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© Cadernos de Dereito Actual Nº 22. Núm. Ordinario (2023), pp.

390-405
·ISSN 2340-860X - ·ISSNe 2386-5229

Bens jurídicos individuais e coletivos: reflexões sobre


os critérios de distinção
Individual and collective legal interest: reflections on
distinction criteria

Rodrigo Leite Ferreira Cabral1


Universidade Estadual de Ponta Grossa

Sumário: 1. Introdução; 2. A Titularidade do Bem Jurídico; 2.1 Concepção Monista-


Individual de Bem Jurídico; 2.2 Concepção Dualista de Bem Jurídico; 3. A
Identificação Dos Bens Jurídicos Coletivos; 3.1 Os Critérios de Hefendehl para
Identificar os Bens Jurídicos Coletivos; 3.2 Dos Critérios Adicionais de Greco Para a
Identificação dos Bens Jurídicos Coletivos; 3.3. Um Caminho para a Identificação dos
Bens Jurídicos Coletivos; 3.4. O Caso dos Crimes de Tráfico de Drogas. 4. Conclusão;
5. Referências Bibliográficas.

Resumo: O presente artigo tem por objetivo examinar criticamente os critérios


estabelecidos para a identificação dos bens jurídicos coletivos pela doutrina mais
moderna, tentando apresentar algumas críticas a eles, bem como buscando
apresentar um caminho possível a ser seguido a delimitação dos bens jurídicos
coletivos.

Palavras-chave: Bens jurídicos individuais. Bens jurídicos coletivos. Direito Penal.

Abstract: The purpose of this article is to examine the criteria established for the
identification of collective legal interest by the most modern doctrine, trying to
present some critics, as well as trying to present a possible path to be followed.

Keywords:
Individual legal interest. Collective legal interest. Criminal Law.

1 Doutor em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidad Pablo de Olavide. Mestre em


Criminología y Ciencias Forenses pela mesma Instituição. Foi pesquisador-visitante do Max-
Planck-Institut para Direito Penal Estrangeiro e Internacional em Freiburg. É Professor
Colaborador do PPGD (mestrado) da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Professor Titular
do Programa de Doutorado em Ciências Penais da Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales da
Universidad San Carlos de Guatemala. É Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado
do Paraná.

Recibido: 03/07/2023
Aceptado: 12/12/2023
DOI: 10.5281/zenodo.10391757
Rodrigo Leite Ferreira Cabral Bens jurídicos individuais (…)

1. INTRODUÇÃO

Um dos temas mais frutíferos em Direito Penal, apesar de não ser


particularmente novo, é o debate sobre o bem jurídico. Desde sua capacidade de
rendimento, seus fundamentos, sua conceituação até a identificação de seus
possíveis titulares, o tema sempre gera debates interessantes e consequências
práticas importantes.
No presente artigo, pretende-se abordar o debate sobre a existência de
bens jurídicos coletivos e sobre os critérios para diferenciá-los dos bens jurídicos
individuais. A ideia, também, é tentar problematizar essa discussão e apresentar
alguma sugestão sobre caminhos possíveis.
Aqui não se debaterá os fundamentos e o conceito de bem jurídico. Essa
tarefa tentei realizar em outro artigo 2. No entanto, gostaria de expor a conceituação
que me parece a mais adequada, para poder ter um ponto de partida para estudar
os bens jurídicos coletivos.
Assim, de forma simplificada, entendo o bem jurídico como uma legítima
(justificada) expectativa intersubjetiva de respeito que o seu titular tem em relação
à proibição prevista num tipo penal.
Em outras palavras, todo titular de um bem jurídico tem uma expectativa
de que terceiros respeitem seu patrimônio jurídico e não realizem a conduta prevista
no tipo penal. Se essa conduta é realizada, há uma violação desse patrimônio
jurídico, desse bem jurídico.
Não se deve, porém, confundir o bem jurídico com o direito subjetivo, pois
a violação da expectativa criada pela norma penal não importa na perda do direito.
A constatação da violação ao bem jurídico (da expectativa) não esvazia o direito do
seu titular.
Essa violação, ademais, não é fática. O bem jurídico não ocupa lugar no
espaço, não faz parte do mobiliário físico do mundo. Uma norma jurídica e uma
expectativa de respeito têm fundamento e significado, mas não existem no mundo,
salvo que, como diz VIVES ANTÓN, se esteja falando de um uso bastante incomum
da palavra existir3 4.
É claro que essa expectativa de respeito, o bem jurídico, muitas vezes
protege substratos materiais. O tipo penal pode impor que não se toque, disturbe,
menoscabe ou destrua determinados objetos, substratos, animados ou inanimados,
conscientes ou inconscientes, assim como pode proibir condutas que obstruam o
desenvolvimento orgânico de seres vivos, que prejudiquem sua integridade
sistêmica ou mesmo que interfiram na realização de atividades ou funções,
orgânicas ou culturais, individuais ou coletivas. Mas isso não significa que o bem
jurídico seja um objeto do mundo.
Isso significa apenas que a frustração das expectativas normativas
legítimas, derivadas de tipos penais, pode muitas vezes se dar com a proibição ou
imposição de determinadas atividades que têm reflexos na configuração física do
mundo. Nada mais que isso.

2Os fundamentos materiais dessa proposta e o seu desenvolvimento podem ser encontrados.
In: CABRAL, R.L.F. “Bem Jurídico como Expectativa Legítima de Respeito: Uma reflexão à luz
da Filosofia da Linguagem”, in: PERUZZO JÚNIOR, L. & BUSATO, P.C. (Org.). Direito Penal e
Filosofia da Linguagem, Tirant lo Blanch, São Paulo, 2022, pp. 27-39.
3VIVES ANTÓN, T.S. “Estudio preliminar”, in: RAMOS VÁZQUEZ, J.A. Concepción significativa

de la acción y teoría jurídica del delito, Tirant lo Blanch, Valencia, 2008, p. 50.
4Uma dessas formas não usuais da palavra existir é empregada por ROXIN, que assevera que

o bem jurídico não é constituído por um substrato material, mas é uma realidade social que
pode ser lesionada, de modo que não se trata de uma construção simplesmente imaginária,
mas sim uma disponibilidade jurídico-social que pode muito bem ser lesionada, de modo que
se deve rechaçar um conceito puramente abstrato ou ideal de bem jurídico. In: ROXIN, C. &
GRECO, L. Strafrecht, Allgemeiner Teil, 5º ed., vol. 1, De Gruyer, Berlim, 2020, p. 67.

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Essa expectativa – é importante ressaltar – não é um sentimento subjetivo.


Na verdade, as normas intersubjetivas legítimas (institucionais ou práticas) criam
essa expectativa de determinado comportamento. Quando a conduta vedada é
realizada, frustra-se a expectativa gerada intersubjetivamente e viola-se o bem
jurídico.

2. A TITULARIDADE DO BEM JURÍDICO

Um ponto fundamental no estudo do bem jurídico é saber se ele pode ser


titularizado apenas por uma pessoa individual ou se também pode ter, como titular,
uma coletividade. Nesse sentido, surgiu o importante debate sobre a legitimidade
ou não da tutela, pelo Direito penal, de bens jurídicos coletivos.
Nessa disputa, de um lado, encontram-se partidários de uma posição
monista-individualista, para quem só existem bens jurídicos individuais, e, de outro,
há os defensores de uma concepção dualista, para quem existem tanto bens
jurídicos individuais, quanto coletivos 5 6.

