Dossiê Completo Direito e Relações Raciais

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direitos e rela çõ es raciais

PPGDH
INSTITUTO DE PESQUISA. DIREITOS
E MOVIMENTOS SOCIAIS UnB
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InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais


volume 10, número 1, janeiro a junho de 2024
ISSN 2447-6684

Publicação semestral do Instituto de Pesquisa Direito e Movimentos Sociais (IPDMS)


e do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade de Brasília (PPGDH/UnB)

EDITOR RESPONSÁVEL
Alexandre Bernardino Costa (Universidade de Brasília)

COORDENAÇÃO EDITORIAL EXECUTIVA DESTE NÚMERO


Leonardo Evaristo Teixeira e Guilherme Cavicchioli Uchimura
(Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais)

COMISSÃO ORGANIZADORA DO DOSSIÊ


"DIREITO E RELAÇÕES RACIAIS "
Ciro de Souza Brito, Emília Joana Viana de Oliveira,
Inara Flora Cipriano Firmino e Rodrigo Portela Gomes

CONSELHO CIENTÍFICO
Alexandre Bernardino Costa (Universidade de Brasília), Alfredo Wagner Berno de Almeida
(Universidade do Estado do Amazonas), Ana Ester Ceceña (Universidad Nacional Autónoma de
México), Ana Lúcia Pereira (Universidade Federal do Tocantins), Antonio Salamanca Serrano (Instituto
de Altos Estudios Nacionales, Equador), Breno Marques Bringel (Universidade do Estado do Rio de
Janeiro; Instituto de Estudos Sociais e Políticos), Carlos Frederico Mares de Souza Filho (Pontifícia
Universidade Católica do Paraná) Conceição Paludo (Universidade de Pelotas, Brasil), David Sanchez
Rubio (Universidad de Sevilla), Enrique Dussel (Universidad Autónoma de la Ciudad de México),
George Andrew Meszaros (University of Warwick), Jesús Antonio de la Torre Rangel (Universidad
Autónoma de Aguascalientes), Joaquim Shiraishi Neto (Universidade Federal do Maranhão), José
Geraldo de Sousa Júnior (Universidade de Brasília), Maria Tereza Sierra (CIESAS), Norman José
Solórzano Alfaro (Universidad Nacional, Costa Rica), Rachel Henriette Sieder (Centro de
Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social, México), Raquel Maria Rigotto
(Universidade Federal do Ceará), Regina Facchini (Unicamp, Brasil) e Rita Laura Segato (Universidade
de Brasília)

PROJETO GRÁFICO
Anna Carolina Murata Galeb e Guilherme Cavicchioli Uchimura

CAPA
Cabelo é história (2022) de Aline Guimarães, no Instagram @lineaaaa_, multiartista nas áreas de
arte urbana, ilustração, arte-educação e performance

EDITORAÇÃO
Leonardo Evaristo Teixeira, Matheus Daltoé Assis e Guilherme Cavicchioli Uchimura
CORPO DE PARECERISTAS
Alexandre Tortorella Mandl (Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais), Ana Luisa Leão de
Aquino Barreto (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Ana Radig Denne Lobão Morais (Instituto
de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais), Anna Carolina Murata Galeb (Universidade Federal
Fluminense), Ana Paula Martins Hupp (Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais), Ciani
Sueli das Neves (Universidade Federal de Pernambuco), Ciro de Souza Brito (Instituto
Socioambiental), Daniel Vitor de Castro (Universidade Federal de Minas Gerais), Diana Carolina
Caicedo Peñata (Universidad Autónoma de San Luis Potosí-México), Diogo Pinheiro Justino de Souza
(Universidad Nacional de Tres de Febrero-Argentina), Eder Fernandes Santana (Universidade Federal
de Minas Gerais), Érika Macedo Moreira (Universidade Federal de Goiás) Emília Joana Viana de
Oliveira (Universidade de Brasília), Felipe de Araújo Chersoni (Instituto de Pesquisa, Direitos e
Movimentos Sociais), Geraldo Miranda Neto (Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais),
Guilherme Cavicchioli Uchimura (Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais), Gustavo
Seferian (Universidade Federal de Minas Gerais), Helga Maria Martins de Paula (Universidade Federal
de Jataí), Hugo Belarmino de Morais (Universidade Federal da Paraíba), Inara Flora Cipriano Firmino
(Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), José Humberto de Góes Junior (Universidade
Federal de Goiás), José Jaime Freitas Macedo (Universidade Federal do Vale do São Francisco), Luiz
Otávio Ribas (Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais), Marco Alexandre Souza Serra
(Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais), Marília de Nardin Budó (Universidade Federal
de Santa Catarina), Marina Marques de Sá Souza (Universidade Federal de Santa Catarina), Mariana
Trotta Dallalana Quintans (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Moisés Alves Soares (Universidade
Federal de Jataí), Priscylla Joca (Universidade de Montreal-Canadá), Ricardo Prestes Pazello
(Universidade Federal do Paraná), Roberto Efrem Filho (Universidade Federal da Paraíba), Rodrigo
Portela Gomes (Universidade Federal da Paraíba), Tchenna Fernandes Maso (Universidade Federal do
Paraná), Thaís Henriques Dias (Universidade Federal Fluminense), Urânia Flôres da Cruz Freitas
(Universidade de Brasília).

PARECERISTAS AD HOC
Allan Alves da Mata Ribeiro (Universidade Federal Rural de Pernambuco), Ana Paula Cruz Penante
Nunes (Universidade de Brasília), Beatriz Martins Moura (Universidade de Brasília), Caíque Azael
Ferreira da Silva (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Carolina Rezende Moraes (Universidade de
Brasília), César Augusto Baldi (Núcleo de Estudos para Paz e Direitos Humanos, Universidade de
Brasília), Clarindo Epaminondas de Sá Neto (Universidade Federal de Santa Catarina), Daiane Santos
Ribeiro (Universidade Federal da Bahia), Daniela Marques Vieira (Universidade Federal do Paraná),
Deise Benedito (Universidade de Brasília), Deíse Camargo Maito (Universidade do Estado de Minas
Gerais), Deivide Julio Ribeiro (Universidade Federal de Minas Gerais), Edmo de Souza Cidade de Jesus
(Universidade Federal de Santa Catarina), Eduardo Wallan Batista Moura (Universidade de Brasília),
Érika Costa da Silva (Universidade Federal da Bahia), Fábio Accardo de Freitas (Associação Estadual
de Defesa Ambiental e Social), Gabriel Antonio Silveira Mantelli (Universidade de São Paulo), Geralda
Magella de Faria Rossetto (Universidade Federal de Santa Catarina), Géssica Arcanjo (Instituto
Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), Gianmarco Ferreira (Universidade de Brasília),
Givânia Maria (Universidade de Brasília e Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos),
Grazielly Alessandra Baggenstoss (Universidade Federal de Santa Catarina), Heiza Maria Dias de
Sousa Pinho Aguiar (Universidade de Brasília), Igo Zany Nunes Correa (Universidade Federal de Minas
Gerais e Tribunal Regional do Trabalho da 11ª Região), Jedivam Maria da Conceição Silva
(Universidade Federal Rural de Pernambuco), Jonnas Esmeraldo Marques de Vasconcelos
(Universidade Federal da Bahia), Juliana Fontana Moyses (Universidade de São Paulo), Lais da Silva
Avelar (Universidade Federal da Bahia), Lara Melinne Matos Cardoso (Universidade de Brasília), Laura
Rebecca Murray (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Lawrence Estivalet de Mello (Universidade
Federal da Bahia), Liliane Pereira de Amorim (Universidade de Brasília), Luanna Tomaz de Souza
(Universidade Federal do Pará), Luiz Eduardo Figueira (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Maíra
de Deus Brito (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), Maira de Souza Moreira
(Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), Marcelo de Mello Vieira (Tribunal de Justiça de
Minas Gerais), Marcio Camargo Cunha Filho (Direito do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento,
Ensino e Pesquisa), Milene Maria Xavier Veloso (Universidade Federal do Pará), Natali Galeano
Guzmán (Universidad Autónoma de Zacatecas-México), Paulo Fernando Soares Pereira (Advocacia
Geral da União e Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), Raissa Roussenq Alves (Universidade
de Brasília), Raíza Feitosa Gomes (Universidade Federal da Paraíba), Raquel Santana (Universidade de
Brasília e Tribunal Superior do Trabalho), Rebecca Forattini Lemos Igreja (Universidade de Brasília),
Ruan Didider Bruzaca (Universidade Federal do Maranhão), Thais Becker Henriques Silveira
(Universidade de São Paulo), Vinícius de Assis Romão (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Campus Universitário Darcy Ribeiro - UnB, Pavilhão Multiuso I - PMU I, Bloco C, 1º andar, Asa Norte,
Brasília-DF, CEP: 70.910-900 | Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania -
UnB | [email protected]
A InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, ligada ao
Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) e vinculada ao
Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da
Universidade de Brasília (PPGDH/UnB), tem por objetivo difundir produção
teórica inédita concernente à temática “direitos e movimentos sociais”. Com
a perspectiva de impulsionar a atividade de pesquisa desenvolvida com, por
e para os movimentos sociais, mobilizando pesquisadoras e pesquisadores
de todo o Brasil em diversas áreas temáticas, o IPDMS se propõe a veicular
uma publicação, em formato de periódico internacional, que promova
produções teóricas que estejam comprometidas com a construção de
conhecimento crítico e libertador sobre o tema dos direitos e dos
movimentos sociais, permitindo a elaboração criativa e engajada de análises
e interpretações sobre os diversos assuntos que afetam o povo brasileiro e
latino-americano. A Revista admite produções acadêmicas, políticas e
artísticas relacionadas ao tema direitos e movimentos sociais, considerando
como áreas de interesse as ligadas aos Grupos de Trabalho (GTs) do IPDMS:
Assessoria jurídica popular, educação jurídica e educação popular; Cidade e
direito; Criminologia crítica e movimentos sociais; Direito e marxismo;
Direito, memória e justiça de transição; Direitos, infâncias e juventudes;
Gênero, sexualidade e direito; Mundo do trabalho, movimento sindical e
direito; Povos e comunidades tradicionais, questão agrária e conflitos
socioambientais; Pensamento crítico e pesquisa militante na América
Latina; Observatório do sistema de justiça, de políticas públicas e do
legislativo; Observatório da mídia, direitos e políticas de comunicação.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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Sumário
Apresentação
Apresentação do dossiê
“Direitos e relações raciais” ......................................................................................... 9
Comissão Organizadora do Dossiê (Ciro de Souza, Emilia Joana Viana de Oliveira,
Inara Flora Cipriano Firmino e Rodrigo Portela Gomes)

Diálogos InSURgentes
A mulher Munduruku na luta pela vida e território do seu povo:
entrevista com Maria Leusa Munduruku .................................................................. 23
Entrevista concedida por Maria Leusa Munduruku a Inara Flora Cipriano Firmino
e Rodrigo Portela Gomes

40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista


com Deise Benedito .................................................................................................................41
Entrevista concedida por Deise Benedito a Inara Flora Cipriano Firmino, Emília
Joana Viana de Oliveira e Rodrigo Portela Gomes

Dossiê "Direitos e relações raciais"


Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias
temáticas e de um léxico estratégico decolonial ..................................................81
Alex Bruno Feitoza Magalhães

Hermenêutica negra para pensar a tutela jurídica dos quilombos


urbanos ........................................................................................................................................... 121
Maria Luiza Dantas e Lilian Márcia Balmant Emerique

Environmental Racism, Necropolitics, and Climate Crisis: Reflections


from the Humanitarian Crisis of Indigenous Peoples and Traditional
Communities in Brazil .......................................................................................................... 143
Mariana Rodrigues Viana

Pardismo: um etnocídio de Estado .............................................................................. 173


Sérgio Pessoa Ferro e Givanildo Manoel da Silva

Democracia e racismo: da crise à construção de uma Democracia


Antirracista .................................................................................................................................. 209
Hector Luis Cordeiro Vieira e Tédney Moreira da Silva

As mulheres negras nos estudos acadêmicos sobre crimes raciais ...... 233
Nilvia Crislanna da Cruz Borges e Luanna Tomaz de Souza

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
O contrato racial como constituição não escrita do Brasil ignorância
branca e interpretação do direito à luz da filosofia política de Charles
Mills .................................................................................................................................................. 255
Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães e Heitor Moreira Lurine Guimarães

A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica


no Direito ..................................................................................................................................... 283
Danilo dos Santos Rabelo

Relações étnico-raciais, linguagem e tecnologia: confluências e


conflitos......................................................................................................................................... 325
Alejandro Knaesel Arrabal

Uma discussão urgente: as possibilidades da juventude negra no


mundo do trabalho brasileiro sob a perspectiva da interseccionalidade
e da teoria jurídico-trabalhista crítica ........................................................................ 347
Ygor Leonardo de Sousa Araujo e Hugo Cavalcanti Melo Filho

Pactos narcísicos, violência antinegra e a atuação da magistratura


na criminalização de um homem morto em uma operação policial
no Rio.............................................................................................................................................. 373
Luciana Fernandes

Estudo sobre educação para privados de liberdade em


Santarém-PA ............................................................................................................................. 397
Poliana Aguiar Luiz e Alan Augusto Moraes Ribeiro

Territórios racializados e a produção risco de violência doméstica pelo


Sistema de Justiça ................................................................................................................. 425
Bárbara Crateús Santos

Violação à lei de cotas em concursos públicos para docentes de nível


superior: uma análise da atuação do GRUNEC como movimento negro
educador das instituições públicas cearenses ...................................................... 461
Livia Maria Nascimento Silva e Cicera Nunes

Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica Racial” e a armamentização do


analfabetismo racial: um relatório da linha de frente .....................................487
Kendall Thomas

Em Defesa da Pesquisa
Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada
família de Marx e Engels ..................................................................................................... 515
Vitor Bartoletti Sartori

A economia política latino-americana da pena ................................................... 551


Leonardo Evaristo Teixeira

Assédios: engrenagem estruturante de instituições do Brasil .................. 587


Grazielly Alessandra Baggenstoss

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 9 | n. 2 | jul./dez. 2023 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Sexo, dinheiro e escravidão moderna: tráfico de travestis e mulheres
trans do Brasil para a Europa com fins de exploração sexual ...................... 611
Leonam Lucas Nogueira Cunha, Jules Ponthieu e Lucas Isaac Soares Mesquita

Emergência da primeira infância: ampliação dos direitos das crianças


ou aprofundamento do neoliberalismo? ................................................................. 641
Maria Mostafa

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como um


novo paradigma para implementação de políticas sociais ......................... 665
Wederson Santos e Olemar Guilherme da Cunha

Temas Geradores
Raça e racismo como conceitos jurídicos de resistência .............................. 697
Camilla Magalhães Gomes

Educação jurídica antirracista ........................................................................................ 709


Philippe Oliveira de Almeida

Hermenêutica Senhorial ..................................................................................................... 721


Marcos Queiroz

Letramento jurídico-racial crítico ................................................................................. 737


Tiago Vinicius André dos Santos

Maria Sueli Rodrigues de Sousa .................................................................................... 753


Eduardo Wallan Batista Moura, Iago Masciel Vanderlei, Lara Melinne Matos
Cardoso e Zilda Leticia Correia Silva

Enrique Dussel e o direito ................................................................................................. 767


Ricardo Prestes Pazello

Poéticas Políticas
Cabelo é história ...................................................................................................................... 803
Aline Guimarães

Fotografia como ato de insurgência contracolonial (Stela).........................807


Stela Guedes Caputo

Mulheres da CONAQ ............................................................................................. 815


Walisson Braga da Costa

Epistemologias da terra: articulações interseccionais pelo


bem viver ..................................................................................................................................... 823
Letícia Reis

Premonição ................................................................................................................................. 831


José D'Assunção Barros

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Caderno de Retorno
Mulheres Atlânticas - a agência de mulheres negras no Judiciário
Brasileiro: resenha do livro “Cadê a Juíza?”, de Raíza Feitosa Gomes ... 837
Inara Flora Cipriano Firmino e Rodrigo Portela Gomes

A Encruzilhada do Marxismo com a Tradição Radical Negra: Resenha da


edição brasileira de “Marxismo Negro”, de Cedric Robinson ......................847
Daniel Vitor de Castro

Práxis de Libertação
Práxis de Libertação do dossiê "Direitos e relações raciais"........................ 860
1 Documento da Convenção Nacional Negro pela Constituinte
2 Da União das Nações Indígenas (UNI) para o Brasil
3 I Encontro Nacional de Comunidades Negras Rurais
4 Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 709
5 Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 742
6 Memorial de amicus curiae apresentado pelo Grupo de Estudo e
Pesquisa sobre Sistema Interamericano de Direitos Humanos (GEP-SIDH –
PUC/RJ) à Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Neusa dos
Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira v. Brasil (n. 12.571)

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 9 | n. 2 | jul./dez. 2023 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Apresentação do dossiê “Direito e
relações raciais”
Ciro de Souza Brito, Emília Joana Viana de
Oliveira, Inara Flora Cipriano Firmino, e Rodrigo
Portela Gomes

O Dossiê Direito e Relações Raciais consolida um período de estímulos para as


perspectivas críticas raciais ocuparem uma posição relevante na rede de
pesquisadoras, ativistas, estudantes e lideranças que integram o Instituto de
Pesquisa, Direito e Movimentos Sociais (IPDMS). A sua organização é um dos
frutos do sétimo seminário do IPDMS, realizado em 2018, na cidade do Rio de
Janeiro. Naquele momento, se institucionalizou o Espaço de Discussão “Direito e
Questão Racial”1, que passou a integrar os grupos temáticos do instituto nos
seminários seguintes.

A parceria com a Revista InSURgência, vinculada ao IPDMS e ao PPGDH da


Universidade de Brasília, também é um marco. Além de ser um instrumento que
reúne importantes reflexões para o instituto e para seus parceiros no campo crítico
do direito, a publicação do dossiê em uma revista também vinculada à
Universidade de Brasília prestigia os vínculos que impulsionaram uma rede de
pesquisadoras negras que ali se forjou, com destaque ao grupo de pesquisa
Cultura Jurídica e Atlântico Negro – Maré, da Faculdade de Direito. Portanto,
trata-se de uma contribuição propositiva à primeira década do instituto, com o
intuito de evidenciar a importância do racismo e suas interseções nas relações
sociojurídicas.

O esforço empreendido aqui pretende evitar o abafamento da potência analítica


que estas agendas de estudo têm desenvolvido. O campo crítico não pode mais
ignorar como o racismo e as dinâmicas com outros marcadores de desigualdade e
poder, exigem elementos analíticos que rompa com o silêncio; que denuncie o
racismo científico e suas reverberações institucionais; que dispute a narrativa da
formação social brasileira; e que examine as tecnologias de racialização
incorporadas pelo direito (Bertúlio, 1989; 2019).

1 O Grupo Temático (GT) foi inicialmente coordenado pela pesquisadora Emília Joana
Viana de Oliveira e a professora Thula Rafaela de Oliveira Pires. Posteriormente contou
com a colaboração do professor Rodrigo Portela Gomes. Atualmente, o GT está em fase
de consolidação de uma nova coordenação.
Ciro de Souza Brito - Emília Joana Viana de Oliveira - Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes 10

Como uma travessia crítica que precisa ser encarada, isso demanda recursos de
pesquisa específicos, sobretudo, a partir das reflexões que surgem das agências
dos movimentos sociais no Brasil. Com isso, também pretendemos prestigiar as
diferentes trajetórias do pensamento negro brasileiro ao longo dos anos,
considerando as insurgências da intelectualidade orgânica negra e suas
resistências diante dos rearranjos do pacto da branquitude.

Na condução dos trabalhos, consideramos como premissa um produto que,


primeiro, refletisse o atual estado da arte das relações raciais no campo jurídico e,
segundo, possibilitasse novas agendas, considerando as limitações das
ferramentas teóricas, metodológicas e epistêmicas. Essa segunda intenção está
atrelada à compreensão de que, embora tenhamos mais de 40 anos de produção
na temática,2 o delineamento desse campo tem sido recente, desde sua
caracterização, historicização e ramificações, a exemplo da própria recuperação da
pesquisa fundacional de Dora Lúcia de Lima Bertúlio, quando da sua publicação
em livro (Bertúlio, 1989; 2019; Gomes, 2021).

O número significativo de propostas denota a ampliação de agentes que se


reconhecem como parte do campo. Para além disso, procuramos enfrentar o
desafio da diversidade, aqui entendida na perspectiva regional, e, por isso, a
coordenação do dossiê se direcionou às redes que cada pesquisador possuía nas
suas respectivas regiões, produzindo como efeito abordagens temáticas
localizadas do racismo, com destaque as perspectivas nordestinas e nortistas.

A incorporação da diversidade também era uma preocupação sobre como


mobilizar variadas correntes de pensamento no espectro crítico racial,
considerando que este Dossiê, em consonância com outros esforços,3 torna-se um
marco para a sistematização do campo “Direito e Relações Raciais”, sem uma
delimitação de temas específicos. Nesse sentido, foi interessante notar abordagens
advindas do materialismo, da interseccionalidade, da diáspora africana, da
filosofia indígena, do panafricanismo, da contra-colonização, do quilombismo e
outras. Como marco, partimos da necessidade de enegrecimento das formulações
teóricas na academia brasileira, bem como de um enfrentamento ao epistemicídio
nas formulações críticas sobre as relações raciais no Brasil, abrindo as

2 Considerando como marco a dissertação de Eunice Prudente (1980).


3 A exemplo das iniciativas do IBBCRIM, como o dossiê Revista Liberdades “justiça racial
e teoria crítica racial” (2019), desenvolvido em parceria com a revista da ABPN –
Associação Brasileira de Pesquisadores (as) Negros (as); o dossiê “a questão racial e o
sistema de justiça criminal” (2022); o dossiê “direito penal, criminologia e racismo”
(2017).

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 9 | n. 1 | jan./jun. 2023 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
11 Apresentação do dossiê “Direito e relações raciais”

possibilidades de reencontro com as referências na atuação de movimentos negros,


quilombolas e indígenas.

Para além das experiências, entendendo que intelectuais fundamentais para o


pensamento diaspórico tem suas atuações nas práticas de sujeitos coletivos, como
o Teatro Experimental do Negro, o Movimento Negro Unificado, o Grupo
Palmares, os Sindicatos de Trabalhadoras Domésticas, o Grêmio Recreativo de
Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, os Sindicatos de Trabalhadores Rurais,
o Centro de Cultura Negra do Maranhão, o Ilê Aiyê, Instituto de Pesquisa das
Culturas Negras, o Grupo de Negros Homossexuais Adé Dudu, o Centro de
Estudo e Defesa do Negro do Pará, dentre tantos outras.

Por isso, fundamental compreender como essas articulações postulam não só


criticamente sobre o aparato normativo e os arranjos institucionais da democracia
constitucional, mas como se apropriam desses repertórios para viabilizar o
programa antirracista. Assim, buscamos reunir trabalhos que partilham de relatos
ou análises das atuações destes sujeitos coletivos, situando as dimensões
interseccionais, sobretudo como suas agências criam categorias jurídicas aptas a
enfrentar as complexidades do racismo.

Para abranger as demandas da chamada, também contamos com outros recursos


ampliando a compreensão de uma práxis jurídica antirracista. Tivemos a
oportunidade de ouvir o testemunho de duas mulheres que tiveram suas vidas
atravessadas pelas violências do racismo e que mobilizaram esforços para seu
enfrentamento. Essas duas preciosidades integram o dossiê e, na seção Diálogos
InSURrgentes, podemos acessar as entrevistas de Maria Leusa Munduruku e de
Deise Benedito.

Na seção Temas Geradores, convidamos intelectuais que têm formulado conceitos


ou abordagens de natureza instrumental, difundindo categorias construídas
dentro da episteme do campo “Direito e Relações Raciais” e auxiliando no
desenvolvimento de novas investigações. Assim, integram o dossiê verbetes
elaborados por Camilla Magalhães, Philippe de Almeida, Marcos Queiroz e Tiago
dos Santos, além do tema gerador que homenageia a professora Maria Sueli
Rodrigues de Sousa, destacando as principais categorias que ela desenvolveu para
interpelar o racismo no campo jurídico. Nesta mesma seção, em homenagem e
memória de Enrique Dussel, falecido em 5 de novembro de 2023, na Cidade do
México, com Enrique Dussel e o direito, Ricardo Pazello apresenta um percurso na
trajetória teórica deste filósofo latino-americano à procura da problemática jurídica
em seus escritos.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 9 | n. 1 | jan./jun. 2023 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Ciro de Souza Brito - Emília Joana Viana de Oliveira - Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes 12

Olhando para as reflexões da temática racial a partir das artes, buscamos trazer ao
dossiê produções culturais e artísticas que expressam parte dos esforços das
agendas de pesquisa do campo, na seção Poéticas Políticas. Dialogamos com a
agência das mulheres quilombolas pelas mãos de Walisson Braga; com a luta pelos
territórios pelas lentes de Leticia Reis; falamos sobre educação contracolonial e
defesa da cultura de religiões de matriz africana com os registros de Stela Caputo;
e falamos das disputas de estéticas com a produção de Aline Guimarães, cuja arte
fora emprestada à capa desta edição. Essas imagens sinalizam nossas formas de
pensar, fazer e ser no mundo, mesmo diante das violências. Ademais, tem-se
ainda, em Poéticas Polícias, o poema Premonição, de José D'Assunção Barros.

Ainda buscando ampliar a episteme tradicional do direito, o dossiê conta com duas
resenhas, na seção Cadernos de Retorno. A primeira foi feita pelos coordenadores,
Inara Firmino e Rodrigo Portela, na qual compartilham suas experiências de
leitura do livro de Raiza Gomes, “Cadê a Juíza?”. A segunda resenha foi escrita
por Daniel Castro, na qual é uma análise da publicação em português, no Brasil,
do clássico “Marxismo Negro”, de Cedric Robinson.

Outro instrumento fundamental para traduzir as contribuições deste campo


encontra-se na seção Práxis da libertação, que prestigia registros memoriais ou peças
técnicas produzidas, ou provocadas, por movimentos sociais. Esses documentos
conseguem dimensionar como as disputas para denúncia e enfrentamento do
racismo atravessaram contexto diversos, mas também demonstram que as
mudanças de estratégias dos movimentos e organizações sociais fomentaram o
campo a partir de sua práxis política. Há registros do período constituinte,
especialmente das agências indígenas e negras; das disputas legislativas para
regulamentação de direitos, a exemplo das comunidades quilombolas; e, mais
recentemente, das incidências nas jurisdições constitucionais e internacionais.

Por fim, na seção Dossiê, temos os seguintes trabalhos selecionados:

A ditadura militar brasileira é tema do ensaio Justiça de transição e povos indígenas:


em busca de categorias temáticas e de um léxico estratégico decolonial, de autoria de Alex
Feitoza Magalhães. A análise do espaço político-jurídico ocupado pelos povos
indígenas dentro do contexto de justiça de transição visa a reflexão sobre justiça e
reparação, a partir de uma matriz decolonial de releitura de documentos
bibliográficos, especialmente o relatório da Comissão Nacional da Verdade e os
processos de reparação conduzidos pela Comissão de Anistia. Assim, são
identificadas categorias que fabulam um léxico decolonial, considerado estratégico
pelo autor.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 9 | n. 1 | jan./jun. 2023 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
13 Apresentação do dossiê “Direito e relações raciais”

Tomar as percepções sobre territorialidade nos diversos contextos das


comunidades quilombolas no Brasil para a incidência sobre a hermenêutica
constitucional a partir de uma hermenêutica de bases teóricas e práticas que sejam
negras é um movimento fundamental para o constitucionalismo brasileiro.
Propondo esse giro, em diálogo com marcos descoloniais, as autoras Maria Luiza
Dantas e Lilian Márcia Balmant Emerique, no artigo Hermenêutica negra para pensar
a tutela jurídica dos quilombos urbanos, partem das universalidades cunhadas na
colonialidade europeia utilizando o arcabouço do pensamento negro brasileiro
para apresentar uma crítica as estruturas hegemônicas do direito, tomando a
hermenêutica negra como horizonte de ferramentas para reinterpretá-lo.
Considerando as hierarquias raciais organizadas pelo direito e a segmentação
entre corpo-território que repercutem na forma como a propriedade é manejada
pelo Estado, demonstram como para as populações quilombolas, a noção de
territorialidade estão sob outra matriz que conflui ancestralidade, cultura e
memória, apontando a necessidade de construção de outra tutela jurídica sobre a
propriedade quilombola.

Assassinato de Dom e Bruno, crise humanitária dos Yanomami, garimpo ilegal são
questões que trazem como pano de fundo um modelo de desenvolvimento
neoextrativista baseado na necropolítica, na degradação ambiental e,
consequentemente, no racismo ambiental. Essa é a tese reforçada pela autora
Mariana Rodrigues Vianna, no artigo Environmental racism, necropolitics, and climate
crisis: reflections from the humanitarian crisis of indigenous peoples and traditional
communities in Brazil. Esse modelo, como aborda a autora, reforça um projeto de
política de morte direcionado a povos indígenas e comunidades tradicionais no
Brasil e, em maior escala, intensifica a crise climática. O trabalho traz reflexões
sobre empreender esforços por outro modelo de produção, em harmonia com a
natureza, o que implica priorizar direitos e perspectivas de povos indígenas e
comunidades tradicionais.

A produção da raça e mobilização consequente das interdições sobre o que se


projeta enquanto democracia, no sentido de pensar uma democracia antirracista é
a provocação do artigo Democracia e racismo: da crise à construção de uma democracia
antirracista dos autores Hector Luis Cordeiro Vieira e Tédney Moreira da Silva.
Apresentando o estado de coisas que funda e repercute a antidemocracia nas
sociedades modernas, operando como tecnologia do Estado, abordam como o
papel da branquitude é fundamental para separar a população negra dos atributos
de cidadania e nos apresentam a possibilidade de reinvenção, por meio de políticas
institucionais antirracistas, tanto de reconhecimento quanto de proteção aos

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grupos racializados, garantindo a presença destes em espaços de tomada de


decisões.

Como falar de crimes raciais sem mobilizar gênero e raça? Revisando a produção
de trabalhos que se propõem à análise de crimes raciais para além do campo
jurídico, entendendo como necessária a mobilização das categorias interseccionais,
as autoras Nilvia Crislanna da Cruz Borges e Luana Tomas de Souza nos
apresentam em “As mulheres negras nos estudos acadêmicos sobre crimes raciais” a
pertinência do questionamento. Partem da necessidade de deslocamento das
mulheres negras dentro das concepções universais sobre ser mulher, apresentando
como foi sistematizada a revisão por meio de perfilamento das produções nas
ciências sociais, linguística, história, direitos humanos e cidadania e no direito e
nos levam à conclusão de que um dos impactos do racismo na produção científica
segue sendo o silêncio. No campo da criminologia em especial, o racismo e o
sexismo seguem orientando análises que reiteram os vetores de controle sobre mas
não repercutem nas análises acadêmicas, além da baixa presença de reflexões sobre
as mulheres negras da região norte.

Desvendando a imagem padrão do constitucionalismo, a partir dos aportes da


filosofia de Charles Mills, Sandra e Heitor Lurine Guimarães, convidam ao
entendimento de como um país detentor de uma Constituição considerada
progressista persiste com uma cultura jurídica refratária à justiça racial. No artigo,
O contrato racial como constituição não escrita do Brasil: ignorância branca e interpretação
do direito à luz da filosofia política de Charles Mills, sustentam a hipótese de uma
constituição não-escrita, o contrato racial, que comanda a interpretação da
constituição escrita e do ordenamento jurídico, comportando normas que definem
pertencimento racial e normas de natureza epistêmica, operacionalizando a
chamada “ignorância branca”. O trabalho reforça a compreensão de que
sociedades de passado escravista comportam um padrão de compreensão
distorcida do mundo, que se mantém intacto nas transições de configurações do
ordenamento jurídico, mais autoritário ou mais democrático.

O ensaio de Danilo Rabelo, A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da


fabulação crítica no Direito, adota quatro histórias de resistência negra para pensar
estratégias de sobrevivência contra um arcabouço jurídico que visava as suas
capturas. Essas histórias são remontadas por meio da fabulação crítica, método de
revisão histórica e de vocalização contra a despersonificação das pessoas negras
na história. Parte da análise de retalhos documentais, notícias, ofícios, autos e
mapas presentes nos arquivos oficiais de Sergipe, entre os anos 1838 e 1888, para
reificar a potencialidade do método na formulação do resgate de dinâmicas de

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15 Apresentação do dossiê “Direito e relações raciais”

resistência de escravizados e críticas e reconstruções no campo da historiografia


jurídica.

A construção dos sentidos por meio da linguagem, o conteúdo que revela o


impacto das relações raciais sobre a identidade e suas repercussões na
comunicação estabelecida nos espaços digitais, apartando a neutralidade, são as
reflexões propostas por Alejandro Knaesel Arrabal no artigo “Relações étnico-
raciais, linguagem e tecnologia: confluências e conflitos”. O autor demonstra como a
nomeação e as produções de sentido presentes nos espaços digitais de
comunicação, mediados por empresas e criadores de nichos que processam o
conteúdo presente nas redes organizando novas classificações que seguem
marcadores raciais. Como horizonte de superação, o autor indica a necessidade de
que as ferramentas incorporem mecanismos de afirmação das identidades,
políticas públicas e a educação multicultural como estratégia para desconstrução
do racismo estrutural.

Como pensar a vulnerabilidade da população negra a partir das condições no


mundo do trabalho? Esse é o objetivo do artigo de Ygor Araujo e Hugo Melo Filho,
intitulado Uma discussão urgente: as possibilidades da juventude negra no mundo do
trabalho brasileiro sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista
crítica. Apontamentos sobre empregabilidade, embasados nas reflexões da teoria
social crítica do Direito do Trabalho e da interseccionalidade e nos dados de censos
oficiais sobre resgate de trabalhadores em condições análogas à de escravo e com
maior número de acidentes de trabalho, reforçam a constatação de que são as
mulheres negras jovens que representam a fatia da população mais
vulnerabilizada no mundo do trabalho. Segundo os autores, o racismo brasileiro
as empurra para a informalidade, trabalho análogo à escravidão e, quando há
formalidade, para a ocupação das profissões consideradas mais perigosas.

É possível ser morto com uma bala no tórax por meio de “troca de tiros” em uma
ação policial de combate ao tráfico de drogas no Rio de Janeiro e ser mantido em
prisão preventiva? A autora Luciana Costa Fernandes demonstra no artigo “Pactos
Narcísicos, violência antinegra e a atuação da magistratura na criminalização de um
homem morto em uma operação policial no Rio” como a produção da morte por meio
do estado permite a continuidade do processo de execução penal e sua extinção 4
somente anos depois. Por meio de estudo de caso, etnografia documental e
antropologia das práticas de poder, a autora analisa como o caso revela os efeitos
da hermenêutica jurídica da branquitude arquitetada pelo direito e reproduzida
nos pactos de enunciação de magistrados, categoria majoritariamente composta
por esse grupo racial produzem repercussões da violência antinegra nos processos
criminais de associação para o tráfico de drogas.

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Pensar sobre o cárcere a partir da educação para privados de liberdade é a


proposta de Poliana Aguiar e Alan Ribeiro no artigo Educação entre as grades: um
olhar sobre a educação para privados de liberdade em Santarém. A pesquisa foi
desenvolvida com o objetivo de conhecer como as políticas educacionais para
pessoas privadas de liberdade estão sendo implementadas na escola em estudo,
tendo como documento norteador o Plano Estadual de Educação para Pessoas
Privadas de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional do Pará, vigente durante o
quadriênio de 2021 a 2024. Analisar metas para educação formal no cárcere
previstas em políticas públicas, perfis socioeconômicos de alunos matriculados e
meandros da educação empreendida no cárcere são algumas das contribuições
deste trabalho, de cunho etnográfico. Os resultados refletem a realidade de um
sistema carente de recursos humanos, financeiros e tecnológicos, com uma
estrutura deficitária, que pouco tem contribuído para a efetiva inserção social dos
custodiados.

Bárbara Cratéus Santos explora a discussão sobre direito, gênero e violência


doméstica contra a mulher, a partir do estudo sobre análise de risco, indispensável
para a aplicação individualizada de políticas públicas de proteção. Em Territórios
racializados e a produção risco de violência doméstica pelo Sistema de Justiça, a jurista
elabora o conceito de fatores de risco racializados, apontando que há fatores de
risco atinentes à experiência de violência específicas de mulheres negras que
requerem enfrentamento institucional específico nas políticas judiciárias e que por
isso precisam considerar a variável racial como fator de maior vulnerabilidade na
experiência de mulheres negras em situação de violência doméstica.

Diante da ausência de espaços institucionais para o acompanhamento e avaliação


da política pública de cotas raciais nas instituições de ensino superior, é comum
que agências protagonizadas por grupos negros/as ocupem esse espaço. Na
experiência do GRUNEC, as autoras Livia Maria Nascimento Silva e Cicera Nunes
compartilham no artigo “Violação à lei de cotas em concursos públicos para docentes de
nível superior: uma análise da atuação do GRUNEC como movimento negro educador das
instituições públicas cearences” uma sistematização da experiência do grupo que
atua no acompanhamento da política de cotas nos concursos públicos de docentes
no Ceará. O grupo tem empenhado esforços em demonstrar quais metodologias
de seleção trazidas pelos editais operam para a ineficiente aplicação da política
pública e descumprimento dos paradigmas constitucionais e legislações
infralegais sobre o tema. Nesse movimento, também tem produzido ações de
formação e incidência com base no conteúdo sistematizado e reflexões produzidas
junto a espaços do Sistema de Justiça, como o Ministério Público estadual, o que

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17 Apresentação do dossiê “Direito e relações raciais”

as fazem situar as práticas como parte do conjunto de movimentos pedagógicos


lidos como movimento negro educador.

Inara Flora Cipriano Firmino nos contempla com a tradução da palestra Teoria
Crítica Racial, “Teoria Crítica Racial” e a armamentização do analfabetismo racial: um
relatório da linha de frente, do professor Kendall Thomas, no sentido de nos
aproximar das leituras sobre Teoria Crítica Racial (TCR), majoritariamente
disponíveis em texto em inglês. A tradução é motivada também pela presença da
TCR nas agências de incidência por justiça racial junto ao Supremo Tribunal
Federal, em especial na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
973, “ADPF vidas negras”. No texto, que surge da palestra de Thomas, ele mobiliza
a Ordem Executiva nº13.950, emitida pelo então presidente dos Estados, Donald
Trump, em setembro de 2020, que orientava a retirada em espaços educacionais
do que considerava conceitos “divisionistas”. Parecido ao que acompanha o Mito
da Democracia Racial e os períodos antidemocráticos no Brasil, naquele contexto,
(os conceitos divisionistas referiam-se à sexo além da raça) as preocupações
institucionais apresentadas pelo chefe do poder executivo revelam a intenção de
ocultar, como aqui, as consequências das relações sociais de uma sociedade
organizada a partir da raça e do racismo. Em diálogo com Stuart Hall, Thomas
apresenta, também, a tentativa de interdição da alfabetização racial, em diálogo
com as incidências da sociedade civil pela desarticulação de um letramento racial
crítico da população. Esse movimento, afeta não só o rearranjo das narrativas que
dissolvem as tensões raciais no bojo da democracia racial, como também incide
sobre o fascismo segue mobilizando ataques ao que ele chamou de contranarrativa
da república.

Na seção Em defesa da pesquisa, mais seis artigos são apresentados ao público. Os


dois primeiros foram pré-publicados na seção Pré-Publicação (Ahead of Print) da
InSURgência e agora compõe a presente edição em publicação definitiva, quais
sejam: Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx
e Engels, de Vitor Bartoletti Sartori, que parte da obra A Sagrada Família, de Karl
Marx e Friedrich Engels, com o fim de demonstrar o aprofundamento da crítica à
sociedade civil-burguesa, além da representação na obra de uma forma específica
do domínio burguês; e A economia política latino-americana da pena, de Leonardo
Evaristo Teixeira, que busca reivindicar um olhar específico da economia política
da pena desde a América Latina, sobretudo de uma Criminologia Crítica em
debate com os estudos da Teoria Marxista da Dependência e da autocracia do
Estado burguês.

Os dois seguintes artigos fazem debates que envolvem as discussões de gênero.


Em Assédios: engrenagem estruturante de instituições do Brasil, Grazielly Alessandra

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Baggenstoss busca compreender o que pode ser entendido como assédio no âmbito
laboral ou no de formação escolar e acadêmico, entendendo que são práticas que
podem ser estruturantes das instituições no Brasil. Já em Sexo, dinheiro e escravidão
contemporânea: tráfico de travestis e mulheres trans do Brasil para a Europa com fins de
exploração sexual, Leonam Lucas Nogueira Cunha, Jules Ponthieu e Lucas Isaac
Soares Mesquita visam entender a exploração sexual de travestis e mulheres trans
no contexto de imigração à Europa e que acabam por serem vítimas de exploração
sexual, cujo fenômeno é identificado pelos autores como uma forma de escravidão
contemporânea.

Por fim, os dois últimos artigos dessa seção foram igualmente pré-publicados na
seção Pré-Publicação (Ahead of Print). Maria Mostafa, em Emergência da primeira
infância: ampliação dos direitos das crianças ou aprofundamento do neoliberalismo?, busca
demonstrar a existência de argumentos que endossam um determinismo
biológico, na emergência da primeira infância no Brasil, com uma tendência que
se alinha à estratégia neoliberal de responsabilizar o sujeito por seus fracassos. E
com o último artigo de Wederson Santos e Olemar Guilherme da Cunha, A
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como um novo paradigma para
implementação de políticas sociais, se analisa a referida Convenção, incorporada ao
ordenamento jurídico nacional em 2009, e demonstram como alguns princípios de
fundo desta Convenção inovam quando comparados com as garantias expressas
na Constituição de 1988.

É a partir desse conjunto de artigos, trabalhos e documentos, nacionais e


internacionais, que foi possível a construção e organização do presente dossiê e
que fomenta um debate jurídico-crítico, sobretudo no campo dos estudos raciais.

Desejamos uma boa leitura a todas e todos!

Brasil, janeiro de 2024.

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19 Apresentação do dossiê “Direito e relações raciais”

Referências Bibliográficas

BERTÚLIO, Dora Lúcia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdução crítica
ao racismo. Florianópolis: Curso de Pós-Graduação (Mestrado) em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina, 1989.

BERTÚLIO, Dora Lúcia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdução crítica
ao racismo. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

GOMES, Rodrigo Portela. Cultura jurídica e diáspora negra: diálogos entre


Direito e Relações Raciais e a Teoria Crítica da Raça. Revista Direito e Práxis, v. 12,
n. 2, p. 1203-1241, 2021.

PRUDENTE, Eunice Aparecida de Jesus. Preconceito racial e igualdade jurídica no


Brasil. São Paulo: Programa de Pós-Graduação (Doutorado) em Direito da
Universidade de São Paulo, 1980.

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Sobre a Comissão Organizadora

Ciro de Souza Brito


Mestre em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal do
Pará (UFPA), com período de estudos no Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra. Graduado em Direito pela UFPA, com
período de estudos na Peking University. Atualmente, é analista sênior
de Políticas do Clima no Instituto Socioambiental, fellow no China Legal
Fellow Project do Center for Transnational Environmental
Accountability e coordenador do GT Amazônia na Latin American
Climate Lawyers Initiative for Mobilizing Action. Foi professor de Direito
da Universidade da Amazônia e da Universidade Federal do Oeste do
Pará.

Inara Flora Cipriano Firmino


Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), na área de
concentração em Teoria do Estado e Direito Constitucional, na Linha de
Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Ordem Internacional.
Pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV- Direito SP.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo. Mestra em Ciências (área de concentração:
Desenvolvimento no Estado Democrático de Direito) pelo Programa de
Pós-Graduação em Direito da FDRP/USP, sendo bolsista CAPES.

Emília Joana Viana de Oliveira


Mulher negra do norte e doutoranda em Direito, Estado e Constituição
pela Universidade de Brasília (UnB).

Rodrigo Portela Gomes


Professor Adjunto da Universidade Federal da Paraíba, lotado no
Departamento de Ciências Jurídicas. Doutor em Direito, Estado e
Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) com período de visita
técnica na Universidad Nacional de Colombia, financiado pela FAP/DF.
Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB.

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Diálogos InSURgentes
Trata-se de seção dedicada a publicar entrevistas com
pesquisadores e militante que tenham relevância para a relação
entre direitos e movimentos sociais. A seção de entrevistas da
revista do IPDMS é uma homenagem ao advogado popular Miguel
Pressburger, resgatando, em sua denominação, a proposta de
uma práxis insurgente para o direito.
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52349

diálogos insurgentes

A mulher Munduruku na luta pela vida e


território do seu povo: entrevista com
Maria Leusa Munduruku
La mujer Munduruku en la lucha por la vida y
territorio de su pueblo: entrevista con Maria Leusa
Munduruku

The Munduruku woman in the struggle for the life


and territory of her people: interview with Maria
Leusa Munduruku

Maria Leusa Munduruku1


1
Associação de Mulheres Wakoborun, Jacareacanga, Pará, Brasil. E-mail:
[email protected].

Inara Flora Cipriano Firmino2


2
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3745-8985.

Rodrigo Portela Gomes3


3
Universidade Federal da Paraíba, Departamento de Ciências Jurídicas, João Pessoa,
Paraíba, Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-5179-6024.

Submetido em 22/01/2024
Aceito em 25/01/2024

Como citar este trabalho


MUNDURUKU, Maria Leusa; FIRMINO, Inara Flora Cipriano; PORTELA GOMES, Rodrigo.
A mulher Munduruku na luta pela vida e território do seu povo: entrevista com Maria
Leusa Munduruku. Entrevista concedida a Inara Flora Cipriano Firmino e Rodrigo
Portela Gomes. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1,
p. 23-39, jan./jun. 2024.

• • V
CIJUDJUJIloUl
mrmrtQ mnm
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ISSN 2447-6684
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24 Maria Leusa Munduruku - Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes

A mulher Munduruku na luta pela vida e


território do seu povo: entrevista com
Maria Leusa Munduruku1

“Mulher atual é a mulher Munduruku que luta


pela vida”2

No entardecer do dia e nas proximidades do rio Tapajós, ocorria mais uma etapa
da Escola de Formação em Direito no Tapajós3, que reunia representantes de várias
comunidades tradicionais, povos indígenas, movimentos sociais e organizações da
sociedade civil da região. Na oportunidade, e com o apoio remoto, entrevistamos
Maria Leusa Munduruku, liderança do povo Munduruku para registro memorial
da sua trajetória na luta por direitos, os impactos da educação para sua atuação
política e os desafios da resistência das mulheres.

O itinerário da conversa não segue uma linha do tempo reta que demarque ponto
a ponto os 36 anos de vida, luta e resistência. Esses dois últimos foram recursos da
língua portuguesa repetidamente mobilizados por Maria Leusa para traduzir sua
experiência. A linearidade como recurso da narrativa colonial é contraposta por
Leusa, sendo uma forma de fazer, criar e viver comum ao seu povo e de outras
comunidades tradicionais. Conduz o tempo e os principais marcos de sua
narrativa sobre a organização política das mulheres Munduruku, desde as
histórias orais dos seus antepassados contadas e repassadas de geração em
geração, até os recentes agenciamentos do povo Munduruku, que testemunhou e,
mais recentemente, tem liderado na região, mas, também, no cenário nacional e
internacional.

Outra característica da sua entrevista são os contínuos processos de deslocamento


que tem vivenciado, sendo revelador dos recursos coloniais mais contemporâneos

1 Entrevista realizada presencialmente em Itaituba/PA e por videochamada, no dia 24 de novembro


de 2023, por meio da plataforma Teams. Duração: 45 minutos.
2 História oral do povo Munduruku. Extraído de artigo intitulado “La vida de una mujer
munduruku en la defensa de su pueblo y del território”, autoria de Maria Leusa para a Revista
Bajo el Vólcan (Munduruku, 2021, p. 207).
3 A iniciativa é promovida pela Comissão Pastoral da Terra (Itaituba/PA) e a Rede Liberdade, conta
com o apoio do Coletivo de Assessoria Jurídica em Direitos Humanos Maparajuba, tem o objetivo
de contribuir com a formação jurídica de lideranças da região do Médio-Alto Tapajós na defesa
dos seus interesses, direitos e territórios.

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A mulher Munduruku na luta pela vida e território do seu povo: entrevista com Maria Leusa Munduruku 25

de desterritorialização, especialmente as invasões para desenvolvimentos de


atividades econômicas ilegais, a exemplo de garimpos e madeireiras. Junto destas
invasões, além dos danos físico-ambientais, ações violentas produzem impactos
morais, políticos e culturais nos territórios. Maria Leusa é uma das lideranças
Munduruku que vem enfrentando esta violência no próprio corpo. Enquanto
defensora de direitos humanos ameaçada de morte4, mobiliza os saberes do seu
povo para contrapor o terror e o medo. Buscamos na explicação dos significados
do urucum na tradição Munduruku – pintar os rostos como uma forma de
fortalecer e permanecer ligado às tradições – apresentada na mensagem final de
Maria Leusa, uma convocação à sociedade civil na defesa dos territórios e dos
povos originários como uma luta comum a todas as vidas.

***

Optamos pela reprodução quase literal do conteúdo da entrevista, nesse sentido foram feitos
apenas ajustes gramaticais em algumas passagens para assegurar a experiência do diálogo
e valorizar a dimensão da oralidade reivindicada na tradição dos povos originários.

***

Dossiê Direito e Relações Raciais: Boa tarde, Maria Leusa, sou Rodrigo. Esta que
está acompanhando a gente é a Inara. Nós queríamos agradecer, primeiro, pela
oportunidade de fazer essa conversa e pedir autorização para fazer a gravação e
ter esse registo para publicação no Dossiê Direito a Relações Raciais, da Revista
InSURgência.

Maria Leusa Munduruku: Boa tarde, meu nome é Maria Leusa Munduruku,
atualmente sou coordenadora da Associação das Mulheres Munduruku -
Wakoborũn, situado no município de Jacareacanga (PA) e sou estudante também
na UFOPA, estou cursando direito, primeiro período. E autorizo usar a minha
imagem na entrevista, minha fala, que pode ser usada para educação. Para passar
e compartilhar as experiências para as nossas futuras gerações.

Dossiê Direito e Relações Raciais: Maravilha, Maria Leusa! Eu vou começar


pedindo para você falar um pouco sobre a sua história. Você já falou um pouco no
seu nome sobre a sua história, porque o seu nome carrega a sua história, mas
queria que você falasse da sua vida a partir do seu território, a partir da sua

4 Ameaçada a anos por garimpeiros a liderança narra os impactos dessa violência na sua vida
quando do ataque à sede da Associação das Mulheres. Disponível em:
https://apublica.org/2021/04/maria-leusa-munduruku-sobre-garimpo-ilegal-estamos-em-um-
estado-muito-grave-de-ameacas-fisicas/. Acesso em: 14 jan. 2024.

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26 Maria Leusa Munduruku - Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes

experiência e, principalmente, como a história de Maria Leusa tem relação com a


história do seu povo.

Maria Leusa Munduruku: Hum...Tá! Como eu falei, eu sou Maria Leusa, sou
liderança feminina. Primeira liderança Munduruku e venho participando,
principalmente, no movimento na defesa do território e dos direitos. E eu venho
dessa luta. Somando o povo Munduruku dá mais de 14.000. É ... o alto e o médio
Tapajós, em 7 territórios: Sawré Muybu, Sawre Ba’pim, Mundurucu, Sai-Cinza,
Apiaká-Kayabi e outros territórios que estão no processo de reconhecimento, como
Sawré Apompu e demais territórios. Então, a gente, principalmente eu, atuo nesses
territórios.

Atualmente sou coordenadora da Associação, que é meu papel de liderança ainda,


mesmo que a distância na universidade, ainda consigo fazer o trabalho a distância.
Eu consigo participar das atividades, participar do movimento, participar das
formações da aldeia. E hoje, o nosso papel de liderança, como nós mulheres
principalmente, atualmente estão na frente dessa luta e ainda depois de mim
surgiram mais mulheres. A gente vem fazendo algumas formações, então,
conseguimos trazer várias mulheres. Hoje, a gente tem uma organização de
mulheres que tem mais de 200. Tivemos as oficinas, tivemos assembleia das
mulheres, que já foi realizada duas (02) vezes, e a gente continua fazendo essas
formações.

Então, a gente está nessa luta pela defesa do nosso território, principalmente eu,
como me dediquei muito, a gente vai tomar à frente dessa luta como mãe, como
defensora. Hoje, atualmente, vivo é... vivo nisso, na luta, porque meu povo
depende de mim, que eu estudo as coisas, eu tenho que estar presente,
participando dos encontros, de reuniões, e demais formações. Então, hoje sou mãe,
que eu tenho os filhos também. Tive que ir para a universidade também depois de
sofrer vários ataques, pois eu sou ameaçada também por estar nessa luta, por estar
incentivando, por estar líder na defesa do nosso território tomando à frente.

Então, hoje a gente já sofreu vários ataques, principalmente, nós mulheres


sofremos muito a violência contra nós. Fomos atacadas, mas a gente não desistiu.

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A mulher Munduruku na luta pela vida e território do seu povo: entrevista com Maria Leusa Munduruku 27

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28 Maria Leusa Munduruku - Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes

Hoje estou aqui. Continuo colaborando, contribuindo nessa luta do nosso povo
Munduruku pelo território, pelo direito e as demais coisas... aquelas formações dos
nossos jovens que a gente está fazendo. Então, hoje é o nosso papel de estar na luta,
que é a nossa obrigação, não é, de cuidar do nosso território, cuidar do nosso povo
Munduruku.

Dossiê Direito e Relações Raciais: Deixa eu te perguntar uma coisa... já que você
falou um pouco sobre a sua trajetória, eu estava lendo um pouco mais sobre a sua
vida, e tem uma entrevista que fala que você nasceu em 1988.

Maria Leusa Munduruku: 87!

Dossiê Direito e Relações Raciais: 87? Ah, entendi. Então você nasceu perto da
constituinte? Se você pudesse falar um pouco de como era antes desse, tipo assim,
o que era Maria Leusa antes dessa experiência de virar a liderança que ela é,
denunciando o garimpo, porque você virou essa liderança. E se essa Maria Leusa
que existia antes, ela ainda existe? Como é que é essa vida da Maria Leusa?

Maria Leusa Munduruku: É antigamente... eu nasci na Aldeia Missão São


Francisco (Cururu), na região do alto Tapajós. A primeira aldeia que foi fundada
do Munduruku quando desceram dos campos, na missão São Francisco. Depois a
gente foi migrando para as outras regiões. Aí depois a gente foi morar na região
do Rio das Tropas, onde atualmente é mais invadido. A gente foi crescendo na
visão... desde 10 anos entrei na escola, a primeira escola que teve na região do Rio
das Tropas, Escola Borõ Muyatpu, que é dentro da Aldeia Caroçal, onde eu
comecei a estudar e eu já tinha quase 10 anos, 12 anos... por aí.

Aí quando eu comecei, a gente tinha muita, assim, era muita dificuldade no acesso
à educação. Por conta mesmo que não tinha essas condições de chegar uma escola
dentro das aldeias. Só que depois a gente foi, principalmente eu fui estudando e
comecei a participar de reuniões, encontros dentro da comunidade e eu fui
aprendendo. E depois, participei de assembleia... a primeira assembleia que
participei foi na Aldeia Katon e em seguida eu comecei a participar dessas coisas
e o pessoal falava que eu era muito inteligente e curiosa de perguntar, de participar
das coisas. Então, eu aprendi a andar com as lideranças, participar dos eventos e,
depois, comecei a estudar. Aí comecei a estudar, terminei meu ensino
fundamental. E a gente já vem sofrendo esses conflitos internos por conta de
garimpo. Eu sofro desde 10 anos, porque a invasão era muito tempo, só que não
era invasão igual é hoje. Eu já sofria isso. Eu já dizia que meus pais sempre foram
contra as invasões dentro do território. Tivemos conflitos nas aldeias por conta
disso, porque sempre existia uma divisão dentro da aldeia, uns que eram

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
A mulher Munduruku na luta pela vida e território do seu povo: entrevista com Maria Leusa Munduruku 29

favoráveis, uns que não. Então, sempre era assim. Depois eu fui estudar, fui parar
em Jacareacanga também e terminei meu ensino fundamental.

Depois de lá, eu fui estudar dentro do projeto de Ibaorebu5, que é o projeto de


acordo com a nossa realidade... tinha mais de 250 alunos Munduruku de três áreas.
Técnico de enfermagem, magistério e agroecologia. Era financiado pela FUNAI,
mas era pela organização. Então, a gente fez essa formação durante oito anos e de
lá que a gente vem discutindo muito, ouvindo muito os nossos sábios falarem
como era o nosso direito; o porquê as mulheres não participam da luta, mas já
existia uma mulher que participava da luta, como hoje a gente se inspira na
Wakoburun, que era uma grande guerreira que fez justiça pela morte do seu irmão
- que é a irmã de grande artesão, a Wakoburun.

A gente ouviu muito e ouviu muito, também, o que é o direito garantido na


Constituição e como o Estado nos trata também, principalmente naqueles
momentos... A gente achou que estava num momento muito certo. A gente
discutiu todo o direito, todas as violações do direito naquela formação de Ibaorebu
que tivemos. Então, tivemos mais de 100 mulheres nessa formação, e resto eram os
homens. Então, aprendemos junto lá com as nossas histórias, com as histórias dos
nossos antepassados. E a gente foi criando essa liderança ali e depois eu assumi
um cargo de conselho fiscal, dentro da comunidade, na saúde. Depois do Ibaorebu,
como eu estava fazendo o magistério, me convidaram e eu fui contratada para ser
a professora para dar aula dentro da comunidade. Trabalhei durante três anos, que
eu já tinha mais de 18 a 20 anos por aí. Então entrei nessa luta.

Depois, teve conflito interno e eu tive que sair da aldeia onde eu morava antes,
porque teve uma invasão e teve conflito interno. Então, de lá eu saí e entrei dentro
do movimento, em 2012. A gente começou a fazer os movimentos. Comecei a
participar, principalmente, porque tivemos o assassinato do nosso parente, o Lelo
Akay, assassinado pelos garimpeiros que estavam invadindo o nosso território.
Tivemos revolta com a queima da delegacia e eu comecei a participar junto com os
homens. Era a única mulher que estava participando. Então, depois, eu achei mais
uma amiga minha, convidei uma mulher para ir comigo. Ela participou dessas
ações também. Tivemos que queimar delegacia por revolta e paramos até em
Belém cobrando o governador pela justiça, pelas responsabilidades da polícia

5 Projeto de Formação Integral Munduruku, iniciativa coordenada pela FUNAI e os próprios


Munduruku. Disponível em: https://acervo.racismoambiental.net.br/2014/06/09/projeto-
ibaorebu-uma-experiencia-de-afirmacao-da-identidade-e-autonomia-do-povo-munduruku/.
Acesso em: 14 jan. 2024.

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30 Maria Leusa Munduruku - Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes

dentro do município, em Jacareacanga, e exigindo a justiça pela morte do Lelo


Akay, que foi morto pelos garimpeiros.

E, também, a gente vê... eu vim aprendendo junto com os homens. Ai de lá, tivemos
outras mortes também, a operação6 que era contra o garimpo dentro do TI Kayabi,
naquele momento ainda eu estava sozinha e eu comecei a mobilizar as mulheres.
Aí eu falei: não, a gente está vendo o sofrimento de uma mulher por conta do
esposo que tinha perdido e a gente viu as crianças chorar naquele momento,
quando era o Adenílson Krixi que foi assassinado pela operação da polícia federal
naquela região. Então, aí eu comecei mesmo e já tinha dois filhos. Já como
professora eu comecei a entrar nesse movimento de participar. Aí a gente
começou.... Eu tive que conversar com a minha família, com meus pais e com meus
tios que estavam dentro do movimento, e eu tinha que pedir autorização, porque
para nós Munduruku não é normal mulher sair, largar tua família e ir para o
movimento. Então, foi uma coisa que meus pais, naquele momento, me apoiaram,
porque a gente estava vendo que a gente estava sofrendo e vendo a família do
Adenílson triste e sofrendo.

A gente saiu e começamos a fazer mobilização nas aldeias, começamos a fazer


ocupação de Belo Monte. Principalmente, foi uma ocupação grande que a gente
fez em Belo Monte, saímos do território, fomos para o Xingu para ocupar Belo
Monte, em 2013. E naquele momento a gente começou isso. Então, depois é uma
história bem longa.... tivemos essa ocupação, fomos para Brasília exigindo sempre
por nosso direito e o nosso direito estava sendo violado, que estava sendo
violentado, e a gente sempre exigiu.

Depois, a gente voltou para o território. Os homens coordenavam o movimento e


depois eles falaram: “agora é hora de as mulheres assumirem”. Aí eu fui a primeira
mulher que assumiu para coordenar o Movimento Ipereğ Ayũ. Aí eu coordenei
durante três anos o Movimento Ipereğ Ayũ, estive participando de várias ações,
de autodemarcação no médio Tapajós, fazendo formação de mais mulheres de
oficina. Então, foi uma coisa que eu fui chamando as mulheres, porque as mulheres
têm que estar na luta. E eu tinha percebido que os nossos caciques estavam
enfraquecendo naquele momento. Era um momento de invasão bem grande, tanto
invasão de garimpo, tanto invasão pelo Estado querendo obrigar a gente a aceitar

6 Operação Eldorado, realizada em novembro de 2012 pela Polícia Federal. Disponível em:
https://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/2012/11/operacao-da-pf-prende-16-presos-por-
extracao-ilegal-de-ouro-em-7-estados.html. Acesso em: 14 jan. 2024.

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a construção das hidrelétricas no nosso Rio Tapajós... foi um momento bem assim
muito ruim e, também, ao mesmo tempo, a gente conseguiu se organizar.

Com essas invasões aumentando, vieram muitas mulheres nesse movimento, pois
tivemos ataques de vários, de todos os lados, tanto pelas próprias autoridades do
município de Jacareacanga. Eu tive também a minha casa depredada, a perna do
meu irmão foi queimada por rojões.... Aí a gente tinha uma casa de apoio. Então,
isso aconteceu e aí depois a gente fez uma mobilização com os movimentos sociais
para tirar o governo municipal que estava lá. Aí logo depois a gente ganhou. A
gente colocou, pensando que era uma solução, mas, na verdade, não foi uma
solução, que é uma coisa que a gente não deveria ter aceitado e estar no cargo do
poder público. Aí foi indicado, principalmente eu tive que assumir a Secretaria de
assuntos indígenas, fui a secretária durante dois anos de mandato do prefeito e eu
senti que eu estava sendo presa. E saiu muita fofoca de que eu estava fazendo
desvio e, na verdade, não era. Eles não aceitavam eu estar em um cargo na
Secretaria e participar de movimento. Eles tentavam me obrigar a sentar e falei
não! Eu tive que largar o cargo. Então, a gente falou não. Depois fizemos vários
intercâmbios, tivemos que sair do território fora do país para o México. Quando a
gente retornou, a gente começou mais a se organizar. Daí que a Alessandra veio,
eu tive a primeira viagem. Conheci a Alessandra Munduruku, convidei ela e como
a gente não tinha a presença das mulheres, nenhuma mulher no médio. Ela foi a
primeira mulher no médio também, e aí a gente entrou na luta, até hoje. A gente
começou a se organizar com a criação da associação de mulheres, porque estava
sendo muito difícil para gente mesmo. A invasão parlamentar, a violência estava
aumentando, mas nós também conseguimos nos organizar. Criamos a nossa
associação de mulheres aí dali a gente vêm como uma estratégia nossa. Então, daí
a gente vê.

Eu comecei a fazer esses movimentos, participando desses movimentos... e eu era


só assessora da associação. Eu só fui assessora. Entrei na assessoria política da
associação de mulheres e minha irmã teve que assumir, que era a minha irmã logo
depois de mim e ela era coordenadora da associação. Então, foi isso. A gente criou
para fortalecer mais o movimento. Para que o movimento pudesse fazer suas ações
próprias, com o seu recurso próprio.... é aquele guarda-chuva para o Movimento
Ipereğ Ayũ. Aí, quando eu saí, Ana Poxo, mais uma mulher assumiu. Até hoje ela
ainda está na coordenação, assumiu um Movimento Ipereğ Ayũ. Eu não quis
entregar o movimento nas mãos dos homens. Falei que era a vez dos homens, mas
a gente sofreu muitas perseguições, discriminação por ser mulher, é... tudo isso.

Tínhamos homens, os próprios Munduruku que nós ía tomar, nós ía exterminar os


homens. Aí a gente falou, não! A gente não está aqui para exterminar, a gente está

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aqui para salvar, para ajudar e para lutar junto com os homens. A gente não é
maior do que os homens e nem menos do que os homens! Somos iguais! Então, a
balança vai ser igual. A gente vai lutar pelo nosso território, pelo nosso direito,
mas a gente não aceita que vocês negocia, porque naquele momento estava o
processo de construção da hidrelétrica de Teles Pires e de São Manoel, onde a gente
sofreu muito e até hoje sofre pelos impactos. Naquele momento, o governo
chegava com seu discurso, dizia que a gente tinha que negociar, tinha que aceitar
as compensações para melhorar a saúde, a educação ou ganhar benefícios sociais
em troca de embarcação... Ou teria que ter um prédio novo para a educação e
algumas pessoas Munduruku aceitava. E a gente sempre dizia não! O nosso direito
não se negocia e não podemos trocar a vida dos nossos filhos!

Então, já veio várias mulheres. Então, começou depois da assembleia que a gente
fez em 2017... não... depois de 2018, depois da criação da associação aí tivemos
várias mulheres. Dentro da associação viemos fazer formações, vieram mulheres
de várias regiões, pois temos cinco lá no alto: região de Teles Pires, Cabitutu,
Cururu, região do Rio das Tropas... Em cada região vem a mulher para compor a
coordenação da associação de mulheres. Então, dali a gente vem fazendo os
projetos próprios, fazendo o monitoramento dentro do território, a fiscalização,
fazer a capacitação das mulheres e de jovens. Hoje, eles falam “não... é isso que
tem que fazer”, porque a associação de mulheres, atualmente, ela vira uma mãe,
somos a mãe para o nosso povo, porque eles dependem muito da gente. Eles
dependem muito das orientações das mulheres. A ideia de compartilhar, como
seria, se daria para aceitar ou não... então, a gente sempre está ali dizendo “não! A
gente não negocia! A gente tem que exigir do governo, porque é a obrigação dele
e não trocamos os nossos direitos e a vida dos nossos filhos em troca de qualquer
empreendimento”. A gente tem essa visão, não é?

E hoje, atualmente, vem a Ediene, da região de Teles Pires, as mulheres que ela é
assessora política da associação de mulheres, que também está bem na frente me
ajudando. Enquanto eu estou na universidade, tem um grupo de mulheres muito
forte dentro da organização das mulheres e, por isso, eu consigo sair um pouco do
território. E eu tive que usar essa estratégia também. Eu nunca pensei de estudar e
sair do meu território, mas eu fui obrigada, porque eu estava sofrendo as ameaças
e a gente sofreu a violência, porque a minha aldeia foi atacada, foi queimada e a
gente denunciou as pessoas envolvidas, mas não fizeram nada. Então, por isso, a
minha revolta de estar na universidade hoje fazendo direito. Então, hoje eu estou
lá tentando, mas a gente tem essa luta grande. Agora tem que estar na
universidade, tem que estar na formação, tem que ir para o território nessa luta.

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Dossiê Direito e Relações Raciais: Eu tenho mais 2 perguntas e depois eu passo


para a Inara. Uma das perguntas que a gente tinha elaborado era se você tinha
visto muitas mulheres antes de você, e aí você citou uma guerreira. Se você puder
contar um pouco mais sobre quem é essa guerreira, falar o nome dela, se você
conviveu com ela, ou se você ouvia falar dela... O que você lembra dessa guerreira?

Maria Leusa Munduruku: A gente ouviu a história. A história dos nossos


antepassados. Antes de mim, era uma história... A história do nosso povo
Munduruku. Wakoburun era uma guerreira, uma mulher. A irmã de um artesão,
que é o Wakorempu, que era um grande artesão que ia para as aldeias. O único
artesão que Munduruku tinha. Aí, o Wakorempu passava de mês em mês nas
aldeias fazendo arte para os Munduruku! Aí um dia aconteceu o acidente. Tinha
uma criança que não obedecia a ele. A criança desobedeceu no quartel dos homens,
então, ele teve que brigar com esse menino e acabou jogando a lenha bem na cabeça
do menino, da criança, que acabou falecendo. Aí, foi isso... teve a revolta dos pais
da criança que mataram a Wakorempu. A irmã dele não sabia o que tinha
acontecido. Depois de um mês ela sentiu a falta dele, porque de um mês e um mês
ele voltava para casa dele, quando ele andava nas aldeias fazendo artesanato, as
várias artes que ele fazia, porque ele era o único artesão. Aí um dia ela não sabia,
ela chorava, querendo saber onde que o irmão dela estava.

Então, depois alguém contou, um sábio contou para ela... “olha, mataram o seu
irmão, tiraram a cabeça dele e guardaram no quartel dos homens”. Aí ela começou
a chorar, e ninguém queria ajudar ela a fazer a justiça pela morte do irmão dela. Aí
ela falou... “agora eu vou, eu vou! Quem quiser me seguir”. Aí ela... acho que foi
com quatro guerreiros: Pukarao Pik Pik, Surup Surup, Pusuru Kao, Waremucu Pak
Pak, e ela. Então, eram cinco guerreiros, até hoje a gente se espelha nesse grupo de
guerreiros. A gente vem ouvindo muito isso, o que nos dá força, nos inspira como
ela era uma mulher que buscou essa cabeça. Então, ela falou assim... “eu vou
pegar”... ela não fez nada, ela só fez mesmo dominar. Não matou ninguém para
resgatar essa cabeça. Aí ela falou e escolheu esses quatro guerreiros que seguiram
ela. Aí ela foi cantando, cantava, cantava, cantava até que dominou.

Quando chegou lá, já está todo mundo dormindo no quartel dos homens e ela
conseguiu resgatar essa cabeça. Quando começou, ela bateu em alguma coisa,
ouviram o barulho e acordaram, mas ela já tinha fugido com a cabeça do irmão
dela. Aí depois os homens começaram a se matar, porque os guerreiros que ela
tinha escolhido para proteger ela, eles tiveram que proteger ela enquanto ela corre.
Então, isso aconteceu. E dali os homens tiraram “o grupo das mulheres vão criar
guerra”. Aí a gente dizia que não, não era isso. Isso é uma história de muitos
antigos. A gente não viu ela. Era uma história dos nossos antepassados que sempre

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conta para nós. Então, é isso. Ai hoje a gente se inspira nela. Que nós que temos
que fazer justiça. Tudo o que a gente vem vivendo depois dessa luta que a gente
tem. E tá dando certo. As mulheres estão se fortalecendo e estão aí fazendo o papel
de mãe, apoio de defensora de lei e, hoje, Wakoburun é uma guerreira mesmo.
Porque, antigamente, a cabeça era um troféu para uma Munduruku, então,
ninguém pegava aquele troféu que estava ali dentro do quartel dos homens, que é
como chamava. Então é isso!

Dossiê Direito e Relações Raciais: Outra coisa a gente queria ouvir você falar,
porque você falou várias vezes, na verdade, queríamos ouvir você compartilhando
um pouco mais sobre um ponto importante que foi fazer a escola quando você
tinha 10 anos. Aí depois você falou que fez parte daquele projeto de formação
depois que você fez o ensino fundamental, você fez magistério e, que depois que
você passou a ser uma liderança e perceber a importância das mulheres, você
também apostou na formação de outras mulheres e você, também, agora, entra no
Direito. Então, em vários momentos que você foi colocando como parte da sua
trajetória, você foi destacando a educação como um momento, seja a educação
formal da escola, mas, também, a educação pelos conhecimentos dos costumes,
dos saberes dos territórios. E aí, eu queria que você compartilhasse qual é sua
percepção sobre a importância da educação na luta por diretos. Como é que você
enxerga isso? Porque a sua trajetória revela isso em vários momentos a educação
como um ponto importante para você e como ela se relaciona com a luta por
direito.

Maria Leusa Munduruku: Sim... se hoje a gente faz muito, falar muito, primeiro
da educação Munduruku, a gente fala que não é o pariwat7 que vai trazer para os
nossos filhos. É nós que temos que ensinar os nossos filhos na educação
Munduruku de respeitar primeiro o seu território. O próprio seu território, que é
a nossa mãe, que são o nosso local sagrado. A gente pede muito. Depois a gente
tem essas escolas nas comunidades também. Atualmente a gente tem essa
formação.

Então, isso é uma formação que a gente faz dando e repassando essas informações.
Continuar repassando esse historicamente quem somos o povo Munduruku.
Como educar? Quais são os educação Munduruku? Qual é a educação pariwat que
a gente tem? Hoje é, infelizmente, a gente tem que aprender esses dois, tanta
educação Munduruku, quanto a educação pariwat na escola, estudando, aprender
a segunda língua portuguesa, porque a gente precisa também aprender para nós

7 Para os munduruku pariwat é o homem branco mal, mas também é usado para todos os não-
indígenas (Munduruku, 2021, p. 210)

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se defender. Principalmente, nós temos que defender o nosso povo e alguns


Munduruku, que já estão se formando em várias áreas para ser professor, para ser
pedagogo, para ser técnico de enfermagem, para trabalhar... têm mulheres
envolvida nisso também, porque até as mulheres já estão enfermeira, ou estão ali
como agente de saúde, cuidando da saúde. Têm mulheres como pedagogas,
professoras. E têm mulheres que já terminaram alguns cursos e outras que estão
fazendo ainda, como a Alessandra, mas, atualmente, acho que têm mais de dez
mulheres Munduruku na universidade em Santarém.... É mais de 10, por aí, a
maioria são os homens. Sempre são a maioria os homens. Sempre nós somos a
minoria que está ali.

Então, a gente vem fazendo essas formações. É importante os dois e hoje a gente
vem fazendo essas formações de Direito. Porque o Direito a gente tem que saber
também. Isso para nós se defender mesmo, defender o nosso povo, nosso território,
porque se a gente não aprender e o pariwat do jeito que eles querem, eles sempre
vão querer decidir por nós. Então, nós temos que saber mostrar também a nossa
capacidade, o que somos capazes também de construir, de realizar. Então, a gente
tem que mostrar essa força também. E tem que ter essa educação Munduruku
sempre também. Então, sem educação Munduruku, também, a gente não ia chegar
onde a gente tá. É... a gente tá num segundo, formação para nós essas coisas de
cultura pariwat. Então é isso.

Dossiê Direito e Relações Raciais: O que eu queria perguntar para a senhora é


justamente pegando esse finalzinho da sua fala que a senhora traz a importância
do aprender português. De falar a língua portuguesa e do ingresso nas
universidades e, principalmente, no direito, como também um espaço de luta e de
enfrentamento às violações de direito, às violações a vida dos Munduruku, toda
essa perseguição, e a questão do garimpo. Eu queria que a senhora falasse um
pouquinho mais sobre como a senhora observa esse cenário de resistência e de luta
por efetivação de direitos, também por garantia de memória e de vida dos povos
indígenas, a partir do direito. A partir do ingresso na universidade, a partir do
conhecimento processual, do conhecimento de como funcionam as instituições.
Como isso tem possibilitado a luta de vocês?

Maria Leusa Munduruku: Hoje a gente ainda não tenha divulgado o Munduruku.
São todos... Eu acho que hoje o Munduruku tem... deixa eu ver, eu acho que tem
mais de 20 Munduruku cursando direito. Mulheres e homens. Mulheres são bem...
eu acho que de mulheres, a gente só tem duas mulheres, eu acho, Munduruku do
Alto-Tapajós, eu e a Alessandra cursando. O resto são homens. Então, isso é muito
importante pra gente, porque a gente quer participar desse processo. Sabemos que

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eu acho que isso é uma luta que a gente quer, e a gente torcendo que a gente
consiga também... é difícil, é muito difícil a gente entender esse processo.

Principalmente esse processo de judicial, processo dessas coisas. É um processo


muito difícil, que a gente demora a entender o que é, mas a gente está enfrentando.
Sabemos que... não sabemos, porque, mas a gente vai aprendendo com outros
colegas e com os professores dentro da universidade. Então, hoje, para nós, a gente
fica muito feliz por estar discutindo o direito que foi conquistado pelos nossos
antepassados. Mesmo que os nossos antepassados não sabiam de cada código civil,
ainda mais código que está na lei, mas ele sempre exigiu. Eu acho que era uma...
Eles não sabiam como ia ser lei, mas eles sempre exigiram esse direito que a gente
tem, direitos territoriais, direito à educação, direito à saúde, e direito de estar ali
estudando na universidade.

Então, isso nós fortalecemos, porque mesmo que a gente não sabe como a gente
vai ser e como vai ser o processo de ensino dentro de uma sala longe da aldeia
ainda, apesar de um clima muito diferente, nós saindo do nosso território, chegar
numa cidade e não saber como conviver, mas a gente aprende tudo isso. É difícil
sair do seu território e depois entrar numa universidade que está ali. Sabemos que
nenhuma universidade está preparada para receber os indígenas, mas eu acho que
a gente tem muita força. E muita vontade, também, para enfrentar tudo isso dentro
da universidade. Mas, a gente vê que não é só nós, que a gente já vê também outros
exemplos, como os nossos parentes já cursaram universidade! Já sofreram
também, principalmente, a gente sempre fala do Eloy Terena que está ali, que
participou de várias contestações pela demarcação do território contra o marco
temporal. A gente se inspira neles também. E tem uns quilombolas, os advogados,
então, a gente fala que a gente não está sozinho. A gente tem que estar ali e
aprender para estar ali para somar essa força, principalmente nessa questão
jurídica, que a gente não entende nada, que não entende nada com a cultura
pariwat com a cultura Munduruku. Então, mas a gente está aprendendo devagar.
Acredito que a gente vai conseguir, porque já tivemos várias vitórias, tivemos
vários desafios de conseguir chegar. E por que que a gente não vai conseguir
agora? Mas a gente está aqui na luta. E mesmo que a gente não sabe, a gente vai
aprendendo os poucos.

Dossiê Direito e Relações Raciais: Uma coisa, também, que eu fiquei pensando
enquanto a senhora falava sobre essa necessidade de vocês precisarem sair desse
espaço, como a senhora falou, as mulheres não podem se afastar do território, mas
a senhora se viu obrigada a sair para começar a estudar e ir para a universidade
fazer Direito para a construção de defesa, para a defesa do seu território e do seu
povo. Eu queria que a senhora falasse um pouquinho como é o acesso à justiça, no

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A mulher Munduruku na luta pela vida e território do seu povo: entrevista com Maria Leusa Munduruku 37

sentido das instituições chegarem até vocês? Então a Defensoria Pública, o


Ministério Público, como isso funciona?

Maria Leusa Munduruku: É... aqui onde a gente está, a gente sempre faz muita
denúncia ao Ministério Público, através das nossas associações, principalmente, de
organização das mulheres. Hoje, a gente tem os nossos assessores jurídicos próprio
trabalhando para nós e a gente faz essa denúncia, a gente faz fiscalização. Então, a
associação é uma fiscalizadora de tudo o que está acontecendo. Toda a violação
que está acontecendo dentro do território a gente faz essa denúncia para o
Ministério Público, ou então para a ONU, porque o Estado que está violando o
nosso direito. A gente fez muita denúncia por conta... no tempo da pandemia. E a
gente fez muito, por conta da invasão, para a ONU, denunciando o Estado
brasileiro por estar violando o nosso direito. Então, a gente pede muito essa
denúncia, a gente faz através das nossas organizações. A gente faz a assembleia
primeiro. E depois faz uma denúncia coletiva. Então, é isso que a gente sempre faz.

Dossiê Direito e Relações Raciais: Maravilha! Então, para fechar, vou fazer aqui
uma pergunta, porque hoje você pintou meu rosto duas vezes de urucum. Então,
primeiro você vai dizer, se for possível falar, por que você pintou nossos rostos de
urucum e o que isso significa para o povo Munduruku?

Maria Leusa Munduruku: Isso é uma cultura. Todos os eventos a gente tem, essa
pintura de urucum é para fortalecer, para ter essa energia. O urucum é uma coisa
que a gente usa nas brincadeiras e para fortalecer também durante as assembleias,
encontros, a gente usa muito ela. Não pode lavar o rosto, aí já passa de novo. Tem
que passar de novo. Então, ela traz uma força para nós como nossas antepassadas
falavam que tem que usar, não pode esquecer dessas brincadeiras tradicionais.

Dossiê Direito e Relações Raciais: E a gente queria te agradecer pela


oportunidade de fazer a entrevista. Quando a gente transcrever, a gente, te
mandamos para você ler, avaliar e decidir se quer acrescentar, tirar alguma coisa.
Fica o compromisso da nossa entrevista ser uma publicação sua, assinada por você
na revista. E que você, também nessa relação de confiança, tem em nós, parceiras
para as demandas dos Munduruku. Acho que é sempre importante. E aqui eu
estou falando não como o professor da escola. Estou falando como o pesquisador
e quem já foi advogado popular. Sempre quando a universidade chega nos
territórios, a universidade precisa se colocar à disposição para somar, para ajudar,
então, já estou aqui na escola, já faço essa função, mas como Rodrigo e como Inara,
a gente se coloca à disposição para colaborar da forma que a gente puder para a
luta do povo Munduruku, para sua luta, e, inclusive, a luta na universidade, mas

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38 Maria Leusa Munduruku - Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes

as outras lutas, enfim, uma forma de agradecer e de retribuir a confiança também


que você deu para o projeto.

Maria Leusa Munduruku: Eu que agradeço também você e Inara, muito prazer...
de longe, mas eu que agradeço por oferecer essa oportunidade, porque é muito
difícil a gente ter esse espaço, de estar ali falando da luta, de compartilhar para o
mundo vê. Para outras pessoas, receber a transmissão dessas mensagens que a
gente tem. Então só tenho que agradecer.

Referências

MUNDURUKU, Maria Leusa. La vida de una mujer munduruku en la defensa de


su pueblo y del território. Revista Bajo el Vólcan del Posgrado De Sociología,
Benemérita Universidad Autónoma de Puebla (BUAP), ano 2, n. 3, p. 207-237,
2021.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
A mulher Munduruku na luta pela vida e território do seu povo: entrevista com Maria Leusa Munduruku 39

Sobre a entrevistada e os
entrevistadores/as
Maria Leusa Munduruku
Liderança do povo Munduruku, do estado do Pará, no município de
Jacareacanga. Tem 36 anos de idade, nasceu na aldeia Missão Cururu,
no alto rio Tapajós, na Terra Indígena Munduruku. Mãe de cinco filhos e
dois netos. Guerreira e defensora do território e da vida do povo
Munduruku. Atualmente, coordenadora da Associação de Mulheres
Wakoborun.

Inara Flora Cipriano Firmino


Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), na área de
concentração em Teoria do Estado e Direito Constitucional, na Linha de
Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Ordem Internacional.
Pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV- Direito SP.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo. Mestra em Ciências (área de concentração:
Desenvolvimento no Estado Democrático de Direito) pelo Programa de
Pós-Graduação em Direito da FDRP/USP, sendo bolsista CAPES.

Rodrigo Portela Gomes


Professor Adjunto da Universidade Federal da Paraíba, lotado no
Departamento de Ciências Jurídicas. Doutor em Direito, Estado e
Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) com período de visita
técnica na Universidad Nacional de Colombia, financiado pela FAP/DF.
Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB.

__________________________________________________________________
A fotografia que ilustra a entrevista é de autoria de Marizilda Cruppe
(arquivo Amazonia Real).

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52392

diálogos insurgentes

40 anos em movimentos, uma vida pela


juventude negra: entrevista com Deise
Benedito
40 años en movimientos, una vida por la juventud
negra: entrevista con Deise Benedito

40 years in movements, a life for black youth:


interview with Deise Benedito

Deise Benedito1 Emília Joana Viana de Oliveira3


1
Câmara dos Deputados, Congresso 3
Universidade de Brasília, Brasília,
Nacional, Brasília, Distrito Federal, Distrito Federal, Brasil. E-mail:
Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID:
[email protected]. https://orcid.org/0009-0005-2915-
2416.

Inara Flora Cipriano Firmino2 Rodrigo Portela Gomes4


2
Pontifícia Universidade Católica do 4
Universidade Federal da Paraíba,
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio João Pessoa, Paraíba, Brasil. E-mail:
de Janeiro, Brasil; [email protected]
[email protected]; ORCID: https://orcid.org/0000-
https://orcid.org/0000-0002-3745- 0002-5179-6024.
8985.

Submetido em 26/01/2024
Aceito em 30/01/2024

Como citar este trabalho


BENEDITO, Deise; FIRMINO, Inara Flora Cipriano; OLIVEIRA, Emília Joana Viana de;
PORTELA GOMES, Rodrigo. 40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra:
entrevista com Deise Benedito. Entrevista concedida a Inara Flora Cipriano Firmino,
Emília Joana Viana de Oliveira e Rodrigo Portela Gomes. InSURgência: revista de
direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 41-77, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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42 Deise Benedito - Inara Flora Cipriano Firmino - Emília Joana Viana de Oliveira - Rodrigo Portela Gomes

40 anos em movimentos, uma vida pela


juventude negra: entrevista com Deise
Benedito1

A essência da população negra deste país é a da


liberdade, que não é diferente da essência de muitas
mulheres que vemos nas varas dos fóruns
vendendo bala e comida para terem um dinheiro a
mais e poderem pagar um advogado pra soltar o
filho que está no socioeducativo. A cor é um
instrumento poderoso pra discriminação. E nós
temos um Judiciário misógino, machista, elitista,
preconceituoso e segregador. Um Judiciário que se
formou baseado na lógica da escravidão, do
racismo. Nós vemos decisões judiciais assustadoras
e totalmente embasadas em questões ideológicas
que nada têm a ver com Direito.

Deise Benedito (“O processo..., 2021).

No dia 19 de dezembro de 2023, Deise Benedito nos permitiu acessar memórias


para, quem sabe, fabular um outro mundo. Se ela fez questão de expressar a honra
pelo convite de compor a seção “Diálogos Insurgentes” do Dossiê Direito e
Relações Raciais, nós precisamos registrar que é a nossa geração que se sente
honrada por aprender com os seus passos. Sua vida-testemunho apresenta-nos
uma experiência de luta por direitos no Brasil multifacetada e densa. Deise transita
com muita habilidade por diversos temas - racismo, juventude negra, sistema de
justiça, política criminal, política de drogas, feminismos, sistema penitenciário etc.
- e distintos espaços - periferia, movimento negro, movimento de mulheres negras,
poder judiciário, advocacia, organizações sociais, poder executivo, academia,
poder legislativo etc.

Além do domínio conceitual que pôde construir nestes 40 anos para este leque de
conteúdos que atravessam sua vida, Deise nos oportunizou acessar um acervo
memorial relevante para o campo do Direito e Relações Raciais. Em grande
medida, ainda tomamos os registros acadêmicos para credenciar os pressupostos
dos estudos críticos raciais no direito. Entretanto, Deise nos ajuda a identificar, e

1 Entrevista realizada por videochamada, no dia 19 de dezembro de 2023, por meio da plataforma
Teams. Duração de 1 hora e 53 minutos.

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até correlacionar, como as agendas temáticas, as matrizes teóricas, as estratégias


metodológicas e as denúncias epistêmicas que produzimos neste campo têm como
lugar a experiência individual e coletiva das agências negra.

Seu testemunho percorre inúmeras dimensões da vida pessoal e profissional em


um movimento que aparenta certa unidade, mas que, em si, compreende uma
pluralidade de sentimentos e racionalidades que podem nos levar para variados
caminhos. Provavelmente, o leitor terá sensação de um eterno retorno. Ao invés
disso, o quebrar da narrativa para nós significa a formação de elos importantes
para compreender o envolvimento e o encantamento de Deise Benedito com as
múltiplas agendas de luta por direitos da população negra e com ela também
sentir-pensar. Assim, a vida pessoal marcada por ausências é logo ressignificada
por Deise como uma série de atos de amor, a exemplo da indignação com a infância
pobre como principal instrumento na luta pela dignidade da população negra; as
memórias de violência na periferia viraram conteúdo para interpretar a linguagem
do Estado nos territórios negros; a dor pelas ofensas racistas e sexistas abrigou o
estalo para denunciar o medo, o ódio e o horror. Enfim, as inúmeras sensações e
emoções que afetaram o seu corpo integram a mesma unidade que a mobiliza para
pensar, fazer e mudar a realidade social de pessoas negras no Brasil.

Deise é a tradução da complexa rede que a agência negra vem produzindo para
resultados políticos, culturais, econômicos, jurídicos e sociais que assegurem a
continuidade da vida negra no país. O seu papel aglutinador e a habilidade de
negociação, que ela destaca, também evidenciam a força dos movimentos e
organizações negras. Quando olha o seu passado, ela mesma reconhece o quanto
os seus horizontes foram ampliados ao se deixar ser atravessada por estes projetos
coletivos.

A mulher preta que ocupou e ainda ocupa muitas posições de poder simbólico,
institucional ou político reverencia sua ancestralidade negra ao se definir como
uma pessoa em movimento que diariamente deve cumprir a sua missão de vida:
lutar contra aquilo que não se transformou. Naveguemos, assim, pela imensidão
de movimentos desta entrevista.

***

Optamos pela reprodução quase literal do conteúdo da entrevista, nesse sentido, foram
feitos apenas ajustes gramaticais em algumas passagens para assegurar a experiência do
diálogo e valorizar a dimensão da oralidade reivindicada como recurso importante da
agência negra no contexto da diáspora africana.

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Dossiê Direito e Relações Raciais: Então vamos lá começar esse espaço em que a
gente está recebendo a Deise Benedito para ouvi-la para a contribuição no Dossiê
de Direito e Relações Raciais, na sessão de diálogos insurgentes, onde a gente traz
entrevistas. Pensamos no seu nome, pois traz a sua contribuição enquanto
pensadora, tendo em vista que a nossa geração não dividiu todos esses caminhos
com você. Então, poder te ouvir no sentido de sistematização memorial, pois
entendemos que os diferentes espaços que a gente vai falar aqui são espaços muito
relevantes, onde a sua trajetória também conta um pouco para gente a história dos
debates institucionais, dos movimentos sociais, enfim, diferentes espaços, né, de
enfrentamento ao racismo no Brasil.

Então, o primeiro ponto, Deise, seria ouvir sua trajetória, principalmente os


momentos de ingresso na militância política, dentro da agenda de enfrentamento
ao racismo? Como é que esse ingresso se deu? Quais memórias você poderia
compartilhar com a gente um pouquinho?

Deise Benedito:

Infância e racismo na periferia paulista

Lá vem história, senta que lá vem história [risos]

Olha... bom, eu acredito, eu acho que eu comecei a minha militância dentro da


barriga da minha mãe biológica, porque a minha história eu passo por vários
momentos da minha história de vida. E uma das coisas que me leva a ser ativista
de direitos humanos e atuar dentro da área de relações raciais é a minha própria
história de vida. Eu fui adotada com um ano de idade por um casal sem filhos,
brancos, pobres, no estado de São Paulo, na capital de São Paulo. Minha mãe de
criação, Alzira Barbeire Benedito, era dez anos mais velha que meu pai de criação
Álvaro Benedito e, como ela não tinha filhos, ela resolveu... resolveram, entrar no
acordo e adotar uma criança. Minha mãe biológica vivia em situação de miséria
absoluta, muito pobre. Já tinha filhos de um primeiro casamento e com a separação
do primeiro casamento, esses filhos foram distribuídos: quatro filhos e cada um foi
para um canto, em Minas Gerais. Ela teve um outro relacionamento, desse outro
relacionamento gerou o meu irmão, eu e, dez anos depois, ela teve um outro
relacionamento que gerou o meu irmão caçula. Como minha mãe não tinha
condições na época de me criar, ela é de Minas Gerais, não teve condições de me
criar, então, devido à pobreza, a miséria absoluta que vivia, então, ela me deu em
adoção para essa família. E essa família adotiva me criou.

A questão racial eu tive que ver muito cedo, porque uma das questões era, assim,
os meus pais brancos e eu, pretinha, e eu perguntava para minha mãe: “mãe, por

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que que eu sou preta e vocês são brancos?”. E minha mãe dizia: “a cegonha deixou
você cair da chaminé”. Tinha uma empresa, uma fábrica, uma siderúrgica perto de
casa e ela falava “você caiu lá e ficou pretinha”. Mas eu sempre fui uma criança
insurgente. Com uns cinco anos de idade eu já sabia ler e já sabia escrever, porque
eu fui alfabetizada muito cedo. E aí, minha mãe às vezes saia e eu fuçava nas coisas
e aí eu fucei em uma gaveta que tinha uns papéis dentro de uma pasta, e lá eu
defrontei com a minha certidão de nascimento. Filha de Patrocínia Inácia Correia,
pai ignorado, nome da avó, Maria Juliana Soledade, avô Joaquim Antônio Sena
Cor parda. E aquilo ficou assim. Então, eu descobri muito cedo que eu não era filha
da minha mãe de criação. E ela sempre contando historinha, sempre contando
histórias. E o confronto com a questão racial quando era criança, na década de 70,
começou, assim, de eu ir para escola, ia para o pré-primário toda arrumadinha e
quando chegava lá as meninas: “cadê a sua mãe?” e eu falava assim: “ela é minha
mãe, aquela é a minha mãe”. “Mas a sua mãe é branca? Ela não é a sua mãe!” eu
falava “é minha mãe, é minha!”. Entendeu? E esse conflito era muito, também, em
sala de aula. Era a única criança negra. Ou era eu e mais uma. E a minha mãe, às
vezes eu chegava em casa chorando e falava: “Ah, me chamaram de negrinha, de
negrinha preta...” e a minha mãe de criação me ensinou “olha, quando alguém te
chamar de negrinha preta, você fala que negrinha preta é o que a mãe delas tem
no meio das pernas, pode falar desse jeito mesmo”. [risos] E aí “ó, minha mãe
mandou dizer que negrinha preta é o que a sua mãe tem no meio das pernas” e
assim eu era um terror. E eu sempre fui uma criança muito ativa. Eu sempre fui
uma criança que não parava. Muito curiosa.

E eu mudei muito de escola por conta da questão racial. Minha mãe, quando eu
reclamava, às vezes minha mãe falava: “pede para ir ao banheiro, não responde
para a professora...”. E aí, um dia, teve uma das professoras que eu tive, eu pedi
para ela deixar aí no banheiro. Ela “não vai no banheiro, não, sua negrinha”. Aí eu
falei: “negrinha não! Minha mãe mandou dizer que negrinha é o que a senhora tem
no meio das pernas”. A professora ficou louca e eu fiz xixi na sala de aula... eu
tinha acho que uns oito anos de idade. E fiquei de castigo virada para a parede, ela
escreveu que a minha mãe tinha que comparecer em casa, aí minha mãe todo dia
via meu caderno, que era a única filha. Então minha mãe via o caderno tal, viu lá
comparecer na escola e minha mãe: “o que aconteceu?”. Aí eu falei: “Ah, mãe, eu
fiz o que a senhora falou. Eu pedi para professora para ir ao banheiro. Ela não me
deixou ir ao banheiro, ela me chamou de negrinha, e eu falei que negrinha era o
que ela tinha no meio das pernas. Ela mandou chamar a senhora na escola”. E aí
minha mãe foi para escola. E quando chegou na escola, minha mãe chegou comigo,
minha mãe foi para diretoria e lá na diretoria a diretora perguntou: “Deise, cadê
sua mãe?”. Eu falei: “essa é a minha mãe”. Aí minha mãe virou uma arara. Minha

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mãe falou assim: “eu sou a mãe da Deise! Ela é a minha filha e eu tiro minha filha
agora dessa escola. Ela não volta mais estudar aqui!”. Então, a minha mãe branca,
muito cedo, teve que enfrentar a questão racial. Aí ia para outra escola e era a
mesma coisa, eu queria ir ao banheiro e era a mesma bagunça. E a minha mãe
quando tinha que enfrentar o conflito, ela me transferia de escola. E ela não... ela
percebia, mas não tinha o que fazer na época, pela discriminação. E não era só eu,
outras meninas na sala de aula também a gente sofria muito racismo. E em uma
das escolas que eu estive, na sala de aula todo mundo já estava usando caneta de
tinta, caneta bic, e eu não usava. Aí eu falei: “professora, por que todo mundo usa
e eu não uso?” Ela fala assim: “porque você tem a letra muito feia e você não sabe
usar uma caneta”. Eu falei: “tá bom! Quando eu crescer, eu vou ter a letra bem
bonita. A senhora vai ver!” Entendeu? E assim, todo mundo com uns seis meses,
sete meses já estava usando caneta e eu usava lápis. Aí eu falei pra minha mãe,
minha mãe ficou puta da vida, foi na escola, brigou com a professora, me tirou de
lá. Eu passei por umas quatro escolas na fase de ensino fundamental. Eu também
não era um anjo [risos] e aí, a essa altura do campeonato, eu sempre enfrentei essa
questão racial e minha mãe e meu pai sempre falavam “quando alguém te chamar
de preta, suja, fedida, fedorenta, pobre, não sei o quê, te xingar... você responde!
Você não traga desaforo para casa! Se você brigar na escola e chegar chorando,
aqui você vai apanhar de novo!”. Então, eu sempre tive que responder.

E aí quando eu já tinha meus... eu entrei para o ginásio e tal, fiz ginásio, entrei e fiz
o colégio, aquela coisa toda, fui trabalhar. Fui com 14 anos, eu já estava
trabalhando e já tinha minha carteira profissional, já estava trabalhando... trabalhei
de costureira, trabalhei em fábrica, trabalhei de passadeira, trabalhei de manicure
e eu sempre punha na minha cabeça e minha mãe ficava sempre falando: “se você
não estudar, você vai ser empregada doméstica. Vai ter que lavar a roupa, ficar
lavando bunda de patroa, limpando a sujeira dos outros”. Minha mãe falava: “você
não sabe o que é ser empregada doméstica. Empregada doméstica sofre muito”. E
tinha uma família negra na minha rua, e eu via que as moças que eram empregadas
domésticas elas saiam no domingo e só voltavam no sábado à tarde. Ficava o
domingo em casa e depois segunda-feira já ia embora. Então, eu falava: “eu não
quero isso para mim!” Então, minha mãe sempre... e eu fui... como eu morava num
bairro pobre, aquelas ruas de terra, tudo... Então, eu fui uma criança da terra, da
rua, entendeu? E perto de casa era uma boca de fumo, entendeu? A gente conhecia
a bandidagem, a bandidagem respeitava a gente, então eu fui criada num bairro
de periferia, num bairro pobre, mas, assim, eu sempre tive muita relação com
pessoas negras por causa da minha própria identidade.

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E, por um lado, tinha aquela busca pela minha mãe biológica. Porque, eu nunca
falei para minha mãe que eu sabia, que eu já tinha visto a certidão de nascimento.
Ela pensava que eu nunca ia saber. Quando eu tinha meus nove anos de idade –
como foi a adoção plena, antigamente você ficava com a criança, e você tinha que
passar a cada três em três meses no Juizado de Menores e a minha adoção levou
oito anos, porque era muito, era muito lento o processo de adoção antigamente –
eu fui, era na Asdrúbal Nascimento, no centro de São Paulo, minha mãe me levou
lá no Juizado de Menores, como eu era uma criança impossível, e aí arrumadinha,
sapatinho, cabelinho arrumadinho, tal, tudo direitinho... esta criança que vos fala
resolve descer as escadas do andar que eu estava, ia passar com a assistente social,
com a psicóloga e com o juiz, aí eu não sei o que a minha mãe estava conversando
com outras mulheres lá, eu só sei que eu só larguei a mão da minha mãe, peguei e
desci as escadas. Fui descendo, descendo, descendo e acabei chegando em uma
triagem e nessa triagem eu deparei com um monte de meninos negros, todos
dentro de uma grade. Era o extinto RPM, Recolhimento Provisório de Menores, e
como era na época da ditadura, tinha uma lei em alguns bairros que era um toque
de recolher, então, crianças que estavam nas ruas a partir das 8:00 da noite, eram
recolhidas pelo Juizado de Menores e os pais tinham que buscar no outro dia. Se
não fosse buscar, aquela criança ficava lá internada até o dia que Deus quiser. E eu
muito curiosa, desci. Quando eu vi aquelas crianças, eu vi que não tinha guarda
nem nada, cheguei perto da grade e aí os meninos: “menina, abre aqui para gente!
Abre aqui para mim, para gente fugir!”. Aí eu olhava assim e eu falei: “olha, eu
não tenho a chave, mas eu vou dizer uma coisa para vocês, aí não é lugar de criança
ficar! Quando eu crescer, eu vou tirar todas as crianças daí. Aí não é lugar de ficar”.
Eu tinha nove anos de idade, cara! Aí, de repente chegou um cara e eu tenho essa
imagem, essa cena muito nítida na cabeça, me marcou muito na vida isso. Aí minha
mãe pegou... o guarda me pegou, me levou com a minha mãe, minha mãe
desesperada para saber onde é que eu estava... e aí eu ainda passei pelo juiz, pela
assistente social, tal, tudo direitinho e, no meio do caminho, que eu estava voltando
para gente pegar o ônibus pra casa, passei na frente do Fórum Criminal, em São
Paulo. Aí eu olhei o prédio do Fórum Criminal Mário Guimarães, mostrei para
minha mãe, falei: “mãe, tá vendo aquele prédio?” Minha mãe: “Estou!”. “Quando
eu crescer, eu vou trabalhar ali. Vou trabalhar nesse prédio, mãe”. E vida que
seguiu.

E todas as mulheres que eu via passando na rua que eu morava, principalmente


que pedia esmola, eu ia atrás e perguntava o nome. “A senhora chama
Patrocínia?”. Quando eu via que era negra, tinha quatro ou cinco crianças... “Não,
não! Eu não me chamo Patrocínia”. Toda mulher que passava pedindo esmola,
para mim, era minha mãe. E aí eu falava: “então espera aí que eu vou pegar uma

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coisa”. Aí eu em casa e pegava um saco de arroz, de feijão e corria e entregava para


a mulher. Eu sempre tive isso. E aí, quando foi mais ou menos nos meus 12 ou 13
anos, que a gente começa a descobrir a adolescência, todo mundo recebendo
cartinha, bilhetinho, e eu não recebia nada, porque eu era uma menina que não
estava enquadrada nos modelos. Então era feia, e aí o pessoal punha apelido de
Mussum, de toco de macumba, de frango de macumba, de macaco, era aquela
toda, aquele bullying, que é aquele tal bullying que falam hoje... Na minha época
você vivia isso. E eu não fui uma garota dos sonhos. Eu não fui uma menina que
estava nos sonhos dos rapazes, nem dos pretos nem dos brancos. Eu com 12, 13
anos eu jogava futebol, entendeu? Então, em 1973 eu estava jogando futebol. Era a
minha sociabilidade, e, apesar que eu tinha uma educação muito rígida, muito!
Minha mãe não deixava ir para bailinho, para festa, nada. Fui começar a ir para
baile, eu tinha 21 anos de idade, depois de estar trabalhando.

Do racismo no mercado de trabalho ao Movimento Negro de São Paulo

Com 14 anos, eu comecei a trabalhar numa fábrica de camisa como passadeira,


tirando fio, eu fui overloquista. E eu entrava às 7h da manhã e saía às 5:30 da tarde
todo dia... Não, não era jogo. Aí terminei de estudar tal, e aí fiz um curso de
datilografia. E, com 18 anos, eu já tinha um curso de ... 18? Não! 18, não... Espera
aí, em 83 eu tinha 22, então, com 19, 20 anos eu já tinha o curso de datilografia e eu
trabalhei no Telesp. Fui escriturária na Telesp, trabalhei em outros lugares, mas,
quando eu estava com 22 para 23 anos, eu tinha já saído da Telesp e estava
procurando emprego. Eu fui a um escritório, preenchi a ficha, fiz o teste, vi que eu
fui bem no teste de datilógrafo, e aí eu fui lá para pegar o resultado e, era uma
japonesa, ela falou para mim: “olha, você passou no teste”. Falei: “tá! Quando eu
começo a trabalhar?”. Ela falou assim: “não! A nossa empresa não admite pessoas
de cor”. Eu era malcriada e já falei: “de que cor? Verde, amarela, azul, roxo?”.
“Não... pessoas da sua cor”. “Que cor?” “Não, a gente não admite pessoas pretas
aqui”. Aí, minha filha, virei o saci. Falei: “como? Não pode!! Eu tenho o direito de
trabalhar!” Entendeu? Toda a insurgência da juventude e a mulher “não, não
pode”. Eu falei: “tem que ir na polícia! Eu vou na polícia”. Na minha ideia ia
resolver e aí eu estava puta na vida porque era uma empresa grande e tal e, no
meio do caminho, eu estava andando eu vi num poste escrito Reunião do
Movimento Negro contra o racismo... e eu fiquei olhando. Aí eu vi o endereço
Avenida Paulista, no MASP. No dia, contei para minha mãe, contei pro meu pai e
aí eu falei: “eu vou nessa reunião desse tal desse Movimento Negro! Eu vou
denunciar”. E aí no outro dia eu fui, quando eu cheguei, cara, eu entrei ali no
MASP, eu nunca tinha entrado. Entrei, fui no auditório e eu nunca vou esquecer
dessa mesa: na mesa estava o Milton, estava o Hamilton, estava a Dulce Pereira,

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estava o Milton Cardoso, estava Sueli Carneiro, Edna Rolan, Ana... as pessoas do
Movimento Negro, que o pessoal chama de dinossauro, mas estavam todos
novinhos. E aí eu olhei assim e eu fiquei encantada.

Eu nunca tinha visto preto que tinha feito história, era advogado, psicólogo... eu
fiquei assim... pra mim era um outro mundo, porque os pretos que eu conhecia
eram ou faxineiro, ou empregada doméstica ou era trabalhador da siderúrgica. Era
trabalhador de siderúrgica e o máximo que os meninos estudavam, na minha
época, era curso de ferramenteiro, torneiro mecânico. Eu nunca tinha visto
nenhum negro da minha idade, da minha geração, fazendo faculdade ou formado
em faculdade. Então, pra mim aquilo era um outro mundo. É possível, você
entendeu? E aí eu fiquei observando eles discutindo e falando do racismo, do
mercado de trabalho, da violência policial, e aí foi “alguém quer falar?”. Aí eu
levantei a mão e a Dulce Pereira falou: “deixa essa mocinha, essa menina falar”.
Eu tinha 22 anos. Aí eu falei: “Ah, o que eu quero contar para vocês é que eu fui
arrumar emprego, e no emprego falaram de gente de cor, e eu não tenho cor, e não
sei o quê, não sei o quê, não sei o quê”. Eu chutei o balde. Aí a Dulce Pereira falou:
“Ah, e qual é o nome?” “É Deise”. “Ah, aguarda aí, Deise. No final da reunião, eu
quero conversar com você”. E aí... porque o meu sonho era ir naquele lugar,
denunciar e que, possivelmente, ia ser feito alguma coisa por aquilo que aconteceu
por eu ter sido tão diretamente vítima de racismo. Aí eu de bairro pobre, então, a
gente não tem tanta formação assim. E aí a Dulce me chamou, começou a conversar
comigo, me apresentou ao Miltão, o Milton Barbosa, e me apresentou as outras
pessoas do MNU2 e eu nunca tinha visto. Foi quando me apresentou pra Sueli e
ela falou assim: “Deise, você não quer participar de uma reunião de mulheres que
a gente vai fazer tal dia? Vai ser na Funap. Você não quer ir? Seria legal você ir”.
Eu falei: “tá bom”. E aí, nesse período, já tinha passado alguns anos, e eu comecei
a ir nas reuniões na Funap, aí eu conheci a Edna Roland, tal, então eu me encantei.
Eu ia nas reuniões muda e calada, porque eu queria entender. Eu queria aprender
aquilo que aquelas pessoas... sabe assim? Você nunca imaginar uma mulher ser
psicóloga? Uma mulher negra, uma pessoa negra, nunca, nunca, nunca! Era uma
coisa distante... um sonho muito, muito, muito distante, né? E o meu sonho, como
toda menina do bairro, era casar com 23/24 anos, ter filhos... olha só [risos].

E aí, cara, ao mesmo tempo que eu queria sonhar com casa nova, ao mesmo tempo
eu queria curtir, porque eu era muito presa, então, minha mãe não deixava ir para
os bailes, sair tal, era um inferno. E aí, quer dizer, eu tinha que trabalhar. Eu

2 O Movimento Negro Unificado (MNU) é uma organização política e social, fundada em 1978.
Disponível em: https://mnu.org.br/mnu-3/. Acesso em: 14 jan. 2024.

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participava dessas reuniões, eu vi a criação do Conselho Estadual da Condição


Feminina, em São Paulo, em 80 e... 80 e bolinha. Eu fiz parte do primeiro Dossiê de
Mulheres Negras, que eu ajudava no Conselho da Condição Feminina. Foi feito
um grupo de mulheres negras e eu ajudava com os recortes nos jornais
denunciando os anúncios que dizia “procura-se mulheres de boa aparência, precisa de
empregada doméstica de boa aparência”, que seria branca. Esse primeiro dossiê eu
participei e foi a primeira vez que eu vi meu nome numa publicação. E eu fiquei
toda contente, porque eu era ali da periferia e a partir daí eu fui indo nas reuniões.
Fui indo, mas sempre calada, sempre ouvindo, sempre calada, entendeu? Só
absorvendo aí, comecei a ler, li Casagrande e Senzala, fui lendo livro, sabe?! Jacob
Gorender, fui lendo... pegava livros e pedia emprestado e estava lendo. Aí fui indo
até que resolveram criar, em 88, o Geledés, o Instituto da Mulher Negra3, das mais
velhas, eu era mais nova, eu era caçula de Geledés. Aí fundou Geledés e eu sempre
ouvindo. Eu quase não falava nas reuniões, porque eu queria aprender. Eu queria
compreender e eu era uma pessoa que morava no bairro que volta e meia aparecia
corpos de jovens assassinatos. E aí eu falava: “mas é a questão da juventude? Vocês
só querem falar de mulher? Quero falar de juventude”. Então, eu começava a
questionar isso. Comecei falando e questionando, então, em todas as atividades eu
ia quando saia do trabalho.

Eu entrei no tribunal, trabalhei na Febem, onde foi uma experiência muito


interessante por seis meses, porque eu tinha passado em um concurso que eu
prestei para o Tribunal de Justiça de São Paulo, para trabalhar como escrevente,
ter estabilidade e tal. E era assim, era top. Ser escrevente técnica era top, até a
página dois. E era onde tinham muitos negros. Tinham muitos funcionários
públicos negros no estado de São Paulo, até por que trabalhar no fórum, na saúde,
na prefeitura era onde se absorvia muitos negros com pouca escolaridade e eu já
tinha um colégio. E aí, eu passei no concurso, aguardei os três anos, fui chamada e
aí eu trabalhei na Febem que era aquele contato direto com os jovens negros,
meninas negras. Eu era monitora e eu via toda agressividade que era colocada,
claramente, as questões raciais e sempre aquele número elevadíssimo de crianças
negras; E eu sempre pensava, poderia ser eu nesse lugar, se eu não tivesse sido
adotada, né? Então, eu sempre fui muito cuidadosa com as meninas, eu já
procurava chamar pelo nome, não usava apelidos. E, quando eu fui chamada, saiu
a minha nomeação para eu tomar posse no Tribunal de Justiça, eu tive que sair da
Febem, mas eu já tinha muitas amizades com as meninas que eram internas,

3 O Geledés é uma organização da sociedade civil que atua na defesa das mulheres e negros. Foi
fundada em 1988. Disponível em: https://www.geledes.org.br/geledes-instituto-da-mulher-
negra/quem-somos/. Acesso em: 14 jan. 2024.

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principalmente as meninas negras, as vezes eu era confundida, se eu era menor ou


se eu era monitora, porque eu era magrinha, franzininha, então, todo mundo
pensava que era menor, mas não, eu era monitora. E foi uma experiência, assim,
que me marcou muito. Muitos os pais estavam presos, as mães estavam presas,
muitas meninas vítimas de violência sexual, tortura, maus-tratos, então, para
entender aquelas meninas, eu sempre procurava os prontuários e ficava lendo. E
via toda a história e sempre pensava: “cara, podia ser eu! Cara, podia ser eu, né? E
aí, eu tomo posse, tive que deixar a Febem, tomo posse no Tribunal de Justiça e fui
trabalhar de escrevente. Então, trabalhei no Departamento Pessoal, depois eu fui
para a área Cível, mas o meu sonho era ir para a área Criminal. Eu queria trabalhar
no crime, até porque eu fui criada numa boca. Então eu via prisão, eu via
espancamento de polícia, eu via polícia extorquindo. Eu fui criado num ambiente
que você tinha poucas escolhas, se você quiser ir para esse caminho, o resultado é
esse. Se você quiser ir pelo outro, é outro. Se eu quisesse entrar para bandidagem,
eu tinha entrado.

E aí, a essa altura do campeonato, eu sempre observava tudo isso. Aí eu fui para o
fórum e me envolvi. Já estava em Geledés trabalhando e aí era movimento dos
anos 88/89, redemocratização, greve, aquele inferno todo e eu comecei a ferver.
Depois do engajamento de Geledés, juntamente com o sindicato, que buscava a
melhoria de salário, porque a gente tinha estabilidade, mas não tinha salário legal
ainda. E aí eu fui indo, indo, indo, aí depois, um certo dia, teve uma atividade de
Geledés na Câmara Municipal, eu tinha ido, era no meio dessas greves que a gente
era relotado. O funcionário que fazia muita greve, era relotado e em uma das
greves eu falei, a gente estava na frente do Fórum João Mendes, em São Paulo, eu
falei: “aqui, a gente trabalha que nem escravo. Só falta saber a hora que é o açoite!
Tenho certeza que aqui onde eu estou foi um Pelourinho”. Anos depois, eu
descobri que realmente tinha um Pelourinho ali onde eu falava que era lugar de
açoite. E aí eu respondi um processo administrativo por causa das minhas
bagunças, e fui relotada para a Vara de Execução Criminal, que era o pior lugar
para mandar funcionária. Ali era de tirar cadeia mesmo! Cadeia dura! E se eles
soubessem o bem que eles me fizeram... [risos]. Eu não estaria aqui falando com
vocês, não teria virado criminóloga se eu não tivesse caído naquele lugar.

A agenda contra o genocídio da juventude negra

Eu fui para a Vara de Execução Criminal, trabalhava com carta de guia, expedição
de carta de guia, mandado de prisão, cálculo de penas, esses negócios todos. E aí,
como eu sempre fui muito rápida no meu trabalho, eu fazia tudo depressa para
ficar lendo os processos e quando nem se pensava em fazer recorte racial, de
gênero, crime, essa coisa, eu estava nos anos 90... nem se imaginava. Acho que era

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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 53

89/90. Acho que era 90. Aí eu estava trabalhando no Tribunal de Justiça, na Vara
de Execução Penal e começava a fazer quadradinho pelos processos que eu lia e eu
via que a maioria era de jovens negros. E era artigo 155 e 1574 que era furto e roubo,
e eu falava, mas que coisa? Aí eu fui fazendo, aí eu fui observando e sempre que
tinha as reuniões de Geledés eu comentava: “óh, gente, a maioria dos meninos que
estão na prisão é tudo preto! É tudo preto! É tudo preto!” Sabe? Isso em 1990! As
detenções, na época, tinham 1.500, não... 7.000 presos e a capacidade era de 1.500.
E eu não via só os processos. Eu vi aquelas mães, aquela senhorinha que ia lá ver
o julgamento do filho, porque não tinha audiência de custódia. Então, ia para as
audiências para ver se o filho ia ser preso ou não. Não tinha Defensoria e eu via
aquela senhorinha, aquelas velinhas, aquelas mulheres pretas com 3/4 criança,
quando o réu passava na frente era algemado e as mães gritavam “meu filho, meu
filho”. Ah, aquilo me doía o coração, sabe? E quando ele saia condenado, então,
era uma choradeira, sabe... “eu vou te ver, meu filho, eu vou te ver!”. Ah, era muito
triste. E aí aquilo foi aumentando a minha curiosidade e eu falei, gente, deve ter
um outro lugar para gente desaguar tudo isso. Teve uma reunião de Geledés na
Câmara Municipal que Harlem Désir5, o fundador do Stop Racismo - era uma
organização francesa que trabalhava contra o racismo na França, nos anos 90. E aí
Harlem Désir falava, discutia a questão racial e eu, assim enlouquecida,
absorvendo tudo. Foi quando eu vi um padre branco, dos olhos azuis olhando para
aquele Harlem Désir e fez uma pergunta: “você sabe que, no Brasil, a maioria dos
caras que estão nas prisões são negros?” E aí Harlem Désir respondeu: “eu não
sabia!” e ele tinha tudo escrito. Era o Padre Chico da Pastoral Carcerária, ele
parecia o Paul Newman, era muito bonito. E ele fez aquela pergunta, impactou
todo mundo, porque era um homem branco falando da questão racial.

Aí todo mundo se despediu dele e tal e ele ficou me olhando, eu falei oi, ele falou:
“você é quem?” Aí eu falei: “sou a Deise”. Ele “você trabalha em Geledés?”. “É
sim! E trabalha no Tribunal de Justiça”. Ele: “onde?”. “Na vara de Execução
Criminal”. Ai, meu filho, aí a amizade valida né? Aí ele “trabalha na Vara de
Execução, é? Onde tem uns processos, os pedidos que eu vou na detenção,
converso com os presos, ele vê, tem muito preso negro lá... você podia olhar...”. Aí,
cara, vira um parceiro. Ele passava pra mim o número dos processos e eu via as
execuções, respondia para ele a situação dos presos, e aí foi por anos a gente

4 Referência aos artigos que estabelecem os crimes de furto e roubo no Código Penal. Disponível
em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 14 jan.
2024.
5 Harlem Désir é um político francês, que fundou a instituição SOS Racisme em 1984. O SOS
Racismo de Geledés foi lançado em 1991 com a presença de Harlem Désir. Disponível em:
https://www.geledes.org.br/harlem-desir/. Acesso em: 24 jan. 2024.

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fazendo isso. Até que um dia ele me convidou para participar da Subcomissão de
Política Criminal e Penitenciária na OAB/SP e eu fui e chegando lá aquele mundo
de branco. Advogado? Bem alimentado e a minha era a única cara preta. Aí o
pessoal “ah, seria legal alguém do movimento negro participar da subcomissão”.
Aí eu falei ah, eu vou falar com o pessoal do Geledés e ver o que o pessoal acha.
Como eu trabalhava na área de direitos humanos, falei pra Sueli, a Sueli: “Ah, é a
sua cara! Pode ir! Você que gosta disso vai, você que é da área de violência, vai”.
Aí eu fui, eu trabalhava... eu era de Geledés, da Subcomissão e trabalhava na Vara
de Execuções Penais. Então, era melhor dos sonhos. Os melhores dos mundos pra
aprender tudo que eu aprendi ali. E na subcomissão, a gente começou a fazer as
primeiras visitas nos presídios... nos presídios não, nos distritos policiais, porque
em São Paulo não tinha o Centro de Detenção Provisória ainda, então, os presos
ficavam todos nos distritos policiais. Então, no lugar que cabia 20, tinha mais de
200, era superlotado, era horrível. Eram gaiolas e sempre me vinha aquela imagem
daqueles meninos. “Me tira daqui”. Eu olhava aquilo e lembrava daqueles dos
meus irmãos que eu não conhecia e vinha: “Será que meu irmão está preso? Será
que eu tenho irmão preso? Será que eu tenho um sobrinho preso?” E eu tinha isso
e mais um uma ideia, também, que aconteceu e que eu pulei, mas depois eu retorno
pra vocês, que eu comecei a ir para os distritos. Dava um perdido, a minha chefe
era minha diretora e ela era maravilhosa, ela era ativista do movimento contra a
ditadura daqueles jovens insurgentes de classe média. O marido era da VAR-
Palmares6 e ela sempre apoiou todas as minhas bagunças que eu pudesse fazer lá
ela apoiava, porque ela achava sensacional. E aí eu falava: “olha, eu vou ter que ir
lá...” e ela falava: “você volta às 8:00”. “Não beleza, chego aqui 8 horas”. E eu ia
junto com o pessoal da OAB para os distritos policiais, tanto de homem como de
mulher, então, eu comecei conhecendo os distritos policiais, então eu conheci a
Vara de Execução Criminal; eu conheci a rotina das mães, a rotina de ir, de chegar
lá às 8:00 da manhã... é 5/6 horas da manhã na fila e o fórum só abrir às 11h; eu
conheci o ritual dos presos chegarem no camburão, tipo 6 horas da manhã, ficar
sem comer o dia, praticamente o dia todo, e só comer 6 horas da tarde, quando saia
de lá, quando estavam indo para a casa de detenção, a maioria ficava lá na
detenção e alguns que vinham dos Distritos.

O massacre do Carandiru

E, em 92 estourou... Eu já estava na Vara de Execução, e estava em Geledés, estava


lá na Subcomissão quando estourou o Massacre do Carandiru. E aí o ano, acho que

6 Organização política de esquerda que participou de resistência armada durante a ditadura civil-
militar. Disponível em: https://atlas.fgv.br/capitulos/nova-republica-1985-2009. Acesso em: 24
jan. 2024.

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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 55

o ano passado, saiu até uma publicação de um livro sobre a pandemia da Covid-
19 que eu conto os 31 anos do Massacre. Esse ano eu também escrevi para o
Migalhas7 falando de mais um aniversário do Massacre do Carandiru. E aí eu
trabalhava lá e como a gente não tinha todas as informações, a gente estava
trabalhando, aí estourou o Carandiru, estourou aquela rebelião, aquele rebuliço lá
dentro do setor que eu trabalhava. Toda a Vara de Execução, todo mundo
preocupado com o que tinha acontecido no Carandiru. E aí, no dia seguinte a gente
não podia sair... como o tribunal era perto da OAB, então era tudo pertinho a pé a
gente fazia o circuito, era perto de Geledés, era perto do tribunal e perto da OAB.
Então, era um triângulo que a gente fazia e estava tudo pertinho. E aí não deu para
ir na Casa de Detenção naquele dia, na hora do massacre, mas a gente ficava
acompanhando da televisão, porque não tinha celular, não tinha nada. A gente
ficou na OAB, eu e umas colegas minha ficamos na OAB, eu era a única cara preta
dessa comissão.

No outro dia a gente combinou que de manhã a gente ia para a Casa de Detenção
de São Paulo e, quando foi de manhã, às 6/7 horas da manhã, a gente estava na
porta da Casa de Detenção, com aquele monte de mãe, monte de mulher preta
chorando, os filhos, a polícia jogando os cavalos em cima e a gente estava perto do
portão junto com os deputados, a comissão, uma parte da comissão, e a outra parte
já tinha entrado. Eu estava aguardando autorização. Quando foi dando a hora de
eu entrar, eu tomei uma borrachada no peito e o policial falando: “você não vai
entrar não”. Eu falei: “como que eu não vou? Eu sou da comissão da OAB, como é
que eu não vou entrar?”. “Não, você não vai entrar não”. Ai, veio um deputado
que me puxou pelo braço, Walter e disse: “Não, ela vai entrar, porque ela está
comigo. Eu sou deputado estadual, ela vai entrar”. E aí eu entrei e no meio do
caminho, antes deles tirarem aquela montanha de gente que estava, uma mulher
me olhou e deu um papelzinho, bem pretinha. Ela falou assim: “olha, aqui está o
nome do meu marido. Eu não sei se ele está vivo ou está morto. Eu tenho 6 filhos.
Fala para mim, moça, se você conseguir achar meu marido. Eu vou ficar aqui
esperando a senhora”. Aquilo me cortou o coração e eu fui, levei o papelzinho do
marido dela na mão com o nome e aí a gente entrou, aquele cenário, aquela
sangueira, aquele desespero, os presos nas grades chorando. Uma das coisas mais
terríveis! E aí eu consegui entrar no Pavilhão 9 e ainda os presos lavando o chão
cheio de sangue. Eu cheguei lá e quando a gente sobe pra ir lá no lugar, tudo aquela
sangueira e eu fui na parte dos presos que estavam trabalhando na área

7 É o texto “31 anos do massacre do Carandiru - Onde estão os filhos do massacre”. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/coluna/direitos-humanos-em-pauta/395050/31-anos-do-massacre-
do-carandiru--onde-estao-os-filhos-do-massacre. Acesso em: 14 jan. 2024.

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administrativa, estava procurando e batendo os nomes dos presos. Aí eu falei pra


eles não... Vamos lá. E eu fui vendo, eu fui pegando os nomes e aí que eu conheci
o Caco Barcelos, que também estava lá junto com os presos, procurando os nomes
e aí a gente começou a conversar, tal.

Aí eu e o Caco batemos todos os nomes. Eu peguei, fiz uma lista escrita à mão, falei
vou levar esses nomes lá para a Vara de Execução, ver quem já tem execução e
quem não tem. Saí de lá umas 4 horas da tarde, cheguei no meu serviço, a chefe
estava lá e bateu o meu ponto, e aí eu falei para ela: “olha, está aqui a lista. Dá para
levantar?”. Ela respondeu: “Dá, Deise, dá para levantar. Que horas você tem que
entregar essa lista?”. Falei: “Ah, assim, é mais rápido possível, né? Ninguém sabe
quem é que está vivo, quem está morto, quem tem execução, quem não tem”. Ela
pediu para uns quatro funcionários levantar as execuções. Passou todos os nomes
dos presos, os que tinham execução. A maioria dos que morreram não tinham
ainda passado na audiência. Eram jovens de 18 a 25 anos. Tiro na cabeça, tiro na
nuca. E não tinha execução. Aí eu levei para o pessoal da OAB, como eu tinha
falado, e aí o pessoal fez os levantamentos. Eu acompanhei uma boa parte do
inquérito, os laudos da Casa de Detenção de São Paulo. Acompanhei por muitos
anos e aí fiquei lá.

