Guia DomCasmurro

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GUIA DE LEITURA

DOM CASMURRO
Índice

Biografia de Machado de Assis 3


Dom Casmurro 14
1. Apresentação 14
2. Resumo 16
A. A Infância em Mata-cavalos 16
B. O Seminário 20
C. A vida conjugal 24
D. Os Surtos de Ciúmes 25
Referências Bibliográficas 29
Biografia de Machado de Assis

E se um gênio aparecesse diante de ti,


e rompesse as correntes que nos aprisionam
a essa miserável vida cotidiana – o que tu farias?
(E.T.A. Hoffman, Werke, p. 1103)

Tal como as locomotivas a vapor da época, o século XIX no Brasil foi


sobejo de movimento. Em especial no Rio de Janeiro, uma cidade
que se modificou e modernizou intensamente. Entre alguns aconte-
cimentos históricos importantes, vale lembrar a chegada da família
real portuguesa ao Brasil (1808), a Independência do Brasil (1822), a
Outorga da 1ª Constituição (1824), Dom Pedro I deixando o trono
(1831), o início da Guerra dos Farrapos (1835), Dom Pedro II assu-
mindo o trono (1847), a Lei Eusébio de Queiroz proibindo o tráfico
de escravos (1850), Princesa Isabel assinando a Lei Áurea e abolindo
a escravidão (1888) e a Proclamação da República (1889). Aos vinte e
um de junho de 1839, nasce Joaquim Maria Machado de Assis, aquele
que se tornaria, segundo Harold Bloom, “o maior escritor negro de
todos os tempos”.

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O Rio de Janeiro, cidade de seu nascimento, era então o coração do
Brasil e centro de decisões do Império, de onde Machado podia tes-
temunhar em primeira mão todo o alarido político sem perder, no
entanto, a visão das coisas que a ferrugem do tempo não corrompe. O
Rio de Janeiro contava com uma população de apenas duzentos mil
habitantes, sendo metade dela de escravos. As condições de vida eram
cruéis, a ponto de ser considerada “a capital das epidemias”. A grande
maioria da população era analfabeta.

A família de que descende Machado de Assis não era nobre nem in-
fluente. Filho de Francisco José de Assis, escravo alforriado que tra-
balhava como pintor, e de Maria Leopoldina da Câmara Machado,
lavadeira, Machado de Assis e seus pais eram agregados de Dona Maria
José de Mendonça Barroso Pereira, viúva do senador Bento Barroso
Pereira. Machado de Assis tinha apenas onze anos quando da promul-
gação da Lei Eusébio de Queiroz, proibindo o tráfico de escravos. Pou-
co se sabe de sua infância, dadas as condições de vida de um “moleque
de morro” como outros tantos da época. A documentação existente
nos permite saber, no entanto, que Machado era relativamente um
privilegiado, por ter pai e mãe alfabetizados. Com provável acesso aos
donos da chácara onde vivia, Machado de Assis teve chance de ter uma
formação e, principalmente, uma autoformação que lhe permitiu sair
acima da média em relação aos seus pares nos estudos.

Aos dezessete anos, começa a trabalhar como aprendiz de tipógrafo


na Tipografia Nacional que, durante a época do Segundo Reinado,
era composta por um administrador e quatro seções: Escrituração e

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Contabilidade, Depósito, Oficina de Composição e Escola de Com-
positores e Oficina de Impressão e Escola de Impressores1. Ocupando
tal cargo, o jovem Machado de Assis teve a oportunidade de, logo
cedo, entrar em contato com os grandes escritores de seu tempo, bem
como de despertar em si o gosto e refinamento literário. De acordo
com o que narra a História da Literatura Brasileira de Sílvio Romero,
o emprego deu chance a Machado de Assis de tomar conhecimento e
parte na Sociedade Petalógica, uma sociedade de homens letrados que
funcionava na Livraria de Paula Brito, cujo objetivo era o estudo da
mentira, da lorota, da peta (donde “petalógica”). Sobre a Sociedade,
Machado de Assis comenta em uma crônica de 3 de janeiro de 1865:

“Este livro é uma recordação, – é a recordação da Petalógica


dos primeiros tempos, a Petalógica de Paula Brito – o café
Procópio de certa época, – onde ia toda a gente, os políti-
cos, os poetas, os dramaturgos, os artistas, os viajantes, os
simples amadores, amigos e curiosos, – onde se conversava
de tudo – desde a retirada de um ministro até a pirueta da
dançarina da moda; onde se discutia tudo, desde o dó de
peito do Tamberlick até os discursos do marquês de Para-
ná, verdadeiro campo neutro onde o estreante das letras
se encontrava com o conselheiro, onde o cantor italiano
dialogava com o ex-ministro”.

É de se imaginar os encontros com pessoas as mais interessantes pos-


sível, os aconselhamentos que Machado de Assis recebia, os longos

1 BELLO, Oliveira. Imprensa Nacional 1808-1908: apontamentos históricos. Rio de Janeiro: Imprensa Na-
cional, 1908.

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colóquios sobre a filosofia e as artes, as muitas observações que ele
próprio pôde fazer da alma humana e da vida. Toda essa riqueza, nas
mãos do bom artista, formou a matéria-prima do que encontramos em
seus escritos. A Livraria unia num só lugar os mais importantes nomes
do romantismo de 1840 a 1860 e pessoas de todas as frentes artísticas:
poesia, prosa, música e artes plásticas. Eram frequentadores, por exem-
plo: Gonçalves Dias, Laurindo Rabelo, Joaquim Manuel de Macedo,
Manuel Antônio de Almeida, Teixeira de Souza, Francisco Manuel da
Silva, Manuel Araújo Porto Alegre e João Caetano dos Santos.

