CINCIASSOCIAISEMDILOGO
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All content following this page was uploaded by Celia Regina de Souza Felipe Silva on 04 November 2023.
Apoio
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-86839-18-0
22-134827 CDD-300
Índices para catálogo sistemático:
Atribuição-NãoComercial-SemDerivações
DOI: 10.47519/EIAE.978-65-86839-18-0
Equipe Técnica
Editoração e organização
ISBN: 978-65-86839-18-0
Membros do Conselho Editorial
Editor Editor Assistente
Prof. Dr. José Anderson Santos Cruz Alexander Vinicius Leite da Silva
Editora Ibero-Americana de Educação, Unisagrado
Instituto PECEGE/USP-Esalq
Julio Cesar Tomasi Cruz
Editores Associados FATEC
Arielly Kizzy Cunha
Faculdade de Arquitetura, Artes e Assistentes Editoriais
Comunicação – FAAC/Unesp Daniel Domingos da Rocha
Marcus Vinícius Tomasi Cruz
Ivan Fortunato Pâmela Garcia dos Santos
Instituto Federal de São Paulo/Ufscar
Assessoria Jurídica
Thaís Vargas Bizelli Elvis de Souza Baldoino
Faculdade de Ciências e Letras (Unesp)
Comitê Científico
Dra. Adriana Campani Dr. Breynner R. Oliveira
UVA UFOP
015 Apresentação
017 Prefácio
015
pandêmico, trouxe à luz a questão das desigualdades em relação à digita-
lização e à conectividade, tema tratado no capítulo seis. Os capítulos sete,
oito e nove falam do Brasil sob o governo de Jair Bolsonaro, refletindo,
respectivamente, sobre o tema do desmonte e resiliência da participação
social com exemplos nas áreas da Saúde e dos Direitos das Mulheres; so-
bre o tema da reforma da previdência, e sobre a questão do isolamento da
Política Externa Brasileira. Como consequência da crise das instituições
democráticas, os dois últimos capítulos trazem o debate sobre os Colégios
Eleitorais, o papel do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal
Federal num contexto de mudanças e de novos desafios.
Agradecemos ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais
da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Araraquara, pelo
apoio a esta publicação. Esperamos que a leitura seja prazerosa e con-
tribua para o avanço de novos debates e pesquisas sobre os temas aqui
expostos.
016
Prefácio
017
Atravessamos dois anos de pandemia, mas hoje, em 2022, não é
certo que tenhamos absorvido, assimilado e compreendido o impacto do
coronavírus sobre nossas vidas e nosso mundo. Sabemos muito mais a
respeito de ataques virais, temos vacinas e medicamentos para combatê-
-los, mas faltam-nos políticas sanitárias, coordenação e cooperação mun-
diais. Dentro de cada país, as orientações seguem ritmo próprio. Houve
de tudo: solidariedade e negacionismo, cuidados e desleixo. Muitos go-
vernos e muitas lideranças, por exemplo, usaram a pandemia para açular
seus cidadãos e lhes vender falsas ilusões.
Nossas sociedades são sempre mais abertas, individualizadas, re-
pletas de opções. Os lugares já não estão mais demarcados. Há muita
mobilidade. As forças subterrâneas e as instituições que organizavam os
espaços sociais, as posições, os modos de pensar e os comportamentos,
perderam vivacidade, tornaram-se opacas, sem poder de coesão ou de im-
posição.
Há processos de longa duração em curso, que pedem cautela analí-
tica. Vivemos um tempo de metamorfoses e assimilações. Estamos sendo
forçados a incorporar novos processos aos nossos cálculos existenciais.
Estamos encharcados de informações e melhoramos nosso entendimento
de inúmeras coisas que antes nos intimidavam e assustavam. Intuímos que
nada mais será como antes, tamanha é a percepção de que as mudanças, as
descobertas, as novidades científicas e tecnológicas, os novos valores se
impõem a cada um de nós, sem apelação. Apesar disso, não sabemos bem
como delinear o futuro, que se aproxima velozmente, impulsionado pela
aceleração geral, pela rápida inovação tecnológica e científica.
As redes digitais são onipresentes. Estamos nelas, querendo ou
não, sem saber bem se são prisões ou estradas para a liberdade. As redes
são ambivalentes: não somos propriamente felizes nelas, mas não temos
como abandoná-las; elas nos isolam em bolhas autorreferidas mas nos
dão a ilusão de que estamos a “falar com o mundo”. Redes também são
estratégias de sobrevivência, lugares de fuga de uma realidade difícil de
ser suportada e compreendida. Estar em redes é usufruir de uma fonte de
contatos e oportunidades, é adquirir uma visibilidade que, bem dimensio-
nada, nos retira da privacidade excessiva e da individualidade fechada.
É poder interagir e dialogar com públicos amplos. É fazer política de um
modo novo. A ambivalência, no entanto, persiste.
018
As tecnologias de informação e comunicação, a vida digitaliza-
da e os processos de fragmentação social e individualização que a ela
se associam estão criando figuras novas, ainda mal decifradas. Há novas
maneiras de ser indivíduo. A questão da identidade e do reconhecimento
infiltrou-se de tal forma no cotidiano que não dá mais para dizer com se-
gurança que os indivíduos de hoje estão pacificados com suas identidades.
O que havia de ambíguo nas identidades foi radicalizado: elas hoje flutu-
am no ar, até mesmo por não encontrarem terrenos sólidos em que fincar
raízes. A luta por reconhecimento é travada com foco concentrado nas
identidades particulares (gênero, etnia, sexualidade, religião). Alimenta
batalhas culturais intermináveis, que minam as possibilidades de constru-
ção de um “Nós” coletivo consistente e consciente de si.
Também por isso, a época problematiza a democracia e exige sua
defesa permanente. A democracia permanece como valor e aspiração, mas
não goza de prestígio inconteste quando passa para a vida política práti-
ca, aquela na qual atuam os governos, os partidos políticos, os Estados
nacionais, as burocracias públicas, as grandes empresas. A situação é tão
complicada que é como se a democracia atuasse de algum modo contra
ela mesma: eleições se sucedem, mas os governos governam pouco e mal,
muitas decisões são tomadas longe do olhar público, as oligarquias se
reproduzem, sacrificando os destinos coletivos. Há no ar mais frustração
do que confiança.
Não temos à disposição um plantel de bons políticos, daqueles
que reúnem carisma, postura de estadista, convicções, firmeza, elegân-
cia, capacidade analítica, conteúdo programático e boa comunicação. Há
muitos apelos populistas, à esquerda e à direita, pouca atenção para as
transformações em curso. Juntamente com as elites (políticas, intelectu-
ais, empresariais e artísticas), os representantes do povo parecem confu-
sos, concentrados em seus interesses particulares e na captura de votos.
Nem sequer oferecem sonhos e fantasias razoáveis. Ficaram tomados pelo
pragmatismo e pelo realismo duro. A dinâmica política atual personaliza
demais, promove a substituição do conteúdo (dos programas e projetos)
pelo maneirismo midiático. Isso afeta a todos, da direita à esquerda. O po-
pulismo ficou incontornável, e tem sido ele a mola propulsora da demago-
gia de extrema-direita, que hoje se espalhou pelo mundo. É uma espécie
de vírus, contra o qual não há vacinas à disposição.
019
Nossas sociedades ficaram inapelavelmente mundializadas: inte-
ragem com um mundo que está estruturado, mas não regulado ou contro-
lado politicamente. Já não temos uma guerra fria entre Estados Unidos
e União Soviética, como houve até 1991. Aquele sistema internacional
conseguia gerar, por vias tortas, algum equilíbrio e certa estabilidade. O
mundo atual, repleto de crises, conflitos e tensões, gira em falso, desgo-
vernado. Parte dos problemas decorre do próprio capitalismo e dos regi-
mes econômicos dominados pela financeirização. Outra parte deriva da
irrupção política de forças autoritárias, regra geral populistas, que se dedi-
cam a questionar a democracia liberal e a mobilizar as populações contra
o “Ocidente”. No Leste Europeu, essa configuração de alguma maneira se
materializa em torno da Rússia de Putin, desejosa de recuperar sua posi-
ção imperial. Outros conflitos vêm da ascensão da China como potência
global. Só que, agora, as disputas entre as potências não têm mais uma
roupagem ideológica (tipo capitalismo vs. socialismo), organizam-se no
terreno da supremacia econômica, comercial, tecnológica. O que também
abala a paz e a harmonia entre as nações, além de servir de alimento para
exacerbações nacionalistas e étnicas.
O mundo globalizado arrasta indivíduos, grupos, Estados e em-
presas para um mesmo circuito de conexão. Cria uma sensação de per-
tencimento cosmopolita, que, no entanto, permanece em um plano mais
abstrato do que concreto. Todos pressentem fazer parte de um só mundo,
mas cada um cuida mais de seus próprios interesses do que de um gene-
roso interesse comum.
A hiperconectividade abre mil portas em termos de comunicação e
conhecimentos, mas cria, simultaneamente, fantasias igualitaristas, como
se estivéssemos todos inseridos do mesmo modo nas searas digitais que
frequentamos. A liberdade não é igual para todos, assim como não há
igualdade em termos de renda, de possibilidades de escolha e de oportu-
nidades. As épocas humanas sempre foram ricas em desigualdades. Não é
diferente com a nossa. Hoje, elas são exuberantes, acachapantes. Atingem
os mais variados aspectos da existência humana: a qualidade e a expecta-
tiva de vida, a posse de bens e propriedades, a higiene e a saúde, os efeitos
climáticos e ambientais, a educação, a paridade de gêneros, a educação,
os direitos, a justiça, a renda, a cultura. Não há, a rigor, nada que seja dis-
tribuído de modo justo.
020
A percepção disso pesa como uma rocha sobre os ombros de cada
um de nós, independentemente do nível de consciência crítica que te-
nhamos da realidade. Tira-nos o fôlego, rouba-nos a esperança, sem que
consigamos nos dar conta. Sentimo-nos incomodados pelas atrocidades
diárias, pela miséria, pela violência, pela fome, pelo desemprego, pelos
deslocamentos populacionais, por guerras insensatas, pelo descaso públi-
co, pela falta de civismo e generosidade, pela truculência. Transitamos
pela vida tentando não tropeçar nessas armadilhas, que incomodam, de-
primem, geram indiferença. Em termos morais e emocionais, o mal-estar
é corrosivo.
Algumas perguntas são incômodas. Desejamos continuar a viver
de modo tecnológico, digital, em redes? Prosseguiremos aceitando o do-
mínio do mercado? Continuaremos a assistir sem reação à destruição do
planeta, ao aquecimento global, à crise climática? Como estamos assimi-
lando as postulações identitárias e as lutas por reconhecimento? Que pen-
sar diante do avanço das máquinas inteligentes, da Inteligência Artificial?
Temos algum poder de escolha? Temos à disposição um modelo alternati-
vo de “boa vida” e “boa sociedade”? A democracia institucionalizada está
nos ajudando? Estamos cooperando o suficiente?
Podemos reunir essas perguntas aos problemas dramáticos do
mundo em que vivemos: a guerra russa na Ucrânia, o desmatamento da
Amazônia, o desrespeito desumano pelos povos originários, a violência
generalizada, a crise econômica recorrente, o desemprego, o desenten-
dimento, as polarizações que abalam a democracia, a fome que assola
muitas regiões, as desigualdades que não cessam de se reproduzir, as inú-
meras manifestações de ódio e soberanismo. A esperança fica impotente
diante de tanto descalabro. O conhecimento também.
O que tem sido chamado de “era do Antropoceno” denuncia as
marcas da presença avassaladora da humanidade sobre o planeta. Ela
surge como globalização, com um cortejo de desigualdades, injustiças e
iniquidades. As pegadas humanas são poderosas em termos de impacto
ambiental. Afetam o ar, o clima, a flora, a fauna. O modo de vida fica fora
de controle, submetido a mudanças que se sucedem sem cessar. A moder-
nidade globalizada é hiper em vários sentidos, suas crises se entrelaçam
e atingem a economia, o meio ambiente e as identidades. Há resistências
e iniciativas reformadoras, mas elas tardam a amadurecer e a produzir
021
resultados. Os problemas se acumulam e ficam mais emergenciais. Lixo,
água, energia, gestão urbana, desemprego estrutural, preconceitos, aque-
cimento global: tudo parece prestar a desabar sobre nossas cabeças.
Os temas e problemas desse modo angustiante de vida compõem
um elenco que não tem obtido respostas cabais, categóricas, que expli-
quem a realidade social como um todo complexo, articulado, cujas par-
tes e segmentos dialogam entre si, como um complexo de complexos,
sistemas e subsistemas entrelaçados. Temos de compreender as razões
dessa lacuna. Épocas de transformação rápida, de transições sistêmicas,
de metamorfoses, não são épocas de fácil tradução teórica. As ciências
sociais também se postam com espanto diante dessa realidade mutante,
que escapa de modelos, esquemas interpretativos e conceitos. O caráter
fluido e fragmentado da vida chega mesmo a vetar construções teóricas
abrangentes, empurrando os cientistas sociais para a especialização e a
compartimentação.
A dificuldade de compreender o presente embaça o futuro e força
o olhar para trás, num esforço para deslindar épocas em que a maior sim-
plicidade estrutural fornecia bases mais sólidas de segurança. O medo e
a perda do futuro latejam em cada um de nós, ferindo particularmente os
jovens, que têm uma vida pela frente, mas não dispõem de mapas confiá-
veis para delinear o que virá para além do agora imediato. Protestam, re-
clamam, reivindicam, agitam agendas, produzem ruídos críticos e novos
direitos: de algum modo são atores relevantes, que irrompem no palco
sem um roteiro claramente concebido. Rejeitam a política tradicional, po-
litizam-se pelas redes, ocupam praças e ruas, mas não conseguem passar
para o campo político institucionalizado.
O conhecimento acumulado é fabuloso. Já não é mais hegemôni-
ca a visão que pregava a submissão unilateral da natureza aos desígnios
humanos. Hoje, há mais compreensão do valor intrínseco da diversidade
cultural, mais respeito pelas culturas originárias. A sustentabilidade é uma
ideia que se generaliza, assim como a preocupação com um trato não des-
trutivo da natureza. A tecnologia da informação, que avança acelerada-
mente, mostra sua utilidade estratégica em diversos setores, da economia
à gestão pública, do ensino à democracia.
A pressão atinge cada um de nós em função de múltiplas exigên-
cias: a obtenção de sucesso, a busca de reconhecimento dos próprios di-
022
reitos e da própria dignidade, a construção e a reconstrução de identida-
des, a conquista de renda e emprego, a produtividade, a competição, a
felicidade, a eliminação das desigualdades.
Minha convicção é que a política continua a ser o principal recurso
que possuímos para construir saídas coletivas. Ela, hoje, está igualmente
sufocada pelas transformações aceleradas que reviram a vida. Faltam-lhe
bases sólidas de sustentação, que lhe deem ao mesmo tempo sinalizações
e referências. Faltam-lhe, também e sobretudo, programas de ação, atores
organizados e lideranças. O mundo está sem estadistas e dentro de cada
país o que prevalece são líderes de baixa consistência, governos erráticos
e pouco produtivos.
Uma mudança de rota é nossa boia de salvação. Uma “política de
civilização”, que também seja uma política de civilidade, é o caminho
sugerido por Edgar Morin para resistirmos às catástrofes anunciadas: a
corrosão da democracia, a violência, as epidemias virais, as guerras, a
desigualdade, a fome, a emergência climática, o desemprego, as manifes-
tações de ódio, as polarizações improdutivas. Diante do acúmulo de pro-
blemas, temos de aprender a “não ignorar as nossas ignorâncias”, a não
perder a paixão pela diversidade, o respeito pelo pluralismo e o cultivo da
esperança.
Isso significa também: continuar a pensar, a dialogar, a escrever, a
reunir reflexões como as que se apresentam no presente livro.
023
024
A democracia e os
Direitos Humanos na era
das crises sociais permanentes
035
- Por este caminho, foram atacadas políticas de reconhecimento de
direitos territoriais e culturais, fundadas nos artigos 68, 215-16 e 231 da
CF, e um conjunto de programas sociais que sustentam o reconhecimento,
o que, como vimos, inviabilizou-se com o limite do teto.
- Atingiram-se, assim, também as Terras Indígenas, recusando
igualmente tanto a homologação como a proteção às homologadas, em-
perrando a FUNAI, omitindo-se nas desintrusões de garimpeiros, madei-
reiros e grileiros, e destruindo programas de saúde indígena.
- Foram atacadas instituições ambientais e normas de conservação,
estimulando queimadas, desmatamento e grilagens.
- Buscou-se impor uma pauta conservadora nos costumes, atin-
gindo políticas de gênero, prevenção e atendimento na saúde, saúde da
mulher, etc.
- Estimulou-se a violência policial: O Fórum Brasileiro de Segu-
rança Pública, em relatório divulgado no primeiro quadrimestre de 2020,
apontou que a letalidade policial cresceu 31% em relação ao primeiro
quadrimestre de 2019. Em um contexto de quarentena, em que crimes
patrimoniais caíram muito, isto é inexplicável a não ser por uma política
de extermínio.
- Promoveu-se a defesa da tortura, negando-se os postulados da
justiça de transição – verdade, memória e reparação -, impedindo, com
isto, a consolidação das instituições democráticas; desmontou-se o Comi-
tê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, obrigação assumida pelo
Brasil em convenção internacional pautada na Declaração Universal dos
Direitos do Homem, que hoje só funciona por liminar obtida pelo Minis-
tério Público Federal.
- Foram atacadas as políticas de transferência de renda, em particu-
lar o Programa Bolsa Família, substituído pelo Renda Brasil. Recoloca-se
o problema de uma necessária política de renda mínima, estimulando a
retomada do debate sobre o papel do Estado, questionando-se sua redu-
ção, especialmente pela evidência da relevância do SUS, com todas as
suas limitações, no atendimento aos doentes e na campanha de vacinação.
O tratamento dado pelo governo federal à pandemia – entre outras
questões decisivas, algumas apontadas acima -, deixou clara sua descon-
sideração completa pelos direitos humanos, enquanto nucleares para os
direitos de cidadania. Isto coroa uma trajetória longa, amplificada na mí-
dia e, mais recentemente, nas redes sociais, de desqualificação dos direi-
036
tos humanos como “privilégio a bandidos”, que tem eco em parcelas da
população brasileira, alimentando o medo diante dos problemas de segu-
rança pública que o país enfrenta, bem como políticas de encarceramento
em massa.
Fato é que pouco valor é dado aos direitos humanos, historica-
mente, numa sociedade cujas condições de acesso a direitos, especial e
majoritariamente os dos mais pobres – considerando aí as intersecções
de gênero e raça como fatores componentes da pobreza – persistem sen-
do precárias. Estes não experimentam os direitos humanos, não os têm
garantidos no seu cotidiano, portanto os desconhecem na medida em que
são efetivamente inoperantes para eles. Como aponta Roberto Kant de
Lima (2001), agrega-se à desigualdade social, no Brasil, uma desigualda-
de jurídica inusitada em repúblicas do ocidente, à qual se podem atribuir
as estratégias repressivas de controle social, incapazes de equacionar nos-
sos conflitos. Direitos desiguais, deveres desiguais, como bem o exempli-
fica a prisão especial. Daí a dificuldade de internalização das regras e da
linguagem dos direitos humanos.
Nos anos 1990, nas sociedades democráticas e recém-redemo-
cratizadas, como era o caso do Brasil, podia-se pensar em processos de
aprofundamento democrático, após a afirmação das diferenças concretas
e questionamento de uma igualdade suposta - na medida em que essas
diferenças são operadas como mecanismos, frequentemente negados, de
desigualdade -, e que a crise da democracia representativa poderia achar
caminho pela ampliação crescente da participação e da articulação de mo-
dos de viver distintos e plurais – conforme Chantal Mouffe (1996), para
além do consenso, o dissenso, que é a vida da política democrática habita-
da pelo reconhecimento da pluralidade, e capaz de articular a tensão fun-
damental entre as lógicas da identidade e da diferença – . Após 2008, ga-
nham força o conservadorismo, a adesão à anti-política”, a autoritarismos
e retrocessos do ponto de vista social e cultural, junto com uma lógica
econômica ultraliberal, que atuam pelo jogo schmittiano amigo-inimigo.
Essas questões relativas ao caso brasileiro pedem uma considera-
ção, no que toca à intolerância a tudo que é protegido pelos direitos hu-
manos, da relação entre cultura, no seu sentido antropológico, e democra-
cia no mundo contemporâneo, em que as particularidades ingressam no
conceito universalista de cidadania. Ou seja, como o conceito de cultura
se aplica, e muda, quando passa ao plano da política, como se transfor-
037
ma a cultura quando se torna instrumento da conquista de direitos, o que
se concretiza nas demandas por reconhecimento de diferenças dentro de
sociedades que são pluriétnicas e multiculturais. Diferentes respostas ins-
titucionais oscilam entre a reafirmação da soberania estatal em nome da
igualdade dos cidadãos e políticas da diferença.
Em países de descolonização antiga, como o Brasil, aplicam-se po-
líticas multiculturais, mas a cidadania plena não está ao alcance de toda a
população. Vive-se o dilema da desigualdade na diversidade. Se lembrar-
mos o percurso histórico do conceito e do instituto da cidadania, seguindo
Bobbio, ela se firma, desde o início, o princípio da igualdade, por oposi-
ção à diferença, por um lado, e desigualdade, por outro. É este princípio
constitutivo do modelo ideal que é posto em causa, a partir das últimas
décadas do século passado, quanto a sua legitimidade e viabilidade, en-
quanto status universal, são questionadas, especialmente em sociedades
marcadas por desigualdades socioeconômicas abissais, pela efetivação
desigual de direitos e pela vulnerabilidade dos direitos civis, aqueles di-
reitos humanos básicos, de primeira geração, componentes da definição
liberal clássica de cidadania. Deixa de ser possível responder a problemas
do ordenamento jurídico-político e de integração social a partir de pressu-
postos universalistas exclusivamente.
