Reconstruindo o Caminho Do Neocalvinismo

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU


EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

MARIA ANGÉLICA DE FARIAS JURITY

NEOCALVINISMO HOLANDÊS:
(RE) CONSTRUINDO O ITINERÁRIO

LINHA DE PESQUISA
FENÔMENO RELIGIOSO: INSTITUIÇÃO E PRÁTICAS DISCURSIVAS

CAMPINAS

2021
MARIA ANGÉLICA DE FARIAS JURITY

NEOCALVINISMO HOLANDÊS:
(RE) CONSTRUINDO O ITINERÁRIO

Dissertação apresentada como exigência para


obtenção do Título de Mestre em Ciências da
Religião ao Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião, do Centro de Ciências
Humanas e Sociais Aplicadas da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas.

Orientador: Prof. Dr. Breno Martins Campos

PUC-CAMPINAS

2021
Ficha catalográfica elaborada por Vanessa da Silveira CRB 8/8423
Sistema de Bibliotecas e Informação - SBI - PUC-Campinas

261.7 Jurity, Maria Angélica de Farias


J95n
Neocalvinismo holandês: (re)construindo o itinerário / Maria Angélica de Farias
Jurity. - Campinas: PUC-Campinas, 2021.

121 f.
Orientador: Breno Martins Campos.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) - Programa de Pós-Graduação


em Ciências da Religião, Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, Pontifícia
Universidade Católica de Campinas, Campinas, 2021.
Inclui bibliografia.

1. Religião e política. 2. Calvinismo. 3. Kuyper, Abraham, 1837-1920.. I. Campos,


Breno Martins. II. Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Centro de Ciências
Humanas e Sociais Aplicadas. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião.
III. Título.
CDD - 22. ed. 261.7
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião

Autora: JURITY, Maria Angélica de Farias

Título: Neocalvinismo holandês: (re) construindo o itinerário

Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião

BANCA EXAMINADORA

Presidente e Orientador Prof. Dr. Breno Martins Campos (PUC-Campinas)

1º Examinador: Prof. Dr. Lauri Emílio Wirth (UMESP)

2º Examinador: Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira (PUC-Campinas)

Campinas, fevereiro de 2021.


PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

MARIA ANGÉLICA DE FARIAS JURITY

Neocalvinismo Holandês: (re) construindo o


itinerário

Este exemplar corresponde à redação final da


Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião da
PUC-Campinas, e aprovada pela Banca Examinadora.

APROVADA: 19 de fevereiro de 2021.

__________________________________
PROF. DR. LAURI EMÍLIO WIRTH (UMESP)

_______________________________________________________
PROF. DR. PAULO AUGUSTO DE SOUZA NOGUEIRA (PUC-CAMPINAS)

_______________________________________________________
PROF. DR. BRENO MARTINS CAMPOS – Presidente (PUC-CAMPINAS)

Rua Professor Doutor Euryclides de Jesus Zerbini, 1.516 – Parque Rural Fazenda Santa Cândida – CEP 13087-571 - Campinas
(SP) Fone: (19) 3343-7408 – correio eletrônico: [email protected]
Ao meu esposo, Presley H. Martins, em quem
encontrei a dádiva do amor e a felicidade de se
viver o presente.
Aos meus pais, Antônio e Maria Luíza, pela
dádiva da vida e por perseverarem junto a mim.
AGRADECIMENTOS

À PUC-Campinas,

Universidade que me acolheu desde a graduação, abrindo-me portas para a realização dos meus
sonhos, dentre os quais, o sonho de seguir a carreira acadêmica. Onde também encontrei
verdadeiras inspirações, que me encorajaram a caminhar em direção ao mestrado. Refiro-me,
especialmente, à Profa. Dra. Ana Paula Bolfe, Profa. Dra. Camilla Massaro e ao Prof. Dr. Agenor
José Teixeira Pinto Farias.

À Profa. Dra. Ceci B. Mariani,

Por sua orientação durante a Iniciação Científica, cuja contribuição – para além das técnicas de
pesquisa – refere-se, especialmente, aos diálogos apaixonados sobre a mística feminina, levando-
me a refletir até os dias atuais, sobre a dinamicidade e beleza de Deus.

Ao Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC-Campinas,

Pela oportunidade de cursar este mestrado, e a todos os professores do programa, em especial ao


Prof. Dr. Douglas Ferreira Barros, pela abertura que me proporcionou durante o estágio docente
em sua disciplina e insights importantes para minha pesquisa.

Aos colegas da minha turma,

Pelo companheirismo, incentivo e importantes contribuições à pesquisa.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES),

Pela bolsa de estudos concedida, possibilitando-me a realização desta pesquisa e a formação tão
almejada.

Ao Prof. Dr. Breno Martins Campos,

Orientador e mestre, que confiou em meu potencial acadêmico desde a graduação, abrindo-me
portas e horizontes com suas palavras sábias e serenas.

Aos professores Dr. Lauri Emílio Wirth e Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira,

Pelas significativas contribuições e recomendações para o direcionamento desta pesquisa.

Aos meus pais, Antônio e Maria Luíza,

Pelas demonstrações de amor, suporte e encorajamento em todo tempo.

Ao meu esposo, Presley Henrique Martins,

Por ter tornado essa jornada leve com seu companheirismo, cuidado e compreensão. Também
profícua, pelos diálogos e reflexões proporcionados, os quais, seguramente, foram essenciais a
esta pesquisa.

Aos meus irmãos e cunhados, Ana Paula, Guilherme, Wesley, Jefferson e Léia,

Por se alegrarem e incentivarem minhas conquistas. Pelo apoio e amparo em todas as horas.

Aos meus sogros, Cícera e Alcir,


Pelas palavras de fé e encorajamento.

Aos meus queridos amigos, Tayná Lucio, Victor Marques Varollo, Mayara França, Marizilda e Luiz
Semente,

Por cada um, a sua maneira, apoiar e impulsionar as minhas realizações.

A Deus,

Fonte da força, coragem e bom ânimo, essenciais a cada novo amanhecer.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de


Nível Superior – Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
“[…] o temor do mistério não deve afastar-nos
da tarefa [da pesquisa].”

“Duas estradas bifurcavam numa árvore, eu


trilhei a menos percorrida, e isto fez toda
diferença.”

Robert Lee Frost


RESUMO
MARTINS, Maria Angélica de Farias Jurity. Neocalvinismo holandês: (re)construindo o
itinerário. 2021. 121 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) - Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de
Campinas, Campinas, 2021.

Esta pesquisa tem como objeto de estudo o Neocalvinismo holandês, movimento de


reforma religiosa e cultural inaugurado pelo calvinista Abraham Kuyper, no século XIX.
Com uma trajetória acadêmica e política bastante fértil, Kuyper ampliou a teologia de
Calvino, buscando apontar o calvinismo como sistema de vida abrangente, com sentido
histórico, filosófico e político. O Neocalvinismo nasce em meio às transformações do
mundo moderno, que afetaram o estatuto cultural da religião, colocando-a ao lado de
outras esferas de valor. Essas transformações, tendo sido iniciadas nos séculos
precedentes com o choque do racionalismo iluminista, combinadas à profunda crise da
ortodoxia protestante, levaram Kuyper a propor um retorno à objetividade teológica para
salvaguardar a herança cristã, que julgava ameaçada pelas concepções modernas de
mundo. Assim, o teólogo remonta ao pensamento calvinista, apontando suas
contribuições à religião, política, ciência e arte. O Neocalvinismo holandês chega ao
Brasil a partir das primeiras publicações do teólogo americano Francis Schaeffer e da
instituição paraeclesiática L’Abri, responsável por propagar o pensamento schaefferiano e
tornar conhecidos os autores neocalvinistas, cujas obras visam à instrumentalização dos
crentes para seu envolvimento nos espaços públicos. A instituição paraeclesiástica “L’Abri
Brasil” se caracteriza, assim, como uma importante interlocutora nesse processo. Deste
modo, busca-se explorar as raízes do Neocalvinismo holandês acolhido no Brasil,
(re)construindo, portanto, seu itinerário até Francis Schaeffer, que pode ter implicado
numa “americanização” do movimento. Esta pesquisa se justifica pela necessidade de
contribuir com as discussões acerca do ativismo religioso na esfera pública, apontando
para um objeto que, inserido no protestantismo histórico, é pouco explorado no campo
das Ciências da Religião em abordagem sociológica. Nosso compromisso é interpretar as
manifestações da religião, sem, no entanto, questionar as experiências religiosas dos
indivíduos envolvidos na pesquisa. Objetiva-se: 1) apresentar a tradição teológica em que
o Neocalvinismo holandês se insere: o protestantismo calvinista; 2) identificar o contexto
de seu surgimento e discorrer sobre sua proposta, especialmente no que tange à relação
entre religião e política a partir dos seus principais expoentes: Abraham Kuyper e Herman
Dooyeweerd; 3) analisar o conteúdo dos discursos de Francis Schaeffer, buscando
identificar sua relação com o movimento e apontar seus impactos no âmbito político; 4)
analisar os aspectos que se destacam no itinerário percorrido, fornecendo, assim,
elementos teóricos para uma leitura crítica e cautelosa da recepção do Neocalvinismo em
nosso contexto. No que se refere ao método, trata-se de uma pesquisa exploratória
combinada à técnica de pesquisa bibliográfica. Para compreensão dos dados coletados,
optamos pelo tratamento qualitativo a partir do método hermenêutico-dialético e da
análise do conteúdo do discurso.

Palavras-chave: Abraham Kuyper. Herman Dooyeweerd. Francis Schaeffer. Religião e


Política.
ABSTRACT
MARTINS, Maria Angélica de Farias Jurity. Dutch Neocalvinism: (re)building the Itinerary.
2021. 121 f. Dissertation (Master in Sciences of Religion) - Graduate Program in
Sciences of Religion Pontifical Catholic University of Campinas, Campinas, 2021.

This research has as object of study the Dutch Neocalvinism, movement of religious and
cultural reform inaugurated by the Calvinist Abraham Kuyper in the 19th century. With a
very fertile academic and political trajectory, Kuyper expanded Calvin's theology, seeking
to point to Calvinism as a comprehensive system of life, with a historical, philosophical
and political meaning. Neocalvinism was born amid the transformations of the modern
world, which affected the cultural status of religion, placing it alongside other spheres of
value. These transformations, having begun in the preceding centuries with the shock of
Enlightenment rationalism, combined with the profound crisis of Protestant orthodoxy, led
Kuyper to propose a return to theological objectivity to safeguard the Christian heritage,
which he considered threatened by modern worldviews. Thus, the theologian goes back to
Calvinist thought, pointing out his contributions to religion, politics, science and art. Dutch
Neocalvinism enters Brazil from the first publications of the American theologian Francis
Schaeffer and the paraecclesiastical institution L'Abri, responsible for spreading
Schaefferian thinking and making known neocalvinist authors, whose works aim to
instrumentalize believers for their involvement in public spaces. The para-ecclesiastical
institution “L’Abri Brazil” is thus characterized as an important interlocutor in this process.
In this way, we seek to explore the roots of Dutch Neocalvinism welcomed in Brazil, (re)
building, therefore, its itinerary to Francis Schaeffer, which may have implied an
“Americanization” of the movement. This research is justified by the need to contribute to
the discussions about religious activism in the public sphere, pointing to an object that,
inserted in historical Protestantism, is little explored in the field of Sciences of Religion
under a sociological approach. Our commitment is to interpret the manifestations of
religion, without, however, questioning the religious experiences of the individuals involved
in the research. The objective is: 1) to present the theological tradition in which Dutch
Neocalvinism is inserted: Calvinist Protestant; 2) to identify the context of its emergence
and discuss its proposal, especially with regard to the relationship between religion and
politics from its main exponents: Abraham Kuyper and Herman Dooyeweerd; 3) analyze
the content of Francis Schaeffer's speeches, seeking to identify his relationship with the
movement and point out its impacts in the political sphere; 4) to analyze the aspects that
stand out in the itinerary covered, thus providing theoretical elements for a critical and
cautious reading of the reception of Neocalvinism in our context. With regard to the
method, it is an exploratory research combined with the technique of bibliographic
research. To understand the data collected, we opted for qualitative treatment based on
the hermeneutic-dialectic method and the analysis of the content of the discourse.

Keywords: Abraham Kuyper. Herman Dooyeweerd. Francis Schaeffer. Religion and


Politics.
Sumário
1 INTRODUÇÃO...............................................................................................................13
2 JOÃO CALVINO E A ORTODOXIA PROTESTANTE: CONDITIO SINE QUA NON
..............................................................................................................................................21
2.1 A reforma protestante e João Calvino: questões fundamentais................................22
2.2 O pensamento político de João Calvino...................................................................25
2.3 A Ortodoxia Protestante............................................................................................35
2.3.1 A Relação entre o Iluminismo e o Protestantismo.............................................37
2.3.2 Religião, Política e Sociedade...........................................................................37
2.3.3 Puritanismo Inglês.............................................................................................39
2.3.4 Cânones de Dort (1618-19)...............................................................................42
2.3.5 Confissões de Westminster (1643-46)...............................................................46
3 O NEOCALVINISMO HOLANDÊS..............................................................................52
3.1 Abraham Kuyper: uma nota biográfica....................................................................53
3.1.1 As Palestras Stone e seu contexto de formulação..............................................54
3.1.2 Calvinismo como sistema de vida.....................................................................56
3.1.3 Calvinismo e Política.........................................................................................58
3.2 Herman Dooyeweerd: uma nota biográfica..............................................................65
3.2.1 Princípios teóricos fundamentais.......................................................................68
3.2.2 Reforma do Pensamento Político......................................................................74
4 FRANCIS SCHAEFFER: UM PONTO DE INFLEXÃO DO NEOCALVINISMO
HOLANDÊS........................................................................................................................85
4.1 Nota biográfica........................................................................................................89
4.2 Pressupostos teológicos...........................................................................................92
4.3 Francis Schaeffer e o espaço público americano.....................................................95
4.4 L’Abri: lugar de instrumentalização dos crentes...................................................104
4.5 L’Abri Brasil e a recepção do Neocalvinismo holandês........................................106
4.6 De Abraham Kuyper a Francis Schaeffer: aspectos que se destacam....................110
5 CONCLUSÃO...............................................................................................................114
6 REFERÊNCIAS............................................................................................................116
13

1 INTRODUÇÃO

O Neocalvinismo holandês foi um movimento de reforma religiosa e cultural


iniciada no século XIX, cujas formulações teológicas se estenderam até o século XX,
sendo difundidas, especialmente, nos Estados Unidos da América. Anos mais tarde, entre
as décadas de 1970 e 1980, vimos surgir no espaço público americano um ativismo
político, religioso e moral, que teve como principal incentivador a figura de Francis
Schaeffer, a partir da sua vasta produção bibliográfica. O pensamento de Schaeffer
excedeu os limites eclesiásticos, especialmente pela fundação da comunidade L’Abri.
A comunidade L’Abri foi idealizada e fundada por Francis Schaeffer e sua
esposa em 1955, em Huémoz-sur-Ollon, Suíça, com o propósito de receber pessoas em
busca de respostas às suas perguntas existenciais, a partir de uma compreensão cristã
do mundo. Com o tempo, o modelo L’Abri foi levado a outras partes do mundo, como
EUA, Canadá, Coreia, Holanda e Inglaterra. No Brasil, sua fundação ocorreu no ano de
2008, em Belo Horizonte-MG, sob a liderança do casal Guilherme e Alessandra de
Carvalho. Guilherme é teólogo e pastor da Igreja Esperança, também iniciada em 2008 e
situada no estado de Minas Gerais. Alessandra é formada em História, com experiência
na área da educação. Com a mesma configuração e objetivo do L’Abri de Francis e Edith
Schaeffer, a instituição L’Abri Brasil funciona como um centro de estudos que combina
vida em comunidade, hospitalidade e reflexão cristã de vertente reformada. L’Abri Brasil
foi responsável por dar mais corpo às ideias de Schaeffer, que já estavam aqui presentes
desde, aproximadamente, os anos 1990, através das primeiras publicações das suas
obras pela ABU – Aliança Bíblica Universitária. Além de Schaeffer, a instituição tornou
conhecidas as figuras de Abraham Kuyper e Herman Dooyeweerd, os principais
expoentes do Neocalvinismo holandês.
Atualmente, emerge um ativismo conservador na esfera pública brasileira, com
uma forte participação de grupos evangélicos na sociedade e cultura. Percebe-se, pois,
uma mudança significativa de cenário, uma vez que até 1980 os evangélicos estavam
ausentes desses setores (SANTOS, 2007). É a partir dessa observação que esta
pesquisa propõe contribuir às reflexões sobre a recepção do Neocalvinismo no contexto
brasileiro, uma vez que suas formulações teológicas fornecem importantes elementos que
visam à instrumentalização dos crentes para seu envolvimento nos espaços públicos,
14

sendo a instituição paraeclesiástica L’Abri Brasil uma importante interlocutora nesse


processo. Desde modo, busca-se explorar as raízes do Neocalvinismo holandês acolhido
no Brasil, (re)construindo, portanto, seu itinerário até Francis Schaeffer, que pode ter
implicado numa “americanização” do movimento.
Esta pesquisa se justifica pela necessidade de contribuir com as discussões
acerca do ativismo religioso na esfera pública, apontando para um objeto que, inserido no
protestantismo histórico, é pouco explorado no campo das Ciências da Religião sob o viés
sociológico. Com o advento da modernidade, embora o poder da religião tenha sido
transferido para o âmbito secular, o que, em sentido weberiano, significa secularização
(PIERUCCI, 1998), entende-se que ela não tenha sido excluída da esfera pública, nem
teve impedida sua capacidade de articular com outras esferas, visto que

Nem mesmo os fenômenos religiosos fortemente engajados com um discurso de


negação da condição secular e da própria diferenciação funcional podem escapar
à necessidade de construir suporte social para a fé religiosa em uma sociedade
que não é ordenada exclusivamente pela religião, ou seja, secularizada (DUTRA,
2016, p. 163).

Deste modo, cabe à sociologia da religião investigar o aparecimento de


fenômenos religiosos que buscam atuação na esfera pública, como o Neocalvinismo
holandês. Em termos de objetivos específicos, pretende-se: 1) apresentar a tradição
teológica em que o Neocalvinismo holandês se insere: protestante e calvinista; 2)
identificar o contexto do seu surgimento e discorrer sobre sua proposta, especialmente no
que tange à relação entre religião e política a partir dos seus principais expoentes:
Abraham Kuyper e Herman Dooyeweerd; 3) analisar o conteúdo dos discursos de Francis
Schaeffer, buscando identificar sua relação com o movimento e apontar seus impactos no
âmbito político; 4) analisar os aspectos que se destacam no itinerário percorrido,
fornecendo, assim, elementos teóricos para uma leitura crítica e cautelosa da recepção do
Neocalvinismo em nosso contexto.
Esta pesquisa possui abordagem sociológica, cujo compromisso é apresentar a
religião como uma construção social, exercendo a arte da desconfiança, isto é, sem
aceitar acriticamente o que a religião diz de si mesma, mas buscando os componentes
que passam despercebidos em suas explicações (ALVES, 1982). Em contrapartida, no
entanto, não se pretende dar combate “[...] ao fenômeno ou à experiência religiosa dos
sujeitos que ocupam posições no universo religioso” (CAMPOS; MARIANI, 2015, p. 10) ou
mesmo desconsiderar o sentido de suas ações. Para esta proposta, elege-se Max Weber
15

como principal referencial teórico, uma vez que a sociologia weberiana busca “[...]
interpretar a pessoa individual, a instituição, o ato ou o estilo de trabalho [...] como um
‘documento’, a ‘manifestação’, ou a ‘expressão’ de uma unidade morfológica maior”
(WEBER, 213, p. 39). Para o autor, os resultados das ações nem sempre condizem com a
intenção, não havendo espaço, portanto, para discutir categorias como moral, verdade,
bem/mal, apenas afinidade eletiva. O que se pretende mostrar é a existência de certos
elementos correlatos entre uma ética religiosa, no caso neocalvinista, e um
comportamento político. Além disso, reforçando a interdisciplinaridade da área 1, não se
abre mão do argumento teológico enquanto este lança luz à pesquisa. Pode-se perguntar:
que papel tem ou poderia desempenhar a teologia no espectro das ciências da religião e
as ciências da religião no espectro da teologia? Acredita-se, em consonância com Soares
(2007), que ambas servem como delimitadores benéficos ao avanço da reflexão:

As ciências da religião oferecem às construções teológicas o mesmo que divulgam


para o conjunto da comunidade científica, a saber, um conhecimento rigoroso que
propicia ao teólogo um choque de realidade e uma erudição mais refinada que o
beneficiará em suas reflexões sobre fé, revelação e dogma. Ademais, o estudo e o
discernimento da pluralidade religiosa [….] arejam as ideias teológicas [...]
suscitando novas questões à reflexão crítica sobre a fé vivida pelas pessoas. [...].
A teologia também tem muito a oferecer a um programa de estudos da religião [...].
Na condição de área de saber reconhecida pela academia, ela é um subconjunto
dos estudos de religião e, como tal, sua palavra sobre as dimensões de sentido
das tradições religiosas não é desprezível. Pode-se dizer que há uma contribuição
teológica de fato e outra explicitada na intenção dos teólogos. Portanto,
independentemente dos reais objetivos do teólogo e das hierarquias de sua
religião de origem, a ciência da religião recebe da teologia, de ‘mão beijada’, o
produto do pensamento de sua tradição religiosa em primeira mão, fruto da
reflexão especializada de fiéis da própria tradição (SOARES, 2007, p. 301-302).

Escolhe-se como tipo de investigação a pesquisa exploratória. Entende-se que


o tipo de investigação escolhido é apropriado à problemática da pesquisa, uma vez que
pesquisas exploratórias:

1 “A interdisciplinaridade é uma característica constitutiva da área de Ciências da Religião e Teologia. A


própria área de avaliação é composta por duas disciplinas distintas. Porém, além disso, cada uma
dessas duas disciplinas se constitui como campo em que o diálogo com outras disciplinas e áreas de
conhecimento é imprescindível ao seu desenvolvimento teórico-metodológico. Quanto ao trabalho
interdisciplinar entre as duas principais disciplinas que a constituem, observa-se que a área deve manter
e aprofundar o debate teórico-metodológico que tenha por objetivo garantir as especificidades
epistemológicas de cada uma delas, evitando sobreposições e submissões de qualquer tipo quanto ao
que concerne a metodologias e objetos próprios em cada caso. Porém, resguardado o princípio da
autonomia entre ambas as disciplinas, ressalta-se a importância de que o trabalho interdisciplinar se
desenvolva na área, especialmente naquilo em que abordagens teológicas e de ciência(s) da(s)
religião(ões) possam vir a colaborar mutuamente na melhor compreensão dos seus objetos e no
desenvolvimento da pesquisa e colaboração da área com a sociedade” (CAPES, 2019).
16

[….] têm como objetivo proporcionar maior familiaridade com o problema, com
vistas a torná-lo mais explícito ou a constituir hipóteses. Pode-se dizer que estas
pesquisas têm como objetivo principal o aprimoramento de ideias ou a descoberta
de intuições (GIL, 2002, p. 41).

Pretende-se, além disso, comparar a dinâmica interna de ambos os


movimentos, mediante os escritos de seus principais autores, bem como a relação
estabelecida entre eles e com os seus contextos históricos. “O método comparativo é
usado tanto para comparações, com a finalidade de verificar similitudes e explicar
divergências [...] permite analisar o dado concreto, deduzindo dos mesmos elementos
constantes, abstratos e gerais”. (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 107).
No que diz respeito às técnicas de pesquisa, optamos pelo levantamento
bibliográfico, que abrange as bibliografias tornadas públicas em relação ao tema proposto
– numa combinação de fontes primárias e secundárias – e oferece meios para explorar o
que ainda não foi suficientemente discutido, abrindo espaço para análises e conclusões
inovadoras (MARCONI; LAKATOS, 2003). Em relação às fontes primárias sobre o
calvinismo, será lida e documentada a obra as Instituições da Religião Cristã, na qual
estão concentradas as reflexões teológicas do pensador franco-suíço João Calvino no
curso do século XVI. Opta-se pelas edições da Editora UNESP, de 2008 e 2009, cuja
tradução é direta do latim e se dirige a um público acadêmico. Reconhecido que o
calvinismo é uma construção histórica e heterogênea, as confissões de fé serão
importantes para a análise que se pretende, especificamente a Confissão de Fé de
Westminster (1643-46), fruto da assembleia ocorrida no contexto da guerra civil da
Inglaterra, e os Cânones do Sínodo de Dort (1618-19), ligada às normas da Igreja
Reformada Holandesa. O último documento ganha contornos mais relevantes à nossa
pesquisa, em razão de sistematizar os cinco pontos do calvinismo, em resposta às
discussões no âmbito reformado a respeito da ordem dos decretos da salvação (o que
vem primeiro: a ordem do chamado ou da queda?). Esta discussão sofreu forte influência
da escolástica protestante, baseada numa visão aristotélica.
Acerca do Neocalvinismo holandês, serão lidas as obras de suas duas fases. A
primeira no século XIX na Holanda e a segunda no século XX na Holanda e Estados
Unidos da América. A primeira fase, como vimos, tem como principal expoente Abraham
Kuyper, com a obra O Calvinismo, originalmente publicado em inglês, em 1931, pela
editora religiosa Wm. B. Eerdmans Publishing Company, localizada no Michigan, sob o
título Lectures on Calvinism. A primeira edição brasileira foi lançada em 2002 pela Editora
17

Cultura Cristã; para esta pesquisa, será utilizada a segunda edição da mesma editora.
Nessa obra, o autor aponta a extensão do calvinismo na interface com a religião, política,
ciência e arte, dedicando um espaço para discutir sua agenda para o futuro.
A segunda fase na Holanda tem como autor substancial Herman Dooyeweerd,
com a obra Estado e Soberania: ensaios sobre cristianismo e política, cujo título original é
The Christian Idea of the State e the Context about the Concept, publicada no Brasil pela
Editora Vida Nova em 2014. Esta obra apresenta dois discursos do autor: o primeiro
proferido, em 1936, para a juventude antirrevolucionária holandesa, sobre a teoria geral
do Estado; e o segundo, proferido em 1950, por ocasião do 70º aniversário da
Universidade Livre de Amsterdã, da qual Dooyeweerd foi reitor naquela época, trata da
disputa sobre o conceito de soberania. No crepúsculo do pensamento Ocidental: estudos
sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico é sua segunda obra de relevância;
organizada a partir de uma série de conferências proferidas pelo autor nos Estados
Unidos e Canadá, em 1958, com a primeira publicação brasileira em 2010, pela Editora
Hagnos – a qual será lida. Esta obra é porta de entrada à filosofia cosmonômica de
Dooyeweerd; nela, o autor aborda temas como o historicismo e o sentido da história, a
distinção entre filosofia e teologia, e uma antropologia bíblica. Propõe uma “reforma do
pensamento”, ao dizer que só a filosofia cristã pode ser crítica, do contrário ela é
inevitavelmente dogmática. A terceira obra de Dooyeweerd é Raízes da cultura Ocidental:
as alternativas pagã, secular e cristã. Publicada originalmente nos USA com o título Roots
of Western Culture: Pagan, Secular, and Christian Options, pela editora reformada Paideia
Press Ltd., em 2012. A primeira edição publicada no Brasil é de 2015, pela Editora Cultura
Cristã, a que será utilizada nesta pesquisa. Nela, Dooyeweerd sustenta que o
pensamento teórico não é neutro, sendo sempre movido por um motivo básico religioso.
Nessa mesma fase, mas no contexto norte-americano, temos as obras de Francis
Schaeffer, escritas sob forte influência do pensamento de Dooyeweerd. O teólogo
Schaeffer foi o responsável por popularizar o pensamento de Dooyeweerd na América.
Para nossa pesquisa, selecionam-se duas obras: Verdadeira Espiritualidade e Como
Viveremos?
O livro Verdadeira Espiritualidade, cujo título original é True Spirituality, foi
publicado originalmente em 1971, no qual o autor busca retornar à tradição cristã para
dizer o que é de fato espiritualidade. Esta obra é importante para nós porque o autor
conta sua própria experiência de fé e como surgiu a ideia da comunidade L’Abri. E a
edição acolhida neste trabalho será a da editora Fiel, de 1993.
18

A obra Como Viveremos? faz parte de uma importante coletânea em um único


volume (A Christian View of the West – Uma Visão Cristã do Ocidente), publicada em
1982. Nesse livro, Schaeffer aborda como as artes, a filosofia e a ciência influenciaram o
cotidiano e aponta como o cristianismo pode influenciar o pensamento de hoje. O autor
traz importantes reflexões sobre o cenário político de sua época e fornece argumentos
teológicos que incentivam a participação dos evangélicos na esfera pública. Será utilizada
nesta pesquisa a edição da editora Cultura Cristã, de 2013.
A respeito das fontes secundárias, serão selecionadas obras, artigos,
dissertações e teses que têm como objeto de estudo o calvinismo e o Neocalvinismo
holandês. Na etapa de análise, cujo objetivo é “[...] estabelecer uma compreensão dos
dados coletados, confirmar ou não os pressupostos da pesquisa e/ou responder às
questões formuladas, e ampliar o conhecimento sobre o assunto pesquisado, articulando-
o ao contexto cultural da qual faz parte” (GOMES, 2002, p. 69), para uma proposta de
tratamento qualitativo, optamos pelo método hermenêutico-dialético, que valoriza os
atores sociais em seus contextos, tendo como “[...] ponto de partida, o interior da fala. [...].
E como ponto de chegada, o campo da especificidade histórica e totalizante que produz a
fala” (GOMES, 2002, p.77). Visto que a ciência se constrói numa relação interativa, será
possível combinar esse método com a análise do conteúdo do discurso religioso, uma vez
que se compreende que “a religião constitui um domínio privilegiado para se observar [...]
o lugar atribuído à Palavra” (ORLANDI, 2006, p. 243), especialmente no protestantismo
(ALVES, 1982). A partir disso se buscará firmar inter-relações com a fundamentação
teórica e categorias gerais desta pesquisa, que poderão ser ampliadas, para elaborar “[...]
pouco a pouco uma explicação lógica do fenômeno ou da situação estudados” (GIL, 2002,
p. 90).
De acordo com Gomes (2002), o primeiro nível de interpretação diz respeito às
determinações fundamentais, como a conjuntura social e histórica do objeto estudado. O
segundo nível de interpretação se refere aos fatos surgidos na investigação a partir da
análise das fontes primárias. Para operacionalização dessa proposta, serão seguidas as
seguintes etapas: a) ordenação dos dados: neste momento serão mapeados todos os
dados obtidos; b) classificação de dados: nesta fase os dados serão questionados à luz
da fundamentação teórica, identificando o surgimento das estruturas relevantes para
elaboração das categorias específicas; c) análise final: nesta etapa serão estabelecidas
as articulações entre os dados e os referenciais teóricos, buscando responder à
19

problemática e objetivos levantados. “Assim promoveremos relações entre o concreto e o


abstrato, o geral e o particular, a teoria e a prática” (GOMES, 2002, p. 79).
Cabe-nos reconhecer que, tratando-se de ciência, o produto final será sempre
uma tentativa de aproximação da realidade, assumindo, portanto, contornos provisórios e
passíveis de serem superados por afirmações futuras.
O fenômeno estudado, em geral, se restringe a círculos eclesiásticos, como um
modelo a ser seguido. Algumas pesquisas científicas já são desenvolvidas na
Universidade Presbiteriana Mackenzie, Faculdades EST, Universidade Metodista de São
Paulo e Universidade Federal de Minas Gerais.
No Mackenzie, podemos citar a dissertação de mestrado defendida por
Leandro Antônio de Lima, em 2009, cujo título é “Uma análise do chamado novo
calvinismo, de seu relacionamento com o calvinismo e de seu potencial para o diálogo
com a contemporaneidade”. A pesquisa está vinculada ao programa de Ciências da
Religião e foi realizada numa abordagem teológica, com a proposta de traçar linhas
comparativas entre o calvinismo e o Neocalvinismo, bem como oferecer subsídios de
complementação teológica para uma influência mais relevante do movimento no mundo
moderno.
Nas Faculdades EST, temos a dissertação de mestrado defendida por
Rodomar Ricardo Ramlow, em 2012, com o título “O Neocalvinismo holandês e o
movimento de cosmovisão cristã”. A pesquisa foi desenvolvida no programa de Teologia,
na área de concentração Teologia e História, com o objetivo de apresentar os autores do
Neocalvinismo holandês e suas principais ideias, bem como tratar do surgimento do
conceito de cosmovisão cristã, suas propostas e implicações na esfera sociocultural.
A Universidade Metodista de São Paulo contribuiu com as discussões a partir
da dissertação de mestrado desenvolvida no seu Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião, cujo título é “O Projeto Ético-Político do Kuyperianismo:
apontamentos históricos, teológicos e seu processo de recepção no Brasil
Contemporâneo”, defendida por Vinnícius Pereira de Almeida, em 2019. O autor buscou
apresentar a perspectiva kuyperiana e suas potencialidades para a mediação entre fé e
ação no mundo contemporâneo.
Na Universidade Federal de Minas Gerais, há uma pesquisa em andamento, no
Programa de Pós-Graduação de Sociologia, desenvolvida por Gustavo de Castro Patrício
de Alencar, na qual ele aborda os evangélicos e a nova direita no Brasil, analisando os
discursos conservadores do Neocalvinismo a partir do L’Abri e da Igreja Esperança, que
20

têm em comum a figura de Guilherme de Carvalho, pastor principal dessa instituição


eclesiástica.
O diálogo que se abre com esta última pesquisa é bastante pertinente, uma vez
que a nossa pesquisa, inserida na área 44 da CAPES – Ciências da Religião e Teologia –,
localiza-se na subárea Ciências Empíricas da Religião, pela sua relação com a sociologia.
Além disso, diferentemente de outras produções científicas acerca do tema, pretende-se
analisar o Neocalvinismo holandês como produto e resposta aos processos da
modernidade, expondo os entraves que seu projeto político coloca à esfera pública,
considerando a efervescência da problemática religião e política no Brasil contemporâneo.
21

2 JOÃO CALVINO E A ORTODOXIA PROTESTANTE: CONDITIO SINE QUA NON2

Uma vez antes havíamos distinguido duas formas de


governo que concernem ao homem, e já falamos
suficientemente da primeira, que consiste no governo da
alma, ou do homem interior, e visa à vida eterna, é
preciso agora tratar da segunda forma, que diz respeito
somente à justiça civil e à reforma dos costumes. De
fato, ainda que tal explanação pareça estranha à teologia
e à doutrina da fé que tratamos, o andamento da matéria
provará que é oportuno estudá-la; sou compelido a fazê-
lo sobretudo porque [….] não faltam desatinados e
bárbaros que tentam arruinar toda a autoridade
estabelecida por Deus.
(CALVINO, 2009, p. 875, t.2.).

A Reforma Protestante aventou uma nova maneira de relação com o sagrado


(CAVALCANTE, 2017), cuja concepção retirou da Igreja o seu status de mediadora entre
Deus e o homem. Martinho Lutero, nascido em 1483, como herdeiro de João Huss, cujas
ideias eram de seu interesse antes mesmo da ruptura com Roma, comprometeu-se
duplamente com a realidade social e religiosa da nação alemã (BIÉLER, 2012). Operava
na Alemanha certa hostilidade da nobreza dirigente ao papado, o que favoreceu, em
alguma medida, a propagação da Reforma no século XVI. Lutero, levantando-se contra
uma visão teológica de posse da verdade, conduziu o movimento pelo seu viés subjetivo
e antropológico, a partir da justificação pela fé. O reformador resgata a fé como confiança,
minimizando o ritualismo cerimonial e abrindo caminho para uma relação pessoal do
indivíduo com Deus (CAVALCANTE, 2017). Para ele, embora a Igreja tenha o poder de
distinguir a Palavra de Deus das palavras humanas, “a mente em si é posse da verdade”
(LUTERO, 2016, p. 138), é ela quem julga. Crendo ser injusto um homem livre estar
sujeito a qualquer tradição, visto que, desta forma, ocorre a tirania dos clérigos sobre os
leigos, Lutero afirma todos os cristãos como sacerdotes. “Aberto o caminho do subjetivo,
com o seu distanciamento diante da natureza, não há retorno possível à ideia de uma
autoridade visível, a Igreja Católica, fonte única de salvação. O itinerário para o divino,
desde Lutero, não é exterior, mas se desenvolve na consciência” (ROMANO, 1998, p. 12).
Assim, ocorreu uma formação independente de novas ideias religiosas que evocaram,
muito naturalmente, reformas sociais.

