BrunoLeonardoBezerraDaSilva DISSERT
BrunoLeonardoBezerraDaSilva DISSERT
BrunoLeonardoBezerraDaSilva DISSERT
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
NATAL/RN
2015
Bruno Leonardo Bezerra da Silva
Natal/RN
2015
Bruno Leonardo Bezerra da Silva
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Profa. Dra. Karyne Dias Coutinho (Orientadora)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN
________________________________________________
Profa. Dra. Denise Maria de Carvalho Lopes
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN
________________________________________________
Profa. Dra. Ilane Ferreira Cavalcante
Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN)
AGRADECIMENTOS
A tarefa de agradecer é algo quase que obrigatório, ou pelo menos deveria ser,
após percorrermos tantos caminhos que nos levam à realização de um objetivo pessoal e
profissional, neste caso, à concretização de um sonho. Acredito que ninguém anda
sozinho na vida, desde que nascemos tudo que fazemos e somos tem interferência
de/no(s) outro e outros. Portanto, para agradecer a culminância dessa jornada
investigativa, necessito olhar para trás para que eu possa reconhecer esses outros que
interferiram no que fiz, no que sou e no que poderei ser um dia. Poderei “pecar” em não
citar textualmente alguém aqui, pode ser, depois de uma longa caminhada alguns lapsos
de memória podem ocorrer, confesso, mas prefiro cometer esse pecado do que não
nominar, reconhecer e homenagear quem contribuiu significativamente para a
realização dessa pesquisa dissertada aqui. Pois bem, agradeço, do fundo do meu
coração:
À Deus, que nos deu a vida, o mundo e principalmente a fé! Fé que me moveu
até aqui, até o fim, que não é bem o fim, mas o começo de muitas outras coisas.
Aos meus queridos pais, João Jair e Zélia, os primeiros, eternos e melhores
professores que já tive, sempre com palavras sábias, com cuidados carinhosos,
exemplos e muito, muito, muito amor ensinaram-me princípios e valores que me
formaram o que sou hoje, um ser incompleto, cheio de defeitos, mas pronto para sempre
aprender, aprender a ser e fazer o melhor que eu possa.
Aos meus irmãos e melhores amigos Adriano e Gaby que sempre estiveram do
meu lado, dando-me força para vencer todo e qualquer obstáculo! Não posso esquecer-
me da minha linda Lilice, minha linda sobrinha Alice, que tio ama e também agradece
por tê-la em minha vida, alegrando-me com o sorriso mais lindo e cativante do mundo
ela me deu forças para persistir nessa empreitada.
A todos os meus familiares, meus avós, tios e primos que sempre acreditaram
no meu potencial.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação que possibilitou a minha
entrada, caminhada e conclusão do mestrado.
À minha orientadora Karyne, não só por ter me aceitado como seu primeiro
orientando de mestrado, mas pela sua extrema dedicação, paciência, competência e,
fundamentalmente, pelos seus ensinamentos que certamente vão bem além do universo
acadêmico.
À professora Mariangela Momo pela sua presença e ajuda em todas as fases da
pesquisa.
Aos membros da banca avaliativa que aceitaram analisar o meu texto
dissertativo.
A todos os meus professores, sem exceção, da Educação Infantil a pós-
graduação, com destaque aos meus queridos e queridas professores do curso de
Pedagogia da UFRN que tanto me incentivaram a entrar, cursar e concluir o mestrado.
À minha querida professora Erika, minha orientadora de TCC e de bolsa do
PIBID, pelo apoio em momentos delicados que vivi e por ela fui acolhido.
Aos meus colegas e minhas colegas do curso de Pedagogia que sempre
confiaram na minha competência.
Aos meus colegas do Grupo de Estudos Culturais e Educação que trouxeram
pertinentes contribuições para o desenvolvimento da pesquisa.
Aos meus colegas da PROGESP/UFRN, especialmente as minhas “chefas”
Mirian e Raquel que me deram o suporte que me manteve de pé no momento em que
quase fui ao chão.
Aos meus amigos de trabalho da CCEP/UFRN pela total confiança, apoio e
incentivo desde a seleção até a conclusão do mestrado.
Aos meus ex-alunos e ex-colegas do CMEI Fernanda Jalles que deram, além de
muito amor, subsídios relevantes para desenvolver as minhas investigações.
Dedico este trabalho a vocês, EDU 01 e EDU 02,
que, mesmo no anonimato, se fizeram presentes, de
forma essencial para o desenvolvimento da pesquisa.
Não há por que temer debates ou tensões teóricas;
eles podem significar novas e produtivas alianças,
podem resultar em outros modos de análise e de
intervenção social, talvez capazes de alterar, de
forma mais efetiva, as complexas relações sociais de
poder. (LOURO, 2004, p.159)
RESUMO
6 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 98
1 UMA HISTÓRIA PARA INÍCIO DE CONVERSA
11
Talvez pela formação jurídica, somando ao fato de ser homem, ele sentiu por
parte do curso um sutil direcionamento para que estudasse as Políticas Educacionais ou
a Gestão Escolar, áreas sem muito contato com as crianças. Ouviu de alguns: “Você
seria um ótimo diretor de escola!” “Eu lhe vejo como um excelente pesquisador”.
Todavia, começou a estudar e pesquisar os mais diversos temas educacionais
inerentes ao novo curso, sem restrição. Participou de vários eventos acadêmicos,
publicando e apresentando artigos que traziam o resultado de pesquisas realizadas em
quase todas as áreas do curso, a saber: Educação Especial, Políticas Educacionais,
Processo de Alfabetização, Educação Infantil, Práticas Educacionais, Currículo,
Didática, etc.
Ele gostava de tudo, mas sabia que deveria direcionar seu interesse para alguma
área. Foi então que se viu diante da oportunidade de ser bolsista num programa de
iniciação à docência. Durante este período, questionou-se: “será que eu quero ser
professor de crianças?” “Será que eu posso ser professor de crianças?”. Ainda com
certas dúvidas, decidiu concorrer a uma das vagas.
Ao ser selecionado como bolsista do programa e, à medida que foi tendo
experiência em sala de aula, ele adquiria mais certeza que era aquilo que queria fazer.
No mesmo período, em função de sua aprovação em concurso público, foi nomeado
para ocupar o cargo de educador infantil na Rede Municipal de Ensino de Natal/RN. A
felicidade foi tão grande quanto os desafios que passaria a enfrentar a partir daquele
momento: adiantar os componentes curriculares do semestre letivo, solicitar o
aproveitamento de disciplinas, pedir a dispensa de disciplina, solicitar colação de grau
antecipada para, só assim, conseguir o diploma de graduação em Pedagogia para
assumir o cargo para o qual fora nomeado.
Contudo, foi impedido de tomar posse por não possuir o diploma do Ensino
Médio na modalidade normal (exigência contida no edital do concurso). Assim, teve
que recorrer à justiça estadual para conseguir um mandado de segurança que garantisse
a posse no referido cargo. Após o mandado concedido pelo juiz, peregrinou por diversos
dias pela Prefeitura Municipal e Secretaria Municipal de Educação, em companhia do
oficial de justiça, para poder tomar posse como educador infantil.
Após a devida posse, dirigiu-se para a Secretaria Municipal de Educação
objetivando ser encaminhando para o seu futuro local de trabalho. Entretanto, foi mais
uma vez surpreendido: foi informado que não poderia ir trabalhar (exercer a sua
12
profissão, ser professor) na instituição de ensino a que fora encaminhado pelo simples
fato de ser homem, pois em tal instituição ainda não se sabia se teria turmas de
“crianças grandes”, ou seja, a partir dos quatro anos de idade.
Deste modo, ele não poderia exercer as funções de educador infantil, pois: “um
homem não pode ser professor de crianças pequenas”, “só quem pode cuidar e ensinar
essas crianças são as mulheres”, “as famílias não aceitariam você como professor”, “é
uma profissão feminina”, “não sei o motivo pelo qual homens inventam de fazer
concurso para educador infantil se já sabem que vai ser um problema”. Essas foram
algumas das frases proferidas pelos responsáveis ao encaminhamento de educadores
infantis na rede municipal de ensino de Natal/RN. Frases escutadas por quem tem
formação adequada conforme a lei e foi aprovado em concurso público, nomeado e
empossado no cargo de educador infantil.
A história acima é, resumidamente e com diversos recortes, a síntese de parte da
minha história na área da educação, que não terminou na negação por parte da
Secretaria Municipal de Educação de Natal/RN, pois consegui, por força da justiça, ser
professor na instituição de ensino a que fui encaminhado originariamente, sendo bem
recebido pelos gestores, colegas, alunos e familiares, sem que houvesse qualquer
restrição ou censura pelo fato de ser homem. Exerci a docência por um ano letivo.
Atualmente, não estou ocupando o cargo de educador infantil, mas minha saída
deu-se devido a circunstâncias alheias ao fato de ser um homem exercendo a docência
em turmas de Educação Infantil. Mesmo optando por trabalhar em outra área, continuei
vinculado, e com muitas inquietações, ao campo da educação. Essa vinculação se deu
no âmbito da pesquisa, com minha inserção no curso de Mestrado, do Programa de Pós-
Graduação em Educação da UFRN.
No município de Natal/RN existem dois cargos em que se pode exercer a docência em turmas da
1
Educação Infantil: o cargo de educador infantil (Lei Complementar nº 114/2010) com o qual só se pode
atuar na Educação Infantil; e o cargo de professor (Lei Complementar 058/2004), com o qual se pode
exercer o magistério tanto na Educação Infantil quanto nos anos inicias do Ensino Fundamental.
Conforme informações obtidas na Secretaria Municipal de Educação, a docência em turmas da Educação
Infantil em Natal/RN está sendo exercida, atualmente, em grande maioria (não foi informado
precisamente o percentual), por profissionais que ocupam o cargo de educador infantil. Existe, portanto,
cargos com nomenclaturas e carreiras distintas, havendo, deste modo, reconhecimentos, direitos e
vantagens distintos. Não ser denominado como professor denota, para alguns educadores infantis, uma
certa forma de desprestígio pela função. Atualmente, os ocupantes do cargo de educador infantil lutam
pela unificação das carreiras para que sejam equiparados, em nome e em direito, com os que ocupam o
cargo de professor. Entretanto, tal unificação vem enfrentando barreiras jurídicas, tendo em vista que os
cargos foram criados por meio de legislações próprias. A presente pesquisa refere-se ao profissional que
exerce o magistério na Educação Infantil seja como professor, seja como educador infantil.
