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CIÊNCIAS SOCIAIS EM DIÁLOGO

Chapter · December 2022

CITATIONS

4 authors, including:

Celia Regina de Souza Felipe Silva


São Paulo State University
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SEE PROFILE

All content following this page was uploaded by Celia Regina de Souza Felipe Silva on 04 November 2023.

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Organizadoras

Carla Giani Martelli


Maria Teresa Miceli Kerbauy

Apoio
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ciências sociais em diálogo [livro eletrônico] /


Carla Gandini Giani Martelli, Maria Teresa Miceli
Kerbauy. -- Bauru, SP : Editora Ibero-americana de
Educação, 2022.
PDF

Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-86839-18-0

1. Ciências sociais 2. Democracia 3. Política -


Aspectos sociais I. Martelli, Carla Gandini Giani.
II. Kerbauy, Maria Teresa Miceli.

22-134827 CDD-300
Índices para catálogo sistemático:

1. Ciências sociais 300

Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380

Atribuição-NãoComercial-SemDerivações

DOI: 10.47519/EIAE.978-65-86839-18-0
Equipe Técnica
Editoração e organização

Prof. Dr. José Anderson Santos Cruz


Editora Ibero-Americana de Educação
Editor

Alexander Vinicius Leite da Silva


Editora Ibero-Americana de Educação
Editor Assistente

Julio Cesar Tomasi Cruz


Editora Ibero-Americana de Educação
Editor Assistente Administrativo

Profa. Dra. Lais Donida


Profa. Dra. Sandra Pottmeier
Profa. Me. Mariana Bulegon da Silva
Profa. Me. Thaís Vargas Bizelli
Revisoras de língua portuguesa e científica

Marcus Vinicius Tomasi Cruz


Pâmela Garcia dos Santos
Editora Ibero-Americana de Educação
Assistente de diagramação Editorial

Matheus Guilherme Prudente


Editora Ibero-Americana de Educação
Designer

ISBN: 978-65-86839-18-0
Membros do Conselho Editorial
Editor Editor Assistente
Prof. Dr. José Anderson Santos Cruz Alexander Vinicius Leite da Silva
Editora Ibero-Americana de Educação, Unisagrado
Instituto PECEGE/USP-Esalq
Julio Cesar Tomasi Cruz
Editores Associados FATEC
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Faculdade de Arquitetura, Artes e Assistentes Editoriais
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Marcus Vinícius Tomasi Cruz
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Instituto Federal de São Paulo/Ufscar
Assessoria Jurídica
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Faculdade de Ciências e Letras (Unesp)

Comitê Científico
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UVA UFOP

Dr. Alfrâncio Ferreira Dias Me. Caique Fernando da Silva Fistarol


UFS FURB

Dra. Ana Paula Santana Dra. Claudia Regina Mosca Giroto


UFSC Unesp

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INTA - UNINTA FURB

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UFG UFMS
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UCS
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UFSCar Dra. Marta Furlan de Oliveira
UEL
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UFRJ

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UPE

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FCLAr (Unesp)

Me Kaique Cesar de Paula Silva


USP - Uninove

Dra. Kellcia Rezende Souza


UFGD

Me. Lais Donida


UFSC

Dra. Leonor Paniago Rocha


UFJ

Dra. Liliane Parreira Tannus Gontijo


UFU

Dra. Luci Regina Muzzeti


FCLAr – Unesp
EDITORIAL
Hoje, as possibilidades de comunicação são muitas e os espaços
virtuais oferecem infinitas alternativas de interação, mas ainda sim elas
permanecem limitadas.
Muitas vezes as relações são construídas a base de identificações
superficiais, com o distanciamento que a tecnologia proporciona, “edita-
mos” os relacionamentos, deixando as partes difíceis de lado. Entramos
em contato com o outro e permitimos o seu acesso através de filtros. Dian-
te disso, o diálogo é uma importante ferramenta para a reconexão. Mas
como fazer isso de maneira correta e apropriada?
Na prática diária de nossos relacionamentos, nem sempre é fácil
estabelecer e manter um diálogo e acabamos nos expressando de outras
formas. Isso porque também nem sempre somos ensinados que uma con-
versa entre duas ou mais pessoas pode resolver conflitos.
Ainda mais hoje em dia, frente à tanta facilidade das redes virtuais,
que afetam (de forma negativa ou positiva) nossas relações, a comuni-
cação face a face está cada vez mais escassa. Muitas pessoas usam as
mídias digitais para expressar seus descontentamentos e/ou sentimentos
e, à medida que a comunicação interpessoal se deteriora, os conflitos e os
problemas nos relacionamentos aumentam.
O diálogo torna-se também uma tarefa importante no contexto so-
cial e cultural em que nos encontramos, caracterizado por agressividade,
intolerância e indiferença com o próximo (encontrados muitas vezes tam-
bém nas redes sociais). Precisamos de mais comunicação nas diversas
áreas da vida social. No entanto, é necessário aprofundar a compreensão
do que é diálogo para poder concretizá-lo. As habilidades de conversação
também servem de termômetro para avaliar a vivência e conhecimento
que o outro tem. O desrespeito ao próximo e a negação à troca de infor-
mações pode expressar o fechamento sobre si e a recusa de ouvir o outro.
Antes de tudo, ele exige a escuta, a disponibilidade em entender
como o outro pensa e aprender com ele. Não há espaço para um diálogo
quando alguém se aproxima apenas para convencê-lo de que está errado.
Portanto, ao invés do orgulho egocêntrico, é de extrema importância ad-
mitirmos as nossas próprias limitações no conhecimento da verdade, para
assim estabelecermos um diálogo saudável, onde as duas partes ou mais
possam aprender uns com os outros e com os próprios erros.
Como menciona o Prof. Marco Aurélio Nogueira em sua escrita no
prefácio desta obra, é de extrema importância abordar as dinâmicas das
ciências sociais de nossos dias atuais.
Estudos e textos que nos provocam a pensar e refletir sobre os pa-
noramas que os rumos sociais tomaram nestes últimos anos, entre a pola-
rização da democracia, uma pandemia, levantes sociais, desmontes e uma
série de outros fatores, que de certo modo foram agressivos e difíceis de
ainda tomarmos reais dimensões de seus efeitos. Talvez por tudo ser tão
recente? Talvez… Mas fato é que neste período em que a obra é trazida
aos olhares curiosos dos leitores, os meios de comunicação e o diálogo,
acima de tudo, se fazem necessários.
Diálogo, palavra fundamental para os novos tempos que se ini-
ciam. Se informar, refletir, conversar, saber ouvir e saber argumentar se-
rão algumas das tarefas mais importantes que todas e todos os cidadãos
e indivíduos sociais nos próximos anos terão que exercer. É através e
somente por meio do diálogo, que poderemos expandir nossos horizontes
e construir novos caminhos mais prósperos de ciências e cidadania.
E esta obra minuciosamente articulada, propõe este primeiro pas-
so. Um convite a dialogarmos sobre tudo de recente que nos atravessou
enquanto sociedade.
Prof. Dr. José Anderson Santos Cruz
Editor
Alexander Vinicius Leite da Silva
Editor Assistente
Matheus Guilherme Prudente Coelho
Designer
Carla Giani Martelli
Universidade Estadual Paulista (Unesp)
Departamento de Ciências Sociais
Programa de Pós- graduação em Ciências Sociais.
FCLAr (UNESP)

Maria Teresa Miceli Kerbauy


Universidade Estadual Paulista (Unesp)
Departamento de Ciências Sociais
Programa de Pós- graduação em Ciências Sociais.
FCLAr (UNESP)
Sumário

015 Apresentação

017 Prefácio

025 A democracia e os Direitos Humanos


na era das crises sociais permanentes
João Carlos Soares ZUIN e Renata Medeiros PAOLIELLO

043 O mundo na encruzilhada: o desafio das crises


socioambientais contemporâneas
Rafael Alves ORSI, Norma Felicidade Lopes da Silva VALENCIO
e Juliano Costa GONÇALVES

059 Conflito federativo e a pandemia


do Coronavírus no Brasil
Maria Teresa Miceli KERBAUY e Bruno Souza da SILVA

071 Trabalho, educação e saúde:


racismos e pandemia
Claudete de Sousa NOGUEIRA, Dagoberto José FONSECA e
Eva Aparecida da SILVA

087 Povos indígenas, contexto político e


o enfrentamento da pandemia
Mário NICÁCIO, Edmundo Antonio PEGGION e Jordeanes do
Nascimento ARAÚJO
107 Digitalização e conectividade:
desigualdades e disputas simbólicas
Ana Lúcia de CASTRO e Célia Regina de Souza Felipe SILVA

125 Legados, desmonte e resiliência


da participação: os exemplos das áreas
da Saúde e Direitos das Mulheres
Carla Giani MARTELLI, Débora Rezende de ALMEIDA e
Wagner de Melo ROMÃO

147 A reforma da previdência no governo


Bolsonaro: a capitalização como estratégia
de solidariedade
Maria Chaves JARDIM e Paulo José de Carvalho MOURA

173 O isolamento da Política Externa Brasileira


durante o Governo Bolsonaro em três eixos
Bruno Theodoro LUCIANO, Cairo Gabriel Borges JUNQUEIRA e
Regiane Nitsch BRESSAN

191 Códigos Eleitorais brasileiros: continuidades,


mudanças e o papel do Tribunal Superior Eleitoral
Maria do Socorro Sousa BRAGA e Fernanda Cordeiro
de OLIVEIRA

209 O Supremo Tribunal Federal e a questão do Poder


Moderador na atualidade
Carlos Henrique GILENO e Eder Aparecido de CARVALHO

225 Sobre os autores


Apresentação

É com imenso prazer e alegria que apresentamos o livro Ciências


Sociais em Diálogo, uma publicação inspirada na atividade do Canal Ci-
ências Sociais em Diálogo que vem sendo organizada, desde 2020, pelo
Departamento de Ciências Sociais e pelo Programa de Pós-graduação em
Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de
Araraquara.
Por meio da plataforma YouTube, foi criado um Canal cujo obje-
tivo inicial era promover o debate público sobre o contexto pandêmico,
compartilhando os conhecimentos produzidos pela universidade e contri-
buindo com o esclarecimento da sociedade sobre a Covid-19 e sobre seus
impactos em várias dimensões da vida social. O sucesso da iniciativa fez
com que o projeto se tornasse uma atividade de extensão permanente,
com a produção de lives semanais sobre os mais variados temas, expos-
tos por pesquisadores de todo o Brasil, com espaço para interação virtual
com o público conectado ao Canal. O programa foi expandido para outras
redes sociais - Instagram, Twitter e Facebook - e passou a ser transmitido,
também, pela rádio da faculdade e pela TV UNESP. Atualmente, o Canal
possui mais de 146 vídeos disponibilizados.1
O livro Ciências Sociais em Diálogo traz pesquisadores de várias
universidades que participaram das atividades do Canal, e tem como ob-
jetivo ampliar as reflexões, sem perder o propósito principal de divulgar o
debate acadêmico numa linguagem acessível em relação à produção cien-
tífica na área das Ciências Humanas. Os dois primeiros capítulos falam de
crise, da era das crises sociais e seus impactos na democracia e na agenda
dos Direitos Humanos, às crises socioambientais. Do capítulo três ao cin-
co, o plano de fundo é a pandemia de Covid-19 e os temas giram em torno
do conflito federativo que se agravou no Brasil com a crise sanitária; dos
desafios do trabalho, da educação e da saúde no cenário pandêmico, e dos
dilemas dos povos indígenas no enfrentamento da pandemia. A neces-
sidade de substituir atividades presenciais por virtuais, dado o contexto

1 - Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCqrBk6O3rFHtmOXYmwyQlMw.

015
pandêmico, trouxe à luz a questão das desigualdades em relação à digita-
lização e à conectividade, tema tratado no capítulo seis. Os capítulos sete,
oito e nove falam do Brasil sob o governo de Jair Bolsonaro, refletindo,
respectivamente, sobre o tema do desmonte e resiliência da participação
social com exemplos nas áreas da Saúde e dos Direitos das Mulheres; so-
bre o tema da reforma da previdência, e sobre a questão do isolamento da
Política Externa Brasileira. Como consequência da crise das instituições
democráticas, os dois últimos capítulos trazem o debate sobre os Colégios
Eleitorais, o papel do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal
Federal num contexto de mudanças e de novos desafios.
Agradecemos ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais
da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Araraquara, pelo
apoio a esta publicação. Esperamos que a leitura seja prazerosa e con-
tribua para o avanço de novos debates e pesquisas sobre os temas aqui
expostos.

Carla Gandini Giani Martelli


Maria Teresa Miceli Kerbauy
Organizadoras

016
Prefácio

Marco Aurélio Nogueira


Professor Titular Aposentado da UNESP

Os textos reunidos no presente volume procuram dar conta de parte


importante da agenda temática das ciências sociais de nossos dias, parti-
cularmente no Brasil. Dialogam com problemas de difícil resolução, que
têm ocupado profissionais de diferentes áreas. Lidam com temas de fron-
teira, para os quais ainda não foram dadas respostas categóricas.
Precisamente por isso, são textos que merecem atenção. Eles bus-
cam a lógica das sociedades atuais, das crises recorrentes que as sacodem,
dos dilemas que enfrentam, das dificuldades que manifestam de alcançar
padrões positivos de governança e gestão, a partir dos quais nasçam me-
lhores e mais eficientes políticas públicas. Trabalham, portanto, com uma
agenda explosiva, desafiadora.
Fazem isso com propriedade e rigor. Dialogam reflexivamente
com o mundo que têm diante dos olhos, ainda que não disponham de uma
“teoria geral” do capitalismo globalizado e informatizado dos dias atuais.
Fazem isso, além do mais, levando em conta as circunstâncias específicas
do Brasil, para as quais também não há abordagens de tipo mais totali-
zante, que decifrem os muitos enigmas e os muitos problemas de nossa
sociedade.
A época é paradoxal. Encanta e assusta. Confunde, perturba, exci-
ta. Parece vazia de esperança e otimismo, como se não conseguíssemos
enxergar o quanto avançamos e temêssemos o que nos aguarda à frente.
É inevitável que essa situação afete as ciências sociais, que se tornam
mais estratégicas e simultaneamente enfrentam maiores dificuldades ope-
racionais. O conhecimento que desejamos alcançar depara-se com uma
barreira “aparencial” erguida tanto pelos mutantes fatos da vida – pela
realidade concreta –, quanto pela inesgotável produção das redes, de onde
provêm grandes quantidades de desinformação. A captura do “todo” ficou
mais difícil.

017
Atravessamos dois anos de pandemia, mas hoje, em 2022, não é
certo que tenhamos absorvido, assimilado e compreendido o impacto do
coronavírus sobre nossas vidas e nosso mundo. Sabemos muito mais a
respeito de ataques virais, temos vacinas e medicamentos para combatê-
-los, mas faltam-nos políticas sanitárias, coordenação e cooperação mun-
diais. Dentro de cada país, as orientações seguem ritmo próprio. Houve
de tudo: solidariedade e negacionismo, cuidados e desleixo. Muitos go-
vernos e muitas lideranças, por exemplo, usaram a pandemia para açular
seus cidadãos e lhes vender falsas ilusões.
Nossas sociedades são sempre mais abertas, individualizadas, re-
pletas de opções. Os lugares já não estão mais demarcados. Há muita
mobilidade. As forças subterrâneas e as instituições que organizavam os
espaços sociais, as posições, os modos de pensar e os comportamentos,
perderam vivacidade, tornaram-se opacas, sem poder de coesão ou de im-
posição.
Há processos de longa duração em curso, que pedem cautela analí-
tica. Vivemos um tempo de metamorfoses e assimilações. Estamos sendo
forçados a incorporar novos processos aos nossos cálculos existenciais.
Estamos encharcados de informações e melhoramos nosso entendimento
de inúmeras coisas que antes nos intimidavam e assustavam. Intuímos que
nada mais será como antes, tamanha é a percepção de que as mudanças, as
descobertas, as novidades científicas e tecnológicas, os novos valores se
impõem a cada um de nós, sem apelação. Apesar disso, não sabemos bem
como delinear o futuro, que se aproxima velozmente, impulsionado pela
aceleração geral, pela rápida inovação tecnológica e científica.
As redes digitais são onipresentes. Estamos nelas, querendo ou
não, sem saber bem se são prisões ou estradas para a liberdade. As redes
são ambivalentes: não somos propriamente felizes nelas, mas não temos
como abandoná-las; elas nos isolam em bolhas autorreferidas mas nos
dão a ilusão de que estamos a “falar com o mundo”. Redes também são
estratégias de sobrevivência, lugares de fuga de uma realidade difícil de
ser suportada e compreendida. Estar em redes é usufruir de uma fonte de
contatos e oportunidades, é adquirir uma visibilidade que, bem dimensio-
nada, nos retira da privacidade excessiva e da individualidade fechada.
É poder interagir e dialogar com públicos amplos. É fazer política de um
modo novo. A ambivalência, no entanto, persiste.

018
As tecnologias de informação e comunicação, a vida digitaliza-
da e os processos de fragmentação social e individualização que a ela
se associam estão criando figuras novas, ainda mal decifradas. Há novas
maneiras de ser indivíduo. A questão da identidade e do reconhecimento
infiltrou-se de tal forma no cotidiano que não dá mais para dizer com se-
gurança que os indivíduos de hoje estão pacificados com suas identidades.
O que havia de ambíguo nas identidades foi radicalizado: elas hoje flutu-
am no ar, até mesmo por não encontrarem terrenos sólidos em que fincar
raízes. A luta por reconhecimento é travada com foco concentrado nas
identidades particulares (gênero, etnia, sexualidade, religião). Alimenta
batalhas culturais intermináveis, que minam as possibilidades de constru-
ção de um “Nós” coletivo consistente e consciente de si.
Também por isso, a época problematiza a democracia e exige sua
defesa permanente. A democracia permanece como valor e aspiração, mas
não goza de prestígio inconteste quando passa para a vida política práti-
ca, aquela na qual atuam os governos, os partidos políticos, os Estados
nacionais, as burocracias públicas, as grandes empresas. A situação é tão
complicada que é como se a democracia atuasse de algum modo contra
ela mesma: eleições se sucedem, mas os governos governam pouco e mal,
muitas decisões são tomadas longe do olhar público, as oligarquias se
reproduzem, sacrificando os destinos coletivos. Há no ar mais frustração
do que confiança.
Não temos à disposição um plantel de bons políticos, daqueles
que reúnem carisma, postura de estadista, convicções, firmeza, elegân-
cia, capacidade analítica, conteúdo programático e boa comunicação. Há
muitos apelos populistas, à esquerda e à direita, pouca atenção para as
transformações em curso. Juntamente com as elites (políticas, intelectu-
ais, empresariais e artísticas), os representantes do povo parecem confu-
sos, concentrados em seus interesses particulares e na captura de votos.
Nem sequer oferecem sonhos e fantasias razoáveis. Ficaram tomados pelo
pragmatismo e pelo realismo duro. A dinâmica política atual personaliza
demais, promove a substituição do conteúdo (dos programas e projetos)
pelo maneirismo midiático. Isso afeta a todos, da direita à esquerda. O po-
pulismo ficou incontornável, e tem sido ele a mola propulsora da demago-
gia de extrema-direita, que hoje se espalhou pelo mundo. É uma espécie
de vírus, contra o qual não há vacinas à disposição.

019
Nossas sociedades ficaram inapelavelmente mundializadas: inte-
ragem com um mundo que está estruturado, mas não regulado ou contro-
lado politicamente. Já não temos uma guerra fria entre Estados Unidos
e União Soviética, como houve até 1991. Aquele sistema internacional
conseguia gerar, por vias tortas, algum equilíbrio e certa estabilidade. O
mundo atual, repleto de crises, conflitos e tensões, gira em falso, desgo-
vernado. Parte dos problemas decorre do próprio capitalismo e dos regi-
mes econômicos dominados pela financeirização. Outra parte deriva da
irrupção política de forças autoritárias, regra geral populistas, que se dedi-
cam a questionar a democracia liberal e a mobilizar as populações contra
o “Ocidente”. No Leste Europeu, essa configuração de alguma maneira se
materializa em torno da Rússia de Putin, desejosa de recuperar sua posi-
ção imperial. Outros conflitos vêm da ascensão da China como potência
global. Só que, agora, as disputas entre as potências não têm mais uma
roupagem ideológica (tipo capitalismo vs. socialismo), organizam-se no
terreno da supremacia econômica, comercial, tecnológica. O que também
abala a paz e a harmonia entre as nações, além de servir de alimento para
exacerbações nacionalistas e étnicas.
O mundo globalizado arrasta indivíduos, grupos, Estados e em-
presas para um mesmo circuito de conexão. Cria uma sensação de per-
tencimento cosmopolita, que, no entanto, permanece em um plano mais
abstrato do que concreto. Todos pressentem fazer parte de um só mundo,
mas cada um cuida mais de seus próprios interesses do que de um gene-
roso interesse comum.
A hiperconectividade abre mil portas em termos de comunicação e
conhecimentos, mas cria, simultaneamente, fantasias igualitaristas, como
se estivéssemos todos inseridos do mesmo modo nas searas digitais que
frequentamos. A liberdade não é igual para todos, assim como não há
igualdade em termos de renda, de possibilidades de escolha e de oportu-
nidades. As épocas humanas sempre foram ricas em desigualdades. Não é
diferente com a nossa. Hoje, elas são exuberantes, acachapantes. Atingem
os mais variados aspectos da existência humana: a qualidade e a expecta-
tiva de vida, a posse de bens e propriedades, a higiene e a saúde, os efeitos
climáticos e ambientais, a educação, a paridade de gêneros, a educação,
os direitos, a justiça, a renda, a cultura. Não há, a rigor, nada que seja dis-
tribuído de modo justo.

020
A percepção disso pesa como uma rocha sobre os ombros de cada
um de nós, independentemente do nível de consciência crítica que te-
nhamos da realidade. Tira-nos o fôlego, rouba-nos a esperança, sem que
consigamos nos dar conta. Sentimo-nos incomodados pelas atrocidades
diárias, pela miséria, pela violência, pela fome, pelo desemprego, pelos
deslocamentos populacionais, por guerras insensatas, pelo descaso públi-
co, pela falta de civismo e generosidade, pela truculência. Transitamos
pela vida tentando não tropeçar nessas armadilhas, que incomodam, de-
primem, geram indiferença. Em termos morais e emocionais, o mal-estar
é corrosivo.
Algumas perguntas são incômodas. Desejamos continuar a viver
de modo tecnológico, digital, em redes? Prosseguiremos aceitando o do-
mínio do mercado? Continuaremos a assistir sem reação à destruição do
planeta, ao aquecimento global, à crise climática? Como estamos assimi-
lando as postulações identitárias e as lutas por reconhecimento? Que pen-
sar diante do avanço das máquinas inteligentes, da Inteligência Artificial?
Temos algum poder de escolha? Temos à disposição um modelo alternati-
vo de “boa vida” e “boa sociedade”? A democracia institucionalizada está
nos ajudando? Estamos cooperando o suficiente?
Podemos reunir essas perguntas aos problemas dramáticos do
mundo em que vivemos: a guerra russa na Ucrânia, o desmatamento da
Amazônia, o desrespeito desumano pelos povos originários, a violência
generalizada, a crise econômica recorrente, o desemprego, o desenten-
dimento, as polarizações que abalam a democracia, a fome que assola
muitas regiões, as desigualdades que não cessam de se reproduzir, as inú-
meras manifestações de ódio e soberanismo. A esperança fica impotente
diante de tanto descalabro. O conhecimento também.
O que tem sido chamado de “era do Antropoceno” denuncia as
marcas da presença avassaladora da humanidade sobre o planeta. Ela
surge como globalização, com um cortejo de desigualdades, injustiças e
iniquidades. As pegadas humanas são poderosas em termos de impacto
ambiental. Afetam o ar, o clima, a flora, a fauna. O modo de vida fica fora
de controle, submetido a mudanças que se sucedem sem cessar. A moder-
nidade globalizada é hiper em vários sentidos, suas crises se entrelaçam
e atingem a economia, o meio ambiente e as identidades. Há resistências
e iniciativas reformadoras, mas elas tardam a amadurecer e a produzir

021
resultados. Os problemas se acumulam e ficam mais emergenciais. Lixo,
água, energia, gestão urbana, desemprego estrutural, preconceitos, aque-
cimento global: tudo parece prestar a desabar sobre nossas cabeças.
Os temas e problemas desse modo angustiante de vida compõem
um elenco que não tem obtido respostas cabais, categóricas, que expli-
quem a realidade social como um todo complexo, articulado, cujas par-
tes e segmentos dialogam entre si, como um complexo de complexos,
sistemas e subsistemas entrelaçados. Temos de compreender as razões
dessa lacuna. Épocas de transformação rápida, de transições sistêmicas,
de metamorfoses, não são épocas de fácil tradução teórica. As ciências
sociais também se postam com espanto diante dessa realidade mutante,
que escapa de modelos, esquemas interpretativos e conceitos. O caráter
fluido e fragmentado da vida chega mesmo a vetar construções teóricas
abrangentes, empurrando os cientistas sociais para a especialização e a
compartimentação.
A dificuldade de compreender o presente embaça o futuro e força
o olhar para trás, num esforço para deslindar épocas em que a maior sim-
plicidade estrutural fornecia bases mais sólidas de segurança. O medo e
a perda do futuro latejam em cada um de nós, ferindo particularmente os
jovens, que têm uma vida pela frente, mas não dispõem de mapas confiá-
veis para delinear o que virá para além do agora imediato. Protestam, re-
clamam, reivindicam, agitam agendas, produzem ruídos críticos e novos
direitos: de algum modo são atores relevantes, que irrompem no palco
sem um roteiro claramente concebido. Rejeitam a política tradicional, po-
litizam-se pelas redes, ocupam praças e ruas, mas não conseguem passar
para o campo político institucionalizado.
O conhecimento acumulado é fabuloso. Já não é mais hegemôni-
ca a visão que pregava a submissão unilateral da natureza aos desígnios
humanos. Hoje, há mais compreensão do valor intrínseco da diversidade
cultural, mais respeito pelas culturas originárias. A sustentabilidade é uma
ideia que se generaliza, assim como a preocupação com um trato não des-
trutivo da natureza. A tecnologia da informação, que avança acelerada-
mente, mostra sua utilidade estratégica em diversos setores, da economia
à gestão pública, do ensino à democracia.
A pressão atinge cada um de nós em função de múltiplas exigên-
cias: a obtenção de sucesso, a busca de reconhecimento dos próprios di-

022
reitos e da própria dignidade, a construção e a reconstrução de identida-
des, a conquista de renda e emprego, a produtividade, a competição, a
felicidade, a eliminação das desigualdades.
Minha convicção é que a política continua a ser o principal recurso
que possuímos para construir saídas coletivas. Ela, hoje, está igualmente
sufocada pelas transformações aceleradas que reviram a vida. Faltam-lhe
bases sólidas de sustentação, que lhe deem ao mesmo tempo sinalizações
e referências. Faltam-lhe, também e sobretudo, programas de ação, atores
organizados e lideranças. O mundo está sem estadistas e dentro de cada
país o que prevalece são líderes de baixa consistência, governos erráticos
e pouco produtivos.
Uma mudança de rota é nossa boia de salvação. Uma “política de
civilização”, que também seja uma política de civilidade, é o caminho
sugerido por Edgar Morin para resistirmos às catástrofes anunciadas: a
corrosão da democracia, a violência, as epidemias virais, as guerras, a
desigualdade, a fome, a emergência climática, o desemprego, as manifes-
tações de ódio, as polarizações improdutivas. Diante do acúmulo de pro-
blemas, temos de aprender a “não ignorar as nossas ignorâncias”, a não
perder a paixão pela diversidade, o respeito pelo pluralismo e o cultivo da
esperança.
Isso significa também: continuar a pensar, a dialogar, a escrever, a
reunir reflexões como as que se apresentam no presente livro.

São Paulo, novembro de 2022.

023
024
A democracia e os
Direitos Humanos na era
das crises sociais permanentes

João Carlos Soares ZUIN


Renata Medeiros PAOLIELLO

O estado de crise da democracia nas sociedades ocidentais que


compunham outrora o “mundo livre” e eram qualificadas como abertas,
desenvolvidas, progressistas, está em curso há mais de quarenta anos.
Desde os meados da década de 1970, as democracias ocidentais acumu-
lam uma enorme quantidade de crises econômicas, políticas e sociais que
implicaram nas sucessivas restrições, anulações, reformas (palavra mági-
ca que é sempre utilizada pelas forças sociais hegemônicas, em momento
de extrema crise, como um ultimato, quase sempre como um imperativo
que não pode ser questionado) nas constituições nacionais redigidas após
a tragédia do fascismo e do nazismo e da Segunda Guerra Mundial. O
avançado processo de reformas constitucionais afetou o direito ao tra-
balho, os direitos sociais e econômicos - que eram os elementos funda-
mentais da democracia moderna no welfare state - e os direitos humanos
fundamentais, representando o estágio avançado do fim de um período
histórico progressivo.
A “democracia sob ataque” é título do livro do economista italiano
Emiliano Brancaccio (2022). Podemos resumi-lo a partir das seguintes
questões: 1) ao invés da nova ordem mundial criar uma sociedade de livre
concorrência, produziu uma concentração de renda, poderes e oportunida-
des nas mãos de pouquíssimas pessoas no mundo; 2) ao invés do mercado
livre do controle da política criar uma sociedade de proprietários na qual
terminaria a luta de classes, gerou uma massa de trabalhadores assalaria-
dos desprotegidos politicamente e que perdem renda, recursos e direitos;
3) o trabalho flexível, ao invés de garantir emprego, gerar um trabalhador
adaptado ao novo mercado e às inovações técnicas do capitalismo, criou
o trabalhador pobre, incapaz de saber quem de fato é enquanto um pro-
025
fissional, condenado à existência ansiogênica, incerteza e insegurança; 4)
a ideologia neoliberal, que exaltava, na última década do século XX, o
início de uma era de crescimento, prosperidade, riqueza e bem estar, criou
desigualdades de renda, de recursos, de oportunidades sempre maiores
entre as classes sociais, pessoas e países; 5) a ideologia neoliberal, que
difundiu, na última década do século XX, a expectativa do advento de
uma era de paz, produziu e produz as guerras “humanitárias”, de agres-
são e sem fim; 6) a defesa da virtude inerente da democracia dos merca-
dos, controlada pelos especialistas, tecnocratas, epistocratas, não apenas
neutralizou a política nacional e reformou as constituições nacionais em
linguagem privada, mas gerou o “retorno” da figura das oligarquias nacio-
nais e as transnacionais.
A crise da democracia nas sociedades capitalistas ocidentais está
disseminada em diversos e complexos fenômenos sociais, como a difu-
são da apatia e do abstencionismo político, nas linguagens políticas que
difundem o social-chauvinismo e a xenofobia, nas políticas do medo e da
insegurança, nas políticas racistas e de ódio, na transformação dos parti-
dos políticos em comitês eleitorais, na linguagem política dicotômica e
maniqueísta. As grandes transformações ocorridas na sociedade capita-
lista como a desregulamentação dos movimentos do capital financeiro,
o deslocamento dos capitais para países e áreas geográficas favoráveis à
máxima produção e extração de mais-valor e menor ou nula taxação de
impostos, o trabalho flexível, que se revelou precário e pobre, não apenas
modificaram radicalmente o sentido histórico da produção e do trabalho,
dos direitos sociais e econômicos, mas também afetaram profundamente
o sentido da vida coletiva. As duríssimas crises sociais que historicamente
impactaram as formas de sociedade com o flagelo da fome e da miséria,
da insegurança e do medo, modificaram substancialmente o sentido da
democracia. A democracia não tem uma única forma e não é sinônimo do
capitalismo. Nem mesmo em seu surgimento histórico não era plena: não
participavam os metecos (estrangeiros, não cidadãos), nem as mulheres
(mais de cinquenta por centro). E convivia com a escravidão, a força de
trabalho necessária nos negócios dos homens ricos nas minas e no campo,
nas casas dos senhores e na polis dos cidadãos.
A democracia conviveu, nas sociedades nacionais ocidentais, com
as discriminações de gênero, de raça e censitária, e vigorava até no mo-
mento em que o poder soberano decretava o estado de exceção, restringin-
026
do liberdades, punindo duramente os adversários que eram identificados
como inimigos da pátria. A democracia moderna foi construída após as
catástrofes do fascismo e do nazismo, das violentas e trágicas guerras
mundiais, por meio do conflito e do relativo equilíbrio de forças entre
as classes sociais proletárias e burguesas. Representou o momento his-
tórico mais abrangente, concreto e substancial na história das sociedades
capitalistas ocidentais, em especial, na Europa. Sua existência histórica
coincide com a Declaração dos Direitos Humanos da ONU em 1948, com
os tratados e convenções internacionais que ampliaram as diretrizes dos
direitos fundamentais na educação, na saúde, na política, na economia,
na cultura, na mobilidade, na cidadania, no reconhecimento e respeito
à vida humana. Seu desfecho histórico marcou o início de um processo
civilizatório que não se afasta apenas do passado colonial e do fascismo,
mas também dos valores da igualdade, do reconhecimento da diversidade
inerente à vida humana, da universalidade do gênero humano, do direito
de existir sem sofrer o medo e a necessidade.
A democracia deve ser declinada através de diversas formas, seja
no que se refere aos interesses políticos que perpassam forças sociais,
seja pela relação de força entre os sujeitos políticos organizados. Nos últi-
mos quarenta anos, pudemos observar diversos laboratórios políticos nos
quais a democracia foi (e é) politicamente testada: a democracia conduzi-
da pelos empresários de sucesso, pelos especialistas apolíticos, pelo po-
lítico que personaliza o povo “autêntico”, pelos novos partidos políticos
que não se reconhecem como partidos, pela força dos capitais especula-
tivos, pelas companhias transnacionais, pelas oligarquias econômicas e,
paradoxalmente, através das guerras humanitárias. Em tais manifestações
políticas, o povo é cada vez mais ausente, desaparece com o fim das an-
tigas configurações políticas que o organizavam em partidos políticos,
reaparece nas manifestações da política na era digital através das fotos,
selfies e postagens. Mais do que uma nova forma de construção política,
as imagens políticas digitais revelam que o povo, quando se manifesta na
política, é um ornamento do poder que, contudo, não lhe pertence.
A crise da democracia afetou profundamente os direitos sociais e
econômicos e os direitos humanos fundamentais mediante reformas cons-
titucionais ocorridas dentro de cada país em nome da governance, auste-
rity, liberty, “necessárias” para que ocorressem a produção nacional de
riquezas, o crescimento econômico e o bem-estar dos cidadãos. As gran-
027
des transformações ocorridas nas sociedades capitalistas ocidentais im-
pactaram profundamente os valores e as instituições, produzindo mudan-
ças radicais na moral, no comportamento e na mentalidade das pessoas.
Assistimos ao “retorno” do racismo em diversas formas, antigas e novas,
que estigmatizam, discriminam, agridem e, no limite, matam aqueles que
são identificados como imorais, anormais, inimigos, estrangeiros e imi-
grantes. A proliferação do racismo, da xenofobia, do social-chauvinismo,
da intolerância e dos estigmas demonstram que o atual estado da demo-
cracia não possui elementos políticos substancias capazes de conte-los e
enfrenta-los politicamente.
O cientista político italiano Alfio Mastropaolo (2014) iniciou o li-
vro La democrazia è una causa persa? Paradosso di un’invenzione im-
perfetta com uma premissa fundamental: a recordação de que a democra-
cia “é uma invenção humana, portanto, um fato histórico” e, como toda
criação humana que surgiu, alcançou o seu desenvolvimento e fortuna,
“está destinada a ter um fim”. Podemos dizer que, mais precisamente des-
de o final do século XX, após o período da democracia moderna entre
1945 e 1975 (que podemos também chamar de Estado Social, Welfare
State) e dos acontecimentos contidos no biênio de 1989 e 1991, a demo-
cracia na nova ordem mundial coleciona sucessivos ataques provenientes
das forças políticas da nova direita, da antipolítica, da extrema direita e do
populismo contemporâneo. Nas variadas manifestações políticas preva-
lece uma única linguagem econômica, política e cultural que hegemoni-
camente se manifesta como um discurso, uma racionalidade de governo,
uma técnica de controle social: o discurso liberal.
O neoliberalismo é a força política, no sentido lato do termo, que
reconquistou o prestígio e o poder que as classes dominantes comparti-
lharam com as forças sociais e políticas organizadas dos trabalhadores
durante o período histórico da democracia moderna, bem como recriou a
linguagem e os valores que formam o sentido da opinião pública, resta-
beleceu os critérios de prestígios (a fama, a celebridade, o poder absoluto
do dinheiro), e do poder que proporcionam às atuais forças econômicas a
capacidade subjetiva e as oportunidades objetivas que determinam o fun-
cionamento do sistema econômico, jurídico-político e cultural.
Neste artigo, pretendemos refletir sobre a crise da democracia e
dos direitos humanos no contexto histórico (filosófico, econômico, políti-
co e cultural) das crises sociais da sociedade capitalista e do capitalismo
028
globalizado. Escolhemos dois países para analisar as crises sociais e que
produziram diversos fenômenos e fatos que tiveram uma existência pos-
terior em outros países: a Itália do final do século XX e o Brasil no início
do século XXI.
A análise comparativa dos ataques à democracia que geraram o
estado de decadência econômica, regressão cultural e decomposição da
vida social, pode ser assim justificada: 1) o impacto das operações jurí-
dicas “mani pulite” e “lava-jato” na política partidária; 2) os efeitos das
operações jurídicas na ascensão ao poder da antipolítica e do populismo
contemporâneo de Berlusconi e Bolsonaro; 3) os processos de reforma
das diversas matérias constitucionais que alteraram, substancialmente, o
sentido das constituições nacionais formadas após as tragédias do fascis-
mo e da ditadura militar. Contudo, há uma questão de fundo que justifica
a importância da comparação entre os dois países: a Itália representa o
principal laboratório político no qual foram (e estão) sendo testadas as
novas manifestações políticas do poder há mais de trinta anos.

A crise da democracia e dos direitos


após o fim da democracia moderna
Pretendemos analisar o laboratório político italiano através das re-
flexões efetuadas pelo cientista político Alfio Mastropaolo, e pelo filólogo
e historiador Luciano Canfora, que produziram diversos livros acerca das
grandes transformações na sociedade e na democracia italianas. Escolhe-
mos dois livros, publicados no mesmo contexto histórico, nos quais os
autores problematizam as grandes transformações econômicas, políticas
e culturais que, em seu conjunto, produziram efeitos negativos e lesivos à
democracia: La democrazia è una causa persa? Paradosso di un’inven-
zione imperfetta, de Alfio Mastropaolo, e La democracia dei Signori, de
Luciano Canfora.
Alfio Mastropaolo analisa o sentido e o significado do surgimento
de novos sujeitos e partidos políticos após o fim da democracia moderna,
que obtiveram um alto índice de votos nas eleições, manifestando uma
nova forma de fazer política: a defesa enfática da antipolítica e do gover-
no dos especialistas, o surgimento da nova direita e dos partidos populis-
tas, sem vínculos com a política tradicional e a história. Os novos sujeitos
029
e agremiações políticas conseguiram se destacar politicamente pela capa-
cidade de expressar o ataque frontal à política econômica keynesiana, de
defender a política antifiscal e antiestatal, de colocar em questão a identi-
dade nacional e, sobretudo, pelas palavras duríssimas contra os imigran-
tes. Em tais manifestações políticas, o sujeito político na era da televisão
e dos novos meios digitais de comunicação buscavam alcançar, obter e
manter uma convergência política baseada na audiance: as ideias política
desprovidas de sentido histórico eram superadas pela força das palavras
emotivas e identitárias, dos slogans agressivos aos políticos profissionais
e aos partidos tradicionais, no seu conjunto, foram capazes de gerar um
rápido consenso através da manipulação das emoções e das paixões dos
cidadãos que estavam experimentando o desemprego (fosse ele estrutural,
fosse devido ao deslocamento dos capitais e à desindustrialização), a re-
dução do poder de compra do salário real, a ausência de perspectivas po-
sitivas acerca do futuro, acumulando ressentimentos, desilusões e raivas.
As novas forças políticas promoveram uma nova constelação de
valores e ideias: a dura crítica ao Estado Social, o “retorno” do racismo
e a xenofobia nos discursos políticos, o nacionalismo social-chauvinista
agressivo, os ataques contra instituições políticas, o “retorno” da figura
do líder, o maniqueísmo político representado nas figuras do amigo e do
“nós”, dos inimigos e do “eles”. A nova direita refuta radicalmente os
valores da igualdade e do universalismo, ao mesmo tempo que defende
a existência do Estado Social restrito aos cidadãos (desde que façam por
merecer os benefícios da política pública).
As novas forças políticas da extrema-direita e do populismo con-
temporâneos não visam comprimir o pluralismo à unicidade, nem restrin-
gir os valores da autonomia individual como efetuaram o fascismo e o
nazismo, mas agem sempre restringindo o sentido do Estado e, sobretudo,
do Estado social: visam reformular a constituição erguida após a Segunda
Guerra Mundial, considerada excessiva, custosa, incisiva, prejudicial ao
indivíduo e recheada de permissividade. Promovem, portanto, uma nova
concepção das ideias de povo e daqueles que devem ter direito ao que
resta do Welfare State na sociedade nacional. Uma manifestação agressi-
va para com os grupos sociais minoritários, subalternos e os imigrantes,
sobretudo se a cor da pele indicar pessoas provenientes da África, e do
Oriente Médio, que professam a religião islâmica; mas também das Amé-
ricas do Centro e do Sul.
030
Para Mastropaolo, a retórica política da nova direita e do populis-
mo contemporâneo defendem a transformação da democracia represen-
tativa em democracia plebiscitária: a ideia é de que a vontade da maioria
não deve mais efetuar concessões aos grupos sociais minoritários, nem
tecer conjuntamente os valores e as regras sociais em acordos e compro-
missos políticos. Logo, não deve existir nenhuma mediação entre o povo
e o líder, o que implica na negação dos partidos políticos e das instituições
que controlam e limitam as forças políticas hegemônicas e a do líder. A
formulação da democracia e da sociedade nacional baseadas na vontade
da maioria e na figura do líder neutraliza e visa suprimir a universalidade
dos direitos humanos fundamentais, a pluralidade dos valores e das for-
mas de cultura, os direitos dos grupos sociais minoritários, os sistemas ju-
rídicos e políticos de segurança e de garantias, as mediações e os sistemas
políticos legítimos e legais.
Em La Democrazia dei Signori, Luciano Canfora descreve diver-
sos processos históricos que transformaram a democracia moderna nos
últimos trinta anos, após o fim da longa guerra fria e do apogeu das forças
econômicas, políticas, culturais e midiáticas que controlam, ordenam e
determinam o sentido e o significado da democracia nas grandes potên-
cias ocidentais. O título do livro corresponde à expressão usada pelo fi-
lósofo Domenico Losurdo em diversas de suas obras para enfatizar uma
característica fundamental do liberalismo e da democracia nas sociedades
capitalistas ocidentais: a convivência histórica (simultaneamente filosófi-
ca, econômica, política e cultural) da ideia de indivíduo, pessoa, sujeito e
cidadão, em uma palavra, o ser humano branco, cristão e ocidental, com
processos de racialização, discriminação, desumanização dos africanos,
indígenas, asiáticos, mestiços.
Luciano Canfora utiliza a expressão de Domenico Losurdo em um
tempo histórico mais restrito: aquele formado após o término da guerra
fria e a vitória do capitalismo, que engendrou uma nova democracia dos
senhores. A democracia dos senhores representa uma construção política
formada através de “golpes de Estado” (no qual a deposição de um sujeito
político e de uma força política é um produto midiático e político que se
resolve dentro do parlamento, não necessariamente através da força das
armas e dos exércitos), do poder político ocupado por tecnocratas não
eleitos e indicados com a missão de “salvar” o país ameaçado por novas
punições, sanções, financeiras especulativas dos gigantescos fundos de
031
capitais ou de instituições políticas como a União Europeia, o Fundo Mo-
netário Internacional, entre outras.
A Itália se apresenta um laboratório político no qual Berlusconi,
que ocupava o cargo em seu terceiro mandato, é deposto pelo Presidente
da República napolitano que, ao invés de determinar nova eleição, esco-
lhe e impõe que Mario Monti seja elevado ao cargo. Para Canfora (2022),
ao longo de trinta anos, a Itália vê a implementação periódica de soluções
irregulares das crises. Um período histórico no qual:
1) os partidos de esquerda e de centro-direita, que promoveram a
democratização da Itália, deixaram de existir ou sofreram metamorfoses
(título do livro de Canfora publicado em 2021 no qual analisa a transfor-
mação do Partido Comunista dos Italianos em Partido Democrático da
Esquerda, até a atual nomenclatura Partido Democrático);
2) ocorreu a proliferação dos partidos que se assemelham aos “co-
mitês eleitorais”, sem vínculos substanciais com as forças sociais que
compõem o povo;
3) os partidos políticos e o parlamento são postos em posição sem-
pre mais subalterna ao poder executivo e à força simbólica do líder que
personifica poder técnico ou monetário;
4) o poder judiciário é sistematicamente atacado pelas forças po-
líticas quando mantém em vigor as normas constitucionais, os limites à
ação política dos poderes executivo e legislativo;
5) desaparece do processo formativo escolar e da vida social a im-
portância do passado histórico, da memória política.
Para Canfora (2022), na atual forma e conteúdo da democracia so-
mente os grupos sociais dominantes avaliam positivamente o sistema po-
lítico e se sentem plenamente representados pelas figuras do empresário
de sucesso, do especialista, do apolítico e do tecnocrata. Ao contrário, a
abstenção, a apatia, o descrédito, a raiva, o ressentimento crescem nos
grupos e nas classes sociais subalternas, sobretudo naqueles que vivem
nas periferias pobres. Na democracia dos senhores, o demos que foi aban-
donado politicamente pelos partidos de esquerda experimenta a sucessiva
supressão dos direitos sociais e econômicos duramente conquistados no
passado, sofrendo um acentuado declínio de renda e de recursos, e ausên-
cia de oportunidades.
O sociólogo Luciano Gallino, que publicou diversos livros acerca
do capitalismo globalizado, do capitalismo financeiro e das grandes trans-
032
formações ocorridas na economia da Itália, afirmava que a geometria po-
lítica da luta de classes na era do Welfare State e da democracia moderna
era formada pelos acordos e compromissos políticos, que promoviam a
redistribuição da renda de cima (do Estado) para baixo (para os cidadãos,
a sociedade), criando os sistemas de segurança e proteção que melhoraram
a condição de vida dos trabalhadores e cidadãos através do reconhecimen-
to social do direitos fundamentais: do trabalho, da educação, da saúde, da
moradia, da mobilidade, da previdência. Contudo, após o fim da URSS
e o declínio histórico do comunismo, a nova luta de classes passou a ser
comandada pelo poder econômico-político-cultural das poderosas forças
econômicas de mercado, produzindo a nova geometria política: redistri-
buição da renda de baixo (dos trabalhadores e dos cidadãos) para cima
(para os grandes capitais nacionais e transnacionais, para os novos oligar-
cas). Na nova geometria do poder, as forças de mercado foram capazes de
reconquistar e recuperar a maior quantidade da renda, dos recursos, das
oportunidades, bem como de prestígios, privilégios, status e poderes. A
singularidade maior desta nova luta de classes é que as forças sociais ven-
cedoras da guerra fria e, no limite, da batalha cultural entre o comunismo
e o capitalismo que atravessou o século XX, constituem uma única classe
global: uma classe capitalista transnacional, que superou os limites físicos
da geografia, os limites físicos do tempo, os limites culturais do naciona-
lismo, do colonialismo e do imperialismo desenvolvidos no século XIX e
XX. São membros desta classe capitalista transnacional: os proprietários
de grandes patrimônios; os banqueiros; os grandes empreendedores; os
top managers: altos dirigente das grandes industrias, corporações e do
sistema financeiro; os políticos de primeiro plano (presidentes, premiês,
primeiros-ministros, senadores e deputados que têm relações profundas
com a classe econômica dominante); os grandes proprietários de terra; os
advogados das grandes bancas; os meios de comunicação de massa; os
atores, as atrizes, os desportistas de alto rendimento.
A classe capitalista transnacional, que rompeu com os limites do
território nacional, passou a ser, nas últimas décadas, uma força social
extremamente potente, capaz de agir em escala mundial, e no plano ide-
ológico. Ela é capaz de transformar o mundo em um mercado articulado
técnica e tecnologicamente, de criar as necessárias infraestruturas e su-
perestruturas para o fluxo dos processos de produção e de extração de
valor, de produzir a ordem social baseada em imperativos do mercado, de
033
controlar a força de trabalho local, regional, nacional e global, acionando
ou desativando a força de trabalho sem sofrer penalizações jurídicas e
políticas, de reformar as constituições nacionais escritas após o fascismo
e o nazismo.
A força hegemônica do pensamento neoliberal e do capitalismo
globalizado foi capaz de modificar ou eliminar as instituições públicas,
refazer o sentido e o significado dos direitos humanos fundamentais, im-
por obstáculos sempre maiores aos direitos humanos dos imigrantes. Para
Gallino, a globalização do capitalismo representa uma forma das lutas
de classes e seu sentido e significado pode ser assim sintetizado: 1) nos
países onde o Welfare State e a democracia moderna existiram, esta não
mais existirá ou será restrita ao mínimo e 2) nos países onde a democracia
moderna e o Welfare State não existiram, ou existiram minimamente, ela
não virá a existir.
É o que veremos na análise do caso brasileiro, no qual a Constitui-
ção de 1988, aquela que se aproxima com grandes restrições à democra-
cia moderna, ao Welfare State, está sendo profundamente reformada nas
matérias fundamentais: no trabalho, na educação, na saúde, na dignidade
do ser humano.