2 O termo é uma expressão em latim que significa “condição sem a qual não”. Indica uma condição
necessária para o acontecimento de um evento.
22

João Calvino, o segundo grande nome da Reforma, partiu do princípio


cosmológico geral da soberania de Deus, que encontra sua expressão máxima em Cristo,
cuja autoridade deve ser conservada pelos ministros eclesiais. A Igreja para Calvino é
autoridade espiritual no que diz respeito à doutrina, jurisdição e ao estabelecimento das
leis, de acordo com as Escrituras. Diferentemente de Lutero, não é a consciência
individual que julga controvérsias dogmáticas, mas a “[…] convocação de um sínodo de
bispos autênticos para examinar a questão. Pois muito mais peso terá uma decisão
tomada em comum acordo pelos pastores da Igreja, mediante a invocação do Espírito
Santo, do que outra concebida em casa ou formulada por poucos homens” (CALVINO,
2009, p. 605, t.2). Contudo, essa postura de Calvino foi assumida ao longo dos anos, visto
que, quando ainda jovem, na primeira publicação das Institutas, concebia a igreja humana
apenas como uma organização puramente eventual e o pastor partilhava dos fiéis o
sacerdócio universal (DELUMEAU apud MORAES, 2014). Sua ambição para transformar
Genebra em “cidade-igreja” (MORAES, 2014, p. 108) endureceu suas concepções
teológicas.

2.1 A reforma protestante e João Calvino: questões fundamentais

João Calvino procede de uma família que, embora não aristocrática, ascendeu
rapidamente, acompanhando o “surto” da burguesia do século XV: “[...] tanto quanto
possível ele se aproximará da nobreza, de que partilhará a cultura, os gostos e os
preconceitos” (BIÉLER, 2012, p.111). Seu pai manteve uma grande amizade com a
poderosa e nobre família Hangest, na qual Calvino fora recebido de modo bastante
caloroso, tendo, desde a infância, uma educação sofisticada. Calvino, relatando a
preocupação de seu pai com o avanço social, escreveu: “Desde que eu era ainda um
menino, meu pai me havia destinado à teologia; mais tarde, porém, considerando que a
ciência das leis comumente enriquece aqueles que a seguem, esta esperança o levou
bem logo a mudar de ideia” (CALVINO apud BIÉLER, 2012, p.112).
Aos 14 anos, é enviado a Paris, onde estudou por cinco anos em um colégio de
“pura ortodoxia católica” (BIÉLER, 2012, p. 113). Em 1528, volta-se para o direito, mas
devido à indisposição de seu pai com a Igreja, deixa de receber apoio para seu avanço
acadêmico. Após a morte de seu pai, Calvino se vê liberado a prosseguir seus estudos
em sua área de interesse. Instala-se novamente em Paris para completar sua formação
literária.
23

Na França, a Reforma Protestante foi conduzida por Lefèvre d’Étaples; “[….]


sua ousadia e a moderação de seu pensar devido ao irenismo de seu caráter fazem dele
um intermediário entre o reformismo humanista e católico de Erasmo e o reformismo
radical e evangélico de um Farel” (BIELÉR, 2012, p. 116). João Calvino, ainda católico e
influenciado pelo humanismo, via a Reforma com certa altivez, percebia o movimento
como de agitadores religiosos, mostrava-se conservador em relação às instituições
eclesiásticas e às estruturas sociais, mas “após a sua conversão, ele muda inteiramente
de ótica espiritual e social” (BIÉLER, p. 119).
Em 1534, Calvino rompe com a Igreja Católica e inicia a redação das Institutas,
tendo sido modificada ao longo de sua experiência em Genebra. Seu primeiro ato público,
de importância política e social, foi a carta ao rei Francisco I, na qual o reformador afirma
que não se pode separar a política da verdade espiritual.

Vosso será, porém, ó Rei sereníssimo, o não afastar nem os ouvidos nem a alma
de tão justo apoio, sobretudo ao se tratar de tão grande matéria, a saber: de que
modo a verdade de Deus retenha sua dignidade, de que modo o reino de Cristo
permaneça em sua perfeição entre nós; matéria digna de vossos ouvidos, digna
de vosso conhecimento, digna de vosso tribunal. Pois um tal pensamento faz
ainda um verdadeiro rei: reconhecer-se ministro na administração do reino de
Deus. Pois não é um rei, mas um salteador, o que não reina para servir à glória de
Deus (CALVINO, 2008, p. 15-16, t.1).

Assim, vemos Calvino engajado na luta popular, de reforma eclesiástica e


social, disposto a mostrar ao rei que nenhuma autoridade política pode se abster da
verdade, que funda a existência dos indivíduos e de toda estrutura social, verdade esta
que é tão somente a palavra de Deus.

Ninguém, com razão ainda mais forte nenhuma autoridade política, se pode
esquivar de pronunciar-se em favor da verdade de que depende toda a existência
dos indivíduos e das sociedades. O próprio Deus fixou uma regra de interpretação
da Escritura ao alcance de cada um. Quem quer que a aplica honestamente, e
sem preconcepções, pode reconhecer a verdade. Trata-se da regra da analogia da
fé: a Palavra de Deus não tem outros critérios senão ela própria. Nenhuma
autoridade exterior (igreja, tradição, ciência, sentimento religioso, consciência)
pode determinar o seu sentido (BIÉLER, 2012, p. 125-126).

Calvino, tendo experimentado as hostilidades de Francisco I e Carlos V, recorre


a Genebra, onde pretendia ficar apenas um dia, quando Farel o convenceu a se firmar na
cidade. Farel havia se estabelecido em Genebra em 1532, sua percepção era que,
embora o povo genebrino tivesse certa afeição pelo evangelho e pela reforma, era “frio”,
“carnal” e “mundano” (BIÉLER, 2012). “Se de acordo se estava de conformar-se não mais
aos hábitos seculares da Igreja Romana, da qual se acabava de desembaraçar, assim
24

como de sua organização, não se sabia ainda exatamente pelo que se haveria de
substituir” (BIÉLER, 2012, p. 132). A igreja ainda mantinha relação com o magistrado, por
isso havia necessidade de reorganização não apenas eclesiástica, mas também social,
política e moral. Farel já havia lançado bases sólidas para a Reforma, mas viu em Calvino
o potencial necessário para levá-la adiante.
Calvino dará início, desse modo, ao seu empreendimento teológico, com
artigos acerca do governo da igreja, formas de cultos e sacramentos, costumes dos fiéis,
matrimônio, doutrina confessada e disciplinas. Contudo, em 1538, o Conselho Geral de
Genebra aceita as propostas de oposição aos refugiados franceses e as ordenações
litúrgicas de Berna em relação a Genebra que contrariam as ideias dos reformadores,
posteriormente obrigados a deixar a cidade. Calvino vai para Estrasburgo, adquire
experiência e amadurece suas reflexões. Estrasburgo, que havia se tornado uma
referência intelectual com os esforços dos magistrados e teólogos, combinados ao ímpeto
humanista, será o modelo da nova ordem social implantada em Genebra por Calvino em
seu retorno.
O período em que Calvino se ausentou de Genebra foi suficiente para as
autoridades espirituais, que ali haviam se estabelecido, se distraírem, e o povo voltasse
aos antigos hábitos. Católicos e bernenses, também aproveitaram a oportunidade para
disputarem espaço, a fim de reconquistar a cidade, fazendo emergir um ressentimento
popular. Após um apelo pessoal, Calvino retorna a Genebra em 13 de setembro de 1541.
O apelo por carta dizia:

Monsieur, nosso Bom Irmão e Amigo especial: Recomendamo-nos muito


afetuosamente a vós, pois estamos inteiramente informados que não tendes outro
desejo senão o crescimento e o progresso da glória e da Honra de Deus e da Sua
Sagrada Palavra. Em nome dos Conselhos Pequeno, e Grande e Geral, [...]
rogamos ardentemente para vos transferirdes para nós, voltando para o vosso
velho lugar e antigo ministério; e esperamos, com o auxílio de Deus, que isto seja
um grande benefício, e frutífero para a multiplicação do Santo Evangelho, pois
nosso povo vos deseja de volta, e se conduzirá a vosso respeito de tal maneira
que tereis motivo para descansar sem preocupação. Vossos bons amigos, os
Síndicos e Conselhos de Genebra (HALSEMA, 2009, p. 108-109).

O reformador se apresenta, então, ao Pequeno Conselho da cidade e impõe


condições à sua permanência: instituir ordens eclesiásticas e o sistema de administração
eclesial, o famoso Consistório3.

3 Trataremos desse assunto na seção “Calvino, Religião e Política em Genebra”.


25

2.2 O pensamento político de João Calvino

O pensamento político de João Calvino é desenvolvido no capítulo XX do


quarto livro das Institutas, sendo o mais modificado desde sua primeira publicação em
1536. Sua concepção política nasce de uma necessidade concreta; o reformador deseja
atacar um inimigo político bastante proeminente em sua época, os grupos Anabatistas,
aos quais ele se refere como bárbaros e desatinados, justificando, portanto, sua
explanação:

Uma vez antes havíamos distinguido duas formas de governo que concernem ao
homem, e já falamos suficientemente da primeira, que consiste no governo da
alma, ou do homem interior, e visa à vida eterna, é preciso agora tratar da
segunda forma, que diz respeito somente à justiça civil e à reforma dos costumes.
De fato, ainda que tal explanação pareça estranha à teologia e à doutrina da fé
que tratamos, o andamento da matéria provará que é oportuno estudá-la; sou
compelido a fazê-lo sobretudo porque, por um lado, não faltam desatinados e
bárbaros que tentam arruinar toda a autoridade estabelecida por Deus (CALVINO,
2009, p. 875, t.2).

Calvino se opõe aos Anabatistas por proclamarem muito mais uma realidade
imanente da religião do que espiritual. O movimento liderado por Thomas Müntzer 4
defendia os camponeses, colocando-se na contramão da servidão, tributos religiosos e
impostos sobre terras, sendo Omnia sunt communia (“Tudo é de todos”) a síntese de suas
pregações (SANTOS, 2009). O reformador acreditava haver – em termos modernos –
traços anarquistas nas ideias desse movimento, pois, para ele, era inconcebível construir
uma sociedade sem uma organização hierárquica (MORAES, 2014).

Para Calvino, uma sociedade não regulada pela lei e pelo magistrado civil estaria
condenada à ruína. Seu modelo de organização eclesiástica podia ser copiado
para o modelo de organização civil da sociedade. Foi isso que aconteceu com as
várias ramificações calvinistas que se espalharam pelo mundo afora (MORAES,
2014, p. 153-154).

Pode-se dizer, desse modo, que seus estudos jurídicos foram bastante
influentes, não apenas na redação das Institutas, cujo objetivo era fornecer um “corpus de
definições dogmáticas precisas” e “uma organização eclesiástica eficaz” (PARKER apud
SILVESTRE, 2003, p. 114), mas também na sua visão legalista da organização social.

4 Um dos primeiros teólogos alemães após a Reforma, que liderou a Guerra dos Camponeses entre
1524-1525.
26

O advogado começa com o primeiro dado de autoridade. Ele lida com uma regra
de ação imposta por um superior, à qual um inferior é obrigado a obedecer. A
santidade dessa autoridade é a primeira condição da ordem social, e a
manutenção dessa ordem é absolutamente necessária ao mundo do Advogado.
Calvino, o teólogo, é Calvino, o advogado, transferindo seu pensamento da esfera
da jurisprudência humana para a do divino. Ao contrário do outro grande jurista-
teólogo, Hugo Grotius, da Holanda, sua concepção de Deus é a de juiz e não a de
governador. A teologia de Calvino, como toda teologia que atinge seu prumo direto
até o fundo, também era uma teodiceia, e é apenas essa avaliação teodicista dela
que apresenta tanto o pensamento inicial quanto o cerne de todo o seu sistema.
Sua concepção do universo é essencialmente teísta. O mundo é teológico?
Originado por Deus; é teocêntrico? Centrado em Deus; é teocrático — governado
por Deus; é teológico — tem sua lógica em Deus. Deus é Criador e Governador de
todos; mas acima de tudo, Ele é Juiz de tudo; e este é o princípio jurídico em que
ele constrói todo o seu sistema (MILTON, 1909, p. 214, tradução nossa). 5

Partindo desse princípio jurídico, Calvino elabora seu pensamento


eclesiológico, colocando a Igreja no papel de representante do juiz (Deus) no mundo; para
ele, fora da instituição, “não há de esperar-se nenhuma remissão de pecados, nem
qualquer salvação” (CALVINO, 2009, p. 469, t.2). A Igreja do reformador retoma, portanto,
contornos da Igreja Católica.
Calvino estabelece a Igreja como fonte de autoridade no que diz respeito à
definição dos dogmas de fé, embora esta esteja sempre sujeita à Palavra de Deus. No
entanto, cabe destacar que a compreensão das Escrituras, como tal, passa pelo crivo
hermenêutico, que é sempre relativo, não absoluto. “É evidente que cada intérprete vá
carregado com certas concepções, sejam idealistas ou psicológicas, que se convertem
em pressuposições de sua exegese, na maior parte das vezes de modo inconsciente”
(BULTMANN, 2008, p. 39). Como vimos, é certo que Calvino fundamenta sua teologia
numa visão legalista e ordenada de mundo, é com essa lente que interpreta as Escrituras,
buscando “[…] evitar uma descontinuidade entre Lei e evangelho, tendo uma visão da Lei
moral positiva” (ANÉAS, 2018, p. 186). Nisso também se difere de Lutero. “Para Lutero, a
vida nova é alegre união com Deus; para Calvino, o cumprimento da Lei” (TILLICH, 2000,
p. 266). Isso reflete, portanto, sua concepção acerca da sociedade, sobre a qual – para
ele – a lei de Deus exerce papel fundamental em sua constituição.
5 “The lawyer begins with the first datum of authority. He deals with a rule of action imposed by a superior,
which an inferior is bound to obey. The sanctity of that authority is the first condition of the social order,
and the maintenance of that order is absolutely necessary to the Lawyer's world. Calvin the theologian is
Calvin the lawyer transferring his thought from the sphere of human jurisprudence to that of the divine.
Unlike that other great jurist-theologian, Hugo Grotius of Holland, his conception of God is that of judge
rather than that of governor. Calvin's theology, like every theology that strikes its plummet straight to the
bottom, was also a theodicy, and it is just this theodician valuation of it which presents both the seed-
thought and the crux of his whole system. His conception of the universe is essentially theistic. The world
is theo genetic? God-originated; it is theocentric? God-centred; it is theocratic? God-governed; it is
theologic? it has its rationale in God. God is Creator and Governor of all; but above everything else, He is
Judge of all; and this is the juristic principium on which he builds his whole system” (MILTON, 1909, p.
214).
27

Calvino, ao discutir sobre o poder civil, aponta que “[…] o governo não é menos
necessário aos homens que o pão, a água, o sal e o ar” (2009, p. 877, t.2). Para o
reformador, a lei e o magistrado são indispensáveis à bem-aventurança de uma nação,
concedidos por Deus “para remediar os maus juízos humanos” (2009, p.881, t.2), sendo
investidos de autoridade divina todos aqueles que cumprem sua função. Além disso, o
poder civil tem o papel de estabelecer uma legislação que zele pela verdadeira religião.

Quão grande integridade, prudência, clemência, moderação e inocência devem


possuir os que foram constituídos ministros da justiça divina? Como haveriam de
permitir a entrada de qualquer iniquidade em seu tribunal, sabendo que sua boca
deve ser instrumento da verdade divina? Em suma, se tiverem bem claro que são
representantes de Deus, então hão de aplicar toda a diligência em oferecer aos
homens a imagem da providência, proteção, bondade, benevolência e justiça
divina. Ademais, devem ter ante os olhos o fato de que Deus amaldiçoa todos os
que negligenciam a sua obra (Jr 48.10), e justamente por isso serão malditos
aqueles que se conduzirem deslealmente em tão elevada vocação (CALVINO,
2009, p.880, t.2).

Assim, vemos que Calvino associa a função dos magistrados a uma vocação
dada por Deus. Seus comentários a Romanos 13 colabora para essa noção, quando diz:
“Não chegaram a esta elevada posição por sua própria faculdade, mas foram postos ali
pela mão do Senhor” (CALVINO, 2001, p. 460).
O Reformador também se dedica à análise de três formas de governo, a saber:
monarquia, aristocracia e democracia.

Enumeram-se três formas de governo civil: a monarquia, isto é, o governo de um


só, chamado rei, duque ou de outro nome; a aristocracia, regime fundado sobre o
governo da nobreza; a democracia, governo popular no qual todo indivíduo tem
poder. É verdade que um rei, ou outra pessoa investida de autoridade única,
facilmente caia na tirania; é fácil também que os nobres se conluiem para criar um
governo injusto; mais frequente ainda são as sedições, quando o povo assume o
poder. Comparando as essas três formas de governo, será preferível que o poder
esteja nas mãos daqueles que sabem governar mantendo a liberdade do povo,
visto que raramente se constata, sendo quase um milagre, que os reis consigam
controlar a sua vontade sem jamais se afastarem da justiça e da retidão. De fato, é
raro que tenham a prudência e a inteligência necessária para saber discernir
aquilo que é bom e útil. (CALVINO, 2009, p. 881, t2).

Calvino tece crítica a todas as formas de governo analisadas, não deixando


clara sua posição. Acredita-se, no entanto, que o reformador tinha preferências
aristocráticas. Embora defendesse a liberdade do povo, para ele, na falta de homens
aptos justamente por conta do pecado, seria melhor um governo duradouro, de pessoas
que se ajudassem mutuamente, impondo limites umas às outras. A partir de uma leitura
do Antigo Testamento, é fundamental para Calvino uma sociedade regida pela lei: “Como
28

se Deus tivesse constituído as autoridades para que, em seu nome, decidissem as


controvérsias terrenas, mas deixassem de lado o principal, a saber que ele deve ser
servido com pureza conforme a determinação de sua lei” (CALVINO, 2009, p. 883, t.2).
Imbuído por essa questão, Calvino também discute sobre a legitimidade da
guerra. Recorrendo aos livros do Antigo Testamento, tais como Êxodo, Salmos,
Provérbios, Jeremias, o reformador afirma ser lícito aos magistrados fazerem guerra para
manter a ordem e a paz.

A própria natureza nos ensina que é dever dos príncipes usar a espada, não
somente para corrigir as faltas dos súditos, mas também para defender o território
que está sob seus cuidados quando este for invadido. Na Escritura, o Espírito
Santo nos declara que tais guerras são legítimas. Se alguém objetasse que não há
qualquer testemunho ou exemplo no Novo Testamento pelo qual se possa provar
que é lícito aos cristãos fazerem guerra, respondo que continuam válidas as
razões do Antigo Testamento; sustento ainda que não há motivo algum que
impeça aos príncipes de defenderem seus vassalos e súditos. Em segundo lugar,
sustento que não é necessário buscar nenhuma declaração apostólica
concernente a esse assunto, já que a intenção dos apóstolos era pregar o reino
espiritual de Cristo, e não a legislar para os reinos temporais. Respondo, enfim,
que nada alterou as disposições do Antigo. Porque, se a disciplina cristã, como
disse Agostinho, condenasse todo tipo de guerra, então João Batista teria
aconselhado aos soldados, que tinham vindo até ele para saberem da salvação,
que abandonassem as armas, que deixassem de ser soldados e procurassem
outra ocupação. Ele, porém, lhes proibiu que cometessem violência ou dano
injusto, e que se bastassem com seu soldo. Ao dizê-lo, evidentemente não os
proibiu de guerrear (Lc 3:14) (CALVINO, 2009, p. 886-887, t.2).

Em seguida, no entanto, Calvino aconselha que se procurem todos os meios


antes de recorrer às armas, mas que, quando essa alternativa for considerada, os
magistrados devem privilegiar a responsabilidade pelo bem público, não seus sentimentos
pessoais. Mais à frente, o reformador discute sobre as leis; fazendo menção a Platão e a
Cícero, diz que essas são a alma do Estado: “Sem as leis os magistrados não podem
exercer sua função, e as leis são conservadas e mantidas por eles” (CALVINO, 2009, p.
888, t.2). Com o objetivo de discorrer sobre as leis que regem o governo de um estado
cristão, o reformador aborda que tipo de leis – em suas palavras – “o Estado pode servir-
se santamente diante de Deus, e os homens possam conduzir-se justamente” (CALVINO,
2009, p. 888, t.2). Assim, ele busca um princípio constitucional na lei mosaica, passando a
tratar suas três partes (moral, cerimonial e judicial) a fim de entender quais são aplicáveis
em seu tempo.
Para Calvino, a lei moral é um testemunho da lei no natural presente na
consciência de todos os homens, a saber: a equidade. O reformador aponta que na
história antiga, furtos, homicídios, adultérios e falsos testemunhos sempre foram alvos de
29

punição, ainda que os meios para que isso ocorresse fossem distintos. Já a lei cerimonial
era aplicável somente aos judeus, com o objetivo pedagógico de ensiná-los até o tempo
da plenitude, isto é, até a vinda de Cristo. A lei judicial foi dada aos judeus, para que
pudessem viver uma vida justa, de acordo com a lei moral. Não tinha outro fim a não ser a
“conservação da caridade preceituada na Lei de Deus” (CALVINO, 2009, p. 889, t.2). Por
fim, Calvino conclui que os Estados modernos têm a liberdade para definir suas leis,
segundo as necessidades atuais, no entanto, devem sempre estar de acordo com as leis
morais dispostas na lei mosaica, pois estas são eternas:

[A] lei moral, a qual se expressa em dois artigos principais: um manda honrar
sinceramente a Deus com verdadeira fé e piedade sincera; o outro manda amar
aos homens com verdadeira caridade. Eis aí a verdadeira e eterna regra da
justiça, estabelecida para todos os homens em qualquer lugar do mundo, caso
queiram conformar sua vida segundo a vontade de Deus, porque sua vontade
eterna e imutável é que o honremos e nos amemos mutuamente (CALVINO, 2009,
p. 889, t.2).

Dando continuidade ao assunto, Calvino trata do modo como os cristãos


devem se servir das leis, dos tribunais e dos magistrados. Primeiro, ele desqualifica a
ideia de que a função dos magistrados é inútil aos cristãos, uma vez que acreditam ser
ilícito recorrer à justiça, pois vingança e violência estariam proibidos a esse grupo.
Mencionando a carta de Paulo aos Romanos, ele diz: “[…] devemos concluir que é
vontade de Deus que a sua autoridade e auxílio nos defendam e tutelem contra a
maldade e a injustiça dos maus, de modo que possamos viver em paz sob a sua
proteção” (CALVINO, 2009, p. 891, t.2). Em seguida, afirma que, embora seja lícito entrar
em juízo com um irmão, não se deve odiá-lo ou persegui-lo.
Em diversas passagens, o reformador deixa transparecer sua concepção
antropológica, tratando os magistrados como uma providência divina que não deve ser
corrompida pelos vícios da perversidade humana. Aconselha que os processos penais
não sejam movidos pela vingança e ressentimento, apenas pelo desejo de se impedir a
maldade. Recorre ainda às palavras de Cristo, para que se ofereça a face direita a quem
bater na esquerda: “É verdade que, com tais sentenças, Cristo exige que o coração de
seus servos esteja de tal modo livre do desejo de represália, que antes prefiram o dobro
da injúria que retribuí-la, tolerância esta da qual não pretendemos afastar os fiéis”
(Calvino, 2009, p. 893, t.2).
Calvino se dedica a um dos mais polêmicos assuntos entre os calvinistas ao
longo da história: a relação entre o povo e o poder dos tiranos. O reformador se insere
30

numa época em que se tratava os governados como súditos, por isso é muito comum vê-
lo se dirigir ao povo dessa forma ao longo das dez seções que abordou o assunto. Como
vimos, Calvino trata os magistrados como representantes de Deus, seja para mostrar
bondade divina ao povo ou para puni-los:

Porque o Senhor declara que os magistrados foram constituídos para a


conservação do gênero humano, e, embora lhes imponha limites definidos,
declara, no entanto, que, sendo quem forem, receberam o governo diretamente
dele. Assim, agindo em vista do bem público, os governantes são verdadeiros
espelhos e exemplares de bondade divina; ao contrário, aqueles que governam
injusta e violentamente foram suscitados para o castigo do povo; ambos, porém,
foram investidos da majestade que é conferida às autoridades legítimas
(CALVINO, 2009, p. 897, t.2).

Assim, cabe aos súditos honrar o governo estabelecido, o que torna a resistência
uma desobediência ao próprio Deus:

Pois, uma vez que não é possível resistir ao magistrado sem que esteja resistindo
também a Deus, ainda que alguém ache que pode desprezar ao magistrado que
se mostra medíocre e incapaz, Deus é poderoso o bastante para vingar esse
desprezo de sua vontade (CALVINO, 2009, p. 896, t.2).

Fazendo referência à Ilíada e Odisseia de Homero, Calvino diz:

Até agora falamos da figura do magistrado tal como deve ser, para que
corresponda genuinamente a esse título, isto é, pai da pátria que governa, pastor
do povo, guardião da terra, mantenedor da justiça, conservador da inocência: não
resta dúvida de que se mostra insano quem se opõe a esse governo (CALVINO,
2009, p. 896, t.2).

Além disso, segundo Moraes (2014), para Calvino a sociedade não é


constituída por homens iguais perante a lei, uma vez que o reformador faz distinção entre
pessoas privadas e públicas, não cabendo ao primeiro grupo interferências nos assuntos
de administração pública. Moraes afirma que, com isso, Calvino tinha em mente os
Anabatistas, seu inimigo político apontado anteriormente. No entanto, seu pensamento
fundamentou uma série de ações, dentre as quais a ideia de que Deus havia criado uns
para dominar e outros para obedecer, justificando mais tarde, por exemplo, a escravidão
para os aristocratas do sul dos Estados Unidos. De fato, no início do capítulo XX, quando
Calvino procura refutar os Anabatistas acerca da liberdade prometida no Evangelho, ele
afirma que esses não conseguem entender de que tipo de liberdade se fala. Para o
reformador não se trata de adotar uma nova forma de governo; quando Paulo diz aos
gálatas e colossenses que no reino de Deus não há distinção de pátria, gênero, servo ou
31

livre, “com essas afirmações, ele pretende dizer que é indiferente a condição em que nos
encontramos, bem como as leis de que país vivemos, porquanto o reino de Cristo não
consiste nessas coisas” (CALVINO, 2009, p. 876, t.2).
Calvino insiste na obediência ao governo, mesmo que este seja tirano. Para
isso recorre a uma série de passagens bíblicas do Antigo Testamento, nas quais as
autoridades injustas não representavam nada menos que a ira de Deus, cumprindo, desta
forma, a vontade divina. Calvino cita o governo tirânico do rei Nabucodonosor:

Em Jeremias há uma passagem que é mais oportuna citar; embora seja mais
longa, resolverá a questão de modo exemplar: ‘Eu fiz a terra, o homem e os
animais que estão sobre a face da terra, com meu grande poder e com meu braço
estendido, e a dou àquele que me convêm. Agora, pois eu entreguei todas estas
terras nas mãos de Nabucodonosor, rei de Babilônia, meu servo, e a ele servirão
todas as nações e grandes reis, até vir o tempo de sua terra. E sucederá que os
povos e reinos que ao rei de Babilônia não tiverem servido, visitá-los-ei com
espada, fome e peste: servi, pois, ao rei da Babilônia e vivereis’ (Jr. 27. 5-8, 17).
Essas palavras demonstram que tipo de obediência o Senhor quis que fosse
tributada àquele tirano perverso e cruel, pelo único fato de que possuía o reino.
Esse domínio por si só mostrava que aquele soberano fora elevado ao trono por
disposição divina, e justamente pelo fato de ter sido elevado à majestade real, não
devia ser lesada. Quando estiver bem clara e estabelecida em nosso
entendimento que a vontade de Deus, em virtude da qual se firma a autoridade
dos reis, é a mesma que escolhe os soberanos elevando-os à posição de
autoridade, jamais nos virão à mente essas ideias insanas e sediciosas de que um
rei deve ser tratado segundo seus méritos, e que é razoável nos revoltarmos
contra aquele que não age como bom rei em relação a nós (CALVINO, 2009, p.
898-899, t.2).

Percebe-se, pois, que a doutrina da soberania de Deus conduz a uma teologia


determinista. Segundo Moraes (2014), cabe pontuar que os textos utilizados por Calvino
acerca da monarquia em Israel para justificar a obediência a um tirano não foram
considerados nem pela própria tradição monárquica em Israel. O reformador fez uma
leitura literal.
Embora sua posição não tenha mudado, mesmo sob forte pressão dos
protestantes franceses perseguidos durante as guerras religiosas (MORAES, 2014), na
seção 30, ele abre uma exceção. Calvino se coloca em oposição ao absolutismo político,
pois acredita que o poder absoluto pertence somente a Deus. Sendo assim, afirma que há
sempre um limite na obediência aos governantes:

Conforme ensinamos, há sempre um limite na obediência devida aos superiores,


ou, mais exatamente, uma regra que se deve ser sempre observada: tal
obediência não deve nos afastar da obediência devida a Deus, sob cuja vontade
todos os éditos reais e constituições devem estar contidos, e sob cuja majestade
deve se rebaixar e humilhar todo poder. Que perversão seria a nossa se, para
contentar aos homens, incorrêssemos na indignação daquele por cujo amor
32

devemos obedecer aos homens? O Senhor, portanto, é o rei dos reis, e a ele
devemos ouvir acima de todos tão logo abra a sua boca. De forma secundária,
devemos estar sujeitos aos homens que têm preeminência sobre nós, mas
somente sob a autoridade de Deus. Se as autoridades ordenam algo contra o
mandamento de Deus, devemos desconsiderá-la completamente, seja quem for o
mandante (CALVINO, 2009, p. 902, t.2).

Desta feita, vimos Calvino chegar ao fim dessa discussão com certa
obscuridade, talvez insegurança, especialmente quando diz: “Sei muito bem que tipo de
perigos podem advir desse posicionamento de firmeza que aqui reivindico, porque os reis
não toleram sofrer contradição, e sua indignação, como disse Salomão, é prenúncio de
morte” (CALVINO, 2009, p. 902, t.2). Mais uma vez, seu discurso teológico, colocado em
termos abrangentes, dá margem para múltiplas interpretações e ações que sucederam
posteriormente entre os calvinistas.
Quanto à religião e política de Calvino em Genebra, após o seu retorno à
cidade em 1541, como vimos anteriormente, o reformador impôs algumas condições ao
magistrado para sua permanência. Cabe destacar que sua influência na cidade não se
deu de forma irrestrita, pois não detinha poder político. Sua influência foi antes
persuasiva, através do papel que exercia na igreja.

[…]. Sua ideia básica era a de não controlar o Estado, mas influenciá-lo a tal ponto
que ele representasse os valores e princípios defendidos pela Igreja. Na sua visão,
a Igreja era uma agência do Reino de Deus, mas o Estado também deveria ser
uma agência desse mesmo Reino. Guardadas as autonomias de ambas as
instituições, elas deveriam trabalhar em prol de uma visão teocêntrica que
glorificasse a Deus (MORAES, 2014, p. 135).

Segundo Anéas (2018), Calvino era consciente do poder que as instituições


possuíam, utilizando-as de maneira estratégica para atingir seus objetivos. “Essa ênfase
na importância das instituições é, provavelmente, o principal fator que fez com que o
calvinismo se tornasse capaz de suportar as adversidades políticas, principalmente
quando comparado com o luteranismo” (ANÉAS, 2018, p. 176).
O Pequeno Conselho votou, então, suas ordenanças, submetendo-as ao
Conselho Geral, e a comissão as redigiu sob a condução do reformador. As novas
ordenanças basearam-se nas experiências de Estrasburgo e nas observações feitas na
Alemanha, onde as igrejas eram completamente dependentes do poder político. “Assim,
fortaleceu-se lhe a vontade de salvaguardar a todo preço a independência espiritual da
igreja contra as interferências, sempre importunas, dos poderes públicos” (BIÉLER, 2012,
p. 151). No entanto, ao mesmo tempo em que Calvino pleiteou a independência da igreja
33

para decidir assuntos que incluíam a moralidade e costumes do povo genebrino, não
lançou mão da força do magistrado para julgar as transgressões cometidas. O
instrumento mais problemático criado por Calvino foi o Consistório, decisivo no caso de
Servetus. Ele surge em 1542 com o objetivo de policiar a ortodoxia religiosa e assegurar o
“império cristão reformado” (ANÉAS, 2018, p. 176).

A vida da Igreja é controlada pelo Consistório, composto pelos pastores e por doze
anciãos escolhidos pelas autoridades. O Consistório fiscaliza tudo na Igreja e o
poder civil se encarrega de fazer aplicar as suas decisões. Existe, em princípio,
uma clara distinção entre o poder civil e o poder eclesiástico. Não obstante, eles
estão muito ligados, pois o Estado intervém na nomeação dos ministros e o
Consistório é uma emanação do poder civil. Calvino deseja edificar a cidade cristã
de Genebra. As pessoas da Igreja são juízes da atividade do Estado. […].
Prescrições minuciosas regulamentam toda a vida dos genebrinos. São
numerosas as condenações à morte. Os conflitos entre pessoas são frequentes.
Mais graves, os conflitos doutrinais assumem um aspecto dramático quando
Miguel Servet é queimado em 1553 por haver negado a Trindade (COMBY, 1994,
p. 155).

Assim, vemos se instalar em Genebra um Estado disciplinatório, que atribui à


Reforma genebrina um duplo caráter: religioso e político-social. Não podemos deixar de
citar o caso Miguel Servetus, médico espanhol, capturado e condenado à fogueira em
1553, sob acusação de heresia por ter proposto uma compreensão diferente da
considerada ortodoxa sobre a doutrina da Trindade. Embora o conselho de Genebra
tenha executado a sentença, foi o reformador quem providenciou a prisão e acusação
contra ele (MORAES, 2014).
Alguns estudiosos afirmam que não se deve analisar esse acontecimento sob a
ótica da modernidade tardia, pois se trata do reflexo da mentalidade medieval. Além disso,
justificam as ações de Calvino neste e em outros casos como de Bolsec e Castellion 6,
pela inexistência do conceito de tolerância, que, de acordo com Silvestre (2018), nasceu
somente na década de 1680, nos ensinos dos iluministas. No entanto, se nos atentarmos
ao capítulo XX das Institutas, especialmente à seção em que Calvino aponta como o
cristão deve servir-se do magistrado 7, percebemos que o próprio reformador sinaliza a
necessidade de tolerância. Ainda que o conceito não estivesse plenamente desenvolvido,

6 Jérôme-Hermès Bolsec, parisiense e médico, voltou-se contra Calvino por não concordar com doutrina
da predestinação. O Pequeno Conselho de Genebra resolveu bani-lo em 23 de dezembro de 1551.
Sébastien Castellion (1515-1563) rejeitava um trecho do Credo Apostólico e discordava da doutrina da
predestinação, além disso, chegou a fazer uma tradução do Novo Testamento em linguagem popular, a
qual foi rejeitada. Também teceu críticas aos pastores genebrinos, o que contrariou Calvino, levando-o a
solicitar intervenção junto às autoridades de Genebra, que o proibiram de exercer o ministério pastoral.
Após isso, deixou a cidade, mas tornou a ser perseguido após a publicação da sua obra que apontava
para tolerância e tecia duras críticas a Calvino.
7 Assunto abordado na seção anterior: “O Pensamento Político de Calvino”.
34

a ideia está presente, inclusive nos ensinamentos de Cristo, sobre os quais o próprio
Calvino faz uma transposição para o âmbito político. Além disso, no mesmo contexto do
reformador, tivemos indivíduos que se colocaram em oposição a qualquer radicalidade.
Sebastian Castellion, teólogo francês que, por anos, foi aliado de Calvino, ousou apontá-
lo “[…] através de vários livros e com uma miríade de argumentos, que como cristão ele
não tinha direito de mandar matar quem quer que fosse, especialmente alguém que
meramente discordasse dele” (ALMEIDA, 2014, p. 14). Entre as críticas feitas a Calvino,
Castellion escreveu:

Matar um homem não é defender uma doutrina, é matar um homem. Quando os


genebrinos mataram Servetus, eles não defenderam uma doutrina, eles mataram
um homem. A defesa da doutrina é negócio do magistrado (o que o gládio pode ter
com a doutrina?), é negócio de doutores. O negócio do magistrado é o de
defender o doutor como ele defende o camponês, o artesão, o médico, não
importa quem, contra as injustiças. Por isso, se Servetus tivesse intentado matar
Calvino, de bom direito o magistrado teria tomado a defesa de Calvino. Mas
Servetus combateu com argumentos e livros: seria necessário combatê-lo por
argumentos e livros (CASTELLION apud ALMEIDA, 2014, p. 73).

