O Designer Que Habita em Nós - Fabio Galeazzo
O Designer Que Habita em Nós - Fabio Galeazzo
O Designer Que Habita em Nós - Fabio Galeazzo
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Fabio Galeazzo
O designer
que habita
em nós
Criatividade e
autoconhecimento
na decoração
Editora Senac São Paulo – São Paulo – 2024
Sumário
Nota do editor
Agradecimentos
Apresentação
Introdução
Parte I. O mundo
O mundo medieval
O mundo industrial
O mundo digital
Referências
Índice geral
Sobre o autor
nota do editor
Meu pai e minha mãe, Djalma e Walkyria, de quem eu herdei esse amor
pela casa e pela decoração. Acabei levando tão a sério seus ensinamentos
que os transformei em profissão. Eu honro vocês por meio daquilo que
faço melhor.
A todos os clientes e amigos que abriram suas casas, suas vidas e seus
corações e sem os quais nada disto faria sentido. Obrigado, obrigado e
obrigado!
Mas este livro não resume dez anos da minha pesquisa apenas; ele também
resume a minha própria vida. Então, eu o dedico a todos que, de alguma
forma, plantaram luz no meu caminhar. Como tem sido uma longa
jornada, houve também aqueles que me fizeram ir em busca de reafirmar a
minha existência e o meu propósito de vida. Para todos vocês, dedico um
lugar em meu coração.
Agradeço à mãe Gaia e ao pai Cosmos, que nos tornam a todos irmãos.
É de todas as pessoas.
Foi no ano de 2014, no longo voo de volta para o Brasil após uma palestra
em um congresso de design de interiores em Hangzhou, na China, para o
qual fui convidado, que nasceram as primeiras ideias do que trago neste
livro. Logo no início da viagem para lá, eu havia sido tomado pela emoção
de apresentar meus projetos em um território distante. Porém, ao chegar
na cidade chinesa, algo diferente aconteceu. Conforme as palestras iam
ocorrendo, e a plateia, interagindo, eu me peguei recordando fragmentos
da minha história que se misturavam com as histórias vividas com os
clientes na construção de suas moradas.
Foi com base nessa sensação de estranhamento por estar diante daquele
público e, ao mesmo tempo, conectado ao passado, revisitando histórias
que ainda estavam vivas dentro de mim, que emergiu a pergunta: por
que decoramos?
Afinal, o que nos faz investir tanto tempo, atenção e dinheiro na escolha
de cada objeto, cada peça de mobiliário, para formar aquilo que na
decoração denominamos “construção do acervo pessoal”?
O que poderia existir por trás desse diálogo com as paredes e os objetos a
ponto de transformar nossa casa em um espaço pulsante e cheio de vida?
Você também deve ter percebido que, em algumas frases, eu uso o termo
“decoração” e, em outras, “design de interiores”, quando não os dois juntos,
na mesma frase.[1] Neste livro, vamos considerar como conceito de
A competição pela sobrevivência não mais precisa ser “Eu ganho, e você
perde”. Na contemporaneidade, a busca social está em plena
transformação, aliando-se à sustentabilidade e a outros temas inovadores,
tornando-se uma relação de colaboração, um modelo novo de organização
social cuja premissa é “Eu ganho, e você também pode ganhar”.
progresso
interioridade
Eis que se abre a oportunidade para o design de interiores ser visto como
um instrumento de aproximação desses valores essenciais. Ainda não nos
demos conta do protagonismo que a casa pode ter em nossa vida como um
espaço potencializador da criatividade e de resgate da identidade,
expressado por meio dos móveis, das cores e dos objetos que utilizamos
para decorá-la.
Este livro
Escrevi esta obra para que possa despertar reflexões em todos aqueles que
sentem o chamado da decoração. Antes de tudo, é preciso se encontrar
com a casa que habita dentro de você.
Para isso, na parte I será abordada a história do morar, reconhecendo
modos e hábitos que nos têm acompanhado através do tempo e que
necessitam de ressignificação. Na parte II será explorado o habitar.
Entraremos em contato com o campo das experiências, em que as
informações são processadas e transmutadas, para então, na parte III,
desembarcarmos nos domínios da alma e termos a possibilidade de, por
meio dela, transformar a casa em um espaço de força, conexão e
centramento.
Esse é um fenômeno que nos conecta com a nossa instintiva noção de lar;
é uma experiência que nos acompanha desde a origem mais primitiva,
quando ainda vivíamos em cavernas e aprendemos a nos expressar com a
vida, deixando marcas da nossa personalidade e da nossa espiritualidade
pintadas na superfície das rochas.
Foi por meio dessa relação com o ambiente que nos descobrimos
pertencendo a um lugar e assumimos o papel de centro do mundo em
relação a tudo o que nos rodeia, dando forma e localização ao nosso corpo
e à nossa morada. Mediante nossas referências, memórias e imaginação,
fomos nos aprimorando e nos expressando por meio de uma profusão de
fenômenos estéticos, como as pinturas corporais, os códigos culinários, os
artesanatos, as músicas, as danças, as festas, os jogos e, claro, as formas de
habitar.
Desde então, a busca por esse modo de vida mais integrado com o lugar
onde moramos tem aberto nossa mente ao desenvolvimento de novos
conhecimentos e habilidades para lidar com o espaço, construindo
aprendizados por meio do reconhecimento das texturas e das cores, de
diversos materiais e da iluminação.
Pois será por meio das nossas escolhas cotidianas, aparentemente banais e
corriqueiras, que se esconderá a oportunidade de costurarmos valores
humanos profundos, que nos coloquem em contato com as forças
curativas que habitam em nós, como a beleza, o amor, a verdade e a paz,
transformando a casa em um lugar sagrado onde abundem a fecundidade e
a prosperidade, um lugar de reflexão, capaz de favorecer a nossa relação
com o mundo de uma forma mais confiante e organizada.
PARTE I.
O mundo
O mundo medieval
falta de privacidade
Nas casas mais abastadas e nos palácios, ao mesmo tempo que se dava
importância exagerada às regras sociais e às formalidades, fazendo que um
pomposo cumprimento levasse minutos, pouco se conhecia sobre questões
de privacidade; e a noção de conforto, apesar de existir desde a Grécia
Antiga, até esse momento não era tida como necessária. Seus habitantes
trajavam roupas suntuosas, ricamente adornadas, mas se sentavam em
bancos totalmente sem conforto. A cadeira, quando existia, só podia ser
utilizada por alguém importante, e mesmo assim raramente se recostava
nela. Assentos duros garantiam que fosse mantida uma postura ereta e
imponente, enquanto a grande maioria se apoiava nos móveis ou se
acomodava agachada pelos cantos (Rybczynski, 1996).