14
últimas décadas, no Brasil. Contudo, na esfera da rede municipal de ensino de
Natal/RN, o mencionado debate ainda encontra-se pouco problematizado
cientificamente. A constatação de que efetivamente há homens atuando como docentes
em instituições de Educação Infantil (tanto em âmbito nacional, quanto regional e
local), e de que localmente isso tem sido pouco investigado, justifica a relevância e
necessidade de pesquisas científicas acerca dessa temática, para aportar um fenômeno
educacional existente, porém pouco explorado academicamente.
Além disso, outra justificativa para a realização deste estudo consiste na
invisibilidade dessa questão nos documentos oficiais responsáveis pelas análises
quantitativas acerca da ocupação dos cargos de professor nos níveis de educação
brasileiros2, tal como exposto na seção que segue.
Conforme a LDBEN, a educação escolar é composta por dois níveis de ensino: Educação Básica e
2
Superior. A Educação Básica possui três etapas: a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino
Médio.
A LDBEN foi promulgada em 1996 e definia inicialmente no seu art. 29 que a Educação Infantil
3
contemplaria as crianças de até 6 anos idade. Todavia, a Lei nº 12.796, de 2013, modificou a redação do
art. 29 da LDBEN, alterando de 6 anos para 5 anos a idade máxima das crianças a serem atendidas pela
etapa da Educação Infantil. Portanto, muitos documentos oficias e publicações acadêmicas, divulgados
anteriores a 2013, ainda fazem referência em seus textos à idade anteriormente estipulada, ou seja 6 seis
anos.
15
desvinculadas nos âmbitos organizacionais e estruturais, ou seja, existem instituições de
ensino que ofertam o atendimento em creche e pré-escola, sendo muitas delas
denominadas Centros (ou escolas) de Educação Infantil.
No tocante ao profissional docente para atuar na Educação Infantil, a LDBEN
estipula (em seu art. 62) a necessidade de ele possuir nível superior, em curso de
licenciatura, de graduação plena, ou no mínimo o Nível Médio na modalidade Normal.
Existem diversos documentos oficias do Ministério da Educação (MEC)4 que
objetivam nortear a prática, a formação e o perfil profissional para o exercício da
docência na Educação Infantil. Contudo, atualmente não existe no Brasil documento
oficial que problematize o/a profissional de Educação Infantil do ponto de vista das
questões de gênero5, apesar de inúmeros trabalhos de dissertação, teses e artigos
científicos ligados aos estudos de gênero e masculinidade abordarem essa questão.
O que de forma embrionária aponta que existe alguma “preocupação” de cunho
oficial sobre tal questão é o fato de que os levantamentos estatísticos divulgados pelo
MEC – no documento intitulado Sinopse Estatística da Educação Básica6– trazem, a
partir de 2007, os dados quantitativos dos professores estratificando por sexo7. No
entanto, chama-se a atenção aqui para o fato de que apenas pesquisar e divulgar os
dados desta forma não significa que se esteja tendo um olhar problematizador para as
questões de gênero, ainda que tais dados possam servir para subsidiar a análise acerca
do tema.
O mais recente levantamento estatístico divulgado pelo MEC (BRASIL, 2014)
aponta que existiam em 2014 no Brasil 498.785 (quatrocentos e noventa e oito mil,
setecentos e oitenta e cinco) professores na Educação Infantil, sendo: 483.082
(quatrocentos e oitenta e três mil e oitenta e dois) do sexo feminino (96,65%) e 15.703
(quinze mil setecentos e três) do sexo masculino (3,3%). No Rio Grande do Norte os
dados são semelhantes aos de âmbito nacional: em 2014 existiam 8.055 (oito mil e
que traga a problematização de gênero no perfil docente da Educação Infantil em âmbitos mais restritos
(redes de ensino municipais, estaduais e/ou de alguma instituição de ensino específica), porém, nas
pesquisas que realizei, não encontrei nenhuma referência nesse sentido.
Sinopse realizada e divulgada pelo MEC anualmente desde 1994.
6
Em 1999, o MEC divulgou o Censo do Professor (BRASIL, 1999), que trouxe dados quantitativos dos
7
professores estratificados por sexo referentes a 1997. Porém, os dados eram referentes a toda a Educação
Básica (Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio) e não trazia informações específicas
acerca da Educação Infantil. O censo apontou que na Educação Básica 14,1% dos professores eram
homens e 85,7% mulheres.
16
cinquenta e cinco) professores na Educação Infantil, sendo: 7.808 (sete mil oitocentos e
oito) do sexo feminino (96,93) e 247 (duzentos e quarenta e sete) do sexo masculino
(3,06%).
No tocante ao município de Natal/RN, a sinopse em questão não apresenta dados
catalogados por cidades. Contudo, realizei um levantamento em documentos oficiais da
Secretaria Municipal de Educação (SME) e constatei que: dos 1.005 (mil e cinco)
aprovados no primeiro concurso público para provimento de educadores infantis
efetivos realizado em 2007 foram nomeados 47 (quarenta e sete) educadores do sexo
masculino (4,6% do total). Porém, não pude verificar quantos desses 47 (quarenta e
sete) tomaram posse, pediram exoneração, foram demitidos, estão exercendo outras
funções (coordenação e direção) ou foram readaptados para outras funções dentro da
própria SME ou em outros órgãos.
Apesar de os documentos oficiais não apresentarem informações mais
detalhadas quanto a isso, sabe-se que há, hoje, homens exercendo a docência em creches
e pré-escolas, tanto na esfera nacional quanto na rede de ensino de Natal/RN.
Assim sendo, acredito que a presença do homem não pode ser ignorada e,
mesmo que em número bastante reduzido se comparada à presença da mulher, faz-se
necessário refletir e pesquisar com afinco como vem sendo realizada a inserção do
homem nesse território até então ocupado, em sua maioria, por mulheres.
Ignorar as repercussões da inserção de tais profissionais na Educação Infantil
também é, do mesmo modo, ignorar alunos, familiares, colegas, gestores e a sociedade
em geral que vem interagindo com esses homens professores. Tais interações, mesmo
que ainda incipientes, são existentes no cenário educacional brasileiro e local, e
precisam ser problematizadas para que se vislumbre a possibilidade de desnaturalização
de estereótipos de gênero associados a homens e mulheres no cotidiano da Educação
Infantil.
Entretanto, tanto nos vários documentos alusivos à Educação Infantil
provenientes do MEC quanto nas diversas legislações pertinentes ao tema, não se
encontra qualquer referência com relação à especificidade da presença e inserção do
homem como professor nessa etapa de ensino. Muito pelo contrário, em vários
documentos, o profissional que atua no magistério na Educação Infantil é denominado
de “professora”.
17
É importante ressaltar que, conforme os dados estatísticos do MEC (BRASIL,
2014), a profissão docente em todos os níveis e etapas de ensino no Brasil é ocupada em
sua maioria por mulheres. Destaca-se o fato de que a proporção de homens aumenta
diretamente proporcional à idade média dos alunos a serem atendidos na etapa/nível de
ensino e ao salário pago para tais profissionais, ou seja, quanto mais idade tiver os
alunos e maior for o salário, maior será a quantidade de homens como docentes,
demonstrando a hierarquia presente nas relações de gênero na ocupação de cargos de
trabalho.
Assim, diante desse cenário, destacamos a necessidade de que pesquisadores,
professores, gestores, famílias e sociedade em geral busquem formas de pensar, gerir e
tratar a inserção dos homens na docência na Educação Infantil, tendo-se em conta as
implicações da presença masculina nesta etapa de ensino. A pesquisa que ora
apresentamos pretende contribuir nessa discussão.
18
magistério, que constituiu a profissão docente como sendo ocupada em sua maioria por
mulheres.
O terceiro capítulo apresenta as lentes teórico-metodológicas através das quais
esta pesquisa foi realizada, com ênfase para a perspectiva da multirreferencialidade e
para os conceitos de cultura e de gênero.
O quarto capítulo faz a caracterização da entrevista como principal
procedimento metodológico deste estudo, e analisa os dados da pesquisa, apresentando
e discutindo os resultados a que chegamos.
O quinto e último capítulo faz algumas considerações transitórias, retomando de
modo sintético os achados da pesquisa e apontando que, ao mesmo tempo em que a
docência na Educação Infantil é um território de conflitos de gênero, ela se constitui
também num contexto muito profícuo para o exercício de resistência às imagens cultural
e historicamente associadas a homens e mulheres.
19
2 CERCANDO O TEMA
20
Sayão (2005) buscou entender as trajetórias pessoais e profissionais de
professores homens da Educação Infantil, almejando identificar os motivos pelos quais
estes profissionais optaram pela profissão docente e como desenvolvem seu trabalho.
Por intermédio das narrativas de professores e professoras, a pesquisadora analisou as
relações de gênero na constituição do trabalho docente com crianças pequenas e como a
questão do cuidado aparece atrelada à condição feminina e a uma suposta predisposição
natural das mulheres para o exercício de cuidar. Sayão (2005) apontou que a concepção
do professor na Educação Infantil como profissão feminina precisa ser repensada
porque qualquer noção sobre as mulheres implica necessariamente suas relações com os
homens. A pesquisa verificou que em creches e pré-escolas é possível desenvolver
ações que contribuam para superar muitos binarismos como “público e privado”,
“masculino e feminino”, “corpo e mente”, entre outros. Para isso, é necessário
implementar mudanças na formação docente, conquanto não se possa perder de vista
suas limitações no que tange a esse intento.
Silva (2008) considera que a naturalidade com que foi erguida a associação
entre mulher e criança pequena dentro e fora dos ambientes domésticos decorre da
maneira por meio da qual os sexos foram segregados a partir da divisão social do
trabalho e no interior do processo de constituição das esferas pública e privada, que
acabou por definir as posições que homens e mulheres ocupariam na família e na
sociedade.
Já Cardoso (2004), em pesquisa realizada na rede municipal de Educação
Infantil de Belo Horizonte/MG, constatou que os professores homens não identificam o
magistério como uma profissão feminina, embora discursos tenham sido criados para
associar o magistério às mulheres, como uma tarefa que exige dedicação, docilidade,
cuidado e paciência. Cardoso também percebeu que os professores homens fugiam de
atuar em classes de alfabetização, havendo uma preferência dos homens em assumir as
aulas de educação física ou funções de gestão da educação, espaços notadamente ainda
demarcados para as vivências de suas masculinidades. Eles parecem acessar os cargos
disponíveis nas escolas com mais facilidade que as mulheres, contando, inclusive, com
elas para que isso seja possível. Os resultados a que Cardoso (2004) chegou em sua
investigação apontam para a ocorrência da reprodução das relações sociais de gênero,
em que os homens continuam dispondo de mais privilégios na hierarquia de cargos
21
considerados de maior prestígio, em funções administrativascaracterizadas pelo
exercício de controle e poder.