Outros percursos da agência negra

Continuei e Geledés fazendo as coisas e aí, quando foi em 90... no mesmo ano de
92, o massacre foi em outubro, né? Em maio eu estava em Geledés e aí estava tendo
uma manifestação no metrô dos jovens do movimento hip-hop, do rap. Os rappers
estavam fazendo a respeito de um jovem que tinha sido morto dentro do metrô,
porque estava cantando Rap. E aí estava o Miltão, estava todo mundo do
movimento, e aí o pessoal pegou e falou, precisa falar, Geledés tem que falar
alguma coisa. Deise está aí, então você fala. Aí, eu fiz um discurso enlouquecido.
E fiz amizade com os meninos do movimento do hip-hop, o KL Jay... todos os
meninos do movimento, o Dexter, que era novinho. Todos esses meninos eu
conheci do hip-hop eu conheci lá, na Praça da Sé, nessa manifestação. E aí eles
queriam mais informação sobre questão racial e eu falei de Geledés... “Ah, a gente
quer ir lá! A gente quer ir lá”. Eu falei pra Sueli. Sueli achou a ideia interessante. E
os meninos começaram a frequentar o Geledés, a ler os livros, a discutir texto, essa
coisa toda. Até que surgiu a ideia de criar o Projeto Rappers8, que está fazendo 30

8 Desenvolvido entre 1992 e 1998 pelo Geledés foi um projeto voltado para a juventude negra
provocada pelo movimento hip-hop a partir do impacto da ação SOS Racismo que a entidade
vinha desenvolvendo. No passado foi lançado o documentário “Projeto Rappers: A Primeira Casa
do Hip Hop Brasileiro – História e Legado”, nele é narrado o pioneirismo do projeto administrado

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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 57

anos. Depois eu mando para vocês o vídeo sobre os velhos hoje falando do Projeto
Rappers, e eu apareço lá no vídeo falando como foi.

E eu fiquei lá fazendo essa minha vida. Continuei na execução criminal... o único


livro de criminologia da época era de Augusto Thompson, A questão penitenciária,
e Michel Foucault, que era uma Bíblia, todo mundo tinha um, entendeu? [risos]. E
aí, foi quando eu fui, continuei, continuei e fiquei em Geledés até 97, em 96, eu fui
candidato a vereadora. Serviu para eu saber quantas pessoas iriam no meu enterro.
Pelo PT, eu tive 2.400 votos... isso para a época era como se fosse hoje, mais ou
menos 25.000 votos, dando essa proporção de tempo, nessa escala de tempo. Aí,
era aquela campanha que não tinha dinheiro, não tinha nada, aquela coisa solitária,
e eu falei: “nunca mais eu quero ser candidata, mas nem para síndica de prédio” e
não fui!

E aí, eu comecei a falar em público depois dessa parte de 92, eu comecei a falar na
OAB, eu comecei a colocar a questão racial. O pessoal da subcomissão criou o
primeiro curso de execução penal, porque muitos juízes não sabiam lidar com a
execução penal e muitos advogados depois da sentença, não sabia o que fazer. Aí
eu fui explicando a carta de guia; quanto é o tempo; o lapso temporal para fazer
pedido de progressão; o que é que precisava; o laudo criminológico, que eu
devorava aqueles laudos lombrosianos. E aí, eu fui ficando e quando foi em 99, eu
saí de Geledés. O Padre Chico da Pastoral Carcerária faleceu e muita gente saiu da
subcomissão, mas fiquei ainda até 2003/2004, quando foram os primeiros
julgamentos dos policiais do massacre e fui ganhando minha vida. Aí mais para
frente, eu fui para a Fala Preta9, a organização de mulheres negras. E fui trabalhar
também com questão de violência, direitos humanos. E aí foi a minha vida.

Eu comecei a participar de conferência, de reunião, dos encontros do sudeste,


aquela coisa toda e sempre abordei a questão da segurança pública e do sistema
prisional. Então, no Brasil, o Miltão sempre fala que eu fui a primeira mulher negra
a falar da questão prisional, desde os anos 90. Então, eu tenho esse conhecimento
sobre política criminal desde os anos 90 e vinha para Brasília e a primeira vez que
eu vim a Brasília foi na época do impeachment do Collor. E vim para uma reunião
de direitos humanos e eu fiquei, assim, assustada com essa cidade, porque nunca
tinha vindo. E aí, a partir daí eu comecei a participar de várias reuniões e aí em
92... em 93 eu participei da Conferência Mundial de Direitos Humanos, em Viena

pelo Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/documentario-projeto-rappers-o-


encontro-do-hip-hop-com-o-feminismo-negro/. Acesso em: 14 jan. 2024.
9 A Fala Preta! Organização de Mulheres Negras que foi fundada em 1997. Deise foi membra, desde
a fundação, ocupando o cargo de presidente da entidade, na primeira década do século XXI.

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e eu fiz um pronunciamento lá na ONU e, nesse pronunciamento, eu levei o nome


dos presos do Carandiru. E falei da dificuldade do Brasil em lidar com o racismo
e com as mortes. Já se falava em genocídio da juventude negra. Entendeu? Já se
falava por conta da violência, principalmente nas periferias de São Paulo. Nos anos
90 se matava muito, muito, muito, entendeu? Eram mortes, assim, por mês eram
mais de 100 mortes. Era uma coisa horrível, porque juntava a Rota de um lado, os
grupos de extermínio, que era o Esquadrão da morte, Pé de pato, Justiceiro, que
faziam tipo de uma milícia que fazia a limpeza nos bairros da periferia, lá em São
Paulo. E aí eu fui indo, indo... e aí eu fui convidada para falar sobre a abolição da
pena de morte, em Bruxelas, no Parlamento europeu, em 93. Aí fui para a ECO-92
e eu fui indo [risos]. Depois que eu aprendi, que eu perdi a vergonha de falar,
menina, eu falava mais do que pobre na chuva. Mas eu tinha um hábito também
de ler muito. Eu sempre fui muito de ler. Eu achava importante me informar, ler,
ir atrás e a minha preocupação sempre foi a juventude. E depois me convidaram
para participar do I Fórum Nacional da Juventude Negra10, que eu fiz uma fala.
Participei de todos as edições do Fórum Social Mundial, onde tinha até uma mesa,
no II Fórum Mundial, que era eu, o Sabotagem e a mesa foi suspensa, porque nesse
dia o Sabotagem foi assassinado.

E aí fui seguindo a minha vida, cara, e eu fui indo, indo... Participando de


conferência, reunião, sempre colocando a questão racial, principalmente nas
conferências, direitos humanos aqui em Brasília. Que a questão racial não entrava
como direitos humanos, entrava a questão da ditadura e eu falava da questão racial
e foi indo. Fiz mais amizades, fui convidada para falar em outros lugares e
universidades e fui indo, entendeu? E aí, depois que eu saí de Geledés e da Fala
Preta, eu continuei atuando sem organização. E fiz parte, também, da construção
do Fórum Nacional de Mulheres Negras11, que era um fórum que tinha mais uma
visão popular. Mulheres da base, não mulheres acadêmicas, independente de eu
ter feito direito, eu achava que a gente tinha que ter uma relação com as bases.
Mulheres que vão buscar o seu direito ali no dia a dia, no sufoco. Questão da
violência contra a mulher, a questão racial do mercado de trabalho. E aí comecei a
discutir a questão das mulheres nas prisões também, a partir de quando eu estava
na comissão de direitos humanos da OAB. E aí a gente criou a primeira comissão

10 O primeiro encontro da juventude negra brasileira ocorreu, nos dias 27 a 29 de julho, na cidade
Lauro de Freitas (BA). Disponível em: https://www.palmares.gov.br/?p=2211. Acesso em: 14 jan.
2024.
11 Deise foi secretária-executiva do fórum que reunia cerca de 40 organizações de 15 estados
brasileiros. No ano de 2005, teve importante contribuição no 1ª Conferência Nacional de
Promoção da Igualdade Racial, quando apresentou mais de 150 propostas. Disponível em:
http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil//noticia/2005-07-01/forum-nacional-de-mulheres-
negras-apresenta-mais-de-150-propostas-na-conferencia. Acesso em: 14 jan. 2024.

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das mulheres presas na OAB, em 91, eu, a Ruth, Adriana e a Margarida (Deus a
tenha) e eu sempre fui a única mulher preta.

A vida me levou para a militância? A volta da vida

Eu continuei na militância. Sempre que as pessoas me chamavam pra falar eu ia.


Sempre fui mesmo, independentemente de ter organização ou não, eu achava que
eu tinha um compromisso e pela minha história de vida. A minha história de vida
me leva para militância. A minha história de vida me levou para conhecer isso. E
quando eu tinha 16 anos, que agora eu volto na história, na minha história pessoal,
quando eu tinha 16 anos, eu tive a oportunidade de um dia em que falei com uma
vizinha minha, né, “Pô, minha mãe, gente, onde será que tá minha mãe? Eu não
acredito que minha mãe tenha morrido”. Aí ela falou: “olha o seguinte, sua mãe
morava ali atrás da padaria, lá em cima. Vai lá, procura a casa do Seu Antônio, que
ele conhece sua mãe”. Aí eu fui na casa desse Seu Antônio, um senhor negro, e eu
falei de quem era filha e se ele conhecia a minha mãe. Ele falou: “eu conheço!”.
“Ela mora onde?”. Minha mãe morava a uns 20 minutos de onde eu me criei. Ela
morava no bairro do Campanar, em Diadema, que era o famoso caixote em pé,
porque era só barraco, barraco, barraco, barraco. E eu morava numa casa de tijolo,
de alvenaria. E tinha asfalto, já tinha asfaltado a rua. Então, tinha, assim, uma
discriminação, o pessoal do caixote em pé que mora no barro e nós que morávamos
na Água Funda, que morava no asfalto. A gente era elite, morava no asfalto. E aí,
eu fui no domingo com ele, e era só barraco, barraco, barraco.

E aí ele mostrou minha mãe, que morava no morro, em um morrinho, em um


barranco e, quando eu cheguei lá, era um barranco cheio de casinhas no meio do
quintal, de barraco, né, poço, tudo, cachorro latindo, aquela coisa, né, de domingo.
Aí eu subi. A minha mãe eu tinha uma ideia de que ela era bem pretinha, bem
pretinha. Aí quando eu vejo minha mãe, minha mãe era mais clara do que a Emília,
entendeu? Minha mãe era preta de pele clara. E aí, quando eu vi minha mãe, olhei
assim e levei aquele susto. Minha mãe? Aí, seu Antônio disse: “Ah, essa aqui é a
Patrocínia”. “Tudo bem com a senhora?” Ai tudo bem, minha mãe estava sentada,
tomando cerveja, fumando o bom cigarro com as unhas imensas, bonitas as unhas
da minha mãe. Aí o Seu Antônio perguntou: “você conhece essa menina?” Aí,
minha mãe: “não... deve ser uma das namoradas do Pelé, não é?” Pelé é o meu
irmão. Ele disse: “olha bem para ela”. E aí minha mãe me olhou, me olhou, chegou
e falou: “vem aqui”. Eu cheguei perto dela e minha mãe me cheira o pescoço.
Quando minha mãe me cheirou o pescoço, ela começou a chorar, aí falou assim:
“essa aqui é a filha minha que eu dei, que eu não tinha condição de criar. Minha
filha” [imitação de voz de choro]. Foi aquela choradeira e eu, assim, não chorei,
não derramei uma lágrima. Eu fiquei assim, inerte, porque a minha busca de

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durante tantos anos tinha se concretizado. Minha mãe estava ali na minha frente e
ela me olhava: “Me perdoa! Me perdoa, mas se eu não fizesse isso você ia morrer
de fome. Você não estaria aqui. Eu sempre vi você de longe. Eu ficava te vendo de
longe. Descia lá, eu sabia a hora que você ia trabalhar e eu ficava atrás do poste te
vendo. Via você ir para escola. Via que você estava sendo bem-criada”. Eu falei:
“mas o que que vocês fizeram?”. Ai ela disse: “A gente fez um acordo que eu nunca
procuraria você. Que já que foi dado, foi dado e que eu nunca ia poder ficar perto
de você. Mas, eu estava preocupada que você já ia fazer 18 anos. Eu tinha medo de
você conhecer seu irmão e de repente vocês namorarem e não saber que são
irmãos. Então, seu irmão sabia que quando você fizesse 18 anos ele ia te procurar
e dizer que era teu irmão, ia trazer você aqui pra gente te conhecer, pra você
conhecer os seus irmãos”.

E aí eu conheci aqueles meus irmãos... uma branca, outra mais escura, tudo, e nem
um parecia comigo, né? Porque eu era filha de um outro casamento e eu perguntei
para a minha mãe, do meu pai. E minha mãe: “Ah, seu pai era um vagabundo, um
mulherengo, um sem-vergonha”. Aí eu perguntei onde estava o meu pai. Levou
quase dois anos para minha mãe... mais de dois anos... 16, 17, 18, 19, 20... quatro
anos para a minha mãe dizer onde estava o meu pai. E aí ela falou que ele estava
em Minas, e eu fui conhecer meu pai, fui na casa de um tio, e me apresentei, aí ele
era um indígena preto, preto, preto, com o cabelo liso. E aí, combinei com ele e ele
falou: “não, você vai conhecer seu pai”. Aí ele falou para o filho dele me levar no
dia seguinte. Eu fui até um bar que meu pai estava jogando sinuca, quando eu vi
o meu pai, um cara de cabelo amarrado, cabelo de linho, uma cor assim que nem
a minha, mas mais vermelha. E aí quando eu cheguei, fiquei olhando assim,
procurando traços do meu pai nele.

Consegui achar, ele parecia um indígena. E depois eu me aproximei magrinha,


estava com um vestidinho e ele ficou me olhando e meu tio falou: “você conhece
ela?”. Ele falou que não. Aí meu tio “olha bem para ela”. Meu pai ficou me
olhando, me olhando e ele falou: ‘pega na mão dela”. Aí meu pai viu minhas unhas
grandes iguais as da minha mãe, meu pai falou assim: “o que que você é da
Patrocina?”. “Eu sou filha da Patrocínia. Eu sou a Deise, aquela que você largou,
eu tinha menos de um ano de idade, e nunca mais voltou”. Ele ficou me olhando e
eu falei: “por que que você não me criou? Por que você nunca me procurou?” Aí
meu pai falou: “a cadela tem os filhos, quem cria é o mundo!” Ah, Zezinho, para
que ele falou aquilo? E eu fiquei assim, sabe? Sem ação, sem nada. Não tive, assim,
só queria saber. Aí eu fiquei sabendo que o meu pai era muito mulherengo e que
meu pai ia casar. E eu tinha outros irmãos, que eu não conheci por parte do pai.
Eu tenho, acho que uns seis irmãos por parte de pai que eu não conhecia. E aí,

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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 61

soube que o meu pai ia ficar noivo e eu estava na casa desse meu tio. Acho que eu
conheci meu pai na sexta... na quinta, e meu pai ia ficar noivo no sábado.

Como eu não era de Deus, com 21 anos toda a juventude é rebelde, eu fui no meu
pai e eu vi a menininha bem novinha que era noiva dele. Fiquei só na espreita,
quando eu vi que estavam tudo lá perto do bolo, eu entrei, falei: “você vai casar
com esse cara aí? Esse cara aí eu sou a filha dele, viu?” Aí ele: “você é louca! Isso
aí é uma louca!”. Eu falei: “louca não! Eu não sou louca. Você não disse que a cadela
tem os filhos e quem cria é o mundo? Eu sou cria do mundo! Vem calar minha
boca”. Aí sai, né? Aí o pau quebrou lá entre eles e eu vim embora. E só fui ver meu
pai depois quando ele foi atrás de mim, conversar comigo e eu falei: “Não quero
saber! Você já fez a sua escolha, cara”. Meu pai tinha filho pra caramba, entendeu?
Devo ter irmão esparramado por aí pelo mundo afora. Anos depois, eu soube que
ele morreu. Então, esse é o pedaço do meu pai, entendeu? Então, eu não tenho
fotos dos meus irmãos por parte de pai, devo ter sobrinhos, sobrinhas, mas eu não
conheço ninguém. A única relação que eu estabeleci foi com a parte da minha mãe,
que eu acho que foi o sacrifício maior. Foi a dor maior de dar um filho. Então eu
tenho... Nós somos em três mulheres, eu sou a caçula, e três homens. Eu tenho um
monte de sobrinho, tem mais de 40 sobrinhos. E é a vida, né, cara? E eu sempre
ajudei meus irmãos, minha mãe biológica já falei isso há muitos anos, minha mãe
adotiva, meu pai adotivo também e, desde os 28 anos, eu sempre morei sozinha.
Fui criada sozinha, uma criança sozinha. Perdi minha mãe, depois perdi meu pai
com 28 anos e sempre vivi sozinha, entendeu? Sempre me virei sozinha. E aí, hoje
eu tenho entendimento, que eu acho que eu vim já preparada para essa missão de
fazer o que eu tenho que fazer sozinha, entendeu?

Novas agências contra o genocídio da juventude negra

Em 2011, eu recebi o convite da Rosário para vim trabalhar na Secretaria de


Direitos Humanos12 para lidar com casos que estavam na ONU e na OEA.
Participei da Conferência Mundial Contra o Racismo13, de audiências públicas na
OEA para falar sobre a questões socioeducativas e sistema prisional. E aí foi
quando a Rosário, já tinha participado de audiência pública no Rio Grande do Sul,
ela me conhecia, então me convidou para trabalhar. Os casos eram: Urso branco,

12 A Secretaria Especial de Direitos Humanos alcançou o status de ministério na primeira gestão de


Luís Inácio Lula da Silva, em alguns momentos essa natureza jurídica foi alterada. Extinto em
2016, só foi recriado em 2017. Deise refere-se especificamente à gestão da então Deputada Federal
licenciada Maria do Rosário (PT/RS), que ocupou a chefia do ministério entre os anos de 2011 e
2014.
13 Até o momento foram realizadas quatro conferências internacionais sob a organização das
Nações Unidades, nos anos de 1978, 1983, 2001 e 2009.

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62 Deise Benedito - Inara Flora Cipriano Firmino - Emília Joana Viana de Oliveira - Rodrigo Portela Gomes

Monte Cristo, Aníbal Bruno, que foi o que virou a minha dissertação de mestrado.
Fiquei lá na Secretaria de Direitos Humanos e meu acordo para eu ficar
trabalhando com ela foi que eu não ia deixar o movimento negro. Que sempre que
as pessoas me pedissem alguma coisa, uma participação, que eu ia continuar
participando. Ela falou que eu estava certa, e eu disse que um dia eu ainda volto
para a sociedade civil. Hoje eu estou governo, mas um dia eu volto e um dia a
sociedade civil vai falar você deu as costas e eu não quero dar as costas. Eu sou
muito crítica sobre isso. Aí eu fiquei lá na Secretaria, depois eu passei no processo
seletivo para ser perita do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura14, fiquei
quatro anos, fui a primeira mulher negra, a ser perita do mecanismo. Fui a primeira
mulher negra diretora de um departamento de promoção e defesa na Secretaria de
Direitos Humanos. Sofri racismo, porque uma vez eu cheguei para trabalhar,
mijaram na minha sala e saiu até na nota na revista Veja, na época. E tinha uma
disputa interna que tinha uma pessoa que queria ser diretora e era branca e não
aceitava que eu fosse diretora. Eu comi o pão que o diabo amassou. Quando eu ia
para as reuniões na Casa Civil, vinha aquela coisa de pegar sua mão pela metade,
ou então perguntar você trabalha na SEPPIR ou você trabalha na Palmares? Aí eu
tinha que dizer “não, eu sou diretora do Departamento de Defesa da Secretaria de
Direitos Humanos. Tudo bem com você?” E aí, aqueles impactos que eu vivi na
questão racial dentro da Secretaria, que eu vivi como perita do mecanismo, quando
eu ia em presídios junto com meus colegas a gente levava sempre a nomeação. Que
foi nomeado dando o protocolo da ONU contra a tortura e, geralmente, os
diretores chamava “a senhora é o que?”. “Eu sou perita, diretor!” Porque eu estava
no lugar errado, era pra eu estar atrás das grades, e não preocupada com o que
estava acontecendo dentro das grades.

Aí eu fiquei quatro anos, aí terminou o meu mandato, tinham pedido o meu


currículo para a Câmara e foi quando fui selecionada para trabalhar na segurança
do PSOL, onde eu continuo trabalhando com direitos humanos, relações raciais.
Faço os meus corre aí quando o povo me convida para falar aqui, vai falar ali, vai
falar acolá. E esse ano [2023], por exemplo, eu peguei uma maratona brava em
novembro. Eu fui falar em Minas Gerais, na conferência da OAB Federal; aí eu fui
agora para a Escola Superior da Magistratura do Rio de Janeiro; geralmente sou
sempre convidada para falar nas defensorias, porque eu fui parte do grupo que
criou a Defensoria Pública no Estado de São Paulo e ajudei na elaboração do
programa de criação do projeto da Defensoria, que teria vários órgãos e vários

14 O Mecanismo Nacional de Prevenção Combate à Tortura (MNPCT) é decorrente do Protocolo Facultativo


à Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura (OPCAT/ONU), vinculado ao Ministério de Direitos
Humanos. Deise ocupou a condição de perita, a partir de 2016 e 2019.

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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 63

setores, inclusive de discriminação racial e sistema carcerário; falei já em várias


escolas da Defensoria no Brasil, fora a pandemia e depois da pandemia; sexta-feira
agora eu falei no Instituto Rio Branco para os diplomatas negros formados e os
não-negros sobre relações raciais. E a minha vida é essa. Vocês vão lá no Instagram
para ver a agenda. E sem vínculo com nenhuma organização e assim eu estou
levando minha vida, né? Aí consegui fazer meu mestrado, graças a Deus, depois
de tentar seis vezes, conseguir entrar e agora vou tentar o doutorado, porque eu
estou esperando abrir as vagas para criminologia, porque eu quero continuar na
criminologia.

E aí, eu estou aí... estou na vida, gente, e estou na casa dos meus doces e leves
65...64, quer dizer, estou com 46 [risos]. Estou com 64 anos e não tenho
preocupação com idade, porque eu não sinto essa idade, a idade cronológica que
está no papel, mas a minha idade da cabeça é outra. E estou na vida, gente, então
essa é minha vida. Tem vários artigos publicados em vários livros, vários artigos
publicados. Comecei a escrever, em 2005, comecei a escrever, porque eu tinha
medo de começar a escrever e comecei a escrevendo sobre a construção da
identidade negra no Brasil, que foi a primeira publicação que falava sobre essa
construção, desde o tempo do processo da escravidão. Eu sou do direito, mas eu
amo a história, principalmente a história da escravidão e agora participei, também,
de uma formação no CNJ, no Conselho Nacional de Justiça, onde eu fui falar de
traficados à traficantes, que é o meu novo foco, onde eu discuto o tráfico de
escravos e a semelhança com o tráfico de drogas. Onde jovens que foram traficados
ilicitamente, após 1831, têm seus descendentes presos nas prisões na condição de
traficantes, da mesma faixa de idade. Então, agora eu estou discutindo isso é isso,
meninas.

Dossiê Direito e Relações Raciais: Obrigado por esse panorama que você já deu.
Nessa primeira fala você já trouxe muito do que a gente também ia abordar.
Tínhamos um bloco de perguntas sobre o período da ditadura, mas também
achamos interessante você destacar o diálogo com a Pastoral Carcerária, ao mesmo
tempo que você, como muitas interlocutoras da sua geração já faziam essa crítica
de que o marco de violência no Brasil não era a ditadura. E aí, considerando tudo
isso que já falou, a partir desse cenário na durante a ditadura, como é que você via
os principais desafios de organização da militância de São Paulo? Como aparecia
o mito da democracia racial ao mesmo tempo em que se tinha já um debate sobre
a estética negra muito forte? E queria, também, se você pudesse trazer um pouco
mais desse processo que você fala da agência de mulheres da construção do
Geledés. E por último, para fechar as caixinhas da ditadura, que você também
trouxesse algum marco do momento da redemocratização dentro do debate que

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você estava fazendo na agenda contra o encarceramento de jovens negros


acompanhando a organização de mulheres.

Deise Benedito:

A ditadura sempre existiu para os jovens negros

Bom, vamos dividir por parte. Na ditadura militar eu era criança, então eu morava
num bairro pobre, num bairro que tinha toque de recolher, que volta e meia
passava uma viatura preto e branca do DOI-CODI15 e eu não sabia o que era. Sabia
que tinha que entrar para dentro de casa e a criançada toda entrava para dentro de
casa. Então, a ditadura dos anos 67, 68, 69, eu era criança. Quando eu entro na
adolescência, a única coisa que eu me lembro quando eu estudava sábado, eu tinha
aulas de uma professora que era do OSPB, Organização Social e Política no Brasil,
e ela fechava a porta quando ela dava aula, porque ela falava várias coisas de
liberdades, do direito de se organizar, e não sei o quê, e a gente não entendia o
porquê ela fechava a porta. Só fui entender depois, porque era a questão da
ditadura. E quando eu era criança, quando a gente entrava na sala de aula, todo
dia de manhã a gente tinha que jurar bandeira. Tinha que fazer fila, com a mão no
peito, cantar o Hino Nacional e jurar fidelidade à bandeira brasileira.

E na década de 70, quando o Brasil ganhou o campeonato, a gente via um monte


de carro com aqueles adesivos “Brasil, ame-o ou deixe-o", e aí todo mundo punha
em casa aquele adesivo na parede da porta da casa. Eu não entendia o porquê, mas
na minha casa tinha. Entendeu? Então, eu não vivi esse período. Eu era criança
nesse período mais tenso da ditadura militar. E aí, até os 14 anos, eu não entendia.
Eu via, às vezes, a polícia passando, mas onde eu morava a polícia sempre passou,
porque eu morava em uma boca, então, não era muito diferente a polícia estar
sempre lá. E eu só fui despertar, só fui entender as coisas que estavam acontecendo,
com meus 18 anos, quando a gente via o pessoal da igreja se organizando, aquele
Comitê Eclesiástico de Base, como eu trabalhava num bairro que tinha uma fábrica
que era uma siderúrgica, sempre expelia muita fumaça e o pessoal e as mulheres
se organizavam. As mulheres começaram a se organizar em torno de denunciar
essa fumaça e era sempre depois da missa, porque depois todo mundo ia pra casa
porque tinha medo. Depois que eu fui entender que era medo da ditadura militar,
de ser preso, de ser denunciado pelo DOI-CODI. E o DOI-CODI era depois da
Imigrantes, perto da 35, que era mais ou menos perto de onde eu morava. Então,
eu não tive, entendeu? Eu só lembro que uma vez a gente fez uma manifestação

15 Departamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna, foi um dos


principais aparelhos estatais de inteligência e repressão da ditadura civil-militar.

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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 65

pedindo passarela lá na Imigrantes, porque morria muita gente atropelada e eu fui


para a manifestação e eu falei: “tem que ter passarela aqui, porque se não tiver, vai
matar mais gente”. E o meu pai ficou apavorado, falou: “Pelo amor de Deus,
menina, para com isso, de repente, se a polícia pegar e eu não vou te tirar”.

Mas eu não entendia direito a causa, mas era a ditadura militar. Então, a minha
infância, adolescência e a entrada na idade madura, ficando mocinha, era a
ditadura militar. Quando eu passo a frequentar as reuniões de Geledés, quando eu
passo a frequentar as reuniões do Movimento Negro, foi a questão das Diretas-Já
e eu fui para as Diretas-Já, porque todo mundo dizia que era a democracia, que
teria direito de votar, que era o fim da ditadura. Foi quando eu fui despertando
para entender melhor essa ditadura, porque morte sempre teve na periferia,
entendeu? Tortura sempre tinha nas delegacias, então, para quem era da periferia,
para os jovens negros da periferia, ditadura sempre existiu. Era a ditadura mais os
grupos de extermínio, eles atuavam em conjunto. Está lá o Caco Barcelos não me
deixa mentir. Hoje o livro “A fé e fuzil: crime e religião no Brasil do século XXI”,
do Bruno Paes Manso, também não me deixa mentir, entendeu? E aí foi quando eu
vi as primeiras manifestações, eu participei das manifestações pelas Diretas-Já, eu
ia, eu achava maravilhoso aquele célebre comício no Anhangabaú com mais de
30.000 pessoas e eu estava. Então, eu começo a engajar ali.

Mulheres negras interrogando o feminismo

Agora a discussão de Geledés, que era mais voltada para a questão das mulheres,
começa também a se discutir as questões do feminismo e a crítica ao feminismo
branco se deu a partir de 1988, na fundação de Geledés. Mesmo dentro do
Conselho Estadual da Condição Feminina16, que as mulheres brancas discutiam os
problemas de classe média, discutiam a questão de trabalho, de violência, mas não
falavam da questão racial. Foi quando o grupo de mulheres negras dentro do
Conselho resolveu sair e fundar o Geledés para realmente ter um ponto de
marcação real mesmo sobre a questão das mulheres negras, que não era uma coisa
que passava pelas mulheres brancas, feministas e a grande maioria de classe
média. Então, essa é uma coisa que vem desde os anos 1980. Um outro detalhe
também interessante era a questão do fenômeno da mulatização. Então, mulheres
que tivessem o tom da minha pele, eram consideradas mulatas. Então, eram as
mulheres altamente sexualizadas, bonitas, eram mulatas e não eram morenas, cor
de jambo, cor de chocolate - eram as mulheres negras. Aí você tem, nesses mesmos
anos 80, o fenômeno da mulatização das mulheres negras, e da hipersexualização

16 Foi o primeiro órgão governamental de gênero criado no país em 1983. Disponível em:
https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=448646. Acesso em: 14 jan. 2023.

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das mulheres negras aliado com o fenômeno da xuxalização, da branca, loira, dos
olhos azuis, que era a beleza respeitável e as mulheres negras que eram comestíveis
e duráveis. Se vocês pesquisarem, vocês vão ver “as mulatas do Sargentelli”, e aí
tinha esse produtor musical, que tinha as boates no Rio e São Paulo, que punha as
mulheres negras para sambar, para dançar e ser mulata do Sargentelli.

Na minha época também era uma questão de status, porque eram mulheres
bonitas, que sambavam e ganhavam muito dinheiro, mais do que as outras. E tinha
aquelas que trabalhavam em fábricas e à noite como mulata do Sargentelli para
ajudar com o dinheiro dentro de casa. Então, também teve esse fenômeno que eu
acho que não é muito estudado. As pessoas vão atrás de outras coisas, mas esse
fenômeno da mulatização, dos anos 70 e 80, seria interessante que o pessoal
começasse a se debruçar nessa questão do que foi as mulatas do Sargentelli, a
mulata e a desconstrução do mito da mulata. Não é só a palavra misturada de
mula, mas o que vem junto com essa mulata? Quem é essa mulata? Como é que eu
passo a desconstruir essa mulher negra? Como é tornar-se uma mulher negra,
deixando-se de ser mulata? Eu acho que é isso... dá até para fazer um artigo, deixar
de ser mulata, tornar-se uma mulher negra, e eu acho que esse é um dos grandes
fenómenos. E essa construção do feminismo, quer dizer, o direito ao aborto, o
direito pelo próprio corpo, o mercado de trabalho (...).

E uma das coisas, também, que é muito interessante, se vocês quiserem


aprofundar, foi, nesse período de 1988, o Osmar Coutinho, um médico baiano que
começou a propor que as mulheres fossem esterilizadas na Bahia, a esterilização
de mulheres negras. Vocês podem pesquisar a esterilização de mulheres negras na
Bahia, nos anos 80, vocês vão achar alguma coisa escrito sobre isso. Luiza Bairros,
Sueli, Fátima Oliveira – que já faleceu. É um pessoal que debruçou muito sobre
esse programa de esterilização de mulheres negras na Bahia, que veio travestido
sobre uma política pública, quando as mulheres estavam querendo discutir o
planejamento familiar, o uso da pílula, a questão da AIDS. Quer dizer, foi muita
coisa dos anos 80 para os anos 90, foram os anos para o movimento de mulheres
que tudo vinha à tona. Então, era a discussão de mercado de trabalho, questão da
sexualidade, a questão do uso da pílula, a questão da AIDS. Então, se vocês
colocarem mulher negra e AIDS, vocês vão achar um monte de coisa produzida
nos anos 90. Mulher negra e planejamento familiar, um monte de coisa produzida
nos anos 90. Então, o que eu sinto às vezes falta, é que eu não vejo muita coisa lá
atrás. Parece que tudo passa a acontecer a partir de 2005 para cá, sabe? Aí você fez
o mundo. E tem muita coisa boa, muita tese, muita coisa, muito artigo, muita coisa
produzida por mulheres negras lá atrás. E que isso deve ser porque vocês não
chegaram aqui à toa. Vocês não chegaram como vocês chegaram. Vocês chegaram

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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 67

porque alguém chegou antes e alguém que chegou antes, chegou antes daquelas
que chegaram antes de vocês, então, tem muito esses detalhes que eu acho
interessante se observar.

E dentro dessa questão da ditadura militar, pouco se falava... e eu era uma das
mulheres negras que frequentava a discussão de direitos humanos, que era uma
discussão branca quando eu estava em Gelédes. E aí eu comecei a pensar que eu
tinha que aprender como os brancos fazem para mim poder fazer. Então, eles leem
tal livro, eu também vou ler. Só que eu vou ler pela ótica racial, entendeu? Eu vou
ler pela ótica de raça o que os brancos leem sobre direitos humanos. E aí eu começo
a fazer muitas críticas aos direitos humanos. Uma das críticas que eu falo é que
enquanto estava lá no Égualité, Fraternité e Liberté, nós aqui estávamos a se “fuder”,
porque estava chegando escravizados aqui no Brasil, em 1789. As maiores cargas
de africanos para serem escravizados estavam aqui e na Carta da Declaração de
Direitos Humanos não se fala da abolição da escravidão. Você tem a carta do
Keita17, de 1222, escrita no Império do Mali, a carta dos caçadores, que foi traduzida
pela Unesco, que ele vai descrever o que são os direitos humanos. E qualquer
semelhança não é mera coincidência, as pessoas foram lá e chuparam mais de 20
artigos dessa famosa Carta Mandinga. Mas eles não falam sobre. O mundo se dá a
partir do João sem Terra, que vem 1250, e a Cara Mandinga foi datada desde 1222
e foi na África, no Mali. Então, né, uma visão eurocêntrica de direitos humanos
jamais vai se debruçar sobre uma visão africana de direitos humanos.

E aí, a essa altura do campeonato, eu fui buscando outras coisas. Então, tem
relações com o movimento de mulheres brancas que me conheceram desde jovem,
e tem algumas delas que, realmente, foram muito parceiras no movimento negro,
que não só denunciaram o racismo, mas apoiaram que as mulheres negras
tivessem uma posição mais firme diante a questão racial, que é o fator crucial. Lélia
Gonzales, eu não vou discutir... Eu não a conheci, infelizmente, mas ela já falava
de interseccionalidade, então, eu não vou beber Kimberle, eu vou beber Lélia, cara.
Sabe? A questão do Quilombo, eu vou beber Neusa, que é a primeira mulher negra
que vai falar de Quilombo no Brasil, que faz uma discussão sobre território no
Brasil. Então, eu sou uma pessoa muito crítica, porque nós temos uma produção
intelectual negra extraordinária! Extraordinária dentro das condições que as
mulheres negras viveram e vivem, e todas as dificuldades. Então, quando a gente

17 Sundiata Keita, de acordo com a tradição oral pertencia ao povo Mandingo e nasceu final do
século XII na região do atual Estado Guiné. A Carta (oralidade) do Mandinga é assim considerada
uma das primeiras declarações de Direitos Humanos. Disponível em: https://www.dw.com/pt-
002/sundiata-keita-o-lend%C3%A1rio-rei-le%C3%A3o-que-governou-o-imp%C3%A9rio-do-
mali/a-43523048. Acesso em: 14 jan. 2024.

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passa pela Conferência de Durban18, quando a gente vai para a Conferência


Mundial Contra o Racismo, as mulheres negras já vêm com uma pauta que envolve
saúde, moradia, educação, salário, igualdade, direito ao aborto, direito... As
mulheres negras saíram já com uma pauta em grupo, então, o sinalizador da
Conferência Mundial Contra o Racismo foi o Movimento de Mulheres Negras de
um lado e o Movimento Negro do outro. Então, a questão das reparações passa
por uma série de coisas.

Há muito para a população negra enfrentar e viver...

Então, a gente tem sempre tem esse olhar. A questão da sexualidade negra das
gays, dos gays, das lésbicas, das trans, isso tudo passa por uma coisa mais nova,
mas já no Movimento Negro isso foi sempre discutido e discutido com cuidado,
porque, querendo ou não, o que vem primeiro a questão racial ou a questão sexual?
E aí você vai ouvir falar “o Movimento Negro foi homofóbico, é homofóbico”. Eu
acredito que em determinadas situações, realmente foi homofóbico, porque,
primeiro as nossas condições de vida, de sobrevivência, passam pela cor da nossa
pele. E agora é agregar com a desigualdade o fato de ser lésbica, ou ser gays, ou
ser trans. Isso são agravantes a questão de ser negro. Agrava muito mais ainda no
ponto de vista do preconceito, da discriminação. Obviamente que de 10 anos para
cá, a questão mudou muito. Você tem muito mais a discussão sobre sexualidade,
a questão racial. Você tem o auxílio da internet, que é a tendência das coisas, a
evoluírem. Não regredirem, a gente tem a regressão do racismo, por conta do
empobrecimento de muitos brancos de classe média. Que não aceitam ser
empobrecidos ou ficar numa situação pior. E você vê um crescimento de uma
“pseudo”, que eu chamo de “pseudo” classe média negra. Porque, para mim,
negros de elite tem que ter fazenda; tem que ter ações em quais empresas da
Nasdaq; aqui no Congresso quantas vezes vem, qual a influência desses negros
dentro dos lobbys, junto aos deputados federais para fazer passar a proposta das
suas empresas? A gente não tem isso, cara. Então, a gente não tem uma elite, a
gente tem uma população flutuante em ascensão devido às cotas nas
universidades. Não se tem, ainda, nítido como está o mercado de trabalho para
que possamos ter negros daqui 30 anos com fazendas, produzindo, exportando,
para a gente poder chegar a dizer que nós temos uma elite negra. Sou muito clara...
nós não temos uma elite negra, nós temos negros vivendo em situações
confortáveis em relação ao que viveram seus pais, seus avôs, seus bisavôs. Mas

18 Dentre as já citadas conferências está foi a terceira edição, realizada em 2001. É apontada por
muitas ativistas e intelectuais como um marco da articulação de mulheres negras, pois
possibilitou ampliação de uma agenda antirracista na América Latina a partir do protagonismo
das mulheres negras.

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elite, elite, não. Eu não considero! Uma coisa é elite de internet, vai na casa dos
outros que é rico, fica tirando retrato, posta na internet fazendo pose. Na vida como
ela é, está pegando o “busão”, está pegando o Uber, está lá no sufoco comendo no
bandejão, então, é isso. E você tem muito isso. Você entendeu? É, cara, porque o
gostoso de ter vivido... esse ano completo 40 anos de movimento! 40 anos de
movimento! Então, quando você está em 40 anos de movimento, mais nada te
abala, entendeu?

Então, quando o povo fala “a, elite negra”, eu olho assim... mas quantas fazenda
tem a criatura? Quantas empresas ele tem? Quantas fábricas? Como que ele
contribui com os meios de produção? Onde tem os meios de produção, cara? Sabe?
Não detém nada! Não tem poder nenhum, sabe? É essa a realidade, que é a
realidade que se vende do sonho americano. Pior que é o sonho americano. E eu
que estive nos Estados Unidos, já fui para lá já algumas vezes, eu digo pra vocês
que com tudo, com tudo, é muito difícil ser negro nos Estados Unidos. É muito
difícil. Não é fácil. [você estava lá, né, Inara?] Né... você vê que ali o buraco é mais
embaixo, não dá para ser preto nos Estados Unidos. Uma coisa é o que eles vendem
nos cliques. Uma coisa é Nelson Rodrigues, a vida Como Ela É, né? Você vai no
Harlem, a casa só tem um quarto, sala e cozinha. Por isso que o povo só fica na
escada, porque não tem espaço dentro de casa, você está entendendo? Então a
extensão da casa é a calçada. Então, a gente tem essa impressão, esse desejo... Existe
uma construção de um desejo e nessa construção desse desejo a gente tem que ter
sempre muito cuidado quando a gente consegue esse desejo.

E a outra coisa que você me perguntou da democracia, sobre como entra a questão
racial... a questão racial entra pelo PT. Já entrava na década de 30 nos partidos
políticos, mas ela passa a ter mais força dentro do PT, mas aí começa a criar aquele
conselho da comunidade negra, conselho de promoção de igualdade racial,
secretaria... Porque antes pegava os pretinhos “ah, não, a gente é a favor do fim do
racismo”. Aí abriu a Secretaria da cultura para colocar os pretinho tudo na cultura
como se fosse só pra criar, sair batendo bumbo. Aí, com o passar do tempo, com a
criação dos conselhos de comunidade negra e a transversalização, mesmo que
goela abaixo, da questão racial obriga, os outros partidos, mas isso não quer
dizer...a gente tem que ter esse cuidado quando a gente faz essas avaliações. Uma
questão para falar para vocês que eu considero importante, a questão de se falar
das drogas do sistema prisional é novo. Entendeu? É novo... todo mundo está
discutindo isso, mas é novo. Há 10 anos atrás não se discutia. Eu que era doida de
ficar falando de droga, de falar de prisão, entendeu? Mas não se fala e agora que
está se falando, agora que ganhou a coisa do encarceramento, não é? E eu sempre

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falo, encarceramento acontece desde um momento que o primeiro navio ancorou


na Costa Africana e lá começou... é essa linha.

Você me perguntou outra coisa... deixa eu lembrar. Foi democracia, processo de


democratização como é que foi a questão dos partidos políticos, como foi a questão
das mulheres negras. E eu acho que também tem um outro detalhe o Movimento
Negro, ele não discutia, as mulheres romperam, abriram as portas para discutir a
questão das mulheres nos Movimentos Negros. Então, foram vários
enfrentamentos: primeiro enfrentar as feministas clássicas que queimaram sutiã;
depois enfrentar o Movimento Negro, os homens dizendo “o racismo nos agride
muito mais do que às mulheres”; e hoje você tem essa abertura, mas existe ainda a
resistência. Vide, eu que trabalho na Câmara, que vejo hoje a questão da violência
política, como é que são atacadas as mulheres negras, como são desqualificadas,
quando são desmotivadas. E é esse enfrentamento na política, porque é o não
lugar. Esse é o não lugar, “era pra você estarem lavando, passando, cozinhando,
vendendo cachorro-quente. Vocês estão querendo discutir política?”. Só que eles
esquecem que ninguém mais do que as mulheres negras podem falar de política,
até porque a nossa vida sempre foi negociar. E se política é o ato da negociação, foi
o que a gente sempre fez com muita habilidade. Essa que é a grande questão, o que
nos mantém viva é isso e a questão da religiosidade, as religiões de matriz africana
que explodiram, nos anos 90, com os primeiros ataques nos anos 80 para os 90,
com a expansão do narcotráfico. Então, hoje o que o TCP faz, o Terceiro Comando
Puro, que é um racha da Falange Vermelha, que é um racha do Comando
Vermelho, já acontecia lindamente nos anos 80, quando já se invadia os terreiros.
Só que agora você tem internet, então o pessoal filma as coisas que estão
acontecendo. Mas sempre aconteceu lindamente, então nunca foi (...) E então é isso,
entendeu? As condições hoje são outras. Então a gente fala sobre essa ótica!

Dossiê Direito e Relações Raciais: Deise, eu posso fazer só mais uma pergunta, e
aí a gente encerra? Mas se você estiver cansada, eu posso mandar por áudio e você
pode me responder depois. Pode ser sincera, por favor.

Deise Benedito: Já estou aqui, vai já que está gostoso, deixa.

Dossiê Direito e Relações Raciais: Eu queria, na verdade, que você amarrasse toda
essa narrativa que você fez, principalmente pensando na construção histórica.
Porque você fala que foi se construindo dentro do Movimento Negro antes de
chegar no Movimento de Mulheres Negras, por uma situação vivida ali de
discriminação. Depois o movimento de mulheres negras e agora você está mais
institucionalmente, sem estar atuante em algum movimento social. E aí o que eu
queria é que você amarrasse como você percebe toda essa construção. Por exemplo,

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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 71

você traz o quanto o Geledés e o Movimento de Mulheres Negras foram


importantes, por exemplo, aqui em São Paulo, para a construção da Defensoria
Pública. Então, é um pouco essa ideia de falar sobre a importância do movimento
de mulheres negras, a importância do movimento negro para a formação de
algumas instituições e o quanto a agenda de Durban, e outras agendas, chegam a
institucionalidade? Como isso afeta a institucionalidade para a promoção de
políticas públicas, para a atuação das instituições perante a população negra para
a garantia de acesso à justiça, para a efetivação de direitos humanos, em uma
perspectiva que de fato atenda a população negra, a população encarcerada?

Deise Benedito:

Uma vida pelos direitos...

A minha história de vida ela é baseada em relação de direitos humanos. Quer


dizer, não me foi garantido, não foi garantido a minha mãe condições para me criar
depois da separação. Não foi garantida a minha avó condições de vida para criar
oito filhos. Não foi garantida a minha bisavó. E eu estou falando por parte de mãe
e acredito que por parte de pai também. Não houve garantias. Então, a grande
sequela do processo escravista que é a falta de qualquer aparato material para
sobrevivência digna dessas pessoas, levou, assim como a minha mãe, várias
mulheres a dar seus filhos para que eles pudessem viver, num ato de amor. Eu falo
porque a minha mãe, quando me deu, foi um ato de amor. E a minha mãe branca
que me acolheu também foi um ato de amor, porque ela desafiou todo um processo
de racismo imposto e que ela, talvez, nunca tivesse imaginado que ela iria viver
adotando uma criança negra. Então, quem adota uma criança negra, tem que estar
muito bem-preparado para os enfrentamentos que vai ter na escola, na vida,
dentro da família e no cotidiano. Então, o preço que a minha mãe de criação pagou
foi caro, porque a família dela branca, descendentes de italianos, todos eles se
afastaram dela quando ela adota uma criança negra, sendo que ela poderia ter
ditado uma criança branca. Então quer dizer, eu vivenciei os dois lados, o efeito
do racismo, dos dois lados: o sofrimento da minha mãe biológica, de ter que dar
uma filha para que essa filha vivesse e que ela ficasse sofrendo, “nem que eu sofra
de saudade e de vontade de ver, mas ela está viva”. E a minha mãe de criação de
enfrenta o racismo, discriminação “mas ele é preta, mas ela é minha filha”, que era
o desejo da maternidade, de concretizar a maternidade. Então o racismo ele
perpassa nessas 2 questões da minha vida.

E aí, quando eu estou dentro do movimento que eu consigo perceber para além
daquilo que é demonstrado, a pobreza, as mulheres como empregadas domésticas,
as mulheres naquela vida de mendicância, as mulheres... me abre que eu não quis

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ser empregada doméstica. Eu fui incentivada pela minha mãe branca, a não ser
quando dizia “vai estudar”. Porque ela tinha uma visão ampla, ela falava “vai
chegar um tempo que para ser lixeiro, vão pedir diploma”. São mais de 40 anos,
entendeu? E hoje a gente vê isso. Então ela era uma mulher visionária e por um
lado, essa forma dela ser uma mulher visionária, que estudou até o quarto ano,
quando a minha mãe negra era analfabeta, ela já estava muito na frente, porque
ela tinha condições de ler, de ver, compreender e interpretar, coisa que a minha
mãe biológica não teve condições. E não foi porque quis. Então, quando eu
atravesso, quando a minha vida, a minha infância foi perpassada pela
desigualdade, pela questão de oportunidades de ter sido criada com a minha
família, quando eu dentro para escola, quando eu convivo desde criança com a
discriminação pela cor da minha pele, entendeu? Quando eu bebi cândida [água
sanitária] para ficar branca, porque uma vez uma menina japonesa disse “quer
ficar branca? Você fica branca tomando cândida”. E minha mãe foi parar comigo
no pronto socorro, desesperada, pensando que eu ia morrer. Então, tudo isso a
questão racial, a cor da pele sempre foi um fator determinante para mim. Em todas
as escolhas da minha vida. De ser preterida para ter namorado, de ser preterida
para ter um bom trabalho, de ser preterida. Então, isso foi me levando. Quando eu
sofro, e não existe acaso, se eu cheguei aonde eu cheguei, eu devo àquela senhora
japonesa que disse para mim que eu não podia trabalhar, porque eu era de cor e
que a empresa não pegava pessoas de cor.

Então eu fui naquele meu rompante de já saber que existia o racismo, eu já sabia
que tinha discriminação, mas eu não sabia que tinha movimento. E foi nesse vácuo
que eu entro. Então eu entro a partir da minha indignação. Então, a minha
indignação é que... a indignação da minha mãe biológica que fez ela me dar; a
indignação da minha mãe biológica, que fez, desde criança, eu entender a questão
do racismo e, mais uma vez, o fator determinante da discriminação. Então, quando
falei para vocês que eu vejo o movimento e eu nunca... Às vezes eu me vejo
olhando lá para trás, e eu nunca imaginaria 40 anos atrás, eu nunca ousaria
imaginar que o movimento negro chegaria no apogeu que ele chegou hoje. A gente
teve conquistas extraordinárias. Extraordinárias de não só denúncia pela
denúncia, denúncia com proposta. Nos anos 70, denunciava; nos anos 80, já
começo a propor; nos anos 90, denuncio, proponho e avalio. Você está
entendendo? Isso tudo é crescimento. Hoje eu tenho a denúncia, eu faço a
proposta, e faço avaliação, eu reconstruo e eu desconstruo. Entendeu? Nós estamos
numa fase de construção e de desconstrução o tempo todo.

A Dulce tem me acolhido no dia que eu fiz a denúncia foi fantástico. Eu nunca
tinha falado em público, sabe? Então foi fantástico, porque a Dulce, eu sou muito

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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 73

grata a ela, quando eu encontro com ela, ela vem, me abraça, e eu falo assim
“obrigado”, porque há 40 anos atrás ela pegou uma menina de 23 anos, que
morava num bairro de periferia, que o máximo que poderia ser era auxiliar de
escritório. O máximo era eu ser uma auxiliar de escritório, entendeu? Então, eu
não vislumbrava fazer universidade, porque eu achava que não era meu lugar,
assim como várias meninas da minha idade achavam que a universidade era
muito, muito, muito distante de nós. Então, eu conheço o Geledés, eu conheço
Sueli, eu conheço todas essas pessoas que passaram na minha vida, eu sou muito
grata, porque eram mulheres que liam. As reuniões que a gente fazia, que eu
participava, elas punham o texto na mesa e começavam a discutir aquele texto. E
eu ficava só ouvindo, depois eu ia buscar saber o que é que elas estavam falando,
que eu tinha vergonha de perguntar e falar errado. Porque eu também falava
muito errado. Entendeu? Era muito maloqueira mesmo e falava muito errado,
então, eu fui aprendendo a falar, aprendendo a observar momento de fala, sabe?
Eu fui, aprendo, foi tudo um aprendizado para mim. Então estar em Geledés foi
uma puta de um aprendizado, sabe? Conhecer Edna Rolan, conhecer Sueli, conheci
Diva Moreira, conheci pessoas maravilhosas e sempre ouvindo essas mulheres. A
história que você fala hoje, de ouvir os mais velhos, eu sem saber, sem elas falarem
isso de ouvir mais velhos, eu ouvia, porque eu estava em um processo de
aprendiza como até hoje.

Eu sempre que falo que eu não sei tudo. Eu estou em um processo de aprendizado
e esse processo de aprendizado me permitiu compreender a questão do
feminismo, o que é feminismo? O que é igualdade? De que igualdade a gente está
falando? Eu fui aprendendo isso. Quando você vem da periferia, a gente age, a
gente é feminista nata, mas não com conceituações do feminismo. Quando é da
periferia, é feminista, cara! Trabalha, leva os filhos para a escola, faz salgadinho,
vai de diarista, divide, racha e tal, porra... A mulher é feminista; é política, porque
tem uma habilidade na negociação, só que não tem o conceito e sabe que sofre
discriminação, porque ninguém fala pela que ela sofre de interseccionalidade.
Entendeu? Ela sabe que ela está ferrada se ela não fizer o corre. E eu sou uma
mulher que veio dessa base da periferia, tanto que eu nunca vou cuspir no prato
de onde eu vim. Conheci minha mãe biológica morando em um barraco. Não dá
pra mim “eu sou intelectual, sou mestre”. Sou nada! Você está entendendo? Então,
essa que é a questão. A mosca azul nunca me picou, sabe, de achar que eu sou
melhor do que ninguém, não. Estou em fase de aprendizado.

E aí, quando a gente está nesse movimento de mulheres, que você vê outras
mulheres falando, trazendo suas experiências, o grande choque que sempre teve
no movimento de mulheres é questão de classe. E que se reproduz no movimento

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74 Deise Benedito - Inara Flora Cipriano Firmino - Emília Joana Viana de Oliveira - Rodrigo Portela Gomes

de mulheres negras, as acadêmicas e as não acadêmicas. Como ficam as meninas


que estão na universidade e aquelas que não estão na universidade, que são
quebradeira de coco e que são.... percebe? E que, de repente, essas mulheres têm
uma experiência extraordinária, mas a questão da divisão de classe é que faz esse
divisor e aí a gente acaba reproduzindo a mesma coisa do movimento feminista.
A empregada doméstica que se organiza não tem menor valor do que as
intelectuais que se organizam para discutir violência contra a mulher. Mas aí,
quando você discute a violência de mulher, você discutir a violência contra as
mulheres brancas, você não discute o impacto da violência das mulheres negras,
porque quando aquela mulher negra é esmurrada por aquele marido negro, que é
alcoólatra ou usuário de drogas, aquele marido, ele reproduz aquilo onde ele foi
criado. Ele é adoecido pelo racismo e pela violência. E ele vai descontar naquela
mulher, porque é assim que ele aprendeu, entendeu? O branco, não. O branco não
tem que disputar com outro branco. Ele é branco e vai continuar branco e não vai
ser discriminado e ele soca a mulher dele sim, quantas vezes ele quiser, mas ela,
por ser branca, ela tem a proteção institucional. A luta por ser negra não tem essa
proteção institucional.

Se alguém fizer um levantamento de quantas mulheres negras têm denúncia e


porque demora tanto para sair as medidas protetivas? Elas saem mais para as
mulheres brancas ou para as mulheres negras? As mulheres brancas de classe
média que são socadas pelos maridos, elas logo vão para a casa de um parente,
onde tem proteção e as mulheres negras têm um parente ou a proteção necessária
para se esconder e não serem mortas? Quer dizer, qualquer lei que protege uma
população em geral, nós temos sempre que fazer um recorte racial. Mas e as
mulheres negras? Mas e a Juventude negra? Mas e as deficientes físicas negras?
Porque você tem um tratamento diferenciado. Então, quando o Movimento Negro
se organiza, as mulheres negras se organizam, não rompe, mas fala-se “não! Tudo
bem, as brancas têm essa pauta... até aqui a nossa pauta é igual, só que a nossa
pauta entra isso, isso, isso e o nosso, quem tem que falar disso somos nós”. Somos
nós que sofremos de violência obstétrica. Somos nós que estamos lá e que ficamos
três, quatro horas para dar luz, sentindo dor, porque vocês têm planos de saúde
da melhor qualidade. Vocês têm condições de pagar um plano de saúde? Nós não
temos. A gente vive de SUS.

Então, quando a gente vê isso, a gente discute essa questão do feminismo, veio
essa onda do feminismo negro e aí às vezes eu fico com medo, porque você, para
discutir o feminismo, primeira coisa que que você tem que ser, você é mulher, você
é negra, você é feminista negra, mas as feministas também... que inferno, que
inferno é esse? Que coisa chata esse feminismo de mulher negra é muito chato,

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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 75

gente. Olha, eu tenho sim que politizar as mulheres pelos seus direitos. Eu tenho
que levar informação sobre os direitos que todos nós temos, agora, compreender,
fazer que elas aceite que o feminismo, ele é a base e a base do feminismo é branco
e nós temos que criar um feminismo...Então, o que que a gente faz com o
feminismo da Irmandade da Boa Morte da Bahia que tem mais de 200 anos? O que
eu faço com a Irmandade da Boa Morte? As mulheres se organizaram para
comprar carta de alforria, em 1830. Era escravizada e essas mulheres foram para a
rua para juntar dinheiro para poder enterrar os filhos e o marido com dignidade.
A Irmandade da Boa Morte que foi a primeira organização das mulheres negras
no país abolicionista. Se isso não é feminismo, me diz o que é? Se isso não é
autodeterminação dos povos, você me diz o que que é? Se isso não é autonomia
sobre um processo escravista que você tinha dono e você resolve fazer tudo isso
numa organização que está aí 200 anos, então me diz o que é? Então, eu tenho às
vezes medo, principalmente das lideranças que surgem na internet. E veio muita
liderança na pandemia, viu? Eu vi, às vezes, umas lives que eu ficava até com
medo, mas é umas lideranças assustadoras, mas eu falo dessa questão de como é
para nós mulheres negras.

E aí, para eu amarrar tudo isso, eu amarro, assim: a minha história de vida, ela
perpassa pela história do Movimento Negro em busca de direitos. Eu tenho a
minha vida cercada pela busca de direitos e de me firmar enquanto pessoa,
enquanto mulher, enquanto negra, enquanto uma pessoa que não casou, que não
teve filhos, e que tem uma opção sexual de ser hétero. E pago o preço das minhas
escolhas, porque tudo tem um preço. É assim que eu amarro tudo isso e hoje as
pessoas me convidam sem eu estar numa organização, porque eu acredito na força
desse movimento e eu estou nesse movimento sem estar no movimento. Eu sou
uma pessoa em movimento, sem estar necessariamente no movimento. Então,
quando eu sou convidada para vim, eu falo, eu não vou renunciar ao movimento.
Eu não preciso estar vinculada a uma organização para defender uma bandeira.
Eu não preciso estar em uma frente de desencarceramento para defender o fim do
encarceramento. Eu não preciso de estar numa plataforma de política de drogas
para dizer que eu sou antiproibicionista, que eu sou abolicionista penal.

Então, eu acredito que eu não estou tecnicamente vinculada, mas eu sou vinculada
a todas as organizações. Eu estou em todas e todas estão em mim. Eu acho que,
resumindo, é isso. Todas as organizações estão aí, eu estou em todas as
organizações, porque elas estão dentro dos meus princípios naquilo que eu
acredito, que é aquilo que eu considero importante. Então, eu acho que se eu
aprendi uma coisinha assim nessa vida de 40 anos, a minha obrigação é devolver.
O que eu sei, eu tenho que devolver, tanto que eu não cobro palestra. Eu não cobro.

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76 Deise Benedito - Inara Flora Cipriano Firmino - Emília Joana Viana de Oliveira - Rodrigo Portela Gomes

Se me disser “Deise é só passagem, é um quartinho”, beleza! Eu estiro a minha


esteira e tá lindo! E vou fazer o que eu faço. É a minha obrigação e é uma obrigação
diante do que a vida me deu, que eu poderia ter sido morta, eu poderia ter sido
presa, eu poderia ter filhos presos, eu poderia ter filhos assassinados. E eu não
tenho nada disso. Então, é minha obrigação exatamente lutar por aquilo que eu
não me transformei, pelo fim daquilo que eu não me transformei. Acho que esse é
o meu compromisso que eu tenho com a vida. Meu compromisso é com a vida.
Tanto que as minhas apresentações, meus slides, eu sempre entrego para usar, “oh,
faz aí o que vocês quiserem, pode usar”, porque eu acho que, assim como a vida
me deu a condição de chegar aonde eu cheguei hoje, eu tenho obrigação de fazer
isso. É a minha obrigação! Tudo o que eu vivi nesses 40 anos, eu não faço mais do
que a minha obrigação de ouvir pra aprender, e, o pouco que eu aprendi, passar
para frente. Isso é uma obrigação minha. E é não é isso. Acho que é isso.

Dossiê Direito e Relações Raciais: Obrigada, Deise! Foi ótima a sua fala.

Referências

“O PROCESSO DE ESCRAVIZAÇÃO DEIXA SEQUELAS ATÉ HOJE”, DIZ


ESPECIALISTA NO CURSO DE FORMAÇÃO DE NOVOS DEFENSORES.
Defensoria Pública do Estado do Ceará, 19 jan. 2024. Disponível em:
https://www.defensoria.ce.def.br/noticia/o-processo-de-escravizacao-deixa-
sequelas-ate-hoje-diz-especialista-no-curso-de-formacao-de-novos-defensores/.
Acesso em 31 jan. 2024.

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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 77

Sobre a entrevistada e os/as


entrevistadores/as
Deise Benedito
Fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra e do Fórum
Nacional de Mulheres Negras. Atualmente é Assessora Técnica na Área
de Segurança Pública e Direitos Humanos da Liderança do PSOL, na
Câmara Federal dos Deputados. Foi membro da Fala Preta Organização
de Mulheres Negras e assessora técnica da Ouvidoria Nacional de
Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos, vinculada à
Diretoria do Departamento de Promoção e Defesa da Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República. Ex-Perita do
Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, vinculado ao
Ministério de Direitos Humanos da Presidência da República. Graduada
em Direito, com especialização em Relações Étnico Raciais, Gênero,
Segurança Pública e Sistema Prisional. Mestre em Direito e
Criminologia pela UnB.

Inara Flora Cipriano Firmino


Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), na área de
concentração em Teoria do Estado e Direito Constitucional, na Linha de
Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Ordem Internacional.
Pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV- Direito SP.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo. Mestra em Ciências (área de concentração:
Desenvolvimento no Estado Democrático de Direito) pelo Programa de
Pós-Graduação em Direito da FDRP/USP, sendo bolsista CAPES.

Emília Joana Viana de Oliveira


Mulher negra do norte e doutoranda em Direito, Estado e Constituição
pela Universidade de Brasília (UnB).

Rodrigo Portela Gomes


Professor Adjunto da Universidade Federal da Paraíba, lotado no
Departamento de Ciências Jurídicas. Doutor em Direito, Estado e
Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) com período de visita
técnica na Universidad Nacional de Colombia, financiado pela FAP/DF.
Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB.

_______________________________________________________________________
As fotografias que ilustram a entrevista são de autoria de G. Dettmar
(Agência do Conselho Nacional de Justiça), por ocasião do 4º FONAPE –
Fórum Nacional de Alternativas. Deise Benedito participou do painel
(Re)produção das desigualdades de raça e de gênero no contexto da
política de drogas. Brasília, 14/09/2023.

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Dossiê
“Direitos e relações raciais”
No dossiê de artigos científicos desta edição, são apresentados 15
trabalhos com diferentes perspectivas críticas, diálogos e interseções
teóricas resultantes de pesquisas concluídas ou em andamento, que
contribuam para a compreensão do racismo na cultura jurídica
brasileira.
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50332

dossiê

Justiça de Transição e Povos Indígenas:


em busca de categorias temáticas e de
um léxico estratégico decolonial
Justicia Transicional y Pueblos Indígenas: en busca
de categorías temáticas y un léxico estratégico
decolonial

Transitional Justice and Indigenous Peoples: in


Search of thematic categories and a decolonial
strategic lexicon

Alex Bruno Feitoza Magalhães1


1
Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-Graduação em
Direito, Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-3000-4104.

Submetido em 31/07/2023
Aceito em 09/12/2023

Como citar este trabalho


MAGALHÃES, Alex Bruno Feitoza. Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de
categorias temáticas e de um léxico estratégico decolonial. InSURgência: revista de
direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 81-119, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons 4.0.
Este trabajo es licenciado bajo una Licencia Creative Commons 4.0.
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0.
82 Alex Bruno Feitoza Magalhães

Justiça de Transição e Povos Indígenas:


em busca de categorias temáticas e de
um léxico estratégico decolonial1
Resumo
Este escrito analisa a ditadura militar brasileira e sua conexão com a colonização, utilizando
a corrente historiográfica da nova história indígena como metodologia. O objetivo é
identificar categorias temáticas e desenvolver um léxico estratégico decolonial. Através de
investigação bibliográfica e de técnicas de análise de narrativa, busca-se compreender os
aspectos coloniais na ditadura militar e na justiça de transição, valorizando as narrativas
indígenas. São abordados os desafios da justiça de transição no Brasil e a necessidade de
enfrentar dinâmicas coloniais. A análise documental dos processos da Comissão de Anistia
revela categorias e contribui para o debate sobre ditadura, justiça de transição e
colonialidade, fornecendo arcabouço reflexivo para futuras pesquisas.
Palavras-chave
Justiça de Transição. Povos Indígenas. Ditadura Militar. Colonialidade. Decolonialidade.

Resumen
Este escrito analiza la dictadura militar brasileña y su conexión con la colonización,
utilizando como metodología la corriente historiográfica de la nueva historia indígena. El
objetivo es identificar categorías temáticas y desarrollar un léxico estratégico decolonial. A
través de la investigación bibliográfica y de técnicas de análisis narrativo, se busca
comprender los aspectos coloniales en la dictadura militar y en la justicia transicional,
valorizando las narrativas indígenas. Se abordan los desafíos de la justicia transicional en
Brasil y la necesidad de tratar las dinámicas coloniales. El análisis documental de los
procesos de la Comisión de Amnistía revela categorías y contribuye al debate sobre
dictadura, justicia transicional y colonialidad, proporcionando un marco reflexivo para
futuras investigaciones.
Palabras-clave
Justicia transicional. Pueblos Indígenas. Dictadura Militar. Colonialidad. Decolonialidad.

Abstract
This writing analyses the Brazilian military dictatorship and its connection with
colonization, using the historiographical current of the new indigenous history as
methodology. The aim is to identify thematic categories and develop a decolonial strategic
lexicon. Through bibliographic research and narrative analysis techniques, it seeks to
understand the colonial aspects in the military dictatorship and transitional justice, valuing
indigenous narratives. Challenges of transitional justice in Brazil and the need to address
colonial dynamics are addressed. The documentary analysis of the Amnesty Commission
processes reveals categories and contributes to the debate on dictatorship, transitional
justice and colonial issues, providing a reflective framework for future research.
Keywords
Transitional Justice. Indigenous People. Military Dictatorship. Coloniality. Decoloniality.

1 Artigo originalmente escrito para subsidiar as discussões sobre o “Caso Suruí-Aikewara: das
reinvenções ditatoriais da lógica colonial aos limites da justiça de transição” (2022).
Posteriormente, revisei e ampliei o escrito com base em novas discussões e pesquisas que realizei.
Em todo caso, optei por manter as construções teóricas e discursivas, para preservar o registro do
percurso e elaboração do meu pensamento.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 83
estratégico decolonial

Introdução

No cenário global, em que conflitos e violações de Direitos Humanos são


recorrentes, surge um conceito importante: a justiça de transição. Esse mecanismo
político-jurídico visa enfrentar os corolários de um passado recente de práticas
autoritárias, buscando reparar as feridas e reconstruir uma base sólida para o
futuro.

A justiça de transição surge como um farol de esperança em meio a desordem. Em


sociedades dilaceradas por um histórico de violência extrema e opressão, ela se
apresenta como uma promessa de reconciliação e paz duradoura. Com sua
abordagem, esse conjunto de medidas procura lidar com as violações do passado,
garantir a responsabilização dos culpados e reparar os danos causados às vítimas.

Por meio de seus campos de ação/pilares: memória, verdade, justiça, reparação e


reformas institucionais (Abrão; Torelly, 2014). A justiça de transição busca
reconstruir o tecido social fragilizado. Nesse âmbito, a memória desempenha um
papel relevante na preservação da história e na conscientização coletiva dos
eventos traumáticos vividos. Já a busca pela verdade é essencial para romper com
narrativas revisionistas e estabelecer uma base sólida para a reconciliação. A
justiça, por sua vez, almeja assegurar que os perpetradores de crimes sejam
levados a julgamento e enfrentem as consequências de seus atos, ao passo que a
reparação visa proporcionar às vítimas a compensação devida e o suporte
necessário para reconstruir suas vidas. Por fim, as reformas institucionais visam
remodelar estruturas falhas, a fim de evitar a retomada de novas práticas
arbitrárias.

Nesse sentido, a justiça de transição é mais do que um conceito abstrato, é uma


mensagem de esperança para sociedades que buscam reescrever seu propósito; um
chamado para olhar além dos danos, aprendendo com os erros e construindo um
novo horizonte.

A implementação da justiça de transição é uma tarefa árdua e complexa, que exige


o envolvimento de diversos atores, incluindo governos, organizações da sociedade
civil e comunidades afetadas. Não obstante, a busca por equilíbrio entre a
necessidade de responsabilização e a construção de um futuro justo – ainda – é um
desafio constante.

Assim, no campo da justiça de transição, faz-se necessário abordar algumas


lacunas e questões urgentes, especialmente relacionadas às dinâmicas coloniais
presentes nesse contexto. Os pontos de destaque são a análise dos processos de

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84 Alex Bruno Feitoza Magalhães

reparação conduzidos pela Comissão de Anistia e o relatório da Comissão


Nacional da Verdade (CNV).

Dentro da estrutura justransicional, a matriz colonial se tornou um instrumento


que perpetua desigualdades hierárquicas, resultando na subjugação, na negação
das existências e experiências vivenciadas por grupos considerados minoritários
e/ou vulneráveis.

Este ensaio tem como ponto de partida a análise do papel da questão indígena na
justiça de transição, buscando identificar novas categorias temáticas e sua relação
com a matriz colonial. Um aspecto fundamental é compreender o espaço político-
jurídico ocupado pelos povos indígenas dentro desse contexto e a necessidade de
examinar a dimensão colonial nos processos de reparação no campo da justiça de
transição. Além disso, a busca por um léxico estratégico decolonial se torna
premente para uma abordagem mais inclusiva.

O escrito tem como objetivo apresentar o conceito de “campos de reflexão”


(Magalhães, 2021), reunindo abordagens críticas e pós/decoloniais para (re)pensar
a concretização da justiça de transição e sua relevância na contemporaneidade, ao
mesmo tempo em que se problematiza o autoritarismo da ditadura militar (1964-
1985). O propósito é abrir novos horizontes e construir um debate expansivo e
atualizado sobre o tema.

Adoto inicialmente o método analético, que busca compreender a problemática


por meio da “afirmação original do outro” (Dussel, 1986, p. 21). Esse procedimento
decolonial tem relevância particular para a realidade Latino-Americana. Em
seguida, o texto incorpora a corrente historiográfica da nova história indígena
(Monteiro, 2001), destacando suas vozes, resistências, lutas e conquistas. Dessa
forma, ampliar as perspectivas e valorizar as narrativas indígenas no contexto da
justiça de transição.

Assim, dedica-se a um levantamento bibliográfico da temática, fornecendo um


panorama dos processos dos povos indígenas na Comissão de Anistia. Ao buscar
refletir sobre a própria Comissão de Anistia como uma tecnologia e/ou burocracia
colonial. Os dados coletados por meio de pesquisa empírica e documental
(Prodanov; Freitas, 2013) foram tratados e analisados utilizando a técnica de
análise de narrativa (Bastos; Biar, 2015), combinada com o componente crítico e
insurgente das chamadas narrativas experiências (Cardoso, 2019).

Este escrito traz uma problematização inicial sobre o autoritarismo da ditadura


militar e sua interligação com o paradigma histórico da colonização. Em seguida,
aponta desafios e limitações da justiça de transição no contexto brasileiro,

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Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 85
estratégico decolonial

destacando ausências e urgências que precisam ser abordadas. Por fim, apresenta
um panorama sobre a participação dos povos indígenas na Comissão de Anistia,
analisando o papel desse mecanismo como uma tecnologia e/ou burocracia
colonial – ou seja, fomentar críticas e ampliar a compreensão dessas temáticas
interconectadas.

Também enfoca as narrativas testemunhais dos Aikewara como uma importante


ferramenta para explicitar como a ditadura militar naturalizou formas de atuação
que se baseiam em códigos coloniais. Propõe-se, então, identificar categorias que
possibilitem reflexões para um léxico estratégico decolonial – com intuito de
aprofundar a compreensão de aspectos coloniais presentes na ditadura militar e
na justiça de transição.

1 Aspectos coloniais da ditadura militar brasileira

Na densa névoa da história, emerge um capítulo sombrio marcado pela ditadura


militar no Brasil. Um período de violência e repressão que deixou cicatrizes
profundas na luta e resistência dos povos indígenas. Entre as páginas que
demarcam as últimas constituições formalmente democráticas, encontramos um
cenário de graves violações de Direitos Humanos, onde os indígenas foram
cruelmente tratados como inimigos internos (CNV, 2014).

A ditadura não apenas ressignificou a violência colonial, agrária, burguesa e de


gênero, que moldou as bases desta nação, mas também agravou o sofrimento de
pessoas indígenas. Os códigos arbitrários que permearam esse período se
traduziram em invasões de terras, deslocamentos forçados, torturas,
aprisionamentos, extermínios e a disseminação de epidemias; uma série de
violências sistemáticas, conforme evidenciado no Relatório da Comissão Nacional
da Verdade (CNV) de 2014, resultado direto das políticas estruturais do Estado,
que agiu e se omitiu de maneira conivente.

O referido documento registra apenas uma fração das violências e violações de


Direitos Humanos sofridas pelos povos indígenas. Segundo o relatório da CNV,
8.350 indígenas perderam sua vida durante esse período, um número alarmante
que revela a discrepância em relação aos 430 mortos e desaparecidos políticos –
não indígenas – da ditadura militar. No entanto, essas estatísticas podem ser
apenas a ponta do iceberg, pois há casos em que o espanto e as circunstâncias
desencorajaram estimativas precisas.

A luta pela verdade encontrou respaldo no relatório elaborado por uma equipe
multidisciplinar, liderada pela psicanalista Maria Rita Kehl, que investigou as

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violências e violações de Direitos Humanos dos povos indígenas. Entre as etnias


mencionadas, encontra-se Xetá, Tapayun, Avá-Canoeiro, Waimiri-Atroari, Sateré-
Mawé, Cinta Larga, Krenak, Aikewara, Paraná, Akrãtikatejê, Kadiwéu, Guarani
Kaiowá, Parakanã, Yanomami, Nambikwara, Kaigang, Kayapó e muitas outras
(CNV, 2014). O relatório também trouxe à luz documentos outrora desaparecidos,
como o Relatório Figueiredo, que documentou as mortes, torturas e todas as
formas de violência praticadas contra os povos indígenas.

Entre os meandros da ditadura militar e os povos indígenas, desvela-se uma


relação complexa, marcada por contradições e impactos profundos. Valente (2017,
p.12), por exemplo, lembra das “contradições de um Estado que, sob o argumento
de proteger, acabou matando e destruindo”, embora em alguns momentos tenha
evitado o etnocídio. A visão predominante era de que os indígenas deveriam se
integrar à civilização, renegando suas próprias raízes e identidade (Valente, 2017).
Dessa forma, surgiu a necessidade de pacificar e assimilar esses povos aos ideais
desenvolvimentistas impostos pelos militares.

Nesse emaranhado histórico faz-se necessário invocar a expressão “lógica


colonial” para compreender a subserviência do colonialismo ao militarismo e as
consequências devastadoras para os indígenas. Órgãos como o Serviço de Proteção
ao Índio (SPI), a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), a Guarda Rural Indígena
(GRIN) e os presídios indígenas, como o Reformatório Agrícola Krenak e a
Fazenda Guarani, serviram como extensões de um sistema colonial em pleno
vigor. Essa intersecção entre colonialismo e militarismo é importante para
compreender as violações sistemáticas dos Direitos Humanos ocorridas.

O SPI foi criado em 1910 com a missão de assistir os indígenas em todo território
nacional, porém acabou como um instrumento de controle durante a ditadura
militar. Sua criação ocorreu em um momento crítico, à medida que as “frentes de
expansão” avançavam rumo ao interior do país, provocando conflitos e guerras
contra os indígenas (PIB, 2018). Foi nessa conjuntura que surgiu a noção de que o
indígena deveria abandonar sua ancestralidade e aderir ao modelo civilizatório.

A trajetória do SPI foi marcada por cortes de recursos, dificuldades operacionais e


inúmeras denúncias de corrupção. Sua extinção esteve relacionada à busca por
uma nova abordagem na política indigenista (Rocha, 2003). A corrida pela
internacionalização da economia brasileira impulsionou uma tendência
“modernizante” nos órgãos estatais. Segundo Rocha (2003), esse momento
favoreceu a exploração das riquezas presentes nos territórios indígenas, levando a
FUNAI, sucessora do SPI, a buscar reorganizar a “renda indígena” (p. 63). A

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Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 87
estratégico decolonial

FUNAI, criada em 1967, também atuou como órgão de controle durante o período
autoritário.

Os planos governamentais implementados durante a ditadura resultaram na


usurpação, invasão e titulação de terras indígenas. A FUNAI, por sua vez, seguiu
os passos do SPI, porém, justificando suas ações em nome do desenvolvimento
nacional e acelerando a integração gradual dos indígenas (CNV, 2014, v. II: 208).
Essa abordagem intensificou os processos de atração e pacificação, reforçando as
premissas de colonização e desenvolvimento dos “sertões”. Era uma submissão
dos interesses indígenas aos interesses econômicos, uma proteção superficial
enquanto a expansão capitalista avançava sobre a Amazônia (Fagundes, 2018).

No turbulento ano de 1968, marcado pela implementação do Ato Institucional nº


5 e o recrudescimento da repressão aos movimentos de oposição à ditadura militar,
a política indigenista no Brasil endureceu. Segundo Fagundes (2018), foi nesse
contexto que a FUNAI passou a contar com militares ligados aos serviços de
informação e segurança em seus quadros, fortalecendo seu aparelhamento. As
questões indígenas, por sua vez, ganharam destaque e foram encaradas como um
fator de segurança nacional, vinculadas ao projeto desenvolvimentista.

Durante a ditadura militar, foi construído um poderoso imaginário em torno dos


povos indígenas, que até hoje impede uma reflexão aprofundada sobre a realidade.
Conforme Trinidad (2018), “toda dominação passa primeiro por imaginar o outro
como um ser que precisa ser dominado” (p. 268). Na ditadura, o indígena era visto
como um obstáculo ao progresso da nação. Trinidad destaca que “os vastos
interiores, tinham como seus habitantes naturais os [indígenas], os mesmos que se
opunham ao avanço do processo normalizador e civilizador que o Brasil desejava”
(p. 268). Os territórios ocupados pelos indígenas eram considerados como “vazios
estratégicos”, desprovidos de desenvolvimento e segurança, o que os tornava uma
suposta ameaça à ordem nacional.

Para Trinidad (2018), a imagem do indígena como uma ameaça à segurança


nacional se fortaleceu por dois motivos. Primeiro, o medo que pairava sobre as
áreas habitadas pelos indígenas, especialmente as fronteiriças com outros países.
Em segundo lugar, as pressões para que qualquer discussão sobre terras indígenas
passasse pelo Conselho Nacional de Segurança, revelando interesses e influências
de diferentes grupos econômicos em relação a essas áreas.

Fica evidente a discrepância no tratamento dispensado aos “cidadãos” de forma


geral em comparação com os indígenas. Dentro dessa lógica, os indígenas são
vistos como o “protótipo do objetivo de tutela do Estado e da nação” (Ramos, 2011,

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p. 31). A questão indígena, como destaca Ramos (2011), revela as imperfeições mais
profundas das questões morais do país. Assim, seria impossível imaginar o Brasil
sem seus indígenas, “não como coletividades, mas como objetos do imaginário e
da manipulação nacional” (p. 31).

No contexto brasileiro, o colonialismo e o militarismo são duas faces da


expropriação da existência dos povos indígenas. Se no passado foram os colonos
que perpetuaram essa prática, durante o período autoritário entre 1964 e 1985, o
militarismo e as Forças Armadas ressignificaram esse discurso para
instrumentalizar a violência. Para compreensão mais detalhada dessa questão, é
importante retomar o caso Aikewara (Comissão de Anistia, 2010; Ferraz, et al, 2014;
Garcia, 2015; Magalhães, 2021).

2 Povo Indígena Suruí-Aikewara: uma realidade


colonial-ditatorial

Os Aikewara, reduzidos a pouco mais de quarenta pessoas, enfrentavam um


cenário de devastação causado por epidemias de gripe e sarampo, bem como os
impactos dos contatos traumáticos com garimpeiros, castanheiros e grileiros.

Entre os anos de 1972 e 1974, esses indígenas localizados no sudeste do Pará se


viram invadidos pelas forças repressoras da ditadura militar. O que se seguiu foi
um período de opressão e exploração, no qual foram submetidos à escravidão,
forçados a abandonar suas famílias, cultura e modo de vida ancestral. Sofreram
maus-tratos, humilhações e penúrias indescritíveis.

As violências e violações que foram desveladas na época não atingiram apenas os


guerrilheiros da região, mas também os camponeses e povos indígenas, como os
Aikewara (CNV, 2014). Seu sofrimento e sua história foram silenciados, ficando
esquecidos nas entrelinhas da narrativa da Guerrilha do Araguaia.

É importante resgatar a memória desse povo indígena e reconhecer as atrocidades


que enfrentaram durante esse período sombrio da nossa história. Os Aikewara são
um exemplo da violência e do desamparo que os povos indígenas enfrentaram
durante a ditadura militar, uma realidade que até hoje precisa ser enfrentada e
reparada.

No Araguaia, a aldeia indígena se tornou palco de violações durante o período da


Guerrilha. De acordo com as pesquisas de Ferraz (et al, 2014), às tropas militares
invadiram a aldeia em 1972, também quando os Aikewara se preparavam para
realizar um ritual sagrado de passagem para a vida adulta.

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Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 89
estratégico decolonial

A chegada dos militares trouxe consigo a proibição das atividades essenciais dos
indígenas, como a caça, a coleta e a pesca. Suas reservas de alimentos foram
queimadas e suas casas destruídas. Sob a mira das armas, os Aikewara foram
mantidos em cativeiro, sofrendo torturas, privações de água e alimentos. Além
disso, foram forçados a servir como guias para as tropas do Exército, em uma
situação de tensão constante e desconfiança mútua.

As mulheres indígenas, por sua vez, ficaram enclausuradas na aldeia, separadas


de seus companheiros e familiares que foram levados pelos soldados (Ferraz et al,
2014). Com fome e sob vigilância, elas eram proibidas de caçar ou tomar banho
sozinhas. A presença de um helicóptero sobrevoando a aldeia apenas aumentava
a sensação de opressão.

O aprisionamento, a violência e a perda da liberdade marcaram a vida dos


Aikewara durante esse período sombrio. Suas histórias testemunham a brutalidade
da ditadura militar e da injustiça que foi afligida aos povos indígenas.

Logo, os relatos do Povo Indígena Aikewara se entrelaçam com as marcas deixadas


pela ditadura militar. A dominação territorial se revela como uma das principais
violações de Direitos Humanos enfrentadas pelos povos indígenas, com
consequências diretas no caso Aikewara. Como exemplo sintomático, a abertura de
estradas visava facilitar a mobilidade das tropas, e também se tornou gatilho para
a construção de povoados próximos ao território indígena, resultando em invasões
e violências.

Para Garcia (2015), três memórias atravessam a história do Povo Aikewara desde a
chegada dos militares: a dos homens sequestrados para atuarem como guias nas
buscas pelos guerrilheiros, a das mulheres e crianças aprisionadas na aldeia, e a
construção da BR-153, conhecida como Rodovia Belém-Brasília.

Essa situação estabelecida trouxe consigo consequências, incluindo abortos e


perdas prematuras de filhos. Também foram proibidos de caçar, pescar e trabalhar
na terra que lhes pertencia. Subjugados à fome e privados de elementos essenciais
a sua cultura, os indígenas enfrentaram ameaças às suas sobrevivências (CNV,
2014, v. I).

No entanto, mesmo diante de tais adversidades, as vozes dos Aikewara ressoam


nos processos de reparação conduzidos pela Comissão de Anistia (Magalhães,
2021). Suas narrativas testemunhais se tornam instrumentos poderosos de
resistência, revelando a força de um povo determinado a reconstruir sua história e
reafirmar sua identidade.

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O relato de Tawé detalha o momento da primeira invasão no território Aikewara e


esclarece como o caso aconteceu:

“Aí foi assim que, a gente tava em festa, né, que aconteceu, a primeira! Aí
chegaram lá, as tropas, vinham por terra, dentro da mata. E nós num
sabemos que ia acontecer essas coisas [...] Nós tava lá em baixo, na aldeia
velha mesmo, a primeira, né? Aí chegaram lá a tropa, vinha... por terra, aí vieram...
os comandante vinha de avião. Aí avião chegou primeiro. Aí nessa época, naquela
época, quer dizer, hoje as mulheres são mãe, né? era tudo criancinha, eles ficaram
com medo daquele barulho de avião, helicóptero, né? Ele desceu bem no meio da
aldeia que... arrancou tuuudo... a copote da casa, da aldeia... Aí as criança
(que ta sendo hoje mãe) correram pra dentro da mata que, primeira vez... num
sabiam o que era aquilo, né? Elas correram! Até a mãe, correu dentro da mata,
outro entrou dentro de casa, pra ficar lá, pra ninguém ver!! [...] Aí... chegaram
lá, invadindo, assim, né? botaram arma nas mulheres, os homens que
tavam, aí eles ficaram com medo... por que era... por quê que eles tavam
fazendo aquilo com eles? Ficaram com medo... as criança tudo
chorando...”2 (grifo nosso).

A narrativa apresenta uma descrição da primeira invasão do território Aikewara,


ressaltando o caráter exibicionista do colonizador. De acordo com Fanon (1968), a
imposição da força é uma das principais formas de dominação do colonizador, que
utiliza da sua polícia para limitar fisicamente o colonizado. Contudo, além da
violência, é possível identificar outras formas de opressão, como a imposição de
crenças e valores culturais.

A narrativa de Tawé pode ser entendida como uma forma de resgatar a memória
histórica do Povo Aikewara, mostrando como foram vítimas de invasões e cercos
em seu próprio território.

“[...] eles tocaram fogo! Queimou farinha, arroz, milho... as coisas que
sempre a gente usa... a cultura que a gente tinha, né? A gente tava fazendo...
planejando para fazer festa nesse dia, né? [karuwara] que eles chegaram,
bagunçando lá, e nós num sabia não... Aí nós fiquemo tudo desesperado mesmo!
[...] E as crianças tudo com fome, dormia com fome! O que nós tinham, tacaram
fogo mesmo! Aldeia já tava limpo, queimou... aldeia era bem pequeninho, não
é igual aqui não, era bem pouquinho... mais ou menos umas seis casa, por aí tinha,
assim, era bem pouquinho. Aí eles foram embora! Foram lá pro rumo da Serra das
Andorinhas, lá eles ficaram. Ouvimos muito aquele... tiroteio! Muito avião
rodando aí por cima” 3 (grifo nosso).

2 In: Comissão de Anistia. Requerimento de Anistia nº 2010.01.66656 de autoria de Tawé Suruí p.


128.
3 In: Comissão de Anistia. Requerimento de Anistia nº 2010.01.66656 de autoria de Tawé Suruí p.
134.

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Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 91
estratégico decolonial

Como descrito por Tawé, os indígenas estavam se preparando para executar um


importante ritual de passagem à vida adulta, momento em que dançariam para os
espíritos. Nesse sentido, a festividade contava com uma preparação minuciosa que
envolvia a reunião de muitos alimentos, especialmente a mandioca para a
produção do mingau, a bebida básica da cerimônia.

Em meio a celebração, às tropas chegaram por terra dentro da mata,


interrompendo abruptamente o ritual e trazendo consigo uma grande dose de
violência e opressão. Observa-se que as tropas demonstraram um caráter
exibicionista ao descerem no meio da aldeia, arrancando tudo, inclusive a
cobertura das casas da aldeia. Tawé destaca ainda que as crianças, que hoje são
mães, correram para dentro da mata assustadas com o barulho da aeronave.

De acordo com Fanon (1968), a exploração colonial é marcada pelo caráter


totalitário que se expressa na imposição da força física e simbólica sobre o
colonizado, na tentativa de limitar fisicamente o seu espaço e subjugá-lo a um
poder autoritário e violento. Dessa forma, a chegada das tropas na aldeia pode ser
compreendida como uma expressão dessa dinâmica opressora que se reproduz em
diferentes contextos e momentos históricos.

A chegada dos militares no território Aikewara não apenas representou uma


imposição de dominação política e militar, mas também uma tentativa de
aniquilação da existência cultural do povo indígena. Os soldados queimaram toda
reserva de alimentos, incluindo a farinha, o arroz, o milho e outros itens que faziam
parte da cultura e nutrição dos indígenas. Essa atitude mostra a tentativa de
desarticular de modo espetacular a existência cultural do povo subjugado,
conforme aponta Fanon (1968).

Existe uma lacuna que clama por atenção. Uma lacuna que revela a união entre
colonialismo e militarismo, uma conexão sinistra que deu origem a processos
sistemáticos de violações de Direitos Humanos contra os povos indígenas. A
subsunção do colonialismo ao militarismo nos leva a um terreno permeado por
relações opressivas e injustas – foi desse cenário que se forjaram os episódios
dolorosos que marcaram a história dos povos indígenas.

No seu depoimento, Marary confirma o tratamento maniqueísta dispensado pelos


soldados em relação aos indígenas:

“Só de noite que a gente conseguia comer alguma coisa. Na mata o soldado
num dava comida pra gente não! Dizia que nós num podia comer. Quando
chegava no São Raimundo um homem perguntava se a gente comia charque, eu
dizia que sim, minha barriga só doía de fome! Ele me deu um pedacinho assim,

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92 Alex Bruno Feitoza Magalhães

mas não servia pra nada... com farinha. Eu tentei voltar sozinho pra casa, mas
soldado veio atrás de mim falando:
- Aonde é que você vai, índio? Eu dizia que ía voltar pra minha aldeia porque
tava com fome... nem café a gente tomava na mata, nada!! Aí ele me pegou de
volta e me trouxe, dizendo que eu num podia ir embora não. Nem me deixava
levar farinha pra comer na mata de volta pra casa”4 (grifo nosso).

Tal narrativa denuncia a situação de privação de alimentos imposta aos indígenas


pelos soldados, a falta de comida durante o dia na mata e a proibição de levar
mantimentos para a aldeia, além de restrições de retorno. Este ambiente reflete
ausência de contato humano entre soldados e indígenas, prevalecendo apenas a
subordinação e a desumanização. A dinâmica estabelecida aponta para os sistemas
de administração e instruções típicas do discurso colonial (Bhabha, 1998).

Percebe-se, que existe uma espécie de índole colonial dos agentes da ditadura, em
consonância com as narrativas dos indígenas Aikewara, cujas experiências
encarnaram as marcas da sociedade colonial e senhorial (Chauí, 2001). As
colocações de Chauí remetem ao conceito de “mundo colonial” descrito por Fanon,
onde a sociedade é dividida em duas partes distintas e a fronteira é demarcada
pelos quartéis de polícia.

Esse intermediário do poder e/ou interlocutor é produto de uma sociedade


autoritária, burguesa, patriarcal, colonial e moderna. Segundo Fanon (1968, p. 28),
as sociedades capitalistas criam uma “atmosfera de submissão e inibição que torna
consideravelmente mais fácil a tarefa das forças da ordem”, por meio de uma
multidão de professores de moral, conselheiros e “desorientadores”. Já nas regiões
coloniais, a figura da polícia e do soldado é interposta.

A partir do relato de Umassu, é possível visualizar o ambiente que as tropas


criaram em São Domingos, o qual se destacou por ser um espaço de coerção, temor
e desconfiança:

“Aí eu peguei o jumento, de manhã cedo, deu 11h eu tava em São


Domingos. Aí começaram, avião, eu que via avião tava assim, rodando,
que soldado tava telefonando para outro assim:
- Nós tamo aqui no S. Domingo...
Aí fiquei com medo, rapaz... Aí falei pro Raimundo [comerciante]:
- Ligeiro, ligeiro! eu quero ir me ‘mbora! (tava só la mesmo).
Aí eu fiz assim, botei dentro do jumento, a coberta, a coberta e a rede que eu botei
no jumento. Aí vem-me ‘mbora. Aí vinha vindo... quando deu quatro hora, lá
na ‘metade’ (rapaz!! esse aí não prestou não!). Aí soldado bateu pé

4 In: Comissão de Anistia. Requerimento de Anistia nº 2010.01. 66653 de autoria de Marari Suruí p.
114.

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Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 93
estratégico decolonial

primeiro, pegou tudinho à força, com espingarda dele, aqui e aqui


[mirando no peito dele], aí puxou na minha perna:
Pode descer, pode descer aí!! E eu:
- Aquieta, rapaz! falei no [idioma do] kamará primeiro, aí depois mudei na minha
língua
-Mae té paé, kamará? [o que foi, ‘branco’?]
Aí ele olhou:
- Ó, tu é índio é?
- Eu sou.
Aí tenente vinha correndo, né?
- O que foi?
- Nada! Pensava que ele era ‘terrorista’! (ele falou) esse é índio que eu
peguei, foi enganado! [...]
Aí ele falou:
- Ói, eu vou, nós vamos lá na aldeia para saber se tu é índio mesmo”5

A ocorrência de situações de medo e imposições violentas é evidenciada pelo


relato de Umassu, que afirma ter ficado receoso com a presença de um avião e ter
sido forçado a descer de seu animal de transporte mediante o uso de espingarda
pelo soldado. Ademais, os indígenas eram frequentemente questionados acerca de
sua etnia, como no momento em que o soldado pergunta: “tu é índio?”. Tais
práticas demonstram as formas de controle exercidas pelo colonizador sobre a
subjetividade indígena, como observado por Quijano (2010) que destaca a
ocorrência de operações colonizadoras que geram um novo universo de relações
intersubjetivas de dominação.

Há um sentido sombrio que se gestou e foi administrado pelos valores da


repressão, permeando o tecido da sociedade. Assim, as figurações coloniais da
subjetividade indígena se solidificaram, negando suas identidades e exercendo
controle sobre sua essência. A violência colonial, impiedosa em sua natureza,
busca subjugar e desumanizar o colonizado, deslocando a identidade cultural do
Outro.

Na narrativa de Muruá, fica clara a reclusão forçada na aldeia, bem como a fome e
o medo constante:

“Eu tava ‘buchudo’ [grávida] da Akóngotia, né? Ele [o marido] num queria
ir no mato! Soldado levou acochado ele! Ele disse [kui’muá]
- Não! eu num vou não, minha mulher ta buchudo!! – ele falou:
- Não! vai assim mesmo! [Soldado] levou acochado! Eu tava [tinha] só
Kuiná, dois [filhas]. Eu tava cum fome! aqui num tinha comida! Num
tinha arroz também... Comia só cara mesmo! comia aí... se num fosse

5 In: Comissão de Anistia. Requerimento de Anistia nº 2010.01.66655 de autoria de Umassu Suruí


p. 116.

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94 Alex Bruno Feitoza Magalhães

arrancar batata, tava tudo cum fome aí!! Uma hora dessa aí... até chegar...
[...] Ficou só nós mesmo... a Muretama, Arihêra, Sawara’á também ficava
na aldeia... ficamo só nós mesmo, ‘capitão’, só mulher mesmo! nós tinha
medo mesmo! tava com medo mesmo!”

Esta narrativa observa uma distinção entre as mulheres que permaneceram na


aldeia e os homens que foram recrutados pelas forças repressoras durante a
ditadura militar. Enquanto as mulheres permaneceram na aldeia, os homens foram
levados para a mata para servirem de guias, muitas vezes sob coação. A falta de
comida e o medo imposto pelos soldados também afetaram a vida das mulheres
que ficaram reclusas na aldeia.

Tal situação evidencia a dicotomia de gênero imposta pelo colonizador na


modernidade ocidental, na qual os homens são subjugados e as mulheres
relegadas a papéis secundários (Lugones, 2014) – marca da hierarquização usada
para justificar opressões e explorações.

Segundo Lugones (2014), a colonialidade do ser baseada em uma estrutura binária


e hierárquica que distingue colonizador e colonizado, engendra a colonialidade de
gênero. Essa dimensão colonial opera através da inferiorização e subordinação do
Outro. Subjugando especialmente as mulheres e outros grupos marginalizados.
Nesse sentido, as situações de privação vivenciadas pelas mulheres indígenas
Aikewara representam a noção de diferença colonial (Mignolo, 2017). Assim, a
colonialidade de gênero se insere em um conjunto mais amplo de relações de
poder e dominação que caracterizam o colonialismo e seus legados
contemporâneos.

As marcas deixadas pela ditadura no Brasil são profundas e suas consequências se


estendem por diversas esferas da sociedade. Quando direcionamos o olhar para os
povos indígenas, percebemos que o impacto da ditadura vai além da repressão
política, alcançando também a esfera cultural e identitária.

O aprofundamento dessas narrativas testemunhais aponta que a ditadura militar


não apenas utilizou formas de atuação baseadas em códigos coloniais, como
também naturalizou essas estruturas opressoras. A imposição de práticas
subalternas e desumanizadoras revela a continuidade do paradigma histórico da
colonização, em que o poder é exercido de forma violenta sobre os povos
indígenas.

O caso emblemático dos Aikewara serve como ponto de partida para compreender
a violência sistemática perpetrada pelo militarismo em relação aos indígenas. Essa
violência assume contornos coloniais, impondo uma visão de mundo que nega as

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Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 95
estratégico decolonial

identidades e cultura desses povos, subjugando-os a uma condição de


subalternidade.

Dessa maneira, as narrativas do Povo Indígena Aikewara ajudaram a identificar


categorias ou formas de subsunção colonial-ditatorial, postas abaixo:

Quadro 1
Categorias temáticas à ditadura militar ou subsunção colonial-ditatorial

Tematizações Dimensões teóricas Dimensões analíticas


A índole colonial “[...] chamada cultura senhorial” Enquanto aqueles que
dos agentes da (Chauí, 2001, p. 13). conservam as marcas da
ditadura Também, conhecido como sociedade colonial, ou da cultura
intermediário do poder e/ou senhorial, é o intermediário do
“interlocutor legal e poder, entre o mundo do
institucionalizado do colonizado, o colonizador e do colonizado. No
porta-voz do colono e do regime de ambiente estabelecido por esses
opressão” (Fanon, 1968, p. 28). agentes/soldados não há espaço
para o contato humano, apenas
violência, subordinação,
restrição e desumanização.
Figurações “[...] os colonizadores exercem Sentido gestado e administrado
coloniais da diversas operações que dão conta pelos valores da repressão que
subjetividade das condições que levaram à engendram figurações coloniais
indígena configuração de um novo universo da subjetividade indígena,
de relações intersubjetivas de através da negação de suas
dominação” (Quijano, 2005, p. 121). identidades, bem como pelo
“[...] todos aqueles povos foram controle de sua subjetividade.
despojados de suas próprias
identidades históricas” (Quijano,
2005, p. 127).
O controle “A ‘missão civilizatória’ colonial era Desveladas por meio da
colonial dos a máscara eufemística do acesso dicotomia central da
corpos e as brutal aos corpos das pessoas modernidade ocidental, imposta
repercussões de através de uma exploração pelo colonizador/soldado, como
gênero inimaginável, violação sexual, ferramentas de hierarquização e
controle da reprodução e terror classificação social através da
sistemático” (Lugones, 2014, p. 938). raça e do gênero, resultado das
“[...] se, no contexto de produção ações colonialistas sobre os/as
colonial, o sujeito subalterno não sujeitos/as.
tem história [...] o sujeito feminino
está ainda mais profundamente na
obscuridade” (Spivak, 2010, p. 66-
67).

Fonte: Elaborado pelo autor, 2023.

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3 Expandindo os limites da justiça de transição

A temática da justiça de transição nos convida a refletir sobre os principais desafios


que esse mecanismo político-jurídico enfrenta, ao mesmo tempo que nos abre
horizontes para expandir seus limites e explorar suas possibilidades. Embora os
processos de justiça de transição apresentem semelhanças, é fundamental
compreender que eles não são homogêneos e devem ser analisados de forma
contextualizada.

Cada país possui sua conjuntura histórica particular, o que implica em diferentes
manifestações e experiências no campo da justiça de transição (Silva, 2016). Nesse
contexto surgem as particularidades, os (des)encontros e as nuances que moldam
esses processos.

Ao adentrarmos mais a fundo nesta discussão, torna-se evidente que a justiça de


transição não pode ser encarada como um modelo único e absoluto. Ela é um
espaço dinâmico, influenciado por fatores históricos, sociais, políticos e culturais
específicos de cada nação. Assim, é necessário considerar as particularidades de
cada contexto para que sejam desenvolvidas estratégias efetivas.

Silva (2016) nos convida a enxergar a diversidade de experiências na justiça de


transição, ressaltando a importância de não generalizar ou simplificar a
complexidade desses processos. Cada país possui suas próprias demandas,
necessidades e desafios, que devem ser abordados de maneira individualizada.

Ao iniciar a investigação no campo da justiça de transição, deparamo-nos com um


vocabulário permeado pelos direitos à memória, à verdade, à reparação e à justiça.
Esses elementos são essenciais para compreender as complexidades desse campo,
que tem sido alvo de análises críticas e problematizações.

A justiça de transição, como aponta Teitel (2003), é um conceito que convida a


refletir sobre as abordagens e os pilares fundamentais desses processos. No
entanto, importa reconhecer que esses termos, como “justiça” e “transição”,
surgem em contextos de excepcionalidade e transformação políticas aceleradas. E,
ao mesmo tempo, revelam as limitações teóricas, analíticas e políticas que
permeiam essa abordagem tradicional (Quinalha, 2012).

Nesta direção, somos instigados a questionar o significado e aplicação desses


elementos-chave. O que realmente significa buscar a justiça de transição? Como
podemos garantir a memória e a verdade diante de violações e injustiças
históricas? E, mais do que isso, como podemos reparar as vítimas e construir um
futuro mais justo?

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Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 97
estratégico decolonial

As problematizações lançadas por Quinalha (2012) nos conduzem a uma reflexão


sobre as limitações e as potencialidades desses conceitos. Sendo necessário
transcender a abordagem tradicional e buscar novas perspectivas que contemplem
as complexidades dos processos de justiça de transição.

É pertinente considerar os eixos de abordagem como verdadeiros “campos de


ação”. Afinal, tal mecanismo político-jurídico busca superar os quadros de
violência e requer uma operacionalidade prático-normativa. Destacam-se: o
reconhecimento, a justiça, a reparação, a construção da memória e verdade
coletiva, e as reformas institucionais.

Um dos desafios mais significativos diz respeito à tensão entre a busca pela
verdade judicial e a busca pela verdade extrajudicial. Enquanto a primeira se refere
à verdade produzida por meio de processos judiciais e julgamentos, a segunda é
construída pelas Comissões da Verdade e por projetos oficiais ou não oficiais de
memória.

O cerne dessa questão reside na importância de garantir a multiplicidade de vozes,


de assegurar que todas as pessoas, sem exceção, sejam ouvidas e reconhecidas
como vítimas de violações de Direitos Humanos. Para isso, os mecanismos de
justiça de transição devem incorporar em sua atuação perspectivas de gênero,
sexualidade, território, classe, etnia e raça, considerando-as como abordagens
principais.

A compreensão das especificidades das graves violações de Direitos Humanos


passa pela análise crítica das relações de poder que permeiam as estruturas sociais.
A abordagem de gênero (Roesler; Senra, 2013), por exemplo, permite visibilizar as
violências específicas enfrentadas por mulheres e pessoas LGBTI+ durante o
processo de transição6. Já a perspectiva territorial (Garavito; Lam, 2011) considera
as violações direcionadas aos povos e comunidades tradicionais, que têm suas
identidades e modos de vida ameaçados.

A interseccionalidade (Akotirene, 2018) se faz essencial na análise das violações de


Direitos Humanos, pois reconhece que as pessoas vivenciam opressões e
discriminações de forma interligadas, resultantes da interseção de diferentes
sistemas de dominação.

6 Leia também: “Justiça de Transição e sexualidades dissidentes: alguns apontamentos para novos
debates” (2016), por César Augusto Baldi.

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Ressalta-se que a busca pela verdade e pela justiça não se limita apenas aos
tribunais. Comissões da Verdade e outros projetos de memória desempenham um
papel ímpar na construção de uma narrativa coletiva, na preservação da memória
histórica e na responsabilização do Estado.

As Comissões da Verdade não possuem um caráter estritamente tribunalesco ou


punitivo. Elas desempenham um papel importante na busca pela verdade, na
preservação da memória coletiva e na promoção da reconciliação. Porém, uma das
dificuldades enfrentadas é a implementação de mecanismos judiciais transicionais.

Para alcançar uma justiça de transição efetiva, se faz necessário promover um


diálogo eficaz com a justiça criminal, de forma a garantir que os responsáveis pelas
graves violações de Direitos Humanos sejam responsabilizados. A justiça criminal
também apresenta limitações em seus procedimentos e abordagens, sendo
necessário fomentar o treinamento e a formação humanística das pessoas
envolvidas nos processos de escuta e julgamento, para que possam melhor atender
às necessidades das vítimas de diferentes grupos, como mulheres, pessoas
indígenas, negras e LGBTI+.

No campo dos órgãos reparatórios, pensar em formatos específicos de reparação


que sejam adequados aos grupos considerados minoritários e/ou vulneráveis em
sua programação. As reparações devem superar as condições de vulnerabilidade
e não perpetuar formas de subalternização de suas experiências.

A concepção tradicional de justiça de transição está ligada à ideia de uma


centralização da justiça punitiva, o que acaba subalternizando as vítimas e
deixando em segundo plano suas experiências. O que me faz questionar dois
pontos problemáticos nesse contexto: o legalismo e a centralidade do Estado
(McEvoy; McGregor, 2008).

O legalismo, como destacado por McEvoy e McGregor (2008), é um elemento que


merece problematização. A ênfase excessiva nas estruturas legais muitas vezes
acaba desconsiderando a complexidade das experiências das vítimas e as nuances
das violações de Direitos Humanos.

Outro desafio enfrentado pela justiça de transição é a centralidade do Estado


(McEvoy; McGregor, 2008). Nesse modelo tradicional, a atuação do Estado é
preponderante, o que pode resultar numa visão limitada e restrita da necessidade
das vítimas. Assim, é essencial ampliar o espaço para a participação ativa dos
grupos minoritários/vulneráveis, pavimentando suas vozes e a visibilidade das
suas experiências.

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Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 99
estratégico decolonial

Pontua-se a invisibilização de certos sujeitos na justiça de transição – como


mulheres, pessoas LGBTI+, indígenas e negras que, muitas vezes, são
marginalizadas e negligenciadas. Suas vozes e experiências acabam sendo
apagadas ou minimizadas, o que perpetua as desigualdades e impede uma
verdadeira reparação.

Ao considerar as práticas colonialistas, é inevitável mencionar a herança legada


pelo poder eurocêntrico, que Mignolo (2010) denominou de ‘matriz de
colonialidade’. Essa matriz, baseada na lógica da repressão, opressão e racismo,
deixou sua marca indelével. Contudo, importa-se reconhecer que foi a partir da
subalternização dos povos indígenas que o atual Estado de Direito se estabeleceu.

Quijano (2005, p. 136) fala sobre a presença da colonialidade do poder, que se


fundamenta na “imposição da raça como instrumento de dominação e foi sempre
um fator limitante desses processos de construção do Estado-nação baseados em
modelos eurocêntricos”. Visto isso, encontra-se evidências que fortalecem a
legitimidade dessa ‘colonialidade do poder’, estabelecida por meio da repressão,
autoritarismo e violências sistemáticas perpetradas durante a ditadura militar
contra os grupos vulneráveis.

Conforme trazido por Mignolo (2010), a colonialidade do poder é uma estrutura


intricada de níveis entrelaçados, que se manifesta na autoridade, subjetividade e
reconhecimento. Dessa forma, à luz das ideias de Quijano e Mignolo, compreende-
se que os processos de autoritarismo, repressão e a busca pela memória e verdade
oficial são elementos da colonialidade do poder.

O argumento de que a justiça de transição não conseguiu romper totalmente com


a lógica colonial por meio da busca pela verdade oficial requer um exame crítico.
Implicitamente, os mecanismos de justiça de transição revelaram-se detentores de
práticas opressivas, subalternizantes e segregacionistas. Um exemplo disso é o
Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em que o primeiro volume
intitulado “Parte II - Estruturas do Estado e Graves Violações de Direitos Humanos” não
reconheceu os crimes cometidos contra os povos indígenas durante o período
ditatorial brasileiro, como genocídio e remoção forçada de seus territórios. As
violações perpetradas contra os povos indígenas foram relegadas a um segundo
volume temático chamado “Texto 5 - Violações de Direitos Humanos dos Povos
Indígenas”.

A omissão dos abusos aos Direitos Humanos no volume principal do relatório da


CNV ilustra as limitações inerentes aos mecanismos de justiça de transição ao
abordar de forma generalista as complexas atuações autoritárias. Isso reflete uma

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falha em confrontar e desafiar as estruturas e ideologias que perpetuam a


marginalização e a violência vivenciadas pelos povos indígenas. Essa omissão
levanta questões importantes sobre a eficácia da justiça de transição ao lidar com
as histórias coloniais e suas implicações contemporâneas.

Torna-se evidente a delimitação e expansão dos limites de atuação da justiça de


transição. Antes de se concretizar nas sociedades pós-ditatoriais, é fundamental
que a justiça de transição esteja em sintonia com o histórico de colonialismo e
escravidão que marcou o país ao longo de séculos. Como apontado por Cueva
(2011, p. 353), a justiça de transição deve “incluir a incumbência de explorar as
raízes históricas e estruturais dos abusos, e a forma diferenciada com que foram
suportadas pelos grupos vulneráveis”.

Ampliar a compreensão dessas temáticas por meio de abordagens


interdisciplinares proporciona uma oportunidade para examinar e explorar o
passado recente das violações de Direitos Humanos ocorridas durante a ditadura
militar. A incorporação de conhecimentos advindos de diversas áreas do saber,
além do campo jurídico, contribui para a produção de ideias e perspectivas que
abordem de maneira mais abrangente e detalhada esse período histórico marcado
por atrocidades.

Assim, requer considerar as particularidades de cada sociedade em que o processo


de justiça de transição é implementado, como também refletir sobre como o
passado será inserido na estrutura do Estado e da sociedade. A decolonialidade,
conforme defendido por Grosfoguel (2008), não pode se basear em universalismos
abstratos, mas deveria estabelecer um diálogo entre diferentes projetos que
apontem para a construção de um mundo pluriversal. Isso implica reconhecer e
valorizar a diversidade de perspectivas – por que a justiça de transição não?

Na intricada teia dos discursos, há algo poderoso e sutil que muitas vezes passa
despercebido: os enquadramentos. Butler (2015) nos alerta para o fato de que esses
enquadramentos modelam, classificam, hierarquizam e delimitam as vidas das
pessoas. Eles têm o poder de distinguir quais vidas são consideradas legítimas e
dignas de serem apreendidas, enquanto outras são relegadas ao esquecimento.
Essa dinâmica dos enquadramentos se estende também ao campo da justiça de
transição, onde surgem os chamados “enquadramentos justransicionais”
(Magalhães, 2021).

Ao examinar o Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), pode-se


constatar como os povos indígenas foram tratados como uma paisagem de mortos
(Trinidad, 2018). Essa perspectiva limitada e desumanizadora obscureceu suas

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Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 101
estratégico decolonial

histórias, suas lutas, suas vozes, contribuindo para a invisibilidade de suas


experiências durante o período ditatorial.

Há sujeitos cuja existência não é reconhecida, vidas que são sistematicamente


ignoradas e excluídas (Butler, 2015). Dessa forma, os povos indígenas foram
relegados ao lugar da subalternidade, uma vez que a Comissão priorizou o estudo
das principais vítimas: pessoas brancas, estudantes, militantes de esquerda e
intelectuais.

No capítulo dedicado às violações de Direitos Humanos dos povos indígenas, a


Comissão estima que pelo menos 8.350 indígenas foram mortos. Essa estatística
alarmante contrasta com os 430 mortos e desaparecidos políticos – não indígenas
– durante a ditadura militar. Essa constatação revela uma condição na qual um
conjunto de vidas é considerado precário (Butler, 2015), evidenciando que nem
todas as vítimas são dignas de luto.

A questão da justiça das vítimas remete a uma crítica sobre as diferenças entre a
justiça dos tempos antigos e a justiça dos tempos modernos. Embora essas formas
de justiça possuam características distintas, há algo em comum entre elas: a falta
de espaço para a memória (Mate, 2009). É como se as vítimas fossem privadas da
oportunidade de manter viva a sua história, de lembrar e compartilhar suas
experiências.

No entanto, Mate (2009) apresenta uma proposta inovadora: a justiça anamnética,


uma teoria universal da justiça que coloca a memória como peça fundamental nos
processos de enfrentamento das injustiças que as vítimas enfrentam. Nessa
perspectiva, a memória ganha um lugar central, permitindo que as vítimas sejam
ouvidas, suas histórias sejam reconhecidas e a justiça seja buscada de forma mais
inclusiva.

A voz do filósofo ressoa como um chamado à consciência sobre a importância da


memória na formulação das teorias da justiça. Segundo ele, a memória é um
elemento indispensável, pois, sem lembrança das injustiças passadas, corremos o
risco de construir uma teoria da justiça que não seja universal. Uma teoria
desvinculada da memória se declara impotente, incapaz de enfrentar os muitos
casos de injustiça que permeiam nossa sociedade (Mate, 2009).

A perspectiva da justiça anamnética pode vislumbrar uma abordagem para a


busca por uma transição justa. Mate (2009) destaca que a teoria convencional da
justiça muitas vezes negligência questões relacionadas à memória, “das vítimas,
dos mortos, do irreparável” (n.p.).

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As violações de Direitos Humanos que afetam os povos indígenas estão


intrinsecamente ligadas às questões territoriais que envolvem suas comunidades.
Nesse contexto, a perspectiva da justiça étnico-coletiva se apresenta como um
espelho importante para guiar os processos de transição na busca por justiça. Os
estudiosos Garavito e Lam (2011) propõem a incorporação de um juízo crítico
conhecido como justiça étnico-coletiva (JEC), que direciona seu foco para os
processos de reparação.

A justiça étnico-coletiva se apresenta como uma abordagem necessária para


enfrentar as especificidades das violações de Direitos Humanos que atingem
povos e comunidades tradicionais. Ao enfocar neste tipo de justiça, abre-se espaço
para a compreensão das necessidades específicas dos povos indígenas e para o
desenvolvimento de estratégias de reparação que levem em conta sua cultura,
identidade e território. A justiça étnico-coletiva, aliada a uma perspectiva
racializada, visa superar as desigualdades e opressões que historicamente têm sido
impostas aos povos indígenas.

Na Colômbia, por exemplo, desponta uma experiência singular. A Jurisdição


Especial para a Paz (JEP), integrante do Sistema Integral de Verdade, Justiça,
Reparação e Não Repetição do país. A JEP, ao se deparar com a complexidade do
passado, assume um papel central na transição para um novo capítulo na história
colombiana, apesar dos altos e baixos.

Em termos de precedente histórico, o que torna essa experiência ainda mais


marcante é o enfoque étnico-racial que a permeia. Nesse sentido, não se trata
apenas de aplicar a justiça de maneira abstrata, mas também de assegurar que as
vozes das vítimas pertencentes aos diversos povos étnicos sejam ouvidas e
respeitadas.

Neste enfoque, métodos para promover um diálogo horizontal e não subordinado


são delineados juntamente com ações destinadas a fomentar a interculturalidade,
a interação recíproca entre distintos sistemas de justiça e a coordenação
interjurisdicional (JEP, 2021).

Uma das materializações do enfoque étnico-racial consiste em incorporar: “[...] nas


ações cotidianas da JEP, [...] proposições para possibilitar a garantia efetiva dos
direitos dos Povos Indígenas, Rrom (ou Ciganos), Negros, Afrocolombianos,

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estratégico decolonial

Raizal e Palenquero” (JEP, 2021, p. 9, tradução nossa) – além de reconhecer o


sujeito coletivo de direitos, bem como a reparação coletiva territorial (JEP, 2021)7.

Baxter (2009, p. 235) aponta para as limitações e ausências de interlocuções no


campo de estudo da justiça de transição, ressaltando a “falta de redes estabilizadas
especializadas”. Diante desse cenário, este tópico buscou propor o que denominei
de “campos de reflexão” (Magalhães, 2021): espaços de encontro que reúnem
diversas perspectivas críticas, com o objetivo de repensar a justiça de transição,
principalmente no que se refere à invisibilização de determinados sujeitos e à
persistente marginalização que ainda persiste.

Esses “campos de reflexão” são espaços de diálogo e debate, nos quais se busca
ampliar as fronteiras do conhecimento sobre justiça de transição. Neles diferentes
vozes e experiências são acolhidas e valorizadas, permitindo uma compreensão
mais aprofundada dos desafios e dilemas presentes nesse campo. A partir desse
encontro de saberes críticos, é possível questionar as lacunas existentes, as falhas
nas interações e as inconsistências nas redes de conhecimento estabelecidas.

A proposta dos “campos de reflexão” é estimular uma abordagem mais


colaborativa na busca por respostas e soluções no âmbito da justiça de transição.
Ao reconhecer que a complexidade desse campo exige uma perspectiva
multidisciplinar, na qual diferentes disciplinas, como o direito, a história, a
filosofia, a antropologia, a psicologia e tantas outras, possam contribuir com suas
análises e conhecimentos específicos. Por meio dessa interação entre saberes
diversos, será possível superar as limitações e avançar na construção de um
entendimento mais amplo e profundo sobre justiça de transição.

Os “campos de reflexão” não se limitam a meras discussões teóricas, mas têm o


potencial de impulsionar ações concretas e transformadoras. Eles representam um
convite para repensar e reimaginar os processos de transição.

7 Ver mais em: “Lineamientos para la Implementación del Enfoque Étnico Racial em la Jurisdicción Especial
para la Paz” (2021).

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Quadro 2
Categorias temáticas à justiça de transição

Tematizações Dimensões teóricas Dimensões analíticas


Enquadramentos “Devemos nos perguntar em que No âmbito da justiça de transição
justransicionais. condições torna-se possível é possível falar em
apreender uma vida, ou um enquadramentos, como é o caso
conjunto de vidas, como precária, dos grupos tidos como
e em que condições isso se torna ‘minoritários e/ou ‘vulneráveis.
menos possível” (Butler, 2017, p. Vez que, os processos de
14-15). verdade, memória e justiça,
“Assim, há ‘sujeitos’ que não são deram eco sistemático as
exatamente reconhecíveis como violações urbanas de direitos, de
sujeitos e há ‘vidas’ que homens (em sua maioria
dificilmente – ou, melhor dizendo, brancos), grandes figuras
nunca – são reconhecidas como políticas, líderes e militantes.
vidas” (Butler, 2017, p. 17). Assim, existem sujeitos que não
são reconhecidos e vidas que
sequer serão reconhecidas como
vidas. Dessa maneira, foi
relegado aos povos indígenas o
lugar da subalternidade.
Por uma justiça “[...] a importância da memória na A perspectiva de uma justiça
anamnética ou justiça se mede pelo fato de anamnética para a justiça de
justiça das vítimas. considerarmos apenas as transição se mostra necessária
desigualdades existentes como para o enfrentamento das
meras desigualdades; [...] então, o disfunções hierárquicas
original da teoria da justiça presentes em seu escopo, como
anamnética da justiça é que ela também da negação da
considera desigualdades como experiência das vítimas, em
injustiças” (Mate, 2009, n.p.). especial aos grupos minorizados.
Sendo a memória o eixo
estruturante para a efetivação da
justiça.
Justiça étnico- “[...] a justiça coletiva, em contraste As violações de Direitos
coletiva em com a justiça transicional, procura Humanos dos povos indígenas
perspectiva reparar os danos causados pelas estão ligadas às questões
racializada. violações históricas e maciças de territoriais. A utilização do juízo
direitos que resultaram em crítico étnico-coletivo se mostra
relações desiguais entre grupos importante como componente
étnicos” (Garavito; Lam, 2011, p. para a reparação no âmbito da
17, tradução nossa). justiça de transição; ao
concentrar seus esforços em
formatos específicos, aqueles
adequados às demandas dos
povos indígenas.

Fonte: Elaborado pelo autor, 2023.

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estratégico decolonial

4 A Comissão de Anistia como burocracia colonial

Em 2019, após enfrentar algumas dificuldades, tive a oportunidade de realizar


pesquisa empírica no acervo da Comissão de Anistia, localizada na cidade de
Brasília (DF). Nessa pesquisa, pude identificar um número limitado de processos
de requerimento de anistia ou pedido de reparação relacionados aos povos
indígenas. Surpreendentemente, apenas 138 processos estavam registrados nesse
sentido (Magalhães, 2021).

Dessas solicitações, apenas 15 processos foram deferidos pelo mecanismo


reparatório, demonstrando uma porção ínfima em relação total. Entre os processos
deferidos, 14 eram individuais e estavam relacionados aos indígenas do Povo
Aikewara, enquanto um processo era referente ao indígena Tiuré Potiguara. Além
disso, foram encontrados 2 processos indeferidos, 7 arquivados e 114 em trâmite
(Magalhães, 2021).

Esses números revelam uma realidade preocupante e levantam questionamentos


sobre a efetividade e a abrangência das políticas de reparação destinadas aos povos
indígenas que foram vítimas de violações de direitos durante períodos de
repressão e autoritarismo. A baixa quantidade de processos evidencia a
necessidade de uma análise mais profunda sobre os critérios e as barreiras
enfrentadas pelos povos indígenas no acesso à justiça de transição.

A análise dos dados revela uma realidade sintomática: os povos indígenas ocupam
uma posição social de subalternidade no contexto político e jurídico da justiça de
transição. Essa constatação corrobora com a hipótese de que esse processo, em
busca pela verdade, não conseguiu romper efetivamente com dinâmicas coloniais
que permeiam a sociedade. Pelo contrário, os resultados evidenciam a existência
de práticas opressivas, subalternizantes e segregacionistas que continuam a afetar
os povos indígenas.

A injustiça e marginalização enfrentadas pelos povos indígenas são reflexos de um


sistema estrutural que perpetua desigualdades e violações de direitos. A falta de
reconhecimento e visibilidade dessas comunidades nas agendas transicionais
revela a persistência de uma mentalidade colonial que continua a impor sua lógica
hierárquica e excludente.

Ao observar o contexto de transição democrática, torna-se evidente que os povos


indígenas são alvo de um tratamento diferenciado, marcado por uma dinâmica
que envolve as chamadas ‘formas jurídicas’ e as ‘estratégias de dominação’. Essa
realidade revela a influência direta da lógica colonial, que se manifesta por meio

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106 Alex Bruno Feitoza Magalhães

de uma série de disfunções hierárquicas, resultando em imposições de


subalternidade e vulnerabilidade sobre esses povos.

A relação entre transição democrática e a condição dos povos indígenas é


complexa e multifacetada. Por um lado, a chegada de um novo regime político
abre possibilidades de mudança e avanço na garantia dos Direitos Humanos. Por
outro lado, essas mudanças muitas vezes não são capazes de romper com as
estruturas coloniais enraizadas na sociedade.

Dessa maneira, as formas jurídicas adotadas nesse processo de transição nem


sempre são sensíveis às necessidades e demandas dos povos indígenas. Em vez de
promover a justiça e a igualdade, essas estruturas podem perpetuar desigualdades
e privilégios, reforçando assim a dinâmica de dominação e subordinação.

A abordagem tradicional dos eixos da memória, verdade, justiça e reparação pode


não ser suficiente para abarcar a complexidade das violações sofridas pelos povos
indígenas. Essa abordagem em alguns casos negligencia as especificidades
culturais e históricas desses povos, deixando de reconhecer e valorizar suas
perspectivas.

Entre as páginas marcadas pelas sombras da ditadura militar, encontra-se o Povo


Indígena Aikewara. Eles foram pioneiros a obterem esse reconhecimento, uma
vitória que deveria ter sido coletiva, abraçando todo território que foi vítima do
período de exceção. Tal caso abriu caminho para a construção de precedentes
importantes, ecoando um clamor por justiça que não pode ser ignorado.

A Comissão de Anistia agora enfrenta a tarefa de analisar e avaliar os 68 pedidos


de reparação ainda em trâmite, representando a busca incansável por uma
reparação histórica e o reconhecimento dos danos causados aos Aikewara
(Magalhães, 2021).

Após análise dos dados coletados, uma verdade se revelou. Em um âmbito de


urgência e reparação, apenas 6 etnias indígenas estão representadas no Acervo da
Comissão de Anistia. Potiguara, Aikewara, Krenak, Guyraoká, Parakanã e Kayapó
(Magalhães, 2021). Essas são as existências e vozes que emergem das sombras do
passado buscando justiça e reconhecimento.

Entre esses indígenas, destaca-se um indígena cujo nome ecoa pela história: José
Humberto Nascimento, conhecido como Tiuré Potiguara. Ele foi o primeiro a abrir
caminho e acionar a Comissão de Anistia, compartilhando sua história de
perseguição, prisão e tortura durante os sombrios tempos da ditadura militar.

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Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 107
estratégico decolonial

O indígena Tiuré Potiguara, nos anos de 1970 a 1983, enfrentou bravamente à


exploração e a extinção dos povos indígenas diante do projeto desenvolvimentista
dos militares. Sua resistência o levou ao exílio forçado no Canadá, buscando
proteção e abrigo em terras estrangeiras.

Durante seu tempo como ex-funcionário da Fundação Nacional do Índio (FUNAI),


testemunhou a atuação contraditória do órgão que, em teoria, deveria proteger e
salvaguardar os interesses dos povos indígenas. As contradições e falhas desse
órgão foram tão evidentes que Tiuré decidiu abandonar seu emprego, tornando-
se um defensor engajado na luta contra o Estado autoritário e suas políticas de
opressão.

Sua coragem e compromisso renderam-lhe o status de refugiado político,


concedido pela Organização das Nações Unidas (ONU). Tiuré Potiguara tornou-
se um símbolo da resistência indígena, lutando pela preservação da sua cultura e
direitos.

