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BrJP. São Paulo.

2023;6(Suppl 2):S120-5 ARTIGO DE REVISÃO

Inibição retrógrada das vias centrais hiperativas nas dores nociplásticas


Retrograde inhibition of hyperactive central pathways in nociplastic pain
Maria Teresa R. J. Jacob1, Beatriz Jacob Milani1

DOI 10.5935/2595-0118.20230029-pt

RESUMO corrente da neuromodulação retrógrada), com base em artigos


científicos publicados entre 1981 e 2022.
JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: A dor nociplástica ocorre CONCLUSÃO: Apesar das evidências científicas que apoiam o
por uma combinação de hiperexcitabilidade e diminuição da ati- uso da cannabis medicinal na terapia da dor nociplástica serem
vidade inibitória no sistema nervoso central, responsável por um insuficientes até o momento, ela pode e deve ser considerada
estado de amplificação de estímulos diversos, presente em muitas como um possível fármaco coadjuvante na terapia multimodal
doenças crônicas. Entre essas doenças estão: fibromialgia, migrâ- da dor, sempre de forma individualizada, quando os tratamentos
nea crônica, síndrome do intestino irritável, síndrome dolorosa preconizados falharem ou não forem tolerados.
miofascial e síndrome de dor complexa regional. Frequentemen- Descritores: Cannabis, Dor crônica, Dor nociplástica, Sistema
te, várias dessas doenças se apresentam associadas. A terapia da endocanabinoide.
dor nociplástica é um desafio na prática clínica, uma vez que a
maioria dos tratamentos tradicionais não são eficazes no controle ABSTRACT
dos sintomas, causando muitas vezes dificuldade de adesão ou até
mesmo interrupção do tratamento, devido aos efeitos adversos BACKGROUND AND OBJECTIVES: Nociplastic pain oc-
indesejáveis. O objetivo deste artigo foi demonstrar a importân- curs due to a combination of hyperexcitability and decreased
cia da identificação da presença da dor nociplástica no quadro inhibitory activity in the central nervous system, responsible
do paciente, e do conhecimento dos mecanismos fisiopatológicos for a state of amplification of different stimuli, present in many
envolvidos. Dessa forma, devido à neuromodulação retrógrada, chronic disorders. Among them: fibromyalgia, chronic migrai-
característica exclusiva do sistema endocanabinoide até o mo- ne, irritable bowel syndrome, myofascial pain syndrome and
mento, avaliar a utilização de fármacos de grau farmacêutico à complex regional pain syndrome. Often, several of these diseases
base da planta cannabis como coadjuvante na terapia da dor e are associated. Nociplastic pain therapy is a challenge in clinical
dos outros sintomas associados a essa doença. practice, since most traditional treatments are not effective in
CONTEÚDO: Este artigo abordou a fisiopatologia da dor no- controlling symptoms, often causing difficulty in adherence or
ciplástica, a fisiologia do sistema endocanabinoide, a planta can- even interruption of treatment due to undesirable adverse effects.
nabis com seus componentes e sua utilização como medicação The objective of this article was to demonstrate the importance
coadjuvante no tratamento multimodal da dor nociplástica (de- of identifying the presence of nociplastic pain in the patient’s
condition, and also the pathophysiological mechanisms invol-
ved. Thus, due to retrograde neuromodulation, a unique feature
of the endocannabinoid system until now, evaluate the use of
pharmaceutical grade medicines based on the cannabis plant as
an adjunct in the therapy of pain and other symptoms associated
with this disorder.
Maria Teresa R. J. Jacob – https://orcid.org/0009-0002-0163-8287; CONTENTS: This article was addressed the pathophysiology of
Beatriz Jacob Milani – https://orcid.org/0009-0007-6793-5969.
nociplastic pain, the physiology to the endocannabinoid system,
1. Centro TRI Saúde e Bem-Estar, Campinas, SP, Brasil. the cannabis plant with its components and its use as an ad-
Apresentado em 28 de março de 2023. juvant medication in the multimodal treatment of nociplastic
Aceito para publicação em 28 de abril de 2023. pain (due to retrograde neuromodulation), based on published
Conflito de interesses: não há – Fontes de fomento: não há.
scientific articles between 1981 and 2022.
DESTAQUES CONCLUSION: Although the scientific evidence supporting
• Importância da identificação da presença da dor nociplástica. the use of medical cannabis in nociplastic pain therapy is in-
• Rrelação entre dor nociplástica e sistema endocanabinoide.
• Importância do tratamento da dor nociplástica através da modulação retrógrada na hiper- sufficient so far, it can and should be considered as a possible
excitabilidade central. adjuvant medication in multimodal pain therapy, always on an
Correspondência para: individual basis, when recommended treatments fail or are not
Maria Teresa R. J. Jacob tolerated.
E-mail: [email protected]
Keywords: Cannabis, Chronic pain, Endocannabinoid system,
© Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor Nociplastic pain.