No Brasil, é muito grande a diferença entre democracia formal e
democracia substancial, bem como a distância entre instituições políticas
e a experiência concreta da população. Segundo José Murilo de Carvalho
(2021), para o caso brasileiro, cabe inverter o modelo histórico de Mar-
shall: os direitos sociais chegam em plena supressão dos direitos políticos
e redução dos direitos civis, os quais, de resto, boa parte da população
ainda nem sequer alcançou. Para ele, esta é a causa da relação direta com
o líder carismático, messiânico, e da fraqueza da representação. Não se
enraíza por isto a igualdade de direitos. A concepção é a de uma “matriz
profunda da cultura brasileira”, que bloqueia a política democrática, a
cidadania e a representação, e que se exprime numa desconfiança das ins-
tituições, portanto na “opção” por relações hierárquicas, “não racionais”.
Por outro lado, Caldeira e Holston (1998) falam em democracia
disjuntiva, definida pela persistência de espaços segregados e violação
sistemática de direitos civis. Por exemplo, direitos humanos não se apli-
cam a presos comuns, para os qu ais seriam, na opinião pública, como já
dito, privilégio de bandidos. Também a impunidade em crimes de racis-
038
mo, entendidos, no senso comum judiciário, como “comuns na sociedade
brasileira”. Juízes, assim, tendem a avaliar a intenção desses crimes nos
parâmetros “comuns” que compartilham, e na visão da nação como de-
mocracia racial.
Assim, teríamos uma cultura cívica – consciência dos direitos de
cidadania fundada nos universais de igualdade e liberdade – deficitária ou
ausente, uma “cultura política tradicional” que carrega uma visão corrente
do poder que é obstáculo à realização da democracia, e uma “cultura na-
cional” articulada em torno da ideologia da democracia racial, alimentan-
do um processo histórico de apagamento das diferenças. Por outro lado,
culturas não são estáticas, nem a “cultura brasileira”, nem as culturas
brasileiras particulares, resultantes de processos históricos de mediação e
compatibilização de diferenças (MONTERO; ARRUTI; POMPA, 2018).
Tomar, assim, as culturas como processos levaria a melhor com-
preensão das relações sociais, que não podem ser separadas do âmbito
cultural e das condições do sistema democrático. Também para além da
visão estritamente institucional da política, pode-se compreender melhor
como culturas interagem com as sociedades em que se movem e suas
instituições políticas. Tratar a cultura como repertório de significações
acionado em certos contextos de relações de poder ilumina como culturas
específicas podem contribuir para a construção da cidadania. Temos o
exemplo dos índios, cuja linguagem da cidadania é a da diferença, não a
da igualdade, e nesta base se dão as negociações com o estado. Segundo
Hall, a dupla demanda por igualdade e diferença excedeu o vocabulário
político, abrindo a possibilidade de modelos de cidadania construídos a
partir de processos culturais específicos, para criar novos espaços públi-
cos e novas articulações com instituições democráticas.
No entanto, esses processos estão sob assalto. São o alvo de uma
intolerância reativa que, se não é fenômeno exclusivamente brasileiro,
aqui não só chegou ao governo, como ganhou uma força imprevista. O
desafio, no momento, parece ser, junto com e para além dos partidos e
movimentos sociais já consolidados, a defesa das instituições democrá-
ticas, e o estímulo, através desta luta, à percepção da importância delas
como garantidoras de direitos.
039
Conclusão
O fim da democracia moderna representou o desfecho de um pe-
ríodo histórico de longa duração que, no seu conjunto, foi formado pelas
questões sociais que surgiram com a sociedade nacional e industrial (com
as lutas de classes contidas nas paralizações e greves operárias, nos movi-
mentos feministas e coloniais por melhores condições de vida no trabalho
e na sociedade civil, na família e nas lutas por reconhecimento da cidada-
nia plena e concreta), e com os sacrifícios de mulheres e homens nas duas
guerras mundiais. Os direitos sociais e econômicos eram a base de uma
sociedade fundada em compromissos e acordos entre as classes sociais
organizadas politicamente, que enfatizavam os valores e as ideias da jus-
tiça social, da liberdade social, da igualdade e dos direitos do cidadão, da
solidariedade e da segurança. O fim da democracia moderna corresponde
ao início da era da incerteza e da insegurança, do hiperindividualismo, do
indivíduo absoluto desvinculado e desenraizado que se autodetermina e
age segundo sua vontade e desejo particular, e sentido privado da vida,
da destruição política dos valores e das ideias de sociedade organizada
politicamente.
Desde o fim da democracia moderna ocorram grandes transforma-
ções na democracia, na sociedade nacional e no capitalismo. O capita-
lismo globalizado difundiu que estava em curso uma era de paz e pros-
peridade, mas gerou o capitalismo financeiro e industrial especulativo e
desregulamentado, no qual o processo de valorização do valor na forma
da produção ou na extração é soberano, determinou mudanças jurídicas e
políticas através de sucessivas reformas que deformaram, neutralizaram,
os direitos sociais e econômicos e os direitos políticos. O capitalismo glo-
balizado é uma potência hegemônica que transforma os sistemas sociais
e gera as formas de vida humana de que necessita em escala planetária.
Promove, dissemina e impõe a centralização dos capitais e poderes nas
mãos de poucas pessoas, a deflação do salário dos trabalhadores e o tra-
balho flexível e precário, novas formas das lutas de classes como aquelas
que envolvem a burguesia transnacional e as burguesias nacionais terri-
torializadas, os trabalhadores assalariados autóctones e os imigrantes, os
capitalistas e os trabalhadores assalariados.
Na atual sociedade capitalista, as acirradas lutas de classes di-
fundem o “veneno racista da intolerância e o desprezo pelos ‘diversos’”
040
(FERRAJOLI, 2009, p. 17) e que “está penetrando no senso comum”.
Xenofobia, social-chauvinismo, palavras de ódio e manifestações de sím-
bolos e ideias fascistas crescem no curso das crises sociais permanentes
na sociedade capitalista contemporânea, ao lado das crises sanitárias e do
“retorno” da guerra como meio de resolução dos conflitos e das contra-
dições geradas pela própria sociedade capitalista. Neste cenário, a demo-
cracia é cada vez mais uma democracia dos senhores. Contudo, não é o
destino da democracia ser uma democracia de senhores.
REFERÊNCIAS
BRANCACCIO, E. Democrazia sotto assedio. Milano: Mondadori
Libri, 2022.
041
MASTROPAOLO, A. La democrazia è una causa persa? Parados-
so di un’invenzione imperfetta. Torini: Bollati Boringhieri Editoree,
2014.
042
O mundo na encruzilhada:
o desafio das crises
socioambientais contemporâneas
048
consequente e a debilidade estrutural do Estado para dar efetividade aos
mecanismos de regulação, monitoramento e fiscalização que poderiam
conter tais investidas. Tais acontecimentos coletivos trágicos são caracte-
rizados por fissuras e/ou deterioração súbita e intensa dos principais ele-
mentos constitutivos do espaço onde se manifestam, assim como pelo
sofrimento multifacetado dos grupos sociais afetados, pondo em xeque
a segurança ontológica dos mesmos. Segurança ontológica é o ponto de
ancoragem do sujeito, composto pela fusão de seu repertório de sentidos
sobre o mundo, de suas experiências de vida bem como das condições
objetivas dadas para trilhar o caminho existencial pretendido (GIDDENS,
1991). Tais crises perturbam essa ancoragem tanto porque se configuram
em adversidades cujo desenrolar extrapola os modos de contenção pré-
-concebidos quanto porque deflagram incertezas no horizonte existencial
dos afetados. Ao dar precedência ao lucro, pondo-o acima de quaisquer
injunções do meio natural e social no qual se insere, a racionalidade cor-
porativa adota a estratégia de subestimação dos riscos socioambientais
que a sua atividade ocasiona. Quando isso resulta em desastres, seus diri-
gentes performam como se estivessem surpresos com o ocorrido, adotan-
do a narrativa da fatalidade, a qual é replicada pelas autoridades públicas
que falharam na detecção precoce e precaucionaria dos riscos implicados
(DOUGLAS; WILDAVSKY, 1982; TOURAINE, 2011).
Dos vários casos de desastres socioambientais catastróficos de re-
percussão mundial ocorridos neste século, destacamos um para ilustrar o
quão deletério pode ser a aliança empresarial-governamental no que tange
ao asseguramento do bem-estar da sociedade local. Ocorrido no Japão, no
ano de 2011, tratou-se de um desastre associado a um evento sísmico, o
qual desencadeou um tsunami e, na sequência, atrelou-se a um acidente
nuclear. Na ampla área de abrangência de incidência desse conjunto de
eventos, houve sérias disrupções nos diversificados usos econômicos e
sociais ali estabelecidos. Além da perda de milhares de vidas humanas,
estimado em mais de quinze mil mortos e três mil desaparecidos (SI-
MÕES, 2021), houve considerável destruição de infraestruturas e dani-
ficação de bens móveis e imóveis, públicos e privados. Ocorreu desde o
colapso de estruturas viárias terrestres à danificação em aeroporto; da des-
truição de residências ao de estabelecimentos comerciais e de serviços; do
comprometimento de edificações industriais, com perda de equipamentos
e estoques, à devastação de zonas agrícolas; de carreamento de veículos
049
marítimos aos terrestres; enfim, os prejuízos simultâneos e avultados ti-
raram o chão dos pés dos grupos sociais afetados. A gestão pública teve
que responder tempestivamente e em várias frentes, indo de providências
de reparação de infra sistemas críticos ao acolhimento emergencial de mi-
lhares de desabrigados, além de lidar com o desabastecimento alimentar
e de escassez de oferta de água potável. Porém, a situação mais delicada
enfrentada foi a da danificação nas instalações nucleares de Fukushima
e do vazamento radioativo resultante, o que exigiu providências de eva-
cuação compulsória dos moradores das localidades vizinhas enquanto as
medidas de contenção dos riscos na planta eram tomadas. Este acidente
nuclear decorreu da subestimação da magnitude dos riscos socioambien-
tais - sísmicos, de tsunamis, de convivência com residentes ao derredor
- nos planos de contingência do empreendimento nuclear (DAUER et
al., 2011). O governo nacional da época optou por proteger os interesses
corporativos nucleares e, assim, minimizou o ocorrido perante a opinião
pública, desestimulou o debate público acerca dos graves riscos de con-
taminação ambiental decorrentes de acidentes nucleares assim como o
fez em relação ao detalhamento da extensão dos danos socioambientais
havidos e eficácia das providências de mitigação dos mesmos. Embora
essa prática política tenha sido de cunho autoritário, na mão oposta de um
exercício de accountability esperado em países desenvolvidos, ao menos
serviu como efeito de demonstração para que governos de outros países,
o da Alemanha, tomassem a direção esperada, isto é, apontassem para o
caso de Fukushima como mais um alerta - após o caso da usina nuclear
de Chernobyl, ocorrido em 1986, na Ucrânia - de que medidas de encerra-
mento de atividades das usinas nucleares em seu país deveriam ser defla-
gradas sem demora (HUENTELER; SCHMIDT; KANIE, 2012).
No âmbito nacional brasileiro, no ano de 2015, houve o caso do
rompimento da barragem de rejeitos de minério do Fundão, localizada no
município de Mariana, em Minas Gerais. O material carreado contaminou
o ecossistema aquático a jusante, desde extensos trechos de corpos d’água
da bacia do Vale do Rio Doce até alcançar a foz, no Oceano Atlântico.
O caso demonstrou o quanto o foco corporativo preponderante no com-
portamento do preço das commodities minerárias influenciou decisões
descompromissadas com os riscos socioambientais, locais e ampliados,
da operação (WANDERLEY et al., 2016). Tal mentalidade empresarial
demonstrou ter pouco apreço à reflexividade. Pouco mais de três anos
050
após o caso do Vale do Rio Doce, decisões econômicas e práticas técnicas
tornaram a negligenciar os riscos relacionados a barragens de rejeitos mi-
nerários e, então, em janeiro de 2019, foi desencadeado acidente similar, o
do colapso desse mesmo tipo de barragem no município de Brumadinho,
também localizada no estado de Minas Gerais, reiterando os efeitos socio-
ambientais colaterais do fenômeno de minério-dependência (COELHO,
2018).
Os casos acima ilustram que os desastres catastróficos não ocorrem
fora da normalidade das relações socioeconômicas e sociopolíticas, mas
são partes constitutivas delas. Os riscos socioambientais permanecem
marginalizados nas preocupações deliberativas dos negócios que os ge-
ram, tanto porque encontram um ambiente institucional público permis-
sivo quanto porque as métricas convencionais de precificação e rentabi-
lidade econômica adotadas pelos setores nos quais operam lhes confiram
pouca importância. O Estado, seja reduzindo exigências de comprova-
ção de responsabilidade socioambiental para licenciar empreendimentos
e autorizar suas respectivas operações, seja enfraquecendo os mecanis-
mos institucionais públicos para fiscalizá-los e os penalizar sacramenta
o pacto econômico socioambientalmente predatório. Isso escalona para
uma perspectiva catastrófica, ainda mais porque, nas esferas institucionais
públicas, no âmbito decisório, que poderiam refrear os riscos, as forças
econômicas geradoras destes têm os seus apoiadores e articulações, o que
ganha precedência em relação aos recursos de voz de comunidades que
convivem com tais riscos e são direta ou indiretamente afetadas quando
o desastre, por fim, é deflagrado. O neoliberalismo, como fase contempo-
rânea do capitalismo financista, promove o enfraquecimento institucional
público, minando as condições operativas essenciais da máquina admi-
nistrativa para impedir atos lesivos ao bem comum (BAUMAN e BOR-
DONI, 2016). Subsidiariamente, as suas articulações políticas agem na
redução dos espaços participativos de discussão e deliberação em temas
ambientais a fim de que a racionalidade do mercado neles prepondere.
Enquanto as cordas ofertadas ao socorro dos que se encontram de-
fronte ao abismo, para evitar a sua queda trágica, seguem frágeis e vo-
láteis dentro deste modus operandi político-econômico irresponsável, as
profundezas avistadas indicam quão reduzidas são as chances de se esca-
par incólume, o que exige coragem coletiva na experimentação de outras
hermenêuticas, pós-abissais, para balizar práticas e sentidos renovados
051
de ser-no-mundo (SOUSA SANTOS, 2019). Não havendo suficiente co-
ragem, o empurrão das sucessivas crises, ou a mera vertigem, derruba a
coletividade precipício abaixo, indicado pela situação pós-social que ora
se desenrola, qual seja, a de perda coletiva da confiança nas instituições
públicas na defesa do bem-estar de seus povos (TOURAINE, 2011).
De um lado, para aqueles que pouco ou nunca usufruíram de ga-
rantias correntes de acesso aos mínimos vitais e sociais, a anomia so-
cial se anuncia pronunciadamente, tornando-os vítimas preferenciais de
injustiças ambientais (BULLARD, 2006). O domínio direto ou indireto
de elites econômicas extrativas sobre o aparato estatal, incluindo a sua
dimensão militar, bloqueia a engenharia da prosperidade (ACEMOGLU;
ROBINSON, 2012). Ao ampliar-se o contingente de pessoas submetidas
ao reino da necessidade, o Estado se torna um gestor de precariedades
da condição humana. Os governantes que se sucedem fazem do assis-
tencialismo uma moeda política de troca, manipulando a carências dos
desamparados ao invés de estimulá-los a desenvolver novas competências
e a livre-expressão de seus talentos e habilidades sociais (ACEMOGLU;
ROBINSON, 2012; TOURAINE, 2011). Porém, de outro lado, há os que
pressentem ou compreendam que a prevalência operativa do capital so-
bre as decisões do Estado exija, em contraponto, a construção, coletiva
e empenhada, de estratégias de resiliência radical, na qual enredamentos
comunitários, científicos, de movimentos sociais e setores técnicos pro-
duzam, defendam e amplifiquem formulações de planejamento bottom-up
que não possam ser ignoradas pelas esferas de poder (JON; PURCELL,
2018). Enfim, a situação pós-social - considerada por Touraine (2011)
como sendo aquela na qual o esgarçamento da confiança dos cidadãos na
atuação do Estado chegou ao seu limite - pode produzir cordas resisten-
tes para evitar o tombo derradeiro. O faria através de articulações sociais
sistemáticas voltadas para a constituição de sujeitos morais centrados, em
última instância, na garantia dos direitos da pessoa humana e denuncian-
do a pactuação entre instituições econômicas e políticas extrativas que se
protegem mutuamente em operações que negligenciam o interesse social
(ACEMOGLU; ROBINSON, 2012; TOURAINE, 2011). Disso decorre
que os desafios socioambientais centrais, capazes de amalgamar pautas
difusas numa resistência global, orbitam em torno da constituição de su-
jeitos conscientes da luta pela conciliação entre os direitos humanos e um
ambiente saudável (BECK, 2018; TOURAINE, 2011), o que implica num
052
esforço de coesão para uma pauta econômica antiliberal em escala local,
nacional e planetária. Se porventura a visão do abismo puder agir como
um despertar da servidão voluntária, o estágio de torpor devido à desa-
creditação difusa na política poderia dar lugar à experimentação social
de novos sentidos de agência a fim de promover uma metamorfose cole-
tiva capaz de confrontar as velhas certezas da ordem social e econômica
bem como os sistemas de classificação convencionais que têm balizado os
atos do Estado, até aqui orientados em desfavor da cidadania (BAUMAN;
BORDONI, 2016; BECK, 2018; BOURDIEU, 2014).
Conclusão
A compreensão da crise socioambiental como um fenômeno so-
cial complexo, que toma um caráter global e compromete as perspectivas
futuras de bem-estar humano indica que serão necessários mais do que
esforços incrementais, como os que foram tomados ao longo das últimas
décadas, para lidar com tal fenômeno. Assim, somente uma transforma-
ção em todo o sistema que “envolverá uma mudança fundamental na tec-
nologia, economia e organização social da sociedade, incluindo visões
de mundo, normas, valores e governança” (UNEP, 2021, p. 15, tradução
nossa) terá condições de reverter o quadro de crise socioambiental atu-
al. Compreender a crise socioambiental para muito além da problemática
circunscrita à dimensão ecológica (físico/natural) é essencial. É funda-
3
mental a clareza de que se trata de uma crise multifacetada, multissetorial
e trans-escalar. Sem dúvida alguma, a questão da dinâmica ecológica é
essencial, no entanto a crise ambiental contemporânea perpassa outras
dimensões como a política, a econômica, a cultural, tecnológica e a social,
todas intimamente articuladas.
A escalada das crises socioambientais pulverizadas expõe a catás-
trofe civilizatória em curso, resultante da fragilidade social e institucional
ante a lógica de acumulação. Quanto mais o Estado falha em deter as for-
ças econômicas concentradas, muitas das quais bem inseridas em relações
globais, maior os déficits de cidadania se tornam, assim como as perdas
ambientais irreparáveis. Caso a situação pós-social propicie o entendi-
2 - cf. Viola (1992, 1996) e Ferreira (1998).
053
mento da crise socioambiental catastrófica na qual já estamos mergulha-
dos, resultante da sinergia de crises espraiadas, um sentido de urgência
poderá alavancar novos modos de agência diante o abismo. Um exercício
político de refreamento do domínio de mentalidades retrógradas sobre
as instituições públicas bem como de contestação da validade do neoli-
beralismo como parâmetro para as relações econômicas trans-escalares
anunciaria um auspicioso recomeço.
REFERÊNCIAS
ACEMOGLU, D.; ROBINSON, J. A. Why nations fail: The origins of
power, prosperity and poverty. London: Profile Books, 2012.
054
DIAMOND, J. Colapso: Como as sociedades escolhem o fracasso ou o
sucesso. Rio de Janeiro: Record, 2005.
055
JON, I.; PURCELL, M. Radical resilience: Autonomous self-manage-
ment in post - disaster recovery planning and practice. Planning The-
ory & Practice, v. 19, n. 2, p. 235–251, 2018. Disponível em: https://
www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/14649357.2018.1458965.
Acesso em: 23 dez. 2021.
056
UNEP. United Nations Environment Programme. Making Peace with
Nature: A scientific blueprint to tackle the climate, biodiversity and
pollution emergencies. Nairobi: UNEP, 2021. Disponível em: https://
www.unep.org/resources/making-peace-nature. Acesso em: 12 set.
2021.
057
058
Conflito federativo e a pandemia
4 - Bolsonaro defendia que os governadores deveriam zerar o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços e,
em contrapartida, ele se responsabilizaria por zerar os impostos federais incidentes sobre os combustíveis. Disponível
em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2020-02/bolsonaro-diz-que-zera-impostos-se-governadores-aca-
barem-com-icms. Acesso em: 14 abr. 2022.
059
combustíveis, resultando em uma carta dos mesmos endereçada ao pre-
sidente com diferentes pontos de reivindicação dos estados. Movimento
semelhante havia ocorrido também em relação ao decreto que ampliava o
acesso às armas pelos cidadãos assinado pelo presidente em 2019 5, apenas
para citar dois de outros exemplos existentes.