2.1 CONCEPÇÃO MONISTA-INDIVIDUAL DE BEM JURÍDICO

A concepção monista-individual ou monista-pessoal foi preconizada


especialmente por HASSEMER e outros professores da denominada Escola de
Frankfurt e propugna que o Direito Penal deve somente proteger bens jurídicos
fundamentalmente individuais 7.
HASSEMER afirma que, na tensão entre indivíduo, Estado e sociedade, o
Direito Penal deve optar por amarrar a compreensão de bem jurídico à pessoa
humana (teoria pessoal do bem jurídico). Portanto, a subordinação inafastável aos
interesses dos seres humanos é condição de possibilidade desse conceito de bem
jurídico8.
Sustenta que apenas uma concepção monista-pessoal atende aos reclamos
de um Direito Penal liberal, porquanto a legitimidade da atuação estatal somente é
possível quando os bens jurídicos da sociedade substanciem interesses da pessoa,
ainda que indiretamente9 10 11.

5Existe, também, uma concepção monista-estatal ou monista-coletivista. Conforme GRECO,


ela propugna que “todos os bens jurídicos serão um reflexo de um interesse do estado ou da
coletividade. Bens jurídicos individuais não seriam reconhecíveis enquanto tais, porque o
indivíduo só seria protegido na medida em que isso interessasse ao estado ou ao coletivo.”
Ainda sobre essa concepção, GRECO consigna: “essa posição, pelo seu evidente autoritarismo,
não é mais praticamente sustentada. Ela foi apaixonadamente propugnada por Binding e, na
atualidade, vejo em Weigend seu único defensor na Alemanha”. In: GRECO, L. “‘Princípio da
Ofensividade’ e Crimes de Perigo Abstrato – Uma Introdução ao Debate sobre o Bem Jurídico
e as Estruturas do Delito”, in: Modernização do Direito Penal, Bens Jurídicos Coletivos e Crimes
de Perigo Abstrato, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2011, p. 86.
6
Sobre as distinções entre as concepções monistas e dualistas, cf.: HASSEMER, W. &
NEUMANN, U. “Nomos-Kommentar zum Strafgesetzbuch”, in: KINDHÄUSER, U; NEUMANN, U.
& PAEFFGEN, H.U.U. (org.), 3a ed., Nomos-Verl.-Ges, Baden-Baden, 2010, pp. 113-114.
7HASSEMER não nega a existência de bens jurídicos coletivos, apenas sustenta que eles não

devem ser tutelados pelo Direito Penal, cf.: HASSEMER, W. "Grundlinien einer personalen
Rechtsgutslehre“, in Strafen im Rechtsstaat, Nommos, Baden-Baden, 2000, p. 167.
8HASSEMER, W. "Grundlinien einer (...)“, Ob. Cit., pp. 166-167.
9HASSEMER, W. & NEUMANN, U. “Nomos-Kommentar zum (…)” Ob. Cit., p. 114.
10HASSEMER admite possível a existência de um bem jurídico que tenha uma referência

indireta ao ser humano, como é o caso da tutela do meio ambiente, que, na verdade, não
protegeria a pureza do meio ambiente, mas saúde e a vida humana. In: HASSEMER, W. &
NEUMANN, U. “Nomos-Kommentar zum (…)”, Ob. Cit., p. 115.
11Existe, também, uma concepção que se pode chamar de personalista radical, que defende

que o bem jurídico é legítimo apenas quando relação entre ele e o indivíduo for direta. Essa
tese é defendida por autores como ZAFFARONI, FERRAJOLI e TAVARES. Cf.: GRECO, L.
Rodrigo Leite Ferreira Cabral Bens jurídicos individuais (…)

Desse modo, propõe que a tutela penal estatal deve ser reduzida a um
direito penal nuclear (Kernstrafrecht), que compreende tão somente a proteção
contra violações dos bens jurídicos individuais clássicos, sugerindo que os problemas
mais recentes da sociedade moderna devem ser resolvidos por um Direito de
Intervenção (Interventionsrecht), que deve constituir um novo ramo do Direito, que
se situa entre o Direito Penal e o Direito Administrativo ou direito de polícia (Recht
der Ordnungswidrigkeiten), entre o Direito Civil e o Direito Público. Um Direito que
oferece menos garantias que o Direito penal, mas que, em contrapartida, impõe
sanções menos severas 12 13 14.

2.2 CONCEPÇÃO DUALISTA DE BEM JURÍDICO

A concepção dualista de bem jurídico, amplamente majoritária, concebe que


o Direito penal deve defender tanto bens jurídicos individuais, quanto bens jurídicos
coletivos15.
Os partidários da concepção dualista afirmam que a tutela de bens jurídicos
coletivos é imprescindível para o livre desenvolvimento dos indivíduos 16.
Deixar de lado a intervenção penal em temas tão centrais para a vida social
e do próprio cidadão - como a punição do peculato, dos crimes ambientais, dos
delitos contra a ordem tributária - importa na inviabilização de uma vida adequada
em sociedade, um desmonte do Estado social. Seria permitir as violações aos bens
jurídicos cometidas pelos mais fortes e poderosos, reservando o Direito penal
somente aos “clássicos” delitos, o que, na prática, faz com que a intervenção penal
mire sua artilharia apenas em direção aos mais fracos e pobres. Isso erosionaria
ainda mais a legitimidade e credibilidade do Direito Penal e consagraria uma

“Existem Critérios para a Postulação de Bens Jurídicos Coletivos?”, Revista de Concorrência e


Regulação, Ano II, nº 7/8, 2012, p. 354.
12HASSEMER, W. "Kennzeichen und Krisen des modernen Strafrechts“, Zeitschrift für

Rechtspolitik (ZRP), 25, Jahrg., Heft., 10, Oktober, 1992, p. 383.


13Para referências a respeito da posição dos integrantes da denominada Escola de Frankfurt,

cf.: ROXIN, C. & GRECO, L. Strafrecht, Allgemeiner Teil, 5º ed., vol. 1, De Gruyer, Berlim,
2020, pp. 69-71.
14Em sentido semelhante, é a proposta de SILVA SÁNCHEZ, que propugna um Direito Penal de

segunda velocidade para os ilícitos de acumulação ou perigo presumido, bem como para
condutas que se encontram distantes de um perigo real para um bem jurídico individual ou
mesmo supraindividual. Nessa modalidade de Direito Penal, haveria um afastamento da
aplicação das penas de prisão, aproximando-se mais de um Direito Administrativo sancionador,
com penas privativas de direitos, multas e sanções aplicáveis a pessoas jurídicas. Por outro
lado, nele também haveria uma flexibilização dos critérios de imputação e das garantias
político-criminais. SILVA SÁNCHEZ admite, porém, eventualmente, a aplicação do Direito Penal
tradicional (de primeira velocidade) aos ilícitos contra bens jurídicos supraindividuais quando
exista uma lesão ou perigo real a esses bens. In: SILVA SANCHÉZ, J.M. La Expansión del
Derecho Penal: Aspectos de la política criminal en las sociedades posindustriales, 2ª ed.,
Civitas, Madrid, 2001, pp. 159-162.
15A nomenclatura para os bens jurídicos coletivos é bastante ampla. É possível encontrar o

emprego das seguintes expressões sinônimas: bens jurídicos supraindividuais, coletivos,


comunitários, universais, sociais, difusos, difundidos e interesses gerais. Sobre o tema, cf.:
PERÉZ-SAUQUILLO MUÑOZ, C. Legitimidad y técnicas de protección penal de bienes jurídicos
supraindividuales, Tirant lo Blanch, Valencia, 2019, pp. 50-52.
16ROXIN, C. & GRECO, L. Strafrecht, Allgemeiner (…), Ob. Cit., p. 28.