O clima geral era de algazarra; não havia uma preocupação com a
organização e a estética dos ambientes, que eram multifuncionais, sem
uma finalidade específica.
A mesa constituía o lugar não apenas das refeições mas também dos
negócios. Durante à noite, fazia as vezes de cama, não só para uma pessoa
mas para várias, que ali se acomodavam para o pernoite. Baús serviam
como estoque, assentos e até como uma espécie de cama. As roupas dentro
deles transformavam-se em um improvisado e nada confortável colchão.
interiores
No século XVI, com a Igreja católica tendo seu domínio ameaçado pela
Reforma Protestante, o Renascentismo entrou em declínio para ser
substituído por um estilo menos rígido, reconhecido por seus apelos mais
decorativos, repleto de ornamentos e teatralidade, que pregava uma certa
espiritualidade ao mesmo tempo que se utilizava de todos os meios
materialistas para acentuar o apelo visual e emotivo e estimular a piedade e
a devoção (Gibbs, 2010).
de uma época
Com o avanço da tecnologia dos fornos e das lareiras, também foi possível
o aumento do número de ambientes, e os quartos, ainda sem uma função
preestabelecida, começaram a proliferar, permitindo que a casa deixasse de
ser pública para ganhar um certo caráter de intimidade, tornando-se,
paulatinamente, uma casa de família.
Esse novo modo de pensar gerou mudanças que foram se espalhando por
vários países europeus e se adequando aos usos e costumes regionais de
cada um. Por volta do século XVII, nos Países Baixos, então o maior
centro financeiro e portuário da Europa, surgiram inovações na forma de
construir as casas, como consequência da adaptação, para a vida urbana, da
expertise naval de lidar com a umidade e as forças da natureza nas
embarcações.
intimistas .
Outra curiosidade herdada dessa época está no fato de que as casas eram
personificadas, batizadas com nomes próprios, assim como ocorre com
chácaras, sítios e fazendas nos dias de hoje. Hábito mantido por alguns
arquitetos e designers de interiores como uma forma de trazer mais
personalidade e intimidade ao projeto. A partir do século XX, com a
evolução da industrialização e com a casa tendo maior valor econômico do
que emocional, os números substituíram os nomes e essa prática foi
abandonada pela grande maioria dos seus moradores.
Capítulo 2.
O mundo industrial
Essa nova relação, pautada pelo avanço tecnológico das máquinas a vapor
e pelo uso de combustíveis fósseis, acelerou a vida, proporcionando uma
nova consciência que transformou rapidamente o modo de pensar da
sociedade da época. A aquisição e a acumulação de capital se tornaram
indícios de mérito individual.
tripartida
A França, que já tinha passado por sua famosa revolução em 1789, com rei
e rainha guilhotinados, continuava ditando tendências no mundo da
decoração, mantendo a valorização dos modos de morar e receber e
influenciando todo o mundo ocidental. O pensamento racional e os novos
hábitos, oriundos de uma vida apinhada nas cidades, exigiam novos
formatos arquitetônicos que melhorassem as condições de higiene, e assim
a casa passou a se organizar em uma configuração interna tripartida: área
social, destinada à família e à recepção de convidados; área íntima, onde
ficavam os quartos; e área de serviços, formada por cozinha e lavanderia,
então denominadas espaços de rejeição e cujo uso era destinado aos
serviçais.
í
Início da vida moderna, eis que
Esse período foi marcado por um design com uma forte referência na
ornamentação floral, que influenciou desde fachadas até objetos internos
domésticos, preenchendo espaços e decorando ambientes os quais, ao
mesmo tempo que enfeitavam o cotidiano, simbolizavam o início da perda
da relação que o homem mantivera com a natureza até então.
As paredes foram revestidas com papel lavável, e seu projeto passou a ser
cuidadosamente pensado segundo o mesmo raciocínio por trás das linhas
de montagem das fábricas. A mesa e todo o restante dos equipamentos,
além de terem uma altura padronizada, buscavam obedecer a uma ordem
que favorecesse condições de trabalho mais propícias e velocidade no
preparo dos alimentos.
morar
O século XX foi marcado pelas duas grandes guerras, e a mulher, até então
mais limitada aos serviços de mãe e esposa, na falta da mão de obra
masculina (que havia sido enviada para as trincheiras) atendeu ao chamado
da indústria, passando a compor o mercado de trabalho.
do planeta… o problema é de
todos!
sou” .
Capítulo 3.
O mundo digital
transformar
tempo e espaço
enraizamento .
A reorganização do espaço
doméstico
estar
A partir de então, novas pesquisas em torno do morar apareceram. Alguns
sociólogos tomaram como terreno de estudo a estética do habitante
(Segaud, 2016); fala-se de habitantes-paisagistas ou de selvagens da
arquitetura ou, ainda, dos adoradores das casas, ao se descreverem as
maneiras singulares desenvolvidas por certos habitantes para arrumar as
suas moradias. Questionando nosso afastamento da natureza, ao
movimento da sustentabilidade se juntam os conceitos de ecocentrismo
(sistema de valores centrado na natureza), biofilia (conexão dos espaços
com a natureza, promovendo bem-estar e conforto para seus ocupantes) e
urban farmer (fazendeiro urbano).
A biofilia sugere que os seres humanos têm uma conexão emocional com a
natureza, ressaltando a importância desse contato com as plantas, a água, a
luz solar e os animais para nosso bem-estar físico e mental.
Abre-te, sésamo!
Se no mundo industrial o bege foi usado para camuflar as emoções, eis que
no mundo digital surge o cinza como símbolo de novos caminhos e novas
formas de pensar o morar. Aqui não falo de um cinza denso, resultado de
um branco que recebeu uma pequena proporção de preto, mas de um
cinza leve e estimulante, proveniente do zinco, metal alquímico, multiuso,
matéria-prima do branco, fonte de todas as cores e deflagrador da luz,
anunciando um futuro de liberdade criativa.
A casa nos ensina que tudo bem sermos imperfeitos. Assim como a vida, a
decoração não é um fim, e tudo pode ser transformado . Basta ter
humor e paciência. Conviver com essa casa torna-se um lembrete de que a
vida é um processo em constante evolução e que devemos apreciar cada
etapa ao longo do caminho.
A casa
Os nossos sentidos nos contam que tudo por ali foi selecionado e recebe
cuidado com respeito e amor. Existe uma harmonia particular, e o clima
do lugar nos faz perceber uma série de coisas que até então não havíamos
notado. A alma dos seus moradores estava ali, pulsando em cada canto,
disponível a qualquer um que estivesse disposto a senti-la.