Bem certo estava Cícero, ao questionar, em seu Da Amizade: “Como


podes viver uma vida que não se apoie na benevolência de um amigo?
Pode haver algo mais doce do que ter alguém com quem falar de to-
das as coisas como falas consigo mesmo? Que vantagens haverias nas
coisas prósperas se não houvesse quem desfrutasse delas como tu mes-
mo?” Para quem aspira à vida do espírito, ou seja, à vida intelectual e
artística, é imprescindível (e mesmo muito natural) que busque e seja
atraído pela companhia de seus semelhantes. Foi o que aconteceu com
Machado de Assis.

Quão benéficas terão sido para Machado as frequentações que a So-


ciedade lhe proporcionou, seja pelos afetos desinteressados, seja pelas
benevolências recíprocas, mal podemos imaginar. De todo modo, Ma-
chado de Assis pôde contar com diversos apadrinhamentos literários,
como, por exemplo, o de Manuel Antônio de Almeida, autor de Me-
mórias de um Sargento de Milícias, primeiro grande romance urbano da
literatura brasileira. Aos vinte anos, já se tornava redator do Diário do

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Rio de Janeiro, nas seções de nomes: Revista Dramática, Comentários da
Semana, Conversas Hebdomadárias, Ao Acaso, Semana Literária e Cartas
Fluminenses.

Além de seu nome, escrevia sob os pseudônimos de Gil, Job e Pla-


tão, e escrevia, segundo José Veríssimo em sua importante História da
Literatura Brasileira, com “tom melancolicamente sentimental, a reli-
giosidade romântica e também laivos de descrença, da poesia daquele
decênio”. Em suas crônicas, de estilo claro e cortês, buscava sempre a
mais direta comunicação com o público, já ensaiando ali o estilo que
levaria para a ficção, com elementos de ironia e obliquidade. Muito
mais que outros cronistas da época, como José de Alencar, Gonçalves
Dias ou Martins Penna, Machado tem uma importância sem par no
gênero, sendo considerado o fundador da crônica moderna brasileira.

Em 1864, com vinte e um anos, publica sua primeira obra, o livro de


poesia Crisálidas, abundante de perfeição técnica formal, mesmo nos
versos alexandrinos, ainda de pouco costume na literatura lusófona.
Sílvio Romero, sobre as poesias de Machado de Assis, afirma que a
“índole do talento de Machado de Assis não era a de um apaixonado e
ardente poeta. Faltava-lhe a imaginação vivace, alada, rápida, apreen-
sora, capaz de reproduzir as cenas da natureza ou da sociedade, e daí a
sua incapacidade descritiva e seu desprazer pela paisagem”. Juízo duro
para uma poesia que acaba de desabrochar, mas o trabalho incansável e
incessante após sua primeira publicação é prova de como se forjam os
grandes gênios: genialidade é esforço. Segundo narra Veríssimo:

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“A data do seu nascimento e do seu aparecimento na li-
teratura o fazem da última geração romântica. Mas a sua
índole literária avessa a escolas, a sua singular personalida-
de, que lhe não consentiu jamais matricular-se em alguma,
quase desde os seus princípios fizeram dele um escritor à
parte, que tendo atravessado vários momentos e correntes
literárias, a nenhuma realmente aderiu senão mui parcial-
mente, guardando sempre a sua isenção”2.

Em 1862 publica Aspiração e, em 1864, Versos a Corina. Naquela épo-


ca, já era amigo de José de Alencar, seu grande ídolo da juventude. Tal
juventude, Machado a investiu toda na embrionária, porém agitada
vida cultural do Rio de Janeiro. Em 1866, desembarca no Brasil, vin-
da de Portugal, Carolina Xavier de Novais. Carolina era irmã de um
poeta amigo de Machado, Faustino Xavier de Novais e, como o irmão,
era uma moça muito culta, amante da literatura e acostumada ao con-
vívio de grandes escritores do Porto. Machado de Assis e Carolina se
conheceram um ano depois, quando Machado tinha vinte e oito anos
e ela, trinta e um. Trocavam cartas. A ela, “Machadinho” escreve: “tu
pertences ao pequeno número de mulheres que ainda sabem amar,
sentir e pensar”. Então funcionário público, em 1869 se casa com Ca-
rolina, contra a vontade da família da moça, dadas as origens pobres
de Machado. Um ano após seu casamento, Machado consegue crescer
nos cargos públicos e galga lugares no Ministério da Agricultura, do

2 VERISSIMO, José. História da Literatura Brasileira - de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908).
3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954 (Col. Documentos brasileiros, nº74).Cap XIX, Machado de As-
sis pp. 343-359.

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Comércio, das Obras Públicas e, assim, adquire melhores condições
financeiras. À essa época, publica seu primeiro romance Ressurreição.

