencionam um disco pop. Pedimos a John Truth para tocar a gravao de novo no programa. No fora ela quem fizera o pedido pessoalmente e sim o encarregado do relacionamento do FBI de San Francisco com a imprensa, que telefonara para a produo. - Assim - continuou Judy, distribuindo uma segunda folha de instrues - pode ser que recebamos ligaes sobre isso. - Raja. O integrante mais jovem da turma do Terrorismo Domstico exibiu seu sorriso meio torto. - Eu estava com medo de voc ter me esquecido. - S nos meus sonhos - disse ela, e todos riram. - Raja. Quero que voc prepare um texto curto para enviar a todos os departamentos de polcia, em especial a Patrulha Rodoviria do estado da Califrnia, explicando como reconhecer um vibrador ssmico - ela levantou a mo. E nada de piadas de vibrador, por favor - e todos riram de novo. - Agora, vou arranjar para ns um reforo de mo-de-obra e um pouco mais de espao. Enquanto isso no acontece, sei que vocs se esforaro ao mximo. Mais uma coisa. pgina 316 Ela fez uma pausa, escolhendo as palavras. Precisava impression-los com a importncia do trabalho - mas achava que no devia ir dizendo sem mais rodeios que o Martelo do Eden era capaz de provocar terremotos. - Essas pessoas esto tentando chantagear o governador do estado. Afirmam que podem fazer com que aconteam terremotos - ela deu de ombros. - No estou dizendo que podem. Mas sei que no impossvel como parece, e no vou me arriscar de jeito nenhum garantindo que no podem. Seja como for, vocs precisam entender que esta uma misso muitssimo sria - ela fez uma ltima pausa antes de concluir. - E vamos ao trabalho. Todos foram se sentar. Judy saiu da sala e, caminhando bruscamente, dirigiu-se ao escritrio do encarregado da agncia San Francisco. O expediente comeava oficialmente s oito e quinze, mas ela apostava como Brian Kincaid chegara mais cedo. Devia ter sabido que Judy convocara sua equipe para uma reunio s sete da manh e ia querer saber o que estava acontecendo. Era exatamente o que ela ia lhe dizer. A secretria ainda no estava. Judy bateu na porta de dentro e entrou. Kincaid estava sentado na cadeira grande com o palet vestido, dando a impresso de que no tinha nada a fazer. Em cima da escrivaninha s havia duas coisas: um bolinho de aveia com a marca de uma mordida e o saco de papel em que o bolinho fora trazido. Ele fumava um cigarro. Era proibido fumar nas reparties pertencentes ao FBI, mas Kincaid era o chefe, e no havia, portanto, ningum que lhe dissesse para no fumar. Ele dirigiu um olhar hostil a Judy e disse: - Se eu lhe pedisse para me fazer uma xcara de caf acho que voc me chamaria de porco machista. Judy no ia fazer caf para ele de jeito nenhum. Ele tomaria como sinal de que podia continuar atropelando vontade. Mesmo assim, ela queria ser conciliadora.
pgina 317 - Vou lhe conseguir um caf - disse. Pegou o telefone dele e discou o nmero da secretria do grupo de Terrorismo Domstico. - Rosa, voc poderia dar um pulinho aqui na sala do encarregado e preparar um bule de caf para o Sr. Kincaid?... Obrigada. Ele ainda parecia zangado. O gesto dela no contribuiu em nada para abrand-lo. Provavelmente Kincaid achara que, ao conseguir o caf sem faz-lo com as prprias mos, mostrara-se mais inteligente que ele. Ou seja, no posso vencer. Ela foi ao ponto. - Tenho mais de mil pistas para seguir com relao voz da mulher na fita. Calculo que vamos receber ainda mais telefonemas sobre a foto de Ricky Granger. No d para avaliar tudo at sexta-feira com nove pessoas. Preciso de mais agentes. Ele deu uma risada. - No vou designar vinte pessoas nessa misso sem sentido. Ela o ignorou. - Notifiquei o Centro de Informaes e Operaes Estratgicas - o CIOE era uma espcie de cmara de compensao de informaes que funcionava em um escritrio prova de bombas na sede do FBI, o Hoover Building, em Washington, D.C. - Presumo que assim que as notcias chegarem ao quartel-general, eles vo mandar algum para c - nem que seja para ganhar o crdito pelo sucesso que possamos vir a ter. - No falei para voc notificar o CIOE. - Quero reunir a Fora Tarefa Conjunta de Terrorismo para que possamos ter representantes aqui dos departamentos de polcia, Alfndega e do Servio de Proteo Federal dos EUA, e toda essa gente vai precisar de um lugar para se sentar. E, a partir do pr-do-sol da quinta-feira, planejo vigiar as localizaes mais provveis para o prximo terremoto. - No vai haver coisa nenhuma! - Vou precisar de pessoal extra tambm para isso. - Pode esquecer. pgina 318 - No h espao grande o bastante aqui no edifcio. Vamos ter que montar um centro de operaes de emergncia em alguma outra parte. Verifiquei as instalaes do Presdio ontem noite - o Presdio era uma base militar desativada prxima da i Golden Gate. O clube dos oficiais era habitvel, mas um gamb se instalou l por algum tempo e deixou como herana um fedor horrvel. - Vou usar o salo de baile do clube dos oficiais. Kincaid levantou-se. - Voc vai para o inferno! - gritou. Judy suspirou. No havia jeito de fazer o que era preciso sem transformar Brian Kincaid em um inimigo para o resto da vida. - Tenho que telefonar para o Sr. Honeymoon dentro de pouco tempo - disse ela. - Quer que eu diga que voc est se recusando a me dar o efetivo de que preciso?
Kincaid estava vermelho de dio. Olhou para Judy como se quisesse puxar da arma e acabar com ela. At que finalmente ele disse: - Sua carreira no FBI est encerrada, sabe disso? Provavelmente ele tinha razo, mas doa ouvi-lo dizer isso. - Eu nunca quis brigar com voc, Brian - disse ela, tentando manter a voz baixa e razovel. - Mas voc me sacaneou. Eu merecia ser promovida depois de ter conseguido a condenao dos irmos Foong. Em vez disso, voc promoveu o seu amiguinho e me deu uma misso sem a menor importncia. No devia ter feito isso. No foi profissional. - No me diga como... Ela o interrompeu. - Quando a misso sem importncia passou a ser um grande caso, voc a tirou de mim e acabou estragando tudo. Tudo de ruim que lhe aconteceu foi culpa inteiramente sua. Agora est ressentido. Bem, sei que seu orgulho foi ferido, assim como sei tambm que seus sentimentos foram magoados e s quero que entenda que estou me lixando para voc. Ele a encarou espantado, com a boca semi-aberta. Judy dirigiu-se para a porta. pgina 319 - Vou falar com o Sr. Honeymoon s nove e meia - disse - At l gostaria de receber na minha equipe uma pessoa para ser a encarregada da chefia da logstica e com autoridade para organizar o efetivo que preciso e estabelecer um posto de comando no clube dos oficiais. Caso contrrio, direi a Honeymoon para telefonar para Washington. A bola est com voc - ela saiu e bateu a porta. Judy sentia o entusiasmo que costuma vir depois de um gesto arrojado. Ia ter que lutar para dar cada passo, de modo que o melhor que tinha a fazer era lutar bem. Nunca mais poderia trabalhar com Kincaid de novo. O alto comando do Bureau ficaria sempre do lado do chefe numa situao como aquela. Judy podia considerar-se praticamente liquidada. Mas este caso era mais importante que sua carreira. Centenas de vidas estavam em jogo. Se pudesse impedir uma catstrofe e prender os terroristas, se demitiria orgulhosamente e mandaria todos para o inferno. A secretria do grupo de Terrorismo Domstico estava na ante-sala de Kincaid, enchendo a mquina de caf. - Obrigada, Rosa - agradeceu Judy, quando passou por ela. Quando voltou para o seu escritrio, o telefone estava tocando. Atendeu: Judy Maddox. - Aqui John Truth. - Ol! - era estranho ouvir pelo telefone aquela voz, to familiar no rdio. - Voc comea a trabalhar cedo! - Estou em casa, mas meu produtor acaba de ligar para mim. Meu correio de voz na estao de rdio ficou entupido com telefonemas sobre a mulher do Martelo do den. Judy no devia falar com a mdia. Todos os contatos eram para ser feitos pela especialista do escritrio, Madge Kelly, uma agente formada
em jornalismo. Mas Truth no estava lhe pedindo uma declarao, fora ele quem telefonara para dar a informao. E Judy estava com muita pressa para dizer a Truth que ligasse para Madge. - Alguma coisa boa? - perguntou ela. - Pode apostar que sim. Tenho duas pessoas que se lembraram do nome do disco. - No brinca! - Judy ficou entusiasmada. pgina 320 - Essa mulher lia poesia com msica psicodlica ao fundo. - No! - Sim! - Ele riu. - O disco era chamado Raining Fresh Daisies. Que parece ser tambm o nome da banda, ou "grupo", como costumavam chamar naquele tempo. Ele parecia ser uma pessoa delicada e afvel, ao contrrio da pessoa repugnante quando estava no ar. Talvez aquilo no passasse de encenao. Mas nunca se pode confiar em quem trabalha na mdia. - Nunca ouvi falar - disse Judy. - Nem eu. Antes do meu tempo, eu acho. E com certeza no temos esse disco na estao. - Ser que algum dos seus informantes indicou um nmero de catlogo, ou pelo menos o nome constante da etiqueta? - Nada. Meu produtor telefonou para ambos, mas no tinham o disco, s se lembravam. - Droga. Acho que temos que telefonar para todas as companhias de discos. S no sei se guardam registros to antigos... - O disco pode ter sido produzido por uma etiqueta independente que no existe mais - a mim me parece uma coisa desse gnero. Quer saber o que eu faria? - Claro. - A Haight-Ashbury est cheia de discos de segunda mo e o pessoal que atende l vive numa bolha onde o tempo no passa. Eu iria ver se no encontrava o tal disco l. - Boa idia - obrigada. - De nada. Agora, como vai indo a investigao? - Estamos fazendo algum progresso. Posso pedir nossa assessora de imprensa que ligue para voc mais tarde com os detalhes? - Oh, deixa disso! Acabei de prestar-lhe um favor, no foi? - Sem dvida nenhuma e eu gostaria de poder dar-lhe uma entrevista, mas os agentes do FBI no so autorizados a falar diretamente com a mdia. Sinto muito, sinceramente. pgina 321 O tom de voz dele passou a ser agressivo. - esse o agradecimento que voc d aos nossos ouvintes por telefonar dando informaes? Uma idia assustadora veio cabea de Judy. - Voc est gravando esta conversa?
- Voc no se incomoda, pois no? Judy desligou. Merda. Cara numa armadilha. Falar com a mdia sem autorizao era o que o FBI chamava de "questo grave", significando que o agente podia ser despedido por isso. Se John Truth tocasse a fita daquela conversa no ar, Judy estaria encrencada. Podia dizer que tinha necessidade urgente da informao que Truth oferecia, e um chefe decente provavelmente se limitaria a repreend-la, mas claro que Kincaid ia deitar e rolar se tivesse oportunidade. Com os diabos, Judy, voc j est to encrencada que isso no far diferena. Raja Khan aproximou-se de sua mesa com uma folha de papel na mo. - Quer dar uma olhada antes que seja expedido? o memorando para a polcia dizendo como reconhecer um vibrador ssmico. Tinha sido rpido. - Por que levou tanto tempo? - caoou ela. - Tive que ver como se escrevia "ssmico". Ela sorriu e leu rapidamente o que ele escrevera. Estava timo. - Excelente. Pode despachar - ela devolveu o papel. Agora tenho outro trabalho para voc. Estamos procurando um disco chamado Raining Fresh Daisies, dos anos 60. - No brinca. Ela sorriu. - , tem um toque meio hippie. A voz do disco da mulher do Martelo do den, e minha esperana de conseguirmos saber o nome dela. Se a etiqueta ainda existir, pode ser que consigamos inclusive o ltimo endereo conhecido. Quero que voc entre em contato com as grandes gravadoras e tambm com as lojas que vendem discos raros. pgina 322 Ele olhou o relgio. - Ainda no so nove horas, mas posso comear com a Costa Leste. - V em frente. Raja foi para sua mesa. Judy pegou o telefone e discou o nmero do quartel- general da polcia. - Tenente Maddox, por favor - um momento mais tarde ele atendeu. Ela disse: - Bo, sou eu. - Oi, Judy. - Concentre-se no final dos anos 60, quando voc conhecia msicas hippies. - Eu teria que ir mais longe. Incio dos anos 60, final dos 50, esta a minha era. - Que pena. Acho que a mulher do Martelo do den gravou um disco com uma banda chamada Raining Fresh Daisies. - Meus grupos favoritos tinham nomes como Frankie Rock e os Rockabillies. Nunca me entusiasmei muito com bandas que tivessem flores nos nomes. Sinto muito, Judy. Nunca ouvi falar desse Raining Fresh Daisies. - Bem valeu a tentativa. - Escuta, gostei de voc ter ligado. Estive pensando no seu cara, o tal de Ricky Granger - ele o homem por trs da mulher, certo?
- o que pensamos. - Sabe de uma coisa? Ele to cuidadoso, gosta tanto de planejar, que deve estar morrendo de vontade de saber o que voc est a fim de fazer. - Faz sentido. - Pois eu acho que o FBI provavelmente j falou com esse sujeito. - mesmo? - se Bo estivesse certo, dava para ter mais esperanas. H um tipo de criminoso que se insinua na investigao, aproximando-se da polcia como testemunha ou o vizinho simptico que oferece caf e depois tenta fazer amizade com os policiais e bater papo com eles sobre o andamento do caso. - Mas Granger parece ser tambm ultracuidadoso. pgina 323 - Provavelmente est havendo uma guerra dentro dele , entre cautela e curiosidade. Mas olha s seu comportamento atrevido como o diabo. Meu palpite que a curiosidade sair vencendo. Judy balanou a cabea, convencida. Valia a pena ouvir os frutos da intuio de Bo: vinham de trinta anos de experincia na polcia. - Vou estudar cada entrevista deste caso. - Procure alguma coisa de diferente. Esse sujeito nunca faz a coisa normal. De repente vai se disfarar de vidente, oferecendo-se para adivinhar onde ir acontecer o prximo terremoto, ou algo semelhante. Ele imaginativo. - OK. Mais alguma coisa? - O que voc quer comer hoje de noite? - Provavelmente no estarei em casa. - No exagera. - Bo, tenho trs dias para pegar essa gente. Se falhar, centenas de pessoas podem morrer! No estou pensando em jantar. - Se voc se estafar, vai perder a pista crucial. Tire folgas, almoce direito, durma quando precisar. - Como voc sempre fez, no ? Ele riu. - Boa sorte. - Tchau - ela desligou franzindo a testa. Tinha que rever todas as entrevistas que a equipe de Marvin fizera com o pessoal da Campanha da Califrnia Verde, mais as anotaes resultantes da blitz em Los Alamos e o que mais houvesse em arquivo. Tudo deveria estar armazenado na memria da rede de computadores do escritrio. Ela digitou o cdigo para chamar a tela do menu. Enquanto examinava o material, percebeu que era coisa demais para rever pessoalmente. Tinham sido entrevistados todos os moradores de Silver River Valley, mais de uma centena de pessoas. Quando conseguisse reforo de pessoal, designaria uma equipe pequena para fazer esse servio. Anotou esta deciso. Pgina 324 E o que mais? Tinha que providenciar vigilncia nos locais onde era maior a probabilidade de terremoto. Michael dissera que podia fazer uma lista. Ficou contente por ter um motivo para telefonar para ele. Discou seu nmero.
Michael pareceu satisfeito ao ouvir a voz de Judy. - Estou ansioso para chegar a hora do nosso encontro hoje noite. Droga - esqueci por completo esse encontro. - Fui designada novamente para o caso do Martelo do den - disse ela. - Isso quer dizer que no vai poder sair de noite? - ele pareceu frustrado. Ela certamente no podia nem pensar em jantar e cinema. - Gostaria de ver voc, mas no tenho muito tempo. Poderamos nos encontrar para um drinque, talvez? - Claro. - Sinto muito, sinceramente, Michael, mas o caso est progredindo muito depressa. Telefonei para falar daquela lista que voc prometeu, de locais provveis para a ocorrncia de terremotos. Conseguiu preparar? - No. Voc estava to ansiosa, com medo da informao vazar, que me fez pensar que o simples exerccio podia ser perigoso. - Agora eu preciso saber. - OK, vou examinar os dados. - Pode trazer a lista noite? - Claro. No Morton's, s seis? - Vejo voc l. - Escuta... - Sim? - Estou realmente satisfeito por ver voc no caso de novo. uma pena que no possamos jantar juntos, mas me sinto mais seguro sabendo que voc quem est atrs dos bandidos. Palavra. - Obrigada - ela desligou, fazendo votos para que merecesse a confiana dele. Restavam trs dias. pgina 325 No meio da tarde o centro de operaes de emergncia estava montado e funcionando. O clube dos oficiais lembrava uma vila espanhola. Por dentro, o que se via era uma sombria e melanclica imitao de um clube campestre, com lambris baratos, murais de m qualidade e luminrias horrendas. O cheiro do gamb no desaparecera. O vasto salo de baile tinha sido inteiramente transformado. O posto de comando propriamente dito ficava num canto; era uma mesa com lugares para os chefes dos principais rgos envolvidos na administrao da crise, incluindo-se a a polcia de San Francisco, bombeiros e pessoal de sade, a chefia do servio de emergncia do gabinete do prefeito e um representante do governador. Os peritos do quartel-general, que naquele instante estavam voando num jato do FBI de Washington para San Francisco, tambm se sentariam ali. Em torno do salo, tinham sido dispostos grupos de mesas para as diferentes equipes que trabalhariam no caso: informaes e investigao, a parte principal do trabalho; negociao e armas especiais, as SWAT, que seriam chamadas caso fossem feitos refns; um grupo de administrao e apoio tcnico que cresceria caso a crise se
agravasse; uma assessoria legal para expedir rpidos mandados de busca ou de priso, assim como autorizaes judiciais para grampear telefones e, finalmente, uma equipe especializada em entrar em qualquer cena de crime imediatamente aps o acontecimento, a fim de realizar a coleta de provas. Os laptops que podiam ser vistos em cima de cada mesa estavam conectados rede local. O FBI usara durante muito tempo um sistema de controle de informaes com base de papel que se chamava Rapid Start, mas agora desenvolvera uma verso computadorizada usando o programa Access, da Microsoft. O papel, contudo, no desaparecera. Quadros murais cobriam dois dos lados do salo, destinando-se a: indcios, acontecimentos, indivduos, exigncias e refns. Os dados e indcios principais seriam escritos ali para que todos pudessem v-los a um olhar. pgina 326 Naquele exato momento o quadro de indivduos tinha um nico nome Richard Granger - e duas fotos. O de indcios tinha a foto de um vibrador ssmico. O salo era grande o bastante para umas duzentas pessoas, mas por ora no tinha mais que umas quarenta. A maioria se concentrava em torno da mesa do pessoal de investigao e informaes, falando em telefones, digitando teclados e lendo arquivos nas telas dos monitores. Judy os dividira em equipes, cada uma com um lder que acompanhava o trabalho dos demais, de modo que pudesse saber o andamento da investigao falando com trs pessoas. O ambiente era de urgncia controlada. Todo mundo estava calmo, mas intensamente concentrado no trabalho. Ningum parava para um caf ou ficava batendo papo em torno da copiadora, tampouco saa para fumar um cigarrinho l fora. Mais tarde, se a crise se agravasse, Judy sabia que a atmosfera iria mudar; todo mundo ia gritar ao telefone, o quociente de expletivos aumentaria em progresso geomtrica, as rixas se repetiriam e seria sua responsabilidade manter a tampa do caldeiro fechada. Lembrando da dica de Bo, puxou uma cadeira ao lado de Carl Theobald, um agente jovem e brilhante, que vestia uma elegante camisa azul-marinho e liderava a equipe que revia os arquivos de Marvin Hayes. - Alguma coisa? - perguntou ela. Ele sacudiu a cabea. - No sabemos exatamente o que estamos procurando, mas, seja o que for, ainda no encontramos. Judy balanou a cabea, em sinal de aprovao. Tinha dado uma tarefa vaga quela equipe, mas no havia alternativa. Eles tinham que procurar alguma coisa fora do comum. Dependia praticamente da intuio de cada agente. Tem gente capaz de farejar fraude at num computador. - Temos certeza de que tudo est arquivado? - indagou ela. Carl deu de ombros. - Devia estar. - Veja se eles guardaram algum documento em papel. pgina 327
- No deveriam... - Mas todo mundo faz. - OK. Rosa chamou-a para atender ao telefone no posto de comando. Era Michael. Ela sorria quando pegou o aparelho. - Oi. - Oi. Tenho um problema hoje noite. No posso me encontrar com voc. Ela ficou chocada com o tom de voz - lacnico e inamistoso. Nos ltimos dias ele tinha se mostrado cordial e afetuoso. Mas este era o Michael original, aquele que no abrira a porta para ela e a mandara marcar uma entrevista. - O que ? - perguntou Judy. - Surgiu uma coisa. Desculpe cancelar o encontro. - Michael, qual o problema? - Estou meio apressado. Telefono depois. - OK - assentiu ela. Ele desligou. Judy recolocou o telefone no lugar, sentindo-se magoada. - E agora, que ser que est acontecendo? - disse para si prpria. Logo agora que eu comeava a gostar do sujeito. O que h com ele? Por que no consegue ficar como estava na noite de domingo? Ou mesmo quando me telefonou hoje de manh? Carl Theobald interrompeu seus pensamentos. Ele parecia perturbado. - Marvin Hayes est me dando problema - disse. - Eles tm uns registros em papel, mas quando eu disse que precisava v-los, me mandou para o inferno. - No se preocupe, Carl. Essas coisas so mandadas pelo cu para nos ensinar pacincia e tolerncia. simples - vou capar esse cara. Os agentes que estavam por perto ouviram e caram na risada. - o que voc quer dizer quando fala em pacincia e tolerncia? perguntou Carl com um sorriso. - Preciso me lembrar disso no futuro. - Venha comigo, vou lhe mostrar. pgina 328 Eles saram e entraram no carro dela. Em quinze minutos estavam chegando ao Federal Building na avenida Golden Gate. Enquanto subiam no elevador, Judy foi pensando em como deveria lidar com Marvin. Devia ser agressiva ou mostrar-se conciliatria? Uma atitude de cooperao s d certo se o outro lado estiver disposto. Com Marvin ela provavelmente ultrapassara este ponto para sempre. Hesitou do lado de fora da porta da sala do esquadro do Crime Organizado. OK, serei Xena, a princesa guerreira. Judy entrou, seguida por Carl. Marvin estava ao telefone, rindo, contando uma piada. - A o homem do bar disse para o cara, puxa vida, tem texugo a na sala dos fundos que d a melhor chupada... Judy abaixou-se sobre a mesa dele e perguntou, em voz alta: - Que babaquice essa que voc est querendo arrumar para cima do
Carl? - Esto me interrompendo aqui, Joe - disse ele. - Daqui a pouco eu ligo - ele desligou. - O que posso fazer por voc, Judy? Ela se abaixou mais, encarando-o frente a frente. - Pra de enrolar. - O que que h com voc? - indagou ele, com cara de ofendido. - Que negcio esse de querer examinar meus registros como se eu tivesse cometido algum erro? Ele no tinha obrigatoriamente cometido um erro. Quando o criminoso se apresenta equipe de investigadores sob o disfarce de circunstante ou testemunha, geralmente tenta se assegurar de que no vo desconfiar dele. No culpa dos investigadores, mas a coisa toda destinada a fazer com que se sintam idiotas. - Acho que voc pode ter falado com o criminoso - disse ela. - Onde esto os registros em papel? Ele alisou a gravata amarela. - Tudo o que temos so algumas anotaes feitas na entrevista coletiva que no chegaram a ser digitadas. - Mostra. pgina 329 Ele apontou uma caixa em cima de uma mesa lateral, encostada na parede. - Sirva-se. Ela abriu o arquivo. Em cima estava o recibo do aluguel de um pequeno sistema de amplificao com microfones. - Voc no vai encontrar porra nenhuma - disse Marvin. Marvin podia ter razo, mas ela precisava tentar e era burrice dele obstruir o seu trabalho. Um homem mais esperto diria; "Ei, se deixei passar alguma coisa, espero que voc encontre." Todo mundo comete erros. Mas Marvin agora estava demasiadamente na defensiva para ser corts ou elegante. S queria provar que Judy estava errada. E seria embaraoso se ela estivesse mesmo errada. Folheou rapidamente os papis. Havia alguns faxes de jornais pedindo detalhes da entrevista coletiva, uma anotao sobre quantas cadeiras seriam necessrias e uma lista de presena, um formulrio onde tinham pedido que os jornalistas que haviam comparecido escrevessem seus nomes e o das publicaes ou emissoras que representavam. Judy correu os olhos pela lista. - Que diabo isto aqui? - perguntou, de repente. Florence Shoebury, Eisenhower Junior High? - Ela queria cobrir a entrevista para o jornal da escola disse Marvin. - O que deveramos ter feito, mand-la merda? - Voc verificou a informao que ela deu? - Era uma criana! - Estava sozinha? - O pai estava com ela. Havia um carto de visitas grampeado no formulrio. - Peter Shoebury, de Watkins, Colefax e Brown. Voc o investigou? Marvin hesitou por um longo momento, percebendo que cometera um erro. - No - disse finalmente. - Brian decidiu deixar que os dois entrassem e depois no me preocupei mais. Judy entregou o formulrio com o carto a Carl. - Ligue para este
sujeito imediatamente - disse. pgina 330 Carl sentou na mesa mais prxima e pegou o telefone. Marvin disse: - De qualquer maneira, o que lhe d tanta certeza de que conversamos com o suspeito? - Sugesto do meu pai. - Na mesma hora em que as palavras saram da sua boca, Judy percebeu que errara. Marvin sorriu, irnico. - Oh, quer dizer ento que o seu papai acha que o criminoso falou comigo. este o nvel a que chegamos? Voc est me investigando por causa de um palpite do seu papai? - No enche, Marvin. Meu pai estava pondo bandido na cadeia enquanto voc ainda fazia xixi na cama. - Onde voc est querendo chegar com isto, afinal? Quer me pegar numa armadilha? Est procurando algum que possa culpar para quando fracassar? - Grande idia - disse ela. - Por que no pensei nisso antes? Carl desligou o telefone e disse: - Judy. - Hein? - Peter Shoebury nunca esteve neste prdio e no tem filha. Mas foi assaltado na manh de sbado a duas quadras daqui e teve a carteira roubada. Continha seus cartes de visita. Houve um momento de silncio, at que Marvin exclamou: - Puta que pariu. Judy ignorou a vergonha dele, entusiasmada demais com a notcia. Aquilo podia ser uma fonte totalmente nova de informaes. - Acho que ele no devia lembrar a imagem que recebemos do Texas. - Nem um pouco - disse Marvin. - Nem barba, nem chapu. culos grandes e o cabelo comprido preso num rabo-de-cavalo. - O que provavelmente outro disfarce. E o que me diz do seu corpo, essas coisas? - Alto, magro. - Cabelo escuro, olhos escuros, cerca de cinqenta anos? pgina 331 Judy quase sentiu pena de Marvin. - Era Ricky Granger, no era? Marvin olhou para o cho como se quisesse que ele se abrisse e o engolisse. - Acho que voc tem razo. - Eu queria que voc providenciasse um novo E-fit, por favor. Ele balanou a cabea, ainda sem olhar para ela. - Claro. - Agora, o que me diz de Florence Shoebury? - Bem, ela meio que nos desarmou. Quer dizer, que terrorista esse que vai a lugares perigosos com a prpria filha? - Um que seja completamente impiedoso. Como era a aparncia dela? - Uma menina branca, com uns doze, treze anos. Cabelo escuro, olhos
escuros, constituio magra. Bonita. - Melhor fazer um E-fit dela tambm. Acha que mesmo filha dele? - Oh, sim. Com certeza. Foi o que eles pareciam ser. Ela no mostrava sinais de estar sendo coagida - se a isto que voc se refere. - , sim. OK, vou presumir, por ora, que sejam mesmo pai e filha - ela virou- se para Carl. - Vamos cair fora. Depois que saram, Carl virou-se para ela no corredor e comentou: - Puxa vida, voc realmente quase arranca as bolas do cara. Judy estava entusiasmada. - Mas agora temos um outro suspeito - a menina. - Exato. S espero que voc nunca me peque cometendo um erro. Judy parou e olhou para ele. - No foi o erro, Carl. Qualquer um pode errar. Mas ele estava disposto a obstruir a investigao para se defender. Foi a que realmente errou. E por isso que parece agora ser um tamanho panaca. Se voc cometer um erro, admita. pgina 332 - Tudo bem - concordou Carl. - Mas acho que vou ficar com as pernas cruzadas tambm. *** Naquela noite mesmo, Judy recebeu mais tarde a primeira edio do San Francisco Chronicle com duas novidades: os retratos eletrnicos, ou seja, o E-fit de Florence Shoebury e o novo E-fit de Ricky Granger disfarado de Peter Shoebury. Em princpio, ela se limitara a dar uma olhada rpida nas duas imagens antes de pedir a Madge Kelly que as distribusse aos jornais e estaes de televiso. Agora, estudando-as luz do abajur que tinha sobre sua mesa, ficou chocada com a semelhana existente entre Granger e Florence. So pai e filha, tem de ser. O gue acontecer a ela se eu puser seu pai na cadeia? Bocejou e esfregou os olhos. O conselho do pai veio sua lembrana. "Tire folgas, almoce direito, durma quando precisar." Era hora de ir para casa. O turno da noite j tinha chegado. Enquanto dirigia at sua casa, foi revendo o dia e o que conseguira realizar. Parada diante de um sinal, contemplando duas fileiras de postes de iluminao acesos que convergiam para o infinito ao longo do Geary Boulevard, deu-se conta de que Michael no lhe enviara o fax com a lista prometida dos locais onde seria mais provvel a ocorrncia de terremotos. Discou o nmero da casa dele no telefone do carro, mas no houve resposta. Sem saber por qu, aquilo a incomodou. Fez outra tentativa no prximo sinal luminoso e deu ocupado. Ligou ento para a mesa do FBI e pediu que verificassem com a Pacific Bell se havia mesmo vozes na linha. A telefonista chamou de volta e disse que no. O telefone fora tirado do gancho. Ento ele estava em casa, mas no atendia ao telefone. Ele lhe parecera estranho quando telefonara para cancelar o encontro. Michael era assim: podia ser encantador e bondoso e depois mudar
abruptamente e tornar-se uma pessoa difcil e arrogante. Mas por que seu telefone estaria desligado? Judy sentiu-se inquieta. pgina 333 Checou o relgio do painel. Faltava pouco para as onze horas. Restavam dois dias. No posso perder tempo. Virou o carro e tocou para Berkeley. Chegou na rua Euclid s onze e quinze. Havia luzes no apartamento de Michael. Do lado de fora, um velho Subaru cor de laranja. J vira aquele carro antes mas no sabia de quem era. Estacionou atrs dele e tocou a campainha de Michael. No houve resposta. Judy ficou perturbada. Michael dispunha de informaes cruciais. Fizera-lhe naquele dia uma pergunta chave, e ele cancelara abruptamente o encontro em que lhe entregaria o que pedira e depois tornara-se incomunicvel. Era para desconfiar. Perguntou-se o que deveria fazer. Talvez devesse pedir reforo policial e invadir o apartamento. Ele podia estar amarrado ou morto l dentro. Voltou ao seu carro e pegou o rdio, mas hesitou. Quando um homem desliga o telefone s onze horas da noite pode significar uma poro de coisas. Ele podia querer dormir. Podia estar transando com algum, embora parecesse demasiado interessado em Judy para galinhar - alm de no ser do tipo que dormia com uma mulher diferente a cada noite, na opinio dela. Enquanto vacilava, uma mulher jovem segurando uma pasta aproximou-se do edifcio. Pelo jeito, era uma professora assistente voltando para casa depois de um sero no laboratrio. Parou diante da porta e remexeu na pasta procurando as chaves. Impulsivamente, Judy saltou do carro e atravessou rapidamente o gramado. - Boa noite - disse, mostrando seu crach. - Agente especial Judy Maddox do FBI. Preciso de acesso a este prdio. - Alguma coisa de errado? - perguntou a mulher, ansiosa. - Espero que no. Se voc for para o seu apartamento e trancar a porta, estar perfeitamente segura. pgina 334 As duas entraram juntas. A mulher ficou num apartamento trreo e Judy subiu a escada. Bateu com os ns dos dedos na porta de Michael. No houve resposta. O que estaria acontecendo? Ele estava em casa. Devia ter ouvido o toque da campainha e a batida na porta. Sabia que nenhum visitante casual seria to persistente quela hora da noite. Alguma coisa estava errada, tinha certeza. Bateu de novo, trs vezes, com fora. A encostou uma orelha na porta e
prestou ateno. Ouviu um grito. Com o grito ela se decidiu. Deu um passo para trs e chutou a porta com toda a fora que pde. Estava de mocassins, de modo que machucou a parte de dentro do p direito, mas a madeira em torno da fechadura lascou. Ainda bem que a porta no era de ao. A fechadura parecia prestes a ceder. Ela correu, mas antes que pudesse bater com o ombro na porta, ela se abriu. Judy sacou a arma. - FBI! - gritou. - Largue a arma e levante as mos! - houve outro grito. Pareceu um grito de mulher, ela percebeu num cantinho da sua mente, mas no teve tempo de pensar no que poderia significar. Entrou na pequena saleta. A porta do quarto de dormir de Michael estava aberta. Judy abaixou-se, apoiando o peso do corpo num joelho, estendeu os braos, fazendo pontaria. O que viu deixou-a atordoada. Michael estava na cama, nu, coberto de suor, deitado em cima de uma mulher magra de cabelo vermelho, ofegante. Era a mulher dele, percebeu Judy. Estavam fazendo amor. Ambos olharam para Judy apavorados e incrdulos. Michael ento a reconheceu e disse: - Judy? Que diabos...? Ela fechou os olhos. Nunca se sentira to idiota em toda a sua vida. - Oh, que merda - disse. - Desculpe. Oh, que merda. *** pgina 335 15 Quarta-feira cedo Priest parou ao lado do rio, contemplando o modo como o cu da manh se refletia na superfcie irregular do espelho d'gua, maravilhado com a luminosidade do azul e do branco na luz da madrugada. Todos os outros dormiam. Spirit sentou- se ao seu lado, arfando silenciosamente, esperando que alguma coisa acontecesse. Era um momento tranqilo, mas a alma de Priest no estava em paz. Faltavam apenas dois dias para se esgotar o prazo que dera, e o governador Robson ainda no se pronunciara. Era de enlouquecer. Ele no queria desencadear outro terremoto. Este teria que ser mais espetacular, destruir ruas e pontes, derrubar edifcios. Morreria gente. Priest no era como Melanie, que ansiava por vingar-se do mundo. S queria ser deixado em paz. Estava disposto a fazer qualquer coisa para salvar a comunidade, mas sabia que seria mais inteligente se pudesse evitar mortes. Depois que isso acabasse, e o projeto para inundar o vale fosse cancelado, ele e sua comunidade queriam viver em paz. Era o aspecto mais importante. E as chances para permanecerem onde estavam agora seriam maiores se pudessem vencer sem matar cidados inocentes. O que fizeram at ento podia ser esquecido logo. Sairia das pginas e ningum ia querer saber o que acontecera com os malucos que disseram ser capazes de desencadear terremotos. pgina 336
Enquanto devaneava, Star apareceu. Despiu o robe prpura e entrou na corrente de gua fria para se lavar. Priest contemplou gulosamente o corpo voluptuoso, muito conhecido seu, mas ainda desejvel. No compartilhara sua cama com ningum na noite anterior. Star continuava passando as noites com Bones e Melanie estava com o marido em Berkeley. E assim o sedutor, o garanho, o grande espada dorme sozinho. Enquanto ela se enxugava, Priest disse: - Vamos arranjar um jornal. Quero saber se o governador disse alguma coisa ontem noite. Eles se vestiram e foram, de carro, at um posto de gasolina. Priest encheu o tanque do `Cuda enquanto Star foi pegar o San Francisco Chronicle. Ela voltou branca. - Olha - disse, mostrando a primeira pgina. Havia uma foto de uma jovem que lhe pareceu familiar. Depois de um momento percebeu horrorizado que se tratava de Flower. Atnito, ele pegou o jornal. Ao lado de Flower, estava a foto dele prprio. Ambas eram imagens geradas por computador. A de Priest era baseada na sua aparncia na entrevista coletiva do FBI, quando se disfarara de Peter Shoebury, com o cabelo preso atrs e de culos grandes. No acreditava que algum fosse reconhec-lo com base naquela imagem. Flower no fora disfarada. A imagem dela feita pelo computador era como um retrato mal desenhado - no era ela, mas parecia. Priest gelou. No estava habituado a sentir medo. Era um sujeito atrevido que adorava arriscar-se. Mas aquilo no era com ele. Tinha posto a filha em perigo. Star exclamou, furiosa: - Por que diabos voc teve que ir quela entrevista coletiva? - Eu tinha que saber o que eles estavam pensando. - Foi uma burrice! - Eu sempre fui atrevido. - Eu sei - a voz de Star abrandou-se, e ela acariciou-lhe o rosto. Se voc fosse tmido no seria o homem que eu amo. Um ms antes no teria importncia: ningum fora da comunidade conhecia Flower, e ningum l dentro lia jornais. pgina 337 Mas ela fora secretamente a Silver City para conhecer rapazes; tinha roubado um pster de uma loja; fora presa e passara uma noite sob custdia. As pessoas que a tinham conhecido se lembrariam dela? E, se lembrassem, reconheceriam a foto? O policial encarregado dos menores podia se lembrar dela, mas por sorte ainda estava de frias nas Bahamas, onde seria improvvel que fosse ler o San Francisco Chronicle. E a mulher em cuja casa ela passara a noite? Uma professora, que tambm era irm do xerife, Priest se lembrava. Conseguiu lembrar tambm o nome dela: Srta. Waterlow. Presumivelmente via centenas de garotas como Flower, mas podia se lembrar dos rostos delas. Por outro lado, talvez tivesse m memria. Talvez tivesse sado de frias tambm. Talvez no tivesse lido o Chronicle de hoje.
