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·ISSN 2340-860X - ·ISSNe 2386-5229
Abstract: The purpose of this article is to examine the criteria established for the
identification of collective legal interest by the most modern doctrine, trying to
present some critics, as well as trying to present a possible path to be followed.
Keywords:
Individual legal interest. Collective legal interest. Criminal Law.
Recibido: 03/07/2023
Aceptado: 12/12/2023
DOI: 10.5281/zenodo.10391757
Rodrigo Leite Ferreira Cabral Bens jurídicos individuais (…)
1. INTRODUÇÃO
2Os fundamentos materiais dessa proposta e o seu desenvolvimento podem ser encontrados.
In: CABRAL, R.L.F. “Bem Jurídico como Expectativa Legítima de Respeito: Uma reflexão à luz
da Filosofia da Linguagem”, in: PERUZZO JÚNIOR, L. & BUSATO, P.C. (Org.). Direito Penal e
Filosofia da Linguagem, Tirant lo Blanch, São Paulo, 2022, pp. 27-39.
3VIVES ANTÓN, T.S. “Estudio preliminar”, in: RAMOS VÁZQUEZ, J.A. Concepción significativa
de la acción y teoría jurídica del delito, Tirant lo Blanch, Valencia, 2008, p. 50.
4Uma dessas formas não usuais da palavra existir é empregada por ROXIN, que assevera que
o bem jurídico não é constituído por um substrato material, mas é uma realidade social que
pode ser lesionada, de modo que não se trata de uma construção simplesmente imaginária,
mas sim uma disponibilidade jurídico-social que pode muito bem ser lesionada, de modo que
se deve rechaçar um conceito puramente abstrato ou ideal de bem jurídico. In: ROXIN, C. &
GRECO, L. Strafrecht, Allgemeiner Teil, 5º ed., vol. 1, De Gruyer, Berlim, 2020, p. 67.
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devem ser tutelados pelo Direito Penal, cf.: HASSEMER, W. "Grundlinien einer personalen
Rechtsgutslehre“, in Strafen im Rechtsstaat, Nommos, Baden-Baden, 2000, p. 167.
8HASSEMER, W. "Grundlinien einer (...)“, Ob. Cit., pp. 166-167.
9HASSEMER, W. & NEUMANN, U. “Nomos-Kommentar zum (…)” Ob. Cit., p. 114.
10HASSEMER admite possível a existência de um bem jurídico que tenha uma referência
indireta ao ser humano, como é o caso da tutela do meio ambiente, que, na verdade, não
protegeria a pureza do meio ambiente, mas saúde e a vida humana. In: HASSEMER, W. &
NEUMANN, U. “Nomos-Kommentar zum (…)”, Ob. Cit., p. 115.
11Existe, também, uma concepção que se pode chamar de personalista radical, que defende
que o bem jurídico é legítimo apenas quando relação entre ele e o indivíduo for direta. Essa
tese é defendida por autores como ZAFFARONI, FERRAJOLI e TAVARES. Cf.: GRECO, L.
Rodrigo Leite Ferreira Cabral Bens jurídicos individuais (…)
Desse modo, propõe que a tutela penal estatal deve ser reduzida a um
direito penal nuclear (Kernstrafrecht), que compreende tão somente a proteção
contra violações dos bens jurídicos individuais clássicos, sugerindo que os problemas
mais recentes da sociedade moderna devem ser resolvidos por um Direito de
Intervenção (Interventionsrecht), que deve constituir um novo ramo do Direito, que
se situa entre o Direito Penal e o Direito Administrativo ou direito de polícia (Recht
der Ordnungswidrigkeiten), entre o Direito Civil e o Direito Público. Um Direito que
oferece menos garantias que o Direito penal, mas que, em contrapartida, impõe
sanções menos severas 12 13 14.
cf.: ROXIN, C. & GRECO, L. Strafrecht, Allgemeiner Teil, 5º ed., vol. 1, De Gruyer, Berlim,
2020, pp. 69-71.