No vasto acervo da Comissão de Anistia, entre os processos em trâmite, surge uma


constatação problemática: a representação indígena está limitada às demandas
individuais de reparação dos Aikewara, totalizando 68, dos Parakanã, com 24, dos
Kayapó, com 20 processos. Além dos processos coletivos: 1 para os Krenak e 1 para
os Guyraoká (Magalhães, 2021).

Esses números, embora sejam importantes passos em busca de justiça, contrastam


fortemente com os dados revelados pelo Relatório da Comissão Nacional da
Verdade (CNV) no capítulo “Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas”.
Nesse capítulo estimou-se que pelo menos 8.350 indígenas perderam suas vidas
durante a ditadura militar. Essa cifra impressionantemente expõe uma
disparidade alarmante em relação aos 430 mortos e desaparecidos políticos não
indígenas, vítimas das ações ou omissões, dos agentes estatais.

Refletir sobre a Comissão de Anistia como “tecnologia e/ou burocracia colonial”


(Magalhães, 2021) nos leva a questionar a própria natureza desse processo e como
ele se relaciona com a busca por justiça. É interessante notar que muitas vezes as
pessoas que recorrem à Comissão não necessariamente precisam de um advogado,
já que a Comissão não é um órgão judicial. No entanto, elas acabam buscando
assistência jurídica e adotando uma linguagem formal semelhante a uma petição
inicial. Como se o sofrimento precisasse se encaixar nesse processo.

O direito, nesse caso, cria um filtro, perpetuando uma violência epistêmica e


colonial em relação a essas pessoas, especialmente os grupos étnico-raciais. Isso
ocorre devido à racionalidade moderna que orienta o debate justransicional e a

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108 Alex Bruno Feitoza Magalhães

própria noção de justiça de transição, que se encontra inserida em todo o


arcabouço dos Direitos Humanos.

Em suas deliberações, o presidente da Comissão de Anistia concedeu ênfase à


compreensão dos “atos de exceção” no Caso dos Aikewara, levando em
consideração a cruel realidade de “extirpação do convívio familiar”. Essa análise
se baseou também nas práticas de invasão territorial, no trabalho forçado durante
as operações de desmantelamento da Guerrilha do Araguaia e nos profundos
danos físicos, materiais e psicológicos suportados. Essa conjuntura foi reconhecida
pela vice-presidente do órgão como “ambiente de exceção”.

Em meio as discussões sobre a atuação da Comissão de Anistia, surge a perspectiva


de Ferraz (2019), que chama atenção para a limitação imposta pelos critérios legais
no reconhecimento da experiência de tortura vivida pelos Aikewara (em meio não
urbano). Para ela é paradoxal que a prática de tortura seja considerada um ato de
exceção apenas quando ocorre nos sombrios “porões” urbanos. A concepção de
anistia política e sua consequente reparação econômica individual foram regidas
pelos critérios processuais estabelecidos na legislação vigente, exigindo a
identificação de atos de exceção perpetrados de forma individualizada, bem como
a comprovação da perseguição política como justificativa (Ferraz, 2019).

A Comissão de Anistia evidenciava uma limitação em reparar coletivamente as


graves violações de Direitos Humanos enfrentadas pelos povos indígenas. Ao
contrariar a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que
reconhece a importância da cosmovisão coletiva desses povos em suas decisões, a
Comissão limitava-se aos parâmetros de reparação individual estabelecidos pela
Portaria nº 2.523/2008.

Essa abordagem individualizada da reparação ia de encontro às narrativas e


experiências coletivas desses povos. Bauer (2014) ressalta que a sociedade como
um todo foi vítima da instrumentalização de um Estado de terror, cujas estratégias
de opressão afetaram diversas pessoas. Nesse sentido, a reparação não pode ser
pensada como uma atividade meramente individual, desconsiderando a dimensão
coletiva dessas violações.

A Comissão de Anistia, ligada à Assessoria Especial da Defesa da Democracia,


Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC),
passou por alterações em sua composição com a designação de novos membros
por meio das Portarias nº 31 (de janeiro de 2023) e nº 121 (de 23 de fevereiro de
2023). Dentre as nomeações destaca-se a inclusão inédita de uma representante

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estratégico decolonial

indígena e, pela segunda vez, de uma mulher negra (Almeida; Viana; Carneiro,
2023).

Assim, a nova Comissão de Anistia, por intermédio do regimento interno


aprovado pela Portaria nº 177 (de 22 de março de 2023), possibilitou a inclusão de
reparação coletiva e a reavaliação de casos anteriormente indeferidos. Dessa
maneira, abre-se espaço significativo para o exame e discussão acerca da reparação
coletiva no Brasil, e, por conseguinte, potencialmente, para a consideração da
reparação econômica de maneira equivalente8.

As perspectivas do juízo crítico étnico-coletivo (JEC), conforme proposta por


Garavito e Lam (2011), e o enfoque étnico-racial da Jurisdição Especial para a Paz
(JEP), apresentam-se como instrumentos relevantes para orientar as reparações no
âmbito da Comissão de Anistia. Ao considerar a estrutura analítico-normativa
dessas perspectivas, torna-se viável contemplar uma abordagem crítico-sensível
que se estenda a todas as formas de reparação, com particular ênfase nas questões
ligadas à terra, ao território e à coletividade.

Ressalta-se que a JEC e a JEP têm recebido pouca atenção nas discussões e políticas
de reparação das vítimas, principalmente no âmbito da justiça de transição e justiça
social. Isso evidencia a necessidade de um maior engajamento com essas
abordagens, em busca de valorizar as perspectivas e demandas dos povos
indígenas e comunidades tradicionais.

As medidas reparatórias baseadas na justiça étnico-coletiva exigem uma


abordagem sensível e ampla, levando em consideração quatro critérios
fundamentais para sua efetivação, conforme apontado por Garavito e Lam (2011).

O primeiro critério é o estabelecimento de um diálogo contínuo com o grupo étnico


afetado, permitindo que eles exerçam certo controle sobre a implementação das
medidas. Ao reconhecer a importância da participação ativa e do empoderamento
do grupo na definição e no acompanhamento do processo de reparação.

O segundo critério trata do respeito à identidade cultural específica do grupo


étnico. Cada comunidade possui suas próprias tradições, práticas e valores
culturais, que devem ser respeitados e considerados ao elaborar medidas
reparatórias. Nesse caso, implica em reconhecer a singularidade de cada grupo e

8 Ver mais em: “Anistia Política Coletiva - Reflexões sobre uma nova perspectiva da Justiça de Transição
no Brasil” (2023), de autoria de Eneá de Stutz E. Almeida, Thiago Gomes Viana e Maíra de Oliveira
Carneiro.

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evitar a imposição de soluções uniformizadas que possam comprometer sua


identidade cultural.

O terceiro critério ressalta a importância de considerar a dimensão coletiva das


violações sofridas pelo grupo étnico. Muitas vezes, as violações de Direitos
Humanos afetam não apenas indivíduos isolados, mas toda a comunidade,
causando danos coletivos e prejudicando sua coesão social. Nesse sentido, as
medidas reparatórias devem levar em conta as necessidades e aspirações coletivas,
buscando promover a restauração das relações comunitárias e fortalecendo a
solidariedade entre os membros do grupo.

Por fim, o quarto critério destaca a necessidade de entender que cada comunidade
possui demandas e necessidades únicas, que devem ser consideradas ao definir as
medidas de reparação. Por meio de uma abordagem flexível, capaz de se adaptar
às particularidades de cada grupo, levando em conta fatores como história,
cultura, território e organização social.

Maldonado-Torres (2005) destaca o movimento teórico-prático-político de


resistência epistemológica diante da lógica da colonialidade, nomeando-o como
“Giro decolonial”. Segundo o autor, é importante reconhecer, em primeiro lugar,
que as formas de poder e dominação coloniais são diversas. E, posteriormente,
buscar alternativas a essas realidades.

A descolonização da Comissão de Anistia não se limita à desconstrução de sua


estrutura colonial, é necessário buscar a reciprocidade em seus processos,
especialmente na escuta atenta e respeitosa das vozes subalternas. A justiça não
pode ser apenas focada no culpado, relegando as vítimas a um papel secundário
de meros instrumentos probatórios (Zamora, 2013). Precisa-se reconhecer que as
vítimas são testemunhas de seu próprio sofrimento e suas narrativas devem ser
valorizadas.

A Comissão de Anistia, em seu caminho em direção à descolonização deve se abrir


para a escuta dos relatos das vítimas, proporcionando um espaço seguro onde
possam expressar suas experiências e terem suas histórias validadas. A escuta
atenta e respeitosa é uma ação de reconhecimento da humanidade das vítimas,
permitindo que sejam ouvidas em sua totalidade, para além da mera confirmação
de culpa do perpetrador.

A reciprocidade nos processos de justiça de transição implica em reconhecer a


importância das vozes subalternas e assegurar que sejam tratadas como sujeitos
ativos na busca por justiça e reparação. Não se trata apenas de receber seus
testemunhos, mas de proporcionar um espaço onde possam expressar suas dores,

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Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 111
estratégico decolonial

lutas e esperanças – é um convite para que essas vozes sejam valorizadas e que a
escuta seja um ato transformador, capaz de gerar empatia, compreensão e
mudança.

Nessa direção, Mate (2009) destaca a relevância de colocar às vítimas no centro do


processo, questionando conceitos como ‘reconciliação’ e ‘perdão’. Para ele, a
reconciliação não deve ser imposta pela esfera nacional, mas surgir do contexto
social em que as vítimas estão inseridas, levando em consideração sua vivência e
importância. Ao resgatar o protagonismo das vítimas e reconhecer sua voz como
fundamental nesse processo.

Enxergar a justiça a partir da perspectiva das vítimas é um ato de reconhecimento


dos saberes que elas trazem, é um feito epistêmico que desafia as narrativas
dominantes e coloca em destaque as experiências vividas por aqueles que foram
afetados pelas violações de Direitos Humanos. Ao pavimentar essas vozes e
permitir que elas sejam ouvidas, estamos rompendo com a lógica de silenciamento
e invisibilização que muitas vezes permeia os processos de justiça transicional.

Tais desafios conduzem a pensar como a justiça de transição se estabeleceu, ao


transformar a reparação monetária em um mecanismo que pode, incoerentemente,
fomentar o esquecimento/amnésia. Será que a abordagem centrada
exclusivamente na reparação não serve apenas para encobrir as violações
cometidas? Ou a ênfase na compensação econômica não acaba reforçando, mais
uma vez, dinâmicas coloniais?

O testemunho e a experiência das vítimas devem ocupar um lugar central na busca


por reparação da Comissão de Anistia, pois são narrativas que transcendem meros
pedidos formais de compensação. Sendo fundamental reconhecer a importância
dessas histórias e propor um espaço adequado para que sejam compartilhadas.

Como aponta Welchert (2015), os testemunhos dos povos indígenas permanecem


invisíveis, negligenciados em meio à opressão vivenciada em prisões indígenas,
doenças e epidemias intencionalmente propagadas, torturas nos troncos e
estuprados sexualmente. Essas vozes clamam por atenção, por serem ouvidas e
reconhecidas em sua dor.

Nesse sentido, a democracia brasileira, apesar de ter surgido como um novo


capítulo na história do país, ainda carrega as marcas e influências das estruturas
que sustentaram a ditadura militar. Essa constatação revela que a transição política
não foi capaz de romper completamente com os resquícios autoritários do passado
e transformar a cultura jurídica arraigada na organização do Estado e na sociedade
como um todo (Santos, 2010; Macêdo, 2021).

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Quadro 3
A Comissão de Anistia como tecnologia e/ou burocracia colonial

Tematização Pontuações Tensões


A comissão de O processo de reparação das Embora a questão territorial
Anistia como graves violações de Direitos desempenhe um papel central nas
tecnologia e/ou Humanos é passível de crítica, violações de Direitos Humanos
burocracia colonial. especialmente no tocante ao dos povos indígenas, a Lei de
procedimento de escuta desses Anistia não contempla abordagens
processos. coletivas para a reparação.
Entretanto, vale ressaltar uma
evolução positiva nesse cenário,
uma vez que a Comissão de
Anistia, por meio da revisão do
seu regimento interno, incorporou
a perspectiva da reparação
coletiva e o reexame de processos
anteriormente indeferidos.
Apesar de ser um órgão de A Comissão de Anistia, restrita à
característica jurídica, não é um legislação, não equipara a
tribunal, mas, ao final, assume experiência indígena como prática
racionalidade tribunalesca. de tortura ou perseguição política,
Além de ser marcada pela por entender que estas ocorreram
estagnação em sede de pedido de forma individualizada e no
de anistia e/ou reparação dos meio urbano.
povos indígenas.
A amnésia é o sustentáculo da Os danos físicos, materiais e
ênfase meramente econômica psicológicos, as práticas de
da reparação; e que pode estar invasão, deslocamento forçado,
relacionada com as estruturas remoção e trabalho escravo sofrido
coloniais, mesmo após o fim pelos indígenas foram reputados
das suas administrações. como ‘ambiente de exceção’ e não
como ‘atos de exceção’.

Fonte: Elaborado pelo autor, 2023.

Considerações finais

Em minhas reflexões, percebo que a ditadura militar utilizou estruturas e práticas


autoritárias que refletem códigos coloniais e imposições de subalternidade. Essa
realidade levanta preocupações sobre um possível cenário de (re)colonização dos
povos indígenas. Ao analisar as narrativas testemunhais dos Aikewara, fica
evidente a presença de dinâmicas marcadas por elementos como condição de
existência, subalternização, apagamento e silenciamento, todos relacionados à
lógica colonial que permeia as relações de raça, racismo e poder estabelecidos ao
longo da história.

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Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 113
estratégico decolonial

Ao adentrar nas narrativas testemunhais dos indígenas Aikewara, fui levado a


refletir sobre categorias e formas de subsunção impostas pela lógica colonial-
ditatorial. Elementos que se entrelaçam e revelam a natureza colonial dos agentes
que compunham a ditadura militar, bem como as representações coloniais que
permeavam a subjetividade indígena. Nesse contexto também surgem discussões
sobre o controle colonial exercido pelos corpos e suas repercussões de gênero. Essa
conjuntura se apresenta como “reinvenções ditatoriais da lógica colonial”
(Magalhães, 2021), manifestando-se de forma autoritária e opressiva. Ao analisar
essas narrativas, me deparei com a complexidade dessas relações, que me
desafiaram a repensar e desmantelar as estruturas que perpetuam essa lógica, em
busca de uma sociedade mais inclusiva e emancipatória.

Na busca por uma justiça de transição mais sensível às demandas de grupos


historicamente marginalizados, surge a necessidade de estabelecer “campos de
reflexão” que ampliem o debate e a compreensão desse processo – reunir aportes
críticos que questionem estruturas vigentes e proponham novas perspectivas.

Dentre esses campos, destaco o papel de identificar e analisar os “enquadramentos


justransicionais” presentes na programação da justiça de transição. Esses
enquadramentos se referem às formas como os diferentes grupos e suas
experiências são considerados e abordados nesse contexto, levando em conta suas
particularidades e necessidades específicas.

Além disso, a adoção de uma justiça anamnética se mostra essencial. Esse tipo de
justiça coloca a memória como elemento central nos processos de enfrentamento
das injustiças e violações de direitos; que não se limite apenas a aspectos legais,
mas que também leve em consideração a dimensão humana e emocional das
vítimas.

A criação de uma Comissão da Verdade dos Povos Indígenas ou Comissão


Indígena da Verdade se mostra pertinente, visando observar quais
saberes/práticas são indispensáveis para a efetiva implementação de dispositivos
dialógicos. Essa abordagem objetiva evitar a reprodução e perpetuação de
dinâmicas coloniais relacionadas à justiça de transição.

E a incorporação de um juízo ético-racial-coletivo nos processos de reparação; que


significa considerar não apenas os danos individuais, mas também as
consequências coletivas das violações de direitos. Propiciando uma abordagem
atenta às dinâmicas de grupo, as relações de poder e a necessidade de reparação
não apenas do indivíduo, mas também do povo e/ou comunidade afetada.

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114 Alex Bruno Feitoza Magalhães

Sobre a Comissão de Anistia e seu papel na busca pela justiça e reparação, surge a
necessidade de questionar suas estruturas e práticas em relação às dinâmicas
coloniais que ainda permeia seus processos. A descolonização desse órgão vai
além de uma mera desconstrução superficial, é preciso buscar a reciprocidade e a
escuta ativa das vozes subalternas.

Precisa-se que o testemunho e a experiência das vítimas ocupem um lugar central


na programação reparatória da Comissão. Suas narrativas, muitas vezes invisíveis
e além das palavras, são essenciais para compreender a extensão do sofrimento
vivido. Não se deve limitar a reparação apenas aos pedidos formais, mas abrir
espaço para a narratividade desse sofrimento, permitindo que as vítimas sejam
ouvidas e acolhidas em plenitude.

Ao ingressar na temática da justiça de transição, vislumbrei a possibilidade de


identificar novas categorias temáticas que podem contribuir para um debate mais
amplo e profundo. Essa busca por um léxico estratégico decolonial permite
questionar as estruturas e os paradigmas, à luz da matriz colonial que moldou as
relações de poder.

Por fim, diante das narrativas testemunhais dos Aikewara, presente nos processos
da Comissão de Anistia, fui levado a pensar sobre as possíveis implicações de uma
“colonialidade justransicional”. Tal análise têm me permitido compreender como a
matriz colonial do poder permeia e influencia as dinâmicas sociais e políticas.

A partir dessa perspectiva, observa-se que as colonialidades do poder, do ser e do


saber são desdobramentos da matriz colonial. Elas se manifestam de diferentes
maneiras e resultam em diversas formas de subjugação e opressão. Uma delas é a
colonialidade de gênero, que reforça as desigualdades hierárquicas baseadas no
gênero.

No contexto brasileiro, essa colonialidade – justransicional – se entrelaça com as


formas jurídicas, o controle político, o imaginário social e a estratégia de
dominação das vítimas.

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Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 119
estratégico decolonial

Sobre o autor
Alex Bruno Feitoza Magalhães
Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco
(PPGD/UFPE). Mestre em Direitos Humanos - Universidade Federal de
Pernambuco (PPGDH/UFPE). Especialista em Filosofia e Teoria do
Direito - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas).
Graduado em Direito - Centro Universitário do Vale do Ipojuca
(Unifavip). Integrante dos Grupos de Pesquisa: Desigualdades, Lutas
Sociais e Democracia no Sul Global (UFPE), Contemporaneidade,
Subjetividades e Novas Epistemologias (G-pense/UPE) e Educação em
Direitos Humanos: políticas, currículo e práticas no ensino superior
jurídico do sertão de Pernambuco (UPE). Extensionista do Programa de
Apoio e Acompanhamento para Acesso à Pós-Graduação Stricto Sensu
- Pré-Pós Paulo Freire (UPE). Bolsista CAPES.

_________________
Agradecimentos
Gostaria de expressar meu sincero agradecimento aos professores Jayme
Benvenuto (UFPE) e Fernando Cardoso (UPE) por suas valiosas orientações
durante a elaboração deste trabalho.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.49488

dossiê

Hermenêutica negra para pensar a tutela


jurídica dos quilombos urbanos
Hermenéutica negra para pensar la protección
jurídica de los quilombos urbanos

Black hermeneutics to reflect about the legal


protection of urban quilombos

Maria Luiza Rodrigues Dantas1


1
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em
Direito, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6407-8358.

Lilian Márcia Balmant Emerique2


2
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em
Direito, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected].
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3944-3872.

Submetido em 30/06/2023
Aceito em 13/11/2023

Como citar este trabalho


DANTAS, Maria Luiza Rodrigues; EMERIQUE, Lilian Márcia Balmant. Hermenêutica
negra para pensar a tutela jurídica dos quilombos urbanos. InSURgência: revista de
direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 121-141, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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122 Maria Luiza Rodrigues Dantas - Lilian Márcia Balmant Emerique

Hermenêutica negra para pensar a tutela


jurídica dos quilombos urbanos

Resumo
O questionamento se inicia desde a instrumentalização da propriedade quilombola no
ordenamento jurídico pátrio. Para adentrar na investigação foi necessário compreender
como a universalização do direito empreendeu a subalternização do saber negro e como o
contexto sociopolítico brasileiro interveio na percepção da territorialidade quilombola. A
pesquisa é essencialmente qualitativa, bibliográfica e construída a partir de um trajeto
metodológico atravessado por saberes diversos, os quais, em seu interior, dialogam entre
si, incidem em uma proposta disruptiva à produção do conhecimento jurídico positivado.
Assim, concluiu-se que a territorialidade, para as comunidades quilombolas,
independentemente de ser em contexto rural ou urbano, está relacionada ao território,
ancestralidade e cultura.
Palavras-chave
Quilombo. Hermenêutica jurídica. Urbano. Territorialidade.

Resumen
El cuestionamiento empieza con la instrumentalización de la propiedad quilombola en el
ordenamiento jurídico del país. Para entrar en la investigación, fue necesario comprender
cómo la universalización del derecho he comprometido la subalternización del saber negro
y cómo el contexto sociopolítico brasileño intervino en la percepción de la territorialidad
quilombola. La investigación es esencialmente cualitativa, bibliográfica y construida a
partir de un camino metodológico atravesado por conocimientos diversos, que, en su
interior, dialogan entre sí, enfocan una propuesta disruptiva a la producción de
conocimiento jurídico positivo. Así, se concluyó que la territorialidad, para las
comunidades quilombolas, independientemente de que se encuentren en un contexto rural
o urbano, está relacionada con el territorio, la ascendencia y la cultura.
Palabras-clave
Quilombo. Hermenéutica jurídica. Urbano. Territorialidad.

Abstract
The question starts from the instrumentalization of quilombola property in the national
legal system. To enter into the investigation it was necessary to understand how the
universalization of the direction undertakes the subalternization of black knowledge and
how the Brazilian sociopolitical context intervenes in the perception of quilombola
territoriality. The research is essentially qualitative, bibliographic and constructed from a
methodological suit traversed by diverse knowledge, as it is, in its interior, dialogue among
itself, it affects a disruptive proposal in the production of positive legal knowledge. Thus,
it is concluded that territoriality, for quilombola communities, regardless of being in a rural
or urban context, is related to territory, ancestry and culture.
Keywords
Quilombo. Legal hermeneutics. Urban. Territoriality.

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Hermenêutica negra para pensar a tutela jurídica dos quilombos urbanos 123

Introdução

As violações aos direitos do povo negro sofridas durante os mais de 500 anos de
escravidão no Brasil, têm como contraponto outros direitos consagrados, como o
direito à territorialidade, consolidado pela Convenção nº 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 20021. No ordenamento
jurídico pátrio, essa proteção que reconhece às comunidades quilombolas direitos
territoriais é firmada pela Constituição Federal de 1998 (Brasil, 1998), no art. 68 do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).

A consolidação desses direitos fundamentais, refletem o histórico de luta das


comunidades remanescentes de Quilombos após a abolição da escravatura,
reenquadrando os novos espaços de luta posteriormente ao terem deixado de ser
a mercadorias, o propósito da articulação voltou-se para a disputa em torno da
terra (Marés, 2010). Os colonizadores não buscaram regulamentar as terras
quilombolas, tornando-as objeto de cobiça de grandes proprietários de terras
(Baldi, 2014).

Para corroborar com o processo de demarcação e territorialização das


comunidades quilombolas, o Decreto nº 4.887/2003 buscou reconhecer a existência
quilombola e regularizar seus direitos desde a abolição da escravatura (Brasil,
2003). Apesar disso, os estudos acerca dos povos tradicionais e os conflitos
socioambientais, quando realizados no campo jurídico, limitam-se a uma
abordagem rural.

Na academia há pouco diálogo sobre as vivências dos povos tradicionais na


cidade. Entretanto, esses povos, num contexto urbano, tendem a sofrer maiores
impactos socioambientais do desenvolvimento, em virtude da apropriação dos
territórios para a especulação imobiliária e obras de infraestrutura com a iniciativa
privada (Berner; Melino, 2016).

1 Conferir Convenção 169 OIT parte II – Terras (art. 13 ao 19). Em particular art. 14: “Artigo 14 1.
Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as
terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas
medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam
exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas
atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à
situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes. 2. Os governos deverão adotar as
medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados ocupam
tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse. 3.
Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para
solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados.”

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A pesquisa buscou adotar um método híbrido de diálogo a partir da perspectiva


descolonial. Tal percurso metodológico destaca a diversidade de alternativas, em
contraponto aos limites propostos pelo pensamento hegemônico colonial
(Calderón, 2017). A partir de um trajeto metodológico atravessado por saberes
diversos, os quais, em seu interior, dialogam entre si, incidem em uma proposta
de transgressão à produção do conhecimento jurídico positivado.

Para além disso, utilizou-se o método analético, do filósofo latino-americano


Enrique Dussel (1986), que problematiza a construção do “Outro” por Hegel e
amplia o método dialético, a partir da ‘Teoria da Libertação’ latino-americana. Para
isso, promove-se, à análise, apontamentos epistemológicos desvinculados da
matriz colonial. Nesse caso, exige-se uma visão descolonial dos sujeitos,
conhecimentos e instituições (Mignolo, 2017).

Assim, a pesquisa é bibliográfica, realizada em plataformas como Scielo, Portal de


Periódicos da Capes, Google Scholar e Red de Bibliotecas Virtuales de Ciencias
Sociales en América Latina y el Caribe. Nesse sentido, a abordagem da pesquisa
foi de caráter qualitativa, a partir de um diálogo transdisciplinar.

O problema que norteia a pesquisa é: “em que medida a hermenêutica negra pode
ser empreendida para problematizar a concepção de corpo e território na tutela
jurídica dos quilombos urbanos?”. Assim, o objetivo geral do trabalho é
compreender em que medida a hermenêutica negra pode ser empreendida para
problematizar a concepção de corpo e território na tutela jurídica dos quilombos
urbanos. Portanto, os objetivos específicos que norteiam a investigação são: a)
Estudar a universalização do direito a partir da colonização de saberes outros; b)
analisar a territorialidade no ordenamento jurídico brasileiro a partir da
hermenêutica negra; c) compreender o corpo-território para além da matriz
eurocêntrica.

A pesquisa qualitativa foi conduzida para reinterpretação das mensagens e a


compreensão de seus significados, utilizando-se da indução e a intuição como
suporte para inserção mais aprofundada dos fenômenos investigados (Moraes,
1999). Nesse sentido, recorremos a saberes pluriepistemológicos, em diálogo com
Adilson Moreira (2019), Sueli Carneiro (2005), Silvio Almeida (2020), Michel
Foucault (1999), Henri Lefebvre (2001).

Assim como Carlos Marés (2011) para ir além acerca da ‘função social da
propriedade’, Milton Santos para pensar a ‘urbanização do Brasil’ e
‘territorialidade (2006; 2013) e Abdias do Nascimento (1980) para pensar a questão

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quilombola para além da matriz eurocêntrica, assim como a ‘Hermenêutica Negra’


de Adilson Moreira (2019).

1 Universalização do direito e colonização de saberes


subalternizados

Para questionar a estrutura da colonialidade europeia, Lélia Gonzalez (1988),


instiga o interlocutor a perceber onde encontra-se a cultura negra no imaginário
popular. Assim, ela ressalta como o saber africano foi deslocado para classificações
como “Cultura popular” e “folclórica”. A partir disso, a autora, idealizadora do
termo “améfrica ladina”, critica o branqueamento do conhecimento, enquanto
única forma de saber possível.

Sueli Carneiro explica que o racismo opera como um disciplinador, ordenador e


estruturador das relações raciais e sociais. Assim, nas sociedades disciplinares, a
racialidade somou-se a outros dispositivos de poder os quais juntos, articulados e
ressignificados puderam empreender novas estratégias de poder (Carneiro, 2005).
Entretanto, este nega os vínculos entre os processos de dominação e exploração do
sujeito (Dantas, 2015).

Assim, o (necro)biopoder intercala uma hierarquia entre os corpos a qual retira


deles o reconhecimento como Ser Humano e, por isso, devem ser eliminados
(Bento, 2018). Essa divisão opera a partir de um poder que se define em relação a
um campo biológico, que se inscreve pelo controle e distribuição da espécie
humana em grupos e subdivisões da população (Spivak, 2010; Mbembe, 2016).

Sueli Carneiro, assim como Mbembe, utiliza em suas investigações o dispositivo


racial enquanto instrumento de dominação. Nesse sentido, o Outro dominado,
vencido, explorado expressa um ideal a este atribuído (Carneiro, 2005). Ao passo
que esta naturalização escancara a estratégia de naturalização de
inferioridade/subalternidade do Outro e promove uma justificativa para
desigualdade e pobreza dos grupos dominados (Spivak, 2010; Carneiro, 2005;
MBEMBE, 2016). Assim, as perspectivas descoloniais contribuem para as lutas
travadas durante séculos por parte da humanidade para afirmar o seu direito à
existência (Vergès, 2020, p. 25).

Além disso, Silvio Almeida (2020), ao trazer a leitura de Foucault para o campo
jurídico, analisando as questões pertinentes do racismo estrutural no direito,
descreve o poder como elemento intrínseco à realidade do direito. Acerca disso, o
autor propõe que ao considerar o “direito enquanto manifestação do poder”

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126 Maria Luiza Rodrigues Dantas - Lilian Márcia Balmant Emerique

(Almeida, 2020, p. 134) possibilita a compreensão de relações de poder correlatas


ao racismo (Almeida, 2020).

A elaboração da norma e a sua aplicação possuem contornos de proteção a partir


das experiências de violências que atuam sobre a ‘zona do ser’ (Pires, 2018; Fanon,
2008). Isso explicaria a naturalização de violências e legitimação pelo Estado de
violências institucionalizadas ‘na zona do não-ser’. Para instaurar uma sociedade
mais humanitária, seria necessário considerar o Outro enquanto sujeito de direito
(Pires, 2018).

Para atravessar esta discussão entre as relações raciais e o direito, Dora Lúcia
Bertúlio (1989) promove, em sua pesquisa, um estudo crítico entre o racismo e o
aparelho jurídico. A autora sugere que os costumes para os povos tradicionais não
se diferem do que a modernidade chama de direito. Ao problematizar essa
questão, a autora propõe que a única diferença entre ambos está no processo de
formação.

Através disso, é possível conceber que a modernidade universalizadora


operacionalizou a incapacidade de vislumbrar o direito além dos limites do
positivismo jurídico, além do direito estatal. A produção do direito foi estruturada
na dogmática liberal e individualista, sendo assim, o rigor do discurso jurídico foi
institucionalizado a partir da igualdade e segurança jurídica na aplicação do
direito, sem analogias ou outras figuras da retórica (Streck; Motta, 2018).

Assim foi construído o pensamento jurídico brasileiro, na crença da existência de


uma verdade absoluta, capaz de ser revelada pela atuação neutra e racional do
operador do direito, sem considerar as influências constantes referentes a crenças,
hábitos, estereótipos que influenciam o jurista diariamente (Streck, 2003; Bertúlio,
1989; Moreira, 2019).

Ao assumir métodos e técnicas rigorosas de conhecimento, o direito positivo faz


com que “os profissionais sejam condicionados à reprodução das premissas
assumidas como verdadeiras, sem capacidade crítica para ponderar suas
contradições e insuficiências, sem reflexão do conteúdo político implícito nessas
significações” (Dantas, 2022, p. 32). Dessa forma, o direito será interpretado a partir
de uma visão racialmente neutra, pois, de acordo com essa percepção, eclode na
verdadeira representação de justiça social (Moreira, 2019).

Assim, é evidente a necessidade de repensar a interpretação colonial e


universalista do direito. O racismo estrutural e a colonialidade europeia são
mecanismos que permeiam a estrutura jurídica, reforçando desigualdades e
perpetuando a marginalização de determinados grupos sociais (Almeida, 2020).

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A crítica aos pressupostos de neutralidade e universalidade da interpretação


jurídica revela a importância de considerar as influências culturais, sociais e
políticas que moldam a prática do direito. A hermenêutica negra surge como um
paradigma capaz de desafiar a visão hegemônica e eurocêntrica do direito,
buscando incorporar diferentes perspectivas e dar voz aos sujeitos historicamente
excluídos.

Nesse contexto, o intérprete do direito deve abraçar a diversidade e promover uma


leitura crítica das normas e instituições jurídicas, levando em conta as experiências
e conhecimentos de diferentes comunidades. Isso implica em reconhecer e
valorizar o conhecimento jurídico produzido por povos tradicionais, negros e
outros grupos historicamente subalternizados.

A crítica a essas preposições universalistas e neutras da interpretação do direito


devem ser consideradas para propor um caminho além da matriz hegemônica do
direito. A compreensão de novos direitos é intrínseca à inserção de novos sujeitos
na produção e construção do pensamento jurídico contemporâneo. Nesse sentido,
propomos, no próximo tópico, a hermenêutica negra como paradigma para
repensar a interpretação colonial do direito.

2 Hermenêutica jurídica, colonialidade e


territorialidades

A modernidade oportunizou essa transformação da terra em mercadoria, aliás, a


função social da propriedade foi cristalizada por fundamentos liberais os quais
defendiam o direito absoluto sobre a terra (Rolnik, 1995). O direito moderno liberal
considerou que “o uso é apenas um direito do proprietário, que pode exercê-lo ou
não, mas ainda que não o exerça, não o perde” (Marés, 2010). Nesse sentido, as
questões pertinentes à terra foram encontrando o processo de industrialização
(Lefebvre, 2001) e, assim, adquiriram a roupagem do contexto urbano.

Enquanto isso, a elite dominante brasileira procurava novas formas de


manutenção dos privilégios e aparelhamento do Estado. Nesse contexto,
impulsionou-se a imigração como solução ou até mesmo uma estratégia de
“embranquecimento”. O intuito da classe dominante era de preservação da posse
territorial, ou seja, a manutenção da posse das terras entre os indivíduos brancos
(Henning, 2016).

Ao passo que o aparato de controle social e manutenção do poder, a Lei de Terras


de 1850, oportunizou o acesso à terra apenas à indivíduos os quais permanecessem
no padrão de normalidade social. De acordo com Wenceslau (2007), o Governo

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brasileiro foi responsável pela manutenção do regime escravocrata devido à Lei de


Terras de 1850. Para a autora, a Lei operacionalizou o crescimento desigual da
cidade, assim, houve a expansão espacial da pobreza, desamparo e violência.

De acordo com Wenceslau (2017), essa conjuntura político-social instaurou o


aumento da procura pela cidade. Este número tornou-se cada vez mais
significativo, devido à busca por trabalho e moradia. Portanto, “a restrição, por
parte do Estado, ao acesso à terra pelos ex-escravos” legitima a europeização dos
centros urbanos brasileiros e sua consequente desafricanização. Além disso, o
capitalismo de terras das propriedades privadas brasileiras coincide com a da
libertação dos escravizados (Wenceslau, 2017).

Nesse sentido, Henri Lefebvre (2001) afirma que a industrialização caracteriza a


sociedade moderna e está intimamente amarrada aos efeitos da urbanização. A
cidade adquiriu diversas aparências e, com a epistemologia moderna, houve a
valorização da objetividade do conhecimento, e a concepção universal da
identidade, composta a partir de binarismos cartesianos - civilizado/primitivo - em
que o Norte global torna-se hegemônico e o Sul global é firmado numa posição de
subalternidade étnico-cultural criada pela colonialidade do poder (Mignolo, 2003).

A cidade moderna se construiu em aliança ao capitalismo e acúmulo de riquezas


(Lefebvre, 2001; Harvey, 2014). E, por isso, a defesa dos valores da propriedade se
torna de tal maneira o interesse político superior (Harvey, 2014). A urbanização no
Brasil foi pretérita, por isso havia muito mais o interesse na construção de cidades
do que na urbanização propriamente dita (Santos, 2013).

É nas cidades que a população se aglomera, na busca de emprego e renda e, a partir


dessa visão, muitos escravos e descendentes de escravos se deslocaram para as
cidades em busca de oportunidades. Assim, muitas cidades brasileiras foram
construídas subordinadas à expansão da agricultura comercial e exploração
mineral (Santos, 2013).

Deste modo, foram institucionalizadas práticas sociais excludentes direcionadas


às comunidades afrodescendentes. Essas práticas obstaculizam o direito de existir
A discriminação institucional invisibilizou as suas tradições a partir da negação do
acesso a direitos básicos, bem como o direito ao lugar (Mendes; Marques, 2020).

Esse cenário permite a compreensão de que o direito de propriedade,


constitucionalmente previsto, torna-se insuficiente se interpretado de forma
neutra e universal. Para tanto, é necessário perceber que ao negro foi destinado o
‘não-lugar’ e ‘não-Ser’. Dessa forma, percebe-se a perpétua expulsão das
comunidades negras dos ‘lugares’. Para eles foram dedicadas as regiões periféricas

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Hermenêutica negra para pensar a tutela jurídica dos quilombos urbanos 129

e morros, onde construíram as favelas e subúrbios. E esses espaços seriam


caracterizados pelo resto da população como territórios negros e marginais.

Segundo os ensinamentos de Moreira (2017, p. 21), as afetações da brancura no


sistema jurídico-constitucional tomam forma no que ele chama Hermenêutica
Jurídica da Branquitude (HJB) sendo que esta consiste em toda hermenêutica
jurídica capaz de bloquear os avanços contra o racismo, a discriminação racial e a
descolonização do ser em relação à sua raça, ou seja, a HJB é o mecanismo pelo
qual, na oportunidade de interpretação, quando a matéria tem a ver com questões
raciais, a interpretação, na maioria das vezes alargada, perturbará o avanço do
combate ao racismo.

A HJB, para Moreira (2017), é a base ideológica (consciente ou inconsciente, direta


ou indireta) que se faz presente nos operadores legais latu sensu, ou seja,
acadêmicos, ministros, juízes, promotores, defensores públicos, advogados,
delegados e servidores da Administração Pública, em geral, de maneira que ao
analisar e/ou produzir algum regulamento e/ou posicionamento jurídico, não
raramente, plasmarão uma das formas do racismo institucional contribuindo para
a conservação do privilégio branco.

Como uma resposta ao problema da HJB, o autor propõe uma Hermenêutica


Jurídica do Subalterno (2017), ou mesmo pensar a partir de um giro hermenêutico
(2019) pelo qual o Direito deve ser concebido como um instrumento de
transformação social. Para isso, deve “incluir a situação social e política dos grupos
afetados por normas jurídicas e práticas sociais” (p. 33). Portanto, necessita da
noção dos efeitos da raça e das políticas raciais na análise jurídica, isto é, perceber
como o estado-nação foi planejado por meio do embranquecimento e da
desafricanização (Queiroz; Gomes, 2021).

Essa possibilidade de pensar o direito permite perceber a articulação racista na


formação Estado-nação brasileiro. Nesse sentido, o direito deve ser mobilizado
pelo intérprete para “eliminar, por meio da sua atuação, elementos da
normatividade social que permitem a preservação de atos públicos e privados
responsáveis pela exclusão” (Moreira, 2019, p. 139), bem como deve ser insubmisso
as táticas de ‘negação do negro’ instrumentalizados pela hierarquia social e
subalternização do povo negro (Queiroz; Gomes, 2021).

A intenção é reconhecer o direito enquanto instrumento de dominação, assim


como ferramenta de liberdade (Queiroz; Gomes, 2021). Por isso, é necessário
abandonar interpretações binárias e romper com a universalidade e neutralidade
em que as normas jurídicas outrora foram propostas. A proposta é incitar o saber

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subalterno e deslegitimado pela modernidade para perceber suas dimensões


dentro do direito.

Diante desse cenário, a Hermenêutica Jurídica do Subalterno objetiva incluir a


realidade social e política dos grupos afetados pelas normas e práticas jurídicas,
especialmente as comunidades negras. Essa abordagem requer a análise dos
efeitos da raça e das políticas raciais na interpretação do direito, reconhecendo
como o Estado-nação brasileiro foi moldado pelo embranquecimento e pela
desafricanização.

A Hermenêutica Jurídica do Subalterno busca eliminar elementos normativos que


perpetuam a exclusão e desafiar as táticas de negação do negro presentes na
hierarquia social. Sua intenção é utilizar o direito como uma ferramenta de
transformação social, capaz de promover a justiça e a igualdade, rompendo com
interpretações binárias, universalidade e neutralidade que historicamente
dominaram as normas jurídicas.

É fundamental reconhecer a articulação racista na formação do Estado-nação


brasileiro e questionar a colonização do direito e da hermenêutica jurídica, que
muitas vezes inviabilizam a percepção e o reconhecimento da propriedade
quilombola. Para tanto, é necessário abandonar a concepção cartesiana de corpo e
território como entidades rígidas e individualizadas.

Essa perspectiva amplia o potencial do direito como instrumento de libertação e


justiça, permitindo a construção de uma sociedade mais inclusiva, equitativa e
respeitosa com a diversidade. Por isso, uma abordagem hermenêutica jurídica
sensível às questões raciais e sociais é fundamental para construir uma sociedade
mais justa e igualitária.

Ao questionar as bases coloniais e eurocêntricas do direito, é possível abrir


caminho para uma interpretação mais inclusiva e contextualizada, que respeite e
promova os direitos de todos os indivíduos, independentemente de sua origem
étnica ou social.

Assim, no próximo tópico será possível compreender a confluência entre corpo e


território na promoção da construção da identidade quilombola. Entretanto, a
colonização do direito e da hermenêutica jurídica inviabilizou a percepção da
propriedade quilombola. Nesse sentido, será necessário abandonar a ideia
cartesiana do corpo e território rígido e individualizado.

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3 Comunidades quilombolas urbanas: corpo-território


para além da matriz eurocêntrica

Assim se inscrevem os conflitos socioambientais no que se refere à terra, na qual o


direito à propriedade foi consagrado para proteção e preservação daqueles
detentores do poder. Nesse sentido, a modernidade colonial instituiu ideais de
racionalidade e valorização do ‘homem’- branco, europeu, cisgênero e
heterossexual (Almeida, 2021, p. 39).

Sueli Carneiro ainda investe na perspectiva de o corpo compor significações


culturais. Assim, a autora explica que o corpo burguês constituirá o paradigma do
“corpo ideal de Ser” para os demais. Nesse sentido, Simas e Rufino (2018) abordam
o corpo como:

Suporte de saberes e memórias, é também terreiro. O corpo é também um


tempo/espaço onde o saber é praticado. O corpo terreiro ao praticar seus
saberes nas mais variadas formas de inventar o cotidiano, reinventa a vida
e o mundo em forma de terreiros (Simas; Rufino, 2018, p. 53).

Com o mesmo pensamento, Milton Santos (2006) desenvolve um território a partir


da solidariedade, “sede de resistência”, “local onde o individual se torna coletivo”.
Em contraponto, o autor afirma que o Brasil foi formado por “subespaços que
evoluíam segundo lógicas próprias, ditadas em grande parte por suas relações com
o mundo exterior” (Santos, 2013, p. 45).

O autor, ainda propõe que as diferenças no território são, sobretudo, sociais e não
mais naturais. Esse processo é evidenciado a partir da acumulação de riquezas, o
qual instrumentalizou a base fundiária brasileira. De acordo com Ermínia Maricato
(2003), na década de 1980 houve o crescimento das periferias em detrimento dos
centros. Para a autora, esse fenômeno evidencia a segregação espacial ou
ambiental. A alta densidade demográfica associou-se à exclusão social e, assim, a
segregação urbana torna-se uma faceta da desigualdade social.

Ao mesmo passo que o desenho urbano, por mais que importado da Europa, tenha
sido modificado (SANTOS, 2013), a relação entre a população quilombola, o
território e o meio ambiente não deve ser categorizada a partir de construções
coloniais. Esses povos constroem comunidades em determinados territórios por
questões históricas e sociais, por descenderem de “populações refugiadas ou
marginalizadas social e economicamente pela escravidão, em territórios, no
período pós-abolição, não despertaram o interesse do capital” (Arrutti, 2006, p. 40
apud Baldi, 2014, p. 63).

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No imaginário social houve a generalização do que é o quilombo, onde ele se


encontra e quem são os quilombolas. Mediante o pensamento comum, essa
pergunta seria respondida a partir da alcunha de comunidades quilombolas como
a de Palmares, em âmbito rural. Contudo, para conceituar o quilombo requer-se o
abandono de colonialismos, assim, de acordo com Abdias do Nascimento,
“Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência,
comunhão existencial” (Nascimento, 1980, p. 263).

Para Antônio Crioulo (2021), Coordenador Executivo da Coordenação Nacional de


Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), as
Comunidades Quilombolas são oriundas da ancestralidade africana, inclusive na
África já existiam populações e aldeias as quais se apropriaram do termo
quilombo. Estas recebiam pessoas que sofriam o processo de opressão dentro da
própria África.

Sendo assim, os quilombos africanos eram formados por pessoas de diversas


etnias, as quais sofriam um processo de opressão, assim como no Brasil. Crioulo
(2021) explica que no país os quilombos também são um local de refúgio para as
populações subalternizadas por processos de opressão. Entretanto, para além
disso, os quilombos, no Brasil, devem ser considerados espaços de transformação,
revolução e resistência.

A partir da teoria de Abdias do Nascimento, o quilombo está intimamente ligado


à ancestralidade negra, composto pelas imbricações de resistência física e cultural
da população negra, em um sentido para além do “escravo fugido” (Arruti, 2015).
O vínculo quilombola com a terra não possui valor de mercado. Para eles, a terra
vincula-se à ancestralidade, cultura e memória.

Para o direito, a consagração da territorialidade quilombola encontra-se no


Decreto nº 4.887/2003 que conceitua os quilombos como: “os grupos étnicos raciais,
segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de
relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra
relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (Brasil, 2003).

Além disso, a comunidade deve estar organizada em uma associação, que a


representará no processo de titulação, sendo considerada a proprietária da terra
titulada. Sendo assim, a comunidade será constituída legalmente por uma
associação, a qual terá o título da propriedade coletiva e com cláusula de
inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade (art. 17, § único)
(Henning, 2016).

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A territorialização dá às comunidades remanescentes poder e autonomia para


estabelecer determinado modo de vida em um espaço, dando oportunidade à
continuidade da reprodução material e simbólica deste modo de vida (Barbosa,
2012). “O terreiro é percebido na fisicalidade do chão de terra batida, na concretude
dos tambores e dos corpos em performance” (Simas; Rufino, 2018).

Nesse contexto, a invocação de direitos de propriedade coletiva é


estratégia a que recorrem, frequentemente e com certo êxito, comunidades
tradicionais como indígenas, quilombolas e ribeirinhos em defesa do
reconhecimento de seus territórios e modos de vida (Kozen; Cafrune, 2016,
p. 386).

Essa percepção não individualizada da propriedade desperta “desdobramentos


em termos de produtividade desses conflitos em suas dimensões territorial,
jurídica e política”. A acepção de direitos aos quilombolas dentro de espaços
socialmente segregados propicia um clima de disputas que “envolvem, por vezes,
atribuições e competências constitucionais, como editar normas sobre temas
urbanísticos” (Kozen; Cafrune, 2016, p. 386).

Importante ressaltar que no art. 68 do ADCT “aos remanescentes das comunidades


dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (Brasil, 1988).

Assim, a legislação preocupa-se que a terra seja utilizada para manutenção da


ancestralidade e pertencimento - a noção de lugar instituída como animus domini.
Por isso, os requisitos da propriedade quilombola não deve ser confundida com os
requisitos da usucapião, tanto singular quanto coletiva (Henning, 2019).

Um exemplo desses conflitos urbanos-socioambientais encontra-se na experiência


da Comunidade Quilombola Sacopã (Lobão; Neurauter; Sinclair, 2016). A região
onde se encontra o quilombo é conhecida por ter um dos metros quadrados mais
caros do Rio de Janeiro, possui um histórico de higienização e segregação
socioespacial (Arruti, 2015).

De acordo com o antropólogo José Maurício Arruti (2015), a comunidade situou-


se no local nos anos 1920, a partir do ‘patriarca’ Manoel Pinto Jr, que buscava
trabalho e moradia na cidade, assim como outros escravos e descendentes de
escravos que ocuparam a região (Arruti, 2015).

O mapa de conflitos da Fiocruz ressalta o contexto de violência e arbitrariedade


com as antigas comunidades, favelas e refúgio de escravos (Fundação Oswaldo
Cruz, 2019). Assim, os 18 mil metros quadrados ocupados pela comunidade, os
quais reservam resquícios de Mata Atlântica, são uma área de conflito

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socioambiental entre a comunidade, o poder público, empreiteiras e condomínios


(Fundação Oswaldo Cruz, 2019; Arruti, 2015).

Em 1975, a comunidade instaurou o procedimento para permanência no local


através do processo de usucapião (Arruti, 2015; Lobão; Neurauter; Sinclair, 2016).
Apesar das tentativas de remoção pelo poder público e iniciativa privada, a
comunidade inicia, na década de 80, uma roda de samba com feijoada, sua
principal expressão cultural (Arruti, 2015), que resultaria numa Ação Judicial cujo
objeto é a “perturbação de sossego”.

De acordo com o Mapa de Conflitos, essa Ação busca proibir as atividades


culturais no Quilombo Sacopã. Uma dessas atividades é o samba, uma expressão
cultural do Rio de Janeiro das comunidades-terreiro (Cassol, 2019). Ainda que haja
uma omissão do poder público quanto a permanência da comunidade no local, em
2004 a comunidade foi certificada oficialmente pela Fundação Cultural Palmares e
foi reconhecida como Comunidade Remanescente de Quilombo (Fundação
Oswaldo Cruz, 2019; Lobão; Neurauter; Sinclair, 2016).

Embora esse reconhecimento busque contribuir com a proteção da comunidade no


campo identitário e territorial, as disputas que tramitam no judiciário brasileiro
representam um caminho inverso a essa proteção. Quando, após um caminho
moroso de 3 ações judiciais, a comunidade ainda enfrenta um “preocupante
desconhecimento por parte dos juízes da produção legislativa, jurisprudencial e
doutrinária do campo do Direito Urbanístico” (Kozen; Cafrune, 2016, p. 392)
quanto aos atravessamentos raciais os quais a comunidade perpassa.

Assim como, fica à mercê do ativismo judicial progressista em detrimento do


conservador, que pode ser percebido quando “o juízo2 considera que mesmo que
os quilombolas tenham o direito de promover manifestações culturais e artísticas,
ainda assim estariam violando o direito de vizinhança dos moradores do entorno”
(Lobão; Neurauter; Sinclair, 2016, p. 303).

Isso reflete na questão urbana, pois há uma tensão entre a comunidade e


empreendimentos econômicos, tais como imobiliárias e elite local. A manutenção
perpétua do não-lugar perpassa na expulsão e dispersão dessas comunidades
(Henning, 2019). Essa interpretação colonial do direito deslegitima o uso comum
que as comunidades quilombolas desenvolvem em seus territórios, em detrimento
da propriedade individual.

2 Disponível em: Processo judicial n° 0097933-54.1989.8.19.0001 (1989.001.102396-8).

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Hermenêutica negra para pensar a tutela jurídica dos quilombos urbanos 135

A compreensão desses conflitos requer uma análise crítica que considere não
apenas os aspectos legais e jurídicos, mas também os elementos culturais,
históricos e sociais que permeiam a luta dessas comunidades.

A partir da perspectiva da hermenêutica negra, é possível reconhecer a


importância de compreender e respeitar a territorialidade quilombola, levando em
conta suas especificidades, ancestralidade, cultura e memória. Essa abordagem
valoriza a relação dessas comunidades com a terra como um elemento
fundamental para sua sobrevivência física e simbólica, em contraposição à
concepção tradicional de propriedade individual e ao colonialismo presente no
sistema legal.

A legislação brasileira reconhece os direitos das comunidades quilombolas,


especialmente no que diz respeito à titulação de terras, mas ainda existem desafios
significativos na efetivação desses direitos. O judiciário muitas vezes reproduz
lógicas discriminatórias e perpetua estereótipos negativos, desconsiderando a
importância da cultura quilombola e suas manifestações no contexto urbano.

Nesse sentido, é fundamental que os pesquisadores da hermenêutica jurídica


contribuam para a construção de uma interpretação mais inclusiva e sensível às
questões raciais, culturais e territoriais das comunidades quilombolas. Isso implica
em superar a lógica binária e neutra do positivismo jurídico, promovendo uma
abordagem contextualizada, crítica e comprometida com a justiça social.

Por isso, a hermenêutica negra deve ser utilizada para pensar nessas disputas
judiciais quanto aos conflitos urbanos e socioambientais vivenciados pelas
comunidades quilombolas no contexto urbano. Apesar de haver legislação
consolidada acerca da tutela jurídica quilombola, o intérprete do direito ainda
pensa a partir da lógica binária neutra, universal e rígida operacionalizada pelo
positivismo jurídico.

Considerações finais

A descolonização não é algo promovido numa mudança constitucional, numa


reforma política ou legislativa, é um processo permanente de desconstrução das
estruturas que moldam o ser, o saber e o poder que serviram de base para a
colonização e que deixaram seus traços opressivos sobre os subalternos. Por isso,
são necessários numerosos esforços agregados para fazer mudanças progressivas,
efetivas e autênticas na sociedade, instituições estatais e privadas, etc. ou seja, em
todos os espaços nos quais a colonização emoldurou e construiu subjetividades e
instrumentos de opressão, assim como é preciso desvincular-se dos processos

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136 Maria Luiza Rodrigues Dantas - Lilian Márcia Balmant Emerique

erguidos sob a perspectiva do imperialismo que também se aproximam de


questões e potencializam seus efeitos negativos (Emerique, 2022).

Todo o trajeto desta investigação foi direcionado para repensar a interpretação do


direito estruturado aos moldes coloniais instrumentalizado pela modernidade
europeia. A intenção do estudo foi de empreender a ‘hermenêutica negra’ como
alternativa para pensar o direito para, assim, o aparelhamento jurídico seja
utilizado como transformador social e que o Estado seja agente para oportunizar
novos direitos.

Ao tensionar essas questões, a universalização do direito proporcionou, além da


subalternização e da colonização de saberes outro, a utilização do direito como
instrumento de controle social empregado para manutenção de privilégios de uma
elite cultural. Ao mobilizar outros saberes, como o saber negro, é possível iluminar
a interpretação das normas jurídicas a partir de semióticas invisibilizadas pela
colonização.

Nesse sentido, foi indispensável, para esta pesquisa, revelar a territorialidade a


partir de apontamentos desvinculados da matriz eurocêntrica. Para pensar o
direito à propriedade e interpretá-lo a partir da ‘hermenêutica negra’ precisou-se
compreender o contexto histórico, político e social da formação urbana brasileira.
Isso exigiu um olhar atravessado do racismo em suas diversas dimensões -
ambiental, institucional, espacial.

Assim, identifica-se que a territorialidade, para as comunidades quilombolas,


independentemente de ser em contexto rural ou urbano, está relacionada ao corpo,
ancestralidade e cultura. Por isso, para delinear a tutela jurídica das comunidades
quilombolas deve-se fugir da percepção neutra e universal da propriedade
quilombola. Para, assim, mobilizar o desenvolvimento cultural diverso e
identitário.

Além disso, é necessário fortalecer a articulação entre as diferentes áreas do


conhecimento, como o direito, a antropologia, a sociologia e a história, de forma a
enriquecer o debate e promover uma compreensão mais abrangente dos conflitos
socioambientais enfrentados pelas comunidades quilombolas. Somente por meio
de uma abordagem transdisciplinar e comprometida com a justiça social será
possível avançar na proteção dos direitos dessas comunidades e na superação das
desigualdades e discriminações que ainda persistem na sociedade.

Ao pensar outros modos e outras narrativas para o direito, é possível refletir


quantos outros saberes, além do saber quilombola, poderiam ser estimulados para
pensar um direito mais inclusivo. Uma categoria de pensamento que poderia ser

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Hermenêutica negra para pensar a tutela jurídica dos quilombos urbanos 137

ponderada, numa futura pesquisa, é o pluralismo jurídico (Wolkmer, 2017), em


prejuízo ao monismo jurídico e manutenção do aparelho jurídico nas mãos de um
único Estado.

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Hermenêutica negra para pensar a tutela jurídica dos quilombos urbanos 141

Sobre as autoras
Maria Luiza Rodrigues Dantas
Mestranda em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Contribuição de coautoria: construção do instrumento metodológico,


pesquisa, observação e registro de dados, organização de dados, análise
de dados, redação.

Lilian Márcia Balmant Emerique


Professora do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade
Federal do Rio de Janeiro e Doutora em Direito pela PUC/SP.

Contribuição de coautoria: construção do instrumento metodológico,


pesquisa, análise de dados, redação, revisão e supervisão.

_________________
Agradecimentos
Agradecimentos à FAPERJ e ao Inpodderales - Inovação, Pesquisa e
Observação de Direito, Democracia e Representações da América Latina e Eixo
Sul (UFRJ/CNPq).

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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50211

dossiê

Environmental racism, necropolitics, and


climate crisis: reflections from the
humanitarian crisis of indigenous
peoples and traditional communities in
Brazil
Racismo ambiental, necropolítica e crise climática:
reflexões a partir da crise humanitária dos povos
indígenas e comunidades tradicionais no Brasil

Racismo ambiental, necropolítica y crisis climática:


reflexiones desde la crisis humanitaria de los
pueblos indígenas y comunidades tradicionales en
Brasil

Mariana Rodrigues Viana1


1
Universidade Nova de Lisboa, Nova School of Law, Lisboa, Portugal. E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0009-0001-2220-3429.

Submetido em 23/07/2023
Aceito em 12/10/2023

Como citar este trabalho


RODRIGUES VIANA, Mariana. Environmental racism, necropolitics, and climate crisis:
reflections from the humanitarian crisis of indigenous peoples and traditional
communities in Brazil. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v.
10, n. 1, p. 143-171, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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144 Mariana Rodrigues Viana

Environmental Racism, Necropolitics,


and Climate Crisis: Reflections from the
Humanitarian Crisis of Indigenous
Peoples and Traditional Communities in
Brazil

Abstract
This paper explores the link between Brazil's neo-extractivist model, environmental
degradation, violation of indigenous peoples' and traditional communities' rights, and
implications within the climate crisis. It addresses key questions: 1) How does the violation
of these rights relate to neo-extractivism? 2) How has the legal field been used to perpetuate
this model? 3) Why is ensuring indigenous peoples' and traditional communities' rights
vital during the climate crisis? The study adopts an interdisciplinary approach, analyzing
data reports on conflicts, violence, and environmental impacts. Furthermore, it surveys
relevant regulations and proposed bills. Findings underscore necropolitics, environmental
racism, and the urgent need to address these intertwined challenges.
Keywords
Indigenous Peopless and Traditional Communities. Neo-extractivism. Environmental
racism. Necropolitics. Climate Crisis.

Resumo
Este artigo explora a relação entre o modelo neoextrativista no Brasil, a degradação
ambiental, a violação dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais, e as
implicações para a crise climática. Aborda questões-chave: 1) Como a violação desses
direitos se relaciona com o neoextrativismo? 2) Como o campo jurídico tem sido utilizado
para perpetuar esse modelo? 3) Por que é vital garantir os direitos dos povos indígenas e
comunidades tradicionais na crise climática? O estudo é interdisciplinar, analisando
relatórios sobre conflitos, violência e impactos ambientais. Realiza também um
levantamento de regulamentos e projetos de lei relevantes. Os resultados destacam a
necropolítica, o racismo ambiental e a urgência de enfrentar esses desafios entrelaçados.
Palavras-chave
Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais. Neoextrativismo. Racismo Ambiental.
Necropolítica. Crise Climática.

Resumen
Este artículo explora la relación entre el modelo neoextractivista en Brasil, la degradación
ambiental, la violación de los derechos de los pueblos indígenas y las comunidades
tradicionales, y las implicaciones para la crisis climática. Aborda preguntas clave: 1) ¿Cómo
se relaciona la violación de estos derechos con el neoextractivismo? 2) ¿Cómo se ha
utilizado el campo jurídico para perpetuar este modelo? 3) ¿Por qué es vital garantizar los
derechos de los pueblos indígenas y comunidades tradicionales en la crisis climática? El
estudio es interdisciplinario, analizando informes sobre conflictos, violencia e impactos
ambientales. Además, revisa regulaciones y proyectos de ley. Los resultados destacan la
necropolítica, el racismo ambiental y la urgencia de abordar estos desafíos.
Palabras-clave
Pueblos Indígenas y Comunidades Tradicionales. Neoextractivismo. Racismo Ambiental.
Necropolítica. Crisis Climática.

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of indigenous peoples and traditional communities in Brazil

Introduction

The recognition and protection of indigenous peoples’ and traditional


communities’ rights have become crucial issues in our times, particularly in Brazil.
The country has drawn international attention due to the prevailing violence
against these peoples, as exemplified by cases such as the murder of Bruno Pereira1
and Dom Phillips, Brazilian indigenist and British journalist, in June 2022, in the
Vale do Javari region, an indigenous territory located in the west of the state of
Amazonas (Gonzalez-Roman, 2022).

More recently, in early 2023, the Yanomami indigenous land, the largest
indigenous territory in the country, has become the center of a humanitarian crisis.
The crisis has emerged due to the escalating presence of illegal mining, particularly
in the part of the territory situated in the state of Roraima. The magnitude of this
crisis has garnered significant global media attention, which highlighted that the
Yanomami region looked like a ‘concentration camp’ (Boadle, 2023).

This case exemplifies a larger context, a project of death policy directed towards
indigenous peoples and traditional communities in Brazil. It ultimately led to the
denunciation by the Articulation of Indigenous Peoples of Brazil - APIB, in late
2021, at the International Criminal Court (ICC), against former President
Bolsonaro for genocide and crimes against humanity, which will be expanded to
include the Yanomami case (Articulation of Indigenous Peoples from Brazil, 2021).

On the other hand, the violation of these rights and the intensification of neo-
extractivism have raised concerns regarding environmental racism and its
ramifications for the global community, particularly in light of the climate crisis.
This is due to the fact that safeguarding the territorial rights of indigenous peoples
and traditional communities is paramount in combating deforestation and tackling
the climate crisis - indigenous lands alone are responsible for protecting 30% of
Brazilian biodiversity (Fundação Nacional dos Povos Indígenas, 2012).

According to Climate Watch, an online platform managed by World Resources


Institute, Brazil ranks as the fifth-largest emitter of greenhouse gases globally,
accounting for nearly 3% of total emissions. Deforestation is responsible for nearly
half of Brazil's carbon emissions (Associated Press, 2023). Furthermore, Brazil
encompasses 60 percent of the Amazon Basin and harbors biodiverse ecosystems

1 It is noteworthy that Bruno Pereira, a career servant of the National Indian Foundation (Funai),
was relieved of the position of general coordinator of Isolated Indians after combating illegal
mining in the Yanomami Indigenous Land, in Roraima (Carvalho, 2019).

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that deliver vital services at both regional and global levels (United States Agency
for International Development, 2022). Hence, the country's leadership in these
matters is of utmost importance, and investigating the root cause of the issue,
namely the unsustainable development model, is relevant.

In this sense, this article aims to explore the connection between the neo-
extractivist development model adopted in Brazil, the degradation of biomes such
as the Amazon and the Cerrado, the violation of indigenous peoples' and
traditional communities' rights, as well as the implications within the context of
the climate crisis. The main argument sustained is the significance of ensuring
indigenous peoples' and traditional communities' rights for both Brazilians and
the global community. This article addresses several research questions. First, to
what extent does the violation of indigenous peoples and traditional communities'
rights in Brazil correlate with the intensification of neo-extractivism? Second, how
has the legal field been utilized to sustain this development model in the country?
Lastly, why is it important not only for Brazilians but also for the global
community to ensure the rights of these communities in a moment of the climate
crisis?

To answer these questions, a comprehensive and interdisciplinary documentary


and bibliographic methodology is employed. The analysis combines quantitative
and qualitative approaches, including the examination of data reports on conflicts
and violence against indigenous peoples and traditional communities in Brazil.
Additionally, the impact of these violations on the environment and climate
change is analyzed. A thorough survey of regulations and proposed bills that have
contributed to the violation of rights in Brazil is also conducted.

The article is structured as follows: Section 1 provides an overview of the


theoretical framework, focusing on concepts like neo-extractivism, environmental
racism, and necropolitics. Section 2 examines the indigenous peoples' and
traditional communities' humanitarian crisis in Brazil, highlighting its connection
to neo-extractivism and the implications for the climate crisis. Section 3 analyzes
the role of the legal field in sustaining this development model. Finally, in the
concluding remarks, the paper emphasizes the importance of ensuring the rights
of these communities and provides recommendations for future action.

In summary, this article contributes to the understanding of the complex dynamics


between the violation of indigenous peoples and traditional communities' rights,
neo-extractivism, and the climate crisis. By examining these issues, it sheds light
on the challenges faced by these communities, considering the context of

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environmental racism and necropolitics, and emphasizes the global significance of


protecting their rights amidst the climate crisis.

1 Neo-Extractivism, Environmental Racism, and


Necropolitics

The humanitarian crisis faced by indigenous peoples and traditional communities


in Brazil cannot be understood without considering the neo-extractivist model
adopted in the country. As Acosta (2013, p. 62) points out, “extractivism is a mode
of accumulation that started to be established on a massive scale 500 years ago”.
According to the author, the capitalist system was structured through the invasion
and colonization of the Americas, Asia, and Africa, during which extractive
accumulation was driven by the needs of the metropoles, which became producers
of manufactured goods while the colonies served as exporters of raw materials.

In this sense, Acosta (2013, p. 62) defines extractivism as activities that involve the
extraction of large volumes of non-processed (or partially processed) natural
resources primarily for exportation. This includes not only minerals and oil but
also agrarian, forestry, and fishing extractivism. The author clarifies that
“extractivism has been a mechanism of colonial and neocolonial plunder and
appropriation” taking on various forms over time but always aiming to meet the
needs of the global North's industrial development and well-being, without
considering the sustainability of this model or resource depletion (Acosta, 2013, p.
63)2.

Acosta analyzes how extractivism has been a constant feature in countries of the
global South, and while some elements have changed, this development model
“seems to be at the heart of the production policies of both neoliberal and
progressive governments” (Acosta, 2013, p. 63). Indeed, as Santos (2021, p. 24)
points out, when progressive governments came to power in several Latin
American countries in the early 2000s, they added their own characteristics to the
model, such as the recovery of state centrality and extensive freedom for market
forces, which came to be known as neo-extractivism or neo-developmentalism.
The author emphasizes that this model “is part of a concept of progress in which

2 As Gonzalez (2015, p. 152) explains, the terms North and South can be used to distinguish wealthy
industrialized nations (such as the United States, Canada, Australia, New Zealand, Japan, and
members of the European Union) from less prosperous nations in Asia, Africa, and Latin America
that share a history of political and economic domination.

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one of the deadliest consequences is environmental destruction” (Santos, 2021, p.


24).

Similarly, Gudynas (2009, p. 201-202) notes that neo-extractivism not only


perpetuates but also advances territorial fragmentation, with relegated areas and
extractive enclaves associated with global markets. In some cases, it exacerbates
the social and environmental impacts of extractive sectors. The author concludes
that “neo-extractivism is part of a contemporary version of development specific
to South America, where the myth of progress and development is maintained
through a new cultural and political hybridization” (Gudynas, 2009, p. 221, free
translation).

Therefore, it is no wonder that Santos (2021, p. 24-25) argues that one of the most
persistent colonial legacies is the portrayal of Asia, Africa, and Latin America as
Third World continents, underdeveloped, and the creation of developmentalism
as a structuring discursive field of post-World War II social and political reality.
As the author observes, anything that hinders economic growth is considered an
obstacle to development, creating an inherent incompatibility between the
adopted development model and the effectiveness of human rights.

Hence, indigenous peoples and traditional communities are perceived as obstacles


to development within the context of neo-liberal neo-extractivism, which has been
intensified in Brazil during the Bolsonaro administration (2019-2023). Under this
government, the liberal agenda has been strengthened, transitioning towards an
ultra-liberal stance. That is why Wanderly, Gonçalves, and Milanez (2020, p. 561,
free translation) refer to this model as “marginal ultra-liberal neo-extractivism” as
it “adds a marginal character to the actions of the State and its leaders who
encourage and condone crimes, propose unconstitutional and anti-national
measures, avoid democratic debates, and use the subterfuge of false information
(fake news)”.

The discourse of neo-extractivism as an economic solution and a path to the


country's development at the expense of encroaching upon ancestral territories of
indigenous peoples and traditional communities and environmental degradation
became evident in the speeches of former President Bolsonaro, who went as far as
to state, in an impromptu speech at the doorstep of the Planalto Palace to gold
miners, that “the interest in the Amazon is not in the Indian, nor in the damn tree.
It's in the ore! [...] How can a rich country like ours, which has the entire periodic
table underground, continue to see you suffering here?” (Lindner, 2019, free
translation).

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Similarly, this discourse was clear in the speech of former Minister of the
Environment, Ricardo Salles, who, in a ministerial meeting made public by a
Supreme Court's decision, advocated for “running the cattle herd”3, changing
regulations, and simplifying environmental norms while media attention was
focused on the Covid-19 pandemic (G1, 2020). However, as Acosta (2013, p. 61)
argues, the extractivist potential is more of a “resource curse” than a solution for
development. The author analyzes that accumulated experiences demonstrate that
resource-rich countries, whose economies are based on extractivism, face greater
difficulties in developing, to the point where they seem condemned to
underdevelopment.

As the author explains, the Inter-American Development Bank (IDB) itself has
acknowledged this curse of natural resources almost as a tropical fatalism in
several of its reports. In this sense, the author highlights some ills of extractivism,
such as the volatility of prices of raw materials in the international market; the
super concentration of profits in a few economic groups that generally do not
create incentives for domestic investments, leading to the denationalization of the
economy; the low generation of direct and indirect employment; the impacts on
communities in whose territories or surroundings extractive activities take place;
as well as the severe degradation of the environment (Acosta, 2013, p. 63-71).

It is precisely these ills of ultra-liberal neo-extractivism that are evident in Brazil


during this moment of humanitarian crisis for indigenous peoples and traditional
communities, associated with a context of environmental and climate injustice.
This is the reason why this conjuncture is perceived as an exacerbation of
environmental racism in the country4. Bullard (2000, p. 98) introduced the concept
of environmental racism, defining it as “any policy, practice, or directive that
differentially affects or disadvantages (whether intended or unintended)
individuals, groups or communities based on race or color”, in reference to
environmental injustices faced by the Black population in the United States.

The concept of environmental racism in the international context also encompasses


the disadvantaged ecological relationships between the global North and South.
Therefore, environmental racism is a product of colonialism, with continuity in

3 The expression “run the herd” refers to the approval of sub-legal reforms aimed at relaxing socio-
environmental legislation.
4 Environmental racism is closely related to environmental and climate injustice, as the
disadvantaged ecological relationships between the global North and South, notably the global
South’s export-oriented production, result in environmental problems like climate change and
biodiversity loss. These issues disproportionately affect vulnerable populations, including racial
and ethnic minorities (Gonzalez, 2015, p. 154-155).

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contemporary times through neocolonialism and neo-extractivism. From this


perspective, the concept was expanded to encompass other peoples in the Brazilian
reality, such as indigenous peoples, quilombolas5, riverine communities, and other
traditional populations, whose territories, lives, and ways of life are threatened
and violated by sectors connected to neo-extractivism. Based on the Brazilian
scholar Pacheco (2008, p. 721), environmental racism can be defined as "social and
environmental injustices that fall disproportionately on ethnic groups that have
been made vulnerable".

According to a survey from the “Map of Conflicts: Environmental Justice and


Health in Brazil” by Fiocruz, Brazil has at least 626 conflicts related to the
discrimination of populations and ethnic minorities due to environmental
degradation, thus involving environmental racism. Among the activities
generating conflicts, monocultures stand out with at least 180 conflicts; followed
by mining, gold mining, and steel production with at least 124 conflicts; dams and
hydroelectric power plants with at least 109 conflicts; livestock farming with at
least 88 conflicts; and logging with at least 80 conflicts (Fiocruz).

Nonetheless, the dismantling of socio-environmental protection agencies in the


country in recent years and the anti-indigenous and anti-traditional communities’
agenda, particularly in favor of agribusiness, has highlighted a context of
environmental racism intertwined with necropolitics. This has become even more
evident with the humanitarian crisis exposed by the case of the Yanomami
indigenous peoples. Mbembe (2003, p. 39) coined the concept of necropolitics,
understood as “contemporary forms of subjugation of life to the power of death”.
In these cases, the notion of biopower would be insufficient, which is why the
author proposes the notion of necropolitics and necropower to explain the “new
and unique forms of social existence in which vast populations are subjected to
conditions of life conferring upon them the status of living dead” (Mbembe, 2003,
p. 40).

Mbembe’s necropolitics offers a novel approach as it draws both on Foucault and


on a decolonial approach. The colonial experience, which involved not only the

5 Quilombos are communities created since colonial times by enslaved black peopleya who resisted
the slavery regime that prevailed in Brazil for over 300 years. A Comissão Pró-Índio de São Paulo
explains, “quilombos were formed from a wide variety of processes that include the escape of
slaves to free and generally isolated lands. However, freedom was also acquired through
inheritance, donations and land revenues as payment for services rendered to the state or for
stays on the lands they occupied and cultivated. There are also cases of land purchase both during
the term of the slave regime and after its abolition”. Today, there are contemporary quilombos,
that are included in a broader concept of traditional communities (Comissão Pró-Índio de São
Paulo, 2019).

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enslavement of the African peoples, but also the massive extermination of the
indigenous peoples in the Americas, allowed Mbembe to see real spaces of death,
also marked by the state of exception, where death became a form of political
management, process observed today with neocolonial practices (Mbembe, 2003,
p. 21). This is precisely what has been happening to indigenous peoples and
traditional communities in the country, but whose impacts go far beyond them,
being global in the face of the issue of climate change, as will be demonstrated in
the next section.

As Ailton Krenak, indigenous leader, sustains, “for governments, the death of


those who generate costs for the state is good for business. In other words: let the
vulnerable die” (Krenak, 2020, p. 05). However, as the author explains, Mother
Earth is teaching us a lesson, making clear that the idea of humanity as a separate
concept from nature needs to be abandoned (Krenak, 2020, p. 06). In other words,
anthropocentrism needs to be abandoned, which entails ensuring socio-
environmental rights, including those of indigenous peoples and traditional
communities.

2 Reflections from Indigenous Peoples' and


Traditional Communities' Humanitarian Crisis in
Brazil: Linkages to Neo-extractivism and Climate
Crisis Implications

The case of the Yanomami indigenous peoples has shocked Brazil and the world,
making headlines in various global news outlets and exposing the existing
humanitarian crisis involving indigenous peoples and traditional communities
(Nicas, 2023; Gozzi, 2023; Phillips, 2023). The largest indigenous territory in the
country, the Yanomami Indigenous Land is facing a public health emergency due
to the lack of assistance to a population struggling with the encroachment of illegal
mining and numerous cases of severe malnutrition and malaria. Malnutrition
affected over 50% of children, in addition to the high number of malaria cases,
which are related to the expansion of illegal gold mining (Coll; Vilar de Menezes,
2023).

Only under the new government, led by President Lula, the Ministry of Health
declared a public health emergency in the Yanomami territory (Brasil. Ministério
da Saúde, 2023), despite the critical situation having existed for a long time.
Indeed, it is paradigmatic that the first death from Covid-19 among indigenous
peoples in Brazil was that of a Yanomami (Coll; Vilar de Menezes, 2023).

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The APIB dossier pointed out that the massive invasion of illegal gold miners in
the Yanomami indigenous land reached staggering figures, with over 20.000
miners causing devastation to an area equivalent to the size of 500 football fields.
The document also highlights that the advancement of the COVID-19 pandemic
has further exposed the devastating impacts of dismantling support systems for
indigenous communities, including the disintegration of SESAI (Special
Secretariat of Indigenous Health). This, coupled with the emergence of a new and
highly contagious virus with a high fatality rate, has tragically resulted in the loss
of over 1.1 thousand indigenous (Articulation of Indigenous Peoples from Brazil,
2021, p. 21- 28).

It is important to note that there were already decisions mandating actions by the
Brazilian State regarding this case, both by the Supreme Federal Court and the
Inter-American Commission on Human Rights. In the face of the State’s omission
during the pandemic, APIB took the initiative to approach the Supreme Court by
proposing a Claim of Noncompliance with Fundamental Precept (ADPF). The
ADPF 709 achieved success in its demand to compel the Union to establish an
emergency plan to combat the spread of COVID-19 in indigenous territories. In
May 2021, the Supreme Federal Court ruled on the ADPF 709, ordering the
removal of invaders from the Yanomami Indigenous Land, which clearly has not
been complied with by the Brazilian state (Articulation of Indigenous Peoples from
Brazil, 2021, p. 36).

On the other hand, on June 17, 2020, the Inter-American Commission on Human
Rights (IACHR) issued Resolution 35/2020, which grants precautionary measures
of protection in favor of members of the Yanomami and Ye'kwana indigenous
peoples, also not complied with by the Brazilian state (Inter-American Comission
on Human Rights, 2020).

However, as highlighted in the APIB dossier, this case stands as an example of a


structural scenario of increasing invasions and conflicts in the territories of
indigenous peoples and traditional communities, driven by large corporations and
individuals interested in exploiting these lands for mining, agriculture, or other
interests, resulting in both environmental degradation and more violence and
death for these communities (Articulation of Indigenous Peoples from Brazil, 2021,
p. 15). Recent data is indisputable in demonstrating an intensification of this
process in the country. The report “Violence against Indigenous Peoples in Brazil
- 2021 Data” by the Indigenous Missionary Council (Cimi) indicates that for the
sixth consecutive year, there has been an increase in cases of land invasions, illegal
resource exploitation, and damage to property in Indigenous Territories (Conselho
Indigenista Missionário, 2022, p. 08).

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In 2021, Cimi recorded 305 cases of this type, affecting at least 226 Indigenous
Territories in 22 states, nearly three times the number recorded in 2018, when 109
cases were counted. The report further exposes that in addition to the increase in
the number of cases and affected lands due to the illegal actions of gold miners,
loggers, hunters, fishermen, land grabbers, among others, the invaders have
intensified their presence and brutality, as evidenced in cases such as the
Munduruku people in Pará and the Yanomami people in Roraima and Amazonas
(Conselho Indigenista Missionário, 2022, p. 08).

The data on interrupted indigenous lives recorded by the report confirms this
statement. In 2021, 176 indigenous peoples were murdered, six fewer than in 2020,
which had the highest number of homicides since the Cimi began tracking this
data in 2014. In contrast, the number of indigenous suicides in 2021 was the highest
ever recorded during the same period, with 148 cases. The report explains this
situation as being caused by a sequence of actions taken by the Executive power,
which promoted the exploitation and privatization of indigenous lands, as well as
by the efforts of the federal government and its supporters to pass laws that
undermine the constitutional protection of indigenous peoples and their
territories. It concludes that this set of actions provided the necessary confidence
for invaders to advance in their illegal actions (Conselho Indigenista Missionário,
2022, p. 08).

To illustrate the relationship between the intensification of neo-extractivism and


the incursions on these ancestral territories and the lives of indigenous peoples and
traditional communities, the data from a sector that has gained attention due to
the Yanomami case is revealing - mining. Data from the National Institute for
Space Research (Inpe) shows that illegal mining on indigenous lands increased
more than eight times between 2016 and 2022. According to Inpe, based on data
obtained through alerts from the Real-Time Deforestation Detection System
(Deter), in 2016, during Michel Temer's government, the mining area in indigenous
lands was 12.87 km², whereas in 2021, during Jair Bolsonaro's administration, it
increased to 114.26 km², an increase of 787% (Stabile; Casemiro, 2023).

As Porto and Rocha (2023, p. 493) explain, mining and mining activities have direct
impacts on indigenous peoples, such as the loss of territory, deforestation, water
pollution, the reduction or degradation of arable land, the reduction in the variety
and availability of wild animals and other forest resources, fields, and waters, as
well as indirect impacts resulting from related productive activities, such as
mining transportation systems, manufacturing industries, export infrastructure,
all of which have impacts on the territories located in or around those areas, in

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addition to the impacts resulting from other marginal activities that worsen
processes of vulnerability, such as arms and drug trafficking and prostitution.

For these reasons, the authors conclude that allowing these activities within
indigenous territories is an update of the colonial policies of extermination that all
the legal frameworks developed in the last century sought to prevent. And they
question: “Until when and what must we do to stop killing and dying for material
wealth that prevents life on the planet and happiness to so many human beings”
(Porto; Rocha, 2022, p. 499).

In the face of this extermination scenario, the APIB submitted a communication to


the ICC on August 9, 2021, to denounce former President Bolsonaro for genocide.
The organization requests that the prosecutor’s office of the Hague Tribunal
examine the crimes committed against indigenous peoples since the beginning of
Bolsonaro’s mandate in January 2019, especially during the COVID-19 pandemic.
According to a section of the communication, “the dismantling of public structures
for social and environmental protection, and also of those addressed to protecting
Indigenous Peoples resulted in the escalation of invasions in Indigenous Lands,
deforestation and fires in Brazilian biomes, and also increased illegal mining in the
territories” (Articulation of Indigenous Peoples from Brazil, 2021).

Indeed, this conjuncture highlights a true policy of death directed towards


indigenous peoples and traditional communities, a necropolitics. The escalation of
conflicts in rural areas does not only involve mining offensives, nor does it solely
affect indigenous territories. According to the report “Conflicts in the Brazilian
Countryside 2021” by the Pastoral Land Commission (CPT), the number of
recorded conflicts in rural areas during the Bolsonaro government is the highest in
the entire historical series since 1985. There is a growing trend of conflicts related
to land expropriation targeting indigenous peoples and traditional communities,
in contrast to the situation in the 2000s and early 2010s, when the cases primarily
involved landless individuals and settlers (Comissão Pastoral da Terra, 2022, p. 88-
89).

As highlighted by the Directorate of the Brazilian Agrarian Reform Association


(ABRA), the indicator of areas affected by conflicts in rural areas has increased 3.7
times since 2016, compared to the period 2011-2015, expanding from 63 million to
302 million hectares. This expansion encroaches upon public lands, protected
areas, and traditional territories of indigenous peoples, quilombolas, and riverine
communities, with deforestation driven by loggers and land grabbers associated
with agribusiness in the Amazon (Associação Brasileira de Reforma Agrária, 2022,
p. 26).

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Environmental racism, necropolitics, and climate crisis: reflections from the humanitarian crisis 155
of indigenous peoples and traditional communities in Brazil

Furthermore, the Annual Deforestation Report in Brazil 2021, produced by


MapBiomas, indicates an increase in detected deforestation across all six Brazilian
biomes between 2020 and 2021, with the Amazon and the Cerrado standing out,
accounting for 89.2% of the deforested area in 2021. According to the mapping, the
Amazon had the largest deforested area, representing 59% of the total, followed
by the Cerrado with 30.2% of the deforested area. Regarding the drivers of
deforestation, it is worth noting that deforestation due to pressure from
agribusiness accounted for nearly 97% of all deforestation validated by
MapBiomas, followed by mining and mining activities, representing 0.6% and
0.1% of the total deforestation, respectively (MapBiomas, 2022, p. 39-56).

It is important to highlight that the accumulated deforestation map in the Amazon,


Cerrado, and Pantanal has followed the expansion of agricultural activities for
Brazil's main commodities – beef and soy – which historically advance from the
Central-South to the Brazil Central and Matopiba6 regions, as well as the Amazon.
As stated in the report "Agro is Fire" between 1985 and 2019, 90% of deforestation
in Brazil occurred for the opening of pasture areas and monocultures, while 10%
was for other uses (Articulação Agro é Fogo, 2021, p. 08).

On the other hand, according to data from the Greenhouse Gas Emissions
Estimation System (SEEG), there was a 9.5% increase in gross greenhouse gas
(GHG) emissions in Brazil in 2020, possibly making it the only major emitter on
the planet to experience an increase during the COVID-19 pandemic year, mainly
due to deforestation, especially in the Amazon and the Cerrado. This led to a 23.6%
increase in GHG emissions from land-use changes (deforestation and emissions
from forest residue burning) in 2020 (Sistema de Estimativas de Emissões de Gases
do Efeito Estufa, 2021, p. 03-04).

46% of Brazil’s gross greenhouse gas (GHG) emissions in 2020 came from land-use
changes. The agricultural and livestock sector accounted for 27% of the total
emissions, predominantly (65%) from emissions generated by ruminant animal
digestion, which produces methane – commonly known as cow belching (enteric
fermentation). When combining the emissions from land-use changes and the
agricultural and livestock sector, it can be concluded that 73% of the national GHG
emissions are directly or indirectly linked to rural production and land speculation
(Sistema de Estimativas de Emissões de Gases do Efeito Estufa, 2021, p. 04).

These data demonstrate that all of these crises are interconnected, and “there is a
growing consensus on the catastrophic consequences of global warming and the

6 Region composed of the Cerrado biome in the states of Maranhão, Tocantins, Piauí, and Bahia.

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plundering of the earth’s resources” (Santos, 2021, p. 26). In this context, ensuring
the territorial rights of indigenous peoples, quilombolas, and other traditional
communities, as well as protecting these populations, are fundamental measures
to curb deforestation and, on a macro scale, contribute to addressing the climate
crisis.

The use of the legal framework to serve economic interests has reached its limit,
and it is time to recover the consensus agreed upon by Brazilian society in the 1988
constitutional process and, more importantly, to advance the legal protection of
nature and indigenous and traditional communities. Nonetheless, the current
political landscape has revealed that despite Bolsonaro's departure, the “cattle
herd continues to run” as destructive measures for the environment and
indigenous peoples continue to advance in the legislative sphere, as will be
discussed in the next section.

3 The use of the legal field: the “Combo of Death”

As Bercovici (2010, p. 96) clarifies, political dictatorship has been replaced by the
economic dictatorship of markets, creating a permanent state of economic
exception in the periphery of capitalism. This includes adapting domestic law to
the needs of capital in order to reduce the possibilities of interference by popular
sovereignty. The author adds that traditionally, powers would interfere with
political and economic freedoms for the collective well-being, but today there is a
reverse movement, limiting the rights of the population to ensure private property
and capitalist accumulation.

It is precisely this movement that is observed when there is a relaxation of socio-


environmental legislation in Brazil to secure the interests of sectors connected to
neo-extractivism, within a context of environmental racism and necropolitics.
According to Shiraishi Neto (2022, p. 10-12), despite the comprehensive and
diverse nature protection system established by the Brazilian Federal Constitution
of 1988, this system has been shaped to align with the needs of the market
economy, transforming Brazilian socio-biodiversity into a mere object and
commodity. As the author explains, this has been achieved through the weakening
and elimination of legal safeguards and a significant lack of government
commitment to environmental governance. In fact, in recent years, there has been
a deliberate agenda of nature destruction, disregarding the potential
environmental causes of the COVID-19 pandemic and the latest reports from the
Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC).

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Environmental racism, necropolitics, and climate crisis: reflections from the humanitarian crisis 157
of indigenous peoples and traditional communities in Brazil

The list is extensive, including several bills and institutional strategies that pose a
significant threat to the rights of indigenous peoples and traditional communities.
Among these, particular attention will be given to those that are deemed more
alarming and marked by constitutional concerns. This collection of measures has
come to be known as the “Package of Destruction” or the “Combo of Death”
(Observatório do Clima, 2022).

Indeed, as analyzed by Cardoso and Beghin (2022), ensuring socio-environmental


rights had never been a priority on the agenda of successive governments in Brazil.
However, it is crucial to emphasize that in the last administrations, this issue
evolved into a deliberate policy marked by environmental racism. This policy was
developed in close collaboration with the National Congress, serving a strategy of
converting lands to the dynamics of agribusiness.

Among the institutional strategies for the relaxation of the socio-environmental


legislation, three stand out. The first is Normative Instruction N. 01/2021 from the
National Foundation of Indigenous Peoples (FUNAI) and the Brazilian Institute of
the Environment and Renewable Natural Resources (IBAMA), which authorizes
partnerships between indigenous and non-indigenous peoples for the economic
exploitation of territories, without any consultation with those affected7 (Brasil.
Ministério da Justiça e Segurança, Ministério do Meio Ambiente, Fundação
Nacional do Índio, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis, 2021). According to the Indigenous Missionary Council (Cimi), this
policy reverts to the practice of leasing and dispossession of indigenous territories
(Conselho Indigenista Missionário, 2021a).

The second is Normative Instruction N. 09/2020 from FUNAI, which regulated the
application, analysis, and issuance of a document called the Declaration of
Boundary Recognition (DRL) by FUNAI. The DRL provides certification to both
property owners and private possessors, confirming that their property
boundaries respect the boundaries of Indigenous Territories. However, under this
normative, only homologated indigenous lands, indigenous reserves, and fully
regularized indigenous dominion lands were considered, while delimitated
indigenous lands, declared indigenous lands, and physically demarcated
indigenous lands were disregarded (Brasil. Ministério da Justiça e Segurança,
Fundação Nacional do Índio, 2020). In response to this, the Indigenistas
Associados, an association of FUNAI civil servants, stated that “Normative
Instruction 09 transforms FUNAI into an institution certifying properties for

7 In a search conducted on the IBAMA website on October 16, 2023, it was verified that Joint
Normative Instruction N. 1, dated February 22, 2021, is currently in effect.

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squatters, land grabbers, and lot developers in Indigenous Lands” (Indigenistas


Associados, 2020, p. 01, free translation).

The new administration recently revoked Normative Instruction N. 09/2020


through Normative Instruction N. 30, dated August 9, 2023, which demonstrates
some effort to end the institutional strategies aligned with the “Combo of Death”.
This new directive establishes fresh guidelines for issuing Declarations of
Boundary Recognition, while also defining parameters for the reassessment of
declarations issued during the period in which the prior Normative Instruction
was in effect. However, a lot of damage has already been done. According to data
from INCRA’s Land Management System (SIGEF), in 2020, shortly after the
publication of Normative Instruction N. 09, the number of certified properties
within indigenous areas lacking formal regularization increased from 3 to 58. This
situation is now subject to review by FUNAI (Fundação dos Povos Indígenas,
2023).

The third is the Normative Opinion 001/2017 issued by the Attorney General’s
Office (AGU) on July 20, 2017. This opinion imposes various restrictions on the
demarcation of Indigenous Lands and draws upon conditions established in the
Raposa Serra do Sol Indigenous Land case, from 2009, and the doctrine of the so-
called “temporal framework”, which asserts that Indigenous peoples are entitled
to the demarcation of lands only if they can prove continuous possession since
October 5, 1988, the date of the Brazilian Constitution’s promulgation. In effect,
Normative Opinion 001/2017 serves to impede and reassess ongoing or completed
demarcations, undermining the rights of Indigenous communities8.

The effects of this opinion were suspended in 2020 by a decision of the Supreme
Federal Court (STF) until the judgment of the Extraordinary Appeal (RE) 1017365,
which has been recognized as having general repercussions (Supremo Tribunal
Federal, 2020). According to estimates by the Socio-Environmental Institute (ISA),
this judgment regarding the temporal framework could have negatively affected
the demarcation of approximately 303 Indigenous Lands inhabited by over 19.000
indigenous individuals (Galzo, 2021)9.

8 According to an article by the National Indigenous Mobilization, the Opinion was issued by the
AGU during Michel Temer’s administration, amidst negotiations by the former president to
prevent corruption allegations against him. The negotiations involved the release of amendments
to lawmakers and also addressing the agenda of sectors and caucuses, such as the ruralist caucus
(Mobilização Nacional Indígena, 2020).
9 During the article’s review process, on September 21, 2023, in the judgment of the Extraordinary
Appeal (RE) 1017365, the Plenary of the STF rejected the temporal framework by a vote of 9 to 2,
and the thesis was established on September 27 th. The thesis recognizes the constitutional

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Among the bills, some that are part of the so-called “Combo of Death” will be
highlighted. The first notable bill in the national spotlight is Bill N. 490/2007,
known as the Temporal Framework Bill, which was approved on May 30, 2023, by
the Brazilian Chamber of Deputies (Brasil. Câmara dos Deputados, 2007). This bill
aims, among other things, to change the process of demarcating indigenous lands
in Brazil by transferring the authority for the demarcation of Indigenous Lands
from the Executive Branch to the Legislative Branch and enshrining into law the
temporal framework doctrine that recently underwent discussion in the Supreme
Federal Court (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2023a, p. 01). This
doctrine asserts that Indigenous peoples are only entitled to the lands they
occupied on the date of the promulgation of the Brazilian Federal Constitution -
October 5th, 1988 (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2023, p. 06). Various
protests against the bill and the temporal framework thesis are taking place across
the country (G1, 2023; G1 2023a).

The Bill N. 490/2007 was ‘rebranded’ in the Senate, receiving a new number: Bill
N. 2903/2023. On the same day that the STF concluded the judgment of RE 1017365,
establishing the thesis that rejects the temporal framework, the Federal Senate
approved Bill N. 2903/2023, which was then sent for either veto or enactment by
the President of the Republic (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2023c).
The Articulation of Indigenous Peoples of Brazil (APIB) sent Letter N. 207/2023 –
AJUR/APIB to President Lula da Silva, requesting a total veto of Bill N. 2.903/2023,
arguing the disregard by the National Congress for the decisions of the STF, as
evidenced by the approval of Bill N. 2903/2023 under an urgent regime to secure
political timing and exert pressure on the STF, challenging its decision and the
rights of indigenous peoples (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2023b).

Moreover, APIB points to the formal unconstitutionality of the bill, as it seeks to


amend fundamental rights provided in the constitution through ordinary
legislation. They also highlight substantive unconstitutionality, given that the
precedent from the Raposa Serra do Sol case is not binding, whereas the thesis of
general repercussions of RE 1017365 is binding, understanding that the Federal

protection of original rights to lands traditionally occupied, regardless of the existence of a


temporal framework on October 5, 1988, while also ensuring compensation for good-faith
occupants (Supremo Tribunal Federal, 2023). It is worth noting that an analysis by Cimi of the
legal thesis against the temporal framework defined by the STF understands that the established
thesis, by endorsing compensations, caters to the demands of ruralist sectors, imposing the
federal government with the burden of settling the bill, at the expense of the continued presence
of the possessor in the indigenous area – which is a federal asset for the exclusive use of
indigenous peoples – thereby encroaching and causing other harm to the property, lives, and
ways of life of indigenous peoples (Conselho Indigenista Missionário, 2023).

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160 Mariana Rodrigues Viana

Constitution establishes the original nature of indigenous territorial rights to


traditionally occupied territories, regardless of a temporal framework.
Furthermore, APIB argues that the bill proposes the mitigation of exclusive
indigenous land use, relaxes the policy of non-contact with isolated and recently
contacted indigenous peoples, and introduces environmental and climatic
setbacks, considering the vital role of indigenous lands in preserving native
vegetation (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2023c, p. 01-35).

Secondly, attention is drawn to Bill N. 2.633/2020, known as the Land Grabbing


Bill, which is a version of Provisional Measure (MP) N. 910/2019. It aims to amend
the rules for land regularization in federal lands, particularly Law N. 11.952/2009
(BRASIL. Câmara dos Deputados, 2020). One of its objectives is to expand the
exemption from prior inspection by the National Institute for Colonization and
Agrarian Reform (Incra) for properties of up to six fiscal modules, facilitating land
grabbing by invaders, especially in indigenous and quilombola territories
(Imazon, 2020, p. 10-11).

Finally, it is important to note that Bill N. 191/2020 (Brasil. Câmara dos Deputados,
2020), also known as the Genocide Bill, signed by former Minister of Mines and
Energy Bento Albuquerque and former Minister of Justice Sérgio Moro, was only
withdrawn from processing at the request of the current administration through
MSC n.107/2023, signed by the current Minister of Justice and Public Security,
Flávio Dino (Brasil. Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2023).

Thus, the challenges posed in addressing the dismantling of socio-environmental


rights are enormous and require governmental effort from the new President Lula,
who has shown positive signals in this regard so far. Lula has already initiated
legal changes through decrees that reinstate action plans for the prevention and
control of deforestation in all Brazilian biomes (Brasil, 2023), revive the Amazon
Fund (Brasil, 2023a) that has been dormant since April 2019, and revoke the decree
that established the Support Program and Interministerial Commission for the
Development of Artisanal and Small-Scale Mining (Brasil, 2023b). Additionally, it
is worth mentioning the comprehensive reformulation of the federal public
administration proposed through Provisional Measure N. 1.154/2023 (Brasil,
2023c), including the creation of two relevant ministries - the Ministry of
Indigenous Peoples (MPI) and the Ministry of Racial Equality (MIR).

However, the challenges also extend to the Legislative branch, given the bills
currently under consideration that represent a threat to socio-environmental
rights, including the rights of indigenous peoples and traditional communities,
with a notable mention of the approval of Bill N. 2903/2023 by the Senate, which is

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Environmental racism, necropolitics, and climate crisis: reflections from the humanitarian crisis 161
of indigenous peoples and traditional communities in Brazil

now awaiting the President’s veto or enactment. They further extend to the
Judiciary and institutions of the justice system in general, as demonstrated by the
recent Supreme Federal Court (STF) judgment that is now facing challenges from
Congress, which has approved legislation conflicting with the STF’s decision,
leaving the current legal uncertainty evident. Furthermore, these challenges
extend to the international community, considering that the guarantee of socio-
environmental rights, especially for indigenous peoples and traditional
communities, is of global interest in the context of intensifying climate change and
global warming.

The environmental services provided by indigenous peoples, quilombola


communities, and other traditional communities are crucial for addressing the
climate crisis. To exemplify the importance of the environmental services of these
peoples, a recent study by MapBiomas attests that over a 30-year period (1990-
2020), Indigenous Lands lost only 1% of their native vegetation area in Brazil,
whereas in private areas, it was 20.6% (MapBiomas, 2022). However, these services
are compromised when the Legislative and Executive branches align with the
interests of the neo-extractive sector in Brazil, especially agribusiness. This is
evident through the dismantling of public structures for social and environmental
protection that occurred in the previous government and the ongoing dismantling
of the normative framework for socio-environmental protection, including those
that safeguard the territorial rights of these peoples and communities, promoted
by the National Congress. The results, as analyzed in the previous section, are
more violence and death for these communities and also environmental
degradation, with impacts on the entire global community.

Therefore, in addition to efforts to halt the “Combo of Death”, strengthening


international cooperation with Brazil for the protection of nature and these
populations is of fundamental importance, including the relevance of resuming
negotiations between the European Union and Brazil for the formation of a
strategic partnership for a sustainable environment, with the renegotiation of the
EU-Mercosur agreement (Quintanilha et al., 2022). Another extremely important
measure is the establishment of legal frameworks to exclude nature destruction
from the market, which will put pressure on companies involved in neo-
extractivism to adopt different practices.

In this regard, it is worth highlighting that the European Parliament approved a


landmark deforestation law that prohibits the import of commodities such as
coffee, beef, soy, and others into the EU if they are linked to the destruction of
global forests (Abnett, 2023). However, as pointed out by WWF, other ecosystems
beyond forests, such as grasslands, savannahs, and wetlands, should already be

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included in the scope of the law. Additionally, it was noted that the inclusion of a
human rights element in the proposal is too limited and does not effectively protect
the rights of indigenous peoples and local communities, indicating the need for
more ambitious proposals (WWF, 2022).

Conclusion

In this paper, the argument presented highlights a profound connection between


the intensification of the neo-extractivist development model in Brazil, the
environmental degradation of biomes such as the Amazon and the Cerrado, the
increased violation of the rights of indigenous peoples and traditional
communities, particularly through encroachments on their ancestral territories, in
a context of heightened environmental racism and necropolitics, and the increase
in greenhouse gas emissions contributing to climate imbalance.

Furthermore, it has been demonstrated that one of the strategies employed


operates within the legal sphere, with repeated attempts aimed at adapting
domestic law to the needs of capital. These attempts range from infralegal to legal
measures, representing the flexibilization of socio-environmental legislations
established in recent decades, particularly those that guarantee rights to
indigenous peoples and traditional communities. In a macro sense, these strategies
constitute a true affront to the principles set forth in the 1988 Federal Constitution
and the consensuses agreed upon by Brazilian society during the constituent
process.

Moreover, it is argued that at this moment when the climate issue is a global
priority, ensuring socio-environmental rights, especially those of indigenous
peoples and traditional communities, is an essential challenge that extends not
only to Brazil but to the entire international community. It is important to seek
another model of development in harmony with nature, which implies prioritizing
the rights and perspectives of indigenous peoples and traditional communities.
Internally, it requires efforts to halt the so-called “Combo of Death” and to
reinstate policies for socio-environmental protection and the demarcation of
indigenous and quilombola territories. On the international front, more effective
measures are required. The EU deforestation law is a starting point, but more
ambitious frameworks are necessary.

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InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Environmental racism, necropolitics, and climate crisis: reflections from the humanitarian crisis 171
of indigenous peoples and traditional communities in Brazil

About the author


Mariana Rodrigues Viana
PhD Candidate at the NOVA School of Law - NOVA University Lisbon,
and FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia) PhD Scholarship
Holder. Holds a Master of Laws and a Bachelor of Laws from the Federal
University of Maranhão (UFMA). Researcher at CEDIS (Research Centre
on Law and Society) and at Nova Green Lab, both affiliated with Nova
School of Law.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50339

dossiê

Pardismo: um etnocídio de Estado


Pardismo: un etnocidio del Estado

Pardism: an ethnocide of the State

Sérgio Pessoa Ferro1


1
Universidade Federal do Oeste da Bahia, Barreiras, Bahia, Brasil. E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7842-0601.

Givanildo Manoel da Silva2


2
Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, Colégio Latino-Americano
de Estudos Mundiais, João Pessoa, Paraíba, Brasil. Brasil E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0009-0003-0379-0677.

Submetido em 31/07/2023
Aceito em 09/12/2023

Como citar este trabalho


FERRO, Sérgio Pessoa; DA SILVA, Givanildo Manoel. Pardismo: um etnocídio de
Estado. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 173-
207, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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174 Sérgio Pessoa Ferro - Givanildo Manoel da Silva

Pardismo: um etnocídio de Estado

Resumo
O artigo tem como objetivo estudar os discursos de categorização étnico-racial formulados
pelo Estado brasileiro, de modo a questionar o pardismo como ideologia etnocida na
perspectiva dos movimentos de retomada das identidades e territórios indígenas. O aporte
teórico está baseado nas epistemologias decoloniais indígenas, sobretudo na filosofia
política de Ailton Krenak, e na antropologia do colonialismo de João Pacheco de Oliveira,
tendo como método de coleta de informações a revisão bibliográfica, técnica empregada
sobretudo na conceituação do dispositivo de etnicidade. Além disso, na metodologia
utilizamos a pesquisa documental, cujos principais documentos consistem nos Censos
Demográficos realizados, inicialmente, pela Diretoria-Geral de Estatística e,
posteriormente, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística no período de 1872 a
2010. Verificamos que por mais de cem anos a racionalidade estatal silenciou sobre a
presença originária nas estatísticas oficiais. Diante da ausência de uma categoria específica,
a população indígena foi mensurada como população parda nos números definidores de
cidadania e políticas públicas, caracterizando uma prática discursiva institucional de
desindianização da sociedade até o momento em que foi inserida a categoria indígena no
questionário em 1991 pela primeira vez na história.
Palavras-chave
Identidade indígena. Colonialismo. Censo Demográfico. Direito Indigenista.

Resumen
El artículo tiene como objetivo estudiar los discursos de categorización étnico-racial
formulados por el Estado brasileño, con el fin de cuestionar el pardismo como ideología
etnocida desde la perspectiva de los movimientos de recuperación de identidades y
territorios indígenas. El aporte teórico se fundamenta en las epistemologías descoloniales
indígenas, especialmente la filosofía política de Ailton Krenak, y la antropología del
colonialismo de João Pacheco de Oliveira, utilizando como método de recolección de
información la revisión bibliográfica, técnica utilizada principalmente en la
conceptualización del dispositivo étnico. Además, en la metodología utilizamos la
investigación documental, cuyos documentos principales consisten en los Censos
Demográficos realizados, inicialmente, por la Dirección General de Estadística y,
posteriormente, por el Instituto Brasileño de Geografía y Estadística en el período de 1872
a 2010. Encontró que durante más de cien años, la racionalidad estatal guardó silencio
sobre la presencia original en las estadísticas oficiales. Ante la ausencia de una categoría
específica, la población indígena fue medida como población parda en los números que
definen ciudadanía y políticas públicas, caracterizando una práctica discursiva
institucional de desindianización de la sociedad hasta el momento en que la categoría
indígena fue insertada en el cuestionario en 1991 por primera vez en la historia.
Palabras-clave
Identidad indígena. Colonialismo. Censo Demográfico. Ley Indígena.

Abstract
The article aims to study the discourses of ethnic-racial categorization formulated by the
Brazilian State, in order to question pardismo as an ethnocidal ideology from the
perspective of movements for the recovery of indigenous identities and territories. The
theoretical contribution is based on indigenous decolonial epistemologies, especially the
political philosophy of Ailton Krenak, and the anthropology of colonialism by João

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Pardismo: um etnocídio de Estado 175

Pacheco de Oliveira, using bibliographic review as a method of collecting information, a


technique used mainly in the conceptualization of the ethnicity device. Furthermore, in the
methodology we used documentary research, whose main documents consist of the
Demographic Censuses carried out, initially, by the General Directorate of Statistics and,
later, by the Brazilian Institute of Geography and Statistics in the period from 1872 to 2010.
We found that for more than one hundred years, state rationality remained silent about the
original presence in official statistics. Given the absence of a specific category, the
indigenous population was measured as a brown population in the numbers defining
citizenship and public policies, characterizing an institutional discursive practice of de-
Indianization of society until the moment the indigenous category was inserted into the
questionnaire in 1991 for the first time in history.
Keywords
Indigenous identity. Colonialism. Demographic Census. Indigenous Law.

Introdução

Um novo-velho debate, que se faz necessário e vem ganhando forma e força, é o


debate do etnocídio indígena, esse que tem massacrado a subjetividade-alma-
história-direito de milhões de pessoas, que tiveram as suas identidades negadas,
uma boa parte sequer tiveram o direito de acessá-las, já que por medo de ser pego
a laço, de ser caçado, ou sofrer diversos preconceitos, seus ancestrais negaram as
suas identidades, negando a diversas gerações, o direito à memória e à história por
segurança. Além disso, o colonizador aplicou sua política assimilacionista, que
impôs a permanente negação de quem nós somos ou, ainda, a burocracia do Estado
colono-capitalista decidiu desde sempre que uma de suas tarefas é apagar as
identidades daquelas e daqueles que podem se perceber indígenas.

Diversas foram as ações realizadas para esse intento, as inúmeras guerras foram
explícitas na determinação de subjugar os povos, que não se curvaram e ainda
lutam ferrenhamente para não se submeter aos interesses do invasor, que
sofisticou as suas ações e encontrou no etnocídio uma de suas práticas mais
eficazes no processo de subjugar os povos, utilizando táticas diferentes, que
começam nas ações assimilacionistas do Marquês de Pombal, passando pela
criminalização das línguas, proletarizando os indígenas em longos processos de
deslocamentos forçados dos seus territórios e na manipulação do Censo
Demográfico, retirando da contagem uma categoria específica para mensurar a
presença indígena por cem anos, já que o termo caboclo foi retirado no final dos
Oitocentos e o termo indígena só foi inserido na última década do século XX (Ferro;
Varão, 2021).

Esse processo que rasga a alma e o lugar de muitas e muitos, não ocorre sem
resistências, só nesses últimos 50 anos, com o início do processo de articulação da

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176 Sérgio Pessoa Ferro - Givanildo Manoel da Silva

União das Nações Indígenas, que teve papel central na Assembleia Nacional
Constituinte de 1987/1988 para mudar o status dos povos indígenas de tutelados
pelo Estado para a autoafirmação das identidades e, o que impulsionou os povos
a se afirmarem e a retomarem seus territórios ancestrais. O Nordeste foi uma das
principais regiões nos processos de autoafirmação das identidades, chegando aos
dias atuais quando diversas identidades silenciadas pelo colono-capitalismo
passam a reivindicar as suas memórias ancestrais, para voltar a caminhar guiados
pelo farol de suas histórias, podendo fazer escolhas de caminhos à luz do passado
e do presente.

Álvaro de Azevedo Gonzaga (2021) assevera que o termo “índio” utilizado nos
textos jurídicos é racista, pois derivado do famoso erro de rota de Cristóvão
Colombo, que, chegando à Pachamama ou Abya Yala, nomes originários da
América, acreditou ter ancorado na Índia, assim chamando de índios os povos
autóctones. Indígena, ao contrário, quer dizer povo nativo, preferindo-se este
termo por não carregar o estereótipo designado pelo colonizador. Estima-se que
em 1500, à época da invasão portuguesa, o território que hoje chamamos Brasil era
povoado por cerca de 3.600.000 indivíduos pertencentes a aproximadamente 1.400
povos distintos (Oliveira; Freire, 2006)1. O imaginário colonial descrito por Pero
Vaz de Caminha (1450-1500) em sua célebre carta ao rei D. Manuel I (1469-1521)
assim os nomeou: “Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse
suas vergonhas”.

Deste documento emerge o enunciado pardo enquanto categoria de racialização e


etnicização dos corpos de nossos antepassados, que seria forjada posteriormente
em outras formações discursivas para fins estatísticos e político-jurídicos.
Atravessadas por guerras de conquista, políticas de extermínio, escravização,
epidemias, degradação ambiental, estupros e apagamentos culturais que
evidenciam o genocídio, apenas 0,4% da população se declarou indígena segundo
o Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE); na ocasião, 43,1% da população se definiu parda. Ainda assim,
a população autodeclarada indígena vem aumentando nas últimas décadas, de
modo que, em 2010, somava 896 mil pessoas, entre 305 etnias e 274 idiomas (IBGE,
2012b). Estes números expressam a diversidade cultural brasileira distribuída nas
terras indígenas demarcadas, em áreas rurais não-demarcadas, nas cidades, nas
periferias, nos centros e em todos os lugares da sociedade.

1 Esta estimativa não é um consenso, pois o apagamento constitui traço marcante da memória
oficial sobre a presença indígena no Brasil

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Pardismo: um etnocídio de Estado 177

Historicamente, para o sistema de classificação étnica e racial do IBGE (2007, p. 38),


a cor parda abrange pessoas indígenas e mestiças de origem indígena, como se
percebe na publicação Tendências Demográficas: uma análise da população com
base nos resultados dos censos demográficos de 1940 e 2000, apontando que o
censo de 1940 “na divulgação dos resultados, as categorias consideradas eram
somente quatro: ‘branca’, ‘preta’, ‘amarela’ e ‘parda’, com os indígenas
considerados juntamente com os pardos”. O IBGE (2007, p. 40) salientou que no
censo de 1940, o “pardo” era definido não somente em razão da mestiçagem
africana, mas também devido à mestiçagem indígena, sobretudo no contexto da
região Norte do país, que “revelava uma estrutura populacional étnica dividida
praticamente entre brancos e pardos, estando concentrados dentro dessa última
categoria os indígenas, caboclos, cafuzos, mulatos, dentre outros”.

Assim, este artigo tem como objetivo geral estudar os discursos de categorização
étnico-racial formulados pelo Estado brasileiro, de modo a questionar o pardismo
como ideologia etnocida na perspectiva dos movimentos de retomada da
identidade indígena e de enfrentamento ao racismo anti-indígena. De forma mais
específica, o texto se propõe a examinar o dispositivo de etnicidade, enquanto uma
rede de relações de poder e de saber que formam os conceitos de raça e etnia por
meio da estratégia metodológica da revisão literária; estudar a presença indígena
na história dos censos demográficos brasileiros e do direito indigenista; e, por fim,
discutir o pardismo como uma das razões que o Estado colonial utilizou para
cometer o etnocídio. O aporte teórico está baseado nas epistemologias decoloniais
indígenas, tendo como método de coleta de informações a revisão bibliográfica e a
pesquisa documental, cujos principais documentos consistem nos Censos
Demográficos realizados pelo Estado brasileiro no período de 1872 a 2010.

1 O dispositivo de etnicidade

Neste tópico dedicado à montagem do dispositivo de etnicidade, informamos que


não pretendemos esgotar todos os aspectos que definem a categoria, mas
apresentar um breve panorama que sirva de ferramenta para a leitura dos
documentos e compreensão das mudanças conceituais no decorrer do tempo,
conforme empregadas pelo Estado brasileiro. Como estratégia metodológica,
utilizamos a revisão literária para o estudo da etnicidade. Feita esta advertência,
os próximos parágrafos situam-se, inicialmente, na encruzilhada da diferenciação
entre os conceitos de etnia e raça, em seguida, movimentam-se rumo à
diagramação das principais teorias da etnicidade aplicadas às ciências sociais no
Norte e no Sul Global. Neste sentido, Peter Wade (2000) realiza uma genealogia
dos conceitos de raça e etnicidade nos respectivos contextos históricos,

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178 Sérgio Pessoa Ferro - Givanildo Manoel da Silva

concebendo-os como produtos de uma indústria de conhecimento liderada pelos


países ocidentais e inseridos dentro de um mapa de relações de poder.

Na escrita em línguas europeias, a palavra “raça”, oriunda do termo espanhol


“raza”, surge no início do século XVI com um significado de linhagem,
ascendência ou estirpe vinculada a um ancestral comum, sendo este o uso
predominante até próximo dos Oitocentos (Wade, 2000). Por exemplo, falar da raça
do personagem bíblico Abraão era falar de todos os seus descendentes, sem se
importar com sua aparência exterior. O termo espanhol “raza” designava mouros,
judeus e até mesmo os hereges (Spencer, 2006). No entanto, Wade (2000) ressalta
que o uso da categoria raça era muito raro dos séculos XVI ao XVIII. De fato, será
o colonialismo, a conquista, a escravidão, a propriedade privada e o capitalismo
mercantil que eclodem da brutal interação dos europeus com os povos de Abya
Yala e de África que geram um discurso distinto sobre a raça, tornando-a um
produto da modernidade em si mesma (Wade, 2000).

Por sua vez, a palavra "etnicidade" surge mais recentemente no discurso


acadêmico, datando da Segunda Guerra Mundial (Wade, 2000). Etnia deriva do
grego ethnos, que significa povo ou nação, e foi utilizada no século XIX como
sinônimo de racial; etnicidade deriva de ethnikos, que corresponde a pagão ou
gentio (Spencer, 2006). A etnicidade se refere à categorização das diferenças
culturais, ao poder de dizer quem é quem. Wade (2000) considera a etnicidade
como uma linguagem de lugar, ou seja, orientada pelo critério do espaço
geográfico no mundo moderno, tendo suas bases na geografia cultural. O
antropólogo britânico explica que as teorias sociais pós-estruturalistas criticaram
o conceito de identidade como uma entidade essencial, naturalizada, concebendo
o sujeito como múltiplo com base nas identificações transversais entre etnia, raça,
gênero, sexualidade, classe social, idade, religião, etc (Wade, 2000).

Assim, Peter Wade (2000) demonstra que, tradicionalmente, a raça diz respeito ao
fenótipo, enquanto a etnicidade trata da cultura de um povo, de forma que as
identidades raciais e as identidades étnicas se sobrepõem, permitindo olhar para
além do enfoque marxista clássico por não reduzir a dominação colonial à
exploração econômica, acentuando a desigualdade racial. O autor questiona o
entendimento de que na América Latina a raça identifica a população negra ao
passo que a etnicidade identifica a população indígena, refletindo que estas
categorias não são tão isoladas assim (Wade, 2000).

Como opera o dispositivo de etnicidade no Brasil? Como essa máquina da empresa


colonialista produz o corpo pardo e apaga a memória ancestral? Por que o
etnocídio e o genocídio são políticas que atingem a vida e a morte dos povos

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Pardismo: um etnocídio de Estado 179

indígenas? As estatísticas e os termos indigenistas invisibilizam os povos


indígenas que estão em contexto urbano? Há uma racialização do corpo indígena?
Há uma desetinização do corpo pardo? O que isso tem a ver com os direitos
territoriais? São muitos discursos e práticas que formam o dispositivo de
etnicidade, guiado por estas e outras perguntas, que giram em torno da divisão
social do trabalho e expropriação de terras indígenas. Evidentemente, não
enfrentaremos todos os aspectos da problemática neste artigo, que pretende
discutir a definição de pardo no discurso demográfico nacional e o pardismo como
etnocídio de Estado. Nesta seção, de forma mais precisa, com base em Poutignat e
Jocelyne Streiff-Fenart (1998), buscaremos responder à seguinte indagação: seria a
etnicidade um novo conceito para um fenômeno novo?

Os autores mencionam que o termo “etnicidade” surgiu nas ciências sociais


inglesas na década de 1940 e, posteriormente, foi introduzido no meio acadêmico
francês em 1981, tendo por uma de suas primeiras acepções "a pertença a um grupo
outro que não anglo-americano (o único grupo branco a não ter uma "origem
nacional)" (Poutignat; Streiff-Fenart, 1998, p. 22). Assim, os teóricos, apoiados em
Hugues, acentuam o caráter etnocêntrico do termo que define, afinal, quem tem o
"poder de nomear". A noção de etnicidade ganhou terreno no ambiente
universitário estadunidense na década de 1970 em estudos sobre nacionalismo,
violência e conflitos étnicos que se transformaram em norma social em todo o
planeta. A etnicidade também deriva de lealdades e lutas por direitos coletivos
junto ao Estado social, sendo uma expressão de consciência política. A noção
científica de etnicidade está permeada pelas dicotomias sociedades
industriais/sociedades primitivas e povos civilizados/povos não-civilizados,
entretanto favorece às resistências contra a homogeneização cultural e tem sido
bastante utilizada em pesquisas interdisciplinares entre a sociologia das migrações
e a antropologia das sociedades tradicionais (Poutignat; Streiff-Fenart, 1998).

Na intersecção entre raça, etnia e nação, percebe-se que a memória fundadora da


identidade nacional unitária foi construída em cima do "esquecimento das
condições de produção desta unidade: a violência e o arbítrio originais e a
multiplicidade de origens étnicas" (Poutignat; Streiff-Fenart, 1998, p. 36). Para os
mencionados autores, a visão weberiana de que a etnia, junto com a nação, ficaria
do lado da crença, da subjetividade, da representação coletiva; e a raça, a seu turno,
ficaria ao lado do “parentesco biológico efetivo” já não persiste na atualidade.
Outrossim, Weber (2015) também pontuava que as aparências externas dos
indivíduos importavam apenas enquanto dados sociológicos, de forma que a
acepção contemporânea de raça não significa mais hereditariedade biológica, mas
a “percepção das diferenças físicas” nos grupos humanos, firmando uma

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180 Sérgio Pessoa Ferro - Givanildo Manoel da Silva

concepção sociocultural baseada no fenótipo (Poutignat; Streiff-Fenart, 1998, p.


41). A etnia se aproxima da nação pela ideia de pertença, sendo que a primeira
abrigaria apenas um sentimento étnico coletivo enquanto a segunda, além da
pertença cultural, envolveria a pertença a uma comunidade política (Poutignat;
Streiff-Fenart, 1998).

Na nação unitária industrializada, que vincula o pertencimento dos indivíduos


pela condição jurídica da cidadania, há uma difusão da cultura hegemônica
eurocêntrica, sobretudo na educação formal, abrangendo escolas e universidades,
bem como no mercado de trabalho, justamente porque esta cultura está
fundamentada no projeto moderno de Estado nacional (Poutignat; Streiff-Fenart,
1998). A estigmatização, a neutralização e a assimilação dos grupos sociais
indígenas no espaço agrário e urbano provoca conflitos de identificação, que
tentarão ser resolvidos por teorias de institucionalização da identidade nacional,
produzindo um povo, uma comunidade nacional para apoiar a legitimidade do
Estado-nação. Isto porque a nação pressupõe o Estado, pois lhe fornece um corpo
geográfico, histórico, linguístico e cultural. Para Poutignat e Streiff-Fenart (1998, p.
51), os processos nacionais de etnização são fictícios no momento em que criam
instrumentos para “fabricar a etnicidade”. No entanto, estas fabricações não
acontecem do nada, “mas inscrevem-se em uma história de longa duração” que
envolve a ligação entre Estado, nação e povo a partir de uma identidade nacional
sustentada pelo discurso ideológico nacionalista "promotor da etinicidade"
(Poutignat e Streiff-Fenart, 1998, p. 51-54).

Para o sociólogo Stephen Spencer (2006), nas sociedades multiculturais do mundo


ocidental contemporâneo, após a experiência traumática do racismo científico e do
nazismo, a etnicidade subsume a raça, sendo considerado um conceito mais
inclusivo e menos objetificador, indicando o aspecto relacional dos grupos étnicos
ao invés do essencialismo das divisões raciais (Spencer, 2006). Existem inúmeras
teorias que informam as definições de etnicidade, variando bastante no tempo e
no espaço. A etnia pode tanto ser uma categoria imposta para conservação da
estrutura social como pode ser central para animar as identidades coletivas na luta
revolucionária por independência ou pelo poder político a partir do
compartilhamento de experiências comuns, formando o sentimento de "nós" que
mobiliza a ação dos sujeitos na reivindicação de direitos (Spencer, 2006).

Spencer (2006) elaborou um quadro com a evolução dos discursos sobre raça: a)
monogenismo, focado na origem, na linhagem, na descendência de Adão e Eva,
ilustrando as ideias da moralidade cristã sobre os habitantes das terras
conquistadas durante as primeiras fases do colonialismo; b) poligenismo, baseado
na herança biológica e na classificação da população em rígidas categorias naturais

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Pardismo: um etnocídio de Estado 181

(brancos europeus, vermelhos americanos, amarelos asiáticos e negros africanos);


c) evolucionismo, que concebia as raças como sub-espécies humanas
geneticamente interpretadas pelo darwinismo social sob o jargão da “sobreviência
do mais forte” que inspirava valores liberais e individualistas; d) raça como classe,
descrita exclusivamente pelo aspecto socioeconômico das relações de produção ou
status determinado pela classe, ignorando a dimensão cultural; e) raça como
cultura, identificada com a linguagem, religião, costumes e demais características
culturais; f) raça como etnicidade, ou seja, termos intercambiáveis à medida que o
critério social substituiu o critério natural, contudo reflete a reificação dos
conceitos etnocêntricos forjados ao longo do tempo, objetificando mais um “eles”
do que um “nós”; g) raça como nação, similar ao conceito de linhagem, mas
aplicado ao contexto dos movimentos nacionalistas.

Aparecida Sueli Carneiro (2005) pensa o dispositivo em Foucault como uma


ferramenta de análise da formação de enunciados no momento histórico, desde
uma rede de discursos científicos, leis, instituições, medidas administrativas,
arquiteturas, proposições morais, filosóficas e filantrópicas. Neste influxo, chega
ao conceito de dispositivo de racialidade para pensar o campo ontológico,
epistemológico e político da negritude no Brasil, constituído com contribuição do
racismo científico que tornava o negro objeto de conhecimento após a abolição
jurídica da escravidão. A autora ressalta que a racialidade opera em conjunto com
o epistemicídio, este modus operandi do empreendimento colonial dirigido à
assimilação cultural. Sueli Carneiro (2005) pontua que a violência epistemicida
permeia as relações entre educação e cidadania, devido às dificuldades históricas
da população negra no acesso ao ensino formal, da alfabetização às pós-
graduações, lugar de produção teórica.

Para a filósofa brasileira Sueli Carneiro (2005), a narrativa do mito da democracia


racial se insere nas operações do dispositivo de racialidade a celebrar um pacto
social da branquitude estabelecendo um silêncio sobre o racismo com fundamento
na miscigenação promovida pelo estupro colonial de mulheres negras e indígenas.
Sabe-se que muitos trabalhos acadêmicos abordam a mestiçagem na perspectiva
negra, contudo a discussão, embora cada vez mais profícua, é ainda incipiente em
relação aos povos originários. Por isso, questionamos: até que ponto o não-lugar
da população parda com ancestralidade indígena foi produzido pelas estatísticas,
leis e instituições do Estado nacional brasileiro? Até que ponto foi negociado? Até
que ponto foi imposto? Quais os discursos e práticas de resistência?

Assim, procuramos mapear as forças que governam e nomeiam o corpo pardo na


desindianização empreendida pela elite branca reinante no espaço público do país
como obra comum e problemática do dispositivo de racialidade e do dispositivo

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de etnicidade. O não lugar é também um entre-lugar. Embora não tenha sido um


tema central da análise foucaultiana, suas ferramentas colaboram para examinar
as operações do dispositivo de etnicidade, atentando-nos para os discursos de
poder no colonialismo e os discursos de resistência articulados pelos povos
originários em luta pela existência (Spencer, 2006, p. 99). Nestes termos, o
dispositivo de etnicidade cumpre exatamente o papel de examinar os discursos
dominantes e dissidentes de etnia que implicam definições jurídicas e políticas, na
medida em que eles criam uma indianidade e desindianidade enquanto enunciam
categorizações que agenciam determinadas práticas institucionais (Spencer, 2006,
p. 100).

Ademais, cabe fazer uma apertada diferenciação, para fins pedagógicos, entre os
conceitos de raça e etnia a partir da perspectiva decolonial. Quijano (2005) afirma
que a ideia de raça, em seu sentido moderno, surgiu com a invenção da América.
Ao compreender esta categoria enquanto uma construção histórica que imprime
nos corpos a experiência da dominação colonial; a decolonialidade inova ao
considerar que a raça “é um signo” (Segato, 2005) que indica a posição do sujeito
na história. Rita Segato (2005, p. 05) compara o conceito de raça no Brasil e nos
Estados Unidos, afirmando que, aqui, raça é uma marca fenotípica, enquanto lá
depende da origem: “no Brasil o racismo se manifesta nas relações interpessoais e,
sobretudo, intra-pessoais, num expurgo interior, enquanto nos Estados Unidos é
um antagonismo de contingentes, entre povos percebidos como diferentes”.