E talvez Priest estivesse liquidado. No havia nada que pudesse fazer. Se a professora visse o retrato e reconhecesse Flower, chamaria o FBI, centenas de agentes cairiam sobre a comunidade e tudo estaria acabado. Ele fixou os olhos no jornal enquanto Star lia o texto. - Se voc no fosse a me dela, conseguiria reconhec-la? Star sacudiu a cabea. - Acho que no. - Eu tambm no. Mas queria ter certeza. - Eu no sabia que os federais eram assim to espertos disse Star. - Alguns so, outros no. essa garota asitica que me preocupa. Judy Maddox - Priest relembrou as imagens dela na televiso, abrindo caminho por entre uma multido hostil com o ar determinado de um buldogue nas feies delicadas. Tenho um mau pressentimento em relao a ela - disse ele. Um pssimo pressentimento. Ela no pra de surgir com pistas primeiro o vibrador ssmico, depois o meu retrato em Shiloh, agora Flower. Talvez seja esta a razo pela qual o governador no tenha dito nada. Ela fez com que ele tivesse esperanas de que seremos apanhados. H alguma declarao do governador no jornal? 338 KEN FOIIETT - No. De acordo com esta matria, muita gente est dizendo que Robson devia ceder e negociar com o Martelo do den, mas ele se recusa a comentar. - Isso no adianta - comentou Priest. - Tenho que dar um jeito de falar com ele. *** Quando Judy acordou no conseguiu se lembrar por que motivo estaria se sentindo to mal. Depois toda a horrvel cena voltou-lhe lembrana, numa onda de pavor. Na vspera ela ficara paralisada com o vexame. Tinha resmungado um pedido de desculpas para Michael e sado correndo do edifcio, morrendo de vergonha. Mas na manh do dia seguinte sua mortificao tinha sido substituda por um sentimento diferente. Agora sentia-se apenas triste. Chegara a pensar que Michael podia vir a tornar-se parte da sua vida. Estava ansiosa por vir a conhec-lo, gostar mais dele, fazer amor com ele. Imaginara que ele se importava com ela. Mas o relacionamento se desmanchara de uma hora para outra. Sentou-se na cama e contemplou a coleo de bonecas d'gua vietnamitas que herdara da me, arrumadas em uma prateleira fixada acima da cmoda. Nunca tinha visto um espetculo daquelas bonecas - nunca fora ao Vietn - mas sua me lhe contara que os operadores mergulhavam at a cintura numa espcie de tanque, por trs de um pano de fundo, e usavam a superfcie da gua como palco. Por centenas de anos aqueles brinquedos de madeira pintada tinham sido usados para contar histrias sbias e engraadas. E sempre lembravam a Judy da tranqilidade da me. O que diria ela agora? Judy podia ouvir sua voz, baixa e calma: "Um erro um
erro. Outro erro normal. Apenas o mesmo erro duas vezes que faz de voc uma tola." A noite anterior tinha sido um erro. Michael tinha sido um erro. Precisava deixar aquilo para trs. Tinha dois dias para impedir um terremoto. Isto que era realmente importante. pgina 339 No noticirio da televiso, as pessoas indagavam se o Martelo do den era realmente capaz de causar um terremoto. Quem acreditava nisso formara um grupo de presso para instar o governador Robson a desistir. Mas, enquanto se vestia, a cabea de Judy insistia em retornar a Michael. Quisera poder conversar com sua me a esse respeito. Ouviu Bo se espreguiando, mas aquilo no era o tipo de coisa que se conta ao pai. Em vez de fazer o caf da manh, telefonou para a amiga Virgnia. - Estou precisando me abrir - disse ela. - J tomou caf? Encontraram-se num caf perto do Presdio. Ginny era uma loura baixinha, engraada e sincera. Sempre dizia a Judy exatamente o que pensava. Judy pediu dois croissants de chocolate para se sentir melhor e depois relatou o que acontecera na noite anterior. Quando chegou na parte em que irrompera no quarto de arma na mo e encontrara os dois transando, Ginny quase caiu no cho de tanto rir. - Desculpe - disse ela, engasgando-se com um pedao de torrada. - Acho que engraado mesmo - disse Judy, sorrindo. Mas no foi o que eu achei ontem, posso lhe garantir. Ginny tossiu e engoliu. - No quis ser m - disse, quando se recuperou. - Sei que no deve ter sido engraado na hora. O que ele fez foi realmente vulgar e srdido, sair com voc e transar com a mulher. - Para mim, isto prova que ele no acabou com ela - disse Judy. - E que, portanto, no est preparado para um novo relacionamento. Ginny fez uma cara de quem duvidava. - No assino embaixo. - Voc acha que foi um adeus, tipo a ltima vez em homenagem aos velhos tempos? - Talvez mais simples. Sabe como , os homens quase nunca dizem no a uma trepada que lhes oferecida. Tudo indica que ele vem vivendo uma vida de monge desde que ela o largou. Seus hormnios provavelmente o estavam deixando enlouquecido. Voc diria que ela atraente? pgina 340 - Muito sexy. - Sendo assim, se ela aparecesse com um suter apertado e comeasse a se exibir, ele provavelmente no conseguiria se controlar e teria uma ereo. E uma vez que isso acontece, o crebro do homem desliga e o piloto automtico do seu pinto assume o controle. - Voc acha mesmo? - Olha, no conheo o seu Michael, mas j conheci alguns homens, bons
e ruins, e esta a minha avaliao. - O que voc faria? - Eu falaria com ele. Perguntava por que fez o que fez. Para ver o que ele diz. Assim eu veria se podia ou no acreditar nele. Se viesse com papo furado e mentiras, eu o esqueceria. Mas se me parecesse sincero, eu tentaria descobrir qual o sentido de todo o incidente. - Tenho que telefonar para ele de qualquer modo - disse Judy. - Ainda no me mandou a lista que pedi. - Pois telefone. Consiga a lista. Depois pergunte a ele o que pensa que est fazendo. Voc est se sentindo envergonhada, mas ele tem tambm do que se desculpar. - Acho que voc tem razo. Ainda no eram oito horas mas elas estavam com pressa para ir trabalhar. Judy pagou a conta e as duas saram para os respectivos carros. - Caramba! - exclamou Judy. - Estou comeando a me sentir melhor a respeito disso tudo. Muito obrigada. Ginny deu de ombros. - Para que servem as amigas? Depois me conta o que ele disse. Judy entrou no carro e discou o nmero de Michael. Teve medo dele estar dormindo e acabar falando com a mulher do lado, na cama. Sua voz, contudo, soou alerta, como se j estivesse acordado h algum tempo. - Desculpe pela porta - disse ela. - Por que voc fez aquilo? - ele pareceu mais curioso do que zangado. pgina 341 - Eu no entendia por que voc no abria a porta. A ento ouvi um grito. Achei que voc podia estar metido em alguma encrenca. - Por que voc veio to tarde? - Voc no me mandou a lista dos locais de terremoto. - Ih, mesmo! A lista est em cima da minha mesa. Eu me esqueci. Vou mandar agora por fax. - Obrigada - ela deu a ele o nmero do fax do novo centro de operaes. - Michael, tem uma coisa que eu preciso perguntar a voc ela respirou fundo. Fazer aquela pergunta era mais difcil do que antecipara. No era nenhuma donzela pudica, mas tambm no era to despachada quanto Ginny. Engoliu em seco e disse: - Voc me deu a impresso de que estava gostando de mim. Por que dormiu com sua mulher? - Pronto. Perguntara. No outro lado da linha houve um longo silncio. At que ele disse: - Esta no uma boa hora. - OK - ela tentou ocultar seu desapontamento. - Vou mandar a lista imediatamente. - Obrigada. Ela desligou e deu a partida no motor. A idia de Ginny no tinha sido to boa, afinal. So necessrias duas pessoas para que haja uma conversa e Michael no estava disposto a falar. Quando chegou no clube dos oficiais, o fax de Michael estava esperando por ela. Mostrou-o a Carl Theobald. - Precisamos de equipes de vigilncia em cada uma dessas locaes para
ver se descobrem o vibrador ssmico - disse Judy. - Eu estava esperando usar a polcia, mas no acho boa idia. Eles podem falar. E se os habitantes locais descobrirem que pensamos que eles podem ser o alvo dos terroristas, entraro em pnico. Assim, teremos que usar o pessoal do FBI. - OK - Carl franziu a testa, preocupado, analisando o papel que ela lhe entregara. - Olha, Judy, esses locais so muito grandes. Uma equipe no pode, na verdade, vigiar uma rea de dois, dois e meio quilmetros quadrados. No deveramos usar equipes mltiplas? Ou o seu especialista no seria capaz de restringir um pouco os locais? pgina 342 - Vou pedir a ele - Judy pegou o telefone e ligou de novo para Michael. - Obrigada pelo fax - disse. E em seguida explicou o problema. - Terei que visitar pessoalmente os stios - disse ele. Sinais de atividades ssmicas anteriores, como leitos de rios secos ou falhas nas rochas me dariam uma idia mais precisa. - Voc poderia fazer isso hoje? - perguntou ela prontamente. - Posso levar voc em todas as locaes num helicptero do FBI. - Eu... claro, acho que sim - respondeu ele. - Quer dizer, claro que sim. - Voc poderia estar salvando vidas. - Exatamente. - Voc conseque achar o caminho at o clube dos oficiais do Presdio? - Com certeza. - Na hora em que voc chegar, o helicptero estar esperando. - OK. - Eu lhe agradeo muito, Michael. - No seja por isso. Mas ainda quero saber por que voc dormiu com sua mulher. Ela desligou. *** Foi um dia comprido. Judy, Michael e Carl Theobald percorreram uns mil e quinhentos quilmetros de helicptero. Ao cair da noite tinham organizado um servio de vigilncia dia e noite nas cinco locaes da lista de Michael. Retornaram ao Presdio. O helicptero aterrissou no campo de paradas deserto. Toda a base era uma cidade fantasma, com os prdios da administrao em runas e filas de casas vazias. pgina 343 Judy tinha que entrar no centro de operaes de emergncia para se apresentar a um figuro do quartel-general do FBI em Washington que chegara s nove horas da manh com ar de encarregado. Mas primeiro acompanhou Michael at o carro dele, no estacionamento s escuras. - E se eles conseguirem no ser vistos pela vigilncia?
- Pensei que o seu pessoal fosse bom. - So os melhores. Mas e se eles conseguirem passar despercebidos? H algum meio pelo qual eu possa ser notificada prontamente se houver um tremor de terra em qualquer lugar da Califrnia? - Claro. Posso colocar um sismgrafo on-line aqui no seu posto de comando. S preciso de um computador e de uma linha telefnica da rede digital. - No tem problema. Voc faria isso amanh? - Tudo bem. Assim voc saber imediatamente se eles comearem a usar o vibrador ssmico em algum lugar que no fizer parte da lista. - Isso provvel? - No creio. Se o sismlogo deles for competente, escolher os mesmos lugares que eu. E se for incompetente, provavelmente no ser capaz de desencadear nenhum terremoto. - timo - disse Judy. - timo - ela se lembraria disso. Podia dizer ao mandachuva que viera de Washington que tinha a crise sob controle. Ela ergueu os olhos para o rosto de Michael e perguntou, inesperadamente: - Por que voc dormiu com sua mulher? - Estive pensando nisso o dia todo. - Eu tambm. - Acho que lhe devo uma explicao. - Tambm acho. - At outro dia, eu pensava que estava tudo acabado entre mim e Melanie. Mas a, ontem de noite, ela me lembrou das coisas que tinham sido boas no nosso casamento. Foi bonita, engraada, afetuosa e sexy. Mais importante, fez com que eu me esquecesse de todas as coisas que eram ruins. - Tais como? pgina 344 Ele suspirou. - Acho que Melanie tem atrao por figuras autoritrias. Fui seu professor. Ela quer a segurana de que lhe digam o que fazer. Eu esperava uma parceira em igualdade de condies, algum com quem eu pudesse compartilhar decises e responsabilidades. Ela ficou indignada com isso. - D para entender. - E tem mais. L no fundo, ela sente dio do mundo, de tudo. A maior parte do tempo oculta esta caracterstica, mas quando se frustra pode ser violenta. Atirava coisas em mim, coisas pesadas, como, em certa ocasio, uma panela grande. Nunca chegou a me machucar, ela no bastante forte, mas eu sentiria medo se houvesse uma arma em casa. A verdade que muito difcil conviver com um tal nvel de hostilidade. - E ontem noite...? - Esqueci tudo isso. Ela parecia querer tentar de novo e eu achei que devamos, em benefcio de Dusty. E tambm... Ela gostaria de ser capaz de ler a expresso do rosto dele, mas estava muito escuro.
- O qu? - Quero lhe dizer a verdade, Judy, mesmo que voc venha a se sentir ofendida. Assim, tenho que admitir que no foi to racional e decente como estou falando. Parte do que aconteceu foi porque ela uma bela mulher e eu quis transar com ela. Pronto. Agora falei. Ela sorriu, no escuro. Ginny tinha razo, afinal. - Eu sabia - disse. - Mas estou satisfeita porque voc me contou. Boa noite - ela se afastou. - Boa noite - respondeu ele, perplexo. Um momento depois ele exclamou, s suas costas: - Voc est zangada? - No - respondeu Judy por cima do ombro. - No estou mais. *** pgina 345 Priest esperava que Melanie voltasse l pelo meio da tarde. Quando chegou a hora do jantar e ela ainda no tinha chegado, comeou a se preocupar. Ao anoitecer, ele ficou desesperado. O que tinha acontecido com ela? Teria decidido voltar para o marido? Confessado tudo a ele? Estaria agora abrindo o jogo para a agente Judy Maddox na sala de interrogatrios do Federal Building, em San Francisco? No conseguiu ficar sentado quieto na cozinha nem deitado na cama. Pegou um lampio e saiu andando pelo vinhedo, atravessou a floresta e foi esperar no estacionamento circular, atento ao ronco do motor do velho Subaru de Melanie - ou do motor do helicptero do FBI que anunciaria o fim de tudo. Spirit foi o primeiro a ouvir. Levantou as orelhas, o corpo tenso e saiu correndo pela estrada lamacenta, latindo. Priest levantou-se, aguando os ouvidos. Era o Subaru. Sentiu uma onda de alvio. Viu as luzes dos faris se aproximando por entre as rvores. Sentiu um incio de dor de cabea. H anos que no tinha dor de cabea. Melanie estacionou de qualquer maneira, saltou e bateu a porta do carro. - Odeio voc - disse ela a Priest. - Odeio voc por me ter feito fazer aquilo. - Eu tinha razo? - perguntou ele. - Michael est preparando uma lista para o FBI? - V se foder! Priest deu-se conta de que tinha pisado na bola. Deveria ter se mostrado compreensivo e simptico. Por um momento permitira que a ansiedade toldasse seu raciocnio. Agora ia ter que perder tempo conversando com ela. - Eu lhe pedi para fazer aquilo porque a amo, no compreende? - No, no compreendo. No compreendo nada - ela cruzou os braos no peito e deu as costas para ele, fixando os olhos na escurido da floresta. - Tudo o que sei que me sinto como uma prostituta. Priest estava louco de vontade de saber o que ela descobrira, mas
obrigou-se a se acalmar. pgina 346 - Onde voc esteve? - perguntou. - Dirigindo por a. Parei para tomar um drinque. - Ele ficou em silncio por um minuto. E disse: - A prostituta transa por dinheiro - e depois gasta o dinheiro em roupas idiotas e drogas. Voc fez o que fez para salvar seu filho. Sei que se sente mal, mas voc no uma pessoa m. Voc do bem. Voc boa. Finalmente ela se voltou para ele. Havia lgrimas em seus olhos. - No foi s fazermos sexo - disse. - Foi pior que isso. Eu gostei. por isto que me sinto to envergonhada. Eu gozei. Gozei mesmo. Cheguei a gritar. Priest sentiu-se invadir por uma onda quente de cime e lutou para conter-se. Ainda faria Michael Quercus pagar por aquilo um dia. Mas agora no estava na hora de falar sobre isso. Precisava acalmar as coisas. - Tudo bem - murmurou. - Sinceramente, tudo bem. Eu compreendo. Coisas estranhas acontecem - ele a envolveu com os braos e a apertou carinhosamente. Aos poucos Melanie foi relaxando. Ele pde sentir a tenso deixando seu corpo aos poucos. - Voc no se incomoda? No est com raiva? - perguntou ela. - Nem um pouco - mentiu ele, acariciando seus cabelos longos. Vamos, vamos! - Voc tinha razo a respeito da lista - disse ela. Finalmente. Aquela mulher do FBI tinha pedido a Michael para estudar a melhor localizao para um terremoto, exatamente como voc imaginou. Claro que ela pediu. Eu sou inteligente pacas. Melanie prosseguiu. - Ele estava sentado ao computador, terminando, quando cheguei l. - E o que foi que aconteceu? - Preparei o jantar dele, essas coisas. pgina 347 Priest podia imaginar muito bem. Quando Melanie decidia ser sedutora, era irresistvel. E era mais atraente que nunca quando queria alguma coisa. Provavelmente tomara um banho e vestira um robe., depois circulara pelo apartamento cheirando a sabonete de flores, servindo vinho ou fazendo caf, deixando o robe abrir de vez em quando para mostrar a ele vises tentadoras das suas pernas longas e seios macios. Devia ter feito perguntas a Michael s para ouvir atentamente as respostas dele, sorrindo daquele jeito que dizia eu o quero tanto, voc pode fazer de mim o que quiser. - Quando o telefone tocou eu disse a ele para no atender, depois tirei do gancho. Mas a maldita mulher foi l de qualquer maneira, e quando Michael no abriu a porta, ela a botou abaixo.
- Puxa vida, teve um choque e tanto - Priest avaliou que Melanie precisava desabafar, contar tudo o que acontecera, e por isso no a apressou. - Ela quase morreu de vergonha. - Ele lhe deu a lista? - No naquela hora. Acho que ela ficou muito sem graa para pedir. Ms telefonou hoje de manh e ele a enviou por fax. - E voc pegou a lista? - Enquanto ele estava no banho imprimi outra cpia no computador. E onde diabos ela est? Ela enfiou a mo no bolso de trs do jeans, puxou uma folha de papel dobrada em quatro e deu para Priest. Graas a Deus. Priest a desdobrou e examinou-a sob a luz do lampio. As letras e os nmeros impressos nada significavam para ele. Estes so os lugares que ele disse para ela vigiar? - Sim, eles vo vigiar cada uma destas locaes, procurando um vibrador ssmico, exatamente como voc predisse. Judy Maddox era inteligente. A vigilncia do FBI dificultaria em muito a operao do vibrador ssmico, especialmente se tivesse que tentar diversos locais, como acontecera em Owens Valley. Mas ele era ainda mais inteligente do que Judy. Antecipara aquela jogada e ainda por cima imaginara um modo para contornar a dificuldade que ela representava. pgina 348 - Voc compreende o modo como Michael escolheu estes stios? - Claro. So os locais onde a tenso na falha mais alta. - Quer dizer ento que voc pode fazer a mesma coisa que ele fez. - J fiz. E escolhi os mesmos lugares que ele escolheu. Priest dobrou o papel e devolveu a ela. - Agora, preste bastante ateno. Isto muito importante. Voc pode examinar os dados de novo e escolher as cinco melhores locaes depois destas? - Posso. - E ns poderamos causar um terremoto numa delas? - Provavelmente. Pode no ser com a mesma certeza, mas as chances tambm so boas. - Ento vai ser o que faremos. Amanh damos uma olhada nos novos locais. Logo depois que eu falar com o Sr. Honeymoon. *** pgina 149 16 As cinco da manh, o guarda da entrada de Los Alamos estava bocejando. Ficou alerta quando Melanie e Priest pararam no `Cuda. Priest saltou do carro.
- Como vai, companheiro? - disse, ao passar pelo porto. O guarda levantou o rifle. Fechou a cara e disse: - Quem voc e o que deseja? Priest deu um soco na cara dele com toda a fora, esmagando-lhe o nariz. O sangue jorrou. O guarda gritou, as mos voando para o rosto. Priest disse: - Ai! - sentindo a mo doer. Fazia muito tempo que no socava ningum. Seus instintos assumiram o controle. Chutou as pernas do guarda, dando-lhe uma rasteira, e ele caiu de costas, o rifle voando pelo ar. Depois chutou suas costelas trs ou quatro vezes, depressa e com fora, tentando quebrar-lhe os ossos. Em seguida o rosto e a cabea. O homem encolheu-se e se enrolou como uma bola, soluando de dor, impotente de medo. Priest parou, ofegante. Tudo voltou a ele numa corrente de excitao relembrada. Houve um tempo em que fazia aquele tipo de coisa todo dia. muito fcil assustar as pessoas quando se sabe como. Ajoelhou-se e tirou a arma do cinto do homem. Era o que tinha vindo apanhar. pgina 350 Olhou para a arma enojado. Era uma reproduo de um revlver Remington .44 cano longo, fabricado originalmente no Velho Oeste. Uma arma burra, nada prtica, do tipo que s colecionadores tm e guardam num mostrurio forrado de feltro. No servia para quem queria atirar. Ele a abriu e verificou que estava municiada. Era o que realmente interessava. Voltou para o carro e entrou. Melanie ficara ao volante. Estava plida e com os olhos arregalados, ofegante, como se tivesse acabado de cheirar cocana. Priest adivinhou que jamais teria assistido a uma cena realmente violenta. - Ele vai ficar bem? - perguntou, nervosa. Priest olhou para o guarda, que estava deitado no cho, as mos no rosto, balanando-se lentamente. - Claro que vai - respondeu. - Puxa. - Vamos para Sacramento. Melanie arrancou. Depois de algum tempo ela disse: - Voc acha mesmo que vai conseguir falar com esse tal de Honeymoon? - Ele vai ter que usar bom senso - disse Priest, parecendo mais confiante do que realmente se sentia. - Olhe s as alternativas de que dispe. Nmero um, um terremoto que causar danos no valor de milhes de dlares. Nmero dois, uma proposta sensata para reduzir a poluio. Alm do mais, se escolher a alternativa nmero um, ter que fazer a mesma escolha de novo dois dias mais tarde. Ele vai ter que escolher o caminho mais fcil. - Acho que sim - concordou Melanie. Chegaram em Sacramento poucos minutos antes das sete da manh. A capital do estado estava quieta assim to cedo. Poucos carros e caminhes se deslocavam, sem pressa, ao longo das largas avenidas
vazias. Melanie estacionou perto do Capitlio, a sede do governo. Priest ps um bon com viseira e prendeu nele o cabelo comprido. Depois colocou culos escuros. - Espera por mim aqui - disse. - Pode ser que eu demore umas duas horas. pgina 351 Priest caminhou em torno do quarteiro do Capitlio. Esperava encontrar um estacionamento ao nvel da rua, mas ficou desapontado. O terreno era todo ajardinado, com rvores magnficas. De cada lado do prdio, uma rampa proporcionava acesso a uma garagem subterrnea. As duas rampas eram controladas por guardas de segurana em cabines de sentinelas. Priest aproximou-se de uma das portas largas e imponentes. O prdio estava aberto e no havia verificao de segurana entrada. Ele se viu num grande saguo com o piso de mosaico de cermica. Tirou os culos de sol, que pareceriam estranhos ali dentro e seguiu por uma escada que dava no poro. Viu um caf onde uns poucos madrugadores tomavam sua primeira carga de cafena. Passou por eles procurando dar a impresso de que tambm trabalhava na casa e seguiu por um corredor que devia dar na garagem subterrnea. Quando se aproximou do fim do corredor, a porta se abriu e um homem gordo de blazer azul entrou. Atrs do homem, Priest viu carros. Bingo. Esgueirou-se para dentro da garagem e olhou em torno. Estava quase vazia. Havia poucos carros, um utilitrio esportivo e uma viatura do xerife estacionados em vagas marcadas. No viu ningum. Escondeu-se atrs do utilitrio esportivo. Era um Dodge Durango. Dali, espiando atravs das janelas, podia ver a entrada da garagem e a porta que dava acesso ao prdio. Outros carros estacionados de ambos os lados do Durango o protegeriam das vistas de quem chegasse. Preparou-se para esperar. Esta a ltima chance deles. Haver tempo para negociar e evitar uma catstrofe. Mas se isto no der certo... Bum! Al Honeymoon era um workaholic, um sujeito viciado em trabalho, imaginou Priest. Devia chegar cedo. Mas havia muita coisa que podia dar errado. Honeymoon podia estar passando o dia na residncia do governador. Podia estar doente. Talvez estivesse em Washington; podia ser que tivesse ido fazer uma viagem Europa. Sua mulher podia estar tendo um filho. pgina 352 Priest no achava que ele tivesse seguranas. No fora eleito, era apenas um empregado do governo. Teria motorista? Priest no fazia idia. Se tivesse, ia estragar tudo. Entrava um carro quase que de minuto em minuto. Priest estudava os motoristas do seu esconderijo. No teve que esperar muito tempo. s sete e meia entrou um vistoso Lincoln Continental azul-escuro. Atrs do volante vinha um homem, preto, de camisa branca e gravata. Honeymoon:
Priest o reconheceu dos retratos publicados no jornal. O Lincoln parou numa vaga perto do Durango. Priest ps os culos escuros, atravessou a garagem rapidamente, abriu a porta e sentou no banco do carona antes que Honeymoon conseguisse se desvencilhar do cinto de segurana. Mostrou a arma. - Saia da garagem - ordenou. Honeymoon olhou espantado para ele. Quem diabos voc? Seu filho da me arrogante de terno bacana, sou eu quem fao a porra das perguntas. Priest engatilhou o revlver. - Sou o maluco que vai meter uma bala nas suas tripas se voc no fizer o que eu mandar. Agora toca em frente. - V merda! - disse Honeymoon, irritado. - V merda! - repetiu. - Sorria simpaticamente para o guarda e passe devagar avisou Priest quando ele saiu da garagem. - Se disser uma nica palavra eu mato o guarda. Honeymoon no respondeu. Reduziu a marcha quando se aproximou da guarita. Por um momento, Priest pensou que fosse tentar alguma coisa. S ento viram o guarda. Era um negro de meia-idade, com o cabelo branco. Priest disse: - Se quer que seu irmo a morra, s fazer o que est pensando. Honeymoon praguejou baixinho e seguiu em frente. - Contorne o Capitlio para sair da cidade - disse Priest. Honeymoon deu a volta em torno do prdio do Capitlio e seguiu para oeste pela avenida larga que ia dar no rio Sacramento. pgina 353 - O que que voc quer? - perguntou. No parecia com medo simplesmente sem pacincia. Priest gostaria de enfiar uma bala nele. Aquele era o panaca que possibilitara a construo da represa. Esforara-se ao mximo para arruinar a vida de Priest. E no estava nem um pouco arrependido. Na verdade, no ligava a mnima. Uma bala na barriga dele no bastaria como punio. Controlando a raiva, Priest disse: - Quero salvar a vida de muitas pessoas. - Voc o sujeito do Martelo do den, certo? Priest no respondeu. Honeymoon o estava olhando fixamente. Priest adivinhou que procurava memorizar suas feies. Espertinho. - Olha pra porra da estrada! Honeymoon voltou a olhar em frente. Eles cruzaram a ponte. Priest disse: - Peque a I-80 na direo de San Francisco. - Onde estamos indo? - Voc no vai a lugar algum. Honeymoon chegou na rodovia. - V a menos de oitenta na pista da direita. Por que diabos voc no me d o que estou pedindo? - a inteno de Priest era permanecer calmo, mas a calma arrogante de Honeymoon o enfureceu. - Est querendo a porra de um terremoto? Honeymoon fez uma cara inexpressiva.
