Ciências Da Religião - Leonardo Boff

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INSTITUTO PRESBITERIANO MACKENZIE
ENTIDADE MANTENEDORA
Diretor Presidente: Hesio Cesar de Souza Maciel
Diretor de Planejamento e Finanças: Francisco Solano Portela Neto
Diretor de Ensino e Desenvolvimento: José Paulo Fernandes Júnior
Diretor de Administração e Gestão de Pessoas: Wallace Tesch Sabaini

UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE


Reitor: Benedito Guimarães Aguiar Neto
Chanceler: Augustus Nicodemus Gomes Lopes
Vice-Reitor: Marcel Mendes

DECANATO DE PESQUISA E DE PÓS-GRADUAÇÃO


Decano: Moises Ari Zilber

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO


Coordenador: Antonio Máspoli de Araújo Gomes

ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA


Diretor: Edson Pereira Lopes

COORDENADORIA DE PUBLICAÇÕES ACADÊMICAS


Coordenadora: Helena Bonito Couto Pereira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Ciências da Religião: história e sociedade – v. 1, n. 1, (2003) –


São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2011–

Semestral
Publicação da Escola Superior de Teologia da Universidade Presbiteriana
Mackenzie.

ISSN 1678-5274 (impresso)


ISSN 1980-9425 (on-line)

1. História 2. Sociedade 3. Religião


CDD 200

A revista Ciências da Religião: história e sociedade é indexada


nas seguintes bases de dados:
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Universidade Presbiteriana Mackenzie

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EDITOR
Edson Pereira Lopes

CONSELHO EDITORIAL
Alderi de Souza Matos – Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)
Antônio Máspoli de Araújo Gomes – Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)
Arnaldo Érico Huff Júnior – Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Eun Yung Park – Universidade de São Paulo (USP)
Hermisten Maia Pereira da Costa – Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)
Jean Paul Willaime – Université Sorbonne Paris IV
João Baptista Borges Pereira – Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)
Julio Paulo Tavares Zabatiero – Escola Superior de Teologia (São Leopoldo)
Louis Painchaud – Université Laval Canadá)
Luis Henrique Dreher – Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Marcelo Perine – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
Maria Clara Luchetti Bingemer – Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro (PUC-RJ)
Maria Freire da Silva – Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção
Paulo Jorge Mendes Pinto – Universidade Lusófona de Humanidades
e Tecnologias (Portugal)
Paulo Rodrigues Romeiro – Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)
Ricardo Bitun – Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)
Ricardo Quadros Gouvêa – Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)

COORDENAÇÃO EDITORIAL
Silvana Gouvea
PROJETO GRÁFICO E CAPA
Libro Comunicação
PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS
Nelson Luis Barbosa
DIAGRAMAÇÃO
Know-How Editorial
REVISÃO
Studio Ayres

Os direitos de publicação desta revista são da Universidade Presbiteriana Mackenzie.


Os textos publicados na revista são de inteira responsabilidade de seus autores.
Permite-se a reprodução desde que citada a fonte.

REVISTA CIÊNCIAS DA RELIGIÃO


V. 9 • N. 2 • SÃO PAULO • 2011 • ISSN 1678-5274 (impresso) • ISSN 1980-9425 (on-line)

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA


Universidade Presbiteriana Mackenzie
Rua da Consolação, 896 – Prédio 24
Consolação – São Paulo – SP – CEP 01302-907

A revista Ciências da Religião: história e sociedade está disponível em:


http://www3.mackenzie.br/editora/index.php/cr

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SUMÁRIO
SUMÁRIO
Apresentação........................................................................................................... 9
Edson Pereira Lopes

ARTIGOS

1 Uso da Confissão de Fé de Westminster nos primórdios do


presbiterianismo brasileiro .............................................................................. 12
Bruno Gonçalves Rosi

2 O cântico de salmos na Igreja cristã até a Reforma...................................... 26


Dario de Araujo Cardoso

3 Deuses que dançam: da “topia” dos orixás à utopia tópica cristã ................ 52
Gilson Raslan Filho

4 A simbologia mortuária pomerana: simbolismos e significados


dos elementos componentes dos cemitérios pomeranos na região
de Santa Maria de Jetibá ................................................................................. 72
Gladson Pereira da Cunha

5 José Manoel da Conceição e João Maria de Agostini: duas faces na


religiosidade popular ...................................................................................... 100
Jair de Almeida Júnior

6 A sedução do transcendente e o sacrifício do imanente


em Kierkegaard ............................................................................................... 132
Jasson da Silva Martins
Jacqueline Oliveira Leão

SUMÁRIO 5

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7 Um estudo sobre a conversão religiosa no
protestantismo histórico e na psicologia
social da religião............................................................ 148
Antônio Máspoli de Araújo Gomes

8 A importância dos símbolos como práxis religiosa


na Igreja Universal do Reino de Deus .......................... 175
Elton Egydio Alves

9 José Manoel da Conceição: um reformador nativo .... 195


Hermisten Maia Pereira da Costa

RESENHA

1 Ethos Mundial: um consenso mínimo entre


os humanos, de Leonardo Boff ................................... 224
Edson Pereira Lopes

6 SUMÁRIO

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CONTENTS
CONTENTS
Presentation ............................................................................................................. 9
Edson Pereira Lopes

ARTICLES

1 Use of the Westminster Confession of Faith In the beginnings


of brazilian presbyterianism ........................................................................... 12
Bruno Gonçalves Rosi

2 The singing of psalms in the Christian Church until the Reformation........... 26


Dario de Araujo Cardoso

3 Gods dancers body in the religion of the orixás and in the pentecostal
christianity ........................................................................................................ 52
Gilson Raslan Filho

4 The pomeranian mortuary symbology: symbolisms and meanings


of the component elements of the cemeteries in the
Santa Maria of Jetibá ....................................................................................... 72
Gladson Pereira da Cunha

5 José Manoel da Conceição e João Maria de Agostini: two faces


in popular religiosity....................................................................................... 100
Jair de Almeida Júnior

6 Seduction transcendent and the sacrifice of the immanent


in Kierkegaard ................................................................................................. 132
Jasson da Silva Martins
Jacqueline Oliveira Leão

CONTENTS 7

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7 A study of religious conversion in protestantism
history of social psychology and religion..................... 148
Antônio Máspoli de Araújo Gomes

8 The importance of religious symbols in práxis


as the Igreja Universal do Reino de Deus.................... 175
Elton Egydio Alves

9 José Manoel da Conceição: a native reformer ........... 195


Hermisten Maia Pereira da Costa

REVIEW

1 Ethos Mundial: um consenso mínimo entre


os humanos, Leonardo Boff ......................................... 224
Edson Pereira Lopes

8 CONTENTS

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APRESENTAÇÃO
APRESENTAÇÃO

REFLEXÕES DA RELIGIÃO: TEOLOGIA,


RELIGIÃO E CAMPO RELIGIOSO
BRASILEIRO
A revista Ciências da Religião: história e sociedade, do
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, tem a satisfação de
apresentar mais um número de seu periódico. Nele, os artigos
contemplam os seguintes assuntos principais: teologia, reli-
gião e campo religioso brasileiro.
Na área teológica, o leitor encontra o artigo de Bruno
Gonçalves Rosi, “Uso da Confissão de Fé de Westminster nos
primórdios do presbiterianismo brasileiro”, cujo objetivo é
avaliar a importância dessa confissão na implantação do pres-
biterianismo no Brasil. Da perspectiva teológica, Dário de
Araujo Cardoso escreve acerca de “Os cânticos de salmos na
Igreja até a Reforma”, do século XVI. O autor explicita que o
artigo busca, a partir da origem judaica, identificar os cami-
nhos que levaram à inserção do cântico de salmos na liturgia
cristã, bem como, a partir da descrição do modo como ele era
praticado pelos os cristãos antes da Reforma Protestante, as
razões que motivavam e estavam envolvidas em tal prática.
Ainda relativo ao tema teológico, Jair de Almeida Júnior e
Hermisten Maia Pereira da Costa escreveram, respectivamente,
“José Manoel da Conceição e João Maria Agostini: duas faces
da religiosidade popular” e “José Manoel da Conceição: um
reformador nativo”, artigos que tratam da vida do primeiro
pastor protestante.
Os leitores têm ainda a oportunidade de refletir a respeito
de algumas temáticas que envolvem as discussões antropológicas
e filosóficas do campo religioso brasileiro. Entre os artigos
relacionados nessa área de estudo, encontra-se o de Jasson da
Silva Martins e Jacqueline Oliveira Leão, “A sedução do trans-
cendente e o sacrifício do imanente em Kierkegaard”, no qual

APRESENTAÇÃO 9

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os autores defendem que toda a obra de Kierkegaard pode ser
considerada um itinerário para Deus. No artigo “Deuses que
dançam: da ‘topia’ dos orixás à utopia tópica cristã”, Gilson
Raslan Filho explicita que, a partir da mitologia dos orixás, a
sensualidade dos deuses de matriz afro-brasileira ensaia uma
reflexão sobre a nova topia do cristianismo praticado por
neopentecostais e católicos renovados. Ainda na discussão da
religião com viés antropológico, encontra-se o texto de Gladson
Pereira da Cunha, “A simbologia mortuária pomerana: sim-
bolismos e significados dos elementos componentes dos
cemitérios pomeranos na região de Santa Maria de Jetibá”, em
que o autor discute que a postura do pomerano diante da
morte o diferencia dos demais grupos étnicos ao seu redor e de
outros grupos religiosos cristãos, sejam esses católicos ou pro-
testantes, demonstrando um traço único de sua identidade
sociocultural, na qual se inclui sua religião oficial, o luteranismo,
e sua religiosidade.
Com foco na religião a partir da psicologia, o artigo
“Um estudo sobre a conversão religiosa no protestantismo his-
tórico e na psicologia social da religião”, de Antônio Máspoli
de Araújo Gomes, analisa o termo conversão no protestantismo
histórico e na psicologia social da religião. Com ênfase no
campo religioso brasileiro, Elton Egydio Alves, em seu artigo
“A importância dos símbolos como práxis religiosa na Igreja
Universal do Reino de Deus”, explicita o fenômeno da simbo-
logia religiosa na denominação evangélica supracitada, na ten-
tativa de compreender o porquê da incorporação do símbolo
como regra de fé na vida do fiel, a prática litúrgica estabelecida
na Teologia da Prosperidade e em um misticismo semelhantes
aos xamãs e aos pajés, e na incorporação de conceitos ritualís-
ticos da umbanda, candomblé e espiritismo que ironicamente
são considerados inimigos da denominação.
Por fim, este volume se completa com a resenha de
Edson Pereira Lopes, que rememora a relação da religião com
as questões da ética ao revisitar o texto de Leonardo Boff
“Ethos Mundial: um consenso mínimo entre os humanos”.
Desejamos a todos boa leitura!

Edson Pereira Lopes


Editor acadêmico

10 APRESENTAÇÃO

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A R T AI RGT I GOO S S

A R T IACR T ILC LEE SS

11

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11
USO DA CONFISSÃO DE FÉ DE
WESTMINSTER NOS PRIMÓRDIOS
DO PRESBITERIANISMO BRASILEIRO

Bruno Gonçalves Rosi


Mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Professor auxiliar na Universidade Candido Mendes (UCAM).
E-mail: [email protected]

12 CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE


v. 9 • n. 2 • 2011

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RESUMO

Embora atualmente confissões de fé sejam questionadas ou preteridas


em determinados setores do cristianismo evangélico, durante a Reforma
Protestante esses documentos tiveram grande destaque, em especial nas
manifestações reformadas do movimento, sendo a Confissão de Fé de
Westminster o ápice das confissões de fé reformadas. O objetivo deste ar-
tigo é avaliar a importância dessa confissão na implantação do presbiteria-
nismo no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE

História da Igreja; Presbiterianismo; Igreja Presbiteriana do Brasil; Confis-


sões de fé; Confissão de Fé de Westminster.

1. INTRODUÇÃO
Heber Carlos de Campos (1997) identifica nos tempos
atuais do cristianismo evangélico profundos sinais de anticon-
fessionalismo. Embora tenham sido uma importante manifes-
tação da Reforma Protestante nos séculos XVI e XVII, confis-
sões de fé e catecismos perderam sua centralidade entre os

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Bruno Gonçalves Rosi

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evangélicos em tempos mais recentes, e, mesmo em manifes-
tações mais tradicionais do protestantismo, a esse tipo de do-
cumento não é atribuída mais a mesma relevância.
Considerando a corrente conjuntura aqui descrita, o
objetivo deste artigo é fazer uma breve recapitulação histórica
e factual do uso de uma confissão de fé em especial, a Con-
fissão de Fé de Westminster (CFW), nos primeiros anos da
Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), uma das primeiras ma-
nifestações do cristianismo evangélico a instalar-se em territó-
rio brasileiro.
O texto se justifica, portanto, em pelo menos dois pon-
tos: um é a ausência, ou pelo menos pequeno número, de traba-
lhos que lidem com esse assunto, as confissões de fé, especial-
mente seu uso entre evangélicos brasileiros. Outro é a mudança
de conjuntura relacionada ao uso desse tipo de documento, o
que mereceria análises específicas também. Por que confissões
de fé foram um produto relevante e central da Reforma Protes-
tante nos séculos XVI e XVII, mas atualmente encontram-se em
desuso? Por que as igrejas evangélicas brasileiras, em especial,
parecem fazer um uso diferenciado desse tipo de documento,
quando comparadas com suas congêneres europeias ou norte-
americanas? Essas são algumas perguntas que julgo dignas de
maior atenção.
O texto aqui apresentado é decorrente de pesquisas an-
teriores por mim realizadas em nível de mestrado para elabo-
ração de minha dissertação, abordando aspectos mais amplos
da implantação do presbiterianismo no Brasil. O uso de cre-
dos e confissões de fé constitui-se em um desdobramento es-
pecífico dessa pesquisa mais ampla.
Quanto à organização, o texto divide-se em três seções
principais, além desta introdução e da conclusão. Na primeira
seção, aspectos gerais relacionados às confissões de fé são apre-
sentados, tais como definições e suas origens históricas. Na
seção seguinte, é feita uma breve recapitulação histórica da
formulação da Confissão de Fé de Westminster e de seus cate-
cismos, assim como de sua adoção na Inglaterra, na Escócia,
nos Estados Unidos e, finalmente, no Brasil. Por fim, chega-se
ao objeto principal deste texto, o uso da Confissão de Fé de
Westminster nos primórdios do presbiterianismo brasileiro.

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v. 9 • n. 2 • 2011

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2. CONFISSÕES DE FÉ: ASPECTOS
GERAIS
Um credo pode ser definido do ponto de vista cristão re-
formado como “uma elaboração científica daquilo que cremos
com base na Escritura Sagrada” (CAMPOS, 1997, p. 97-128),
ou ainda, “uma afirmação concisa daquilo que alguém deve
crer a fim de ser um cristão” (DEMAREST, 1978, p. 345). Phi-
lip Schaff (1990, p. 3) diz que “um credo, regra de fé ou sím-
bolo é uma confissão de fé para uso público, ou uma forma de
palavras colocadas com autoridade [...] que são consideradas
como necessárias para a salvação, ou, ao menos, para o bem-
estar da igreja cristã”.
Já Paul Wooley (1973, p. 96) definiu credo como “uma
série de afirmações conectadas que são cridas como verdadei-
ras e que são derivadas de fontes de informação tais como os
registros dos acontecimentos na história”.
Basicamente, a definição de Confissão de Fé não difere
da definição de credo, senão na forma. Uma confissão contém
basicamente os mesmos elementos de um credo, mas de forma
bem mais elaborada, com detalhes que um credo não possui,
por ser mais conciso. Uma confissão aborda mais assuntos
do que um credo, e os apresenta de forma mais sistemática
(CAMPOS, 1997). Assim como os credos, Confissões de Fé
podem ser de autoria individual ou o resultado do trabalho de
diversas pessoas. No segundo caso, pode-se estar falando de
alguns indivíduos ou de grandes assembleias de teólogos, o
que foi o caso da Confissão de Fé de Westminster.
Historicamente, enquanto os credos possuem sua ori-
gem nos primeiros séculos da Igreja cristã, especialmente du-
rante as controvérsias dos séculos IV e V1 confissões de fé pos-
suem uma origem bem mais tardia, datando da Reforma
Protestante dos séculos XVI e XVII. As Igrejas Reformadas, da
tradição de Zuínglio e, especialmente, de João Calvino, sem-
pre primaram pela elaboração de credos e confissões, sendo
característica delas serem confessionais (CAMPOS, 1997;

1
Destacando-se entre os credos o Credo Apostólico, provavelmente do século II, o Credo de Niceia (325),
o Credo de Constantinopla (381) e o Credo de Calcedônia (451), entre outros.

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Bruno Gonçalves Rosi

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COSTA, 2004). Conforme o historiador Alderi Souza de
Matos (2006a) escreveu:

A Reforma Suíça caracterizou-se pela grande quantidade de de-


clarações doutrinárias que produziu, com objetivos confessio-
nais, apologéticos e didáticos. Num contexto de intensas con-
trovérsias, os reformados entenderam que era necessário expor de
modo claro e incisivo as suas convicções, com base nas Escrituras.
As confissões reformadas são uma das principais expressões e
fontes da teologia desse ramo protestante.

As primeiras confissões reformadas foram escritas na


Suíça, o berço do movimento. Várias delas foram elaboradas
no contexto de debates teológicos que levaram à aceitação do
protestantismo em diversas cidades daquela confederação
(MATOS, 2006b). Outras foram elaboradas em outros con-
textos, e mesmo em períodos mais tardios.
João Calvino, o grande teólogo reformado e principal
referência teológica do presbiterianismo, foi ele mesmo autor
de algumas confissões de fé (COSTA, 2004). Em 1536, pou-
cos meses após sua chegada a Genebra, ele compôs um peque-
no catecismo para instruir os moradores, especialmente crian-
ças e jovens2. A partir desse texto, foi elaborada a primeira
Confissão de Genebra (1536), que todos os cidadãos deviam
subscrever mediante juramento (MATOS, 2006c). Não se sa-
be exatamente se a Confissão de Genebra foi escrita por Cal-
vino, Guilherme Farel ou ambos, mas certamente observam-se
nela os temas centrais do pensamento do reformador francês
(MATOS, 2006c).

2
Um catecismo é semelhante a um credo ou a uma confissão, diferindo desses em sua estrutura,
organizada em perguntas e respostas, o que lhe confere um caráter mais pedagógico. Geralmente
catecismos são destinados ao público mais jovem ou menos instruído, enquanto Confissões de Fé
pretendem ser documentos mais elaborados. “Embora tecnicamente distintos das confissões de fé, os
catecismos também foram documentos através dos quais os reformados declararam e confessaram a
sua fé” (MATOS, 2006d).

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3. A CONFISSÃO DE FÉ DE
WESTMINSTER
A Assembleia de Westminster (1643-1648) pode ser
considerada o ponto culminante da elaboração confessional
reformada. Os documentos teológicos que dela resultaram, a
Confissão de Fé, o Catecismo Maior e o Breve Catecismo, foram
não apenas uma das principais contribuições teológicas dos
puritanos, os calvinistas ingleses, como também se tornaram
os padrões doutrinários mais aceitos pelos reformados e pres-
biterianos ao redor do mundo.
A Assembleia de Westminster e seus documentos teoló-
gicos foram também o ponto culminante de quase um século
de controvérsias entre puritanos e anglicanos de tendências mais
romanistas dentro da Igreja da Inglaterra. Na década de 1640,
os puritanos ganharam o controle do Parlamento inglês e en-
traram em guerra contra o rei Carlos I, naquilo que se tornou
a Revolução Puritana ou Guerra Civil Inglesa (1639-1660)
(STONE, 2000). Em 12 de junho de 1643, esse Parlamento
calvinista promulgou o ato convocando a assembleia que es-
creveria a confissão na abadia de mesmo nome.
Embora tenham sido auxiliados de maneira decisiva pe-
los presbiterianos escoceses, Oliver Cromwell e seu exército,
partidários do congregacionalismo, expulsaram os presbiteria-
nos do Parlamento inglês em 16483. Com o falecimento de
Cromwell em 1658 e a restauração da monarquia dois anos
depois, o episcopado foi restaurado na Igreja da Inglaterra,
sendo aprovadas rígidas leis que impunham submissão ao go-
verno e ao culto da Igreja nacional. Os presbiterianos foram
duramente perseguidos, sendo expulsos de suas igrejas e resi-
dências. Seguiu-se um longo período de perseguições, e assim,
somente em 1876, pôde ser organizada uma Igreja Presbiteria-
na da Inglaterra.
Enquanto isso, na Escócia, os padrões doutrinários de
Westminster foram prontamente aceitos e adotados pela As-

3
Posteriormente, os congregacionais produziram sua própria confissão de fé a partir da CFW, a cha-
mada Declaração de Savoy, de 1658. Essa é basicamente uma repetição da CFW com pequenas
adaptações referentes às doutrinas congregacionais a respeito do governo da Igreja (presbiteriano no
caso da CFW e independente ou congregacional no caso da Declaração de Savoy).

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sembleia Geral da Igreja Presbiteriana Escocesa, em 27 de
agosto de 1647. Com isso, a CFW substituiu na Igreja escoce-
sa os antigos documentos formulados durante a vida de John
Knox. A atitude dos presbiterianos escoceses, além de refletir
os méritos intrínsecos da CFW, fazia parte de uma política de
promoção da unidade entre os presbiterianos das Ilhas Britâ-
nicas. Por meio da imigração e de esforços missionários, esses
padrões foram levados para países como Irlanda do Norte, Es-
tados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, África do
Sul e, mais tarde, Brasil.
Assim, embora tenha sido utilizada pela Igreja da Ingla-
terra somente durante um breve período, a CFW tornou-se o
principal padrão doutrinário de presbiterianos e reformados
de maneira geral ao redor do mundo. Foi a última das grandes
confissões e certamente a que veio a apresentar as definições
mais precisas da doutrina reformada (CAMPOS, 1997).
Em 1729, o Sínodo da Filadélfia – o primeiro sínodo
presbiteriano na América do Norte –, em seu Adopting Act,
tornou a CFW e seus catecismos padrões doutrinários da Igre-
ja Presbiteriana norte-americana. Conforme já foi escrito a
respeito desse assunto:

Este Ato de Adoção convocava também os presbitérios a provi-


denciarem para que nenhum candidato ao ministério fosse ad-
mitido sem subscrever todos os artigos essenciais e necessários
da Confissão ou dos Catecismos. Providenciava também para
que, caso qualquer ministro do Sínodo não pudesse aceitar al-
gum artigo julgado necessário e essencial pelo presbitério, este
presbitério o declarasse impossibilitado de continuar como mem-
bro daquele corpo (SINGER, 1990, p. 333-334).

Embora os teólogos da Assembleia de Westminster te-


nham excluído da confissão tudo aquilo que identificavam
com o erastianismo, sua visão a respeito das relações entre Igreja
e Estado possuía aspectos não aceitos pelos pais do presbiteria-
nismo norte-americano. Dessa maneira, em seu Adopting Act,
o Sínodo da Filadélfia escolheu não adotar determinadas cláu-
sulas da confissão concernentes a esse assunto presentes nos
capítulos 20 e 23 desta. O objetivo do Sínodo era retirar da
confissão qualquer princípio doutrinário afirmando que o

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governo civil poderia exercer controle sobre os sínodos da
Igreja com respeito ao exercício de sua autoridade ministerial,
ou que o governo civil possuía poder para perseguir pessoas
por motivo de religião.
Em 1787, quando se preparava para a organização da
Assembleia Geral da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos,
o Sínodo fez uma revisão na confissão, modificando cláusulas
nos capítulos 20, 23 e 31 concernentes às relações entre Igreja
e Governo Civil. Com essas alterações, a CFW e seus catecis-
mos foram adotados como padrão doutrinário pela Presbyte-
rian Church United in the United States of America (Pcusa),
a Igreja do Norte. Em 1861, os mesmos padrões doutrinários
com as mesmas modificações foram adotados pela Presbyte-
rian Church in the United States (Pcus), a Igreja do Sul, e
dessa maneira utilizados pelos missionários de ambas as igrejas
no Brasil.

4. O USO DA CONFISSÃO DE FÉ DE
WESTMINSTER NOS PRIMÓRDIOS DO
PRESBITERIANISMO BRASILEIRO
Conforme foi visto até aqui, o uso de confissões de fé foi
uma característica de grande importância para as Igrejas refor-
madas dos séculos XVI e XVII, assim como para suas Igrejas
filhas nos Estados Unidos durante os séculos XVIII e XIX.
Nesse momento será avaliado o uso da CFW e seus catecismos
especificamente pelos missionários norte-americanos nos pri-
mórdios da Igreja Presbiteriana no Brasil.
Pouco após sua chegada, os missionários da Pcusa for-
maram no Brasil um concílio, o Presbitério do Rio de Janeiro,
ligado ao Sínodo de Baltimore, do tipo Velha Escola4. Com a
organização do presbitério nacional, subordinado ao Sínodo
norte-americano, vinha automaticamente a aceitação dos pa-
drões doutrinários daquele concílio: a CFW e seus catecismos.
Observação semelhante a essa pode ser feita a respeito dos

4
Para uma discussão detalhada em português do cisma entre Nova Escola e Velha Escola, ocorrido no
presbiterianismo norte-americano no século XIX, ver obra de Boanerges Ribeiro (1981).

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Bruno Gonçalves Rosi

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presbitérios ligados à Pcus, organizados após o presbitério do
Rio de Janeiro. Essa foi a situação até o Sínodo de 1888
(COSTA, 2004; RIBEIRO, 1981).
Formalmente, portanto, a CFW e seus catecismos foram
os padrões doutrinários do presbiterianismo brasileiro desde os
seus primeiros anos. Vamos procurar avaliar aqui até que ponto
essa era apenas uma formalidade e até que ponto os missioná-
rios utilizavam os padrões doutrinários de Westminster coti-
dianamente. Para isso, serão avaliados diferentes aspectos das
atividades eclesiásticas da nascente denominação: ordenação de
oficiais, evangelização (incluindo catequese de crianças), educa-
ção e formação de pastores. Em seu momento de emancipação
das igrejas mães dos Estados Unidos, os padrões doutrinários
recebidos foram confirmados na Igreja brasileira.
Em primeiro lugar, vejamos o uso dos padrões doutriná-
rios de Westminster na ordenação de pastores e outros oficiais
brasileiros. A respeito desse assunto, Costa (2004) observa que
ao ser ordenado pelo recém-criado Presbitério do Rio de Janei-
ro no dia 17 de dezembro de 1865, o ex-padre José Manuel da
Conceição fez os exames usuais para tal ocasião, entre os quais
declarar sua aceitação da CFW como padrão doutrinário.
De maneira semelhante, em 1870 o Presbitério do Rio
de Janeiro decidiu que Modesto Perestrelo Barros de Carvalho-
sa, Miguel Gonçalves Torres e Antônio Bandeira Trajano deve-
riam se preparar para a ordenação ao ministério estudando os
capítulos 1 a 14 da Confissão de Fé de Westminster (MATOS,
2004a). O Presbitério recomendou também que os candida-
tos utilizassem em seus estudos os livros Commentary on the
Confession of Faith e Outlines of Theology, ambos de Archibald
Alexander Hodge (SIMONTON, 1867). Conforme a nova
Igreja consolidava sua permanência no Brasil, adotou-se o
procedimento de pastores, presbíteros e diáconos, ao serem or-
denados, responderem afirmativamente à pergunta: “Recebeis
e adotais sinceramente a Confissão de Fé e Catecismos desta
Igreja, como fiel exposição do sistema doutrinário ensinado
nas Santas Escrituras?” (COSTA, 2004, p. 69-70).
Em segundo lugar, as evidências apontam para o fato de
que os padrões doutrinários de Westminster desempenhavam
um importante papel na evangelização dos brasileiros. Ainda
na primeira década de trabalhos no Brasil, os missionários

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concluíram que havia a necessidade de literatura evangélica
em português para evangelização. Em 1869, o Presbitério do
Rio de Janeiro, reunido em São Paulo, pediu à Junta de Nova
York que publicasse, em português, entre outros livros, a CFW
(FERREIRA, 1992). Cerca de sete anos depois, em 1876, a
Igreja Presbiteriana publicou em português a Confissão, um
dos primeiros livros publicados pelos missionários no Brasil
(RIBEIRO, 1981, 1987).
Em relação a um setor específico da evangelização, o
trabalho com crianças, Simonton faz menção em seus relató-
rios e em seu diário do uso de outros catecismos que não os de
Westminster em seu pastorado. Mas faz menção também do
uso do breve catecismo, possivelmente se referindo ao Breve Ca-
tecismo de Westminster (COSTA, 2004). Em 6 de setembro de
1865, um domingo, Blackford anota em seu diário: “Palestra
às 4 sobre Perguntas 16 e 17 do Breve Catecismo” (RIBEIRO,
1981, p. 166-167). Nas igrejas que iam sendo organizadas no
interior, o Catecismo também se fazia presente nos estudos
ministrados pelos missionários (RIBEIRO, 1981).
Em terceiro lugar, na área da educação, as pequenas es-
colas fundadas junto às igrejas utilizavam a Bíblia e o Breve
Catecismo no processo de alfabetização. Essa era uma forma
de compensar as deficiências do sistema de ensino vigente no
Império (RIBEIRO, 1981). Na Escola Americana de São Pau-
lo, um projeto educacional que viria a superar as escolas paro-
quiais em tamanho e abrangência utilizava-se também o Breve
Catecismo no curso (RIBEIRO, 1981).
Em quarto lugar, cabe ressaltar que a CFW e seus cate-
cismos desempenharam um importante papel na formação da
primeira geração de pastores brasileiros. Alguns desses primei-
ros pastores estudaram em um seminário primitivo criado por
Simonton em 1867, e utilizavam em seus estudos a CFW, as-
sim como livros de A. A. Hodge. Esse seminário formou al-
guns dos mais notáveis líderes do presbiterianismo brasileiro
em sua fase pioneira, mas teve curta duração: suas aulas foram
encerradas em 1870. Daí em diante, até que um novo seminá-
rio fosse organizado, em Nova Friburgo, em 1892, os candida-
tos ao ministério tiveram sua formação em regime preceptoral.
As Igrejas Presbiterianas dos Estados Unidos davam
grande importância à instrução dos seus pastores, e essa atitu-
de transferiu-se para o Brasil, o que tornava o regime precep-

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toral preocupante. Os missionários, especialmente Blackford,
insistiam na necessidade de criar-se um curso teológico per-
manente. Para remediar a situação, em sua reunião de 1878 o
Presbitério do Rio de Janeiro adotou um plano curricular de
estudos, que uniformizaria o preparo individual dos candida-
tos junto a seus preceptores. O currículo incluía, ao longo de
seus seis anos de duração, estudos da CFW e seus catecismos.
Dentro da bibliografia utilizada estavam livros de teologia de
A. A. Hodge e Charles Hodge, incluindo a CFW comentada
por A. A. Hodge. Os Presbitérios de Campinas e Oeste de Mi-
nas e de Pernambuco tomaram medidas semelhantes em 1887
e 1888, respectivamente. As fontes referentes ao currículo do
Presbitério de Campinas e Oeste de Minas são menos detalha-
das e permitem menos conclusões. Sabe-se, porém, que o cur-
rículo do Presbitério de Pernambuco incluía Outlines of Theo-
logy de Hodge e “pede permissão para acrescentar com mais
vagar aos autores” (RIBEIRO, 1981, p. 257-264; 355-361).
Finalmente, observa-se que a CFW confirmou-se na IPB
como padrão doutrinário. Durante o ano de 1881 saiu publi-
cado em vários fascículos, na Imprensa Evangélica, o Livro de
Ordem da Igreja Presbyteriana no Brazil. No capítulo VII, da
Primeira Parte, o livro dizia:

A Constituição da Igreja Presbiteriana no Brasil consiste de seus


Símbolos Doutrinais compreendidos na Confissão de Fé, nos
Catecismos Maior e Breve, juntamente com o Livro de Ordem
Eclesiástica, que abrange a Forma de Governo, as Regras de
Disciplina, e o Diretório do Culto.

No Sínodo de 1888, a CFW e seus catecismos foram


confirmados como símbolos de fé da Igreja Presbiteriana do
Brasil (RIBEIRO, 1987, p. 202). No Ato Constitutivo dessa
Igreja, em seu, art. 1º, § 2º, lê-se:

Os símbolos da igreja assim constituída serão a Confissão de


Fé e os Catecismos da assembléia de Westminster, recebidos
atualmente pelas igrejas presbiterianas nos Estados Unidos, e o
Livro de Ordem publicado na Imprensa Evangélica de 1881,
com as emendas já adotadas pelos presbitérios (COSTA, 2004,
p. 70-71).

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Conclui-se, portanto, que a CFW não era do ponto de
vista dos missionários da Pcusa e da Pcus uma “ortodoxia
morta”, e sim um padrão doutrinário válido, utilizado e repro-
duzido, como pode ser especialmente notado na organização
eclesiástica, na evangelização dos brasileiros, em trabalhos edu-
cacionais e na formação dos pastores nacionais.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Confissões de Fé foram uma marca central da Reforma
Protestante dos séculos XVI e XVII. Em seu caminho até o
Brasil, passando pela América do Norte, esses documentos
mantiveram um papel central no cristianismo reformado.
Conforme foi observado aqui, esse aspecto confessional
também marcou as primeiras Igrejas evangélicas do Brasil.
Analisando diferentes áreas de atuação desses primeiros gru-
pos, observa-se um uso bastante pluralizado e cotidiano da
Confissão de fé de Westminster, e mesmo de outros docu-
mentos análogos.
Embora atualmente possam ser observados indícios de
anticonfessionalismo no meio evangélico brasileiro, essa não
seria uma informação verdadeira para os primórdios do pro-
testantismo no Brasil, tomando como base para essa afirmação
uma das primeiras denominações evangélicas a se instalar no
país, a Igreja Presbiteriana do Brasil.

USE OF THE WESTMINSTER


CONFESSION OF FAITH IN THE
BEGINNINGS OF BRAZILIAN
PRESBYTERIANISM

ABSTRACT

Although currently confessions of faith are challenged or belittled in some


sectors of evangelical Christianity, during the Protestant Reformation the-
se documents had highlight, especially in the reformed manifestations of

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the movement, the Westminster Confession of Faith being the apex of
the Reformed confessions of faith. The aim of this paper is to evaluate the
importance of this confession in the deployment of Presbyterianism in
Brazil.

KEYWORDS

Church history; Presbyterianism; Presbyterian Church in Brazil; Con-


fessions of faith; Westminster Confession of Faith.

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O CÂNTICO DE SALMOS NA IGREJA
CRISTÃ ATÉ A REFORMA

Dario de Araujo Cardoso


Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) e em Teologia e
Exegese do Antigo Testamento pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper (CPAJ).
Professor na Escola Superior de Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) e do
Seminário Presbiteriano Reverendo José Manoel da Conceição.
E-mail: [email protected]

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RESUMO

Em diversos períodos da história da Igreja cristã, o cântico de salmos ocupou


lugar de destaque na vida e na liturgia. O presente artigo busca, a partir
de sua origem judaica, identificar os caminhos que levaram à inserção do
cântico de salmos na liturgia cristã, bem como, a partir da descrição do
modo como ele era praticado pelos cristãos antes da Reforma Protestante,
as razões que motivavam e estavam envolvidas em tal prática. O ponto de
partida será o uso do Livro de Salmos no culto de Judá. Serão discutidas
depois as hipóteses de como esse uso passou para a Igreja cristã, conside-
rando o cântico doméstico como o meio mais provável dessa transferência.
Por fim, será feita uma breve descrição dos principais momentos da prática
de cantar salmos na história da liturgia cristã até a Reforma.

PALAVRAS-CHAVE

Salmos; Psalmodia; Igreja cristã; liturgia; história.

1. INTRODUÇÃO
A psalmodia ou o cântico de salmos sempre representou
um papel importantíssimo na hinologia da Igreja cristã. Ela
serviu de contexto histórico, teológico e litúrgico tanto para os
grupos que a praticaram como para aqueles que optaram pela
composição de seus hinos.

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Por toda a história da Igreja vê-se o importante papel
desempenhado pelo Livro de Salmos na vida dos crentes indi-
vidualmente e da Igreja cristã como um todo. Dentre suas
muitas utilizações destaca-se seu uso como fonte e inspiração
para o cântico da Igreja.
Tal condição por si só justifica os estudo sobre os cami-
nhos que levaram à inserção do cântico de salmos na liturgia
cristã, bem como, a partir da descrição do modo como ele era
praticado pelos os cristãos antes da Reforma Protestante, sobre
as razões que motivavam e estavam envolvidas em tal prática.

2. AS CARACTERÍSTICAS E O USO
DO LIVRO DE SALMOS NO CONTEXTO
JUDAICO
No decorrer da história, o Livro de Salmos tem sido o
mais querido pela maioria dos cristãos. Ele tem sido usado
como base para a devocional, como modelo de oração, como
fonte de inspiração musical, como recurso para renovação de
ânimos e de propósitos. Vários de seus versos são sabidos de
cor e há quem conheça salmos inteiros.
Tudo isso se deve à sua linguagem pessoal e aos temas
que são tratados, em muito semelhantes àqueles que as pessoas
têm que tratar. Os salmistas são crentes enfrentando proble-
mas, buscando a Deus e recebendo as suas bênçãos. Por isso, é
grande a identificação com o Livro de Salmos. João Calvino
(1999), na dedicatória a esse livro, afirmou que nele encontra-
mos a anatomia de todas as partes da alma. Ou seja, todos os
sentimentos, condições e situações que o homem pode passar
estão descritos e representados no Livro de Salmos.
O termo saltério diz respeito a qualquer coletânea de
salmos, por isso, tem sido comumente aplicado ao livro bíblico.
O Livro de Salmos é uma coletânea constituída de 150 poe-
mas escritos por crentes israelitas que viveram antes de Jesus
Cristo. Alguns desses poemas trazem a descrição da ocasião de
sua origem, mas, na maioria deles, tal informação é difícil e até
impossível determinar. A maior parte deles, 73, é atribuída a
Davi, mas também são identificados outros autores: Moisés
(1), Salomão (2), Asafe (12), Hemã (1), Etã (1) e os filhos de

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Coré (10). No entanto, questiona-se, entre outras coisas, se
essas identificações são referentes somente à autoria ou se podem
designar pessoas a quem o salmo foi dedicado (WALTKE,
1991). É possível que o livro tenha sido preparado em partes,
mas sua composição final só ocorreu após o retorno de Judá
do exílio na Babilônia (539 a. C.) por um organizador não
identificado (HILL; WALTON, 2006) para ser utilizado no
tempo reconstruído de Jerusalém, o Segundo Templo.
A palavra hebraica traduzida por salmos quer dizer “lou-
vores”. Isso logo faz pensar nos hinos e nos cânticos que são
usados no culto cristão, certamente eles estão incluídos nessa
coleção. Mas uma leitura, mesmo superficial, verá que a maioria
desses poemas é de orações cantadas. Há também testemu-
nhos e ensinos sobre como se deve viver.
Dessa forma, no estudo dos salmos, o conceito de lou-
vor deve ser um pouco expandido. Ele é o reconhecimento da
glória, da soberania, da graça, do poder, da fidelidade etc. de
Deus sobre toda a criação. Tal reconhecimento é dado quando
se fala a respeito do ser e das obras de Deus (os hinos), mas
também quando lhe são feitas súplicas ao enfrentar dificuldades
ou pedidos de perdão (as lamentações), ao agradecer por livra-
mento, perdão e bênçãos recebidos de Deus (cânticos de grati-
dão), ao buscar viver conforme a sua vontade (salmos didáticos).
É muito interessante reparar que os salmos são dividi-
dos em cinco livros. Uma forma de lembrar os cinco livros de
Moisés, o Pentateuco ou, como os judeus os chamam, a Torah.
A Torah era a “constituição” do povo de Israel. Não quer dizer
apenas lei, mas instrução. É o ensinamento de Deus sobre co-
mo o israelita poderia viver e ser feliz sobre as bênçãos de Deus
por meio da sua aliança.
Assim, aparentemente, os salmos foram reunidos para
ser Torah do louvor. Neles há a instrução de como Deus deve
ser louvado e como é possível oferecer-lhe louvor com pleni-
tude, conforme o conceito reformado do princípio regulador
do culto (MARRA, 1997).
É, portanto, no contexto judaico, um abrangente bem
simbólico, formatado para estabelecer o habitus de um povo
que firmava seus laços de aliança com Javé. Observa-se também
que a origem conceitual desse bem é a revelação divina na Torah,
de modo que o Livro de Salmos apresenta-se como expressão de
uma atitude responsiva conforme propõe Costa (2009).

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Ainda que haja discordância quanto à função original
dos salmos, a maioria dos estudiosos concorda que “os salmos,
no processo de ser colecionados e compilados, foram adaptados
para propósitos litúrgicos – em particular, para cantar nos ritos
sacrificiais realizados no templo” (STAPERT, 1998, p. 15).
Há diversas indicações de que os salmos foram compostos
para serem cantados; no entanto, sua música e o seu modo de
cantar não foram preservados. No texto bíblico canônico fo-
ram preservadas suas letras e umas breves indicações musicais
genéricas, como o nome de melodias e a indicação de instru-
mentos a serem utilizados.
Em sua configuração final, observa-se que os salmos
foram preparados para ser utilizados na liturgia do templo.
Inicialmente esse propósito remonta à prática de Davi nas
ocasiões festivas no Tabernáculo e em sua preparação da nova
configuração das funções dos levitas após a construção do
Templo em Jerusalém (1 Crônicas 6.31-48; 15.16-28). A prá-
tica do cântico de salmos no templo manteve-se basicamente
fixa durante séculos até a definitiva destruição do tempo em
Jerusalém.
Tendo em mente os tempos de Jesus, McKinnon (1987,
p. 92) faz a seguinte descrição:

Os salmos eram cantados naturalmente no grande templo de


Jerusalém no tempo de Jesus; um salmo acompanhado por ins-
trumento era entoado com muita cerimônia no clímax do culto
diário do Templo quando os membros do cordeiro sacrificial
era consumido pelo fogo.

Segundo o autor, a cerimônia no templo terminava com


o canto de outro salmo (MCKINNON, 1986). Cada dia da
semana tinha seu salmo apropriado e o Hallel (salmos 113-118)
era cantado nas Luas Novas e nas Festas (BATE, 1980). Além
da Páscoa, McKinnon (1986) aventa a possibilidade do Hallel
também ser cantado no primeiro dia do Pentecostes, nos oito
dias da Festa dos Tabernáculos e nos do Hannukah.
No templo, os salmos eram entoados por uma linha fa-
miliar da tribo de Levi que, segundo o Livro das Crônicas,
fora designada por Davi para dedicar-se e preparar-se para esse
mister. Eram, portanto, músicos profissionais (BATE, 1980).

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Tratava-se de uma prática litúrgica altamente formalizada. Era
executada durante ou depois do sacrifício estabelecendo uma
íntima relação entre o sacrifício e a música (MCKINNON,
1986). Esse canto litúrgico elaborado dos salmos encerrou-se
entre os judeus com a destruição do Templo de Jerusalém em
70 d. C.
O uso dos salmos na sinagoga tem despertado maior
controvérsia. Bate (1980, p. 321-322) defende que

[...] na liturgia da sinagoga cerca de 50 salmos eram recitados a


cada dia da semana nas reuniões da manhã, da tarde e da noite,
com outros salmos adicionados nos Shabats e nos dias santos.
Os salmos penitenciais e suplicatórios eram cantados em certos
momentos, incluindo dias de jejum.

Segundo o autor, é desse uso sinagogal que procede a


prática do cântico de salmos na Igreja cristã primitiva (BATE,
1980), sendo essa a concepção comum sobre o tema.
Por sua vez, McKinnon (1987) defende que tal prática
é um desenvolvimento tardio e que os salmos não eram usados
na sinagoga no tempo de Jesus. Primeiro porque afirma que a
oração como parte da ordem litúrgica regular só seria estabele-
cida pela escola de Jabneh (75 a 117 d. C.) como um substi-
tuto para os cultos no Templo após a destruição desse pelos
romanos. Stapert (1998) observa que em nenhum lugar do
Novo Testamento lemos que alguém foi à sinagoga para orar.
Invariavelmente é registrado que as pessoas oram no templo
ou em casa. O único texto que parece contrariar essa afirmação
é Mateus 6.5, que afirma que os fariseus oravam nas praças e
nas sinagogas. No entanto, o tom de crítica de Jesus dá a enten-
der que essa prática era excepcional e hipócrita, visando criar
uma falsa imagem de espiritualidade. Stapert (1998) afirma
também que a Mishna (c. 200 d. C.) e os Talmudes de Jerusalém
(400 d. C.) e Babilônico (500 d. C.) não fazem menção a uso
de salmos nessas orações. Somente no Sopherim, um tratado
do século VIII, pode-se encontrar uma menção sobre a recitação
diária dos salmos (STAPERT, 1998), ainda assim, isso é feito
expressando escrúpulos por causa da sua íntima associação
com o sacrifício no Templo (MCKINNON, 1987). Os salmos
deveriam ser cantados no final da reunião, precedidos por
uma clara referência à psalmodia do templo: “Este é o primeiro

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[ou segundo etc.] dia da semana, no qual os levitas costumavam
dizer...” (MCKINNON, 1986, p. 183). Mesmo em data tão
tardia, era necessário justificar o cântico de salmos dissociado
dos sacrifícios. Assim, McKinnon (1987) conclui que não havia
o canto de salmos na sinagoga nos tempos de Jesus, e que essa
não pode ser a origem do cântico de salmos na Igreja cristã.

3. AS ORIGENS DA PSALMODIA NA
IGREJA CRISTÃ
Se é assim, de onde teria vindo a prática do cântico de
salmos na Igreja cristã?
Stapert (1998, p. 18-19) sugere que os salmos eram tan-
to “música de igreja” quanto “música de casa” para os judeus.
Eles eram parte importante da vida diária de judeus e dos pri-
meiros cristãos. Entre os judeus, é provável que o cântico de
salmos fizesse parte das reuniões familiares para a instrução
religiosa dos filhos. Essa prática de unir o cântico ao ensino
pode ser depreendida de 4 Macabeus 18.15, que “sugere que
não era incomum em uma família devota o pai cantar salmos
para os seus filhos em tais ocasiões. O cântico de salmos pode
portanto ser considerado ter sido um acompanhante normal
da vida religiosa da família na casa” (SMITH, 1984, p. 10).
Ainda que essa prática não possa ser identificada nas pá-
ginas do Antigo Testamento. Podem ser apontados diversos
registros do cântico nas mais diferentes ocasiões da vida coti-
diana de Israel. Essa prática se apresenta em tempos muito
anteriores à institucionalização do cântico no templo de Israel.
Podem-se citar inicialmente o cântico de Moisés e o cântico
de Miriam (Ex. 15.1-21). Moisés também compôs um cântico
registrado em Deuteronômio 32.1-43 e o salmo 90. O Livro
de Samuel registra o cântico de Ana quando gerou seu filho
(1Sm 2.1-10) e o Livro de Crônicas registra cânticos de Davi
em diversas ocasiões. Tais referências servem para mostrar que
as origens do cântico em Israel não estão relacionadas ao cân-
tico no templo. Pelo contrário, tal uso é, na verdade, decor-
rente de uma tradição musical ainda não claramente descrita.
McKinnon (1987, p. 93-94) defende que a relação en-
tre o cântico de salmos pelos cristãos e os costumes judaicos

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deve ser feita por meio da refeição cerimonial judaica da Páscoa.
Seguindo o relato dos evangelhos, “o hino cantado por Jesus e
seus discípulos deveria ter sido o Hallel (Salmos 113-18), reci-
tado por todos os judeus na Ordenança da Páscoa”. Ele
observa que “uma refeição noturna comum era o principal
local da psalmodia cristã nos primeiros três séculos da era
cristã” (MCKINNON, 1987, p. 93-94). Assim ele conclui:

Refeições noturnas comuns [...] permaneceram um costume


cristão de alguma importância por vários séculos, e o cântico de
salmos e hinos, bíblicos e recentemente compostos, parece ter
figurado proeminentemente nesses encontros (MCKINNON,
1987, p. 93-94).

A título de comprovação, McKinnon (1987, p. 94) cita


alguns dos pais da Igreja. Segundo o autor, Tertuliano (morto
em 215 d. C.), descrevendo essas refeições cristãs, escreveu no
Apologeticum XXXIX. 16-18: “Depois de lavar as mãos e acen-
der as lâmpadas, cada um é incentivado a vir para o meio e
cantar a Deus, seja das sagradas escrituras ou de sua própria
invenção”. Obviamente, cantar “das sagradas escrituras” tem
como principal referência o uso dos salmos e outros hinos
registrados na Bíblia, ainda que possa referir-se a qualquer texto
bíblico. Por sua vez, ao citar Clemente de Alexandria (morto
em 215 d. C.), preocupado em evitar os excessos musicais pre-
sentes nos banquetes pagãos, McKinnon (1987, p. 94) afirma
que ele exorta em seu Paedagogus “a cantar salmos com mode-
ração no ‘simpósio sóbrio’ dos cristãos”. A expressão “simpó-
sio sóbrio” está em contraposição aos “banquetes pagãos” e
implica, portanto, que a natureza da reunião dos cristãos estava
ligada a uma refeição, de forma que recomenda que essa faça
uso do cântico de salmos em vez de outras músicas. Observa-
se aqui também o caráter não litúrgico dessas refeições, uma vez
que era necessário indicar o cântico de salmos em vez do uso
de outras músicas, algo que seria desnecessário no contexto li-
túrgico. Já Hippolytus de Roma (morto em c. 236 d. C.), se-
gundo McKinnon (1987, p. 94). , registra que no final da
reunião “salmos eram cantados com o refrão Aleluia”, uma
provável referência ao Hallel, grupo de salmos (113-118) que
têm o refrão Aleluia. Por fim, McKinnon (1987, p. 95) cita
Cipriano de Cartago (morto em 258 d. C.), que recomenda
calorosamente o cântico de salmos:

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Agora, como o sol está partindo em direção à noite, vamos gastar
o que resta do dia em alegria e não permitir que a hora da refeição
fique intocada pela graça celestial. Deixe um salmo ser ouvido no
banquete sóbrio e, desde que sua memória esteja certa e sua voz
agradável [uox canora], dedique-se à essa tarefa como é seu costu-
me. Você nutrirá melhor seus amigos se providenciar um recital
espiritual [espiritualis auditio] para nós e divirta nossos ouvidos
com doces acordes religiosos [religiosa mulcedo].

Todas essas descrições se mostram concordes com a des-


crição de Plínio, o Jovem, em sua carta ao imperador Trajano
(BETTENSON, 1967, p. 28-32), sobre o culto praticado pelos
cristãos.

Foram unânimes em reconhecer que sua culpa se reduzia a


apenas isso: em determinados dias, costumavam comer antes
da alvorada e rezar responsivamente hinos a Cristo, como a um
deus; obrigavam-se por juramento não a algum crime, mas à
abstenção de roubos, rapinas, adultérios, perjúrios e sonegação
de depósitos reclamados pelos donos. Concluído esse rito,
costumavam distribuir e comer seu alimento.

Além do contexto da refeição comunitária, a relação en-


tre a oração e o cântico deve ser especialmente notada. Ela
indica que o jovem inquisidor viu nos relatos colhidos mais do
que a exaltação de Cristo, os pedidos e súplicas bem caracterís-
ticos dos salmos. O fato de Plínio não citar os salmos não deve
ser considerado indício de maior relevância, pois provindo de
origem romana, não teria como identificar a descrição feita
por aqueles que eram interrogados com o corpus específico do
saltério judaico. A diferença do horário parece indicar que as
reuniões podiam dar-se tanto pela manhã como pela noite,
algo similar à prática cúltica do Templo de Jerusalém e uma
provável origem das Matinais e Vesperais da liturgia cristã.
A despeito da evidente presença do cântico de salmos na
Igreja patrística, é interessante notar que a mais clara e mais
completa descrição de culto cristão dominical, feita por Justi-
no Martyr (morto em 165), nada diz acerca do cântico:

E no dia chamado para o sol há uma assembleia em um lugar


para todos os que vivem nas cidades e no campo; e as memórias
dos apóstolos e os escritos dos profetas são lidos tanto quanto o

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tempo permita. Então, quando o leitor termina, o que preside
fala, admoestando e exortando a imitar aqueles nobres feitos.
Então nós todos levantamos juntos e oferecemos orações. E
quando, como dissemos acima, nós terminamos as orações, pão
é trazido, e vinho e água, e o que preside semelhantemente ofe-
rece orações e ações de graças, de acordo com sua habilidade, e
o povo dá seu assentimento exclamando Amém. E ali se dá a
distribuição a cada um e a partilha daquilo sobre o que se deu
graças, e isso é levado aos que não estão presentes pelo diácono
(STAPERT, 1998, p. 20).

Stapert (1998) observa o perigo de argumentar a partir


do silêncio. No entanto, a descrição clara, direta e sequencial
tem grande peso na análise desse texto. Mesmo assim, não se
dispõe a afirmar que os salmos estariam totalmente ausentes
na adoração cristã antiga. “Eles poderiam muito bem ter esta-
do entre ‘os escritos dos Profetas’ que eram lidos...” (STA-
PERT, 1998, p. 20). Adiciona que seria difícil acreditar em tal
ausência tendo em vista a atitude positiva ao cântico dada pe-
los apóstolos Paulo e Tiago em suas cartas. Admite, porém,
que “a evidência não nos permite manter um quadro da ado-
ração cristã antiga na qual o cântico de salmos era uma carac-
terística fixa e regular” (STAPERT, 1998, p. 20).
É preciso observar ainda que é muito difícil diferenciar
as reuniões nos lares do culto na Igreja cristã antiga. No entan-
to, é suficiente considerar que essas citações indicam uma im-
portante presença do cântico de salmos nos lares, em especial
nas refeições vespertinas, ainda que tal cântico estivesse ausen-
te dos cultos dominicais. Tal indicação contribui com a hipó-
tese de ver o cântico de salmos como um instrumento de soli-
dificação da fé dos cristãos. Um bem especificamente indicado
para conferir às reuniões dos cristãos um ambiente sóbrio
apropriado para o louvor de Deus e a comunhão fraternal.