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verdadeira plutocracia penal 17 18.


Por essas razões, atualmente, existe um grande domínio das teorias
dualistas, mesmo porque nenhum país de nossa tradição jurídica – pelo menos até
onde se tem notícia – abandonou a incriminação de delitos que atingem bens
jurídicos coletivos19.

3. A IDENTIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS COLETIVOS

As críticas mais importantes que se têm apontado contra a concepção dos


bens jurídico coletivos não são propriamente contra a sua existência, mas sim contra
o uso abusivo desse conceito. A denominada hipostasia dos bens jurídicos coletivos.
Uma fraude de etiquetas, com o objetivo de incriminar condutas que só falsamente
protegem bens jurídicos coletivos, pois, ao fim e ao cabo, examinando-se esses tipos
penais com um olhar mais atento e crítico, conclui-se que, na verdade, não protegem
bem jurídico algum ou, quando muito, protegem apenas bens jurídicos individuais 20.
Essa é uma discussão muito importante, pois pode ter consequências
práticas relevantes, uma vez que: (i) a identificação de crimes sem uma efetiva
proteção a bens jurídicos levaria ao esvaziamento da legitimidade de sua
incriminação21; (ii) saber se um bem jurídico é individual ou coletivo permite realizar
um exame sobre a proporcionalidade da resposta penal, pois, muitas vezes, um falso
bem jurídico coletivo protege, na verdade, um bem jurídico individual, por meio de
delitos de perigo, de modo que nada recomenda que a punição do delito de perigo
seja mais severa do que a do crime de lesão 22; (iii) nos bens jurídicos individuais o
consentimento pode afastar a tipicidade, o que não ocorre se o bem jurídico for
coletivo23 24, (iv) a prática de delitos que tutelam bens jurídicos coletivos não

17Nessa toada, é a dura e acertada crítica de SCHÜNEMANN à concepção do monista-individual


defendida por HASSEMER: “(...) a teoria pessoal do bem jurídico caiu na armadilha desta
sociedade pós-moderna, tomou seus mundos ficcionais e suas técnicas de ocultação como seu
núcleo essencial e a elevou à categoria de objeto de proteção de nível superior do Direito
Penal, para o desperdício de recursos das gerações futuras, pelo hedonismo sem sentido de
um pseudo-individualismo fabricado industrialmente, um desperdício que na verdade está em
sintonia com um conceito primitivo de delito”. SCHÜNEMANN, B. “Consideraciones Críticas
sobre la Situación Espiritual de la Ciencia Jurídico-Penal alemana”, in: Obras, Tomo I, Rubinzal-
Culzoni, Santa Fe, 2009, p. 225.
18Criticamente à teoria monista-individual, veja-se também: GRECO, L. “Existem Critérios para

a Postulação de Bens Jurídicos (...)”, Ob. Cit., p. 354-357.


19Sobre o tema, HEFENDEHL, com razão, afirma que: “Tampouco é necessário ocupar-se de

modo mais detido na afirmação – aliás, nunca formulada de modo muito consequente –
segundo a qual os bens jurídicos coletivos seriam ilegítimos. A esta ideia deve-se objetar não
apenas que ela se trata de um mero postulado político-criminal, mas sim, e em primeira linha,
que, apesar de sua coerência interna e das virtudes estéticas daí decorrentes, trata-se de uma
exigência aberrante. Ninguém até hoje ousou conceber um Direito Penal sem delitos de
funcionários, de delitos contra a Administração da Justiça e de falsificação de moeda. As
concepções focadas em bens jurídicos individuais desenvolvem suas críticas com base em
certos adversários ‘peso-leve’ escolhidos sob medida, isto é, com base em certos tipos penais
que, ao serem corretamente analisados, em geral sequer protegem bens jurídicos coletivos, e
sim se referem a uma ulterior e, na verdade, desnecessária proteção de bens individuais”.
HEFENDEHL, R. “O bem jurídico como pedra angular da norma penal”, in: O Bem Jurídico como
limitação do Poder Estatal de Incriminar?, 2a ed., Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2016, p. 73.
20ROXIN, C. & GRECO, L. Strafrecht, Allgemeiner (…), Ob. Cit., pp. 27-28.
21GRECO, L. “Existem Critérios para a (...)”, Ob. Cit., pp. 352-353.
22GRECO, L. “Existem Critérios para a (...)”, Ob. Cit., p. 352.
23O delito de tráfico de drogas, por exemplo, que, para alguns autores, como GRECO não

protegem bem jurídico coletivo, mas individual. Nessas hipóteses, haveria eventualmente a
possibilidade do afastamento da tipicidade pelo consentimento. Cf.: GRECO, L. “Existem
Critérios para a (...)”, Ob. Cit., p. 352.
24No sentido de que o delito de tráfico de drogas protege bem jurídico intermediário, cf.:

SCHÜNEMANN, B. “O princípio da proteção de bens jurídicos como ponto de fuga dos limites
constitucionais e da interpretação dos tipos”, in: O Bem Jurídico como limitação do Poder
Estatal de Incriminar? 2a ed., Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2016, p. 63.
Rodrigo Leite Ferreira Cabral Bens jurídicos individuais (…)

autoriza o uso da legítima defesa pelo agredido, enquanto que no caso dos bens
jurídicos individuais seu uso é possível; dentre outros aspectos dogmáticos
relevantes que podem ser levados em consideração com um escrutínio crítico dos
tipos penais que abusam na invocação de bens jurídicos coletivos.
Por essas e outras razões é que se tem debatido quais são os critérios para
a identificação dos bens jurídicos coletivos.
O mais óbvio desses critérios é observar a sua titularidade. Existindo um
bem jurídico de titularidade de uma pessoa física (ou mesmo jurídica privada) se
estaria diante de um bem jurídico individual. Quando a titularidade do bem é da
sociedade, da comunidade, do Estado ou de outros entes públicos, haveria um bem
jurídico coletivo25.
Sem embargo, essa diferenciação, muitas vezes, resulta insuficiente. Por
isso, é importante desenvolver-se critérios mais precisos para saber se estamos
diante de um bem jurídico individual ou coletivo 26.