No Brasil, a identidade racial expressa a etnicidade da população negra e a


identidade étnica expressa a etnicidade dos povos indígenas, podendo haver
dupla filiação de identidades políticas, como no exemplo apontado por Segato
(2005, p. 05-06), dos “índios negros” referentes aos pertencentes às etnias Guarani,
Pataxó e Potiguara, acrescentando que, neste caso, a cor não importa para o
reconhecimento da identidade, mas o pertencimento, pois o fenótipo “não pode
deixar de resultar de um código de classificação socialmente relevante, e o que é
socialmente significativo, neste contexto, é o pertencimento à sociedade indígena”.
Para a autora, a situação já se modifica na Argentina, onde a identidade racial
remete à “raça dos povos originários” simbolizada na fisionomia dos olhos e
textura do cabelo em pessoas mestiças de origem indígena, estigmatizadas na
sociedade.

Aliás, a antropóloga argentina menciona a apropriação das elites brancas dos


países da América Ibérica de símbolos culturais dos grupos sob seu domínio para
afirmação da nacionalidade: “as elites se etnicizam e folclorizam para incluir na
sua heráldica os símbolos dos territórios apropriados” (2005, p. 07). Já etnia é uma
categoria utilizada como “[...] um símbolo de domínio e de imposição de

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Pardismo: um etnocídio de Estado 183

diferenças culturais entre colonizadores e colonizados” (Araújo, 2019, p. 47). As


classificações étnicas e raciais têm, portanto, origem e caráter colonial,
constituindo-se como formas de controle do trabalho e da atribuição de posições
sociais por parte dos Estados-nação (Segato, 2021).

Raça e etnia provaram ser categorias mais duradouras e estáveis do que o


colonialismo em cuja matriz foram estabelecidas. Implica, consequentemente, num
elemento de colonialidade formador do padrão de poder hoje hegemônico
(Quijano, 2005). Os censos demográficos são evidências históricas sobre como o
novo Estado brasileiro manipulava as identidades para esvaziá-las de sentido,
descaracterizando as comunidades indígenas como tais. Como veremos, as
denominações de “pardo”, “caboclo” e “mestiço” foram instrumentalizadas pelo
Estado brasileiro para negar direitos. Ademais, em diálogo estreito com a
antropologia, a presente pesquisa alinha-se ao posicionamento defendido pela
historiadora Maria Regina Celestino de Almeida que aduz:

Entender cultura e etnicidade como produtos históricos, dinâmicos e


flexíveis, que continuamente se constroem através das complexas relações
sociais entre grupos e indivíduos em contextos históricos definidos,
permite repensar a trajetória de inúmeros povos que por muito tempo
foram considerados misturados e extintos (Almeida, 2012, p. 23).

Compreendendo as classificações raciais e étnicas como forma de controle dos


corpos disponíveis para a nova reorganização do mundo do trabalho no período
pós-independência, a hierarquização social entre as raças criadas pelo colonizador
“[...] associaram o trabalho não pago ou não assalariado com as raças dominadas,
porque eram raças inferiores” (Quijano, 2005, p. 230). No Brasil, conforme
argumenta Manuela Carneiro da Cunha (1992), a escravidão indígena foi abolida
várias vezes ao longo dos séculos XVII e XVIII, no entanto, no século seguinte, o
trabalho indígena foi fortemente disputado por particulares e pelo Estado. A busca
por uma mão de obra precarizada se deu sob a justificativa ideológica de que o
trabalho ajudaria na civilização dos índios.

Assim, “[...] o vasto genocídio dos índios nas primeiras décadas da colonização
não foi causado pela violência da conquista, [...], mas porque tais índios foram
usados como mão de obra descartável, forçados a trabalhar até morrer” (Quijano,
2005, p. 229). Portanto, visibilizar a exploração e a governabilidade da mão de obra
indígena no Brasil constitui uma prática decolonial na medida em que desvela as
continuidades do poder colonial sobre estes povos, que sofreram com o massacre
físico do genocídio e também com o apagamento cultural do etnocídio. No
próximo tópico, serão discutidas as categorizações étnico-raciais elaboradas pelo
Estado brasileiro, demonstrando como foi sendo forjado o conceito de pardo a

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partir do quesito raça ou cor nos censos demográficos diante da realidade social
colocada pelos povos indígenas que vivem em contexto urbano e estão em
retomada ancestral, encontrando no termo “pardo” uma armadilha na caminhada
para a luta por direitos. A seguir, a genealogia do pardismo analisará discursos e
práticas institucionais aparentemente dispersos, rearticulando demografia, direito
e política indigenista para estudar como esta ideologia de apagamento da
identidade indígena tornou-se uma razão de Estado.

2 O pardismo na história: os censos demográficos


em perspectiva indígena

Em sua antropologia histórica do colonialismo, Oliveira (2019, p. 239) avaliou


como um avanço a inserção da pergunta “você se considera indígena” no Censo
2010, porque distingue a etnicidade do conceito de cor ou raça, que pode confundir
os indígenas que residem nas cidades, afinal não existe uma coloração homogênea
entre os povos e indivíduos: “para muitos indígenas, principalmente em contexto
urbano, o elenco de categorias que começa com branco, preto, amarelo, pardo,
pode confundi-los”. Em comparação aos quantitativos de presença indígena nos
demais países da América Latina, o autor considera o aperfeiçoamento das
instituições públicas brasileiras na produção das estatísticas oficiais, pois elas são
tanto uma política de Estado quanto reflexo das políticas de Estado: “o número de
índios no Brasil é muito pequeno porque as nossas estruturas reprimem a
possibilidade de ser indígena, inclusive o censo demográfico” (Oliveira, 2019, p.
239).

A genealogia do “pardismo” estuda os discursos de classificação dos indígenas na


racionalidade estatal brasileira, escavando os dilemas que constituem o pardo
enquanto categoria racial para qualificar também a dimensão étnica dos corpos
pardos de origem indígena na contabilização populacional dos censos
demográficos e reconhecimento de direitos humanos. Historicizar o termo
“pardo” contribui para ajustar os equívocos interpretativos nas narrativas sobre a
fundação do Estado nacional e o encobrimento do extermínio, do esbulho das
terras e da escravização dos povos originários, repolitizando a mestiçagem pela
dimensão do genocídio e do etnocídio. O conjunto de textos estudados tem como
característica comum o registro documental de palavras que constroem a imagem
de um Brasil sem indígenas, estampada em discursos estatísticos, acadêmicos,
políticos e jurídicos.

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Pardismo: um etnocídio de Estado 185

Tabela 1
Categorias étnicas e raciais nos Censos Demográficos brasileiros (1872-2010)

Ano Presença indígena Quesito raça ou cor Categorias

1872 Sim, contabilizada pela Sim Branco, Preto, Pardo e


categoria cabocla Caboclo

1880: não houve censo

1890 Sim, contabilizada pela Sim Branco, Preto, Mestiço e


categoria cabocla Caboclo

1900 Não Não

1910: não houve censo

1920 Não, mas foi publicado um Não, mas houve


ensaio com argumentos discussão sobre
eugenistas “branqueamento” da
população brasileira

1930: não houve censo

1940 Sim, apenas para as pessoas Sim Branco, Preto, Amarelo e


falantes de línguas indígenas Pardo

1950 Sim, apenas para as pessoas Sim Branco, Preto, Amarelo e


falantes de línguas indígenas Pardo

1960 Sim, restrita à localização Sim Branco, Preto, Amarelo e


geográfica das terras Pardo
indígenas oficiais

1970 Não Não

1980 Não Sim Branco, Preto, Amarelo e


Pardo

1991 Sim, pela primeira vez é Sim Branco, Preto, Amarelo,


inserida a categoria indígena Pardo e Indígena

2000 Sim Sim Branco, Preto, Amarelo,


Pardo e Indígena

2010 Sim Sim Branco, Preto, Amarelo,


Pardo e Indígena

Fonte: Elaboração dos autores baseada no quadro analítico criado por Nobles
(2000), atualizando-o quanto à presença indígena e censos de 2000-2010
conforme o IBGE (2000, 2012b).

A tabela acima enfocou as categorias instrumentalizadas pela razão de Estado


através de seu violento dispositivo de etnicidade na definição normativa do ser e

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186 Sérgio Pessoa Ferro - Givanildo Manoel da Silva

do não ser indígena. Observando o diagrama político-jurídico das categorias


étnicas e raciais utilizadas nos Censos Demográficos brasileiros no período de 1872
a 2010, verificou-se que nos Oitocentos a presença indígena era contabilizada pela
categoria cabocla em relação à população livre, já que o primeiro censo nacional
foi realizado no tempo da escravidão, de maneira que as fontes consultadas
informam a classificação de indígenas escravizados como pardos (Monteiro, 1994,
2001; Oliveira, 1997; 1998). Ademais, o Censo 1872 foi realizado sob a vigência da
Constituição de 1824, cuja Assembleia Constituinte discutiu uma política
indigenista oscilante entre os métodos de catequização e extermínio, mas, depois
de dissolvida pelo Imperador, o texto constitucional outorgado não mencionou os
indígenas (Paraíso, 2010).

Foi, portanto, o Ato Adicional de 1834 que enunciou a questão indígena pela
primeira vez no discurso constitucional normativo brasileiro, estabelecendo a
política civilizatória da catequese e facilitando a expropriação das terras indígenas
pelas oligarquias locais com a transferência da competência legislativa aos estados
em matéria de terras devolutas (Lacerda, 2007). Com a abolição do regime
escravocrata e proclamação da República, o Censo 1890 manteve a categoria
cabocla e substituiu a categoria parda pela mestiça. O Censo 1920 não operou com
o quesito raça ou cor, todavia publicou um estudo eugenista que reproduzia a
narrativa do desaparecimento da “raça vermelha” no país. Na década de 1930 não
houve censo, porém, a Constituição de 1934 reconheceu pela primeira vez na
história os direitos territoriais dos povos originários, mantidos em todas as Cartas
Constitucionais posteriores (Araújo, 2006).

O Censo Demográfico de 1940, que reintroduziu o quesito raça ou cor nos


formulários do século 20, retirou definitivamente a categoria cabocla, incluindo
expressamente os indígenas na categoria parda (Oliveira, 2012). Pode-se
considerar um marco institucional na rearticulação do pardismo como ideologia
moderna atuante no apagamento da identidade indígena pelos aparelhos
demográficos e dispositivos de etnicidade do Estado nacional, pois no longo século
das Guerras Mundiais, a presença indígena foi ocultada nas estatísticas brasileiras
por uma série de artimanhas imperialistas. Em 1940 e 1950, os Censos operaram
com a variante linguística, coletando informações sobre os indígenas que falavam
línguas nativas no lar, o que permitiu uma estimativa da população indígena, mas
bastante limitada pela sub-representação daqueles que não falavam mais a língua
materna ou falavam apenas em ocasiões rituais porque foram proibidos no
passado (Oliveira, 1999, 2015).

Nos anos de chumbo, o Censo 1960 utilizou a categoria indígena nos formulários,
definindo-a pelo critério da localização geográfica dos indígenas, abrangendo

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Pardismo: um etnocídio de Estado 187

somente os residentes em aldeias administradas pela agência indigenista do


Estado (Dias Júnior; Verona, 2018). Contudo, os volumes impressos pelo IBGE com
os dados sistematizados para divulgação não publicaram os resultados, portanto,
contabilizando todos os indígenas como pardos, quer morassem em terras oficiais
ou não. Na década de 1970 não houve Censo Demográfico, mas foi aprovado o
Estatuto do Índio estabelecendo o conceito normativo do ser indígena pelo
paradigma integracionista tutelar. O Censo 1980 contemplou o quesito cor,
dissolvendo a presença indígena na categoria parda, que, aliás, crescia
exponencialmente, refletindo a imagem de um Brasil desindianizado.

Dialogando com o campo das relações raciais, mencionamos que o retorno das
categorias de cor nos questionários do censo demográfico em 1980 se deu em
virtude da atuação política de Lélia Gonzalez (2020) e demais militantes do
movimento negro que pressionaram o presidente do IBGE com um abaixo-
assinado. A autora, que também afirmava ser descendente de indígenas, sintetizou
esse debate no texto A Cidadania e a Questão Étnica, resultado de um discurso
proferido no seminário A Construção da Cidadania realizado pela Universidade
de Brasília em 1986, em que estiveram presentes Marcos Terena, assessor do
Ministério da Cultura, e Eunice Paiva, advogada indigenista. Na ocasião, Gonzalez
(2020, p. 215) fez algumas comparações entre a questão negra e a questão indígena,
mas sempre se posicionando enquanto intelectual representante do Movimento
Negro Unificado: “tanto no caso do indígena quanto no do negro percebemos que
é o branco que controla sempre as decisões a nosso respeito”.

Como ensinava Antônio Bispo dos Santos (2015, p. 91), nosso diálogo, articulado
entre o movimento indígena e o movimento negro, é guiado pela política das
confluências no sentido de transformar “as nossas divergências em diversidades”.
Assim, a produção teórica de Gonzalez (2020, p. 223) contribui para a reflexão
sobre o pardismo como etnocídio na medida em que questiona o mito da
democracia racial e a ideologia de branqueamento institucionalizados pelo Estado
brasileiro às custas da “negação de si mesmo” e da “negação da própria
identidade”. Nós reconhecemos a legitimidade do direito de autoafirmação da
população negra em definir-se enquanto pretos e pardos, porém nos levantamos
contra o silêncio de cem anos nas estatísticas em que indígenas foram
contabilizados como pardos num processo continuado de exploração da força de
trabalho e expropriação dos territórios. Na maioria dos estudos das relações
étnicas e raciais, nada se comenta sobre a retirada da categoria cabocla do censo
desde 1890 ou a ausência de uma categoria específica depois dessa data,
sustentando-se uma narrativa etnocida de que a população indígena foi dizimada
ou obrigada a fugir para a floresta, reproduzindo estereótipos apoiados na lógica

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188 Sérgio Pessoa Ferro - Givanildo Manoel da Silva

do desaparecimento, da assimilação e da negação da presença indígena em todo o


país.

Refutando a tese da substituição da mão de obra indígena pela africana no trabalho


escravo, John Manuel Monteiro (1989, p. 01-02) pesquisou um conjunto de
processos judiciais paulistas do fim do século 16 e início do século 18 que
expressavam diversos termos que “buscavam identificar o componente indígena
da sociedade colonial com o trabalho forçado”, entre eles, “gente de serviço”,
“serviços obrigatórios”, “negros da terra”, “gentio do cabelo corredio”,
“administrados”, “servos”, “carijós”, “pagens” e “pardos”. O autor historicizou a
antropologia e as “categorias construtoras da indianidade” com o propósito de
enterrar a imagem do “índio” vítima do extermínio no processo de construção da
nação, escrevendo sobre o controle do trabalho indígena, a questão demográfica,
o discurso da mestiçagem e do despovoamento para afirmar a presença dos povos
originários na história do Brasil no momento de mobilização política da
Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988 em que indigenistas buscavam
construir argumentos históricos e jurídicos para os direitos que foram
constitucionalizados (Pompa, 2014, p. 64).

Após a mudança histórica no constitucionalismo brasileiro com a Constituição


Federal de 1988, reconhecendo os direitos originários territoriais, a diversidade
cultural e a autonomia dos povos indígenas, o Censo 1991 inseriu pela primeira
vez na história das estatísticas nacionais a categoria indígena baseada no critério
de autodeclaração. A adoção do método de autoidentificação na coleta das
informações demográficas pelo IBGE ocorreu num cenário de participação política
dos movimentos indígenas no processo de abertura democrática e garantia de
direitos constitucionais (Baniwa, 2012). No plano global, a Convenção n. 169 da
Organização Internacional do Trabalho, ratificada no ordenamento jurídico
brasileiro pelo Decreto n. 5.051 assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva
em 2004, fixou a consciência da identidade indígena como critério fundamental
para sua caracterização jurídica.

Assim, mantidas as cinco categorias (branco, preto, amarelo, pardo e indígena) no


período 1991-2010, os Censos Demográficos apresentaram uma tendência de
crescimento da população indígena tanto em contexto rural quanto em contexto
urbano, dentro e fora das terras indígenas. Situando os dados socioeconômicos e
demográficos do Censo 2010 na encruzilhada entre as noções de etnia e classe
social, eles evidenciam a desigualdade étnica e o empobrecimento da população
indígena no Brasil, resultante da história de acumulação primitiva de capital pela
burguesia ruralista contemporânea por meio do esbulho territorial e da
escravização da força de trabalho. Em 2010, o IBGE informou que das 505 terras

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Pardismo: um etnocídio de Estado 189

indígenas catalogadas, 182 estavam com procedimento administrativo de


demarcação tramitando perante a FUNAI.

Os dados demográficos sobre o aumento da população indígena nas últimas três


décadas surpreenderam a academia e os órgãos indigenistas, sobretudo em
virtude de uma parcela significativa que reside em contexto urbano, formada tanto
por migrantes de comunidades aldeadas que conhecem o povo ao qual pertencem
quanto por pessoas que eram declaradas como pardas, mestiças ou caboclas nos
censos anteriores, mas que, com as modificações legislativas e metodológicas,
puderam identificar-se como indígenas ainda que desconheça o nome da etnia e
não tenha um documento emitido pelo Estado (Oliveira, 2015). Os indígenas em
contexto urbano não são apenas um contingente numérico que se movimenta na
hora de responder ao censo a cada dez anos, mas um grupo diversificado que
abrange os movimentos sociais de retomada da identidade indígena para
fortalecimento dos direitos conquistados e avanço na luta democrática pela
retomada das identidades étnicas e das terras ancestrais, inclusive pela
demarcação dos territórios das aldeias interétnicas localizadas em cidades.

Para aperfeiçoamentos futuros, o IBGE tem se dedicado à formação das equipes de


recenseadores sobre as identidades étnicas e raciais em conformidade com o
direito à autodeclaração, aprimorando igualmente a coleta de informações em
terras indígenas por meio de recursos tecnológicos e consulta prévia às lideranças,
por exemplo, com uma fase de coleta de informações por meio de uma operação
especial na terra indígena Yanomami (Brasil, 2023). Os resultados sistematizados
sobre condições de trabalho, renda, educação e moradia, entre outros fatores,
publicados decenalmente pelo IBGE contribuem para visibilizar e ampliar o debate
público quanto à realidade sociodemográfica dos indígenas que vivem nas cidades
brasileiras, em especial as populações indígenas que moram em favelas, e dos que
moram em áreas rurais não demarcadas.

No entanto, apesar da urgente demanda por estatísticas e políticas sanitárias,


econômicas e sociais devido à pandemia de covid-19, o Censo não foi realizado em
2020, descumprindo a norma do artigo 1º, da Lei 8.184, de 10 maio de 1991, que
determina a periodicidade decenal inicialmente em decorrência do fato
superveniente da emergência de saúde global e, num segundo momento, por
política de governo explícita em não realizar o levantamento sob alegação de
insuficiência orçamentária. Ou seja, verificou-se uma defasagem nos dados oficiais
sobre as condições de trabalho, saúde, educação e moradia da população
brasileira, explicada pelo Poder Executivo chefiado por Jair Bolsonaro em razão da
falta de recursos financeiros e adversidades da pandemia.

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190 Sérgio Pessoa Ferro - Givanildo Manoel da Silva

Em 22 de março de 2021, a presidência e direção de pesquisas do IBGE declararam


que “mais do que nunca, o Censo é necessário”, prevendo sua execução com o
orçamento de R$ 2 bilhões após cortes na Comissão Mista Orçamentária do
Congresso Nacional, sublinhando que a ausência de dados afeta a qualidade das
projeções populacionais para as unidades da federação, inclusive para elaboração
de medidas emergenciais e calibragem da democracia representativa (Guerra;
Rios-Neto, 2021). O IBGE planejou modelos mistos de coleta com o uso de
dispositivos móveis nas entrevistas presenciais, além de ligações telefônicas e
autopreenchimento dos questionários através da internet. Em carta aberta, ex-
presidentes da entidade se manifestaram pela preservação do Censo Demográfico
2022, destacando sua relevância para o pacto federativo como base da
transferência de recursos da União para o Fundo de Participação de Estados e
Municípios, gestão do Bolsa Família e demais políticas públicas (Guerra; Rios-
Neto, 2021).

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, em 17 de maio de 2021, julgou


procedente o pedido liminar formulado pelo Estado do Maranhão na Ação Cível
Originária 3508, decidindo em favor da realização do Censo Demográfico até o
exercício seguinte da concessão da tutela de urgência em 2022. A Suprema Corte
determinou que a União tomasse as medidas necessárias para dotação
orçamentária e execução do Censo 2022, porque estava caracterizada sua “omissão
em torno de ação estatal que visa à promoção de objetivos de envergadura
constitucional”. O Manual de Entrevista do Censo Demográfico 2022 informa que
a categoria “parda” foi concebida “para a pessoa que se declarar parda ou que se
identifique com mistura de duas ou mais opções de cor ou raça, incluindo branca,
preta, parda e indígena”; enquanto a categoria “índígena” referente à “pessoa que
se declarar indígena ou índia. Esta classificação se aplica tanto aos indígenas que
vivem em terras indígenas, como aos que vivem fora delas, inclusive em áreas
quilombolas” (IBGE, 2022, p. 43). Os resultados do Censo 2022 registraram o dobro
da população indígena em comparação à década anterior, passando de 817.963
pessoas em 2010 para 1.693.535 pessoas em 2022, correspondente a 0,83% da
população total (IBGE, 2023). Os movimentos indígenas estão abrindo os caminhos
para uma ampla discussão sobre a consciência da identidade, portanto, os dados
estatísticos são reflexos das retomadas étnicas e territoriais em luta para
concretizar o direito à autodeterminação e à memória coletiva.

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Pardismo: um etnocídio de Estado 191

3 Etnocídio e o não lugar de negação do direito à


memória e à identidade indígena

Na abertura do 1º Ciclo do Seminário “Não sou Pardo, sou Indígena”, disponível


pela TV Tamuya e TV Imbau, organizado pela Setorial Indígena do Tribunal
Popular no dia 11 de abril de 2021, Ailton Krenak ministrou a aula inaugural,
intitulada “O truque colonial que produz o pardo, o mestiço e outras categorias de
pobreza”, examinando a longa história colonial de negação das pluralidades
indígenas que perpassa a configuração das categorias censitárias pardo, caboclo,
mestiço e outros termos como negro da terra e sertanejo, considerados “marcas
coloniais” impressas pelo Estado brasileiro para apagar a presença indígena no
país. A aula, gravada em vídeo e compartilhada nos canais da TV Tamuya e TV
Imbaú na plataforma Youtube, foi transcrita com o objetivo de colaborar na difusão
e compreensão das lições ensinadas por Ailton Krenak, aplicando-as neste estudo
sobre a genealogia do pardismo como razão de Estado no Brasil. É nesta
perspectiva histórica, política e ideológica que o professor define o pardismo
instrumentalizado no discurso do Estado Colonial:

Vamos considerar que isso que está descrito aqui como o entendimento
que o IBGE toma para nos contar como a população no Brasil é uma
descrição das situações que engloba quase tudo o que eu procurei trazer
desde que o Caminha disse que nós somos pardos ou éramos pardos
quando ele avistou os nossos antepassados na praia. E como esse pardismo
veio evoluindo ao longo do tempo, veio se desenrolando ao longo do
tempo e como que coletivos de pessoas que viveram dentro da história
adotaram em diferentes épocas a estratégia de serem pardos para ficarem
vivos. Ou a estratégia de serem pardos para escapar a uma condição
subalterna e uma condição de fragilidade e que ser pardo naquela situação
podia ser uma vantagem para aquele coletivo, porque se eles fossem
índios, eles eram também sujeitos a uma outra apreciação, que era o gentio.
(Krenak, 2021).

Segundo Ailton Krenak, o pardismo é uma continuidade atualizada pelos truques


coloniais do Estado brasileiro no apagamento dos povos originários desde que
foram descritos como pardos por Pero Vaz de Caminha em 1500. As armadilhas
instituídas pelo poder branco montaram o lugar social do pardo, reproduzido
atualmente no questionário do Censo Demográfico do IBGE, sendo associado à
categoria preta para contagem da população negra, inclusive para efeito de
políticas públicas. Invisibilizar as pessoas pardas de origem indígena no discurso
estatístico marca além de um retrocesso na luta por direitos, uma prática etnocida:
“o etnocídio é você deixar os corpos vivos, impedidos de serem quem são. O
genocídio é matar o corpo, o espírito, o ser: o genocídio. O etnocídio pode deixar
todos nós vivos, com vários apelidos” (Krenak, 2021).

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192 Sérgio Pessoa Ferro - Givanildo Manoel da Silva

Na Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas aprovada pela


Organização das Nações Unidas em 2007, o artigo 5º garante o direito à
autodeterminação da identidade étnica: “os povos indígenas têm o direito coletivo
e individual de manter e desenvolver suas características e identidades étnicas e
culturais distintas, incluindo o direito à autoidentificação”. Em seguida, o artigo 6º
protege os indígenas do “genocídio cultural”, caracterizado por atos de privação
da identidade étnica, assimilação forçada, perda de terras, e imposição de outra
cultura dominante e qualquer propaganda dirigida contra eles (ONU, 2008). De
acordo com Krenak (2021), o Estado Colonial perdura na medida em que manipula
categorias como caboclos, sertanejos e pardos para nomear indígenas,
interpelando-os com uma pergunta que os convida a retomar as memórias
ancestrais e mobilizar-se no empoderamento da identidade, somando às lutas
contra o colonialismo: “vocês ainda se lembram quem são? Porque a gente sabe
que essas categorias foram criadas para ocultar nossa identidade e para apagar
nossa memória”.

Analisando o discurso memorialista nas letras brasileiras, Wilma Martins de


Mendonça (2014), citada por Krenak (2021) em sua aula magistral, aborda no livro
Memórias de Nós a brutalidade do reino lusitano sobre a humanidade indígena
nos primeiros séculos da colonização, continuada nas múltiplas formas de
exploração tramadas no neocolonialismo que encobre as reminiscências nativas. A
escritora relembra que “o redemoinho do capital tragava os nossos antepassados,
condenando-nos a um doloroso processo de continuidade/descontinuidade de
nossa genealogia ameríndia” (Mendonça, 2014, p. 284). As grandes narrativas
sobre o Brasil, paradoxalmente, encobrem o genocídio e o etnocídio contra os
povos indígenas:

Acreditamos, assim, que os equívocos interpretativos, notadamente os


registrados nos estudos acadêmicos, advêm do desconhecimento absoluto
dos eventos que nos fundaram a nacionalidade, cuidadosa e longamente
cultivado pelos portugueses e pelas elites nacionais que lhes sucederam no
comando do encobrimento do nosso passado. Por outro lado, e igualmente
constrangedor, o elogio às retóricas do extermínio ameríndio resulta,
explicitamente, da concordância de seus autores com o processo
colonialista em nosso país. (Mendonça, 2014, p. 232).

A autora, pertencente ao povo Tabajara, elabora uma crítica literária às memórias


de missionários e viajantes europeus principalmente sobre os Tupinambá, nos
discursos que revelavam as ambições da empresa colonialista na América
Portuguesa desde a chegada das caravelas até o século XIX, escravizando e
dizimando os povos originários (Mendonça, 2014). No prefácio à obra da escritora,
Ailton Krenak (2014, p. 12) saudou as "lutas de retomada identitária e dos direitos

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Pardismo: um etnocídio de Estado 193

à terra", opondo-se à tese inconstitucional do marco temporal discutida no


Supremo Tribunal Federal: “Memórias de Nós nos faz ouvir as falas de toda aquela
constelação de filhos da Terra que foram silenciados pelo canhão, a espada e a
cruz”. Com a transformação da Colônia em Império nos Oitocentos, o significado
do termo pardo denota um corpo que podia ser escravizado e, com a República na
virada para o século 20, firmou-se o entendimento do pardo como resultado da
mestiçagem e do desaparecimento dos povos indígenas pela via da assimilação e
da tutela do Serviço de Proteção aos Índios, que os definia como sujeitos
transitórios.

O professor relembra que até a década de 1970, o Estado brasileiro tinha o projeto
de emancipação dos povos indígenas e integração à força de trabalho na condição
de brasileiro (Krenak, 2021). A mudança de paradigma decorreu nos movimentos
indígenas, como a resistência de Marçal de Souza Tupã-Y (1920-1983) em defesa
dos direitos originários e contra a ditadura dos latifundiários. Para Krenak (2021),
a Constituição de 1988 inaugura um novo momento histórico com um capítulo
inteiro destinado ao reconhecimento dos direitos dos indígenas, possibilitando a
retomada das identidades por aqueles classificados como pardos, caboclos,
mestiços, sertanejos e outras categorias que variam no espaço e no tempo. O autor
argumenta que o direito à autodeclaração previsto na Convenção n. 169 da OIT faz
parte das lutas travadas na década de 1980 pelo movimento indígena, assim como
o direito às ações afirmativas, convocando os parentes para avançar na conquista
de direitos com sabedoria, enfrentando o pardismo, este “dispositivo
negacionista” do Estado brasileiro (Krenak, 2021).

Casé Angatu (2021, p. 16), atento aos recados da Jurema Sagrada, analisa os dados
estatísticos do IBGE pela perspectiva da indianização, ou seja, da retomada das
identidades indígenas: “indianidades retomadas em diferenciadas circunstâncias
através da busca de memórias, reminiscências, histórias ancestrais, do Tupixauara
(Espírito Originário) e, por vezes, retorno às Aupaba (Terras Originárias)”.
Contudo, o autor salienta que as retomadas das indianidades encontram diversas
barreiras colocadas pelas instituições na negação de direitos e agravamento de
preconceitos arraigados nas estruturas racistas, genocidas e etnocidas da
sociedade brasileira: “são partes que constituem um processo de negação de
direitos entre os quais encontra-se a retomada de indianidade pela autodeclaração
indígena” (Angatu, 2021, p. 17).

Segundo o historiador, as barreiras contra a autodeterminação são: a residência em


terras oficialmente demarcadas; a certeza do Povo Originário; o uso da língua
originária; o reconhecimento de caciques ou lideranças para validação (Angatu,
2021). Desse modo, compreende-se as preocupações quanto à utilização

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fraudulenta dos direitos, sobretudo porque conquistados pelos movimentos


indígenas com muita luta e esforço, mas o autor menciona que tais restrições se
tornam problemáticas no momento em que o Estado brasileiro se vale delas para
negar cidadania e barrar o crescimento da população indígena, por exemplo, em
janeiro de 2021, o ex-presidente da FUNAI, Marcelo Xavier, fixou critérios
complementares à autodeclaração indígena, porém em março do mesmo ano eles
foram considerados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (Angatu,
2021).

Trata-se de decisão judicial no bojo da já mencionada Arguição por


Descumprimento de Preceito Fundamental 709, ajuizada pela Articulação dos
Povos Indígenas do Brasil, partidos políticos de esquerda e instituições
promotoras de direitos humanos tendo por objeto uma série de violações de
direitos e requerimentos emergenciais relacionados à saúde da população
indígena durante a pandemia causada pelo coronavírus, resultando no Plano
Geral de Enfrentamento à Covid-19 para Povos Indígenas sob responsabilidade da
União, então chefiada por Jair Bolsonaro. No dia 16 de março de 2021, a decisão
monocrática do relator ministro Luís Roberto Barroso declarou a
inconstitucionalidade e a inconvencionalidade dos critérios de heteroidentificação
da identidade indígena impostos pela Resolução n. 04/2021 da FUNAI, que exigia
vinculação com território e “critérios técnico-científicos” de legitimação, decidindo
pela adoção do método da autodeclaração pela agência indigenista estatal:

Como já esclarecido em decisão cautelar proferida por este Relator e


homologada pelo Plenário, que a FUNAI deveria conhecer e cumprir, o
critério fundamental para o reconhecimento dos povos indígenas é a
autodeclaração (Brasil, 2021, p. 13).

A Suprema Corte definiu a autodeclaração como critério fundamental para a


identificação indígena com fundamento nos artigos 215, 216 e 231 da Constituição
Federal de 1988 e no artigo 1º, 2, da Convenção n. 169 da Organização Internacional
do Trabalho. No julgado, o ministro Barroso incluiu no plano prioritário de
vacinação os povos indígenas localizados em terras não homologadas e em
contexto urbano sem acesso ao Sistema Único de Saúde, garantindo-lhes o direito
à saúde integral e diferenciada “nas mesmas condições dos demais povos
indígenas aldeados, identificados os indígenas fundamentalmente com base em
autodeclaração, nos termos do art. 1º da Convenção 169 da OIT”, rejeitando os
argumentos da União, segundo os quais a atenção primária a essa população
causaria impacto orçamentário (Brasil, 2021, p. 08). Conforme Eloy Terena (2022),
consultor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, foi após um
pedido de aditamento na ADPF 709, solicitando a inclusão dos indígenas em terras
não homologadas e em contexto urbano na prioridade de vacinação, que o STF

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suspendeu a Resolução n. 04/2021 da FUNAI, estabelecendo o critério de


autodeclaração.

Baseado no estudo de Hallal, o advogado assevera que no primeiro ano da


pandemia a população indígena tinha 87% mais chance de exposição à covid-19
que a população branca na mesma cidade, além de que os indígenas em contexto
urbano eram invisibilizados nos dados sobre os óbitos porque eram registrados
como “pardos” em razão de barreiras burocráticas colocadas pelo sistema de
saúde, evidências que embasaram o requerimento e geraram um precedente
constitucional exitoso na luta dos movimentos indígenas por direitos diante do
racismo institucional do Estado brasileiro (Terena, 2022). Para Casé Angatu (2021,
p. 21), essa política de negação da identidade indígena pelos órgãos
governamentais consiste numa “postura discriminatória, racista, etnocida e
genocida no sentido de serem contrários ao autorreconhecimento (retomada da
indianidade) de parte da população como indígena”. Assim, o historiador
interpreta o aumento da população indígena nos Censos Demográficos pela ótica
da retomada da identidade indígena ou “etnogênese”:

Segundo os dados censitários do IBGE, entre os anos de 1991, 2000 e 2010,


a população autodeclarada indígena cresceu 178% nestas três décadas. Um
aspecto importante sobre os últimos censos é que o aumento significativo
da população indígena não resultou apenas do crescimento vegetativo
(por nascimento), mas da mudança na auto identificação étnica. Ou seja,
houve um processo de fortalecimento da etnicidade indígena, colocando
em questionamento as concepções que assinalavam para o
desaparecimento dos Povos Originários por assimilação e/ou extinção
física. (Angatu, 2020, p. 49).

O autor propõe, ademais, que a discussão sobre as retomadas étnicas esteja


presente nos currículos escolares em cumprimento da Lei n. 11.645/2008, que
determina o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena: “por que não
começar as aulas sobre as Histórias e Culturas dos Povos Originários abordando
este atual momento de (re)existência étnica e territorial indígena?” (Angatu, 2020,
p. 52). A pergunta poderia suscitar comentários relativos à ancestralidade indígena
dos alunos e professores, de modo que, mais uma vez, o historiador ressalta a
importância das narrativas orais, das memórias, das etnicidades e fazeres das
histórias indígenas em combate ao “epistemicídio ou racismo epistêmico”,
fundados na colonialidade das mentalidades e das práticas colonizadas que
impossibilitam a expressão de saberes diferenciados (Angatu, 2020, p. 57). Os
dados demográficos produzidos pelo IBGE podem ser utilizados
pedagogicamente para ensinar sobre o direito à autodeterminação conquistado
pelos movimentos indígenas na Constituição Federal de 1988 e na Convenção n.

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169 da OIT, decolonizando o conhecimento produzido em sala de aula (Angatu,


2020).

Nesse sentido, o Censo Demográfico de 2010 contou 191 milhões de brasileiros,


dos quais 91 milhões (47,7%) se declararam brancos, 82 milhões pardos (43,1%), 15
milhões pretos (7,6%), 2 milhões amarelos (1,1%) e 817,9 mil indígenas (0,4%)
(IBGE, 2010). O Instituto registrou que somando os indígenas que se
autodeclararam em resposta ao quesito cor ou raça à parcela que não se declarava,
mas se reconhecia indígena (78,9 mil), a população indígena total residente no país
atingiu o número de 896,9 mil pessoas, de modo que 36,2% delas moravam em
áreas urbanas e 63,8% em áreas rurais (IBGE, 2010).

Ademais, 57,7% habitavam as terras indígenas, em sua maioria situadas na


Amazônia Legal, enquanto 42,3% viviam fora delas (IBGE, 2010). Destes, a maior
fatia estava no Nordeste, totalizando 126 mil em termos absolutos. A mesma região
apresentou o maior percentual (22,7%) de pessoas que não se declaravam, mas se
consideravam indígenas, fenômeno explicado pela retomada política da
identidade étnica: “esse acréscimo de população que se considerou indígena na
região colaborou com o incremento significativo no período 2000/2010 dentre
todas as regiões, corroborando o processo da etnogênese” (IBGE, 2010, p. 57). Em
sua análise dos dados, o IBGE a define com fundamento em Gersem José dos
Santos Luciano Baniwa:

A “etnogênese” é um fenômeno em que, diante de determinadas


circunstâncias sócioculturais e histórias, uma etnia cujas pessoas não mais
assumiam publicamente sua identidade étnica por razões as mais diversas,
passa a reassumi-la e reafirmá-las, o que pode resultar, no caso dos
indígenas, no aumento de etnias indígenas. (IBGE, 2010, p. 57.)

Conforme apontado pelo autor, as discrepâncias regionais não devem mais


separar os indígenas, favorecendo ao colonizador, mas reaproximar parentes num
movimento de diversidade cultural e unidade política articulada para a defesa dos
direitos originários (Baniwa, 2006). A luta pela autoafirmação identitária atravessa
a superação dos estereótipos racistas forjados sobre os povos indígenas pela
sociedade brasileira, desconstruindo a imagem do “índio” como um “coitado que
precisa de tutor para protegê-lo e sustentá-lo”, bem como a perspectiva do “índio
cruel, bárbaro, canibal, animal selvagem, preguiçoso, traiçoeiro e tantos outros
adjetivos e denominações negativos” rumo ao fortalecimento da ontologia
democrática que enxerga os indígenas como sujeitos de direitos no plano da
cidadania diferenciada (Baniwa, 2006, p. 35).

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Nas palavras de Gersem Baniwa (2006, p. 39): “após 500 anos de massacre,
escravidão e repressão cultural, hoje respiram um ar menos repressivo, o suficiente
para que, de norte a sul do país, eles possam reiniciar e retomar seus projetos
sociais étnicos e identitários”. Ademais, Pacheco de Oliveira (1998, p. 62) comenta
que o termo “etnogênese” foi cunhado pelo antropólogo Gerald Sider em oposição
ao fenômeno do etnocídio, de maneira que a “emergência étnica” abre caminhos
para discutir as resistências à proletarização dos povos indígenas e expropriação
de terras nos processos de expansão do capital.

Considerações finais

Esse texto teve como preocupação colocar questões que são relacionadas a um ator
coletivo que ainda está construindo o seu papel social, portanto, o seu papel
político, tendo assim a possibilidade de ser um sujeito coletivo na luta do que se
chama luta identitária com a possibilidade de provocar ou intervir em mudanças
estruturais significativas na conjuntura. Somos sujeitos indígenas, trabalhadores,
em contexto rural e urbano que vivemos em diáspora em nossa própria terra, que
fomos classificados pelo Estado como pardos por mais de um século e que hoje
lutamos pela existência, movidos por um chamado ancestral que nos coloca na
política e no direito enquanto devir originário, abrindo diálogos entre os povos,
instituições e classes sociais. Dito isto, é importante pensar algumas questões que
ainda não estão equacionadas na arena do debate público, uma delas diz respeito
à intersecção etnia-racismo, muito embora os fenótipos indígenas sejam diversos,
não é difícil encontrar diversas manifestações de racismo contra indígenas,
principalmente os indígenas que não estão dentro do fenótipo idealizado de forma
caricatural pelo colonizador.

Não é difícil encontrar falas públicas que remetem a uma posição racista, como
“cosplay de indígena” ou “falso indígena” que são proferidas cotidianamente nas
tribunas do Congresso Nacional ou em Assembleias Legislativas Estaduais diante
dos conflitos com indígenas no âmbito do Estado brasileiro. Por exemplo, as falas
do deputado Giovani Cherini do PL, que no dia da votação do Projeto de Lei
490/07, que pretende definir o marco temporal, as repetiu em exaustão. Ainda
expressões como “selvagens”, “bichos”, “programa de índio”, “índio come gente”,
“índio gosta de beber”, “índio não gosta de trabalhar”, “índio fede bicho”, “índio
come piolho”, “índio bom é índio morto”, entre tantas outras expressões de
racismo (Bicallo, 2022). Onde fica muito evidente essa discriminação é no Mato
Grosso do Sul, principalmente na região de Dourados, em que os estabelecimentos
têm adesivos proibindo a entrada de indígenas, portanto o racismo contra

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indígena não é uma abstração e sim uma questão que devemos nos debruçar para
entender e construir novas compreensões a respeito.

É necessário ir a fundo na compreensão desse racismo silencioso, que foi


naturalizado principalmente pela compreensão que foi construída sobre os
indígenas, elaborada pela academia no começo do século passado, com linhas
teóricas opostas, considerando o indígena semicivilizado, esse pensamento que se
naturalizou nas décadas seguintes reafirmou a desumanização dos indígenas,
portanto, é um racismo que é percebido, porém não admitido, voltamos aqui então
para a complexidade desse debate.

Considerando os aspectos apontados em nosso texto, o pardismo historicamente


foi utilizado para identificar indígenas, entretanto, hoje é um instrumento
utilizado para apagamento de um grande contingente de indígenas, esse não é um
debate esgotado e que tenha um caminho tranquilo. Não cabe também só aos
povos indígenas e os corpos indígenas fazer esse debate, que deve envolver mais
atores que problematizam e reivindicam essa categoria com compreensão
diferente, por isso temos que ter cuidado e o nosso cuidado é não afirmar que o
pardo é x ou y, o mesmo cuidado que tem o IBGE, pois por mais de cem anos as
estatísticas oficiais transformaram os indígenas em pardos, especialmente no
processo de consolidação da República. Porém, sabemos que ocorreram outras
misturas, por isso, é necessário que encontremos um caminho razoável que
considere essas questões porque entendemos que é importante desvelar essa lógica
que nos foi imposta.

É necessário que façamos o reconhecimento das memórias e histórias, que não são
hegemônicas ou homogêneas, que são diversas, principalmente no que tange à
violência no processo de invasão e ocupação do território de Pindorama,
genocídio, epistemicídio, ecocídio e etnocídio, estes instrumentos utilizados de
forma permanente para afirmar um projeto de sociedade que não cabe às
diferentes expressões humanas, construindo uma única expressão, um mundo
excludente e auto-referenciado em um pequeno grupo. Temos ainda de pensar na
importância do sentido em compreender as diversas violações silenciosas, que um
determinado grupo social vem sofrendo ao longo de cinco séculos e compreender
qual a reivindicação que essa memória coletiva que pede passagem para se
afirmar, o que tem feito que envolve, entre outras questões, a formulação de uma
ética e pensamento coletivo de retomada.

Além disso, os coletivos de retomada indígena implicam mudanças não somente


no âmbito de políticas públicas, como o censo demográfico, mas na transformação
das estruturas sociais, econômicas e culturais, colocando em debate o projeto de

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país e a responsabilidade com o meio ambiente. Afinal, a relação espiritual com a


terra, a água e os seres vivos, faz parte da afirmação da identidade indígena e, por
isso, atravessa também reflexões atreladas às injustiças socioambientais.

Dessa maneira, podemos dizer que o combate ao racismo presente no discurso


indígena traz implicações muito profundas para a sociedade. Quais seriam as
consequências de redirecionamentos no Brasil caso sustentássemos, como os
sugerido por Angatu, a retomada de memorias e identidades indígenas? Quão
profundamente estaríamos alterando o curso do Brasil caso adotemos uma postura
mais crítica em relação a nossa identidade através da aplicação de políticas de
Estado genuinamente decoloniais?

Se entendermos a repactuação ser humano-natureza — uma das reivindicações


feita por grupos indígenas — talvez possamos enxergar uma contribuição
fundamental para o processo que temos vivido, não só no atual momento do Brasil,
mas também da humanidade com a urgência climática. Afinal, a categorização de
indígenas enquanto tais, assim como a categorização de negros, asiáticos e todos
aqueles que se desviam do padrão da branquitude, está intricada numa relação de
poder entre o Homem (e não do “humano”) com a natureza (Wynter, 2003). De
fato, o próprio desvio da branquitude (isto é, o desvio do Homem) significa uma
maior proximidade com a categoria de Natureza, o que justifica a sujeição a formas
de violência que podem tomar diversos nomes como “civilização”, “progresso”,
“desenvolvimento”, dentre outros conceitos que celebram e perpetuam visões
eurocêntricas de ser e estar no mundo.

Em outras palavras, o poder de categorizar pessoas em graus de humanidade e


graus de natureza é o denominador comum tanto dos abusos cometidos contra
indígenas como contra a totalidade do planeta, através do firmamento da relação
auto-referenciada, que é o antropocentrismo, que se autorizou submeter outros
seres vivos aos seus interesses, impondo esse pensamento em escala planetária a
cinco séculos, a partir do território europeu ampliando o domínio de um
determinado grupo sobre outros grupos, impondo o seu pensamento entre o
eurocêntrico antropocêntrico. O caminho do “indígena” ao “pardo” representa,
por conseguinte, a expansão colonialista, pois essa forma de mundo tem base
colonial. Ou seja, tem como característica de sua ação a invasão e expropriação de
territórios e identidades, que consequentemente gerou o capitalismo assim como
suas consequências planetárias. Podemos entender assim esse processo colono-
capitalista de mais de 500 anos em todo o mundo.

Essas mudanças provocadas por esse olhar sobre o mundo, é conceituado como
antropoceno, ou seja, é uma mudança geológica provocada pela forma como os

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seres humanos estão no mundo, mais especificamente, uma forma de reprodução


da vida. Agora que finalmente chegamos aos últimos desdobramentos dessa
catastrófica e dramática quadra que a humanidade se encontra, é necessário que o
direito e a sociedade façam um outro tipo de síntese de como devemos estar no
mundo, fundamental para mudar os rumos dessa marcha firme rumo ao
precipício. Logo, olhar para esses novos atores coletivos e suas reivindicações e
proposições que decolonizam formas de enxergar o mundo e aquelas que vivem
nele são fundamentais para que possamos adiar o fim do mundo e tentar evitar a
queda do céu (Kopenawa; Albert, 2013).

Em suma, e retomando o foco do artigo, podemos dizer, portanto, que o pardismo


é uma ideologia de apagamento da identidade indígena, articulada sobretudo nas
categorizações étnicas e raciais, principalmente dos Censos Demográficos,
estabelecida como razão de Estado em termos de governabilidade, políticas
públicas, cidadania e projeto de “humanidade”. Neste artigo, enfrentamos a
problemática do pardismo como contraponto aos movimentos sociais de retomada
indígena definidos como “etnogênese” ou “(re)existência étnica”. Salientamos a
importância do diálogo com o campo das relações raciais que estudam a questão
negra, inclusive na formação de redes políticas e afetivas. Contudo, propomos uma
crítica decolonial da categoria “parda” em perspectiva indígena, percebendo-a não
como um dado naturalizado que decreta o mito do desaparecimento, mas como
um produto fabricado historicamente pelo dispositivo de etnicidade para nos
iludir e impor o etnocídio instrumentalizado pelo saber moderno da racionalidade
estatal brasileira, que afirma um projeto desumanizador tendo no apagamento dos
povos originários um de seus instrumentos, o que consequentemente contribui
para a imposição sociocultural de uma forma de existir que está provocando uma
enorme insegurança quanto aos destinos da humanidade, talvez até a sua própria
existência.

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Sobre os autores
Sérgio Pessoa Ferro
Doutor em Ciências Jurídicas pelo Programa de Pós-Graduação em
Ciências Jurídicas, da Universidade Federal da Paraíba, e professor na
Universidade Federal do Oeste da Bahia. Advogado na área dos direitos
humanos.

Contribuição de coautoria: Construção da metodologia, pesquisa, coleta


e análise de dados e redação do texto.

Givanildo Manoel da Silva


Membro do Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais - Colégio
Latino-Americano de Estudos Mundiais. Especialização em Políticas
Públicas pela Escola de Governo da USP. Educomunicador, Assessor
técnico em Direitos Humanos, Colunista do Portal 247 e Correio da
Cidadania e Militante do Movimento Indígena do Contexto Urbano.

Contribuição de coautoria: Redação e supervisão do texto.

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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50315

dossiê

Democracia e racismo: da crise à


construção de uma Democracia
Antirracista
Democracia y racismo: de la crisis a la construcción
de una Democracia Antirracista

Democracy and racism: from the crisis to the


construction of an Anti-Racist Democracy

Hector Luís Cordeiro Vieira 1


1
Centro Universitário de Brasília, Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais,
Brasília, Distrito Federal, Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-0900-2320.

Tédney Moreira da Silva2


2
Centro Universitário de Brasília, Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais,
Brasília, Distrito Federal, Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-5285-5981.

Submetido em 31/07/2023
Aceito em 07/12/2023

Como citar este trabalho


VIEIRA, Hector Luís Cordeiro; MOREIRA DA SILVA, Tédney. Democracia e racismo: da
crise à construção de uma Democracia Antirracista. InSURgência: revista de direitos e
movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 209-232, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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210 Hector Luís Cordeiro Vieira - Tédney Moreira da Silva

Democracia e racismo: da crise à


construção de uma Democracia
Antirracista

Resumo
O debate sobre democracia centra-se no modelo de sociedade formatada a partir de
processos socioeconômicos e culturais que espelham os vários elementos sociopolíticos que
a constituem. Neste contexto, a raça e o racismo devem ser considerados categorias
essenciais para compreender as sociedades nacionais e as democracias modernas. O
objetivo da pesquisa é estabelecer a relação entre racismo e democracia, dada a premissa
de que, sem considerar aquele, não é possível construir democracia sólida, ocasionando a
reprodução de estruturas hierárquicas que não articulam as demandas coletivas de forma
igualitária nas instâncias decisórias da sociedade e do Estado. Foca-se na
institucionalização do racismo pela branquitude no Judiciário e na proposta de reinvenção
democrática antirracista.
Palavras-chave
Racismo. Sistema Judicial e Branquitude. Democracia Antirracista.

Resumen
El debate sobre democracia se centra en el modelo de sociedad formateada a partir de
procesos socioeconómicos y culturales que reflejan los varios elementos socio-políticos que
la constituyen. En este contexto, la raza y el racismo deben considerarse categorías
esenciales para comprender las sociedades nacionales y las democracias modernas. El
objetivo de la investigación es establecer la relación entre racismo y democracia, dada la
premisa de que, sin considerar aquello, no es posible construir democracia sólida,
ocasionando la reproducción de estructuras jerárquicas que no articulan las demandas
colectivas de forma igualitaria en las instancias decisorias de la sociedad y del Estado. Se
centra en la institucionalización del racismo por la blancura en el Poder Judicial y en la
propuesta de reinvención democrática antirracista.
Palabras-clave
Racismo. Sistema Judicial y Blanquitud. Democracia Antirracista.

Abstract
The debate on democracy focuses on the model of society formatted from socioeconomic
and cultural processes that mirror the various sociopolitical elements that constitute it. In
this context, race and racism must be considered essential categories for understanding
national societies and modern democracies. The objective of the research is to establish the
relationship between racism and democracy, given the premise that, without considering
that, it is not possible to build solid democracy, structures that do not articulate the
collective demands in an egalitarian way in the decision-making instances of society and
the State. It focuses on the institutionalization of racism by whiteness in the judiciary and
the proposal for democratic reinvention antiracist.
Keywords
Racism. Judicial System and Whiteness. Antiracist Democracy.

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Introdução

A compreensão adequada das democracias latino-americanas impõe a reflexão


sobre o processo de formação histórica das sociedades amefricanas e ameríndias e
de suas peculiaridades, em que pese ainda ser a quase integralidade das premissas
democráticas, tradicionalmente expostas na América Latina, atribuída às origens
francesa e norte-americana, como marcos histórico-teóricos ainda hoje abordados.
Nesse sentido, a democracia é muitas vezes ensinada como a arquitetura social que
se baseia nos modelos valorativos eurocêntricos e de países centrais (do ponto de
vista hegemônico da economia global), com esteio nos ideais iluministas e
constitucionalistas do século XVIII.

Vista como o molde sociopolítico contraposto ao absolutismo e à dominação


alicerçada por rígidos estamentos sociais, a democracia representaria o clímax da
orientação liberal impulsionada pela modernidade, a salvo de revisões críticas que
analisam sua implementação em sociedades com diferentes contextos de
formação, como ocorre com as sociedades latino-americanas. É preciso, no entanto,
questionar as bases teóricas e práticas dessa arquitetura democrática,
considerando-se que seus parâmetros de definição baseiam-se em características
que inviabilizavam o reconhecimento pleno da diversidade étnico-racial dos
indivíduos que compõem aquelas sociedades.

Em outras palavras, o não exame da categoria racial no processo de formação das


sociedades latino-americanas impede o entendimento dos embates políticos em
torno das disputas, conquistas, concessões e reconhecimentos de direitos
subjetivos que aparecem na história constitucional dessas sociedades e que
revelam as tensões reais e latentes da adoção de regimes políticos pretensamente
democráticos.

A partir do entendimento da raça e, por consequência, das relações raciais como


elementos fundantes da estrutura das sociedades latino-americanas,
especialmente da sociedade brasileira, o presente artigo busca compreender a crise
democrática na modernidade, considerando-se que, sem se levar em conta o
elemento racial, não há como se promover o pleno reconhecimento da cidadania
aos sujeitos ativos democráticos, não apenas a partir de suas individualidades, mas
também a partir de suas identidades coletivas. Busca-se, assim, evidenciar a
importância da democracia antirracista, considerando-se o elemento racial como
um dos mais importantes na composição das estruturas democráticas e na
operacionalização de seus institutos e valores na modernidade.

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Embora seja possível e desejável a realização de uma comparação entre os vários


regimes democráticos latino-americanos atuais, estáveis ou em crise, e suas tensões
raciais locais, este artigo restringe-se à análise conceitual e histórica da sociedade
brasileira, articulando, em uma abordagem teórico-argumentativa e por meio da
revisão de literatura, as categorias raça e democracia. O caminho escolhido para a
análise do problema proposto passa pela necessidade de reconstrução epistêmica
das metodologias tradicionais às quais o campo jurídico-político está tão
habituado. Isto porque entende-se que os métodos e as metodologias tradicionais,
incluindo as abordagens, as técnicas de pesquisa e a assunção da dogmática como
elemento definidor da verdade já não cabem mais em um processo de formação e
análise crítica do mundo do Direito (Moreira, 2017).

1 A raça como componente da construção das


democracias liberais

Os elementos de composição estrutural das constituições modernas são, em geral,


estudados por campos do conhecimento estritamente ligados à ciência política e
ao direito, ressalvando-se a participação de movimentos sociais e históricos que,
situados fora da tradição acadêmica de estudos das ciências sociais, podem, vez
ou outra, influir na definição de agendas políticas. O direito é reconhecidamente
uma ciência social aplicada que se sedimenta em uma lógica própria de análise do
real, ao criar categorias exclusivas que delimitam as noções de verdade no discurso
processual e que, por sua vez, são capazes de recriar a realidade e estabelecer,
sobre ela, um veredictum por intermédio de um pretenso conjunto racional de
regras jurídicas.

Pensar a modernidade, no entanto, implica a adoção de uma gama mais vasta de


categorias científicas e de apreensões de mundo que não são especificamente
jurídicas, mas que são capazes de destacar a diversidade e a complexidade
inerentes a esse objeto de reflexão. Diversidade aqui não apenas no sentido
narrativo (como o conceito que serve para delimitar diferenças), mas, também (e
principalmente), como a característica relevante no processo de conformação e de
aceitação de outras formas possíveis de se narrar a realidade, destacando-se a
verdade no plural (verdades), com vistas a prestigiar e respeitar outras narrativas
e referenciais que ressaltam a diversidade dos sujeitos que participam do enredo
histórico e social.

Pierre Bourdieu chama a atenção para dois elementos essenciais na compreensão


da forma como os componentes sociológicos são erigidos para a análise do real: o
habitus, “[...] como sistema das disposições socialmente constituídas que, enquanto

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estruturas estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto


das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes” (Bourdieu,
2005, p. 191), e o conceito de campo que, para o autor, “[...] define-se como um
sistema de desvio de níveis diferentes e [que] nada, nem nas instituições ou nos
agentes, nem nos actos ou nos discursos que eles produzem, têm sentido senão
relacionalmente, por meio do jogo das oposições e das distinções” (Bourdieu, 2003,
p. 60).

Deste modo, partindo-se dos ensinamentos de Bourdieu, que sinaliza que os


campos de compreensão sociológica possuem princípios, regras e hierarquias
próprias, cujas definições dão-se a partir de conflitos e de tensões das suas
fronteiras (Chartier, 2002, p. 140), buscam os autores empreender o exame da
formação das estruturas constitucionais modernas das sociedades latino-
americanas tendo em vista o papel central da categoria racial na composição destas
sociedades, que, para além de uma correlação meramente regional, compartilham
um mesmo histórico de colonização.

Raça, como critério de categorização de seres humanos, é um fenômeno da


modernidade situado na expansão do projeto colonial europeu do século XVI que,
para Aníbal Quijano, funda-se “[...] na imposição de uma classificação racial/étnica
da população do mundo como pedra angular deste padrão de poder e opera em
cada um dos planos, âmbitos e dimensões, materiais e subjetivos, da existência
social cotidiana e a nível societal” (Quijano, 2000). Debruçando-se sobre o conceito
de raça, Silvio Luiz de Almeida aponta que

[...] seu sentido está inevitavelmente atrelado às circunstâncias históricas


em que é utilizado. Por trás da raça sempre há contingência, conflito, poder
e decisão, de tal sorte que se trata de um conceito relacional e histórico.
Assim, a história da raça ou das raças é a história da constituição política e
econômica das sociedades contemporâneas (Almeida, 2018, p. 19).

A ideia de raça, pois, é uma das principais engrenagens na história da


modernidade: definiu as relações econômicas, sociais, sexuais, interétnicas,
religiosas, bélicas, jurídicas e políticas das sociedades americanas nos últimos
quinhentos anos, modelando suas estruturas e as suas relações sociais de modo
mais ou menos intenso, operando com veemência no caso brasileiro.

A reflexão sobre as bases do constitucionalismo democrático nas Américas deve ir


para além dos referenciais exclusivamente eurocêntricos, tendo em vista que a
importação das ideias iluministas enfrentou aqui revisões próprias dos embates
raciais travados nas colônias do período. Nesse sentido, a Revolução Francesa foi
capaz de fundar, no continente europeu, uma estrutura sociopolítica que privilegia

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os valores democráticos como os grandes alicerces da modernidade1, mas foi


incapaz de celebrar a aplicação dos mesmos ideais nas lutas emancipatórias da Ilha
de São Domingos, fazendo com que os franceses, sob o comando de Napoleão
Bonaparte, impusessem severos obstáculos para que o Haiti se desenvolvesse
autonomamente, com consequências que reverberam até os dias atuais (Almeida,
2018)2.

A consideração da raça como elemento fundante das sociedades modernas dialoga


diretamente com o reconhecimento das estruturas políticas e da tensão pela busca
do poder. Muito embora os ensinamentos e abordagens tradicionais não
considerem este fator, um exame detido do processo de formação social (incluído
nele os valores democráticos) evidencia a necessidade de se repensar tais
abordagens, em busca de uma viragem compreensiva pela perspectiva racial.

A raça pode ser compreendida a partir de duas acepções ou dimensões: pelo viés
biologicista (por meio da qual define-se a identidade racial por características
físicas, como a cor da pele) e por um viés étnico-cultural (por meio do qual a
identidade é associada à origem geográfica, à religião, à língua e outros fatores de
sociabilização) (Almeida, 2018, p. 24)3. Para compreender adequadamente a
questão relacional da raça com outras dimensões da política e do direito, deve-se
dar atenção ao fato de que ambas as acepções ou dimensões dialogam entre si,
além de se relacionarem diretamente com a conformação de determinados limites
e oportunidades colocados no cardápio das engrenagens institucionais, com seus
valores e lógicas de funcionamento, uma vez que a “[...] raça é um elemento
essencialmente político, sem qualquer sentido fora do âmbito socioantropológico”
(Almeida, 2018, p. 24).

A análise sobre os impactos da raça na formação dos regimes democráticos


modernos exige, pois, considerações sobre o sentido das democracias modernas.
Bastante difundida no mundo ocidental, a democracia é, normalmente, situada em
seus prenúncios no período helênico da Grécia clássica, sendo apresentada como
a base comum da civilidade ocidental e como o marco decisivo da modernidade.
Este texto considera a democracia a partir de duas frentes teóricas específicas: i) a
democracia como conjunto de valores compartilhados pelos indivíduos

1 Em diálogo com Costas Douzinas, Hector Luís Cordeiro Vieira (2011) argumentou sobre o
impacto da criação de um homem pretensamente abstrato e universal da Revolução Francesa. O
“homem” da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, é caracterizado pela
pretensão de servir de modelo compatível com todas as realidades. Para mais sobre o tema, ver:
(Douzinas, 2009).
2 Especificamente sobre o tema, ver: (Queiroz, 2017).
3 Esta concepção é a base para o que Frantz Fanon (1980, p. 36) chamará de racismo cultural.

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submetidos a uma mesma ordem jurídico-política e; ii) a democracia como


instrumento ou processo que objetiva alcançar e manter determinados padrões de
participação dos cidadãos nos fluxos decisórios politicamente relevantes4.

Ao considerar a democracia por ambas as perspectivas, deve-se reconhecer a


possibilidade da existência de não apenas uma democracia, ao longo de seu
percurso histórico-político, mas de democracias. Assim, a interação desses fatores
é capaz de criar aquilo que Bourdieu chama de sistemas simbólicos, isto é, sistemas
de conhecimento e de comunicação que exercem um poder estruturante na medida
em que são também estruturados5. Significa dizer que o poder simbólico é um
poder que constrói a realidade, a partir do assentamento de uma concepção
homogênea de tempo, de espaço, de número, de causa, permitindo, então, a
concordância entre as inteligências (Bourdieu, 2010, p. 7)6. A compreensão (ou a
falta dela) da relação entre esses elementos é perceptível na lógica de operação
deste poder simbólico, pois ele permite, pelo menos a priori, o uso da força física
ou econômica como produtoras de significados. Em sua lógica, o poder simbólico
demanda o reconhecimento de sua existência ainda que de forma não discursiva
ou pragmática, sem qualquer elaboração acerca dele. Consequentemente, ele se
torna invisível e exercível com a participação daqueles que são sujeitos a ele e
daqueles que os detêm.

É impossível pensar em crise e reinvenção da democracia sem considerar os


elementos multidimensionais que fazem parte de sua composição. Aliás, mais
especificamente, é preciso reconhecer que a própria noção de democracia varia em

4 Schumpeter é um dos primeiros pensadores liberais a valorizar positivamente a expressão


democracia. Apesar de ter tentado responder teoricamente ao desafio da democracia, sua posição
acaba sendo estabelecida a partir de um viés de conservação da ordem existente. Para ele, o
método democrático “é aquele acordo institucional para se chegar a decisões políticas em que os
indivíduos adquirem o poder de decisão através de uma luta competitiva pelos votos da
população”. (Schumpeter, 1984. p. 336). Há muitas discussões interessantes sobre as tipologias de
democracia e a relação com outros elementos sociopolíticos. Para mais sobre modelos de
democracia, ver: (Held, 1987).
5 Essa noção se conectará profundamente com a premissa que se assumirá adiante sobre a
influência do racismo estrutural na imposição de uma lógica antidemocrática, já que
conformadora de preceitos racistas.
6 É importante lembrar ainda o diálogo de Bourdieu com Durkheim acerca do peso dos sistemas
simbólicos. Segundo aquele: “Durkheim – ou, depois dele, Radcliffe-Brown que faz assentar a
solidariedade social, no facto de participar num sistema simbólico – tem o mérito de designar
explicitamente a função social (no sentido estruturo-funcionalismo) do simbolismo, autêntica
função política que não se reduz à função de comunicação dos estruturalistas. Os símbolos são os
instrumentos por excelência da integração social: enquanto instrumentos de conhecimento e de
comunicação, eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui
fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração lógica é a condição da
integração moral” (Bourdieu, 2010. p. 9).

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função da qualidade e quantidade dos componentes que a constituem. Logo,


qualquer discussão meramente conceitual, estritamente alijada da realidade à qual
ela se prende, é inócua. Mais do que isso, será uma discussão reprodutiva das
estruturas assentadas e compreendidas a partir do poder simbólico que possuem,
sendo articuladas a partir de lógicas específicas de manutenção do conceito, ainda
que ele seja evidentemente deficitário e limitado.

2 Racismo como processo político e histórico: a


formação da antidemocracia

Quando se argumenta que a raça é um elemento essencial para compreender a


forma de delineamento das estruturas e processos do mundo moderno do
Ocidente, assume-se a premissa de que as esferas compositivas das sociedades são
relacionais e complexas. Significa dizer que não existe processo de formação desde
valores sociais e morais até institutos e mecanismos jurídicos e políticos que não
advenham das relações de tensão dessas dimensões.

A formação da democracia liberal ocidental está amplamente lastreada na


premissa individualista das noções liberais7. É preciso alertar que trabalhar com
conceitos de maneira genérica e apenas teorética, como se fossem questões que
conseguem superar as barreiras culturais, formacionais, históricas e
epistemológicas, é perigoso. Isto porque há uma formação, conformação e
deformação desses conceitos quando eles são chamados a se encaixarem em
realidades sociais e institucionais, propiciando, assim, a formação das estruturas
sociais.

De acordo com Bobbio,

ideais liberais e método democrático vieram gradualmente se combinando


num modo tal que, se é verdade que os direitos de liberdade foram desde
o início a condição necessária para a direta aplicação das regras do jogo

7 Adilson José Moreira confronta a mitologia liberal a partir da necessidade de se refundar a


epistemologia do conhecimento jurídico a partir das experiências raciais. Por exemplo, ao analisar
o princípio da isonomia, o autor ponta que “um jurista negro deve interpretar o princípio da
isonomia a partir da experiência daqueles que sofrem diversas formas de opressão. A promessa
liberal de emancipação nunca pôde se realizar porque muitos juristas brancos interpretam
normas jurídicas sem levar em consideração a experiência concreta da vida das pessoas”
(Moreira, 2017, p. 401). Em outro lugar, em sentido similar, Hector Luís Cordeiro Vieira (2014)
propôs que as técnicas e métodos de interpretação, bem como as sensibilidades dos intérpretes
do Direito, chegam ao ponto de reinventar a epistemologia do fenômeno racial, colocando em
contradição, inclusive, a percepção social do racismo com a percepção jurídica, pois subalterniza
a construção do significado e simbologia do fenômeno, subcategorizando-o entre valores e bens
juridicamente a serem protegidos.

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democrático, é igualmente verdadeiro que, em seguida, o


desenvolvimento da democracia se tornou o principal instrumento para a
defesa dos direitos de liberdade (Bobbio, 2006, p. 44).

Em uma perspectiva ética, é importante que as regras do jogo democrático, os


direitos de liberdade e as decisões de maioria não sejam os únicos parâmetros para
a viabilização de uma sociedade democrática. É preciso ir além para alcançar a
democratização das relações econômicas e sociais da sociedade (Rosa, 2011). Nesta
seara, deve-se considerar que a epistemologia do pensamento também possui
filtros que propiciam os exames e análises voltados a uma orientação
epistemológica possível e, ao mesmo tempo, esperável, normalmente considerada
a legítima ou mais científica. Por isso, o rearranjo epistemológico deve levar em
consideração os estudos subalternos, os estudos culturais, os estudos pós-coloniais
e a decolonialidade8.

De acordo com Marcos Queiroz (2017, p. 29), essas abordagens “guardam em


comum a importância do local de enunciação, a crítica ao processo de produção
do conhecimento, a necessidade de reconfiguração do campo discursivo no qual
as relações hierárquicas ganham significado e a ênfase na abordagem
transdisciplinar”. Em se considerando a raça como elemento constitutivo das
democracias latino-americanas (Van Dijk, 2008), é impreterível atentar-se para o
fato de que as elaborações sobre raça, e tudo o que delas decorre, foram
elementares para a construção de um sistema racialista que teve contribuições de
diversas esferas de produção de conhecimento e epistemologias tradicionais como,
por exemplo, da política, da ciência, da religião, do direito.

Ao compreender que há formas sofisticadas com as quais estas esferas lidam com
o racismo, conclui-se que o racismo influencia os processos históricos e políticos,
sendo capaz de gerar, assim, democracias contraditórias em termos internos,
eminentemente paradoxais ou antidemocráticas.

8 Todas as perspectivas têm igualmente seu valor na contribuição em pluralizar as lentes para se
enxergar os horizontes. Dentre essas abordagens, a que mais se adequa à proposição do artigo é
a da decolonialidade. Para Joaze Bernardino-Costa e Ramón Grosfoguel (2016, p. 16) “se
constituiu na virada do milênio uma rede de investigação de intelectuais latino-americanos em
torno da decolonialidade ou, como nomeia Arturo Escobar, em torno de um programa de
investigação modernidade/colonialidade. [...] Ao evitar o paradoxal risco de colonização
intelectual da teoria pós-colonial, a rede de pesquisadores da decolonialidade lançou outras bases
e categorias interpretativas da realidade a partir das experiências da América Latina. Em outras
palavras, com essa iniciativa, parafraseando Chakrabarty, busca-se não somente provincializar a
Europa, mas também toda e qualquer forma de conhecimento que se proponha a universalização,
seja o pós-colonialismo seja a própria contribuição decolonial a partir da América Latina”.Para
mais sobre estudos subalternos, ver: (Múnera, 2008); Pivak, 2010). Sobre estudos culturais, ver:
(Escoteguy, 2010). Por fim, para mais sobre estudos pós-coloniais, ver: (Costa, 2006).

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Nesse contexto, há dois aportes teóricos que permitem elucidar a forma como o
racismo está entrelaçado na constituição de valores e no processo democrático. O
primeiro deles é a concepção institucional de racismo. Nesta via, segundo Silvio
de Almeida (2018, p. 29), “o racismo não se resume a comportamentos individuais,
mas é tratado como o resultado do funcionamento das instituições, que passam a
atuar em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e
privilégios a partir da raça”. Ainda, o sociólogo explica que:

No caso do racismo institucional, o domínio se dá com estabelecimento de


parâmetros discriminatórios baseados na raça, que servem para manter a
hegemonia do grupo racial no poder. Isso faz com que a cultura, a
aparência e as práticas de poder de um determinado grupo tornem-se o
horizonte civilizatório do conjunto da sociedade. Assim, o domínio e
homens brancos em instituições públicas – por exemplo, o legislativo, o
judiciário, o ministério público, reitorias de universidades públicas etc. – e
instituições privadas – por exemplo, diretoria de empresas – depende, em
primeiro lugar, da existência de regras e padrões que direta ou
indiretamente dificultem a ascensão de negros e/ou mulheres, e, em
segundo lugar, da inexistência de espaços em que se discuta a
desigualdade racial e de gênero, naturalizando, assim, o domínio do grupo
formado por homens brancos (Almeida, 2018, p. 31) 9.

Complementarmente, o segundo aporte é o do racismo estrutural, segundo o qual


o “racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, de modo
‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até
familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O
racismo é estrutural” (Almeida, 2018, p. 38).

A junção de ambos os aportes teóricos permite compreender a sofisticada e


complexa relação historicizada entre o racismo e as estruturas políticas. A
formação, a viabilização e a operacionalização da democracia não poderiam ser
desconsideradas nessa equação. Pelo contrário: todos esses pressupostos são
essenciais na compreensão da construção de uma democracia com características
antidemocráticas.

Ora, ainda que o termo democracia esteja “[...] entre os termos mais contestados e
promíscuos de nosso vocabulário político moderno” (Nancy, 2012, p. 58) ou que
ela tenha se tornado um “caso exemplar de perda de poder de significar [...].
Democracia significa tudo – política, ética, lei, civilização – e nada” (Nancy, 2012, p.
58), há certas bases e valores que são compartilhados como elementos de

9 O autor lembra ainda que na perspectiva institucionalista, o racismo não se separa de um projeto
político e de condições socioeconômicas específicas.

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legitimidade do conceito, provocando sua operacionalidade social e institucional,


bem como a adesão estatal, política e jurídica10.

Morlino (2012) avalia a qualidade da democracia a partir de oito dimensões. Para


ele, há “cinco procedimentais (império da lei, accountability eleitoral, accountability
interinstitucional, participação e competição), duas substantivas (liberdades e
igualdade) e uma geral (a ideia de responsividade)”. São dimensões que se
aproximam da análise de Mendonça (2018), muito embora para este último haja
uma preocupação especial sobre como as dimensões possuem sentidos diferentes
para atores diversos nos conjuntos interacionais.

Vale frisar que todas essas dimensões que fariam uma democracia de qualidade
estão conectadas diretamente às agências individuais e coletivas dos atores que
participam diretamente de cada um dos critérios de construção democrática.

A democracia constrói-se a partir das características sociológicas que a circundam.


Ora, no cenário de sociedade multiétnicas, diversas e plurais, não se pode mais
trabalhar com uma concepção fechada, excludente e abstrata de democracia.
Ainda, cabe recordar o ensinamento de Duriguetto (2007, p. 75) que recorda o
debate weberiano sobre a temática, incluindo a lógica econômica na análise da
democracia. Para o autor, Weber aborda a democracia a partir da crescente
racionalização da produção capitalista e sua orientação para a eficiência. Esses
fatores propiciaram a transformação da democracia em uma forma de
concentração do poder na mão de um corpo especializado de funcionários. Desse
modo, “[...] a participação política, como o ato do voto, não produz consciência
política ou conduz as massas ao poder, mas revela apenas a identificação das
massas com o carisma pessoal de um líder político”11.

Charles W. Mills (2013), no mesmo sentido, problematiza a acrítica aceitação do


paradigma clássico de contrato social, como elemento teórico da filosofia política
fundante das sociedades modernas estatais, para refletir sobre o conceito de
“contrato de dominação” que, segundo o pensador, permite a superação daquele
paradigma e propicia leituras críticas da sociedade a partir das chaves de gênero e
raça. Antes de sopesar as democracias, a ideia de contrato social parte de

10 Alguns autores analisam sete dimensões controversas da teoria democrática. Segundo Mendonça
(2018): “as sete dimensões (ou eixos estruturadores) do campo de controvérsias da teoria
democrática: (1) autorização popular para o exercício do poder político; (2) participação e
autogoverno; (3) monitoramento e vigilância sobre o poder político; (4) promoção da igualdade
e defesa de grupos minorizados; (5) competição política e pluralismo; (6) discussão e debate de
opiniões; (7) defesa do bem comum.
11 Há discussões muito interessantes sobre a relação entre Democracia, Capitalismo e Racismo.
Dentre muitos outros, para mais, ver: (Castel, 2007; Gorender, 2000; Ianni, 2004; Paixão, 2008).

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dimensões brancocêntricas e eurocêntricas que firmam estratégias de controle, por


meio do direito, como promessas de construção de sociedades mais equânimes,
quando, em verdade, atuam apenas em benefício dos interesses hegemônicos dos
que já detinham o poder, funcionando, pois, como argumentos de poder. Deste
modo, como resume o filósofo, “[o] ponto é, portanto, que existe um claro
precedente na tradição ocidental do contrato social para a ideia de um contrato
manipulador excludente empregado pelos poderosos para subordinar outros na
sociedade sob o pretexto de incluí-los como iguais” (Mills, 2013, p. 22).

Ao passo que o contrato social encobre as assimetrias sociopolíticas, considerando-


se que não especifica os atores decisivos na criação desse mundo sociopolítico, a
ideia de “contrato e dominação” vincula-se mais facilmente à “história real”, na
medida em que faz ressaltar as variadas interfaces de classe, gênero/sexo e raça
que, combinadas ou opostas, moldam o mundo e suas imbrincadas relações de
poder e de interação.

Como tal, o contrato de dominação, que faz dos grupos os principais


atores, é obviamente mais fiel à história real do mundo. Se, como
apresentado no início desta exposição, o contrato no sentido mínimo não
especifica quem são os atores humanos decisivos na criação do mundo
sociopolítico, então uma teoria do contrato baseada no grupo não é uma
contradição em termos e deve ser aceita por nós como um conceito
filosófico mais útil para a teoria política. O lado descritivo do contrato é
representado com maior precisão pelo contrato de dominação e,
certamente, é bem mais esclarecedor como modelo conceitual para
orientação do contrato prescritivo, uma vez que nos aponta as questões
morais realmente importantes, isto é, como derrubamos essas estruturas
para alcançar o igualitarismo genuíno. [...] (Mills, 2013, p. 48-49).

Portanto, o sentido da democracia precisa ser reinventado, tendo como parâmetro


a realidade que se lhe impõe. Há a necessidade de reposicionamento
epistemológico do termo ao se promover um processo de ampla participação
equânime aos indivíduos. Essa reinvenção passa necessariamente pelo
reconhecimento de fatores sociais que dão o delineamento da operacionalidade
democrática. Entre eles, o racismo.

3 A institucionalização do racismo pela branquitude


dentro do Sistema Judicial

O racismo é uma tecnologia. Enquanto tal, opera-se criando padrões de exclusão


por meio da produção de privilégios. Prova disso é como, historicamente, as
práticas nacionalistas, em países escravocratas, transformaram-se em práticas
colonialistas. No Brasil, após o advento da abolição, a legislação que regulava a

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prática do escravismo manteve os privilégios da superioridade branca e a justiça


fez-se de cega ante às injustiças sociais, negando a existência do racismo. Assim,

[o]s conflitos raciais também são parte das instituições. Assim, a


desigualdade racial é uma característica da sociedade não apenas por
causa da ação isolada de grupos ou de indivíduos racistas, mas
fundamentalmente porque as instituições são hegemonizadas por
determinados grupos raciais que utilizam mecanismos institucionais para
impor seus interesses políticos e econômicos (Almeida, 2019, p. 40).

Ainda, no que se refere à legislação, bem como ao uso de direito comparado nas
decisões judiciais, é imprescindível que se diferencie o racismo brasileiro de
experiências internacionais, pois as peculiaridades do sistema de opressão cá
vivido formam a base do Estado democrático como hoje se conhece, posto que as
ideias de raça e racismo seriam um produto do intercâmbio internacional de
pessoas, mercadorias e ideias (Ribeiro, 2019, p. 18). As agências estatais, dentre as
quais se inserem os tribunais, atuam na ratificação do pensamento social
estruturalmente racista, de forma que, para compreender a jurisprudência, exige-
se um estudo para além da legislação. Portanto, sendo a lei, desde sua concepção
inicial, desproporcional em relação aos grupos sociais, para manter e legitimar a
violência estatal, tende a ser a jurisprudência, portanto, o reflexo do histórico dessa
opressão.

No judiciário, os casos de crimes de racismo julgados revelam o entendimento


consolidado dos tribunais de negar a existência do racismo, muitas vezes com base
na ideia de miscigenação popular interracial e plurinacional ao longo dos mais de
quinhentos anos de colonização. Um argumento comumente utilizado por racistas
e acatado por magistrados na desconfiguração do crime é o da convivência e
proximidade com pessoas negras, o que afastaria a ideia de desprezo às minorias
raciais, argumento que atua como blindagem da branquitude para afastar as
condenações criminais ("estratégia do amigo negro”) (Moreira, 2019, p. 141).

A partir da compreensão de que as estruturas de poder vigentes encontram-se sob


domínio da branquitude, é preciso ter em mente seus privilégios para, então,
propor-se sua superação, na busca de construção de espaços de igualdade e
equidade às minorias raciais e se reconhecimento como sujeitos de direitos. Na
concepção de Grada Kilomba, por exemplo,

ter o status de sujeito significa que, por um lado, indivíduos podem se


encontrar e se apresentar em esferas diferentes de intersubjetividade e
realidades sociais, e por outro lado, podem participar em suas sociedades,
isto é, podem determinar os tópicos e anunciar os temas e agendas das
sociedades em que vivem. Em outras palavras, elas/eles podem ver seus

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interesses individuais e coletivos reconhecidos, validados e representados


oficialmente na sociedade (Kilomba, 2020, p. 72-73).

O racismo atua como óbice na obtenção do status supracitado. Dessa forma, sendo
branca a maioria dos agentes do sistema de justiça, a solidarização quase sempre
ocorre com o autor do fato e não com a vítima; consequentemente, a imagem do
grupo racial dominante permanece intacta. Como bem enuncia Abdias do
Nascimento, "o negro – tem sido julgado pelo branco, um juiz completamente
tendencioso em seu próprio interesse, certamente mais que parcial e injusto,
quando não flagrantemente criminoso” (Nascimento, 2016, p.71).

Os casos analisados por Adilson Moreira demonstram que a injúria racial é


desqualificada pela ausência de animus injuriandi e pela presença de animus jocandi,
que seria provocado por falsos estereótipos de pessoas negras, como por exemplo,
sua incapacidade laboral, mesmo quando as piadas (assim consideradas) não são
feitas no ambiente de trabalho. É habitual, também, a comparação das pessoas
negras com animais, visando associá-las à ideia de irracionalidade e selvageria.
Inúmeros, ainda, os casos de discriminação estética e de associação à criminalidade
(Moreira, 2019, p. 132-138).

O racismo recreativo, na visão de Adilson Moreira, encobre uma hostilidade racial


como projeto de dominação, por meio da promoção da reprodução de relações
assimétricas entre grupos sociais (Moreira, 2019, p. 148) e da legitimação das
formas de exclusão. Busca-se, com a minoração e ridicularização das pessoas
negras, uma gratificação psicológica, em que à branquidade atribuem-se
características positivas em comparação às minorias raciais, vítimas de uma
violência simbólica de estigmatização e depreciação e que cria, contra si, noções de
inferiorização e antipatia social.

Em outras palavras, "piadas racistas têm a função sádica de provocar prazer a


partir da dor infligida e da humilhação da/o “Outra/o” racial, dando-lhe um senso
de perda em relação ao sujeito branco” (Kilomba, 2020, p. 135). As decorrências
desse comportamento têm dimensões institucionais, visto que atuam como
obstáculo na proteção legal de pessoas negras. A persistência do racismo
recreativo é um dos reflexos práticos da negação do racismo, que age impedindo
que a raça seja motivo de mobilização política na sociedade. Nota-se isso
frequentemente quando "[...] as vítimas reais do racismo, no entanto, são
rapidamente esquecidas. Esse desrespeito, ou melhor, essa omissão, espelha a
desimportância dos negros como sujeitos políticos, sociais e individuais na
política" (Kilomba, 2020, p. 72).

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Para Frantz Fanon (2008), o processo de desumanização das pessoas negras é efeito
do racismo estrutural que se reproduz nas instâncias de poder e na consolidação
dos valores institucionais. Significa dizer que a desvalorização das pessoas negras
macula o processo de reconhecimento do seu status de sujeitas de direitos,
submetendo-as a um quadro de não cidadania e, portanto, de irrelevância social.
Na descrição do reconhecimento de si como cidadão e indivíduo negro, Frantz
Fanon aponta o deslocamento estre essas categorias, o descompasso criado pela
branquitude que divide e opõe as pessoas a partir de critérios raciais:

Eu era ao mesmo tempo responsável pelo meu corpo, responsável pela


minha raça, pelos meus ancestrais. Lancei sobre mim um olhar objetivo,
descobri minha negridão, minhas características étnicas, - e então
detonaram meu tímpano com a antropofagia, com o atraso mental, o
fetichismo, as taras raciais, os negreiros, e sobretudo com “y’ a bon
banania”. Nessa época, desorientado, incapaz de estar no espaço aberto
com o outro, com o branco que impiedosamente me aprisionava, eu me
distanciei para longe, para muito longe do meu estar-aqui, constituindo-
me como objeto. O que é que isso significava para mim, senão um
desalojamento, uma extirpação, uma hemorragia que coagulava sangue
negro sobre todo o meu corpo? No entanto, eu não queria esta
reconsideração, esta esquematização. Queria simplesmente ser um homem
entre outros homens. Gostaria de ter chegado puro e jovem em um mundo
nosso, ajudando a edificá-lo conjuntamente. [...] No momento em que eu
esquecia, perdoava e desejava apenas amar, devolviam-me, como uma
bofetada em pleno rosto, minha mensagem! O mundo branco, o único
honesto, rejeitava minha participação. De um homem exige-se uma
conduta de homem; de mim, uma conduta de homem negro – ou pelo
menos uma conduta de preto. Eu acenava para o mundo e o mundo
amputava meu entusiasmo. Exigiam que eu me confinasse, que encolhesse
(Fanon, 2008, p. 106-107).

Persiste também nos tribunais a alegação de liberdade de expressão como


justificativa ao racismo, ignorando-se a sua relação íntima com o dever de
tolerância, para que todos possam ter acessos aos mais diversos discursos para
autoconhecimento e amadurecimento social. Os discursos de ódio obstam a
harmonia social e, consequentemente, alteram o funcionamento do regime
democrático ao atuarem como barreiras na proteção dos direitos sociais, e
portanto, ferem a ordem pública. O racismo recreativo é uma forma de expressão
de discursos de ódio (Moreira, 2019, p. 171). Pensar a liberdade de expressão e os
discursos de ódio é um estudo que deve ser feito a partir da perspectiva do
oprimido, de modo a frear a perpetuidade das desigualdades étnico-racial e social.

Ao negar a existência da opressão racial, é impossível se enfrentar as democracias


que são, paradoxalmente, antidemocráticas, razão pela qual a crítica ao judiciário
constitui-se em meio fundamental para o combate ao desrespeito às vidas negras,

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ainda mais quando se considera que a maioria do sistema judicial não é


pertencente às classes oprimidas.

4 A reinvenção: por uma democracia antirracista

Pensar a reinvenção da democracia exige pensá-la a partir de valores que,


efetivamente, contribuam para a inclusão e participação dos cidadãos em todos os
seus mecanismos. Qualquer sociedade que seja profundamente marcada por
elementos históricos de exclusão, invisibilização e apagamento de grupos sociais
precisa ter sua democracia construída com base nessa realidade.

A democracia moderna falhou ao não garantir o respeito aos atores que participam
direta ou indiretamente da contínua construção dos valores em sociedade. Raça e
racismo são pontos-chave de compreensão deste processo de exclusão: se a
democracia liberal não é a causa, contribuiu para a não visibilização dessas
categorias, negando-se ampla participação dos atores sociais.

De acordo com Silvio Almeida (2018, p. 29), “[...] apesar de constituídas por formas
econômicas e políticas gerais – mercadoria, dinheiro, Estado e direito -, cada
sociedade em particular se manifesta de distintas maneiras”. Provenientes do
Iluminismo, valores como liberdade, igualdade e cidadania enfrentaram nas
colônias obstáculos decorrentes do próprio projeto colonial: racismo e escravização
(Almeida, 2018). Para Marixa Lasso (2013):

O poder desses opostos somente era igualado pela violência e duração das
lutas para resolvê-los. Foi na América onde a democracia se vinculou pela
primeira vez com a igualdade humana sem consideração alguma de raça
ou origem geográfica, e foi aqui que as guerras anticolonialistas
enfrentaram pela primeira vez a pergunta que se tornaria comum durante
as guerras de descolonização modernas: como construir identidades
nacionais unificadoras em sociedades atormentadas pelo racismo e os
conflitos étnicos e raciais? A resposta a essa pergunta, nunca fácil e
automática, não esteve determinada somente pelas elites brancas: também
esteve pelos indígenas e pelas pessoas de ascendência africana.

O contexto histórico e político que a América Latina exige a construção de uma


nova perspectiva de democracia, uma democracia antirracista. Não é suficiente a
tentativa abstrata proveniente do liberalismo de fornecer uma deficiente igualdade
abstrata e formal. É preciso ir além, de forma a desconstruir o sistema erigido em
bases racistas.

Para Marcos Queiroz (2017, p. 19), o racismo “[...] é compreendido como um


fenômeno muito anterior ao desenvolvimento dos argumentos científicos ou à

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globalização do capitalismo, sendo tomado como elemento central na da dinâmica


moderna e das narrativas que dela emergem”. Essa dinâmica é impactada em
todos os aspectos pelo levantamento de dados referentes às possibilidades,
oportunidades e ocupações que os negros brasileiros possuem na dinâmica
antidemocrática.

São muitos os dados que revelam o total desequilíbrio entre negros e brancos em
várias frentes. A unissonância dos indicadores revela que o projeto democrático
brasileiro é incapaz de promover uma real igualdade de possibilidades entre os
indivíduos independentemente do fenômeno racial. Mencionem-se, por exemplo,
os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua,
coletados e sistematizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE, 2022), e que apontam que, embora as pessoas autodeclaradas negras (pretas
e pardas) constituam 56% do total da população brasileira, em 2022, o seu acesso
aos serviços públicos e, assim, aos direitos econômicos, sociais e culturais, é
prejudicado em comparação ao franqueado às pessoas brancas. No que tange ao
mundo do trabalho, por exemplo, as pessoas brancas apresentavam maiores
índices de ocupação (43,8%), contra pessoas pardas (45%) e pretas (10,2%), em
2021; “entretanto, em relação à população desocupada, tanto as pessoas pretas
como as pardas estiveram sobrerepresentadas com, respectivamente, 12,0% e
52,0%. As pessoas brancas, por outro lado, registraram sub-representação, pois
eram 35,2% dos desocupados em 2021” (IBGE, 2022). Da mesma forma, segundo o
Atlas da Violência (2023), 445.527 pessoas negras foram assassinadas entre 2011 e
2021 e o risco de letalidade de uma pessoa negra aumentou de 2,6 para 2,9 entre
2019 e 2021; a cada 100 mil habitantes, 31 homicídios são de pessoas negras contra
10,8 são de pessoas não negras; a violência letal mata 4,22 pessoas negras por hora,
em média. Estes e outros dados confirmam um quadro não só de exclusão, mas de
eliminação do corpo negro, visto como dissidente, subalterno ou sem dignidade.

O racismo, como sistema de crenças, práticas e símbolos sociais que operam sobre
os alicerces de diferença e inferioridade, está localizado efetivamente na disposição
da hierarquia entre os indivíduos nos espaços sociais, o que, para Evandro Charles
Piza Duarte (2011), permite inferir que “[...] a noção de raça não pode ser
dissociada da criação de mecanismos gerenciais (estatais ou não) e, sobretudo, da
criação das diversas formas burocratizadas de controle social que hoje tendem a
ser absorvidas pelo mercado, restando ao Estado os mecanismos repressivos,
fundados falsamente na igualdade perante a lei” (Duarte, 2011).

Em sociedades modernas deve-se considerar que tradições, práticas e atitudes


mentais possuem um fluxo de alterabilidade maior que em sociedade tradicionais,

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uma vez que naquelas a eticidade torna-se reflexiva, isto é, capaz de voltar-se
criticamente sobre si própria. Cristiano Paixão e Menelick Netto apontam que:

[...] bons costumes são apenas aqueles capazes de sustentação em um


debate público, de serem aceitos por todos os seus potenciais afetados (de
aceitabilidade). Todos os dias nós damos continuidade a práticas que
passam por esse crivo e descartamos as que de agora em diante serão vistas
como abusivas e discriminatórias (Paixão; Menelick, 2007, p. 3).

Contudo, é inevitável reconhecer que há uma frente complexa de óbices para que
este fluxo de alterabilidade seja concreto e expansivo. Isso porque tradições,
práticas e atitudes podem permanecer não problematizadas e induzir a ideia de
sua naturalização. Dessa forma, tradições, práticas e atitudes novas acabam
ficando relegadas a uma forma vazia, de modo que o conteúdo ao qual se dá
continuidade é verdadeiramente o das antigas práticas. Portanto, de “[...] forma
latente, elas permanecem a nortear o imaginário da sociedade, quer por
manifestações naturalizadas de puro irracionalismo, quer pela lembrança de um
passado que se revela repentinamente idílico, confortante, feliz” (Paixão; Netto,
2007, p. 3).

O racismo possui aspectos multidimensionais de operação, inserindo-se nos


processos social, histórico e político de cada sociedade, motivo pelo qual as
próprias desigualdades política, econômica e jurídicas são expressões veementes
do racismo. Tais são as premissas básicas para compreender o modo como a
estrutura se constrói a partir da questão racial.

A partir disso, tornam-se urgentes ações políticas institucionais antirracistas,


dentre elas a que mais interessa: a reconstrução da democracia, levando-se em
consideração a necessidade premente de incluir na construção da democracia
brasileira os debates sobre racismo, de modo que seja possível elaborar uma
democracia antirracista. Para tanto, conforme Silvio Almeida é preciso

[...] cria(r) as condições sociais para que, direta ou indiretamente, grupos


racialmente identificados sejam discriminados de forma sistemática.
Ainda que os indivíduos que cometam atos racistas sejam
responsabilizados, o olhar estrutural sobre as relações raciais nos leva a
concluir que a responsabilização jurídica não é suficiente para que a
sociedade deixe de ser uma máquina produtora de desigualdade racial
(Almeida, 2018, p. 39).

A necessidade de reinvenção democrática passa por esses pressupostos. Ela parte


essencialmente da explicitação e correção dos vícios que endossam o processo e os
valores democráticos. Além disso, ela precisa permitir que, discursiva e
pragmaticamente, elaborem-se as políticas de reconhecimento e as políticas

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Democracia e racismo: da crise à construção de uma Democracia Antirracista 227

protetivas direcionadas aos sujeitos, individuais ou coletivos, com mecanismos de


participação efetiva nos espaços e instâncias decisórias12. Não é possível
compatibilizar a democracia com o racismo. Qualquer estrutura social racista será
automaticamente antidemocrática. Logo, uma democracia antirracista é
indispensável, mas ainda está por vir.

Considerações Finais

As bases institucionais das sociedades modernas ocidentais foram assentadas com


a premissa de que os valores escolhidos para elas são universais e estampam o que
poderia ser mais positivo para todos os indivíduos de maneira indelével. Porém, a
mera transposição dos propósitos iluministas para a América Latina sem a
consideração dos seus processos de exploração colonial apenas acentuou as
desigualdades, criando regimes democráticos paradoxalmente antidemocráticos.

Muitas reflexões são necessárias para destrinchar os meandros e impactos desse


processo e a democracia não passaria incólume. No caso da América Latina,
especialmente no caso brasileiro, a trajetória histórica de implantação dos regimes
democráticos trouxe consigo a inevitabilidade de seu descompasso com a
estrutura social desigual, baseada na oposição racial entre os indivíduos e na
criação de categorias distintas de convivência social (cidadãos e não cidadãos).

Os fundamentos da democracia liberal precisam de reajustes feitos a partir da


realidade de cada sociedade. Neste contexto, de forma elementar, porém
sofisticada, é impreterível um debate racial e que leve em consideração as
implicações do racismo no debate sobre democracia.

Não há como debater democracia sem se considerar o fluxo histórico, político e


sociológico no qual seus alicerces foram construídos. O viés juridicizante muitas
vezes utilizado aos conceitos, definições, seus limites e seus defeitos provoca uma
restrição analítica, culminando em uma potencialização do poder simbólico de
maneira deletéria à possível compatibilização entre teorias e realidades.

Portanto, não basta a reflexão sobre a democracia se essa se limita a ser


desconectada da experiência dos indivíduos aos quais o processo e os valores são
destinados. A crise de uma antidemocracia lastreada em elementos racistas está

12 Habermas elabora um pouco sobre uma das premissas da ideia lançada acima. Para o autor: Os
direitos só se tornam socialmente eficazes quando os atingidos são suficientemente informados e
capazes de atualizar, em casos específicos, a proteção do direito garantida através de direitos
fundamentais de justiça (Habermas, 1997, p. 149).

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posta. Não há como deixar de vincular o debate sobre a necessidade de se


reinventar a democracia no Brasil, sem uma discussão que passe pelo racismo
enquanto fenômeno constitutivo dessa sociedade e desse Estado. É imperioso
reconhecer a limitação dos atuais debates sobre o tema, de modo que, apenas
assim, uma democracia inclusiva e satisfatória possa ser construída: uma
democracia antirracista.

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232 Hector Luís Cordeiro Vieira - Tédney Moreira da Silva

Sobre os autores
Hector Luís Cordeiro Vieira
Doutor em Direito pela Universidade de Brasília. Possui graduação em
Direito pelo Centro Universitário de Brasília (2007) e graduação em
Sociologia pela Universidade de Brasília (2009). É Mestre em Direito
pelo programa de Pós Graduação da Universidade de Brasília (2009),
sob a linha de pesquisa: Direito, Estado e Sociedade, Políticas Públicas e
Democracia. Atualmente é Advogado e Professor de Direito
Constitucional e Administrativo no curso de Direito no Centro
Universitário de Brasília - UniCEUB, instituição na qual também já
lecionou Proteção Internacional dos Direitos Humanos e Direito
Internacional dos Conflitos Armados em Relações Internacionais. Ex-
Consultor Técnico do MEC/UNESCO em políticas de Educação em
Direitos Humanos e Cidadania e Consultor-Chefe da Endoxa
Consultoria Acadêmica e Jurídica. É o Primeiro Líder do Grupo de
Pesquisa Vozes - Teoria Crítica Constitucional e dos Direitos Humanos.
Foi Pesquisador do Centro de Pesquisa (CEPES) do Instituto Brasiliense
de Direito Público - IDP, bem como lecionou Metodologia de Pesquisa e
Direito Constitucional Social no âmbito da pós-graduação e Formação
Social do Brasil e Organização do Estado na graduação. Tem
experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional,
Direitos Humanos, Antropologia do Direito, Teorias Raciais, Racismo,
Formas Alternativas de Administração dos Conflitos, Sociologia Jurídica,
Metodologia de Pesquisa e Pesquisa Jurídica.

Contribuição de coautoria: construção do instrumento metodológico,


pesquisa e registro e organização de dados.

Tédney Moreira da Silva


Doutor e Mestre em Direito pela Universidade de Brasília. Professor
Universitário do Centro Universitário de Brasília.

Contribuição de coautoria: redação, revisão, supervisão.

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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.49670

dossiê

As mulheres negras nos estudos


acadêmicos sobre crimes raciais
Mujeres negras en estudios académicos sobre
delitos raciales

Black women in academic studies on racial crimes

Nilvia Crislanna da Cruz Borges1


1
Universidade Federal do Pará, Faculdade de Direito, Belém, Pará, Brasil. E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0009-0007-8909-1779.

Luanna Tomaz de Souza2


2
Universidade Federal do Pará, Faculdade de Direito, Belém, Pará, Brasil. E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8385-8859.

Submetido em 08/07/2023
Aceito em 30/10/2023

Como citar este trabalho


BORGES, Nilvia Crislanna da Cruz; SOUZA, Luanna Tomaz de. As mulheres negras nos
estudos acadêmicos sobre crimes raciais. InSURgência: revista de direitos e movimentos
sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 233-253, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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234 Nilvia Crislanna da Cruz Borges - Luanna Tomaz de Souza

As mulheres negras nos estudos


acadêmicos sobre crimes raciais

Resumo
O presente artigo tratará da forma com que a produção acadêmica brasileira tem
considerado as dinâmicas de gênero nos crimes raciais, compreendendo as construções
raciais no Brasil, a formação da identidade da mulher negra na sociedade brasileira e a
interseccionalidade enquanto categoria analítica. Para tanto, foi realizado um
levantamento bibliográfico de coleta e análise de teses e dissertações, que possuem como
objeto de estudo as relações raciais no Brasil, na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e
Dissertações. Após exame criterioso dos trabalhos e de seus indicadores, percebeu-se que,
na maioria dos estudos, não são apresentadas as dinâmicas de gênero e de raça de forma
articulada ou tal explanação se dá de modo superficial no que tange às reverberações na
vida das mulheres negras.
Palavras-chave
Racismo. Gênero. Crimes Raciais. Mulheres Negras.

Resumen
Este artículo abordará la forma en que la producción académica brasileña ha considerado
las dinámicas de género en los delitos raciales, incluidas las construcciones raciales en
Brasil, la formación de la identidad de la mujer negra en la sociedad brasileña y la
interseccionalidad como categoría analítica. Para ello, se realizó un levantamiento
bibliográfico para recolectar y analizar tesis y disertaciones, que tienen como objeto de
estudio las relaciones raciales en Brasil, en la Biblioteca Digital Brasileña de Tesis y
Disertaciones. Luego de un examen cuidadoso de los trabajos y sus indicadores, se percibió
que, en la mayoría de los estudios, las dinámicas de género y raza no son presentadas de
manera articulada o dicha explicación se da de manera superficial con respecto a las
repercusiones en la vida de la mujer negra.
Palabras-clave
Racismo. Género. Delitos Raciales. Mujeres negras.

Abstract
This article will deal with the way in which Brazilian academic production has considered
gender dynamics in racial crimes, including racial constructions in Brazil, the formation of
black women's identity in Brazilian society and intersectionality as an analytical category.
To this end, a bibliographical survey was carried out to collect and analyze theses and
dissertations, which have racial relations in Brazil as their object of study, at the Brazilian
Digital Library of Theses and Dissertations. After a careful examination of the works and
their indicators, it was noticed that, in most of the studies, the dynamics of gender and race
are not presented in an articulated way or such explanation is given superficially with
regard to the reverberations in the lives of women black.
Keywords
Racism. Gender. Racial Crimes. Black Women.

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As mulheres negras nos estudos acadêmicos sobre crimes raciais 235

Introdução

O racismo é uma forma sistemática de discriminação, introduzido pelo processo


colonizatório e baseado na ideia universal de humano: o branco. Para sua
perpetuação, a raça, ao longo do tempo, foi utilizada como base-fundante dessa
sistemática forma de discriminação com práticas conscientes ou inconscientes.
Nesse sentido, a respeito das definições jurídicas, o combate ao racismo pela
tipificação penal perpassou por diversas modificações ao longo do tempo, desde a
promulgação da pioneira Lei Afonso Arinos (Lei nº 1.390/1951), bem como a
publicação da Lei n. 7.716/1989 como norma infraconstitucional e até mesmo as
recentes modificações legislativas decorrentes da Lei nº 14.532/2023.

Isto posto, em se tratando de mulheres negras, o racismo e o sexismo, por


encontrarem-se articulados, afetam essa parcela da população de forma violenta,
reproduzindo sobre elas desigualdades e opressões que invisibilizam a união das
partes que compõem sua identidade. Por conseguinte, entende-se que, para
compreender relações raciais, é preciso que os estudos correlacionem as categorias
de raça e o gênero de forma interseccionalizada. Nesta perspectiva, o presente
artigo busca investigar a produção acadêmica sobre a criminalização do racismo,
analisando a presença ou ausência das dinâmicas de gênero na construção dos
textos.

Assim, para verificar se as associações entre tais categorias são estabelecidas, os


trabalhos acadêmicos analisados foram coletados na Biblioteca Digital Brasileira
de Teses e Dissertações (BDTD), seguindo critérios estruturais referentes a
mencionar, no estudo sobre os crimes raciais, as circunstâncias vivenciadas por
mulheres negras, explicando de forma concisa, contextualizando no processo
histórico e ofertando dados conclusivos ao longo do texto de forma plena.

O artigo está dividido em quatro itens, a contar desta introdução. O segundo,


voltado a compreender os desdobramentos entre raça e racismo; o terceiro a
abordar o processo de tipificação penal do racismo; o quarto, a respeito da
produção acadêmica sobre criminalização do racismo; e o quinto para as
considerações finais sobre o tema.

1 O enfrentamento ao racismo

Ao longo da história, o estudo da raça passou por modificações diretamente


ligadas às circunstâncias históricas as quais se estava sendo utilizada. Silvo
Almeida (2019) nos informa que seu uso se destinava à classificação de plantas e
animais, entretanto, a partir do século XVI, começou a ser utilizada na

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236 Nilvia Crislanna da Cruz Borges - Luanna Tomaz de Souza

categorização de seres humanos. Desde então, a raça passou a operar com base em
registros básicos referentes às características biológicas e étnico-culturais,
demarcando o objetivo político de inferiorização do ser negro e a afirmação da
supremacia do ideal de ser branco, como nos explica Fanon (2008, p. 27): “O negro
quer ser branco. O branco incita-se a assumir a condição de ser humano”.

Como categorias associadas à raça, o preconceito, o racismo e a discriminação são


diferentes formas de manifestação desse termo de relevante importância social.
Almeida (2019, p. 22) conceitua o preconceito racial como um "juízo baseado em
estereótipos acerca de indivíduos que pertençam a um determinado grupo
racializado, e que pode ou não resultar em práticas discriminatórias". Isto posto,
considerar pessoas negras violentas é um exemplo da preconcepção que o
indivíduo pode ter sobre um determinado grupo social.

A discriminação, ainda em Almeida (2019), é entendida como um ato de exclusão,


de atribuição de tratamento diferente e/ou de restrição ao não exercício de direito,
na qual a materialização do racismo se baseia em poder. Ela pode ser indireta,
quando a situação de um grupo minoritário é ignorada, pois há uma “neutralidade
racial”, assim há ausência de intencionalidade explicita de discriminar pessoas, e
pode ser direta, quando há um repúdio evidente a indivíduos ou grupos.

O racismo, conforme Kabengele Munanga (2003, p. 8), pode ser concebido como
“uma crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas pela relação
intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural”. Dessa
forma, a raça se apresenta como fundamento para fortificar tal sistemática forma
de discriminação, apresentando-se por meio de práticas que podem ser conscientes
ou inconscientes.

Flauzina (2016) afirma que o racismo é abordado pelas dinâmicas correlacionadas


referentes à sexualidade, à classe e, por fim, ao gênero. Dessa forma, a opressão
sofrida pelas mulheres negras é diferente daquela que atinge as mulheres brancas,
visto que

As mulheres negras tiveram uma experiência histórica diferenciada que o


discurso clássico sobre a opressão da mulher não tem reconhecido, assim
como não tem dado conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão
sofrida teve e ainda tem na identidade feminina das mulheres negras
(Carneiro, 2003, p. 1).

Destarte, incide sobre as mulheres negras uma dupla alteridade de categoria


sexual e racial (Fernandes, 2016). Isto é, há a concepção de que o indivíduo “mulher
negra” é distinto e é instituído como a dimensão do não-ser do que é humano
(Carneiro, 2005), atuando o racismo e sexismo em conjunto, o que Bell Hooks (1995,

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As mulheres negras nos estudos acadêmicos sobre crimes raciais 237

p. 468) explica ser “uma iconografia de representação da negra que imprime na


consciência cultural coletiva a ideia de que ela está neste planeta principalmente
para servir aos outros”.

Grada Kilomba (2019) traz a percepção a respeito da dificuldade dos discursos


feministas do ocidente em compreender o racismo como profundo dinamizador
que afeta a sociedade, principalmente em se tratando da vida das mulheres. Davis
(2016) dedica alguns capítulos da sua obra “Mulher, Raça e Classe” para
contextualizar e apontar as limitações do movimento sufragista, cujo objetivo era
de organizar a luta das mulheres pelo direito ao voto, entretanto observou-se que
o movimento não abarcava todas as mulheres, conforme a autora explica:

(...) na defesa dos próprios interesses enquanto mulheres brancas de classe


média, elas explicitavam – frequentemente de modo egoísta e elitista – seu
relacionamento fraco e superficial com a campanha pela igualdade negra
do pós-guerra. Aprovadas, as duas emendas excluíam as mulheres do
novo processo de extensão do voto e, dessa forma, foram interpretadas por
elas como prejudiciais aos seus objetivos políticos. Com a aprovação, elas
sentiam possuir razões tão fortes a favor do sufrágio quanto os homens
negros. No entanto, ao articular sua oposição com argumentos que
evocavam os privilégios da supremacia branca, demonstravam o quanto
permaneciam indefesas – mesmo após anos de envolvimento em causas
progressistas – contra a perniciosa influência ideológica do racismo (Davis,
2016, p. 93).

Apesar da realidade estadunidense na qual Angela Davis está inserida, tais


acontecimentos são compatíveis com o que aconteceu ao longo da história e
continua se desenvolvendo no contexto atual brasileiro, que pode ser entendida
como “uma história para poucas mulheres, de poucas mulheres, por poucas
mulheres (...)” (Castro, 2021, p. 171), cujo termo “mulher” se refere àquelas da cor
branca de classe média que assumiram o posto de mulher universal, excluindo as
mulheres negras.

2 A criminalização do racismo

Castro e Almeida (2018) apresentam a Lei Afonso Arinos (Lei nº 1.390/51) de 1951
como a primeira lei brasileira que possuía como objetivo combater o racismo, na
qual incluiu entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de
preconceitos de raça ou de cor, cuja redação foi modificada em 1985 pela Lei nº
7.437. Com o objetivo de regulamentar a aplicação do artigo 5º, inciso XLII da
Constituição Federal de 1988, determinando que “a prática do racismo constitui
crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”,
em 5 de janeiro de 1989, a Lei Caó (Lei nº 7.716/89), tornou crime propriamente

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238 Nilvia Crislanna da Cruz Borges - Luanna Tomaz de Souza

dito os atos que resultassem de preconceitos de raça ou de cor (Almeida; Castro,


2018).

Posteriormente, modificada pela Lei nº 9.459 de 1997, a Lei Caó passou a punir os
crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
procedência nacional. Além disso, no artigo 140 do Código Penal que tipifica o
delito de injúria, a Lei 9.459/97 inseriu um novo parágrafo para qualificar tal tipo
penal por preconceito: “§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos
referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou
portadora de deficiência: Pena - reclusão de um a três anos e multa” (Brasil, 1989).

Santos (2015) traz uma reflexão acerca da diferenciação do crime de racismo e da


injúria qualificada por preconceito. O primeiro, segundo ela, diz respeito ao ato de
discriminação a um determinado grupo de pessoas, enquanto que o segundo é
referente à ofensa ao decoro de uma pessoa e a sua própria percepção.

À vista disso, recentemente, a Lei nº 14.532/2023 alterou a Lei nº 7.716/1989 e o


Código Penal brasileiro, com mudanças significativas quanto à equiparação do
crime de injúria racial ao crime de racismo. Dessa forma, o ato de “injuriar alguém,
ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou
procedência nacional” (Brasil, 2023) tornou-se um crime imprescritível e não mais
passível ao pagamento de fiança, além de ter sua penalidade aumentada de 01
(um) a 03 (três) anos para 02 (dois) a 05 (cinco) anos.

Isto posto, Hasenbalg (1979, p. 299) analisa as notícias sobre discriminação racial
na imprensa de alguns estados entre 1968 e 1977. A partir da inspeção e
compreensão de seu estudo, temos que, para homens, é recorrente expressões
como “preto aqui não entra” e “preto não vale mesmo nada” serem utilizadas com
objetivos de ofender, enquanto que, para as mulheres, as expressões utilizadas são
“negra vagabunda”, “mulher preta só pode ser doméstica ou vagabunda” e “negra
suja”. No mesmo sentido, Santos (2015, p. 188-9) apresenta os resultados de sua
pesquisa dos casos de racismo no âmbito do sistema judiciário de São Paulo entre
2003 e 2011, no qual é observado que ofensas como “macaco”, “preto filho da
puta”, “urubu”, “africano” e “favelado” são comumente utilizados para atingir
homens negros, enquanto que “puta”, “vagabunda” e “negra fedida” se refere às
mulheres negras.

Diante do exposto, a diferença nos elementos ofensivos entre homens negros e


mulheres negras é evidente. Atribui-se às mulheres, principalmente, qualificativos
de falta de cuidado com a higiene (negra fedida), de depreciação a alguns tipos de
ocupações profissionais específicas que remetem à subserviência (mulher preta só

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As mulheres negras nos estudos acadêmicos sobre crimes raciais 239

pode ser doméstica) e de sexualidade relativa à vulgaridade (puta e negra


vagabunda) (Santos, 2015).

Tal análise pode ser aprofundada na compreensão do conceito de imagens de


controle desenvolvido por Patrícia Hill Collins e desvelado, no Brasil, por Winnie
Bueno:

As imagens de controle são a dimensão ideológica do racismo e do sexismo


compreendidos de forma simultânea e interconectada. São utilizadas pelos
grupos dominantes com o intuito de perpetuar padrões de violência e
dominação que historicamente são constituídos para que permaneçam no
poder. As imagens de controle aplicadas às mulheres negras são baseadas
centralmente em estereótipos articulados a partir das categorias de raça e
sexualidade, sendo manipulados para conferirem às inequidades
sociorraciais a aparência de naturalidade e inevitabilidade (Bueno, 2019, p.
69).

Portanto, entende-se que ao abordar os estudos dos crimes de racismo, é


importante inserir na análise, de forma aprofundada, as dinâmicas de gênero, visto
que as ofensas são apresentadas de maneira diferentes, dependendo do gênero da
vítima, e que a mulher negra sofre dupla alteridade frente ao racismo e sexismo.

A partir das reflexões sobre a raça, o racismo e sua criminalização ao longo da


história jurídica brasileira, partimos para a análise da medida em que os estudos
acadêmicos sobre os crimes raciais centralizam o debate de gênero.

3 A produção acadêmica sobre a criminalização do


racismo

O plano de trabalho gerado no início contava com a coleta de trabalhos acadêmicos


no Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES) e de seu Portal de Teses e Dissertações, por um período de
tempo entre 1997 (ano em que a qualificadora racial foi inserida ao crime de injúria)
e 2019. Para tanto, foram realizadas buscas experimentais nessas plataformas, com
o objetivo de escolher qual utilizar. Optou-se, assim, pelo Portal de Periódicos da
CAPES, no qual foi procurado o termo “criminalização do racismo”, gerando 152
(cento e cinquenta e dois) resultados, dos quais apenas 03 (três) continham o objeto
da pesquisa referente aos crimes de racismo. Além disso, procurou-se pelo termo
“crimes raciais” com filtro de 10 (dez) anos e filtro de “artigos” que rendeu 249
(duzentos e quarenta e nove) resultados, todavia apenas 06 (seis) estavam de
acordo com o objeto da pesquisa.

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Além do Portal de Periódicos da CAPES, a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e


Dissertações (BDTD) foi escolhida também para a procura do termo
“criminalização do racismo”, o que gerou 30 resultados, dos quais apenas 08
puderam ser usados; e o termo “crimes raciais”, gerando 130 resultados, dos quais
apenas 12 puderam ser utilizados; ambos pelo mesmo critério de conter o objeto
da pesquisa referente aos crimes de racismo.

Entretanto, optou-se por utilizar apenas os materiais coletados na Biblioteca


Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), por questões de quantidade e
qualidade, já que, ao todo, a plataforma BDTD ofertou 20 (vinte) elementos, o que
considerou-se ser suficiente para os objetivos da pesquisa.

Após a coleta, passou-se para a criação dos indicadores em uma planilha do Excel,
para melhor observação e catalogação dos resultados. Os indicadores são
referentes: a) ao nome do(a) autor(a) do texto; b) ao gênero do(a) autor(a) do texto;
c) ao nome do texto; d) à região brasileira na qual o texto foi publicado; e) à raça
do(a) autor(a); f) ao ano de publicação do texto; g) à presença da palavra “gênero”
no texto; h) à presença da palavra “mulher” no texto; e i) à existência ou não de
debate de gênero no texto de forma centralizada.

Em seguida, foi feita a análise dos textos com base nos indicadores. Cada uma das
20 (vinte) teses e dissertações que datam do período de 2003 e 2019 foi lida e
observada. A partir disso, nota-se que apenas 04 (quatro) dos 20 (vinte) trabalhos
acadêmicos apresentam o debate de gênero de forma centralizada, isto é,
mencionam no estudo sobre os crimes raciais o contexto vivenciado por mulheres
negras, explicando-o e contextualizando-o, além de ofertar dados conclusivos ao
longo do texto de forma plena.

Para a análise aprofundada de cada trabalho acadêmico, fez-se necessário, então,


a divisão em categorias referentes à área de publicação. Assim, observou-se que
nem todos os estudos sobre crimes raciais são especificamente realizados na área
do direito. Há também trabalhos nas áreas de ciências sociais e de linguística,
história e direitos humanos e cidadania.

3.1 Perfil da produção

Realizou-se uma análise do perfil racial dos autores e autoras por meio de
heteroidentificação1, que é um método de identificação étnico-racial de um

1 No Brasil, a identidade racial é realizada por autoidentificação, isto é, são as “pessoas que se
autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto

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As mulheres negras nos estudos acadêmicos sobre crimes raciais 241

indivíduo a partir da percepção social de outra pessoa. Percebe-se, portanto, que


06 (seis) dos 20 (vinte e dois) autores são brancos, 11 (onze) são negros e 03 (três)
não foi possível verificar a identificação étnico-racial. Dessa forma, entende-se que
a maioria dos autores que estudam a criminalização do racismo são autores negros.

Observou-se também o gênero dos autores. Dos 20 (vinte) escritores, 07 (sete) são
homens e 13 (treze) são mulheres. Portanto, pela análise quantitativa dos dados,
percebe-se que são as mulheres que mais estudam a criminalização do racismo.

Por fim, é observado uma dinâmica pertinente relativa à região brasileira na qual
os trabalhos são publicados. Nota-se que dos 20 (vinte) trabalhos analisados, 03
(três) foram publicados no Centro-Oeste, 02 (dois) no Nordeste, 13 (treze) no
Sudeste, 02 (dois) no Sul e nenhum no Norte.

A partir dos números bastante expressivos apresentados que denotam a


predominância da publicação das pesquisas acadêmicas no Sudeste, visto que
mais da metade das pesquisas analisadas por este artigo são dessa região, o dado
a respeito da ausência de textos acadêmicos publicados no Norte do país 2 remete
a uma situação muito presente na produção acadêmica brasileira. No mesmo
sentido, Silveira e Pereira (2019) enfatizam que

É importante frisar que a grande maioria desses trabalhos apresenta o


mesmo ponto em comum sobre a relação de pesquisas acadêmicas e as
regiões geográficas: há predominância das regiões Sul e Sudeste nas
produções científicas, enquanto a Região Norte mostra-se com menor
expressividade em quantidade de pesquisas (Silveira; Pereira, 2019, p.
247).

O principal motivo apontado para essa diferenciação entre regiões é a questão


geográfica e dimensional do Brasil, na qual há uma concentração dos campi das
universidades nas regiões predominantes e, consequentemente, das pesquisas

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)”, de acordo com o inciso IV do art. 1º do Estatuto da


Igualdade Racial (Brasil, 2010). Todavia, para fins de investigação desta pesquisa, optou-se pela
análise de heteroidentificação das autoras e dos autores com a procura dos seus nomes completos
na plataforma de busca do Google. Contou-se, assim, com fotos em sites de reportagens
acadêmicas, em redes sociais e na Plataforma Lattes.
2 Faz-se mister reforçar que esta pesquisa foi realizada durante os meses de agosto de 2020 e julho
de 2021. Recentemente, no ano de 2022, houve a publicação da Dissertação de Mestrado de
Samara Tirza Dias Siqueira intitulada “MULHERES NEGRAS NO PALCO DO DEBATE SOBRE
CRIMES RACIAIS: uma análise das ofensas racistas no Tribunal de Justiça do Pará” e
desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará, que
representa, com base nos critérios deste artigo, um trabalho acadêmico da região norte que realiza
o debate de gênero de forma centralizada.

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acadêmicas, além da desigualdade na distribuição de recursos para a produção


científica (Haddad; Mena-Chalco; Sidone, 2015).

É importante considerar ainda que há particularidades regionais extremamente


relevantes em se tratando do racismo, visto que ser negro(a) na região Norte é
diferente de ser negro(a) nas demais regiões, conforme nos explicam Conrado,
Campelo e Ribeiro (2015, p. 214):

Ser negro(a) no Pará, e por que não dizer na Amazônia, não é o mesmo que
nas outras partes do país. Pelo processo histórico, a presença da população
negra na região foi mitigada e relegada a segundo plano. A região tem a
marca das hipérboles e dos mitos, e essa marca condicionou a forma como
a população negra foi tratada nas análises acadêmicas e como teve a sua
identidade “sufocada” na metáfora do ser moreno/morena até os dias
atuais, embora o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística aponte que o Estado do Pará tem 73% de sua população
constituída de pretos e pardos, portanto, negros (Conrado; Campelo;
Ribeiro, 2015, p. 214).

No mesmo sentido, Tomaz et al. (2022), além de atribuírem às diferenciações entre


a raça e o gênero um processo colonizatório que perdura até os dias atuais,
retomam também o debate referente ao apagamento das particularidades da
identidade da negritude amazônica:

A identidade na região é marcada por um confronto entre um ideário de


mestiçagem nacional (que ignora a violência colonizadora) e o
reconhecimento da diferença, um maniqueísmo entre sujeitos amazônicos
que não se reconhecem como parte de um cenário nacional, deixando um
vazio ontológico: estes não são negros, brancos ou indígenas (Tomaz et al.,
2022, p. 56).

Percebe-se, portanto, na Amazônia a presença de uma marca identitária expressiva


que é a morenidade, na qual o ser “moreno” e “morena” ganha espaço em
detrimento de ser “negro” e “negra”, sendo o uso dessa marca “generalizado,
apagando as singularidades” (Campelo; Conrado; Ribeiro, 2015, p. 224). Nesse
sentido, entende-se ser de suma importância a presença de pesquisas da Região
Norte que estudem a criminalização do racismo sob as óticas particulares da
Amazônia e a contextualização histórica específica dessa região.

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3.2 Pesquisas nas ciências sociais e em outras áreas

A área das ciências sociais foi contemplada com 06 (seis) trabalhos, dentre os quais
apenas 02 (dois)3 atingiram todos os critérios mencionados de abordagem do
gênero nos estudos dos crimes raciais. Santos (2009) apresenta a forma com que o
sistema judiciário trata as práticas de racismo, destacando o papel que a mulher
negra teve na implementação da Lei nº 7.716/89, a violência sofrida por ela em
crimes raciais e as particularidades do tipo de discriminação a ela destinada, e
apresentando casos concretos desse tipo de delito contra essa parcela da
população, reestabelecendo a todo momento as dinâmicas de gênero de forma
concisa. No mesmo sentido, Rodrigues (2018), ao atentar-se para os Boletins de
Ocorrência e as queixas da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância
(DECRADI), apresenta dados conclusivos, denota situações concretas de racismo
contra mulheres ao longo do texto e esclarece a dupla alteridade à que a mulher
negra é submetida, além de expor a dimensão de sua imagem como uma
pesquisadora negra que, segunda ela, trouxe para as entrevistas um sentimento de
segurança entre ela e os entrevistados.

Os outros 04 (quatro)4 textos acadêmicos não conseguiram atingir os já


mencionados critérios para determinar a centralidade do debate de gênero nos
estudos analisados. Silva (2003), na análise do processo de criminalização de atos
tipificados por discriminação racial, mediante a Carta Magna de 1988, menciona
também a sensualidade enquanto categoria estereotipada em casos de
discriminação racial, porém não há o aprofundamento pleno da questão, não
sendo possível, assim, inserir a pesquisa no âmbito da centralidade no debate de
gênero. Santos (2010), na investigação da diferença entre racismo e injúria racial na
legislação penal, na Constituição Federal de 1988 e nas decisões dos Tribunais de
Justiça, cita o aparecimento da teorização do racismo contra as mulheres e os
xingamentos a elas proferidos, mas o texto não contextualiza os fatos que se
inserem nesse período e não explica o motivo da diferença entre xingamentos para
homens e mulheres negros(as).

Na pesquisa de Bokany (2013), na qual há a análise de Boletins de Ocorrência da


DECRADI para obter informações e compreender os delitos raciais e a intolerância
nas metrópoles, alguns dados apresentam as mulheres enquanto vítimas de
injúria, porém não se esclarece ao longo do texto as razões pelas quais os dados
ofertados se externam dessa maneira, assim não há como considerá-los

3 Os trabalhos analisados foram Santos (2009) e Rodrigues (2018).


4 Os trabalhos analisados foram Bokany (2013), Mello (2005), Santos (2010) e Silva (2003).

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conclusivos, pois não estão devidamente contextualizados de acordo com as


dinâmicas de gênero. Tal fenômeno também ocorre em Mello (2005), na análise das
queixas de crime de discriminação racial no Rio Grande do Sul, na qual há a
presença de muitos dados que poderiam ofertar uma boa base para o debate,
porém não há a devida explanação.

Para as áreas de linguística, história e direitos humanos e cidadania, dos 05 (cinco)


trabalhos analisados, apenas 01 (um)5 atingiu todos os critérios referidos na
metodologia aplicada de abordagem de gênero nos estudos dos crimes raciais.
Silva (2009), na reflexão acerca do modo com que a ideologia contida nos discursos
legais contribui para as práticas de discurso racistas no Brasil, menciona o fato da
mulher negra sofrer o racismo de forma mais intensa, aprofundando concisamente
o debate, ao apresentar um caso concreto e explicar que “(...) em nosso contexto
cultural, homens costumam a se sentir e ser considerados superiores às mulheres”
(Silva, 2009, p. 135), além de abordar o duplo bloqueio social que afeta as mulheres
negras: o gênero e a raça.

Enquanto que 04 (quatro)6 não atingiram os critérios supraditos, como em Maia


(2012) que, na observância pelos designativos de cor utilizados nos processos
criminais pós-Constituição de 1824, referentes à cor como um critério de cidadania
e liberdade na época estudada, apesar de apresentar fatos históricos referente à
questão racial em parte do século XIX, não apresenta maiores explicações
referentes à contextualização vivenciada pelas mulheres negras nessa época,
tornando o debate racial generalizado. Oliveira (2017), na busca pela categorização
do termo “racismo religioso”, menciona o relacionamento inter-racial forçado
entre os senhores e as mulheres negras escravizadas, ofertando contextualização
e, até mesmo, apresentando um debate entre gênero e raça de forma inicial, porém
é importante, para que o debate seja aprofundado plenamente, que ele se dê ao
longo de todo o texto e não de modo setorizado, como é notado na redação da
obra.