O papel que Carolina Xavier teve na vida literária de Machado de


Assis foi grande. Apresentou a ele clássicos da literatura portuguesa
e inglesa, o que teve poder de impactar o estilo do escritor ao lon-
go de seu amadurecimento estilístico. No mais, ela lhe serviu de fiel
companheira e assistente pessoal de seus escritos, muitas vezes manus-
crevendo o que o marido lhe ditava. Pode-se dizer que, por vocação
própria, Carolina desposou a vocação do marido, a ponto de Machado
a chamar de melhor parte de sua vida. Segundo uma entrevista conce-
dida à Folha de São Paulo em 09 de Abril de 1999 por Ruth Leitão de
Carvalho Lima, sobrinha-neta de Machado e Carolina, é possível que
algumas das obras de Machado de Assis tenham sido escritas a quatro
mãos: “Mamãe contava que algumas vezes ouviu tia Carolina receber o
marido, que chegava do trabalho, com a frase: ‘Machadinho, terminei
o capítulo que você estava escrevendo. Você estava sendo muito mau
com aquela moça, e eu mudei tudo’. Ele ria e concordava, não mexen-
do mais nos escritos”.

Quando do falecimento da amada, Machado de Assis ficou doente e


entrou em depressão. Escreveu a Nabuco as seguintes linhas:

“Foi-se a melhor parte da minha vida, e aqui estou só no


mundo. Note que a solidão não me é enfadonha, antes
me é grata, porque é um modo de viver com ela, ouvi-la,
assistir aos mil cuidados que essa companheira de 35 anos
de casados tinha comigo; mas não há imaginação que não

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acorde, e a vigília aumenta a falta da pessoa amada. Éra-
mos velhos, e eu contava morrer antes dela, o que seria um
grande favor; primeiro porque não acharia a ninguém que
melhor me ajudasse a morrer; segundo, porque ela deixa
alguns parentes que a consolariam das saudades, e eu não
tenho nenhum. Os meus são os amigos, e verdadeiramen-
te são os melhores; mas a vida os dispersa, no espaço, nas
preocupações do espírito e na própria carreira que a cada
um cabe. Aqui me fico, por ora na mesma casa, no mesmo
aposento, com os mesmos adornos seus. Tudo me lembra a
minha meiga Carolina. Como estou à beira do eterno apo-
sento, não gastarei muito tempo em recordá-la. Irei vê-la,
ela me esperará”.

O amor entre eles era tanto, e o companheirismo tão verdadeiro, que


Machado de Assis dedicou a Carolina um dos mais belos sonetos por
ele compostos:

A CAROLINA

Querida! Ao pé do leito derradeiro,


em que descansas desta longa vida,
aqui venho e virei, pobre querida,
trazer-te o coração de companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro


que, a despeito de toda a humana lida,
fez a nossa existência apetecida
e num recanto pôs um mundo inteiro...

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Trago-te flores - restos arrancados
da terra que nos viu passar unidos
e ora mortos nos deixa e separados;

que eu, se tenho, nos olhos mal feridos,


pensamentos de vida formulados,
são pensamentos idos e vividos.

Lucia Miguel Pereira, em seu livro Machado de Assis, afirma que “foi
como contista que o escritor deu toda a sua medida, e algumas das
melhores páginas de seus romances são contos que se intercalam”. Em
1870, publica seu primeiro livro de contos, Contos Fluminenses. Num
deles, Machado utiliza o então raríssimo recurso de dar a voz narrativa
a uma mulher que confessa um caso de adultério. Em 1881, publica
Memórias Póstumas de Brás Cubas, considerado pela crítica a maior re-
volução formal da literatura brasileira, antecipando a modernidade no
romance. Ressalta-se a figura do narrador, Brás Cubas, uma antípoda
do próprio Machado de Assis: um sujeito de família rica, estudado na
Europa, que teve todas as oportunidades do mundo, porém as perdeu.
Tão vaidoso que volta da morte para narrar sua autobiografia.

Na década de 1890, Machado de Assis já havia conquistado o reco-


nhecimento e respeito do público e da crítica. A publicação de Quincas
Borba se dá em 1891. Sexto romance publicado por Machado, está
situado entre Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, ou
seja, um romance publicado em um momento em que o autor tem
pleno domínio da sua escrita, de forma a transitar entre o trágico e o

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cômico de modo fascinante. Grosso modo, é um romance que trata
de um triângulo amoroso entre o casal Sofia e Cristiano e a figura de
Rubião, que se apaixona por Sofia e, mais uma vez, vemos o tema do
adultério na obra machadiana.

Aos cinquenta anos, Machado de Assis era considerado o maior escri-


tor da literatura brasileira. Em torno dele, reuniam-se as pessoas mais
admiradas do meio, como Arthur Azevedo, Olavo Bilac, Raul Pom-
peia, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, entre outros. Em 1897 é
fundada a Academia Brasileira de Letras, cujo ímpeto de fundação já
vinha se formando nos espíritos. O próprio Dom Pedro II era favorá-
vel à ideia de uma agremiação literária, mas a formalização se dá já nos
anos da República, tomando como modelo a Academia Francesa. A
ABL começou a se formar na redação da Revista Brasileira, dirigida por
José Veríssimo, e nos encontros que a Revista promovia. Numa crônica
publicada em Maio de 1896, no jornal Gazeta de Notícias, Machado
de Assis lembra desses jantares: “são convivas do primeiro jantar men-
sal da Revista Brasileira. O principal de todos, José Veríssimo, chefe da
Revista e do Ginásio Nacional, recebe-me, como a todos, com aquela
afabilidade natural que os seus amigos nunca viram desmentida um só
minuto”. A primeira sessão preparatória da Academia foi realizada na
redação da Revista Brasileira em 15 de Dezembro de 1896, e Machado
de Assis foi então aclamado presidente.