4. O ENTUSIASMO PELA PSALMODIA A


PARTIR DO SÉCULO IV
Além das profundas transformações vividas pela Igreja
por conta de sua oficialização no Império Romano ocidental,
pode-se identificar uma “grande onda de entusiasmo pelos salmos

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do Antigo Testamento que varreu de leste a oeste na segunda
metade do quarto século. Nada semelhante foi visto antes ou
depois no cristianismo ou no judaísmo” (MCKINNON,
1987, p. 98). Por exemplo, Basílio (c. 330-379), Crisóstomo
(349-407) e Ambrósio (340-397) defendiam

[...] que tudo o que é bom e verdadeiro em toda a Bíblia é me-


lhor exemplificado no Livro de Salmos; eles especificaram
como havia salmos individuais para falar a cada necessidade e
condição humana; e explicavam com aprovação como a melo-
diosidade dos salmos tornou seus textos mais acessíveis ao fiel
do que os outros textos bíblicos (MCKINNON, 1987, p. 98).

Basílio, num sermão sobre o salmo 1, disse:

Os profetas ensinam certas coisas, os Históricos e a Lei ensinam


outras, e os Provérbios proveem ainda um diferente tipo de
conselho, mas o Livro de Salmos abrange o benefício de todos
eles. Ele proclama o que virá e eterniza a história; ele legisla para
a vida, dá conselho em assuntos práticos e serve em geral como
um repositório de bons ensinos, cuidadosamente expondo o
que é adequado para cada indivíduo (WITVLIET, 2007, p. 3).

Nessa descrição de Basílio, o Livro de Salmos é apresen-


tado como uma estrutura estruturante, um instrumento
abrangente para a formação do habitus cristão que é capaz de
oferecer aquilo que se encontra em todas as outras partes das
Escrituras. No entanto, é interessante observar que Basílio, lo-
go em seguida, demonstra que tal utilidade e diferencial dos
salmos não se restringe à sua letra, mas ao fato de estarem as-
sociados à música. Ele escreve:

O que fez o Espírito Santo quando viu que a raça humana não
era conduzida facilmente à virtude, e que, devido à nossa incli-
nação para o prazer, damos pouca atenção a uma vida reta? Ele
misturou a doçura da melodia com a doutrina de modo que
inadvertidamente nós pudéssemos absorver o benefício das pa-
lavras através da gentileza e facilidade de ouvir [...]. Assim ele
criou para nós essas harmoniosas melodias dos salmos, de for-
ma que aqueles que são crianças na sua idade, bem como aque-
les que são jovens em comportamento, ainda que aparecendo
apenas para cantar pudessem ser treinados em suas almas. Pois

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nenhuma dessas pessoas indiferentes jamais deixa a igreja reten-
do facilmente na memória alguma máxima dos apóstolos ou
dos profetas, mas elas cantam os textos dos Salmos em casa e
circulam com eles no mercado (WITVLIET, 2007, p. 3-4).

O entusiasmo para com o cântico de salmos é evidente.


Schaff (2002) registra que, para Crisóstomo, o cântico dos
salmos de Davi era o começo, o meio e o fim das assembleias
dos cristãos, em oposição às predileções heréticas que prefe-
riam cantar canções não inspiradas. Discorrendo sobre o sal-
mo 61,1-2, Crisóstomo disse:

Desde que esse tipo de prazer é natural a nossa alma, e para que
os demônios não introduzam cânticos licenciosos e perturbem
tudo, Deus erigiu a barreira dos salmos, de forma que eles pu-
dessem ser uma questão de prazer e proveito. Pois a partir de
músicas estranhas, dano e destruição entram juntamente com
uma coisa temível, pois o que é arbitrário e contrário à lei nessas
canções instala-se nas várias partes da alma, tornando-a fraca e
flexível. Mas dos salmos espirituais pode vir considerável pra-
zer, muito do que é útil, muito do que é santo, e o fundamento
de toda filosofia, enquanto esses textos limpam a alma e o
Espírito Santo paira suavemente sobre a alma que canta tais
canções (WITVLIET, 2007, p. 6).

Nesse mesmo comentário, Crisóstomo procura ressaltar


o valor do cântico de salmos nas refeições domésticas, reto-
mando o contexto anterior dos primeiros séculos da Igreja e
descrevendo essa prática com um eficiente instrumento de
instrução familiar. Continua Crisóstomo:

Eu digo essas coisas, não para que você sozinho cante louvores,
mas para que você ensine seus filhos e esposa também a cantar
tais canções, não somente enquanto costuram ou enquanto en-
gajados em outras tarefas, mas especialmente à mesa. Pois uma
vez que o demônio geralmente se coloca à espreita nos banque-
tes, tendo com seus aliados a bebedeira e a glutonaria, junto
com o riso desordenado e um espírito licencioso, é necessário
especialmente então, antes e depois da refeição, construir uma
defesa contra ele com os salmos, e levantar do banquete junto
com esposa e filhos para cantar hinos sacros a Deus (WITVLIET,
2007, p. 6).

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Uma amiga de Jerônimo chamada Paula escreveu:

[...] fora dos salmos há silêncio. Onde quer que você vire, o lavrador
canta Aleluia enquanto dirige seu arado; ceifador suado encan-
ta-se com Salmos e o vinhateiro canta algo de “David” enquanto
ele poda a vinha com sua foice (CABANISS, 1985, p. 195).

É notável como todas essas referências tratam do cânti-


co de salmos no contexto cotidiano. O que ressalta não é o
valor litúrgico, mas sua presença em todos os momentos da
vida e, em decorrência disso, seu impacto purificador e prote-
tor contra a desordem e a licenciosidade. Como estrutura es-
truturante, o cântico de salmos promovia seus efeitos a partir
simplesmente de sua prática, sem a necessidade de orientado-
res ou mediação.
Talvez por isso, algumas décadas depois, Agostinho não
deixe de reconhecer a utilidade do cântico de salmos para a
edificação, ainda que tenha tratado com tanto cuidado a ques-
tão musical na igreja. Em suas Confissões, Agostinho expressa
“sua angústia sobre o intenso prazer que experimentou ao ou-
vir a psalmodia milanesa” promovida por Ambrósio (MCKIN-
NON, 1987, p. 99).
No capítulo em que descreve as tentações do ouvido,
Agostinho (1997, p. 307-308) escreve

Os prazeres do ouvido me prendem e escravizam com mais te-


nacidade, mas tu me soltaste e me livraste deles. Ainda agora
encontro algum descanso nos cânticos vivificados pelas tuas pa-
lavras, quando entoados com suavidades e arte, sem porém per-
manecer preso, a ponto de não me desvencilhar quando quero.
É verdade que essas melodias exigem não pequeno lugar em
meu coração, e querem ser aí admitidas em companhia dos
pensamentos que as vivificam, e eu me esforço para conceder-
lhes apenas o que lhes convém. Às vezes, parece-me tributar-
lhes atenção excessiva; mas, por outro lado, sinto que, se aque-
las palavras são cantadas assim, nossas almas são impelidas a um
fervor de piedade mais devoto e mais ardente. Sinto que todos
os nossos afetos interiores encontram na voz e no canto um
modo próprio de expressão, uma como misteriosa e excitante
correspondência. No entanto, muitas vezes me seduzem; os
prazeres da carne, aos quais não se deve permitir que enfraque-
çam o espírito; os sentidos não acompanham a razão, aceitando

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posição subalterna: tendo sido aceitos apenas para servir a ela,
procuram precedê-la e guiá-la. Deste modo, peco sem consen-
timento; mais tarde, porém, a reflexão me adverte.

Agostinho registra que os cânticos vivificados pelas pa-


lavras de Deus – ou seja, que utilizavam o texto canônico – lhe
concediam descanso. No entanto, as melodias tendiam a fazê-lo
afastar-se desses pensamentos, chamando atenção excessiva,
ao mesmo tempo que despertavam “um fervor de piedade
mais devoto e mais ardente” (AGOSTINHO, 1997, p. 308).
Quando os sentidos não acompanhavam a razão e não a ser-
viam, Agostinho entendia que havia pecado.
Mesmo assim, Agostinho rejeita a posição severa de re-
tirar da Igreja o cântico e preconiza a prática de Atanásio que
lia os salmos com pequena modulação de voz. No entanto,
não pode deixar de reconhecer o impacto que os cânticos tive-
ram em sua conversão.

Outras vezes, pelo contrário (mas muito raramente), exagerando


em precaver-me desse perigo, peco por excessiva severidade, a
ponto de querer privar meus ouvidos, e consequentemente os
de toda a igreja, das suaves melodias usadas para acompanhar o
Saltério de Davi. Nessas ocasiões, me parece mais seguro seguir
o costume de Atanásio, bispo de Alexandria: segundo ouvi dizer,
ele fazia ler os salmos com modulação de voz tão discreta, que
mais parecia uma recitação que um canto. Todavia, quando me
lembro das lágrimas derramadas ao ouvir os cânticos de tua
igreja nos primórdios de minha conversão à fé, e ao sentir-me
agora atraído, não tanto pela música como pela letra dessas
melodias, cantadas em voz límpida e modulação apropriada,
reconheço de novo a grande utilidade deste costume. Assim,
oscilo entre o perigo do prazer e a constatação de seus efeitos
salutares. Portanto, mesmo não querendo exprimir um julga-
mento definitivo, inclino-me a aprovar o costume de cantar na
igreja, para que os espíritos mais fracos possam, através do pra-
zer dos ouvidos, elevar-se na devoção (AGOSTINHO, 1997,
p. 308-309).

Com isso, vê-se que Agostinho reconhecia não somente


o valor teológico conferido pela letra dos salmos, mas também

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o benefício espiritual, ainda que acompanhado de risco,
advindo do costume de cantar os salmos, especialmente para
firmar os espíritos mais fracos, sendo um instrumento para a
solidificação da fé.
McKinnon (1987, p. 99) registra que tal movimento
promoveu uma grande quantidade de homilias ou sermões
baseados nos salmos, de modo que foram preservadas coleções
dessas homilias das principais figuras da Igreja daquele período
que cobrem todo o saltério. Tais homilias eram baseadas em
um único salmo ou muitas das vezes num único versículo que
era pregado a partir da interpretação alegórica. É interessante
observar que há registro da prática de pregar “no verso refrão
do salmo do salmo que a congregação tinha cantado anterior-
mente no culto em resposta ao cantor ou leitor cantante do
salmo” (MCKINNON, 1987, p. 99). Como comprovação
de sua hipótese, McKinnon (1987, p. 99-100) apresenta a
seguinte observação em que inclui um trecho do comentário
de Crisóstomo ao Salmo 117.1:

Uma melhor construção deste quadro deve ser a partir de uma


composição de literalmente dúzias de registros existentes, mas
vários dos elementos essenciais estão presente em uma única
passagem de Crisostomo: “A parte do salmo que as pessoas es-
tão acostumadas a cantar em resposta é o seguinte: “Este é o dia
que o Senhor fez, vamos nos alegrarmo-nos nele e ser feliz” (Sl
117.24). Ela desperta a muitos, e as pessoas são especialmente
acostumadas a responder com ele naquela assembleia espiritual
e celestial banquete. Nós, no entanto, se quiseres, devemos
prosseguir o salmo inteiro desde o começo, não do verso do
responso, fazendo nosso comentário desde a introdução”.
Observa-se que o salmo 117 era cantado responsorialmente e
que a resposta congregacional era o verso 24.

Nesse caso, Crisóstomo faz a opção de pregar sobre o


salmo todo, mas deixa claro que a prática corrente era a prega-
ção baseada no refrão cantado no responso.
Tais referências são importantes para demonstrar que,
mesmo dentro do processo de institucionalização litúrgica do
cântico de salmos, processo que o afastava de sua origem de-
vocional nas refeições comunitárias, os principais personagens

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da Igreja procuravam, por meio da pregação, promover o
valor dos salmos para a edificação, demonstrando, assim, sua
qualidade como bem simbólico e como útil promotor do
habitus cristão.

5. A CONTROVÉRSIA ENTRE O
CÂNTICO DE SALMOS E O
CÂNTICO DE HINOS
A partir do século IV, também se observam registros de
uma relevante controvérsia entre a psalmodia e a hinologia. O
Concílio de Laodiceia (meados do século IV) proibiu, em seu
artigo 59, o cântico de canções não inspiradas ou privadas na
liturgia. O Concílio de Calcedônia (451) e Concílio de Braga
(c. 560) confirmaram essa decisão (SCHAFF, 2002).
Por sua vez, em 633, o Concílio de Toledo, no cânone
17, “rejeitou a posição de que era ilegal cantar hinos compos-
tos por seres humanos simplesmente porque eles não eram
tomados das Escrituras ou autorizadas por longa tradição”
(CABANISS, 1985, p. 205).
A controvérsia, no entanto, perdurou por vários séculos.
No século IX, Agobard (794-840), bispo rigorista de Lyon,
declarou: “A Majestade Divina não deveria ser louvada pelas
fantasias de ninguém, mas pelas prescrições do Espírito Santo”
(CABANISS, 1985, p. 205). Tal declaração, a despeito de não
ter prevalecido na Igreja, tem sido reiterada por muitos indiví-
duos desde então, e, por exemplo, é notadamente similar
àquela adotada pela Confissão de Fé de Westminster (1647)
em seu artigo XXI.1:

o modo aceitável de adorar o verdadeiro Deus é instituído por


ele mesmo, e é tão limitado pela sua própria vontade revelada,
que ele não pode ser adorado segundo as imaginações e inven-
ções dos homens, ou sugestões de Satanás, nem sob qualquer
representação visível, ou de qualquer outro modo não prescrito
nas Santas Escrituras (MARRA, 1997, p. 110).

Tal postura adotada pelas Igrejas reformadas tem como


base a constatação de Calvino (1995, p. 201) de que “os

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homens não atentam ao que Deus ordenou e ao que ele aprova,
para poder servi-lo de modo apropriado, mas dão a si mesmos
o direito de inventar modos de culto, e depois os impõe a ele
como substitutos à obediência”.
Desse modo, vê-se que paira na história do pensamento
litúrgico a percepção, ainda que não prevalecente, de que os
salmos são os instrumentos mais adequados para ser emprega-
dos na adoração cristã. No entanto, após o século VII, a Igreja,
de modo geral, se mostrou disposta a admitir o cântico de hi-
nos não baseados nos trechos das Escrituras, recuperando a
prática comum do início da Igreja cristã e preservada na Igreja
oriental.
Sobre essa discussão, é importante registrar algumas das
conclusões de CABANISS (1985, p. 206):

1. Psalmodia, prosa e verso, tem sido a característica da oração


e do louvor desde início do cristianismo, sem particular consi-
deração a partidos na igreja. 2. Psalmodia nunca foi utilizada
para a exclusão dos hinos, exceto temporariamente, entre pe-
quenos grupos, e nestes casos, os hinos tenderam a rastejar de
volta com paráfrases de passagens do Novo Testamento. 3.
Psalmodia métrica nunca foi produzida para substituir os sal-
mos prosa. 4. salmos e hinos métricos tendem a fundir-se quase
imperceptivelmente em dois tipos de situações, quando aos sal-
mos são dadas colorações distintivamente cristãs e quando os
textos bíblicos que não salmos são admitidos. 5. Ninguém que
crê na inspiração das Escrituras poderia atribuir esse tipo de
inspiração para um livro de salmos métricos mais do que pode-
ria para um hinário.

Aparentemente, Cabaniss quer defender mais do que as


informações históricas permitem, pelo menos no que diz respei-
to ao Ocidente. Deve-se observar, como será visto adiante,
que a psalmodia em verso encontrou significativa resistência
em toda a história da Igreja cristã até a Reforma Protestante.
Por isso, mesmo aqueles que a praticavam, mantiveram seu
caráter secundário ante a prosa e a reserva quanto à atribuição
de caráter inspiracional dessas composições. Deve-se observar
também que, embora a hinologia fosse proeminente no Oriente,
no Ocidente a psalmodia manteve hegemonia até o século VII.

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6. O MODO DE CANTAR OS SALMOS
NA IGREJA CRISTÃ MEDIEVAL
O texto dos salmos cantado no Ocidente inicialmente
era o da versão Vetus Itala. Dessa versão somente alguns frag-
mentos sobrevivem, especialmente nos cantos gregorianos
(BATE, 1980, p. 320). Por volta do século IV, a tradução de
Jerônimo era amplamente aceita no Ocidente, a qual, por cau-
sa de sua rápida penetração na Gália, ficou conhecida como
Saltério Galicano. Porém

[...] até a Idade Média tardia a igreja da Itália continuou a usar um


saltério do antigo modelo (talvez a primeira tradução de Jerônimo,
uma revisão muito apressada da Velha Latina [Vetus Itala]), que
veio a ser chamado Saltério Romano (BATE, 1980, p. 323).

Nesse período, os salmos eram cantados em prosa, e


Cabaniss (1985) descreve os modos como podiam ser entoados:
um solista cantava uma intrincada melodia enquanto outros
se juntam a ele numa parte coral simples nos intervalos; um
coral poderia ser treinado para cantar a prosa em elaborados
padrões musicais; uma pessoa com inclinação musical poderia
improvisar; ou uma fala extática, exaltada ou elevada podia
estar relacionada com a improvisação individual. Tais usos
atualmente podem ser vistos no canto gregoriano, no canto
anglicano e na música negra dos Estados Unidos.
McKinnon (1987) registra a controvérsia entre Agostinho
e um certo cidadão cartaginense chamado Hilário, que atacava
o costume de cantar salmos antes da oblação e durante a dis-
tribuição da eucaristia. Essa parece ter sido a origem do cânti-
co de trechos de salmo na parte da missa chamada gradual.
Nos ritos cristãos, os salmos eram utilizados de formas
diferentes.

Nas igrejas orientais os salmos raramente são cantados inteiros:


eles são mudados e associados com poesia não bíblica, versos de
outras partes da Bíblia e assim por diante. As igrejas ocidentais,
por sua vez, geralmente deixam o texto dos salmos intacto
quando salmos completos são cantados; ou, como na missa,
uns poucos versos de um salmo são cantados como parte de um
cântico antifônico ou responsorial (BATE, 1980, p. 322).

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Bate (1980) afirma que não é possível descrever a psal-
modia judaica no período medieval porque não há fontes dis-
poníveis. Os dados sobre psalmodia na Igreja oriental são
igualmente tardios, visto que os músicos bizantinos se dedica-
ram largamente à composição de hinos.
Em razão da falta de partituras ou notações musicais
sobreviventes, antes do ano 800 d. C, há muita dificuldade em
descrever a história do cântico de salmos antes do século IX.
Os dados desse período vêm de esparsos registros históricos
literários. Ainda assim é interessante notar que a mais antiga
partitura existente, excluindo-se as poucas relíquias da Anti-
guidade, foi feita para a psalmodia (BATE, 1980).
Acerca do uso dos salmos, Bate (1980) afirma que em
seu primeiro estágio a liturgia era grandemente improvisada,
variando os textos para a leitura e para a psalmodia. Ela era
guiada pela tradição local, tendo em vista que a autoridade
hierárquica ainda não tinha tomado para si a autoridade de
regular a adoração. Isso deu margem a várias tradições litúrgi-
cas denominadas ritos. A principal maneira em que o cântico
de salmos era utilizado era a sinaxis, na qual o cântico se inter-
cala com as leituras. E ao que parece, a “essa associação do
salmo com a lição foi talvez uma invenção cristã, pois ela não
é encontrada na sinagoga antes do oitavo século”.
Agostinho registra que a psalmodia em sua época era
responsorial e que sua melodia não era florida porque “a res-
posta era cantada pela congregação e não por um coro treinado”
(BATE, 1980, p. 322-323).
Sob Gregório, o grande (590-604 d. C.), a liturgia oci-
dental passou por um processo de fixação cujo resultado per-
durou, com poucas alterações, até o início da Idade Moderna
(BATE, 1980). A transformação do cristianismo em religião
estatal no Ocidente transformou o bispo numa figura tanto
cívica quanto religiosa. A mistura entre o aspecto cívico e o
aspecto religioso da adoração gerou um novo tipo de psalmodia.
O bispo era saudado com música em sua entrada para celebrar
a Eucaristia.

A psalmodia antifônica deste rito de entrada tornou-se a anti-


phona ad introitum das antigas fontes manuscritas – o posterior
intróito – e a psalmodia antifônica se desenvolveu em torno de
outras procissões da Eucaristia tais como o ofertório e a comu-
nhão (BATE, 1980, p. 323).

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Com o decorrer do tempo, a comunhão e o ofertório
perderam os seus versos e somente o introito manteve seu ca-
ráter antifônico, ainda que, por vezes, reduzido a um versículo
de um salmo, uma doxologia e um verso adicional para repe-
tição (BATE, 1980). Nesse contexto, os propósitos litúrgicos
foram sobrepostos aos propósitos didáticos e praticamente os
anularam. Assim, o bem simbólico é a liturgia, e não mais o
cântico de salmos.
O estabelecimento do Sacro Império Romano deu ênfa-
se à posição central do papado e

[...] o padrão da missa romana tornou-se virtualmente o modelo


da Europa [...] Do ponto de vista musical, o “Próprio” da missa,
escolhido para celebrar as festas eclesiásticas ou dias santificados
consistia no Intróito – uma antífona, salmo que veio a ser repre-
sentado por um único verso, o Gloria Patris e uma repetição da
antífona – o Gradual, uma antífona e o verso de salmo cantado
entre a Epístola e o Evangelho, o Ofertório, uma antífona cantada
enquanto o pão e o vinho eram preparados para consagração, e a
Comunhão, cantada à medida que o celebrante (e talvez o público)
recebia os elementos consagrados (RAYNOR, 1972, p. 27-28).

No período final da Idade Média, o cântico de salmos


completos se tornou característica dos Ofícios, como as vespe-
rais que incluíam a recitação de cinco salmos, de certas ceri-
mônias e procissões.

Na Missa, entretanto, a expansão da liturgia através da Idade


Média e a crescente elaboração de antífonas e materiais respon-
sórios levaram a um rápido encurtamento dos salmos originais,
de forma que eventualmente o intróito, o gradual e outras par-
tes do Próprio raramente continham mais do que um único
versículo do salmo (BATE, 1980, p. 332).

O texto usado era

[...] a “prosa poética” da tradução Vulgata da Bíblia, cada salmo


sendo cantado em uma das oito fórmulas melódicas (‘tons’) que
poderiam ser facilmente adaptadas a versos sucessivos de diferen-
tes extensões (BATE, 1980, p. 332).

Fonte mais profícua da psalmodia na Igreja cristã foi o


movimento monástico. O cântico de salmos foi institucionalizado

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no Ocidente pela Regula Magistri (c. 540), a precursora da
Regra de São Bento. Nela, a psalmodia foi uniformizada e
sistematizada na vida monástica. Matinais, vesperais e outros
momentos fixos no dia foram dedicados à oração por meio do
cântico de salmos. O monge beneditino empregaria pelo me-
nos quatro horas no dia para esse fim. Nos séculos seguintes,
esse tempo foi aumentado consideravelmente, chegando a oito
horas no horarium proposto por Lanfranc. “O ideal monástico
buscava pelo cântico do saltério inteiro a cada semana, e era
também estabelecido em igrejas seculares, onde corpos de clé-
rigos (cânones etc.) performavam a opus Dei” (BATE, 1980,
p. 323). Cabaniss (1985, p. 196) confirma esse dado quando
registra que

A Regra de Benedito de Nursia (morto ca. 550), base de todas


as regras monásticas posteriores, demonstra o lugar proeminen-
te dos salmos na adoração cristã. Ela promove o cântico de todo
o saltério, distribuído em oito ofícios, no curso de uma
semana.

No aspecto musical pouco se pode dizer antes do pe-


ríodo de formalização musical que pode ser identificado, a
partir do século IX, nas partituras e notações musicais desse
período em diante que foram preservadas. Essa formalização
promovida durante o período carolíngeo completou-se no sé-
culo XI e forneceu livros litúrgicos para a Missa e para os Ofí-
cios. Escritos de teoristas que discutiam o modo de cantar os
salmos e listas conhecidas como tonários “que dividiam os
cânticos de acordo com o modo e especificava o fim (differentia)
de um salmo a ser usado com determinada antífona” (BATE,
1980, p. 323). Essas listas apresentam grande complexidade e
variedade, mas são essencialmente monofônicas e têm sua
mais conhecida expressão no denominado canto gregoriano.

7. O USO DA METRIFICAÇÃO
Cabaniss (1985) descreve que na história musical da
Igreja cristã conviveram lado a lado o cântico de salmos em
prosa e o cântico de hinos em versos métricos. Segundo ele,

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deve ser visto na junção dessas duas tradições o pano de fundo
que deu origem à produção de salmos metrificados para o
cântico congregacional na Reforma (CABANISS, 1985). A
despeito do grande valor espiritual atribuído ao cântico de
salmos, a dificuldade para memorização do texto, aliada à
baixa capacidade de leitura dos monges, dos irmãos leigos e do
povo que frequentava os cultos, deu grande impulso para o
crescimento da hinologia métrica e promoveu os primeiros
passos no esforço de colocar os salmos em versos. Cabaniss
(1985, p. 196-197) descreve o ponto da seguinte forma:

Uma das razões por trás do surgimento dos hinos métricos foi
o fato de que ele facilitou a memorização. Na última parte do
século VII e início VIII, clérigos instruídos estavam tentando
sua habilidade em transformar salmos e outros cânticos em ver-
sos medidos, aparentemente com este fim em mente. O
Venerável Bede (m. 735) preparou um saltério “em versos sua-
ves” salmo por salmo, embora desde que Alcuin o descreveu
como um pequeno livro, ele pode não ter contido todos os
salmos.

Ainda segundo Cabaniss (1985, p. 197), no entanto, tal


disposição ainda era bastante restrita, provavelmente por cau-
sa da compreensão de que o texto sagrado não deveria sofrer
tal adulteração profana, a despeito da intenção louvável: “A
devoção do salmo em prosa era, de fato, muito intensa”.
Somente no século IX é que esse impasse pôde ser su-
perado com o surgimento da sequência, uma nova forma de
verso rítmico acentuado baseada no termo Hallelujah. Ela
introduziu a rima na hinologia ocidental e gerou um fluxo de
psalmodia métrica (CABANISS, 1985).
Esse uso medieval nunca pretendeu substituir o saltério
em prosa, era apenas considerado uma imitação piedosa em
que as frases dos salmos eram incorporadas somente à medida
que a métrica permitia. Na maioria das vezes, havia apenas o
esforço de incluir algum termo que permitisse a identificação
com o salmo em prosa (CABANISS, 1985). Cabaniss (1985,
p. 198) apresenta esse exemplo em que as palavras em itálico
são retiradas da vulgata:

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Dominus regit saeculum O senhor é o regente do mundo
Virgam tenens et baculum Segurando vara e cajado
In loco suae pascuae Em um lugar do seu pasto
Mensam parat et pabulum Ele prepara mesa e comida
Pretiosum que poculum e uma taça sem preço
Pro ovibus curae suae para a ovelha do seu cuidado

Muitos desses salmos métricos eram cristianizados por


meio de dirigir cada estrofe a Jesus, sua cruz ou seu sofrimen-
to, como se vê nesse outro exemplo citado por Cabaniss (1985,
p. 199):

Ave Iesu, animas que convertis Salve Jesus, tu restauras almas


Dedue me in institide semitis Guia-me nas veredas da justiça
Et educ de medio umbrae mortis e retira-me do meio da sombra da morte
Sisque mihi baculus inventutis e seja para mim um cajado de juventude

Eles, no entanto, eram propostos para o uso não litúrgi-


co. E parecem não ter conquistado grande espaço na devoção
particular, uma vez que, nas línguas vernáculas, os saltérios
continuavam em prosa (Cabaniss, 1985, p. 199-200).
Santos (2006, p. 2) observa que, antes da Reforma,
somente a Igreja poderia produzir música. Raynor (1972,
p. 26-27) descreve as razões teológicas desse contexto:

O canto da Igreja católica devia ser a voz da Igreja, e não a de


algum crente individual: a recitação de rezas, lições, epístolas e
evangelhos, com suas fórmulas de entonação para assinalar a
pontuação, como os cantos de salmos ou a austera alternância
da participação da congregação na Missa, tinham por fim dar
objetividade às palavras que podiam muito facilmente cair no
sentimento pessoal subjetivo. [...] A música devia ser a voz de
uma Igreja universal.

Por isso, o povo podia ouvir a música sacra, mas não


podia participar dos cânticos (SANTOS, 2006). Com isso, o
cântico desses salmos metrificados se restringiu ao uso popular
piedoso e não fez parte da tradição litúrgica cristã.

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No período que antecedeu a Reforma, a liturgia cató-
lico-romana estava completamente voltada para o cântico
clerical, todo em latim e apenas destinado a causar impressão
naquele que assistia à missa sem oferecer-lhe qualquer ensino
ou orientação.
Os salmos eram usados apenas acidentalmente em
pequenas citações que permaneceram por tradição dentro do
cerimonial latino. Nenhum daqueles aspectos devocionais e
instrutivos vistos no primeiro período da Igreja cristã perma-
neceu, de forma que essa prática foi esvaziada de todo o seu
valor simbólico e nenhum traço estésico podia ser visto nele.
Por tudo isso, ainda que não fosse algo inédito, o cânti-
co congregacional de salmos proposto pelos reformadores
pode ser entendido como algo revolucionário dentro do con-
texto de sua época.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O impacto e a importância do cântico de salmos na prá-
tica litúrgica da Igreja cristã assumem graus diferentes no de-
curso da história e ainda estão envoltos em muitos questiona-
mentos. O senso comum sobre as origens dessa prática na
Igreja tem sido amplamente debatido e carece de uma revisão
que leve em consideração as informações históricas hoje dis-
poníveis. Com esse intuito, o presente artigo buscou apontar
uma alternativa para essa origem no contexto das refeições fa-
miliares, trazendo à luz evidências tanto da ausência dessa prá-
tica no contexto da sinagoga como menções à sua recomenda-
ção nas refeições comunitárias da igreja.
A partir dessa proposta, buscou-se indicar que o valor
primordial dado aos cânticos de salmos não está no contexto
litúrgico, mas no contexto cotidiano, como um instrumento
de formação e moldagem dos valores cristãos. Tal utilização se
fazia, predominantemente, pelo cântico dos salmos do modo
como estavam traduzidos na Bíblia, sendo evitado o uso da
metrificação e da cristianização como é o padrão utilizado em
nossos dias.

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THE SINGING OF PSALMS IN THE
CHRISTIAN CHURCH UNTIL THE
REFORMATION

ABSTRACT

At various periods in the history of the Christian Church, the singing of


psalms played a leading role in the life and liturgy. This article attempts,
from his Jewish origin, identify the paths that led to the insertion of the
singing of psalms in the Christian liturgy, as well as from the description
of how it was practiced by Christians before the Reformation, the reasons
that motivated and were involved in such practice. The starting point is
the use of the book of Psalms in worship of Judah. Hypotheses will be dis-
cussed later on how this usage has passed into the Christian church, con-
sidering the household song as the most likely means of transfer. Finally,
there will be a brief description of the key moments of the practice of
singing psalms in the history of Christian liturgy until the Reformation.

KEYWORDS

Psalms; Pasalmody; Christian Church; Liturgy; History.

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50 CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE


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33
DEUSES QUE DANÇAM: DA “TOPIA” DOS
ORIXÁS À UTOPIA TÓPICA CRISTÃ

Gilson Raslan Filho


Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade de São Paulo (USP). Professor-pesquisador
em Mídia e Cultura Contemporânea na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).
E-mail: [email protected]

52 APRESENTAÇÃO

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RESUMO

Na religião dos orixás, o corpo é a morada da vida: os deuses dançam, can-


tam, comem e fornicam. Suas referências ora são destinados a rituais sen-
suais do próprio corpo – dos deuses e dos fiéis –, ora a sensualidade é
assumida a partir dos elementos naturais. E assim, não é o humano que se
inscreve sobre a natureza não humana; ao contrário, a natureza e o topos
se inscrevem sobre o corpo e a alma humanos. Se essa característica está
presente sobretudo e ainda hoje nos candomblés, também na umbanda o
corpo se evidencia, mas o que a separa do candomblé é o que a aproxima
daqueles que os perseguem, a ambos: do cristianismo e sua utopia, sua
negação do corpo sensual e afirmação do mundo eterno post-mortem. E, no
entanto, também os perseguidores cristãos contemporâneos descobriram
o sensual – e imputam aos perseguidos o diabólico do sensual. Este texto
ilustra, a partir da mitologia dos orixás, a sensualidade dos deuses de ma-
triz afro-brasileira e ensaia uma reflexão sobre a nova topia do cristianismo
praticado por neopentecostais e católicos renovados.

PALAVRAS-CHAVE

Religiões afro-brasileiras; cristianismo; corpo; utopia; cultura contemporânea.

1. INTRODUÇÃO
Os orixás e os filhos de santo cantam e dançam para cada
um em todos os rituais. Mais do que isso: o corpo é a própria

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morada da vida – individual e sobretudo coletiva. É pelo cor-
po que todas as manifestações se dão: por ele, manifesta-se
alegria e frustração; há premiação e vingança; é ele fonte de
todas as esperanças e temores; instrumento de sedução e pro-
teção. Não se trata, portanto, de algo distinto da vida, limita-
do aos rituais. Por sua vez, embora haja uma preocupação com
a lembrança dos orixás, diferentemente do deus judaico-cris-
tão, que exige eterna louvação, os deuses afro-brasileiros se con-
tentam com a louvação em um espaço restrito para a saudação
– os terreiros e as casas. E é exatamente essa relação entre a res-
trição de um espaço para o louvor e a contundência do corpo
para a vida cotidiana o que distingue sobremaneira as duas
culturas e religiões. A relação com a espacialidade e a tempora-
lidade, obviamente distintas entre as culturas, aponta para a
diversa moralidade e eticidade entre elas: no caso da afro-bra-
sileira, o corpóreo e a relação com o espaço ditam a tempora-
lidade; para a cultura judaico-cristã, a proposição se inverte:
esvaziamento do espaço e tempo superlativo.
Tal elemento fundante da crença afro-brasileira é ao mes-
mo tempo sintoma e fundamento para a relação da religião com
o corpo. Sintoma porque traz em si a relação entre os rituais de
fé e o princípio espaço-natural que garante a vida cotidiana. E
fundamento porque, justamente em razão da vida cotidiana
fundada na espacialidade e na natureza que cerca o indivíduo
e a coletividade, o corpo é o templo da vida.
Embora tenha havido, nos últimos tempos, o que Regi-
naldo Prandi (2005) chamou de hipertrofia ritual e falência
moral, referindo-se à adaptação das religiões dos orixás ao mer-
cado dos bens simbólicos – em que também se insere a um-
banda – e esvaziamento do caráter coletivo originário, a proe-
minência do que pode ser chamado de trágico nas religiões de
matriz africanas persiste: a sensualidade e a agoridade – o cor-
po continua a ser o altar dos deuses que dançam. Por outro
lado, o cristianismo, sobretudo em sua vertente contemporâ-
nea – neopentecostalista e catolicismo renovado –, que sem-
pre teve como mirada a negação do espaço e a afirmação utó-
pica, e, desde Agostinho, separa a matéria carnal do corpo
espiritual, vê-se enredado pelos rituais do corpo: como os ori-
xás, o Espírito Santo faz dançar. E, todavia, essa afirmação do
corpo continua mirando o utópico, a despeito de sua manifes-
tação tópica.

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Este texto, em seu primeiro momento, busca, na Mito-
logia dos orixás, de Reginaldo Prandi (2001), diferentes mo-
mentos distintivos de como o corpo – individual e coletivo,
natural e cultural – se evidencia; como, usando a terminologia
agostiniana, não se podem separar carne e corpo, natureza e
cultura. Em um segundo momento, o texto realiza uma refle-
xão sobre o fenômeno da valorização do corpo, especialmente
entre os católicos carismáticos. Isso, contudo, não implica a
negação da utopia: ao contrário, e isso se manifesta especial-
mente no corpo midiático, nova frente de evangelização cristã,
o princípio de exclusão carrega consigo, em um diálogo surdo
com o sistema midiático secular, uma utopia quase sempre au-
toritária, o que se pode verificar pela persistente negação de
outras formas de religiosidade, especialmente das afro-brasilei-
ras, em que católicos renovados e neopentecostais encontram
o diabólico.

2. UMA RELIGIÃO SENSUAL: DEUSES


QUE DANÇAM
A pesquisa realizada por Reginaldo Prandi, que resultou
em seu livro Mitologia dos orixás, não deixa dúvidas: quer seja
no candomblé brasileiro, quer seja na África-mãe ou nos di-
versos locais onde as religiões de matriz africana estão presen-
tes1, o corpo, dos próprios deuses e dos seus filhos, se eviden-
cia. E com ele, o corpo, presente, sensual, o quanto natureza e
cultura, céu e terra e outras tantas instâncias que a cultura ju-
caido-cristã ocidental separou eternamente, dialogam conti-
nuamente. Da mesma forma e em razão dessa dimensão cor-

1
Trata-se apenas de uma anotação: seria interessante aprofundar o quanto há de deuses africanos no
cristianismo de base neopentecostal, com suas danças, seus cantos, seus transes, seus rituais corpóreos.
Antônio Risério (2007) aponta nesse sentido quando trata da “morte” dos deuses africanos em território
estadunidense, o que abriu a possibilidade para um cristianismo negro naquele país, mas igualmente
exigiu-se o branqueamento desses negros convertidos. Risério, porém, anota a inventividade dos negros
na sua criação de um protestantismo negro nos Estados Unidos. Talvez seja interessante aprofundar
essa percepção, haja vista a diáspora dos rituais cristãos próprios das Igrejas cristãs negras dos Estados
Unidos para o resto do mundo, o quanto o cristianismo se africanizou e quais foram as consequências
disso para o próprio cristianismo, especialmente em terras brasileiras.

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pórea, a espacialidade é premente na religião dos orixás – um
sinal de que, com o corpo atuando aqui e agora, o tópico se une
ao utópico, sem que um se sobreponha ao outro, como ocorre
nas recentes manifestações tópicas da utopia corpórea cristã.
Nessa compreensão da importância da dimensão espa-
cial – que não apaga a dimensão temporal: eis mais uma das
forças da ambiguidade da religião dos orixás –, e acompanhan-
do as narrativas mitológicas apanhadas por Reginaldo Prandi
(2001), podem-se identificar três blocos narrativos: 1. cosmo-
gonia, sensualidade e espacialidade; 2. transmudação do cor-
po: espacialidade e vida coletiva; 3. tabus, vingança, prêmio:
corpo e espaço. São inúmeros os mitos que tratam desses três
blocos narrativos. Por serem muitos, apenas alguns serão ex-
pressos aqui – porém, uma ideia geral do que englobam será
descrita.
No primeiro bloco narrativo, que trata da cosmogonia,
os mitos indicam não apenas a importância do corpo para a
religiosidade e para a vida cotidiana da cultura afro-brasileira,
mas como essa importância ganha vulto em relação à vivência
do espaço como condição de experiência, e da espacialidade
com aprofundamento moral e ético. É o caso do mito Oxaguiã
devolve o sexo aos homens, em que se narra como os tabus e a
sua ruptura se dão pelo corpóreo. Nesse mito, os humanos são
infelizes porque, sem a sexualidade, perdem a sensualidade – e
são impedidos de cantar e dançar: de viver. Oxaguiã, para fazer
voltar a força vital aos humanos, lhes devolve o sexo e, com
ele, a alegria de viver corporalmente, sensualmente. Há ainda
o mito sobre a separação entre céu e terra, presente em Oxalá
separa céu e terra, que narra a importância da espacialidade.
Céu e terra eram contíguos; havia apenas um limite, um tabu
que os separava. A separação se deu em razão do descumpri-
mento do limite espacial.
Outros mitos sobre a criação do mundo trazem essa re-
lação com a espacialidade, mas especialmente uma suspensão
da dimensão do tempo para a vida cotidiana e mitológica. Não
se trata, todavia, de um apagamento da dimensão temporal,
mas de uma vivência distinta da temporalidade: tempo e espa-
ço se conjugam na vida ordinária da cultura afro-brasileira; o
espaço da vida é o local onde o tempo se movimenta.
Há ainda outros mitos que vencem a ausência de espa-
cialidade/corporeidade justamente com a apresentação do

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espaço e do corpo. É o que acontece com a Morte, Icu, e os
Egunguns, no mito Xangô é salvo por Oiá da perseguição dos
eguns: os eguns, espíritos ancestrais desencarnados, fazem os
orixás – e humanos –, ligados ao espaço e ao corpo, os teme-
rem. Xangô, perseguido, só consegue se ver livre quando faz
que os eguns se vejam refletidos no espelho. Contra a ausência
do espaço representado pelos eguns, apenas uma salvação: fa-
zer que eles se vejam em sua condição, para a mitologia, de
profunda feiura.
Um segundo bloco narrativo trata da transmudação do
corpo: espacialidade e vida coletiva, em que há mitos que nar-
ram a transubstanciação do corpo dos orixás em elementos da
natureza: água, monte e animais. Essa característica, além de
reforçar a importância da espacialidade e a relação vital com a
natureza para a cultura afro-brasileira, indica que tal transmu-
dação se dá quase sempre pela preservação da vida coletiva.
Um único exemplo, entre muitos: Euá transforma-se numa fonte
e sacia a sede dos filhos, que narra não apenas a importância do
espaço e dos elementos naturais para a vida dos humanos, mui-
to em virtude da carência deles – a água –, mas principalmen-
te a relação com a vida coletiva. Nesse caso, trata-se de prote-
ção e previdência.
Por fim, um terceiro bloco: Tabus, vingança, prêmio: cor-
po e espaço, em que há muitos mitos que tratam de penali-
dades, tabus e premiações destinadas àqueles que, sempre,
preservam ou contrariam o interesse coletivo em nome dos
benefícios individuais. Tais consequências também se relacio-
nam com o corpo, a sensualidade e a espacialidade. É o corpo
que merece todos os benefícios e castigos: sobre o corpo, sobre
sua feiura, o que impede de viver coletiva e sensualmente, ou
sobre sua beleza, recai a fúria ou a benevolência dos orixás.
Duas narrativas podem ilustrar bem o que se define nesse blo-
co: ambos tratam do mesmo mito, Orixá Oco, sob perspecti-
vas contraditórias, mas que indicam o mesmo caminho – a
solidariedade.
Em um primeiro exemplo, Orixá Oco é condenado a tra-
balhar na terra por ser artista e não preservar a vida coletiva.
Como Orixá Oco cultivava o espírito e a vida individual, é
condenado a trabalhar o espaço – a agricultura – e com o cor-
po. Torna-se o orixá da agricultura por isso. É interessante no-
tar que o orixá extrapola suas habilidades individuais e ceifa a

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vida de muitos humanos com um galho de Iroco, um espírito
poderoso de suspensão do espaço, embora seja ele mesmo a
encarnação da importância do espaço e do corpóreo. Um se-
gundo exemplo: Orixá Oco recebe de Obatalá o poder sobre as
plantações. Diferentemente do mito anterior, o orixá agora pos-
sui uma vida equilibrada e voltada para a coletividade – depois
de ter extrapolado suas habilidades na juventude. Por ter con-
quistado a senioridade, recebe como prêmio o poder sobre as
plantações.
Como se vê, embora trate de um espírito primordial-
mente trágico, em que espaço e tempo se conjugam aqui e
agora, há nos mitos dos orixás a insistência sobre o corpo cole-
tivo contra o individualismo corpóreo. Parece ser exatamente
o contrário do que se percebe na cultura ocidental contempo-
rânea. Aqui, capitaneada pelo corpóreo virtual midiático, o
coletivo só é forjado pelos indivíduos atomizados – algo como
o diabólico. Contra esse diabólico se insurge o cristianismo neo-
pentecostal e o catolicismo renovado. Mas, a despeito da per-
seguição promovida contra os seguidores das religiões de ma-
triz africana, talvez o diabólico do mundo contemporâneo não
esteja tão distante assim do simbólico cristão.

3. EPIFANIA DO CORPO MIDIÁTICO: A


UTOPIA TÓPICA CRISTÃ E SECULAR
O Programa do Jô (TV Globo), talvez pela dificuldade
de manter o relativo ineditismo dos entrevistados, sempre re-
cebe personagens ligados à religião. Quase sempre há um cli-
ma jocoso quando isso ocorre – raras vezes, como com o habitué
padre Fábio de Melo, há deferência por parte do apresenta-
dor-humorista Jô Soares. Uma entrevista com um certo padre
Cleodon mostra bem a dimensão de espetacularização, até
mesmo entre os entrevistados religiosos tratados com serieda-
de, a que a religião é submetida no programa, em uma estraté-
gia discursiva que a coloca, a religião, par a par, com o próprio
sentido de espetacularização desenvolvido de forma deliberada
pelos programadores midiáticos. Católico reconvertido à re-
novação católica, padre Cleodon havia passado um tempo de
sua vida entre a teologia declaradamente de resultados dos neo-

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pentecostais – talvez seja, por ser ordinária, talvez seja um
momento epifânico da relação existente entre as religiões he-
gemônicas e a hegemonia do aparelho midiático ocidental
contemporâneo. Padre Cleodon é um pop star da nova reli-
giosidade; Jô Soares é um assecla do star system midiático, em
que o talk show deixa de privilegiar a racionalidade do entre-
vistado para ser focado na personalidade entre sagaz e histriô-
nica do entrevistador, para compor um quadro de espetacu-
larização reforçada.
Padre Cleodon, anunciado como “cantor, compositor e
apresentador”, iria explicar sua primeira aventura como exor-
cista. O padre relatou o dia em que foi chamado, ainda quan-
do seminarista, a auxiliar na retirada de um espírito que havia
tomado um corpo de um rapaz. Diante do corpo retorcido do
possuído estava, além do padre, um pai de santo. Ambos teriam
a tarefa mágica de livrar o “diabo encarnado” daquele jovem.
Muitas tentativas depois, o pai de santo à frente, o espírito mos-
trava seu poder – “o diabo tem muita força”, explicou. Mas o
padre orou “com muito poder em nome de Jesus”, e então o
diabo não resistiu: saiu do corpo. O diabo tem muita força e
inúmeras faces, todavia. Não para sua surpresa, encarnou um
“espírito infantil, muito bonzinho” – um “erê”, explicou-lhe o
pai de santo, que então estava prostrado diante da força do
Espírito Santo. O demônio é muito astuto, muito enganador:
travestira-se de bons espíritos para continuar encarnado. No-
vas “orações em línguas com poder”, novo exorcismo e novas
encarnações: preto velho, preta velha, pombagira, caboclo se-
te-flechas.
Foram “mais ou menos oito” as entidades. O pai de san-
to, que só assistia, ou “tentava distrair a entidade”, interveio.
Queria que o espírito lhe tomasse o corpo para que pudesse
dominá-lo. Padre Cleodon alertou: “a Bíblia nos diz que nos-
so corpo é templo do Espírito Santo – não do preto velho, não
da pombagira”. O pai de santo, depois de uma luta com os
espíritos e o fracasso da empreitada, acatou e declinou. Mais
uma vez, orando com poder, padre Cleodon fez que os espíri-
tos, enfim, desencarnassem do corpo possuído, deixando atrás
de si “o cheiro do enxofre”. Depois de quase quatro horas,
narrou o padre exorcista, ele foi-se embora com a convicção de
que o Espírito Santo lhe fortalecia, que se lhe anunciou, que
Jesus está vivo e que opera milagres – cotidianos. Ambos, o

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religioso e o apresentador global, concordam: os milagres pu-
lulam. Para ambos, a entrevista que findava era prova disso.
Não há nada de extraordinário na entrevista e com o en-
trevistado. Por um lado, um programa diário, um talk show, que
se caracteriza pela exploração dos entrevistados em benefício do
entrevistador. Por outro, um padre “renovado” pelo Espírito
Santo, elevado a estrela de um maquinário eclesiástico que en-
controu no aparelho midiático justamente sua forma de renova-
ção. Tampouco é extraordinária a percepção, bastante ambígua,
mas reforçada tanto pelo padre quanto pelos comentários do
apresentador, de que as religiões sempre se apresentam como
imutáveis e detentoras das chaves para a compreensão da vida,
embora se saiba que as religiões mudam conforme a sociedade
que as engendra – e as sociedades que querem forjar.
Igualmente comum, mesmo que deva ser aqui demarca-
do, é o processo de conversão e reconversão experimentado e
narrado pelo padre. Tal processo é resultado de um refluxo
contínuo da circulação do material simbólico, antes quase ex-
clusividade das religiões (ou da religião hegemônica – a Cató-
lica Romana), empreendido pelo aparelho midiático mercan-
tilizado (HALL, 2003). O resultado de tal descentralização é
uma reconfiguração do princípio mitológico, do qual tratar-
se-á posteriormente. E é segundo essa perspectiva, a saber, o
descentramento de produção do material simbólico, que se
deve compreender o último dos elementos ordinários presentes
na entrevista no Programa do Jô: o padre, ao narrar sua aventura
como exorcista, trata como indistintas todas as “entidades” que
ele conseguiu expulsar “com louvor” do corpo do “possuído”:
todas elas são máscaras do diabo.
É interessante perceber no discurso mítico do padre tal
indistinção. Como também já havia indicado Reginaldo Pran-
di (1997, 2005) e Pierucci e Prandi (1996) em diversos estudos
seus, o reavivamento do catolicismo empreendido pelo movi-
mento carismático tem como principal elemento a ação coti-
diana do Espírito Santo, e, como contraponto, fruto da mora-
lidade dualista própria ao pensamento cristão, a igual ação do
diabo, personagem corriqueiro, a quem culpa por todos os
desvios morais seculares. A atuação evangelizadora carismática,
muito próxima àquela praticada pelo neopentecostalismo e
como elemento organizador e identitário, elegeu as religiões afro-
brasileiras como as detentoras do mal em si: suas entidades são

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o próprio diabólico. É, portanto, plausível e corriqueiro, em-
bora não deixe de ser interessante, que a narrativa do padre
Cleodon tenha incluído entre as máscaras do diabo entidades
dos dois lados do panteão umbandista: indistintamente, enti-
dades do lado direito do panteão, “do bem” – pretos velhos,
pretas velhas, caboclos –, e do lado esquerdo, “do mal” (pom-
bagiras e exus) são tomados como a própria face do diabólico.
Não há nenhuma surpresa nisso: trata-se apenas de um reavi-
vamento mitológico, segundo o qual, para que o bem atue
cotidianamente, o sopro do Espírito Santo precisa de um ini-
migo ardiloso e igualmente cotidiano.
O que interessa a essas reflexões, contudo, é a razão
mesma, a força dessas ideias que emana e provoca a atuação no
mundo da vida. E, para tanto, o que efetivamente interessa é
o mais corriqueiro, posto ser essa a condição de qualquer mi-
to. É nessa medida que interessa o banal do quadro de um
padre carismático se sujeitar ao escárnio de uma entrevista hu-
morística – já que ambos, o padre e aqueles pelos quais reafir-
ma o fundamento de sua fé, o diabólico das entidades afro-
brasileiras e o mundo secular da mídia massiva, como o próprio
mito, lidam com a ação cotidiana de forças sobrenaturais, cujo
tempo se volta sobre si mesmo e que tem no corpo – individual
e coletivo – seu templo: do prazer emanado do Espírito Santo,
por um lado, e templo do prazer do mundo em sua pluralida-
de e do espírito secular, por outro. É pelo corpo que se movi-
menta o mito contemporâneo: em sua superfície estão as marcas
do poderio de um e outro lado. Porém, ao lado desse templo
contemporâneo há a metáfora da carne, empreendida pela teo-
logia cristã em geral e que serve de fundamento para a Reno-
vação Carismática Católica (RCC).
Se é pela afirmação do corpo como templo de Deus pe-
la graça do Espírito Santo a forma encontrada de a Igreja – ou
uma parte significativa dela, e definitivamente visível – dialo-
gar com o contemporâneo, ela vê na metáfora da carne tudo o
que é mundano, sujo, sexual, fragmentado – diabólico. Afir-
mar o corpo é afirmar o mundo, mas negar a carne é poder
transformá-lo, o mundo. Essa parece ser a razão de haver dois
lados: a Igreja e o mundo – tanto na cena corriqueira entre Jô
Soares, mundano, e o padre Cleodon, como na indistinção
realizada por este em relação às religiões afro-brasileiras. Um
diálogo surdo no entanto os une.