O caso brasileiro: A destruição da Constituição


de 1988 e a ascensão da nova direita
Abordar o caso brasileiro implica em tratar o tema da intolerância,
considerando o fenômeno de sua emergência aguda no Brasil contempo-
râneo. Pretende-se partir desta intolerância desde a atitude de negação do
governo federal à gravidade da pandemia, e de seu desrespeito ao direito
humano básico à vida e à saúde, para comentar como esta postura repudia,
no geral, a conquista civilizatória que é a pauta dos direitos humanos, e
das lutas sociais por eles orientadas.
Em que pesem as considerações críticas de Michel Foucault em
mais de uma obra, é dever do Estado prover saúde e proteger a vida de
seus cidadãos. Deveres e direitos assegurados pela Constituição de 1988,
caudatária da Declaração de 1948, e que é precisamente o alvo dos ata-
ques dos grupos contrários à nova ordenação democrática que ela deli-
neia. Isto na medida em que ela é a barreira legal ao projeto, que ganha
034
força a partir da crise de 2008, de desmonte do Estado, das instituições
político-jurídicas da república, e das demandas sociais por realização da
equidade e reconhecimento das diferenças, acolhidas em parte pelo germe
de estado social que se procura construir na primeira década do século
XXI, chegando com dificuldades a 2014.
O esforço de tornar inoperante o conjunto de dispositivos legais e
programáticos, fundados nos princípios constitucionais, tem um marco: a
PEC 95, dita “do fim do mundo”, que estabelece o teto de gastos do go-
verno federal. Visando consolidar a implantação de um modelo neoliberal
de gestão econômica, fere de forma letal este germe tardio de estado de
bem estar, de que nunca chegamos a usufruir plenamente. Impede so-
bretudo investimentos em saúde e educação públicas, direitos cidadãos
fundamentais e condição de qualquer desenvolvimento. O teto atinge po-
líticas compensatórias que visam a eficácia dos direitos humanos na qua-
lificação da cidadania em sua substância e extensão, e na consolidação
democrática.
A PEC, especialmente no que toca à saúde, é escancarada na crise
da pandemia: será um Sistema Único de Saúde em processo de sucatea-
mento que se mostrará decisivo na gestão da doença; além disso, contra
a vontade, o governo federal teve de injetar recursos para assegurar o
mínimo de renda aos informais e aos que perderam o emprego, para que
pudessem permanecer em casa durante a quarentena; E foi pressionado
no sentido de injetar recursos para implementar a recuperação econômica,
passado o surto pandêmico. Não à toa, reabre-se o debate público sobre o
papel do estado.
A crise da pandemia agudizou lutas sociais, culturais e políticas
que confrontam o crescimento do autoritarismo e da hostilidade às insti-
tuições democráticas, a intolerância a pautas “minoritárias” e às voltadas
ao combate à pobreza, em confronto com o projeto de desmonte, que se
exemplifica:
- Versus políticas de igualdade racial, atingiu-se a Fundação Cul-
tural Palmares, que tem como uma de suas atribuições a certificação nos
processos de reconhecimento de remanescentes de quilombos; paralisam-
-se esses processos de reconhecimento e a titulação dos reconhecidos –
aliás o que já vinha acontecendo através de portarias do INCRA que difi-
cultavam seus trâmites.

035
- Por este caminho, foram atacadas políticas de reconhecimento de
direitos territoriais e culturais, fundadas nos artigos 68, 215-16 e 231 da
CF, e um conjunto de programas sociais que sustentam o reconhecimento,
o que, como vimos, inviabilizou-se com o limite do teto.
- Atingiram-se, assim, também as Terras Indígenas, recusando
igualmente tanto a homologação como a proteção às homologadas, em-
perrando a FUNAI, omitindo-se nas desintrusões de garimpeiros, madei-
reiros e grileiros, e destruindo programas de saúde indígena.
- Foram atacadas instituições ambientais e normas de conservação,
estimulando queimadas, desmatamento e grilagens.
- Buscou-se impor uma pauta conservadora nos costumes, atin-
gindo políticas de gênero, prevenção e atendimento na saúde, saúde da
mulher, etc.
- Estimulou-se a violência policial: O Fórum Brasileiro de Segu-
rança Pública, em relatório divulgado no primeiro quadrimestre de 2020,
apontou que a letalidade policial cresceu 31% em relação ao primeiro
quadrimestre de 2019. Em um contexto de quarentena, em que crimes
patrimoniais caíram muito, isto é inexplicável a não ser por uma política
de extermínio.
- Promoveu-se a defesa da tortura, negando-se os postulados da
justiça de transição – verdade, memória e reparação -, impedindo, com
isto, a consolidação das instituições democráticas; desmontou-se o Comi-
tê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, obrigação assumida pelo
Brasil em convenção internacional pautada na Declaração Universal dos
Direitos do Homem, que hoje só funciona por liminar obtida pelo Minis-
tério Público Federal.
- Foram atacadas as políticas de transferência de renda, em particu-
lar o Programa Bolsa Família, substituído pelo Renda Brasil. Recoloca-se
o problema de uma necessária política de renda mínima, estimulando a
retomada do debate sobre o papel do Estado, questionando-se sua redu-
ção, especialmente pela evidência da relevância do SUS, com todas as
suas limitações, no atendimento aos doentes e na campanha de vacinação.
O tratamento dado pelo governo federal à pandemia – entre outras
questões decisivas, algumas apontadas acima -, deixou clara sua descon-
sideração completa pelos direitos humanos, enquanto nucleares para os
direitos de cidadania. Isto coroa uma trajetória longa, amplificada na mí-
dia e, mais recentemente, nas redes sociais, de desqualificação dos direi-
036
tos humanos como “privilégio a bandidos”, que tem eco em parcelas da
população brasileira, alimentando o medo diante dos problemas de segu-
rança pública que o país enfrenta, bem como políticas de encarceramento
em massa.
Fato é que pouco valor é dado aos direitos humanos, historica-
mente, numa sociedade cujas condições de acesso a direitos, especial e
majoritariamente os dos mais pobres – considerando aí as intersecções
de gênero e raça como fatores componentes da pobreza – persistem sen-
do precárias. Estes não experimentam os direitos humanos, não os têm
garantidos no seu cotidiano, portanto os desconhecem na medida em que
são efetivamente inoperantes para eles. Como aponta Roberto Kant de
Lima (2001), agrega-se à desigualdade social, no Brasil, uma desigualda-
de jurídica inusitada em repúblicas do ocidente, à qual se podem atribuir
as estratégias repressivas de controle social, incapazes de equacionar nos-
sos conflitos. Direitos desiguais, deveres desiguais, como bem o exempli-
fica a prisão especial. Daí a dificuldade de internalização das regras e da
linguagem dos direitos humanos.
Nos anos 1990, nas sociedades democráticas e recém-redemo-
cratizadas, como era o caso do Brasil, podia-se pensar em processos de
aprofundamento democrático, após a afirmação das diferenças concretas
e questionamento de uma igualdade suposta - na medida em que essas
diferenças são operadas como mecanismos, frequentemente negados, de
desigualdade -, e que a crise da democracia representativa poderia achar
caminho pela ampliação crescente da participação e da articulação de mo-
dos de viver distintos e plurais – conforme Chantal Mouffe (1996), para
além do consenso, o dissenso, que é a vida da política democrática habita-
da pelo reconhecimento da pluralidade, e capaz de articular a tensão fun-
damental entre as lógicas da identidade e da diferença – . Após 2008, ga-
nham força o conservadorismo, a adesão à anti-política”, a autoritarismos
e retrocessos do ponto de vista social e cultural, junto com uma lógica
econômica ultraliberal, que atuam pelo jogo schmittiano amigo-inimigo.
Essas questões relativas ao caso brasileiro pedem uma considera-
ção, no que toca à intolerância a tudo que é protegido pelos direitos hu-
manos, da relação entre cultura, no seu sentido antropológico, e democra-
cia no mundo contemporâneo, em que as particularidades ingressam no
conceito universalista de cidadania. Ou seja, como o conceito de cultura
se aplica, e muda, quando passa ao plano da política, como se transfor-
037
ma a cultura quando se torna instrumento da conquista de direitos, o que
se concretiza nas demandas por reconhecimento de diferenças dentro de
sociedades que são pluriétnicas e multiculturais. Diferentes respostas ins-
titucionais oscilam entre a reafirmação da soberania estatal em nome da
igualdade dos cidadãos e políticas da diferença.
Em países de descolonização antiga, como o Brasil, aplicam-se po-
líticas multiculturais, mas a cidadania plena não está ao alcance de toda a
população. Vive-se o dilema da desigualdade na diversidade. Se lembrar-
mos o percurso histórico do conceito e do instituto da cidadania, seguindo
Bobbio, ela se firma, desde o início, o princípio da igualdade, por oposi-
ção à diferença, por um lado, e desigualdade, por outro. É este princípio
constitutivo do modelo ideal que é posto em causa, a partir das últimas
décadas do século passado, quanto a sua legitimidade e viabilidade, en-
quanto status universal, são questionadas, especialmente em sociedades
marcadas por desigualdades socioeconômicas abissais, pela efetivação
desigual de direitos e pela vulnerabilidade dos direitos civis, aqueles di-
reitos humanos básicos, de primeira geração, componentes da definição
liberal clássica de cidadania. Deixa de ser possível responder a problemas
do ordenamento jurídico-político e de integração social a partir de pressu-
postos universalistas exclusivamente.
No Brasil, é muito grande a diferença entre democracia formal e
democracia substancial, bem como a distância entre instituições políticas
e a experiência concreta da população. Segundo José Murilo de Carvalho
(2021), para o caso brasileiro, cabe inverter o modelo histórico de Mar-
shall: os direitos sociais chegam em plena supressão dos direitos políticos
e redução dos direitos civis, os quais, de resto, boa parte da população
ainda nem sequer alcançou. Para ele, esta é a causa da relação direta com
o líder carismático, messiânico, e da fraqueza da representação. Não se
enraíza por isto a igualdade de direitos. A concepção é a de uma “matriz
profunda da cultura brasileira”, que bloqueia a política democrática, a
cidadania e a representação, e que se exprime numa desconfiança das ins-
tituições, portanto na “opção” por relações hierárquicas, “não racionais”.
Por outro lado, Caldeira e Holston (1998) falam em democracia
disjuntiva, definida pela persistência de espaços segregados e violação
sistemática de direitos civis. Por exemplo, direitos humanos não se apli-
cam a presos comuns, para os qu ais seriam, na opinião pública, como já
dito, privilégio de bandidos. Também a impunidade em crimes de racis-
038
mo, entendidos, no senso comum judiciário, como “comuns na sociedade
brasileira”. Juízes, assim, tendem a avaliar a intenção desses crimes nos
parâmetros “comuns” que compartilham, e na visão da nação como de-
mocracia racial.
Assim, teríamos uma cultura cívica – consciência dos direitos de
cidadania fundada nos universais de igualdade e liberdade – deficitária ou
ausente, uma “cultura política tradicional” que carrega uma visão corrente
do poder que é obstáculo à realização da democracia, e uma “cultura na-
cional” articulada em torno da ideologia da democracia racial, alimentan-
do um processo histórico de apagamento das diferenças. Por outro lado,
culturas não são estáticas, nem a “cultura brasileira”, nem as culturas
brasileiras particulares, resultantes de processos históricos de mediação e
compatibilização de diferenças (MONTERO; ARRUTI; POMPA, 2018).
Tomar, assim, as culturas como processos levaria a melhor com-
preensão das relações sociais, que não podem ser separadas do âmbito
cultural e das condições do sistema democrático. Também para além da
visão estritamente institucional da política, pode-se compreender melhor
como culturas interagem com as sociedades em que se movem e suas
instituições políticas. Tratar a cultura como repertório de significações
acionado em certos contextos de relações de poder ilumina como culturas
específicas podem contribuir para a construção da cidadania. Temos o
exemplo dos índios, cuja linguagem da cidadania é a da diferença, não a
da igualdade, e nesta base se dão as negociações com o estado. Segundo
Hall, a dupla demanda por igualdade e diferença excedeu o vocabulário
político, abrindo a possibilidade de modelos de cidadania construídos a
partir de processos culturais específicos, para criar novos espaços públi-
cos e novas articulações com instituições democráticas.
No entanto, esses processos estão sob assalto. São o alvo de uma
intolerância reativa que, se não é fenômeno exclusivamente brasileiro,
aqui não só chegou ao governo, como ganhou uma força imprevista. O
desafio, no momento, parece ser, junto com e para além dos partidos e
movimentos sociais já consolidados, a defesa das instituições democrá-
ticas, e o estímulo, através desta luta, à percepção da importância delas
como garantidoras de direitos.

039
Conclusão
O fim da democracia moderna representou o desfecho de um pe-
ríodo histórico de longa duração que, no seu conjunto, foi formado pelas
questões sociais que surgiram com a sociedade nacional e industrial (com
as lutas de classes contidas nas paralizações e greves operárias, nos movi-
mentos feministas e coloniais por melhores condições de vida no trabalho
e na sociedade civil, na família e nas lutas por reconhecimento da cidada-
nia plena e concreta), e com os sacrifícios de mulheres e homens nas duas
guerras mundiais. Os direitos sociais e econômicos eram a base de uma
sociedade fundada em compromissos e acordos entre as classes sociais
organizadas politicamente, que enfatizavam os valores e as ideias da jus-
tiça social, da liberdade social, da igualdade e dos direitos do cidadão, da
solidariedade e da segurança. O fim da democracia moderna corresponde
ao início da era da incerteza e da insegurança, do hiperindividualismo, do
indivíduo absoluto desvinculado e desenraizado que se autodetermina e
age segundo sua vontade e desejo particular, e sentido privado da vida,
da destruição política dos valores e das ideias de sociedade organizada
politicamente.
Desde o fim da democracia moderna ocorram grandes transforma-
ções na democracia, na sociedade nacional e no capitalismo. O capita-
lismo globalizado difundiu que estava em curso uma era de paz e pros-
peridade, mas gerou o capitalismo financeiro e industrial especulativo e
desregulamentado, no qual o processo de valorização do valor na forma
da produção ou na extração é soberano, determinou mudanças jurídicas e
políticas através de sucessivas reformas que deformaram, neutralizaram,
os direitos sociais e econômicos e os direitos políticos. O capitalismo glo-
balizado é uma potência hegemônica que transforma os sistemas sociais
e gera as formas de vida humana de que necessita em escala planetária.
Promove, dissemina e impõe a centralização dos capitais e poderes nas
mãos de poucas pessoas, a deflação do salário dos trabalhadores e o tra-
balho flexível e precário, novas formas das lutas de classes como aquelas
que envolvem a burguesia transnacional e as burguesias nacionais terri-
torializadas, os trabalhadores assalariados autóctones e os imigrantes, os
capitalistas e os trabalhadores assalariados.
Na atual sociedade capitalista, as acirradas lutas de classes di-
fundem o “veneno racista da intolerância e o desprezo pelos ‘diversos’”
040
(FERRAJOLI, 2009, p. 17) e que “está penetrando no senso comum”.
Xenofobia, social-chauvinismo, palavras de ódio e manifestações de sím-
bolos e ideias fascistas crescem no curso das crises sociais permanentes
na sociedade capitalista contemporânea, ao lado das crises sanitárias e do
“retorno” da guerra como meio de resolução dos conflitos e das contra-
dições geradas pela própria sociedade capitalista. Neste cenário, a demo-
cracia é cada vez mais uma democracia dos senhores. Contudo, não é o
destino da democracia ser uma democracia de senhores.

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MOUFFE, C. O regresso do político. Lisboa: Gradiva, 1996. v. 32.

042
O mundo na encruzilhada:
o desafio das crises
socioambientais contemporâneas

Rafael Alves ORSI


Norma Felicidade Lopes da Silva VALENCIO
Juliano Costa GONÇALVES

Nas últimas cinco décadas, a economia global se expandiu cinco


vezes com a extração de recursos e energia triplicada neste mesmo pe-
ríodo. Isto sustenta a produção e o consumo de uma população mundial
que aumentou em duas vezes no período supracitado, passando de 3,9
bilhões para 7,8 bilhões de pessoas (UNEP, 2021). A prosperidade tam-
bém dobrou no período em tela; porém, “cerca de 1,3 bilhão de pessoas
continuam pobres e cerca de 700 milhões passam fome” (UNEP, 2021, p.
18, tradução nossa), caracterizando um modelo “cada vez mais desigual
e de uso intensivo de recursos [...] [que] impulsiona o declínio ambien-
tal” (UNEP, 2021, p. 13, tradução nossa). O declínio ambiental configura
uma crise ambiental, caracterizada por extinção de espécies e perda de
biodiversidade, além de esgotamento de recursos naturais, utilização dos
ecossistemas acima de sua capacidade de suporte, poluição, degradação
ambiental e emissão de gases de efeito estufa (FOLADORI, 1999).
Tal crise advém do próprio modelo de civilização, que cria um
conjunto de impasses e problemas que só podem ser superados com outra
concepção de natureza, bem-estar, progresso, poder e de novos valores
sociais (LAMIM-GUEDES, 2013). Assim, a crise ambiental não se re-
duz - e nem poderia - somente a uma dimensão técnica, como fazem crer
muitas propostas baseadas em soluções práticas e técnicas que logo se
esvaziam, posto que é “uma questão de ordem ética, filosófica e política”
(PORTO-GONÇALVES, 2013, p. 15).
Beck (2010, p. 101) argumenta que
[...] a sociedade, com todos os seus subsistemas, economia,
política, família, cultura, justamente na modernidade tardia,
043
deixa de ser concebível como “autônoma em relação à
natureza”. Problemas ambientais não são problemas do meio
ambiente, mas problemas completamente — na origem e
nos resultados — sociais, problemas do ser humano, de sua
história, de suas condições de vida, de sua relação com o
mundo e com a realidade, de sua constituição econômica,
cultural e política. [...] No final do século XX, vale dizer:
natureza é sociedade, sociedade (também) é “natureza”.
Quem quer que hoje em dia fale da natureza como negação
da sociedade, discorre em categorias de um outro século,
incapazes de abarcar nossa realidade.

Nesta perspectiva, trata-se de crises socioambientais inscritas e


construídas por processos sócio-históricos nos quais os avanços econô-
micos e tecnológicos “levaram a uma redução da capacidade da Terra
para sustentar o bem-estar humano atual e futuro” (UNEP, 2021, p. 13,
tradução nossa). Além disso, os acordos multilaterais, como o Acordo de
Paris - criado para limitar os processos ambientais nocivos que levam
ao aquecimento global -, não conseguem promover avanços substanciais,
sendo que o aquecimento atual de mais de 1°C “levou a mudanças no
clima, mudanças nos padrões de precipitação, derretimento de geleiras,
acelerando o aumento do nível do mar e muito mais eventos extremos
frequentes e mais intensos, ameaçando pessoas e natureza” (UNEP, 2021,
p. 13, tradução nossa). A perda da biodiversidade, a poluição e as mudan-
ças climáticas “aumentam os riscos para a saúde, segurança alimentar,
abastecimento de água e segurança humana, e esses riscos aumentam ao
longo do aquecimento global” (UNEP, 2021, p. 14, tradução nossa). Tais
riscos não são apenas sentidos por todos, cuja manifestação afeta despro-
porcionalmente os que estão enredados nos circuitos do empobrecimento,
mas também estariam sendo dinamizados pelas conjunções entre bases
econômicas e forças políticas para influir nas escolhas técnicas em prol
da progressão dos mecanismos próprios da acumulação (ACSERALD,
2021; VALENCIO et al., 2009; UNEP, 2021).
O aumento, a extensão e a forma como os riscos se propagam levou
Beck (2010) a caracterizar a sociedade atual como ‘sociedade de risco’.
Para Beck (2010, p. 99), “é precisamente essa transformação de ameaças
civilizacionais à natureza em ameaças sociais, econômicas e políticas sis-
044
têmicas que representa o real desafio do presente e do futuro, o que justi-
fica o conceito de sociedade de risco”. Acserald (2021) faz certa ressalva
à perspectiva que Beck adotou na referida obra, qual seja, a de creditar à
evolução tecnológica da sociedade contemporânea um significativo poder
destrutivo que tornaria inócuas as lutas sociais para denunciar, reverter ou
conter a produção, distribuição, operação e/ou consumo dos seus artefa-
tos representativos, sejam eles usinas nucleares ou alimentos fast food.
Todavia, na última obra que nos legou, Beck (2018) sinalizou que
a visão ampliada do abismo civilizatório, das catástrofes recém ocorri-
das às iminentes poderia ser aquilo que desencadearia uma ação coletiva
metamórfica em prol de arranjos socioambientais saudáveis. Cabe, pois,
indagar se porventura a vida social cotidiana - nas diferentes escalas de
produção de riscos mistos, bem como na especificidade dos contextos
locais de seu desenrolar - tem viabilizado o vislumbre do abismo civili-
zatório no qual nos encontramos e estimula, a contento, uma pactuação,
urgente e mínima, na formulação de áreas de escape frente aos cenários
catastróficos que se anunciam. O presente trabalho se debruça sobre tal in-
dagação, objetivando compreender os elementos estruturantes das crises
socioambientais contemporâneas e o papel das instituições públicas em
suas performances de controle institucional diante a mesma.

O verde pálido de um sistema cinzento


Embora a temática socioambiental seja transversal, inserindo-se
nas mais diferentes agendas setoriais como sendo assunto de relevância,
sua tradução em ações pragmáticas e de mudanças substantivas ainda
deixa a desejar. Apesar dos prognósticos mais severos e sombrios acerca
disso, há incapacidade ou inoperância estrutural e/ou sistêmica para que
as instituições e organizações as tragam para um primeiro plano de pre-
ocupações, fundamentando a reformulação necessária dos sistemas eco-
nômicos que operam ocasionando danos socioambientais significativos e,
em muitos casos, irreversíveis. Os sistemas econômicos são subsistemas
do sistema planetário e não o contrário, razão pela qual um planeta em
agonia nos parece motivo suficiente para uma inversão da agenda de acu-
mulação. Como tal inversão não ocorre, os riscos se agudizam e caminha-
mos a passos largos para problemas que se tornam vultosos, mais rápidos
045
que as capacidades assimétricas de adaptação, e que, no seu limite, podem
suscitar o colapso da sociedade global. Analisando sociedades do passa-
do, que sucumbiram diante de problemas ambientais, Diamond (2005, p.
523) aponta quatro motivos que as levaram ao colapso a partir de decisões
desastrosas, quais foram: “[i] incapacidade de prever um problema, [ii]
incapacidade de percebê-lo assim que o problema se manifesta, [iii] inca-
pacidade de tentar resolvê-lo após ter sido identificado e [iv] incapacidade
de ser bem sucedido nas tentativas de solucioná-lo”. Estaríamos, pois,
reproduzindo um destino trágico similar?
Enquanto a sociedade, em sua escala planetária, oscila entre a inca-
pacidade de agir e a de ser bem-sucedida socioambientalmente nas ações
que leva a cabo, uma questão basilar que se coloca é: por que, a despeito
da visão de colapsos globais iminentes, a ação coletiva está longe de tra-
zer resultados satisfatórios? Pistas relativas aos desalentadores resultados
logrados podem ser oferecidas por autores basilares – quais sejam, Sassen
(2016), Harvey (2009) e Marques (2018) -, os quais lançam luzes sobre
elementos cruciais da referida questão. Para Sassen (2016, p. 251), “a
passagem do keynesianismo à era global, de privatizações, desregulamen-
tação e fronteiras abertas para alguns, implicava uma passagem de uma
dinâmica que atraía pessoas para seu interior para outra que empurra as
pessoas para fora”. Tal passagem provoca uma dinâmica de expulsões em
seu limite, tanto do sistema econômico, como do social e do biosférico.
Desde meados dos anos de 1940, estaria implicado um processo de
transnacionalização de grandes corporações, do que decorreram as flexi-
bilizações normativas e desregulamentações para viabilizá-lo. No entanto,
questões normativas e regulatórias sobre os territórios não são prerrogati-
vas de agentes privados, mas sim do setor público, dos Estados nacionais.
Neste sentido, a articulação do público (estatal) e do privado se tornou
fundamental para que as práticas econômicas transnacionais obtivessem
êxito. Marques (2018) mencionará esta articulação de Estado-Corpora-
ção, na qual o Estado - sócio, credor e devedor das corporações - tem
seu poder relativamente reduzido frente ao poder corporativo e se presta
a um alinhamento servil aos interesses destas. Anteriormente a Marques
(2018) e Santos (2008), ao identificar a aproximação e as ações estatais -
normativas e de investimentos - em favor dos interesses corporativos no
território e as assimetrias de poder estruturadas na entrada na economia
global, caracteriza os territórios nacionais como espaço nacional da eco-
046
nomia internacional, o que, tratado em uma escala geográfica menor, nos
remete às cidades corporativas. Para Santos (2018), a cidade corporativa,
antes de mais nada, busca atender aos interesses corporativos de empre-
sas hegemônicas, ficando os interesses da população e empresas menores
relegados a um plano secundário.
Harvey (2009), contudo, atenta-se às mudanças da economia in-
dustrial para a acumulação flexível, algo visto, por ele, como essencial na
compreensão do avanço tecnológico e na aceleração provocada na dinâ-
mica do tempo e do espaço. A compressão tempo-espaço, cunhada pelo
autor supracitado, aumenta a dinamicidade da atuação do capital corpora-
tivo global e pressiona governos ao redor do mundo a promover mudan-
ças radicais em suas políticas territoriais, com o fito de se globalizarem
e se tornarem mais competitivos na atração dos capitais. O que Santos
(2008) identifica como guerra dos lugares, torna-se um jogo dramático
pela atração de investimentos e capitais - também via expansão do consu-
mo, como no caso da indústria turística -, no qual o território é o ofertante
não apenas como outrora de recursos naturais, mas de normatividades,
técnicas, isenções, subsídios, infraestruturas e recursos humanos. O pro-
cesso até aqui descrito assinala a emergência de uma elite capitalista, de
super ricos que se articulam entre si e fazem uso instrumental do aparato
estatal em favor de objetivos de acumulação rápida (SASSEN, 2016).
Não se trataria de estratégias isoladas, mas articuladas, a fim de
dar ao capital uma ampla capilaridade e alto poder de impacto nas formas
como este se manifesta e nos espaços onde se faz presente. Nas palavras
de Sassen, (2016, p. 90),

“há uma espécie de lógica sistêmica em ação em cada uma


dessas formações predatórias. Foi essa lógica que me levou
à noção de uma formação, em vez de simplesmente um
conjunto de indivíduos e corporações poderosos que tomam
decisões com enormes consequências para pessoas e lugares
em todo o mundo”.

É neste quadro globalizado que a matriz ambiental é inserida, en-


tendida como um elemento de constrangimento a ser equacionado pelos
agentes apontados anteriormente: governos, corporações e super ricos.
Parece-nos, portanto, que umas das chaves para a resposta da pergun-
ta lançada sobre porque as práticas ditas de responsabilidade ambiental
047
estão longe de trazer resultados satisfatórios, encontra-se justamente no
interior, nas entranhas do funcionamento do modo de produção capitalista
comandada por formações predatórias de atuação global, essencialmente
focadas na expansão de suas fortunas.
Marques (2018, p. 549) é categórico ao dizer que imaginar um
capitalismo sustentável é ilusório. O autor afirma, a partir de três teses
centrais 2, que os objetivos primordiais do modo de produção capitalis-
ta são incompatíveis com uma estrutura econômica sustentável, em que
pese propostas de regulamentações e desregulamentações (pouco levadas
adiante) que buscam tornar o sistema capitalista menos impactante. As
profundas mudanças, mesmo de caráter reformista, não se alinham aos
interesses dos atores mais poderosos do sistema capitalista. Diante de tal
quadro, a questão é muito mais complexa e de difícil solução, do que
a implementação de mudanças superficiais ou um “esverdeamento” do
funcionamento estrutural da economia, sem trazer para a prioridade dos
planos de ação questões socioeconômicas que deem conta das profundas
desigualdades sociais, sobrepostos aos problemas ambientais.

Performances inconvincentes de controle


institucional das crises socioambientais
Os desastres catastróficos são crises socioambientais levadas ao
paroxismo. Por um lado, o processo de globalização suscitou a escalada
dos riscos devido à ampliação e intensificação das conexões ecossistêmi-
cas, demográficas, produtivas e tecnológicas ora estabelecidas, o que o
caso da disseminação do coronavírus SARS-COV-2, encontrado em ani-
mal silvestre na China, rapidamente revelou ao mundo quando, poucos
meses após, já havia provocado uma pandemia (HOLMES et al., 2021).
A circulação frenética de pessoas, em variados trânsitos planetá-
rios, propiciou contatos circunstanciais entre elas, tornando-as, mesmo
que involuntariamente, super transmissoras do referido coronavírus, en-
sejando o caráter pandêmico da doença ao mesmo associada, a Covid-19
(FERGUSON, 2021). Por outro lado, muitas destas crises derivam da as-
sociação entre a afoiteza da exploração econômica ambientalmente in-
2 - cf. MARQUES, 2018, p 549-673.

048
consequente e a debilidade estrutural do Estado para dar efetividade aos
mecanismos de regulação, monitoramento e fiscalização que poderiam
conter tais investidas. Tais acontecimentos coletivos trágicos são caracte-
rizados por fissuras e/ou deterioração súbita e intensa dos principais ele-
mentos constitutivos do espaço onde se manifestam, assim como pelo
sofrimento multifacetado dos grupos sociais afetados, pondo em xeque
a segurança ontológica dos mesmos. Segurança ontológica é o ponto de
ancoragem do sujeito, composto pela fusão de seu repertório de sentidos
sobre o mundo, de suas experiências de vida bem como das condições
objetivas dadas para trilhar o caminho existencial pretendido (GIDDENS,
1991). Tais crises perturbam essa ancoragem tanto porque se configuram
em adversidades cujo desenrolar extrapola os modos de contenção pré-
-concebidos quanto porque deflagram incertezas no horizonte existencial
dos afetados. Ao dar precedência ao lucro, pondo-o acima de quaisquer
injunções do meio natural e social no qual se insere, a racionalidade cor-
porativa adota a estratégia de subestimação dos riscos socioambientais
que a sua atividade ocasiona. Quando isso resulta em desastres, seus diri-
gentes performam como se estivessem surpresos com o ocorrido, adotan-
do a narrativa da fatalidade, a qual é replicada pelas autoridades públicas
que falharam na detecção precoce e precaucionaria dos riscos implicados
(DOUGLAS; WILDAVSKY, 1982; TOURAINE, 2011).
Dos vários casos de desastres socioambientais catastróficos de re-
percussão mundial ocorridos neste século, destacamos um para ilustrar o
quão deletério pode ser a aliança empresarial-governamental no que tange
ao asseguramento do bem-estar da sociedade local. Ocorrido no Japão, no
ano de 2011, tratou-se de um desastre associado a um evento sísmico, o
qual desencadeou um tsunami e, na sequência, atrelou-se a um acidente
nuclear. Na ampla área de abrangência de incidência desse conjunto de
eventos, houve sérias disrupções nos diversificados usos econômicos e
sociais ali estabelecidos. Além da perda de milhares de vidas humanas,
estimado em mais de quinze mil mortos e três mil desaparecidos (SI-
MÕES, 2021), houve considerável destruição de infraestruturas e dani-
ficação de bens móveis e imóveis, públicos e privados. Ocorreu desde o
colapso de estruturas viárias terrestres à danificação em aeroporto; da des-
truição de residências ao de estabelecimentos comerciais e de serviços; do
comprometimento de edificações industriais, com perda de equipamentos
e estoques, à devastação de zonas agrícolas; de carreamento de veículos
049
marítimos aos terrestres; enfim, os prejuízos simultâneos e avultados ti-
raram o chão dos pés dos grupos sociais afetados. A gestão pública teve
que responder tempestivamente e em várias frentes, indo de providências
de reparação de infra sistemas críticos ao acolhimento emergencial de mi-
lhares de desabrigados, além de lidar com o desabastecimento alimentar
e de escassez de oferta de água potável. Porém, a situação mais delicada
enfrentada foi a da danificação nas instalações nucleares de Fukushima
e do vazamento radioativo resultante, o que exigiu providências de eva-
cuação compulsória dos moradores das localidades vizinhas enquanto as
medidas de contenção dos riscos na planta eram tomadas. Este acidente
nuclear decorreu da subestimação da magnitude dos riscos socioambien-
tais - sísmicos, de tsunamis, de convivência com residentes ao derredor
- nos planos de contingência do empreendimento nuclear (DAUER et
al., 2011). O governo nacional da época optou por proteger os interesses
corporativos nucleares e, assim, minimizou o ocorrido perante a opinião
pública, desestimulou o debate público acerca dos graves riscos de con-
taminação ambiental decorrentes de acidentes nucleares assim como o
fez em relação ao detalhamento da extensão dos danos socioambientais
havidos e eficácia das providências de mitigação dos mesmos. Embora
essa prática política tenha sido de cunho autoritário, na mão oposta de um
exercício de accountability esperado em países desenvolvidos, ao menos
serviu como efeito de demonstração para que governos de outros países,
o da Alemanha, tomassem a direção esperada, isto é, apontassem para o
caso de Fukushima como mais um alerta - após o caso da usina nuclear
de Chernobyl, ocorrido em 1986, na Ucrânia - de que medidas de encerra-
mento de atividades das usinas nucleares em seu país deveriam ser defla-
gradas sem demora (HUENTELER; SCHMIDT; KANIE, 2012).
No âmbito nacional brasileiro, no ano de 2015, houve o caso do
rompimento da barragem de rejeitos de minério do Fundão, localizada no
município de Mariana, em Minas Gerais. O material carreado contaminou
o ecossistema aquático a jusante, desde extensos trechos de corpos d’água
da bacia do Vale do Rio Doce até alcançar a foz, no Oceano Atlântico.
O caso demonstrou o quanto o foco corporativo preponderante no com-
portamento do preço das commodities minerárias influenciou decisões
descompromissadas com os riscos socioambientais, locais e ampliados,
da operação (WANDERLEY et al., 2016). Tal mentalidade empresarial
demonstrou ter pouco apreço à reflexividade. Pouco mais de três anos
050
após o caso do Vale do Rio Doce, decisões econômicas e práticas técnicas
tornaram a negligenciar os riscos relacionados a barragens de rejeitos mi-
nerários e, então, em janeiro de 2019, foi desencadeado acidente similar, o
do colapso desse mesmo tipo de barragem no município de Brumadinho,
também localizada no estado de Minas Gerais, reiterando os efeitos socio-
ambientais colaterais do fenômeno de minério-dependência (COELHO,
2018).
Os casos acima ilustram que os desastres catastróficos não ocorrem
fora da normalidade das relações socioeconômicas e sociopolíticas, mas
são partes constitutivas delas. Os riscos socioambientais permanecem
marginalizados nas preocupações deliberativas dos negócios que os ge-
ram, tanto porque encontram um ambiente institucional público permis-
sivo quanto porque as métricas convencionais de precificação e rentabi-
lidade econômica adotadas pelos setores nos quais operam lhes confiram
pouca importância. O Estado, seja reduzindo exigências de comprova-
ção de responsabilidade socioambiental para licenciar empreendimentos
e autorizar suas respectivas operações, seja enfraquecendo os mecanis-
mos institucionais públicos para fiscalizá-los e os penalizar sacramenta
o pacto econômico socioambientalmente predatório. Isso escalona para
uma perspectiva catastrófica, ainda mais porque, nas esferas institucionais
públicas, no âmbito decisório, que poderiam refrear os riscos, as forças
econômicas geradoras destes têm os seus apoiadores e articulações, o que
ganha precedência em relação aos recursos de voz de comunidades que
convivem com tais riscos e são direta ou indiretamente afetadas quando
o desastre, por fim, é deflagrado. O neoliberalismo, como fase contempo-
rânea do capitalismo financista, promove o enfraquecimento institucional
público, minando as condições operativas essenciais da máquina admi-
nistrativa para impedir atos lesivos ao bem comum (BAUMAN e BOR-
DONI, 2016). Subsidiariamente, as suas articulações políticas agem na
redução dos espaços participativos de discussão e deliberação em temas
ambientais a fim de que a racionalidade do mercado neles prepondere.
Enquanto as cordas ofertadas ao socorro dos que se encontram de-
fronte ao abismo, para evitar a sua queda trágica, seguem frágeis e vo-
láteis dentro deste modus operandi político-econômico irresponsável, as
profundezas avistadas indicam quão reduzidas são as chances de se esca-
par incólume, o que exige coragem coletiva na experimentação de outras
hermenêuticas, pós-abissais, para balizar práticas e sentidos renovados
051
de ser-no-mundo (SOUSA SANTOS, 2019). Não havendo suficiente co-
ragem, o empurrão das sucessivas crises, ou a mera vertigem, derruba a
coletividade precipício abaixo, indicado pela situação pós-social que ora
se desenrola, qual seja, a de perda coletiva da confiança nas instituições
públicas na defesa do bem-estar de seus povos (TOURAINE, 2011).
De um lado, para aqueles que pouco ou nunca usufruíram de ga-
rantias correntes de acesso aos mínimos vitais e sociais, a anomia so-
cial se anuncia pronunciadamente, tornando-os vítimas preferenciais de
injustiças ambientais (BULLARD, 2006). O domínio direto ou indireto
de elites econômicas extrativas sobre o aparato estatal, incluindo a sua
dimensão militar, bloqueia a engenharia da prosperidade (ACEMOGLU;
ROBINSON, 2012). Ao ampliar-se o contingente de pessoas submetidas
ao reino da necessidade, o Estado se torna um gestor de precariedades
da condição humana. Os governantes que se sucedem fazem do assis-
tencialismo uma moeda política de troca, manipulando a carências dos
desamparados ao invés de estimulá-los a desenvolver novas competências
e a livre-expressão de seus talentos e habilidades sociais (ACEMOGLU;
ROBINSON, 2012; TOURAINE, 2011). Porém, de outro lado, há os que
pressentem ou compreendam que a prevalência operativa do capital so-
bre as decisões do Estado exija, em contraponto, a construção, coletiva
e empenhada, de estratégias de resiliência radical, na qual enredamentos
comunitários, científicos, de movimentos sociais e setores técnicos pro-
duzam, defendam e amplifiquem formulações de planejamento bottom-up
que não possam ser ignoradas pelas esferas de poder (JON; PURCELL,
2018). Enfim, a situação pós-social - considerada por Touraine (2011)
como sendo aquela na qual o esgarçamento da confiança dos cidadãos na
atuação do Estado chegou ao seu limite - pode produzir cordas resisten-
tes para evitar o tombo derradeiro. O faria através de articulações sociais
sistemáticas voltadas para a constituição de sujeitos morais centrados, em
última instância, na garantia dos direitos da pessoa humana e denuncian-
do a pactuação entre instituições econômicas e políticas extrativas que se
protegem mutuamente em operações que negligenciam o interesse social
(ACEMOGLU; ROBINSON, 2012; TOURAINE, 2011). Disso decorre
que os desafios socioambientais centrais, capazes de amalgamar pautas
difusas numa resistência global, orbitam em torno da constituição de su-
jeitos conscientes da luta pela conciliação entre os direitos humanos e um
ambiente saudável (BECK, 2018; TOURAINE, 2011), o que implica num
052
esforço de coesão para uma pauta econômica antiliberal em escala local,
nacional e planetária. Se porventura a visão do abismo puder agir como
um despertar da servidão voluntária, o estágio de torpor devido à desa-
creditação difusa na política poderia dar lugar à experimentação social
de novos sentidos de agência a fim de promover uma metamorfose cole-
tiva capaz de confrontar as velhas certezas da ordem social e econômica
bem como os sistemas de classificação convencionais que têm balizado os
atos do Estado, até aqui orientados em desfavor da cidadania (BAUMAN;
BORDONI, 2016; BECK, 2018; BOURDIEU, 2014).

Conclusão
A compreensão da crise socioambiental como um fenômeno so-
cial complexo, que toma um caráter global e compromete as perspectivas
futuras de bem-estar humano indica que serão necessários mais do que
esforços incrementais, como os que foram tomados ao longo das últimas
décadas, para lidar com tal fenômeno. Assim, somente uma transforma-
ção em todo o sistema que “envolverá uma mudança fundamental na tec-
nologia, economia e organização social da sociedade, incluindo visões
de mundo, normas, valores e governança” (UNEP, 2021, p. 15, tradução
nossa) terá condições de reverter o quadro de crise socioambiental atu-
al. Compreender a crise socioambiental para muito além da problemática
circunscrita à dimensão ecológica (físico/natural) é essencial. É funda-
3
mental a clareza de que se trata de uma crise multifacetada, multissetorial
e trans-escalar. Sem dúvida alguma, a questão da dinâmica ecológica é
essencial, no entanto a crise ambiental contemporânea perpassa outras
dimensões como a política, a econômica, a cultural, tecnológica e a social,
todas intimamente articuladas.
A escalada das crises socioambientais pulverizadas expõe a catás-
trofe civilizatória em curso, resultante da fragilidade social e institucional
ante a lógica de acumulação. Quanto mais o Estado falha em deter as for-
ças econômicas concentradas, muitas das quais bem inseridas em relações
globais, maior os déficits de cidadania se tornam, assim como as perdas
ambientais irreparáveis. Caso a situação pós-social propicie o entendi-
2 - cf. Viola (1992, 1996) e Ferreira (1998).

053
mento da crise socioambiental catastrófica na qual já estamos mergulha-
dos, resultante da sinergia de crises espraiadas, um sentido de urgência
poderá alavancar novos modos de agência diante o abismo. Um exercício
político de refreamento do domínio de mentalidades retrógradas sobre
as instituições públicas bem como de contestação da validade do neoli-
beralismo como parâmetro para as relações econômicas trans-escalares
anunciaria um auspicioso recomeço.

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057
058
Conflito federativo e a pandemia

Maria Teresa Miceli KERBAUY


Bruno Souza da SILVA

O federalismo como forma de partilhar o poder do Estado sempre


esteve no centro do debate político nacional, razão pela qual canaliza a
atenção da ciência política como objeto de análise. Há uma multiplicida-
de de fatores que explicam o interesse nas questões federativas, os quais
vão desde o desenho federativo em si adotado no país e a sua excessiva
centralização das decisões políticas no âmbito nacional, até o modo como
funciona na prática, no que diz respeito à execução de políticas públicas
e seu financiamento. No entanto, um dos pontos desse amplo debate que
parecia estar pacificado, relativo ao aspecto cooperativo do federalismo,
tendo a união (nível federal) como o grande ente coordenador das polí-
ticas e serviços públicos e os níveis subnacionais (estados e municípios)
como os entes operadores e executores de tais políticas e serviços na prá-
tica, passou a ser questionado com ênfase durante a pandemia.
Os embates políticos recentes na federação apontam para um outro
sentido, o do conflito federativo em razão de disputas políticas entre ato-
res governamentais. A julgar pelas questões centrais envolvendo a gestão
da pandemia do coronavírus, por exemplo, nas quais governo federal se
antagonizou em relação a diversos governos estaduais, o conflito passou a
se tornar a regra, não a exceção na conjuntura política brasileira. Mesmo
eventos anteriores à pandemia já colocavam as disputas federativas nos
holofotes midiáticos. Como as disputas acerca da cobrança do preço dos
combustíveis, pouco tempo após o governo Bolsonaro ter se iniciado, nas
quais o presidente sempre insistiu que os estados deveriam zerar a cobran-
4
ça do ICMS sob a sua responsabilidade, enquanto governadores defen-
diam mudanças nacionais na cobrança dos impostos incidentes sobre os

4 - Bolsonaro defendia que os governadores deveriam zerar o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços e,
em contrapartida, ele se responsabilizaria por zerar os impostos federais incidentes sobre os combustíveis. Disponível
em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2020-02/bolsonaro-diz-que-zera-impostos-se-governadores-aca-
barem-com-icms. Acesso em: 14 abr. 2022.

059
combustíveis, resultando em uma carta dos mesmos endereçada ao pre-
sidente com diferentes pontos de reivindicação dos estados. Movimento
semelhante havia ocorrido também em relação ao decreto que ampliava o
acesso às armas pelos cidadãos assinado pelo presidente em 2019 5, apenas
para citar dois de outros exemplos existentes.
Contudo, o conflito federativo se tornou mais explícito logo que a
pandemia da covid-19 se iniciou no Brasil. Por um lado, o presidente se
posicionou contra as medidas restritivas baseadas no isolamento social
da população para diminuição do contágio pela doença, ao passo em que
associou tal orientação à perda de empregos e a desaceleração econômica
nacional, a qual incorreria em grave crise ao longo da pandemia. Por ou-
tro lado, sobretudo após decisão do Supremo Tribunal Federal de que os
entes subnacionais (estados e municípios) poderiam deliberar acerca de
medidas restritivas para contenção da epidemia, prefeitos e governadores
diante das estatísticas crescentes de contaminações e mortes decorrentes
da covid-19 passaram a deliberar sobre fechamento das atividades econô-
micas a fim de diminuir a circulação de pessoas e, consequentemente, tor-
nar menos intenso o contato entre elas a fim de arrefecer a pressão sobre
o sistema público de saúde.
Não tardou para que as diferentes orientações trouxessem à tona
o conflito federativo entre governo federal (presidente), o qual insistiu
na construção de um discurso da calamidade econômica por meio das
políticas adotadas por governadores e prefeitos, a qual apelidou de “fecha
tudo” e; governos subnacionais (governadores e prefeitos), sobretudo os
que passavam a se colocar como oposição a Bolsonaro dizendo serem
“a favor da vida”, defendendo ações estatais para contenção dos danos
econômicos provocados pela pandemia associados às medidas restritivas
adotadas, solução internacionalmente identificada em um primeiro mo-
mento antes da descoberta de vacinas contra a doença.
Ao longo desse período pandêmico, a questão fundamental que
passou a nos intrigar foi justamente quanto a relação entre os níveis fede-
rativos. Estaríamos diante de uma situação inédita desde a aprovação da
Constituição Federal de 1988 que deliberou acerca da cooperação fede-

5 - Matéria publicada no G1 em 21/05/2019, “Governadores de 13 estados assinam carta aberta contra decreto de armas
de Bolsonaro” apresentava a situação desse embate.
Disponível em: https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/2019/05/21/governadores-de-13-estados-divul-
gam-carta-aberta-contra-decreto-de-armas-de-bolsonaro.ghtml. Acesso em: 14 abr. 2022.

060
rativa ao identificarmos um cenário de conflito federativo? A natureza do
conflito, essencialmente política, seria diferente da identificada ao longo
do histórico republicano brasileiro? Aliás, o histórico do federalismo no
Brasil nos permitiria apreender algo a respeito do conflito atual ou estarí-
amos diante de um tipo de situação inédita antagonizando governadores e
prefeitos em relação ao presidente? O federalismo brasileiro estaria sendo
colocado em xeque?
Em caráter essencialmente descritivo e analítico é que elaboramos
esse texto a fim de pontuar questões fundamentais acerca do conflito fede-
rativo ao longo da federação brasileira, marcada pelo que Abrúcio (2012)
identificou como um pêndulo entre centralização e descentralização polí-
tica em diferentes momentos históricos. É sobre esse movimento pendular
no federalismo brasileiro que nos concentramos a seguir.

Qual o debate sobre o federalismo no Brasil?


O debate sobre o federalismo no Brasil se deu ao longo da história
republicana brasileira e foi marcado pelos desequilíbrios entre os níveis
de governo e pelos embates entre o governo federal e as elites subnacio-
nais (estados e municípios).
Na Primeira República, os estados tinham ampla autonomia, pou-
ca cooperação entre si e um Governo Federal fraco. Durante o gover-
no Vargas, o Estado Nacional foi fortalecido, mas os estados perderam
autonomia, especialmente no período do Estado Novo. O período entre
1946-1964 foi o momento de maior equilíbrio federativo. O golpe militar
de 1964, de modelo autoritário, se pautou por uma centralização política,
administrativa e financeira. A Constituição de 1988 reforçou o papel do
federalismo ao descentralizar o exercício do poder político, ampliando
as competências dos Estados membros e tornando os municípios entes
federados que passaram a fazer parte da federação brasileira, com o mes-
mo status jurídico da União e dos estados e a mesma autonomia política,
possibilitando elaborar a sua própria legislação, as Leis Orgânicas.

061
Centralização e descentralização
no federalismo brasileiro
A questão do federalismo no Brasil esteve intrinsicamente ligada ao
tema da centralização e descentralização política (entendida como trans-
ferência de responsabilidade de funções públicas do governo central para
os entes subnacionais). Autores como Nestor Duarte (1939), Viana (1955)
e Maria Isaura de Queiroz (1976) enfatizaram a autonomia do poder local
e dos grupos privados na estrutura de poder da Brasil. Para outros autores,
cuja principal referência é Raymundo Faoro (1958), o governo central
sempre desempenhou o papel principal na política brasileira.
O grande marco acadêmico sobre o poder local foi Victor Nunes
Leal (1975) que analisou como as relações de poder se estabeleceram na
Primeira República. Segundo o autor na falta de uma autonomia legal,
os chefes municipais governistas gozavam de ampla autonomia extrale-
gal. Era exatamente nessa autonomia que consistia a carta branca que o
governo estadual outorgava aos correligionários locais, em cumprimento
da sua prestação no compromisso típico do coronelismo, baseado “numa
troca de proveitos entre o poder público progressivamente fortalecido e a
decadente influência social do chefes locais, notadamente dos senhores de
terra” (LEAL, 1975, p. 31).
Posteriormente, Simon Schwartzman (1988) considerou que o de-
bate entre centralização e descentralização estava mal colocado. Para este
autor, ambos os movimentos ocorriam:
De um lado, um poder político centralizado e hierárquico, que
não dependia de bases locais de sustentação, apoiando-se na
própria máquina administrativa governamental para subsistir
e se afirmar. De outro, um poder privado e autônomo difuso,
que só adquiria expressão política quando era cooptado pelo
Estado, e que entrava em uma trajetória de conflito e derrota
quando pretendia se articular, minimamente que fosse,
como força autônoma e representativa de seus interesses
(SCHWARTZMAN, 1982, p. 93).

