Jennifer Hillier - Nada Fica No Passado (Oficial)
Jennifer Hillier - Nada Fica No Passado (Oficial)
Jennifer Hillier - Nada Fica No Passado (Oficial)
PUBLISHED BY ARRANGEMENT WITH ST. MARTIN’S PUBLISHING GROUP. ALL RIGHTS RESERVED.
COPYRIGHT © FARO EDITORIAL, 2023
Todos os direitos reservados.
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autorização por escrito do editor.
Diretor editorial PEDRO ALMEIDA
Coordenação editorial CARLA SACRATO
Assistente editorial LETÍCIA CANEVER
Preparação DANIELA TOLEDO
Revisão BARBARA PARENTE e CRIS NEGRÃO
Capa e diagramação OSMANE GARCIA FILHO
Imagem de capa FEDOROV IVAN SERGEEVICH | SHUTTERSTOCK
Diagramação de e-book CALIL MELLO SERVIÇOS EDITORIAIS
Hillier, Jennifer
Nada fica no passado / Jennifer Hillier ; tradução de Maria José Silveira, Felipe Lindoso
— São Paulo : Faro Editorial, 2023.
288 p.
ISBN 978-65-5957-495-7
Título original: Jar of hearts
1. Ficção norte-americana I. Título II. Silveira, Maria José III. Lindoso, Felipe
NEGAÇÃO
RAIVA
BARGANHANDO
AJUDE-ME
NÃO TENHO UMA ALMA PARA VENDER
Geo não sabia por quanto tempo ficou apagada, mas seus ouvidos
despertaram antes dos olhos. A música havia parado. Escutou um
grunhido, seguido de uma respiração pesada e depois outro grunhido.
Quando finalmente abriu os olhos, encontrou tudo escuro e
demorou um pouco para entrar em foco. Todas as luzes do
apartamento de Calvin estavam apagadas, exceto a luz noturna na
cozinha, lançando um brilho fraco. Ainda deitada — sua cabeça
parecia pesar uma tonelada e atrás de seus olhos tudo latejava —, ela
se forçou a localizar o ponto de onde veio a respiração. Identificou
Calvin na namoradeira da parede lateral. Estava em cima de alguém.
Geo conseguiu distinguir um braço pendurado na borda, vislumbrou
um pedaço de vestido, e pernas nuas e arreganhadas. E seu namorado
entre elas, se mexendo ritmicamente.
Angela.
A calcinha de renda branca estava amassada no chão. O jeans de
Calvin empilhado ao lado, assim como sua cueca. Geo conseguiu ver
os montes de suas nádegas despidas flexionando enquanto ele enfiava,
grunhindo ao fazer isso, um ruído que ela jamais o havia escutado
fazer antes.
Seu namorado e sua melhor amiga estavam fazendo sexo.
Geo abriu a boca para dizer algo, mas nenhuma palavra saiu. Sua
garganta estava apertada, o estômago parecia estar batendo manteiga.
Tentou se sentar, mas seus músculos viraram gelatina, instáveis, moles
e sem substância, completamente inúteis.
Ela tentou falar novamente, mas as palavras ainda não saíam. Seus
olhos estavam se ajustando à obscuridade, e foi então que ela percebeu
o rosto de Angela.
Os olhos de sua melhor amiga estavam abertos, mas vidrados, seus
lábios, entreabertos. As duas garotas se olharam, e a boca de Angela
formou uma palavra que Geo não conseguiu ouvir.
Mas não havia nenhum equívoco sobre qual era a palavra, e Geo
nem sabia ler lábios.
Não.
Calvin grunhiu e deu uma estocada final, seu corpo tremendo
enquanto ele gozava. Saiu de cima, e Geo pôde ver seu pênis, ainda
ereto, brilhando na luz fraca. Ele não havia usado uma camisinha.
Levantou-se, procurando a cueca e o jeans. Angela permaneceu no
sofá, na mesma posição: as pernas ainda arreganhadas, o vestido
levantado até a cintura, a vagina exposta. Seus olhos estavam opacos,
seu rosto, acinzentado, e quando ela moveu a cabeça, uma lágrima
escorreu pelo rosto, desaparecendo em seu ouvido. Ela gemeu um
pouco, finalmente fechando as pernas.
A névoa era pesada na cabeça de Geo. Parecia impossível processar
o que havia acontecido.
O que eles tinham feito? Será que Angela queria isso? Ela ao menos
sabia?
A garganta de Geo finalmente se abriu, e as palavras saíram.
— O que você fez? — perguntou a Calvin, a voz rouca.
O namorado se virou e viu Geo o olhando. Fez uma careta.
— Ela queria isso — ele disse. — Veio para cima de mim. Não
queria parar. Não foi culpa minha. Então, se você vai ficar com raiva de
alguém, fique com raiva dela. — Ele se abaixou e pegou a bola de
calcinha do chão, jogando no colo de Angela. — Se cubra.
Não havia dúvidas quanto ao nojo na voz dele.
Sentada na namoradeira, com a parte de baixo ainda despida e
exposta, Angela começou a choramingar. Era o som mais horrível que
Geo já ouvira. Sua melhor amiga soava como um bebê, os soluços
curtos, e rasos, e fracos.
— O que você fez? — O olhar de Geo se focou mais uma vez em
Calvin. — Isso… isso não é legal.
Ela tentou se levantar. Seu cérebro estava pulsando, como se
alguém estivesse com um taco de beisebol batendo dentro de sua
cabeça, de novo e de novo.
— Ele não parava — Angela disse finalmente, olhando para Geo, os
olhos arregalados e a voz coberta de choque. — Eu disse que não, pedi
que ele parasse, e ele não parou…
— Cala a boca, vagabunda — Calvin disse a ela. — Ela queria isso
— repetiu para Geo. Na namoradeira, os soluços da amiga ficavam
cada vez mais altos, mais profundos. — Essa sua amiga é uma puta.
Isso não deveria ter acontecido, mas ela foi me excitando tanto que
não houve como…
— Você me estuprou! — O grito de Angela foi como um
relâmpago, cortando o ar com força e sem aviso. — Você me estuprou,
seu filho da puta doentio.
Geo massageou o ponto de sua testa onde sua dor de cabeça estava
piorando. Calvin estava encarando Angela, os lábios franzidos para
cima, os olhos estreitos, as mãos fechadas. Geo reconheceu aquele
olhar. Já o tinha visto antes e sabia exatamente o que significava.
Angela tinha que parar de gritar. Gritar piorava tudo. Ela precisava
avisar a amiga, mas seu cérebro estava em câmara lenta, e as palavras
não se juntavam.
— Cala a boca — Calvin berrou para Angela. — Você é a porra de
uma puta e pediu isso…
— Não pedi nada disso! Você me estuprou, seu animal. — Os
gritos de Angela eram ferozes. Ela puxou o vestido para baixo,
cobrindo as coxas, tentando se sentar no sofá. Seu cabelo estava
pegajoso, caindo sobre seu rosto num emaranhado confuso. Sua
maquiagem estava borrada, o delineador e a máscara se misturando
em círculos sob os olhos. — Você é um merda doente! Você me
estuprou, me machucou, você é um filho da puta nojento e vou
chamar a polícia e você vai apodrecer na cadeia, seu merda doentio…
Ela nem teve chance de terminar a frase, porque Calvin esmurrou
seu rosto. Caiu para trás na namoradeira, tonta, mas pareceu se
recuperar alguns segundos depois. Saltou com uma força
surpreendente e correu para a porta. Mas antes que conseguisse
chegar lá, Calvin já estava em cima dela. Só que dessa vez suas mãos
estavam ao redor do pescoço dela, por trás, apertando. Ela conseguiu
se soltar, mas ele a agarrou novamente, puxando-a pelos cabelos,
estalando sua cabeça para trás. Ele arrancou o cinto do jeans, passou
em volta do pescoço dela e puxou, um joelho em cima das costas de
Angela, dominando-a. As unhas da amiga arranhavam em fúria os
braços de Calvin, sua barriga pressionada no carpete, suas pernas
chutando e batendo no ar como se ela estivesse nadando.
Tudo estava acontecendo rápido demais, não parecia real.
— Calvin, para — Geo gritou, levantando-se da cama. Ela
conseguiu colocar os dois pés no chão, mas tropeçou quando deu um
passo adiante. — Calvin, por favor. Para.
Ele nem a escutou ou não se importou, mas de qualquer maneira,
não parou. Os olhos de Angela saltavam para a frente, suas pernas
ainda sacudiam, mas estava perdendo a força.
Geo deu mais um passo adiante, mas a sala rodou impiedosamente
e ela caiu. Do chão, ela viu quando sua amiga parou de lutar. Ainda
assim, Calvin puxou mais um pouco o cinto, até que a soltou, seus
braços caindo para os lados, o cinto ainda enrolado em seu punho.
Angela não se moveu mais. Sua cabeça estava torcida de um jeito
antinatural para um lado, o rosto descansando sobre o carpete, os
lábios entreabertos. Um fio de baba escorria até seu queixo. Seus olhos
estavam arregalados e completamente brancos. Ela parecia uma
boneca de trapos de tamanho real que alguém tivesse jogado no chão,
abandonada.
Geo girou a cabeça para um lado e vomitou.
— Me ajuda aqui com ela — Calvin disse, passando por cima de
Angela. Arrancou a colcha da cama e a estendeu no chão. — Venha
logo, me ajuda.
— O que você está fazendo? — O estômago de Geo estava se
revirando. Ao seu lado, o monte de vômito enchia o apartamento com
um fedor horroroso. Calvin não parecia notar. Aquele cheiro a fez ter
vontade de vomitar novamente, e ela se obrigou a se levantar. — Você
a machucou. Temos que chamar a polícia. Temos que chamar uma
ambulância.
— Ela está morta.
— Ela não está morta — Geo gritou.
A ideia era absolutamente absurda. É claro que sua melhor amiga
não estava morta. Isso não era possível. Angela Wong era líder de
torcida, boa estudante, universalmente admirada por todo mundo no
St. Martin. Ela estava viva e sentada no colo de Mike Bennett algumas
horas atrás, dançando com Geo, rindo, sendo a Angela, estando viva.
Não havia a maldita possibilidade de que ela estivesse morta.
Não. Não.
Mas ali estava Angela, esparramada no chão, sem se mover.
Sim. Meu Deus. Sim. Angela estava morta. Porque Calvin a havia
matado. Depois de estuprá-la.
Geo vomitou novamente, esvaziando tudo o que restava em seu
estômago.
Ela precisava sair dali. Tinha que conseguir ajuda. Tinha que contar
a alguém.
— Você também está metida nisso — Calvin disse, como se tivesse
lido sua mente. Ele levantou Angela, grunhindo, movendo o corpo
inerte até um lado do cobertor, e começou a enrolá-la. Sem nenhum
sentido, Geo se lembrou de uma aula de Economia Doméstica que ela
e Angela tiveram na sétima série, quando aprenderam a fazer rolinhos
primavera.
— Temos que chamar a polícia — Geo disse, e pela primeira vez
naquela noite, sua voz soava coerente. — Cadê o seu telefone?
— Se você chamar a polícia, nós dois vamos para a cadeia. — O
suor escorria pelo cabelo de Calvin enquanto ele grunhia com o
esforço. — Você também fez isso. Você a trouxe aqui.
— Não é culpa minha!
— É tudo culpa sua — ele disse, apontando para ela. Ela se
encolheu, por puro reflexo. — Você a trouxe para cá, as duas vestindo
praticamente nada, e ela ficou dançando em cima de mim, se
esfregando em mim, como a porra da puta que ela é…
— Cala a boca! Isso não é culpa dela!
— Me ajuda aqui — Calvin repetiu. — Vamos tirá-la daqui e depois
a gente pensa no que fazer.
— Não posso — Geo disse, começando a chorar. — Eu a amava.
— E eu amo você — Calvin disse, e ela piscou. Era a primeira vez
que ele dizia isso. — E se você me ama, se alguma vez me amou, vai
me ajudar a tirar ela daqui. Se não fizer isso, nós dois vamos para a
cadeia. Não deixe que ela destrua toda a sua vida. A gente pode sumir
com isso. Porra, me ajuda. Agora.
Quando ela não se moveu, ele abaixou a voz, e as palavras seguintes
foram suaves, gentis, e totalmente ameaçadoras.
— Georgina, por favor. Não me faça machucar você também.
Angela Wong, rainha do St. Martin e melhor amiga de Geo, agora
era apenas um pacote enrolado no meio do chão.