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O corpo e a carne. O sagrado e o profano. O divino e o
mundano. O bem e o mal. O simbólico e o diabólico. A leitu-
ra da Mitologia dos orixás (PRANDI, 2001) nos mostra que a
carne é a própria razão do corpo. Mesmo que tenha havido
hipertrofia ritual e falência moral, identificadas por Prandi, en-
tre as religiões afro-brasileiras, e que tal sensualidade foi exa-
cerbada em detrimento do elemento de solidariedade entre
seus membros que elas empreendiam; mesmo que tal movi-
mento tenha ocorrido em virtude de uma modificação para
sua adaptação à temporalidade brasileira, ocidental, linear e
progressiva; mesmo, por fim, que a umbanda, a quem efetiva-
mente parece se referir o padre Cleodon e contra quem caris-
máticos católicos e neopentecostais atiram, tenha se caracte-
rizado, pela proximidade ao kardecismo, pela divisão entre
espíritos bons e maus, entre panteão da direita e da esquerda
– mesmo assim, candomblé, cujos seguidores são igualmente
perseguidos pelos fundamentalistas cristãos, e umbanda man-
têm o elemento mítico dos orixás: a intervenção mágica e co-
tidiana na realidade se dá ainda como inscrição no corpo dos
fiéis, segundo sua sensualidade, pelo elemento carnal.
É possível desvelar, pela simples observação dos rituais
neopentecostais e, igualmente, dos católicos renovados, a rela-
ção entre o cristianismo renovado e o diabólico perseguido nas
religiões afro-brasileiras – especialmente nessa relação com o
corpo, a música e a dança, presentes em ambas as religiões. Os
rituais – ao vivo ou na TV – se repetem: louvor, orações em
línguas, postação das mãos para cura, danças, cantos. O corpo
sempre em evidência. No entanto, todos ali estão convictos da
presença do Espírito Santo. O tempo se fecha sobre si mesmo;
o mito atua, aqui e agora.
É interessante perceber que, como notou Prandi (1997),
o movimento carismático católico, cuja experiência com o di-
vino se dá iminentemente de forma individual e individualis-
ta, proponha ainda assim o elemento comunitário como sua
mirada. Igualmente interessante é perceber como, nos últimos
anos, quando a RCC ganhou notoriedade e autoridade ecle-
sial, sobretudo com seu braço midiático, a Comunidade Can-
ção Nova, há a permanência, em um ato litúrgico carismático,
normalmente identificado com a experiência religiosa sem a
mediação racional, de formulações abstratas e uma atuação
pedagógica intensa.

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Isso talvez indique uma marca não tão visível da RCC,
mas de suma importância para o estádio da religiosidade con-
temporânea: o movimento é carismático; o Espírito Santo se
manifesta cotidianamente e a ele se recorre para explicar quais-
quer fenômenos corriqueiros – mas trata-se de um movimento
católico e, como tal, pedagógico: deve-se aprender a viver no
mundo cercado pelo diabólico por todos os lados.
Não se trata, todavia, de uma perversão do movimento
carismático – aqui, mesmo podendo ser verificada uma modifi-
cação quanto à natureza da RCC, trata-se de uma ambiguidade
presente desde sempre na Igreja Católica, que encontrou no
reavivamento carismático sua forma de lidar com o mundo de
formas simbólicas multifacetadas. Por ele, há ensinamento de
como melhor enfrentar o mundo e controlar o corpo – contra
a carne, contra o diabólico, pela transfiguração do mundo.
A despeito ou por causa disso, o campo religioso passa a
ser, mais do que uma escolha pessoal, uma busca de sentido para
a vida. Trata-se daquilo que o sociólogo Zygmunt Bauman
(2004) chama de liquidez. No atual estágio da modernidade,
diz, as relações sociais e interpessoais se dão de maneira instan-
tânea, líquida mesmo, em contrapartida à solidez de um estágio
anterior, quando os laços de solidariedade, se não se davam de
forma orgânica, eram seguramente mais estáveis, menos afeitos
aos acordos eventuais (BAUMAN, 2001). Tal condição conduz
a outros dois aspectos, que merecem destaque especial aqui: o
processo intelectivo para a construção da fé, como ensinamento
– ainda e sobretudo que se trate de uma fé para viver no mundo;
e a confusão do mundo em contrapartida a uma segurança pro-
porcionada pela Renovação Carismática.
Trata-se de uma recusa da confusão gerada pelo chamado
pós-moderno, que, em nome de mais liberdade individual,
abriu mão de um mínimo de segurança coletiva e individual.
O movimento de retorno a tal segurança implica um diálogo
necessário com um mundo secularizado e suas estruturas. Tra-
ta-se, como disse o sociólogo, de um diálogo em que o um
utiliza o múltiplo, o dividido, enfim, o diabólico para se unifi-
car em simbólico2.

2
É interessante perceber que um dos principais nomes da Comunidade Canção Nova, Dunga, um
verdadeiro pop star da Comunidade, em um libelo exemplar da moralidade carismática, que aliás
virou programa moral intensivo – o PHN: Por Hoje Não [vou pecar] –, parece trabalhar bem com

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Essa é a força do mito contemporâneo – e não obstante,
ainda cabe a pergunta: Para onde nos leva essa força? Como se
dá efetivamente a inscrição no corpo e sua purificação da car-
ne? Como, enfim, pode-se afirmar que a cena em que Jô Soares
e padre Cleodon se encontravam frente a frente representa um
disputa surda pelo mesmo espaço: a utopia? Tais perguntas só
serão respondidas caso seja perseguido o sentido da pós-mo-
dernidade, segundo o caminho aberto por Bauman, especial-
mente entre autores que deliberadamente pensam sobre o mi-
to. Pelo menos dois deles, entre os mais representativos, o
fazem: o filósofo cristão italiano Gianni Vattimo, que, em suas
últimas obras, tem se debruçado sobre a questão religiosa con-
temporânea (VATTIMO, 1998, 2004; VATTIMO et al., 2000);
e o sociólogo francês Michel Maffesoli (1996, 2003), especial-
mente entusiasta da pós-modernidade e sua não promessa, seu
sentido trágico.
A pós-modernidade, diz Vattimo (1996) baseado em
Nietzsche e Heidegger, representa o fim do projeto modernis-
ta: os mitos do progresso e de história universal. A partir disso,
se debruçando sobre o mito (VATTIMO, 1992), ele aponta
três atitudes pelas quais o mitológico é encarado na moderni-
dade: 1. pelo arcaísmo, numa atitude apocalíptica, propõe-se
um retorno ao passado mítico contra o avanço e o perigo tec-
nológico – trata-se, diz o filósofo, de uma atitude que identi-
fica a crise da metafísica, mas não lhe propõe nada em troca: é
apenas reacionária. 2. o relativismo cultural, atitude pela qual
se consideram perdidos os elementos originários da civilização
ocidental e que, pelo estudo e compreensão dos mitos de so-
ciedades primitivas, é possível entender o estado do mal-estar
contemporâneo. O problema dessa atitude, diz Vattimo, é
desconsiderar que o projeto ocidental, o saber racional, é,
também ele, um mito, uma crença não demonstrada nem de-
monstrável. Isso lhe retira as bases daquilo que pretende de-
monstrar. Por fim, 3. o irracionalismo mitigado, atitude segun-
do a qual se admite a persistência do mito, como narrativa
explicativa, em alguns saberes contemporâneos (cultura de

a etimologia do sintagma diabólico. Dunga (2005, p. 12, grifo nosso) diz expressamente: “Hoje, o
mundo secularizado é dominado pelo demônio, que é divisor. Primeiro, ele rompe com os nossos
laços com Deus; depois, divide nossos relacionamentos: esposa e esposa, irmãos, pais e filhos. Este é
o trabalho do diabo. Ele vai nos enfraquecendo até chegarmos à beira da morte”.

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massa, historiografia, vida cotidiana e interior) em contrapar-
tida a saberes não redutíveis ao mito, como os das ciências
exatas. Nesse caso, o problema da atitude é não perceber que
as ciências exatas também são uma empresa social e, nessa me-
dida, igualmente mitológicas, uma vez que redutíveis às ciên-
cias históricas.
Ao fazer tal percurso, Vattimo (1992, p. 49) afirma, com
Nietzsche, que a secularização é uma forma do mito; que é
preciso desmistificar o mito, não para negá-lo – ao contrário,
para afirmá-lo:

A presença do mito na nossa cultura atual não exprime um mo-


vimento de alternativa ou de oposição à modernização; é, pelo
contrário, um resultado conseqüente, um ponto de chegada,
pelo menos até agora. O momento de desmistificação da des-
mistificação, aliás, pode cosiderar-se o verdadeiro momento da
passagem do moderno ao pós-moderno.

É próprio ao pensamento do pós-moderno – porque não


admite a superação de aporias – apresentar uma totalidade ao
negá-la. A estratégia individualista foi o caminho trilhado e
apontado por Vattimo – estratégia ademais engenhosa, pois
que pretende solucionar a aporia, assumindo-a.
Vattimo é categórico ao afirmar que o reencontro com a
religião pela filosofia (poder-se-ia dizer: o problema da religião
em um mundo pós-metafísico que enfim deve ser enfrentado
pela filosofia pós-moderna) só é possível pela razão mesma de
ter havido a desconstrução metafísica empreendida por Hei-
degger e Nietzsche. Só assim, e porque, por um lado, o discur-
so religioso se tornou mais uma voz na babel da cultura con-
temporânea, e por outro, a partir da destinação do ser como
ser-aí na história da metafísica de que não apenas a religião,
mas igualmente a técnica moderna são desdobramentos – só
por isso, esse encarar da questão religiosa não traz consigo o
risco de tornar a filosofia e o próprio espírito pós-moderno
como uma continuação daquela história – ou se é continua-
ção, trata-se daquilo edificado sobre o Verwindung de Heideg-
ger, como ultrapassamento e aceitação por uma racionalidade
frágil, não disposta a procurar por seu fundamento primeiro e
dirigir-se à finalidade última (VATTIMO, 1998, 2004;
VATTIMO et al., 2000).

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O que chama a atenção, todavia, nessa disposição para
encarar o reencontro com o religioso pela filosofia é que Vatti-
mo (2004) propõe um pós-cristianismo ou, segundo o subtítu-
lo da edição brasileira para Depois da cristandade: “por um
cristianismo não religioso”. Se interessa ao Vattimo cristão
manter a sua fé sem abrir mão da condição pós-metafísica do
sentido do ser-para-a-morte, trata-se efetivamente de, pela
hermenêutica da tradição dos textos do cristianismo – como
um lançar-se na babel dos discursos que guardam em si a me-
tafísica –, lhe retirar justamente o caráter religioso: o re-ligare
da vida no mundo com sua verdade ontológica. Eis aí, pela
hermenêutica, a estratégia individualista. Escapou a Vattimo,
todavia, a própria dinâmica cultural engendrada pelo mito
contemporâneo, que carrega consigo o perigo do fundamenta-
lismo e a doença da verdade. Nesse caso, parece que Vattimo
foi traído duplamente em seu projeto: escapou-lhe, por um
lado, o simbólico do diabólico; em outras palavras: que a es-
tratégia individualista forja uma coletividade deliberadamente
fragmentada. Por outro lado, e a despeito da traição com que
depara o projeto de Vattimo – afinal, trata-se de um projeto –,
Vattimo é traído porque lhe escapou que sua proposta talvez
forje uns poucos pastores da hermenêutica pós-metafísica.
É forçoso admitir, entretanto, com Vattimo, que a mo-
dernidade e a secularização que a patrocinou são fundados em
uma estrutura mitológica. O problema do francês Maffesoli é
outro. Maffesoli, em seu elogio da pós-modernidade, leva tal
percepção ao paroxismo, ao mesmo tempo que desconsidera a
força totalizante do mito que a engendra. Para Maffesoli
(2003), o mundo pós-moderno, ao se livrar da linearidade da
história pela falência do projeto do progresso, vive o apogeu
do instante, do carpe diem, pelo qual advém um retorno do
trágico – ao invés do drama histórico da utopia. Não se trata,
segundo ele, de um mundo individualista. Diferentemente,
justamente por se ver livre de necessários laços mecânicos, os
indivíduos pós-modernos podem criar efetivos laços orgânicos
– até quando lhes interessar. Trata-se daquela liquidez, daque-
la afinidade eletiva pela qual, desobrigados de discutir os enla-
ces que os unem, os indivíduos apenas se afirmam na pura
alteridade e flanam entre amores líquidos.
Igualmente, a experiência mística da pós-modernidade
admite o flanar entre as diversas religiões e mitos explicativos.

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Daí, segundo Maffesoli, o flanar contemporâneo entre o santo
daime, o taoísmo, o budismo e a religião dos orixás. Essa expe-
riência de reencantamento do mundo tem no corpo, na corpo-
reidade suas marcas mais evidentes (MAFFESOLI, 1996). Morta
a utopia, é o topos, o local em que o corpo se encontra e no
próprio corpo em que se inscreve o prazer de viver, cotidiana-
mente, pelo prazer hedonista. O corpo cotidiano: mito reen-
contrado, na repetição cotidiana da vida, nos afazeres mais
comezinhos que se repetem, o corpo pavoneia-se na busca do
igual prazer de viver – e nele se inscreve, pela moda, pelo pro-
fundamente sensual. Mito encarnado: utopia realizada pela
aparente supressão da utopia.
Se Vattimo enxerga, na esteira de Niestzsche, com acui-
dade a condição mitológica da racionalidade ocidental, até
mesmo sua face totalizante, Maffesoli parece deliberadamente
obscurecer essa face da tragédia contemporânea. É uma questão
ontológica: ao admitirmos o mito contemporâneo como pro-
longamento daquele outro, fundado no progresso ou na matriz
judaico-cristã, mas de qualquer forma teleológica, é preciso ad-
mitir a persistência desse próprio mito – totalizante e pedagógi-
co. Por isso, não é espantoso que a RCC se manifeste ainda
hoje, a despeito da atuação intuitiva do Espírito Santo, pelo
ensinamento, pela pedagogia. Tampouco é espantoso que o
aparelho midiático secular nos ensine como devemos agir coti-
dianamente, como devemos nos vestir, quais as crenças a seguir,
como manusear nosso corpo. A utopia realizada de Maffesoli
não enxerga o acirramento do fundamentalismo no mundo,
nem, o que é pior, que o instante eterno por ele elogiado é senão
a forma contemporânea como se movimenta o capitalismo em
sua fase líquida e profundamente monopolista.
Nesse caso, deixar-se levar pelo sentido trágico cotidia-
no, ao sabor do corpóreo e suas inscrições, é ser conduzido
pelo drama da mercantilização da vida – cuja teleologia se tra-
veste de instantes trágicos e fragmentados para continuar agin-
do em sua totalidade e manter-se solapando diferenças, sacra-
lizando o dinheiro – tornando inviáveis vidas. O instante é
senão a força do mito que se fragmenta em imagens pelo apa-
relho midiático monopolizado para manter isolados – e uni-
dos nesse isolamento – os indivíduos que a consomem e por
que tecem suas vidas ordinárias. Age de forma semelhante,

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embora lhe seja um contraponto, a mitologia do fundamenta-
lismo católico: o Espírito Santo, presente em cada momento
da vida ordinária, garante, pelo ensinamento contínuo e pela
manipulação do aparelho midiático, o telos totalizante e exclu-
dente. Mitos que se contrapõem e se complementam.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se se pode dizer de um projeto pós-modernista, certa-
mente ele se localiza no esforço de desmaterialização da vida,
como bem disse Mooers (2006, p. 17), como um sinônimo de
emancipação: nossos corpos, “liberados dos constrangimentos
de sua corporeidade”, se nos apresenta como nossa liberação
“de várias formas de discriminação corporal expressas no racismo
e sexismo”. Desmaterializados, nossos corpos, transformados
em puro significante, libertos de um passado material incômodo
e de uma necessidade do porvir projetivo, podem enfim se lan-
çar na aventura do instante. O corpo cotidiano se desintegra,
apenas significa – e sobre si vê as marcas daquele para o qual se
dispõe: o consumo sempre porvir. A topia se torna utópica.
Porém, como nos lembra Terry Eagleton (1998, p. 74): “Para
uma nova somatologia, nenhum corpo velho serve. Se o corpo
libidinoso está in, o corpo laborioso está out. Existem corpos
mutilados aos montes, mas poucos corpos subnutridos”.
A natureza é a última fronteira da máquina significante
pós-modernista – mas, contraditoriamente, a transformação
da matéria em signo, da determinação em produto da vonta-
de, esconde atrás de si a naturalização das relações sociais mer-
cantilizadas. Estranhamente, a transformação do corpo em sig-
no faz dele não uma potência real, mas uma determinação que
deve se dispor para a reprodução concreta das relações sociais
capitalistas, transformado, em razão da desmaterialização co-
mo valor, em mito.
O perigo anotado por Reginaldo Prandi (2005, p. 237)
quanto à paulatina desaparição das religiões afro-brasileiras;
seu clamor angustiado, segundo o qual, tal desaparição não
desenharia “um horizonte promissor para o cultivo da dife-
rença cultural e do pluralismo religioso, cujo alargamento ali-
mentou promessas do final do século XX de democracia com

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diversidade, com tolerância e liberdade”, esconde um perigo
ainda maior, porque universal e que tem no confronto entre Jô
Soares e padre Cleodon seu momento epifânico: de um lado,
a carne; de outro, o corpo. Frente a frente, ambos se comple-
tam e se refutam. Um, representante do diabólico que se forja
no simbólico totalizante; outro, pop star de um mito desde
sempre simbólico totalizante e que se alimenta do diabólico.
Essa é a força do mito que carrega a tranformação do mundo.
Nesse caso, não apenas as religiões afro-brasileiras estão sitia-
das nos fragmentos que não se tocam. Aquele instante é epifâ-
nico porque desnuda uma sociedade que, ao menos por ora,
não consegue encarar o próprio mito. Encarar o mito não é
deixar-se conduzir pelo simbólico ou pelo diabólico, mas per-
cebê-los como inextrincáveis – como a carne e o corpo – e fa-
zê-los tocar pela única arma que lado a lado manipulam com
mestria: o aparelho midiático, pelo qual os dois lados tecem o
mito. Ouvir o mito e encará-lo significa ouvi-lo pelo clamor
da democracia, da diversidade, da justiça, da liberdade – da
convivência.

GODS DANCERS BODY IN THE


RELIGION OF THE ORIXÁS AND
IN THE PENTECOSTAL CHRISTIANITY

ABSTRACT

In the religion of the orixás, the body is the home of the life: the gods dance,
they sing, they eat and make sex. Their references are destined to sensual
rituals of the own body of the gods and of the followers, or the sensuality is
assumed from the natural elements. Like this, is not the human that enrolls
on the no-human nature; to the opposite, the nature and the place they
enroll on the body and the soul humans. If that characteristic is present
above all and still today in the candomblés, also in the umbanda the body
is evidenced, but what separates it of the candomblé is what approximates
it of those that pursue them: of the Christianity and its Utopia, its denial
of the sensual body and statement of the world eternal post-mortem. And,
however, also the contemporary Christian pursuers discovered the sensual.
and they impute to those pursued the diabolical of the sensual. This text

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illustrates, from the mythology of the orixás, the gods’ of Afro-Brazilian
head office sensuality and it rehearses a reflection on the new topia of the
Christianity practiced by recent Protestants and Catholics.

KEYWORDS

Afro-Brazilian religions; Christianity; body; experience of the time; expe-


rience of the space.

REFERÊNCIAS
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A SIMBOLOGIA MORTUÁRIA
POMERANA: SIMBOLISMOS E
SIGNIFICADOS DOS ELEMENTOS
COMPONENTES DOS CEMITÉRIOS
POMERANOS NA REGIÃO DE SANTA
MARIA DE JETIBÁ

Gladson Pereira da Cunha


Mestre em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Escola
Superior de Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) e bacharel em Teologia pela
mesma instituição. Especialista em Filosofia e Psicanálise pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia
da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
E-mail: [email protected]

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RESUMO

O presente artigo pretende descrever a simbologia mortuária pomerana


presente nos elementos estéticos que compõem o espaço cemiterial. A
postura diante da morte que o pomerano possui o diferencia dos demais
grupos étnicos ao redor dele e de outros grupos religiosos cristãos, sejam
esses católicos, sejam protestantes, e demonstra um traço único de sua
identidade sociocultural, na qual se inclui sua religião oficial, o luteranis-
mo, e sua religiosidade.

PALAVRAS-CHAVE

Morte; símbolo; simbologia; sepultamento; religiosidade popular.

1. INTRODUÇÃO
Ao longo de séculos, com a elevação do cristianismo de
religião tolerada a religião oficial do Império Romano, o mundo
ocidental viu muitos dos seus traços culturais serem suplantados,
substituídos ou, no mínimo, hibridizados a partir de conceitos
cristãos. Em relação à temática da morte, bem como aos seus
subtemas corolários, essa afirmação constitui-se como igual-
mente válida. Como demonstrado por Ariès (1981, p. 36-38),
os cemitérios romanos deixaram paulatinamente de ser organi-
zados ao longo das estradas, distantes das cidades, simbólico,

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do estar retirado do convívio dos vivos, e aproximados cada vez
mais para os lugares sagrados, isto é, as igrejas que já estavam
dentro da urbe, sendo os próprios cemitérios, posteriormente,
sacralizados, em virtude dos seus “santos” ocupantes.
Ainda no século V, é possível observar o bispo de Hipona,
Agostinho (354-430), respondendo uma consulta de certo
Paulino, colega no episcopado, que o questionava “se o cristão
lucra algo para si se for sepultado próximo à sepultura de algum
santo” (AGOSTINHO, 1990, p. 2) ou de mártires e outros
bem-aventurados. Aos protestantes assalta o espanto diante da
resposta daquele Pai da Igreja, que fora considerado o escritor
e teólogo mais importante pelos reformadores, como Lutero e
Calvino; um sonoro e respaldado sim, cito Agostinho (1990,
p. 2, grifo nosso):

Como me dizes, achais que não é coisa vã o sentimento que leva


pessoas fiéis e religiosas a tomarem tais cuidados com os seus
falecidos. […] Assim, pode-se concluir que é útil para o homem,
após sua morte, ter uma sepultura desse gênero, providenciada
pela piedade [de seus familiares], onde possa contar a proteção dos
santos.

Não seria de se estranhar, portanto, que séculos mais


tarde, no século X, Odilo de Cluny (962-1048) tenha separado
um dia, no mosteiro do qual era abade, para dedicá-lo a orações
em sufrágios pelos “santos defuntos”, “intercessores de vivos e
mortos”. De modo que, atualmente, a Igreja Católica Romana
expressa essa antiga percepção popular em seus princípios de
fé, como se segue:

Nós cremos que a multidão dessas almas que estão congregadas


à volta de Jesus e de Maria, no paraíso, formam a Igreja celeste
onde, na eterna bem-aventurança, vêem Deus como Ele é onde
também, certamente em graus e modos diversos, estão associa-
das aos santos anjos no governo divino exercido por Cristo glo-
rioso, intercedendo por nós e ajudando a nossa fraqueza com a
sua solicitude fraterna [(…)] Em virtude da “comunhão dos
santos”, a Igreja encomenda os defuntos à misericórdia de Deus
e oferece em seu favor sufrágios, em particular o santo Sacrifício
eucarístico (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA
APOSTÓLICA ROMANA).

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Dessa forma, compreende-se que a sacralidade ainda
concedia aos “campos santos”, como eram chamados os cemi-
térios que ficavam na proximidade dos templos católicos em
terras brasileiras. Essa sacralidade exige, então, que seja marca-
do o campo de seu significado, por meio de elementos simbó-
licos. Não é sem motivo, portanto, que muitos cemitérios se-
jam verdadeiros museus a céu aberto, com esculturas em
mármore ou granito que remetem a temas bíblicos, esculturas
de anjos e santos ou apenas um crucifixo1.
Os ramos das Igrejas Protestantes no Brasil assumiram
uma compreensão dualista da vida e também escapista da
realidade, de modo que a vida real é aquela que se apresenta
no celeste porvir (MENDONÇA, 2008). Presbiterianos,
metodistas, batistas, anglicanos e pentecostais – de acordo
com a observação desse autor – não prestam nenhuma atenção
a questões de cuidados posteriores relacionados com a morte.
Não visitam os túmulos, não levam flores ou sequer preservam
ou limpam as sepulturas dos seus falecidos. No entanto, os
luteranos, descendentes diretos do pensamento de Martim
Lutero (1484-1568), consideravam e consideram o tratamento
aos mortos, inumações e cuidados posteriores como questões
adiáforos, isto é, de caráter secundário, cada pastor em sua cul-
tura deveria trabalhar essas questões da melhor forma. Na afir-
mação de Graf e Ramlow (2008, p. 61, grifo nosso):

O antigo costume das comunidades da Alemanha, onde os


mortos são sepultados em volta da Igreja é resultado da com-
preensão de que os mortos continuam a fazer parte da comuni-
dade. Juntamente com os vivos continuam esperando a vinda
do Senhor Jesus.

Segundo esses autores, os luteranos, desde os primeiros


anos da Reforma, jamais deixaram de pensar na morte, cuidar
dos mortos, o que não inclui orações em seu favor ou interces-
são por meio deles. Pelo contrário, a memória dos que falece-
ram é relembrada de modo constante, bonito e respeitável

1
Num contraponto, o Cemitério Protestante de São Paulo, anexo ao Cemitério da Consolação, na
capital paulista, é desprovido de elementos simbólicos cristãos. No máximo, em relação aos ministros
presbiterianos lá sepultados, lápides num padrão “americanizado”. Ao passo que o Cemitério da
Consolação é marcado por sepulturas vistosas e simbólicas, pela expressão artística nelas presentes.

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(GRAF; RAMLOW, 2008). Assim, ao que indicam as obser-
vações desse autor, os luteranos constituem-se no único grupo
protestante brasileiro cuja relação com a morte não termina
com a “última pá de terra” lançada sobre o fiel morto. Algo
que se demonstra na preservação, visitação e na elaboração de
uma arte mortuária2. Tal arte deve ser entendida como a mani-
festação plástica dos símbolos religiosos que visa identificar
esse pertencimento, demonstração da fé em que vivera o fale-
cido. Isso pode ser mais observado nos cemitérios do município
capixaba de Santa Maria de Jetibá. A região que constitui o
município desenvolveu-se a partir da colonização de imigran-
tes pomeranos, os quais implantaram por lá muito de suas
práticas, incluindo as religiosas.
Este artigo, portanto, objetiva descrever a simbologia
mortuária dos pomeranos em seus três principais elementos: o
cemitério, como manifestação arquitetônica, a sepultura e o
tåfel. Compreendendo que essa simbologia nasce de uma expec-
tativa religiosa, sendo representada por expressões artísticas –
arquitetura, gravuras, “escultura”, mas que desemboca em
questões de um espectro bem mais amplo, como temas sociais,
emocionais e culturais. Desse modo, será envidado esforço
para interpretar o simbolismo inerente a cada elemento sob os
aspectos da crença religiosa dominante sob o ponto de vista no
luteranismo3, na antropologia, na sociologia e naquilo que faz
parte dessa religiosidade popular protestante. Além disso, de-
monstrar as implicações que as questões sociais, emocionais e
culturais causam dentro da realidade do grupo.

2
Pode-se argumentar que os presbiterianos mantêm alguns túmulos. Contudo, há que considerar
que são casos raros, geralmente sendo túmulos de seus fundadores e lideranças das duas maiores
denominações do Brasil, como é o caso dos túmulos dos pastores presbiterianos Ashbel G. Simonton
e José Manuel da Conceição, sepultados lado a lado no Cemitério Protestante de São Paulo. Este
último foi sepultado como indigente, por ser um ministro itinerante, sendo seus restos mortais
trasladados posteriormente, sob acusação por parte dos católicos de que os protestantes não cuidavam
dos seus mortos.
3
O luteranismo no Brasil se divide em dois grandes ramos: a Igreja Evangélica de Confissão Luterana
no Brasil (IECLB), organizada a partir dos grupos eclesiásticos formados no país com o início da
imigração alemã; e a Igreja Evangélica Luterana do Brasil, ligada à Lutheran Church – Missouri
Synod, uma igreja de missão, porquanto a LC-MS enviara pastores ao Brasil para congregar alemães
e seus descendentes em comunidades luteranas.

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2. BREVE HISTÓRICO DA IMIGRAÇÃO
POMERANA PARA O ESPÍRITO SANTO
A imigração pomerana é uma das menos conhecidas ce-
nas da história das movimentações de europeus em solo brasi-
leiro. Os pomeranos capixabas são descendentes das antigas
tribos eslavas que se fixaram às margens do Mar Báltico, nos
primeiros séculos da era cristã. A palavra Pomerano deriva-se
do termo Pomorje – pronuncia-se pomrye – que os identificava
como “os que habitam próximo ao mar”.
Por razões de ordem econômicas, territoriais e estratégi-
cas, a região da antiga Pomerânia tornou-se visada pelos seus
vizinhos, como polacos, germanos, suecos, prussianos, entre
outros. Desse modo, essa “nação” foi, de fato, um grande
campo de batalha durante os séculos.
A Pomerânia nunca foi necessariamente uma nação.
Coube a Bogislaw X (1454-1523), depois de séculos de guerras
e divisão, a tarefa de unificar a Pomerânia em termos territoriais
e políticos e restaurar a ordem do ducado, sob os auspícios do
Sacro Império Romano Germânico. O duque Bogslaw X decla-
rou, por meio do Tratado de Pyritz, a Pomerânia como feudo
do Sacro Império Romano Germânico e não de Brandenburgo,
que também se interessava pelo território pomerano, como
um artifício para conseguir a autonomia para o seu ducado
(BÖCKER, 1995, p. 383-408 passim). A sua administração
aumentou a arrecadação de impostos, o que, segundo Rölke
(1996, p. 15), “propiciou alguns anos de prosperidade, tanto
social como culturalmente. E também introduziu uma moeda
comum a todas as cidades”. O pouco que se sabe da história da
antiga Pomerânia deve-se à pena, do então monge premonstra-
tense, Johannes Bugenhagen (1485-1558), que viria se tornar o
braço direito de Martim Lutero, pastoreando a catedral
Wittenberg até a sua morte, em 1558 (RUCCIUS, [s.d.], p. 87).
Todas as tentativas de Bogislaw X, no entanto, foram
em vão para manter a unidade do ducado. Com a morte de
Bogislaw X, seus filhos George I e Barmim XI assumiram con-
juntamente o poder e, em 1529, assinaram um acordo com o
príncipe eleitor de Brandenburgo, no qual este último conce-
deria e garantiria a autonomia do ducado pomerano, tendo

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como uma das cláusulas a possibilidade de integração da Po-
merânia por Brandenburgo, no caso de não haver mais herdei-
ros ao ducado. Em 1637, Bogislaw XVI, o último duque po-
merano, morreu sem descendência e a Pomerânia foi unificada
à Prússia-Brandenburgo.
Assim, os favores estatais prussianos aos pomeranos “na-
tivos” eram deficitários em relação aos pomeranos “alemães”.
De modo que os “nativos” foram se tornando servos dos ale-
mães. Isso gerou o segundo elemento de intensificação do de-
sejo migratório: as questões econômicas.
A Pomerânia, ao longo de sua história, esteve envolvida em
várias disputas territoriais. Muitos de seus vizinhos, por exem-
plo, a Polônia, ambicionavam esse território, porquanto seria
a possibilidade de estabelecer uma saída marítima pelo Mar
Báltico, como acontece hoje. Além do que, as terras da Pome-
rânia eram muito férteis, como afirmou Jacob (1992, p. 14):

A Pomerânia também se orgulha por ter sido, em épocas remo-


tas, considerada o “Celeiro Agrícola” da Europa. Época em que
a sua população era bem mais nutrida e caracterizada pela sua
robustez, pelo árduo trabalho, resistência e paciência.

Em razão das hostilidades dos vizinhos e das constantes


guerras, no entanto, a produção agrícola e de pescados pome-
ranos sofreu grandes golpes. O processo de germanização da
Pomerânia, a partir de sua cristianização definitiva, dá início a
uma prática chamada Bauernlegen, que era o confisco sem inde-
nização de pequenas propriedades por latifundiários, fazendo
que os pequenos sitiantes livres se tornassem diaristas no que
fora sua própria terra (RÖLKE, 1996, p. 19-20).
Além das razões territoriais e econômicas surgidas pela
ocupação germânica, a posterior anexação da Pomerânia à
Prússia gerou uma questão de ordem religiosa: a tentativa, em
1817, de unificação da Igreja Luterana à Igreja Reformada, de
teologia calvinista, por parte do imperador prussiano Frederico
Guilherme III, o “sumo episcopos” das igrejas estatais prussianas,
como parte das comemorações dos 300 anos da Reforma Protes-
tante. Os pomeranos constituíam parte de um grupo conhecido
como Altlutheraner (ger. Luteranos antigos), uma linhagem
eclesiástica que pretendia manter – anacronicamente expres-
sando – o fundamentalismo da confessionalidade luterana, tal

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qual formulada em suas confissões e catecismos, e obstinada-
mente contrários a qualquer unificação fosse ela apenas de ca-
ráter litúrgico4.

3. O TABU DA MORTE ENTRE OS


POMERANOS
Embora a morte esteja na sociedade atual e secularizada
destituída de qualquer sacralidade, na qual o morrer é apenas
o último estágio da biologia humana – contra essa postura
fala-se em “morte humanizada” –, para o pomerano típico5 a
morte é um dos mais dramáticos momentos da existência,
porquanto vários são os tabus que se seguem à morte6. A
morte entre os pomeranos não é o inevitável destino de toda a
espécie humana, porém, é um momento de transição, de uma
passagem entre realidades existenciais distintas, mas ao mes-
mo tempo correlacionadas. A morte é continuação da vida e a
vida, por sua vez, pode tornar-se indicação da morte. Por
exemplo:

Uma antiga crença pomerana é que uma criança que não


tenha sido batizada ou que a mãe tenha morrido de forma
violenta, personificam-se no que era conhecido como
Navky, isto é, espíritos amaldiçoados a clamar pelo batis-
mo, chorando como crianças, e a viverem nos bosque e
próximo a lagos por sete anos (CUNHA, 2010b, p. 290)7.

Ou

4
Sobre esse assunto, recomendo a leitura de Huff Junior (2006).
5
Chamo de pomerano típico aquele indivíduo que é membro do grupo étnico, falante do pomerisch,
luterano e residente no meio rural. O indivíduo que se adapta a esse padrão possui uma cosmovisão
mais ou menos semelhante.
6
Sobre isso, ver Cunha (2010, p. 34-60).
7
Tal crença, segundo o folclorista Câmara Cascudo (2000, p. 465-466), também encontra lugar no
folclore brasileiro, no conceito do pagão, isto é, da criança natimorta ou que morreu antes de receber
o batismo. Contudo, essas crianças possuem um poder ambivalente, ao mesmo tempo que assustam,
protegem, por exemplo, o gado, se sepultadas junto ao curral, aguardando um batismo pós-morte.

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As adivinhações no decorrer de um velório sempre estão ligadas
a quem será o próximo a morrer. Por exemplo, se o falecido
aparentar ser mais novo do que é, morreria um jovem; e se mais
velho alguém mais adulto. O último que sair do local do velório
também tem um significado correspondente: se for uma mu-
lher, uma mulher seria a próxima a morrer e se for um homem,
também um homem será o próximo a morrer. Após o sepulta-
mento, lança-se sobre o túmulo a enxada e a pá para se desco-
brir o próximo a morrer (CUNHA, 2010b, p. 312).

Por isso, todo o discurso relacionado com a morte é cer-


cado de eufemismos, de modo a minimizar os efeitos emocionais,
como quando a notícia do falecimento é dada (TRESSMANN,
2002, p. 198). Por vezes, o silêncio é a melhor maneira de
prevenir que os mortos permaneçam em seu sono. Falar mal
de um morto, especialmente durante o seu velório, é trazer
mau agouro para aquele que ousou criticar o falecido, isso por
meio de visita inesperada do fantasma do “dito cujo” (RÖLKE,
1996).
Assim, em toda a vida existem momentos, rituais, reli-
giosos ou mágicos, que propiciam a esse pomerano típico uma
boa morte para si mesmo e para os seus. Do batismo até a
última comunhão, do cumprir suas obrigações para com a
Igreja até estar atento aos enfermos, tudo o que for possível
fazer para dar uma morte tranquila ao moribundo, isso será
feito. O pavor que os espíritos perturbados voltem para ator-
mentar os que ficaram faz parte da crença popular desse grupo.
Daí se chega a dois caminhos diferentes: o primeiro é do
amor cristão, pelo qual os mortos devam receber um trata-
mento digno desde o preparo do corpo até a inumação e, pos-
teriormente, pela conservação de seus túmulos. O segundo
caminho é o do medo; medo de que as almas voltem para atra-
palhar a vida, por meio de doenças, infortúnios no campo, na
cidade, e até mesmo com a morte. Qual desses dois caminhos
é o grande motivador para o cuidado com os mortos? Este
autor está inclinado a afirmar que existe uma ambiguidade
entre esses dois caminhos, de modo que ambos exercem sua
influência, umas vezes mais, outras vezes menos. Pelo sim, pe-
lo não… melhor se cuidar.

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4. OS ELEMENTOS SIMBÓLICOS
MORTUÁRIOS POMERANOS
O conceito de simplicidade permeia não apenas a vida
do pomerano, como também a morte. Longe de ser essa sim-
plicidade um sinônimo de pobreza ou algo semelhante, ela se
apresenta como o modo de vida frugal exigido pela cosmovi-
são luterana. A ostentação do luxo é um sentimento rechaçado
pela comunidade, cujo ideal é o trabalho e aquilo que se con-
quista de necessário para a sobrevivência8. Na morte não have-
ria como ser diferente, a modéstia impera numa simbologia
simples, mas não simplória.
Uma das maneiras de o símbolo se manifestar é por
meio do que é plástico e sensível. Assim, objetos materiais são
usados para representar algo imaterial ou ideal, conceitos mui-
tas vezes que extrapolam os limites da linguagem humana, os
limites da palavra. Não é sem razão que muito da simbologia
religiosa tem sido apresentada por meio das artes. A arte, ao
que parece, é mais um elemento da produção cultural humana.
As atividades da humanidade sobre as quais durante milênios
expressou suas emoções e angustias, “diante das quais nosso
sentimento é admirativo, isto é: nossa cultura possui uma no-
ção que denomina solidamente algumas de suas atividades e as
privilegia” (COLI, 1995, p. 8). Assim, é possível afirmar que
não existe uma cultura, por mais rudimentar – se é que é pos-
sível dizer isso – que seja, que não tenha desenvolvido algum
tipo de manifestação artística.
Daí, assumindo os princípios da iconografia, conforme
apresentados por Erwin Panofsky (1976, p. 47) – segundo o
qual ela seria “o ramo da história da arte que trata do tema ou
mensagem das obras de arte em contraposição à forma” –,

8
Há histórias contadas por pessoas que podem deixar qualquer um admirado, como: Certo agricultor
pomerano, uma caricatura do Jeca Tatu, chamou um “brasileiro” de confiança, um sargento da
PM do Espírito Santo, para acompanhá-lo numa ida a Vitória – algo raro entre muitos pomeranos
típicos. O interesse era apenas um: comprar um caminhão novo para a propriedade. Ao chegar à loja,
o vendedor dirigiu a atenção ao sargento, mais bem vestido que o verdadeiro comprador. Espantoso
foi o fato de o pomerano sacar dos bolsos notas e mais notas de dinheiro – muitos deles não gostam
de bancos –, pagando à vista o novo caminhão. Com o seguinte comentário do sargento: “De onde
veio esse dinheiro tem mais para comprar uns dez caminhões”.

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nossa tarefa parece se delinear melhor, porquanto o interesse
deste trabalho é justamente o de observar o tema e as mensagens
produzidas que assumem um caráter admirativo dentro da
esfera da morte entre os pomeranos. Conquanto, “o impor-
tante é termos em mente que o estatuto da arte não parte de
uma definição abstrata, lógica ou teórica, do conceito, mas de
atribuições feitas por instrumentos de nossa cultura, dignificando
os objetos sobre os quais ela recai” (COLI, 1995, p. 11).

4.1. O CEMITÉRIO: O LUGAR COMUM


DO SONO
A descrição da história dos cemitérios tem tomado o
tempo de muitos estudiosos9, quer pelo seu papel religioso, quer
pela religiosidade formada a partir deles, como exemplo claro
do papel social ou psicológico que eles podem exercer, embora
a grande maioria deles seja laica. No entanto, para o pomera-
nos, os seus cemitérios, especialmente os da zona rural, conti-
nuam sendo espaços essencialmente religiosos sob os cuidados
de associações formadas nas Igrejas para a manutenção deles.
Ao contrário da lei que ordenava que as necrópoles fos-
sem construídas fora da cidade por questões de saúde pública,
como decretado por D. Pedro I, em 1828 (BORGES, 2002,
p. 142), e que parece ter prevalecido até a chegada dos primeiros
colonos pomeranos, para esses imigrantes, no entanto, o cemi-
tério – que em sua própria língua é denominado die kirkhof, o
que numa livre tradução seria algo como o “o campo da igreja”
– não poderia ser construído em outro lugar senão ao lado da
igreja. Assim, o cemitério teria um significado para eles, como
protestantes, bem diferente daquele que tem para os demais
protestantes brasileiros: uma continuidade de pertencimento à
comunidade de fé.
Qual seria, porém, o significado de cemitério? O termo
cemitério vem do grego koimeterion, derivado do verbo

9
No III Simpósio Internacional sobre Religiosidades, Diálogos Culturais e Hibridações, realizado em
Campo Grande, Mato Grosso do Sul, o GT Vida/morte e suas representações no campo das religiões
e das religiosidades, coordenado pelo Prof. Dr. Marco Antonio Neves Soares, da Universidade
Estadual de Londrina, recebeu várias comunicações baseadas em diversos estudos no Cemitério
Municipal de Londrina (PR).

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koimaō, que literalmente significa “dormir ou cair no sono”
(GINGRICH; DANKER, 2001, p. 118). O eufemismo “sono”
é usado desde a Antiguidade para se referir à morte. Os cristãos
assimilaram essa ideia em razão do grande número de vezes
que o termo morte é minimizado por sono nos textos bíblicos
(Dt. 31.16; Sl. 13.3; Sl. 76.5; Dn. 12.2; Jo. 11.13; 1Co. 15.6;
1Ts. 4.13). Assim, o termo não foi estranho à cultura formada,
a partir do momento que se atribuiu o nome koimeterion
àqueles que estavam sob o koimesis thanatou (gr. “o sono da
alma”). A palavra “cemitério” não está presente com essa ori-
gem na língua pomerana, mas sim o seu conceito, que impreg-
na a mentalidade pomerana como lugar de sono e descanso.
No devir histórico em que vive a humanidade, no entanto,
os conceitos de sacralidade acerca do cemitério variaram nesse
processo. Como dito anteriormente, os romanos localizavam os
túmulos de seus falecidos ao longo das estradas, fora das cida-
des, num claro simbolismo de mudança de realidade existen-
cial. O cristianismo, contudo, possuía uma visão diferente da
morte, isto é, ele sacralizou-a sob a morte trazendo os mortos
para perto dos vivos, mantendo a comunhão entre eles.
Desse modo, o cemitério perdeu sua conotação sagrada,
entre a Idade Média e meados do século XVIII, pois “as pessoas
iam passear, dançar, vender e comprar, lavar a roupa; nele se dá
justiça, se resolviam questões políticas da comunidade, se
consumavam execuções, se faziam reuniões, representações tea-
trais e deixava o gado pastar” (RODRIGUES, 1983, p. 165).
Essa dessacralização pode estar relacionada com a crença de
que no “campo santo” as almas estavam em seu descanso bea-
tífico junto de Deus; portanto, aquele era apenas mais um
lugar sagrado, mas que serviria a outros propósitos dos vivos.
Mas o que há de simbólico e artístico num cemitério
pomerano? Onde a beleza pode tomar forma num ambiente
como esse? Para Walter Benjamin (s. d., p. 17) dois são os
critérios pelos quais uma obra de arte deve ser acolhida como
tal: o valor da obra como objeto de culto e o seu valor como
realidade exibível. A arte, como elemento sociocultural, neces-
sariamente não é exigente com a sua produção, exigindo os
padrões estéticos das belas-artes ou das obras do período renas-
centista. Na verdade, a estética é uma percepção cultural; logo,
a beleza de objetos dependerá daquilo que o grupo considera
esteticamente apreciável. Deixando essa digressão e retornando

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a Benjamin, o primeiro critério que ele apresenta como aquele
que determinará a acolhida de determinado elemento como
artístico, isto é, o valor cultual outorgado, valida o entendi-
mento dos cemitérios como espaço arquitetado ou arquitetô-
nico, como uma forma de arte.
Embora sejam os pomeranos confessionalmente lutera-
nos, os quais rejeitam completamente qualquer possibilidade
de contato com os mortos ou mesmo a intercessão, veneração
ou qualquer tipo de relação com os falecidos, o que configura
a inexistência de um culto aos mortos (GRAF; RAMLOW,
2008, p. 71)10, a vivência do pomerano típico no universo do
sagrado está no relacionamento dialético entre a religião e a
magia, a qual é uma espécie de fragmentação de antigas práti-
cas pré-cristãs. Desse modo, “a religiosidade popular seja fruto
de um flerte entre elementos da religiosidade oficial, aqui o
cristianismo luterano, e rudimentos de um culto mágico”
(CUNHA, 2010a, p. 247).
Se oficial e objetivamente é possível afirmar o que crê o
pomerano típico, subjetivamente isso é impossível até o modo
em que ele exteriorize o sentimento em ações tácteis e obser-
váveis. Ora, qual seria o motivo de tanto cuidado com o am-
biente da necrópole? Por que a preservação perpétua dos tú-
mulos – sobre isso será falado mais adiante – senão pelo fato
de que haja uma forma, mesmo que dilapidada pelos séculos,
de um culto ancestral? Tem-se, então, um culto; logo, o objeto
do culto está nos limite dos cemitérios, que se tornam como
templos dessa veneração. Assim, como espaços arquitetônicos,
expressam sua beleza ao grupo e àqueles cuja sensibilidade não
esteja atrofiada. Mas onde o belo aparece no espaço construí-
do do cemitério?
Estruturalmente, a área delimitada para o cemitério ten-
de a ser um quadrilátero, existindo apenas uma entrada, pela
qual todos obrigatoriamente deveriam entrar. Isso porque
nem todos têm esse direito, por razões ligadas à forma da mor-
te, como o suicídio. Nesse caso, em alguns cemitérios há um
portão lateral por onde se daria a entrada desses falecidos. Nos
cemitérios onde não há esse portão, o caixão de um suicida é

10
Obra produzida por iniciativa da União Paroquial Norte do Espírito Santo, unidade do Sínodo
Espírito Santo a Belém, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana, constituindo-se, portanto,
numa obra de caráter oficial dessa unidade eclesiástica.

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passado por cima dos muros do cemitério. Onde é possível,
por causa do terreno, o muro é baixo, não mais que um metro
e meio, e a cor prevalecente é o branco. As sepulturas pomera-
nas, que são um detalhe à parte, são todas direcionadas ao
nascente do Sol, todas perfiladas como num grande dormitó-
rio, existindo uma perfeita simetria do espaço. Na medida do
possível, existe uma arborização do cemitério, permitindo, às
vezes, a colocação de bancos, para o descanso dos visitantes.
Mas qual seriam as razões para toda essa organização?
Numa de suas conferências, Michel Foucault (1986) tratou
do que ele chamou de o nascimento da medicina social. A
medicina urbana era, segundo Foucault (1986, p. 88), taxio-
nomista, isto é, distribuía “os indivíduos uns ao lado dos ou-
tros, isolá-los, individualizá-los, vigiá-los um a um, constatar
o estado de saúde de cada um”. Todavia, aqueles que não esti-
vessem bem ou fossem diagnosticados com algum mal, tal co-
mo a lepra ou a peste, não seriam tratados, mas exilados da
convivência do restante da cidade. Isso posto,

[...] crê-se, frequentemente, que foi o cristianismo quem ensi-


nou à sociedade moderna o culto aos mortos. Penso de maneira
diferente. Nada na teologia cristã levava a crer ser preciso res-
peitar o cadáver enquanto tal. O Deus cristão é bastante todo-
poderoso para poder ressuscitar os mortos mesmo quando mis-
turados em um ossuário. Em compensação, a individualização
do cadáver, do caixão e do túmulo aparece no final do século
XVIII por razões não teológico-religiosas de respeito ao cadá-
ver, mas político-sanitárias [sic.] de respeito aos vivos. Para que
os vivos estejam ao abrigo da influência nefasta dos mortos, é
preciso que os mortos sejam tão bem classificados quanto os
vivos, ou melhor, se possível (FOUCAULT, 1986, p. 89-90).

Possivelmente, Foucault (1986, p. 89) estava levando


em consideração um movimento sanitarista que havia tomado
de assalto a França de meados do século XVIII, isto é, entre
1740 e 1780, quando os cemitérios emigraram para a periferia
de Paris. Se considerarmos a última data – o da emigração dos
cemitérios parisienses – e acrescentarmos que foram necessá-
rios 40 anos para que os protestos contra os cemitérios tives-
sem resultado, seria impensável que as medidas sanitárias
iniciadas na França fossem rapidamente assimiladas pelos
pomeranos setecentistas.

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Os pomeranos foram cristianizados tardiamente, por
volta do século XI, e tinham uma categoria de pensamento
acerca dos espíritos dos mortos, os quais eram reverenciados.
Segundo Jan Máchal (1918, p. 233), os pomeranos utilizavam
dois métodos funerais ao mesmo tempo – a cremação e o se-
pultamento. Primeiramente, sob uma pira, era posto o corpo
do falecido juntamente com todos os seus objetos pessoais.

[Uma vez que] a pira e o corpo tidos consumidos pelas chamas,


as cinzas, eram ajuntados com as sobras carbonizadas de ossos,
armas, e joias, e com todos os tipos de presentes, [e por fim]
tudo era reunido em uma urna e colocado em um túmulo
(MACHAL, 1918, p. 233).

Assim, a organização dos cemitérios trazidos pelos


pomeranos para o Brasil parece estar mais ligada às suas práticas
anteriores na Pomerânia, do que a um caso de saúde pública na
França seiscentista. Como foi dito anteriormente, o cemitério
– die kirkhof – é de alguma forma parte constitutiva do templo.
Se não oficialmente, ao menos no imaginário popular, ainda
mais que o conceito está claro no idioma. Um incidente que
chocou a Comunidade Luterana de Beira-Rio, em Santa Maria
de Jetibá, pode muito bem esclarecer isso. Atos de vandalismo
dentro do kirkhof, que resultaram na destruição de alguns
túmulos, revoltaram os membros dessa comunidade. O lavrador
Elizeu Vesper expressou muito bem seu sentimento: “Fiquei
revoltado quando soube. O povo pomerano nunca viu isso.
Mas que dá uma revolta, dá! O cemitério é sagrado. Fazer farra
lá já é demais...” (FERRI, 2009, grifo nosso). Como foi dito, se
não oficialmente, ao menos na religiosidade popular sua sacra-
lidade está presente na mentalidade do pomerano típico.
O kirkhof é tão parte integrante da igreja, como edifica-
ção e organização, que nas comunidades luteranas que foram
criadas na serra capixaba três construções eram necessárias: o
templo, a escola e o cemitério. Segundo registros, uma das
providências que determinada comunidade deveria tomar
para que tornar-se uma paróquia independente seria ampliar o
cemitério superintendido por ela (BURGER, 1955, p. 226).
Dessa forma, é possível dizer que o cemitério torna-se como
uma extensão do templo, de modo que ele assume alguns estilos
templários, como o uso de símbolos cristãos, na elaboração do
espaço e suas estruturas arquitetônicas.

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Tem-se, portanto, um espaço sagrado, separado do res-
tante do ambiente por muros e portões, simbologia e organi-
zação espacial, para uma atividade cúltica em honra daqueles
que já não vivem no espaço profano do mundo. Tome-se, por
exemplo, o cemitério da sede do município de Santa Maria de
Jetibá. Por ter sido alocado num terreno em aclive, o espaço
foi divido em vários platôs. A entrada principal da necrópole,
que está relativamente centralizada em relação à sua área de
frente, torna-se a referência para os pórticos que dão acesso
aos demais platôs. Cada platô possui seu pórtico de acesso, os
quais, assim como o da entrada principal, são formados por
duas colunas que sustentam um arco. No cume de cada arco
se eleva uma cruz e em cada um deles um versículo bíblico
fazendo alusão à crença bíblica da ressurreição.
O belo está no conjunto dos elementos que formam o
espaço, no qual o branco substitui a paisagem acinzentada em
algumas necrópoles de grandes centros, como o Cemitério da
Consolação, em São Paulo, ou o São João Batista, no Rio de
Janeiro. O branco é considerado por muitos grupos a cor da
iniciação, ideia que Câmara Cascudo (2000, p. 94) conside-
rou presente no momento da morte. É observável na própria
Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB),
como na Igreja Católica, que as crianças, quando são apresen-
tadas ao batismo, o são vestindo branco, simbolizando a pure-
za a partir da iniciação. A ideia está presente no termo alemão
Der Friedhof, literalmente o “campo da paz”. A experiência de
estar num desses ambientes é estranhamente o sentimento de
paz e tranquilidade, de um misto de sentimentos: da saudade
– indescritível palavra da língua portuguesa – e esperança reli-
giosa. Observar senhoras saindo do Kirkhof era uma estranha
tentativa de compreensão. Resumindo, estavam deixando um
lugar evidentemente sagrado.

4.2. A SEPULTURA: UMA CAMA PARA


O DESCANSO
Os túmulos geralmente são considerados como parte
constitutiva do conjunto do espaço do cemitério. Seu simbo-
lismo pode variar substancialmente entre as culturas, sendo

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reconhecido como a última habitação do espírito do falecido
ou como um modo de fixá-lo a um determinado espaço, para
que não venha a atormentar os que estão vivos (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2007, p. 915). Os túmulos devem ser con-
siderados elementos individuais dentro do que tem sido cha-
mado de simbolismo mortuário pomerano, porém com um
significado diferente daquele proposto por Chevalier e Gheer-
brant (2007, p. 915), tal como se segue:

Os túmulos como um monte de proporção pequena ou elevan-


do-se em direção ao céu como uma pirâmide, o túmulo lembra
o simbolismo da montanha [isto é, a transcendência daquilo
que terreno, mas que alcança os céus]. Cada túmulo é uma ré-
plica modesta dos montes sagrados, reservatórios de vida [o au-
tor se refere, por exemplo, ao Olimpo grego, ao Thabor hebreu,
ao Gerazim samaritano e ao Moriah judaico, onde fora cons-
truído o templo a Yahweh, por Salomão].