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Inibição retrógrada das vias centrais hiperativas nas dores nociplásticas BrJP. São Paulo. 2023;6(Suppl 2):S120-5

INTRODUÇÃO perpatia, sintomas característicos de hiperexcitabilidade neuronal no


corno posterior da medula espinhal, bem como uma sensibilização
O termo Dor Nociplástica (DN) foi introduzido pela Associação In- central supraespinhal responsável por sensações como fadiga, dis-
ternacional para o Estudo da Dor (IASP) em 2017 como um tercei- funções cognitivas, alterações de humor, hipersensibilidade a estí-
ro descritor de dor. A DN é definida pela IASP como “dor que surge mulos externos (som, luz), estímulos não dolorosos provenientes do
por aumento da capacidade de resposta dos neurônios nociceptivos próprio organismo e externos, além da dor. De maneira geral, a DN
no sistema nervoso central (SNC) à entrada aferente normal ou su- pode ser considerada uma combinação de hiperexcitabilidade com
blimiar, sem nenhuma evidência de lesão tecidual real ou potencial diminuição da atividade inibitória.
ou de lesão do sistema somatossensorial, causando dor”1. A DN não é nem nociceptiva nem neuropática. A DN tem como
A DN é um estado de amplificação supraespinhal de estímulos sen- característica a ausência de lesão tecidual, atual ou antiga, responsá-
sitivos provenientes de diferentes sistemas orgânicos, originando vel por ativação dos nociceptores, ou de lesão somatossensitiva, res-
sintomas de origem central, como fadiga, distúrbios do sono e alte- ponsável pela dor. A DN é diferente da dor neuropática porque não
rações cognitivas. Ela está presente em grande número de doenças existe lesão do sistema nervoso central ou periférico, nem doença de
crônicas de difícil explicação devido à ausência de alteração tecidual base que possa causar esse tipo de lesão8.
identificável. De todo modo, os pacientes podem apresentar uma combinação de
O termo DN é utilizado tanto científica como clinicamente, refe- dor nociceptiva e DN. Evidências indicam que a dor nociceptiva
rindo-se aos indivíduos que se queixam de dor e hipersensibilidade contínua é um fator de risco para o desenvolvimento da DN pois a
em regiões com tecidos aparentemente normais e sem quaisquer hipersensibilidade está associada a uma duração mais longa da dor
sinais de neuropatia2. Entre as diversas doenças dolorosas crônicas nociceptiva. Dessa forma, são observadas altas taxas de DN em por-
que apresentam DN estão a fibromialgia (FM), a migrânea crônica tadores de osteoartrite, artrite reumatoide e outros distúrbios que
(MC), a dor visceral crônica (DVC), a síndrome do intestino irritá- apresentam dor nociceptiva persistente9,10.
vel (SII), a dor facial atípica (DFA), a síndrome dolorosa miofascial Embora a sensibilização central seja provavelmente um mecanismo
(SDM) e a síndrome de dor complexa regional (SDCR). É comum dominante em condições de DN, o termo DN não deve ser consi-
os pacientes apresentarem a associação de mais de uma das doenças derado sinônimo do termo neurofisiológico “sensibilização central”1.
em algum período da vida3. Um estudo4 descreveu a associação entre Nas últimas décadas, os exames de neuroimagem funcional (tomo-
FM, MC e SII pela primeira vez em 1981. Em 2007 o autor do grafia por emissão de pósitrons, ressonância magnética funcional,
referido estudo propôs o termo “síndromes de sensibilização central” espectroscopia), mostraram alterações estruturais, químicas e fun-
