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PETRAGLIA, Benito.

Machado de Assis e as crônicas de A Semana

MACHADO DE ASSIS E AS CRÔNICAS DE A SEMANA

Benito PETRAGLIA*

RESUMO
O artigo procura analisar as crônicas de A Semana (1892-1897), de Machado de Assis, publicadas
na Gazeta de Notícias. Através delas é possível conhecer de modo mais acessível o Machado
definitivo. Elas contêm material precioso para interpretação de seus romances e contos; além do
amplo panorama social e político que se descortina sobre o final do século XIX

Palavras-chave: Machado de Assis; Crônicas; A Semana.

A despeito das efemérides relativas ao centenário de nascimento de Rubem Braga, a


crônica é um gênero menor. Não há que ter pruridos em estabelecer hierarquias entre gêneros, ou ter
receio em ser literariamente incorreto. E nem me valho, se tal fosse preciso, do argumento de
autoridade para autenticar minha opinião. Poderia, assim, citar a frase de Antonio Candido: “A
crônica não é um ‘gênero maior” (CANDIDO, 1992, p.13); ou parafrasear Davi Arrigucci Jr, para
quem a crônica era uma espécie de preparação para o gênero maior – o romance. (ARRIGUCCI JR,
1987, p. 57, 58). Não, não seria preciso, a própria característica da forma crônica constitui-se numa
prova de auto evidência.
A crônica ajustou-se de tal maneira ao nosso modo de ser que se tornou lugar comum
afirmar que virou “gênero brasileiro”. A leveza, o humor, o lirismo, o registro coloquial, o ar de
conversa, enfim, aplicados aos comentários sobre os fatos do cotidiano consagram-na com aquele
título. Estes traços vão de par com o próprio caráter efêmero do meio em que originalmente se
abriga – o jornal.
Se este é o lado da produção, o outro lado, o da recepção, não é menos convincente em
demonstrar o que vai sendo dito. A atitude do leitor de crônica é, via de regra, distensa, relaxada,
tanto de corpo quanto de mente. De quem lê espichado na cama, de quem lê com olhos frouxos.
Nisso não vai nenhum desdouro em relação ao gênero, é simplesmente reconhecer um fato,
constatar a sua natureza dele. Era com prazer intenso que me deliciava com as crônicas saborosas
de Nelson Rodrigues. E, de tanto consumi-las, eis que acabava, até involuntariamente, por assimilar
e reproduzir o estilo do genial dramaturgo.

*
Universidade Federal Fluminense
E-mail: [email protected]

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Não se pode, portanto, exigir dela o que ela não pode conceder: a profundidade
alcançada pela ficção aberta do romance e do conto. Tanto isso é verdade que, ao reaproveitar
algumas delas em livro, o autor reúne as que, por suas características, confinam com a ficção. É o
caso de Machado de Assis, que, em Páginas recolhidas, ao lado de “Missa do Galo”, “Ideias de
canário” e outros contos, acolheu algumas crônicas de A Semana, crismando o que antes vinha sem
nome, como “O sermão do Diabo”, “Salteadores de Tessália” e “Vae soli! ”. Este último ilustra bem
o reaproveitamento de crônicas superiormente literárias, pois ele suprime do texto primitivo
passagens congeniais ao gênero menor.
Pronto, com o parágrafo precedente entro na matéria deste ensaio – Machado de Assis e
as crônicas de A Semana -, como o título anuncia.
Machado de Assis é o autor mais supinamente canônico da nossa literatura e, por isso,
em consequência, o de mais vasta fortuna crítica. Além disso, sua ambiguidade, seu olhar oblíquo e
dissimulado, como o de Capitu, dão margem a uma ampla variedade de leituras. Assim, ao longo do
tempo temos visto análises de todos os tipos: estruturalistas, marxistas, historicistas, econômicas,
antropológicas, culturalistas, filosóficas, psicológicas, psicanalíticas, psiquiátricas, bíblicas...
A obra de Machado de Assis tem sido esquadrinhada com a minúcia de quem procura
na mina esgotada os últimos vestígios de ouro. Com tudo isso, ainda há o que investigar, e, a meu
ver, são justamente as crônicas. Talvez elas tenham sido, de certo modo, negligenciadas pelas
razões concorrentes de, sendo textos de ocasião, carecerem, para sua compreensão plena, de edições
anotadas, que contextualizem os acontecimentos ali mencionados.
Mas esse panorama vem se modificando nos últimos anos com a publicação de várias
coletâneas de crônicas: O espelho, Comentários da semana, Histórias de quinze dias, Notas
semanais, Balas de estalo, Bons dias! A própria tradicional edição da Aguilar em três volumes foi
acrescida, em 2008, de um quarto volume, só de crônicas, aproximando-se, desse modo, mais da
verdade a designação Obra completa. E, à medida que vão ficando disponíveis, elas se constituem
em tema de artigos, dissertações e teses. Não é demais lembrar que Machado de Assis foi um
assíduo periodista, escrevendo por mais de 40 anos em vários órgãos da imprensa carioca, desde a
lendária e remota Marmota Fluminense até a Gazeta de Notícias, passando, entre outros, por
Correio Mercantil e Diário do Rio de Janeiro.
Quanto à coleção de A Semana, são crônicas publicadas entre 1892 e 1897, na Gazeta
de Notícias, às quais se somam duas avulsas de 1900, perfazendo 248. John Gledson, o mais
conhecido machadiano brazilianista, organizou um primeiro volume (1996) com as de 1892 e 1893,
prometendo os dois restantes, “dentro de um período relativamente curto”. Mas imagino o trabalho
imenso que deve ter tido para torná-las mais legíveis ao realizar, por assim dizer, um mergulho