Como a análise que se pretende aqui é iconográfica, o


foco não é uma interpretação e descrição da forma do objeto,
mas o seu tema, isto é, aquilo que ele comunicaria numa pri-
meira impressão, “uma percepção puramente formal” (PA-
NOFSKY, 1976, p. 48). Cito Panofsky (1976, p. 48):

O significado assim percebido é de natureza elementar e facil-


mente compreensível [...] é apreendido pela simples identifica-
ção de certas formas visíveis com certos objetos que já conheço
por experiência prática e pela identificação da mudança de suas
relações com certas ações ou fatos. […] A iconografia é, portan-
to, a descrição e classificação das imagens.

Desse modo, o tema de um objeto estaria ligado direta-


mente com outro que mais facilmente pode ser apreendido
por meio de experiências perceptivas. Logo, é preciso descre-
ver como são os túmulos pomeranos típicos. O túmulo pome-
rano típico mede entre 0,80 e 0,90 centímetros de largura por
2,20 metros de comprimento. A cabeceira ergue-se até uma
altura de 0,90 centímetros, possuindo um nicho onde será
posto o tåfel. É rusticamente construído com tijolos e rebocado
com argamassa, pintado de branco, marcado pela simplicidade

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de traços. No cemitério de Santa Maria de Jetibá, é possível
encontrar intactos túmulos do século XIX.
As dimensões e formas à primeira vista desse objeto
mortuário remetem o observador ao conceito “cama”, por-
quanto o conceito pomerano acerca da morte está diretamente
ligado com o dogma assumido pela IECLB sobre o estado da
alma após a morte. Esse dogma afirma que a alma após a
morte entraria numa espécie de sono enquanto aguarda a
ressurreição. Na língua alemã, a palavra que denomina o
cemitério é Der Friedhof, literalmente o “Campo da Paz”,
reforçando a opinião teológica. A ideia do descanso sucedido
à morte não é apenas um eufemismo para aliviar as tensões
psicológicas geradas pela morte e pelo morrer. É, antes de
tudo, a crença real de todo luterano acerca da morte, a de que
ela é um descanso em Deus.

Lutero, geralmente, entendia a condição entre a morte e a


ressurreição como um profundo e sem sonhos, sono sem cons-
ciência e sentimentos. […] [Lutero diz:] “Pois, do mesmo
modo como um que pega no sono e adormece profundamente
até pela manhã não sabendo o que lhe aconteceu [durante a
noite] quando acorda; assim nós repentinamente ressuscitare-
mos no Último Dia; e nós nada saberemos acerca de como
estivemos na morte ou como passamos por ela” (ALTHAUS,
1966, p. 414-415).

Com essa conceituação em mente, ao entrar no Kirkhof,


a primeira impressão do observador, ao ver os túmulos pome-
ranos típicos, é de que são várias camas perfiladas, como num
grande dormitório, e não de que os túmulos sejam uma morada,
como sugere Joana Bahia (2001). Basta um exemplo visível
para amparar a comparação. Basta observar o Mausoléu da
Família Matarazzo, no Cemitério da Consolação, em São
Paulo, e um túmulo pomerano típico, no Cemitério de Santa
Maria de Jetibá.
Por conseguinte, não seria de estranhar que num dormi-
tório o elemento em maior destaque fosse outra coisa senão as
camas. Assim, assumindo uma interpretação iconológica pano-
fskyana, na qual a síntese de conceitos que conduziram à cria-
ção do objeto do que a análise dele, síntese essa que deve levar

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em consideração as ideias constitutivas, históricas e contex-
tuais que conduziram à elaboração de tal ou qual objeto
(PANOFSKY, 1976, p. 54, 62-63 passim), o túmulo pomera-
no seria, então, uma última cama, na qual o falecido é posto
durante o “sono da morte”, aguardando o seu despertar no
Juízo Final. O túmulo pomerano não é um mausoléu no sen-
tido estrutural, nada se assemelhando à ideia de última habita-
ção. Dentro da teologia oficial e da crença popular, a última
habitação é escatológica e está diretamente ligada à ideia da
ressurreição e do paraíso por vir.
As noções de descanso, paz, repouso e sono parecem
confirmar a presente interpretação, o túmulo como cama. Daí
a consideração de que toda cama precisa de um colchão. E
esse problema não é de difícil solução. O caixão, que em pome-
risch é chamado de Rüskasten, que literalmente significa “caixa
de descanso”, segundo Rölke (1996, p. 80), funcionaria como
um colchão no qual é deitado o morto, que não mais deve
dormir entre os vivos, mas entre os santos que como ele deixa-
ram esta vida e que se encontram reunidos no Kirkhof até o
Dia do Juízo. A morte é, portanto, um sono. Não é um estado
definitivo, mas temporário. É isso que lhe afirma a sua crença
religiosa, embora em sua religiosidade tais convenções sejam
extrapoladas. Todavia, a sepultura é um elemento da cultura
religiosa, com a qual a religiosidade popular apenas flerta, por
vezes, discretamente. As sepulturas não são casas, mas simples
camas, lugar de repouso temporário.
O branco é a cor predominante dos túmulos. Algumas
vezes o azul, num tom mais claro, dá cor à sepultura, mas o
significado dessa última cor tem mais a ver com o patriotismo
idealizado do que com conceitos simbólicos mortuários, uma
vez que o azul era a cor da bandeira da antiga província pomera-
na. O mesmo não ocorre com o branco. A morte apresenta-se
novamente como “passagem iniciática” na presença do branco
recobrindo o túmulo. Acerca disso, Chevalier e Gheerbrant
(2007, p. 142) comentam:

Em todo o pensamento simbólico, a morte precede a vida, pois


todo o nascimento é um renascimento. Por isso, o branco é
primitivamente a cor da morte e do luto. E isso ainda ocorre em
todo o Oriente, tal como ocorreu, durante muito tempo, na
Europa e, em especial, na corte dos reis de França.

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Essa tradição, entretanto, tem desaparecido, dado que
os túmulos têm tomado feições “dessacralizadas”, talvez pelo
desconhecimento da simbologia implícita na forma e na cor
dos túmulos pomeranos típicos. A simplicidade tem dado lu-
gar a granitos, cerâmicas e outras formas de revestimento. O
branco dos iniciados pertence apenas aos túmulos mais anti-
gos. Os padrões estéticos modernos têm deixado de lado a
simbologia mortuária, de modo que o símbolo tem desapare-
cido, tornando o simbolizado incompreensível.

4.3. O TÅFEL: AQUI DESCANSA NO


SENHOR
O tåfel é uma simples tábua de madeira na qual são enta-
lhadas inscrições como o epitáfio “aqui descansa no Senhor”,
seguindo o nome do falecido, as datas de nascimento e morte
e um versículo bíblico, relacionados ou não com a morte ou
crença na ressurreição. Esse se torna um elemento constituinte
da sepultura pomerana típica. Mesmo fora do “típico”, o tåfel
está presente nas sepulturas pomeranas, pendurado em cruzes.
O tåfel, por assim dizer, seria a “carteira de identidade” do
falecido.
É possível inferir, a partir de observações, que as inscri-
ções do tåfel são um eco reverberado da fé do indivíduo sepul-
tado. O “Hier ruhet in Gott”, do alemão “Aqui descansa no
Senhor” é a primeira. “Descansar em Deus” é ter a sua alma
protegida em Deus durante a morte, conforme a parábola regis-
trada em Lucas 16.22. Ou por causa do entendimento exposto
pelo próprio Lutero (2000, p. 35-36) de que “para os fiéis a
morte já está morta e não tem nada de terrível”. O fato é que

[...] muitas vezes, eram surpreendentes os versículos, pois eram


verdadeiras confissões de fé. Por exemplo, numa sepultura de
um membro família Potratz, o versículo do Tåfel é: “Mas Jesus
lhe disse: Vês estas grandes construções? Não ficará pedra sobre
pedra, que não seja derribada (Mc. 13.2)”. Este versículo do
Evangelho de Marcos nada diz acerca da morte em sua inter-
pretação. Contudo, quando se pensa no Tåfel como as palavras
do morto, vê-se neste versículo a certeza de que aquele túmulo

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será um dia destruído não havendo mais nenhuma noção do
mesmo. Tal destruição não seria fruto do tempo, mas do evento
da “ressurreição do corpo”, esperança escatológica cristã, muito
fortemente ensinada na IECLB [Igreja Evangélica de Confissão
Luterana no Brasil] (CUNHA, 2010a, p. 311).

Figura 1 – TÅFEL – Cemitério de Stª Maria de Jetibá.

Fonte: Acervo do autor.

Em seguida vem o nome. O nome é o que torna o indi-


víduo distinto dentro da sociedade e do grupo. Ainda é preser-
vada a prática de sepultar o falecido junto com sua bíblia, seu
hinário, sua certidão de batismo e de confirmação, entre outros
objetos pessoais; isso, de algum modo, é uma tentativa de
identificação do morto no momento da “ressurreição”.
Mesmo que a origem desse procedimento esteja num paganismo
pré-cristão, esses documentos eclesiásticos funcionariam como
uma espécie de “óbolo de Caronte”, a moeda colocada na boca
do defunto que servia para pagar o barqueiro pela travessia
pelo Rio Estige, segundo a mitologia grega.
Por inferência, segundo a simbologia bíblica, o nome
daqueles que terão direito a entrar no paraíso celeste estão regis-
trados no chamado Livro da Vida (Fp. 4.3; Ap. 3.5; 13.8; 17.8;
20.12; 20.15; 21.27). Por conseguinte, ter os comprovantes

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de que o defunto passou pela vida como fiel cristão, cumprindo
suas obrigações eclesiásticas e recebendo os sacramentos que o
auxiliariam na fé, seria uma forma de comprovar – sempre por
graça – seu ingresso nas bem-aventuranças celestiais. A identi-
dade na morte seria, então, a utilidade do tåfel. Isso parece ao
protestante brasileiro e aos menos avisados um absurdo. No
entanto, como afirmou o antropólogo Ronaldo Lidório (1998,
p. 32) “nem tudo que é cerimonial é demoníaco”. Logo, nem
tudo que é estranho à maioria significa necessariamente uma
prática anticristã.

No decorrer do rito, muitos foram os pedidos de fotos das lápi-


des (toofal) [sic], o que para as solicitantes tem o mesmo sentido
que possui a foto do morto no dia de sua morte. Eternizar a
morte com a fotografia é uma forma de construir uma relação
entre história e tempo (BAHIA, 2001, p. 246).

Além das inscrições, cruzes, palmas ou ramos e flores


também são entalhados ou pintados no tåfel. Na variedade de
cores utilizadas para pintar o tåfel existe certa predominância
do azul, a cor da emblemática da extinta nação Pomerana.
Esse colorido se mistura às flores naturais usadas e sempre pre-
sentes nos túmulos. A cruz é o símbolo da fé do sepultado;
volta-se aqui à ideia da identidade cristã do falecido. As pal-
mas, símbolo do martírio cristão, isto é, aquele que viveu e
morreu no “testemunho do Cristo”, conforme o Apocalipse
de São João (Ap. 7.9-10,14), o qual narra assim sua visão:

“Vi, e eis grande multidão que ninguém podia enumerar, de


todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé diante do trono
e diante do Cordeiro, vestidos de vestiduras brancas, com pal-
mas nas mãos; e clamavam em grande voz, dizendo: Ao nosso
Deus, que se assenta no trono, e ao Cordeiro, pertence a salva-
ção”. […] São estes os que vêm da grande tribulação, lavaram
suas vestiduras e as alvejaram no sangue do Cordeiro.

Esse símbolo fala da perseverança do falecido e dos vivos


que o sepultam. A palma está presente na iconografia e estatuá-
ria cristã latina construída ao longo dos séculos. Um exemplo
disso pode ser visto no ícone de Santo Estevão, representado

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segurando uma palma e uma pedra (SANTO ESTEVÃO
PROTOMÁRTIR, 2010). Os pomeranos, por influência do
luteranismo, se apegam ao dogma da salvação por graça.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em sua obra, O dossel sagrado, Peter Berger (2004)
constrói uma crítica muito vigorosa contra o protestantismo.
Segundo Berger (2004), o protestantismo teria mutilado radi-
calmente os elementos essenciais da religiosidade, de modo
que o sagrado se perde na expressão religiosa do protestantis-
mo, especialmente na sua versão calvinista. Essa ideia pode ser
resumida da seguinte conclusão:

Simplificando-se os fatos, pode-se dizer que o protestantismo


despiu-se tanto quanto possível dos três mais antigos e podero-
sos elementos concomitantes do sagrado: o mistério, o milagre e
a magia. Esse processo foi agudamente captado na expressão
[weberiana] “desencantamento do mundo” (BERGER, 2004,
p. 124, grifo nosso).

Na proporção em que Berger observa o cristianismo sob


o foco do catolicismo oficial, no qual o mistério, o milagre e a
magia podem ser legitimados pela dogmática, comparando os
grupos protestantes em sua configuração oficial e urbana, é
possível concordar com sua ideia. Ainda mais se se acrescenta
a isso o quadro contextual do protestantismo que Berger teria
diante de si. Por sua vez, na realidade rural, tanto do catolicis-
mo como no protestantismo brasileiro, a oficialidade é em
muito extrapolada. O catolicismo e o protestantismo avançam
os limites que lhe são impostos. E no caso do protestantismo
há uma reapropriação daquilo que a Reforma – ou talvez seus
descendentes ideológicos – lhe expropriou.
Desse modo, é possível afirmar que, por mais que tenha
sido intensão do protestantismo desde o seu início esquivar-se
e eliminar tudo aquilo que poderia ser considerado como pa-
ganismo introduzido no cristianismo, essa intensão parece ter
falhado. Porquanto, ainda que práticas pagãs tenham sido re-
tiradas dos compêndios teológicos e litúrgico, elas continuam
como uma interpretação popular. No caso luterano, ensina-se:

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Do culto aos santos os nossos ensinam que devemos lembrar-
nos deles, para fortalecer a nossa fé ao vermos como receberam gra-
ça e foram ajudados pela fé; e, além disso, a fim de que tomemos
exemplo de suas boas obras, cada qual de acordo com sua voca-
ção (MELANCHTON, 1993, Art. XXI).

Desse modo, deve-se considerar a simbologia mortuária


pomerana como uma manifestação artístico-religiosa, com a
função de criar um ambiente sagrado, no qual os “santos”
mortos em Cristo descansarão enquanto aguardam o Juízo
Final, e os fiéis poderão se lembrar deles, como afirmou
Melanchton (1993, Art. XXI). Os novos santos não são os
“canonizados” e “elevados às honras dos altares”, mas aqueles
homens e mulheres simples que no dia a dia, por suas histórias
observadas, formam um hagiológio muito mais amplo que
aquele do catolicismo.
Ali descansam porque, por graça e fé, creem os vivos
que foram salvos do pecado e dos males do inferno. No cemi-
tério, como num templo, lá estão eles todos, na sepultura, lá
está aquele específico santo, no tåfel, dizeres e desenhos que
somente a experiência religiosa poderia descrever. Não é um
culto necessariamente como a dulia católica, com seus pedidos
de intercessão, mas é um conforto imediato e de caráter psico-
lógico para o visitante. A fé que se refaz na fé consolidada pela
morte. Cito Moltmann (2003, p. 117, grifo nosso):

A concepção da continuação da existência de uma alma


incorpórea não satisfaz a nossa busca por uma comunhão
com os mortos, que nós amamos com corpo e alma.
Todavia, a concepção de uma comunhão permanente entre
vivos e os mortos em Cristo e da comunhão com Cristo como
uma comunhão de vivos e de mortos é boa e necessária11.

11
Moltmann ficou conhecido pela sua opus magna Teologia da esperança, cujo cerne é a defesa da tese de
que o centro da teologia cristã é a esperança na vinda do Reino de Deus. Alguns autores denominam
seu método teológico de teologia escatológica, ao qual também se liga o teólogo luterano Wolfhart
Pannenberg (GRENZ; OLSON, 2003). A parte grifada na citação remete este pesquisador a um
trecho dos Artigos de Esmalcalde, escrito por Lutero (1981, p. 317), que diz: “A invocação dos
santos é um dos abusos anticrísticos. […] É verdade que os anjos no céu intercedem por nós (como
também faz o próprio Cristo; da mesma forma os santos na terra ou, talvez, também os santos no
céu. Disso, porém, não se segue que devamos invocar os anjos e os santos […]”.

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Boa e necessária para quem? É a pergunta final. Para os
vivos! A simbologia aponta para o indivíduo que morreu, con-
forme a crença popular, na fé cristã, e desde então descansa no
Senhor. O simples fato de crer na existência incorpórea da al-
ma não é muitas vezes capaz de aliviar a dor dos que ficam.
Então, é possível finalizar este texto afirmando que o túmulo
e o tåfel se tornam o corpo temporário daqueles que partiram,
que continuam vivos numa dimensão desconhecida, mas in-
terligada ao sagrado local do templo e do kirkhof.

THE POMERANIAN MORTUARY


SYMBOLOGY: SYMBOLISMS AND
MEANINGS OF THE COMPONENT
ELEMENTS OF THE CEMETERIES IN
THE SANTA MARIA OF JETIBÁ

ABSTRACT

The present paper intends to describe the Pomeranian mortuary symbolo-


gy present in the aesthetic elements that compose the space cemiterial. The
posture before the death that the Pomeranian possesses it differentiates
from the other ethnic and Christian religious groups, be those Catholic
or Protestant, it demonstrates one single line of their sociocultural iden-
tity, in which is included your official religion, the Lutheranism, and their
religiousness.

KEYWORDS

Death; symbol; symbology; burial; popular religiousness.

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96 CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE


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55
JOSÉ MANOEL DA CONCEIÇÃO E JOÃO
MARIA DE AGOSTINI: DUAS FACES
NA RELIGIOSIDADE POPULAR

Jair de Almeida Júnior


Mestre em Novo Testamento pelo Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper (CPGAJ) e
em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Bacharel em
Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição (JMC)
e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Professor no Seminário Teológico
Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição.
E-mail: [email protected]

100 APRESENTAÇÃO

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RESUMO

Nascido na cidade de São Paulo, José Manoel da Conceição foi criado


por seu tio-avô padre depois da morte de sua mãe. Seu novo logradouro
passou a ser Sorocaba. Sofreu forte influência Jansenista em sua educação,
com ênfase na penitência e na introspecção. Como subdiácono, assinou a
acta da Revolta Liberal provavelmente mais por simpatia a seu “padrasto”.
Depois, vai trabalhar em uma pequena vila chamada Ipanema, originada
pela instalação de uma fundição. Foi em suas cercanias que João Maria foi
morar. Na capela da Vila onde assistia José Manoel, foi franqueada a pala-
vra ao eremita pelo diretor da fundição. Na véspera do natal de 1844, João
Maria registra-se como estrangeiro em Sorocaba, declarando ser residente
na região. Por algum tempo, José Manoel e João Maria tiverem oportuni-
dades de encontro, uma vez que em 29 de setembro de 1844, o primeiro
é ordenado diácono e vai para o centro de Sorocaba. Outras possibilidades
são vistas nas celebrações do natal de 1844 e as visitas de José Manoel aos
seus amigos protestantes, em Ipanema. A probabilidade de terem tido
algum contato pode encontrar algum apoio no modelo “religioso popular”
adotado por José Manoel posteriormente, visto na simplicidade quase andra-
josa, na recusa do recebimento de qualquer dádiva como “pagamento” ou
mesmo gratidão pelos serviços religiosos prestados, a convivência direta
com o povo ao invés da religião institucionalizada. Mesmo historicamente,
as vidas de José Manoel e João Maria se aproximam, ao terem sido envol-
vidos em duas insurreições: a Revolta Liberal e a Guerra do Contestado,
respectivamente. É provável que José Manoel ainda conservasse algumas
influências de seu catolicismo anterior, especialmente vistas em sua ten-
dência à independência não rebelde (jansenismo), à solidão (monasticismo),
o que inclui a continuidade do celibato, embora tenha manifestado seu
desacordo quanto a esta prática, ainda como católico. Possivelmente, esta
opção foi exercida por ser mais conveniente ao modelo de evangelismo que

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adotara. Tal argumentação serve para mostrar que é plausível a hipótese
dos dois personagens terem se encontrado, e, quem sabe, tiver servido de
influência para que José Manoel assumisse um modelo de “religioso popu-
lar” em sua evangelização protestante.

PALAVRAS-CHAVE

José Manoel; João Maria; religioso popular; itinerância; evangelização


protestante.

1. INTRODUÇÃO
Embora seja personagem tão central na gênese da Igreja
Presbiteriana do Brasil, e assim, à própria inserção do protes-
tantismo brasileiro, a vida de José Manoel da Conceição tem
sido pouco explorada. Parcos são os estudos e artigos a seu res-
peito. De igual forma, não se ouve falar, com frequência, de
dissertações e teses que o tenham como tema. A solidão bus-
cada pelo primeiro pastor brasileiro em seu ministério iti-
nerante parece também incluir a pesquisa a seu respeito. Esse
aparente ostracismo acadêmico pode ser decorrente de certa
“canonização” da sua história, tomando escritos pioneiros e
clássicos que a narram, como se fossem a última palavra (e, pra-
ticamente, a primeira?) sobre o assunto. Os excelentes traba-
lhos biográficos de Boanerges Ribeiro quanto à matéria: O
padre protestante e José Manoel da Conceição e a Reforma Evan-
gélica, talvez tenham causado alguma acomodação ou mesmo
receio aos pesquisadores de ir além do caminho desbravado
pelo pioneiro escritor, quiçá trilhar novo percurso, inibidos à
sombra projetada pela monumental e competente pesquisa.
Se, por um lado, a “canonização” de clássicos pode ser fator
desmotivador para o estudo, por outro, a “totemização” do
personagem onera a investigação. Quando o agente histórico
é ícone, como é o caso de José Manoel no protestantismo, ten-
de a se tornar “mito”. Em outras palavras, constrói-se uma aura
exageradamente “positiva” ou “correta” ao redor de sua pessoa,
que impede que erros, mesmo associações ou influências pouco

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ortodoxas ou díspares, como a possibilidade que sugerimos nes-
te artigo, sejam sequer nomeados, vistos quase como “blasfêmia
histórica”. Por certo, em tempos pós-modernos, a ênfase no
“novo” e a tendência de reescrever (modelar?) a história são
riscos que devem ser considerados. Embora acreditemos que
não seja, ainda, o caso de “desmitologizar” o Padre Protestante,
assumimos o compromisso de estudá-lo, um risco calculado e
deliberado de arranhar qualquer verniz, aplicado por alguém,
em sua “imagem”. Devemos considerar que, religiosamente fa-
lando, ao valorarmos exageradamente a “grandeza” de alguém,
diminuímos os méritos divinos. Somente quando a “ferramen-
ta” é reconhecida como imperfeita e tratada na fraqueza e nas
falhas de sua humanidade é que a habilidade do “Artífice” será
destacada e apreciada, sua glória reconhecida.
José Manoel da Conceição ocupa lugar destacado, espe-
cialmente na história da Igreja Presbiteriana do Brasil. Estra-
nhamente, estabeleceu-se como data de fundação dessa deno-
minação uma ocasião quando nenhum trabalho presbiteriano
havia ainda, isto é, o dia da chegada do seu primeiro missioná-
rio, Ashbel Green Simonton, que se deu no dia 12 de agosto de
1859, na Baía do Guanabara, Rio de Janeiro (SIMONTON,
2002, p. 125). Seu ministério começou efetivamente apenas
depois de alguns dias, primeiro pregando a marinheiros de
fala inglesa nos navios ancorados, e depois a comerciantes
americanos e ingleses que haviam se estabelecido na então ca-
pital do Império. Simonton é lembrado não apenas por ter sido
o primeiro missionário, mas, igualmente, por ter sido abundan-
temente frutífero em tão breve ministério. Sua vocação foi, es-
tritamente, o Brasil. Tendo vindo para cá logo após sair de sob
as mãos dos que o ordenaram ao pastorado, morreu depois de
oito anos, aos 35 anos, deixando como legado um presbitério1
e um seminário. No impacto de sua morte precoce, soma-se à
dramaticidade de sua biografia a perda de sua jovem esposa,

1
O presbiterianismo tem como estrutura uma organização de governo, que se inicia na igreja local,
dirigida por uma diretoria chamada de “Conselho”, formado pelos presbíteros eleitos pela Igreja
e presidido por seu pastor. Com número mínimo de quatro igrejas geograficamente próximas,
forma-se um “Presbitério”, que tem sobre si uma diretoria que o administra. Contando com análoga
liderança, com no mínimo três Presbitérios, forma-se um “Sínodo”. No cume da pirâmide está o
Supremo Concílio, cuja Comissão Executiva é o órgão maior da denominação no país.

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Jair de Almeida Júnior

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morta pouco tempo após celebrarem um ano de matrimônio,
por complicações do parto da primeira filha (FERREIRA,
1952, p. 14, 52-55, 60, 61). Curiosamente, José Manoel da
Conceição rivaliza em atenção e importância o fundador do
presbiterianismo brasileiro na história da denominação. Esse
destaque não é exagerado. Certamente, não se deve, apenas,
por ter sido o primeiro pastor brasileiro. Assim como Simon-
ton, José Manoel foi extremamente eficiente em sua obra de
evangelização, e, da mesma forma que aquele, morreu relati-
vamente jovem, no exercício da sua vocação. Talvez não haja
prova mais contundente da centralidade do “Padre Protestan-
te” na Igreja Presbiteriana do Brasil e para as demais deno-
minações presbiterianas do que lhe atribuírem sepultura, exa-
tamente, ao lado da de Simonton. Cooperadores em vida,
vizinhos na morte. Ambas as campas estão em lugar de desta-
que no Cemitério dos Protestantes, em região nobre da Cida-
de de São Paulo, identificadas com o mesmo código G-111-E
(MAGALHÃES, [19--], p. 57). As sepulturas irmãs simboli-
zam na consciência histórica dos protestantes a ligação entre o
missionário americano e o primeiro pastor brasileiro, ícones
da narrativa do presbiterianismo nacional. Isso explica por
que são mantidas pela Igreja Presbiteriana. A grande questão
que motivou este artigo é a possível interação entre José Ma-
noel e João Maria, este, o primeiro “monge” do Contestado,
personagem que, a exemplo do Padre Cícero no Nordeste,
tornou-se “santo” na consciência religiosa do catolicismo po-
pular de boa parte dos habitantes dos Estados sulistas. É pos-
sível que João Maria e José Manoel tenham se encontrado? Se
isso se deu, qual a sua importância para a vida de José Manoel?
À hipótese do encontro se junta a conjectura da influência
(em que e até que ponto?) do religioso italiano sobre o jovem
aspirante ao sacerdócio católico. O modus operandi do italiano
recém-chegado João Maria e o paulistano José Manoel é o
modelo religioso popular, produto do mesmo matiz social. O
contato entre eles poderia explicar o modelo peculiar de evan-
gelismo adotado por José Manoel em seu ministério, o exato
método praticado pelos anacoretas do catolicismo rústico vis-
to nos sertões da nação, do qual o “monge” foi um dos seus
mais destacados representantes.

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2. JOSÉ MANOEL DA CONCEIÇÃO
Foi na “Mesopotâmia Paulista”, a cidade de São Paulo,
onde José Manoel da Conceição deu o seu primeiro brado,
logo ao sair da madre. Nasceu, em plena gestação do Império
Brasileiro, em 11 de março de 1822. Aparentemente, a voca-
ção para a “independência” estava em seu sangue, o que é per-
ceptível não apenas no que diz respeito ao seu primeiro cha-
mado ao sacerdócio católico, mas, de certa forma, também
quanto à prática de sua ordenação protestante posterior. Ha-
veria de empunhar uma “Bíblia evangélica” em riste, declarar
sua independência do catolicismo, algo que começou às mar-
gens do ribeiro de Ipanema, junto à comunidade protestante.
Tal seria sua única arma nas batalhas religiosas que travaria
como apóstolo do protestantismo. Era filho de Manoel da
Costa Santos, português, e Cândida Flora de Oliveira Masca-
renhas, carioca, neta de açorianos. Tendo como padrinho seu
tio-avô e padre José Francisco de Mendonça, tornou-se seu
“filho” depois do falecimento de sua mãe e as novas núpcias
de seu pai (MATOS, 2004, p. 297). Foi essa a família que
conheceu como “sua”, pois foi muito cedo assumido pelo pa-
drinho. Isso percebemos por meio de seu próprio testemunho:
“O padre José Francisco de Mendonça, irmão de meu avô
Manuel Francisco de Mendonça, criou-me e educou-me” (RI-
BEIRO, 1995, p. 7-9). Assim, José Manoel cresceu em Soro-
caba, interior de São Paulo, local da primeira “aparição” da-
quele que seria conhecido como o “Seu” João Maria, primeiro
“monge” do Contestado. É curioso que, mesmo após renun-
ciar o romanismo, José Manoel não atribuía à crença de sua
família peso majoritário de heresia, mas reconhecia-a como
“evangelho”. Parece que percebia na religião praticada por
“seus pais” um misto de tradições católicas com princípios
evangélicos, todavia, sendo esses os prevalentes. Boanerges Ri-
beiro (1995, p. 11) dá uma mostra do catolicismo praticado na
época, transcrevendo um extrato do testamento de um padre,
onde aparece a invocação a Maria como Mãe Santíssima, ad-
vogada dos pecadores, São José, Anjo da guarda, e, ainda, Es-
píritos Bem-aventurados. É digno de nota que, após sua con-
versão ao protestantismo, reconheça como “evangelho” crença

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que conserve, ainda, tantos elementos da doutrina romana.
Veremos no devido momento que tal “fé” não diferia basica-
mente daquilo que cria o primeiro monge do Contestado,
João Maria de Agostini.
Intelectualmente, tudo indica, José Manoel foi nutrido
com o jansenismo, o que explica suas tendências protestantes
posteriores. Aos doze anos estudou na classe de primeiras le-
tras do padre Jacinto Heliodoro de Vasconcelos, em Sorocaba,
onde se utilizava o Catecismo do bispo Colbert, de Montpellier,
obra vetada pelo vaticano por ser seu autor jansenista (HACK,
2001, p. 68). Embora José Manoel, em plena adolescência,
certamente tenha estudado o Catecismo de Meninos, nível
próprio para sua idade, e não o Catecismo de Adultos (no qual
se via a base para a sentença católica), é provável que, arguto e
atento, respirasse os ares do ambiente onde se encontrava, ina-
lação que se daria mesmo que inconscientemente. É possível
que José Manoel tenha sido profundamente marcado pela
ideia da penitência, prática que se destaca no catecismo que
estudou. Enfatiza que é por ela que o pecador dá satisfação a
Deus pelos seus pecados, após a confissão auricular. A fórmu-
la de confissão (Confiteor) do catecismo intensifica o peso de
culpa das faltas cometidas, ainda que distribuído nos “om-
bros” de vários “confessores divinos”. Destarte:

Eu pecador, me confesso a Deus Todo Poderoso, e à Bem aven-


turada e sempre virgem Maria, e ao Bem aventurado S. Miguel
Arcanjo, ao Bem aventurado S. João Batista, e aos santos após-
tolos S. Pedro e S. Paulo, a todos os Santos e a vós, irmãos, que
pequei muitas vezes por pensamentos, palavras e obras por mi-
nha culpa, minha grande culpa (RIBEIRO, 1995, p. 14).

Boanerges Ribeiro (1995, p. 14) argumenta que a “con-


fissão do Cathecismo dispensa sacerdote; apega-se a toda a cor-
te celeste e, ainda, aos ‘irmãos’ mas a aplicação da expiação de
Cristo no Calvário não dispensa a penitência ‘em toda a nossa
vida’”. Depois de concluir as primeiras letras, estudar latim e
ler obras clássicas, já com 18 anos, começa a ler a Bíblia. Logo
de início, encontra incongruência entre sua Sagrada leitura e a
doutrina católica. Percebe a inconsistência do celibato impos-
to aos padres com a ordem da procriação, dada pelo Criador

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ao primeiro casal no livro de Gênesis (RIBEIRO, 1995, p. 17).
Para concretizar seu desejo de ser sacerdócio católico, José
Manoel deixa Sorocaba e vai estudar em São Paulo, o que se
deu, provavelmente, entre 1840 e 1842. Foi em 30 de abril
desse ano que, aprovado nos exames episcopais, foi tonsurado
e recebeu a ordem de subdiácono. O não conformismo de
José Manoel mostrou-se também político, quando engrossou
as fileiras dos adeptos da Revolta Liberal que eclodiu em Soro-
caba, em 17 de maio de 1842. Seguindo o exemplo de seu
tio-avô, assinou a Acta da revolta (RIBEIRO, 1995, p. 20,
21). José Manoel vai exercer suas atividades religiosas em Ipa-
nema, perto de Sorocaba, onde o governo imperial havia im-
plantado uma fundição. Na localidade havia escravos e operá-
rios alemães, obviamente luteranos, chefiados por um inglês
de nome Godwin, onde também pôde travar amizade com
um dinamarquês, que carregava o antropônimo Langaard
(FERREIRA, 1992, p. 44, 45). Boanerges Ribeiro nos infor-
ma que eram 27 famílias de alemães, acrescidas das do inglês e
do dinamarquês. O contato com os estrangeiros causou pro-
fundo impacto no religioso católico, especialmente a dedica-
ção que tinham na devoção diária, a ponto de considerar se a
religiosidade deles era a mesma praticada no Brasil. O referido
autor observa que a atitude de José Manoel foi contrária àqui-
lo que aprendera, uma vez que o catecismo que estudara cha-
mava os protestantes de hereges, destinados ao inferno. Curio-
sa e paradoxalmente, embora os execrasse, ao mesmo tempo,
o catecismo se ligava aos protestantes, por terem as mesmas
raízes agostinianas. Foi apenas em 1843, depois da Revolta
Liberal, que as ordenações se reiniciaram na região de Soroca-
ba. No entanto, José Manoel continuaria no “estaleiro”, sob a
alegação de que, contra ele, corria processo eclesiástico por ter
participado da insurreição. Não era só isso: já lhe pesava, tam-
bém, a acusação de confraternizar com os hereges estrangeiros
(RIBEIRO, 1995, p. 23, 24). O subdiácono desenvolveu cer-
ta simpatia pelos protestantes, fruto do impacto da religiosida-
de deles aliada ao possível favorecimento ocasionado por suas
prováveis influências jansenistas. Contudo, poderia ser, ainda,
uma evidência da inclinação de beneficiar não conformistas e
perseguidos?
Finalmente, em 29 de setembro de 1844, José Manoel é
ordenado diácono, e retorna a Sorocaba, onde batizou os

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filhos da família híbrida evangélico-católica de seu grande
amigo, o dinamarquês Langaard. Em 29 de junho de 1845,
com 23 anos, foi ordenado presbítero e logo transferido para
Limeira. Embora todos os padres signatários da Revolta Libe-
ral tenham sido anistiados, o documento do perdão tornou-se
também a memória do delito. Destarte, premia a necessidade
de uma transferência, o que veio imediatamente, mais para o
interior, para a cidade de Limeira (RIBEIRO, 1995, p. 24). O
não conformismo de José Manoel quanto à religião majoritá-
ria do Brasil foi assumindo contornos de ruptura, decepciona-
do com seu almejado sacerdócio católico e as perseguições que
sofria por “seu protestantismo”. Sua batina se mostrava cada
vez mais “rota”, revelando sob ela uma vestimenta simples, de
alguém que quer “ir para a roça”, caminho do sertão. A itine-
rância pelo interior aparentemente começava a pulsar em suas
veias, uma espécie de chamado a sussurrar em seus ouvidos.
Cerca de um mês depois de receber a visita de Alexander Bla-
ckford em novembro de 1863, “pendura a batina”. Sua ami-
zade com o seu visitante presbiteriano se fortaleceu, atraindo-
o à cidade de São Paulo a fim de estudar a Bíblia, para
finalmente render-se ao batismo protestante. Em 28 de setem-
bro de 1864 entrega sua carta renúncia ao bispo, e em 29 de
dezembro de 1866 é emitida sua excomunhão (HACK, 2001,
p. 71-74).

2
3. JOÃO MARIA DE AGOSTINI
Oswaldo Cabral (1979, p. 107) descreve o João Maria I
da seguinte forma:

Houve um anacoreta de cabelos longos e grisalhos, a barba longa


e o olhar manso, que desejava a solidão e o isolamento, a quie-
tude e as durezas da vida contemplativa, as horas longas passa-
das em orações e em êxtases, tal como o haviam feito muitos
outros que fugiram ao convívio dos homens para se aproxima-
rem de Deus.

2
Este tópico segue o que discorro em Almeida Junior (2009b, p. 79-83).

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Eis a lenda de João Maria:

Segundo antiga lenda, o profeta vinha da Galiléia. Seu nome


hebraico era Joannah Jeshona. Aos 20 anos teria raptado
Aischa, uma jovem e linda mulçumana com quem se casou.
Logo em seguida teve de ir combater como soldado em
Alexandria, contra o Exército expedicionário francês, onde foi
feito prisioneiro. Ao ser repatriado recebeu a infeliz notícia que
sua formosa esposa que tanto amara, havia falecido. Estava
Joannah com 33 anos. Sumamente amargurado, resolveu em-
punhar o bastão de peregrino, com a promessa de percorrer o
mundo mais de 77 anos... (é mais provável, até os 77 anos), por
uma revelação que tivera (FELIPPE, 1995, p. 19).

Daqui, facilmente podemos reconhecer alguns elemen-


tos da imaginação religiosa dos sertanejos posteriores. De iní-
cio, destaca-se a forte influência do cristianismo, mormente o
catolicismo que conheciam: o profeta vem da Galileia, uma
clara sobreposição do Messias anunciado nas Escrituras Cris-
tãs. Além disso, seu segundo nome “Jeshona” e os 33 anos co-
mo o início das suas peregrinações (idade da morte de Jesus)
são alusões ao Cristo Bíblico. O mito sertanejo inclui a implí-
cita sugestão de sua origem israelita, pelo nome que lhe é dado.
Em seguida, há um romance que parece ter sido composto
com elementos da história de Carlos Magno e os Doze Pares
de França, tais como uma linda jovem mulçumana, exército
francês e a guerra. Há, por fim, uma evidência do catolicismo,
ao assumir uma promessa, algo típico da religião romana. A
vida de João Maria é descrita como a de um andarilho. Os
relatos a seu respeito se iniciam pouco depois da Guerra do
Paraguai. Afirma-se que perambulou por vasta região, que vai
desde o interior do Rio Grande até o sul de Mato Grosso do
Sul, de forma especial a região de campos e das florestas de
araucárias, onde nascem os afluentes do Iguaçu e do Uruguai.
Eram comuns os relatos de pessoas que testemunharam uma
“aparição” do monge, surgindo, repentinamente e sem aviso
prévio, pelo meio de algumas ramagens ou em uma picada,
longa barba grisalha e servindo-se de um bordão. “Monge” é
o equivalente sulista do “beato” nordestino. O comporta-
mento de João Maria obedecia a certo padrão, coisa típica da
religiosidade: não aceitava pouso nas casas; antes, procurava

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acolhida sob as copas de árvores, geralmente próximo a uma
corrente de águas, onde armava sua tenda e acendia a fogueira,
essa indispensável para o chimarrão. Foi notado primeiramente
em Sorocaba, tido como um eremita, habitante de uma caverna
local. Foi descrito como alguém simples, piedoso e de vida
extremamente regrada. Quando a noite caía e calava os labores
humanos, suas rezas e cantoria alcançavam considerável dis-
tância, provocando reações dissonantes entre os moradores
locais. Alguns o consideravam louco. Outros, um religioso
autêntico. O personagem João Maria foi costumeiramente
acusado de insanidade e o maior responsável pela carnificina
resultante da Guerra do Contestado. Tal concepção pejorativa
contrasta com a ideia que tinha dele o sertanejo catarinense,
em toda a sua simplicidade, signo das suas esperanças e ícone
de sua fé. Definitivamente, esse personagem tão controvertido
na história foi definitivamente canonizado no imaginário rús-
tico (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 107).
Deve-se, todavia, esclarecer que esse “monge”, ou sim-
plesmente São João Maria, foi, na verdade, produto da vida de
dois homens. Esse, sem dúvida, é o caso mais literal de dupla
personalidade. O homem que deu nome ao personagem se
chamava João Maria de Agostini (ou “Agostinho”). Sabe-se que
nasceu em 1801, em Piemonte, região montanhosa ao norte
da Itália, lugar de camponeses. Os acontecimentos relativos ao
período que antecedeu sua vinda ao Brasil são praticamente
desconhecidos, mesmo sua chegada. O que se sabe concreta-
mente é que essa se deu no Pará, onde embarcou no dia 19 de
agosto de 1844 para o Rio de Janeiro, no vapor Imperatriz.
Em dezembro do mesmo ano, apresentou seus documentos na
Câmara Municipal de Sorocaba, Província de São Paulo. Era
véspera de Natal. Estava para nascer um “messias” italiano no
Brasil. Afirmou ser solteiro e ter como profissão “solitário ere-
mita”, residente e domiciliado nas matas das cercanias do mu-
nicípio, especificando o morro da Fábrica Ipanema. No seu
registro, Procópio Luis Leitão Freire descreveu o monge como
tendo estatura baixa, cútis clara, grisalho, olhos castanhos, ten-
do a boca e o nariz regulares. Sua barba era cerrada e tinha
rosto comprido. Apresentava um “defeito” físico que o identi-
ficava: era aleijado de três dedos na mão esquerda (VINHAS
DE QUEIROZ, 1981, p. 108-109).

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Em todo tempo que João Maria permaneceu em Ipane-
ma mostrou-se homem piedoso, simples e de comportamento
austero. Sua vida é descrita como rigorosamente sóbria e seve-
ra. Buscava na solidão de seu abrigo voltar mente e coração a
Deus, a quem elevava sua voz em cânticos e rezas. Embora não
descesse com frequência ao povoado, não perdia oportunida-
de de comparecer à Missa, momento no qual lhe franqueavam
a palavra. Nunca foi acusado de heresia, de ter proclamado
qualquer ensinamento contrário ao catolicismo estabelecido,
ou de ser cismático. Oswaldo Cabral (1979, p. 111) nos infor-
ma que o monge frequentava a capela de Ipanema, exato lugar
em que estava José Manoel, ainda no início de sua carreira
católica, tonsurado subdiácono. O modelo de vida do primei-
ro João Maria estabeleceu certo padrão, que foi imitado, em
parte, pelo João Maria II e por José Maria, este, o terceiro e
último dos monges do Contestado. A vida simples dos mon-
ges caracterizava sua atividade como doação, mais do que tro-
ca. Fernando Santos Granero, tratando a respeito do sistema
político Amuesha, povo da América Andina, reconhece que o
fato de os seus sacerdotes não receberem benefícios como re-
tribuição dos seus serviços colocava-os em vantagem sobre os
seus liderados. Esses se sentiam sempre em débito para com
aqueles. O poder moral exercido pelos sacerdotes, segundo o
autor, é muito mais eficiente do que o poder coercitivo exerci-
do em outras sociedades. Um dos mais flagrantes exemplos
naquela comunidade era a negação da poligamia para os sacer-
dotes. Aparentemente, o prazer sensual era tido como elemen-
to contrário ao sagrado ou sobrenatural. Destarte, conclui que,
possivelmente, representava alguma troca, o prazer sensual pelo
prazer de ser obedecido, praticamente, venerado (GRANERO,
1993, p. 222). No Contestado percebemos algo semelhante.
Os três monges são apresentados como sexualmente abstê-
mios. Mesmo José Maria, o derradeiro e mais belicoso monge,
que parece ter querido se casar e viveu maritalmente por al-
gum tempo, desfrutava da mesma condição de “santo”, não
envolvido com os prazeres carnais. Percebemos que, enquanto
José Maria era vivo, o poder exercido sobre a comunidade
dos rebeldes era moral. O respeito a ele era devido pelos
seus seguidores. Após sua morte, os que o sucederam não
eram considerados santos doadores, não estabelecendo dívida

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do povo para com eles. Destarte, o poder deixou de ser presti-
gioso e passou a ser coercitivo, chegando a excessos, à medida
que o movimento se aproximava de seu final.
É possível reconhecer ênfases na vida dos três monges,
que não apenas os distinguem, mas nos ajudam a compreen-
der o processo que levou à eclosão da guerra. Em João Maria
I, realça-se a influência do catolicismo tradicional. Por ter nas-
cido na “bota da velha senhora”, apresentava religiosidade mar-
cadamente tridentina. Aparentemente, era exemplo de algum
tipo de modelo excêntrico do catolicismo ortodoxo. Frequen-
tava com alguma regularidade a missa celebrada na Capela de
Ipanema, costumando dirigir a palavra aos presentes ao térmi-
no do trabalho oficial. Não pretendia a criação de alguma sei-
ta. Não era cismático ou herético, o que comprovam franque-
arem-lhe a prédica e o acesso à capela da fábrica e as rezas que
fazia ali pelo padre Antônio Dias de Arruda. Sua fé era auten-
ticamente católica, ortodoxa, o que explica o porquê de nun-
ca receber qualquer censura eclesiástica. Ainda em Sorocaba,
constatamos seu hábito de “plantar” cruzes, como foi, possi-
velmente, o caso da que existiu entre Araçoiaba da Serra e
Tatuí, à margem da estrada. Mais notável ainda foram as 14
cruzes fincadas na encruzilhada próxima a Sorocaba. Segundo
se conta, foi erigida pelo solitário morador de Pedra Santa,
auxiliado por alguns sitiantes. João Maria de Agostini era de-
voto de Santo Antão, “pai” do monasticismo, habitante dos
desertos do Egito, bastante popular na Europa, especialmente
no folclore e nas benzeduras, todavia, quase desconhecido no
Brasil. Como Santo eremita, exerceu papel importante na for-
matação da fé e das crenças de João Maria de Agostini. Segun-
do Oswaldo Cabral, teria sido o contato ocasional do monge
com um ídolo de seu santo devoto que teria lhe despertado o
desejo de edificar-lhe e consagrar-lhe uma capela. É indiscu-
tível que o conhecimento que possuía sobre a vida do perso-
nagem monástico não foi recebido em terras brasileiras. Cer-
tamente, era sua bagagem intelectual e religiosa de quando
desembarcou em nosso país (CABRAL, 1979, p. 112, 125,
127, 128). Fato é que transitou até o Rio Grande do Sul, atra-
vessando Paraná e Santa Catarina por itinerário desconheci-
do. No entanto, há relatos de ter sido visto na Lapa, no Rio
Negro, em Lajes e em Santa Maria. Sabe-se que, deixando

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Sorocaba, partiu pelo agreste até alcançar o Paraguai, de onde
se dirigiu a São Borja e, depois, estabeleceu-se em Santa Ma-
ria, passando pelas Missões. É possível que a associação a “Ma-
ria” não seja ocasional. O monge, que tem em seu nome o
antropônimo da própria “mãe de Deus”, decide fixar residên-
cia em cidade que destaca a peculiaridade de sua vocação ma-
ternal: “Santa Maria”. Não é possível determinar se isso foi
consciente. Contudo, mesmo que não tenha sido, parece que
tal fator influenciava o seu “destino messiânico”. Essa suposi-
ção ganha ainda mais força quando nos lembramos de que
dizia estar em missão sagrada, cumprindo uma promessa feita
à Santa Mãe de Deus. Haveria de servir-lhe de “filho”? Digno
de nota é que João Maria de Agostini não procurou a popula-
ridade, embora, devido às suas práticas piedosas e “miraculo-
sas”, esta a perseguisse (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 51;
CABRAL, 1979, p. 113-114, 118).
Sabe-se que buscou audiência com o general Soares de
Andréia, em Porto Alegre, presidente da província do Rio
Grande. Seu objetivo era resgatar uma imagem de Santo Antão
que soube estar abandonada nas ruínas dos Sete Povos das
Missões. Pretendia erigir-lhe uma capela onde residia no
Campestre de Santa Maria. Ali, em um morro, estabeleceu o
templo, realizando, diariamente, serviços religiosos, nos quais
se dizia inspirado por Deus. Ao longo da encosta plantou cruzes
que conduziam ao topo, onde descansava a capela idealizada,
dedicada a Santo Antão, no interior da qual habitava a ima-
gem que foi buscar nas citadas ruínas. Nesse seu lugar espiri-
tual havia uma fonte de águas cristalinas, às quais se atribuíam
poderes curativos, uma espécie de catolicismo ortodoxo em
versão rural. Sua conduta irrepreensível, aliada à prática do bem
e aos milagres que lhe foram impingidos, renderam-lhe a alcu-
nha de “santo”. Ao ser divulgada sua fama, passou a atrair
devotos e peregrinos. Afluíam oriundos não apenas de Santa
Catarina, Paraná e São Paulo, mas também argentinos e uru-
guaios. A partir daí, o eremita dá lugar ao líder religioso. O
isolamento foi abandonado em detrimento de uma vocação
messiânica. Contudo, continua a pregar em linha com o cato-
licismo ortodoxo, anunciando a palavra do Evangelho reco-
nhecido pelo romanismo e as práticas devocionais em harmonia
com o Vaticano, todavia, muito mais do que mero devoto. A
simples utilidade de um objeto ou animal, por parte do monge,

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poderia ocasionar um “milagre”. Há o relato de Joaquim Borges
que ilustra o fato. Tendo chegado de longa viagem a pé, e após
o pouso daquela noite, foi-lhe cedida uma montaria que o
conduzisse até a cidade da Lapa. O fato lendário é relativo ao
animal que o transportava. Reza o conto que ele manquejava
e, ao deixar o monge em seu destino, voltou para a fazenda
sem o defeito que marcava suas passadas (CABRAL, 1979,
p. 116, 124-125, 135). Entretanto, a popularidade de João
Maria trouxe apreensões, especialmente ao presidente da pro-
víncia. O general Andréia, consciente da ascensão do monge
ao imaginário popular, enviou um grupo de médicos para
investigar cientificamente a fonte de Campestre, tida como
miraculosa. O laudo foi que a água tinha propriedades exce-
lentes, mas nada sobrenatural. Contudo, uma vez que a fé no
monge persistia, temendo que o grupo se tornasse uma multi-
dão de fanáticos incontroláveis, ordenou sua prisão e posterior
traslado para o Rio de Janeiro. Joaquim Silveira interpreta isso
como perseguição ao monge, especialmente por se portar
como curandeiro. Adepto de uma espécie de curandeirismo,
utilizava ervas que, associadas com suas rezas, cria-se sarar as
enfermidades dos que o procuravam. Certamente, tal prática,
embora muito comum pelos rincões da nação, associada à
aglomeração de devotos, não era bem vista pela medicina,
pelo governo e pela religião formal. Não se sabe quanto tempo
permaneceu na capital do Império. Porém, em 1851, já estava
no Paraná. Aparentemente, em algum período posterior a
1862, retorna a Sorocaba. Tem-se notícia que em 1865, con-
forme Aloísio de Almeida, ou 1870, pelo depoimento de João
Lourenço Rodrigues, sumiu, sem deixar vestígios (CABRAL,
1979, p. 135, 138-139)3.

3
Quanto a isso, há um fato curioso que demanda pesquisa mais aprofundada e de resultado pouco
provável. Em 1866, José Manoel, já pastor presbiteriano, conta em um de seus relatórios que, pas-
sando por Atibaia encontrou um “padre” João Maria, que mostrou grande interesse no evangelho
(COLEÇÃO CARVALHOSA, [s. d.], p. 34, 35). Seria uma pista do paradeiro do morador de Pedra
Santa em seus últimos anos? O monge estaria com 65 anos e estabelecido em uma cidade, radicado
em uma igreja católica. Embora seja chamado “padre” no relatório de José Manoel, pode ser que tal
designação não seja literal. Lembremo-nos de que João Maria, mesmo não sendo sacerdote católico,
tinha franqueada a palavra ao término das missas em Ipanema. É provável que sua nacionalidade
italiana lhe favorecesse quanto a isso, destacando-o entre os católicos. O perfil de João Maria I era
ortodoxo o bastante para se fixar em uma igreja. Era amigo dos padres e acentuadamente devoto.
Embora de vocação eremita e itinerante, sua estada em Santa Maria (RS), no Campestre, quando

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4. ENCONTROS E DESENCONTROS
Ipanema foi o útero de dois missionários tão distintos:
um católico, que alcançou o extremo sul do Brasil, tornando-
se, postumamente, ícone de uma guerra e santo no catolicis-
mo popular; outro, evangelista contumaz, primeiro pastor
protestante brasileiro e “inspiração” para muitos crentes. É
impossível determinar, com as informações que dispomos, se
José Manoel e João Maria conviveram, mesmo que por breve
tempo, em Ipanema. O que temos são fortes indícios que dão
base para acreditarmos que não apenas tiveram tempo para
poderem se contemplar, como, provavelmente, cordialmente
se apresentar. O monge estava no Rio de Janeiro em agosto de
1844 de onde subiu para São Paulo. Registrou-se na Câmara
Municipal de Sorocaba na véspera do Natal daquele ano. Po-
rém, não temos a data de quando se estabeleceu em Ipanema.
Suas palavras ao funcionário da prefeitura dão conta de que já
“se achava residindo” em Ipanema, o que mostra que morava
ali havia algum tempo. Já estava estabelecido, embora recém-
chegado. É possível que tenha sido “obrigado” a se registrar
(CABRAL, 1960, p. 108). Nesse caso, ficaria evidente que se
passou algum tempo entre sua chegada em Ipanema e sua
apresentação às autoridades. Sendo eremita, procuraria algum
lugar remoto para “fixar” residência. Como óbvio desconhe-
cedor da região, é pertinente imaginarmos que sondou mora-
dores à procura de um ambiente propício a seu modelo de de-
voção. Uma gruta, em lugar tão deserto quanto o alto de um
monte com uma capela “ao pé”, cairia como uma “meia” ao
ermitão muitas vezes descalço. Era a capela em que José Ma-
noel atuava como subdiácono, localizada à margem esquerda
do ribeiro à sombra da montanha de Guarassajava, na vila

chegou a se estabelecer e erigir uma capela, deixa claro que a solidão não era algo insuperável ou
indispensável a suas convicções. Seria, portanto, o caso de ter se fixado em Atibaia, trilhando o ca-
minho, de certa forma, inverso ao de José Manoel, de um modelo rústico para o ortodoxo? Seria
um final mais feliz, alternativo à hipótese de terminar seus dias em Ponta-Grossa (PR) ou Lagoa
Vermelha (RS), ainda que, na mentalidade popular, encontre-se em estado de encantamento no
Taió (SC). Talvez tenha escolhido como última morada um lugar mais perto de onde se fixou pela
primeira vez no Brasil: Atibaia (SP).