- O governador no pode ceder chantagem, voc devia saber disso. - Voc pode contornar o problema - alegou Priest. Basta dizer que estavam planejando paralisar as obras de qualquer maneira. - Ningum ia acreditar em ns. Seria o suicdio poltico do governador. - Uma ova que seria. Voc podia enganar a opinio pblica. Pra que servem vocs, marqueteiros polticos? - Sou o melhor que h, mas no posso fazer milagre. Isto um caso de muita notoriedade. Voc no devia ter metido o John Truth nessa histria. pgina 354 - Ningum queria nos ouvir - replicou Priest, furioso at que John Truth entrou no caso! - Bem, seja qual for a razo, isto agora tornou-se um confronto pblico, e o governador no pode ceder. Se ceder, o estado da Califrnia poder ser chantageado por qualquer idiota com uma espingarda de caa na mo que cisme de defender alguma maldita causa. Mas voc pode recuar. O filho da me est querendo me fazer mudar de idia! Priest disse: - Peque a primeira sada e volte para a cidade. Honeymoon deu a seta indicando que ia virar direita e continuou falando: - Ningum sabe quem so vocs e onde se pode encontr-los. Se desistir agora poder sair numa boa. Nenhum dano foi causado. Mas se causarem outro terremoto, tero todas as organizaes policiais dos Estados Unidos atrs de vocs, e ningum desistir antes de encontr-los. No possvel ficar escondido eternamente. Priest se enfureceu. - No me ameace! - gritou. - Sou eu que estou armado aqui neste carro, porra! - No me esqueci disso. S estou tentando tirar ns dois desta encrenca sem maiores problemas. De algum modo Honeymoon conseguira assumir o controle da conversa. Priest ficou revoltado de tanta frustrao. - Voc vai me ouvir - disse. - H apenas uma sada para isto. Faa uma declarao hoje. Nada mais de construir usinas na Califrnia. - No posso. - Encosta o carro. - Estamos numa auto-estrada. - Encosta a porra do carro! Honeymoon reduziu a marcha e parou no acostamento. A tentao de atirar era muito forte, mas Priest resistiu. - Salte do carro. Honeymoon ps a alavanca de marcha na posio de estacionar e saltou. pgina 355 Priest escorregou para trs do volante. - Voc tem at a meia-noite para agir com sensatez disse, e foi embora.
Pelo retrovisor, viu Honeymoon tentar parar um carro que passava. O carro passou direto. Honeymoon tentou de novo. Ningum ia parar. Ver aquele homem grandalho, de terno caro e sapatos lustrosos, de p num acostamento poeirento tentando conseguir uma carona, deu a Priest uma pequena satisfao e ajudou-o a sufocar a aborrecida suspeita de que Honeymoon, de algum modo, conseguira levar a melhor no encontro, muito embora fosse Priest quem estivesse armado. Honeymoon desistiu de sinalizar para os carros que passavam e comeou a andar. Priest sorriu e voltou para a cidade. Melanie o esperava onde ele a deixara. Ele estacionou o Lincoln, deixando as chaves, e entrou no `Cuda. - O que aconteceu? - perguntou ela. Priest sacudiu a cabea, desgostoso. - Nada - respondeu, enraivecido. - Foi uma perda de tempo. Vamos. Ela deu a partida no carro e arrancou. *** Priest rejeitou a primeira locao a que Melanie o levou. Era uma cidadezinha beira-mar a uns oitenta quilmetros. Pararam em cima do penhasco, onde a brisa forte e constante chegou a balanar o velho carro nas suas molas cansadas. Priest abaixou o vidro para sentir o cheiro do mar. Gostaria de tirar as botas e caminhar descalo pela praia, sentindo a areia molhada sob os ps, mas no havia tempo. Aquela locao era demasiado exposta. O caminho ficaria muito evidente. A distncia grande da auto-estrada impossibilitaria uma retirada rpida. Mais importante que tudo, no havia muita coisa de valor para ser destruda - s umas poucas casas grupadas em torno de um porto. pgina 356 Melanie disse: - Um terremoto s vezes causa os maiores danos a muitos quilmetros de distncia do seu epicentro. - Mas no se pode ter certeza se isto acontecer - retrucou Priest. - Verdade. No se pode ter certeza de nada. - Ainda assim, a melhor coisa para derrubar um arranha-cu ter um terremoto em baixo, estou certo? - Todas as outras coisas sendo iguais, sim. Eles seguiram para o sul pelas verdejantes colinas do condado de Marin e depois atravessaram a Golden Gate. A segunda locao de Melanie era no corao da cidade. Seguiram a Rota 1 atravs do Presdio e do parque Golden Gate, indo parar no muito longe do campus da Universidade do estado da Califrnia em San Francisco. - Aqui melhor - disse Priest imediatamente. Por toda a parte ao redor havia casas e escritrios, lojas e restaurantes. - Um tremor com o epicentro aqui causaria o dano maior rea da marina - disse Melanie. - Como que pode? So quilmetros de distncia!
- tudo aterrado. Os depsitos sedimentares sob o aterro so saturados de gua, o que amplifica o tremor. Enquanto que o terreno aqui provavelmente slido. E estes prdios parecem fortes. A maior parte dos prdios sobrevive a um terremoto. Os que caem so as construes tipicamente de baixo custo, no reforadas, ou estruturas de concreto sem suportes especiais. Aquilo tudo eram subterfgios, decidiu Priest. Ela s estava nervosa. Um terremoto um terremoto, pelo amor de Deus. Ningum sabe o que vai desmoronar. Eu no dou a mnima, desde que alguma coisa caia. - Vamos ver outro lugar - disse ele. Melanie o levou para o sul, pela Interestadual 280. - Bem onde a falha de Santo Andr cruza a Rota 101, h uma cidadezinha chamada Felicitas - disse ela. Rodaram por vinte minutos. Quase passaram a rampa de sada para Felicitas. - Aqui, aqui! - berrou Melanie. - No viu a placa? pgina 357 Priest deu um golpe de direo para a direita e conseguiu pegar a rampa. - Eu no estava olhando - explicou-se. A sada da auto-estrada conduzia a um ponto alto com vista para a cidade. Priest parou o carro e saltou. Felicitas estava sua frente, como se fosse um quadro. A rua principal corria da esquerda para a direita em todo o seu campo de viso, com suas casas de um andar, revestidas de madeira cortada em sarrafos estreitos, onde funcionavam lojas e escritrios, uns poucos carros estacionados em quarenta e cinco graus. Havia uma pequena igreja, tambm de madeira, com um campanrio. Ao norte e ao sul da rua principal via-se a trama precisa das ruas arborizadas. Todas as casas eram de um s andar. Em cada extremidade da cidadezinha a rua principal se transformava, antecipando a auto-estrada e desaparecendo em meio aos campos. A regio ao norte de Felicitas era dividida por um rio sinuoso que lembrava uma rachadura em uma vidraa. Mais distante, a linha da estrada de ferro, reta como um risco num desenho, cortava a paisagem de leste para oeste. Atrs de Priest, a auto- estrada passava sobre um viaduto apoiado em altos arcos de concreto. Um pouco mais abaixo passava um conjunto de seis imensos e brilhantes canos azuis que mergulhavam sob a rodovia, passavam pela cidade na direo oeste e desapareciam no horizonte, lembrando um xilofone interminvel. - Que diabo aquilo ali? - perguntou Priest. Melanie pensou por um momento. - Acho que deve ser um gasoduto. Priest deixou escapar um longo suspiro de satisfao. *** Fizeram mais uma parada naquele dia.
pgina 358 Depois do terremoto, Priest ia precisar esconder o vibrador ssmico. Sua nica arma era a ameaa de mais terremotos. Tinha que fazer Honeymoon e o governador Robson acreditarem que ele tinha o poder para fazer aquilo tantas vezes quanto fosse necessrio para que cedessem. Por isso era crucial que mantivesse o caminho escondido. Seria cada vez mais difcil dirigir o vibrador em estradas pblicas, de modo que ele precisava escond-lo onde pudesse, se necessrio, detonar outro terremoto sem ter que se deslocar muito. Melanie conduziu-o at uma rua que corria paralela ao mar no imenso porto natural que era a baa de San Francisco. Entre ela e o mar ficava uma decadente zona industrial, com trilhos em desuso correndo por ruas cheias de buracos, fbricas enferrujadas e abandonadas com as vidraas espatifadas e ptios sinistros cheios de caixotes, pneus e carros batidos. - timo - disse Priest. - Apenas a meia hora de Felicitas e o tipo do lugar onde ningum presta muita ateno nos vizinhos. Cartazes anunciando corretores de imveis eram vistos presos em alguns prdios, numa demonstrao de otimismo. Melanie, posando de secretria de Priest, telefonou para o nmero de um dos cartazes e perguntou se tinham um armazm para alugar, que fosse bem barato, com uns cento e cinqenta metros quadrados de rea. Um jovem e ansioso corretor apareceu para se encontrar com eles uma hora mais tarde. Mostrou-lhes uma runa de blocos de concreto e teto de zinco todo esburacado. Via-se um cartaz quebrado em cima da porta, que Melanie leu em voz alta: "Perpetua Diaries". Havia lugar de sobra para estacionar o vibrador. Havia tambm um banheiro funcionando e um pequeno escritrio com uma chapa eltrica para aquecer caf ou comida e uma velha televiso Zenith deixadas pelo antigo locatrio. Priest disse ao corretor que precisava de um lugar para estocar barris de vinho mais ou menos por um ms. O homem estava pouco se incomodando com o que Priest queria fazer daquele espao e ficou entusiasmado por conseguir algum dinheiro de aluguel numa propriedade praticamente sem o menor valor. Prometeu que a luz e a gua estariam ligadas no dia seguinte. pgina 359 Priest pagou quatro semanas adiantadas, em dinheiro, quantia tirada do bolo que ele guardava escondido no violo velho. O corretor parecia que tinha acertado na loteria. Deu as chaves a Melanie, apertou as mos dos dois e saiu correndo antes que Priest mudasse de idia. Priest e Melanie voltaram para a comunidade. *** Quinta-feira noite, Judy Maddox tomou um banho de imerso. Deitada na gua, lembrou do terremoto de Santa Rosa que tanto a amedrontara
quando era bem pequena. A lembrana do acontecido voltou-lhe to vivamente como se tivesse sido na vspera. Nada mais aterrorizante do que descobrir que o solo sob seus ps no fixo ou estvel, e sim traioeiro e mortal. s vezes, nos momentos de tranqilidade, tinha pesadelos, vises de acidentes mltiplos de automveis, pontes ruindo, edifcios desmoronando, incndios e enchentes - mas nada to apavorante para ela quanto a memria do pavor que sentira aos seis anos de idade. Lavou o cabelo e guardou as lembranas num canto da mente. Depois arrumou uma bolsa com as coisas que precisava para passar a noite e voltou ao clube dos oficiais s dez horas. O posto de comando estava quieto, mas a atmosfera era tensa. Ningum sabia ainda ao certo se o Martelo do den poderia causar um terremoto. Mas desde que Ricky Granger seqestrara Al Honeymoon sob a mira de um revlver na garagem do prdio do Capitlio e o deixara em plena auto-estrada I-80, todos tinham certeza absoluta de que era preciso levar os terroristas a srio. pgina 360 Havia mais de cem pessoas no antigo salo de bailes. O comandante da operao era Stuart Cleever, o figuro que viera de Washington na tera-feira noite. A despeito das ordens de Honeymoon, no havia como o Bureau deixar uma agente de escalo hierrquico inferior assumir o controle geral de uma coisa to grande. Judy tambm no queria isso e no discutira. S fizera questo de se assegurar de que nem Brian Kincaid nem Marvin Hayes fossem diretamente envolvidos. O ttulo de Judy era coordenadora das operaes de investigao. O que lhe dava todo o controle de que precisava. Junto com ela estava Charlie Marsh, coordenador das operaes de emergncia, em comando da equipe da SWAT, de prontido numa sala ao lado. Charlie era um homem com uns quarenta e cinco anos de idade, cabelo grisalho cortado escovinha. Tinha sido do Exrcito, era alucinado por preparo fsico e colecionador de armas. No era do tipo que Judy normalmente gostava, mas tratava-se de um homem franco e confivel, com quem podia trabalhar. Entre a chefa e a mesa da equipe de investigao ficavam Michael Quercus e seus jovens sismlogos, sentados diante dos respectivos monitores, atentos a sinais de abalos ssmicos. Michael dera um pulo em casa, como Judy, e voltara trajando uma cala cqui limpa e camisa plo preta e trazendo uma bolsa de lona tipo esportivo, pronto para um longo planto. Tinham conversado durante o dia sobre questes prticas, enquanto ele montava o equipamento que ia usar e apresentava seus auxiliares. A princpio, tinham se mostrado sem graa um com o outro, mas logo Judy percebeu que rapidamente ia vencendo seus sentimentos de raiva e culpa por causa do incidente de tera-feira. Achara que fosse ficar ressentida por um ou dois dias, mas na verdade estava ocupada demais para se aborrecer. Assim, a coisa toda foi guardada num canto da sua memria e ela passou a desfrutar a presena de Michael nas proximidades. Estava tentando imaginar uma desculpa para falar com ele quando o
telefone em cima de sua mesa tocou. Ela atendeu. - Judy Maddox. A telefonista disse: - Uma ligao para voc de Ricky Granger. pgina 361 - Rastreie! - exclamou Judy. A telefonista precisaria apenas de alguns segundos para contatar o centro de segurana da Pacific Bell que funcionava vinte e quatro horas por dia. Acenou para Cleever e Marsh, indicando que eles deviam ouvir. - Passe a ligao. E grave tudo - houve um clique. - Judy Maddox falando. Uma voz masculina: - Voc esperta, agente Maddox. Mas ser esperta o bastante para convencer o governador a ter bom senso? Ele parecia enraivecido, frustrado. Judy imaginou um homem com cerca de cinqenta anos, magro, mal vestido, mas acostumado a ser ouvido. Estava perdendo o controle sobre a vida e ficara ressentido, especulou ela. - Estou falando com Ricky Granger? - perguntou Judy. - Voc sabe com quem est falando. Por que eles esto me forando a causar um outro terremoto? - Forando? Voc est querendo se convencer de que tudo isto ocorre por culpa de outra pessoa? A observao dela pareceu irrit-lo ainda mais. - No sou eu quem est usando mais e mais eletricidade a cada ano respondeu ele. - No quero mais usinas. No uso eletricidade. - No usa? Mesmo? O que ento que est alimentando a corrente do seu telefone: vapor? Uma seita que no usa eletricidade. Uma pista. Enquanto ironizava, ela tentava imaginar o que aquilo significaria? Mas onde eles esto? - No me enche o saco, Judy. voc quem est encrencada. Ao lado dela, o telefone de Charlie tocou. Ele atendeu prontamente e escreveu em letras grandes no bloco: - Telefone pblico - Oakland - I-980 & I-580 - Texaco. - Ns todos estamos encrencados, Ricky - disse ela, num tom de voz mais moderado. Charlie encaminhou-se para o mapa preso na parede. Ela o ouviu pronunciar a palavra "barricadas". - Sua voz mudou - disse Ricky, desconfiado. - O que foi que aconteceu? Judy sentiu que estava fora da sua praia. No tinha treinamento especial para negociar. Tudo o que sabia era que tinha que segur-lo no telefone. pgina 362 - De repente pensei na catstrofe que haver se voc e eu no conseguirmos chegar a um acordo qualquer - respondeu ela. Judy ouviu Charlie dando ordens urgentes, em voz baixa: - Ligue para a polcia de Oakland, de Alameda e para a Patrulha Rodoviria Estadual.
- Voc est mentindo para mim - disse Granger. - J conseguiram rastrear esta ligao? Jesus, foi rpido. Est tentando me conservar falando enquanto sua equipe da SWAT vem me pegar? Esquece! Tenho cento e cinqenta maneiras de dar o fora daqui! - Mas s h uma sada para a enrascada em que voc se meteu. - J passou de meia-noite - disse ele. - Seu prazo terminou. Vou provocar outro terremoto e no h absolutamente nada que voc possa fazer para me deter - ele desligou. Judy bateu o telefone. - Vamos, Charlie! - ela arrancou o retrato eletrnico de Granger do quadro e saiu correndo. O helicptero esperava no campo de parada, com as hlices girando. Judy embarcou, com Charlie logo atrs. Quando levantaram vo, ele ps os fones de ouvido e fez um gesto para que ela o imitasse. - Imagino que sejam necessrios vinte minutos para colocar as barricadas no lugar - disse. - Presumindo que ele esteja dirigindo a noventa por hora, para no ser detido por excesso de velocidade, poder estar a trinta quilmetros de distncia na hora em que estivermos prontos para peg-lo. Por isso, mandei que as principais auto-estradas sejam fechadas em um raio de quarenta quilmetros. - E as outras estradas? - Temos que esperar que ele tenha que cobrir uma longa distncia. Se sair da auto-estrada, ns o perdemos. Esta uma das tramas rodovirias mais movimentadas da Califrnia. No se pode bloque-la nem com a ajuda do Exrcito. *** pgina 363 Ao virar na I-80, Priest ouviu o barulho do motor de um helicptero e olhou para cima a tempo de v-lo passar, vindo de San Francisco e cruzando a baa na direo de Oakland. - Que merda - exclamou. - No podem estar atrs de ns, podem? - Eu falei - disse Melanie. - Eles podem rastrear telefonemas instantaneamente. - Mas o que que vo fazer? Nem mesmo sabem que rumo segui depois de sair do posto de gasolina. - Podem fechar a estrada, acho eu. - Qual? Noventa e oito, oitenta e oito, cinqenta e oito ou oitenta? Norte ou sul? - Talvez todas. Voc sabe, a polcia faz o que bem entende. - Merda! - Priest meteu o p no acelerador. - No v ser parado por excesso de velocidade. - OK. OK. - Ele reduziu a marcha. - No podemos sair da rodovia principal? Ele sacudiu a cabea. - No h outro caminho para casa. H estradas secundrias, mas elas no atravessam a baa. O que podamos fazer nos esconder em Berkeley. Estacionar em algum lugar e dormir no carro. Mas no temos tempo, precisamos ir para casa a fim de pegar o vibrador - ele sacudiu a
cabea. - Nada a fazer seno ir correndo peg-lo. O trfego diminuiu bastante depois que deixaram para trs Oakland e Berkeley. Priest manteve-se alerta, preocupado com o possvel aparecimento das luzes caractersticas da polcia. Foi um alvio chegar ponte Carquinez. Uma vez do outro lado, poderiam usar estradas secundrias. Depois talvez at viessem a gastar metade da noite para chegar em casa. Mas estariam fora de perigo. Aproximou-se vagarosamente da praa do pedgio, sempre procurando sinais de atividade da polcia. S uma cabine estava aberta, mas no era surpreendente depois da meia-noite. Nada de luzes azuis, carros de radiopatrulha ou policiais. Parou e procurou troco nos bolsos da cala. pgina 364 Quando levantou a cabea deu com um elemento da polcia rodoviria. O corao de Priest pareceu que ia parar. O policial estava na cabine, por trs do cobrador, olhando fixamente para Priest com uma expresso de espanto na fisionomia. O homem do pedgio recolheu o dinheiro de Priest mas no acendeu a luz verde. - Merda! - exclamou Melanie. - E agora? Priest considerou a possibilidade de sair correndo mas rapidamente decidiu-se contra. S serviria para dar incio a uma perseguio em que seu carro velho no conseguiria escapar. - Boa noite, senhor - disse o policial. Era um homem gordo de cerca de cinqenta anos usando um colete prova de balas sobre o uniforme. Por favor, encoste do lado da estrada. Priest fez o que ele disse. O carro da patrulha rodoviria estacionado ao lado da estrada no podia ser visto por quem chegava na praa do pedgio. Melanie murmurou: - O que que voc vai fazer? - Tentar permanecer calmo - respondeu Priest. Havia outro policial esperando no carro. Ele saltou quando Priest encostou. Tambm usava um colete prova de balas sobre o uniforme. O primeiro policial saiu da cabine e se aproximou. Priest abriu o porta-luvas e tirou o revlver que roubara naquela manh em Los Alamos. Depois saltou do `Cuda. *** Judy s gastou uns poucos minutos para chegar ao posto Texaco de onde fora feito o telefonema. A polcia de Oakland agira depressa. Colocaram no estacionamento quatro viaturas, uma em cada canto, viradas para dentro, as luzes azuis no teto faiscando e os faris iluminando o local da aterrissagem. O helicptero pousou. pgina 365 Judy saltou e foi recebida por um sargento da polcia. - Leve-me ao telefone - disse ela.
O telefone pblico ficava num canto prximo dos toaletes. Atrs do balco havia duas pessoas, uma preta de meia-idade e um jovem branco com um brinco. Pareciam assustados. Judy perguntou ao sargento se j os tinha interrogado. - No - respondeu ele. - S falei que era uma inspeo de rotina. Eles tinham que ser idiotas para acreditar, pensou Judy, vendo quatro viaturas da polcia e o helicptero do FBI do lado de fora. Ela apresentou-se e perguntou: - Vocs notaram algum usando o telefone mais ou menos - Judy checou o relgio - h uns quinze minutos? A mulher disse: - Muita gente usa o telefone - e Judy na mesma hora viu que ela no gostava de polcia. Judy olhou para o rapaz. - Estou falando de um homem branco, alto, com cerca de cinqenta anos. - Teve um cara assim - respondeu ele, virando-se para a mulher. - Voc no reparou? Parecia um hippie velho. - No vi - replicou a mulher, teimosamente. Judy mostrou a foto eletrnica. - Poderia ser este homem? O rapaz pareceu ficar na dvida. - Ele no usava culos. E o cabelo era comprido pacas. Foi por isso que pensei que parecia um hippie - ele examinou a foto mais detidamente. - Mas podia ser ele, sim. A mulher resolveu examinar tambm a foto que Judy trouxera. - Eu me lembro agora - disse. - Acredito que fosse ele. Um sujeito muito magro usando uma camisa azul de jeans. - Poxa, vocs ajudaram um bocado - disse Judy, agradecida. - Agora, esta pergunta realmente importante: que carro ele estava dirigindo? - No olhei - respondeu o rapaz. - Sabe quantos carros passam por aqui todos os dias? E est escuro. pgina 366 Judy olhou para a mulher, que balanou a cabea melancolicamente. - Querida, voc est perguntando pessoa errada - no sei dizer a diferena entre um Ford e um Cadillac. Judy no conseguiu ocultar seu desapontamento. - Droga - disse, controlando-se novamente logo em seguida. - De qualquer forma, muito obrigada a vocs dois. Ela saiu. - Mais alguma testemunha? - perguntou ao sargento. - Nenhuma. Pode ser que tenha havido outros clientes presentes ao mesmo tempo que ele, mas j foram embora h muito tempo. E s aqueles dois trabalham aqui. Charlie Marsh aproximou-se correndo com um telefone celular no ouvido. - Granger foi localizado - disse para Judy. - Dois policiais rodovirios o detiveram na praa do pedgio da ponte Carquinez. - No acredito! - disse Judy. Depois alguma coisa no rosto de Charlie a fez perceber que a notcia talvez no fosse boa. - Ns o prendemos? - No - respondeu Charlie. - O cara atirou neles. Estavam de colete,
mas atirou na cabea dos dois. Fugiu. - Conseguiram saber qual era o carro dele? - No. O funcionrio da cabine no reparou. Judy no foi capaz de ocultar o tom de desespero da sua voz. - Quer dizer ento que ele conseguiu fugir? - Exato. - E os dois patrulheiros rodovirios? - Ambos mortos. O sargento empalideceu. - Que Deus tenha piedade de suas almas - murmurou. Judy virou de costas, revoltada. - E Deus nos ajude a pegar Ricky Granger - disse - antes que ele mate mais algum. *** 17 Oaktree realizara um excelente trabalho ao fazer com que o vibrador ssmico parecesse ser um caminho com um brinquedo de mafu montado na carroceria. Os painis da Boca do Drago pintados alegremente em vermelho e amarelo escondiam por completo a placa de ao macio, o imenso motor que gerava as vibraes e o complexo de tanques e vlvulas que controlavam a mquina. Quando Priest atravessou o estado na tarde de sexta-feira, indo do sop da Serra Nevada atravs do vale do Sacramento at a cadeia de montanhas que acompanhava a costa, outros motoristas sorriam e buzinavam amistosamente, e as crianas acenavam pelas janelas de trs das camionetas. A Patrulha Rodoviria o ignorou. Priest foi dirigindo com Melanie ao seu lado. Star e Oaktree seguiram no velho `Cuda. Chegaram em Felicitas no incio da noite. A janela ssmica se abriria pouco depois das sete horas, o que era bom porque Priest teria o crepsculo para proteger sua fuga. Mais ainda, o FBI e os policiais a esta altura j estariam em alerta por dezoito horas ficando cansados, com as reaes lentas. Podiam estar comeando a acreditar que no haveria terremoto. Priest saiu da estrada e parou o caminho. No fim da rampa de sada havia um posto de gasolina e um restaurante Big Ribs onde diversas famlias jantavam. Pelas janelas, as crianas no tiravam os olhos do caminho. Nas proximidades do restaurante havia um campo com cinco ou seis cavalos pastando; em seguida vinha um escritrio, numa construo baixa revestida de vidro. A rua que ia do ponto onde ele se encontrava em direo cidade tinha casas em ambos os lados, e Priest podia ver uma escola e um pequeno prdio de madeira que parecia ser uma capela batista. pgina 368 Melanie disse: - A falha corre por baixo da rua principal.
- Como voc pode dizer? - Olha s as rvores nas caladas - havia uma linha de pinheiros adultos no lado mais afastado. - As rvores do lado oeste esto cerca de um metro e meio mais para trs que as do lado leste. Sem dvida, Priest viu que a oeste do que devia ser a falha, as rvores cresciam no meio da calada, em vez de junto ao meio-fio. Ele ligou o rdio do caminho. O programa de John Truth estava comeando. - Perfeito - aprovou. O locutor disse: - Um importante auxiliar do governador Mike Robson foi seqestrado em Sacramento num incidente bizarro ocorrido ontem. O seqestrador abordou o secretrio do gabinete, Al Honeymoon, no estacionamento subterrneo do Capitlio, forou-o a sair da cidade e depois o abandonou na I-80. - Reparou que no falaram no Martelo do den? - comentou Priest. Eles sabem que era eu, l em Sacramento. Mas esto tentando fingir que no tem nada a ver conosco. Pensam que assim evitam que haja uma onda de pnico. Esto perdendo tempo. Em vinte minutos vai haver o maior pnico que a Califrnia j viu. - Exatamente! - concordou Melanie. Estava tensa mas excitada, o rosto congestionado, os olhos brilhantes de esperana e medo. S que, secretamente, Priest estava cheio de dvidas. Ser que ia funcionar desta vez? S havia uma maneira de descobrir. Ele engrenou o caminho e desceu a colina. pgina 369 A pista que saa da auto-estrada dava uma volta e se confundia com uma estrada velha que dava na cidade, vinda do leste. Priest virou na rua principal. Havia um caf bem em cima da falha. Ele parou no estacionamento em frente e o `Cuda veio colocar-se ao lado do caminho. - V comprar uns doughnuts - disse a Melanie. - Parea natural. Ela saltou e caminhou sem pressa at o caf. Priest puxou o freio de mo e acionou o boto que comandava o martelo do vibrador ssmico. Um policial uniformizado saiu do caf. - Merda! - exclamou Priest. O polcia carregava um saco de papel e dirigia-se com jeito decidido para o outro lado do estacionamento. Priest imaginou que ele devia ter parado para comprar caf para si e seu parceiro. Mas onde estaria o carro-patrulha? Priest olhou em torno e acabou localizando a luz branca e azul no teto de um carro quase totalmente escondido por uma minivan. No tinha visto quando chegara. Amaldioou a si prprio pela desateno. Mas era tarde demais para lamentaes. O policial viu o caminho, mudou de rumo e aproximou-se da janela de Priest. - Oi, como vamos? - cumprimentou ele, amistosamente. Era um rapaz alto e magro, com pouco mais de vinte anos e cabelo louro cortado curto. - Tudo bem, graas a Deus - disse Priest. Policiais de cidade pequena
agem como se todo mundo fosse conhecido. - E voc? - Sabe que no pode funcionar com isso sem permisso, no sabe? - a mesma coisa em toda a parte - disse Priest. - Mas nossa idia ir para Pismo Beach. S paramos para um caf, como voc. - Tudo bem. Aproveite o resto do dia. - Igualmente. O polcia afastou-se e Priest sacudiu a cabea, assombrado. Se voc percebesse quem sou eu, ia morrer engasgado com essa rosca de chocolate. Ele deu uma olhada pela janela de trs e checou os mostradores do mecanismo vibratrio. Tudo estava verde. pgina 370 Melanie reapareceu. - V para o carro com os outros - disse Priest. - Estarei l daqui a pouco. Ele preparou a mquina para vibrar a um sinal do controle remoto e saltou. O motor ficou funcionando. Melanie e Star estavam sentadas no banco de trs do `Cuda, o mais afastadas uma da outra que conseguiram: tratavam-se com polidez, mas no podiam ocultar sua hostilidade mtua. Com Oaktree ao volante, Priest pulou para o banco do carona. - Volta para o mesmo lugar onde paramos antes - disse. Oaktree acelerou e saiu. Priest ligou o rdio e sintonizou no programa de John Truth. - Sete e vinte e cinco da noite de sexta-feira e a ameaa de um terremoto feita pelo grupo terrorista do Martelo do den no se materializou, graas a Deus. Qual foi a coisa mais assustadora que j aconteceu a voc? Lique para John Truth agora e conte para ns. Pode ser uma coisa boba, como um camundongo na geladeira, ou quem sabe se voc foi vtima de um assalto. Compartilhe suas idias com o mundo, no John Truth Live de hoje. Priest virou-se para Melanie. - Telefone para l no seu celular. - E se rastrearem a ligao? - uma estao de rdio, no a porra do FBI, no podem rastrear ligaes. Vamos, telefone. - Tudo bem - Melanie teclou o nmero que John Truth repetia pelo rdio. - Ocupado. - Insiste. - Este telefone tem rediscagem automtica. Oaktree parou o carro no topo da elevao, de onde contemplaram a cidadezinha. Priest examinou ansiosamente o estacionamento na frente do caf. Os policiais continuavam l. No queria dar incio s vibraes enquanto estivessem to perto - um deles podia ter a presena de esprito de pular dentro da cabine e desligar o motor. pgina 371 - Malditos! - resmungou. - Por que no vo pegar uns criminosos?