Na federação brasileira remodelada pela Constituição de 1988


(BRASIL, 1988), o modelo cooperativo adotado combinou com a ma-
nutenção de áreas próprias de decisão autônoma das instâncias subna-
cionais, descentralização na transferência de autonomia decisória e de
062
recursos para os governos subnacionais e para outras esferas de governo
responsáveis pela implementação, gestão de políticas públicas e progra-
mas definidos no nível federal. Foi realizado uma ampliação dos percen-
tuais de arrecadação do imposto de renda e do Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI), destinados aos Fundos de Participação Estadual e
Municipal. A repartição dos recursos arrecadados também contou com
o aumento do ICMS, que beneficiou os municípios com um aumento no
percentual de transferência, aumentando recursos e poder para os entes
estaduais e municipais.
A federação foi redesenhada, trazendo benefícios para estados e
municípios que foram transformados em entes federativos e que passaram
a ter o mesmo status jurídico dos estados e da União. Reverteu-se assim
a lógica centralizadora do período anterior, fortalecendo as demandas por
descentralização das forças democráticas daquele momento. Houve a as-
sociação positiva entre descentralização e democracia visando o fortale-
cimento dos governos municipais, através de autonomia fiscal para defi-
nir despesas e alocar recursos e responsabilização pela implementação de
políticas sociais.
A nova carta estabeleceu competências comuns para União, Es-
tados e Municípios nas áreas de saúde, assistência social, educação, sa-
neamento, meio ambiente, proteção do patrimônio histórico, combate à
pobreza e integração dos setores desfavorecidos e até de educação para o
trânsito, cuja forma de cooperação entre os três níveis de governo deveria
ser definida por Lei Complementar.
A autonomia municipa passou por diversas fases após a Consti-
tuição de 1988. Até a metade da década de 1990, ela foi possibilitada
pelo aumento das receitas, especialmente as oriundas das transferências
intergovernamentais, o que contribuiu para fortalecer a autonomia políti-
ca frente aos estados e à União. Contudo, ao longo dos dois mandatos do
presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), a União passou a recupe-
rar a arrecadação das receitas públicas por meio da elevação de tributos
não-partilháveis com os demais entes da Federação, como por exemplo
o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). A União não é obrigada a
dividir o IOF com estados e municípios.
Apesar do repasse do Fundo de Participação Municipal, a am-
pliação das receitas municipais passou a depender da arrecadação pró-
pria: Imposto Sobre Serviços (ISS), Imposto Predial Territorial e Urbano
063
(IPTU), Imposto de Transmissão de Bens Moveis (ITBI) As várias crises
econômicas que o país enfrentou nas últimas décadas limitou a arrecada-
ção municipal ao mesmo tempo em que, por meio da descentralização das
políticas sociais, os compromissos financeiros municipais cresceram.
Com o processo de perda e de retomada de receitas pela União,
no início do processo de descentralização até meados da década de 1990,
a União assume uma postura defensiva, se desincumbindo do seu papel
coordenador, de modo que cada nível de governo buscou atuar de maneira
independente devido à ausência de incentivos, na tentativa de transferir
suas atribuições para as outras esferas de governo.
Conforme lembra Abrúcio (2005), a partir do Plano Real em 1994,
o federalismo brasileiro promoveu transformações impulsionadas por
mudanças nas áreas fiscal e financeira, em um esforço de minimizar os
efeitos da descentralização desordenada. A vinculação de gastos das três
esferas federativas nas políticas de educação e saúde – que passaram por
um processo de descentralização ordenada a partir da6 segunda metade da
década de 1990 – ampliou as oportunidades de negociações intergover-
namentais, atendendo às demandas de uniformidade e regularidade das
ofertas destas políticas no país.
Durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e, posteriormen-
te, ao longo dos governos Dilma Rousseff, foi mantido o fortalecimento
institucional da União, responsável pela formulação de diversas políticas
sociais, atendendo parcialmente ao interesse dos municípios, uma vez que
os valores das transferências intergovernamentais foram elevados. Nes-
te momento, a coordenação de redes federativas verticais passa a ser o
elemento significativo no maior controle da União sobre o desenho ins-
titucional das políticas sociais, apesar da autonomia política de estados e
municípios, os quais não eram obrigados a aderirem às políticas formula-
das pela União, embora o fizessem a fim de receberem fundos vinculados
àquelas políticas.
As fortes desigualdades regionais e as más condições econômicas
da maior parte dos municípios brasileiros, principalmente os de pequeno
porte, tornaram complexas as relações intergovernamentais, permeadas

6 - A vinculação constitucional obriga a União a aplicar 15% de sua receita corrente líquida em ações e serviços públicos
de saúde (Art. 198, § 2º, inciso I) enquanto estados devem aplicar 12% e, municípios, ao menos 15%. Em relação à
educação, a União precisa investir ao menos 18% o seu orçamento, enquanto estados e municípios ficam obrigados a
aplicar 25% de sua receita de impostos e transferências na manutenção e desenvolvimento de ensino.

064
por conflitos e dilemas que passam a dar relevância a coordenação inter-
governamental para dar forma à integração, compartilhamento e decisão
conjunta presentes no arranjo federativo nacional.
Nesse sentindo, é importante ressaltar a diferença conceitual entre
federalismo e relações intergovernamentais. O federalismo é o arranjo no
qual as unidades de governo se unem mantendo regras próprias e com-
partilhadas de decisão. Já as relações intergovernamentais remetem aos
processos governamentais para operacionalizar a oferta de políticas pú-
blicas, as quais envolvem contínuas interações entre os diversos níveis de
governo para a sua implementação e avaliação. Em outros termos, espe-
ra-se cooperação, não conflitos federativos no cumprimento dos objetivos
federativos em comum.

Da cooperação ao conflito federativo:


O que aconteceu na pandemia?
O grande ponto de inflexão do processo anteriormente descrito
de estruturação das relações intergovernamentais é o governo Bolsonaro
(2019/2022). Sobretudo a partir do momento em que se iniciou o debate e
o posterior encaminhamento inicial de uma proposta de reforma do Esta-
7
do brasileiro intitulada “Mais Brasil, menos Brasília” .
A proposta do novo pacto federativo se materializa legalmente em
três propostas de Emendas à Constituição (PECs): a emergencial, que
pretende reduzir gastos obrigatórios; a do pacto federativo, que muda a
distribuição de recursos entre União, Estados e Municípios e; a que revisa
fundos públicos. Nenhum dos itens que impactam na organização fede-
rativa chegou a ser analisado pelo Congresso ao longo da pandemia da
covid-19, exceto a PEC Emergencial que possibilitou ao governo federal
o pagamento do chamado “Auxílio Emergencial” para ajudar os traba-
lhadores em situação de desalento econômico e social, transformando-se
posteriormente em bandeira do governo para o campo de transferência de
recursos estatais. Ainda assim, ao longo do seu processo de deliberação, o

7 - Plano Mais Brasil, voltado à transformação do Estado. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-


-de-conteudo/apresentacoes/2019/apresentacao_pacto_federativo_final_.pdf. Acesso em: 14 abr. 2022.

065
Congresso Nacional e o governo federal travaram grandes embates asso-
ciados ao rompimento do chamado “teto de gastos” para o seu pagamento,
o que culminou na aprovação de um orçamento paralelo para lidar com os
custos da pandemia.
Ainda ao longo da pandemia vale lembrarmos que diante da grave
crise sanitária que o país enfrentou o conflito federativo opondo União
a estados e municípios se instalou, sobretudo no que diz respeito às de-
cisões, o isolamento social. Em 20 de março de 2020, o presidente Bol-
sonaro decretou a medida provisória 926/2020 (BRASIL, 2020a), a qual
estabeleceu que as decisões sobre o isolamento e circulação de pessoas
deveriam observar os critérios do Executivo federal e serem submetidas à
avaliação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Logo em
seguida, foram editados dois decretos: o 10.282/2020 (BRASIL, 2020b)
e o 10.292/2020 (BRASIL, 2020c), definindo várias atividades como es-
senciais, as quais impediam os estados de determinar a sua paralisação.
Tais medidas colocaram em conflito mais exacerbado os entes fe-
derativos em relação à interpretação dos artigos 21 e 22 da Constituição
Federal de 1988, que atribui aos entes federativos competências privati-
vas exclusivas que possuem natureza mutuamente excludentes, na medida
em que a atribuição de competências de um ente implica a exclusão dos
demais. Já os artigos 23 e 24 estabelecem a atribuição de competências
comuns, como prática de atos administrativos, de serviços públicos e de
edição de normas, além de competências concorrentes, nas quais diferen-
tes entes devem somar esforços a fim de atuarem de maneira harmônica
na consecução de objetivos comuns (BRASIL, 1988).
No caso do conjunto de normas que dizia respeito ao enfrentamento
do coronavírus, a matéria central era saúde pública, em relação a qual se
esperaria a cooperação e o compartilhamento de medidas administrativas
e legislativas de promoção à saúde, para que a União, estados e municí-
pios realizassem esforços comuns de combate à covid-19, uma pandemia
decretada pela OMS (Organização Mundial de Saúde).
Uma vez que o conflito se instalou entre os entes federados, a dis-
cussão se deu acerca da constitucionalidade dos estados editarem nor-
mas mais restritivas do que as previstas no plano federal, determinando
a paralização das atividades econômicas, salvo as essenciais (isolamento
horizontal) e não apenas o isolamento de doentes, suspeitos e membros de
grupos de risco (isolamento vertical), sendo encaminhada tal questão para
066
julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF).
A decisão do STF no julgamento da Ação Direta de Inconstitu-
cionalidade (ADIN) movida pelo PDT passou a assegurar que Estados e
Municípios pudessem tomar providências normativas e administrativas
relativas à pandemia, devendo a União respeitar tais medidas originárias
dos entes subnacionais (estados e municípios). A União também passou
a poder legislar sobre saúde pública com a condição de que o exercício
destas competências sempre resguardasse a autonomia dos demais entes
federativos.
A discussão sobre a falta de coordenação política na área da saúde
acabou sendo relacionada à noção de federalismo adotada pelo governo
Bolsonaro na proposta de Reforma Federativa encaminhada ao Congres-
so Nacional, a “Mais Brasil, menos Brasília”, a qual, em suma, propõe
descentralizar recursos e a execução de políticas públicas, combinando a
defesa de maior autonomia dos governos subnacionais com a redução da
responsabilidade do governo federal no campo das políticas públicas.
Desta forma, o governo repassaria todas as responsabilidades sobre
políticas públicas aos governos locais, reduzindo inclusive a participação
do governo federal neste campo, além da centralidade da ação de coorde-
nação federativa até então desempenhada pela União. Em outros termos,
a lógica de ação governamental de Bolsonaro relaciona-se claramente ao
temor de que qualquer tipo de mecanismo de checks and balances incida
sobre a presidência. O modelo propõe repasse de funções e responsabili-
dades aos governos subnacionais, no entanto, as principais decisões polí-
ticas devem vir de Brasília até pelas desigualdades federativas existentes
no país. Ao buscar simplificar a ideia de descentralização fiscal e de exe-
cução das políticas públicas, em tese beneficiando estados e municípios,
o governo federal desobriga-se de responsabilidades elementares dadas
pelo tipo de federalismo instalado no país pós-1988.
Embora os dados epidemiológicos apontem para uma situação de
maior controle sobre a pandemia da covid-19, muito em função do avanço
da vacinação no país a qual contou com o protagonismo de estados e mu-
nicípios na definição de estratégias e estímulo à vacinação, o fato é que o
conflito federativo está instalado. A dificuldade de decisões coordenadas
a partir da União e compartilhadas em conjunto com estados e municípios
foi um reflexo da excessiva politização da pandemia.

067
Considerações finais
À luz do histórico do federalismo brasileiro foi possível perceber
dois movimentos: centralização versus descentralização. De um modelo
descentralizado, sem projeto nacional e forjado para agradar as elites po-
líticas subnacionais do início da República à passagem para um modelo
centralizado, sobretudo a partir dos anos Vargas, o federalismo sempre
esteve mais envolto em conflitos entre os entes do que em cooperação.
A grande alteração ocorre, efetivamente, a partir da aprovação da
Constituição Federal de 1988, a qual organiza um novo quadro institu-
cional no país na medida em que estabelece de modo mais claro a impor-
tância de se equilibrar autonomia federativa dos entes subnacionais, que
historicamente a reivindicavam desde a centralização a partir dos anos
1930, com coordenação federativa no âmbito nacional. Embora após a
Constituição 1988 possam ser observadas nuances entre os governos FHC
e Lula/Dilma, com momentos de maior recentralização das decisões, a
lógica passou a ser a da cooperação, não a do conflito explícito entre os
entes.
Nesse aspecto, o governo Bolsonaro representa o grande ponto de
inflexão. Sobretudo quando descrevemos e consideramos o enfrentamen-
to da pandemia da covid-19 e, anteriormente, o plano de reforma do Es-
tado brasileiro apresentado a partir do conjunto de PECs do “Mais Brasil,
menos Brasília”. Em linhas gerais, a natureza do conflito federativo esta-
belecido é reflexo de uma visão de Estado adotada pelo governo federal
centrada na passagem das responsabilidades acerca das políticas e servi-
ços públicos para os entes subnacionais, não com o objetivo de descentra-
lizar decisões, mas visando evitar eventuais responsabilizações acerca de
tais políticas para a presidência da República.
O conflito federativo, desse modo, se mostra até o momento con-
juntural em virtude da maneira como o presidente Bolsonaro atua poli-
ticamente: transferindo responsabilidades de coordenação de problemas
federativos para o planejamento, gerenciamento e execução dos mesmos
para os entes subnacionais. No entanto, sem a aprovação, de fato, de um
novo desenho federativo e de alocação de receitas para isso, uma vez que
o “Mais Brasil, menos Brasília” segue paralisado no Congresso Nacional.
Um exemplo dessa espécie de terceirização das responsabilidades
políticas tem ocorrido desde que a pandemia deu sinais de melhora no
068
país. A falsa divisão entre economia e saúde pública, levada a cabo desde
março de 2020 pelo governo, faz o presidente afirmar que a responsabi-
lidade pela atual crise econômica do país é culpa dos governadores e dos
prefeitos que adotaram medidas restritivas quanto a circulação das pes-
soas e ao fechamento de atividades econômicas não essenciais, ao passo
em que o esperado no âmbito federativo seria a União ter coordenado tais
ações desde o início da pandemia. No entanto ao invés da cooperação fe-
derativa temos assistido ao conflito federativo e uma visão restrita sobre
o federalismo brasileiro.

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069
BRASIL. Decreto n. 10.292, de 25 de março de 2020. Altera o Decre-
to nº 10.282, de 20 de março de 2020, que regulamenta a Lei nº 13.979,
de 6 de fevereiro de 2020, para definir os serviços públicos e as ativi-
dades essenciais. Brasília, DF: Presidência da República, 2020c. Dis-
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070
Trabalho, educação e saúde:
racismos e pandemia

Claudete de Sousa NOGUEIRA


Dagoberto José FONSECA
Eva Aparecida da SILVA

O presente artigo visa abordar – de maneira panorâmica, mas ne-


cessária – o acirramento das múltiplas desigualdades no contexto pan-
dêmico, o papel da sociedade no enfrentamento da pandemia no Brasil,
especialmente no mundo do trabalho, da educação e da saúde e, neste
sentido, dialoga com a agenda dos direitos humanos, enquanto direito à
vida, algo absolutamente inegociável em sociedades democráticas e repu-
blicanas.
Muitos estudos, palestras, conferências, lives, artigos e demais pu-
blicações científicas e jornalísticas têm nos inundado de informações no
universo virtual acerca da realidade, da situação e da condição social e
sanitária que a população em geral tem sido atingida pela pandemia do
novo coronavírus que acomete às pessoas com a doença denominada de
Covid-19, descoberta no dia 31 de dezembro de 2019 em território chinês.
No entanto, a imensa maioria dos estudos, pesquisas e matérias
jornalísticas, bem como as informações repassadas pelos órgãos oficiais
e de Estado no Brasil não estão tendo esse cuidado político de informar
o impacto dessa pandemia na população negra. Ao realizar desta forma,
estão colocando em curso à política de não dar visibilidade para essa situ-
ação trágica e criminosa que afeta este contingente populacional, mesmo
que somente o que se divulga é o fato de que ela atinge em maior letali-
dade os grupos vulneráveis, sem informar que estes são indubitavelmente
os vulnerabilizados pelo sistema econômico e político em decorrência de
uma desigualdade social histórica. Assim, não se trata de um problema
atual, mas de uma questão antiga, fruto dos escravismos e dos racismos
de séculos passados. Esse instante é apenas o reflexo de um passado que
se traduz na ausência de garantias sociais e de direitos à saúde e ao trata-
mento digno para esta população negra que é vitimada.
071
Trabalho doméstico, etnia-raça
e gênero na pandemia da Covid-19
A economia do cuidado se faz cada vez mais presente no cenário
nacional e internacional. De acordo com a Organização Internacional do
Trabalho (OIT), o trabalho de cuidado – remunerado ou não remunerado
– pode estar associado às atividades diretas - alimentar um bebê ou cuidar
de um idoso – e às atividades indiretas - limpar ou cozinhar, as quais são
realizadas, majoritariamente, por mulheres (POSTHUMA, 2021).
Em 2021, completaram-se 10 anos de aprovação, pela OIT, da
Convenção sobre o Trabalho Decente para as Trabalhadoras Domésticas
e os Trabalhadores Domésticos (CONVENÇÃO n. 189 – C189), de junho
de 2011. O Brasil ratificou a C189 em 31 de janeiro de 2018, entrando em
vigência apenas em 31 de janeiro de 2019. Mas, anterior a ela, já exis-
tiam algumas ações para garantir direitos fundamentais às trabalhadoras
domésticas, entre as quais: a Emenda Constitucional (EC) n. 72, de 2 de
abril de 2013, que define uma semana de trabalho de, no máximo, 44 ho-
ras; e a Lei Complementar (LC) n. 150, de 10 de junho de 2015, que pro-
íbe o trabalho doméstico para menores de 18 anos – conforme proibição
do trabalho infantil previsto no art. 3 da C189 – e estabelece a jornada de
trabalho de, no máximo, 8 horas diárias – também previsto no art. 10 da
C189 –, o direito a férias remuneradas, a multa por demissão sem justa
causa e o acesso à proteção social – também previsto no art. 14 da C189 –,
entre outros direitos. No entanto, a efetiva aplicação desses direitos ainda
é um grande desafio (POSTHUMA, 2021).
Na América Latina, 14% das mulheres com emprego são traba-
lhadoras domésticas. No Brasil, que se destaca no setor de cuidado, em
2019 14,2% das mulheres economicamente ativas estavam no trabalho
doméstico remunerado; por outro lado, os homens representavam menos
de 1%, conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD) Contínua.
A grande maioria das trabalhadoras domésticas guarda alguns tra-
ços comuns: serem mulheres, negras e com baixo nível de escolaridade
formal. Muitas delas trabalham, inclusive, sem carteira assinada, numa
jornada intensa de trabalho e baixos salários.
Com isso, é importante ressaltar o caráter racializado do trabalho
doméstico, considerando que “a herança socioeconômica e os padrões
culturais e valorativos que criam estereótipos restritivos na inserção e
072
ação de determinados grupos sociais (LIMA; RIOS; FRANÇA, 2013)
determinam posições inferiores para os negros e as mulheres” (ABREU,
2021, p. 47).
Portanto, o racismo, enraizado na estrutura da sociedade brasileira
e estruturante das relações sociais, é aquele que “constrange”, cotidia-
namente, os sujeitos negros e os torna os mais vulneráveis à violência e
à pobreza, para além de outras mazelas, bem como demarca espaços e
“lugares” sócio-historicamente construídos, como é o caso nas ocupações
de trabalho consideradas menos qualificadas e, por isso, pouco ou não
valorizadas, tal como os serviços domésticos, exercido, e atribuído, em
maior escala, às mulheres negras. A desvalorização desse tipo de traba-
lho remete ao período da escravidão, no qual se fez “natural” os serviços
prestados pelas escravizadas na casa-grande, bem como a partir da venda
e aluguel dos sujeitos negros para esse fim (ABREU, 2021).
Neste sentido, os marcadores de raça e de gênero que, enquanto
construções sociais, produzem e reproduzem a associação das mulheres
às habilidades relacionadas ao cuidado e às atividades “da casa” (cozi-
nhar, lavar e passar roupas, limpar a casa e cuidar de crianças, idosos e
doentes), e, tudo isso, ao corpo negro, definem o “lugar” e a “condição”
de ainda maior vulnerabilidade social das mulheres negras, assim como
sua inserção laboral, em particular no contexto da pandemia do coronaví-
rus (Covid-19), que se estende de março de 2020 aos nossos dias.
É sabido que a Covid-19 tem tem grande impacto nos diferentes
setores da sociedade brasileira, como é o caso do setor econômico e, em
especial, no mercado de trabalho. Como forma de conter a disseminação
desse vírus, houve a necessária determinação, em vários estados brasilei-
ros, acerca do distanciamento social e, com isso, a restrição de atuação de
diversas atividades econômicas.
No entanto, é possível identificar distinções nesse impacto, so-
bretudo ao destacarmos as características individuais dos trabalhadores,
principalmente no que tange à raça/cor e ao gênero, em seus respectivos
postos de trabalho ou ocupações.
Com base nos dados da PNAD Contínua, de 2018 a 2020, Barbosa,
Costa e Hecksher (2020) realizaram uma análise acerca das característi-
cas dos trabalhadores com maior probabilidade de perda do emprego, no
contexto da crise econômica provocada por esta pandemia, por meio da
comparação entre dois momentos:

073
antes da crise (último trimestre de 2019) e início da crise
(março de 2020 ou a última quinzena de março de 2020).
Por meio dessa comparação, é possível identificar as pessoas
que estavam trabalhando e as que deixaram de trabalhar, seja
porque foram para fora da força de trabalho ou porque estão
desempregadas (BARBOSA; COSTA; HECKSHER, 2020,
p. 57-58).

Segundo os dados levantados, entre os grupos com maiores chan-


ces de desemprego estavam as mulheres, pretos e pardos, e, ao longo de
março de 2020, considerando apenas a última quinzena, havia uma ten-
dência de elevação dessa probabilidade, sinalizando para um acirramento
das desigualdades já existentes no mercado de trabalho, visualizado no
período anterior à crise. Com isso, a pesquisa constata que:
Os mais afetados em termos de perda de ocupação foram as
mulheres, os mais jovens, os pretos e os com menor nível
de escolaridade. No que diz respeito aos postos de trabalho,
destacam-se os trabalhadores com jornada parcial, informais
e com menores salários entre os que tiveram perdas
significativas (BARBOSA; COSTA; HECKSHER, 2020 p.
61).

Tendo em vista a informação de que mulheres e pretos são aqueles


que mais perdem suas ocupações e que sofrem os maiores impactos da
crise acirrada pela pandemia Covid-19, cabe destacar o “lugar” e a condi-
ção das mulheres negras.
Benevides et al. (2021) também nos informam que é expressivo
o número de mulheres pretas que compõe a categoria de trabalhadoras
8 9
domésticas e que “a desvalorização do trabalho doméstico está relacio-
nada às três dimensões sociais: a desigualdade de renda, o racismo e a
discriminação de gênero” (BENEVIDES et al., 2021, p. 166), o que expli-
ca “as dificuldades de profissionalização, a baixa remuneração e a baixa
valorização social do trabalho e da categoria” (BENEVIDES et al., 2021,
p. 166).

8 - No Brasil, seis milhões de mulheres são trabalhadoras domésticas, sendo; 10% brancas e 18% negras, pobres e com
baixa escolaridade, muitas delas ainda sem carteira assinada, e, por isso, sem contar com direitos trabalhistas, bem como
sujeitas a situações de assédio moral e/ou sexual (PINHEIRO; TOKARSKI; VASCONCELOS, 2021).
9 - Definido como trabalho reprodutivo, remunerado ou não, responsável pela reprodução da força de trabalho, mas,
também, da vida.

074
Neste contexto, em 12 de março de 2020, a primeira morte no Bra-
sil por coronavírus foi a de uma mulher que trabalhava como faxineira, na
zona leste de São Paulo, assim como, no Rio de Janeiro, a primeira morte
foi de uma doméstica, que trabalhava no bairro do Leblon e teria con-
traído a Covid-19 de sua “patroa” recém-chegada da Itália (PINHEIRO;
TOKARSKI; VASCONCELOS, 2021).
Logo, estas trabalhadoras domésticas, mulheres negras, sobretudo,
ainda que tenham mantido sua ocupação, se encontram num estado de
grande vulnerabilidade, que se destaca ainda mais na pandemia, frente a
uma maior exposição ao coronavírus, seja nos domicílios nos quais traba-
lham e no contato com seus moradores, seja em virtude do trânsito entre
suas casas e o seu trabalho (longas jornadas em ônibus públicos, geral-
mente lotados), seja devido às próprias condições precárias de moradia e
de vida (e os cuidados com a própria família), uma vez que não têm a ga-
rantia do isolamento social, e, muitas vezes, do acesso aos equipamentos
de proteção e materiais de higienização. E sem poder contar com o apoio
do Estado em caso de demissão ou afastamento por motivo de saúde, já
que muitas não têm carteira assinada.
Diante disso, no primeiro momento da pandemia, a Federação Na-
cional de Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD) realizou campanhas
demandando aos/às empregadores/as, muitos dos quais em trabalho re-
moto em seus domicílios, a liberação dessas trabalhadoras, tanto diaristas
quanto mensalistas, de suas atividades profissionais, sem a suspensão de
seus salários, assim como, também, o Ministério Público do Trabalho de-
fendeu a “quarentena remunerada”, sempre que possível. Mas, a definição
do trabalho doméstico como serviço essencial, por parte de alguns gover-
nos e prefeituras, inviabilizou tais reivindicações e posicionamentos. Por
outro lado, houve casos de dispensas sem a manutenção dos rendimen-
tos e, em menor escala, de liberação com essa manutenção (PINHEIRO;
TOKARSKI; VASCONCELOS, 2021).
Cabe destacar que, entre os casos de dispensa, podem ter ocorrido
situações em que as trabalhadoras domésticas passaram a contar com o
Auxílio Emergencial (Lei no. 13.982, de 02 de abril 2020) ou com o Be-
nefício Emergencial de Preservação do Emprego e Renda (Lei no. 14.020,
de 06 de julho de 2020), a partir do “acordo” entre empregador/a e em-
pregado/a de redução da jornada de trabalho ou suspensão do vínculo de
trabalho, tal como sancionados pelo atual governo federal (PINHEIRO;
075
TOKARSKI; VASCONCELOS, 2021).
No entanto, torna-se evidente a drástica redução da renda destas
trabalhadoras, assim como de outros, chegando ao nível apenas de uma
precária subsistência, bem como a limitação desses auxílios em alcançar
o imenso contingente de desempregados do país.
Ao longo dos meses de pandemia, e a partir dessas definições, os
sindicatos das trabalhadoras domésticas e a FENATRAD têm recebido
denúncias de violações de direitos - de exaustivas jornadas de trabalho e
desvio de funções às restrições de locomoção e cárcere privado (PINHEI-
RO; TOKARSKI; VASCONCELOS, 2021)
Portanto, os impactos da pandemia COVID-19 no mercado e nas
relações de trabalho, em particular no caso do trabalho doméstico, não só
acentuam as desigualdades sociais, de gênero e étnico-raciais já existen-
tes, mas, também, a sobrecarga de trabalho, a redução de renda (e, muitas
vezes, o próprio desemprego) e de direitos fundamentais, com preocupan-
tes implicações na saúde mental e física das trabalhadoras domésticas, em
sua maioria negra, agravada, inclusive, pela maior exposição ao corona-
vírus.
Não obstante, neste alarmante cenário já despontam algumas ten-
dências: envelhecimento do perfil da categoria de trabalhadora doméstica,
com o crescimento do grupo com 45 anos ou mais e, proporcionalmen-
te, redução do grupo com até 29 anos de idade, que, com maior nível
de escolaridade, busca por outras ocupações, sem maiores exigências de
qualificação, como telemarketing; aumento do número das diaristas, as
quais atuam, com jornadas semanais de até dezesseis horas (ou dois dias
na semana), em mais de um domicílio, sem possuir vínculo empregatício
com nenhum deles, o que contribui para a persistência da informalidade.
Neste sentido, por tudo o que foi exposto até aqui, é possível con-
cluir que, apesar das importantes conquistas desta categoria ao longo da
última década, principalmente com a promulgação da Convenção sobre o
Trabalho Decente para as Trabalhadoras Domésticas e os Trabalhadores
Domésticos (Convenção n. 189), ainda há um número significativo de
trabalhadoras domésticas, do cuidado, sem carteira assinada e, com isso,
sem usufruir das “proteções” previstas nesse documento, com maiores
níveis de vulnerabilidade e desproteção social entre as mulheres negras.

076
A pandemia e os impactos na educação brasileira
Considerando os impactos da pandemia COVID-19 no mercado e
nas relações de trabalho, faz necessário olharmos para as implicações des-
sa situação no campo educação que atinge majoritariamente a população
jovem, pobre e negra que vivencia um conflito entre a precariedade das
instituições escolares e a luta pela sobrevivência.
Inúmeras pesquisas vêm denunciando que, no Brasil, apesar do
aumento de acesso nas escolas nos últimos anos, ainda permanece um
abismo entre os grupos sociais, principalmente quando se analisa as opor-
tunidades e desempenhos entre brancos e negros. Segundo dados do Insti-
tuto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), por exemplo, em 2016, 98%
das crianças entre 6 e 14 anos no Brasil estavam matriculadas no ensino
fundamental e 70% dos jovens de 15 a 17 anos frequentavam o ensino
médio. Os índices são praticamente os mesmos se separados por matrícu-
las de brancos, de pretos e de pardos no Ensino fundamental: 98%, 98,7%
e 97,9%, respectivamente. No entanto, essas mesmas pesquisas destacam
que a obtenção de acesso não representa necessariamente ofertas de opor-
tunidades iguais e desempenho, haja vista que os dados indicam que pre-
tos e pardos representam a menor porcentagem dos que concluem a Edu-
cação básica. A alta taxa de evasão está relacionada geralmente a questão
do trabalho, pois muitos desses jovens abandonam a escola pela necessi-
dade de trabalhar ou mesmo pela impossibilidade de conciliar horários da
escola e do trabalho.
Além disso, o baixo desempenho na aprendizagem é um problema
que afeta essa população que é a maioria nas escolas com menor estrutura,
como observa Macaé Evaristo (2017), ao se referir aos jovens negros e
pardos estudantes do Ensino Médio: “Os jovens das comunidades mais
vulneráveis têm acesso a escolas com infraestrutura mais precária, que no
geral têm profissionais de educação sem a formação desejada nas áreas do
currículo demandadas para o Ensino Médio” (EVARISTO, 2016).
Diante desse quadro que evidencia as disparidades que separam
ricos e brancos de pobres e negros, a pandemia do novo coronavírus es-
cancarou essa problemática e impôs desafios ainda mais urgentes para
escolas e professores. No Brasil, após as confirmações dos casos e o alerta
das autoridades de saúde quanto a gravidade da COVID-19 em março de
2020, as instituições escolares fecharam seus espaços e se prepararam
077
para uma nova configuração de ensino; as atividades remotas.
De maneira geral, os desafios enfrentados pelas escolas brasileiras
fazem parte das respostas educativas que os sistemas de ensino, as esco-
las e a pedagogia de todos os países deram a pandemia, denominado por
Nóvoa (2022) como “Lições aprendidas nas respostas à pandemia”, assim
descrita pelo pesquisador:
Primeira – De um modo geral, a resposta ao nível dos
sistemas educativos foi frágil e inconsistente. Os ministros e
as autoridades públicas ficaram dependentes de plataformas
e de conteúdos disponibilizados por empresas privadas, não
sendo sequer capazes de assegurar o acesso digital a todos
os alunos.
Segunda – A resposta ao nível das escolas foi, em muitos
casos, bastante melhor. Através das suas direções avançaram
soluções mais adequadas, sobretudo quando conseguiram
uma boa ligação às famílias e o apoio das autoridades locais.
Percebeu-se bem a importância dos laços de confiança entre
as escolas, as famílias e os alunos.
Terceira – No entanto, as melhores respostas vieram
dos próprios professores que, através da sua autonomia
profissional e de dinâmicas de colaboração, conseguiram
avançar propostas robustas, com sentido pedagógico e com
preocupações inclusivas. Mais do que nunca ficou claro que
os professores são essenciais para o presente e o futuro da
educação (NÓVOA, 2022, p. 26).

No Brasil, assim como em muitos países analisados por Nóvoa


(2022) “a pandemia tornou evidente que o potencial de resposta está mais
nos professores do que nas políticas ou nas instituições, cabendo aos do-
centes minimizar os conflitos e as dificuldades trazidas pela realidade
dessa nova configuração escolar” (NÓVOA, 2022, p. 27). Nesse contex-
to, nas escolas brasileiras, principalmente as localizadas nas periferias,
acentuaram se as desigualdades, causadas pelo descaso por parte do poder
público, se caracterizando pela ausência de infraestrutura, desemprego,
fome e desnutrição crônica de jovens e crianças em idade escolar. Da-
dos revelados pela pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF) apontam que entre os estados brasileiros que adotaram o ensi-
no remoto, apenas 15% distribuíram dispositivos aos alunos, e menos de
10% subsidiaram o acesso à internet. Como consequência, 3,7 milhões de
078
estudantes matriculados não tiveram acesso a atividades escolares e não
conseguiram estudar em casa.
Assim, os números mostram que a pandemia de covid-19 piorou
o acesso à formação educacional de segmentos historicamente mais mar-
ginalizados da sociedade brasileira, acentuando as desigualdades educa-
cionais e aumentando o abismo entre estudantes brancos, pobres e ne-
gros. Faz-se urgente pensar em medidas que possibilitem que o campo da
educação seja efetivamente um dos caminhos para o projeto de vida de
grupos vulneráveis.

Silenciamento nas taxas e invisibilidade nos dados


da pandemia: o negro desfocado na crise sanitária
Com relação aos impactos da pandemia no mundo do trabalho,
como se pôde verificar anteriormente, especialmente o labor doméstico,
realizado majoritariamente por mulheres negras e, ainda, no universo edu-
cacional-escolar, em que as crianças negras são as mais afetadas diante os
fatores socioeconômicos. Iremos constatar na área da saúde algo similar,
mas com uma diferença as taxas de morbidade e dados estatísticos e nu-
méricos de mortalidade são bastante imprecisos, não confiáveis, quando
se trata de identificar a população negra como a que foi a mais impactada
pela pandemia, por alguns motivos que descortinaremos aqui (SANTOS,
2020a; SANTOS, 2020b).
Não se fala nesse contingente populacional, mas tão somente nos
aspectos socioeconômicos da população em geral, como se o recorte raça/
cor não fosse um determinante social importante para se entender e mudar
a curva da pandemia no Brasil. O que é mais trágico, grave e criminoso
é que a área da saúde é do Estado, não de um governo A, B, C ou do
governante D ou E, ou, ainda, do Partido de Sicrano ou de Beltrano. Ela
não pode se comportar como se estivesse ainda no século XIX, momento
recente do fim dos escravismos no Brasil, sendo refém de um Estado que,
ainda, atendia os “mais baixos” interesses daqueles que continuavam a
serem os oligarcas rurais, os bacharéis ilustrados, os letrados de gabinete,
os pseudodemocratas que se postavam de liberais.
A área da saúde, no início do século XX, esteve comprometida com
o Estado desenhado, arquitetado e pensado por homens como João Batista
079
de Lacerda, médicos e antropólogos brasileiros que defendiam a extinção
da raça negra no Brasil. Ele (João Batista de Lacerda) sendo um dos gran-
des difusores da ideologia e projeto de embranquecimento da população
brasileira, visando o desaparecimento social do negro pela fome, miséria,
analfabetismo e sem apoio das instituições de saúde. Naquele momento,
porém tudo foi sendo operado de maneira sistemática, mas não em silên-
cio. No entanto, a invisibilidade dos dados, das fontes e das identidades
sócio-étnico-raciais eram mantidas estabelecendo de maneira recorrente
o anonimato dos sujeitos – as vítimas. Elas (as vítimas) eram transforma-
das em apenas números, sem nomes, sem identidades quaisquer. Proces-
so social esse que estava acontecendo com o apoio das forças políticas,
econômicas, sanitárias, educacionais, de segurança e de justiça do Estado
naquele momento. E hoje, com a pandemia do novo Coronavírus, como
essas forças sociais e institucionais operam?
As instituições de Estado, em especial, as vinculadas à área da saú-
de, ainda, não dão o devido valor a esse determinante social que é o iden-
titário, especialmente o de raça/cor, pois ao não considerarem o racismo
ou os racismos como fenômenos importantes que informam a qualidade
da saúde dos indivíduos, também o fazem, especialmente em decorrência
de não olharem para esse fator desde o processo de formação dos seg-
mentos que atuarão na área médica e na enfermagem e nas suas diversas
especializações e residências em centros e hospitais universitários, por
exemplo.
O racismo e os racismos que estão nestas áreas da saúde já estão
postos desde a sua formação, mas ela não é atoa, casual, momentânea, ela
também é estruturante, posto que já no processo de ensino e de aprendi-
zagem já se é (in)formado/(in)formada a quem se deve socorrer e dar o
melhor. Isto é àquele que terá mais chances de ser vitorioso na vida e dar
maior rentabilidade para a vida social de um grupo, de uma classe, de uma
nação e/ou de um Estado.
Nessa pandemia isso está nítido se prioriza os jovens em detrimen-
to de quem, segundo os protocolos da área médica? Da mesma maneira,
a pergunta poderia ser feita, se prioriza os mais ricos em detrimento de
quem, segundo os protocolos do “bom senso” médico? E, ainda, insistin-
do nessa mesma lógica, se prioriza o atendimento de quem se os pacientes
são brancos e negros para irem à UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e
para uso escasso de aparelhos de respiração artificial e por um período
080
longo, ainda, se atendendo aos preceitos dos protocolos e “bom senso”
médicos?
Podemos, assim, inferir que os protocolos e o bom senso médicos
também estão eivados de um problema ético, étnico, racial, de gênero/
orientação sexual e etário, mas ainda de renda individual e de rentabili-
dade coletiva? O que nos sugere que a classe social juntamente com os
outros fatores/variáveis/determinantes/marcadores sociais atuam em con-
formidade e em conjunto a fim de apagar a mácula dos escravismos, mas
também dos racismos em uma sociedade que não se quer racista, sexista e
violenta com os idosos, especialmente os negros, ambos velhos e negros,
seres descartáveis.
Os protocolos, o bom senso médicos e a ausência de informações
confiáveis estão assentados por essa lógica que está na base do pensa-
mento darwinista social e no capitalismo liberal antigo. Eles que tanto
impuseram as teorias raciais, as doutrinas eugenistas e as ideologias eu-
rocêntricas de branqueamento e de superioridade étnico-racial, inclusive
científica sobre todos, entre os quais e principalmente quanto aos negros,
posto que a cidade, o espaço urbano que era um lugar de contenda, de
competição e de convivência, como nos é apresentado por Sidney Cha-
lhoub (1996) e Nicolau Svecenko (1993, 1995).
As ciências da saúde e as médicas em especial são caudatárias des-
se pensamento, dessas teorias, dessas doutrinas e ideologias, isto é os es-
tudantes e professores da área da saúde são e estão sendo formados em
medicina e enfermagem nessa escola de formação do darwinismo social
e do capitalismo liberal antigo, mas isso também é invisibilizado, não
dito, sendo quase um tabu falar nisso, mas a pandemia do Coronavírus
está deslindando isso também. Que triste informação!!! Ampliou-se o co-
nhecimento científico e tecnológico nessas áreas, mas o fundamento hu-
manista hipócrita de Hipócrates continua o mesmo, posto que se escolhe
quem morre e quem vive tendo debaixo do braço e na cabeça a Declara-
ção Universal dos Direitos Humanos.
Desta maneira, a população africana que aqui, no Brasil, chegou
transladada do século XVI ao século XIX fez uma viagem com um des-
gaste físico, psíquico, emocional sobre-humano e em condições de insa-
lubridade imensa como nos reportaram diversos historiadores ao longo de
todos os escravismos existentes no vasto território brasileiro. No entanto,
vale salientar que muitos africanos, homens livres, que aqui chegaram à
081
condição de escravizados não tiveram nenhum cuidado psíquico, emocio-
nal, ou seja terapêutico por parte daqueles que fizeram os seus sequestros
e aprisionamentos na costa ou no interior do continente africano. Eles
eram simplesmente vendidos a partir de seus portes físicos. Os cuidados
médicos e sanitários eram completamente inexistentes ou muito parcos
durante a travessia da costa africana para a brasileira, ou para qualquer
outra costa do continente americano. Os médicos e sanitaristas de plantão
nos portos de embarque (importa informar todos brancos europeus), fun-
cionários das coroas europeias e das empresas do tráfico Atlântico e, mais
tarde, também brasileiros formados nas universidades europeias apenas
estavam preocupados com os lucros das peças a serem postas e expostas
nos mercados. Eram avaliados somente os dentes, os olhos e as genitálias
a fim de se diagnosticar alguma patologia. Vale ressaltar não para buscar
uma provável cura, mas para o provável descarte mais rápido.
Portanto emoções, sentimentos, pressões psicológicas e emocio-
nais foram completamente ignoradas pelas autoridades médicas e sanitá-
rias dos períodos escravistas. Nesse período não se atentou para a Anemia
Falciforme, para a Leucopenia ou a Neutropenia étnica-racial, nem tão
pouco para outras patologias que ficaram mais presentes e ativas desse
lado do Atlântico, como o aumento significativo da incidência de hiper-
tensão arterial (LAGUARDIA, 2005), dos miomas uterinos, das eclamp-
sias, das diabetes, das pneumonias não curadas e outras patologias que,
desde o século XX se constata que são enfermidades com maior preva-
lência na população negra. Doenças essas que têm uma história social e
cultural com a população negra brasileira e que conjugadas são a porta de
entrada do novo Coronavírus como demonstram várias pesquisas acerca
das populações e grupos de risco.
Essas realidades postas em diferentes dimensões nos dá base para
interpretar nesse universo histórico-cultural, material e simbólico, forma-
tivo ou deformativo os conhecimentos e as abordagens da Antropologia
da Doença, da Antropologia Médica ou, ainda, da Antropologia da Saúde
à medida que se considera a complexidade desse fenômeno social e pa-
tológico que são os racismos na vida cotidiana das pessoas negras, mas
também na vida das pessoas não negras, leia-se as brancas, as amarelas
ou as indígenas em nosso país, sobretudo quando analisamos e interpre-
tamos a associação dessas doenças mencionadas como prevalecentes na
população negra perante a realidade exposta na pandemia da COVID-19.
082
Fica nítido do ponto de vista do mundo do trabalho como as mu-
lheres negras foram as mais atingidas; as crianças negras e a manutenção
do seu déficit educacional frente às outras crianças, inclusive associadas
aos fatores de renda sócio-econômica e, ainda, na área da saúde como
atingiu, sobretudo adultos e idosos. Demonstrando, assim, que os racis-
mos são fenômenos e processos dinâmicos (estruturantes, estruturadores
e estruturados) a partir da base piramidal que se fundamenta a sociedade
brasileira desde o século XVI quando as instituições aqui implantadas ti-
nham como projeto a substituição de populações a fim de melhor explorá-
-las, o território e suas riquezas naturais, durante a pandemia se deslindou
ainda mais esse universo sócio-étnico-racial brasileiro.

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085
086
Povos indígenas, contexto político
e o enfrentamento da pandemia

Mário NICÁCIO
Edmundo Antonio PEGGION
Jordeanes do Nascimento ARAÚJO

No início do mês de março de 2022, de acordo com a Articula-


ção dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, os casos de covid já haviam
10
afetado 68.607 pessoas de 162 povos deixando 1288 mortos . No auge
da preocupação, os organizadores do canal Ciências Sociais em Debate
sugeriram que pudéssemos tecer considerações sobre a gravidade da pan-
demia no que dizia respeito aos povos indígenas, mais vulneráveis e com
um conjunto de especificidades que os expunha frontalmente ao proble-
ma. Com o propósito de trazer informações atualizadas e que pudessem
nos dar uma ideia precisa do enfrentamento à doença, convidamos Mário
Nicácio, do povo Wapichana, da Terra Indígena Manoá-Pium, no Estado
de Roraima, Amazônia, na fronteira do Brasil com a Guiana. Mário é
Mestre em Desenvolvimento Sustentável pelo Mestrado Profissional em
Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais da Universidade
de Brasília (MESPT/UNB) e Vice Coordenador da Coordenação das Or-
ganizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB. Mário Nicácio
esteve conosco em agosto de 2020.11
Na ocasião, o debate foi importantíssimo para esclarecer questões
relacionadas à temática indígena e à situação relativa à pandemia. Mário
Nicácio apresentou um quadro geral a partir do ponto de vista de quem
está vivendo na linha de frente do enfrentamento da COVID. O presente
artigo atualiza algumas informações trazidas por Nicácio e estabelece al-
gumas reflexões acerca do impacto da pandemia no contexto dos povos
indígenas.

10 - Disponível em: https://apiboficial.org/emergenciaindigena/. Acesso em: 07 mar. 2022.


11 - Agradecemos a colaboração de Thaís Viana Barbosa, aluna de graduação em Ciências Sociais da UNESP de Arara-
quara e bolsista do PIBIC/UNESP pela transcrição das falas de Mário Nicácio Wapichana.

087
A reflexão pontua também algumas considerações acerca da impor-
tância do movimento indígena e da preocupação inerente a tais movimen-
tos em torno da luta política pelos direitos constitucionais de tais povos.
Além de uma compreensão estática e uma noção de cultura constituída
por traços, percebe-se que a luta indígena incorpora elementos do Di-
reito e estabelece um parâmetro inovador, ao propor que, acima de tudo,
haja respeito pela especificidade dos diferentes povos. Mário Nicácio Wa-
pichana, por exemplo, coautor do presente artigo, e que esteve conosco
em agosto de 2020, atualmente é vice-prefeito de Bonfim, município de
Roraima conurbado com Lethem, município da Guiana. Em cidades nas
quais há uma grande população indígena, ocupar os espaços políticos é
fator determinante para a garantia dos direitos constitucionais. Tal pers-
pectiva também é válida para o contexto das políticas públicas nacionais.

Povos Indígenas no Brasil hoje


De acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística – IBGE, havia, no Brasil, mais de 305 povos indígenas, soman-
do 896.917 pessoas (ISA, 2019). Segundo Mário Nicácio:
No Brasil, nós somos 305 povos de mais de 275 línguas
faladas e escritas também, além do português e do inglês
que são outras línguas que nós tivemos que aprender para
poder para poder nos comunicarmos com outras pessoas.
Não faz parte da nossa cultura, mas tivemos que nos adequar
para poder dialogar na forma positiva com as pessoas e na
Amazônia, nós somos mais de 180 povos e 160 línguas e
temos uma riqueza cultural de 114 povos em isolamento
voluntário (NICÁCIO, 2020).12

De fato, os povos indígenas no Brasil vivem hoje em aldeias loca-


lizadas em Terras Indígenas presentes em todas as regiões do território na-
cional. Além das Terras Indígenas, há povos que vivem em acampamen-
tos à beira de estradas (muitas vezes nas proximidades de seus territórios

12 - As considerações de Mário Nicácio Wapichana que compõem o presente artigo fazem parte de sua apresentação
durante a realização do evento Ciências Sociais em Diálogo, que teve como título “Os povos indígenas e a Covid 19:
impactos e enfrentamentos”, e que ocorreu no dia 13 de agosto de 2020.

088
tradicionais) na zona rural, nas proximidades de pequenas e grandes ci-
dades e em bairros de centros urbanos. Há, ainda, conforme indicado por
Mário Nicácio, povos em isolamento voluntário, que optaram por viver
distantes dos não indígenas e que são, no presente momento, altamente
vulneráveis em razão de invasões e ocupações descontroladas de terras,
em particular, na Amazônia.
Quando, nós, atualmente, falamos em isolamento, já temos o
isolamento cultural que fazemos por nossa decisão mesmo,
coletiva porque hoje a Fundação Nacional do Índio reconhece
28 povos em isolamento voluntário dos 114. Toda a estrutura
que tem a Fundação Nacional do Índio foi criada pra
coordenar e mapear os povos indígenas, mas atualmente tem
suas dificuldades e fins que cabe a nós estarmos atento. Temos
mais de 430 territórios indígenas demarcados e homologados
e também os direitos garantidos na Constituição Federal que
é o direito ao território. Antigamente demorava 5 anos para a
demarcação de uma terra indígena, hoje, mais de 15 anos com
todos as dificuldades jurídicas nos últimos governos a gente
não têm nenhuma terra indígena demarcada na Amazônia no
governo do Temer, também nesse desgoverno que está no
Brasil não está nos dando nenhum sossego para poder dizer
que vamos ter terra demarcada, que vamos ter vida nesse
Governo Federal (NICÁCIO, 2020).

O isolamento voluntário de alguns povos, muito embora caracteri-


ze uma opção, carrega um risco enorme quando não há interesse do poder
público em garantir esse direito. Em geral, os territórios de tais povos são
sempre os mais cobiçados por grileiros, madeireiros e garimpeiros. São
terras nas fronteiras das frentes de expansão e que, consequentemente,
estão em alta pressão e exposição. Os grupos em isolamento, por sua vez,
são absolutamente vulneráveis, posto que, sem o contato regular com a
sociedade nacional, correm o risco de contrair doenças que podem dizi-
má-los rapidamente. Além disso, por conta de direitos constitucionais, a
identificação de um povo indígena em um território está implicada na ga-
rantia à ocupação já que seus direitos são originários. Sendo assim, não é
incomum que se elimine qualquer vestígio de presença indígena em locais
nos quais há interesse fundiário. 13

13 - “ § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio

089
Pela legislação, os povos em isolamento voluntário devem ter seus
direitos respeitados e o entorno de seus territórios deve ser protegido.
As Frentes de Proteção Etnoambiental da Fundação Nacional do Índio
– FUNAI é que são responsáveis pelo monitoramento e vigilância, mas
o corpo técnico costuma ser diminuto para as proporções do trabalho e
os protocolos devem ser renovados periodicamente. Um exemplo de tais
procedimentos está no documentário intitulado “Piripkura”, dirigido por
Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge, lançado em 2017.
No atual governo, tais sistemas de proteção foram fragilizados e o
impacto da disputa pela terra tem colocado em risco todos os grupos em
isolamento voluntário. Um exemplo é justamente o caso dos referidos Pi-
ripkura, cujo território foi a leilão recentemente.14 Além disso, tramita no
Congresso Nacional o Projeto de Lei 490/2007, já aprovado na Comissão
de Constituição e de Justiça da Câmara, que permitirá o contato com po-
vos indígenas em isolamento voluntário caso seja uma ação de “utilidade
pública”, além de instituir o Marco Temporal. No fundo, para elaborar
uma reflexão sobre a questão indígena, é necessário levar em considera-
ção a questão da regularização fundiária.
A Constituição Federal de 1988 define o direito à terra da seguinte
maneira:
“§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as
por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para
suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação
dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as
necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus
usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios
destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto
exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas
existentes” (BRASIL 1988, cap. 8, art. 231).

e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas
existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a
nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias
derivadas da ocupação de boa fé” (BRASIL, 1988, cap. 8, art. 231).
14 - Disponível em: https://oglobo.globo.com/um-so-planeta/piripkura-area-de-terra-indigena-com-isolados-na-amazo-
nia-legal-vai-leilao-como-fazenda-em-sp-25435876. Acesso em: 23 mar. 2022.