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originada pela fundição que se estabeleceu ali, tocada por fun-
cionários estrangeiros e os escravos (RIBEIRO, 1979, p. 44).
João Maria chegou a dirigir ali palavras na missa. Teria José
Manoel escutado a mesma cantoria religiosa e as mesmas rezas
de João Maria, ouvidas pelos moradores, que reverberavam de
sua caverna nos altos? José Manoel presenciara alguma prele-
ção do eremita na capela? Qual teria sido a sua reação àquele
católico tão incomum? Será que não procuraria parlamentar
com ele se tivesse oportunidade?
A solidão do monge não excluía visitas e contato com os
campesinos. Sua vida posterior mostra que atuava como cu-
randeiro, pregador e defensor do catolicismo, conselheiro
pronto a assistir os “não incluídos” de nossa nação. Assim que
seu estereótipo religioso se tornou conhecido nas redondezas,
atraiu o povo sertanejo afeito às suas crenças, e, simultaneamen-
te, repulsou os protestantes funcionários da Fundição, para
quem era fanático e louco. Os relatos de suas práticas descre-
vem uma devoção vespertina. Era no silêncio da noite que a
Vila ouvia suas rezas e seus cânticos. Talvez, não fosse exata-
mente “religioso de hábitos noturnos”, mas que, emudecido o
dia, o silêncio da noite revelava o som de sua piedade. Sem a
competição do tilintar dos martelos e do barulho das máqui-
nas da fábrica, da ode comum da lide diária, “a voz da monta-
nha” predominava, única e soberana. Beneficiado pela geogra-
fia do lugar, tinha na encosta uma barreira natural que evitava
que o som se espalhasse propagando-se em todas as direções.
Como concha acústica, direcionava-o ao vilarejo. Até os ani-
mais notívagos, mormente predadores, tendo por hábito o si-
lêncio da tocaia, rendiam-se calados, “reverenciando” a expres-
são religiosa do ilustre inquilino da montanha. Dessa forma, o
idoso “garoto de Ipanema”, semelhante à determinada moça
da famosa praia carioca de mesmo nome, certamente por mo-
tivos diferentes, detinha toda a atenção dos que lhe eram pró-
ximos. João Maria desfrutava da exclusividade de público nas
noites de Ipanema. O piar de aves noturnas, o coaxar de batrá-
quios e anuros, o ruído dos insetos, tendo como fundo o som
das águas do ribeiro levemente encachoeirado em cuja mar-
gem a vila se instalara, eram a “sinfonia da natureza” que con-
duzia o agreste à “contrição”, o respeito sertanejo a essa religio-
sidade tão peculiar. A “rádio” vocal do eremita difundia sua
crença e devoção, poderoso marketing aos moradores da terra,

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gente que passou a tê-lo como respeitado religioso, alguém a
ser buscado para conselhos e rezas.
Outra possível interação entre os personagens se deu
quando foi se registrar em Sorocaba. Era véspera de Natal. Sal-
vo algum sério impedimento, João Maria procuraria a matriz
em data tão expressiva para o catolicismo, uma vez que se en-
contrava na cidade. Pode ser, até mesmo, que tenha sido inten-
cional, para dar-lhe oportunidade de celebrar o Natal na igre-
ja. Ele não perdia a oportunidade de ir à missa. No Natal de
1844, José Manoel já estava oficiando em Sorocaba. Se assim
foi, ambos estiveram no mesmo recinto, sob o mesmo teto.
Sabe-se que João Maria buscava, como bom católico, a amiza-
de dos padres. Os tinha em alta conta, chegando, até mesmo,
a dirigir rezas em favor do padre João Dias de Arruda, na Ca-
pela de Ipanema, depois da missa (CABRAL, 1960, p. 110).
Seu ímpeto religioso católico o arremessava em direção das li-
deranças religiosas. Estando em Sorocaba, não as procuraria?
Resta, ainda, uma última hipótese de encontro. É sabido que,
já instalado em Sorocaba, José Manoel visitava com alguma
frequência os protestantes de Ipanema. Não seria esperado
que aproveitasse suas idas para conhecer o “visitante” que já se
destacava? O fato de João Maria ser italiano instigaria o cato-
licismo de José Manoel, ao menos a curiosidade. É possível
que, embora já claro simpatizante dos protestantes, não ape-
nas se compadecesse do eremita, mas, até mesmo, o visse com
“bons olhos”. Conquanto católico fervoroso, João Maria era
um não conformista. Era um “devoto exclusivo” que vivia para
a religiosidade que abraçou diferindo radicalmente dos sacer-
dotes católicos, cuja maioria vivia a religiosidade dos templos.
Sua vida humilde, desapegada de todo bem material aliada à
sua consideração pelos mais humildes e sua devoção sacrificial,
completaria o quadro da práxis de João Maria, que, é nossa
opinião, impactaria e faria eco com as aspirações de José
Manoel, uma vez oportunizado o contato entre eles.

4.1. O DIÁLOGO
Admitindo que José Manoel e João Maria tenham se en-
contrado, o que teriam conversado? Primeiramente, é necessário

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notar que havia sensível diferença de idade entre eles. João
Maria chegou a Ipanema aos 43 anos, enquanto José Manoel
havia ultrapassado apenas dois anos das suas duas décadas de
vida. Italiano, muito religioso e consideravelmente mais ve-
lho, é provável que o devotado religioso estrangeiro tenha im-
primido certo respeito e atenção ao jovem subdiácono. Deve
ter sido a “pauta” do primeiro encontro: 1. o interesse de José
Manoel, como católico aspirante ao sacerdócio, por relatos so-
bre Roma e o Vaticano; 2. o chamado de João Maria para ser
um missionário de Maria pelo mundo; 3. a devoção do monge
a Santo Antão, considerado pai do monasticismo, em linha
com a tendência solitária de José Manoel. É importante lem-
brarmos que no tempo em que João Maria se estabeleceu em
Ipanema, ele ainda não era conhecido como “monge”. Era um
devoto eremita, como se apresentou na Câmara de Sorocaba.
Sua “messianidade” só o alcançou explicitamente em Santa
Maria, Rio Grande do Sul. Lá foi aclamado “santo”, a ponto
de considerarem miraculosas as águas das fontes do local devi-
do à sua presença (ALMEIDA JUNIOR, 2009b, p. 83). Des-
tarte, a leitura que o aspirante ao sacerdócio José Manoel faria
de João Maria era a de um dedicado e comprometido católico,
que assumiu a pobreza a fim de cumprir a missão que acredi-
tava ser chamado. Tendo havido esse diálogo, acreditamos que
José Manoel ficaria profundamente impressionado, o que po-
deria tê-lo influenciado mesmo no seu posterior proselitismo
no protestantismo. Pode ter sido esse o estopim para a assimi-
lação, por José Manoel, desse método de propagação da reli-
giosidade rústica, adaptado à pregação e doutrina protestante.

4.2. MEIA-BATINA
Quando de seu provável contato com o “monge”, José
Manoel não havia, ainda, sentenciado o romanismo. Era sub-
diácono católico recém-ordenado, provavelmente, ansioso por
alcançar sua ordenação ao sacerdócio. Foi respirando o sempre
fresco ar protestante das manhãs de Ipanema que José Manoel
viu suas aspirações católicas cada vez mais rarefeitas. Possivel-
mente, ali começou a se acentuar um dilema que, até então,
poderia ser descrito como apenas “não conformismo”. A ami-

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zade com os protestantes despertava-lhe a assimilação de novos
e atraentes conceitos de fé. Segundo seu próprio depoimento:
“A leitura da Bíblia e minha relação com os protestantes fize-
ram de mim um mau candidato, e, mais tarde, péssimo padre
romano” (FERREIRA, 1992, p. 45). Por sua vez, isso confir-
ma o conflito que se asseverou em Ipanema. O “flerte” com os
“hereges” se opunha àquilo que ansiava desde a casa de seu
“pai” tio-avô. Como que nas pontas dos pés, tentando alcan-
çar a batina que ainda se mostrava um ideal mais elevado, sa-
bia que um escorregão o lançaria por terra, fazendo que seu
objetivo original jamais se tornasse possível. Todo esforço para
concluir a carreira do sacerdócio se via ameaçado, como o cor-
redor que desiste da vitória a poucos passos da linha de chega-
da. A atraente fé protestante, se abraçada, ele sabia, imporia
total ruptura com o catolicismo, que culminaria em sua exco-
munhão, como de fato aconteceria. A batina não mais lhe ser-
viria, “ficaria pequena” quando por fim lhe oferecessem a exu-
berante toga protestante. Aquela seria abandonada, pois o
exporia à vergonha. Se admitirmos essa psique de José Manoel,
parece-nos lógico que a chegada do monge contribuiu para
que o dilema protestante se tornasse ainda mais pungente. Já
vimos o quanto José Manoel valorizava a vida sacrificial, he-
rança de sua educação jansenista agostiniana, o que, ainda
mais como católico que era, o levaria a estimar o ascetismo do
anacoreta. Também, a zombaria que os protestantes dirigiam
ao ermitão, que diziam “o bugio está roncando na serra”, uma
troça que o associava aos muitos símios que costumeiramente
alardeavam a presença nas matas da montanha (RIBEIRO,
1979, p. 44), bem como, chocarrices quanto às suas vestes,
barba e cabelos compridos, sua exagerada gesticulação (como
bom italiano), e provavelmente, seu linguajar (CABRAL,
1960, p. 109, 111), possivelmente não passavam despercebi-
das a José Manoel. Vetusto, eremita por profissão, quando lhe
franqueavam a palavra na missa da capela, eram muitos os
impropérios por parte dos operários, que reconheciam em sua
prédica apenas asneiras. Se a presença de José Manoel coinci-
diu com João Maria em Ipanema oportunizando vivenciar tais
atitudes contra o solitário religioso, teria permanecido indife-
rente a isso? Se, por um lado, os protestantes não escondiam
sua reprovação a João Maria, por outro, os sertanejos o tinham
em alta conta, especialmente por sua intensa e prioritária

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devoção, sua vida simples, sem falar na atenção que dava
àqueles que o buscavam. Mais tarde, já como pregador evan-
gélico, José Manoel diria o seguinte: “Ó meu Deus! Eu res-
peitarei a religião do ignorante, a fé daqueles que não tem
tantas ocasiões de conhecer-vos, de venerar-vos de modo
mais digno. Jamais servirei à vaidade e presunção, de tal sor-
te que abale a fé piedosa dos outros com palavras e ações
inconsideradas” (RIBEIRO, 1995, p. 19). Se ele já mostrava
tal consideração em seus tempos de romanismo, dificilmente
desprezaria o empenho de João Maria. Isso, no provável e
breve tempo que passou em Ipanema com o ermitão, certa-
mente colocaria em lados opostos sua defesa pela crença do
ignorante e sua vocação jansenista agostiniana, sua simpatia
pelo sertanejo brasileiro e a atração pelo protestantismo dos
estrangeiros, a identidade do campesino pela vida simples e
monacal do italiano e a sofisticação europeia dos trabalhado-
res da fundição.

5. SEMELHANÇAS
Vejamos a seguir as principais características que aproxi-
mam a prática de José Manoel daquela do primeiro “monge”
do Contestado.

5.1. REVOLUCIONÁRIOS?
Certamente é um exagero dizer que José Manoel e João
Maria foram revolucionários. No entanto, por mais absurdo
que pareça, ambos estão ligados a insurreições. Como vimos,
José Manoel subscreveu a declaração da Revolta Liberal, de
17 de maio de 1842. Referindo-se ao “pai de criação” de José
Manoel, Boanerges Ribeiro (1979, p. 43) opina: “Padre Men-
donça, envelhecido e sensato, era avesso a políticas e revoltas;
nem mesmo era íntimo de Rafael Tobias. Assinara a ata da
rebelião, mais por solidariedade com os paroquianos que por
interesse no assunto, parece-me”. Portanto, se o experiente
tio-avô não era afeito à revolta, é provável que seu sobrinho-

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neto, “filho de criação”, também não o fosse. Embora a juven-
tude seja mais afeita à truculência, aparentemente o perfil de
José Manoel não favorecia tal tipo de comportamento. Con-
quanto falte documentação para essa afirmação, parece-nos
claro que, uma vez que o padrinho a assinou, certamente o
faria, leal e solidário àquele que o acolheu. João Maria de Agos-
tinho, de igual forma, jamais pretendeu uma revolta. Na ver-
dade, nem mesmo viveu para ver seu nome associado a uma
revolução estribada em messianismo. A Guerra do Contestado
ocorreu entre os anos 1912 e 1916, no Planalto Catarinense e
sul do Estado do Paraná. O “nosso” João Maria, o primeiro,
pois houve outro que incorporou o seu nome, morreu não se
sabe quando ou onde. O que se tem sobre seu desaparecimen-
to não passa de informações esparsas. Sabe-se que não chegou
ao século XX, uma vez que é documentado que nasceu em
1801. O que rompeu a barreira do século XIX foi o provavel-
mente sírio Anastás Marcaf, que assumiu a alcunha de João
Maria de Jesus. Na mentalidade do campesino sulista, os dois
compuseram um único personagem, o “seu” João Maria. João
Maria II é visto apoiando os revoltosos na Revolução Federa-
lista. Contudo o primeiro nunca estimulou ou se utilizou de
violência, mesmo quando expulso injustamente de Santa Ma-
ria (CABRAL, 1960, p. 114-119). José Manoel e João Maria
também nisso se parecem: ambos foram ligados a insurreições
sem, de fato, pretenderem-nas. O primeiro, consciente do que
fazia, porém, aparentemente, sem a desejar. O segundo, sem
nunca ter sabido que sua vida seria vinculada a uma das maio-
res revoluções de nosso país, autêntico movimento messiânico
nacional. Ambos, prováveis vizinhos em Ipanema.

5.2. PRÁTICA MÉDICA


Fato geralmente pouco enfatizado é que José Manoel
praticava enfermagem em suas visitas. Possuía tal treinamento
e o colocava a serviço do povo que visitava. Deve-se considerar
o quanto o sertanejo era carente desse tipo de cuidado. Havia
a medicina popular, baseada em chás e emplastos de ervas, bem
como as crendices e os benzimentos muito comuns no sertão

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brasileiro. Todavia, quando a doença se mostrava resistente ao
“mais profundo” conhecimento insipiente do campesino, a
percepção da gravidade da enfermidade os impulsionava a
grandes distâncias, viagens que às vezes levavam dias, em bus-
ca de médico e de remédio. João Maria associava cura por meio
de rezas e ervas (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 57-58).
Quanto a José Manoel, não é comum reconhecer em sua prá-
tica de enfermagem uma estratégia de evangelização. O que
podemos dizer é que, conscientemente ou não, por certo ela o
auxiliou na aproximação de fazendeiros, peões e caboclos. Dian-
te da necessidade de tratamento médico, as famílias tenderiam
a dar abertura à pregação do protestantismo. A prática da en-
fermagem como estratégia de evangelismo é utilizada, até ho-
je, por agências missionárias protestantes no mundo todo, es-
pecialmente em países, povos e regiões carentes. Todavia, no
caso do Padre Protestante, o tratamento de enfermidades ge-
ralmente é visto apenas como retribuição à hospedagem nas
casas que o acolhiam.

5.3. ITINERÂNCIA
José Manoel é descrito como alguém que em sua histó-
ria mostra excentricidade e genialidade, um evangelista ardo-
roso e andarilho solitário (HACK, 2001, p. 67). Primeiro
pastor ordenado no Brasil, a ele é atribuída a reformulação da
estratégia missionária na implantação do protestantismo em
nosso país. O método de grandes concentrações utilizado pe-
los pregadores americanos nas regiões de fronteira nem che-
gou a ser cogitado. Seria praticar reducionismo, é verdade, se
limitássemos a obra missionária no Brasil à evangelização
grupal. Foram utilizadas outras estratégias de disseminação
do protestantismo, como o ensino nas Escolas Dominicais e
a fundação de escolas seculares de orientação protestante
(MENDONÇA, 2008, p. 144-167). A importância de José
Manoel, não apenas para o presbiterianismo, mas para o pro-
testantismo brasileiro de forma geral está na adoção de traba-
lho itinerante, motivado inicialmente pela responsabilidade
que sentia de revisitar os locais onde havia servido como sacer-

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dote, agora como profeta de uma nova religião cristã (AL-
MEIDA JUNIOR, 2009a, p. 198). O que impulsionou José
Manoel às poeirentas estradas do interior paulista e mineiro
foi seu desejo de corrigir aquilo que havia feito como sacerdo-
te católico. Empenharia todo esforço para completar essa mis-
são. Assim, José Manoel iniciou suas jornadas de forma similar
àquilo que fizera o apóstolo Paulo havia muitos séculos (HA-
CK, 2001, p. 74). Essa comparação é sugestiva, pois serve para
nos mostrar que, provavelmente, o passado foi para José Ma-
noel uma mola mestra mais tencionada do que para o “após-
tolo dos gentios” (Rm 11.13). Paulo detinha uma “consciência
robusta” como judeu. A avaliação de Paulo quanto ao seu pas-
sado judeu é a de ser um sincero enganado, isto é, acreditava
fazer o certo (ALMEIDA JUNIOR, 2006, p. 275, 278). To-
davia, esse não parece ter sido o caso de José Manoel. Ele,
ainda católico, recebeu a alcunha de “Padre Protestante”. Apa-
rentemente, mostrou alguma insegurança com o seu catolicis-
mo desde cedo, o que fica patente em sua inclinação ao pro-
testantismo. Parece que sua consciência o acusava de ter
ensinado e exigido algo sobre o que nem mesmo ele acredita-
va. Contudo, a dúvida observada nos tempos de sua frágil ba-
tina e rotas convicções transformou-se em couraça de fé em
suas peregrinações pelo sertão como pastor presbiteriano.
Outro fator que levou José Manoel a palmilhar o sertão
como evangelista protestante foi sua crença de que era neces-
sário fazer chegar a Bíblia nas mãos do povo, não apenas dos
brasileiros, mas de todas as nações. Cria que essa era a única
forma de a igreja experimentar sua real catolicidade (HACK,
2001, p. 74). Empenhou-se pessoalmente para ir até o neces-
sitado, abandonando o conforto das cidades para singrar o
agreste. Falando-se estritamente da responsabilidade autoim-
posta de José Manoel, percebemos que seu evangelho incluía
uma missão ao povo. Muitas vezes, nem mesmo se sabia seu
paradeiro determinado, exatamente o mesmo padrão de com-
portamento assumido por João Maria. Deve-se ainda consta-
tar que o possível encontro entre José Manoel e João Maria
teria se dado antes da visita feita àquele por A. L. Blackford,
este missionário americano presbiteriano. Pode ser que a me-
tamorfose de José Manoel tenha sido um processo, passando

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por uma vocação intermediária, inspirada no procedimento
de João Maria e no catolicismo popular que modelaria seu mi-
nistério protestante posterior. Destarte, o curso seria descrito
como segue: da sua conflitiva relação com a ortodoxia católica
despertou-se para o catolicismo itinerante, quanto ao método
e dedicação, ao mesmo tempo que era atraído pelos conceitos
doutrinários do protestantismo, que lhe pareciam mais coe-
rentes. O resultado é quase uma fusão: sintetiza a itinerância e
o despojamento dos anacoretas rústicos com a doutrina refor-
mada. Em sua conversão ao protestantismo, adapta-o à reali-
dade brasileira.

5.4. VIDA SIMPLES


É possível que o modo de vida simples fosse o que mais
se destacava no procedimento de José Manoel e João Maria.
Conscientes de seus respectivos chamados, algo que ia, certa-
mente, muito além de uma consciência, revestiam-se do mís-
tico e do sobrenatural. A certeza resultante impelia-os à frente,
até que a morte lhe fechasse os olhos para não mais enxergar a
jornada. É necessário observarmos que o século XIX foi tempo
de grande atividade religiosa informal em nosso país. Como
que por “movimento de inércia”, o afã religioso rústico inva-
diu o século XX. Movimentos messiânicos surgiram em várias
partes do país (PEREIRA DE QUEIROZ, 1977, p. 220-305).
O sertão brasileiro respirava religião. O faro religioso aguçado
do campesino captava o “forte odor” de anacoretas que sua-
vam sob o sol do agreste e se multiplicavam por todo o país.
Contrastando com os sacerdotes romanos, tidos, muitas vezes,
como exploradores e imorais, os “profetas caipiras” vestiam a
“grife cabocla”, vivendo de forma extremamente simples como
o povo. Embora com uma proposta religiosa tão distinta e
peculiar, protestante, com vestes simples, surradas sem cle-
mência, José Manoel se enquadrava no estereótipo do religio-
so popular, ligado às expectativas dos habitantes do sertão.
Curiosamente, foi se radicando mais e mais na solidão e na
pobreza. Boanerges Ribeiro (1979, p. 211) o descreve no oca-
so de seu último dia da seguinte forma: “Era homem pobre e

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mal vestido. Velha calça de zuarte, camisa de algodãozinho, e
surrado paletó de alpaca preta. Pés descalços”. Certamente,
sua aparência não diferia da dos anacoretas que cruzavam o
sertão. João Maria é descrito trajado de paletó e calças bem
usadas, sandália de tiras ou descalço e chapéu de jaguatirica
(ALMEIDA JUNIOR, 2009b, p. 186). Aparentemente, a for-
ma de vestir de ambos mostra muito mais do que um “guarda-
roupa” modesto, a consciência do despojar de tudo o que pos-
sa aparentar ostentação. Na verdade, a indumentária refletia
aquilo que viviam. José Manoel ficou conhecido como alguém
que portava o mínimo irredutível à sobrevivência, às vezes,
menos que isso. Nada pedia para si mesmo: o que tinha e re-
cebia, oferecia aos outros (HACK, 2001, p. 75). É impressio-
nante observar que o procedimento de João Maria é rigorosamen-
te o mesmo. Essa forma despojada teria sido uma influência de
João Maria? É indiscutível que esse era o modelo de vida en-
contrado no primeiro monge do Contestado. Se o provável en-
contro entre os dois personagens, de fato, ocorreu, pode ser
que tenha colaborado para “ativar” em José Manoel tendências
que já lhe eram tão conhecidas, em razão de sua formação ca-
tólica, enfaticamente penitencial.
João Maria recusava o pouso nas casas, preferindo dor-
mir sob o dossel verde da copa das árvores. O máximo que
aceitava dos devotos era alguma comida. Tudo o que preten-
diam lhe dar, logo repassava para diminuir a carestia dos tão
miseráveis quanto ele. Teria a origem católica de ambos, espe-
cialmente, o modelo mendicante determinado esse padrão? Em
nossa opinião, é possível que o conceito de penitência, conju-
gado à consciência de tão grande culpa, pode ter gerado a sim-
plicidade e a frugalidade observadas posteriormente tanto em
José Manoel quanto em João Maria. Para aquele, transmuda-
dos por ocasião da sua conversão ao protestantismo, assumi-
riam a forma de dedicação sacrifical, destituída da ideia de
“satisfação pelo pecado”, uma espécie de “obrigação de grati-
dão” e obra não meritória; na linguagem paulina, “a libação
sobre o sacrifício” (Fp 2.17). É curioso que o monge João Ma-
ria também tenha mostrado forte ênfase penitencial, o que
levou a “sacrifícios” semelhantes aos do Padre Protestante. De
igual forma, o monge assumiu um comportamento autônomo,
isto é, sem a necessidade de sacerdote, conceito que se coaduna

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àquilo que vemos no catecismo estudado por José Manoel.
Parece que a conversão do padre em protestante conjugou ten-
dências jansenistas com a ênfase penitencial, moldando con-
tornos graves, profundas linhas de expressão e sulcos de sofri-
mento em sua face. Quando a consciência de suas próprias
faltas conduziu-o à certeza de outra “falta”, a dos méritos dian-
te de Deus, percebeu que só lhe restava o caminho da graça. A
mesma pressão que se observou em Lutero, notou-se em José
Manoel. Como assevera a doutrina dos reformadores, ante o
desespero pelo peso causado na busca da satisfação dos pró-
prios pecados, descobre-se a satisfação unicamente na graça de
Cristo. Depois dessa argumentação, resta-nos saber se ambos
desenvolveram hábitos semelhantes por causa dos mesmos
matizes sociais e tradições, ou se foi fruto de alguma interação
entre si.

5.5. PREFERÊNCIA SOLITÁRIA


Chama-nos a atenção o fato de João Maria ser devoto de
Santo Antão, conhecido “pai” do monasticismo, nascido no
Egito, em aproximadamente 251 d. C. Este, quando tinha
cerca de 20 anos, diante da morte de seus pais, decide tomar
para si aquilo que Jesus Cristo havia dito ao jovem rico: “Se
queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá aos pobres e te-
rás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me” (Mt 19.21).
Deixou sua jovem irmã sob os cuidados de uma comunidade
de virgens, distribuiu toda a sua herança e passou a viver no
mais intenso ascetismo (CARRIKER, 1999, p. 48). Há gran-
de chance de Agostinho ter sido influenciado diretamente pe-
lo exemplo de Santo Antão, não apenas na piedade e devoção,
mas, também, em algumas práticas ascéticas vistas em sua vi-
da. Uma vez que João Maria vivia como eremita e buscava a
solidão, sua devoção a Santo Antão se faz mais do que coeren-
te e esperada. Quando consideramos a base religiosa de José
Manoel e João Maria talvez a intersecção seja, exatamente, o
bispo de Hipona, por causa do jansenismo agostiniano e ascé-
tico (HOPE, 1992, p. 358). Destarte, quer diretamente, quer
via Agostinho e Jansen, parece que a vida de Santo Antão

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influenciou tanto José Manoel quanto João Maria. Ambos
buscavam viver a concepção de piedade que conheciam e a
solidão. Uma vez que comumente os católicos não apenas re-
cebiam “nome” de “santos”, mas costumavam estabelecer, com
especialidade, devoção a tal santo, poderíamos especular se
João Maria observava esse princípio, especialmente no que diz
respeito ao “de Agostini” ou “Agostinho”. Os últimos anos do
Padre Protestante mostram um andarilho, praticamente men-
digo, já com a saúde debilitada e relatórios cada vez mais es-
parsos. Suas últimas palavras talvez traduzam o desejo que es-
teve em seu coração boa parte da vida, uma espécie de lema:
“Quero ficar a sós com Deus” (RIBEIRO, 1979, p. 212). Era
na reclusão que buscava a comunhão mais profunda com o
seu Senhor.
Soma-se a isso a preferência à privação do casamento.
José Manoel e João Maria optaram pelo celibato. É certo que
esse procedimento se coadunava à proposta de “missão” que
ambos reconheciam ter. Embora herdeiro do catolicismo, uma
vez protestante, José Manoel não teria por que não se casar, a
não ser que reconhecesse nisso algum impedimento para a
obra que pretendia. Se já concebia um modelo de pregação iti-
nerante, certamente, o matrimônio seria um empecilho. Tam-
bém João Maria não se casou. Embora católico, não era “casa-
do com a Igreja”, sendo-lhe, portanto, franqueado e garantido
o direito de “dividir sua caverna” com alguém. Todavia, pode
ser que houvesse outro motivo: uma liderança de prestígio,
enfatizada pela crença popular da “impureza” do sexo e da san-
tidade da abstinência (ALMEIDA JUNIOR, 2009b, p. 104,
105), fator esse corroborado na mente do sertanejo pelo celi-
bato que os padres deveriam praticar. Teria sido o caso de José
Manoel ainda não ter digerido completamente a viabilidade
do matrimônio para si? Será que algo de sua personalidade “sa-
cerdotal”, edificada por mais de quarenta anos no catolicismo,
permanecia em meio aos escombros de sua antiga religiosida-
de, depois de demolida pela “maça” protestante? Seria possível
que, como “missionários do sertão”, o monge Contestado e o
Padre Protestante deveriam assumir esse modelo para terem
crédito diante do povo? É nossa opinião que, deliberado ou
não, o fato de ser um “religioso” não casado facilitaria sua acei-

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tação nos rincões por onde passou. Por saber e ter vivido isso em
seu tempo de sacerdote possivelmente se constituiu em in-
fluência, mesmo que inconscientemente.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
José Manoel da Conceição e João Maria de Agostini es-
tiveram algum tempo residindo muito próximos, ou, até mes-
mo, na mesma localidade. São várias as semelhanças que os
aproximam tanto na formação católica como na prática dos
chamados que ambos reconheciam ter. Tais “coincidências”
podem estar ligadas a alguma interação entre eles em Sorocaba
ou mesmo relatos repassados pelo povo. José Manoel em con-
tato com João Maria possivelmente ficaria impressionado em
razão de sua dedicação, ser italiano recém-chegado e conside-
ravelmente mais velho. Se assim foi, os calvinistas comemo-
ram e reconhecem aí a doutrina da soberania de Deus. Dois
personagens que marcaram a religiosidade brasileira com pen-
samentos tão diferentes foram deliberadamente colocados
juntos pelos desígnios divinos para originar um modelo mis-
sionário tão peculiar, inédito no protestantismo de então: a
itinerância, nos moldes dos anacoretas do agreste. Conside-
rando a hipótese de terem se encontrado exatamente no mo-
mento em que José Manoel via-se cada vez mais protestante,
pode ter assimilado algo da religiosidade popular, o modelo
despojado de “profeta rústico” muito comum na época. É evi-
dente que José Manoel assumiu o método “andarilho” dos
profetas populares e que isso contribuiu enormemente para a
expansão do protestantismo no Brasil. Resta-nos saber se isso
se deu como fruto do provável contato com João Maria e se foi
consciente ou não. De qualquer forma, fica evidente que um
matiz social formata a propagação religiosa, mesmo de credos
tão diferentes. Por fim, é certo que não temos a intenção de
reescrever a história. O objetivo é contribuir com informações
nunca exploradas, que ligam dois personagens tão importan-
tes no panorama religioso brasileiro. Aberta fica a porta para
outras pesquisas que venham elucidar muitas das questões ora
sem resposta.

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JOSÉ MANOEL DA CONCEIÇÃO
E JOÃO MARIA DE AGOSTINI: TWO
FACES IN POPULAR RELIGIOSITY

ABSTRACT

Born in São Paulo City, José Manoel da Conceição was created by his
great-uncle priest after his mother’s death. His new address became
Sorocaba. He suffered strong Jansenist influence in his education, with
emphasis in penitence and in introspection. Already like sub deacon,
assigned the acta of the Liberal Revolt probably more by sympathy for
his “stepfather”. After, José Manoel goes work in a small village called
Ipanema originated by installation of a foundry. It was in its surroundings
that João Maria was lived. At the chapel of the Village where watching
José Manoel like sub deacon, that was franchised the word to the hermit
by the foundry’s director. On Christmas Eve, 1844, João Maria made his
register of stranger in Sorocaba, stating to be resident in the region yet. For
some time, José Manoel and João Maria had opportunities for meeting,
since on 29 September 1844, the first is ordered deacon and goes to center
of Sorocaba. Others possibilities are seen in the celebrations of Christmas,
1844, and the visits of José Manoel for his Protestants friends, at Ipanema.
The probability of have had some contact can find some support in
“popular religious” pattern adopted by José Manoel later, seen in simplici-
ty almost ragged, refusing receive anything gift like “payment” or gratitude
by religious services, the direct living together with the people instead of
institutionalized religion. Even historically, the lives of José Manoel e João
Maria approach themselves, to have been involved in two insurgencies: the
Liberal Revolt and the Contestado War, respectively. It is likely that José
Manoel still retained some influences of his previous Catholicism, especially
seen in his tendency to independence no rebel (Jansenism), to loneliness
(monasticism), what includes the continuity of celibacy, although he had
manifested his disagree about this practice, still like catholic. Possibly, this
option was exercised to be more convenient to the model of evangelism
that had adopted. This argumentation serves to show that is plausible the
hypothesis of two characters had met, and, who knows, it has served of
influence for that José Manoel had a “popular religious” pattern in his
protestant evangelism.

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KEYWORDS

José Manoel; João Maria; popular religious; itinerancy; Protestant mission.

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130 CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE


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A SEDUÇÃO DO TRANSCENDENTE
E O SACRIFÍCIO DO IMANENTE EM
KIERKEGAARD

Jasson da Silva Martins


Doutorando em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Professor Assistente
na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).
E-mail: [email protected]

Jacqueline Oliveira Leão


Pós-doutoranda, doutora em Literatura Comparada e mestre em Estudos Literários, Teoria da Literatura
pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
E-mail: [email protected]

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RESUMO

Toda a obra de Kierkegaard pode ser considerada um itinerário para Deus.


No presente texto, pretendemos mostrar esse itinerário por meio dos es-
critos estéticos do autor. Interpretaremos a figura do sedutor, como figura
representativa do estádio estético, que permite ao pensador dinamarquês
efetuar a passagem ao estádio religioso sem passar pelo ético. O elemen-
to que possibilita essa aproximação discursivo-existencial entre estético e
religioso é o absoluto, ou melhor, a busca do absoluto. Essa busca ocupa
um papel importante nos escritos literários de Kierkegaard e é oferecida ao
leitor como estrutura existencial singular de cada indivíduo.

PALAVRAS-CHAVE

Absoluto; estética; indivíduo; itinerário; sedução.

Seduziste-me Senhor e eu deixei-me seduzir


(Jer 20.7).

1. INTRODUÇÃO
Afirma-se, geralmente, que a obra de Kierkegaard é di-
fícil de ser circunscrita. Nela, encontramos um pouco de tudo:
discursos teológicos (edificantes), ensaios filosóficos com apa-
rência clássica e textos que podemos chamar literários, entre os

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quais se encontra o Diário do sedutor. Apesar de suas diferen-
ças discursivas, todos esses textos articulam uma reflexão sobre
a existência, que se quer subjetiva e sem nenhuma contradição
interna, podendo ser lidos de um ponto de vista espiritual.
Embora possamos reconhecer a diversidade interpretativa da
obra de Kierkegaard, o caráter metafísico ou transcendente é a
marca maior de sua produção.
Os textos que chamamos literários talvez sejam justa-
mente os mais reveladores desse ponto de partida, pois desem-
penham o papel de caminho, itinerarium mentis Deum, para
cada indivíduo. No geral, as obras de Kierkegaard podem ser
tomadas como discursos subjetivos, onde o seu interesse, o seu
valor e sua finalidade dependem de uma ancoragem em um
“eu” que é representado por uma figura, geralmente ligada a
um dos estádios – estético, ético, religioso – de sua dialética
existencial. A figura pseudonímica, como ancoragem de um
determinado discurso (ideia-problema), requer um eu-leitor
para que a transmissão da mensagem (de valor soteriológico)
seja exposta e compreendida. Uma leitura mais crítica dos tex-
tos de Kierkegaard (1979), por exemplo Temor e tremor e Diá-
rio do sedutor, permite-nos dizer que os vários aspectos literá-
rios dessas obras configuram também as tentativas de o autor
fundar o seu discurso filosófico-existencial em, sobre ou a par-
tir da existência, e assim, abrir a via a uma outra forma de
discurso sobre o absoluto, um discurso encarnado que tende a
se separar, em razão da própria ficção, da especulação.
Interessa-nos aqui a literariedade dos textos de
Kierkegaard. Nosso propósito consiste, aqui, em interpretar
de que forma a figura do sedutor, como figura representativa do
estádio estético, permite a Kierkegaard entrever a passagem ou
o salto ao estádio religioso sem passar pelo ético, representado
pela norma ou a generalidade, e associado ao casamento. O ele-
mento que possibilita essa aproximação discursivo-existencial
entre estético e religioso é o absoluto, ou melhor, a busca do
absoluto. A procura pelo absoluto ocupa o esteta – como ser
religioso – e é apresentada como uma espécie de desejo do sagrado,
que se realiza por meio da relação estética e da sedução da amada.

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2. RELAÇÕES FINITAS, SEDUÇÕES
ABSOLUTAS
Na multifacetada obra de Kierkegaard, o termo relação
pode ser definido pela circunstância que procura recolher.
Nesse sentido, os exemplos de relação que encontramos são
variados e poderiam ser acompanhados aqui em referência a
três momentos distintos: podemos falar da relação de Johannes
com Cordélia no Diário do sedutor (1843); da relação do pró-
prio Kierkegaard com Régine Olsen encontrada nas notas dos
Papirer (escritos de cunho biográfico) e alhures (possivelmente
marcas da escrita autoficcional), ou daquela relação descrita na
Repetição, narradas por Constantin Constantius, entre um ra-
paz e uma moça1. Essas três relações apresentam três figuras de
sedutores – figuras masculinas como ápice da relação – que
colocam em cena o erotismo e a sedução, por meio da busca
do absoluto. Ambas as relações podem ser compreendidas co-
mo eco da relação entre Deus e o homem, relação que encon-
tramos nos vários textos de Kierkegaard (1979), Temor e tre-
mor sobretudo. Essa correlação entre estético e religioso,
abstraindo-se o ético, que se desenha em torno de um desejo
do absoluto, é importante para Kierkegaard, ao ponto de, por
meio dela, fazer uma crítica ao estádio ético, central para uma
filosofia como a de Immanuel Kant. No século XX, Georges
Bataille vai propor algo muito semelhante na sua obra clássica
de 1957, O erotismo.
Alguns intérpretes da obra de Kierkegaard procuram
vincular a elaboração do Diário do sedutor ao elemento biográ-
fico de seu autor: o rompimento do noivado com Régine
Olsen. Embora seja demasiada complexa essa chave de leitura,
pois se situa na relação tramada, que é o próprio discurso lite-
rário e nas relações não delimitadas pela fronteiras entre o real

1
Claro que o sentido semântico dessa palavra não se esgota nesses três momentos que aqui
circunscrevemos. Podemos pensar em tantas outras relações: do autor (Kierkegaard) com o seu leitor;
sua relação com Hegel; sua relação com a Igreja dinamarquesa etc. O que de fato nos interessa,
aqui, é mostrar que a palavra relação possui esse elemento aglutinador, capaz de transformar-se em
estrutura toponímica com poder de explicação de fenômenos intrínsecos à interioridade de cada
indivíduo e/ou sua relação.

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e o ficcional, o fato é que alguma importância teve esse acon-
tecimento biográfico ao menos com o estilo ou o propósito da
obra: pensar a relação como elemento de sedução absoluta.
Com ou sem conotações biográficas, o fato é que o leitor dessa
obra depara com um sedutor muito calculista, que procura
degustar a sua relação, mostrando que o rompimento é muito
mais uma espécie de abandono do que de sacrifício. Do ponto
de vista literário, encontramos, nesse sedutor, muito mais do
que um simples desejo pelo jogo, pelo embuste, Johannes é
um erótico que desloca a questão usual da sedução – sexo –
para a dimensão do próprio erotismo, deixando em aberto a
fantasia como expressão da linguagem. Além disso, ele não é
descrito como personagem frívolo, ele é, antes de mais nada,
um sedutor intelectualizado: todo o seu zelo na planificação e
nos registros das paixões e das emoções provam, às expensas
do encantamento de Cordélia, essa sua característica. Em boa
medida, podemos qualificar Johannes como sedutor espiritual.
Para além do jogo, se atemo-nos à forma e ao método
dos sedutores românticos (VALLS, 1988), a sedução implica
uma boa dose de seriedade. A seriedade requerida aqui reside
no fato de que o sedutor se realiza na esfera estética ao concluir
a sua tarefa estética por excelência, qual seja, viver poetica-
mente. No quadro de referência da relação de sedução isso
significa, de maneira essencial, o recurso ao erotismo. Para ser
senhor da relação, o sedutor torna-se um erótico, sob pena de
não conseguir elevar a sua conquista ao nível do religioso. O
erotismo é, nesse sentido, aquilo pelo qual a sedução afirma
sua busca do absoluto, ou melhor, aquilo pelo qual ela constrói
sua relação com o absoluto. Utilizamos a palavra erotismo,
como descrito anteriormente, qualificado por Kierkegaard de
espiritual, como elemento de ligação entre o estético e o reli-
gioso. Esse laço criado pelo erotismo, ligando o estético e o
religioso, aparece, várias vezes, na referida obra de Bataille
(1972, p. 40), à medida que o erotismo se apresenta como um
aspecto da vida interior: “A consciência do erotismo, ou da
religião, exige uma experiência pessoal, igual e contraditória,
da proibição (interdit) e da transgressão”.
Nesse contexto, a experiência erótica aparece como for-
ma de experiência interior, tanto de um personagem-ideia

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quanto de um indivíduo singular, vivida por meio de uma
relação de sedução. Para Johannes, a sedução é uma forma de
superar a história (história pessoal do próprio Kierkegaard?),
ou seja, “[...] fazer do amor aquele absoluto ao lado do qual
qualquer outra história desaparece” (KIERKEGAARD, 1970,
p. 355). Como podemos notar, trata-se de “construir” ou de
“criar” (verbo, normalmente, conjugado por Deus) esse abso-
luto por meio da sedução, e, fazendo isso, desenvolver igual-
mente o erotismo espiritual, é preciso dizer, com Cordélia.
Essa força erótica ativada representa um acúmulo na relação
entre o sedutor e a moça seduzida. Essa força erótica, atraves-
sada por emoções intensas – êxtases, angústias, inquietudes –
elevam à segunda potência a subjetividade do pensador-tema,
a ponto de levar à ruína os limites normativos do geral, para
completar o ultrapassamento absoluto para além da esfera ética.
Tudo isso se resume, apesar da nossa opção pela interpretação
ficcional e menos biográfica do Diário do sedutor, ao rompimen-
to do noivado e à firme decisão do próprio Kierkegaard de não
se casar para não se tornar um cidadão, no sentido hegeliano2.
O absoluto procurado na sedução é, portanto, o absoluto
que se faz objeto da estética. Esse absoluto parece inconciliável
com o absoluto da esfera da ética (dever, norma) à medida que
o erotismo que une os dois personagens (sedutor e seduzida)
se confunde com o modo religioso que objetiva o absoluto
além do mundo imediato. No texto, In vino veritas (1845),
uma espécie de retomada do Banquete de Platão, Kierkegaard
põe na boca de um dos discursantes (o jovem) essa relação
entre vida espiritual e sensualidade: temas abordados estetica-
mente, mas que possui a sua origem no transcendente:

O ser humano é composto de alma e corpo; nisso concordam


os melhores homens e os mais sábios. Ora, se se coloca a potên-
cia do amor na relação entre o feminino e o masculino, então o
cômico voltará a surgir naquela peripécia que se produz quando
o supremamente anímico se exprime o estritamente sensível.

2
Quando da escrita do Diário do sedutor, Kierkegaard já havia concluído sua tese em teologia e, em
seguida, partido para Berlim. Nesse período, ele já havia lido a obra Princípios da filosofia do direito
(Hegel), da qual a estrutura do sumário se assemelha ao sumário da tese defendida em 1841, de
modo invertido (vide O conceito de ironia).

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Estou a pensar em todas aquelas estranhíssimas gesticulações e
sinais místicos do amor, resumindo, nessa espécie de franco-
maçonaria que é uma continuação daquele primeiro inexplicá-
vel. Neste aspecto, a contradição em que o amor envolve um
indivíduo reside em que o simbólico simplesmente nada signi-
fica, ou, o que é o mesmo, no facto de ninguém saber dizer o
que ele possa significar (KIERKEGAARD, 2005, p. 70).

O transcendente, a motivação, é o elemento que põe em


marcha a relação erótica. Como podemos inferir da citação
anterior, esse inexplicável se aproxima do “segredo” (dos
amantes) e do silêncio (dos místicos). Notemos, nesse passo,
que as relações finitas são sustentadas por seduções infinitas.
Tal relação, à medida que ultrapassa a simples afetação mútua,
excede a construção de valores e de normas que tenta enqua-
drá-la e exige, consequentemente, um ultrapassamento ou
uma recusa da ética. Podemos dizer que essa relação é uma
aproximação estética do sagrado definida aqui, por meio dos
elementos inapreensíveis que fazem parte do interior da rela-
ção. Do mesmo modo, a aproximação religiosa do sagrado
não pode ser pensada e vivida a não ser como um sentimento,
um misto de terror e de fascinação.

Esse devir – responsável, quer dizer esse devir – histórico do


homem, parece se ligar de maneira essencial ao acontecimento
propriamente cristão de outro segredo, ou mais precisamente
de um mistério, o mysterium tremendum: o mistério terrifican-
te, o pavor [l’effroi], o temor [le crainte] e o tremor [le tremble-
ment] do homem cristão na experiência do dom sacrificial
(DERRIDA, 1999, p. 21).

Essa ambivalência pode ser, em parte, ligada ao fato de


que o elemento de risco ou de perigo associado à sedução pode
ser estendido tanto à vida, na perspectiva do estádio estético,
quanto ao fato de existir religiosamente, ou seja, viver como
testemunho da boa nova, consciente da exigência salvífica. Ao
pressupormos que o estético e o religioso se encontram no
nível do sagrado – essa esfera ambígua, quase que indefinível –,
onde se tende em direção ao próprio sagrado, podemos conce-
ber o risco que lhe é imanente como correspondendo à ver-
tigem e à perda de si. Todavia, de um ponto de vista espiri-

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tual, essa de-posição, essa perda da posição de eu, representa,
paradoxalmente, um ganho. Em outras palavras, a deposição é
um elemento integrante e necessário de toda busca espiritual
na medida em que nenhuma forma de absoluto, nenhuma
dimensão sagrada pode ser atingida sem uma anulação tempo-
rária do eu. Essa anulação temporária do eu, no itinerarium
mentis Deum, é, fundamentalmente, a dissipação daquilo que
o particular contém de geral.

3. SEDUÇÃO INFINITA, RELAÇÃO


ABSOLUTA
Nesse itinerário para Deus, o modelo de relação dos
personagens-tema kierkegaardianos arrisca a existência, infini-
tamente seduzidos pelo absoluto, para que os eleitos possam
conquistar a sua relação mais primitiva: a relação com o trans-
cendente. Esse risco, que o indivíduo só encontra fora do
geral, visa, entre outras coisas, a aproximação ou o retorno
àquilo que Kierkegaard chama a primitividade do indivíduo.
Podemos caracterizar essa primitividade, simplesmente, como
a “possibilidade de espírito”, e que implica a possibilidade de
ser afetado, a possibilidade de o eu agir de um determinado
modo irredutivelmente. Referida primitividade é o objetivo
fundamental do erotismo no cultivo das paixões e das angús-
tias, lançando a razão para além do limite finito e projetando-
se nesse absoluto pressentido e descoberto na relação erótica.
Importa notar que a perda ou a renúncia ética, quando do
início desse movimento, significa o retorno em direção a uma
singularidade que sufoca o geral. Essa associação entre o estético
e o religioso, do ponto de vista da subjetividade e da singula-
ridade, faz parte da erótica-pedagógica que Deus – o grande
sedutor – ensina às almas pias:

Assim como o homem religioso, o sedutor esteta [esthéticien]


criou as contradições mais intensas nele e entorno dele; ele con-
duz aquele que ele ama a lançar a razão para além do limite
[par-dessus bord]: e a apreender o movimento do infinito como
Deus ensinou à alma religiosa. Deus é o mais profundo dos

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sedutores. E o método do esteta [esthéticien], como aquele do
filósofo religioso, como aquele do próprio Deus, deve ser indi-
reto, de maneira que aquele que o desenvolve se faça por inicia-
tiva do discípulo [élève] – se faça no interior e em liberdade.
Deus se revela por sua invisibilidade como o sedutor envolven-
do Cordélia com laços invisíveis, sem nada afirmar, inicialmen-
te, de seu amor (WAHL, 1998, p. 29-30).

A descrição de Jean Wahl (1998), ao aproximar a sedu-


ção humana àquela divina, centra-se nos “laços invisíveis”, nas
teias produzidas pela própria sedução, sem afirmar o seu amor.
Ou seja, a promessa e os próprios laços entre a sedução e o
sagrado são o continuum, por meio do qual o itinerário se
mantém. Esse movimento é incompatível com a esfera ética.
Por pura incompatibilidade e jamais pela incapacidade, o mo-
vimento da sedução absoluta exige a suspensão da esfera ética.
A suspensão da esfera ética, suspensão teleológica – é
bom lembrar –, é requerida para o bem da própria ética, para
que ela não encalhe, à medida que a esfera ética e o sagrado são
elementos heterogêneos. Essa heterogeneidade implica uma
relação com a temporalidade radicalmente distinta para a ética
e para o sagrado. Sinteticamente, podemos resumir os três es-
tádios propostos por Kierkegaard, segundo a relação que o in-
divíduo mantém com o tempo: o esteta é descrito como aque-
le que vive no instante, ético é aquele que vive na continuidade
temporal, e religioso é aquele indivíduo que vive uma relação
com a eternidade.
Daí podemos inferir que a eternidade é concebida como
espécie de estado de plenitude fora do tempo. É evidente que,
para Kierkegaard, a relação com a eternidade, prefigurada no
homem religioso, ultrapassa – em profundidade – as outras
duas formas de relação que o indivíduo mantém com a tem-
poralidade. O instante e a duração temporal quase não pos-
suem importância sob o olhar da eternidade. Todavia, a tem-
poralidade é o ponto de encontro e a partir da qual podemos
colocar em relação o estádio estético com o estádio religioso.
Esse contato direto entre o primeiro e o terceiro estádios, supri-
mindo o segundo estádio, não anula a relação com a temporali-
dade, não torna o tempo homogêneo. Com efeito, o instante
e a eternidade se distinguem da continuidade temporal à medi-
da que ambos – instante e eternidade – não implicam uma des-
continuidade fundamental, mas uma continuidade essencial:

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Encontramo-nos, portanto, face às duas esferas extremas, a es-
tética e a religiosa. É preciso acreditar que existem comunica-
ções muito profundas entre elas, visto que Kierkegaard passa de
uma a outra, como tinha feito, alhures, Pascal, quando ele vai
do divertimento ao diálogo com Deus. Não é menos verdade
que essas esferas sejam muito diferentes; à medida que o instan-
te que se passa no estético é muito diferente do instante que é
reencontrado no tempo e na eternidade. Esses dois instantes
não coincidem de modo nenhum. E é esse o desespero que nas-
ce do primeiro, que faz passar à esperança do segundo.
Poderíamos construir, como o quer Kierkegaard, uma escada
desses três tempos? Sem dúvida um hegeliano seria tentado
mostrar no terceiro uma síntese do primeiro e do segundo; mas
isso não seria exato. É preciso passar, sem hegelianismo, do
tempo como fluidez [fluidité] ao tempo como intersecção [in-
tersection] do presente e da eternidade, sem passar pelo tempo
como consistência [consistance] (WAHL, 1998, p. 271).

Ao contrário da continuidade temporal da ética que


perpassa horizontalmente a ação humana, o instante e a eterni-
dade são relações descontínuas no tempo e perpassam, verti-
calmente, a ação individual. Nesse sentido, estamos diante de
uma evidência histórico-existencial do “eu”, à medida que a
temporalidade implica a eternidade (do estético) e a temporali-
dade finita (do religioso). Essa ideia do tempo atravessado pela
eternidade aplica-se, igualmente, ao instante, na medida em que
a noção de instante pode ser concebida como “tempo-agora”
ou “tempo-presente”. Esse instante, caracterizado como áto-
mo da eternidade, representa o modelo do tempo messiânico
– uma forma de tempo descontínuo – em oposição ao tempo
homogêneo e vazio que abre a pequena porta pela qual o Mes-
sias pode entrar (BENSUSSAN, 2009, p. 29).
Notamos, aqui, uma mudança crucial no sentido do
tempo. Após essa clivagem do tempo no temporal, o instante,
que até então era vivido como dispersão pelo esteta, transfor-
ma-se em tempo operativo, no mesmo sentido que o kairos
paulino, ou seja, um tempo qualificado, pleno, decisivo, por
meio do qual podemos encarar o desfecho das aporias. Trans-
mutando a concepção estética do instante em instante decisivo,
por meio das malhas invisíveis da sedução absoluta, o instante

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passa a representar a tradução temporal da angústia. Quando
o instante ultrapassa o estético (sensível, finito) e atinge o reli-
gioso (imutável, eterno), torna-se o tempo da plenitude, onde
se cruza e expressa a presença da infinitude na alma, como
ponto de contato entre o eterno e o temporal, como afirma
Jean Wahl (1998, p. 59-60), subscrevendo a concepção
kierkegaardiana do instante:

[O instante] não é uma simples determinação do tempo, visto


que a essência do tempo é passar. Ele é o lugar da tensão terrível
entre o eterno e o temporal, lugar que é um vazio [néant]. Ele é
a expressão do paradoxo que consiste naquilo que o eterno nasce.
Nada [Rien], portanto, de mais perturbador que o pensamento
do instante; é a contradição mais terrível. O instante é o tempo
tocado pela eternidade; melhor, ele é um átomo da eternidade.