- No diga isso - eles podem vir atrs de ns - brincou Oaktree. - Ns no somos criminosos - disse Star, convincente. Estamos tentando salvar o nosso pas. - Absolutamente certo! - exclamou Priest com um sorriso, e deu um soco no ar. - Estou falando srio - disse ela. - Daqui a cem anos, quando as pessoas voltarem os olhos para trs, diro que os racionais fomos ns e que o governo que foi insensato ao deixar o pas ser destrudo pela poluio. Como os desertores na Primeira Grande Guerra - foram odiados na poca, mas hoje todo mundo diz que s eles no eram loucos. Oaktree concordou: - verdade. O carro da polcia saiu da frente do caf. - Consegui ! - exclamou Melanie. - Consegui - al? Sim, sim, eu espero para falar com John Truth... Ele disse para desligar o rdio... Priest desligou prontamente o rdio do carro. - Quero falar sobre o terremoto - prosseguiu Melanie, respondendo s perguntas que lhe faziam. - ... Melinda. Oh! O cara no est mais ouvindo. Porra, quase que falei meu nome verdadeiro! - No faz mal, mesmo que tivesse falado deve haver um milho de Melanies - disse Priest. - Me d o telefone. Ela deu e Priest ps-se a escutar. Ouviu um comercial inteiro de uma concessionria Lexus em San Jos. Parecia que a estao irradiava o programa para as pessoas que ficavam aguardando ao telefone. Ele viu a viatura da polcia subir a colina na sua direo. Passou pelo caminho, entrou na auto-estrada e desapareceu. De repente ele ouviu: - E Melinda quer falar sobre a ameaa de terremoto. Al, Melinda, voc est no John Truth Live! Priest falou: pgina 372 - Al, John, aqui no a Melinda, o Martelo do den. Houve uma pausa. Quando John Truth falou de novo, sua voz tinha assumido o tom portentoso que ele usava para declaraes muito graves. - Companheiro, melhor que voc no esteja brincando, porque se estiver poder ir para a cadeia, sabe disso? - Acho que posso ir para a cadeia se no estiver brincando. Truth no riu. - Por que est ligando para mim? - S queramos ter certeza, desta vez, de que todo mundo saiba que o terremoto foi causado por ns. - Quando acontecer? - Dentro de alguns minutos. - Onde? - No posso dizer, porque pode dar ao FBI a chance de nos pegar, mas vou lhe dizer algo que ningum poderia adivinhar. Ter lugar exatamente em cima da Rota 101. ***
Raja Khan pulou em cima de uma mesa do posto de comando. - Cala a boca todo mundo e escutem! - berrou. Todos perceberam o tom agudo do medo na sua voz e o silncio que se fez no salo foi mortal. - Um sujeito afirmando ser do Martelo do den est no John Truth Live. Todo mundo fez perguntas ao mesmo tempo e Judy se levantou: - Silncio! - gritou. - Raja, o que foi que ele disse? Carl Theobald, que estava sentado com o ouvido grudado no alto-falante de um rdio porttil, respondeu pergunta dela. - Disse que o prximo terremoto ter lugar na Rota 101, dentro de poucos minutos. - timo, Carl! Aumenta o volume - Judy virou-se para o outro lado. Michael - isso se ajusta a qualquer das locaes que temos sob vigilncia? - No! - respondeu ele. - Merda, adivinhei errado. pgina 373 - Ento adivinhe de novo! Tente calcular de novo onde essa gente pode estar! - Tudo bem - disse ele. - Mas pare de gritar. - Michael sentou-se diante do seu computador e pegou o mouse. No rdio de Carl Theobald uma voz disse: - A vem agora. Soou um alarme no computador de Michael. - O que isso? - quis saber Judy. - Um tremor? Michael clicou o mouse. - Espera, est aparecendo na tela... No, no um tremor. um vibrador ssmico. Judy olhou por cima do ombro dele. Viu na tela do monitor um padro exatamente como o que ele lhe mostrara no domingo. - Onde isso? - disse ela. - Me d uma localizao! - Estou trabalhando nisso - retrucou ele prontamente. Gritar comigo no vai fazer o computador triangular mais depressa. Como que ele podia ser to suscetvel numa hora dessas? - Por que no est havendo um terremoto? Talvez o mtodo deles no esteja funcionando! - Em Owens Valley no funcionou na primeira vez. - Eu no sabia. - OK, aqui esto as coordenadas. Judy e Charlie Marsh foram at o mapa da parede. Michael cantou as coordenadas. - Aqui! - exclamou ela, triunfante. - Bem em cima da Rota 101, ao sul de San Francisco. Uma cidade chamada Felicitas. Carl, telefone para a polcia local. Raja, notifique a polcia rodoviria. Charlie, vou com voc no helicptero. - Olha que essas coordenadas no so cem por cento precisas - advertiu Michael. - O vibrador pode estar em qualquer lugar em um raio de uns dois quilmetros a partir do ponto definido por elas. - Como possvel reduzir a margem de erro? - Se eu examinar a paisagem, posso localizar a linha da falha.
pgina 374 - melhor voc ir conosco no helicptero. Peque um colete e venha! *** - No est funcionando! - exclamou Priest, tentando esconder sua inquietao. Melanie disse: - No funcionou na primeira vez em Owens Valley, no se lembra? - ela pareceu exasperada. - Tivemos que deslocar o caminho e tentar de novo. - Que merda, espero que tenhamos tempo - disse Priest. - Toca, Oaktree! Vamos voltar para o caminho! Oaktree engrenou o carro velho e desceu velozmente a colina. Priest virou-se e gritou para Melanie, esforando-se para ser ouvido sobre o ronco do motor. - Para onde voc acha que devemos ir? - H uma transversal quase em frente ao caf - desa por l cerca de quatrocentos metros. onde a falha corre. - OK. Oaktree parou o carro diante do caf e Priest saltou fora. Uma mulher gorda, de meia-idade, parou diante dele. - Est ouvindo esse barulho? - perguntou ela. - Parece estar sendo produzido pelo seu caminho. de arrebentar os ouvidos! - Saia da minha frente ou eu arrebento a porra da sua cabea replicou Priest, pulando dentro do caminho: Levantou o prato de ao, engrenou o motor e saiu. Quando virou para pegar a rua em frente ao caf cortou a frente de uma caminhonete velha e enorme. Ela parou, ruidosamente, e o motorista buzinou, indignado. Priest seguiu e entrou na rua transversal. Andou quatrocentos metros e parou em frente a uma casa de um s andar muito bem arrumadinha, cujo jardim era protegido por uma cerca. Um cachorrinho branco latiu furiosamente para ele atravs da cerca. Trabalhando com rapidez febril, mais uma vez baixou a placa circular do vibrador e verificou os instrumentos. Configurou para controle remoto, saltou fora e voltou para o `Cuda. pgina 375 Oaktree fez uma curva de cento e oitenta graus cantando pneu e arrancou, acelerando o que dava. Ao percorrerem velozmente a rua principal, Priest observou que as atividades deles comeavam a atrair a ateno. Estavam sendo observados por um casal carregando sacolas de compras, dois meninos de bicicleta e trs gordos que saram de um bar para ver o que estava acontecendo. Chegaram ao fim da rua e viraram para subir a colina. - Aqui j chega - disse Priest. Oaktree parou o carro e Priest ativou o controle remoto. Dava para ouvir o caminho vibrando a seis quadras de distncia.
Star perguntou, trmula: - Estamos seguros aqui? Os quatro ficaram em silncio por um momento, imobilizados pela ansiedade, aguardando o terremoto. O caminho vibrou por trinta segundos e parou. - Seguros demais - respondeu Priest. Oaktree disse: - No est funcionando, Priest! - Aconteceu a mesma coisa da outra vez! - disse Priest , desesperado. - Vai funcionar! Melanie disse: - Sabe o que eu acho? A terra aqui muito mole. A cidade fica margem do rio. Solos pouco consistentes, encharcados, abafam as vibraes. Priest voltou-se para ela acusadoramente. - Ontem voc me disse que os terremotos causam mais danos em terreno molhado. - O que eu disse foi que os edifcios construdos em solo molhado tendem a sofrer mais danos, porque o solo sob eles se desloca mais. Mas para transmitir as ondas de choque at a falha, o solo rochoso seria melhor. pgina 376 - Esquece a maldita aula! - exclamou Priest. - Onde tentamos agora? Ela apontou para cima da elevao. - O ponto de onde samos da auto-estrada. No fica diretamente em cima da falha, mas l o solo deve ser rochoso. Oaktree levantou uma sobrancelha para Priest, que disse: - De volta para o caminho, j! Eles percorreram velozmente a rua principal, agora no sentido contrrio, observados desta vez por mais gente. Oaktree entrou a toda velocidade na ruazinha transversal onde estava o caminho e freou ruidosamente. Priest pulou para a cabine, levantou o prato e seguiu em frente, acelerando ao mximo. O enorme caminho deslocou-se com penosa lentido atravs da cidade e se arrastou na subida da rampa. Quando estava na metade do caminho, a viatura da polcia que eles tinham visto veio na direo contrria, com as luzes faiscando e a sirene aberta. At que por fim o caminho chegou ao ponto do qual Priest contemplara a cidade pela primeira vez e a considerara perfeita. Parou do outro lado da estrada, na linha do restaurante Big Ribs. E, pela terceira vez, arriou o prato de ao do vibrador. sua retaguarda podia ver o `Cuda. Voltando da cidade , vinha o carro da polcia. Levantando a cabea, localizou um helicptero no cu. No tinha tempo de sair do caminho e usar o controle remoto. Teria que ativar o vibrador sentado ali no lugar do motorista. Ps a mo no controle, hesitou e puxou a alavanca. ***
Do helicptero, Felicitas parecia adormecida. pgina 377 Era uma noite clara, com excelente visibilidade. Judy podia ver a rua principal e a trama das ruas que a cercavam, as rvores nos jardins e os carros diante das casas, mas nada parecia estar se movendo. Um homem regando flores parecia uma esttua, de to imvel; uma mulher com um chapu de palha grande estava parada na calada; trs adolescentes numa esquina estavam como que congeladas nos respectivos lugares; dois meninos pararam suas bicicletas no meio da rua. Havia movimento na auto-estrada que passava pela cidade sobre os elegantes arcos de um viaduto. Com a usual mistura de carros e caminhes, ela localizou duas radiopatrulhas a mais ou menos dois quilmetros de distncia, aproximando-se da cidade em alta velocidade, atendendo, sups Judy, ao seu chamado de emergncia. Mas na cidade ningum se movia. Aps um momento ela descobriu o que estava acontecendo. Eles estavam ouvindo. O barulho do helicptero a impedia de escutar o que eles estavam ouvindo em terra, mas podia adivinhar. Era o vibrador ssmico. Mas onde estava ele? O aparelho passou a voar baixo o bastante para identificar as marcas dos carros estacionados na rua principal, mas Judy no viu nenhuma viatura grande o bastante para ser um vibrador ssmico. Nenhuma das rvores que obscureciam parcialmente as ruas transversais parecia frondosa o bastante para ocultar um caminho de grande porte. Ela se dirigiu a Michael usando o equipamento de intercomunicao. - Conseque ver a falha? - Consigo - ele estudava um mapa e o comparava com a paisagem que tinha diante dos olhos. - Atravessa a estrada de ferro, o rio, a auto-estrada e o oleoduto. Meu Deus Todo-Poderoso, vai haver danos. - Mas onde est o vibrador? - O que aquilo l na encosta? Judy seguiu a direo indicada pelo dedo dele. Acima da cidade, perto da estrada, viu um grupinho de edificaes: um restaurante qualquer de comida rpida, um prdio de escritrios com as paredes de vidro e uma pequena estrutura de madeira, provavelmente uma capela. Na estrada, perto do restaurante, havia um cup cor de lama que parecia um velho carro esporte do incio dos anos 70, uma viatura da polcia parando atrs dele e um caminho muito grande todo pintado com drages, em vermelho escarlate e amarelo luminoso. Dava para ler as palavras "A Boca do Drago". pgina378 - um desses brinquedos de mafu - disse ela. - Ou um disfarce - sugeriu ele. - O tamanho o de um vibrador ssmico. - Meu Deus, aposto como voc est com a razo! - exclamou ela. -
Charlie, est ouvindo? Charlie Marsh estava sentado ao lado do piloto. Seis membros da sua equipe da SWAT podiam ser vistos atrs de Judy e Michael, armados com submetralhadoras MP- 5, um tanto volumosas mas de pequeno comprimento. O resto do pessoal deslocava-se velozmente pela auto-estrada em uma viatura blindada que servia como centro de operaes tticas da equipe. - Estou ouvindo - disse Charlie. - Piloto, pode dar um jeito para a gente descer perto daquele caminho? - No d muito jeito - replicou o piloto. - As encostas da colina so ngremes e a estrada no tem largura suficiente. - Eu preferia descer no estacionamento daquele restaurante. - Pois desa - disse Charlie. - No vai haver terremoto, vai? - quis saber o piloto. Ningum respondeu. Justo quando o helicptero desceu, um vulto saltou do caminho. Judy viu que era um homem alto e magro, com o cabelo escuro comprido e sentiu imediatamente que se tratava do seu inimigo. Ele fixou os olhos no aparelho e Judy achou que tinha os olhos fixos nela. Mesmo longe demais para ver com clareza as feies, teve certeza de que se tratava de Ricky Granger. Fica a, seu filho da me, que vou peg-lo. O helicptero pairou sobre a rea de estacionamento e comeou a descer. pgina 379 Judy deu-se conta de que ela e todo o pessoal que a acompanhava podiam morrer nos prximos segundos. Quando o helicptero tocou no cho, ouviu-se um barulho que parecia anunciar o dia do julgamento final. *** O estrondo foi como um trovo, to alto que abafou o barulho feito pelo vibrador e pelo troar das hlices e do motor do helicptero. O solo pareceu se levantar e atingiu Priest como se fosse um soco. Ele estava prestando ateno na aterrissagem do aparelho na rea de estacionamento do Big Ribs, achando que o vibrador estava funcionando toa, que seu plano falhara e que agora seria preso e jogado numa cela. No momento seguinte caiu de cara no cho, sentindo-se como se tivesse sido atingido por um soco do Mike Tyson. Rolou de lado, respirando com dificuldade, e viu as rvores que o cercavam retorcidas como se estivessem em meio a um furaco. At que, um momento depois, recuperou os sentidos e percebeu que tinha dado certo! Ele havia provocado um terremoto. Sim! E agora estava bem no meio da rea atingida pelo terremoto. Priest teve medo pela prpria vida. O ar ressoava com um estrondo que lembrava o de pedras sendo sacudidas num copo imenso, como dados. Com algum esforo conseguiu levantar-se, mas o solo no parou quieto, e, ao tentar pr-se de p, Priest caiu de
novo. Puta merda, estou liquidado. Rolou mais uma vez e conseguiu sentar-se direito. Foi ento que ouviu um barulho como o de centenas de vidraas se espatifando. Olhando por cima para sua direita, viu que era exatamente isso que estava acontecendo. pgina 380 As paredes de vidro do prdio de escritrios estavam se estilhaando todas ao mesmo tempo. Milhes de cacos de vidro caram como uma cascata. Sim! A capela batista que ficava mais adiante era uma construo frgil de madeira e suas paredes finas caram em meio a uma nuvem de poeira, ficando coladas ao cho. No meio dos destroos ficou apenas um imponente plpito de carvalho todo entalhado. Eu consegui! Eu consegui! As janelas do Big Ribs se partiram e os gritos das crianas aterrorizadas puderam ser ouvidos longe. Um canto do teto cedeu, fez uma barriga e depois caiu esmagando um grupo de cinco ou seis adolescentes, suas mesas e pratos de comida. Os outros clientes se levantaram todos ao mesmo tempo e se lanaram numa onda de encontro s janelas, agora sem vidros, quando o resto do teto comeou a cair em cima deles. O ar estava impregnado do cheiro acre de gasolina. O tremor rompera os tanques subterrneos do posto, avaliou Priest. Viu um mar de combustvel se espalhando no ptio diante das bombas. Uma motocicleta descontrolou-se e saiu da rua, derrapando de um lado para o outro, at que o motociclista caiu e a mquina deslizou pelo piso de concreto, levantando centelhas. A gasolina derramada pegou fogo com um barulho apavorante e um segundo depois estava tudo em chamas. Jesus Cristo! O fogo estava assustadoramente perto do `Cuda. Priest podia ver o carro balanando de um lado para o outro e o rosto aterrorizado de Oaktree atrs do volante. Ele nunca tinha visto Oaktree assustado. Os cavalos do campo ao lado do restaurante irromperam pela cerca quebrada e galoparam a toda velocidade ao longo da rua, na direo de Priest, olhos fixos, bocas abertas, apavorados. Priest no teve tempo para sair do caminho. Cobriu a cabea com as mos. Os cavalos passaram por um lado ou pelo outro. Na cidadezinha, o sino da igreja batia loucamente. *** pgina 381 O helicptero levantou vo de novo um segundo depois de ter tocado no solo. Judy reparou que o cho debaixo dela tremia como um bloco de gelatina, e depois foi diminuindo de tamanho, medida que o helicptero ia ganhando altura novamente. Arfante, ela viu o vidro das
paredes do pequeno prdio comercial transformar-se em algo que lembrava espuma do mar e cair numa enorme onda at o solo. Depois viu um motociclista bater no posto de gasolina e deixou escapar um grito, profundamente angustiada, quando o combustvel pegou fogo e as chamas engolfaram o pobre motociclista cado no cho. O helicptero deu uma virada e o ponto de vista dela mudou. Diante dos seus olhos estendia-se uma rea plana. distncia, um trem de carga cruzava os campos. A princpio pensou que o trem escapara ileso, mas depois percebeu que estava reduzindo bruscamente a velocidade. Tinha descarrilado, e, enquanto olhava, horrorizada, a locomotiva mergulhou no campo que acompanhava a linha. Os vages carregados foram encaixotando um no outro contra a parte de trs da locomotiva. O helicptero girou de novo, ainda ganhando altura. Judy passou a poder ver a cidade. E foi uma viso chocante. Pessoas desesperadas, em pnico, apareciam correndo na rua, as bocas abertas em gritos de pavor que ela no conseguia ouvir, tentando fugir enquanto suas casas desmoronavam as paredes rachando, as janelas explodindo e os telhados oscilando de maneira assustadora para cair nos jardins bem cuidados ou esmagar automveis na frente das casas. A rua principal parecia, ao mesmo tempo, em chamas e debaixo d'gua. As ruas estavam cheias de carros batidos. Judy viu uma lanterna piscando e depois outra, e adivinhou que as linhas de fora estavam se rompendo. pgina 382 Quando o helicptero ganhou mais altura, a auto-estrada passou a ser visvel e as mos de Judy voaram para a boca, num gesto que traduziu o horror que lhe causou ver que um dos arcos gigantescos que sustentavam o viaduto tinha se partido. O leito da estrada rachara e uma lngua de asfalto ficou pairando no ar. Pelo menos dez carros tinham batido de ambos os lados da fenda, e alguns se incendiaram. E a carnificina no acabara. Diante dos olhos dela um enorme Chevrolet velho, do tipo que chamavam de rabo-de-peixe, mergulhou no precipcio, derrapando de lado, enquanto o motorista tentava inutilmente frear. Judy ouviu o grito que ela prpria deixou escapar quando o carro caiu no vazio. Pde ver o rosto aterrorizado do motorista, um homem ainda jovem, quando percebeu que ia morrer. O carro foi girando no ar, com chocante lentido, e finalmente caiu em cima do telhado de uma casa, incendiando-se e incendiando tambm a casa. Judy escondeu o rosto nas mos. Aquilo era horrvel demais para olhar. Mas a se lembrou que era uma agente do FBI. Obrigou-se a olhar de novo. Os carros na estrada agora reduziam a marcha com a antecedncia necessria para frearem antes de bater. Mas as viaturas da Patrulha Rodoviria e o caminho da SWAT no conseguiriam atingir Felicitas pela auto-estrada. Uma sbita lufada de vento afastou a nuvem de fumaa preta que cobria o posto de gasolina e Judy viu o homem que sups ser Ricky Granger. Voc fez isso. Voc matou toda essa gente. Seu merda, vou botar voc na cadeia nem que seja a ltima coisa que eu faa na vida. Com dificuldade, Granger conseguiu ficar de p e correu para o cup
marrom, gritando e gesticulando para as pessoas que se encontravam l dentro. A viatura da polcia estava logo atrs do cup, mas os policiais pareceram lentos na sua reao. Judy viu que os terroristas estavam prestes a fugir. Charlie chegou mesma concluso. - Desce, piloto! - gritou ele pelo aparelho de intercomunicao. - Voc est maluco, cara? - retrucou o piloto. - Aquela gente ali a responsvel por isto! - gritou Judy, apontando por cima do ombro do piloto. - So os responsveis por toda esta carnificina e agora esto fugindo! pgina 383 - Merda! - exclamou o piloto. E o helicptero guinou na direo do solo. *** Priest gritou para Oaktree pela janela aberta do `Cuda. - Vamos dar o fora daqui ! - Tudo bem - por onde? Priest apontou a estrada que ia para a cidade. - V por aqui, mas em vez de entrar na rua principal vire direita e siga pela velha estrada secundria - que volta para San Francisco. Eu verifiquei. - OK! Priest viu os dois policiais locais saltarem da radiopatrulha. Ele pulou no caminho, levantou o pesado prato de ao e saiu atrs do `Cuda. Oaktree fez uma curva de cento e oitenta graus e desceu a ladeira. Priest virou o caminho mais lentamente. Um dos policiais estava de p no meio da rua, apontando a arma para o caminho. Era o rapaz magro que dissera a Priest para aproveitar bem o resto do dia e que agora gritava: - Polcia! Pra! Priest seguiu direto em cima dele. O guarda atirou de qualquer maneira e pulou fora. frente, a estrada contornava a cidade pelo leste, evitando a parte que mais sofrera com o terremoto, que era no centro da cidade. Priest teve que desviar-se de dois carros batidos em frente ao edifcio comercial de vidro que fora destrudo, mas depois no parecia haver mais nada. O caminho ganhou velocidade. Vamos conseguir! Foi quando o helicptero do FBI aterrissou no meio da estrada a uns quinhentos metros de distncia. Merda. Priest viu que o `Cuda freava ruidosamente. pgina 384 Tudo bem, seus babucas, vocs pediram. Priest acelerou ao mximo. Os
agentes da SWAT, armados at os dentes, saltaram do helicptero um por um e comearam a entrar em posio ao lado da estrada. No caminho, Priest acelerou colina abaixo, ganhando velocidade e passou pelo `Cuda parado. - Agora vem atrs de mim - murmurou, na esperana de que Oaktree adivinhasse o que esperava que ele fizesse. Priest viu Judy Maddox saltar do helicptero. Tinha nas mos uma escopeta e um colete prova de balas escondia seu corpo gracioso. Ela ajoelhou-se atrs de um poste e foi seguida por um homem, que Priest reconheceu como sendo o marido de Melanie, Michael. Priest deu uma espiada nos espelhos laterais. Oaktree o seguia bem de perto, transformando o `Cuda num alvo difcil. Oaktree no esquecera tudo que aprendera nos Fuzileiros. Atrs do Cuda, distanciado uns cem metros, mas avanando como um raio azul e aproximando-se rapidamente, vinha a radiopatrulha. O caminho de Priest estava a vinte metros dos agentes indo reto na direo do helicptero. Um agente do FBI levantou-se ao lado da estrada e apontou uma metralhadora pequena mas volumosa. Jesus, tomara que os federais no tenham lanadores de granadas. O helicptero levantou vo. *** Judy soltou um palavro. O piloto do helicptero, ruim no cumprimento de ordens, pousara demasiado perto dos veculos que se aproximavam. Mal houve tempo para o pessoal da SWAT e os outros agentes saltarem e tomarem posio. Michael pulou para o lado da estrada. - Deita! - gritou Judy. pgina 385 Ela viu o motorista do caminho mergulhar atrs do painel quando um dos homens da SWAT abriu fogo com sua submetralhadora. O pra-brisa atingido ficou fosco, apareceram buracos de balas nos pra-lamas e no cap, mas o caminho no parou. Judy deixou escapar um grito de frustrao. Apressadamente ela apontou sua escopeta M870 de cinco tiros e alvejou os pneus, mas estava desequilibrada e perdeu os tiros. Logo o caminho passou ao lado dela. Todos os tiros foram suspensos: os agentes recearam se atingir uns aos outros. O helicptero estava levantando vo para sair da frente do caminho mas a Judy viu, para seu horror, que o piloto fora uma frao de segundo lerdo demais. O teto da cabine do caminho bateu no trem de aterrissagem do helicptero. A aeronave inclinou-se subitamente. O caminho seguiu em frente, intacto. O `Cuda marrom passou a toda, grudado no caminho. Judy disparou loucamente contra os dois veculos. O helicptero pareceu oscilar enquanto o piloto tentava corrigir a inclinao. A uma das lminas do rotor tocou no solo. - Oh, no! - gritou Judy. - Por favor, no! A cauda do aparelho balanou e subiu. Judy pde ver a expresso
aterrorizada do piloto, lutando com os controles. Depois, de repente, o nariz mergulhou no meio da estrada com um estrondo, seguido imediatamente pelo rudo musical do vidro se estilhaando. Por um momento o helicptero ficou parado quase na vertical, apoiado no nariz. Depois comeou a cair devagar, de lado. A radiopatrulha, que vinha a uns cento e vinte por hora, freou desesperadamente, derrapou e bateu no helicptero. Houve um estrondo ensurdecedor e os dois veculos, a aeronave e o automvel, pegaram fogo. *** pgina 386 Priest viu a batida pelos retrovisores laterais e soltou um grito de vitria. Tudo indicava que o FBI no tinha mais como prosseguir, sem helicptero e sem carros. Nos minutos que se seguiram eles iriam tentar desesperadamente salvar os policiais e o piloto, caso ainda estivessem vivos. Quando um deles se lembrasse de conseguir um carro numa casa prxima, Priest estaria a quilmetros de distncia. Ele empurrou o vidro estilhaado do pra-brisa sem diminuir a marcha. Meu Deus, acho que conseguimos! Atrs dele o `Cuda comeou a oscilar de um modo estranho. Aps um instante, Priest concluiu que devia estar com um pneu furado. Como seguia em frente, devia ser um pneu traseiro. Oaktree era capaz de continuar mais uns dois quilmetros daquele jeito. Eles atingiram a encruzilhada. Trs carros tinham empilhado ali: uma minivan Toyota com um banco de beb preso ao assento, uma picape Dodge bem usada e um velho Cadillac Coupe de Ville branco. Priest examinou os trs cuidadosamente. Nenhum tinha sido seriamente danificado, e o motor da minivan ainda funcionava. Os motoristas no estavam - deviam ter ido procurar um telefone. Priest contornou os carros e virou direita, na direo contrria da cidade. Encostou o caminho depois da primeira curva. Estavam agora a quase dois quilmetros de distncia do FBI e completamente fora de vista. Ficaria em segurana por um minuto ou dois. Saltou fora do caminho. O `Cuda parou atrs e Oaktree pulou na estrada, com um sorriso largo. - Misso completada com sucesso, general! - disse ele. - Nunca vi coisa parecida nem quando servi nos Fuzileiros! Priest bateu a palma da mo na dele, os braos de ambos esticados. - Mas agora precisamos nos afastar do campo de batalha e depressa. Star e Melanie tambm saltaram do carro. As bochechas de Melanie estavam rosadas, quase como se estivesse sexualmente excitada. pgina 387 - Meu Deus, ns conseguimos, ns conseguimos! - disse ela. Star abaixou-se e vomitou ao lado da estrada.
*** Charlie Marsh estava falando num telefone celular. - O piloto morreu, e os dois policiais da cidade tambm. A Rota 101 est um inferno, cheia de carros batidos, e tem de ser fechada ao trfego. Aqui em Felicitas temos acidentes de automveis, incndios, inundaes, um gasoduto arrebentado e um trem descarrilado. Voc vai ter que se ligar com o pessoal do gabinete do governador, sem dvida nenhuma. Judy fez um gesto pedindo o telefone. Ele balanou a cabea e disse no bocal: - Ponha uma pessoa da equipe de Judy na linha. - Aqui Judy, quem fala? - disse ela rapidamente. - Carl. Como que voc est, Judy? - Estou bem, mas furiosa comigo mesma por ter perdido os suspeitos. Divulgue uma ordem para deter dois veculos. Um um caminho pintado com drages vermelhos e amarelos, parece um desses caminhes que transportam e servem de base para brinquedos de parques de diverses. O outro um Plymouth marrom `Cuda, com vinte e cinco ou trinta anos de idade. Mande tambm outro helicptero para procurar esses veculos nas estradas que saem de Felicitas - ela deu uma olhada para o cu. - J est bastante escuro, mas no faz mal. Qualquer veculo com essas caractersticas deve ser parado e seus ocupantes interrogados. - E se alguma pessoa corresponder descrio de Granger...? - Leve para a e prenda-o at eu chegar. - O que que voc vai fazer? - Acho que vou requisitar uns carros e voltar ao escritrio. De alguma maneira... - ela interrompeu-se e lutou contra pgina 388 uma onda de exausto e desespero. - De alguma maneira, temos que impedir que isto acontea de novo. *** - Ainda no acabou - disse Priest. - Em questo de uma hora todos os policiais da Califrnia estaro procurando um caminho com a pintura "A Boca do Drago" - ele virou-se para Oaktree. - Quanto tempo levamos para tirar os painis? - Alguns minutos, com alguns bons martelos. - O caminho tem um estojo de ferramentas. Trabalhando depressa, os dois tiraram os painis do caminho e jogaram por cima de uma cerca de arame farpado em um campo. Com sorte, e na confuso que se seguiu ao terremoto, se passariam um ou dois dias at que algum prestasse ateno naquilo. - O que que voc vai dizer ao Bones? - perguntou Oaktree enquanto trabalhavam. - Eu penso em alguma coisa. Melanie ajudou, mas Star permaneceu de costas para eles, debruada na
mala do `Cuda. Estava chorando. Priest sabia que Star ia criar problema, mas no havia tempo para consol-la agora. Quando terminaram, recuaram um pouco para apreciar o resultado. Oaktree comentou, preocupado: - Agora essa droga est parecendo de novo um vibrador ssmico. - Eu sei - concordou Priest. - Mas no h nada que eu possa fazer. Est ficando escuro. No tenho que ir para muito longe e todos os policiais num raio de oitenta quilmetros vo ser recrutados para os trabalhos de salvamento. S espero ter sorte. Agora d o fora daqui. Leve Star. - Primeiro tenho que trocar um pneu. pgina 389 - No se d ao trabalho. De qualquer maneira vamos ter que nos livrar do `Cuda. Os homens do FBI o viram e vo procurar por ele. - Apontou na direo da encruzilhada. - Vi trs carros l atrs. Peque um para voc. Oaktree saiu correndo. Star encarou Priest com olhos acusadores. - No posso acreditar que tenhamos feito isso - disse ela. - Quantas pessoas ns matamos? - No tnhamos escolha - retrucou ele, irado. - Voc me disse que faria qualquer coisa para salvar a comunidade - no lembra? - Mas voc est to tranqilo. Toda aquela gente morta, um nmero muito maior de feridos, famlias que perderam suas casas - voc no se sente profundamente deprimido? - Claro que sim. - E ela - Star apontou para Melanie. - Olha s para a cara dela. Est toda animada. Meu Deus, eu acho que gosta disso tudo. - Star, ns conversamos depois, est bem? Ela sacudiu a cabea, como se estivesse atnita. - Passei vinte e cinco anos com voc e nunca cheguei realmente a conhec-lo. Oaktree voltou dirigindo o Toyota. - Nada de errado com ele, exceto a lataria amassada disse. Priest disse para Star: - V com Oaktree. Ela hesitou por um longo momento, depois entrou no carro. Oaktree arrancou e desapareceu depressa. - Entre no caminho - disse Priest, dirigindo-se agora a Melanie. Ele acomodou-se ao volante e recuou at a encruzilhada. A os dois saltaram e examinaram os dois carros remanescentes. Priest gostou da aparncia do Cadillac. A mala estava muito amassada, mas a frente nada sofrera, e as chaves estavam na ignio. - Siga-me no Cadillac - disse ele. Melanie entrou no carro e virou a chave. O motor pegou na mesma hora. Ela perguntou: - Para onde vamos? - Para o armazm Perpetua Diaries.
pgina 390 - Tudo bem. - Me passe o telefone. - Vai telefonar para quem? No h de ser para o FBI. - No, s a estao de rdio. Ela entregou o telefone. Quando j estavam prestes a sair, houve uma imensa exploso distncia. Priest olhou na direo de Felicitas e viu um jato de fogo subir alto no cu. Melanie disse: - Uau, o que aquilo? A labareda recuou e transformou-se numa luz brilhante no cu da noite. - Acho que o gasoduto acaba de pegar fogo - disse Priest. - Puxa vida, isso o que eu chamo de fogos de artifcio. *** Michael Quercus estava sentado num pequeno gramado do lado da estrada. Parecia chocado e impotente. Judy aproximou-se. - Levanta - disse ela. - Controle-se. Todo dia morre gente. - Eu sei - disse ele. - No so as mortes - embora tenham sido tantas. outra coisa. - O qu? - Voc viu quem estava no carro? - O `Cuda? Havia um cara preto dirigindo. - Mas no banco de trs? - No vi ningum! - Eu vi. Uma mulher. - Voc a reconheceu? - Claro que sim - respondeu ele. - Era minha mulher. *** pgina 391 Foram necessrios vinte minutos de rediscagem no celular de Melanie para Priest conseguir ligao com o programa de John Truth. Quando ele ouviu o sinal de chamada j estava nas cercanias de San Francisco. O programa ainda estava no ar. Priest disse que era do Martelo do den e a conexo foi imediata. - Voc fez uma coisa terrvel - disse Truth. Usou sua voz mais portentosa mas Priest podia garantir que por baixo do tom solene o homem estava exultante. O terremoto praticamente acontecera durante seu programa. Aquilo o tornaria a personalidade mais importante do rdio nos Estados Unidos. Sai da frente, Howard Stern! - Voc est enganado - retrucou Priest. - As pessoas que esto transformando a Califrnia num deserto improdutivo e envenenado que fizeram uma coisa terrvel. Eu s estou tentando det-las.
- Matando gente inocente? - A poluio mata gente inocente. Os automveis matam gente inocente. Ligue para o concessionrio Lexus que anuncia no seu programa e diga a ele que fez uma coisa terrvel vendendo cinco carros hoje. Seguiu-se um minuto de silncio. Priest sorriu. Truth no sabia ao certo como responder. No podia comear a discutir a tica dos seus patrocinadores. Ele mudou rapidamente de assunto. - Fao-lhe um apelo para que se entregue agora, imediatamente. - Tenho uma coisa para dizer a voc e ao povo da Califrnia contestou Priest. - O governador Robson deve anunciar a suspenso da construo de usinas eltricas em todo o estado - caso contrrio haver outro terremoto. - Voc faria aquilo de novo! - Truth parecia genuinamente chocado. - Pode apostar. E. .. Truth tentou interromper. - Como que voc afirma que. . . Priest no cedeu: ... o prximo terremoto ser pior do que este. - Onde ser? pgina 392 - Isso eu ainda no posso dizer. - Pode dizer quando? - Oh, claro. A menos que o governador mude de idia, - outro terremoto ter lugar dentro de dois dias - ele fez uma pausa, visando a um efeito dramtico, e finalizou - dentro de exatamente dois dias. Priest desligou. - E agora, senhor governador - disse em voz alta. - Diga ao povo para no entrar em pnico. pgina 393 pgina 394 PARTE 3 Quarenta e Oito Horas pgina 395 18 Judy e Michael voltaram para o centro de operaes de emergncia poucos minutos antes da meia-noite. Judy no dormia havia quarenta horas, mas no sentia sono. O horror do terremoto ainda a dominava. A todo instante ela via, com os olhos da mente, uma das imagens de pesadelo daqueles poucos segundos: o desastre do trem, as pessoas gritando, o helicptero pegando fogo ou o velho Chevy girando uma poro de vezes no ar. Estava assustadia e irrequieta quando entrou no clube dos oficiais.