Casa com vida é assim. Ela não nos dá abrigo apenas; ela nos inspira,
influencia o nosso pensar e nos constrói por meio dele. Naturalmente a
admiramos e saímos dela revigorados só por ter estado ali.
Era um hall desses bem pequenos, pintado em um tom roxo muito escuro,
quase preto, com uma iluminação suave e difusa e um espelho
estrategicamente instalado. A intenção era trazer um clima de caverna,
uma certa escuridão pensada para que os sentidos despertassem reações no
corpo, demarcando o chegar em casa e o sair dela. Um recurso
relativamente simples que, mais tarde, descobrimos que causava um certo
furor em toda a vizinhança, ao se tornar o hall mais visitado do prédio.
mundo
Desde o momento em que nascemos, passamos a entrar em contato com a
realidade da vida por meio da casa. É dessa relação de extrema
proximidade com o entorno que surgirá o sentimento de familiaridade e
nos descobriremos pertencentes ao mundo, ao mesmo tempo que o
mundo passará a nos pertencer.
São as variantes dessas forças sobre cada um de nós, mesmo que várias
pessoas morem sob o mesmo teto, que tornarão a experiência com a casa
particular e individual.
O design de interiores na
No dia a dia com os clientes, fui percebendo que as histórias não deveriam
ser interpretadas ao pé da letra, mas, a todo momento, ressignificadas com
base nas emoções que despertavam, tendo como suporte o uso da luz, das
cores, dos aromas, das texturas e do próprio espaço em transformação.
Dessa forma, adentrávamos um caminho de aprendizado que nos facilitava
ir em direção à apropriação da casa, desvelando conhecimentos e saberes
adormecidos interiormente.
Segundo Götsch, todo ser vivo nasce com uma determinada função
perante a natureza, e ao fato de exercê-la dá-se o nome de prazer interior.
Esse prazer não guarda relação com um desejo hedonista ou a busca do
próprio bem-estar, mas com o sentimento de realização criativa perante a
vida, impulsionado no exercício do nosso propósito (Andrade; Pasini,
2022). Assim como a lagarta se transforma em borboleta, o prazer interior
age em nós.
acervo interior
Quando fui pela primeira vez à casa da Alloma, uma cliente, dei de cara
com diferentes versões de miniaturas da Torre Eiffel que contracenavam
com gueixas e pandas, ao mesmo tempo que remos havaianos apoiavam-se
sobre jangadas nordestinas as quais, por sua vez, flutuavam sobre um
oceano de golfinhos vindos de Miami. E isso era só o começo.
Solto, tudo aquilo ficava perdido. Por mais que eles contassem a história da
mãe da Alloma, nada contavam sobre quem ali morava. Mais poluíam o
visual do que transmitiam graça e beleza, tornando todo o ambiente de
gosto muito duvidoso.
Mas eis que a mãe fez uma surpresa, aparecendo na reunião especialmente
para me conhecer. Conforme nossa conversa fluía e as risadas cresciam,
ficava claro o quanto ela estava presente na vida daquela família e que, do
jeito dela, aqueles objetos simbolizavam esse amor. Então surgiu a ideia de
homenageá-la, ressignificando todos esses gifts dentro de uma única
vitrine, posicionada logo na entrada da casa, dando boas-vindas a quem
chegasse. E, assim, aqueles objetos que mais agrediam e incomodavam, ao
serem ressignificados, passaram a contar uma história de puro afeto.
E foi com base em histórias como essa que passei a criar os meus projetos
tendo um pensamento mais aberto, para que, no meio do caminho,
ajustes, mudanças e readequações se manifestassem naturalmente e
provocassem a expansão criativa de seus moradores. O que, mais tarde, eu
viria a transformar em uma das regras no meu trabalho: na decoração, não
há um estilo, um desejo ou mesmo um gosto a ser considerado errado. Em
tudo mora uma boa intenção, uma oportunidade de criar algo. Serão
necessários criatividade e propósito para que as ideias se instalem.
ousadia .
dimensões da alma…
Quanto mais sabemos sobre a nossa casa, mais nos apropriamos dos
nossos hábitos para, por meio deles, estabelecermos novos limites e, a
partir de então, sairmos em busca de um novo conhecimento daquilo que
se faz necessário para nutrir nossos poderes de alma, percebendo a casa
como um jogo no qual cada escolha, cada descoberta nos preenche e nos
amplia, alimentando a sede dos sentidos e nos convidando a avançar para
uma nova fase, uma nova descoberta sobre nós mesmos.
Hillman (1993), em seu memorável livro Cidade & alma, ainda sugere que o
habitar se constrói ao nosso redor com um único propósito: o de nos fazer
alcançar a espiritualidade.
Aos poucos, então, ficava perceptível que havia ali uma vontade, um
desejo natural em organizar seu entorno com base em uma demanda
interna que nem sempre estava clara na busca inicial e que, a cada reunião,
tomava forma e evoluía, tornando-se cada vez mais desejada e perceptível
no sorriso, no brilho dos olhos e na aceleração com as palavras.
Foi assim que aprendi que um bom projeto de interiores não se faz
somente tomando-se por base a lista de desejos dos clientes, mas,
principalmente, as histórias que eles guardam consigo. Histórias as quais
ficaram largadas e banalizadas desde a infância e que sempre estão prontas
para ser resgatadas e ressignificadas.
Os sentidos e os símbolos
Nossos olhos, ouvidos, nariz, mãos, boca e pés são responsáveis por
importantes interações nossas com o nosso entorno. Com a visão
apreciamos formas e movimentos; com a audição ouvimos sons e vozes;
com o olfato percebemos cheiros, identificamos aromas e até
reconhecemos pessoas, objetos e lugares; com o paladar distinguimos
sabores e identificamos alimentos; com o tato, vêm texturas, temperaturas
e outras sensações; com os pés, buscamos estabilidade, caminhamos,
dançamos e fazemos movimentos em diferentes superfícies e equilíbrios, e
assim por diante (Goldhagen, 2017). Os sentidos colaboram com os
sistemas sensorial, motor, perceptivo e cognitivo, permitindo-nos
perceber e aprender sobre uma série de informações e vivências. Por meio
deles, também entramos em contato com a linguagem dos símbolos,
trazendo um significado particular para tudo aquilo que está à nossa volta.
Essas vivências por meio dos sentidos sempre variaram em função do tipo,
da intensidade e da qualidade da relação que desenvolvemos com os
ambientes, de forma que duas ou mais pessoas podem conviver em uma
mesma casa e senti-la de modos diferentes. Tudo vai depender das
perspectivas, histórias e bagagens pessoais de cada uma, ou seja, os
sentidos por si só não são uma garantia de que vai ocorrer uma boa leitura
do mundo, mas o modo como os utilizamos, sim. São eles que nos
aproximam dos ambientes da casa, possibilitando decorá-la como um
lugar de acolhimento e liberdade de expressão.