3.1 OS CRITÉRIOS DE HEFENDEHL PARA IDENTIFICAR OS BENS JURÍDICOS


COLETIVOS

Com o objetivo de identificar os verdadeiros bens jurídicos coletivos,


HEFENDEHL27, com base em Robert ALEXY 28 29, propõe que devem estar presentes
os seguintes critérios:
(i) o da não exclusividade do seu gozo (Nicht-Ausschließbarkeit von der
Nutzung), que significa que o bem jurídico, para ser coletivo, deve viabilizar que
mais de uma pessoa goze dele ao mesmo tempo;
(ii) o da não rivalidade do consumo (Nicht-Rivalität des Konsums) (ou não
consumibilidade) que estabelece que o consumo do bem coletivo por um indivíduo
não impede, nem dificulta, que outros indivíduos dele também gozem; e
(iii) o da não distributividade (Nicht-Distributivität), que assenta que o bem
coletivo não pode ser dividido em parcelas destacáveis para determinados
indivíduos. Assim, não é possível indicar de forma individualizada os eventuais

25PERÉZ-SAUQUILLO MUÑOZ, C. Legitimidad y técnicas de protección penal de bienes jurídicos


supraindividuales, Tirant lo Blanch, Valencia, 2019, pp. 53-54.
26GRECO, L. “Existem Critérios para a (...)”, Ob. Cit., p. 353.
27Importante registrar, com PÉREZ-SAUQUILLO MUÑOZ, que: “A pesar de la importancia de

Hefendehl en la exposición sistemática y desarrollo de estas características, es preciso aclarar


que algunas de ellas ya se deducían —de manera expresa o tácita— de la exposición anterior
sobre determinados bienes jurídicos efectuada por algunos penalistas, a los que podría
calificarse entonces de precursores de la concepción restringida: sería el caso de Kuhlen,
Schünemann o Koriath en Alemania”. In: PERÉZ-SAUQUILLO MUÑOZ, C. Legitimidad y técnicas
de protección penal de bienes jurídicos supraindividuales, Tirant lo Blanch, Valencia, 2019, p.
113.
28ALEXY, R. Recht, Vernunft, Diskurs: Studien zur Rechtphilosophie, Suhrkamp, Frankfurt,

1995, pp. 239 e ss.


29ALEXY, por sua vez, desenvolve sua proposta a partir do conceito econômico de bem coletivo,

em que são utilizados os critérios da não exclusividade do gozo (Nicht-Ausschließbarkeit von


der Nutzung) e da não rivalidade do consumo (Nicht-Rivalität des Konsums). Esses dois
critérios, segundo ALEXY, devem ser auxiliados pelo conceito de não distributividade (Nicht-
Distributivität), que se faz presente quando “for conceitualmente, factual ou legalmente,
impossível dividir o bem em partes e atribuí-las separadamente aos indivíduos.” E arremata:
“bens coletivos são bens não distributivos”. In: ALEXY, R. Recht, Vernunft, Diskurs: (...), Ob.
Cit., pp. 239-240.
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titulares dos bens jurídicos, ainda que seja um elevado número de pessoas30 31 32 33.
Examinando-se a proposta apresentada por HEFENDEHL, verifica-se a
existência de alguns problemas.
Primeiro. HEFENDEHL toma emprestado um conceito econômico de bem
coletivo (usado também por ALEXY) realizando, portanto, uma troca categorial:
utilizou um conceito de bem coletivo para conceituar bem jurídico (coletivo), que é
algo bastante distinto.
O conceito de bem para a economia (ou mesmo para o direito civil) não é
idêntico e não pertence à mesma categoria conceitual do bem jurídico. Essa confusão
somente acentua as dificuldades já existentes para a definição penal de bem jurídico
coletivo.
Segundo. Os critérios da não exclusividade do gozo e da não rivalidade do
consumo, com asseverado por GRECO, não são muito claros 34.
Além disso, o gozo e o consumo são faculdades inerentes ao direito de
propriedade (CC, art. 1.228). Gozar para o Direito Civil é fruir, utilizar os frutos de
um bem (ius fruendi). Consumir é o ato de usar bens móveis consumíveis, que são
aqueles cujo uso importa na imediata destruição da própria substância - primo usu
consummuntur (CC, art. 88).
Não é difícil concluir que esses atributos não são aplicáveis à maioria dos
bens jurídicos. O titular do bem jurídico vida não a consome. O titular do bem jurídico
honra não tira os frutos desse bem.
Falar em consumo e gozo dos bens jurídicos não parece fazer muito sentido.
O que o titular tem – como aqui defendido – é uma expectativa de respeito a esse
bem jurídico.
Terceiro. Mesmo quando se fala em bens jurídicos coletivos esses critérios
não parecem funcionar. Um bem público (patrimônio público), por exemplo, que é
um bem jurídico coletivo, pode ter seu uso e gozo limitados, sem desvirtuar sua
natureza coletiva35.
Uma escola pública tem um número limitado de alunos matriculados que
gozarão das suas instalações, dos materiais e dos serviços ali prestados. Uma
sofisticada garrafa de vinho adquirida pelo governo federal para servir em um jantar
de Estado será consumida por um número bastante reduzido de pessoas. Isso não
afasta a titularidade coletiva desses bens.
Por isso, a tese de HEFENDEHL não pode ser adotada de forma integral,
merecendo, portanto, alguns reparos e complementações.

3.2 DOS CRITÉRIOS ADICIONAIS DE GRECO PARA A IDENTIFICAÇÃO DOS


BENS JURÍDICOS COLETIVOS

ROXIN e GRECO sustentam que a diferença entre os critérios apresentados

30HEFENDEHL, R. Kollektive Rechtsgüter im Strafrecht, Köln, Berlin, Bonn, Münche, Carl


Heymanns Verlag, 2002, pp. 111-112;
31GRECO, L. “Existem Critérios para a (...)”, Ob. Cit., pp. 353-354.
32HEFENDEHL faz uma advertência com relação ao critério da não rivalidade do consumo.

Afirma que há hipóteses em que “o bem coletivo é vulnerável a um consumo irregular e, por
isso, passível de redução e destruição”. Nesses casos de consumo irregular, existe uma
rivalidade do consumo (é dizer, o consumo de alguns prejudica o consumo dos demais). Assim,
o meio ambiente, por exemplo, não pode ser colocado para o consumo ilimitado de toda a
coletividade. Sustenta, sem embargo, que remanesce a possibilidade de o bem coletivo ser
consumido de forma regular, mantendo-o, portanto, intocado. Cf.: HEFENDEHL, R. “O bem
jurídico como pedra angular da norma penal”, in O Bem Jurídico como limitação do Poder
Estatal de Incriminar? 2a ed., Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2016, p. 84.
33Assim também em: HEFENDEHL, R. Kollektive Rechtsgüter (...), Ob. Cit., p. 113.
34ROXIN, C. & GRECO, L. Strafrecht, Allgemeiner Teil, 5º ed., vol. 1, De Gruyer, Berlim, 2020,

p. 25.
35O mesmo ocorre com os bens ambientais, cujo uso e gozo podem ser restringidos, como,

inclusive, parece reconhecer o autor, em: HEFENDEHL, R. Kollektive Rechtsgüter (...), Ob. Cit.,
p. 113.
Rodrigo Leite Ferreira Cabral Bens jurídicos individuais (…)