O primeiro nível do instante pertence ao estádio estéti-


co: aí onde ele é angústia, desejo de absoluto, descontinuidade
e possibilidade. O instante, tal como retomado pelo estádio
religioso, adquire uma verticalidade mais evidente ainda, visto
que ele se torna intrusão do eterno no temporal. O mesmo
termo, que serve aos dois estádios, mesmo se ele se define se-
gundo níveis diferentes, demonstra a proximidade entre esses
dois estádios. Isso nos permite compreender que não existe
nada que possa ser feito para completar o salto entre o estético
e o religioso. Nada impede que o sedutor possa se transformar
no cavaleiro da fé, sem se ligar à ética, sem tornar-se o esposo
que o geral ou a norma espera dele.

4. SEDUÇÃO DO TRANSCENDENTE,
SACRIFÍCIO DO IMANENTE
O resultado preliminar do que foi discutido até aqui
indica, claramente, que a passagem do estético ao religioso
não ocorre dialeticamente, seguindo a lógica da razão natural,
mas paradoxalmente. Essa passagem é paradoxal porque ela se

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expressa por meio de uma descontinuidade essencial. É um
salto realizado no instante, a partir e para o absoluto, entrevisto
no estádio estético: o absoluto em Deus. No entanto, essa
passagem do imanente (estético) para o transcendente (reli-
gioso), além da suspensão da esfera ética, exige um sacrifício3.
O tema do sacrifício tanto é objeto de discussão da obra Temor
e tremor, onde Kierkegaard apresenta o “sacrifício” de Abraão,
como o é da obra A repetição, onde o sacrifício da moça deve
iniciar uma passagem patética em direção ao transcendente.
O sacrifício da moça, na segunda obra, é realizado em
virtude de uma resignação infinita, uma resignação ao impos-
sível (ao absurdo), à medida que deseja renunciar (sacrificar) o
desejo, o erotismo, com o objetivo de expressar espiritual-
mente esse desejo. Diferentemente da resignação de Abraão,
que é resignação infinita pelo infinito, a resignação da jovem é
pelo finito, para fazer cessar seu movimento em direção ao
exterior e para retornar em direção ao interior, para conservar
em si como um segredo. Esse sacrifício do erotismo constitui,
em certo sentido, uma forma de absolutização da relação. Ou
seja, ao renunciar infinitamente pelo infinito, ela renuncia em
nome da interiorização. Nesse processo de renúncia, a relação
adquire uma forma espiritualizada que não condiz com o pro-
cesso de sedução pelo infinito, pois o polo da sua relação é
apenas estético e a jovem acaba transformando a relação finita
em alguma coisa de sagrada, de intocável.
Na sedução transcendente, o erotismo particular, apre-
sentado em A repetição, resulta em sacrifício imanente que está
presente desde o início da relação. Entre a moça e o rapaz, o
sacrifício é entrevisto e expresso na melancolia do rapaz que,
desde o começo, se projetou ao seu fim, ao sacrificar a possibi-
lidade de uma relação ética, que seria consumada no casamento.

3
Sacrifício, em boa medida, faz sentido no estádio religioso, em que o sacrifício é o passo seguinte após
o abandono, ao menos se pensamos na mise-en-scène de Abraão, descrita poeticamente em Temor
e tremor. Sacrifício, de modo geral, tanto na tradição vetero quanto neo testamentária, é descrito
como uma “realidade” antiética, portanto, anti-humana. Na tradição judaica (AT), o sacrifício
das primícias (animais, frutas, legumes...) era permitido, bem como era questionável o sacrifício
humano, como procura descrever essa “lição divina”, por meio do sacrifício de Isaac. Na tradição
cristã (NT), o próprio Cristo é muito claro quanto à condenação do sacrifício de vítimas humanas:
“Quero a misericórdia e não o sacrifício” (Mt 9.13).

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O núcleo religioso que caracteriza o erotismo estético se afir-
ma nesse sacrifício. E é por meio desse núcleo que é dada a
possibilidade da passagem do estético ao religioso. Podemos
inferir essa possibilidade, visto que ela aparece na visão quase
instrumental que Constantin Constantius, o narrador, possui
dessa relação, cujo intérprete é ele mesmo. Ele diz da moça
que ela não é mais a amada, mas apenas a ocasião para que o
poético possa despertar no rapaz e assim lhe permitir aceder ao
estádio estético. Nesse domínio, o erotismo se expressa dei-
xando entrever uma dimensão que indica a sua sentença de
morte. Essa ideia de sacrifício deixa subentendido que, como
ocasião do despertar poético, a moça torna-se, em um segundo
momento, a isca (o atrativo) do religioso, e é em vista do reli-
gioso que ela é sacrificada, conforme o personagem-intérprete
escreve:

A moça, mais uma vez, não tem nenhuma realidade, mas ela é
o reflexo dos movimentos que animam o rapaz; assim como sua
excitação. A moça ganha uma prodigiosa significação, ela não
poderia jamais esquecer; mas, esta significação, ela não a tem
dela mesma, mas de sua relação com ele. Ela está, por assim
dizer, na fronteira do ser essencial do rapaz; mas tal relação não
é erótica. Religiosamente falando, poder ia-se dizer que tudo se
passa como se o próprio Deus se servisse dessa moça para torná-
lo cativo; quanto à moça, ela não tem nenhuma realidade, mas
ela é como aquelas iscas artificiais que se colocam em um anzol
(KIERKEGAARD, 1990, p. 129).

A construção literária de um personagem-intérprete da


estatura de Constantin Constantius permite a Kierkegaard fa-
lar de uma coisa séria, que é a relação do homem com Deus,
de um modo divertido. Afinal de contas, existe uma boa dose
de ironia implicada no fato de comparar Deus a um pescador,
a moça a uma isca e o rapaz a uma bebida. O fato é que encon-
tramos nessa passagem uma antecipação da ideia da retomada,
seja nesse renascimento ou nessa segunda potência da consciên-
cia, que pode advir em virtude da transcendência. Em ambas
as relações toponímicas e modelares que apresentamos aqui

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(os três modos de relação), o elemento unificador sob a qual
podemos entendê-las é o itinerarium mentis Deum. As relações
se iniciam, mediante sedução, e são vistas como ecos da relação
absoluta, do próprio Deus. Ao sacrificar a primeira forma de
sedução (estética), o sedutor acaba sucumbindo àquela do
absoluto, entrevisto, planejada pelo próprio autor da sedução
mais perfeita e transcendente. Por sua renúncia absurda e in-
compreensível, que permite a passagem da sedução estética à
sedução sagrada, o sedutor imortaliza um espaço vazio de seu
conteúdo – o espaço de pensamento –, que para ele é sagrado.
O sedutor vai além, imolando a si mesmo em toda a sua liber-
dade, aos olhos do geral, na esperança de uma retomada, de
um renascimento, sob o olhar do sedutor divino.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse caminho para o absoluto, onde a iniciativa é sem-
pre da divindade, Kierkegaard interpõe entre a sedução da
amada pelo amado, por meio do erotismo, um sedutor capaz
de seduzir o poeta que pressente o religioso, levando-o à renún-
cia da esfera ética, a suspensão da norma. Em outras palavras,
o espaço sagrado que o poeta criou, por meio do sacrifício,
torna-se uma espécie de estrutura topológico-existencial que
permite existir fora de toda pertença humana (campo da éti-
ca), relacionando como um ser de exceção com o geral. Esse
espaço indica a possibilidade de retomar ao ponto de uma jun-
ção possível entre o imanente e o transcendente, entre a hori-
zontalidade finita e a verticalidade absoluta, ponto de retomada
da primitividade do eu-personagem e do eu-leitor-ouvinte.
No itinerário rumo ao absoluto, essas obras literárias re-
velam que a exceção é o estado que caracteriza o sedutor-poeta
que, ressignifica a sua sedução, ganhando um eco religioso e se
colocando a si mesmo no lugar de encontro entre o estético e o
religioso. Na relação de sedução que ele persegue para a qual
ele se sacrifica, o poeta do absoluto se constitui, verdadeira-
mente, num espaço sagrado. Ele cria um espaço onde ele pode
seduzir e ser seduzido. Esse espaço ou essa exceção particular

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que encarna o esteta representa o lugar possível ou a virtuali-
dade de uma passagem em direção à exceção religiosa, por
meio da qual a passagem entre estética e religião é despertada
a partir de um conflito interior, de uma ruptura sacrificial que
abre a via para uma retomada, para um renascimento radical.
Se essa repetição, se esse renascimento advém ou não,
pouco importa. A figura que o sedutor encarna e representa,
no interior de uma preocupação estética, é a verdadeira exi-
gência de absoluto, transportando com ela um eco do religioso
que permanece como possibilidade e encontro da primitivida-
de. Esse itinerário, essa busca do sagrado, como dissemos, per-
meia toda a obra do pensador dinamarquês e aqui procuramos
mostrar como nos chamados escritos estéticos esse percurso é
desenvolvido, por meio dos pseudônimos, para conduzir o in-
divíduo à sua primitividade, levando-o ao encontro do abso-
luto, mediante uma sedução infinita.

SEDUCTION TRANSCENDENT AND


THE SACRIFICE OF THE IMMANENT
IN KIERKEGAARD

ABSTRACT

All of Kierkegaard´s works can be considered a journey to God. In this


paper, we will intend to show this itinerary through the Danish thinker´s
aesthetic writings. In addition, we will intend to interpret the figure of the
seducer, representative figure of the aesthetic stage that allows Kierkegaard
makes the transition to the religious stage without going to the ethical
stage. The element that allows this approximation between aesthetic stage
and religious is the absolute, or rather, the search for the absolute. This
search takes an important place in the Kierkegaard´s literary works because
it offers to the reader an existential structure of each single individual.

KEYWORDS

Absolute; aesthetic; individual; journey; seduction.

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REFERÊNCIAS
BATAILLE, G. L’érotisme. Paris: Éditions de Minuit, 1972.
BENSUSSAN, G. O tempo messiânico: tempo histórico e
tempo vivido. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2009.
DERRIDA, J. Donner la mort. Paris: Galilée, 1999.
KIERKEGAARD, S. Le journal du séducteur. In: ___.
L’alternative. Paris: Éditions de l’Orante, 1970. v. 3,
p. 283-414.
_______. Diário de um sedutor; Temor e tremor; O desespero
humano. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
_______. La reprise. Paris: GF Flammarion, 1990.
_______. In vino veritas. Lisboa: Antígona, 2005.
VALLS, A. L. M. Os sedutores românticos: a força e o
método. In: RIBEIRO, R. J. (Org.). A sedução e suas máscaras.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 115-128.
WAHL, J. Kierkegaard: l’Un devant l’Outre. Paris: Hachette,
1998.

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UM ESTUDO SOBRE A CONVERSÃO
RELIGIOSA NO PROTESTANTISMO
HISTÓRICO E NA PSICOLOGIA
SOCIAL DA RELIGIÃO

Antônio Máspoli de Araújo Gomes


Pós-doutor em História das Ideias pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo
(USP) e doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). Professor
Titular na Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM).
E-mail: [email protected]

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RESUMO

O Brasil vive uma efervescência religiosa sem precedentes. O crescimento


das Igrejas evangélicas, e mesmo daqueles que se declaram sem religião,
atesta esse fato pelas pesquisas realizadas pelos últimos dois censos, o de
2000 e o de 2010. Tradicionalmente, o protestantismo alimenta seu cres-
cimento por meio da conversão de fiéis. A revisão da literatura esbarrou
na falta de textos sobre o tema. A fim de suprir essa lacuna, o autor lançou
mão de textos em francês e inglês sobre o assunto, todavia também bas-
tante rarefeitos. A revisão da literatura estabeleceu-se ao redor do tema da
conversão religiosa por meio de uma pesquisa realizada entre convertidos
ao protestantismo histórico e pentecostal no Brasil. O tema da conver-
são religiosa é complexo e muito relevante atualmente, porque está ligado
ao renascimento da religião como fenômeno social de massa, produzindo
a revitalização religiosa contemporânea das grandes tradições religiosas.
Trata-se de um fenômeno bastante comum e intenso no Brasil contem-
porâneo, como bem demonstrou o censo religioso de 2000. Esta pesquisa
busca analisar o termo conversão no protestantismo histórico e na psico-
logia social da religião.

PALAVRAS-CHAVE

Conversão; protestantismo; psicologia social da religião; psicologia da con-


versão; religião.

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1. INTRODUÇÃO
O tema da conversão vem despertando o interesse de
pesquisadores no Brasil. Entretanto, as pesquisas sobre a con-
versão e adesão no protestantismo brasileiro são escassas. Des-
taca-se aqui o trabalho do pesquisador Edênio Vale (2002)
“Conversão: da noção teórica ao instrumento de pesquisa” e o
artigo “Conversão ao Pentecostalismo e alterações cognitivas e
de identidade”, de Stadtler (2002). Outra pesquisa importan-
te é a realizada por Rafael Shoji (2002), “Uma perspectiva
analítica para os convertidos ao Budismo japonês no Brasil”.

O Brasil atravessa uma onda conversionista sem precedentes. O


brasileiro médio nunca se distinguiu pela sua adesão a essa ou
aquela igreja. Seu comportamento religioso sempre foi de tipo
de “bricollage”. A identidade religiosa do brasileiro costuma ser
um mix por ele mesmo construído com materiais retirados de
procedências bem diferenciadas, mas que para ele não se apre-
sentam como contraditórias. A razão de tal fato talvez esteja no
caráter majoritariamente cultural de um catolicismo popular
tecido com materiais de várias culturas de base. Com a entrada
das religiões protestantes, no século XIX, criaram-se parâme-
tros e exigências de pertença mais definidos. Também dentro
da religião dominante – o catolicismo – deram-se movimentos
pastorais que levaram as elites religiosas deste agrupamento ma-
joritário a uma maior consciência de pertença e, por vezes, a
experiências diretas de conversão em massa. Manteve-se, no en-
tanto, a tendência geral à bricolagem religiosa, que dá margem
a uma organização mais livre da identidade religiosa pessoal
(VALE, 2002, p. 6).

A revisão da literatura esbarrou na falta de textos sobre


o tema. A fim de suprir essa lacuna, o autor lançou mão de
textos em francês e inglês sobre o assunto, mas também bas-
tante rarefeitos. A revisão da literatura estabeleceu-se ao redor
do tema da conversão religiosa por meio de uma pesquisa rea-
lizada entre convertidos ao protestantismo histórico e pentecostal
no Brasil. O tema da conversão religiosa é complexo e muito
relevante atualmente, porque está ligado ao renascimento da
religião como fenômeno social de massa, produzindo a revitali-
zação religiosa contemporânea das grandes tradições religiosas.

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Trata-se de um fenômeno bastante comum e intenso no Brasil
contemporâneo, como bem demonstrou o censo religioso de
2000.
O renascimento do tema está ligado à efervescência reli-
giosa e espiritual que marcou a segunda metade do século XX
e o início do século XXI, criando a necessidade de reflexão
sobre a conversão e o espaço próprio para as pesquisas, nesse
campo, em ciências humanas e sociais.
A conversão tem uma história profunda, especialmente
porque ela precede o aparecimento de todas as grandes tradi-
ções religiosas, em especial as monoteístas, e fornece um dos
modos de expressão do encontro entre o homem e a divindade,
seja na experiência individual, seja na étnica ou na coletiva.

A riqueza do tema é também a sua dificuldade por tão variados


ângulos de estudo que podem iluminar o fenômeno. A revisão
da literatura que, em ciências sociais, trata do fenômeno da con-
versão, destaca a falta de consenso sobre uma definição teórica
do conceito e metodologia para seu estudo. Questionando a
especificidade do conceito de conversão em relação ao conceito
mais amplo de mudança social, alguns negam a mesma existência
do tema da conversão como um objeto científico. A heterogenei-
dade de abordagens é, em parte, devida à diversidade de discipli-
nas que abordaram o assunto: historiadores, teólogos, sociólo-
gos, psicólogos, antropólogos, cada um lançou seu próprio olhar
sobre o fenômeno da conversão (MOSSIÈRE, 2007, p. 2-3).

Essa pesquisa busca analisar o termo conversão no pro-


testantismo histórico e na psicologia social da religião.

2. ORIGENS HISTÓRICO–SOCIAIS DO
PROTESTANTISMO BRASILEIRO
No segundo quartel do século XIX, no Brasil, começa-
vam a despertar os interesses econômicos e políticos da Europa
e dos Estados Unidos da América, ocasião em que este último
iniciou o envio sistemático de missionários protestantes para o
país. O protestantismo missionário, como se apresentava no
Brasil, quer fosse britânico, quer escocês ou norte-americano,

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era protestantismo ortodoxo, avivalista, conversionista, revi-
gorado pelo metodismo e pela ideologia das missões, confor-
me Antônio Gouvêa de Mendonça (1995, p. 71-79).

Para esse posicionamento dos primeiros psicólogos da religião,


contribuiu, sem dúvida, o fato de o Protestantismo norte-ame-
ricano estar passando, na virada do século XIX, por transforma-
ções culturais de peso. Verificava-se nos Estados Unidos uma
mudança econômica de grande porte. Era a fase inicial da urba-
nização que trazia, por sua vez, um questionamento às igrejas
constituídas e gerava um desprendimento das pessoas em rela-
ção às suas práticas e doutrinas. Daí o surgimento de um sem
número de “seitas”, marcadas pela convivência intensa dos
membros, pelo ardor missionário e pelo sentido de um toque
direto de Deus ou do sagrado. É neste instante cultural que tem
início a atração ocidental mais explícita pelas mensagens que
vinham, com cada vez maior intensidade e pregnância, do
Oriente (VALE, 2002, p. 3).

O protestantismo brasileiro teve suas origens nos inte-


resses comerciais de ingleses e norte-americanos, como ainda
no calvinismo missionário pietista norte-americano do século
XIX (MACIEL, 1972; MENDONÇA, 1995). Já em 1832, a
recém-criada Sociedade Americana de Amigos dos Marítimos
(American Seamen’s Friend Society), em virtude do grande
número de navios americanos que aportava no Rio de Janeiro,
decidira que aquele porto necessitava de um capelão protes-
tante (VIEIRA, 1980).
Os americanos e, em especial, os protestantes norte-ame-
ricanos eram representados no Brasil como pregoeiros do pro-
gresso científico e tecnológico, os heróis civilizadores (BASTOS,
1938). Os missionários reforçaram essa imagem e a veicularam
em alguns meios intelectuais e políticos brasileiros (KIDDER;
FLETCHER, 1941; VIEIRA, 1980; GOMES, 2000). O Cor-
reio Mercantil de 17 de maio de 1855 publica uma notícia
importante sobre uma exposição industrial realizada por
Fletcher, missionário presbiteriano, no Rio de Janeiro. A
exposição industrial, aberta ao público por dois dias, foi um
sucesso. A Sociedade de Estatística reuniu-se no museu durante
o evento e seu presidente, o visconde de Itaboraí, inspetor-
geral do recém-estabelecido Departamento de Educação

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Primária e Secundária, pediu a Fletcher para falar na reunião.
Fletcher, nessa ocasião, ventilou seus planos e suas esperanças
de ver o Brasil e os Estados Unidos mais intimamente unidos.
Nas próximas linhas, serão esboçadas algumas imagens
do protestantismo brasileiro, no panorama das abordagens de
seus principais autores. As publicações sobre o protestantismo
brasileiro classificam-se até aqui em estudos de caráter históri-
co e estudos de caráter sociológico.

3. ESTUDOS DE CARÁTER HISTÓRICO


SOBRE O PROTESTANTISMO
BRASILEIRO
Léonard (1963) teceu algumas considerações sobre as
relações entre protestantismo norte-americano e classe social
na realidade brasileira. No entanto, sua obra não privilegia os
aspectos sociológicos e antropológicos dessa questão. Ela con-
tinua sendo uma referência obrigatória a todos aqueles que se
iniciam no estudo do protestantismo brasileiro.
A história de parte do protestantismo reformado, da
Igreja Presbiteriana, foi desenvolvida por Boanerges Ribeiro
(1973, 1979, 1981, 1987, 1991) em diferentes obras, nas
quais o autor aplica a teoria antropológica estruturalista de
Muller (1958), Os elementos basilares das organizações huma-
nas, e estabelece as relações entre a implantação da Igreja Pres-
biteriana e as condições sociais existentes nos sistemas jurídi-
cos, políticos e religiosos, bem como na cultura brasileira do
século XIX. Ele analisou ainda os processos culturais que
acompanharam a implantação do protestantismo no Brasil,
destacando a contribuição protestante na mudança do sistema
religioso, de religião oficial para liberdade de culto; mudança
no sistema de ensino e presença de missionários, injetando a
pedagogia norte-americana, que proporcionava mais liberdade
nas escolas por suas ideias, consideradas liberais para a época.
Em 1959, The United Presbyterian Centenary Commis-
sion publicou Presbiterianismo no Brasil, 1859-1959; Hahn
(1989) escreveu a História do culto protestante no Brasil; Matos
(2004) publicou Os pioneiros presbiterianos do Brasil, 1859-1900.

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4. ESTUDOS DE CARÁTER
SOCIOLÓGICO
Vieira (1980) esclareceu a questão relacionada com a
Igreja Católica, a maçonaria e o protestantismo no Brasil, de-
monstrando que houve de fato certa cooperação entre elementos
liberais maçônicos, republicanos, protestantes norte-americanos
e outros grupos minoritários, contra a hegemonia religiosa da
Igreja Católica Apostólica Romana no Brasil até a proclamação
da República. Maciel (1972) escreveu sua tese de doutorado
sobre a importação do pietismo protestante para o Brasil por
meios das denominações batistas, metodistas e presbiterianas
e as relações dessas denominações com a ideologia dominante.
Mendonça (1995), utilizando a tipologia de Weber
(1994, 2004), escreveu uma história social do protestantismo
e demonstrou três proposições básicas sobre a implantação do
protestantismo de feição presbiteriana no Brasil. A primeira
afirma que a inserção do protestantismo brasileiro ocorreu em
um momento histórico propício, no qual a mensagem protes-
tante representava os anseios liberais – progressistas para a socie-
dade de então – de parte significativa das camadas sociais. A
segunda relaciona protestantismo e classe social ao demonstrar
que a aceitação da mensagem protestante ocorreu na camada
“livre e pobre” da população rural marginalizada e descom-
promissada com os problemas sociais do país. A terceira tese
do autor relaciona o percurso do movimento protestante com
o período da chamada cultura cafeeira. Isto é, o crescimento
da Igreja Protestante teria seguido a trilha do surto do café,
especialmente no Sudeste. Além dessas contribuições,
Mendonça (1995) percebeu a identificação das representações
sociais do protestantismo brasileiro com a ideologia do protes-
tantismo de missões norte-americanas, a qual engendrou a difi-
culdade dessa ideologia de prosperar no Brasil, em virtude do
choque produzido com a ideologia ibérica e católica dominante.
Mendonça e Velásquez Filho (1990) analisaram as ori-
gens do protestantismo de procedência missionária no Brasil,
a partir das suas determinações teológicas e sócio-históricas de
origem norte-americana, como também concluíram que o
protestantismo, como força modernizadora liberal, durou rela-
tivamente pouco e cedeu lugar a um movimento religioso de

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caráter fundamentalista e conservador, com implicações profun-
das sobre a ética e o comportamento do indivíduo e da comu-
nidade, tal como a rejeição dos valores e da cultura nativa co-
mo forma de adesão à pregação dos missionários presbiterianos.
Boanerges Ribeiro (1981) e Antônio Gouvêa Mendonça
(1995) observaram que o protestantismo brasileiro, em suas
origens históricas, vem de duas matrizes: 1. o protestantismo
de imigração, formado por imigrantes alemães e ingleses de
confissões luterana e anglicana, especialmente nos Estados do
Rio Grande do Sul e Santa Catarina; 2. o protestantismo de
matriz puritana, de missões, de natureza conversionista,
abrangendo presbiterianos, metodistas, congregacionais, ba-
tistas etc. Esses autores acrescentam outra vertente, ainda não
pesquisada no Brasil, e que se encontra de igual modo na gê-
nese do protestantismo brasileiro: é o protestantismo de exí-
lio, nos quais se incluem os presbiterianos sulistas norte-ame-
ricanos, que vieram para Campinas, Santa Bárbara do Oeste e
Americana, após a guerra da secessão.
Boanerges Ribeiro e Antônio Gouvêa Mendonça consi-
deram como constituintes do protestantismo brasileiro as de-
nominações formadas pelo chamado protestantismo históri-
co: luteranos, presbiterianos, anglicanos, congregacionais etc.
É necessário considerar, todavia, que a partir do primeiro quar-
tel do século XX, esse protestantismo ganhou novos atores,
com o advento do pentecostalismo, a versão moderna e emo-
cional do protestantismo. Já o neopentecostalismo surgiu na
segunda metade do século XX, como dissidência do primeiro.
À semelhança de Pierre Bastian (1994) e Willian Read (1967),
esses autores consideram que a expressão protestantismo brasi-
leiro deve ser bastante elástica, para abarcar os pentecostais e os
neopentecostais, posto que consideram todos oriundos do mes-
mo útero gerador: o protestantismo puritano norte-americano.
Esse protestantismo de raiz missionária norte-america-
na é hegemônico na constituição do protestantismo brasileiro.
E, em solo pátrio, produziu uma religião formal, legalista, tris-
tonha, depressiva, cuja maior característica é a importação de
paradigmas comportamentais do modelo cultural dos Estados
Unidos. The way of life torna-se o paradigma do ideal a ser
atingido pelo crente (como é reconhecido o protestante no
Brasil) e produz como consequência aqueles comportamentos

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estereotipados, como a ética da via negativa, quando o crente
se torna conhecido exatamente pela lista de coisas que ele não
faz: não bebe, não fuma, não dança, não joga etc. E o ódio e
rejeição, quase que absoluta, a todas as expressões da cultura
brasileira, como observado por Antônio Mendonça e Prócoro
Velásquez Filho (1990). E a total condenação de toda e qual-
quer expressão corporal nos cultos e fora desses e, particular-
mente, o anátema daqueles aspectos ligados ao corpo e à se-
xualidade brasileira, como a sensualidade, o erotismo, o
chamego e o xodó.
O protestantismo brasileiro tem três grandes afluentes:
o protestantismo de exílio, cuja categoria inclui os congrega-
cionais e os presbiterianos confederados de Campinas, Santa
Bárbara do Oeste e Americana, no Estado de São Paulo, todos
oriundos da derrota da Guerra da Secessão no sul dos Estados
Unidos; o protestantismo de imigração, com os luteranos
(PRIEN, 2001); e o protestantismo de missões, com os pres-
biterianos do norte dos Estados Unidos, os metodistas e os
batistas (REYLY, 1981; AZEVEDO, 1996).
A teoria das representações sociais, pela vertente de
Durkheim (1989) e Berger (1985), foi aplicada por Ramalho
(1976) e por Gomes (2000a, 2000b, 2003, 2006, 2008) no
estudo das representações sociais do protestantismo brasileiro.
Ramalho (1976) pesquisou as relações significativas en-
tre a prática ideológica mais abrangente do protestantismo de
missões norte-americanas no Brasil e a influência dessas, na
educação brasileira entre 1870 e 1940. Gomes (2000) pesqui-
sou a relação entre as imagens do protestantismo histórico e
suas representações, bem como a relação dessas imagens com
o ideal de progresso das elites paulistas da segunda metade do
século XIX. Ainda, Gomes (2000b) pesquisou como as repre-
sentações do protestantismo brasileiro do século XIX serviram
de atração simbólica para a formação da mentalidade empre-
sarial de São Paulo, entre 1870 e 1914. Em trabalho recente,
Gomes (2003) pesquisou as origens e as imagens do protes-
tantismo brasileiro do século XIX. Gomes (2008) também
pesquisou as representações do corpo e da sexualidade no pro-
testantismo brasileiro.
Após a análise da literatura existente sobre o protestan-
tismo como fenômeno do campo religioso brasileiro, registra-
se que os estudos sobre esse tema até o presente momento não

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consideraram as variáveis de caráter psicológico que podem
ser encontradas no comportamento e na experiência religiosa
desse movimento.

5. CRENÇAS SOBRE A CONVERSÃO NO


PROTESTANTISMO
O termo grego conversão é metanoia ou metanoien, tra-
duzido por “arrepender-se”, “mudar de ideia”, “mudar de sen-
timento”, “mudar o modo de pensar e sentir” (MOULTON,
1977, p. 266). Etimologicamente, a raiz latina da palavra
dá-lhe o sentido de “mudança, transformação. Conversio.
Mutatio, onia. Mudança de costumes para o bem, voltar-se
para” (COHEN, 1967, p. 329-385). Esse termo comporta
uma ideia de transformação, tanto no nível das crenças como
no nível das práticas. A dimensão de mudança de percepção
do mundo representa de resto o único consenso que os inves-
tigadores em ciências sociais estabelecem em torno do concei-
to. A conversão evoca “mudança de coração”, “um processo
de mudança do senso de realidade”, ou ainda, “um desloca-
mento da consciência em seu sentido aterrador”.
No fim da Antiguidade romana, converter-se significava
mudar a forma como se entende, se valoriza e se vive no mundo.
Tratava-se de um processo essencialmente cognitivo, especial-
mente levando a uma atitude de contemplação e misticismo.
Mais tarde, no mundo bíblico do antigo Israel e do judaísmo,
o ato da conversão adquiriu um novo significado e marcou a
passagem de uma existência sem Deus a uma vida de fé e fi-
delidade a Deus. Essa experiência conduz ao arrependimento
e reconciliação do indivíduo, bem como a mudança no seu
estilo de vida. As visões clássicas e bíblicas supõem que Deus é
a fonte de mudança e desenvolvimento e que a conversão é
mudança na forma como o indivíduo compreende e valoriza
Deus e o seu mundo, vivendo de acordo com sua vontade
(FINN, 1997). Essa abordagem, contudo, é claramente in-
fluenciada pelo dogma cristão e não poderia explicar os fenô-
menos atuais de conversão religiosa dita mais exótica, como a
reversão no islamismo ou mesmo a conversão ao budismo,

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bem como todas as crenças relacionadas com a “nebulosa mís-
tica esotérica” (CHAMPION, 1998). William James (1995,
p. 126), em sua clássica definição de conversão, relaciona a
conversão a uma ação da graça divina sobre o convertido:

Converter-se – escreve ele – regenerar-se, receber a graça, sentir


a religião, obter uma graça, são tantas outras expressões que
denotam o processo, gradual ou repentino, por cujo intermédio
um eu até então dividido, e conscientemente errado, inferior e
infeliz, se torna unificado e conscientemente certo, superior e
feliz, em consequência de seu domínio mais firme das realida-
des religiosas. Isto, pelo menos, é o que significa a conversão em
termos gerais, quer acreditemos quer não, que se faz mister uma
operação divina direta para produzir uma mudança natural des-
sa ordem.

O termo conversão é utilizado também para caracterizar


a entrada em uma nova religião, capaz de transformar a cos-
movisão do sujeito, mudar a identidade do converso e alterar
sua relação com a realidade e o mundo. Entretanto, parece
que a grande mudança que ocorre na natureza do convertido
diz respeito às suas percepções de Deus, de si mesmo e do
mundo. Na verdade, o grau e o padrão de mudança de afilia-
ção religiosa estão sujeitos a debate entre os autores.

Alguns falam de uma transformação radical (NOCK, 1933),


ou mesmo uma ruptura no sentido de uma reorganização fun-
damental do sistema de sentidos do indivíduo (TRAVISANO
et al., 1970). Outros autores conceituam a conversão religiosa
como uma mudança de ideologia ou “o deslocamento de um
universo de discurso por outro ou, o predomínio de um universo
de discurso anteriormente periférico ao status de uma autoridade
primária” (NEVE, MACHALEK, 1984, p. 170), ou uma
“mudança de paradigma” (AUSTIN-BROOS, 2003; LACAR,
2001). Para muitos, a conversão constitui mais um desloca-
mento gradual de crenças (DOWNTON, 1980; LONG,
HADDEN, 1983; MORRISON, 1992; RICHARDSON,
1978; SUCHMAN, 1992) ou um processo múltiplo, cumula-
tivo, que consiste em diferentes fases (BALCH, 1980; BALCH,
TAYLOR, 1977; GREIL, RUDY, 1984; RAMBO, 1993).
Finalmente, há quem a considere de maneira mais dinâmica

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como uma negociação permanente entre um estado anterior e
um estado posterior (BANKSTON et al., 1981; HORTON,
1975). No entanto, a maioria dos pesquisadores reconhece que
se trata de um ato eminentemente social que altera todas as re-
lações sociais e influencia a relação com a identidade, a comu-
nidade, a etnia e estrutura social (BUCKSER, GLAZIER,
2003) (MOSSIÈRE, 2007, p. 7).

Recentemente, o termo adesão vem sendo utilizado em


oposição ao conceito de conversão. Assim, o ato de adesão
compreende qualquer forma de participação e assimilação em
um movimento religioso, sem alteração sistemática do estilo
de vida; ao contrário da conversão, que envolve mudança no
sistema de valores e visão de mundo. Em contraste, a conver-
são indica transição para uma identidade proscrita do univer-
so dos discursos anteriores da pessoa, “mudança que implica
uma consciência de que uma grande mudança aconteceu, que
o antigo estava errado e o novo é o certo” (NOCK, 1933, p.
6-7). Na conversão, a ideia de “consolidação”, que envolve a
adoção de um novo sistema de crenças ou de identidades,
combina duas visões do mundo anteriores, todavia contradi-
tórias, enquanto a conversão marca uma descontinuidade na
vida do convertido.
A religião do Velho Testamento desconhecia a noção de
conversão individual (GRONINGEN, 2003; Êxodo 24). A
religião do antigo Israel era coletiva (RAD, 1957). Existia, po-
rém, o sentido de arrependimento moral e emocional que po-
de ser inferido pelas palavras “Nacham”, “Nipphal” e “Shubh”
(Gen. 6:6; Gen. 6:7; Êx. 32:14; I Sm 15:11; GLASSER, 1992,
p. 55-78). A ideia de religião coletiva evoluiu com a Thorá
para uma concepção peculiar de religião étnica (FILORAMO;
PRANDI, 1999). O judeu nasce judeu, não precisa converter-
se ao judaísmo (COHREN, 2002).
No Novo Testamento, especialmente com o apóstolo
Paulo, o conceito de religião coletiva evoluiu para o de aliança
(Atos 2). O conceito de conversão toma forma na patrística, a
partir da experiência de Saulo na estrada de Damasco quando,
segundo a narrativa de Lucas, Jesus de Nazaré o transforma
em Paulo (Atos 9). Existem três palavras no Novo Testamento
que dão sustentação à doutrina da conversão; são elas: Metanoia,
Epistrophe, Metameleia (PEACE, 1999; II Tm 2:25; II Cor.

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7:10). Das três, a considerada a mais importante é Meta-
noia, que significa conhecer e mudar a mente a partir do co-
nhecimento adquirido (BERKHOF, 1976, p. 573-576): “Em
todos os seus aspectos metanoia inclui uma oposição conscien-
te a condição anterior”.
O conceito de conversão foi construído pouco a pouco.
Ganhou força na Patrística, com as Confissões de Santo
Agostinho, quando este narrou sua experiência de encontro
com Deus (AGOSTINHO, 1984), no século IV da era cristã,
ganhando contornos definitivos. As Confissões de Santo
Agostinho é que, no cristianismo, marcaram mais significati-
vamente a definição de “conversão”. O conceito é descrito co-
mo uma experiência espiritual e transcendente, mas também
altamente subjetiva e íntima. Nessa experiência, o sujeito,
ouvindo o chamado divino de forma subjetiva e pessoal, deixa
o mundo e volta-se para Deus. Dècobert (2001) observou que
a conversão ao cristianismo se expressa acima de tudo pela
narração. As primeiras mensagens sobre a conversão ao cristia-
nismo aparecem nas narrativas da Patrística; inscrevem-se na
literatura dos mártires cristãos e associam o fenômeno com a
paixão no sentido etimológico do termo, ou seja, uma expe-
riência ou mesmo um sofrimento profundo, uma identifica-
ção total com a vida e obra do Cristo.

A evolução do esquema narrativo da conversão segue, em certa


medida, o processo de difusão e institucionalização do cristianismo.
Os relatos são essencialmente testemunhos de um caminho para
o cristianismo, cujas “Confissões de Santo Agostinho” consti-
tuem o protótipo. Eles giram em torno do papel da fé, da intros-
pecção e do autocontrole. É com as primeiras tentativas de prose-
litismo que o estilo narrativo se desenvolve em torno de um
pecado original gradualmente assimilado a um estado de crise.
Ele traduz, então, uma ética da culpa (MOSSIÈRE, 2007, p. 5).

A Reforma e a Contrarreforma organizaram a conversão


na teologia sistemática. Considerada até aqui como um ato
sobrenatural de Deus, a conversão abre-se para dar lugar à
mudança de atitude do convertido diante de si mesmo e de
Deus (LUTERO, 2008, p. 175; CALVINO, 1967, p. 451).
O protestantismo considera a conversão a partir da ex-
periência do apóstolo Paulo no Caminho de Damasco (At. 9),
considerado o modelo arquetípico dessa experiência e, segun-

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do o modelo prefigurado por Santo Agostinho nas Confissões,
um fenômeno sobrenatural e transcendental.

Saulo, respirando ainda ameaças e morte contra os discípulos


do Senhor, dirigiu-se ao sumo sacerdote e lhe pediu cartas para
as sinagogas de Damasco, a fim de que, caso achasse alguns que
eram do Caminho, assim homens como mulheres, os levasse
presos para Jerusalém. Seguindo ele estrada fora, ao aproximar-
se de Damasco, subitamente uma luz do céu brilhou ao seu re-
dor, e, caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo,
Saulo, por que me persegues? Ele perguntou: Quem és tu,
Senhor? E a resposta foi: Eu sou Jesus, a quem tu persegues;
mas levanta-te e entra na cidade, onde te dirão o que te convém
fazer. Os seus companheiros de viagem pararam emudecidos,
ouvindo a voz, não vendo, contudo, ninguém. Então, se levantou
Saulo da terra e, abrindo os olhos, nada podia ver. E, guiando-o
pela mão, levaram-no para Damasco. Esteve três dias sem ver,
durante os quais nada comeu, nem bebeu (Atos 9:1-9).

Os estudos sobre a conversão desse ponto de vista, por-


tanto, não consideram os aspectos sociais e históricos que po-
dem se encontrar subjacentes às experiências da conversão.
O mundo globalizado impõe o que Berger (1985, 1997)
denominou religião de mercado. A religião de mercado impôs
novas nuanças e novos contornos à conversão. Os termos, co-
mo adesão religiosa, vêm sendo paulatinamente utilizados co-
mo sucedâneos da conversão, especialmente para se referir
àquelas experiências religiosas que não se enquadram no para-
digma cristão (PAIVA, 2004).
Seja, porém, adesão religiosa, seja conversão, esses ter-
mos aparecem associados ao trânsito religioso e à construção
da identidade do sujeito. O mercado religioso oferece diversas
opções para a construção de novas identidades àqueles sujeitos
cujas identidades se encontram em transição, mutação. A Re-
forma e a Contrarreforma sistematizaram a conversão na Teo-
logia Sistemática. Considerada até aqui como ato sobrenatural
de Deus, a conversão abre-se para dar lugar à mudança de
atitude do convertido diante de si mesmo e de Deus (LUTERO,
2008, p. 175):

Antes da sua conversão, Paulo, na verdade, falava com a mesma


voz e língua, mas sua voz e língua eram, então, blasfêmias. Por

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isso, não podia falar nada a não ser blasfêmias e abominações
contra Deus. Após sua conversão a sua carne, língua e voz eram
as mesmas de antes e, absolutamente, nada havia mudado, mas a
sua voz e língua já não falavam blasfêmias, mas palavras espirituais
que consistiam em ações de graças e louvor a Deus e que vinha da
fé e do Espírito Santo. “Se, portanto, ainda vivo na carne, não
vivo à base ou segundo a carne, mas pela fé no Filho de Deus”.

Calvino considerava a conversão como ato soberano de


Deus sobre a vontade humana. Ele incluiu, no termo conversão,
o novo nascimento, que consiste em todos os aspectos relacio-
nados com a ação de Deus e a resposta do homem a essa ação
de Deus no coração humano. O homem, sob a influência da
ação de Deus em sua vida, nasce de novo, nasce espiritualmente
e volta-se para Deus. Esse movimento é seguido de mudança de
atitude (CALVINO, 1967, p. 451, tradução do autor):

Primeiramente, ao denominarmos conversão de vida a Deus,


exigimos uma mudança, não somente das boas obras externas e
sim câmbio na alma propriamente dita; de tal maneira que,
despojados do velho homem, produza frutos dignos de
arrependimento.

No protestantismo histórico, a partir da tradição refor-


mada, diversos autores estudaram a doutrina da conversão e
formularam um modelo teológico para essa experiência reli-
giosa. De forma geral, a conversão no protestantismo apresen-
ta os seguintes elementos (HODGE, 1877; STRONG, 1907;
BERKOFF, 1976):
a) a conversão pressupõe uma ação sobrenatural de Deus;
principia com a iluminação, ou seja, a ação do Espírito
Santo no coração do homem, convencendo-o do peca-
do, da justiça e do juízo;
b) esse ato sobrenatural de Deus produz o novo nascimen-
to que, segundo a crença protestante, é o nascimento
espiritual para Deus por intermédio do Espírito Santo;
c) a conversão tem lugar na consciência humana; embora
carregada de elementos puramente subjetivos, a conver-
são envolve uma atitude consciente do homem;
d) a conversão marca uma tomada de atitude diante da vi-
da e de Deus; o homem consciente do seu pecado deixa
o mundo e volta-se para Deus;

162 CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE


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e) a conversão produz mudança instantânea de vida, uma
única vez, que não se repete ao longo da experiência
religiosa do sujeito;
f) a conversão geralmente nasce de uma crise aguda na
existência do sujeito, embora existam conversões sem
crise existencial.
No século XVIII (SPENER, 1985), o protestantismo
desenvolveu o pietismo, movimento que se alastrou pelas Igrejas
inglesas e norte-americanas. Esse movimento pregava a neces-
sidade de se viver um cristianismo simples e prático. Conver-
ter-se significa nascer de novo. Nichols (1954, p. 176-177),
descrevendo o ministério de Spener, afirma:

Pregava sermões de caráter prático, fervoroso, simples, evitando


aquele estilo rígido de oratória tão em moda na época. Insistia
na verdade da regeneração, aquela mudança produzida no cora-
ção do homem de fé, pelo Espírito de Deus; insistia no fato de
que ser nascido de Deus e levar uma vida de santidade e serviço,
era infinitamente mais importante do que ter pontos de vista
ortodoxos quanto à doutrina.

A partir do pietismo, sua matriz, o protestantismo brasi-


leiro, considera a conversão como atitude de rearmamento
moral (KREIDER, 1999; HELM, 1986; HAPPEL; WALTER,
1986; PEACE, 1999; LLOYD-JONES, 1974; PACKER,
1996). No entanto, o fenômeno da conversão, particularmen-
te no protestantismo de missões, manifesta aspectos bem mais
profundos e radicais do que se poderia esperar. Trata-se de
uma prática de fé, que tem seus fundamentos nas influências
pietistas e moralistas, que ressurge sempre entre os grupos pro-
testantes oriundos da Reforma religiosa do século XVI.

Em suma, sob este prisma, a conversão é o fim da alternação


(Berger), uma mudança brusca que implica na interrupção de
certas dúvidas e questionamentos. Constata-se que a profunda
comoção em que às vezes, a conversão se realiza, expressa o fim
de vários tipos de anseios, de dúvidas e angústias, a esperança de
que, daquele momento em diante, a mudança de rumo repre-
sente a solução dos problemas e uma maneira correta e adequa-
da de se interpretar a vida. É a aquisição de categorias que per-
mitam a segurança na conduta e nos procedimentos básicos
(MACIEL, 1988, p. 50).

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Nos termos em que a conversão é posta e vivenciada pelo
neoconverso, a mudança de atitude, diante da vida, pode signi-
ficar rompimento com a cultura de origem, simplificação dos
problemas da vida cotidiana com a perda gradativa de abertura
para o novo, fechamento para novos relacionamentos, especial-
mente para aqueles que signifiquem novos sistemas simbólicos
e religiosos, posto que todos os fatos devem estar crivados pelos
novos preceitos adquiridos pela nova cosmovisão religiosa.

6. A CONVERSÃO NA PSICOLOGIA
SOCIAL DA RELIGIÃO
A abordagem psicológica do fenômeno da conversão no
campo religioso protestante brasileiro pode lançar luz sobre a
dimensão psíquica dessa experiência. Nessa dimensão, podem
contribuir, para a compreensão dos afetos, as conexões deno-
tativas das cognições, os desejos, grande parte dos conflitos
pessoais, interpessoais e sociais, incluindo aqueles que têm co-
mo objeto a conversão em toda a sua dimensão: suas relações
com as entidades sagradas selvagens ou domesticadas, com os
estados alterados da consciência, com saúde, doença e cons-
trução da identidade do sujeito nesse processo.
O campo de interesse da Psicologia da Religião situa-se
naquele espaço humilde e limitado, destinado à ocorrência
dos fenômenos que acontecem no campo da consciência e do
inconsciente. Os acontecimentos cujas crenças os situam no
campo das parábolas em movimento, da supra-história, dos
milagres propriamente ditos, ou seja, dos fenômenos ditos so-
brenaturais e/ou transcendentes por imposição do método
científico, permanecem inacessíveis aos estudos psicológicos.
No evento da conversão, o que interessa à Psicologia da
Religião são aqueles acontecimentos sensoriais que se reportam
às sensações, emoções, sentimentos, contraintuição e as mudan-
ças decorrentes desses fenômenos no comportamento do sujeito.
Assim, os psicólogos (STARBUK, 1911; JAMES, 1902,
1910) estudaram o fenômeno da conversão, utilizando o mé-
todo indutivo, e procuraram compreender as diversas forças
psicológicas que operam na conversão. A conversão para esses
autores foi considerada um processo natural e tão sujeito às
leis ordinárias da psicologia como qualquer outro. Outro

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aspecto que convém considerar do ponto de vista puramente
psicológico, como apontou William James (1902), refere-se
ao fato de que a conversão é um comportamento humano que
ocorre no campo das religiões e que, por sua vez, pode acontecer
em espaços humanos estanhos às religiões, sendo, portanto,
um comportamento que, no mais das vezes, não carece de
eventos sobrenaturais e transcendentes para ocorrer.
William James, filósofo e psicólogo americano, é conhe-
cido como um dos fundadores do pragmatismo americano,
juntamente com Peace. Segundo James, a verdade deve ser
definida como aquilo que tem êxito e traz o novo ao mundo.
Essa é uma ideia que tem êxito, que se verifica e que é útil. O
mesmo princípio pragmático serve para o mundo moral: justo
é o que é vantajoso para a nossa conduta. É considerado um
dos pais da psicologia americana e seu livro Principles of Psycho-
logy, editado em 1890, é considerado um clássico. Em 1875,
criou o primeiro laboratório de psicologia em Harvard e teve,
dentre outros, Lee Thorndike e John Dewey como alunos.
Uma de suas teses centrais consiste em afirmar que a
consciência é uma função biológica, que ela é ação sobre e no
real, adaptação ativa a um meio que a influencia, mas que ela
também modela (pois é operante).
James (1995) combina nessa obra a fenomenologia e o
pragmatismo. A fenomenologia, definida como a ciência da
experiência da consciência, ou seja, o exame do processo dialé-
tico de constituição da consciência desde seu nível mais básico,
o sensível, até as formas mais elaboradas da consciência de si
que levariam finalmente à apreensão do absoluto. Isto é, o
conhecimento como uma volta às mesmas coisas, aos fenômenos,
aquilo que aparece à consciência, que se dá como seu objeto
intencional. James deixa de lado a religião institucional para
dedicar-se à compreensão da experiência religiosa individual.

A religião, por conseguinte, como agora lhes peço arbitraria-


mente que a aceitem, significará para nós os sentimentos, atos e
experiências de indivíduos em sua solidão, na medida em que se
sintam relacionados com o que quer que possam considerar o divi-
no (JAMES, 1995, p. 31, grifo nosso).

James (1995, p. 55, grifo nosso) opõe misticismo e ra-


cionalismo a fim de trazer a religião para o campo da filosofia.
Diz ele:

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A opinião oposta ao misticismo, em filosofia; é a qualificada, às
vezes, de racionalismo. O racionalismo incide em que todas as
nossas crenças devem finalmente encontrar para si mesmas bases
definíveis. Tais bases, para o racionalismo, consistem em quatro
coisas: 1. princípios abstratos, definidamente, constáveis; 2. fa-
tos de sensação definidos; 3. hipóteses definidas baseadas nesses
fatos; e 4. interferências definidas deduzidas logicamente umas
das outras. Impressões vagas de algo indefinido.

A concepção de James sobre a conversão aproxima-se da


concepção da teológica do novo nascimento, embora sua ên-
fase sobre esse fenômeno seja puramente psicológica.

Converter-se, regenerar-se, receber a graça, sentir a religião, ob-


ter uma certeza, são outras tantas expressões que denotam o
processo, gradual ou repentino, pôr cujo intermédio um eu até
então dividido e, conscientemente, errado, inferir e infeliz, se
torna iniciado e conscientemente certo, superior e feliz, em
consequência do seu domínio mais firme das realidades religio-
sas. Isso, pelo menos, é o que significa a conversão em termos
gerais, quer acreditemos, quer ou não, que se faz mister uma
operação divina direta parra produzir uma mudança natural
dessa ordem (JAMES, 1995, p. 126).

James acredita que o indivíduo possui um limiar da


consciência, abaixo do qual se encontra uma corrente podero-
sa de energia das mais diversas intensidade e qualidade. Dizer
que alguém se converteu é afirmar que a energia religiosa assu-
miu o controle da sua personalidade. A conversão, portanto,
associa-se à experiência mística.

Para James, a conversão se associa à experiência mística e tem os


mesmos componentes atribuídos a esse estado religioso que en-
volve a totalidade da pessoa. Pode irromper de modo súbito ou
gradual e se conectar, psicologicamente, a uma maior ou menor
intranquilidade ou inconsistência interna da pessoa. São vários
os seus componentes: ela, quando profunda, é de alguma ma-
neira “inefável”; é mais um estado de intuição da evidência tan-
gível de um objeto igualmente inefável do que o resultado de
uma penetração intelectual do mesmo. Não dura, além disso,

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muito longamente em seu estado de quase êxtase, mas é proces-
sada ao longo de um tempo psicológico que pode ser mais ou
menos longo. Finalmente, ela é uma experiência que não está
sob o controle voluntário do sujeito, uma vez que resume e re-
assume suas vivências pregressas e é, nesse sentido, mais passiva
que ativa. Para James, a conversão, em especial quando repen-
tina, implica quase necessariamente uma crise do universo inte-
rior do convertido, provocando por isso mudanças profundas
na personalidade do convertido e repercutindo em seu compor-
tamento exterior global. Parece que James a via como sendo
uma irrupção de energias e motivações que não tinham maiores
conexões com o meio cultural e as tensões da época. (VALE,
2002, p. 6).

Atualmente, os psicólogos da religião vêm incorporando


os aspectos imanentes ou secularizados da conversão em suas
análises (SUCHMAN, 1992; LANGEWIESCHE, 1998). A
conversão considerada desse ponto de vista deve incluir aque-
les fatores culturais que podem agir como meios de atração
simbólica sobre os convertidos, a força de coesão do grupo, e
mesmos as mudanças que aconteceram no mercado religioso
que podem interferir sobre a conversão e sobre o próprio con-
ceito. Observa-se ainda, nesses estudos, que tomam a conver-
são cristã como paradigma, que o conceito de conversão não
serve de modelo para religiões orientais, em que o termo ade-
são parece mais adequado para denominar a experiência de
afiliação religiosa (PAIVA, 1999). Uma tipologia da conver-
são deve considerar que há três tipos diferentes dessa experiên-
cia: 1. conversão que acontece no indivíduo que se converte de
uma religião para outra; 2. conversão que ocorre naquele su-
jeito que jamais pertenceu a uma tradição religiosa; 3. recon-
versão ou reversão (MOSSIÈRE, 2007, p. 10).
O estudo psicológico da conversão cristã apontou alguns
fatores comuns a esse evento: 1. crise existencial que antecede
essa experiência (JOHNSON, 1964); 2. ruptura com o estilo de
vida anterior à conversão (idem); 3. mudança radical na cos-
movisão e mesmo no estilo de vida do sujeito (JAMES, 1902);
4. um estado paradoxal da consciência, que oscila entre os dois
estados experimentados pelo convertido: aquele antes da conver-
são e aquele outro depois desta (MOSSIÈRE, 2007, p. 10).