Por isso, prestar atenção na forma pela qual nos relacionamos com as
coisas e com as pessoas à nossa volta é fundamental para a nossa
compreensão e a adaptação ao local onde moramos, a fim de criarmos uma
casa que não seja somente um lugar de refúgio e proteção, mas um
vórtice de simbologias que nos inspirem a viver o nosso
O monopólio da visão
O arquiteto Juhani Pallasmaa (2011) afirma que, em razão da
predominância da visão sobre os outros sentidos, deixamos que um
confronto com o próprio mundo nos leve. Como resultado,
desenvolvemos uma espécie de ódio velado ao corpo, na medida em que
passamos a sabotar aspectos da nossa interioridade, priorizando o
pensamento em detrimento do corpo e de nossas emoções.
Mas isso não significa que tenhamos de tratar a visão como vilã. O ponto
aqui está no reducionismo da nossa realidade a partir da valorização de um
único sentido. Ao nos isolarmos, suprimindo os demais sentidos,
restringimos as nossas experiências.
E, indo além da maçaneta, depois desse “portal”, o que estará reservado aos
demais objetos que repousam nos seus interiores?
Pouco nos damos conta da relação dos pés. Veja como os sentidos vão
ampliando a conexão com o ambiente. Por meio dos pés sentimos as
superfícies e percebemos seus contrastes, suas inclinações, seus degraus – e
suas densidades, a terra, o assoalho, os sintéticos e os naturais. A todo
momento, experienciamos a gravidade pelas solas dos pés. Ficando em pé
e sem calçados sobre o chão, podemos explorar com intimidade e sentir a
temperatura do piso, sendo essa uma experiência das mais revigorantes, o
que justifica ser esse um dos primeiros e mais importantes revestimentos
da nossa escolha quando pensamos no habitar.
Andar sem calçados sobre o piso da casa pode nos conectar com o que a
casa tem de melhor: a representação simbólica do solo e sua energia vital,
nosso grounding, em que enraizamos quem somos . Ou seja, o tato
dos pés torna-se tão importante quanto o das mãos na experiência de
habitar um espaço.
Será por meio dos símbolos e do significado que damos a cada um deles
que transcenderemos o significado de cada coisa, ampliando e dando
forma aos nossos conteúdos internos.
Por esse motivo, não é somente a aparência visual que conta na hora de
criar um projeto de design de interiores mas também – ou sobretudo – a
sensorialidade e o despertar simbólico que cada descoberta pode nos
possibilitar.
A experiência estética e o
autoconhecimento
No dia a dia, em meu escritório, dedico muito mais atenção e tempo a essa
fase do projeto – escolha e combinações de texturas –, pois a seleção das
texturas é que determinará a perenidade do projeto, tornando sustentável
o alto investimento na decoração.
As texturas e a matéria-prima da qual se constituem falam por si só,
sendo responsáveis por realçar a forma, a profundidade e a acústica do
espaço, fazendo da percepção do corpo e da imagem do mundo por meio
da morada uma experiência contínua . Nosso corpo passa a habitar o
mundo (Pallasmaa, 2011) como o coração está em nosso organismo; ele
sopra a vida para dentro da casa, e ela nos sustenta de dentro para fora.
Assim, teremos experiências que irão além do visual, possibilitando que se
crie um campo de energia que nos nutra ao mesmo tempo que nos acolha,
pois a relação simbólica traz consigo o poder da beleza, da harmonia e até
de cura.
Àqueles que se sentem tocados pelo que escrevo e entendem o poder que
nos aguarda nessa forma de criar a casa, eu recomendo, para que possam
perceber a delicadeza com que a alma se manifesta a partir do que é belo e
bem-intencionado, que a decoração seja pensada tendo como ponto de
partida o amor que essa espiritualidade evoca. Mas é claro que não estou
falando aqui daquele tipo de amor romântico e autocentrado, restrito a
alguns momentos e lugares em que relaxamos no fim de semana ou
mesmo nas férias ao lado das pessoas que nos são próximas e íntimas.
O amor nos acessa com facilidade porque somos afeitos a ele. Essa
familiaridade, no entanto, faz que essa ideia se acomode com rapidez em
uma cama de repertórios já existentes dentro de nós e que nem sempre são
os mais apropriados, pois guardam a sua origem alicerçada na ideia de o
homem é o centro – um tipo de crença que, no avanço do tempo, tem se
tornado responsável por muitos dos equívocos sociais e ecológicos que
estamos vivendo atualmente (Andrade; Pasini, 2022).
Ou seja, a atenção pela casa e pela vida não se volta única e exclusivamente
para nós, mas para a realização de uma tarefa cujo resultado não seja
somente uma casa decorada mas uma casa decorada que nos reconecte; que
seja algo maior que o controle do olhar e as limitações do entender,
auxiliando-nos em nossa capacidade de entrar em sintonia e harmonia,
integrando a consciência essencial daquilo que somos com o bem maior, a
natureza e o planeta na sua inteireza. A decoração também pode se tornar
um ato de amor, consciente de cuidado, respeitando os princípios da
sustentabilidade, antes de tudo, com nós mesmos.
interna
A vida moderna nos abstraiu das nossas relações com o chão, das nossas
raízes, em que nossas casas estão implantadas, e do teto e dos telhados
como representações da nossa integração com o céu e o cosmos. Também
nos alienou do fato de que os revestimentos ou mesmo os metais e
torneiras que usamos pela casa estão diretamente relacionados com os
ciclos da água e dos nutrientes, assim como o dos recursos naturais que
nesse momento estão sendo esgotados.
A partir de então, o que deve ser aprendido não tem fim, e, assim como a
vida, seu espelho, a casa vai se apresentando toda feita de pistas, em que,
muito embora a casa seja sempre a mesma, a cada movimento nosso ela vai
se mostrando mais do que antes. A decoração torna-se, portanto, o
registro dessa jornada de aprendizado e interpretação em que sempre
haverá mais a descobrir, explorar e expressar para revelar a casa, um
espaço vivo que se transforma, assim como nós nos transformamos.
Além da doçura e da delicadeza que a tornavam uma tia tão especial, duas
coisas sempre me chamavam a atenção diante daquela infinidade de
afazeres: seu zeloso e extremo cuidado com a casa e sua profunda conexão
com a natureza.