por HEFENDEHL não é tão clara. Defendem, portanto, que o requisito da não
distributividade (ou da indivisibilidade 36 37) é suficiente para a identificação dos bens
jurídicos coletivos38 39(também conhecido como critério da indivisibilidade 40).
Para eles, caso seja possível indicar de forma destacada os eventuais
titulares dos bens jurídicos se estará diante de um bem jurídico individual e não
coletivo.
Desenvolvendo sua posição sobre o tema, GRECO apresenta critérios
adicionais ao da indivisibilidade. Oferece, nesse sentido, três regras básicas para
afastar a existência de um bem jurídico coletivo.
A primeira regra (denominada de teste da circularidade) estabelece que: “o
fato de que um dispositivo penal não seria legitimável sem um bem coletivo não
fornece qualquer razão para postular um tal bem”. Com isso, busca evitar que se
“inventem” bens coletivos como forma de tentar legitimar tipos penais que são
ilegítimos, que não têm verdadeiros bens jurídicos, pois “o problema dos bens
jurídicos coletivos está em que eles solucionam todos os problemas”. Com essa
criação fictícia de um bem jurídico coletivo, se busca dar um verniz de legitimidade
a um tipo penal ilegítimo. Aceitar essa manobra de multiplicação de bens coletivos
inexistentes seria acabar com a crítica e o controle sobre a racionalidade do
legislador penal que a teoria do bem jurídico permite realizar 41.
A segunda regra (teste da divisibilidade) assenta que: “O fato de que um
número indeterminado de indivíduos tem interesse em um bem não é uma razão
para postular um bem coletivo”. Isso porque, o bem jurídico coletivo é indivisível.
Ele não deve ser composto pela mera soma de bens jurídicos individuais, ainda que
envolva um número indeterminado de pessoas. Se isso ocorre, não é possível
simplesmente negar a existência de um bem jurídico individual invocando a presença
de uma instituição social, como um corpo coletivo, como forma de assentar a
presença de um bem jurídico coletivo 42.
A terceira regra (teste da não-especificidade) propugna que “não é

36GRECO, L. “Existem Critérios para a (...)” Ob. Cit., p. 354.


37No âmbito da tutela coletiva não penal do direito brasileiro, o critério da indivisibilidade
também é utilizado pelo Código de Defesa do consumidor para conceituar os interesses ou
direitos difusos, que são: “os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares
pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”. In: BRASIL. Código de Defesa
do Consumidor - art. 91, parágrafo único, I, disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm, acesso em: 20 nov. 2023.

38ROXIN, C. & GRECO, L. Strafrecht, (…) Ob. Cit., p. 25.


39A esse respeito, GRECO consigna que: “A relação destes três critérios entre si não é tão
clara. Ainda assim, parece plausível recorrer apenas ao terceiro critério, o da não-
distritutividade ou indivisibilidade: a não-rivalidade do consumo não consegue dar conta dos
bens não-consumíveis. Já a não-exclusividade do gozo parece decorrer da indivisibilidade ou
mesmo não passar de uma redescrição dela. Entendemos, portanto, como bem coletivo aquele
que não pode ser dividido em parcelas passíveis de atribuição aos indivíduos. A administração
da Justiça é, assim, um bem coletivo, porque uma boa Justiça é algo que pertence a todos os
cidadãos de igual maneira. O mesmo se diga da pureza do ar: não existe uma parcela do ar
destinada A, outra a B, outra a C, outra a N, mas cada qual pode respirar o ar como um todo,
colhendo o mesmo benefício da pureza desse ar. Já o espólio é um bem individual, porque a
parte de cada herdeiro é identificável”. GRECO, L. “Existem Critérios para a (...)”, Ob. Cit., p.
354.
40Conforme MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, indivisível é aquele bem jurídico em que “não é

conceitualmente (nem fática, nem juridicamente) possível sua divisão em partes, de tal
maneira que se possa atribuir de forma individual em porções”, de modo que não é possível
decompor-se o bem em uma pluralidade de interesses individuais. In: MARTÍNEZ-BUJÁN
PÉREZ, C. Derecho Penal Económico: Parte General, 3a ed., Tirant lo Blanch, Valencia, 2011,
p. 160.
41GRECO, L. “Existem Critérios para a (...)”, Ob. Cit., pp. 358-359.
42GRECO, L. “Existem Critérios para a (...)”, Ob. Cit., pp. 359-362.

397
398 Cadernos de Dereito Actual Nº 22. Núm. Ordinário, (2023)

permitido postular um bem coletivo como objeto de proteção de uma determinada


norma penal, se a afetação desse bem necessariamente pressupõe a simultânea
afetação de um bem individual”. Assim, se o bem jurídico precisa de uma
concomitante violação a um bem individual, não é um bem coletivo. Ademais, não
é possível invocar-se um objeto “por trás” da norma jurídica, como, por exemplo, a
segurança pública ou a confiança, pois essa violação indireta permite fundamentar
a existência de bens jurídicos coletivos em quase todos os crimes. Ao buscar tal
objeto, seria possível dizer, por exemplo, que o crime de furto – além de violar o
patrimônio – também viola indiretamente a segurança pública. Assim, GRECO
defende que deve existir uma relação direta entre a conduta e violação do bem
jurídico coletivo. Ademais, deve existir um desvalor adicional do bem jurídico
coletivo em relação ao bem jurídico individual 43.
Examinando-se esses critérios defendidos por GRECO, expostos aqui de
forma bastante simplificada 44, é possível afirmar que:
(i) A primeira regra (teste da circularidade), na verdade, não constitui um
critério para identificar os bens jurídicos coletivos. Ela expõe um problema relevante
(criação artificial de bens jurídicos coletivos como forma de justificar tipos penais
ilegítimos ou desproporcionais). É um bom alerta para que o intérprete não se
engane no exame da tutela do tipo penal, mas não ajuda a identificar o que é o bem
jurídico coletivo.
(ii) A segunda regra (teste da divisibilidade), em última análise, reafirma o
critério de HEFENDEHL da não distributividade dos bens jurídicos coletivos,
assentando que não basta a mera soma de bens jurídicos individuais para a
caracterização do bem jurídico coletivo (mais uma vez um critério negativo, como
reconhece o próprio GRECO 45). Não há, pois, grande novidade para o debate já
existente.
O critério da indivisibilidade também não funciona sempre. Por exemplo, no
crime de poluição do ar ou de um rio, é possível destacar eventuais pessoas
diretamente atingidas, como a específica família que vive em uma propriedade rural
atingida por nuvens negras em virtude de queimadas ilegais ou os confrontantes de
um pequeno lago poluído em decorrência do descarte ilegal de dejetos animais 46 47.
A possibilidade de destacar essas pessoas não desnatura a existência de um bem
jurídico coletivo48 49.
(iii) A terceira regra (teste da não-especificidade) efetivamente constitui um
critério novo para a compreensão dos bens jurídicos coletivos, tentando separá-los

43GRECO, L. “Existem Critérios para a (...)”, Ob. Cit., pp. 362-364.


44A exposição aqui feita não faz juz à clareza e à força da explicação realizada por GRECO.
Assim, para uma visão mais justa das suas argumentações, o mais correto é examiná-las
diretamente no artigo citado.
45GRECO, L. “Existem Critérios para a (...)”, Ob. Cit., p. 365.
46Em uma outra perspectiva, se todos os proprietários privados de terras banhadas por um

lago, por meio do seu condomínio, promovem o despejo ilegal de dejetos que podem causar
dano potencial a saúde humana (daqueles mesmos moradores), ainda assim há a violação do
bem jurídico meio ambiente, mesmo que os poluidores sejam os diretamente prejudicados
pelo crime ambiental (art. 54, Lei dos Crimes Ambientais). GRECO argumenta que: “não existe
uma parcela do ar destinada a A, outra a B, outra a C, outra a N, mas cada qual pode respirar
o ar como um todo, colhendo o mesmo benefício da pureza desse ar”. In: GRECO, L. “Existem
Critérios para a (...)”, Ob. Cit., p. 354.
47O argumento acima (nota 46) não convence, pois, em inúmeros casos, inclusive na poluição

atmosférica, é possível identificar pessoas diretamente prejudicadas.