Para Castellion, a ortodoxia havia sufocado a prática cristã, sendo necessário


propor, já em seus dias, outro método de interpretação bíblica, visto que as Escrituras não
são suficientemente claras, se fosse diferente, não haveria tantas controvérsias
dogmáticas (apud ALMEIDA, 2014).
Nesse sentido, não houve um erro corriqueiro de uma cidade em seu contexto,
como coloca Silvestre (2018), mas sim uma prática política do reformador, diferente do
seu próprio plano teórico traçado nas Institutas, especificamente nesse aspecto de
tolerância. Assim, vemos a política entrar em concorrência direta com a ética religiosa, o
que, segundo Weber (1982), ocorre em pontos decisivos. O Estado – e aqui utilizamos o
termo em seu sentido lato – constitui-se a partir do uso legítimo da violência. “Quando tal
fator está ausente, o ‘Estado’ também está ausente; o ‘anarquismo’ do pacifista terá
nascido então” (WEBER, 1982, p. 383), o que, para Calvino, como vimos, é inconcebível.
Cabe lembrar que Calvino se fundamentou numa antropologia pessimista, de cunho
agostiniana8, compreendendo o homem como um ser aprisionado pelo pecado. A ideia de
uma liberdade ontológica ausente reflete na construção do seu modelo político. Para o

8 Para Agostinho de Hipona, o Mal adentra ao mundo por um único homem, Adão, cuja culpa é
transmitida a toda humanidade. “Analisando o pensamento agostiniano, percebe-se que o mesmo
aponta de maneira muito precisa para a incapacidade do ser humano, para sua falibilidade e para sua
inadequação. O homem agostiniano é o homem decaído, afetado pela queda. Antes desta, segundo
Agostinho, o homem vivia feliz em seu estado de felicidade plena, gozando da felicidade dos anjos”
(MORAES, 2014, p. 113).
35

reformador, “[…] um conjunto de homens maus precisa de uma orientação normativa


clara, precisa de um Estado incisivo e coercitivo que tente minimizar o mal o quanto
puder” (MORAES, 2014, p. 115). É vontade de Deus estabelecer ordem na religião e
sociedade, de acordo com os princípios bíblicos.
Weber, comentando sobre o puritanismo, o que também se aplica muito bem a
Calvino no século XVI, diz que a interpretação da vontade de Deus significa que os
mandamentos divinos devem ser impostos aos indivíduos pelos meios deste mundo, isto
é, pela violência, resistindo, assim, à fraternidade mútua pela causa de Deus. Dentro da
teologia de Calvino, os eleitos, uma vez que nada podem fazer no plano da salvação,
devem procurar saber como honrar a Deus e servi-lo. Esta é sua questão fundamental,
distinguindo-se nisso de Lutero, mas apropriando-se da sua concepção de vocação 9.
Assim, Calvino, em posse de sua vocação, quis fazer uma Genebra estritamente cristã,
de acordo com a sua chave interpretativa das Escrituras, recorrendo-se, no entanto, aos
mecanismos políticos e deixando-os como que num movimento dialético, que por eles sua
teologia também fosse moldada. Podemos inferir que em alguns aspectos percebemos
continuidade entre seu tratado político e sua prática pública, em outros não, como no caso
mencionado, acerca da tolerância.
Na próxima seção trataremos da ortodoxia protestante, período seguinte aos
reformadores, marcado pela sistematização das principais doutrinas calvinistas.
Buscaremos apresentar as principais demandas desse contexto, destacando também o
caráter político desse fenômeno.

2.3 A Ortodoxia Protestante

Na História da Teologia Protestante, especificamente no século XVII,


defrontamo-nos com um período caracterizado por uma preocupação profunda e
sistemática pelo rigor doutrinário (COSTA, 2009), conhecido como “Escolástica
Protestante” ou “Ortodoxia Protestante”. Nesse contexto, a palavra ortodoxia é
empregada enquanto sistema de pensamento, cujos compromissos partem de três
pressupostos: 1) o homem pode conhecer a verdade; 2) a verdade é conhecida; 3) o que
aquela comunidade ou grupo professa corresponde à verdade (COSTA, 2009, p. 2). Os

9 Em Lutero, “uma coisa antes de mais nada era absolutamente nova: a valorização do cumprimento do
dever no seio das profissões mundanas como o mais excelso conteúdo que a autorrealização moral é
capaz de assumir” (WEBER, 2004, p, 72).
36

documentos mencionados anteriormente foram elaborados dentro desse sistema de


pensamento, os quais serão nosso objeto de análise mais adiante.
Segundo Paul Tillich (1999), a escolástica protestante se distinguia do
fundamentalismo nos Estados Unidos, uma vez que buscava apresentar uma doutrina
pura e completa acerca de Deus objetivamente. Ela é fruto das gerações seguintes aos
reformadores e, junto com eles, o alicerce em que repousa toda teologia protestante
posterior (TILLICH, 1999).

O fundamentalismo resultou de uma reação no século dezenove, não passando de


uma forma primitivizada da ortodoxia clássica. Ortodoxia clássica relaciona-se com
uma grande teologia. Poderíamos chamá-la de escolástica protestante, com todos
os refinamentos e métodos que a palavra “escolástica” inclui. Assim, quando eu
falo de ortodoxia, refiro-me à maneira como a Reforma estabeleceu-se, enquanto
forma eclesiástica de vida e pensamento, depois que o movimento dinâmico da
Reforma terminou. É a sistematização e a consolidação das ideias da Reforma,
desenvolvidas em contraste com a Contrarreforma (TILLICH, 2000, p. 272).

Para compreender o seu desenvolvimento, é necessário pensá-lo sob a influência


das correntes de pensamento do período histórico. Entre os séculos XVII e XVIII ocorre o
movimento Iluminista, que dá ênfase à razão e capacidade de compreensão do ser
humano, visando à emancipação dos preconceitos, superstições e tradições europeias,
advindas da Idade Média.

O iluminismo francês queria o fim do domínio sobre a França da igreja católica e


da monarquia absolutista. Liberdade, igualdade, e propriedade privada passaram a
ser vistas como direitos naturais de todo homem, e o ideal da fraternidade
universal acenava com a esperança de que todos os conflitos étnicos e entre
classes sociais teriam um fim. […]. Na Alemanha o iluminismo foi […]
caracterizado pela confiança no poder da razão para obter respostas no campo da
metafísica. A razão deveria julgar o que é aceitável, ou não, que se creia sobre
Deus, e substituindo a revelação e a tradição, tornou-se o novo árbitro da verdade
(GOUVÊA, 1996, p. 60).

De acordo com Anéas (2018), não é o iluminismo, no entanto, o aspecto


decisivo à ortodoxia protestante, mas o caminho percorrido até ele, que já se inicia com a
Reforma do século XVI, quando a igreja é desafiada a repensar suas práticas. O
Iluminismo, no entanto, se torna o ponto fraco da ortodoxia protestante, uma vez que “a
crescente ênfase sobre a necessidade de revelar as raízes racionais da religião teve
consequências bastante negativas para o cristianismo, conforme provarão os
acontecimentos futuros” (MCGRATH, 2010, p. 26).
37

2.3.1 A Relação entre o Iluminismo e o Protestantismo

Segundo Alister Mcgrath (2010), entre as teologias existentes, foi a teologia


protestante a que mais esteve aberta à influência das novas correntes de pensamento.
Entre as principais causas que Mcgrath lista, destacamos três: 1) a relativa fragilidade das
instituições eclesiásticas protestantes, devido à ausência de um poder centralizado como
o papado, que atribuiu aos intelectuais protestantes maior liberdade em suas produções
acadêmicas; 2) a natureza do próprio protestantismo, que, embora controvertida, diz
respeito a um espírito de protesto, comprometido com uma constante reforma da igreja
(essa ideia permitiu a adoção de novos métodos e perspectivas alinhadas aos ideais
Iluministas); 3) a relação entre o protestantismo e as universidades, uma vez que a
instrução de pastores era considerada importante e os protestos políticos eram
reprimidos, tornando a expressão intelectual a única forma de resistir ao Antigo Regime.
A ortodoxia reformada/calvinista foi bastante influenciada pela corrente de
pensamento aristotélica; “[…] os teólogos reformados passaram a enfatizar a questão do
método para produção de uma teologia ordenada, sistemática e com dedução coerente
de ideias” (ANÉAS, 2018, p.114). A razão torna-se, portanto, relevante no estudo e na
apologética cristã e é, nesse momento, que ocorrem especulações metafísicas: atribui-se,
por exemplo, maior ênfase à doutrina da predestinação. Além disso, embora o
pensamento racionalista10 não tenha aproximações explícitas com a ortodoxia protestante,
influenciou sua forma de elaboração teológica (ANÉAS, 2018), uma vez que a teologia
passou a depender exclusivamente do uso da razão para se conhecer qualquer aspecto
da religião sem recorrer à revelação divina.

2.3.2 Religião, Política e Sociedade

O século XVII experimentou uma crise geral, tendo sido marcado por grandes
revoluções em toda a Europa. Trevor-Roper (1972) aponta que quando se tentava

10 É importante destacar a diferença que existe entre “razão” e “racionalismo”, sobre isso McGrath
escreve: “A razão é a capacidade humana básica de pensar, baseando-se em argumentos e evidências.
E um conceito teologicamente neutro que não representa ameaça alguma à fé—a menos que seja
considerado como a única fonte de conhecimento sobre Deus. Nesse caso, portanto, a razão se
transforma em racionalismo, que representa a dependência exclusiva e única da razão humana e a
recusa em aceitar que se atribua algum crédito à revelação divina” (2010, p.226).
38

entender a razão dessa crise, havia a tendência de encontrar razões espirituais


profundas.

Desde pelo menos 1618 que se falava de dissolução da sociedade, ou do mundo;


essa sensação indefinida de acabrunhamento que se manifestava em todos esses
anos era por vezes justificada por novas interpretações da Sagrada Escritura,
outras por vezes por novos fenômenos celestes (TREVOR-ROPER, 1972, p. 43).

Segundo Tillich (2000), a ortodoxia também teve importância política, visto que era
necessário definir o status da religião no período pós-Reforma.

Após a efervescência religiosa inicial – reformadores – existe a queda do fervor


sociológico, e é aqui o local da gestão da experiência com o sagrado, da
elaboração da tradição e da burocratização. Pode-se afirmar que existe em
execução um processo, de certa forma, natural (ANÉAS, 2018, p. 113).

É nessa intermitência que ocorre a Guerra dos Trinta anos (1618-48). “Ela é
resultado da Contra-Reforma, na qual estados católicos e estados protestantes lutaram
por questões políticas e religiosas” (ANÉAS, 2018, p. 124). A Europa estava dividida entre
países católicos e protestantes. Já entre os protestantes existiam também tensões,
principalmente da parte dos luteranos e calvinistas contra os anabatistas, que eram vistos
como radicais.
É importante destacar que “a Teologia”, nesse período, “era uma teologia de
príncipes territoriais” (TILLICH, 2000, p. 273). Havia, por parte das nações, uma luta pela
unidade nacional, de modo que viesse alimentar sua soberania política. E, por parte dos
grupos religiosos, a necessidade de construir e afirmar uma identidade, que acabou por
nascer da dicotomia “nós e eles”, isto é, do conflito.

Na Alemanha, que fora o principal palco da Guerra dos Trinta anos, príncipes e
muitos de seus conselheiros, ‘utilizaram as diferenças religiosas como desculpa
para conseguir seus próprios propósitos políticos’. Ou seja, definir claramente a
religião de cada local geográfico governado por algum rei ou imperador é algo
importantíssimo, pois tem relação direta com questões sociopolíticas. (ANÉAS,
2018, p. 123).

As confissões doutrinárias surgem, portanto, nesse contexto e servem como


“critério de demarcação” (ANÉAS, 2018), estando todos os problemas teológicos da
época relacionados com problemas legais (TILLICH, 2000), isto é, político-sociais. Na
seção seguinte buscaremos demonstrar essa relação a partir do Puritanismo e da Guerra
Civil Inglesa, eventos que culminaram na elaboração da Confissão de Fé de Westminster,
cuja inspiração foram os Cânones de Dort, o qual também será objeto da nossa análise.
39

2.3.3 Puritanismo Inglês

O puritanismo é um importante movimento dentro da ortodoxia protestante,


atrelado à tradição calvinista. Ele nasceu no século XVI na Inglaterra, mas consolidou sua
ortodoxia somente no século XVII a partir da elaboração da Confissão de Fé de
Westminster, posterior ao Sínodo de Dordrecht, os quais analisaremos adiante. Além
disso, os protestantes puritanos foram os principais personagens na Guerra Civil Inglesa,
cujo conflito se deu contra a Igreja Anglicana. E, embora estivessem organizados em
grupos distintos, inspiravam-se todos nas ideias de João Calvino, tendo como objetivo o
retorno à pura religião bíblica. Tratava-se de uma atitude ou, como Weber (2013) pontua,
de um espírito protestante, que, para atingir seu objetivo, rejeitava o mundo, isto é, todo
luxo e ostentação.
O conflito político-social que envolvia esse movimento se iniciou durante o
reinado de Henrique VIII, de 1509 a 1547, cujo marco foi o rompimento da Igreja da
Inglaterra com a Igreja de Roma, não por questões religiosas, mas, sim, políticas,
econômicas e pessoais, não ocorrendo, portanto, uma verdadeira reforma.
Teologicamente, a Igreja da Inglaterra, permaneceu fiel a Roma, tornando-se protestante
somente no reinado de Eduardo VI, a partir de 1547. Entre outras coisas, o culto passou a
ser realizado segundo os princípios da Reforma, não sendo o latim mais sua língua oficial.
No entanto, quando Maria Tudor, que era rainha da Escócia e Espanha, assumiu o trono
em 1553, a Reforma foi retardada, ocorrendo a restauração da religião católica e o
estabelecimento da perseguição aos protestantes, enquanto ação política.
No reinado de Isabel I, entre 1558 e 1603, a Inglaterra voltou a ser protestante
e houve o reconhecimento de doutrinas calvinistas, o que conteve muitos dos conflitos
teológicos existentes, mas não todos. A sua reforma moderada, havia deixado os
puritanos insatisfeitos.

[...] a ruptura com Roma, e especialmente as medidas radicais adotadas sob o


reinado de Eduardo VI, abriram expectativas de uma Reforma que prosseguisse
até destruir por completo o maquinário coercitivo da Igreja estatal. A
institucionalização isabelina, porém, pelo poder que reconheceu aos bispos e ao
clero, desapontou amargamente aqueles que esperavam de uma Igreja
protestante algo diferente por completo do papado. A hierarquia episcopal passou
a ser vista como o principal obstáculo a uma reforma radical. Os ataques puritanos
a essa hierarquia são desqualificados, às vezes, como exageros propagandísticos,
40

mas sempre que podemos conferir tais acusações elas se revelam confiáveis
numa escala surpreendente (HILL, 1987, p.45).

Os puritanos, no entanto, embora descontentes, não pretendiam derrubar


Isabel I do trono. O reinado de Isabel chega ao fim devido a seu falecimento e os Stuart
sucedem ao trono, uma vez que ela não havia deixado herdeiros. O primeiro a sucedê-la
é o seu primo escocês, Jaime, também conhecido por Tiago I, e depois Carlos I.

No começo do século XVII a Inglaterra é potência de segunda linha na Europa.


Acaba de falecer a rainha Isabel (ou Elizabeth), que teve papel importantíssimo na
formação de um nacionalismo identificado com a religião protestante; mas ela
deixa os cofres vazios, e a coroa a seu primo Jaime Stuart, rei da Escócia. Esse
príncipe estrangeiro, desprovido de sustentação política ou social em seu novo
reino, vai seguir uma política desastrosa. Faz a paz com a Espanha, chegando a
ter o embaixador espanhol como amigo e conselheiro, o que ofende os brios
nacionalistas, protestantes; começa a excluir os calvinistas da Igreja Anglicana,
que irá tomando feição cada vez mais próxima da Igreja Romana, especialmente
com seu filho e sucessor Carlos I (HILL, 1987, p. 12-13).

Como Hill (1987) atesta, os Stuart entraram em conflito, especialmente, com o


Parlamento por questões políticas e econômicas, eles abusaram da cobrança de
impostos.

Na política de Isabel os Comuns confiavam, e ela, embora os tratasse com


sobranceria, sempre levou em conta a opinião pública do país que eles
expressavam. Com os Stuart o confronto entre rei e Parlamentos vai-se tornar
rotineiro, até resultar em guerra (HILL, 1987, p. 13).

Os Stuart exigiram soberania; o que antes era decidido em consenso, isto é,


entre rei, Lordes e Comuns, passa a ser decidido somente pelo rei.

[…] Carlos I, para governar sem Parlamento, manda examinar velhas leis e
costumes, querendo utilizar tudo o que é recurso legal que o dispense dos
impostos parlamentares; os expedientes a que chega acabam com toda e
qualquer política econômica (dissuadem os investidores), e mesmo
financeiramente são de pouco alcance, além de irritarem profundamente os
súditos. Ainda assim o rei governa sem Parlamento de 1629 a 1640. Mas a que
preço? A Europa está devastada pela última guerra de religião, a dos Trinta Anos
(1618-48), e que teve no próprio cunhado de Carlos, Ferdinando, rei da Boêmia, o
pivô, o campeão protestante. Os nacionalistas ingleses, protestantes, desejosos
de uma política externa agressiva, imperial, anti-espanhola, querem que seu rei
intervenha na guerra. A ‘paz do rei’ requer, portanto, a submissão às potências
católicas, e desmorona quando o reino da Escócia se revolta contra a tentativa de
impor à sua Igreja oficial, presbiteriana, formas de governo episcopal. (HILL, 1987,
p. 13).

Nesse período, uma vez que a política externa era a favor da Espanha e,
consequentemente, do catolicismo romano, os protestantes puritanos foram perseguidos,
41

razão pela qual muitos partiram para a América. No entanto, as crises se acentuaram ao
longo do tempo, principalmente na relação com a Escócia, levando Carlos I a convocar o
Parlamento em 1640, o qual exigiu reparação das decisões tomadas pelo rei. No entanto,
as negociações com o Parlamento não foram bem-sucedidas; em 1642, Carlos I não quer
mais ceder e parte para o ataque. “O Parlamento continua em Westminster e comanda a
guerra contra o rei (em nome do Rei, porém, e da Coroa; em nome das antigas
instituições que, com razão, o Parlamento acredita violadas por Carlos, mas que agora
também ele viola)” (HILL, 1987, p. 15). Oliver Cromwell, sempre rememorado quando se
trata desse conflito, assume a liderança do exército “- é o New Model Army, ou Exército de
Novo Tipo, de cujos comandos são excluídos todos os lordes e a maior parte dos
deputados, e que tem por principal critério o valor e mérito pessoais dos soldados” (HILL,
1987, p. 15).

Eleito de Deus e líder da primeira revolução burguesa da história moderna,


tornando-se depois o primeiro ditador totalitário moderno, Oliver Cromwell em seus
intentos e ideais revolucionários precisava do apoio político, econômico, militar e
religioso dos puritanos, que cada vez mais tomavam o poder no Parlamento. O
interesse de Cromwell não era outro senão a proclamação da república inglesa. A
revolução que depôs Carlos I e instaurou o tal período republicano seguido da
ditadura de Cromwell foi essencialmente puritana (CAMPOS, 2014, p. 7).

Os puritanos colocam em ação, portanto, a exceção aberta por Calvino em


relação à obediência aos governantes 11. A guerra é legítima, pois é em defesa da fé.

A guerra justa é travada para execução dos mandamentos de Deus, ou pela


defesa da fé, o que de certa forma significa sempre uma guerra religiosa. [...]. O
exército vitorioso dos Santos de Cromwell agiu dessa forma quando tomou
posição contra o serviço militar obrigatório. [....]. Caso os homens violem a vontade
de Deus, especialmente em nome da fé, os fiéis chegam a conclusões favoráveis
a uma revolução religiosa ativa, em virtude da sentença de que se deve obedecer
antes a Deus do que ao homem (WEBER, 1982, p. 386).

Além disso, os puritanos, que viam o trabalho como um dever para com Deus 12,
eram adversários do capitalismo sustentado pelo Estado sob o governo dos Stuart 13, para
11 Ver seção “O Pensamento Político de João Calvino”.
12 Uma vez que a questão fundamental de Calvino era cosmológica, partindo da doutrina da soberania de
Deus, preocupava-se, então, em como glorificá-lo neste mundo, uma vez que a salvação não pode ser
garantida pelos próprios meios. Os puritanos entenderam que deveriam fazer isso através de uma
conduta de vida excelsa, refletida principalmente no trabalho e em suas transações comerciais, como
bem explorou Max Weber em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
13 Nesse período havia uma “[…] constituição social ‘orgânica’ de formato fiscalista-monopolistas adotada
na Inglaterra sob os Stuart, particularmente nas concepções de Laud: - aliança do Estado e da Igreja
com os ‘monopolistas’ sobre a base de uma infraestrutura social-cristã […]” uma “espécie de capitalismo
de comerciantes, subcontratadores e mercadores coloniais, um capitalismo sustentado pelo Estado”
(WEBER, 2013, p. 163). Os puritanos privilegiavam iniciativas pessoais e se orgulhavam de sua própria
42

eles, a moral dos seus negócios era o verdadeiro alvo das perseguições que sofriam
(WEBER, 2013). Nesse sentido, a Revolução Puritana foi uma ação política, com
motivações econômicas, que, dentro da conduta ética puritana, é inseparável da religião.
Com a chegada do partido puritano ao poder no Parlamento, inicia-se, por
solicitação da Câmara dos Comuns em 1645, a formulação da Confissão de Fé de
Westminster para a Igreja da Inglaterra. Os Cânones de Dort que haviam sidos
elaborados antes nos países baixos, serviu de inspiração. Passaremos, dessa forma, à
análise desses documentos nas próximas seções.

2.3.4 Cânones de Dort (1618-19)

Segundo Anéas (2018), dois foram os motivos que conduziram o Sínodo de


Dort, a saber: polêmica doutrinária e política.
Trata-se de um prolífico período de discussões em relação à ordem dos
decretos da salvação, baseado numa visão aristotélica. As doutrinas calvinistas,
especialmente a doutrina da predestinação, são bastante questionadas por Dirk Koornhert
(1522-1590) e Jacó Armínio (1560-1609) foi escolhido para refutá-lo. Armínio foi um
teólogo bastante prestigiado, formou-se em Genebra sob os cuidados de Teodoro de
Beza, sucessor de Calvino. Ao retornar para Holanda, seu país de origem, Armínio
assumiu a posição de pastor e professor.
Ao se dedicar à análise dos escritos de Koornhert, comparando-os com as
Escrituras e outros estudos sistemáticos, Armínio concluiu que sua crítica tinha
fundamento. Quando começou a lecionar na Universidade de Leiden, sua opinião veio a
público e ocorreu uma desavença entre ele e Francisco Gomaro, adepto convicto da
doutrina da predestinação. Seu nome, então, tornou-se oposição ao calvinismo (ANÉAS,
2018).

Armínio foi acusado de todos os tipos de heresia, mas as acusações de heresia


nunca se sustentaram em nenhum inquérito oficial. Acusações ridículas de que ele
era um agente secreto do papa e dos jesuítas espanhóis, e até mesmo do governo
espanhol (as Províncias Unidas haviam recentemente se libertado da dominação
católica espanhola), pairavam sobre ele. Nenhuma das acusações era verdadeira.
(OLSON, 2013, p. 29).

moral de negócios burguesa; buscavam negociar apenas com seus pares, uma vez que a participação
numa seita lhes garantia qualificação moral (WEBER, 1982).
43

Armínio, no entanto, não discordava da doutrina da predestinação, mas dava


ênfase à graça de Deus a partir dos seguintes pontos: “Deus decretou Jesus Cristo como
mediador do homem pecador; presciência de Deus como fator para predestinação; graça
proveniente da resposta do pecador positiva ou negativa em relação a graça de Deus”
(ANÉAS, 2018, p. 136).
Armínio faleceu em 1609, no auge das discussões, mas seus seguidores
assumiram a causa e os embates continuaram. Alinhado a isso, os interesses políticos
contribuíram para a organização desse documento. Havia duas classes com interesses
distintos: a classe mercantil, que cultivava boas relações com a Espanha, e a classe
média-baixa, que não participavam da prosperidade financeira trazida por ela, da qual
calvinistas faziam parte.

O relacionamento comercial com a Espanha era visto pelo clero calvinista como
uma possível abertura para impureza na igreja holandesa. Este argumento estava
exclusivamente preocupado com a “pureza” da igreja ou tinha influência deste
contexto político? Certo é que o grupo de mercadores se uniu aos arminianos e os
contrários a relação com a Espanha aos que defendiam as teses de Gomaro.
(ANÉAS, 2018, p. 136).

Em 1610, os arminianos elaboram um documento intitulado Remonstrantia,


passando a ser conhecidos por esse nome. O documento foi apresentado em uma
conferência de líderes da igreja e do estado em Gouda, Holanda, a fim de explicar a
doutrina arminiana, condensada em cinco pontos:

1. Que Deus, por um decreto eterno e imutável em Cristo antes que o mundo
existisse, determinou eleger, dentre a raça caída e pecadora, para a vida eterna,
aqueles que, através de Sua graça, creem em Jesus Cristo e perseveram na fé e
obediência; e que, opostamente, resolveu rejeitar os inconversos e os descrentes
para a condenação eterna (Jo 3.36). 2. Que, em decorrência disto, Cristo, o
Salvador do mundo, morreu por todos e cada um dos homens, de modo que Ele
obteve, pela morte na cruz, reconciliação e perdão pelo pecado para todos os
homens; de tal maneira, porém, que ninguém senão os fiéis, de fato, desfrutam
destas bênçãos 0o 3-16; 1 Jo 2.2). 3. Que o homem não podia obter a fé salvífica
de si mesmo ou pela força de seu próprio livre-arbítrio, mas se encontrava
destituído da graça de Deus, através de Cristo, para ser renovado no pensamento
e na vontade (Jo 15.5). 4. Que esta graça foi a causa do início, desenvolvimento e
conclusão da salvação do homem; de forma que ninguém poderia crer nem
perseverar na fé sem esta graça cooperante, e consequentemente todas as boas
obras devem ser atribuídas à graça de Deus em Cristo. Todavia, quanto ao modus
operandi desta graça, não é irresistível (At 7.51). 5. Que os verdadeiros cristãos
tinham força suficiente, através da graça divina, para enfrentar Satanás, o pecado,
o mundo, sua própria carne, e a todos vencê-los; mas que se por negligência eles
pudessem se apostatar da verdadeira fé, perder a felicidade de uma boa
consciência e deixar de ter essa graça, tal assunto deveria ser mais
profundamente investigado de acordo com as Sagradas Escrituras (OLSON, 2013,
p.41).
44

No entanto, as reações políticas não foram favoráveis aos arminianos, uma vez
que o príncipe Maurício de Nassau ficou do lado dos calvinistas e mesmo Johan Van
Oldebarnevelt, que trabalhava nas negociações com a Espanha, em favor dos
arminianos, não pôde fazer nada a respeito, pois foi preso (ANÉAS, 2018). Assim, foi
convocado o Sínodo de Dort, do qual participaram 27 representantes de igrejas de várias
partes do mundo, com o objetivo de refutar a doutrina arminiana.
O Sínodo rejeitou os cinco pontos arminianos e adotou outras resoluções, que
foram registradas no que é chamado de Os Cânones de Dort ou Os Cinco Artigos Contra
os Remonstrantes. A doutrina reformada foi sistematizada nos seguintes pontos: a eleição
incondicional, a expiação definida, a depravação total, a graça irresistível e a
perseverança dos santos14. “Cada Cânone consiste de uma parte positiva e de outra
negativa. A primeira é uma exposição da doutrina bíblico-reformada do assunto tratado, e
a última é a refutação do erro arminiano correspondente” (CÂNONES DE DORT, 2017, p.
113-114). O documento está estruturado em cinco capítulos, seguido de uma conclusão.
O primeiro capítulo é composto por dezoito artigos, os quais tratam da eleição
e reprovação divina. O primeiro, sexto e décimo quintos artigos são suficientes para
compreender a posição calvinista acerca desse assunto:

Artigo 1 – Toda humanidade é condenável diante de Deus


Como todos os homens pecaram em Adão, estão debaixo da maldição e merecem
a morte eterna. Deus não teria feito injustiça a ninguém se tivesse sido sua
vontade deixar toda a raça humana no pecado e debaixo da maldição, e condená-
la por causa do seu pecado […].
Artigo 6 – O decreto eterno de Deus
Procede do decreto de Deus conceder, no tempo devido, o dom da fé a alguns e a
outros não. Pois ele conhece todas as suas obras desde a eternidade […]. De
acordo com esse decreto, ele graciosamente quebranta o coração dos eleitos, por
mais duro que seja, e os inclina a crer; entretanto, segundo o seu justo juízo, ele
deixa os que não são eleitos em sua própria malignidade e dureza […].
Artigo 15 – A descrição da reprovação
As Sagradas Escrituras nos mostram e recomendam essa graça eterna e
imerecida da nossa eleição, especialmente quando declaram que nem todos os
homens são eleitos, mas que alguns não são eleitos ou foram preteridos na
eleição eterna de Deus […]. Esse é o decreto da reprovação, o qual não faz de
Deus o autor do pecado (só em pensar isso é blasfêmia!), mas, antes o revela
como o terrível, irrepreensível e juntos Juiz e Vingador do pecado (CÂNONES DE
DORT, 2017, p. 115; 117; 119).

14 Eleição incondicional: Deus elege quem salvará, não estando esta baseada em nenhuma ação
humana; expiação indefinida: Cristo morreu somente pelos eleitos, embora o sacrifício fosse suficiente
para salvar a todos; depravação total: o homem é corrompido pelo pecado, sendo incapaz de exercer
sua livre vontade, especialmente para salvação; graça irresistível: a graça de Deus age nos eleitos de
modo que não podem recusá-la; perseverança dos santos: uma vez que é Deus quem garante a
salvação dos eleitos, esses permanecem na fé.
45

O segundo capítulo é composto por nove artigos, os quais abordam a morte de


Cristo e a redenção do homem através dela. A ênfase é na expiação indefinida (ou
limitada), isto é, o sacrifício de Cristo é apenas para os eleitos:

Artigo 8 – A eficácia da morte de Cristo


Este, pois, foi o soberano conselho de Deus, o Pai: que a eficácia salvadora e
vivificante da preciosíssima morte do seu Filho se estende a todos os eleitos. Foi
da sua graciosíssima vontade e intento conceder a fé justificadora apenas a eles e
assim trazer-lhes infalivelmente à salvação. Isto é: Deus quis que Cristo, pelo
sangue derramado na cruz (pelo qual ele confirmou a nova aliança), redimisse,
eficazmente, de todo povo, tribo, nação e língua, todos aqueles – e somente
aqueles – que, desde a eternidade, foram eleitos para a salvação e foram dados
ao Filho pelo Pai (CÂNONES DE DORT, 2017, p. 130).

O terceiro capítulo e quarto capítulo são compostos por 17 artigos ao todo, os quais
versam sobre a corrupção do homem. É evidente a ideia de que o homem é incapaz de
direcionar-se, por si mesmo, à salvação.

Artigo 3 – A total incapacidade do homem


Portanto, todos os homens são concebidos em pecado e nascem como filhos da
ira, incapazes de realizar qualquer bem salvífico, inclinado para o mal, mortos em
pecados e escravos do pecado. Sem a graça da regeneração do Espírito Santo,
não desejam nem podem voltar-se para Deus, nem corrigir a sua natureza
depravada, nem se preparar para essa correção. […]
Artigo 10 – Por que outros que são chamados vêm
Outros que são chamados pelo ministério do evangelho vêm e são convertidos.
Mas, não se deve atribuir isso ao homem, como se ele, por causa do seu livre-
arbítrio, fosse superior àqueles que receberam igual ou suficiente graça para a fé
ou conversão (como afirma a arrogante heresia de Pelágio). Deve-se atribuir isso
a Deus, pois foi ele quem escolheu os seus em Cristo, desde a eternidade, e os
chama eficazmente no tempo (CÂNONES DE DORT, 2017, p. 136; p. 138).

O quinto capítulo trata da perseverança dos santos e é composto por 15


artigos.

Artigo 6 – Deus não permitirá que os seus eleitos se percam


Deus, que é rico em misericórdia, segundo o seu propósito imutável da eleição,
não retira completamente o seu Espírito Santo dos que lhe pertencem, mesmo
diante de suas deploráveis quedas. Tampouco permite que se afundem tanto a
ponto de caírem da graça da adoção e do estado de justificação, ou que cometam
o pecado para morte – isto é, o pecado contra o Espírito Santo – e que, totalmente
abandonado por ele, se lancem na ruína eterna (CÂNONES DE DORT, 2017, p.
150).

Como vimos, dois aspectos são sempre reafirmados nos artigos dos Cânones
de Dort: a incapacidade do ser humano de salvar a si mesmo e a eleição de uns para
salvação em detrimento de outros. O homem agostiniano, isto é, decaído, recuperado por
46

Calvino, acompanha toda a ortodoxia reformada e o espírito de racionalização da época


viabiliza a radicalização da doutrina da predestinação. Esta, por sua vez, é a força motriz
para que toda discussão aconteça, não somente porque uma ideia foi atacada, mas
porque um modo de ser no mundo foi ameaçado. Crer ser um eleito de Deus encoraja a
ações que extrapolam o âmbito privado, em defesa da fé e/ou com motivações de outra
ordem.
Os limites do pensamento teológico calvinista são bem delimitados neste
documento, o qual deixa claro que dúvidas ou discordâncias permanecem intoleráveis,
como na Genebra de Calvino.
Outra questão a ser considerada é que a teologia calvinista, que também
influenciou a constituição de outras vertentes protestantes, estrutura uma visão de mundo
a partir de uma antropologia pessimista, o que produz mentalidades bastante rígidas, cuja
tendência é um olhar condenatório para o mundo e sem alteridade – com o outro que se
apresenta de um modo diferente.
Exige-se, mesmo após 400 anos, que todos os oficiais das Igrejas Reformadas,
subscrevam os Cânones de Dort e outras confissões, para que atuem no âmbito
eclesiástico. Além disso, este documento permanece disponível para consulta na Igreja
Presbiteriana do Brasil, o que comprova o seu uso nos dias atuais.

2.3.5 Confissões de Westminster (1643-46)

A Assembleia de Westminster foi convocada em 1643 pelo Parlamento inglês,


sendo “[…] composta por 121 ministros, 30 leigos e oito comissários escoceses. O pedido
era claro: que se formulasse uma confissão para a Igreja da Inglaterra” (CAMPOS, 2014,
p. 7). Nesta assembleia foram produzidos três documentos: a Confissão de Fé, o Breve
Catecismo e o Catecismo Maior, os quais são utilizados ainda hoje, sendo “considerados
a melhor expressão das doutrinas contidas nas Escrituras, de acordo com os calvinistas
presbiterianos” (ANÉAS, 2018, p. 151). No entanto, é objeto desta análise somente a
Confissão de Fé, a qual é composta por 33 capítulos, dos quais serão destacados
aqueles que convergem com o interesse desta pesquisa.
47

O primeiro aspecto a ser apontado é que para os puritanos o individualismo era


um atributo apreciável, o que justifica a Teologia do Pacto 15 ser o embasamento desta
confissão.

Capítulo 7 – Do Pacto de Deus com o Homem


1. Tão grande é a distância entre Deus e a criatura, que, embora as criaturas
racionais lhe devam obediência como seu Criador, nunca poderiam fruir nada dele,
como bem-aventurança e recompensa, senão por alguma voluntária
condescendência da parte de Deus, a qual agradou-lhe expressar por meio de um
pacto.
2. O primeiro pacto feito com o homem era um pacto de obras; nesse pacto foi a
vida prometida a Adão e, nele, à sua posteridade, sob a condição perfeita e
pessoal obediência (ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, p. 7)16.

A Assembleia de Westminster também validou o modelo de organização


presbiteriano de igreja, adotado pela Escócia anteriormente, para todas as igrejas
calvinistas ou reformadas da Irlanda e Inglaterra.

[…] o modelo presbiteriano para a igreja da Inglaterra e a sua doutrina, fatores


muito importantes para a expansão do presbiterianismo no mundo todo, pois o seu
modelo de organização democrático-representativa e sua estrutura eram
facilmente adaptáveis às várias situações político-sociais dos países que ainda
seriam alcançados (CAMPOS, 2014, p. 8).