Calvin calçou os sapatos. Vestiu um suéter por cima da camisa.
Depois se abaixou e pegou o cadáver com esforço, jogando-o sobre o
ombro.
— Abre a porta para mim — disse.
UMA HORA DEPOIS QUE ELE SAI, seu cheiro ainda está nos lençóis,
e Geo se afunda neles. As primeiras pontadas de dúvida começam a
incomodar. Ela é uma ex-presidiária; Kaiser é policial. Como isso
poderia ser mais do que foi? Um sexo sem compromisso. Ele deve
enxergá-la como outra coisa além da garota que ele nunca conseguiu
ter na escola. Agora que ele já conseguiu o que queria, provavelmente
ela não ouvirá mais falar dele. Tiras têm complexo de herói, não é?
Precisam de alguém para salvar. Ou, no caso de Geo, para redimir.
Só que… ela não se sente assim. Estar com Kaiser a fez se sentir
exatamente onde deveria estar. E ela não se sente assim desde a morte
de Angela.
Rolando na cama, ela alcança a gaveta do fundo da mesa de
cabeceira e tira de lá o pote. Coloca-o sobre a mesa, olhando enquanto
as manchas de sol o tocam em diferentes ângulos. Lembrando.
Na noite do assassinato, ela só voltou para casa às quatro da manhã.
Seu pai estava fazendo plantão noturno, e não havia ninguém em casa.
Todas as casas da vizinhança estavam escuras e não havia iluminação
na rua. Ela foi incapaz de olhar para Calvin, ambos cobertos de terra e
sangue, as mãos dele avermelhadas depois de usar tanto a pá. A luz
interna do seu Trans Am piscou quando ele abriu a porta do carro, um
bip suave e repetitivo saindo do painel, já que as chaves estavam na
ignição.
— Georgina… — ele disse, mas ela se afastou antes de ele
terminar.
Ela entrou na casa e se arrastou escada acima, cada músculo de seu
corpo sentindo como se houvesse sido atropelada por um caminhão.
Seu estômago ainda estava enjoado com o álcool, e agora que a
adrenalina induzida pelo pânico estava sumindo, ela não conseguia
parar de tremer. Estava com muito frio. Seu vestidinho, que parecia
ter sido a escolha certa para a festa de Chad, lhe parecia agora
completamente bobo. Estava sujo de terra, grama, pedacinhos de
casca de árvores, folhas… e sangue. Muito sangue. Ela se despiu no
banheiro, deixando o vestido cair no tapete do chuveiro. Com a
torneira aberta no máximo de água quente, entrou no jato d’água
quase escaldante, como se a água de algum modo pudesse lavar a coisa
horrível que ela e Calvin haviam feito.
Porque sim, era tão culpada quanto Calvin. Ele estava certo. Ela
havia levado Angela até ele.
A sujeira e o sangue seco escorriam de suas mãos para a superfície
da banheira em ondas marrom-escuras enquanto ela se lavava. Como a
terra que haviam jogado sobre o corpo de Angela. Sobre o rosto de
Angela.
Como ela podia ter deixado que isso acontecesse? Ela sabia que
Calvin era violento. Havia sido violento com ela, e Geo o tinha visto
ameaçar outros caras no bar. Havia visto o jeito com que ele olhava
para Angela a noite inteira, ao mesmo tempo enojado e excitado pelo
seu comportamento lascivo.
Seu namorado havia estuprado sua melhor amiga. Talvez Angela
tivesse ido longe demais com a dança e o flerte, talvez até o tenha
beijado — Geo não sabia, estava desmaiada de bêbada, não havia como
saber como tudo começou. Mas com certeza sabia como terminou.
Em algum momento, Angela quis que ele parasse. Ela disse não. Geo a
viu formar a palavra do outro lado do quarto. Não havia como Calvin
não ter escutado. E Geo não tinha feito nada para ajudá-la.
Ela ficou sob o chuveiro até a água começar a esfriar. De volta ao
quarto, vestiu moletom e se enterrou sob as cobertas.
De alguma maneira caiu no sono, despertando na manhã seguinte
com o telefone tocando. Abriu um olho ainda fora de foco para onde
ficava o telefone sem fio, na mesa de cabeceira, e viu o número da casa
de Angela no aviso de chamada. Automaticamente estendeu a mão
para o telefone, e sua mão parou no ar. Porque não podia ser uma
chamada de Angela.
Angela está morta.
Ela se sentou, observando o telefone tocar e continuar tocando. O
aviso de chamada piscava. Lá fora, seu pai já estava em casa, cortando
a grama, e dentro de uma hora entraria em casa para tomar um banho
e tentar dormir algumas horas. Era o que fazia depois da noite de
sexta-feira trabalhando.
O mundo inteiro continuava em seu habitual, exceto por uma
coisa.
Angela está morta.
Ela pegou o fone devagar.
— Alô?
— Georgina? É Candace Wong. — A voz da mãe de Angela estava
ríspida. — Desculpa se acordei você, querida. Posso falar com a
Angie?
— Ela… — Geo engoliu. — Ela não está aqui, Sra. Wong.
— Ah… — A mulher fez uma pausa. — Achei que ela ainda
estivesse aí com você, já que dormiu aí na noite passada.
Geo respirou fundo. Ela tinha que contar. Tinha que contar para a
Sra. Wong o que havia acontecido, e que Angela estava morta. Como
não poderia fazer isso?
A Sra. Wong interpretou de forma errada sua hesitação.
— Pode me contar, querida. Ela deveria ter nos ligado ontem à
noite, assim que chegasse aí. Victor jogou pôquer até as duas da
manhã. É de supor que ele teria notado que a filha não chegou em
casa. — Ela parecia aborrecida, mas não com Angela.
Candace Wong jamais se chatearia novamente com a filha.
O coração de Geo estava martelando, assim como sua cabeça.
Parecia que seu estômago havia engolido alguma coisa terrivelmente
ácida. Estava agitado, provocando ondas de queimação por todo seu
abdome.
— Eu… na verdade, ela não veio para cá ontem. A última vez que a
vi foi na casa do Chad.
Ela fechou os olhos. Havia acabado de dizer a primeira — e mais
significativa — das mentiras que contaria.
— Chad Fenton? — a Sra. Wong disse. — Sim, tudo bem, ela disse
alguma coisa sobre uma festa ontem à noite. Vocês duas não saíram
juntas? Não estavam com o Kaiser?
Conte para ela. Conte agora. Nós saímos juntas, mas nenhuma das
duas foi para casa…
— Não, ela… a gente… — Geo respirou fundo, os pensamentos
girando. — Eu saí mais cedo, não estava me sentindo bem. Vim
andando até a minha casa. Angela e Kai ainda estavam na festa quando
eu saí. — As palavras caíam de sua boca, e ela não conseguia pará-las.
— Então o carro dela ainda deve estar na casa do Chad. — A Sra.
Wong parecia chateada. — Para ser sincera, Georgina, não fiquei
muito feliz quando o pai comprou o carro para ela. Ela já está mimada
demais. Vocês duas beberam ontem à noite?
A gente estava bebendo. Eu comi a fruta. Eu fiquei bêbada. Eu desmaiei.
— Um pouco.
Um suspiro do outro lado da linha.
— Bem, não sou eu que tenho que dar lições para você sobre
bebidas para menores, isso é tarefa do seu pai. Pelo menos vocês,
garotas, tiveram o bom senso de não se meter atrás do volante de um
carro, mas Angela vai ficar de castigo quando chegar em casa. Ela está
encrencada.
Sim, está, Sra. Wong. Da pior maneira. Ela nunca vai voltar para casa.
Nunca.
— Jogo tênis com a mãe do Chad — a Sra. Wong disse, a voz
conspiradora baixando de tom. — A Rosemarie não é muito confiável
e sei que o marido dela é alcoólatra. E eles não trancam a porcaria do
armário de bebidas deles, e sei que o filho mais velho, o que largou a
faculdade, também bebe. Vou ligar para ela. — Outro suspiro, dessa
vez impaciente. — Enquanto isso, Georgina, você pode fazer algumas
ligações? Você sabe melhor que eu aonde ela pode ter ido. Se você
falar com ela, diga para ela mexer aquele rabo de volta para casa. Vou
ligar para a casa do Kaiser, mas se ela passou a noite na casa de um
rapaz, vai ser um problemão.
Ela está no bosque, Sra. Wong, enterrada lá…
Geo apertou os olhos. Tinha que contar a verdade. Era o mínimo
que podia fazer, e essa era a oportunidade de confessar tudo, antes de
contar mais mentiras, antes que descubram essa coisa horrível que
aconteceu.
Era agora ou nunca.
Conte logo para ela, porra!
Mas as palavras não saíam. Em vez disso, Geo se escutou dizendo:
— Posso fazer umas chamadas. Se eu falar com ela, vou dizer para
ela ligar para casa.
Seja lá quem tenha dito que era difícil mentir estava muito, mas
muito errado. Mentir era fácil. Mentir era como uma faca quente
cortando manteiga à temperatura ambiente. Mentir era um bando de
palavras amontoadas em uma frase bonitinha destinada a fazer a outra
pessoa se sentir bem.
Dizer a verdade, entretanto, era impossível.
As duas se despediram e desligaram. A agenda de couro de Geo,
com o número de todos os seus amigos, estava na mesa de cabeceira.
Ela teria que ligar para todos, perguntar se viram ou ouviram alguma
coisa da Angela, perguntar se saberiam onde ela poderia estar.
Porque é assim que os mentirosos fazem. Eles mentem. E mentem
sempre um pouco mais para proteger essas mentiras.
Ela se levantou da cama, olhando para baixo, quando sentiu alguma
coisa pequena como uma pedrinha embaixo do pé. Era um coração de
canela que havia escapado do pote quase vazio da sua mesa de
cabeceira. O presente de Calvin. Olhando para baixo, o doce parecia
uma manchinha de sangue no carpete creme.
Seu estômago deu voltas. Ela não iria alcançar o banheiro. Pegou
sua pequena lata de lixo e vomitou ali dentro, arfando dolorosamente,
já que não havia sobrado muita coisa em seu estômago depois de ter
vomitado na noite anterior. Agarrando a lata, foi caminhando pelo
corredor até o banheiro. Ficou horrorizada ao descobrir seu vestido
todo amassado no chão onde ela o havia deixado. Agarrou aquilo. Pela
janela do banheiro escutou o cortador de grama ainda funcionando.
Seu pai agora estava no quintal dos fundos. E ficaria ali por mais uns
vinte minutos.
Ela enfiou o vestido e o tapete na lata de lixo, por cima do vômito, e
desceu até a cozinha, indo direto para a porta que dava para a garagem.
Sentiu o chão de cimento frio e empoeirado debaixo dos pés enquanto
enfiava a lata de lixo dentro do latão azul grande, empilhando outros
sacos por cima. Depois voltou para o quarto para ligar para seus
amigos, exatamente como havia prometido a Candace Wong.
Não foi como se ela tivesse tomado uma decisão monstruosa de
mentir. Foi uma série de pequenas decisões e uma série de
mentirinhas, mas que, juntas, estavam virando uma montanha.
A polícia tocou a campainha um pouco depois do jantar. Os joelhos
de Geo amoleceram quando viu dois policiais uniformizados. Levou-
os até a sala de estar, onde seu pai estava terminando a pizza que
haviam encomendado. Walter sabia que a mãe de Angela havia ligado
mais cedo e estava preocupado, mas também sabia que a melhor amiga
de sua filha tinha uma reputação de ser um tanto leviana. Sua teoria
era que Angela havia conhecido algum rapaz e não tinha contado aos
pais sobre isso, e Geo não disse nada para contradizer.
Ela manteve a calma enquanto falava com os policiais. Mas, por
dentro, gritava. Se os tiras suspeitassem de qualquer coisa, ela diria a
verdade. Diria.
— Fiquei bêbada na noite passada — ela disse a eles. Nem precisou
olhar para o pai para saber que o rosto dele era uma máscara de
choque e desaprovação. — Não foi a minha intenção, mas eu não tinha
comido nada desde o almoço e havia umas frutas no fundo do barril de
ponche…
— Você jamais deveria comer as frutas — um dos policiais disse, o
mais jovem dos dois. Ele abriu um sorriso arrependido, e o nome no
crachá de identificação era VAUGHN. — Aprendi do modo mais difícil.
O outro policial, um pouco mais velho, olhou duro para ele. O
nome no crachá era TORRANCE. Se alguma vez houve uma situação de
tira bom/tira mau, era essa, e os dois desempenhavam perfeitamente
os papéis. Torrance era o durão, Vaughn era o simpático que fazia você
falar.