14Em sentido semelhante, é a proposta de SILVA SÁNCHEZ, que propugna um Direito Penal de
segunda velocidade para os ilícitos de acumulação ou perigo presumido, bem como para
condutas que se encontram distantes de um perigo real para um bem jurídico individual ou
mesmo supraindividual. Nessa modalidade de Direito Penal, haveria um afastamento da
aplicação das penas de prisão, aproximando-se mais de um Direito Administrativo sancionador,
com penas privativas de direitos, multas e sanções aplicáveis a pessoas jurídicas. Por outro
lado, nele também haveria uma flexibilização dos critérios de imputação e das garantias
político-criminais. SILVA SÁNCHEZ admite, porém, eventualmente, a aplicação do Direito Penal
tradicional (de primeira velocidade) aos ilícitos contra bens jurídicos supraindividuais quando
exista uma lesão ou perigo real a esses bens. In: SILVA SANCHÉZ, J.M. La Expansión del
Derecho Penal: Aspectos de la política criminal en las sociedades posindustriales, 2ª ed.,
Civitas, Madrid, 2001, pp. 159-162.
15A nomenclatura para os bens jurídicos coletivos é bastante ampla. É possível encontrar o
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modo mais detido na afirmação – aliás, nunca formulada de modo muito consequente –
segundo a qual os bens jurídicos coletivos seriam ilegítimos. A esta ideia deve-se objetar não
apenas que ela se trata de um mero postulado político-criminal, mas sim, e em primeira linha,
que, apesar de sua coerência interna e das virtudes estéticas daí decorrentes, trata-se de uma
exigência aberrante. Ninguém até hoje ousou conceber um Direito Penal sem delitos de
funcionários, de delitos contra a Administração da Justiça e de falsificação de moeda. As
concepções focadas em bens jurídicos individuais desenvolvem suas críticas com base em
certos adversários ‘peso-leve’ escolhidos sob medida, isto é, com base em certos tipos penais
que, ao serem corretamente analisados, em geral sequer protegem bens jurídicos coletivos, e
sim se referem a uma ulterior e, na verdade, desnecessária proteção de bens individuais”.
HEFENDEHL, R. “O bem jurídico como pedra angular da norma penal”, in: O Bem Jurídico como
limitação do Poder Estatal de Incriminar?, 2a ed., Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2016, p. 73.
20ROXIN, C. & GRECO, L. Strafrecht, Allgemeiner (…), Ob. Cit., pp. 27-28.
21GRECO, L. “Existem Critérios para a (...)”, Ob. Cit., pp. 352-353.
22GRECO, L. “Existem Critérios para a (...)”, Ob. Cit., p. 352.
23O delito de tráfico de drogas, por exemplo, que, para alguns autores, como GRECO não
protegem bem jurídico coletivo, mas individual. Nessas hipóteses, haveria eventualmente a
possibilidade do afastamento da tipicidade pelo consentimento. Cf.: GRECO, L. “Existem
Critérios para a (...)”, Ob. Cit., p. 352.
24No sentido de que o delito de tráfico de drogas protege bem jurídico intermediário, cf.:
SCHÜNEMANN, B. “O princípio da proteção de bens jurídicos como ponto de fuga dos limites
constitucionais e da interpretação dos tipos”, in: O Bem Jurídico como limitação do Poder
Estatal de Incriminar? 2a ed., Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2016, p. 63.
Rodrigo Leite Ferreira Cabral Bens jurídicos individuais (…)
autoriza o uso da legítima defesa pelo agredido, enquanto que no caso dos bens
jurídicos individuais seu uso é possível; dentre outros aspectos dogmáticos
relevantes que podem ser levados em consideração com um escrutínio crítico dos
tipos penais que abusam na invocação de bens jurídicos coletivos.
Por essas e outras razões é que se tem debatido quais são os critérios para
a identificação dos bens jurídicos coletivos.
O mais óbvio desses critérios é observar a sua titularidade. Existindo um
bem jurídico de titularidade de uma pessoa física (ou mesmo jurídica privada) se
estaria diante de um bem jurídico individual. Quando a titularidade do bem é da
sociedade, da comunidade, do Estado ou de outros entes públicos, haveria um bem
jurídico coletivo25.