Mas a revelao de Michael lhe dera nova esperana. Se bem que tivesse sido um choque saber que a mulher dele era um dos terroristas, fora tambm a melhor pista at agora. Se Judy pudesse encontrar Melanie, encontraria o Martelo do den. Entrou no antigo salo de bailes que servia agora como posto de comando. Stuart Cleever, o mandachuva de Washington que supervisionava a operao, estava de p no canto reservado chefia. Era caprichoso, muito organizado, imaculadamente vestido com um terno cinza, camisa branca e gravata listrada. A seu lado estava Brian Kincaid. O filho da me conseguiu insinuar-se ardilosamente de volta no caso. Quer impressionar o cara de Washington. Brian estava sua espera. - O que diabos saiu errado? - exclamou, assim que a viu. - Chegamos alguns segundos atrasados - disse ela, exausta. - Voc nos disse que tinha todos os stios sob vigilncia contraps ele. pgina 396 - Tnhamos os mais provveis. Mas eles sabiam disso, e fugiram da vigilncia escolhendo um stio secundrio. Representava um risco maior para eles - pela maior possibilidade de no dar certo - mas funcionou. Kincaid virou-se para Cleever com um encolher de ombros, como que dizendo: "Acredite nisso e voc acreditar em qualquer coisa." Cleever disse para Judy: - Assim que voc fizer um relatrio completo quero que v para casa e descanse um pouco. Brian assumir sua equipe. Eu sabia. Kincaid envenenou Cleever contra mim. Hora de partir para o tudo ou nada. - Eu gostaria de um descanso - disse Judy - mas ainda no. Acredito que teremos os terroristas presos em doze horas. Brian deixou escapar uma exclamao de surpresa. Cleever perguntou: - Como? - Acabo de descobrir uma nova pista. Sei quem orienta os terroristas no tocante aos terremotos. - Quem ? - O nome dela Melanie Quercus. Esposa de Michael Quercus, de quem est separada. Ele est nos ajudando aqui. Ela conseguiu a informao dos pontos da falha sob maior tenso com o marido - roubou do computador dele. E eu suspeito que tenha roubado tambm a lista de stios que tnhamos sob vigilncia. - O marido tambm devia ser considerado suspeito! exclamou Kincaid. Pode estar mancomunado com ela! Judy antecipara essa. - Tenho certeza de que no est - disse. - Mas por via das dvidas ele est passando por um teste com o detector de mentiras neste instante. - timo - aprovou Cleever. - Voc conseque encontrar a mulher dele? pgina 397
- Ela disse a Michael que estava vivendo em Del Norte. , Minha equipe j est pesquisando nossos bancos de dados para ver o que temos a respeito de comunidades naquela rea. Temos uma agncia com dois homens funcionando em carter permanente nas proximidades, em uma cidade chamada Eureka, e pedi a eles para entrarem em contato com a polcia local. Cleever balanou a cabea, aprovando, e avaliou Judy com um olhar. - O que que voc quer fazer? - Gostaria de ir para l agora. Durmo no carro. Quando chegar, o pessoal j deve ter levantado os endereos de todas as comunidades da rea. Gostaria de vasculhar tudo ao raiar do dia. - Voc no tem indcios suficientes para conseguir mandados de busca ponderou Brian. Ele tinha razo. O mero fato de Melanie ter dito que estava morando em uma comunidade situada em Del Norte no constitua causa provvel. Mas Judy conhecia a lei melhor que Brian. - Depois de dois terremotos, as circunstncias configuram um caso de fora maior, no acha? Aquilo significava que havia a desculpa legal da existncia de vidas em perigo. Brian ficou perplexo, mas Cleever entendeu a referncia feita por Judy. - Nossa assessoria legal pode resolver este problema, para isto que esto aqui. Cleever fez uma pausa e continuou: - Gosto deste plano - disse. - Acho que devemos execut-lo. Brian, tem algum outro comentrio? Kincaid pareceu amuado. - melhor que ela esteja certa, s isso. *** Judy seguiu para o norte em um carro dirigido por uma agente que ela no conhecia, uma entre os diversos agentes recrutados nos escritrios do FBI de Sacramento e Los Angeles a fim de ajudar na crise. pgina 398 Michael sentou-se ao lado de Judy, no banco de trs. Ele suplicara para ir. Estava morto de preocupao com Dusty. Se Melanie fazia parte de um grupo de terroristas que causava terremotos, a que tipo de perigo seu filho poderia estar sujeito? Judy conseguira a autorizao de Cleever alegando que algum tinha que tomar conta do menino depois que Melanie fosse presa. Logo depois de atravessarem a Golden Gate, Judy recebeu um telefonema de Carl Theobald. Michael tinha informado qual das quinhentas e tantas companhias de telefone celular existentes no pas Melanie usava e Carl conseguira cpias dos registros das suas ligaes. A companhia telefnica conseguira identificar a rea de onde cada ligao se originara por causa da variao das tarifas. Judy esperava que a maioria tivesse partido de Del Norte, mas ficou
desapontada. - Na verdade no h nenhum padro lgico - disse Carl, fatigado. - A moa ligou da rea de Owens Valley, de San Francisco, de Felicitas e de vrios lugares intermedirios; mas tudo isso nos diz apenas que ela estava viajando por todo o estado, o que j sabamos. No h telefonemas originados na parte do estado para onde voc est se dirigindo. - O que sugere a existncia de um telefone de linha fixa l. - Ou que ela cautelosa. - Obrigada, Carl. Valeu a tentativa. Agora v se dorme um pouco. - Voc est querendo me dizer que isto no um sonho? Droga. Judy riu e desligou. A agente que dirigia o carro sintonizou o rdio numa estao de msica melodiosa, e Nat King Cole cantou "Let There be Love" enquanto atravessavam velozmente a noite. Judy e Michael puderam conversar sem ser ouvidos. - O terrvel que no estou surpreso - disse ele, aps um perodo de silenciosa meditao. - Acho que eu mais ou menos sempre soube que Melanie era maluca. Nunca deveria ter deixado que o levasse - mas ela a me dele, sabe? Judy apertou a mo dele, no escuro do carro. pgina 399 - Voc fez o melhor que pde, acho eu. - , fiz. Ela foi cedendo ao sono, mas continuou apertando a mo de Michael. *** Todos se reuniram s cinco horas da manh no escritrio de Eureka, do FBI. Alm dos agentes residentes locais, havia representantes do departamento de polcia da cidade e do escritrio do xerife do condado. O FBI gostava sempre de envolver todos os elementos ligados atividade policial quando se tratava de fazer uma incurso daquele tipo, porque era um modo de manter um bom relacionamento com gente cuja ajuda era necessria freqentemente. Havia quatro comunidades residenciais no condado de Del Norte listadas no Catlogo das Comunidades: Um Guia para a da Cooperativa. Informaes colhidas nos bancos de dados do FBI revelaram uma quinta e o conhecimento de campo do pessoal baseado na rea acrescentara mais duas. Um dos agentes locais do FBI lembrou que a comunidade conhecida como Aldeia Fnix ficava apenas a doze quilmetros do local proposto para a construo de uma usina nuclear. O ritmo da pulsao de Judy acelerou ao ouvir isso e ela liderou o grupo que ia incursionar em Fnix. Quando se aproximou do lugar, em uma radiopatrulha do xerife do condado, testa de um comboio de quatro viaturas, seu cansao desapareceu. Sentiu-se alerta e enrgica de novo. No conseguira impedir o terremoto de Felicitas, mas podia garantir que no haveria um outro.
pgina 400 A entrada de Fnix era marcada por um cartaz onde fora pintada uma ave erguendo-se das chamas. No havia porto ou guardas. As viaturas entraram ruidosamente por uma rua bem cuidada, fizeram um balo direita e pararam na pista circular. Os agentes saltaram dos carros e espalharam-se por entre as casas. Cada um tinha uma cpia do retrato de Melanie e Dusty que Michael tinha na sua escrivaninha. Ela est aqui, em algum lugar, provavelmente na cama com Ricky Granger, dormindo depois da canseira das ltimas horas. Tomara que esteja tendo pesadelo. A aldeia era a imagem da paz iluminada pelas primeiras luzes do dia. Havia diversas construes com a forma de celeiros e tambm um marco geodsico. Os agentes vigiavam as portas de trs e da frente antes de baterem. Perto do estacionamento, Judy encontrou um mapa da aldeia pintado num painel de madeira, onde apareciam as casas e os outros prdios. Havia uma loja, um centro de massagens, uma agncia de correio e uma oficina de automveis. Assim como as quinze casas, o mapa mostrava pastos, pomares, playgrounds e um campo de esportes. Fazia frio naquela hora. Afinal, estavam bem ao norte, e Judy tremia, arrependida por no ter vestido uma roupa mais quente. Enquanto Michael andava de um lado para outro, extremamente tenso, ela esperava pelo grito de triunfo que lhe diria que um dos agentes identificara Melanie. Que choque, saber que sua mulher havia se tornado uma terrorista, o tipo de pessoa que um policial mataria a tiros para a alegria de todo mundo. No de admirar que ele esteja tenso. um milagre que no esteja batendo com a cabea na parede. Ao lado do mapa ficava um quadro de avisos. Judy leu uma nota sobre uma quadrilha que estava sendo organizada com a finalidade de levantar fundos para uma obra de caridade. Aquela gente tinha um ar de inocncia muito plausvel. Os agentes entraram em todas as edificaes e examinaram cada aposento, movendo-se rapidamente de casa em casa. Aps uns poucos minutos um homem saiu de uma das casas maiores e encaminhou-se para o local onde as quatro viaturas haviam estacionado. Tinha cerca de cinqenta anos, cabelo e barba despenteados, usava sandlias de couro feitas em casa e tinha um cobertor de l crua nos ombros. Dirigiu-se a Michael: pgina 401 - voc o encarregado? - Sou eu a encarregada - disse Judy. Ele virou-se para ela. - Poderia ento fazer o favor de me dizer o que est acontecendo? - Com todo o prazer - disse ela, bruscamente. - Estamos procurando esta mulher - Judy estendeu a mo com a foto. - J vi isso - disse ele sem pegar a fotografia. - Ela no um de ns. Judy teve a deprimente sensao de que ele estava falando a verdade. - Esta uma comunidade religiosa - acrescentou ele, com crescente
indignao. - Somos cidados obedientes s leis. No usamos drogas. Pagamos os nossos impostos e obedecemos s posturas locais. No merecemos ser tratados como criminosos. - Ns temos que nos assegurar de que esta mulher no est escondida aqui. - Quem ela, e por que voc pensa que ela pode estar aqui? Ou s porque vocs acham que as pessoas que vivem em comunidades sempre so suspeitas? - No, no imaginamos esse tipo de coisa - respondeu Judy. Sentiu-se tentada a dar uma resposta spera, mas lembrou-se de que tinha sido ela que o acordara s seis da manh. - Acontece que esta mulher integra um grupo terrorista. Ela disse ao ex-marido que estava morando em uma comunidade no condado de Del Norte. Lamentamos ter que acordar todas as pessoas em cada comunidade do condado, mas espero que possam entender o quanto isto importante. Se no fosse, no iramos incomod-los, e, para ser sincera, no nos disporamos a ter tanto trabalho. Ele lhe dirigiu um olhar penetrante e balanou a cabea, sua atitude se modificando. - Tudo bem - falou. - Acredito em voc. H alguma coisa que eu possa fazer para facilitar seu trabalho? Ela pensou por um momento. - Todas as edificaes da sua comunidade aparecem neste mapa? pgina 402 - No. H trs casas novas no lado oeste logo depois do pomar. Mas por favor, tentem no fazer barulho. Tem uma criana recm- nascida numa delas. - OK. Sally Dobro, uma agente de meia-idade, aproximou-se. - Acho que examinamos tudo - informou. - No h sinal , de nenhum dos nossos suspeitos. Judy disse: - H trs casas a oeste do pomar - voc esteve l? - No - respondeu Sally. - Sinto muito. Mas vou agora mesmo. - V sem fazer barulho - disse Judy. - Tem um beb pequeno numa delas. - Deixa comigo. Sally afastou-se e o homem do cobertor balanou a cabea, em sinal de aprovao. O celular de Judy tocou. Ela atendeu e ouviu a voz do agente Frederick Tan. - Acabamos de checar todas as edificaes da comunidade Magic Hill. Nada. - Obrigada, Freddie. Em mais dez minutos os outros chefes de grupos ligaram. Todos tinham a mesma mensagem. Melanie Quercus no fora encontrada. Judy ficou desesperada. - Droga - exclamou -, estraguei tudo. Michael ficou igualmente desanimado. E disse, preocupado:
- Voc acha possvel que tenhamos pulado alguma comunidade? - Ou isso, ou ela mentiu a respeito do local onde estava. Ele ficou pensativo. - Relembrando a conversa que tivemos - disse - vejo agora que perguntei a ela onde estava morando, mas foi ele quem respondeu. Judy fez que sim. pgina 403 - Acho que ele mentiu. inteligente o bastante para no dar uma localizao certa numa hora dessas. - Acabo de lembrar o nome dele - acrescentou Michael. - Ela o chamou de Priest. *** 19 No caf da manh de sbado, Dale e Poem se levantaram na cozinha diante de todo o mundo e pediram silncio. - Temos uma declarao a fazer - disse Poem. Priest achou que ela devia estar grvida novamente e preparou-se para gritar e bater palmas e fazer o pequeno discurso de congratulaes que todos esperavam dele. Sentia-se cheio de entusiasmo. Embora ainda no tivesse salvo a comunidade, estava perto. Seu oponente podia ainda no ter sido considerado oficialmente nocauteado, mas estava deitado na lona, lutando para permanecer em combate. Poem hesitou e olhou para Dale. O rosto dele tinha uma expresso solene. - Estamos deixando a comunidade hoje - disse ele. Seguiu-se um silncio de espanto. Priest ficou atnito. As pessoas no iam embora dali, a menos que ele quisesse que fossem. Aquela gente estava sob o seu encanto. E Dale era um especialista em vinicultura, o homem chave na fabricao dos vinhos. No podiam dar-se ao luxo de perd-lo. E logo hoje, entre todos os dias! Se Dale tivesse ouvido o noticirio - como Priest, uma hora atrs, sentado em um carro estacionado, ouvira no rdio - saberia que a Califrnia estava em pnico. Os aeroportos invadidos por multides e as estradas tambm com enormes engarrafamentos causados por gente que fugia das cidades e de todas as localidades prximas da falha de Santo Andr. O governador Robson tinha convocado a Guarda Nacional. O vice-presidente embarcara em um avio e estava vindo inspecionar os danos sofridos por Felicitas. Um nmero cada vez maior de pessoas - senadores e deputados estaduais, prefeitos, lderes comunitrios e jornalistas - instavam com o governador para que cedesse exigncia feita pelo Martelo do den. Mas Dale no sabia de nada disso. pgina 405
Priest no foi o nico a ficar chocado com a notcia. Apple caiu no choro e com isso Poem comeou tambm a chorar. Melanie foi a primeira a falar. Ela disse: - Mas Dale - por qu? - Voc sabe por qu - disse ele. - Este vale vai ser inundado. - Mas para onde voc ir? - Rutherford. Fica no vale do rio Napa. - Tem emprego certo? Dale fez que sim. - Em uma vincola. No era surpresa que Dale tivesse conseguido arranjar um emprego, pensou Priest. Sua capacidade tcnica no tinha preo. Provavelmente ele iria ganhar muito dinheiro. A surpresa era ele querer voltar para o mundo careta. Diversas mulheres estavam chorando agora. Song perguntou: - Vocs no podiam aguardar e confiar, como o resto de ns? Poem respondeu em lgrimas. - Ns temos trs filhos. No temos o direito de arriscar suas vidas. No podemos permanecer aqui, esperando por um milagre, at as guas comearem a engolir nossas casas. Priest falou pela primeira vez. - Este vale no vai ser inundado. - Voc no pode afirmar isso - disse Dale. O salo ficou em silncio. No era comum que algum ousasse contradizer Priest to diretamente. - Este vale no vai ser inundado - repetiu Priest. Dale disse: pgina 406 - Ns todos sabemos que alguma coisa estava acontecendo, Priest. Nas ltimas seis semanas voc esteve mais fora de casa do que aqui. Ontem quatro dos nossos ficaram fora at a meia-noite e hoje de manh havia um Cadillac batido no crculo do estacionamento. Mas seja o que for, voc no compartilhou conosco. E eu no posso arriscar o futuro dos meus filhos com base na sua f. Shirley pensa do mesmo modo que eu. O nome verdadeiro de Poem era Shirley, lembrou Priest. O fato de Dale t-lo usado significava que j estava se distanciando da comunidade. - Vou dizer a vocs o que salvar este vale - afirmou Priest. Por que no falar com eles sobre o terremoto - por que no? Eles ficariam satisfeitos - orgulhosos! - O poder da orao. A orao nos salvar. - Eu vou orar por voc - afirmou Dale. - E Shirley tambm. Vamos orar por vocs todos. Mas no vamos ficar. Poem enxugou as lgrimas na manga. - Acho que s isso. Lamentamos muito. Arrumamos nossas coisas ontem noite, no que tenhamos muito. Espero que Slow nos leve estao rodoviria de Silver City. Priest levantou-se e dirigiu-se a eles. Ps um brao em torno dos ombros de Dale e o outro nos de Poem. Abraando-os, disse num tom de
voz grave, persuasivo. - Eu compreendo a sua dor. Vamos todos para o templo meditar juntos. Depois, o que quer que decidam ser a coisa certa. Dale recuou, livrando-se do abrao de Priest. - No - disse. - Esse tempo j passou. Priest ficou chocado. Estava usando todo o seu poder de persuaso e no adiantava. A fria aumentou no seu ntimo, perigosamente incontrolvel. Teve mpetos de, aos gritos, lanar na cara de Dale sua infidelidade e ingratido. Teria matado os dois se pudesse. Mas sabia que demonstrar a raiva que o dominava seria um erro. Tinha de manter uma fachada de calma e autocontrole. No conseguiu, contudo, reunir foras para se despedir deles afavelmente. Dividido entre o dio e a necessidade de conter-se, retirou-se silenciosamente, caminhando com tanta dignidade quanto lhe foi possvel. Retornou sua cabana. Mais dois dias e tudo teria se resolvido. Um dia! pagina 407 Priest sentou-se na cama e acendeu um cigarro. Spirit continuou deitado no cho, observando-o melancolicamente. Os dois permaneceram em silncio e quietos, pensativos. Melanie viria atrs dele em um ou dois minutos. Mas foi Star quem entrou. No falava com ele desde quando tinha sado de Felicitas naquela noite, com Oaktree dirigindo a minivan Toyota. Priest sabia que estava furiosa e angustiada por causa do terremoto, mas ainda no tivera tempo para acalm-la. - Vou procurar a polcia - disse ela. Priest ficou atnito. Star odiava policiais de forma passional. Ela entrar numa delegacia era como Billy Graham entrar em um clube gay. - Voc perdeu a cabea. - Ns matamos gente ontem. Ouvi no rdio na viagem de volta. Pelo menos doze pessoas morreram e mais de cem foram hospitalizadas. Bebs e crianas foram feridos. Pessoas perderam suas casas - gente pobre, no apenas os ricos. E fomos ns que fizemos isso a eles. Tudo est desabando - justo quando estou quase vencendo! Ele estendeu o brao, querendo segurar a mo dela. - Voc acha que eu queria matar gente? Ela recuou, recusando-se a deixar que ele pegasse sua mo. - Voc no parecia nem um pouco triste na hora do terremoto. Tenho que manter tudo isto de p por mais um pouco. preciso. Ele obrigou-se a fazer cara de arrependido. - Eu fiquei satisfeito porque o vibrador funcionou, sim. Fiquei contente porque fomos capazes de cumprir o que tnhamos ameaado. No tencionava, no entanto, machucar ningum. Sabia que havia um risco e decidi correr esse risco, porque o que estava em jogo era muito importante. Pensei que voc tivesse tomado a mesma deciso. - Tomei, e foi uma deciso ruim, uma deciso perversa. Os olhos dela encheram- se de lgrimas. - Pelo amor de Cristo, voc no consegue enxergar o que nos aconteceu? Ns ramos as crianas que acreditavam em
paz e amor - e agora estamos matando gente! Voc fez como o Lindon Johnson. Ele bombardeou os vietnamitas e justificou. Ns dissemos que ele era um merda e ele era mesmo. Dediquei toda a minha vida a no ser como ele! pgina 408 - Ento voc acha que cometeu um erro - disse Priest. - Posso compreender isso. O que duro para mim descobrir que voc quer se redimir punindo a mim e a toda a comunidade. Voc quer nos entregar polcia. Ela se espantou. - Eu no tinha visto desse modo - disse ela. - No quero punir ningum. Ele a tinha agora sob seu controle. - Ento o que voc quer realmente? - e, sem lhe dar tempo para responder: - Acho que o que precisa ter certeza de que tudo acabou. - Acho que sim. Ele adiantou-se e desta vez ela permitiu que lhe segurasse as mos. - Terminou - disse, suavemente. - No sei, no - suspirou ela. - No haver mais terremotos. O governador ceder. Voc vai ver. *** Quando voltava velozmente para San Francisco, Judy foi desviada para Sacramento para comparecer a uma reunio no gabinete do governador. Dormiu mais trs ou quatro horas no carro e quando chegou no Capitlio sentia-se pronta para morder o mundo. Stuart Cleever e Charlie Marsh tinham vindo de avio de San Francisco. O chefe do escritrio de Sacramento juntou-se a eles. Encontraram-se ao meio-dia na sala de reunies da Ferradura, a sute do governador. Al Honeymoon presidiu o encontro. pgina 409 - Houve um engarrafamento na I-80 de vinte quilmetros, de gente querendo fugir da falha de Santo Andr. Cleever disse: - O presidente ligou para o diretor do FBI e indagou dele como estava a ordem pblica - ele olhou para Judy como se a culpa fosse dela. - Ele tambm telefonou para o governador Robson disse Honeymoon. - At o presente momento no temos um problema srio de manuteno da ordem pblica - disse Cleever. - H relatos de saques em trs bairros de San Francisco e um em Oakland, mas coisa espordica. O governador convocou a Guarda Nacional e a deixou de prontido nos quartis, embora ainda no tenha sido preciso. Mas se houver outro terremoto... A simples idia fez com que Judy se sentisse mal. - No poder haver outro terremoto - disse. Todos olharam para ela. Honeymoon fez uma expresso sarcstica. - Tem alguma sugesto?
Judy tinha. No era grande coisa, mas eles estavam desesperados. - S h uma coisa em que posso pensar - disse. - Montar uma armadilha para ele. - Como? - Dizer que o governador Robson quer negociar pessoalmente com ele. - No acredito que ele caia nessa - disse Cleever. - No sei, no. - Judy franziu a testa, pensativa. - Ele inteligente e qualquer pessoa inteligente suspeitaria de uma armadilha. Mas tambm psicopata, e adora controlar os outros, chamar a ateno para si mesmo e suas aes, manipulando as pessoas e as circunstncias. A idia de negociar pessoalmente com o governador da Califrnia vai ser uma tentao poderosa para ele. - Acho que sou a nica pessoa aqui que j se encontrou com ele - disse Honeymoon. pgina 410 - Exatamente - concordou Judy. - Eu o vi e falei com ele pelo telefone, mas o senhor passou diversos minutos pessoalmente com ele. Qual foi a sua impresso? - Voc o definiu bem: um psicopata inteligente. Acredito que ficou furioso comigo por no ter me impressionado mais com ele. Como se eu devesse ter sido, no sei, mais respeitoso. Judy conteve um sorriso. Honeymoon no se mostrava respeitoso com muitas pessoas. Honeymoon prosseguiu: - Ele compreendeu as dificuldades polticas do que ele estava pedindo. Eu disse que o governador no podia ceder chantagem. Ele pensara nisso, e tinha preparado uma resposta. - Qual? - Ele disse que podamos negar o que realmente acontecera. Anunciar a suspenso da construo de novas usinas e dizer que no tinha nada a ver com a ameaa de terremotos. - H esta possibilidade? - quis saber Judy. - Sim. Eu no recomendaria, mas se o governador me perguntar o que acho, terei de dizer que talvez d certo. S que a pergunta acadmica. Conheo Mike Robson e ele no far isso. - Mas podia fazer de conta - sugeriu Judy. - Como assim? - Podamos dizer a Granger que o governador est disposto a anunciar a suspenso da construo da usina mas apenas dentro das condies corretas, j que ele tem de proteger seu futuro poltico. Que ele quer falar pessoalmente com Granger para tratar dessas condies. Stuart Cleever interveio: - A Corte Suprema decidiu que os elementos pertencentes s foras policiais podem usar truques, estratagemas e ardis. A nica coisa que no nos permitem fazer ameaar de prender os filhos do suspeito. E se prometermos que no vamos iniciar um processo contra ele, teremos que cumprir a promessa. Mas certamente que podemos fazer o que Judy falou sem violar nenhuma lei.
pgina 411 - OK - concordou Honeymoon. - No sei se isso vai funcionar, mas acho que temos de tentar. Vamos em frente. *** Priest e Melanie foram para Sacramento no Cadillac amassado. Era uma tarde ensolarada de sbado e a cidade estava atulhada de gente. Ao ligar o rdio do carro logo depois do meio-dia, Priest tinha ouvido a voz de John Truth, embora no fosse hora do seu programa. - Ateno para uma mensagem especial para Peter Shoebury da Eisenhower Junior High, dissera Truth. Shoebury era o homem cuja identidade Priest usara na entrevista coletiva do FBI e Eisenhower era a escola imaginria onde Flower estudava. Priest viu logo que a mensagem era para ele. - Pede-se o favor a Peter Shoebury que lique para o seguinte nmero - dissera Truth. - Eles querem negociar - dissera ele a Melanie. - Terminou - ns vencemos! Enquanto Melanie dirigia pelo centro da cidade, entre centenas de carros e milhares de pessoas, Priest fez a ligao usando o celular dela. Mesmo que o FBI estivesse rastreando a chamada, ele imaginava que no seriam capazes de saber de que carro estava sendo feita. Foi com o corao na boca que ele ouviu o telefone tocar. Ganhei a loteria e vim apanhar o dinheiro. Quem atendeu foi uma mulher, com jeito precavido. Talvez j tivesse atendido a uma poro de trotes em resposta ao aviso irradiado por John Truth. - Aqui Peter Shoebury da Eisenhower Junior High. A resposta foi instantnea. - Vou transferi-lo para Al Honeymoon, o secretrio do gabinete do governador. Sim! - S preciso antes verificar sua identidade. pgina 412 um truque. - E como voc prope fazer isso? - Seria possvel me dar o nome da estudante reprter que estava em sua companhia uma semana atrs? Priest se lembrou de Flower dizendo "Nunca vou perdo-lo por ter me chamado de Florence." Cautelosamente, ele disse: - Era Florence. - Transferindo sua ligao agora. No era truque - s uma precauo. Priest examinou as ruas ansiosamente, atento a um carro da polcia ou a um bando de homens do FBI de olho no seu carro, mas nada viu exceto pessoas comuns, fazendo compras, ou turistas. Um momento depois ouviu a
voz grave de Honeymoon: - Sr. Granger? Priest foi direto ao ponto: - Est disposto a ser sensato? - Estamos prontos para conversar. - O que isto significa? - O governador quer v-lo hoje, com o objetivo de negociar uma soluo para a crise. - O governador est disposto a anunciar que sero suspensas as obras das usinas? Honeymoon hesitou. - Sim - respondeu, relutante. - Mas sob certas condies. - De que tipo? - Quando conversamos em meu carro e eu lhe disse que o governador no podia ceder chantagem, voc falou em marqueteiros polticos. - Sim. - Voc um indivduo sofisticado, compreende que o futuro poltico do governador est correndo perigo. O anncio dessa suspenso ter que ser feito com muita delicadeza. Honeymoon mudara de tom, reparou Priest, satisfeito. A arrogncia desaparecera. Ele tinha desenvolvido respeito pelo seu oponente e isso era gratificante. pgina 413 - Em outras palavras - disse Priest -, o governador tem que tirar o dele da reta e quer ter certeza de que no vou prejudic-lo. - Voc pode considerar desse modo. - Onde nos encontramos? - No gabinete do governador, aqui no Capitlio. Voc est completamente maluco. Honeymoon prosseguiu. - Sem polcia, sem FBI. Voc teria garantida sua liberdade de sair daqui sem nenhum obstculo, independente do resultado do encontro. Claro, claro. Priest disse: - Voc acredita em fadas? - O qu? - Voc sabe, aquelas criaturas pequenas que voam e sabem fazer mgicas? Acredita que existam? - No, acho que no. - Nem eu. Por isso no vou cair na sua armadilha. - Eu lhe dou minha palavra. . . - Esquece. V se esquece, t bem? Houve silncio do outro lado da linha. Melanie virou uma esquina e eles passaram pela grande fachada clssica do Capitlio. Honeymoon est l dentro, em alguma parte, cercado por homens do FBI. Olhando para as colunas brancas e para a cpula, Priest disse: - Vou lhe dizer onde nos encontraremos e melhor que voc tome nota. Pronto?
- No se preocupe. Estou tomando nota. - Arrume uma mesinha redonda e duas cadeiras de jardim em frente ao edifcio do Capitlio, em cima do gramado, bem no meio. Ser como um cenrio para fotografias. Faa com que o governador esteja sentado l s trs horas. - Assim em campo aberto? - Ei, se eu fosse querer mat-lo, podia arranjar uma maneira mais fcil. - Acho que sim... - O governador deve levar no bolso uma carta assinada garantindo que no ir me processar. pgina 414 - No posso concordar com tudo isso... - Fale com seu chefe. Ele concordar. - Falarei com ele. - Providencie a presena de um fotgrafo, com uma dessas cmeras instantneas. Quero uma foto dele me entregando a carta, como prova. Anotou isto? - OK. - melhor jogar limpo. Nada de truques. Meu vibrador ssmico j est em posio, pronto para desencadear outro terremoto. O alvo agora ser uma cidade grande. No estou dizendo qual, mas estou falando em milhares de mortes. - Eu compreendo. - Se o governador no aparecer s trs horas... bum. Priest desligou o telefone. - Uau - exclamou Melanie. - Um encontro com o governador. Voc acha que uma armadilha? Priest franziu a testa, preocupado. - Pode ser - disse. - Eu no sei. Simplesmente no sei. *** Judy no foi capaz de encontrar um nico erro no esquema. Charlie Marsh trabalhou nele junto com o pessoal de Sacramento do FBI. Havia pelo menos uns trinta agentes no campo de viso da mesinha branca de jardim com um guarda-sol no gramado, mas ela no via um s deles. Alguns se encontravam atrs das janelas das salas prximas, outros encolhidos em carros ou vans na rua e no estacionamento, alguns, inclusive, escondidos na cpula sustentada por pilastras do Capitlio. Todos fortemente armados. Judy representava o papel de fotgrafa, com cmaras e lentes penduradas no pescoo. Pusera a arma num estojo de mquina fotogrfica pendurado no ombro. Enquanto esperava que o governador aparecesse, olhava para a mesa e as cadeiras atravs do visor, fingindo procurar o melhor enquadramento. pgina 415
Na esperana de que Granger no a reconhecesse, pusera a peruca loura que mantinha constantemente no carro. Costumava us-la muito em misses de vigilncia, especialmente quando passava vrios dias seguindo os mesmos alvos, para reduzir o risco de ser notada e reconhecida. S que tinha de agentar um bocado de brincadeiras quando a usava. Ei, Maddox, mande aquela loura bonitinha aqui no meu carro, mas voc pode ficar onde est. Granger estava observando, ela sabia. Ningum o localizara, mas ele telefonara, uma hora atrs, para protestar contra as barreiras que estavam sendo usadas para cercar o quarteiro. Queria a rua liberada e os turistas passeando no prdio, exatamente como seria o normal. As barreiras foram tiradas. No havia outra grade, de modo que os turistas circulavam livremente pelos gramados e os grupos de excursionistas seguiam as rotas normais dentro do Capitlio, seus jardins e os elegantes prdios do governo nas ruas adjacentes. Subrepticiamente, Judy estudava todo mundo atravs das lentes. Concentrava-se em detalhes que no podiam ser facilmente disfarados. Examinava com ateno cada homem alto e magro de meia-idade, independente do cabelo, rosto ou roupa. Faltava um minuto para as trs horas e ela ainda no tinha visto Ricky Granger. Michael Quercus, que tinha estado com Granger cara a cara, tambm estava observando. Ficara na van de janelas escuras parada na esquina. Tinha que ficar de fora, para que Granger no o reconhecesse. Judy falou num pequeno microfone que levava sob a blusa preso na ala do suti. - Meu palpite que Granger s vai aparecer depois que o governador chegar. Um amplificador minsculo atrs da sua orelha estalou e ela ouviu a resposta de Charlie Marsh. - Acabamos de dizer a mesma coisa aqui. Gostaria de ter feito isso sem expor o governador. Tinham falado em usar um dubl de corpo, mas fora o prprio governador Robson que no autorizara, dizendo que no ia permitir que algum se arriscasse em seu lugar. pgina 416 - Mas se no foi possvel... - disse Judy. ... ento faremos o que for possvel - completou Charlie. Um momento depois o governador saiu da grande entrada principal do prdio. Judy ficou surpresa de ver como sua estatura era um pouco abaixo da mdia. Na televiso parecia um homem alto. Tambm parecia mais corpulento que o usual, por conta do colete prova de balas que pusera sob o palet do terno. Ele atravessou o gramado com um passo relaxado e confiante e sentou-se mesinha, sob o guarda- sol. Judy tirou alguns retratos. Manteve o estojo da cmera pendurado no ombro para que pudesse pegar a arma rapidamente. Depois, com o canto do olho, ela viu movimento.