Sousa (2011) constatou em seus estudos que existe uma representação do
trabalho docente na Educação Infantil como uma profissão feminina partilhada por uma
significativa parcela de sujeitos que entendem ser mais adequado que mulheres exerçam
a função por terem mais jeito com crianças e os homens são considerados inadequados
por causa dos inúmeros casos de pedofilia de que se ouve falar através da mídia. Este
pesquisador também percebeu que o fato de o professor ser uma pessoa conhecida na
comunidade o credencia para trabalhar com as crianças. Todavia, para as crianças o
elemento decisivo para sua aceitação ou não do professor seria apenas a experiência
positiva ou negativa que tiveram com o docente, independentemente de ser homem ou
mulher.
No mesmo sentido, uma das principais constatações da pesquisa de Ramos
(2011) é que, para além do período probatório exigido legalmente, todos os professores
homens da Educação Infantil abordados em sua pesquisa necessitaram de um tempo
para demonstrarem as competências e as habilidades com a educação e o cuidado das
crianças pequenas matriculadas nas instituições públicas: tempo que o autor chamou de
“período comprobatório”.
Mattos (2011), em pesquisa realizada em um Centro Municipal de Educação
Infantil localizado na cidade de Curitiba, no Estado do Paraná, revelou que ainda
existem poucos estudos sobre essa temática e que as próprias professoras (educadoras
infantis) acreditam que cabe à mulher a educação das crianças, que a docência na
Educação Infantil não é uma atividade masculina e que a discussão de gênero não fez
parte de sua formação.
Pierangeli (2012) realizou entrevistas semi-estruturadas com dois professores
homens em turmas de Educação Infantil de Ribeirão das Neves/MG e verificou que os
homens pesquisados buscaram o campo da Educação Infantil como um meio de renda e
estabilidade que um concurso público proporciona. Porém, percebeu que só o concurso
público não é suficiente para legitimar sua presença nessa profissão. Os professores
homens precisam se tornar conhecidos nas creches e pelos pais, e com certeza, esses
docentes lidam com uma constante vigilância dos mesmos.
Monteiro (2014) desenvolveu uma pesquisa que analisou as trajetórias
profissionais de professores homens que atuam na rede municipal de ensino de
22
Campinas/SP. O estudo apontou que o ingresso e a permanência na profissão foram
marcados tanto por desafios característicos da área de atuação quanto por dificuldades
decorrentes de uma noção hegemônica de masculinidade que levou a questionamentos
acerca da presença masculina na Educação Infantil.
Ao buscar pesquisas que configuram o que já vem se dizendo no Brasil sobre a
presença/ausência de homens em instituições da Educação Infantil percebi que, apesar
de apresentarem diferenças teórico-metodológicas, quase todas elas referem em suas
análises a centralidade do processo de feminização do magistério.
Assim, dada a importância do referido processo para a compreensão da
conjectura do perfil docente, e também como forma de continuar cercando o tema desta
pesquisa (conteúdo deste segundo capítulo), a seção a seguir trata dos aspectos
históricos que constituíram a profissão docente no Brasil como sendo ocupada em sua
maioria por mulheres.
De acordo com este autor, a história dos países ocidentais tem como marco da
feminização do magistério o período a partir da segunda metade do século XIX. Essa
23
marca se deve principalmente ao avanço do capitalismo, que gerou a criação das
grandes indústrias e com ela o surgimento da hierarquia das profissões, que eram
categorizadas de acordo com as exigências do mercado de trabalho, ou seja, aquelas
mais importantes para as indústrias eram colocadas no topo do ranking e aquelas que
não tinham influência direta na evolução e progresso das fábricas ocupavam as
colocações mais baixas. A creche era um local destinado aos filhos dos/as
trabalhadores/as das fábricas. O surgimento da creche está ligado ao fenômeno a partir
dos anos de 1960 da entrada das mulheres no mercado de trabalho, resultado de lutas e
reivindicações de mulheres e feministas. E é justamente nesse contexto que o magistério
e a carreira de professor de educação básica sofrem gradativos abalos, o que culmina no
desprestígio da profissão.
Deste modo, é importante que se busque analisar o processo de feminização do
magistério a partir da história social e sua responsabilidade na construção da identidade
do profissional docente da Educação Infantil, ou melhor, da profissional docente, uma
vez que a associação entre Educação Infantil e trabalho feminino tem sido considerada
“natural” nos mais diferentes contextos e segmentos sociais. Tal processo também pode
ser visto (entendido) com o olhar no processo de formação de tais profissionais.
A questão da formação de professores é um assunto que acompanha o processo
educacional no Brasil. Nas diferentes fases históricas do nosso país, a formação foi
impactada por circunstâncias culturais que permearam cada período histórico.
Ao mostrar a formação e o papel dos docentes do início da história da educação
no Brasil, Romanowski (2006, p.32) aponta a presença masculina nas salas de aula:
24
fatores significativos para a intensificação da vida urbana brasileira. Segundo Gomes
(2007, p.107):
Essa manobra feita pela coroa portuguesa em território brasileiro permitiu que o
país definitivamente entrasse no processo de crescimento econômico e urbano. No ano
de 1835, no Rio de Janeiro, foi criada a primeira escola normal com a finalidade de
preparar e formar professores. O tempo de duração desse curso era de dois anos e o
nível de ensino era secundário.
De acordo com Fernando de Azevedo (apud ARANHA, 1996, p.195):
25
O exercício do magistério foi seguindo novos caminhos, os professores homens
estavam, aos poucos, abandonando as salas de aula. Esse acontecimento foi denominado
como “processo de feminização do magistério” provocado, dentre outros
acontecimentos, pelo crescente processo de urbanização e industrialização do Brasil,
que garantia novas possibilidades no mercado de trabalho aos homens. Além disso,
Louro (1997, p.450) justifica que a nova demanda de professoras em sala de aula
aconteceu em razão da valorização de características ditas femininas na educação de
crianças:
As mulheres tinham “por natureza” uma inclinação para o trato
com as crianças, que elas as primeiras e “naturais educadoras”,
portanto, nada mais adequado do que lhes confiar a educação
escolar dos pequenos. Se o destino primordial da mulher era a
maternidade, bastaria pensar que o magistério representava, de
certa forma, “a extensão da maternidade”, cada aluno ou aluna
vistas como um filho ou uma filha “espiritual”
26
Ao percorrer essa história por meio da investigação dos caminhos do ensino
básico no Brasil, no período entre o século XIX e XX, encontra-se que as mulheres
antes do Período Republicano brasileiro já “constituíam a maioria dos alunos das
escolas normais” (CATANI et al., 1997, p.26).
Essa possibilidade ocorreu, pois socialmente era vista como a única profissão
que conciliava as funções domésticas da mulher com o trabalho fora do lar. Esse
panorama indicava que o trabalho da mulher fora de casa era visto mais como um
prolongamento do seu papel de mãe dentro do mercado de trabalho, incorporando-se na
escola a “ideologia da domesticidade e da submissão feminina” (id.).
Os estudos de Demartini e Antunes (1993) demonstram que há uma coincidência
entre feminização do magistério e a desvalorização econômica e social da profissão
docente. Bruschini e Amado (1998, p.66) afirmam:
27
como assexualidade, altruísmo, abnegação, bondade, recato, espírito de sacrifício, para
justificar uma profissão secundária, menor, essencialmente prática e não intelectual.
Isso explica em parte o fato de as escolas de Educação Infantil e Ensino
Fundamental, bem como os cursos de Magistério e Pedagogia, terem tanto o corpo
docente quanto o discente compostos em sua maioria por mulheres.
Catani et al. (1997) afirmam que há um grande número de estudos ligados à
profissão docente, utilizando a categoria gênero como uma possibilidade de enfatizar a
voz e a condição das mulheres. No entanto, há um perigo eminente nesse processo de
feminização do magistério que se constitui numa análise somente do feminino e das
mulheres, deixando de lado o estudo sobre como os homens constroem as relações com
o conhecimento, com a escola, com a leitura e a profissão (FARIA FILHO et al., 2005,
p.54).
Cumpre ressaltar que nos afastamos desse uso mais simples da categoria de
gênero e para efeitos de nossas análises compartilhamos do entendimento de Scott
(1990, p.6), ao conceituar que:
28
Assim, o uso da categoria gênero para análise e estudo de professores, em
especial na Educação Infantil, demanda também pensar questões culturais que
atravessam as relações sociais definidoras de papeis atribuídas a homens e mulheres,
ampliando, portanto, o debate para além da codificação do feminino como conotação
neutra. Scott (1990) abre a possibilidade da intercessão entre gênero e cultura,
interpretação que nos é extremamente útil na crítica do magistério como um território
cujas relações (que se estabelecem nos processos de profissionalização docente nas
escolas e entre os atores nelas envolvidos) seguem uma cultura sexista, machista e
heteronormativa.
Eis aqui a articulação entre o segundo e o terceiro capítulos desta Dissertação: a
aproximação que fizemos ao tema em tela (e que está apresentada neste segundo
capítulo) nos levou à seleção de conceitos chaves deste estudo, dentre os quais se
destaca o conceito de gênero. Conectado a ele, percebemos a utilidade do conceito de
cultura para as análises desta investigação. Ambos os conceitos (de cultura e de gênero)
constituíram-se como as lentes teórico-metodológicas escolhidas sob a perspectiva da
multirreferencialidade a partir da qual a pesquisa foi desenvolvida (discussões que
constituem o capítulo a seguir).
29
3 LENTES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
3.1 MULTIRREFERENCIALIDADE
p.203), em “ir aqui e lá, eventualmente para obter, pelo desvio, indiretamente, aquilo que não se pode
alcançar de forma direta”. Esse procedimento não escusa o rigor da produção de um conhecimento
científico. Trabalha-se, então, com uma abordagem que constrói espaços para o entrecruzamento de
múltiplas perspectivas, uma multiplicidade de linguagens sem “misturá-las e reduzi-las” umas às outras,
objetivando, assim, compreender os fenômenos. O conhecimento produzido nesta perspectiva seria,
portanto, um conhecimento “bricolado” “montado”, “tecido”...
30
A análise proposta por Ardoíno (1998) reconhece a opacidade do objeto,
considerando sua complexidade como processo, e não como objeto estático e
individual. Ao investigar o presente objeto de pesquisa, sob a perspectiva da
multirreferencialidade, a elucidação desse processo de produção do conhecimento “se
renova, se recria, na dinâmica intersubjetiva da penetração, na sua intimidade, na
multiplicidade de significados” (BURNHAM, 1998, p.41). Assim, o homem que
exerce a docência em instituições de Educação Infantil não é algo, é alguém, alguém
complexo, dinâmico e imbricado de complexidades e múltiplos significados que, por
ventura, também podem ser contraditórios, mas nunca estáticos, sempre com o caráter
da transitoriedade.