Nessa casa, onde passei boa parte das férias da minha infância, tudo era
Seja observando uma pintura, deixando que ela nos remeta para o mundo
da imaginação, seja quando estamos diante de uma poltrona, uma cadeira
ou um sofá e, de repente, pegamo-nos sonhando com o conforto do corpo
e até quando assistimos a bons filmes e séries, deixando nossa vida cheia de
novas histórias e dramas (Goldhagen, 2017). Assim como as nossas
experiências na casa alcançaram a nossa percepção do mundo, também é
possível utilizar a arte, os objetos e a decoração para transformar a nossa
percepção e criar histórias, tornando-nos mais criativos, inspirados e
conectados à experiência dos sentidos.
Note que aqui existe uma sutileza à qual é necessário prestar atenção.
Nossas histórias não mudarão, mas, a partir do amor e da atenção que
temos por elas, mudaremos a forma de contá-las, criando simbologias.
Será esse novo jeito de contar nossas histórias que inspirará outras pessoas
a se conectarem com suas casas de uma forma mais consciente e
responsável, gerando, a partir desse núcleo criativo, uma mudança positiva
no mundo. Eu presencio essa experiência em alguns projetos e pergunto:
por que não pensar assim?
quatro elementos
Mas o simbolismo dos elementos não para aí; ele é ainda mais complexo,
permeando a história da humanidade. Está na base do taoismo, do
hinduísmo, do budismo e da umbanda (Mantovani; Monteiro, 2022). Na
roda da vida, dentro do xamanismo, eles representam o movimento cíclico
das etapas da vida, assim como em outras culturas primitivas eles se
relacionam com os pontos cardeais. No design de interiores, estão
relacionados aos princípios de atuação do nosso espelhamento com a casa
e, neste livro, foram utilizados para nos inspirar a sair em busca de
caminhos que nos despertem a interagir com a casa.
Meu conselho aos sentimentais é: confiem mais em vocês; não sejam tão
preciosistas. Uma certa bagunça é necessária, além de deixar a casa “com
cara” de casa.
[2] Esse termo tem origem no teatro grego antigo e significa máscara.
Segundo a psicologia analítica de Jung, é um “arquétipo associado ao
comportamento de contato com o mundo exterior necessário à adaptação
do indivíduo às exigências do meio social onde vive” (Ramos, 2005, p.
197). (N.E.)
Capítulo 6.
A experiência e o
pertencimento
Essa é uma reflexão importante e atual que nos convida a rever nossas
crenças, mesmo quando se contrapõem à realidade. É muito comum
ficarmos presos em nossas próprias perspectivas e acreditarmos que temos
todas as respostas, mas a verdade é que somos limitados pelo nosso
acontece na casa : nos fixamos a tudo que está ali e vamos nos
engessando perante as experiências, até que deixamos de senti-las.
nossas histórias
Daí o fato de muitos de nós, por vezes, sentirmos tédio com os objetos e
detalhes perfeitos dispostos em prateleiras. Em um primeiro momento,
eles nos empolgam e nos surpreendem por sua forma, sua cor e seu
acabamento, mas, levados para casa, perdem-se em meio a um vazio que
ali habita, tornando-se apenas mais um objeto. Essas fórmulas prontas,
calcadas no consumo, estão perdendo força, e eis que o nosso jeito de fazer
por meio da experiência precisa ser valorizado.
Na decoração, nós nos experimentamos por meio da casa, para que ela
possa existir a partir da experiência estético-corporal. Assim, nossa
multissensorial
Para que ocorra o aprendizado estético, juntam-se as experiências que
temos nos processos de escolha e definição de materiais e a cognição que,
tendo a percepção e os órgãos dos sentidos como mediadores, organiza,
armazena e faz o conhecimento acontecer e se ampliar por meio de novas
experiências sensoriais a partir da nossa interação com o espaço e tudo à
sua volta.
É esse todo que complementa o nosso eu, de modo a formar nossa própria
identidade estética. Ou seja, a cada um de nós é conferido um poder de
escolha simbólica, demandado por nossas necessidades, nossa vontade,
nossos sentimentos e nosso conhecimento. Quando esses sentimentos não
estão alinhados com aquilo que de fato pode nos individualizar, é gerada
uma leitura equivocada da casa, a qual passa a não nos representar.
ê
Experiência ambivalente
Por meio das experiências é que a casa deixa de ser um espaço físico para
se constituir em um espaço de encontro simbólico com valores genuínos,
transcendendo a geometria e a mensurabilidade.
Para Roberto Crema (2018), todo encontro é o pressuposto de cuidado,
integração e harmonia entre os opostos, e o cuidado com a casa passa a
representar esse encontro entre a viagem e a chegada, o descanso e o
movimento, o sagrado e o mundano, o público e o íntimo, o familiar e o
comunitário, dentro e fora, lazer e trabalho, feminino e masculino,
coração e mente, ser e tornar-se, um lugar ideal, onde nascem e se
enraízam os princípios da cooperação, da regeneração e da nutrição.
Espaço
O espaço será a base da qual partiremos para a nossa busca
Podemos observar e sentir o espaço com base em sua forma e suas escalas,
mas também por seus reflexos, texturas e cores e pela passagem do tempo.
Por sua vez, o modo como nos colocamos e interagimos com o espaço é
influenciado por diversos fatores, como cultura, experiências de vida e
personalidade. Esses são os motivos que fazem do espaço da casa um ponto
central em nossa vida, pois é o local onde podemos nos expressar pela
maneira como o organizamos e decoramos. O espaço é o vazio; caberão, a
quem for preenchê-lo, o discernimento e a ponderação.
Cor
Estamos acostumados a ver a cor de forma plana. Mas a cor, com suas
características de tonalidade, brilho e intensidade, é outro caso. Ela é
formada pela luz e se tornou um importante recurso no design de
interiores em razão de seu alto poder de influência sobre a nossa
percepção, constituindo-se em um rico material simbólico e
Som
Toda escuta é uma resposta a uma busca e nos exige atenção. Escutar
requer tempo, discernimento e aprofundamento. A escuta pode nos
conectar com a consciência divina por meio dos sons da natureza, dos sons
da intimidade, da presença das plantas, dos materiais que se dilatam e se
retraem conforme a mudança da temperatura.
Aroma
Quando a nossa casa nos fala, ela o faz usando citações – isto é, fazendo
associações, despertando lembranças e fazendo referências a histórias que
estão enraizadas em nós. É como ser remetido a alguma situação
vivenciada e a tantas outras situações a partir dela. Pode vir do cheiro da
cera, do couro que reveste uma poltrona, do aroma de café que aciona
nossa memória gustativa, fazendo que brotem lembranças dos ângulos
formados pelas paredes, pelo piso e pelo teto de um ambiente. Uma
tradição silenciosa, passada de geração para geração.