Araújo (2010), no estudo dos discursos nos Boletins de Ocorrência do


DECRADI/SP e do Departamento de Atividades Especiais da Polícia Civil do
Distrito Federal (DEPATE/DF), declara e explica moderadamente a dupla-
discriminação à qual a mulher negra é submetida, apresentando dados e
explicando a particularidade da categorização dos insultos a elas serem de origem
sexuais, como “piranha” e “vagabunda”, e com relação a estereótipos
profissionais, como “vai ser doméstica” (Araújo, 2010, p. 73), entretanto não o faz

5 O trabalho analisado foi Silva (2009).


6 Os trabalhos analisados foram Araújo (2010), Maia (2012), Oliveira (2017) e Santos (2012).

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no decorrer do texto de forma plena, apenas subdivide em partes menores que


poderiam ser mais bem exploradas na pesquisa. Já Santos (2012) compara as
formas com que o judiciário tem abordado a relação entre discriminar e insultar,
entretanto, na pesquisa, apesar de entrevistar representantes dos movimentos
sociais de mulheres negras, não apresenta a devida contextualização do processo
a que essas mulheres são submetidas, ao longo da abordagem do racismo no texto.

3.3 Pesquisas no direito

Nesta área, há a presença de 09 (nove) trabalhos, dos quais apenas 01 (um)7 atingiu
todos os critérios de abordagem do gênero nos estudos dos crimes raciais. Pires
(2014), na avaliação da eficiência das políticas públicas de caráter punitivo de
combate ao racismo como forma de promover a igualdade racial, faz menção à sua
identidade enquanto mulher negra, contextualiza as relações involuntárias que
configuraram a mestiçagem envolvendo mulheres negras escravizadas e oferta
dados sobre as desigualdades raciais, incluindo dados relativos às mulheres
negras, além de apresentar um caso específico de denúncia pelo Ministério Público
baseado no artigo 20 da Lei Caó, sobre o teor racista de uma letra de uma música
do Tiririca, que representa as características de uma mulher negra de forma
estereotipada, de modo que se observa o compromisso da autora com o estudo do
racismo e do sexismo em conjunto.

Enquanto que os outros 08 (oito)8 não conseguiram atingi-los. Vasconcelos (2009),


por exemplo, se propõe a conceber como a incriminação constitucional do racismo
é compatível com o entendimento da teoria do Direito Penal Mínimo, entretanto o
desenvolvimento do texto não abarca o gênero como uma categoria importante de
análise e a problemática do racismo se torna generalizada. No mesmo sentido,
Mendonça (2019), com a reflexão sobre a possibilidade dos atos de rebaixamento
de regiões afro-brasileiras serem considerados formas de racismo religioso; Lauria
(2016), com sua análise a respeito das formas teóricas que podem ajudar no
desenvolvimento concreto do direito à igualdade, afastando-se da discriminação
racial; e Melo (2010), com o crime de racismo praticado na internet e o estudo do
artigo 20 da Lei Caó, se encontram distantes de ofertar as reflexões aprofundadas
sobre as dinâmicas de gênero nos estudos relativos aos crime raciais.

Um estudo bastante interessante é o de Barbosa (2011), no qual é analisado a


primeira condenação internacional do Brasil junto à Comissão Interamericana dos

7 O trabalho analisado foi Pires (2014).


8 Os trabalhos analisados foram: Barbosa (2011), Lauria (2016), Lima (2017), Matos (2016), Melo
(2010), Mendonça (2019), Rodrigues (2010) e Vasconcelos (2009).

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Direitos Humanos (CIDH) por motivo de racismo com o Caso Simone A. Diniz,
uma mulher negra vítima de crime racial que não teve acesso à justiça de forma
plena. Dessa forma, espera-se que a abordagem teórica do racismo abarque as
dinâmicas de gênero, visto que a personagem central do trabalho corresponde a
essas expectativas, todavia observa-se que não há o devido cuidado com os
pressupostos teóricos em concordância com a articulação do racismo e do gênero.

Matos (2016), na busca pela percepção dos operadores do direito frente aos crimes
de racismo e de injúria, até mesmo menciona algumas particularidades da prática
de racismo às mulheres negras, como a presença de insultos sexuais, porém não
há a explicação e o aprofundamento na abordagem sobre a diferença da prática de
racismo sofrida entre homens negros e mulheres negras, o que ocorre também com
a pesquisa de Lima (2017), no percurso da compreensão referente à proteção às
vítimas de crimes raciais no Tribunal de Justiça do Acre, citando as
particularidades e, até mesmo, ofertando dados, mas não aprofundando-os.

Rodrigues (2010), no entendimento sobre as contradições da legislação antirracista


e as práticas comuns à sociedade brasileira, apresenta o regime escravocrata
enquanto causador da miscigenação e detrimento e submissão de mulheres negras
e avalia a diferença de xingamentos entre homens e mulheres negros(as) nas
características particulares, como as “agressões verbais de ordem sexual, quando
direcionadas às mulheres (“vaca, galinha, cadela, barata preta”) (Rodrigues, 2010
p. 43). Entretanto, a pesquisa não oferta dados que relatem de forma plena e
conclusiva a realidade das mulheres negras enquanto vítima de crimes raciais.

Frente aos dados analisados, faz-se mister refletir as repercussões da escassez de


produções acadêmicas genderizadas sobre a criminalização do racismo no âmbito
do direito, visto que, por se tratar de pesquisas na esfera jurídica que se propõe a
contribuir para o profícuo exame do objeto de estudo e seus desdobramentos
legais, espera-se que as imbricações sociais sejam inspecionadas de forma plena e
competente, para corresponder às expectativas que o método científico requer. No
entanto, no que concerne à compreensão desse sistema de opressão que invisibiliza
as experiências de mulheres negras como sujeitos passíveis a sofrer danos pela
prática de crime de racismo e/ou de injúria racial, constatou-se que as discussões
nas ciências jurídicas carecem das articulações aprofundadas entre gênero e raça.

No que se refere ao processo de desenvolvimento das estruturas que perpetuam o


apagamento da vivência de mulheres negras, Akotirene (2019, p. 59) atribuiu a
proveniência e a sua institucionalização à formação do arranjo sistemático de
violências correlacionadas que datam desde o período colonial:

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As mulheres negras nos estudos acadêmicos sobre crimes raciais 247

Conforme dissemos, é o padrão colonial moderno o responsável pela


promoção dos racismos e sexismos institucionais contra identidades
produzidas durante a interação das estruturas, que seguem atravessando
os expedientes do Direito moderno, discriminadas à dignidade humana e
às leis antidiscriminação (Akotirene, 2019, p. 59).

No mesmo sentido, Siqueira (2022) realizou um estudo de inspeção de teses e


dissertações no Catálogo da CAPES, com resultados que podem ser
correlacionados aos deste artigo. Como resultado de sua produção, a maioria dos
textos acadêmicos não buscam reconhecer como as mulheres negras são
“invisibilizadas pela despersonalização do racismo” (Lorde, 2019, p. 53).

Por fim, em se tratando das reverberações nas ciências criminais, vale-se do


entendimento extraído de Souza et al. (2022) a respeito dos estudos na criminologia
e seu afastamento ao conjunto das expressões das desigualdades da sociedade,
inclusive quando se refere às categorias de raça e gênero, uma vez que a
epistemologia atual as desconsidera como fundamentais variáveis de discussão
que retroalimentam o status punitivo do controle, ignorando, assim, as vivências
das mulheres negras em estudos criminais.

Considerações finais

O objetivo geral deste trabalho foi analisar de que forma os estudos acadêmicos
sobre crimes raciais no Brasil têm considerado as dinâmicas de gênero. O
resultado, então, foi insatisfatório. A centralidade no debate de gênero nos estudos
de criminalização do racismo encontra-se em um caráter mínimo e inicial.

A criminalização do racismo foi um importante passo para uma sociedade


fundamentada no Princípio da Igualdade, definido no artigo 5º, caput Constituição
Federal de 1988, “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes”. Pelo fato de o racismo ter uma tipificação
recente, visto que primeira lei, que se propunha a tornar prática de atos resultantes
de preconceitos de raça ou de cor uma contravenção penal (Lei Afonso Arinos), foi
promulgada em 1951, há a presença de muitas pesquisas científica e acadêmicas se
propõem a estudar os crimes raciais, seja na área do direito ou não.

No entanto, observa-se que, na maioria dos estudos, não são apresentadas de


forma articuladas as dinâmicas de gênero e de raça, optando-se por pressupostos
teóricos e por uma metodologia que buscam compreendê-las como estruturas
separadas. E, em alguns casos, quando há a apresentação dessa articulação, ela se

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dá de modo superficial e pouco aprofundado nas suas consequências na vida das


mulheres negras.

Além disso, com os resultados apontados nessa pesquisa, percebe-se que nenhum
ou poucos estudos relevantes sobre crimes raciais são desenvolvidos na Amazônia,
o que é preocupante ao se considerar as particularidades das pessoas negras e,
principalmente, das mulheres negras na região Norte.

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252 Nilvia Crislanna da Cruz Borges - Luanna Tomaz de Souza

os Limites Epistemológicos da Criminologia Crítica no Brasil. Revista Culturas


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As mulheres negras nos estudos acadêmicos sobre crimes raciais 253

Sobre as autoras
Nilvia Crislanna da Cruz Borges
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Pará.

Contribuição de coautoria: Construção do instrumento metodológico,


pesquisa, observação e registro de dados, organização e análise de
dados e redação do artigo.

Luanna Tomaz de Souza


Doutora em Direito pela Universidade de Coimbra - Portugal e Pós-
doutora em Direito na Puc-Rio. Atua como Diretora Adjunta do
Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA e professora da Faculdade de
Direito e do Programa de Pós-Graduação de Direito da UFPA.

Contribuição de coautoria: Construção do planejamento geral do


projeto, orientação na análise dos resultados, revisão e prestação de
auxílio no desenvolvimento do artigo e supervisão das etapas de
experimentos e da metodologia utilizada.

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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.51538

dossiê

O contrato racial como constituição não


escrita do Brasil: ignorância branca e
interpretação do direito à luz da filosofia
política de Charles Mills
El contrato racial como constitución no escrita de
Brasil: ignorancia blanca e interpretación del
derecho a la luz de la filosofía política de Charles
Mills

The racial contract as Brazil’s unwritten


constitution: white ignorance and law’s
interpretation in the light of the political philosophy
of Charles Mills

Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães1


1
Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências Jurídicas/Programa de
Pós-Graduação em Direito, Belém, Pará, Brasil. E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8835-7420.

Heitor Moreira Lurine Guimarães2


2
Universidade Federal do Pará, Faculdade de Direito, Belém, Pará, Brasil. E-
mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-
3676614X.

Submetido em 10/11/2023
Aceito em 02/01/2023

Como citar este trabalho


GUIMARÃES, Sandra Suely Moreira Lurine; GUIMARÃES, Heitor Moreira Lurine. O contrato
racial como constituição não escrita do Brasil: ignorância branca e interpretação do
direito à luz da filosofia política de Charles Mills. InSURgência: revista de direitos e
movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 255-282, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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256 Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães - Heitor Moreira Lurine Guimarães

O contrato racial como constituição não


escrita do Brasil: ignorância branca e
interpretação do direito à luz da filosofia
política de Charles Mills

Resumo
O artigo, essencialmente bibliográfico, se baseia no pensamento do filósofo afrojamaicano
Charles Mills para defender a tese de que o contrato racial, tal como concebido pelo autor,
é a verdadeira constituição do Brasil, não escrita e subjacente à Constituição Federal
propriamente dita, na medida em que estabelece os filtros epistêmicos de interpretação do
ordenamento jurídico como um todo. Para tanto, o trabalho reconstrói a crítica de Mills ao
contratualismo clássico, bem como os conceitos de epistemologia invertida e ignorância
branca. Argumenta-se, então, a partir de exemplos extraídos do direito brasileiro, que tal
referencial ajuda a explicar por que um sistema jurídico aparentemente comprometido com
direitos fundamentais convive com a violação sistemática de seus próprios preceitos.
Palavras-chave
Contrato Racial. Constitucionalismo. Contratualismo. Racismo. Charles Mills.

Resumen
El artículo, esencialmente bibliográfico, se basa en la teoría del filósofo afrojamaicano
Charles Mills para defender la tesis de que el contrato racial, como lo concibe el autor, es
la verdadera constitución de Brasil, no escrita y subyacente a la Constitución Federal
propiamente dita, puesto que establece los filtros epistémicos de interpretación del sistema
jurídico en su conjunto. Para ello, el trabajo reconstruye la crítica de Mills al contratualismo
clásico y los conceptos de epistemología invertida e ignorancia blanca. Entonces el artículo
argumenta, con ejemplos extraídos del derecho brasileño, que ese referencial ayuda a
explicar por qué un sistema jurídico aparentemente comprometido con derechos
fundamentales vive junto con su sistemática violación.
Palabras-clave
Contrato Racial. Constitucionalismo. Contractualismo. Racismo. Charles Mills.

Abstract
The article, essentially bibliographical, draws from the thought of the afro-jamaican
philosopher Charles Mills to argue that the racial contract, as conceived by him, is the real
constitution of Brazil, non-written and underlying the actual Federal Constitution, insofar
as it establishes the ruling epistemic filters when it comes to interpreting the legal system.
In order to do so, the essay resumes Mills’ critique of classical contractualism, as well as
the concepts of averted epistemology and white ignorance. The essay argues, then, from
examples extracted from Brazilian law, that such a framework helps explaining why a legal
system apparently committed to fundamental rights may coexist with the systematic
violation of its own precepts.
Keywords
Racial Contract. Constitutionalism. Contractualism. Racism. Charles Mills.

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O contrato racial como constituição não escrita do Brasil: ignorância branca e interpretação do 257
direito à luz da filosofia política de Charles Mills

Introdução

Toda exposição sobre a história recente do direito brasileiro, assim como qualquer
discussão dogmática em disciplinas jurídicas especializadas, tem de passar pela
Constituição de 1988. Muito mais que uma norma fundamental, ela é tida como
um símbolo maior do progresso moral e civilizatório que teria sido conquistado
com o término da ditadura-civil militar. O robusto rol de direitos e garantias
fundamentais, ao lado de mecanismos como o controle de constitucionalidade e os
remédios constitucionais, sinalizaria o fim definitivo, ao menos do ponto de vista
oficial, de toda uma era de arbitrariedades sistemáticas. Esses direitos, conhecidos
pelo seu viés de universalidade e inclusão, se colocam também como parâmetros
de orientação tanto para a produção legislativa quanto para a interpretação das
normas infraconstitucionais (Sarlet, 2018).

Paralelamente a esse esquema normativo, e no mesmo espírito do seu conteúdo,


ergue-se uma ampla macroestrutura de proteção social. Parte dela voltada à
reafirmação ou conservação de estruturas mais antigas, por exemplo o Direito do
Trabalho e a Justiça do Trabalho; outra parte estabelecendo um aparato complexo
de seguridade social, com um dos mais abrangentes arranjos entre saúde,
assistência e previdência do mundo. A isso se somam a miríade de legislações
protetivas de setores específicos da população composta, dentre outras, pelo
Estatuto do Idoso, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Maria da Penha,
a Lei do Racismo. Esse seria, grosso modo, o quadro geral de um sistema jurídico
considerado progressista, harmonizado com a defesa dos direitos humanos e
comprometido com os ideais da democracia. Chamemos essa forma de representar
o fenômeno constitucional de “a imagem padrão da Constituição”.

Contudo, nos países que, tal qual o Brasil, tiveram uma inserção no capitalismo
mundial sob os moldes da dependência (Marini, 2022), essa talvez não seja a
melhor maneira de representar o constitucionalismo. Se promulgar uma
constituição é uma maneira de determinar que tipo de sociedade se deseja
construir, há que se perguntar até que ponto, para nações como a nossa, a
possibilidade mesma de decidir a esse respeito não é constrangida pelo seu grau
de autonomia internacional, pela influência de interesses estrangeiros, pela
disponibilidade de recursos e – o que mais interessa a este trabalho – pelo seu
histórico de colonização e escravização.

A pergunta que todo jurista brasileiro precisa se fazer é como um ordenamento


jurídico assim delineado pode conviver com a sua sistemática violação. Neste
artigo, queremos chamar atenção para apenas um dos eixos dessa violação, qual
seja, a questão racial. Com efeito, o mesmo sistema que torna o racismo

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
258 Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães - Heitor Moreira Lurine Guimarães

imprescritível, normaliza a desclassificação das denúncias desse crime para injúria


racial (Siqueira, 2022). O mesmo setor produtivo que suspostamente é regido pela
proteção do trabalho se serve de uma ampla frente de escravidão contemporânea,
que o Poder Judiciário, em grande medida, resiste em reconhecer como tal (Soares,
2022), a despeito de algumas decisões em sentido mais progressista1. Finalmente,
é digno de nota que o mesmo Estado teoricamente comprometido com a dignidade
humana é o protagonista da execução de corpos negros em proporções bélicas, mas
ao mesmo tempo com requintes de teatralidade, constituindo aquilo que, desde o
Movimento das Mães de Maio, é conhecido como “democracia das chacinas”
(Almeida, 2022; Silva Junior, 2023).

A dificuldade de compreender esse fenômeno – da facilidade que o racismo


encontra para se desenvolver sob uma ordem constitucional que supostamente lhe
é contrária – deriva, em grande medida, de certos traços característicos da imagem
padrão que se tem do constitucionalismo. Tudo se dá como se a atividade
constituinte consistisse em um exercício especulativo-deliberativo de escolha das
normas que se quer tornar diretrizes da vida social, seguido do esforço para ajustar
a realidade concreta às injunções dessas mesmas normas em um momento
posterior. Nas palavras de Duarte e Queiroz (2017, p. 13), é como se “as mentes
pensantes agissem sobre uma realidade ‘bruta’, moldando, com sua capacidade e
inteligência, um novo mundo que nasce com fronteiras jurídicas bem
constituídas”. Implícita nessa concepção está o pressuposto de que o poder
constituinte opera sobre um mundo que se apresenta como uma matéria maleável,
cujas feições, não sendo circunscritas por condições sócio-históricas pré-existentes,
podem ser livremente moldadas pela vontade que se consubstancia no texto
constitucional. Abstração que se traduz em jargões jurídicos correntes, dentre os
quais “a intenção do constituinte” ou “a vontade do constituinte”.

Mas a imagem de indivíduos abstratos que se encontram para estipular, por


convenção consensual, os princípios reguladores de sua convivência já é bem
conhecida na filosofia política. Ela define, grosso modo, as linhas gerais do que se
conhece como contratualismo, cujas formulações iniciais foram dadas por Hobbes,
Locke, Rousseau e Kant, e que tem na figura de John Rawls sua versão revigorada

1 Na esfera criminal, as decisões do Supremo Tribunal Federal nos Inquéritos 2.131 – Distrito
Federal (acórdão proferido em 23.02.2012) e 3.412 – Alagoas (acórdão proferido em 29.03.2012)
foram relevantes para delimitação de alguns parâmetros sobre a caracterização do crime de
redução à condição análoga à de escravo, reforçando que a privação de liberdade não é requisito
indispensável para tal. Na esfera trabalhista, destaca-se o entendimento que vem se formando no
âmbito do Tribunal Superior do Trabalho acerca da imprescritibilidade da pretensão reparatória
em casos de escravidão contemporânea, a exemplo do acórdão proferido em recurso de revista
no processo nº 1000612-76.2020.5.02.0053, em 27 de outubro de 2023.

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direito à luz da filosofia política de Charles Mills

de maior destaque contemporâneo. Famosamente, a tradição contratualista


propõe fundamentar a legitimidade de certa ordem política com o argumento de
que ela poderia receber o consentimento de pessoas que se encontrassem em
determinada situação pré-política. A passagem do pré-político ao político se daria,
então, por uma deliberação, apreendida aqui sob a metáfora jusfilosófica do
“contrato social”, o qual teria como partes os membros da futura sociedade a ser
criada.

Visto assim, o pensamento contratualista parece um análogo interessante, em


termos político-filosóficos, da imagem padrão do constitucionalismo.
Basicamente, a imagem padrão projeta, sobre processos decisórios reais, a mesma
abstração com que o contratualismo manipula conceitos no nível da especulação
racional. Sendo assim, uma crítica racialmente orientada do contratualismo pode
nos ajudar a trazer à tona aquilo que a imagem padrão tende a mistificar.

No final dos anos 1990, o pensamento contratualista, até então tido apenas como
parte do cânone ocidental, foi submetido a uma poderosa revisão crítica pelo
filósofo afrojamaicano Charles Mills. Nas suas mãos, a velha metáfora do contrato
social reemerge sob nova roupagem, rebatizada de “o contrato racial”. Na obra
que carrega esse título – publicada em 1997, mas só recentemente traduzida para
o português –, Mills (2023) transforma o que era instrumento de legitimação do
poder político em dispositivo analítico da supremacia branca subjacente às
sociedades reais. O argumento central do livro é que as relações raciais na
modernidade capitalista são mais bem compreendidas quando as interpretamos
como resultantes de um contrato racial, firmado por um grupo seleto de
indivíduos que definem a si mesmos como brancos e aos demais como não
brancos, classificação essa que passará a orientar a distribuição de privilégios ao
primeiro grupo e de injustiças sistemáticas ao segundo.

Ocorre que o contrato racial, para Mills (2023), inclui não somente normas que
definem pertencimento racial, mas também normas de natureza epistêmica; isto é,
normas que estabelecem padrões segundo os quais os sujeitos apreendem a
realidade a seu redor. Essas normas epistêmicas, continua o autor, são
responsáveis por fazer com que as pessoas (especialmente pessoas brancas)
desenvolvam um olhar distorcido sobre o mundo; um olhar propositalmente
formatado para não enxergar a opressão racial ali onde ela se faz presente. É nesse
sentido que Mills (2018; 2023, p. 52) falará em uma “epistemologia invertida” e,
posteriormente, em uma “ignorância branca”. Com isso, ele quer se referir ao
contrato racial enquanto “um acordo para interpretar erroneamente o mundo”,
mas fazê-lo sempre de forma que “esse conjunto de percepções equivocadas será
validado pela autoridade epistêmica branca” (Mills, 2023, p. 52).

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260 Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães - Heitor Moreira Lurine Guimarães

Sendo assim, se o paralelo entre constitucionalismo e contratualismo tradicional é


consistente, há que se perguntar se as normas epistêmicas do contrato racial não
fornecem, por extensão, as balizas epistemológico-cognitivas com que operadores
do direito interpretam fatos e normas. Se esse for o caso, podemos entender o
contrato racial, para usar um neologismo, como uma “subconstituição”, isto é, uma
constituição não escrita que está subjacente à Constituição positivada e que orienta
o modo com que as normas dessa última e de todo o ordenamento jurídico são
interpretadas e aplicadas a casos concretos. Justamente por ser não escrita, essa
subconstituição, muito mais decisiva sociologicamente do que a constituição
escrita, conserva-se intacta a despeito de qual texto constitucional ou
infraconstitucional se venha estabelecer. Firmemente operante, a dimensão
epistêmica do contrato racial garante o conteúdo do direito2, não importa o quão
progressista em aparência, seja enquadrado ao mundo real, sempre de forma a
conservar a dominação racial em vez de transformá-la.

Assim, este artigo terá natureza essencialmente bibliográfica, situando-se na


intersecção entre direito e filosofia política. Gostaríamos de sustentar, com base em
Mills, a hipótese de uma constituição não-escrita (o contrato racial) que comanda
a interpretação da constituição escrita e do ordenamento jurídico, para explicar
como é possível a convivência entre um sistema normativo aparentemente
progressista e protetivo com uma cultura jurídica altamente refratária à justiça
racial. No bojo dessa ideia, o trabalho pretende se inserir na esteira de estudos
críticos raciais do direito brasileiro que incluem, dentre outros, a obra pioneira de
Dora Bertúlio (1989) e trabalhos mais recentes como os de Queiroz (2017), Gomes
(2020), Lopes (2020), todos preocupados em trazer à tona como o
constitucionalismo é racialmente estruturado em nosso país. Também é uma de
nossas metas prestar uma contribuição à recepção do pensamento de Mills no
campo jurídico brasileiro, seguindo exemplo do importante trabalho filosófico de
Sueli Carneiro (2023).

As duas primeiras seções adiante serão pautadas na exploração da bibliografia


atinente ao tema, sobretudo a análise das teses centrais de O Contrato Racial.
primeiramente reconstruiremos o argumento de Mills para compreender como ele
torna o contrato social uma categoria de crítica racial, em oposição aos usos mais
tradicionais desse conceito filosófico. Em segundo lugar, analisaremos mais a
fundo suas teorizações sobre a parte epistêmica do contrato racial e sobre a
ignorância branca para explicitar de que forma essa ideia é aplicável à

2 Emprega-se aqui o termo “direito” com letra minúscula por se tratar do sistema jurídico
propriamente dito, não ao Direito como disciplina acadêmica ou campo de estudos no âmbito
das ciências sociais aplicadas.

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O contrato racial como constituição não escrita do Brasil: ignorância branca e interpretação do 261
direito à luz da filosofia política de Charles Mills

interpretação e aplicação das normas do sistema jurídico. Finalmente, na terceira


seção, o trabalho explorará alguns exemplos de manifestação do contrato racial na
interpretação do direito brasileiro, principalmente a partir de decisões em matéria
de escravidão contemporânea.

1 O contrato racial versus a tradição contratualista

Ao construir sua teoria do contrato racial, Mills (2023) quer tornar a antiga figura
do contrato social um canal de interlocução crítica por meio do qual o pensamento
negro e afrodiaspórico possa adentrar o terreno eminentemente branco da filosofia
política universitária. Fazendo isso, ele pretende apresentar a questão racial sob
categorias já conhecidas do mainstream filosófico, forçando-as a confessar seu
compromisso implícito com a supremacia branca. Já que queremos mobilizar essas
intuições para a crítica da interpretação do direito, devemos começar entendendo
melhor como se dá, em Mills, essa apropriação do pensamento contratualista.

Há duas variedades de contratualismo que interessam diretamente ao autor. A


primeira é a mais clássica, que pode ser encontrada em Hobbes, Locke, Rousseau
e, com algumas diferenças, em Kant. Bem conhecida, essa versão nos convida a
supor uma situação anterior a toda autoridade e a todo poder político, em que a
natureza humana se expressa sem as inibições próprias à vida em sociedade, daí
que tal situação seja chamada de estado de natureza. Cada com sua própria
concepção de natureza humana, os autores aduzem que do estado de natureza
derivariam problemas insolúveis nos termos da vida pré-política: a guerra de
todos contra todos em Hobbes, a autojurisdição em Locke e a distribuição desigual
de bens e status em Rousseau. Diante disso, concluem eles, a solução viria da
fixação de um pacto, firmado entre todas as pessoas, que definiria os termos da
vida política dali por diante, instituindo uma autoridade soberana que poderia ser
um indivíduo, uma assembleia ou mesmo o próprio povo (Hobbes, 2014;
Rousseau, 1999).

A segunda variedade relevante é aquela exemplificada pelo famoso livro Uma


Teoria da Justiça, de John Rawls. Bem mais deflacionado em termos empíricos e
metafísicos que seus antecessores, o contratualismo rawlsiano versa sobre a
escolha de princípios de justiça para uma sociedade composta de indivíduos
altamente plurais quanto aos seus planos de vida pessoais (Kymlicka, 2005). Tais
princípios de justiça, diz Rawls, seriam aqueles escolhidos pelos indivíduos em
uma situação hipotética chamada Posição Original (que em Rawls tem papel
correspondente ao do estado de natureza) na qual ninguém, por estar sob um “véu

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de ignorância” conhece sua própria identidade e interesses, de sorte que fica


assegurada a imparcialidade da escolha (Rawls, 2005, p. 17-19).

Diferença importante entre as duas variantes é que a primeira vertente é um tanto


obscura sobre se o estado de natureza e o contrato social são considerados
realidades históricas ou se têm valor apenas heurístico. Hobbes (2014, p. 109), por
exemplo, acha que o estado de natureza “de modo geral, nunca ocorreu em lugar
algum do mundo; entretanto, há lugares em que o modo de vida é esse”. Já a
segunda é bastante clara ao dizer que se trata de “uma situação puramente
hipotética caracterizada de modo a levar a certa concepção de justiça” (Rawls,
2005, p. 12).

Em ambas as versões, porém, o contratualismo é marcado pela ideia de


universalidade, já que supostamente o contrato social contempla todas as pessoas
de maneira igual. Assim, indivíduos pré-sociais são investidos de cidadania e
convertidos em membros de uma comunidade política, passando a ser titulares de
direitos cujo conteúdo é determinado pelo contrato em si, de acordo com o
entendimento de cada autor. Justamente essa característica fez a tradição
contratualista passar para a história como um ponto de virada da filosofia
moderna, em que o estatuto político dos indivíduos dentro da sociedade já não se
define mais em função de atributos naturais ou diferenças de origem, mas sim em
função do consentimento depositado pelas pessoas em uma determinada ordem
social.

1.1 O contrato racial político e moral

Atento a essas nuances, Mills tenta manter da primeira versão o que ela tinha de
descritividade – isto é, o contrato social como explicação da realidade – e ao mesmo
tempo colocar em questão seu viés universal. Por isso, a definição que ele nos
fornece é que:

O contrato racial é aquele conjunto de acordos ou meta-acordos formais ou


informais (...) entre os membros de um subconjunto de seres humanos,
doravante designados por (mutáveis) critérios
“raciais”(fenotípicos/genealógicos/culturais) C1, C2, C3..., como “branco”
e coextensivos (levando em consideração a diferenciação de gênero) com a
classe de pessoas plenas, para caracterizar o subconjunto restante de seres
humanos como “não brancos” e com um status moral diferente e inferior,
subpessoas, de modo que tenham uma posição civil subordinada em
regimes políticos brancos ou governados por brancos que os brancos já
habitam ou estabelecem (Mills, 2023, p. 43).

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O contrato racial como constituição não escrita do Brasil: ignorância branca e interpretação do 263
direito à luz da filosofia política de Charles Mills

Nesse sentido, assim como seus antecessores, o contrato racial também tem uma
dimensão moral e uma dimensão política. Na próxima seção, quando falarmos da
dimensão epistêmica, veremos que esta constitui o subterfúgio que permite ao
contrato racial manter-se intacto mesmo quando subjacente a uma ordem jurídica
ou moral pretensamente igualitária, que é o caso da ordem constitucional brasileira
pós 1988. Antes disso, porém, precisamos abordar com maior profundidade as
dimensões política e moral.

Na dimensão política, o contrato racial, explica Mills, reserva a uma pequena parte
da humanidade a plenitude da cidadania, entendida como o mais amplo acesso a
direitos e à estima social. Tal grupo seleto é demarcado com a criação do
significante “branco”, cujo sentido mais exato é variável conforme o local e a época
histórica, sendo estabelecido por critérios, além de fenotípicos, geográficos,
socioeconômicos, linguísticos, regionais, religiosos, dentre outros. Em
contrapartida, todas as pessoas não abrangidas por essa parcela extremamente
seleta são definidas como “não brancas”, a qual também é internamente variada e
congloba setores da humanidade desde afrodescendentes, indígenas e asiáticos. O
que define os não-brancos é menos o compartilhamento de traços identitários do
que a exclusão das benesses asseguradas aos brancos (Mills, 2023).

Assim, politicamente, a estratégia fundamental do contrato racial é instituir as


categorias “branco” e “não-branco” na função de organizadores primários da vida
social. Sobre isso, complementarmente à discussão de Mills, cabem duas
observações. A primeira é que essa divisão racial da humanidade não deve ser
entendida de maneira estanque como uma simples dicotomia. Internamente, o
próprio grupo dos brancos apresenta formas diversificadas de se autonomear e
classificar, com graus hierárquicos entre si (Schucman, 2020). Tampouco se pode
falar de uma identidade una atinente ao campo das pessoas não brancas, que têm
como elemento unificador muito mais as experiências corporais partilhadas de não
branquitude (Andrade, 2023).

A segunda observação, muito importante para se pensar o contrato racial em


realidades como a brasileira, é levar em conta que “branco” e “não-branco” podem
ser estruturantes sem ser nominalmente referidas, especialmente no contexto de
um sistema jurídico. Há sociedades cuja forma de expressão do racismo envolve a
positivação das distinções raciais em caráter oficial e ostensivo, como famosamente
foi o caso dos Estados Unidos. Outras, como aquelas advindas de modelos de
colonização ibérica, entre as quais o Brasil, incorporam as hierarquias raciais ao
seu modus operandi de forma muito mais difícil de explicitar, porque nelas o
racismo se manifesta acompanhado de sua própria denegação, conforme ilustra a
sociedade brasileira e seu conhecido mito da democracia racial (Gonzalez, 2020).

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264 Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães - Heitor Moreira Lurine Guimarães

Na dimensão moral, o contrato racial desmente o igualitarismo veiculado pelos


teóricos do contrato social, isto é, desmente a pretensão de que todos os seres
humanos são considerados livres e iguais e que têm seus interesses igualmente
representados pelo contrato. No lugar disso, o contrato racial abraça a ideia de
distinções ontológicas entre pessoas, o que implica uma oposição entre quem é
considerado pessoa moral plena (os brancos) e quem é considerado apenas
parcialmente pessoa ou parcialmente apto ao exercício da liberdade (os não
brancos).

Para fundamentar essa parte da teoria, Mills (2023) se ampara sobretudo na obra
cujo esquema argumentativo foi a principal inspiração para a sua, a saber, The
Sexual Contract, de Carole Pateman. Naquele livro, Pateman sustentou que, a
despeito da maneira geral com os que contratualistas clássicos se referem ao ser
humano e seus dramas políticos, aparentemente sem fazer distinções de nenhum
tipo, uma análise atenta dos escritos de Hobbes, Locke ou Rousseau demonstra
que, na verdade, os sujeitos presentes em suas teorias são sempre caracterizados
como seres humanos autônomos e que têm nos seus interesses pessoais a sua maior
prioridade. Já que, em sociedades patriarcais, essa caracterização só se amolda
razoavelmente a sujeitos masculinos, conclui Pateman, então todas as teorias
clássicas do contrato social foram concebidas como contratos entre homens e
excluindo os pontos de vista femininos de consideração. Assim, o contrato social
se revela um contrato sexual (Pateman, 1988).

Seguindo nessa mesma direção, Mills também encontra vieses raciais notórios
implícitos nas concepções clássicas do estado de natureza. Conforme dito
anteriormente, no contratualismo clássico paira uma incerteza sobre até que ponto
o estado de natureza é considerado uma realidade histórica. Contudo, Mills (2023)
destaca que, quando olhamos de perto o que cada contratualista disse acerca do
estado de natureza, percebe-se que eles o fazem de tal maneira que os exemplos
de manifestação real desse estado, quando há, são sempre de povos e grupos não
europeus ou não ocidentais, a quem se atribui os signos da barbaridade e da
incivilidade. Estes são apontados como representantes por excelência do estado de
natureza, ao passo que para os povos europeus o mesmo estado é considerado
apenas uma possibilidade.

Da mesma maneira que Pateman concluiu que o contrato social clássico é firmado
entre homens, Mills acrescenta a essa conclusão o importante detalhe de que se
trata de homens brancos. Aqui, o procedimento por trás do argumento dos autores
é tão relevante quanto o conteúdo. O que ambos fazem consiste, primeiramente,
em se voltar para o modo como as teorias clássicas concebem os sujeitos das
relações políticas e examinar pacientemente as características que lhes são

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O contrato racial como constituição não escrita do Brasil: ignorância branca e interpretação do 265
direito à luz da filosofia política de Charles Mills

atribuídas; isso para, em um momento posterior, demonstrar como essas mesmas


características se amoldam perfeitamente a certa parcela privilegiada das
sociedades reais, muito bem definida em termos de raça, gênero e classe social.
Trata-se de uma estratégia crítica de desnudar o pretenso universal e desvelar o
particular hegemônico que ali estava camuflado.

1.2 O contrato racial como esquema explicativo da realidade

O último aspecto a destacar da teoria de Mills é que, ao contrário do


contratualismo original, o contrato racial, muito mais que uma estratégia de
justificação, tem a clara função de descrever a realidade existente. A esse respeito,
a posição do autor jamaicano é diametralmente oposta à de Rawls, que renuncia
em definitivo a qualquer pretensão descritiva da Posição Original ou da escolha
dos princípios de justiça. Dessa maneira, o contrato racial se distingue por ser um
contrato real (Mills, 2023).

Contudo, ao contrário do que o nome pode sugerir, o contrato racial inscrito nas
sociedades reais não se constitui de uma única decisão ou de um único ato
realizado de uma única vez na história. Em vez disso, ele é composto de uma
infinidade de atos praticados ao longo da história e que se somam. Tais atos têm
seu termo inicial estabelecido, podemos dizer, com o início do empreendimento
colonial da Europa sobre os continentes americano, africano e asiático, desde que
se organizou o tráfico transatlântico de pessoas e mercadorias. Mas as bases do
contrato racial são plurais o bastante para abarcar, dentre outras coisas,

(...) bulas papais e outros pronunciamentos teológicos, discussões


europeias sobre colonialismo, “descoberta” e direito internacional; pactos,
tratados e decisões legais; debates acadêmicos e populares sobre a
humanidade dos não brancos; estabelecimento de estruturas jurídicas de
tratamento diferenciado; e rotinização de práticas ilegais ou quase legais
informais efetivamente sancionadas pela cumplicidade do silêncio e da
falha governamental em intervir e punir os perpetradores (Mills, 2023, p.
55).

Disso se infere que o contrato racial é capaz de se nutrir de virtualmente qualquer


sorte de elementos heterogêneos – alguns mais próximos de dispositivos jurídicos,
outros menos – que não compartilham entre si senão seu vínculo ao propósito
racista de manter a subalternidade dos não brancos. Especial destaque deve ser
dado ao fato de que os termos dessa dominação não permanecem estáticos. No
espírito da metáfora que dá nome ao objeto, diríamos que o contrato racial se trata
de um contrato de trato sucessivo, isto é, um contrato cujos termos se encontram
em constante processo de revisão e reformulação.

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Por ter natureza difusa e multifacetada, o contrato racial é dotado da versatilidade


necessária para se adequar a mudanças nas condições sociais e políticas tanto a
nível global quanto a nível regional. Foi isso que permitiu, segundo Mills, transitar
de uma ordem racista legalmente chancelada, à época do colonialismo, para uma
ordem menos escancarada, mas nem por isso menos injusta ou menos cruel, bem
ilustrada pelas realidades dos países ex-colônias com histórico de escravização
negra e indígena (Mills, 2023).

Esses elementos – a dimensão política e moral, a natureza teórico-explicativa –


resumem, com suficiência, os contornos de teoria de Mills. Baseando-nos neles, já
fica bastante claro o paralelo existente entre o contrato racial no âmbito da vida
social e a constituição no âmbito do sistema jurídico, pois ambos têm o papel de
estatuir as diretrizes básicas a reger todas as outras ramificações da sociedade e do
direito. Isto posto, o exame da dimensão epistemológica do contrato nos dará
embasamento para entender o elo orgânico entre as duas coisas.

2 Epistemologia invertida e ignorância branca

As considerações feitas até aqui serviram para explicitar que o contrato racial
institui modos de dominação pautados na raça, os quais procedem pela
categorização de pessoas como brancas ou não brancas, seguida da desqualificação
política e moral dessas últimas. Porém, se quisermos sustentar a hipótese de que
esse contrato é a constituição sub-reptícia que precede à Constituição garantista
formalmente em vigor, temos de explicar como tal estrutura essencialmente injusta
e hierárquica pode se escamotear sob um sistema normativo tão comprometido,
na letra, com igualdade e dignidade humana. Para isso, precisamos nos voltar ao
aspecto mais difícil de identificar e denunciar no contrato racial: a epistemologia
invertida.

2.1 O contrato racial em sentido epistemológico

A certa altura de sua reflexão, Mills (2023) percebe que o contrato racial, para
colocar em funcionamento seus mecanismos político-morais de dominação,
precisa sustentar uma versão paralela da realidade dentro da qual as hierarquias
raciais ora pareçam coerentes justificadas, ora sejam imperceptíveis para quem
goza de posições racialmente privilegiadas. Trata-se de outra funcionalidade do
racismo, qual seja, a de condicionar sujeitos para ver o mundo de forma
propositalmente distorcida, abrindo espaço para que as dimensões moral e política
possam produzir os efeitos abordados anteriormente. Mills é preciso asseverar que

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O contrato racial como constituição não escrita do Brasil: ignorância branca e interpretação do 267
direito à luz da filosofia política de Charles Mills

O contrato racial prescreve para seus signatários uma epistemologia invertida,


uma epistemologia da ignorância, um padrão particular de disfunções cognitivas
localizadas e globais (que são psicológica e socialmente funcionais), produzindo o
resultado irônico de que os brancos, em geral, não serão capazes de compreender o
mundo que eles próprios criaram (Mills, 2023, p. 52, grifos do autor).

Essa ideia viria a ser trabalhada novamente e com mais fôlego por Mills quase
vinte anos após O Contrato Racial em um artigo chamado Ignorância Branca. Com
esse texto, Mills (2018) reivindica seu lugar no campo do que hoje se conhece por
epistemologia social ou epistemologias situadas, alinhando-se às perspectivas de
autoras como Collins (2016), Harding (1993) e Haraway (1988). A premissa básica
desse tipo de abordagem é que processos cognitivos jamais se dão simplesmente
dentro da consciência isolada de um sujeito individualizado, mas sim no contexto
de relações sociais historicamente situadas. Por conseguinte, os atos de conhecer
são inevitavelmente contaminados pelos vieses de dominação que permeiam tais
relações. Disso se segue que há certas formas de desconhecimento engendradas
por posições sociais de privilégio, seja de raça ou de gênero, mas que são reputadas
como as formas oficiais de produção de verdade sobre o mundo.

Nesse ponto, devemos atentar para o fato de que a proposta de Mills (2023) não
flerta com relativismos de qualquer espécie. Se ele fala de ignorância branca, é
porque supõe, por oposição, a existência de um saber verdadeiro e objetivo a
respeito do mundo. Trata-se, isso sim, de concepções revigoradas de objetividade
e verdade, cujo diferencial, que lhes confere potencial crítico, reside justamente em
não se furtarem a reconhecer seu enraizamento em experiências corporificadas
concretas, quais sejam, a dos corpos racializados como não brancos.

A ignorância branca seria, então, “um não-conhecimento, que não é contingente,


mas no qual a raça – racismo branco e/ou dominação racial e suas ramificações –
desempenha um papel causal crucial” (Mills, 2018, p. 420). Por essa definição, não
se deve entender simplesmente a circulação, entre pessoas brancas, de ideias
equivocadas ou discriminatórias sobre grupos não brancos, embora essa acepção
seja certamente contemplada pelo escopo do conceito. Mais profundamente do que
isso, Mills (2018; 2023) tem em vista o regime de produção da verdade que torna
os sujeitos incapazes de perceber a ação do racismo ali onde ele se faz operante.

É esse o pano de fundo epistemológico responsável por fazer com que situações
flagrantemente discriminatórias sejam lidas como não discriminatórias; por fazer
com que o acesso diferencial a direitos e oportunidades seja visto como alheio ao
racismo; por fazer com que textos normativos como “todas as pessoas” ou “todos
os cidadão” sejam interpretados (ainda que isso não se verbalize) como “todas as
pessoas brancas” ou “todos os cidadãos brancos”; por fazer com que normas de

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cunho reparatório ou protetivo a pessoas não brancas sejam aplicadas de modo a


não produzir a reparação ou a proteção desejada.

2.2 Memória, cognição e interpretação constitucional

Consideramos a epistemologia invertida e a ignorância branca contribuições


cruciais de Mills para pensar as relações raciais no direito porque toda
interpretação jurídica, seja pelo enquadramento de fatos em normas, seja pela
valoração dos fatos mesmos, só é possível a partir de uma cognição prévia daquilo
que se tem de interpretar. Em se tratando da crítica do direito, isso nos impõe um
preceito metodológico: antes de proceder à crítica do conteúdo do direito vigente
e suas aplicações, ou ao mesmo tempo que se faz isso, é preciso examinar qual o
filtro epistemológico vigente a partir do qual interpretações são feitas. Isso nos
ajudará a enxergar aquilo que seria imperceptível para uma teoria constitucional
baseada no que chamamos anteriormente de imagem padrão do
constitucionalismo. Quanto a esse problema, há dois elementos na reflexão de
Mills (2018) sobre a ignorância branca que se mostram bastante instrutivos para
nosso projeto de desconstrução da imagem padrão do constitucionalismo: a
memória e a concepção.

Em Mills, a memória é o componente da cognição (em sentido lato) referente


àquilo que, nos saberes e na cultura de uma sociedade, é lembrado ou se deixa de
lembrar sobre momentos pretéritos, bem como o que e quais aspectos daquilo que
se lembra são destacados nas manifestações públicas e coletivas da rememoração.
A memória, socialmente falando, é aquilo que se encontra plasmado em ruas,
monumentos e edificações, mas também no ensino da história, na produção
artística, nos livros e registros oficiais, dentre outros elementos que circunscrevem
a consciência individual na sua relação com o meio social. Em termos epistêmicos,
portanto, memória é o chão que os sujeitos pisam ao se movimentarem no presente
(Mills, 2018).

Já a concepção, no sentido que Mills (2018) lhe dá, diz respeito ao modo como
determinadas categorias, cujo sentido é vago quando as consideramos em abstrato,
são preenchidas de conotações racialmente carregadas e emolduram a percepção
que se tem de um fato, um acontecimento ou basicamente qualquer outro objeto.
Mills (2018, p. 426) cita, a título de ilustração, os conceitos de “selvagem”,
“civilização”, “homem”, “liberdade”, mostrando que, a cada caso, eles são
tendenciosamente utilizados para se referir a brancos e não brancos de forma
positiva sobre aqueles e pejorativa sobre estes, mesmo sem dizê-lo diretamente.
Mas os exemplos nesse sentido são abundantes, mais ainda no campo do direito.

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O contrato racial como constituição não escrita do Brasil: ignorância branca e interpretação do 269
direito à luz da filosofia política de Charles Mills

Memória e concepção, enfatiza Mills, comparecem sempre conjuntamente. O teor


racista da concepção depende do encobrimento da presença do racismo no
passado histórico pelo controle da memória. Em contrapartida, os atos de lembrar
ou não lembrar são, em parte, decorrentes da maneira peculiar com a qual cada
cultura mobiliza eventos do seu passado para dar a eles uma conotação estratégica
que reforça estereótipos raciais (Mills, 2018). O que uma sociedade escolhe manter
como memória vívida e o que ela escolhe relegar ao esquecimento são, antes de
tudo, decisões epistêmicas com forte viés político, que passarão a moldar a
consciência daqueles que vivem no presente. Na análise que defendemos neste
trabalho, a conjugação desses dois elementos da epistemologia invertida do
contrato racial corrobora nossa tese de uma constituição por trás da constituição.
Antes de passar aos casos particularmente brasileiros da sessão seguinte, vale
ilustrar como essa epistemologia racialmente estruturada participa da reescrita do
contrato racial. Isso pode ser bem observado em aspectos da histórica social e
constitucional dos Estados Unidos e do Brasil.

Nos Estados Unidos, como se sabe, vigeu um regime segregacionista racial


legalmente sancionado, que assinalava os espaços, serviços e oportunidades
autorizados para a população negra, sempre inferiores em termos de qualidade e
acesso quando comparados aos da população branca. Quando a segregação foi
posta abaixo por força do Movimento de Direitos Civis, estabelecendo a igualdade
de brancos e negros perante a lei, uma nova hermenêutica jurídica, sobretudo
constitucional, surgiu para se opor a outras transformações jurídicas progressistas.
Hermenêutica que tinha por fundamento um entendimento estritamente legalista
da 14ª Emenda da Constituição – conhecida como equal protection clause – de acordo
com o qual, se critérios raciais não podem ser utilizados para prejudicar, tampouco
se pode usá-los para beneficiar grupos de qualquer maneira. Se o problema era o
tratamento diferenciado previsto em lei, então a reformulação igualitária da lei era
o remédio que lhe bastava. Essa linha interpretativa começou a ser abraçada pela
Suprema Corte dos EUA por volta dos anos 1980 e foi uma das principais teses
jurídicas usadas para resistir à constitucionalidade de ações afirmativas
(Hutchinson, 2004). Novamente, é Mills quem nos ajuda a entender:

Se anteriormente brancos eram demarcados pela cor como sendo


biologicamente e/ou culturalmente desiguais e superiores, agora através
de um ‘daltonismo’ estratégico eles são assimilados como supostamente
iguais em status e situação aos não-brancos em termos que negam a
necessidade de medidas para reparar as desigualdades do passado. Assim,
a normatividade branca se manifesta em uma recusa branca de reconhecer
a longa história de discriminação estrutural que deixou brancos com os
recursos diferenciais que eles possuem hoje, e todas as suas vantagens que
consequentes na negociação de estruturas de oportunidades. Se

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originalmente a branquitude era raça, agora é ausência de raça, um status


igual e uma história comum que todos compartilharam, com o privilégio
branco sendo conceitualmente apagado (Mill, 2018, p. 428).

Há aqui uma inflexão no campo da memória, de sorte que os privilégios


construídos sob o segregacionismo passado são agora “esquecidos”, tratados como
inexistentes ou como não carentes de reparação. Algo semelhante se passa com a
concepção no que se refere ao conceito jurídico de igualdade, que agora passa a ser
interpretado apenas em sentido formal, vetando exatamente a dimensão material
da igualdade, necessária para a continuidade das conquistas progressistas
relativas à justiça racial. Assim, quando o sistema jurídico sofre uma mudança, da
discriminação legalizada para a igualdade jurídica, o mesmo ocorre com o regime
epistêmico que o acompanha, ajustando-se de modo a desautorizar, na nova
conjuntura do sistema, as intepretações do direito capazes de levar a
transformações estruturais na desigualdade racial. A epistemologia invertida
acompanha o restante do contrato racial em suas transmutações. O contrato racial
é a constituição por detrás da constituição.

Diferente é o caso do Brasil, onde vigora um racismo que celebra a mestiçagem sob
a narrativa de que aqui se construiu um intercâmbio não violento e não opressor
entre portugueses, africanos e indígenas, narrativa que passou para a história com
o nome de “mito da democracia racial” (Amador de Deus, 2019). Esse racismo
envergonhado de si mesmo, que não ousa dizer o seu nome, nega a própria
possibilidade de falar em branco ou não branco acerca da população brasileira. Em
vez disso, propala-se a ideia de que a experiência brasileira é um exemplo de
sucesso na superação das hierarquias raciais e da assimilação perfeita dos vários
grupos étnicos sob uma sociedade plural e inclusiva, visão que só passou a ser
problematizada na década de 1950 do século passado (Amador de Deus, 2019).

A marca registrada do racismo nacional é que ele evita inclusive a referência


nominal aos termos “branco” e “negro”, que não comparecem tão explicitamente
nas leis como parâmetro de diferenciação entre pessoas, ou pelo menos não do
mesmo jeito que foi no caso dos Estados Unidos. Inclusive, a ideologia da
democracia racial não raro se vale de comparações com o racismo estadunidense
a fim de corroborar a visão distorcida de que os dilemas raciais brasileiros são bem
menos agudos que os daquela realidade. A grande contradição do racismo à
brasileira é que ele se faz aparecer por meio da própria tentativa de negar a si
mesmo, aspecto brilhantemente apreendido por Lélia Gonzalez com o conceito de
“racismo por denegação” (Gonzalez, 2020, p. 127).

Essa variante bastante peculiar do racismo mobiliza a instância cognitiva da


memória ao promover o esquecimento de todo um histórico de políticas de estado

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O contrato racial como constituição não escrita do Brasil: ignorância branca e interpretação do 271
direito à luz da filosofia política de Charles Mills

higienistas e supremacistas, a começar pelo projeto migratório de


embranquecimento da população no século XIX, passando pela privação da
população negra do acesso a terras e às instituições escolares, sem falar da
segregação, policiamento ostensivo e criminalização de práticas e manifestações
culturais eminentemente negras, como a capoeira e o samba. A narrativa da
convivência harmônica entre raças não consegue aparentar coerência senão ao
preço da denegação de todos esses processos históricos.

Tal qual nos Estados Unidos, a distorção na esfera da memória está associada a
distorções na esfera da cognição. Ocorre que, ao contrário daquele país, a presença
do racismo nos processos de concepção, ou seja, de definição do sentido e do
conteúdo de conceitos, se dá ainda mais ardilosamente. Pois se lá o discurso oficial
é que o fim da segregação limpou o racismo das instituições, aqui se trata de
afirmar que ele sequer existiu nos mesmos moldes, de sorte que nem faria sentido,
para o nosso contexto, a discussão e o enfrentamento sistemático do tema (Amador
de Deus, 2019).

Daí porque, na cultura brasileira, a ignorância branca, enquanto incapacidade de


perceber as manifestações do racismo, se confunde com o desconhecimento dos
padrões de diferenciação entre brancos e não brancos. Cria-se, assim, o terreno
favorável para que o contrato racial possa prosperar e se renovar sem que se possa
sequer falar dele, pois já está naturalizada a concepção de que ele nem existe. Ele
governa o funcionamento das instituições, no mais das vezes, sem ser detectado.
Por isso a ideia de que o contrato racial tem, para a sociedade em geral, o mesmo
valor e a mesma importância que uma constituição tem para um sistema jurídico.
Seria mais preciso dizer que ele é a verdadeira constituição em vigor, ainda que
não declaradamente. Esse cenário exige da luta antirracista o ônus extra de
produzir inclusive uma gramática que permita nomear o sistema de opressão
vigente. Vejamos então alguns exemplos do funcionamento dessa estrutura de
poder no direito brasileiro.

3 Manifestações do contrato racial como


subconstituição do direito brasileiro

Comecemos pelo ramo do direito mais frequentemente associado ao legado racista


de nosso passado colonial: o direito penal. Um dos maiores exemplos de norma
jurídica cuja interpretação notadamente carrega fortes vieses raciais é da
diferenciação entre porte de entorpecentes para consumo pessoal e o crime de
tráfico de drogas, regulamentados, respectivamente, nos artigos 28 e 33 da Lei nº
11.343/2006 (Lei Antidrogras). O ponto crítico se encontra nos parâmetros que

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272 Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães - Heitor Moreira Lurine Guimarães

deverão ser usados para distinguir uma coisa da outra, especificados no âmbito do
artigo 28, §2º da mesma lei: “para determinar se a droga se destinava a consumo
pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao
local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e
pessoais, bem como a conduta e aos antecedentes do agente”.

É abundante a literatura acerca do quando esse dispositivo deixa as portas abertas


para interpretações arbitrárias com consequências racistas. Não prevendo
nenhuma quantidade objetiva de entorpecente, expressões vagas como “condições
em que se desenvolveu a ação” e “circunstâncias sociais e pessoais” são facilmente
preenchidas pelos estereótipos que já povoam o espírito do intérprete antes de se
deparar com o caso concreto. A ignorância branca, a esse respeito, está em supor
que a denotação daquelas expressões somente é determinada quando o julgador
examina os fatos, ou em acreditar que a distinção entre tráfico e porte para
consumo pessoal pode ser resolvida em abstrato, sem se endereçar aos critérios
raciais com que a praxe interpretativa diferencia as duas coisas. A implicação mais
direta é a criminalização da juventude negra pobre (Batista, 2003).

Assim, “condições em que se desenvolveu ação” é de praxe compreendido como


encontrar a substância em regiões empobrecidas de periferia urbana.
“Circunstâncias sociais e pessoais” não raro passam a significar jovens negros
periféricos, assim identificados não só pela cor da pele, como também pela
vestimenta, modo de falar e baixa escolaridade, fatores que circunscrevem o perfil
preferencial de vítimas de abordagem policial e encarceramento no âmbito da
política de drogas do Brasil. É o que relevam recentes pesquisas do IPEA, que
analisam processos relacionados à Lei Antidrogas cuja decisão terminativa se deu
no primeiro semestre de 2019: os réus identificados com a terminologia “negra”,
“preta” ou congêneres representam 46,2% dos casos na justiça comum estadual
(IPEA, 2023). Isso sem contar com a subnotificação relativa ao perfil racial de
acusados e investigados em casos envolvendo drogas, que costuma ser
significativa.

Previamente a qualquer situação real, a epistemologia invertida contida no


contrato racial delineia uma imagem do sujeito a quem se pode conceder a benesse
de ser mero portador para consumo pessoal, de um lado, e o sujeito a quem se
deve aplicar a pecha de traficante e os rigores da lei, do outro. É dessa maneira que
o contrato racial, operando no nível cognitivo, logra burlar a exigência de isonomia
expressa no artigo 5º da Constituição Federal. Pois se a norma estipula que todos
são iguais perante a lei, o próprio sentido de “todos” é, desde logo, determinado
como sendo “todas as pessoas brancas”, ainda que isso permaneça inconsciente
para quem interpreta o direito. Por trás da norma que não parece comportar

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O contrato racial como constituição não escrita do Brasil: ignorância branca e interpretação do 273
direito à luz da filosofia política de Charles Mills

determinações discriminatórias, é o contrato racial que está a guiar a compreensão


do operador do direito.

Contudo, esse exemplo ainda estaria vulnerável à crítica de que o problema


decorre da clara indeterminação do texto legal e da margem que ele deixa para ser
entendido segundo os preconceitos e o arbítrio do intérprete. Desde que fossem
estabelecidos parâmetros mais objetivos e rígidos, de acordo com essa objeção, os
efeitos discriminatórios da aplicação daquela norma poderiam ser neutralizados
ou, no mínimo, mitigados. Porém, em que pese a reformulação redacional seja de
fato necessária e urgente em relação àquela norma em particular, ainda não fica
provado que textos mais precisos bastariam para restringir as consequências
opressoras da epistemologia invertida. Para que fique mais claro, convém
examinar outros exemplos em que o texto normativo é bem menos vago e ainda
assim as interpretações de praxe só se deixam explicar, como queremos mostrar,
em função do pano de fundo epistemológico instituído pelo contrato racial. Trata-
se do reconhecimento de situações de trabalho escravizado 3.

A escravidão contemporânea, enquanto categoria jurídica, é bastante instrutiva


sobre o que temos tentado demonstrar neste artigo porque, nesse âmbito, a
gramática própria ao contrato racial se encontra impregnada à noção mesma de
trabalho. Não é supérfluo lembrar que o Brasil tem mais passado sob a escravatura
do que sem ela. Quando pensamos a partir da teoria de Mills, esse fato histórico
nos leva a considerar que a vivência de tão longo lapso temporal com a
escravização sendo o modo principal de organização do trabalho faz dela, até hoje,
a fonte de nossas intuições mais arraigadas quando se pensa em relações laborais.
De fato, a cultura escravista constitui o horizonte das relações de trabalho no Brasil,
não só por causa da persistência da escravização sob outras feições, mas também
porque ela condiciona nossos juízos valorativos sobre quais práticas são
admissíveis no âmbito do trabalho e quais não são, sobre quais formas de
sofrimento e/ou espoliação são aceitáveis e quais não são.

Vejamos como isso se mostra no contraste entre a legislação e as decisões judiciais


relativas ao assunto. A definição de trabalho escravizada é dada pelo artigo 149 do
Código Penal, com a seguinte redação dada pela Lei nº 10.803/2003:

3 A despeito da expressão mais comum ser “trabalho análogo ao de escravo” ou “trabalho em


condições análogas à escravidão”, consideramos que se trata, no mais das vezes, de um modo
eufemista de se referir à problemática. Preferimos o termo “trabalho escravizado” por achar que
ele representa mais fidedignamente o objeto referido, uma vez que enfatiza a presença de um
agente por trás da condição de escravização e é mais clara em reconhecer a continuidade entre as
práticas escravistas antigas e contemporâneas.

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274 Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães - Heitor Moreira Lurine Guimarães

Art. 149 Reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer


submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer
sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por
qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o
empregador ou preposto.
(...)
§1º Nas mesmas cenas incide quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador,
com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de
documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no
local de trabalho.

A despeito dessa norma poder ser considerada bastante clara quanto ao seu
sentido, vale mencionar que também há várias Instruções Normativas editadas
pelo Poder Executivo Federal, ou a Portaria do Ministério do Trabalho nº 1.293, de
28 de dezembro de 2017, que especificam o significado de cada terminologia ali
empregada.

Mesmo assim, a precisão do texto legal não impede frequentes distorções feitas
para afastar a caracterização de trabalho escravizado. Por exemplo, tomemos a
análise feita por Guimarães e Bouth (2023) sobre decisão proferida pelo Tribunal
Regional do Trabalho da 8ª Região (TRT8) nos autos do processo 0001300-
37.2016.5.08.0115 – julgado em segundo grau em 2018. Como se sabe, o TRT8 é o
órgão da Justiça do Trabalho com jurisdição sobre os Estados do Pará e Amapá,
que integram a oitava região. Trata-se de um tribunal significativo porque situado
na região amazônica, a qual se destaca pela numerosidade dos casos de resgate de
trabalhadores em situação de escravidão contemporânea (Soares, 2022).

O processo mencionado acima, discutia, dentre outras questões o reconhecimento


do caráter degradante das condições de trabalho de um trabalhador que prestava
serviço no interior do Pará, em fazenda localizada dentro da zona de abrangência
da Vara do Trabalho de Santa Izabel/PA, isto é, dentro da Amazônia brasileira.
Guimarães e Bouth (2023) destacam que a decisão proferida em segundo grau pelo
TRT8 se vale de parâmetros de desigualdade regional para justificar o não
reconhecimento de condição de escravidão. Em um trecho, o acórdão diz que
“deve-se ressaltar as dificuldades próprias do trabalho realizado em âmbito rural,
dificuldades essas, entretanto, que não me parecem hábeis a violar integralmente
a dignidade do trabalhador, até porque próprias do ambiente hostil em que se
realizam as atividades de campo” (BRASIL, 2018).

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Outro exemplo ainda na jurisprudência do TRT8 e que vai no mesmo sentido,


desta vez um pouco mais recente, é o do processo 0000044-74.2021.5.08.01184,
julgado em grau de recurso em 2022. Nesse caso, a situação fática dizia respeito a
trabalhadores que prestavam serviços em fazenda localizada entre os Municípios
de Cumaru do Norte/PA e São Félix do Xingu/PA, novamente interior do Pará e
no contexto amazônico. Trabalham com a retirada de madeiras, construção de
pontes, cercas e outras atividades necessárias nos limites da fazenda,
permanecendo a maior parte do tempo alojados sob barracões improvisados, sem
proteção contra intempéries ou animais peçonhentos, além de terem seus
documentos retidos, circunstâncias essas registradas em atividade de fiscalização
pelos órgãos competentes. Essa situação ensejou a propositura de ação civil
pública pelo Ministério Público do Trabalho, julgada parcialmente procedente em
primeiro grau, com reconhecimento de vínculo empregatício e do trabalho
escravizado por condições degradantes.

Todavia, sem entrar aqui no mérito das considerações que teceu sobre o material
probatório, é de se notar que o órgão julgador de segundo grau, ao examinar o
recurso interposto pelos ex-empregadores vencidos, valeu-se de uma definição de
trabalho escravizado bem mais exigente que aquela da própria lei citada
anteriormente. Diz o acórdão que:

O Trabalho escravo pode ser definido pela soma do trabalho degradante


com a privação da liberdade. Nestes casos, o trabalhador fica preso a uma
dívida, é levado a um local isolado geograficamente que o impede de
retornar para casa, ou não pode sair do local da prestação dos serviços,
impedido por seguranças armados. Não sendo esta a hipótese dos autos,
não há elemento capaz de gerar a reparação por dano moral coletivo
(Brasil, 2022).

O que essas decisões têm em comum é que elas adotam pontos de vista que se
recusam a reconhecer a escravização em situações fáticas. No fundo, ambas são
representativas da tendência de só identificar a escravização com as circunstâncias
que mais se assemelham aos estereótipos das antigas modalidades escravistas
legalizadas, isto é, a violência física, a vigilância ostensiva, a privação de convívio
social com pessoas externas ao ambiente de trabalho, a ausência de remuneração
etc.

4 Agradecemos à Clínica de Combate ao Trabalho Escravo Frei Henri des Roziers da Universidade
Federal do Pará (CCTE-UFPA) e aos seus membros pela oportunidade de tomar conhecimento
dessa decisão e debatê-la, quando da atuação da instituição como amicus curiae no referido
processo, perante o Tribunal Superior do Trabalho.

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276 Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães - Heitor Moreira Lurine Guimarães

Isso ajuda explicar, por exemplo, o porquê da insistência do segundo acórdão em


exigir a restrição de liberdade para caracterizar escravização. Quem não se
encontra restringido em sua liberdade de locomoção, nessa linha de raciocínio, não
é escravizado. Concepção bastante simplista até mesmo para o antigo escravismo
legalizado, principalmente quando se considera a complexidade das atividades
laborais no interior daquele modo de produção, que de modo algum se resumiam
ao trabalho compulsório produtivo na lavoura.

Já o outro acórdão, o primeiro, adota a estratégia de contornar a confirmação de


escravização contemporânea pela naturalização de características de certa
atividade laboral especificamente regionais. Ao dizer que são circunstâncias
“próprias ao ambiente hostil em que se realizam as atividades no campo”, o órgão
julgador as inclui no espectro daquilo que, apesar de sofrível, pode ser considerado
tolerável. Parece haver aí certa relutância em reconhecer algo como sendo trabalho
escravizado por considerar que tal seria excessivamente severo para o caso
concreto. Tendência seguida por outras decisões que evitam as terminologias
“condições degradantes” ou “trabalho análogo ao de escravo” em nome de
eufemismos como “desconforto” ou “condições desconfortáveis”, a exemplo dos
acórdãos proferidos nos processos de número 0000306-52.2020.5.08.0120, 0000706-
53.2016.5.08.0105, 0001324-65.2016.5.08.0105, todos do TRT8 e com origem em
municípios do interior do Estado do Pará, onde a escravidão contemporânea
famosamente se prolifera no contexto de cadeias produtivas como a do cacau, do
açaí, da mandioca, do dendê, dentre outros produtos. Frequentemente, como
destaca Serra Neto (2016) em relação ao dendê, essas modalidades de escravização
no contexto amazônico buscam se revestir de legitimidade apresentando-se como
formas supostamente livres e lícitas de contratação, mas que escondem relações de
sujeição herdeiras dos antigos esquemas de aviamento.

Em contraposição a essa realidade, todos os precedentes mencionados acima


expressam concepções de trabalho escravizado claramente deslocadas de seu
contexto histórico e social. E isso não se dá ao acaso. Elas são formuladas de modo
a ocultar o nexo de continuidade entre a escravização antiga e a atual, fazendo crer
que a escravização só poderia existir preenchendo todos os traços que tinha sob os
velhos moldes. O primeiro acórdão abordado ilustra bem o fenômeno da
ignorância branca, discutido na seção anterior, na medida em que deixa de lado o
quanto as condições de trabalho rural na Amazônia herdam da subordinação e da
dependência tão marcantes dos regimes de aviamento – que não despareceram,
diga-se de passagem – os quais estiveram na base das atividades econômicas da
região durante boa parte do século XX (Loureiro, 2019).

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O contrato racial como constituição não escrita do Brasil: ignorância branca e interpretação do 277
direito à luz da filosofia política de Charles Mills

Tendo em conta a abundância e a precisão das normas relativas ao trabalho


escravizado, não há como explicar a ocorrência de interpretações jurídicas dessa
natureza senão quando lançamos mão dos conceitos de epistemologia invertida e
ignorância branca, peças-chave do contrato racial. Nessa seara, os vieses
epistemológicos do contrato racial produzem efeitos sobretudo pelo alargamento
de nossas concepções do que conta como admissível dentro de um contexto
laboral. Por causa da desconexão com a história das relações de trabalho no Brasil,
os conceitos de jornada exaustiva, condições degradantes, dentre outros, são
entendidos, em regra, de tal forma que eles não abranjam práticas costumeiras em
vínculos trabalhistas reais. Com a zona de tolerância ampliada, reserva-se um
espaço para a permanência do trabalho escravizado. Para a constituição não escrita
que deriva do contrato racial, a escravização contemporânea é cláusula pétrea.

Considerações finais

Este trabalho teve como ponto de partida o que definimos como a imagem padrão
do constitucionalismo: a tentativa de pensar a ordem constitucional na forma de
um conjunto de preceitos estatuídos abstratamente por uma decisão política
determinada. O problema com essa ideia, corrente em nossa teoria constitucional,
estava em não atentar para o quão dependente do contexto histórico e social é todo
projeto de sociedade. E para sistemas constitucionais que se querem progressistas,
como é o brasileiro, isso impunha a necessidade de explicar a convivência entre a
letra da norma constitucional e uma prática jurídica que lhe é tão contrária e
violadora de direitos.

Pela argumentação apresentada, vimos que a teoria do contrato racial de Charles


Mills nos ajuda a iluminar o elemento faltante na imagem padrão: a estrutura
epistemológica que acompanha e subjaz a toda ordem política. O que o contrato
racial nos mostra é que por trás de todo e qualquer sistema de regras oficiais, nas
sociedades de passado escravista, há um padrão de compreensão distorcida do
mundo, uma epistemologia invertida, a qual se mantém intacta nas transições
entre diferentes configurações (mais autoritárias ou mais democráticas) do
ordenamento jurídico. E ela se mantém intacta precisamente porque não é
tematizada na maioria das discussões sobre o direito em geral e sobre o
constitucionalismo em particular.

Operante sem ser nomeada, a epistemologia invertida permanece produzindo


seus efeitos nefastos por meio do direito (dentre outros canais) ao reproduzir os
déficits cognitivos da ignorância branca, traindo, assim, o progressismo e o caráter
democrático que a imagem padrão celebra na Constituição de 1988. Uma

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278 Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães - Heitor Moreira Lurine Guimarães

subconstituição não escrita e silente, que funciona por detrás da Constituição


oficial.

Se sustentamos esse argumento, não é por acreditarmos que é o caso de desistir da


Constituição em face das tentativas recentes de desarticulá-la. É, em vez disso, por
acreditar que é preciso radicalizar o estudo do constitucionalismo – que estrutura
o restante do estudo do direito – a fim de reaver aquilo que a epistemologia
invertida e a ignorância branca tentam conservar oculto. Trata-se, por exemplo, de
rememorar a influência da Revolução do Haiti sobre o constitucionalismo
brasileiro e latino-americano em geral desde o século XIX, ou do quanto a
experiência de formação de quilombos, tão presente na história social do Brasil,
tem a ensinar sobre direito constitucional, assuntos sobre os quais as produções de
Queiroz (2017) e de Gomes (2020) são exemplares.

Em suma, discutir a interpretação do direito junto à teoria do contrato racial, à


epistemologia invertida e à ignorância branca é chamar atenção para o quanto, nas
controvérsias jurídicas, está em jogo uma fronteira do visível. Fronteira essa cujo
papel é delimitar que questões podem ser legitimamente levantadas e em que
termos. Disputar essa fronteira é disputar quais debates podem ser pautados por
meio do direito e a quais conclusões se pode chegar. Esse é o primeiro passo para
que usos verdadeiramente emancipatórios do direito sejam possíveis.

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Sobre a autora e o autor


Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães
Professora Adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal
Pará, Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direito da
mesma instituição. Doutora em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Pará. É membro da Associação Brasileira de
Pesquisadores/as Negros/a. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Novas
Formas de Trabalho, Velhas Práticas Escravagistas do CNPq.
Pesquisadora da Clínica de Combate ao Trabalho Escravo da
Universidade Federal do Pará. Possui experiência em Direito e Ciências
Sociais e atua principalmente nos seguintes temas: violências de
gênero, direito e gênero, discriminação racial, trabalho escravo.

Contribuição de coautoria: concepção das ideias desenvolvidas,


supervisão, redação e revisão do texto.

Heitor Moreira Lurine Guimarães


Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Pará. Vencedor do
prêmio Horácio Schneider - Destaque de Iniciação Científica da UFPA
em 2021 na área de Ciências Humanas. Tem interesse por Filosofia do
Direito, Filosofia Política, Teoria Crítica e Teoria Racial Crítica.
Experiência com traduções de textos de Teoria Racial Crítica de inglês
para português. Experiência com organização de eventos. Atua como
Educador Popular na Rede Emancipa de Cursinhos Populares, na
condição de professor voluntário de Filosofia, unidade Belém (trabalho
voluntário).

Contribuição de coautoria: concepção das ideias desenvolvidas,


supervisão, redação e revisão do texto.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.49622

dossiê

A práxis negra contra a captura jurídica:


a inserção da fabulação crítica no Direito
La praxis negra frente a la captura legal: la inserción
de la fabulación crítica en el Derecho

Black praxis against legal capture: the insertion of


critical fabulation in Law

Danilo dos Santos Rabelo1


1
Universidade de Brasília, Programa de Pós-Graduação em Direito, Brasília,
Distrito Federal, Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-6973-0576.

Submetido em 05/07/2023
Aceito em 27/11/2023

Como citar este trabalho


RABELO, Danilo dos Santos. A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da
fabulação crítica no Direito. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais,
Brasília, v. 10, n. 1, p. 283-323, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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284 Danilo dos Santos Rabelo

A práxis negra contra a captura jurídica:


a inserção da fabulação crítica no Direito

Resumo
Essa investigação buscou retratar a práxis negra dos escravizados contra o sistema jurídico
de controle e de repressão, durante a escravidão, através do método da fabulação crítica.
Do tensionamento sobre os retalhos documentais, as notícias, os ofícios, os autos, os mapas
presentes nos arquivos oficiais, insere-se a fabulação crítica como um método de revisão
histórica e de vocalização contra as tentativas de despersonificação das pessoas negras na
história. Para tanto, a partir dos anúncios de “fugas de escravizados”, entre 1838 e 1888,
nos jornais de Sergipe, hospedados na Hemeroteca Digital, serão fabuladas quatro histórias
da resistência negra, suas variadas e sofisticadas estratégias de sobrevivência contra o
arcabouço jurídico de captura. Conclui-se sobre a potencialidade da fabulação crítica no
resgate das dinâmicas resistências dos escravizados, bem como sobre críticas e
reconstruções no campo da historiografia jurídica.
Palavras-chave
Escravidão. Práxis negra. Fabulação crítica. História do Direito. Captura Jurídica.

Resumen
Esta investigación buscó retratar la praxis negra de los esclavizados contra el sistema
jurídico de control y represión durante la esclavitud, utilizando el método de la fabulación
crítica. A partir del análisis de documentos fragmentados como noticias, oficios,
expedientes y mapas en los archivos oficiales, se utiliza la fabulación crítica como método
de revisión histórica y de expresión contra los intentos de despersonalizar a las personas
negras en la historia. Para ello, se fabularán cuatro historias de resistencia negra, basadas
en los anuncios de "fugas de esclavizados" entre 1838 y 1888 en los periódicos de Sergipe,
alojados en la Hemeroteca Digital. Estas historias mostrarán las diversas y sofisticadas
estrategias de supervivencia de los esclavizados frente al marco jurídico de captura. Se
concluye sobre el potencial de la fabulación crítica para rescatar las dinámicas de
resistencia de los esclavizados, así como para realizar críticas y reconstrucciones en el
campo de la historiografía jurídica.
Palabras-clave
Esclavitud. Praxis negra. Fabulación crítica. Historia del Derecho. Captura Legal.

Abstract
This investigation sought to portray the Black praxis of the enslaved against the legal
system of control and repression during slavery, through the method of critical fabulation.
From the tensioning of documentary remnants, news, official communications, records,
and maps found in official archives, critical fabulation is employed as a method of
historical revision and vocalization against attempts to de-personify Black individuals in
history. To this end, based on the announcements of "escaped slaves” between 1838 and
1888 in the newspapers of Sergipe, hosted in the Digital Hemeroteca, four stories of black
resistance will be fabulated, showcasing their varied and sophisticated survival strategies
against the legal framework of capture. It is concluded regarding the potential of critical
fabulation in rescuing the dynamics of enslaved resistance, as well as in critiquing and
reconstructing the field of legal historiography.
Keywords
Slavery. Black praxis. Critical fabulation. History of Law. Legal Capture.

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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 285

Introdução

Em 1880, de sua choupana no Brás, Luiz Gama escreve uma carta para o seu amigo
Dr. Ferreira Menezes (Gama, 2021, p. 57). Comenta que acabara de ler na “Gazeta
do Povo” a notícia de que quatro escravizados, ou quatro espártacos, mataram “o
infeliz filho do fazendeiro Valeriano José do Vale” (Gama, 2021, p. 58). Gama
questiona a seleção de fatos incluídos em uma simples e rápida nota no canto de
um jornal: quatro negros escravizados mataram o filho de um fazendeiro. Se a
mercantilização da memória pode confundir a vítima com o carrasco (Mbembe,
2002, p. 25), seria necessário tensionar aquela notícia, revisitar a história, os textos
e contextos.

Em longos parágrafos relembra o tráfico de escravizados, a tentativa de


despersonificação atuante sobre estes no Brasil, a fome, a sede, as carabinas, os
grilhões (Gama, 2021, p. 59). Luiz Gama ingressa no palco daquela notícia, abre as
cortinas, os camarins da imprensa conservadora do Império, aponta os interesses
culturais, econômicos por trás dela. Reúne os retalhos das histórias que foram
excluídas propositadamente no relato jornalesco e terce não uma narração do
impossível, mas uma crônica da violência escravista de seu tempo. Essa contra-
história arquitetada pelo habilidoso jurista Luiz Gama lhe permite ampliar as
estritas interpretações e os enquadramentos jurídicos. Por trás da máscara do
homicídio, Gama aponta as violentas agressões físicas e psicológicas das relações
escravocratas e ao final da carta enviada ao seu amigo, o Dr. Ferreira, conclui: foi
legítima defesa (Gama, 2021, p. 59).

Essa carta possibilita abrir o debate sobre uma premissa metodológica crucial em
torno da fabulação crítica e, portanto, para o objetivo dessa investigação. Os
sujeitos oprimidos pelas estruturas dominantes em uma época, aqui com foco nos
escravizados, não são meros objetos inertes, recepcionantes da violência. As fugas,
as revoltas, as insurreições, os diversos modos de reação contra o sistema
colonial/escravista, não apenas contrapõem essa mumificação historiográfica. Luiz
Gama ao narrar a reação dos quatro escravizados traz estes para o palco da
história. Nesse palco, os quatro personagens atuam em uma cena visceral de
reação ao filho do senhor de engenho.

Luiz Gama (2021, p. 60) vai além, demonstra que esse fato não é uma cena isolada,
mas a decorrência de um amplo roteiro de resistência e que as consequências desse
ato sempre o trasbordam. É construído um roteiro que traz em si um outro projeto
de futuro. Um roteiro que sai das mãos do senhor de engenho enquanto rasga a
estrutura colonial/escravista (Moura, 2022, p. 86-87). Um roteiro que contrapõe
ponto-a-ponto a narrativa dominante e nesse contra-ataque dinamiza a formação

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286 Danilo dos Santos Rabelo

social, econômica, jurídica, política brasileira ao pensar e construir um outro lugar


(Moura, 2021, p. 136).

Se contra a extrema violência colonial, em Luiz Gama (2021, p. 59), a resistência


negra empurraria a interpretação jurídica para o reconhecimento da legítima
defesa, Clóvis Moura vai complexificar a análise e demonstrar que a reação da
práxis negra contra o sistema jurídico dominante também gerava novas estratégias
de controle por parte deste. Como por exemplo, logo após à Revolta do Malês (e à
síndrome do medo de “São Domingos”), é aprovada a Lei n. 4, de 10 de junho de
1835 que determinava duras penas para os escravizados que matassem ou ferissem
o Senhor.

Essa virada interpretativa, nessa introdução apresentada enquanto um recorte por


Luiz Gama e Clóvis Moura, encontra-se nesse espaço de disputa para com as
principais obras dos “intérpretes do Brasil” produzidas no pós-abolição,
principalmente na primeira metade do século XX. Nestas, a história do povo negro
é duplamente aprisionada. Ou era um povo exótico, irracional, aprisionado entre
o místico e o sensual ou era simplesmente uma mão-de-obra da escravidão, eram
braços, pernas e músculos. É a narrativa posta em 1922 na obra “Populações
Meridionais do Brasil” de Oliveira Vianna (2005); em 1933 em “Casa-Grande e
Senzala” de Gilberto Freyre (2004); em 1936 no livro “Raízes do Brasil” de Sérgio
Buarque de Holanda (1987); em 1942 na “Formação do Brasil Contemporâneo” de
Caio Prado Júnior (1994). Os portões da história do povo negro no Brasil passam a
ser fechados por diversos cadeados.

A interpretação conjuntamente construída por esses “porta-vozes” do Brasil


produz a concepção do negro como problema nacional (Ramos, 1995, p. 221). Seria
este o responsável pelo não desenvolvimento econômico, pelo caos cultural, pela
insegurança e a vadiagem noturna, pela desorganização territorial nos morros.
Logo, ou deveria se integrar e embranquecer-se em um equilíbrio de antagônicos
(Freyre, 2004, p. 116) ou, drasticamente, mediante a “empresa imigrantista”,
deveria ser substituído por um tipo superior, “ariano” (Vianna, 1922, p. 324).

Essas interpretações ganham novas roupagens, têm as suas pontas mais polêmicas
polidas, transitam por cuidadosas escolhas temporais para apagar a escravidão, a
violência racial, as resistências do povo negro contra o sistema jurídico de
legitimação. Um livro tradicional de História do Direito no Brasil, em seus
condensados recortes sobre os períodos históricos e a Constituição vigente em
cada época, reproduz os ditames ditos universais de um direito liberal que camufla
uma série de opressões-exclusões (Pereira, 2021, p. 286; Rabelo, 2021, p. 97). Esse
passado está no presente do ensino e das teorias jurídicas no Brasil.

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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 287

Como respeitar os limites historiográficos documentais e construir uma outra


narrativa? Como recuperar a participação do povo negro como um sujeito ativo
nessa historiografia jurídica? Uma narrativa que não seja simples fabulação
caricata ou uma tentativa inviável de completar todas as lacunas, não mais
resgatáveis, do passado?

Essa tarefa nos estudos jurídicos é quase sempre interditada a partir da lembrança
da “queima dos arquivos da escravidão” (Duarte; Scotti; Carvalho-Netto, 2019, p.
25). O apagamento desses arquivos existiu. Isso é um fato. Nele, perdem-se
documentos oficiais que poderiam contribuir para reconstrução histórica sobre os
números oficiais da quantidade de ex-escravizados, suas origens. Contudo, a
participação do povo negro na formação social brasileira não estava restrita apenas
a eles, transitava pelos becos (Evaristo, 2018), pelos diários (Jesus, 2019), pelas
fugas (Nascimento, 2021, p. 129), pelos folhetins, pelos não-ditos dos arquivos
oficiais. Há um arsenal historiográfico que Ruy Barbosa jamais conseguiria
queimar. É desse comércio com a morte que surge o poder imaginário instituinte
dos arquivos (Mbembe, 2002, p. 22).

É contra essa interdição de uma única versão sobre o passado, atravessada pela
impossibilidade concreta de resgatá-lo este em sua totalidade, a partir de um
entrelace de vestígios existentes, que surge o método da fabulação crítica
(Hartman, 2022, p. 11). É sobre produzir uma contra-história e respeitar os limites
do indizível, do não mais recuperável. Não almeja a responsabilidade de
apresentar a história como “foi”, não é desse ponto de partida colonizante sobre a
propriedade da verdade que parte a fabulação crítica. É um método de
investigação, de revisitação crítica, recheado por uma ampla pesquisa documental,
sóciohistórica sobre os contextos, sobre o tempo/espaço em que se passaram os
fatos narrados. A fabulação crítica contribui para a reconstrução do que “pode ter
sido”, não do que “foi” (Hartman, 2020, p. 16). É um movimento cuidadoso e árduo
de se voltar aos arquivos, ao passado, para trazer à tona as possibilidades de um
outro presente.

Nessa investigação os anúncios de “fuga de escravizados” serão os vestígios, os


indícios que alimentarão a fabulação crítica. Nesse procedimento de fabular a
história “como pode ter sido”, de focalizar a práxis negra, algumas de suas
estratégias e alguns dos variados dilemas possíveis, abre-se o espaço para
compreender, enquanto um objetivo específico, uma entre as diversas dinâmicas
sobre a qual essa práxis negra lutava, resistia, dinamizava: a captura jurídica.

A fuga do escravizado gerava uma reação direta, imediata, um ato legitimado


juridicamente de recuperação da propriedade perdida, o ato de “capturar” que

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288 Danilo dos Santos Rabelo

aparece no conto “Pai contra Mãe”1, de Machado de Assis (1906). Embora seja esse
um sentido aqui utilizado para estampar essa batalha entre fugas e capturas, há
uma historiografia jurídica que aponta como o sistema jurídico não só legitimou e
organizou a escravidão (Jesus, 1980; Bertulio, 2019; Duarte, 1988; Queiroz, 2017),
mas que um amplo sistema de controle e repressão buscou capturar os passos, os
atos, os relacionamentos, os sonhos de liberdade das pessoas negras escravizadas
(Flauzina, 2008; Silva, 2019; Rabelo, 2021).

A captura jurídica atua nessa investigação dentro desse binômio. Entre uma
tentativa de controle imediato e uma tentativa de controle sobre as redes de
sustentação da escravidão para além daquele tempo. A resistência da práxis negra,
sofisticada e dialeticamente, atuava em ambas as frentes: “enquanto o primeiro
segmento negro, minoritário, procura reacender os valores culturais, religiosos e
históricos da África, o segundo atém-se a uma luta corpo-a-corpo, cotidiana e
inglória pela sobrevivência” (Moura, 1994, p. 244).

Nos anúncios de fugas, quase sempre localizados nas últimas folhas dos jornais da
época, têm-se a descrição dos atributos pessoais postos pelos anunciantes, os bens
levados, as ocupações, as técnicas empregadas nas fugas e as possíveis estratégias
para se manter em liberdade. A fuga exitosa abria caminhos entre as matas, entre
as florestas, mas também caminhos de liberdade no imaginário dos escravizados.
A fuga era a condição necessária para a construção do quilombo (Nascimento,
2021, p. 129), para o desgaste econômico do sistema escravista (Moura, 1992, p. 55).
Em razão disso, os anúncios de fuga não eram uma simples tentativa privada de
publicamente resgatar uma propriedade2 que fugia. Podem ser interpretados como
uma manifestação do medo branco (Azevedo, 1987, p. 129). Medo que ruísse a
materialidade dos privilégios e o contorno legal que lhe estruturava. Síndrome de
medo gerada pelo receio de que a rebeldia se tornasse incontrolável, que a sua
posição de sujeito universal fosse questionada (Moura, 1992, p. 62; Ramos, 1995, p.
192).

Como os jornais são as principais fontes documentais para a coleta dos anúncios
daquela época, a plataforma da Biblioteca Nacional Digital, precisamente a ampla
digitalização presente na Hemeroteca Digital, materializou-se como ferramenta
investigativa. Os poucos, mais crescentes, estudos sobre a resistência negra em

1 “O Espelho: esboço de uma nova Teoria da Alma Humana” é um outro conhecido conto de
Machado de Assis (2023, p. 143) por também centralizar o papel das fugas dos escravizados
enquanto um contra-ataque aos poderes e as ilusões de comando dos senhores de engenho.
2 Durante a escravidão a categoria jurídica de “res” tentava enquadrar o escravizado como uma
propriedade que podia ser envolvida em qualquer negócio jurídico (Rabelo, 2021, p. 45).

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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 289

Sergipe durante a escravidão3 e a intenção de contribuir para o resgate da práxis


negra nesse estado foram fatores cruciais para o recorte territorial dessa sucinta
investigação4.

Em relação ao recorte temporal para a seleção das fugas, as últimas cinco décadas
de escravidão em Sergipe (1838-1888) foram escolhidas. É nesse período que nasce
e cresce a impressa jornalística no estado5(Góes, 2020, p. 109), fato que tornou
possível um maior acesso dos grandes proprietários, das diversas regiões do
estado, a esse meio de comunicação e aos seus anúncios6.

Quatro fugas reais ajudarão a demonstrar a sofisticação e a diversidade nas


estratégias dos escravizados contra o sistema econômico-jurídico de exploração e
de controle. A partir da fabulação crítica serão tomadas como representativas da
dinâmica rebeldia, da resistência negra no período. Os critérios para a seleção das
fugas foram principalmente três: 1- a maior descrição do(a) escravizado(a) feita
pelos anunciantes, como características físicas, descrições morais, marcas de
violência; 2- a exposição das técnicas utilizadas na fuga e os bens levados; 3- o
detalhamento sobre possíveis estratégias dos escravizados com vistas a
permanecerem livres.

Diante do objetivo principal dessa investigação: debater a contribuição da


fabulação crítica enquanto um método de revisão crítica histórica que possibilite o
resgate da práxis negra contra o sistema de captura jurídica, o artigo será dividido
em três etapas compostas por objetivos específicos. Primeiro, será apresentada a
fabulação crítica, o seu conceito, os principais dilemas que envolvem a sua

3 Destacam-se o livro “O negro e a violência do branco”, de 1977, prefaciado por Clóvis Moura, do
professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, Ariosvaldo
Figueiredo. A tese de Sharyse Amaral: “Escravidão, Liberdade e Resistência em Sergipe:
Cotinguiba, 1860-1888”, de 2007. A tese de Igor Fônseca de Oliveira: ““Por não querer servir ao
seu senhor”: os quilombos volantes do Vale do Cotinguiba (Sergipe Del Rey, século XIX)”, de
2015.
4 As palavras-chave inseridas no campo de busca dos jornais materializados na plataforma da
Hemeretoca Digital, após a seleção do período (1838-1888) e do local (Sergipe) foram: “fugiu
escravo”; “fuga de escravo”; “procura-se escravo”; “escravo fugido”.
5 Cristian Góes (2020, p. 109) aponta que o primeiro jornal impresso de Sergipe surge em 1832, o
“Recopilador Sergipano”.
6 Esse período coincide, em parte, ao período que Clóvis Moura denomina como “escravismo
tardio” (1851-1888), período no qual a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz demarca a pressão
internacional pelo fim do tráfico de escravizados, enquanto que internamente estes continuavam
a tensionar o sistema produtivo a uma crise irrefreável (Moura, 2019, p. 83). A escassez de mão-
de-obra após à referida lei e a manutenção das fugas, tornavam o escravizado ainda mais caro,
visto que a sua ausência não podia mais ser rapidamente substituível. Outro fator é que os custos
com o aparelho repressivo de captura passavam onerar cada vez mais a produção (Moura, 1992,
p. 55).

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290 Danilo dos Santos Rabelo

construção. Segundo, o contorno legal da escravidão, algumas categorias e


institutos jurídicos que formataram, legitimaram e organizaram o sistema de
captura jurídica de repreensão e controle. Ainda nesse tópico serão tecidos alguns
apontamentos sobre a práxis negra que o contrapunha. Na terceira e última parte,
as fugas de Maria Ignacia; Quiteria com o seu esposo; Jacob e Malachias, as suas
recusas em seres definidos e capturados pelo sistema jurídico, comporão o contra-
ataque da práxis negra por uma outra forma de vida. Uma radical luta por outro
lugar.

1 A Fabulação Crítica: revisitação, tensionamento e


recriação a partir dos arquivos

“Eu não vivo no passado, mas o passado vive em


mim” (Paulinho da Viola)

Em 1978, Milton Nascimento cantou um enredo que atravessou fatalmente grande


parte dos lares negros brasileiros. A história das diversas Marias com as suas
dores, lutas e alegrias: “Maria, Maria é o som, é a cor, é o suor”. Em 1842, no Vale
do Cotinguiba, região com maior número de engenhos e escravizados em Sergipe
(Oliveira, 2015, p. 25), fugia Maria Ignacia. Era da nação Angola e tinha entre 30 e
35 anos de idade (O Correio Sergipense, 01 de junho de 1842, p. 04).

O Brasil foi o país que mais recebeu escravizados no mundo, principalmente a


partir dos portos do Rio de Janeiro e de Salvador (Gomes, 2019, p. 85; Moura, 1992,
p. 10). As estatísticas variam, porém se sabe que no mínimo quatro milhões de
escravizado(a)s foram arrancados do solo africano, traficados e inseridos no
sistema escravista brasileiro através desse comércio marítimo triangular
(Williams, 2012, p. 90). Contudo, se há algo que tentaram silenciar durante os três
séculos de escravidão, bem como nas revisitações históricas seguintes, foram as
vozes e as lutas desses escravizados (Moura, 2022, p. 20).

Como e por que dentre os milhões de escravizados aqui trazidos, no interior desse
incisivo processo de ocultamento, conhecemos Maria Ignacia e a sua fuga? Por que
a exumação dessa história e, de tantas outras, pode contribuir para abalar os
tradicionais pilares da historiografia do Direito brasileiro? Como resgatar esse
fragmento histórico, o anúncio da fuga de Maria, respeitar os limites do não-
resgatável, porém a partir de um entrelace com outras fontes, estudos, panoramas,
tensionar os limites do possível de ser dito?

Do abaixo assignado, morador no Engenho Tabua, fugio no princípio de


fevereiro do corrente anno, huma sua escrava de nome Maria Ignacia, de
nação Angola, com idade de 30 a 35 anos, com os signaes seguintes: altura

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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 291

ordinaria, corpo secco, beiços e pernas grossas, cara redonda, pes


pequenos, muito falladeira, signaes de manguá pelas costas, e outros
encobertos; Tem sido de muitos Senhores na Cotinguiba, o anunciante
negociou-a com o Capitão Francisco José da Graça Leite Sampaio, em
poder de quem fez algumas fugidas, sendo presa uma vez no Soccôrro.
Quem a levar presa ao mesmo seo Engenho, ou lhe der noticia certa, onde
esteja será generosamente recompensado. Engenho Tabua, 24 de Maio de
1842, O Padre, José Lino d’Oliveira" (O Correio Sergipense, Aracaju, 01 de
Junho de 1842, p. 04)7.

O recorte sobre a fuga de Maria Ignacia e os questionamentos anteriores sobre a


possibilidade e os limites de resgatar a memória são importantes para uma
compreensão inicial sobre o método da fabulação crítica. Primeiro, não seria
possível conhecer essa história, caso não tivesse existido esse ato de resistência por
Maria Ignacia. Esse é um ponto de partida crucial. Foi por contrapor o poder que
tentava controlar a totalidade de seus atos, por demonstrar a fragilidade dessa
tentativa, que ele suscitou as poucas palavras que restam sobre ela (Foucault, 2010,
p. 207). Segundo, embora não se possa conhecer Ignacia, diante do curto fragmento
sobre a sua existência, há algo que pode ser tido a partir de uma tradição de
resistência negra, a partir do conjunto de outras histórias que se interligam.

O ato de fuga de Maria Ignacia enquadra toda uma sociologia que vai manejar o
povo negro como um tema, como ser exótico ao Brasil (Ramos, 1995, p. 215), como
um experimento de laboratório a ser silenciado e enxergado de fora. A rasteira de
Maria se consuma quando mediante sucessivas fugas, inclusive de um sacerdote
que figura como anunciante, grita que esse era um povo que que não se deixa
imobilizar, que é multiforme, despistador (Ramos, 1995, p. 215). A fuga de Maria
não foi um ato isolado. Longe disso. O conjunto da documentação historiográfica
atesta que a fuga era a forma de resistência típica da escravidão, não só no Brasil,
mas em toda a América Latina (Gomes, 1996, p. 06; Reis; Silva, 2005, p. 62).

Os anúncios de fuga presentes nos jornais não apenas guardam informações sobre
a violência racial existente numa época. Eles a construíram e reciprocamente
fizeram parte dela (Hartman, 2020, p. 28). Inicia-se esse tópico sobre a fabulação
crítica através da fuga de Maria porque ela põe em xeque uma concepção de
memória coletiva que ao se apresentar como “nacional” excluiu a resistência, a
participação do povo negro.

O método da fabulação crítica ingressa nesse processo de revisitar documentos, de


tensionar as histórias presentes nas entrelinhas (Hartman, 2022, p. 11), de disputar

7 Em todos os anúncios foi respeitada a grafia original.

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a historiografia tradicional. Produções teóricas historiográficas que apresentaram


o povo negro, para toda uma geração, como seres irracionais, inertes, passivos, que
foram escravizados por razões biológicas/culturais postas como indiscutíveis,
como em Populações Meridionais do Brasil (Vianna, 2005) e em Casa-grande e
Senzala (Freyre, 2004).

Se para essa interpretação tradicional o escravizado que fugia era avesso ao


trabalho ou indisciplinado, como criticamente examina Flávio Gomes (1996, p. 08),
no exame da historiadora Beatriz Nascimento (2021, p. 129) era inconteste o papel
das fugas em todo um processo de contestação e de reorganização da ordem
estabelecida (Nascimento, 2021, p. 129).

Essa afirmação de Beatriz Nascimento (2021), a partir da concepção de que os


escravizados lutaram e pensaram um outro lugar que não a zona do não-ser
(Fanon, 2008, p. 26), é um quesito prévio fundamental para a inserção da fabulação
crítica, a “[...] tentativa de recuperar o terreno insurgente dessas vidas; de exumar
a franca rebelião de dentro dos autos [...]” (Hartman, 2022, p. 12).

Na obra “Vidas rebeldes, belos experimentos”, Saidiya Hartman (2021),


organizadora do termo fabulação crítica e de sua difusão, antepõe as diversas
histórias íntimas sobre meninas desordeiras com um texto sobre a explicação do
método da fabulação crítica. Destaca que o primeiro obstáculo que se apresenta
para aquele que se dedica ao estudo da multidão, dos subalternizados,
escravizados, é a autoridade dos arquivos, a soberania dos intérpretes sobre quem
e o que importa no passado. Outro limite inicial é o exame sobre o que pode ser
dito através dos arquivos, dos fragmentos. É um método de revisão histórica que
não se alimenta com o exercício inatingível de resgatar o passado como foi, em sua
totalidade, é uma ponte para a construção do possível (Hartman, 2022, p. 11). Uma
ponte inacabada, provisória, mas contínua (Hartman, 2020, p. 33).

Nesse espírito, tensionei os limites dos autos e dos documentos, especulei


sobre o que poderia ter sido, imaginei coisas sussurradas em quartos
escuros e ampliei momentos de confinamento, fuga e possibilidade,
momentos em que a visão e os sonhos de rebeldia pareciam possíveis”
(Hartman, 2022, p. 13).

Se por um lado esse método vai contrapor as despersonalizantes interpretações


tradicionais sobre o povo negro, por outro, lança uma lembrança sobre a
incompletude das teorias críticas que se fecharam nos estudos sobre a violência, as
relações de poder e que não incluíram em seus recortes um constante movimento
de sujeitos que resistiam a essas dinâmicas (Hartman, 2020, p. 20).

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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 293

Ao dar um rosto, voz, desejos aos seus personagens insurgentes, em uma


combinação de pesquisa arquivista sobre documentos, mapas, fotografias, somada
a um estilo literário, Hartman (2022) almeja a transgressão de contar a história a
partir deles. A chibata, a gargantilha, as correntes são tiradas da centralidade, não
para negar que existiram, mas para demonstrar a limitação de uma historiografia
contada apenas por esse percurso.

Por outro lado, não objetiva produzir uma ficção heroica, uma fabulação que seja
o resultado de histórias de celebração dos oprimidos (Hartman; Wilderson, 2003,
p. 185-186). É a tensão, as disputas, os desgastes, o medo envolvido na ânsia de
desfazer as garras opressivas, o pano de fundo dessa escrita. Uma fabulação crítica
que nesse resgate não ignora, nem omite, a performance da intervenção do
historiador sobre o passado e o seu entrelace com as lutas contemporâneas
(Hartman, 2020, p. 31).

Meu esforço para reconstruir o passado é, também, uma tentativa de


descrever obliquamente as formas de violências autorizadas no presente,
isto é, as formas de morte desencadeadas em nome de liberdade,
segurança, civilização e Deus/o bem (Hartman, 2020, p. 31).

Se na fabulação crítica os sujeitos silenciados, homens e mulheres negras, queers


radicais, ganham atenção e a possibilidade de terem as suas existências e
resistências representadas, as fontes utilizadas também foram em grande parte
desconsideradas, tomadas como irrelevantes, como não-história pelos estudos
historiográficos tradicionais. Esses sujeitos que tiveram as suas vidas e as de suas
comunidades apagadas, estão ali nos atestados de óbito, na fotografia policial, nos
registos médicos, nos inventários de propriedade (Hartman, 2020, p. 15), na massa
documental do agenciamento administrativo do Estado (Foucault, 2010, p. 213), no
exato momento em que se encontram com a violência das instituições de controle.
Nessa investigação serão os anúncios de fugas de escravizados, cotidianamente
presentes nos jornais brasileiros do século XIX, esse fragmento da realidade sobre
o qual caminhará criticamente a fabulação: entre o trabalho da pesquisa histórica
e o trabalho imaginativo de liberdade.

Embora a produção teórica da Saidiya Hartman possua quase trinta anos, apenas
nos últimos três anos passou a ser traduzida, publicada e debatida com mais
intensidade no Brasil. O artigo “Vênus em dois atos”, publicado pelo dossiê “Crise,
Feminismo e Comunicação” em 2020, os livros “Perder a mãe: Uma jornada pela
rota atlântica da escravidão”, lançado em 2021; “Vidas Rebeldes, Belos
Experimentos: Histórias Íntimas de Meninas Negras Desordeiras, Mulheres
Encrenqueiras e Queers Radicais”, lançado em 2022; e a obra que reuniu dois textos
escritos em um intervalo de trinta anos: “A sedução e as artimanhas do poder” e

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“O ventre do mundo: uma nota sobre os trabalhos das mulheres negras”,


publicada também em 2022.

A fabulação crítica tem como premissa o “[...] acolhimento ao provável fracasso e


a prontidão para aceitar o caráter contínuo, inacabado e provisório desse esforço”
(Hartman, 2020, p. 33). Esse caráter de aproximação e de conhecimento contínuo
tem se estendido à recente absolvição da Saidiya Hartman no Brasil através de suas
fabulações críticas. Essa investigação é uma tentativa inicial de apontar a
contribuição do método sobre o resgate da práxis negra no âmbito do Direito, das
capturas jurídicas.

2 Entre o contorno legal da escravidão e a práxis negra:


legitimações jurídicas e a resistência dinamizante

“Fui chamado de cordeiro mas não sou cordeiro


não” (Os Tincoãs)

Nos livros de História de Direito no Brasil a legitimação jurídica da escravidão é


simplesmente ignorada. Há uma lacuna historiográfica sobre decretos, resoluções,
contratos, escrituras e até mesmo sobre a Constituição Imperial de 1824, que
conjuntamente construíram, legitimaram e organizaram um estratégico contorno
jurídico de captura, de controle e de punição com vistas à reprodução e
estabilização do sistema escravista (Vellozo; Almeida, 2019, p. 2148). A escravidão
era uma instituição sócio jurídica (Gomes, 1996, p. 02).

Na Assembleia Constituinte de 1823, as categorias jurídicas de liberdade,


propriedade, cidadania foram atravessadas por intensos debates sobre a
manutenção da escravidão. As Ordenações Filipinas, diploma legal formatado
para alcançar as exigências mercantis da colonização, foram recepcionadas pela
Assembleia Constituinte do Império, mediante a Lei de 20 de outubro de 1823.
Nelas, juridicamente se constituiu a categoria do escravizado como “coisa
comercializável” (Malheiro, 1866, p. 16), como res. Poderia, portanto, ser objeto de
todos os tipos de negócios jurídicos, ser alienado, penhorado, emprestado
(Campello, 2018, p. 32-33).

Ainda na Constituição Imperial de 1824, em suas entrelinhas, reside um cuidadoso


arranjo de sustentação jurídica da escravidão (Queiroz, 2017, p. 153). Eram
cidadãos brasileiros, conforme o artigo 6º, inciso I, apenas os nascidos livres no
Brasil ou os que conquistassem a sua liberdade em vida. Logo, a Constituição
reconhecia a existência de não-cidadãos, milhões deles que eram considerados
escravizados de seu nascimento até a sua morte (Campello, 2018, p. 55; Malheiro,

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1866, p. 16). Mesmo aqueles que conquistassem/comprassem a sua alforria, o artigo


94, no inciso II, destacava que os libertos não possuiriam o núcleo da cidadania: o
direito de voto.

A construção dos “não-cidadãos”, através do não-dito constitucional, desaguava


em arquitetadas consequências que violentariam os escravizados. Por exemplo, o
art. 179 da Constituição do Império, em seu inciso XIX, destacava expressamente
que “desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas
as mais penas cruéis” (Brasil, 1824).

Como os escravizados eram “não-cidadãos”, o Código Criminal do Império de


1830, em seu artigo 60, apontava explicitamente que se os réus fossem escravizados
as penas seriam a de morte, de galés ou de açoites (Brasil, 1830). Ainda nesse artigo
averbava o limite de cinquenta açoites por dia como pena. A experiência punitiva
senhorial já conhecia essa fronteira, do contrário, as consequências eram funestas
(Moraes, 1986, p. 177). Ainda que raro “o sentimento da propriedade moderava a
ação, porque dinheiro também dói” (Assis, 1906, p. 04). Foi criada uma legislação
específica, a Lei de 10 de junho de 1835, para listar e legitimar os tipos de penas
que deveriam receber os escravizados.

Segundo o jurista e historiador Evaristo de Moraes (1986), em obra publicada


originalmente em 1924, a açoitação era um tipo de pena legal estudada entre os
bacharéis de Direito no Império. Ela se repartia em duas espécies: judiciária e
doméstica, entre as quais a execução e os instrumentos de martírio eram parecidos,
apenas os executores eram diversos (Moraes, 1986, p. 177). Ainda sobre a açoitação
e o suplício que lhe acompanhava, portarias e resoluções municipais começaram a
limitar o horário de aplicação dessa pena em prol do “sossego dos moradores”
(Campello, 2018, p. 193).

Um processo paralelo atravessava a vida dos escravizados no Brasil. Eram não-


cidadãos, segundo a Constituição do Império, eram considerados semoventes pelo
conjunto de legislações civis, assim, não possuíam direitos e não poderiam
ingressar em obrigações jurídicas, porém, no Código Criminal, não só eram
penalmente responsáveis por quaisquer condutas consideradas ilegais, como iam
para julgamento e eram duramente punidos (Campello, 2018, p. 184-185).

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A partir de uma intepretação jurisprudencial sobre o caput do art. 1798, na


Constituição Imperial, construiu-se a tese da plenitude do direito à propriedade.
Ela fundamentava diversos tipos de violência no bojo da escravidão: como o
enriquecimento sobre o uso sexual do corpo de escravizadas negras (Moraes, 1986,
p. 153); a alienação separada do casal de escravizados, bem como entre pais/mães
e filhos (Campello, 2018, p. 185-186); a marcação em ferro quente com as siglas do
nome dos “proprietários” (Gomes, 2019, p. 282), como no anúncio de fuga a seguir:

Fugiram dois escravos a Caetano Dias da Silva, da vila de Itapemiriam, os


quais estavam na Fazenda do Limão; um chama-se Manoel Paulo e tem em
ambas as pás ou ombros, pelas costas, a seguinte marca C. D. S.
entrelaçadas; o outro de nome Luciano tem a mesma marca das duas pás
e em ambos os peitos; dá-se 25$000 de alviçaras a quem os pagar (Moraes,
p. 1986, p. 183).

Também no artigo 179, mas do Código Criminal do Império, era tipificado o crime
de redução de uma pessoa livre à escravidão (Brasil, 1830). Formalmente, se
poderia imaginar que todos os senhores de engenho incorreriam nesse crime.
Contudo, o direito brasileiro se voltava até o direito romano e a sua máxima partus
sequitur ventrem para destacar que todo escravizado nascido no Brasil não era um
cidadão um livre. A condição de escravizada de sua genitora lhe era transferida no
próprio ventre (Moraes, 1986, p. 166; Malheiro; 1866, p. 42).

A compra e venda de escravizados não era alheia à forma-jurídica e a sua tentativa


de sustentação da exploração econômica (Almeida, 2019, p. 138; Devulsky, 2021,
p. 19; Pachukanis, 2017, p. 64). Ela se materializava através de contratos formais,
porém se o valor negociado superasse determinador valor, esse negócio só se
concretizaria a partir de escrituras públicas (Campello, 2018, p. 163). Sobre essas
escrituras era cobrado o imposto de meia sisa (Figueiredo, 1977, p. 32). Em razão
disso, quando em 1850 é abolido formalmente o tráfico internacional, os tributos
que incidiam sobre o tráfico interprovincial passam a ser uma importante fonte de
arrecadamento do Império (Campello, 2018, p. 124). Nas heranças e testamentos,
o valor dos escravizados também era incluído na base do cálculo dos respectivos
tributos sobre o espólio (Campello, 2018, p. 167).

Nas hipotecas sobre imóveis rurais (fazendas, sítios, engenhos), o artigo 140, §2,
do Decreto Imperial nº 3.453, de 26 de abril de 1865, para evitar disputas jurídicas
posteriores, incluiu expressamente que os instrumentos da lavoura, os escravos e

8 Transcrito em sua grafia original: “Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos
Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é
garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte” (Brasil, 1824).

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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 297

os animais eram acessórios que seguiam o bem principal. Assim, em 1887, um


edital do Juízo de Órfãos de Barra Mansa, Rio de Janeiro, hipotecava publicamente
a fazenda “Concórdia”. Na descrição dos bens se encontravam bois, novilhos,
potros e numa mesma seção um escravizado da nação mina, com 48 anos e outro
da nação angola, com 40 anos” (Moraes, 1986, p. 159).

Para Agostinho Malheiro (1886, p. 76) se a legitimação jurídica estava no início da


escravidão, estaria também em seu término formal. No título sobre “os modos de
findar o cativeiro”, destaca três tipos: além da morte natural do escravizado e a
disposição da lei; a manumissão ou alforria. A alforria poderia ser paga em
dinheiro, condicionada à prestação de serviços pelo escravizado ou posta no
testamento para que se efetivasse após a morte do senhor (Moura, 2004, p. 24).

A alforria também poderia ser concedida voluntariamente pelo proprietário


formal do escravizado, fenômeno raro que se justificava por diversas razões, desde
o perdão de dívidas com a Fazenda Pública (Figueiredo, 1977, p. 56), por questões
de cunho religioso, como por exemplo assegurar a salvação da alma, como também
para apaziguar as insurreições nas senzalas (Vellozo; Almeida, 2019, p. 2148). O
manumissor (proprietário dos escravizados) deveria possuir a capacidade jurídica
e a livre disposição (Malheiro, 1866, p. 84).

Sobre esse contorno legal que os consideravam propriedades, objetos, que os


açoitavam nas praças públicas, mas também nas escuras senzalas, os escravizados
agiram passivamente, aceitavam essa realidade tal como fora dada? Aguardavam
essa liberdade formal a ser dada pelos ditos proprietários ou manejavam com
ginga diversas estratégias de enfretamento, como as fugas do controle senhorial?

Desse emaranhado de diplomas legais, institutos e categorias jurídicas, desse breve


apanhado sobre o contorno legal da escravidão que tentava aprisionar a existência
e os passos dos escravizados, as diversas rasteiras de Maria Ignacia, o
planejamento tático da fuga de Quiteria com o seu esposo, a audácia de Jacob que
assentou praça no exército e de Malachias que tentou buscar o mesmo refúgio,
serão apresentados como experimentos reais de construção de um outro lugar. Um
lugar entre as frestas desse contorno, mas também fora dele. Um espaço de
liberdade.

2.1 A práxis negra em Clóvis Moura: uma breve e necessária


aproximação

Em Clóvis Moura, a definição de práxis negra não é apresentada de maneira


entabulada, resumida, simplificada. Esse ato de contestação, de desgaste, de

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298 Danilo dos Santos Rabelo

dinamização do sistema escravista e, posteriormente, do capitalismo dependente,


atravessa grande parte de sua produção teórica. Ao pensar a conceito de práxis,
através de diversas leituras marxistas, Moura vai olhar para uma cadeia de
históricas lutas, coletivas e permanentes movidas pelo povo negro (Oliveira, 2009,
p. 126-127), este um sujeito político de contestação e de desgaste radical do sistema
colonial-capitalista.

Em seu primeiro livro, “Rebeliões da Senzala”, publicado em 1959, buscou já em


seu título rebater a tese freyreana de que entre a casa grande e a senzala haveria
um equilíbrio de antagonismos (Freyre, 2004, p. 116), ao destacar que a
participação do escravizado naquele tempo/espaço não foi passiva, foi uma força
dinâmica, uma verdadeira negação daquele sistema (Moura, 1981, p. 16).

Em “Sociologia do Negro Brasileiro”, Clóvis Moura terce uma crítica incisiva a


um academicismo que leva “o negro” para dentro dos muros das universidades,
mas que o analisa enquanto um tema, um objeto, um povo exótico, estático
(Moura, 2019, p. 40). Parte do materialismo-histórico para destacar não só as
violências e exclusões do sistema colonial, do capitalismo formante, mas um
conjunto de valores e de símbolos específicos, que atuaram como mecanismos de
interação e de compensação dentro de uma sociedade branca (Moura, 2019, p. 157).
A partir da República de Palmares, situa como essa práxis negra no Brasil,
sofisticadamente, levantou um novo modelo de produção econômica, de
organização familiar/comunitária, de relação para com as religiões, de resgate e de
proteção dos seus valores culturais (Moura, 2019, p. 89).

Nessa obra aponta ainda que a práxis negra não é só uma premissa metodológica-
interpretativa de sua produção teórica, mas uma categoria necessária para as
pesquisas que objetivem compreender a formação histórica brasileira (Moura,
2019, p. 39); a formação cultural (Moura, 2019, p. 59) e os seus mitos (Moura, 2019,
p. 89); a formação do capitalismo em suas dinâmicas nacionais-internacionais,
entre os seus ciclos de exploração (Moura, 2019, p. 287); pesquisas sobre a
síndrome do medo da classe branca-dominante (Moura, 2019, p. 276).

Com a práxis radical, o “dilema negro” é superado não apenas


subjetivamente, mas de forma objetiva: o significado político da práxis
negra é a emancipação humana que, para o autor, ocorreria com a
superação da sociedade burguesa. Por outro lado, ao analisar a práxis
negra em termos sociológicos, Clóvis Moura propõe libertá-la dos
constrangimentos da fragmentação, massificação e impessoalidade do
habitus científico (Oliveira, 2009, p. 134).

Em “O negro, de bom escravo a mau cidadão?”, há uma detalhada apresentação


entre vários grupos insurgentes e dinamizantes da formação da América Latina.

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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 299

Nesse livro apresenta a práxis negra em seu entrelace diaspórico (Moura, 2021).
Em a “História do Negro Brasileiro”, levanta a quilombagem como um agente de
mudança social crucial para a crise do sistema escravista e de seus pilares jurídicos
(Moura, 1992, p. 22). Em “Dialética Radical do Brasil Negro”, Clóvis Moura abre
um vasto leque sobre a atuação da práxis negra na formação do capitalismo
dependente. A partir da imprensa, da literatura e da linguagem, da valorização da
estética africana, das batalhas políticas/legislativas, assenta a irreversibilidade da
contribuição dessa práxis na formação sócio-histórica brasileira (Moura, 1994)

No sentido de contribuir para uma compreensão mais aproximada da práxis


negra, categoria robusta e difusa em suas obras, outras tantas aqui poderiam ser
citadas, seus artigos, textos avulsos, entrevistas. Esse propósito exige uma
pesquisa apartada, centralizada, e extravasa os limites e os objetivos dessa
investigação. Ao longo desse trabalho, porém, outras camadas e instrumentos
manejados por essa práxis negra, em seu confronto com a captura jurídica, serão
resgatados e apresentados.

3 Experimentos reais de liberdade: a práxis negra contra


a tentativa de captura jurídica

“Está na hora de reconstruir a história primordial da


modernidade a partir dos pontos de vista dos escravos”
(Paul Gilroy)

3.1 Maria Ignacia fugiu, um, duas, várias vezes e não caiu no
conto do vigário9

"Do abaixo assignado, morador no Engenho


Tabua, fugio no princípio de fevereiro do corrente
anno, huma sua escrava de nome Maria Ignacia, de
nação Angola, com idade de 30 a 35 anos, com os
signaes seguintes: altura ordinaria, copo secco,
beiços e pernas grossas, cara redonda, pes
pequenos, muito falladeira, signaes de manguá
pelas costas, e outros encobertos; Tem sido de
muitos Senhores na Cotinguiba, o anunciante
negociou-a com o Capitão Francisco José da Graça
Leite Sampaio, em poder de quem fez algumas
fugidas, sendo presa uma vez no Soccôrro. Quem a
levar presa ao mesmo seo Engenho, ou lhe der

9 Com o objetivo de tornar a apresentação da fabulação crítica mais linear, sem interrupções em
razão de marcadores referenciais, apenas neste capítulo serão postas todas as referências das
citações nas notas de rodapé.

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300 Danilo dos Santos Rabelo

noticia certa, onde esteja será generosamente


recompensado. Engenho Tabua, 24 de Maio de
1842, O Padre, José Lino d’Oliveira" (O Correio
Sergipense, Aracaju, 01 de Junho de 1842, p. 04)”.

Em 1842, fugia Maria Ignacia, nascida em Angola e traficada ao Brasil a partir do


porto de Salvador. O engenho Tábua, de onde fugiu, trinta anos depois ficaria
afamado por ter sido de lá que fugiria João Mulungu, conhecido como o mais
notável líder quilombola do estado, o Zumbi sergipano10. A bravura da fuga de
Ignacia, embora desconhecida, não perdia em nada para aquela.

A maior parte das fugas em Sergipe era de escravizados homens, já que tanto eram
maioria em proporção, como havia um maior distanciamento, nutrido pela
violência da lavoura, entre os laços familiares, principalmente com os filhos11. As
escravizadas quando não perdiam seus filhos antes, durante ou após o parto, eram
obrigadas a cuidar deles até o momento em que estes também fossem explorados.
Essa imposição, todavia, não impedia que diversas fugas fossem anunciadas sobre
escravizadas grávidas12, como Arminda na crônica machadiana, ou que fugiam
com os seus filhos. Um outro dado é que eram os crioulos que mais fugiam em
Sergipe frente aos escravizados africanos. Para estes, além de um menor
desconhecimento da região, os laços de solidariedade entre os escravizados ainda
eram menores.

Não era o caso da angolana Ignacia. Estima-se que não só escapou do Padre,
segundo o anúncio de sua fuga, como teria fugido no mínimo umas cinco outras
vezes. Vários senhores do Vale do Cotinguiba tentaram lhe possuir, mas tinha
escapulido de todos eles. Todos estes que viam Maria apenas como um
investimento econômico, após gastarem com o falho controle de capatazes no
engenho, com anúncios e recompensas, resolviam passar Maria para um novo
comprador.

O próprio Padre José Lino já tinha sido avisado pelo próprio Capitão Francisco
José Leite que ela já tinha fugido diversas vezes. Contudo, a igreja do Engenho
estava precisando de alguém para garantir que a velha estrutura centenária
estivesse ao menos limpa antes das missas senhoriais. Padre José Lino, na saída do

10 Ver Igor Oliveira (2015, p. 63) e o artigo de Petrônio Domingues (2015): João Mulungu: a invenção
de um herói afro-brasileiro”.
11 Embora em minoria, parte das fugas das escravizadas se dava acompanhada de seus filhos
(Amaral, 2012).
12 Ver Lenira Costa (2004, p. 08).

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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 301

cartório com o Capitão Francisco, com as notas dos impostos pagos e o restante da
papelada embaixo do braço, sussurrou para o antigo proprietário:

- Se tem alguém que vai segurar ela quieta é a misericórdia divina. Deixe comigo!

José Lino só tinha esquecido de um singelo detalhe. Não tinha combinado essa
certeza com Maria Ignacia. Ela já tinha fugido diversas vezes, conhecia os
caminhos entre as matas, as cavernas com cobertura e até mesmo onde poderia
estar sendo criado um novo quilombo. Afinal, à noite, as frestas das paredes de
pedra da senzala sussurravam novidades.

Tinha sido capturada algumas vezes, é verdade. Uma vez tentou fugir para bem
longe. Queria ir até o norte de Sergipe, atravessar o São Francisco, cair na mata dos
Palmares. Sabia que alguns remanescentes ainda estavam por lá, nas altas matas
fechadas. No entanto, em todas as outras vezes que fugiu e foi capturada, para a
comemoração dos senhores e dos capitães do mato, a sua fuga era estratégica,
reivindicatória13.

Certo dia, Maria, cansada da jornada que invadiu altas horas da noite fria anterior,
chegou tarde na casa-grande do Capitão Pereira. O sujeito que foi lá em Salvador
comprá-la. Não deu tempo de aprontar o café. Foi a primeira vez que aquilo tinha
acontecido em um ano. Não deu em outra, Luzia, escravizada sexagenária do
engenho, lembrou-lhe que iriam castigá-la. Destacou que ela poderia até escolher:
ou cem palmatórias ou vinte açoitadas nas costas e pernas. O que não tinha escolha
era o direito de não ser castigada. Capitão Pereira, português, sempre lembrava
que era um homem cordial. Batia porque estava na lei. Batia porque essa mandava.

Maria esperou a hora em que a família rezava o rosário, jogou-se por baixo da cerca
do quintal e partiu. Foi pega, punida, mas meses após quando novamente
castigada, não deu outra, novamente se rebelou contra o açoite. Foi capturada e
Dona Helena, esposa do Capitão Pereira, disse que não era para batê-la dessa vez.
Ela passaria a cuidar do comportamento de Ignacia, dia e noite, seria agora
“escrava da casa”. O plano de Helena também falhou. Arrependidos, venderam
Ignacia.

Assim foi o cotidiano de Maria nos vários engenhos, ora acatava, porque sentia
que era o melhor a ser feito dentro daquele espaço em que a violência e o medo
eram constantes, ora recusava e fugia, porque havia o limite do intolerável, porque

13 Em sua tese Igor Oliveira (2015, p. 68) detalha as principais diferenças entre a “fuga
reivindicatória” e a “fuga de rompimento”.

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302 Danilo dos Santos Rabelo

a sua liberdade era um processo contínuo. Fugia para as matas de Laranjeiras,


conhecia o nome da maioria dos escravizados e nas aberturas do duro trabalho,
conseguia bater uma conversa. Trazer e levar as novidades. Por isso Padre José
Lino fez questão de colocar que era “faladeira” no anúncio.

Não apenas por isso, de fato, o ato da fala pela escravizada era sempre um
princípio de medo pelo proprietário14, demonstrava que ela não era totalmente
submissa, que poderia estar tramando revoltas, novas fugas. Se o “criado mudo”
era o plano ideal para o proprietário, Maria Ignacia representava o oposto. Não foi
diferente no engenho em que ficava a igreja do Padre.

O engenho Tábua era um dos maiores engenhos de Laranjeiras. A modernidade


residia naquela cidade, enquanto a sua arquitetura com altos e coloridos sobrados,
garantiu-lhe o apelido de Atenas sergipana15, com as suas noites povoadas por
debates e discursos dos diversos profissionais liberais, era uma cidade que
enriquecia-se com o trabalho escravizado oriundo dos diversos engenhos de
açúcar16. Essa modernidade era disputada, questionada, confrontada pelas
rebeliões dos escravizados da cidade. Existem registros de grandes rebeliões em
Laranjeiras em 1835 e 183717, pouco tempo antes da fuga de Maria.

Fonte: Mapa de Bloem, 1844. Apud: Amaral (2007, p. 142). Sem grifos no original.

14 Ver Célia Azevedo (1987, p. 180).


15 Ver Maria Thetis Nunes (2006, p. 223).
16 Ver Ramón Grosfoguel (2019, p. 63).
17 Ver Luiz Mott (1987, p. 114).

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A cidade foi ainda uma residência de jesuítas. Capelas vigorosas preenchiam os


espaços vazios dos engenhos, garantiam a propagação do catolicismo enquanto
condenavam as manifestações “pecaminosas” dos escravizados recém-chegados.

Fonte: Acervo Digital do IPHAN18

Entre o trabalho na capela, os afazeres domésticos na casa do Padre José Lino, era
obrigada a fazer todas as refeições para os seminaristas que, de segunda à sexta,
iam tomar aulas de teologia e filosofia tomista com José. Maria se viu mais isolada
do que nunca.

Era proibida de ir à feira, de falar com os fiéis, até mesmo de entrar, durante as
missas, no lugar que passava a semana limpando. Ali era igreja de branco. Do
outro lado da cidade havia uma onde os pretos podiam entrar, mas Padre José Lino
também a tinha proibido de ir lá. Não queria dar alguma brecha para Ignacia. Às
vezes gritava seu nome apenas para que ela respondesse que estava ali, nas
redondezas. A existência dessa tentativa de controle absoluto, ironicamente, só
demonstrava a sua fragilidade. Sabia que qualquer fagulha que se mexesse, sem o
seu consentimento e conhecimento, poderia colocar a sua estabilidade em risco.

Era esse o caminho, Ignacia sabia que deveria ser algo bem planejado para que a
sua ausência só fosse notada um bom tempo depois. A hora da missa. Era Páscoa,
missa de ressureição. Embora proibida de entrar na capela durante a missa, Padre

18 Embora não existam imagens conhecidas do Engenho Tábua, foi possível localizar uma fotografia
do Engenho Bom Retiro, construído em 1701, localizado em Laranjeiras (Engenho Retiro, s. d.).

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304 Danilo dos Santos Rabelo

José Lino exigia que ela ficasse na porta, sob a justificativa de ter de segurar os
guarda-sóis vitorianos das madames. Era um pretexto para a permanência da
vigilância.

Ignacia tinha escutado entre as refeições dos seminaristas que a pomba branca era
um símbolo do cristianismo. Tinha algo relacionado com a paz, com o espírito
santo. Sugeriu então ao Padre que após a homilia, ela poderia pegar duas pombas
brancas no pombal próximo ao curral e soltar na Capela. Seria a paz e o espírito
santo que entrariam ali, os fiéis iriam aplaudir tamanho efeito visual. Padre José
Lino, com uma expressão de surpresa, acatou a ideia. Por dentro ficou orgulhoso
em saber que Maria não só estava totalmente integrada ao trabalho, como já estava
a assimilar os preceitos religiosos do cristianismo.