Um velho Chevrolet Impala vinha se aproximando lentamente. Tinha duas cores, j desbotadas, azul-celeste e creme e os pra-lamas enferrujados, no recorte correspondente s rodas. O rosto do motorista estava na sombra. Ela deu uma espiada rpida em volta. No se via um nico agente, mas todo mundo estaria observando o carro. Ele encostou no meio-fio oposto ao governador. O corao de Judy bateu mais rpido. - Acho que ele - disse o governador, numa voz espantosamente calma. A porta do carro abriu-se. A figura que saltou usava cala-jeans azul, camisa xadrez aberta por cima de uma camiseta branca e sandlias. Quando endireitou o corpo, Judy viu que tinha mais de um metro e oitenta, era magro e tinha cabelo comprido e escuro. Ele usava culos escuros de armao grande e um leno colorido preso na cabea. Judy o encarou fixamente, desejando que pudesse ver seus olhos. O microamplificador no seu ouvido estalou. - Judy, ele? - No sei! Mas pode ser. pgina 417 Ele olhou ao redor. O gramado era grande e a mesa tinha sido colocada a uns vinte ou trinta metros do meio-fio. Encaminhou-se para o governador. Judy podia sentir que todos os olhos estavam em cima dela, esperando pelo seu sinal. Ela se deslocou, colocando-se entre ele e o governador. O homem notou seu movimento, hesitou e continuou andando. Charlie falou de novo. - Como ? - No sei! - murmurou Judy, tentando no mover os lbios. - Preciso de mais uns segundos! - No demore tanto. - No penso que seja ele - disse ela. Todas as fotos dele mostravam um nariz aquilino como a lmina de uma faca. Este homem tem um nariz largo, achatado. - Tem certeza? - No ele. O homem estava a menos de um brao de Judy. Desviou-se dela e aproximou-se do governador. Sem se deter, enfiou a mo dentro da camisa. - Ele vai sacar alguma coisa! - exclamou Charlie, no microamplificador de Judy. Ela caiu sobre um joelho e pegou nervosamente a pistola no estojo onde a escondera. O homem comeou a puxar qualquer coisa de dentro da camisa. Judy viu um canudo escuro, lembrando o cano de uma arma e gritou: -Imvel! FBI! Os agentes irromperam dos carros e vans e vieram correndo das dependncias da sede do governo. O homem ficou imvel. Judy apontou a arma para sua cabea e ordenou: - Puxe isso a bem
devagar e passe para mim. - OK, OK, no atire em mim! - o homem acabou de tirar a mo. Era uma revista enrolada e presa com um elstico. Judy pegou o canudo e, sempre apontando a arma para o homem, examinou a revista. Era o Time daquela semana. No havia nada dentro. pgina 418 O homem explicou, assustado: - Um sujeito me deu cem dlares para entregar isto ao governador! Agentes cercaram o governador Mike Robson e o levaram de volta para o Capitlio. Judy olhou em torno, examinando os jardins do palcio do governo e as ruas prximas. Granger est vendo isto, tem que estar. Mas onde diabos ele se encontra? As pessoas tinham parado para olhar, curiosas, os agentes correndo. Na entrada principal, um grupo de turistas estava descendo os degraus da escada, liderado por um guia. Enquanto Judy olhava, um homem de camisa havaiana afastou-se do grupo e saiu andando. Alguma coisa nele atraiu a ateno de Judy. Ela se deteve, preocupada. Era um homem alto. No era possvel dizer se era magro ou gordo porque a camisa era larga e solta nos quadris. O cabelo estava escondido por um gorro com viseira. Foi atrs dele, andando depressa. O homem no parecia estar apressado. Judy no deu o sinal de alarme. Se pusesse tudo quanto era agente caando um turista inocente podia permitir que o verdadeiro Granger fugisse. Mas seu instinto a fez acelerar o passo. Tinha que ver a cara daquele homem. Ele contornou uma curva e Judy saiu correndo. Ouviu a voz de Charlie no microamplificador. - Judy? O que est acontecendo? - S checando um sujeito - respondeu ela, um pouco ofegante. Provavelmente um turista, mas mande dois caras me seguirem para o caso de eu precisar de reforo. - Falou! Ela viu a camisa havaiana passar por entre duas altas portas de madeira e desaparecer dentro do Capitlio. Pareceu-lhe que ele tinha aumentado o ritmo da passada. Olhou para trs Charlie estava falando com dois rapazes e apontando para ela. Michael saltou de uma van estacionada na ruazinha de trs e correu na direo dela. Judy apontou para dentro do prdio. - Voc viu aquele sujeito? - gritou. - Vi sim, era ele! pgina 419 - Voc fica aqui! - Judy no queria que um civil como Michael se envolvesse. - Fique fora disso! - ela entrou correndo no prdio do Capitlio. Judy viu-se num saguo grande com um piso de mosaico requintado. Um
lugar calmo e silencioso. Mais adiante havia uma escadaria larga e acarpetada com uma balaustrada de madeira entalhada. Ele teria ido para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo? Ela escolheu a esquerda. O corredor fazia um ngulo acentuado para a direita. Passou correndo por uma srie de elevadores e viu-se na rotunda, um espao circular com uma escultura no meio, que se estendia dois andares para cima, at a cpula ricamente decorada. Aqui tinha que tomar outra deciso - ele teria ido reto em frente, virado direita para a Ferradura ou subido a escada sua esquerda? Judy olhou em torno. Um grupo de turistas olhava apavorado para sua arma. Levantou os olhos para a galeria circular no segundo piso e vislumbrou uma camisa vivamente colorida. Subiu voando uma escada. L em cima deu uma olhada na galeria. No lado mais distante havia uma porta aberta dando para um mundo diferente, um corredor moderno, com luz fluorescente e piso revestido de plstico. A camisa havaiana estava no corredor. Ele agora corria. Judy foi atrs. Enquanto corria, falou ao microfone preso na ala do suti, arquejando. - ele, Charlie! O que diabos aconteceu com o meu reforo? - Eles se perderam. Onde voc est? - Segundo andar, parte onde ficam os escritrios. - OK. As portas dos escritrios estavam fechadas e no havia ningum nos corredores: era sbado. Seguiu a camisa, contornando uma curva, mais outra e uma terceira. Continuava a v-la mas no conseguia adiantar-se. O filho da me est mesmo em forma. Fazendo a volta completa, ele voltou para a galeria. Judy o perdeu de vista momentaneamente e achou que talvez tivesse subido mais um lance. pgina 420 Respirando com dificuldade, subiu outro lance da escadaria ornamentada at o terceiro piso. Letreiros diziam que a galeria do senado era direita e a da assemblia esquerda. Virou esquerda, foi at a porta da galeria e viu que estava trancada. Sem dvida a outra tambm estaria. Voltou ao patamar. Para onde ele teria ido? A um canto notou uma porta com uma placa que dizia "Escada Norte Sem Acesso ao Telhado". Abriu-a e deu numa escada estreita e funcional com piso de cermica comum e balaustrada de ferro. Dali ouviu sua presa descendo. Desceu correndo e foi parar no nvel trreo da rotunda. No conseguiu ver Granger, mas viu Michael, olhando em torno, angustiado. - Voc o viu? - perguntou. - No. - Fica a! Da rotunda, um corredor de mrmore levava aos aposentos do governador. A viso dela foi atrapalhada por um grupo de turistas a quem estava sendo mostrada a porta da Ferradura. Ser que aquilo logo depois deles
era uma camisa havaiana? No podia ter certeza. Prosseguiu rapidamente ao longo do corredor de mrmore, passando pelos quadros em que se podia ver cada condado do estado da Califrnia. esquerda, outro corredor levava a uma sada com uma porta automtica de blindex. Viu a camisa saindo. Judy seguiu em frente. Granger atravessou a rua, desviando-se temerariamente do trnsito impaciente. Os motoristas davam golpes de direo para se desviarem dele e buzinavam indignados. Ele saltou sobre o cap de um cup amarelo, amassando a lataria. O motorista abriu a porta e saltou num mpeto de fria, mas a viu Judy empunhando uma pistola e voltou rapidamente para o carro. Ela tambm saiu em disparada pela rua, correndo os mesmos riscos loucos com o trnsito. Voou na frente de um nibus que freou cantando pneus, correu por cima do cap do mesmo cup amarelo e forou uma limusine daquelas muito compridas a andar em ziguezague por trs pistas. Tinha quase chegado na calada do outro lado quando uma motocicleta veio disparada pela pista de dentro, direto de encontro a ela. Judy recuou e ele deixou de bater nela por um centmetro. pgina 421 Granger subiu correndo a rua do lado e virou numa entrada. Judy voou atrs. Ele tinha entrado numa garagem. Ela virou tambm na mesma entrada, indo to depressa quanto podia mas alguma coisa a atingiu: um violento soco no rosto. Seu nariz e testa explodiram de dor. Ficou cega. Caiu de costas e bateu no piso de concreto fazendo um barulho. Deitada, imvel, paralisada pelo choque e pela dor, no era capaz sequer de pensar. Poucos segundos depois sentiu uma mo forte amparar sua cabea e ouviu, como se estivesse muito distante, a voz de Michael dizendo: - Judy, pelo amor de Deus, voc est viva? Sua cabea comeou a clarear e a viso voltou. O rosto de Michael apareceu em foco. - Fale comigo, diga alguma coisa! - pediu Michael. Ela abriu a boca. - Di - murmurou. - Graas a Deus! - ele puxou um leno do bolso da cala e enxugou a boca de Judy com surpreendente gentileza. - Seu nariz est sangrando. Ela sentou direito. - O que foi que aconteceu? - Vi voc entrando, correndo com a velocidade de um raio e no minuto seguinte estava estirada no cho. Acho que ele a ficou esperando e a atingiu quando voc virou. Se eu puser as mos nesse sujeito... Judy percebeu que largara a arma. - Minha pistola... Ele olhou em torno, pegou a pistola e deu para ela. - Me ajude. Ele puxou-a. O rosto de Judy doa muito mesmo, mas ela j conseguia enxergar com clareza e suas pernas estavam firmes. Tentou pensar direito. Talvez eu ainda no o tenha perdido. pgina 422
Havia um elevador, mas ele no podia ter tido tempo para tom-lo. Tinha que ter sado pela rampa. Ela conhecia aquela garagem - tinha estacionado ali quando fora falar com Honeymoon - e se lembrava que ela se estendia pela largura de um quarteiro, com entradas em duas ruas consecutivas. Podia ser que Granger tambm soubesse disso e j estivesse saindo pela porta da primeira delas. Nada havia a fazer seno seguir em frente. - Vou atrs dele - avisou Judy. Subiu correndo a rampa. Michael a seguiu. Ela deixou. - J tinha mandado por duas vezes que ficasse e agora no tinha flego para tentar uma terceira. Chegaram no primeiro nvel de estacionamento. A cabea de Judy comeou a latejar e de repente suas pernas ficaram fracas. Sabia que no podia continuar por muito tempo. Atravessavam correndo a garagem quando um carro preto saiu da vaga onde estava direto em cima deles. Judy deu um pulo de lado, caiu no cho e executou um rolamento, desesperadamente rpida, at ver-se embaixo de um automvel estacionado. Dali ela viu as rodas do carro preto fazer a curva com os pneus cantando e o motorista acelerou rampa acima a toda velocidade. Judy levantou-se, procurando Michael desesperadamente. Tinha ouvido Michael gritar de surpresa e medo. Ser que o carro preto o atingira? Ela o viu a poucos metros de distncia, apoiado nos ps e nas mos, branco com o choque. - Voc est bem? - disse ela. Ele se levantou. - Estou timo, s um pouco abalado. Judy virou-se para ver se via qual a marca do carro agressor, mas ele desaparecera. - Droga! - exclamou ela. - Eu o perdi. *** pgina 423 20 Assim que Judy entrou no clube dos oficiais, s sete da noite, Raja Khan correu na sua direo. Ele parou quando a viu. - O que aconteceu com voc? O que me aconteceu? No consegui evitar o terremoto tive um palpite errado quanto ao esconderijo de Melanie Quercus e deixei Ricky Granger escapar por entre meus dedos. Estraguei tudo e amanh haver outro terremoto e mais gente vai morrer, e tudo por minha culpa. - Ricky Granger me deu um soco no nariz - respondeu. Tinha um curativo no rosto. As plulas que tinham lhe dado no hospital de Sacramento haviam amenizado a dor, mas ela se sentia derrotada e desanimada. - Onde voc vai com tanta pressa? - Estvamos procurando um disco chamado Raining Fresh Daisies, lembra? - Claro. Tnhamos esperana de que nos desse uma pista sobre a mulher que telefonou para o programa do John Truth.
- Localizei um exemplar - aqui mesmo em San Francisco. Numa loja chamada Vinyl Vic's. - Dem uma medalha de ouro para este agente? - Judy sentiu a energia voltar. Podia ser a pista de que precisavam. No era muito, mas encheu-a de esperana de novo. - Vou com voc. Pularam no Dodge Colt de Raja, imundo, com o cho junS cado de papis de barras de chocolate. Raja saiu rachando do estacionamento e seguiu para Haight- Ashbury. pgina 424 - O dono da loja se chama Vic Plumstead - disse. Quando estive l uns dois dias atrs quem me atendeu foi um garoto. Ele achava que no tinham o disco mas mesmo assim ia perguntar ao dono. Deixei um carto e Vic me deu um telefonema assim que chegou. - Finalmente, um pouco de sorte! - O disco foi distribudo em 1969 por um selo de San Francisco chamado Transcendental Tracks. Teve alguma publicidade e vendeu uns poucos exemplares na grande San Francisco mas o selo nunca mais teve outro sucesso e saiu do mercado aps alguns meses. Judy esfriou. - O que significa que no h arquivos a serem consultados para ver se descobrimos pistas sobre o atual paradeiro dela. - Talvez a prpria capa do disco nos d qualquer coisa. A Vinyl Vic's era uma lojinha entulhada de discos velhos. Umas poucas estantes convencionais no meio da loja tinham sido invadidas por caixas de papelo e engradados de frutas empilhados at o teto. O lugar tinha um cheiro de biblioteca velha e empoeirada. Havia um fregus, um sujeito tatuado, de short de couro estudando um dos primeiros discos de David Bowie. No fundo, um homem pequeno e magro de cala-jeans apertada e camiseta tingida em tons desiguais estava de p atrs da mquina registradora, tomando caf em uma caneca onde estava escrito "legalizem!". Raja apresentou-se. - Voc deve ser Vic. Ns nos falamos pelo telefone poucos minutos atrs. Vic olhou espantado para eles. Parecia realmente surpreso. - Finalmente o FBI aparece na minha loja e so dois asiticos? O que aconteceu? - perguntou. Quem respondeu foi Raja: - Eu sou o no-branco representante do meu grupo tnico e ela a mulher que representa o sexo feminino. Toda agncia do FBI tem que ter um de cada um de ns, uma regra para que o governo no seja criticado ou acusado de discriminao. Todos os outros agentes so homens brancos de cabelo curto. - Ah, sim, tudo bem - Vic pareceu desconcertado. No sabia se Raja estava brincando ou no. - E o disco? - perguntou Judy, impaciente.
pgina 425 - Aqui est - Vic virou de lado e Judy viu que ele tinha um toca-discos atrs da registradora. Ele girou o brao da pick-up para coloc-lo em posio acima do disco e baixou a agulha. Uma exploso de uma guitarra ensandecida fez a introduo de um jazz-funk surpreendentemente calmo, levado por acordes de piano sobre um complexo acompanhamento de bateria. Em dado instante, entrou a voz da mulher: Estou derretendo Me sinto derretendo Liquefao Amaciando - Acho que bastante significativo, sinceramente comentou Vic. Judy achou que era uma bosta, mas no tinha importncia. Era a voz da fita de John Truth, sem sombra de dvida. Mais jovem, mais clara, mais delicada, mas com o mesmo tom inegavelmente sexy, grave. - Voc tem a capa? - perguntou, nervosa. - Claro - ele lhe passou a capa do disco. Estava virada nos cantos e o revestimento de plstico transparente comeava a descascar do papel. A frente tinha um desenho multicolorido espiralado que dava uma sensao de desconforto nos olhos. As palavras "Raining Fresh Daisies" mal podiam ser reconhecidas. Judy virou a capa. A parte de trs era imunda, inclusive com uma mancha circular de caf no canto direito superior. O texto comeava: "A msica abre portas que levam a universos paralelos..." pgina 426 Judy pulou o texto. Em baixo havia uma fileira de cinco fotos em preto e branco, s cabea e ombros, quatro homens e uma mulher. As legendas diziam: Dave Rolands, teclado Ian Kerry, guitarra Ross Muller, baixo Jerry Jones, bateria Stella Higgins, poesia Judy franziu a testa. - Stella Higgins - disse, excitadamente. - Acho que j ouvi esse nome antes! Tinha certeza, mas no conseguia se lembrar de onde o ouvira. Talvez fosse apenas pensamento desejoso. Examinou a pequenina foto em preto e branco. O que viu foi uma garota de cerca de vinte anos com um rosto sorridente e sensual, emoldurado pelo cabelo escuro e ondulado, e onde se destacava a boca generosa e larga que Simon profetizara. - Ela era linda - murmurou Judy, quase que s para si mesma. Procurou naquele rosto a loucura que a fizera ameaar as pessoas com um terremoto, mas nada viu. Tudo o que viu foi uma jovem cheia de vitalidade e esperana. O que saiu errado em sua vida? - Podemos levar isto emprestado? - perguntou Judy. Vic ficou emburrado. - Estou aqui para vender discos, no para emprestar. Ela no ia discutir. - Quanto ? - Cinqenta pratas. - OK.
Ele parou o aparelho, pegou o disco e enfiou de novo na capa de papel. Judy pagou. - Obrigado, Vic. Foi legal a sua ajuda. No caminho de volta, ela disse: - Stella Higgins. Onde foi que vi esse nome? Raja sacudiu a cabea. - No faz com que eu me lembre de nada. Quando saltaram, ela lhe passou o disco. - Faa ampliaes da foto e submeta ao pessoal dos diversos departamentos de polcia. D o disco a Simon Sparrow. Nunca se sabe o que ele pode descobrir. Quando entraram no posto de comando viram que o antigo salo de baile parecia agora apinhado de gente. Nova mesa fora acrescentada no setor destinado ao comando. Entre as pessoas que se acotovelavam por ali viam-se mais alguns sujeitos engravatados vindos do quartel-general do FBI em Washing ton, presumiu Judy, alm de elementos das agncias de administrao de emergncias nos diversos nveis de governo. pgina 427 Ela dirigiu-se mesa da equipe de investigao. A maior parte do seu pessoal estava trabalhando em telefones, verificando indcios. Judy falou com Carl Theobald. - Est fazendo o qu? - Verificando os carros `Cuda de cor bege. - Tenho algo melhor para voc. Peque o CD-ROM com os telefones da Califrnia, que est em algum lugar por a. Procure Stella Higgins. - E se eu encontrar? - Lique para ela e veja se a voz parece com a da mulher da fita de John Truth. Judy sentou-se diante de um computador e iniciou a busca em uma srie de listas de pronturios criminais. Descobriu que havia uma Stella Higgins nos arquivos. Uma mulher com esse nome fora multada por estar de posse de maconha e recebido uma sentena posteriormente suspensa por agredir um policial durante uma demonstrao. A data de nascimento devia ser mais ou menos aquela e o endereo era em uma rua chamada Haight. No havia foto no banco de dados, mas tudo indicava que se tratava da mesma pessoa. Os dois incidentes eram datados de 1968 e de l para c no havia mais nada. O pronturio de Stella era como o de Ricky Granger, que sara de cena no incio dos anos 70. Judy imprimiu o arquivo e o prendeu no quadro de avisos destinado aos suspeitos. Mandou um agente verificar o endereo da rua Haight. Mesmo que tivesse certeza de que a Higgins no se encontraria l trinta anos depois. Foi quando sentiu uma mo no seu ombro. Era Bo. Seu olhar era de imensa preocupao. - Minha filha, o que foi que aconteceu com o seu rosto? - Acho que fui descuidada - disse ela. Ele beijou o topo da sua cabea. - Estou de servio hoje, mas tive que dar uma paradinha aqui para ver
como voc estava. pgina 428 - Quem lhe disse que eu estava machucada? - Aquele sujeito casado, o Michael. Aquele sujeito casado. Ela sorriu. Isso para me lembrar que Michael pertence a uma outra mulher. - No houve nada de realmente srio, mas acho que vou ficar com dois belos olhos roxos. - Voc tem que descansar um pouco. Quando vai para casa? - No sei. Acabo de fazer uma descoberta importante. Senta a - ela lhe falou sobre o Raining Fresh Daisies. - No meu modo de ver, estamos falando de uma bela garota que morava em San Francisco nos anos 60, onde participava de demonstraes de rua, fumava maconha e era ligada a bandas de rock. Os anos 60 se transformam nos anos 70, ela se desilude ou talvez s se sinta entediada. Liga-se a um sujeito carismtico, foragido da Mfia, e os dois iniciam uma comunidade religiosa. De algum modo o grupo sobrevive, fazendo jias de artesanato ou qualquer outra coisa, por trs dcadas. A, de repente, alguma coisa d errado. A existncia deles, de uma maneira ou de outra, ameaada pelo projeto da construo de uma usina hidreltrica. Ante o fim daquilo para que trabalharam durante tanto tempo, decidem impedir a construo da tal usina, de qualquer maneira. A, ento, uma pessoa especialista em sismologia se junta ao grupo e aparece com uma idia maluca. Bo balanou a cabea, aprovando. - Faz sentido, ou pelo menos o tipo de sentido que atrai os excntricos. - Granger tem a experincia criminosa necessria para roubar o vibrador ssmico e o magnetismo pessoal para persuadir os outros membros do culto para seguirem adiante com o esquema. Bo ficou pensativo. - Eles provavelmente no so proprietrios das casas onde moram - disse. - Por qu? - Bem, imagine que morem em algum lugar prximo de onde a usina vai ser construda, de modo que sero obrigados a se mudar. Se fossem proprietrios das casas, ou fazenda ou o que seja, receberiam uma indenizao e poderiam comear de novo em algum outro lugar. Assim o meu palpite que eles tm uma concesso de arrendamento a curto prazo ou talvez sejam meros posseiros. pgina 429 - Voc provavelmente tem razo, mas isso no nos ajuda. No h um banco de dados estadual para cesses de terras. Carl Theobald aproximou-se com um caderno de notas na mo. - Trs acertos na lista de assinantes. Stella Higgins em Los Angeles uma mulher de cerca de setenta anos com a voz trmula. A Sra. Higgins que mora em Stockton tem um forte sotaque africano, provavelmente da Nigria. E S.J. Higgins em Diamond Heights um homem chamado Sidney.
- Droga! - exclamou Judy, explicando ao pai que Stella Higgins era a dona da voz na fita de John Truth e acrescentando: - Tenho certeza de que j ouvi esse nome antes. - Tente os seus prprios arquivos - sugeriu Bo. - O qu? - Se o nome parece conhecido, voc talvez o tenha visto ou ouvido durante esta investigao. Examine os arquivos deste caso. - Boa idia. - Tenho que ir - disse ele. - Com toda essa gente saindo da cidade e deixando as casas vazias, a polcia de San Francisco vai ter uma noite trabalhosa. Boa sorte - e v se descansa um pouco. - Obrigada, Bo - Judy ativou a funo de busca do computador e mandou que procurasse em todos os arquivos do Martelo do den o nome "Stella Higgins". ficou olhando por cima do seu ombro. Eram muitos arquivos e a busca levou algum tempo. Finalmente a tela piscou e apareceu a mensagem: 1 arquivo(s) encontrado(s) Judy vibrou de entusiasmo. Carl gritou. pgina 430 - Meu Deus! O nome j constava dos nossos arquivos! Oh, meu Deus, acho que a encontrei. Dois outros agentes estavam olhando por cima do ombro de Judy quando ela abriu o arquivo. " Era um documento grande contendo todas as anotaes feitas pelos agentes que participaram da incurso fracassada a Los Alamos seis dias atrs. - Que negcio esse? - Judy estava confusa. - Ela estava em Los Alamos e ns no a vimos? Stuart Cleever aproximou-se tambm. - O que que est havendo? - Encontramos a mulher que telefonou para John Truth. - Onde? - Silver River Valley. - Como foi que ela escorregou pelos seus dedos? Foi Marvin Hayes, e no eu, quem organizou a incurso. - No sei, estou trabalhando nisso, me d um minuto! ela mandou localizar o nome nas anotaes. Stella Higgins no vivia em Los Alamos. Por isto no a tinham visto. Dois agentes haviam visitado uma vincola alguns quilmetros vale acima. Era um terreno cedido pelo governo federal e o nome do arrendatrio era Stella Higgins. - Droga, estivemos to perto! - exclamou Judy, exasperada. - Quase a pegamos uma semana atrs! - Imprima isso para que todo mundo possa ver - disse Cleever. Judy clicou em cima do boto da impressora e continuou a leitura. Os agentes tinham anotado meticulosamente o nome e a idade de todos os adultos que encontraram na vincola. Judy viu que alguns eram casais com filhos, e que a maioria deu a prpria vincola como endereo. Talvez fosse um culto e os agentes simplesmente no tivessem percebido. Ou aquelas pessoas podiam ter sido cautelosas para esconder a verdadeira
natureza de sua comunidade. pgina 431 - Ns os pegamos! - disse Judy. - Fomos desviados na primeira vez para Los Alamos, que parecia abrigar os suspeitos perfeitos. Depois, quando vimos que tnhamos errado, fomos descuidados e no verificamos as outras comunidades naquele vale. Assim no chegamos aos verdadeiros culpados. Mas os encontramos agora. Stuart Cleever disse: - Acho que voc tem razo - ele virou-se para a mesa da SWAT. Charlie, entre em contato com o pessoal de Sacramento e organize uma incurso conjunta. Judy tem a localizao. A batida comea ao raiar do sol. - Ns devamos agir agora - disse Judy. - Se esperarmos at amanh de manh, podem ir embora. - Por que motivo iriam fugir agora? - contestou Cleever, sacudindo a cabea. - De noite muito arriscado. Os suspeitos podem fugir aproveitando a escurido, especialmente numa zona rural. Ele tinha razo, mas o instinto dizia a Judy para no esperar. - Eu preferia assumir o risco - disse ela. - Agora que sabemos onde se encontram, vamos peg-los. - No - disse ele, em tom final. - No se discute mais, por favor, Judy. Vamos fazer a incurso de madrugada. Ela hesitou. Tinha certeza de que era a deciso errada, mas estava cansada demais para continuar discutindo. - Que seja - concordou. - A que horas samos, Charlie? Marsh olhou para o relgio. - Samos daqui s duas da manh. - Acho que vou tirar duas horas de descanso. Judy tinha a vaga idia de que estacionara o carro no campo de parada. Parecia ter sido meses atrs, mas na verdade fora apenas na noite de quinta-feira, quarenta e oito horas antes. Ao sair, encontrou com Michael. - Voc parece exausta - disse ele. - Deixe eu lev-la para casa. - Como que vou poder voltar para c? - Eu cochilo no sof e trago voc de volta. Ela parou e olhou para ele. pgina 432 - Tenho que lhe dizer uma coisa; meu rosto di tanto que acho que no consigo nem beijar, muito menos qualquer outra coisa. - Eu me conformo em segurar sua mo - disse ele com um sorriso. Estou comeando a achar que esse sujeito gosta de mim. Ele ergueu uma sobrancelha. - Bem, o que que voc me diz? - Voc me pe na cama e me traz leite quente e aspirina? - Claro. Voc me deixa ficar olhando para voc dormindo?
Puxa vida, vou gostar mais disso do que qualquer outra coisa neste mundo. Ele entendeu a expresso do rosto de Judy. - Acho que estou ouvindo um sim - disse. Ela sorriu. - Sim. *** Priest estava furioso quando voltou de Sacramento. Tinha ido para l certo de que o governador faria um trato. Achava que estava prestes a alcanar a vitria. J tinha se congratulado pelo xito. E tudo no passara de uma impostura. A coisa toda fora uma armao. O FBI achara que podia peg-lo numa armadilha idiota, como se ele fosse um ladrozinho barato. Foi o desrespeito que na verdade o irritou. Pensaram que fosse um imbecil. Iam aprender a verdade. E a lio seria cara. Ia lhes custar um outro terremoto. Todo mundo na comunidade ainda estava atnito com a partida de Dale e Poem. Aquilo fizera com que se lembrassem de que no dia seguinte todos deveriam abandonar o vale. Priest contara aos Comedores de Arroz quanta presso tinham exercido sobre o governador. As estradas ainda estavam engarrafadas com minivans cheias de crianas e malas na fuga do prximo terremoto. Nos bairros semidesertos, saqueadores saam das casas carregados de fornos de microondas, aparelhos de CD e computadores. pgina 433 Mas eles sabiam tambm que o governador no mostrara sinais de que cederia. Embora j fosse a noite de sbado, ningum queria partir. Depois da ceia e do culto noturno, quase todos se retiraram para suas cabanas. Melanie foi ler para as crianas em seu dormitrio. Priest sentou-se do lado de fora da sua cabana, contemplando a descida da lua sobre o vale, e lentamente foi se acalmando. Abriu uma garrafa de vinho fabricado ali mesmo, por eles, com cinco anos, de uma safra com leve sabor defumado e de que ele gostava muito. Era uma batalha de nervos, disse a si mesmo quando foi capaz de pensar com calma. Quem poderia agentar mais tempo, ele ou o governador? Qual deles seria capaz de melhor controlar sua gente? Ser que os terremotos fariam o governo ceder antes que o FBI pudesse rastrear Priest no seu esconderijo nas montanhas? Star apareceu no campo visual dele, iluminada por trs pelo luar, caminhando descala e fumando um baseado. Deu uma tragada funda, inclinou-se sobre Priest e o beijou, abrindo a boca. Ele inalou a intoxicante fumaa diretamente dos pulmes dela. Quando terminou, Priest sorriu e disse: - Eu me lembro da primeira vez em que voc fez isso. Foi a coisa mais sexy que j me aconteceu.