090
A Constituição indicava, também, um prazo de cinco anos para
a demarcação das Terras Indígenas a partir de sua promulgação, sendo
que a responsabilidade pela proteção e demarcação é da União (BRASIL,
1988). Hoje, porém, como bem sabemos, muitas Terras Indígenas conti-
nuam sem estudos de identificação ou demarcação. Ademais, há muitos
povos vivendo em situações precárias em razão justamente da expulsão
ou da não regularização de seus territórios, como é o caso dos povos indí-
genas Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul.
O atual governo, por sua vez, deixou um indicativo de quais seriam
os procedimentos com relação aos povos indígenas, seja pelas declara-
ções públicas, seja pela legislação instituída. Em 2019 editou a Medida
Provisória n.º 870/2019 transferindo para a Ministério da Agricultura, Pe-
cuária e Abastecimento a responsabilidade sobre a regularização fundiá-
ria das Terras Indígena, retirando da FUNAI tal prerrogativa (BRASIL,
2019a). E reabriu-se, no Congresso Nacional, o debate em torno do cha-
mado Marco Temporal que pretende estabelecer a data da promulgação da
Constituição, acima citada neste artigo, como referência para as demarca-
ções. Em outras palavras, estabelece que os povos indígenas que não es-
tavam em suas terras em período anterior à Constituição não terão direto
a ela. Um mínimo de conhecimento do processo político e histórico do
país é indicador suficiente para demonstrar que tais ausências decorrem,
justamente, de atos de violência e de expulsão. Como não imaginar uma
situação de risco para os povos indígenas que, além de serem mais sensí-
veis a certas doenças, vivem um contexto de insegurança legal, além de
enfrentarem problemas como a desnutrição nas aldeias? Como nos disse
Mário Nicácio:
O desafio maior para nós, hoje, é garantir a nossa vida
indígena, garantir a vida da natureza, os nossos rios, a
nossa árvore, a nossa mata que hoje, infelizmente, está
sendo muito atacada. Muita invasão de garimpeiro que é
uma atividade ilegal em qualquer território, seja em nossa
residência - que é chamada terra indígena - seja na residência
de vocês. Explorar qualquer objeto, explorar qualquer planta
no terreno de vocês têm que pedir licença, não têm que
invadir. Então, isso está acontecendo. Essas invasões com
madeireiros, garimpeiros e grilagem muito fortes que estão
custando muitas vidas indígenas. Na verdade é um genocídio

091
que precisa ser barrado pela sociedade, pela justiça do Brasil.
É um desafio para todos nós, também, indígenas, utilizar
essa linha jurídica para poder atuar e garantir a vida dos
povos indígenas. O desafio, também, principal e comum é o
enfrentamento do Covid-19 (NICÁCIO, 2020).

O enfrentamento da pandemia
A gestão da saúde indígena é feita pela Secretaria Especial de Saú-
de Indígena – SESAI, vinculada ao Ministério da Saúde. A SESAI coor-
dena a Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena no Sistema Único
de Saúde – SUS. Desde o final dos anos 1990 criaram-se os Distritos Sa-
nitários Especiais Indígenas que contam com a participação de indígenas,
equipes de saúde e antropólogos (ATHIAS, 2004; PELLEGRINI, 2004).
Há uma série de questões que se pode levantar acerca da saúde
indígena, mas vamos aqui nos ater, especificamente, à questão da Covid.
Para além de uma maior vulnerabilidade para doenças respiratórias e di-
versas situações insalubres nas quais vivem muitos povos indígenas, há
outros fatores que incidiram sobre a grave situação relacionada à atual
pandemia.
A pandemia trouxe à tona a percepção de alguns fatores centrais
para a nossa compreensão da alteridade: exigimos que os povos indígenas
sejam “tradicionais”, mas não nos atentamos para a violência atual no
entorno das terras indígenas: devastação, garimpos, pressão econômica de
todo tipo, muitas vezes falta de proteção e de regularização fundiária. Por
outro lado, estamos nos dando conta de que há um movimento indígena
organizado e que está atento e em luta constante. A situação tem exigido
um repensar acerca de conceitos e ideias como cultura e identidade.
Segundo Cunha, há duas maneiras de conceber tais conceitos. A
primeira a autora chama de platônica e é aquela que percebe a identidade
e a cultura como coisas. A identidade consistiria em ser idêntica a um mo-
delo, supondo uma essência, e a cultura seria constituída por itens, regras
e valores. Como alternativa, a autora propõe a identidade como a percep-
ção de uma continuidade, de um processo, de uma memória. E a cultura
seria, nesse caso, não um conjunto de traços dados, mas a possibilidade
de gerá-los em um sistema perpetuamente cambiante. A essa perspectiva
092
ela deu o nome de heracliteana (CUNHA, 1994).
E é justamente dentro dessa segunda perspectiva que é possível
compreender o movimento indígena atual. Há uma intensa organização e
tomada de consciência de que é fundamental assumir as frentes de luta,
contando, certamente com aliados.
No Brasil, hoje, há muitas entidades indígenas que são conduzidas
por lideranças importantíssimas. Duas delas se destacam no debate atu-
al: a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira -
COIAB 15e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - APIB16. Além de
tais entidades, temos diversas outras que se conectam entre si tais como
a Aty Guasu, do povo indígena Guarani Kaiowá e o Conselho do Povo
Terena. Durante o período mais intenso da Covid foram tais entidades que
fizeram um duplo trabalho: de um lado tentando convencer os parentes
da importância da vacinação (pois se sabia que muitas pessoas do entor-
no das Terras Indígenas espalhavam fake news sobre o tema), e de outro
foram para a imprensa nacional e internacional para denunciar o descaso
dos serviços públicos para com os povos indígenas.

Covid-19, a gente nem conseguia traduzir. É uma doença que


chega rápido, é uma doença que mata rápido. É uma doença
que não permite você estar ali com o seu ente querido. Nós
indígenas lutamos tanto para ter liberdade, para não sermos
privados de nada, mas o Covid é um aliado daqueles que
querem nos privar, que querem nos isolar cada vez mais, sem
ter acesso à saúde, educação, informação. Essas orientações,
sem dar a voz a todos nós é um desafio o enfrentamento.
Nós povos indígenas, nós aliados da sociedade civil estamos
enfrentando hoje, e desde março, um anúncio e comunicado
da APIB, da COIAB, do Conselho Indígena de Roraima,
no qual sou associado aqui em Roraima, sobre o alerta do
Covid.
Fizemos uma campanha, fizemos um plano emergencial aqui
na Amazônia. Tentamos explicar o que é o Covid na língua
indígena, fizemos campanha escrita, todo o conhecimento,
tudo que obtivemos nesses mais de 520 anos, seja na escola,
seja na comunidade, estamos colocando na prática. Estamos

15 - Disponível em: https://coiab.org.br/. Acesso em: 12 abr. 2021.


16 - Disponível em: https://apiboficial.org/. Acesso em: 12 abr. 2021.

093
colocando o papel e a caneta pra falar. Nesse momento atual,
o nosso conhecimento tradicional, da medicina tradicional
é o que nos está garantindo, pois aqui não chega teste para
saber se é Covid, mas aqui nós tivemos que não esperar
esse teste chegar, senão a gente ia morrer. E os povos
indígenas estão usando da medicina tradicional e do trabalho
espiritual para nos dar força e enfrentarmos esse Covid.
Muitos indígenas tiveram que fazer isso, além de enfrentar
o racismo institucional, pelo preconceito, por todo tipo de
coisa ruim que os invasores têm - que em maioria ocupa o
espaço público - e nós tivemos, também, essa exclusão do
atendimento público que deveria, também, ser muito mais
inclusivo (NICÁCIO, 2020).

E a Covid chegou ceifando vidas nas comunidades indígenas. A


se pensar que em um contexto de sociedades ágrafas, cujo registro está
fortemente baseado na memória oral, pode-se imaginar as consequências.
Pode-se utilizar um termo do universo fisiológico para se descrever as
consequências sobre os povos indígenas: haverá sequelas coletivas que
serão duramente enfrentadas pelos povos indígenas no Brasil.
O Covid chegou e estamos em uma campanha agora de
enfrentar. Agora a gente não está mais discutindo se vamos
criar barreiras porque o Covid está no meio da gente, dos
povos indígenas. Em qualquer território já está, seja naqueles
que estão com mais acesso à cidade ou aqueles estão com
difícil acesso, que se vai só de avião ou a pé. Estamos
trabalhando muito a segurança alimentar e fomos orientados
por especialistas que passaram pela academia, médicos,
médicas, seja no atendimento remoto, sejam nessas lives
que estamos participando, dizendo que nós temos que ter
uma boa alimentação porque esse bicho do Covid, ele tira
a nossa fome, tira nosso cheiro e tira nossa sede. Então, por
aí vai nos matando. O que nos foi orientado, nós estamos
investindo muito na segurança alimentar e contando com
o apoio da sociedade civil como sempre. Nós indígenas na
tentativa de garantir a segurança alimentar para não deixar
que nossos parentes cheguem naquele tubo que colocam no
nosso nariz já mata a gente. A gente acha que é uma máquina

094
de matar gente se não cuidar direito antes de chegar lá. A
gente já faz esse tratamento e usamos também os elementos
jurídicos que a gente tem acesso agora - o Ministério Público
Federal, o Supremo Tribunal Federal - mesmo tendo toda a
dificuldade de acessar e a sociedade civil também. Trazer
os estudos, seja com pesquisa ou levantamento de dados.
Estamos fazendo também levantamentos de dados dos
infectados e dos falecidos, nós mesmos estamos fazendo e
comparando com os dados que a SESAI faz com o Ministério
da Saúde. Então, essa estratégia está dando indicadores para
poder enfrentar esse Covid aqui no Amazonas e estamos com
um campanha pela vida dos povos indígenas da Amazônia,
em aberto no site da COIAB e da APIB. A APIB tem um
plano de emergência e faz um trabalho importante, mas
também não tira a responsabilidade do Estado brasileiro. É
obrigação do Estado brasileiro, de uma forma constitucional
e a gente quer contribuir naquilo que vão nos orientar e esse
é o papel que nós estamos fazendo hoje, dentro da realidade
que estamos enfrentando na Amazônia e, já conseguimos
atender os povos indígenas do Sul do Amazonas, na medida
do possível. O Amazonas é o estado que tem mais infectados
indígenas e falecidos indígenas (NICÁCIO, 2020).

Um dos casos enigmáticos foi o falecimento de Aruká Juma, ocor-


rido em fevereiro de 2021. O povo Juma sofreu todo tipo de violência que
se pode imaginar em uma situação de contato com a sociedade brasileira.
Originalmente viviam na região do rio Purus, no sul do Estado do Ama-
zonas.
São vários os registros em que constam ataques e tentativas de ex-
termínio. Nos anos sessenta lutavam para impedir o avanço da exploração
em suas terras, enquanto os invasores buscavam acabar com toda a po-
pulação Juma. Em 1964 aconteceu o maior dos massacres, no igarapé da
Onça, restando deste evento apenas sete sobreviventes (BESSA FREIRE,
1996; KROEMER, 1985).
Estes sobreviventes permaneceram em suas terras, já sem represen-
tar qualquer perigo aos invasores e responsáveis pela tentativa de exter-
mínio. No final da década de 70 e início de 80 do século XX, o Conselho
Indigenista Missionário denunciou o massacre de 1964 através do Jornal
Porantim, caracterizando o fato como genocídio. Entretanto, ao que tudo
indica o assunto caiu no esquecimento (PORANTIM, ano 2, n. 5, 1978;
095
ano 2, n. 9, 1979a; ano 2, n. 10, 1979b; ano 3, n 15, 1980). Em 1993, Karé,
um homem de 35 anos, foi atacado por uma onça, vindo a falecer (BESSA
FREIRE, 1996). Os Juma reduziram-se, então, a seis indivíduos – um ca-
sal de velhos, um homem e suas três filhas - que ficaram recebendo assis-
tência esporádica da FUNAI, através da ADR de Rio Branco, que possui
um posto indígena em Lábrea e da Frente de Contato Rio Purus, ligada
ao Departamento de Índios Isolados da FUNAI. No início dos anos 1990,
tentou-se o casamento das meninas Juma com homens Parintintin e Uru-
-eu-wau-wau. Todas as tentativas realizadas nesta época foram frustradas
(RICARDO, 1996).
No final dos anos de 1990, a Administração Regional de Porto Ve-
lho retirou os Juma de sua terra, transferindo-os para a Casa do Índio. Esta
transferência acarretou no falecimento do casal de velhos, ocorrido no
Alto Jamary. Apesar da tragédia, os remanescentes acabaram vivendo por
longos anos junto aos Jupaú e, após esse período resolveram retornar para
o território original. As jovens filhas de Aruká e seus maridos e filhos.
Durante o período em que viveu nos Juapú, Aruká sonhava em voltar
para suas terras. O retorno trouxe a Aruká o seu espírito de guerreiro de
volta, mas após alguns anos vivendo em seu território, ele veio a falecer
17
de Covid.
A imprensa repercutiu o acontecimento como o fim de um povo,
pois restaram somente suas filhas mulheres, que possuem filhos com os
Jupaú. No entanto, a movimentação dos jovens filhos, netos de Aruká, foi
de preservar uma memória do povo, assumindo uma identidade que car-
rega a pessoa Juma conjuntamente com a pessoa Jupaú.
[...] infelizmente, perdemos mais de 564 vidas indígenas […]
perdemos de lideranças, anciões, crianças, mulheres, são
pessoas que fazem parte do nosso território. Uma biblioteca
viva, os livros vivos e estamos preocupados com as gerações
indígenas. Como é que nós vamos caminhar daqui para a
frente? Se elas se foram. E o Estado não está fazendo nada,
a SESAI não está fazendo nada e está querendo fragilizar
toda a nossa reivindicação e nos calar hoje. Então, eu trago
esse clamor para vocês… para a sociedade civil também
nos ajudar, para a academia nos ajudar porque é um espaço

17 - Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-02-19/o-ultimo-anciao-juma-morre-de-covid-19-e-


-leva-para-o-tumulo-a-memoria-de-um-povo-aniquilado-no-brasil.html. Acesso em: 24 mar. 2022.

096
universal de conhecimento, ligado ao nosso conhecimento
indígena pode salvar várias vidas, também, indígenas e dos
não-indígenas (NICÁCIO, 2020).

Assim como ocorreu com os Juma, muitos outros povos perderam


seus velhos, causando um impacto muito grande em diversas comuni-
dades indígenas. As lideranças imediatamente mobilizaram-se e articula-
ram-se com as suas entidades, algumas aqui referidas, para buscar apoio
e divulgação das necessidades mais imediatas. Algumas campanhas para
doação de cestas básicas e de itens de higiene ocorreram, levando o apoio
da sociedade civil para as comunidades indígenas. Em diversos momen-
tos, o impacto foi muito grande. A vida comunitária dos não indígenas, em
seu estilo urbano, é marcadamente aglomerante, mas é uma aglomeração
de desconhecidos. No caso indígena, o espírito coletivo é realizado de
maneira intensa. A vida comunitária é feita de trocas e convivências coti-
dianas. Uma situação complexa quando a recomendação é o afastamento
e o isolamento ou quando não é possível nem mesmo velar seus mortos.
Um indígena falou para mim: “como é que vocês estão
pedindo para a gente ficar isolado se na cidade está todo
mundo amontoado? Porque nós indígenas temos que nos
cuidar e as demais populações não? Se são eles que podem
trazer e transmitir essas doenças para nós!” Então, é um
clamor que nós precisamos ter com o próximo e transmitir
essa segurança para que todos tenham essa oportunidade de
vida. Nós indígenas estamos nessa preocupação também.
Existe uma preocupação aí, de abertura de aulas né, em
muitos lugares a gente nem tem lugares pra gente ministrar
as aulas, pois muitos professores indígenas faleceram. A
maioria dos professores indígenas, professores e professoras
né, e alunos e aqui, existe uma discussão de testar alunos,
mas os alunos moram com a família. Como é que vai testar o
aluno, se não testa o pai, a mãe, o avô ou a tia? (NICÁCIO,
2020).

Esse ponto – a testagem – foi central no processo. Se houvesse


uma política pública de ação imediata, com procedimentos de testagem,
muitas vidas teriam sido poupadas. A se pensar, conforme vimos, em uma
vida comunitária e compartilhada na circulação de dádivas, a testagem e
o isolamento teriam evitado a disseminação da doença em comunidades
inteiras. A fragilidade dos corpos, que já vivenciam um contexto de aban-
097
dono e dificuldades, ceifou vidas, em particular de velhos e crianças.
Muito se foi em termos de memória e de conhecimento. São perdas
irreparáveis não somente para os povos, mas também para a humanidade.
Um elemento fundamental já discutido por grandes intelectuais sobre a
inseparabilidade entre conhecimento, que traz contribuições aos humanos
como um todo e seu contexto de produção (CUNHA, 2009). A chamada
biodiversidade, por exemplo, não pode ser concebida sem incluir a so-
ciodiversidade. Nesse contexto, a se pensar nesse sentido, podemos nos
perguntar: qual a contribuição efetiva à humanidade (excetuando-se as
possíveis lições daquilo que não se deve fazer) deixará o atual Presidente
da República? Os povos indígenas deixarão muitas e muitas estão se per-
dendo diante de nossos olhos. A pandemia não é a primeira tragédia que
assola os territórios indígenas.
Existe uma diversidade gigante na Amazônia, além dos
recursos naturais, dos territórios, da água, da biodiversidade e
todo tipo de recursos naturais que faz o equilíbrio ambiental,
o equilíbrio das mudanças climáticas, água potável, que faz
com que o mundo tenha um equilíbrio na chuva, no ambiente.
Muita gente fala que é o pulmão do mundo, mas se a gente
não cuidar do pulmão vocês sabem como é que é né, tanto
que o Covid têm demonstrado isso. Em 2019 as queimadas
têm demonstrado isso, o pulmão que não funciona bem a
pessoa morre, todo tipo de animal morre. Então, vejo, já que
a Amazônia é o pulmão do mundo, é importante que todos
cuidem. Cuidem de uma forma positiva com a ajuda dos povo
indígenas. Estamos aqui para poder cuidar da natureza para
que todos tenham vida, para que todos possam ter bem viver
e pensem nas gerações. Vejo que todos vocês com certeza
têm filhos, netos, bisnetos, tataranetos. Não sei se isso é
o que eu estou falando, mas no mundo indígena já existe
isso, então nós pensamos numa geração a mais de séculos.
A gente não pensa numa geração no presente, a gente pensa
numa geração no futuro. Por isso nós estamos aqui, para que
todos possam ter esse trabalho reconhecido e seguido pelas
próximas gerações e, também, apresento para vocês, nessa
luta dos povos indígenas, desde quando teve as primeiras
invasões e a primeira resistência (NICÁCIO, 2020).

098
Considerações finais
O presente artigo tentou tecer algumas considerações acerca da
questão sobre a epidemia de Covid 19 e seu impacto nos povos indígenas.
Seu ponto de partida foi o evento, ocorrido em 13 de agosto de 2020,
no contexto do evento organizado pelo Departamento de Ciências So-
ciais da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulis-
ta – UNESP, campus de Araraquara. Sua transmissão deu-se no Canal do
Youtube “Ciências Sociais em Diálogo”, um projeto do referido Departa-
mento e que surgiu como iniciativa de alguns docentes no momento mais
intenso da pandemia.
A questão indígena era candente e tema que deveria ser levado à
discussão pelas pessoas que estão na linha de frente. Naquele momento
havia uma intensa movimentação de lideranças reivindicando testagem,
itens de higiene, cestas básicas e apoio da Fundação Nacional de Saúde
- FUNASA. Até então, não se tinha muito claro como iria se desdobrar a
pandemia e a vacinação ainda não havia se iniciado. Entramos em contato
com representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
e com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasi-
leira – a COIAB. A COIAB nos colocou em contato com Mário Nicácio,
que fez uma importante fala durante a transmissão. O objetivo do artigo
foi atualizar algumas questões e trazer novos elementos para a reflexão.
Com idas e vindas, o processo de vacinação colocou os povos
indígenas como prioridade, durante as intensas campanhas que aconte-
ceram e a despeito da disseminação de fake news sobre os riscos que a
vacina comportaria. Assim, especialistas e amigos dos povos indígenas
gravaram vídeos e áudios que circularam pelas comunidades insistindo
na importância da vacinação. Houve adesão das comunidades, muito for-
temente influenciadas pelas lideranças indígenas e por agentes públicos
comprometidos com a causa.
Tendo como pano de fundo a história do contato dos povos Indíge-
nas com doenças infectocontagiosas estranhas, a análise contemporânea
impõe algumas reflexões finais. Se a Covid 19 tem se mostrado letal às
populações do mundo, tão mais o é entre os povos indígenas, historica-
mente desassistidos pelo Estado. Objetivamos, também, perscrutar sobre
os malefícios imbricados na pandemia e que podem representar uma ame-
aça maior à existência dos Povos Indígenas do que o adoecimento físico.
099
Referimo-nos às diversas formas de matar (cujos agentes são madeireiras
ilegais, garimpeiros ilegais, queimadas desenfreadas) implicadas no atual
momento em que vivemos. Estamos, assim, sob a égide de um biopoder18,
seja no controle de corpos ou no poder de decisão de quem dever morrer
ou sobreviver, e também dentro de uma necropolítica, na qual o governo
determina, através da soberania e de uma suposta “sociedade de bem”, a
extirpação das minorias: indígenas, negros, quilombolas, idosos, mulhe-
res e LGBTQI+:
Propus a noção de necropolítica e necropoder para
explicar as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo
contemporâneo, armas de fogo são implantadas no interesse
da destruição máxima de pessoas e da criação de “mundos
de morte”, formas novas e únicas da existência social, nas
quais vastas populações são submetidas a condições de vida
que lhes conferem o status de ‘mortos-vivos’ (MBEMBE,
2016 p. 146).

Viu-se que a gestão atual do Brasil é a expressão perfeita da prá-


tica da necropolítica nos termos de Mbembe (2016), e mostrou-se mais
evidente em meio à crise do Covid 19. Ao defender reiterada e incan-
savelmente que a pandemia não existia, o atual presidente insuflou “a
população a arriscar suas vidas para garantir o lucro de um punhado de
capitalistas, em um país que sequer conhece o real número de infectados,
devido à falta de testes” (ISHIBASHI, 2020, p. 02). De fato, a guerra de-
clarada contra as minorias e contra a ciência, visualizada no desmonte das
Universidades e na propagação de calúnias absurdas contra a comunidade
acadêmica e científica, outrora risível, assumem agora uma face mortal.
A militarização do Ministério da Saúde, por exemplo, serviu ao propósi-
to de debilitar o conhecimento médico, quando o governo impôs, como
protocolo de tratamento ao Covid 19, a cloroquina e hidroxicloroquina,
mesmo com a ciência apontando sua ineficácia. Convém destacar que o
mesmo procedimento de militarização ocorreu na Fundação Nacional do
Índio – FUNAI.

18 - Em Foucault não se trata, por conseguinte, em absoluto, de considerar o indivíduo no nível do detalhe, mas, pelo
contrário, mediante mecanismos globais, de agir de tal maneira que se obtenham estados globais de equilíbrio, de
regularidade; em resumo, de levar em conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e de assegurar sobre
eles não uma disciplina, mas uma regulamentação (FOUCAULT, 2010, p. 294).

100
Ao mesmo tempo, o governo vetou um projeto parlamentar sobre
19
o abastecimento de água potável nas aldeias indígenas (BRASIL, 2020a)
e planejou leis (BRASIL, 2020b)20 para atacar os territórios indígenas,
ao incentivar a mineração, o desmatamento e a presença de garimpeiros
ilegais nas terras Yanomami, Kaapor, Munduruku, Guajajara, Tenharin,
Parintintin e outras terras Indígenas.
Ao nos debruçarmos sobre estes fatos, que dizem respeito ao modo
como o Estado se move ao tratar questões que envolvem a existência dos
povos Indígenas em tempos de pandemia - evidenciado pelo atraso das
cestas básicas, da instalação tardia da barreira sanitária, ao descaso com
os povos indígenas -, observamos, enfim, um gerenciamento de morte
(ARAÚJO; BARROSO; TENHARIN, 2020). Giogio Agambem já afir-
mou que toda política é sempre uma biopolítica: “o que é uma sociedade
que não tem outro valor que não seja a sobrevivência?” (AGAMBEM,
2020, p. 02). Nesse sentido, é em nome da sobrevivência que os gover-
nantes governam, observa o autor, ao interrogar acerca das concessões à
liberdade a que estamos dispostos em função do risco. Assevera o autor,
ainda, que a gestão das formas das vidas a serem preservadas só existe sob
o controle da liberdade.
As considerações de Agambem (2020) a respeito do biopoder nos
ajudam a pensar as intenções das agências estatais (FUNAI e SESAI) ao
construírem uma política de proteção sanitária para os Povos Indígenas. O
atraso para a instalação de uma barreira de proteção epidemiológica, (cau-
sa da morte de Aruka Juma) por exemplo, escancarou que a política não
é aplicada em defesa da vida; antes, a defesa da vida é reivindicada como
fundamento para a política. No Brasil esse entendimento engendrou, de
algum modo, uma “política de morte”, levada a termo através das ações
das agências estatais, agora militarizadas, postas a serviço do agronegócio
e da exploração ilegal dos recursos naturais de territórios indígenas.

19 - O presidente Jair Bolsonaro sancionou com vetos a lei que prevê medidas de proteção para comunidades indíge-
nas durante a pandemia de coronavírus. O Poder Executivo barrou 16 dispositivos da norma. Entre eles, os pontos que
previam o acesso das aldeias a água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos.
20 - O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) visitou na 3ª feira (26 out. 2021) a região de garimpo ilegal na terra
indígena Raposa Serra do Sol, no município de Uiramutã, em Roraima. Usando um cocar, símbolo indígena, Bolso-
naro voltou a defender o trabalho dos garimpeiros. “Esse projeto não é impositivo. Diz: “se vocês quiserem plantar,
vão plantar. Se vão garimpar, vão garimpar. Se quiserem fazer algumas barragens no vale do rio Cotingo, vão poder
fazer’”, discursou o presidente citando o projeto de lei 191/2020. Leia mais no texto original: https://www.poder360.
com.br/brasil/bolsonaro-visita-garimpo-ilegal-em-terra-indigena-de-roraima-oposicao-critica/.

101
Estamos diante das diversas formas de exterminar (invasão de ter-
ras indígenas, garimpeiros, madeireiros, desmatamento, queimadas). Isso
não significa, é obvio, que o Estado elabore leis que permitam aberta-
mente o etnocídio, mas, ao vetar projetos de saúde indígena e orquestrar
projetos de lei, tais como a Medida Provisória 910 (BRASIL, 2019b),
substituída pelo Projeto de Lei PL 2633/2020, conhecido como “lei da
grilagem”(BRASIL, 2020c), considerada um verdadeiro revés no tocante
aos esforços adotados para a contenção do desmatamento na Amazônia;
assim, ao desregulamentar leis constitucionais, tal como a não demarca-
ção de terras indígenas, facilitando a manutenção de garimpos ilegais e
a ação de madeireiras em terras historicamente indígenas, permite-se e
mesmo se incentiva o agenciamento das mortes.
Há, portanto, uma lógica antiga, mas intensificada pelo atual go-
verno. Tal lógica se estendeu pela não demarcação de terras indígenas e
quilombolas na última década do século XX, e, agora, é aprofundada com
a tese do Marco Temporal. A lógica atua, também, indiscriminadamente
nas inúmeras invasões de madeireiros e de garimpeiros nas terras indíge-
nas da Amazônia.
Em meio a esse turbilhão de eventos, no entanto, percebemos que,
se de um lado as formas de matar as minorias se espraiam pela negação
da vida, pela negação de políticas para a proteção à vida das minorias,
de outro, o autocuidado e as redes de apoio – como as campanhas online
de arrecadação em prol das necessidades dos indígenas, as campanhas
internacionais em defesa dos indígenas no Brasil, a ênfase na necessidade
do distanciamento social demonstram que, como colocaram Slavoj Zizek
(2020) e Ishibashi (2020), não apenas o medo e a busca por vias indivi-
duais de salvação estão postas como resultado da pandemia; há, também,
fundamentais demonstrações de verdadeira solidariedade.

102
REFERÊNCIAS
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demia. São Paulo: Boitempo, 2020.

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103
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PORANTIM. Suspeitos admitem culpa: “só matamos 3 índios”.


Manaus: Porantim, ano 2, n. 10, 1979b.

PORANTIM. PF só pegou um dos assassinos dos 40 Juma de Ta-


pauá: cadê os outros? Manaus: Porantim, ano 3, n. 15, 1980.

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tários, 2020. Disponível em: https://tradutoresproletarios.wordpress.
com/. Acesso em: 28 mar. 2022.

105
106
Digitalização e conectividade:
desigualdades e disputas simbólicas

Ana Lúcia de CASTRO


Célia Regina de Souza Felipe SILVA

A relação entre tecnologia e vida social é objeto de debate recor-


rente nas ciências sociais, mobilizando posições antagônicas. O filósofo
italiano Umberto Eco publicou, originalmente em 1964, a obra Apocalíp-
ticos e Integrados, considerada um marco para esta discussão. Como in-
dica Eco (1993), é possível demarcarmos duas leituras/posições sobre as
decorrências do desenvolvimento tecnológico, que podem ser retomadas
para uma reflexão sobre a internet atualmente.
Em um dos lados, os apocalípticos, que percebem a técnica como
instrumento de manipulação, operado por algumas poucas empresas,
monopolizadoras de bancos de dados e informações disponibilizadas na
internet. Esse monopólio de informações conferiria um poder sem pre-
cedentes, resultando na impossibilidade de resistência e proposições li-
bertárias. De outro lado, os integrados contemporâneos, enxergam nas
tecnologias perspectivas de ampliação das possibilidades de produção e
consumo cultural, maior circulação de informações e repertórios cultu-
rais e renovação de práticas culturais. Estes seriam os que destacam as
possibilidades inovadoras de estabelecimento de relações e aquisição de
conhecimento nem sequer sonhados antes do advento da internet. Em sua
reflexão pioneira, Eco (1993) aponta os limites de ambas as visões, e su-
gere que se desenvolvam mais estudos que considerem a influência das
mídias nas práticas sociais, bem como seu impacto nas articulações entre
as dimensões culturais erudita, popular e de massa.
Outro importante marco do debate sobre tecnologia encontra-se
nas reflexões de Walter Benjamin, que tinha como foco central de suas
preocupações o impacto das tecnologias nas formas de percepção e apre-
ensão do mundo. Diferente de Umberto Eco, que discutia as diferentes
abordagens analíticas sobre as tecnologias, Benjamin se preocupava com
107
o que se processava no campo da experiência sensível, frente ao advento
da técnica. Ao pensar sobre o trem e a reprodutibilidade técnica (1987),
o autor sugeria que as transformações tecnológicas são, simultaneamen-
te produtoras e produtos de reconfigurações das coordenadas tempo-es-
paciais, reconfigurando o que chamou de “sensorium”, referindo-se aos
modos de perceber, sentir e conceber o mundo que nos cerca. Benjamin
buscava salientar, em sua análise sobre os aparatos técnicos inovadores
de seu tempo - como o cinema, o rádio e a fotografia - a nova sensibili-
dade estética emergente, aspecto que teria escapado ao olhar de Adorno
e Horkheimer(1985), mais preocupados em denunciar a padronização da
produção cultural e o decorrente atrofiamento da criatividade.
Na perspectiva de Benjamin, as locomotivas, por exemplo, além
de inovarem do ponto de vista material, possibilitando a produção indus-
trial, comércio e comunicação que impulsionaram a urbanização, também
impactaram na experiência dos sujeitos, que dentro dos vagões passaram
a desenvolver novas formas de significação da experiência, agora mar-
cada por uma outra relação com o tempo e o espaço. Na mesma direção
apontava Edgar Morin (1997), em seu clássico trabalho sobre a Cultura
de massas no século XX, afirmando que as produções culturais mediadas
pela comunicação de massa, como televisão, rádio e cinema, expressavam
um novo espírito do tempo e que o termo cultura da expressão deveria ser
compreendido no sentido antropológico do termo, pois envolve um con-
junto de práticas, símbolos, valores e imagens relacionados tanto à vida
cotidiana como ao imaginário coletivo.
Seguindo as pistas de Benjamin e Morin, é possível considerar a
experimentação de uma nova espécie de “sensorium”, característico do
espírito do tempo hodierno, modelado a partir da difusão das TIC’s (Tec-
nologias de Informação e Comunicação), sobretudo a partir do advento da
internet 2.0, que desde 2003 vem transformando as formas de produzir,
consumir e se relacionar, possibilitando a produção e compartilhamento
de conteúdos em tempo real. Com as TIC’s torna-se possível intensificar-
-se o processo de mundialização da cultura (ORTIZ, 2007; HANNERZ,
1997), que promove a aceleração do fluxo de repertórios e signos, entre-
cruzando-se repertórios, imagens, histórias e modos de vida. Contudo,
cabe indagarmos sobre as diferentes maneiras como esse processo de di-
fusão das TIC’s é experienciado, sobretudo numa sociedade tão marcada
por desigualdades, como a brasileira.
108
Capital informacional e disputas simbólicas
Importante referência para os estudos sobre a internet no campo
das ciências sociais pode ser encontrada nas pioneiras reflexões de Cas-
tells. O autor chama a atenção para o modo como as tecnologias da infor-
mação assumem papel central na fase do capitalismo por ele denominada
como informacional, caracterizada por ter como principal fonte de pro-
dutividade, a “capacidade de gerar, processar e aplicar de forma eficiente
a informação baseada em conhecimentos” (CASTELLS, 1999, p. 119).
Além de mudanças nos modos de perceber, sentir, consumir e pro-
duzir, as tecnologias da informação e comunicação provocam mudanças
nos modos de estabelecer formas de sociabilidade. Uma das chaves do
sucesso das comunidades virtuais reside, em boa parte, na possibilidade
de congregar pessoas com interesses comuns, possibilitando as relações
interpessoais. Contudo, dentre as decorrências nefastas do processo de
ampliação de práticas, relações e processos desenvolvidos em ambien-
tes digitais, também chamados de ciberespaço (LEVY, 1999), podemos
apontar “uma certa fragmentação da informação, inerente a sua própria
natureza idiossincrática, o que muito dificulta a divulgação de corpos de
conhecimento especializados, como, por exemplo, a ciência” (ALMEI-
DA, 2010, p. 57).
Neste cenário, cabe colocar a discussão sobre a desigualdade de
habilidades cognitivas, desenvolvidas por meios educativos e culturais,
que constitui elemento chave para a discussão sobre digitalização e de-
sigualdade social, uma vez que o acesso à informação requer o domínio
sobre a linguagem/repertório necessários para sua busca e sua apropria-
ção. Ou seja, além dos recursos materiais para obtenção dos suportes e
condições de conectividade, é preciso considerar as condições cognitivas
para o acesso, que pressupõem a aquisição do capital informacional, en-
tendido como:
[...] conhecimento específico que viabilize o trânsito
pessoal por teias de relações que frequentemente requerem
tal domínio. Esse conhecimento pressupõe condições
específicas de formação social, cultural e educacional dos
indivíduos. [...] Mobilizar o capital informacional pressupõe
um conjunto de disposições adquiridas, constituído por três
elementos básicos: conhecimento específico, aparato material

109
necessário para pôr em prática tal conhecimento apreendido
e condições sociais, educacionais e culturais que permitam
a aquisição desse saber para lidar com as novas tecnologias
da informação e construir o ciberespaço (FREITAS, 2004,
p. 119).

Argumentamos que a incorporação do capital informacional con-


figura uma modalidade de capital cultural, enfatizando a importância de
se considerar a composição do capital cultural (BOURDIEU, 1998) como
chave para análise das posições dos agentes e das disputas simbólicas
travadas. A noção de capital informacional (ou tecnológico) aparece nas
reflexões de Bourdieu como componente da estrutura do capital cultural
em sua forma incorporada, como podemos observar na passagem abaixo,
traduzida do texto sobre os três estados do capital cultural, publicado ori-
ginalmente em 1979:
Assim, os bens culturais podem ser objeto de uma apropriação
material, que pressupõe o capital econômico, e de uma
apropriação simbólica, que pressupõe o capital cultural. Por
consequência, o proprietário dos instrumentos de produção
deve encontrar meios para se apropriar ou do capital
incorporado, que é a condição da apropriação específica,
ou dos serviços dos detentores desse capital. Para possuir
máquinas, basta ter capital econômico; para se apropriar
delas e utilizá-las de acordo com sua destinação específica
(definida pelo capital científico e tecnológico que se encontra
incorporado nelas), é preciso dispor, pessoalmente ou por
procuração, de capital incorporado (BOURDIEU, 1998, p.
77, grifo nosso).

Neste sentido, a apropriação do capital informacional requer o do-


mínio de habilidades cognitivas e, como constitutivo do capital cultural,
é mobilizado nas disputas simbólicas travadas entre os diferentes agentes.
Como em todo processo de mudança tecnológica, o ritmo da as-
similação não é experimentado de maneira homogênea por todos os en-
volvidos. Em alguns segmentos a acomodação às mudanças é imediata,
enquanto em outros é cruel e devastadoramente lenta. Apresentamos, no
tópico seguinte, alguns dados sobre as desigualdades no uso da internet e
de condições de conectividade observadas atualmente na sociedade bra-
sileira.
110
Mediação tecnológica e desigualdade pós-pandemia
O contexto da pandemia de Covid-19, que acelerou o processo de
digitalização da sociedade, trouxe novos desafios aos já colocados. A pes-
quisa anual TIC DOMICÍLIOS 2020 - realizada pelo Centro Regional de
21
Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br)
- investiga o acesso às TIC’s nos domicílios e seus usos por indivíduos
com dez anos de idade ou mais e demonstrou, na edição publicada em no-
vembro/2021, a ampliação do tempo dedicado à internet e diversificação
de suas formas de uso durante a pandemia, bem como explicitou-se, neste
processo, as desigualdades no acesso aos recursos de internet no Brasil:
Com a emergência da crise sanitária causada pela Covid-19, a
Internet e as tecnologias digitais têm se mostrado um recurso
central e crítico no apoio ao enfrentamento dessa pandemia
e na mitigação de seus efeitos. Devido à Covid-19, muitas
atividades, antes realizadas de forma presencial, migraram
para os meios digitais, afetando o cotidiano das empresas,
do governo e dos cidadãos. Com isso, a crise sanitária da
Covid-19 evidenciou as desigualdades digitais e os desafios
para que as oportunidades geradas pela Internet estivessem
disponíveis a todos (CETIC.BR, 2020, p. 17).

Na referida pesquisa, foram realizadas entrevistas em 5.590 domi-


cílios e com 4.129 indivíduos em todo o território nacional. Com meto-
dologia adaptada ao período da pandemia Covid-19, a coleta dos dados
foi realizada por meio de entrevistas telefônicas e complementada por
entrevistas face a face entre outubro de 2020 e maio de 2021.
O estudo da Cetic.br apresenta um aumento de 71% para 83% de
domicílios com internet durante o ano de 2020, fortemente influenciado
pela situação pandêmica, aumento este observado em praticamente todos
os segmentos analisados, embora mais concentrado nos estratos socio-
econômicos mais vulneráveis (classes DE) como podemos observar na
Figura 1.

21 - O Cetic.br tem ligação com a história da governança da Internet no Brasil e as estratégias de infraestrutura, montada
e operada pelo Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), que implementa as decisões e os projetos
do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). O NIC.br é também o responsável pelo registro e publicação na In-
ternet dos nomes de domínios .br, pela alocação dos números ASN (Autonomous System Numbers) e dos endereços IP
(Internet Protocol) em todo o território nacional. Disponível em: www.cgi.br. Acesso em: 23 set. 2021. Disponível em:
www.cetic.br. Acesso em: 23 set. 2021.

111
Figura 1 – Domicílios com acesso à internet, por classe (2015-2020).

Fonte: Cetic.br (2020).

Segundo a pesquisa, é estimado que aproximadamente 152 mi-


lhões de brasileiros eram usuários da rede em 2020, o que representa 81%
da população com dez anos ou mais, ou seja, um aumento de sete pontos
percentuais em relação a 2019 (74%), ou o equivalente a 19 milhões de
usuários de Internet a mais no período. A pesquisa ainda revela que esse
movimento foi impulsionado por residentes tanto em áreas rurais (de 53%
para 70%) quanto urbanas (de 77% para 83%), o que resultou no me-
nor patamar de desigualdade entre as áreas da série histórica da pesquisa,
como mostra a figura 2.
Os dados coletados na pesquisa TIC Domicílios mostram que a
utilização de internet ainda é maior nas faixas etárias de até 44 anos, mas
houve aumento significativo entre 2019 e 2020 entre os indivíduos com
60 anos ou mais, passando de 34% em 2019 para 50% em 2020. Este
aumento pode ser atribuído ao fato deste grupo etário ser considerado de
maior risco à Covid-19, verificado na figura 03.
Embora tenha sido observado um aumento considerável na oferta
de acessos à internet, aumento da cobertura com diminuição da diferença
entre as áreas rural e urbana e maior engajamento dos indivíduos com 60
anos ou mais, identifica-se a permanência de desigualdades entre indi-
víduos com grau de instrução mais baixo, como os que estudaram até o

112
Figura 2 – Usuários de internet por área (2014-2020).

Fonte: Cetic.br (2020).

Figura 3 – Usuários de internet por faixa etária e classe (2019-2020).

Fonte: Cetic.br (2020).


113
Ensino Fundamental (73%), frente àqueles com Ensino Médio (92%) ou
Ensino Superior (96%), situação semelhante às observações anteriores.
Quando a comparação diz respeito à cor ou raça, as diferenças no uso da
Internet em 2020 não foram significativas, sendo registrados os seguintes
percentuais: brancos (81%), pardos (83%) e pretos (80%). O que chama a
atenção, no entanto, é que indivíduos negros (pretos e pardos) acessaram
a Internet exclusivamente pelo telefone celular em maiores proporções
que usuários brancos.
Isso evidencia a existência de múltiplas camadas
da desigualdade e seus efeitos combinados sobre o
aproveitamento das oportunidades digitais por diferentes
parcelas da população (CETIC.BR, 2020, p. 73).

Além das desigualdades na frequência e formas de uso da rede,


segundo os diferentes grupos sociais, a pesquisa também perscrutou as
condições de conectividade e os tipos de suporte ou dispositivos disponí-
veis para o acesso à internet, revelando, mais uma vez, significativas di-
ferenças ancoradas em desigualdades historicamente arraigadas entre nós.

Acessibilidades desiguais:
conectividade e suporte material
A 16ª edição da TIC Domicílios (edição COVID-19) constatou que
outros fatores influenciaram na forma e qualidade com que os diversos
grupos de indivíduos absorvem os conteúdos ofertados. Entre eles está
a má qualidade das conexões de internet com falhas de transmissão de
22
áudio e/ou vídeo, lentidão e alta latência (figura 4):
Entre 2019 e 2020 houve um aumento da proporção de domicílios
com acesso a conexões via cabo ou fibra ótica, 44% e 56%, respectiva-
mente, destacando-se os domicílios conectados das classes DE (de 26%,
em 2019, para 38%, em 2020). Quando comparado o tipo de conexão,
observa-se que nos casos em que há predominância da conexão móvel, a

22 - Latência na internet tempo gasto (medido em milissegundos, ou ms) para seu dispositivo obter uma resposta da
torre de celular ou do link de rádio da conexão, e isso envolve o envio de mensagens, dados e outros comandos Dis-
ponível em: https://olhardigital.com.br/2021/07/01/tira-duvidas/saiba-o-que-e-latencia-e-qual-sua-relacao-com-o-5g/.
Acesso em: 17 set. 2021.

114
Figura 4 – Domicílios com banda larga fixa, por classe (2015-2020).

Fonte: Cetic.br (2020).

tendência é que esteja associado a um plano de dados de telefone celular


compartilhado pelos moradores, e não a uma conexão do próprio domi-
cílio.
Ao mesmo tempo em que a pandemia acelerou a adoção das
tecnologias de informação e comunicação (TIC), exacerbou
também a importância de superar os desafios de conectividade
e segurança da rede no país. Novas tecnologias, como o 5G
– cuja chegada ao Brasil é iminente –, serão importantes
para um acesso à rede com maior qualidade de banda, menor
latência e melhor mobilidade. Juntamente com as tecnologias
já disponíveis, a adoção de aplicações como Internet das
Coisas (Internet of Things – IoT) e Inteligência Artificial
(IA) é o cenário que temos à frente (CETIC.BR, 2020, p. 18).

No tocante aos dispositivos utilizados, a pesquisa constatou que


99% dos indivíduos acessam a internet principalmente via dispositivo
móvel (Figura 5).
Para 58% dos usuários, o acesso se deu exclusivamente por este
dispositivo, sendo que, deste universo, 81% concluíram o ensino funda-
mental ou pertencem às classes DE (Figura 6).
Sabemos que a pandemia influenciou fortemente as atividades edu-

115
cacionais, uma vez que as aulas foram suspensas, em sua grande maio-
ria, fazendo com que alunos e professores recorressem à mediação das
plataformas digitais on-line para a realização das atividades. Sobre este
contexto, a pesquisa da Cetic.br apurou que as atividades ou pesquisas
escolares (45%) e o estudo na Internet por conta própria (44%) foram as

Figura 5 – Usuário de internet, por dispositivo utilizado (2014-2020).

Fonte: Cetic.br (2020).

Figura 6 – Usuários de internet, por acesso pelo telefone


celular de forma exclusiva (2020).

Fonte: Cetic.br (2020).


116
atividades on-line mais citadas. Cerca de 1/5 dos indivíduos realizou cur-
sos à distância (21%), sendo que se observam acréscimos não apenas na
realização de cursos à distância (de 10%, em 2019, para 18%, em 2020),
como também no estudo por conta própria pela Internet (de 36% para
45%), como indica a Figura 7 abaixo.
Este gráfico também mostra que 38% dos usuários de Internet rela-
taram terem exercido atividades de trabalho em 2020, sendo que a maio-
ria desses indivíduos é pertencente à classe A (72%) ou possuem Ensino
Superior (66%). Este percentual cai pela metade entre os indivíduos da
classe C (36%) e classes DE (21%) ou que estudaram até o Ensino Fun-
damental (22%) ou Ensino Médio (35%), indicando que os mais pobres e
menos escolarizados saíram de casa para exercer seus trabalhos e ficaram
mais expostos.
Quando falamos em inclusão digital, estamos tratando de assegurar
ao indivíduo todas as condições para um bom uso e aproveitamento dos
conteúdos mediados por tecnologia digital, como dispositivos adequados

Figura 7 – Usuários de internet que realizaram atividades


de educação e trabalho na internet (2018-2020).

Fonte: Cetic.br (2020).


117
que garantam o suporte material para acessar serviços, informações e esta-
belecer conexões. No que diz respeito ao suporte material, a pesquisa TIC
Domicílios verificou aumento de domicílios brasileiros com computador,
que alcançou 45% em 2020, contra 39% em 2019. Porém, a condição dos
que possuíam computador se manteve estável entre os indivíduos de áreas
rurais (17%) e das classes DE (13%). Já na classe C houve um aumento
de 44%, em 2019, para 50%, em 2020 nos domicílios com este dispositi-
vo, enquanto nas classes A e B os computadores já estavam presentes em
100% e 85% dos domicílios, respectivamente. Vale ressaltar que, mesmo
com a ampliação, apenas metade dos domicílios da classe C (50%) e 13%
dos domicílios das classes DE possuíam computador em 2020 (Figura 8).
Figura 8 – Domicílios com computador, por classe e área (2019-2020).

Fonte: Cetic.br (2020).

118
Apontamentos para uma política de inclusão digital
De fato, ao tomarmos os recortes de classe, escolaridade e raça/cor,
os estudos do Cetic.br caracterizam claramente a articulação da desigual-
dade social com a exclusão digital, verificada através das desigualdades no
acesso à internet, seja pela falta de dispositivos adequados, má qualidade
da internet ou falta das habilitações necessárias. A ampliação do acesso de
boa parte da sociedade às tecnologias digitais de forma equânime passa a
ser uma preocupação social, impondo a necessidade de políticas públicas
de inclusão digital.
O estudo evidencia que o acesso à internet aumentou durante a
pandemia, mas o aproveitamento de suas potencialidades esbarra em en-
traves impostos pela persistência das desigualdades. Pelos dados apre-
sentados, verificamos que as condições sociais dos indivíduos, tais como
a distinção entre as classes sociais, grau de escolaridade e cor ou raça,
condicionam diferenças nas habilidades cognitivas e demarcam fronteiras
simbólicas que impactam fortemente, tanto o acesso quanto a plena apli-
cabilidade dos serviços disponibilizados e mediados pela internet. Assim,
vimos reverberar na exclusão digital a mesma condição de exclusão dos
indivíduos circunscritos nas classes DE, historicamente privados de aces-
sos à educação, trabalhos mais qualificados, saúde, entre outros direitos.
Em artigo publicado junto à pesquisa TIC Domicílios 2020, a pes-
quisadora e jornalista Bia Barbosa analisa como a falta de conexão de
qualidade interfere no aumento das desigualdades. Barbosa destaca que,
se por um lado o acesso à internet pelo celular é pleno, por outro esse
acesso exclusivo por este tipo de dispositivo limita o acesso aos conteú-
dos, seja pelo limite da tela, seja pela precariedade de acesso. Segundo a
pesquisadora, um dos reflexos está na educação:

Para 36% dos usuários que estudam, a falta ou a baixa


qualidade da conexão à Internet era um problema para o
acompanhamento das aulas. Nas classes DE, a proporção
chegou a 39%[...] milhares de crianças, jovens e adolescentes
tiveram seu direito à educação negado pela falta de acesso ou
pelo acesso de baixa qualidade à internet (BARBOSA, 2021,
p. 98).