Contudo, o conflito federativo se tornou mais explícito logo que a
pandemia da covid-19 se iniciou no Brasil. Por um lado, o presidente se
posicionou contra as medidas restritivas baseadas no isolamento social
da população para diminuição do contágio pela doença, ao passo em que
associou tal orientação à perda de empregos e a desaceleração econômica
nacional, a qual incorreria em grave crise ao longo da pandemia. Por ou-
tro lado, sobretudo após decisão do Supremo Tribunal Federal de que os
entes subnacionais (estados e municípios) poderiam deliberar acerca de
medidas restritivas para contenção da epidemia, prefeitos e governadores
diante das estatísticas crescentes de contaminações e mortes decorrentes
da covid-19 passaram a deliberar sobre fechamento das atividades econô-
micas a fim de diminuir a circulação de pessoas e, consequentemente, tor-
nar menos intenso o contato entre elas a fim de arrefecer a pressão sobre
o sistema público de saúde.
Não tardou para que as diferentes orientações trouxessem à tona
o conflito federativo entre governo federal (presidente), o qual insistiu
na construção de um discurso da calamidade econômica por meio das
políticas adotadas por governadores e prefeitos, a qual apelidou de “fecha
tudo” e; governos subnacionais (governadores e prefeitos), sobretudo os
que passavam a se colocar como oposição a Bolsonaro dizendo serem
“a favor da vida”, defendendo ações estatais para contenção dos danos
econômicos provocados pela pandemia associados às medidas restritivas
adotadas, solução internacionalmente identificada em um primeiro mo-
mento antes da descoberta de vacinas contra a doença.
Ao longo desse período pandêmico, a questão fundamental que
passou a nos intrigar foi justamente quanto a relação entre os níveis fede-
rativos. Estaríamos diante de uma situação inédita desde a aprovação da
Constituição Federal de 1988 que deliberou acerca da cooperação fede-
5 - Matéria publicada no G1 em 21/05/2019, “Governadores de 13 estados assinam carta aberta contra decreto de armas
de Bolsonaro” apresentava a situação desse embate.
Disponível em: https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/2019/05/21/governadores-de-13-estados-divul-
gam-carta-aberta-contra-decreto-de-armas-de-bolsonaro.ghtml. Acesso em: 14 abr. 2022.
060
rativa ao identificarmos um cenário de conflito federativo? A natureza do
conflito, essencialmente política, seria diferente da identificada ao longo
do histórico republicano brasileiro? Aliás, o histórico do federalismo no
Brasil nos permitiria apreender algo a respeito do conflito atual ou estarí-
amos diante de um tipo de situação inédita antagonizando governadores e
prefeitos em relação ao presidente? O federalismo brasileiro estaria sendo
colocado em xeque?
Em caráter essencialmente descritivo e analítico é que elaboramos
esse texto a fim de pontuar questões fundamentais acerca do conflito fede-
rativo ao longo da federação brasileira, marcada pelo que Abrúcio (2012)
identificou como um pêndulo entre centralização e descentralização polí-
tica em diferentes momentos históricos. É sobre esse movimento pendular
no federalismo brasileiro que nos concentramos a seguir.
061
Centralização e descentralização
no federalismo brasileiro
A questão do federalismo no Brasil esteve intrinsicamente ligada ao
tema da centralização e descentralização política (entendida como trans-
ferência de responsabilidade de funções públicas do governo central para
os entes subnacionais). Autores como Nestor Duarte (1939), Viana (1955)
e Maria Isaura de Queiroz (1976) enfatizaram a autonomia do poder local
e dos grupos privados na estrutura de poder da Brasil. Para outros autores,
cuja principal referência é Raymundo Faoro (1958), o governo central
sempre desempenhou o papel principal na política brasileira.
O grande marco acadêmico sobre o poder local foi Victor Nunes
Leal (1975) que analisou como as relações de poder se estabeleceram na
Primeira República. Segundo o autor na falta de uma autonomia legal,
os chefes municipais governistas gozavam de ampla autonomia extrale-
gal. Era exatamente nessa autonomia que consistia a carta branca que o
governo estadual outorgava aos correligionários locais, em cumprimento
da sua prestação no compromisso típico do coronelismo, baseado “numa
troca de proveitos entre o poder público progressivamente fortalecido e a
decadente influência social do chefes locais, notadamente dos senhores de
terra” (LEAL, 1975, p. 31).
Posteriormente, Simon Schwartzman (1988) considerou que o de-
bate entre centralização e descentralização estava mal colocado. Para este
autor, ambos os movimentos ocorriam:
De um lado, um poder político centralizado e hierárquico, que
não dependia de bases locais de sustentação, apoiando-se na
própria máquina administrativa governamental para subsistir
e se afirmar. De outro, um poder privado e autônomo difuso,
que só adquiria expressão política quando era cooptado pelo
Estado, e que entrava em uma trajetória de conflito e derrota
quando pretendia se articular, minimamente que fosse,
como força autônoma e representativa de seus interesses
(SCHWARTZMAN, 1982, p. 93).
6 - A vinculação constitucional obriga a União a aplicar 15% de sua receita corrente líquida em ações e serviços públicos
de saúde (Art. 198, § 2º, inciso I) enquanto estados devem aplicar 12% e, municípios, ao menos 15%. Em relação à
educação, a União precisa investir ao menos 18% o seu orçamento, enquanto estados e municípios ficam obrigados a
aplicar 25% de sua receita de impostos e transferências na manutenção e desenvolvimento de ensino.
064
por conflitos e dilemas que passam a dar relevância a coordenação inter-
governamental para dar forma à integração, compartilhamento e decisão
conjunta presentes no arranjo federativo nacional.
Nesse sentindo, é importante ressaltar a diferença conceitual entre
federalismo e relações intergovernamentais. O federalismo é o arranjo no
qual as unidades de governo se unem mantendo regras próprias e com-
partilhadas de decisão. Já as relações intergovernamentais remetem aos
processos governamentais para operacionalizar a oferta de políticas pú-
blicas, as quais envolvem contínuas interações entre os diversos níveis de
governo para a sua implementação e avaliação. Em outros termos, espe-
ra-se cooperação, não conflitos federativos no cumprimento dos objetivos
federativos em comum.
065
Congresso Nacional e o governo federal travaram grandes embates asso-
ciados ao rompimento do chamado “teto de gastos” para o seu pagamento,
o que culminou na aprovação de um orçamento paralelo para lidar com os
custos da pandemia.
Ainda ao longo da pandemia vale lembrarmos que diante da grave
crise sanitária que o país enfrentou o conflito federativo opondo União
a estados e municípios se instalou, sobretudo no que diz respeito às de-
cisões, o isolamento social. Em 20 de março de 2020, o presidente Bol-
sonaro decretou a medida provisória 926/2020 (BRASIL, 2020a), a qual
estabeleceu que as decisões sobre o isolamento e circulação de pessoas
deveriam observar os critérios do Executivo federal e serem submetidas à
avaliação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Logo em
seguida, foram editados dois decretos: o 10.282/2020 (BRASIL, 2020b)
e o 10.292/2020 (BRASIL, 2020c), definindo várias atividades como es-
senciais, as quais impediam os estados de determinar a sua paralisação.
Tais medidas colocaram em conflito mais exacerbado os entes fe-
derativos em relação à interpretação dos artigos 21 e 22 da Constituição
Federal de 1988, que atribui aos entes federativos competências privati-
vas exclusivas que possuem natureza mutuamente excludentes, na medida
em que a atribuição de competências de um ente implica a exclusão dos
demais. Já os artigos 23 e 24 estabelecem a atribuição de competências
comuns, como prática de atos administrativos, de serviços públicos e de
edição de normas, além de competências concorrentes, nas quais diferen-
tes entes devem somar esforços a fim de atuarem de maneira harmônica
na consecução de objetivos comuns (BRASIL, 1988).
No caso do conjunto de normas que dizia respeito ao enfrentamento
do coronavírus, a matéria central era saúde pública, em relação a qual se
esperaria a cooperação e o compartilhamento de medidas administrativas
e legislativas de promoção à saúde, para que a União, estados e municí-
pios realizassem esforços comuns de combate à covid-19, uma pandemia
decretada pela OMS (Organização Mundial de Saúde).
Uma vez que o conflito se instalou entre os entes federados, a dis-
cussão se deu acerca da constitucionalidade dos estados editarem nor-
mas mais restritivas do que as previstas no plano federal, determinando
a paralização das atividades econômicas, salvo as essenciais (isolamento
horizontal) e não apenas o isolamento de doentes, suspeitos e membros de
grupos de risco (isolamento vertical), sendo encaminhada tal questão para
066
julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF).
A decisão do STF no julgamento da Ação Direta de Inconstitu-
cionalidade (ADIN) movida pelo PDT passou a assegurar que Estados e
Municípios pudessem tomar providências normativas e administrativas
relativas à pandemia, devendo a União respeitar tais medidas originárias
dos entes subnacionais (estados e municípios). A União também passou
a poder legislar sobre saúde pública com a condição de que o exercício
destas competências sempre resguardasse a autonomia dos demais entes
federativos.
A discussão sobre a falta de coordenação política na área da saúde
acabou sendo relacionada à noção de federalismo adotada pelo governo
Bolsonaro na proposta de Reforma Federativa encaminhada ao Congres-
so Nacional, a “Mais Brasil, menos Brasília”, a qual, em suma, propõe
descentralizar recursos e a execução de políticas públicas, combinando a
defesa de maior autonomia dos governos subnacionais com a redução da
responsabilidade do governo federal no campo das políticas públicas.
Desta forma, o governo repassaria todas as responsabilidades sobre
políticas públicas aos governos locais, reduzindo inclusive a participação
do governo federal neste campo, além da centralidade da ação de coorde-
nação federativa até então desempenhada pela União. Em outros termos,
a lógica de ação governamental de Bolsonaro relaciona-se claramente ao
temor de que qualquer tipo de mecanismo de checks and balances incida
sobre a presidência. O modelo propõe repasse de funções e responsabili-
dades aos governos subnacionais, no entanto, as principais decisões polí-
ticas devem vir de Brasília até pelas desigualdades federativas existentes
no país. Ao buscar simplificar a ideia de descentralização fiscal e de exe-
cução das políticas públicas, em tese beneficiando estados e municípios,
o governo federal desobriga-se de responsabilidades elementares dadas
pelo tipo de federalismo instalado no país pós-1988.
Embora os dados epidemiológicos apontem para uma situação de
maior controle sobre a pandemia da covid-19, muito em função do avanço
da vacinação no país a qual contou com o protagonismo de estados e mu-
nicípios na definição de estratégias e estímulo à vacinação, o fato é que o
conflito federativo está instalado. A dificuldade de decisões coordenadas
a partir da União e compartilhadas em conjunto com estados e municípios
foi um reflexo da excessiva politização da pandemia.
067
Considerações finais
À luz do histórico do federalismo brasileiro foi possível perceber
dois movimentos: centralização versus descentralização. De um modelo
descentralizado, sem projeto nacional e forjado para agradar as elites po-
líticas subnacionais do início da República à passagem para um modelo
centralizado, sobretudo a partir dos anos Vargas, o federalismo sempre
esteve mais envolto em conflitos entre os entes do que em cooperação.
A grande alteração ocorre, efetivamente, a partir da aprovação da
Constituição Federal de 1988, a qual organiza um novo quadro institu-
cional no país na medida em que estabelece de modo mais claro a impor-
tância de se equilibrar autonomia federativa dos entes subnacionais, que
historicamente a reivindicavam desde a centralização a partir dos anos
1930, com coordenação federativa no âmbito nacional. Embora após a
Constituição 1988 possam ser observadas nuances entre os governos FHC
e Lula/Dilma, com momentos de maior recentralização das decisões, a
lógica passou a ser a da cooperação, não a do conflito explícito entre os
entes.
Nesse aspecto, o governo Bolsonaro representa o grande ponto de
inflexão. Sobretudo quando descrevemos e consideramos o enfrentamen-
to da pandemia da covid-19 e, anteriormente, o plano de reforma do Es-
tado brasileiro apresentado a partir do conjunto de PECs do “Mais Brasil,
menos Brasília”. Em linhas gerais, a natureza do conflito federativo esta-
belecido é reflexo de uma visão de Estado adotada pelo governo federal
centrada na passagem das responsabilidades acerca das políticas e servi-
ços públicos para os entes subnacionais, não com o objetivo de descentra-
lizar decisões, mas visando evitar eventuais responsabilizações acerca de
tais políticas para a presidência da República.
O conflito federativo, desse modo, se mostra até o momento con-
juntural em virtude da maneira como o presidente Bolsonaro atua poli-
ticamente: transferindo responsabilidades de coordenação de problemas
federativos para o planejamento, gerenciamento e execução dos mesmos
para os entes subnacionais. No entanto, sem a aprovação, de fato, de um
novo desenho federativo e de alocação de receitas para isso, uma vez que
o “Mais Brasil, menos Brasília” segue paralisado no Congresso Nacional.
Um exemplo dessa espécie de terceirização das responsabilidades
políticas tem ocorrido desde que a pandemia deu sinais de melhora no
068
país. A falsa divisão entre economia e saúde pública, levada a cabo desde
março de 2020 pelo governo, faz o presidente afirmar que a responsabi-
lidade pela atual crise econômica do país é culpa dos governadores e dos
prefeitos que adotaram medidas restritivas quanto a circulação das pes-
soas e ao fechamento de atividades econômicas não essenciais, ao passo
em que o esperado no âmbito federativo seria a União ter coordenado tais
ações desde o início da pandemia. No entanto ao invés da cooperação fe-
derativa temos assistido ao conflito federativo e uma visão restrita sobre
o federalismo brasileiro.
REFERÊNCIAS
ABRUCIO, F. L. Reforma do Estado no federalismo brasileiro: A situ-
ação das administrações públicas estaduais. Revista de Administração
Pública, v. 39, n. 2, p. 401-422, 2005. Disponível em: https://bibliote-
cadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/6576. Acesso em: 17 set.
2021.
070
Trabalho, educação e saúde:
racismos e pandemia
073
antes da crise (último trimestre de 2019) e início da crise
(março de 2020 ou a última quinzena de março de 2020).
Por meio dessa comparação, é possível identificar as pessoas
que estavam trabalhando e as que deixaram de trabalhar, seja
porque foram para fora da força de trabalho ou porque estão
desempregadas (BARBOSA; COSTA; HECKSHER, 2020,
p. 57-58).
8 - No Brasil, seis milhões de mulheres são trabalhadoras domésticas, sendo; 10% brancas e 18% negras, pobres e com
baixa escolaridade, muitas delas ainda sem carteira assinada, e, por isso, sem contar com direitos trabalhistas, bem como
sujeitas a situações de assédio moral e/ou sexual (PINHEIRO; TOKARSKI; VASCONCELOS, 2021).
9 - Definido como trabalho reprodutivo, remunerado ou não, responsável pela reprodução da força de trabalho, mas,
também, da vida.
074
Neste contexto, em 12 de março de 2020, a primeira morte no Bra-
sil por coronavírus foi a de uma mulher que trabalhava como faxineira, na
zona leste de São Paulo, assim como, no Rio de Janeiro, a primeira morte
foi de uma doméstica, que trabalhava no bairro do Leblon e teria con-
traído a Covid-19 de sua “patroa” recém-chegada da Itália (PINHEIRO;
TOKARSKI; VASCONCELOS, 2021).
Logo, estas trabalhadoras domésticas, mulheres negras, sobretudo,
ainda que tenham mantido sua ocupação, se encontram num estado de
grande vulnerabilidade, que se destaca ainda mais na pandemia, frente a
uma maior exposição ao coronavírus, seja nos domicílios nos quais traba-
lham e no contato com seus moradores, seja em virtude do trânsito entre
suas casas e o seu trabalho (longas jornadas em ônibus públicos, geral-
mente lotados), seja devido às próprias condições precárias de moradia e
de vida (e os cuidados com a própria família), uma vez que não têm a ga-
rantia do isolamento social, e, muitas vezes, do acesso aos equipamentos
de proteção e materiais de higienização. E sem poder contar com o apoio
do Estado em caso de demissão ou afastamento por motivo de saúde, já
que muitas não têm carteira assinada.
Diante disso, no primeiro momento da pandemia, a Federação Na-
cional de Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD) realizou campanhas
demandando aos/às empregadores/as, muitos dos quais em trabalho re-
moto em seus domicílios, a liberação dessas trabalhadoras, tanto diaristas
quanto mensalistas, de suas atividades profissionais, sem a suspensão de
seus salários, assim como, também, o Ministério Público do Trabalho de-
fendeu a “quarentena remunerada”, sempre que possível. Mas, a definição
do trabalho doméstico como serviço essencial, por parte de alguns gover-
nos e prefeituras, inviabilizou tais reivindicações e posicionamentos. Por
outro lado, houve casos de dispensas sem a manutenção dos rendimen-
tos e, em menor escala, de liberação com essa manutenção (PINHEIRO;
TOKARSKI; VASCONCELOS, 2021).
Cabe destacar que, entre os casos de dispensa, podem ter ocorrido
situações em que as trabalhadoras domésticas passaram a contar com o
Auxílio Emergencial (Lei no. 13.982, de 02 de abril 2020) ou com o Be-
nefício Emergencial de Preservação do Emprego e Renda (Lei no. 14.020,
de 06 de julho de 2020), a partir do “acordo” entre empregador/a e em-
pregado/a de redução da jornada de trabalho ou suspensão do vínculo de
trabalho, tal como sancionados pelo atual governo federal (PINHEIRO;
075
TOKARSKI; VASCONCELOS, 2021).
No entanto, torna-se evidente a drástica redução da renda destas
trabalhadoras, assim como de outros, chegando ao nível apenas de uma
precária subsistência, bem como a limitação desses auxílios em alcançar
o imenso contingente de desempregados do país.
Ao longo dos meses de pandemia, e a partir dessas definições, os
sindicatos das trabalhadoras domésticas e a FENATRAD têm recebido
denúncias de violações de direitos - de exaustivas jornadas de trabalho e
desvio de funções às restrições de locomoção e cárcere privado (PINHEI-
RO; TOKARSKI; VASCONCELOS, 2021)
Portanto, os impactos da pandemia COVID-19 no mercado e nas
relações de trabalho, em particular no caso do trabalho doméstico, não só
acentuam as desigualdades sociais, de gênero e étnico-raciais já existen-
tes, mas, também, a sobrecarga de trabalho, a redução de renda (e, muitas
vezes, o próprio desemprego) e de direitos fundamentais, com preocupan-
tes implicações na saúde mental e física das trabalhadoras domésticas, em
sua maioria negra, agravada, inclusive, pela maior exposição ao corona-
vírus.
Não obstante, neste alarmante cenário já despontam algumas ten-
dências: envelhecimento do perfil da categoria de trabalhadora doméstica,
com o crescimento do grupo com 45 anos ou mais e, proporcionalmen-
te, redução do grupo com até 29 anos de idade, que, com maior nível
de escolaridade, busca por outras ocupações, sem maiores exigências de
qualificação, como telemarketing; aumento do número das diaristas, as
quais atuam, com jornadas semanais de até dezesseis horas (ou dois dias
na semana), em mais de um domicílio, sem possuir vínculo empregatício
com nenhum deles, o que contribui para a persistência da informalidade.
Neste sentido, por tudo o que foi exposto até aqui, é possível con-
cluir que, apesar das importantes conquistas desta categoria ao longo da
última década, principalmente com a promulgação da Convenção sobre o
Trabalho Decente para as Trabalhadoras Domésticas e os Trabalhadores
Domésticos (Convenção n. 189), ainda há um número significativo de
trabalhadoras domésticas, do cuidado, sem carteira assinada e, com isso,
sem usufruir das “proteções” previstas nesse documento, com maiores
níveis de vulnerabilidade e desproteção social entre as mulheres negras.
076
A pandemia e os impactos na educação brasileira
Considerando os impactos da pandemia COVID-19 no mercado e
nas relações de trabalho, faz necessário olharmos para as implicações des-
sa situação no campo educação que atinge majoritariamente a população
jovem, pobre e negra que vivencia um conflito entre a precariedade das
instituições escolares e a luta pela sobrevivência.
Inúmeras pesquisas vêm denunciando que, no Brasil, apesar do
aumento de acesso nas escolas nos últimos anos, ainda permanece um
abismo entre os grupos sociais, principalmente quando se analisa as opor-
tunidades e desempenhos entre brancos e negros. Segundo dados do Insti-
tuto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), por exemplo, em 2016, 98%
das crianças entre 6 e 14 anos no Brasil estavam matriculadas no ensino
fundamental e 70% dos jovens de 15 a 17 anos frequentavam o ensino
médio. Os índices são praticamente os mesmos se separados por matrícu-
las de brancos, de pretos e de pardos no Ensino fundamental: 98%, 98,7%
e 97,9%, respectivamente. No entanto, essas mesmas pesquisas destacam
que a obtenção de acesso não representa necessariamente ofertas de opor-
tunidades iguais e desempenho, haja vista que os dados indicam que pre-
tos e pardos representam a menor porcentagem dos que concluem a Edu-
cação básica. A alta taxa de evasão está relacionada geralmente a questão
do trabalho, pois muitos desses jovens abandonam a escola pela necessi-
dade de trabalhar ou mesmo pela impossibilidade de conciliar horários da
escola e do trabalho.
Além disso, o baixo desempenho na aprendizagem é um problema
que afeta essa população que é a maioria nas escolas com menor estrutura,
como observa Macaé Evaristo (2017), ao se referir aos jovens negros e
pardos estudantes do Ensino Médio: “Os jovens das comunidades mais
vulneráveis têm acesso a escolas com infraestrutura mais precária, que no
geral têm profissionais de educação sem a formação desejada nas áreas do
currículo demandadas para o Ensino Médio” (EVARISTO, 2016).
Diante desse quadro que evidencia as disparidades que separam
ricos e brancos de pobres e negros, a pandemia do novo coronavírus es-
cancarou essa problemática e impôs desafios ainda mais urgentes para
escolas e professores. No Brasil, após as confirmações dos casos e o alerta
das autoridades de saúde quanto a gravidade da COVID-19 em março de
2020, as instituições escolares fecharam seus espaços e se prepararam
077
para uma nova configuração de ensino; as atividades remotas.