— Continue — o policial Torrance disse.
— Eu não estava me sentindo bem. Queria voltar para casa, então
fui procurar a Ang. A gente tinha ido juntas para a casa do Chad,
depois do jogo. Ela estava com o Mike Bennett, e eles estavam… bem
perto um do outro. Ela também havia bebido um pouco. E parecia
estar confortável lá, então me despedi e fui embora.
— Você só tem dezesseis anos — Torrance disse, o rosto como se
fosse de pedra. — Vocês, garotas, sempre bebem?
— De jeito nenhum — Geo respondeu, sentindo-se um pouco na
defensiva, apesar de não ter nenhum direito de se sentir assim. Os
lábios de seu pai estavam pressionados em uma linha fina; ele não
estava impressionado. — Eu nem gosto de álcool, e a Ang só bebe se
todo mundo estiver bebendo. Ela não é do tipo de garota que precisa
beber para se divertir.
— Continue — Torrance disse.
— É isso. Cruzei com o meu amigo Kaiser na saída, e a gente
conversou por alguns minutos. Depois voltei para casa sozinha,
cheguei em casa antes da meia-noite. Estava me sentindo muito mal.
Passei mal antes de me deitar.
Ela não conseguia evitar pensar sobre o vestido, encoberto com as
provas da noite passada, enfiado na lixeira dentro da lata de lixo da
garagem. Talvez os tiras desconfiassem de algo errado com sua história
e exigissem ver o que ela havia usado na noite anterior. Talvez
encontrassem o vestido na garagem.
Se fizessem isso, ela contaria toda a verdade.
Mas não perguntaram. Não suspeitaram de nada. Em vez disso,
fizeram perguntas ao pai, que confirmou — com um tom de culpa —
que havia trabalhado a noite toda no hospital e não estava ciente de
que a filha tinha chegado bêbada em casa.
— E você disse que a última vez que viu a Angela, ela estava com
Mike Bennett na casa de Chad Fenton? — o policial mais novo
perguntou.
— Sim. — Ela se perguntou se eles repetiram a pergunta na
tentativa de descobrir alguma mentira. Ela havia saído sozinha da casa
de Chad. Kaiser, se interrogado, poderia confirmar isso, junto com
mais uma dúzia de pessoas, mas com certeza alguém havia visto
Angela sair alguns minutos depois e alcançar Geo na rua.
Se alguém dissesse isso, e perguntassem a ela, Geo contaria toda a
verdade.
No entanto, mais uma vez, não perguntaram nada. Em vez disso, o
policial mais velho disse:
— Angela tem um namorado que seus pais não conhecem? Alguma
vez ela mencionou a possibilidade de fugir?
Era isso que eles pensavam? Era essa a direção em que estavam
indo? Geo deu uma olhada para o pai, que parecia meio satisfeito pelo
fato de os policiais terem aceitado sua teoria.
— Se ela tem outro namorado além do Mike, nunca me contou
nada — ela disse, e essa foi a primeira coisa totalmente verdadeira que
ela afirmou naquele dia. — Quanto a fugir de casa, não sei com
quantos amigos dela vocês falaram, mas a Ang sempre teve tudo o que
queria. Acho que fugir é coisa para quem não gosta da própria vida. E a
Ang amava a dela.
— Bem, acho que isso é tudo — Torrance disse, levantando-se. O
policial Vaughn o seguiu. — Se lembrar de mais alguma coisa, me
telefone.
Ele deixou seu cartão sobre a mesinha de café, apertou a mão de
seu pai, e os dois saíram.
Geo trancou a porta, sabendo que iria ganhar um sermão sobre
bebidas. O que era ótimo, e ela não planejava retrucar. De qualquer
modo, ela não tinha vontade de estar em qualquer outro lugar que não
fosse sua casa.
— E aí? Qual é o meu castigo? — ela perguntou ao pai antes que
ele dissesse alguma coisa.
— Então é isso que eu deveria fazer? — Walter disse com ar
cansado, caindo no sofá. — Já castiguei você antes?
— Não.
Ele esfregou o rosto com a mão.
— Você não deveria beber. E, mais do que isso, não deveria vir
andando sozinha de noite para casa. Há muitos vagabundos por aí.
Eu sei. Sou um deles.
— A vizinhança é segura, papai.
— Não é esse o ponto — ele disse. — Desde que a sua mãe
morreu, somos apenas nós dois. E eu trabalho muito, o que significa
que você fica muito tempo sozinha.
— Está tudo bem.
— Não está tudo bem, droga — ele disse. — Você tem dezesseis
anos. Era para você ainda precisar de mim para coisas, contar comigo,
me chamar quando você precisar de uma carona. E não é bom que
você tenha saído bêbada da festa e pensado que não havia outro modo
de voltar para casa que não fosse andar dez quarteirões já quase meia-
noite. Sim, nós moramos em uma vizinhança segura, mas ainda assim
há um monte de doidos por aí. Você deveria ter me ligado. Mais
importante ainda, você deveria ter certeza de que pode fazer isso.
— Mas você estava trabalhando. — Geo podia ver que ele estava
preocupado. Meu Deus, se ele soubesse.
— O trabalho mais importante que tenho é aqui em casa — Walter
disse, levantando-se. — Já trabalhei bastante tempo no hospital para
não ser mais obrigado a fazer esses plantões noturnos. Concordei com
esses turnos porque o pagamento é melhor. Mas isso me rouba tempo
de estar com você. Quer dizer, eu janto sozinho no refeitório e você
janta sozinha em casa, e isso é ridículo. Você é a pessoa mais
importante da minha vida e eu deveria me comportar de acordo com
isso. Esse é um aviso para nós dois, entende?
Seu pai interpretou mal seu olhar e sorriu para ela.
— Não se preocupa. Não planejo sufocar você. Nós dois
precisamos do nosso espaço. Mas devo estar pronto para buscar você
em algum lugar até conseguirmos dar um carro para você. Devo estar
mais noites em casa para o jantar. — O corpo dele se encolheu. — E
se fosse você que estivesse desaparecida? E se uma noite você não
voltasse para casa? Você é tudo o que tenho, Georgina. Sei que os pais
da Angela não passam muito tempo com ela. E olhe só agora.
Ninguém sabe onde ela está. Não consigo nem imaginar.
— Tenho certeza de que ela vai voltar. — A mentira ficou presa na
garganta de Geo. Ela quase sufocou.
Os policiais interrogaram todo mundo que estava na festa, mas
Mike Bennett foi quem passou o pior. O quarterback do St. Martin foi
levado para a delegacia e detido por vinte e quatro horas. Seus pais
tiveram que contratar um advogado. Todo mundo que esteve na festa
— pelo menos uns cem garotos no decorrer da noite — corroboraram
a declaração de Geo de que Angela havia passado a maior parte do
tempo com Mike. Ele admitiu que Angela o havia deixado na casa de
Chad em algum momento da noite, e que ele pegou uma carona para
casa com seu colega Troy Sherman, um dos zagueiros dos Bulldogs do
St. Martin. Troy dormiu na casa de Mike depois que eles beberam
mais algumas cervejas, ambos caindo no sono após ver a gravação do
último jogo de futebol deles. Ele negou com veemência que tivessem
um relacionamento homossexual, recusando-se a admitir mesmo
quando os tiras sugeriram que ele poderia evitar a prisão se fosse
honesto. Os pais de Mike ameaçaram um processo se os tiras não
abandonassem essa linha de interrogatório, já que o filho deles tinha a
possibilidade de ser selecionado para vários times universitários. Sem
outra prova, os tiras o soltaram.
Mike Bennett estava tão enfiado no armário que estava quase
chegando a Nárnia. Na segunda-feira de manhã, os garotos o
escutaram comentar no vestuário que não ficaria surpreso se Angela
tivesse fugido para se tornar atriz pornô.
— Nunca conheci uma garota que gostasse tanto de sexo quanto
ela. Essa coisa da torcida? Tudo fingimento — disse. — Ela estava
metida em alguma coisa fora do eixo.
É claro que ele se recusou a explicar sobre que tipo de coisa era
essa, mas de todos os boatos que brotaram nas semanas seguintes,
esse foi o que mais chateou Geo. Angela com certeza havia feito
algumas coisas com Mike, mas não tanto assim, porque, alô, Mike era
gay. Ele estava mentindo para proteger o próprio rabo. Em mais de
uma ocasião, Geo ficou tentada a confrontá-lo.
Mas ela não conseguia. Não havia perdido o sentido da hipocrisia
de dizer que Mike Bennet era um mentiroso.
O desaparecimento de Angela Wong foi, ao mesmo tempo, notícia
quente e enorme fábrica de boatos. Pessoas que não sabiam de nada
sobre o que havia acontecido de repente tinham certeza de tê-la visto
em lugares onde ela nunca esteve, com pessoas que ela nem conhecia.
As conversas continuaram, em todas as salas de aula, todo o tempo,
por todo o St. Martin, com garotos e garotas que ela conhecia ou não.
E quanto mais os garotos falavam, mais as histórias cresciam, tão
ridículas que Geo teria caído na risada se não soubesse a verdade.
— Ouvi dizer que ela foi vista pela última vez perto da 7-Eleven —
Tess DeMarco contou a Geo durante a aula de Cálculo. — E que
embarcou em um ônibus para San Francisco e está morando com um
cara mais velho. Aposto que vai voltar em uma semana. Ela só quer
assustar os pais e provocar um drama.
— Ah, então agora você está falando comigo de novo? — Geo
retrucou, lembrando a felicidade da garota em vê-la expulsa do grupo.
Será que foi há apenas uma semana?
— O quê? Sempre fomos amigas. — Tess piscou, fingindo
ignorância. Para uma garota que queria ser a melhor amiga de Angela,
ela não perdeu tempo para se aproximar de Mike Bennett no
refeitório, durante o almoço. E ele estava muito satisfeito por ter outra
garota dependurada em seu braço para desempenhar o papel que era
de Angela.
Lauren Benedict, que também estava na equipe de torcida, entrou
na conversa.
— Sério, pessoal, e se aconteceu alguma coisa ruim com ela? E se
ela descobriu que o Mike era gay e ele a matou? Ela poderia estar
enterrada por aí.
— Mike Bennett não é gay — Tess disse, corando. — Não fale
merda sobre o que você não sabe, Lauren.
Geo sacudiu a cabeça e se enterrou no livro de Cálculo. Ela só
queria voltar para casa. Foi preciso usar todo grama de energia que
tinha para ir à escola naquela manhã.
— Calem a boca, vocês duas. De verdade.
Apenas três dias haviam se passado, mas o peso das mentiras estava
cobrando seu preço. Geo não conseguia dormir, não conseguia comer.
A mãe de Angela havia ligado meia dúzia de vezes, querendo saber se
Geo ouviu alguma coisa nova de seus amigos da escola. Os
telefonemas eram uma tortura, e ela se sentia pior após cada um deles.
Depois da última ligação, ela correu para o banheiro e vomitou a torta
de frango que seu pai havia preparado para o jantar. Walter atribuía
tudo à ansiedade sobre o desaparecimento da sua melhor amiga. E é
claro que era isso, mas não da maneira que todos pensavam.
Geo continuava esperando que os tiras invadissem sua casa e a
prendessem. Não conseguia imaginar como passaria mais um dia na
escola fingindo estar tão confusa e preocupada como todos os outros.
A exaustão a venceu na quarta noite, e ela finalmente dormiu, só para
despertar com um pesadelo, os cabelos pregados no rosto suado.
— Você — o tira mais velho havia gritado no sonho. Ela estava na
lanchonete e todos estavam olhando para ela quando os dois policiais
entraram, apontando os revólveres e balançando os distintivos. —
Você é a razão de ela estar coberta de terra, apodrecendo. Você. Você.
Ela chorou no travesseiro, um soluço forte que a fez tremer da
cabeça aos pés. Ela tinha que dizer alguma coisa. Não poderia viver
assim, e com certeza não era justo com a família de Angela. No
mínimo, Geo sabia que tinha que contar para o pai. Ele saberia o que
fazer, mas o pensamento fazia seu estômago dar um nó. Odiava
desapontar o pai, e, no entanto, sabia que desapontamento seria a
menor das coisas que ele sentiria quando soubesse o que ela tinha
ajudado a fazer.
O relógio marcou uma hora da madrugada. Walt dormia havia
muito tempo, a porta de seu quarto estava fechada, o volume de sua
máquina de ruído branco estava no máximo. Logo de manhã cedo, ela
confessaria tudo ao pai e os dois iriam juntos até a delegacia. Sim, isso
arruinaria sua vida, mas pelo menos Geo tinha uma vida para arruinar.
