Tomm Farias Machado Negro Genial

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Negro Genial

Tom Farias*

Afinal, quem foi Machado de Assis? O imortal


Josué Montello me escreveu uma carta, em
abril de 2000, em papel timbrado da Academia
Brasileira de Letras, para responder a uma
polêmica em torno do autor de Dom Casmurro.
Na missiva do velho escriba, aliás um fluente
machadiano, ele admitia um erro constante em
seu livro Os inimigos de Machado de Assis
(Nova Fronteira, 1998). Nele, o escritor
maranhense transcreveu um triolé x—
“Machado de Assis, assaz,/ Machado de assaz,
Assis;/ Oh! zebra escrita com giz,/ Pega da
pena e faz ‘zaz’,/ Sai-lhe o ‘Borba’ por um triz,/
Plagiário do ‘Gil Blás’/ Que de Le Sage por trás,/
Banalidades nos diz./ Pavio que arde sem gás,/
Carranca de chafariz, /Machado de Assis,
assaz,/ Machado de assaz, Assis” — e
erroneamente o atribui ao poeta negro
catarinense Cruz e Sousa (1861-98), sem citar
a fonte em que foi originalmente publicado e
sem mencionar as razões pelas quais o poeta
simbolista teria escrito tal versalhada contra o
consagrado escritor carioca. É sabido que Cruz
e Sousa manteve atuante sua linha de
“diatribes”, no verso e na prosa, com que
infernizava a vida de muitos poderosos. Mas
não há qualquer evidência de que o poeta tenha
escrito tais versos contra Machado de Assis.
Em um dos tópicos de sua carta, Montello
assim se justificou: “Quero agradecer ao
confrade a sua carta a propósito de Machado
de Assis. Foi elucidativo para mim a correção
do triolé, vulgarizado como sendo de autoria de
Cruz e Sousa”. A resposta de Josué Montello,
morto alguns anos depois, traz algumas
indagações a respeito de um dos nossos mais
importantes escritores brasileiros. A despeito
desses versos, eu escrevi ao acadêmico para
dizer-lhe que os versos em questão não saíram
da pena do poeta da ilha de Santa Catarina —
desterrado sem dó e piedade na novíssima
Machado de Assis, por Dalton Paula capital da República —, mas sim de um amigo
e conterrâneo, Oscar Rosas (1864-1925),
igualmente pilhérico e endiabrado, um assumido “simbolista arrouge”, ou seja,
vermelho, como ele mesmo se dizia. Pela imprensa do final do século 19, Rosas
sustentou em artigos a superioridade dos “novos” contra os “velhos”. Os “novos”, na
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alcunha do jornalista Pardal Mallet, eram todos os escritores na casa dos 25 anos.
Entre os “velhos” estavam inclusos Machado, Araripe Júnior, Sílvio Romero, José
Veríssimo e José de Alencar, entre tantos outros. Essas polêmicas, transcritas em
jornais como NoVIDAdes, Diário de Noticias e Cidade do Rio (de José do Patrocínio),
alimentaram muitas desavenças, parte delas travadas em duelos brancaleônicos,
como os de Olavo Bilac e Mallet e de Oscar Rosas e Emanuel Karneiro (pseudônimo
de Manoel Carneiro).