Dom Casmurro é publicado em 1900, anos antes da publicação de


Esaú e Jacó e do falecimento de Carolina Xavier. Em seus dois últimos
anos de vida, publica Relíquias de casa velha e, em 1908, Memorial de

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Aires, romance que a crítica recebe como tendo toques de autobio-
grafia acerca de sua vida com Carolina. Machado de Assis faleceu no
mesmo ano de 1908. Sobre sua despedida, Euclides da Cunha lembra,
em A Última Visita:

“Na noite em que faleceu Machado de Assis, quem pene-


trasse na vivenda do poeta, em Laranjeiras, não acreditaria
que estivesse tão próximo o triste desenlace da sua enfer-
midade. Na sala de jantar, para onde dava o quarto do
querido mestre, um grupo de senhoras ­ontem meninas
que ele carregava nos braços carinhosos, hoje nobilíssimas
mães de famílias ­comentavam-lhe os lances encantadores
da vida e reliam-lhe antigos versos, ainda inéditos, avara-
mente guardados nos álbuns caprichosos. As vozes eram
discretas, as mágoas apenas rebrilhavam nos olhos mare-
jados de lágrimas, e a palidez completa no recinto onde a
saudade glorificava uma existência, além da morte”3.

Podemos concluir, com Otto Maria Carpeaux, que Machado de Assis


foi um grande “realista psicológico, humorista amargo, conhecedor
incomparável dos homens e da vida” e, com José Veríssimo, “a mais
alta expressão do nosso gênero literário, a mais eminente figura da nos-
sa literatura”. Vale ainda lembrar as palavras de João Cézar de Castro
Rocha, que caracteriza a dedicação e o talento de Machado de Assis
como algo que “vai na contramão da cultura do fácil, do espontâneo,
do improviso, que ainda predomina no Brasil4.”

3 Publicado no Jornal do Commercio em 30 de setembro de 1908.


4 Revista Veja, “Machado: Um Verdadeiro Imortal”, por Jerônimo Teixeira. 24 set., 2008, p.162.

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Dom Casmurro

1. Apresentação

É de praxe didática dividir as obras de Machado de Assis em duas fa-


ses: a romântica, com quatro romances, e a realista, com outros cinco
romances. Dom Casmurro seria, então, pertencente à fase realista. Di-
ferente de Quincas Borba e Memórias Póstumas, Dom Casmurro não foi
lançado primeiramente em folhetim, mas foi pensado como romance
completo e acabado no formato já em que se deu a sua publicação, em-
bora tenha publicado no periódico A República um trecho, por nome
“O Agregado (capítulo de um livro inédito)”, cuja reprodução o leitor
terá recebido em seu box. O livro foi publicado pela Livraria Garnier
em 1900, numa tiragem inicial de duas mil cópias.

A obra conta com cento e quarenta e oito capítulos, numerados e


acompanhados de títulos que resumem, geralmente de forma irônica,
o conteúdo do capítulo. A narrativa é feita em primeira pessoa, por
Bento Santiago (Bentinho; Dom Casmurro), que tenta atar as duas
pontas de sua vida, resgatando a infância na velhice. Há constantes
digressões em meio ao enredo, o que proporciona interrupções narra-

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tivas, técnica que Silvio Romero ironiza como sendo um “estilo gago”.
Sobre o estilo, porém, diz Fernando Teixeira Andrade:

“O estilo contido, ‘enxuto’, sóbrio, e os capítulos curtos,


dispostos em blocos harmoniosos, integram-se à perfeição
na montagem do enredo, exposto de invertida, fragmen-
tária. Nada escapa à reflexão do narrador, nem seu próprio
relato, flagelado também pelo demônio da análise, pelo
‘homem do subterrâneo’, a relativizar com ironia e ceticis-
mo qualquer derramamento sentimental.5”

Além disso, outra particularidade do romance são as constantes con-


versas com o Leitor. A técnica é encontrada em outros romances, por
exemplo, Memórias de um Sargento de Milícias, mas Machado de Assis
usa o recurso de forma ironizada, jogando com as emoções que a nar-
rativa poderia despertar no leitor.

É importante estar atento, também, às vastas referências a outras obras


de arte que aparecem ao longo da narrativa, pois elas dão tema e “pis-
tas” temáticas para encaminhar o leitor às possíveis interpretações so-
bre as intenções do autor. Assim, Dom Casmurro é uma obra recheada
de intertextualidades e metalinguagem. São numerosas as referências
ao universo católico, à Bíblia, aos santos (notar a referência a Santo
Agostinho, autor do livro Confissões, obra em que narra a própria vida
em busca de, como Dom Casmurro, encontrar um sentido unificador
para as pontas de sua história). Mas, ao longo de todo o livro, o leitor

5 Andrade, Fernando Teixeira de (análise). “Dom Casmurro” In: OS LIVROS DA FUVEST - I. São Paulo:
Ed. Sol, 2001.

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verá também referências a figuras romanas que sofreram traições (os
bustos que adornam a parede da casa de Dom Casmurro), peças de
Shakespeare, poesia épica grega, o Fausto de Goethe, entre outras.