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cultural na belle époque do Rio de Janeiro, percorrendo os jornais do tempo – Gazeta de Notícias,
Jornal do Comércio, O Paiz, Jornal do Brasil, Diário de Notícias, A Cidade do Rio, Rio News.
Eram crônicas, as de A Semana, que saíam aos domingos comentando os eventos da
semana anterior. Eventos a que Machado de Assis quase sempre não estava presente. Eram lidos e
glosados – “Contaram algumas folhas esta semana”... (05/02/1893); “Antes de relatar a semana,
costumo passar pelos olhos os jornais dos sete dias. ” (11/06/1893) -, diferentemente de João do
Rio, nas palavras de Magalhães Jr., o “primeiro grande repórter” do início do século XX, que
flanava pelas ruas para descobrir o que havia de encantador nelas.
Mas afinal o que há de tão significativo nessas crônicas a merecerem uma especial
atenção? Em primeiro lugar, são escritos machadianos, o que por si só já representa muito. Quando
Haroldo Maranhão encontrou, perdido nas páginas da Gazeta, o conto “Terpsícore”, revelou-se a
grandeza de uma narrativa singular. Há mais, porém, há mais. Nelas estamos diante do estilo do
último Machado, do Machado definitivo. Através delas descortina-se um amplo quadro histórico da
vida do país e do mundo, até onde as agências de notícias podiam alcançar, do fim do século XIX,
sob a ótica de um espectador cético, irônico e desencantado.
A expressão “último Machado” se justifica para mim, pois me coloco entre os que
dividem a obra dele em duas fases marcadas, tendo como marco de separação o romance Memórias
póstumas de Brás Cubas (1881); ao passo que outros tomam por evolução natural o que para mim é
na verdade uma ruptura. Nesse sentido, as crônicas são o melhor instrumento aferidor para
comprovar essa ruptura. É certo que poderíamos fazê-lo comparando os romances Ressurreição e
Dom Casmurro, cujo tema comum é o ciúme; ou um poema das Crisálidas e outro das Ocidentais;
ou um “conto fluminense” e uma “história sem data”.
Sim, poderíamos, mas a comprovação não seria clara, imediata, cristalina; ao contrário,
seria alusiva, mediata, velada. A linguagem literária, inerentemente polissêmica e metafórica, não
se deixa penetrar com facilidade. Não assim com as crônicas, porque nelas tende-se a revelar de
maneira mais nítida os pontos de vista de quem as escreve, sua face, digamos, civil; ainda que
aquelas crônicas finais exijam do leitor um escrutínio mais apurado em extrair a opinião de dentro
da matéria simulada. Lucia Miguel Pereira, numa de suas bem achadas intuições, imputa ao velho
Aires, personagem dos dois últimos romances – Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908) -,
as crônicas de A Semana.
Vamos, então, à comprovação. Um artigo de janeiro de 1859 no Correio Mercantil,
chamado “O jornal e o livro”, o jovem Machado, ainda por completar 20 anos, começa assim: “O
espírito humano, como o heliotrópio, olha sempre de face um sol que o atrai, e para o qual ele
caminha sem cessar – é a perfectibilidade.” (ASSIS, 2011, p. 44)