De maneira geral, os desafios enfrentados pelas escolas brasileiras
fazem parte das respostas educativas que os sistemas de ensino, as esco-
las e a pedagogia de todos os países deram a pandemia, denominado por
Nóvoa (2022) como “Lições aprendidas nas respostas à pandemia”, assim
descrita pelo pesquisador:
Primeira – De um modo geral, a resposta ao nível dos
sistemas educativos foi frágil e inconsistente. Os ministros e
as autoridades públicas ficaram dependentes de plataformas
e de conteúdos disponibilizados por empresas privadas, não
sendo sequer capazes de assegurar o acesso digital a todos
os alunos.
Segunda – A resposta ao nível das escolas foi, em muitos
casos, bastante melhor. Através das suas direções avançaram
soluções mais adequadas, sobretudo quando conseguiram
uma boa ligação às famílias e o apoio das autoridades locais.
Percebeu-se bem a importância dos laços de confiança entre
as escolas, as famílias e os alunos.
Terceira – No entanto, as melhores respostas vieram
dos próprios professores que, através da sua autonomia
profissional e de dinâmicas de colaboração, conseguiram
avançar propostas robustas, com sentido pedagógico e com
preocupações inclusivas. Mais do que nunca ficou claro que
os professores são essenciais para o presente e o futuro da
educação (NÓVOA, 2022, p. 26).
REFERÊNCIAS
ABREU, A. O trabalho doméstico remunerado: Um espaço racializado.
In: PINHEIRO, L.; TOKARSKI, C. P.; POSTHUM, A. C. (org.). Entre
relações de cuidado e vivências de vulnerabilidade: Dilemas e de-
safios para o trabalho doméstico e de cuidados remunerado no Brasil.
Brasília, DF: IPEA; OIT, 2021.
083
EVARISTO, M. Entrevista I. [nov. 2016]. Entrevistadora: Raíza
Siqueira. São Paulo, 2017. Disponível em: https://observatoriodeeduca-
cao.institutounibanco.org.br/em-debate/conteudo-multimidia/detalhe/
gestao-escolar-para-a-equidade-racial-dialogos-com-macae-evaristo-e-
-sueli-carneiro. Acesso: 05 abr. 2022.
084
SANTOS, H. L. P.C. et al. Necropolítica e reflexões acerca da popu-
lação negra no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil: Uma
revisão bibliográfica. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, Supl. 2,
out. 2020b. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/5FLQN6Z-
V5yYPKv6bv4fTbVm/abstract/?lang=pt. Acesso em: 12 abr. 2021.
085
086
Povos indígenas, contexto político
e o enfrentamento da pandemia
Mário NICÁCIO
Edmundo Antonio PEGGION
Jordeanes do Nascimento ARAÚJO
087
A reflexão pontua também algumas considerações acerca da impor-
tância do movimento indígena e da preocupação inerente a tais movimen-
tos em torno da luta política pelos direitos constitucionais de tais povos.
Além de uma compreensão estática e uma noção de cultura constituída
por traços, percebe-se que a luta indígena incorpora elementos do Di-
reito e estabelece um parâmetro inovador, ao propor que, acima de tudo,
haja respeito pela especificidade dos diferentes povos. Mário Nicácio Wa-
pichana, por exemplo, coautor do presente artigo, e que esteve conosco
em agosto de 2020, atualmente é vice-prefeito de Bonfim, município de
Roraima conurbado com Lethem, município da Guiana. Em cidades nas
quais há uma grande população indígena, ocupar os espaços políticos é
fator determinante para a garantia dos direitos constitucionais. Tal pers-
pectiva também é válida para o contexto das políticas públicas nacionais.
12 - As considerações de Mário Nicácio Wapichana que compõem o presente artigo fazem parte de sua apresentação
durante a realização do evento Ciências Sociais em Diálogo, que teve como título “Os povos indígenas e a Covid 19:
impactos e enfrentamentos”, e que ocorreu no dia 13 de agosto de 2020.
088
tradicionais) na zona rural, nas proximidades de pequenas e grandes ci-
dades e em bairros de centros urbanos. Há, ainda, conforme indicado por
Mário Nicácio, povos em isolamento voluntário, que optaram por viver
distantes dos não indígenas e que são, no presente momento, altamente
vulneráveis em razão de invasões e ocupações descontroladas de terras,
em particular, na Amazônia.
Quando, nós, atualmente, falamos em isolamento, já temos o
isolamento cultural que fazemos por nossa decisão mesmo,
coletiva porque hoje a Fundação Nacional do Índio reconhece
28 povos em isolamento voluntário dos 114. Toda a estrutura
que tem a Fundação Nacional do Índio foi criada pra
coordenar e mapear os povos indígenas, mas atualmente tem
suas dificuldades e fins que cabe a nós estarmos atento. Temos
mais de 430 territórios indígenas demarcados e homologados
e também os direitos garantidos na Constituição Federal que
é o direito ao território. Antigamente demorava 5 anos para a
demarcação de uma terra indígena, hoje, mais de 15 anos com
todos as dificuldades jurídicas nos últimos governos a gente
não têm nenhuma terra indígena demarcada na Amazônia no
governo do Temer, também nesse desgoverno que está no
Brasil não está nos dando nenhum sossego para poder dizer
que vamos ter terra demarcada, que vamos ter vida nesse
Governo Federal (NICÁCIO, 2020).
13 - “ § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio
089
Pela legislação, os povos em isolamento voluntário devem ter seus
direitos respeitados e o entorno de seus territórios deve ser protegido.
As Frentes de Proteção Etnoambiental da Fundação Nacional do Índio
– FUNAI é que são responsáveis pelo monitoramento e vigilância, mas
o corpo técnico costuma ser diminuto para as proporções do trabalho e
os protocolos devem ser renovados periodicamente. Um exemplo de tais
procedimentos está no documentário intitulado “Piripkura”, dirigido por
Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge, lançado em 2017.
No atual governo, tais sistemas de proteção foram fragilizados e o
impacto da disputa pela terra tem colocado em risco todos os grupos em
isolamento voluntário. Um exemplo é justamente o caso dos referidos Pi-
ripkura, cujo território foi a leilão recentemente.14 Além disso, tramita no
Congresso Nacional o Projeto de Lei 490/2007, já aprovado na Comissão
de Constituição e de Justiça da Câmara, que permitirá o contato com po-
vos indígenas em isolamento voluntário caso seja uma ação de “utilidade
pública”, além de instituir o Marco Temporal. No fundo, para elaborar
uma reflexão sobre a questão indígena, é necessário levar em considera-
ção a questão da regularização fundiária.
A Constituição Federal de 1988 define o direito à terra da seguinte
maneira:
“§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as
por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para
suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação
dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as
necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus
usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios
destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto
exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas
existentes” (BRASIL 1988, cap. 8, art. 231).
e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas
existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a
nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias
derivadas da ocupação de boa fé” (BRASIL, 1988, cap. 8, art. 231).
14 - Disponível em: https://oglobo.globo.com/um-so-planeta/piripkura-area-de-terra-indigena-com-isolados-na-amazo-
nia-legal-vai-leilao-como-fazenda-em-sp-25435876. Acesso em: 23 mar. 2022.
090
A Constituição indicava, também, um prazo de cinco anos para
a demarcação das Terras Indígenas a partir de sua promulgação, sendo
que a responsabilidade pela proteção e demarcação é da União (BRASIL,
1988). Hoje, porém, como bem sabemos, muitas Terras Indígenas conti-
nuam sem estudos de identificação ou demarcação. Ademais, há muitos
povos vivendo em situações precárias em razão justamente da expulsão
ou da não regularização de seus territórios, como é o caso dos povos indí-
genas Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul.
O atual governo, por sua vez, deixou um indicativo de quais seriam
os procedimentos com relação aos povos indígenas, seja pelas declara-
ções públicas, seja pela legislação instituída. Em 2019 editou a Medida
Provisória n.º 870/2019 transferindo para a Ministério da Agricultura, Pe-
cuária e Abastecimento a responsabilidade sobre a regularização fundiá-
ria das Terras Indígena, retirando da FUNAI tal prerrogativa (BRASIL,
2019a). E reabriu-se, no Congresso Nacional, o debate em torno do cha-
mado Marco Temporal que pretende estabelecer a data da promulgação da
Constituição, acima citada neste artigo, como referência para as demarca-
ções. Em outras palavras, estabelece que os povos indígenas que não es-
tavam em suas terras em período anterior à Constituição não terão direto
a ela. Um mínimo de conhecimento do processo político e histórico do
país é indicador suficiente para demonstrar que tais ausências decorrem,
justamente, de atos de violência e de expulsão. Como não imaginar uma
situação de risco para os povos indígenas que, além de serem mais sensí-
veis a certas doenças, vivem um contexto de insegurança legal, além de
enfrentarem problemas como a desnutrição nas aldeias? Como nos disse
Mário Nicácio:
O desafio maior para nós, hoje, é garantir a nossa vida
indígena, garantir a vida da natureza, os nossos rios, a
nossa árvore, a nossa mata que hoje, infelizmente, está
sendo muito atacada. Muita invasão de garimpeiro que é
uma atividade ilegal em qualquer território, seja em nossa
residência - que é chamada terra indígena - seja na residência
de vocês. Explorar qualquer objeto, explorar qualquer planta
no terreno de vocês têm que pedir licença, não têm que
invadir. Então, isso está acontecendo. Essas invasões com
madeireiros, garimpeiros e grilagem muito fortes que estão
custando muitas vidas indígenas. Na verdade é um genocídio
091
que precisa ser barrado pela sociedade, pela justiça do Brasil.
É um desafio para todos nós, também, indígenas, utilizar
essa linha jurídica para poder atuar e garantir a vida dos
povos indígenas. O desafio, também, principal e comum é o
enfrentamento do Covid-19 (NICÁCIO, 2020).
O enfrentamento da pandemia
A gestão da saúde indígena é feita pela Secretaria Especial de Saú-
de Indígena – SESAI, vinculada ao Ministério da Saúde. A SESAI coor-
dena a Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena no Sistema Único
de Saúde – SUS. Desde o final dos anos 1990 criaram-se os Distritos Sa-
nitários Especiais Indígenas que contam com a participação de indígenas,
equipes de saúde e antropólogos (ATHIAS, 2004; PELLEGRINI, 2004).
Há uma série de questões que se pode levantar acerca da saúde
indígena, mas vamos aqui nos ater, especificamente, à questão da Covid.
Para além de uma maior vulnerabilidade para doenças respiratórias e di-
versas situações insalubres nas quais vivem muitos povos indígenas, há
outros fatores que incidiram sobre a grave situação relacionada à atual
pandemia.
A pandemia trouxe à tona a percepção de alguns fatores centrais
para a nossa compreensão da alteridade: exigimos que os povos indígenas
sejam “tradicionais”, mas não nos atentamos para a violência atual no
entorno das terras indígenas: devastação, garimpos, pressão econômica de
todo tipo, muitas vezes falta de proteção e de regularização fundiária. Por
outro lado, estamos nos dando conta de que há um movimento indígena
organizado e que está atento e em luta constante. A situação tem exigido
um repensar acerca de conceitos e ideias como cultura e identidade.
Segundo Cunha, há duas maneiras de conceber tais conceitos. A
primeira a autora chama de platônica e é aquela que percebe a identidade
e a cultura como coisas. A identidade consistiria em ser idêntica a um mo-
delo, supondo uma essência, e a cultura seria constituída por itens, regras
e valores. Como alternativa, a autora propõe a identidade como a percep-
ção de uma continuidade, de um processo, de uma memória. E a cultura
seria, nesse caso, não um conjunto de traços dados, mas a possibilidade
de gerá-los em um sistema perpetuamente cambiante. A essa perspectiva
092
ela deu o nome de heracliteana (CUNHA, 1994).
E é justamente dentro dessa segunda perspectiva que é possível
compreender o movimento indígena atual. Há uma intensa organização e
tomada de consciência de que é fundamental assumir as frentes de luta,
contando, certamente com aliados.
No Brasil, hoje, há muitas entidades indígenas que são conduzidas
por lideranças importantíssimas. Duas delas se destacam no debate atu-
al: a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira -
COIAB 15e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - APIB16. Além de
tais entidades, temos diversas outras que se conectam entre si tais como
a Aty Guasu, do povo indígena Guarani Kaiowá e o Conselho do Povo
Terena. Durante o período mais intenso da Covid foram tais entidades que
fizeram um duplo trabalho: de um lado tentando convencer os parentes
da importância da vacinação (pois se sabia que muitas pessoas do entor-
no das Terras Indígenas espalhavam fake news sobre o tema), e de outro
foram para a imprensa nacional e internacional para denunciar o descaso
dos serviços públicos para com os povos indígenas.
093
colocando o papel e a caneta pra falar. Nesse momento atual,
o nosso conhecimento tradicional, da medicina tradicional
é o que nos está garantindo, pois aqui não chega teste para
saber se é Covid, mas aqui nós tivemos que não esperar
esse teste chegar, senão a gente ia morrer. E os povos
indígenas estão usando da medicina tradicional e do trabalho
espiritual para nos dar força e enfrentarmos esse Covid.
Muitos indígenas tiveram que fazer isso, além de enfrentar
o racismo institucional, pelo preconceito, por todo tipo de
coisa ruim que os invasores têm - que em maioria ocupa o
espaço público - e nós tivemos, também, essa exclusão do
atendimento público que deveria, também, ser muito mais
inclusivo (NICÁCIO, 2020).
094
de matar gente se não cuidar direito antes de chegar lá. A
gente já faz esse tratamento e usamos também os elementos
jurídicos que a gente tem acesso agora - o Ministério Público
Federal, o Supremo Tribunal Federal - mesmo tendo toda a
dificuldade de acessar e a sociedade civil também. Trazer
os estudos, seja com pesquisa ou levantamento de dados.
Estamos fazendo também levantamentos de dados dos
infectados e dos falecidos, nós mesmos estamos fazendo e
comparando com os dados que a SESAI faz com o Ministério
da Saúde. Então, essa estratégia está dando indicadores para
poder enfrentar esse Covid aqui no Amazonas e estamos com
um campanha pela vida dos povos indígenas da Amazônia,
em aberto no site da COIAB e da APIB. A APIB tem um
plano de emergência e faz um trabalho importante, mas
também não tira a responsabilidade do Estado brasileiro. É
obrigação do Estado brasileiro, de uma forma constitucional
e a gente quer contribuir naquilo que vão nos orientar e esse
é o papel que nós estamos fazendo hoje, dentro da realidade
que estamos enfrentando na Amazônia e, já conseguimos
atender os povos indígenas do Sul do Amazonas, na medida
do possível. O Amazonas é o estado que tem mais infectados
indígenas e falecidos indígenas (NICÁCIO, 2020).
096
universal de conhecimento, ligado ao nosso conhecimento
indígena pode salvar várias vidas, também, indígenas e dos
não-indígenas (NICÁCIO, 2020).
098
Considerações finais
O presente artigo tentou tecer algumas considerações acerca da
questão sobre a epidemia de Covid 19 e seu impacto nos povos indígenas.
Seu ponto de partida foi o evento, ocorrido em 13 de agosto de 2020,
no contexto do evento organizado pelo Departamento de Ciências So-
ciais da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulis-
ta – UNESP, campus de Araraquara. Sua transmissão deu-se no Canal do
Youtube “Ciências Sociais em Diálogo”, um projeto do referido Departa-
mento e que surgiu como iniciativa de alguns docentes no momento mais
intenso da pandemia.
A questão indígena era candente e tema que deveria ser levado à
discussão pelas pessoas que estão na linha de frente. Naquele momento
havia uma intensa movimentação de lideranças reivindicando testagem,
itens de higiene, cestas básicas e apoio da Fundação Nacional de Saúde
- FUNASA. Até então, não se tinha muito claro como iria se desdobrar a
pandemia e a vacinação ainda não havia se iniciado. Entramos em contato
com representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
e com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasi-
leira – a COIAB. A COIAB nos colocou em contato com Mário Nicácio,
que fez uma importante fala durante a transmissão. O objetivo do artigo
foi atualizar algumas questões e trazer novos elementos para a reflexão.
Com idas e vindas, o processo de vacinação colocou os povos
indígenas como prioridade, durante as intensas campanhas que aconte-
ceram e a despeito da disseminação de fake news sobre os riscos que a
vacina comportaria. Assim, especialistas e amigos dos povos indígenas
gravaram vídeos e áudios que circularam pelas comunidades insistindo
na importância da vacinação. Houve adesão das comunidades, muito for-
temente influenciadas pelas lideranças indígenas e por agentes públicos
comprometidos com a causa.
Tendo como pano de fundo a história do contato dos povos Indíge-
nas com doenças infectocontagiosas estranhas, a análise contemporânea
impõe algumas reflexões finais. Se a Covid 19 tem se mostrado letal às
populações do mundo, tão mais o é entre os povos indígenas, historica-
mente desassistidos pelo Estado. Objetivamos, também, perscrutar sobre
os malefícios imbricados na pandemia e que podem representar uma ame-
aça maior à existência dos Povos Indígenas do que o adoecimento físico.
099
Referimo-nos às diversas formas de matar (cujos agentes são madeireiras
ilegais, garimpeiros ilegais, queimadas desenfreadas) implicadas no atual
momento em que vivemos. Estamos, assim, sob a égide de um biopoder18,
seja no controle de corpos ou no poder de decisão de quem dever morrer
ou sobreviver, e também dentro de uma necropolítica, na qual o governo
determina, através da soberania e de uma suposta “sociedade de bem”, a
extirpação das minorias: indígenas, negros, quilombolas, idosos, mulhe-
res e LGBTQI+:
Propus a noção de necropolítica e necropoder para
explicar as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo
contemporâneo, armas de fogo são implantadas no interesse
da destruição máxima de pessoas e da criação de “mundos
de morte”, formas novas e únicas da existência social, nas
quais vastas populações são submetidas a condições de vida
que lhes conferem o status de ‘mortos-vivos’ (MBEMBE,
2016 p. 146).
18 - Em Foucault não se trata, por conseguinte, em absoluto, de considerar o indivíduo no nível do detalhe, mas, pelo
contrário, mediante mecanismos globais, de agir de tal maneira que se obtenham estados globais de equilíbrio, de
regularidade; em resumo, de levar em conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e de assegurar sobre
eles não uma disciplina, mas uma regulamentação (FOUCAULT, 2010, p. 294).
100
Ao mesmo tempo, o governo vetou um projeto parlamentar sobre
19
o abastecimento de água potável nas aldeias indígenas (BRASIL, 2020a)
e planejou leis (BRASIL, 2020b)20 para atacar os territórios indígenas,
ao incentivar a mineração, o desmatamento e a presença de garimpeiros
ilegais nas terras Yanomami, Kaapor, Munduruku, Guajajara, Tenharin,
Parintintin e outras terras Indígenas.
Ao nos debruçarmos sobre estes fatos, que dizem respeito ao modo
como o Estado se move ao tratar questões que envolvem a existência dos
povos Indígenas em tempos de pandemia - evidenciado pelo atraso das
cestas básicas, da instalação tardia da barreira sanitária, ao descaso com
os povos indígenas -, observamos, enfim, um gerenciamento de morte
(ARAÚJO; BARROSO; TENHARIN, 2020). Giogio Agambem já afir-
mou que toda política é sempre uma biopolítica: “o que é uma sociedade
que não tem outro valor que não seja a sobrevivência?” (AGAMBEM,
2020, p. 02). Nesse sentido, é em nome da sobrevivência que os gover-
nantes governam, observa o autor, ao interrogar acerca das concessões à
liberdade a que estamos dispostos em função do risco. Assevera o autor,
ainda, que a gestão das formas das vidas a serem preservadas só existe sob
o controle da liberdade.
As considerações de Agambem (2020) a respeito do biopoder nos
ajudam a pensar as intenções das agências estatais (FUNAI e SESAI) ao
construírem uma política de proteção sanitária para os Povos Indígenas. O
atraso para a instalação de uma barreira de proteção epidemiológica, (cau-
sa da morte de Aruka Juma) por exemplo, escancarou que a política não
é aplicada em defesa da vida; antes, a defesa da vida é reivindicada como
fundamento para a política. No Brasil esse entendimento engendrou, de
algum modo, uma “política de morte”, levada a termo através das ações
das agências estatais, agora militarizadas, postas a serviço do agronegócio
e da exploração ilegal dos recursos naturais de territórios indígenas.
19 - O presidente Jair Bolsonaro sancionou com vetos a lei que prevê medidas de proteção para comunidades indíge-
nas durante a pandemia de coronavírus. O Poder Executivo barrou 16 dispositivos da norma. Entre eles, os pontos que
previam o acesso das aldeias a água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos.
20 - O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) visitou na 3ª feira (26 out. 2021) a região de garimpo ilegal na terra
indígena Raposa Serra do Sol, no município de Uiramutã, em Roraima. Usando um cocar, símbolo indígena, Bolso-
naro voltou a defender o trabalho dos garimpeiros. “Esse projeto não é impositivo. Diz: “se vocês quiserem plantar,
vão plantar. Se vão garimpar, vão garimpar. Se quiserem fazer algumas barragens no vale do rio Cotingo, vão poder
fazer’”, discursou o presidente citando o projeto de lei 191/2020. Leia mais no texto original: https://www.poder360.
com.br/brasil/bolsonaro-visita-garimpo-ilegal-em-terra-indigena-de-roraima-oposicao-critica/.