Essa abordagem propõe rupturas epistemológicas, ao possibilitar uma análise
do objeto a partir de leituras plurais, sob vários ângulos, não somente diferentes, mas
sobretudo outros. Porém, a multirreferencialidade não pretende ser uma integração
desses saberes, visto que, quanto mais se conhece, mais se criam áreas de não-saber.
Como afirma Ardoíno (1998, p.39), “a abordagem multirreferencial não é nem idealista,
nem espiritualista [...] sua única ambição limita-se a fornecer uma contribuição analítica
à inteligibilidade das práticas sociais”, como a presença de homens enquanto docentes
na Educação Infantil.
Diante desse questionamento epistemológico, do apelo deliberado à
complexidade através da pluralidade de olhares, supõe-se como exigência a capacidade
do pesquisador de tentar ter um olhar múltiplo e diverso. Para Ardoíno (2000, p.551), o
objeto “se complexifica a partir do momento em que uma inteligência da desordem
se elabora para refinar, enriquecer e tomar mais sutil o olhar que se dirige aos
fenômenos”.
E nesse sentido que a perspectiva da multirreferencialidade promove rupturas
com a fragmentação do conhecimento, a neutralidade do saber, o distanciamento do
pesquisador em relação ao objeto, a homogeneização dos caminhos metodológicos e a
sua auto-legitimação como único paradigma capaz de possibilitar todo o conhecimento.
Para Martins (2004, p.93), a multirreferencialidade
3.2 CULTURA
33
deslocaram o conceito de cultura com ênfase para a sua centralidade nas práticas
sociais, entendendo-a não tanto como produto, mas como produção de significados.
Com relação a isso, destaca-se a teoria da cultura de Raymond Williams, que
considera a cultura como um modo de vida global. Conforme sua teoria, a cultura não é
apenas prática, nem a soma de costumes e culturas populares, mas perpassa por todas as
práticas sociais e constitui a soma dos inter-relacionamentos das mesmas (HALL,
2003).
O conceito de cultura assume, na perspectiva de alguns autores, sentidos mais
amplos, passando a incluir não apenas as artes e as formas de produção intelectual
tradicionais, “mas também todas as práticas significativas, desde a linguagem até o
jornalismo, a moda e a publicidade, que agora constituem esse campo complexo e
necessariamente extenso” (WILLIAMS, 2000, p.13). Segundo Escosteguy (2006, p.6):
34
Corroborando com essa ideia, Guareschi et al. (2003, p.45) destacam que “a
questão do sujeito nessa perspectiva passa a ser pensada através da cultura, dentro dela
[...]. Os sujeitos e suas subjetividades são, então, produzidos parcialmente de modo
discursivo e dialógico”.
Para Hall (1997a, p.16), a cultura, como um campo de lutas, assume papel
central na constituição da subjetividade, da própria identidade e da pessoa como ator
social: “toda ação social é cultural, pois todas as práticas sociais expressam ou
comunicam um significado e, neste sentido, são práticas de significação”.9
Nessa perspectiva, entende-se que os significados são produzidos pela
linguagem, cujo caráter produtivo encontra-se articulado com a noção de representação.
A representação por sua vez envolve práticas de significação através das quais estes
significados possibilitam compreender as experiências da vida, sendo específicas em
espaços e tempos históricos singulares.
Na obra Work of Representation, Hall (1997b) analisa o conceito de
representação. Para ele, a linguagem funciona através da representação, ou seja, os
significados culturais têm efeitos reais e regulam práticas sociais. O reconhecimento
desses significados contribui na constituição de identidades e nos interpelam a ocupar
posições construídas em práticas discursivas.
Ao conceber a cultura como produção de significados, Silva (2003, p.20) alerta
que ela nunca é apenas consumo passivo, ou seja:
Com base nisso, Coutinho e Pinheiro (2014, p.85) ressaltam que “esse trabalho
de produção de significados, atribuídos aos discursos e às práticas, envolve uma série de
campo dos Estudos Culturais que “se movimenta no entrecruzamento de diversas disciplinas. Mais do que
interdisciplinar, é um campo anti-disciplinar que rejeita qualquer tipo de definição que se pretenda fixa
e/ou exata. Tem como principal eixo de pesquisa os aspectos culturais da sociedade contemporânea em
torno do qual se movimentam, circularmente, as mais variadas temáticas, analisadas a partir de seu
envolvimento em relações de poder” (COUTINHO, 2010, p.23).
35
negociações em torno dos significados que devem ser mais ou menos valorizados”. E as
autoras continuam:
Neste estudo, adotamos um conceito de gênero como sendo atravessado por relações de poder, sob o
10
viés de Louro (1997) que, com base na perspectiva foucaultiana, entende tais relações como redes tensas
e continuamente ativas, em que não se permite a posse do poder, mas apenas a capacidade de exercê-lo
em múltiplas instâncias e intensidades. Assim, o poder tem seus efeitos atrelados a manobras, técnicas,
táticas e mecanismos, tendo resultados sobre as ações dos sujeitos que o exercem, possibilitando o
rompimento com a polarização entre o feminino/masculino, uma vez que impede a aceitação de que
somente um dos dois pólos detém o poder, enquanto o outro é totalmente e incontestavelmente submetido
a ele. Portanto, as diversas formas de sexualidade e de gênero são interdependentes, isto é, afetam umas
às outras. É na esteira disso que afirmamos que os gêneros se produzem nas e pelas relações de poder.
36
cultura, se tornou premente e profícuo nesta análise: o conceito de gênero, de que trata a
seção a seguir.
3.3 GÊNERO
37
Assim, ampliando-se concepções dicionarizadas, as características ditas naturais
de gênero passam a ser entendidas como construções socioculturais que têm uma
história, estão na história e, por isso, modificam-se e diferenciam-se, de um grupo
étnico a outro, no tempo e no espaço. Refere-se ao que cada grupo social considera
como masculino e feminino, aos papéis reprodutivo e produtivo que cada um
desempenha, envolvidos, sobretudo, em relações de poder que se estabelecem no seio
de cada sociedade. Como asseveram Silva e Silva (2005, p.166):
38
Atualmente, sabemos que os estudos de gênero são muito mais abrangentes que
os estudos feministas. Na virada das décadas de 1970 para 1980, na chamada terceira
onda do feminismo, Joan Scott vai afirmar que gênero não é sexo, tampouco uma
manifestação cultural de sexo. Scott (1990, p.117) salienta que, especialmente nas
últimas décadas,
os Estudos de Gênero criaram um paradigma metodológico no
que tange a ruptura com o sexo biológico e com a
dessubstancialização das categorias naturalizadas de homens e
mulheres. Afirmaram a primazia metodológica de investigar as
relações sociais de gênero sobre a investigação das concepções
de cada um dos gêneros; afirmaram a possibilidade cultural de
um número indefinido de gêneros; afirmaram a possibilidade
dos processos de diferenciação e indiferenciação de gênero
Apontaram a primazia da diferenciação sobre as diferenças
construídas, isto é, a primazia das relações entre os gêneros
sobre as concepções de cada um dos gêneros.
39
Na mesma direção, Butler (2003) afirma que se tornou impossível separar a
noção de gênero das interseções políticas e culturais em que ela invariavelmente é
produzida e mantida. A manutenção de um sistema cartesiano, binário e oposto de
análise nos leva à exclusão de pessoas, gerando conflitos: cartesiano porque pensa
apenas em binarismos como: homem/mulher, macho/fêmea,
homossexual/heterossexual; por ser um sistema fechado em si mesmo, não admite o que
está fora da norma, gerando o preconceito.
É mister pensar na complexidade das relações de gênero e poder de modo que as
classificações normativas sejam definitivamente questionadas no âmbito da escola,
espaço privilegiado de construção de conhecimento, de relação com o outro onde os
seres humanos em tese deveriam se humanizar, de fato.
Conforme Butler (2003, p. 20), “se alguém é uma mulher, certamente não é tudo
que esse alguém é”. Tal constatação vale, logicamente, para o homem; interessa saber
quem é essa pessoa além do gênero que se constituiu dentro de um contexto histórico-
cultural.
Nesse sentido, a categoria gênero pode ser entendida como um conceito
epistemológico que pode proporcionar um olhar diferenciado das relações humanas
existentes no ambiente escolar, auxiliando no processo de construção do conhecimento
ao permitir a instauração de problematizações acuradas acerca de como é trilhado o
processo de produção e interprodução das identidades de gênero.
Inspirados nisso, foi com as lentes do conceito de gênero (e também de cultura)
que olhamos e tentamos compreender o objeto de estudo desta investigação. Assim,
tendo os conceitos de cultura e gênero como chaves da análise acerca da presença de
homens docentes na Educação Infantil, o próximo capítulo apresenta e discute os dados
obtidos através das entrevistas realizadas com dois educadores infantis.
40
4 O HOMEM COMO EDUCADOR INFANTIL
A experiência que tive como educador infantil auxiliou na busca de caminhos e subsídios durante a
11
43
Na medida em que se realizavam os momentos de entrevista, promovia-se um
maior clima de confiança entre entrevistador e entrevistado, permitindo inclusive que,
em algumas situações, os papéis se invertessem, dando vez a ricos momentos de troca
de experiência. A aproximação entre entrevistador e entrevistado permitiu que as
últimas entrevistas ganhassem um status de “conversas”, em conformidade com os
referenciais metodológicos adotados.
As entrevistas ocorreram individualmente e foram todas gravadas em áudio.
Além da gravação, em todas as entrevistas foram realizadas anotações para que não
ficassem perdidas as expressões de excitação, exaltação, assombro, alegria, etc., com a
finalidade de que, na análise de dados, a interpretação contasse com o maior número de
elementos possível. Há toda uma gama de gestos, expressões, entonações, sinais não-
verbais, hesitações, alterações de ritmo, enfim, toda uma comunicação não verbal, cuja
captação é muito importante para a compreensão e a validação do que foi efetivamente
dito.
Foram realizados oito encontros com EDU 01 e doze encontros com EDU 02,
no período de fevereiro a outubro de 2014. A duração e o local dos encontros foram
variados.
A análise das entrevistas possibilitou a organização dos dados em quatro focos
de discussão.
O primeiro deles refere-se às figuras masculinas (re)produzidas no cotidiano da
Educação Infantil, cujas representações discursivas constroem o homem como
“perigoso”, “poderoso” e “respeitado”, ajudando a perpetuar os vínculos histórica e
culturalmente estabelecidos entre a figura masculina e as imagens de autoridade,
liderança, comando, ao mesmo tempo em que reforça o suposto caráter natural das
relações entre a figura feminina e o cuidado infantil.