Angela, não. Sua melhor amiga nunca teve uma chance.
Amanhã. Ela confessaria tudo amanhã.
Tomada a decisão, Geo conseguiu voltar a dormir, mas uma hora
depois foi despertada novamente por uma batida na janela do quarto.
O ruído a assustou, e ela se virou na cama. Mas ao ver o rosto de
Calvin através do vidro da janela, sua barriga ficou gelada. Os dois não
haviam se falado desde que tudo acontecera, e ela começava a
acreditar que na próxima vez que se encontrassem face a face, um, ou
os dois, estaria algemado.
Ela saiu da cama. Estava vestida com uma calça velha de moletom e
uma camiseta com um buraco embaixo do braço. Seu rosto estava
brilhando, o cabelo preso em um nó bagunçado no topo da cabeça.
Estava com três espinhas no queixo por causa do estresse. Calvin
jamais a havia visto sem que ela não estivesse ao menos arrumada, mas
agora ela pouco se importava. Eles já haviam visto um ao outro
fazendo a pior coisa que jamais tinham feito; cabelo oleoso e algumas
espinhas não teriam nenhum impacto nisso.
Ela abriu a janela, e ele pulou para dentro, arrastando uma mochila
que parecia cheia até o topo.
— Cadê o seu carro? — ela perguntou, preocupada que o Trans Am
vermelho-vivo estivesse estacionado onde pudesse ser visto por todos
os vizinhos.
— Vendi.
Ela nem perguntou por quê. Não se importava. Ele se sentou à
beira da cama, deixou a mochila no chão e pegou o pote de corações
de canela na mesa de cabeceira. Só restava um punhado, e ele sacudiu
o que restava, começando a jogá-los na boca.
O pote finalmente ficou vazio.
— Como você está? — Passou os olhos por ela, levantando as
sobrancelhas diante do moletom velho, o cabelo bagunçado. — Parece
que você está uma merda.
— E me sinto ainda pior que isso.
— Não se sinta assim — ele disse. — Agora, você já não pode fazer
mais nada.
— Vou contar para o meu pai amanhã — Geo disse. — De qualquer
maneira, é só uma questão de tempo até que os tiras descubram tudo.
— Não, eles não vão descobrir. — Calvin pegou sua mão e a
apertou. Ela tentou puxá-la, mas ele não a soltou. — Se eles
soubessem de qualquer coisa, se suspeitassem, já teriam prendido a
gente. Ninguém vai descobrir, se a gente não falar nada.
— Estou me sentindo péssima por dentro — ela disse, encarando-
o. — Você não? Como você consegue dormir? Como consegue
comer? Eu mal funciono.
Ele soltou sua mão, passou os dedos em seu cabelo.
— Então, não pense sobre isso.
— Como não pensar? — A voz de Geo estava baixinha. — Você a
matou.
— Você também a matou — ele disse.
A cabeça dela se levantou de repente.
— Não, não matei. Como é que você pode dizer isso?
— Pela lei, é a mesma coisa. Você me ajudou a levar o corpo dela.
Você me ajudou a esconder tudo. E mentiu para os tiras. — O tom de
Calvin era suave, prático, confiante. — Se isso for revelado, você será
tão culpada quanto eu.
— Então você está dando o fora? — ela disse, apontando para a
mochila. — Foi isso que veio me dizer? Eles ainda estão investigando,
ainda fazendo perguntas. Não consigo… não posso continuar
mentindo para todo mundo. Não posso continuar mentindo para a
mãe dela.
— Você não tem que mentir. É só não falar nada.
Ele respondeu ao olhar dela com o seu, firme e controlado. Na
superfície, ele parecia o que sempre foi — bonito, relaxado, confiante.
Mas havia algo de novo sob essa superfície. Alguma coisa que ela
vislumbrava quando os dois discutiam, algo que aparecia alguns
instantes e depois recuava para seu esconderijo. Fosse o que fosse, não
estava escondido agora. Ela sentia isso. Podia sentir que a coisa a
encarava, observando-a de algum lugar dentro dele.
— Eu te amo — Calvin disse. — Isso não mudou. Você poderia vir
comigo.
As palavras agitaram seu estômago. Seja lá o que fosse que ele
sentia por ela, não podia ser como o amor deveria ser. O que eles
tinham era algo estragado, algo venenoso, algo que poderia matá-la se
ela não se afastasse o máximo possível.
— Não posso — ela respondeu. — Tenho que terminar a escola. E
não posso deixar o meu pai.
Ele concordou com a cabeça.
— Sei disso. Mas achei melhor perguntar mesmo assim.
Ele se inclinou e a beijou. O estômago dela se agitou, e Geo tentou
virar o rosto, mas ele o agarrou com ambas as mãos e a beijou com
mais intensidade. Ele tinha um coração de canela na boca; ela podia
sentir a dureza da bala rolando pela língua dele. Doce, e quente, e
apimentada, tudo ao mesmo tempo. Um gosto familiar, que agora a
fazia se sentir doente.
— Para — ela disse, mas ele não parou.
Ele a empurrou de costas para cama e rolou por cima dela, noventa
quilos de puro músculo a imobilizando. Não era muito diferente de
quando ele a beijava depois de uma discussão, quando tentava
reconquistá-la depois de tê-la esbofeteado, beliscado ou esmurrado.
Então ela ficou imóvel, enquanto ele a beijava com ardor, sabendo por
experiência que se se contorcesse e protestasse apenas o deixaria
zangado e rejeitado. Se ficasse imóvel e deixasse que a tocasse, ele
poderia notar que ela não estava a fim e parar.
O hálito quente dele estava debilmente agridoce ao beijar seu
pescoço, seus ouvidos e seus ombros, descendo por seu corpo,
subindo sua camiseta. Quando ele balançou seu mamilo com a língua,
ela gemeu. Era tão errado, tão incrível e terrivelmente errado… mas
também era um pouco gostoso. Horrível como era, ela não conseguia
negar o quanto ele a atraía. Afinal, era Calvin, e esse era o padrão
deles. E mais, agora ele era a única pessoa do mundo para quem ela
não precisava mentir.
E ela ainda o amava, que Deus lhe tenha piedade. Sentimentos
como esse não evaporam em questão de dias, por mais que ela
desejasse que sim, por mais que soubesse que deveriam.
Ela não protestou quando ele baixou seu moletom ou quando
afastou sua calcinha para o lado para que ele achasse seu ponto úmido
e o fizesse ainda mais úmido, o frescor da canela na língua dele
aumentando a camada de prazer que a fazia suspirar. Ela estava
enojada consigo mesma, mas incapaz de evitar aquilo. Ele a havia
tocado assim tantas vezes que sabia exatamente o que fazer,
exatamente onde fazer pressão, e por quanto tempo.
Quando ela escutou o ruído do cinto dele desabotoando, seus olhos
se abriram. Eles nunca tinham feito sexo antes — não sexo de
verdade, como ela pensava que era, não o coito. Ela era virgem e
empurrou a mão dele, tentando se sentar na cama.
— Não podemos — ela disse. — Calvin, por favor. Você tem que ir
embora.
Ele abriu um sorriso, os dentes brilhando na luz suave do quarto.
— Lembra que eu sempre falei que a gente iria esperar até o
momento certo? — ele disse, abrindo o fecho do jeans. Sua ereção era
evidente por baixo da cueca, e ele se massageava através do tecido
fino, sem jamais tirar os olhos dela. — Esse é o momento certo,
Georgina. Não vou te ver mais depois de hoje. E quero ser o primeiro
homem a entrar em você.
— Não — Geo disse. — Não quero, tá bem? Por favor…
Ele estava em cima dela antes que ela pudesse continuar, e seu
peso parecia mais forte e mais decidido agora. A mão dele segurou os
braços dela acima da cabeça, a outra abriu ao máximo suas pernas,
puxando a calcinha para baixo. Ela estava molhada com os toques
anteriores, mas não queria mais ser tocada. Não queria ir além. Ela
queria que aquilo parasse.
Ela conseguiu soltar um braço e bater nas costas dele.
— Calvin, por favor, eu não quero…
— Vou ser o seu primeiro, Georgina. E aí você nunca vai me
esquecer.
O pênis dele entrou nela, súbito e forte. A dor era abrasadora e
intensa. Geo gritou, e ele colocou a mão sobre sua boca, continuando
a estocar, cada vez mais fundo, e doía mais do que ela imaginava. Ela
agarrou suas costas, mas suas unhas curtas não permitiam que o
arranhasse. Esse não era o Calvin que ela pensou que conhecia, que
sempre havia sido gentil com sua sexualidade, que se orgulhava em
fazer com que ela sentisse prazer. Isso não era sexo de verdade, era?
Era outra coisa completamente diferente.
Isso era dominação. Era tomar algo que ele queria e que ela não
desejava dar. Isso era estupro.
— Para — ela gemeu quando a mão que cobria sua boca deslizou
um pouco. — Por favor, para.
Ele a escutou, é claro que escutou, mas Calvin estava em um
mundo próprio, no qual a única coisa que lhe importava era o que ele
queria, o que precisava. Nada mais existia. Por fim, Geo ficou mole,
deixando os braços caírem sobre o colchão. Parecia que lutar não
adiantava nada. Lutar fazia que doesse mais. Lutar tornava as coisas
piores.
O carma havia se apresentado a ela, e era terrível.
Ele saiu da mesma maneira como entrou, pela janela. Geo nunca
mais o viu depois daquela noite. Não até anos depois, até o
julgamento.
Kaiser havia perguntado outro dia se ela alguma vez se preocupou
sobre Calvin voltar para pegá-la. Ela respondeu que não estava
preocupada, o que era verdade. Calvin já havia tomado sua melhor
parte na noite em que o viu estuprar e assassinar sua melhor amiga. O
que restava, ele tomou no dia em que a estuprou em seu próprio
quarto, com seu pai dormindo no final do corredor.
Geo olha fixo para o pote vazio, que está agora sobre sua mesa de
cabeceira, aquele que antes continha toda a sua inocência, toda a sua
bondade. Ela o havia guardado todo esse tempo. Um terapeuta poderia
passar um dia inteiro tentando analisar a razão de ela nunca ter jogado
aquilo fora e, mais importante ainda, porque o mantinha em um lugar
em seu quarto onde claramente podia vê-lo.
A resposta era simples. Era uma punição pelo que ela havia feito
com Angela. E uma lembrança de seu próprio trauma, de sua própria
dor, que ela trouxe a si mesma por ter sido tão jovem e tão estúpida.
Seu celular a notifica. Geo verifica a mensagem, seu coração se
animando um pouco quando vê que vinha de Kaiser. Um sorrisinho
passa por seus lábios. Talvez as coisas possam funcionar entre eles…
desde que ela jamais lhe conte toda a história.
Ninguém, nem mesmo Kaiser, poderia amá-la se soubesse de toda
a história.
Seu rosto fica abatido quando ela vê o que ele mandou.
Mais dois corpos no bosque atrás do St. Martin. Mulher adulta e
criança, assassinadas do mesmo modo que os dois primeiros.
Uma mensagem chega segundos depois.
Calvin visto na cidade. Fique em casa. Tranque as portas.
PARTE QUATRO
DEPRESSÃO
ACEITAÇÃO
NÃO É CALVIN. É claro que não. Mas não há como não se confundir
com as semelhanças físicas, o metro e oitenta de altura, o mesmo
cabelo escuro penteado para trás e fora do rosto, estilo James Dean.
Ele é até mesmo magro e musculoso como Calvin era, e o contorno de
seus braços é visível por baixo do moletom fino que ele usa.
A única coisa que falta é o jeito arrogante de Calvin, a habilidade de
dominar o ambiente no instante em que entra. Dominic não tem isso
— seu sorriso é tímido, e ele também parece nervoso. Mas ainda é um
adolescente; a confiança pode vir com o tempo.
— Oi — Geo diz, e a palavra sai como uma sílaba enorme e
ofegante, fazendo que ela soe como uma patricinha. Oiiii.
— Oi. Obrigado por me convidar. — A voz de Dominic é profunda,
com o tom idêntico ao de Calvin, o que também a pega desprevenida.
Mas Calvin tinha um jeito preguiçoso de falar, em contraste, seu filho
fala um pouco mais rápido, com mais precisão. Mais parecido com
Walt. — Há um carro de polícia lá fora. Está tudo bem?