101
Estamos diante das diversas formas de exterminar (invasão de ter-
ras indígenas, garimpeiros, madeireiros, desmatamento, queimadas). Isso
não significa, é obvio, que o Estado elabore leis que permitam aberta-
mente o etnocídio, mas, ao vetar projetos de saúde indígena e orquestrar
projetos de lei, tais como a Medida Provisória 910 (BRASIL, 2019b),
substituída pelo Projeto de Lei PL 2633/2020, conhecido como “lei da
grilagem”(BRASIL, 2020c), considerada um verdadeiro revés no tocante
aos esforços adotados para a contenção do desmatamento na Amazônia;
assim, ao desregulamentar leis constitucionais, tal como a não demarca-
ção de terras indígenas, facilitando a manutenção de garimpos ilegais e
a ação de madeireiras em terras historicamente indígenas, permite-se e
mesmo se incentiva o agenciamento das mortes.
Há, portanto, uma lógica antiga, mas intensificada pelo atual go-
verno. Tal lógica se estendeu pela não demarcação de terras indígenas e
quilombolas na última década do século XX, e, agora, é aprofundada com
a tese do Marco Temporal. A lógica atua, também, indiscriminadamente
nas inúmeras invasões de madeireiros e de garimpeiros nas terras indíge-
nas da Amazônia.
Em meio a esse turbilhão de eventos, no entanto, percebemos que,
se de um lado as formas de matar as minorias se espraiam pela negação
da vida, pela negação de políticas para a proteção à vida das minorias,
de outro, o autocuidado e as redes de apoio – como as campanhas online
de arrecadação em prol das necessidades dos indígenas, as campanhas
internacionais em defesa dos indígenas no Brasil, a ênfase na necessidade
do distanciamento social demonstram que, como colocaram Slavoj Zizek
(2020) e Ishibashi (2020), não apenas o medo e a busca por vias indivi-
duais de salvação estão postas como resultado da pandemia; há, também,
fundamentais demonstrações de verdadeira solidariedade.
102
REFERÊNCIAS
AGAMBEM, G. Reflexões sobre a peste: Ensaios em tempos de pan-
demia. São Paulo: Boitempo, 2020.
103
BRASIL. Lei n. 14.021, de 7 de julho de 2020. Dispõe sobre medi-
das de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação
da Covid-19 nos territórios indígenas; cria o Plano Emergencial para
Enfrentamento à Covid-19[...]. Brasília, DF: Presidência da República,
2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2020/lei/l14021.htm. Acesso em: 17 jun. 2021.
104
KROEMER, G. C. O Purus dos Indígenas: Ensaio etno-histórico e
etnográfico sobre os índios do médio Purus. São Paulo: Ed, Loyola,
1985.
105
106
Digitalização e conectividade:
desigualdades e disputas simbólicas
109
necessário para pôr em prática tal conhecimento apreendido
e condições sociais, educacionais e culturais que permitam
a aquisição desse saber para lidar com as novas tecnologias
da informação e construir o ciberespaço (FREITAS, 2004,
p. 119).
21 - O Cetic.br tem ligação com a história da governança da Internet no Brasil e as estratégias de infraestrutura, montada
e operada pelo Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), que implementa as decisões e os projetos
do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). O NIC.br é também o responsável pelo registro e publicação na In-
ternet dos nomes de domínios .br, pela alocação dos números ASN (Autonomous System Numbers) e dos endereços IP
(Internet Protocol) em todo o território nacional. Disponível em: www.cgi.br. Acesso em: 23 set. 2021. Disponível em:
www.cetic.br. Acesso em: 23 set. 2021.
111
Figura 1 – Domicílios com acesso à internet, por classe (2015-2020).
112
Figura 2 – Usuários de internet por área (2014-2020).
Acessibilidades desiguais:
conectividade e suporte material
A 16ª edição da TIC Domicílios (edição COVID-19) constatou que
outros fatores influenciaram na forma e qualidade com que os diversos
grupos de indivíduos absorvem os conteúdos ofertados. Entre eles está
a má qualidade das conexões de internet com falhas de transmissão de
22
áudio e/ou vídeo, lentidão e alta latência (figura 4):
Entre 2019 e 2020 houve um aumento da proporção de domicílios
com acesso a conexões via cabo ou fibra ótica, 44% e 56%, respectiva-
mente, destacando-se os domicílios conectados das classes DE (de 26%,
em 2019, para 38%, em 2020). Quando comparado o tipo de conexão,
observa-se que nos casos em que há predominância da conexão móvel, a
22 - Latência na internet tempo gasto (medido em milissegundos, ou ms) para seu dispositivo obter uma resposta da
torre de celular ou do link de rádio da conexão, e isso envolve o envio de mensagens, dados e outros comandos Dis-
ponível em: https://olhardigital.com.br/2021/07/01/tira-duvidas/saiba-o-que-e-latencia-e-qual-sua-relacao-com-o-5g/.
Acesso em: 17 set. 2021.
114
Figura 4 – Domicílios com banda larga fixa, por classe (2015-2020).
115
cacionais, uma vez que as aulas foram suspensas, em sua grande maio-
ria, fazendo com que alunos e professores recorressem à mediação das
plataformas digitais on-line para a realização das atividades. Sobre este
contexto, a pesquisa da Cetic.br apurou que as atividades ou pesquisas
escolares (45%) e o estudo na Internet por conta própria (44%) foram as
118
Apontamentos para uma política de inclusão digital
De fato, ao tomarmos os recortes de classe, escolaridade e raça/cor,
os estudos do Cetic.br caracterizam claramente a articulação da desigual-
dade social com a exclusão digital, verificada através das desigualdades no
acesso à internet, seja pela falta de dispositivos adequados, má qualidade
da internet ou falta das habilitações necessárias. A ampliação do acesso de
boa parte da sociedade às tecnologias digitais de forma equânime passa a
ser uma preocupação social, impondo a necessidade de políticas públicas
de inclusão digital.
O estudo evidencia que o acesso à internet aumentou durante a
pandemia, mas o aproveitamento de suas potencialidades esbarra em en-
traves impostos pela persistência das desigualdades. Pelos dados apre-
sentados, verificamos que as condições sociais dos indivíduos, tais como
a distinção entre as classes sociais, grau de escolaridade e cor ou raça,
condicionam diferenças nas habilidades cognitivas e demarcam fronteiras
simbólicas que impactam fortemente, tanto o acesso quanto a plena apli-
cabilidade dos serviços disponibilizados e mediados pela internet. Assim,
vimos reverberar na exclusão digital a mesma condição de exclusão dos
indivíduos circunscritos nas classes DE, historicamente privados de aces-
sos à educação, trabalhos mais qualificados, saúde, entre outros direitos.
Em artigo publicado junto à pesquisa TIC Domicílios 2020, a pes-
quisadora e jornalista Bia Barbosa analisa como a falta de conexão de
qualidade interfere no aumento das desigualdades. Barbosa destaca que,
se por um lado o acesso à internet pelo celular é pleno, por outro esse
acesso exclusivo por este tipo de dispositivo limita o acesso aos conteú-
dos, seja pelo limite da tela, seja pela precariedade de acesso. Segundo a
pesquisadora, um dos reflexos está na educação:
119
Entendemos, assim como Barbosa, que o problema da desigual-
dade de acesso à internet, agravada com a pandemia, deve ser enfrentado
através de políticas públicas a serem implementadas pelo Estado brasilei-
ro.
As décadas perdidas, por opção política de diferentes
governos, contribuíram para que as desigualdades no acesso à
Internet se mantivessem inalteradas, mesmo com a expansão
do acesso (BARBOSA, 2021, p. 100).
120
Como demonstra a experiência recente, uma regulamentação que
assegure a destinação de recursos é um passo importante na garantia de
direitos, contudo, é preciso ir adiante, construindo políticas que partam
de diagnósticos mais próximos dos cotidianos de seus públicos-alvo. A
implementação efetiva depende de diagnósticos locais - que considerem a
heterogeneidade de grupos, inseridos em realidades particulares diversas
- e mecanismos de acompanhamento e avaliação a serem construídos, en-
volvendo os usuários. O caso da exclusão digital é emblemático por evi-
denciar não se tratar apenas do acesso ao suporte material, mas também
de recursos simbólicos, pois qualquer política de inclusão digital que não
considere as habilidades cognitivas, desenvolvidas por meios culturais e
educacionais, está fadada à ineficácia.
Finalmente, os dados aqui apresentados apontam a radicalização
da exclusão de grupos recorrentemente postos à margem na sociedade
brasileira. Retomando as colocações iniciais desta reflexão, evidencia-se
a existência de grupos que não compartilham da mudança cognitiva dese-
nhada pelas mediações tecnológicas que atravessam todos os âmbitos das
relações sociais desde o advento da internet 2.0. Cabe aos setores compro-
metidos com a ideia de igualdade social contribuírem para a construção
de mecanismos para o desenvolvimento das habilidades cognitivas e su-
portes tecnológicos necessários para esta inclusão, minimizando as vozes
que insistem em resistir, nostalgicamente, ao espírito de nosso tempo.
REFERÊNCIAS
ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. A indústria cultural: O esclareci-
mento como mistificação das massas, In: ADORNO, T.; HORKHEI-
MER, M. Diáletica do esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Rio de
Janeiro: Zahar, 1985.
121
BARBOSA, B. Brasil na pandemia: Falta de conexão de qualidade
e aumento das desigualdades – apêndice da Pesquisa sobre o uso das
tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros:
TIC Domicílios 2020: edição COVID-19 Núcleo de Informação e
Coordenação do Ponto BR. 1. ed. São Paulo: Comitê Gestor da Internet
no Brasil, 2021.
122
HANNERZ, U. Fluxos, fronteiras, híbridos: Palavras-chave da antro-
pologia transnacional. Mana, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 7-39, 1997.
Disponível em: https://www.scielo.br/j/mana/a/bsg6bwchcBbqfnpW-
6GYvnPg/?stop=previous&lang=pt&format=html. Acesso em: 20 maio
2020.
123
124
Legados, desmonte
e resiliência da participação:
os exemplos das áreas da Saúde
e Direitos das Mulheres
O Decreto 8243/2014:
ápice e declínio da participação social
O Decreto 8243, de 23 de maio de 2014, criou a Política Nacional
127
de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação So-
cial (SNPS) (BRASIL, 2014a). Ele representou o ápice da tentativa de se
institucionalizar a participação social no Brasil - processo que remonta
pelo menos à promulgação da Constituição Federal de 1988, quando a
participação foi estabelecida textualmente como fundamento de diversos
setores de políticas públicas (ROMÃO, 2015). A PNPS e o SNPS foram
estruturados entre 2012 e de 2013, paralelamente reuniões com represen-
tantes dos governos estaduais, municipais e do Distrito Federal, no sentido
de tornar operativa nos entes federativos a visão de que a participação so-
cial, sob o lema da “participação como método de governo” é um caminho
para a democratização das decisões sobre políticas públicas. Este esforço
governamental se configurou no Decreto, que conceituou modalidades
de participação institucional (conselho de políticas públicas, comissão de
políticas públicas, conferência nacional, ouvidoria pública federal, mesa
de diálogo, fórum interconselhos, audiência pública, consultas públicas
e ambiente virtual de participação social) e indicou que, “na formulação,
na execução, no monitoramento e na avaliação de programas e políticas
públicas e no aprimoramento da gestão pública serão considerados os ob-
jetivos e as diretrizes da PNPS” (BRASIL, 2014a, art. 1, parágrafo único).
Tais objetivos e diretrizes tinham como propósito essencial “estabelecer a
participação social como método de governo”, elemento estabelecido nas
experiências de governos municipais petistas nas décadas de 1990, no que
era conhecido como o “modo petista de governar” (BITTAR, 1992), em
conjunto com a ideia de “inversão de prioridades”.
Bezerra (2020) indica que o projeto da PNPS e do SNPS foi sendo
elaborado desde o final do segundo mandato do presidente Lula. Ele pre-
tendia criar uma espécie de Consolidação das Leis Sociais, uma marca de
gestão, articulando os programas sociais como o Bolsa Família às inicia-
tivas de participação social do governo, que ficou marcado pela expansão
dos conselhos e conferências. Já havia, no entanto uma avaliação - que se
aprofundou no governo Dilma Rousseff - de que uma ação no sentido de
institucionalizar a participação, criando uma política nacional, poderia ter
dificuldades de aprovação no Congresso e frear processos participativos
que permaneciam ocorrendo.
De fato, o decreto presidencial n. 8.243 (BRASIL, 2014a) foi se-
veramente criticado por setores conservadores da mídia e em quase todo
o Congresso Nacional, como “conselhos bolivarianos” ou seja, como uma
espécie de estratégia final do petismo no aparelhamento da administração
128
pública federal por movimentos sociais simpáticos ao governo. Todos os
partidos políticos, à exceção do PT e do PCdoB se colocaram críticos à
PNPS e à forma (decreto presidencial) pela qual foi criada. Este posicio-
namento deve ser localizado no contexto da disputa eleitoral de outubro
de 2014. Seu centro estava na acusação de uma suposta usurpação das
funções do Congresso Nacional como órgão deliberativo sobre as ações
governamentais e de fiscalização do Executivo, argumento já utilizado
anteriormente contra as experiências de Orçamento Participativo.
23 - O Decreto 9759/2019 (BRASIL, 2019b) não poderia incidir sobre conselhos criados por lei, pois é uma legislação
de menor força. No entanto, mesmo alguns dos conselhos criados por lei são regulamentados por decreto em sua com-
posição e funcionamento, como o Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI). Nestes casos, invariavelmente, o
decreto também gerou impactos significativos.
131
da sociedade civil e alteraram princípios originais dos conselhos extintos.
Isso levanta uma questão acerca do dilema sobre a criação de conselhos
por lei, isto é, por vontade do Legislativo, e sobre o quanto as leis devem
abranger o funcionamento dos conselhos. Se por um lado é importante
que momentos políticos favoráveis à participação social devam ser apro-
veitados para a aprovação de conselhos mais democráticos e inclusivos,
por outro lado, momentos políticos desfavoráveis podem ensejar estrutu-
ras pouco representativas ou muito propensas a serem espaços de domínio
dos governos.
As ações em defesa dos conselhos e contra o Decreto 9759 chega-
ram ao Supremo Tribunal Federal (STF). Já em 22 de abril daquele ano,
o Partido dos Trabalhadores entrou com uma Ação Direta de Inconstitu-
cionalidade (ADI) 6121 junto ao STF com vistas à derrubada do Decreto.
O STF deferiu parcialmente a medida cautelar, afastando a possibilidade
de que o chefe do Executivo possa extinguir colegiado cuja existência en-
contre menção em lei, o que era previsto no parágrafo único de seu Art. 1º,
fortalecendo a tese da amplitude maior das leis sobre o decreto. Com esta
derrota e diante de inúmeros questionamentos, o governo foi obrigado a
editar outro decreto, o nº 9812/2019, que alterou alguns pontos frágeis do
decreto anterior.
Além disso, outros decretos foram sendo editados de modo a esta-
belecer alterações pontuais em conselhos específicos. Bezerra, Rodrigues
e Romão (2021, p. 11) mostram que, deste modo,
diferentemente do inicialmente pretendido pelo governo,
não houve uma solução uniforme, tampouco uma extinção
maciça de conselhos e comissões. As alterações acabaram
por ocorrer caso a caso e de forma gradual, seja por meio da
edição de decretos específicos que redefinem o funcionamento
de um dado colegiado, quanto também eventualmente por
meio de regulamentações infralegais, isto é, alterações no
regimento interno e normas administrativas.
REFERÊNCIAS
ABERS, R.; ALMEIDA, D. R. Participação No Século XXI : O Emba-
te Entre Projetos Políticos Nas Instituições Participativas Federais. In:
ARRETCHE, M.; MARQUES, E.; FARIA, C. A. P. (ed.). As políticas
da política: Desigualdades e inclusão nos governos do PSDB e do PT.
São Paulo: UNESP, 2019.
24 - A SPM hoje integra o Ministério da Mulher da Família e dos Direitos Humanos, cuja ministra é uma pastora
evangélica.
140
ALMEIDA, D. R. Resiliência Institucional: Para Onde Vai a Partici-
pação Nos Conselhos Nacionais de Saúde e Dos Direitos Da Mulher?
Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 1–24, 2020. Disponível em: https://
www.scielo.br/j/ccrh/a/NbMdN6FFVkzcsWWVhqfJGtr/?format=pd-
f&lang=pt. Acesso em: 12 dez. 2021.
141
BITTAR, J. (org.). O modo petista de governar. São Paulo: Camargo
Soares Ltda, 1992.
143
CNDH. Conselho Nacional dos Direitos Humanos. Relatório Colegia-
dos e Participação Social: Impactos do Decreto nº 9.759/2019. Brasí-
lia, DF: CNDH, 2019. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/
acesso-a-informacao/participacao-social/conselho-nacional-de-direitos-
-humanos-cndh/Relatrio_ColegiadoseParticipaoSocial_ImpactosdoDe-
creton9759_2019_05092019.pdf. Acesso em: 11 dez. 2021.
144
LAVALLE, A. G.; VOIGT, J.; SERAFIM, L. O que fazem os conselhos
e quando o fazem? Padrões decisórios e o debate dos efeitos das ins-
tituições participativas. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio
de Janeiro, v. 59, n. 3, p. 609-650, 2016. Disponível em: https://www.
scielo.br/j/dados/a/s3FgjNNsZ4kT8q4nvLVj8Bz/abstract/?lang=pt.
Acesso em: 12 jun. 2021.
146
A reforma da previdência
no governo Bolsonaro:
a capitalização como estratégia de
solidariedade
25
25 - O texto faz parte de um projeto mais amplo que acompanha debates públicos e desdobramentos das reformas da
previdência social desde os anos Cardoso (JARDIM, 2002; JARDIM, 2007; MAGNANI; JARDIM; JARD, 2020). O
objetivo desse texto é apresentar os primeiros resultados da pesquisa que trata da reforma da previdência proposta por
Michel Temer (2016-2018) e consolidada no governo de Jair Bolsonaro em 2019.
147
lismo e argumenta que as sociedades de auxílio mútuo prestavam socorro
aos trabalhadores afastados do processo produtivo, resultado de jornadas
excessivas e péssimas condições de trabalho, que levavam a doenças e
invalidez. Segundo a autora, a alta incidência de sociedades de socorro
mútuo, as quais ofereciam algum tipo de auxílio para os sócios impos-
sibilitados de trabalhar temporária e/ou definitivamente, reflete a situa-
ção de penúria e exploração a que estava submetida a classe trabalhadora
(LUCA, 1990).
Dentre as sociedades de auxílio mútuo, merecem destaque os mon-
tepios, os quais surgiram formalmente em 1795, quando operavam pla-
nos de aposentadoria, de pensão ou pecúlio, aberto a toda a população.
A primeira iniciativa do Estado na criação de montepios foi do príncipe
regente, D. João, que assinou o decreto autorizando a criação do Plano
de Benefício para os Órfãos e Viúvas dos Oficiais da Marinha, surgindo
pela primeira vez um montepio de iniciativa estatal no meio militar. Nessa
época, já era significativa a presença de montepios privados nesse meio
(JARDIM, 2002).
No Brasil, o fim das associações de auxílio mútuo ocorreu com
a Lei Eloy Chaves (1923), que criou as Caixas de Aposentadoria e Pen-
sões (CAPS) e constitui o primeiro grande marco da previdência social no
Brasil (LUCA, 1990). O Decreto nº 4.682 estipulou a criação obrigatória,
em cada companhia ferroviária do País, de uma caixa de aposentadorias e
pensões para os respectivos empregados das estradas de ferro, cuja Caixa
foi ampliada em 1926 para todas as categorias profissionais da Estiva e
Marítima (LUCA, 1990; OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986).
Os IAPS (Institutos de Aposentadoria e Pensão) foram criados a
partir de 1933, como resultado da política de Vargas, que buscava tanto
o apoio da classe trabalhadora, como reprimir as reivindicações do mo-
vimento operário. Os Institutos tinham um caráter mais abrangente que
as CAPs e eram organizados por categorias profissionais e não por em-
presas, como as CAPS. Sobre este assunto, Cohn (1980) afirma que com
a quebra do regime oligárquico e a presença cada vez mais marcante das
classes assalariadas urbanas no cenário político e econômico, a previdên-
cia social – até então deixada para o setor privado via contratos de seguro
empregado-empregador – passa a ser objeto de atenção do Estado (OLI-
VEIRA; TEIXEIRA, 1986).
Nesse contexto, Cohn (1980) afirma que a previdência social sur-
148
giu com um caráter duplo: como forma de atendimento às reivindicações
trabalhistas e como mecanismo de controle por parte do Estado e, inclusi-
ve, por parte dos sindicatos.
Durante a ditadura civil-militar, no ano de 1966, os IAPS e as
CAPs foram fundidos em uma só instituição (exceto o IPASE): o Instituto
Nacional de Previdência Social (INPS) (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986).
Na Constituição de 1988, a importância da previdência social foi refor-
çada quando inserida como parte do Sistema de Seguridade Social, que
pressupõe previdência, saúde e assistência social (JARDIM, 2002; JARD
DA SILVA, 2021).
No mesmo momento em que ganhava espaço na Constituição de
1988 no Brasil, se intensificaram narrativas públicas ao redor do mundo
sobre a falência dos sistemas previdenciários públicos e a ineficiência das
instituições do Estado de Bem-Estar Social, que deveriam ser substituídas
por modelos capitalizados. Essas narrativas foram reforçadas com a crise
econômica dos anos 1980 e sustentaram diversas reformas da previdência
social no Brasil (JARDIM, 2002; LEÃO, 2013), na América Latina e no
mundo, sendo que, na ocasião, a maioria desses países optaram pelo sis-
tema de capitalização (MARQUES, 1992; SAUVIAT, 2005; SKOCPOL,
1999).