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7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Brasil vive uma efervescência conversionista; contu-
do, estudos e pesquisas sobre conversão ainda são relativamen-
te escassos.
A abordagem psicológica do fenômeno do campo religio-
so lança luz sobre a dimensão psíquica da experiência religiosa,
isto é, do comportamento religioso intencionado para o objeto
sagrado, a fim de aceitá-lo ou para rejeitá-lo. Nessa dimensão,
situam-se os afetos, as conexões denotativas das cognições, os
desejos, grande parte dos conflitos pessoais, interpessoais e
sociais, incluindo aqueles que têm como objeto as entidades
sagradas selvagens ou domesticadas, os estados alterados da
consciência, a saúde a doença, a conversão religiosa etc.
Existe um ponto de convergência entre a concepção
protestante e aquela oriunda da psicologia social da religião
sobre a experiência da conversão? William James (1995) con-
siderou essa possibilidade. Para James, a conversão se associa à
experiência mística e tem os mesmos componentes atribuídos
a esse estado religioso que envolve a totalidade da pessoa. Pode
irromper de modo súbito ou gradual e se conectar, psicologi-
camente, a uma maior ou menor intranquilidade ou inconsis-
tência interna da pessoa. São vários os seus componentes: ela,
quando profunda, é de alguma maneira “inefável”; é mais um
estado de intuição da evidência tangível de um objeto igual-
mente inefável do que o resultado de uma penetração intelec-
tual do mesmo. Não dura, além disso, muito longamente em
seu estado de quase êxtase, mas é processada ao longo de um
tempo psicológico que pode ser mais ou menos longo.
Outras pesquisas precisarão ser realizadas para exami-
nar, por exemplo, se o termo conversão ainda é válido para se
abordar a experiência religiosa de afiliação ao protestantismo
histórico e ao pentecostalismo ou se esse termo pode ser subs-
tituído por adesão. Outras pesquisas poderão até mesmo le-
vantar a motivação religiosa para a afiliação ao protestantismo
e ainda buscar explicitar os fatores cognitivos e emocionais
responsáveis pela conversão religiosa ao protestantismo histó-
rico e ao pentecostalismo, destacando os aspectos contraintui-
tivos, positivos e ou negativos, envolvidos no processo da con-
versão, como cognições, experiências sensoriais (sensações,
emoções etc.).

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A STUDY OF RELIGIOUS
CONVERSION IN PROTESTANTISM
HISTORY OF SOCIAL PSYCHOLOGY
AND RELIGION

ABSTRACT

Brazil is experiencing an unprecedented religious dynamism. According


to the IBGE national census of 2000 and 2010, the growth of evangelical
churches and also the number of people who do not have any religious
belonging are expressive. Traditionally, Protestantism strengthened its
growth through the process of conversion. The literature review reveals the
lack of studies on the subject. In order to fill this gap, the author searched
texts both in French and English on the subject, which is also scarce. The
review literature has established itself around the issue of religious conver-
sion on the historical protestantism and social psychology of religion. The
issue of religious conversion is complex and very relevant today, because
it is linked to the resurgence of religion as a social mass phenomenon pro-
ducing the contemporary religious revival of the great religious traditions.
This is a common phenomenon in contemporary Brazil. This research
analyzes the term conversion in historical protestantism and social psy-
chology of religion.

KEYWORDS

Conversion; Protestantism; social psychology of religion; psychology of


conversion; religion.

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88
A IMPORTÂNCIA DOS SÍMBOLOS
COMO PRÁXIS RELIGIOSA NA IGREJA
UNIVERSAL DO REINO DE DEUS

Elton Egydio Alves


Graduando em Teologia na Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM).
E-mail: [email protected]

A IMPORTÂNCIA DOS SÍMBOLOS COMO PRÁXIS RELIGIOSA NA IGREJA..., p. 175-194 175


Elton Egydio Alves

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RESUMO

Este artigo tem como finalidade analisar o fenômeno da simbologia re-


ligiosa na Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), compreendendo o
porquê da incorporação do símbolo como regra de fé na vida do fiel. A
prática litúrgica está estabelecida na Teologia da Prosperidade e em um
misticismo semelhantes aos xamãs e aos pajés, e na incorporação de con-
ceitos ritualísticos da umbanda, candomblé e espiritismo que ironicamen-
te são considerados inimigos da denominação. O símbolo na Iurd não é
aceito como uma mera representação do sagrado: ele é o sagrado. Fiéis
depositam suas crenças sobre galhos de arruda ungido e água benta do rio
Jordão, como se essas figuras fossem o único meio de se conquistar a bên-
ção almejada. Já importantes símbolos do credo cristão, como a Bíblia ou
a eucaristia, tornaram-se meios de se alcançar algo desejado. A legitimação
e a aceitação do panteão simbólico dão-se por meio do discurso sacerdotal,
bem como a própria comunicação corporal que por vezes é percebida nos
cultos e que passa a ser um grande teatro!

PALAVRAS-CHAVE

Símbolo; Igreja Universal do Reino de Deus; legitimação; aceitação; fé.

1. INTRODUÇÃO
Na simbologia nada é indiferente. Tudo exprime algo e
tudo é significativo. Dessa forma, os símbolos fazem parte do

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ser humano como forma de representação e manifestação de
algo; por exemplo, no campo religioso tudo é impregnado de
representatividade simbólica, incluindo o próprio cristianis-
mo, seja por meio de atos como o batismo, seja como a euca-
ristia representando o novo nascimento e o memorial do sacri-
fício vicário respectivamente.
Semelhante aos cultos pagãos e por vezes influenciados
por eles, segundo Justo Gonzales (2007, p. 33), o cristianismo
adotou desde o período de Constantino formas litúrgicas sim-
bólicas, como o culto ao Sol Invicto:

Constantino interpretava a fé em Jesus Cristo de uma maneira


que não o impedia de adorar a outros deuses. Seu pai já tinha
sido devoto do Sol Invicto. Este era um culto ao Deus Supremo,
cujo símbolo era o sol, mesmo não negando a existência de ou-
tros deuses. Parece que Constantino, durante boa parte da sua
carreira política, pensou que o Sol Invicto e o Deus dos cristãos
eram o mesmo ser, e que outros deuses também eram reais e
relativamente poderosos, apesar de serem divindades subalter-
nas. Por esta razão Constantino podia consultar o oráculo de
Apolo, aceitar o título de sumo sacerdote dos deuses tradicio-
nalmente conferidos aos imperadores, e participar de cerimô-
nias pagãs de todos os tipos sem pensar com isso estar traindo
ou abandonando o Deus que lhe tinha dado a vitória e poder.

Com a chegada da Modernidade, o cristão, do mesmo


modo que o “homem pagão”, se “modernizou” e passou a ansiar
as mesmas coisas. Contudo, essa tendência consumista não ado-
tada pelas Igrejas históricas deixou um vácuo, onde a Igreja Uni-
versal do Reino de Deus – a ser denominada apenas por Iurd –
por meio da sua Doutrina da Prosperidade, vem explorando e
difundindo por via da simbologia seus preceitos de fé, ou seja,
criou-se na Iurd um panteão de símbolos, semelhantes ao pan-
teão de deuses romanos. Em seus cultos, todos os tipos de sím-
bolos são apresentados aos fiéis, desde a “rosa santa” até a “água
ungida do rio Jordão” como uma forma atrativa de se levar a
unção de Deus para suas casas, de maneira que, ao depositar a
sua fé no símbolo, o fiel alcance o que desejou.
Dessa forma, surgiu a dúvida relacionada ao tema: por
que a necessidade de afirmação, validade e, consequentemente,

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o uso dos símbolos no cristianismo, tendo em vista a sua utili-
zação como regra de fé, onde acontece a troca do simbolizado,
a saber, Cristo pelo símbolo?
O tema proposto é relevante, observando-se que Cristo
ganhou pequenos, mas importantes, “concorrentes” dentro da
Iurd que, de certa forma, ofuscam a verdadeira mensagem do
Evangelho deixado por Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e
a vida. Ninguém vai ao pai, senão por mim (Jo 14.6)”. Logo,
o objetivo da pesquisa é compreender o uso dos símbolos na
experiência religiosa na Iurd e como ele legitima-se por meio
do discurso religioso.

2. BREVE HISTÓRICO DA IGREJA


UNIVERSAL DO REINO DE DEUS
É fácil associar apenas o nome da Iurd ao seu domínio
midiático, à conquista de seu gigantesco império, bem como
aos escândalos noticiados pela denominação que é liderada pe-
lo bispo Edir Macedo. Porém, o estudo no campo da simbolo-
gia é vasto e os símbolos na liturgia e na teologia da Iurd são
assaz acentuados; entretanto, é cabível conhecer o início da
denominação.
A história da Iurd teve início em 9 de julho de 1977,
quando os seus cultos eram realizados em um pequeno coreto
do jardim do Méier, zona norte do Rio de Janeiro. Com o
crescimento da Igreja ou por direção do Espírito Santo, mu-
dou-se para o bairro da Abolição em um imóvel que inicial-
mente comportava 1,5 mil fiéis. Seu fundador, Edir Bezerra
Macedo, nascido em 1945, no Rio de Janeiro, antes de con-
verter-se ao cristianismo foi umbandista. Aos 18 anos, tornou-
se membro da Igreja Pentecostal Nova Vida. Depois de sair
dessa denominação e participar de alguns trabalhos evangelís-
ticos, o pastor Edir Macedo, junto de seu cunhado R. R. Soa-
res fundaram a Igreja Universal do Reino de Deus. Dado a seu
dinamismo, empreendedorismo e pragmatismo, Macedo su-
plantou seu cunhado Soares no comando da Igreja e, com o
rompimento de ambos, R. R. Soares iniciou sua própria Igre-
ja: a Igreja Internacional da Graça de Deus. Macedo tornou-se

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o bispo primaz da Iurd para que todo o controle da Igreja es-
tivesse em suas mãos. Números expressivos marcam o império
da Iurd: 13 milhões de membros em todo o território nacional
(GRUPO..., 2010, p. 1), quatro mil pastores e 10 mil templos
somente no Brasil (DENÚNCIA..., 2009, p. 1), além de di-
versas emissoras de rádio e de televisão. É importante frisar
que são 13 milhões de pessoas, aceitando o modus operandi da
Iurd, isto é, a sua liturgia simbólica, os seus métodos persuasi-
vos para que o fiel deposite a sua fé no que lhe é pregado.

3. DIVERSOS CONCEITOS DE SÍMBOLOS


Para se entender o porquê da utilização desenfreada dos
símbolos na Iurd é necessário analisar o conceito do símbolo e
a sua importância sob diversos prismas.
No Dicionário de símbolos de Juan-Eduardo Cirlot (2007,
p. 32) pode-se encontrar a seguinte conceituação de símbolo:
“1. nada é indiferente. Tudo expressa algo e tudo é significati-
vo; 2. nenhuma forma de realidade é independente: tudo se
relaciona de algum modo”. Percebe-se com isso que os símbo-
los fazem parte do ser humano como forma de representação
e expressão de algo. Não obstante, a simbologia está presente
em diversas áreas sociais. Uma delas, tratada por Mikhail
Bakhtin (1997) em sua obra Marxismo e a filosofia da lingua-
gem, interpreta o símbolo como instrumento político-ideoló-
gico: “sem signos não existe ideologia” (BAKHTIN, 1997,
p. 31), para tal afirmação ele usa o exemplo da bandeira da
extinta União Soviética: a foice e o martelo. Já o psicanalista
Carl Gustav Jung (1964, p. 107) associa a simbologia ao
inconsciente coletivo, isto é:

A parte da psique que retém e transmite a herança psicológica


comum da humanidade. Estes símbolos são tão antigos e tão
pouco familiares ao homem moderno que este não é capaz de
compreendê-los ou assimilá-los diretamente.

Essa herança psicológica para Jung é transmitida por


meio dos sonhos, daí serem denominados símbolos oníricos.
Já para Marcel Mauss, tratado na obra de Paula Montero

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(1990, p. 43), “a vida social é um mundo de relações simbóli-
cas”; semelhantemente, Emile Durkheim (1989, p. 38) afirma
que as representações religiosas são expressões das realidades
coletivas.
Logo, é vasta a extensão e o grau de relevância dos sím-
bolos na vida dos homens, seja ela política, social, psicológica,
artística, e claro, o cerne da pesquisa: a religiosa.
Para Mircea Eliade (1992, p. 17-18), em sua obra Mito
do eterno retorno, o conceito do símbolo na religião tem o se-
guinte ideário:

Os objetos ou atos adquirem um valor, e, ao fazer isso, tornam-


se reais, porque participam, de uma forma ou outra, de uma
realidade que os transcende. Entre tantas pedras, uma torna-se
sagrada – e, assim, instantaneamente, satura-se do ser – porque
constitui uma hierofania, ou possui maná, ou ainda porque co-
memora um ato mítico, e assim por diante. O objeto surge
como receptáculo de uma força exterior que o diferencia de seu
próprio meio, e lhe dá significado e valor.

Rubem Alves (2005, p. 110) faz uso da conceituação


dos signos e dos símbolos para a explicação da experiência re-
ligiosa; contudo, acentua o desvio do motivo do culto nas
igrejas: buscam-se os símbolos em vez do signo (simbolizado):

A linguagem da fé não é uma linguagem de signos, mas uma


linguagem de símbolos. Signos apontam de forma direta e uní-
voca para os objetos que se referem. Aqui a comunicação é di-
reta. Os símbolos, entretanto, nunca comunicam diretamente,
porque o que é para ser por eles comunicado transcende a racio-
nalidade normativa na interioridade da experiência.

Em resumo, pastores da Iurd, por meio de um discurso


persuasivo, criam dogmas religiosos fundamentados no sím-
bolo, abandonando o simbolizado: Jesus Cristo. O resultado é
uma fé baseada no emocional, tornando-se superficial, funda-
mentada no antropológico, quando a máxima deveria ser o
Teológico. Carl G. Jung (1978, p. 3) argumenta sobre o pro-
blema do dogma:

As confissões de fé são formas codificadas e dogmatizadas de


experiências religiosas originárias. Os conteúdos da experiência

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foram sacralizados e, via de regra, enrijeceram dentro de uma
construção mental inflexível e, frequentemente, complexa. O
exercício e a repetição da experiência original transformaram-se
emérito e em instituição imutável.

Essa simbologia incerta e débil também é enfatizada por


Gomes e Colonhezi (2005, p. 1):

Nessas expressões de protestantismo emocional, o simbolismo


cristão foi ressuscitado e, com ele, todos os mitos e ritos da cul-
tura são convertidos ao cristianismo de forma bastante precária,
à semelhança do que ocorreu nos tempos do imperador roma-
no Constantino, no mais das vezes, carente da compreensão
psicológica necessária para que esses novos mitos, símbolos e
ritos venham a servir de suporte terapêutico para a psique des-
ses “cristãos novos”.

A religião tem a intenção de “materializar” o sobrenatu-


ral, para isso, os pastores da Iurd valem-se em larga escala dos
símbolos religiosos, dentre os quais muitos foram criados pe-
los próprios líderes, com intuito de legitimar sua doutrina,
tornando-a regra de fé nas igrejas. Essa doutrina tem como
principal agente não a pessoa de Cristo, mas o Seu adversário:
o diabo – o qual foi fundamental para ampliar as fronteiras da
Iurd. Dessa forma, todos os símbolos que são criados e adota-
dos pelo clero iurdiano centralizam-se na batalha contra o dia-
bo e possíveis possessões demoníacas, como relata Ricardo
Mariano (2010, p. 54): “Macedo vai, em parte graças ao Dia-
bo que tanto ataca, interpela e humilha, construindo a passos
largos seu império”.
Não apenas pela tendência maniqueísta, mas como o
que denomina Odêmio Antonio Ferrari (2007, p. 111) de
“apropriação sincrética”, isto é, práticas ritualísticas que ini-
cialmente são consideradas pelo clero iurdiano como do diabo
ou mesmo mundanas, pois pertencem a outras religiões; con-
tudo, tornam-se legítimas e aceitas pelo mesmo clero ao serem
incorporadas na liturgia dos cultos na igreja.
A legitimação e, por conseguinte, a aceitação do fiel da
Iurd dá-se por meio do discurso. O discurso religioso é consi-
derado por Adilson Citelli (1994, p. 48) o mais notadamente
persuasivo. Assim escreve:

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Uma das formações discursivas mais explicitamente persuasi-
vas é a religiosa: aqui o paroxismo autoritário chega a tal grau
de requinte que o eu enunciador não pode ser questionado, vis-
to ou analisado; é ao mesmo tempo o tudo e o nada. A voz de
Deus plasmará todas as outras vozes, inclusive a daquele que
fala em seu nome: o pastor.

Logo, a legitimação acontece pela autoria do discurso:


ela pertence a Deus, logo a sua ontologia é inquestionável.
Para Eni Orlandi (2005, p. 19), ao discursar busca-se
compreender a língua também sob seu aspecto simbólico e sua
influência social e histórica. Ele argumenta sobre isso:

1. a língua tem sua ordem própria, mas só é relativamente au-


tônoma (distinguindo-se da lingüística, ela reintroduz a noção
de sujeito e de na análise da linguagem); 2. a história tem seu
real afetado pelo simbólico (os fatos reclamam sentidos); 3. o
sujeito de linguagem é descentrado, pois é afetado pelo real da
língua e também pelo real da história, não tendo controle sobre
o modo como elas o afetam. Isso redunda em dizer que o sujei-
to discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia.

4. ENTENDENDO A UTILIZAÇÃO DOS


SÍMBOLOS E A ACEITAÇÃO NA IURD
O culto da Iurd, apesar de possuir uma liturgia simples,
beirando o despojamento, pois não existe um roteiro predeter-
minado, acaba tornando o pastor o grande dirigente da reu-
nião, o qual determina o momento da oração, dos testemu-
nhos, do louvor; enfim, nada é convencionado liturgicamente
como nas igrejas tradicionais.
Nos templos não há alusão alguma a nenhuma imagem;
porém, demonstra-se uma grande ostentação na construção e
na decoração das igrejas, pois o templo é a habitação do Se-
nhor, e o Deus da Iurd é rico, devendo essa representação ser
perceptível em todos os espaços da igreja. Quanto às igrejas
mais antigas, muitas foram remodeladas, na tentativa de man-
ter-se o padrão das construções dos templos mais recentes. Es-

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se espaço sagrado (o templo), no qual está impetrado o simbo-
lismo da prosperidade em que Deus é o “dono do ouro e da
prata”, e que na “Sua casa” é o local onde a bênção é determi-
nada, transforma-se em centro do mundo, semelhante à des-
crição de Mircea Eliade (2008, p. 38):

1. um lugar sagrado constitui uma rotura na homogeneidade


do espaço; 2. essa rotura é simbolizada por uma “abertura”,
pela qual se tornou possível a passagem de uma região cósmica
a outra (do Céu à Terra e vice-versa; da Terra para o mundo
inferior).

Outra forma simbólica largamente difundida são as


campanhas, as quais visam solucionar as aflições dos fiéis. Na
Iurd, podem-se encontrar durante toda a semana campanhas
para todos os problemas atuais que consomem a existência
humana. Às segundas-feiras, acontece o Culto da Prosperida-
de, e na sede, Vigília das Grandezas de Deus, para aqueles que
“vivem no vermelho” (ARCAUNIVERSAL, 2010b, p. 1); já
nas terças-feiras é realizada a Sessão do Descarrego, destinada
aos que têm visões de vultos e são atormentados por espíritos;
nas quartas-feiras é realizada a Reunião dos filhos de Deus, a
qual foca a busca pelo Espírito Santo para enfrentamento das
intempéries do dia a dia contra o Diabo; nas quintas-feiras,
realiza-se a Reunião da Sagrada Família, na qual se busca a
solução para os problemas familiares; a Corrente de Liberta-
ção é um culto realizado às sextas-feiras, em que o fiel oprimi-
do por espíritos malignos pode se ver livre pela fé; atualmente
na sede mundial na Av. João Dias, 1800, uma nova modalida-
de de libertação tem surgido: O Banho da Meia-Noite; aos
sábados, acontece a Terapia do Amor, que, tanto para casados
como para solteiros, tem o papel de solucionar problemas sen-
timentais; e aos domingos, uma reunião chamada de Encon-
tro com Deus, a qual tem por objetivo o fortalecimento espi-
ritual do fiel. Nos meses de julho e dezembro, é realizada a
Fogueira Santa de Israel, que visa despertar a fé do fiel e, para
isso, os pastores e bispos recolhem os pedidos dos membros da
igreja e os levam a um “lugar especial” (IURD EXPRESS,
2010, p. 1) em Israel.
Nas reuniões e nas campanhas citadas, é comum o uso
dos elementos mágicos dos cultos encontrados nas superstições

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populares do Brasil, entre eles o sal grosso (para afastar maus
espíritos); a rosa ungida (usada nos despachos e nas oferendas
a Iemanjá); a água fluidificada (usada por credos espiritualistas
a fim de trazer a influência espiritual para o corpo humano);
fitas e pulseiras (semelhantes na sua designação às fitas do cha-
mado Senhor do Bonfim); o ramo de arruda (usado para afastar
o mal); o pão abençoado (que tem o poder de curar doenças); e
uma quantidade enorme de apetrechos aos quais se empres-
tam supostos valores espirituais que podem ser passados aos
seus usuários. Essa força espiritual que se manifesta nos obje-
tos faz que eles deixem de ser simples elementos, antes se des-
taquem pela presença divina neles, conforme Mircea Eliade
(1992, p. 18) defendeu:

O objeto surge como receptáculo de uma força exterior que o


diferencia de seu próprio meio, e lhe dá significado e valor. Essa
força pode estar na substância do objeto ou em sua forma; uma
rocha revela-se como objeto sagrado porque sua própria exis-
tência é uma hierofania: incompreensível, invulnerável, ela é
aquilo que o homem não é.

Com isso, adota-se o mesmo conceito de Leonildo Silveira


Campos (1997, p. 79) ao escrever que: “A mentalidade mági-
ca, presente em vários grupos neopentecostais, nunca conside-
ra que seus objetos são portadores de poderes mágicos, mas
sim meios para que ocorra uma manifestação divina”, mesmo
que esses objetos sejam idênticos às doutrinas combatidas, e
ainda: “Em outras palavras, os objetos cúlticos dos concorren-
tes estão carregados de magia negativa, enquanto os próprios
conseguem ser um eficiente meio de comunicação com Deus”
(CAMPOS, 1997, p. 79).
Do mesmo modo que a Iurd se opõe a diversas práticas
religiosas e simbólicas, igualmente as aceita, já que pastores e
bispos realizam os mesmos tipos de magias realizadas por cu-
randeiros e xamãs de outras religiões. Paula Montero (1990,
p. 23) aborda os conceitos de James Frazer e os reconhece co-
mo “Lei da contiguidade ou Lei do contágio que pressupõe
que toda a parte é equivalente ao todo a que pertence, isto é, os
cabelos, a saliva, as unhas de uma pessoa, por exemplo, repre-
sentam-na integralmente”, com isso o mágico pode produzir
efeitos ao destinatário utilizando seus elementos ou parte

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deles; e a Lei da similaridade ou magia imitativa atua sobre o
indivíduo desejado por meio de forças invisíveis, as quais atuam
por meio de elementos que se assemelham ao indivíduo repre-
sentado, como por exemplo, o boneco de vodu. Na Iurd, a Lei
da contiguidade é representada pela unção em carteiras de tra-
balho, peças de roupas das pessoas a quem a oração deve alcan-
çar, enquanto a Lei da similaridade é representada por objetos
consagrados, como rosa abençoada, água do rio Jordão, galhos
de arruda, óleo da unção e pão abençoado. Por fim, as práticas
mágicas adotadas na Igreja em nada diferem das práticas das
religiões africanas tão avidamente combatidas pelos pastores.
Quanto aos símbolos reformados tradicionais, são trata-
dos de forma diferenciada. A Bíblia, considerada como regra
única de fé e prática pelos protestantes, na Iurd é “muito mais
um depósito de símbolos, alegorias e de cenas dramáticas, ou
até um amuleto para exorcizar demônios e curar enfermos”
(CAMPOS, 1997, p. 82), conforme afirmação do próprio
Edir Macedo (2006, p. 26), líder da Iurd:

Nem sempre usar o nome de Jesus, pura e simplesmente, resol-


ve. É necessário recorrer a alguma citação bíblica, para que os
demônios saibam que quem os está mandando sair de fato tem
conhecimento dos seus direitos dados pelo Senhor Jesus.

O batismo na doutrina protestante tem como funda-


mento principal o reconhecimento público da necessidade de
Cristo. Entretanto, o batismo na Iurd, baseado em Romanos
6.4-6, acredita que no momento do batismo, ao sair das águas,
a velha natureza do batizado deve ficar lá. Contudo, o símbo-
lo desvirtua-se de seu significado original, pois Macedo ensina
que, no caso de acontecer a mudança de vida, o batismo de
nada valeu; ou seja, se uma pessoa era nervosa antes do batis-
mo, ao sair das águas deve se tornar mansa. Por acreditarem
que as crianças não possuem pecados, eles não as batizam, po-
rém entram em contradição quanto à doutrina da queda e do
pecado original. Macedo (1999, p. 88) escreve sua ideia sobre
o batismo em seu livro Doutrinas da Igreja Universal do Reino
de Deus: “O batismo nas águas é para enterrar a velha natureza
pecaminosa do pecador e não para perdoar os pecados”.
Para a Iurd, a Ceia do Senhor não é um memorial a
Cristo, em que a carne e o sangue são representados pelo pão

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e pelo vinho, respectivamente; antes é uma renovação para se
conquistar as promessas de prosperidade. Baseado na teologia
da prosperidade, a Eucaristia também é símbolo para se alcan-
çar curas e prosperidade financeira. Para se compreender me-
lhor o uso da Eucaristia na Iurd, cabe ler o artigo “Em que
cremos” extraído do website oficial da denominação:

10. A Santa Ceia é a cerimônia mais importante dentro do cris-


tianismo; ela não é apenas um símbolo da participação do cor-
po e do sangue do Senhor, ela realmente é uma participação
física de um Senhor espiritual com a finalidade de fortalecer a
Igreja física e espiritualmente, relembrando a morte do Senhor
até que Ele venha. Além disso, ela serve para uma renovação
dos votos de aliança com Deus através do sangue do Senhor
Jesus (ARCAUNIVERSAL, 2010a, p. 1).

Claro que ao tratar de Iurd e de símbolos, a oferta pode


ser considerada o símbolo máximo. Há a ênfase de que os dí-
zimos são obrigações (Ml 3.7-12) para os fiéis, enquanto as
ofertas devem ser voluntárias e espontâneas (Rm 12.8; 2) co-
mo forma de reconhecimento do senhorio de Deus (Lv 27.30-
32; Nm 18.21-26; Dt 14.22-29). Ainda no mesmo livro de
doutrinas da Iurd, Edir Macedo (1999, p. 98) escreveu que
existe uma simbologia específica em ofertar na igreja:

A oferta simboliza a Oferta de Deus ao mundo, ou seja, Jesus


Cristo (João 3.16). E somente por meio d’Essa oferta é que
podemos chegar a Deus (João 4.16). Portanto, a oferta, além de
simbolizar a Pessoa do Senhor Jesus Cristo, também é o que
aproxima o ser humano de Deus (Levítico 1.3).

Continua enfatizando ser importante o momento dos


dízimos, pois a pessoa se torna serva de Deus e “há nela uma
consciência de que sua vida e tudo o mais que a envolve passe
a pertencer, ao seu Senhor” (MACEDO, 1999, p. 98). A dou-
trina é tão importante que chega ser usada como um símbolo
de doação semelhante à de Cristo ao mundo.
Da semelhante forma, Edir Macedo (1999, p. 121)
afirma que a salvação da alma deve-se também à medida que
o fiel traz a sua oferta na Iurd: “As riquezas oferecidas por
Deus abrangem muito mais que bens materiais. Nelas estão

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incluídos: família, saúde, bem-estar social e, sobretudo, a cer-
teza da Salvação da alma”. A grande questão ao final da colo-
cação de Macedo levanta um questionamento: o sacrifício de
Cristo foi suficiente para resgatar os seus filhos, ou ainda é
necessário ofertar e dizimar para que essa condição de salva-
ção seja mantida?
Por fim, confirma que o dízimo é um símbolo de alian-
ça entre Deus e o homem: “Deus não precisa de dinheiro; Ele
já é Dono de todo o universo, mas, na multiplicidade de sím-
bolos bíblicos, os dízimos ocupam o sinal de aliança ou de
parceria com o Altíssimo” (MACEDO, 2009, p. 123).
Com isso, pode-se perceber que os símbolos e as campa-
nhas são “pontos de contato”, pois “permitem uma espirituali-
zação do material e uma materialização do espiritual” (CAM-
POS, 1997, p. 83).
A figura de Edir Macedo como ungido é fundamental
para uma associação simbólica à figura messiânica, pois além
de sua denominação trazer um possível “refrigério” aos pro-
blemas cotidianos dos fiéis, ele se diz perseguido pela mídia,
pelo catolicismo e pelas autoridades, além de ter sido preso
por acusações que, segundo o próprio Macedo, são calúnias e
difamação contra o Evangelho. Dessa forma, o símbolo do
ungido de Deus está presente na doutrina da Iurd, como se
pode constatar na afirmação do próprio líder da denomina-
ção:

Absalão foi usado pelo diabo para corromper o coração de mui-


tos homens, jogando-os contra o próprio pai. E a rebelião con-
tra um ungido de Deus significa rebelião contra o próprio Deus.
Diante disso veio sua morte, bem como a de seus comandados
(MACEDO, 2009, p. 75).

Pode-se afirmar esse tipo de influência semelhante ao


que Max Weber (2009) denomina como dominação carismá-
tica. Diferente das dominações burocrática e patriarcal, a ca-
rismática tem um fator diferenciador: a qualidade pessoal do
líder. Max Weber (2009, p. 158-159) assim a define:

Denominamos “carisma” uma qualidade pessoal considerada


extra-cotidiana (na origem, magicamente condicionada, no
caso tanto de profetas quanto dos sábios curandeiros ou jurídi-
cos, chefes de caçadores e heróis de guerra) e em virtude da qual

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se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais,
sobre-humanos ou, pelo menos, extra-cotidianos específicos ou
então se a torna como enviada por Deus, como exemplar e,
portanto, como líder.

E assim, pelos “feitos miraculosos” realizados por Mace-


do e seus pastores, as bases do carisma se mantêm estáveis.
Essa característica de estabilidade também é definida por Max
Weber (apud GERTH; MILSS, 1971, p. 285):

O seu portador toma a tarefa que lhe é adequada e exige obe-


diência e um séquito em virtude de sua missão. Seu êxito é de-
terminado pela capacidade de consegui-los. Sua pretensão ca-
rismática entra em colapso quando sua missão não é reconhecida
por aqueles que, na sua opinião deveriam segui-lo. Se o acei-
tam, ele é o senhor deles – enquanto souber como manter essa
aceitação, “provando-se”. Mas não obtém seu “direito” por
vontade dos seguidores, como numa eleição, mas acontece o
inverso: é o dever daqueles a quem dirige sua missão reconhecê-
lo como seu líder carismaticamente qualificado.

A aceitação deve partir dos seus seguidores, ou no caso,


dos fiéis, e não por parte da liderança. Essa, por sua vez, deve
manter meios de aceitação para que a liderança se estenda, isto
é, “o líder carismático ganha e mantém a autoridade exclusiva-
mente provando sua força na vida. Se quer ser profeta deve
realizar milagres; se quer ser senhor da guerra deve realizar
feitos heróicos” (GERTH; MILLS, 1971, p. 287).
Para que o símbolo tenha aceitação, ele deve estar ligado
à palavra, ou seja, à comunicação. Normalmente, o discurso
religioso é semelhante à “velha comunicação”, ou o que Yves
Winkin (1998, p. 13) definiu em sua obra A nova comunica-
ção: da teoria ao trabalho de campo como: “A comunicação
considerada como transmissão intencional de mensagens
entre emissor e um receptor”.
A grande questão, contudo, é: os objetos cúlticos nas-
cem da experiência litúrgica ou de uma imposição arbitrária
para o grupo de fé?
Claro que a experiência do fiel é um legitimador do ele-
mento; contudo, para que aconteça a experiência, é necessária
a validação do sacerdote, o qual se comunica de forma verbal
e corporal.

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Durante o culto, a forma verbal de comunicação é o
sistema emissor e receptor, o qual é utilizado pelo pastor; e
como analisado anteriormente, este discurso não deve ser
questionado ou sequer analisado, pois não vem dele, mas do
próprio Deus, sendo o sacerdote apenas um instrumento do
divino. Contudo, o corpo também é um meio de afirmação.
Em todos os pastores observados, há uma “tendência” de se
imitar a fala, a postura e os gestos do líder da Iurd. Os movi-
mentos com a mão, o andar, o falar, a presença no púlpito,
tudo se assemelhava a Macedo, incluindo o problema congê-
nito que ele tem em suas mãos. O termo comumente usado
para tal ato é que sobre o pastor está a “unção” do bispo Ma-
cedo, porém a intenção é validar o discurso, lembrando ou
comunicando a figura do líder por meio dos gestos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O símbolo no contexto religioso tem sua representativi-
dade e relevância. Ele pode exprimir algo, ou mesmo unir o
grupo social em torno da divindade que o símbolo representa.
Analisou-se que muitas comunidades e grupos sociais têm
suas culturas intrinsecamente relacionadas à religião; entre-
tanto, no caso da Iurd, outros fatores também se apresentaram
formadores do ideário simbólico da denominação.
Cabe compreender que o sucesso da doutrina simbólica
e mágica iurdiana não surgiu por acaso, pois como Emile
Durkheim (1989, p. 38) afirmou “a religião é coisa eminente-
mente social” com isso, percebe-se que as aspirações sociais
contribuíram para o avanço do simbolismo iurdiano como re-
gra de fé, visto que no Brasil é fácil observar o desejo de me-
lhorias na saúde, na diminuição da pobreza, ou seja, uma reli-
gião mais prática e menos dogmática. Alicerçada na Teologia
da Prosperidade, a doutrina visa como fim o que se almeja, ou
seja, o símbolo gera ou materializa a bênção. Como Ricardo
Mariano (2010, p. 159) escreveu:

A Teologia da Prosperidade subverte radicalmente o velho


ascetismo pentecostal. Promete prosperidade material, poder
terreno, redenção da pobreza nesta vida. Ademais, segundo
ela, a pobreza significa falta de fé, algo que desqualifica qual-
quer postulante à salvação. Seus defensores dizem que Jesus

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não veio ao mundo pregar o Evangelho aos pobres justamente
para que eles deixassem de ser pobres. Da mesma forma, Ele
veio pregar aos doentes porque desejava curá-los. Deus não é
sádico, tem grande prazer no bem-estar físico e na prosperida-
de material de seus servos. O contrário não tem respaldo nem
sentido bíblico. Os reais servos de Deus não são nem nunca
serão párias sociais. Durante muito tempo o Diabo obscure-
ceu a visão dos crentes a respeito destas verdades, mas agora,
conscientes da ardileza satânica, eles começam a tomar posse
das promessas divinas.

Marcel Mauss (2008, p. 75), analisando o fenômeno da


dádiva entre os índios da América do Norte, chegou a uma
observação semelhante à condição de esperança iurdiana:

As dádivas aos homens e aos deuses têm também por finalidade


comprar a paz com uns e outros. Afastam-se assim os maus es-
píritos, mais geralmente as más influências, mesmo as não per-
sonalizadas: porque uma maldição de homem permite aos espí-
ritos ciumentos penetrar em vós, matar-vos, permite a acção
das más influências e as faltas contra os homens tornam o cul-
pado fraco em relação aos espíritos e às coisas sinistras.

A esperança na grandeza da bênção também se asseme-


lha: “[...] porque esses deuses que dão e retribuem estão lá
para dar coisa grande em vez de coisa pequena” (MAUSS,
2008, p. 76).
A legitimação do símbolo acontece como citado anterior-
mente por meio do discurso verbal e da representação corporal
que são indispensáveis, tornando-se um meio coercitivo na psi-
que do fiel. Como Odêmio Antonio Ferrari (2007, p.112) es-
creveu: “A força da pressão psicológica leva à ‘compreensão de
significado’ por uma clientela ‘desejosa de sentido’”.
Essas novas prerrogativas em que a própria doutrina
torna-se simbólica e o seu alcance visa o bem-estar pessoal,
com esperanças em recebimentos grandiosos, fizeram da Igre-
ja Universal do Reino de Deus um dos maiores fenômenos
religiosos do Brasil.
Essas proposições aqui analisadas dão margem à questão
tratada por Max Weber (2009, p. 158-159): dominação. Essa
forma de dogma legitima o símbolo como Rubem Alves
(2005, p. 9) escreveu:

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As religiões são instituições que pretendem haver colocado nu-
ma gaiola o pássaro encantado. E não percebem que o pássaro
que têm nas suas gaiolas de palavras é um pássaro empalhado.
Era por isso que no Antigo Testamento era proibido falar o
nome de Deus. Hoje, ao contrario, os religiosos não só falam o
nome sagrado como também escrevem tratados de anatomia e
filosofias divinas. E proclamam que o pássaro só pode ser en-
contrado dentro das suas gaiolas. Religiões: uma enorme feira
onde se vendem pássaros engaiolados de todos os tipos.

Os símbolos são necessários à vida cotidiana como for-


ma de representação e, no caso da religiosa, da comunicação
entre o sagrado e o profano. Contudo, os símbolos na Iurd são
colocados em um plano de igualdade, e muitas vezes em con-
dição de superioridade em relação a Cristo, sendo os elemen-
tos os agentes causadores das curas, das restaurações familia-
res, da prosperidade financeira, e não a fé em Cristo Jesus e a
esperança Nele. Esse tipo de fé baseada na simbologia iurdiana
torna-se fugaz, como um tipo de cristianismo fast-food. Enten-
de-se que a verdadeira função do símbolo não é a de transcen-
der o fiel para o sobrenatural, ocupando a função do divino;
antes, apenas de representá-lo, diferente do que se presenciou
nos cultos da Iurd, uma fé débil, esperançosa pelo alcançar as
bênçãos prometidas pelos pastores da organização.

THE IMPORTANCE OF RELIGIOUS


SYMBOLS IN PRÁXIS AS THE IGREJA
UNIVERSAL DO REINO DE DEUS

ABSTRACT

This article aims to analyze the phenomenon of religious symbolism in


the Universal Church of the Kingdom of God, understanding why the
incorporation of the symbol as a rule of faith in the life of the believer.
The practice is established in liturgical theology and mysticism Prosperity
similar to shamans and medicine men, and the ritualistic incorporation
of concepts of Umbanda and Candomble spiritualism that, ironically, are
considered enemies of the church. The symbol in the Universal Church
is not accepted as a mere representation of the sacred: it is the sacred.

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Faithful pin their beliefs on twigs of rue anointed and holy water from
the Jordan River, as if these figures were the only way to win the desired
blessing. Already important symbols of the Christian creed as the Bible
or the Eucharist, became the means of achieving something desired. The
legitimacy and acceptance of the symbolic pantheon are given through the
priestly discourse, as well as their own body language that is sometimes
perceived in the services which becomes a great theater!

KEYWORDS

Symbol; Igreja Universal do Reino de Deus; legitimacy; acceptance; faith.

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JOSÉ MANOEL DA CONCEIÇÃO:
UM REFORMADOR NATIVO

Hermisten Maia Pereira da Costa


Doutor e mestre em Ciências da Religião. Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM).
E-mail: [email protected]

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RESUMO

Neste primeiro de dois artigos, descrevem-se aspectos da vida e formação


do Rev. José Manoel da Conceição, o primeiro pastor protestante brasi-
leiro, que, por seus ensinamentos, antes mesmo de aderir à fé protestante,
era conhecido como “padre protestante”. Analisa também os momentos
de tensão e angústia que marcaram o abandono de sua antiga fé e a ado-
ção da nova, bem como o seu ingresso no ministério pastoral na Igreja
Presbiteriana no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE

José Manoel da Conceição; Presbiterianismo; Protestantismo brasileiro;


Protestantismo; Brasil Império.

1. INTRODUÇÃO
O período de 1808 a 1821 é de grandes transformações
religiosas no Brasil: Brasil Colônia passa a Brasil Império; a
inquisição, que tivera seus tentáculos no Brasil, agora cede lu-
gar a uma relativa liberdade religiosa (TARSIER, 1936; COS-
TA, 2006). As transformações não foram pacíficas, mas quais
são? No entanto, não podemos nos queixar, o Brasil entrava
em uma nova fase sem derramamento de sangue – pelo menos
não em demasia como acontecera na Europa durante as gran-
des metamorfoses políticas, sociais e religiosas.

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O próprio governo imperial irá incentivar o processo
migratório. Segundo Azzi (1992, p. 13), havia três objetivos
principais:

Branqueamento da população brasileira1, procurando dessa


forma deter o avanço da negritude, decorrente do número
contingente de escravos trazidos da África; criação da pequena
propriedade, num país marcado desde a época colonial pelo
latifúndio dos engenhos e das fazendas; incremento do trabalho
livre, num território até então objeto de atividade quase exclu-
siva do braço escravo2.

A partir de 1810, começaram a chegar ao Brasil estran-


geiros de origem protestante. Contudo, não nos iludamos, isso
não significa a vinda de missionários, mas, sim, de colonos
que eram protestantes, pelo menos de regiões protestantes,
que vinham tentar a vida em novo continente, com imaginá-
veis novas opções de vida. A vinda de pastores não tinha como
objetivo imediato a pregação de sua fé e a conversão dos nati-
vos, mas sim a assistência pastoral aos seus fiéis protestantes.
Nessa época, vamos verificar também a questão da legalidade
da construção de templos. A ação isolada de clérigos e as inter-
pretações que variam aqui e ali, acompanhadas por uma carac-
terística nossa, de fazer de conta que não acontece, marcou
episódios dessa história. Conforme formos descrevendo a pe-
netração dos imigrantes e de suas respectivas atuações religio-
sas, vamos demonstrando essas particularidades.
O ano de 1810 marca também o período em que foram
trazidos 13 suecos – provavelmente luteranos (RIBEIRO,
1973, p. 79) – para a Real Fábrica de Ferro de São João do
Ipanema, às margens do rio Ipanema (contratados em 31 dez.
1809) (OLIVEIRA, 1952, p. 227 et seq.; 91 et seq.).
Em 9 de maio de 1818, mediante oferta de um suíço,
Nicholas Gachet – emissário do governo do cantão suíço de
Friburgo –, D. João VI contratou a primeira leva de colonos
suíços, 100 famílias. No contrato rezava que as famílias deve-
riam ser católicas: Fundaram Nova Friburgo. No entanto, em

1
Certamente por ignorância, tenho dificuldade em aceitar essa tese. O autor não cita documentos e,
também, em nenhum momento percebi discurso semelhante entre os deputados da Constituinte.
2
Razões adicionais são indicadas por Joachim Fischer (1986, p. 12), que segue Martin N. Dreher.

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razão de problemas variados, não se estabeleceram ali em defini-
tivo, indo procurar regiões mais férteis. Posteriormente (1824),
os alemães luteranos se estabeleceriam em Nova Friburgo.
Ainda em 1818, estabeleceu-se uma colônia de alemães
no rio Peruíbe, Porto Seguro, “cada um deste recebendo do
Governo uma légua quadrada de terras. Essa colônia que rece-
beu a denominação de Leopoldina continha em 1826 seiscen-
tos colonos e quinze fazendolas de café” (RODRIGUES,
1904, p. 101).
Aos poucos, a exigência de os imigrantes serem católicos
foi se tornando obsoleta:

Em 1823, D. Pedro I enviou o Major [Georg Anton von]


Schaeffer a Frankfurt-sobre-o-Meno, para promover a vinda de
imigrantes. Não somente desapareceu a exigência de serem
católicos romanos, como ainda em nome de S. M. o Imperador,
contratou-se um pastor protestante para acompanhá-los, com
seu sustento provido pelo governo Imperial (RIBEIRO, 1973,
p. 79)3.

As condições legais que facultavam a vinda de protestan-


tes para o Brasil foram consideradas, num primeiro momento,
pelos missionários, não como algo restritivo, mas “excelentes
para sua prédica” (RIBEIRO, 1981, p. 293).
A partir de 1810, torna-se evidente o uso da abertura
religiosa concedida aos ingleses por meio do “Tratado de Co-
mércio e Navegação”; assim, eles passaram “a celebrar o culto
protestante a bordo de seus navios de guerra que ancoravam
no porto do Rio de Janeiro ou em residências particulares,
inclusive a de Lord Strangford” (RIBEIRO, 1973, p. 17).
É natural que os estrangeiros tenham as suas perspectivas
a respeito deste grande e misterioso continente, repleto de “pa-
gãos” que ainda não conhecem o Evangelho. No entanto, por
intermédio de um vislumbre aqui e ali, podemos também per-
ceber a visão do clero e do povo a respeito desses homens que
traziam uma religião estranha, mas, que no momento, digamos,
era um mal tolerável – como diriam alguns constituintes –, em
prol do progresso resultante do acordo com a Inglaterra.

3
Veja-se também: Hunsche (1983, p. 11). O art. 7º do contrato especifica isso. Veja-se: Tschudi
(1953, p. 100).

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Considerando o escopo deste texto, não posso me deter
nas denominações que para cá vieram. Cito apenas datas:
anglicanos (1812); luteranos (1816); metodistas (1835); con-
gregacionais (1855); presbiterianos (1855 e 1859) e os batistas
(1871).
O Rev. A. G. Simonton (1833-1867) desembarcou no
Rio de Janeiro em 12 de agosto de 1859, sendo depois ajuda-
do por outro missionário, Rev. A. L. Blackford (1829-1890),
que chegou em 25 de julho de 1860, e o Rev. Francis J. C.
Schneider (1832-1910), que aportou no Rio em 7 de dezem-
bro de 1861. Em 12 de janeiro de 1862, temos a organização
da Primeira Igreja Presbiteriana no Brasil, no Rio; a Segunda
Igreja foi organizada em São Paulo (5 mar. 1865) e a terceira,
em Brotas (13 nov. 1865). Essas três Igrejas se constituem
num triângulo eclesiástico fundamental em nosso estudo, e
mais, para o estudo da origem do presbiterianismo no Brasil.
Isso nos conduz ao “Padre Protestante”, um certo Conceição.

2. SEUS PRIMEIROS ANOS DE VIDA


José Manoel da Costa Santos, e depois José Manoel da
Conceição, nasceu na cidade de São Paulo em 11 de março de
1822, filho de um português, canteiro de ofício (“artífice em
construção de pedra”), Manuel da Costa Santos, e de Cândida
Flora de Oliveira Mascarenhas, natural do Rio de Janeiro e
neta de açorianos (RIBEIRO, 1995, p. 7). Aos dois anos de
idade, foi residir em Sorocaba, onde foi criado. Sendo forma-
do na Igreja Romana, foi batizado na Sé de São Paulo em 24
de março de 1822, tendo como padrinho, o seu tio-avô, padre
José Francisco de Mendonça – irmão de seu avô Manoel
Francisco de Mendonça –, que exerceria poderosa influência
sobre seu afilhado.
O padre Mendonça, após vencer concurso, assumiu em
3 de fevereiro de 1824 o cargo de vigário colado de Sorocaba.
Para aqui viriam também sua mãe, já idosa e viúva, D. Ana
Joaquina, e, pouco depois, “a sobrinha com o marido e o so-
brinho-neto (e afilhado) de 2 anos” (RIBEIRO, 1995, p. 7).
Todos passaram a residir na mesma casa, na rua São Bento.
Logo morreria sua mãe; seu pai, que viajava bastante a traba-
lho, deixou o filho com o tio-avô, que o criou e educou.

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3. SUA FORMAÇÃO
As suas primeiras letras foram aprendidas na escola do
padre Jacinto Heliodoro de Vasconcelos em Sorocaba (LESSA,
1935, p. 12). “A escola alfabetizava, ensinava aritmética, geo-
metria, gramática, história sagrada e catecismo” (RIBEIRO,
1995, p. 12; SILVA, 2002, p. 22-24)4. Educação já regalista,
visto que o catecismo adotado, Catecismo de Montpellier, fora
escrito pelo oratoriano Fraçois-Aimé Pouget (1666-1723),
então diretor do Seminário de Montpellier, e publicado em
1702, por ordem do bispo de Montpellier, Charles-Joachim
Colbert. Essa obra, que era de cunho jansenista, fora condenada
pelo Vaticano (1772), sendo diversas de suas traduções censu-
radas5, mas, também, fora recomendada por um alvará do rei
de Portugal (12 out. 1770)6. O jansenismo tinha algumas
afinidades teológicas com o protestantismo7. O jovem Con-
ceição crescerá no conflito entre a graça de Deus e a necessidade
da ajuda dos santos. Em outro lugar diz: “Fui muito devoto
até os 16 anos. Depois que a religião começou a influir no
meu coração, comecei a sofrer de melancolia pelo retrospecto
que fazia sobre a minha vida passada [...]” (IMPRENSA
EVANGÉLICA, março de 1881, p. 73).
A presença do padre José Francisco de Mendonça foi
muito marcante em sua vida. Esse era um homem conscien-
cioso, enérgico e instruído. Embora não seja um homem apai-
xonado por política, sabe o que quer e assume; ele foi um dos
signatários da Ata de Rebelião de 1842, quando eclodiu a Revol-
ta Liberal em São Paulo. O jovem José Manoel da Conceição
também a assinou (RIBEIRO, 1995, p. 7-8, 21).

4
O missionário metodista Daniel P. Kidder (1951, p. 267) demonstra o seu apreço pelo Catecismo de
Montpellier como facilitador para a introdução do ensino religioso.
5
Veja o Catecismo digitalizado de uma edição impressa na Bahia (1817). Disponível em: <http://
www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/03903600#page/293/mode/1up>. Acesso em: 12 jan. 11.
6
O Alvará dizia: “... E mando, que em lugar dos ditos processos, e sentenças, se ensine aos meninos
por impressos, ou manuscritos de diferente natureza, especialmente pelo Catecismo pequeno do
Bispo de Montpellier Carlos Joaquim Colbert, mandado traduzir pelo Arcebispo de Evora para
instrução de seus Diocesanos, para que por ele vão também aprendendo os Princípios da Religião,
em que os Mestres os devem instruir com especial cuidado, e preferência a outro qualquer estudo. E
este se cumprirá tão inteiramente como nele se contêm, sem duvida ou embargo algum”.
7
Weber (1970, p. 445) chega a dizer que o jansenismo surgiu da busca do “Calvinismo Católico”.

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Conceição (1867, p. 3) resume sua formação:

Na idade de doze anos comecei a estudar, e daí até completar


vinte e três anos tinha feito os meus exames de latim, francês,
lógica, retórica e teologia moral e dogmática. Em 1844 fui
ordenado diácono pelo finado bispo D. Manoel Joaquim
Gonçalves de Andrade [...].

Conceição estuda em São Paulo; como não havia Seminá-


rio, “os Preparatórios eram feitos no Curso Anexo da Academia
Jurídica e a Teologia com professores não oficiais” (RIBEIRO,
1995, p. 18). Seu colega, frei Monte Carmelo – “o grande apo-
logista de Conceição” (VIEIRA, 1980, p. 147) –, lembra que
“em latim e em humanidades, José Manoel da Conceição nunca
foi excedido pelos seus colegas de teologia” (MONTE CARME-
LO, 1874, p. 5). Em seus estudos, foi aluno do padre Francisco
de Paulo Oliveira, Ildefonso Xavier Ferreira e Joaquim Anselmo
de Oliveira. Dá-se aqui, possivelmente, o início de uma amizade
duradoura, ainda que posteriormente seguindo caminhos diver-
sos: Conceição e Joaquim de Monte Carmelo (1815-1899) –
depois cônego da Sé de São Paulo –, um regalista partidário de
Feijó e Frei Caneca que, mais tarde, tornar-se-ia seu biógrafo
(RIBEIRO, 1995, p. 18-20; MONTE CARMELO, 1874, p. 5).
O fato de Conceição ter assinado a Acta da Revolta de 1842
impediu-o de ser diácono. No entanto, o pior estava por vir. Se-
gundo Monte Carmelo, a erudição e independência de Conceição,
aliada à sua amizade com “alemães” e “ingleses” valeram-lhe passar
grande vergonha em 1843. Escreve Monte Carmelo (1874, p. 6):

Admitido às ordens como seus colegas, passou ele pelo vexame


de, depois de paramentado para receber o diaconato, deixar as
vestes sagradas, e descer as escadas episcopais como desce o la-
caio que furta o relógio do amo!.

A situação política muda; em 29 de setembro de 1844,


Conceição é finalmente ordenado diácono. Nessa condição,
batiza os filhos de Langaard. Em 29 de junho de 1845, aos 23
anos de idade, foi ordenado presbítero da Igreja Católica Ro-
mana (RIBEIRO, 1995, p. 24).
Mesmo depois de aderido ao protestantismo, Conceição
admite que a sua família era cristã, sendo essa a sua formação.
Falando sobre a pregação cristã, escreve: “Nessa crença viveram
nossos pais e nela morreram” (IMPRENSA EVANGÉLICA,
1º maio 1880, p. 129).

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4. AS ANGÚSTIAS ESPIRITUAIS
Mas o padre José Manoel da Conceição lia a Bíblia. Seu espírito
reto e esclarecido não podia conciliar os dogmas e as práticas da
igreja romana com o ensino de Deus contido nas Escrituras
(LIVRO DE ATAS DO PRESBITÉRIO DO RIO DE
JANEIRO, Sessão de 6/8/1875).

“Por dezoito anos paroquiei nas igrejas de Água Choca,


Piracicaba, Santa Bárbara, Taubaté, Sorocaba, Limeira,
Ubatuba e Brotas”, recorda Conceição (1867, p. 3).
Talvez, de forma surpreendente para alguns, as angús-
tias espirituais começaram pela Bíblia; ainda que não num pri-
meiro momento. Diz Conceição (1867, p. 3): “O pouco que
podia ler da Bíblia nunca deixou de tocar-me; do tesouro das
preciosidades adquiridas nessa leitura tirava o material de que
carecia para falar, para pensar e mesmo para obrar”. Dá-se em
Conceição um processo lento e gradativo de insatisfação com
a pregação e prática de sua Igreja. O caminho para o rompi-
mento era inevitável. No entanto, a decisão de Conceição
(1967, p. 7) se deu depois de um longo período de angústia,
leitura e reflexão: “Havia anos que a leitura da Bíblia, da História
da Reforma, e de outros livros religiosos e literários, tinham-me
sugerido idéias que não se harmonizavam com os dogmas que
professava”. Aliás, essa insatisfação dera-se bem cedo; ainda
em sua adolescência. Ele diz que para a sua melancolia não
encontrava remédio em sua religião. Continua:
Aos 18 anos comecei a ler a Bíblia. Apenas tinha lido os três
primeiros capítulos do Gênesis quando notei, que a prática e
doutrina da Igreja Romana faziam oposição direta e irreconciliá-
vel com a Palavra de Deus (Gênesis 2.24; Mt 19.5) (IMPRENSA
EVANGÉLICA, março de 1881, p. 73).