O segundo foco de discussão, intitulado funções generificadas, trata da
polarização entre os elementos do binômio masculino/feminino, ativado constantemente
nas relações que se estabelecem entre homens e mulheres no cotidiano da Educação
Infantil, tornando as instituições desta etapa de ensino um local de concretização dos
mais diversos significados de gênero.
O terceiro foco de discussão problematiza a necessidade de afirmação da
heterossexualidade dos educadores infantis entrevistados, destacando-se a associação
44
(geralmente feita por gestores, por colegas de trabalho e pelas famílias das crianças)
entre a heterossexualidade masculina e o adequado exercício da função docente.
O quarto e último foco de discussão trata das lacunas da formação inicial e
continuada de educadores infantis, enfatizando que, de modo geral, os cursos que
formam professores para atuar em instituições de Educação Infantil tendem a
desconsiderar a inserção profissional de homens nessa etapa de ensino.
Sumariamente apresentados os quatro focos de discussão depreendidos da
análise das entrevistas, passemos ao primeiro deles.
45
é bacana ser tratado diferente por sermos homem [...] Algumas
vezes eu parei para refletir sobre isso, mas no final de tudo eu
confesso: é melhor ficar com os grandes mesmo. (EDU 02)
Como você sabe, minha turma não toma banho aqui [na escola].
Mas teve um dia que uma aluna não conseguiu se segurar e fez
xixi na roupa. Ficou toda molhada. Todos [as outras crianças da
turma] ficaram rindo dela. Tive que tomar uma atitude rápida.
[...] Era a primeira vez, depois de quase seis meses aqui que
tinha acontecido isso na minha sala. [...] Quando eu estava
caminhando com ela em direção ao banheiro para dar o banho
nela, a professora [professora de outra turma da escola] gritou lá
da porta da sala dela, gritou mesmo “Você tá louco? Deixa que
eu vou mandar [nome de uma auxiliar de creche] dar banho
nela. Pode deixar! Pode deixar!”. Não gostei da forma que ela
agiu. Não precisava gritar daquela forma! [...] Eu sabia que eu
não iria fazer nada de errado com a menina, não sou pedófilo,
mas foi melhor mesmo assim [suspiro]. [...] Entendi minha
colega, ela só estava preocupada com a reação dos pais da
menina. [...] é claro que tem coisas que elas [as mulheres]
fazem melhor do que a gente né? [risos] Ah! Mas na hora de
pegar no pesado elas sabem me chamar ligeiro [risos]. Acho
natural essa divisão [divisão de tarefas entre homens e
Para dar destaque aos trechos das entrevistas, optamos por apresentá-los aqui com bordas externas,
12
independente de sua extensão. Assim, pode-se melhor diferenciar o que é citação que nos serviu como
corpus analítico (as falas dos entrevistados) daquilo que é citação que nos serviu como aporte teórico-
metodológico do trabalho (frases dos autores de base deste estudo). As sensações dos entrevistados estão
transcritas entre colchetes, bem como as explicações de termos e demais situações necessárias ao bom
entendimento dos trechos das entrevistas.
46
mulheres]. Eu sei que poderia ser diferente, que eu poderia fazer
tudo, ou quase tudo que elas fazem, mas tá bom assim
[conformidade]. (EDU 02)
A questão da formação inicial e continuada dos educadores infantis será discutida mais adiante nesta
13
Dissertação.
47
condições naturais femininas. E trata-se de fatores culturais que sobrevivem e se
recriam a todo momento também nessas experiências captadas nas entrevistas desta
pesquisa. Ou seja, há uma face pedagógica de produção permanente desses estereótipos
de gênero, face da qual as falas dos entrevistados são emblemáticas. Isso não significa
que é na escola infantil que essas coisas se originam. Significa apenas que, imersas
nessa cultura já constituída, as experiências vividas por homens e mulheres na escola
infantil acaba por perpetuar a própria cultura estereotipada. Assim sendo, a escola
infantil é um dos locais em que essa cultura pode funcionar e se refazer em suas ideias.
Ainda com relação à fala de EDU 02, percebe-se que ele não demonstra total
desconforto em não assumir a função do banho e, conformado, diz concordar com a
decisão institucional de lhe afastar dessa tarefa. A conformidade do entrevistado quanto
a isso pode ser entendida em função dos fatores culturais sobre os quais vimos falando
nesta seção. E implícita nestes fatores culturais está também a ideia de minoridade da
função do cuidado, na medida em que ela supostamente não demandaria trabalho
intelectual. Nesse sentido, a atividade de higienizar a criança, por exemplo, acaba sendo
considerada na cultura escolar como naturalmente feminina, de baixa complexidade e de
pouco prestígio laboral. É também por meio dessa “sutileza” que os homens aceitam
tranquilamente atribuir às educadoras mulheres a tarefa do cuidado das crianças que são
de sua turma, afinal, implícita a essa aceitação está a ideia, culturalmente muito bem
tecida ao longo dos anos, de que a mulher seria naturalmente apta e mais capaz para
executar essa tarefa considerada de baixo prestígio cognitivo se comparada a outras
atividades que professores e professoras realizam na escola, dando aos homens um certo
privilégio profissional em relação às mulheres.
Outro ponto a ser destacado nesta análise são as interelações da instituição de
Educação Infantil com os familiares das crianças, quando estes se deparam com a
designação de um homem para desempenhar a função de educador de seus filhos ou
suas filhas. Referindo-se aos pontos de inflexão entre as famílias e as instituições, Sayão
(2005, p.178) afirma que “esta relação geralmente evidencia tensões e conflitos”, o
que pode ser também observado nas falas dos entrevistados EDU 01 e EDU 02,
respectivamente:
48
filho com um professor homem, a confusão é grande. [...] Já
tive que fazer [na função de diretor] vários remanejamentos de
alunos para apaziguar os ânimos. [...] Mudo o aluno para outra
turma, faço a permuta com outra professora, essas coisas, mas
quando é possível. [...] Justamente quando ele [professor
homem] chegou aqui só tínhamos um Nível IV, duas mães
vieram aqui e disseram que não aceitariam, eu conversei,
expliquei a situação, chamei o professor para se apresentar, mas
não teve jeito, as duas tiraram seus filhos [...] Ele ficou sabendo
que elas [as crianças] saíram por ele ser homem, abri o jogo
logo de início. [...] Acho que ele não gostou muito. [...] Isso não
é bom, certamente ele ficou mais inseguro. Eu mais do que
ninguém sei o quanto é possível o homem desenvolver bem o
seu papel de educador infantil, mas vou lhe ser bem sincero,
como gestor, hoje, eu prefiro receber uma professora do que um
professor, mas é só mais por causa desses problemas com os
familiares, com elas [professoras] a gente consegue contornar,
elas têm que aceitar, querendo ou não. Os pais não, o problema
fica é maior, bem maior. [...] Não digo que ele [professor
homem] não possa trabalhar aqui, ou que eu não aceite um
homem aqui, o que lhe digo é que prefiro uma professora, mas
se um dia chegar outro professor, pode ter certeza, ele será
muito bem recebido por mim [nervosismo]. (EDU 01)
49
O ponto alto deste último trecho está no momento em que o entrevistado
afirma que se ele fosse o pai e soubesse que um homem seria o educador de sua filha ou
filho também ficaria receoso e desconfortável. O fato de o próprio sujeito (que passa por
esse tipo de situação) afirmar que agiria do mesmo modo, numa hipotética situação
inversa, evidencia a força que culturalmente tem essa ideia de estranheza da presença do
homem na docência em turmas de Educação Infantil.
O que não parece ser problema para as crianças, assusta suas famílias:
50
têm pai, ou o pai não convive com elas. A gente acaba se
tornando a figura paterna para elas. [...] Tem certas coisas que
procuro evitar fazer com meus meninos [alunos e alunas]. Dar
carinho mais afetuoso, você entende né? [...] Tipo beijar,
acariciar, essas coisas. [...] Teve um dia que eu estava sentado
na cadeira e lendo uma historinha para a turma, eles gostam de
ficar perto da gente nessas horas, daí veio uma aluna e se sentou
no meu colo, eu fiquei sem saber o que fazer. Fiquei um pouco
chocado. Dei uma parada na história, mas continuei a contação.
Ainda bem que nesse dia eu estava sem auxiliar de sala, pois ela
iria ter notado o meu nervosismo e ter pensado outras coisas.
[...] Eu sei que eu não tinha maldade, sei que eu não estava
fazendo nada de errado, mas se outras pessoas fossem ver a
cena poderiam imaginar outra coisa né? [...] Mas aquilo [criança
sentada no colo dele] estava me incomodando. Ainda bem que
no meio da história eu tive que tirar ela do meu colo, pois o
restante da turma queria sentar no meu colo também [risos] [...]
A partir desse momento já ficou estabelecido nas contações de
história que todos deveriam ficar sentados nas almofadas. (EDU
02)
54
autoridade, à liderança e ao conhecimento, enquanto se vincula a professora mulher ao
maternal da aprendizagem.
Nesse sentido, Izquierdo (1994, p.82) afirma:
Assim, as análises realizadas aqui apontam que a gestão, no que se refere tanto
às suas relações quanto à sua ocupação, é um local de disputas de poder também
influenciado por questões culturais de gênero, em que homens e mulheres se constituem
mutuamente nessa trama do âmbito escolar. Vejamos o trecho que segue.
55
formulações acontece entre as professoras, tanto mais as classificações de funções
relativas a homens e a mulheres na Educação Infantil são definidas e reforçadas.
O trecho que segue é também elucidativo dessas questões:
57
Esses dois trechos das entrevistas encontram nos estudos de Louro (2004) uma
possibilidade de serem analisados, na medida em que esta autora trabalha com a ideia de
que a escola não apenas produz conhecimento, mas também fabrica sujeitos, produz
identidades étnicas, de gênero e de classe. É, portanto, nesse lócus produtivo de
identidades de gênero docente que a figura do homem respeitado vai se construindo nas
relações estabelecidas no cenário da Educação Infantil.
Assim, percebe-se na fala de EDU 02 a concepção histórica e culturalmente
constituída de dominação masculina perante o feminino, como se este fosse um
fenômeno natural, encobrindo-se o seu caráter arbitrário e preconceituoso. EDU 02
expressa a ideia de que o homem seria naturalmente apto a ocupar a posição de mandar
e a mulher a de obedecer. Mesmo quando na relação interpessoal a mulher exerce uma
função hierarquicamente superior a do homem (como na relação trabalhista diretora-
professor), a inferioridade hierárquica do homem é minimizada também pelas mulheres
que ocupam cargos superiores na hierarquia do trabalho. Como sujeitos sociais imersos
numa cultura machista, as mulheres agem em consonância com essa cultura, atribuindo
à figura masculina o poder de ser respeitado pela figura feminina, simplesmente por se
tratar de uma relação homem-mulher, desconsiderando-se, assim, os outros aspectos
envolvidos na relação, como os trabalhistas, por exemplo.