É engraçado, pois, por mais que as pessoas estejam certas do que desejam,
os ambientes – por meio de seus ritmos, suas rotinas e tudo o que está
distribuído neles – dizem o contrário. Era o caso naquela noite, e minha
intuição me deixou em estado de alerta. Embora aos poucos as ideias
fossem convergindo para a criação de um espaço fechado, climatizado e
exclusivamente destinado aos vinhos e aos charutos, algo dentro de mim
sinalizava o contrário.
A criatividade e a
reciprocidade
Nós vivemos em função dos rituais e seus ciclos: há fases em que não
conseguimos ver nada fora do lugar, assim como existem fases nas quais
queremos saber de nada. Há fases nas quais ativamos nossa capacidade de
decorar a casa, ler seus símbolos e organizá-la, e há momentos em que não
queremos nada disso. Na dimensão das coisas criadas, aceitam-se e se
equilibram essas experiências totalmente paradoxais, mas que fazem parte
de uma mesma vida. Há conclusões, ou seja, aquilo que não deu para fazer
dessa vez pode ser feito mais adiante. É possível planejar, sonhar e
imaginar, e nada precisa ser finalizado antes de ser aperfeiçoado ou mesmo
transformado, pois existe um fio condutor a nosso favor e que nos permite
aprender com as falhas, utilizando as experiências para nos tornarmos
mais fortes, sábios e experientes.
ã é ã
Decoração periférica e decoração
interiorizada
É um tipo de decoração que tende a nos libertar, pois cada escolha nos
direciona a um caminho novo que envolve e colabora com os próximos
passos do projeto, estendendo-se corajosamente para o encontro
surpreendente que o desconhecido nos traz.
É valioso reconhecer que os dois modelos – o periférico e o interiorizado –
coexistem em nós, alternadamente, em diferentes proporções. Além disso,
para alguns, o simples fato de aprender a decorar, mesmo que
superficialmente em um primeiro momento, pode ser uma preciosa
conquista. O engano será estagnar nesse modo de criar a decoração.
é é
Criar o mundo é também criar-se
e recriar-se continuamente
Para que o design de interiores tenha um papel de cura em nossa vida, será
preciso conscientizar-se de que cada escolha que fizermos para a decoração
da casa vibrará a simbologia daquilo que somos e em que acreditamos.
Para tal, precisaremos reaprender a explorar essa intimidade sensorial com
base em novas fronteiras cognitivas, a serem experimentadas pelo viés da
criatividade e da reciprocidade afetiva.
criatividade?
A partir dessa simbiose, em que mãe e bebê são unos em estado de amor,
nosso primeiro ato criativo passa a ser simbolizado pela mama materna,
que surge à nossa frente pela experiência daquilo que nos é ofertado.
Paradoxalmente, cria-se em nós a ilusão de que esse peito faz parte de nós,
em uma experiência que une ficção, ilusão, construção e realidade, de
modo que, a partir de então, passamos a evoluir e nos tornar aquilo que
criamos. Para aqueles que não conheceram suas mães biológicas ou mesmo
não tiveram a mama como primeira imagem de criação, nosso organismo
é generoso e transfere a figura da mãe para uma outra figura de poder que
atue em seu lugar, assim como o peito é substituído por um objeto de
transferência.
Será por meio dessa tríade (mãe, bebê e espaço criativo) que a mãe passará
a representar a realidade externa na figura do outro, fazendo que aflorem
noções de interioridade em nós. A partir de então, a fim de que possamos
tolerar a frustração gerada por essa ausência gradativa, caminharemos em
busca de um sentido de vida, preenchendo esse campo da criatividade –
em um primeiro momento, por meio do afeto aos objetos, denominados
por Winnicott como objetos de transferência que nos serão ofertados (por
exemplo, a chupeta, o paninho, os brinquedos) e que, mais tarde, cederão
lugar à própria construção cultural de cada um.
e o imaginário
Decorar pode, então, significar brincar? Eis que surge um novo paradigma
a ser experienciado pelo viés da criatividade.
A partir de então, faz todo o sentido utilizar o design de interiores para
buscar uma reconstrução simbólica da nossa identidade, em que
poderemos escolher em qual parte e com qual intensidade entre o real e o
imaginário queremos estar na vida.
Gosto de pensar que o design de interiores vem para, por meio das nossas
histórias, viabilizar novas formas, novas simbologias e novos padrões que
surgem dessa experiência, pois a todo momento, por meio das nossas
escolhas, ele interage, questionando-nos, mediando, articulando e
integrando o que somos com o lugar onde queremos morar.
Ao nos permitirmos ser criativos, estamos nos abrindo para o novo. Para
que essa experiência se instale, viver um certo risco será inevitável, pois é
impossível sabermos, logo no início desse processo, como despertaremos
o afeto pela nossa casa. Será preciso ter disposição para nos aventurarmos,
saindo da zona de conforto, arriscando-nos a experimentar novas ideias,
novos caminhos, novas possibilidades.
A ética e a estética
transformar
Mas o equívoco é que essa decoração não foi criada com o fim de que a
encontremos bela. As formas dos objetos e sua disposição em um
ambiente não são, por si só, uma finalidade; será a vivência por meio deles
que permitirá que os chamemos de belos. Para que isso aconteça, os
objetos devem ter em si qualidades simbólicas capazes de nos provocarem
essa experiência.
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Os símbolos possuem valor de
integração em si mesmos
haver a ética
Assim como somos contadores de histórias, somos seres sociais e não
podemos viver isolados dos nossos semelhantes, pois viver não é só feito
de experiências. Então, viver sob a ética também passa pelo apoio mútuo,
antes de tudo por uma questão biológica, e por que não estender a uma
necessidade ecológica? Ambas estão relacionas ao princípio de
sobrevivência da espécie, entendendo o planeta Terra como um sistema
complexo de coevolução, com enorme potencial para alterar de forma
significativa nossa perspectiva e nossas atitudes éticas e estéticas (Andrade;
Pasini, 2022).
é
Estética, um acontecimento que
é
Falar sobre a beleza é uma tarefa
propulsora e relevante
É por isso que penso que falar sobre a beleza é uma tarefa vitalmente
propulsora e diretamente relevante para as nossas possibilidades de
sobrevivência, pois por meio dela é que pode surgir o impulso para
manter um estado de ordem e equilíbrio ético e estético, cada vez mais
essencial para a saúde mental e, consequentemente, do planeta.
A alma
mundo
Neste momento, você que está lendo este livro pode estar sentindo tensões
em algum local no corpo – face, pernas, abdômen, ombros – que
provavelmente são desnecessárias.
Essas tensões inúteis, essa energia que nos incomoda, mostram como
estamos desorganizados emocionalmente. Poderíamos usar isso tudo para
estar na vida, mas sem nos deixar ser tragados ou tragadas por ela.