2. Resumo
A. A INFÂNCIA EM MATA-CAVALOS

O narrador, Bento Santiago, explica que a origem de seu epíteto,


“Dom Casmurro” vem de ter cochilado, certa feita, quando um rapaz
lhe declamava um poema. Conta seu intento de narrar a própria vida,
aconselhado por bustos romanos na parede: todos figuras históricas
que sofreram traições. Explica também que a motivação de narrar a
própria história é “atar as duas pontas da vida”. Então inicia suas me-
mórias de infância recordando uma tarde de Novembro, a qual ouvira
escondido uma conversa entre sua mãe, D. Glória, o agregado José
Dias, Tio Cosme e Prima Justina sobre a antiga promessa materna
de mandá-lo para o seminário: José Dias denuncia à mãe o perigo da
promessa não ser cumprida, por conta de um provável namoro entre
Bentinho e a vizinha Capitu (caps. 1-3).

Em seguida, o narrador faz uma descrição do caráter de cada um dos


parentes: José Dias, sujeito grandiloquente e vaidoso; Tio Cosme, viú-
vo como Prima Justina, é descrito como uma figura estacionária, um
velho advogado sem muitas expectativas; D. Glória, uma senhora res-
peitável e amável. Prepara-se para continuar narrando a tarde de no-
vembro que, em sua biografia, é como o ato primeiro de uma ópera,

16
metáfora que ouvira de um tenor italiano. Dom Casmurro aceita a
teoria de que a vida é uma ópera, afirmando ele mesmo ter cantado
“um duo, depois um trio e depois um quatuor”, referindo-se já à ideia
de traição que o acompanhará por toda a narrativa. Viúva, D. Glória
se afligia com a ideia de cumprir a promessa, separando-se do filho,
mas já providenciava a Bentinho a formação religiosa em casa, e o
menino até mesmo brincava de missa com Capitu e recebia lições de
latim do Padre Cabral (caps. 4-11).

Após ouvir escondido a denúncia de José Dias, pela primeira vez Ben-
tinho se dá conta de que ama Capitu e é por ela amado. Corre, então,
ao terreno vizinho para vê-la e encontra seus nomes riscados no muro
com um prego. Os dois seguram as mãos e se olham fixamente, en-
vergonhados. Pádua, pai de Capitu, flagra a cena, pergunta se estão
jogando siso. Capitu disfarça os nomes do muro riscando outro dese-
nho e dissimula a brincadeira sugerida pelo pai: a narrativa deixa em
evidência a propensão de Capitu à mentira. A sós, Bentinho conta a
Capitu o risco da promessa se cumprir, ao que a menina reage procu-
rando um plano de impedi-lo: pedir que José Dias interceda para que
Bentinho estude Direito, livrando-se do seminário. Aqui, o narrador
sugere a ardilosidade de Capitu (caps. 12-18).

Voltando à casa, Bentinho promete duas mil orações se conseguir tal


livramento: um número tão alto de rezas era devido à soma de promes-
sas não cumpridas em suas negociatas com Deus. Em casa, encontra
Tia Justina, a qual é descrita como dada a murmurações e, por fim,
chama o agregado para lhe falar no outro dia sem falta. Nota que José

17
Dias, que era bajulador para com Bentinho, dispensava-lhe cuidados
de mãe e de servo (caps. 19-24).

No outro dia, vão juntos ao Passeio Público, onde José Dias desaconse-
lha a companhia dos Pádua e caracteriza Capitu como tendo olhos “de
cigana oblíqua e dissimulada”. Pádua era funcionário público de condi-
ção mais modesta que a família de Bentinho. O menino pede, enfim,
ajuda a José Dias. Animado pela possibilidade de Bentinho estudar leis
fora do país, conclui que “as leis são belas”. Após dar uma moeda a um
pedinte, em troca de orações por seu desejo, nota que José Dias se mos-
tra animado. Durante a viagem de ônibus de volta, Bentinho se imagina
rogando ao Imperador que fosse dispensado da promessa. Avistam uma
procissão com o Santíssimo e param para servir à cerimônia. Encontram
Pádua, com quem José Dias disputa a haste do pálio, função mais im-
portante do que carregar a tocha. José Dias argumenta que Bentinho
deveria carregar, já que em breve se tornaria seminarista, o que irrita o
menino e sugere o oportunismo de José Dias (caps. 25-30).

Voltando à casa de Capitu, Bentinho descreve cena por cena da con-


versa com José Dias, a pedido da moça, que é narrada como muito
inteligente e curiosa. Capitu era “mais mulher do que Bento era ho-
mem”, mesmo mais nova que ele. Passam-se alguns dias e José Dias
conversa com D. Glória. Bentinho e Capitu se encontram novamente
e ele pede para ver seus olhos, lembrando da descrição de olhos de
ressaca, que o atraíam como o movimento das ondas do mar. Para dis-
farçar, Bentinho penteia os cabelos de Capitu, ação que termina com
o primeiro beijo entre eles. Dona Fortunata, mãe de Capitu, chega

18
na cena do beijo, mas a menina consegue dissimular rapidamente re-
clamando do penteado mal feito do cabeleireiro que arrumara. Dona
Fortunata avisa Bentinho de sua lição de latim (caps. 31-33).

O menino se retira e, em vez de pegar os livros, deita-se, lembra o mo-


mento e exclama: “sou homem!” Indo ter com o padre, percebe que
ninguém nota seu atraso, pois todos estavam comemorando a nomea-
ção do padre Cabral como protonotário apostólico. O título orgulha
e envaidece a casa; a alegria leva o padre a dispensar Bentinho da aula.
O menino fica feliz pela dispensa, ao que José Dias argumenta que,
mesmo se não tomasse a batina, o latim lhe seria útil. A mãe replica
que ele seria padre, sim, e Padre Cabral acrescenta que poderia mesmo
ser o “protonotário Santiago”. O diálogo deixa o menino contrariado,
mas retraído demais para se expressar. Todos os seus impulsos eram de
ir correndo a Capitu, abraçá-la e beijá-la. Mas suas ideias eram “sem
pernas e sem braços” e, portanto, ele apenas se encaminha trepida-
mente à sua amiga e lhe conta da conversa com o padre. Depois, tenta
beijá-la, mas ela se recusa. Como Pádua se aproxima, de pronto Capitu
cede ao beijo de Bentinho e novamente dissimula a cena (caps. 34-38).