Ela está sem graça, e ele parece estar também, e os dois trocam
sorrisos tímidos.
— Está tudo bem — ela diz. — Não se preocupa com isso, ele não
vai nos perturbar. Por favor, entre.
O dia de outono está fresco, e uma lufada de vento gelado o segue
pela porta quando ele entra. Dominic olha ao redor, nota os pés dela
calçados com meias, e tira os sapatos, colocando-os com cuidado para
o lado. Percebe que ela o examina, mas parece não se importar.
— Temos os mesmos olhos — ele diz.
É verdade. Temos mesmo. Escuros, um pouco de forma
amendoada. Ela sorri.
— Aceita alguma coisa?
Ele sacode a cabeça.
— Não, obrigado. Cheguei cedo e parei na 7-Eleven mais abaixo e
tomei um copão de suco.
— É a 7-Eleven onde… — Ela engole em seco, parando a tempo.
Estava para dizer onde conheci o seu pai, mas ele ainda não sabe quem é
o pai dele. Não é justo jogar pequenos detalhes assim antes de ele
estar pronto.
Educado, ele espera que ela termine o que ia dizer, e quando isso
não acontece, dá uma olhada ao redor. Ela está retorcendo as mãos e
se obriga a parar, apontando para a sala.
— Há fotografias em cima da lareira — ela diz. — Pode olhar.
Ele concorda com a cabeça e entra na sala de estar. Ela vai atrás,
notando que ele realmente caminha como o pai. É interessante
observar como algumas coisas são mesmo genéticas — coisas como a
postura e a maneira de andar. Ele é todo Calvin, da cabeça aos pés,
talvez com algumas pitadas de Walt.
Dominic pega a foto do pai e da mãe dela no dia do casamento
deles, e um sorrisinho atravessa seus lábios. Geo percebe, e algo
acontece com seu coração. Um enternecimento e dilatação ao mesmo
tempo. Aquele sorriso é o dela. O sorriso pensativo dela.
Mesmo depois de tanto tempo, ela pensa, nunca deixei de amar você.
— Seus pais? — ele pergunta. Se ele nota o olhar no rosto de Geo,
não diz nada.
— Sim, seus avós. Walter e Grace Shaw.
— Conheço um pouco sobre eles pelo que estava no arquivo — ele
diz, colocando a foto de volta. Senta-se na cadeira mais próxima da
lareira e estica as pernas. — Quando completei dezoito anos, escrevi
para a agência de adoção e pedi todas as informações que pudessem
me dar. Eles disseram que eu tinha acesso a tudo e me enviaram um
arquivo. Ali não dizia muito mais do que eu já sabia sobre você,
tirando as fotos em que apareciam você e os seus pais. Eu pesquisei,
não descobri muita coisa sobre eles, mas a biblioteca tinha um arquivo
com o obituário do jornal local de quando a sua mãe morreu. Havia
uma foto dela. Ela tinha trinta e três anos quando morreu, não é? Você
se parece muito com ela.
Geo sorri.
— Eu sei. Quando fiquei mais velha, cheguei a assustar o meu pai.
Minha voz começou a ficar parecida com a dela. Ele chegou um dia do
trabalho quando eu vim da faculdade fazer uma visita. Estava na
cozinha, preparando o jantar, e me virei e ele estava parado ali, branco
como um fantasma. Pensou que eu era ela. Agora sei como ele se
sente… — Ela volta a se conter.
— Podemos falar sobre ele? — Dominic pergunta. — Meu pai,
quero dizer. Sinto como se ele fosse um elefante na sala.
Geo respira fundo. Como ela vai encontrar as palavras? Mas ela
tem que encontrá-las. De alguma maneira, sim.
— Claro que sim.
— Eu sei quem ele é — ele diz.
Geo jamais nomeou Calvin na certidão de nascimento. Ela com
certeza não disse nada aos Kent. E mesmo nunca tendo especificado
nada ao pai sobre Calvin, ele finalmente juntou os fatos durante o
julgamento, já que a cronologia se encaixava.
— Fiz uma investigação — Dominic diz. — Minha mãe me falou o
seu nome quando eu tinha uns onze ou doze anos. O papai já tinha
sumido havia muito tempo, se casou de novo, e sua mulher já havia
dado à luz o segundo filho deles. Minha mãe andava bebendo. Ela
bebia muito. Não no começo, mas depois que eles se divorciaram.
— Sinto muito — sussurra Geo.
— Na época, morávamos em Vancouver, por uns dois anos já.
Minha mãe conseguiu trabalho em uma das universidades, e os pais
dela moravam lá. Ela queria morar perto deles depois do divórcio. Foi
por isso que o meu pai concordou em entregar a minha custódia. Ela
não podia se mudar para o Canadá sem o consentimento dele, mas
pelo visto ele nem ligou muito para isso. Para ele, era tipo um alívio
ter se livrado de mim, pelo que ouvi. Eu mal o via, aliás.
— Sinto muito — Geo diz de novo. O tom prosaico da narrativa do
filho a fazia se lembrar de si mesma, e isso a machucava. Ela sabia que
quanto menos emotivo ele fosse mais doloroso era na verdade.
— Eu não — ele diz. — As pessoas mudam. Dizem que dá para
amar os filhos adotivos do mesmo modo que os filhos biológicos, mas
eu sei que isso não é verdade. Lembro de visitar o papai e a Lindsay, a
nova mulher dele, logo depois que eles tiveram o primeiro bebê. Um
garoto. Ouvi o meu pai falando no berçário, através do monitor. Ele
estava tentando colocar o Holden para dormir, e quando finalmente
conseguiu, Lindsay disse: “Era assim quando o Dominic nasceu?”. E o
papai respondeu: “Não, isso aqui é melhor”.
Geo estremece.
— Ah, meu Deus. Ele jamais deveria ter dito isso. E você jamais
deveria ter ouvido. Nem todos os pais adotivos se sentem assim. —
Pelo visto só os que eu escolhi para você.
Dominic dá de ombros.
— De qualquer modo, quando a mamãe me disse o seu nome, uns
dois anos depois, procurei você, descobri o obituário da sua mãe de
muito tempo atrás. Mais tarde, encontrei mais um monte de coisas.
Nessa época, você estava testemunhando em um julgamento por
assassinato.
Geo fecha os olhos.
— Sim, é verdade.
— O artigo que li informava que você e o acusado haviam sido
namorados. Quando você estava no colégio, quando você tinha
dezesseis anos. Fiz as contas. E depois vi a fotografia dele. Nós dois
nos parecemos muito.
O eufemismo do século.
— Sim, vocês se parecem.
— Então é ele, não é? — Dominic diz. — O Estrangulador de
Sweetbay é o meu pai?
Ela deseja ardentemente que ele não tivesse usado aquele apelido.
Está até horrorizada por ele saber disso. E ainda que seu filho saiba a
resposta, é claro que, pelo modo como a olha, ele precisa que ela
confirme. Porque ela é a única pessoa que pode fazer isso.
— Sim. Calvin James é o seu pai.
Dominic não se move, não reage. Seus olhos ficam distantes, e por
um instante, ele está em outro lugar, pensando em alguma outra coisa.
Talvez na vida que poderia ter tido?
— Você a matou? — ele pergunta.
— Quê? — Geo pisca.
— Angela Wong — Dominic diz. — Eu acompanhei o julgamento.
Você assinou um acordo. Mas você a matou? Muitas pessoas pensam
que sim, e que você se livrou fácil disso.
Mais uma vez, ele fala sem nenhum traço de emoção, sem
julgamento. Só há um modo de responder, que é dizer a verdade.
Depois de tudo pelo que ele passou, a vida que teve, e sua maldita
genética, o mínimo que ela pode fazer é responder às perguntas da
forma mais honesta possível.
— Eu não a matei — ela diz. — Mas ajudei Calvin a escondê-la. E
depois menti. Para os tiras, para os pais dela, para os nossos amigos,
para todo mundo.
— E você conseguiu se livrar disso por muito tempo.
— Eu… — Geo quer que ele compreenda. — Sinceramente, eu
pensei que seria presa. Achei que eles se dariam conta disso. Mas, de
algum modo, ninguém deu. Ano após ano, ninguém se deu conta, até
que se passaram quatorze anos.
— Por que você não se entregou? Se você não a matou, e tinha
apenas dezesseis anos, por que não ficar limpa? Você era praticamente
uma criança. Aposto que não iria acontecer nada com você.
Geo afunda na poltrona. É óbvio que ela esperava que eles falassem
sobre isso, mas não esperava que a conversa fosse tão difícil, que
Dominic fosse tão determinado em sua busca por informação. Ela
quer desesperadamente responder de uma maneira que fizesse
sentido para ele, mas não tem certeza de que isso seja possível, já que
ela mesma não tem certeza se faz sentido para ela.
— Acho que me justifiquei dizendo a mim mesma que isso não iria
trazer a Angela de volta — ela finalmente diz. — Que ela sabia que eu
a amava, e que sentia muito e que jamais desejei que aquilo tivesse
acontecido. Eu estava muito, muito bêbada naquela noite, e sei que
não é desculpa para nada, mas eu estava, e se não estivesse, poderia
ter sido capaz de salvá-la. Mas não fiz isso, e ela morreu. E a família
dela… — Fechando os olhos, Geo respira fundo. — Eles sofreram por
minha causa. Passaram anos pensando no que poderia ter acontecido
com ela, adoecendo por causa disso, e todo esse tempo eu poderia ter
dado a resposta a eles. Não fiz isso, e quatorze anos depois, quando a
verdade apareceu, eles tinham uma dor nova, fresca, com que lidar.
— Dar cobertura para a morte dela foi um erro — Dominic diz. —
Mesmo se você a tivesse matado, isso também poderia ter sido
perdoado. Mas ter mentido tanto tempo sobre isso? Seguindo com a
sua vida, enquanto os pais dela sofriam, imaginando o que poderia ter
acontecido com a filha deles? Quero dizer, isso é uma questão de
caráter. Essa é mesmo a parte que faz de você uma pessoa terrível.
Ele diz isso sem nenhum traço de humor, ironia ou maldade. São
apenas palavras, emendadas de um modo específico, e cortam mais
fundo que qualquer faca ou lâmina poderiam cortar. E não há como se
defender. Ele está absolutamente certo. Seu filho, com apenas dezoito
anos, a pegou com uma frase. Porque ela é uma pessoa terrível.
— Sim — ela sussurra.
— Agora eu sei de onde puxei isso. — Dominic estala os dedos,
olhando outra vez na direção da lareira, onde as fotos de família estão.
— Entre os meus pais biológicos e os meus pais adotivos, não havia
mesmo esperança para mim, não é? Nori e Mark nunca me amaram de
verdade, é o que eu penso.
— Mas ele amavam — Geo diz. Ela sabe que soa desesperada, mas
quer que ele tenha algo de bom, algo de positivo em que se segurar. —
Vi o rosto deles no dia em que você nasceu. Estavam nos céus de tanta
felicidade.
— Não, você viu o rosto dela — Dominic cospe as palavras. —
Minha mãe contou tudo sobre aquele dia. Ela estava emocionada, mas
ele parecia que ia vomitar.
Merda. É verdade. A mente de Geo volta para a imagem do rosto de
Mark Kent, o quanto ele estava pálido, como se não pudesse acreditar
que aquilo estava acontecendo de verdade, seus olhos giravam de um
lado para o outro, como se buscasse um modo de escapar. Ela
realmente não havia percebido na época. Ou havia?
— Minha mãe sempre foi honesta comigo — ele continua. —
Talvez honesta até demais, sabe? Tipo, talvez ela devesse ter filtrado
algumas coisas, porque, como criança, havia certas coisas que eu
provavelmente não tinha necessidade de saber. Ela me contou sobre o
verdadeiro motivo de terem me adotado. Eles estavam juntos desde a
faculdade, e o papai começou a ficar chateado. Ele já a havia traído
várias vezes. Ela pensou que um bebê consertaria as coisas, que se eles
tivessem uma família, ele não iria para outro lugar, mas ela não
conseguia engravidar. Ela tinha problemas no ovário. — Ele disse as
últimas palavras com a voz pingando de condescendência. — Então
iniciaram o processo de adoção. Ela não esperava que conseguiriam
um bebê assim tão fácil, eram jovens, não tinham muito dinheiro,
haviam comprado a primeira casa. Talvez ela pensasse que o processo
os faria se unirem de novo, que provaria para o Mark o quanto ela se
sentia mal por não poder dar a ele os próprios filhos deles.