Sem embargo, essa diferenciação, muitas vezes, resulta insuficiente. Por
isso, é importante desenvolver-se critérios mais precisos para saber se estamos
diante de um bem jurídico individual ou coletivo 26.
titulares dos bens jurídicos, ainda que seja um elevado número de pessoas30 31 32 33.
Examinando-se a proposta apresentada por HEFENDEHL, verifica-se a
existência de alguns problemas.
Primeiro. HEFENDEHL toma emprestado um conceito econômico de bem
coletivo (usado também por ALEXY) realizando, portanto, uma troca categorial:
utilizou um conceito de bem coletivo para conceituar bem jurídico (coletivo), que é
algo bastante distinto.
O conceito de bem para a economia (ou mesmo para o direito civil) não é
idêntico e não pertence à mesma categoria conceitual do bem jurídico. Essa confusão
somente acentua as dificuldades já existentes para a definição penal de bem jurídico
coletivo.
Segundo. Os critérios da não exclusividade do gozo e da não rivalidade do
consumo, com asseverado por GRECO, não são muito claros 34.
Além disso, o gozo e o consumo são faculdades inerentes ao direito de
propriedade (CC, art. 1.228). Gozar para o Direito Civil é fruir, utilizar os frutos de
um bem (ius fruendi). Consumir é o ato de usar bens móveis consumíveis, que são
aqueles cujo uso importa na imediata destruição da própria substância - primo usu
consummuntur (CC, art. 88).
Não é difícil concluir que esses atributos não são aplicáveis à maioria dos
bens jurídicos. O titular do bem jurídico vida não a consome. O titular do bem jurídico
honra não tira os frutos desse bem.
Falar em consumo e gozo dos bens jurídicos não parece fazer muito sentido.
O que o titular tem – como aqui defendido – é uma expectativa de respeito a esse
bem jurídico.
Terceiro. Mesmo quando se fala em bens jurídicos coletivos esses critérios
não parecem funcionar. Um bem público (patrimônio público), por exemplo, que é
um bem jurídico coletivo, pode ter seu uso e gozo limitados, sem desvirtuar sua
natureza coletiva35.
Uma escola pública tem um número limitado de alunos matriculados que
gozarão das suas instalações, dos materiais e dos serviços ali prestados. Uma
sofisticada garrafa de vinho adquirida pelo governo federal para servir em um jantar
de Estado será consumida por um número bastante reduzido de pessoas. Isso não
afasta a titularidade coletiva desses bens.
Por isso, a tese de HEFENDEHL não pode ser adotada de forma integral,
merecendo, portanto, alguns reparos e complementações.
Afirma que há hipóteses em que “o bem coletivo é vulnerável a um consumo irregular e, por
isso, passível de redução e destruição”. Nesses casos de consumo irregular, existe uma
rivalidade do consumo (é dizer, o consumo de alguns prejudica o consumo dos demais). Assim,
o meio ambiente, por exemplo, não pode ser colocado para o consumo ilimitado de toda a
coletividade. Sustenta, sem embargo, que remanesce a possibilidade de o bem coletivo ser
consumido de forma regular, mantendo-o, portanto, intocado. Cf.: HEFENDEHL, R. “O bem
jurídico como pedra angular da norma penal”, in O Bem Jurídico como limitação do Poder
Estatal de Incriminar? 2a ed., Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2016, p. 84.
33Assim também em: HEFENDEHL, R. Kollektive Rechtsgüter (...), Ob. Cit., p. 113.
34ROXIN, C. & GRECO, L. Strafrecht, Allgemeiner Teil, 5º ed., vol. 1, De Gruyer, Berlim, 2020,
p. 25.
35O mesmo ocorre com os bens ambientais, cujo uso e gozo podem ser restringidos, como,
inclusive, parece reconhecer o autor, em: HEFENDEHL, R. Kollektive Rechtsgüter (...), Ob. Cit.,
p. 113.