119
Entendemos, assim como Barbosa, que o problema da desigual-
dade de acesso à internet, agravada com a pandemia, deve ser enfrentado
através de políticas públicas a serem implementadas pelo Estado brasilei-
ro.
As décadas perdidas, por opção política de diferentes
governos, contribuíram para que as desigualdades no acesso à
Internet se mantivessem inalteradas, mesmo com a expansão
do acesso (BARBOSA, 2021, p. 100).

Na opinião de Barbosa, um dos caminhos para dar suporte às po-


líticas públicas que podem amenizar este quadro é a utilização do Fundo
de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust). O Fust foi
criado há duas décadas com as finalidades de estimular a expansão, o uso
e a melhoria da qualidade das redes e dos serviços de telecomunicações,
reduzir as desigualdades regionais e estimular o uso e o desenvolvimento
de novas tecnologias de conectividade para promoção do desenvolvimen-
to econômico e social (BRASIL, 2020, art. I). O Fust conta com uma ar-
recadação de R$ 22 bilhões mas sua utilização tem sido para o pagamento
da dívida pública do país; o Congresso aprovou em 2020 uma legislação
visando sua utilização em infraestrutura e na expansão e melhoria das
redes e serviços de acesso à internet e acrescenta ainda que:

Em resolução publicada em apoio ao Projeto de Lei n.


172/2020, que alterou a Lei do Fust liberando os recursos, o
CGI.br listou as prioridades daqui em diante:
(i) aumentar a cobertura de redes de acesso em banda
larga móvel, (ii) ampliar a abrangência de redes de acesso
em banda larga fixa; (iii) instalar redes de transporte de
alta capacidade compartilhadas em todos os municípios
do Brasil; (iv) conectar escolas públicas e seus estudantes
com velocidade e estabilidade razoáveis; (v) criar um fundo
garantidor para o investimento e expansão da conexão de
qualidade pelo interior do país; e a importância da criação
de um mecanismo de Governança forte e transparente para
o Fust, com representantes dos setores representados no
CGI.br, a qual estabelecerá as diretrizes para a aplicação
dos recursos do fundo em programas, projetos e planos que
conduzam o Brasil, de forma acelerada, à massificação do
acesso à Internet (BARBOSA, 2021, p. 101).

120
Como demonstra a experiência recente, uma regulamentação que
assegure a destinação de recursos é um passo importante na garantia de
direitos, contudo, é preciso ir adiante, construindo políticas que partam
de diagnósticos mais próximos dos cotidianos de seus públicos-alvo. A
implementação efetiva depende de diagnósticos locais - que considerem a
heterogeneidade de grupos, inseridos em realidades particulares diversas
- e mecanismos de acompanhamento e avaliação a serem construídos, en-
volvendo os usuários. O caso da exclusão digital é emblemático por evi-
denciar não se tratar apenas do acesso ao suporte material, mas também
de recursos simbólicos, pois qualquer política de inclusão digital que não
considere as habilidades cognitivas, desenvolvidas por meios culturais e
educacionais, está fadada à ineficácia.
Finalmente, os dados aqui apresentados apontam a radicalização
da exclusão de grupos recorrentemente postos à margem na sociedade
brasileira. Retomando as colocações iniciais desta reflexão, evidencia-se
a existência de grupos que não compartilham da mudança cognitiva dese-
nhada pelas mediações tecnológicas que atravessam todos os âmbitos das
relações sociais desde o advento da internet 2.0. Cabe aos setores compro-
metidos com a ideia de igualdade social contribuírem para a construção
de mecanismos para o desenvolvimento das habilidades cognitivas e su-
portes tecnológicos necessários para esta inclusão, minimizando as vozes
que insistem em resistir, nostalgicamente, ao espírito de nosso tempo.

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n. 9.472, de 16 de julho de 1997, e n. 9.998, de 17 de agosto de 2000,
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123
124
Legados, desmonte
e resiliência da participação:
os exemplos das áreas da Saúde
e Direitos das Mulheres

Carla Giani MARTELLI


Debora Rezende de ALMEIDA
Wagner de Melo ROMÃO

Uma das maiores transformações recentes na gestão pública, no


Brasil, foi a incorporação de instrumentos de participação em suas prá-
ticas, ou seja, a participação foi se constituindo em práticas de ação go-
vernamental. Não à toa o campo de estudos da participação passou a falar
em instituições participativas (IPs). Desde os anos 2000, o debate acerca
da participação social no Brasil, em grande medida, traduziu-se em dis-
cussões sobre instituições participativas. Não sem razão, Gurza Laval-
le, Voigt e Serafim (2016, p. 610) assinalaram, diante do que prevalecia
nas décadas anteriores, que “a literatura deslocou os termos do debate
ao promover uma nova agenda de pesquisa não mais sobre participação,
mas sim, emblematicamente, sobre instituições participativas (IPs) e sua
efetividade”. O termo exigiu um maior rigor na especificação e na análise
de um tipo particular de participação, aquela que acontece no interior de
instituições.
De acordo com Lüchmann (2019), das definições de instituições
participativas mobilizadas pela literatura nacional, pelo menos três se des-
tacam. A primeira, de Leonardo Avritzer, entende por IPs as “formas dife-
renciadas de incorporação de cidadãos e associações da sociedade civil na
deliberação sobre políticas” (AVRITZER, 2008, p. 45), destacando, em
sua análise comparativa, os casos de orçamento participativo, conselhos
de políticas, e os planos diretores municipais. As IPs diriam respeito a um
conjunto de espaços que se institucionalizam enquanto fóruns públicos de
deliberação. Uma segunda definição de IPs foi encontrada no trabalho de
Cortes (2011, p. 137), referindo-se aos
125
mecanismos de participação criados por lei, emendas
constitucionais, resoluções ou normas administrativas
governamentais que permitem o envolvimento regular e
continuado de cidadãos com a administração pública, tanto
diretamente quanto através de representantes, como ocorre
com maior frequência.

O caráter institucional desses mecanismos é assegurado pelo fato


de não serem “experiências episódicas ou eventuais de participação em
projetos ou programas governamentais ou de organizações da sociedade
civil ou do mercado. Ao contrário, estão instituídas como elementos carac-
terísticos da gestão pública brasileira” (CORTES, 2011, p. 137). Seguindo
este critério, e voltando o olhar para a esfera municipal, a autora elenca
os seguintes tipos de IPs: mecanismos de consulta individual; conselhos
gestores, conferências de políticas públicas e orçamentos participativos.
A terceira definição é encontrada no trabalho de Lopez e Pires (2010). De
acordo com os autores, as IPs seriam
processos deliberativos que transcendem os momentos
eleitorais e propiciam alternativas de inclusão dos interesses
dos grupos organizados no cotidiano da esfera política,
fomentando, ao mesmo tempo, a organização política destes
grupos e criando novas formas de mediação representativa
entre Estado e sociedade (LOPEZ; PIRES, 2010, p. 565).

Os principais exemplos apontados pelos autores são as conferên-


cias, os conselhos e os orçamentos participativos.
Os Conselhos contam com a participação de atores do Estado e
atores da sociedade civil e estão presentes na maioria dos municípios,
articulados desde o nível federal e cobrindo uma ampla gama de temas
das áreas de proteção social. Cumprem o importante papel de controle
das políticas públicas. As Conferências consistem em instâncias de deli-
beração e participação destinadas a prover diretrizes para a formulação de
políticas públicas. Apesar de existirem desde a década de 1940, à época
com objetivo de articulação federativa e aumento da racionalidade ad-
ministrativa, somente a partir de 1980 as conferências começaram a ser
utilizadas como espaços de participação da sociedade em diferentes se-
tores de políticas públicas. Embora haja especificidades em cada área de
política, em geral as conferências são convocadas pelo Poder Executivo e
ocorrem de forma escalonada, iniciando-se na esfera municipal e progre-
126
dindo, por meio da representação de delegados, para as etapas estaduais
e nacional. O Orçamento Participativo (OP), diz respeito aos programas
ou instituições de governo que incorporam a população nos processos de
tomada de decisões políticas. Sua matriz original foi o modelo desenvol-
vido pelo governo municipal de Porto Alegre-RS, em 1989, um conjunto
de elementos autenticou a emissão de um selo de inovação democrática a
essa modalidade participativa, com destaque para as seguintes dimensões:
descentralização do poder político, promoção de inclusão política, sub-
versão do clientelismo e da corrupção, promoção de transparência gover-
namental, redistribuição dos recursos em prol dos setores mais carentes
da população, e aprendizado cidadão. O OP constitui-se como uma das
mais importantes e conhecidas inovações democráticas no mundo (LU-
CHMANN; MARTELLI; TABORDA, 2021).
Gurza Lavalle e Isunza Vera (2010) observam que a criação e a ex-
pansão dessas diferentes modalidades de participação da população junto
a espaços e processos de discussão e formulação de políticas públicas,
vivenciados nas últimas décadas, permitiram formar um quadro de “ino-
vação democrática” caracterizado por processos de criação e de inovação
institucional que se diferenciam das modalidades diretas de participação
política, a exemplo do plebiscito, do referendo ou da iniciativa de leis de
base popular.
No entanto, alguns acontecimentos recentes, especialmente mar-
cados pelo período entre o final do primeiro mandato de Dilma Rousseff
e o mandato do atual presidente da República, Jair Bolsonaro, denotam
a crise e o desmonte da participação social no Brasil, sobretudo no nível
da administração pública federal. Verifica-se uma considerável alteração
na postura do governo federal para com as instituições participativas, es-
pecialmente com relação aos conselhos nacionais de políticas públicas,
mas com impactos signicativos sobre as conferências nacionais e demais
formatos de relação entre o governo e a sociedade civil. Seguem alguns
marcos importantes do processo.

O Decreto 8243/2014:
ápice e declínio da participação social
O Decreto 8243, de 23 de maio de 2014, criou a Política Nacional
127
de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação So-
cial (SNPS) (BRASIL, 2014a). Ele representou o ápice da tentativa de se
institucionalizar a participação social no Brasil - processo que remonta
pelo menos à promulgação da Constituição Federal de 1988, quando a
participação foi estabelecida textualmente como fundamento de diversos
setores de políticas públicas (ROMÃO, 2015). A PNPS e o SNPS foram
estruturados entre 2012 e de 2013, paralelamente reuniões com represen-
tantes dos governos estaduais, municipais e do Distrito Federal, no sentido
de tornar operativa nos entes federativos a visão de que a participação so-
cial, sob o lema da “participação como método de governo” é um caminho
para a democratização das decisões sobre políticas públicas. Este esforço
governamental se configurou no Decreto, que conceituou modalidades
de participação institucional (conselho de políticas públicas, comissão de
políticas públicas, conferência nacional, ouvidoria pública federal, mesa
de diálogo, fórum interconselhos, audiência pública, consultas públicas
e ambiente virtual de participação social) e indicou que, “na formulação,
na execução, no monitoramento e na avaliação de programas e políticas
públicas e no aprimoramento da gestão pública serão considerados os ob-
jetivos e as diretrizes da PNPS” (BRASIL, 2014a, art. 1, parágrafo único).
Tais objetivos e diretrizes tinham como propósito essencial “estabelecer a
participação social como método de governo”, elemento estabelecido nas
experiências de governos municipais petistas nas décadas de 1990, no que
era conhecido como o “modo petista de governar” (BITTAR, 1992), em
conjunto com a ideia de “inversão de prioridades”.
Bezerra (2020) indica que o projeto da PNPS e do SNPS foi sendo
elaborado desde o final do segundo mandato do presidente Lula. Ele pre-
tendia criar uma espécie de Consolidação das Leis Sociais, uma marca de
gestão, articulando os programas sociais como o Bolsa Família às inicia-
tivas de participação social do governo, que ficou marcado pela expansão
dos conselhos e conferências. Já havia, no entanto uma avaliação - que se
aprofundou no governo Dilma Rousseff - de que uma ação no sentido de
institucionalizar a participação, criando uma política nacional, poderia ter
dificuldades de aprovação no Congresso e frear processos participativos
que permaneciam ocorrendo.
De fato, o decreto presidencial n. 8.243 (BRASIL, 2014a) foi se-
veramente criticado por setores conservadores da mídia e em quase todo
o Congresso Nacional, como “conselhos bolivarianos” ou seja, como uma
espécie de estratégia final do petismo no aparelhamento da administração
128
pública federal por movimentos sociais simpáticos ao governo. Todos os
partidos políticos, à exceção do PT e do PCdoB se colocaram críticos à
PNPS e à forma (decreto presidencial) pela qual foi criada. Este posicio-
namento deve ser localizado no contexto da disputa eleitoral de outubro
de 2014. Seu centro estava na acusação de uma suposta usurpação das
funções do Congresso Nacional como órgão deliberativo sobre as ações
governamentais e de fiscalização do Executivo, argumento já utilizado
anteriormente contra as experiências de Orçamento Participativo.

O segundo governo Dilma Rousseff


e o interregno Michel Temer
No segundo governo Dilma Rousseff, entre a pressão política das
oposições e o recrudescimento do conservadorismo político no país no
período anterior ao impeachment, os conselhos nacionais alternaram, por
um lado, momentos de instabilidade por conta das alterações na adminis-
tração pública federal e, por outro lado, mobilizaram-se em repúdio ao
processo de impedimento da presidenta. A Medida Provisória 696/2015
(depois Lei 13.266/2016) (BRASIL, 2016a) reconfigurou a estrutura da
presidência e dos ministérios. Oito dos 39 ministérios de então foram ex-
tintos. Houve a fusão das pastas das Mulheres, Igualdade Racial e Direi-
tos Humanos, e também da Secretaria Nacional da Juventude: “a fusão de
pastas provocou uma alteração na vinculação de vários órgãos colegiados,
cujas estruturas migraram juntamente às atribuições de cada política pú-
blica” (AVELINO; ALENCAR; COSTA, 2018).
Quando assume a presidência interinamente, Michel Temer pro-
move outra alteração substantiva na estrutura do governo federal com a
edição da Medida Provisória 726/2016 (depois Lei 13.341/2016) (BRA-
SIL, 2016b). Por ela, foram reduzidos de 32 para 23 o número de ministé-
rios, com a extinção da Secretaria de Portos, de Comunicação Social e os
ministérios da Cultura, das Comunicações, do Desenvolvimento Agrário
e das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Ou seja,
setores importantes sofrem rearranjo e desconfiguração e novamente os
conselhos nacionais vinculados a estes setores são vinculados a outros
ministérios ou a fusões de ministérios.
129
Quanto ao posicionamento político sobre o impeachment, diversos
conselhos se posicionaram publicamente, manifestando sua contrariedade
com relação ao processo, como o Conselho Nacional de Segurança Ali-
mentar e Nutricional (Consea), a Comissão Nacional de Agroecologia e
Produção Orgânica (Cnapo), o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Rural Sustentável e Solidário (Condraf), o Conselho Nacional de Assis-
tência Social (CNAS), o Conselho Nacional de Povos e Comunidades
Tradicionais (CNPCT) e o Conselho Nacional de Educação (CNE) (AVE-
LINO; ALENCAR; COSTA, 2018).
O trabalho de Avelino, Alencar e Costa (2018) chama atenção ao
fato de que, as mudanças político-administrativas acima descritas, afeta-
ram diretamente o funcionamento dos conselhos, com redução orçamen-
tária, contingenciamento de recursos, deslocamento e redução das equi-
pes de apoio aos colegiados, redução do apoio logístico ao deslocamento
de conselheiros em missões pelo país e, ademais, comprometimento das
rotinas administrativas que visam assegurar os critérios de transparência
e publicidade própria dos atributos constitucionais da administração pú-
blica.

Jair Bolsonaro e o Decreto 9759/2019: a extinção


de órgãos colegiados não previstos em lei federal
A ameaça autoritária à atuação da sociedade civil nos assuntos pú-
blicos foi uma das linhas fortes de Jair Bolsonaro na campanha presiden-
cial de 2018. E já em seu primeiro dia de mandato, dois conselhos bas-
tante simbólicos do período petista na presidência da República deixam
de ter previsão legal, por força a Medida Provisória 870/2019 (depois,
Lei 13.844/2019) (BRASIL, 2019a): o Conselho Nacional de Segurança
Alimentar (Consea) e o Conselho de Desenvolvimento Econômico e So-
cial, o Conselhão, espaço de diálogo da presidência com setores empre-
sariais, sindicais e sociedade civil. Mas foi em 11 de abril de 2019, pelo
Decreto 9759/2019, que Jair Bolsonaro promoveu o mais amplo ataque à
participação social no país, com a extinção dos órgãos colegiados (con-
selhos, comitês e outros mecanismos) que não fossem previstos em lei
federal (BRASIL, 2019b). O decreto estabelecia que a criação, recriação,
130
extinção ou modificação de colegiados deveriam respeitar uma série de
requisitos (previsão de reuniões por videoconferência; estimativa de gas-
tos com diárias e passagens; resumo de reuniões de colegiado antecessor
entre 2018 e 2019, com as medidas decorrentes das reuniões; justificativa
da necessidade, conveniência, oportunidade e racionalidade de o colegia-
do possuir número superior a sete membros, entre outros). No artigo 10, o
decreto revogou o Decreto 8243/2014 (BRASIL, 2019b).
O Decreto 9759 provocou uma enorme insegurança jurídica, em
um primeiro momento, uma vez que boa parte dos conselhos estabele-
cem decisões que afetam o próprio funcionamento de setores inteiros de
políticas públicas. No entanto, conforme pesquisa realizada por Bezerra,
Rodrigues e Romão (2021, p. 8), que apresenta um balanço dos impac-
tos do decreto, “praticamente nenhum conselho foi formalmente extinto,
parte tornou-se inativa, à espera de uma redefinição de sua composição”
mas, de fato, “a maioria sofreu grandes alterações no seu funcionamento
e composição, a ponto de haver uma descaracterização das funções, que
impossibilita uma real incidência da sociedade civil sobre a política pú-
blica” (p. 8).
As reações contra o decreto vieram de organizações da socieda-
de civil, de partidos políticos oposicionistas e dos próprios conselhos. O
Conselho Nacional de Direitos Humanos teve uma atuação protagonista,
ao elaborar um dossiê (CNDH, 2019) sobre os impactos do decreto e tam-
bém ao agir de maneira a preservar o funcionamento de conselhos menos
institucionalizados.
Cabe aqui um registro importante: o Decreto 9759 não incidiu so-
23
bre conselhos criados por lei. Assim, conselhos nacionais como o de Saú-
de (BRASIL, 1990a), Assistência Social (BRASIL, 1993) e, sobretudo, o
CNDH - criado por João Goulart quinze dias antes do golpe de 1964 e que
foi reformulado pela Lei 12.986/2014 (BRASIL, 2014b) - mesmo subme-
tidos a pressões, mudanças na representação governamental e diminuição
de orçamento e equipes de apoio, puderam apoiar conselheiros e conse-
lheiras destituídas e atuar como canal de denúncia contra os ataques e os
novos decretos que recriaram conselhos, que diminuíram representação

23 - O Decreto 9759/2019 (BRASIL, 2019b) não poderia incidir sobre conselhos criados por lei, pois é uma legislação
de menor força. No entanto, mesmo alguns dos conselhos criados por lei são regulamentados por decreto em sua com-
posição e funcionamento, como o Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI). Nestes casos, invariavelmente, o
decreto também gerou impactos significativos.

131
da sociedade civil e alteraram princípios originais dos conselhos extintos.
Isso levanta uma questão acerca do dilema sobre a criação de conselhos
por lei, isto é, por vontade do Legislativo, e sobre o quanto as leis devem
abranger o funcionamento dos conselhos. Se por um lado é importante
que momentos políticos favoráveis à participação social devam ser apro-
veitados para a aprovação de conselhos mais democráticos e inclusivos,
por outro lado, momentos políticos desfavoráveis podem ensejar estrutu-
ras pouco representativas ou muito propensas a serem espaços de domínio
dos governos.
As ações em defesa dos conselhos e contra o Decreto 9759 chega-
ram ao Supremo Tribunal Federal (STF). Já em 22 de abril daquele ano,
o Partido dos Trabalhadores entrou com uma Ação Direta de Inconstitu-
cionalidade (ADI) 6121 junto ao STF com vistas à derrubada do Decreto.
O STF deferiu parcialmente a medida cautelar, afastando a possibilidade
de que o chefe do Executivo possa extinguir colegiado cuja existência en-
contre menção em lei, o que era previsto no parágrafo único de seu Art. 1º,
fortalecendo a tese da amplitude maior das leis sobre o decreto. Com esta
derrota e diante de inúmeros questionamentos, o governo foi obrigado a
editar outro decreto, o nº 9812/2019, que alterou alguns pontos frágeis do
decreto anterior.
Além disso, outros decretos foram sendo editados de modo a esta-
belecer alterações pontuais em conselhos específicos. Bezerra, Rodrigues
e Romão (2021, p. 11) mostram que, deste modo,
diferentemente do inicialmente pretendido pelo governo,
não houve uma solução uniforme, tampouco uma extinção
maciça de conselhos e comissões. As alterações acabaram
por ocorrer caso a caso e de forma gradual, seja por meio da
edição de decretos específicos que redefinem o funcionamento
de um dado colegiado, quanto também eventualmente por
meio de regulamentações infralegais, isto é, alterações no
regimento interno e normas administrativas.

É possível dizer que houve redução ou exclusão da sociedade civil


em pelo menos 10 conselhos relacionados aos Direitos Humanos (Comitê
Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacio-
nal para População em Situação de Rua - Ciamp-Rua; Comitê Nacional
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - Conatrap; Conselho Nacional
da Criança e Adolescente - Conanda; Conselho Nacional de Combate à
132
Discriminação - CNCD/LGBT; Conselho Nacional de Imigração - CNIg;
Conselho Nacional de Juventude - Conjuve; Conselho Nacional de Erra-
dicação do Trabalho Escravo - Conatrae; Conselho Nacional de Meio Am-
biente - Conama; Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas - Conad;
e Conselho Nacional dos Direitos do Idoso - CNDI). Houve a extinção
ou estão inativos: Conselho Nacional de Segurança Alimentar - Consea;
Conselho Nacional de Política Indigenista - CNPI; e Conselho Nacional
de Respeito à Diversidade Religiosa - CNRDR. E, ainda, foram interrom-
pidos mandatos de representantes da sociedade civil nos seguintes órgãos:
Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), Comis-
são Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e Comitê
Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT).
No caso do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CNPD),
o Decreto 9926/2019 (BRASIL, 2019c) excluiu toda a representação da
sociedade civil. Só restaram membros do governo e um representante dos
conselhos estaduais do setor. Outro caso dramático é o Conselho Nacio-
nal de Combate a Discriminação e e Promoção dos Direitos de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT), que manteve
apenas a primeira sigla e teve o termo LGBT excluído do seu nome e
das suas atribuições, que passaram a se referir genericamente a “combate
a discriminação”. Além desse apagamento de todo um segmento da po-
pulação, houve uma drástica redução de quinze membros da sociedade
civil, para apenas três. Embora as entidades indicadas para essas vagas
remanescentes ainda sejam ligadas a organizações que atuam no tema da
diversidade sexual, há uma significativa perda de poder, legitimidade e
representatividade política.
Com essa nova estratégia, que envolve um trabalho minucioso não
apenas de novos decretos, mas de alterações infralegais, entre portarias,
resoluções e regimentos, Bolsonaro conseguiu afetar o funcionamento até
mesmo de conselhos criados há décadas. O Conselho Nacional do Meio
Ambiente (CONAMA), regulado originalmente pelo Decreto 99.274/1990
(BRASIL, 1990b) teve poucas modificações em sua composição ao lon-
go de quase 30 anos de existência. Mas, com o Decreto 9806/2019, viu
sua composição reduzida de 96 para 23 representantes, sendo que destes
apenas quatro representam a sociedade civil e são definidas por sorteio
(BRASIL, 2019d). Trata-se não apenas de redução da representação da
sociedade civil, mas também de uma forte retração da própria capacidade
133
do Estado em produzir ações e viabilizar processos deliberativos internos,
algo absolutamente coerente com a conduta do próprio ministro do Meio
Ambiente.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(CONANDA), criado pela Lei 8.242/1991 (BRASIL, 1991), é outro caso
de conselho com larga trajetória de atuação que foi afetado. O CONANDA
é uma peça chave do sistema de proteção instituído pelo ECA, responsá-
vel por sua articulação e financiamento por meio da gestão de um Fundo
Nacional. Porém, sua composição estava prevista somente em Decreto,
o que levou o governo a reduzir a composição de 28 para 18 membros,
dentre outras limitações ao seu funcionamento, que o descaracterizam.
Essa situação também foi levada ao Supremo Tribunal Federal
mais uma vez, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (APDF) 622. Nela a Corte proferiu sentença no sentido de
reconhecer que a destituição de conselheiros e a redução de membros
da forma de forma não motivada ferem os princípios constitucionais da
igualdade e da participação popular direta, restabelecendo o mandato dos
antigos conselheiros até o seu termo final e outras garantias de autonomia
da representação da sociedade civil.
Embora enfraquecidos, os conselhos permanecem sendo lócus de
resistência da sociedade civil em defesa do direito à participação. Seguem
sendo espaços de articulação e de disputa pelos rumos das políticas públi-
cas no país, mesmo em situação política tão adversa. Mas a resistência e
resiliência dos conselhos variam nas áreas de políticas públicas. Vejamos
dois exemplos.

Legados e resiliência da participação: os exemplos


das áreas da Saúde e Direitos das Mulheres
Para McAdam e Tarrow (2011, p. 30), as dinâmicas eleitorais e
seus resultados condicionam e afetam diretamente a relação entre movi-
mentos sociais e instituições políticas por razões tanto substantivas quan-
to psicológicas:
substantivas porque aqueles com quem o partido no poder
tem dívidas eleitorais podem esperar ter mais acesso
134
institucional e receptividade do que os grupos da oposição,
o que incentiva a mobilização; e psicológicas, porque estar
à margem da política tende a desmoralizar e, eventualmente,
levar à desmobilização.

Em análise mais recente sobre diferentes formas de interação en-


tre movimentos sociais e partidos políticos ao longo da história norte-
americana, Tarrow (2021) reafirma a tendência à desmobilização, após
tentativas fracassadas de acesso ao poder ou mesmo diante de resultados
eleitorais negativos para os movimentos. Em casos de sucesso, em termos
de se juntarem a coalizões eleitorais ou mesmo por meio da influência
em campanhas, é preciso estar também aberto à formação de contramo-
vimentos, que podem ter uma sequência reativa às propostas e programas
vencedores.
Conforme discutido nas seções anteriores, o acesso institucional
dos movimentos sociais e da sociedade civil à coalizão governamental li-
derada pelo Partido dos Trabalhadores no nível federal foi inegável, tanto
em termos de ocupação de cargos burocráticos, espaços de negociação e
mesas de diálogo junto ao governo e ampliação de instituições participati-
vas (BEZERRA, 2022). Assim como, é visível o movimento reativo de di-
reita que saiu vitorioso com Jair Bolsonaro. Porém, é importante compre-
ender como a mudança governamental reposiciona a luta dos movimentos
e a interação com o sistema político e partidos, não necessariamente ge-
rando uma sequência de desmobilização após vitória do contramovimento
– neste caso movimentos identificados com o bolsonarismo. Vale destacar
que Tarrow (2021), e antes junto com McAdam e Tarrow (2011), se atém
a dinâmicas de interação entre movimentos e partidos mais pontuais ou
cíclicas, moldadas em torno do processo eleitoral. O caso brasileiro vem
mostrando a importância de olhar para a maneira como a sociedade civil
e movimentos não apenas interage no ciclo eleitoral, mas continuamente,
chegando até a se “encaixar” no interior do Estado e a cavar espaços nas
instituições (LAVALLE et al., 2018), interagindo com diversos partidos
políticos e coalizões governamentais. Embora desde o impeachment de
2016, as eleições de 2018 e a pandemia de COVID-19, seja possível ver
momentos de desmobilização, pelo menos do ponto de vista das dinâmi-
cas contenciosas de protestos e ocupações, não é possível dizer que ela
é completa, especialmente se olharmos para dentro das instituições de
participação. Neste sentido, vale adicionar à discussão da mudança de
135
regime, o olhar para os legados construídos nestes espaços e a maneira
em que eles podem nos ajudar a compreender o que terá mais chances de
perdurar no tempo.
Assim, trazemos como exemplo dois casos paradigmáticos e dis-
tintos para esta compreensão, os Conselhos Nacionais de Saúde (CNS)
e dos Direitos da Mulher (CNDM). Apesar dos ataques mais recentes à
participação, descritos inicialmente, é possível ver que as IPs contam com
diferentes graus ou capacidade de resiliência institucional. Por resiliência
institucional entende-se o esforço e ação intencional dos atores para man-
terem as instituições participativas (IPs) como lócus de atuação, influên-
cia e deliberação da sociedade civil sobre os rumos da política. Além de
preservar, os atores precisam defender explicitamente a instituição, por
meio da adaptação e ação criativa – improvisação e criação de novas re-
gras e dinâmicas (ALMEIDA, 2020, p. 1).
Almeida (2020) discute alguns fatores que ajudam a explicar a resi-
liência do CNS e ocaso do CNDM do ponto de vista institucional, a saber,
o desenho institucional, as comunidades de políticas, o setor de política e
a interação entre sociedade e atores políticos em diferentes coalizões go-
vernantes. Além disso, vale considerar também a dimensão da disputa do
projeto político democrático-participativo com outros projetos políticos,
por exemplo, liberal, neodesenvolvimentista e conservador-autoritário,
nas diferentes áreas (ABERS; ALMEIDA, 2019; DAGNINO, 2004).
Em síntese, no caso da saúde, a disputa política ao longo dos anos
se deu, especialmente, com o projeto liberal na consolidação de um siste-
ma de saúde misto, público e privado, cuja lógica privatizante é a princi-
pal adversária do Sistema Único de Saúde (SUS) (MENICUCCI, 2007).
É possível ver ao longo dos anos essa disputa no interior do CNS, na
medida em que a influência dos movimentos nas questões macro da saúde
vai sendo minimizada, pelos limites do financiamento, crescente presença
do setor privado na área e deslocamento da deliberação sobre a natureza
da política e o próprio financiamento para as Comissões Intergestoras,
formadas apenas por atores governamentais (CORTES, 2009). Por outro
lado, o CNS reúne fatores relevantes para compreender sua resiliência
institucional nos tempos atuais. A primeira delas, é o longo histórico, es-
pecificamente desde o período militar, de interação dos atores sociais li-
gados ao movimento popular e movimento sanitarista com o Estado, que
permitiu arquitetar sua inserção na construção e no processo decisório da
136
política (DOWBOR, 2012; FALLETI, 2010).
O movimento de saúde se tornou, portanto, menos dependente das
oscilações nas coalizações governamentais e círculos eleitorais. Vale des-
tacar que esta relação vai além do Executivo, englobando conexões com
partidos políticos e o legislativo. Segundo, e conectado ao ponto anterior,
essa comunidade de política vem constantemente elegendo o espaço do
conselho como lugar central e prioritário de ação. Apesar de mudanças
em quem faz parte desta comunidade ao longo dos anos e própria reela-
boração na composição do CNS, como discutido na sequência, os atores
sociais se fortaleceram ao longo dos anos e disputam a política no seu in-
terior. Terceiro, deve-se considerar seu lugar em um subsistema de políti-
ca consolidado, com forte coordenação federativa do Ministério da Saúde
(MS) e capilaridade territorial, tanto em termos de equipamentos e pes-
soal quanto de instituições participativas, funcionários públicos em sua
maioria concursados e com um dos maiores orçamentos da União, apesar
de crescente desfinanciamento. Quarto, no que se refere ao desenho ins-
titucional, houve um aumento gradativo nos últimos anos do número de
membros, de 24 para 48; instituição de processo eleitoral para presidência
(2006); diversificação na composição dos usuários, incluindo segmentos
na defesa de raça, etnia, gênero, orientação sexual, patologias e deficiên-
cias; caráter deliberativo, sobrerrepresentação da sociedade civil – 25%
trabalhadores e 50% usuários – e controle do Fundo Nacional de Saúde.
Essas características tornam o conselho mais próximo do núcleo decisório
da política pública e fortalece seu papel na disputa do discurso político
sobre direitos na área. Sendo assim, não obstante os constantes conflitos
políticos e até perda de espaço para o setor privado e agora para o projeto
político autoritário contrário a participação destes ativistas, o CNS vem
demonstrando capacidade de preservar o espaço e ao mesmo inovar em
algumas práticas.
Exemplos desta preservação são a intensificação de um posiciona-
mento público a respeito da crise política e, mais recentemente, da própria
crise sanitária, seja por meio do aumento de publicação de moções de
repúdio, de minutas de recomendação ao congresso e executivo contra
projetos em pauta e de resoluções (Almeida 2020). Além disso, destaca-se
as publicações em suas plataformas de redes sociais e adoção de práticas
chamadas contenciosas a partir do conselho como protestos e marchas em
defesa do SUS (ALMEIDA; VIEIRA; KASHIWAKURA, 2020). Perce-
137
be-se ainda maior movimentação e articulação com o poder Legislativo,
por meio de contato direto com parlamentares, participação em audiên-
cias públicas e discussão de projetos legislativos, além da advocacy junto
ao poder Judiciário, por meio de ações de inconstitucionalidade e apro-
ximação de órgãos da justiça como Ministério Público. Apesar de menor
capacidade de deliberar sobre políticas e mesmo influenciar as decisões
governamentais, onde o claro exemplo é a completa ausência de diálogo
do MS com o conselho na gestão da pandemia de COVID-19, certamente
não se pode dizer que há desmobilização neste caso e tampouco desinsti-
tucionalização do espaço participativo.
O segundo exemplo, o CNDM, foi considerado por Abers e Al-
meida (2019), uma IP de médio poder, pois durante os governos petistas
tinha alguma influência no processo decisório da política, por exemplo,
avanços importantes em termos de projetos e políticas voltadas para gêne-
ro nos estados, municípios e nível federal, e sobre temas relevantes como
violência e trabalho doméstico (SANCHEZ, 2021). Porém, o CNDM é
mais suscetível ao desmonte, se considerarmos os fatores que ajudam a
compreender a capacidade de resiliência, e mesmo à disputa de projetos
políticos. Apesar de praticamente monopolizado por movimentos defen-
sores do projeto participativo-democrático, o CNDM e a política da mu-
lher foram os mais ameaçados pelo projeto conservador-autoritário, espe-
cialmente com o ataque crescente contra os direitos reprodutivos e contra
a própria ideia de direitos de gênero. Além disso, é o projeto conserva-
dor-autoritário que ajuda eleger o novo presidente Jair Bolsonaro gerando
um grande obstáculo à atuação do movimento. Mas para além do projeto
político, para compreender a rapidez do desmonte, seguindo a sequência
analisada para o CNS, em termos de interação com atores políticos, o
movimento feminista – entendido em seu sentido plural – os vários femi-
nismos e organizações – vem interagindo com o sistema político desde
os anos 1980, e a própria criação do conselho deriva destas articulações.
Contudo, a participação nesta área esteve muito mais suscetível às altera-
ções nas coalizões governamentais, por sua aliança mais centrada nos par-
tidos de centro-esquerda e esquerda na redemocratização e baixa inserção
institucional na máquina estatal (ZAREMBERG; ALMEIDA, 2021).
Apesar de criado em 1985, o Conselho rapidamente perde auto-
nomia e capacidade financeira, a partir da eleição de Fernando Collor, e
somente com a criação da SPM, em 2003, o movimento começa a insti-
138
tucionalizar um campo de política pública no interior do Estado nacional.
No que tange às comunidades de políticas, com o enfraquecimento do
conselho na década de 1990, as feministas optam por sair do conselho
e fortalecer sua agenda e o movimento a partir de formação de ONGs,
participação em órgãos governamentais e desenvolvimento de redes, co-
munidades e identidades centradas no movimento. Assim, retornam ao
CNDM apenas com o governo do PT e, durante o impeachment, algumas
organizações importantes novamente renunciam a seus assentos.
Vale destacar que essa “opção” pela renúncia se dá de maneira in-
formada a partir da análise do próprio potencial e capacidade do conselho
influenciar na política. Sendo assim, em termos do setor de política, em-
bora o conselho e a própria SPM tenham tido um papel central de colocar
na agenda política de diferentes áreas governamentais o problema dos
direitos para mulheres e tematizar suas pautas junto à sociedade, organi-
zações civis e movimentos, tinham limitações do ponto de vista da auto-
nomia política, orçamentária e administrativa. Pode-se destacar o caráter
transversal de políticas de gênero, que fazia com que parte de sua atuação
fosse direcionada a parcerias com outros ministérios e áreas de políticas,
algumas das quais eram menos permeáveis que outras ao tema. A própria
Secretaria, com status de ministério, tinha limites em termos de recursos
e pessoal – especialmente cargos comissionados e dependentes de indi-
cações pautadas nas alianças com os partidos da base do governo e não
necessariamente com o movimento. Em geral, a atuação do conselho e
SPM se deu mais no estabelecimento de parcerias e convênios com entes
federativos e organizações civis. Além disso, do ponto de vista da estrutu-
ra participativa no setor de política, foi possível perceber uma difusão de
organismos de mulheres nos estados (795 nos 26 estados) e presença de
conselhos de direitos de mulheres (15% das municipalidades), mas ainda
com número reduzido comparado a outras áreas (ROMÃO; LAVALLE;
ZAREMBERG, 2017). Além da existência de conferências, que foram
importantes fontes de debate, planejamento e conflito entre as várias ver-
sões do feminismo, afirmando paradigmas que não encontravam espaço
no Conselho. Outro fator relevante é o desenho institucional. O CNDM
passou por uma reforma organizativa que gerou aumento considerável
no número de representantes da sociedade civil – que ocupa 60% dos
assentos, os quais são escolhidos a partir de processo eleitoral e chama-
mento público. Ademais, incluiu no Conselho redes e ONGs feministas
139
com base popular, algumas das quais estavam no CNDM no momento de
sua fundação.
Mas, ao contrário do CNS, não controla fundo específico, a presi-
24
dente da SPM era sua presidenta, era dependente dos recursos e da pró-
pria definição de pauta do ministério e possuía caráter consultivo. Neste
cenário, Almeida (2020) defende que não seria o caso de resiliência ins-
titucional, embora o conselho ainda exista formalmente em configuração
muito distinta . Além disso, organizações centrais para o movimento não
mais participam deste espaço. Porém, pesquisa de Santos (2021) mostra
que mesmo após a mudança governamental e saída das principais organi-
zações feministas, redução no número de reuniões e dificuldade de pautar
a política, o conselho continua como espaço de disputa de organizações
da área, haja vista seu processo eleitoral. Por fim, vale considerar que não
há desmobilização social, pois o movimento tem atuado fortemente no
fortalecimento de suas bases sociais, participação em protestos e outros
repertórios, inclusive o eleitoral.
É preciso ampliar as pesquisas sobre esses espaços e também sobre
outras IPs para analisar os processos distintos de resiliência ou desinstitu-
cionalização, ao mesmo tempo que a crise política parece gerar processos
concomitantes de desmobilização e mobilização. Este capítulo pretende
contribuir com essa agenda de pesquisa.

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146
A reforma da previdência
no governo Bolsonaro:
a capitalização como estratégia de
solidariedade
25

Maria Chaves JARDIM


Paulo José de Carvalho MOURA

No Brasil, a previdência social sempre esteve relacionada à cons-


trução do Estado-Nação, aos direitos trabalhistas e ao sindicalismo bra-
sileiro (COHN, 1980; JARDIM, 2002; OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986) e
seu surgimento está relacionado ao assistencialismo, expressa na política
das Santas Casas de Misericórdia, das associações de auxílio mútuo e dos
montepios (LUCA, 1990), já que uma das primeiras formas de se pensar
as incertezas no Brasil se deu por meio do mutualismo (RODRIGUES,
1968).
Durante os primeiros anos do Brasil Colônia, o mutualismo contou
com o trabalho das Santas Casas de Misericórdias, que procuravam pro-
teger os órfãos, os doentes e os idosos. Nesse contexto, as Santas Casas
atuaram em uma série de problemas que eram ignorados pelo Estado,
constituindo-se em uma antecessora da previdência social, porquanto for-
neciam esmola e asilo aos inválidos, doentes e pobres (JARDIM, 2002).
Sobre essas associações de auxílio mútuo surgidas no Brasil, Luca
(1990) afirma que estas se tornaram objeto da ação estatal em 1860. Ainda
segundo a autora, São Paulo e Santos constituíram o berço dessas asso-
ciações, uma vez que a rápida urbanização destas regiões criou problemas
sociais, possibilitando a emergência do mutualismo, como forma de pre-
encher a lacuna social que não era ocupada pelo Estado.
Luca (1990) relaciona o urbanismo com o surgimento do mutua-

25 - O texto faz parte de um projeto mais amplo que acompanha debates públicos e desdobramentos das reformas da
previdência social desde os anos Cardoso (JARDIM, 2002; JARDIM, 2007; MAGNANI; JARDIM; JARD, 2020). O
objetivo desse texto é apresentar os primeiros resultados da pesquisa que trata da reforma da previdência proposta por
Michel Temer (2016-2018) e consolidada no governo de Jair Bolsonaro em 2019.

147
lismo e argumenta que as sociedades de auxílio mútuo prestavam socorro
aos trabalhadores afastados do processo produtivo, resultado de jornadas
excessivas e péssimas condições de trabalho, que levavam a doenças e
invalidez. Segundo a autora, a alta incidência de sociedades de socorro
mútuo, as quais ofereciam algum tipo de auxílio para os sócios impos-
sibilitados de trabalhar temporária e/ou definitivamente, reflete a situa-
ção de penúria e exploração a que estava submetida a classe trabalhadora
(LUCA, 1990).
Dentre as sociedades de auxílio mútuo, merecem destaque os mon-
tepios, os quais surgiram formalmente em 1795, quando operavam pla-
nos de aposentadoria, de pensão ou pecúlio, aberto a toda a população.
A primeira iniciativa do Estado na criação de montepios foi do príncipe
regente, D. João, que assinou o decreto autorizando a criação do Plano
de Benefício para os Órfãos e Viúvas dos Oficiais da Marinha, surgindo
pela primeira vez um montepio de iniciativa estatal no meio militar. Nessa
época, já era significativa a presença de montepios privados nesse meio
(JARDIM, 2002).
No Brasil, o fim das associações de auxílio mútuo ocorreu com
a Lei Eloy Chaves (1923), que criou as Caixas de Aposentadoria e Pen-
sões (CAPS) e constitui o primeiro grande marco da previdência social no
Brasil (LUCA, 1990). O Decreto nº 4.682 estipulou a criação obrigatória,
em cada companhia ferroviária do País, de uma caixa de aposentadorias e
pensões para os respectivos empregados das estradas de ferro, cuja Caixa
foi ampliada em 1926 para todas as categorias profissionais da Estiva e
Marítima (LUCA, 1990; OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986).
Os IAPS (Institutos de Aposentadoria e Pensão) foram criados a
partir de 1933, como resultado da política de Vargas, que buscava tanto
o apoio da classe trabalhadora, como reprimir as reivindicações do mo-
vimento operário. Os Institutos tinham um caráter mais abrangente que
as CAPs e eram organizados por categorias profissionais e não por em-
presas, como as CAPS. Sobre este assunto, Cohn (1980) afirma que com
a quebra do regime oligárquico e a presença cada vez mais marcante das
classes assalariadas urbanas no cenário político e econômico, a previdên-
cia social – até então deixada para o setor privado via contratos de seguro
empregado-empregador – passa a ser objeto de atenção do Estado (OLI-
VEIRA; TEIXEIRA, 1986).
Nesse contexto, Cohn (1980) afirma que a previdência social sur-
148
giu com um caráter duplo: como forma de atendimento às reivindicações
trabalhistas e como mecanismo de controle por parte do Estado e, inclusi-
ve, por parte dos sindicatos.
Durante a ditadura civil-militar, no ano de 1966, os IAPS e as
CAPs foram fundidos em uma só instituição (exceto o IPASE): o Instituto
Nacional de Previdência Social (INPS) (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986).
Na Constituição de 1988, a importância da previdência social foi refor-
çada quando inserida como parte do Sistema de Seguridade Social, que
pressupõe previdência, saúde e assistência social (JARDIM, 2002; JARD
DA SILVA, 2021).
No mesmo momento em que ganhava espaço na Constituição de
1988 no Brasil, se intensificaram narrativas públicas ao redor do mundo
sobre a falência dos sistemas previdenciários públicos e a ineficiência das
instituições do Estado de Bem-Estar Social, que deveriam ser substituídas
por modelos capitalizados. Essas narrativas foram reforçadas com a crise
econômica dos anos 1980 e sustentaram diversas reformas da previdência
social no Brasil (JARDIM, 2002; LEÃO, 2013), na América Latina e no
mundo, sendo que, na ocasião, a maioria desses países optaram pelo sis-
tema de capitalização (MARQUES, 1992; SAUVIAT, 2005; SKOCPOL,
1999).
No que se refere ao Brasil, houve sete reformas da previdência
social desde a Constituição de 1988. A primeira foi no governo Collor de
Mello, em 1990, quando houve a criação do Instituto Nacional do Seguro
Social (INSS) e a Instituição do Conselho Nacional de Seguridade Social
(CNSS) (MARQUES, 1992); em seguida, no governo de Itamar Franco,
em 1993, a reforma foi voltada para os trabalhadores do setor público. Na
ocasião, a matéria determinou que as pensões e aposentadorias dos servi-
dores públicos fossem custeadas pela União e pelos próprios servidores
(JARD DA SILVA, 2021). Em 1998, o presidente Cardoso mudou tanto
a aposentadoria do trabalhador do setor público quanto da iniciativa pri-
vada, alterando a fixação das idades mínimas para aposentar e inserindo
novo tempo de contribuição (JARDIM, 2002).
Nos governos Lula, duas reformas foram promovidas. A primeira,
de 2003, estabeleceu que as aposentadorias e pensões de servidores pú-
blicos seriam com base na média de todas as remunerações, além de ter
taxado os aposentados, que passaram a contribuir com 11% do salário.
Na reforma de 2003, foi concedido aos sindicatos e centrais sindicais o
149
direito de criar e de gerir fundos de pensão, que é um tipo de previdên-
cia complementar, e que movimenta, no Brasil, o equivalente à 20% do
Produto Interno Bruto (JARDIM, 2007; JARDIM, 2009). Na reforma de
2005, Lula beneficiou os trabalhadores de baixa renda, os quais foram en-
quadrados em um sistema de cobertura previdenciária com contribuições
e carências reduzidas, passando a ter direito a um salário-mínimo. Em
2012, durante o governo Dilma, as aposentadorias por invalidez no ser-
viço público foram alteradas. O cálculo passou a ser realizado com base
na média das remunerações do servidor e não com base na sua última re-
muneração. Em 2015, ainda durante o governo Dilma, a reforma ampliou
de 70 para 75 anos a idade estabelecida para aposentadoria compulsória
(LEÃO, 2013; JARD DA SILVA, 2021).
Essa breve apresentação tem como objetivo contextualizar que os
primeiros modelos previdenciários do Brasil se deram a partir do assis-
tencialismo e em seguida, das iniciativas privadas; e que a partir de 1923
a previdência social foi incorporada paulatinamente pelo Estado, que a
despeito de promover diversas reformas na previdência, sempre manteve
o princípio redistributivo como pilar da solidariedade intergeracional.
Diante disso, o objetivo do capítulo é contribuir na literatura sobre
reforma da previdência social, identificando as principais justificativas
que embasaram o projeto de reforma da previdência social apresentado
pelo governo de Jair Bolsonaro, em 2019. O objetivo geral é identifi-
car que tipo de solidariedade é oferecida pela proposta do governo. Nos-
sa metodologia foi a coleta de discursos proferidos por três importantes
agentes estatais envolvidos na temática (Paulo Guedes, Jair Bolsonaro e
Rogério Marinho). O material foi analisado a partir da análise de discurso
de Pierre Bourdieu (1989) e os dados foram tratados em diálogo com a
literatura que se dedica à previdência social no Brasil.
Os resultados da pesquisa indicam uma forte ênfase discursiva no
projeto de capitalização da previdência social, cuja capitalização não foi
apresentada como complementar, tal qual nos governos anteriores, mas
como modelo obrigatório. Nosso argumento é que todas as justificativas
acionadas pelos agentes estatais envolvidos na reforma da previdência de
2019 tiveram como objetivo aprovar a transição de um modelo de previ-
dência baseado na repartição, para um modelo de capitalização, chamada
pelo governo de A Nova Previdência.
Além dessa introdução e da conclusão, o capitulo é composto de
150
três sessões: na sessão seguinte, apresentamos uma visão geral da reforma
da previdência proposta pela equipe de Jair Bolsonaro; em seguida, apre-
sentamos discursos selecionados e finalmente temos uma sessão dedicada
às análises, quando pontuamos os limites e desvantagens da capitalização
da previdência social.