Na mesma direção, EDU 02 reafirma a concepção de supremacia masculina
quando expressa a ideia de que a autoridade de um diretor homem com as mulheres é
mais legitimada do que a de uma diretora mulher em relação ao mesmo grupo de
mulheres. É como se as mulheres fossem aptas a obedecer aos homens e os homens
fossem aptos a serem autoritários e mandarem nas mulheres. Tendo a mesma
concepção, EDU 01 explicita abaixo a forma pela qual as relações de poder entre
mulher (chefe) e homem (subordinado) se fizeram presentes em sua experiência
docente:
58
como chegar na hora, pois estava voltando lá de [cidade em que
ele nasceu], telefonei para o celular dela avisando que iria
atrasar e tal, daí ela começou a querer se alterar, ficou
reclamando e me chamando de irresponsável. Não chegou a
gritar, mas falava toda bruta. Veja só! Mas não deixei por
menos, disse que problemas acontecem e não era culpa minha.
[...] Quando eu cheguei na creche ela estava lá na minha sala,
com minhas crianças, entrei, assumi a sala e não dei nem bom
dia a ela. Mas ela também não veio falar comigo. Saiu
caladinha e nunca mais tocou no assunto. [...] Eu também não,
fingi que não tinha acontecido nada, mas aconteceu e não iria
permitir que acontecesse outra vez. (EDU 01)
Destaca-se nesse último relato a ênfase que o entrevistado dá ao dizer que não
tinha medo da gestora. Segundo ele, a diretora gritava com as demais educadoras, mas
com ele, o “homem do pedaço”, a história era e deveria ser diferente. A relação
hierárquica entre chefe e subordinados deveria ser diferenciada quando a mulher (chefe)
fosse “abordar” o homem acerca de qualquer questão, ainda que se tratasse de uma falha
do servidor.
O segundo caso que constitui o homem respeitado (educador infantil em relação
com suas colegas docentes) é evidenciado na seguinte fala de EDU 02:
59
gritar também, não posso me rebaixar [...] No geral, os
relacionamentos são bons, só essa que fica criando problema
comigo. [...] As outras eu respeito e elas me respeitam. [...]
Gosto muito delas [...] Não [questionado sobre as diferenças
entre homens e mulheres], acho que tem que ter direitos iguais,
ninguém é melhor do ninguém, mas como elas são maioria,
temos que nos impor para não sermos tratados como inferiores
a elas. (EDU 02)
60
O terceiro caso que constitui o homem respeitado (educador infantil em relação
às crianças da instituição) pode ser percebido no trecho que segue:
61
gênero está assegurado através dos privilégios masculinos e das
desigualdades entre homens e mulheres.
É dessa forma que as próprias mulheres acabam por atribuir aos homens um
certo destaque, traduzido por determinados privilégios de voz e de ação, (re)produzindo
nuanças de superioridade do masculino sobre o feminino, como no caso em que a
supremacia da voz masculina se coloca diante das crianças, ainda que o homem seja
professor de outra turma. Para refletir sobre este caso, vale referir Osterne e Silveira
(2012, p.101), para quem as diferenças nas relações de gênero não emergem meramente
do fator biológico:
Tomando como exemplo o último caso aqui analisado, fica evidente que as
crianças estão sendo inseridas nessa cultura de supremacia masculina também por suas
próprias professoras mulheres. Assim, as desigualdades entre homens e mulheres não
são simplesmente dadas, mas são constructos elaborados por intermédio das relações de
poder existentes no processo de socialização e produção cultural de seus agentes, de
modo que homens e mulheres são coautores dessa trama de poderes.
O quarto caso que constitui o homem respeitado (diretor em relação às docentes
mulheres) é verificado na seguinte fala:
62
[...] Tem momento que tenho vontade de entrar na brincadeira,
mas, na posição de chefe, tenho que me conter [...] Elas
precisam saber que sou o chefe delas, não sou amigo aqui
dentro, sou o responsável por tudo isso aqui, lá fora, quem sabe,
mas aqui a relação é outra. [...] Relação de cobranças e de
autoridade mesmo. [...] Do mesmo jeito [quando foi chefe de
um professor], tratava do mesmo jeito que elas. [...] Verdade
que por sermos homem a gente [ele e o professor] tinha mais
assuntos em comum. [...] A gente falava muito sobre futebol
[...] A gente zoava muito um com o outro [quando um dos times
perdia um jogo]. Mas tudo dentro dos limites [questionado
sobre as brincadeiras e as conversas sobre futebol com o
professor], na hora de cobrar eu falava sério com ele também,
da mesma forma que eu cobrava as meninas [professoras]. Trato
e cobro todos da mesma forma... [sinal de tensão] Não
[questionado se a relação de chefia é melhor com um homem],
tanto faz, o que importa é a individualidade de cada um. (EDU
01)
63
profissionais, de modo que cada um dos dois entrevistados, quando na experiência da
docência, dividiu suas atividades com suas respectivas auxiliares de turma, sempre do
sexo feminino. As relações estabelecidas entre os entrevistados e suas colegas de
trabalho (auxiliares ou outras professoras da escola) foram o tema mais discutido por
eles nas entrevistas de campo, trazendo à tona o binarismo masculino/feminino presente
especialmente na definição das funções de homem e de mulher no cotidiano da
Educação Infantil, tal como evidenciam os próximos três trechos das entrevistas:
64
por isso tenho mais condições de lidar com 20 ou 25 crianças ao
mesmo tempo. [...] Eu acabo cedendo né? [...] De certa forma
elas têm razão, o trabalho é pesado mesmo, e ficar sozinho com
uma turminha dessa é preciso ter um bom preparo físico [risos].
(EDU 02)
65
para mulheres, tem coisas que são mais para os homens. [...]
Entendo que existem coisas em comum, mas não podemos
deixar de considerar que diferenças existem [...] Outro dia vi
uma reportagem que um homem não queria viajar no avião que
era pilotado por uma mulher [gargalhadas] [...] Quando é um
homem pilotando ninguém fala nada, pois é natural, mas
quando é uma mulher... [tom de desconfiança]. Sei que ela [a
pilota de avião] pode até ser capaz, igual a qualquer homem,
mas é diferente [...] Aqui [na escola] também é assim, tudo que
é diferente gera confusão [...] Quase sempre! (EDU 02)
66
prática presumivelmente feminina. Nós estabelecemos uma diferença entre essas duas
categorias; diferença imprescindível para que possamos classificar e, assim, atribuir
sentidos às práticas realizadas na instituição. Cada elemento da oposição binária
masculino/feminino ou homem/mulher é, pois, fabricado um em comparação com o
outro e só ganha significado quando colocado frente a frente com seu opositor.
Acontece que a tais elementos nunca se atribui o mesmo juízo de valor...
Esse binarismo é ativado a quase todo o momento nas práticas escolares.
Entretanto, dificilmente ele é problematizado enquanto uma construção intimamente
conectada a relações de poder. Quando damos significados às práticas, classificando-as
como “de homem” ou “de mulher”, estamos, antes de tudo, operando com relações de
poder. Para Foucault (1995, p.243), “aquilo que define uma relação de poder é um modo
de ação que não age direta ou imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua
própria ação. Uma ação sobre ação, sobre ações eventuais, ou atuais, ou futuras, ou
presentes”.
O que a construção e o reforço das categorias masculino e feminino fazem é, de
certa forma, delimitar o campo de atuação de homens e mulheres nas instituições de
Educação Infantil. Essas categorias agem não exatamente nos homens e nas mulheres –
dominando-os, subjugando-os, tornando-os prisioneiros de uma situação de opressão
(como sugere a concepção do poder soberano e centralizado) –, mas agem sobre as
ações dos homens e sobre as ações das mulheres, determinando e delimitando seus
possíveis atos, operando em seus comportamentos, conduzindo suas maneiras de se
comportarem, ao mesmo tempo em que se ocultam enquanto relações de poder. Essa
regulação das ações acaba tornando-se cada vez mais fácil na medida em que os homens
e as mulheres começam a interiorizar certos saberes/códigos/regras sobre como se
comportarem, como agirem em determinadas situações institucionais na Educação
Infantil, e passam a controlar mutuamente a distribuição de suas funções profissionais.
E isso também inclui a maneira com que as classificações relativas às funções
masculinas e femininas são significadas. Os sentidos atribuídos a essas categorias estão
intimamente associados às formas pelas quais os sujeitos classificam a si mesmos em
suas relações com os outros, bem como ao modo como os sujeitos veem os espaços que
ocupam e como se veem nesses espaços. Em outras palavras, os sentidos atribuídos a
tais categorias têm a ver com a forma como os sujeitos selecionam o que pode/deve ser
dito sobre as relações que estabelecem no interior das instituições de Educação Infantil.
67
E a possibilidade de se selecionar algumas coisas dizíveis sugere a necessidade de se
excluir outras: a construção de sentidos para as práticas, entendendo-as como de
homens ou de mulheres, passa por esse movimento seletivo, normalizador.
A polarização entre os elementos do binômio masculino/feminino é, pois,
construída e reforçada por meio de rituais escolares em que circulam diferentes
proposições que, ao serem reunidas, combinadas, ajustadas e selecionadas (não sem
descontinuidades ou resistências), acabam fazendo com que as pessoas envolvidas com
a escola atribuam determinados significados a quase tudo o que se passa no cotidiano
escolar tomando-se como referência essas naturalizações de distribuição de papéis em
função do gênero.
Osterne e Silveira (2012, p.101) explicam que essas distinções nas distribuições
de papéis entre homens e mulheres são oriundas desde a infância através de mecanismos
sociais que difundem tais ideais.
68
Assim, não é somente pelo fato de um professor ter nascido biologicamente
homem e de uma professora ter nascido biologicamente mulher que, necessariamente,
se constituem atores com papéis tão distintos. De acordo com Meyer (2008, p.14),
70
Ah! Eu achava era bom ficar arrudeado [rodeado] de mulher.
Meus colegas me zoavam, mas quando me viam com elas
ficavam com inveja de mim [gargalhadas]. Elas me adoravam e
eu adorava elas, é claro que em alguns momentos era eu no meu
lugar e elas no delas. [...] Sempre gostei desse universo
feminino! Mas não sou gay não, viu? [risos]. (EDU 01)
Nessa fala, EDU 01 afirma que não lhe afeta o fato de ser rotulado de
homossexual por atuar na Educação Infantil e isso tampouco o desestimula a
permanecer na profissão. Entretanto, ao manifestar exaltação em diversos momentos e
ao ser tão enfático em dizer que todos sabem que ele é heterossexual, revela-se, assim
como no trecho anterior, certo desconforto de sua parte em ocupar uma profissão que
pode ensejar desconfianças acerca de sua orientação sexual.