48Aliás,nesse caso, o consentimento e o concurso de agentes (uma espécie de autolesão) não


afastariam a violação a esse bem jurídico. Em sentido contrário, GRECO argumenta que: “não
existe uma parcela do ar destinada a A, outra a B, outra a C, outra a N, mas cada qual pode
respirar o ar como um todo, colhendo o mesmo benefício da pureza desse ar”. In: GRECO, L.
“Existem Critérios para a (...)”, Ob. Cit., p. 354.
49O argumento acima (nota 48) não convence, pois, em inúmeros casos, inclusive na poluição

atmosférica, é possível identificar pessoas diretamente prejudicadas.


Rodrigo Leite Ferreira Cabral Bens jurídicos individuais (…)

dos bens jurídicos meramente individuais ou mesmo dos tipos penais irracionais ou
ilegítimos.
A proposta de exigir a presença de uma relação direta entre a incriminação
e a afetação do bem jurídico coletivo e que essa violação deva ser autônoma do bem
individual é interessante, na medida em que busca evitar uma espécie de busca por
uma progressão ao infinito das consequências dos delitos, com a finalidade de
identificar bens jurídicos coletivos.
Nessa perspectiva, como corretamente critica GRECO, caso se admitisse
uma relação indireta entre a conduta e as suas consequências, seria possível afirmar
que o crime de furto viola o patrimônio individual (diretamente), mas também
indiretamente a segurança pública. Indo mais além, poderia atingir a administração
da justiça (com as entidades do Sistema Penal tendo que agir para a repressão do
delito), o patrimônio público (com a necessidade de gastos do aparato estatal e
penitenciário), e assim sucessivamente.
Obviamente, admitir essa progressão levaria à conclusão de que, ao fim e
ao cabo, todos os crimes lesionam bens jurídicos coletivos (mais ou menos na esteira
do monismo coletivista de matriz autoritária).
Portanto, o critério parece ser produtivo.
Sem embargo, a primeira dificuldade dessa proposta é que, em alguns
casos, não é muito fácil precisar a existência dessa relação direta, mesmo porque
ela é normativa e não ontológica.
Nos crimes de lesão e de perigo concreto geralmente não é tão difícil
identificar essa relação entre ação delitiva e uma consequência que importa na
violação a um bem jurídico. Porém, nos crimes de perigo abstrato observar essa
relação já torna a tarefa muito mais complexa e, arrisco dizer, as vezes até mais
imaginativa. Existe, portanto, uma dificuldade de falta de precisão do critério em
determinados casos.
O segundo problema é que o critério proposto não admite a existência de
uma relação indireta entre a ação e um bem jurídico coletivo, mas permite que se
busque essa relação indireta (e muitas vezes imaginária) entre uma conduta
criminosa e um bem jurídico individual.
Em outras palavras, a proposta de GRECO recomenda que não se deve
invocar uma relação indireta da ação delitiva com bens jurídicos coletivos, mas
acaba buscando essa mesma relação indireta para afirmar a existência de um bem
jurídico individual.
Levando a sério esse critério da relação direta praticamente se acaba com
a categoria dos bens jurídicos coletivos (consequência essa que nem sequer os
monistas conseguiram alcançar). É que apenas em raros exemplos, como o da
corrupção citado por GRECO 50, não haverá uma consequência indireta entre a
conduta e um bem jurídico individual.
Por exemplo, com relação ao crime de tráfico, tido por GRECO como protetor
do bem jurídico individual saúde humana, pode-se citar o seguinte exemplo,
bastante cotidiano. Um motorista de caminhão é preso por tráfico de drogas, ao ser
surpreendido pela polícia rodoviária, na estrada vindo do Paraguai, transportando
uma tonelada de maconha.
Na verdade, não é possível estabelecer concretamente uma relação direta
entre essa conduta (transportar droga) e a saúde individual de uma pessoa
determinada. Muito provavelmente não será o caminhoneiro que venderá a droga

50O exemplo citado é o seguinte: “Imagine-se o caso do funcionário atolado em seu trabalho
que recebe dinheiro para realizar um ato vinculado que já deveria ter praticado, mas pratica
esse ato depois do expediente, não gerando, assim, qualquer desvantagem aos demais que
aguardam a prática desse ato. O particular, que é beneficiário, não é vítima, mas
provavelmente até autor do delito de corrupção ativa (art. 333, CP brasileiro). Os demais
particulares que também estão aguardando a prática do ato pelo funcionário não foram
passados para trás e portanto não sofreram qualquer dano”. In: GRECO, L. “Existem Critérios
para a (...)”, Ob. Cit., p. 356.
399
400 Cadernos de Dereito Actual Nº 22. Núm. Ordinário, (2023)

para o consumidor final. É muito provável que existam ainda alguns elos na cadeia
de distribuição da droga, com outros agentes intervenientes, até chegar à pessoa
que fará o uso da maconha. Portanto, não existe uma relação direta entre a ação
(conduzir caminhão carregado com droga) e a saúde humana individual.
No caso do tráfico, a mesma crítica que se faz ao dizer que a violação ao
bem jurídico saúde pública é meramente indireta, também pode ser feita ao afirmar
que o tráfico de drogas viola um bem jurídico individual. A relação entre a conduta
e a consequência é hipotética, bastante distante e depende de outros
desdobramentos causais. Portanto, em casos como esse, exigir uma relação direta
entre a ação e o bem jurídico não ajuda a identificar se ele é individual ou coletivo.
O terceiro problema é que existem muitos crimes que violam bens jurídicos
coletivos em que não é possível – como propõe GRECO – identificar uma violação
do bem coletivo de forma autônoma ao bem individual.
Por exemplo, no crime de falso testemunho, GRECO afirma que: “A
administração da Justiça é (...) um bem coletivo, porque uma boa Justiça é algo que
pertence a todos os cidadãos de igual maneira” 51.
O argumento também não convence. No falso testemunho a violação do
bem jurídico coletivo pressupõe a simultânea afetação do bem individual. É que a
relação direta entre infração penal e bem jurídico é com o bem individual da parte
prejudicada e não com a coletividade. Só indireta e abstratamente é possível falar
em violação a um bem jurídico coletivo. Sem a violação ao direito da parte, não
existe um desvalor direto adicional, não existe crime contra a administração da
justiça. Um falso testemunho em um processo penal na Justiça Estadual de Laranjal
do Jari/AP não tem transcendência direta alguma para os jurisdicionados de
Curitiba/PR. Portanto, de acordo com o critério de GRECO, o falso testemunho
tutelaria um mero bem jurídico individual.
Por fim, talvez, o principal problema dessa proposta do professor GRECO é
que ela acaba por – salvo pequenas exceções - não reconhecer como bens jurídicos
coletivos legítimos a proteção contra o ataque e o embaraço ao bom funcionamento
de instituições públicas ou de interesse público, o que esvazia a importância delas
para a vida moderna, especialmente para a concretização de direitos fundamentais,
individuais e coletivos, previstos na Constituição. Vamos tentar retomar esse
assunto mais adiante.
Para encerrar, é certo que – apesar das críticas aqui lançadas – os critérios
apresentados por HEFENDEHL e GRECO, em muitos casos, podem sim servir como
ferramenta bastante útil para deixar às claras a ausência de um bem jurídico coletivo
e podem ser utilizadas como boas razões para apontar a falta de legitimidade de
determinados tipos penais ou mesmo a sua irracionalidade.
Portanto, como conclusão intermediária é possível afirmar que os critérios
podem ser úteis, mas nem o são.