De Temer a Bolsonaro: a gestação


de uma solidariedade via mercado
A reforma da previdência do governo Bolsonaro foi construída du-
rante a gestão Temer, a partir de uma proposta de reforma iniciada em
2016 com a PEC 287/2016 26. Após assumir a presidência com o impea-
chment de Dilma Rousseff, o presidente Temer e sua equipe econômi-
ca, liderada pelo ministro da Fazenda, o economista Henrique Meirelles,
estabeleceu que a reforma da Previdência seria uma das metas, ao lado
reforma da trabalhista. Entretanto, no caso da primeira, o processo foi
estagnado devido à instabilidade política causada por denúncias, feitas
pelo empresário Joesley Batista, apontando o envolvimento direto de Mi-
chel Temer em corrupção. Naquele contexto, as campanhas publicitárias
de reforma da previdência do governo embalavam a proposta sob o lema
de “Precisamos mudar a previdência para colocar o Brasil nos trilhos”.
Houve um esforço discursivo do governo Temer em comparar a reforma
com momentos históricos os quais, apesar de hipoteticamente ter trazido
ganhos à sociedade, no primeiro momento trouxe insegurança, como à
adesão ao cinto de segurança, a criação do plano real, a vacinação e a
privatização da telefônica.
Com a eleição do governo de Jair Bolsonaro, sob a promessa de au-
mentar a idade mínima da aposentadoria do serviço público e introduzir o
modelo de capitalização, as principais diretrizes do projeto de reforma an-
terior foram incorporadas e reelaboradas pela equipe econômica liderada
pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Nessa equipe, destaque para

26 - Entretanto, durante a campanha eleitoral, então candidato à presidência, Bolsonaro afirmou que a proposta de
Temer e Meirelles era “um remendo novo em calça velha” e que dificilmente seria aprovada como se encontrava.
Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/faremos-nossa-reforma-da-previdencia-diz-bolsonaro/. Acesso em:
20 mar. 2022.

151
Rogério Marinho (Secretário de Previdência), Marcelo Guaranys 27 (Se-
28
cretário Executivo), Waldery Rodrigues Júnior (Secretário da Fazenda),
29
Adolfo Sachsida (Secretário de Política Econômica), e Mansueto Almei-
30
da (secretário do Tesouro Nacional).
O texto incorporou pontos centrais da reforma proposta pela gestão
Temer em 2017, como por exemplo, o aumento da idade mínima para apo-
sentadoria, tanto para homens quanto para mulheres. A reforma aprovada
em 13 de novembro de 2019 e que resultou na Emenda Constitucional nº
103 traz um conjunto de alterações, como a mudança do tempo mínimo
de contribuição, a criação de uma alíquota unificada de contribuição dos
servidores privados e públicos, seguindo o princípio do Imposto de Renda
e aumento da idade para aposentadoria para homens e mulheres.
Nossa metodologia foi baseada na coleta de discursos de três agen-
tes estatais, a saber: o presidente Jair Bolsonaro, o ministro da Economia,
Paulo Guedes e o secretário especial de Previdência e Trabalho do Minis-
tério da Economia, Rogério Marinho. Os discursos coletados foram pro-
nunciados em 2019, nos meses que antecederam a aprovação da reforma
da previdência e priorizamos discursos pronunciados em eventos oficiais,
tais como audiência pública, seminários da reforma da previdência, fórum
mundial e entrevistas concedidas pelos agentes sociais.
Esse material foi tratado a partir da análise de discurso de Pierre
Bourdieu (1989), para quem a interpretação dos discursos deve levar em
conta a trajetória de cada agente e suas disputas para impor uma definição
de mundo. O autor defende que semântica e política estão profundamente
imbricadas, principalmente, em virtude da disputa constante pela conquis-
ta da legitimidade de falar e agir, ou seja, “o que faz o poder das palavras
[...] é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia,
crença cuja produção não é da competência das palavras” (BOURDIEU,
1989, p. 15), mas dos capitais detidos pelos agentes sociais.

27 - Mestre em Direito Público pela Universidade de Brasília, UnB, Brasília 2002 - 2003 MBA em Direito Econômico
e das Empresas Fundação Getúlio Vargas, FGV, Brasília 1995 - 1999 Bacharel em Ciências Econômicas Universidade
Brasília, UnB, Brasília.
28 - Economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é graduado em engenharia pelo Instituto Tec-
nológico de Aeronáutica (1992) e mestre em economia pela University de Michigan e pela Universidade de Brasília
(UnB), além de doutor em Economia pela UnB.
29 - Doutor em economia pela Universidade de Brasília (UnB). Ele fez pós-doutorado com o professor Walter Enders
na University of Alabama, lecionou economia na University of Texas-Pan American e foi consultor do Banco Mundial
para Angola.
30 - graduado pela Universidade Federal do Ceará e possui Mestrado pela Universidade de São Paulo (USP). Cursou
o Doutorado em Políticas Públicas no MIT, Cambridge, no Massachusetts, mas não defendeu a tese. Consultor para o
então candidato à presidência Aécio Neves nas Eleições de 2014.

152
Nessa perspectiva, estaremos atentos a identificar quem fala, o que
fala, de onde fala e para quem fala, vinculando os discursos às crenças que
esses carregam e as condições sociais de produção do agente que detém
determinada “fala autorizada” (legítima). Por esse motivo, apresentamos
uma minibiografia dos agentes sociais destacados nessa pesquisa, mesmo
que em notas de rodapé, caso da equipe econômica de Paulo Guedes.
O presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, possui forma-
ção na área militar na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN),
concluída em 1977. Após percurso conturbado, ingressou na reserva em
1988 com o posto de capitão e iniciou sua trajetória política, marcada
principalmente por sua atuação como deputado federal de 1991 a 2019,
sendo filiado a diversos partidos nesse período. Durante toda sua trajetó-
ria, adotou posições estatizantes e pregou a intervenção do Estado, com
destaque para a defesa da ditadura militar no Brasil e suas ações econômi-
cas que culminaram no que se convencionou chamar “milagre brasileiro”
nos anos 1970. Em 1999, Bolsonaro chegou a defender publicamente o
fuzilamento do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) pelas
privatizações realizadas durante seu governo. Contudo, a partir de 2016,
quando anunciou a intenção de se candidatar a presidente de 2018, pas-
sou a defender a necessidade de enxugar a máquina pública e de tornar o
Estado-mínimo; a capitalização da previdência entraria nessa narrativa.
Paulo Roberto Nunes Guedes é formado em economia pela Uni-
versidade Federal de Minas Gerais (UFMG), cursou seu mestrado na área
pela Faculdade Getúlio Vargas – FGV (1977) e, em seguida, realizou o
doutorado na University of Chicago (1978) nos Estados Unidos, sendo
essa instituição conhecida na literatura por formar economistas com po-
sicionamentos mais ortodoxos, ou melhor, monetaristas (DUTRA, 2016;
JARDIM; MOURA, 2021; LOUREIRO, 1997). Também atuou como do-
cente, em regime de dedicação parcial, na Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), na FGV e no Instituto de Matemáti-
ca Pura e Aplicada (IMPA). Em 1983, foi um dos quatro fundadores do
Banco Pactual – atual BTG Pactual e, ao largo de sua trajetória, de vários
fundos de investimentos e empresas, bem como do Instituto Brasileiro de
Mercado de Capitais (Ibmec) e do think tank liberal, Instituto Millenium.
Na campanha das eleições 2018, foi apresentado como “Posto Ipiranga”
de Bolsonaro, como seu guru econômico com propostas de privatizações
e reformas “radicais”.
153
Secretário especial de Previdência Social indicado por Paulo Gue-
des com intuito de ajudar na aprovação da reforma da previdência, Rogé-
rio Simonetti Marinho graduou-se em Ciências Econômicas pela Facul-
dade Unificada para o Ensino das Ciências (UNIPEC), atual Universidade
Potiguar (UnP). Trabalhou entre 1987 e 1989 como professor da rede es-
tadual de ensino do Rio Grande do Norte. Foi secretário de Planejamento
da Prefeitura de Natal, vereador e presidente da Câmara Municipal de Na-
tal, e secretário estadual de Desenvolvimento Econômico do Rio Grande
do Norte. Foi eleito deputado federal por duas vezes. Em 2017, foi relator
da reforma trabalhista na Câmara dos Deputados.
Após uma primeira análise flutuante de todo o material coletado,
identificamos os principais temas abordados pelos agentes na defesa da
reforma da previdência, que estão expostos, a seguir, em eixos temáticos:
crise da previdência, excesso de gasto público e necessidade de reforma
fiscal; ineficiência do Estado: a urgência da reforma do Estado; reforma
da previdência como crescimento econômico; separação entre previdên-
cia social e assistência social; Disputa geracional: a guerra entre jovens e
velhos; e finalmente, a preponderância do mercado na previdência: capi-
talização versus repartição.

Crise da previdência, excesso de


gasto público e necessidade de reforma fiscal
Junto aos discursos dos agentes analisados, encontramos uma ten-
tativa discursiva em relacionar a reforma da previdência a uma propalada
crise da previdência social e ao excesso de gasto público. Segundo a lite-
ratura (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986; DUVAL, 2007; GENTIL, 2006;
JARDIM, 2007; JARD DA SILVA, 2021) esses argumentos sempre apa-
recem em debates públicos para justificar a reforma da previdência, inde-
pendente do partido que está no poder, pois é uma estratégia discursiva
que costuma sensibilizar a sociedade (DUVAL, 2007).
Agente Discurso
social
Jair O que pesa mais no orçamento público é a questão da previdência pública, essa
Bolsonaro vai ter maior atenção da nossa parte e no meu entender nós vamos buscar elimi-
nar também privilégios (Entrevista concedida ao SBT em 03/01/2019).

154
Os discursos vinculados colocam em questionamento a legalidade
da Seguridade Social, instituída pela Constituição de 1988 e falam, inclu-
sive, em separar a previdência social da assistência social.31

Agente Discurso
social
Nós vamos ter que separar assistência de Previdência. Tudo isso está sendo
Paulo equacionado, não é por mim, tem gente trabalhando nisso há anos, os melhores
especialistas estão trabalhando há anos. Nós não vamos reinventar a roda, o
Guedes que estamos fazendo é botar tudo isso junto e preparar isso para submissão
futura ao Congresso (Posse em 01/01/2019).

A crise da previdência social é acionada também para justificar


políticas macroeconômicas de ajuste fiscal de longo prazo.

Agente Discurso
social
Paulo A dimensão fiscal foi sempre o calcanhar de Aquiles de todas as nossas tenta-
Guedes tivas de estabilização. O descontrole sobre a expansão de gastos públicos é o
mal maior (Posse em 01/01/2019).
Isso [o dito déficit da previdência] é uma ameaça, é um buraco fiscal que ameaça
engolir o Brasil e precisa ser atacado frontalmente. [...] O movimento em direção
Paulo à nova Previdência é para garantir o pagamento de aposentadorias, benefícios
e da assistência social. Se não fizermos nada, não há garantia de que esses
Guedes pagamentos poderão ser feitos, como vários Estados já estão experimentando
(Em Audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania
em 3 de abril de 2019).

A justificativa para a reforma da previdência argumenta sobre con-


ter os desequilíbrios das contas públicas. O debate é de natureza fiscal e
faz parte de um contexto de vigência de uma política econômica fiscal e
monetária de caráter contracionista, ou seja, monetarista, onde a lógica
financeira ganha centralidade.

Agente Discurso
social
Precisamos recuperar as finanças públicas do Brasil. O país investe hoje 64%
Rogério em Previdência e Assistência. O ajuste fiscal proporcionado pela reforma da
Previdência será a última janela de oportunidade que teremos (Em Seminário
Marinho sobre a Nova Economia Liberal, na Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Rio de
Janeiro (RJ) em 15/03/2019)

Esses discursos acima não nos surpreendem, porque a literatura


(OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986; JARDIM, 2002; GENTIL, 2006; LOR-
DON, 2000; THÉRET, 1999; SAUVIAT, 2006; JARD DA SILVA, 2021)
tem apontado que a narrativa sobre a crise e a falência da previdência

31 - Para o argumento de que a previdência social possui superávit e não está em crise, ver a conhecida tese de douto-
ramento de Gentil (2006).

155
social tem aparecido como justificativa para reformas ao redor do mun-
do, em diálogo com as propostas do Banco Mundial (JARD DA SILVA,
2021). O argumento da existência de um déficit e até mesmo da falência
do sistema público de previdência faz parte da construção discursiva que
defende a transição para um sistema de capitalização.
Contudo, é importante destacar que na reforma de 2019, a narra-
tiva da crise financeira da previdência ganhou mais potencial do que o
previsto nas campanhas governamentais anteriores, pois foi alimentada
pelo decréscimo sobre a folha de pagamento decorrente do crescimento
do trabalho informal e do desemprego que reduziu a contribuição social
para a seguridade social; da flexibilização das leis do trabalho e do dis-
curso dos empresários sobre os excessos de direitos dos trabalhadores
que elevam os custos e suas reivindicações pela flexibilização nos direitos
trabalhistas, que teria sido concretizada com a “Carteira Verde e Amare-
la” do governo Bolsonaro. Os argumentos dos agentes estatais defendem
maior flexibilização dos direitos trabalhistas, como tem apontado Lima
(2021) em seus estudos sobre emprego e mercado de trabalho.
Nesse primeiro eixo temático, notamos que o debate teve como
fio condutor uma lógica estritamente contábil, que se resume a busca do
equilíbrio entre receitas e despesas da previdência, sem considerar as con-
tribuições que servem para financiar a Previdência Social e os empregos
regionais que a previdência social gera (CAETANO, 2008). As justifi-
cativas produzidas sobre a crise da previdência estão embasadas em um
discurso econômico, sustentado na ideia de ajuste fiscal de longo prazo e
ignorando o papel de inclusão social da previdência.

Ineficiência do Estado: a urgência da reforma


do Estado
A crítica aos modelos de financiamentos que colocam o Estado
como interventor, foi uma constante no material coletado.
Agente Discurso
social
Essa economia de comando central sem eficiência do Estado como condutor do
crescimento produziu essa expansão de gastos públicos como porcentagem do
PIB, corrompendo a política e estagnando a economia. São 2 filhos bastardos do
mesmo fenômeno (Posse em 01/01/2019).

156
Agente Discurso
social
Paulo O Brasil foi corrompido pelo excesso de gastos e o Brasil parou de crescer pelo
Guedes excesso de gastos. A reforma do Estado é, portanto, a chave para correção des-
se fenômeno. E essa reforma do Estado, na verdade, tem várias dimensões. É o
primeiro é ataque ao problema fiscal (Posse em 01/01/2019).

Os agentes estatais estudados pontuaram a necessidade de reforma


do Estado e de reduzir seu papel na economia, pois o mesmo se torna ine-
ficiente com o excesso de gasto.
Agente Discurso
social
Jair Nós pretendemos diminuir o tamanho do Estado, realizar reformas como, por
Bolsonaro exemplo, da Previdência e tributária, queremos tirar o peso do Estado em cima
de quem produz, de quem empreende (Entrevista coletiva após abertura da Ses-
são Plenária do Fórum Econômico Mundial 2019 - Davos/Suíça, - 22/01/2019).

O senso comum vigente nos discursos coletados é a necessidade de


ultrapassar o modelo econômico proporcionado pela intervenção do Es-
tado (desenvolvimentismo ou neodesenvolvimentismo), para aquele que
busca combater a inflação, ajuste nas contas públicas e na defesa da ampla
soberania dos mercados e dos interesses individuais sobre os interesses
coletivos (neoliberalismo). Nesse sentido, um sistema de seguridade so-
cial universal, solidário e baseado em princípios redistributivistas confli-
taria com essa visão de mundo. A busca por um sistema previdenciário
cuja solidariedade é via mercado faz parte desse contexto.

Reforma da previdência como


crescimento econômico
Uma outra justificativa presente é que a reforma da previdência
traria desenvolvimento econômico, já que mais empregos seriam gerados,
sem os ditos altos encargos previdenciários das empresas.
Agente Discurso
social
Paulo A reforma da Previdência abre um horizonte de 10 a 15 anos de recuperação
Guedes do crescimento, na mesma ordem disparam as ondas de investimento interno,
atraem também os investimentos externos. Nós vamos começar a simplificar e
reduzir os impostos. Vamos fazer a descentralização de recursos para estados
e municípios. E o Brasil, de julho em diante, já está crescendo de novo. Essa é a
verdade a respeito do crescimento (06/05/2019).

157
Agente Discurso
social
Paulo [...] a nova Previdência, que nós chamamos de um sistema de poupança garanti-
Guedes da, é um sistema que vai democratizar a poupança, vai permitir que o País cres-
ça mais rápido, vai gerar mais empregos e, no futuro, pode perfeitamente ter a
garantia de salário-mínimo, independente da acumulação (Em Audiência pública
na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania em 3 de abril de 2019).
Paulo Se nós aprovarmos a Previdência, pode ter certeza, recursos de fora e de dentro
Guedes do País voltarão para o mercado, para todas as áreas que nós precisamos, o
emprego aparecerá automaticamente (Entrevista coletiva após Solenidade Mili-
tar de Formatura de Sargentos da Aeronáutica - Guaratinguetá/SP, 19 de junho
de 2019).

Ao contrário do que pregam os engajados na reforma da previdên-


cia – de que o crescimento econômico está atrelado a uma previdência de
solidariedade via mercado – autores especializados (MARQUES, 1992;
JARDIM, 2002; GENTIL, 2006; CAETANO, 2008; JARD DA SILVA,
2021) tem pontuado a importância da previdência social na redistribuição
da renda do país, gerando mercado regional, mercado interno e, princi-
palmente, a ampliação do emprego formal, o que na prática permite a
inclusão social e a solidariedade via modelo de repartição. Portanto, a pre-
vidência social tem se constituído como uma aliada para o aquecimento
do mercado de trabalho, gerando emprego, renda e inclusão social.

Disputa geracional: a guerra entre velhos e jovens


Um tema que apareceu como justificativa para a reforma da pre-
vidência e a transição para o modelo de capitalização é a preponderância
dos velhos diante das necessidades dos jovens.
Os agentes estatais explicitaram essa disputa geracional questio-
nando o volume do orçamento investido na aposentadoria, em relação aos
valores investidos na educação. Trata-se de uma peça discursiva que visa
tensionar as relações geracionais entre velhos e jovens, uma vez que os
recursos para custear aposentadoria e educação possuem fontes distintas.
Agente Discurso
social
Rogério Nós temos uma situação no País em que 712 bilhões de reais foram investidos ano
Marinho passado em assistência e Previdência, e 74 bilhões em educação, ou seja, inves-
timos 10 vezes mais no nosso passado do que no nosso futuro, graças à nossa
configuração orçamentária e às vinculações existentes. Foram investidos 110 a 111
bilhões em saúde, sete vezes mais na Previdência e assistência do que na saúde do
conjunto da sociedade brasileira (Em Audiência pública da Comissão de Finanças e
Tributação da Câmara dos Deputados em 8/05/2019).

158
A disputa entre “passado” e “presente” é explicitada em diversas
ocasiões, visando justificar a substituição do modelo de repartição da pre-
vidência social, por um modelo de capitalização.

Agente Discurso
social
Paulo No ano passado, nós gastamos 700 bilhões de reais com a Previdência, que é o
Guedes passado, são os nossos idosos, e gastamos 70 milhões de reais com a educa-
ção, que é o nosso futuro. Então nós gastamos 10 vezes mais com a Previdência
do que com a educação, que é o futuro (Em Audiência pública na Comissão de
Constituição e Justiça e de Cidadania em 3/04/2019).
Rogério Despendemos dez vezes mais com o passado do que com o futuro. Quando a
Marinho despesa com a Previdência aumenta, o orçamento é comprimido, e isso diminui
a capacidade de o Estado investir em saúde, educação e infraestrutura (Em Au-
diência da Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público da Câmara
dos Deputados em 16/02/2019).

Além disso, a narrativa elaborada busca ainda colocar em disputa


“velhos” e “jovens desempregados”, atribuindo ao regime previdenciário
de repartição o desajuste entre esses grupos geracionais e, portanto, a pre-
vidência social seria a responsável por operar como “bombas de destrui-
ção” sobre os empregos e sobre o futuro dos jovens.

Agente Discurso
social
Financiar aposentadoria do trabalhador idoso desempregando trabalhadores é,
na minha opinião, uma forma perversa de financiar o sistema. Cobrar encargos
trabalhistas sobre a mão de obra, sobre a folha de pagamentos, é, do ponto de
vista social, uma condenação. O sistema é perverso, pois 40 milhões de brasilei-
ros estão excluídos do mercado formal de trabalho. Eles não conseguem ter ca-
pital, eles não conseguem ter tecnologia, eles não conseguem ter produtividade
mais alta, porque foram expulsos, excluídos do mercado formal de trabalho pela
Paulo forma perversa como o sistema é financiado. Está-se botando um trabalhador
Guedes desempregado para financiar a aposentadoria do outro. Isso é socialmente per-
verso. São bombas de destruição em massa de empregos. Milhões de brasilei-
ros estão desempregados por causa de um financiamento perverso. Então, eu
não vejo com olhar tão doce e gentil o sistema previdenciário atual, porque ele é
perverso, 40 milhões de brasileiros são excluídos. E eles envelhecerão, e o sis-
tema está quebrado. Eles não conseguem contribuir para a Previdência porque
estão desempregados e, ao mesmo tempo, pesarão no futuro da Previdência.
Essa condenação é inequívoca. O sistema é ruim, o sistema é perverso (Em Au-
diência na comissão especial da reforma da previdência em 8 de maio de 2019).

Sobre a propagada disputa entre velhos e jovens, indicamos que


em nossos estudos anteriores sobre previdência, não havíamos encontra-
do essa construção discursiva por parte dos governantes brasileiros, de
uma guerra entre velhos e jovens. Por isso iremos nos dedicar a esse tema
no futuro, que já o mesmo já apareceu nos discursos de governantes ultra-
liberais ao redor do mundo (THÉRET, 1999; SAUVIAT, 2006).
Até o momento da análise, os dados tem apontado que todos os
159
discursos produzidos durante a reforma da previdência possuem como fio
condutor a necessidade de convencer a sociedade brasileira sobre a tran-
sição do modelo de previdência social de solidariedade redistributivo para
um modelo de previdência de solidariedade contributiva, via mercado.
Por isso, daremos destaque a esse eixo temático, a seguir.

Preponderância do mercado na previdência:


capitalização versus repartição.
No regime de previdência via repartição, os trabalhadores da ati-
va e as empresas pagam a aposentadoria de quem já está aposentado, os
quais, por sua vez, um dia financiaram a aposentadoria dos trabalhadores
aposentados antecessores. Essa lógica, presente nos regimes de repartição,
é chamada de solidariedade intergeracional e pressupõe que uma geração
financia a aposentadoria da outra. Nesse sistema, não apenas trabalhado-
res da ativa tem um valor descontado no seu holerite para a aposentaria,
mas também empresas são obrigadas a realizar contribuições para a segu-
ridade social.
A reforma de Bolsonaro propõe a transição desse modelo (repar-
tição) para o modelo de capitalização, no qual, cada trabalhador será res-
ponsável, individualmente, para contribuir para sua própria previdência e
as empresas ficam desobrigadas da contribuição para a seguridade social.
Segundo a proposta apresentada pelo governo, essa poupança seria gerida
por entidades públicas e privadas, de acordo com a escolha do trabalha-
dor. Vejamos os argumentos dos agentes estatais na defesa do modelo
individualizante de previdência:
Agente Discurso
social
Se [...] libertamos os nossos filhos e netos da armadilha que nós fizemos para
Paulo nós mesmos com um sistema de repartição, que é um sistema que tem várias
Guedes bombas a bordo, tem a bomba demográfica, que já chegou, o sistema já está
em xeque, já está quebrando antes de a população envelhecer, tem a bomba
da forma inadequada de financiamento, encargos trabalhistas produzem os 40
milhões de brasileiros que vão envelhecer, vão bater às portas da Previdência e
não contribuem (Posse em 01/01/2019).

Marques (1992), Théret (1999), Sauviat (2006) e Duval (2007)


mostram que o principal argumento para modificar a arquitetura dos siste-
mas estatais de proteção social, tem sido os custos crescentes dos sistemas
160
previdenciários, os quais hipoteticamente decorreriam do envelhecimento
da população. Nesse ínterim, questões sociais e econômicas são reduzi-
das às questões demográficas, diante das quais não há solução possível a
não ser o corte de direitos, redução do valor dos benefícios e elevação de
impostos.
Agente Discurso
social
O sistema de repartição é um sistema que está condenado. E ele está condena-
Paulo do porque há várias bombas a bordo [...] A primeira bomba que o sistema tem a
Guedes bordo é a bomba demográfica. Havia uma dinâmica. Havia 10 jovens recolhendo
10% cada um, vamos supor que fosse isso, pagando pela aposentadoria de um
idoso. A medida que a demografia — e no mundo inteiro ela se move assim — vai
deixando de ser uma pirâmide e vai começando a virar um losango, começam a
ser seis jovens para um aposentado; depois quatro jovens para dois aposenta-
dos e, no final, há um jovem para três aposentados. E o sistema entra em colap-
so. Então é muito importante nós entendermos, primeiro, que o nosso sistema
já está financeiramente condenado antes de a população brasileira envelhecer.
Não interesse quem estiver no poder, seja o Governo que for (Audiência pública
na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania em 3 de abril de 2019).

A defesa do modelo de capitalização é explicitada com a justificati-


va de que no modelo de capitalização não existiria a dependência entre as
pessoas e elas se tornariam autossuficientes com a capitalização. Assim,
o que é considerado positivo no modelo de redistribuição - a interdepen-
dência entre as pessoas – se torna um problema, que deve ser contornado,
na nova proposta.
Agente Discurso
social
Ele [o sistema de capitalização] não tem as desvantagens que o sistema de re-
Paulo partição tem. Ele segue alguns princípios financeiros saudáveis. Por exemplo,
Guedes ele não tem a bomba demográfica, porque o jovem não depende de outro jovem.
O jovem que vai se aposentar lá na frente não depende que outro jovem lá no
futuro pague a aposentadoria dele. Ele mesmo vai acumulando. “Ah, mas pode
não acumular o suficiente, vai ser menos que o salário-mínimo”. Problema ne-
nhum. Um sistema de capitalização pode sempre botar uma camada adicional
de repartição (...) A bomba demográfica não estará a bordo de um sistema de
capitalização. A segunda bomba cruel, que é o financiamento com encargos
trabalhistas, não estará a bordo de um sistema de capitalização. O terceiro pro-
blema cruel, que é o promete para o futuro e não leva recurso, não estará a
bordo de um sistema de capitalização. Se não der o suficiente, não há problema.
Você usa o nocional, você garante o salário-mínimo e paga a compensação (Au-
diência pública na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania em 3 de
abril de 2019).

A nova solidariedade sustentada no próprio individuo é vendida


discursivamente como um bem comum, como uma fuga da “armadilha”
dos baixos rendimentos da aposentadoria pública e, acima de tudo, gera-
dora de um futuro melhor, já que não se teria mais os efeitos “perversos”
da dita “fábrica de desigualdades” promovida pelo modelo de previdência
baseado na repartição.
161
Agente Discurso
social
Se a acumulação no regime de capitalização, no regime de poupança garantida,
Paulo lá na frente, que deve dar muito mais que um salário-mínimo, se der menos,
Guedes haverá a camada adicional de fraternidade para garantir o salário-mínimo. A úni-
ca coisa que nós estamos fazendo é justamente permitir que os jovens não
caiam na mesma armadilha que a nossa geração caiu, em que há 50 milhões de
desempregados, desemprego aberto. Não se contribui para a Previdência, que
já quebra antes de o País envelhecer (Em Audiência pública na Comissão de
Constituição e Justiça e de Cidadania em 3 de abril de 2019).
Quando você tem um sistema de repartição, você quebra, e aí, ao contrário, em
Paulo vez de você poder tributar e complementar a camada, ao contrário, você tem
Guedes um enorme custo de transição, e o custo de transição sobe com o tempo. Há 10
anos, eram 200 bilhões; hoje, é 1 trilhão; daqui a 5 anos podem ser 5 trilhões,
pode ser inviável, como é a história de alguns países que eu mencionei (...). o
sistema de capitalização é um sistema que não tem bomba demográfica, não
tem a bomba de não levar recursos para o futuro, não tem essa fabricação de de-
sigualdade, porque as pessoas vão acumulando. Você pode sempre compensar
no futuro com um sistema nocional em que você tem o direito de complementar
(Depoimento em Audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça e de
Cidadania em 3 de abril de 2019).
Então, há uma hora em que tem que ser enfrentado o fenômeno e a hora é agora
Paulo porque entra 1 grupo que acredita que mecanismos de inclusão social –a maior
Guedes engrenagem descoberta pela humanidade para garantir a inclusão social são as
economias de mercado (Posse em 01/01/2019).

Como demostram os discursos proferidos pelos engajados na refor-


ma, todos os eixos narrativos desembocam na justificativa para a adesão
ao modelo de previdência baseada na capitalização, motivo que daremos
destaque a essa discussão a seguir.

Modelo de solidariedade via mercado,


o fio condutor da reforma de Bolsonaro
Desde a reforma da previdência do governo Collor, em 1991, exis-
te uma tentativa de substituição da previdência social pela previdência
privada, mas até o momento, nenhum governo obteve êxito nesse projeto.
Tanto Collor quanto Cardoso autorizaram a venda de previdência
privada aberta pelos bancos públicos e privados e nas seguradoras, como
forma do trabalhador criar uma poupança e complementar sua aposenta-
doria, que continuava a ser oferecida centralmente pela Previdência Social
(JARDIM, 2002). Em sua dissertação de mestrado, Jardim (2002) indicou
que esse dispositivo era negociado pelos bancos como um “produto casa-
do”, ou seja, como “uma condição” para fazer empréstimo a um cliente. A
classe média foi a maior consumidora de previdência privada aberta nos
anos 1990 e 2000 e o dispositivo financeiro (previdência privada) nunca
ganhou o status de previsibilidade a longo prazo, pois a poupança acumu-
162
lada pela previdência privada aberta era usada pelo proprietário do plano
na primeira emergência financeira (JARDIM, 2002).
Em 2003, o governo Lula trouxe à baila os fundos de pensão, dan-
do destaque à previdência complementar fechada, que é um tipo de previ-
dência complementar oferecida por empresas, sindicatos e ONGs, a seus
funcionários. Na ocasião, Lula autorizou os sindicatos e centrais sindicais
a realizarem a criação e sobretudo a gestão de fundos de pensão (JAR-
DIM, 2007; SILVA, 2011).
Portanto, apesar das pressões do Banco mundial (JARD DA SIL-
VA, 2021), o Brasil foi a principal economia latino-americana a resistir à
capitalização da previdência nos anos 1990, momento em que trinta paí-
ses substituíram seus sistemas públicos de repartição por sistema privados
de capitalização.
No Brasil, nas reformas anteriores, a previdência privada (aberta
ou fechada) não aparece como uma substituta da previdência social, mas
como complementar e de forma facultativa, já que a previdência social
continuava a ser a promotora da solidariedade intergerações.
Contudo, a reforma da previdência do governo Bolsonaro buscou
alterar substancialmente o modelo de previdência, saindo da repartição
para a capitalização de forma obrigatória. Se aprovada, essa seria a mu-
dança de maior envergadura sofrida pela previdência social em toda a sua
história, uma vez que o projeto apresentado estabelecia a adoção obri-
gatória de contas individuais, que deveriam ser financiadas pelo próprio
trabalhador, sem a contrapartida do empregador. Embora a previdência
privada exista formalmente no Brasil desde 1977, foi a primeira vez que
um governo defendeu publicamente o modelo de capitalização como obri-
gatório e não como complementar e facultativo, o que já é uma realidade.
O material analisado mostra que os agentes estatais do governo
Bolsonaro fizeram campanha pela previdência privada, por meio de uma
peça narrativas que colocou a previdência social como a “grande vilã” e
responsável pelo déficit do país, assim como a responsável pelo desem-
prego e por uma possível disputa entre velhos e jovens. Por outro lado,
a mesma peça discursiva colocou a previdência privada como a solução
para a crise econômica, gerando empregos e renda; e promovendo o fim
da disputa entre velhos e jovens. Nesse contexto, a previdência privada
seria a responsável por resolver a crise econômica e geracional/social da
sociedade brasileira.
163
A proposta de previdência capitalizada do governo Bolsonaro foi
inspirada no modelo Chileno, implementado em 1980 durante a ditadura
de Augusto Pinochet e que a literatura especializada (MAGNANI; JAR-
DIM, JARD, 2020; SAUVIAT, 2006; THERET, 1999) tem mostrado
tratar-se de um modelo ineficaz para a manutenção da solidariedade in-
tergeracional. O modelo chileno, copiado em mais de trinta países, espe-
cialmente na América Latina, foi inspirado nas ideias de Milton Friedman
e seus herdeiros, reconhecido na literatura como defensor da liberdade
máxima dos mercados e da minimização do papel dos Estados (LOUREI-
RO, 1997; GRUN, 2003).
Segundo autores da OIT (ORTIZ et al., 2018) dos trinta países que
aderiram a previdência capitalizada nos anos 1980, 1990 e 2000, 18 já re-
tornaram para o modelo de repartição .Na américa latina, 14 países priva-
tizaram seus sistemas previdenciários, sendo que desses, seis já fizeram a
transição para o modelo de repartição,32sendo o caso da Argentina, Bolívia,
Equador, Nicarágua e Venezuela. E, mesmo no Chile, principal inspiração
da equipe de Bolsonaro, iniciativas importantes foram adotadas para res-
gatar os idosos da miséria promovida pelas administradoras privadas de
aposentadorias e pensões (JARD DA SILVA, 2021).
Em termos sociais, a consequência da implantação da previdência
privada como seguridade, é a alteração do modelo de solidariedade vi-
gente entre os trabalhadores, saindo do modelo de repartição para capita-
lização. A solidariedade via regime de repartição é uma solidariedade por
laços de interdependência entre os trabalhadores, ligados a partir do tra-
balho e acontece quando os participantes ativos depositam mensalmente
uma quantia no fundo de aposentadoria do INSS que, por sua vez, repassa
esse valor aos participantes inativos, ou seja, os aposentados, que no pas-
sado alimentaram a solidariedade do regime. Portanto, essa solidariedade
é baseada em um pacto de diversas gerações, no sentido que os segura-
dos ativos (geração atual) pagam os benefícios dos segurados inativos
(geração passada), sendo que o pagamento dos seus próprios benefícios
depende da geração futura (novos trabalhadores a ingressarem no sistema
previdenciário).
Além de quebrar com o pacto de solidariedade, típico da “socie-

32 - Dos 30 países que tentaram capitalização, 18 voltaram atrás, sendo eles: Argentina, Equador, Bolívia, Venezuela,
Nicarágua, Bulgária, Cazaquistão, Croácia, Eslováquia, Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia, Macedônia, Polônia,
República Tcheca, Romênia e Rússia.

164
dade salarial” (CASTEL, 2003), a previdência capitalizada traz um pro-
blema financeiro na sua transição, uma vez que o Estado é que deverá
financiar a aposentadoria da geração que hoje financia a aposentadoria
de um aposentado; mas que sem a contribuição dos novos ingressantes
(que passarão a fazer um fundo próprio) ficarão sem aposentadoria. Em
nenhum momento os agentes estatais explicitaram essa tensão.
Por outro lado, a solidariedade via sistema de capitalização é aquela
na qual cada geração e cada trabalhador constitui as reservas para suportar
seus próprios benefícios. A lógica consiste que o próprio trabalhador, du-
rante a sua fase ativa, deva gerar o montante de recursos necessários para
suportar o custo dos benefícios da sua aposentadoria. Essa solidariedade
reforça a ideia de que o indivíduo é autossuficiente e não precisa contri-
buir com a sociedade e nem precisa dela. Nesse modelo está presente a
ideia de auto empreendedorismo e de individualismo, que Castel chama
de “individualismo negativo” (CASTEL, 2003), uma vez que essa visão
individualista não está sustentada no coletivo.
Além de romper com a solidariedade intergeracional, o modelo de
previdência capitalizada proposto por Bolsonaro, tem o risco das flutua-
ções do mercado financeiro, o que pode levar à falência das poupanças de
previdência privada aberta (planos individuais vendidos nos bancos) ou
fechadas (fundos de pensão), como aconteceu com os fundos de pensão
nos anos 1970 (JARDIM, 2002) e o fundo de pensão da empresa Vasp
nos anos 2000 (JARDIM, 2007). Trata-se de um risco permanente com as
poupanças individuais dos trabalhadores.
Dentre os inúmeros problemas desse modelo, chamamos a atenção
para a dificuldade dos trabalhadores em constituir o fundo para a sua apo-
sentadoria, devido ao desemprego e aos baixos salários. Trata-se de uma
lógica individualizante da solidariedade, vigente em um modelo econô-
mico fundado no ultraliberalismo, que está no contraponto da solidarieda-
de da “sociedade salarial” (CASTEL, 2003). Sobre esse assunto, Garcia-
-Parpet e Afonso (2021), afirma:
A economia neoliberal transfere ao indivíduo a inteira
responsabilidade dessa gestão, sem se interrogar sobre os
recursos cognitivos e materiais que essa mudança nos modos
de planejamento da existência implica necessariamente.
Irregularidade dos rendimentos auferidos, falta de
competência em atividades financeiras, falta de confiança nas
165
instituições econômicas e jurídicas, assim como uma relação
com o trabalho que tende a ignorar a fase do envelhecimento,
contribuem fortemente para um adiamento, ou negação
completa, desse planejamento necessário (GARCIA-
PARPET; AFONSO, 2021, p. 16).

Apesar da defesa enfática dos agentes estatais para um modelo de


previdência capitalizado, o modelo de solidariedade via mercado não per-
mite uma vida digna na velhice e como mostram as experiencias dos paí-
ses vizinhos, a previdência capitalizada foi acompanhada por um profun-
do processo de desproteção social e empobrecimento da população idosa,
com aumento do número de suicídios, além do crescimento de doenças
mentais, como depressão (BIANCHI; SEVERO, 2019; GENTIL, 2006;
JARDIM, 2007); temos ainda, o aumento do abandono de velhos em asi-
los, já que a solidariedade via capitalização transfere para as famílias os
custos com os cuidados com os idosos, o que não é possível para essas
famílias, sem contar com a aposentadoria do idoso.
Por fim, amarrando os discursos com as trajetórias dos agentes en-
volvidos na capitalização da previdência social, é possível perceber uma
sensibilidade neoliberal na equipe que coordenou a reforma da previdên-
cia. Paulo Guedes é o destaque nesse espaço, com sua trajetória marcada
pela passagem na Universidade de Chicago nos anos 1980 (sendo orien-
tado por Larry Sjaastad), momento em que o economista aponta ser a cli-
vagem que o tornaria “ultraliberal”, entusiasta do livre mercado, se auto
33
identificando como parte dos “Chicago Oldies” . Além disso, após sua
curta passagem como docente na Univesidade do Chile durante a ditadura
de Pinochet, passaria a expressar publicamente o desejo de implementar
no Brasil as reformas e privatizações empreendidas no contexto chileno
baseadas no receituário de Milton Friendman, Robert Lucas Jr e Thomas
Sargent. Ao longo de sua trajetória, foi um crítico de planos econômicos
como o Cruzado, o Collor e o Real, além da expansão dos gastos pro-
movida nos governos petista (JARDIM; MOURA, 2021), encontrando
espaço no campo política apenas no governo Bolsonaro.

33 - “Chicago oldies” é referência pitoresca que o ministro recorre em relação ao termo “Chicago boys”, economistas
então recém-formados na instituição americana que atuaram no Chile de Pinochet. Diferentemente daqueles, Guedes e
sua equipe concluíram seu doutorado há algumas décadas, motivo da adaptação para “oldies”.

166
Nesse contexto, se faz compreensível a posição de Marinho ao ocu-
par o cargo na pasta da Previdência, com formação em também economia
ainda que em instituição não dominante, o agente tem como marcador a
experiencia no campo político (o contrário do ministro), tendo tido pro-
tagonismo nos anos 2010 como, relator em diversos projetos de reformas
econômicas, como da comissão especial que analisou a modernização das
leis trabalhistas no Brasil. Além disso, atuou na coordenação da bancada
do PSDB na Comissão de Educação da Câmara, sendo um dos principais
defensores da reforma do Ensino Médio e do projeto Escola Sem Partido;
votou favoravelmente ao impeachment de Dilma Rousseff, a PEC do Teto
dos Gastos Públicos e a Reforma Trabalhista, sendo um de seus maiores
articuladores para aprovação no Congresso.
Já o caso do presidente Jair Bolsonaro é bastante interessante: pro-
fissional da carreira militar, sempre assumiu uma posição de viés esta-
tizante durante toda sua trajetória da vida pública. Contudo, diante da
entrada no jogo político com vistas a ocupar presidência da República e
do fato de não ser detentor do “savoir à faire” dos economistas, passou a
argumentar que suas decisões seriam baseadas nos conselhos dados pe-
los técnicos, no caso, o ministro Paulo Guedes (denominado durante a
campanha como seu “posto Ipiranga”, fiador da economia) e sua equipe,
além de defender como programa de governo a redução dos gastos do
Estado, privatizações e reformas profundas no setor público. Durante a
cerimônia de Abertura do 29º Congresso e ExpoFenabrave em São Paulo
em 06 de agosto de 2019, Bolsonaro abordaria essa questão sobre sua vi-
são de mundo, argumentando que o trabalho realizado por Paulo Guedes
demonstrava ao Brasil que ele tinha “mudado também”, já que no passado
“era estatizante, sendo muito acusado disso”, contudo, diante das críticas,
justifica que a mudança de visão se dava, pois “o homem evolui”, no seu
caso, “aprendendo muito, com as pessoas que tenho ao meu lado”, como
Paulo Guedes.
Apesar do engajamento da equipe de Bolsonaro para a aprovação
da previdência privada como obrigatória, o projeto de capitalização não
foi aprovado pela maioria do Congresso. Na ocasião, o relator da reforma
da Previdência, deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), afirmou que um
sistema de capitalização para as aposentadorias “não para em pé” com
uma contribuição apenas do trabalhador.

167
Além disso, o relator pontuou um argumento financeiro, que já si-
nalizamos no decorrer do texto e para o qual a equipe de Bolsonaro se
manteve em silencio durante toda a campanha para a reforma da previ-
dência, a saber: “Esse é um dos pontos mais polêmicos da proposta, de-
vido, por exemplo, ao alto custo de transição de um sistema para outro (a
necessidade de financiamento do regime de repartição quando este ainda
estivesse pagando aposentadorias, mas os novos trabalhadores não esti-
vessem mais contribuindo para ele, mas para as contas individuais) e a
não previsão de uma contribuição patronal”.

Conclusão
O capítulo buscou compreender o fio condutor da reforma da pre-
vidência apresentada pela equipe de Jair Bolsonaro, por meio da análise
de discurso dos principais agentes sociais engajados. Nosso objetivo foi
entender que tipo de solidariedade é oferecida pela proposta do governo.
Após coleta e análise dos dados, indicamos que a maior parte dos
discursos distribuídos pelos agentes estatais na campanha pela reforma da
previdência, abordam as desvantagens da previdência social, vista como
ineficaz, idealizada ou responsável pelo desemprego e falência do Estado.
No conjunto dos discursos, houve a predominância de determinado ethos
econômico nos argumentos da reforma, como por exemplo, o de ajuste
fiscal a longo prazo, o que justificaria a revisão do atual modelo de pre-
vidência.
Pontuamos que estigmatizar a previdência social como uma insti-
tuição falida é uma estratégia comum na produção narrativa dos governos
em contexto de campanha para reforma da previdência, independente do
partido político que está no poder. Contudo, destacamos a novidade dis-
cursiva da proposta do governo Bolsonaro, que dá ênfase na guerra gera-
cional entre velhos e jovens, explicitada na disputa por investimento em
aposentadoria ou educação, assim como na implantação de um modelo
obrigatório de previdência capitalizada. Lembramos, ainda, que durante
toda a história da previdência social, foi a primeira vez que o modelo
capitalizante apareceu como obrigatório em um projeto de reforma e não
como complementar e facultativo, o que é possível juridicamente desde
1977.
168
Ao relacionar os discursos produzidos com a trajetória social dos
agentes, pontuamos uma sensibilidade para o credo neoliberal ou ultrali-
beral da equipe de Bolsonaro, devido a trajetória acadêmica ou política
dos agentes, sendo o caso tipo ideal de Paulo Guedes, que fez parte da
geração chamada Chicago Boys, economistas formados pela Universida-
de de Chicago e entusiastas da presença mínima do Estado na economia.
Foi orientado por Larry Sjaastad, herdeiro das ideias de Milton Friedman,
um monetarista reconhecido pela literatura por seus posicionamentos ul-
traliberais.
Ao final do capítulo, pontuamos as consequências sociais da alte-
ração de um modelo de previdência de solidariedade redistributiva para
solidariedade individualizante, retomando os casos de países que fizeram
essa transição no passado e que na segunda década do século XXI, bus-
cam rever essa mudança na solidariedade intergeracional, pois a capitali-
zação da previdência teria gerado aumento de depressão, de miséria e de
suicídio entre os idosos.

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1999.

172
O isolamento da Política Externa
Brasileira durante o Governo
Bolsonaro em três eixos

Bruno Theodoro LUCIANO


Cairo Gabriel Borges JUNQUEIRA
Regiane Nitsch BRESSAN

Historicamente, a política externa brasileira foi marcada por um


acumulado diplomático sustentado em práticas cooperativas, zelosas, uni-
versalistas, pacifistas e orientadas para o desenvolvimento. Assim, princí-
pios como autodeterminação, solução pacífica de controvérsias, respeito
aos tratados internacionais, multilateralismo normativo, ação externa co-
operativa, busca por parcerias estratégicas, pragmatismo - em decorrência
do legado da gestão do Barão do Rio Branco na chancelaria brasileira,
cordialidade com os vizinhos e independência de inserções internacio-
nais são marcas consagradas das relações internacionais do país (CERVO,
2008).
Jair Bolsonaro rompeu com essa tradição. Ainda nas prévias elei-
torais de 2018 “[...] a política externa saiu da cozinha e entrou na sala de
estar.” (CASARÕES, 2019, p. 231), talvez já demonstrando movimentos
ruidosos que estavam por vir. No Plano de Governo intitulado “O Cami-
nho da Prosperidade” não há menção substancial à política externa, embo-
ra em seção nomeada de “O Novo Itamaraty” enfatizam-se três aspectos:
redirecionar eixos de parceria, estimular relações bilaterais e fomentar
o comércio exterior (BOLSONARO, 2018). Tal tarefa ficou à cargo de
Ernesto Araújo, então diplomata de carreira que atuou como Ministro das
Relações Exteriores entre janeiro de 2019 e março de 2021, data em que
pediu demissão do cargo por pressões do Congresso Nacional, em virtu-
de das reiteradas falhas cometidas no período da pandemia e do próprio
Itamaraty.
Araújo foi o pilar da “Nova Política Externa Brasileira” sustenta-
173
da, segundo ele mesmo, em quatro grandes bases: democracia, transfor-
mação econômica, soberania e valores. O rompimento mencionado logo
acima tem a ver com o viés notadamente ideológico presente na política
externa bolsonarista marcado pelo senso “olavista” (SARAIVA; SILVA,
2019) - remetendo-se a influência do guru Olavo de Carvalho sobre o
próprio ex-ministro, mas também outras figuras-chave da agenda externa
do governo Bolsonaro, como Filipe Martins, Assessor para Assuntos In-
ternacionais de Bolsonaro, e Eduardo Bolsonaro, Deputado Federal, Pre-
sidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados e
seu filho.
Alguns preceitos conduziram o período de Araújo à frente do Ita-
maraty e serviram de guia para as relações internacionais bolsonaristas
por mais de dois anos. Observamos crítica direta à política externa dos
governos petistas, base religiosa notadamente cristã de grande intensida-
de, reavivamento de um discurso de matriz nacionalista, ceticismo quanto
a iniciativas multilaterais de cooperação como as organizações interna-
cionais e, por fim, aversão veemente ao chamado “globalismo”, entendi-
do como a “[...] globalização econômica capturada pelo marxismo [...]”
(ARAÚJO, 2021, p. 701) e “[...] um sistema em que elites e os donos do
poder exercem o domínio dos países” (MENDES, 2021, p. 1). A par de ser
elencado muitas vezes somente como tom retórico, tal expressão acabou
balizando diversas ações da política externa brasileira.
Nesse rol de atividades políticas, o objetivo do presente capítulo é
analisar três dimensões presentes na política externa bolsonarista que ilus-
traram empiricamente a mudança discursiva e retórica apresentada acima,
as quais foram discutidas em diversas exposições do canal Ciências So-
ciais em Diálogo, criado pelo Departamento de Ciências Sociais da Facul-
dade de Ciências e Letras da UNESP, Campus de Araraquara. Tratam-se
das seguintes dinâmicas: agenda de meio ambiente, relacionamento com
governadores estaduais brasileiros e aproximação a lideranças da direita
conservadora global. Aqui cabe enfatizar que outros aspectos também são
cruciais para entender a política bolsonarista, a exemplo do negacionismo
presente em 2020 e 2021 no combate à pandemia, chegando a ser carac-
terizada pelo próprio presidente como uma “gripezinha” (UOL, 2021).
Entretanto, os três pontos selecionados nos auxiliam em grande
parte a compreender exatamente a “Nova Política Externa Brasileira” por
apresentarem novas características das relações internacionais do país.
174
Além das sucessivas críticas destinadas ao governo em virtude da preser-
vação da Amazônia, no interior da perspectiva do “globalismo” há o que
Araújo (2021) caracterizou como “climatismo”, ou seja, em sua visão o
uso da questão climática como ferramenta de controle econômico. Em
relação ao diálogo federativo, uma marca fundamental de Bolsonaro foi,
a todo o momento, o ataque direto a lideranças políticas subnacionais
brasileiras, gerando embates com figuras como João Dória e Flávio Dino,
Governadores de São Paulo e Maranhão, e impulsionando a internacio-
nalização desses próprios governos estaduais. Por fim, a última caracte-
rística de Bolsonaro aqui analisada é seu caráter populista que reverberou
em mudanças de eixo em torno de alianças com líderes da direita global,
sendo o nome mais conhecido o de Donald Trump, presidente dos Estados
Unidos entre 2017 e 2020.