- mesmo? Mais sexy que uma boa chupada? - Muito mais. Eu me lembro que quando tinha sete anos vi minha me chupando um sujeito qualquer. Mas ela nunca os beijava. Eu era a nica pessoa a quem beijava, me dizia. - Priest, que merda de vida voc teve. Ele franziu a testa. - Voc fala de um jeito que d a impresso de que ela acabou. - Esta parte vivida aqui acabou, no? - No! - J quase meia-noite. Seu prazo limite est prestes a acabar. O governador no vai ceder. pgina 434 - Ele tem de ceder - insistiu Priest. - uma questo de tempo. Ele se levantou. - Preciso ouvir o noticirio do rdio - disse. Ela o acompanhou na enluarada travessia do vinhedo e na subida da trilha que dava nos carros. - Vamos embora - disse, subitamente. - S eu, voc e Flower. Entramos num carro, agora mesmo, e vamos. No nos despedimos, nem fazemos malas nem mesmo levamos outras mudas de roupa ou qualquer outra coisa. Simplesmente sumimos, como quando sa de San Francisco em 1969. Iremos para onde nosso capricho nos levar - Oregon ou Las Vegas ou mesmo Nova York. Que tal Charleston? Sempre quis conhecer o Sul. Sem responder, ele entrou no Cadillac e ligou o rdio. Star sentou-se ao seu lado. Brenda Lee estava cantando "Let's Jump the Broomstick". - Como , Priest, o que que voc diz? O noticirio comeou e ele aumentou o volume. - Richard Granger, suspeito de ser o lder terrorista do Martelo do den, escapou das mos do FBI hoje, em Sacramento. Enquanto isso, as pessoas que fugiam das localidades prximas da falha de Santo Andr encontraram engarrafamentos em praticamente todas as estradas da rea da baa de San Francisco. So quilmetros de automveis bloqueando trechos enormes das rotas 280, 580, 680 e 880. E um negociante de discos raros de Haight-Ashbury afirma que agentes do FBI compraram dele um disco onde h a fotografia de outra suspeita de ser terrorista. - Disco? - exclamou Star. - Que porra de...? - Vic Plumstead, o proprietrio da loja, contou aos nossos reprteres que o FBI recorreu a ele para encontrar um disco dos anos 60, onde os agentes daquele rgo acreditavam que pudessem encontrar a gravao da voz de uma das pessoas suspeitas de integrarem o Martelo do den. Aps dias de intensos esforos, disse ele, encontrou finalmente o disco, gravado por uma obscura banda de rock chamada Raining Fresh Daisies. - Jesus Cristo! Eu mesma quase tinha me esquecido da existncia desse disco! pgina 435
- O FBI no confirma nem nega que esteja procurando a vocalista, Stella Higgins. - Puta merda! - explodiu Star. - Eles sabem o meu nome. A cabea de Priest funcionava a toda velocidade. Quanto aquilo era perigoso? O nome no era muito til para eles. Star no o usava havia quase trinta anos. No sabiam onde Stella Higgins vivia. Sabiam, sim. Ele conteve um gemido de desespero. O nome de Stella Higgins constava do termo de cesso da terra. E ele dissera isso aos dois agentes que tinham aparecido ali depois da incurso a Los Alamos. Aquilo mudava tudo. Mais cedo ou mais tarde o FBI faria a conexo. E se por algum acaso o FBI falhasse, ainda havia o policial que trabalhava no gabinete do xerife de Silver Valley que se encontrava em frias nas Bahamas, e que tinha escrito o nome "Stella Higgins" em um processo que deveria subir corte em duas semanas. O vale no era mais um segredo. Esta simples idia fez com que ele se sentisse intoleravelmente triste. O que podia fazer? Talvez devesse fugir com Star. As chaves estavam no carro. Poderiam estar em Nevada em cerca de duas horas. No dia seguinte estariam a oitocentos quilmetros de distncia. Pombas, no. Ainda no estou derrotado. Ainda era capaz de manter o controle. Seu plano original era de que as autoridades jamais soubessem quem era o Martelo do Eden ou o porqu da exigncia de suspender a construo de novas usinas eltricas. Agora o FBI estava prestes a descobrir isso - mas talvez pudesse ser forado a manter tudo em segredo. O segredo poderia ser parte da exigncia de Priest. Se viessem a concordar com a suspenso da construo de novas usinas, poderiam muito bem engolir a exigncia de conservar tudo em segredo. Sim, era ultrajante, mas claro que a coisa toda era ultrajante. Ele era capaz de fazer isso. pgina 436 Mas teria que ficar longe das garras do FBI. Abriu a porta do carro e saltou. - Vamos - disse para Star. - Tenho muito o que fazer. Ela saiu lentamente do carro. - Voc no vai fugir comigo? - perguntou, triste. - Claro que no, droga - ele bateu a porta e se afastou. Ela o seguiu pelo vinhedo e na volta aldeia. Dirigiu-se para sua cabana sem dizer boa-noite. Priest foi para a cabana de Melanie. Ela dormia. Ele a sacudiu bruscamente e a acordou. - Levanta - disse. - Temos que ir. Depressa. ***
Judy ficou olhando, enquanto esperava que Stella Higgins acabasse de chorar. Stella era uma mulher grande e embora pudesse ser atraente em circunstncias diferentes, agora parecia destruda. Tinha o rosto contorcido de angstia, a pintura antiquada dos olhos escorria pelas faces e os ombros pesados sacudiam com os soluos. As duas estavam sentadas na minscula cabana que era a casa de Stella. Por toda a parte viam-se suprimentos mdicos: caixas de ataduras, caixas de aspirina e Rolaids, Tylenol e Trojans, frascos de elixir paregrico, xarope para tosse e tintura de iodo. As paredes eram decoradas com desenhos feitos pelas crianas e que representavam Star tomando conta delas. Era uma construo primitiva, sem luz eltrica ou gua encanada, mas tinha um ar de felicidade. Judy foi at a porta e ficou olhando para fora, dando a Star um minuto para recuperar o controle. O lugar era lindo luz dbil dos primeiros raios do sol. As ltimas fitas de uma leve neblina iam desaparecendo das rvores nas encostas ngremes das montanhas e o rio brilhava, resplandecente l embaixo. Nas encostas mais baixas havia um vinhedo bem cuidado, filas e filas de parreiras presas em trelias de madeira. Por um momento Judy foi tomada por uma sensao de paz espiritual, a impresso de que aquele era um lugar onde as coisas eram como deviam ser e o resto do mundo que era estranho. Ela sacudiu a cabea para livrar-se daquela sensao ilusria. pgina 437 Michael apareceu. Ele dissera que queria estar ali para cuidar do filho, e Judy dissera a Stuart Cleever que o atendesse porque sua opinio tcnica de perito era importantssima para a investigao. Ele trazia Dusty pela mo. - Como est ele? - perguntou Judy. - timo - respondeu Michael. - Voc encontrou Melanie? - Ela no est. Dusty diz que uma garota grande chamada Flower que tem tomado conta dele. - Alguma idia do lugar para onde foi Melanie? - No - ele indicou Star com um gesto de cabea. - O que ela diz? - Nada, ainda - Judy voltou para dentro e se sentou beira da cama. Fale-me sobre Ricky Granger - pediu. - Ele tem tanto um lado mau quanto um lado bom - disse Star, quando parou de chorar. - Era um desordeiro antigamente, eu sei, chegou inclusive a matar gente, mas em todo esse tempo em que estivemos juntos, mais de vinte e cinco anos, no magoou ningum at agora, at que algum teve esta idia idiota de construir aqui a porra de uma represa. - Tudo o que eu quero fazer - disse Judy, delicadamente - encontr-lo antes que ele machuque mais gente. Star fez que sim. - Eu sei. Judy fez Star encar-la.
- Onde ele foi? - Eu lhe diria se soubesse - disse Star. - Mas no sei. *** 21 Priest e Melanie foram para San Francisco na picape da comunidade. Priest achou que o Cadillac dava muito na vista e que a polcia podia estar procurando o Subaru cor de laranja de Melanie. Todo o trnsito flua na direo contrria, de modo que eles no foram muito retardados e atingiram a cidade pouco depois das cinco horas da manh. Havia pouca gente na rua: um casal de adolescentes se abraando em uma parada de nibus, dois viciados em crack, atrevidos, comprando a ltima pedra de um traficante metido num casaco comprido, um bbado ziguezagueando no meio da rua. A regio do cais, contudo, estava deserta. A dilapidada paisagem industrial era sombria e assustadora luz do incio da manh. Encontraram o armazm Perpetua Diaries e Priest destrancou a porta. O corretor de imveis cumprira a promessa - a luz tinha sido ligada e havia gua no banheiro. Melanie guardou a picape e Priest examinou o vibrador ssmico. Deu a partida no motor, abaixou e levantou o prato de ao. Tudo funcionou. Deitaram no sof do pequeno escritrio, bem juntinhos. Priest permaneceu acordado, examinando sua posio vezes sem conta. Fosse qual fosse a maneira pela qual visse a questo, a nica coisa inteligente que o governador podia fazer era ceder. Priest viu-se fazendo discursos imaginrios no programa de John Truth, mostrando como o governador estava sendo burro. Ele podia impedir o terremoto com uma nica palavra! Depois de uma hora daquilo viu que era intil. Deitado de costas, seguiu o ritual de relaxamento que usava para meditao. pgina 439 Seu corpo se acalmou, o batimento cardaco voltou ao normal e ele acabou dormindo. Quando acordou, eram dez horas da manh. Ps uma panela com gua na chapa eltrica. Ele trouxera da comunidade uma lata de caf orgnico modo e umas xcaras. Melanie ligou a televiso. - Sinto falta dos noticirios, vivendo na comunidade - disse. - Eu costumava assistir o tempo todo. - Eu normalmente odeio noticirios - disse Priest. Fazem com que voc se preocupe com milhes de coisas a respeito das quais no pode fazer nada - mas assistiu ao lado dela, para ver se tinha alguma notcia a seu respeito. Era tudo a seu respeito. - As autoridades estaduais esto considerando seriamente a ameaa de um terremoto hoje, quando o prazo dado pelos terroristas aproxima-se do fim - disse o ncora, mostrando em seguida uma cena em que funcionrios municipais levantavam um hospital de campanha no parque Golden Gate.
Aquela viso irritou Priest. - Por que no nos do simplesmente o que queremos? exclamou, dirigindo-se ao aparelho de televiso. Na cena mostrada a seguir viam-se agentes do FBI examinando cabanas construdas de toros de madeira nas montanhas. Aps um momento Melanie disse: - Meu Deus, a nossa comunidade! Viram Star, vestindo seu velho robe de seda prpura, o rosto uma mscara de dor, sendo conduzida para fora de sua cabana por dois homens que envergavam coletes prova de balas. Priest praguejou. No se surpreendia - fora a possibilidade de uma blitz que o levara a sair to apressadamente na noite anterior - mas assim mesmo aquela viso o encheu de raiva e desespero. Sua casa fora violada por aqueles hipcritas filhos da me. Vocs deveriam nos ter deixado em paz. Agora muito tarde. Ele viu Judy Maddox, parecendo abatida. Voc estava esperando me pegar na sua rede, no estava? Hoje no parecia to bonita. Tinha os dois olhos roxos e um Band-Aid largo preso transversalmente no nariz. Voc mentiu para mim e tentou me pegar numa armadilha e ganhou um nariz machucado por causa disso. pgina 440 Mas no fundo do corao sentia-se abatido. Tinha subestimado o tempo todo o FBI. Quando comeara, nunca imaginara que iria ver agentes invadindo o santurio do vale, mantido em segredo por tantos anos. Judy Maddox era mais esperta do que ele imaginara. Melanie levou um susto. Na tela apareceu Michael, seu marido, carregando Dusty. - Oh, no! - exclamou. - Eles no esto prendendo Dusty - disse Priest, impaciente. - Mas para onde Michael vai lev-lo? - Faz alguma diferena? - Faz, se for acontecer um terremoto! - Michael sabe melhor do que ningum onde se encontram as falhas. No vai para nenhum lugar perigoso. - Oh, meu Deus, espero que no, especialmente se estiver com Dusty. Priest decidiu que bastava de televiso. - Vamos sair - disse. - Traga o telefone. Melanie foi dirigindo a picape e Priest trancou o armazm. - Direto para o aeroporto - disse quando entrou. Evitando as auto-estradas, conseguiram chegar perto do aeroporto antes de ficarem presos num engarrafamento. Priest imaginou que haveria milhares de pessoas usando telefones celulares por ali - tentando fazer reservas, ligando para suas famlias, checando a extenso do engarrafamento. Ligou para o programa de John Truth. Foi o prprio John Truth quem atendeu. Priest imaginou que estivesse esperando pelo seu telefonema. - Tenho uma nova exigncia, portanto bom que voc oua com cuidado. - No se preocupe, porque estou gravando.
pgina 441 - Acho que estarei no seu programa de hoje noite, John? - disse Priest, com um sorriso. - Espero que voc esteja na cadeia - retrucou Truth - Ora, v se foder - o cara no precisava ficar aborrecido - Minha nova exigncia um perdo presidencial para todo mundo do Martelo do den. - Vou levar ao conhecimento do presidente. Agora ele estava querendo ser sarcstico. Ser que entendia a importncia do que estava em jogo? - Alm disso, a suspenso da construo de novas ussinas - Espere um minuto - retorquiu Truth. - Agora que todo mundo sabe onde fica sua comunidade, voc no precisa de uma suspenso em todo o estado. S quer que o seu vale no seja inundado, no isso? Priest considerou o que acabara de ouvir. No tinha pensado naquela hiptese. Truth tinha razo. Ainda assim, devia no concordar. - Nada disso - disse. - Tenho princpios. A Califrnia precisa gastar menos energia eltrica, e no mais, para se lugar decente onde meus netos possam viver. Nossa exigncia inicial continua. Haver outro terremoto se o governador no concordar. - Como voc capaz de fazer uma coisa dessas? A pergunta pegou Priest de surpresa. - O qu? - Como que voc pode causar tanto sofrimento e dE pero a tanta gente - matando e ferindo as pessoas, danifica suas propriedades, fazendo com que fujam apavoradas de lares... Como que voc conseque encostar a cabea no travesseiro e dormir? A pergunta enfureceu Priest. - No venha querer se passar por tico - disse. - E tentando salvar a Califrnia. - Matando gente. Priest perdeu a pacincia. - Cala a porra da boca e escuta - disse. - Vou lhe pgina 442 falar sobre o novo terremoto. - De acordo com Melanie, ajanela ssmica se abriria s seis e quarenta da tarde. - Sete da noite disse Priest. Vou atacar s sete da noite. - Voc pode me dizer... Priest cortou a ligao. Ficou em silncio por algum tempo. A conversa o deixara com uma sensao de desconforto. Truth deveria estar morrendo de medo, mas quase zombara dele. Tratara-o como um perdedor, era isso. Chegaram num entroncamento. - Podamos virar aqui e voltar - disse Melanie. - No tem movimento no outro sentido.
- OK. Ela virou, pensativa. - Ser que um dia voltaremos ao vale? - perguntou. Agora que o FBI e todo mundo sabe onde fica? - Sim! - disse ele. - No grita! - Sim, voltaremos - disse ele, mais baixo. - Sei que as coisas parecem ms e pode ser que tenhamos de ficar longe de l por algum tempo. No tenho dvidas de que perderemos a safra deste ano. Mas com o tempo, eles vo se esquecer de ns. Haver uma guerra, uma eleio ou um escndalo sexual e perderemos o interesse. A poderemos voltar para l sem chamar a ateno, ocupar de novo as nossas casas, tratar do vinhedo e cultivar uma nova safra. Melanie sorriu. - ... - disse. Ela acredita. Eu no tenho certeza se acredito. Mas no vou pensar mais nisso. Preocupar-me s servir para corroer minha vontade. Nada de dvidas agora. S ao. - Voc quer voltar para o armazm? - perguntou Melanie. - No. Vou enlouquecer fechado naquele buraco o dia inteiro. Toca para a cidade e vamos ver se conseguimos encontrar um restaurante que esteja servindo brunch. Estou morrendo de fome. *** pgina 443 Judy e Michael levaram Dusty para Stockton, onde moravam os pais de Michael. Dusty ficou entusiasmado por andar de helicptero. O pouso foi no campo de futebol de uma escola secundria. O pai de Michael era um contador aposentado que morava numa boa casa, cujos fundos davam para um campo de golfe. Judy tomou um caf na cozinha, enquanto ele acomodava o filho. A Sra. Quercus comentou, preocupada: - Talvez essa coisa terrvel venha melhorar os negcios de Michael. De qualquer forma, um vento ruim que no beneficia ningum. Judy lembrou que os pais de Michael tinham aplicado dinheiro na consultoria aberta pelo filho e que ele estava preocupado em pagar o que lhes devia. Mas a me estava certa - o fato de ele ser o especialista do FBI em terremotos podia ajudar. A cabea de Judy estava no vibrador ssmico. No o tinham encontrado na comunidade. No fora visto desde a noite de sexta-feira, embora os painis anunciando o brinquedo de parque de diverses tivessem sido encontrados ao lado da estrada por um dos cento e tantos operrios que ainda trabalhavam na regio de Felicitas atingida pelo terremoto. Judy sabia em que tipo de carro Granger se encontrava. Descobrira perguntando aos membros da comunidade que carros tinham e checando os que faltavam. Ele estava usando uma picape e ela expedira um comunicado geral para encontr-lo. Em teoria, cada policial da Califrnia deveria estar agora procurando a picape, mas Judy sabia que quase todos
certamente estariam ocupados enfrentando os problemas decorrentes da emergncia. Judy viu-se atormentada de maneira quase insuportvel pela idia de que poderia ter pego Granger na comunidade, caso tivesse insistido mais com Cleever e o persuadido a realizar a incurso na noite da vspera. Mas fora vencida pelo cansao. Sentia-se melhor agora - a incurso bombeara adrenalina no seu sistema e lhe dera energia. Mas estava ferida fsica e mentalmente, sentia-se vazia por dentro. pgina 444 A pequena televiso colocada sobre a bancada da cozinha estava ligada sem som. Quando apareceu um noticirio, Judy pediu Sra. Quercus para aumentar o volume. Estavam mostrando uma entrevista com John Truth, que falara ao telefone com Richard Granger. Ele tocou um extrato da gravao da conversa. - Sete da noite - disse Priest na fita. - Vou atacar s sete da noite. Judy sentiu um calafrio. Ele falava srio. No havia arrependimento ou remorso em sua voz, tampouco qualquer sinal de que hesitasse em arriscar as vidas de tanta gente. Parecia racional, mas havia uma falha no seu discurso. Na verdade, ele no se importava com o sofrimento dos outros. Era uma caracterstica dos psicopatas. Gostaria de saber o que Simon Sparrow descobriria naquela voz. Mas era tarde demais para psicolingstica. Ela foi , at a porta da cozinha e exclamou: - Michael! Temos que ir andando! Teria preferido deixar Michael ali com Dusty, onde ambos estariam em segurana. Mas precisava dele no posto de comando. Seus conhecimentos podiam ser importantssimos. Ele veio, com Dusty. - Estou quase pronto - disse. Nesta hora o telefone tocou ! e a Sra. Quercus atendeu. Aps um momento, passou o aparelho para o neto. - Tem uma pessoa querendo falar com voc - disse. Dusty pegou o telefone e disse, incerto: - Al? - a seu rostinho iluminou-se. - Oi, mame! Judy gelou. Era Melanie. - Acordei hoje de manh e voc no estava! - disse Dusty. - Depois papai veio me pegar! Melanie, quase que certamente, estava com Priest e o vibrador ssmico. Judy pegou seu celular e telefonou para o posto de comando. Conseguiu falar com Raja. - Quero que voc rastreie uma ligao. Melanie Quercus est falando com um telefone em Stockton - ela leu o nmero ; do aparelho que Dusty estava usando. - O telefonema comeou h um minuto e continua. pgina 445 - Deixa comigo! Judy desligou. Dusty estava ouvindo, balanando e sacudindo a cabea de vez em quando, esquecido de que a me no poderia ver seus movimentos. At que,
abruptamente, passou o telefone ao pai. - Ela quer falar com voc. Judy cochichou para Michael: - Pelo amor de Deus, descubra onde ela se encontra! Ele segurou o telefone de encontro ao peito, abafando-o. - Peque a extenso do quarto. - Onde? Foi a me de Michael que respondeu. - Logo ali no corredor, querida. Judy voou para o quarto, jogou-se em cima da colcha florida e pegou o telefone na mesinha-de-cabeceira, cobrindo o bocal com a mo. Ouviu Michael perguntar: - Melanie - onde diabos voc est? - Esquece isso - replicou Melanie. - Vi voc e Dusty na televiso. Ele est bem? Ela assiste a televiso, onde quer que se encontre. - Dusty est legal - disse Michael. - Acabamos de chegar aqui. - Eu estava na esperana de encontrar vocs a. Ela falava baixo, e Michael pediu: - D pra falar mais alto? - No, no posso, v se se esfora mais para escutar, OK? Ela no quer que Granger a oua. timo - pode ser um sinal de que comeam a discordar. - Tudo bem - concordou Michael. - Voc vai ficar a com Dusty. Certo? - No - respondeu Michael. - Vou para a cidade. - O qu? Pelo amor de Deus, Michael, perigoso! - O terremoto vai ser em San Francisco? - No posso lhe dizer. - Ser na pennsula? pgina 446 - Sim, na pennsula, e por isso fique longe com Dusty! O celular de Judy chamou. Mantendo o bocal da extenso do telefone fixo fortemente protegido, ela levou o celular ao outro ouvido e disse: - Pronto. Era Raja. - Ela est falando do celular. Do centro da cidade de San Francisco. No conseguem mais do que isto quando se trata de telefone celular. - Ponha gente na rua procurando a picape. - Pode deixar. Judy desligou. Michael estava dizendo: - Se est to preocupada, porque simplesmente no me diz onde se encontra o vibrador? - No posso! - cochichou ela. - Voc est maluco! - Ora, deixa disso. Sou eu que estou maluco? voc quem est causando os terremotos! - No posso falar mais. Ouviu-se um clique e Judy recolocou o aparelho no lugar e rolou na cama, ficando de costas, a cabea funcionando a mil. Melanie dera uma grande quantidade de informaes. Encontrava-se em alguma parte do centro da cidade de San Francisco e, embora isto no tornasse a tarefa
fcil, o palheiro era muito menor do que todo o estado da Califrnia. Ela dissera que o terremoto seria em algum ponto da pennsula de San Francisco, a faixa estreita de terra que se estendia entre o oceano Pacfico e a baa de San Francisco. O vibrador ssmico tinha de estar em algum ponto daquela rea. O mais intrigante para Judy, contudo, fora o indcio de uma divergncia entre Melanie e Granger. Obviamente ela dera aquele telefonema sem falar com ele e parecia ter medo de que a ouvisse. Era promissor podia ser que Judy conseguisse tirar alguma vantagem disso. Judy fechou os olhos, concentrando-se. Melanie estava preocupada com Dusty. Este era o seu ponto fraco. Poderia .ser usado contra ela? Ouvindo passos, Judy abriu os olhos. Michael entrou no quarto e lhe dirigiu um olhar estranho. pgina 447 - O qu? - Pode parecer inadequado, mas voc fica tima deitada numa cama. Judy lembrou-se de que estava na casa dos pais dele e levantou-se. Michael abraou-a. Ela achou timo. - Como est seu rosto? - perguntou ele. Judy levantou os olhos. - Voc muito gentil... Ele beijou delicadamente seus olhos. Se ele quer me beijar quando estou com esta aparncia pssima, deve gostar realmente de mim. - Mmm - disse Judy - quando isto terminar... - Sim. Ela fechou os olhos por um momento e comeou a pensar novamente em Melanie. - Michael... - No desliguei - pode falar. Judy libertou-se do abrao. - Melanie est preocupada com a possibilidade de Dusty estar na zona do terremoto. - Ele vai ficar aqui. - Mas voc no confirmou isto. Ela lhe perguntou, mas voc disse que j que estava to preocupada deveria lhe dizer onde se encontrava o vibrador e voc no chegou a responder direito pergunta. - Ainda assim, evidente que... Quer dizer, por que motivo eu o levaria para um lugar perigoso? - Eu s estou dizendo que ela est atormentada por essa dvida e que, onde quer que se encontre, h uma televiso. - s vezes ela deixa a televiso ligada no canal de notcias o dia inteiro - diz que a acalma. Judy sentiu uma pontada de cime. Ele a conhece to bem. E se fizermos um reprter entrevistar voc, no centro de operaes de emergncia de San Francisco, acerca do que est fazendo para ajudar o Bureau... e Dusty estiver, digamos, no fundo, em algum lugar? pgina448
- A ela saber que ele est em San Francisco. - E o que faria? - Acho que ia me telefonar e ter um ataque. - E se no pudesse entrar em contato com voc - Ficaria realmente apavorada. - Mas impediria Granger de operar o vibrador? - Talvez. Se tivesse condies. - Vale a pena tentar? - H outra alternativa? *** Priest estava em clima de tudo ou nada. Talvez o governador e o presidente no cedessem, nem mesmo depois do terremoto de Felicitas. Mas hoje seria o terceiro terremoto. Depois ele ligaria para John Truth e diria: "Vou fazer de novo! Na prxima vez poder ser em Los Angeles, San Bernardino ou San Jos. Posso fazer isto tantas vezes quantas quiser. E vou continuar fazendo at vocs cederem. A escolha sua!" O centro de San Francisco era uma cidade fantasma. Poucas pessoas queriam fazer compras ou simplesmente passear, embora houvesse muita gente indo s igrejas. O restaurante estava meio vazio. Priest pediu ovos e bebeu trs Bloody Marys. Melanie estava abatida, preocupada com Dusty. Priest achava que o garoto estaria bem, j que se encontrava com o pai. - J lhe contei por que me chamo Granger? - perguntou a Melanie. - No o nome do seu pai? - Minha me chamava a si prpria de Veronica Nightingale. Ela me dizia que o nome do meu pai era Stewart Granger. Que ele fora fazer uma longa viagem, mas haveria de voltar, em uma limusine enorme cheia de presentes - perfumes e bombons para ela e uma bicicleta para mim. Nos dias de chuva, quando eu no podia brincar na rua, costumava ficar sentado junto da janela esperando por ele, hora aps hora. Por um momento Melanie pareceu esquecer o prprio problema. pgina 449 - Pobre criana - disse. - Eu tinha cerca de doze anos quando descobri que Stewart Granger era um grande astro do cinema. Fez o papel de Allan Quatermain em As minas do rei Salomo bem na poca em que nasci. Acho que no passava de uma fantasia da minha me. Mas me partiu o corao, palavra. Todas aquelas horas olhando pela maldita janela. Priest sorriu, mas a lembrana doeu. - Quem sabe? - disse Melanie. - Talvez ele fosse mesmo seu pai. Os artistas de cinema procuram as prostitutas. - Acho que eu devia perguntar a ele. - Est morto. - mesmo? Eu no sabia. - Est sim, eu li na revista People h alguns anos.
Priest sentiu a dor aguda da perda daquilo que fora a coisa mais parecida com um pai que ele j tivera. - Bem, agora no saberei nunca - deu de ombros e pediu a conta. Quando saram do restaurante, no quis retornar para o armazm. Podia facilmente ficar sem fazer nada quando estava na comunidade, mas dentro de uma salinha encardida em um armazm arruinado no ia agentar. Vinte e cinco anos no vale o tinham estragado para a vida na cidade. Assim, ele e Melanie foram dar uma volta pelo Fisherman's Wharf, se fazendo de turistas, desfrutando a brisa salgada da baa. Priest ouviu a conversa das poucas pessoas que tambm estavam caminhando. Todo mundo tinha uma desculpa para no deixar a cidade. - No estou preocupada, o nosso edifcio prova de terremotos... - O meu tambm, mas s sete horas vou estar no meio do parque... - Acredito no destino: ou o meu nome est na lista das fatalidades causadas por esse terremoto ou no est... - Exatamente, voc pode ir de carro para Las Vegas, bater morrer na estrada... - Mandei reforar a estrutura da minha casa... pgina 450 - Ningum pode causar terremotos, foi uma coincidncia... Voltaram ao carro poucos minutos depois das quatro horas. Priest no viu o policial seno quando j era quase tarde demais. , Os Bloody Marys o tinham tornado estranhamente calmo e ele se sentia quase invulnervel, de modo que no se preocupara com a polcia. Estava apenas a uns trs metros da picape quando notou um policial uniformizado olhando para a placa e falando num rdio porttil. Priest parou prontamente e agarrou o brao de Melanie. Um momento mais tarde deu-se conta de que o melhor teria sido passar direto, mas a j era tarde demais. O policial tirou o olho da placa e voltou sua ateno para Priest. Priest olhou para Melanie, que no tinha visto o policial. Quase disse No olhe para o carro. Mas percebeu ainda a tempo que isso com certeza a faria olhar. Por isso falou a primeira coisa que lhe veio cabea. - Olha para a minha mo - e virou a palma da mo para cima. Ela examinou a palma da mo e depois olhou para ele de novo. - O que que eu devo ver? - Continua olhando para a minha mo enquanto eu explico. Ela fez o que ele disse. - Vamos passar direto pelo carro. Tem um policial anotando o nmero da placa. Ele reparou em ns; eu o estou vendo com o canto do olho. Ela levantou os olhos da mo de Priest para o rosto dele. A, para seu assombro, deu-lhe uma bofetada. Doeu. Priest sufocou um grito. Melanie berrou: - E agora voc pode voltar para sua loura burra! - O qu? - exclamou ele, furioso. Ela saiu andando. Priest ficou olhando para Melanie, assombrado. Ela passou pela picape
em passadas largas e vigorosas. pgina 451 O policial virou-se para Priest com um quase sorriso. Priest saiu andando atrs de Melanie, dizendo: - Ei, espera um minuto! O policial retornou a ateno para a placa da picape. Priest alcanou Melanie e os dois juntos dobraram a esquina. - Muito bonitinho - disse ele. - Mas no precisava ter batido com tanta fora. *** Um poderoso projetor porttil foi aceso em cima de Michael e um microfone em miniatura preso na gola de sua camisa plo verde-escura. Uma pequena cmera de televiso, montada em cima de um trip, teve o foco acertado nele. Atrs, os jovens sismlogos trazidos por Michael trabalhavam diante de seus monitores. Na frente de Michael estava sentado Alex Day, um jovem reprter de televiso. Alex vestia uma jaqueta de tecido camuflado, o que Judy considerou excessivamente dramtico. Dusty ficou ao lado de Judy, segurando confiantemente a mo dela, vendo o pai ser entrevistado. Michael estava dizendo: - Sim, podemos identificar os locais onde seria mais fcil desencadear artificialmente um terremoto - mas, lamentavelmente, no podemos dizer qual foi a localizao escolhida pelos terroristas seno depois que eles puserem o vibrador ssmico para operar. - E qual seria o seu conselho? Como os cidados podem se proteger se houver um terremoto? - O lema "Agache-se, proteja-se e fique", e este o melhor conselho - respondeu ele. - Agache-se embaixo de uma mesa, proteja o rosto dos estilhaos de vidro que voam e fique nessa posio at que o tremor de terra cesse. Judy cochichou para Dusty. - OK, v at onde est o papai. Dusty entrou no campo da cmera. Michael colocou o menino sentado no joelho. Aproveitando a deixa, Alex Day perguntou: pgina 452 - Alguma coisa especial que nos ajude a proteger nossas crianas? - Bem, pode-se praticar o "Agache-se, proteja-se e fique" agora, para que elas saibam o que fazer quando ocorrer o tremor. bom que os pais assegurem-se de que elas estejam usando sapatos pesados, no chinelos ou sandlias de dedo, porque haver muitos estilhaos de vidro no cho. E que fiquem perto dos pais, para que estes no tenham de sair depois a procur-las. - Alguma coisa que as pessoas devam evitar? - No saiam de casa. A maior parte dos ferimentos em terremotos
causada por tijolos e outros escombros que caem. - Professor Quercus, obrigado por ter estado conosco hoje. Alex Day sorriu, imvel, para Michael e Dusty por um longo momento e o homem da cmera disse: - Saiu timo. Todo mundo relaxou. A equipe da televiso comeou rapidamente a arrumar o equipamento. - Quando vou poder ir para a casa da vov de helicptero? - quis saber Dusty. - Agora - respondeu Michael. Judy disse: - Em quanto tempo isso ser transmitido, Alex? - perguntou Judy ao entrevistador. - Praticamente no precisa de edio, de modo que poder ir para o ar agora. Dentro de meia hora, eu diria. Judy olhou para o relgio. Eram cinco e quinze. *** Priest e Melanie andaram meia hora sem ver um txi. Depois ela ligou para um radio-txi pelo telefone celular, mas tambm no conseguiu nada. Priest achou que ia ficar louco de raiva. Depois de tudo o que fizera seu grande esquema estava em perigo porque no conseguia encontrar um maldito txi! pgina 453 Mas por fim, um Chevrolet imundo parou no Per 39. O motorista tinha um nome tpico da Europa central, que era ilegvel, e parecia drogado. No entendia outras palavras que no "esquerda" ou "direita" e provavelmente era a nica pessoa em San Francisco que no tomara conhecimento do terremoto. Priest e Melanie voltaram para o armazm s seis e vinte. *** No centro de operaes de emergncia, Judy desabou na sua cadeira, olhando fixamente para o telefone. Eram seis e vinte e cinco. Dentro de trinta e cinco minutos Granger acionaria seu vibrador ssmico. Se funcionasse to bem quanto funcionara nas ltimas duas vezes, haveria um terremoto. Mas este seria pior. Presumindo que Melanie tivesse dito a verdade e que o vibrador se encontrasse em algum ponto da pennsula de San Francisco, o terremoto quase que certamente atingiria a cidade. Cerca de dois milhes de pessoas tinham fugido da rea metropolitana desde a noite de sexta-feira, quando Granger anunciara no programa de John Truth que o prximo terremoto atingiria San Francisco. Mas isso deixava de fora mais de um milho de homens, mulheres e crianas incapazes ou que no queriam sair de suas casas: pobres, velhos, doentes, alm de todos os policiais, bombeiros, enfermeiros e
funcionrios municipais esperando que comeasse o trabalho de salvamento. Entre eles, Bo. Na tela da televiso, Alex Day falava de um estdio improvisado montado pelo centro de emergncia do prefeito numa rua a poucos quarteires de distncia. O prefeito tinha um capacete na cabea e trajava um colete prpura e dizia aos cidados para se agacharem debaixo de mesas fortes, Protegerem o rosto , dos estilhaos de vidro e para ficarem na primeira posio segura que encontrassem at o fim do tremor de terra. pgina 454 A entrevista de Michael era repetida a todo instante; os editores da televiso haviam sido informados do real objetivo dela. Melanie, contudo, no parecia estar assistindo. A picape de Priest fora encontrada estacionada no Fisherman's Wharf s quatro horas. Estava sob vigilncia, mas ele no voltara para peg-la. Naquele exato momento, cada garagem e estacionamento da regio estavam sendo examinados na busca ao vibrador ssmico. O salo de baile do clube de oficiais estava cheio de gente. E avia pelo menos quarenta homens de terno e gravata na rea destinada chefia. Michael e sua turma estavam agrupados em torno dos computadores esperando pelo primeiro sinal do tremor de terra. A equipe de Judy ainda trabalhava aos telefones, seguindo pistas de pessoas que fossem parecidas com Melanie e Priest, mas havia um tom cada vez mais desesperado em suas vozes. Fazer Dusty aparecer na entrevista de televiso com Michael fora sua ltima esperana e parecia ter falhado. A maior parte dos agentes que trabalhava ali no Centro de Emergncia tinha casas na rea da baa. A turma de administrao organizara a evacuao das suas famlias. A edificao em que se encontravam era considerada to segura quanto qualquer outra; fora reforada pelo Exrcito para torn-la resistente a terremotos. Mas no podiam fugir. Como os soldados, os bombeiros e os policiais, tinham de ir para onde estivesse o perigo. Era seu trabalho. Do lado de fora, no campo de parada, uma frota de helicpteros estava pronta para levantar vo, motores ligados e rotores girando, esperando para levar Judy e seus companheiros regio do epicentro do terremoto. *** Priest foi ao banheiro. Quando estava lavando as mos, ouviu o grito de Melanie. . Correu para o escritrio ainda com as mos molhadas e a encontrou com os olhos fixos na televiso. - O que ? - perguntou. pgina 455 O rosto dela estava branco, e com uma das mos tapava a boca. - Dusty! - exclamou, apontando para a tela. Priest viu o marido de Melanie ser entrevistado, com o filho sentado
no joelho. Um momento depois, a cena mudou e apareceu uma apresentadora que disse: - Este foi Alex Day, entrevistando um dos maiores sismlogos do mundo, o professor Michael Quercus, no centro de operaes de emergncia do FBI no Presdio. - Dusty est em San Francisco! - exclamou Melanie , histrica. - No, no est - retorquiu Priest. - Talvez estivesse quando fizeram essa entrevista. Mas agora est a quilmetros de distncia. - Voc no sabe disso ao certo! - Claro que sei. E voc tambm. Michael vai tomar conta do filho. - Quisera saber ao certo - disse Melanie, a voz trmula. - Faa uma xcara de caf - disse Priest, s para lhe dar algo para fazer. - OK - ela retirou a panela de cima da chapa eltrica e foi ench-la com gua no banheiro. *** Judy olhou para o relgio. Eram seis e meia. Seu telefone tocou. A sala mergulhou em absoluto silncio. Ela agarrou o aparelho, deixou cair, praguejou, pegou de novo e levou-o ao ouvido. - Sim? A operadora da mesa disse: - Melanie Quercus perguntando pelo marido. Graas a Deus! Judy apontou para Raja: - Rastreiem a ligao. Ele j estava falando ao telefone. pgina 456 Judy dirigiu-se para a operadora da mesa. - Pode passar. Todos os chefes se reuniram em torno da cadeira de Judy. Permaneceram em silncio, esforando-se para ouvir. Este pode ser o telefonema mais importante da minha vida. Houve um clique na linha, Judy tentou falar com calma e disse: - Agente Maddox falando. - Onde est Michael? Melanie parecia to assustada e preocupada que Judy sentiu pena dela. Parecia to-somente uma me qualquer preocupada com o filho. Cai na real, Judy. Esta mulher uma assassina. Judy endureceu o corao. - Onde voc est, Melanie? - Por favor - sussurrou Melanie. - S quero que voc me diga aonde foi que ele levou Dusty. - Vamos fazer um trato - disse Judy. - Eu lhe asseguro que Dusty est OK, se voc me disser onde se encontra o vibrador ssmico. - Posso falar com o meu marido? - Voc est com Ricky Granger? Quer dizer, Priest?