No meio da homilia, José Lino fez um sinal com a cabeça para Maria, que
rapidamente correu para traz da igreja. O padre acompanhou todo o percurso de
Maria pelas diversas janelas da igreja. Quer dizer, quase todo. Ao chegar ao fundo
da igreja, não mais sendo vista por José Lino, ao invés de ir para a direita em
direção ao curral, com os seus pés pequenos e ágeis, correu para a esquerda,
rapidamente. Ergueu um pouco o longo vestido com as mãos e correu. Sem parar.

Era missa de Páscoa e seria uma desfeita o Padre José Lino se retirar no meio dela.
As autoridades locais estavam todas lá. Era a primeira missa de páscoa após
Laranjeiras se tornar a sede da comarca19. Igreja lotada.

E Maria? Maria correu, voou e girou como uma pomba. Uma pomba negra, livre,
pelas matas.

No dia seguinte Padre José Lino, passou horas remexendo a papelada da capela,
recuperou o contrato de compra, dirigiu-se à Aracaju, foi ao Jornal “O Correio
Sergipense” e escreveu no fim do desesperado anúncio:

Quem a levar presa ao mesmo seo Engenho, ou lhe der noticia certa, onde
esteja será generosamente recompensado. Engenho Tabua, 24 de Maio de
1842, O Padre, José Lino d’Oliveira" (O Correio Sergipense, Aracaju, 01 de
Junho de 1842, p. 04).

3.2 Entre queimaduras, táticas e planos: a fuga de Quitéria e


de seu esposo

“No dia 08 de janeiro do corrente anno fugio ao


abaixo assignado residente no engenho Lagartixa

19 Informação extraída do histórico administrativo oficial de Laranjeiras (Laranjeiras, s.d.).

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do município de Capella uma sua escrava criola de


nome Quiteria, baixa, grossa, com signaes mui
salientes de queimaduras sobre o peito, levou uma
saia de zuarte e outra de chita branca usada e
camisa branca e um panno da costa com listas
vermelhas. Fugio também no dia 11 do mesmo
mez o marido da dita escrava de nação, angola,
alto, magro, levou camisa de algodão e ciroula do
mesmo e mais roupa, bem como alguns ferros do
officio de sapateiro, no qual trabalha
sofrivelmente: quem deles der noticia certa ou os
levar ao abaixo assignado, em seo engenho será
recompensado. João de Aguiar Caldeira Boto"
(Jornal União Liberal, Laranjeiras, 16 de fevereiro
de 1853, p. 04).

Em 1854, Manoel Diniz Vilas Boas enviava para o Presidente Inácio Joaquim
Barbosa um mapa estatístico com a população de Sergipe dividida entre a
população livre e escravizada. A Vila de Capela era a terceira que mais possuía
escravizados, perdia apenas para Laranjeiras e Estância20. Nos levantamentos de
1838, 1856 e 1875, era a vila com maior número de engenhos21. O plantio de açúcar
e algodão é oficialmente apontado como o responsável pelo desenvolvimento da
região22.

Contudo, quem movimentava mesmo o lugar era o povo negro, que erguia a
economia nos sacos de catar algodão, nas foices de cortar cana, enquanto
reivindicava a superação daquele sistema. Capela fazia parte do Vale do
Cotinguiba, região com maior número de revoltas, conflitos, fugas23. Esse era o
cenário onde ficava o Engenho Lagartixa. Um pouco afastado do centro da vila e
por estar bem próximo a uma grande serra, tinha um clima fresco garantido
durante quase todo o ano.

20 Ver Ariosvaldo Figueiredo (1977, p. 24).


21 Ver Igor Oliveira (2015, p. 31).
22 Essa informação é dada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em:
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/se/capela/historico. Acesso em: 26 de jun., 2023.
23 Ver Sharyse Amaral (2007, p. 27).

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Fonte: Mapa de Bloem, 1844. Apud: Amaral (2007, p. 142). Sem grifos no original.

O Nordeste passava por uma derrocada econômica, há muito o Brasil não era o
maior produtor de açúcar, há muito os investimentos foram sendo transferidos
para o litoral do Sudeste. Foi ali próximo da Serra, que Quiteria, crioula, conheceu
e fugiu, em 1853, com o seu esposo, angolano.

Filha de uma escravizada da Costa da Mina que foi estuprada pelo seu senhor de
engenho24, Quiteria cresceu na região de Capela, conhecia todas as serras, os
limites da maioria dos engenhos. Sabia de cachoeiras tão isoladas na mata fechada
que ela tinha certeza que além dos tupinambás que viveram na região e que foram
exterminados no século anterior25, só ela sabia daqueles lugares.

Ele era alto, magro, trabalhava na lavoura, mas dominava como poucos o manejo
com couro na região. Aprendeu tudo com o seu pai em Angola, esse que tinha
aprendido com seu avô. Quando traficado para o Brasil, foi separado de seus
irmãos no Porto de Salvador. Estes eram mais jovens, fortes, foram levados por um
atravessador com uma outra centena para o Rio de Janeiro. Era o tempo áureo do
ciclo de café. Quando fora levado para o Engenho Lagartixa, com as mãos e os pés

24 Ver o texto “Democracia racial? Nada disso!” de Lélia Gonzalez (2018).


25 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística aponta que os tupinambás teriam se afastado
diante da proximidade com o homem branco (IBGE, s. d.). Contudo, a historiadora Beatriz Dantas
(1991) aponta que uma das principais vítimas da violência colonial em Sergipe, inicialmente a
partir da disputa de terras, foram os povos tupinambás. Por isso, destacou-se o termo extermínio
no texto.

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amarrados, os capatazes fizeram questão de gritar: - Olha o angolano, olha o


angolano!

Esse orgulho no grito se justificava porque fora trazido ilegalmente26 após a lei para
o “inglês ver” 27 e o escravizado não. Era uma forma de demonstrar que o poder
senhorial tanto se beneficiava do sistema legal, como conseguia ultrapassá-lo sem
maiores barreiras. Nas notas arranhadas daquele grito acompanhava a mensagem
de que com ou sem a Eusébio de Queiroz28, ainda conseguiam trazer escravizados
de África. Da lavoura pescoços se erguiam para ver aquele que era trazido. Era
uma curiosidade dolorosa. Era uma curiosidade que via-sem-querer-ver.

O ódio, o medo, a saudade, cederam um centímetro de espaço (era o máximo que


podia ser cedido) quando uma moça o informou que não o chamaria mais de
angolano. Se os nomes bíblicos dados aos escravizados pelos traficantes, padres e
senhores de engenho, já significavam uma violência identitária e tanto, chamá-lo
de angolano era sacramentar o desinteresse sobre quem ele era. Quiteria informou
que o chamaria de Akin, nome em iorubá que significava “guerreiro”. Era um
nome que pronunciava apenas quando estavam a sós.

Quiteria trabalhava de segunda a sexta na lavoura e aos sábados e domingos era


enviada para feira no centro de Capela. Lá vendia algumas frutas, verduras, grãos.
Retornava para o engenho, entregava as dezenas de moedas da venda de dois dias
e tinha direito a ficar com uma. A guardava seguramente em uma botija enterrada
próximo à senzala. João Boto, herdeiro do engenho Lagartixa, garantiu-lhe que
quando tivesse o suficiente para pagar a sua alforria seria libertada. Faria isso
menos por ela e mais pela mãe de Quiteria que morreu no engenho depois de
quase três décadas de trabalho.

Com a redução do tráfico internacional para aquela região, com a diminuição dos
corpos negros comprados para trabalhar na lavoura, havia uma maior proporção
entre escravizados homens e mulheres no Vale do Cotinguiba29. A existência e o
crescimento de famílias de escravizados, ainda que não legalizadas, não era uma
dinâmica movida e apenas explicada por um olhar econômico. A compreensão
sobre a resistência dos escravizados ali passava também pela luta em torno

26 Ver Luiz Gama (2021, p. 58).


27 A Lei 7 de novembro de 1831 destacava ser livre qualquer escravizado importado para o Brasil,
como possuía mais um objetivo simbólico para cumprir trocas de favores com a Inglaterra, ficou
conhecida como a “Lei para Inglês ver”.
28 Em 1850, a Lei Eusébio de Queiroz criou algumas medidas para reprimir o tráfico internacional
de escravizados, tornando-o proibido.
29 Ver Sharyse Amaral (2012, p. 52). Ver também: Carlos Malaquias e Isabela Santos (2020, p. 24).

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constituição de arranjos familiares30. O afeto, a segurança, a companhia cotidiana


eram poderosas armas para a sobrevivência naquele espaço cercado31. Os tios e tias
de Quiteria, primos e primas, protegiam-na porque sabiam que ela poderia ser a
primeira a sair dali pela cancela da frente. Seria a primeira a sair sem ser morta ou
fugida.

Nas noites frias enquanto Akin e Quiteria comiam o engrossado de milho, receita
da falecida mãe desta, sonhavam que teriam um pedacinho de terra, que teriam
roupas de tecido bom. Sonhavam que trabalhariam apenas para si. Sonhavam que
tinham um ao outro em sua completude.

A realidade era diversa. Era trabalho de sol a sol, de chuva a chuva. Chicotadas
eram recorrentes, diárias. Na dúvida sobre um trabalho mal feito ou não, uma
palavra mal dita ou não, o chicote estralava seco nas costas, nas pernas, onde
pegasse. Quiteria segurava o grito de dor, sabia que a sua alforria se aproximava,
a de Akin nunca chegaria se dependesse de alguma benevolência de João Boto.

Fazia cinco anos que este tinha o comprado, que João Boto repetia “ter investido
uma grana alta no angolano”. Faziam cinco anos daquele dia em que o ferro quente
estampou as siglas “J. B.32 em Akin. Fazia cinco anos que aquele descontava a
desvalorização do açúcar através do discurso da baixa produtividade dos
escravizados33. De lá pra cá a jornada de trabalho só vinha aumentando em um
ciclo retroalimetável. Aumentava a jornada em um ano, morriam dois
escravizados. No ano seguinte, sem economias para a reposição, aumentava mais
ainda o tempo diário da labuta, morriam três.

Quando Quiteria, no Natal de 1853, percebeu que os vômitos e enjoos semanais


não eram os mesmos que se davam quando o sol das 13h mirava a sua cabeça na
lavoura, procurou Tio Juca e Tia Doca. Sentia que a sua barriga estava maior.
Aquele segredo, no entanto, não poderia chegar aos ouvidos de João Boto de
maneira alguma. Os capatazes que arrastavam o chicote pela lavoura também não
poderiam desconfiar.

Aproveitaram que tinham direito a uma roda de samba na noite de Natal34 para
traçar um habilidoso plano, composto por o que levariam, como levariam, quando

30 Ver Flávio Gomes (1996, p. 06).


31 Ver Carlos Malaquias e Isabela Santos (2020, p. 25).
32 Evaristo de Moraes levanta um anúncio no qual as letras “C.D.S” foram postas à fogo nos ombros
e escápulas de dois escravizados. A sigla faz referência ao senhor de engenho Caetano Dias da
Silva (Moraes, 1986, p. 183). Ver também Laurentino Gomes (2019, p. 282).
33 Ver Josué de Castro (2010, p. 129).
34 Ver Luiz Mott (1987, p. 123).

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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 309

levariam, para onde iriam. O pandeiro batia alto para que nada saísse da roda de
samba. Quiteria estava feliz, tão feliz que quando soltou descuidadamente a
panela de mugunzá na fogueira, uma brasa fervente saltitou e atingiu o seu peito.
Ficou uma marca feia em carne viva, rapidamente coberta por goma de babosa.

Após aquele susto começou a roda de capoeira. João Boto e alguns amigos, da
varanda da casa-grande, apostavam goles de vinho do Porto para quem acertasse
o ganhador do confronto. Mal sabiam que ali era o treinamento de Akin. Lutou
contra todos e não perdeu uma sequer na noite. Seus pulos pareciam querer acertar
a lua cheia. Chutou o ano de 1853 com tanta força que logo chegou o dia 08 de
janeiro de 1854.

Quiteria gozou de seu privilégio de ir vender na feira. Por baixo das batatas-doces
que iam em um cesto equilibrado em sua cabeça dobrou um pano da costa com
listas vermelhas. Estava irradiante, com uma saia de zuarte e camisa branca. João
Boto nunca tinha visto Quiteria ir trabalhar daquela forma, a poeira do caminho
de ida e de volta sujaria toda a sua roupa, porém o dinheiro que retornaria com ela
era o que importava. Nem ela, nem o dinheiro voltaram.

Três dias depois, com quase todos os capatazes procurando Quiteria nas serras,
afinal, Boto e o seu engenho não poderiam abrir mão de nenhum escravizado mais,
foi a vez de Akin. Pegou a melhor calça e camisa branca de algodão, seus
equipamentos de sapateiro e partiu sem deixar rastros. Só parou quando
encontrou Quiteria toda de branco na cachoeira do fundão.

João Boto correu para Laranjeiras, no mesmo anúncio destacou as duas fugas.
Fugiu uma escravizada chamada Quiteria, com marcas de queimadura no peito, e
o seu esposo, da nação angola. Destacou ainda que esse levou os equipamentos de
sapataria, em que, segundo as suas próprias palavras: “trabalha sofrivelmente” 35.
Ao fim e ao cabo, tinha que fazer uma propaganda bem ruim daquele, não poderia
correr o risco de alguém querer ficar com o melhor sapateiro da região. Nem ele,
nem Quiteria, eram de alguém. Eram só deles. Experimentavam a liberdade com
a mesma potência da água que caía do alto da cachoeira.

3.3 Nas estranhas entranhas do Estado: as tramas sagazes de


Jacob e Malachias no Exército

“Ao Governo. Francisco Ramiro de Carvalho, da


cidade de Estancia, declara que o indivíduo de

35 Jornal União Liberal, Laranjeiras, 16 de fevereiro de 1853, p. 04.

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nome Jacob que assentou praça a pouco tempo em


1ª linha nesta capital é captivo na rasão de metade,
sob a condição de ser liberto fornecendo o valor:
pertence essa quota a uma filha do anunciante,
como em breve verificará. Previne, pois, para que
não lhe sejão dadas as prestações da gratificação a
que terá direito até que o anunciante, como
legítimo administrador de sua filha exhiba seu
direito” (Jornal do Aracaju, Aracaju, 4 de maio de
1873, p. 04).

Quando um espaço cercado não oferece nenhuma aparente possibilidade de


escapatória surge o drible como um movimento de liberdade da práxis negra. Nos
clássicos livros de Teoria Política, Teoria do Estado, o Estado era uma massa
racional, organizada e infalível: era o Rei que tudo sabia, o Leviatã que tudo via.
Na prática política brasileira do Império, os compadrios políticos, a
desestruturação administrativa, o poder senhorial que regia não só as grandes
movimentações político-econômicas, mas as práticas miúdas corriqueiras, era um
composto de lacunas e de contradições. A fuga de Jacob retrata um pouco isso. Ele
gingou nas ruelas desse espaço cercado.

Em seu ensaio jurídico de 1866, Agostinho Malheiro destacava que não sendo o
escravizado um cidadão36 não poderia ser admitido no exército e na marinha37.
Como então teria Jacob conseguido essa faceta? Como teria conseguido fugir de
Estância para Aracaju, driblado os impedimentos jurídicos e assentado praça no
Exército?

Em 1860 chegava tardiamente a máquina de moenda a vapor em Estância38, o que


não chegava era a liberdade dos escravizados. Na verdade, por estar localizada
mais ao sul de Sergipe, Estância foi historicamente uma porta de entrada para o
tráfico de escravizados que vinham da Bahia39. Assim, quando Jacob era mandado
ao centro da cidade buscar alguma mercadoria que chegava nas ondas do Rio
Piauí, duas cenas te marcavam: a entrada de escravizados sem camisas com
correntes que interligavam todos eles em uma fila indiana, ainda que essa cena em
1873 fosse cada vez menos comum, e as marchas da força armada que rondavam
aquele espaço de grande circulação econômica.

Foi nessas idas ao pacato porto que ficou sabendo que tinham dois soldados ali,
Pedro e Benedito, que eram escravizados em Alagoas e que fugiram para Sergipe.

36 Além do texto citado, ver Marcos Queiroz (2017).


37 Ver Agostinho Malheiro (1866, p. 17).
38 Ver Sharyse Amaral (2012, p. 56).
39 Ver Igor Oliveira (2015, p. 37).

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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 311

Tinham mudado os seus nomes40 e assentado praça no Exército41. Nesse momento,


a maior parte dos soldados de 1ª linha era composta por indivíduos pobres que
eram recrutados coercitivamente, seja por terem cometido pequenos furtos, por
circularem nas ruas, por terem lesado alguma conduta reprovada moralmente42.

O escravizado juridicamente era um não-cidadão que não poderia servir ao


exército. No entanto, assim que uma instabilidade remexia os interesses senhoriais
nacionais, era rapidamente recrutado e colocado na linha de frente. Foi assim na
Guerra de Independência na Bahia, a batalha do Pirajá43, em 1822, como também
na Guerra do Paraguai, em 1864. Nesta, além da promessa de alforria, os
“cidadãos” se esquivavam mandando em seu lugar seus escravizados para a
batalha44.

Como a instabilidade era uma marca da escravidão45, como existia uma pública
cobrança pelo aumento de braços e de equipamentos da força armada no sistema
escravista46, o assento voluntário de praça não era uma atividade revestida por
muitas formalidades. Essa brecha foi estrategicamente conduzida pela práxis
negra. Permitia, imediatamente, que o escravizado espacialmente se distanciasse
do engenho. Além disso, o modo no qual o exército absorvia o contingente para as
linhas de frente, composto também por escravizados, não era o mesmo quando
tinha um soldado requisitado por um antigo proprietário. Não raro foi a existência
de controvérsias administrativas e judiciais para recuperar um escravizado que se
refugiava no “abrigo da farda” 47. Sobre essa cinzenta massa burocrática48, foi que
Luiz Gama, em 1848, fugiu e alcançou seu alistamento no exército.

Em cada ida ao porto de Estância, Jacob colhia uma informação a mais. Estas
chegavam de modo salpicado, rapidamente era dita no momento em que um
embrulho chegava em suas mãos, em uma fala pronunciável por alguém não

40 Ver Flávio Gomes (1996, p. 14). Durante a seleção do recorte foi localizada a fuga de Afonso no
ano de 1848 em Estância. O anúncio aponta que este “costuma dizer, que se chama João” (Correio
Sergipense, Aracaju, 30 de setembro de 1848, p. 04). Hendrik Kraay (1996, p. 45) também faz
referência essa comum mudança de nome entre os escravizados que fugiam.
41 A fuga de Pedro e Benedito de Alagoas para Aracaju é retratada por Hendrik Kraay (1996, p. 46).
Estes não só conseguiriam se alistar em Aracaju, como foram enviados para o Rio de Janeiro.
42 Ver Hendrik Kraay (1996, p. 38).
43 Ver João José Reis (2022, p. 83).
44 Ver André Toral (1995, 273).
45 Ver Júlio Vellozo e Silvio Almeida (2019, p. 2148).
46 Ver Luiz Mott (1986, p. 127)
47 Para um maior aprofundamento sobre essa estratégia, bem como para a compreensão da
expressão acima, destaca-se o artigo “O abrigo da farda: o Exército brasileiro e os escravos fugidos
1800-1881), do historiador Hendrik Kraay (1996).
48 Ver Hendrik Kraay (1996, p. 35).

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312 Danilo dos Santos Rabelo

identificável no meio do caos da feira ou mesmo eram sussurradas por algum


mu’leke49 que brotava em seu caminho. Uma resistência negra coletiva estava
contigo naquela fuga enquanto fingia apenas seguir a rotina normalmente.

Quando a mãe de Jacob morreu deixara ela uma quantia suficiente para pagar a
alforria de seu filho. Contudo, o Sr. Francisco de Carvalho, Seu Chico, dissera que
com a valorização da mão-de-obra escrava no mercado interno, o preço de Jacob
tinha mais que duplicado. Além do mais, este era jovem, acabara de completar
vinte anos, gozava de boa saúde. Faria então o seguinte, como já era uma pessoa
idosa, podendo bater as botas a qualquer momento, passaria a metade daquela
propriedade para a sua filha. Possuir uma cota de metade de Jacob foi um dos
vários presentes recebidos por sua filha na festa de debutante. Caso esta
posteriormente não tivesse interesse no escravizado, caberia a Jacob pagar a parte
correspondente para ser dono por completo de si.

Para ele, porém, não fazia sentido trabalhar anos e anos, talvez décadas, apenas
para comprar a sua metade. Depois estaria ele jogado ao léu, todo o seu suor teria
sido dado à filha de Seu Chico simplesmente porque ela nasceu em berço de ouro.
Se tinha alguém que não precisava daquele dinheiro era ela. A revolta casou-se
com as vozes do porto. Deveria tentar.

Dois meses antes de sua fuga Jacob já tinha pegado um sapato social que Seu
Chico deixara secando sob a janela. Um dos passaportes inclusivos no “mundo dos
cidadãos” era a presença dos sapatos nos pés50. Chegar descalço na capital era ser
uma presa fácil, avisaram-lhe. O desaparecimento do calçado não se deu sem
nenhuma consequência, é claro. Todos os escravizados receberam bolos de
palmatórias até o tempo em que Seu Chico chegou à conclusão que o sapato não
mais apareceria de modo algum.

No dia da fuga, a adrenalina foi tão alta que Jacob lembra apenas de ter desterrado
os sapatos e pegado um par de calça e camisa no varal. Cena esta seguida por uma
piscadinha de olhos de Ambrósio que lavava os cavalos no estábulo. Conferiu que
o bilhete recebido no porto, com o endereço do Batalhão em Aracaju, estava em
seu bolso e correu. Foram seis dias cansativos. Sentiu medo, fome e até um leve
arrependimento: - “E se a vida no batalhão fosse pior que no engenho? E se descobrissem
que fugiu?”. Nenhuma dúvida era mais paralisante do que seguir no engenho.
Estava certo.

49 Termo em Quimbundo para se referir a crianças pequenas (Moleque, s. d.).


50 Ver Sharyse Amaral (2012, p. 69).

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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 313

O percurso de 60km entre Estância e Aracaju foi percorrido em sua maior parte a
pé. O caminho foi atravessado por uma série de temperos que fizerem ele ter a
certeza que jamais seria capturado. Não tão facilmente, ao menos. Catadores de
mariscos no Rio Vaza-Barris lhe atravessaram em suas simples canoas. Algumas
carroças andantes pelo sertão lhe ofereceram carona e até mesmo um pedacinho
de rapadura com água.

Ao chegar em Aracaju viu, antes de tudo, uma cidade em construção. Em 1873 não
fazia nem duas décadas que tinha se tornado capital do estado. Não era muito
grande, um quadradinho praticamente restrito a duas ou três ruas próximas ao Rio
Sergipe. Entrou no Batalhão e seguiu exatamente o que lhe passaram. A estratégia
infalível. Mudou o seu nome. Era agora João Marcos. Enquanto o capitão do
batalhão procurava um bico de pena para registrar algumas informações básicas,
fez um comentário aparentemente despretensioso sobre o brilhantismo de Duque
de Caxias na Guerra do Paraguai. Estava tudo no roteiro. Destacou que embora
estivesse desempregado, sendo essa a razão para o alistamento, se lhe garantissem
um pouco de comida e onde dormir durante os primeiros meses, aceitaria sem
maiores problemas. Deu certo. Esse estranho drible nas entranhas cinzentas do
Estado deixou Seu Chico no chão.

Fonte: Acervo da Biblioteca Nacional51

51 Álbum fotográfico de Aracaju de 1931 localizado na plataforma da Biblioteca Nacional. A


fotografia do prédio da Força Pública é meramente ilustrativa, uma aproximação contextual
(Album Photographico de Aracaju, 1931.

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Passou-se um mês, as mesmas águas do Rio Piauí que levaram essa estratégia de
liberdade para Jacob rebateram naquele porto em Estância levando boas notícias.
A sua faceta circulava entre os burburinhos do porto, das feiras, das senzalas.

A vila de Arauá queimava em chamas. Era verão na caatinga. Terra e testas


rachadas. Costas e galhos retorcidos. As altas temperaturas, a jornada espinhosa
da lavoura, a desnutrição, estava tudo isso estampado nas feridas ao redor da boca
de Malachias. Não demorou muito para a fuga de Jacob estacionar na vila vizinha
e chegar aos ouvidos dele. Ouvidos cansados de tantos gritos, xingamentos e
palavras de ordem. A fuga de Jacob não só tinha lhe dado um roteiro de fuga,
abriu-lhe caminhos imaginários de liberdade.

Fugiu. Fugiu sem mais a ser contado. Fugiu diante da convicção imediata de que
não era aquele o seu lugar.

Fugiu.

À procura de um outro lugar.

Prevenção ao comadante de policia e a força de linha. Do tenente José


Alves da Silva. Morador na villa do Arauá, comarca de Estância, fugio a 2
do corrente mez d’Abril, o escravo Malachias, mulato, baixo, magro,
cabelo annelados. Tem ao redor da boca pequenas cicatrizes, provenientes
do calor. Consta que trata de assentar praça na policia, ou linha, como a
pouco tempo foi outro de nome Jacob da cidade da Estancia. Previne-se,
pois, aos respectivos funcionários (Jornal do Aracaju, Aracaju, 4 de maio
de 1873, p. 04).

Considerações finais

“[...] Mattie seguia firme na crença de que seguir


em frente era a única forma de construir uma vida
melhor, de que a fuga era a precursora da
liberdade” (Hartman, 2022, p. 65).

Essa investigação buscou apontar a possibilidade de inserção da fabulação crítica


sobre as insurgências apagadas nos estudos históricos do Direito. Para tanto,
diante da recusa a uma única história sobre o passado, notadamente sobre o povo
negro, foram apresentadas as experiências de resistência e liberdade de Maria
Ignacia, Quiteria e seu esposo, Jacob e Malachias, contra o contorno legal da
escravidão. Esses experimentos destacaram a potencialidade do método da
fabulação crítica ao contribuir para o resgate de uma práxis negra que confrontou
e recusou a captura jurídica.

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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 315

Na primeira parte foi apresentado o método da fabulação crítica produzido por


Saidiya Hartman, os dilemas que envolvem a sua aplicação, as fontes ignoradas, a
sua recente inserção no Brasil. Destacou-se que esse método tem como ponto de
partida o conflito entre o poder do arquivo, as interpretações tradicionais e a
retomada sobre histórias, personagens, eventos que foram apagados, esquecidos,
silenciados. Para tanto, parte de um entrelace reconstrutivo sobre as entrelinhas
dos documentos históricos, dos panoramas, mapas e imagens, que permitem
tensionar os limites do possível de ser dito. Não busca a fabulação crítica apontar
a história como foi, mas como poderia ter sido diante dos limites do não-
resgatável, do indizível. É um exercício imaginário de disputa pela memória
bordado pelos retalhos do concreto.

Na segunda parte foi apresentado o contorno legal da escravidão. Um sistema de


legitimação da escravidão, as suas interfaces de controle e de punição, presente
desde a Constituição de 1824, o Código Criminal do Império, até os diversos
decretos, resoluções, contratos, escrituras. Categorias e interpretações jurídicas
organizaram negócios jurídicos nos quais os escravizados eram tomados como
propriedades. Um sistema punitivo se construía no Brasil tanto sobre a obrigação
de defender o uso total sobre estas, como em enquadrar, responsabilizar e punir
quaisquer fugas, revoltas, insurreições. Quando os escravizados recusavam a
condição que uma primeira camada do sistema jurídico lhe impunha, este se
remodelava para tentar garantir a estabilidade do sistema escravista. Ainda nessa
parte, foram levantados alguns apontamentos sobre a conceituação de práxis
negra para Clóvis Moura. A constante resistência, a dinamização da formação
brasileira, o confronto às legitimações opressivas jurídicas, a reivindicação por um
outro lugar.

Diante dessa edificação de captura jurídica, na terceira parte foram criticamente


fabuladas as histórias de Maria Ignacia, Quiteria e seu esposo, Jacob e Malachias.
Foram resgatadas estas experiências de liberdade a partir de suas fugas
anunciadas nos jornais sergipanos. A sofisticação e a dinamicidade da práxis negra
foram resgatadas a partir desses atores, com vozes, desejos e inseridos em uma
resistência dinâmica. Para a fabulação crítica dessas quatro fugas foram
examinadas referências teóricas sobre a escravidão em Sergipe/Nordeste; foram
consultadas teses acadêmicas sobre a resistência dos escravizados em Sergipe,
principalmente sobre a região da fuga: o Vale do Cotinguiba; pesquisa teórica
sobre a formação dos engenhos e o seu entrelace com a formação de Sergipe. Além
disso, foram consultados jornais da época, mapas e algumas fotografias
ilustrativas da época.

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A fuga de Maria Ignacia assentou a constante irresignação, a reinvindicação


presente em suas várias esquivas, a fragilidade do contorno legal que tentava
possuí-la e controlá-la. A construção de um planejado experimento de liberdade
por Quiteria e seu esposo, diante das incontáveis razões para a fuga, possibilitou
resgatar que a resistência negra no período passava também pela luta em torno
constituição de arranjos familiares fora dessa captura jurídica. As fugas de Jacob e
de Malachias demonstraram que as entranhas do Estado, as suas lacunas, também
eram exploradas como espaços de escapatória, de sobrevivência, de liberdade.

O tensionamento sobre os anúncios de fuga, através da fabulação crítica,


possibilitou reconstruir uma constante e dinâmica resistência da práxis negra no
interior da formação jurídica brasileira. Essa disputa sobre a memória coletiva,
ainda que inacabada, provisória, é um experimento contínuo sobre as repercussões
dessa práxis no presente. Contra as lacunas sufocantes da história majoritária do
direito brasileiro essa investigação foi também uma fuga. Fujamos.

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Sobre o autor
Danilo dos Santos Rabelo
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Sergipe; Doutorando
em Direito pela Universidade Brasília. Integrante do “Núcleo de Estudos
Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal de Sergipe”
(NEABI-UFS), e do “Núcleo de Estudos e Pesquisas em Cultura Jurídica
e Atlântico Negro – Maré” da Universidade de Brasília.

_________________
Agradecimentos
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50289

dossiê

Relações étnico-raciais, linguagem e


tecnologia: confluências e conflitos
Relaciones étnico-raciales, lenguaje y tecnología:
confluencias y conflictos

Ethnic-racial relations, language and technology:


confluences and conflicts

Alejandro Knaesel Arrabal1


1
Universidade Regional de Blumenau, Programa de Pós-Graduação em Direito,
Blumenau, Santa Catarina, Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-0927-6957.

Submetido em 29/07/2023
Aceito em 09/12/2023

Como citar este trabalho


ARRABAL, Alejandro Knaesel. Relações étnico-raciais, linguagem e tecnologia:
confluências e conflitos. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília,
v. 10, n. 1, p. 325-345, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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326 Alejandro Knaesel Arrabal

Relações étnico-raciais, linguagem e


tecnologia: confluências e conflitos

Resumo
Realizado por meio de revisão bibliográfica, o presente artigo debate aspectos que tornam
a linguagem e a tecnologia, não apenas instrumentos de comunicação, mas fatores
coadjuvantes na produção de identidades e, nessa condição, instâncias que participam das
confluências e conflitos étnico-raciais. O texto está estruturado em duas unidades de
conteúdo que procuram atender aos seguintes objetivos específicos: compreender o caráter
artificial e constitutivo da linguagem, assim como o seu papel na formulação dos conceitos
de raça e etnia no contexto de articulações identitárias; e avaliar a relação entre linguagem
e tecnologia, apontando suas implicações sobre o racismo. Como resultado, o trabalho
indica que, a par dos benefícios que as redes telemáticas proporcionam em termos de
acesso à informação e comunicação, a experiência mediada por plataformas digitais
também assumem contornos ideológicos que modulam posturas discriminatórias e
racistas, fortalecendo a objetificação humana em detrimento dos valores fundamentais da
diversidade e dignidade existencial.
Palavras-chave
Linguagem. Identidade. Raça. TIC. Dignidade.

Resumen
Realizado a través de una revisión bibliográfica, este artículo analiza los aspectos que
convierten al lenguaje y la tecnología no solo en instrumentos de comunicación, sino
también en factores coadyuvantes en la producción de identidades y, en esta capacidad, en
instancias que participan en confluencias y conflictos étnico-raciales. El texto se estructura
en dos unidades de contenido que buscan cumplir los siguientes objetivos específicos:
comprender el carácter artificial y constitutivo del lenguaje, así como su papel en la
formulación de los conceptos de raza y etnicidad en el contexto de las articulaciones
identitarias; y evaluar la relación entre lenguaje y tecnología, señalando sus implicaciones
para el racismo. A consecuencia, el trabajo indica que, junto con los beneficios que las redes
telemáticas proporcionan en términos de acceso a la información y comunicación, la
experiencia mediada por plataformas digitales adquiere contornos ideológicos que
modulan actitudes discriminatorias y racistas, fortaleciendo la objetificación humana en
detrimento de los valores fundamentales de la diversidad y la dignidad existencial.
Palabras-clave
Lenguaje. Identidad. Raza. TIC. Dignidad.

Abstract
Carried out through bibliographic review, this article discusses the aspects that make
language and technology not only instruments of communication but also contributing
factors in the production of identities, and, in this capacity, instances that take part in
ethnic-racial confluences and conflicts. The text is structured into two content units that
seek to meet the following specific objectives: understanding the artificial and constitutive
character of language, as well as its role in formulating the concepts of race and ethnicity
in the context of identity articulations; and evaluate the relationship between language and
technology, pointing out its implications for racism. As a result, the work indicates that,
alongside the benefits that telematic networks provide in terms of access to information
and communication, the experiences mediated by digital platforms take on ideological

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Relações étnico-raciais, linguagem e tecnologia: confluências e conflitos 327

contours that shape discriminatory and racist attitudes, reinforcing the objectification of
humans at the expense of fundamental values of diversity and existential dignity.
Keywords
Language. Identity. Race. ICT. Dignity.

Introdução

Relacionamentos fluem por comunicações e nelas são produzidos discursos que


modulam as experiências da vida. Como observa Orlandi (1994), o discurso
consiste no “efeito de sentidos entre locutores”. De modo geral, palavras são
produzidas e empregadas com o propósito de explicar a realidade ou transmitir
pensamentos, o que induz à noção de que elas “carregam” sentidos. A
comunicação é levada a efeito quando os significados das palavras já integram o
repertório daqueles que se comunicam, mas ela também diz respeito a
confluências simbólicas que tornam os processos de significação e interpretação
densamente complexos.

O emprego corrente das palavras é atravessado por escolhas, denotações e


conotações que enriquecem e transformam o repertório simbólico dos locutores, o
que permite considerar a língua como instância viva. Afirma Bakhtin que a
palavra, diferente de um objeto qualquer, é um meio “[...] constantemente mutável
de comunicação dialógica. Ela nunca basta a uma consciência, a uma voz. Sua vida
está na passagem de boca em boca, de um contexto para outro, de um grupo social
para outro, de uma geração para outra” (Bakhtin, 2015, p. 232).

As relações étnico-raciais operam a partir de formulações discursivas que


instituem identidades e diferenças, em estreito vínculo com os processos de
produção de sentido. No contemporâneo, adjetivos evocam condições existenciais
identitárias que procuram afirmar direitos, em um ambiente complexo de
comunicação mediada por tecnologias.

A expansão da capacidade técnica para publicizar opiniões individuais, erigida


com o desenvolvimento das redes telemáticas, imiscuiu-se a garantia fundamental
de liberdade de expressão (art. 5º, IV da Constituição Federal de 1988). Assim,
embora se saiba que dispor de condições técnicas para realizar uma pretensão não
se confunde com o direito de concretizá-la, o uso irrefreado e inconsequente de
tecnologias da informação é, de certa forma, amplamente incentivado.

Considerando esses fatores, o presente artigo propõe debater aspectos que tornam
a linguagem e a tecnologia, não apenas instrumentos de comunicação, mas fatores

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coadjuvantes na produção de identidades e, nessa condição, instâncias


protagonistas nas confluências e conflitos étnico-raciais.

Realizado por meio de revisão bibliográfica, o artigo está estruturado em duas


partes. A primeira descreve o caráter artificial e constitutivo da linguagem, assim
como o seu papel na formulação dos conceitos de raça e etnia no contexto de
articulações identitárias. A segunda parte discorre sobre a relação entre linguagem
e tecnologia, apontando suas implicações sobre o racismo. Como se verá adiante,
a par dos benefícios que as redes telemáticas proporcionam em termos de acesso à
informação e comunicação, a experiência mediada por plataformas digitais
também assumem contornos ideológicos que modulam posturas discriminatórias
e racistas, fortalecendo a objetificação humana em detrimento dos valores
fundamentais da diversidade e dignidade existencial.

1 Linguagem e identidade étnico-racial

Colocar a linguagem a frente do debate sobre as questões étnico-raciais resulta da


importância que ela assume, para além do seu papel funcional nas dinâmicas de
comunicação. A percepção sobre o mundo, sobre o que se considera real, assim
como o que se reconhece em termos de modelo ideal de vida, é performado nas
estruturas e unidades de sentido que a linguagem provê. A partir da Filosofia da
Linguagem, Simões (2009, p. 27) adverte que:

[...] a linguagem deve ser entendida, principalmente, como prática social


concreta, como um sistema de atos simbólicos realizados em determinado
contexto social com objetivo preciso e produzindo certos efeitos e
consequências convencionais. Nessa linha de raciocínio, a linguagem
afasta-se da concepção clássica de meio de descrição do mundo e de
interpretação da realidade. A linguagem passa a ser vista como modo de
ação e interação social.

Echeverría (2003, p. 12) afirma que “o social, para os seres humanos, se constitui
na linguagem. Todo fenômeno social é sempre um fenômeno linguístico”. Assim,
o pensamento é determinado pelas características da língua.

O idioma é pura ideologia. Ele não apenas nos instrui dos nomes das
coisas, mas, mais importante, de que as coisas podem ser nomeadas. Ele
divide o mundo em sujeitos e objetos. Indica que eventos devem ser vistos
como processos e como coisas. Ele nos instrui do tempo, do espaço e do
número e forma nossas ideias de como estamos em relação à natureza e
aos outros (Postman, 1994, p. 129).

Também Castells (2002) reconhece que o acesso a realidade não é possível para
além do que há na linguagem. Essa é uma concepção que tem lugar especialmente

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Relações étnico-raciais, linguagem e tecnologia: confluências e conflitos 329

no século XX, na confluência de epistemes que despertaram para a relevância da


linguagem e da comunicação, o que foi denominado como “giro linguístico”1.
Trata-se de colocar a linguagem no centro do processo de conhecimento,
conferindo a ela o protagonismo na caracterização da realidade humana.

A partir de Heidegger, Gracia (2005, p. 36) observa que “somos vítimas de uma
traiçoeira ilusão egocêntrica quando acreditamos ser donos de nossos discursos e
quando consideramos a linguagem como instrumento, [...] é a própria linguagem
que manda em nós, causando, modelando, constrangendo e provocando nosso
discurso”.

Echeverria bem explica a relação entre a existência física e a existência linguística,


nos seguintes termos:

Os seres humanos são seres linguísticos, seres que vivem na linguagem.


[...] É claro que os seres humanos não são apenas seres linguísticos e que,
por tanto, a linguagem não esgota a multidimensionalidade do fenômeno
humano. [...] por que então defendemos a prioridade da linguagem? [...]
Porque é precisamente através da linguagem que conferimos sentido a nossa
existência e também a partir da linguagem que nos é possível reconhecer a
importância dos domínios existenciais não linguísticos. [...] Não há um lugar
fora da linguagem a partir do qual possamos observar nossa existência. [...]
A existência humana, o que para os seres humanos representa a
experiência da existência, é realizada pela linguagem (Echeverría, 2003, p.
21, sem grifo no original).

Ao possibilitar a existência humana em termos de comunicação e cultura,


paradoxalmente a linguagem também estabelece os limites restritivos dessas
mesmas condições. Dizer o que um determinado objeto ou pessoa “é”,
corresponde a uma ação comunicativa que institui um significado entre muitos
outros possíveis.

Flusser ensina que “a comunicação humana é um processo artificial”, cuja


artificialidade é esquecida quando os códigos “e os símbolos que os constituem”
são apreendidos, figurando para cada integrante de uma comunidade idiomática

1 “‘Giro linguístico’ é uma expressão que esteve em moda nos anos 1970 e 1980 para designar uma
certa mudança que ocorreu na filosofia e em várias ciências humanas e sociais, e que estimulou a
dar uma atenção maior ao papel desempenhado pela linguagem, tanto nos próprios projetos
dessas disciplinas quanto na formação dos fenômenos que elas costumam estudar. [...] O giro
linguístico teve efeitos e implicações que vão bem mais além do simples aumento da ênfase dada
à importância da linguagem. Ele contribuiu para que fossem esboçados novos conceitos sobre a
natureza do conhecimento, seja ele o do sentido comum ou o científico, para permitir que
surgissem novos significados para aquilo que se costuma entender pelo termo ‘realidade’ – tanto
‘social’ ou ‘cultural’ quanto ‘natural’ ou ‘física’ – e a desenhar novas modalidades de investigação
proporcionando outro contexto teórico e outros enfoques metodológicos” (Gracia, 2005, p. 19-20).

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330 Alejandro Knaesel Arrabal

como se naturais fossem. O propósito do mundo codificado, afirma o filósofo, é


fazer esquecer que ele “consiste num tecido artificial que esconde a natureza sem
significado, sem sentido, por ele representada. O objetivo da comunicação humana
[...] é nos fazer esquecer desse mundo [...] em que somos condenados à morte – o
mundo da natureza” (Flusser, 2017, p. 85-86).

É na linguagem que unidades de sentido são formuladas, proporcionando a ilusão


de estabilidade sobre o que designam. Da mesma forma, a razão e a verdade são
filhas da linguagem. O pensamento procura abarcar uma parte da vida, sonegando
o que ela apresenta de intenso, plural e transformador. Com a linguagem, o
pensamento cria estabilidades provisórias que assumem a pretensão de
permanência. Ao significar, as palavras delimitam e instituem supostas verdades
por meio de explicações lógicas sobre determinado modo de ser e existir. Nesse
sentido, a verdade – e a identidade – são frutos da expectativa humana por duração
e certeza (Mosé, 2011).

A identidade de um indivíduo se constrói na língua e através dela. Isso


significa que o indivíduo não tem uma identidade fixa anterior e fora da
língua. Além disso, a construção da identidade de um indivíduo na língua
e através dela depende do fato de a própria língua em si ser uma atividade
em evolução e vice-versa (Rajagopalan, 1998, p. 41-42).

Identidade é uma categoria ambivalente cujo emprego designa o indivíduo, bem


como indica o pertencimento a um coletivo. Do étimo latino, idêntico (idem) é o
que se apresenta como igual ou semelhante o suficiente para indicar proximidade.
O que resulta da negação da identidade é a diferença. Para Orlandi (2014, p. 34),
“a diferença se define no processo de constituição de cada sujeito pela ideologia e
no modo como é individua(liza)do pelo Estado (através de instituições e
discursos), na sociedade capitalista, dividida e hierarquizada pela simbolização
das relações de poder”. Heidegger (2018, p. 9) observa que “em cada identidade
reside a relação ‘com’, portanto, uma mediação, uma ligação, uma síntese: a união
numa unidade”. Além de figurarem como interdependentes, “identidade e
diferença partilham uma importante característica: elas são o resultado de atos de
criação linguística” (Silva, 2000, p. 76). O processo de nominação proporciona mais
do que a representação de algo concreto ou abstrato, ela engendra significações
que instituem identidades e não identidades.

Appiah (2018a, p. 38-39) considera que as identidades sociais representam


constructos cuja formulação compreende três dimensões:

Primeiramente, as identidades sociais dependem de rótulos para a sua


existência [...] Isso porque as pessoas reagem aos outros e pensam sobre si
mesmas por meio desses rótulos. [...] a segunda dimensão da identidade

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Relações étnico-raciais, linguagem e tecnologia: confluências e conflitos 331

sobre a qual quero chamar a atenção é precisamente que há normas


associadas às identidades sociais, que denomino: normas de identificação
e normas de tratamento. As normas de identificação especificam a maneira
como as pessoas de determinada identidade devem se comportar; e as
normas de tratamento, como se deve ou não reagir e atuar sobre pessoas
de certa identidade. [...] A terceira dimensão da identidade deriva da
segunda: por existirem normas de identificação, pessoas que, pelos
rótulos, se identificam como x agem às vezes segundo o próprio rótulo.
Quero dizer com isso que uma razão pela qual elas agem como agem é que
são motivadas pela ideia “tenho razão em ‘fazer algo’ porque sou um x”.
Esse último ponto nos instiga a encarar as identidades como
essencialmente subjetivas, uma vez que a importância delas advém do
papel que desempenham nos pensamentos e nos atos de seus portadores.

Bezerra (2015, n. p.) observa que os sujeitos apreendem de suas culturas o


repertório vocabular que nunca é neutro. As identidades geralmente são
positivadas e as respectivas diferenças negativadas. Desse modo, em “uma cultura
racista, branco é positivo, preto é negativo [...] Este é um efeito do qual nem sempre
nos damos conta. Essa performatividade se entranha em nós de modo que, ao
acionamos esse vocabulário, é como se nós estivéssemos vendo a natureza tal como
ela é.”

É na esteira do pensamento orientado a segmentação analítica e a classificação


humana que emerge o racismo. No século das “luzes”, “teorias poligenistas
mereceram cuidadosos estudos, mesmo porque, uma origem comum aos homens,
pressuporia igualdade racial, o que contrariava a muitos” (Jesus, 1980, p. 122-123).
Munanga (2014) observa que o termo raça “veio do italiano razza, que por sua vez
veio do latim ratio, que significa sorte, categoria, espécie. Na história das ciências
naturais, o conceito de raça foi primeiramente usado na Zoologia e na Botânica
para classificar as espécies animais e vegetais”. Na esteira do desenvolvimento das
ciências da natureza, o século XIX adotou o conceito de raça para nomear2 e
classificar a humanidade a partir de atributos biológicos. Nesse sentido, Arendt
(1989, p. 208) observa que “o esmagador sucesso do darwinismo resultou também
do fato de ter fornecido, a partir da ideia de hereditariedade, as armas ideológicas

2 “Um nome não é uma palavra aleatória ou qualquer. Ele sempre quer dizer alguma coisa e sua
relação com a significação é complexa. Dizer isso significa que a questão dos nomes e seus
significados sempre geraram muita polêmica e inquietação. As propriedades de um nome nem
sempre estão postas às claras, o que geralmente cria muita discórdia entre os filósofos e linguistas.
Quando pensamos em nome e no que ele significa logo nos vem à cabeça alguma designação.
Como se um nome servisse para designar as coisas, pessoas, lugares, etc. Enfim, como se ele
servisse para especificar algo que é nomeado. Especificar ou designar algo quer dizer separar
alguma coisa para lhe dar destaque. Para lhe conferir uma ‘certa’ exclusividade de tratamento,
quero dizer, para se referir a algo sem recorrer a alguma interferência que um objeto pode ter em
outro” (Moreira, 2010, p. 2914).

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para o domínio de uma raça ou de uma classe sobre outra, podendo ser usado
tanto a favor como contra a discriminação racial”. Contudo, o fator biológico
representa um entre outros critérios (religiosos, geográficos, por exemplo)
adotados ao longo da história a fim de justificar posturas discriminatórias e
políticas de segregação.

Em geral, a identidade étnica procura designar o liame caracterizado por fatores


que tipificam o modo de convivência de uma determinada coletividade. Krieg-
Planque (2008, p. 4) afirma que o termo etnia foi empregado originalmente em 1896
por Georges Vacher de Lapouge na coleção Les Sélections sociales. A par do conceito
de nação como entidade política, o referido antropólogo procurou distinguir os
conceitos de raça e etnia reservando, para o primeiro, a diferenciação por
características biológicas, e para o segundo, fatores como língua e cultura
partilhada. Contudo, cumpre frisar que ambos os conceitos são produto de
construções históricas marcadas pela classificação humana (que se materializa
como discriminação) linguisticamente performada. Note-se que Lapouse separa as
dimensões política (nação), natural (raça) e cultural (etnia), provavelmente
orientado por aspirações cientificistas que apontavam para a necessidade de
correição e disciplina linguísticas. Nesse contexto, Rajagopalan (2020, n. p.)
observa que a pretensão de uma “língua pura” representa uma metáfora para
“raça pura”, assim como a própria ideia de miscigenação como negação das
diferenças de raça historicamente instituídas, também é uma forma de racismo.

Seja em razão de marcadores biológicos ou culturais, as categorias raça e etnia


resultam de visões essencialistas que, a partir da linguagem, modulam valores
determinados por expectativas de universalidade, estabilidade e certeza. Nesse
sentido, surge um paradoxo no campo das dinâmicas de pertencimento social. Ao
nutrir valores identitários, o recorte conceitual que institui um coletivo, produz
também discriminação e exclusão. Tal fenômeno torna-se ainda mais complexo no
cenário da comunicação mediada por tecnologias.

2 Linguagem, Tecnologia e Racismo

Há uma estreita relação entre os conceitos de linguagem e tecnologia. Do mesmo


modo que a linguagem figura como tecnologia, também os artefatos tecnológicos
que mediam as comunicações humanas são linguagem. Levy (1999, p. 22)
considera “impossível separar o humano de seu ambiente material, assim como
dos signos e das imagens por meio dos quais ele atribui sentido à vida e ao
mundo”.

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Decorrentes das ações (e pretensões) humanas incidentes sobre a materialidade do


mundo, as tecnologias compreendem produtos e processos orientados a
solucionar problemas operacionais objetivos. Essa concepção – tipicamente
moderna – destaca o caráter instrumental e servil das tecnologias, sugestiona o
domínio do homem sobre as máquinas e, com isso, oculta o protagonismo delas
no plano da instituição de valores.

Artefatos tecnológicos não apenas “funcionam” para atender propósitos


operacionais, eles também “significam”. Ao significar, mais do que dizer que estão
à disposição dos seus utentes, as tecnologias orientam ações, modulam
comportamentos e estabelecem condições operacionais que priorizam valores.
Assim, na mesma perspectiva que Postman (1994) afirma ser o idioma “pura
ideologia”3, as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) também o são.
Nemmer (2021, n. p.) destaca que a opressão4, manifesta em prescrições
comportamentais, “deveria ser o diagnóstico central para a tecnologia”. Isso
porque a mediação digital é constituída de prescrições (comandos, ordens) que
determinam o funcionamento das máquinas e, por consequência, definem o
comportamento dos seus usuários.

Cupani (2011, p. 14) nota que “pensamos e valoramos cada vez mais em função de
categorias tecnológicas. A mentalidade e a atitude tecnológicas são fáceis de
advertir, bastando reparar no uso cada vez mais disseminado de expressões como
‘programar-se’ para tal ou qual coisa”. Soma-se a esse repertório palavras como
“rede” de contatos, "conectar-se” com os amigos, entre outras. De forma análoga,
a tecnologia “se apodera imperiosamente de nossa terminologia mais importante.
Ela redefine ‘liberdade’, ‘verdade’, ‘inteligência’, ‘fato’, ‘sabedoria’, ‘memória’,
‘história’ – todas as palavras com que vivemos. E ela não para de nos contar. E nós
não paramos para perguntar” (Postman, 1994, p. 18).

O incremento das mediações tecnológicas transforma hábitos, interferindo nas


dinâmicas identitárias e nas relações étnico-raciais. Como observa Castells (2017,

3 Por ideologia entende-se aqui toda predisposição (disciplinar) a uma certa forma de ser e existir.
Assim, o idioma é ideologia porque “divide o mundo em sujeitos e objetos. Indica que eventos
devem ser vistos como processos e como coisas. Ele nos instrui do tempo, do espaço e do número
e forma nossas ideias de como estamos em relação à natureza e aos outros” (Postman, 1994, p.
129).
4 Nemer parte dos ensinamentos de Paulo Freire (2018, p. 46) que, entre outros aspectos, considera
a prescrição “um dos elementos básicos na mediação opressores-oprimidos [...]. Toda prescrição
é a imposição da opção de uma consciência a outra. Daí, o sentido alienador das prescrições que
transformam a consciência recebedora no que vimos chamando de consciência ‘hospedeira’ da
consciência opressora. Por isto, o comportamento dos oprimidos é um comportamento prescrito.
Faz-se à base de pautas estranhas a eles – as pautas dos opressores”.

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p. 29): “[...] as relações de poder, base das instituições que organizam a sociedade,
são amplamente constituídas na mentalidade das pessoas através de processos de
comunicação”, de modo que “a moldagem de mentalidades é uma forma mais
decisiva e duradoura de dominação do que a subordinação de grupos por
intimidação ou violência”. Desse modo, concebidas predominantemente a partir
das matizes culturais do Norte global, as TICs atuam como estruturas de Soft
Power, instituindo no Sul um espaço de afirmação de seus interesses. Segundo o
ITS (2016, p. 4), “os países no Sul Global são basicamente consumidores, e não
fornecedores, das tecnologias que estruturam o Big Data, o que, em teoria, pode
fazer com que essas tecnologias não sejam tão adequadas às suas necessidades
específicas”. Para Kwet (2021, n. p.), “vivemos em um mundo onde o colonialismo
digital corre o risco de tornar-se uma ameaça para o Sul Global tão significativa e
de longo alcance quanto o colonialismo clássico foi nos séculos anteriores”.

Um dos valores que marcaram o desenvolvimento das estruturas (e códigos) das


redes telemáticas consiste na utopia de liberdade irrestrita5, espraiado nas
condições operacionais que caracterizam as possibilidades de criação dessas
tecnologias. Lanier (2012, p. 21) observa que “o tipo de liberdade radical que
encontramos em sistemas digitais vem acompanhado de um desafio moral
desnorteante. Nós inventamos tudo... então o que devemos inventar? Infelizmente
esse dilema – de ter tanta liberdade – é quimérico”.

Para os usuários, algo semelhante ocorre. Na comunicação via redes de


computadores, a relação entre humanos e máquinas acontece em primeiro plano.
Só em segundo plano ocorre a relação entre humanos. A primeira relação é
presencial, imediata. A segunda é virtual, mediada. Nessa dupla e simultânea
situação comunicativa, o diálogo altero, necessário para o equilíbrio das relações
humanas intersubjetivas, é fragilizado. Isso porque a máquina é percebida
imediatamente como ferramenta, predominando a expectativa do seu
funcionamento a serviço da conveniência do usuário. Assim, sem que os
consumidores de tecnologia se atentem, a comunicação virtual é “naturalmente”
tomada pelas qualidades da relação imediata estabelecida com as máquinas, o que

5 Com o desenvolvimento das redes telemáticas durante a segunda metade do século XX, surge o
conceito de ciberespaço, “marcado pela contracultura e por ideais libertários que, entre outros
aspectos, fomentaram a licenciosidade para transgredir o status quo, o que pressupõe a
legitimidade para, entre outras práticas, agir anonimamente e criar identidades e vidas
alternativas. Comunicar-se sob condição anônima ou mesmo tornar-se outra persona, constituem
práticas que se tornaram comuns e, por vezes, admitidas como importantes ou mesmo
necessárias ao convívio no Ciberespaço. (Arrabal, 2022, p. 211).

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transfigura os indivíduos comunicantes em objetos, reciprocamente sujeitos, cada


qual, aos interesses do outro.

O “corpo fala” em termos de posturas e gestos, afirmam Weil e Tompakow (2009).


De modo análogo, máquinas também falam a partir do design de seus recursos e
funções. O “meio é a mensagem” como destacou o filósofo da comunicação
McLuhan (2003). Computadores e dispositivos móveis, conectados à rede global,
convidam seus usuários a navegar pelo espaço cibernético, sugestionam
comportamentos e instigam escolhas que podem ser rapidamente confirmadas em
um click no mouse ou um toque na tela. Esse convite é sempre acompanhado da
ilusão de controle e de conformação do mundo aos interesses individuais.

Na medida em que a convivência mediada por tecnologia domina o contexto


contemporâneo, expectativas individuais são fomentadas em detrimento da
alteridade, o que contribui para a intolerância e a discriminação. Soma-se a esse
aspecto a modelagem algorítmica das redes sociais que, a fim de arregimentar
usuários, produzem bolhas de conteúdos ideológicos por meio de critérios de
afinidade.

Mesmo que o fenômeno das bolhas6 digitais revele alguma relação com as
dinâmicas identitárias, ocorre que a facilidade, a instantaneidade e a
instrumentalização algorítmica o tornam diferente da sociabilidade cujos valores
são historicamente sedimentados. Bauman (2007, p. 9) destaca que “a exposição
dos indivíduos aos caprichos dos mercados de mão-de-obra e de mercadorias
inspira e promove a divisão e não a unidade”, em um contexto tecno-ideológico a
partir do qual “a ‘sociedade’ é cada vez mais vista e tratada como uma ‘rede’ em
vez de uma ‘estrutura’ [...]: ela é percebida e encarada como uma matriz de
conexões e desconexões aleatórias e de um volume essencialmente infinito de
perturbações possíveis”.

Nesse sentido, identidades de grupo mediadas por tecnologias revelam uma


contradição fundamental: por serem facilmente suscetíveis a mudanças, geram
incertezas que instigam respostas absolutas e extremistas. Como âncoras que

6 O termo “bolha” se tornou comum para referir processos e recursos digitais de personalização,
orientados a convergência de interesses pessoais. Pariser (2012, n. p.) afirma que “O código básico
no seio da nova internet é bastante simples. A nova geração de filtros on-line examina aquilo de
que aparentemente gostamos – as coisas que fazemos, ou as coisas das quais as pessoas parecidas
conosco gostam – e tenta fazer extrapolações. São mecanismos de previsão que criam e refinam
constantemente uma teoria sobre quem somos e sobre o que vamos fazer ou desejar a seguir.
Juntos, esses mecanismos criam um universo de informações exclusivo para cada um de nós – o
que passei a chamar de bolha dos filtros – que altera fundamentalmente o modo como nos
deparamos com ideias e informações”.

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procuram impedir a deriva, estereótipos passam a povoar o imaginário. Orlandi


(2021, p. 9) observa que “o imaginário está presente no que chamamos de
‘formações imaginárias’ que projetam a ‘situação’ do sujeito, objetivamente
descritível, para a sua ‘posição-sujeito’ discursiva em que conta, não sua situação
objetiva, mas a imagem que ele faz de si mesmo, do outro e do referente”.

Diferenças forjadas sob critérios étnico-raciais estereotipados povoam


discursivamente o imaginário e, nessa condição, também integram as estruturas
tecnológicas, em geral reconhecidas equivocadamente como neutras. Considera-
se neutro o que é indiferente a valores, atuando de modo estritamente subordinado
a uma instância decisória externa. Desse modo, toda produção técnica é
ontologicamente avalorativa. Esse conceito provavelmente decorre da histórica
segmentação do poder que coloca, de um lado, os sujeitos responsáveis pela
tomada de decisão (patronos, líderes, governantes, empregadores entre outros) e,
de outro, os sujeitos cujo dever é cumprir ordens (súditos, subordinados e
trabalhadores em geral). A divisão binária da sociedade em dirigentes (soberanos)
e executivos (subalternos), usurpou das atividades técnicas a legitimidade para
decidir os propósitos de suas realizações. Também é provável que o pensamento
científico tenha marcado o conceito de neutralidade tecnológica. Observa Morin
(2011, p. 39) que:

[…] a ciência ocidental fundamentou-se na eliminação positivista do


sujeito a partir da ideia de que os objetos, existindo independentemente do
sujeito, podiam ser observados e explicados enquanto tais. A ideia de um
universo de fatos objetivos, purgados de qualquer julgamento de valor, de
toda deformação subjetiva, graças ao método experimental e aos
procedimentos de verificação, permitiu o desenvolvimento prodigioso da
ciência moderna. […] Nesse quadro, o sujeito é ou o 'ruído', isto é, a
perturbação, a deformação, o erro que se deve eliminar a fim de atingir o
conhecimento objetivo, ou o espelho, simples reflexo do universo objetivo.

Rajagopalan (2012) observa que as pesquisas das áreas humanas e sociais foram (e
continuam sendo) orientandas pelo rigor dos métodos das ciências exatas e
biológica. Nesse sentido:

Quando o espírito de cientismo prevalece nas ciências humanas, o


resultado imediato é que, na ânsia de isolar o “objeto de estudo”, o
pesquisador relega todo o contexto em que este se encontra. Nos estudos
da linguagem, cria-se o objeto chamado “língua”, que é vislumbrado de
forma desatrelada de seu contexto social e histórico. (Rajagopalan, 2012, p.
263)

Ambicionando a verdade, a ciência neutralizou o sujeito cognoscente para que


suas vicissitudes subjetivas não “contaminassem” a compreensão da realidade

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fenomênica do mundo. Assim, o executor da pesquisa, semelhante ao servo, não


poderia interferir no processo científico que aspirava desvelar a verdade.

Portanto, reconhecer à tecnologia como instância neutra é um equívoco. Ihde


(2017, p. 77) considera que “tecnologias transformam a experiência, ainda que
sutilmente, e esta é uma raiz de sua não neutralidade”. Tecnologia e linguagem
são categorias que rementem a fatores constitutivos da existência humana,
irremediavelmente significada e valorada. Silva (2022, n. p.) observa que a
democracia racial e a neutralidade tecnológica são conceitos “que se irmanam no
propósito de ocultar relações de poder que constroem interpretações de mundo,
naturalizam e aprofundam explorações e desigualdades”.

A história do racismo moderno é abalizada pela exortação da cultura eurocêntrica7,


cuja identidade foi sistematicamente fortalecida a partir da negação “do outro”.
Herdeiro dos conflitos civilizatórios e disputas coloniais, o racismo encontrou solo
fértil na racionalidade científica, ocupada em definir, categorizar, bem como
estabelecer diferenças hierárquicas e comportamentais. Ocorre que, os problemas
decorrentes da discriminação étnico-racial não encontram solução na denúncia dos
equívocos forjados na concepção científica de raça, mesmo porque, o universo
hegemônico das tecnologias é analiticamente orientado pela automação e
classificação.

Sob a chancela da neutralidade, técnicas de reconhecimento e formulação de


categorias biométricas conquistam lugar privilegiado no horizonte do tratamento
de dados digitais. Para os entusiastas da era da informação, a vida biológica e
social é constituída por padrões de dados cuja leitura, operada por meio de
tecnologias computacionais, pode revelar a verdade do mundo. Harari (2016, p.
371) observa que “não são apenas os organismos individuais estão sendo
considerados sistemas de processamento de dados – são sociedades inteiras, como
colmeias de abelhas, colônias de bactérias, florestas e cidades humanas”.

Disso resulta a necessária observação crítica sobre os impactos vinculados ao


desenvolvimento e aplicação de técnicas de reconhecimento e diferenciação
humana, seja pela cor da pele, ou que leve em conta qualquer outro predicado
fenotípico ou genotípico. Noble (2022, n. p.) também considera que “o uso quase

7 Para Sodré (2029, p. 878), no Brasil, “os ideais da República se associam aos ideais eugênicos
europeus. A partir disso, derivam modos de vida baseados em julgamentos e preferências que se
repetem nas seleções de emprego, na maneira de tratar e na maneira de lidar entre as pessoas.
Penso, por meio desse paradigma baseado numa consciência da branquitude, a consequência de
grande parte dos problemas de repulsão e aproximação nas relações sociais. A forma da
escravidão está incrustada na forma social brasileira.”

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onipresente de softwares dirigidos por algoritmos, tanto visíveis quanto invisíveis


no cotidiano de todos, exige uma inspeção mais rigorosa de quais valores são
priorizados em tais sistemas automatizados de decisão”.

A partir das escolhas politicamente conformadas na arena histórica dos jogos de


poder, a cultura negra foi inferiorizada nas suas diferenças frente a cultura
hegemônica “branca”. A dignidade humana, valor presente em diversos estatutos
normativos nacionais e internacionais8, não se reduz a ordem de critérios relativos
ao útil, ao eficaz e ao tecnológico. Ela pressupõe condições básicas e socialmente
equânimes para a realização das aspirações individuais, sem que isso implique no
constrangimento infundado e desmedido da liberdade do outro.

O que se opera no campo das distinções étnicas e raciais representa justamente a


instrumentalização da vida humana, que historicamente sonegou os valores e a
cultura dos povos negros, silenciou suas vozes, assim como lançou a cor preta a
condição de sinal de subalternidade e desvalor. O racismo persevera
sorrateiramente na sociedade na medida em que o “negro” é caracterizado como
“não branco”. O nome “negro”, afirma Mbembe (2014, p. 19), “foi inventado para
significar exclusão, embrutecimento e degradação, ou seja, um limite sempre
conjurado e abominado”.

Appiah (2018b, n. p.) adverte que a própria categoria “racista” carrega o germe da
exclusão, na medida que se apresenta como um rótulo social negativo. Observa o
filósofo que “ser racista” não é uma opção de vida, trata-se de um constructo
histórico que (in)forma pensamentos e ações, de modo que os problemas
decorrentes dos estigmas ético-raciais não encontram solução no fomento de mais
estigmas. Sugere, portanto, uma abordagem comunicativa voltada a descrever os
fenômenos, esclarecendo as implicações discriminatórias e excludentes que
decorrem das práticas racistas.

Souza (1983, p. 17-18) considera que “a descoberta de ser negra, é mais do que a
constatação do óbvio”. Por um lado, “Saber-se negra é viver a experiência de ter
sido massacrada em sua identidade, confundida em suas expectativas, submetida
a exigências, compelida a experiências alienadas”, por outro “é também, e
sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em
suas potencialidades”. Nesse sentido, o combate resiliente ao racismo não se reduz

8 Nesse sentido verifica-se, por exemplo, o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948, ao considerar que “reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros
da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça
e da paz no mundo” (DUDH, 1948).

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a sua criminalização, mas fundamentalmente diz respeito a trazer a presença –


psíquica, social e discursiva – a história e a cultura negra, a partir de vozes e ações
afirmativas.

Considerações finais

Etnia e raça são conceitos culturalmente instituídos e perpetuados na linguagem,


de modo que se materializam a partir dela. Na perspectiva de Berger e Luckmann,
(2014, p. 38, 57) a linguagem usada no cotidiano fornece “continuamente as
necessárias objetivações e determina a ordem em que estas adquirem sentido e na
qual a vida cotidiana ganha significado”, tornando-se um “repositório objetivo de
vastas acumulações de significados e experiências, que pode então preservar no
tempo e transmitir às gerações seguintes”.

Mesmo que a legitimidade escravagista seja um registro do passado, encontram-


se ainda presentes aspectos típicos dessa realidade, objetivados em formulações
discursivas. Para muito além de características biológicas, ser negro ou ser branco
são diferenças politicamente instituías e voltadas a controles sociais, em um envio
histórico que não pode ser negado9. A superação dessa clivagem pressupõe
desconstruções simbólicas, discursos afirmativos e, sobretudo, políticas públicas
orientadas a educação multicultural que possibilitem compreender a diversidade
como o principal fator identitário humano.

Reconhecer que as tecnologias não são neutras, não é o mesmo que conferir a elas
uma orientação essencial determinista. Qualquer artifício técnico pode ser
transformado e ressignificado. Nesse sentido, Nemer (2021, n. p.) refere-se a
“tecnologia mundana” como os “processos em que oprimidos se apropriam de
tecnologias cotidianas – artefatos, operações e espaços tecnológicos – e as utilizam
para aliviar a opressão de suas vidas”.

Mesmo que seja possível afirmar que o racismo prejudica a todos, suas
consequências nefastas atingem de forma muito mais contundente àqueles cuja
identidade foi historicamente negada. Reconhecer a diversidade como valor, sem

9 Por ocasião da Lei Áurea, “a absorção do negro na vida nacional, enquanto cidadão, não era uma
questão fundamental. Tanto que, ainda que houvesse alguns abolicionistas defendido uma
reforma de base, especialmente na estrutura agrária do país a fim de que os recém libertados
pudessem administrar suas vidas dentro das suas ocupações habituais – a lavoura -, outros
lutavam para a indenização aos donos de escravos que seriam ‘lesados’ em sua propriedade com
a abolição” (Bertúlio, 1989, p. 3).

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negar o direito às identidades sobre o que elas consagram como valores


afirmativos, representa um enorme desafio para as gerações presentes e futuras.

Abordagem essencialistas e universais que ainda preconizam diferenças de raça,


ignoram o caráter artificial dos discursos que as performam. O racismo resulta de
constructos sociais e não de um estado fenomênico natural. A natureza, no sentido
da conformação material e biológica dos seres, certamente revela inúmeras
configurações que apontam diferenças. Mas não é esse plano diferencial que deve
orientar a decisões humanas, em termos de convivência e dignidade. As aspirações
que modulam os domínios da ciência e da técnica facilmente lançam os seres
humanos à condição de objeto de análise e categorização, prática que deve ser
criticamente observada, em especial diante dos avanços tecnológicos no campo da
comunicação e tratamento de dados digitais.

Na complexidade dos processos de significação e comunicação é possível


transformar a realidade. Se as palavras operam além da representação, é na
dialética performativa entre discursos e ações – cada vez mais mediada por
tecnologias – que a conivência humana precisa mobilizar esforços afirmativos para
a desconstrução do racismo estrutural.

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Relações étnico-raciais, linguagem e tecnologia: confluências e conflitos 345

Sobre o autor
Alejandro Knaesel Arrabal
Doutor em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade do Vale dos Sinos – UNISINOS. Mestre em
Ciências Jurídicas pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.
Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Regional de
Blumenau – FURB. Professor e pesquisador dos Programas de
Mestrado em Direito (PPGD) e Administração (PPGAd) da FURB. Líder
do grupo de pesquisa Direito, Tecnologia e Inovação – DTIn (CNPq-
FURB). Vice-líder do Grupo de Pesquisa SINJUS - Sociedade, Instituições
e Justiça (CNPq-FURB). Membro do grupo de pesquisa
Constitucionalismo, Cooperação e Internacionalização - CONSTINTER
(CNPq-FURB). Membro da AGIT – Agência de Inovação Tecnológica da
Universidade Regional de Blumenau – FURB.

_________________
Nota
O artigo é um desdobramento de estudos e debates vinculados ao Grupo de
Pesquisa SINJUS - Sociedade, Instituições e Justiça.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50276

dossiê

Uma discussão urgente: as


possibilidades da juventude negra no
mundo do trabalho brasileiro sob a
perspectiva da interseccionalidade e da
teoria jurídico-trabalhista crítica
Una discusión urgente: las posibilidades de la
juventud negra en el mundo del Trabajo brasileño
desde la perspectiva de la interseccionalidad y la
teoría crítica jurídico-laboral

An urgent discussion: the possibilities of black youth


in the Brazilian world of labor from the perspective
of intersectionality and critical legal-labor theory

Ygor Leonardo de Sousa Araujo1


1
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0009-0001-0658-1331.

Hugo Cavalcanti Melo Filho2


2
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7627-3257.

Submetido em 28/07/2023
Aceito em 28/11/2023

Como citar este trabalho


ARAUJO, Ygor Leonardo de Sousa; MELO FILHO, Hugo Cavalcanti. Uma discussão
urgente: as possibilidades da juventude negra no mundo do trabalho brasileiro sob a
perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica. InSURgência:
revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 347-371, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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348 Ygor Leonardo de Sousa - Hugo Cavalcanti Melo Filho

Uma discussão urgente: as


possibilidades da juventude negra no
mundo do trabalho brasileiro sob a
perspectiva da interseccionalidade e da
teoria jurídico-trabalhista crítica

Resumo
O presente trabalho tem por objetivo averiguar as condições do jovem negro brasileiro no
mundo do trabalho. Há diversas pesquisas abordando a situação da juventude negra
brasileira nas áreas da educação, penal, cultural, esportiva. Entretanto, constata-se uma
reduzida exploração no campo científico de apontamentos acerca da empregabilidade, as
possibilidades existentes e suas atuais condições. Nesse sentido, é oportuno o exame da
hipótese de que, no mundo do trabalho, há uma reprodução do racismo brasileiro,
restando a essa população a informalidade, o trabalho análogo à escravidão e, quando
existe a possibilidade da formalidade, a ocupação das profissões mais perigosas.
Fundamentado a partir das reflexões teóricas provenientes da Teoria Social Crítica do
Direito do Trabalho e da Interseccionalidade, realizou-se uma análise qualitativa e
quantitativa de dados de censos oficiais abordando o regaste de trabalhadores em
condições análogas à de escravo e com maior número de acidentes de trabalho para
comprovação da hipótese. Dessa forma, a partir interseccionalidade entre idade, gênero,
raça e classe, pode-se concluir de que a população negra, especialmente a juventude negra
e as mulheres, é a mais vulnerabilizada.
Palavras-chave
Mundo do trabalho. Juventude negra. Interseccionalidade.

Resumen
El presente trabajo tiene como objetivo investigar las condiciones de los jóvenes negros
brasileños en el mundo del trabajo. Hay varios estudios que abordan la situación de la
juventud negra brasileña en las áreas de educación, penal, cultural, deportiva. Sin
embargo, existe poca exploración en el ámbito científico de apuntes sobre la empleabilidad,
las posibilidades existentes y sus condiciones actuales. En ese sentido, es oportuno
examinar la hipótesis de que, en el mundo del trabajo, se reproduce el racismo brasileño,
dejando a esa población en la informalidad, trabajo análogo a la esclavitud y, cuando existe
la posibilidad de formalidad, ocupación de las profesiones mas exigentes peligrosas. A
partir de reflexiones teóricas surgidas de la Teoría Social Crítica del Derecho del Trabajo y
la Interseccionalidad, se realizó un análisis cualitativo y cuantitativo de datos censales
oficiales, abordando el rescate de trabajadores en condiciones similares a la esclavitud y
con mayor número de accidentes laborales para comprobar la hipótesis. Así, a partir de la
interseccionalidad entre edad, género, raza y clase, se puede concluir que la población
negra, especialmente los jóvenes y mujeres negros, es la más vulnerable.
Palabras-clave
Mundo del trabajo. Juventud negra. Interseccionalidad.

Abstract
The present work aims to investigate the conditions of young black Brazilians in the world
of labor. There are several studies addressing the situation of Brazilian black youth in the
areas of education, criminal, cultural, sports. However, there is little exploration in the

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Uma discussão urgente: as possibilidades da juventude negra no mundo do trabalho brasileiro 349
sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica

scientific field of notes about employability, existing possibilities and their current
conditions. In this sense, it is opportune to examine the hypothesis that, in the world of
work, there is a reproduction of Brazilian racism, leaving this population to remain
informal, work analogous to slavery and, when there is a possibility of formality,
occupation of the most demanding professions dangerous. Based on theoretical reflections
arising from the Critical Social Theory of Labor Law and Intersectionality, a qualitative and
quantitative analysis of official census data was carried out, addressing the rescue of
workers in conditions similar to slavery and with a greater number of accidents work to
prove the hypothesis. That way, based on the intersectionality between age, gender, race
and class, it can be concluded that the black population, especially black youth and women,
is the most vulnerable.
Keywords
World of labor. Black youth. Intersectionality.

Introdução

Nos últimos anos, a legislação trabalhista brasileira acompanha o movimento


imposto pela financeirização do capital, isto é, de mínima remuneração para a
força de trabalho, concorrência irrestrita enquanto norma social, enfraquecimento
das organizações coletivas, configurando o abandono estatal dominado pela classe
dirigente da garantia dos direitos conquistados pelos movimentos dos
trabalhadores no último século.

Sendo assim, aproxima-se, cada vez mais, da precarização irrestrita, submetendo


os trabalhadores às jornadas extenuantes, sem possibilidades de direitos básicos
(descanso remunerado semanal, férias, ambiente de trabalho seguro), afrontando
a Convenção Nº 1 da Organização Internacional do Trabalho, a Constituição da
República, os princípios basilares do Direito do Trabalho e distante do princípio
fundante do ordenamento jurídico, a dignidade humana.

Percebe-se, também, o aumento da informalidade, das denúncias de trabalho


análogo à escravidão, assim como o crescimento de acidentes de trabalho. Diante
desse cenário, o direito do trabalho brasileiro cada vez mais rompe com a razão de
sua existência: tutelar a parte vulnerável da relação trabalhista, os trabalhadores.

Nesse contexto, destaca-se a situação da juventude negra brasileira, juventude


desprovida de direitos básicos ao longo da história do país, escopo da
desigualdade socioeconômica do sistema de produção acatado pelo Estado e alvo
principal de sua criminalização penal.

Em relação ao mundo do trabalho, foco do presente do artigo, é notório e bastante


difundida a ocupação remuneratória no contexto da informalidade. Muitas vezes
aparenta ser esse o discurso único difundido nas grandes mídias: o local de

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350 Ygor Leonardo de Sousa - Hugo Cavalcanti Melo Filho

cabimento desses sujeitos é a informalidade, alegando justificativas, sem apontar


o caráter racial dos sujeitos.

Sendo assim, cabe reforçar que as diversas discriminações no mundo do trabalho


formal ultrapassam as discriminações enfrentadas na entrevista, desdobrando-se
principalmente na assunção de cargos de baixa remuneração.

Por exemplo, sabe-se que, mesmo com a queda nas taxas de desemprego no último
trimestre de 2022, a população de idade entre 18 e 24 anos segue sendo a mais
atingida pelo desemprego, com 19,3% de desempregados. Somado a isso, as
pessoas de cor branca permaneceram registrando a maior estimativa (58,5%) de
ocupação de emprego, no segundo trimestre de 2022, conforme os dados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Mostrando assim que até
mesmo em situações de melhoria na ocupação de empregos, a juventude negra
brasileira permanece sendo a mais atingida pelo desemprego.

Pode-se dizer que isso ocorre em relação a toda população negra, incluindo
homens e mulheres negras adultos, pois conforme explicita a doutora Cida Bento,

No entanto, é fundamental observar também que nos altos postos de


empresas, universidades, de poder público, enfim, em todas as esferas
sociais, temos, ao que parece, uma cota não explicitada de 100% para
brancos. Esses lugares de alta liderança são quase que exclusivamente
masculinos e brancos (Bento, 2022, p. 9-10).

No entanto, para melhor abordagem, optou-se por investigar a situação do jovem


negro que consegue alcançar o mercado formal, driblando diversas imposições
socioeconômicas do capital-Estado, considerando os dados divulgados pelo
Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho para averiguar qual o perfil racial,
etário e de gênero que ocupa as profissões mais perigosas no país, em busca de
comprovar que, até mesmo quando conseguem entrar no mercado formal, existe a
imposição das piores ocupações.

O artigo guia-se pelo conceito e noção de emprego digno, igualmente denominado


trabalho decente, em conformidade com os direitos previstos na Constituição
Federal e nas convenções da Organização Internacional do Trabalho. Elucidando,
é a relação empregatícia com direitos garantidos, remuneração justa, meio
ambiente de trabalho seguro, direito às férias, direito à hora-extra, recebimento de
seguro em caso de acidente de trabalho, contribuição previdenciária visando a
possibilidade de aposentadoria.

Nesse sentido, o presente trabalho insere-se na teoria jurídico-trabalhista crítica e


utilizará a teoria social crítica para analisar a situação da juventude negra brasileira

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sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica

no mundo do trabalho, a partir da interseccionalidade, permitindo tanto entender


quanto possibilitar o conhecimento para transformar a situação social analisada.

Em resumo, a interseccionalidade investiga como relações interseccionais de poder


influenciam as relações sociais em sociedades marcadas pela diversidade, bem
como as experiências individuais na vida cotidiana. Como ferramenta analítica, a
interseccionalidade considera que as categorias de raça, classe, gênero, faixa etária,
entre outras, são inter-relacionadas e moldam-se mutuamente (Collins, 2021).
Assim, a interseccionalidade é uma forma de entender e explicar algumas
complexidades envolvendo as pessoas e o mundo.

Por fim, o presente trabalho considera que as possibilidades atuais da juventude


negra brasileira são frutos do contexto neoliberal, também denominado sistema
capitalista de financeirização.

1 Juventude, trabalho e racismo no contexto


brasileiro

Compreende-se que não há mais uma definição de juventude homogênea, isto é,


não se resumem as vontades, pautas e especificidades das diferentes juventudes
brasileiras em apenas uma definição. Dessa forma, utiliza-se a nomenclatura
“Juventudes” na intenção de reconhecer a pluralidade envolvida nessas pessoas
que se enquadram, segundo o Estatuto da Juventude da Criança e do Adolescente
(Lei 8.069/90) e o Estatuto da Juventude (Lei 12.582/13), entre 15 e 29 anos.

No entanto, o presente trabalho tem por objetivo analisar a juventude negra


brasileira, especificamente abordando sua inserção no mundo do trabalho,
reconhecendo suas especificidades e averiguando a possibilidade de ser mais um
campo social reprodutor do racismo.

Além disso, pode-se afirmar que o desejo por um emprego digno perpassa todas
as juventudes, especialmente a juventude negra, na qual as gerações mais adultas
depositam expectativas de melhoria da situação socioeconômica.

Somado a isso, atualmente, a juventude brasileira representa em torno de 17% da


população, sendo sua maioria composta por pretos e pardos. Nota-se, assim, que
mesmo na complexidade e heterogeneidade das juventudes, essas são compostas
majoritariamente pela negritude.

Sabe-se que não é estranho ao atual sistema de produção, o capitalismo, formas


cruéis de exploração. Conforme expõe o professor Silvio de Almeida: “No
capitalismo dividem espaço e concorrem entre si trabalhadores assalariados bem

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pagos, mal pagos, muitíssimo mal pagos, escravizados, grandes, médios e


pequenos empresários, profissionais liberais etc.” (Almeida, 2019).

Assim, deve-se atentar para que

A ordem produzida pelo racismo não afeta apenas a sociedade em suas


relações exteriores-como no caso da colonização- mas atinge, sobretudo, a
sua configuração interna, estipulando padrões hierárquicos, naturalizando
formas históricas de dominação e justificando a intervenção estatal sobre
grupos sociais discriminados, como se pode observar no cotidiano das
populações negras (Almeida, 2019, p. 1788-1790).

Sendo assim, é necessário delimitar sobre qual trabalhadores se está falando,


quando se afirma que há desprovimento de direitos, há trabalho análogo à
escravidão, em resumo, quando aborda-se superexploração do trabalho no Brasil,
deve-se evidenciar de qual população estamos abordando para evitar
generalidades que não demonstram o verídico retrato populacional da
superexploração.

Nessa seara, importa utilizar a interseccionalidade enquanto ferramenta analítica.


Por isso a escolha de abordagem da juventude negra, por meio da qual se pode ter
um entendimento robusto sobre a imbricação entre classe e racismo, refutando a
ideologia da democracia racial no Brasil. Nesse sentido, a ideologia da democracia
racial se imbrica com o capitalismo industrial brasileiro nos anos 1930, conforme
apontado por Silvio Almeida:

(...) é fundamental que se entenda que a democracia racial não se refere


apenas a questões de ordem moral. Trata-se de um esquema muito mais
complexo, que envolve a reorganização de estratégias de dominação
política, econômica e racial adaptadas a circunstâncias históricas
específicas. No caso, o surgimento do discurso da democracia racial, que
ainda hoje é tido como um elemento da identidade brasileira, coincide com
o início do projeto de adaptação da sociedade e do Estado brasileiro ao
capitalismo industrial ocorrido nos anos 1930 (Almeida, 2019, p. 1799-
1801).

Sendo assim, percebe-se o quanto o racismo é elemento fundador do Estado


brasileiro, produzindo, inclusive, um discurso legitimador da desigualdade racial.
Ressalta-se, assim, a importância da interseccionalidade na abordagem da
juventude negra brasileira no mercado de trabalho, onde podemos visualizar a
forma pela qual o indivíduo é inserido na sociabilidade governada pelo
capitalismo, tendo controle sobre os corpos que estão entregues ao trabalho
assalariado.

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sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica

Nesse sentido, importa ressaltar que o racismo é elemento constitutivo da


sociedade moderna e do capitalismo, implicando assim que “não é o racismo
estranho à formação social de qualquer Estado capitalista, mas um fator estrutural,
que organiza as relações políticas e econômicas” (Almeida, 2019, p. 1818-1819).

Diante disso, apesar do atual Direito do Trabalho ser produto da forma


organizativa da sociedade capitalista e possuir como função principal a proteção
do hipossuficiente na relação assimétrica entre os detentores do capital, os
empregadores, e aqueles detentores da força de trabalho, os empregados, acaba
por reproduzir a manutenção da desigualdade racial presente na sociedade
brasileira.

Significa dizer que a proteção jurídica proporcionada pelas conquistas dos


movimentos coletivos dos trabalhadores e consolidadas em lei não é
experimentada da mesma forma pela população. A desigualdade racial presente
na sociedade brasileira pode ser visualizada no cenário de inserção no mercado de
trabalho experimentada pela população negra e isso pode ser afirmado com base
em dados empíricos.

A título de exemplo, os dados informados pela última Pesquisa Nacional por


Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), divulgada em 18 de maio de
2023, apontam que, mesmo com as melhorias na empregabilidade no país, a
maioria dos desocupados são mulheres e pretos e pardos.

No mesmo sentido o diagnóstico realizado sobre dados específicos da


empregabilidade de jovens no Brasil, feito pela Subsecretaria de Estatísticas e
Estudos do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego, aponta que são 5,2
milhões de jovens desempregados, a maioria de mulheres (52%) e negros e pardos
(66%).

Percebe-se, assim, que até mesmo no cenário de melhoria do mercado de trabalho,


os jovens negros e pardos, assim como as mulheres, seguem sendo os principais
desfavorecidos, o que evidencia a relação entre o racismo e a subsunção real do
trabalho ao capital, sendo sua identidade definida conforme os padrões de
funcionamento da produção capitalista. A propósito, eis a opinião de Almeida:

Por esse motivo é que o racismo enquanto dominação convive


pacificamente com a subjetividade jurídica, as normas estatais, a
impessoalidade da técnica jurídica e a afirmação universal dos direitos do
homem, elementos diretamente ligados ao processo de abstração do
trabalho (Almeida, 2019, p. 1832-1834).

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354 Ygor Leonardo de Sousa - Hugo Cavalcanti Melo Filho

Portanto, sob a ótica da interseccionalidade, apontamos a insuficiência atual do


Direito do Trabalho em reparar a desigualdade socioeconômica provocada pelo
sistema de produção e desdobrada na inserção da juventude negra no mercado de
trabalho. Demonstrada, inicialmente, sua recusa, seu desprovimento, cumpre,
agora, passar a abordar de qual maneira encontra-se a parcela minoritária dessa
juventude que consegue ocupar o mercado de trabalho formal. Antecipa-se que a
hipótese aqui adotada é a de que o espaço ocupado por essa juventude na
formalidade jurídica trabalhista é afastado dos empregos dignos e situado nos
empregos mais perigosos. Para este fim, considera-se, emprego perigoso aquele,
com maiores incidência de Comunicações de Acidente de Trabalho (CAT), isto é,
o documento oficial emitido pela empresa para a Previdência Social (INSS),
reconhecendo um acidente de trabalho, bem como uma doença ocupacional. Dessa
forma, trata-se de análise dos números oficiais divulgados pelo Observatório de
Segurança e Saúde no Trabalho, desenvolvido pela iniciativa SmartLab de
Trabalho Decente, iniciativa conjunta do Ministério Público do Trabalho e da
Organização Internacional do Trabalho-Brasil.

2 Resultados, análise e discussão

Previamente, observemos os dados referente aos resgatados do trabalho análogo à


escravidão na pesquisa do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do
Tráfico de pessoas da Plataforma SmartLab. Inicialmente, o gráfico indica o perfil
das vítimas, quanto à raça dos resgatados do trabalho análogo à escravidão, no
período de 2002-2022:

Gráfico 1
Resgatados – Raça

Indígena
3%

Amarela
12%

Branca Parda
21% 50%

Preta
14%

Fonte: Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de pessoas da


Plataforma SmartLab

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Uma discussão urgente: as possibilidades da juventude negra no mundo do trabalho brasileiro 355
sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica

Nota-se, assim, que metade dos resgatados são pardos que somados aos 14% de
negros, perfazem 64% dos resgatados, o que demonstra que a negritude do país
contribui para a maioria dos resgatados do trabalho análogo à escravidão, bem
como o local de precariedade no mundo do trabalho brasileiro ocupado pela
população negra.

Prosseguindo-se sob à ótica interseccional, convém averiguar a faixa etária e o


gênero desses resgatados, no período de 2002 a 2022:

Gráfico 2
Resgatados – Perfil etário e de gênero

Feminino Masculino

>60
55-59
50-54
45-49
40-44
35-39
30-34
25-29
18-24
<18

0 2.000 4.000 6.000 8.000 10.000 12.000

Fonte: Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de pessoas da


Plataforma SmartLab.

A partir dos dados acima, é possível notar que a juventude masculina, entre 18 e
29 anos, foi a principal força de trabalho empregada para o trabalho em condições
análogas à de escravo nas últimas duas décadas, o que possibilita afirmar que a
população negra é a principal força de trabalho em condições extenuantes.

A análise interseccional dos dados oficiais, provenientes dos bancos de dados do


Seguro-Desemprego do Trabalhador Resgatado, do Sistema de Acompanhamento
do Trabalho Escravo (SISACTE) e do Sistema COETE (Controle de Erradicação do
Trabalho Escravo), disponibilizados pelo Ministério Público do Trabalho, tratados

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356 Ygor Leonardo de Sousa - Hugo Cavalcanti Melo Filho

e analisados pela SmartLab, que abordam o perfil etário, de gênero e de raça,


possibilita constatar a dimensão de precarização do trabalho da juventude negra.

A juventude negra é a mais atingida pelo trabalho em condições análogas à de


escravo. Assim, é possível admitir que a ausência de análise acerca da ocupação
dos ofícios mais perigosos no mercado de trabalho formal pela juventude negra
perpassa um processo amplo de anuência com a desigualdade racial.

Diante dessa análise preliminar, deve-se observar os dados disponibilizados pelo


Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho para averiguar quais são as
profissões mais perigosas, a partir das comunicações de acidente de trabalho
(CAT), no período entre 2012 e 2022.

Primeiro, atente-se ao quadro geral de profissões. Pelas limitações analíticas e


metodológicas do presente artigo, não é possível a análise extensiva das diversas
categorias explanadas no gráfico abaixo. Por isso, foram escolhidas as quatro
primeiras profissões com maior número de CATs registrados:

Figura 1
Os percentuais de participação das diferentes ocupações nas notificações de acidente no
período de 2012-2022

Fonte: Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho da Plataforma SmartLab

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sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica

Gráfico 3
Ocupações mais frequentemente citadas em notificações de acidente de trabalho no
período de 2012-2022

313.654

307.115

181.121

137.852
TÉCNICO DE ALIMENTADOR DE FAXINEIRO SERVENTE DE
ENFERMAGEM PRODUÇÃO OBRAS

Fonte: Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho da Plataforma SmartLab

Considerado esse cenário, percebe-se a ausência do perfil racial na divulgação dos


dados, o que é encontrado facilmente na divulgação dos dados relativos ao
trabalho análogo ao escravo. Isso pode ter ocorrido por desalinho da plataforma
no tratamento de dados, pela falta de interesse na delimitação do perfil racial,
advindo da normalização da desigualdade racial, ou até mesmo pela dificuldade
na disponibilização dos dados envolvendo o perfil racial. De qualquer modo, este
trabalho possui o objetivo de compensar tal insuficiência, dentro dos limites da
pesquisa, a partir do cruzamento de dados anteriormente disponibilizados.

Por conseguinte, passa-se a examinar o perfil racial das quatro profissões com mais
comunicações de acidente de trabalho, de 2012 a 2022, para se constatar se há
presença majoritária da juventude negra nessas profissões, aqui consideradas
como as mais perigosas do mercado formal, na última década.

Primordialmente, constata-se que a ocupação com mais comunicações


corresponde ao perfil do técnico de enfermagem, conforme dados disponíveis no
Relatório final da Pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil (Machado, 2017),
produzido em 2016 e publicado em 2017, elaborado pela Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz) e pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), no Rio de Janeiro.
Vejamos:

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358 Ygor Leonardo de Sousa - Hugo Cavalcanti Melo Filho

Gráfico 4
Auxiliares e Técnicos de Enfermagem segundo Cor ou Raça – Brasil

Indígena
1%

Branca
Parda 38%
46%

Preta
13%

Amarela
2%
Fonte: Relatório final da Pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil - FIOCRUZ/COFEN

Gráfico 5
Auxiliares e Técnicos de Enfermagem segundo Gênero
NR
0%

Masculino
15%

Feminino
85%

Fonte: Relatório final da Pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil - FIOCRUZ/COFEN

Nota-se, a partir dos dados disponibilizados nos gráficos, que a maioria dos
técnicos de enfermagem pertence à população negra, pois 44,5% declaram-se
pardos e 12,9% declaram-se pretos. Nesse sentido, para esta análise, importa sejam
somados os pretos e pardos, com o que esse percentual atinge 57,4% da categoria.

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sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica

Somado a isso, há preponderância do gênero feminino no labor, isto é, cerca de


84,7% dos técnicos de enfermagem no Brasil são mulheres, importante constatação
em termos de análise interseccional, pois há uma presença majoritária das
mulheres negras na categoria profissional com mais comunicações de acidentes de
trabalho, o que leva à conclusão de que as mulheres negras ocupam uma das
profissões mais perigosas do mercado formal de trabalho brasileiro.

Nesse sentido, pode-se afirmar que a categoria de técnico de enfermagem é


majoritariamente negra, mesmo que não seja majoritariamente jovem, a qual
ocupa aproximadamente 25% da categoria. Trata-se de um dado importante para
esta análise, que pode ser justificado pela necessidade de anos de estudos de
formação profissional para o início do exercício profissional enquanto técnica de
enfermagem.

No entanto, quando analisados os dados que mostram a faixa etária com mais
notificações de acidentes de trabalho apurados no país, considerado o universo de
trabalhadores com vínculo de emprego, incluídos também os técnicos de
enfermagem, no período de 2012-2022, percebe-se a maior incidência na faixa de
18 a 29 anos e do gênero masculino.

No gráfico, observe-se a pirâmide com as faixas etárias e o gênero:

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360 Ygor Leonardo de Sousa - Hugo Cavalcanti Melo Filho

Gráfico 6
Notificações de Acidente de Trabalho por idade e gênero

Feminino Masculino

>60
55-59
50-54
45-49
40-44
35-39
30-34
25-29
18-24
<18

0 100.000 200.000 300.000 400.000 500.000 600.000 700.000 800.000 900.000

Fonte: Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho da Plataforma SmartLab

Nesse sentido, mesmo que a ocupação técnica de enfermagem não tenha a


composição majoritária de jovens, observando-se o gráfico anterior que soma os
dados de todas as categorias, trata-se de importante indicativo inicial que os jovens
negros consistem em parcela significativa dos afetados, necessitando novas
pesquisas para aprofundamento da questão de que a juventude negra pode ser a
maior vítima dos acidentes de trabalho.

Em segundo lugar, a segunda ocupação com mais notificações de acidente de


trabalho, é a de alimentador de linha de produção, que consiste na preparação de
materiais para alimentação de linhas de produção, organização da área de serviço;
abastecimento das linhas de produção, alimentação das máquinas e separação de
materiais para reaproveitamento. No entanto, não foi encontrado dados acerca do
perfil da categoria, o que leva a crer que existe uma falta de interesse na
delimitação do perfil racial, advinda da normalização da desigualdade racial nos
ofícios mais perigosos para trabalhar. Diante disso, não será possível analisar a
categoria de alimentador de linha de produção, no presente trabalho.

Quanto à terceira ocupação mais perigosa, de faxineiro, pode-se reafirmar o que


foi dito sobre a categoria anterior, corroborando a dificuldade na disponibilização
de dados pelas instituições de pesquisa brasileiras referentes a essas categorias.

No entanto, encontram-se dados disponibilizados pelo Sistema Pesquisa de


Emprego e Desemprego – Sistema PED, realizado através do Convênio entre o

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Uma discussão urgente: as possibilidades da juventude negra no mundo do trabalho brasileiro 361
sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica

Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), a


Fundação Seade, o Ministério do Trabalho (MTE/FAT) e parceiros regionais no
Distrito Federal e nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto
Alegre, Recife, Salvador e São Paulo.

Os dados foram divulgados em novembro de 2013 e abordam o biênio 2011-2012.


Embora tratando de um período longínquo, a mudança no perfil da categoria não
deve ter sofrido grandes mudanças quanto à sua proporcionalidade. Eis os dados
disponíveis:

Gráfico 7
Proporção de ocupados negros e não negros em ocupações selecionadas Regiões
Metropolitanas

FAXINEIROS, LIXEIROS, SERVENTES,


CAMAREIROS, EMPREGADOS DOMÉSTICOS NOS
SERVIÇOS

Negros Não Negros

22,8
20,4

19,5
17,9
17

15,6

11,1
9,8
9,6
8,6

7
5,6
3,9

BELO DISTRITO FORTALEZA PORTO ALEGRE RECIFE SALVADOR SÃO PAULO


HORIZONTE FEDERAL

Fonte: DIEESE/ SEADE, MTE/FAT e entidades regionais. PED- Pesquisa de Emprego e


Desemprego.

Importa destacar que a pesquisa corresponde ao total das Regiões Metropolitanas


de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador, São Paulo e Distrito
Federal. Nesse sentido, será considerado que, possivelmente, essa proporção se
replica no restante do país. É possível indicar, então, que a ocupação de faxineiro
é majoritariamente exercida por pessoas negras.

Mesmo não disponibilizando pesquisa por faixa etária, observando os dados


gerais apresentados anteriormente (Gráfico 2), concerne uma indicação da
juventude negra como presumivelmente mais atingida pelos acidentes de
trabalho, devendo ter pesquisas na área para maior aprofundamento da discussão.

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Por último, em relação à categoria de servente de obra, importante ofício


desempenhado na indústria da construção civil, constata-se a falta de interesse na
delimitação do perfil racial, com ausência de dados atualizados em relação à
categoria.

Encontram-se, também, nos dados disponibilizados pelo Sistema Pesquisa de


Emprego e Desemprego – Sistema PED, realizado através do Convênio entre o
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), a
Fundação Seade, o Ministério do Trabalho (MTE/FAT) e parceiros regionais, o
perfil racial do servente de obras nas regiões metropolitanas pesquisadas. Veja-se:

Gráfico 8
Proporção de ocupados negros e não negros em ocupações selecionadas Regiões
Metropolitanas

PEDREIROS, SERVENTES, PINTORES, CAIADORES


E TRABALHADORES BRAÇAIS NA CONSTRUÇÃO

Negros Não Negros

67,4
62,2

61,9
61,2
60,8

55,6
54,5

52,7

52,6
38,6

36,2
29,4

23,3

Fonte: DIEESE/ SEADE, MTE/FAT e entidades regionais. PED- Pesquisa de Emprego e


Desemprego.

Portanto, examinando os dados disponíveis, pode-se concluir que, com a exceção


da região Metropolitana de Porto Alegre, os serventes de obras são,
majoritariamente, negros, havendo mais de 10% de diferença quantitativa em
relação à população não negra.

Utilizando o mesmo prognóstico utilizado na análise da categoria anterior, de


faxineiro, nessa também é possível ponderar que o resultado, na maioria das
regiões metropolitanas analisadas, reproduz a situação do restante do país.

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Uma discussão urgente: as possibilidades da juventude negra no mundo do trabalho brasileiro 363
sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica

Assim como ocorreu com os faxineiros, não estavam disponibilizados na pesquisa


dados por faixa etária. Assim, foi considerada a proporcionalidade dos dados do
SmartLab apresentados anteriormente (Gráfico 2) para o indício inicial de que a
juventude negra é, presumivelmente, mais atingida pelos acidentes de trabalho,
também nessa categoria, necessitando igualmente de aprofundamento com a
realização de maiores pesquisas.

É importante destacar que essas últimas ocupações analisadas são


predominantemente de atividades que exigem grande desgaste físico,
distanciando-se de atividades criativas. Nota-se, então, que, além do desgaste
físico produtor de debilidades na saúde física e mental do trabalhador, são
atividades de maior risco no mercado de trabalho formal, devido ao maior número
de notificações de acidente de trabalho.

Em suma, observa-se indícios que as categorias com maior número de notificações


de acidente de trabalho são ocupadas majoritariamente por pessoas negras, assim
como o maior número de notificações está concentrados nos jovens de 18 a 29 anos,
especialmente os homens negros. Ressalte-se a dificuldade para obter dados das
categorias, mesmo sendo essas de elevada importância para compreender
integralmente os sujeitos diretamente envolvidos, assim como para pensar uma
proteção jurídico trabalhista que contemple verdadeiramente esses sujeitos.

Urge, portanto, debater o antirracismo no arcabouço protetivo do Direito do


Trabalho brasileiro, pois o país segue mantendo a estrutura de desigualdade racial
que reverbera no mundo do trabalho. Assim como, a própria busca por um
trabalho libertado da alienação e da coisificação.

Embora o próprio Direito do Trabalho confira legitimidade às condições de


exploração dos trabalhadores, perpetuando assim o atual sistema econômico,
ainda assim ele tem função fundamental de salvaguarda do trabalhador no sistema
de exploração da força de trabalho, mantendo-a nos limites do suportável
(Cavalcanti, 2021). Nesse sentido,

(...) imprescindível questionar a insuficiência do objeto de proteção do


direito do trabalho, teorizado a partir do trabalho subordinado-assalariado
e que se volta exclusivamente para a regulação das relações sociais
estabelecidas entre empregado e empregador, não se mostrando adequado
ao contexto social atual e contribuindo para acentuação da opressão da
dominação e da exclusão (Cavalcanti, 2021, p. 205).

Dessa forma, o Direito do Trabalho eleito como objeto do campo o trabalho


contraditoriamente livre/subordinado, que se tornou o ethos fundamental da
convivência das pessoas em sociedade, foi uniformizado, universalizado pela

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doutrina jurídico-trabalhista clássica. No entanto, a presente pesquisa é


possibilitada alicerçado nas evidências empíricas e analíticas presentes nos
diversos estudos produzidos no âmbito da teoria jurídico-trabalhista crítica.

A teoria jurídico-trabalhista crítica abarca um campo de pesquisas que se


desenvolveram a partir da valorosa produção acadêmica do professor Everaldo
Gaspar, em especial na trilogia formada pelas obras Direito do Trabalho e pós-
modernidade: fundamentos para a teoria geral; Princípios de Direito do Trabalho:
fundamentos teórico-filosóficos e o Direito do Trabalho na filosofia e na teoria
social crítica.

Aponta-se a necessidade de expansão e até mesmo a superação do objeto eleito


como lócus privilegiado da sociabilidade e protetivo do Direito do Trabalho,
reconhecendo que o trabalho livre/ subordinado é produto de um momento
histórico da sociedade. Devendo o Direito do Trabalho ampliar e proteger outras
relações de trabalho, assim como a constante busca pelo fim do trabalho
exploratório e degradante. Nesses termos, afirma Everaldo Gaspar:

instituir e desenvolver movimentos emancipatórios e contra-hegemônicos


destinados a combater o ultraliberalismo global e a fundar um novo
modelo de convivência entre os humanos, que não deverá estar mais
centrada na subordinação da força do trabalho ao capital – que revela
apenas o seu lado penoso e caracterizado como um fardo –, mas, no
trabalho em sua dimensão e constituição ontológicas, que possa apreender
o ser da própria existência humana como um todo, a sua essência, e
promova, como disse antes Marcuse, a sua realização plena e livre no seu
mundo histórico (Andrade, 2012, p. 25).

Nesse sentido, mesmo tendo sido eleito objeto prioritário do campo jurídico,
percebe-se ausência de pesquisas refletindo acerca da sua própria eficiência no
plano fático enquanto resposta jurídica para os trabalhadores. Levando-nos ao
campo crítico do Direito do Trabalho e a necessidade de reconstruí-lo para
proteger efetivamente todas as pessoas que necessitam viver de um trabalho.

Por essa razão, elegeu-se a investigação interseccional para revelar o caráter fático
do trabalho livre e subordinado alcançado pelo Direito do Trabalho brasileiro, isto
é, de qual maneira a proteção legal tem ocorrido, pois se não alcança mais a maioria
da população com as diversas formas de trabalho existente no neoliberalismo,
tampouco sua própria existência alcança toda a população do mercado formal de
maneira igual, em especial a população negra e jovem.

À vista disso, realizar o cruzamento de dados envolvendo raça, idade, gênero e


classe por meio de processos relacionais de adição ao estudo do direito do trabalho

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Uma discussão urgente: as possibilidades da juventude negra no mundo do trabalho brasileiro 365
sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica

é um desafio, pois trata-se de adicionar a interseccionalidade a um campo bem


estabelecido. Ainda mais quando esmiuça o trabalho protegido legalmente no
mundo fático. Assim, conforme aponta Collins:

No entanto, quando se trata de aplicar estratégias aditivas a corpos de


conhecimento criados por comunidades de investigação, estas assumem
um significado diferente. Por exemplo, adicionar a interseccionalidade a
um campo bem estabelecido pode gerar debates sobre estruturas
consideradas já como certas. (...) A própria interseccionalidade surgiu
como um campo de investigação que inicialmente agregou o que havia se
separado. Antes do surgimento da interseccionalidade, classe, raça e
gênero funcionavam como categorias dominantes ou mestras, com suas
próprias preocupações e comunidades de investigação. No entanto, como
cada uma dessas categorias tem uma genealogia distinta, seu processo de
adição esclarece vários aspectos do processo aditivo (Collins, 2022, p. 314).

Com isso, a estratégia interseccional de pensamento relacional por adição é uma


ferramenta válida para refletir acerca das relações de poder. Examinar como se
organiza e opera o trabalho no mundo fático-jurídico a partir de uma população é
uma direção provocativa para o campo do trabalho na ciência jurídica trabalhista
(Collins, 2022, p.345). Por essa razão, a presente discussão utilizou-se do
cruzamento de dados para minuciar acerca da proteção normativa do trabalho
assalariado brasileiro e a condição da juventude negra.

Em recente pesquisa divulgada, comprova-se que níveis mais altos de escolaridade


por parte da população negra não são suficientes para superar a desigualdade de
raça e gênero, permanecendo menor segurança alimentar nos lares comandados
por mulheres negras. A pesquisa, assim, nos traz indicativos de que a situação da
população não é definida apenas pelo de nível de escolaridade.

Em todos os níveis de instrução, a taxa de desocupação é mais elevada entre a


população preta ou parda do que entre a população que se autodeclara branca,
segundo dados da Síntese de Indicadores Sociais (SIS), divulgada pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2022. Veja-se:

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Gráfico 9
Taxa de desocupação, por cor ou raça, segundo os níveis de instrução- Brasil- 2021

Branca Preta ou Parda

20,8

17,6
16,6
16,3

15,2

13,4
11,3

10,5

8,3
6,6
TOTAL SEM INSTRUÇÃO ENSINO ENSINO MÉDIO ENSINO SUPERIOR
OU ENSINO FUNDAMENTAL COMPLETO OU COMPLETO
FUNDAMENTAL COMPLETO OU ENSINO SUPERIOR
INCOMPLETO ENSINO MÉDIO INCOMPLETO
INCOMPLETO

Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, Publicado em


12/08/2022

Somado a isso, pode-se observar os dados relativos ao rendimento-hora média real


do trabalho, segundo o nível de instrução, para se constatar que há uma diferença
entre o rendimento das populações, segundo o caráter racial.

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Gráfico 10
Rendimento-hora médio real do trabalho principal das pessoas ocupadas, por cor ou
raça, segundo o nível de instrução- Brasil- 2021

Branca Preta ou parda

34,4
24,5
19
11,2

13
9,9

9,9
9,2

8,2
7,3

TOTAL SEM INSTRUÇÃO FUNDAMENTAL MÉDIO COMPLETO SUPERIOR


OU COMPLETO OU OU SUPERIOR COMPLETO
FUNDAMENTAL MÉDIO INCOMPLETO
INCOMPLETO INCOMPLETO

Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, Publicado em


12/08/2022

Pode-se dizer que deve ser afastada a hipótese de que os cargos de ocupação no
trabalho formal analisados no presente artigo são ocupados meramente pelo nível
de instrução da população negra. Prosseguir nessa hipótese é um equívoco, pois é
de se observar que a população negra, mesmo com o nível de instrução
semelhante, encontra-se mais desocupada e recebe menos.

Pode-se, a partir desses resultados, e na perspectiva da interseccionalidade,


pressupor que a ocupação das profissões mais perigosas por pessoas negras não é
mero resultado do nível de instrução, senão da persistência da segregação racial
no mercado de trabalho, resultante de um modo de funcionamento do sistema
econômico que impera sobre o mercado de trabalho e sobre o direito do trabalho,
enquanto exercício de poder e regra de inserção no mundo do trabalho.

Considerações finais

Longe de um ponto final no debate que precisa ser feito, o presente artigo
configura a tentativa de ampliar a discussão acerca do racismo no mundo do
trabalho brasileiro, a partir da teoria jurídico-trabalhista crítica e sob a ótica da
interseccionalidade. A opção metodológica deste artigo foi a de utilização de dados
oficiais advindos do mercado de trabalho formal, uma vez que o debate sobre a

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participação da juventude negra no mercado de trabalho, no mais das vezes, acaba


se restringindo ao trabalho informal.

Conforme exposto, há uma ausência de dados provenientes dos institutos de


pesquisa caracterizando o perfil racial de algumas profissões, por coincidência as
profissões que mais apresentam notificações de acidente de trabalho. Necessita-se,
assim, de mais pesquisas nesse campo para aprofundamento do tema. Bastante
significativa tal constatação, pois leva à consideração importante de que há uma
normalização da desigualdade racial, proveniente da ideologia da democracia
racial enraizada juntamente com o capitalismo brasileiro, deixando de dar a devida
importância à para a produção de dados e consequente análise do contexto racial
brasileiro, a partir da perspectiva trabalhista.

Sendo assim, a partir do banco de dados disponíveis, foi possível confirmar a


hipótese previamente levantada, ou seja, a de que as profissões mais perigosas, nos
últimos anos, considerado o perigo a partir das comunicações de acidente de
trabalho (CAT), foram majoritariamente ocupadas pela população negra, em
especial pela juventude negra, que possui possibilidades reduzidas, restando-lhe
as profissões mais perigosas no mercado de trabalho formal brasileiro.

Considerou-se, ainda, que as taxas de trabalho análogo à escravidão permitem a


normalização da ocupação desse lugar precário pelos negros, em especial pelos
jovens. Há um nivelamento rebaixado, automaticamente, em comparação à
população não-negra, ocorrendo uma imposição para a aceitação das condições,
pois trata-se de melhor situação diante da informalidade ou do trabalho análogo à
escravidão.

Nesse sentido, há uma visível limitação da hegemônica teoria jurídico-trabalhista


clássica, consequentemente do atual Direito do Trabalho, que acaba por não
cumprir com seu caráter protecionista na relação assimétrica ainda mais
persistente entre o trabalhador negro brasileiro e seu respectivo empregador, de
modo que o próprio objetivo do direito do trabalho, de proteção do trabalho
subordinado-assalariado, não se efetiva, o que acentua o processo de dominação
racial.

Impõe-se, assim, no atual cenário brasileiro, a exemplo do que se fez com a Lei
14.611/2023, produzida na busca pela igualdade salarial entre homens e mulheres,
e da decisão judicial do Tribunal Superior do Trabalho que reconheceu o racismo
estrutural, o avanço nas proposições acerca das desigualdades raciais trabalhistas,
nas esferas de atuações dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), para
a desconstrução do permanente estado da desigualdade racial.

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Referências

ANDRADE, Everaldo Gaspar Lopes de. O direito do trabalho na filosofia e na


teoria social crítica: os sentidos do trabalho subordinado na cultura e no poder
das organizações. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v. 78, n. 3, p.
37-63, jul./set. 2012

ABDALA, Vitor. Desemprego é maior entre mulher e negros. Agência Brasil, maio
de 2023, Rio de Janeiro. Disponível em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-05/desemprego-e-maior-
entre-mulheres-e-negros-diz-ibge. Acesso em: 22 jun. 2023.

ALBUQUERQUE, Flavia. Pesquisa mostra 5,2 milhões de jovens entre 14 e 24


anos sem emprego. Agência Brasil, São Paulo, maio de 2023. Disponível em:
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Uma discussão urgente: as possibilidades da juventude negra no mundo do trabalho brasileiro 371
sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica

Sobre os autores
Ygor Leonardo de Sousa Araujo
Mestrando em Direito na Universidade Federal de Pernambuco.
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.
Participação e atuação principalmente nos seguintes temas: uberização
do trabalho, direito do trabalho, processo do trabalho, direitos
humanos, reforma trabalhista e acesso à justiça.

Contribuição de coautoria: construção do instrumento metodológico,


pesquisa, redação, observação e registro de dados, organização de
dados.

Hugo Cavalcanti Melo Filho


Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (1991).
Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco
(2002). Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de
Pernambuco (2013). Realizou estágio Pós-Doutoral na Universidade de
Roma (La Sapienza), sob a coordenação do Prof. Fabio Petrucci e
supervisão do Prof. Pasquale Sandulli (2015, 2016 e 2017). Atualmente é
Coordenador de Ensino do Centro de Ciências Jurídicas da UFPE e
Professor Associado de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito do
Recife (UFPE), Professor Titular e Permanente do Programa de Pós-
graduação em Direito da UFPE.

Contribuição de coautoria: construção do instrumento metodológica,


organização e análise de dados, redação, revisão, supervisão.

_________________
Agradecimentos
Participantes do Grupo de Pesquisa Direito do Trabalho e Teoria Social Crítica
da UFPE.

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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.49674

dossiê

Pactos narcísicos, violência antinegra e a


atuação da magistratura na
criminalização de um homem morto em
uma operação policial no Rio
Pactos narcisistas, violencia anti-negra y la
actuación del poder judicial en la criminalización de
un hombre asesinado en un operativo policial en Río

Narcissistic pacts, anti-black violence and the


performance of the judiciary in the criminalization of
a man killed in a police operation in Rio

Luciana Costa Fernandes1


1
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Departamento de Ciências
Jurídicas, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1364-
7420.

Submetido em 08/07/2023
Aceito em 11/01/2024

Como citar este trabalho


FERNANDES, Luciana Costa. Pactos narcísicos, violência antinegra e a atuação da
magistratura na criminalização de um homem morto em uma operação policial no
Rio. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 373-396,
jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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374 Luciana Costa Fernandes

Pactos narcísicos, violência antinegra e a


atuação da magistratura na
criminalização de um homem morto em
uma operação policial no Rio

Resumo
Neste artigo, debato como foram construídas as narrativas de dois juízes, em um caso que
relatou a morte de um jovem negro preso e criminalizado como “traficante”, no contexto
de uma operação policial em uma favela da zona norte do Rio de Janeiro, não obstante já
estivesse sem vida. Analiso duas decisões e reflito sobre o papel que categorias jurídico-
normativas tiveram - como sistematicamente têm - para a construção dos pactos que
sustentam a hermenêutica jurídica da branquitude e o solipsismo branco. Bem como a
maneira como têm contingenciado a atuação da magistratura, nas tramas destas incursões,
produzindo discursivamente os repertórios judiciais que concluem a ontologia da
antinegritude, ao passo que mantém preservada a supremacia branca como eixo desta
instituição.
Palavras-chave
Operações policiais. Branquitude. Antinegritude. Política de drogas.

Resumen
En este artículo discuto cómo se construyeron las narrativas de dos jueces, en un caso que
denunció la muerte de un joven negro, quien fue detenido y criminalizado como
“narcotraficante”, en el contexto de un operativo policial en una favela. en la zona norte de
Río de Janeiro, a pesar de estar ya sin vida. Analizo dos decisiones y reflexiono sobre el
papel que las categorías jurídico-normativas tuvieron -como lo tienen sistemáticamente-
en la construcción de pactos que sustentan la hermenéutica jurídica de la blanquitud y el
solipsismo blanco. Así como la forma en que han restringido la actuación del poder
judicial, en las tramas de estas incursiones, produciendo discursivamente los repertorios
judiciales que completan la ontología de la antinegritud, conservando la supremacía blanca
como eje de esta institución.
Palabras-clave
Operaciones policiales. Blanquitud. Antinegritud. Política de drogas.

Abstract
In this article, I discuss how the narratives of two judges were constructed, in a case that
reported the death of a young black man, who was arrested and criminalized as a “drug
dealer”, in the context of a police operation in a favela in the northern zone of Rio de
Janeiro. Janeiro, despite already being lifeless. I analyze two decisions and reflect on the
role that legal-normative categories had - as they systematically have - in the construction
of pacts that support the legal hermeneutics of whiteness and white solipsism. As well as
the way in which they have restricted the performance of the judiciary, in the plots of these
incursions, discursively producing the judicial repertoires that complete the ontology of
anti-blackness, while preserving white supremacy as the axis of this institution.
Keywords
Police operations. Whiteness. Antiblackness. Drug policy.

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Pactos narcísicos, violência antinegra e a atuação da magistratura na criminalização de um 375
homem morto em uma operação policial no Rio

Introdução

Há mais de três décadas, no Brasil e, especialmente, no Rio de Janeiro, operações


policiais tornaram-se centros angulares da gestão da segurança pública (Hirata;
Grillo; Dirk, 2020), esgarçando as tramas sanguinárias da espacialização da
violência que é voltada, sobretudo, contra corpos e territórios negros1. Neste
contexto, é a política de drogas que vem se apresentando com suficiente capital
político e simbólico, capaz de complexificar a teia de recursos necessários para a
implementação dos nós entre planejamento urbano e segurança, através daquilo o
que Jaime Amparo se referiu como uma “dialética espacial fundada na racialização
do medo e na criminalização da raça” (Amparo, 2011, p. 115)

A “perseguição ao varejo de entorpecentes” tem se mostrado particularmente


capaz de promover os aliciamentos entre as táticas de terror e alterocídio
(Mbembe, 2018, p. 27) que podem encontrar, nas disputas pelos usos do território
(Santos, 2006, p. 03), importante representação material e simbólica. Dentre outros
motivos, o primeiro que importa destacar diz respeito à dinâmica deste mercado
ilegal, que tem uma inscrição geográfica visível nos pontos de venda - construídos,
discursivamente, no caso do Rio, como se exclusivo das “bocas” ou “pontos” em
favelas (Hirata, 2014). Segundo, de uma cultura de guerra às drogas que, há mais
de meio século, tem inculcado um paradigma especialmente beligerante,
sensacionalista e de constante construção das lógicas da inimizade2, direcionada

1 Embora não tenha espaço para desenvolver com maior densidade a construção da categoria
“território negro”, lanço mão aqui da citação de Raquel Rolnik, cuja produção é central para este
trabalho: “Usamos para isso a noção de território urbano, uma geografia feita de linhas divisórias
e demarcações que não só contém a vida social mas nela intervém, como uma espécie de notação
das relações que se estabeleceram entre os indivíduos que ocupam tal espaço. A história da
comunidade negra é marcada pela estigmatização de seus territórios na cidade: se, no mundo
escravocrata, devir negro era sinônimo de subumanidade e barbárie, na República do trabalho
livre, negro virou marca de marginalidade. O estigma foi formulado a partir de um discurso
etnocêntrico e de uma prática repressiva; do olhar vigilante do senhor na senzala ao pânico do
sanitarista em visita ao cortiço; do registro esquadrinhador do planejador urbano à violência das
viaturas policiais nas vilas e favelas. Para a cidade, território marginal é território perigoso,
porque é daí, desse espaço definido por quem lá mora como desorganizado, promíscuo e imoral,
que pode nascer uma força disruptiva sem limite. Assim se institui uma espécie de apartheid
velado que, se por um lado, confina a comunidade à posição estigmatizada de marginal, por
outro, nem reconhece a existência de seu território, espaço-quilombo singular” (RONILK, 2010,
p. 88-89).
2 O livro “Políticas da Inimizade” de Achille Mbembe (2020) é um dos mais centrais para a algumas
das minhas atuais formulações sobre política de drogas brasileira, especialmente com o que o
projeto das operações policiais no Rio tem desvelado. Mbembe resgata as bases fanonianas e tece
as relações com o estágio atual do neoliberalismo a partir da categoria do phármakon, para
destacar o modo como as guerras, desde o terror colonial, tornaram-se sacramentos - e, daí,
pensar em novas interfaces destas guerras coloniais. Como ele sintetiza na introdução: “a guerra
se inscreveu como fim e como necessidade, não só na democracia, mas também na política e na

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contra corporalidades e territorialidades que são discursadas como “inimigas” -


essas que, em um país forjado pelas colonialidades, são aquelas que informam o
que Mbembe sistematizou com a expressão “devires negros”3. No emaranhado de
efeitos que estas dinâmicas produzem, está a reescrita, contínua, dos termos da
geografia supranacional da morte (Vargas, 2010) na cartografia de nosso país e,
mais especificamente, na cena fluminense (Vargas, 2005).

São muitos os atores, as instituições e as práticas que tornam esse cenário,


cotidianamente, possível e venho me dedicando a refletir sobre o papel da
magistratura, como uma instituição que pode ser vista como representativa dos
interesses da branquitude que, tanto essa elite de classes - que é a sua composição
histórica - quanto o direito - aqui destacando o colonialismo jurídico - mantém
(Fernandes, 2022). Neste artigo, exploro sob a proposta metodológica da etnografia
documental, a atuação de dois juízes no caso concreto de uma ação penal, que
trouxe a narrativa de uma operação policial em uma favela da Ilha do Governador,
localizada na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, e que resultou criminalização
e aprisionamento de dois homens negros, sendo que um deles, baleado por um
dos policiais, foi morto.

Debato como foi construída, discursivamente, a narrativa da operação, da prisão,


da culpa e desta morte no processo e qual o papel que categorias jurídico-
normativas, que consolidam o que trabalharei como hermenêutica jurídica
(Moreira, 2019) e pactos narcísicos da branquitude (Bento, 2002), têm para a
manutenção dessas incursões como parte do organograma da antinegritude
(Vargas, 2017) em nosso território. Entendo que o solipsismo branco, que informou
o caso e tem contingenciado a atuação, via de regra, de juízes e juízas no país, no
contexto destas operações policiais, têm dado forma a novos repertórios de
produção discursiva em autos judiciais da indiferença ao sofrimento e da
conjuração da morte, que compõem as tramas da relação entre o direito e as

cultura. Tornou-se remédio e veneno, nosso phármakon. A transformação da guerra em


phármakon de nossa época, em contrapartida, liberou paixões funestas que, pouco a pouco, têm
forçado nossas sociedades para fora da democracia e a se transformarem em sociedades da
inimizade, como ocorreu sob a colonização” (MBEMBE, 2020, p. 15). É com base neste referente
que mobilizo a categoria “inimizade” ou “inimigo” neste artigo.
3 A noção de devir negro foi construída por Achille Mbembe (2018) logo na introdução do livro
“Crítica da razão negra”: “pela primeira vez na história humana, o substantivo negro deixa de
remeter univamente à condição atribuída aos povos de origem africana durante a época do
primeiro capitalismo (predações de toda a espécie, destituição de qualquer possibilidade de
autodeterminação e, acima de tudo, das duas matrizes do possível, que são o futuro e o tempo).
A essa nova condição fungível e solúvel, à sua institucionalização enquanto padrão de vida e a
sua generalização pelo mundo inteiro, chamamos o devir-negro no mundo.” (Mbembe, 2018, p.
19-20).

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Pactos narcísicos, violência antinegra e a atuação da magistratura na criminalização de um 377
homem morto em uma operação policial no Rio

relações raciais, em um emaranhado que destaca antagonismo categórico entre o


“princípio da humanidade” e a ontologia da antinegritude.

1 Antinegritude, estudos sobre a branquitude e a


contribuição da magistratura para a manutenção dos
pactos narcísicos

A categoria “branquitude” vem tomando a cena dos debates sobre relações raciais
no Brasil, inclusive nas análises que têm o direito e o exercício do poder punitivo
como ponto de partida. Como dispositivo analítico, reflexões que a tomam como
eixo podem produzir deslocamentos epistêmicos, passando a desnudar os
organogramas de privilégios brancos que marcam instituições, práticas e sujeitos,
invertendo a tradição do chamado “negro-tema” ao “branco-tema” (Ramos,
1995[1957]). E que, por esse motivo, contribuem para a fragmentação do mito da
democracia racial e com a ontologização dos contratos raciais4 que fundam nossas
hierarquias de poder e a partir dos quais as elites de classes brasileiras ainda se
sustentam.

Uma primeira nota sobre a redação deste trabalho diz respeito ao fato de que
considero que é a “antinegritude” chave que “dá conta” (Vargas, 2020) de
descrever as dinâmicas que decorrem de um sistema mais amplo de
desconsideração da humanidade de corpos, territórios, sujeitos, subjetividades,
marcadas racialmente, que foram e são implantados pelas diversas interfaces das
colonialidades5. Como proposto por João Vargas - que é o autor que escreve sobre

4 O conceito de “contrato racial”, tal como trabalhado por Charles Mills, é importante neste debate:
“[...] uma sociedade organizada racialmente, um Estado racial e um sistema jurídico racial, onde
o status de brancos e não-brancos é claramente demarcado, quer pela lei, quer pelo costume. E o
objetivo desse Estado, em contraste com o estado neutro do contratualismo clássico, é, inter alia,
especificamente o de manter e reproduzir essa ordem racial, assegurando os privilégios e as
vantagens de todos os cidadãos integrais brancos e mantendo a subordinação dos não-brancos.
(Mills, 1997, p. 13-14).
5 O termo colonialidade traz em si a ideia da permanência e longa duração do fenômeno que
descreve. Utilizo neste artigo alinhando-me à seguinte reflexão: “(...) se a colonialidade for
entendida como mera “continuação da colonização” depois de uma “independência formal”, é
um conceito de pouco interesse, um mero substantivo da expressão “situação colonial” de
Georges Balandier. Perde-se a dimensão de longa duração da colonialidade, nascida com a
expansão capitalista antes da colonização, atravessando o período colonial para persistir ainda
hoje em vastas partes do planeta. Simplifica excessivamente o que foram as “independências
formais”, visto que, nas Américas, as independências foram independências sem descolonização
ao passo que os colonos criaram os Estados das suas próprias colônias, isto é, Estados coloniais”
(grifos do autor) (Cahen, 2018, p. 51-52). Tenho construído minha trajetória de reflexão sobre as
inscrições das colonialidades nas instituições jurídicas, a partir do pensamento decolonial
(Fernandes, 2022) - o que não poderei, com a densidade que demanda e em face dos limites deste
trabalho, desenvolver melhor. Mas deixo anotado que o plural marca os vários espectros, que

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a categoria e cuja construção tomo como principal referência - a antinegritude


estaria localizada como uma “constante estrutural, um código moderno de
ontologia e sociabilidade que estrutura toda forma de interação humana” (Vargas,
2020, p. 21).