No entanto, o seu destino era a sacristia e o celibato. A


situação se agrava: “A leitura da Bíblia e minhas relações com
os protestantes fizeram logo de mim um mal candidato e mais
tarde péssimo padre romano” (IMPRENSA EVANGÉLICA,
março de 1881, p. 73).
O contato com os protestantes deu-se por intermédio
do pintor francês Carlos Leão Bailot, que além de decorar a
Matriz de Sorocaba ministrava aulas de desenho e pintura a
Conceição (RIBEIRO, 1995, p. 17-18).

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Ipanema – a mesma para onde foram os suecos lutera-
nos – era perto de Sorocaba. Na década de 1840 moravam ali
famílias alemãs e também um médico dinamarquês, João
Henrique Theodoro Langaard e esposa, “mais ou menos evan-
gélicos” (RIBEIRO, 1995, p. 23; 1979, p. 45-46). Conforme
proposta de Langaard, ambos trocariam aulas; Langaard ensi-
naria alemão a Conceição e este aperfeiçoaria o português da-
quele. Docência e discência aceitas, com o passar do tempo
vemos o jovem Conceição lendo na biblioteca de Langaard,
onde, além de obras de sua área específica, havia clássicos ale-
mães, história da Igreja e obras evangélicas (RIBEIRO, 1995,
p. 23-24).
O conflito íntimo era inevitável: “Vieram-me convicções
irreconciliáveis com as obrigações e práticas que me cabiam
como pároco” (CONCEIÇÃO, 1867, p. 7). Essa prática, de
pregar as Escrituras, gerou-lhe o apelido no clero, e até mesmo
por parte do bispo, de “padre protestante” (IMPRENSA EVAN-
GÉLICA, março de 1881, p. 73; CONCEIÇÃO, 1867, p. 4;
PEREIRA, 1912, p. 18)8. Suas pregações tornaram-se incômo-
das para a hierarquia romana. Resultado: ele era transferido
constantemente, conforme relata, de cidade em cidade, não o
deixando realizar um trabalho mais duradouro em nenhum
lugar: “o não faziam aquecer lugar” (MONTE CARMELO,
1874, p. 10; RIBEIRO, 1979, p. 54-55; 1995, p. 25-30). Aqui
são constatadas parte de suas angústias espirituais:

Não tardei a achar-me em contradição com muitas doutrinas e


práticas da Igreja Romana, e isto minhas prédicas não podiam
deixar de revelar, tanto que me haviam procurado o epíteto de
protestante (CONCEIÇÃO, 1867, p. 4).

Por ser um homem honrado e sincero, os seus dilemas


íntimos não tardariam a influir em sua praxis sacerdotal9:

Não sabia como subtrair-me conscienciosamente a este emprego,


que sempre procurei exercer para o bem dos meus semelhantes.

8
Essa designação pegou; Conceição tornar-se-ia conhecido desse modo. A própria Imprensa, quando
noticia a adesão de um padre ao protestantismo em Roma, intitula: “Um padre protestante e a
inquisição em Roma” (IMPRENSA EVANGÉLICA, 6 dez.1873, p. 184).
9
Como Ribeiro (1995, p. 32) acentua, o conflito de Conceição agravava-se por ser ele, de certa forma,
uma “peça da máquina e participa, digamos assim, do negócio da comutação dos pecados”.

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Esforçava-me por conter minhas idéias e conciliar minhas con-
vicções com as circunstâncias em que a providência de Deus me
tinha colocado (CONCEIÇÃO, 1867, p. 7-8).

Mas até quando conseguiria isso? Havia possibilidade


real de conciliação entre a sua nova fé e a sua prática sacerdo-
tal? Ele confessa que a sua luta era debalde. “A alma tocada da
verdade e do Espírito Santo só acha paz em reconciliar-se com
Deus e conformar-se com a sua Santa Lei. A luta da alma era
longa, renhida e penosa. Muitas vezes recolhia-me comigo
mesmo, comparava minha vida com o Evangelho; não achava
paz na alma” (CONCEIÇÃO, 1867, p. 8). A sua primeira
visão de solução para a sua angústia era a confissão; mas resol-
veria o seu problema? Qual seria a sua experiência? A de Erasmo
(c. 1469-1536), que declarara de forma ambígua: “Por certo
são numerosos e fortes os argumentos contra a instituição da
confissão pelo próprio Senhor. Mas como negar a segurança
em que se encontra aquele que se confessou a um padre quali-
ficado?” (DELUMEAU, 1991, p. 37), ou a de Lutero (1483-
1546), que durante o seu noviciado e depois como monge
agostiniano demonstra de forma eloquente que a confissão
auricular, os jejuns e as penitências – os quais ele praticava
com frequente rigor – não lhes proporcionava a paz esperada?
(COSTA, 2009a, p. 15-16)10. Deixemos que o próprio Con-
ceição (1867, p. 8) relate a sua experiência:
Muitas vezes recolhia-me comigo mesmo, comparava minha
vida com o Evangelho; não achava paz na alma. Lembrava-me da
confissão; mas a confissão, pondo Deus a par dos santos e dos
padres, deixava-me sem saber quem era o que me perdoava, nem
se a remissão dos meus pecados dependia da absolvição do padre,
se da minha contrição, se da penitência imposta, que umas vezes
cumpria outras não. Não era, pois, com tais incertezas e dúvidas
que minha alma podia ser curada, e a moléstia era grave.

Sensível aos seus paroquianos, Conceição (1867, p. 8)


percebe desespero semelhante:

Olhava em redor de mim; ofereciam-se à minha contemplação


milhares de almas na mesma situação em que eu me achava,

10
Léonard (1981, p. 57- 64) faz um paralelo entre a crise de Conceição e a de Lutero.

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nas mesmas cadeias do erro e do pecado; e sobre todo este
quadro, a lei de Deus condenando de morte a indiferença, a
idolatria, o desprezo dos seus mandamentos!.

No último casamento que realizou como padre, não quis


atender confissão dos noivos11, dizendo: “Eu e vocês precisamos
nos confessar a Deus e não aos homens” (CAMPOS, 1921, p. 9).
As Escrituras Sagradas assumem para ele o caráter de
espelho no qual pôde ver a sua necessidade de misericórdia de
Deus e arrependimento. Após examinar diversos textos da Bí-
blia, admite:

Em presença de verdades tão positivas e tão terríveis para nós,


visto como elas se dirigem com toda força ao estado e condições
da nossa sociedade, eu, não sabendo que fazer, suspirava:
“Deus! olha para nós com olhos de misericórdia!”
Esperava porém, com uma convicção inabalável, que Deus ha-
via de olhar para sua igreja e havia de assisti-la com o seu Santo
Espírito (CONCEIÇÃO, 1867, p. 9).

Deparando com a história da Igreja, inquietava-se:

Os estudos da história da humanidade do professor belga


Laurent acabavam de inteirar-me, a não poder mais ser do pla-
no romano; não estava, pois, mais em mim o condescender por
mais tempo com Roma [...] (IMPRENSA EVANGÉLICA,
março de 1881, p. 73).

Lembrava-me dos mártires e dos cristãos primitivos, e


dizia então comigo:

– Que! pois porque hoje ninguém nos persegue, porque nossa


fé não é mais posta às provas do martírio, estaremos por isso
dispensados de aspirar e praticar a mesma pureza de fé e de
costumes que distinguiu os crentes, confessores e mártires dos
primeiros séculos? (CONCEIÇÃO, 1867, p. 9-10).

As suas incógnitas não são apenas de ordem pragmáti-


cas, têm também um fundamento profundamente teológico:

11
Os noivos que depois aderiram ao protestantismo eram: José Correa de Lacerda e Marciana Alves
de Mira.

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Em que lugar do Velho e do Novo Testamento se acham pala-
vras que autorizem os diferentes e vários meios de graça que
constituem hoje o essencial na Igreja Romana? Nem os profetas,
nem Jesus Cristo, nem seus apóstolos, dizem-nos cousa alguma
de jubileus, de indulgências, de missas, de promessas, de ofertas
de dinheiro, de penitências corporais de imposição, de estabe-
lecimentos pios, como meios capazes de alcançar o perdão dos
pecados, senão só pela livre graça de Deus por meio de Nosso
Senhor Jesus Cristo (CONCEIÇÃO, 1867, p. 10).

Sua percepção é que, com o passar do tempo, a Igreja


romana se deteriorou desviando-se em muito da simplicidade
do Evangelho:

Para sentir a alteração completa e radical que as circunstâncias


dos tempos e dos diversos lugares têm causado à fé primitiva
evangélica, basta compararmos as práticas, usos, rituais e dog-
mas, que abundam atualmente no romanismo, com o credo ou
símbolo dos apóstolos, e logo se reconhecerá que o uso de ima-
gens, devoções e romarias dos santos, promessas, votos, peni-
tências impostas e determinadas, comutações, dispensas, as
chamadas relíquias, bulas e mil outros meios de graças, que
constituem a essência do romanismo atual, são especulações de
data muito recente, que nenhuma autoridade tem na velha fé
católica e apostólica da Igreja Evangélica de Nosso Senhor Jesus
Cristo, a qual meu coração aderiu com júbilo desde que, po-
dendo por mim mesmo ler a palavra de Deus, reconhecia-a
como protótipo da verdade (CONCEIÇÃO, 1867, p. 12).

A sua conclusão é radical e ousada: A igreja romana


não era a “Igreja Evangélica de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
Continua:

Não vemos porventura realizadas as previsões do apóstolo di-


zendo que apostatarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos
de erros e a doutrinas de demônios, que com hipocrisia falarão
mentira e terão cauterizada a consciência, que proibirão casa-
rem-se e que se faça uso das viandas que Deus criou para que,
com ação de graças, participem delas os fiéis e os que conhece-
ram a verdade?! (CONCEIÇÃO, 1867, p. 12-13).

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5. A MISERICÓRDIA DE DEUS: A SAÍDA
DO “LABIRINTO”

Ao explicar sua abjuração do Romanismo e sua adesão à Igreja


Evangélica, José Manoel da Conceição fincou uma das estacas
permanentes da Reforma Evangélica da Religião no Brasil
(RIBEIRO, 1995, p. 41).

Como vimos, Conceição (1867, p. 9), vendo o labirinto


no qual se encontrava sem saber o que fazer, clamava: “Deus!
olha para nós com olhos de misericórdia!”. Ao mesmo tempo,
alimentava a sua fé. “Esperava porém, com uma convicção
inabalável, que Deus havia de olhar para sua igreja e havia de
assisti-la com o seu Santo Espírito”. Pois bem, ele não esperou
em vão; “a extremidade do homem é a oportunidade de Deus”
(CONCEIÇÃO, 1867, p. 13). Deus, misericordioso que é,
deu-lhe a consciência desta realidade; ele a percebeu:

Deus se compadeceu de minha miséria, e, de um modo para


mim inesperado e em tudo providencial, deu-me a conhecer
mais claramente a verdade, e fez-me sair do melindroso estado
espiritual em que me achava (CONCEIÇÃO, 1867, p. 13).

No primeiro semestre de 1863, Conceição, já convicto


de que deveria deixar a sua paróquia, expõe o seu problema ao
bispo, D. Sebastião Pinto do Rego, que, habilidosamente, faz-
lhe uma contraproposta: “Ele deixaria a função de vigário en-
comendado e o bispo o nomearia vigário da vara na comarca”
(RIBEIRO, 1995, p. 32). Nessa função não teria que celebrar
missas nem ministrar sacramentos. Essa “aposentadoria” pare-
ceu-lhe adequada. “Comprou sítio em Corumbataí, perto de
Rio Claro, para onde se mudou” (RIBEIRO, 1995, p. 33;
1979, p. 142).
Em 22 de outubro de 1863, o Rev. Blackford viajou
para o interior de São Paulo, visitando Campinas, Limeira,
São João do Rio Claro, Piracicaba, e as colônias alemãs de São
Jerônimo, Ibicaba, São Lourenço e Angélica. Retornou à Pro-
víncia de São Paulo em 18 de novembro de 1863. Foi durante
essa viagem que Blackford teve o seu primeiro contato com o
padre José Manoel da Conceição; o encontro ocorreu deste
modo: Ouvindo em Rio Claro falar a respeito de um “padre

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protestante”; após se informar a respeito, foi em companhia
de um amigo do padre à chácara de sua propriedade nas pro-
ximidades da cidade, onde o conheceu e teve uma boa impres-
são do padre. Conceição se entusiasmou, considerando a visita
do pastor como a de um mensageiro de Deus.

Quando Blackford se retirou uma eternidade de alegria inun-


dava o coração do padre. Sobre a mesa ficaram exemplares da
Bíblia e folhetos evangélicos, que Conceição levou para Brotas
e lá distribuiu (RIBEIRO, 1995, p. 33).

Surge, desde então, uma correspondência constante en-


tre os dois (RIBEIRO, 1979, p. 102-103,107).
Seis meses depois, quinta feira, 19 de maio, Conceição
estava em São Paulo, e uma das visitas que fez foi à casa de
Blackford:

Estava na sala com Blackford quando Lillie12 entrou. Sem


qualquer preâmbulo e sem cerimônia, a primeira coisa que ela
fez foi convidá-lo a passar-se da Igreja Romana para a
Evangélica. A surpresa o embaraçou, e não respondeu
(RIBEIRO, 1995, p. 34).

Durante cinco dias, teve oportunidade de conversar com


Blackford e também com Simonton, nascendo grande amiza-
de entre eles. Quando regressou para Corumbataí, já sabia o
que ia fazer: Estudar as doutrinas evangélicas e sair do romanis-
mo (RIBEIRO, 1995, p. 35; 1979, p. 107).
Conceição narra em tons vivos e emocionantes os aspec-
tos subjetivos da sua experiência espiritual, os quais tinham
como fundamento a obra objetiva e eficaz de Cristo:

[Deus] derramou a sua graça em meu coração; inclinou-me ou-


tro destino, mais digno de um anjo do que de um pobre peca-
dor, e ministrou-me os meios de segui-lo. Não pude recalcitrar.
Achei em Jesus Cristo crucificado, ressuscitado, glorificado e
pregado a todos no Evangelho, um Salvador compassivo e um
Advogado poderoso, e não pude senão seguir sua voz benigna
[...] (CONCEIÇÃO, 1867, p. 13-14).

12
Esposa de Blackford e irmã de Simonton.

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Para ele, não há outra saída senão romper com o ro-
manismo... “Não aguardava senão a primeira ocasião para
dizer-lhe o último adeus. A ocasião não faltou, nem eu a ela”
(IMPRENSA EVANGÉLICA, março de 1881, p. 73). Ele o
fez; sozinho, sem estardalhaço, sem companheiros e proteto-
res. Antes, porém, esteve na casa de Blackford no dia 23 de
setembro, tendo participado pela primeira vez de um culto
evangélico no domingo, 25, na Rua São José, nº 1, onde fica-
va a Congregação Presbiteriana em São Paulo. Com a ousadia
própria da simplicidade, diz:

Deus em sua infinita misericórdia dignou-se assistir-me


neste transe com sua graça, oferecendo-me uma oportu-
nidade para dar, em data de 28 de setembro de 1864, o
passo decisivo de depor nas mãos de D. Sebastião Pinto
do Rego, atual Bispo de São Paulo, o cargo que a minha
consciência não me permitia exercer mais (CONCEIÇÃO,
1867, p. 4)13.

A Imprensa Evangélica (3 jan. 1874, p. 1) resume: “De-


cidiu-se em 1864 a tudo abandonar por amor da verdade”.
A impressão que tenho é que Conceição, mesmo refle-
tindo detidamente sobre o assunto (RIBEIRO, 1995, p. 38),
não teve de início a noção clara das dimensões do seu ato; ele
não percebeu a revolução que estava criando simplesmente
por não poder fugir às suas convicções resultantes de sua fé
inabalável em Jesus Cristo e na Sua Palavra. Assim, com a
pureza de uma alma sincera e corajosa, diz:

Se houve de minha parte erro em demorar por tanto tem-


po a renúncia daquilo que não quadrava com a minha
consciência, tenho a consolação de sentir que Deus, que
só conhece o quanto me custou, tem me perdoado, com
todos os meus pecados também este, por amor de seu
Filho Jesus Cristo, cujo sangue purifica de toda a iniqui-
dade (CONCEIÇÃO, 1867, p. 14).

13
“Em setembro de [28 de setembro] 1864 separei-me da Igreja Romana desfazendo-me, no exercício de
um direito inalienável, de tudo quanto ela tinha pretendido me dar e impor” (CONCEIÇÃO, 1867,
p. 14). “Em 28 de setembro de 1864 participou ao Bispo de São Paulo sua definitiva retirada daquela
igreja, e a renúncia dos cargos que nela tinha exercido” (LIVRO DE ATAS DO PRESBITÉRIO DO
RIO DE JANEIRO, Sessão de 6/8/1875).

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6. 1864
Esse foi um ano de grandes mudanças na vida do padre
Conceição. Como vimos, em 28 de setembro ele rompeu com
o romanismo. Domingo, 9 de outubro, despertando a curio-
sidade de muitos, especialmente dos evangélicos do Rio de
Janeiro, Conceição pregou na Igreja do Rio, então localizada
na Rua Regente 42-A. Em 23 de outubro de 1864, fez sua
pública profissão de fé e foi batizado no mesmo lugar (LIVRO
DE ATAS DO PRESBITÉRIO DO RIO DE JANEIRO,
Sessão de 6/8/1875); o Rev. Blackford realizou a cerimônia. A
Igreja estava novamente cheia (TRAJANO, 1902, p. 15;
RIBEIRO, 1995, p. 44). Simonton (1982) registra: “Foi solene.
Terminada a cerimônia, fiz alguns comentários e depois ele,
de modo muito apropriado e em linguagem vigorosa explicou
o passo que tinha dado”14.
Nesse período está o Sr. Conceição envolvido com
Simonton, Blackford, Schneider e Santos Neves com a publica-
ção do jornal Imprensa Evangélica. Uma semana antes de a
Imprensa ser publicada, Simonton fez circular uma carta falando
do futuro lançamento e de seus objetivos15. Finalmente, na no dia
5 de novembro saiu o primeiro número com a tiragem de 450
exemplares (RIBEIRO, 1981, p. 97), impressos na Typographia
Universal de Laemmert16; todavia, em razão de ameaças sofridas
pelos editores, eles se negaram a imprimir o número seguinte
da Imprensa, “temendo que sua tipografia fosse atacada pelo
populacho açulado pelos padres” (O ESTANDARTE, 4 e
11/1/1912, p. 5). O 2º número da Imprensa, de 19/11/1864,
foi impresso na Typographia Perseverança, localizada à rua do
Hospício, 99 (Atual Buenos Aires)17. O jornal permaneceria
até 2 de julho de 189218.

14
Veja-se também: Livro de Atas do Presbitério do Rio de Janeiro, p. 164; Trajano (1902, p. 14); Ribeiro
(1981, p. 109).
15
Veja-se a transcrição dessa circular, no editorial da Imprensa Evangélica, 21/10/1865, p. 1-2.
16
Essa Tipografia, localizada à rua dos Inválidos, nº 71, pertencia aos protestantes Eduard Laemmert
e Heinrich Laemmert, que organizaram sua tipografia em 2 jan. 1838, a qual tornou-se, no século
XIX, a segunda maior e mais importante gráfica do Rio de Janeiro (visitada inclusive por D. Pedro
II em 9 jul. 1862), perdendo apenas para a Garnier.
17
Quanto à reação romana à Imprensa Evangélica e a relevância do jornal, veja-se Costa (1999, p. 47-57).
18
No Relatório ao Presbitério do Rio de Janeiro em agosto de 1868, relata o Rev. Schneider: “A
Imprensa Evangélica tem sido publicada sem interrupção alguma duas vezes cada mês durante o ano

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7. A SUA EXCOMUNHÃO E DEFESA –
OS PRINCÍPIOS DE SUA TEOLOGIA
As pressões para que Conceição reconsiderasse a sua po-
sição foram intensas. Blackford e Carvalhosa resumem:

A retirada de pregador tão eminente e conceituado do seio da


igreja romana não podia deixar de ser vivamente sentida pelos
dignitários e mais eclesiásticos desta comunhão. Estes se esfor-
çaram por todos os meios para reconduzi-lo para a comunhão
que havia deixado, mas em vão. As cartas que lhe dirigiram al-
tos dignitários da igreja romana, as seduções de seus amigos
mundanos, os processos que lhe foi feito muito depois de sua
retirada da igreja romana pelo juízo contencioso eclesiástico de
São Paulo por um cisma; aos motejos da gente ignorante e irre-
ligiosa, e a tudo que tivesse por fim direto e indireto reduzi-lo a
voltar para essa igreja, respondeu sempre com non possumus,
não do papa, mas do Evangelho.
Enquanto os agentes de Roma faziam uso de todos esses meios
para reavê-lo, José Manoel da Conceição, qual novo Saulo a
que Cristo se havia manifestado nas páginas do glorioso
Evangelho, que havia indagado na Escritura qual era a vontade
de Deus a seu respeito, ocupava-se com anunciar a seus seme-
lhantes a boa nova de salvação e em estudar a fim de preparar-se
para o ministério sagrado (LIVRO DE ATAS DO
PRESBITÉRIO DO RIO DE JANEIRO, Sessão de 6/8/1875,
p. 150-151).

Em 23 de abril de 1867 foi publicada no Correio Paulis-


tano uma Circular enviada às paróquias, acompanhada da sen-
tença condenatória de excomunhão que fora decretada em 19
de fevereiro de 1867. Na sua Resposta, Conceição transcreve
ambos os documentos19. Conceição elabora então a sua defesa,
fazendo um esboço autobiográfico e mostrando o que considera

inteiro e embora seja impossível dizer que tenhamos conseguido bons resultados, quantos almejamos,
contudo somos de opinião de não serem inúteis os trabalhos que com ela tivemos” (COLEÇÃO
CARVALHOSA, 8/8/1868). Para maiores detalhes sobre a Imprensa Evangélica, veja-se Costa
(2009b, p. 105-110).
19
O texto integral está transcrito em Conceição (1867, p. 5-6).

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a contradição existente entre o Evangelho de Nosso Senhor
Jesus Cristo e o ensino e a prática do romanismo. A esse texto
já nos referimos e continuaremos a fazê-lo ao longo deste artigo.
Lauresto (1912, p. 13-14) (pseudônimo de Nicolau
Soares do Couto Esher) comenta:

Nessa sua defesa, ele pulveriza de modo cabal todos os erros e


superstições das doutrinas romanas; e o folheto causou grande
sensação, principalmente naquele tempo, em que uma excomu-
nhão maior não era coisa para se desprezar ou ridicularizar,
como o é hoje em dia.

Ribeiro (1995, p. 68; 1981, p. 129 et seq.), comentan-


do a Resposta de Conceição, resume:

É sintético, claro, elegante, vigoroso, bíblico. Atinge o romanis-


mo no coração, a missa, que enseja o sacerdócio, o qual detém
os sacramentos pelos quais manipula os benefícios da expiação
feita no Calvário e conserva cativos os católicos romanos.

O próprio Conceição (1867, p. 15-16) finca as estacas:

Os pontos fundamentais desta exposição do plano da nossa re-


denção são três:
1º Pela morte da cruz Jesus Cristo pagou a dívida dos que se
salvam, e por conseguinte estes não têm de fazer expiação por si
mesmos, nem o sacrifício de Cristo se repete.
2º A condição de alguém ter o proveito desse pagamento é de
sua parte. A salvação é um dom concedido de graça aos que
crêem no Filho de Deus.
3º O dom do Espírito Santo acompanha a remissão dos peca-
dos; ele é o autor na nova vida interior em que consiste a essên-
cia do Cristianismo. Ele é o santificador; e os sacramentos, a
oração, a leitura e meditação das palavras de Deus são meios
cuja utilidade depende da sua colaboração.

Ele argumenta e prova que a Igreja Romana alterou fun-


damentalmente alguns pontos. Em sua exposição, Conceição
revela o quanto ele tinha uma visão Reformada das Escrituras.
Os pontos mencionados são estes:

1º Ela contesta e nega a suficiência da expiação feita sobre a


cruz [...]

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2º O segundo ponto alterado radicalmente, versa sobre as con-
dições indispensáveis a fim de que os homens tenham o provei-
to do pagamento feito por Cristo [...]
3º O terceiro ponto fundamental, que no ensino da Igreja
Romana está radicalmente alterado é a doutrina do Espírito
Santo (CONCEIÇÃO, 1867, p. 16-23).

Conceição (1867, p. 26) está convencido de que a


Reforma veio de Deus, Aquele que soberanamente usou os
missionários americanos. Segundo ele:

Não há reforma possível que não comece por reafirmar: 1º que


Cristo crucificado uma só vez no Calvário é a única e suficiente
expiação pelo pecado, e já não há mais oferenda pelo pecador;
2º, que os méritos de Cristo estão ao alcance de toda a alma
contrita e crente; 3º que a essência de uma vida cristã está na
reabilitação do homem interior, e não há força capaz de efetuar
tal transformação exceto o Espírito de Deus, com quem esta-
mos em contato imediato. Pedindo, receberemos; buscando,
acharemos; batendo, abrir-se-nos-á.

O fato de o padre Conceição ser o primeiro a romper


com o romanismo pode dar a impressão de que ele fosse o
único padre insatisfeito com a sua Igreja. Na realidade, por
meio de informações esparsas, podemos ter um quadro que
aponta para o fato de que havia outros padres em situação
idêntica a dele; só que, ao que parece, acomodaram as coisas,
não tendo a coragem e ousadia que ele teve.
O Rev. Kidder (1943; 1951), que viajou bastante pelo
Brasil no período de 1837-1840, comenta como foi procura-
do por padres desejosos de obterem um exemplar das Escritu-
ras, ainda que houvesse oposição de quando em quando por
parte do clero (COSTA, 2009b, p. 95-99).
Lessa (1935, p. 63; 1938, p. 100) nos diz:

Em Mogy-Mirim hospedava-se [Conceição] com o Padre José,


que se tornou assinante da Imprensa Evangélica. Passando por
ali com destino ao Rio, o vigário arranjou-lhe um camarada
para a viagem [João Soares], que depois se converteu à religião
evangélica [...].

Simonton (1982), em um de seus relatórios à Missão


(8 ago. 1865), diz que um padre procurou Schneider (1832-

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1910) para fazer a sua subscrição da Imprensa (LANDES,
1956, p. 48). Em 24 de janeiro de 1867, escreve dizendo
que “muito poucos subscritores recusaram renovar suas
subscrições. Padres em altas posições têm confessado que a
Imprensa é uma defensora da verdade” (grifo nosso)20.
Talvez a ousadia de Conceição tornara-se mais grave
para o clero pela sua própria estatura como intelectual, prega-
dor e pastor de seu rebanho: “Em toda parte onde paroquiou
ou pregou, era benquisto do povo e com justiça considerado
um dos maiores ornamentos da tribuna sagrada da diocese de
São Paulo”, diriam mais tarde os Revs. Blackford e Carvalhosa
(LIVRO DE ATAS DO PRESBITÉRIO DO RIO DE
JANEIRO, Sessão de 6/8/1875, p. 149).

8. O PRESBITÉRIO DO RIO E A
ORDENAÇÃO DE CONCEIÇÃO
O Sr. Conceição volta para Brotas e prega. Brotas se
tornará o grande celeiro de Reforma Evangélica (RIBEIRO,
1979; LÉONARD, 1981). Quando Chamberlain vai embora,
Conceição continua: “Está pronto, mas não sabe disso, nem,
muito menos, os pastores seus amigos. Ele intuitivamente e
guiado pelo Espírito, descobrirá” (RIBEIRO, 1995, p. 47). A
Igreja Presbiteriana crescia: agora, temos um Presbitério. As-
sim, no sábado, 16 de dezembro de 186521, organizou-se o

20
Cerqueira Leite, viajando como colportor por São Paulo e Minas, escreve em 30/8/1886 de Santo
Antonio da Cachoeira: “Aqui já estivemos com o vigário, e mostra ser uma bela pessoa; ele recolheu-nos
[estava em companhia de Miguel Torres] em sua sala, e conversamos muito tempo com ele sobre religião,
e em muitas coisas concorda conosco: deseja muito ouvir o Padre José Manoel pregar, e disse-nos que
a religião do Padre José Manoel pouca diferença faz da dele” (PEREIRA, 1912, p. 21). “Em setembro
do mesmo ano [1866], percorre ele [Cerqueira Leite] Sorocaba, Tatuí, Itapetininga, encontrando nesta
última cidade o padre Francisco de Assunção Albuquerque, ‘belo moço’ que se manifestou inteiramente
protestante, mas que não se descobria por medo do povo” (PEREIRA, 1912, p. 23). A Imprensa
Evangélica (1874, p. 104), relatando a perseguição havida em Campos, diz: “Os padres pregaram contra
a pregação do evangelho, e os devotos quebraram as janelas e cobriram com pasquins as paredes da casa
do ex-padre Dr. Canto, onde o pregador evangélico estava hospedado” (grifo nosso).
21
Simonton na ata citou janeiro de 1866; todavia, mais tarde verificou-se o erro e corrigiu-se na
própria ata apresentando a data de 16/12/1865. Para a verificação correta, o Presbitério do Rio
de Janeiro nomeou uma Comissão que deu seu relatório explicando o equívoco de Simonton.
Veja-se relatório da mesma Reunião do Presbitério do Rio de Janeiro de 6/9/1884, “nona sessão”

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Presbitério do Rio de Janeiro, em reunião na casa de Blackford,
à rua São José, nº 1 (Atual, Líbero Badaró), São Paulo22. O
Presbitério era composto por três pastores: A. G. Simonton, do
Presbitério de Carlisle; A. L. Blackford, do Presbitério de
Washington; e F.J.C. Schneider, do Presbitério de Ohio.
Blackford foi escolhido moderador, ficando Schneider como
secretário temporário e Simonton como secretário permanente.
O Presbitério do Rio de Janeiro (organizado em São Paulo)
ficou sob a jurisdição do Sínodo de Baltimore (LIVRO DE
ATAS DO PRESBITÉRIO DO RIO DE JANEIRO, p. 2).
Nesse mesmo dia, José Manoel da Conceição foi exami-
nado quanto ao seu desejo de ser ministro do Evangelho.
Registra a ata:

Principiando pelo exame de costume sobre os motivos


que influíram nele para que desejasse ser incumbido do
Ministério do Evangelho23, feitos outros de praxe e depois
Conceição declarou aceitar a Confissão de Fé [de
Westminster] e da Forma de Governo da Igreja
Presbiteriana. Mediante proposta de Simonton, o
Presbitério votou favorável, dispensando-o inclusive dos
“demais exames e formalidades exigidos”, não porém de
um sermão pregado como de praxe. Foi marcado o dia
seguinte às 10.30 hs. sendo inclusive indicado o texto do
sermão: Evangelho de Lucas, capítulo 4, versos 18 e 19
(LIVRO DE ATAS DO PRESBITÉRIO DO RIO DE
JANEIRO, p. 4-5; RIBEIRO, 1995, p. 54).

No dia seguinte à hora marcada, após a abertura da


Sessão, pregou Conceição com uma audiência de cerca de 25

(p. 371-372). A comissão era composta pelos pastores: A. L. Blackford (relator), F. J. C. Schneider e
Robert Lenington. Ao Rev. Modesto P. B. Carvalhosa, como secretário permanente do Presbitério,
coube a tarefa de providenciar a retificação onde coubesse. No final da primeira ata do Presbitério
a correção é feita com a assinatura de Carvalhosa (veja-se: LIVRO DE ATAS DO PRESBITÉRIO
DO RIO DE JANEIRO, p. 7).
22
O livro de atas tem em sua primeira página a inscrição: “Actas do Presbyterio do Rio de Janeiro
constituído em São Paulo a 16 de dezembro de 1865 – Livro Primeiro”.
23
Atas do Presbitério do Rio de Janeiro (p. 2-3).

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pessoas. O sermão foi aprovado. Às 17 horas, com a parênese
de Simonton baseada em 2 Coríntios 5, verso 20, o Presbitério
procedeu a ordenação do Rev. José Manoel da Conceição
(LIVRO DE ATAS DO PRESBITÉRIO DO RIO DE
JANEIRO, p. 6); o primeiro pastor brasileiro. O Presbitério
passou a contar agora com quatro pastores24. Ainda não havia
presbíteros na Igreja Presbiteriana no Brasil25. O Presbitério
era formado por três igrejas: a do Rio de Janeiro, a de São
Paulo e a de Brotas.

9. UMA VIAGEM MÉDICA E


MISSIONÁRIA

O meu estado de saúde é muito débil e precário, a continuar


como nos últimos tempos, antevejo que pouco poderei prestar,
mas enquanto puder prosseguir com a bênção de Deus, de
Quem só nos vem a graça, a força e a capacidade para o Seu
serviço (CONCEIÇÃO, Relatório 12/7/1867).

A saúde de Conceição não era boa. Na Imprensa, lemos


que ele “padecia, havia muitos anos, de uma grave enfermidade,
que as vezes o incapacitava por dias e semanas inteiras para
qualquer serviço” (IMPRENSA EVANGÉLICA, 3/1/1874,
p. 1; LIVRO DE ATAS DO PRESBITÉRIO DO RIO DE
JANEIRO, Sessão de 6/8/1875, p. 153). Em 1867, estimulado

24
Um dos participantes da reunião (Mc. F. Gaston), referindo-se à ordenação de Conceição, escreveu:
“Este acontecimento representa um passo importante no progresso do protestantismo neste país
papal; o caráter desse homem, e sua influência entre o povo, vão ter, fora de toda dúvida, efeito
considerável sobre a mente popular” (apud FERREIRA, 1992, v. 1, p. 61; RIBEIRO, 1981, p. 80).
25
Os primeiros oficiais só foram eleitos em 1866: Os diáconos, em 2/4/1866. Eram três: Guilherme
Ricardo Esher (de origem irlandesa), Camilo José Cardoso (de origem portuguesa) e Antonio Pinto de
Sousa (brasileiro). Os presbíteros, em 7/7/1866. Eram dois: Guilherme R. Esher e Pedro Perestrello
da Câmara (primo do futuro Rev. Modesto Carvalhosa). Todos foram ordenados no dia 9/7/1866,
permanecendo Guilherme R. Esher como Presbítero (SIMONTON, Relatório apresentado ao
Presbitério do Rio de Janeiro no dia 10/7/1866, p. 7-8; LESSA, 1938, p. 41; TRAJANO, 1902,
p. 8; FERREIRA, 1952, v. 1, p. 28-29).

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pelos amigos missionários, embarcou para os Estados Unidos
no navio inglês Eclipse (3 de agosto), desembarcando em New
York em 12 de setembro. Conceição levou consigo uma carta
de recomendação do Rev. Simonton, apresentando-a ao secre-
tário da Missão, Rev. Irving. Durante alguns dias, privou-se
da companhia de George Chamberlain, que se empenhava em
conseguir fundos para a construção do templo da Igreja no
Rio de Janeiro.
No seu descanso, começou a trabalhar na revisão de
uma tradução do Novo Testamento Grego para o português e
também a traduzir folhetos e artigos (RIBEIRO, 1995, p. 72).
Agora, a convite, tem a oportunidade de visitar as Igrejas de
fala portuguesa de Springfield e Jacksonville, no Illinois, gen-
tilmente acompanhado do Rev. Chamberlain. Essa coopera-
ção no trabalho se repetiria mais tarde no Brasil26. Simonton
(1982) já passara por essas Igrejas cinco anos antes, quando
pregou numa Igreja de uma colônia portuguesa em Jacksonville,
Illinois. “À tarde falei a quase trezentas pessoas na maior igreja
portuguesa da cidade. Nunca vi gente tão surpresa e contente
como eles, ao ver um americano falar sua língua”, registra em
seu Diário (24 dez. 1862; SIMONTON, 1902, p. 33).
Nessas viagens, aproveitou para conhecer alguns irmãos
de Simonton e, em outubro, começou a pregar nas referidas
igrejas. A permanência de Conceição foi de aproximadamente
oito meses nas igrejas de fala portuguesa. Aliás, o que Conceição
menos fez nessa viagem foi cuidar de sua saúde (LESSA, 1935,
p. 58). Mas a mudança de ares fez-lhe bem. Segundo o articu-
lista da Imprensa Evangélica, a sua pregação naquelas igrejas
teve “grande aceitação” (IMPRENSA EVANGÉLICA,
3/1/1874, p. 1; LIVRO DE ATAS DO PRESBITÉRIO DO
RIO DE JANEIRO, Sessão de 6/8/1875, p. 153). De fato, ele
estava para ser eleito seu pastor; todavia Conceição não acei-
tou: a sua missão era o Brasil (RIBEIRO, 1995, p. 72). Relata:

26
Conceição (Relatório de 14/8/1869), diz: “Em princípio de outubro voltei para São Paulo, e seguindo
para o Rio, acompanhei o Rev. Chamberlain visitando Angra do Reis e Parati. Dirigimo-nos a
Cunha e a Lorena, onde nos demoramos pregando ao povo, até que uma grande desordem veio
interromper nossos trabalhos...”.

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Residi, pregando nas ditas igrejas, cerca de oito meses, exerci ali
a medicina, o que me valeu a simpatia das igrejas e demais povo
das cidades. Esforcei-me também em todo o gênero de traba-
lho, fazendo quanto me era possível por honrar o meu ministé-
rio. Deixei as igrejas satisfeitas com o meu trabalho e pesarosas
com a minha partida; pelo que justamente demos graças a Deus
por nos haver sempre assistido com sua graça, conservando-nos
em paz e harmonia de fé e de caridade, a despeito de quaisquer
que fossem as circunstâncias e emergências que nos costumam
provar na vida (LESSA, 1935, p. 57).

Nesses oito meses, teve ainda oportunidade de viajar


por outras cidades norte-americanas, visitando templos pro-
testantes e católicos e algumas sinagogas. Apreciou bastante a
hospitalidade do povo americano.
Ainda que não totalmente restabelecido, regressou ao
Brasil em 23 de junho de 1868, embarcando no vapor
Mississipi, sendo acompanhado ao Porto pelos Revs. Irving e
Chamberlain. Desembarcou no Rio de Janeiro em 20 de julho
de 1868.
O trabalho não pode esperar; a reunião do Presbitério se
avizinha; assim, acompanhado dos Revs. Schneider e Black-
ford, embarca no dia 1º de agosto de 1868 para Santos no
vapor Santa Maria. Em 13 de agosto está em São Paulo
(CONCEIÇÃO, Relatório de 14/8/1869).

10. CONSIDERAÇÕES FINAIS


Neste artigo indicamos o início do protestantismo no
Brasil e o surgimento do primeiro pastor brasileiro, enfocando
suas angústias, pregação, contato com os missionários presbi-
terianos e adesão ao protestantismo. Aqui pretendemos evi-
denciar as dificuldades próprias de um religioso sincero que
com a mesma integridade anterior se esmera na divulgação de
sua nova fé. No próximo texto, trataremos do senso de urgên-
cia que caracterizou a itinerância desse reformador nativo, as
perseguições sofridas e as incompreensões das quais foi alvo,
mesmo entre aqueles que partilhavam de sua nova fé.

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JOSÉ MANOEL DA CONCEIÇÃO:
A NATIVE REFORMER

ABSTRACT
In this first of two articles, Costa describes aspects of the life and formation
of Rev. José Manoel da Conceição, the first Protestant minister of Brazil,
which, due to his teachings, even before joining the Protestant faith, was
known as “Protestant priest. “ It also analyses the moments of tension and
anxiety that marked the abandonment of his ancient faith and the adop-
tion of a new one, as well as his admission to the pastoral ministry in the
Presbyterian Church in Brazil.

KEYWORDS
José Manoel da Conceição; Presbyterianism; Brazilian Protestantism;
Protestantism; Brazilian Empire.

REFERÊNCIAS
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apresentado ao Presbitério do Rio de Janeiro. Relatórios
Pastorais, 1866-1875. Fonte manuscrita.
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do Rio de Janeiro. Relatórios Pastorais, 1866-1875. Fonte
manuscrita.
_______. Relatório de Simonton apresentado ao Presbitério
do Rio de Janeiro. Relatórios Pastorais, 1866-1875. Fonte
manuscrita.
CONCEIÇÃO, J. M. da. Sentença de excomunhão e sua
resposta. Rio de Janeiro: Typographia Perseverança, 1867.

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Hermisten Maia Pereira da Costa

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222 CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE


v. 9 • n. 2 • 2011

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R E S E NR E SHE N A
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ETHOS MUNDIAL: UM CONSENSO
MÍNIMO ENTRE OS HUMANOS,
DE LEONARDO BOFF

Edson Pereira Lopes


Diretor da Escola Superior de Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Professor do
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da UPM.
E-mail: [email protected]

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OBRA RESENHADA

BOFF, L. Ethos mundial: um consenso mínimo entre os


humanos. Brasília: Letraviva, 2000.

O objetivo da obra Ethos mundial: um consenso mí-


nimo entre os humanos está claramente exposto:

[...] é encontrar uma nova base de mudança necessária. Essa


base deveria apoiar-se em algo que fosse realmente comum e
global, de fácil compreensão e realmente viável. Partimos da
hipótese de que essa base deve ser ética, de uma ética mínima, a
partir da qual se abririam possibilidades de solução e de salva-
ção da Terra, da humanidade e dos desempregados estruturais
(BOFF, 2000, p. 19).

Tendo em mente esse pressuposto, o autor parte do


princípio de que há “três problemas que suscitam a urgência
de uma ética mundial: a crise social, a crisde do sistema de
trabalho e a crise ecológica, todas de dimensões planetárias”
(BOFF, 2000, p. 13).
Ele propõe uma possível definição de ethos:

[...] entendemos o conjunto das inspirações, dos valores e dos


princípios que orientarão as relações humanas para com a natu-
reza, para com a sociedade, para com as alteridades, para consi-

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go mesmo e para com o sentido transcendente da existência:
Deus (BOFF, 2000, p. 20).

A partir da sua definição, procura apresentar a irrupção


da consciência da terra como pátria e mátria comuns de todos
os seres, fundando o novo patamar da realização da história e
do próprio Planeta. Ora, se a Terra é algo comum ao ser hu-
mano, devem-se buscar soluções globais e uma ética planetá-
ria, pois “para uma realidade global, importa também uma
ética global” (BOFF, 2000, p. 26).
Para que ocorra a ética planetária, precisam ser criados
certos consensos, coordenar certas ações, coibir certas práticas
e elaborar expectativas e projetos coletivos. Surge então a ques-
tão da validade de uma referência ética e moral comum que
possa congregar a todos. Resta perguntar: como criar um con-
senso mínimo sobre valores éticos, válidos para todos os hu-
manos, que possam ajudar a debelar três questões globais: a
social, a do desemprego estrutural e a ecológica?
O autor apresenta seis formas principais de argumenta-
ção, que por sua vez, oferece uma eventual base para uma ética
planetária.
1. Utilitarismo social: tem a ver com práticas que que-
rem ser eficazes, na medida em que geram a maior felicidade e
realização para o maior número possível de pessoas.
2. A ética da ação comunicativa e da justiça: foi elabora-
da na escola crítica de Frankfurt. Neste contexto há certo des-
taque para Jürgen Habermas. A contribuição de Habermas e
outros da Escola de Frankfurt está no princípio de que a ética
com proposta mais ampla (concretização dos direitos do cida-
dão, da democracia etc), somente ocorrerá se houver esforço
em estabelecer o diálogo:

Uma sociedade moderna e democrática se constrói na medida


em que vive uma prática de comunicação permanente e alcança
seus consensos mediante o diálogo generalizado e o discurso ra-
zonado. Esta tendência ética e moral se baseia na confiança na
razão e na capacidade de argumentação e de convencimento
(BOFF, 2000, p. 59).

Nesse modelo ético, mostra-se um esforço construtivista


notável, quer dizer, a preocupação de somar perspectivas,

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elaborar consensos, estabelecer diretrizes de coordenação de
interesses e regras do jogo ético-social.
Há, todavia, um limite no projeto emancipatório de
Habermas, que atinge a questão ecológica, o reducionismo
antropocêntrico. “Na verdade, no seu projeto, a natureza não
entra no novo pacto social mundial, porquanto ela e os demais
seres são considerados como meros objetos da atividade e da
discursividade humana” (BOFF, 2000, p. 61).
O fato é que para Boff, ao propor “um pacto social uni-
versal”, de salvação à Terra ameaçada, compreende que a na-
tureza, os animais, as plantas e outros organismos vivos são
vistos como novos cidadãos que compõe a sociabilidade hu-
mana ampliada. “Somente compreendendo assim a natureza,
associada ao ser humano e à sociedade, poder-se-á pensar nu-
ma salvaguarda da Terra e da biosfera” (BOFF, 2000, p. 62).
Outra dificuldade, encontrada no projeto de Habermas,
diz respeito à abstração em demasia. Habermas não leva em
consideração as grandes maiorias, apenas propõe um processo
de dialogação global entre os blocos norte-sul, entre os conti-
nentes, nações e etnias, religiões e filosofias, no sentido de ga-
rantir o direito à vida a cada cidadão terrestre.
Além disso, devemos notar outros dois fatores: 1. o mo-
delo de Habermas está assentado sobre a experiência centro-
europeia de construção da ação comunicativa, não partindo
de uma base mais baixa e ampla, lá onde se situam as grandes
maiorias da humanidade que precisam ter garantido seu direi-
to de ser e de se expressar. Todavia, dentro do processo geral
de hominização, socialização e globalização, deve-se garantir a
cada povo o direito de poder continuar a existir como povo,
com sua própria cultura; 2. importa chegar a consensos míni-
mos com referência à satisfação das necessidades básicas de
comer, de vestir, de morar, de lazer, de ter saúde, de trabalhar
e de se comunicar com outros seres humanos. Disso percebe-
se que a proposta de Habermas novamente apresenta dificul-
dade, uma vez que propõe apenas a razão como soluções para
as dificuldades humanas.
O fato é que uma sociedade racionalizada comunicati-
vamente não tem condições, pela pura razão, por mais dialó-
gica que ela seja, de assegurar um horizonte de esperança e de
confiança para a humanidade. Junto com ela, precisamos res-
gatar outros exercícios da razão que se abrem para uma óptica

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mais ampla, base para uma ética melhor fundada. Boff (2000,
p. 64) aponta que o equívoco de Habermas partiu do pressu-
posto de que a sobrevida do planeta Terra está garantida, mas
hoje, sabemos que não está.
3. A ética fundada na natureza: qual natureza?: a ética
fundada na lei natural procura estabelecer uma base de refe-
rência comum para argumentação da qual todos possam par-
ticipar, pelo fato de todos serem portadores da mesma nature-
za humana. Nesse sentido, Boff compreende o homem da
seguinte forma: humano-parte-da natureza e o ser humano-
vis-à-vis (subjetividade livre e autônoma) à natureza (BOFF,
2000). Sendo o homem parte da natureza deve ser o gênio
protetor da dita natureza.
4. A Ética mundial fundada nas tradições religiosas:
nessa divisão o foco de Boff está em Hans Küng, cujo moto é:
“Um ethos mundial para uma política mundial e para uma
economia mundial” (BOFF, 2000, p. 76). Na proposta da
construção de um ethos mínimo mundial, Küng critica os mo-
delos vigentes de universalização ética, visto que, por conside-
rarem demasiadamente a razão, desprezaram a religião, que
funda de fato os comportamentos éticos da grande maioria da
humanidade. Na concepção de Küng, somente haverá um
ethos mundial se houver também paz entre as religiões. A paz
religiosa é a base para a paz política. Sendo assim, a proposta é
que se tenha um consenso sobre valores e atitudes comum
dentro das religiões, sob pena do perecimento de todas elas
(BOFF, 2000). Boff mostra que, apesar das religiões estarem
em guerra entre si, se olharmos mais profundamente, elas são
as grandes gestadoras de esperanças, dos grandes sonhos, de
integração, de salvação, de um destino transcendente do ser
humano e do universo. Todas elas reafirmam o futuro da vida,
contra a evidência cruel da morte. As religiões trabalham com
valores e anunciam sempre o Supremo Valor.
Sendo assim, preconiza, não obstante as diferenças dou-
trinais e os caminhos espirituais diversos, a religiões convergem
em alguns pontos, decisivos para um ethos mundial, como en-
fatizou Hans Küng:
• Cuidado com a vida – Todas as religiões defendem a vi-
da, especialmente aquela mais penalizada e sofrida.
• Comportamento ético elementar – Todas as religiões colo-
cam um imperativo categórico: não matar, não mentir,

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não roubar, não violentar, amar pai e mãe e ter carinho
para com as crianças. Esses imperativos, quando traduzi-
dos em nosso dialeto cultural, favorecem uma cultura de
veneração, de diálogo, de não violência ativa e de paz.
• A justa medida – As religiões procuram orientar as pes-
soas pelo caminho da sensatez, que significa a busca da
equidistância entre o legalismo e o libertinismo. Elas pro-
põem nem o desprezo do mundo, nem sua adoração,
nem o hedonismo, nem o ascetismo, nem o imanentis-
mo, nem o transcendentalismo, mas o justo equilíbrio
em todos esses domínios.
• Centralidade do amor – Todas as religiões pregam a in-
condicionalidade do amor. Com referência ao próxi-
mo, encontramos Confúcio (551-489 a. C.) pregando:
“O que não desejas para ti, não o faças a outro”. Jesus:
“Amem-se uns aos outros como eu vos tenho amado”.
Kant: “Age assim que a máxima de tua vontade seja ao
mesmo tempo o princípio de uma lei válida para todos”.
• Figuras éticas exemplares – As religiões não apresentam
apenas máximas e atitudes éticas, mas principalmente
figuras históricas concretas, paradigmas vivos, como
tantos mestres, santos e santas, heróis e heroínas: Buda,
Confúcio, Francisco de Assis, Gandhi, Luther King, en-
tre outros e outras.
• Definição de um sentido derradeiro – Nunca a morte tem
a última palavra, mas a vida, sua conservação, sua res-
surreição e sua eternidade. Todas postulam um fim bom
para a criação e uma destinação bem-aventurada para os
justos.

Todas essas perspectivas, profundamente humanas, são


elaboradas no interior das religiões e das tradições espirituais.
Elas são em si mesmas práticas éticas e impregnam a consciên-
cia de motivações poderosas para que as pessoas se disponham
a seguir apelos éticos, por mais onerosos que se apresentem, e
conferem-lhes a satisfação interior de estar em conformidade
com os apelos do coração e com as interpelações que nascem
da realidade global.
5. A ética fundada no pobre e no excluído: o quadro
referencial desta ética está na Teologia da Libertação.

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Partindo dessa parte maior, podemos nos abrir a todos os de-
mais, sentindo a urgência das mudanças necessárias, capazes de
garantir uma efetiva inclusão e universalidade. Deixando-os de
fora, teremos discursos éticos seletivos, encobridores, não uni-
versalizáveis e abstratos (BOFF, 2000, p. 85).

Deve-se notar que a ética possui um inegável caráter


messiânico, na medida em que ela intenciona salvar vidas, a
enxugar lágrimas, a despertar a compaixão e a incentivar a co-
laboração para que todos se sintam filhos e filhas da terra e
irmãos e irmãs uns dos outros (BOFF, 2000, p. 88).
6. Dignitas Terrae: uma ética econcentrada: a base desta
corrente ética é a Carta da Terra, que é um código universal de
conduta para os povos e as nações na direção de um futuro
sustentável (BOFF, 2000, p. 88-89). Boff (2000, p. 90-93)
nos proporciona um histórico sobre o texto da Carta. O méri-
to principal da Carta é colocar como eixo articulador a catego-
ria da inter-retro-relação de tudo com tudo. Isso lhe permite
sustentar o destino comum da Terra e da humanidade e reafir-
mar a convicção de que formamos uma grande comunidade
terrenal e cósmica (BOFF, 2000, p. 94). A Carta, no preâm-
bulo, afirma enfaticamente que a Terra está viva e com a hu-
manidade forma parte de um vasto universo em evolução.
Hoje ela está ameaçada em seu equilíbrio dinâmico, devido às
formas exploradoras e predatórias a que os seres humanos se
acostumaram. Em face desta situação global, temos o dever
sagrado de assegurar a vitalidade, a diversidade e a beleza de
nossa Casa Comum (BOFF, 2000, p. 94).
Esses são os princípios norteadores do livro de Boff. Há
algumas questões que devem ser mais bem discutidas, sobretu-
do quando ele trata das religiões. Não pode ser esquecido que
se trata de um autor influenciado pelo seguimento teológico
da libertação. Consideradas essas questões, trata-se de um re-
levante texto nas discussões da ética, com o viés das discussões
que tratam a respeito do meio ambiente, da religião, dentre
outras temáticas.

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REVISTA CIÊNCIAS DA RELIGIÃO, HISTÓRIA E SOCIEDADE

Projeto Gráfico e Capa LIBRO Comunicação


Diagramação Know-How Editorial
Formato 18,0 x 24,0 cm
Tipologia Garamond e Rubino Sans Fill
Número de páginas 232

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