Governo Bolsonaro e a agenda de meio ambiente


Em relação à agenda ambiental, as ações e discursos do governo
de Jair Bolsonaro têm ocasionado o desmantelamento do aparato institu-
cional e esvaziamento da capacidade de gestão da área ambiental federal
(AZZI, 2019).
Para a compreensão da destruição realizada por este governo, cabe
recordar o importante papel que o Brasil já exerceu no sistema internacio-
nal ao longo dos últimos trinta anos. Ao abrigar diferentes biomas, alguns
deles exclusivos, e grande parte da Floresta Amazônica, o país tornou-
-se um ator importante nos debates ambientais do cenário internacional.
Ao sediar a Conferência Eco-92 das Nações Unidas no Rio de Janeiro,
e exercer papel destacado na Conferência de Kyoto, o Brasil apresentou
propostas concretas em relação ao Mecanismo Desenvolvimento Limpo
(MDL), confirmando seu papel diferenciado no tabuleiro internacional
nesta arena.
Um traço importante da política externa brasileira era a preserva-
ção da soberania nacional acima dos tratados e regimes internacionais
sobre o meio ambiente, biodiversidade e clima. No entanto, em relação
às mudanças climáticas, a política externa brasileira exerceu um papel
preponderante com comprometimento à agenda internacional, além de
175
desempenhar liderança nas agências multilaterais sobre negociações cli-
máticas (BRESSAN, 2020).
No entanto, os avanços e as contribuições brasileiras das últimas
décadas no contexto internacional estão abruptamente ameaçados devido
à destruição dos marcos institucionais ambientais brasileiros. A estratégia
de desmantelamento do aparato ambiental do governo Bolsonaro ocorre
em diferentes esferas: mudanças nas leis ambientais vigentes; novos pro-
jetos de lei no Congresso Nacional; extinção ou redução de investimentos
em agências ambientais; extinção de arenas democráticas como os conse-
lhos e comissões de assessoramento; mudanças nos arranjos institucionais
dos órgãos ambientais; demissões e trocas de técnicos responsáveis e líde-
res ambientais por indicações políticas alinhadas à política de desmantela-
mento; unificação de órgãos governamentais, como o Ministério do Meio
Ambiente; discursos oficiais em favor dos ruralistas e garimpeiros ilegais,
entre outros (ADAMS; BORGES; MORETTO; FUTEMMA, 2020).
Desde sua campanha eleitoral, Jair Bolsonaro se manifestou muito
contrário à preservação ambiental e aos tratados assinados pelo Brasil na
esfera internacional. Quando assumiu a presidência da República, Bolso-
naro deu início à sua política de desmantelamento da burocracia governa-
mental por meio da Medida Provisória Final (MP) 870/201948. A partir
desse ato, as instituições brasileiras perderam autonomia e se enfraquece-
ram em termos estruturais (LO PRETE, 2020).
Além disso, diferentes órgãos domésticos ambientais também so-
freram perdas significativas de recursos dentro do orçamento federal. Para
sustentar essas mudanças, foram eleitos líderes para cargos de confiança
que atuam em favor de grupos de interesse ligados ao governo, concre-
tizando o desmonte da institucionalidade enfraquecendo a governança
ambiental no Brasil nas esferas nacional e internacional (SEIXAS et al.,
2020).
Em relação às instituições, a primeira medida implicou no enxu-
gamento de ministérios e agências governamentais. Houve retração do
Ministério do Meio Ambiente (MMA), quando o Ministério da Agricul-
tura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) passou a abrigar a Agência de
Serviços Florestais, perdendo espaço para os setores do agronegócio, que
ficaram fortalecidos. Na sequência, através das políticas implementadas
pelo MAPA, em pouco mais de vinte meses do governo Bolsonaro, foram
aprovados 624 novos agrotóxicos, dos quais 6% são altamente tóxicos e
176
2% são extremamente tóxicos (GRIGORI, 2020). Produtos tóxicos proi-
bidos em outros países continuam recebendo permissão do MAPA para
serem utilizados na agricultura brasileira.
Em termos institucionais, as Secretarias de Biodiversidade e Mu-
danças Climáticas foram apropriadas por outras agências que defendem
interesses específicos e adversos, sendo as primeiras minimizadas. Aliás,
na gestão presidencial anterior, a Secretaria de Biodiversidade era a maior
no MMA. Atualmente, não há liderança nesta Secretaria, o que inativou a
agência. Por sua vez, a Secretaria de Mudanças Climáticas foi substituída
pelo órgão de Ecoturismo, alterando sua finalidade e importância.
Para além das questões institucionais, a política de destruição ocor-
re em larga escala, a partir de avanços na fronteira agrícola, aumento do
desmatamento, apoio e intensificação de conflitos no campo e criminali-
zação dos movimentos sociais políticas de indução à exploração do pré-
-sal e grandes projetos de infraestrutura para exploração da Amazônia
(ADAMS; BORGES; MORETTO; FUTEMMA, 2020). Essa agenda go-
vernamental é bastante extensa e articulada, pois incluem: revogação do
Código Florestal; reversão legal das áreas protegidas; propostas de retro-
cesso nas licenças e avaliação de impacto ambiental; mudanças no Servi-
ço Florestal Brasileiro, na FUNAI e no IBAMA; substituição de pessoal
técnico competente para cuidados das florestas. Trata-se de uma política
de desmantelamento sem qualquer referência ao ordenamento ambiental
brasileiro.
Outra frente de retrocesso incide na desestruturação dos comitês e
conselhos através do Decreto 9.759 de abril de 2019. Além da extinção de
diversos conselhos, observou-se a exclusão de representantes indígenas e
movimentos sociais da composição dos conselhos. O Conselho Nacional
do Meio Ambiente (CONAMA), órgão colegiado que existe desde 1981
com poucas alterações, teve seu número de membros reduzido de 96 para
23 membros plenos em maio de 2019 (Decreto nº 9.806 de 2019), favore-
cendo o setor privado em seus assentos permanentes (AZZI, 2019).
Outra mudança com objetivo de extinguir a participação social
implicou na composição do Comitê Orientador do Fundo Amazônia
(COFA). A mudança afetou a composição do conselho de 24 membros
que orienta o uso dos recursos financeiros do Fundo Amazônia. Anterior-
mente, o sistema COFA era tripartite e contava com a participação dos
governos federal e estadual e sociedade civil organizada. O ex-Ministro
177
do Meio Ambiente, Ricardo Salles, excluiu deliberadamente a sociedade
civil desse sistema e, assim, inativou o COFA.
Desde 2008, o Fundo Amazônia obtinha 99% de seu orçamento
de doações realizadas pelos governos da Alemanha e da Noruega. Admi-
nistrado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES), o Fundo tinha como objetivo apoiar projetos socioeconômicos,
acadêmicos e científicos, visando reduzir o desmatamento e as emissões
de gases de efeito estufa. Em 2019, diante da aceleração do desmatamen-
to amazônico, os embaixadores da Alemanha e da Noruega manifesta-
ram sua insatisfação com as mudanças propostas no COFA, anunciando
que seus países revogaram as doações ao Fundo. Com isso, originaram-se
mais divergências na relação entre Brasil e Europa, afetando o histórico
acordo entre os blocos do Mercosul e da União Europeia.
O Acordo de livre comércio entre o Mercosul (Brasil, Argentina,
Uruguai e Paraguai) e a União Europeia foi anunciado em 2019, após
vinte anos de negociações. Os dois blocos juntos reúnem 800 milhões de
consumidores, por isso configuram o maior acordo entre blocos atualmen-
te. Para entrar em vigor, o Acordo deve ser aprovado pelos parlamentos
dos países envolvidos. No entanto, existem graves divergências por parte
dos países europeus, que criticam a posição do Governo Bolsonaro em
relação ao meio ambiente. As queimadas e devastação na Amazônia estão
entre os principais obstáculos para a ratificação do documento na atuali-
dade.
Os líderes europeus estão exigindo cada vez mais que o governo
brasileiro controle o desmatamento. Organizações ambientais, países eu-
ropeus como França, Noruega e Alemanha, bem como bancos e empresas,
pressionam o governo brasileiro devido a atitudes frente ao retrocesso nas
políticas e ações para frear a destruição ambiental. No entanto, as reações
de Bolsonaro foram resistentes, contraditórias e ideológicas, acusando a
Europa de ser responsável pela devastação. Bolsonaro perguntou o quanto
os países desenvolvidos estariam dispostos a pagar pela proteção ambien-
tal nos países em desenvolvimento (GOMES; MAZUI, 2020).
Em 2020, o aumento dos incêndios e a pandemia de COVID-19,
com a posição minimalista de Jair Bolsonaro para a proteção dos indí-
genas, também causaram um enorme descontentamento entre os líderes
europeus. Dessa forma, a ratificação do Acordo entre União Europeia e
Mercosul está sofrendo muita resistência por parte do Parlamento Eu-
178
ropeu e dos parlamentos nacionais, especialmente dos partidos verdes,
uma vez que a legislação ambiental na União Europeia é extremamente
rigorosa. O rápido aumento do uso de agrotóxicos no Brasil, por exem-
plo, é contra o princípio da precaução do bloco europeu. Além do acordo
entre os blocos, as exportações de empresas brasileiras podem enfrentar
resistência à penetração de seus produtos nesse mercado, notoriamente
exigente e restritivo.
As tentativas de aumentar a conscientização sobre os benefícios do
comércio com a União Europeia e de destacar o apoio às práticas produ-
tivas como a chave do acordo com o Mercosul foram sufocadas por argu-
mentos sobre a necessidade de proteger a soberania e autodeterminação
no uso dos recursos naturais. Mesmo com os progressos observados, o es-
forço para reduzir as emissões através de medidas de comando e controle
vem diminuindo devido à flexibilidade, que representa um ‘tiro no pé’ do
próprio agronegócio. A perda de papel de vanguarda e proativo do Brasil
nos fóruns globais obscurece a possibilidade de reverter esta situação no
atual regime (SEIXAS et al., 2020). Assim, chefes e representantes de
Estado em várias partes do mundo mostram repulsa à posição do Brasil,
que era uma potência entusiasta em discussões ambientais e um país com-
prometido com a construção de uma governança ambiental abrangente e
democrática. Assim, o caminho que o Brasil tem adotado no atual gover-
no, colocará o país no isolamento internacional em um cenário dramático
domesticamente.

Bolsonaro, governadores e os novos rumos


da paradiplomacia brasileira
Em setembro de 2020, durante o discurso de abertura da 75ª As-
sembleia Geral das Nações Unidas, Jair Bolsonaro (BRASIL, 2021, p.
1) logo mencionou o seguinte trecho fazendo menção à pandemia: “Por
decisão judicial, todas as medidas de isolamento e restrições de liberdade
foram delegadas a cada um dos 27 governadores das unidades da Federa-
ção. Ao presidente, coube o envio de recursos e meios a todo o país.”. De
antemão, inserir a agenda subnacional e os debates federativos logo no
início de um dos maiores fóruns multilaterais de debate global demonstra
179
a importância dessa temática para o governo porque também é fator de
mobilização da opinião pública interna, uma das grandes preocupações
de Bolsonaro já considerando as eleições presidenciais brasileiras em ou-
tubro de 2022.
O negacionismo em relação à pandemia acabou sendo uma das
marcas centrais do governo. Pesquisa realizada entre a organização Co-
nectas Direitos Humanos e a Faculdade de Saúde Pública da Universidade
de São Paulo (USP) revelou que houve “uma estratégia institucional de
propagação do vírus” (BRUM, 2021, p. 01) abalizada principalmente por
meio da Presidência da República. Assim, a prática de se eximir de deter-
minadas responsabilidades fez com que Bolsonaro procurasse “inimigos
internos”, dentre eles os próprios governadores e lideranças do Poder Ju-
diciário.
Essa afirmação proferida na ONU se relaciona à decisão emitida
em meados de abril de 2020 pelo Superior Tribunal Federal (STF), o qual
garantiu que estados e municípios pudessem tomar medidas necessárias
no combate ao coronavírus, a exemplo de isolamento social e fechamento
do comércio (RICHTER, 2020). Rapidamente isso se tornou uma das ban-
deiras dos pronunciamentos e aparições públicas de Bolsonaro, tecendo
críticas aos governadores que, em sua visão, eram os responsáveis diretos
pelas inúmeras problemáticas vivenciadas pelo país durante seu governo.
A mudança substancial na política externa marcada pelo tom por
vezes agressivo e pejorativo de Bolsonaro, bem como pelas novas diretri-
zes propostas pela diplomacia de Araújo, abriu margem para que outros
atores dinamizassem suas atividades internacionais. Empresas e orga-
nizações não governamentais impuseram tais ações, mas governadores
e prefeitos tornaram-se interlocutores-chave no exterior (STUENKEL,
2021). Nesse ponto destacamos que a inserção internacional dos governos
estaduais se estabeleceu em virtude da carência de diretrizes nacionais
em meio à pandemia, da crise econômica e da instabilidade política, esta
última sendo também notada no campo das relações internacionais com
a ocorrência de desavenças com a China e com a precarização da ima-
gem internacional brasileira em virtude da questão climática e ambiental
(PRADO; JUNQUEIRA, 2020).
Logo que a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu em
março de 2020 que o surto de COVID-19 se configurava como uma pan-
demia, os governadores do Rio de Janeiro e de São Paulo, Wilson Witzel
180
e João Dória, criticaram a letargia do governo federal e propuseram me-
didas de distanciamento social. A crise sanitária também foi o estopim
para agravar a tensão entre Bolsonaro e os nove governadores da região
nordeste que ainda em meados de 2019 haviam formalizado a criação
do Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável do Nordes-
te (Consórcio Nordeste). Por exemplo, em março de 2021 a instituição
tentou formalizar a compra coletiva de 37 milhões de doses da vacina
russa Sputnik V (CONSÓRCIO NORDESTE, 2022), o que acabou não
mostrando resultados práticos, pois diretrizes da Agência Nacional de Vi-
gilância Sanitária (Anvisa) impossibilitariam o uso do fármaco nacional-
mente.
Composto por governadores de signos partidários divergentes de
Bolsonaro, o Consórcio Nordeste logo se mostrou como um agente de
oposição ao governo federal. Rui Costa, Governador da Bahia e primeiro
Presidente do Consórcio entre 2019 e 2020, chegou a escrever uma carta
para o Embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, quando Eduardo
Bolsonaro culpou o país pela pandemia do novo coronavírus (G1, 2020),
sinalizando aumentar as relações bilaterais e minimizar os erros diplomá-
ticos do governo federal.
Em relação à agenda ambiental, as queimadas na Amazônia eleva-
ram a temática a um grau de destaque para a política externa bolsonarista.
O Brasil recebeu críticas diretas de Angela Merkel e Emmanuel Macron e
países como Alemanha e Noruega suspenderam repasses financeiros para
o Fundo Amazônia, mecanismo que busca financiar ações de combate ao
desmatamento na própria floresta. Considerando esse cenário, o diálogo
entre governadores do Consórcio da Amazônia Legal e do Consórcio Nor-
deste mostrou-se praticamente obrigatório, sendo que este último realizou
viagens a França, Itália e Alemanha em 2019 com o intuito de maximizar
o fluxo de negócios com investidores europeus e fortalecer relações de
cooperação (CONSÓRCIO NORDESTE, 2022 p. 24).
Claramente com os exemplos citados, observamos que a relação
entre Bolsonaro e os governadores transpassa aspectos internos, relativos
à dinâmica federativa, e internacionais, respaldando novos entendimentos
e influências na própria política externa. Tal conjuntura passou a trazer
mais aprofundamento à área de Análise de Política Externa. Com a rup-
tura da tradição diplomática brasileira, presenciamos por vezes um papel
mais ativo - e por que não dizer reativo? - dos governos estaduais, o que
181
configura avaliar a política externa não somente pelo ponto de vista clás-
sico com foco em um Estado unitário (LIMA, 1994), mas sim enquanto
“[...] produto de um número de atores e estruturas, tanto domésticas quan-
to internacionais [...]” (CARLSNAES, 2008, p. 113, tradução nossa).
Por fim, esse movimento dos governadores tem trazido novos en-
tendimentos à internacionalização de governos subnacionais, processo
denominado nas Relações Internacionais como “paradiplomacia”. Com
a agenda de política externa bolsonarista que tomou corpo ainda nas pré-
vias eleitorais, começaram a ocorrer novos debates para verificar se, com
relações federativas conflitantes, os governos subnacionais aumentariam
ou diminuiriam suas atividades internacionais. Hoje, podemos afirmar
que a primeira opção é a mais plausível e contundente, coincidindo com
uma “paradiplomacia de resistência” (BARROS, 2021, p. 73), na qual
as atividades de governos estaduais por vezes colidem com o governo
federal. Em um cenário de intensa polarização e instabilidade política, a
conjuntura brasileira é crítica e, a par das dúvidas, a conjuntura recente de
turbulência já demonstrou que o jogo federativo possui grande relevân-
cia, gerando impactos na política externa e trazendo novos entendimentos
para sua observação.

A política externa de Bolsonaro e o relacionamento


com lideranças da direita conservadora
Outro componente central da política externa sob a administração
Bolsonaro foi a aproximação com governos de orientação conservadores
ou não-liberais no mundo, especialmente no Ocidente, demonstrando a
preferência do novo governo por relacionamentos mais estreitos com li-
deranças individuais e ideologias compartilhadas, se afastando de países
considerados prioritários por questões econômicas, culturais e geopolíti-
cas. Nesse sentido, desde o lançamento de seu plano de governo, destaque
foi dado à aproximação do governo Bolsonaro ao governo Donald Trump
nos Estados Unidos, a Benjamin Netanyahu em Israel, Matteo Salvini na
Itália, Viktor Orbán na Hungria e mais recentemente a Vladimir Putin
na Rússia, já no contexto de iminência da invasão do país à Ucrânia, o
que inclusive repercutiu na posição brasileira com relação a esse con-
182
flito. Essa preferência torna-se ainda mais representativa no campo da
diplomacia presidencial, tendo em vista a predominância de visitas do
Presidente Bolsonaro a países governados por lideranças conservadoras
ou autocráticas. A saber, dentre as 14 visitas de Estado realizadas por Bol-
sonaro no exterior desde o início de seu mandato até fevereiro de 2022, 11
foram direcionadas a países governados por líderes com essas caracterís-
ticas, como Israel, Estados Unidos, Índia, China, Rússia, Hungria e países
árabes (Catar, Bahrein, Emirados Árabes Unidos), enquanto as demais
visitas presidenciais foram a países da América do Sul (Argentina, Guiana
e Suriname).34
Entre os elementos compartilhados por todas essas lideranças, des-
tacam-se posturas críticas com relação à migração de estrangeiros para
seus países, à liberdade de imprensa, à harmonia entre os poderes - espe-
cialmente à independência do poder judiciário -, aos direitos das minorias
e da população LGBTQIA+ e à lisura do processo eleitoral e instituições
democráticas. Já no plano internacional, a crítica dessas lideranças tem
se centrado na atuação e relevância das instituições multilaterais e regio-
nais, principalmente o sistema ONU e a União Europeia. No contexto
latinoamericano, esses governos têm sido caracterizados como direitas
neo-patriotas, dado seu perfil soberanista, nacionalista e forte retórica an-
ti-globalista, para além do próprio alinhamento com os Estados Unidos
de Donald Trump (SANAHUJA; LÓPEZ BURIAN, 2020). Ademais, a
política externa bolsonarista tem também sido entendida como fundamen-
talmente populista:
(d)iplomacia bolsonarista, cujo traço de populismo revela
uma construção ampla, que condena objetivos, princípios e
estratégias de relações internacionais à dinâmica própria do
personalismo do líder populista. Ela se baseia em três pilares:
propostas de soluções simples para problemas complexos,
mobilização direta das massas e aposta na construção de
inimigos externos (CASARÕES, 2020, p. 1).

A gestão de Ernesto Araújo no Ministério das Relações Exteriores


(2019-2021) foi fundamentalmente marcada pela crítica antiglobalista ao

34 - Levantamento realizado na lista de notas de imprensa do Ministério das Relações Exteriores em 10/03/2022.
Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa?b_start:int=690. Acesso
em: 16 abr. 2021.

183
sistema internacional e a aproximação selecionada a governos de inclina-
ção ideológica comum, independente do peso do relacionamento desses
países na balança comercial brasileira. Ao passo que laços profundos fo-
ram buscados com os Estados Unidos de Trump, a política externa con-
duzida por Araújo foi duramente criticada pelo parlamento brasileiro e
pela opinião pública pelas duras críticas feitas à China, principal parceiro
comercial do Brasil (ZARUR, 2021). Com relação ao sistema multilate-
ral e organizações internacionais, duras críticas foram feitas ao longo da
administração Bolsonaro ao papel ‘totalitário’ da ONU (BRASIL, 2020)
e às medidas restritivas adotadas no contexto da pandemia (PODER 360,
2021). Ainda sobre a pandemia, ao alinhar-se à posição adotada por ou-
tros líderes de extrema direita do mundo e apoiar enquanto foi possível o
uso de hidroxicloroquina para o tratamento de COVID-19 apesar dos seus
resultados controversos, o governo brasileiro buscou em outra frente se
posicionar contra o posicionamento da comunidade científica internacio-
nal (CASARÕES; MAGALHÃES, 2020).
A natureza personalista do relacionamento estabelecido pelo go-
verno Bolsonaro com os líderes desses países tem tornado efêmeras as
relações bilaterais brasileiras, as quais têm sido significativamente im-
pactadas por mudanças político-eleitorais nesses países. O caso mais em-
blemático nesse sentido tem sido a relação entre Brasil e Estados Unidos
durante o governo Bolsonaro. A aproximação estreita construída entre
Bolsonaro e Trump, que acarretou em referências mútuas a uma Alian-
ça Estratégica (U.S. MISSION BRAZIL, 2020) e assinatura de acordos
comerciais entre os dois países (SANCHES, 2020) foi praticamente de-
sestruturada com a vitória eleitoral de Joe Biden e o claro afastamento e
críticas da nova administração norte-americana com relação ao Brasil, es-
pecialmente no que diz respeito a temas ambientais. Outros exemplos que
corroboram esse traço é o arrefecimento de relações com Israel e a Itália
após a saída de Netanyahu e Salvini de seus governos, respectivamente.
Embora seja possível argumentar que esse relacionamento interpessoal
entre líderes mundiais possa favorecer a criação de laços profundos entre
lideranças de grande afinidade ideológica e visão de mundo, esse mesmo
caráter interpessoal nas relações entre nações produz como consequência
a falta de construção de compromissos e relacionamentos de longo prazo,
que tendem a perder fôlego ou esvaziar-se com a mudança política em um
dos países, traço que tem sido visto nas relações diplomáticas construídas
pelo governo Bolsonaro sobre esses termos.
184
Conclusão
O presente capítulo buscou brevemente explorar três aspectos mar-
cantes da política externa Bolsonarista que destoam das posições adotadas
em governos anteriores e dos valores de política externa, historicamente
defendidos pelo Itamaraty: 1) a internacionalmente criticada agenda am-
biental adotada pelo novo governo, 2) a difícil relação estabelecida com
os entes federativos, principalmente os governos estaduais no combate à
pandemia e 3) a aproximação a líderes conservadores e de extrema-direita
ao redor do mundo. Ao discutir em que medida o governo Bolsonaro ge-
rou transformações significativas e problemáticas nessas três frentes, bus-
camos dialogar com as reflexões apresentadas pelos participantes do ca-
nal Ciências Sociais em Diálogo da UNESP, esclarecer as características e
interesses por trás dessas agendas e discutir quais têm sido as implicações
dessas decisões para a imagem internacional e doméstica do Brasil.
A destruição da governança ambiental e o isolamento internacional
imposto pelo governo Bolsonaro está gerando efeitos em diversas áreas:
mercados reduzidos para produtos agrícolas, especialmente na Europa;
redução do investimento estrangeiro no país, devido ao crescente inte-
resse dos investidores em países e empresas amigas do ambiente; corte
total de doações de combate ao desmatamento, como aconteceu no Fundo
Amazônia; distanciamento e enfraquecimento do papel brasileiro na go-
vernança da região da Amazônia. O caminho que o Brasil vem adotando
consagrará o país cada vez mais ao isolacionismo internacional com re-
sultados dramáticos à agenda ambiental.
Portanto, a agenda de preservação ambiental pode ser um grande
trunfo para a política externa brasileira no marco das eleições de 2022.
A pressão do sistema internacional e das questões econômicas poderia
impulsionar o Brasil para uma nova guinada em relação à agenda do de-
senvolvimento sustentável. O país tem plenas condições de resgatar o seu
papel de liderança em termos de conservação ambiental e uso sustentável
dos recursos naturais. Se uma agenda mínima fosse seguida, o Brasil po-
deria aliviar a pressão internacional e ganharia força para continuar com a
agenda de atração e expansão de investimentos na região.
Em segundo lugar, a conjuntura marcada por uma oposição políti-
ca e partidária entre a Presidência da República e vários governos estadu-
ais já denota novos rumos na paradiplomacia brasileira. Se, de um lado,
185
o país perde prestígio internacional e aumenta o seu isolacionismo, de
outro, lideranças subnacionais acabam suprindo o vácuo político deixado
pela esfera federal. Nacionalmente, não podemos esquecer que diversos
nomes nessa seara, incluindo os governadores previamente mencionados,
são figuras públicas muito conhecidas que possivelmente impactarão fu-
turas eleições brasileiras.
Por fim, uma outra marca da agenda internacional do governo Bol-
sonaro, sua aproximação a lideranças da direita radical ao redor do mun-
do, poderá ser um ponto a se problematizar no pleito de outubro de 2022.
Enquanto uma mudança de governo tenderia a uma revisão substancial
nesses laços interpessoais promovidos por Bolsonaro com países iliberais
e autoritários, uma reeleição do atual governo poderia servir de modelo
para outras lideranças extremistas ao redor do mundo, particularmente na
América Latina, nos anos seguintes.

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190
Códigos Eleitorais brasileiros:
continuidades, mudanças e o 35
papel do Tribunal Superior Eleitoral

Maria do Socorro Sousa BRAGA


Fernanda Cordeiro de OLIVEIRA

As primeiras disposições eleitorais no Brasil são encontradas na


36
Constituição de 1824 , mas um código eleitoral agregando todas as dis-
posições legislativas referentes ao processo eleitoral só foi instituído em
1932. Além de documento consolidador, o Código Eleitoral de 1932 tam-
bém criou a estrutura da Justiça Eleitoral, que se tornou responsável por
amplo espectro dos trabalhos eleitorais, incluindo as etapas de alistamen-
to, organização das mesas de votação, apuração dos votos, reconhecimen-
to e proclamação dos eleitos. Outra importante inovação institucional tra-
zida com este arcabouço institucional-legal foi a regulação das eleições
federais, estaduais e municipais de maneira padronizada para todo o país.
No decorrer da história brasileira, entre 1932 e 1965, portanto em
pouco mais de 30 anos, três códigos eleitorais foram adotados, acompa-
nhando as mudanças políticas pelas quais passou o país. O Código Eleito-
ral de 1965, na forma da Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, (BRASIL,
1965) ainda vigente, sofreu diversas alterações e incorporações ao seu
texto original. O objetivo deste capítulo é verificar algumas caracterís-
ticas, continuidades, alterações e o papel da Justiça Eleitoral nesse per-

35 - Este trabalho é parte do projeto de pesquisa avaliando a qualidade da democracia em países da América Latina
(II), apoiado pela bolsa produtividade do CNPq.
36 - Ainda no Brasil Império, a Constituição de 1824, outorgada pelo Imperador D. Pedro I, determinava a realização
de eleições primárias (nas quais eram escolhidos aqueles que votariam nos deputados e senadores) para a escolha de
representantes dos poderes legislativo e executivo. Para essa etapa de participação eleitoral, consideravam-se eleitores
aptos apenas os cidadãos livres, do sexo masculino, com no mínimo 25 anos de idade e com renda anual de mais de
100 mil réis. Na etapa posterior, exigia-se renda mínima de 200 mil réis para qualificação à categoria conhecida como
eleitor de segundo grau. Ou seja, aquele limitado grupo de cidadãos que poderiam votar diretamente nos deputados
e senadores no período datado entre 1822 e 1889, no país. O período também foi marcado por inúmeras inovações e
alterações na legislação eleitoral orientadas para garantir maiorias ao partido de posição.

191
curso de criação e de desenvolvimento dos códigos eleitorais brasileiros,
em período quase centenário. Para dar conta deste propósito, na próxima
seção realizamos uma breve análise histórico exploratória, transitando
pelos respectivos códigos eleitorais brasileiros, tendo por base a noção
canônica segundo a qual um código eleitoral é o conjunto de normas le-
gislativas que rege o processo de eleição para cargos políticos. Na seção
seguinte, examinamos brevemente os códigos eleitorais de 1932, 1945 e
1965 criados nos noventa anos de história político-eleitoral brasileira. Na
seção três, avaliamos o papel do Tribunal Superior Eleitoral, como máxi-
ma instância superior sobre o tema, criado pelo Decreto n° 21.076/1932,
(BRASIL, 1932) na ocasião ainda nomeado como Tribunal Superior de
Justiça Eleitoral e que foi instalado em 20 de maio do mesmo ano, ainda
com Sede no Rio de Janeiro/RJ. Na quarta e última seção, tecemos as
considerações finais em torno dos temas.

Continuidades e mudanças
nos Códigos Eleitorais brasileiros
Há 90 anos foi criado o primeiro Código Eleitoral (CE) brasileiro.
Datado de 24 de fevereiro de 1932, este Código foi resultado direto da
luta travada pelos defensores da modernização do sistema eleitoral para o
fortalecimento da democracia, segundo alguns analistas, mas para outros,
foi um meio utilizado pelo presidente Getúlio Vargas para assegurar-se no
poder.37
De acordo com Zulini e Ricci (2020), o Código Eleitoral de 1932
(CE32) surgiu com um duplo objetivo. Primeiro, com a finalidade de or-
ganizar, dar transparência e coordenar as eleições, e assim, responder a
uma parte da população que ansiava por uma democracia política mais
condizente com a República. Ao mesmo tempo, Vargas buscava opera-
cionalizar um dos propósitos da revolução de 1930, pelo menos na forma
retórica, que era justamente moralizar e modernizar o sistema eleitoral,
reduzindo as denúncias de fraudes, que se repetiam desde os tempos do

37 - Para um sofisticado aprofundamento em tornos dos debates sobre o tema, durante os anos Vargas, ver: “Voto,
verdade e representação: reconstruindo os debates do Código Eleitoral de 1932”, dissertação de mestrado, de autoria
de Hannah Maruci Aflalo, FFLCH/USP, 2017.

192
Império. Sobre o tema, há vasta literatura com relatos sobre o “voto de
cabresto”, mecanismo de acesso aos cargos eletivos por meio da compra
de votos com a utilização da máquina pública, abuso de poder econômico
ou compra direta de votos, como características de pleitos no interior do
Brasil como identificador de certo tipo de coronelismo. Em uma segunda
perspectiva, ainda de acordo com esses mesmos autores, a aprovação do
CE32, representou o resultado de um projeto político institucional mais
amplo que visava à legitimação da Revolução de 1930 pela via da inova-
ção institucional.
Este arcabouço legal, seria, então, o resultado de um momento pe-
culiar em que o novo regime e, em particular, o Governo Provisório Var-
guista, também buscava se legitimar internamente. De acordo com Aflalo,
(2017, p. 118-119)

A importância do período em questão, dessa forma,


não reside na reforma do sistema eleitoral em direção à
democratização, mas no fato de ter constituído um momento
no qual, por meio do Código Eleitoral de 1932, voto,
representação e democracia se conectaram e em que certas
clivagens na representação se cristalizaram e foram adotadas
como o normal. Na Primeira República, a maneira de votar
era completamente distinta e a conexão entre os votos e os
eleitos se dava de outra forma, dado que na maioria das vezes
esses resultados eram manipulados e falseados. A busca pela
representação verdadeira se configura como uma tentativa de
ligação entre o representante e os representados, na qual não
está em jogo apenas essa conexão, mas a construção de cada
um dos polos. Por isso, embora seja problemático afirmar
que a década de 1930 inaugurou um regime democrático,
é razoável afirmar que foi a partir do Código Eleitoral de
1932 que o sistema político brasileiro constituiu-se como um
sistema representativo no qual representação e democracia
passam andar lado a lado, como sinônimos.

Olhando quase duas décadas para trás, ainda em 1916 o presidente


Wenceslau Brás, levando em conta a busca por maior seriedade do pro-
cesso eleitoral, aprovou a Lei 3.139, sancionada em 02 de agosto desse
mesmo ano (BRASIL, 1916). Essa Lei, que prescrevia o modo pelo qual
deveria ser feito o alistamento eleitoral e dava outras providências sobre
o tema, incumbiu o Judiciário da preparação de todo o processo eleitoral
193
brasileiro e, ao mesmo tempo, delegou a esse Poder o papel de executor
primário da lei eleitoral. Esta configuração pode ser considerada como
ponto de partida (ou matriz originária) para a criação de um efetivo Códi-
go Eleitoral, o que só aconteceria em 1932, como já vimos.
Surgiam ali, as grandes codificações eleitorais, que viriam a mar-
car as eleições futuras, sem prejuízo das anotações constitucionais gerais
sobre o tema e de legislação complementar produzida, sempre com o in-
tuito de suprir lacunas dos diplomas legais vigentes. Este CE de 1932
criou os principais mecanismos que regem o nosso processo eleitoral até
os dias atuais. Desde então, foram instituídos ou atualizados alguns dos
principais pilares sobre os quais se assentam os sistemas eleitorais e par-
tidários brasileiros:
1. O voto secreto e livre;
2. O sistema de representação proporcional;
3. O voto obrigatório;
4. O voto feminino;
5. A criação da Justiça Eleitoral.
O quadro 1, a seguir destaca alguns desses principais movimentos
que consolidaram a Justiça Eleitoral no Brasil de maneira bastante resu-
mida.

Quadro 1 – Cronologia da criação dos códigos eleitorais e


legislação complementares – pré 1988.

Cronologia da criação dos Códigos Eleitorais e


legislação complementar no Brasil – antes de 1988

1916 – Lei Nº 3.139, de 2 de agosto. Prescreve o alistamento eleitoral e dá outras providências


sobre o tema, incumbindo o Judiciário da preparação de todo o processo eleitoral brasileiro e, ao
mesmo tempo, delega a esse Poder o papel de executor primário da lei eleitoral.
1932 – Primeiro Código Eleitoral. Introdução de inovações como voto secreto, voto feminino,
sistema de representação proporcional. Criação da Justiça Eleitoral.
1935 – Modifica o sistema de representação proporcional proposto no Código Eleitoral de 1932.
Voto feminino passa a ser obrigatório para as mulheres que tivessem atividade remunerada e
regulamenta atribuições do Ministério Público no processo eleitoral. Aplicação do CE35 foi invia-
bilizada pelo golpe do Estado Novo em 1937.
1937 – Extinção da Justiça Eleitoral. Constituição abole partidos políticos, suspende as eleições
livres e estabelece eleição indireta para presidente da República com mandato de seis anos.
1945 – Segundo código eleitoral: Lei Agamenon, que regula o alistamento eleitoral e as eleições,
introduzindo a exigência de organização partidária em bases nacionais para o registro de parti-
dos políticos pelo TSE, novamente instalado no Rio de Janeiro, onde permaneceu até abril de
1960, quando foi transferido para Brasília.

194
Cronologia da criação dos Códigos Eleitorais e
legislação complementar no Brasil – antes de 1988

1946 – Nova Constituição, consagra a Justiça Eleitoral como um órgão do Poder Judiciário.
1950 – Lei nº 1.164 dedica capítulo para regulamentar propaganda partidária, prevê ações anti-
fraudes, cria cédula única de votação e mantém o eleitor na mesma seção eleitoral.
1955 – Lei nº 2.582 institui cédula única de votação para presidente e vice-presidente da Repú-
blica. Até 1950, as cédulas eleitorais eram impressas e distribuídas pelos próprios candidatos.
1962 – Lei nº 4.109 cria cédula oficial para todas as eleições. Desde a Lei nº 4.737/1965 (CE65),
cédulas eleitorais são confeccionadas e distribuídas, exclusivamente, pela Justiça Eleitoral.
1965 – Criação do terceiro Código Eleitoral editado e vigente: com 383 artigos, tem volume mais
do que o dobro do primeiro regramento, que tinha 144 artigos.
De 1964 a 1985 – Regime militar. Sucessão de atos institucionais (AI 1 a AI 17, entre 1964 e 1969)
com os quais o regime conduziu o processo eleitoral. Mudanças constantes, alteração da dura-
ção dos mandatos e instituição de eleições indiretas para presidente da República, governadores
e prefeitos de cidades consideradas estratégicas, os chamadas “cargos biônicos”.
1985 – Redemocratização do país, Emenda Constitucional nº 25/1985 restabelece eleições diretas
para presidente e vice-presidente da República.

Fonte: Elaboração pelas autoras.

Chamaremos a atenção para alguns dos dispositivos mais relevan-


tes criados nessa fase de gênese da estrutura legal que tornaria as eleições
brasileiras regidas sob codificação desde então.

O voto feminino – continuidades e mudanças


O voto feminino no Brasil foi instituído por meio do mesmo Decre-
to nº 21.076/32, (BRASIL, 1932) também chamado de Código Eleitoral
Provisório, após intensa campanha nacional, pelo menos desde 1919, com
a criação da Liga para Emancipação Intelectual da Mulher (LEIM), coor-
denada principalmente pela bióloga paulista Berta Maria Júlia Lutz. Em
1922, a mesma LEIM serve de base para fundação da Federação Brasilei-
ra pelo Progresso Feminino (FBPF). Bertha Lutz, entre outras lideranças
femininas, constituiu grupos de pressão sobre congressistas e encontra-
ram-se com o presidente Getulio Vargas, no Palácio do Catete, nos perío-
dos que antecederam a assinatura do Decreto, em fevereiro de 1932.
Inicialmente, o alistamento eleitoral era facultativo para mulheres,
sendo dispensada a autorização do marido para que votassem. Somente
dois anos depois, em 1934, quando da inauguração de um novo Estado
Democrático de Direito, por meio da segunda Constituição da República,
os direitos políticos de votar e de ser votada, já conferidos às mulheres,
195
foram assentados em bases constitucionais. No entanto, essa mesma nova
Constituição de 1934, restringiu a obrigatoriedade do voto às mulheres
que exerciam função pública remunerada, permanecendo ainda faculta-
tivo o voto das demais mulheres que não estivessem sob esse mesmo
guarda-chuva trabalhista. A igualdade plena, ou seja, homens e mulheres
sendo obrigados a se alistar e votar, independentemente se exerciam ou
não função remunerada, só ocorreu por meio do Código Eleitoral de 1965,
que vigora até os dias atuais, ainda que com diversas incorporações subs-
tantivas de legislação complementar.
Em relação a obrigatoriedade do voto, Braga e Aflalo (2018) veri-
ficaram relevante controvérsia na bibliografia historiográfica e da ciência
política quanto ao início da introdução do voto obrigatório no Brasil. As-
sim, para Leal (1997), em virtude da existência de multas e punições aos
abstencionistas nas leis eleitorais brasileiras de 1828 e 1846, a adoção do
voto obrigatório teria origem mais remota. Já Nicolau (2004), identificou
a adoção do voto e alistamento obrigatórios no Código Eleitoral de 1932.
Outros autores, atentam para a função moralizadora das medidas intro-
duzidas pelo Código, entre elas o voto obrigatório (HOLLANDA, 2009).
Enquanto Kahn (1992) defende que somente a partir da Constituição de
1934 seria introduzida a obrigatoriedade tanto do voto quanto do alista-
mento eleitoral (KAHN, 1992). Por fim, Braga e Aflalo (2018) ao revisi-
tarem o debate entre os formuladores do Código Eleitoral de 1932, a opi-
nião pública nos jornais da época e nas discussões entre os parlamentares
na Assembleia Constituinte de 1933, verificaram que a obrigatoriedade,
em 1932, recaiu apenas sobre o alistamento eleitoral e não ainda sobre o
voto. A obrigatoriedade do voto só se tornaria manifestação legal com a
Constituição de 1934.

Criação da Justiça Eleitoral


Com a implementação do primeiro Código, em maio de 1932, o
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) foi instalado no Rio de Janeiro, então
capital do país. Ele também instituiu os Tribunais Regionais Eleitorais
nos estados (TREs). Como já tratamos, a Corte Eleitoral surgiu, mais pre-
cisamente, para dar integridade ao processo democrático. Considerado o
196
histórico de hábitos desabonadores da integridade dos processos eleitorais
até então vigentes, caberia à Corte Eleitoral um amplo espectro de ação,
desde alistar os eleitores, organizar a votação, apurar os votos, proclamar
os eleitos e combater as fraudes existentes no período anterior. Ou seja:
buscava-se ali, desde o início um processo de votação seguro, transparen-
te e feito para todos, da maneira mais abrangente possível, sem perder de
vista os duradouros vazios de não inclusões de parcelas significativas do
eleitorado ao longo da história brasileira.

Partidos políticos -continuidades e mudanças


Importante enfatizar que, pela primeira vez, há referência num do-
cumento oficial aos partidos políticos. Embora, de acordo com estudiosos
do fenômeno político, a história dos partidos políticos se inicia em perío-
do anterior. Os partidos políticos no Brasil têm suas origens nas disputas
entre duas famílias paulistas, a dos Pires e a dos Camargos. Utilizando-se
do uso da força e da violência, eles foram os primeiros grupos políticos
a se voltarem uns contra os outros pelo poder local. Contudo, o termo
“partido político” só passou a constar nos textos legais a partir da Se-
gunda República. Até então, só se falava em grupos políticos. Admitia-se
durante muito tempo candidaturas avulsas, em especial pelo fato de que
os partidos não detinham o monopólio da indicação daqueles que iriam
concorrer às eleições, o que só vai ocorrer após a edição do Decreto-Lei
n.º 7.586 de 28 de maio de 1945, (BRASIL 1945) que deu aos partidos a
exclusividade da indicação dos candidatos (TRE-PI, 2019).
As eleições durante o Império eram controladas pelo Imperador,
por meio da Secretaria do Estado dos Negócios do Brasil, dos presidentes
das províncias e da oligarquia. Ainda assim, a legislação em vigor du-
rante os tempos imperiais permitia à opinião pública exigir eleições dire-
tas, bem como criticar os abusos e as fraudes cometidos. O novo quadro
eleitoral levou o Conselheiro Saraiva a reformá-la, encarregando o então
Deputado Geral Rui Barbosa de redigir texto final do projeto da nova lei,
de nº 3.029/1881, que mais tarde passou a ser conhecida como Lei Sarai-
va. Esta legislação, aboliu as eleições indiretas e delegou o alistamento
eleitoral à magistratura, extinguindo as juntas paroquiais de qualificação
(MACHADO, 2022).
197
Título de eleitor, cédula a urnas eletrônicas
e aumento do eleitorado
Ainda sobre os avanços do Código Eleitoral de 1932, criou-se ali
o cartão de eleitor, o primeiro a levar a fotografia e as impressões digitais
de um eleitor, uma espécie de primórdio do Título de Eleitor, utilizado
desde 1881, mas que teve suas características de segurança impulsionadas
pelo CE32. Tais dispositivos aumentaram a segurança da Justiça Eleitoral
quanto a quem estava votando ser realmente o titular do voto com intuito
de evitar fraudes.
Destaque-se, ainda que, já no seu artigo 57 esse mesmo Código
previa o uso de uma máquina de votar, o que somente aconteceria 64 anos
depois, com o uso efetivo das urnas eletrônicas, a partir das eleições mu-
nicipais de 1996. Ainda em meados da década de 1960, Ricardo Puntel
criou e apresentou ao Tribunal Superior Eleitoral um modelo de máquina
de votar que nunca chegou a ser usado. Imaginava-se que a neutralidade
das máquinas, não só tornaria as apurações quase que instantâneas, mas
também diminuiria o volume de fraudes.
Pioneiramente, em 1978, o Tribunal Regional Eleitoral de Minas
Gerais (TRE/MG) apresentou ao TSE um protótipo para o início da meca-
nização do processo eleitoral. Após iniciativas isoladas de alguns Tribu-
nais Regionais, que desenvolveram novas ferramentas de automação das
eleições, de forma vanguardista o TRE-RS desenvolveu um projeto-pilo-
to para a informatização do cadastro de eleitores do Rio Grande do Sul
(MACHADO, 2022).
Em 1981, ainda no capítulo de aprimoramento de sistemas ele-
trônicos para a informatização dos dados eleitorais, o então presidente
do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Moreira Alves, encaminhou ao
presidente da República, João Baptista de Oliveira Figueiredo, um an-
teprojeto que versava sobre a utilização de processamento eletrônico de
dados nos serviços eleitorais, visando dar mais transparência e segurança
ao processo eleitoral. Em 1982, por meio da Lei nº 6.996/82 criou-se um
arcabouço mais denso, que dispôs sobre a utilização do processamento
eletrônico de dados nos serviços eleitorais (TRE-PI, 2019).
Três anos depois, em 1985, a Lei nᵒ 7.444 tratou da implantação do
processamento eletrônico de dados no alistamento eleitoral e da revisão
do eleitorado, que resultou no recadastramento de 69,3 milhões de elei-
198
tores, e em 1986 a quem foram conferidos novos títulos eleitorais, agora
com número único nacional. No entanto, somente nas eleições municipais
do pleito de 1996, a Justiça Eleitoral deu início ao processo de informati-
zação do voto. Estreando as urnas, usaram pela primeira vez a “máquina
de votar”, nesse ano, cerca de 33 milhões de eleitores. Na eleição geral de
1998, o voto informatizado alcançou cerca de 75 milhões de eleitores. E
no pleito do ano 2000, todos os eleitores puderam utilizar as urnas eletrô-
nicas nas eleições municipais.
Voltando a contextualização da implantação dos códigos eleitorais,
com o Estado Novo implantado por Getúlio Vargas a partir de novembro
de 1937, chegou a “Polaca”, como ficou apelidada a Constituição de 1937
justamente por ter sido inspirada no modelo semifascista polonês, de for-
tes características autoritárias e que concedia ao governo poderes pratica-
mente ilimitados. Essa Constituição de 1937 extinguiu a Justiça Eleitoral,
aboliu os partidos políticos, suspendeu as eleições livres e estabeleceu a
eleição indireta para presidente da República com mandato de seis anos.
Após oito anos no poder, Vargas foi deposto em 29 de outubro de
1945 por um golpe que uniu oposição e militares. Logo após a deposi-
ção de Vargas, foi instituída a Lei Agamenon, ou seja, o segundo Códi-
go Eleitoral, em 1945, restabelecendo definitivamente a Justiça Eleitoral,
que voltou a organizar o alistamento e as eleições. O Tribunal Superior
Eleitoral foi novamente instalado no Rio de Janeiro, onde permaneceu até
abril de 1960, quando foi transferido para Brasília. Uma nova Constitui-
ção, promulgada em 1946, consagrou a Justiça Eleitoral como um órgão
do Poder Judiciário. E, então, de acordo com Machado (2022) um novo
Código Eleitoral foi criado para nortear o processo eleitoral brasileiro.
A legislação eleitoral, no período compreendido entre a deposição
de João Goulart (1964) e a eleição de Tancredo Neves (1985) foi marcada
por uma sucessão de atos institucionais e emendas constitucionais, leis e
decretos-leis com os quais o Regime Militar conduziu o processo eleitoral
de maneira a adequá-lo aos seus interesses, visando ao estabelecimento da
ordem preconizada pelo Golpe Civil-Militar de 64 e à obtenção de uma
maioria favorável ao governo. Com esse objetivo, o Regime alterou a du-
ração de mandatos, cassou direitos políticos, decretou eleições indiretas
para presidente da República, governadores dos estados e dos territórios
e para prefeitos dos municípios considerados de interesse da segurança
nacional e das estâncias hidrominerais, instituiu as candidaturas natas,
199
o voto vinculado, as sublegendas e alterou o cálculo para o número de
deputados na Câmara, com base ora na população, ora no eleitorado, pri-
vilegiando estados politicamente incipientes, em detrimento daqueles tra-
dicionalmente mais expressivos, reforçando assim o poder discricionário
do governo.
Dessa forma, o terceiro Código Eleitoral – de 1965, criado, por-
tanto, sob o regime civil-militar, foi marcado por essa sucessão de atos
institucionais, por meio dos quais as elites no poder central conduziram
o processo eleitoral. Em outubro de 1965, o general presidente Castello
Branco editou o Ato Institucional n° 2, que, entre outras medidas, punha
fim ao fim do pluripartidarismo. “Ficam extintos os atuais Partidos Políti-
cos e cancelados os respectivos registros”, dizia o artigo 18 do AI-2. Em
seguida, o governo decretou o Ato Complementar n° 4, cerca de um mês
depois, regulamentando o AI-2.
No início de 1966, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e
a Aliança Renovadora Nacional (Arena) já estavam montados às pressas
e disputaram as eleições daquele ano. Ainda sob ditadura, o Congresso
Nacional discutiu a Lei Orgânica dos Partidos Políticos, sancionada no
final de 1979. Entre outras medidas, essa lei restabeleceu o pluripartida-
rismo, anotada na forma da Lei Federal n° 6.767, de 20 de dezembro de
1979. Criada em 1965, Arena, após sua extinção, o partido passou a se
chamar Partido Democrático Social (PDS) e as oposições se dividiram em
PMDB, PTB, PDT; nos anos a seguir veio o Partido dos Trabalhadores,
fundado em fevereiro de 1980.
Com o início da redemocratização do país, começou uma nova fase
na história da política brasileira. Ainda durante a transição de regime, a
Reforma Partidária de 1979 implodiu com o bipartidarismo compulsório
(1969-1980) e inaugurou o pluripartidarismo mitigado com a criação e/
ou reorganização dos partidos políticos. Em 1985, após a campanha pela
realização das eleições diretas de 1984, Tancredo de Almeida Neves foi
eleito presidente da República por um colégio eleitoral, mas não chegou a
tomar posse. Com a morte de Tancredo, José Sarney assumiu a Presidên-
cia da República. A partir daí, o primeiro governo civil após 21 anos de
regime militar promoveu várias mudanças jurídicas fundamentais, entre
elas a promulgação da Emenda Constitucional nº 25 à Constituição de
1967, que restabeleceu eleições diretas para presidente e vice-presidente
da República e os analfabetos passaram a ter o direito de votar. O voto
200
desse público existiu durante o período colonial e o Império, até ser aboli-
do em 1881. Essa exclusão perdurou por todas as constituições do período
republicano.
Mas, diferentemente de períodos anteriores, não houve até o mo-
mento criação de novo Código Eleitoral para essa segunda experiência de
democracia competitiva. Todo processo de regramento eleitoral tem sido
realizado pelo Congresso Nacional e Tribunal Superior Eleitoral. Como
veremos adiante, o Código eleitoral de 1965 passou por alterações ao ser
promulgada a Lei de Inelegibilidade de maio de 1990 (Lei das Eleições).
Já a Lei Orgânica dos Partidos Políticos de 1971 foi alterada pela Lei
9096 em 1995. Acrescente-se as diversas Resoluções do TSE ao longo de
toda essa quadra democrática.
É neste contexto que a justiça eleitoral vem assumindo protagonis-
mo, aumentando sua atuação na organização do processo de representa-
ção política e se mostrando como densificador do processo democrático.
A cada eleição de forma a se aperfeiçoar, o Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) elabora, aprova e publica resoluções que compilam e regulamen-
tam a legislação para nortear a realização dos pleitos eleitorais. Podem
versar sobre diversos temas tais como: registro de candidaturas, propa-
ganda eleitoral, financiamento de campanhas e prestação de contas de
candidatos e partidos, organização das eleições e pesquisas eleitorais. Es-
sas resoluções visam normatizar a aplicação dessa legislação ao caso con-
creto – ou seja, um pleito específico, seja federal, municipal ou estadual.
As resoluções versam sobre todas as fases do processo eleitoral.
Voltando no tempo, entre essas iniciativas que merecem destaque
temos a criação do Cadastro Nacional de Eleitores, em 1986. Com esse
movimento, pela primeira vez, os registros das informações eleitorais dos
cidadãos deixou de ser feito em papel, pelos estados, e foi unificado. Pro-
mulgada em 1988, a Constituição Cidadã estabeleceu a eleição direta para
os cargos de presidente, governador, prefeito, senador, deputado e verea-
dor. Instituiu ainda o referendo e o plebiscito como formas de participação
popular. A nova Constituição também confirmou o voto facultativo para
os analfabetos e estabeleceu o mesmo tipo de voto para os jovens de 16 e
17 anos e para os idosos com mais de 70 anos.
Conforme asseveramos linhas atrás, outra iniciativa do TSE foi a
mudança do sistema de votação por meio das cédulas de papel para a urna
eletrônica. A urna eletrônica começou a ser usada paulatinamente partir
201
das eleições de 1996 e nas eleições de 2000, todos os eleitores já votavam
por meio desse equipamento eletrônico. Por fim, a partir de 2008, a Justi-
ça Eleitoral começou a implantar o cadastramento biométrico dos eleito-
res, que identifica quem vota pelas digitais, com amplo recadastramento
geral do eleitorado, escalonado por UFs.
Desde 2020 se iniciaram os debates no mundo político em torno da
criação de um novo Código Eleitoral. Essa proposta (Projeto de Lei Com-
plementar (PLP) 112/2021), reúne todas as leis ordinárias e resoluções do
Tribunal Superior Eleitoral, a Lei de Inelegibilidade de maio de 1990 (Lei
das Eleições) e a Lei orgânica dos Partidos Políticos de 1995. Incluindo
diversos temas relacionados aos partidos, sistemas eleitorais, propaganda
e campanha eleitoral, uso das redes sociais e a violência política nos plei-
tos, a projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados. Foi encaminhado
para o Senado Federal e encontra-se com o Relator Alexandre da Silveira
desde fevereiro de 2022, aguardando parecer da relatoria.
Vale salientar, que o PLP 112/2021 de autoria da Deputada Federal
Soraya Santos (PL/RJ), somente foi aprovado pelo Presidente da Câmara
Arthur Lira (PP/AL) por utilizar-se do artificio de Grupo de Trabalho e
não de Comissão para acelerar a votação a toque de caixa na Câmara dos
Deputados, aprovando às pressas em 15 de setembro de 2021. No Senado,
o presidente Rodrigo Pacheco (DEM/MG) entregou o Projeto ao sena-
dor Marcelo Castro (MDB-PI), designado para acompanhar as discussões
junto aos senadores Carlos Fávaro (PSD-MT) e Antônio Anastasia (PSD-
-MG), o que inviabilizou a implantação desse Código consolidador para
vigência nas eleições de 2022.
Essa proposta traz inovações relevantes, uma vez que regulamenta
as candidaturas coletivas e cria dispositivos para atualizar a legislação às
novas tecnologias, como a Lei Geral de Proteção de Dados e o Marco Ci-
vil da Internet; censura pesquisas eleitorais a partir da véspera da eleição;
muda a prestação de contas dos partidos, protege propaganda política em
igrejas e ressuscita a propaganda partidária na TV. Permite ainda que dois
ou mais partidos criem federações partidárias por quatro anos para dispu-
tar eleições e ter funcionamento parlamentar; o texto reforça a autonomia
partidária e continua permitindo o funcionamento das comissões provisó-
rias por até 8 anos (quando em 2019 a Justiça eleitoral determinou o fim
dessas comissões após seis meses de funcionamento).
Ainda em relação à campanha eleitoral, os partidos e diretórios po-
202
derão usar verbas do fundo partidário. Amplia a fidelidade partidária para
todos os cargos eletivos, inclusive governadores e senadores, hoje vale
para deputados e vereadores; e, ainda, regulamenta candidaturas coletivas
para deputados e vereadores que serão representadas formalmente por um
único candidato independente do número de componentes do mandato
coletivo. Os crimes eleitorais foram atualizados para incorporar as Fake
News e a violência política contra as mulheres.
Visando melhorar às condições de competição e representação das
mulheres e negros, os votos recebidos por esses públicos eleitos passam
a valer o dobro na divisão de recursos dos fundos Partidário e Eleitoral.
Foi também aprovado um destaque para incluir indígenas nessa política,
mas só relacionado ao Fundo Partidário. Também consta do texto a deter-
minação de que ao menos 30% dos cargos de direção dos partidos sejam
ocupados por mulheres.