3.3. UM CAMINHO PARA A IDENTIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS


COLETIVOS

Aqui, se defende que o bem jurídico coletivo é substanciado por uma


legítima expectativa de respeito que transcende a mera esfera individual, uma vez
que ela é compartilhada pelos integrantes de determinada sociedade.
A primeira manifestação em que se pode identificar essa transcendência
ocorre quando o bem jurídico envolve a satisfação de necessidades absolutas da
espécie humana.
Essa hipótese inclui os casos em que está em jogo a preservação da própria
existência coletiva da vida e saúde humanas, por exemplo, desde uma perspectiva:
(i) biológica permitindo a sua preservação e desenvolvimento e (ii) ambiental,
assegurando as condições materiais para a existência da vida humana e seu
desenvolvimento saudável.

51GRECO, L. “Existem Critérios para a (...)”, Ob. Cit., p. 354.


Rodrigo Leite Ferreira Cabral Bens jurídicos individuais (…)

O crime de manipulação genética de células germinais humanas coloca em


perigo abstrato a existência biológica do ser humano (art. 13 da Lei n. 8.974/95).
Os crimes ambientais colocam em perigo as condições materiais de existência da
vida e saúde humanas.
Ademais, a existência do ser humano como espécie coletiva não se restringe
às necessidades biológicas, pois também não se pode prescindir das necessidades
sociais52, que garantam as condições para a existência interpessoal, o
desenvolvimento e aperfeiçoamento da sociedade, inclusive a partir de uma visão
política, educacional, econômica, cultural, etc.
Aqui, entram em jogo, por exemplo, os crimes de racismo (v.g. art. 20 da
Lei n. 7.716/89), que afeta o reconhecimento interpessoal das pessoas de
determinada raça, e também os crimes contra o patrimônio paisagístico, ecológico,
turístico, artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou
monumental (v.g. art. 63 da Lei n. 9.605/98), que colocam em perigo esse
patrimônio social imaterial.
Em suma, em uma primeira perspectiva, substanciam bens jurídicos
coletivos aqueles que geram a expectativa de respeito às condições de uma
existência humana plena, vinculada às próprias condições de vida, saúde, meio
ambiente e desenvolvimento social.
Ademais, e esse é um ponto bastante importante, para a preservação e
desenvolvimento do ser humano como espécie, desde uma perspectiva biológica,
ambiental ou social, foram criadas em nossas sociedades instituições, com o objetivo
de concretizar finalidades públicas e direitos individuais ou coletivos.
Assim, as infrações penais que punem as condutas que afetam as condições
materiais para a existência de instituições públicas (v.g. crimes contra a ordem
tributária) ou que proíbem o ataque ao adequado funcionamento de instituições com
finalidades públicas, também podem tutelar bens jurídicos coletivos (v.g. crimes
contra as instituições democráticas – art. 359-L, CP).
Em outras palavras, a proteção às condições de existência e à
funcionalidade (em deveres prestacionais ou de proteção) de instituições com
finalidades públicas pode substanciar a tutela de bens jurídicos coletivos.
Com essa perspectiva, parece ser possível assegurar um mínimo de
legitimidade à afirmação de que determinados tipos penais tutelam efetivamente
bens jurídicos coletivos.
Sem embargo, a tarefa de delimitação entre os bens jurídicos individuais e
coletivos e a sua concretização deverá ser feita em cada ordenamento jurídico 53, de
acordo com a específica configuração dos seus tipos penais.
Resta à doutrina penal e à jurisprudência avaliar se essa divisão não é
arbitrária e se está amparada por boas razões. Lembrando, porém, que o conceito
de bem jurídico não serve para criticar as más escolhas político-criminais do
legislador, mas para exigir que essas construções sejam dotadas de legitimidade e
racionalidade, com a finalidade de evitar-se a realização de injustiças.
Em suma, é possível afirmar a presença de um bem jurídico coletivo, quando
o tipo penal traga subjacentes boas razões, potencializando a aceitabilidade racional

52HACKER, P.M.S. Human Nature: The Categorial Framework, Wiley-Blackwell, Sussex, 2010.
53A Constituição da República brasileira, por exemplo, faz referência expressa a bens jurídicos
coletivos, tais como os crimes políticos, os contra bens, serviços e interesses da União (art.
109, I), os crimes contra a organização do trabalho, os que afetam sistema financeiro e a
ordem econômico-financeira (art. 109, VI), os crimes militares (art. 124, I). Tais referências,
porém, podem ser objeto de crítica pontual, para receberem uma interpretação conjunta com
o princípio da proporcionalidade.
401
402 Cadernos de Dereito Actual Nº 22. Núm. Ordinário, (2023)

dos tipos penais e dotando-a de legitimidade54 55.


Portanto, aqui se defende que para diferenciar os bens jurídicos individuais
dos coletivos é possível observar alguns passos (bastante simples e evidentes), não
exaustivos e que podem ser problematizados e complementados caso a caso,
inclusive com a possível invocação, quando fizer sentido, das regras trazidas por
HEFENDEHL e GRECO.
1º Passo. Deverá o intérprete examinar a incriminação específica,
verificando se descrição típica faz uma vinculação a determinada ou determinas
vítimas privadas (pessoa natural ou jurídica). Se o tipo penal claramente delimita a
expectativa de respeito a uma pessoa individual (ainda que seja possível a existência
de várias vítimas), sem nenhuma transcendência de expectativa compartilhada, o
bem jurídico é individual.
Além dos casos evidentes (como homicídio, furto, roubo, estupro, etc.),
pode-se citar, por exemplo, o crime de redução à condição análoga à de escravo
(CP, art. 149).
Muito embora a sua prática envolva a violação a direitos coletivos de
trabalho (v.g. que proíbem a jornada exaustiva de trabalho em condições
degradantes), o crime é praticado contra uma ou várias pessoas determinadas.
Trata-se, portanto, de crime que tutela um bem jurídico individual e não coletivo.
Da mesma forma, o crime do art. 168 da Lei de Falências, que
expressamente prevê o prejuízo aos credores, não tutela um bem jurídico economia
ou de afetação ao crédito, mas tão somente um bem jurídico patrimonial individual 56.
Essa ideia vale, inclusive, para os casos em que há diversas vítimas sob
uma mesma relação jurídica base ou decorrentes de uma origem comum, em que a
doutrina cível denomina de direitos coletivos e direitos individuais homogêneos
(CDC, art. 82, II e III).
Nesses casos, sendo possível delimitar claramente a vítima, mesmo que
sejam várias, o crime tutela bem jurídico individual (v.g. inúmeras vítimas de
estelionato decorrente do uso de uma página falsa na internet), desde que o tipo
penal não transcenda à esfera individual, substanciando uma expectativa de respeito
coletivamente compartilhada.
2º Passo. Caso o tipo penal não esteja vinculado a uma vítima privada,
caberá ao intérprete verificar se o legislador realizou uma tentativa arbitrária ou
artificial de criação de bem jurídico coletivo, em que não existe uma expectativa de
respeito que transcenda as expectativas individuais. Em caso positivo, ainda que
não exista vinculação explícita a uma vítima privada determinada, o bem jurídico
será individual.
Exemplo. O crime de manutenção de casa de prostituição (CP, art. 229).
Apesar de historicamente estar vinculado a um “bem jurídico coletivo” da moralidade
pública (o que não passa em qualquer teste de legitimidade sobre o bem jurídico),
sua redação atual exige “exploração sexual”. Portanto, o tipo penal tutela o bem
jurídico individual da vítima ou vítimas de exploração sexual. A coletividade aqui não
é a ofendida, pois não há uma expectativa compartilhada de respeito.
Esse exame, também, deve levar em conta eventuais justificativas
circulares, em que se pretende justificar a norma a partir de uma mera
desobediência (o mero descumprimento da norma serve para justificar a existência