Rodrigo Leite Ferreira Cabral Bens jurídicos individuais (…)
por HEFENDEHL não é tão clara. Defendem, portanto, que o requisito da não
distributividade (ou da indivisibilidade 36 37) é suficiente para a identificação dos bens
jurídicos coletivos38 39(também conhecido como critério da indivisibilidade 40).
Para eles, caso seja possível indicar de forma destacada os eventuais
titulares dos bens jurídicos se estará diante de um bem jurídico individual e não
coletivo.
Desenvolvendo sua posição sobre o tema, GRECO apresenta critérios
adicionais ao da indivisibilidade. Oferece, nesse sentido, três regras básicas para
afastar a existência de um bem jurídico coletivo.
A primeira regra (denominada de teste da circularidade) estabelece que: “o
fato de que um dispositivo penal não seria legitimável sem um bem coletivo não
fornece qualquer razão para postular um tal bem”. Com isso, busca evitar que se
“inventem” bens coletivos como forma de tentar legitimar tipos penais que são
ilegítimos, que não têm verdadeiros bens jurídicos, pois “o problema dos bens
jurídicos coletivos está em que eles solucionam todos os problemas”. Com essa
criação fictícia de um bem jurídico coletivo, se busca dar um verniz de legitimidade
a um tipo penal ilegítimo. Aceitar essa manobra de multiplicação de bens coletivos
inexistentes seria acabar com a crítica e o controle sobre a racionalidade do
legislador penal que a teoria do bem jurídico permite realizar 41.
A segunda regra (teste da divisibilidade) assenta que: “O fato de que um
número indeterminado de indivíduos tem interesse em um bem não é uma razão
para postular um bem coletivo”. Isso porque, o bem jurídico coletivo é indivisível.
Ele não deve ser composto pela mera soma de bens jurídicos individuais, ainda que
envolva um número indeterminado de pessoas. Se isso ocorre, não é possível
simplesmente negar a existência de um bem jurídico individual invocando a presença
de uma instituição social, como um corpo coletivo, como forma de assentar a
presença de um bem jurídico coletivo 42.
A terceira regra (teste da não-especificidade) propugna que “não é
conceitualmente (nem fática, nem juridicamente) possível sua divisão em partes, de tal
maneira que se possa atribuir de forma individual em porções”, de modo que não é possível
decompor-se o bem em uma pluralidade de interesses individuais. In: MARTÍNEZ-BUJÁN
PÉREZ, C. Derecho Penal Económico: Parte General, 3a ed., Tirant lo Blanch, Valencia, 2011,
p. 160.
41GRECO, L. “Existem Critérios para a (...)”, Ob. Cit., pp. 358-359.
42GRECO, L. “Existem Critérios para a (...)”, Ob. Cit., pp. 359-362.
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lago, por meio do seu condomínio, promovem o despejo ilegal de dejetos que podem causar
dano potencial a saúde humana (daqueles mesmos moradores), ainda assim há a violação do
bem jurídico meio ambiente, mesmo que os poluidores sejam os diretamente prejudicados
pelo crime ambiental (art. 54, Lei dos Crimes Ambientais). GRECO argumenta que: “não existe
uma parcela do ar destinada a A, outra a B, outra a C, outra a N, mas cada qual pode respirar
o ar como um todo, colhendo o mesmo benefício da pureza desse ar”. In: GRECO, L. “Existem
Critérios para a (...)”, Ob. Cit., p. 354.
47O argumento acima (nota 46) não convence, pois, em inúmeros casos, inclusive na poluição
dos bens jurídicos meramente individuais ou mesmo dos tipos penais irracionais ou
ilegítimos.
A proposta de exigir a presença de uma relação direta entre a incriminação
e a afetação do bem jurídico coletivo e que essa violação deva ser autônoma do bem
individual é interessante, na medida em que busca evitar uma espécie de busca por
uma progressão ao infinito das consequências dos delitos, com a finalidade de
identificar bens jurídicos coletivos.