- Sim. - E vocs tm a o vibrador ssmico, onde quer que se encontrem? - Sim. Ento estamos quase pegando vocs. - Melanie - voc realmente deseja matar tanta gente? - No, mas ns temos... . - Voc no ser capaz de tomar conta de Dusty enquanto estiver na cadeia. No ver seu filho crescer - Judy ouviu um soluo do outro lado da linha. - S o ver atravs de uma divisria de vidro. Quando chegar a hora em que for libertada, ele j ser um homem adulto, que no conhecer a prpria me. Melanie estava chorando. - Diga-me onde voc est, Melanie. No grande salo de baile o silncio foi total. Ningum se mexeu. pgina 457 Melanie murmurou qualquer coisa mas Judy no conseguiu ouvir. - Fala alto! , No outro lado da linha, ao fundo, um homem gritou: - Com quem voc est falando, porra? Judy insistiu. - Depressa, depressa! Diga-me onde voc est! O homem urrou: - Me d essa merda desse telefone! Melanie disse: - Perpetua - e em seguida soltou um grito. Um momento depois a ligao estava desfeita. Raja disse: - Ela est em algum ponto da orla da baa, ao sul da cidade. - No basta! - reclamou Judy. - Eles no conseguem ser mais precisos! - Bosta! Stuart Cleever interveio. - Silncio, todo mundo. Vamos tocar a gravao deste telefonema em um momento. Antes, Judy, ela deu alguma pista? - Disse qualquer coisa no fim, pareceu-me algo como "Perpetual". Carl, v se no tem uma rua com esse nome. Raja disse: - Vamos procurar uma firma tambm. Pode ser que estejam na garagem de algum edifcio comercial. - Faa isso. Cleever deu um soco na mesa, de frustrao. - O que a fez desligar? - Acho que Granger a pegou falando e tirou o telefone dela. - O que voc vai querer fazer agora? - Gostaria de pegar um helicptero. - Podemos ir at a orla martima. Michael vai comigo e aponta os pontos por onde passa a falha. Talvez consigamos localizar o vibrador. - Faa isso - disse Cleever.
pgina 458 Priest encarou Melanie, enfurecido. Ela estava agachada de encontro pia encardida. Melanie tentara tra-lo. Ele a teria liquidado ali mesmo se tivesse uma arma. Mas o revlver que tomara do guarda de Los Alamos ficara no vibrador, embaixo do banco do motorista. Desligou o telefone de Melanie, enfiou-o no bolso da camisa e tentou acalmar- se. Isso era uma coisa que Star lhe ensinara. Quando jovem ele se deixava levar pela raiva, sabendo que assim conseguiria amedrontar as outras pessoas, porque mais fcil lidar com quem tem medo. Mas Star lhe ensinara a respirar direito, relaxar e pensar, o que era melhor, a longo prazo. Considerou o dano que Melanie havia causado. Teria o FBI sido capaz de rastrear o telefonema? Eles poderiam descobrir de onde estava sendo feita uma ligao atravs de um celular? Tinha que presumir que sim. Neste caso, a esta hora estariam vasculhando aquela rea, procurando um vibrador ssmico. No tinha mais tempo. A janela ssmica abria s seis e quarenta. Olhou para o relgio: eram seis e trinta e cinco. Ao diabo com seu limite de sete horas - tinha que dar incio ao terremoto agora. Saiu correndo do banheiro. O vibrador ssmico estava no meio do armazm vazio, de frente para a porta de entrada. Pulou na cabine e deu a partida ao motor. Precisava-se de uns dois minutos para a presso subir no mecanismo vibratrio. Ele observou os medidores impacientemente. Vamos, vamos! Finalmente os ponteiros chegaram no setor verde. A porta do passageiro abriu-se e Melanie subiu. - No faa isso! - gritou ela. - No sei onde est o Dusty! Priest estendeu a mo para a alavanca que abaixava o prato do vibrador at o cho. Melanie bateu na mo dele. - Por favor, no! Priest deu uma bofetada nela com as costas da mo. Melanie gritou e o sangue correu do seu lbio. - Sai fora! - gritou ele. Puxou a alavanca e o prato desceu. Melanie empurrou a alavanca para a posio inicial. pgina 459 Priest perdeu a cabea. Bateu nela de novo. Melanie gritou e cobriu o rosto com as duas mos, mas no fugiu. Priest empurrou de novo a alavanca para a posio onde o prato ficava no solo. - Por favor - disse ela. - No. O que que eu vou fazer com essa imbecil? Ele se lembrou da arma. Meteu a mo debaixo do banco e puxou-a. Era grande demais, desajeitada naquele espao to pequeno. Apontou a arma para Melanie. - Saia do caminho - ordenou. Para sua surpresa, ela atirou-se de novo contra ele, comprimindo o
corpo de encontro ao cano da arma e levantou a alavanca. Ele puxou o gatilho. O disparo foi ensurdecedor na pequena cabine do caminho. Por uma frao de segundo, uma pequena parte do crebro de Priest sentiu remorso por ter arruinado aquele belo corpo; mas ele tirou aquilo do pensamento. Melanie foi lanada para trs e, como a porta da cabina ainda estava aberta, caiu e foi bater no cho com um baque nauseante. Priest no parou para ver se estava morta. Pela terceira vez puxou a alavanca. Quando o prato fez contato com o piso do armazm, Priest acionou a mquina. *** Era um helicptero de quatro lugares. Judy estava sentada ao lado do piloto e Michael atrs. Voavam rumo sul ao longo do litoral da baa de San Francisco quando Judy ouviu nos fones de cabea a voz de uma das alunas de Michael que trabalhava como sua assistente, chamando do posto de comando. - Michael! Aqui a Paula! Comeou - um vibrador ssmico! pgina 460 Judy sentiu um arrepio de medo. Eu achava que tinha mais tempo! Verificou o relgio: eram seis e quarenta e cinco. O prazo fatal de Granger seria em quinze minutos. O telefonema de Melanie devia t-lo feito antecipar o incio do funcionamento do vibrador. Michael estava perguntando: - O sismgrafo acusa tremores? - No - s o vibrador ssmico... at agora. Sem terremotos por enquanto. Graas a Deus. Judy gritou no seu microfone. - Diga as coordenadas, rpido! - Espere um minuto, as coordenadas ainda esto sendo calculadas. Judy pegou um mapa. Depressa, depressa! Um longo momento mais tarde Paula leu os nmeros que tinha na sua tela. Judy localizou-os no mapa e disse para o piloto: - Trs mil e duzentos metros para o sul e depois cerca de quinhentos metros para dentro. Ela sentiu o estmago revirar quando o helicptero mergulhou e ganhou velocidade. Estavam voando sobre a regio do velho cais do porto, cheia de fbricas em escombros e depsitos de carros velhos. Teria sido uma regio tranqila em um domingo normal; naquele, estava vazia. Judy esquadrinhou o horizonte, procura de um caminho que pudesse ser o vibrador ssmico. Viu duas viaturas policiais acelerando na mesma direo em que ia. Olhando para oeste, localizou a van da SWAT do FBI aproximando-se. L atrs, no Presdio, os outros helicpteros estariam levantado vo,
cheios de agentes armados. Em breve metade das viaturas policiais do Norte da Califrnia estariam seguindo para as coordenadas que Paula dera. Michael voltou a dirigir-se sua assistente: - Paula! O que est acontecendo na sua tela? - Nada. O vibrador est operando mas no est provocando qualquer efeito. pgina 461 - Graas a Deus! - exclamou Judy. - Se ele agir como antes - disse Michael - vai deslocar o caminho cerca de quinhentos metros e tentar de novo. O piloto disse: - Pronto. Chegamos s suas coordenadas - o helicptero comeou a circular. Judy e Michael examinaram tudo, procurando freneticamente o vibrador. No solo, nada se movia. *** Priest praguejou. A mquina estava funcionando, mas no havia terremoto. Aquilo acontecera antes, em ambas as vezes. Melanie dissera que na verdade no compreendia por que funcionava numa localizao e no funcionava em outra. Provavelmente tinha a ver com diferentes tipos de subsolo. Das duas vezes o vibrador desencadeara o terremoto somente na terceira tentativa. Mas hoje Priest realmente precisava ter sorte da primeira vez. O que no aconteceu. Fervendo de raiva e frustrao, ele desligou o mecanismo e levantou o prato. Tinha que deslocar o caminho. Saltou da cabine. Pulando por cima do corpo de Melanie, cado de encontro parede e sangrando no piso de concreto, Priest correu at a entrada. A porta dupla, alta e antiquada, recuava cada folha para admitir veculos grandes. Numa delas havia uma porta pequena, para trnsito de pessoas. Priest abriu a porta pequena. *** Em cima da entrada de um armazm pequeno, Judy viu uma placa onde leu "Perpetua Diaries". pgina 462 Pensara que Melanie estivesse dizendo "Perpetual". - ali o lugar! gritou. - Desce! O helicptero desceu rapidamente, evitando uma linha de alta tenso e aterrissou no meio da rua deserta.
Assim que sentiu a batida do contato com o cho, Judy abriu a porta. *** Priest deu uma olhada do lado de fora. Um helicptero tinha pousado na rua. Enquanto olhava, algum saltou do aparelho. Era uma mulher com um curativo . no rosto. Ele reconheceu Judy Maddox. O palavro que Priest gritou perdeu-se no barulho do helicptero. No havia tempo para abrir a porta grande. Correu de volta para o caminho, subiu na cabine e engrenou a r. Recuou o mximo que pde dentro do armazm, parando quando bateu na parede. Em seguida, ento, engrenou a primeira, acelerou furiosamente o motor e soltou a embreagem com um movimento brusco. O caminho deu um solavanco para a frente. Comprimiu o acelerador at o fim. Com o motor fazendo um barulho infernal, o enorme caminho ganhou velocidade no interior do armazm e bateu na velha porta de madeira. Judy Maddox estava do outro lado, arma na mo. Espanto e medo apareceram nas suas feies quando o caminho passou derrubando a porta. Priest riu ferozmente quando a viu. Judy pulou de lado e o caminho no a pegou por um centmetro. O helicptero estava no meio da rua. Priest reconheceu o homem que saltava do aparelho - era Michael Quercus. Acertou o volante na direo do helicptero, mudou de marcha e acelerou. *** pgina 463 Judy rolou o corpo, fez pontaria na porta do motorista e deu dois tiros. Achou que podia ter acertado em alguma coisa, mas no conseguiu deter o caminho. O helicptero levantou vo rapidamente. Michael correu para o lado da rua. Judy achou que Granger estava querendo atingir o trem de aterrissagem do helicptero, como fizera em Felicitas, mas desta vez o piloto foi mais rpido que ele e subiu depressa, de modo que o caminho passou direto, sem atingi-lo. Mas na pressa o piloto se esqueceu das linhas de alta tenso. Havia cinco ou seis cabos estendidos entre os postes altos. A lmina do rotor pegou neles, cortando alguns. O motor do helicptero falhou. Um dos postes cedeu tenso e caiu. O rotor comeou a girar de novo, mas o aparelho a j tinha perdido altura e caiu no cho com um enorme estrondo. *** A Priest restava uma ltima esperana.
Se ele pudesse dirigir uns quinhentos metros, abaixar o prato e acionar o vibrador, conseguiria provocar um terremoto antes do FBI peg-lo. E em meio ao caos do terremoto, talvez escapasse, como j acontecera antes. Deu um golpe de direo e afastou-se. *** Judy atirou de novo quando o caminho desviou-se do helicptero acidentado. Queria atingir Granger ou alguma parte essencial do motor, mas no teve sorte. O caminho prosseguiu, intato. Ela olhou para o helicptero. O piloto no se mexia. Olhou de novo para o vibrador ssmico, que ia ganhando velocidade gradualmente. pgina 464 Quisera ter um rifle. Michael aproximou-se, correndo. - Voc est bem? - Estou - ela tomou uma deciso. - V se consegue ajuda para o piloto - vou atrs de Granger. Ele hesitou, mas acabou concordando. - OK. Judy enfiou a pistola no coldre e correu atrs do caminho. Era um veculo lerdo, que precisava de longos momentos para acelerar. Em princpio, ela encurtou rapidamente a distncia que a separava dele. Depois Granger engrenou uma marcha mais rpida e o caminho ganhou velocidade. Judy correu o mais depressa que pde, o corao batendo forte, o peito doendo. Havia uma imensa roda sobressalente presa na tampa de trs do caminho. Judy ainda ia reduzindo a distncia, mas no to depressa. Justo quando comeou a pensar que nunca conseguiria alcan-lo, Granger mudou de marcha de novo, e, aproveitando a perda momentnea de velocidade, ela apertou o ritmo das passadas e pulou para alcanar a tampa de trs. Meteu um p no pra-choque e se agarrou na roda sobressalente. Por um momento pensou, apavorada, que ia escorregar e cair e olhou para baixo, para ver a rua passando velozmente. Mas conseguiu se segurar. Passou para o piso da caamba do caminho entre os tanques e as vlvulas da maquinaria. Cambaleou na tentativa de se equilibrar, quase caiu e endireitou-se. No sabia se Granger a tinha visto. Ele no podia operar o vibrador enquanto o caminho estivesse em movimento, de modo que Judy permaneceu onde se encontrava, o corao batendo com fora, esperando que ele parasse. Mas Priest a vira. Ela ouviu barulho de vidro quebrado e viu o cano de uma arma aparecer na janela de trs da cabine. Abaixou-se, instintivamente. No momento seguinte ouviu uma bala ricochetear em um tanque ao seu lado. Chegou para a esquerda para ficar diretamente atrs de Granger e agachou-se, o corao na boca. Ouviu outro tiro, e encolheu-se, a bala no a atingiu.
Ele pareceu ter desistido. pgina 465 Mas no tinha. O caminho freou bruscamente. Judy foi jogada para a frente e bateu com a cabea num cano. Em seguida Granger deu uma guinada violenta para a direita. Por um terrvel momento pensou que fosse ser arremessada para morrer no asfalto da rua, mas conseguiu se agarrar em cima do caminho. Viu que Granger estava arremetendo de maneira suicida de encontro a um muro de tijolos de uma fbrica abandonada. Agarrou-se a um tanque. No ltimo instante ele freou e girou o volante, s que uma frao de segundo atrasado. Conseguiu evitar uma coliso frontal, mas a parte externa do pra-lama afundou no muro com um barulho de metal amassado e vidro quebrado. Judy sentiu uma dor terrvel nas costelas, esmagada contra o tanque onde se segurava. A seguir foi lanada no ar. Por um momento, ficou totalmente desorientada. Depois bateu no cho, caindo em cima do lado esquerdo. Sem conseguir respirar, no pde gritar de dor. Bateu com a cabea no cho, o brao esquerdo estava dormente e o pnico se apossou de sua mente. A cabea de Judy clareou um ou dois minutos depois. Sentia muita dor, mas conseguia se mexer. O colete prova de bala ajudara a proteg-la. A cala preta de veludo cotel tinha rasgado e um joelho sangrava, mas no era srio. O nariz tambm sangrava - o ferimento causado por Granger na vspera tinha reaberto. Cara perto das enormes rodas duplas do caminho. Se Granger desse marcha r, a mataria. Rolou de lado, ficando sob o caminho mas afastando-se dos pneus gigantescos. O esforo fez com que sentisse muita dor nas costelas, e ela praguejou. O caminho no recuou. Granger no estava tentando mat-la. Talvez no tivesse visto onde cara. Judy olhou para os dois lados da rua. A quatrocentos metros de distncia pde ver Michael lutando para retirar o piloto das ferragens do helicptero. Na outra direo, no havia sinal da van da SWAT ou das viaturas da polcia que vira do ar, tampouco dos outros helicpteros do FBI. Provavelmente chegariam em segundos - mas no podia perder um nico segundo. pgina 466 Ficou de joelhos e sacou a pistola. Esperou que Granger sasse da cabina para atirar, s que ele no fez isso. Foi doloroso, mas ela conseguiu pr-se de p. Quase certamente Priest a veria pelo espelho retrovisor lateral se ela se aproximasse pelo lado do motorista. Foi at o outro lado e arriscou uma olhada. Havia outro retrovisor grande tambm ali. Ajoelhou-se, deitou no cho, barriga para baixo, e rastejou por baixo do caminho. Foi se contorcendo at chegar praticamente sob a cabine. Foi quando ouviu um barulho novo e perguntou-se o que seria. Olhando para cima, viu
um imenso prato de ao. O prato estava sendo baixado exatamente em cima dela. Desesperada, rolou de lado. Seu p prendeu-se numa das rodas de trs. Por alguns momentos horrveis lutou para libertar-se enquanto o prato de ao macio deslocava-se inexoravelmente para baixo. Esmagaria sua perna como um brinquedo de plstico. No ltimo momento conseguiu retirar o p, abandonando o sapato, e rolou para fora. Agora no tinha mais nenhuma proteo. Granger a veria a qualquer segundo. Se olhasse pela janela da direita, arma na mo, poderia atingi-la facilmente. Houve uma exploso como uma bomba nos seus ouvidos e a terra comeou a tremer. O vibrador entrara em funcionamento. Tinha que fazer com que parasse. Pensou por um instante na casa de Bo. Na sua mente, ela a viu desmoronando e depois toda a rua onde ficava. Comprimindo o lado do corpo com a mo esquerda, para minorar a dor, obrigou-se a se levantar. Com dois passos chegou porta. Tinha que abri-la com a mo direita, e, para tanto, passou a pistola para a esquerda - era capaz de atirar indiferentemente com as duas mos - e virou-a para cima. Agora. pgina467 Saltou sobre o estribo, agarrou a maaneta da porta e abriu-a com um arranco. Ficou cara a cara com Richard Granger. Ele parecia to apavorado quanto ela. Judy apontou a pistola para ele e gritou: - Desliga isso! Desliga, vai! - OK - disse Priest, sorrindo e abaixando-se para pegar qualquer coisa embaixo do banco. Foi o sorriso que a alertou. Viu que ele no ia desligar o vibrador. Preparou-se para atirar. Judy nunca atirara em ningum antes. A mo dele saiu de baixo do banco carregando um revlver que parecia do tempo do Velho Oeste. Quando o cano longo girou na direo dela, Judy apontou para a cabea de Granger e puxou o gatilho. A bala o atingiu no rosto, perto do nariz. Ele atirou uma frao de segundo depois. O claro e o barulho dos dois disparos foram terrveis. Ela sentiu a tmpora direita arder. Anos de treinamento entraram em jogo. Ela aprendera a sempre atirar duas vezes, e seus msculos se lembraram. Desta vez atingiu-o no ombro. O sangue jorrou imediatamente. Ele girou de lado e caiu de encontro porta, os dedos sem energia largando a arma. Oh, Jesus, isto que se sente quando se mata uma pessoa? Judy sentiu o sangue escorrendo pelo rosto e conteve uma onda de tontura e nusea. Manteve a arma apontada para Granger. A mquina ainda estava vibrando. Olhou para os comandos - uma confuso de interruptores e mostradores. Acabara de atirar na nica pessoa que sabia como desligar aquilo. Sentiu-se invadida por uma horrvel sensao de pnico. Esforou-se para
se controlar. Tinha que haver uma chave. Havia. Inclinou-se sobre o corpo inerte de Ricky Granger e virou-a. Subitamente fez-se silncio. pgina 468 Deu uma olhada na rua. Em frente ao armazm Perpetua Diaries o helicptero estava em chamas. Michael! Abriu a porta do caminho, lutando para permanecer consciente. Sabia que tinha uma coisa para fazer, algo importante, antes de ir ajudar Michael, mas no conseguiu lembrar do que era. Desistiu de tentar e saltou do caminho. Uma sirene da polcia soou cada vez mais perto e ela viu uma radiopatrulha se aproximando. Acenou para o policial. - FBI - disse. - Leve-me para aquele helicptero. - Judy abriu a porta e caiu dentro do carro. O policial dirigiu os quatrocentos metros que os separavam do armazm e parou a uma distncia segura do helicptero em chamas. Judy saltou. No conseguia ver ningum nos restos do aparelho. - Michael! - gritou. - Onde est voc? - Aqui! - Michael estava atrs da porta arrombada do armazm, debruado sobre o piloto. Judy correu para ele. - Este cara precisa de ajuda - disse Michael. Ele reparou no rosto dela. - Meu Deus, voc tambm! - exclamou. - Estou bem - disse ela. - O socorro est vindo a. Judy pegou o celular e ligou para o posto de comando. Conseguiu falar com Raja. - Ei, Judy, o que est acontecendo? - perguntou ele. - Voc que tem que me dizer o que est acontecendo, pelo amor de Deus! - O vibrador parou. - Eu sei. Fui eu que desliguei. Algum tremor? - Nenhum. Absolutamente nada. Judy relaxou. Era um alvio saber que tinha desligado a mquina a tempo. No haveria terremoto. Encostou-se na parede. Sentiu que ia desmaiar. Lutou para manter-se de p. No se sentia vitoriosa. Talvez a alegria do triunfo viesse mais tarde, com Raja, Carl e os outros, no bar do Everton. Por ora, sentia-se simplesmente vazia. Outra radiopatrulha parou. pgina 468 - Tenente Forbes - disse o policial que saltou. - O que diabos houve aqui? Onde est o criminoso? Judy apontou para o vibrador ssmico, um pouco mais adiante. - Est na cabine daquele caminho - disse. - Morto. - Vamos dar uma olhada - o tenente entrou de novo no carro e saiu velozmente.
Michael desaparecera. Procurando por ele, Judy entrou no armazm. Viu-o sentado no piso de concreto, numa poa de sangue. Mas no era dele o ferimento. Tinha Melanie nos braos. O rosto dela estava ainda mais branco do que o comum e sua camiseta estava encharcada de sangue. Tinha um ferimento horrvel no peito. Michael estava desfigurado pela aflio. Judy aproximou-se e se ajoelhou ao lado dele. Com a mo no pescoo de Melanie tentou encontrar sinais de vida. Nada. - Sinto muito, Michael - disse ela. - Sinto muito. Ele engoliu em seco. - Pobre Dusty. Judy levou a mo ao rosto dele. - Vai dar tudo certo - disse. *** Poucos minutos depois o tenente Forbes reapareceu. - Com licena - disse, polidamente. - A senhora disse que havia um homem morto na cabine daquele caminho? - Sim, foi o que eu disse. Atirei nele. - Bem - retrucou o policial. - No est l agora. *** pgina 469 22 star ficou presa por sete anos. A princpio a priso foi uma tortura. A disciplina um inferno para uma pessoa cuja vida inteira girou em torno de liberdade. At que uma bonita carcereira chamada Jane se apaixonou por ela e passou a lhe trazer maquilagem, livros e maconha, e as coisas comearam a melhorar. Flower foi adotada por um ministro metodista e sua esposa. Eram pessoas de bom corao, mas incapazes de compreender o passado da menina. Ela sentia falta dos pais, saiu-se mal na escola e meteu-se em mais encrencas com a polcia. At que, uns dois anos depois, encontrou sua av, Veronica Nightingale, que tinha treze anos quando dera luz a Priest, de modo que no tinha muito mais que sessenta quando Flower a conheceu. Administrava uma loja em Los Angeles vendendo artigos para sexo, lingerie e vdeos porn. Tinha um apartamento em Beverly um carro esporte vermelho. Contou a Flower histrias sobre o pai dela quando menino pequeno. Flower fugiu da casa do ministro e foi morar com a av. Oaktree desapareceu. Judy sabia que tinha havido uma quarta pessoa no `Cuda em Felicitas e conseguira deduzir seu papel no episdio. Obtivera inclusive um conjunto completo de impresses digitais, recolhido na sua oficina de marcenaria na comunidade. Mas ningum sabia para onde ele fora. Suas digitais, contudo, apareceram dois anos depois em um carro roubado que fora usado em um assalto mo armada em Seattle. A polcia no suspeitou dele, porque tinha um excelente libi, mas
Judy foi automaticamente notificada. Quando reviu o caso com o promotor - seu velho amigo Don Riley, agora casado com uma corretora de seguros chegaram concluso de que eram fracas as acusaes que podiam fazer a Oaktree pela sua participao no Martelo do den e decidiram deix-lo de lado. pgina 471 Milton Lestrange morreu de cncer. Brian Kincaid aposentou-se. Marvin Hayes demitiu-se e foi ser diretor de segurana de uma cadeia de supermercados. Michael Quercus tornou-se moderadamente famoso. Por ter boa aparncia e saber explicar bem sismologia, a televiso passou a cham-lo sempre que precisava de uma opinio abalizada sobre terremotos. Sua firma prosperou. Judy foi promovida a supervisora e passou a morar com Michael e Dusty. Quando a firma dele comeou a faturar bem, compraram juntos uma casa e decidiram ter um filho. Um ms depois estava grvida e se casaram. Bo chorou no casamento. Judy deduziu como Richard Granger, ou Priest, tinha fugido. O ferimento no rosto tinha sido feio mas no srio. A bala no ombro raspara uma veia e a perda sbita de muito sangue fizera com que ele desmaiasse. Judy devia ter checado seus batimentos cardacos antes de ir ajudar Michael, mas estava enfraquecida pelos ferimentos e confusa com a perda de sangue e no seguiu a rotina. A posio em que Granger cara fez com que a presso sangnea se elevasse de novo e ele voltou a si poucos segundos depois que ela se afastou. Dobrou a esquina rastejando e teve a sorte de encontrar um carro esperando o sinal abrir. Entrou, sacou da arma e exigiu que o motorista o levasse cidade. No caminho usou o telefone celular de Melanie para ligar para Paul Beale, o engarrafador de vinho que fora cmplice de Priest nos velhos tempos. Beale lhe dera o endereo de um mdico inescrupuloso. Granger fizera o motorista larg-lo numa esquina em um bairro barra-pesada. (O cidado, traumatizado, fora para casa, ligara para a delegacia mais prxima, o telefone estava ocupado e s no dia seguinte que fora relatar o incidente.) O mdico, um cirurgio que perdera as credenciais para clinicar e que era viciado em morfina, dera os pontos em Granger. Este passara a noite no seu apartamento e fora embora. pgina 472 Judy nunca soube para onde. *** A gua sobe depressa. J inundou todas as casinhas de madeira. Por trs das portas fechadas, as camas e cadeiras artesanais flutuam. A cozinha e o templo tambm esto inundados. Ele esperou semanas para a gua atingir o vinhedo. Finalmente chegou o
dia, e as preciosas plantas esto se afogando. Tinha esperana de encontrar seu cachorro ali, mas Spirit fora embora havia muito tempo. Bebeu uma garrafa do seu vinho favorito. difcil beber ou comer por causa do ferimento no rosto, mal costurado por um mdico chapado de tanta droga. Mas conseguiu derramar pela garganta abaixo o bastante para embriagar-se. Joga a garrafa fora e pega no bolso um enorme baseado de maconha entremeada com herona em quantidade suficiente para derrub-lo. Acende, puxa uma tragada e desce a colina. Quando a gua chega nas coxas, ele se senta. D uma ltima olhada no seu vale, quase irreconhecvel. No h mais o alegre rumorejar da correnteza. S os telhados das construes so visveis, e lembram navios afundados flutuando de cabea para baixo na superfcie de uma lagoa. As parreiras que ele plantou vinte e cinco anos atrs esto submersas. No mais um vale. Tornou-se um lago e tudo que havia ali foi morto. Ele d uma longa tragada no baseado que tem entre os dedos. Aspira a fumaa mortal at o fundo dos pulmes. Sente a corrida impetuosa do prazer quando a droga entra na corrente sangnea e os elementos qumicos fluem para o crebro. O pequenino Ricky finalmente feliz, ele pensa. pgina 473 Ele rola e cai dentro da gua. Indefeso, desligado pela droga, o rosto virado para baixo. Bem devagar a conscincia se desvanece, como uma lmpada distante que fica mais e mais mortia at que, por fim, a luz se apaga. *** AGRADECIMENTOS Sou grato s seguintes pessoas pela ajuda que deram a este livro: Governador Pete Wilson, da Califrnia; Jonathan R. Wilcox, do gabinete do governador e Andrew Poat, do Departamento de Transportes; Mark D. Zoback, professor de geofsica na Universidade de Stanford; Na agncia de San Francisco do FBI: agente especial George E. Grotz, diretor de relaes com a imprensa, que abriu muitas portas; agente especial Candice DeLong, que dedicou generosamente muito tempo para me ajudar com os detalhes sobre o trabalho e a vida de um agente, e os agentes Bob Walsh, George Vinson, Charles W. Matthews III, John Gray, Don Whaley, Larry Long, Tony Maxwell e Dominic Gizzi; Na agncia de Sacramento do FBI: agentes Carole Micozzi e Mike Ernst; Pearle Greaves, especialista em computadores, quartel-general do FBI; Xerife Lee Adams, do condado de Sierra; Lucien G. Canton, diretor dos servios de emergncia do gabinete do prefeito de So Francisco; James F. Davis, Ph.D., gelogo do estado da Califrnia e Sherry Reser do departamento de proteo dos recursos naturais;
Charles Yanez, Janet Loveday e Donnie McLendon, da Western Geophysical; Rhonda G. Boone da Western Atlas International e Jesse Rosas, motorista de trator; Seth Rosing DeLong; pgina 476 Dr. Keith J. Rosing, diretor dos servios de emergncia do Irvine Medical Center; Brian Butterworth, professor de neuropsicologia cognitiva, University College, Londres. Quase todas as pessoas relacionadas foram localizadas por Dan Starer, da Research for Writers, cidade de Nova York. Como sempre, meus esboos e rascunhos foram lidos e construtivamente criticados pelo meu agente Al Zuckerman; minhas editoras Ann Patty em Nova York e Suzanne Baboneau em Londres; e numerosos amigos e parentes, incluindo-se George Brennan, Barbara Follett, Angus James, Jann Turner e Kim Turner.