— Eu não sabia de nada disso — Geo diz, piscando para afastar
lágrimas quentes. Está ficando cada vez pior, e ela nem havia lhe dito
ainda o pior de tudo. — Não sabia mesmo. Eles pareciam tão
apaixonados. Totalmente comprometidos.
— Acho que você viu o que queria ver.
Ela abaixa a cabeça. Mais uma vez, ele está certo. Ela havia
entrevistado vários casais antes dos Kent, casais mais velhos, que
estavam juntos há mais tempo, e haviam tentado muito mais ter um
bebê. Por que ela não escolheu um deles?
Porque ela tem a porra de uma incapacidade de julgar. Em relação a
tudo. O tempo todo. Essa é a razão.
— De qualquer modo, ela morreu — Dominic diz, o tom
indiferente de volta. — O último namorado, o que estava abusando de
mim, era alcoólatra. Eles estavam voltando de um jantar, ele havia
bebido demais, como sempre, e esmagou o carro na parede de um
edifício. Você sabe que esse merda ainda está vivo? Ela morreu no
mesmo instante, os airbags não abriram corretamente do lado dela.
Mas ele está vivo e morando em algum lugar em Idaho. Está
paraplégico, mas que seja.
— Eu sinto muito. — Parece que Geo não consegue parar de dizer
isso. Ela está chorando bastante agora e enxuga as lágrimas
furiosamente. — Dominic, sinto muito. Jamais desejei isso para
você…
— Então o que você queria? — seu filho pergunta. Seu olhar não
vacila. Seu rosto está aberto, os olhos escuros, iluminados pelo que
parece ser uma curiosidade autêntica. — Eu gostaria mesmo de saber,
Georgina. O que você queria? O que você pensou, ficando grávida de
um assassino, aos dezesseis anos…
— Eu não queria…
— Com certeza houve sinais — Dominic diz, sem se importar com
a reação dela. — Sinais de aviso, alertas vermelhos, seja lá como você
chame. Bem antes. Meu pai, o Calvin, não outro malandro qualquer,
controlava você? Alguma vez ele bateu em você?
Geo está tremendo. Ela não consegue responder, porque não
consegue falar. Mas é claro que tem que responder a essas perguntas,
porque tem que contar a ele sobre Calvin. Sobre o monstro que o pai
de Dominic é de verdade.
— Ele batia, não é? — Dominic diz isso com admiração. — Ele
machucava você. E mesmo assim, você ficou com ele. Mesmo assim,
fez sexo com ele. Essa merda excita você?
— Não foi sexo, foi… — Geo se interrompe pela terceira vez. Mas
é tarde demais.
— Foi estupro — Dominic termina a frase por ela. As palavras
ficam penduradas no ar por um instante, e depois ele joga a cabeça
para trás e ri. É um riso profundo, gutural, vindo de um lugar de dor,
não de diversão. — Puta que pariu. Essa merda fica cada vez mais
interessante.
— Dominic…
— Tudo bem — ele diz. — Respira fundo. Você tinha dezesseis.
Dois anos mais nova do que eu agora, e lembro bem como eu era
maluco há dois anos, Georgina, sei bem como é. — Ele faz uma pausa.
— Espera. Isso soa estranho. Posso chamar você de Georgina?
— Você pode me chamar como quiser — ela diz, abafando os
soluços. — Geo está bom.
— Geo — ele diz. — Gostei. Você tem mais fotografias? Dos meus
avós. Será que tenho tios ou tias? Primos? Me conta mais sobre a
minha família.
— Há mais alguns álbuns lá em cima, no quarto do meu pai — Geo
responde. Ela se levanta, agradecida pela oportunidade de ter alguns
minutos para se recompor. — Mas quando eu voltar, ainda há coisas
que preciso contar para você.
Ela sobe a escada e vai direto para o banheiro. Tranca a porta,
depois abre a torneira de água fria por completo. Chora com vontade
por exatamente mais dois minutos, soluçando como uma criança, e
depois se força a parar, jogando água no rosto até os espasmos
pararem. Ela se olha no espelho, sua pele manchada, o delineador
borrado. Ela limpa tudo com um lenço de papel.
Sim, é um desastre completo. Mas que merda ela pensou que
aconteceria?
Ela não pensou, esse é o caso. Anos da infância do seu bebê,
passados com pais que não o amavam de verdade, ou um ao outro, de
fato. Um pai que o abandonou. Uma mãe com um namorado alcoólatra
que abusava dele. Parentes indiferentes. Abrigo. Uma mãe biológica
que vai para a prisão por encobrir um assassinato. Um pai biológico
que é assassino em série.
E a melhor parte — a cereja do bolo, como diria Walter Shaw — é
que ela ainda nem teve a oportunidade de dizer a seu filho que a vida
dele corre um grande perigo.
Antes de sair do banheiro, ela dá uma olhada pela janelinha para
verificar se o carro de polícia ainda está estacionado no meio-fio. Está,
e do ângulo estranho do seu pescoço, o policial parece estar
adormecido. Que ótimo. Que belo jeito de proteger e servir. E ela faz
uma nota mental para se queixar com Kaiser.
De volta à escada, ela vê alguém em sua cama. Dominic tomou a
liberdade de subir ao andar de cima, e está sentado ao pé da cama,
olhando para um de seus antigos anuários escolares. Ela para na porta,
e a visão dele provoca nela uma onda de vertigem.
Sentado ali, despreocupado, sem ligar para o mundo, quando o pai
dela não está em casa. Tal como Calvin.
Ele olha para cima, sorri, e é como se não houvesse existido a
conversa horrível que tiveram no térreo há três minutos. Ele dá uma
palmadinha no lugar ao lado dele.
— Sente-se — ele diz, como se fosse o pai, e ela, a filha. — Isso
aqui é legal. Seu anuário de caloura, acho. Não achei o anuário
seguinte… e suponho que faz sentido, porque você estava grávida de
mim.
Ela se senta na cama ao lado dele.
— Sim, terminei o ano em casa.
— Essa é ela? — ele pergunta, apontando uma foto em preto e
branco, granulada, de Geo com Angela. Havia sido tirada depois de
um dos jogos de futebol nas noites de sexta-feira, uma foto espontânea
das duas rindo, rabos de cavalo dançando, pompons brancos nas
mãos, vestidas com suéteres de manga comprida e saias minúsculas
com o emblema dos Bulldogs. — Essa aqui é a Angela?
— É — Geo diz. Ela não vê essa foto há décadas, e dói vê-la agora.
— Ela era linda — ele diz, e mais uma vez sua voz não revela
nenhum traço de julgamento. — Mas você também era.
— Eu não achava isso na época.
— Dá para ver a razão — ele diz, e ela olha para ele. — E não é
porque tivesse alguma coisa de errado com você. Contei pelo menos
umas dez fotos dela neste anuário. A estrela dela brilhava de verdade,
não é? Posso imaginar que isso faria qualquer outra coisa, mesmo
outra estrela, parecer pálida em comparação.
— É muito gentil você dizer isso. — Ela sorri. — E até poético.
— Como você conheceu o meu pai?
Geo lhe conta a história da 7-Eleven e de como se apaixonou desde
o momento em que o viu.
— Passávamos muito tempo juntos — ela diz. — Minhas notas
estavam caindo. Eu ficava acordada até tarde. Às vezes, ele vinha de
fininho até aqui, quando o meu pai estava em casa e eu não podia sair.
Mas a gente nunca… ele era um cavalheiro.
— Até deixar de ser.
Ela acena com a cabeça.
— São os detalhes que me deixam curioso — Dominic diz,
fechando o anuário. — Li bastante sobre vocês dois. O caso foi
amplamente noticiado por todos os grandes jornais aqui do noroeste.
Foi fácil ter acesso a essas coisas lá na biblioteca de Vancouver, e
quando nos mudamos de volta para Seattle, ficou ainda mais fácil. Mas
há muitas coisas que os jornais não dizem.
— O que você quer saber?
Ele dá de ombros.
— Como eu disse, os detalhes. Lembro de ter lido uma vez um
perfil dele que mencionava que ele adorava corações de canela. Eu
também. — Ele mete a mão no bolso e tira de lá um pacotinho. Já está
aberto, e metade já tinha sido comida. Ele lhe oferece um e, mais uma
vez, uma onda de déjà-vu a invade.
— Não, obrigada, detesto esses corações — Geo sussurra, e
embora não tenha sido dito como piada, Dominic dá uma risada. —
Detalhes, vejamos… Ele sempre tinha um cheiro bom. Era bom com
carros. Gostava de música ao vivo, fomos a vários shows juntos.
Soundgarden. Pearl Jam.
— Então ele tinha bom gosto para bandas. — Dominic joga um
doce na boca e depois deixa o pacote de lado. — Então. Onde você
acha que ele está agora?
— Sinceramente, não sei — Geo diz, e ela percebe que é a hora de
contar a ele. Este é o momento. Ela respira fundo e se vira para encará-
lo. — Dominic, com certeza você sabe que o Calvin fugiu da prisão há
cinco anos, pouco tempo depois que eu fui presa. Então a polícia está
à procura dele.
— Eu sei.
— Mas não estão procurando por ele só porque fugiu da prisão. Ele
fez algumas coisas… — Geo respira fundo novamente. — Calvin
cometeu mais quatro assassinatos. Duas mulheres… e os filhos delas.
Dominic não se move.
— Filhos dele — Geo diz, sua voz falhando. — Carne e sangue
dele. Ele está caçando essas crianças, e depois as matando. E eu
receio… Receio que ele esteja atrás de você. Por isso é que o carro de
polícia está aí na porta. É para a minha proteção. E sua.
É difícil ler a expressão de Dominic. Ela não consegue dizer se ele
está ou não chocado. Seu filho tem o estoicismo de Walter. Isso é
absolutamente certo.
— Então esses corpos sobre os quais andei lendo nos jornais, foi
Calvin que os matou? — Dominic se inclina um pouco, o anuário
escorrega do seu colo e cai no chão. Nenhum dos dois se move para
pegá-lo. — Ele é o homem que cortou essas mulheres, estrangulou as
crianças e depois desenhou corações com um batom? Agora faz todo
sentido. Que babaca doentio. Nossa.
— Sim — Geo diz, seu coração doendo. Ele tem apenas dezoito
anos, pelo amor de Deus. É coisa demais para ele. É coisa demais para
qualquer um. — Pelo menos é o que a polícia pensa. E sei que eu
também penso assim.
Ele concorda com a cabeça, seu rosto está inexpressivo.
— Os tiras sabem que eu estou aqui? Aquele seu amigo de escola, o
tal que prendeu você, ele sabe que eu estou aqui?
— Não — ela diz, novamente surpresa. Se ele sabe que ela e Kaiser
foram amigos no colégio, então fez uma pesquisa de verdade. — Eu
queria te contar primeiro, sozinha. Mas acho que devo ligar para ele
agora. Ele vai querer colocar você em um lugar seguro. Preciso ir lá
embaixo pegar o celular.
Ela tenta se levantar, mas Dominic coloca a mão em seu braço.
— Não ligue.
— Tenho que fazer isso. — Ela encontra o olhar dele. — Você não
está a salvo. Nós dois não estamos a salvo. Você leu o que ele fez com
as outras crianças…
Então ela percebe. O que seu filho acabou de dizer sobre o batom,
sobre os corações desenhados. Esse detalhe não foi publicado em
lugar nenhum, nem nos jornais nem na televisão. Kaiser foi o único
que lhe contou sobre isso. Ninguém sabia disso fora da investigação.
O olhar de Dominic está fixo em seu rosto, e ela vê como esse olhar
muda na medida em que ele também percebe o que disse. Ele não
deveria falar nada sobre o batom. Ele não deveria saber nada sobre
isso.
Mas ele sabe. E agora sabe que ela sabe.
Ela salta da cama, mas, antes que possa dar um passo, é puxada
com força de volta para o colchão. Ela sente fios de seu cabelo serem
arrancados da cabeça. Ele é forte, talvez até mais forte que Calvin
naquela época, e está por cima dela, prendendo-a com o peso de seu
corpo, enquanto ela chuta e se contorce. As mãos dele estão ao redor
de sua garganta, apertando tão forte que ela sente como se sua
traqueia pudesse se partir ao meio.
Ele lambe com languidez a lateral do rosto dela, a ponta da língua
se movendo do seu queixo até a maçã do rosto, seu hálito quente
cheirando com o fogo da canela.
— Mamãe — ele sussurra, olhando bem nos olhos dela. — Você
está me vendo?
Ele mantém uma das mãos em sua garganta, enquanto a outra
arranca sua legging, depois seu próprio jeans, nunca afastando os
olhos.