Amores e odiosidades

Tudo isso para dizer que Machado de Assis sempre despertou amores e odiosidades,
e não só após a sua morte, em 1908, como bem prova o livro de Montello. Como autor
ainda referenciado da atualidade, (re)descoberto como negro (em 2019, a campanha
Machado de Assis Real, promovida pela Faculdade Zumbi dos Palmares, de São
Paulo, repercutiu em jornais como The New York Times), o “Bruxo do Cosme Velho”
passa por mais uma revisita, igualmente polêmica, em escavações literárias que têm
revelado alguns achados importantes sobre sua imagem e sua obra.
Sobre ele já se disse tudo? Há controvérsias sobre isso. Pesquisadores abalizados e
independentes têm se empenhado em barafustar arquivos de jornais e revistas do
passado, sobretudo do período machadiano, levando a revelar facetas do autor até
então desconhecidas mesmo dos seus mais celebrizados biógrafos e estudiosos
nacionais e estrangeiros.
Poemas, crônicas, textos biográficos e até uma composição musical, como a letra de
um “hino nacional”, datada de 1867, já foram descobertos nos últimos anos. Espanta
saber que mesmo passado tanto tempo após sua morte, e com tantos estudos
minuciosos realizados, ainda hoje podemos supor que o legado intelectual e literário
deixado por Machado não esteja completo.
Tais descobertas, tirando as fotografias, são em grande parte datadas da juventude
do então poeta. Curioso destacar que é dessa época o “namoro” mais próximo do
jovem Machado com a família imperial brasileira. O citado “Hino nacional”, por
exemplo, publicado no jornal O Constitucional de Santa Catarina, é peça instigante,
pois o liga a uma distante província do Império, além da Corte, no Rio de Janeiro.
Mostrando o quanto Machado se articulava, um dos trechos do hino — a quarta
composição do gênero criada por um autor no período da Monarquia — exalta a figura
de d. Pedro 2º, chamando-o de “gigante do Brasil”, mas comete uma gafe ao tratá-lo
em outra passagem como mero mortal, quando diz na estrofe “honra e glória de
Pedro”, esquecendo-se da majestade que encobre o homenageado. Já na segunda
parte, esse equívoco é corrigido, conclamando todos a encher “o peito” ante “o dia
abençoado” (2 de dezembro, aniversário do monarca, motivo pelo qual o hino foi
composto), em consagração do “seu grande Imperador”.
Esse achado do pesquisador Felipe Rissato, divulgado pela Folha de S.Paulo em
2018, soma-se a outros arroubos bajulatórios machadianos referentes à família real
brasileira, como foi o caso do texto “D. Pedro 2º (esboço biográfico)”, publicado na
revista literária O Espelho, em 1859, como bem revelou a pesquisadora Cristiane
Garcia Pereira. A desenvoltura de Machado em O Espelho se deve pela razão direta
de que F. Eleutério de Sousa, mencionado “diretor e redator em chefe” da revista, era
uma espécie de sócio de Francisco de Paula Brito (1809-61) — negro e à época
bastante conhecido como poeta, contista e tradutor —, em cuja tipografia foram
impressos os dezenove números do periódico, e na qual trabalhava o futuro grande
romancista brasileiro, então com dezenove anos.
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Machado não foi, como se pensa, apenas colaborador da revista: esteve presente em
todas as edições; foi anunciado como “uma das bonitas penas desta redação”;
publicou textos sem assinatura e por pseudônimos (“M.-as”) — nesse caso para
encobrir, como despiste, seu “alter ego”, sobre quem, segundo ele disse, “não posso
dar opinião nenhuma”. Ou seja, Machado limpou a cara nas páginas de O Espelho,
revista voltada para o público feminino, ou o “belo sexo”, como se dizia.
Mas essa história de um Machado de Assis original e desconhecido, louvado e
bajulado nos tempos de juventude, foi caindo por terra à medida que ele se
desenvolveu como literato. Esse quadro muda com o início da publicação dos seus
contos e romances, de 1870 em diante, entre Contos fluminenses e Ressurreição.
Mas nada comparável com o que se publicou após a sua morte, especialmente na
altura do centenário de seu nascimento, pelo ano de 1939-40. Datam daí as várias
críticas, algumas insensatas, ao célebre escritor nascido no Morro do Livramento, no
coração da cidade do Rio, tirando os artigos encomiásticos dos apóstolos, ex-
companheiros de jornada, que eram poucos, pois boa parte já havia morrido. Entre
esses críticos da chamada glória póstuma de Machado, saltam figuras desconhecidas,
mas há também notórias, como Monteiro Lobato.