para as doenças já descritas, como um termo clínico e fisiopatoló- cionais em áreas cerebrais de pacientes portadores de DC, compatí-
gico5. Nas últimas décadas, exames de ressonância magnética fun- veis com um estado de hiperatividade, além das alterações no corno
cional colaboraram para a elucidação do mecanismo fisiopatológico posterior da medula espinhal. Os estudos também comprovaram
relacionado à DN3,6. alterações na substância da matriz dolorosa (tálamo, substância cin-
A dor crônica (DC) em geral, e em particular a dor neuropática zenta periaquedutal, insula, córtex cingulado anterior e somatossen-
e a DN, constituem um desafio na prática clínica. A maioria dos sorial) nesses pacientes11. Observou-se também alterações neuroquí-
tratamentos tradicionais para DC não são eficazes no controle dos micas com aumento de neurotransmissores excitatórios (glutamato)
sintomas e muitas vezes causam efeitos adversos que impedem a e diminuição de neurotransmissores inibitórios (ácido gama amino
adesão ao tratamento. Dessa forma, existe uma necessidade cons- butírico - GABA) em diversas áreas corticais e subcorticais12-14.
tante, tanto por parte da comunidade científica como por parte dos Alguns casos são considerados fatores de risco para desenvolvimento
pacientes, da busca por novas opções terapêuticas, que sejam mais da DN, entre eles doenças crônicas, autoimunes, histórico familiar
eficazes e melhorem a qualidade de vida do portador de DC. Neste de DC ou de doenças de saúde mental, infecções ou traumas emo-
contexto, os fármacos à base da planta cannabis chamaram a atenção cionais importantes na infância15.
como tratamento potencial para preencher essa lacuna terapêutica. Esse tipo de dor pode ocorrer isoladamente em condições como FM
Com um melhor conhecimento das bases neurofisiológicas da DN ou MC, ou como parte de um estado de dor mista, em combinação
e do sistema endocanabinoide (SEC), além das evidências do efeito com dor nociceptiva ou neuropática contínua, como na lombalgia
de fármacos à base de cannabis em várias condições nociplásticas, crônica. É importante reconhecer a presença desse tipo de dor nos
nota-se que tal terapêutica promete ser promissora para o tratamen- quadros crônicos, uma vez que ela não responderá da mesma for-
to da DN7. ma que a dor nociceptiva às terapias preconizadas para esta, como
anti-inflamatórios e analgésicos, cirurgia ou outros procedimentos
DOR NOCIPLÁSTICA eficazes contra a dor nociceptiva16.
Em resumo, pode-se destacar as alterações centrais relacionadas com
A DN é considerada atualmente como um terceiro tipo de dor, com a DN: hiper-responsividade a estímulos dolorosos, hiperatividade
fisiopatologia diferente da dor nociceptiva e da dor neuropática. e conectividade dentro e entre o cérebro e as regiões envolvidas na
Sua fisiopatologia é provavelmente o fator responsável por inúmeras dor, diminuição da atividade das regiões cerebrais envolvidas na dor,
doenças crônicas que até então eram difíceis de entender, categorizar vias inibitórias descendentes ineficientes, elevação da substância P e
e tratar. do glutamato no líquido cefalorraquidiano, diminuição da concen-
Provavelmente, existe uma sensibilização à aferência periférica no tração GABAérgica, alterações da substância cinzenta e branca nas
corno posterior da medula espinhal, responsável pela alodinia e hi- regiões corticais envolvidas no processamento da dor e ativação glial.