Havia um interesse do partido dos puritanos na conduta dos protestantes;


exigiam deles o mesmo padrão de conduta moral imposto por Calvino em Genebra no
século XVI. E, além de desejarem remover todos os traços católicos mantidos pelos
anglicanos nos cultos, cerimônias, costumes e doutrinas, visavam ao alcance
internacional da Reforma (CAMPOS, 2014).
O segundo aspecto diz respeito à Bíblia, uma vez que a atitude protestante
para com as Escrituras é a espinha dorsal de toda relação com este e aquele mundo.
“Todos eles [os livros do Antigo e Novo Testamento] são dados por inspiração de Deus
para serem a regra de fé e prática” (ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, p. 4, grifo
nosso), assim, “toda experiência humana […] é roubada de qualquer autoridade e é
submetida a um texto absoluto” (ALVES, 1982, p. 97).
É a confissão, no entanto, que normatiza a interpretação do texto bíblico a
partir dos sínodos e concílios:

15 Trata-se de um pacto pessoal de Deus com o homem: “[…] Deus estabeleceu um pacto de graça com a
semente de Abraão, o que pode somente ser apropriado pela fé, que também é um dom de Deus e por
essa razão pessoal” (CAMPOS, 2014, p. 7).
16 Disponível em: https://www.ipb.org.br/ipb/doutrina. Acesso em: 21/05/2020.
48

Capítulo 31: Dos Sínodos e Concílios


2. Aos sínodos e concílios compete decidir ministerialmente controvérsias quanto à
fé e casos de consciência, determinar regras e disposições para a melhor direção
do culto público de Deus e governo da sua Igreja, receber queixas em caso de má
administração e autoritativamente decidi-las. Os seus decretos e decisões, sendo
consoantes com a palavra de Deus, devem ser recebidas com reverência e
submissão, não só pelo seu acordo com a palavra, mas também pela autoridade
pela qual são feitos, visto que essa autoridade é uma ordenação de Deus,
designada para isso em sua palavra (ASSEMBLÉIA DE WESTMINSTER, p.20).

Seguindo a linha de Calvino, em sua experiência em Genebra, a igreja é


dotada de autoridade sobre seus membros, o que contradiz o princípio protestante de livre
exame e torna rígida novamente a relação do indivíduo com sua fé.
O terceiro aspecto a ser destacado é que a Confissão de Westminster
evidencia o que já falamos em outro momento: a identidade protestante é constituída a
partir do conflito17. No trecho abaixo, a Igreja de Roma é posta como inimigo da igreja de
Cristo18:

Capítulo 25: Da Igreja


6. Não há outro Cabeça da Igreja senão o Senhor Jesus Cristo. Em sentido algum
pode ser o papa de Roma o seu cabeça, senão que ele é aquele anticristo,
aquele homem do pecado e filho da perdição que se exalta na Igreja contra tudo o
que se chama Deus (ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, p. 18 – grifo nosso).

Outros aspectos importantes, que se relacionam com o Sínodo de Dort, dizem


respeito aos decretos de Deus, à doutrina da providência e certeza da salvação:

Capítulo 3: Dos Eternos Decretos de Deus


3. Pelo decreto de Deus e para a manifestação da sua glória, alguns homens e
alguns anjos, são predestinados para a vida eterna e outros preordenados, são
particular e imutavelmente designados; o seu número é tão certo e definido, que
não pode ser nem aumentado nem diminuído. […]
7. Segundo o inescrutável conselho de sua própria vontade ele concede ou recusa
misericórdia, como lhe apraz, para a glória de seu soberano poder sobre as suas
criaturas, para louvor de sua gloriosa justiça, o resto dos homens foi Deus servido
não contemplar e ordená-los para a desonra e ira por causa de seus pecados
(ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, p. 5).

Capítulo 5: Da Providência
1. Pela mui sábia e santa providência, segundo a sua infalível presciência e o livre
imutável conselho de sua própria vontade, Deus, o grande Criador de todas as
coisas, para o louvor da glória de sua sabedoria, poder, justiça, bondade e
misericórdia, sustenta, dirige, dispõe e governa todas as criaturas, todas as ações
delas e todas as coisas, desde a maior até a menor. […]
4. A onipotência, a sabedoria inescrutável e a bondade infinita de Deus, de tal
maneira se manifestam na sua providência, que esta se estende até a primeira

17 Ver a seção “Religião, Sociedade e Política”.


18 Anéas (2018) aponta muito bem como esse “comportamento bélico” - em suas palavras-é parte
constitutiva do protestantismo contemporâneo e uma consequência desse período do escolasticismo
protestante.
49

queda e a todos os outros pecados dos anjos e dos homens, e isto não por uma
mera permissão tal que, para os seus próprios e santos desígnios, sábia e
poderosamente os limita, regula e governa em uma múltipla dispensação; mas
essa permissão é tal que, a pecaminosidade dessas transgressões procede tão
somente da criatura e não de Deus, que, sendo santíssimo e justíssimo, não pode
ser o autor do pecado e nem pode aprová-lo. […]
7. Como a providência de Deus se estende, em geral, a todas as criaturas, assim,
pois, de um modo muitíssimo especial, essa mesma providência cuida de sua
igreja e tudo dispõe a bem dela (ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, p. 6-7).

Assim como nos Cânones de Dort, os decretos de Deus e a doutrina da


predestinação são destacados na Confissão de Fé de Westminster. Como que em
resposta aos arminianos, é manifesto com clareza que o decreto divino não se
fundamenta em sua presciência, mas na sua livre e, portanto, soberana vontade. Dessa
forma, o que se percebe é que a doutrina da predestinação não é abandonada ou
atenuada ao longo dos anos (WEBER, 2013), mas, sim, enrijecida.
Os fiéis que creem verdadeiramente podem se certificar do estado de graça e
salvação nesta vida:

Capítulo 18 – Da Certeza da Graça e da Salvação


3. Esta segurança infalível não pertence de tal modo à essência da fé, que um
verdadeiro crente, antes de possuí-la não tenha de esperar muito e de lutar com
muitas dificuldades; contudo, sendo pelo Espírito capacitado a conhecer as coisas
que lhe são livremente dadas por Deus, ele pode obtê-la sem revelação
extraordinária, no devido uso dos meios comuns. É, pois dever de cada um ser
diligente e tornar certas sua vocação e eleição, a fim de que, por esse modo, seja
o seu coração, no Espírito Santo, dilatado em paz e em deleite, em amor e em
gratidão para com Deus, no vigor e na alegria, nos deveres da obediência que não
são os frutos próprios desta segurança. Longe esteja isto de predispor os homens
à negligência (ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, p. 18).

Como vemos, a certeza da salvação é um aspecto importante dentro da


ortodoxia protestante, no entanto, esta não depende de uma experiência subjetiva ou,
como é dito, de uma “revelação extraordinária”. Os fiéis podem possuí-la pelos meios
ordinários, basta que se dediquem à vocação que lhes fora concedida, a fim de evidenciar
e honrar sua eleição. Assim, “[…] distingue-se o trabalho profissional sem descanso como
o meio mais saliente para se conseguir essa autoconfiança. Ele, somente ele, dissiparia a
dúvida religiosa e daria certeza do estado de graça” (WEBER, 2013, p. 102).

Em lugar dos pecadores humildes a quem Lutero promete a graça quando em fé


penitente recorrem a Deus, disciplinam-se dessa forma aqueles ‘santos’
autoconfiantes com os quais toparemos outra vez na figura dos comerciantes
puritanos (WEBER, 2013, p.102).
50

A autoconfiança desses fiéis, por possuírem o monopólio da verdade que lhes


garante salvação, produz um comportamento moral e intolerante “[…] para com aquilo
que a verdade, assim afirmada de forma absoluta, define como erro” (ALVES, 1982, p.
271).
A Confissão de Fé de Westminster reserva um capítulo para tratar do tema da
liberdade de consciência, no entanto, o que ali se encontra é muito mais uma matéria
condenatória, alinhada a esse comportamento intolerante diante do erro. Um dos seus
artigos diz:

Capítulo 20: Da Liberdade Cristã e da Liberdade de consciência


4. Visto que os poderes que Deus ordenou, e a liberdade que Cristo comprou não
foram por Deus designados para destruir, mas para que mutuamente nos
apoiemos e preservemos uns aos outros, resistem à ordenança de Deus os que,
sob pretexto de liberdade cristã, se opõem a qualquer poder legítimo, civil ou
religioso, ou ao exercício dele. Se publicarem opiniões ou mantiverem práticas
contrárias à luz da natureza ou aos reconhecidos princípios do cristianismo
concernentes à fé, ao culto ou ao procedimento; se publicarem opiniões, ou
mantiverem práticas contrárias ao poder da piedade, ou que, por sua própria
natureza ou pelo modo de publicá-las e mantê-las, são destrutivas da paz externa
da Igreja e da ordem que Cristo estabeleceu nela, podem legalmente ser
processados e visitados com as censuras da Igreja (ASSEMBLÉIA DE
WESTMINSTER, p. 13).

Percebe-se, pois, que a liberdade de consciência promulgada não condiz com o


sentido dos termos, uma vez que não se tolera oposição ao poder eclesiástico instituído,
passível de processos e censuras por parte da igreja. Nesse sentido, todo aquele que
duvidar ou discordar minimamente é um herege. Para o ortodoxo protestante o presente é
um lugar interditado, para o herege o presente está em aberto. De forma belíssima,
Rubem Alves escreve a respeito:

O ortodoxo tenta preservar o velho. O herege tenta destruir o velho, para que o
novo nasça. O ortodoxo tem medo do novo, da surpresa, do inesperado. Eles
ameaçam sua salvação. O herege vê o velho apenas como um caminho na
direção do novo. O velho não é definitivo. É o provisório. Etapa a ser ultrapassada.
Visões de mundos que se opõem. O ortodoxo vê um mundo petrificado, acabado,
completo, fixo, imutável. O herege vive num mundo que se move, ainda
incompleto, aberto, inacabado. Mundo onde é necessário buscar. Processo
descontínuo, de saltos qualitativos, onde a vida e a liberdade se mantêm pela
dialética da morte e ressurreição. Quem preserva o passado está condenado a
viver nele. Perdeu o futuro. O mundo da ortodoxia é aquele que foi um dia criado
por homens então vivos. Mas eles morreram. […]. A ortodoxia afirma a eternidade
deste mundo morto. Usa-se como uma jaula onde a vida deve ser encerrada
(ALVES, 1982, p. 275).
51

Por último, destacamos o capítulo dedicado ao magistrado civil, nele


encontramos reafirmações do pensamento político de Calvino:

Capítulo 23: Do Magistrado Civil


1. Deus, o Senhor Supremo e Rei de todo o mundo, para a sua glória e para o
bem público, constituiu sobre o povo magistrados civis que lhe são sujeitos, e a
este fim, os armou com o poder da espada para defesa e incentivo dos bons e
castigo dos malfeitores.
2. Aos cristãos é lícito aceitar e exercer o ofício de magistrado, sendo para ele
chamado; e em sua administração, como devem especialmente manter a piedade,
a justiça, e a paz segundo as leis salutares de cada Estado, eles, sob a
dispensação do Novo Testamento e para conseguir esse fim, podem licitamente
fazer guerra, havendo ocasiões justas e necessárias.
3. Os magistrados civis não podem tomar sobre si a administração da palavra e
dos sacramentos ou o poder das chaves do Reino do Céu, nem de modo algum
intervir em matéria de fé; contudo, como pais solícitos, devem proteger a Igreja do
nosso comum Senhor, sem dar preferência a qualquer denominação cristã sobre
as outras, para que todos os eclesiásticos sem distinção gozem plena, livre e
indisputada liberdade […]. E é dever dos magistrados civis proteger a pessoa e o
bom nome de cada um dos seus jurisdicionados, de modo que a ninguém seja
permitido, sob pretexto de religião ou de incredulidade, ofender, perseguir,
maltratar ou injuriar qualquer outra pessoa; e bem assim providenciar para que
todas as assembleias religiosas e eclesiásticas possam reunir-se sem ser
perturbadas ou molestadas.
4. É dever do povo orar pelos magistrados, honrar as suas pessoas, pagar-lhes
tributos e outros impostos, obedecer às suas ordens legais e sujeitar-se à sua
autoridade […] (ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, p. 16).

É interessante notar que mesmo um século depois da formulação do


pensamento político de João Calvino, esta foi inteiramente preservada na Confissão de fé
de Westminster, seu contexto de disputas político-religiosas não contribuiu para que o
assunto fosse aprofundado e ampliado. Além disso, o artigo terceiro institui uma
imparcialidade por parte dos magistrados que não foi considerada durante a Revolução
Puritana19, e se restringe à religião cristã, o que era natural na Europa do século XVII,
mas torna-se problemático no mundo atual com sua pluralidade, uma vez que a Confissão
de Westminster é ainda hoje um dos padrões doutrinários das igrejas reformadas. Outro
aspecto relevante – já disposto nas Instituições Cristãs de Calvino, como mencionado –,
que norteará os capítulos seguintes, está no artigo segundo e também diluído no terceiro,
a saber: a separação da religião e Estado, mas não do religioso e política.

19 Ver a seção “Puritanismo Inglês”.


52

3 O NEOCALVINISMO HOLANDÊS

Oh, nem um único espaço de nosso mundo mental pode ser


hermeticamente selado em relação ao restante e não há um
centímetro quadrado em todos os domínios da existência
humana sobre o qual Cristo, que é o Soberano sobre tudo,
não clame: é meu!
(Palestra proferida por Abraham Kuyper em 1880, na
Niewkerk, em Amsterdã)20.

O primeiro capítulo foi dedicado à apresentação e análise da tradição teológica


na qual o Neocalvinismo holandês se insere. Julgamos importante reconstruir esse
percurso, pois o Neocalvinismo, conforme veremos, não é um movimento de ruptura,
estando, fundamentalmente, entrelaçado com a teologia de João Calvino e toda tradição
seguinte ao reformador. Assim, acredita-se que o primeiro capítulo cumpriu a tarefa de
explorar as raízes do objeto desta pesquisa.
Com a análise da vida e obra de João Calvino, percebemos que sua questão
fundamental entrecorreu em práticas político-religiosas. Tal questão, por sua vez, estava
fundamentada, na ideia de eleição e predestinação, que foram força motriz da ortodoxia
protestante. A análise da ortodoxia protestante, a partir de recortes históricos-chave como
a Assembleia de Westminster (1643-46) e o Sínodo de Dort (1618-19), cujos resultados
são verificáveis nas suas Confissões de Fé, proporcionou-nos a compreensão de que,
entre outros objetivos, as confissões doutrinárias serviram de instrumentalização política,
uma vez que seus elementos teológicos se relacionavam com as questões político-sociais
da época. O puritanismo inglês, cuja relação com a Guerra Civil Inglesa é explícita, é um
exemplo disso; buscava-se um retorno à pura religião bíblica e uma verdadeira reforma da
Igreja da Inglaterra, mas também uma ação política e econômica, que dentro da ética
puritana é inseparável da religião. O Sínodo de Dort é fruto de uma fecunda discussão,
cuja ênfase recaiu sobre a ordem dos decretos da salvação, mas que também não se
absteve de influências políticas, elemento preponderante na elaboração do documento
confessional. Percebe-se, nesse sentido, que a relação entre política e religião é
intrínseca quando se fala da tradição cristã; se a Reforma se esforçou para romper com a
Igreja Católica, com seus reis e rainhas, ao longo do percurso, seus adeptos também não

20 Segundo Carvalho (in DOOYEWEERD, 2010, p. 18), esta frase foi proferida por Kuyper numa palestra
proferida em 20 de outubro de 1880, na Niewkerk, em Amsterdã. Nem mesmo Carvalho teve acesso a ela
diretamente; ele retira de BRATT, James D. Abraham Kuyper: A Centennial Reader, 1998, p. 488, obra a
que não temos acesso no presente momento.
53

conseguiram se dissociar dos mecanismos da política. Decerto porque o fenômeno


religioso, e neste caso o protestantismo, é um construtor de mundos, cujas “[…] doutrinas
estão aí para estabelecer ordem à existência, é seu papel fazer do caos um cosmo –
tanto no sentido de mundo ou universo como no de ordem” (CAMPOS; MARIANI, 2015, p.
13). Desta forma, o indivíduo cristão assume para si a tarefa de ordenar a realidade de
acordo com seus princípios religiosos, sendo a política não apenas um âmbito da
realidade a ser ordenado, mas um meio para ordenar os demais.
Neste segundo capítulo adentraremos propriamente ao objeto desta pesquisa,
o Neocalvinismo holandês, a partir dos seus principais expoentes: Abraham Kuyper e
Herman Dooyeweerd. Trataremos das principais ideias dos autores a partir do
delineamento que interessa a esta pesquisa: a relação entre religião e política no
movimento. Cabe-nos apontar o contexto de surgimento do Neocalvinismo holandês e
extrair de suas obras os pressupostos teológicos que sustentam suas ideias sobre o
Estado e relação do indivíduo religioso com a política, demonstrando, portanto, que o
Neocalvinismo holandês não é um movimento de ruptura, mas de continuidade à tradição
calvinista em vias da modernidade, com um projeto de confrontá-la e, ao mesmo tempo,
construí-la segundo sua compreensão de mundo. Para esta tarefa, selecionamos duas
palestras proferidas por Abraham Kuyper no seminário de Princeton em 1898 e a obra
Estado e Soberania: ensaios sobre cristianismo e política, de Herman Dooyeweerd, sem,
no entanto, perder o diálogo com outras publicações do autor que são consideradas
importantes para o entendimento dos princípios teóricos fundamentais do seu
pensamento. Cabe dizer que, diferentemente de Kuyper, que foi um estadista,
Dooyeweerd foi um acadêmico dedicado aos estudos da filosofia. Assim, não é nosso
objetivo aprofundar os pormenores da sua filosofia reformacional, somente no que é
fundamental a nossa compreensão da sua teorização sobre o Estado. Prossigamos a este
trabalho.

3.1 Abraham Kuyper: uma nota biográfica

Abraham Kuyper (1837-1920) foi um teólogo e filósofo holandês, com forte atuação
nas áreas acadêmicas e políticas de seu país. Em 1872, tornou-se editor-chefe do jornal
diário De Standard e fundou o partido Antirrevolucionário Holandês em 1879. Em 1880,
fundou a Universidade Livre de Amsterdã, onde atuou como docente e administrador.
Entre os anos de 1901 a 1905 assumiu a função pública de Primeiro-Ministro da Holanda.
54

Engajado numa luta apologética, proferiu as Palestras Stone na Universidade e


Seminário de Princeton em 1898, reunidas e publicadas recentemente no Brasil, sob o
título O Calvinismo, com o intuito de apontá-lo não apenas como um sistema dogmático e
eclesiástico, mas como um sistema de vida 21. Abraham Kuyper é um dos principais
expoentes do movimento de renovação religiosa e social que ocorreu na Holanda no
século XIX, conhecido como Neocalvinismo holandês, o qual foi disseminado em muitos
seminários nos Estados Unidos no século XX, de onde veio para o Brasil.

Firmado na tradição reformada calvinista, Kuyper tinha como um dos seus


objetivos renovar a vida social e religiosa da Holanda já que, em sua interpretação,
existia uma crise na sociedade moderna que só poderia ser solucionada através
da aplicação, na sociedade de certos princípios religiosos (ALENCAR, 2018, p.
108).

Kuyper, embora pretendesse fidelidade ao pensamento de João Calvino, não foi


um “copista submisso” (VAN TIL HENRY, 2010).

No momento, que seja suficiente dizer que Kuyper colocou a autoglorificação de


Deus no centro de sua teologia da mesma maneira que Calvino fez. Mas, se
Calvino entrou em contenda contra a teologia dos católicos, dos anabatistas e dos
humanistas, Kuyper, como apologista do Calvinismo, estava mais empenhado em
estabelecer as exigências de Cristo para o campo inteiro da cultura (VAN TIL
HENRY, 2010, p. 140).

As Palestras Stone são um importante ponto de partida para compreender o


Neocalvinismo holandês. Trata-se de uma crítica ao pensamento moderno, a partir de seis
exposições, das quais duas serão objeto da nossa análise na sequência: Calvinismo
como sistema de vida e Calvinismo e política.

3.1.1 As Palestras Stone e seu contexto de formulação

Abraham Kuyper observa o mundo moderno como uma ameaça à herança


cristã, cujo impacto se inicia nos séculos precedentes, com a Revolução Francesa, sobre
a qual ele diz: “[…] o princípio do qual a Revolução surgiu continua completamente
anticristão, e desde então tem se espalhado como câncer, dissolvendo e corroendo tudo
quanto está firme e consciente diante de nossa fé cristã” (KUYPER, 2014, p. 18).
21 O termo “sistema de vida” foi utilizado por Kuyper para traduzir o termo alemão Weltanschauung, que
em inglês não possui equivalente preciso, o que justificaria o uso da tradução literal “conceito de mundo”
ou “cosmovisão”; no entanto, pelo termo em inglês ser limitado em suas associações,
predominantemente físicas, foi preferível pelo autor o termo “concepção de vida e do mundo”, o qual,
por sugestão de amigos americanos, passou para “sistema de vida” (KUYPER, 2014).
55

Kuyper identifica o contexto moderno, para o qual emprega o nome de


Modernismo, como um período de supervalorização do homem em detrimento de Deus,
cujo sistema de vida ataca o cristianismo:

Dois sistemas de vida estão em combate mortal. O Modernismo está


comprometido em construir um mundo próprio a partir de elementos do homem
natural, e a construir o próprio homem a partir de elementos da natureza;
enquanto que, por outro lado, todos aqueles que recentemente humilham-se
diante de Cristo e o adoram como o Filho do Deus vivo, e o próprio Deus, estão
resolvidos a salvar a “herança cristã”. Esta é a luta na Europa, esta é a luta na
América, e esta também é a luta por princípios em que meu próprio país está
engajado, e na qual eu mesmo tenho gasto todas as minhas energias por quase
quarenta anos (KUYPER, 2014, p. 19).

Kuyper, que é herdeiro do pensamento reformado calvinista, experimentou a


verdadeira crise da ortodoxia protestante. A crise da ortodoxia protestante se deu a partir
da “[…] emergência de um coeso liberalismo teológico, o qual, embora durasse pouco
como fenômeno histórico, pelo menos em sua forma clássica, teve um alcance teórico
impressionante” (BERGER,1985, p. 168).
O protestantismo liberal22 é um dos mais importantes movimentos que surgiram
com o objetivo de preencher as lacunas existentes entre a fé cristã e o movimento
moderno. Com as descobertas científicas, como a teoria da seleção natural de Charles
Darwin, “criou-se um ambiente em que alguns elementos da teologia cristã tradicional
(como a doutrina da criação do mundo em sete dias, por exemplo) pareciam ser cada vez
mais insustentáveis” (MCGRATH, p. 138, 2010). Assim, seus teólogos se empenharam
para que houvesse uma renovação dogmática, do contrário, a desintegração do
cristianismo seria uma possibilidade. O liberalismo buscou basear a fé não em sistemas
doutrinários fechados, mas na experiência humana e necessidades que o mundo
moderno apresentava.

Assim, talvez a melhor interpretação do termo “liberal” seja a que se aplique a “um
teólogo que, segundo a tradição de Schleiermacher e Tillich, esteja interessado na
reformulação dogmática em resposta à cultura contemporânea”, o que descreve
muitos dos escritores modernos conhecidos (MCGRATH, 2010, p. 140).

Kuyper, no entanto, analisa esse movimento de forma crítica:

22 Entre os muitos temas que perpassam nossa pesquisa, encontra-se o movimento do protestantismo
liberal. No entanto, em virtude da necessidade de delimitação do nosso objeto de estudo, esta e outras
temáticas não podem ser analisadas exaustivamente; limitamo-nos somente contextualizar, para que
nosso leitor possa se localizar em nossa discussão.
56

É verdade que toda falange de teólogos, de Schleiermacher a Pfleidere


continuaram a prestar alta honra ao nome de Cristo, mas é igualmente inegável
que isto somente foi possível pela sujeição de Cristo e da confissão cristã a
metamorfoses sempre mais corajosas. Um fato doloroso, mas que torna-se
absolutamente evidente, se vocês compararem o credo agora corrente nestes
círculos com a confissão pela qual nossos mártires morreram [...]. Uma Teologia
que virtualmente destrói a autoridade das Santas Escrituras como um livro
sagrado; que nada vê no pecado exceto uma falta de desenvolvimento; que
reconhece Cristo como nada mais que um gênio religioso de importância central;
que vê a redenção como simples reversão de nosso modo subjetivo de pensar; e
que se satisfaz num misticismo dualisticamente oposto ao mundo do intelecto –
uma Teologia como esta é semelhante a uma represa cedendo diante do primeiro
assalto da maré invasora. É uma Teologia sem controle sobre o povo, uma quase
religião, absolutamente impotente para restaurar até mesmo a uma firmeza
temporária nossa triste vacilante vida moral (KUYPER, 2014, p. 191).

Podemos observar que o Neocalvinismo holandês surge em meio e como


resposta aos grandes processos da modernidade, que afetaram a religião, seu estatuto
cultural e produção teológica. “Na Holanda do século dezenove houve uma divisão entre a
atitude crítica, de um lado (a igreja liberal absorvera todos os elementos críticos do
liberalismo) e a igreja calvinista ortodoxa, do outro, mantendo a teologia tradicional com
grande tenacidade” (TILLICH, 1999, p. 40). Abraham Kuyper, como herdeiro da ortodoxia
calvinista, coloca-se, portanto, em posição de combater às transformações trazidas no
bojo da modernidade, mas, para isso, identifica a necessidade de um sistema de vida
igualmente abrangente e adverte que esse sistema de vida não precisa ser formulado,
mas aplicado como se apresenta na história, e se apresenta no calvinismo: “Quando
assim fiz, encontrei e confessei, e ainda sustento, que esta manifestação do princípio
cristão nos é dada no Calvinismo” (KUYPER, 2014, p. 19).
Na próxima seção trataremos de duas das seis palestras proferidas por Kuyper
na Universidade e Seminário de Princeton, em 1898, a convite da L. P. Stone.

3.1.2 Calvinismo como sistema de vida

A primeira exposição de Abraham Kuyper nas Palestras Stones tem o título


“Calvinismo como sistema de vida”. Ao pretender uma resposta à crise vivenciada, Kuyper
propõe uma reafirmação da objetividade teológica, remontando o pensamento reformado
calvinista que, em sua percepção, abrange historicamente: 1) um nome sectário: diz
respeito ao estigma sectário atribuído ao nome “calvinista” nos países católicos; 2)
identificação confessional: se refere à convicção do dogma da predestinação; 3)
identificação denominacional: é aplicado como um título a uma denominação eclesiástica;
57

4) um nome científico: em sentido histórico, filosófico ou político; histórico porque foi a via
pela qual a reforma protestante se moveu; filosófico porque é um sistema de concepções
que sob o empenho da mente do teólogo João Calvino propôs pensar nas diversas
esferas da vida; e político porque indica um movimento que se comprometeu com a
liberdade das nações em governo constitucional, inicialmente em países como a Holanda,
Inglaterra e os Estados Unidos no século XVIII. O Neocalvinismo amplia, portanto, a
ênfase da tradição reformada em relação à cultura e envolvimento social.
Kuyper, enraizado nas doutrinas-chave da tradição agostiniana-calvinista,
elaborou um novo dogma, denominado de graça comum. Há elementos dessa doutrina
que podem ser encontrados nos escritos de Calvino, no entanto, foi Kuyper que,
efetivamente, o desenvolveu. A graça comum é a misericórdia de Deus que restringe o
pecado e seus efeitos à medida que também capacita o homem a desenvolver a criação
como originalmente ele desejou. “Esta graça, contudo, não aniquila a essência do pecado,
nem salva para a vida eterna, porém impede a execução completa do pecado, do mesmo
modo como o discernimento humano impede a fúria de animais selvagens” (KUYPER,
2014, p. 130). Desse modo, Kuyper concilia a doutrina da depravação total – isto é,
doutrina que afirma que, por meio da corrupção original, todos ficaram impossibilitados de
praticar o bem e são inteiramente inclinados a todo mal – com a presença do bem entre
os “não regenerados”. Foi desenvolvido, ainda, um segundo dogma, o mandato cultural,
que pode ser entendido como “a ordem divina para que o homem explore de forma
criativa e responsável os recursos da criação” (CARVALHO apud RAMLOW, 2012, p.
1708). Esse mandato é anunciado a Adão antes da queda, e, na perspectiva kuyperiana,
não foi alterado. Desse modo, “o propósito, em última instância, não é salvação de
pecadores, mas a redenção do cosmo” (PRONK, 2010, p. 14). Observamos a doutrina da
predestinação arraigada nessa concepção, uma vez que relembra o dever dos cristãos
de empregar os dons concedidos por Deus no mundo. “Crer na predestinação nada mais
é do que a penetração do decreto de Deus em suas próprias vidas pessoais; ou, se vocês
preferirem, no heroísmo pessoal para aplicar a soberania da vontade decretiva de Deus a
suas próprias existências” (KUYPER, 2014, p. 121). Foi exatamente essa ênfase na
doutrina da predestinação que imputou o calvinismo como “[…] o verdadeiro elemento de
perigo político, e assim, atacado enquanto tal por aqueles no poder” (WEBER, 2013, p.
130), durante o século XVII.
A combinação das doutrinas mencionadas, assentadas na doutrina da
soberania de Deus, chave na concepção de governo civil de Calvino, fundamenta a
58

proposta de sua teologia pública, cujo princípio é a autonomia das esferas. Para ele, a
confissão calvinista é, na verdade, uma fé política, que se expressa brevemente em três
teses: 1. Somente Deus, e não criaturas possuem direitos soberanos sobre o destino das
sociedades. 2. O pecado no campo político tem destruído o governo direto de Deus, por
isso foi conferido o propósito do governo aos homens como “remédio mecânico”. 3. O
homem não possui autoridade sobre seu semelhante, senão por uma autoridade que
emana de Deus.
Para o teólogo a doutrina da soberania de Deus foi fundamental nas liberdades
civis, ao passo que confere ao calvinismo conquistas na América e Inglaterra, bem como
na Holanda, onde “[…] o pluralismo religioso […] a partir do séc. XVII […] caracterizou a
vida político-religiosa holandesa” (FILORAMO; PRANDI, 1999, p. 44). Neste ponto,
contudo, fica aparente a demasia atribuída às contribuições do calvinismo.
Segundo Witte (1999), Kuyper não leva em conta a multiforme e plasticidade
da tradição calvinista ao traçar linhas diretas de Genebra para América, Holanda e
Inglaterra. Os puritanos do século XVII e XVIII não se basearam na doutrina divina de
Calvino, mas, sim, na doutrina da aliança 23, que forneceu uma compreensão distinta e
integrada das religiões, sendo, também comum a ortodoxos, católicos e protestantes.
Vemos assim que, Kuyper entende o calvinismo “[…] como mais que uma
religião, é ‘um sistema de vida abrangente’, que transcende a esfera do sagrado. A própria
separação entre duas esferas – sagrado e secular – no Neocalvinismo é rejeitada em
busca de uma fé mais integral” (ALENCAR, 2018, p. 109), que o torna como o único
sistema capaz de oferecer respostas e uma agenda para o futuro.

3.1.3 Calvinismo e Política

Na palestra “Calvinismo e Política”, Kuyper inicia sua exposição apontando que


nenhum esquema político jamais se tornou dominante “a menos que tenha sido fundado
numa concepção religiosa específica ou numa concepção antirreligiosa” (KUYPER, 2014,
p. 85). Além disso, explicita que seu objetivo é combater a ideia de que “o Calvinismo
representa um movimento exclusivamente eclesiástico e dogmático” (KUYPER, 2014, p.
85), uma vez que produziu mudanças significativas em “três terras de liberdade política
histórica”: Holanda, Inglaterra e América.

23 Pacto das obras. É uma aliança natural e não um privilégio, no qual participam apenas os eleitos.
59

Que o Calvinismo levou a lei pública a novos caminhos, primeiro na Europa


Ocidental, depois nos dois Continentes, e hoje mais e mais entre todas as nações
civilizadas, é admitido por todos os estudantes científicos, se não ainda
plenamente pela opinião pública (KUYPER, 2014, p. 86).

Adiante, Kuyper afirma que as concepções políticas do calvinismo nascem do


seu princípio radical: não um princípio soteriológico (justificação pela fé), mas um princípio
cosmológico: a Soberania de Deus sobre todo o cosmo. Essa soberania “irradia na
humanidade numa tríplice supremacia, a saber, 1. A soberania do Estado; 2. A soberania
na sociedade; e 3. A soberania na Igreja” (KUYPER, 2014, p. 86).
Tratando-se da soberania do Estado, Kuyper (2014) diz que o impulso para formar
Estados nasce da natureza social do homem24:

Deus poderia ter criado os homens como indivíduos separados, estando lado a
lado e sem conexão genealógica […]; mas este não foi o caso. O homem é criado
a partir do homem e em virtude de seu nascimento ele está organicamente unido a
toda raça. Nós formamos juntos uma humanidade, não somente com aqueles que
estão vivos atualmente, mas também com todas as gerações antes de nós e com
todas aquelas que irão depois de nós, embora possamos estar pulverizados em
milhões (KUYPER, 2014, p. 96-87).

A concepção de Estados, no entanto, interfere nessa ideia, uma vez que a


unidade orgânica, da qual Kuyper fala, é rompida pela divisão de continentes e nações;
essa unidade “somente seria realizada politicamente se um Estado pudesse abraçar todo
o mundo e se toda a humanidade estivesse associada em um império” (KUYPER, 2014,
p. 87). Kuyper aponta o pecado como a força desintegradora da humanidade, responsável
pela quebra da sua unidade. Nesse sentido, toda tentativa de união é “[…] um olhar para
trás para um paraíso perdido” (KUYPER, 2014, p. 87). Segundo o autor, sem o pecado
não haveria a necessidade da ordem do Estado, a vida política teria se desenvolvido de
acordo com o modelo familiar patriarcal; assim, o Estado é um “remédio mecânico” para
humanidade após a queda de Adão no paraíso.

Toda estrutura do Estado, toda afirmação do poder do magistrado, todo meio


mecânico de obter pela força a ordem e garantir um curso seguro de vida é,
portanto, sempre algo artificial; algo contra o que as aspirações mais profundas de
nossa natureza se rebelam; e que, exatamente por causa disto pode tornar-se a
fonte tanto de um terrível abuso de poder por parte daqueles que exercem quanto
de uma revolta contínua por parte da multidão (KUYPER, 2014, p. 88).

Kuyper aponta que a sede inata do homem pela liberdade é um meio ordenado por
Deus para refrear o despotismo, sendo a relação entre autoridade e liberdade somente
24 Kuyper se refere a Aristóteles, quando este afirma que o homem é um ser político.
60

possível porque o calvinismo colocou no primeiro plano, como verdade primordial, que
Deus instituiu os magistrados por causa do pecado (KUYPER, 2014, p. 88).
O autor segue com sua exposição, refletindo sobre os dois lados do Estado: o lado
de luz e o lado sombrio. Em seu lado de luz, o Estado cumpre o dever de preservação;
devido ao pecado, seria impossível a humanidade conviver sem lei, governo e autoridade
governante. Em seu lado sombrio, o Estado não se harmoniza com a natureza humana;
sua autoridade é exercida por homens pecadores, sujeitos a ambições despóticas. Assim,
Kuyper afirma:

[…] o Calvinismo tem, através de sua profunda concepção do pecado, exposto a


verdadeira raiz da vida do Estado, e nos tem ensinado duas coisas: primeira, que
devemos agradecidamente receber da mão de Deus a instituição do Estado com
seus magistrados como meio de preservação agora, de fato, indispensável. E por
outro lado também que, em virtude de nosso impulso natural, devemos sempre
vigiar contra o perigo que está escondido no poder do Estado para nossa
liberdade pessoal (KUYPER, 2014, p.88)

Na relação entre o Estado e povo, o autor adverte que o povo não deve ser
considerado elemento principal na política, pois a humanidade existe para glória de Deus
e, consequentemente, segundo suas ordenanças, devendo cumpri-las para que sua
sabedoria possa brilhar publicamente (KUYPER, 2014, p. 89). Destaca ainda que nenhum
homem tem o direito de governar sobre outro homem, somente Deus tem esse direito.
Nesse sentido, Kuyper demonstra seu desacordo com a teoria do contrato social:

Tampouco um grupo de homens pode, por contrato, de seu próprio direito


constranger você a obedecer um semelhante. Que força obrigatória há para mim
numa alegação de que épocas antes um de meus progenitores fez um “Contrato
Social” com outros homens daquele tempo? (KUYPER, 2014, p. 89)

Na esfera do Estado, Kuyper enfatiza que é um homem livre e, por assim ser,
não se curva diante de qualquer homem, diferente da esfera familiar, na qual governa
laços orgânicos (KUYPER, 2014).
A segunda afirmação calvinista é que: “toda autoridade de governo sobre a
terra originou-se somente da Soberania de Deus” (KUYPER, 2014, p. 90). Desta feita,
toda aquele que se opuser à autoridade resiste às ordenanças do próprio Deus. Para
Abraham Kuyper, o magistrado é um instrumento da graça comum, cuja função é conter
toda desordem e violência.
61

Assim Deus, ordenando os poderes que existem, a fim de que através de sua
instrumentalidade possa manter sua justiça contra os esforços do pecado,
concedeu ao magistrado o terrível direito da vida e da morte. Portanto, todos os
poderes que existem, quer em impérios ou em repúblicas, em cidades ou estados
governam ‘pela graça de Deus’ (KUYPER, 2014, p. 90).