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No coração guardamos a chave
praticar a beleza
O que está sendo apontado é que coração tem uma rede neural própria,
também conhecida como o “cérebro do coração”, em que se concentram
neurotransmissores, proteínas e células de apoio que guardam memórias
de curto e longo prazos, podendo operar independentemente dos
comandos do sistema nervoso central provenientes do cérebro.
mais?
Diante desse contexto e embora essa seja uma boa explicação, não
podemos nos inocentar frente ao fato de o design também justificar seu
papel de conspiração, engodo e malícia. Parece-nos que a mesma alavanca
que nos fez chegar até aqui como criadores e que guarda o poder de nos
levar às estrelas também nos afastou da verdade e da autenticidade,
levando-nos a viver cada vez mais de um modo mais bonito (menos belo),
porém artificial.
Olhando por esse viés, se o design continuar se tornando o foco do
interesse e as questões referentes a ele passarem a ocupar tão somente o
lugar das “boas” ideias, no futuro não mais pisaremos em terra firme.
Basta, para isso, olhar as latas de lixo de nossa casa, as caçambas de entulho
espalhadas pelas ruas, os inúmeros vídeos disponíveis na internet sobre
aterros sanitários ou as ilhas de detritos pelos oceanos para entender como
o design pode nos influenciar negativamente.
Mas, para gerar cosmos, é preciso movimentar ainda mais caos. É aí que
resolvemos quebrar uma parede aqui, trocar um tecido ali, fazendo da
nossa vida o próprio caos. Antes de conhecer esse conceito de geração de
energia, eu costumava dizer aos clientes que a vida era esse movimento
bagunçado que a todo momento questionava nossos caminhos e que viver
seria pôr ordem nessa bagunça que a vida é. Inconscientemente,
bagunçamos tudo porque nossa intuição sabe que só do caos é que surge a
possibilidade de entrarmos em contato com nosso potencial máximo
criativo com o espaço. O caos nos desafia e nos possibilita ir ao encontro
de um novo arranjo, o cosmos. Esse auge criativo se abastece da coragem –
não a coragem da impulsividade, mas aquela que o propósito nos dá
quando buscamos a beleza em sua condição de harmonia. É onde entra o
design de interiores, nessa tensão entre entropia e sintropia, atuando
como organizador do impulso de decorar, colocando ordem, processo e
clareza no caos.
o que eu amo
“O que eu quero”, “Do que eu preciso” e “O que eu amo” são pistas as quais
deixo aqui para aqueles que anseiam por aprender os caminhos da
mudança pelo viés de um design de interiores alicerçado nas práticas
ecocêntricas. Essas três experiências são os instrumentos para a percepção
do mundo exterior com o objetivo de nos conectar com nosso interior,
acessando o mundo dos símbolos, nossa ponte de conexão com as emoções
e com alma, ativando nossa vontade e nossa criatividade, gerando uma
série de insights e lembranças.
O que eu quero?
“O que eu quero” parte de uma escuta física e palpável. Fazemos uso da
intenção para adentrar o mundo da emanação, a origem – é o que se
chama de experiências de horizontalidade .
“O que eu quero” também pode ser analisado sob uma visão psicológica,
estando relacionado ao conceito de princípio da realidade, definido por
Sigmund Freud.
O ego é guiado pelo princípio da realidade. Ele busca satisfazer aos nossos
desejos e impulsos primitivos (também chamados por Freud de id) de uma
forma socialmente adequada, opondo-se ao princípio do prazer, mas sem o
anular. Sua função vai no sentido de mediar os impulsos do id para que
eles sejam satisfeitos de acordo com os princípios morais da realidade
social.
Do que eu preciso?
“Do que eu preciso” parte de uma escuta psicológica e da prática do
exercício da escolha ou do mundo da modelação – experiências de
verticalidade .
O que eu amo
“O que eu amo” representa a escuta da alma, que se faz presente em nossa
casa a partir da integração de corpo, mente e coração. São
manifestações que intercorrem em meio ao projeto e que
podem nos direcionar para outras possibilidades. Exemplos: aquela ideia
que não deu certo e nos exige criatividade, pessoas e histórias que surgem
em nosso caminho e ampliam nosso conhecimento, afetos provenientes da
nossa surpresa e do nosso estranhamento frente à mudança.
Sob o ponto de vista projetual, essa é uma fase na qual nos abriremos
para o novo , para tudo aquilo que vem de fora. Novas tecnologias,
novos materiais, aliados à sustentabilidade, resgates da nossa cultura
primitiva e do fazer artesanal, o consumo consciente do design e todo o
conteúdo presente nos capítulos que abordamos neste livro nos falam do
mundo da expressão e de como queremos ser vistos a partir dela.
... é inflamável?
...tem reposição?
A alma está sempre presente em nosso corpo, como o pavio de uma vela
que alimenta a chama, questionando-nos: que casa somos nós? O
que faremos durante essa experiência com a casa? Qual o propósito desse
investimento e dessa busca?
Capítulo 10.
Design de interiores, um
caminho
Como você pode ter notado, escrevi este livro na primeira pessoa do
plural, “nós” (eu + você). Essa escolha tem o papel de nos treinar como
colaboradores uns dos outros. E engana-se quem, ao ler minhas palavras
sobre a importância do morador como protagonista da decoração, pense
que eu tenha diminuído ou subestimado a atuação do designer de
interiores. Assim, neste momento do livro considero importante
tratarmos da profissão, de seu futuro e de ajustes que deverão ocorrer
nessa atividade profissional.
Temos ouvido que, com o avanço da tecnologia, várias profissões se
extinguirão, bem como outras surgirão, e isso é um fato: muitas se foram
ou estão em “crise existencial”, por meio dos profissionais que as exercem.
Mas eu não tenho dúvida de que a atividade do designer de interiores
tende a crescer, evoluindo e se especializando cada vez mais.
é ã
Design de interiores é a decoração
em ação!
Quais são suas origens? De onde são seus pais? Como foi a infância? Onde
passavam as férias? Onde se formaram? Como era a casa durante a
faculdade? Para os casados: onde se conheceram? Como seria se…? Como
você se sentiria se…?