54 “A pretensão de que uma norma atenda de forma igualitária a todos possui, sobretudo, o
sentido da aceitabilidade racional: todos os possíveis afetados por uma norma teriam de poder
dar a ela seu consentimento fundado em boas razões. E isso, por sua vez, só pode ser
alcançado sob condições pragmáticas de discursos nos quais, baseado nas informações
relevantes, impõe-se tão somente a coerção do melhor argumento”. In: HABERMAS, J.
Facticidade e Validade, Unesp, São Paulo, 2020, pp. 150-151.
55Assim, também, VIVES ANTÓN, T.S. Fundamentos del Sistema Penal, 2ª ed., Tirant lo

Blanch, Valencia, 2011, pp. 489-490.


56 Nesse mesmo sentido, em relação aos crimes falimentares na Alemanha, é a argumentação

de HEFENDEHL, com a qual se está de acordo Cf.: HEFENDEHL, R. O bem jurídico como (...),
Ob. Cit., pp. 75-78.
Rodrigo Leite Ferreira Cabral Bens jurídicos individuais (…)

de um bem jurídico coletivo).


3º Passo. Se não houver no tipo penal vinculação a determinada vítima
privada, se não houver uma tentativa arbitrária ou artificial de criar um bem jurídico
coletivo, mas sim boas razões a justificar a existência de uma violação a uma
expectativa coletiva compartilhada de respeito, que transcende a individual,
podemos estar diante de um bem jurídico coletivo, caso o bem jurídico envolva a
preservação da própria existência coletiva da vida e saúde humanas (em uma
perspectiva biológica, ambiental ou social) ou caso se tutele a existência, o
desenvolvimento ou o bom funcionamento de instituições, com finalidades públicas
legítimas.
Se for esse o caso, deverá ser respeitada a liberdade de conformação do
legislador e a sua competência para definir de forma não arbitrária os tipos penais.

3.4. O CASO DOS CRIMES DE TRÁFICO DE DROGAS

Para examinar a adequação do critério acima proposto, é importante passar


no teste dos casos mais complexos, em que há um sério debate sobre a existência
ou não de bens jurídicos coletivos.
Aqui vamos nos limitar a examinar o crime de tráfico de entorpecentes.
Muito embora autores como GRECO e HEFENDEHL, dentre outros, venham
defendendo que se trata de crimes que tutelam bens jurídicos individuais, afirmando
que são crimes de perigo abstrato que tutelam bem jurídico individual, a nosso
sentir, essa conclusão não é a mais adequada.
Primeiro que só indiretamente o crime de tráfico tutela a saúde individual
das pessoas, o que – como já visto – não é suficiente para justificar a presença de
um bem jurídico.
O crime de tráfico de drogas frustra diretamente o dever de controle que o
Estado possui em relação a substâncias perigosas.
Ora, desde uma perspectiva de saúde pública, é perfeitamente legítimo que
os órgãos estatais realizem o controle sobre substâncias potencialmente lesivas à
saúde, como é o caso das drogas57. Com isso, o Estado: (i) realiza um exame técnico
das substâncias prejudiciais, negando a possibilidade da sua entrega a terceiros ou
permitindo que ela seja feita apenas em determinadas condições (v.g. autorização
médica); (ii) cumpre a função orientativa da população, para que saibam quais
substâncias o Estado tem como prejudiciais à saúde; (iii) restringe o acesso de
substâncias prejudiciais a pessoas menores ou sem discernimento e a pessoas
viciadas, o que constitui uma das formas mais efetivas de evitar o uso nocivo ou
recaídas de usuários adictos.
Todo aquele que promove – nos diversos verbos típicos do art. 33 da Lei de
Drogas – a circulação ilícita de drogas está potencialmente (crime de perigo
abstrato) embaraçando e prejudicando a capacidade de funcionamento dos órgãos
públicos destinados à proteção da saúde pública.
Em suma, ainda que se possa criticar a opção político criminal do Estado,
ainda que se possa argumentar que determinadas drogas não deveriam ser proibidas
(v.g. maconha) ou que deveriam ser incluídas na proibição, pelo semelhante
potencial lesivo, outras substâncias (v.g. cigarro e álcool), é certo que a opção do

57SCHÜNEMANN defende que o tráfico de drogas é um bem jurídico intermediário,


nomenclatura que desenvolveu para os casos em que o Estado cria uma instituição com
finalidades protetivas, que, por sua vez, também necessita de proteção (que se dá pelos bens
jurídicos intermediários). Desse modo, considera legítima a tutela de um bem jurídico
intermediário consistente no controle estatal sobre o comércio de drogas. Propugna, porém,
algumas limitações na incriminação dessa conduta. Cf.: SCHÜNEMANN, B. “O princípio da
proteção de bens jurídico (...)”, Ob. Cit., pp. 63-64.

403
404 Cadernos de Dereito Actual Nº 22. Núm. Ordinário, (2023)

legislador em tutelar esse bem jurídico coletivo é perfeitamente legítima.


Aqui, não importa uma hipotética soma dos bens individuais, mas sim o
menoscabo à capacidade de funcionamento dos órgãos estatais e o dever de controle
desse fluxo de substâncias prejudiciais à saúde.
Em suma, nesse delito pode-se constatar que a opção do legislador em
tutelar bens jurídicos coletivos é perfeitamente legítima, pois há boas razões a
justificar uma perspectiva que transcenda à mera expectativa individual.
A teoria do bem jurídico não parece possibilitar a diminuição da vontade
democrática do legislador em tutelar bens jurídicos que entende como coletivos. A
teoria do bem jurídico substancia uma potente guardiã para a legitimidade do Direito
Penal, mas ela somente deve ser usada em casos extremos, não se prestando para
substituir o legislador pela vontade dos penalistas ou pela sua mera discordância
das políticas criminais adotadas pelo Congresso Nacional, salvo quando existam,
como já dito, razões muito fortes para questionar a legitimidade dessas escolhas.

4. CONCLUSÃO

Como conclusão, é possível assentar que não existe propriamente um critério


definitivo para identificação de bem jurídico coletivo. Os critérios apresentados por
HEFENDEHL e por GRECO podem ser úteis no debate específico da legitimidade ou
racionalidade de determinados tipos penais. Parece que o caminho deve ser esse, o
do debate específico de cada tipo penal para a identificação do bem jurídico tutelado.
Aqui, ainda que de forma superficial e sem respostas definitivas, tentou-se
apresentar algumas críticas e possibilidades de caminhos a serem seguidos na
realização desse debate, que tem bastante importância teórica e prática.

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