O autor, no entanto, adverte que não se trata de teocracia, argumentando que


esta existiu somente em Israel, onde Deus se colocava imediatamente através de
profecias, milagres e julgamentos punitivos. Ainda ressalta que a confissão calvinista, isto
é, a ênfase dada à soberania de Deus, vale para todo o mundo e nações, estando em
toda autoridade que o homem exercem sobre outros, seja na esfera do Estado ou da
família. Trata-se, assim, de uma fé política (KUYPER, 2014, p. 92), expressa
resumidamente em três teses:

1. Somente Deus — e nunca qualquer criatura — possui direitos soberanos sobre


o destino das nações, porque somente Deus as criou, as sustenta por seu grande
poder, e as governa por suas ordenanças. 2. O pecado tem, no campo da política,
demolido o governo direto de Deus, e por isso o exercício da autoridade com o
propósito de governo tem sido subsequentemente conferido aos homens como um
remédio mecânico. 3. E, em qualquer forma que esta unidade possa revelar-se, o
homem nunca possui poder sobre seu semelhante em qualquer outro modo senão
por uma autoridade que desce sobre ele da majestade de Deus (KUYPER, 2014,
p. 92).

Kuyper faz uma diferenciação entre a confissão calvinista e a soberania popular


(Revolução Francesa) e soberania do Estado (Escola Alemã), apontando que essas
ignoraram Deus. A Revolução Francesa coloca o próprio homem como uma causa
profunda da política.

[...] Aqui, do ponto de vista da soberania do povo, o punho está desafiadoramente


cerrado contra Deus, enquanto que o homem humilha-se perante seus
semelhantes, dando falso brilho a esta auto-humilhação pela ficção ridícula de
que, milhares de anos antes, homens de que, ninguém tem qualquer lembrança
determinaram um contrato político ou, como eles o chamam, ‘Contrato Social’
(KUYPER, 2014, p. 95).

Para Kuyper, a Escola Alemã tem uma concepção “mística” do Estado. Coloca-
se em lugar da soberania de Deus, a soberania do Estado; o direito não mais transcende
de Deus, mas emana da lei.

O Estado foi considerado como um ser misterioso com um ego oculto; com uma
consciência de Estado desenvolvendo-se lentamente; e com uma poderosa
vontade de Estado crescendo, a qual por um processo lento esforçou-se para às
cegas alcançar o mais alto propósito do Estado. O povo não foi entendido como
sendo a soma total dos indivíduos como com Rousseau. Foi corretamente visto
62

que um povo não é um agregado, mas um todo orgânico. Este organismo


necessariamente deve ter seus membros orgânicos. Lentamente estes órgãos
chegaram a seu desenvolvimento histórico. A vontade do Estado opera por estes
órgãos, e tudo deve dobrar-se perante esta vontade (KUYPER, 2014, p. 96, grifo
do autor).

Assim, a vontade do Estado é sempre mutável, tornando a lei e o direito arbitrário.


O Estado, nesse sentido, tornar-se Deus.
Em comparação com as Revoluções calvinistas, Kuyper advoga que essas
“deixaram intacta a glória de Deus” (2014, p. 93). Refere-se, especialmente, à Revolução
Gloriosa e à Revolução Americana; na Declaração da Independência (1776), fica claro a
observância das leis divina.
O estadista segue com sua exposição, afirmando que o calvinismo, em oposição à
soberania popular e soberania do Estado, mantém a soberania de Deus como fonte de
toda autoridade entre os homens.

O Calvinismo aponta para a diferença entre a concatenação natural de nossa


sociedade orgânica e o laço mecânico que a autoridade do magistrado impõe. Ele
torna fácil para nós obedecer a autoridade porque, com toda autoridade, nos
motiva a honrar a exigência da soberania divina. Ergue-nos de uma obediência
nascida do medo do exército forte, para uma obediência por causa da consciência.
Ensina-nos a olhar por cima da lei existente para a fonte do Direito eterno de Deus
e cria em nós a coragem indomável para protestar incessantemente contra a
injustiça da lei em nome deste Direito superior (KUYPER, 2014, p. 97).

Abraham Kuyper passa a discutir sobre as esferas sociais, destacando que no


sentido calvinista, a família, os negócios, a ciência e a arte são independentes do Estado;
elas obedecem a uma “autoridade superior especial” (KUYPER, 2014, p. 98). Dá-se o
nome de soberania nas esferas sociais individuais, sobre as quais não há nada, exceto
Deus. O Estado não pode, portanto, ordenar fora do seu campo.
Existe uma profunda diferença entre sociedade e governo; a sociedade tem uma
vida orgânica, é espontânea em seu desenvolvimento, devido aos laços de
consanguinidade, enquanto que o governo possui caráter mecânico, por ser uma medida
alternativa após o pecado original. Para Kuyper (2014, p. 100), as principais
características do governo são: a) o direito sobre a vida e a morte, isto significa que
somente Deus tem o direito de tirar a vida, a menos que esse direito seja concedido por
ele, como no caso dos magistrados, reconhecidos com essa autoridade na lei de Moisés;
b) o magistrado traz a espada, a qual tem triplo significado: justiça, guerra e ordem. “É a
espada da justiça para distribuir a punição física ao criminoso. É a espada da guerra para
defender a honra, os direitos e os interesses do Estado contra seus inimigos. E é a
63

espada da ordem para frustrar em seu país toda rebelião violenta” (KUYPER, 2014, p.
100). Especialmente no tocante à promoção da justiça, o estadista reafirma esse dever e,
em segundo lugar, chama atenção para o cuidado que se deve ter com a unidade, seja no
interior do país ou frente ao exterior, para que a existência nacional não sofra dano.
Nesse contexto, Kuyper adverte que os atritos são recorrentes devido à autoridade
mecânica do governo, que tende a invadir a vida social e arranjá-la mecanicamente. No
entanto, a vida social se esforça para livrar-se da sua investida, e aponta que toda vida
sadia do povo foi sempre resultado do conflito desses dois poderes; prova disso é o
chamado “governo constitucional”, que, para o autor, teve como apoio fundamental o
calvinismo.
Ao tratar da autoridade orgânica na diferenciação das pessoas, Kuyper afirma:
“não há igualdade de pessoas” (2014, P. 102); com isso, o estadista quer dizer que o
domínio é exercido em toda parte, mas é um domínio orgânico, sem impulso do Estado,
mas da própria vida.

O Estado nunca pode tornar-se um octópode que asfixia a totalidade da vida. Ele
deve ocupar seu próprio lugar, em sua própria raiz, entre todas as outras árvores
da floresta, e assim deve honrar e manter cada forma de vida que cresce
independentemente em sua própria autonomia sagrada (KUYPER, 2014, p.103).

Adiante, o estadista aponta o tríplice direito e dever do Estado a partir da lei: 1.


Quando esferas diferentes entram em conflito; 2. Defender pessoas individuais contra o
abuso de poder dos demais; 3. Obrigar a todos a arcar com seus deveres pessoais e
financeiros para manutenção do Estado.
Por último, Kuyper trata da soberania na Igreja. O estadista aponta para o moto
que escreveu em seu jornal semanal: “Uma Igreja livre num Estado livre” (KUYPER, 2014,
p. 106), reafirmando seu compromisso com a liberdade da Igreja e Estado, pronto para
reconsiderar o artigo da velha Confissão de Fé calvinista, que confia ao governo a tarefa
de defender a Igreja contra a falsa religião.
Adiante, Kuyper também fala dos calvinistas como mais mártires que
executores, dizendo que repudia o ocorrido com Servetus, mas que esse foi um erro fatal
do sistema da época, uma vez que os luteranos e católicos romanos enviaram à fogueira
muito mais. Sobre as diferenças religiosas, o estadista argumenta que o calvinismo
quebrou a visão monolítica da Igreja, uma vez que nos países calvinistas nasceu uma
variedade de formações eclesiásticas. Além disso, afirma que os teólogos e calvinistas
64

defenderam a liberdade de consciência contra a Inquisição, diferente de Roma, que


concebeu essa liberdade como um afrouxamento da unidade da Igreja visível.
Em sua conclusão, o estadista trata dos três deveres do magistrado nas coisas
espirituais: 1. Para com Deus; 2. Para com a Igreja. 2. Para o indivíduo. No primeiro
dever, Kuyper afirma que os magistrados são e continuam sendo servos de Deus,
devendo, portanto, governar o povo de acordo com as ordenanças divinas.

Devem reprimir a blasfêmia onde ela diretamente assume o caráter de uma


afronta à Majestade Divina. E a supremacia de Deus deve ser reconhecida pela
confissão de seu nome na Constituição com a Fonte de todo poder político,
mantendo o sábado, proclamando dias de oração e orações de graça e invocando
sua divina benção (KUYPER, 2014, p. 110).

Para que governem segundo as ordenanças divinas, no entanto, os


magistrados não devem sujeitar-se à decisão de alguma Igreja, mas alcançar, por si
mesmo, o conhecimento da vontade de Deus (KUYPER, 2014, p. 110).

A esfera do Estado não é profana. Mas tanto a Igreja como o Estado devem, cada
um em sua própria esfera, obedecer a Deus e servir para esferas, mas na esfera
do Estado somente através da consciência das pessoas investidas com
autoridade. [….]. Mas isto nunca pode ser realizado exceto através das
convicções subjetivas daqueles que estão em autoridade, segundo seus conceitos
pessoais sobre exigências deste princípio cristão com relação ao serviço público
(KUYPER, 2014, p. 111).

No dever para com a Igreja, em matéria de unidade, o governo não deve interferir,
pois não tem dados suficientes para julgamento, não podendo dizer, portanto, qual Igreja
é ou não verdadeira. Nesse sentido, Kuyper afirma que os calvinistas sempre lutaram por
liberdade, pela soberania da Igreja:

Ela tem sua própria organização. Possui seus próprios oficiais. E de um modo
similar ela tem seus próprios dons para distinguir a verdade da mentira. Portanto,
é seu privilégio, e não do Estado, determinar suas próprias características como a
Igreja verdadeira e proclamar sua própria confissão como a confissão da verdade
(KUYPER, 2014, p. 112).

Assim, o Estado não deve interferir em questões espirituais. “A soberania do


Estado e a soberania do governo da Igreja existem lado a lado, e limitam-se mutuamente
uma a outra” (KUYPER, 2014, p. 113).
No terceiro dever, tratando-se da soberania do indivíduo, Kuyper afirma que
cada homem é um rei em sua própria consciência, não no sentido de libertar-se de Deus,
pois, nesse sentido, ele mesmo se coloca como um oponente. O sentido do qual fala é
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uma consciência que nunca está sujeita ao homem, mas continuamente ao próprio Deus
(KUYPER, 2014, p. 114). Assim, segundo o estadista é dever do governo proteger essa
liberdade, fazendo-a, inclusive, ser respeitada pela Igreja; nenhum cidadão pode ser
compelido a permanecer numa Igreja que sua consciência o obriga a deixar. Por outro
lado, no entanto, em nome da esfera de soberania da Igreja, esta não pode ser forçada a
tolerar um indivíduo como membro que não esteja em conformidade com suas
ordenanças. Kuyper ressalta, ainda, que essa liberdade pessoal não se destina a
crianças, mas somente ao homem maduro.
Na conclusão da palestra, o estadista afirma a necessidade de garantir a
liberdade contra o despotismo e dá as honras da liberdade de consciência, expressão e
adoração primeiro à Holanda calvinista, ainda que, no primeiro momento, os reformadores
esforçaram-se para impedir a expansão da literatura que viam com maus olhos,
censurando-as e rejeitando suas publicações. Kuyper reconhece, por fim, que nas terras
romanas o despotismo espiritual e político foi derrotado pela Revolução Francesa, mas
lembra que, sobretudo na França, por muito tempo, todos aqueles que cultivavam um
pensamento diferente não escapavam de execuções; nesse sentido, portanto, o
Calvinismo e a liberdade na Revolução Francesa, segundo o estadista, são duas coisas
completamente diferentes: “Na Revolução Francesa uma liberdade civil para todo cristão
concordar com a maioria incrédula; no Calvinismo, uma liberdade de consciência, que
habilita cada homem a servir a Deus segundo sua própria convicção e os ditames de seu
próprio coração” (KUYPER, 2014, p. 115).
A seguir trataremos do pensamento de Herman Dooyeweerd, autor da segunda
geração do Neocalvinismo holandês. Dooyeweerd aprofundou a teoria das esferas de
soberania de Abraham Kuyper, conferindo a ela um caráter filosófico.

3.2 Herman Dooyeweerd: uma nota biográfica

Herman Dooyeweerd nasceu em 7 de outubro de 1894 em Amsterdã. De


família cristã, recebeu de seu pai as ideias do reformador neocalvinista Abraham Kuyper,
e, mais tarde, “tornou-se o protótipo do acadêmico neocalvinista” (DOOYEWEERD, 2010,
p. 7).
Entre 1900 e 1912, Dooyeweerd estudou em escolas cristãs de Amsterdã,
fundadas nos valores do movimento. Mais tarde, realizou seus estudos universitários na
66

Universidade Livre de Amsterdã, fundada por Abraham Kuyper em 1880. Embora se


interessasse por diversos assuntos, escolheu cursar direito, visto que considerava essa
uma carreira mais promissora. Confirmou-se nesse período sua adesão pessoal às ideias
neocalvinistas. Para Dooyeweerd, no entanto, embora o movimento possuísse forte
fundamento teológico, carecia de progressos nos campos da jurisprudência, economia e
política, levando-o a dedicar-se ao seu desenvolvimento no campo acadêmico.
Após seu doutoramento, Dooyeweerd exerceu atividades em instituições
públicas até 1921, quando assumiu o cargo de diretor assistente da Fundação Dr. Kuyper,
em Haia. A Fundação era um órgão de pesquisas do partido político antirrevolucionário,
iniciada pelo próprio Abraham Kuyper, com o objetivo de fornecer orientações legais e
político-econômicas para o partido (DOOYEWEERD, 2010). “Mais tarde ele atribuiria a
esses anos de estudo livre em Haia a criação das bases de sua filosofia reformacional”
(DOOYEWEERD, 2010, p. 9).
Em 1926, Dooyeweerd iniciou sua carreira acadêmica, tornando-se professor
de Filosofia, História e Enciclopédia do Direito na Universidade Livre de Amsterdã, onde
se aposentou em 1965. Nesse período, o filósofo reformacional, aprofundou suas
reflexões sobre calvinismo e filosofia, cujo primeiro fruto foi a publicação do título De
Wijsbegeerte der Wetsidee: A filosofia da ideia de lei. “Essa obra contém a suma do
pensamento maduro de Dooyeweerd” (OLIVEIRA, 2006, p. 80), a partir da qual, sua
filosofia ficou conhecida como Filosofia da Ideia Cosmonômica (DOOYEWEERD, 2010),
sendo traduzida para o inglês e publicada em quatro volumes entre 1953 e 1958.
O projeto de Dooyeweerd foi constituído no diálogo com o Neocalvinismo
holandês e com a filosofia alemã. Apropriou-se do conceito de cosmovisão cristã do
primeiro e da técnica filosófica do segundo. De Santo Agostinho recebeu influência na
tríade criação-queda-redenção; conceitos primordiais no Neocalvinismo a partir da sua
segunda geração.
Dooyeweerd interpretou a visão calvinista da lei de um modo cosmológico e
ontológico. A ênfase está, nesse sentido, na soberania de Deus sobre a criação por meio
da sua lei (DOOYEWEERD, 2010). Na visão calvinista a lei é externa ao homem —
diferente da visão luterana —, mas regula suas relações e se funda em Deus, único ser
autônomo. É justamente a partir dessa ideia — denominada de “norma heteronômica —,
que Dooyeweerd critica o princípio da autonomia da razão. O filósofo também considerou
a existência de uma antítese indissolúvel entre o Espírito de Deus e o espírito humano”
(DOOYEWEERD, 2010, p. 20), apontando para uma presença histórica desse conflito.
67

Para ele, o pensamento e a ação cristã não podem se acomodar, de maneira acrítica,
“aos padrões de pensamento, valores e estruturas da cultura moderna” (2010, p. 21).
Nesse sentido, o ponto de partida de Dooyeweerd permanece o mesmo que o de
Abraham Kuyper; para ambos, existe uma contradição irreconciliável entre o cristianismo
e a modernidade. No entanto, diferente de Kuyper, Dooyeweerd critica o calvinismo
escolástico e alimenta a ideia de um retorno ao próprio Calvino, ainda que se possa
continuar a identificá-lo como um filósofo “agostiniano-calvinista-kuyperiano”.
Em relação à influência da filosofia alemã, essa se justifica devido à
proximidade geográfica e afinidade cultural entre a academia holandesa e academia
alemã (DOOYEWEERD, 2010). Num primeiro momento, Dooyeweerd esteve sob
influência da filosofia neokantiana, apropriando-se, inclusive, do método transcendental
para “explicar a experiência humana e compreender a relação entre a razão, a moral, o
direito e a fé” (DOOYEWEERD, 2010, p. 23), mas houve uma mudança em seu
pensamento; Dooyeweerd submeteu a própria ideia da autonomia da razão a uma crítica
filosófica e concluiu que deveria abandonar a própria filosofia transcendental
(DOOYEWEERD, 2010, p. 23).

Originalmente, estive fortemente sob a influência, primeiro da filosofia neokantiana


e, depois da fenomenologia de Husserl. A grande virada em meu pensamento foi
marcada pela descoberta da raiz religiosa do próprio pensamento, quando
também uma nova luz foi lançada sobre o fracasso de todas as tentativas,
incluindo a minha, de realizar uma síntese interna entre a fé cristã e uma filosofia
que está enraizado na fé e na autossuficiência da razão humana. Eu vim entender
o significado central do ‘coração’, repetidamente proclamado na Sagrada
Escritura, como a raiz religiosa da existência humana.
Com base nesse ponto de vista cristão central, vi a necessidade de uma revolução
no pensamento filosófico, pensada em um caráter profundamente radical. Em
confronto com a raiz religiosa da criação, nada menos está em questão do que
como relacionar todo o cosmos temporal, em ambos os seus aspectos ‘naturais’ e
‘espirituais’, a esse ponto de referência. Em contraste com esta concepção bíblica
fundamental, de que significância é uma assim chamada revolução ‘copernicana’,
que apenas torna os ‘aspectos naturais’ da realidade temporal relativos a uma
abstração teórica, tal como o ‘sujeito transcendental’ de Kant? 25 (DOOYEWEERD,
1969, p. 12, tradução nossa).

25 “Originally I was strongly under the influence first of the Neo-Kantian philosophy, later on of HUSSERL's
phenomenology. The great turning point in my thought was marked by the discovery of the religious root of
thought itself, whereby a new light was shed on the failure of all attempts, including my own, to bring about
an inner synthesis between the Christian faith and a philosophy which is rooted in faith in the self-sufficiency
of human reason. I came to understand the central significance of the ‘heart’, repeatedly proclaimed by Holy
Scripture to be the religious root of human existence. On the basis of this central Christian point of view I saw
the need of a revolution in philosophical thought of a very radical character. Confronted with the religious root
of the creation, nothing less is in question than a relating of the whole temporal cosmos, in both its so-called
‘natural’ and ‘spiritual’ aspects, to this point of reference. In contrast to this basic Biblical conception, of what
significance is a so-called ‘Copernican’ revolution which merely makes the ‘natural-aspects’ of temporal
reality relative to a theoretical abstraction such as KANT's ‘transcendental subject’?” (DOOYEWEERD, 1969,
p. 2).
68

A partir desse ponto, Dooyeweerd se posicionou contra Kant e o neokantismo,


propondo, assim, o coração humano como o verdadeiro ponto de partida do pensamento,
e não a razão humana. Nessa perspectiva, o filósofo neocalvinista mostrou a necessidade
do autoconhecimento por meio do conhecimento de Deus; somente assim, o homem pode
desenvolver um pensamento autenticamente crítico (Dooyeweerd, 2010, p. 24). A ideia
calvinista de norma heteronômica cumpre um importante papel na sua proposta. Edmund
Husserl (1859-1938), filósofo alemão e precursor da escola fenomenológica, também foi
uma forte influência no pensamento de Dooyeweerd; para ambos, as características das
coisas são reais, e não “subjetivas” como em Kant. Além disso, Dooyeweerd, assim como
Husserl, rejeita todo tipo de reducionismo, esforçando-se para distinguir e descrever os
diversos aspectos da experiência, com ênfase na diferença e irredutibilidade
(DOOYEWEERD, 2010, p. 25).
Na seção seguinte, apontaremos os princípios teóricos fundamentais do
pensamento de Herman Dooyeweerd, a fim de tê-los à vista quando passarmos à
exposição da sua proposta de reforma do pensamento político, uma vez que o nosso
interesse é justamente entender a relação que o Neocalvinismo holandês estabelece com
o campo político.

3.2.1 Princípios teóricos fundamentais

Para compreendermos melhor a implicação do pensamento de Herman


Dooyeweerd, especialmente no campo da política, faz-se necessário conhecermos antes
seus princípios teóricos mais fundamentais. Tais princípios perpassam todas suas obras,
mas podem ser encontrados de maneira mais sistemática nos quatro volumes da obra A
New Critique of Theoretical Thought 26. Fabiano de Almeida Oliveira nos traz uma
importante contribuição nesse sentido, em seu artigo “Philosophando Coram Deo: uma
apresentação panorâmica da vida, pensamento e antecedentes Intelectuais de Herman
Dooyeweerd”27, sendo uma importante referência nesta parte da pesquisa. Oliveira
sintetiza oito princípios fundamentais na filosofia reformacional de Dooyeweerd, nós, no

26 DOOYEWEERD, Herman. A New Critique of Theoretical Thought, 4 vols. Jordan Station, Ontario:
Paideia Press, 1984.
27 OLIVEIRA, Fabiano de Almeida. Philosophando Coram Deo: uma apresentação panorâmica da vida,
pensamento e antecedentes Intelectuais de Herman Dooyeweerd. São Paulo: Fides Reformata, v. XI, n.
2, 2006, p. 73-100.
69

entanto, iremos nos ater apenas a seis. Não trataremos do tempo cósmico e da distinção
entre o conhecimento resultante da experiência concreta e o conhecimento resultante do
pensamento teórico.
O primeiro princípio se refere ao conceito de religião. Dooyeweerd herda de
Kuyper também o conceito de religião; para ambos os autores, a vida, desde a natureza,
perpassando pela cultura, até a ciência, tem uma raiz religiosa. “Por religião, Dooyeweerd
entende a natureza essencial da própria realidade na sua relação inseparável com aquele
que a criou, pois tudo existiria ‘por causa de, em e para’ Deus (OLIVEIRA, 2006, p. 83).
O segundo princípio diz respeito à realidade. Para Dooyeweerd, a realidade é
criada e, uma vez sendo, possui significado. O significado da realidade aponta para além
de si mesmo, isto é, para o seu Criador. Nesse sentido, “[…] o ser da realidade criada que
é relativo e permanece insuficiente em si mesmo à parte do seu Criador, de quem deriva a
sua razão de existir” (OLIVEIRA, 2006, p. 86).
O terceiro princípio é a ideia da Lei e a ordem divina da criação, que diz
respeito à vontade soberana e pessoal de Deus sobre tudo o que foi criado. Trata-se de
“uma ordem estruturadora de tudo quanto existe” (OLIVEIRA, 2006, p. 83-84) e que é
inalterável. Segundo Dooyeweerd, toda filosofia tem uma ideia de Lei ou ideia
cosmonômica, isto é, uma ideia de origem, diversidade e unidade dessa mesma
diversidade. Também a filosofia de Dooyeweerd, ou Filosofia da Ideia Cosmonômica “é
dominada pela ideia de uma estrutura a priori de significado estabelecida por Deus, que
tornaria possível toda a experiência humana neste mundo, incluindo o pensamento
teórico” (OLIVEIRA, 2006, p. 84, grifo do autor).
O quarto princípio se refere à antítese religiosa e os motivos básicos religiosos.
Dentre todos os outros, este princípio – na percepção desta pesquisa – é o que sustenta
não apenas a filosofia reformacional dooyeweerdiana, como todo o movimento holandês
de reforma religiosa e cultural. Tanto para Dooyeweerd, como para Kuyper, a fé cristã
estabeleceu uma antítese no mundo, a partir da queda do homem no pecado. “Essa
antítese diz respeito à relação entre a criatura e seu Criador, e assim toca a raiz religiosa
de toda vida temporal” (DOOYEWEERD, 2015, p. 21). Com isso, Dooyeweerd quer dizer
que todos os aspectos da cultura e sociedade não se eximem da queda e estão em
completa oposição ao Reino de Deus. Portanto, a antítese religiosa, uma vez que é
absoluta, não permite conciliação entre pontos de partida cristãos e não cristãos.
70

Este conflito se desenrola na criação; esta é a arena onde se dão os embates


espirituais. É por isso que Dooyeweerd se envolveu de modo absorvente na
difusão dos valores cristãos dentro do âmbito cultural, especificamente na esfera
filosófica. Ele, como Kuyper, acreditava que o verdadeiro conhecimento de Deus,
advindo de sua Palavra, deveria subjazer todas as esferas da cultura humana, a
fim de que o tema principal da Reforma Protestante do século 16, o Soli Deo
Gloria, fosse evidenciado num nível de proporções histórico-culturais (OLIVEIRA,
2006, p. 87).

Dooyeweerd, comprometido com essa visão e, assim como Kuyper, imbuído


pela confiança no mandato cultural – aquela ordenança divina dada ao gênero humano,
por intermédio de Adão, para explorar responsavelmente toda criação e cultivá-la em suas
potencialidades – dedicou sua vida e filosofia para evidenciar que somente o verdadeiro
conhecimento de Deus pode trazer ação redentora à humanidade. A carreira de ambos –
Kuyper como líder do partido antirrevolucionário e depois como primeiro-ministro da
Holanda, e Dooyeweerd como professor e membro da Academia Real Holandesa de
Ciência e Artes – foi um exemplo dessa convicção.
Segundo Dooyeweerd, após a queda, a antítese religiosa estabelecida no
mundo passou a ser representada por duas forças espirituais opostas, atuando nos
motivos básicos religiosos:

Atuando diretamente no motivo básico religioso está ou o espírito de Deus, o outro


que o nega e se opõe a ele. Cada motivo religioso é uma força espiritual a que as
pessoas servem e da qual elas são participantes. É comunidade espiritual básica
que não é controlada pelas pessoas. Em vez disso, ela as controla. Isso porque é
especificamente a religião que nos revela quanto dependemos de um poder mais
elevado no qual confiamos para encontrar estabilidade e aprender sobre a origem
da nossa existência (DOOYEWEERD, 2015, p.22)

Assim vemos que, para Dooyeweerd, há um “motivo básico revelacional, que


trabalha no coração do homem reconduzindo a sua vida e todos os seus afazeres para a
glória de Deus, e os motivos básicos de apostasia, que desde a queda têm levado o
homem à rebelião contra o seu Criador na deificação dos aspectos relativos da criação”
(OLIVEIRA, 2006, p. 89). Dooyeweerd faz uma avaliação das forças motrizes da cultura
ocidental e aprofunda quatro cosmovisões identificadas anteriormente por Abraham
Kuyper nas Stone Lectures on Calvinism. Essas cosmovisões estão no mesmo plano dos
motivos básicos religiosos, são elas: paganismo, calvinismo, romanismo e modernismo 28.
28 Pode-se encontrar essa avaliação completa na obra Raízes da cultura ocidental: as opções pagã,
secular e cristã, publicada no Brasil em 2015. Trata-se, originalmente, da reunião de uma série de
artigos escritos por Herman Dooyeweerd no seminário Nieuw Nederland, publicada em forma de livro
em 1959, com o título Vernieuwing em Bezinning om het reformatorisch grondmotief [Renovação e
reflexão sobre o motivo básico reformador]. Somente em 1979 ocorreu a primeira tradução para o inglês
com o título Roots of western culture: pagan, secular, and Christian options [Raízes da cultura ocidental:
71

O paganismo corresponderia ao motivo básico ‘matéria-forma’ da filosofia grega; o


calvinismo corresponderia ao motivo básico da Escritura “criação-queda-
redenção”; o romanismo ao motivo escolástico medieval ‘natureza-graça’; e o
humanismo-moderno corresponderia ao motivo ‘natureza-liberdade’ (OLIVEIRA,
2006, p. 89).

De acordo com Oliveira, no entanto, há uma diferença significativa entre as


concepções de Kuyper e Dooyeweerd sobre a relação entre cosmovisão e filosofia. “Para
Kuyper, a filosofia mantém uma relação de dependência com a cosmovisão onde está
inserida. Já para Dooyeweerd, tanto a cosmovisão quanto a filosofia são determinadas
pelos motivos básicos religiosos nos quais estas estão inseridas” (OLIVEIRA, 2006, p.
89).
Por fim, cabe colocar que a proposta de Dooyeweerd acerca dos motivos
básicos religiosos é resultado de sua oposição ao Movimento Nacional Holandês; este foi
um movimento político que surgiu após a II Guerra Mundial, com o objetivo de propor uma
renovação da nação holandesa a partir da superação da antítese entre a fé cristã e o
humanismo. Dooyeweerd contestou a tentativa de síntese proposta pelo movimento
através dos artigos escritos para o periódico semanal Nieuw Nederland entre 1945 e
1948, que mais tarde foram reunidos, traduzidos e publicados com o título Roots of
western culture: pagan, secular, and Christian options (Raízes da cultura ocidental: as
opções pagã, secular e cristã). Nesta obra, Dooyeweerd afirma que a antítese não é uma
invenção, mas que “toda pessoa que viva a religião cristã e verdadeiramente conheça as
Escrituras está ciente dela” (DOOYEWEERD, 2015, p. 17) e que, portanto, não se trata
apenas de

[…] uma linha divisória entre grupos cristãos e não cristãos. É uma batalha
incessante entre dois princípios espirituais que influenciam o país e, de fato toda a
humanidade. Ela não tem respeito pelos reconhecidos santuários do estilo de vida
cristão e seus modelos (DOOYEWEERD, 2015, p. 16).

Ao passo que Dooyeweerd discordava de uma síntese religiosa, também


julgava importante um diálogo profundo e autêntico acerca da renovação espiritual para o
período pós-guerra, e não dirigia essa tarefa apenas a um grupo seleto, mas também ao
leitor comum.

as opções pagã, secular e cristã].


72

Seja como for a ‘renovação espiritual’ tornou-se uma palavra de ordem para o
período pós-guerra. Nós a adotaremos prontamente. Para agir com seriedade, no
entanto, não podemos nos contentar com a superficialidade, mas procurar a
renovação a fundo. Para que o ‘diálogo’ do pós-guerra possa contribuir para a
renovação espiritual da nossa nação, ele deve penetrar nessa dimensão profunda
da vida humana onde uma pessoa não pode mais fugir de si mesma. É
precisamente aí que devemos chegar para desmascarar as diversas visões sobre
a importância e o alcance da antítese. […]. Toda pessoa que queira, com
seriedade, partir por esse caminho, não desprezará apressadamente meus
argumentos sob o pretexto de que são ‘pesados’ demais para serem digeridos
pelo leitor comum. […]. Esse caminho é, de fato, acessível a todo leitor sério e
não simplesmente a um seleto grupo de ‘intelectuais’. Esse é o caminho do
autoexame e não o caminho da pesquisa teórica abstrata (DOOYEWEERD, 2015,
p. 19, grifo do autor)

Dooyeweerd, portanto, incentivou a discussão acerca da renovação espiritual


em seu contexto. Contexto de Pós-Guerra que, cabe dizer, colocou à teologia cristã
importantes questões acerca da sua relevância.
O quinto princípio diz respeito à crítica transcendental do pensamento teórico
de Dooyeweerd. Como mencionamos na nota biográfica do autor, sua filosofia é uma
filosofia crítica ao próprio Kant. “Para o filósofo de Königsberg, o ponto de partida que
possibilitaria todo o pensamento seria a unidade transcendental de apercepção, o ‘eu’
kantiano, onde se daria a síntese entre as formas a priori da sensibilidade e as categorias
do entendimento” (OLIVEIRA, 2006, p. 91). Para Dooyeweerd, no entanto, o âmbito
responsável por essa síntese teórica é o coração fundamentalmente religioso, que é o
ponto de concentração de toda diversidade cósmica de sentido (significado). Por sentido,
Dooyeweerd “pretende designar o caráter referencial, não autossuficiente, da realidade
criada, a qual aponta para além de si mesma para Deus como origem” (STRAUSS in
DOOYEWEERD, 2015, p. 254). Assim, todas as funções humanas, inclusive a razão,
recebem influência e direcionamento religioso. Dooyeweerd desafia, desta forma, a
pretensão de neutralidade e autonomia da razão e do pensamento teórico.

[…] é apenas nessa relação religiosa central com a sua origem divina que o ego
pensante pode colocar a si mesmo, e a diversidade modal de seu mundo
temporal, na direção do absoluto. A tendência interna de fazê-lo é um impulso
religioso inato do ego. Pois sendo o ponto de concentração da totalidade do
sentido, que ele encontra disperso na diversidade modal de seu horizonte de
experiência temporal, o ego humano aponta além de si mesmo para a origem de
todo o sentido, cuja absolutidade reflete-se no ego humano como o assento
central da imagem de Deus. […] O impulso religioso inato do ego, no qual a
relação em direção à origem divina encontra expressão, toma seu conteúdo de um
motivo-base religioso como o poder espiritual centra de nosso pensamento e ação.
Se esse motivo é de caráter apóstata, ele distanciará o ego de sua origem
verdadeira e direcionará seu impulso religioso para nosso horizonte temporal de
experiência, buscando nesse tanto a si mesmo quanto à sua origem. Isto fará com
73

que surjam ídolos originados da absolutização daquilo que tem um significado


apenas relativo (DOOYEWEERD, 2010, p. 82-83)

Em linhas mais claras, pautado no motivo básico da religião cristã, de criação–


queda–redenção, Dooyeweerd se opõe ao princípio kantiano de autonomia da razão, pois
este desconsidera o ser humano e toda realidade cósmica como criação, absolutizando,
desta forma, o que é relativo. Somente Deus é um ser autônomo. O motivo básico da
criação aponta que não é a razão o ponto de concentração da existência humana, mas o
coração – em sentido bíblico, “alma”, espírito” ou, em termos filosóficos, ego, eu,
personalidade, individualidade. O coração tem uma dimensão religiosa profunda, que o
orienta para o Criador, mas esse impulso religioso pode encontrar outras expressões se o
motivo básico criação–queda–redenção for substituído por um motivo de caráter apóstata,
que surgiu justamente com a antítese religiosa. Nesse sentido, a tendência é absolutizar
aquilo que tem significado relativo. Pode-se absolutizar, por exemplo, esferas sociais,
como o Estado. É a partir dessa consciência, portanto, que o cristão deve atuar.
O sexto e último princípio destacado nesta pesquisa é o autoconhecimento e o
conhecimento de Deus. A crítica transcendental do pensamento teórico de Dooyeweerd
se fundamenta na necessidade de um verdadeiro autoconhecimento que, por sua vez,
não pode ser alcançado à parte do conhecimento de Deus. Esta é uma herança
agostiniana-calvinista. A verdade, para Dooyeweerd, deriva da revelação de Deus, por
meio de sua graça, não podendo ser alcançada, portanto, pela iniciativa intelectual.

Assim, a relação interpessoal entre você e eu não pode nos conduzir a um


autoconhecimento real enquanto não for concebida em seu sentido central; e
nesse sentido central ela aponta além de si mesma para a relação última entre o
eu humano e Deus. Essa relação central é, assim, de caráter religioso. Nenhuma
autorreflexão filosófica pode conduzir-nos a um autoconhecimento real de uma
forma puramente filosófica. As palavras com as quais Calvino inicia o primeiro
capítulo de seu livro-texto sobre a religião cristã: ‘O verdadeiro conhecimento de
nós mesmos é dependente do verdadeiro conhecimento de Deus’ (Institutes I. i. 1)
são, de fato, a chave para responder à questão: quem é o homem?
(DOOYEWEERD, 2010, p. 254).

Conhecer a Deus, portanto, é a chave fundamental para alcançar a verdade


acerca de si mesmo e, consequentemente, de todas as matérias que envolvem o mundo.
Contudo, o conhecimento de Deus é, em última instância, resultado de sua soberana
vontade ao conceder, ou não, graça especial aos indivíduos. Embora a graça comum e a
graça especial tenham a mesma raiz, Cristo, aquela não toca a raiz temporal, isto é, o
74

coração humano (DOOYEWEERD, 2014), para que todos tenham a revelação da


verdade.
Na seção seguinte, observaremos como os princípios apontados se evidenciam
no pensamento político de Dooyeweerd.