Os olhos de Calvin eram verdes. Os de Dominic são castanhos.
Como os seus. É como se ela estivesse encarando a si mesma.
Ela luta com força, com mais força do que jamais usou antes,
lutando com cada centímetro de seu corpo, compreendendo, em
algum nível, que o círculo se completa. Isso terminará onde começou,
e esse sempre foi seu destino, ser destruída pela própria besta que
criou.
Cada decisão que ela tomou, tudo o que ela fez, conduziu a isso.
Seu filho é um monstro, sim. Mas não herdou tudo isso do pai.
Algo disso ele herdou dela.
Quando os novos cadáveres apareceram, cortados em pedaços, ela
já deveria saber que não era Calvin.
32
Geo conhecia a área melhor que Calvin; ela cresceu ali, ele não. Ela
indicou o caminho para sua rua, e quando ele entrou na Briar
Crescent, ela disse:
— Apague as luzes.
Ele fez isso, e os dois mergulharam na escuridão. A Briar Crescent
não tinha postes de luz. O nevoeiro os rodeava como um casulo.
— Não consigo ver nada — ele disse.
Ela podia sentir o cheiro do suor que vinha dele. Como cebolas
maduras e sal.
— Siga em frente. Dirija devagar.
Ele dirigiu pela rua até chegarem ao final do beco sem saída. Só
então ele compreendeu onde estavam.
— É a sua casa — ele disse. — Você está indo para casa?
Ela deu uma olhada pela janela na direção da casa, na qual morava
desde que nascera. Não havia ninguém em casa. A luz do alpendre
estava acesa, e através da neblina, ela podia distinguir o azul fraco da
porta.
— Ainda não — respondeu.
Os dois saíram do carro, e Calvin abriu o porta-malas. Qualquer
ruído parecia alto no silêncio da noite. Tiraram o corpo de Angela do
porta-malas, e Calvin mais uma vez o colocou no ombro. Ele entregou
a lanterna que levava no chaveiro a ela, mas Geo não precisava disso.
Ela sabia onde estava a trilha, que não era demarcada, apenas um
trecho de grama muito pisada que levava para dentro do bosque, onde
ela costumava brincar quando era criancinha. A luz da lua era o
suficiente.
Geo sabia que, a qualquer momento, um vizinho voltando tarde de
uma festa poderia vê-los levantando do porta-malas do carro de Calvin
algo comprido, e pesado, e enrolado em um cobertor. A qualquer
momento, um vizinho com a bexiga cheia poderia acordar para usar o
banheiro, olhar pela janela, notar o Trans Am estacionado no final do
beco, e sentir-se obrigado a sair para investigar. A qualquer momento,
um vizinho que não conseguia dormir poderia deixar seu livro de lado
e olhar pela janela a neblina pesada que havia descido, para
contemplar seus segredos e imaginar o que estaria escondendo. A
qualquer momento, qualquer pessoa que morasse em Briar Crescent
poderia perceber as sombras se movimentando pelo nevoeiro, no final
da rua, perto da entrada do bosque, e decidir ligar para a polícia só
para ter certeza.
Mas ninguém fez isso.
Ninguém viu ou fez porra nenhuma.
Eles pararam quando chegaram a uma pequena clareira a cerca de
cem metros, o comprimento de um campo de futebol. Geo não havia
percebido o quanto estava suando até que tirou um cabelo grudado do
rosto, só para perceber que estava ensopada de suor. Finalmente, ela
ligou a lanterna, a luz brilhante, mas pequena, e a usou para olhar ao
redor.
— Aqui é o único lugar onde podemos deixá-la — ela disse. — Há
muitas árvores em qualquer outro lugar.
Ele balançou a cabeça, concordando. A mudança foi tão sutil que
praticamente nenhum dos dois notou o que tinha acontecido. Agora
era Geo quem estava no controle. Ainda que não dito, isso estava
claro.
— Volte até a minha casa e vá até o barracão no quintal. Não está
trancado. Pegue as duas pás e dois pares de luvas. Meu pai não está em
casa, mas vá em silêncio, porque a porta do barracão range ao abrir e
ao fechar. Anda.
Ela entregou a lanterna a ele e ficou ao lado do corpo na escuridão,
sentindo o ar frio se chocar com seu suor quente. Ela sentiu como se
estivesse fumegando. O chão parecia amolecido sob seus pés, e o
cheiro era terroso, úmido. O ar tinha o mesmo cheiro, e ela inalou
fundo. Em algum lugar mais adiante, houve o som de passos e folhas
farfalhando, mas o barulhinho lhe disse que era um esquilo. Ela não
entrou em pânico. Nem se moveu. Era quase como se estivesse lá no
fundo de si mesma, longe do caos, bem fundo naquele lugar que todos
temos dentro de nós, mas que dificilmente alcançamos.
O lugar no qual não sentimos nada.
Alguns instantes depois, Calvin estava de volta com as pás, e os
dois vestiram as luvas. Começaram a cavar. No começo foi fácil — a
camada superior do solo era densa, mas macia. Mas a cerca de uns
trinta centímetros mais ao fundo, a terra estava mais dura. Rochosa.
Não demorou muito para que os braços de Geo doessem com o
exercício. Ela parou para descansar, deixando Calvin continuar por
mais alguns minutos, até que ele também teve que parar. Eles haviam
cavado dois buracos, um perto do outro, mas separados uns trinta
centímetros do que lhes pareceu ser pura pedra. Parecia não haver
modo de ligar os dois para criar o túmulo que pretendiam fazer.
— Está com um metro de profundidade, mas parece que não
consigo nem alargar nem ir mais fundo — ele disse. — É muito
rochoso.
— A gente tem que continuar cavando — Geo disse, calma, mas
apesar de ter dito a gente, ambos sabiam que significava você.
— Não dá. Seria preciso uma escavadeira.
— Volte até a casa e o barracão. Pegue um serrote. Há três
pendurados na parede dos fundos. Traga o maior para cá. Você vai
saber quando o vir. — Mesmo reconhecendo a própria voz, parecia
que era outra pessoa quem estava falando. Com o tom neutro, mas
direto de sua voz, era como se ela estivesse lendo as notícias.
Ele voltou alguns minutos depois, o serrote na mão, sua camiseta
colada na pele. Ele tinha vindo, voltado, e repetido tudo. A cada
minuto crescia o risco de eles serem vistos.
Mas de novo, de alguma forma, ninguém viu.
Ele olhou para ela, esperando instruções. Naquele momento, não
importava que fosse ele que tivesse estuprado e assassinado Angela, e
que ele já tivesse vinte e um anos e ela, apenas dezesseis. Ela estava no
comando. Ele precisava que ela lhe dissesse o que fazer.
— Corta ela — Geo disse.
— O quê? — Calvin respondeu, olhando para ela. — Eu…
— Vou começar a cavar outro buraco. Já que não podemos cavar um
buraco maior, temos que cavar vários. Corte ela.
— Não. Porra nenhuma. Não vou fazer essa porra nunca. — O
rosto dele era uma máscara de repugnância. — Você perdeu a porra do
juízo? Não faço isso de jeito nenhum.
— Chegamos até aqui — Geo disse. — Você quer ou não acabar
com isso?
Ele desenrolou o cadáver, rolando-o da colcha, grunhindo com o
esforço. Ambos se assustaram quando viram a pele de Angela. Apesar
de ela estar morta há pouco tempo, sua pele se tornara pálida, com
uma sombra cinza que não estava ali antes. Seu rosto mostrava uma
frouxidão, um peso na maneira como seus braços e pernas caíram, os
olhos embotados, ainda abertos.
Ela não parecia estar dormindo. Não parecia inconsciente. Ela
parecia morta.
Calvin se abaixou com o serrote, seu rosto contorcido em uma
careta. Olhou para Geo uma última vez. Ela balançou a cabeça,
começando um novo buraco a meio metro de distância dos outros
dois.
— Não consigo — ele disse, a voz fraca.
Ela o ignorou. Continuou a cavar, enfiando a pá na terra. Empurra,
colhe e joga fora. Empurra, colhe e joga fora.
Alguns segundos depois, ele voltou a dizer:
— Não sei nem como começar.
Ela levantou a cabeça, irritada. Ele estava ensopado com o próprio
suor, o cabelo úmido pregado na testa, o rosto ainda contorcido de
nojo e repulsa. Era uma versão dele que ela jamais havia visto. Estava
feio. Fraco. Naquele instante, ela não conseguia lembrar por que havia
se apaixonado por ele.
— Comece pelo meio — ela disse, voltando a cavar.
O barulho de carne sendo rasgada não é como outros sons. Não é
ritmado, como ao cortar a madeira. Não é silencioso, como cortar uma
massa. De algum modo, é mais profundo, mais molhado, um pouco
resistente, até finalmente ceder. Para a frente e para trás e de novo
para a frente e para trás, o serrote rasgava sua melhor amiga. Ela
escutou o momento em que o serrote alcançou um osso. Fez um
barulho de raspagem.
Ela olhou quando ele se engasgou, bem a tempo de vê-lo vomitar
sobre si mesmo. Lágrimas escorriam por seu rosto. Angela jazia na
lama, sua perna quase cortada de seu quadril, mas não por completo.
— Eu não consigo… — ele disse, se engasgando.
Geo apertou o cabo da pá. Ela podia sentir o cheiro do vômito dele,
uma mistura coagulada de pizza, cerveja e sucos gástricos, quase
idêntico ao cheiro provocado pelo vômito dela mais cedo, no quarto
dele. Ela nunca havia visto Calvin tão vulnerável, e naquele momento,
não teve dúvida de que poderia caminhar até ele, bater em sua cabeça
com a pá, com toda força e quantas vezes fosse preciso, até que ele
também estivesse morto. Talvez o nevoeiro se mantivesse por tempo
suficiente para que ela cavasse buracos para os dois.
Mas ela não era assassina. Não sabia que diabos ela era, mas não era
isso.
— Venha aqui e pega a pá — ela ordenou.
Eles trocaram de lugar.
Geo pegou o serrote, o cabo de madeira ainda quente das mãos de
Calvin, apesar das luvas que ela usava. Seu pai era médico de
emergências, havia conversado sobre seu trabalho muitas vezes com
ela, tinha até lhe dito detalhes sobre as aulas de cirurgia que havia feito
na Faculdade de Medicina. Geo tinha algum conhecimento de como
cortar nas juntas para ter o mínimo de resistência. Não havia feito isso
com asas de frango para o jantar da outra noite? Não conseguia se
lembrar agora. Talvez tivesse sido na semana passada. Ou no último
mês.
Ela se ajoelhou ao lado de Angela, cujos olhos ainda estavam
abertos. Passou a mão sobre o rosto de sua melhor amiga. Agora os
olhos estavam fechados.
Não olhe, meu amor. Não olhe.
Ela levantou o serrote, apertou os dentes, e terminou o que Calvin
começara, os dentes da lâmina rasgando sua melhor amiga,
profanando o corpo humano de Angela.
Profanando a alma de Geo.
Quando ela terminou, os dois colocaram as partes de Angela nos
buracos conforme cabiam, jogando e batendo a terra em cima e
pressionando com firmeza. Deixaram o bosque coberto de sangue e
vômito, em algum momento depois das quatro da madrugada. A essa
altura, o nevoeiro havia diminuído um pouco.
Ainda assim, ninguém viu.
Calvin lavou as pás e o serrote com a mangueira do quintal, a água
limpando o vermelho que escorria na grama e logo desaparecia. Eles
voltaram para a frente da casa. Calvin tentou falar com Geo antes de
entrar no carro, mas ela não respondeu. Ele foi embora, dirigindo.
Passariam dias antes que ela voltasse a vê-lo, antes que ele aparecesse
na janela do seu quarto no meio da noite, com a mochila na mão, para
se despedir e arrancar à força o pouco que restava dela.
Até então assumindo que eles não seriam pegos, é claro. Nos
filmes, parecia que os bandidos nunca escapavam.
Por enquanto, tudo havia terminado. Geo fez a única coisa que
faltava fazer.
Ela foi para casa.
33
DOMINIC AINDA ESTÁ EM CIMA DELA, seu peso cada vez mais
insuportável. Ele está atrapalhado, e furioso, porque o que ele veio
fazer ali não está funcionando. E se ele não conseguir fazer isso,
simplesmente irá matá-la.
E isso era o que Geo preferia. Embora o sistema legal possa
discordar, existem coisas piores que assassinato. Agora ela sabe disso.