TSE como guardião do Processo Eleitoral Brasileiro


O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é o órgão máximo da Justiça
Eleitoral e sua estrutura foi criada no mesmo desenho institucional do
qual brotou o Código Eleitoral de 1932. O TSE exerce papel fundamental
na construção e no exercício da democracia brasileira. O Tribunal possui
características únicas e raramente comparável às demais justiças eleitorais
noutros países: além de organizar as eleições, que se realizam a cada dois
anos, instituição brasileira possui a peculiaridade de normatizar, fiscalizar
e julgar, tudo sob uma mesma estrutura federal com sólidas ramificações
subnacionais.
Suas principais competências estão fixadas pela Constituição Fe-
deral e pelo Código Eleitoral (BRASIL, 1965). Com funções adminis-
trativas de amplos espectros em todo tema afeito ao Direito Eleitoral, a
instituição também tem sob sua cobertura um grande e complexo cabedal
que é manejado exaustivamente a cada ciclo eleitoral, a cada dois anos.
Algumas dessas fontes de matéria eleitoral são a Constituição Federal
de 1988 (BRASIL, 1988); a Lei nº 4.737/1965 (Código Eleitoral); a Lei
Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990 (Lei de Inelegibilidade); a
Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995 (BRASIL, 1995) Lei dos Parti-
203
dos Políticos); e a Lei nº 9.504/1997 (BRASIL 1997) (Lei das Eleições).
Ainda nas etapas que precedem aos ciclos eleitorais, o Tribunal expede
instruções para regular os processos eleitorais a seguir. As instruções têm
previsão legal no art. 105 da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, e
no art. 23, IX, do Código Eleitoral e devem ser expedidas até 5 de mar-
ço do ano de cada eleição. Ao mesmo tempo, quando exerce sua função
consultiva, o TSE está amparado nos arts. 23, XII, e 30, VIII, do Código
Eleitoral.
Com esse amplo e complexo conjunto de responsabilidades, os
números do TSE são grandiosos 38. Nas eleições municipais de 2020, o
Tribunal foi responsável pelo registro de 557.678 candidaturas aos execu-
tivos, sendo 19.379 (3.74%) para os cargos de Prefeito e 19.814 (3.82%)
para Vice-prefeito. No que tange ao cargo de Vereador registrou 518.485,
(92.44%). Dessas candidaturas, 26.096 (4,68%) foram consideradas inap-
tas após julgamentos diversos na Corte. Rápida consulta à base de dados
do Sistema de Acompanhamento de Documentos e Processos (SADP) e
Processo Judicial Eletrônico (PJe) do TSE retorna um volume de 3.888
processos em acervo, para o ano de 2022; 4.202 processos para 2021, ten-
do sido distribuídos 2239 e baixados 2.231.
O avanço normativo na seara do Direito Eleitoral permite ainda
o reconhecimento de que o Estado brasileiro costuma produzir eleições
de elevado prestígio e legitimidade em todo o mundo, tendo em vista os
avanços concebidos durante todos esses anos. Do ponto de vista jurídico,
não há dificuldade em perceber que aí se cumpre o papel a que se desti-
na o Direito Eleitoral, aquele destinado à promoção da cidadania. Mas
essa importância vai além. Como assevera Dieter Nohlen:, “um gover-
no surgido de eleições livres e universais é reconhecido como legítimo
e democrático; no entanto, o poder das eleições é ainda mais extenso: as
eleições competitivas constituem a força legitimadora de todo o sistema.”
(NOHLEN, 1995). Nessa senda, a legalidade eleitoral, para além de ultra-
passar a função de normatizar e tornar factível a democracia, atuará tam-
bém como uma importante fonte de promoção da cidadania e de susten-
tação do regime. Torna-se, assim, imperativo zelar pela conformação de
um Direito Eleitoral bom não apenas na trivial produção da legitimidade

38 - Disponível em: https://sig.tse.jus.br/ords/dwapr/seai/r/sig-eleicao/home?session=1796962521719. Acesso em: 12


nov. 2021.

204
de origem, mas também na edificação de um ordenamento imbuído por
um senso de justiça que reproduza o querer coletivo: uma Justiça Eleitoral
em que se produzam diplomas cada vez mais inclusivos e moralizadores.
Desse modo, o Tribunal Superior Eleitoral cumpre seu papel institucional
de guardião do processo eleitoral enquanto promove por meio do pleno
exercício das suas funções, uma sequência robusta de eleições fidedignas,
limpas, respeitadoras das vontades dos eleitorados e que tenham no forta-
lecimento da democracia seu principal fundamento.

Conclusão
Passados 90 anos do nosso primeiro Código Eleitoral, seguido por
mais dois códigos, 1945 e 1965, um novo código está sendo gestado no
Congresso Nacional. Visando avaliar continuidades e mudanças nesses
códigos, este capítulo examinou normas e dispositivos que nortearam a
construção da cidadania política, por um lado, e regraram a competição
política, por outro lado; bem como examinou qual tem sido o papel da
Justiça Eleitoral no percurso dos processos eleitorais.
Verificamos que dispositivos como o voto secreto, voto obrigató-
rio, sistema proporcional e o aparato da justiça eleitoral desenvolvidos no
CE32 permanecem constante ao longo da história política brasileira. Mas
no que tange ao voto feminino, aos tipos de financiamento da política e
grau de autonomia dos partidos, bem como aos mecanismos de votação
observamos consideráveis mudanças quando comparamos os três códigos
eleitorais e a legislação complementar instituída após a constituição de
1988. Alterações que, se de um lado, foram no sentido da ampliação nu-
mérica do eleitorado nacional, tornando a participação política para além
da cidadania regulada (SANTOS, 1987); ao mesmo tempo tiveram como
consequência o aumento da autonomia do funcionamento das organiza-
ções partidárias, por outro lado.
Quanto ao papel do Tribunal Superior Eleitoral notamos crescente
aumento de seu protagonismo no processo eleitoral, seja modernizando e
informatizando sua estrutura técnica e administrativa, resultando em pro-
cessamento e sistematização cada vez mais segura e eficiente das infor-
mações das eleições; seja intervindo na elaboração de leis quando consul-
205
tado pelos atores partidários e sociais. Esse ativismo da justiça eleitoral é
um traço marcante dessa última quadra democrática.

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206
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208
O Supremo Tribunal Federal e
a questão do Poder Moderador 39
na atualidade

Carlos Henrique GILENO


Eder Aparecido de CARVALHO

O conceito de Poder Moderador estava colocado como hipótese


desde a publicação do célebre Espírito das Leis (1748) de Charles-Louis
de Secondat, barão de Montesquieu (1689-1755) 40. Entretanto, não dele-
gava ao monarca o exercício da função daquele poder, mas à nobreza par-
41
lamentar. Posteriormente, aquele conceito obteve relevância para alguns
intelectuais e políticos nos debates da Assembleia Constituinte da França
(1789) e, concomitantemente, era rejeitado por constituintes da ala de-
mocrática que perfilhavam o ordenamento de uma Assembleia Nacional
unicameral conduzida pela supremacia do Poder Legislativo, entre eles
Emmanuel Joseph Sieyès (1748-1836), Isaac Le Chapelier (1754-1794) e
Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord (1754-1838).
Detratores do primado do Poder Legislativo, os monarquistas
constitucionais -Pierre-Victor, barão de Malouet (1740-1814), Jean-Jo-
seph Mounier (1758-1806), Trophime-Gérard, marquês de Lally-Tollen-
dal (1751-1830) e Stanislas Marie Adélaïde, conde de Clermont-Tonerre
(1757-1792) - alvitravam a hipertrofia do Poder Executivo concentrada na
Coroa, a qual disporia dos vetos aos projetos advindos da câmara legis-
lativa. A intenção era corroborar a função específica da Coroa no aparato

39 - Salvo atualizações e acréscimos, partes deste capítulo foram publicadas na revista Em Tese (UFSC - Florianópo-
lis). Na ocasião, o artigo apresentou o seguinte título: Reflexões sobre o Poder Moderador nas instituições políticas
brasileiras: o pretérito e o presente, v. 15, p. 10-32, 2018.
40 - O barão de Montesquieu firmou a sua concepção de Poder Moderador no Capítulo VI (Da constituição da Ingla-
terra) que compõe Livro XI (Das leis que formam a liberdade política em sua relação com a constituição) (MONTES-
QUIEU, 2000).
41 - “Dos três poderes dos quais falamos, o de julgar é, de alguma forma, nulo. Só sobram dois; e, como precisam de
um poder regulador para moderá-los, a parte do corpo legislativo que é composta por nobres é muito adequada para
produzir este efeito” (MONTESQUIEU, 2000, p. 75).

209
institucional e político do moderno Estado francês com a finalidade de
obstaculizar a restauração da monarquia absolutista do Antigo Regime.
As proposições dos monarquistas constitucionais saíram enfra-
quecidas do debate. Não obstante, um dos seus correligionários - Jac-
ques-Henri Bernardin de Saint-Pierre (1737-1814) - cunhou pela primeira
vez a expressão Poder Moderador, orientando o conde de Clermont-To-
nerre a publicar Analyse raisonnée de la Constituition Française (1791),
onde descrevia as funções constitucionais do Poder Moderador (LYNCH,
2011).
Ulteriormente, as atribuições constitucionais do Poder Moderador
foram detalhadas teoricamente no quadro de uma Monarquia Constitu-
cional Parlamentar com a divulgação em 1815 dos Princípios da Política
aplicáveis a todos os governos representativos e particularmente à consti-
tuição atual da França de Henri-Benjamin Constant de Rebecque (1767-
1830). Escrito durante o Governo dos Cem Dias (20/03 a 18/06/1815) de
Napoleão Bonaparte (1769-1821), o livro de Benjamin Constant - com a
intenção de garantir o equilíbrio entre os poderes das instituições políticas
francesas - projetava uma Carta Constitucional que viabilizasse a defini-
ção das funções dos poderes que representariam os vários interesses dos
grupos políticos.
O modelo constitucional de Benjamin Constant era composto por
42 43
quatro poderes: Poder Moderador , Poder Executivo , Poder Representa-
44
tivo (bicameral) e Poder Judiciário 45. Para Benjamin Constant, o titular
do poder Moderador é inviolável, sagrado e irresponsável politicamente
perante os seus atos administrativos. Enquanto o Poder Moderador é neu-
tro, os demais poderes (Executivo, Representativo e Judiciário) são ativos
e responsabilizáveis pelas suas ações públicas. Injusta seria a responsa-
bilização se fossem passivos ante a vontade política pessoal do monarca
(BASTOS, 2014).

42 - Este poder estaria acima dos demais. Espécie de árbitro que procura o equilíbrio entre o Poder Executivo, o Poder
Legislativo e o Poder Judiciário.
43 - Confiado aos Ministros que cuidam da execução geral das leis.
44 - Benjamin Constant (2014) distingue cinco poderes ao invés de quatro. Isso porque considera o Poder Repre-
sentativo como sendo dois poderes: Poder Representativo da continuidade (Assembleia Hereditária, composta de
parlamentares delegados pelo Poder Real) e Poder Representativo da opinião (Assembleia eleita por voto censitário
- proprietários ou de poder econômico).
45 - Confiado aos tribunais que detêm o poder de julgar as particularidades das leis.

210
Ao Poder Real caberia moderar e equilibrar as ações dos demais
poderes. Quando houvesse conflitos entre os mesmos, a obrigação cons-
titucional do Poder Moderador seria intervencionista. Por exemplo, se o
comportamento do Poder Executivo estivesse ancorado na arbitrariedade,
o monarca destituiria o Ministério. Do mesmo modo, se a câmara legis-
lativa representasse ameaça à estabilidade política nacional, o titular do
Poder Moderador a dissolveria e instituiria novos pares ou convocaria
outras eleições.
Por outro lado, se o Poder Judiciário perpetrasse ações nocivas à
sociedade ao aplicar penas demasiadamente rigorosas ou arbitrárias, o
monarca moderaria aquele conflito, exercitando o seu direito de graça
ao conceder o perdão. No entanto, o monarca não poderia estar acima da
Constituição, pois seria necessário definir os limites da legalidade consti-
tucional: esse fator diferencia a Monarquia Constitucional Parlamentar da
Monarquia Absolutista ou Despótica. Destarte, o Poder Real, por meio do
Chefe de Estado, deveria tomar precauções para não substituir ou incor-
porar os demais poderes (CONSTANT, 2014).
O conceito de Benjamin Constant referente ao Poder Ministerial
ativo e independente - ainda que emane do Poder Real - estabeleceu as
responsabilidades dos ministros e separou o Poder Executivo do Poder
46
Moderador . Sendo os ministros responsabilizáveis e o titular do Poder
Moderador inviolável e sagrado - não estando sujeito à responsabilidade
alguma - fica evidente a separação entre a autoridade responsabilizável
(Poder Executivo) e a autoridade inviolável (Poder Moderador). Todavia,
a integralidade constitucional “[...] se perde se o poder moderador vira
poder executivo e se o poder executivo assume características e funções
monárquicas” (BASTOS, 2014, p. 19).
A natureza do Poder Moderador é diversa do poder discricionário,
e o monarca - ao integrar as atribuições do Poder Executivo - deixaria
de ser neutro. A arbitrariedade ocorreria quando fossem confundidas as
prerrogativas constitucionais do Poder Executivo com o Poder Real, fato
que colocaria em risco a estabilidade política e a liberdade dos cidadãos
(CONSTANT, 2014). Benjamin Constant indicou que a distinção entre
o Poder Real e o Poder Executivo seria a chave fundamental do ordena-

46 - A responsabilidade pelos atos do Poder Executivo deve ser atribuídos aos Ministros.

211
mento político (HOLANDA, 1985; LEAL, 2014). O Poder Executivo,
embora possuindo prerrogativas constitucionais distintas das atribuições
do Poder Moderador, constitui-se por delegação privativa da nação ao
monarca hereditário e não do Parlamento47. O regime de monarquia limita-
do reconhecido por Benjamin Constant, mesmo sob a influência inglesa,
não era parlamentarista.
O vício de quase todas as constituições (até hoje) foi não haver
criado um poder neutro. Em vez disso, investiu a plenitude
da autoridade a um dos poderes ativos. Quando essa soma de
autoridade se reuniu no poder legislativo, a lei, que não deve
descer a certas esferas, estendeu seu domínio a tudo. Existiu
uma arbitrariedade e tirania sem limites. Daí os excessos
do “Parlamento Longo”, os das assembleias populares nas
repúblicas da Itália, os da Convenção durante algumas de suas
etapas. Quando essa mesma soma de autoridade se reuniu no
poder executivo, houve despotismo. Daí a usurpação a que
deu lugar a ditadura em Roma (CONSTANT, 2014, p. 40).

Benjamin Constant, na obra Reflexões sobre as Constituições e as


Garantias (1814), procurou resguardar os princípios monárquicos e as
garantias individuais vinculadas a um modelo institucional e político que
pudesse conciliar os antigos princípios monárquicos aos novos direitos de
cidadania gerados pela Revolução Francesa e revigorados na Constituição
de 1791. Se a defesa das garantias individuais aproximou Benjamin Cons-
tant do pensamento revolucionário liberal francês, a permanência em sua
teoria política dos princípios políticos monárquicos o ligou ao pensamen-
to conservador, com o adendo de que o escritor e político franco-suíço
era constitucionalista e opositor das pretensões das monarquias absolutis-
tas de excessiva concentração do poder institucional e político na Coroa
(BASTOS, 2014).
O Poder Moderador não governaria no sentido estrito da expres-
são, pois não lhe caberia qualquer iniciativa que não estivesse prevista na
Constituição. Ainda assim, o Poder Moderador não seria mero símbolo
monárquico (TORRES, 1973). Quando os poderes - esquematizados pela

47 - De acordo com o Art. 98 da Constituição de 1824, “O Poder Moderador é a chave de toda a organização Política,
e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e o seu Primeiro Representante, para
incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos”
(BRASIL, 1824, art. 98).

212
teoria dos três poderes do barão de Montesquieu - entrassem em conflito,
o Poder Real interviria para endossar a estabilidade político-institucional.
Benjamin Constant salientou que esse modelo se adaptaria melhor
ao sistema monárquico constitucional parlamentar pautado nas tradições,
com o monarca detendo a faculdade exclusiva de árbitro na resolução de
conflitos. O Poder Moderador independente não se sobreporia aos po-
deres Executivo, Legislativo e Judiciário. Mesmo tendo autonomia para
dissolver o órgão responsável pela elaboração das leis, o Poder Mode-
rador apenas mediaria os embates históricos existentes entre as facções
políticas.
A Monarquia Constitucional Parlamentar deveria justapor a con-
formação institucional do Estado Moderno à Monarquia Absolutista, pois
a base constitucional evitaria a irrupção da tirania e impossibilitaria a ab-
sorção do Poder Legislativo e do Poder Judiciário pelo Poder Moderador
consubstanciado no Imperador. Para que uma monarquia seja compre-
endida como constitucional, os limites e modos que os poderes políticos
estão regulados, as suas atribuições e independência devem estar subme-
tidas à legislação prevista na Constituição: a pátria não pode estar sujeita
à vontade ilimitada de um poder institucional, mas ao cumprimento literal
das normas constitucionais (TORRES, 1973).
A Constituição do Império do Brasil de 1824 foi outorgada por D.
Pedro I (1798-1834) e consolidou o aparato institucional do Poder Mode-
rador, a qual perdurou - excluindo a sua suspensão devido à menoridade
de D. Pedro II durante o período regencial (1831-1840) - até a queda da
Monarquia Constitucional Parlamentar em novembro de 1889.

Poder Moderador e governo republicano:


o caso do Supremo Tribunal Federal
O artigo 2 da Constituição Federal de 1988 delimita as caracte-
rísticas institucionais dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário
48
(Constituição da República Federativa do Brasil, 2016). Os poderes ficam

48 - “Art. 2. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”
(BRASIL, 1988, art. 2).

213
circunscritos às suas prerrogativas constitucionais, uma vez que a Carta
49
Magna estruturou controles recíprocos : enquanto um poder controla os
demais, é por eles controlado, reforçando a assertiva do barão de Montes-
quieu de que somente o poder controla o poder (MONTESQUIEU, 2000).
Essa teoria revela que a divisão e a harmonia entre os poderes podem ga-
rantir a sobrevivência do Estado Democrático de Direito.
O Supremo Tribunal Federal - órgão máximo do poder Judiciário -
tem a função principal de salvaguardar a Constituição Federal ao intervir
nos demais poderes com o intuito de corrigir atos e leis que não estejam
de acordo com os preceitos constitucionais. Paradigma de interposição do
Supremo Tribunal Federal no Poder Legislativo é a sua permissão de re-
querer àquele poder a correção de regras falhas e editadas (ASSIS, 2012).
Perante suposta atuação constitucional equivocada do Poder Legislativo,
o Supremo Tribunal Federal intenta corrigir os atos inconstitucionais da-
quele poder para evitar a nulidade das suas ações (CRUZ, 2004).
É fundamental analisar se o Supremo Tribunal Federal estaria arro-
gando a si a atribuição do exercício de uma espécie peculiar de Poder Mo-
derador. No âmbito do arranjo das instituições políticas brasileiras, aquele
poder desapareceu após a queda do Segundo Reinado (1840-1889). Po-
rém, a sua retomada no período republicano foi proposta em diferentes
momentos históricos e das mais diversas formas.
Exemplo dessa assertiva foi o projeto de reforma política do ad-
vogado e político gaúcho Antônio Augusto Borges de Medeiros (1863-
1961), o qual propunha a função do Poder Moderador centrada no chefe
do Poder Executivo. No livro intitulado O poder moderador na República
Presidencial (1933), Borges de Medeiros esboçou o modelo de presiden-
cialismo parlamentarizado praticado mais tarde na França e Portugal. No
apêndice do seu livro, Borges de Medeiros apresentou o Anteprojeto de
Constituição Federal para o Brasil, definindo no Artigo 82 a natureza do
Poder Moderador no regime de governo republicano.
O Poder Moderador é delegado privativamente ao presidente
da República. O presidente é o supremo magistrado da
Nação, e o seu primeiro representante, a quem incumbe

49 - O Poder Executivo exerce o controle via sanção e veto, enquanto o poder Legislativo - por intermédio das suas
Comissões de Constituição e Justiça - tem a atribuição de legitimar ou rejeitar as Medidas Provisórias. O Poder Judici-
ário exerce o controle constitucional das leis: as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal podem validar ou
invalidar atos e leis de acordo com a interpretação do alinhamento jurídico.

214
incessantemente velar sobre os destinos da República e
sobre a conservação, equilíbrio e independência dos demais
poderes políticos, assim como a inviolabilidade dos direitos
fundamentais (MEDEIROS, 2002 p. 140-141).

Se não é possível adotar o parlamentarismo, a república presiden-


cialista necessitaria de profunda reforma na Constituição de 1891. En-
tre as propostas reformistas de Borges de Medeiros, destacavam-se: 1)
O presidente da República, na função do Poder Moderador, será apenas
Chefe de Estado; 2) A execução dos atos do Poder Executivo seria dele-
gada ao Conselho de Ministros, que garantiriam política e juridicamente
as liberdades públicas; 3) O presidente da República indicaria os minis-
tros, sendo nomeados com a chancela da maioria do voto parlamentar;
4) Em caso de vacância na presidência da República, ocupariam o cargo,
respectivamente, o presidente do Conselho de Ministros, o presidente da
Assembleia Nacional e o presidente do Supremo Tribunal Federal.
Borges de Medeiros defendia, em 1933, um modelo de
governo presidencialista, no qual o presidente da República,
eleito diretamente pelo voto popular, se constituiria em
chefe de Estado, depositário de um poder moderador, a ser
acionado sempre que surgissem impasses entre os poderes.
A chefia do governo ficaria a cargo de um primeiro ministro,
para administrar o País através de um gabinete de ministros,
que teria ou perderia a confiança do Parlamento, dependendo
do rumo das ações governamentais, a serem tomadas dentro
de um contexto de co-responsabilidade entre o Executivo
e o Congresso Nacional. Num impasse maior, poderia o
presidente convocar novas eleições, para que ao povo se
devolvesse a decisão sobre a maioria parlamentar, capaz
de decidir sobre o tipo de governo e as ações conseqüentes
reclamadas pela nação (FACCIONI, 2002, p. 17).

Ao refletir sobre uma nova divisão entre os poderes da República


presidencialista, Borges de Medeiros se antecipou teoricamente à Fran-
ça do general Charles André Joseph Marie de Gaulle (1890-1970) e ao
Portugal do socialista Mário Alberto Nobre Lopes Soares (1924-2017).
O presidencialismo deveria ser de gabinete ao separar a chefia do Es-
tado (Presidente) da chefia do governo (Conselho de Ministros). Existe
a propositura do presidente da República exercer as suas prerrogativas
215
constitucionais como Poder Moderador. O projeto de reformas de Borges
de Medeiros enjeitava a hipertrofia do Poder Executivo na então recente
história republicana, principal causa da concentração de poder no presi-
dente da República.

A supremacia do Poder Executivo sobre o Legislativo, e a


intervenção legal e extralegal do presidente nos negócios
políticos dos Estados, acarretaram desequilíbrios no ritmo
funcional das instituições, contribuindo para alimentar o
espírito da indisciplina e de revolta, que, latente sempre, vinha
se manifestando, com freqüência em explosões esporádicas
[...] Compete-lhe, portanto, as funções que constituem
propriamente o governo, na sua acepção restrita. Exercendo
o presidente o poder moderador, poder neutral, mediador,
está visto que não mais deverá chefiar o Executivo, que é um
dos poderes sujeitos à vigilância daquele. Se fora permitida
a acumulação, estaria ipso facto violada a neutralidade
do presidente e comprometida irremediavelmente a
virtualidade e a ação do poder moderador. Não sendo isso
possível, forçoso se torna que o Executivo seja delegado a
uma entidade coletiva, denominada conselho de ministros,
ou simplesmente ministério [...] O Executivo unipessoal
implicaria o aparecimento de um governo ditatorial (SOUZA
PINTO, 2002, p. 58-69).

Nos debates políticos que antecederam a Constituição de 1934,


houve a malograda tentativa de conferir ao Supremo Tribunal Federal a
função de Poder Moderador. Após o golpe do Estado Novo de 1937, o
retorno do Poder Moderador foi reivindicado pelo então chefe do Poder
Executivo - Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954) - ao pretender que fos-
se incorporado às funções presidenciais. No golpe de 1964, ficava implí-
cito que as Forças Armadas poderiam receber a incumbência de exercer
o Poder Moderador. Hodiernamente, aquela função é reivindicada pelo
Supremo Tribunal Federal. Em todo o período republicano, em maior ou
menor proporção, o tema do Poder Moderador adquiriu os mais diversos
matizes (BASTOS, 2015).
Apesar das várias conjecturas teóricas acerca do Poder Moderador
no século XX e início do século XXI, a sua implantação é incompatível
216
com o disposto no Art. 2 da Constituição Federal de 1988. Atualmente,
a jurisdição constitucional impele o Supremo Tribunal Federal a emitir a
batida do malhete sobre inúmeros atos do Poder Legislativo ao legitimar
ou invalidar decisões dos órgãos representativos (VIEIRA, 2008).
Em contrapartida, a Constituição de 1824 não outorgava ao Poder
Judiciário o controle de constitucionalidade. Durante o Império, o Tribu-
nal Superior de Justiça - hoje Supremo Tribunal Federal - dispunha de
competências constitucionais limitadas: não foi concedido aos magistra-
dos o poder de recusar atos emanados do Poder Legislativo ou do Poder
Executivo, visto que o Poder Moderador executava essa função. O Impe-
rador, ao exercer o Poder Moderador, poderia vetar atos do parlamento ou
mesmo dissolvê-lo, bem como destituir ministérios e conceder graça ou
indulto ao revogar decisões judiciais. A constitucionalidade dos atos dos
outros poderes era controlada pelo Poder Moderador, mesmo a Consti-
tuição de 1824 não expressando de maneira direta os tipos de controle de
constitucionalidade das leis como fizeram as Constituições republicanas
amparadas no Poder Judiciário.

[...] o Poder Moderador, além de inspecionar os demais


poderes, tem atribuição de expressar, de sancionar as leis e,
consequentemente, de vetá-las, exercendo, na prática, um
controle de constitucionalidade” - controle eminentemente
político e não jurídico. Inclusive, em muitas oportunidades,
por questões políticas, o controle não foi exercido - mesmo
quando existentes atos flagrantemente inconstitucionais.
Exemplo: mesmo contrariando a Constituição de 25 de
março de 1824, foi aprovado Código Criminal que trazia a
pena do açoite (SAMPAIO JUNIOR, 2006, p. 262).

Em 5 de maio de 2016, o Supremo Tribunal Federal suspendeu o


mandato do político carioca Eduardo Consentino da Cunha, que naque-
la ocasião ocupava a presidência da Câmara dos Deputados. Nessa pena
disciplinar estava expressa a violação das atribuições constitucionais do
Congresso Nacional, na medida em que a Carta Magna confere exclusi-
vamente ao Poder Legislativo a prerrogativa de revogar os direitos políti-
cos dos parlamentares: “Só os eleitos podem dispor do mandato dos elei-
tos - eis o princípio democrático que a Corte Suprema decidiu ignorar”
(MAGNOLI, 2016, p. A10). Ao interromper o mandato do mencionado
217
presidente, o Supremo Tribunal Federal extrapolou as regras da separação
de poderes 50.
No dia 5 de dezembro de 2016, ocorreu o ato do ministro do Supre-
mo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, que propunha o afastamen-
to do parlamentar alagoano José Renan Vasconcelos Calheiros da presi-
dência do Senado Federal. Aquela iniciativa foi alterada três dias depois,
quando o plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que o aludido
senador não precisaria ser afastado do cargo, pois estaria sob a condição
de réu mediante a acusação de desvio das verbas de gabinete para custear
a pensão alimentícia da sua filha. Sem embargo, ficou estabelecido que o
senador não poderia ocupar o cargo da presidência da República, mesmo
estando institucionalmente na linha sucessória 51
.
Diante desse cenário, é indispensável a reflexão sobre a teoria da
tripartição dos poderes na República. Recentemente, talvez houvesse mo-
mentos em que o Supremo Tribunal Federal excedeu as suas prerrogativas
constitucionais. Ao intervir nas atribuições constitucionais do Poder Le-
gislativo, quase idealizou uma nova legislação.
No julgamento de impeachment por crime de responsabilidade
fiscal (disciplinado pela Lei 1079/50) da presidente da República Dilma
Vana Rousseff (2011-2016), a norma constitucional determinava, se con-
denada, a suspensão do seu mandato presidencial e o impedimento de
exercer por oito anos qualquer função pública. Entrementes, o ministro do
Supremo Tribunal Federal, Enrique Ricardo Lewandowski, que presidiu
o processo, deliberou a formação de um novo mecanismo constitucional
ao propiciar aos Senadores duas votações separadas: 1) A primeira pela
condenação do crime de responsabilidade fiscal e a consequente perda do
cargo de presidente da República; 2) A restauração ou não dos direitos
políticos. Efetivamente, o Supremo Tribunal Federal proporcionou uma
meia condenação, fato que permitiu a candidatura da ex-presidente a uma
52
vaga no Senado Federal por Minas Gerais em 2018.

50 - Este capítulo não pretende apurar se Eduardo Consentino da Cunha usou o cargo de presidente da Câmara dos
Deputados para prejudicar as investigações da operação Lava Jato (investigação sobre corrupção envolvendo políticos
e empreiteiras). Essa foi a alegação do Supremo Tribunal Federal para afastar o parlamentar do Congresso. O objetivo
do capítulo é analisar brevemente se houve invasão de competências na esfera dos poderes estabelecidos pela Consti-
tuição Federal de 1988.
51 - A finalidade não é promover a defesa dos atos do político José Renan Vasconcelos Calheiros, mas atentar para a
reflexão de que a separação de poderes inspirada na teoria do barão de Montesquieu recusa a invasão de competências
entre os poderes.
52 - O intento não é realizar a defesa ou o julgamento contrário ou favorável à condenação. A intenção é ilustrar a
criação de um novo mecanismo constitucional no calor do processo de impeachment, quando a presidente da Repú

218
É possível afirmar que o Supremo Tribunal Federal interferiu even-
tualmente na competência dos demais poderes republicanos. Essas inter-
venções muitas vezes são oriundas do ativismo judicial efetuado pelos
partidos políticos que insuflam a judicialização da política com o poder da
liminar junto ao Supremo Tribunal Federal (MOURA, 2021).
Dentre os juristas que interpretam que o Supremo Tribunal Federal
assume a função constitucional de Poder Moderador, destaca-se o Minis-
tro do Supremo Tribunal Federal, José Antonio Dias Toffoli (2014) em
palestra intitulada O Poder Moderador no Brasil: os Militares e o Poder
53
Judiciário, o citado Ministro referiu-se ao Supremo Tribunal Federal :
“Hoje ele é o Poder Moderador”. Em entrevista concedida à revista Veja
(JUNIOR; BORGES, 2019), José Antonio Dias Toffoli retomou a sua nar-
rativa: “O Supremo deve ter esse papel moderador, oferecer soluções em
momentos de crise”.
O Supremo Tribunal Federal, pelos artigos constantes na Consti-
tuição Federal de 1988, apenas deve ponderar sobre as prerrogativas ine-
rentes ao controle de constitucionalidade das leis. Constitucionalmente,
o Supremo Tribunal Federal não possui a função de interferir em outros
temas da administração pública, como nos julgamentos de improbidade
administrativa envolvendo membros do Poder Executivo. Ao questionar
as ações administrativas do Poder Executivo - arrogando a si poder fisca-
lizador e corretor, o Supremo Tribunal Federal atuaria como uma espécie
de Poder Moderador, colocando-se acima dos demais poderes para o arbí-
trio dos conflitos institucionais.
Ao estabelecer condutas com o objetivo de corrigir “atos defeituo-
sos” dos poderes Executivo e Legislativo, o Supremo Tribunal Federal es-
taria assumindo a prerrogativa de Poder Moderador, a qual se situa apenas
no nível do discurso fictício, pois nenhum poder republicano está acima
das disputas entre as facções ideológicas e partidárias e não pode ser neu-
tro. Transformar o corpo técnico jurídico do Supremo Tribunal Federal
em Poder Moderador transgride a norma constitucional da separação de
poderes. O Supremo Tribunal Federal é um órgão do Poder Judiciário que
é o supremo defensor e intérprete da Constituição, e não proprietário dela.

blica deveria ter sido condenada ou absolvida, sem qualquer separação ou meio termo. O Supremo Tribunal Federal
concebeu - fora das suas atribuições legais - uma nova regra constitucional.
53 - Palestra proferida no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista - UNESP (São Paulo), em: 04 abr.
2014.

219
Considerações finais
Neste capítulo, elencamos alguns referenciais teóricos necessários
à reflexão dos limites da legalidade constitucional. D. Pedro I, ao exer-
cer o poder Moderador, não poderia estar acima da Carta Magna, fator
primordial que diferencia a Monarquia Constitucional da Monarquia ar-
bitrária embasada no fortalecimento do poder pessoal do Imperador. Da
mesma maneira, o Supremo Tribunal Federal, na condição de guardião
da Constituição Federal de 1988, não pode reescrever a Carta Magna ar-
bitrariamente, pois o Estado Democrático de Direito ruiria ante as ações
discricionárias dos três poderes. A formação institucional de poder não
pode estar sujeita à vontade ilimitada, mas ao cumprimento estrito das
normas constitucionais.
As funções dos poderes Legislativo e Executivo são diversas da
função do Poder Judiciário. O Supremo Tribunal Federal não possui atri-
buição para exercer funções constitucionais inerentes aos outros poderes.
Ao intervir como Poder Moderador, o Supremo Tribunal Federal pode
impor inconstitucionalmente condutas aos demais poderes republicanos,
violando de forma arbitrária os dispositivos constitucionais que o próprio
órgão deveria preservar. Contudo, não se trata de reduzir o poder Judici-
ário a mero cumpridor da letra fria da lei; mas surge o risco de o ativis-
mo judiciário - e a consequente judicialização da política - neutralizar as
conquistas que se deram pela participação democrática ao mesmo tempo
em que contraria a competência que a Carta Constitucional atribuiu ao
Supremo Tribunal Federal (SANTOS, 2009).
Adequado reforçar que não se trata da defesa de um judiciário ser-
viçal dos poderes Executivo ou Legislativo, uma vez que um Supremo
Tribunal Federal subalterno prejudica a sua função primordial de guar-
dião da Carta Magna. Muito pelo contrário, cabe ao Supremo Tribunal
Federal legitimar juridicamente a Constituição, a qual não é passível de
ser apropriada por nenhum dos três poderes republicanos. O Supremo
Tribunal Federal pode e deve tomar iniciativas em benefício dos cidadãos
brasileiros, mas se arrogar a si a função de Poder Moderador pode fazer
emergir a temerária possibilidade de instaurar a ditadura do Poder Judi-
ciário.
Do ponto de vista de Benjamin Constant, o Poder Moderador ape-
nas arbitraria os conflitos existentes; e somente nesses momentos o poder
220
atribuído à Coroa estaria acima dos demais poderes. D. Pedro I, por seu
turno, concentrou o Poder Moderador e, embora exercitando o poder Exe-
cutivo por meio dos seus ministros, objetivou a concentração do poder
pessoal no Imperador. Devemos lembrar que os artigos 98 e 102 da Cons-
tituição de 1824 não colocavam os atos institucionais do monarca acima
da Carta Constitucional. Pelo contrário, exigiam do Imperador - no exer-
cício do Poder Moderador - a promoção e a vigilância da independência,
equilíbrio e harmonia dos três poderes, preservando a ordem constitucio-
nal. Assim, na atual República Federativa do Brasil, o Supremo Tribunal
Federal não pode arbitrar permanentemente sobre as prerrogativas cons-
titucionais que são próprias do Poder Legislativo ou do Poder Executivo,
porquanto A Constituição Federal de 1988, quando celebrou a separação
dos poderes, não instituiu o Poder Moderador.
Na contemporaneidade, qualquer dos três poderes que reivindique
a função de controle dos demais poderes diverge da teoria tripartite ex-
pressa na Constituição vigente. Na atual conjuntura política, qualquer in-
tenção ou proposta que vise institucionalizar o Poder Moderador estaria
reivindicando a constituição de um poder que não está previsto na nossa
última Carta Magna. A condição de guardião da Constituição Federal não
oferece ao Supremo Tribunal Federal competência para tratar de ques-
tões reservadas à esfera política. Se a inexistência do Poder Moderador
foi compensada de alguma maneira pela função desempenhada pelo Su-
premo Tribunal Federal de guardião da Carta Constitucional, talvez seja
crucial não confundirmos o conceito de Poder Moderador com o conceito
de fiscalização dos preceitos constitucionais.
Enfim, parece que enquanto no Primeiro Reinado (1822-1831) o
Poder Moderador existiu de fato na Carta Constitucional, nas instituições
políticas contemporâneas o Poder Moderador é apenas imaginário, bas-
tando observar as leis dispostas na Constituição atual. A chave da siste-
matização institucional e política depende da divisão das funções e das
atribuições dos poderes. Compete ao Supremo Tribunal Federal o uso
prudente e adequado das suas prerrogativas constitucionais, contribuindo
para disciplinar sistema político estável, duradouro e democrático.

221
REFERÊNCIAS
ASSIS, C. C. O Supremo Tribunal Federal como Poder Moderador:
Uma análise discursiva. Revista Direito Público (DPU), v. 9, n. 47,
p. 60-70, set./out. 2012. Disponível em: http://191.232.186.80/hand-
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2015.

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224
Sobre os autores

Ana Lúcia de Castro


Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLAr), Araraquara – SP –
Brasil. Docente do Departamento de Ciências Sociais e do Programa
de Pós-graduação em Ciências Sociais. Doutorado em Ciências Sociais
(UNICAMP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6165-772.
E-mail: [email protected]

Bruno Souza da Silva


Fundação Escola de Sociologia e Política (FESPSP), São Paulo – SP
– Brasil. Professor de Pós-Graduação. Pesquisador do Laboratório de
Política e Governo (UNESP/FCLAr) e do Núcleo de Estudos sobre Po-
lítica Local (NEPOL/UFJF). Mestrado em Ciências Sociais (UNESP/
FCLAr).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6165-7722.
E-mail: [email protected]

Bruno Theodoro Luciano


University of Birmingham (UB), Birmingham – Inglaterra. Doutorado
Ciência Política e Estudos Internacionais.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1276-6076.
E-mail: [email protected]

Cairo Gabriel Borges Junqueira


Universidade Federal de Sergipe (UFS), São Cristóvão – SE – Brasil.
Docente do Departamento de Relações Internacionais. Pós-doutorando
no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago
Dantas” (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3753-9769.
E-mail: [email protected]

225
Carla Giani Martelli
Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLAr), Araraquara – SP –
Brasil. Professora Livre-Docente do Departamento de Ciências Sociais
e do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais. Pós-doutorado
(SNS/Itália).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1839-2140.
E-mail: [email protected]

Carlos Henrique Gileno


Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLAr), Araraquara – SP –
Brasil. Docente do Departamento de Ciências Sociais. Professor per-
manente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Douto-
rado em Ciências Sociais (UNICAMP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8425-673X.
E-mail: [email protected]

Célia Regina de Souza Felipe Silva


Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLAr), Araraquara – SP –
Brasil. Mestranda no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3440-3153.

Claudete de Sousa Nogueira


Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLAr), Araraquara – SP –
Brasil. Professora Assistente do Departamento de Educação e do Pro-
grama de Pós- graduação em Educação escolar. Doutorado em Educa-
ção (UNICAMP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3919-942X.
E-mail: [email protected]

Dagoberto José Fonseca


Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLAr), Araraquara – SP –
Brasil. Professor Livre-Docente em Antropologia Brasileira do Depar-
tamento de Ciências Sociais e Docente dos Programa de Pós-Gradua-
ção em Ciências Sociais. Docente dos Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais em Serviço Social (UNESP/FCHS). Doutorado em
Ciências Sociais (PUC/SP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6279-6687.
E-mail: [email protected]

226
Debora Rezende de Almeida
Universidade de Brasília (UnB), Brasília – DF – Brasil. Professora As-
sociada do Instituto de Ciência Política. Doutorado em Ciência Política
(UFMG).
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4752-8892.
E-mail: [email protected]

Eder Aparecido de Carvalho


Instituto Federal Catarinense (IFC), Brusque – SC – Brasil. Docente
de Sociologia e Diretor Geral. Docente do Programa de Pós-Gradua-
ção em Mestrado Profissional em Educação Profissional e Tecnológica
(IFC). Doutorado em Ciências Sociais (UNESP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7472-2263.
E-mail: [email protected]

Edmundo Antonio Peggion


Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLAr), Araraquara – SP
– Brasil. Professor Associado. Professor colaborador do Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social (UFSCar). Doutorado em
Ciência Social (USP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9056-9417.
E-mail: [email protected]

Eva Aparecida da Silva


Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLAr), Araraquara – SP –
Brasil. Professora Assistente do Departamento de Educação e do Pro-
grama de Pós- graduação em Educação Escolar. Doutorado em Educa-
ção (UNICAMP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2821-4062.
E-mail: [email protected]

Fernanda Cordeiro de Oliveira


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos – SP – Bra-
sil. Doutoranda em Ciência Política.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3359-2263.
E-mail: [email protected]

227
João Carlos Soares Zuin
Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLAr), Araraquara – SP –
Brasil. Professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa
de Pós-graduação em Ciências Sociais. Doutorado em Ciências Sociais
(UNICAMP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2397-3422.
E-mail: [email protected]

Jordeanes do Nascimento Araújo


Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Humaitá – AM – Brasil.
Professor Adjunto II. Doutorado em Ciências Sociais (UNESP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6276-2727.
E-mail: [email protected]

Juliano Costa Gonçalves


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos – SP – Bra-
sil. Professor Associado do Departamento de Ciências Ambientais e
credenciado junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Am-
bientais (PPG-CAm). Doutorado em Ciências da Engenharia Ambien-
tal (USP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6836-7154.
E-mail: [email protected]

Maria Chaves Jardim


Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLAr), Araraquara – SP –
Brasil. Docente do Departamento de Ciências Sociais e do Programa
de Ciências Sociais. Livre-Docente em Sociologia (UNESP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5715-1430.
E-mail: [email protected]

Maria do Socorro Sousa Braga


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos – SP – Bra-
sil. Professora e Pesquisadora do curso de Ciências Sociais e da Pós-
-Graduação em Ciência Política. Pós-doutorado em Ciência Política
(USP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2141-9778.
E-mail: [email protected]

228
Maria Teresa Miceli Kerbauy
Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLAr), Araraquara – SP –
Brasil. Professora Assistente do Departamento de Ciências Sociais e do
Programa de Pós- graduação em Ciências Sociais. Doutora em Ciên-
cias Sociais (PUC/SP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0622-1512.
E-mail: [email protected]

Mário Nicácio
Faculdade UnB Planaltina (FUP), Planaltina – DF – Brasil. Mestre em
desenvolvimento Sustentável junto a povos e terras tradicionais.
E-mail:[email protected]

Norma Felicidade Lopes da Silva Valencio


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos – SP – Bra-
sil. Professora Sênior junto ao Departamento e ao Curso de Pós-Gra-
duação em Ciências Ambientais. Pós-Doutorado (INPA, 1998; USP,
2002; UNICAMP, 2012).
ORCID: http://0000-0003-1855-3458.
E-mail: [email protected]

Paulo José de Carvalho Moura


Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLAr), Araraquara – SP –
Brasil. Doutorando em Ciências Sociais.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3120-4105.
E-mail: [email protected]

Rafael Alves Orsi


Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLAr), Araraquara – SP –
Brasil. Professor Associado junto ao Departamento de Ciências So-
ciais, credenciado ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais.
Livre-docência em Geografia (UNESP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6898-7820.
E-mail: [email protected]

229
Regiane Nitsch Bressan
Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (EPPEN/UNIFESP),
Osasco – SP – Brasil. Professora do curso de Relações Internacionais.
Professora no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais
San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP). Doutorado em
Integração da América Latina (PROLAM/USP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7101-793X.
E-mail: [email protected]

Renata Medeiros Paoliello


Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLAr), Araraquara – SP
– Brasil. Professora Assistente do Departamento de Ciências Sociais
e colaboradora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais.
Pós-doutorado em Antropologia (FAU).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0640276X.
E-mail: [email protected]

Wagner de Melo Romão


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH/UNICAMP), Cam-
pinas – SP – Brasil. Docente do Departamento de Ciência Política.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (UNI-
CAMP). Pós-doutorado (CEM-CEBRAP).
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3725-2861.
E-mail: [email protected]

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