3.2.2 Reforma do Pensamento Político

A obra “Estado e Soberania: ensaios sobre cristianismo e política” é composta


por dois textos traduzidos pelo Projeto Herman Dooyeweerd, uma iniciativa da AKET –
Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares, e publicados no Brasil pela Editora
Vida Nova em 2014. O primeiro texto, A ideia cristã do Estado, foi originalmente
apresentado por Dooyeweerd à juventude antirrevolucionária no dia 3 de outubro de 1936.
O segundo, A disputa sobre o conceito de soberania, foi um discurso proferido no
septuagésimo aniversário da Universidade livre de Amsterdã, em 20 de outubro de 1950.
Entre as obras apontadas de Herman Dooyeweerd e traduzidas para língua portuguesa,
interessa-nos esta, devido ao problema levantado nesta pesquisa.
Iniciaremos pela introdução feita por Leonardo Ramos e Lucas G. Freire à
edição brasileira, com o objetivo de contextualizar a abordagem de Herman Dooyeweerd
nos assuntos da política e do Estado.
Como já mencionado, Dooyeweerd foi, ao mesmo tempo, herdeiro e criador da
tradição neocalvinista. Suas reflexões transitaram entre os campos do direito e da
filosofia, dedicando-se, especialmente, à reforma do pensamento filosófico e político. Os
pressupostos da reforma pretendida por Dooyeweerd se encontram no pensamento e
empreendimento de Abraham Kuyper em reação às transformações da modernidade
presentes em sua época.

[...] Kuyper enxergava uma antítese radical entre o cristianismo e os ideais


revolucionários. O Iluminismo havia disfarçado o olhar ‘científico’ e ‘racional’ sobre
a sociedade e a natureza com uma aparência de neutralidade religiosa. Kuyper, ao
contrário, destacou que, em última análise toda visão de mundo tem como raiz
uma inclinação religiosa, seja ela negativa, seja positiva. Essa raiz com certeza
também influência a vida política: ‘ esquema político algum que não tenha sido
fundamentado em uma concepção religiosa ou antirreligiosa específica jamais
chegou a predominar. (RAMOS; FREIRE in DOOYEWEERD, 2014, p. 19).

Tendo como pano de fundo as reflexões e o engajamento de Abraham Kuyper,


Herman Dooyeweerd desenvolveu um sistema filosófico cristão reformado, conhecido
75

como “filosofia reformacional” ou “filosofia cosmonômica”, como mencionamos em sua


biografia. O autor, ao partir da noção kuyperiana da soberania das esferas, desenvolve
uma leitura sobre as instituições sociais e, especificamente, sobre o Estado (RAMOS;
FREIRE in DOOYEWEERD, 2014).
Para Dooyeweerd, assim como para Kuyper, todo pensamento teórico possui
raízes profundamente religiosas, sendo necessário reformar a raiz religiosa do
pensamento teórico para se viver o chamado a uma vida bíblica. Dooyeweerd assume
esse compromisso, colocando sua vida a serviço do desenvolvimento de uma filosofia
cristã, que questiona as tentativas de diálogo entre sistemas filosóficos embasados em
raízes religiosas contrárias às do cristianismo bíblico (RAMOS; FREIRE in
DOOYEWEERD, 2014).
Conforme Ramos e Freire, a teoria do Estado de Dooyeweerd, objeto de
estudo desta seção da pesquisa, emerge “[…] no sentido de elucidar a antítese entre a
sua própria abordagem reformacional e as demais propostas – algumas delas
reivindicando certa influência, mas, ao mesmo tempo, tentando uma síntese com a
filosofia anticristã do paganismo antigo ou do humanismo moderno” (RAMOS; FREIRE in
DOOYEWEERD, 2014, p. 23).
Dooyeweerd parte de um incomodo em relação ao conhecimento científico, que
busca abstrair uma dimensão da realidade para seu melhor entendimento, no entanto,
não é capaz de alcançar seus fundamentos, sua totalidade.

Uma vez que se compreenda que toda teoria está necessariamente sujeita a tal
processo, o corolário é que 1) nenhuma dimensão dos cosmos, previamente
abstraída, pode ser, de fato, a origem do cosmo e 2) toda teoria que insiste no
contrário é, com efeito, reducionista. Em outras palavras, ela reduz a pluralidade
do real apenas uma de suas dimensões (RAMOS; FREIRE in DOOYEWEERD,
2014, p. 24).

Esse incomodo está no núcleo da sua filosofia e teorização sobre o Estado.


Dooyeweerd, por ser um autor religioso, parte de um pressuposto absoluto. Em sua obra
Raízes da Cultura Ocidental, ao mapear o que ele denominou de “motivos básicos” que
moldaram o desenvolvimento da cultura ocidental, aponta para o motivo básico da religião
cristã: criação, queda e redenção. Ao abordar o motivo da criação, o autor diz:

[…] o motivo da criação se dá a conhecer como Palavra absoluta, completa e


integral de todas coisas. Nenhum poder igualmente original se sustenta diante
dele, como se sustentava diante dos deuses olímpicos […]. Portanto, dentro do
mundo criado, não é possível encontrar-se uma expressão de dois princípios
contraditórios de origem (DOOYEWEERD, 2015, p. 43).
76

Percebe-se, nesse sentido, que Dooyeweerd, partindo de uma interpretação


ipsis litteris da Bíblia, rejeita a ideia de uma dimensão do próprio cosmo ser origem
absoluta da existência, pois tal ideia nega a narrativa bíblica da criação e também a
providência divina. Assim, sua preocupação repousa sobre os limites entre a abordagem
cristã e abordagens não cristãs que, em si mesmas, são reducionistas; pergunta-se, pois,
até onde se pode concordar ou dialogar com elas?

[…] uma postura não reducionista pressupões que as dimensões ou modos da


realidade não são autoexistentes e autônomos, mas sim mutuamente
dependentes – hierarquicamente organizados, mas interdependentes – e,
conjuntamente, apontam para uma dependência ainda maior em relação ao
Criador (RAMOS; FREIRE in DOOYEWEERD, 2014, p. 24).

O pensamento de Dooyeweerd parte do princípio da confissão de fé da Igreja


Reformada: somente Deus é absoluto. Sendo assim, o sentido não está nas coisas
criadas. Isso se aplica não apenas à natureza, mas também a tudo o que é produzido
pelos homens, como, por exemplo, instituições sociais.
É a partir deste ponto que adentraremos à ideia cristã do Estado, desenvolvida
por Herman Dooyeweerd. Antes, no entanto, apontamos para mais uma contribuição da
introdução à edição brasileira feita por Ramos e Freire. Os também tradutores revelam o
objetivo de internacionalizar o pensamento reformacional, mas advertem:

Ao internacionalizar o pensamento reformacional, recomendamos também uma


atitude crítica que leve em conta a ‘geografia do conhecimento’ por trás do
surgimento da escola neocalvinista. A leitura e o uso dessa abordagem para além
da Europa, como é o nosso interesse propor, devem ser feitos de forma criteriosa.
Tal como Kuyper, que articulou uma cosmovisão capaz de lidar com a sociedade
europeia do século 19, o foco do projeto de Dooyeweerd nas primeiras décadas do
século 20 também foi afetado por sua situação. Isso certamente influencia nossa
recomendação dessa formulação teórica ao público brasileiro, dadas as diferenças
notáveis de época, cultura e contexto institucional que orientam nossa visão
acerca das possibilidades da política. Ambos os autores eram europeus,
holandeses, e escreveram em um período em que o colonialismo e as narrativas
que os sustentavam era ainda vistos como legítimos, mesmo em certos círculos
cristãos e reformados. Além disso, ambos estavam engajados em uma
problemática nacional, preocupados com as possibilidades de produzir uma visão
cristã da política para a Holanda. Foi em função disso que o país busco uma nova
estrutura social sob orientação do ativismo e da política reformacional, tentando
fundamentá-la na tradição de ‘pluralismo das esferas sociais’. Em suma, apesar de
tais inovações intelectuais e práticas, essa consideração sobre os ‘horizontes da
imaginação política’ do Neocalvinismo deve sustentar uma leitura crítica e
cautelosa no nosso contexto (RAMOS; FREIRE in DOOYEWEERD, 2014, p. 34-
35).
77

Ramos e Freire tocam no núcleo da preocupação desta pesquisa: a aplicação


de uma formulação teórica, cuja sociedade e época em que foi formulada diferem
abruptamente da sociedade e época para qual se pretende aplicá-la. O objetivo desta
pesquisa é, sobretudo, sinalizar ao público brasileiro a necessidade de uma leitura crítica
e cautelosa do Neocalvinismo holandês e seus respectivos autores, para, então, se ater
às suas possibilidades e efetivação no contexto brasileiro, como apontam Ramos e Freire
(in DOOYEWEERD, 2014).
Passamos, agora, ao texto A ideia cristã do Estado, apresentado por Herman
Dooyeweerd em 1936. Dooyeweerd inicia sua exposição apontando que a ideia de um
Estado cristão é alvo de muitas discordâncias até mesmo entre os cristãos. Também
aponta falhas da Igreja Católica Romana na condução deste assunto. Dooyeweerd, não
diferente de Kuyper, reconhece no calvinismo princípios políticos importantes para sua
época, que, segundo sua percepção, atravessava um período de enfraquecimento
espiritual.

A causa fundamental do enfraquecimento interno do pensamento político cristão –


na verdade, de todo o modo de vida cristão dentre a diversidade de cristãos em
nossos dias – reside não tanto em fatores externos, mas em uma decadência
interna que ameaça o cristianismo desde o começo, em seu esforço positivo em
relação a cultura, educação, vida política e movimento social. Este também foi o
perigo a respeito do qual Josué, vocacionado por Deus, alertou os israelitas
quando eles chegaram à terra prometida, a saber, o perigo da integração com os
povos pagãos e a busca por um tal compromisso entre o serviço a Deus e a
adoração a ídolos.
Tão logo o cristianismo começou a comprometer a educação, a cultura e a vida
política com uma filosofia pagã e humanista, com sua visão de Estado e cultura, a
sua força interna ruiu. Naquele momento, o processo de ‘conformar-se ao mundo’
teve início e foi repetidamente contido através da graça de Deus por um reveil29
espiritual, uma reforma (DOOYEWEERD, 2014, p. 42).

O último movimento de reforma ocorreu por influência de Abraham Kuyper, e


tinha como objetivo reafirmar a antítese contra o espírito de síntese, isto é, espírito de
conformação ao mundo. Síntese e antítese são princípios fundamentais não apenas nas
formulações teóricas de Dooyeweerd, como também para o movimento neocalvinista
como um todo.

29 “Nota dos tradutores para língua portuguesa: em termos históricos, o termo Reveil refere-se a um
movimento de renovação ou avivamento espiritual que ocorreu no protestantismo europeu (Suíça,
partes da França, Alemanha e Holanda) no século 19. Tal movimento destaca-se por seu caráter
evangélico conservador em uma época em que o racionalismo se espalhava pelas igrejas protestantes
europeias” (RAMOS; FREIRE in DOOYEWEERD, 2014, p. 42)
78

Dooyeweerd pergunta em seu tempo: “Será que o espírito de síntese se


infiltrou de forma imperceptível em nossos próprios círculos? Será que o calvinismo como
um movimento político e cultural perdeu sua eficácia?” (DOOYEWEERD, 2014, p. 42-43).
E aponta: “Se assim for, então, este é certamente o momento de constatarmos mais uma
vez a antítese radical que separa a ideia cristã do Estado de todas as abordagens pagãs
e humanistas. ” (DOOYEWEERD, 2014, p. 43). A ideia de Dooyeweerd sobre o Estado
parte, portanto, da premissa de que não é possível estabelecer uma síntese entre pontos
de partida cristãos e não cristãos. Além disso, Dooyeweerd também pontua que há
somente uma ideia radical e bíblica do Estado cristão, o contrário disto (diversas
interpretações sobre o mesmo tema) é, na verdade, um resultado destrutivo da união
entre o cristianismo e outras influências da nossa época.

A ideia genuinamente cristã do Estado está arraigada na visão radical das


Escrituras acerca da relação entre o reino de Deus em Cristo Jesus e as
estruturas sociais temporais nas quais a graça geral ou comum de Deus
enfraquece a decadência moral e espiritual causada pelo pecado
(DOOYEWEERD, 2014, p. 43).

A visão de Dooyeweerd sobre a ideia cristã de Estado coloca em operação o


conceito de graça comum propagado por Abraham Kuyper. A partir desse conceito,
Dooyeweerd rejeita o contraste entre “natureza” e graça”, porque ele torna “[…]
impossível admitir que a natureza humana seja depravada em sua própria raiz devido ao
afastamento do coração em relação a Deus” (DOOYEWEERD, 2014, p. 47). Como
consequência, Dooyeweerd observa que a natureza não é vista como maculada pelo
pecado30.
A concepção de Estado, nesse sentido, deixou de ser amparada por uma visão
religiosa da natureza humana, a qual dizia que esta era caída devido ao pecado original.
Passou-se, então, a ser embasada na concepção aristotélica que privilegiava a razão
como fonte originária da natureza humana. O Estado, nessa visão, é vinculado ao campo
natural e, como consequência, é visto como a forma mais elevada da comunidade.

Todas as demais relações sociais, tais como casamento, família, relações de


sangue, agremiações vocacionais e indústrias, todos esses são meramente
componentes subordinados que servem ao mais elevado […] Somente o Estado

30 Na leitura de Dooyeweerd, “Tomás de Aquino, o ícone do escolasticismo católico romano, concebeu a


razão natural como independente da revelação de Deus em Cristo Jesus. A erudição, a moralidade, a
vida política e a ‘teologia natural’ foram, então, tal como áreas autônomas da razão natural, praticadas
de uma forma pagã aristotélica.
79

pode, como comunidade perfeitamente autônoma, prover ao indivíduo tudo o que


serve à perfeição de sua natureza ‘racional-moral’ (DOOYEWEERD, 2014, p. 47).

Dooyeweerd (2014) aponta que essa ideia aristotélica do Estado se manifestou


na Grécia Antiga, onde os cidadãos livres viam o Estado como “o mais elevado degrau do
desenvolvimento humano”, devendo sujeitar-se ele todas as áreas das suas vidas. Para o
autor essa ideia é muito similar ao Estado totalitário utilizado pelo fascismo e pelo
nacional-socialismo, “embora nestes últimos a ideia não seja mais baseada em uma
assim chamada ordem da razão ‘metafísica’, mas seja orientada de forma irracional para
o sentimento de comunidade do povo (Volk) (DOOYEWEERD, 2014, p. 48).
Para Dooyeweerd, no entanto, essa visão se opõe às escrituras e sua
revelação por intermédio de Cristo, pois alega que a existência humana está enraizada
numa natureza “racional-moral”.

Ela, a religião cristã, revelou a verdadeira raiz supratemporal de todas as


estruturas sociais humanas assentadas sobre uma ordem cósmica divinamente
criada, isto é, a comunidade radical religiosa da humanidade no reino de Deus,
que deve predominar no coração de uma pessoa.
Aquela unidade radical mais profunda da humanidade caiu para o reino de
Satanás por meio de Adão, mas, por meio de Cristo, ela foi remida e restaurada.
Assim, a ‘Igreja de Cristo’ – não na sua forma temporal difusa, mas na sua
unidade supratemporal em Cristo – é a raiz verdadeira de todas as relações
sociais temporais, tal como foi requerido por Deus em seu plano da criação, da
mesma forma que todas as funções temporais da existência humana – movimento
físico, vida biótica, sensações, pensamento, justiça, moralidade e fé – devem partir
do coração, o centro religioso (DOOYEWEERD, 2014, p. 49).

Nesse sentido, para o autor, o Estado e todas as relações sociais deveriam ser
manifestações da Igreja supratemporal (DOOYEWEERD, 2014).

Notamos aqui, que o cristianismo proclama um governo integral de Deus, em


oposição à ideia pagã do Estado total e da mesma forma que a luz se opõe às
trevas. O paganismo, incapaz de transcender o tempo, busca um último vínculo
temporal prioritário do qual todas as demais relações sociais nada mais podem
ser, senão partes dependentes. O cristianismo não introduz uma instituição
eclesiástica acima do estado como vínculo mais fundamental, mas em Cristo, o
cristianismo procura além do tempo o rumo da teocracia total, a igreja invisível de
Cristo. Aqui todos os relacionamentos temporais sociais têm sua raiz e base. Além
disso, cada um desses relacionamentos, seguindo sua própria estrutura e lei
divina, deve ser uma expressão, ainda que imperfeita, do reino invisível de Deus.
Essa ideia cristã básica do reino de Deus é a única base possível para a ideia
cristã do Estado (DOOYEWEERD, 2014, p.50).

Neste ponto, Dooyeweerd introduz o princípio kuyperiano da soberania das


esferas. Para o autor, essa visão de que Estado se relaciona com esferas sociais como se
80

essas fossem partes do seu todo é pagã, opondo-se diretamente ao governo integral de
Deus. Dooyeweerd afirma:

[….] nem casamento, nem família, nem relação sanguínea, nem os tipos
independentes de existência social, organizados ou não, podem ser tomados
como partes de um Estado todo-abrangente. Cada relacionamento social recebeu
de Deus sua própria estrutura e lei de vida, soberana em sua própria esfera
(DOOYEWEERD, 2014, p. 51).

O autor reivindica, ainda, exclusividade a essa visão: “Há uma e somente uma
visão cristã acerca dos relacionamentos humanos que, de fato, leva a sério, sem
concessões, o princípio bíblico do reino de Deus” (DOOYEWEERD, 2014, p. 51, grifo do
autor).
Adiante, Dooyeweerd (2014), aponta para a visão bíblica de Calvino a respeito
da lei, cujo centro é o serviço a Deus de todo coração. Para ele, Calvino possibilita que a
Bíblia seja compreendida novamente, pois o reformador concebe a natureza humana
como raiz religiosa da existência que, somente a partir de Cristo é regenerada, uma vez
que este cumpre a lei de Deus em seu pleno sentido.

Esse começo radicalmente cristão da biocosmovisão de Calvino necessariamente


se projetaria para toda a concepção calvinista da relação entre o cosmos temporal
e o reino supratemporal de Deus em Cristo Jesus (DOOYEWEERD, 2014, p. 60-
61).

A lei para Calvino, segundo Dooyeweerd (2014), é o limite entre o Deus


soberano e sua criatura, pois somente Cristo conseguiu cumpri-la. Assim fica claro que
somente Deus é a origem de todas as coisas, estabelecendo, para cada esfera temporal,
sua própria lei de acordo com sua vontade.

A partir desse ponto, a raiz, a unidade supratemporal, a unidade mais profunda de


toda a criação, é vista em Cristo, cujo Reino se estabelece no coração das
pessoas. Desse ponto de vista, a verdadeira Origem de todas as ordenanças
temporais não é deificada na ‘razão’, mas sim na vontade santa de Deus, o
Criador soberano (DOOYEWEERD, 2014, p. 62).

Dooyeweerd chama atenção, nesse sentido, para o entendimento de Calvino


acerca desse princípio básico e cósmico, da soberania das esferas, segundo o qual ele
“[…] desenvolveu com grande clareza em seu ensino concernente à instituição
eclesiástica temporal, mantendo sua independência interna em relação ao Estado.
Contudo, aponta que nem mesmo Calvino conseguiu livrar-se completamente da teoria
81

política greco-romana, estabelecendo um compromisso entre o pensamento cristão e


pagão.
Para Dooyeweerd (2014), a verdadeira ideia cristã do Estado não pode ser
separada do princípio de soberania das esferas. O autor difere soberania das esferas do
princípio político da autonomia. No princípio de autonomia, as partes, tais como
municípios, províncias, são partes do Estado e possuem a mesma estrutura. No princípio
de soberania das esferas, a família, o Estado, a igreja etc., se diferem radicalmente em
suas estruturas. Assim, o princípio de autonomia faz sentido quando se fala de uma
relação do todo com suas partes. Mas a soberania das esferas não diz respeito a esferas
que se relacionam entre si como partes do todo. A autonomia implica em independência
relativa, o Estado por exemplo que determina os limites das partes, tendo em vista seu
funcionamento. Além disso, o poder das partes autônomas não pode ser original ou não
derivado do todo. Já na soberania das esferas, as fronteiras entre uma e outra não são
estabelecidas por uma das partes, como, por exemplo, o Estado. Segundo Dooyeweerd,
“Essas fronteiras são estabelecidas na ordem cósmica divina e não dependem da
arbitrariedade humana. No sentido pleno, elas existem ‘pela graça de Deus’” (2014, p.
72). Para o autor, uma verdadeira ideia cristã do Estado, não pode negar que a estrutura
normativa interna do Estado é ordenada por Deus.
O complemento da soberania das esferas é a chamada universalidade das
esferas. Para Dooyeweerd (2014), a unidade supratemporal e plenitude religiosa de
sentido em Cristo, deve ser expressa em cada uma das esferas de lei. Isso significa dizer
que nenhuma esfera temporal deve ser considerada independente das demais ou
existindo por si mesma; estão lado a lado sob a lei de Deus.
Adiante Dooyeweerd aprofunda o tema da estrutura interna das relações
sociais, mostrando o porquê de, no princípio da soberania das esferas, as esferas não
serem partes do todo. Conforme tratamos, segundo Dooyeweerd as esferas de soberania
possuem estruturas internas distintas; os elementos que determinam essa estrutura são
chamados de função qualificante e função fundante típica. A “função qualificante aponta
para outro aspecto da realidade, no qual a totalidade da estrutura de uma dada realidade
é tipicamente baseada ou fundada” (DOOYEWEERD, 2014, p. 85). A função qualificante
de uma família, por exemplo, é a relação de amor entre pais e filhos. Essa função
qualificante é, por sua vez, fundada em laços sanguíneos; nesse sentido, a função
fundante típica é genética. “Dessa forma, todas as relações sociais possuem sua própria
82

função qualificante e sua própria função fundante, ambas determinadas tais pelo princípio
estrutural interno” (DOOYEWEERD, 2014, p. 85).
Em relação ao princípio estrutural do Estado, Dooyeweerd aponta que “sua
função fundante típica é dada no aspecto histórico da realidade”, sendo “uma forma
histórica de poder, organização monopolística do poder da espada sobre um dado
território” (DOOYEWEERD, 2014, p. 86). Para o autor, onde quer que seja função
fundante esteja ausente, não se pode falar de um Estado. Nesse sentido, percebe-se um
diálogo com a sociologia de Max Weber e sua teoria do Estado 31. Weber também observa
o Estado como um poder monopolista de coerção. Contudo, para Dooyeweerd, esse
poder não é sua função qualificante, isto é, sua finalidade. Enquanto que para Weber, sim.
A função qualificante do Estado para Dooyeweerd é a manutenção de uma comunidade
pública jurídica de governantes e sujeitos. “Apenas no caso do Estado, a comunidade
jurídica em si opera como uma função qualificante, mas sempre fundada na organização
territorial do poder da espada” (DOOYEWEERD, 2014, p. 88).
Segundo Dooyeweerd, se a relação entre o Estado e as demais estruturas
sociais for entendida como relação entre o todo e as partes, não é possível que a justiça
prevaleça em face do bem, pois o Estado terá uma competência absoluta de autoridade,
que coloca ele próprio acima da lei, enquanto que “[…] a justiça demanda uma
delimitação e uma harmonização equilibradas de jurisdição” (DOOYEWEERD, 2014, p.
88). O Estado
Por fim, Dooyeweerd enfatiza que somente a ideia cristã do Estado, é a
verdadeira ideia de Estado constitucional.

Apenas ela pode compreender o princípio do bem comum como verdadeiramente


jurídico do direito público, porque se fundamenta na confissão de uma comunidade
radical supratemporal da humanidade no reino de Cristo Jesus e porque aceita,
portanto, o princípio da soberania das esferas para os vínculos sociais temporais
(DOOYEWEERD, 2014, p. 90).

O autor aponta que a soberania das esferas, embora resguarde a absolutização do


Estado, interrompendo sua interferência arbitrária em outras estruturas sociais, ela não
impõe limites externos à tarefa do Estado. O Estado, assim como todas as outras
relações sociais, funciona em todos aspectos da realidade, por estarem integrados em

31 O Estado, bem como as associações políticas que o precederam historicamente, é uma relação de
dominação (Herrschaft) de seres humanos sobre seres humanos, apoiada no instrumento da violência
legítima (isto é, violência considerada legítima) (WEBER, 2015, p. 317).
83

uma unidade de sentido supratemporal. Assim o Estado não é meramente uma


comunidade de direito, mas também uma

comunidade de vida, de sentimento, de pensamento, de formal cultural histórica e


de dimensões sociais e morais. E a ideia cristã de Estado demanda que sua
estrutura se expresse também em uma comunidade cristã de fé, abarcando tanto
governantes quanto governados (DOOYEWEERD, 2014, p. 91)

No que diz respeito à fé, Dooyeweerd afirma que o Estado tem uma limitação
intrínseca, determinada pela sua estrutura interna, por isso não pode assumir uma
estrutura eclesiástica, não pode vincular-se a uma confissão doutrinária. No entanto, sua
segunda afirmação nega essa primeira:

[…] o Estado cristão como uma comunidade de fé não deve vincular-se a um


credo confessional com relação a sacramentos e à pregação da Palavra. A base
do credo do Estado cristão em sua função como comunidade de fé só pode ser a
confissão da soberania de Deus revelada no reino de Jesus Cristo, o Governante
de todos os governos da Terra. Mas esse credo político implica a todos da vida
estatal o reconhecimento da base verdadeiramente bíblica para a vida política. E o
centro de tudo isso continua a ser a confissão da soberania de Deus em Cristo
Jesus, em quem está incluído o reconhecimento da soberania das esferas das
várias relações sociais (DOOYEWEERD, 2014, p. 92).

A partir dessa afirmação se percebe que a ideia de Estado de Dooyeweerd,


tem apenas uma roupagem nova, mas seu fundamento permanece o mesmo: a doutrina
cosmológica da soberania de Deus de João Calvino. O Neocalvinismo holandês aponta
para uma tentativa da religião de se manter no âmbito público com os processos da
modernidade em voga. Essa contradição no pensamento de Dooyeweerd se dá pela
afirmação de que o Estado moderno não pode ser confessional, no entanto, ele deve
reconhecer o reino de Jesus Cristo. Dooyeweerd formula essa ideia, porque para sua
filosofia reformacional a unidade do cosmos em Cristo é uma realidade, como em muitos
momentos aparece em seus escritos, supratemporal. Quer o Estado, quer o indivíduo
acredite ou não, essa realidade não é passível de questionamento. Ademais, para
Dooyeweerd, “Nenhuma outra visão permite-nos ver a verdadeira harmonia entre as
várias esferas da vida, como determinada por Deus em sua ordem criacional” (2014, p.
94). Sobre a relação entre Igreja e Estado, Dooyeweerd diz:

O cristianismo bíblico […] nunca pode assumir esse slogan liberal de separação
entre igreja e Estado sem um suicídio espiritual. A soberania das esferas não
produção uma compartimentalização estanque ou uma divisão mecânica entre as
áreas da vida. Trata-se, como temos visto, de um princípio coerente
84

organicamente mais profundo, pois parte da unidade radicação das esferas da


vida. (DOOYEWEERD, 2014, p. 95)

Essa unidade, raiz de todas esferas da vida, é o motivo básico bíblico criação –
queda – redenção. Como dito, para Dooyeweerd, todo cosmo se assenta nessa unidade,
não sendo possível, portanto, separar a fé de outros âmbitos da vida. Nesse sentido,
como aponta Pieper (2019),

[…] do ponto do fiel, a dimensão religiosa acaba penetrando nas demais. Ele, por
exemplo, entende a política a partir das suas crenças. Ele não é cidadão e, depois
religioso. Ele entende sua inserção no espaço público, por exemplo, a partir da
sua convicção religiosa (PIEPER, 2019, p. 13).

Em última análise o que se percebe, portanto, é que o princípio da soberania das


esferas, resguarda a religião de uma intromissão do Estado, mas não o Estado de sua
interferência. No próximo capítulo analisaremos as implicações dessas formulações
teóricas no pensamento e práticas no âmbito religioso-político de Francis Schaeffer.
85

4 FRANCIS SCHAEFFER: UM PONTO DE INFLEXÃO DO NEOCALVINISMO


HOLANDÊS

Muitos Líderes dos países que costumavam ter uma boa


base cristã agora a veem composta por homens ‘modernos’.
Felizmente existem raras exceções, mas são exceções. A
tentativa de ser autônomo – independente de Deus e do que
ele ensinou na Bíblia e da revelação de Deus em Cristo –
tem consequências sérias tanto para os líderes políticos
quanto para os professores universitários e pessoas
comuns. A grande maioria desses líderes também pensa em
termos de síntese, não de padrões fixos e absolutos, e isso
se evidencia por todas as ações políticas, tanto em seus
países quanto em assuntos internacionais.
(SCHAEFFER, 2013, p. 165).

Dedica-se o presente capítulo ao estudo do pensamento de Francis Schaeffer,


buscando apontá-lo como um dos principais popularizadores do Neocalvinismo holandês,
a partir de sua estrita relação com o fundamentalismo reformista e seu importante papel
na política americana entre os anos 1970 e 1980. Destaca-se a figura de Francis
Schaeffer, uma vez que o objetivo desta pesquisa é delinear o itinerário do Neocalvinismo
holandês até sua recepção brasileira. Pretende-se com isso fornecer elementos teóricos
para uma leitura crítica e cautelosa do movimento em nosso contexto. Procuraremos
compreender, portanto, a conexão de Schaeffer com os pensadores neocalvinistas e
como seu arcabouço teórico pode ter fornecido subsídios à sua estratégia de ação nos
campos religioso-político e social.
Como colocado, a vida e obra de Francis Schaeffer tem uma relação com o
fundamentalismo reformista que se difere do fundamentalismo reconstrucionista. Os
fundamentalistas reformistas tendem a

[…] atuar no contexto das práticas culturais com vistas a recompô-las segundo
uma visão cristã, e assim, ‘cristianizar’ grupos diferentes de atores (culturais,
políticos, intelectuais, etc) não cristãos. Uma das principais características dos
fundamentalistas reformistas é o estabelecimento de alianças
interdenominacionais e inter-religiosas que se pautem por interesses específicos
mútuos, a fim de fortalecer a disseminação de seus valores cristãos evangélicos
em diferentes espaços sociais, o que dá a esta corrente uma roupagem mais
‘aberta’ e ‘dialogal’ (SOUZA, 2017, p. 76).

Francis Schaeffer foi um teólogo americano de impacto, comprometendo-se


com a disseminação de seus valores evangélicos em espaços paraelesiásticos. No final
86

da década de 1930 e início da década de 1940, Schaeffer travou uma luta contra as ideias
protestantes liberais e neo-ortodoxas, pois, de acordo com o evangelista, imperava em
seus dias um pensamento relativista, responsável pelo reconstrucionismo e
desconstrucionismo do conceito de verdade. A partir da década de 1960, Schaeffer
intensifica sua produção literária, com o intuito de transmitir uma cosmovisão cristã que
abrangesse todos os aspectos da vida. O pensamento e as práticas de Schaeffer foram
orientadas pelas formulações do Neocalvinismo holandês. Schaeffer teve seu primeiro
contato com o pensamento kuyperiano através do seu professor Cornelius Van Til (1895-
1987)32.
Van Til se dedicou profundamente ao estudo das obras de João Calvino e
Abraham Kuyper, autores bastante influentes no seu método de apologética
pressuposicionalista – “escola que reconhece o lugar dos pressupostos em nossa
percepção da realidade” (PORTO, 2015, p. 14) – e foi um importante ator do
evangelicalismo fundamentalista do século XX nos Estados Unidos (SOUZA, 2017). A
propósito, Van Til nasceu na Holanda, no entanto, imigrou para os Estados Unidos aos 10
anos de idade com sua família; uma típica família calvinista 33. Mais tarde, Van Til se
formou e lecionou no Seminário Teológico de Princeton, rompendo com a instituição
devido a sua guinada para a perspectiva liberal 34. Com sua saída de STP, Van Til compôs
o quadro docente do Seminário Teológico de Westminster, onde lecionou a disciplina de
apologética até sua aposentaria em 1974 (SOUZA, 2017).
O método da apologética vantiliano, como apontado por Souza (2017), baseia-
se no “conhecimento verdadeiro de Deus”; somente a consciência cristã garante um
completo conhecimento de si mesmo e da realidade circundante. Para ele, ser cristão é

32 O pensamento de Van Til não é objeto de estudo desta pesquisa, no entanto, é importante contextualizá-
lo, dada sua influência sobre Francis Schaeffer. Também cabe destacar que existem diferenças
conceituais entre os autores, mas não é objetivo desta pesquisa aprofundá-las. Pretende-se apenas
demonstrar como se deu o contato de Schaeffer com a tradição neocalvinista. Para uma análise mais
aprofundada do autor, indicamos a seguinte tese: SOUZA, Andreia Silveira de. O legado
fundamentalista do seminário teológico de Westminster: reformistas x reconstrucionistas no espaço
público americano. Juiz de Fora: UFJF, 2017, 154 p. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) Programa
de Pós-Graduação em Ciência da Religião. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2017.
33 A presença dos holandeses na América a partir do século XX é bastante forte. Os holandeses como
uma subcultura étnica, como aponta Bratt (2002), foram americanizados e moldados pelas igrejas e
organizações desse continente. Curiosamente, as famosas Stone Lectures, sobre a qual abordamos no
segundo capítulo, foram proferidas por Kuyper nos Estados Unidos e não na Holanda. Houve também
um esforço de Dooyeweerd para escrever suas obras em inglês. Ao que tudo indica, existe, portanto,
uma “afinidade eletiva” – nos termos de Weber (2004) – entre o Neocalvinismo holandês e o
fundamentalismo reformista, por sua maior difusão na América. Considera-se também o fato dos
neerlandeses terem sido colonos na América, fundando, a partir de 1614, a chamada Nova Amsterdã.
34 Percebe-se, pois, que o liberalismo teológico representou um inimigo para Abraham Kuyper, Herman
Dooyeweerd e também Van Til; como já mencionado.
87

uma condição ontológica, pois, em concordância com João Calvino 35, todo ser humano
tem em si certo conhecimento de Deus. Por outro lado, no entanto, o pecado impede que
o ser humano reconheça a Deus.

É somente quando nos aproximamos da questão do ponto de contato, analisando


a situação como acontecia no paraíso antes da queda do homem, que podemos
alcançar uma concepção verdadeira do homem natural e de suas capacidades no
que concerne à verdade. O apóstolo Paulo fala do homem natural como possuindo
de fato o conhecimento de Deus (Rm 1:19-21). A seriedade de seu pecado reside,
precisamente, no fato de que, ‘tendo o conhecimento de Deus não o glorificaram
como Deus’. Nenhum homem pode escapar ao conhecimento de Deus. Este
conhecimento está indelevelmente envolvido na consciência de que ele possui
toda e qualquer coisa. Então, o homem deve, como diz Calvino, reconhecer a
Deus. Não há desculpa se ele não o fizer. A razão para que falhe em reconhecer a
Deus reside exclusivamente nele. É a sua transgressão intencional da lei do seu
ser (VAN TIL, 2010, p. 93, grifo do autor)

Assim, Van Til, diferentemente de Kuyper, no entanto – que acreditava existir


um abismo intransponível entre crentes e descrentes, de modo que toda tentativa de
apologética estaria fadada ao fracasso –, como pressuposicionista, comprometeu-se em
“[…] mostrar que a cosmovisão cristã é a única racional e objetivamente válida” (VAN TIL,
2010, p. 9). Assim, como outros teólogos reformados, não desprezava outras fontes do
conhecimento, mas submetia estas à verdade bíblica, pois somente dela é possível um
conhecimento abrangente (SOUZA, 2017).

Este [o pecador redimido] está restaurado para o relacionamento correto. Mas ele
está restaurado apenas em princípio. Existem amarras sobre ele. Seu ‘velho
homem’ quer que ele interprete a natureza à parte da revelação sobrenatural na
qual ele opera. A única proteção que ele tem contra esse impedimento histórico é
testar suas interpretações constantemente pelos princípios da Palavra escrita. E
se a teologia for bem-sucedida em apresentar mais claramente a profundidade das
riquezas da revelação bíblica de Deus nas Escrituras, o filósofo ou o cientista
cristão terá prazer em fazer uso dessa interpretação mais clara e completa e, por
consequência, mais verdadeiramente reveladora de Deus. Não pretendemos aqui
defender nenhuma subordinação da filosofia ou ciência à teologia, O teólogo é
simplesmente um especialista no campo da interpretação bíblica tomada no
sentido mais restrito. O filósofo está sujeito diretamente à Bíblia e deve, em última
análise, depender daqueles de sua própria interpretação da Palavra. Mas ele pode
aceitar ajuda daqueles que estão mais constante e exaustivamente engajados no
estudo bíblico do que ele pode estar (VAN TIL, 2010, p. 66).