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A partir daí, procurava “demonstrar a possibilidade de aniquilamento do livro diante do


jornal”. Não me importa aqui registrar o equívoco desta predição. Quero assinalar a forma como o
faz dentro da ideia que expende. A superação do livro pelo jornal corresponde a uma ideia de
progresso, palavra que aparece sete vezes no texto; progresso significando não apenas avanço
técnico, mas “adiantamento moral da humanidade”. E à defesa de um progresso linear se ajusta a
sintaxe direta, enfática e peremptória de quem só tem certezas: “O jornal é a liberdade, é o povo, é a
consciência, é a esperança, é o trabalho, é a civilização. ” (ASSIS, 2011, p. 52)
Já a crônica de 26 de fevereiro de 1893 começa assim: “O que mais me encanta na
humanidade é a perfeição. ” (ASSIS, 2008, p.963) E agora o que vem depois não é a abonação da
frase, mas a sua negação. Ela é toda vazado em ironias, quase beirando o sarcasmo. São todos
conflitivos os acontecimentos que passa a apreciar: rivalidade mortal entre famílias em Ubá, ameaça
de guerra civil em Pernambuco, guerra federalista no Sul, tumultos na Espanha. Acontecimentos
terríveis justificados candidamente: “A vida está na variedade. ” Uma falange de antigos gatunos se
organizará para, “incumbida de apanhar os relógios e carteiras que os descuidados deixam cair,
restituí-los a seus donos. Tudo efeito de discursos morais. ” Aqui os “discursos morais” são puro
motejo, enquanto em 1859 o “adiantamento moral” era convicção verdadeira.
A ironia é a figura de linguagem central do segundo Machado, base do que se
convencionou chamar “machadiano”, isto é, a maneira ambígua e oblíqua de dizer. Das figuras é
uma das de mais difícil emprego, ausentes a entonação da voz e a expressão do gesto. Sua
realização se ampara apenas no contexto. E se na ficção o contexto é inventado, construído pela
linguagem, o que torna mais difícil depreender a ironia, na crônica ele preexiste ao autor, já está
previamente dado.
Poderia, para marcar a diferença entre os dois Machados, aduzir outros cotejos, mas
seria atulhar este ensaio com o que calha mais à dissertação ou tese. Ratifique-se somente que o
Machadinho, na expressão de Augusto Meyer, era ativo e propositivo, não trepidava em afirmar
suas posições: desejava entronizar Tiradentes em símbolo da pátria, em pleno Império; defendia
uma atitude belicosa e patriótica em relação à Guerra do Paraguai, contra o “tiranete” Solano
López; tinha incisivas opiniões anticlericais.
Era mais que tudo um combativo cronista liberal. No Diário do Rio de Janeiro, de 24 de
março de 1862, anunciava a próxima fundação do Jornal do Povo, “um jornal consagrado a
doutrinar o povo e a pugnar pelos interesses dele”, portanto, “será logicamente conduzido a pôr-se
do lado liberal que corresponde imediatamente às aspirações populares. ” (ASSIS, 2008, p. 68)
Entretanto, o escritor desencantado de 2 de junho de 1895 começa assim texto semanal
que rende homenagem a Saldanha Marinho, morto recentemente:

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Quando me deram notícia da morte de Saldanha Marinho, veio-me à lembrança


aquele dia de julho de 1868, em que a Câmara liberal viu entrar pela porta o Partido
Conservador. Há vinte e sete anos; mas os acontecimentos foram tais e tantos, depois disso,
que parece muito mais.
Os liberais voltaram mais tarde, tornaram a cair e a voltar, como os conservadores, e
com uns e outros o império. (ASSIS, 2008, p. 1177)

Liberais e conservadores são embrulhados dentro da sucessão vertical de quedas e


ascensões ao longo do tempo até a extinção de ambos com o fim do Império. Liberal, Conservador,
República, Império – ainda que comente as vicissitudes do mundo político, nunca se absteve de
comentá-las, o desiludido Machado não põe nele nenhuma esperança. Nessa altura, o remédio e
refúgio de que se vale é o tempo sem tempo da fruição da arte, como nos mostra esta passagem da
crônica de 26 de abril de 1896:

Guerras africanas, rebeliões asiáticas, [...] agitação política, o socialismo, a anarquia, a crise
européia [...], que me importa tudo isso? [...]
Um dia, quando já não houver Império Britânico nem República Norte-americana, haverá
Shakespeare; quando se não falar inglês, falar-se-á Shakespeare. Que valerão então todas as
atuais discórdias? (grifos meus) (ASSIS, 2008, p. 1273-1274)