Acerca do mesmo assunto, EDU 02 diz:
71
seria aqui né, só mulher mesmo. [...] Ser taxado de gay? Num
tava nem aí, imaginava o meu futuro salário e tudo de ruim
passava. Eu queria mesmo era ser nomeado. (EDU 02)
14
Entendemos a homofobia, conforme Junqueira (2007, p.151), como envolvida em “processos de
produção de diferenças culturais” nos quais “se examinam e se assinalam os indissociáveis vínculos entre
homofobia e processos de construção de padrões relacionais, preconceitos e mecanismos discriminatórios
relativos a questões de gênero”. Nesse sentido, uma prática homofóbica pode ser entendida como
“situações de preconceito, discriminação e violência contra pessoas (homossexuais ou não) cujas
performances e/ou expressões de gênero (gostos, estilos, comportamentos etc.) não se enquadram nos
modelos hegemônicos”. Portanto, a homofobia também diz respeito a “valores, mecanismos de exclusão,
disposições e estruturas hierarquizantes, relações de poder, sistemas de crenças e de representação,
padrões relacionais e identitários”. Tais aspectos são “voltados a naturalizar, impor, sancionar e legitimar
uma única sequência sexo-gênero-sexualidade, centrada na heterossexualidade e rigorosamente regulada
pelas normas de gênero”, transcendendo, desta forma, “tanto os aspectos de ordem psicológica quanto a
hostilidade e a violência contra pessoas homossexuais” (JUNQUEIRA, 2007, p.152-153).
73
[gargalhadas] [...] Eu já avisei, nunca mais... [risos] [...] Não,
não [questionado se não iria mais comprar por ser considerado
homossexual], também é trabalhoso demais ficar escolhendo
essas coisinhas. (EDU 02)
75
namorada eles ficam aliviados. [...] Eu fico falando mais grosso
[com voz e tom graves] nos primeiros dias [gargalhadas] [...] As
professoras também investigam [se ele é homossexual], mas
acho que para elas não tem tanto problema. [...] Acho que elas
gostam, toda mulher quer ter um amigo gay [gargalhadas] [...]
Não é por ser gay que ele deixará de ser um bom professor, ele
[professor homossexual] é capaz, assim como eu, como você ou
como elas [professoras]. (EDU 02)
76
professor rejeitado na outra escola ir para a escola que ele
dirige], deixa eu aqui com meus problemas, já tenho muitos.
[...] É possível que ele seja tão capaz quanto qualquer uma aqui,
mas seria um problema. [...] Eu entendo que ser homossexual
não é sinal de incompetência, mas vá falar isso para os pais dos
alunos... (EDU 01).
Com a proliferação de pesquisas realizadas no entrecruzamento entre o campo dos Estudos Culturais e
15
79
frequente utilizada em experiências de formação continuada ainda são os cursos, que
têm se mostrado pouco eficientes para modificar a prática pedagógica, pois geralmente
não tomam como ponto de partida a realidade e a prática docente nos seus mais
diferentes contextos.
A respeito da ênfase na formação continuada, Mello e Basso (2002, p.297)
chamam a atenção para a:
importância das ações de educação continuada, as quais possam
estar proporcionando aos professores os espaços necessários
para a reflexão e a apropriação de atitudes mais intencionais em
suas aulas, bem como o desenvolvimento de ações na esfera não
cotidiana.
A Jornada de Educação das Unidades de Ensino de Natal (JENAT) é um evento formativo que reúne
16
os professores da rede de ensino de Natal com a realização de cursos, palestras, oficinas, mesas redondas
e apresentação de trabalhos realizados pelos professores da rede.
80
muita coisa que ainda tenho dificuldade [...] Eu sei que estou
habilitado para trabalhar em qualquer nível daqui [Educação
Infantil], mas não saberia mesmo trabalhar com bebezinhos [...]
Ainda não sei nem pegar direito [colocar o bebê nos braços],
imagina cuidar, limpar, não sei mesmo [risos]. Por enquanto
não [ser docente de bebês], tá bom aqui mesmo, deixa isso com
elas [professoras]. [...] Participei de uma oficina no JENAT
sobre a prática de cuidar de bebês, mas de prática não tinha
nada, só teoria [risos], não aprendi nada de prático né? (EDU
02)
81
[educadores infantis] vão aprendendo aqui mesmo, com a
prática mesmo. (EDU 01)
Percebemos na fala de EDU 01 que, para ele, as poucas professoras que, por
ventura, não saibam proceder com o cuidado de crianças têm mais facilidade para
desenvolver tais competências do que os professores (que também não sabem),
demonstrando, mais uma vez, uma visão de naturalização da aptidão da mulher como
professora da Educação Infantil.
EDU 01 reconhece que existem lacunas no processo formativo, mas aponta um
cenário pouco promissor para a inclusão dessas competências no currículo dos cursos de
Pedagogia. Dentre os possíveis motivos apresentados pelo entrevistado para o fato de os
professores da graduação não trabalharem esses temas, destaca-se o seu entendimento
de que o cuidado de crianças é tema considerado de pouca relevância para ser
desenvolvido no âmbito da “elite” acadêmica. EDU 01 ainda diz que, diante desse
cenário, a “solução” para essas lacunas formativas encontra-se inevitavelmente e quase
que exclusivamente na prática cotidiana dos educadores infantis. Tais considerações
reafirmam o desprivilegio acadêmico e social de alguns procedimentos de cuidar
entendidos como essenciais no cotidiano da Educação Infantil. Como efeito, o lócus de
aprendizado desses procedimentos limita-se a observações informais cotidianas, sem
sistematização e tratamento acadêmico e científico.
É evidente que temos que considerar a importância formativa de tais maneiras
de aprendizado (informais). Assim como a formação continuada, o exercício docente
pode propiciar interessantes e sólidos processos de construção de conhecimentos. Não
obstante, chama-se a atenção para a centralidade dessas questões nos cursos de
formação inicial: tratando-se de questões essenciais à prática da docência na Educação
Infantil, ignorá-las ou secundarizá-las significa relegá-las a um plano inferior,
dispensando um tratamento acessório àquilo que é fundamental ao adequado exercício
da função.
Com relação a isso, chama-se a atenção para as lacunas formativas nos cursos de
graduação em Pedagogia no tocante ao desenvolvimento de competências essenciais
para o exercício da docência na Educação Infantil. E isso parece ter se acirrado ainda
mais desde que foi homologada a Resolução CNE/CP nº 01, de 15 de maio de 2006, do
Conselho Nacional de Educação, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o
82
Curso de Graduação em Pedagogia (DCNP), que surgiram17 na perspectiva de atender
ao que preceitua a LDBEN:
A formulação da LDBEN e das DCNP foi fruto de múltiplas determinações que, segundo Macedo
17
(2008), não se sobrepõem de forma verticalizada, mas em macros e micros contextos que se mesclaram
em amplos e históricos processos de disputa de poder. Foi nessa conjuntura que se teve a construção e
materialização dos documentos, na qual vozes foram silenciadas ou ouvidas, compondo o que Macedo
(2008, p.94) chama de “micropolíticas que se entrelaçam na estrutura do Estado”. Apesar de um tema
importante e em consonância com as discussões desta seção, não iremos nos deter aqui na análise do
processo constitutivo dos referidos documentos oficiais, considerando que tal problematização extrapola
os limites dos objetivos desta Dissertação. Nossa intenção é, portanto, tão somente a de chamar a atenção
para a formação do pedagogo generalista que passou a ser implementada no Brasil a partir de 2006, com a
homologação da Resolução CNE/CP nº 01/2006.
Conforme o Parecer CFE 252/69 e a Resolução CFE n. 2/1969, o curso de Pedagogia era composto de
18
uma base comum (matérias básicas à formação) e outra base com as habilitações específicas em
Administração, Orientação, Supervisão e Inspeção Escolar, formando, portanto, profissionais
específicos para cada área de atuação. Outras habilitações poderiam ser criadas pelas próprias
instituições de ensino (SILVA, 1999).
83
funções mencionadas, eliminado a formação fragmentada caracterizada no documento
como tecnicista.
Desde 2006, as DCNP estipulam que o aluno do curso de Pedagogia deve ser
formado como generalista. Por um lado, tal iniciativa pode ser considerada interessante
na medida em que toma o princípio da docência como eixo, com a intenção de formar
um pedagogo apto a uma visão global e sistêmica da educação, permitindo-o transitar
por todos os níveis e modalidades de ensino. Por outro lado, há uma série de ressalvas
apontadas por estudiosos da área, dentre as quais destacamos aqui a de Libâneo (2006,
p.859-860) quando afirma que:
85
Formação em movimentos sociais: ocorre em locais como partidos,
associações, sindicatos e pode ter um cunho político ou abordar temas
gerais e específicos;
Formação na instituição de Educação Infantil em que o profissional atua:
horário de estudo conjunto, debates, leitura e discussões acerca da realidade
vivida e seus desafios;
Formação cultural: experiências com Artes, tais como Música, Teatro,
Artes Plásticas e Visuais, Cinema, Dança, Literatura, entre outras
possibilidades que abordam o sentido da vida para além da dimensão
pedagógica e didática.
É possível que isso mantenha estreitas relações com a figura do homem perigoso, já discutida nesta
19
Dissertação.
87
formam-se como cuidadoras de crianças (brincando de cuidar de bonecas, ajudando com
os cuidados de bebês, exercitando ludicamente funções relativas à maternidade, etc.),
para quê “perder tempo” com isso dentro de uma instituição de Ensino Superior se
supõe-se que a futura professora já sabe cuidar de crianças?
Constata-se, mais uma vez, a reafirmação da ideia de feminilização do
magistério, tal como discutida no capítulo 2 desta Dissertação e que vem permeando os
resultados desta pesquisa em todos os focos de discussão que emergiram da análise dos
dados. E essa constatação aponta, novamente, para o fato de que geralmente os homens
são desconsiderados enquanto potenciais alunos de cursos que formam docentes para
atuar na Educação Infantil e, consequentemente, são vistos como “fora de lugar” ao
exercerem a função de educadores infantis.
Desse modo, as entrevistas realizadas neste estudo apontam a centralidade das
funções generificadas, que também se fazem presentes nas falas dos entrevistados
acerca dos motivos que os levaram a optar pela docência na Educação Infantil e pelo
curso de licenciatura em Pedagogia. Essa escolha, permeada de conflitos relativos às
relações de gênero, é carregada de tensões que dizem respeito à sua aceitação em
atividades (formativas e profissionais) consideradas como essencialmente femininas.