Para Van Til, portanto, o conhecimento de Deus é o pressuposto necessário


para o conhecimento verdadeiro e pleno do mundo, “somente aquele que crê no Deus da
Escritura – seja ele cientista, filósofo ou não – possui esta lente” (SOUZA, 2017). Assim

35 Para Calvino cada ser humano possui o conhecimento de Deus, devido ao sensu divinitatis [sentido da
divindade]: “está inscrito no coração de todos um sentimento de divindade” (CALVINO, 2008, p. 43, t.1).
88

como Dooyeweerd, Van Til critica a autonomia da razão para alcançar esse
conhecimento, pois, se assim fosse, o ser humano seria superior ao seu próprio seu
Criador.

Van Til considera que a autonomia, tão defendida e valorizada pelos filósofos
modernos, coloca o ser humano em condições de estabelecer a verdade ou
falsidade do que quer que seja, bem como todo e qualquer critério de análise que
valide ou não certas premissas e conclusões (SOUZA, 2017, p. 66).

Percebe-se, além disso, uma ênfase de Van Til à teologia “bem-sucedida”; para
o apologista apenas uma é capaz de apresentar a verdadeira perspectiva cristã da
história, e esta é a teologia calvinista. Essa ênfase dada ao calvinismo como o arauto da
mensagem cristã é uma herança da própria tradição; a radicalização da doutrina da
predestinação pela ortodoxia protestante produziu uma visão de supremacia dos
indivíduos que aderem a suas confissões. Somada a esta, a antítese religiosa, isto é,
duas forças diametralmente opostas (do Reino de Deus e do mundo) que se manifestam
em duas categorias de pessoas – crentes e descrentes – e não pode ser mediada nem
mesmo pela graça comum, a qual, em princípio, seria um ponto de contato, mas logo
revela sua impossibilidade por estar abaixo da graça especial36, conferem aos calvinistas,
tais como Kuyper, Dooyeweerd, Van Til e Schaeffer, legitimidade e poder para iniciar um
projeto de futuro segundo suas crenças.

Esta dicotomia entre crente e incrédulo resulta para Van Til, assim como para
Kuyper, em duas visões de mundo distintas e conflitantes, que marcam não
somente as diferentes perspectivas a partir das quais diferentes homens existem e
veem o mundo, mas, também, marcam aquilo a que eles conferem autoridade
(SOUZA, 2017, p. 69).

Nota-se também no discurso do autor um diálogo com a filosofia de Herman


Dooyeweerd, quando tenta se eximir de uma possível subordinação da filosofia à teologia;
sua declaração é de respeito à “autonomia das esferas”. Contudo, ainda que Van Til
concorde que a teologia não deve impor seus princípios a outras disciplinas, ao final, ele

36 Dentro da tradição reformada, calvinista e neocalvinista, a graça comum é subserviente à graça especial
ou salvadora – esta que é concedida por Deus, em sua soberania, somente aos eleitos –, ou seja, não é
capaz de contrair o abismo entre crentes e descrentes ou apaziguar o conflito entre o Reino de Deus e o
mundo. Para Van Til, “Nem a Confissão nos permite minimizar o caráter rígido do contraste absoluto
entre a graça e a maldição de Deus pela ideia da ‘graça comum’. A graça comum é subserviente à graça
salvadora ou especial. Como tal ela ajuda a manifestar o próprio contraste entre essa graça salvadora e
a maldição de Deus. Quando os homens têm sonhos de um paraíso, trazido pela graça comum, estes
apenas manifestam a ‘forte desilusão’ que recai como punição de Deus por sobre aqueles que abusam
de sua revelação natural” (VAN TIL, 2010, p. 58).
89

devolve a ela a autoridade para guiar outros especialistas à interpretação da “Palavra de


Deus”. Por fim, para Van Til, os indivíduos que não possuem uma consciência cristã têm,
portanto, uma compreensão de mundo limitada e distorcida. Assim, reafirma-se a antítese
religiosa, a dicotomia entre crentes e incrédulos, presente no mundo. Como já
mencionado, esse conflito de valores irreconciliáveis parece ser a espinha dorsal da
tradição reformada, calvinista e neocalvinista, que sustenta tanto o pensamento de Van Til
quanto o de Schaeffer, como veremos a seguir.
Para demonstrar de que maneira o Neocalvinismo holandês orientou o
pensamento de Francis Schaeffer e suas práticas no âmbito religioso-político,
procuraremos analisar o discurso Schaeffer através da obra Como Viveremos?,
originalmente, publicada sob o título How Should We Then Live, em 1976. Esta obra é
importante por ter sido publicada como parte de uma coletânea em um único volume que
trata das influências das artes, da filosofia e da ciência em nosso cotidiano e,
principalmente, como o cristianismo pode influenciar ainda hoje. Além dessa obra,
procuraremos respaldo, no que se refere a Schaeffer, ao fundamentalismo reformista e
seu impacto na política norte-americana entre as décadas de 1970 e 1980, na tese de
doutorado, O legado fundamentalista do seminário teológico de Westminster: reformistas
x reconstrucionistas no espaço público americano, defendida em 2017 por Andreia
Silveira de Souza, no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião na
Universidade Federal de Juiz de Fora.

4.1 Nota biográfica

Quem foi Francis August Schaeffer? Como mencionado, Schaeffer foi um


pastor e teólogo americano reformado, embora preferisse ser reconhecido como um
evangelista, “chamado para dizer a verdade com intransigente urgência a pessoas reais
que estavam com problemas de verdade” (PACKER in SCHAEFFER, 2002, p. 11).
Nascido em 1912 em Germantown, no estado da Filadélfia, diferentemente de Kuyper,
Dooyeweerd e Van Til, não cresceu em uma família cristã. Seu primeiro contato com o
cristianismo foi aos 18 anos, pela curiosidade de ler a Bíblia (SOUZA, 2017). Tempos
depois, ele se converteu e, em 1935, ingressou no Seminário Teológico de Westminster,
onde desenvolveu seu repertório teológico.
90

O desenvolvimento teológico mais importante ocorreu no âmbito do seminário de


Westminster. […] Durante este tempo, Schaeffer também aprendeu apologética
cristã com o proeminente pressuposicionalista Cornelius Van Til. Calvinista
holandês, Van Til introduziu Schaeffer à transformadora visão neocalvinista da
cultura de Abraham Kuyper, que dizia que o ‘calvinismo era um sistema de vida
para ser vivido em todas as esferas da vida’. Schaeffer, de uma forma ou outra,
permaneceu dedicado àqueles três ensinamentos – a inerrância da escritura, a
apologética ou relação de oposição à cultura moderna, e a crença calvinista
holandesa que o cristianismo deve ser aplicado a todas as áreas da vida e do
pensamento – ao longo de toda a sua vida (EDWARDS apud SOUZA, 2017, p.78).

Schaeffer permaneceu no seminário até 1937, quando decidiu formar o


Seminário Teológico da Fé e a Igreja Presbiteriana da Bíblia no estado de Maryland,
tornando-se o primeiro pastor no ano seguinte. Nove anos depois, mudou-se para Europa
como missionário pelo Independent Board for Presbyterian (SOUZA, 2017),
estabelecendo-se na Suíça. Entre 1951 e 1952, ainda na Suíça, Schaeffer enfrentou uma
assim chamada “crise espiritual”, sentindo a necessidade de repensar suas razões para
ser cristão. Em sua obra Verdadeira Espiritualidade, ele relata:

Em 1951 e 1952 enfrentei uma crise espiritual em minha vida. Muito antes, eu me
convertera do agnosticismo tornando-me cristão. Servi como pastor durante dez
anos nos Estados Unidos. Depois, minha esposa Edith e eu trabalhamos vários
anos na Europa. Durante esse tempo todo eu sentia avolumar-se pesada carga
pela posição cristã histórica e pela pureza da igreja visível. Contudo, gradualmente
fui-me dando conta de um problema – o problema da realidade. Esta se compunha
de duas partes: Primeira – parecia-me que entre muitos daqueles que
sustentavam a posição ortodoxa via-se pouca prática real das coisas que Bíblia
claramente diz que deviam resultar do cristianismo. Segunda – aos poucos fui
tomando consciência de que em mim mesmo a realidade era menor do que havia
sido nos primeiros dias depois de haver-me tornado cristão. Percebi que, a bem da
honestidade, eu tinha de retornar e repensar toda minha posição. […]. Ao repensar
minhas razões por que ser cristão, vi de novo que havia razões totalmente
suficientes para saber que o Deus pessoal e infinito existe e que o cristianismo é
verdadeiro (SCHAEFFER, 1993, p. 5 – 6).

Após esse período de profunda reflexão, Schaeffer retorna aos Estados Unidos
em 1953 e apresenta, num acampamento bíblico, princípios que foram elaborados no
tempo que esteve em Champêry. Essa experiência foi a verdadeira razão que o levou a
mudar radicalmente sua atuação como cristão reformado e a iniciar um novo projeto.
Em 1955, Francis e sua esposa Edith Schaeffer retornam à Europa e fundam o
L’Abri37 (“O Abrigo”), uma instituição paraeclesiástica, cujo papel foi “fundamental no
37 “L'Abri Fellowship começou na Suíça em 1955, quando Francis e Edith Schaeffer decidiram pela fé abrir
sua casa para ser um lugar onde as pessoas pudessem encontrar respostas satisfatórias para suas
perguntas e demonstração prática de cuidado cristão evangélico. Foi chamado de L'Abri, a palavra
francesa para ‘abrigo’, porque eles buscavam fornecer um abrigo contra as pressões do século 20,
implacavelmente secular. […]. Houve talvez quatro ênfases principais no ensino de L'Abri. Primeiro, que
o cristianismo é objetivamente verdadeiro e que a Bíblia é a palavra escrita de Deus para a humanidade.
Isso significa que o cristianismo bíblico pode ser defendido racionalmente e perguntas honestas são
91

desenvolvimentismo de suas ideias e de sua atuação junto aos jovens, revelando ser,
posteriormente, um importante instrumento de luta de segmentos evangélicos contra a
cultura secular da segunda metade do século XX” (SOUZA, 2017, p. 80).

Esta foi e é a verdadeira base de ‘L'Abri’. Ensinar as respostas cristãs históricas e


dar respostas honestas a perguntas honestas são cruciais, mas foi dessas lutas
que brotou a realidade. Sem isso, uma obra incisiva como ‘L'Abri’ jamais teria sido
possível. Nós só podemos estar agradecidos por isto. Os princípios que elaborei
em Champêry foram primeiramente apresentados em forma de palestras num
acampamento bíblico que funcionou num velho celeiro de Dakota, USA. Isto foi em
julho de 1953. Foram anotados em tiras de papel no porão da casa do pastor.
Dessas mensagens o Senhor deu algo muito especial, e até hoje reúno aqueles
que, quando jovens, tiveram seu pensamento e sua vida transformadas ali. Depois
do início de ‘L'Abri’ em 1955, preguei aquelas mesmas mensagens em Huémoz.
Mais tarde elas foram escritas de modo mais desenvolvido e completo na
Pennsylvania, em outubro e novembro de 1963, Apresentei-as outra vez em
Huémoz no fim do inverno e começo da primavera de 1964. Essa foi sua forma
final e a forma em que estão registradas nas fitas de gravação de ‘L'Abri’
(SCHAEFFER, 1993, p. 6).

A partir da função de L’Abri, Schaeffer e Edith passam a dividir o tempo entre a


Europa e os Estados Unidos, tendo assim um “importante papel na política americana nos
anos 1970 e 1980” (SOUZA, 2017, p. 80).
Segundo Castells (2002), Schaeffer é um dos principais mentores do
fundamentalismo cristão evangélico contemporâneo, tendo sua vasta produção
bibliográfica como panfleto para o movimento antiaborto durante a década de 1980 nos
Estados Unidos. Mesmo após sua morte em 1984, aos 72 anos de idade, suas práticas e
obras alimentam uma agenda moral e de costumes, pautada em uma interpretação ipsis
litteris da Bíblia.

bem-vindas. Em segundo lugar, porque o Cristianismo é verdadeiro, ele fala a toda a vida e não a uma
esfera estritamente religiosa, e muito do material produzido por L'Abri tem como objetivo ajudar a
desenvolver uma perspectiva cristã nas artes, política e ciências sociais etc. Terceiro, na área de nosso
relacionamento com Deus, a verdadeira espiritualidade é vista em vidas que, pela graça, são livres para
ser totalmente humanas, em vez de tentar viver em algum plano espiritual superior ou de alguma forma
negativa cinzenta. Quarto, a realidade da queda é levada a sério. Até que Cristo volte, nós e o mundo
em que vivemos seremos afetados pela desfiguração do pecado. Embora o lugar da mente seja
enfatizado, L'Abri não é um lugar ‘apenas para intelectuais’. Estamos tão preocupados em viver quanto
estamos em pensar e, desde o início, a preocupação é que a verdade seja exibida tanto na vida
cotidiana quanto defendida na discussão. Não fazemos isso perfeitamente, é claro, mas dependemos do
Senhor para trazer à luz uma medida de realidade em nossa vida diária.” Disponível em:
<http://labri.org/history.html>. Acesso em 3 nov. 2020.
92

4.2 Pressupostos teológicos

O estilo de comunicação de Schaeffer não era de um acadêmico, como o de


seu preceptor Van Til. Com o seu discurso, pretendia alcançar um público mais amplo,
dos intelectuais aos fiéis da igreja, constituindo assim, um discurso apologético e
evangelístico, isto é, um discurso que buscava defender a fé cristã e transmiti-la como
uma tábua de salvação para vidas que, em sua percepção, estavam destruídas pelo
relativismo, irracionalismo e niilismo da cultura de sua época (PARKER, 2002, p. 12). Com
isso não queremos dizer que Schaeffer se utilizou de um discurso rudimentar, pelo
contrário. “Na realidade, as obras de Schaeffer são construídas com base em rigorosa
estrutura argumentativa e em referências que, de certa forma, solicitam do leitor certa
erudição cultural” (SOUZA, 2017, p. 81). Ele propõe textos críticos sobre a ciência, a arte,
a história e a filosofia, exigindo do seu leitor ao menos um conhecimento geral acerca de
tais assuntos.
Souza destaca o sentido também político do discurso de Schaeffer, “na medida
em que convoca os cristãos – aqueles que, segundo ele, creem numa perspectiva
verdadeiramente cristã da vida e do mundo – a tomarem uma posição pelo cristianismo e
atuarem ativamente no conflito cultural que se instalou com o modernismo e secularismo”
(2017, p. 81). Numa nota especial da sua obra Como Viveremos, Schaeffer direciona um
apelo aos cristãos evangélicos:

Esta nota especial é primeiramente para cristãos. Primeiro, é preciso lembrar qual
é a marca distintiva do pensamento humanista na geração atual. É a aceitação da
dicotomia, a separação do otimismo sobre o sentido e de valores da área da
razão. Uma vez aceita esta separação, o que um indivíduo coloca no campo do
irracionalismo é secundário. A marca da forma atual do pensamento humanista é
esta metodologia existencial. Não podemos, enquanto cristãos, desenvolver a
nossa própria forma de metodologia existencial. E é isto que estaremos fazendo
se tentarmos nos apegar aos sistemas de valores, ao sistema de sentido, e aos
‘assuntos religiosos’ dados na Bíblia e ao mesmo tempo ignoramos o que a Bíblia
diz acerca do cosmos, da História e dos mandamentos especificamente para a
moral. Se começarmos a orientar o que a Bíblia diz sobre o cosmos, História e
mandamentos absolutos quanto à moral de acordo com os padrões culturais,
estaremos seguindo a nossa própria forma de metodologia existencial. E se
fizermos isso, a próxima geração certamente acabará em desvantagem, no que
diz respeito ao Cristianismo histórico. E, mais, se nós mesmos alimentarmos a
marca distintiva da nossa geração, não seremos capazes, no presente momento
da História, de ser a voz que deveríamos ser para a nossa geração empobrecida e
fragmentada; não seremos capazes de ser o sal restaurador que se supõe que os
cristãos devam ser para a sua geração e para a sua cultura, e estaremos nos
deixando igualmente marcar por uma metodologia existencial. E se nos deixarmos
marcar desta maneira, então já não teremos absoluto real algum para nos deixar
93

ajudar ou julgar a cultura, o Estado, e a sociedade (SCHAEFFER, 2013, p. 169,


grifo do autor).

Ao analisar o conteúdo 38 do discurso de Schaeffer, para além das ricas


informações apresentadas, percebemos argumentos embasados numa cosmovisão 39 que,
embora se pretenda abrangente, é, na realidade, bifurcada e, portanto, limitante.
Schaeffer chama os cristãos evangélicos ao reconhecimento da impossibilidade de se ter,
num mesmo polo, valores cristãos e valores da cultura; colocando-os desta maneira, o
cristão será guiado apenas pela própria metodologia existencial e não pelo que ele
considera ser a metodologia cristã. É necessário orientar-se tanto pelo que a Bíblia diz
acerca do cosmos40 e da história, quanto pelo que ela diz sobre os mandamentos. Para
Schaeffer, o cristianismo, tal como reconhecem os representantes do Neocalvinismo, é
um ponto de partida absoluto que não sintetiza com outros sistemas de valores,
estabelecendo-se como “[…] premissa e/ou verdade geral que chamará de pressuposto,
tendo em vista que constitui um requisito essencial para todo e qualquer tipo de
conhecimento que se pretende realmente verdadeiro, seja ele conhecimento da vida em
geral ou de realidades particulares” (SOUZA, 2017, p. 83).
Schaeffer explicita em seu discurso que para julgar a cultura, o Estado e a
sociedade, o cristão evangélico deve fazê-lo a partir do cristianismo, pois somente este
detém toda a verdade sobre a realidade. Mas não cabe ao cristão evangélico somente
julgar, ele deve agir.

[…] enquanto cristãos, não basta só conhecer a visão de mundo correta, a visão
de mundo que nos diz a verdade sobre o que existe, mas também agir
conscientemente de acordo com aquela visão de modo a influenciar a sociedade o
máximo que pudermos em todas as suas áreas e aspectos e por toda a nossa
vida, na total extensão dos nossos dons individuais e coletivos (SCHAEFFER,
2013, p. 169-170).

38 Existem diferenças entre a análise de conteúdo e análise de discurso; o que se pretende fazer é
justamente a análise de conteúdo, uma forma tradicional de interpretação muito presente nas ciências
humanas e sociais. Segundo Orlandi, “[…] a análise de conteúdo considera a linguagem transparente e
busca, atrás de suas formas, um conteúdo a ser extraído […]. Em geral parte de pressupostos teóricos
de suas disciplinas específicas e encontra, nos textos, comprovação do que diz, através da análise […].
A análise de conteúdo se caracteriza assim apenas como um instrumento prático, que não considera a
ordem da linguagem em si” (2007, p. 148).
39 O termo cosmovisão, como apontado no segundo capítulo, é um termo apropriado por Abraham Kuyper
do alemão Weltanschauung, para designar uma visão abrangente da realidade.
40 A ideia de “cosmos” é também aponta para a relação de Schaeffer com o Neocalvinismo holandês,
muito presente nas obras de Herman Dooyeweerd. “Dooyeweerd, às vezes, usa ‘cósmico’ no sentido de
estrutural, de ‘cosmológico’, como nas expressões ‘esfera modal cosmicamente anterior’, ou ‘tempo
cósmico’, ou ‘sentido cósmico’” (CARVALHO in DOOYEWEERD, 2010, p. 272). Com este termo ele
pretende se referir a toda realidade criada, à criação.
94

A fala de Schaeffer é marcada pelo princípio neocalvinista de extensão da


verdade cristã para todas as esferas sociais. Na vida pública, assim como em outros
âmbitos da existência, o cristão evangélico deve atuar de acordo com sua cosmovisão,
em defesa de seus valores, fazendo-os valer sobre cada decisão de ordem
governamental. Não se trata, pois, de valer-se do direito de liberdade religiosa para
realização das atividades cúlticas, direito este que abrange todas as religiões num estado
laico; pelo contrário, Schaeffer adverte que essa passividade é uma ameaça: “O grande
perigo no que diz respeito ao surgimento de um regime autoritário é que os cristãos se
mantenham passivos, desde que ninguém perturbe as suas atividades religiosas,
evangelismo e estilo de vida” (2013, p. 170). Percebe-se, pois, uma relação com a famosa
frase de Abraham Kuyper: “Oh, nem um único espaço de nosso mundo mental pode ser
hermeticamente selado em relação ao restante e não há um centímetro quadrado em
todos os domínios da existência humana sobre o qual Cristo, que é o Soberano sobre
tudo, não clame: é meu!”41.
Nesse sentido, o pensamento schaefferiano estabelece diálogo com as bases
em que foi gestado, o Neocalvinismo holandês, a partir do ponto de contato com
Cornelius Van Til. Contudo, apontar Van Til como o mediador entre Schaeffer e os autores
neocalvinistas, não significa dizer que ele mesmo não tenha interpretado diretamente as
formulações de Kuyper e Dooyeweerd. Souza (2017) assinala que, enquanto Edith
Schaeffer descreve Van Til como o teólogo que lhe proporcionou maior amplitude de
pensamento, Schaeffer refere-se diretamente a Kuyper, “[…] mostrando inclusive a
importância da sua compreensão da integralidade dos âmbitos da vida do indivíduo
verdadeiramente cristão e de como isso se traduz na prática” (SOUZA, 2017, p. 88). Na
obra Pollution and the Death of Man, escrita em 1970, Schaeffer diz que Kuyper

[…] considera cada um de nós como muitos homens: o homem do Estado, o


homem que é empregador, o homem que é pai, o ancião da igreja, o professor na
universidade – cada um destes numa esfera diferente. Mas embora eles estejam
em esferas diferentes em tempos diferentes, os cristãos devem agir como cristãos
em cada uma das esferas. O homem sempre está lá e ele sempre é um cristão
regido pelas normas da Escritura quer seja na sala de aula ou em casa
(SCHAEFFER apud SOUZA, 2017, p. 88).

41 Segundo Carvalho (in DOOYEWEERD, 2010, p. 18), esta frase foi proferida por Kuyper numa palestra
proferida em 20 de outubro de 1880, na Niewkerk, em Amsterdã. Nem mesmo Carvalho teve acesso a
ela diretamente; ele retira de BRATT, James D. Abraham Kuyper: a Centennial Reader, 1998, p. 488 –
obra a que não temos acesso no presente momento.
95

Schaeffer expõe a teoria das esferas de soberania formuladas por Kuyper nas
Stone Lectures e, posteriormente, desenvolvidas por Dooyeweerd em sua obra filosófica.
Conclui-se que é notável, portanto, a apropriação da teologia neocalvinista no conteúdo
de seus discursos. Apropria-se da ênfase dada ao âmbito público da vida dos sujeitos,
seguindo uma hierarquia das relações. Compromete-se primeiro em refletir a verdade do
cristianismo nos âmbitos político, econômico-social e, por fim, familiar e eclesial,
possivelmente como aplicação do mandato cultural, essa ordem para dominar a cultura de
acordo com a cosmovisão cristã. Com isso, no entanto, não queremos dizer que o âmbito
privado é desprezado por esses autores, mas supomos que, sendo para eles um âmbito
composto por eleitos e, portanto, salvos, estes devem estar comprometidos em ordenar
sobre a verdade no mundo, visto que detêm a autoridade e legitimidade concedida pelo
próprio Deus.
Explanamos, portanto, sobre os pressupostos teológicos presentes no
pensamento e obra de Francis Schaeffer, destacando a relação que sua trajetória de vida
estabelece com eles. Além disso, analisaremos, na próxima seção, em que contexto
Schaeffer instrumentalizou a teologia holandesa em decorrência do seu ativismo político-
religioso.

4.3 Francis Schaeffer e o espaço público americano

O pensamento de Schaeffer se insere num período de mudanças nos campos

religioso e político entre as décadas de 1960 e 1980. É neste contexto que o

fundamentalismo42 protestante ressurge. O fundamentalismo é, historicamente, um

movimento protestante de resposta à modernidade, “gestado no século XIX e trazido à luz

no XX” (CAMPOS, 2015, p. 117), tendo como um dos marcos principais a publicação da

coletânea The Fundamentals: a Testimony to the Truth (1910-1915). Segundo Medina

(2020), a coletânea apresentava textos em defesa da inerrância bíblica e do cristianismo

como igreja verdadeira, tecendo críticas à modernidade, à teologia liberal, à filosofia e ao

catolicismo romano. Também delimitava doutrinas e dogmas, assim como difundia

42 O fundamentalismo é um fenômeno abrangente, por isso nos limitamos apenas a contextualizá-lo para o
leitor. Esse é um dos muitos temas que atravessam nossa pesquisa, mas não se configura como nosso
objeto de estudo.
96

orientações para pregações e missões. De acordo com Campos, “há um fundamentalismo

avant la lettre que precisa ser considerado e que pode ser identificado como espírito

anterior ao nome de batismo” (2016, p. 237). Deve-se dar uma atenção especial ao

Seminário Teológico de Princeton43, onde nasceu um dos dogmas mais caros à ortodoxia

calvinista, o dogma da infalibilidade da Bíblia (CAMPOS, 2016). Nesse sentido, o campo

religioso americano é o berço do fundamentalismo protestante.

Segundo Manuel Castells, “o fundamentalismo cristão é uma constante na

história dos Estados Unidos” (2002, p. 37), pois esta é uma sociedade que, aspirando a

grandes transformações sociais, “inclina-se ao questionamento, de tempos em tempos,

dos benefícios trazidos pela modernidade e pela secularização, ansiando pela segurança

proporcionada por valores tradicionais e instituições fundadas na verdade eterna de Deus”

(CASTELLS, 2002, p. 37).

Entre os anos de 1970 e 1980 a sociedade americana viu surgir o movimento

da direita cristã, que ganhou força através da aliança entre líderes religiosos e pastores

com políticos ligados ao Partido Republicano (LIENESCH, 1982). “Preocupados com a

preservação de valores morais e religiosos em uma sociedade cada vez mais secular e

plural, essas lideranças buscavam influenciar a sociedade civil através da conquista de

espaços de representação local e nacional” (ALENCAR, 2018, p. 109). David Swartz

(2012) afirma que esse período foi marcado pela incidência dos evangélicos reformados

na política americana, cujas referências centravam-se na teologia e história de ativismo

político holandês.

Historicamente à margem do evangelicalismo, mas se aproximando cada vez mais


da órbita evangélica americana durante o século XX, os evangélicos reformados
infundiram à coalizão crescente um rigor teológico e uma história de ativismo
político trazida da Holanda (SWARTZ, 2012, p. 135, tradução nossa) 44.

43 É importante não perdermos de vista que, dos autores que buscamos trabalhar nesta dissertação,
Abraham Kuyper proferiu as Stone Lectures no Seminário de Princeton e Van Til se formou e lecionou
nesse mesmo seminário.
44 “Historically on the fringes of evangelicalism but moving steadily closer to the American evangelical orbit
during the twentieth century, Reformed evangelicals infused the growing coalition with a theological rigor
and a history of political activism brought from the Netherlands” (SWARTZ, 2012, p. 135, tradução
nossa).
97

Para Swartz (2012), Schaeffer teve um importante papel na formação da

Christian Right, fornecendo fundamentação teológica e intelectual para o ativismo político-

religioso de diversos cristãos evangélicos.

A obra de Schaeffer, Como viveremos, foi publicada justamente nesse cenário

(1976). Numa citação extraída deste livro, o teólogo diz:

Pressões extremas estão sendo criadas para sobrecarregar as pessoas que não
têm absolutos, mas apenas os pobres valores de paz pessoal e prosperidade.
Estas pressões estão progressivamente preparando o homem moderno a aceitar
um governo manipulativo e autoritário. Infelizmente, muitas dessas pressões estão
sobre nós agora (SCHAEFFER, 2013, p. 170).

Pode-se perceber que Schaeffer observava o cenário político-social e cultural

da América com certo pesar. Para ele, os valores absolutos – ou: valores evangélicos –

estavam sendo perdidos e com essa perda um “governo manipulativo e autoritário”

ameaçava vir à tona. Schaeffer acreditava que as pessoas, por não terem mais valores

absolutos, apenas os “valores pobres”, de paz pessoal e prosperidade, se renderiam a

tudo o que viesse, para assim manter seu bem-estar e dinheiro.

Para Schaeffer, havia ameaças reais, tais como a crise econômica, sérias

guerras entre os países expansionistas, imperialistas e comunistas e o mundo ocidental, o

caos da violência, a redistribuição radical da riqueza do mundo e uma crescente carência

de alimentos e de outros recursos naturais.

Para o autor, com uma iminente recessão econômica, as pessoas não se

preocupariam mais com as liberdades individuais e prontamente aceitariam uma

arregimentação para manter seus bens materiais.

O comunismo, além disso, era um inimigo à espreita não só para a civilização

americana, mas para todo o ocidente. Sua preocupação era se o Ocidente tinha

condições de resistência, uma vez que os valores de liberdade do cristianismo haviam

sido dissolvidos. Para Schaeffer, as pressões dos países comunistas poderiam se

manifestar de diversas maneiras e, subitamente, afetar inclusive países do sul da Europa,


98

que não tiveram a base bíblica dos países do Norte, depois da Reforma. Em meio à

observação dessa ameaça de guerra, Schaeffer diz:

A bomba atômica é uma ameaça especialmente concreta para uma geração que
se afastou de maneira tão completa da existência de um Deus objetivo, e que por
isso passou a acreditar que existe apenas o homem para olha com inteligência
para o pôr do sol ou o voo dos pássaros (SCHAEFFER, 2013, p. 162).

A ameaça do terrorismo também o preocupa e mais uma vez ele ressalta:

“Vimos indicações de como as pessoas desistem das liberdades mesmo que seja para

que a ameaça de guerra seja pelo menos levemente minimizada” (SCHAEFFER, 2013, p.

163, grifo nosso).

Para o teólogo, a redistribuição da riqueza no mundo também pode ser um

tanto quanto ameaçadora se não for acompanhada de duas iniciativas: a primeira é

diminuição de riqueza dos indivíduos e países que têm garantido crescente capital

econômico; a segunda é a redistribuição do poder no mundo, pois ao diminuir a riqueza

de certos indivíduos e países, estes

[…] acabarão se entregando bem mais facilmente a um governo manipulador e


autoritário, movidos pela esperança de que um poder como este possa de algum
modo amenizar os resultados desagradáveis de uma diminuição de prosperidade
e poder mundial (SCHAEFFER, 2013, p. 163).

Nesse sentido, Schaeffer mais uma vez demonstra preocupação com governos
autoritários que podem silenciar as liberdades individuais. O problema maior não é a
diminuição das riquezas, mas a consequência disso em face da concentração de poder,
pois, novamente, pela ausência dos valores absolutos, as pessoas estarão dispostas a
abrir mão de suas liberdades em nome do crescimento econômico.
Outro aspecto da opressão destacada por Schaeffer é a crescente falta de
alimentos e outros recursos naturais. Para ele, a sociedade, sem os valores absolutos do
cristianismo, caminha apenas para o utilitarismo, logo, não haverá solidariedade entre as
pessoas, e a carência de alimentos poderá exercer pressão para que os indivíduos
aceitem – novamente – uma onda crescente de autoritarismo que prometa soluções.
99

E com a crescente insegurança das pessoas, a ganância – movida pelos objetivos


de paz pessoal e prosperidade a qualquer preço – cresce.
Se as pressões continuarem a se avolumar, o que parece provável, você acha que
as pessoas, jovens ou idosos, vão lutar a um alto preço para elas mesmas, ao
preço de sua paz pessoal e riquezas, pela liberdade e pelo indivíduo? Os países
que nunca tiveram a base da Reforma Cristã serão os primeiros a se curvar diante
do autoritarismo (SCHAEFFER, 2013, p. 163).

Percebe-se, pois, que no conteúdo do discurso de Schaeffer reside uma


primazia pelas liberdades individuais, muito própria da cultura americana. Esse valor,
como ele mesmo menciona, é um valor cristão e, não só cristão, reformado. Desde a
Reforma, passando pela ortodoxia protestante, vemos os cristãos resistirem aos
autoritarismos que se apresentavam no decorrer da história. O Neocalvinismo, no entanto,
parece radicalizar ainda mais esse valor a partir da teoria da soberania das esferas. Na
visão neocalvinista, o Estado é um remédio mecânico, que tende a invadir as demais
esferas, por isso o indivíduo, e principalmente o cristão evangélico, deve constantemente
se opor a suas tentativas. Schaeffer busca, justamente, alertar os evangélicos para as
evidências de que a ascensão de um governo autoritário é iminente. Os evangélicos,
devem, portanto, julgar os acontecimentos e agir. Como Kuyper (2014) enfatiza, no
Estado (e outros âmbitos públicos), o homem é um homem livre e, portanto, não deve se
curvar diante de nenhum homem, pois ali não governa laços orgânicos.
Ao nosso entendimento, a ênfase dada à teoria da autonomia das esferas tem
um impacto concreto na vida social americana, uma vez que alimenta a repulsa à
interferência do Estado, pois, se assim ocorrer, significa a supressão das liberdades
individuais. Essa é uma característica dos fundamentalistas evangélicos, como aponta
Castells (2002). Na sociedade americana é notável a tendência autônoma dos indivíduos
em relação ao Estado, os pobres são abandonados à própria sorte (CASTELLS, 2002), os
indivíduos são responsáveis pela própria proteção (política de armas) e saúde. Todavia,
parece haver uma contradição, pois

[…] o modo de vida cristão não pode ser realizado no plano individual, porque as
instituições da sociedade, principalmente o governo, a mídia e a rede pública de
ensino são controlados por humanistas de várias origens, associados […] aos
comunistas, banqueiros, hereges e judeus (CASTELLS, 2002, p. 40).

Assim, o Estado deve se manter longe do âmbito privado dos indivíduos, mas
os indivíduos, especialmente cristãos evangélicos, devem exercer influência. Nas
palavras do próprio Schaeffer:
100

Muitos Líderes dos países que costumavam ter uma boa base cristã agora a veem
composta por homens ‘modernos’. Felizmente existem raras exceções, mas são
exceções. A tentativa de ser autônomo – independente de Deus e do que ele
ensinou na Bíblia e da revelação de Deus em Cristo – tem consequências sérias
tanto para os líderes políticos quanto para os professores universitários e pessoas
comuns. A grande maioria desses líderes também pensa em termos de síntese,
não de padrões fixos e absolutos, e isso se evidencia por todas as ações políticas,
tanto em seus países quanto em assuntos internacionais. A síntese venceu em
ambos os lados da cortina de ferro: as pessoas não veem o certo e o errado como
algo fixo e definitivo, mas apenas uma mistura, tanto nos negócios públicos quanto
na moral privada, tantos nos assuntos externos quanto internos […]. Em
circunstâncias como essa, ao que tudo indica, só nos restarão duas alternativas no
fluxo natural dos eventos: seguir a ordem imposta ou então a sociedade voltar a
reconhecer a base primeira que viabilizou uma liberdade sem caos – a revelação
de Deus na Bíblia e a revelação dele por meio de Cristo. […]. Os valores cristãos,
entretanto, não podem ser aceitos como se eles representassem algum tipo de
utilitarismo superior, só como um meio para um fim. A mensagem bíblica é tão
verdadeira que demanda um comprometimento com a verdade. […] é a verdade
que dá a unidade a todo o conhecimento e toda a vida. Esta segunda alternativa
significa que indivíduos chegam a um ponto que têm esta base e influenciam o
consenso. Cristãos assim não precisam representar uma maioria para exercer
influência sobre a sociedade (SCHAEFFER, 2013, p. 165-167, grifo do autor).