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SISTEMA ENDOCANABINOIDE receptores acoplados à proteína G ou por despolarização. Portanto,


o SEC contrasta com a produção e liberação dos neurotransmisso-
O sistema endocanabinoide (SEC) desempenha papéis importantes res clássicos, uma vez que esses são sintetizados antecipadamente e
no desenvolvimento do SNC, na plasticidade sináptica e na resposta armazenados em vesículas sinápticas. Outra peculiaridade do SEC,
a insultos endógenos e exógenos. O SEC é extremamente complexo é que os endocanabinoides são produzidos na membrana pós-sináp-
e está presente em todas as células orgânicas desempenhando papel tica e vão atuar em receptores pré-sinápticos modulando a hiperexci-
essencial na homeostase. Nos últimos 25 anos o SEC ganhou desta- tabilidade neuronal, ou seja, atuam de forma retrógrada.
que como importante sistema neuromodulador. A ação do SEC nas vias da dor ocorre tanto de forma independen-
O SEC é composto por três componentes: te, como por atuação sinérgica com outros sistemas endógenos dos
1- Endocanabinoides, circuitos de dor, representados por moléculas inflamatórias, endor-
2- Receptores, finas, encefalina e vários canais iônicos. O sistema endocanabinoide
3- Enzimas metabolizadoras de síntese e degradação. funciona em vários níveis no sistema nervoso como uma via alter-
Os endocanabinoides mais estudados são a anandamida (N-araqui- nativa para a via inflamatória da prostaglandina, com potencial para
donoiletanolamina ou AEA) e o 2-araquidonoilglicerol (2-AG). A modular a dor e a inflamação. O efeito na modulação da dor ocorre
eficácia dos canabinoides endógenos depende da sua afinidade pelos por meio das vias inibitórias supraespinhais descendentes, através de
receptores. O 2-AG é um agonista altamente eficaz dos receptores um mecanismo complexo, de interação entre vários ligantes, reação
CB1 e CB2, enquanto a AEA é um agonista de baixa eficácia nos cruzada com receptores não canabinoides, plasticidade de resposta
receptores CB1 e um agonista de eficácia muito baixa nos receptores dependente de características locais do tecido e presença de outras
CB2. Consequentemente, em sistemas com baixa expressão de recep- moléculas, como opioides7,17-20.
tores ou quando os receptores se acoplam fracamente às vias de sina- Uma hipótese mais recente sugeriu que muitas condições de dor ca-
lização, a AEA pode antagonizar os efeitos de agonistas mais eficazes. racterizadas por DN, podem ter relação com deficiências do sistema
Outros endocanabinoides foram isolados recentemente como a viro- endocanabinoide. Em 2004, uma pesquisa relacionou pela primeira
damina (“anandamida invertida”), o noladin éter e a N-araquidonoil vez uma possível deficiência do sistema endocanabinoide com um
dopamina (NADA). No entanto, a biologia desses compostos não dos mecanismos fisiopatológicos envolvido em doenças como FM,
está tão esclarecida quanto a da AEA e do 2-AG. São importantes MC e SII. Nessa época já se observava a presença de várias dessas
também os chamados endocannabinoid-like, a N-oleoiletanolamida doenças como comorbidades, e os estudos já evidenciavam uma
(OEA) e a N-palmitoiletanolamida (PEA), que além de reduzirem possível hiperatividade central como parte do mecanismo fisiopa-
a hidrólise da AEA e 2-AG, atuam sinergicamente com esses endo- tológico21,22. Diante dessa hipótese, a referida pesquisa sugeriu que