Capitu acompanha Bentinho para cumprimentar o padre. Há uma


discussão sobre a necessidade ou não de se ter vocação para a vida sa-
cerdotal. O padre afirma que ele mesmo possuía vocação para medici-
na, mas que o costume acabou por afeiçoá-lo à batina; de todo modo,
achava que Bentinho tinha vocação eclesiástica. A conversa o deixa
nervoso e ansioso pelos olhares de Capitu. Ela novamente disfarça,
devotando atenções apenas a D. Glória. Sozinho, Bentinho fantasia

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sobre contar à sua mãe toda a verdade de seus sentimentos por Capitu.
Na hora de lhe contar, porém, afirma apenas que sentiria saudades da
mãe. D. Glória, então, exorta o filho a ter forças para manter a pro-
messa (caps. 39-41).

No outro dia, Capitu fica desapontada pelos rumos que teve a conversa
entre o menino e sua mãe. Pensativa, olha para ele e o acusa de medroso.
Indo para o terreno, Capitu levanta seus olhos “oblíquos e dissimulados”
e faz Bentinho escolher entre ela e D. Glória. Ao ouvir que era a preferi-
da, risca no chão com um graveto a palavra “mentiroso”, afirmando ser
melhor mesmo ele virar padre. Logo em seguida, os dois fazem as pazes,
caminham até o poço e selam o juramento de se casarem um com o
outro, de modo que o seminário seria visto apenas como uma separação
temporária. E assim fazem planos de vida juntos (caps. 42-49).

Alguns meses depois, Bentinho entraria para o seminário. O padre


Cabral encontra um “meio termo” para atenuar a promessa da mãe: se,
no prazo de dois anos, Bentinho não demonstrasse vocação, seria por-
que Deus não o desejava padre, ideia que agradou a todos. José Dias
argumenta que um ano seria o bastante, enquanto Capitu o anima e se
aproxima de D. Glória como se fosse sua própria filha. Despedem-se
todos do rapaz e assim ele se torna seminarista (caps. 50- 53).

B. O SEMINÁRIO

Apesar de Dom Casmurro não querer narrar as memórias da vida de


seminarista, trai-se a si mesmo (mostrando o caráter flutuante do nar-
rador) e começa a narrar, por exemplo, sobre um colega que escrevera

20
um Panegírico a Santa Mônica, mãe de Santo Agostinho (o Leitor há
de ficar atento a todas as referências na obra, pois elas são como pistas
machadianas para a compreensão da narrativa). Ao recordar do poe-
ma, Dom Casmurro lembra também um soneto que intentara fazer,
mas só compusera o primeiro verso: “Oh! Flor do céu! Oh! Flor cândi-
da e pura!” e a chave de ouro: “Ganha-se a vida, perde-se a batalha!” e
reflete: os sonetos e todas as outras obras de arte como que preexistem
feitos, basta que encontremos os versos faltantes. (caps. 54-58)

Lembrando vários outros detalhes do seminário, Dom Casmurro fala


de Escobar, de caráter “fugitivo”, embora tenha conquistado a sua me-
lhor amizade. Outra memória é a de ter visto, certa vez, uma senhora
que caíra na rua, mostrando as meias, o que deu ensejo à imaginação
e aos instintos do rapaz. Sobre a memória, o narrador faz ainda uma
observação útil à leitura: entre o esquecimento e a confusão, é melhor
o primeiro, pois livros confusos são apenas confusos, enquanto que
livros sem partes da história permitem que o leitor faça uso da imagi-
nação. (cap. 59).

Lembra, por fim, que o agregado o visitava e cuidava dele tal qual
uma vaca de suas crias, imagem usada por Homero, donde o nome do
capítulo ser “a vaca de Homero”. Como Bentinho insistia em sair do
seminário, José Dias sugere que ele finja tosse e saúde frágil. Depois
dessa conversa, ele logo se precipita em perguntar por Capitu, ao que
José Dias responde que a moça anda alegre, e hora dessas iria acabar
com algum “peralta da vizinhança”. Aqui se iniciam os ciúmes de Ben-

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to Santiago, por isso o título do capítulo é “Uma ponta de Iago”, em
referência a Otelo de Shakespeare (caps. 60-62).

Apesar de tudo, Bentinho tem boa convivência no seminário. Deseja


contar a seu melhor amigo sobre Capitu, mas ela o proíbe e ainda
pede que dissimule seu afeto por ela, não passando muito tempo em
sua casa durante as visitas de sábado, por exemplo. Ela própria afirma
que tal alegria referida pelo agregado era com essa intenção. Bentinho
se admira de Capitu, que se fez cada vez mais íntima de D. Glória. D.
Glória cai doente e manda chamar o filho, que peca ao desejar a mor-
te da mãe para se livrar da promessa. Logo em seguida, porém, sente
remorso. Tal confissão, afirma Dom Casmurro, é para buscar a sua
“essência”, sem omitir nem vícios nem virtudes, hábitos que nascem
nos seres humanos aos pares, como “casais” (caps. 63-68).