Aquele negro

Lobato, que passaria à história como ferrenho eugenista e antinegro roxo, também
deve ter o acréscimo de debochado, cínico, ridículo. Para ele, “Joaquim Maria veio ao
mundo misturado. E pobre, paupérrimo, humílimo. Um zero. O mais absoluto dos
zeros”. Em outro tópico do seu longo artigo “Machado de Assis”, estampado na revista
Dom Casmurro, diz o autor de Reinações de Narizinho que o velho bruxo não “teve
filhos. Não legou a criatura alguma os seus pigmentos, a sua gagueira, a sua tara
epilética...”. Em 1944, em carta ainda pouco conhecida do público, Lobato escreve ao
seu amigo, o historiador e crítico literário Sérgio Buarque de Holanda, na qual continua
a escarrar a sua bílis racista ao se referir a Machado como “aquele negro”, que, “se
ressuscitasse e visse” o que se tem escrito a seu respeito, mesmo assim
“monetariamente só vale 500 réis”.
Reduzir Machado de Assis a “criatura” e “aquele negro” só pode ser coisa lobatiana,
mas ele, infelizmente, não foi o único. Em “Machado de Assis, vítima de
endeusasores”, Alfredo Tomé, aliás, amigo de Lobato e diretor da sucursal da revista
Dom Casmurro em São Paulo, acusa o romancista de ter varrido “da memória a sua
origem” negro-africana, para logo enumerar os itens desse abandono: os “seus
parentes, os seus amigos, as ruelas tortuosas do morro”. Ainda de acordo com a
opinião estreita de Tomé, Machado é uma existência cheia de “recalques” e “sua obra
é uma vingança pessoal, em que procura destruir todos os valores morais do
indivíduo”. Nessa mesma revista, que deveria ser o baluarte da promoção e da defesa
da memória machadiana, já que adota o nome de uma de suas criações mais
famosas, o articulista, para concluir a tese de “vingança pessoal”, chama Machado de
“envergonhado”, uma vez que “passara a existência inteira [sic] a fingir um grã-finismo
que atingia ao cúmulo do pernosticismo.” Em conclusão, assevera que Machado não
fugiu à regra geral porque “todo mestiço é pernóstico”.
Para amenizar um pouco a situação, o “homenageado” só teve “alívio” quando ficou
embaixo da pena de um tal Couto de Magalhães Neto, que escreveu em “Machado
de Assis e o negro” uma resposta a Alfredo Tomé. Magalhães Neto, ao mostrar certa
condescendência, traça uma espécie de defesa, ao dizer que os “homens
compreendem a Machado muito pouco. Nada mesmo. Foi mais feliz aquela escritora
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que se avizinhou dele com ares maternais”, referindo-se a Lúcia Miguel Pereira, que
publicou o livro Machado de Assis: estudo crítico e biográfico, de 1955, ainda hoje
referência dos estudos machadianos. Fiquei aqui supondo o que pensaria Josué
Montello diante de tantas críticas ácidas, muitas delas impróprias, a Machado de
Assis. Por outro lado, o seu Os inimigos de Machado de Assis, sob essa ótica, está
desatualizado desde o lançamento, por não trazer os textos aqui mencionados.
Citando ainda sua carta, ele me disse que iria sair “um pequeno estudo [...] sobre Cruz
e Sousa e Sílvio Romero”, no qual sua obra seria “revista”. Eu não recebi a prometida
ReVISTA do Brasil na qual o texto sairia, tampouco o vi publicado. O certo é que
Machado de Assis continua a ser essa polêmica apaixonante, não por sua vasta obra,
mas pelo fato também de ter sido esse negro genial, aceito e não aceito, admitido e
não admitido, pelos tempos atuais.
(In: Revista Quatro, cinco, um, novembro de 2020, p. 20-21).

*Jornalista, crítico e escritor, Tom Farias é autor, entre outros, de Cruz e Sousa –
Dante negro do Brasil (2008); José do Patrocínio – a imorredoura cor do
bronze (2009); Cruz e Sousa, Últimos inéditos – prosa & poesia (2013); Carolina, uma
biografia (2018); José do Patrocínio, a pena da Abolição (2019); e Escritos
negros (2020); como romancista, tem publicado Os crimes do rio vermelho (2001).

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