Essa escolha de marco teórico implica em enunciar os princípios e os processos


subjetivos e sociais que estruturam nossa sociedade na aversão e no ódio a pessoas
negras, no corte do acesso ao reconhecimento da humanidade que nos constitui
desde o delírio colonial, como construído por Frantz Fanon, por um padrão que
dividiu entre a zona do ser (a do humano) e do não ser (não humano) sujeitos em
função das representações resultantes da diferença ontológica entre brancos e não
brancos (Fanon, 2008, p. 66). Como destaca João Vargas:

A antinegritude torna abjeto tudo o que é supostamente ligado à


negritude. A antinegritude torna não lugares todos os espaços marcados
pela negritude: espaços físicos, espaços metafísicos, espaços ontológicos,
espaços sociais. A antinegritude, portanto, define a não pessoa, o não
lugar. Pense na associação imediata que é feita entre a palavra “favela” e
negritude, ou “inner city” e negritude. As palavras, que denotam espaços
sociais geograficamente delimitados, são imediatamente associadas à
negritude, e assim os tornam lugares saturados de características
negativas, poluidoras e ameaçadoras: não lugares. A pessoa negra não
somente é desprovida de ontologia, mas é desprovida de lugar. Ela está
sempre fora do lugar, seja lá qual for o lugar. Isso quer dizer que a
antinegritude define também o lugar da pessoa moderna, da Humanidade,
sempre presente e sempre localizada (Vargas, 2020, p. 22).

Uma segunda nota que importa ser feita é que esta inversão epistemológica para
os estudos da branquitude vem para o campo, mais específico, das reflexões
criminológicas, como caminho possível desde o legado de produções que, nas
últimas décadas, tomaram raça como chave analítica para a reflexão sobre
violência policial e sistema de justiça criminal (Flauzina, 2008). Nesse sentido,
considero que, muito embora seja crescente o número de produções que destacam
que a antinegritude (ou o racismo, como percebo vem mais sendo nomeado) é o
que, em essência, modula contra quem e como operam as agências do sistema
penal, encerrando desde a sua origem um verdadeiro programa de extermínio
antinegro, ainda está incipiente o campo de nomeações das estruturas e dos pactos
da branquitude que informam o agir das burocracias estatais brasileiras (Pires,
2017; Prando, 2018).

refuto perceptíveis em nossas burocracias: a do poder (Quijano, 2000), saber (Lander, 2005), ser
(Maldonado-Torres, 2008) e gênero (Lugones, 2008).

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homem morto em uma operação policial no Rio

Tenho, então, a intenção de aderir este artigo a este tal movimento e, antes de
trabalhar com seus efeitos, faço outra breve consideração sobre o fato de que estou
mobilizando o vocabulário “branquitude”. Uso esta chave como Cida Bento o fez
quando da tradução do conceito whiteness e abertura dos chamados “estudos sobre
branquitude”, que remontava à década de 90 nos Estados Unidos, e emergia uma
década depois no Brasil. A autora a definia como “traços da identidade racial do
branco brasileiro a partir das ideias sobre branqueamento” (Bento, 2002, p. 29) e
complexificou sua possibilidade analítica trabalhando com seus efeitos, reflexão
que fez espraiar as possibilidades de seu uso - dentre os quais destacarei em
seguida o pacto narcísico. Tendo se tornado a principal referência nesses estudos,
a opção de Bento pela palavra “branquitude” acabou sendo - como ainda é -
reproduzida por diferentes pesquisadoras/es e aqui estou aderindo a esta opção6.

Além do deslocamento epistemológico (ao “branco tema”) que mencionei antes, o


grande campo dos estudos sobre a branquitude tem se apresentado como
importante para reposicionar as pesquisas sobre instituições no caso brasileiro.
Isso porque, elas tendem a guardar a persistência das estratégias de discriminação
e atualização da supremacia branca, destacadamente aquelas, tais quais as
jurídicas, cuja arquitetura foi planejada para ser ocupada por elites coloniais
interessadas na implantação e capilarização dos fluxos que garantissem a
dominação eurocêntrica e a distribuição dos capitais políticos da branquitude.
Como pontua Ana Laborne, uma “reflexão atual sobre a branquitude não pode
prescindir de uma discussão global sobre as relações raciais que articula o processo
de dominação colonial e a construção da perspectiva eurocêntrica de mundo
(Laborne, 2017, p. 91).

Em síntese, na construção do marco teórico, estou aproximando analiticamente a


reflexão sobre dinâmicas que expressam a antinegritude como um constructo
persistente - mas constantemente reinventado - das colonialidades; e inserindo esta
pesquisa no campo das análises criminológicas que reivindicam a inversão
epistemológica do “branco-tema” e que elaboram a “branquitude”, para além de

6 Também ganhou a cena destes estudos a categoria “branquidade”, que acabou guardando
sinonímia de sentidos com o vocabulário “branquitude”. Lourenço Cardoso recupera essa
história: “Diante disso, fica a questão, se ela tivesse optado por utilizar o termo branquidade, faria
uso do termo branquidade? A resposta é sim. Naquela ocasião os termos não apareciam como
distintos e sim como sinônimos, em nossa literatura científica. Dois anos depois, do livro de
Carone e Bento (2002) o termo branquitude também se coloca nas publicações acadêmicas
brasileiras como tradução de uma palavra de origem inglesa Whiteness (Ware, 2004). O termo da
mesma forma foi traduzido por “branquidade”. Contudo, a opção ainda mais utilizada pelos
pesquisadores da área persiste em ser “branquitude” (Oliveira, 2007; Cardoso, 2008; Schucman,
2012; Lopes, 2013). Dessa forma se evidencia o uso dos termos “branquitude” e “branquidade”
como sinônimos.” (Cardoso, 2014, p. 101).

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algumas ambiguidades de uso que parecem formular alguns usos atuais do


conceito, como uma chave analítica.

Interesso-me, ainda, por nomear um dos processos que penso dão ainda maior
densidade ao que a expressão “branquitude” assume, tal como eixo de análise, em
torno da qual os fenômenos institucionais podem ser estudados. Assim, me refiro
mais diretamente ao que Cida Bento nomeia como “pacto narcísico da
branquitude” que, em suas palavras, também se expressa discursivamente:

A escolha do pacto narcísico como linha mestra de análise do material,


deve-se a maneira como surgem (ou são omitidos) no discurso dos
entrevistados, os dois principais atores: brancos (as) e negros (as). A
preocupação em preservar, isentar, proteger os interesses do grupo
branco, convive nos discursos com uma culpabilização e desvalorização
dos negros, e por vezes, com uma indiferença em relação à violação de seus
direitos. (Bento, 2002, p. 155)

Bento cria esta categoria refletindo sobre o que pessoas brancas, que foram por ela
entrevistadas, disseram a respeito de desigualdades raciais, concluindo que
silenciamentos também estão amalgamados em um conteúdo de “amor à si
mesmo” que é trabalhado na psicanálise como mecanismo de “(auto)preservação”.
Quer dizer, de mantença de laços entre pares (no caso, daqueles que desfrutam
diretamente dos subsídios da supremacia branca) e que se sustentam através da
rejeição da sua antítese, nesse caso, da possibilidade de existência de corpos
negros. Como ela afirma:

Freud (1996), identifica a expressão do amor a si mesmo, ou seja, o


narcisismo, como elemento que trabalha para a preservação do indivíduo
e que ao mesmo tempo gera aversões ao que é estranho, diferente. Segundo
ele, uma tendência comum, a do ódio que certo número de pessoas possui,
pode funcionar exatamente da mesma maneira unificadora e evocar o
mesmo tipo de laços emocionais que a ligação positiva evoca. Esses laços
que Kaes (1997) trata como pactos, funcionam sempre em duas direções:
fortalecimento do “nós” e rejeição ao “eles”. Busca-se aqui explicitar traços
do pacto narcísico a partir dos pontos que apareceram com mais
freqüência nos depoimentos dos entrevistados. É explicita a ambigüidade
presente nestes destaques. (Bento, 2002, p. 155)

Na linha do que ela propõe, há um pacto silencioso de apoio e fortalecimento aos


iguais que visa a dar permanência às vantagens sistêmicas e que convive com a
culpabilização, a desvalorização e a aversão, muitas vezes implicando em que
valores humanitários fiquem suspensos (Bento, 2002, p. 146) ao que é
discursivamente construído como “não branco”.

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Pactos narcísicos, violência antinegra e a atuação da magistratura na criminalização de um 381
homem morto em uma operação policial no Rio

Para este artigo, a análise dos pactos narcísicos implica em pensar o caso da
atuação da magistratura, atribuindo uma legibilidade jurídico-normativa às
operações, como parte dos constructos ideológicos que sustentam vantagens
materiais e simbólicas, no organograma dos poderes político, econômico e social,
aos brancos (e à brancura, ideologicamente inculcada) em detrimento daquilo que
é referido como negro (nesse caso, os corpos e os territórios construídos a partir da
inimizade antinegra que, também atores que configuram discursivamente a guerra
contra as drogas em favelas da zona norte, implantam). E que me parecem ter
estado construídos em um modo de sustentação típica da branquitude, na linha do
que conclui Camila Moreira:

O privilégio da brancura, dessa forma, no meu ponto de vista, apresenta-


se como base principal para manutenção da estrutura racista. Isso porque
impõe perdas simbólicas e concretas ao se sustentar em um tripé de
mazelas sociais: a construção negativa da subjetividade individual e/ou
coletiva, a negação de direitos; e a descaracterização da discussão racial. O
resultado da ação desses fatores é a manutenção constante do processo de
inferiorização e marginalização dos negros (De Jesus, 2017, p. 86)

Estudar como estes pactos se renovam, agora mais especificamente através do


modo como o direito é mobilizado como uma ferramenta própria, é o que
desenvolvo nos próximos itens. Começando por uma das pedras angulares das
metodologias de decisão judicial, que é a hermenêutica jurídica.

2 Hermenêutica jurídica da branquitude, solipsismo


branco e a governança racial das operações
estudadas

A relação entre as bases epistemológicas, inclusive hermenêuticas, do direito e a


governança racial7 remonta à consolidação dos cursos de direito e das burocracias

7 Mobilizo o conceito de governança racial para pensar na violência antinegra praticada pelas
polícias no Brasil, tal como construído por Adilson Moreira: “a ação policial é uma ação estatal
informada por interesses do grupo racial dominante em reproduzir formas de controle
destinadas a manter um sistema de privilégios raciais que sustenta a hegemonia branca no nosso
país. Creio que esse conceito de governança racial é relevante porque exemplifica como a raça
informa diversas instâncias da vida social e da atuação das instituições sociais. Observamos o
surgimento de uma nova forma de governança racial nas últimas décadas, sendo que ela utiliza
dois mecanismos para manter a exclusão social: o genocídio da juventude negra e o
encarceramento da população negra. Como alguns autores afirmam, o racismo é um sistema de
dominação que adquire novos aspectos em diferentes momentos históricos e contextos sociais. O
caso Rafael Braga é um exemplo do que estou chamando de governança racial. Ele começa com
a tradicional ação discriminatória da policia de voltar sua atenção especialmente a homens
negros, indivíduos que são condenados mesmo na falta de provas ou a partir de provas absurdas
(...) Ele foi preso meses depois sob outra alegação: a de ser um traficante. A decisão judicial é um
triste desfile de estereótipos descritivos e prescritivos utilizados contra negros, sendo que alguns

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382 Luciana Costa Fernandes

que são sustentadas especialmente pelos recursos da dogmática, que deixo apenas
como comentário introdutório neste trabalho8. Calcado nos pilares da zona do ser
e na cisão inconciliável com tudo aquilo que é referido à zona do não ser (Fanon,
2008), o direito pôde, desde a sua implantação quando da intrusão colonial,
oferecer um corpo técnico-acadêmico-dogmático que, no discurso
autoreferenciado da sua “generalidade” e “abstração”, foi instrumentalmente
mobilizado para a manutenção do pacto narcísico das elites que compunham as
agências que lhe davam forma. Como propõem Edmo de Jesus e Clarindo:

é a epistemologia jurídica brasileira, desde a sua concepção até a


atualidade, quem fornece os elementos indispensáveis para o
desenvolvimento e para a execução de tecnologias de governança racial
direcionadas à manutenção da concentração do poder político e econômico
adstrito à zona do ser, isto é, atrelada às mãos de homens brancos, cis-
heterossexuais, cristãos, proprietários e sem deficiência (PIRES, 2019).
Contudo, se por um lado a produção do Direito é determinada pela
premência de conservar as hierarquias raciais vigentes, por outro, a
aplicação dessa normatividade ou a sua eventual suspensão dependem
necessariamente de um procedimento sistemático de desumanização,
subalternização e estigmatização baseado na raça, pois é o processo de
racialização ou o racismo propriamente, que permitirá ao Estado, seja por
intermédio do exercício do biopoder foucaultiano ou do necropoder
mbembiano, fazer a gestão dos corpos indesejaveis, dando ares de
normalidade e aceitabilidade, quando for preciso, ao genocídio dessas
populações. Isso ocorre, em grande medida, porque o sistema de
governança racial brasileiro, além de ser calcado pelo epistemicídio, é
também pautado pela construção de um saber técnico-acadêmico-
dogmático predominantemente branco que, forjado na colonialidade,
concede aos agentes do sistema de justiça as armas epistemológicas
necessárias à contenção dos sujeitos racialmente subalternizados. (...) o
sistema jurídico brasileiro, orientado por um academicismo eurocêntrico
epistemicida e, consequentemente, colonialista, agiu e permanece atuando
como mecanismo de sistematização de opressões que se prolongam no
tempo, mesmo que para isso aparentemente faça concessões em termos
genéricos de reconhecimento de direitos e de positivação de regras que, à
primeira vista, coíbem atitudes discriminatórias, mas cuja efetividade

deles demonstram a completa insanidade racista do sistema judiciário brasileiro. A experiência


de pessoas negras em uma sociedade que procura manter a hegemonia branca a qualquer custo
é bem distinta das pressuposições que podemos fazer baseadas no formalismo jurídico (...) O
problema maior da discriminação institucional é a presunção de que atos arbitrários não são
motivados por animosidade, mas são parte da operação normal das instituições. Então matar
negros aparece como uma consequência da ação policial cotidiana, prender negros
arbitrariamente também não é nada mais do que o exercício rotineiro das funções institucionais
da polícia. (Moreira, 2019, p. 98).
8 Esta foi parte de minha pesquisa de doutorado, a que remeto a leitura (Fernandes, 2022);
indicando também o trabalho de Ana Cecília Gomes (Gomes, 2019).

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Pactos narcísicos, violência antinegra e a atuação da magistratura na criminalização de um 383
homem morto em uma operação policial no Rio

concreta de aplicação é obstaculizada pela hermenêutica racista exercida


pelos agentes do sistema de justiça (De Jesus; Neto, 2021, p. 78-81).

Saber que serviu à manutenção do escravismo, do colonialismo e que tem


perpetuado as colonialidades, a cortina de fumaça da “imparcialidade” e da
“neutralidade”, que integra parte das bases epistêmicas do direito, vem servindo
para amortizar as dinâmicas de desumanização e o compromisso sistêmico com a
antinegritude que o sistema jurídico conclui. Processos que, sobretudo no campo
do direito penal, herdeiro do sistema punitivista escravocrata, têm mantido a
hegemonia branca e garantido, como afirma Luciano Góes, “o genocídio negro
multifacetado em diáspora, pensado como conjunto de instrumentos que
naturalizam a morte negra que inclui semiocídio (Sodré, 2017), epistemicídio
(Carneiro, 2005), necropolítica (Mbembe, 2018), e encarceramento em massa
negro” (Góes, 2021, p. 487).

Assim, conquanto ações penais possam ser representativas, simbólica e


materialmente, do direito em movimento, aperfeiçoam o projeto de um saber e
prática que “orbitam em si”, que foram, como são, epistemologicamente fundados
no contrato racial (Mills, 1997), e que seguem pautados pela anulação sistemática
do “ser-negro” e a consequente reafirmação do valor do “ser-branco” (Góes, 2021,
p. 492-493).

Marcas essas que tendem a estar mais confabuladas nas previsões normativas, mas
que escancaram-se nas atividades de hermenêutica e aplicação do direito
cotidianamente. Em especial, nos termos de processos que, literalmente,
organizam o genocídio contra territorialidades e corporalidades negras faveladas,
sob a justificativa da guerra às drogas, cena que formula o caso concreto analisado
neste trabalho.

A “hermenêutica jurídica” é campo desde onde ganham centralidade as questões


relativas à interpretação do direito, incluindo o que, neste saber, passou a ser
referido como técnicas e princípios que auxiliam à atividade de magistrados/as,
tendo como base textos normativos. A própria etimologia da palavra já desvela
parte de sua vinculação à supremacia branca, porque Hermes seria um deus grego
intermediava a mensagem dos deuses aos homens, por sua enorme capacidade
interpretativa.

É nesse pedestal que as agências responsáveis pela hermenêutica, dentre as quais


tem destaque a magistratura, se colocam, como deidades que ditam os sentidos
mais “superiores” que leis podem ter, amparadas em toda uma retórica de
tecnicidade. As várias técnicas emergentes desta área possibilitam uma verdadeira

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384 Luciana Costa Fernandes

blindagem ao imperativo da branquitude que tem interpelado, como dispositivo


ideológico, grande parte das decisões judiciais.

Assim é que podemos trabalhar com o conceito de uma hermenêutica jurídica da


branquitude9, apresentada desde o apagamento do lugar de enunciação do/a
magistrado/a, muitas vezes referido como “imparcialidade” ou “neutralidade”,
até a possibilidade de um agir ou silenciar que literalmente são alicerçados pelos
pactos narcísicos que lhe conferem legitimidade. Ela traz, portanto, às luzes
recursos discursivos que juízes/as contam para encarnarem essa figura mítica de
Hermes, seja quando anunciam os pilares da política de inimizade que endossam,
seja quando perfazem os silêncios opressivos sobre violências antinegras, tais
como a violência policial. São esses agires que elaboro no caso estudado e que
passo a descrever logo depois de apresentar, metodologicamente, como e onde
encontrei estes registros.

3 Não vida e morte de Jeferson a partir de duas


narrativas judiciais

Neste trabalho, estudo discursos que estão documentados em uma ação penal
pública10, que teve como origem a denúncia contra dois homens pelo crime de
associação para o tráfico de drogas (artigo 35, caput, da Lei 11.343/06) e foi
sentenciada no primeiro semestre de 2019, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio
de Janeiro. Desenvolvo, neste terceiro item, algumas notas sobre a metodologia da
etnografia documental, que mobilizo para estudá-lo, assim como do campo a qual

9 Em um dos mais clássicos artigos que trabalham com a chave da “hermenêutica jurídica da
branquitude”, Gleidson Dias analisa o caso das cotas raciais, pontuando como a interpretação
sobre classificações raciais, especificamente, tem sido revertida para atuações que sustentam o
racismo: “(...) a Hermenêutica Jurídica da Branquitude é o fenômeno pelo qual, em qualquer
possibilidade de interpretação, quando a matéria refere-se a questões raciais, a interpretação, na
enormidade das vezes, prejudicará o avanço do combate ao racismo. HJB é a base ideológica
(consciente ou inconsciente, direta ou indireta) que afeta os operadores jurídicos lato senso, isto
é, doutrinadores, ministros, desembargadores, juízes, promotores, defensores públicos,
advogados, delegados e servidores da Administração Pública. Ao analisarem e/ou produzirem
algum regramento e/ou posicionamento jurídico não raras vezes irão materializar uma das
formas do Racismo Institucional” (Dias, 2017). O letramento racial no debate sobre cotas e
operações policiais é bastante diverso, por isso vou tomar essas considerações como ponto de
partida, mas buscar ampliar em termos o conceito.
10 A qual integrou um dos 15 (quinze) casos, que estudei em minha tese de doutorado, de
“operações policiais” em territórios de favelas da zona norte do Rio de janeiro julgadas naquele
período relatado, e que trago neste trabalho já com reflexões que fiz e sistematizei após o depósito
definitivo, bem como de uma nova releitura e posição em relação ao marco teórico-metodológico.
Esta é uma ação penal que não tramitou com sigilo de justiça, estando no domínio público, mas
ainda assim utilizo apenas nomes fictícios e não cito dados de identificação da Vara onde
tramitou, bem como dos juízes/as responsáveis pelas decisões.

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Pactos narcísicos, violência antinegra e a atuação da magistratura na criminalização de um 385
homem morto em uma operação policial no Rio

inscrevo este debate, da antropologia das práticas de poder, para então partir para
a exploração mais direta dos elementos do caso concreto a partir dos marcos que
elaborei anteriormente.

3.1 Pensando os papéis de uma ação judicial a partir da análise


de documentos e da antropologia das práticas de poder

A escolha pelo aporte da etnografia documental parte da percepção de que


documentos compõem o agir do Estado em múltiplas direções, como um corpus
vivo (Vianna, 2014, p. 44). Nesse sentido, performances documentais são vistas
como expressões que entrelaçam diferentes temporalidades11 e que apresentam
uma dimensão estética particular.

Os modelos bastante formais e padronizados que compõem um processo judicial


contribuem para a ficção da neutralidade e imparcialidade do judiciário - que
expressam pactos narcísicos que destaquei no item anterior -, comunicando a
historicidade desta instituição, de suas práticas, das pessoas que subscrevem e
daquelas sobre as quais as vidas são decididas. Essa recorrência também desvela
como atores e agências querem poder ser lidos, através das formas insistentes de
um determinado aparato burocrático, uma vez que os papéis que lhe integram são
carregados indicadores de permanência e de compromisso com a coerência formal,
assim como integram um corpo de símbolos que manifesta os possíveis capitais
implicados na trajetória da judicialização dos fatos.

Como documentos acionam nossa capacidade fantasiar, de criar imagens para as


pessoas envolvidas na sua criação e, no caso das ações criminais, daquelas/es que
são vítimas das violências do poder punitivo, temos aqui uma importante
discursividade, que disputa a verdade sobre fatos, sujeitos, territórios e, em última
instância, uma narrativa estatista da história (Guha, 2002, p. 25-32). Daí porque me
parece ser fundamental superar a dimensão meramente informacional e
instrumental dos documentos: a leitura dos textos mediada pela interpretação
analítica de suas conjurações pode, nessa linha, ser ferramenta para a percepção
das escrituras de discursos oficiais. Sobretudo, ao que interessa este artigo, da
anotação das tentativas sistemáticas da magistratura experimentar e atualizar
diferentes mecanismos de manutenção de privilégios sistêmicos, a partir da
distribuição espacial-racializada do terror nas operações.

11 No caso, uma operação policial de 2015; que chegou ao conhecimento do judiciário, no mesmo
ano, dois meses depois de acontecer; só foi julgada quatro anos mais tarde, em 2019; e está sendo
analisada em 2023.

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386 Luciana Costa Fernandes

Por fim, porque o caso está em uma ação mediada pelo aparelhamento do
judiciário, localiza-se no contexto das análises em/sobre burocracias estatais, em
um amplo campo de pesquisas que pode ser referido como “antropologia das
práticas de poder”. Lugar de produções sobre o Estado, particularmente das
“agências e agentes que compõem a dimensão organizacional e nela crêem”
(Rodrigues Castilho, et al, p. 13), desde onde se investigam as discursividades, os
compromissos, pactos, agenciamentos e, de forma ampla, as redes de pessoas que
dão forma às práticas de poder da administração pública. Quanto ao caso
específico da magistratura, esta é uma pesquisa sobre uma elite própria, dotada
“de capital sem par: a autoridade de descrever/prescrever a legitimidade de certas
relações em detrimento de outras” (Vianna, 2014, p. 44).

3.2 Caso Jeferson

Para focar em documentos que sistematizam a narrativa de juízes sobre um caso,


escolho trabalhar com arquivos de duas decisões (da “sentença”; e da prisão
preventiva, proferida em audiência de custódia) que, penso, são ocasiões que
organizam a versão que magistrados/as performam como o sentido de “verdade”
sobre um conflito.

Algumas considerações são bem particulares da sentença estudada, a primeira que


vou aqui expor. Uma delas, o fato de que, ao longo da fundamentação, o
magistrado só descreveu o que aconteceu na incursão através de trechos de citação
direta dos depoimentos dos dois policiais que foram ouvidos12.

12 O primeiro depoimento policial que é assumido como referência foi: “que estava em operação na
Comunidade Praia da Rosa, sendo que sua equipe ficou responsável por adentrar no referido
local; que, no interior da comunidade, ao chegar em uma quadra esbatida, percebeu que os
indivíduos que ali estavam empreenderam fuga; que, diante disso, a guarnição seguiu os rastros
dos fugitivos até chegarem a uma casa, cuja varanda possuía diversas anotações referentes à
facção criminosa que dominava a região, qual seja, Terceiro Comando; que, logo em seguida, os
policiais ouviram alguns elementos utilizando jargões típicos de integrantes do tráfico de drogas;
que, inclusive, ouviram o nome do líder da organização criminosa da região, conhecido como
'Leo Malucão'; que, ao avistarem os indivíduos, o depoente iniciou a abordagem daqueles
elementos, momento em que o corréu falecido apontou uma arma de fogo em direção à
guarnição; que, neste momento, efetuou um disparo na direção do acusado Jeferson, levando-o a
Óbito; que, a equipe policial, rendeu o réu Maurício; que os demais indivíduos empreenderam
fuga; que, no local, foi apreendida uma arma de fogo com um dos elementos, mas não sabe dizer
com quem; que não se recorda se o acusado Maurício disse que integrava o tráfico de drogas (..)"
“(..) que entraram na comunidade Praia da Rosa e houve uma troca de tiros entre o grupo que o
acusado integrava e a equipe policial; que um indivíduo apontou uma alma para o Tenente; que,
nesse momento o Tenente deu um tiro em um dos elementos; que socorreram a pessoa que foi
alvejada; que a comunidade da Praia da Rosa é comandada pela facção denominada Terceiro
Comando; que se recorda de ouvir jargões do tráfico; que, antes dos disparos, o depoente ouviu

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homem morto em uma operação policial no Rio

Não há uma obrigatoriedade, na parte do Código de Processo Penal que descreve


as fases de uma sentença, de fazê-lo em voz própria. Mas costuma-se ensinar, nesta
disciplina da graduação em direito, que é um momento de reescritura de um caso,
de tradução das experiências que motivaram o exercício do poder punitivo e que
cumpre um papel importante na divulgação dos termos de legitimação (ou não)
da ação das polícias e do sistema de justiça.

Esta condição, em específico, expressa uma primeira eleição de voz preponderante


(Guha, 2002, p. 30), inclusive com toda a linguagem policialesca própria dos
agentes ouvidos. As suas falas, transcritas, apontam não terem sido indagados
pelo juiz, acusação ou defesa, sobre qualquer justificativa para a necessidade de
uma operação, às 09:30 da manhã, na favela Praia da Rosa (Ilha do Governador,
Rio de Janeiro/RJ), com tiroteio, invasão de domicílio e, no mínimo, uma pessoa
fatalmente baleada. Não houve qualquer linha em que fosse recuperado, em
termos próprios do juiz que sentenciou os homens, sobre o que acontecera, até
mesmo para, neste ritual de hermenêutica, trazer concretude para o abstrato
normativo.

Toda a linha autoral da sentença constitui-se de considerações genéricas sobre o


crime de associação para o tráfico de drogas13, deixando claro o desinteresse em

os elementos conversando entre si dizendo Onde está a peça?; referindo-se a uma arma de fogo;
que não se recorda do acusado; que não conhecia os acusados antes dos fatos; que foi apreendida
uma arma de fogo com o indivíduo que veio a óbito; que o indivíduo que faleceu foi o mesmo
que efetuou os disparos contra a guarnição; que o local era um ponto de venda de drogas; (..)"
13 Depois de citar o depoimento dos policiais, que é como começa a sentença, nesta constam os
seguintes termos de fundamentação: “Como se percebe, o depoimento dos policiais militares é
mais do que contundente para confirmar a existência do vínculo associativo entre os dois
denunciados e os demais elementos que encontravam-se naquela casa, espancando qualquer
dúvida que as pessoas que se encontravam naquele imóvel faziam parte do grupo criminoso
responsável pelo tráfico de droga da localidade. A jurisprudência do Tribunal de Justiça deste
Estado já se consolidou no sentido da validade do depoimento policial a servir de lastro para o
decreto condenatório, com a edição do seguinte verbete:(...)Tal posicionamento encerra a
discussão jurídica destacada pela defesa em suas alegações finais no sentido de que a prova seria
inapta para a condenação, já que os policiais teriam interesse em justificar e legitimar sua atuação.
O importante é que, como já fiz sublinhar acima, os depoimentos constantes dos autos são firmes
e estão em harmonia com o resto da prova. No caso dos autos, a prova inconteste da autoria a
materialidade delitiva sequer decorre unicamente do relato dos policiais militares já transcritos.
O laudo de exame em arma de fogo às fls. 63/65 demonstra que o aparato bélico efetivamente
apresenta capacidade para produzir disparos, assim como a munição, sendo, portanto, de
letalidade ou capaz de infligir ferimentos. No caso vertente extrai-se com clareza, de forma
contundente, também que os acusados encontravam-se associados ao grupo criminoso
responsável pela traficância de drogas, subsumindo-se suas condutas à norma proibitiva do art.
35 da Lei 11.343/06. Deve-se observar que não há dúvidas de que um dos réus portava uma pistola
calibre 9mm, bem como dez munições de mesmo calibre, e que o objetivo do porte da arma era a
eventual contenção de ingresso naquele local por pessoas indesejadas, com o propósito de
permitir que entorpecentes fossem livremente vendidos. Observa-se, assim, que a mera

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388 Luciana Costa Fernandes

recuperar a narrativa sobre a operação e, de forma bastante marcada, a desafetação


no processo que levou à morte um homem negro14 e com a história da sua família,
tendo a mãe de Jeferson15 deposto na delegacia para contar como soube que ele
havia sido baleado16.

Foi só na fase de “dosimetria” do réu que foi, com ele, preso (que estou chamando
por Maurício), que é quando já está decidido sobre a culpabilidade da pessoa
acusada e passa-se a determinar o valor da pena e quais vão ser os efeitos penais,
que o juiz decidiu reconstruir a operação e falar sobre o óbito. E o fez da seguinte
forma:

O réu ostenta a condição de tecnicamente primário tendo em vista a


ausência de confirmação de sentença condenatória transitada em julgado
na FAC de fls. 163/165. Por outro lado, as circunstâncias do crime destoam
daquelas normalmente associadas ao tipo penal vulnerado na medida em
que o grupo criminoso do qual o acusado fazia parte demonstrou maior
ousadia ao tentar a insurgência contra a investida policial, em confronto
direto que acabou por vitimar um dos denunciados. O caso dos autos
evidencia a hipótese nítida de que o agente da lei precisou efetuar disparos
em situação de inegável legítima defesa, para salvaguardar a sua vida. De
todo modo, a só verificação de que o grupo criminoso buscou o confronto
direto que acarretou na morte de um dos denunciados e a exposição de
risco aos demais moradores da comunidade, serve de justificativa para um
maior rigor nesta primeira fase da dosimetria. Por tal razão, fixo a pena-
base pouco acima do mínimo legal.

O único momento, portanto, da construção narrativa da morte de Jeferson é


voltado para a culpabilização dele e de Maurício, que foi preso em flagrante e
acusado no mesmo processo, sendo que ambos estavam na mesma casa quando

apreensão da arma de fogo com o acusado evidencia uma estrutura criminosa que congrega em
seus quadros pessoas alocadas em diversas funções, distribuídas de maneira piramidal e com
divisão hierárquica, sendo os réus apenas alguns de seus integrantes. Nessa esteira, impõe-se a
condenação também pel e do art. 35 da Lei de Drogas, eis que delineados o vínculo associativo e
a estabilidade e permanência da associação (...)”
14 A informação da raça (pardo) foi extraída dos arquivos de identificação criminal produzidos na
fase da investigação policial e reproduzidos na fase judicial, especificamente nos mandados de
intimação.
15 Todos os nomes de pessoas do conflito narrado neste artigo, para a defesa do anonimato, são
fictícios.
16 Como ficou documentado no material de campo, quando da investigação policial, a mãe de
Jeferson foi ouvida, tendo falado para a autoridade policial: ”QUE a declarante é mãe de Jeferson.
QUE Jeferson O residia com a declarante e estava desempregado há 2 semanas; QUE diariamente
Jeferson pedia dinheiro para a passagem para a declarante, alegando que iria ao encontro do pai
trabalhar em uma obra; QUE o pai de Jeferson disse à declarante que não via o filho há 15 dias;
QUE, em 23/09/2015, às 10h15min, a declarante estava no trabalho, quando foi avisada por
vizinhos que Jeferson fora baleado em uma operação do 17° BPM (...) QUE, em 24/09/2015,
Jeferson não resistiu aos ferimentos e veio a óbito. E nada mais disse”,

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Pactos narcísicos, violência antinegra e a atuação da magistratura na criminalização de um 389
homem morto em uma operação policial no Rio

houve a invasão dos policiais durante a operação. Se só há lugar para narrar o


assassinato nesta dimensão, isto é, de uma excludente de ilicitude que torna
“jurídico” o ato de matar (uma vez que exclui a antijuridicidade), é porque se está
incrementando o repertório discursivo de um paradigma de policiamento que
“(re)produz repetidamente o interior/exterior, a sociedade civil/vazio negro”
(Pereira, 2021, p. 46), e que é baseado na gestão soberana da morte antinegra no
contexto das operações policiais por tráfico de drogas. Assim atuam as
institucionalidades referidas à soberania branca em meio às atuais guerras criadas,
através das táticas de planificação da necropolítica, que Mbembe destaca como a
morfologia da indiferenciação, do estupor, do anúncio da transformação de vidas
em ciclos de ódio e criação de máscaras mortuárias para aqueles que são
discursados como inimigos (Mbembe, 2018, p. 60).

Nesse sentido, vale retomar, a categoria da “legítima defesa”17, que é fruto do


saber jurídico e que é articulada através dos termos próprios de hermenêutica do
direito, no espaço em que foi mobilizada, parece ter sido representativa do modo
como podem juízes/as alinhavar-se à inimizade através solipsismo branco, um
argumento jurídico que, como destacam Thula Pires e Ana Flauzina, “mantém a
liberdade e o acesso à legalidade como atributos exclusivos da zona do ser” (Pires;
Flauzina, 2020, p. 1233).

E foi esta citação das autoras que me levou à segunda decisão que quero expor, da
prisão preventiva no caso exposto. Ela foi decretada no dia seguinte à operação,
mas posteriormente à finalização do registro de ocorrência que é levado junto ao
auto de prisão em flagrante (ambos documentos produzidos pelas polícias) para
exame do judiciário, no ato da audiência de custódia. Nestes dois documentos
policiais, já havia notícia da morte de Jeferson, tanto pelo já mencionado
depoimento de sua mãe; quanto pela técnica do hospital em que estivera
internado, que foi ao batalhão fazer o comunicado18. Mesmo assim, decidiu o juiz:

Na hipótese em análise vislumbra-se, de plano, a presença de requisito


objetivo que admite a manutenção da custódia cautelar do acusado, na

17 Prevista no Código Penal, art. 25, segundo o qual “Entende-se em legítima defesa quem, usando
moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu
ou de outrem. Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste artigo,
considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou
risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.”
18 O depoimento foi elaborado da seguinte forma “Relata a comunicante, auxiliar administrativa do
Hospital Municipal Evandro Freire, que, em 23/09/2015, às 11h53min, deu entrada no referido
hospital o nacional JEFERSON, vítima de PAF na região do tórax e abdomen, referente a
confronto com Policiais Militares do tr BPM, na Comunidade Praia da Rosa. JEFERSON foi
submetido a procedimento cirúrgico, porém em 24/09/2015, às 07h20min, o mesmo veio a óbito,
morte atestada pela Dra. ADELIA, CRM 0000”.

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medida em que o delito que lhe é imputado possui pena máxima superior
a quatro anos, nos termos do artigo 313, I do CPP. Com efeito, verificada a
presença do imprescindível requisito objetivo, necessária se revela a
análise das hipóteses do artigo 312 do CPP, que autorizam a manutenção
da custódia cautelar. No caso dos autos, verifico que estão presentes o
fumus boni iuris e o periculum libertatis, uma vez que há indícios da autoria
e da materialidade do crime, o que é consubstanciado pelos depoimentos
constantes do flagrante e pelo auto de reconhecimento. Ademais, as
circunstâncias concretas do crime demonstram que o custodiado
MAURÍCIO foi preso juntamente com JEFERSON, sendo que JEFERSON
portava uma arma de uso restrito e chegou a desferir disparos contra os
policiais, vindo a ser baleado. Além disso, em sede policial, o custodiado
MAURÍCIO confessou estar ligado ao tráfico e atuar como olheiro, tendo
também dito que conhecia JEFERSON e que este trabalhava há mais tempo
para o TCP. Dessa forma, ao menos neste momento, a conduta do
custodiado MAURICIO e de JEFERSON revela que esses são uma efetiva
ameaça a ordem pública. Ademais, não há qualquer documento que
comprove residência fixa ou ocupação lícita, de forma que a soltura será
prejudicial a aplicação da lei penal. Finalmente, em atenção ao disposto no
artigo 310, 11 do CPP, ressalto que é inviável a concessão de liberdade
provisória com a imposição das medidas cautelares previstas no artigo
3.19 do CPP, uma vez que, diante de tudo o que foi acima exposto,
nenhuma delas se revela adequada. Por essas razões, CONVERTO a prisão
em flagrante em prisão preventiva de MAURÍCIO e JEFERSON, na forma
do artigo 310, 11 do CPP.

A decisão sobre a custódia deixa também explícito o modo como jargões jurídicos
podem confabular sequencialmente sentidos da prisão e transbordar a própria
possibilidade do reconhecimento da produção da morte de um jovem negro, ação
que parece poder ser ininteligível em um contexto de obliterações sistemáticas -
como o das violências antinegras dessas operações -, que já é produtor da morte
social19. Jeferson, já sem vida, foi mantido em prisão preventiva durante todo o
processo em razão da referida decisão, sendo que a ação penal só foi extinta
formalmente quatro anos depois, na sentença.

Assim é que percebo, na prisão e na condenação de um jovem negro morto, que a


magistratura pode perfazer a “hermenêutica da branquitude” cotidianamente, e
atualizar os repertórios que sustentam a violência antinegra, sem sentir o sangue
de suas atividades nas próprias mãos. Esvaziando completamente atos e
dispositivos - ou dando a eles o sentido necropolítico a que foram planejados -,
especialmente nos casos em que o que está em jogo é a ostensiva contra o sentido
da vida referida a corpos e territorialidades negras, modulam os pactos que

19 Para Moten, “a morte social não é imposta à pretitude desde ou pelo posicionamento ou
posicionalidade do político antes, ela é o campo do político, do qual a pretitude está relegada à
massa ou mancha supostamente indiferenciada do social (...)” (Moten, 2021, p. 156).

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Pactos narcísicos, violência antinegra e a atuação da magistratura na criminalização de um 391
homem morto em uma operação policial no Rio

sustentam os silêncios da opressão, nas palavras de Ana Laborne, retomando Cida


Bento:

Maria Aparecida Bento (2005) nos lembra que o silêncio não é neutro. Na
verdade o não dito é tão significativo quanto às próprias palavras e os
elementos da branquitude estão em operação exatamente no que é
silenciado. Não podemos esquecer que o poder é exercido sempre
acompanhado de certo silêncio, o silêncio da opressão (Laborne, 2017, p.
103)

Para além do silêncio opressivo sobre as condições da letalidade policial em


operações nas favelas, a culpabilização de um corpo morto - que sequer
reconhecido como morto fora - e que foi exibido e mantido aprisionado na sádica
e narcísica narrativa dos juízes do caso, traz à tona parte dos repertórios da
distribuição normativo-jurídica da zona (literal) do não ser. E expressa a relação
direta, ainda que permeada por diversas confabulações, do sistema de justiça
criminal com as táticas necropolíticas que operações policiais encerram.

Considerações finais

Saidiya Hartman (1997), em um de seus mais impactantes livros, propõe a reflexão


sobre as seguintes perguntas: o que a exibição do corpo negro violado produz?
Como o silêncio conjura a dor? Neste artigo, em que analiso a narrativa de dois
juízes sobre a morte e a culpa de um jovem negro, que foi assassinado no contexto
de uma operação policial em uma favela da zona norte carioca, busquei denunciar
como a magistratura esteve - como está - implicada à estabilização das relações de
inimizade que sustentam o necropoder e o modo como operam produzindo
sistemáticas alienações em documentos judiciais.

Os termos a partir dos quais operações policiais são legitimadas e ganham uma
inteligibilidade jurídico normativa quando transformadas em narrativas de crimes
da Lei de drogas são indiciários de como a hermenêutica jurídica da branquitude
e o solipsismo branco sustentam um antagonismo categórico entre o “princípio da
humanidade” e a ontologia da antinegritude manifestada nas operações. E que
finalizam o que Sexton sintetiza como reflexão matriz do afropessimismo, de que:

vida negra não é vida social no universo formado pelos códigos de estado
e sociedade civil, de cidadão e sujeito, de nação e cultura, de pessoa e lugar,
da história e do patrimônio, de todas as coisas que a sociedade colonial
tem em comum com os colonizados, de tudo que o capital tem em comum
com o trabalho – o sistema mundial moderno. A vida negra não é vivida
no mundo em que o mundo vive, mas é vivida no subsolo, no espaço
sideral (Sexton, 2011, p. 28 apud Pereira, 2021, p. 64).

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Alicerçada em diversas camadas dos pactos narcísicos, a magistratura


estruturalmente está aliciada à solidariedade antinegra, o que no caso apresentado
toma forma pela incapacidade, também denunciada pelo afropessimismo, de
pensar a “dimensão sensitiva e epistêmica daqueles marcados pela negridade
racial” (Pereira, 2021, p. 64). Esse atributo alucinante do necropoder, que vai sendo
naturalizado repetidamente pela exposição à violência e à cisão do mundo que a
morte, na sua dimensão mais concreta e espetacular, essa que sequer é reconhecida
em seu tempo no caso apresentado, pode revelar.

O discurso jurídico, nesse sentido, passa a potencializar a naturalização da ação


agressiva das polícias no contexto da guerra antinegra às drogas, produzindo as
bases que sustentam a relação entre a soberania necropolítica e as narrativas e
práticas institucionais que lhe encerram como projeto. E de um modo ainda mais
pernicioso, que está no limite entre a criminalização, o aprisionamento e a não
enunciação - da morte, dos termos da operação, das vozes que narram os conflitos
- e que vai, pouco a pouco, desmaterializando o conteúdo do ato, sem romper com
a falácia da “neutralidade” e da “garantia dos direitos”. “Esquecimentos
elouquentes” que, como prefere Luciano Góes referir-se, são “ficha corrida da
branquitude” (Goes, 2021, p. 496).

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Sobre a autora
Luciana Costa Fernandes
Doutora (2022) em Teoria do Estado e Direito Constitucional pelo
Programa de Pós Graduação em Direito da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PPGD/PUC-Rio). Professora Assistente do
Departamento de Ciências Jurídicas do Instituto Multidisciplinar da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.51488

dossiê

Estudo sobre educação para privados de


liberdade em Santarém-PA
Estudio sobre educación de los reclusos en
Santarém-PA

Study on education for prisoners in Santarém-PA

Poliana Aguiar Luiz1


1
Universidade Federal do Oeste do Pará, Instituto de Ciências da Educação
(Iced)/Programa de Pós-Graduação em Educação, Santarém, Pará, Brasil. E-
mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0009-0002-1026-
9604.

Alan Augusto Moraes Ribeiro2


2
Universidade Federal do Oeste do Pará, Instituto de Ciências da Educação
(Iced)/Programa de Pós-Graduação em Educação, Santarém, Pará, Brasil. E-
mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6899-
2443.

Submetido em 06/11/2023
Aceito em 30/01/2024

Como citar este trabalho


AGUIAR LUIZ, Poliana; RIBEIRO, Alan Augusto Moraes. Estudo sobre educação para
privados de liberdade em Santarém-PA. InSURgência: revista de direitos e movimentos
sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 397-423, jan./jun. 2024.

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ISSN 2447-6684

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398 Poliana Aguiar Luiz - Alan Augusto Moraes Ribeiro

Estudo sobre educação para privados de


liberdade em Santarém-PA

Resumo
Este trabalho é resultado de uma pesquisa de mestrado realizada em contexto prisional. O
estudo de caso foi desenvolvido na Escola Penitenciária Prof. Delson Afonso Mourão,
localizada no Centro de Recuperação Agrícola Silvio Hall de Moura (Crashm), em
Santarém – PA. O objetivo da pesquisa foi conhecer como as metas propostas no Plano
Estadual de Educação para Pessoas Privadas de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional
(Peesp), foram implementadas na escola penitenciária em 2022 e 2023. Além disso,
buscamos identificar o perfil socioeconômico dos alunos e levantar informações sobre a
finalidade da educação empreendida no cárcere. Verificamos que algumas das metas
propostas pelo Plano Estadual foram atingidas, como as referentes ao ensino médio, ensino
superior e cursos profissionalizantes, enquanto que as metas para a alfabetização e ensino
fundamental não foram alcançadas até o ano de 2023. A partir do “Questionário
Socioeconômico”, identificamos que os alunos são predominantemente jovens adultos,
negros, solteiros, de baixa escolaridade, santarenos, pais de dois filhos, com composição
familiar de cinco ou mais membros, com renda familiar de até dois salários mínimos, que
moravam na zona urbana, em residência familiar e que estudavam na escola pública. A
partir dos relatos dos alunos, percebemos que a educação no cárcere é compreendida como
uma importante ferramenta de inserção social, que contribui para reduzir o tempo ocioso
e que possibilita a remição de pena.
Palavras-chave
Educação para privados de liberdade. Educação de jovens e adultos. (Re)inserção social.

Resumen
Este trabajo es el resultado de una investigación de maestría realizada en un contexto
penitenciario. El estudio de caso se llevó a cabo en la Escuela Penitenciaria Prof. Delson
Afonso Mourão, ubicada en el Centro de Recuperación Agrícola Silvio Hall de Moura
(Crashm), en Santarém – PA. El objetivo de la investigación fue conocer cómo se
implementaron los objetivos propuestos en el Plan Estatal de Educación para Personas
Privadas de Libertad y Ex Presos (Peesp) en la escuela penitenciaria en 2022 y 2023.
Además, se buscó identificar el perfil socioeconómico de los alumnos y reunir información
sobre la finalidad de la educación realizada en la cárcel. Constatamos que algunas de las
metas propuestas por el Plan Estadual fueron alcanzadas, como las de enseñanza media,
superior y cursos de formación profesional, mientras que las metas de alfabetización y
enseñanza primaria no fueron alcanzadas hasta 2023. A partir del “Cuestionario
Socioeconómico”, identificamos que los alumnos eran predominantemente adultos
jóvenes, negros, solteros, con bajo nivel de escolaridad, de Santarem, padres de dos hijos,
con una composición familiar de cinco o más miembros, con una renta familiar de hasta
dos salarios mínimos, que vivían en la zona urbana, en una casa de familia y que
estudiaban en escuelas públicas. A partir de los relatos de los estudiantes, nos damos
cuenta de que la educación en la cárcel es vista como una herramienta importante para la
inclusión social, que ayuda a reducir el tiempo ocioso y que permite la redención de penas.
Palabras-clave
Educación para reclusos. Educación para jóvenes y adultos. (Re)integración social.

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Estudo sobre educação para privados de liberdade em Santarém-PA 399

Abstract
This work is the result of a master's research project carried out in a prison context. The
case study was carried out at the Prof. Delson Afonso Mourão Penitentiary School, located
in the Silvio Hall de Moura Agricultural Recovery Center (Crashm), in Santarém – PA. The
aim of the research was to find out how the goals proposed in the State Education Plan for
People Deprived of Liberty and Former Prisoners (Peesp) were implemented at the prison
school in 2022 and 2023. In addition, we sought to identify the socio-economic profile of
the students and gather information on the purpose of the education undertaken in prison.
We found that some of the targets proposed by the State Plan have been achieved, such as
those for secondary education, higher education and vocational courses, while the targets
for literacy and primary education have not been achieved by 2023. From the
“Socioeconomic Questionnaire”, we identified that the students were predominantly
young adults, black, single, with low levels of education, from Santarem, parents of two
children, with a family composition of five or more members, with a family income of up
to two minimum wages, who lived in the urban area, in a family home and who studied at
public schools. From the students' reports, we can see that education in prison is seen as
an important tool for social inclusion, which helps to reduce idle time and enables
sentences to be redeemed.
Keywords
Education for prisoners. Education for young people and adults. Social (Re)insertion.

Introdução

Este artigo situa-se no campo da educação para pessoas privadas de liberdade nos
estabelecimentos penais. Os resultados do estudo são embasados em uma
pesquisa de mestrado, realizada na Escola Penitenciária Prof. Delson Afonso
Mourão, localizada no Centro de Recuperação Agrícola Silvio Hall de Moura
(Crashm), uma das três unidades prisionais do Complexo Penitenciário de
Santarém, município do Estado do Pará.

A pesquisa foi desenvolvida com o objetivo precípuo de conhecer como as


políticas educacionais para pessoas privadas de liberdade foram implementadas
na escola em 2022 e 2023, tendo como documento norteador o Plano Estadual de
Educação para Pessoas Privadas de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional –
Peesp (Pará, 2021), vigente durante o quadriênio de 2021 a 2024. Partindo do
objetivo geral, delineou-se os seguintes objetivos específicos: a) verificar em que
medida as metas previstas no Peesp foram implementadas na escola penitenciária
em 2023; b) levantar dados sobre o perfil socioeconômico dos alunos que
estudaram no ano letivo de 2022; c) identificar finalidades da educação
empreendida no cárcere, a partir dos relatos dos alunos matriculados em 2022.

De modo a complementar o estudo, descrevemos fatos históricos sobre a fundação


da unidade prisional Crashm e da escola penitenciária, destacando o percurso de
implantação da educação básica na unidade. Exploramos ainda o processo de

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institucionalização da educação nas prisões do Pará. Além disso, discorremos


brevemente sobre a contextualização da Educação para Jovens e Adultos (EJA) no
Brasil.

A pesquisa bibliográfica apontou que apenas uma parte da população carcerária


do Brasil tem acesso às atividades educacionais. Partindo desse pressuposto,
buscamos conhecer a disponibilidade de vagas na escola do Crashm e possíveis
limitações que restringem o acesso ao estudo na unidade prisional. Do mesmo
modo, investigamos a rotina escolar e a forma como é desenvolvida a educação na
escola penitenciária.

A pesquisa foi autorizada pela Secretaria de Estado de Administração


Penitenciária (Seap), mediante Termo de Autorização de Pesquisa Acadêmica, e
aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Oeste do
Pará, sob o número do Parecer nº 5.422.263. As análises foram fundamentadas nos
estudos de autores que dialogam com o cárcere e com temas afins, como: Julião
(2009; 2016), Goffman (2004), Borges (2019) e Flauzina; Pires (2020), e nas políticas
e relatórios penitenciários.

Para contemplar os objetivos propostos, utilizou-se como instrumentos de coleta


de dados: a) Questionário Socioeconômico: aplicados aos 32 alunos matriculados
em 2022, para conhecer o perfil socioeconômico dos participantes; b) Questionário
Pedagógico: para conhecer a finalidade da educação desenvolvida no cárcere e as
experiências escolares vivenciadas pelos alunos; c) Roda de conversa com os
alunos da alfabetização para saber os motivos que fizeram com que eles não
frequentassem a escola na idade própria; d) Entrevista semiestruturada com três
participante: a) duas servidoras do Estado: uma da Seap, que relatou sobre a
história de fundação do Crashm e outra da Seduc, que informou sobre o processo
de escolarização; b) uma professora que atuou na escola penitenciária entre 1999 e
2016, que relatou sobre as mudanças nos espaços destinados à educação no
Crashm; e) Conversas informais: realizadas, principalmente, com os docentes; f)
Diário de campo: onde foram registradas as observações referentes à rotina escolar
da escola penitenciária; g) Registos de arquivo da escola, de onde coletamos
informações acerca dos registros de alunos, frequências escolares, levantamento
da escolaridade, Projeto Político Pedagógico (PPP), entre outros.

Desse modo, participaram da pesquisa 45 pessoas: 32 alunos, 10 professores que


atuavam na escola no momento da pesquisa, uma professora que trabalhou na
escola penitenciária entre os anos de 1999 e 2016 e duas servidoras do Estado, uma
da Seap e a outra da Seduc. Os alunos foram identificados pela letra “A”, em uma
sequência de A1 a A32. Os docentes foram identificados pela “D”, seguindo uma

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Estudo sobre educação para privados de liberdade em Santarém-PA 401

sequência de D1 a D11. A servidora da Seap foi identificada por “S1”, e a servidora


da Seduc, por “S2”.

A pesquisa de campo foi realizada em duas fases. Na primeira, que compreende o


intervalo de agosto a dezembro de 2022, aplicamos os questionários
socioeconômico e o pedagógico, realizamos a roda de conversa, com os alunos
alfabetizandos e efetuamos as entrevistas com as duas servidoras do Estado e com
a professora que atuou na escola penitenciária no período de 1999 a 2016.

Na segunda fase, ocorrida entre março e agosto de 2023, focalizamos o estudo nos
dados educacionais e nas metas propostas pelo Peesp, assim, conseguimos avaliar
resultados mais recentes. Vale ressaltar que no Plano Estadual, constam as
diretrizes, objetivos, metas e estratégias, planejados com o objetivo de expandir a
oferta de vagas de estudo nas penitenciárias paraenses. Esses dados devem ser
supervisionados por uma Comissão de Monitoramento Avaliação e
Acompanhamento do Plano. Para complementar esse estudo, buscamos conhecer
os fatores que limitam o acesso à educação no Crashm.

A tabulação dos dados foi realizada através da elaboração de planilhas no Excel,


transcrição dos relatos no Word e criação de uma nuvem de palavras no Word Art.
A técnica de análise de dados utilizada foi a análise de conteúdo. O artigo está
estruturado em duas seções. Na primeira, apresentamos o levantamento
bibliográfico e o campo de pesquisa, e, na segunda, discorremos sobre resultados
e discussão do material empírico.

1 Reflexões sobre políticas para educação prisional: um


hiato entre o previsto e o executado

A educação é um direito reconhecido em documentos internacionais como a


Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948). Do mesmo modo é
prevista na legislação nacional, como na Constituição Federal (Brasil, 1988), na Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Básica Nacional – LDB (Brasil, 1996), e na Lei de
Execução Penal que, além de prevê o acesso à educação para privados de
liberdade, determina o benefício de remição de pena pelo estudo, na proporção de
01 (um) dia da pena para cada 12 (doze) horas estudadas, Art. 126 (Brasil, 1984).

Considerado um marco no âmbito das políticas para a educação em prisões, a


Resolução CNE/CEB nº 02/2010 (Brasil, 2010) prevê as Diretrizes Nacionais para a
oferta de Educação para Jovens e Adultos em situação de Privação de Liberdade
nos Estabelecimentos Penais. Mais recentemente, a Resolução CNE/CEB nº
01/2021, normatizou as Diretrizes Operacionais para a EJA, nos aspectos relativos

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ao seu alinhamento à Política Nacional de Alfabetização (PNA) e à Base Nacional


Comum Curricular (BNCC), e EJA na modalidade de educação a distância,
incluindo-se a educação para pessoas em situação de privação de liberdade (Brasil,
2021). Vale ressaltar que até o momento não há na LDB nenhuma referência de
oferta de educação para privados de liberdade, apesar de ser uma exigência
recomendada no “Relatório Nacional para o direito humano à Educação: Educação
nas prisões brasileiras” (Carreira, 2009).

As análises bibliográficas indicam que a educação para o cárcere foi implantada


de forma improvisada, em alguns casos com apoio de pessoas ligadas à igreja e de
instituições sociais (Julião, 2016). A primeira menção de educação destinada às
pessoas em privação de liberdade no Brasil foi por meio do Decreto nº 678, de 06
de julho de 1850, Art. 167: “Criar-se-á logo que for possível em cada uma das
divisões da Casa de Correção uma escola, onde se ensinará aos presos a ler e a
escrever, e as quatro operações de aritmética”1 (Duarte; Sivieri-Pereira, 2019). O
Estado do Rio de Janeiro é pioneiro na experiência de educação prisional
institucionalizada. Em 1964, a partir do convênio firmado entre a então Secretaria
de Justiça do Estado e a Secretaria de Educação, foram implantadas escolas em
unidades penais para oferecer o ensino regular (Julião, 2009).

A educação em espaços de privação de liberdade no Pará ocorreu a partir da


aprovação da Lei nº 701, pela Assembleia Legislativa da Província do Pará, Art. 3º:
“Fica criada na mesma cadeia uma escola de primeiras letras, que será regida pelo
capelão ou pelo ajudante do carcereiro, ou por um dos presos de boa conduta ou
por qualquer pessoa, que o presidente designar, com gratificação”2 (Lei nº 701, de
25 de outubro de 1871 apud Muniz, 2021, p. 67). O primeiro espaço escolar em uma
prisão no Pará foi criado em 17 de agosto de 1874, a escola da Cadeia de São José.
A escola da Cadeia de São José atendia a 25 alunos, dos 130 apenados, com idade
acima dos 20 anos (Coelho, 2002 apud, Ferreira, 2019).

A institucionalização da educação no Sistema Prisional do Pará foi estabelecida no


momento em que o estado aderiu ao Projeto Educando para a Liberdade, em 2006,
quando a então Superintendência do Sistema do Estado do Pará (Susipe) celebrou
o primeiro termo de cooperação com a Secretaria de Estado de Educação (Seduc),
o Convênio nº 603/2006, tornando oficial a oferta da educação nas unidades
prisionais do Estado (Ferreira, 2019).

1 Ortografia atualizada.
2 Ortografia atualizada.

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Em Santarém, as atividades educacionais de ensino fundamental iniciaram-se em


1997, pelo Setor Social, com apoio de professores alfabetizadores voluntários
(Frota, 2011), mas foi institucionalizada somente a partir de 2005, quando a Escola
Municipal de Ensino Fundamental Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, tornou-se
responsável pela gestão escolar do ensino fundamental. O ensino médio foi
institucionalizado em 2012, tendo a Escola Estadual de Ensino fundamental e
Médio Prof.ª Terezinha de Jesus Rodrigues como escola sede.

Em 2019, o Crashm, assim como outras penitenciárias do Pará, passou por uma
intervenção penitenciária. A operação foi uma ação conjunta entre o Governo do
Estado do Pará e o Ministério da Justiça e Segurança Pública, estabelecida pela
Portaria nº 676, de 30 de julho de 2019 (Brasil, 2019). Com o advento da
intervenção, foi possível incrementar protocolos de segurança e uma nova cultura
no ambiente carcerário do Pará, previstos no Manual de procedimentos
operacionais elaborado pela Seap. A partir da intervenção penitenciária, houve
diversas mudanças na rotina da Unidade Prisional, consequentemente, alterou-se
também a rotina da escola.

A intervenção no Crashm foi iniciada em 16 de setembro de 2019, momento em


que as aulas foram suspensas, retornando somente em 20 de novembro do mesmo
ano. No início do ano letivo de 2020, identificou-se que a estrutura da escola não
era adequada para o ambiente prisional, por não oferecer segurança. Nesse ano,
foram matriculados 106 alunos, mas devido à falta de segurança na estrutura
escolar, houve a necessidade de manter apenas 55 alunos matriculados. Foi
recomendado que se fizessem adaptações nas paredes internas, visto que eram de
policloreto de vinil (PVC), além disso, precisou-se colocar grade de contenção para
separar os professores e os alunos. A obra ocorreu em duas fases, a primeira em
2021, e a segunda em 2022. Com a reforma, construiu-se salas de aulas com o
modelo análogo às celas, o que remete ao termo “cela de aula”, utilizado por
algumas pessoas em tom jocoso, e, por outras, de forma crítica.

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Figura 1
Registro fotográfico da “cela de aula” da Escola Penitenciária Prof. Delson Afonso
Mourão

Fonte: Pesquisa de campo (2022).

A mudança dividiu opiniões entre os docentes, enquanto que alguns defenderam


o formato de sala de aula aberta como modelo ideal, outros se colocaram
favoráveis às adaptações. Para fazer uma reflexão sobre essa questão,
perguntamos a alguns docentes como eles percebiam a mudança. Alguns
relataram que não concordavam com a estrutura, pois os afasta dos alunos que são
carentes em tudo, ferindo o princípio da humanização, além disso, a grade é vista
por eles como uma barreira que os impede de chegar aos alunos para compreender
suas reais necessidades (D6). Segundo D3, o novo modelo deveria ser usado
apenas em prisões de segurança máxima, o que não é o caso do Crashm.

Contrariamente a essa visão, outros professores aprovaram o novo modelo de sala


de aula, por não conhecer os crimes praticados pelos alunos e por entender os
riscos de trabalhar na prisão. Por ser uma escola localizada em uma área de
segurança, D7 defende que o Estado é quem deve definir as medidas de segurança
a serem tomadas. Além disso, D8 informou que já se sentiu ameaçado, relatando
um episódio em que um dos alunos lhe deu uma gravata durante a aula, no ano
de 2019. O mapa ilustrativo abaixo apresenta as divisões das salas de aula.

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Figura 2
Mapa ilustrativo da Escola Penitenciária Prof. Delson Afonso Mourão

Fonte: Elaborado pelos autores a partir do projeto de adaptação da estrutura da


escola (2022).

A Tabela 1 (ver na página seguinte) apresenta dados referentes à quantidade de


apenados envolvidos na educação em 2022 e 2023, período em que a pesquisa foi
realizada. A tabela mostra que o número de alunos foi duplicado em 2023. Esse
aumento ocorreu em decorrência da adaptação realizada na escola.

Em 2023, além da oferta de educação formal, houve a execução do projeto


“Remição pela leitura: um caminho que liberta”. O projeto segue as diretrizes da
Resolução nº 391/2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com a proposta de
oferecer livros aos apenados, para que eles leiam na cela, e, após a leitura escrevam
um relatório sobre a obra, o que lhes dá direito a 04 (quatro) dias de remição de
pena.

Segundo os relatos dos professores e alunos, antes da intervenção, eles tinham


mais liberdade de expressão, havia produção de artesanato, era possível trabalhar
com os diferentes recursos pedagógicos. Após a intervenção, houve restrição na
entrada de materiais didáticos, sob a justificava de manter um padrão de
segurança. Os alunos passaram a utilizar apenas caderno, caneta, lápis preto, lápis
de cor e livros. O uso desses materiais é permitido apenas durante a aula, ou seja,
os alunos não podem levar materiais didáticos para a cela, o que antes da
intervenção era permitido.

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Tabela 1
Relação de alunos da educação formal da Escola Penitenciária Prof. Delson Afonso
Mourão, no período de 2022 – 2023

Série/Etapa Nº de alunos em 2022 Nº de alunos em 2023


Alfabetização 08 00
3ª etapa ensino fundamental 00 14
4ª etapa ensino fundamental 09 14
1ª etapa do ensino médio 09 28
2ª etapa do ensino médio 04 11
Ensino superior 02 04
Total 323 71
Fonte: Elaborada pelos autores a partir de registros de arquivo da Escola
Penitenciária Prof. Delson Afonso Mourão.

Em 2023, além da oferta de educação formal, houve a execução do projeto


“Remição pela leitura: um caminho que liberta”. O projeto segue as diretrizes da
Resolução nº 391/2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com a proposta de
oferecer livros aos apenados, para que eles leiam na cela, e, após a leitura escrevam
um relatório sobre a obra, o que lhes dá direito a 04 (quatro) dias de remição de
pena.

Segundo os relatos dos professores e alunos, antes da intervenção, eles tinham


mais liberdade de expressão, havia produção de artesanato, era possível trabalhar
com os diferentes recursos pedagógicos. Após a intervenção, houve restrição na
entrada de materiais didáticos, sob a justificava de manter um padrão de
segurança. Os alunos passaram a utilizar apenas caderno, caneta, lápis preto, lápis
de cor e livros. O uso desses materiais é permitido apenas durante a aula, ou seja,
os alunos não podem levar materiais didáticos para a cela, o que antes da
intervenção era permitido.

3 Em 2022, foram matriculados 40 alunos. No entanto, oito deles foram desligados da escola: um
aluno foi transferido para outra penitenciária, outro perdeu a vaga por indisciplina, dois
receberam alvará de soltura, e quatro progrediram de regime (eles cumpriam pena em regime
fechado, e passaram a cumprir pena no regime semiaberto). Isso se deve ao fato de que, em 2022,
as vagas de estudo eram destinadas preferencialmente aos custodiados que cumpriam pena em
regime fechado. Ao final do ano letivo de 2022, havia, portanto, 32 alunos. Ressalta-se que a partir
de 2023, os alunos que progrediram de regime de cumprimento de pena continuaram estudando
normalmente.

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As atividades desenvolvidas na escola penitenciária apresentam algumas


similaridades com a oferta de EJA nas escolas regulares: as aulas são ministradas
de segunda-feira a sexta-feira, apenas no turno da manhã e da tarde.
Normalmente, as aulas são, expositivas dialogadas, com uso de recursos
pedagógicos, como: quadro branco, pincel para quadro branco, livros didáticos,
Datashow, televisão, notebook.

Apesar das semelhanças, há algumas peculiaridades: a estrutura das salas de aula


possui grades, os alunos chegam e saem da sala de aula com aparelhos de
contenção (algemas), há restrição de materiais didáticos em sala de aula, como
tesoura, apontador e estilete, os alunos não podem levar os materiais didáticos
para a cela, há algumas suspensões de aulas durante o ano letivo, ocasionadas,
normalmente, pelas visitas de familiares e revista geral.

Observamos que os currículos trabalhados são os mesmos da escola sede, com


algumas adaptações para atender às necessidades dos alunos. Os professores
produzem quatro notas bimestrais ao longo do ano letivo. As atividades
avaliativas ocorrem por meio da participação em sala de aula, frequência escolar,
resolução de exercícios, testes, trabalho em dupla/grupo, avaliações bimestrais
escritas, orais ou mistas. Ao avaliar a aprendizagem dos alunos, os docentes
consideram as limitações decorrentes do cárcere, fatores biopsicossociais, restrição
de materiais didáticos, as diversas suspensões de aula e a limitação do tempo
dedicado ao estudo, que é apenas durante o horário de aula.

O Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola é fundamentado no arcabouço legal


da EJA e no princípio da gestão democrática, o que pressupõe a participação de
alunos e comunidade escolar nos processos decisórios da escola. Contudo,
observamos que o documento é construído pelos técnicos e equipe docente, sendo
atualizado anualmente. Não se nota o envolvimento da comunidade escolar nesse
processo. A comunicação com os familiares dos alunos é limitada e ocorre,
geralmente, nos dias de visita familiar e/ou por meio dos advogados. Para
complementar o estudo, levantamos, o número de matrículas realizadas ao longo
do tempo, a partir de relatórios obtidos nas secretarias das escolas sedes, os quais
foram expostos no Gráfico 1.

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Gráfico 1
Evolução da oferta de vagas na educação formal na Escola Penitenciária Prof. Delson
Afonso Mourão, 2005 – 2023.

200
162
Número de matrículas

137 142
150 115
109 104 102 104 106
100 81 71
62 62 70
50 55
50 30 40
18
0

Tempo (anos)

Fonte: Elaborado pelos autores a partir de dados dos registros da Escola Penitenciária
Prof. Delson Afonso Mourão, da Escola Municipal E. F. Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro e da Escola Estadual de E.F.E.M Prof.ª Terezinha de Jesus Rodrigues.

No Gráfico 1, destacamos as variações na quantidade de matrículas efetivadas ao


longo do tempo. Não foi possível identificar os aspectos que influenciaram as
variações nas quantidades de matrículas no período de 2005 a 2019. Quanto a 2020
e 2021 os fatores relacionam-se com a estrutura escolar e o baixo efetivo de policiais
penais para fazer a vigilância aproximada. Em 2022, a escola já estava pronta,
porém não havia policiais penais suficientes para garantir a segurança na escola,
tendo em vista que, apesar das adaptações estruturais, exige-se a presença de pelo
menos um policial penal para cada 15 aluno, conforme previsto no convênio
firmado entre a Seduc e Seap. Em 2023, o número de alunos foi duplicado, após
algumas adaptações internas ocorridas no intuito de priorizar a educação na
unidade.

Entendemos que compartilhar esses dados com a sociedade é fundamental para


que haja a compreensão de como ocorre o processo de escolarização em contexto
prisional. As Penitenciárias são instituições sociais com restrições de acesso à
população, e, por meio de pesquisas como esta, é possível descrever e difundir
informações que permeiam essa realidade. Deve-se ressaltar que essa é uma
experiência específica, e que apesar da tentativa de manter um padrão de
atendimento, cada unidade prisional tem suas peculiaridades (estrutura física,
quantidade de colaboradores, quantidade da população carcerária, atendimento à
população feminina/masculina, disponibilidade de recursos materiais, entre
outros).

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2 Resultados e discussão

2.1 Análises sobre a oferta de educação na Escola


Penitenciária Prof. Delson Afonso Mourão

Nesta subseção apresentamos os resultados das análises sobre o monitoramento


das metas propostas no Peesp. Para tanto, elaboramos o Quadro 1 (ver na página
seguinte), tendo como base o parecer emitido pelo Depen sobre o monitoramento
de 2021. No parecer constam os resultados referentes à evolução da oferta de vagas
de estudo na alfabetização, ensino fundamental, ensino médio, ensino médio
técnico, cursos profissionalizantes e ensino superior. No parecer não são
apresentados dados referentes a alguns eixos do Plano, como: gestão, estrutura,
qualificação e capacitação de profissionais, ficando, portanto, algumas lacunas no
monitoramento. Em decorrência disso, não há como acompanhar os resultados
integralmente, inviabilizando a compreensão global dos principais pontos de
atenção.

A partir desse estudo, observou-se que a meta prevista para a alfabetização em


2023, que era de garantir o aumento de vagas em 83% não foi alcançada. No início
do ano letivo de 2023, foi feito o planejamento para abrir duas turmas de
alfabetização: uma de nível básico, que corresponde à 1ª etapa do ensino
fundamental, e outra de nível avançado, equivalente à 2ª etapa do ensino
fundamental. No entanto, as turmas não foram inicializadas por falta de material
didático, que é distribuído pelo Ibraema, e devido ao baixo efetivo de policiais
penais.

O segundo campo do Quadro 1 trata do ensino fundamental. Em 2020, havia 35


alunos matriculados no ensino fundamental, enquanto que em 2023 esse número
caiu para 28 alunos, ou seja, houve redução de 20%, devido à falta de professores
para atuarem no ensino fundamental, pois, em 2020, após determinação da
Secretaria Municipal de Educação, os professores eles deixaram de atuar na escola
do Crashm. Em decorrência disso, os professores da Seduc, lotados na escola para
ministrar aula para o ensino médio, passaram a atender também ao ensino
fundamental. Como não houve aumento na quantidade de docentes, foi preciso
dividir a carga horária dos professores entre as turmas de ensino fundamental e
ensino médio em 2023.

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Quadro 1
Avaliação das metas propostas pelo Peesp, no período de 2020 para 2023, na Escola
Penitenciária Prof. Delson Afonso Mourão

Número de Número
Atingiment
Crescimento planejado vagas de de vagas
Ação o das metas
para 2023 estudo em de estudo
2023
20204 em 20235
Elevar a oferta para 83% dos
Alfabetização 00 00 -
estabelecimentos penais.
Elevar para 18% a oferta da
EJA na etapa do ensino
Ensino
fundamental para as pessoas
Fundamental 35 28 -20%
privadas de liberdade e para
(1º ao 9º ano)
os egressos do Sistema
Prisional.
Elevar para 18% a oferta da
EJA na etapa do ensino
médio para as pessoas
20 39 95%
privadas de liberdade e para
os egressos do Sistema
Prisional.
Ensino Médio
Garantir a oferta do ensino
médio em articulação com a
educação profissional técnica
00 00 -
em 8 unidades prisionais
e/ou equipamentos de
atenção ao egresso.
Garantir e ampliar para 7% o
percentual de cobertura do
ensino superior presencial e
Ensino Superior educação a distância às 01 4 300%
pessoas privadas de
liberdade e aos egressos do
sistema prisional.
Ofertar cursos
Curso
profissionalizantes em 90% 00 01 Realizado
Profissionalizante
dos estabelecimentos penais.

Fonte: Elaborado pelos autores a partir dos dados obtidos na pesquisa de campo (2023).
Quanto ao ensino médio, a meta, que era elevar o número de vaga em 18%, foi
atingida, pois a quantidade de alunos foi aumentada em 95%. No que diz respeito

4 Para esta análise, consideramos quantitativo de alunos que participaram das atividades durante
o ano letivo, ou seja, 55 alunos.
5 Dados coletados no Relatório Educacional de março de 2023.

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à meta que trata da oferta do ensino médio técnico, pode-se afirmar que não foi
atingida, pois não houve oferta de ensino médio técnico na escola penitenciária em
estudo.

Em relação ao ensino superior, a meta, que era de 7%, foi alcançada, tendo em vista
que a quantidade de alunos foi aumentada de 01 (um) para 04 (quatro) alunos. A
oferta de ensino superior na unidade, no momento da pesquisa, estava em fase de
implementação, o que foi possível após a construção do Laboratório de
Informática. O acesso ao ensino superior no cárcere é altamente relevante, não só
pela aprendizagem adquirida, mas por dar condições à continuidade dos estudos.

Por fim, o parecer do Depen apresentou a meta para cursos profissionalizantes,


que está atrelada à execução de cursos em todos os estabelecimentos penais do
Estado, mas, para fins de análise no âmbito local, consideramos que a meta foi
cumprida, tendo em vista que foi realizado um curso profissionalizante em 2023,
o curso de “Técnicas básicas para barbeiro”, ofertado pelo Serviço Nacional de
Aprendizagem Comercial (Senac), para 20 participantes, com carga horária de 20h.

A partir dessa análise, buscamos conhecer, os fatores que limitam a oferta de vagas
de estudo no Crashm. Identificou-se a insuficiência de policiais penais para fazer
a condução dos alunos do bloco carcerário e a vigilância aproximada na escola. De
acordo com a Resolução nº 09/2009, do Conselho Nacional de Políticas Criminais
e Penitenciárias (CNPCP), a recomendação de proporção mínima de agentes
penitenciários/policiais penais nas unidades prisionais é de 05 (cinco) presos para
cada agente penitenciário/policial penal. No momento da pesquisa, havia, no
Crashm, em torno de 75 policiais penais, divididos em quatro escalas de serviço.
Considerando a população carcerária fixada para fins de análise (929 custodiados),
e a recomendação do CNPCP, pode-se dizer que o ideal seria que no Crashm
houvesse em torno de 185 policiais penais, isto é, há um déficit de pelo menos 110
policiais penais.

Outro fator que limita o acesso à educação é a estrutura escolar, que é composta
por cinco salas de aula, com capacidade máxima de 80 alunos por turno. E, ainda
que funcionasse com sua capacidade máxima, nos turnos: manhã, tarde e noite,
apenas 240 apenados seriam atendidos na educação formal, o que significa dizer
que 689 custodiados não teriam a oportunidade de estudar na educação formal,
restando-lhes apenas as atividades não formais. Além da questão da estrutura
escolar, considera-se a estrutura física do Crashm outro ponto de atenção, tendo
em vista a localização dos blocos carcerários, que ficam afastados da escola,
dificultando a retirada dos alunos.

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A Figura 3 mostra a estrutura do Crashm, identificando os espaços que foram


utilizados como sala de aula. Essa descrição foi feita por uma docente que atuou
na escola do Crashm no período de 1999 a 2016. Segundo ela, nos primeiros anos,
as aulas eram ministradas no Galpão 4 (1999 – 2002), depois passou a ser no Galpão
5 (2002 – 2004). Em seguida, voltou a ter aula no Galpão 4 (2004 a 2005). Entre 2010
e 2011, as aulas ocorreram em duas salas que, atualmente, são celas e recebem o
nome de Triagem. Ela informou que, durante a adaptação do espaço onde
atualmente funciona a escola, as aulas ocorreram no Galpão 6 (2011), quando as
aulas eram ministradas em uma sala de aula apenas, devido a isso, as aulas
duravam somente duas horas. Assim, havia aulas para duas turmas por turno.
Essa forma de trabalho durou em torno de seis meses. Todos esses espaços citados,
hoje, são celas. A escola penitenciária passou a funcionar no prédio atual a partir
de 2012. Mas em 2021 as aulas foram na capela, devido à reforma que ocorreu na
escola, e, em 2022, as aulas voltaram a ocorrer no prédio escolar.

Figura 3
Mapa Ilustrativo do Crashm

Fonte: Elaborado pelos autores a partir da Pesquisa de campo (2022 – 2023).

Após as adaptações ocorridas na escola, ela foi reinaugurada no dia 11 de janeiro


de 2023, recebendo o nome de “Escola Penitenciária Professor Delson Afonso
Mourão”6 (Pará, 2023c), em homenagem ao agente prisional Sr. Delson Afonso
Mourão, para atender ao pedido dos professores e técnicos da Seduc, que atuam

6 In memoriam.

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na escola, tendo em vista que o Sr. Delson esteve à frente do setor pedagógico, de
2003 até seu falecimento, no dia 19 de outubro de 2020.

Figura 4
Fachada da Escola Penitenciária Prof. Delson Afonso Mourão

Fonte: Seap/PA (Pará, 2023).

2.2 A perpetuação do encarceramento de jovens negros,


pobres e de baixa escolaridade: considerações sobre o
perfil socioeconômico dos alunos.

A identificação do perfil socioeconômico dos alunos foi realizada através da


aplicação do “Questionário socioeconômico”, para conhecermos os resultados em
escala local. Para realizarmos uma análise comparativa com as esferas estadual e
federal, analisamos os relatórios do Depen do Pará e do Brasil, referentes a 2022
(Brasil, 2022). No questionário, perguntamos sobre algumas características que
constam no relatório do Depen, como: “faixa etária”, “cor/raça/etnia”, “estado
civil” e “escolaridade”, e outras categorias que não constam nos relatórios, como:
“município de origem”, “composição familiar” e “renda”.

Quanto à categoria “Faixa etária”, verificamos que houve diferença entre a


população local e as demais esferas. Os alunos estão em sua maioria na faixa etária
de “30 anos a 34 anos” (34,37%), enquanto que a população carcerária do Pará e no
Brasil está majoritariamente concentrada na faixa etária de “25 anos a 29 anos”,
correspondendo a 29,26%, e 20,30% respectivamente. Não foi possível identificar
fatores que justificassem essa diferença de faixa etária, mas é possível que tenha
relação com a avaliação do comportamento dos apenados que manifestam

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interesse em estudar. Ressalta-se que as vagas de estudo na escola do Crashm são


limitadas. Assim, normalmente, os alunos que estudam são aqueles que atestam
“Boa conduta carcerária” em sua “Certidão Carcerária”. Para concluir, apesar das
diferentes faixas etárias, identificamos que a maioria dos apenados é de jovens
adultos, ou seja, pessoas com idade entre 19 e 40 anos7.

Ao realizarmos as análises sobre a categoria “Cor/raça/etnia”, constatamos que a


maioria dos alunos são negros (71,87%), o que ocorre também na população
carcerária do Pará (76,81%) e do Brasil (53,46%). Os resultados indicam a tendência
persistente e alarmante de jovens negros envolvidos no ciclo de encarceramento, o
que está enraizada na perpetuação do racismo e nas profundas injustiças sociais
que permeiam nossa sociedade. Essa cruel realidade não pode ser ignorada, pois
evidencia a maneira como as estruturas institucionais discriminatórias têm
resultado em uma disparidade no sistema de justiça criminal. O sistema
frequentemente trata jovens negros com mais severidade, essa desigualdade cria
um ciclo vicioso de aprisionamento que perpetua a marginalização, prejudicando
as oportunidades de educação, emprego e crescimento pessoal para esses jovens
(Borges, 2019).

Notamos também o elevado percentual de pessoas negras em situação de privação


de liberdade no Pará, em comparação com a população carcerária do Brasil. Essa
disparidade também é verificada nos estudos que se referem à população de modo
geral, os pretos e pardos representam 77% da população total do Estado do Pará,
mas apenas 16% da população do estado de Santa Catarina, por exemplo, que é
um estado mais rico, situado na região Sul do Brasil (Freire et al., 2018, p. 62). As
diferenças entre o Norte e o Sul do Brasil são sociorraciais, e, em razão disso,
socioeconômicas.

No Pará, o acesso a serviços é significativamente menor do que a média


nacional, especialmente em relação ao fornecimento de água (73% versus
93%) e à conexão a redes de esgoto (29% versus 50%). Da mesma forma,
quase 64% das famílias paraenses vivem em favelas, mais do que o dobro
da média nacional (34%). Além disso, o desemprego também é mais
acentuado no estado (16% versus 6%). No entanto, as condições desiguais
do Pará tornam-se mais visíveis quando comparadas com Santa Catarina,
um estado predominantemente branco do Sul do país, que tem a menor
concentração de afrodescendentes do Brasil (16%). Ao passo que, em Santa
Catarina, o acesso à água é quase universal, no Pará um quarto da

7 Eric Erikson (1971) argumenta que o desenvolvimento do indivíduo ocorre sempre


relacionalmente. A noção de que idade adulta-jovem constitui uma fase da vida baseia na tese de
que ambas “subfases” envolvem características como intimidade, generatividade, percepção do
Eu via isolamento ocasional, e, portanto, instituem uma etapa da vida.

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Estudo sobre educação para privados de liberdade em Santarém-PA 415

população não tem acesso regular a esse serviço (padrões semelhantes são
observados em relação à eletricidade, a redes de esgoto e ao acesso a
computadores e à internet). A população residente em favelas no Pará é
quase três vezes a proporção de Santa Catarina (64% versus 25%), e a taxa
de analfabetismo é quase duas vezes maior (11% versus 6%) (Freire et al.,
2018, p. 62-63)

A alta concentração de pessoas negras no cárcere pode ser uma consequência do


racismo que vem se rearticulando ao longo do tempo, provocando a exclusão de
sujeitos que apenas buscam direitos iguais e o respeito independentemente de sua
cor, raça ou etnia, pois o que se observa é que a reprodução de hierarquias raciais
determina o funcionamento real dos outros sistemas sociais, fazendo da
cor/raça/etnia um dispositivo de regulação que nos apresenta condições efetivas
de favorecimento de grupos e de desfavorecimento de outros (Flauzina; Pires,
2020).

Os dados sobre o “Estado civil” dos participantes indicam que a maioria deles, em
todas as esferas: local (65,61%), estadual (41,28%) e nacional (45,08%) é de solteiros.
Os alunos da escola penitenciária informaram que as restrições ocasionadas pela
intervenção penitenciária e a pandemia causada pela Covid-19 influenciaram no
afastamento de suas companheiras, devido a isso, muitos deles demonstraram
dúvida quanto ao seu estado civil. Um deles descreveu que se sentia
“abandonado” (P4).

Quanto à categoria “Perfil educacional”, considerou-se a população total do


Crashm, para que tivéssemos uma dimensão real da escolaridade da população
carcerária na esfera local, em comparação com a população carcerária paraense e
nacional. Os resultados mostraram que a maioria dos custodiados do Crashm
(63,06%), assim como do Pará (55,72%) e do Brasil (43,99%) não concluiu o ensino
fundamental, o que aponta, portanto que os encarcerados são, em linhas gerais, de
baixa escolaridade.

O estudo sobre o perfil socioeconômico dos alunos foi complementado com o


levantamento de outras informações de cunho local. Assim apresentamos o
seguinte perfil socioeconômico dos alunos: jovens adultos, negros, solteiros, de
baixa escolaridade, santarenos, pais de dois filhos, com composição familiar de 05
ou mais membros, com renda familiar de até dois salários mínimos, que moravam
na zona urbana, em residência familiar e que estudaram na escola pública.

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2.3 Educação no cárcere e suas múltiplas facetas

A partir da aplicação do “Questionário Pedagógico” foi possível coletar narrativas


relevantes sobre as experiências vivências pelos alunos e identificar as finalidades
da educação desenvolvida no cárcere. Os registros dos alunos indicam que, ao
serem inseridos na escola, eles passaram por uma mudança de pensamento sobre
a educação. Muitos deles informaram que não se interessavam pela educação na
escola extramuros, ou seja, antes do cárcere. Por outro lado, na escola do cárcere,
eles despertaram o gosto pelos estudos, principalmente, devido à atenção, cuidado
e ao envolvimento dos professores durante as aulas.

Por meio do “Questionário Pedagógico” buscamos também conhecer os fatores


que influenciaram a evasão escolar dos alunos. Um deles relatou que precisava se
deslocar 85 km para chegar à escola (A1); o trabalho também foi citado como fator
de desistência dos estudos “eu sempre quis estudar, mas pela dificuldade, teria
que fazer uma escolha, estudar e passar necessidade ou trabalhar e sobreviver”
(A1); outro aluno descreveu que sofreu racismo na escola, “os colegas me
criticavam, me chamavam de preto” (A5); educação de má qualidade, “os
professores não tinham paciência, a educação era péssima, e não tinha merenda
escolar” (A9); e) um aluno passou por uma situação de violência na escola, “eu me
envolvi em uma briga na escola, o que me afastou, foi a coisa pior da minha vida”
(A25); f) falta de apoio familiar, “estudei na escola pública, foi uma fase boa, mas
havia pouco acompanhamento da família” (A20).

Perguntarmos aos alunos os motivos que os levaram a estudar no cárcere. Segundo


eles, a escola do cárcere é um ambiente propício à mudança, “através do estudo eu
decidi mudar minha vida fazer escolhas certas” (A6), a educação ofertada é
entendida como instrumento de transformação, “foi aqui que terminei o ensino
médio e hoje estou cursando Tecnologia em Gestão Financeira. A escola
transformou a minha vida!” (A20). A escola é o espaço na penitenciária em que os
alunos, podem viajar no tempo, “eu me sinto como uma criança na beira da praia,
juntando conchinhas contemplando em minha frente um oceano de
conhecimento” (A4). Como as oportunidades de atividades são mais restritas, “os
estudos ajudam a ocupar a mente e a distrair a vida que eu estou enfrentando”
(A22). O benefício da remição de pena também se destacou entre as respostas,
“primeiramente a remição de pena e poder sair desse local e recomeçar uma vida
diferente” (A8).

Ao analisarmos as frequências escolares referentes aos anos anteriores à


intervenção, verificamos que era comum os alunos desistirem dos estudos, o que,
nos dias de hoje, raramente acontece. Consequentemente, percebemos que é

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Estudo sobre educação para privados de liberdade em Santarém-PA 417

possível que a educação no cárcere cumpra também o papel de reduzir o tempo


ocioso, visto que as oportunidades de atividades são altamente restritas
atualmente. Um aluno relatou que “os estudos ajudam a ocupar a mente e a distrair
a vida que eu estou enfrentando” (A22).

A partir dos relatos dos alunos, percebemos, portanto, que a educação no cárcere
compreende finalidades para além da aquisição de conhecimento, sendo vista
como ferramenta de inserção social, que contribui para minimizar o tempo ocioso
e possibilita a remição de pena. Assim, a educação no cárcere é entendida como
instrumento de transformação, de mudança de vida, de autoestima. A
reciprocidade presente na relação educador-educando tende a impactar
positivamente a vida pessoal e social dos educandos.

Na roda de conversa, os participantes informaram que enfrentaram dificuldades


de acesso à educação na infância. Dentre os principais motivos que os fizeram
parar de estudar, destacam-se a distância da escola e a necessidade de trabalhar.
Quatro deles relataram que moravam na zona rural, e que precisavam trabalhar
no campo para ajudar no sustento da família, e que, como a escola era longe,
perderam o interesse em estudar. Dois alunos informaram que tiveram dificuldade
para ler, e outros dois afirmaram que não tinham interesse em estudar.

As respostas dos participantes da roda de conversa mostram que eles deixaram de


estudar por falta de oportunidade e de incentivo. Acrescenta-se que a educação no
cárcere é vista por eles como forma de humanizar da pena, assumindo o papel de
contribuir de diversas formas para suas vidas, assim, depositam na educação a
esperança de dias melhores dentro e fora do cárcere.

Faz-se, portanto, necessário que outras pesquisas sejam desenvolvidas para que
acadêmicos e instituições sociais conheçam essa realidade. Assim, a sociedade civil
poderá contribuir com as autoridades para a implantação de políticas e projetos
para o Sistema Penitenciário. Os benefícios desse tipo de parceria não se limitam
aos custodiados, mas se estende à sociedade, tendo em vista a possibilidade da
redução da criminalidade, considerando que muitas dessas pessoas que se
encontram em situação de privação de liberdade, precisam apenas de oportunidades.

3 Considerações finais

Durante a pesquisa, buscamos compreender como as políticas educacionais para


pessoas privadas de liberdade estavam sendo implementadas na Escola
Penitenciária Prof. Delson Afonso Mourão. Além disso, levantamos dados sobre a
implementação da educação nas prisões do Pará e no Crashm. Por fim,

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descrevemos o perfil socioeconômico predominante dos alunos e as finalidades da


educação empreendida no cárcere.

A educação para pessoas encarceradas no Brasil teve seu início de forma


improvisada e ofertada apenas a alguns custodiados, o que ainda ocorre nos dias
atuais. Identificamos que no Crashm há alta demanda por atividades educacionais,
mas poucas vagas de estudo. Como justificativa para essa problemática, destacam-
se: o baixo efetivo de policiais penais, a estrutura penitenciária inadequada e o
espaço escolar insuficiente. Em decorrência disso, entendemos que cabe ao Estado
investir na estrutura e realização de concurso para elevar a quantidade de policiais
penais.

Os resultados indicaram que as metas propostas pelo plano para o ensino médio,
ensino superior e cursos profissionalizantes foram alcançadas, enquanto as metas
para o ensino fundamental e alfabetização não foram atingidas até o momento.
Consideramos que algumas das metas previstas no Plano precisam ser repensadas,
como é o caso da meta prevista para a realização de cursos profissionalizantes, que
deve “alcançar 100% das unidades prisionais no prazo de quatro anos”, porém,
não estipula a quantidade de cursos por unidade prisional e/ou por período, ou
seja, a realização de 01 (um) apenas, apesar de suprir a meta, certamente, é
insuficiente para atender à demanda dos apenados.

O Sistema Penitenciário Brasileiro, por ser carente de recursos financeiros,


tecnológicos e humanos, em linhas gerais, é um setor que sofre limitações para
garantir aos apenados todos os direitos previstos em lei. Apesar disso, é
recomendável que a educação para o cárcere ocupe um lugar de prioridade no
campo das políticas e de visibilidade nos discursos sociais. Compreendemos que
muitas pessoas saem e voltam para o cárcere por falta de oportunidades. Em
alguns casos, pais, mães e irmãos, também se encontram encarcerados. Não se
busca aqui justificar os fatos, mas sim despertar para uma reflexão sobre a vida
social dos custodiados, com a finalidade de pensar em medidas que possam
transformar essa realidade.

A falta de apoio e de orientação familiar sobre a importância do estudo para a vida


em sociedade, configura um dos fatores que desestimularam os alunos a
permanecerem na escola. Segundo os relatos, eles enfrentaram, desde cedo,
dificuldades socioeconômicas, o preconceito e a exclusão. Foi na escola
penitenciária que muitos deles passaram a se interessar pelos estudos. Nesse
sentido, é fundamental que sejam criadas oportunidades para que eles continuem
estudando no cárcere, e, quiçá, fora dele.

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Estudo sobre educação para privados de liberdade em Santarém-PA 419

Além disso, é imperativo que o Estado estabeleça mecanismos que reduzam a


imagem estereotipada resultante da passagem pelo cárcere, o que pode ocorrer
mediante parceria com instituições públicas e privadas, por meio de ações que
oportunizem vagas de emprego e em instituições de ensino superior, programas
de acolhimento aos egressos sem vínculos familiares e sociais, entre outros. Essas
propostas não só beneficia os próprios indivíduos, mas também enriquecem a
sociedade, ao canalizar o potencial humano, anteriormente desperdiçado, em
contribuições valiosas e positivas.

Embora não pretendamos esgotar o tema, tampouco resolver problemas relativos


à educação no cárcere, buscamos expor algumas ponderações e apresentar
sugestões para melhorias da educação destinada ao cárcere. O estudo, portanto,
foi realizado, por acreditarmos na relevância do acesso à educação no cárcere.
Esperamos que esses resultados contribuam para novas pesquisas e discussões, e
que os resultados futuros sejam de cenários mais positivos e promissores.

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2019. Disponível em:
https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/1154/o/Encarceramento_em_Massa_Feminis
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1988. Disponível em:
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Estudo sobre educação para privados de liberdade em Santarém-PA 423

Sobre a autora e o autor


Poliana Aguiar Luiz
Mestra em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação
da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa).

Contribuições de coautoria: construção do instrumento metodológico,


pesquisa, observação e registro de dados, organização de dados, análise
de dados, redação.

Alan Augusto Moraes Ribeiro


Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). Doutor em Educação
pela Universidade de São Paulo (USP).

Contribuições de autoria: construção do instrumento metodológico,


orientação teórica, sugestões de cunho interpretativo e descritivo,
supervisão da pesquisa, revisão e edição textual.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.51924

dossiê

Territórios racializados e a produção


risco de violência doméstica pelo
Sistema de Justiça
Territorios racializados y producción de riesgo de
violencia doméstica por el Sistema de Justicia

Racialized territories and the production of risk of


domestic violence by the Justice System

Bárbara Crateús Santos1


1
Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil. E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9371-2909.

Submetido em 18/12/2023
Aceito em 25/01/2024

Como citar este trabalho


CRATEÚS SANTOS, Bárbara. Territórios racializados e a produção risco de violência
doméstica pelo Sistema de Justiça. InSURgência: revista de direitos e movimentos
sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 425-460, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons 4.0.
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426 Bárbara Crateús Santos

Territórios racializados e a produção


risco de violência doméstica pelo
Sistema de Justiça

Resumo
Este artigo sugere que há um processo racializador que coloniza a percepção dos atores do
sistema de justiça sobre territórios urbanos violentos. A compreensão de comunidades
próximos à Sobradinho-DF – que essencializa vivências negras como o “outro” violento e
incivilizado - produz efeitos na experiência de justiça de mulheres negras junto à rede de
enfrentamento à violência doméstica. Esse processo produz um risco de violência
incapturável pela política pública do Formulário de Nacional de Avaliação de Risco de
Violência Doméstica (Lei n. 14.149/2021). Os padrões de segregação socioespacial que
caracterizam as desigualdades raciais definem experiências de justiça, sobretudo na
relação das vítimas com a polícia. A desapropriação da cidadania de mulheres negras no
Brasil também é produzida pelo Poder Judiciário em suas práticas cotidianas e discursos
jurídicos.
Palavras-chave
Violência doméstica. Risco. Territórios racializados.

Resumen
Este artículo sugiere que existe un proceso de racialización que coloniza la percepción de
los actores del sistema de justicia sobre los territorios urbanos violentos. La comprensión
de las comunidades cercanas a Sobradinho-DF - que esencializa las experiencias negras
como el "otro" violento e incivilizado - tiene un efecto sobre la experiencia de justicia de las
mujeres negras dentro de la red de violencia doméstica. Este proceso produce un riesgo de
violencia que no puede ser captado por la política pública del Formulario Nacional de
Evaluación de Riesgo de Violencia Doméstica (Ley 14.149/2021). Los patrones de
segregación socioespacial que caracterizan las desigualdades raciales definen las
experiencias de justicia, especialmente en la relación entre las víctimas y la policía. La
desposesión de la ciudadanía de las mujeres negras en Brasil también es producida por el
poder judicial en sus prácticas cotidianas y discursos jurídicos.
Palabras-clave
Violencia doméstica. Riesgo. Territorios racializados.

Abstract
This article suggests the existence of a racializing process wich colonizes the perception of
justice system actors about violent urban territories. The understanding of communities
near Sobradinho-DF - that essentializes black lives as the violent and uncivilized "other" -
takeseffect in the black women's experience of justice next to the network to
combatdomestic violence. This process produces a risk of violence uncaptureable by the
public politic of the National Domestic Violence Risk Assessment Form (Law 14.149/2021).
The socio-spacial patterns segregation that characterize racial inequalities define
experiences of justice, especially in the relationship between victims and the police. The
dispossession of citizenship of black woman in Brazil is also produced by the Judiciary in
its daily practices and legal discourses.
Keywords
Domestic violence. Risk. Racialized territories.

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Introdução

Diversas produções de caráter empírico e sociojurídico expõem e denunciam


práticas policiais e judiciárias de caráter discriminatório; analisam percepções das
vítimas com relação ao Sistema de Justiça; criticam epistemologicamente a
dogmática jurídica; disputam a inserção de uma perspectiva de gênero como
categoria de análise hermenêutica e de outros aspectos diferenciadores, como raça,
sexualidade, geração etc. Essas são algumas das principais questões que vêm
desenhando o campo sobre direito, gênero e violência doméstica contra a mulher1.

Dito isso, há um campo de pesquisa ainda pouco explorado no Brasil que é sobre
análise de risco. O conceito de avaliação de risco significa um conjunto de
informações sobre os envolvidos na situação de violência que auxilia na tomada
de decisões sobre como intervir de acordo com risco de reincidência de violência.
Seu principal objetivo é a prevenção, a partir da criação de um plano de segurança
na tentativa de minimizar os riscos (Almeida; Soeiro, 2010).

No mesmo sentido, fatores de risco são considerados elementos individuais,


sociais e contextuais que podem aumentar a probabilidade de ocorrer um ato
violento, não sendo necessariamente causas diretas da violência. Já o risco em si
abrangeria uma preocupação com a investigação de elementos relacionados à
violência e com a gestão do risco em níveis contextuais, individuais a curto, médio
e longo prazo (Medeiros, 2015 p.31). A avaliação de risco é indispensável para a
aplicação individualizada de políticas públicas de proteção, tais como a construção
de plano de segurança e a gestão dos fatores de risco do caso concreto (Ávila et al.,
2021).

De uma maneira geral, Juízes e demais atores, como a equipe psicossocial, realizam
estudos psicossociais, mobilizam a rede e promovem audiências para verificar o
grau de risco que a vítima se encontra. Esses movimentos são realizados
considerando o lapso temporal entre a denúncia junto à Delegacia e o andamento
do processo, arranjos familiares, históricos de violência, problemas com
dependência química, vulnerabilidades sociais, entre outras questões que
caracterizam e fundamentam decisões de intervenção. São diversas variáveis
circunstanciais que dependem muito de cada caso.

1 Algumas pesquisas têm tratado sobre esses temas, como: Prando, 2016; Pereira, 2013;
Montenegro, 2015; Flauzina, 2015; Prando; Costa, 2018; Almeida; Pereira, 2012; Alencar, 2017;
Zabala, 2020. Pereira; Tavares, 2018; Lins, 2014.

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Avaliar risco de reincidência de violência ou de feminicídio aparenta ser - à


primeira vista - uma prática revestida de intuição, percepção pessoal e experiência
do julgador ou profissional da área (Medeiros, 2015 p. 64; Walklate, 2018). Na
previsão legal, essa régua é utilizada para prever a necessidade de concessão ou
não de medidas protetivas de urgência e outras intervenções de proteção,
realizando uma gestão de risco e segurança pela rede de atendimento e assistência
a mulheres em situação de violência doméstica.

São múltiplas as estratégias de avaliação de risco à disposição de profissionais:


checklists, entrevistas clínicas, instrumentos padronizados, nível de experiência e
de intuição do avaliador. Tais caminhos possuem a vítima, os autores, as
testemunhas, registros criminais ou prontuários como fonte de informação
(Medeiros, 2015, p. 112). No Brasil, a Lei n. 14.149/2021 tornou obrigatório o uso
do Formulário de Nacional de Avaliação de Risco de violência doméstica nos
atendimentos da rede de enfrentamento de todo o país.

Algumas questões deixam de aparecer nesse instrumento de avaliação que não se


encaixam na identificação de experiências universais. Há fatores de risco atinentes
à experiência de violência específicas de mulheres negras. A compreensão e o
discurso sobre raça dos atores da rede de enfrentamento, a relação da vítima com
a polícia e o processo de racialização de territórios – que seriam propícios a ocorrer
violência doméstica- constituem fatores de risco racializados (Santos, 2022) que
precisam fazer parte da gramática da avaliação de risco dos atores da rede de
enfrentamento, apreendidos e aprofundados.

Neste texto, a partir das noções sobre risco dos interlocutores da pesquisa, reflito
sobre um processo de racialização que coloniza suas percepções sobre territórios
favoráveis à ocorrência de violências. Quando perguntados sobre suas noções
sobre risco, o fator território apareceu na fala de todos os entrevistados da
pesquisa2. Há um movimento de essencialização de um espaço geográfico que
seria violento e que coexiste com o tráfico de drogas, ressignificando signos de
desigualdade e inferioridade da população negra residente nesses espaços
residenciais.

2 Na pesquisa de mestrado, busquei entender como a raça e o gênero se relacionam com enfoque
na compreensão de análise do risco violência, da sua gestão e da sua relação com a racialização.
A pesquisa possuiu o objetivo contribuir para o avanço do entendimento das complexidades que
envolvem a violência de gênero, a partir de uma leitura que conecta o gênero e a raça, na
contramão do comum silenciamento e a obliteração da dimensão racial, inserindo novos
elementos para o aprofundamento das experiências de aplicação da Lei Maria da Penha, para
além de uma perspectiva de gênero. (Santos, 2022)

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Desta forma, para situar o/a leitor/a, inicialmente farei breves considerações sobre
políticas de avaliação de risco de violência doméstica e a questão racial no Brasil.
Em seguida, descrevo a política pública utilizada no Distrito Federal- o Guia de
Avaliação de Risco para o Sistema de Justiça. Por fim, discutiremos sobre processos de
criminalização e segregação de territórios coletivos fundados na desigualdade de
classe, gênero e raça que penalizam e estigmatizam experiências urbanas negras.
A ausência de estado e de políticas públicas urbanas – infraestrutura e
equipamentos de uso coletivo- também são consideradas constitutivas desse
processo.

A questão que mobiliza esse artigo é a necessidade de as políticas judiciárias


enfrentarem a complexidade do racismo nas relações institucionais. Mais do que
diretrizes que considerem a variável racial como maior vulnerabilidade na
experiência de mulheres negras em situação de violência doméstica, é preciso
colocar em discussão práticas racializadoras, refletir e situar o sujeito que maneja
a política e avaliar sua execução.

Por fim, o propósito é dimensionar os efeitos negativos na experiência de justiça


de mulheres negras que esta compreensão do Sistema de Justiça possui sobre
espaços urbanos “violentos”, onde a população seria despossuída de educação e
de estratégias de gestão de seus conflitos. A desapropriação da cidadania de
pessoas negras e pobres no Brasil também é produzida e reificada pelo Poder
Judiciário em suas práticas cotidianas e discursos jurídicos.

Ao final, observamos que a dificuldade de alguns atores e do formulário de


avaliação de risco de apreender as dinâmicas raciais se inscrevem como obstáculo
para o acesso à justiça de mulheres negras vítimas de violência doméstica. Para a
efetivação de um modelo de resposta integral exigido pela Lei Maria da Penha, a
dimensão racial deve ser central. Não apenas pelo que diz a lei, mas porque a raça
é estatuto básico da experiência social brasileira.

1 Violência doméstica, risco e a dimensão racial no


Brasil

O vasto campo de discussões teóricas feministas que questionam o uso das


instituições oficiais para transformar as relações de subordinação entre os gêneros
e para o enfrentamento da violência contra a mulher conseguiu, de certa maneira,
acessar e rasurar o poder do direito (Campos, 2017; Severi, 2018). Entretanto ainda
há resistência em relação ao entendimento da categoria gênero nas práticas do
Judiciário (Gomes; Santos, 2019; Pasinato, 2010; Nascimento; Severi 2018; 2016;
Sandeberg; Tavares, 2016; Campos, 2017; Acioly, 2020) e no âmbito cotidiano dos

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agentes que conduzem as políticas de atendimento integral à proteção da mulher


nos órgãos especializados.

Os reflexos dessa evolução, embora tenham possibilitado o rearranjo de políticas


mais efetivas, não foram capazes de contribuir para avaliar as experiências de
mulheres negras, dada a invisibilidade da dimensão racial produtora de diferentes
lugares de gênero para mulheres (Pereira, 2013). São múltiplas as violências e os
fatores de risco aos quais mulheres negras estão expostas, originárias tanto da
estrutura sexista quanto do racismo “localizando a mulher negra na dicotômica
situação de sofredoras e guerreiras nas suas representações essencializadas
atualmente” (Romio, 2013, p. 135).

Dessa forma, a régua que mede e identifica o alto índice de vitimização entre
mulheres negras não parece estar em sintonia com as práticas judiciais e jurídicas
- em constante atualização - pelos atores dos Juizados de Violência Doméstica. Daí
a importância de entender os processos de racialização e questionar suas
estruturas.

Dados sobre vitimização de mulheres demonstram de forma inequívoca a


experiência de violência doméstica a que meninas e mulheres estão expostas. Em
2019, foram contabilizados 263.067 casos de lesão corporal dolosa, o que
representaria 1 registro a cada 2 minutos (Fórum Brasileiro de Segurança Pública,
2019, p. 09).

No ano de 2021, 2.601 mulheres negras foram vítimas de homicídio no Brasil. Isso
representou 67,4% do total de mulheres assassinadas naquele ano. Entre as
mulheres não negras, esta taxa foi de um número quase 45% menor. O risco
relativo de sofrer um homicídio é 1,8 vez maior entre as mulheres negras do que
entre as não negras. Em alguns estados, o risco de ser vítima de homicídio foi mais
que três vezes maior entre mulheres negras do que entre não negras, como Rio
Grande do Norte, Sergipe e Ceará (Cerqueira; Bueno, 2023, p. 47-48)

Entre os anos de 2020 e 2021, a taxa de homicídios para mulheres negras cresceu
0,5%; entre as mulheres não negras houve uma redução de 2,8%. Nos últimos cinco
anos (2016 a 2021), a queda no número de mulheres negras mortas foi de 17,6%,
enquanto a de mulheres não negras foi de 21,3%. O movimento de queda do
cenário geral de homicídio de mulheres foi mais acentuado para mulheres negras,
traduzindo em números a relação de violência e morte entre o racismo e o sexismo
(Cerqueira; Bueno, 2023, p. 48).

A pandemia de Covid-19 vulnerabilizou ainda mais a vida de mulheres em


situação de violência doméstica. A necessidade de se enclausurar na residência

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com seus agressores foi um fator que dificultou o acesso a redes de apoio e ao
serviço público A conjuntura pandêmica também foi fator de subnotificações.
(Souza; Farias, 2022; Ruiz; Dusek; Avelar et al, 2022.)

Conforme conta Marcela Medeiros (2015), as avaliações de risco tiveram origem


no campo da Psiquiatria e da Psiquiatria Forense, os quais sempre se interessaram
pelo estudo da personalidade de criminosos e o comportamento violento de
pessoas com transtorno mental. Essa foi a perspectiva em que foram desenvolvidos
instrumentos de investigação da periculosidade de condutas criminosas
(Medeiros, 2015 p.31). É esse cenário que possibilita compreender o pano de fundo
biologizante e comportamental dos instrumentos de avaliação de risco que tem
sido amplamente debatido por autores das ciências sociais que apresentam razões
sociológicas sobre as controvérsias do risco e seus efeitos político-sociais.

Esse fundo comportamental e biologizante dos instrumentos pode fazer com que
se produza análise racializada e racializadora de autores e experiências de
violência que podem contribuir, em última instância (ou diretamente), para a
manutenção do controle penal de corpos negros na medida em que fornece
informações sobre situações de risco ensejadoras de prisão3-4.

A esse respeito, é preciso lembrar que, como afirma Pires e Tomaz (2019, p. 134),
vivemos em uma sociedade “forjada na adoção do discurso punitivista como
forma de gestão das hierarquias sociais que nos constituem, não há como negar
como menosprezar os efeitos causados pelo apelo punitivo de alguns movimentos
feministas”. O apelo punitivista pode encontrar mais uma política pública aliada
para a sua manutenção majoritária do enfrentamento à violência doméstica. É
preciso ter cautela na recepção dessa política importada e, sobretudo, na sua
aplicação.

O discurso punitivista também é constituído pelo fator geográfico. Jaime Amparo


Alves (2011) afirma que a concentração da violência policial, dos padrões de
vulnerabilidade social e dos homicídios em bairros predominantemente negros
sugere um padrão mórbido de governança espacial; uma necropolítica espacial.
Alves oferece possibilidades para desvendar como as diferentes geografias de
metrópoles - delineadas pela raça e a classe social - se constituem espaços

3 Carvalho; Duarte, 2017; Franklin, 2017; Góes, 2016; Flauzina, 2008.


4 Apesar de pesquisas (Cattaneo; Goodman, 2005, p. 168) demonstrarem que a nível sistêmico, os
achados sobre a eficácia da prisão são misturados, as evidências apontaram para um efeito
preventivo modesto. Em contraste, os resultados de estudos oficiais sugerem que as vítimas são
menos propensas a relatar casos de reincidência à polícia quando o agressor está em tratamento.

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diferenciados cujos padrões de governança espacial assumem formas diversas:


proteção para alguns, morte para outros. (Alves, 2011, p. 129).

O trabalho de Matias e Gonçalves et al (2020) possui o objetivo de identificar os


estudos científicos que caracterizam o perpetrador e a vítima de feminicídio para
orientar políticas públicas, práticas de intervenção e pesquisas mais eficientes no
futuro. Como fatores de caracterização e vulnerabilidade das vítimas e de
agressores, as vítimas apresentaram maior probabilidade de serem da raça negra,
possuírem baixa escolaridade e consumirem álcool. Em comparação com as
vítimas de outros homicídios e de feminicídio, estas têm maior probabilidade de
serem estrangeiras. Sobre os agressores, caracterizam-se como de etnia negra, com
nível educacional baixo, mais propensos a terem pensamento suicida, ou terem
tentado suicídio, com antecedentes criminais e histórico de violência em relações
anteriores (Matias, Gonçalves et al., 2020, p. 6-7).

Este estudo, por exemplo, pode ser prejudicial na medida em que se corre o risco
de essencializar a figura do agressor negro, violento, usuário de drogas, com
antecedentes criminais e, eventualmente, com problemas psicológicos. No artigo
intitulado Race, class, and violence: research and policy implications, Clarence Spigner
(1998) aponta que a prevenção da violência criminal é uma resposta política
apropriada e necessária, mas é preciso cautela devido às crenças persistentes da
sociedade de que a criminalidade e outros comportamentos disfuncionais estão
ligados à raça.

Para o autor, uma abordagem de saúde pública para prevenir violência


interpessoal envolvendo autores e vítimas é repleta de armadilhas sociais e
políticas, dado que o conceito raça é pouco compreendido e explorado, colocando
minorias étnico-raciais, sobretudo negros - que tendem a ser super-representados
nos dados sobre violência relatada - em maior risco. Spigner alerta sobre os riscos
da persistência em se vincular as minorias raciais ao comportamento disfuncional
e antissocial dentro de construções culturais e biológicas.

Essa abordagem segue o modelo jurídico-penal ainda colonizado por ideias


discriminadoras do racismo científico que posicionou a raça como fator
criminógeno no Brasil pós-abolição, com o paradigma nina-lombrosiano5 tão
rebatido por estudos da criminologia crítica. As estruturas subjacentes que
produzem e sustentam desigualdades sociais são sistematicamente ignoradas.
Além do mais, Sandra Walklate (2018) traz uma contribuição importante ao
afirmar que o risco é de gênero. Para a autora, há uma confusão sobre as práticas

5 Franklin, 2017; Góes, 2016.; Duarte, 2017; Ortegal, 2016.

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de avaliação de risco de violência contra a mulher por não se saber se os


instrumentos são de previsão ou prevenção.

Para Walklate (2018), o risco de gênero “constrói as mulheres como aquelas que
evitam os riscos em vez de serem as que buscam os riscos e incorpora uma gama
de diferentes suposições tanto na criminologia quanto na vitimologia”. Tais
suposições oferecem uma visão confortável e reconfortante das mulheres como
sendo uniformes, temíveis, sujeitos vulneráveis (Walklate, 2018, p. 2), suavizando
e silenciando experiências cotidianas de mulheres, e experiências de ser mulher
em diferentes contextos (Machado; Dias; Coelho, 2010 apud Walklate, 2010).

De fato, essa visão sobre o risco permite observar a maneira como as tecnologias
jurídicas ou de políticas públicas universalizam e desracializam discussões sobre
violências e sobre o papel do Estado na sua intervenção, com a criação e o uso de
categorias abstratas.

Problemas sobre prática de avaliação de risco e do risco em si também são


discutidos por Waklate (2018), principalmente sobre a posição acrítica de países
que adotam modelos com poucas considerações sobre diferenças legais e a
instabilidade da categoria gênero, pela emergência governamental de fornecer
respostas ao drama da violência doméstica, como é o caso da experiência brasileira.
A revisão bibliográfica realizada na dissertação encontrou uma homogeneização
dos fatores e das variáveis nos instrumentos de avaliação. É o que a autora
problematiza neste trecho sobre o problema da uniformização de experiências:

[...] parece ser um acordo sobre os “fatores de risco” para homicídios


interpessoais no contexto de violência cometida por parceiro íntimo. São
elas: violência interpessoal prévia; diferença de idade; coabitação;
estranhamento; e a presença de uma criança não biologicamente
relacionada ao abusador. Outros fatores incluem casos onde há doença
mental, abuso de drogas e a presença de armas (Campbell et al. 2009). As
ferramentas de avaliação de risco incorporam esses tipos de fatores de
risco e, assim, aceitam implicitamente que risco pode ser medido, causas e
infratores identificados, e aqueles considerados de risco (se potenciais
infratores ou potenciais vítimas) submetidos à vigilância e gerenciados.
[...] No entanto, significativamente, o que se tornou incorporado aqui é
notavelmente semelhante ao que se tornou enraizado dentro da teorização
do risco (Mythen 2014); o que de Sousa Santos (2014) pode se referir como
a relação fantasmagórica entre teoria e prática. Assim, neste contexto, não
só o risco é tratado como um conceito forense, também é tratado como
uniforme e unificador [...] e é igualmente aplicado ao comportamento
ofensivo e à vitimização. Como resultado, duas fontes importantes de
informação em relação aos fatores de risco estão ocultas da vista: variáveis
estruturais e o que pode ser chamado de “conhecimento experiencial”
(Walklate, 2018, p. 5-6)

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Waklate (2018) sugere que as premissas colonizadoras de risco utilizadas nas


ferramentas de avaliação do risco constituem uma ocupação dos sentidos de
gênero e estando condenadas ao fracasso em relação àquelas vidas que são resultado
do gênero e da colonização. Acrescento que tais premissas são recebidas sem
resistência epistemológica de uma academia hegemônica branca, diferentemente
do que ocorre em estudos críticos como pensadores negros que realizam o
exercício de centralizar a raça e o racismo nas práticas sociojurídicas. No mesmo
sentido, O’Malley (2017, p.103) afirma que o risco é estruturado, multifacetado e
não uniforme e nem unificado. O sujeito considerado em risco e o seu causador
também são fenômenos multiformes. Para o autor, há um estilo neoliberal de risco,
pois este o faz a partir de probabilidades estatísticas ignorando o fato de que os
fenômenos de risco são irredutivelmente sociais.

Esse modelo neoliberal imperou nos achados da dissertação. As tentativas de


definição padronizadas de fatores de risco que indicariam percentualmente onde
e como intervir no fenômeno da violência têm consequências políticas e sociais que
não acessam o problema da violência doméstica de maneira relacional, mas a partir
da externalização de condutas individualizadas, além de promover a
imprescindibilidade do uso da força penal no seu enfrentamento.

Na projeção de suas avaliações de risco, alguns atores entrevistados mobilizam


concepções pessoais sobre o que seria estar em risco, sobre o que seria violência
doméstica aplicável à Lei Maria da Penha. Questões genderizadas e racializadas
sutis, mas não menos profundas, são suplantadas por percepções sociais dos atores
jurídicos - que são atravessados por "modos de ver o mundo", estruturados pelo
racismo, sexismo, homofobia, transfobia e outros aspectos da diferença.

Como veremos a seguir, o instrumento aponta a identificação étnico-racial da


vítima como um fator adicional ao risco. O Formulário Nacional de Avaliação de
Risco6 aponta maior risco de violência grave potencialmente letal para os itens dos
Blocos I, II e III, assim, observa-se que se a resposta da questão nº 22 for “preta”,
“parda” e “indígena”, deve ser computada como fator de risco potencialmente
letal. (CNJ, 2020, p. 4). Não há mais informações sobre o significado desse
agravamento relacionado à identidade da vítima.

Portanto, observa-se a necessidade de ampliar o horizonte interpretativo das


relações raciais e do racismo no Sistema de Justiça. Assumir essa complexidade é

6 Disponível em <https://atos.cnj.jus.br/files/original215815202003045e6024773b7dc.pdf>. Acesso


em 08 de dezembro de 2023.

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Territórios racializados e a produção risco de violência doméstica pelo Sistema de Justiça 435

fugir do mero modelo de constatações e enfrentar o problema em sua dimensão


institucional e relacional.

1.1 Formulário de Nacional de Avaliação de Risco de Violência


Doméstica e a experiência no Distrito Federal

A Portaria Conjunta 5/20207 cria o Formulário de Avaliação de Risco como política


judiciária para prevenir a reincidência da violência contra a mulher, através do
gerenciamento do risco de intensificação de agressões para evitar futuros
feminicídios. O uso de formulários é algo recente e com forte inspiração na
literatura internacional. Identifiquei quatro estados que criaram de maneira
autônoma seus formulários: Piauí8, Espírito Santo 9, Distrito Federal e Pará10. As
iniciativas compartilham o objetivo de padronizar as intervenções institucionais e
reduzir a subjetividade dos profissionais (CNMP, 2019).

No Distrito Federal, a discussão e a produção do formulário tiveram influência nas


pesquisas da psicóloga Marcela Medeiros11. Este artigo trata deste instrumento,
produzido pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).
Ferreira e Schlittler (2019) descrevem como se deu a construção do Formulário de
Avaliação de Risco, conduzido pelo MPDFT em colaboração com integrantes da
Polícia Civil, do Tribunal de Justiça, da Defensoria e de Núcleos de Pesquisas12.

7 Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3218 . Acesso em 08 dezembro de 2023.


8 No Piauí, o governo do Estado decretou a lei nº 7.530/2021 que institui o Formulário Eletrônico
de Avaliação de Riscos Esperança Garcia como política de Estado permanente de prevenção e
enfrentamento à violência doméstica e familiar praticada contra meninas e mulheres. Ver em
<http://www.diariooficial.pi.gov.br/diario.php?dia=20210607>. Acesso em 08 de dezembro de
2023.
9 Ver em <https://www.mpes.mp.br/Arquivos/Anexos/e063ea80-8973-4d71-b0f1-
b47cc3ba332c.pdf> Acesso em 08 de dezembro de 2023.
10 A Polícia Civil do Estado do Pará possui um Formulário de identificação de fatores de risco. O
documento possui um tópico que denomina de “análise de risco” onde lista as intervenções
necessárias para cada caso: “46. Análise do Risco: () Existência de casa de abrigo no município; ()
Pela gravidade dos fatos, a vítima necessita abrigamento, entrar em contato com a rede de
atendimento; A vítima foi cientificada da gravidade dos fatos, mas recusou abrigamento e voltará
para casa () A vítima recusou abrigamento e ficará em casa de parentes (p. 5). Disponível
em:<https://www.policiacivil.pa.gov.br/sites/default/files/formulario_de_risco._sisp.pdf>.
Acesso em 03 de dezembro de 2023.
11 A pesquisadora “elaborou tese de Doutorado sobre os mecanismos de avaliação de riscos de
vítimas de violência contra a mulher e familiar e, após participar do I Encontro Intersetorial para
a Proteção das Mulheres Vítimas de Violência Doméstica e Familiar do Distrito Federal, em 2014,
foi convidada a participar de reuniões do MPDFT para a elaboração do guia de avaliação de
risco.” (Ferreira; Schlittler, 2019, p. 183)
12 “A proposta de elaboração de um instrumento de avaliação de risco foi construída em rede, a
partir de reuniões com integrantes da Polícia Civil do Distrito Federal (Delegacia Especial de
Atendimento à Mulher e Corregedoria da PCDF), da Polícia Militar do Distrito Federal

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Como resultado, foi criado e instituído o Guia de Avaliação de Risco parao Sistema de
Justiça (2018)13, cujo Formulário Nacional, instituído pela Lei 14.149/2021, foi
inspirado. Os processos do Juizado de Combate à Violência Doméstica e Familiar
de Sobradinho utilizam esse guia. O documento traz orientações sobre como
aplicar o questionário e traduz o significado dos fatores de risco apontados a partir
da literatura hegemônica sobre o campo14. Evidencia que o questionário deverá ser
preenchido pela própria vítima, caso necessário, o agente policial poderá ajudá-la
no preenchimento.

O guia sugere que a apreciação do risco não deverá contar apenas com os
resultados algorítmicos da pontuação, mas também com o julgamento subjetivo e
experiência do avaliador. A avaliação não deverá ser definitiva, pois os riscos
podem se alterar ao longo do tempo e, em razão disso, sugere que outras
avaliações devem ser realizadas em momentos distintos, nos diversos serviços que
compõem a rede (Núcleo de Direitos Humanos- MPDFT, 2018, p.12)

O guia apresenta 20 fatores de risco que seguem o modelo dos apontados pela
literatura trazida até aqui, são eles:

(representada por integrantes do PROVID – PM)6, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e


dos Territórios, de representantes do Núcleo de Atendimento às Famílias e aos Autores de
Violência Doméstica (NAFAVD, vinculado à Secretaria Adjunta de Políticas Públicas para as
Mulheres, Igualdade Racial e os Direitos Humanos – SEDEST-MID, do Governo do Distrito
Federal), do Centro Especializado de Atendimento às Mulheres (CEAM – DF), da Universidade
de Brasília (por meio do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher – NEPEM), do Pró- Vítima
(Programa de assistência jurídica e psicológica a pessoas vítimas de violência, do Governo do
Distrito Federal – GDF), e da Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF), por meio do Núcleo
de Defesa da Mulher.” (Ferreira; Schlittler, 2019, p. 185/186).
13 Documento disponível em: https://www.amb.com.br/fonavid/img/boas-
praticas/gui_de_avalicao.pdf . Acesso em 08 de dezembro de 2023.
14 Nicolls; Pritichard et al., 2013; Medeiros, 2015, entre outros trabalhos.

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Fonte: Guia de Avaliação de Risco para oSistema de Justiça do MPDFT

O Guia de Avaliação de Risco para o Sistema de Justiça do MPDFT é um


documento público no qual o Estado lista o que considera risco de violência e traz
estratégias para seu enfrentamento. Este formulário segue o modelo majoritário de
instrumentos de avaliação, cujo foco central é no caráter comportamental do
agressor (Santos, 2022).

De uma maneira geral, o texto dissertativo evidenciou que a percepção de risco dos
(as) magistrados (as) e promotores (as) possui um caráter mais objetivo e coaduna
com o que é considerado risco pela literatura hegemônica. (Medeiros, 2015; Matias;
Gonçalves et al., 2020; Campbell et al. 2003; Ávila et al., 2021; Walklate, 2018). Os
fatores comportamentais do autor (dependência química, acesso à arma e ideação
suicida, por exemplo) ficam em evidência e relacionam-se com fatores estruturais,
como dependência econômica da vítima, ter filhos dos agressores, e possuir
dificuldade de se perceber em risco, aliada a uma rede de apoio escassa.

A dificuldade de abordagem da questão racial é reflexo da escolha do Estado em


dissimular sua importância e interditar o debate racial na política de enfrentamento
à violência doméstica. Um dos magistrados entrevistados enfatizou que o
formulário apresenta declarações unilaterais da vítima e que, apesar das
possibilidades de fatores apresentados no instrumento, ele foca em quatro: histórico

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438 Bárbara Crateús Santos

de violência, antecedentes criminais, uso de álcool ou drogas e posse de arma


(Santos, 2022).

A política judiciária de utilização do formulário para a análise do risco parece não


ter sido ainda absorvida pelos magistrados, ou pelo menos não é utilizada da
maneira idealizada. Os conceitos de risco e seu modo de geri-lo são colonizados
por uma cognição jurídico-penal e percepções pessoais genderizadas e
racializadas, como veremos mais adiante.

Na percepção dos (as) magistrados (as) sobre o risco de violência aparece em um


enquadramento jurídico-penal relacionando com uma maior ou menor gravidade
de risco. Dessa maneira, percebi que o risco é tratado apenas como risco de
feminicídio, e não de agravamento de violência doméstica apontada no art. 7º da
LMP. Assim, parece aceitável a vítima submeter-se a violências como moral e
psicológica, contrariando os objetivos da legislação e de intervenção (Santos, 2022).

O agravamento, inclusive para risco de feminicídio, pode decorrer de condutas


tipicamente leves ou atípicas. Em razão disso, observei que é equivocado o uso da
cognição criminal para a realização de intervenções de proteção. Além do mais, o
questionário15 possui um alerta demonstrando que não há correlação necessária
entre tipificação penal e agravamento de violência.