Bentinho vai à missa para agradecer o restabelecimento da saúde da mãe.


No caminho de volta, encontra Sancha, melhor amiga de Capitu. Em
casa, dá-se com Escobar, que fora visitá-lo, preocupado com o amigo e
com D. Glória. Escobar agrada toda a casa. Capitu, observando tudo
da janela, pergunta a Bentinho quem era aquele amigo tão próximo
de quem acabara de se despedir. Divagando sobre essa memória, Dom
Casmurro propõe uma “reforma radical” às peças de teatro: deveriam
começar de trás para frente. Assim, Otelo terminaria com um casal apai-
xonado e não com um assassinato por ciúmes (caps. 69-74).

Como, porém, na peça da vida, o Destino é o contrarregra, à jane-


la passa um dândi montado a cavalo que troca olhares com Capitu,

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ardendo Bentinho em ciúmes. Ele que corre para o quarto, chora de
raiva, promete tornar-se padre e, mesmo com a repentina presença de
Capitu, agora em sua sala de estar, conversando alto com D. Glória
para chamar atenção, Bentinho não vai ao seu encontro. No dia se-
guinte, Bentinho finge estar doente para não retornar ao seminário e
poder ouvir de Capitu alguma explicação. Ela afirma que, se flertasse
com o rapaz do cavalo, o natural seria dissimular, não olhar para ele.
Ofendida, lembra do juramento e promete que se Bentinho descon-
fiasse outra vez dela, tudo estaria acabado entre eles (caps. 75-76).

Bentinho e Escobar se tornam mais íntimos. Trocam segredos: ambos


não têm vocação sacerdotal. Um, por conta da vocação ao comércio;
outro, por conta de Capitu. Bentinho convida o amigo para jantar em
casa, e Escobar tece elogios à família que conhecera, especialmente à
“adorável” D. Glória. Dom Casmurro narra, então, que a mãe era real-
mente adorável. Compara sua situação à de Abraão, pois, assim como
Abraão na hora de sacrificar o filho recebeu intervenção divina e pode
ofertar outro holocausto em lugar, sua mãe oferecera-lhe ao seminário,
mas a intimidade com Capitu a fazia pensar que um casamento entre
os dois pudesse ser também agradável a Deus (caps. 77-78).

Por isso, certa vez, a própria mãe sugeriu que Bentinho fosse visitar
Capitu, em casa de Sancha, que estava doente e tomava Capitu por
enfermeira. Sentados num canapé, Bentinho confidencia à amada que
sua mãe o incentivou a procurá-la, ao que Capitu responde “seremos
felizes!” Voltando da casa de Sancha, um vizinho chama Bentinho ao
velório do filho, Manduca, falecido por lepra. Em casa, Bentinho pen-

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sa que, se pudesse ir ao enterro, poderia também passar mais tempo
com Capitu, porém sua mãe recusa que falte ao seminário para ir ao
enterro (caps. 79-89).

Dom Casmurro narra então um plano de José Dias para livrar o garoto
da promessa: ir ao Vaticano pedir dispensa ao Papa. Bentinho consulta
Escobar e o rapaz lhe sugere outra ideia, a de que sua mãe arrumasse
um substituto que lhe cumprisse a promessa no lugar, pagando os es-
tudos no seminário. Após consultar Pe. Cabral, D. Glória aceita a ideia
e, aos dezessete anos, Bentinho sai do seminário (caps. 90-97).

C. A VIDA CONJUGAL

Cinco anos depois, Bentinho se forma em Direito, o que lhe dá uma


recepção com honras de volta à casa. Seu substituto no seminário esta-
va prestes a se ordenar, a mãe de Capitu havia falecido e o pai se apo-
sentado. Escobar casara com Sancha e investia em café. D. Glória era
favorável, enfim, ao casamento de Bento com Capitu, e lhe vaticina:
“tu serás feliz, meu filho!” Eles se casam e passam as núpcias numa casa
na Tijuca. No entanto, Capitu deseja retornar, afirmando preocupação
e saudades do pai. Ao voltarem, porém, Bento nota que ela deseja mais
é debutar socialmente e ser vista com as vestes de casada, de braços
dados ao marido nas ruas (caps. 98-104).

Passados dois anos, o Sr. Pádua falece, tio Cosme adoece, José Dias
revezava entre a casa de D. Glória e a de Bentinho, que se tornara ad-
vogado de prestígio. Escobar e Sancha eram grandes amigos de Bento
e Capitu. O primeiro casal tinha uma filha; o segundo, queixava-se

24
de não ter sido ainda agraciado com a prole. Bentinho mantém, en-
tretanto, uma vida tranquila com Capitu. Frequentam bailes, teatros,
conversam… Bento admirava os braços de Capitu, a ponto de sentir
ciúmes numa ocasião em que ela os trouxera descobertos num baile.
Assim, proibiu-lhe vestes indecorosas (cap. 105).

Numa noite de conversas, nas quais Bento ensinava alguns conheci-


mentos de astronomia a Capitu, esta se distrai. Ao ser inquirida sobre
o que pensava, responde que fazia contas e que juntara dez libras ester-
linas. Surpreso pela boa economia da esposa, Bentinho ouve dela que
Escobar a ajudara em segredo na administração. A narrativa induz o
leitor a prestar atenção no fato de Capitu andar aos segredos com Es-
cobar, embora, à época, Bentinho se visse feliz no casamento e muito
íntimo do amigo. Bento e Capitu têm, então, o tão desejado filho, que
recebe o nome de Ezequiel em homenagem ao amigo Ezequiel Esco-
bar (caps. 106-112).