canabinoides. Porém, este sinergismo se dá através da ação dos en- essas e outras doenças, nas quais a deficiência do SEC estivesse pre-
docannabinoid-like em receptores acoplados à proteína G (GPR55, sente, poderiam ser adequadamente tratadas com fármacos à base
GPR18, GPR119), TRPV1 e PPARs. de cannabis reequilibrando a deficiência do SEC e restaurando a
Os receptores CB1 e CB2 estão presentes em todo o organismo. O modulação central23.
receptor CB1 é o mais abundante no organismo, predominando no Em 2010, com um conhecimento mais aprofundado do SEC, uma
SNC e no sistema nervoso periférico (SNP). A ação do receptor CB1 pesquisa24 apresentou dados experimentais e clínicos que demons-
depende da sua localização no sistema nervoso. O receptor CB2 é traram a ligação entre endocanabinoides e enxaqueca, um distúrbio
mais numeroso na periferia e é importante na imuno-modulação e neurovascular causado por processamento anormal de informações
controle da inflamação. Os receptores CB1 e CB2 foram os primei- sensoriais devido à sensibilização periférica e/ou central. Mesmo sem
ros a serem identificados e estudados, porém os endocanabinoides os mecanismos dependentes do SEC envolvidos na fisiopatologia da
interagem também com receptores de potencial transitório (TRPs) e enxaqueca não estarem totalmente esclarecidos, os resultados dispo-
receptores ativados por proliferadores de peroxissoma (PPARs), par- níveis na época sugeriam fortemente que a ativação do SEC poderia
ticularmente com TRPV1 e com GPR55. representar uma ferramenta terapêutica promissora para reduzir os
Apesar da AEA e do 2-AG conterem TRPV1, GPR55 e ácido, a componentes fisiológicos e inflamatórios da dor envolvidos nos ata-
síntese e particularmente a degradação in vivo são praticamente dis- ques de enxaqueca.
tintas, e mediadas por diferentes enzimas. A AEA é sintetizada pela Em 2016, uma revisão do referido estudo de 200425 evidenciou dife-
NAPE-specific phospholipase D (NAPE-PLD) e o 2-AG pela DAG renças estaticamente significativas nos níveis de AEA do líquido ce-
lipase (DAGL). As enzimas de degradação são a fatty acid amide falorraquidiano em portadores de migrânea crônica. Outro estudo,
hydrolase (FAAH), que degrada a AEA e a monoacylglycerol lipase citado nesta revisão, demonstrou a hipofunção do SEC em diferen-
(MAGL), que metaboliza o 2-AG. tes áreas corticais e subcorticais de pacientes portadores de doença de
O 2-AG, além de servir como um ligante endógeno para receptores Huntington, com reduções significativas na disponibilidade do re-
canabinoides, é um importante intermediário metabólico na síntese ceptor CB1 versus controles (p<0,0001). Essas reduções variaram de
de lipídios e serve como uma importante fonte de ácido araquidôni- 15% no cerebelo até 25% no córtex frontal, confirmando uma hi-
co na síntese de prostaglandinas. poatividade do SEC inversamente relacionada à gravidade da doen-
Os precursores dos endocanabinoides estão presentes nas membra- ça. A profunda redução precoce e generalizada da disponibilidade de
nas lipídicas. Os endocanabinoides são sintetizados somente quando CB1 in vivo é consistente com a hipótese de que a alteração gênica
necessário, ou seja, sob demanda, em uma ou duas etapas enzimáti- reprime a transcrição de CB1. Essa foi provavelmente a primeira
cas rápidas, e liberados no espaço extracelular por ativação de certos demonstração in vivo de um distúrbio do SEC em uma doença neu-