No que se refere ao Brasil, houve sete reformas da previdência
social desde a Constituição de 1988. A primeira foi no governo Collor de
Mello, em 1990, quando houve a criação do Instituto Nacional do Seguro
Social (INSS) e a Instituição do Conselho Nacional de Seguridade Social
(CNSS) (MARQUES, 1992); em seguida, no governo de Itamar Franco,
em 1993, a reforma foi voltada para os trabalhadores do setor público. Na
ocasião, a matéria determinou que as pensões e aposentadorias dos servi-
dores públicos fossem custeadas pela União e pelos próprios servidores
(JARD DA SILVA, 2021). Em 1998, o presidente Cardoso mudou tanto
a aposentadoria do trabalhador do setor público quanto da iniciativa pri-
vada, alterando a fixação das idades mínimas para aposentar e inserindo
novo tempo de contribuição (JARDIM, 2002).
Nos governos Lula, duas reformas foram promovidas. A primeira,
de 2003, estabeleceu que as aposentadorias e pensões de servidores pú-
blicos seriam com base na média de todas as remunerações, além de ter
taxado os aposentados, que passaram a contribuir com 11% do salário.
Na reforma de 2003, foi concedido aos sindicatos e centrais sindicais o
149
direito de criar e de gerir fundos de pensão, que é um tipo de previdên-
cia complementar, e que movimenta, no Brasil, o equivalente à 20% do
Produto Interno Bruto (JARDIM, 2007; JARDIM, 2009). Na reforma de
2005, Lula beneficiou os trabalhadores de baixa renda, os quais foram en-
quadrados em um sistema de cobertura previdenciária com contribuições
e carências reduzidas, passando a ter direito a um salário-mínimo. Em
2012, durante o governo Dilma, as aposentadorias por invalidez no ser-
viço público foram alteradas. O cálculo passou a ser realizado com base
na média das remunerações do servidor e não com base na sua última re-
muneração. Em 2015, ainda durante o governo Dilma, a reforma ampliou
de 70 para 75 anos a idade estabelecida para aposentadoria compulsória
(LEÃO, 2013; JARD DA SILVA, 2021).
Essa breve apresentação tem como objetivo contextualizar que os
primeiros modelos previdenciários do Brasil se deram a partir do assis-
tencialismo e em seguida, das iniciativas privadas; e que a partir de 1923
a previdência social foi incorporada paulatinamente pelo Estado, que a
despeito de promover diversas reformas na previdência, sempre manteve
o princípio redistributivo como pilar da solidariedade intergeracional.
Diante disso, o objetivo do capítulo é contribuir na literatura sobre
reforma da previdência social, identificando as principais justificativas
que embasaram o projeto de reforma da previdência social apresentado
pelo governo de Jair Bolsonaro, em 2019. O objetivo geral é identifi-
car que tipo de solidariedade é oferecida pela proposta do governo. Nos-
sa metodologia foi a coleta de discursos proferidos por três importantes
agentes estatais envolvidos na temática (Paulo Guedes, Jair Bolsonaro e
Rogério Marinho). O material foi analisado a partir da análise de discurso
de Pierre Bourdieu (1989) e os dados foram tratados em diálogo com a
literatura que se dedica à previdência social no Brasil.
Os resultados da pesquisa indicam uma forte ênfase discursiva no
projeto de capitalização da previdência social, cuja capitalização não foi
apresentada como complementar, tal qual nos governos anteriores, mas
como modelo obrigatório. Nosso argumento é que todas as justificativas
acionadas pelos agentes estatais envolvidos na reforma da previdência de
2019 tiveram como objetivo aprovar a transição de um modelo de previ-
dência baseado na repartição, para um modelo de capitalização, chamada
pelo governo de A Nova Previdência.
Além dessa introdução e da conclusão, o capitulo é composto de
150
três sessões: na sessão seguinte, apresentamos uma visão geral da reforma
da previdência proposta pela equipe de Jair Bolsonaro; em seguida, apre-
sentamos discursos selecionados e finalmente temos uma sessão dedicada
às análises, quando pontuamos os limites e desvantagens da capitalização
da previdência social.
26 - Entretanto, durante a campanha eleitoral, então candidato à presidência, Bolsonaro afirmou que a proposta de
Temer e Meirelles era “um remendo novo em calça velha” e que dificilmente seria aprovada como se encontrava.
Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/faremos-nossa-reforma-da-previdencia-diz-bolsonaro/. Acesso em:
20 mar. 2022.
151
Rogério Marinho (Secretário de Previdência), Marcelo Guaranys 27 (Se-
28
cretário Executivo), Waldery Rodrigues Júnior (Secretário da Fazenda),
29
Adolfo Sachsida (Secretário de Política Econômica), e Mansueto Almei-
30
da (secretário do Tesouro Nacional).
O texto incorporou pontos centrais da reforma proposta pela gestão
Temer em 2017, como por exemplo, o aumento da idade mínima para apo-
sentadoria, tanto para homens quanto para mulheres. A reforma aprovada
em 13 de novembro de 2019 e que resultou na Emenda Constitucional nº
103 traz um conjunto de alterações, como a mudança do tempo mínimo
de contribuição, a criação de uma alíquota unificada de contribuição dos
servidores privados e públicos, seguindo o princípio do Imposto de Renda
e aumento da idade para aposentadoria para homens e mulheres.
Nossa metodologia foi baseada na coleta de discursos de três agen-
tes estatais, a saber: o presidente Jair Bolsonaro, o ministro da Economia,
Paulo Guedes e o secretário especial de Previdência e Trabalho do Minis-
tério da Economia, Rogério Marinho. Os discursos coletados foram pro-
nunciados em 2019, nos meses que antecederam a aprovação da reforma
da previdência e priorizamos discursos pronunciados em eventos oficiais,
tais como audiência pública, seminários da reforma da previdência, fórum
mundial e entrevistas concedidas pelos agentes sociais.
Esse material foi tratado a partir da análise de discurso de Pierre
Bourdieu (1989), para quem a interpretação dos discursos deve levar em
conta a trajetória de cada agente e suas disputas para impor uma definição
de mundo. O autor defende que semântica e política estão profundamente
imbricadas, principalmente, em virtude da disputa constante pela conquis-
ta da legitimidade de falar e agir, ou seja, “o que faz o poder das palavras
[...] é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia,
crença cuja produção não é da competência das palavras” (BOURDIEU,
1989, p. 15), mas dos capitais detidos pelos agentes sociais.
27 - Mestre em Direito Público pela Universidade de Brasília, UnB, Brasília 2002 - 2003 MBA em Direito Econômico
e das Empresas Fundação Getúlio Vargas, FGV, Brasília 1995 - 1999 Bacharel em Ciências Econômicas Universidade
Brasília, UnB, Brasília.
28 - Economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é graduado em engenharia pelo Instituto Tec-
nológico de Aeronáutica (1992) e mestre em economia pela University de Michigan e pela Universidade de Brasília
(UnB), além de doutor em Economia pela UnB.
29 - Doutor em economia pela Universidade de Brasília (UnB). Ele fez pós-doutorado com o professor Walter Enders
na University of Alabama, lecionou economia na University of Texas-Pan American e foi consultor do Banco Mundial
para Angola.
30 - graduado pela Universidade Federal do Ceará e possui Mestrado pela Universidade de São Paulo (USP). Cursou
o Doutorado em Políticas Públicas no MIT, Cambridge, no Massachusetts, mas não defendeu a tese. Consultor para o
então candidato à presidência Aécio Neves nas Eleições de 2014.
152
Nessa perspectiva, estaremos atentos a identificar quem fala, o que
fala, de onde fala e para quem fala, vinculando os discursos às crenças que
esses carregam e as condições sociais de produção do agente que detém
determinada “fala autorizada” (legítima). Por esse motivo, apresentamos
uma minibiografia dos agentes sociais destacados nessa pesquisa, mesmo
que em notas de rodapé, caso da equipe econômica de Paulo Guedes.
O presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, possui forma-
ção na área militar na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN),
concluída em 1977. Após percurso conturbado, ingressou na reserva em
1988 com o posto de capitão e iniciou sua trajetória política, marcada
principalmente por sua atuação como deputado federal de 1991 a 2019,
sendo filiado a diversos partidos nesse período. Durante toda sua trajetó-
ria, adotou posições estatizantes e pregou a intervenção do Estado, com
destaque para a defesa da ditadura militar no Brasil e suas ações econômi-
cas que culminaram no que se convencionou chamar “milagre brasileiro”
nos anos 1970. Em 1999, Bolsonaro chegou a defender publicamente o
fuzilamento do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) pelas
privatizações realizadas durante seu governo. Contudo, a partir de 2016,
quando anunciou a intenção de se candidatar a presidente de 2018, pas-
sou a defender a necessidade de enxugar a máquina pública e de tornar o
Estado-mínimo; a capitalização da previdência entraria nessa narrativa.
Paulo Roberto Nunes Guedes é formado em economia pela Uni-
versidade Federal de Minas Gerais (UFMG), cursou seu mestrado na área
pela Faculdade Getúlio Vargas – FGV (1977) e, em seguida, realizou o
doutorado na University of Chicago (1978) nos Estados Unidos, sendo
essa instituição conhecida na literatura por formar economistas com po-
sicionamentos mais ortodoxos, ou melhor, monetaristas (DUTRA, 2016;
JARDIM; MOURA, 2021; LOUREIRO, 1997). Também atuou como do-
cente, em regime de dedicação parcial, na Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), na FGV e no Instituto de Matemáti-
ca Pura e Aplicada (IMPA). Em 1983, foi um dos quatro fundadores do
Banco Pactual – atual BTG Pactual e, ao largo de sua trajetória, de vários
fundos de investimentos e empresas, bem como do Instituto Brasileiro de
Mercado de Capitais (Ibmec) e do think tank liberal, Instituto Millenium.
Na campanha das eleições 2018, foi apresentado como “Posto Ipiranga”
de Bolsonaro, como seu guru econômico com propostas de privatizações
e reformas “radicais”.
153
Secretário especial de Previdência Social indicado por Paulo Gue-
des com intuito de ajudar na aprovação da reforma da previdência, Rogé-
rio Simonetti Marinho graduou-se em Ciências Econômicas pela Facul-
dade Unificada para o Ensino das Ciências (UNIPEC), atual Universidade
Potiguar (UnP). Trabalhou entre 1987 e 1989 como professor da rede es-
tadual de ensino do Rio Grande do Norte. Foi secretário de Planejamento
da Prefeitura de Natal, vereador e presidente da Câmara Municipal de Na-
tal, e secretário estadual de Desenvolvimento Econômico do Rio Grande
do Norte. Foi eleito deputado federal por duas vezes. Em 2017, foi relator
da reforma trabalhista na Câmara dos Deputados.
Após uma primeira análise flutuante de todo o material coletado,
identificamos os principais temas abordados pelos agentes na defesa da
reforma da previdência, que estão expostos, a seguir, em eixos temáticos:
crise da previdência, excesso de gasto público e necessidade de reforma
fiscal; ineficiência do Estado: a urgência da reforma do Estado; reforma
da previdência como crescimento econômico; separação entre previdên-
cia social e assistência social; Disputa geracional: a guerra entre jovens e
velhos; e finalmente, a preponderância do mercado na previdência: capi-
talização versus repartição.
154
Os discursos vinculados colocam em questionamento a legalidade
da Seguridade Social, instituída pela Constituição de 1988 e falam, inclu-
sive, em separar a previdência social da assistência social.31
Agente Discurso
social
Nós vamos ter que separar assistência de Previdência. Tudo isso está sendo
Paulo equacionado, não é por mim, tem gente trabalhando nisso há anos, os melhores
especialistas estão trabalhando há anos. Nós não vamos reinventar a roda, o
Guedes que estamos fazendo é botar tudo isso junto e preparar isso para submissão
futura ao Congresso (Posse em 01/01/2019).
Agente Discurso
social
Paulo A dimensão fiscal foi sempre o calcanhar de Aquiles de todas as nossas tenta-
Guedes tivas de estabilização. O descontrole sobre a expansão de gastos públicos é o
mal maior (Posse em 01/01/2019).
Isso [o dito déficit da previdência] é uma ameaça, é um buraco fiscal que ameaça
engolir o Brasil e precisa ser atacado frontalmente. [...] O movimento em direção
Paulo à nova Previdência é para garantir o pagamento de aposentadorias, benefícios
e da assistência social. Se não fizermos nada, não há garantia de que esses
Guedes pagamentos poderão ser feitos, como vários Estados já estão experimentando
(Em Audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania
em 3 de abril de 2019).
Agente Discurso
social
Precisamos recuperar as finanças públicas do Brasil. O país investe hoje 64%
Rogério em Previdência e Assistência. O ajuste fiscal proporcionado pela reforma da
Previdência será a última janela de oportunidade que teremos (Em Seminário
Marinho sobre a Nova Economia Liberal, na Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Rio de
Janeiro (RJ) em 15/03/2019)
31 - Para o argumento de que a previdência social possui superávit e não está em crise, ver a conhecida tese de douto-
ramento de Gentil (2006).
155
social tem aparecido como justificativa para reformas ao redor do mun-
do, em diálogo com as propostas do Banco Mundial (JARD DA SILVA,
2021). O argumento da existência de um déficit e até mesmo da falência
do sistema público de previdência faz parte da construção discursiva que
defende a transição para um sistema de capitalização.
Contudo, é importante destacar que na reforma de 2019, a narra-
tiva da crise financeira da previdência ganhou mais potencial do que o
previsto nas campanhas governamentais anteriores, pois foi alimentada
pelo decréscimo sobre a folha de pagamento decorrente do crescimento
do trabalho informal e do desemprego que reduziu a contribuição social
para a seguridade social; da flexibilização das leis do trabalho e do dis-
curso dos empresários sobre os excessos de direitos dos trabalhadores
que elevam os custos e suas reivindicações pela flexibilização nos direitos
trabalhistas, que teria sido concretizada com a “Carteira Verde e Amare-
la” do governo Bolsonaro. Os argumentos dos agentes estatais defendem
maior flexibilização dos direitos trabalhistas, como tem apontado Lima
(2021) em seus estudos sobre emprego e mercado de trabalho.
Nesse primeiro eixo temático, notamos que o debate teve como
fio condutor uma lógica estritamente contábil, que se resume a busca do
equilíbrio entre receitas e despesas da previdência, sem considerar as con-
tribuições que servem para financiar a Previdência Social e os empregos
regionais que a previdência social gera (CAETANO, 2008). As justifi-
cativas produzidas sobre a crise da previdência estão embasadas em um
discurso econômico, sustentado na ideia de ajuste fiscal de longo prazo e
ignorando o papel de inclusão social da previdência.
156
Agente Discurso
social
Paulo O Brasil foi corrompido pelo excesso de gastos e o Brasil parou de crescer pelo
Guedes excesso de gastos. A reforma do Estado é, portanto, a chave para correção des-
se fenômeno. E essa reforma do Estado, na verdade, tem várias dimensões. É o
primeiro é ataque ao problema fiscal (Posse em 01/01/2019).
157
Agente Discurso
social
Paulo [...] a nova Previdência, que nós chamamos de um sistema de poupança garanti-
Guedes da, é um sistema que vai democratizar a poupança, vai permitir que o País cres-
ça mais rápido, vai gerar mais empregos e, no futuro, pode perfeitamente ter a
garantia de salário-mínimo, independente da acumulação (Em Audiência pública
na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania em 3 de abril de 2019).
Paulo Se nós aprovarmos a Previdência, pode ter certeza, recursos de fora e de dentro
Guedes do País voltarão para o mercado, para todas as áreas que nós precisamos, o
emprego aparecerá automaticamente (Entrevista coletiva após Solenidade Mili-
tar de Formatura de Sargentos da Aeronáutica - Guaratinguetá/SP, 19 de junho
de 2019).
158
A disputa entre “passado” e “presente” é explicitada em diversas
ocasiões, visando justificar a substituição do modelo de repartição da pre-
vidência social, por um modelo de capitalização.
Agente Discurso
social
Paulo No ano passado, nós gastamos 700 bilhões de reais com a Previdência, que é o
Guedes passado, são os nossos idosos, e gastamos 70 milhões de reais com a educa-
ção, que é o nosso futuro. Então nós gastamos 10 vezes mais com a Previdência
do que com a educação, que é o futuro (Em Audiência pública na Comissão de
Constituição e Justiça e de Cidadania em 3/04/2019).
Rogério Despendemos dez vezes mais com o passado do que com o futuro. Quando a
Marinho despesa com a Previdência aumenta, o orçamento é comprimido, e isso diminui
a capacidade de o Estado investir em saúde, educação e infraestrutura (Em Au-
diência da Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público da Câmara
dos Deputados em 16/02/2019).
Agente Discurso
social
Financiar aposentadoria do trabalhador idoso desempregando trabalhadores é,
na minha opinião, uma forma perversa de financiar o sistema. Cobrar encargos
trabalhistas sobre a mão de obra, sobre a folha de pagamentos, é, do ponto de
vista social, uma condenação. O sistema é perverso, pois 40 milhões de brasilei-
ros estão excluídos do mercado formal de trabalho. Eles não conseguem ter ca-
pital, eles não conseguem ter tecnologia, eles não conseguem ter produtividade
mais alta, porque foram expulsos, excluídos do mercado formal de trabalho pela
Paulo forma perversa como o sistema é financiado. Está-se botando um trabalhador
Guedes desempregado para financiar a aposentadoria do outro. Isso é socialmente per-
verso. São bombas de destruição em massa de empregos. Milhões de brasilei-
ros estão desempregados por causa de um financiamento perverso. Então, eu
não vejo com olhar tão doce e gentil o sistema previdenciário atual, porque ele é
perverso, 40 milhões de brasileiros são excluídos. E eles envelhecerão, e o sis-
tema está quebrado. Eles não conseguem contribuir para a Previdência porque
estão desempregados e, ao mesmo tempo, pesarão no futuro da Previdência.
Essa condenação é inequívoca. O sistema é ruim, o sistema é perverso (Em Au-
diência na comissão especial da reforma da previdência em 8 de maio de 2019).
32 - Dos 30 países que tentaram capitalização, 18 voltaram atrás, sendo eles: Argentina, Equador, Bolívia, Venezuela,
Nicarágua, Bulgária, Cazaquistão, Croácia, Eslováquia, Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia, Macedônia, Polônia,
República Tcheca, Romênia e Rússia.
164
dade salarial” (CASTEL, 2003), a previdência capitalizada traz um pro-
blema financeiro na sua transição, uma vez que o Estado é que deverá
financiar a aposentadoria da geração que hoje financia a aposentadoria
de um aposentado; mas que sem a contribuição dos novos ingressantes
(que passarão a fazer um fundo próprio) ficarão sem aposentadoria. Em
nenhum momento os agentes estatais explicitaram essa tensão.
Por outro lado, a solidariedade via sistema de capitalização é aquela
na qual cada geração e cada trabalhador constitui as reservas para suportar
seus próprios benefícios. A lógica consiste que o próprio trabalhador, du-
rante a sua fase ativa, deva gerar o montante de recursos necessários para
suportar o custo dos benefícios da sua aposentadoria. Essa solidariedade
reforça a ideia de que o indivíduo é autossuficiente e não precisa contri-
buir com a sociedade e nem precisa dela. Nesse modelo está presente a
ideia de auto empreendedorismo e de individualismo, que Castel chama
de “individualismo negativo” (CASTEL, 2003), uma vez que essa visão
individualista não está sustentada no coletivo.
Além de romper com a solidariedade intergeracional, o modelo de
previdência capitalizada proposto por Bolsonaro, tem o risco das flutua-
ções do mercado financeiro, o que pode levar à falência das poupanças de
previdência privada aberta (planos individuais vendidos nos bancos) ou
fechadas (fundos de pensão), como aconteceu com os fundos de pensão
nos anos 1970 (JARDIM, 2002) e o fundo de pensão da empresa Vasp
nos anos 2000 (JARDIM, 2007). Trata-se de um risco permanente com as
poupanças individuais dos trabalhadores.
Dentre os inúmeros problemas desse modelo, chamamos a atenção
para a dificuldade dos trabalhadores em constituir o fundo para a sua apo-
sentadoria, devido ao desemprego e aos baixos salários. Trata-se de uma
lógica individualizante da solidariedade, vigente em um modelo econô-
mico fundado no ultraliberalismo, que está no contraponto da solidarieda-
de da “sociedade salarial” (CASTEL, 2003). Sobre esse assunto, Garcia-
-Parpet e Afonso (2021), afirma:
A economia neoliberal transfere ao indivíduo a inteira
responsabilidade dessa gestão, sem se interrogar sobre os
recursos cognitivos e materiais que essa mudança nos modos
de planejamento da existência implica necessariamente.
Irregularidade dos rendimentos auferidos, falta de
competência em atividades financeiras, falta de confiança nas
165
instituições econômicas e jurídicas, assim como uma relação
com o trabalho que tende a ignorar a fase do envelhecimento,
contribuem fortemente para um adiamento, ou negação
completa, desse planejamento necessário (GARCIA-
PARPET; AFONSO, 2021, p. 16).
33 - “Chicago oldies” é referência pitoresca que o ministro recorre em relação ao termo “Chicago boys”, economistas
então recém-formados na instituição americana que atuaram no Chile de Pinochet. Diferentemente daqueles, Guedes e
sua equipe concluíram seu doutorado há algumas décadas, motivo da adaptação para “oldies”.