D. OS SURTOS DE CIÚMES

Dom Casmurro narra que Capitu era vaidosa e gostava de atrair olha-
res, ao passo que Bento intensificava suas crises de ciúmes e, mesmo
que recebesse então flertes de outras mulheres, ressalta que devotava
todo seu olhar a Capitu. Certa vez, afirmando estar indisposta para
acompanhar o marido à ópera, Capitu insiste que vá sozinho. Ao vol-
tar, Bento se surpreende com a presença de Escobar em sua casa. O
amigo alega que foi à casa deles para tratar de negócios com Bento. Ao
entrarem, porém, Capitu se mostra completamente saudável, o que

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dá ensejo à desconfiança de Dom Casmurro. Além disso, os negócios
de que Escobar alegara querer tratar não valiam sequer o chá que am-
bos tomaram naquela noite, não justificando, portanto, a visita. Ao
questionar Capitu sobre o ocorrido e outras desconfianças, como um
possível distanciamento de nora e sogra, ela desfoca as preocupações
do marido e se faz cada vez mais amável. Outra desconfiança narrada
por Dom Casmurro foi a irritação que Capitu sentiu ao ver José Dias
chamando Ezequiel de “filho do homem”, expressão bíblica do livro
de Ezequiel (caps. 113-116).

De todo modo, os dois casais viviam próximos e as duas crianças cres-


ciam juntas. Uma vez, Escobar disse a Bento que gostaria de lhe con-
tar um plano. Sancha se adianta e conta a Bento que o plano era de
viajarem as duas famílias juntas para a Europa. Na conversa, porém,
Bento nota um olhar diferente em Sancha. Dom Casmurro narra que,
ao se despedir, apertou o braço do amigo de forma sensual, pensan-
do no braço de Sancha, mas também sentindo inveja dos músculos
avantajados de Escobar. Da mesma forma, ao se despedir de Sancha,
apertaram-se as mãos demoradamente, a ponto de Bentinho se sentir
atraído por ela (caps. 117-119).

No dia seguinte, Bento trabalhou e não quis pensar na questão. Eis


que um escravo de Escobar aparece à casa e avisa que o senhor havia
se afogado. A morte de Escobar abala a todos, mas Bento nota que os
olhos de ressaca de Capitu estavam tão tristes quanto os da viúva, em-
bora sem lágrimas. Mesmo assim, Bento faz o discurso no enterro. Ao
fato, Dom Casmurro compara a passagem de Homero em que Príamo

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beija a mão de Aquiles, que havia matado seu filho Heitor, pois Bento
discursou para o homem que havia recebido os olhares enviuvados de
Capitu. Tentando conter a raiva, Bento caminha de volta para casa a
fim de pensar no assunto. As lágrimas de Sancha apontavam sua fi-
delidade ao marido, ao passo que, se Capitu o tivesse traído, de certo
dissimularia aquele olhar. Com o passar dos dias, no entanto, Bento se
fecha cada vez mais ao amor de Capitu, à medida que via em Ezequiel
extrema semelhança com Escobar (caps. 120-133).

A dúvida causa tal agonia em Bento que ele chega ao ponto de plane-
jar suicídio. Vai à farmácia e compra um veneno. Dirige-se à casa da
mãe para se despedir, mas o ambiente lhe é tão agradável que se sente
alegre e desiste da morte. Vai então ao teatro ver uma apresentação
de Otelo. Se Otelo mata Desdêmona injustamente e mesmo assim a
plateia aplaude, Bento se convence que a morte de Capitu seria justa e
plausível. Voltando para casa, porém, escreve uma carta de suicídio se
referindo a Escobar e prepara um café envenenado para si mesmo. No
momento exato em que ia verter a xícara, no entanto, Ezequiel aparece
e exclama “papai, papai!” Ao ouvir isso, oferece a xícara de café ao me-
nino, mas não tem coragem de deixá-lo beber. Em vez disso, exclama
que ele não era seu filho (caps. 134-137).

Capitu entra no recinto e encontra Bento chorando. Pergunta o que


acontecera ali e tem como resposta a mesma exclamação, de que o
menino não era filho de Bento, mas de Escobar. Mostrando-se indig-
nada, Capitu lança um riso nervoso e diz que nem os mortos escapam
às crises de ciúmes do marido, e que deseja, então, a separação. Bento

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manda Capitu e Ezequiel para a Europa. D. Glória falece, José Dias se
muda para a casa de Bento e em pouco tempo também morre. Após
a morte de Capitu, Ezequiel regressa da Europa, idêntico ao velho
amigo. O rapaz pede que Bento custeie suas pesquisas arqueológicas,
ao que lhe ocorre o pensamento de que, fazendo-o, poderia pagar para
que o jovem pegasse alguma doença mortal em algum sítio de estudos
num país distante. De fato, o jovem morreu mais tarde de tifoide.
Dom Casmurro conclui que, ainda que tivesse, desde então, amantes
que iam e vinham, nenhuma substituiria Capitu, pois só ela “tinha os
olhos de ressaca, de cigana oblíqua e dissimulada”. E que o destino o
deixou que fosse, enfim, traído pelos seus dois melhores amigos (caps.
138-148).

28
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