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Inibição retrógrada das vias centrais hiperativas nas dores nociplásticas BrJP. São Paulo. 2023;6(Suppl 2):S120-5

rológica humana26. Esses estudos reforçaram a teoria de 2004, e em timas décadas, houve um crescente debate sobre o uso da cannabis
muito contribuíram para o entendimento da fisiopatologia da DC, para diversas doenças crônicas refratárias a tratamento convencional,
principalmente a neuropática e a nociplástica. principalmente a DC30.
Além da provável deficiência do SEC confirmada por esses estudos, Há vários estudos pré-clínicos sobre o uso de canabinoides para
foi avaliada também a resposta terapêutica ao uso da cannabis me- a dor, porém os estudos clínicos ainda permanecem um pouco
dicinal para MC. Foi comprovada uma diminuição estatisticamente limitados. Existem muitas evidências em estudos observacionais,
significativa das crises de MC após a introdução de canabinoides. relatórios anedóticos e mesmo em revisões sistemáticas. Porém,
Outra comprovação interessante foi a da eficácia do tratamento com como no caso de outras doenças crônicas refratárias a tratamentos
cannabis de uso médico em pacientes portadores de FM, quando convencionais, para a dor também são necessários mais ensaios clí-
comparada com a utilização de Duloxetina, Pregabalina e Minal- nicos randomizados.
ciprano, fármacos aprovados pela Food and Drug Administration O termo “cannabis medicinal” refere-se ao uso da planta e seus
(FDA) e pela European Medicines Agency (EMA), para essa doença27. componentes, principalmente os canabinoides, sob recomendação
e acompanhamento médico, para tratar ou melhorar os sintomas de
Sistema endocanabinoide e dor diferentes doenças. Estudos recentes comprovaram que os fitocana-
O potencial de ação gerado na terminação pré-sináptica faz com binoides exercem suas ações terapêuticas sobre a dor através de dife-
que as vesículas citoplasmáticas se fundam com a membrana pré-si- rentes alvos, tanto na periferia como no SNC, da mesma forma que
náptica e ocorra a liberação de neurotransmissores excitatórios. Os os endocanabinoides. Esses alvos incluem não apenas os receptores
endocanabinoides são então sintetizados em resposta ao aumento da CB1 e CB2, presentes ao longo de toda a via da dor, mas também
atividade no neurônio pós-sináptico. A ligação do neurotransmissor outros receptores acoplados à proteína G importantes na via anal-
aos receptores da membrana pós-sináptica causa acúmulo de Ca2+, gésica, como o GPR55, o GPR18, receptores opioides, receptores
despolarização da membrana e ativação de enzimas dependentes de serotoninérgicos (5-HT), além de receptores de potencial transitório
cálcio, responsáveis pela síntese dos endocanabinoides NAPE-PLD (TRVP, TRPA e subfamílias, e TRPM).
e DAGL. Muitos estudos relataram a capacidade de certos canabinoides na
A AEA e o 2-AG, então sintetizados, passam a atuar de modo re- modulação de receptores PPARs, importantes como analgésicos,
trógrado nos receptores da membrana pré-sináptica. Esses endoca- neuroprotetores e moduladores da função neuronal. Os estudos de-
nabinoides se ligam aos receptores canabinoides da membrana pré- monstraram também a interação entre os receptores opioides μ e os
-sináptica e da membrana celular das células da micróglia no corno receptores CB1, o que potencializa a ação dos fitocanabinoides31-33.
posterior da medula espinhal. Os canabinoides têm mecanismos de ação multimodais no trata-
Os receptores CB1 estão presentes predominantemente nos neurô- mento da dor, incluindo: modulação do processamento nociceptivo
nios do terminal pré-sináptico, e sua ativação diminui a liberação neuronal, inibição da liberação de moléculas pró-inflamatórias, ini-
vesicular, reduzindo a liberação de glutamato nos neurônios de pro- bição da ativação de mastócitos e modulação de receptores opioides