Ao nosso entendimento, a abertura do discurso de Schaeffer, mencionando os


líderes políticos, não é arbitrária. Deve-se influenciar a sociedade, mas através dos
mecanismos do Estado, pois é nesta instituição que se concentra o poder. O que se
percebe, portanto, é uma tentativa de incorporar o Estado à religião – neste caso, cristã
reformada –, pois é na religião que se preverão as ações do Estado. Schaeffer, referindo-
se diretamente ao conceito de síntese, este que é uma formulação neocalvinista, chama
atenção do público leitor, para suas implicações enquanto visão de mundo. Ademais, ele
reafirma a síntese como um desvio da sociedade, preconizando, novamente, um conflito
cultural e de valores irreconciliáveis. Essa posição combativa parece ser constitutiva do
discurso indentitário calvinista que – outra vez – se radicaliza no Neocalvinismo e, para
além dessa tradição, transita entre os diversos tipos de fundamentalismo religioso
também presentes na política americana.
Outro aspecto que salta aos olhos nos discursos de Schaeffer é a urgência do
posicionamento por parte dos evangélicos. Podemos dizer que há, pelo menos, duas
razões para isso; a primeira diz respeito à antropologia da tradição na qual Schaeffer se
insere, que herda de João Calvino uma visão pessimista acerca do ser humano. Assim,
não se espera um futuro benevolente, mas, como Schaeffer expõe, uma crescente
insegurança e pressão para/sobre os cristãos evangélicos. A segunda razão é de ordem
escatológica: o fim dos tempos aproxima-se; o evangélico não é cidadão deste mundo,
101

mas enquanto nele estiver, deve ser “o sal restaurador” (SCHAEFFER, 2013, p. 169) e
fazer tudo, inclusive sobreviver à batalha cultural instalada, com vistas à volta de Cristo.
Como o próprio Kuyper disse: “A vida cristã como peregrinação não foi mudada, mas o
calvinista tornou-se um peregrino que, durante sua caminhada para a nossa mansão
eterna, ainda deve cumprir uma importante tarefa sobre a terra” (2014, p. 136).

A luta deve ser intensificada, bem como firmados os acordos necessários com a
política institucional, porque, o tempo urge. O ‘fim dos tempos’ aproxima-se, o que
faz que nos arrependamos e purifiquemos nossa sociedade, para que estejamos
prontos para o retorno de Jesus Cristo, que dará início a uma nova era, um novo
milênio de paz e prosperidade sem precedentes. Porém, esse é um período de
transição perigoso, porque teremos de sobreviver à terrível Batalha de
Armagedon, que terá origem no Oriente Médio e deverá se alastrar por todo o
mundo. Israel e a Nova Israel (os Estados Unidos), finalmente sairão vitoriosos
ante seus inimigos, contudo a um preço altíssimo, e contando somente com a
capacidade de regeneração de nossa sociedade. Daí a transformação da
sociedade (por uma política cristã inflexível para o povo) e a regeneração do ser
(por uma vida devota e familiar) constituírem elementos necessários e
complementares. (CASTELLS, 2002, p. 41).

A escatologia cristã, guardadas as devidas proporções 45, implica aos


evangélicos a responsabilidade de estarem prontos, agindo sobre o que puderem para
minorar a opressão e violência que se aproximam. A violência e opressão também se
apresentam, para os evangélicos, na forma dos movimentos sociais que, ao reivindicarem
os direitos dos grupos sociais historicamente marginalizados, “abalam a instituição
familiar, fonte primeira da estabilidade social, da vida cristã e da realização pessoal”
(CASTELLS, 2002, p. 40).
Embora Schaeffer não tenha participado diretamente de organizações, como a
Moral Majority, ele forneceu fundamentação teológica e intelectual para muitos
pregadores e políticos conservadores desse período (ALENCAR, 2018).

No final da década de 1970, Schaeffer emergiu como o principal evangélico


oponente do aborto, que ele retratou como a principal questão a demandar uma
resposta Cristã. Em Whatever Happened to the Human Race, que Schaeffer co-
escreveu com o futuro cirurgião geral, C. Everett Koop, ele argumentou: ‘De todos
os assuntos relacionados à erosão da santidade da vida humana, o aborto é a
pedra angular.’ Schaeffer argumentou que a permissibilidade do aborto significava
que a América havia abandonado o respeito à vida humana. O livro conectou o
aborto a uma série de práticas desumanizadora, incluindo eutanásia, a tortura e o
suicídio. As páginas finais de Whatever Happened to the Human Race
apresentavam várias figuras retratadas em gaiolas: escravos africanos,

45 Escatologia cristã é um tema amplo discutido pela teologia. São diversas as correntes teológicas sobre
o assunto, com suas diferenças e nuances. Contudo, não é nossa intenção aprofundá-la, mas
mencionar, em linhas gerais, seu significado para os cristãos, sejam eles católicos, luteranos,
calvinistas, neocalvinistas, pentecostais ou neopentecostais, e quais implicações são geradas na esfera
político-social.
102

americanos, imigrantes judeus, uma menina deficiente e um prematuro infantil.


Schaeffer concluiu que ‘devemos enfrentar a perda de humanidade em todas as
suas formas.’ Ele viu o aborto como assassinato de inocentes, e seu livro
popularizou essa interpretação entre os protestantes conservadores. Talvez o mais
importante, Schaeffer disseminou uma visão de envolvimento político que
encorajou—até exigiu—que os evangélicos cooperassem com não evangélicos
para obter sucesso político (DOWLAND, 2009, p. 612-613, tradução nossa) 46.

Também na obra Como vivemos?, Schaeffer faz uma longa análise da decisão
da Suprema Corte dos Estados Unidos em relação ao feto humano, cujo background foi o
caso de Roe vs. Wade em 197347. Para Schaeffer, a decisão da Suprema Corte foi
arbitrária tanto do ponto de vista médico quanto legal.

Os absolutos arbitrários da Suprema Corte estavam sendo aceitos contra um


consenso anterior, que havia perdurado por séculos, bem como contra as leis do
passado. E (tomando o aborto como exemplo), se este absoluto arbitrário está
sendo aceito como lei pela maior parte das pessoas do mundo moderno,
articulado ao conceito de negação dos absolutos e afirmação da relatividade, por
que não poderíamos aceitar igualmente os absolutos relativos a assuntos
normalmente tidos como limitações autoritárias da liberdade, já aqueles são tidos
como sociologicamente úteis? Ficamos relegados à lei sociológica, sem qualquer
certeza quanto aos limites (SCHAEFFER, 2013, p. 139).

Ao falar de um consenso anterior e de leis do passado, Schaeffer se refere às


bases cristãs, em um tempo em que a cultura predominante era cristã, “um só indivíduo
podia julgar e alertar a sociedade, usando nada mais do que a sua Bíblia, não importava
qual tivesse sido o voto majoritário, pois havia um absoluto de acordo com o qual julgar”
(SCHAEFFER, 2013, p. 140). A modernidade, no entanto, trouxe pluralidade de valores a
partir da sua diferenciação das esferas sociais, representando, deste modo, um obstáculo
ao projeto de hegemonia cristã. À vista disso, os discursos de Schaeffer propõem um

46 “By the end of the 1970s, Schaeffer had emerged as the foremost evangelical opponent of abortion,
which he portrayed as the primary issue demanding Christian response. In Whatever Happened to the
Human Race, which Schaeffer co-wrote with the future surgeon general, C. Everett Koop, he argued, “Of
all the subjects relating to the erosion of the sanctity of human life, abortion is the keystone.” Schaeffer
contended that the permissibility of abortion meant America had abandoned respect for human life. The
book connected abortion to a host of dehumanizing practices, including euthanasia, torture, and suicide.
The final pages of Whatever Happened to the Human Race featured various figures pictured in cages:
African-American slaves, Jewish immigrants, a handicapped girl, and a premature infant. Schaeffer
concluded that “we must stand against the loss of humanness in all its forms.” He saw abortion as
murder of innocents, and his book popularized that interpretation among conservative Protestants.
Perhaps more important, Schaeffer disseminated a view of political involvement that encouraged—even
demanded—that evangelicals cooperate with non-evangelicals in order to achieve political success”
(DOWLAND, 2009, p. 612-613).
47 Em 1973, a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu o direito à interrupção da gravidez nos
primeiros meses de gestação. Norma McCorvey (conhecida pelo pseudônimo Jane Roe) versus Henry
Wade (Procurador Distrital do Condado de Dallas) foi o caso concreto para que o processo judicial
pudesse ser movido contra o Estado, questionando a constitucionalidade da lei, em matéria de aborto,
que vigorava na época.
103

projeto de reordenação da esfera pública e política americana (SOUZA, 2017), que faz
ressoar do seu interior a afirmação dos Estados Unidos como a nação escolhida.
Como mencionamos, na vida de Schaeffer houve um momento de profunda
crise espiritual, mas que possibilitou a ele uma transformação de suas práticas religiosas
e político-sociais. As ações de Schaeffer se circunscreveram num âmbito simbólico, a
partir do discurso48. Primeiro, porque Schaeffer percebeu a necessidade de buscar
respostas na Bíblia para sua realidade (SCHAEFFER, 1993). A Bíblia pode ser observada
como um livro de discursos, o que coloca a interpretação como uma relação necessária,
“embora na maior parte das vezes negada pelo sujeito” (ORLANDI, 2007, p.20). Segundo,
porque Schaeffer percebe o discurso como um meio para “ensinar respostas cristãs
históricas e dar respostas honestas a perguntas honestas” (SCHAEFFER, 1993, p. 6). E
ele encontra no texto e na ideia de uma comunidade paraeclesiástica, os suportes
essenciais à disseminação dos seus discursos, pois, mesmo que não estivesse
totalmente clara para ele, a interpretação “intervém decisivamente na relação do sujeito
com o mundo (natural e social” (ORLANDI, 2007, p. 20).
Nesta seção, destacamos a presença de Schaeffer, através da sua produção
bibliográfica, no cenário político americano entre as décadas de 1970 e 1980. Buscamos
apontar a relação dos seus textos com a pauta da direita cristã desse período, portanto, o
impacto dos seus discursos e o seu modo de ativismo religioso-político. Também
buscamos demonstrar, sobretudo, o ponto de contato entre o pensamento de Schaeffer e
o Neocalvinismo holandês, afirmando a hipótese de que este forneceu o arcabouço
teórico às práticas religiosas e político-sociais do fundador do L’Abri.
Na próxima seção, aprofundaremos um pouco mais acerca da instituição
paraeclesiástica L’Abri enquanto lugar de instrumentalização dos crentes, o qual é,
também, um dos principais interlocutores da recepção do Neocalvinismo holandês no
Brasil.

48 O discurso é tomado aqui como um espaço simbólico, mas que se materializa numa instância concreta
da relação do homem com o mundo, a partir do texto, por exemplo. O texto é constituído pela relação de
sentidos que derivam e apontam para outros, tornando-o uma questão aberta, onde todos os sentidos
são possíveis (ORLANDI, 2007). Mas isso não quer dizer que ele “possa se desenvolver em qualquer
direção: há uma necessidade que rege um texto e que vem da relação com a exterioridade” (ORLANDI,
2007, p. 15).
104

4.4 L’Abri: lugar49 de instrumentalização dos crentes

O primeiro L’Abri, como vimos, foi fundado nos Alpes Suíços em 1955, por

Francis e Edith Schaeffer, com o propósito de receber pessoas em busca de respostas às

suas perguntas existenciais. O casal, que desejava relacionar a fé cristã à totalidade da

vida, iniciou o projeto em sua própria casa, proporcionando, deste modo, um ambiente

acolhedor a todos que desejassem ouvi-los. Schaeffer, oferecia “aulas, estudos dirigidos,

palestras sobre temas considerados relevantes para a sociedade contemporânea com o

intuito de fornecer material intelectual e religioso para indivíduos, cristãos ou não”.

(ALENCAR, 2018, p. 106). Assim, seus escritos e palestras ganharam visibilidade,

permitindo que L’Abri fosse fundado em outros países como Austrália, Canadá, Inglaterra,

Holanda, Coreia, Estados Unidos e Brasil (ALENCAR, 2018).

Os livros de Schaeffer tiveram amplo alcance, e ele pôde palestrar nas principais
universidades do mundo, como Oxford, Harvard e o MIT. Suas séries de vídeo
também se tornaram populares. Além disso, o fundador de L’Abri influenciou
pessoas cujos nomes se destacam em diversos campos do conhecimento: Os
Guinness, na sociologia; Nancy Pearcey, na matemática, filosofia da ciência, e
apologética de cosmovisão; Lane T. Dennis, no mercado editorial; Jerram Barrs,
na missiologia; William Edgar, na apologética; e Richard Winter, na psicologia, são
alguns dos que sofreram influência direta do evangelista — como Schaeffer se
denominava (PORTO, 2015, p. 14).

L’Abri constituiu-se, então, como uma instituição inovadora no meio evangélico,

que proporcionou maior relevância e alcance do pensamento de Francis Schaeffer, além

de ter sido um campo fundamental para o desenvolvimento da sua análise da cultura e

aplicação da sua abordagem apologética (PORTO, 2015). Ao propor demonstrar o

cristianismo como opção relevante para a cultura a partir dos anos 50, tendo mantido sua

influência mesmo depois de sua morte, Schaeffer fundou o L’Abri como também um lugar

de construção de sentidos, que impactou intimamente cada indivíduo que por lá passou.

49 Para caracterizar o L’Abri, optamos pelo substantivo “lugar” ao invés do substantivo “espaço”, pois
aquele reflete uma apropriação conceitual do antropólogo francês, Marc Augé (1935 –). A noção de
lugar, para Marc Augé, está entrelaçada a um espaço identitário e relacional; “[…] o lugar antropológico
é simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para
quem o observa” (AUGÉ, 1994, p. 51). Assim, como veremos, o L’Abri é lugar que, mediado pela
religião, promove sentido para os indivíduos.
105

Entre os nomes citados por Porto (2015), Nancy Pearcey, que é, atualmente, uma das

mais influentes escritoras evangélicas, alinhada à tradição reformada neocalvinista e ao

pensamento schaefferiano, descreve sua experiência em L’Abri em seu livro Verdade

Absoluta: libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural (2006):

Poucos anos depois, quando frequentava uma escola na Alemanha e estudava


violino no Conservatório de Heidelberg, fui parar em L'Abri, Suíça, onde ficava o
ministério residencial de Francis Schaeffer. Fiquei fascinada pelo lugar. [...] O
próprio Schaeffer costumava chocar as pessoas com sua aparência um tanto
quanto estranha, de cavanhaque e bermuda tipicamente suíça. […]. Mas quando
abria a boca e falava, as pessoas ficavam pasmadas: tratava-se de um cristão
falando sobre filosofia moderna, citando os existencialistas, analisando temas de
cosmovisão nas letras de Led Zeppelin, explicando a música de John Cage e as
pinturas de Jackson Pollock. E não nos esqueçamos de que era uma época em
que os universitários cristãos não tinham permissão de ir ao cinema para assistir
aos filmes da Disney, e ali estava ele, discutindo filmes de Bergman e Fellini. […].
Enquanto ainda estava em L'Abri, aproximei-me de outro estudante e exigi que ele
explicasse por que se convertera ao cristianismo. O rapaz [...] apenas respondeu:
‘Eles venceram todos os meus argumentos’. Continuei olhando para ele de modo
um pouco desdenhoso, esperando algo mais dramático. […] Era a primeira vez
que encontrava alguém cuja conversão fora estritamente intelectual, e na ocasião
nem me passou pela cabeça que minha conversão seria igual. […] Empolgada
pela esperança de que talvez Deus fizesse algo [...] espetacular em minha vida,
pedi-lhe [...] que, se Ele fosse real, me fizesse algum sinal sobrenatural […].
Pensando que este tipo de coisa funcionasse melhor com uma abordagem
agressiva, prometi ficar acordada a noite inteira até que Deus me desse um sinal.
[…]. Por fim, bastante desgostosa por ter me engajado em tal atitude teatral
exagerada, abandonei a vigília. E quando o fiz, de repente percebi que estava
falando diretamente com Deus sobre as profundezas do meu espírito, sentindo a
sua presença de maneira muito íntima. Reconheci que não precisava de sinais e
maravilhas externos porque, do fundo do meu coração, tive de admitir (com
decepção e pesar) que já estava convencida de que o cristianismo era verdadeiro.
(PEARCEY, 2006, p. 19-20, grifo da autora).

Pearcey relata sua experiência, primeiro de encantamento com o L’Abri e a


abordagem de Francis Schaeffer em seu diálogo com a cultura, depois ela descreve sua
experiência de conversão, que, longe de qualquer acontecimento sobrenatural, ocorreu
pelo convencimento intelectual de que o cristianismo era verdadeiro. O seu contato com
L’Abri foi, portanto, decisivo, pois foi capaz de atribuir sentido e redirecionar toda vida
daquela jovem universitária, fornecendo-lhe instrumentalização teológica para o seu
diálogo com a cultura e propagação dos valores cristãos evangélicos, como ocorre até os
dias atuais.
Vemos, portanto, que Schaeffer, com o projeto L’Abri, “não apenas reconhece,

mas também trabalha de maneira estratégica ao perceber o lugar das expressões

culturais na formação de um povo, bem como na disseminação de ideias e


106

desenvolvimento da cosmovisão dele” (PORTO, 2015, p. 133). Nesse sentido, sua

abordagem envolve conhecer a cultura, para, através do diálogo, criticá-la, demonstrando

os equívocos e a insuficiência das diversas concepções acerca da realidade quando

tentam responder aos dilemas humanos. Com isso – reavivando a ideia de Abraham

Kuyper (2014) –, aponta-se para o cristianismo, de vertente neocalvinista, como o único

sistema de vida abrangente, capaz de salvar a herança cristã. Ademais, pode-se também

dizer que, embora Schaeffer se mostrasse bastante aberto ao diálogo com a cultura, seu

instrumental hermenêutico continuou a ser fundamentalista.

4.5 L’Abri Brasil e a recepção do Neocalvinismo holandês

Os ensinamentos neocalvinistas adentraram ao Brasil primeiro com as

publicações das obras de Francis Schaeffer através da editora ABU – Aliança Bíblica

Universitária –, aproximadamente no início dos anos 2000, e depois a partir da Instituição

paraeclesiástica L’Abri Brasil, que é uma importante interlocutora na recepção do

movimento. Fundada em 2008, em Belo Horizontes, pelo teólogo e pastor Guilherme de

Carvalho, a instituição funciona como um “centro de estudos que combina vida em

comunidade, hospitalidade e reflexão cristã […]” 50, assim como o primeiro L’Abri fundado

por Schaeffer.

Segundo Alencar (2018), tratando-se de estudos, estão oferecidos

“Nanotermos” em períodos específicos. Os estudantes se hospedam em L’Abri por até

quatro semanas e durante a estadia têm um tutor para definir uma rotina de estudos,

participação em palestras, cultos, orações, leitura coletiva e individual da Bíblia. Todos

também contribuem para as atividades domésticas, que incluem limpeza, cozinha,

reformas, hortas. “A proposta é que durante um período mais estendido no L’Abri o cristão

seja munido de assuntos variados e tenha um espaço para refletir sobre sua fé”

(ALENCAR, 2018, p. 107). Atualmente, o valor da estadia está entorno de R$180,00 por

50 “[…] Nossa missão é demonstrar a realidade de Deus e recuperar a riqueza da nossa humanidade, por
meio de Jesus Cristo.” Disponível em: <https://www.labri.org.br/>. Acesso em 8 nov. 2020.
107

dia, o que, de acordo com Alencar (2018), pode significar que, geralmente, quem

frequenta a instituição são jovens de classe média e com alto grau de escolaridade.

Existem também outras atividades oferecidas pelo L’Abri, como Retiros Temáticos, que

são realizados aos finais de semana ou em feriados prolongados, por exemplo, durante o

carnaval. Esses retiros custam, em média, R$380,00. Já o retiro de carnaval custa

R$800,00, de sexta a terça-feira (valores para 2021). Na agenda para 2021, estão

previstos os seguintes temas: Uma visão cristã dos Direitos Humanos; A Igreja em uma

era secular e seus desafios (semana L'Abri para Pastores e Líderes); O que é uma

Família; Capital moral e Política Cristã; Masculinidade, Feminilidade e Questões de

Gênero, entre outros.

L’Abri também oferece um curso de teologia (Escola de Teologia e Vida Cristã),

com carga horária de 204h/a divididas em três módulos, mais as horas dos retiros

temáticos. Sobre a proposta, é dito que:

A Igreja evangélica brasileira vive, hoje, uma grande crise de identidade e muitos
cristãos sofrem dificuldades em sua caminhada pela ausência de uma visão
sólida, prática e fiel da fé cristã. Desde sua fundação em 1955, por Francis
Schaeffer, o L’Abri se empenha na vocação de falar a verdade com amor,
defendendo a pureza da mensagem Cristã e demonstrando seu valor para o
mundo contemporâneo. E para servir melhor à comunidade evangélica, foi
organizado o curso L’Abri de Teologia e Vida Cristã
Para recuperar a visão mais antiga e clássica da vida cristã, enfatizada por muitos
mestres e santos cristãos, o curso foi organizado em torno das três virtudes
principais citadas por Paulo em 1 Coríntios 13:13. Assim o curso tem três módulos:
A Fé Cristã, a Esperança Cristã e o Amor Cristão. Cada módulo corresponde a
uma das três virtudes e procura mostrar a relação delas com a vida do cristão
contemporâneo51.

No site do L’Abri Brasil são informados também alguns diferenciais do curso: 1)

Teologia Viva: tratando-se de uma teologia fundada na tradição reforma, esta é entendida

como mais que uma construção abstrata; segue-se de perto o debate contemporâneo,

valorizando o diálogo com os principais autores evangélicos da atualidade, assim,

relaciona-se à reflexão teológica com aspectos práticos da vida. 2) Direção Espiritual: no

programa, cada aluno é orientado sobre seu estilo de vida espiritual, sua relação com a

igreja e sua vocação no mundo. 3) Diálogo com a Cultura: todas as reflexões propostas
51 Disponível em: <https://www.labri.org.br/teologia>. Acesso em 08 de nov. 2020.
108

por L’Abri têm um corte apologético da tradição de Francis Schaeffer e Hans Rookmaaker

(ambos se relacionam com o Neocalvinismo holandês) “e são voltadas para o

florescimento de um Cristianismo contemporâneo, antenado, e dialógico, nos campos da

arte, da filosofia, da ciência e da ética social”. 4) Hospitalidade: o curso propõe que a

hospitalidade seja uma realidade vivenciada pelos alunos entre seus amigos, famílias e

comunidade, segundo a tradição iniciada por Francis e Edith Schaeffer.

No que se refere à bibliografia do curso, além das obras de Schaeffer, estão

presentes obras de Abraham Kuyper, Rookmaaker e outros, com enfoque na

espiritualidade, ortodoxia e cultura. Referente a valores, o curso tem um custo de

R$2500,00 mais R$300,00 de matrícula. As diárias dos retiros não estão inclusas.

Assim, percebe-se que o L’Abri Brasil atua estritamente para a

instrumentalização dos crentes. Embora o primeiro L’Abri, como apontado, também

atuasse fundamentalmente com esse propósito, podemos dizer que suas portas, muito

mais que o L’Abri Brasil, estavam abertas a um público mais amplo, pessoas que ainda

não tivessem sido convertidas ao cristianismo, como o caso de Nancy Pearcey. Para os

temas que o L’Abri Brasil busca abordar em seus retiros, é necessário que antes os

indivíduos participantes já estejam, minimamente, habituados ao repertório evangélico;

repertório que ganha corpo ou é lapidado com os ensinamentos neocalvinistas a partir do

legado teológico de Francis Schaeffer, para que possam dialogar com os campos da arte,

da filosofia, da ciência e da política. Tem-se ali o objetivo de se formar pastores e

lideranças também, através da Escola de Teologia e Vida Cristã.

O L’Abri Brasil não se constitui, portanto, em um fenômeno de massa. A própria

tradição calvinista sempre esteve associada a grupos majoritariamente pequenos.

Contudo, isso não quer dizer que sua influência seja restrita, pelo contrário. O L’Abri

Brasil, além de, enquanto campo religioso, ser “[…] construído socialmente por atores que

dão significado a ele e dele recebem significado” (CAMPOS, 2006, p. 4), é promotor de

um poder simbólico. Segundo Bourdieu, “o poder simbólico é um poder de construção da

realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do


109

mundo” (2009, p. 9, grifo do autor). Os indivíduos, portanto, que recebem esse sentido,

estão aptos para instrumentalizá-lo. E assim o fazem onde atuarem. No campo da

política, se não atuarem diretamente, esses ainda, sim, fornecem bases mais sólidas nas

quais outros líderes […] passam a se apoiar (ALENCAR, 2018, p. 108).

Assim, a religião pode ser instrumento de poder. Pereira (2008), referindo-se ao

sociólogo e antropólogo Georges Balandier (1920-2016), diz:

Se o sagrado, segundo Balandier, ‘é uma das dimensões do campo político’, o


político também é uma das dimensões do campo sagrado. Dessa forma, ‘a religião
pode ser instrumento de poder’ (Balandier, 1969: 109) e garantir, com isso, a
legitimidade do poder político, ao passo que a ação política também pode servir de
retaguarda para garantir a legitimidade religiosa. Dessa maneira, a religião é um
dos meios utilizados no quadro político e estratégias políticas são também
empregadas pela religião para exercer seu domínio (PEREIRA, 2008, p. 83).

A recepção do Neocalvismo holandês, especialmente a partir as publicações de

Francis Schaeffer e da fundação L’Abri Brasil, pode ter contribuído e ainda contribuir para

uma faceta do fundamentalismo religioso presente na nova direita brasileira. Conforme

Alencar (2018), as referências conservadoras do movimento passam a ser mobilizadas

também por não evangélicos, que vinculam o repertório religioso do Neocalvinismo “às

pautas de ‘defesa da família’ e dos ‘valores da família’, que historicamente tem sido uma

agenda capaz de mobilizar sentimentos morais e formar alianças na esfera pública entre

setores conservadores distintos” (ALENCAR, 2018, p. 116).

À vista disso é que se buscou nesta pesquisa, delinear o caminho percorrido

pelo Neocalvinismo holandês até sua recepção no contexto brasileiro, apontando,

principalmente, a relação dos elementos teológicos e suas reivindicações político-sociais.

Cabe agora discutir suas possíveis implicações para o campo político brasileiro a partir

dos seus, aproximadamente, vinte anos de recepção; contudo, esta já é tarefa para uma

próxima e, bastante necessária, pesquisa. Como proposta para a última seção deste

capítulo, buscaremos apresentar e discutir brevemente os elementos que, ao nosso

entendimento, mais se acentuam em todo itinerário que fizemos neste trabalho, para que,

a partir disso, outras reflexões possam ser suscitadas.


110

4.6 De Abraham Kuyper a Francis Schaeffer: aspectos que se destacam

Propõe-se nesta seção refletir sobre alguns aspectos que, ao nosso entendimento,

se destacam ao longo do itinerário do Neocalvinismo, de Abraham Kuyper a Francis

Schaeffer. Itinerário este que buscamos (re) construir para que pudéssemos, a partir dele,

fornecer elementos teóricos para uma leitura crítica e cautelosa da recepção do

movimento em nosso contexto.

O primeiro aspecto que se destaca, refere-se à característica dispersiva do

movimento; com isso queremos dizer que o Neocalvinismo holandês compromete-se com

a dispersão do repertório teológico da tradição calvinista para além do âmbito eclesial. A

formulação da doutrina do mandato cultural evidencia isto, o que justifica, em última

instância, a atribuição do prefixo “neo” à frente do substantivo “calvinismo”, para conotar

esse sentido ao movimento. Embora, no entanto, já possamos encontrar esse precedente

no próprio Calvino, cuja questão fundamental o diferenciou de Lutero e da tradição que se

seguiu no tocante à relação com a esfera temporal. Calvino, como tratamos no primeiro

capítulo, preocupava-se em como honrar e servir a Deus, uma vez que a salvação era

uma questão de eleição, desdobrando-se, assim, numa teologia cosmológica (MORAES,

2014).

Com a dispersão de repertório, podemos afirmar que o Neocalvinismo é uma

tradição interdenominacional, estando presente em denominações que não,

necessariamente, têm raízes calvinistas. Cabe ainda destacar que o prefixo “neo” não foi

atribuído ao movimento no Brasil, por isso não buscaremos referência nas discussões

acerca de novos movimentos religiosos brasileiros, que também carregam esse distintivo

em suas nomenclaturas.

O segundo aspecto, e complementar ao primeiro, é que, do nosso ponto de

vista, o Neocalvinismo holandês, com sua apropriação norte-americana, radicalizou o

calvinismo. Sendo que este já havia radicalizado o pensamento de João Calvino,


111

conforme também apontamos no primeiro capítulo. Com radicalização nos referimos,

especialmente, à doutrina da predestinação, que durante a ortodoxia protestante foi alvo

de muitas discussões, que culminaram na elaboração de confissões doutrinárias, dentre

as quais, duas foram objetos do nosso estudo nesta pesquisa. Essa mesma doutrina,

quando levada pelos puritanos à Nova Inglaterra, ganhou outras proporções, tendo sido

considerada, como aponta Weber (2013), um perigo para o Estado. É essa mesma

doutrina, como demonstramos neste capítulo, que confere aos neocalvinistas legitimidade

e poder para iniciar um projeto de futuro, e afirmar os Estados Unidos da América como

nação escolhida. Sobre a consciência da eleição, Cavalcante (2017) diz justamente que,

uma vez herdada do judaísmo e expressa quase simetricamente na doutrina da

predestinação, esta dá aos indivíduos “aquele sentimento de minoria vitimizada como

‘remanescente fiel’ e de messianismo que caracterizam recorrentemente a gênese de

movimentos políticos e religiosos” (CAVALCANTE, 2017, p. 52). Nesse sentido,

percebemos, portanto, que existe uma tendência dentro da tradição calvinista, que numa

imagem, corresponde a uma espiral, cuja tendência é alcançar novas dimensões sobre a

mesma base.

O terceiro aspecto corresponde à antítese que a fé cristã estabeleceu no

mundo, esta, que embasada numa interpretação ipsis litteris da Bíblia, aparenta ser a

espinha dorsal do Neocalvinismo. A queda do homem no paraíso significou a instauração

de um conflito cultural entre o Reino de Deus, representado pelos crentes, e o mundo,

representado pelos incrédulos. Os crentes, pela eleição e pelo mandato cultural, têm o

dever de resguardar a fé cristã de todas as pressões que a cultura, submersa no pecado,

traz. Não existe conciliação entre forças diametralmente opostas. Nesse sentido,

conforme Ribeiro (2017), existir mais de uma visão de mundo é uma ameaça porque a

unidade de Deus é necessária à consolidação de um projeto civilizatório, uma vez que o

cristianismo pensa na ideia de um único reino. Não por acaso, para Kuyper (2014), é

necessário forjar essa unidade. No entanto, diferentemente da Igreja Católica Romana, o

Protestantismo não possui uma “unidade de concepção de vida” e por isso se


112

enfraqueceu diante do modernismo, assim ele propõe que o (neo)calvinismo assuma essa

tarefa.

O quarto aspecto que se acentua é a linguagem filosófica e postura dialogal do

movimento. Segundo Souza (2017), no entanto, o uso de termos técnicos serve para

legitimar a presença do movimento no âmbito das instituições, acadêmicas ou políticas,

sendo, portanto, uma forma do movimento mostrar-se relevante no contexto da

modernidade.

Como se observa, o Neocalvinismo holandês se assenta na tradição reformada

calvinista, ampliando seu corpus teológico e sua possibilidade de ação. Ao passo que

rejeita projetos gestados na modernidade, seus pensadores propõem outro projeto, que

busca responder às necessidades do homem moderno, contudo, sobre as antigas bases.

A Igreja não pode, por exemplo, interferir nos assuntos do Estado, mas o indivíduo

evangélico torna-se o ponto de contato da religião nas esferas públicas. Quando

Dooyeweerd (2014) afirma que os limites entre as esferas sociais não podem ser

definidos pelo Estado, apenas por Deus, coloca-se um paradoxo: como Deus realizará

essa tarefa? À medida que nos aproximamos das suas formulações teóricas e

percebemos os elementos teológicos que as sustentam, fica claro que cabe ao cristão

(evangélico reformado) ser o porta-voz da vontade de Deus. Nobbs, em sua obra

Teocracia e Tolerância, aponta que o político ou governante cristão, como membro de

uma igreja está sujeito à sua autoridade, havendo uma relação íntima entre as partes que

coloca o Estado dentro da ordem divina e, portanto, em cooperação com a igreja

(NOBBS, 2017, p. 4). Nesse sentido, o que caracteriza a relação da religião e política na

modernidade, não é mais a presença da religião institucional no Estado, mas, sim, a

presença do religioso.

Em contrapartida, a política também se apropria do discurso religioso, que

serve, por exemplo, de aliciamento de um público eleitoral. Quando a política

instrumentaliza a religião para atingir seus objetivos, pode aliciar pessoas bem-

intencionadas e sinceras em suas crenças, mas a ação desses indivíduos surte efeitos
113

inesperados. O que se percebe, portanto, é que o poder parece ser um instrumento

comum à consolidação de projetos, sejam eles políticos ou religiosos.


114

5 CONCLUSÃO

Nossa pesquisa partiu da observação de que na esfera pública brasileira tem


emergido um ativismo conservador, com forte participação dos evangélicos. Entre esse
grupo bastante polissêmico, identificamos um fenômeno que nos prendeu a atenção: o
Neocalvinismo holandês. Em nossas primeiras pesquisas, logo percebemos que se
tratava de um movimento iniciado no século XIX, mas que adentrou ao Brasil apenas no
final do século XX, início do século XXI, tornando-se opção aos evangélicos que
desejavam relacionar sua fé a outros âmbitos da vida, especialmente âmbito político. A
primeira questão que nos surgiu foi: como um movimento do século XIX pode ser opção
ao Brasil do século XXI? Existe alguma afinidade entre sua teologia e a forte guinada
conservadora, alimentada por evangélicos? Que impactos a importação de um movimento
europeu de dois séculos atrás pode nos trazer? Sua relevância se deu apenas no
contexto holandês? À vista dessas questões, percebemos que havia um profícuo campo
de pesquisa e decidimos iniciar este trabalho. Em nossas pesquisas exploratórias,
observamos que boa parte do conhecimento produzido acerca do movimento se restringia
a círculos eclesiásticos e à exaltação das suas propostas, especialmente para o
evangélico que, agora, encontrava uma teologia que possibilitava um amplo “diálogo” com
a cultura. Desse modo, percebemos a importância de realizar uma pesquisa com o
objetivo de (re)construir o itinerário do movimento até sua recepção no contexto brasileiro,
para, assim, propiciar elementos que levassem o leitor interessado a um olhar crítico e
responsável quanto a seu acolhimento e disseminação.
Ainda em fase exploratória, identificamos que o Neocalvinismo holandês
chegou ao Brasil pelo pensamento do teólogo americano Francis Schaeffer, a partir das
publicações das suas obras. Logo em seguida, a fundação L’Abri, que originalmente havia
sido fundada pelo próprio Schaeffer, também se instalou no Brasil e, além de contribuir
para a difusão do pensamento de Schaeffer, também tornou conhecidas as figuras de
Abraham Kuyper e Herman Dooyeweerd, que, como vimos, são os principais expoentes
do Neocalvinismo. Assim, nossa hipótese se constituiu na relação que Schaeffer poderia
ter com esses autores. Não apenas a confirmamos, como concluímos que o
Neocalvinismo holandês, com suas formulações teóricas, orientou as práticas de
Schaeffer no campo religioso-político. Schaeffer, a partir da produção bibliográfica,
115

forneceu importantes elementos para a formação da direita cristã nos EUA, período em
que o fundamentalismo religioso ressurgiu e impactou a política americana. Com isso,
comprovamos que o Neocalvinismo holandês, na verdade, atingiu mais amplitude nos
Estados Unidos da América. Por uma questão histórica, a própria cultura holandesa foi
modelada pela sua forte presença na América. Não por acaso, conforme vimos, as
palestras de Kuyper foram proferidas no seminário de Princeton, que também tem uma
forte relação com o fundamentalismo bíblico. Ademais, como também dito, Dooyeweerd
esforçou-se para traduzir suas obras em inglês. Portanto, podemos dizer que o
Neocalvinismo holandês passou, na verdade, por um processo de americanização. O que
sugere a necessidade de pesquisas que possam aprofundar sua relação também com o
fundamentalismo. Isso também nos coloca em atenção para a sua presença no contexto
brasileiro. Como vimos, o Neocalvinismo é interdenominacional, dentro das igrejas
reformadas, estando possivelmente articulado a várias situações concretas da nossa
política, o que deve ser também investigado em futuras pesquisas. Acredita-se que este
estudo fornece uma boa base teórica para que possam ser realizadas.
Por fim, cabe reafirmar que o Neocalvinismo holandês está assentado em toda
tradição reformada. Assim, como o calvinismo foi radicalizado pelos puritanos nos EUA (a
Nova Inglaterra), foi também lá que ele ganhou novas proporções. A teologia reformada,
de Calvino a Francis Schaeffer, tende a absolutizar sua visão de mundo, e com pontos de
partidas absolutos o diálogo com perspectivas diferentes é embargado. Então, como
podemos imaginar que sua presença na esfera pública brasileira propiciará tolerância e
visará ao bem comum? O que se terá, na verdade, é uma tentativa de consolidar, cada
vez mais, um projeto político-religioso, incompatível com a pluralidade religiosa brasileira,
a qual é, por sua vez, um traço distintivo da nossa cultura e garantida
constitucionalmente.
116

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