Creio que ficou mais ou menos demonstrado, por estes poucos exemplos, a diferença
entre os dois Machados, diferença, de resto, já apontada por críticos da envergadura de Lucia
Miguel Pereira ou Alfredo Bosi, o qual, a respeito dela, emite um juízo lapidar, que vale a pena
referir: “As várias hipóteses sobre a gênese do Machado maduro, cético e ‘clássico’, embora
plausíveis, não dão conta da profundidade da mudança, que foi estrutural, ideológica, estilística e,
em sentido lato, existencial.” (BOSI, 2006, p.80)
Há também nelas singularidades como a de um Machado visionário antecipando em 7
de junho de 1896 a ligação física entre Rio e Niterói: “Um dia, quem sabe? lançaremos uma ponte
entre esta cidade e Niterói, uma ponte política, entenda-se, nada impedindo que também se faça
uma ponte de ferro.”(ASSIS, 2008, p. 1286) E, como disse, há as crônicas puramente literárias. É
verdade que são poucas, muito poucas, no entanto, são pepitas de apreciado valor, em que o
acontecimento é sublimado à última potência, transfigurado pelo engenho e arte do escritor, como o
relato patético do menino Abílio, de dois anos, abandonado pelos pais e deixado a morrer numa
estrebaria, bicado por galinhas (16/06/1895).
Além de quadro histórico, instrumento aferidor e peça literária, os textos de A Semana
podem desempenhar outro papel relevante para o estudioso da obra do autor de Quincas Borba:
servir exatamente como um recurso adicional para a interpretação dela; recurso nada desprezível
para quem não faça do exercício crítico um parti pris teórico, para quem advogue certo ecletismo
crítico e julgue válido tudo que leve água para o moinho da interpretação. São achegas que

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contribuem para o conhecimento sobretudo dos romances da segunda fase machadiana, como
naturalmente se deveria esperar.
Elas nos ajudariam, por exemplo, a nos familiarizar com um tema caro ao escritor
carioca, e como tal percebido pela sua leitura delas: o tema do desconcerto do mundo, da
contradição entre os homens figurado pela imagem de Deus e do Diabo. Num capítulo de Dom
Casmurro (1899) – “A ópera” –, Marcolini, um velho tenor italiano, concebe a vida como uma
ópera, em que “Deus é o poeta” e a “música é de Satanás”.
Antes disso, porém, em pelo menos três textos de A Semana, essa concepção é
apresentada sob outras variantes:
- Em 04/09/1892: O cronista descobre entre papéis velhos, fragmentos de um evangelho
do Diabo. “Não se apavorem as almas católicas. Já Santo Agostinho dizia que ‘a igreja do Diabo
imita a igreja de Deus’”.(ASSIS, 1990, p. 151)
- Em 01/01/1893: Deus abandonou o mundo, desgostoso da obra e o “passou ao Diabo
sem custo”.ASSIS, 2008, p. 949)
- Em 05/02/1893: Um açougueiro imagina o mundo como uma balança. “Para mim,
tenho que o quilo mal pesado foi inventado por Deus, e o bem pesado pelo Diabo; mas meus
fregueses pensam o contrário, daí um povo de cismáticos, uma raça perversa e corrupta...”(ASSIS,
2008, p. 958)
Machado de Assis talvez tenha formulado a química social que nos constitui como seres
brasileiros na mistura da galhofa com a melancolia. É o que está escrito por Brás Cubas no prólogo
– “Ao leitor” – de suas Memórias – “escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. Mas
porventura encontraremos uma explicação mais elaborada de seus elementos, uma análise de seus
componentes, em 25 de agosto de 1895, num comentário a um livro de Magalhães de Azeredo.
Nota nele uma “feição mesclada de ingenuidade e melancolia. A melancolia corrige a ingenuidade,
dando-lhe a intuição do mal mundano; a ingenuidade tempera a melancolia, tirando-lhe o que possa
haver triste ou pesado nela. ” Creio que não se perde muito em substituir galhofa por ingenuidade.
No entanto, me parece que há maior afinidade entre A Semana e Esaú e Jacó, por ser
este o romance, por assim dizer, “histórico” de Machado de Assis, ou melhor, em que há referências
aos eventos mais relevantes da passagem da monarquia à república, como a lei do ventre livre, a
abolição, a proclamação da república, o encilhamento, a guerra federalista no sul, fatos amplamente
comentados por ele nas crônicas.
A afinidade é de estilo: “Botam tinta, mais tinta, outra tinta, muita tinta, nova tinta”.
(Esaú e Jacó; cap. XXXIV – “Inexplicável”); “Criaram-me a carne, mais carne, ainda carne,
sempre carne”. (05/03/1893)
É de tema:

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O capítulo XXXIX (“Um gatuno”) de Esaú e Jacó é um dos capítulos digressivos do


romance. Ele narra um episódio presenciado por Aires. No largo da Carioca ele vê um grupo de 50
ou 60 pessoas protestando contra a prisão de um homem, que era conduzido para a estação por duas
praças de polícia. “Tratava-se, ao que parece, do furto de uma carteira”. O preso reclama inocência
– “- Não furtei nada!” -, se recusava a seguir para a estação – “- Não sigo!”. As pessoas em volta o
apoiavam:

- Não siga! bradava a gente anônima. Não siga! não siga!


Uma das praças quis convencer à multidão que era verdade, que o sujeito furtara uma
carteira, e o desassossego pareceu minorar um pouco; mas, indo à praça a andar com a
outra e o preso, - cada uma pegando-lhe um dos braços, - a multidão recomeçou a bradar
contra a violência. (ASSIS, 1975, p. 136 - 137)

Aires se desvia da cena, entra numa repartição pública. Quando sai, encontra ainda
pessoas “comentando a prisão e o ladrão. Não diziam ladrão, mas gatuno, fiando que era mais doce,
e tanto bradavam há pouco contra a ação das praças, como riam agora das lástimas do preso. - Ora o
sujeito!”
Agora um episódio bem semelhante na crônica de 24 de maio de 1896:

Li que um agente de polícia, entrando em um bonde no largo da Lapa, descobriu


certo número de gatunos entre os passageiros. Alguns preparavam-se contra um velho, e o
agente preparou-se contra eles. No largo da Carioca o velho pôde escapar à tentativa, mas o
agente, auxiliado de um praça, capturou alguns; a maior parte fugiu. Até aqui tudo é vulgar
como um maçador de bonde. O resto não é raro nem original, mas é grandioso.
Cerca de quinhentas pessoas aglomeraram-se no largo, em volta dos presos e dos
agentes da força. O primeiro grito, o grito largo e enorme foi: Não pode! Não pode!
Quando este grito sai dos peitos da multidão, é como a voz da liberdade de todos os séculos
opressos. A primeira idéia de quinhentas pessoas juntas, ou menos (cinqüenta bastam), é
que toda prisão é iníqua, todo agente da autoridade um verdugo. Imagine-se o que
aconteceria no largo da Carioca, se o agente não tivesse ocasião de contar o que se passara
e a qualidade das pessoas presas. A explicação abrandou os espíritos, e salvo alguns que,
passando ao extremo oposto, gritaram: Mata! Mata! todos se conformaram com a simples
prisão. Os gatunos é que se não conformaram com a delegacia para onde os queriam levar.
Iam ser conduzidos à 5ª delegacia e pediram a 6ª, por ser aquela onde haviam sido presos.
(ASSIS, 2008, p. 1282)

O comentário do episódio no romance:

Ao cabo, havia um fundo de justiça naquela manifestação dupla e contraditória; foi o que
ele [Aires] pensou. Depois, imaginou que a grita da multidão protestante era filha de um
velho instinto de resistência à autoridade. Advertiu que o homem uma vez criado
desobedeceu logo ao Criador, que aliás lhe dera um paraíso para viver; mas não há paraíso
que valha o gosto da oposição. (ASSIS, 1975, p. 137)

O comentário na crônica está parcialmente expresso no trecho citado: “Quando este


grito sai dos peitos da multidão, é como a voz da liberdade de todos os séculos opressos. ” A outra
parte vem nos três períodos finais:

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Esta preocupação de observância regulamentar, em simples gatunos, faz descrer do vício.


Em todo caso, vemos que o vicioso, desde que não pode escapar à justiça, tem a virtude de
reclamar pela lei. O virtuoso, antes de saber do vício, clama já contra a repressão. (ASSIS,
2008, 1282)