jeção nociceptiva. Esse mecanismo é conhecido como sinalização endógenos em vias aferentes primárias34-36.
retrógrada. Da mesma forma, a cannabis também pode fornecer alívio para gru-
Os receptores CB2 estão presentes predominantemente na micró- pos de sintomas que acompanham os quadros de DN, como náusea,
glia, e sua ativação suprime a ativação microglial, responsável pelos ansiedade, insônia e depressão, por meio de seus efeitos no sistema
sintomas clássicos da sensibilização central (alodinia e hiperpatia), endocanabinoide. Esse grupo de sintomas pode ser difícil de aliviar
pelos sintomas clássicos de tal forma que a micróglia passa a produzir usando agentes farmacêuticos tradicionais, que geralmente se con-
mais mediadores anti-inflamatórios e menos mediadores pró-infla- centram em um único sintoma. Portanto, além da melhora da dor,
matórios. A ativação dos receptores canabinoides neuronais e micro- melhorando sintomas associados nos portadores de DN, ela ajuda a
gliais leva a uma modulação da nocicepção. reduzir o sofrimento psicológico associado à DN37.
Após atuarem, os canabinoides endógenos presentes na fenda si-
náptica são captados por transportadores de canabinoides celulares, Tetrahidrocanabinol
sendo então decompostos pelas enzimas de degradação, a FAAH e O THC é o responsável pela maioria das ações farmacológicas da
a MAGL. A inativação dos endocanabinoides AEA pela FAAH e planta, como ação analgésica, anti-inflamatória, antioxidante, an-
2-AG pela MAGL, ocorre por hidrólise, formando ácido araquidô- tiespasmódica, relaxante muscular, broncodilatadora e antiprurigi-
nico e etanolamina ou glicerol, respectivamente28. nosa. Apesar de todos os canabinoides serem psicoativos, pois atuam
Um estudo publicado em 2020 sugere que a manutenção e a po- no SNC, o THC é o único que possui efeito disléptico, provavel-
tencialização da alodinia mecânica no córtex pré-límbico seja de- mente por ser agonista parcial do receptor CB1, com alta afinidade
corrente da estimulação de receptores NMDA e TRPV1. Essa hi- pelo receptor CB134.
perexcitabilidade pode ser atenuada pela ativação de receptores CB1 Além de modular a liberação de neurotransmissores excitatórios nas
corticais29. sinapses hiperativas, o THC inibe a COX-2 e ativa os receptores
CB2 na micróglia com controle e diminuição da hiperpatia e alo-
Cannabis de uso médico no tratamento da hiperatividade central dinia. O THC também atua nos receptores PPARs, importantes na
A cannabis é usada para fins medicinais há milhares de anos. Com analgesia.
a proibição da planta em meados do século XX, as pesquisas sobre Apesar do papel dos receptores CB2 na mediação dos efeitos do
o uso da planta com fins medicinais foram interrompidas. Nas úl- THC na analgesia não ter sido esclarecido totalmente, os efeitos dos

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agonistas do receptor CB2 na dor induzida por inflamação são mais CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES
bem descritos do que seus efeitos na dor relacionada à disfunção do
sistema nervoso38,39. Maria Teresa R. J. Jacob
Coleta de Dados, Redação - Revisão e Edição
Canabidiol Beatriz Jacob Milani
São poucos ensaios clínicos explorando os efeitos analgésicos do Redação - Revisão e Edição
canabidiol (CBD) em humanos. Um estudo observacional recente
avaliou retrospectivamente as mudanças na qualidade de vida em REFERÊNCIAS
um subconjunto dos primeiros 400 pacientes da Nova Zelândia a
1. IASP.2021.https://www.iasppain.org/Education/Content.aspx?ItemNumber=1698#-
receberem prescrição de CBD (principalmente 100 mg CBD/mL Nociplasticpain.
de óleo administrado por conta-gotas)40. Nesse estudo, os pacientes 2. Kosek E, Cohen M, Baron R, Gebhart GF, Mico JA, Rice ASC, Rief W, Slu-
com dor não oncológica (n=53) relataram melhorias significativas ka AK. Do we need a third mechanistic descriptor for chronic pain states? Pain.
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