Quanto a isso, Sayão (2005, p.65) afirma que:
88
Eu já sabia que não iria encontrar muitos homens trabalhando
lá. [...] Eu já sabia que enfrentaria preconceitos por ser homem!
Eu já sabia! Mas não poderia me intimidar, estudei e passei no
concurso, assim como todas que estavam por lá. Sou digno, e eu
sei disso! [...] nunca tinha tido experiência na Educação Infantil.
[...] Paguei [cursei] duas disciplinas apenas, mas muita teoria e
nada de prática. [...] O meu estágio foi numa turma do 5º ano do
Fundamental [turma com crianças de 09 anos de idade] Você
sabe bem como é né? Trabalhar com criança pequena é
totalmente diferente. (EDU 01)
89
“determinadas posições (epistemológicas, ideológicas e culturais) relativamente ao
ensino, ao professor e aos alunos”.
Nesse sentido, as propostas de formação docente que pretendem problematizar
a inserção profissional de homens na Educação Infantil, devem considerar as
identidades pessoal e profissional do professor enquanto cidadão em formação,
devendo, segundo Marin (2002), partir do pressuposto da educabilidade do ser humano,
numa formação que se dá num continuum, em que existe um ponto que formaliza a
dimensão inicial, mas não existe um ponto que possa finalizar a continuidade desse
processo. Assim, tal formação possibilitaria, em si, um espaço de interação entre as
dimensões pessoais e profissionais que, de acordo com Eyng (2003, p.14), teria “a
formação e o desenvolvimento profissional estreitamente vinculados à formação e ao
desenvolvimento pessoal” de mulheres e homens que ocupam a função docente na
Educação Infantil.
Ainda que não se refira especificamente à formação de professores da
Educação Infantil, e para ressaltar o caráter de continuum da formação, concordamos
com Garcia (2005, p.26) quando ele afirma que:
Com relação a isso, destacam-se os estudos sobre a produção das desigualdades de gênero em
20
documentos curriculares oficiais, realizados por Machado (2013) e Machado e Coutinho (2014a, 2014b,
2015).
91
campo aberto para recriação e reinvenção cultural, cabe
valorizar a linguagem e discursos curriculares como
atravessadores das práticas e questioná-los. Isso porque a escola
e seus educador@s, além de não poderem mais ignorar que as
fronteiras de gênero e sexualidade não só se multiplicaram,
como estão em permanentes mudanças, também carecem de
compreensão de como esses “novos” sujeitos estão
apresentados nos discursos pedagógicos oficiais [...].
(MACHADO; COUTINHO, 2014a, p.6)
92
5 CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS
93
pesquisa – cultura e gênero – com os quais e a partir dos quais olhamos para as
entrevistas realizadas com os dois educadores infantis.
Assim, as entrevistas foram planejadas, executadas e analisadas com tais lentes
teóricas que nos permitiram encontrar alguns “achados”, dispostos em quatro focos de
discussão, interligados entre si, apresentados e debatidos no quarto capítulo desta
Dissertação, quais sejam: 1) figuras masculinas: o homem perigoso, o homem poderoso,
o homem respeitado; 2) funções generificadas; 3) afirmação da heterossexualidade
masculina; 4) formação inicial e continuada de educadores infantis.
A figura masculina do homem perigoso nos remete à concepção naturalista de
que, antes de tudo, a mulher seria supostamente inofensiva e, portanto, mais apta para o
trabalho com crianças pequenas. Histórica e culturalmente, os procedimentos de
cuidado infantil são atribuições tidas como femininas e estigmatizadas como sendo de
baixo prestígio laboral; daí também que o homem perigoso, que se constitui ao mesmo
tempo como homem respeitado também em função do perigo que representa, não pode
realizar tal tarefa. Além de implicar uma série de conflitos com os sujeitos no interior de
instituições de Educação Infantil, essa constatação também gera um lapso na atuação
profissional desse homem, pois cuidar (de forma indissociável do educar) é uma
atribuição de todo e qualquer profissional docente da Educação Infantil, seja mulher ou
homem.
Conectada à figura do homem perigoso, encontra-se também a figura do homem
poderoso: afastado das funções de cuidado infantil em função do perigo que representa
e do respeito a ele atribuído, o homem líder, patriarca e superior passa a ter como
caminho natural a ocupação de cargos de gestão (coordenação e/ou direção). No mesmo
sentido, a mulher (auto)representada como sendo submissa, frágil e desprestigiada
aceita de forma quase que inquestionável tal ocupação masculina. Ao se afastar o
homem perigoso das crianças, aproxima-se o homem poderoso da liderança e do
prestígio social e econômico, tendo em vista que o exercício de funções gerenciais o
torna chefe das mulheres e administrador da instituição, bem como acarreta em
gratificações salariais.
Em intrincadas conexões com essas duas figuras, e de certa forma atravessando-
as, encontra-se a figura do homem respeitado, que possui um status diferenciado em
grande parte das relações que estabelece na instituição. Quando exerce a função de
docente, o homem respeitado figura em suas relações com sua chefe mulher, com suas
94
colegas docentes e com as crianças da instituição; quando exerce a função de diretor, o
homem respeitado figura em suas relações com as docentes mulheres e de modo geral
com toda a comunidade escolar. Tal figura masculina expõe claramente parte da
intrincada trama de constituição dos poderes relacionais na instituição no tocante ao
gênero, em que os elementos culturais de supremacia masculina evidenciam-se nas
muitas formas de relações interpessoais existentes no cotidiano da Educação Infantil.
Na análise do que chamamos de funções generificadas (segundo foco de
discussão apresentado nesta Dissertação), a divisão de tarefas docentes por gênero
evidencia a força do binarismo masculino/feminino que carrega consigo certa ideia de
aptidão natural de mulheres e homens ao desempenho de determinados papeis escolares,
contribuindo, assim, para legitimação e propagação de concepções excludentes de
gênero na prática docente. Portanto, essa constatação implica não só uma divisão das
tarefas, mas, fundamentalmente, a exclusão delas pelo fato de termos homens e
mulheres ocupando seus considerados respectivos espaços específicos, muitas vezes
sem ter a possibilidade de ocupação mútua ou de transitividade entre eles. Ao se
conceber tal divisão (exclusão), a escola está negligenciando a uma turma que, por
exemplo, tem um homem na docência o desenvolvimento das crianças por intermédio
da interação com tarefas tidas como exclusivas de serem exercidas por mulheres. Além
disso, a força dessa separação impulsiona o homem e a mulher a não ocupar espaços e
desempenhar funções consideradas como exclusivamente masculinas e femininas,
provando, deste modo, outro lapso profissional, pois são espaços/funções significativos
e que podem (devem) ser ocupados e exercidos pelo profissional docente da Educação
Infantil, independentemente de ser homem ou mulher.
Essa possível mistura de papeis aliada ao fato de que a docência na Educação
Infantil é considerada como uma profissão feminina provoca um questionamento acerca
da orientação heterossexual do homem que exerce tal função (terceiro foco de discussão
depreendido na análise das entrevistas). Podem-se perceber dois pontos fundamentais
nessa questão: o receio do homem em ser considerado homossexual e as implicações
que tal possibilidade acarreta. A hipótese da rotulação em ser homossexual pelo simples
fato de um homem estar inserido numa instituição tida como feminina é duplamente
preconceituosa, pois além de considerar a orientação sexual de alguém apenas pelo fato
de desenvolver um trabalho profissional tido como feminino também expõe a visão
difundida culturalmente de hegemonia natural da heterossexualidade, atribuindo, assim,
95
valores pejorativos a qualquer orientação sexual que foge de uma suposta naturalidade
hetero. Em consonância com isso, o fato de ser considerado homossexual pode implicar,
do mesmo modo, no afastamento da hegemonia e domínio masculino, talvez por isso
tenha-se a latente afirmação da heterossexualidade masculina. Se pretendemos
desconstruir essa concepção preconceituosa, responsável por uma série de conflitos
relativos à inserção profissional de homens na Educação Infantil, é necessário que
docentes e demais sujeitos da comunidade escolar comecem a problematizar essa
questão, discutindo a ideia de que a orientação sexual de um profissional em nada
interfere na qualidade da sua função docente, desmistificando, também, as
naturalizações biológicas e acenando para a importância dos aspectos socioculturais na
constituição das identidades dos sujeitos.
Os cursos que formam docentes para atuarem também na Educação Infantil
(quarto e último foco de discussão depreendido na análise das entrevistas) podem ser
um bom local de pulverização dessa problematização, além de outras que são relegadas
a segundo plano, deixando lacunas formativas dos profissionais para esta etapa de
ensino. Tais lacunas ficaram ainda mais evidentes com o advento das DCNP, que
preveem um profissional generalista e, do mesmo modo, sem os conhecimentos
essenciais para desenvolver um trabalho de qualidade na Educação Infantil.
As questões relacionadas ao gênero evidenciam-se, assim, como
preponderantes obstáculos a serem vencidos para o homem exercer a função de docente
na Educação Infantil, pois implica transformações na ordem sociocultural que ainda não
o vê como profissional apto para realizar as atividades que o cargo requer.
Apesar de crescer a cada dia o número de pesquisas acadêmicas acerca do
tema, a questão de gênero (no tocante ao exercício docente na Educação Infantil) é
ignorada ou relegada a segundo plano, tanto por documentos oficiais quanto pela
formação de tais profissionais. No entanto, é um fenômeno que se faz presente nos
sistemas formais de ensino e que, conforme percebemos em nossa investigação, acarreta
em significativas implicações para a prática educativa desenvolvida numa instituição de
Educação Infantil que possua no seu quadro de professores um ou mais homens.
Assim, entendemos que é preciso que as discussões realizadas no âmbito das
pesquisas acadêmicas sobre a presença de homens na Educação Infantil se façam
presentes, também, nos cursos de formação docente (inicial e continuada), além de
serem contempladas nos documentos norteadores oficiais.
96
Sabemos que isso não seria a solução para os problemas que envolvem a
docência de homens na Educação Infantil, nem temos como objetivo apontar alguma
solução. O que defendemos é a necessidade de que se fale, se discuta e se reflita sobre
algo que existe e que impacta, de forma significativa, a vida de todos os sujeitos da
comunidade das escolas infantis. Nesses termos, o processo formativo desses homens e
mulheres poderia representar uma busca pela ressignificação da prática diária
compartilhada, onde “a professora e o professor põem em ação pensamentos e
concepções, valores, culturas e significados” (ARROYO, 2010, p.151) que lhes são
próprios.
Assim, ao mesmo tempo em que a docência na Educação Infantil é um território
de conflitos de gênero, tal como discutido ao longo desta Dissertação, ela se constitui
também num contexto muito profícuo para o exercício de resistência às imagens cultural
e historicamente associadas a homens e mulheres.
97
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