Nessa perspectiva, como corretamente critica GRECO, caso se admitisse
uma relação indireta entre a conduta e as suas consequências, seria possível afirmar
que o crime de furto viola o patrimônio individual (diretamente), mas também
indiretamente a segurança pública. Indo mais além, poderia atingir a administração
da justiça (com as entidades do Sistema Penal tendo que agir para a repressão do
delito), o patrimônio público (com a necessidade de gastos do aparato estatal e
penitenciário), e assim sucessivamente.
Obviamente, admitir essa progressão levaria à conclusão de que, ao fim e
ao cabo, todos os crimes lesionam bens jurídicos coletivos (mais ou menos na esteira
do monismo coletivista de matriz autoritária).
Portanto, o critério parece ser produtivo.
Sem embargo, a primeira dificuldade dessa proposta é que, em alguns
casos, não é muito fácil precisar a existência dessa relação direta, mesmo porque
ela é normativa e não ontológica.
Nos crimes de lesão e de perigo concreto geralmente não é tão difícil
identificar essa relação entre ação delitiva e uma consequência que importa na
violação a um bem jurídico. Porém, nos crimes de perigo abstrato observar essa
relação já torna a tarefa muito mais complexa e, arrisco dizer, as vezes até mais
imaginativa. Existe, portanto, uma dificuldade de falta de precisão do critério em
determinados casos.
O segundo problema é que o critério proposto não admite a existência de
uma relação indireta entre a ação e um bem jurídico coletivo, mas permite que se
busque essa relação indireta (e muitas vezes imaginária) entre uma conduta
criminosa e um bem jurídico individual.
Em outras palavras, a proposta de GRECO recomenda que não se deve
invocar uma relação indireta da ação delitiva com bens jurídicos coletivos, mas
acaba buscando essa mesma relação indireta para afirmar a existência de um bem
jurídico individual.
Levando a sério esse critério da relação direta praticamente se acaba com
a categoria dos bens jurídicos coletivos (consequência essa que nem sequer os
monistas conseguiram alcançar). É que apenas em raros exemplos, como o da
corrupção citado por GRECO 50, não haverá uma consequência indireta entre a
conduta e um bem jurídico individual.
Por exemplo, com relação ao crime de tráfico, tido por GRECO como protetor
do bem jurídico individual saúde humana, pode-se citar o seguinte exemplo,
bastante cotidiano. Um motorista de caminhão é preso por tráfico de drogas, ao ser
surpreendido pela polícia rodoviária, na estrada vindo do Paraguai, transportando
uma tonelada de maconha.
Na verdade, não é possível estabelecer concretamente uma relação direta
entre essa conduta (transportar droga) e a saúde individual de uma pessoa
determinada. Muito provavelmente não será o caminhoneiro que venderá a droga
50O exemplo citado é o seguinte: “Imagine-se o caso do funcionário atolado em seu trabalho
que recebe dinheiro para realizar um ato vinculado que já deveria ter praticado, mas pratica
esse ato depois do expediente, não gerando, assim, qualquer desvantagem aos demais que
aguardam a prática desse ato. O particular, que é beneficiário, não é vítima, mas
provavelmente até autor do delito de corrupção ativa (art. 333, CP brasileiro). Os demais
particulares que também estão aguardando a prática do ato pelo funcionário não foram
passados para trás e portanto não sofreram qualquer dano”. In: GRECO, L. “Existem Critérios
para a (...)”, Ob. Cit., p. 356.
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para o consumidor final. É muito provável que existam ainda alguns elos na cadeia
de distribuição da droga, com outros agentes intervenientes, até chegar à pessoa
que fará o uso da maconha. Portanto, não existe uma relação direta entre a ação
(conduzir caminhão carregado com droga) e a saúde humana individual.
No caso do tráfico, a mesma crítica que se faz ao dizer que a violação ao
bem jurídico saúde pública é meramente indireta, também pode ser feita ao afirmar
que o tráfico de drogas viola um bem jurídico individual. A relação entre a conduta
e a consequência é hipotética, bastante distante e depende de outros
desdobramentos causais. Portanto, em casos como esse, exigir uma relação direta
entre a ação e o bem jurídico não ajuda a identificar se ele é individual ou coletivo.