166
Nesse contexto, se faz compreensível a posição de Marinho ao ocu-
par o cargo na pasta da Previdência, com formação em também economia
ainda que em instituição não dominante, o agente tem como marcador a
experiencia no campo político (o contrário do ministro), tendo tido pro-
tagonismo nos anos 2010 como, relator em diversos projetos de reformas
econômicas, como da comissão especial que analisou a modernização das
leis trabalhistas no Brasil. Além disso, atuou na coordenação da bancada
do PSDB na Comissão de Educação da Câmara, sendo um dos principais
defensores da reforma do Ensino Médio e do projeto Escola Sem Partido;
votou favoravelmente ao impeachment de Dilma Rousseff, a PEC do Teto
dos Gastos Públicos e a Reforma Trabalhista, sendo um de seus maiores
articuladores para aprovação no Congresso.
Já o caso do presidente Jair Bolsonaro é bastante interessante: pro-
fissional da carreira militar, sempre assumiu uma posição de viés esta-
tizante durante toda sua trajetória da vida pública. Contudo, diante da
entrada no jogo político com vistas a ocupar presidência da República e
do fato de não ser detentor do “savoir à faire” dos economistas, passou a
argumentar que suas decisões seriam baseadas nos conselhos dados pe-
los técnicos, no caso, o ministro Paulo Guedes (denominado durante a
campanha como seu “posto Ipiranga”, fiador da economia) e sua equipe,
além de defender como programa de governo a redução dos gastos do
Estado, privatizações e reformas profundas no setor público. Durante a
cerimônia de Abertura do 29º Congresso e ExpoFenabrave em São Paulo
em 06 de agosto de 2019, Bolsonaro abordaria essa questão sobre sua vi-
são de mundo, argumentando que o trabalho realizado por Paulo Guedes
demonstrava ao Brasil que ele tinha “mudado também”, já que no passado
“era estatizante, sendo muito acusado disso”, contudo, diante das críticas,
justifica que a mudança de visão se dava, pois “o homem evolui”, no seu
caso, “aprendendo muito, com as pessoas que tenho ao meu lado”, como
Paulo Guedes.
Apesar do engajamento da equipe de Bolsonaro para a aprovação
da previdência privada como obrigatória, o projeto de capitalização não
foi aprovado pela maioria do Congresso. Na ocasião, o relator da reforma
da Previdência, deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), afirmou que um
sistema de capitalização para as aposentadorias “não para em pé” com
uma contribuição apenas do trabalhador.
167
Além disso, o relator pontuou um argumento financeiro, que já si-
nalizamos no decorrer do texto e para o qual a equipe de Bolsonaro se
manteve em silencio durante toda a campanha para a reforma da previ-
dência, a saber: “Esse é um dos pontos mais polêmicos da proposta, de-
vido, por exemplo, ao alto custo de transição de um sistema para outro (a
necessidade de financiamento do regime de repartição quando este ainda
estivesse pagando aposentadorias, mas os novos trabalhadores não esti-
vessem mais contribuindo para ele, mas para as contas individuais) e a
não previsão de uma contribuição patronal”.
Conclusão
O capítulo buscou compreender o fio condutor da reforma da pre-
vidência apresentada pela equipe de Jair Bolsonaro, por meio da análise
de discurso dos principais agentes sociais engajados. Nosso objetivo foi
entender que tipo de solidariedade é oferecida pela proposta do governo.
Após coleta e análise dos dados, indicamos que a maior parte dos
discursos distribuídos pelos agentes estatais na campanha pela reforma da
previdência, abordam as desvantagens da previdência social, vista como
ineficaz, idealizada ou responsável pelo desemprego e falência do Estado.
No conjunto dos discursos, houve a predominância de determinado ethos
econômico nos argumentos da reforma, como por exemplo, o de ajuste
fiscal a longo prazo, o que justificaria a revisão do atual modelo de pre-
vidência.
Pontuamos que estigmatizar a previdência social como uma insti-
tuição falida é uma estratégia comum na produção narrativa dos governos
em contexto de campanha para reforma da previdência, independente do
partido político que está no poder. Contudo, destacamos a novidade dis-
cursiva da proposta do governo Bolsonaro, que dá ênfase na guerra gera-
cional entre velhos e jovens, explicitada na disputa por investimento em
aposentadoria ou educação, assim como na implantação de um modelo
obrigatório de previdência capitalizada. Lembramos, ainda, que durante
toda a história da previdência social, foi a primeira vez que o modelo
capitalizante apareceu como obrigatório em um projeto de reforma e não
como complementar e facultativo, o que é possível juridicamente desde
1977.
168
Ao relacionar os discursos produzidos com a trajetória social dos
agentes, pontuamos uma sensibilidade para o credo neoliberal ou ultrali-
beral da equipe de Bolsonaro, devido a trajetória acadêmica ou política
dos agentes, sendo o caso tipo ideal de Paulo Guedes, que fez parte da
geração chamada Chicago Boys, economistas formados pela Universida-
de de Chicago e entusiastas da presença mínima do Estado na economia.
Foi orientado por Larry Sjaastad, herdeiro das ideias de Milton Friedman,
um monetarista reconhecido pela literatura por seus posicionamentos ul-
traliberais.
Ao final do capítulo, pontuamos as consequências sociais da alte-
ração de um modelo de previdência de solidariedade redistributiva para
solidariedade individualizante, retomando os casos de países que fizeram
essa transição no passado e que na segunda década do século XXI, bus-
cam rever essa mudança na solidariedade intergeracional, pois a capitali-
zação da previdência teria gerado aumento de depressão, de miséria e de
suicídio entre os idosos.
REFERÊNCIAS
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lho”, gestão individual do ciclo de vida e previsibilidade sobre o futu-
ro. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, 20., 2021,
Belém. Anais [...]. Belém, PA: SBS, 2021.
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CASTEL, R. L’insécurité sociale: Qu’est-ce qu’être protégé? Paris:
Seuil, 2003.
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JARDIM, M. A. C. O mercado das previdências: Fatores sociocultu-
rais na criação de mercado. 2002. Dissertação (Mestrado em Engenha-
ria de Produção) – Universidade Federal de São Carlos, 2002.
171
SAUVIAT, C. Os fundos de pensão e os fundos mútuos: Principais
atores da finança mundializada e do novo poder acionário. In: CHES-
NAIS, F. (org.). A finança mundializada. São Paulo: Boitempo Edito-
rial, 2005.
172
O isolamento da Política Externa
Brasileira durante o Governo
Bolsonaro em três eixos
34 - Levantamento realizado na lista de notas de imprensa do Ministério das Relações Exteriores em 10/03/2022.
Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa?b_start:int=690. Acesso
em: 16 abr. 2021.
183
sistema internacional e a aproximação selecionada a governos de inclina-
ção ideológica comum, independente do peso do relacionamento desses
países na balança comercial brasileira. Ao passo que laços profundos fo-
ram buscados com os Estados Unidos de Trump, a política externa con-
duzida por Araújo foi duramente criticada pelo parlamento brasileiro e
pela opinião pública pelas duras críticas feitas à China, principal parceiro
comercial do Brasil (ZARUR, 2021). Com relação ao sistema multilate-
ral e organizações internacionais, duras críticas foram feitas ao longo da
administração Bolsonaro ao papel ‘totalitário’ da ONU (BRASIL, 2020)
e às medidas restritivas adotadas no contexto da pandemia (PODER 360,
2021). Ainda sobre a pandemia, ao alinhar-se à posição adotada por ou-
tros líderes de extrema direita do mundo e apoiar enquanto foi possível o
uso de hidroxicloroquina para o tratamento de COVID-19 apesar dos seus
resultados controversos, o governo brasileiro buscou em outra frente se
posicionar contra o posicionamento da comunidade científica internacio-
nal (CASARÕES; MAGALHÃES, 2020).
A natureza personalista do relacionamento estabelecido pelo go-
verno Bolsonaro com os líderes desses países tem tornado efêmeras as
relações bilaterais brasileiras, as quais têm sido significativamente im-
pactadas por mudanças político-eleitorais nesses países. O caso mais em-
blemático nesse sentido tem sido a relação entre Brasil e Estados Unidos
durante o governo Bolsonaro. A aproximação estreita construída entre
Bolsonaro e Trump, que acarretou em referências mútuas a uma Alian-
ça Estratégica (U.S. MISSION BRAZIL, 2020) e assinatura de acordos
comerciais entre os dois países (SANCHES, 2020) foi praticamente de-
sestruturada com a vitória eleitoral de Joe Biden e o claro afastamento e
críticas da nova administração norte-americana com relação ao Brasil, es-
pecialmente no que diz respeito a temas ambientais. Outros exemplos que
corroboram esse traço é o arrefecimento de relações com Israel e a Itália
após a saída de Netanyahu e Salvini de seus governos, respectivamente.
Embora seja possível argumentar que esse relacionamento interpessoal
entre líderes mundiais possa favorecer a criação de laços profundos entre
lideranças de grande afinidade ideológica e visão de mundo, esse mesmo
caráter interpessoal nas relações entre nações produz como consequência
a falta de construção de compromissos e relacionamentos de longo prazo,
que tendem a perder fôlego ou esvaziar-se com a mudança política em um
dos países, traço que tem sido visto nas relações diplomáticas construídas
pelo governo Bolsonaro sobre esses termos.
184
Conclusão
O presente capítulo buscou brevemente explorar três aspectos mar-
cantes da política externa Bolsonarista que destoam das posições adotadas
em governos anteriores e dos valores de política externa, historicamente
defendidos pelo Itamaraty: 1) a internacionalmente criticada agenda am-
biental adotada pelo novo governo, 2) a difícil relação estabelecida com
os entes federativos, principalmente os governos estaduais no combate à
pandemia e 3) a aproximação a líderes conservadores e de extrema-direita
ao redor do mundo. Ao discutir em que medida o governo Bolsonaro ge-
rou transformações significativas e problemáticas nessas três frentes, bus-
camos dialogar com as reflexões apresentadas pelos participantes do ca-
nal Ciências Sociais em Diálogo da UNESP, esclarecer as características e
interesses por trás dessas agendas e discutir quais têm sido as implicações
dessas decisões para a imagem internacional e doméstica do Brasil.
A destruição da governança ambiental e o isolamento internacional
imposto pelo governo Bolsonaro está gerando efeitos em diversas áreas:
mercados reduzidos para produtos agrícolas, especialmente na Europa;
redução do investimento estrangeiro no país, devido ao crescente inte-
resse dos investidores em países e empresas amigas do ambiente; corte
total de doações de combate ao desmatamento, como aconteceu no Fundo
Amazônia; distanciamento e enfraquecimento do papel brasileiro na go-
vernança da região da Amazônia. O caminho que o Brasil vem adotando
consagrará o país cada vez mais ao isolacionismo internacional com re-
sultados dramáticos à agenda ambiental.
Portanto, a agenda de preservação ambiental pode ser um grande
trunfo para a política externa brasileira no marco das eleições de 2022.
A pressão do sistema internacional e das questões econômicas poderia
impulsionar o Brasil para uma nova guinada em relação à agenda do de-
senvolvimento sustentável. O país tem plenas condições de resgatar o seu
papel de liderança em termos de conservação ambiental e uso sustentável
dos recursos naturais. Se uma agenda mínima fosse seguida, o Brasil po-
deria aliviar a pressão internacional e ganharia força para continuar com a
agenda de atração e expansão de investimentos na região.
Em segundo lugar, a conjuntura marcada por uma oposição políti-
ca e partidária entre a Presidência da República e vários governos estadu-
ais já denota novos rumos na paradiplomacia brasileira. Se, de um lado,
185
o país perde prestígio internacional e aumenta o seu isolacionismo, de
outro, lideranças subnacionais acabam suprindo o vácuo político deixado
pela esfera federal. Nacionalmente, não podemos esquecer que diversos
nomes nessa seara, incluindo os governadores previamente mencionados,
são figuras públicas muito conhecidas que possivelmente impactarão fu-
turas eleições brasileiras.
Por fim, uma outra marca da agenda internacional do governo Bol-
sonaro, sua aproximação a lideranças da direita radical ao redor do mun-
do, poderá ser um ponto a se problematizar no pleito de outubro de 2022.
Enquanto uma mudança de governo tenderia a uma revisão substancial
nesses laços interpessoais promovidos por Bolsonaro com países iliberais
e autoritários, uma reeleição do atual governo poderia servir de modelo
para outras lideranças extremistas ao redor do mundo, particularmente na
América Latina, nos anos seguintes.
REFERÊNCIAS
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vernança ambiental no Brasil: Acelerando em direção aos objetivos de
desenvolvimento sustentável ou olhando pelo retrovisor? Cadernos
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jo-propoe-limitar-escolha-para-o-stf/. Acesso em: 18 nov. 2021.
189
STUENKEL, O. Desmonte do Itamaraty abre brecha para projeção
internacional de governadores e prefeitos. El País, 08 fev. 2021. Dispo-
nível em: https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-02-08/desmonte-do-i-
tamaraty-abre-brecha-para-projecao-internacional-de-governadores-e-
-prefeitos.html. Acesso em: 11 nov. 2021.
190
Códigos Eleitorais brasileiros:
continuidades, mudanças e o 35
papel do Tribunal Superior Eleitoral
35 - Este trabalho é parte do projeto de pesquisa avaliando a qualidade da democracia em países da América Latina
(II), apoiado pela bolsa produtividade do CNPq.
36 - Ainda no Brasil Império, a Constituição de 1824, outorgada pelo Imperador D. Pedro I, determinava a realização
de eleições primárias (nas quais eram escolhidos aqueles que votariam nos deputados e senadores) para a escolha de
representantes dos poderes legislativo e executivo. Para essa etapa de participação eleitoral, consideravam-se eleitores
aptos apenas os cidadãos livres, do sexo masculino, com no mínimo 25 anos de idade e com renda anual de mais de
100 mil réis. Na etapa posterior, exigia-se renda mínima de 200 mil réis para qualificação à categoria conhecida como
eleitor de segundo grau. Ou seja, aquele limitado grupo de cidadãos que poderiam votar diretamente nos deputados
e senadores no período datado entre 1822 e 1889, no país. O período também foi marcado por inúmeras inovações e
alterações na legislação eleitoral orientadas para garantir maiorias ao partido de posição.
191
curso de criação e de desenvolvimento dos códigos eleitorais brasileiros,
em período quase centenário. Para dar conta deste propósito, na próxima
seção realizamos uma breve análise histórico exploratória, transitando
pelos respectivos códigos eleitorais brasileiros, tendo por base a noção
canônica segundo a qual um código eleitoral é o conjunto de normas le-
gislativas que rege o processo de eleição para cargos políticos. Na seção
seguinte, examinamos brevemente os códigos eleitorais de 1932, 1945 e
1965 criados nos noventa anos de história político-eleitoral brasileira. Na
seção três, avaliamos o papel do Tribunal Superior Eleitoral, como máxi-
ma instância superior sobre o tema, criado pelo Decreto n° 21.076/1932,
(BRASIL, 1932) na ocasião ainda nomeado como Tribunal Superior de
Justiça Eleitoral e que foi instalado em 20 de maio do mesmo ano, ainda
com Sede no Rio de Janeiro/RJ. Na quarta e última seção, tecemos as
considerações finais em torno dos temas.
Continuidades e mudanças
nos Códigos Eleitorais brasileiros
Há 90 anos foi criado o primeiro Código Eleitoral (CE) brasileiro.
Datado de 24 de fevereiro de 1932, este Código foi resultado direto da
luta travada pelos defensores da modernização do sistema eleitoral para o
fortalecimento da democracia, segundo alguns analistas, mas para outros,
foi um meio utilizado pelo presidente Getúlio Vargas para assegurar-se no
poder.37
De acordo com Zulini e Ricci (2020), o Código Eleitoral de 1932
(CE32) surgiu com um duplo objetivo. Primeiro, com a finalidade de or-
ganizar, dar transparência e coordenar as eleições, e assim, responder a
uma parte da população que ansiava por uma democracia política mais
condizente com a República. Ao mesmo tempo, Vargas buscava opera-
cionalizar um dos propósitos da revolução de 1930, pelo menos na forma
retórica, que era justamente moralizar e modernizar o sistema eleitoral,
reduzindo as denúncias de fraudes, que se repetiam desde os tempos do
37 - Para um sofisticado aprofundamento em tornos dos debates sobre o tema, durante os anos Vargas, ver: “Voto,
verdade e representação: reconstruindo os debates do Código Eleitoral de 1932”, dissertação de mestrado, de autoria
de Hannah Maruci Aflalo, FFLCH/USP, 2017.
192
Império. Sobre o tema, há vasta literatura com relatos sobre o “voto de
cabresto”, mecanismo de acesso aos cargos eletivos por meio da compra
de votos com a utilização da máquina pública, abuso de poder econômico
ou compra direta de votos, como características de pleitos no interior do
Brasil como identificador de certo tipo de coronelismo. Em uma segunda
perspectiva, ainda de acordo com esses mesmos autores, a aprovação do
CE32, representou o resultado de um projeto político institucional mais
amplo que visava à legitimação da Revolução de 1930 pela via da inova-
ção institucional.
Este arcabouço legal, seria, então, o resultado de um momento pe-
culiar em que o novo regime e, em particular, o Governo Provisório Var-
guista, também buscava se legitimar internamente. De acordo com Aflalo,
(2017, p. 118-119)
194
Cronologia da criação dos Códigos Eleitorais e
legislação complementar no Brasil – antes de 1988
1946 – Nova Constituição, consagra a Justiça Eleitoral como um órgão do Poder Judiciário.
1950 – Lei nº 1.164 dedica capítulo para regulamentar propaganda partidária, prevê ações anti-
fraudes, cria cédula única de votação e mantém o eleitor na mesma seção eleitoral.
1955 – Lei nº 2.582 institui cédula única de votação para presidente e vice-presidente da Repú-
blica. Até 1950, as cédulas eleitorais eram impressas e distribuídas pelos próprios candidatos.
1962 – Lei nº 4.109 cria cédula oficial para todas as eleições. Desde a Lei nº 4.737/1965 (CE65),
cédulas eleitorais são confeccionadas e distribuídas, exclusivamente, pela Justiça Eleitoral.
1965 – Criação do terceiro Código Eleitoral editado e vigente: com 383 artigos, tem volume mais
do que o dobro do primeiro regramento, que tinha 144 artigos.
De 1964 a 1985 – Regime militar. Sucessão de atos institucionais (AI 1 a AI 17, entre 1964 e 1969)
com os quais o regime conduziu o processo eleitoral. Mudanças constantes, alteração da dura-
ção dos mandatos e instituição de eleições indiretas para presidente da República, governadores
e prefeitos de cidades consideradas estratégicas, os chamadas “cargos biônicos”.
1985 – Redemocratização do país, Emenda Constitucional nº 25/1985 restabelece eleições diretas
para presidente e vice-presidente da República.
204
de origem, mas também na edificação de um ordenamento imbuído por
um senso de justiça que reproduza o querer coletivo: uma Justiça Eleitoral
em que se produzam diplomas cada vez mais inclusivos e moralizadores.
Desse modo, o Tribunal Superior Eleitoral cumpre seu papel institucional
de guardião do processo eleitoral enquanto promove por meio do pleno
exercício das suas funções, uma sequência robusta de eleições fidedignas,
limpas, respeitadoras das vontades dos eleitorados e que tenham no forta-
lecimento da democracia seu principal fundamento.
Conclusão
Passados 90 anos do nosso primeiro Código Eleitoral, seguido por
mais dois códigos, 1945 e 1965, um novo código está sendo gestado no
Congresso Nacional. Visando avaliar continuidades e mudanças nesses
códigos, este capítulo examinou normas e dispositivos que nortearam a
construção da cidadania política, por um lado, e regraram a competição
política, por outro lado; bem como examinou qual tem sido o papel da
Justiça Eleitoral no percurso dos processos eleitorais.
Verificamos que dispositivos como o voto secreto, voto obrigató-
rio, sistema proporcional e o aparato da justiça eleitoral desenvolvidos no
CE32 permanecem constante ao longo da história política brasileira. Mas
no que tange ao voto feminino, aos tipos de financiamento da política e
grau de autonomia dos partidos, bem como aos mecanismos de votação
observamos consideráveis mudanças quando comparamos os três códigos
eleitorais e a legislação complementar instituída após a constituição de
1988. Alterações que, se de um lado, foram no sentido da ampliação nu-
mérica do eleitorado nacional, tornando a participação política para além
da cidadania regulada (SANTOS, 1987); ao mesmo tempo tiveram como
consequência o aumento da autonomia do funcionamento das organiza-
ções partidárias, por outro lado.
Quanto ao papel do Tribunal Superior Eleitoral notamos crescente
aumento de seu protagonismo no processo eleitoral, seja modernizando e
informatizando sua estrutura técnica e administrativa, resultando em pro-
cessamento e sistematização cada vez mais segura e eficiente das infor-
mações das eleições; seja intervindo na elaboração de leis quando consul-
205
tado pelos atores partidários e sociais. Esse ativismo da justiça eleitoral é
um traço marcante dessa última quadra democrática.
REFERÊNCIAS
AFLALO, H. M. Voto, verdade e representação: Reconstruindo os
debates do Código Eleitoral de 1932. 2017. Dissertação (Mestrado em
Ciência Política) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: https://
teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-26062018-115055/pt-br.php.
Acesso em: 15 abr. 2022.
206
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Brasília, DF: Assembleia Nacional, 1988. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 15
abr. 2022.
207
SANTOS, W. G. Cidadania e Justiça. Rio de Janeiro: Ed. Campus,
1987.
208
O Supremo Tribunal Federal e
a questão do Poder Moderador 39
na atualidade
39 - Salvo atualizações e acréscimos, partes deste capítulo foram publicadas na revista Em Tese (UFSC - Florianópo-
lis). Na ocasião, o artigo apresentou o seguinte título: Reflexões sobre o Poder Moderador nas instituições políticas
brasileiras: o pretérito e o presente, v. 15, p. 10-32, 2018.