Esses são alguns exemplos que não têm, como objetivo, obter respostas,
mas trazer à tona, ao campo das emoções, atos falhos, pequenas
entrelinhas que nos abrem para grandes criações. Costumo brincar que é
um exercício de mexer o caldo: a gente mexe, mexe, mexe e, quando se dá
conta, emergem informações do inconsciente. E, certamente, as melhores
perguntas são as que provocam silêncio como resposta, pois isso significa
que os clientes estão em estado criativo. Uma forma de “quebrar o gelo” é
intermediarmos esse garimpo com nossas próprias histórias, assim como
utilizar metáforas é um ótimo recurso. Qualquer artifício é válido para
tirar o ego do controle.
interiores
É por isso que precisamos repensar o morar: para suprir algo além das
nossas necessidades físicas e biológicas. O mundo está nos solicitando uma
casa que emerja do nosso coração. Se, no mundo industrial, antes de
habitar uma casa nós a decorávamos, no mundo digital o processo foi
invertido, e, desde então, passamos a vida a decorá-la, pois cuidar da
Para que um novo pensamento surja e, por meio dele, uma nova cultura
passe a nos inspirar, tudo dependerá da nossa capacidade de viver de modo
completamente distinto o mesmo mundo que já não é mais tão moderno
assim. Aos que tratam desse ponto de vista como um ensaio de utopia, eu
trago minha experiência, por meio da qual pude acompanhar pessoas em
seus lares. Certamente a decoração não salvará a vida no planeta, mas tem
grande chance de ajudar a nos integrarmos a ele.
E que fique claro que, muito embora eu considere ser necessário, não sou
daqueles que sonham em mudar o mundo – pelo menos não de uma forma
milagrosa. Ou seja, ao que tudo indica, vamos continuar nos
desenvolvendo pelo viés da tecnologia e do consumo. Contudo, para que
isso ocorra, não deveremos mudar a forma pela qual fazemos, mas
mudar o modo como estamos fazendo . Esse, a meu ver, é o
grande salto capaz de inovar nossas crenças e forma de pensar.
buscando contemplação
Se é um fato que não decoramos a casa para competir com o outro, por
qual motivo a decoração existiria em nossa vida a não ser para nos ajudar a
ter prazer por meio das práticas do cotidiano? O que fazemos na cozinha
quando quebramos as paredes, trocamos os metais, investimos em
eletrodomésticos, além de uma cerimônia em prol do ritual de cozinhar?
Para que revestimos as paredes com papéis de parede, cortinas fluidas,
uma cabeceira confortável, além de criar abertura e preparo para o ritual
do repousar e do descansar, ou, então, para que perdemos tempo
escolhendo sofás, cuidando da espessura dos tapetes, combinando cores e
texturas senão para o ritual da celebração?
Uma decoração que nos conecta com nossa imaginação (imagem em ação)
por meio dos rituais significa que a alma está em movimento. Um campo
de criação de possibilidades a partir de uma nova consciência do que é
morar.
Será que o que vemos ao nosso redor – pendurados nas paredes, nos copos
dentro dos armários, nas almofadas recostadas no sofá – não seriam os
acordos velados aos quais nos permitimos por meio de rituais de
pessimismo, medo, raiva, inveja que intimamente estamos criando? Ao
não valorizar os cuidados diários, fazendo-os de qualquer jeito, não
estaríamos deixando a casa desabrigada de seus rituais de consagração?
Em suas aulas, o monge Satyanãtha ensina: ritual é tudo o que a gente faz
no mundo físico com a intenção de acessar o mundo invisível, que, apesar
de não vermos, está lá, em forma de vibração, pronto para download. Os
rituais têm o poder de mudar o fluxo da nossa consciência, estabelecendo
uma ordem de prioridade e importância daquilo que almejamos alcançar,
transformando o mundo físico à nossa volta.
impregnada por quem mora nela , pois, para onde vai nossa
atenção, a energia flui e vibra na forma pela qual a realidade se apresenta.
E, assim, a casa ficará impregnada por todos os pensamentos da nossa
mente tagarela ou será fruto de boas intenções de prosperidade e
autoamor.
Os rituais são como pontes; eles ensinam a nos relacionarmos com coisas
que não podem ser compradas nem vendidas. E o que não pode ser
comprado torna-se sagrado.
profissional de design de
interiores?
Essa frase da socióloga Marion Segaud (2016, p. 115) sugere que as formas
têm a capacidade de criar outras formas, inspirar criações e moldar a
maneira pela qual contrastamos e interpretamos o mundo e a organização
do espaço, transmitindo significados.
Como seria se, em lugar da oposição entre alto e baixo, entre material e
espiritual, tivéssemos a tensão entre a vida na Terra e a vida com a Terra?
Capítulo 11.
A casa e o cosmos
Fabio Galeazzo
Naturalmente, a casa e tudo o que a faz são inanimados, pois eles não
vivenciam sentimentos, recordações e intenções. No entanto, eles podem
ganhar alma por meio das nossas projeções, que nos retornam
despertando ideias, recordações, interioridade, profundidade. A nossa casa
e a decoração que ali criamos não têm energia própria; somos nós, seus
habitantes, que a ativamos por meio das nossas ações e criações.
Todos nós sonhamos em ter um lugar secreto onde possamos nos recolher
em alguns momentos, escapando das pressões e da ansiedade da vida. Para
alguns, esse sonho pode estar em uma ilha distante, um cenário idealizado
ou mesmo um Jardim do Éden. Porém, esses sonhos muitas vezes são
escapistas, por uma única constante, um desejo irresistível de fugir de uma
companhia persistente: a nossa própria.
E por que não expressar fisicamente na casa essa clareza que gostaríamos
de atingir? Transformando-a em um lugar que traga cura e equilíbrio, que
seja aberto aos amigos, mas também protegido de invasões indesejadas e
de notícias ruins.
Termino este livro da mesma forma que o comecei, como quem abre a
porta de casa e diz: “Pode entrar, a casa é sua!”.
Há muito mais a fazer, explorar e descobrir. Que este livro possa nos
inspirar a ir além.
A casa e o cosmos
A criatividade e a reciprocidade
A ética e a estética
A experiência e o pertencimento
Abre-te, sésamo!
Agradecimentos
Apresentação
Aroma
Cor
Do que eu preciso?
E como deverá ser a formação do profissional de design de interiores?
Espaço
Este livro
Experiência ambivalente
Índice geral
Introdução
Luz
O monopólio da visão
O mundo digital
O mundo industrial
O mundo medieval
O que eu amo
O que eu amo…
O que eu quero?
Os sentidos e os símbolos
Parte I. O mundo
Referências
Século XXI – a queda das paredes trouxe uma casa mais porosa
Sobre o autor
Som
Textura
Galeazzo, Fabio
O designer que habita em nós: criatividade e
autoconhecimento na decoração / Fabio Galeazzo. – São Paulo :
Editora Senac São Paulo, 2024.
Bibliografia.
e-ISBN 978-85-396-4721-7 (ePub/2024)
Design 2. Arte 3. Decoração 4. História do design 5.
História da arte 6. Estética I. Título.