O terceiro problema é que existem muitos crimes que violam bens jurídicos
coletivos em que não é possível – como propõe GRECO – identificar uma violação
do bem coletivo de forma autônoma ao bem individual.
Por exemplo, no crime de falso testemunho, GRECO afirma que: “A
administração da Justiça é (...) um bem coletivo, porque uma boa Justiça é algo que
pertence a todos os cidadãos de igual maneira” 51.
O argumento também não convence. No falso testemunho a violação do
bem jurídico coletivo pressupõe a simultânea afetação do bem individual. É que a
relação direta entre infração penal e bem jurídico é com o bem individual da parte
prejudicada e não com a coletividade. Só indireta e abstratamente é possível falar
em violação a um bem jurídico coletivo. Sem a violação ao direito da parte, não
existe um desvalor direto adicional, não existe crime contra a administração da
justiça. Um falso testemunho em um processo penal na Justiça Estadual de Laranjal
do Jari/AP não tem transcendência direta alguma para os jurisdicionados de
Curitiba/PR. Portanto, de acordo com o critério de GRECO, o falso testemunho
tutelaria um mero bem jurídico individual.
Por fim, talvez, o principal problema dessa proposta do professor GRECO é
que ela acaba por – salvo pequenas exceções - não reconhecer como bens jurídicos
coletivos legítimos a proteção contra o ataque e o embaraço ao bom funcionamento
de instituições públicas ou de interesse público, o que esvazia a importância delas
para a vida moderna, especialmente para a concretização de direitos fundamentais,
individuais e coletivos, previstos na Constituição. Vamos tentar retomar esse
assunto mais adiante.
Para encerrar, é certo que – apesar das críticas aqui lançadas – os critérios
apresentados por HEFENDEHL e GRECO, em muitos casos, podem sim servir como
ferramenta bastante útil para deixar às claras a ausência de um bem jurídico coletivo
e podem ser utilizadas como boas razões para apontar a falta de legitimidade de
determinados tipos penais ou mesmo a sua irracionalidade.
Portanto, como conclusão intermediária é possível afirmar que os critérios
podem ser úteis, mas nem o são.
52HACKER, P.M.S. Human Nature: The Categorial Framework, Wiley-Blackwell, Sussex, 2010.
53A Constituição da República brasileira, por exemplo, faz referência expressa a bens jurídicos
coletivos, tais como os crimes políticos, os contra bens, serviços e interesses da União (art.
109, I), os crimes contra a organização do trabalho, os que afetam sistema financeiro e a
ordem econômico-financeira (art. 109, VI), os crimes militares (art. 124, I). Tais referências,
porém, podem ser objeto de crítica pontual, para receberem uma interpretação conjunta com
o princípio da proporcionalidade.
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402 Cadernos de Dereito Actual Nº 22. Núm. Ordinário, (2023)
54 “A pretensão de que uma norma atenda de forma igualitária a todos possui, sobretudo, o
sentido da aceitabilidade racional: todos os possíveis afetados por uma norma teriam de poder
dar a ela seu consentimento fundado em boas razões. E isso, por sua vez, só pode ser
alcançado sob condições pragmáticas de discursos nos quais, baseado nas informações
relevantes, impõe-se tão somente a coerção do melhor argumento”. In: HABERMAS, J.
Facticidade e Validade, Unesp, São Paulo, 2020, pp. 150-151.
55Assim, também, VIVES ANTÓN, T.S. Fundamentos del Sistema Penal, 2ª ed., Tirant lo
de HEFENDEHL, com a qual se está de acordo Cf.: HEFENDEHL, R. O bem jurídico como (...),
Ob. Cit., pp. 75-78.
Rodrigo Leite Ferreira Cabral Bens jurídicos individuais (…)
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4. CONCLUSÃO
5. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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