Estupro não é sobre sexo. É sobre domínio e controle. É sobre como
arrancar a melhor parte de uma pessoa e deixar a casca vazia para trás.
Ela sente a ameaça da inconsciência. A mão de Dominic ainda está
em sua garganta, e ele é terrivelmente forte. Geo não consegue gritar,
mal consegue se mexer, e pouco a pouco, sente que está perdendo a
luta.
Então, um segundo depois, ele é arrancado de cima dela. Com a
súbita ausência da dor, há um alívio, e ela perde a força, ofegando em
busca de ar. Sua visão está nublada, e tudo que consegue ver é uma
sombra por cima de Dominic, que agora está no chão.
A sombra através da visão nublada faz Geo se lembrar da neblina na
noite do assassinato de Angela. Quando sua visão finalmente fica clara,
ela vê a razão disso.
Calvin.
Ele está de pé ao lado de Dominic, que está atordoado, um vergão
vermelho-escuro se formando em seu rosto, no lugar onde foi
esmurrado. Seus lábios estão entreabertos, e ele está deitado de lado,
machucado e vulnerável. Nesse instante, Geo finalmente vislumbra o
garoto que ela poderia ter conhecido se tivesse escolhido ficar com
ele.
— Você está bem, Georgina? — Calvin pergunta.
Ele não está parecido em nada com a última vez que o viu. Seu
cabelo está mais comprido, mais claro, e uma barba cerrada, com
manchas grisalhas, cobre metade de seu rosto. Está vestido com
roupas velhas. Ela se senta na cama, e seu olhar desce até sua barriga e
coxas, que estão despidas. De repente, ela se dá conta de que está
exposta, e lágrimas quentes enchem seus olhos, enquanto
freneticamente puxa sua legging para cima.
Porque alguém viu. Alguém foi testemunha do que o filho tentou
fazer com ela. Mesmo que esse alguém seja Calvin, ainda assim é a
pior coisa que alguém pode saber.
No chão, voltando a si, Dominic solta uma risada curta. Calvin olha
para baixo e chuta sua cabeça.
— Espera. — Geo suspira, tentando falar. Ela ainda está na cama. E
se arrasta o mais distante que pode, até conseguir colocar suas costas
na cabeceira. — Calvin, espera. Só… só se afaste dele. — Ela se
esforça para entrar em foco. — Como você entrou aqui? Há um
policial na frente da casa.
— Eu cuidei do tira — seu ex-namorado informa, franzindo a testa.
Seu olhar se move dela para o jovem no chão e de volta para Geo. —
Tenho ficado de olho em você. Esses novos assassinatos não têm nada
a ver comigo. Eu jamais machucaria uma criança.
— Sei disso. — Ela fecha os olhos por um instante. O policial
designado para sua guarda não deve ter mais de trinta anos. Coitada da
família dele. Coitada da mãe dele.
Outra risada de Dominic.
— Posso vestir a minha calça? — o jovem pergunta, e apesar de
suas palavras estarem um pouco roucas porque seus lábios começam a
inchar, ele soa quase agradável. — Estou sentindo um friozinho aqui
embaixo.
A arma que ela pegou com o irmão de Ella ainda está onde ela a
escondeu, e Geo desliza a mão por baixo do travesseiro. O pequeno
punho se encaixa confortavelmente em sua palma, e quando ela a
sente firme na mão, solta a trava de segurança. O som é abafado pelo
travesseiro.
— Não, seu babaca — Calvin diz, também soando agradável, com o
tom arrogante que não mudou em quase vinte anos. — Parece que
você não teve problema nenhum em abaixá-la, então por que não
deixa aí mesmo?
— Mamãe — Dominic diz, sem se mexer. Geo olha para baixo e vê
seu sorriso. É um sorriso horrível. — Talvez você possa dizer para o
papai que não é bonito se referir ao próprio filho como um babaca.
Não faz bem para a minha autoestima.
Calvin arregala os olhos e se volta no mesmo instante para Geo,
instintivamente procurando a confirmação de que isso não é possível.
— Surpresa — Dominic diz, a voz escorrendo sarcasmo. — É um
menino.
— Como? — Calvin pergunta, fixando os olhos nela. — Como é
possível?
— Então o pênis ereto do homem entra na vagina da mulher… —
Dominic começa com a voz monótona, parodiando o que alguém
poderia ouvir em uma aula de educação sexual no ensino médio.
— Cala a boca — Calvin diz, mas não o chuta novamente. Seu
olhar está fixado em Geo. — Como? — pergunta, com mais urgência.
— Você sabe como — ela diz, a voz fraca. Seu olhar se desvia para a
tatuagem de coração do lado interno do pulso de Calvin. Ela não tinha
visto isso antes, mas deve estar ali há bastante tempo, pois a tinta
vermelha está um pouco esmaecida. Ela consegue ver as iniciais
dentro. GS. Ele a havia imortalizado em seu maldito braço.
— Por que você não me disse? — A voz dele está suave. — Eu
gostaria de ter sabido.
— Você desapareceu — ela responde. — E eu fiquei feliz com isso.
Jamais quis ver você de novo.
Calvin a encara por mais alguns segundos, depois desvia o olhar
para o jovem no chão, ainda deitado de lado, mas observando a
conversa com os olhos brilhantes.
— Levanta. Vista as calças. E não faça nenhum movimento súbito
ou eu arranco o seu pescoço.
Dominic obedece, lentamente ficando de pé. Lado a lado, não há
dúvida de que é filho de Calvin. Os dois têm a mesma altura, os
mesmos traços. Mas enquanto Calvin mostra confiança, seu filho
mostra presunção, e as duas coisas não são as mesmas.
— Meu Deus — Dominic diz, rolando os olhos de modo
brincalhão. — Agora sei de onde vêm as minhas tendências violentas.
— Cala a boca — Calvin repete.
Geo puxa a arma. Os dois homens olham para ela, seus rostos com
idênticas expressões de surpresa. Dominic dá um passo na direção
dela, mas Calvin agarra seu braço. Ele acena com a cabeça para Geo,
que se levanta da cama e fica de pé diante deles. Calvin puxa Dominic
para trás, perto da parede, e cria uma distância de uns dois metros
entre eles e Geo. Mas parece ser apenas dez centímetros. O quarto
parece minúsculo e tremendamente quente.
Ela foca o olhar no filho.
— Como você quer que isso termine, Dominic?
— Ah, agora eu tenho escolha? — ele diz, com outro sorriso
terrível. — Você está deixando que eu decida o que vai acontecer
comigo? Que legal. Você deveria ter me abortado, aliás. Por que não
fez isso?
— Porque eu amava você — ela diz, e é verdade.
Ele não acredita nela, e ela não o culpa. Ele não sabe como é o
amor. Ele não sabe como é sentir o amor. Amor — o amor saudável,
do tipo que não fere ou machuca ou liquida com a autoestima de
ninguém — não se parece com nenhuma outra coisa importante na
vida. Tem que ser ensinado.
— Eu odeio você — Dominic diz, e sua voz fica engasgada. Mas
não por tristeza. Pela fúria. É ela que pinta suas palavras, enfatizando
cada sílaba. — Como eu odeio essa porra que você é!
— Sinto muito — ela diz.
Calvin observa os dois, sem dizer nada.
Há um impasse. Ela não sabe o que fazer. Não sabe se consegue
atirar em qualquer um dos dois, mas também não pode deixar que
escapem. Especialmente seu filho. Pessoas feridas serão sempre
pessoas feridas, e as dores cinzeladas em Dominic através dos anos
jamais poderão ser curadas. São profundas demais.
— Bem, essa merda é hilária. Depois de dezoito anos, finalmente
estou com os meus pais — Dominic diz, e está rindo. É um riso
histérico, o riso de alguém que cai na gargalhada mesmo que nada
engraçado esteja acontecendo, uma expressão de emoção tóxica
exacerbada. — Seus babacas. Vejam o que vocês fizeram.
Ele ri ainda mais, seu corpo inteiro se sacudindo. A distância, há
sirenes. Que se tornam cada vez mais altas, seus gritos enchendo a
vizinhança normalmente silenciosa. A polícia se aproxima.
Dominic joga a cabeça para trás, quase em convulsão.
— OLHEM O QUE VOCÊS FIZERAM!
Não é bem um uivo, tampouco um rugido, e sim algo entre os dois,
animalístico, predatório, insano, e enche Geo com uma tristeza que
vai além do pesar e da culpa.
— Como você sabia? — ela diz, dirigindo a pergunta para Calvin.
— Como você sabia que tinha que vir aqui?
— Voltei assim que soube das duas primeiras mortes — Calvin diz.
— Eu soube. Enterrados no bosque, os corpos retalhados do mesmo
modo… é claro que eu voltaria. Senti como se alguém estivesse
tentando me chamar para casa.
O olhar dos dois se encontra. É o único segredo que ainda
compartilham, depois de todos esses anos. Ele jamais contou à polícia
a história completa do que aconteceu naquele dia fatídico — sobre o
serrote, o vômito, como Geo assumiu e terminou aquilo —, nada
disso apareceu no julgamento. E Calvin poderia ter revelado tudo,
poderia ter contado toda a verdade, não apenas sobre ele mesmo, mas
sobre ela. Mas nunca fez isso. Nunca disse uma palavra. Em vez disso,
ali está ele, uma tatuagem boba em seu punho com as iniciais dela
dentro, mesmo que nunca, jamais, os dois pudessem ficar juntos. Era
o clássico Calvin, tal como o pote de corações cheio de doces que ele
havia lhe dado, mas só ele terminou comendo.
Ela encara os dois. Seu primeiro amor e seu último amor. Será que
isso é o amor? Será que é isso, enlouquecido e deformado, doente e
monstruoso?
— Agora eu entendo — Calvin diz, olhando para Dominic. — Por
que você também matou as crianças. Meus filhos. Você fez isso para
me ferir.
— Não, seu idiota de merda. — Dominic deu uma risada triste. —
Fiz isso para machucar ela. Por que as outras crianças tinham boas
mães? Por que eles não eram uns fodidos? Por que só eu? Quero
terminar o que comecei, papai. Quer ajudar? Deixo você ir primeiro.
— Ele ri novamente, e o som é tão triste quanto o primeiro. — Ei,
espera. Você já fez isso.
— Georgina, saia — Calvin diz, sem tirar os olhos do filho. — Saia
agora mesmo. Não vou deixar que ele machuque você. Vá pela janela.
— Não posso deixar isso assim — ela diz. Agora ela está tremendo,
o peso de dezenove anos de segredos e mentiras ameaçando esmagá-la
de dentro para fora. — Ele é nosso filho.
— Sim, ele é. E pessoas como ele, como eu, não deveriam existir.
Ele está certo, é claro. E se sair, Geo não tem dúvida de que
matarão um ao outro. O olhar no rosto dos dois é idêntico. Eles estão
além do alcance, além da esperança. E, pela primeira vez, ela toma a
decisão que nunca tomou em todos esses anos.
— Eu amo vocês — ela diz, as palavras engasgando-se na garganta.
— E sinto muito. Sinto muito mesmo.
Ela aponta o revólver e atira.
Depois aponta de novo e atira mais uma vez.
Seus dedos ficam insensíveis. O revólver cai no chão, pousando
silenciosamente no carpete do quarto. Ela colapsa ao lado da arma,
soluçando tanto que sente como se seu interior estivesse quebrado,
chorando ainda mais do que fez na manhã seguinte ao parto.
Ela se arrasta na direção de Dominic, alcançando-o e colocando sua
cabeça no colo. O peito arfando, ela acaricia o cabelo suado, afastando
os fios soltos de seu rosto. Acaricia seu rosto, seu queixo, a ponte do
seu nariz, o arco de sua testa. Coloca o nariz na testa dele e o aspira.
Os olhos dele estão abertos. Através do borrão de suas lágrimas, ela vê
o filho olhando para ela.
São os olhos dela. Os olhos de sua mãe. Castanhos. Suaves. E agora
opacos com a ausência de vida atrás deles.
Seu filho. Seu lindo filho.
Ela abre a boca e solta seu lamento. O grito é gutural, diferente de
qualquer som que ela tenha produzido antes e, no começo, ela não
percebe que vem dela. Ao lado deles, no chão, Calvin tem espasmos.
Sua perna se move, depois seu braço. Ele está abatido, mas não está
morto, apesar do buraco que a bala abriu em seu peito.
Continuando a acariciar o cabelo do filho com a mão, Geo pega a
arma com a outra e atira na cabeça de Calvin.
Talvez fosse assim que deveria terminar, afinal de contas.
EPÍLOGO