40 - O barão de Montesquieu firmou a sua concepção de Poder Moderador no Capítulo VI (Da constituição da Ingla-
terra) que compõe Livro XI (Das leis que formam a liberdade política em sua relação com a constituição) (MONTES-
QUIEU, 2000).
41 - “Dos três poderes dos quais falamos, o de julgar é, de alguma forma, nulo. Só sobram dois; e, como precisam de
um poder regulador para moderá-los, a parte do corpo legislativo que é composta por nobres é muito adequada para
produzir este efeito” (MONTESQUIEU, 2000, p. 75).
209
institucional e político do moderno Estado francês com a finalidade de
obstaculizar a restauração da monarquia absolutista do Antigo Regime.
As proposições dos monarquistas constitucionais saíram enfra-
quecidas do debate. Não obstante, um dos seus correligionários - Jac-
ques-Henri Bernardin de Saint-Pierre (1737-1814) - cunhou pela primeira
vez a expressão Poder Moderador, orientando o conde de Clermont-To-
nerre a publicar Analyse raisonnée de la Constituition Française (1791),
onde descrevia as funções constitucionais do Poder Moderador (LYNCH,
2011).
Ulteriormente, as atribuições constitucionais do Poder Moderador
foram detalhadas teoricamente no quadro de uma Monarquia Constitu-
cional Parlamentar com a divulgação em 1815 dos Princípios da Política
aplicáveis a todos os governos representativos e particularmente à consti-
tuição atual da França de Henri-Benjamin Constant de Rebecque (1767-
1830). Escrito durante o Governo dos Cem Dias (20/03 a 18/06/1815) de
Napoleão Bonaparte (1769-1821), o livro de Benjamin Constant - com a
intenção de garantir o equilíbrio entre os poderes das instituições políticas
francesas - projetava uma Carta Constitucional que viabilizasse a defini-
ção das funções dos poderes que representariam os vários interesses dos
grupos políticos.
O modelo constitucional de Benjamin Constant era composto por
42 43
quatro poderes: Poder Moderador , Poder Executivo , Poder Representa-
44
tivo (bicameral) e Poder Judiciário 45. Para Benjamin Constant, o titular
do poder Moderador é inviolável, sagrado e irresponsável politicamente
perante os seus atos administrativos. Enquanto o Poder Moderador é neu-
tro, os demais poderes (Executivo, Representativo e Judiciário) são ativos
e responsabilizáveis pelas suas ações públicas. Injusta seria a responsa-
bilização se fossem passivos ante a vontade política pessoal do monarca
(BASTOS, 2014).
42 - Este poder estaria acima dos demais. Espécie de árbitro que procura o equilíbrio entre o Poder Executivo, o Poder
Legislativo e o Poder Judiciário.
43 - Confiado aos Ministros que cuidam da execução geral das leis.
44 - Benjamin Constant (2014) distingue cinco poderes ao invés de quatro. Isso porque considera o Poder Repre-
sentativo como sendo dois poderes: Poder Representativo da continuidade (Assembleia Hereditária, composta de
parlamentares delegados pelo Poder Real) e Poder Representativo da opinião (Assembleia eleita por voto censitário
- proprietários ou de poder econômico).
45 - Confiado aos tribunais que detêm o poder de julgar as particularidades das leis.
210
Ao Poder Real caberia moderar e equilibrar as ações dos demais
poderes. Quando houvesse conflitos entre os mesmos, a obrigação cons-
titucional do Poder Moderador seria intervencionista. Por exemplo, se o
comportamento do Poder Executivo estivesse ancorado na arbitrariedade,
o monarca destituiria o Ministério. Do mesmo modo, se a câmara legis-
lativa representasse ameaça à estabilidade política nacional, o titular do
Poder Moderador a dissolveria e instituiria novos pares ou convocaria
outras eleições.
Por outro lado, se o Poder Judiciário perpetrasse ações nocivas à
sociedade ao aplicar penas demasiadamente rigorosas ou arbitrárias, o
monarca moderaria aquele conflito, exercitando o seu direito de graça
ao conceder o perdão. No entanto, o monarca não poderia estar acima da
Constituição, pois seria necessário definir os limites da legalidade consti-
tucional: esse fator diferencia a Monarquia Constitucional Parlamentar da
Monarquia Absolutista ou Despótica. Destarte, o Poder Real, por meio do
Chefe de Estado, deveria tomar precauções para não substituir ou incor-
porar os demais poderes (CONSTANT, 2014).
O conceito de Benjamin Constant referente ao Poder Ministerial
ativo e independente - ainda que emane do Poder Real - estabeleceu as
responsabilidades dos ministros e separou o Poder Executivo do Poder
46
Moderador . Sendo os ministros responsabilizáveis e o titular do Poder
Moderador inviolável e sagrado - não estando sujeito à responsabilidade
alguma - fica evidente a separação entre a autoridade responsabilizável
(Poder Executivo) e a autoridade inviolável (Poder Moderador). Todavia,
a integralidade constitucional “[...] se perde se o poder moderador vira
poder executivo e se o poder executivo assume características e funções
monárquicas” (BASTOS, 2014, p. 19).
A natureza do Poder Moderador é diversa do poder discricionário,
e o monarca - ao integrar as atribuições do Poder Executivo - deixaria
de ser neutro. A arbitrariedade ocorreria quando fossem confundidas as
prerrogativas constitucionais do Poder Executivo com o Poder Real, fato
que colocaria em risco a estabilidade política e a liberdade dos cidadãos
(CONSTANT, 2014). Benjamin Constant indicou que a distinção entre
o Poder Real e o Poder Executivo seria a chave fundamental do ordena-
46 - A responsabilidade pelos atos do Poder Executivo deve ser atribuídos aos Ministros.
211
mento político (HOLANDA, 1985; LEAL, 2014). O Poder Executivo,
embora possuindo prerrogativas constitucionais distintas das atribuições
do Poder Moderador, constitui-se por delegação privativa da nação ao
monarca hereditário e não do Parlamento47. O regime de monarquia limita-
do reconhecido por Benjamin Constant, mesmo sob a influência inglesa,
não era parlamentarista.
O vício de quase todas as constituições (até hoje) foi não haver
criado um poder neutro. Em vez disso, investiu a plenitude
da autoridade a um dos poderes ativos. Quando essa soma de
autoridade se reuniu no poder legislativo, a lei, que não deve
descer a certas esferas, estendeu seu domínio a tudo. Existiu
uma arbitrariedade e tirania sem limites. Daí os excessos
do “Parlamento Longo”, os das assembleias populares nas
repúblicas da Itália, os da Convenção durante algumas de suas
etapas. Quando essa mesma soma de autoridade se reuniu no
poder executivo, houve despotismo. Daí a usurpação a que
deu lugar a ditadura em Roma (CONSTANT, 2014, p. 40).
47 - De acordo com o Art. 98 da Constituição de 1824, “O Poder Moderador é a chave de toda a organização Política,
e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e o seu Primeiro Representante, para
incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos”
(BRASIL, 1824, art. 98).
212
teoria dos três poderes do barão de Montesquieu - entrassem em conflito,
o Poder Real interviria para endossar a estabilidade político-institucional.
Benjamin Constant salientou que esse modelo se adaptaria melhor
ao sistema monárquico constitucional parlamentar pautado nas tradições,
com o monarca detendo a faculdade exclusiva de árbitro na resolução de
conflitos. O Poder Moderador independente não se sobreporia aos po-
deres Executivo, Legislativo e Judiciário. Mesmo tendo autonomia para
dissolver o órgão responsável pela elaboração das leis, o Poder Mode-
rador apenas mediaria os embates históricos existentes entre as facções
políticas.
A Monarquia Constitucional Parlamentar deveria justapor a con-
formação institucional do Estado Moderno à Monarquia Absolutista, pois
a base constitucional evitaria a irrupção da tirania e impossibilitaria a ab-
sorção do Poder Legislativo e do Poder Judiciário pelo Poder Moderador
consubstanciado no Imperador. Para que uma monarquia seja compre-
endida como constitucional, os limites e modos que os poderes políticos
estão regulados, as suas atribuições e independência devem estar subme-
tidas à legislação prevista na Constituição: a pátria não pode estar sujeita
à vontade ilimitada de um poder institucional, mas ao cumprimento literal
das normas constitucionais (TORRES, 1973).
A Constituição do Império do Brasil de 1824 foi outorgada por D.
Pedro I (1798-1834) e consolidou o aparato institucional do Poder Mode-
rador, a qual perdurou - excluindo a sua suspensão devido à menoridade
de D. Pedro II durante o período regencial (1831-1840) - até a queda da
Monarquia Constitucional Parlamentar em novembro de 1889.
48 - “Art. 2. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”
(BRASIL, 1988, art. 2).
213
circunscritos às suas prerrogativas constitucionais, uma vez que a Carta
49
Magna estruturou controles recíprocos : enquanto um poder controla os
demais, é por eles controlado, reforçando a assertiva do barão de Montes-
quieu de que somente o poder controla o poder (MONTESQUIEU, 2000).
Essa teoria revela que a divisão e a harmonia entre os poderes podem ga-
rantir a sobrevivência do Estado Democrático de Direito.
O Supremo Tribunal Federal - órgão máximo do poder Judiciário -
tem a função principal de salvaguardar a Constituição Federal ao intervir
nos demais poderes com o intuito de corrigir atos e leis que não estejam
de acordo com os preceitos constitucionais. Paradigma de interposição do
Supremo Tribunal Federal no Poder Legislativo é a sua permissão de re-
querer àquele poder a correção de regras falhas e editadas (ASSIS, 2012).
Perante suposta atuação constitucional equivocada do Poder Legislativo,
o Supremo Tribunal Federal intenta corrigir os atos inconstitucionais da-
quele poder para evitar a nulidade das suas ações (CRUZ, 2004).
É fundamental analisar se o Supremo Tribunal Federal estaria arro-
gando a si a atribuição do exercício de uma espécie peculiar de Poder Mo-
derador. No âmbito do arranjo das instituições políticas brasileiras, aquele
poder desapareceu após a queda do Segundo Reinado (1840-1889). Po-
rém, a sua retomada no período republicano foi proposta em diferentes
momentos históricos e das mais diversas formas.
Exemplo dessa assertiva foi o projeto de reforma política do ad-
vogado e político gaúcho Antônio Augusto Borges de Medeiros (1863-
1961), o qual propunha a função do Poder Moderador centrada no chefe
do Poder Executivo. No livro intitulado O poder moderador na República
Presidencial (1933), Borges de Medeiros esboçou o modelo de presiden-
cialismo parlamentarizado praticado mais tarde na França e Portugal. No
apêndice do seu livro, Borges de Medeiros apresentou o Anteprojeto de
Constituição Federal para o Brasil, definindo no Artigo 82 a natureza do
Poder Moderador no regime de governo republicano.
O Poder Moderador é delegado privativamente ao presidente
da República. O presidente é o supremo magistrado da
Nação, e o seu primeiro representante, a quem incumbe
49 - O Poder Executivo exerce o controle via sanção e veto, enquanto o poder Legislativo - por intermédio das suas
Comissões de Constituição e Justiça - tem a atribuição de legitimar ou rejeitar as Medidas Provisórias. O Poder Judici-
ário exerce o controle constitucional das leis: as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal podem validar ou
invalidar atos e leis de acordo com a interpretação do alinhamento jurídico.
214
incessantemente velar sobre os destinos da República e
sobre a conservação, equilíbrio e independência dos demais
poderes políticos, assim como a inviolabilidade dos direitos
fundamentais (MEDEIROS, 2002 p. 140-141).
50 - Este capítulo não pretende apurar se Eduardo Consentino da Cunha usou o cargo de presidente da Câmara dos
Deputados para prejudicar as investigações da operação Lava Jato (investigação sobre corrupção envolvendo políticos
e empreiteiras). Essa foi a alegação do Supremo Tribunal Federal para afastar o parlamentar do Congresso. O objetivo
do capítulo é analisar brevemente se houve invasão de competências na esfera dos poderes estabelecidos pela Consti-
tuição Federal de 1988.
51 - A finalidade não é promover a defesa dos atos do político José Renan Vasconcelos Calheiros, mas atentar para a
reflexão de que a separação de poderes inspirada na teoria do barão de Montesquieu recusa a invasão de competências
entre os poderes.
52 - O intento não é realizar a defesa ou o julgamento contrário ou favorável à condenação. A intenção é ilustrar a
criação de um novo mecanismo constitucional no calor do processo de impeachment, quando a presidente da Repú
218
É possível afirmar que o Supremo Tribunal Federal interferiu even-
tualmente na competência dos demais poderes republicanos. Essas inter-
venções muitas vezes são oriundas do ativismo judicial efetuado pelos
partidos políticos que insuflam a judicialização da política com o poder da
liminar junto ao Supremo Tribunal Federal (MOURA, 2021).
Dentre os juristas que interpretam que o Supremo Tribunal Federal
assume a função constitucional de Poder Moderador, destaca-se o Minis-
tro do Supremo Tribunal Federal, José Antonio Dias Toffoli (2014) em
palestra intitulada O Poder Moderador no Brasil: os Militares e o Poder
53
Judiciário, o citado Ministro referiu-se ao Supremo Tribunal Federal :
“Hoje ele é o Poder Moderador”. Em entrevista concedida à revista Veja
(JUNIOR; BORGES, 2019), José Antonio Dias Toffoli retomou a sua nar-
rativa: “O Supremo deve ter esse papel moderador, oferecer soluções em
momentos de crise”.
O Supremo Tribunal Federal, pelos artigos constantes na Consti-
tuição Federal de 1988, apenas deve ponderar sobre as prerrogativas ine-
rentes ao controle de constitucionalidade das leis. Constitucionalmente,
o Supremo Tribunal Federal não possui a função de interferir em outros
temas da administração pública, como nos julgamentos de improbidade
administrativa envolvendo membros do Poder Executivo. Ao questionar
as ações administrativas do Poder Executivo - arrogando a si poder fisca-
lizador e corretor, o Supremo Tribunal Federal atuaria como uma espécie
de Poder Moderador, colocando-se acima dos demais poderes para o arbí-
trio dos conflitos institucionais.
Ao estabelecer condutas com o objetivo de corrigir “atos defeituo-
sos” dos poderes Executivo e Legislativo, o Supremo Tribunal Federal es-
taria assumindo a prerrogativa de Poder Moderador, a qual se situa apenas
no nível do discurso fictício, pois nenhum poder republicano está acima
das disputas entre as facções ideológicas e partidárias e não pode ser neu-
tro. Transformar o corpo técnico jurídico do Supremo Tribunal Federal
em Poder Moderador transgride a norma constitucional da separação de
poderes. O Supremo Tribunal Federal é um órgão do Poder Judiciário que
é o supremo defensor e intérprete da Constituição, e não proprietário dela.
blica deveria ter sido condenada ou absolvida, sem qualquer separação ou meio termo. O Supremo Tribunal Federal
concebeu - fora das suas atribuições legais - uma nova regra constitucional.
53 - Palestra proferida no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista - UNESP (São Paulo), em: 04 abr.
2014.
219
Considerações finais
Neste capítulo, elencamos alguns referenciais teóricos necessários
à reflexão dos limites da legalidade constitucional. D. Pedro I, ao exer-
cer o poder Moderador, não poderia estar acima da Carta Magna, fator
primordial que diferencia a Monarquia Constitucional da Monarquia ar-
bitrária embasada no fortalecimento do poder pessoal do Imperador. Da
mesma maneira, o Supremo Tribunal Federal, na condição de guardião
da Constituição Federal de 1988, não pode reescrever a Carta Magna ar-
bitrariamente, pois o Estado Democrático de Direito ruiria ante as ações
discricionárias dos três poderes. A formação institucional de poder não
pode estar sujeita à vontade ilimitada, mas ao cumprimento estrito das
normas constitucionais.
As funções dos poderes Legislativo e Executivo são diversas da
função do Poder Judiciário. O Supremo Tribunal Federal não possui atri-
buição para exercer funções constitucionais inerentes aos outros poderes.
Ao intervir como Poder Moderador, o Supremo Tribunal Federal pode
impor inconstitucionalmente condutas aos demais poderes republicanos,
violando de forma arbitrária os dispositivos constitucionais que o próprio
órgão deveria preservar. Contudo, não se trata de reduzir o poder Judici-
ário a mero cumpridor da letra fria da lei; mas surge o risco de o ativis-
mo judiciário - e a consequente judicialização da política - neutralizar as
conquistas que se deram pela participação democrática ao mesmo tempo
em que contraria a competência que a Carta Constitucional atribuiu ao
Supremo Tribunal Federal (SANTOS, 2009).
Adequado reforçar que não se trata da defesa de um judiciário ser-
viçal dos poderes Executivo ou Legislativo, uma vez que um Supremo
Tribunal Federal subalterno prejudica a sua função primordial de guar-
dião da Carta Magna. Muito pelo contrário, cabe ao Supremo Tribunal
Federal legitimar juridicamente a Constituição, a qual não é passível de
ser apropriada por nenhum dos três poderes republicanos. O Supremo
Tribunal Federal pode e deve tomar iniciativas em benefício dos cidadãos
brasileiros, mas se arrogar a si a função de Poder Moderador pode fazer
emergir a temerária possibilidade de instaurar a ditadura do Poder Judi-
ciário.
Do ponto de vista de Benjamin Constant, o Poder Moderador ape-
nas arbitraria os conflitos existentes; e somente nesses momentos o poder
220
atribuído à Coroa estaria acima dos demais poderes. D. Pedro I, por seu
turno, concentrou o Poder Moderador e, embora exercitando o poder Exe-
cutivo por meio dos seus ministros, objetivou a concentração do poder
pessoal no Imperador. Devemos lembrar que os artigos 98 e 102 da Cons-
tituição de 1824 não colocavam os atos institucionais do monarca acima
da Carta Constitucional. Pelo contrário, exigiam do Imperador - no exer-
cício do Poder Moderador - a promoção e a vigilância da independência,
equilíbrio e harmonia dos três poderes, preservando a ordem constitucio-
nal. Assim, na atual República Federativa do Brasil, o Supremo Tribunal
Federal não pode arbitrar permanentemente sobre as prerrogativas cons-
titucionais que são próprias do Poder Legislativo ou do Poder Executivo,
porquanto A Constituição Federal de 1988, quando celebrou a separação
dos poderes, não instituiu o Poder Moderador.
Na contemporaneidade, qualquer dos três poderes que reivindique
a função de controle dos demais poderes diverge da teoria tripartite ex-
pressa na Constituição vigente. Na atual conjuntura política, qualquer in-
tenção ou proposta que vise institucionalizar o Poder Moderador estaria
reivindicando a constituição de um poder que não está previsto na nossa
última Carta Magna. A condição de guardião da Constituição Federal não
oferece ao Supremo Tribunal Federal competência para tratar de ques-
tões reservadas à esfera política. Se a inexistência do Poder Moderador
foi compensada de alguma maneira pela função desempenhada pelo Su-
premo Tribunal Federal de guardião da Carta Constitucional, talvez seja
crucial não confundirmos o conceito de Poder Moderador com o conceito
de fiscalização dos preceitos constitucionais.
Enfim, parece que enquanto no Primeiro Reinado (1822-1831) o
Poder Moderador existiu de fato na Carta Constitucional, nas instituições
políticas contemporâneas o Poder Moderador é apenas imaginário, bas-
tando observar as leis dispostas na Constituição atual. A chave da siste-
matização institucional e política depende da divisão das funções e das
atribuições dos poderes. Compete ao Supremo Tribunal Federal o uso
prudente e adequado das suas prerrogativas constitucionais, contribuindo
para disciplinar sistema político estável, duradouro e democrático.
221
REFERÊNCIAS
ASSIS, C. C. O Supremo Tribunal Federal como Poder Moderador:
Uma análise discursiva. Revista Direito Público (DPU), v. 9, n. 47,
p. 60-70, set./out. 2012. Disponível em: http://191.232.186.80/hand-
le/123456789/1550. Acesso em: 07 dez. 2021.
223
SOUZA PINTO, P. B. Prefácio. In: MEDEIROS, B. O poder modera-
dor da república presidencial. São Paulo: EDUCS, 2002.
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Sobre os autores
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Carla Giani Martelli
Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLAr), Araraquara – SP –
Brasil. Professora Livre-Docente do Departamento de Ciências Sociais
e do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais. Pós-doutorado
(SNS/Itália).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1839-2140.
E-mail: [email protected]
226
Debora Rezende de Almeida
Universidade de Brasília (UnB), Brasília – DF – Brasil. Professora As-
sociada do Instituto de Ciência Política. Doutorado em Ciência Política
(UFMG).
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4752-8892.
E-mail: [email protected]
227
João Carlos Soares Zuin
Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLAr), Araraquara – SP –
Brasil. Professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa
de Pós-graduação em Ciências Sociais. Doutorado em Ciências Sociais
(UNICAMP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2397-3422.
E-mail: [email protected]
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Maria Teresa Miceli Kerbauy
Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLAr), Araraquara – SP –
Brasil. Professora Assistente do Departamento de Ciências Sociais e do
Programa de Pós- graduação em Ciências Sociais. Doutora em Ciên-
cias Sociais (PUC/SP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0622-1512.
E-mail: [email protected]
Mário Nicácio
Faculdade UnB Planaltina (FUP), Planaltina – DF – Brasil. Mestre em
desenvolvimento Sustentável junto a povos e terras tradicionais.
E-mail:[email protected]
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Regiane Nitsch Bressan
Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (EPPEN/UNIFESP),
Osasco – SP – Brasil. Professora do curso de Relações Internacionais.
Professora no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais
San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP). Doutorado em
Integração da América Latina (PROLAM/USP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7101-793X.
E-mail: [email protected]
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