Tudo indica tratar-se de um fato realmente acontecido e aproveitado quase por inteiro
na obra ficcional. O comentário fere o tema central de Esaú e Jacó, o tema da contradição, a par da
duplicidade e do relativismo moral dos atos humanos, da conversão do bem em mal, do vício em
virtude.
Pronto, basta! Como disse, não quero atulhar o texto com outro exemplo, com mais
exemplo, com muito exemplo... E poderia fazê-lo. Poderia ainda associar as crônicas a contos como
“Pai contra mãe”, “Adão e Eva”, “A igreja do Diabo”. Entretanto, não convém produzir citações de
cambulhada sem a oportunidade de explicá-las com mais vagar. Por isso, o objetivo essencial deste
ensaio é, na verdade, deixar apontado um caminho, sugerir uma abordagem, entre outras possíveis,
para o estudo dos textos de A Semana. Seria este, então, uma espécie ensaio de um ensaio, ou um
ensaio-proposta.
Se me coubesse, pois, elaborar uma dissertação ou desenvolver uma tese tendo como
assunto o conjunto de crônicas de A Semana, começaria por submetê-las a uma primeira divisão
geral: “notícias do mundo”, “notícias do país” e “matéria literária”.
Cada um desses tópicos, por sua vez, se dividiria em subtópicos. “Notícias do mundo”
se partiria em dois: as notícias só do mundo como a ascensão dos EUA, o assassinato de odaliscas
na Turquia, a corrupção na construção do Canal do Panamá; e as notícias do mundo em conexão
com a realidade do país como as eleições parlamentares na Inglaterra e a hipótese – desejo? – da
volta do parlamentarismo no Brasil, a diferença das manifestações políticas na Argentina e no
Brasil – “Há uma força íntima que nos impele a fazer de uma calamidade uma gravata, e de um tiro
mortal um ósculo comprido. Não; nós não levamos a paixão política ao ponto a que a levou agora a
gente do Rosário, província Argentina. ” (13/08/1893).
“Notícias do país” se separaria também em dois: o fait divers, as variedades, as notícias
do cotidiano, como a inauguração do bonde elétrico, a instituição do jogo do bicho, a destruição do
cortiço “Cabeça de porco” pelo prefeito Barata Ribeiro; e as notícias políticas como certas
demonstrações de nostalgia imperial e, sobretudo, as denúncias de nossas mazelas eleitorais –
abstenção, fraude, violência.
E, finalmente, a “matéria literária” se distribuiria por três subtópicos: a que tivesse
relação com sua obra; a de cariz puramente literário; e a que não tivesse relação com sua obra,
como certos comentários sobre escritores (Alexandre Dumas, Renan, Gonçalves Dias), as infalíveis
citações de Shakespeare, as ênfases à suprema virtude da arte (“A República da Arte é anterior às

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nossas constituições e superior às nossas competências” – 20/09/1896; “Os direitos da imaginação e


da poesia hão de sempre achar inimiga uma sociedade industrial e burguesa.” – 31/01/1897), o
exame de livros de autores do tempo (Lúcio de Mendonça, Coelho Neto, Magalhães de Azeredo; a
interessantíssima análise do romance Flor de sangue, de Valentim Magalhães, que faz muito
lembrar sua famosa crítica ao Primo Basílio).
Agora, no ato mesmo de compor este ensaio, mais convenço-me da complexidade de
perspectivas que pode abarcar a obra do criador de Capitu. Fica mais fácil entender a vastidão de
sua fortuna crítica, que, não tenho dúvida, perenemente perdurará em aberto a novas entradas. Ele
pertence àquela categoria de artistas, como um Fernando Pessoa, um Antonio Vieira, um Guimarães
Rosa, o seu amado Shakespeare, que demandam uma dedicação diuturna e miúda por parte de quem
se arroga a pretensão de estudá-los; em suma, Machado de Assis é para vida toda.

MACHADO DE ASSIS AND THE CHRONICLES OF THE WEEK

ABSTRACT
This article analizes Machado de Assis’chronicles in the column The Week (1892-1897), published
in the newspaper Gazeta de Notícias. Through them, it is possible to know, in a more affordable
way, the definitive Machado. They contain precious material for interpretation of their novels and
short stories; moreover, it presents the wide political and social panorama that arises in the late
nineteenth century.

Keywords: Machado de Assis; Chronicles; The Week

REFERÊNCIAS

ARRIGUCCI JR, David. Fragmentos sobre a crônica. In: ARRIGUCCI JR, David. Enigma e
comentário: ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

ASSIS, Machado de. O jornal e o livro. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

______ . Machado de. Esaú e Jacó. Brasília; INL; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

______ . Obra completa. V. 4. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.

______ . Páginas recolhidas. Rio de Janeiro: Garnier, 1990.

BOSI, Alfredo. Brás Cubas em três versões. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

CANDIDO, Antonio. A vida ao rés do chão. In: A crônica: o gênero, sua fixação e suas
transformações no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992.

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