O nível de risco considerado pelos entrevistados não encontra guarida na


literatura. Ávila et al., 2021, em pesquisa sobre fatores de risco no DF, apontam a
escalada de violência como um importante fator de risco de feminicídio. Essa
escalada não se trata apenas do aumento do nível de violência física, mas também
injúrias e ameaças. Em regra, relações abusivas se iniciam com injúrias e micro
agressões (Soares, 2005), podendo evoluir para um ato maior, o que não deveria
significar mais grave no ponto de vista do que deve ser considerada violência de
gênero.

Cristina Nicolaidis et al. (2003)16, por exemplo, analisaram em profundidade a


experiência de mulheres que sofreram tentativa de feminicídio. O trabalho

15 Atenção! Independente do preenchimento deste questionário ou de suas respostas, as medidas


protetivas requeridas pela vítima devem ser apreciadas e a persecução criminal deve ter
continuidade. Poucas respostas positivas não significam desnecessidade de intervenções de
proteção pelo Sistema de Justiça. Especial atenção deve ser dada a não subestimar a violência
psicológica, que muitas vezes não possui tipos penais adequados para retratar a sua gravidade, todavia
possui grave impacto no adoecimento mental de mulheres e na fragilização dos vínculos
familiares e comunitários (p. 17 do processo 1, grifo nosso).
16 A pesquisa realiza entrevistas em profundidade de 30 vítimas de tentativa de feminicídio em 6
cidades americanas para identificar padrões que possam ajudar da capacidade de um profissional

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Territórios racializados e a produção risco de violência doméstica pelo Sistema de Justiça 439

demonstra que há um amplo espectro e complexo histórico de relacionamento,


apontando para as armadilhas que há em se esperar que todas as vítimas se
encaixem em um caso clássico de abuso grave. Assim, concluem que os
profissionais não devem se tranquilizar pela falta de um histórico de violência
grave ou outro fator de risco mais clássico para o feminicídio. A ausência de
violência física prévia não é um indicador de baixo risco de feminicídio.

2 Processos de criminalização e segregação:


percepções racializadas sobre territórios urbanos e a
produção de violência pelo estado

Este tópico parte da relação entre territórios vulneráveis e violência, realizada por
alguns atores entrevistados. Em muitas passagens, suas afirmações reificam signos
de desigualdade e de atributos negativos à determinados sujeitos e a espaços
urbanos. Há um olhar racializador das dinâmicas de violência experenciados
naquele território e, por conseguinte, um processo que revitimiza mulheres em
situação de violência que lá vivem.

Em conjunção com análise de conteúdo de processos judiciais (Bardin, 1977), foram


realizadas entrevistas semiestruturadas com atores da rede de enfrentamento à
violência doméstica da região administrativa de Sobradinho, Distrito Federal. As
experiências profissionais e suas percepções sobre a relação da raça e o risco com
a violência doméstica no manejo da Lei Maria da Penha são analisados de acordo
com seus lugares situados enquanto juristas e enquanto sujeitos sociais
racializados, a teorização sobre racismo e racialização17.

Assim, as perguntas centrais foram: 1) Como você percebe o fenômeno da


violência doméstica e o papel do Sistema de Justiça no seu enfrentamento? (Na
entrevista com os (as) servidores (as) do NAFAVD18, foi perguntado sobre o papel
da sua instituição no enfrentamento.) 2) Se e como você percebe a questão racial

médico prever, prevenir e aconselhar sobre feminicídio e sua tentativa. O trabalho pode ser
acessado no link: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1494930/>.
17 Laurence Bardin (1977) afirma que, além de compreender o sentido da comunicação, é importante
desviar o olhar para outra significação, outra mensagem por meio ou ao lado da mensagem
primeira, é um realce do sentido que se encontra em segundo plano, é atingir através de
significantes ou de significados outros <significados> de natureza psicológica, sociológica,
política e histórica. Na análise de uma comunicação, pude me servir de um indicador linguístico
(ordem de sucessão dos elementos significantes, extensão das frases) ou paralinguísticos
(entonação e pausa) (Bardin, 1977, p. 41-42).
18 Núcleo de atendimento à família e aos autores de violência doméstica. Mais informações:
https://www.df.gov.br/nucleo-de-atendimento-a-familia-e-aos-autores-de-violencia-domestica-
nafavds/ . Acesso em 08 de dezembro de 2023.

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440 Bárbara Crateús Santos

atravessando o fenômeno da violência doméstica e na dinâmica processual? 3) O


que você entende por medo, risco e vulnerabilidade? 4) O que você acha do
Formulário de Avaliação de Risco? 5) Se e como você percebe a relação entre medo,
risco e raça19?

Para alcançar os objetivos deste texto, serão analisados alguns trechos - já


discutidos na dissertação-, mas com objetivo de aprofundar a análise de suas
afirmações-respostas sobre a experiência de violência de mulheres que residem em
territórios periféricos.

Inicialmente, observou-se que a maneira como a raça é inteligível para alguns


atores do Juizado. Ela ocorre majoritariamente a partir da apreensão de uma
categoria jurídica, o tipo penal da injúria racial. Essa forma de apreender o racismo
marca a colonialidade como determinante e constitutiva do campo jurídico (Pires,
2018). A aplicação de critérios que seriam juridicamente válidos (Reis, 2016) é a
forma de cognição do racismo pelos atores que seguem os passos da burocracia
constante na racionalização de suas práticas.

Toda essa forma ou ausência de apreensão, ou seja, a ininteligibilidade da raça e


do racismo pela gramática jurídica e individual de quem a maneja, denotam um
caráter racializado do risco. Aqui, entendo o Poder Judiciário, não apenas como
identificador de fatores de risco, mas como produtor de fatores de risco. Produtor
de um risco racializado para vítimas negras, na medida em que não as percebe
como tais nas suas especificidades20.

O Poder Judiciário é produtor de risco para população negra, produzindo efeitos


negativos em suas experiências de justiça, não havendo perspectivas de avanço
que possibilitem a apreensão da complexidade do racismo em sua dimensão
institucional. É o que demonstra a pesquisa21 sobre violência de gênero no Rio de

19 Os interlocutores da pesquisa foram juízes (as), promotores (as), defensores públicos (as), e
membros (as) de uma equipe multidisciplinar da rede de enfrentamento à violência doméstica de
Sobradinho-DF.
20 A esse respeito, cito o trecho de uma entrevista onde o/a magistrado/a faz uma afirmação
paradoxal “[...] ... No que diz respeito... por exemplo, assim... sobre “ah, as mulheres negras, elas
são mais vulneráveis do que as mulheres brancas?” [...] eu acho que é até razoável afirmar que
sim, mas não porquê... e aí é uma percepção pessoal, tá? Não porque são negras, mas porque
estão numa situação de vulnerabilidade social e econômica material maior e que possibilita um
ambiente mais favorável à violência. [...]” (Santos, 2022, p. 101-102).
21 A partir da escuta das profissionais que atuam na rede de proteção na região metropolitana do
Rio de Janeiro, foi possível constatar alguns limitadores no acesso de determinados grupos de
mulheres aos serviços e às iniciativas ofertadas. Disponível em: https://assets-dossies-ipg-
v2.nyc3.digitaloceanspaces.com/sites/3/2022/08/Pesquisa_ViolenciContraMulheres.pdf. Acesso
em 08 de dezembro de 2023.

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Territórios racializados e a produção risco de violência doméstica pelo Sistema de Justiça 441

Janeiro, coordenada por Thais Gomes et al (2022). Para a autora, quando a política
pública de enfrentamento à violência é focada na segurança pública tende a ser
ineficaz para vítimas negras.

A relação genocida que pessoas negras têm com a polícia simboliza um fator de
risco racializado, seja para vítimas mulheres como para homens agressores. Ainda,
as dinâmicas de acesso aos equipamentos da rede de enfrentamento também são
constituídas da dimensão territorial que delimita as possibilidades de acesso a
direitos (Gomes et al., 2022). Essa compreensão foi observada pelos (a)
profissionais do NAFAVD.

[...] E, outra coisa que você falando me fez lembrar é que, assim, a gente
escuta muito relato dos homens, aí alguns autores, tá? Mas eu acho que
cabe também. A camaradagem masculina, teve um cara que a gente tava
atendendo, né, (nome ocultado), que a gente tá atendendo e ele foi à
delegacia fazer a denúncia primeiro e o policial chegou pra ele e falou: “Ó,
vai embora, porque se você entrar aqui e relatar, sua ex já tá aí dentro, você
vai ser preso”. O cara é branco, classe média alta, chegou lá de camisa
social, então, eu acho que isso tem muito a ver... vários negros que a gente
atende falam assim: “ninguém nem me ouviu, me tiraram de casa
algemado, fui atrás no camburão. Todos os que falaram que o policial
falou: “nem era pra você tá aqui, cara, você é doido”, todos são brancos,
né, e tiveram esse tratamento da polícia. Então, isso, dá uma revolta, né,
porque tem essa diferenciação.

A entrada e a circulação de pessoas brancas no ambiente racista da polícia são


facilitadas pelo privilégio simbólico da branquitude (Schucman, 2020) de não ser
reconhecido enquanto um corpo suspeito. Por outro lado, a experiência do homem
negro na polícia é a regra da desumanização: algemado, com a violação do seu
direito de ser ouvido e carregado no carro da polícia, (re) produzindo o processo
de criminalização de corpos negros22.

Flauzina (2015) e Tomaz e Pires (2020) tematizam o problema da relação das partes
com a polícia. Considerando o racismo como critério de controle social que recai
de maneiras distintas em relação àquelas pessoas localizadas na zona do “não ser”,
o problema da centralidade do meio punitivo para resolução de conflitos reifica o
encarceramento de corpos negros, na contramão dos anseios das vítimas (IPEA,
2015; Flauzina, 2015).

22 “O critério que passou a separar de modo incomensurável humanos de não humanos em países
de herança colonial como o Brasil, a própria percepção dos efeitos desproporcional e injustamente
distribuídos pelo sistema penal precisa necessariamente enfrentar o fato de que é o racismo que
determina a seletividade (inclusive social) do sistema de (in) justiça criminal” (Pires; Tomaz, 2020,
p. 140).

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442 Bárbara Crateús Santos

A relação violenta e seletiva entre polícia e pessoas negras não é direcionada


apenas para homens ou “machos” (Franklin, 2017; Lugones, 2019). Ela também
exerce um tipo de controle sobre mulheres negras ou “fêmeas” (Lugones, 2019;
Franklin; 2017; Flauzina; Pires, 2020). Esta realidade distancia mulheres negras da
zona da “legalidade”, pois existe uma dificuldade de se criar um elo de confiança
com o sistema, ante a dificuldade de apreendê-las, enquanto vítimas23. Naila
Franklin traz informações sobre como representações negativas de mulheres
negras oriundas de um passado-presente moderno colonial gerencia formas de
controle no âmbito privado e no público.

[...] o duplo controle a que eram submetidas às negras lavadeiras – o


controle doméstico era exercido pela Casa Grande, ao passo que isso não
fazia com que escapassem do controle policial, em suas atividades de
lavagem, que extrapolavam a casa, já que era feito nas ruas. Assim, a negra,
diferentemente das mulheres brancas submetidas amplamente apenas ao
controle doméstico, era controlada de forma dobrada pelo policiamento,
especialmente o municipal.
[...] também importante papel da mulher na análise da escala jurídico-
penal dos povos [...] as negras eram vistas como infanticidas, prostitutas,
mães irresponsáveis e expansivas em seu comportamento, o que é
importante para analisar a construção da teoria de responsabilidade penal
desenvolvida por Nina Rodrigues sob a ótica feminina. Seria necessário,
neste sentido, um maior controle social das negras pelos seus próprios
pares (homens negros ou sociedade de modo geral), eis que por
pertencerem a povos inferiores, suas práticas eram condutas não toleradas
nas sociedades brancas (Franklin, 2017, p. 49/73-74).

Observamos essa dupla modalidade de controle exercido sobre mulheres negras


quando estas precisam circular dentro do sistema. Mulheres negras
experienciaram e estão mais sujeitas a sofrer episódios de violência institucional,
além de receberem menos informações (Carrijo; Martins, 2020; Pereira, 2013).
Entendo também que além de caracterizar um risco, a ausência de comoção24
(Silva, 2023) com relação aos seus sofrimentos, a percepção limitada do racismo a
partir do tipo penal injúria racial e a ininteligibilidade da raça, conforme
comentado anteriormente, configuram-se como violências raciais institucionais.

23 A respeito disso, sempre me pareceu fazer sentido nesse campo o termo utilizado por Ana
Flauzina e Felipe Freitas (2017): “O paradoxal privilégio de ser vítima” Segundo os autores, é uma
interdição do reconhecimento do negro como vítima pelo problema da distribuição seletiva ao
sentido de humano. O direito de politizar o sofrimento é cativo da branquitude, estando a dor
negra encarada como natural ao seu espaço social de humanidade duvidosa, à revelia de todas
as mobilizações históricas político-intelectuais da população negra na busca por reconhecimento
e humanização.
24 Géssica Arcanjo (2023) avalia em sua dissertação de mestrado como a comoção tem o condão de
realizar mobilizações políticas e jurídicas. Ela o faz analisando como os afetos moldam o Poder
Judiciário e influenciam suas respostas na prática, a partir do Caso Miguel Otávio.

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Territórios racializados e a produção risco de violência doméstica pelo Sistema de Justiça 443

São expressões máximas do racismo enquanto critério de percepção e cognição.


Exemplo disso é a afirmação do (a) juiz (a) 2 que não percebe a relação do
atendimento desumanizado no espaço policial à questão racial.

JUIZ (a) 2: Às vezes a mulher denuncia que não foi bem atendida na
delegacia, mas nunca associei isso à raça;

Em outro momento, ao ser perguntado sobre a relação entre raça e risco, o (a)
magistrado (a) 2 afirma que a mulher negra estaria numa situação vulnerável
decorrente de uma “questão social”, obliterando a dimensão racial, em um claro
paradoxo.

JUIZ (A) 2: Olha assim, na gestão de risco, eu entendo assim: a partir


crença, né. Vou dizer, essa crença de que a mulher negra ela tá numa
situação vulnerável, maior vulnerabilidade decorrente de uma questão
social, né... isso, claro aumenta o risco. Vulnerabilidade e risco são
proporcionais, diretamente proporcionais. Nesse sentido, sim.

Aliado a isso, utiliza a palavra “crença” para designar o fato empiricamente


comprovado de que a mulher negra estaria em uma situação de maior risco,
demonstrando de forma evidente sua cognição inscrita sobre o signo da
branquitude, capaz de desconsiderar um dado da realidade comprovado
exaustivamente. Sobre o que seria essa questão social, Munanga (2004) faz um
importante questionamento com o qual eu concordo:

A palavra “social” incomoda-me muito. Quando dizem que a questão do


negro é uma questão social, o que quer dizer “social”? As relações de
gênero são uma questão social; a discriminação contra o portador de
deficiência é uma questão social; a discriminação contra o negro é uma
questão social. Ora, o social tem nome e endereço. Não podemos diluir,
retirar o nome, a religião e o sexo e aplicar uma solução química. O
problema social tem de ser atacado especificamente. A discriminação
racial precisa ser urgentemente enfrentada (Munanga, 2004, p. 54).

Como afirma o autor, o social tem nome e endereço, e a raça se dilui nessa solução
química do “social”. Tal afirmação demonstra a emergência do letramento racial
(Schucman, 2020) na produção do conhecimento jurídico e nas suas práticas que
ainda são colonizadas por noções hegemônicas dos sujeitos localizados na zona do
ser. Essa ausência de letramento sobre a questão racial é demonstrada na fala
clássica caracterizadora do mito da democracia racial: “não vejo cores” (Juiz (a) 2).

Questionado sobre a percepção do atravessamento da raça na dinâmica processual


e no Sistema de Justiça, o (a) magistrado (a) 2, com a pausa e o titubeio,
característicos da tensão de se tratar da questão racial, afirma:

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JUIZ (A) 2: Bom, agora assim no Sistema de Justiça... E-eu... sinceramente


assim, pra mim não me interessa a cor de quem tá ali se é branco, se é... se
é negro... é... (pausa) pelo menos no judi... onde eu atuo, assim, eu não vejo
distinção entre “ah, uma mulher negra ela tem mais dificuldade, por
exemplo, de ser atendida”. Não sei, pelo menos na vara eu... e-eu... eu não
percebo isso. Na delegacia? Eu não sei te dizer. Agora assim, ao que parece
pelo menos em Sobradinho e eu só posso falar por lá... é... pelo que chega
de ocorrência policial a polícia registra o que é... como é o atendimento lá,
aí eu já não posso te falar porque eu não entro nessa... Por exemplo, numa
audiência eu não pergunto, não vou entrar... até pelo tempo que a gente
tem também, pela quantidade de processos, então aquilo que ... que é o
que interessa, né, que às vezes é a gente decidir se mantém essa medida
protetiva, se altera essa medida protetiva, ou produzir a prova... Eu nunca
entrei assim “ah como é que foi seu atendimento lá na delegacia?” Claro,
às vezes, quando a mulher relata alguma dificuldade, que teve alguma
dificuldade, mas eu nunca associei isso a raça. (grifo nosso)

O que pode significar a expressão “eu não entro nessa”? A expressão sugere a
dificuldade da perspectiva racial ser tangível, em suas dimensões sutis pelo (a)
ator. A abstração processual que não consegue apreender a questão racial é
resultado do colonialismo jurídico que, para além de suas dimensões estruturais,
informa práticas individuais embranquecidas. Além de simbolizar a emergência
da produção de estratégias institucionais para o seu enfrentamento.

Em síntese, a percepção sobre racialização é mais inteligível para outros atores


quando observam que há um problema das legislações e convenções
internacionais ao citarem apenas o termo “raça” e constatam aspectos estruturais
do racismo com relação às representações violentas e hipersexualizadas atribuídas
às mulheres negras, por exemplo, mas com uma limitação de autopercepção
enquanto sujeitos também racializados como brancos, emergindo, mais uma vez,
a necessidade de letramento racial (Santos, 2022, p. 100).

2.1 Territórios racializados e a desapropriação da cidadania de


mulheres negras via Sistema de Justiça

A relação entre territórios vulneráveis e violência, realizada por alguns atores


entrevistados, apareceu em muitas passagens por meio de afirmações que reificam
signos de desigualdade e inferioridade de pessoas negras. Há um olhar
racializador das dinâmicas de violência experenciados naquele território, e um
processo que revitimiza mulheres em situação de violência que lá vivem.

Servidores (as) do NAFAVD: [...] Então, eu estava atendendo uma mulher,


olha aí, a questão do risco também, a gente não conseguiu seguir com ela
porque lá não tem internet. Então, agora no NA... não tinha como ela
participar [...] foi uma pena, porque ela precisava muito, aí ela fazia no

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Territórios racializados e a produção risco de violência doméstica pelo Sistema de Justiça 445

ônibus e fala que: “dá parada de ônibus até o acompanhamento dá mais ou menos
6km”. E, aí, a gente ia conversando até que acabava (a internet). E aí, ela
teve uma medida protetiva e o cara lá [...] Lá os barracos são de ninguém,
assim... esse aqui o que é meu esse aqui é o seu e aí o governador do acampamento
falou que: “a gente vai arrumar um barraco pra ele que fica a 500 m do seu porque
ninguém vai ser expulso do acampamento. E, aí, eles decidiram isso, a polícia
nem ficou sabendo, sabe, e são as leis próprias que eles precisam de criar e se o
coordenador entende que tá beleza, acaba o risco, eles falam volta, então ela tá em
um risco maior [...] (destque nosso).

Os atores apontam comunidades próximas à Sobradinho-DF, como Acampamento


Doroty, Fercal e Córrego do Arrozal, como locais vulnerabilizados
economicamente e os definem como espaços propícios à ocorrência de violência
doméstica. Suas análises racializadoras podem ser fundamentadas quando
constatam que nesses espaços os moradores são majoritariamente negros (Santos,
2022).

O pós-abolição trouxe como consequência social uma geografia racial demarcada


e produziu uma estratificação social pautada em subempregos e na criminalização
de práticas culturais e de divertimento da população negra, impedindo sua
mobilidade social, com repercussão no tempo presente (Silva, 2019; Hasenbalg,
2005)25. Um processo que alia produção legislativa com políticas de estado de
higienização e embranquecimento de grandes cidades (Bertúlio, 1989).

Esta compreensão está atrelada ao processo da construção de territórios de


violência (Barcellos et al., 2017), aliado a criminalização da população que vive
nesses espaços, majoritariamente negra. Para Mário Theodoro, um dos cenários de
maior explicitude do racismo é a distribuição espacial da população. “A favela é a
parte que restou aos negros, a sobra insalubre do espaço urbano, que se faz viável
pelas mãos da população sem alternativa de moradia” (Theodoro, 2022, p. 234).

A retirada dos “indesejáveis” do espaço da moderna cidade, também criou um


processo de criminalização dessa população. Além do problema urbano a que
estavam submetidos, “o aumento da violência ampliou a vulnerabilidade social
dos moradores das periferias, ao mesmo tempo que aumentou o estigma que as
persegue” (Theodoro, 2022, p. 264). Esses processos segregacionistas e de
desvalorização de áreas habitacionais são apontados por Antônio Alfredo

25 Com a Lei de Terras, o Estado brasileiro se preparava para atender as transformações que o
capitalismo internacional exigia dos Estados dependentes, impedindo que escravizados libertos
se constituíssem enquanto proprietários de terras. (Bertúlio, 1989).

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446 Bárbara Crateús Santos

Guimarães (2016) como mecanismos e rotinas que reproduzem e institucionalizam


a racialização.

No Distrito Federal, a conformação espacial se deu sob uma promessa de


modernização da capital federal com a assimilação de modelos internacionais,
sobretudo em um ideário arquitetônico inglês. Da abolição ao início do
planejamento de Brasília passaram-se 67 anos, cerca de duas ou três gerações tendo
por base a expectativa média de vida da época (Lemos, 2022, p. 187)26.

Guilherme Lemos faz um trabalho historiográfico minucioso sobre a construção


da capital moderna, fundadas em ilusões desenvolvimentistas, migrações
nordestinas e o processo de racialização do território do Distrito Federal,
realizando um estudo comparativo entre o planejamento de Brasília e a experiência
de apartheid em Joanesburgo, África do Sul.

O planejamento urbano e a arquitetura moderna estão essencialmente vinculados


à eugenia e à estatística, veículos de uma racionalidade moderna do espaço.
(Lemos, 2022, p. 199).

O trabalho de Lemos é importante para situar o leitor sobre a conformação


histórica-espacial do Distrito Federal e seus efeitos racializados no tempo presente,
inclusive na inteligibilidade e na gestão de espaços geográficos pela burocracia
estatal. A população negra é distribuída territorialmente. O território vale pelo tipo
humano que o habita e vale pela impossibilidade de determinados grupos, com
corpos historicamente estigmatizados, ocuparem ou não determinados ambientes.
Portanto, a favela é um espaço socialmente produzido, resultado de processos
políticos conscientes, pelos quais o estado impõe sua estratégia de contenção social
nos centros urbanos (Alves, 2011).

Uma das autoras mais significativas no campo de estudos urbanos, Raquel Rolnik
(1989), ao tratar sobre o processo de urbanização excludente de São Paulo e Rio de
Janeiro, sobre territórios negros específicos de São Paulo de 1890, aponta que

a imagem da marginalidade é também identificada com a própria


habitação coletiva: a intensidade de uma vida não familiar e a densidade
dos contatos do dia a dia do cortiço contrastam com a organização da casa
burguesa (familiar, isolada, internamente dividida em cômodos com

26 “Mas a história da ideia de Brasília também se confunde com a própria história da economia
colonial, aprimorada no final do século XIX. A transição de um capital mercantil escravista, que
fundamentou todos os supostos “ciclos” econômicos nacionais, ao capital financeiro com
investimentos no setor agrário e da construção civil concatenam as mudanças políticas que
orientaram a nação na contemporaneidade”. (Lemos, 2022. p.189).

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Territórios racializados e a produção risco de violência doméstica pelo Sistema de Justiça 447

funções e habitantes segregados). [...] a marginalidade é informada por um


conjunto de gestos, um corpo. (Rolnik, 1989, p. 81)

A favela é compreendida como um local de produção de desvios e como causa da


degradação espacial, composta por desvios morais e incivilidades. (Alves, 2011).
Juliana Farias27 entende que há um processo de racialização e generificação desses
territórios urbanos na medida em que a marca daquela espacialidade específica
também vai acompanhar a vida daquelas pessoas. O processo de criminalização
do espaço possui uma elasticidade - acompanha os corpos e as experiencias de
justiça dos moradores de comunidades como acampamento Doraty, Córrego do
Arrozal, Vila Dnocs próximo à Sobradinho, citados pelos atores entrevistados.

O que não é da cidade, é bárbaro e, portanto, não merece cuidado. A condição da


barbaridade aparece como justificativa do subdesenvolvimento que se torna tanto
como condição como fim em si mesmo. A noção política de favela inscreve seus
moradores como irracionais, preguiçosos, malignos, não civilizados, patológicos,
exóticos e antimodernos. É uma guerra binária que não se quer vencer, mas mantê-
la, pois, seu funcionamento mantém o controle e a hierarquia social (Juliana Farias
em Tópicos Especiais em Sociologia de Gênero e Raça, 2023).

Mulheres em situação de violência doméstica podem ser “mulheres de traficantes”


ou “familiares de presos”. O aspecto criminalizador dos sujeitos habitantes em
regiões periféricas aciona a dinâmica corpo-território-generificação, que interdita
a confiança no Sistema de Justiça de pessoas negras (Farias, 2021; Gomes et al.,
2022). A divisão dos corpos vai ser produzida a partir da territorialização, a
depender de onde o corpo circula, entra e sai. Portanto, o questionamento de Jaime
Amparo Alves (2011) é central: o que essa compreensão racializadora - da
representação de um corpo-território- como espaço privilegiado do crime e da
desordem - tem a nos dizer sobre as relações raciais no Brasil?

Os efeitos concretos na experiencia de justiça de mulheres negras sugerem uma


resposta, mas não a única. No mesmo tempo em que os atores apontam o caráter
democrático da violência doméstica, atingindo todas as “classes” e “cores”,
definem geográfica e racialmente onde os espaços são mais propícios a ocorrer
violência doméstica. Muitas vezes a negação da vítima em prosseguir com a

27 Reflexões desenvolvidas pela professora Juliana Farias na disciplina optativa (Tópicos Especiais
em Sociologia de Gênero e Raça): Processos de generificação e racialização de territórios em
contextos de exercício de poder colonial, ministrada em 2023.2 no Programa de Pós-Graduação
em Sociologia, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília.

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448 Bárbara Crateús Santos

demanda é lida como falta ou déficit de informação, como é possível observar na


fala do (a) juiz (a) 1.

JUIZ (A) 1: Eu vejo assim, primeiramente a questão é onde a mão do estado


tem mais dificuldade de chegar né [...] áreas mais vulneráveis, por exemplo
Vila Dnocs, que é uma parte em Sobradinho, é uma área mais vulnerável,
é uma área em que ali impera muito lei do silêncio né, até por questões ali de tráfico
de drogas, de tudo [...] muitas vezes a mulher é mulher de traficante, mulher de
uma pessoa envolvida em atividade criminosa e ainda tem mais dificuldade ainda
de levar isso ao conhecimento do estado. O que a gente também nota, pessoas
mais vulneráveis chegam para audiência às vezes vítimas com toda aquela,
aquele discurso de dizer que ela é culpada [...] Aquele discurso tipo de
minimizar o fato isso a gente vê, pelo menos eu tenho essa percepção, de pessoas
que têm uma vulnerabilidade social e aí incluída pessoas que tiveram... não tiveram
oportunidade de estudo, de instrução... pessoas menos instruídas que tem às
vezes, já chegam na audiência com essa percepção, já chegam muito mais
vulneráveis e às vezes com esse discurso de minimizar [...] Então assim a
gente vê nessas camadas mais vulneráveis da população... E quando a
gente fala em camadas mais vulneráveis, claro, tem a parte de educação...
pessoas que não tiveram oportunidade de cursar um colégio, toda parte
educacional dela é defasada... teve muito menos acesso à informação do
que outras pessoas... conhecimento dos direitos. [...] Então chega com um
déficit de proteção muito do que outras mulheres que já chegam conscientes de
que existe a lei Maria da Penha, que o agressor não pode fazer aquilo... tem
mulheres que não têm consciência as vezes que uma ameaça, um
xingamento é crime. Falam “ah mas ele só disse da boca pra fora que ia me
matar, eu não ligo para isso” entendeu? E outras que têm uma consciência
maior falam “não ele não pode me xingar, ele não tem esse direito de me
chamar de vagabunda na minha casa, na frente dos meus filhos” e tem
outras que não tem essa consciência e eu realmente eu coloco isso na... eu
pelo menos tenho essa crença de que é a questão da informação, do acesso
à informação, do acesso ao conhecimento e seus direitos [...] Então esse
déficit, essa vulnerabilidade da parte de informação, de conhecimento seus direitos
acaba influenciando sim, a gente vê uma diferença até na condução da audiência
[...] (destaque nosso).

O (a) magistrado (a), mais uma vez, essencializa o território que seria vulnerável
como criminoso; local onde provavelmente vai existir tráfico de drogas, sem
apresentar outra possibilidade; como uma espécie de destino. A forma de
visualizar a desistência, ou a resiliência, ou, ainda, outras possibilidades de
resolução de conflitos –sem envolvimento do Estado– é compreendida apenas
como um atributo da desinformação. Esta percepção segue um modelo de justiça
disputado por uma militância feminista hegemônica, que centraliza essa forma de
resolução de conflitos domésticos –majoritária via aparelhos da segurança
pública–, silenciando possibilidades outras.

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Territórios racializados e a produção risco de violência doméstica pelo Sistema de Justiça 449

Em complemento, a percepção empática de vitimização de corpos negros é


bloqueada e interditada pelo racismo. A dinâmica de desumanização de pessoas
negras como seres associados à violência -sem o direito de reclamar desse
sofrimento - implicadas em processos institucionais, inviabilizam sua condição e
vítima (Flauzina; Freitas, 2017). Pesquisas qualitativas28 sobre mulheres negras em
situação de violência doméstica apontam essa perspectiva. Exemplo disso são
alguns achados de pesquisa de Maria Jesus (2009) que revelam como alguns
profissionais da rede de enfrentamento não enxergam qualquer relação entre
violência doméstica e a questão racial.

Há também dificuldades de acesso à justiça e um tratamento humanizado para


mulheres negras vítimas de violência doméstica. Ana Flauzina e Thula Pires (2020)
lembram que, para mulheres posicionadas na zona do não ser (mulheres negras),
o acesso à esfera da legalidade ocorre de maneira mais restrita, pois são permeadas
por dinâmicas de desumanização. A violência seria regra, ante a experiência
colonial que coloca suas experiências na zona da desumanidade pautadas pelo
racismo.

Essa dificuldade de acesso às dinâmicas de proteção judicial, por mulheres


localizadas na zona do não ser, pode ser observada no trabalho de Stephanie
Pereira (2018) “Mais preta do que branca: racismo estrutural na Lei Maria da Penha”29.
A autora observou em seus achados de pesquisa que vítimas brancas tiveram mais
processos sentenciados e em menor tempo, e que mulheres negras experienciaram
mais episódios de violência institucional, além de receberem menos informações.

Ana Flauzina (2015), ao comentar sobre os diferentes anseios por justiça no campo
da violência doméstica, sobretudo em relação ao fator prisão, aponta que há no
plano discursivo o reconhecimento das limitações do cárcere e, ao mesmo tempo,

28 É possível observar nos trabalhos “A produção de sentidos sobre violência racial no atendimento
psicológico a mulheres que denunciam violência de gênero” de Maria de Jesus Moura (2009) e
“Um olhar racial para a violência conjugal contra as mulheres negras” de Mirian Lúcia dos Santos
(2012).
29 Trata-se de um trabalho de dissertação apresentada na Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo no Programa de Medicina Preventiva. Em sua pesquisa, Stephanie buscou
compreender se existia diferenças entre mulheres negras e brancas no acesso e na assistência dos
serviços que compõem a rede de enfrentamento à violência doméstica. O fluxograma das rotas
críticas demonstra que as mulheres negras entrevistadas vivenciaram mais episódios de violência
institucional e receberam menos informações nos serviços. Tais questões resultaram em uma rota
mais tortuosa e com mais passagens por instituições, na busca pela garantia de viver uma vida
sem violência. As mulheres negras reconhecem o racismo, além de outros eixos de opressão em
sua rota. Observou-se também que as mulheres brancas entrevistadas não reconhecem o racismo
como barreira na efetivação de direitos de mulheres negras”.

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450 Bárbara Crateús Santos

a desconsideração de outras formas de resolução de conflitos pleiteadas por


mulheres.

O que parece estar em jogo nesses diferentes posicionamentos assumidos


pela resistência e pela militância é, fundamentalmente, o conceito de justiça
nos casos de violência doméstica e familiar. Me parece, que para mulheres
vitimadas, esta está associada à suspensão das agressões, à escuta das suas
demandas, à responsabilização nos termos em que seus laços de afeto lhes
permitirem postular. A justiça da resistência quotidiana está, portanto,
atrelada a uma intervenção que trabalhe a violência com a atenção dada a uma
questão familiar, que considere no seu cômputo o agressor como alguém com quem
as vítimas, em sua grande maioria, se importam. Essa leitura se incompatibiliza
com o sentido de justiça que vem sendo propagado em boa parte dos
segmentos da militância feminista. Aqui, impõe-se um sentido
eminentemente criminal ao contexto da violência. A tentativa é de
justamente descolar a figura do agressor como sujeito que evoca
sentimentos complexos de afeto e repulsa, ternura e medo. O trabalho
desenvolvido tanto no plano simbólico como nas pressões do judiciário
por efetividade na condução dos casos caricatura o agressor num
arquétipo criminal conservador, que encontra no cárcere a prescrição
preferencial como resposta à violência praticada. Assim, embora haja, no
plano discursivo, uma sinalização para o reconhecimento das limitações do
encarceramento e para as práticas desumanizadoras desencadeadas por
uma cultura punitiva em grande maioria sustentada pelo racismo no
Brasil, na prática, há um rechaço a alternativas bem sucedidas que
consigam, de alguma forma, se aproximar mais do sentido de justiça
pleiteado por mulheres em seu quotidiano (Flauzina, 2015, p. 137-138,
destaque nosso).

Outra constatação observada pelos (as) profissionais do NAFAVD, explica a


inquietação da autora. É a facilidade automática de acionamento da polícia para a
resolução dos conflitos por pessoas brancas, que coaduna com a literatura trazida
até aqui.

[...] Da vítima, né? É, eu acho que o fato da vítima ser negra já traz um
olhar para a gente de um risco maior que corre [...] acende esse alerta no
sentido de que ela tá mais exposta, ela tá mais vulnerável, ela sofre
preconceitos de outra ordem além de ser mulher. E, uma coisa que a gente tem
observado até conversando com o (nome ocultado) ele nos chamou
atenção, e eu vejo, quando o casal é negro, da periferia, aqui em
Sobradinho é muito variado, né, tem condomínios e tem que gente tem
poder econômico muito baixo, às vezes, o pessoal negro da periferia eles
não chamam a polícia, porque eles não chamam a polícia porque eles
entendem que a polícia é contra eles, a polícia não vai ajudar. Então, isso
me chama atenção, se teve uma violência e eles chegaram a chamar a
polícia é porque já deve ter acontecido um monte de coisa antes pra chegar
nesse ponto, eu observo muito isso, assim. Pras pessoas brancas chamar a
polícia é no automático, pros negros, não. Eles tentam resolver entre eles porque a

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Territórios racializados e a produção risco de violência doméstica pelo Sistema de Justiça 451

polícia, muitas vezes, vai chegar com um olhar discriminatório, isso a gente
observa (destaque nosso).

Aqui, observamos como o Estado produz o risco racializado na medida em que


distancia o acesso à “proteção” por meio da instituição polícia. A partir dessas
considerações, não conclusivas, mas possíveis, posso afirmar que o processo de
racialização e criminalização de territórios periféricos produzem um risco
racializado para mulheres negras, na medida em que as formas de resolução de
conflito ocorridas naquele espaço, para além da intervenção estatal não são
reconhecidas e as vítimas são situadas em um lugar de desinformação da lei. Esta
forma de apreensão dessas experiencias pelo Sistema de Justiça é baseada em uma
cognição de justiça baseadas em experiencias universais e brancas.

Voltemos ao formulário de avaliação de risco. O instrumento utilizado no Distrito


Federal possui uma opção para demarcar a raça/cor como uma variável que
produz maior risco. Contudo, como visto até agora, há uma série de interdições
institucionais e subjetivas bloqueadas pelo racismo. É insuficiente o instrumento
apontar maior risco de violência grave potencialmente letal na questão sobre a
identificação étnico-racial da vítima, se a resposta for “preta”, “parda” e
“indígena”; e sobre a percepção sobre violência com relação ao seu bairro ou
comunidade (CNJ, 2020, p.4).

Insuficiente, pois, como foi observado, os magistrados escolhem o que consideram


risco nas opções do formulário e produzem uma relação equivocada entre risco de
agravamento de violência a um tipo penal, utilizando a cognição penal como
parâmetro de intervenção (Santos, 2022).

No momento da decisão ou em pareceres, juízes (as) e promotores (as) remetem-


se ao questionário para evidenciar o histórico de violência ou citar fatores de riscos
específicos considerados graves, por exemplo, o autor possuir arma de fogo. O que
é remetido ao questionário são as opções de fatores de risco que os magistrados
interpretam e escolhem levar em consideração, como lesão grave, uso de arma de
fogo e histórico de violência com a vítima do processo e/ou outras vítimas (Santos,
2022).

Como o território se inscreve como uma variável que apresenta maior risco aliado
a dimensão racial? Para iniciar o debate, enquadramos algumas respostas: i) a
ausência de infraestrutura urbana - que dificulta o diálogo do jurisdicionado com
o sistema de justiça; ii) a relação de morte que a população negra possui com a
polícia; iii) e a própria compreensão do sistema de justiça que essencializa
experiencias urbanas negras, ao reificar, signos de desigualdades raciais, situando
sujeitos negros em um local do “outro” violento e incivilizado.

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452 Bárbara Crateús Santos

A racialização dos territórios periféricos possui relação com formas de violação


que ultrapassam a formação histórica de centros urbanos: ela inclui as estratégias
de genocídio do estado através da gestão de violência no tempo presente. O
território onde se vive constitui o próprio corpo, afastando mulheres negras em
situação de violência de intervenções institucionais; da zona da legalidade.

A racialização de territórios produz experiencias de justiça diferenciadas ou “não


experiências” de justiça. O poder judiciário trabalha, então, com um padrão de
vítima universal? Ou ele (re) produz esse padrão quando reifica esse território
como diferenciado? Entendemos que os padrões de segregação socioespacial
caracterizadores de desigualdades raciais definem experiências de justiça de
mulheres negras e contribuem para a reprodução da ideia de uma vítima universal
de violência doméstica.

Considerações finais

A ampliação do horizonte interpretativo do racismo no Sistema de Justiça passa


pelo seu enfrentamento real, de modo que as os atores judiciais e as políticas
judiciárias levem a sério a raça (Bertúlio, 1989) e seus efeitos na experiência de
justiça da população negra, sobretudo para mulheres negras em situação de
violência doméstica. Esse movimento começa por descortinar práticas racializadas
do Sistema de Justiça, problematizando suas rotinas, a construção de políticas
judiciárias e a sua execução.

A ideia é reposicionar o discurso de juristas atuantes no campo de violência


doméstica não apenas como aqueles que manejam a lei protetiva, mas também
como produtores de risco para mulheres negras em situação de violência. A
pergunta sobre o risco, como uma entrada para acessar a questão racial, se mostra
como uma estratégia possível para ampliar o horizonte de compreensão do
racismo nas práticas do Judiciário que, muitas vezes, é diluída no uso abstrato das
categorias racismo estrutural e da interseccionalidade, por exemplo. Ao final,
buscamos tensionar o campo com a constatação de que desapropriação da
cidadania de mulheres negras no Brasil também é produzida pelo Poder Judiciário
em suas práticas cotidianas e discursos jurídicos.

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460 Bárbara Crateús Santos

Sobre a autora
Bárbara Crateús Santos
Doutoranda em Direito, Estado e Constituição na Faculdade de Direito
da Universidade de Brasília (UnB). Advogada, Mestre em Direito pela
FD-UnB, especialista em Direitos Humanos pelo Instituto Esperança
Garcia.

_________________
Nota
Os dados parciais que formam o argumento do texto são oriundos da
dissertação de mestrado “RAÇA, GÊNERO E RISCO: Uma análise dos processos
de avaliação e gestão de risco de mulheres em situação de violência doméstica
no Juizado de Sobradinho-Distrito Federal” (2022), disponível em:
http://repositorio2.unb.br/jspui/handle/10482/44924

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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50317

dossiê

Violação à lei de cotas em concursos


públicos para docentes de nível superior:
uma análise da atuação do GRUNEC
como movimento negro educador das
instituições públicas cearenses
Violación de la ley de cuotas en las licitaciones
públicas de profesores de enseñanza superior: un
análisis de la actuación del GRUNEC como
movimiento de educadores negros de instituciones
públicas de Ceará

Violation of the quota law in public tenders for


higher education teachers: an analysis of GRUNEC's
performance as a black educator movement of
public institutions in Ceará

Livia Maria Nascimento Silva1


1
Universidade Federal da Paraíba, Crato, Ceará, Brasil. E-mail:
[email protected]. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-0847-
2825.

Cicera Nunes2
2
Universidade Regional do Cariri, Crato, Ceará, Brasil. E-mail:
[email protected]. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6352-8991.

Submetido em 31/07/2023
Aceito em 03/01/2024

Como citar este trabalho


SILVA, Livia Maria Nascimento; NUNES, Cicera. Violação à lei de cotas em concursos
públicos para docentes de nível superior: uma análise da atuação do GRUNEC como
movimento negro educador das instituições públicas cearenses. InSURgência: revista
de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 461-485, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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462 Livia Maria Nascimento Silva - Cicera Nunes

Violação à lei de cotas em concursos


públicos para docentes de nível superior:
uma análise da atuação do GRUNEC
como movimento negro educador das
instituições públicas cearenses

Resumo
Este trabalho analisa a (in)efetividade da política de cotas em concursos públicos de
docência superior, a partir de um estudo de caso dos editais das universidades estaduais
do Ceará: URCA, UECE e UVA. A investigação parte das teses jurídicas sustentadas nos
processos coletivos, ajuizados pelo Grupo de Valorização Negra do Cariri – GRUNEC para
correção das violações à lei de cotas. Metodologicamente, utiliza-se das técnicas de revisão
bibliográfica, análise documental e o estudo de caso. Discute-se os métodos de reserva de
vagas em concursos públicos de magistério superior, a postura administrativa das
instituições de ensino, do poder executivo e judiciário, traçando paralelo com a atuação do
movimento negro, enquanto agente educador das referidas instituições públicas de
poder/saber.
Palavras-chave
Ações Afirmativas. Cotas em concursos de universidades. Litigância estratégica.
Movimento negro educador.

Resumen
Este trabajo analiza la (in)eficacia de la política de cuotas en los concursos públicos de
enseñanza superior a partir de un estudio de caso de las convocatorias públicas de las
universidades estatales de Ceará: URCA, UECE y UVA. La investigación parte de las tesis
jurídicas sustentadas en los procesos colectivos promovidos por el Grupo de Valorização
Negra do Cariri – GRUNEC para corregir violaciones a la ley de cuotas.
Metodológicamente utiliza las técnicas de revisión bibliográfica y análisis de documentos.
Discute los métodos de reserva de vacantes en los concursos públicos de educación
superior, la postura administrativa de las instituciones educativas, el poder ejecutivo y
judicial, trazando un paralelo con la actuación del movimiento negro, como agente
educativo de las mencionadas instituciones públicas del poder/saber.
Palabras-clave
Acciones Afirmativas. Cuotas en concursos universitarios. Litigio estratégico. Movimiento
de educadores negros.

Abstract
This work analyzes the (in)effectiveness of the policy of quotas in public competitions for
superior teaching from a case study of the public notices of the state universities of Ceará:
URCA, UECE and UVA. The investigation starts from the legal theses sustained in the
collective processes filed by the Grupo de Valorização Negra do Cariri – GRUNEC to
correct violations of the quota law. Methodologically, it uses the techniques of
bibliographic review and document analysis. It discusses the methods of reserving
vacancies in public competitions for higher education, the administrative posture of
educational institutions, the executive and judiciary, drawing a parallel with the
performance of the black movement, as an educational agent of the aforementioned public
institutions of power/knowledge.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Violação à lei de cotas em concursos públicos para docentes de nível superior: uma análise 463
da atuação do GRUNEC como movimento negro educador das instituições públicas cearenses

Keywords
Affirmative Actions. Quotas in university contests. Strategic Litigation. Movement of black
educators.

Introdução

O retrocesso social nas cotas raciais nos Estados Unidos (Supreme Court Of The
United States, 2023), recentemente, chamou a atenção do mundo ao evidencializar
para população, que nenhum direito conquistado, após anos de luta, se constitui
direito adquirido. Existe uma verdadeira insegurança jurídica para os grupos que,
historicamente, foram racialmente hierarquizados e, assim, as políticas de ações
afirmativas, enquanto empreitada da agência negra para reparação histórica das
desigualdades estruturais, ao passo que demorou a ser reconhecida e garantida,
pode a qualquer momento ser violada e/ou retroceder totalmente, desviando a
finalidade dessa importante política pública para materialização do direito à
igualdade.

O Brasil, que sempre teve um racismo diferente dos Estados Unidos, embora
igualmente cruel (Andrews, 2011), apesar de ter avançado no campo formal, no
que diz respeito às cotas raciais enquanto política de ação afirmativa, tem
demonstrado, por práticas silenciosas e métodos supostamente neutros, que há
uma constante ameaça ao que deveria ser direito. Fraudes, inobservância aos
preceitos normativos, metodologias não eficazes, entre outros meios, vêm
demonstrando que, mesmo após duas décadas de início da implantação dessa
política no país, ainda faz-se necessária firme legislação, fiscalização e
fortalecimento de jurisprudência que garanta a finalidade precípua desta política
(Freitas; Sarmento, 2020).

Nesse contexto, o presente trabalho busca elucidar o quanto a política de cotas vem
sendo sistematicamente violada no Brasil, apresentando a tese jurídica sustentada,
processualmente, pelo Grupo de Valorização Negra do Cariri - GRUNEC em face
da realidade enfrentada nas universidades do estado do Ceará, propondo uma
possível solução para esses conflitos, com uma interpretação extensiva sobre a
legislação de cotas, recorrendo-se ao processo estrutural coletivo como
instrumento de resolução adequada de litígios estratégicos. Objetiva-se neste
estudo, expor o quanto o movimento negro deve ser reconhecido como educador
jurídico por meio de suas lutas por direitos.

Quanto à metodologia adotada, buscou-se analisar os editais dos concursos


públicos para docentes da Universidade Regional do Cariri - URCA, Universidade

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464 Livia Maria Nascimento Silva - Cicera Nunes

Estadual do Ceará - UECE e Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA,


publicados em abril do ano 2022, já que esses foram os concursos com maior
número de vagas e os primeiros certames com reservas de vagas para cotas nas
universidades estaduais do Ceará. Também elabora-se quadros descritivos sobre
as vagas reservadas na política de cotas e do método de aprovação para pessoas
cotistas adotado, desenvolvendo estudos aprofundados dos processos ajuizados
pelo GRUNEC sobre esse tema no âmbito estadual, possibilitando a compreensão
das falhas na aplicação das cotas nos concursos para docentes superior.

Sobre a sua classificação, a pesquisa realizada é explicativa e descritiva, utilizando-


se da revisão bibliográfica, análise documental e da técnica do estudo de caso, pois
valoriza-se o aspecto unitário a partir de uma análise situada e em profundidade,
considerando o seu contexto e suas múltiplas dimensões (ANDRÉ, 2013). Dessa
forma, buscou-se abranger todos os documentos jurídicos envolvidos nas
demandas, como petições, sentenças, pareceres, além da participação ativa das
pesquisadoras nas reuniões e audiências durante todos os trâmites processuais e
de articulação entre sociedade civil, movimentos sociais e sindicatos da categoria
docente das universidades, visando compreender e refletir os debates envolvidos
na lide.

1 GRUNEC: um movimento negro educador

O GRUNEC foi escolhido para o presente estudo de caso, por ser o movimento
negro mais antigo do interior do estado do Ceará e possuir, ao longo de sua
trajetória, muitas contribuições em prol da equidade racial. O grupo surgiu em
2001, a partir de debate local acerca dos reflexos das discussões sobre racismo,
visibilizados pela Conferência Mundial das Nações Unidas de 2001 contra o
Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância1, ocorrida de 31 de
agosto e 8 de setembro em Durban, na África do Sul (Silva, 2022).

Com as notícias da referida Conferência, algumas pessoas do interior do Ceará se


inquietaram para saber como aquelas discussões, ocorridas do outro lado do
mundo, ecoavam em suas vidas no interior (Sul) do Ceará. A conversa iniciou em
uma aula de natação, onde quatro colegas negros(as) falavam sobre a organização
da Conferência e pensaram: e nós povo preto do Cariri? Como estamos? Quais
nossas demandas? (Silva, 2022). Após algumas reuniões iniciadas, começaram a

1 Organizada pela Organização das Nações Unidas, a Conferência de Durban em 2001, o evento
marca na agenda internacional o estabelecimento de diretrizes para combate ao racismo e outras
formas de discriminação racial por meio de debates intensos que geraram a elaboração da
Declaração e Programa de Ação de Durban.

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Violação à lei de cotas em concursos públicos para docentes de nível superior: uma análise 465
da atuação do GRUNEC como movimento negro educador das instituições públicas cearenses

planejar a sua institucionalização, a ata de fundação do grupo foi elaborada em 21


de abril de 2001, onde escreveram que:

(...) Para todos do grupo era sumariamente importante a sua fundação uma
vez que não constava nesta região nenhuma organização deste tipo. O
GRUNEC decidiu-se ter como objetivo a organização da população negra
do Cariri, atuando no momento na cidade do Crato e também congrega as
pessoas não negras que se identifiquem com a luta e causa desta etnia e
que assumam sua identidade afrodescendente. Visando a organização
desta parcela da população o GRUNEC se propõe a realizar diversas
atividades que contribuam para o resgate e a inclusão destes na sociedade
como: estudos, palestras, seminários, cursos, encontros e comemorações
de momentos relevantes na história do povo negro, bem como sua origem,
cultura, crenças, costumes, danças, formas de trabalho, educação, dentre
outros momentos históricos significativos. Além de atividades educativas
e de reflexão sobre a condição dos negros no Cariri, o grupo se propõe
ainda a ser um veículo de apoio e divulgação de situações discriminatórias
e preconceituosas sofridas por qualquer cidadão por pertencer a esta etnia
ou aqueles que com ela identifique na condição de afrodescendente. Ainda
é objetivo do GRUNEC, ajudar no combate a toda e qualquer forma de
exclusão sofridas por pessoas de cor negra e que pertençam a classe menos
favorecida da população que não tiveram oportunidade de ascender sócio,
político economicamente sendo relegado a margem da sociedade e não
contando como cidadão que contribuiu para o crescimento desta nação,
fato que ocorre desde o início da colonização do Brasil. O GRUNEC terá
duração indeterminada até que seus membros estejam empenhados em
defender os seus objetivos e se comprometam a cumprir o estatuto que,
como fundadores o elaborarão (...). (GRUNEC, 2001, n.p.).

Nesse sentido, o Estatuto do GRUNEC, formalmente construído em 2002, mas


alterado em 2022, pontua os seguintes objetivos em seu artigo terceiro:

I. Promover ações de implementação de políticas públicas voltadas para a


população negra, considerando a interseccionalidade entre raça, gênero,
diversidade sexual, classe social, idade, deficiência, crença, religião,
territorialidade, entre outros marcadores sociais;
II. Lutar pelo reconhecimento e valorização da população negra e contra
todas as formas de opressão e exclusão social;
III. Promover a integração de pessoas e grupos afro-descendentes
IV.Promover a cultura, por meio da comunicação popular, produção
áudio-visual e outros materiais de formação e informação, resgatando as
raízes histórico-sócio-político e religiosa, para construção de uma nova
consciência de respeito à população negra e outros grupos étnicos e sociais
discriminados;
V. Combater as práticas de racismo conscientizando e educando a
população contra atitudes discriminatórias;
VI. Garantir orientação legal às vítimas de práticas racistas, encaminhando
e acompanhando o caso, se valendo de mecanismo de pressão social que
garantam a resolução justa do problema;

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466 Livia Maria Nascimento Silva - Cicera Nunes

VII. Promover atividades educativas, festivas e comemorativas no âmbito


regional e especialmente ao que se refere às datas comemorativas da
população negra;
VIII. Participar e promover Congressos, encontros, seminários, reuniões e
debates destinados aos interesses da população negra, bem como dos
eventos promovidos por outras entidades que lutem em defesa do meio
ambiente, dos direitos, respeito e dignidade humana;
IX. Construir com todos os segmentos da população negra, o resgate da
sua identidade e cidadania sensibilizando-o para assumir sua negritude;
X. Manter intercâmbio com outras entidades sociais;
XI. Promoção de direitos, construção de novos direitos para a população
negra, bem como assessoria jurídica gratuita de interesse suplementar em
casos exemplares;
XII.Desenvolver estudos e pesquisas voltadas para a problemática da
população negra.
XIII. Promover ações que favoreçam o desenvolvimento solidário e
sustentável dos meios produtivos e dos mecanismos de preservação do
meio ambiente. (GRUNEC, 2022, n. 2)

Dessa forma, o GRUNEC marca, no interior cearense, a ruptura do silêncio da


temática racial, quando passa a ecoar todas as vozes violentamente suprimidas por
tanto tempo, ao fazer o que chama de “incidência política” em todos os espaços e
oportunidades possíveis, levantando não só a pauta racial no sentido de denúncia
das desigualdades e violências, mas também de valorização da identidade e
cultura africana e afrodescendente, em um processo de constante formação dessa
consciência –negra e antirracista- na região (Silva, 2022).

As incidências políticas do GRUNEC se constituem na germinação do debate


étnico-racial nos espaços públicos e privados: escolas, universidades, câmaras
legislativas, conselhos e secretarias municipais e estaduais, fóruns, audiências
públicas, comunidades rurais, periferias e centros urbanos, penitenciárias, órgãos
do sistema de justiça, movimentos sociais, sindicatos, entre outros, por meio de
eventos, projetos, palestras, manifestos, ações culturais, assistenciais,
representações e reinvindicações, sendo que ao longo da jornada destacam-se
alguns marcos importantes, como:

(...) a 1ª Audiência Pública Federal no ano de 2007, para discutir a


implementação da Lei nº 10.639/03 conseguindo reunir representantes de
42 municípios da Região do Cariri; em 2005 realizou o 1º Seminário no
Crato para discutir a Igualdade Racial; é responsável pela Semana da
Consciência Negra todos os anos, desde sua formação em 2001; efetiva
cursos para geração de emprego e renda; junto ao governo municipal do
Crato articulou a sua adesão ao Fórum Intergovernamental de Promoção
da Igualdade Racial, coordenado pela SEPPIR (Secretaria Especial de
Políticas para a Promoção da Igualdade Racial) como forma de afirmar o
compromisso do município cratense no combate ao racismo e de garantir
à população o aperfeiçoamento das políticas públicas voltadas para

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Violação à lei de cotas em concursos públicos para docentes de nível superior: uma análise 467
da atuação do GRUNEC como movimento negro educador das instituições públicas cearenses

promoção da igualdade; desempenha um excepcional trabalho junto às


mulheres do Alto da Penha, que é um dos bairros mais pobres da cidade.
(Nicolau, 2016, n.p.).

Integrantes do GRUNEC participaram da formação e composição do Conselho


Municipal de Direitos da Mulher Cratense, Conselho Municipal de Direitos
Humanos, Conselho Municipal de Saúde, Conselho Municipal de Promoção para
Igualdade Racial, Conselho Estadual de Direitos Humanos, também dialoga com
o Fórum de Ações Afirmativas e Educação para as Relações Étnico-Raciais do
Ceará, Rede de Mulheres Negras do Ceará, Frente de Mulheres do Cariri, já
tiveram membra eleita para o cargo de Ouvidora da Defensoria Pública do Ceará,
levantando em todos esses espaços a pauta racial para planejar, formular,
implantar, ampliar e efetivar políticas públicas focalizadas, visando à promoção
da igualdade racial (Silva, 2022). Ao balizar os principais feitos do grupo durante
sua trajetória, as/os membras/os do GRUNEC reconheceram os seguintes pontos:

-Educação, principalmente no que diz respeito à implementação da lei


10.639 e 11.645.
-Saúde, principalmente no que diz respeito à saúde da população negra. -
Combate ao racismo.
-Mulheres negras.
-Respeito à diversidade (religiosa, de sexo, geração).
-Cursos profissionalizantes para populações periféricas em parceria com
o SENAC e IFCE JUAZEIRO.
-Promoção da arte e cultura afro-brasileira.
-O Grunec se projeta mais para fora do que para dentro.
-Parceira com Cáritas e outras instituições.
-Realização do primeiro mapeamento que identifica as comunidades
rurais negras e/ou quilombolas do Cariri cearense, nos anos de 2010/2011.
(GRUNEC, 2021a, p. 13)

Ao elencar os pontos acima, as/os integrantes do grupo, ressaltaram a relevância


de acrescentar também a questão das juventudes negras, o apoio das comunidades
rurais e quilombolas, e também aos imigrantes, que são outras áreas de atuação
que, ao longo dos últimos anos, ensejaram importantes conquistas por meio de
muitas ações reivindicatórias. Nesse ínterim, considerando que o foco deste artigo
é tratar apenas da atuação do grupo sobre cotas raciais em concursos públicos de
carreira docente do estado cearense, passaremos agora a explanar melhor esse
tema.

Nilma Lino Gomes (2017) explica que o movimento negro é educador, pois
constrói saberes nas suas lutas. Educador não só do ponto de vista formal das
instituições de ensino, embora seja importante ressaltar que, em 2003, conseguiu
que fosse sancionada a Lei n° 10.639, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nº. 9.394/1996, incluindo no currículo oficial da Rede de Ensino, a

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468 Livia Maria Nascimento Silva - Cicera Nunes

obrigatoriedade da presença da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e


Africana”, bem como o Estatuto da Igualdade Racial, Lei nº 12.288, de 20 de julho
de 2010, que trouxe diversas disposições sobre a educação, como as políticas de
reservas de vagas nas instituições de ensino; inclusão no currículo da História
Geral da África e da História da população negra no Brasil; obriga que os órgãos
responsáveis incentivem pesquisas e atividades educacionais de interesse da
população negra e que essas atividades sejam desenvolvidas com fomento a
parceria com os movimentos negros ou entidades que atuam na área, dentre várias
outras previsões pertinentes.

Para além desse aspecto, é educador, por expandir conceitos relacionados à


própria identidade e memória pessoal e coletiva, assim como amplia concepções
sobre os significados de democracia, cidadania, justiça e igualdade, garantindo
diversas formas de emancipação, construindo outras epistemologias,
possibilitando conhecimento de outra cosmopercepção que rompa com o ideário
neoliberal-capitalista que monetiza a vida (Silva, 2022).

Nesse contexto, reconhecendo as lacunas existentes entre os aspectos formal


legislativo e a materialidade da efetividade desses dispositivos legais, o GRUNEC
organiza importantes eventos formativos voltados para acadêmicas/os,
profissionais da educação e população em geral, tanto em espaços formais de
educação – escolas e universidades –, quanto informais. Um desses eventos, é o
Artefatos2 da Cultura Negra que, atualmente, está em sua décima terceira edição,
iniciando em 2009. É um evento de caráter acadêmico, a partir de 2014, sendo
organizado como congresso internacional, voltado à formação de professores(as)
da educação básica, gestores(as) públicos, pesquisadores(as), estudantes,
integrantes de movimentos sociais, comunidades e grupos culturais locais e
demais interessadas(os) no tema.

Na empreitada do evento, têm participado a sociedade civil, movimentos sociais,


grupos artísticos e culturais, além de universidades públicas, como a Universidade
Regional do Cariri - URCA, Instituto Federal do Ceará – Juazeiro do Norte – IFCE,
Universidade Federal do Cariri – UFCA, Universidade da Integração Internacional
da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB, Universidade Federal do Ceará – UFC e
também do exterior, como a Universidade do Tennessee.

Para além dos eventos de formação educacional antirracista, o GRUNEC também


tem protagonizado as principais lutas do Ceará no sistema de justiça sobre cotas

2 O nome do evento foi pensado para simbolizar o que queriam representar: artes e fatos – artefatos
– da cultura negra.

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Violação à lei de cotas em concursos públicos para docentes de nível superior: uma análise 469
da atuação do GRUNEC como movimento negro educador das instituições públicas cearenses

raciais, construindo teses jurídicas em ações processuais coletivas, movendo a


máquina judiciária para intervenção nos atos administrativos considerados ilegais
e discriminatórios. Apenas entre os anos 2022 e 2023, o GRUNEC tem atuando nos
seguintes casos: 1) Procedimento administrativo n° 01.2022.00000969-5
representado no Ministério Público Estadual para tratar sobre as fraudes ocorridas
nos processos seletivos de estudantes dos cursos de graduação de todas unidades
da URCA; 2) Ação civil pública sobre cotas no concurso para docentes da URCA
(processo n° 0201613-44.2022.8.06.0071); 3) Concurso público da Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), tendo
representado ao Ministério Público Federal a demanda (protocolo n° 20220050338;
4) Representação em face da URCA, UECE e UVA para observância da lei de cotas
nos concursos e seleções (protocolo n° 01.2023.00016709-7 no MPE); e
representação em face do IFCE sobre os retrocessos no procedimento de
heteroidentificação (protocolo n° 00035358/2023 no MPF).

Considerando que cada um desses processos tem a violação à lei de cotas como
tema central, apesar de que tais violações venham ocorrendo de maneiras
distintas, o GRUNEC tem sustentado a tese jurídica de violação sistemática à lei
de cotas, visando progredir em uma litigância estratégica3 para um processo
estrutural, promovendo não só uma mudança jurisprudencial, mas normativa de
regulamentação efetiva da política pública garantidora do direito material à
igualdade4, inclusive por meio de fiscalização.

2 A luta pelas cotas nos concursos públicos para


docentes nas universidades do Ceará

Apenas em 2021 a lei estadual n.º 17.432/2021, foi sancionada no estado do Ceará,
instituindo a política pública social e afirmativa consistente na reserva de vagas
para candidatos/as negros/as em concursos públicos destinados ao provimento de
cargos ou empregos no âmbito dos órgãos e das entidades do poder executivo
estadual. A referida lei prevê a reserva de 20% (vinte por cento) das vagas
oferecidas para pessoas negras em concursos públicos estaduais, considerando

3 Litigância estratégica é o termo utilizado para se referir aos casos emblemáticos sobre temas
relativos a violações de direitos e escolhidos para acionar o sistema de justiça com a finalidade de
alterar os entendimentos dos tribunais sobre a matéria, assim como vincular os atos
administrativos ao que for decidido, visando aperfeiçoar as políticas públicas.
4 Por muito tempo o direito à igualdade esteve presente nas legislações brasileiras, o que significa
que no campo formal da lei o direito estava previsto expressamente. Contudo, a realidade
nacional demarcada por desigualdades demonstra que não basta apenas está previsto em lei, faz-
se necessário atuação positiva e prestacional do estado para efetivar esse direito, materializando
a igualdade, principalmente por meio de políticas públicas de ações afirmativas.

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470 Livia Maria Nascimento Silva - Cicera Nunes

regionalização e especialidade, sendo obrigatória sempre que o número de vagas


ofertadas para o cargo ou emprego público, for igual ou superior a 5 (cinco).

Ocorre que os concursos de docência superior, geralmente, são publicados com


fracionamento de vagas por disciplinas, departamento e/ou região, conforme
demonstrado na pesquisa de Fernandes (et al., 2021), ao analisar 182 editais de
universidades federais e 07 de institutos, constatando as burlas a lei de cotas.
Santana (et al., 2019, p. 1) também confirma o contraste negativo entre o que está
previsto na lei de cotas e os resultados dos concursos:

Para isso, analisamos os editais de concurso públicos para o cargo de


docente em cinco institutos federais de educação básica, técnica e
tecnológica (IFB, IFG, IFGoiano, IFMS e IFMT) e oito universidades
federais (UnB, UFCat, UFG, UFJ, UFGD, UFMS, UFMT e UFR), todas essas
da região centro-oeste. Conclui-se que nesses editais muitas universidades
e institutos federais implantam a lei e o decreto de maneira contrastante e
que os resultados das reservas de vagas para pessoas com deficiência
conseguem chegar mais perto do que é definido no decreto, ao contrário
da reserva para pretos e pardos, que ainda está longe de ser aplicada da
forma correta. Esse fato vai na contramão da crescente entrada de alunos
negros nas universidades, que, ao chegarem nesses ambientes, não
conseguem ter uma identificação com o meio profissional que lhe é
atribuído.

O obstáculo gerado pelo fracionamento para maximizar os efeitos da lei de cotas é


pelo fato de embora o total de vagas do certame seja para o cargo de docente, as
instituições dividem as vagas para este mesmo cargo, a partir do critério de área
de especialidade. Esse método, na prática, tem causado grande ineficácia da lei de
cotas, pois verifica-se no resultado final um número irrisório de candidatas/os
cotistas aprovadas/os.

Seguindo esta lógica, as três universidades estaduais do Ceará, Universidade


Regional do Cariri - URCA, Universidade Estadual do Ceará - UECE e
Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA, publicaram os seus respectivos
editais dos concursos públicos em abril de 2022, todos prevendo expressamente a
reserva de vagas no percentual de 5% (cinco por cento) para pessoas com
deficiência e de 20% (vinte por cento) para pessoas negras, mas fracionando as
vagas por setores de estudos. Em resumo, cada edital continha o seguinte
quantitativo de vagas:

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Violação à lei de cotas em concursos públicos para docentes de nível superior: uma análise 471
da atuação do GRUNEC como movimento negro educador das instituições públicas cearenses

Quadro 1
Vagas nos concursos das universidades estaduais do Ceará, conforme Edital de abertura

Universidade Total de Vagas para cotas no Vagas para cotas, conforme


vagas edital de abertura percentual legislativo
URCA 184 3 CN* e 3 CPCD** 37 CN e 9 CPCD
UECE 135 1 CN e 1 CPCD 27 CN e 7 CPCD
ADJUNTO
UECE 182 4 CN e 4 CPCD 36 CN e 9 CPCD
ASSISTENTE
UVA 145 6 CN e 5 CPCD 29 CN e 7 CPCD
*CN = Cotas para negros/as; **Cotas para pessoas com deficiência

Autoria própria, 2023

A visualização do quantitativo acima, evidencia o quanto o fracionamento de


vagas por área de estudo reduz a eficácia da lei de cotas. Por isso, o GRUNEC, em
coautoria com Sindicato dos Docentes da URCA – SINDURCA, ajuizou ação civil
pública – ACP, em 22 de maio de 2022, para obter comando judicial de correção da
aplicação da Lei de Cotas no concurso público realizado pela URCA para o cargo
de Magistério Superior, regido pelo Edital nº 005/2022, pleiteando a aplicação do
percentual de reserva de vagas em 20% para pessoas negras e 5% para pessoas com
deficiência sobre o total de vagas do concurso, afastando-se o método de
fracionamento das vagas por setores de estudos, com base no entendimento
firmado pelo Supremo Tribunal Federal - STF na Ação Declaratória de
Constitucionalidade - ADC n°. 41.

O entendimento fixado pelo STF no julgamento da ADC 41 explica: “os concursos


não podem fracionar as vagas de acordo com a especialização exigida para burlar
a política de ação afirmativa, que só se aplica em concursos com mais de duas
vagas” (STF, 2017). A Corte não apenas declarou a constitucionalidade da Lei de
Cotas nº 12.990/2014, mas também definiu os parâmetros que devem ser
observados pela Administração Pública em sua aplicação, nos seguintes termos:

(i) os percentuais de reserva de vaga devem valer para todas as fases dos
concursos; (ii) a reserva deve ser aplicada em todas as vagas oferecidas no
concurso público (não apenas no edital de abertura); (iii) os concursos não
podem fracionar as vagas de acordo com a especialização exigida para
burlar a política de ação afirmativa, que só se aplica em concursos com
mais de duas vagas; e (iv) a ordem classificatória obtida a partir da
aplicação dos critérios de alternância e proporcionalidade na nomeação
dos candidatos aprovados deve produzir efeitos durante toda a carreira
funcional do beneficiário da reserva de vagas (STF, 2017).

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
472 Livia Maria Nascimento Silva - Cicera Nunes

Essa jurisprudência é de suma relevância, pois as decisões definitivas de mérito,


proferidas pelo Pretório Excelso em sede de ações declaratórias de
constitucionalidade, produzem eficácia contra todos e efeito vinculante,
estendendo-se aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública
direta e indireta dos três níveis de governo, nos termos do art. 102, § 2º, da
Constituição Federal de 1988.

Ademais, o GRUNEC e SINDURCA sustentaram no processo coletivo que, sendo


as cotas uma política pública que visa a garantir a igualdade material aos grupos
em situação de vulnerabilidade na sociedade brasileira, em decorrência do
contexto histórico colonial de relações assimétricas de poder, significando uma
verdadeira medida reparatória, as restrições a sua eficácia podem configurar
desvio de finalidade da política pública, conforme análise de Lívia Sant’Anna Vaz
em sua obra “Cotas Raciais” (Vaz, 2022).

No curso do processo, foi discutido que não é novidade que os dados estatísticos
demonstram o pequeno número de pessoas negras nos espaços de poder e saber,
como o cargo de docentes de ensino superior e outros de maior prestígio social
(Mello e Resende, 2019). Essa realidade é consequência do racismo estrutural,
delineado pelo jurista Dr. Silvio de Almeida (2018). Visando a combater essa
mazela social, em 12 de maio de 2021, foi ratificada a Convenção Interamericana
contra o Racismo, a Discriminação Racial e formas correlatas de intolerância. O
tratado internacional de Direitos Humanos foi aprovado pelo Congresso Nacional
de acordo com o rito previsto no art. 5º, § 3º da Constituição Federal e promulgado
em janeiro de 2022, portanto, incorporado com status de norma constitucional.

A norma que ingressa no bloco de constitucionalidade brasileiro, prevê e proíbe a


prática de discriminação indireta. Vejamos o que dispõe o art. 5º, II da Convenção
Interamericana de combate ao racismo, a discriminação racial e a outras formas de
intolerância:

Discriminação indireta é aquela que ocorre, em qualquer esfera da vida


pública ou privada, quando um dispositivo, prática ou critério
aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem
particular para pessoas pertencentes a um grupo específico, ou as coloca
em desvantagem, a menos que esse dispositivo, prática ou critério tenha
algum objetivo ou justificativa razoável e legítima, à luz do Direito
Internacional dos Direitos Humanos (Brasil, 2022, n.p.).

Percebe-se que as cláusulas impugnadas neste edital em questão, reproduzidas


pelos editais da UECE e UVA, configuram discriminação indireta, como definido
alhures, e, por isso, precisam ser alteradas. Em junho de 2022, o magistrado deferiu
a tutela liminar, determinando que a URCA retificasse o Edital do concurso, no

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Violação à lei de cotas em concursos públicos para docentes de nível superior: uma análise 473
da atuação do GRUNEC como movimento negro educador das instituições públicas cearenses

prazo de dez dias, conforme os pedidos das partes autoras da ACP, sob pena de
multa diária em caso de descumprimento. Em face da decisão interlocutória, a
URCA apresentou recurso ao Tribunal de Justiça do Ceará, que foi denegado5.

Diante da repercussão a nível estadual desta ação coletiva e do provimento


judicial, o Poder Executivo do estado do Ceará, publicou o Decreto Nº 34.821,
ainda em 27 de junho 2022, visando a regulamentar a aplicação dos percentuais de
vagas reservadas em concursos públicos que contemple diferentes áreas de
especialidade e regiões, nos termos adiante:

Art. 1º. § 9º Nos concursos públicos com distribuição de cargos por


regionalização, especialidade e gênero, sempre que o número de vagas por
especialidade, região ou gênero for inferior a 5 (cinco), a segunda vaga será
reservada a candidatos negros.
§ 10 Na situação do § 9º, o número de vagas reservadas no concurso para
negros não poderá ultrapassar o correspondente à incidência do
percentual previsto no caput, deste artigo, sobre o total de vagas para o
cargo disponibilizadas no concurso, caso em que o edital disporá sobre a
distribuição das vagas reservadas.”
Art. 3º § 4º Nos concursos públicos com distribuição de cargos por
regionalização, especialidade e gênero, sempre que o número de vagas por
especialidade, região ou gênero for inferior a 5 (cinco), a terceira vaga será
reservada a candidatos deficientes.
§ 5º Na situação do § 4º, o número de vagas reservadas no concurso para
deficientes não poderá ultrapassar o correspondente à incidência do
percentual previsto no caput, deste artigo, sobre o total de vagas para o
cargo disponibilizadas no concurso, caso em que o edital disporá sobre a
distribuição das vagas reservadas. (Ceará, 2022, n.p.)

Dessa forma, as três universidades retificaram os respectivos editais para adequar


as normas do referido Decreto, gerando um impacto considerado positivo, por
aumentar, consideravelmente, o número de vagas reservadas para pessoas negras
e com deficiência, conforme demonstrado no quadro abaixo:

5 A ação civil pública atualmente está em fase de cumprimento de sentença e pode ser
acompanhada pelo site do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará
(https://esaj.tjce.jus.br/cpopg/open.do) por meio do número processual 0201613-
44.2022.8.06.0071.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
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Quadro 2
Vagas nos concursos das universidades estaduais do Ceará após o Decreto 34.821/2022

Universidade Total de Vagas para cotas no edital Vagas para cotas, conforme
vagas após Decreto 34.821/22 percentual legislativo
URCA 184 37 CN e 9 CPCD 37 CN e 9 CPCD
UECE 135 21 CN e 6 CPCD 27 CN e 7 CPCD
ADJUNTO
UECE 182 37 CN e 11 CPCD 36 CN e 9 CPCD
ASSISTENTE
UVA 145 6 CN e 5 CPCD 29 CN e 7 CPCD

Autoria própria, 2023

Como se pode ver no quadro acima, mesmo a regulamentação do Decreto,


possibilitando o aumento do número de vagas reservadas, o percentual ainda ficou
inferior ao que deveria ser segundo a legislação. Apenas a URCA atingiu o número
de vagas conforme a lei de cotas estadual. Contudo, as três universidades
permaneceram fracionando o número de vagas total por setores de estudos, já que
o próprio Decreto permitiu essa possiblidade, ao tratar dos casos de regionalização
e divisão por áreas de especialidade, contrariando o entendimento já explanado
pelo STF.

Ademais, o Decreto Nº 34.821/22 também regulamentou uma espécie de teto para


aplicabilidade ao número de reserva de vagas, ao estabelecer que o número de
vagas reservadas no concurso não poderá ultrapassar o correspondente à
incidência do percentual previsto na lei para cada modalidade de cotas, sobre o
total de vagas para o cargo disponibilizadas no concurso, estabelecendo ainda que
o edital disporá sobre a distribuição das vagas reservadas.

Por meio do Decreto do Poder Executivo, ficou legitimada a divisão de vagas por
região e setor de estudos, assim como o limite máximo da aplicabilidade das cotas.
Com esse amparo normativo, a URCA sustentou sua defesa na ACP com
fundamento no referido Decreto, recorrendo-se ao princípio da autonomia
universitária, prevista na Constituição, para ao final requerer o reconhecimento de
perda superveniente do processo.

Em réplica e demais manifestações processuais, como audiências e petições


intermediárias, o GRUNEC e SINDURCA, a partir de estudos especializados,
diálogos interinstitucionais e levantamento de dados, convenceu o juízo de que o
entendimento do STF deve prevalecer no referido caso, já que a legislação não

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Violação à lei de cotas em concursos públicos para docentes de nível superior: uma análise 475
da atuação do GRUNEC como movimento negro educador das instituições públicas cearenses

estabelece teto máximo de eficácia da lei de cotas em certames. Ao contrário, a


partir de interpretação sistemática do ordenamento jurídico pátrio e de direitos
humanos a nível internacional, como Constituição Federal, Estatuto da Igualdade
Racial, Convenção Interamericana contra o Racismo, jurisprudência dos Tribunais
Superiores e precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a lei de
cotas estabelece apenas o mínimo legal de incidência, de forma que as instituições
deveriam apresentar métodos de maximização da sua eficácia. Pensar diferente
seria retrocesso social, pois viola a tese do STF, que já explicou a razão do método
de fracionamento restringir a efetividade da lei de cotas.

A alteração dessas cláusulas editalícias se faz necessária para garantir “a finalidade


precípua do sistema de cotas raciais”, que “é o efetivo preenchimento das vagas
reservadas – e não apenas o seu anúncio em editais –, de modo que o resultado
mínimo pretendido seja garantido” (Vaz, 2022, p. 81). Em verdade, mesmo o
Decreto aumentando, consideravelmente, o quantitativo de vagas, o
fracionamento impossibilitou o preenchimento do próprio quantitativo pré-
estabelecido. Considerando que os concursos da URCA e UVA ainda não
publicaram os seus resultados finais, demonstra-se o aludido a partir do resultado
final homologado em 2023 da UECE:

Quadro 3
Preenchimento de vagas nos concursos da UECE, conforme resultado final

Concursos Total de vagas reservadas no Vagas reservadas preenchidas, conforme


UECE edital republicado resultado final homologado
ADJUNTO 27 CN e 7 CPCD 12 N e 0 PCD
ASSISTENTE 36 CN e 9 CPCD 15 N e 0 PCD

Autoria própria, 2023

Dentre os/as 12 candidatos/as aprovados/as para o cargo de docente adjunto, 11


tiveram a autodeclaração confirmada pelo procedimento de heteroidentificação, e
de 15, para docente assistente, apenas 13. Isso também demonstra o que Vaz (2022)
aborda em sua obra acerca da necessidade de se realizar o procedimento antes das
provas, como forma de prevenção ao uso indevido das vagas reservadas para
avançar nas fases dos certames.

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476 Livia Maria Nascimento Silva - Cicera Nunes

A ACP, atualmente, está em fase de cumprimento de sentença, pois a URCA


retificou o Edital apenas parcialmente, realizando todas as fases do concurso sem
adequar ao comando judicial prévio. A tese sustentada pelo GRUNEC e
SINDURCA pode ensejar a republicação de novo edital para realização de todo o
certame, pois sem o fracionamento de vagas, conforme sentenciado, as/os
candidatas/os negras/os e pessoas com deficiência, podem se inscrever para o setor
de estudo que desejarem, já que não estarão vinculadas a divisão pré-estabelecida
pelo Edital. Além disso, o GRUNEC e SINDURCA mapearam editais de outras
universidades para apresentar como exemplo a ser seguido, explicando sobre o
sistema de sorteio ou concorrência geral, sem departamentalização/fracionamento,
sempre com atenção à razoabilidade e à efetividade das normas em questão:

a) Seleção do Programa Nacional de Formação de Professores da Educação


Básica - PARFOR da própria URCA (2022a), e seu respectivo resultado final
(2022b). Percebe-se que mesmo esse edital prevendo diferentes setores de
estudos com campus de atuação em municípios também diferentes,
situação análoga ao presente caso, a URCA garantiu que não houvesse
prévia limitação com fracionamento, adotando o método de concorrência
geral;

b) Editais das universidades estaduais da Bahia, que após as recomendações


do Ministério Público Estadual adequaram as vagas sem fracionamento,
adotando o método de concorrência geral, já que antes da intervenção
ministerial o fracionamento das vagas não possibilitava a aplicação do
percentual da reserva de vagas (UESB, 2022);

c) Edital da Universidade Federal de Alagoas, que prevê a possibilidade de


sorteio e convocação prioritária, independentemente de ser apenas uma
vaga para aquele setor de estudo e ainda que a classificação do cotista não
lhe garanta a primeira posição na ampla concorrência, desde que tenha
alcançada a nota necessária para aprovação (UFAL, 2023);

d) Definição de indicadores de disparidades para depois definir os setores


que devam ter vagas reservadas no edital do concurso da Universidade
Federal de Minas de Gerais, minimizando as desigualdades entre as
unidades acadêmicas (UFMG, 2022).

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Esses são apenas alguns exemplos para ilustrar as diferentes maneiras de garantir
a maximização dos efeitos da política de cotas, pois, como nos ensina a Vaz (2022),
o percentual legislativo de vagas reservadas, não é teto, mas o mínimo legal. Se a
política de fracionamento adotada restringe a possibilidade de efetivar as cotas
para negros/as e pessoas com deficiência, obviamente deve-se alterar a
metodologia, extinguindo-se o fracionamento como opção.

A tese sustentada visa a garantir a construção de uma universidade democrática,


inclusiva, que preze pela diversidade e pluralidade no seu quadro docente e que
isso reverbere na formação dos/as discentes, no aperfeiçoamento do tripé
pedagógico de ensino, pesquisa e extensão, na grade curricular dos cursos, nos
materiais didáticos, eventos acadêmicos e produção científica em todas as áreas. A
articulação ainda não acabou e, em 2023, o GRUNEC representou ao Ministério
Público Estadual, notícia fato de violação ao entendimento do STF no julgamento
da ADC n° 41, já que as universidades publicaram novos editais para seleção
simplificada de professores/as substitutos/as, com o mesmo método de
fracionamento. Acrescentou, para além da crítica ao fracionamento, que deve ser
recomendada pelo MPE, a inserção da abordagem, inclusive, de modo transversal,
no conteúdo programático e nas questões das provas de todos os cargos,
independentemente da área de conhecimento, dos temas referentes às relações
étnico-raciais, à trajetória histórica da população negra e indígena no Brasil e no
Ceará.

Essa contribuição é decisiva para o processo civilizatório nacional e regional e


políticas de promoção da igualdade racial e de defesa de direitos de pessoas e
comunidades afetadas pelo racismo e pela discriminação racial, com base na
legislação estadual e federal específica; a adoção de futuras providências para a
realização de Censo Étnico-Racial do corpo docente das instituições; a adoção de
futuras providências para a criação de Comitês de Avaliação e Monitoramento das
Políticas de Ações Afirmativas desenvolvidas pela instituição (Pró-Reitorias de
Ações Afirmativas); a previsão editalícia de Comissões de Heteroidentificação,
com integrantes que possuam conhecimentos sobre as relações étnico-raciais e
classificação racial no Brasil; a previsão editalícia de que as Comissões de
Heteroidentificação devem validar ou invalidar as autodeclarações raciais das/os
candidatas/os autodeclaradas/os negras/os com base exclusivamente no critério
fenotípico; a análise, no âmbito das comissões internas das universidades, sobre
possível regulamentação das políticas de inserção da população indígena,
quilombola, transexual e travesti no corpo docente das universidades; a realização
de audiência pública com ampla divulgação para garantia da participação de
especialistas na temática, possibilitando a troca de experiência com outras

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478 Livia Maria Nascimento Silva - Cicera Nunes

universidades com ações afirmativas mais avançadas, sociedade civil, movimentos


sociais, sindicatos, grupos de estudos, corpo discente e docente das universidades,
poder executivo, legislativo e judiciário do Ceará para debater sobre as ações
afirmativas no estado do Ceará, considerando as violações sistemáticas a lei de
cotas no nesse estado.

Deste modo, o GRUNEC vem abrindo caminhos por meio da litigância estratégica,
para promover um verdadeiro processo estrutural de combate as violações à lei de
cotas, atuando como educador jurídico antirracista, ao ressignificar os sentidos das
normas sobre igualdade, combate ao racismo, ações afirmativas e sua
aplicabilidade, a partir da realidade e contexto atual.

Segundo Francisco e Andréa (2022), o processo estrutural tem intrínseca relação


com o controle judicial de políticas públicas em prol da efetivação de direitos
fundamentais. Por esta razão, é complexo e requer atenção intersetorial sobre as
problemáticas envolvidas nos casos apresentados aos órgãos jurisdicionais. Para
que não seja banalizado, os autores explicam que sua interposição requer os
seguintes pressupostos:

1º) constatar estado de coisas ilícito (inconstitucional ouilegal) ou


desconformidade eloquente, de extrema gravidade e indesejada pela
maioria da sociedade exausta com o problema estrutural e com
autoridades executivas e legislativas (mesmo que apoiada por segmentos
dessa mesma sociedade); 2º) selecionar caso estratégico, combinando
elementos da multipolaridade dos envolvidos e da própria estrutura
judiciária, hábeis e preparados culturalmente para a construção de
negociações, com diálogo intra e interinstitucional capaz de definir
soluções viáveis e sistematicamente monitoradas em fases sucessivas
igualmente dialógicas, permitindo reforços, complementações e revisões;
e 3º) fixar objetivo claro e definido, porém flexível, para que seu
processamento não se perca em indeterminadas novas metas e medidas,
de modo que deve ter fases progressivas (do geral para o particular) com
delegação de menores atribuições decisórias e executivas para instâncias
ordinárias (Francisco; Andréa, 2022, p. 4).

França, Möller e Nóbrega (2022) explicam que a origem do processo estrutural está
ligada ao ativismo da Suprema Corte americana durante a “Corte Warren” (1953
a 1969), período em que foi julgado o caso Brown v. Board of Education of Topeka.
Depois de reconhecer a inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas de
Topeka, a Suprema Corte percebeu a dificuldade de implementar de modo amplo
a decisão, em um quadro de grande complexidade. Deflagrou-se, então, o caso
Brown II, no qual a Corte autorizou a elaboração de planos, visando à eliminação
gradual da prática segregacionista, a serem supervisionados pelos tribunais locais.
Depois, o modelo expandiu-se e foi usado pelo Judiciário norte-americano em

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da atuação do GRUNEC como movimento negro educador das instituições públicas cearenses

outros casos, como o Holt v. Sarver, referente a uma onda de judicialização de


denúncias as condições degradantes nos sistemas carcerários estaduais.

O processo estrutural destina-se ao tratamento de litígios complexos, multipolares


e que exigem soluções de cunho prospectivo. Sequer as ações coletivas, previstas
em nosso ordenamento, dão conta de litígios com tais contornos, fazendo-se
necessário o desenvolvimento do processo estrutural, a bem da inafastabilidade
substancial do controle jurisdicional (art. 5º, XXXV, da Constituição).

O GRUNEC, enquanto movimento negro educador, educa também as


universidades, ao relembrar que as primeiras cotas em universidades do Brasil,
foram instituídas nos editais, sem prévia legislação (Vaz, 2022), as quais se
utilizaram do mesmo fundamento constitucional da autonomia universitária para
defender a necessidade da política de cotas nos editais que protagonizaram esta
ação afirmativa no nosso país, merecendo reproche os atos administrativos que
usam o mesmo fundamento para validar seus atos discriminatórios. Também
educa o Poder Executivo ao explicar que os decretos regulamentares limitadores
de uma legislação progressista podem configurar uso ilegítimo do poder
normativo para cercear direitos (Foucault, 2002). Educa, ainda, toda sociedade,
movimentos e entidades a se mobilizarem em prol dos direitos dos grupos em
situação de vulnerabilidade histórica ao incluir em suas pautas outros fatores de
inclusão além do racial.

Considerações finais

Os movimentos negros, antigos na história do Brasil, têm ao longo de suas


trajetórias, tensionado o Estado brasileiro para que promovam políticas públicas
de reconhecimento da participação desses grupos no processo de construção da
sociedade brasileira, ao tempo em que apontam alternativas de enfrentamento ao
racismo em todas as suas dimensões (Domingues, 2007).

É nesse contexto que se insere a defesa das ações afirmativas como uma das
bandeiras mais importantes da luta antirracista ao longo do século XX e início do
século XXI. Temos na Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação
Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Declaração de Durban, 2001), um marco
histórico, quando o Estado brasileiro, diante de uma intensa mobilização das
organizações negras brasileiras, assume o compromisso pela implementação de
ações afirmativas. No Estado do Ceará, o GRUNEC surge nesse contexto das
mobilizações internacionais e nacionais, a partir das trajetórias de luta antirracista
de parte dos/as seus/suas integrantes.

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O artigo traça parte importante da história da luta antirracista na região Sul do


Estado do Ceará, que se fortalece a partir de 2001, com a criação do GRUNEC e nas
suas ações denuncia o racismo, ocupa espaços para controle das políticas públicas
antirracistas, promove ações políticas e formativas que positivam a existência do
povo negro, o que tem impactado no fortalecimento das identidades negras, em
especial de crianças e jovens, ao tempo em que entende a importância da educação
nesse processo.

Com isso, tensiona as universidades no Estado do Ceará quanto à necessidade da


ampliação dessas políticas e os seus efeitos no campo da produção do
conhecimento. São ações que questionam as universidades cearenses quanto à
garantia do acesso, da permanência, do enfrentamento ao epistemicídio, para que
se revejam processos, métodos e se ampliem as políticas públicas de superação das
desigualdades raciais e de promoção de uma educação antirracista.

Por fim, embora reconheçamos os avanços ocorridos nas políticas de ações


afirmativas nos últimos anos nas universidades brasileiras, destacamos que ainda
há entraves, como parte de um contexto de violação à leis de cotas, em especial,
quando consideramos o acesso aos níveis mais altos da carreira acadêmica, como
ocorre com as experiências do primeiro concurso para docência do ensino superior
nas universidades do Estado do Ceará, a partir da aplicabilidade da lei estadual
n.º 17.432/2021, que reserva 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas para
pessoas negras em concursos públicos estaduais do magistério superior.

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da atuação do GRUNEC como movimento negro educador das instituições públicas cearenses

Sobre as autoras
Livia Maria Nascimento Silva
Mestra em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas pela
Universidade Federal da Paraíba. Graduada em Direito e Especialista
em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri.
Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação, Gênero
e Relações Étnico-Raciais – NEGRER/URCA. Advogada. Presidente e
assessora jurídica do Grupo de Valorização Negra do Cariri – GRUNEC.

Contribuição de coautoria: A contribuição se deu em todo o processo


de construção da reflexão: acompanhamento dos encaminhamentos e
discussões relacionadas à problemática central tratada no artigo;
levantamento e organização documental; construção do instrumento
metodológico; discussão e aprofundamento do embasamento teórico
no campo do direito; redação; revisão.

Cicera Nunes
Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará.
Professora adjunta do Departamento de Educação da Universidade
Regional do Cariri – URCA. Coordenadora do Núcleo de Estudos e
Pesquisas em Educação, Gênero e Relações Étnico-Raciais –
NEGRER/URCA.

Contribuição de coautoria: A contribuição se deu em todo o processo


de construção da reflexão: acompanhamento dos encaminhamentos e
discussões relacionadas à problemática central tratada no artigo;
levantamento e organização documental; construção do instrumento
metodológico; redação; revisão.

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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52423

dossiê

Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica


Racial” e a armamentização do
analfabetismo racial: um relatório da
linha de frente
Critical Race Theory, ‘Critical Race Theory’, and the
Weaponization of Racial Illiteracy: A Report from the
Front Line

Teoría Crítica de la Raza, ‘Teoría Crítica de la Raza’ y


la armamentización del analfabetismo racial: un
informe desde la primera línea

Kendall Thomas1
1
Universidade de Columbia, Columbia Law School, Nova Iorque, Nova Iorque,
Estados Unidos da América. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4369-3084.

Inara Flora Cipriano Firmino (tradutora)2


2
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-3745-8985.

Submetido em 30/01/2024
Aceito em 30/01/2024

Como citar este trabalho


THOMAS, Kendall. Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica Racial” e a armamentização do
analfabetismo racial: um relatório da linha de frente. Tradução de Inara Flora Cipriano
Firmino. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 487-
511, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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488 Kendall Thomas

Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica


Racial” e a armamentização do
analfabetismo racial: um relatório da
linha de frente

Resumo
Em palestra proferida em 2020 no seminário Oxford Law and Equality Lecture, a partir de
leituras e escritos interdisciplinares sobre o direito e a política da raça nos Estados Unidos,
o Professor Kendall Thomas apresentou descrição crítica dos ataques que a Teoria Crítica
Racial (Critical Race Theory – CRT) sofreu pela administração de Donald Trump e os
grupos políticos de extrema-direita. A palestra foi transcrita e traduzida por Inara Flora
Cipriano Firmino para o dossiê “Direitos e relações raciais” da InSURgência.
Palavras-chave
Teoria crítica da raça. Analfabetismo racial. Donald Trump.

Resumen
En una conferencia impartida en 2020 en el seminario Oxford Law and Equality Lecture,
basada en lecturas y escritos interdisciplinarios sobre el derecho y la política racial en los
Estados Unidos, el profesor Kendall Thomas presentó una descripción crítica de los
ataques que la Teoría Crítica de la Raza sufrió la administración de Donald Trump y los
grupos políticos de extrema derecha. La conferencia fue transcrita y traducida por Inara
Flora Cipriano Firmino para el dossier de InSURgência “Derechos y relaciones raciales”.
Palabras-clave
Teoría Crítica de la Raza. Analfabetismo racial. Donald Trump.

Abstract
In a lecture given in 2020 at the Oxford Law and Equality Lecture seminar, based on
interdisciplinary readings and writings on the law and politics of race in the United States,
Professor Kendall Thomas presented a critical description of the attacks that Critical Race
Theory suffered from the administration of Donald Trump and far-right political groups.
The lecture was transcribed and translated by Inara Flora Cipriano Firmino for the
InSURgência dossier “Rights and racial relations”.
Keywords
Critical Race Theory. Racial Illiteracy. Donald Trump.

Nota da tradutora

A razão pela qual escolhemos dialogar com o professor Kendall Thomas e seus
escritos recentes sobre a Critical Race Theory (CRT)1 advém do cenário atual, no qual

1 A Teoria Crítica Racial é produto de uma reflexão teórica de acadêmicos do direito


estadunidenses, a partir do contexto histórico-social. A teorização emerge sobre a forma como o
direito e os parâmetros normativos do país modularam, e ainda modulam, a forma de vida dos
afro-americanos. Nesse sentido, a teoria se propõe a questionar a maneira como raça, racismo e
poder racial constituem a cultura jurídica estadunidense e suas instituições. A CRT interroga a

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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 489
um relatório da linha de frente

diferentes organizações sociais e acadêmicas do Movimento Negro e de Mulheres


Negras mobilizam o Supremo Tribunal Federal pelo reconhecimento do estado de
violação sistemática dos direitos fundamentais da população negra do país, na
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 973 (ADPF 973 – das vidas
negras).

O contexto histórico-social brasileiro é marcado por uma política institucional de


omissão, no âmbito do direito, em que se permanece constante para a população
negra, desde a Constituição de 1824, a negação e a violação de direito à vida, a
alimentação, à saúde, à moradia, educação, saneamento básico, ao lazer e a
segurança pública. É nesse sentido que a ação pede que o STF reconheça o “estado
de coisas inconstitucional”, o que significa pedir que a nossa Suprema Corte
reconheça que o Estado brasileiro pratica há anos uma violação contínua e massiva
de direitos humanos e, a partir disso, monitore as práticas e as políticas públicas
para a população negra.

A exigência de que as políticas públicas e a tomada de decisão do Estado sejam


pautadas por marcadores do racismo, sexismo e outros que afetam a realidade
social, é fruto de uma reflexão das relações raciais no Brasil que procura integrar
as ações político-militante e teórica, aparecendo, assim, como produto de análises,
lutas, conquistas e superação constante de problemas que ainda permanecem
(Carneiro, 2005). Estamos, portanto, falando de uma integração que mobiliza o
direito e suas instituições para a promoção de justiça social e para que racismo não
seja um discurso constante exilado na zona de esquecimento da harmonia racial e
da neutralidade.

Por tal razão, o diálogo acadêmico intercultural com a palestra proferida pelo
professor Thomas torna-se interessante por conectar teoria racial, política e o
direito, a partir de análises do sistema jurídico constitucional. A Teoria Crítica
Racial, como argumenta o professor, pode ser usada para destacar a consciência
de raça/cor e as escolhas politizadas inerentes à jurisprudência supostamente
neutra e cega à cor da pele. Aqui no Brasil, crença no discurso metarracial,
compreendido pela miscigenação da identidade nacional e a ausência de
desigualdades sociais entre brancos e negros no Brasil, mascara o silêncio e as

forma como a supremacia branca e o racismo institucional estão difundidos nas estruturas sociais
e, particularmente, no direito. Através de um exame das formas como as instituições jurídicas
perpetuam a marginalização das comunidades negras e das formas racializadas legitimadas de
violência, a CRT fornece uma lente analítica específica para identificar e começar a desmantelar
o racismo sistémico apoiado pela lei.

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490 Kendall Thomas

injustiças do judiciário e o estado de coisas contra os quais os Movimentos Negros


têm se posicionado com a Arguição pelas vidas negras.

Em um país com desigualdades raciais tão gritantes e tão profundas como o Brasil,
onde muitas pessoas simplesmente não têm acesso a cuidados de saúde,
alimentação adequada, acesso à justiça e principalmente à educação, os
movimentos sociais têm mobilizado o judiciário em diferentes ações
impulsionando, de forma pedagógica, uma leitura a contrapelo do ordenamento
jurídico nacional. Estamos falando de uma política pedagógica de alfabetização
das relações raciais no país pela presença e pela oralidade da pluralidade dos
grupos sociais que o constitui. Avaliar o direito brasileiro em termos de
incorporação de discursos de proteção igualitária em pretuguês (Pires, 2017), dado
que o direito tem a capacidade de produzir poder racial da branquitude, nos
interessa diante de uma proposta de abordagem que seja ao mesmo tempo
afrocentrada, como a CRT ou Direito e Relações Raciais, e baseada na conjuntura
histórica e contemporânea da sociedade brasileira.

Nesse sentido, sem a pretensão de que a Teoria Crítica Racial tenha uma aplicação
direta no contexto brasileiro, a ideia da conversa intercultural é de ampliar nossas
perspectivas sobre os limites do trabalho acadêmico e das teorias sobre racismo
desenvolvidas em contextos nacionais específicos, também considerando as
questões raciais intersectadas a outros marcadores.

Com isso em mente, sigamos com a análise do professor Thomas sobre o cenário
contemporâneo da Teoria Crítica Racial, nos Estados Unidos. A partir de leituras
e escritos interdisciplinares sobre o direito e a política da raça nos Estados Unidos,
em 2020, por ocasião do seminário Equality and Diversity Lecture na Faculdade de
Direito de Oxford, o autor ministrou palestra com uma descrição crítica dos
ataques que a CRT sofreu pela administração de Donald Trump e os grupos
políticos de extrema-direita. A palestra foi intitulada Teoria Crítica Racial, “Teoria
Crítica Racial” e a armamentização do analfabetismo racial: um relatório da linha de frente
(Thomas, 2020), aqui apresentada, com anuência do autor, pela primeira vez
traduzida ao português brasileiro.

Inara Flora Cipriano Firmino

***

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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 491
um relatório da linha de frente

Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica


Racial” e a armamentização do
analfabetismo racial: um relatório da
linha de frente
Nos últimos meses de seu mandato, o presidente Donald Trump e seus aliados na
imprensa conservadora e de extrema-direita, tanto na televisão quanto nas redes
sociais, travaram uma campanha implacável e multifacetada contra a ascensão de
um movimento nacional renovado e energizado por justiça racial, que surgiu nos
EUA ao longo do ano2. Esse movimento político multicultural, multirracial e
intergeracional se uniu em torno do grito do Black Lives Matter, exigindo o fim da
vigilância policial, das prisões, dos espancamentos, de tiroteios contra afro-
americanos e outras pessoas negras. O movimento tem buscado abolir o poder de
polícia, o Estado que normaliza o desemprego de pretos e pardos3, a precariedade
econômica, a insegurança alimentar e habitacional, a falta de assistência médica, a
criminalização, a canalização de pessoas negras da escola para à prisão, o
encarceramento em massa e a violência em cascata, particularmente nas
comunidades pobres e da classe trabalhadora.

Uma marca deste movimento moderno por justiça racial é o lugar de destaque que
dá ao problema do racismo institucional, que é a face da injustiça racial no século
XXI. O racismo institucional escapa à ótica da ordem jurídica e política liberal que
tornou possível a chamada “revolução dos direitos civis”. O liberalismo vê a raça
e o racismo através de uma lente moral e não política. Na visão liberal do mundo,
a injúria racial é uma negação discreta, proposital e intencional de direitos legais
formais aos indivíduos, não uma subordinação estrutural arraigada de um grupo
social.

De fato, há algo como uma conexão constitutiva entre o individualismo liberal


americano e a ideia de neutralidade/cegueira racial (color blindness). Eu chamo a
noção de neutralidade de um ideal e não de realidade, porque, durante a maior
parte de sua história, o liberalismo americano tomou a neutralidade como mais

2 [N.T.] O Presidente Donald Trump emitiu uma Ordem Executiva, em setembro de 2020,
procurando excluir a formação/educação em diversidade e inclusão dos contratos federais, caso
essas formações contivessem os chamados “conceitos divisionistas”, teoria “da divisão” e
"antiamericana"., como estereótipos e bodes expiatórios com base na raça e no sexo. Na sequência
da Ordem Executiva, os ataques à Teoria Crítica Racial dispararam. No entanto, muitas dessas
discussões descaracterizaram a CRT, como o professor Thomas explica em sua palestra.
3 [N.T.] No texto original, Kendall Thomas fala black and brown, que no texto foi traduzido como
pretos e pardos, nomenclatura que não é utilizada nos Estados Unidos.

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492 Kendall Thomas

uma aspiração ética do que um programa político real ou um princípio jurídico


vinculativo. De fato, em uma das contribuições fundamentais para o leitor crítico
da Teoria Racial, meu amigo e colaborador o jurista Neil Gotanda4, mostrou que,
estritamente falando, a neutralidade/cegueira da cor é impossível, uma vez que
primeiro é preciso notar raça para não a ver. Assim, o conceito de racismo
institucional forneceu uma perspectiva crítica e uma linguagem que tornam
visíveis as realidades racializadas de discriminação estrutural, a desvantagem e o
subdesenvolvimento arraigado que restringem a vida de americanos negros e
pardos, especialmente os pobres pretos e pardos.

Esta noite, quero falar sobre uma segunda dimensão, igualmente significativa,
deste movimento moderno de justiça americano: a prioridade que ele concede ao
desenvolvimento de uma política de alfabetização racial crítica. A alfabetização
racial crítica é, acima de tudo, um projeto histórico que busca moldar uma
linguagem comum que possa conectar lutas presentes e passadas. Uma das
características mais marcantes do ativismo antirracista defendido pelo movimento
por vidas negras de resistência crítica, entre outros, é a escavação da história da
escravidão e o renascimento do conceito de abolicionismo. Os ativistas do
movimento pelo fim do encarceramento em massa, que primeiro se voltaram para
o estudo da filosofia e da política abolicionistas, o fizeram como forma de destacar
as raízes históricas do moderno complexo industrial prisional na instituição da
escravidão.

Desde então, o abolicionismo tornou-se uma bandeira sob a qual uma ampla gama
de movimentos de justiça social tem trabalhado, e aqui estou citando Dorothy
Roberts5, “desmantelar uma ampla gama de sistemas, instituições e práticas além
da punição criminal”. O engajamento com questões da escravidão e da memória
produziu novos modos de análise, argumentação e ativismo, que ampliaram o
vocabulário e transformaram a agenda dos movimentos antirracistas
contemporâneos. O que espero mostrar esta noite, é que não é a Teoria Crítica
Racial (CRT), mas o projeto de alfabetização crítica dos movimentos de justiça
racial que é o verdadeiro alvo dos ataques de Donald Trump.

Meu argumento, em resumo, é que o que interessa à Trump não é a Teoria Crítica
Racial em si mesma, mas sim a produção e distribuição de uma fantasia cultural
que ele pode chamar de Teoria Crítica Racial e que, por sua vez, lhe permitirá se

4 [N.T.] Ver Crenshaw, Gotanda e Thomas (1996).


5 [N.T.] Dorothy E. Roberts é uma socióloga americana, professora de direito e defensora da justiça
social. A obra a que o professor Kendall Thomas faz referência é o prefácio ao v. 133, n., da Harvard
Law Review, intititulado Abolition Constitutionalism (Roberts, 2019).

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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 493
um relatório da linha de frente

envolver e armar uma política de analfabetismo racial. Meu projeto, ou a parte


dele, que gostaria de apresentar nesta palestra consiste em duas partes: (i) oferecer
uma leitura sintética de vários textos presidenciais, entre eles documentos do
Poder Executivo estadunidense estão as chamadas Ordens Executivas; (ii) fazer a
leitura de uma entrevista concedida na televisão, de alguns tuítes e, talvez se o
tempo permitir, de um trecho de um comício de campanha presidencial.

Ora, embora cada um destes diferentes tipos de textos - chamemos, por enquanto,
apenas de textos - apresente certas formas de pensar e de falar sobre raça por parte
do Poder Executivo do Governo Federal, nenhum deles, realmente, usa a noção de
Teoria Crítica Racial. Permitam-me que volte a dizê-lo. Nenhum deles, na verdade,
usa o termo Teoria Crítica Racial. Há uma razão para isso: a estranha escolha de
textos que não mencionam nem uma palavra sobre a CRT é inspirada em Michel
Foucault que, escrevendo há muitos anos, propôs uma abordagem para o estudo
das relações de poder que buscaria, ao citá-lo, descobrir o que nossa sociedade
entende por legalidade, investigando a maneira como ela define e demarca o
domínio da ilegalidade.

Proponho, assim, em primeiro lugar, focar a leitura na série de escritos e discursos


que não empregam explicitamente a noção ou o termo Teoria Crítica Racial. Meu
objetivo com isso é descobrir como e por que a Teoria Crítica Racial figura em
contextos em que o presidente está falando ou pretende estar falando sobre outra
coisa. Minha segunda tarefa é especificar o que considero o ponto central e mais
importante de convergência entre a Teoria Crítica Racial - que, como eu disse, não
deve ser confundida com o armamento tórrido e tático de Trump de algo que ele
chama de Teoria Crítica Racial - e os movimentos contemporâneos por justiça
racial, que representam uma continuação de uma longa luta afro-americana para
resistir à imposição legal e política do que chamo de analfabetismo racial
compulsório.

Essa história, que é exclusivamente americana, começa com os Estatutos Estaduais


do século XIX, que proibiam a educação de pessoas negras escravizadas, mas
continua até hoje nas campanhas majoritariamente pretas e pardas por equidade
educacional e reconhecimento de um direito constitucional à alfabetização.

Em 22 de setembro de 2020, o site da whitehouse.gov carregou o texto da Ordem


Executiva 13.9506, o qual o presidente Donald J. Trump havia assinado mais cedo
naquele dia. Por uma questão legal, essa Ordem Executiva sobre o combate aos

6 [N.T.] Texto original da Ordem Executiva 13.950 pode ser consultada no site do Governo Federal
dos Estados Unidos. Ver Combating... (2020).

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494 Kendall Thomas

estereótipos de raça e sexo foi um exercício de autoridade decorrente do artigo 2º


da Constituição dos EUA, cuja primeira seção desse artigo afirma que “o poder
executivo será investido em um presidente dos Estados Unidos”, e a terceira seção
afirma que “o presidente dos Estados Unidos é obrigado a cuidar para que as leis
sejam fielmente executadas”. Como a metáfora Marshall de seu título sugere, a
Ordem Executiva 13.950 foi estilizada como uma declaração de direito
administrativo justo. O ato proclama que “Será política dos Estados Unidos não
promover estereótipos de raça ou sexo ou bodes expiatórios na força de trabalho
Federal ou nos serviços uniformes e não permitir que fundos de subvenção sejam
usados para esses fins, além disso, os contratados federais não poderão inculcar
tais pontos de vista em seus funcionários”.

O alvo central de preocupação do Governo Trump gira em torno de algo que o


documento chama de “conceitos divisionistas”, cujos contornos amplos são
descritos na seção de definição da Ordem Executiva: Para fins desta ordem, a
expressão conceitos “divisionistas” significa conceitos que induzam/indiquem
que:

1. uma raça ou sexo é inerentemente superior a outra raça ou sexo;


2. os Estados Unidos são fundamentalmente racistas ou sexistas;
3. um indivíduo, em virtude de sua raça ou sexo, é inerentemente racista,
sexista ou opressor, conscientemente ou não;
4. um indivíduo seja discriminado ou receba tratamento adverso, única ou
parcialmente, devido à sua raça ou sexo;
5. membros de um sexo ou de uma raça não podem e não devem tentar tratar
os outros sem respeito à raça ou sexo;
6. o caráter moral de um indivíduo é necessariamente determinado por sua
raça ou sexo;
7. um indivíduo, em virtude de sua raça ou sexo, é responsável por ações
cometidas no passado por outros membros da mesma raça ou sexo;
8. qualquer indivíduo deva sentir desconforto, culpa, angústia ou qualquer
outra forma de sofrimento psicológico em razão de sua raça ou sexo;
9. a meritocracia ou traços como uma ética de trabalho árduo sejam
consideradas racistas ou sexistas ou sejam criados por uma raça específica
para oprimir outra raça.

O termo conceitos de divisão também inclui qualquer outra forma de estereótipo


de raça ou sexo, ou qualquer outra forma de raça ou sexo como bode expiatório. O
tempo não me permitirá desempacotar essa caricatura burocrática sem sangue e
nem o que a Ordem Executiva em outro trecho descreveu desdenhosamente como
“ideias que podem estar na moda na academia”. Eu que importa é que o

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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 495
um relatório da linha de frente

documento se recusa a usar o termo Teoria Crítica Racial em qualquer lugar de sua
lista de conceitos oficialmente “divisionistas”.

Devo dizer, ainda, que esse descuido parece ter sido deliberado, uma vez que a
expressão Teoria Crítica Racial junto com o termo “privilégio branco” já havia
aparecido em uma carta de 4 de setembro do chefe do escritório de gestão e
orçamento. Uma possibilidade óbvia que foi levantada contra outras Ordens
Executivas de Trump é que a falha em mencionar a Teoria Crítica Racial pelo
nome, simplesmente reflete uma má redação legal. Mas, novamente, dado o
barulho que estava acontecendo dentro do Governo na Fox News e nas páginas de
quase todos os jornais de registro nos Estados Unidos, é difícil acreditar na
incompetência como uma explicação completa para a ausência do termo Teoria
Crítica Racial em uma ordem administrativa que teria sido uma resposta direta à
Teoria Crítica Racial.

Agora, para o início de uma resposta à pergunta de por que a Teoria Crítica Racial
não aparece em nenhum lugar do texto, vamos à seção 01 da Ordem, que contém
a declaração preparatória do Governo sobre o propósito da ordem, revelando as
verdadeiras apostas por trás da agenda política do Governo Trump. A primeira
coisa a notar sobre a seção de abertura da Ordem Executiva é que se trata de um
registro retórico radicalmente diferente, que eu só posso realmente transmitir
lendo longamente o texto, então, espero que vocês me compreendam.

Propósito. Do campo de batalha de Gettysburg ao boicote aos ônibus em


Montgomery e das marchas de Selma a Montgomery os americanos
heroicos arriscaram corajosamente suas vidas para garantir que seus filhos
crescessem em uma nação vivendo seu credo expresso na declaração de
independência, consideramos essas verdades evidentes de que todos os
homens são criados iguais. Foi essa crença na igualdade inerente a cada
indivíduo que inspirou a geração fundadora a arriscar suas vidas, suas
fortunas e sua honra sagrada para estabelecer uma nova nação única entre
os países do mundo. O presidente Abraham Lincoln entendeu que essa
crença é o cabo elétrico que liga os corações de pessoas patrióticas e
amantes da liberdade, não importa sua raça ou país de origem. É a crença
que inspirou os heroicos soldados negros do 54º Regimento de Infantaria
de Massachusetts a defender essa mesma união a grande custo na guerra
civil e foi o que inspirou o Dr. Martin Luther King Jr. a sonhar que seus
filhos um dia e ouvi-lo citar as famosas palavras não ser julgado pela cor
de sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter.7

7 [N.T.] Texto original: “Purpose. From the battlefield of Gettysburg to the bus boycott in
Montgomery and the Selma-to-Montgomery marches, heroic Americans have valiantly risked
their lives to ensure that their children would grow up in a Nation living out its creed, expressed
in the Declaration of Independence: “We hold these truths to be self-evident, that all men are

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496 Kendall Thomas

Em seus termos de tenor, essa linguagem tem pouca semelhança com a prosa
estatal que se costuma encontrar em documentos deste tipo. Baseando-se nas
convenções literárias da versão liberal moderna do sermão político, as disposições
preliminares da Ordem Executiva 13.590 encenam uma lição cívica presidencial
atingindo todos os nacionalistas de direita que combatem o hino da república. Nos
parágrafos que se seguem, porém, o tom transpõe-se abruptamente para uma
chave decididamente mais feia e iliberal. O documento continua:

Hoje, no entanto, muitas pessoas estão impulsionando uma visão diferente


da América que está fundamentada em hierarquias baseadas em
identidades coletivas, sociais e políticas, em vez de na dignidade inerente
e igual de cada pessoa como indivíduo. Essa ideologia está enraizada na
crença perniciosa e falsa de que a América é um país irremediavelmente
racista e sexista, que algumas pessoas simplesmente por causa de sua raça
são opressoras e suas identidades raciais e sexuais são mais importantes
do que nosso status comum como seres humanos e americanos. Os
presságios da Ordem Executiva mostram porque esse vírus ideológico
maligno e destrutivo ameaça infectar as instituições centrais de nosso país.8

No entanto, como lemos no texto, a proibição administrativa de discutir ou


promover o que o texto chama de “visões racializadas da América” dentro do
Poder Executivo, acaba tendo pouco a ver com os perigos que essas visões
representam para nossas instituições ou mesmo para nossos valores, crenças ou
ideias. Em vez disso, o perigo percebido tem relação com o fato de que a concepção
racializada de raça levanta questões, ou ousa a levantar questões, e não há lugar
para questões raciais nos recintos sagrados do Departamento de Segurança Interna
ou da Administração de Seguridade Social. O Pluribus9 simplesmente não pode ser

created equal.” It was this belief in the inherent equality of every individual that inspired the
Founding generation to risk their lives, their fortunes, and their sacred honor to establish a new
Nation, unique among the countries of the world. President Abraham Lincoln understood that
this belief is “the electric cord” that “links the hearts of patriotic and liberty-loving” people, no
matter their race or country of origin. It is the belief that inspired the heroic black soldiers of the
54th Massachusetts Infantry Regiment to defend that same Union at great cost in the Civil War.
And it is what inspired Dr. Martin Luther King, Jr., to dream that his children would one day
“not be judged by the color of their skin but by the content of their character.” (Combating...,
2020).
8 [N.T.] Texto original: “Today, however, many people are pushing a different vision of America
that is grounded in hierarchies based on collective social and political identities rather than in the
inherent and equal dignity of every person as an individual. This ideology is rooted in the
pernicious and false belief that America is an irredeemably racist and sexist country; that some
people, simply on account of their race or sex, are oppressors; and that racial and sexual identities
are more important than our common status as human beings and Americans.” (Combating…,
2020).
9 [N.T.] E Pluribus Unum é o lema nacional dos Estados Unidos. Traduzido do latim, significa “de
muitos, um”. Refere-se à integração das treze colônias independentes em um país unido e ganhou
um outro significado, da natureza pluralística da sociedade norte-americana devido à imigração.

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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 497
um relatório da linha de frente

completado com o Unum com a história de identidade oficial de um povo


americano unido na busca daltônica/cega de uma identidade comum.

Agora, a Casa Branca realmente chega perigosamente perto de insinuar que pode
não haver cegueira racial, o que, ironicamente, a alinharia com o argumento a que
me referi anteriormente sobre a impossibilidade de uma neutralidade. O problema
político a que a Ordem Executiva responde não são os conceitos “divisionistas”
referidos nas suas disposições operacionais. O problema, ao contrário, ao qual a
seção de propósito preparatório se dirige é o problema político da disputa entre
muitas pessoas e o Governo Federal sobre o que proponho chamar de “domínio
narrativo” sobre a história estadunidense.

Em outra parte desta seção, a Ordem Executiva condena o que chama de


“deturpações da história de nosso país e seu papel no mundo” por americanos que
insistem na relevância contemporânea da raça e do racismo na América. As razões
pelas quais chegarei mais adiante, que acho fascinante o uso do termo
“deturpações” no tempo. O documento passa, então, a fazer uma acusação notável
contra aqueles que impulsionam esta visão racializada da América de hoje. Eles
estão “ressuscitando” e “reempacotando”, esses são os termos dos documentos,
“os mortos, noções desacreditadas dos apologistas da escravidão do século XIX,
que sustentavam que nosso governo foi feito na base branca por homens brancos
para o benefício de homens brancos”. O documento cita aqui Stephen A. Douglas,
que era o arqui-inimigo de Abraham Lincoln10.

Os estudiosos de raça de hoje, em outras palavras, podem afirmar que suas ideias
sobre raça, racismo e hierarquia racial são novas e revolucionárias, mas não são
nenhuma das duas. Muito poderia ser dito sobre esta estranha passagem, a
começar pela linha forçada de sucessão intelectual e ideológica que ela traça entre
os americanos do século XXI, que argumentam que raça e racismo ainda importam
neste país, e as gerações de escravocratas brancos e seus apologistas que
compraram, venderam e defenderam a compra e venda de negros como escravos.
No entanto, resistirei a esta tentação e me limitarei a três pontos rápidos: 1) note-
se que esta é a primeira e única referência do texto à escravidão; 2) a principal

10 [N.T.] Texto original: “This destructive ideology is grounded in misrepresentations of our


country's history and its role in the world. Although presented as new and revolutionary, they
resurrect the discredited notions of the nineteenth century's apologists for slavery who, like
President Lincoln's rival Stephen A. Douglas, maintained that our government “was made on the
white basis” “by white men, for the benefit of white men.” Our Founding documents rejected
these racialized views of America, which were soundly defeated on the blood-stained battlefields
of the Civil War. Yet they are now being repackaged and sold as cutting-edge insights. They are
designed to divide us and to prevent us from uniting as one people in pursuit of one common
destiny for our great country”. (Combating..., 2020).

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498 Kendall Thomas

preocupação do presidente parece ser a visão de mundo dos defensores brancos


da escravidão e não o mundo de suas vítimas negras; 3) considere-se, também, que
o mais próximo que o presidente chega de realmente argumentar sobre a
escravidão, em si, é em uma declaração que a consigna firmemente e a confina ao
passado. Nossos documentos fundadores rejeitaram essas visões racializadas da
América, que foram derrotadas nos campos de batalha manchados de sangue da
guerra civil. A história da escravatura infantil na América, então, não tem
nenhuma conexão significativa ou reivindicação sobre o presente-histórico da
América e devemos, simplesmente, parar de falar sobre isso, ou melhor, quando
falamos sobre isso, só devemos fazê-lo em certos lugares e de certas maneiras.

As 193 Ordens Executivas que Donald Trump emitiu até agora excedem o número
das emitidas por seus antecessores. Escrevendo no Jornal Washington Post da
semana passada, a repórter da Casa Branca Ann Guerin argumentou que “as
ordens agressivas, altamente politizadas e, às vezes, desleixadas do presidente se
destacam tanto no estilo quanto na substância”. Guerin também observa a
frequência com que Trump tem usado Ordens Executivas “para atrair sua base
política majoritariamente branca, alimentando a divisão racial e cultural”. Guerin
cita um especialista em política externa conservador e aliado de Trump, que
admite que “é uma espécie de coisa de relações públicas, o poder da presidência é
exatamente o mesmo”.

O mais pertinente ao nosso propósito, no entanto, é uma observação de John


Wooley, um estudioso de Ordens Executivas que argumenta que esse modo de
poder presidencial não está "realmente tentando alcançar consequências, é
simbolismo e acho que muito do ordenamento de Trump tem esse tipo de
qualidade simbólica”11. Compartilho da opinião de Wooley sobre o simbolismo e
a qualidade simbólica das Ordens Executivas que Trump emitiu, mas, ao contrário
do que defendo, as Ordens Executivas de Trump são performativas no sentido
forte, ou seja, são muito destinadas a alcançar consequências. Na verdade, eu diria
que a implantação de Ordens Executivas por Trump e seu exercício de poder
executivo simbólico é uma chave crítica para o significado de sua presidência.

Para explicar o porquê isso acontece, devo recorrer ao trabalho do grande


sociólogo e teórico cultural britânico Stuart Hall12, cujos escritos sobre cultura,

11 [N.T.] Ver Gearan (2020).


12 [N.T.] Stuart Hall foi um teórico cultural e sociólogo britânico-jamaicano que viveu e atuou no
Reino Unido, a partir de 1951. Nasceu na Jamaica em uma família negra de classe média. Foi um
dos fundadores da escola de pensamento, que hoje é conhecida como os Estudos Culturais
Britânicos.

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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 499
um relatório da linha de frente

poder e ideologia tiveram um profundo impacto em meu próprio pensamento


sobre o direito e as instituições jurídicas. Quero me concentrar em uma das ideias
mais generativas de Hall e sugerir como ela pode ser usada na construção de uma
Teoria Crítica Racial da presidência simbólica de Donald Trump. Em um curto,
mas importante ensaio, de 1987, intitulado Blue election, election blues13, Hall tenta
entender a eleição britânica que enviou Margaret Thatcher ao número 10 de
Downing Street em Londres14, para um terceiro mandato. Ele começa o ensaio
perguntando se a vitória de Thatcher deve ser interpretada como uma indicação
de que “cada vez mais o eleitorado britânico está pensando politicamente, não em
termos de políticas, mas de imagens”. Não é, prossegue, “que as políticas não
importam, mas que as políticas não capturam a imaginação das pessoas a menos
que sejam construídas numa imagem com a qual as pessoas se possam
identificar”15.

Hall continua explicando o porquê a análise das interseções de imagem e ideologia


é tão importante para mapear a interação e a influência mútua das ideias políticas
na ação política. A política eleitoral, escreve ele, na verdade todo tipo de política
depende de identidades e identificações políticas. As pessoas fazem a identificação
simbolicamente através do imaginário social em seu imaginário político. Eles citam
sem citar se veem como um tipo de pessoa ou outra. Eles imaginam seu futuro
dentro desse ou daquele cenário. Eles não pensam apenas em votar em termos de
quanto têm ou não têm, em termos de seus chamados interesses materiais. O ponto
de Hall não é que os interesses materiais não importam, mas sim que esses
interesses são ideologicamente definidos e refratados do imaginário através de
práticas de representação, através do trabalho ativo de fazer as coisas significarem.

Assim, ao invés de ver o direito administrativo e a política como exclusivamente


preocupados com as regras formais e os procedimentos instrumentais que
resolvem disputas e regulam a vida social, a teoria imaginável da política de Hall
nos convida a considerar o direito e a política, na verdade, o próprio Estado, como
um campo discursivo. Nessa perspectiva, o direito e a política são um recurso de
representação e um reino no qual, como disse Jacqueline Rose, a maneira como as

13 [N.T.] Ver Hall (2017a).


14 [N.T.] O endereço referido corresponde à residência oficial e escritório do Primeiro-Ministro
eleito do Reino Unido.
15 [N.T.] Texto original: “One way of interpreting this trend is that, increasingly, the electorate is
thinking politically not in terms of policies but of images. This doesn't mean that policies don't
matter. It does mean that policies don't capture people's political imaginations unless constructed
into an image with which they can identify. Far from this being a sign of voter irrationality, there
are a number of quite 'rational' reasons why there should be a trend in this direction in the
advanced 'class democracies' like Britain and the US” (Hall, 2017a).

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500 Kendall Thomas

pessoas se imaginam e suas conexões umas com as outras ocupa um lugar crucial.
A presidência simbólica de Donald Trump reconfigurou radicalmente a linha entre
política e administração, por um lado, e política e imaginação, por outro.

Durante seu mandato no Salão Oval, aliás, a corrida presidencial tem sido um
elemento-chave na projeção imaginária de Trump do poder presidencial. Isso não
é surpreendente quando se considera que Trump pavimentou seu caminho para a
Casa Branca ao alimentar suspeitas de que o primeiro presidente negro dos
Estados Unidos não estava de fato constitucionalmente qualificado para ocupar o
cargo. Nesse sentido, na leitura que estou propondo, a Ordem Executiva sobre o
combate aos estereótipos de raça e sexo se torna um palco textual para um jogo
presidencial simbólico de imaginação política. É, também, um local para uma
atuação específica, uma vez que seu status como exercício do poder executivo
administrativo lembra a linguagem da cláusula de cuidado do artigo 2º da
Constituição, permitindo que Trump fale à nação através, e como a voz, do Estado.

No entanto, uma vez que a implantação tática de Trump de imagens e


representações raciais tendeu a encontrar sua expressão mais desenfreada e
indisciplinada, embora simbolicamente consequente, além das fronteiras
institucionais do Estado, proponho voltarmos brevemente para outro domínio
imaginário que nos permitirá empreender uma leitura intertextual da Ordem
Executiva. Estou pensando na complexidade digital das redes sociais e da televisão
corporativa, que tem sido o principal playground para o gozo de Donald Trump na
sua presidência simbólica. Em 4 de julho deste ano (2020), Trump organizou um
comício em massa no Dia da Independência em Keystone, Dakota do Sul, tendo
como pano de fundo as esculturas de quatro presidentes americanos: George
Washington, Thomas Jefferson, Abraham Lincoln e Theodore Roosevelt. Trump
iniciou sua oração com uma homenagem às vidas excepcionais e os legados
extraordinários de seus antecessores. Mas, as palavras rapidamente se
transformaram em um ataque aos milhões de americanos de todas as idades, raças,
etnias, sexo, gênero, sexualidade e religião, que saíram às ruas dos Estados Unidos
naquele verão em protestos pacíficos contra as várias mortes de afro-americanos
pela polícia.

Trump pintou um quadro, do que chamou de multidões enfurecidas que estavam


“tentando derrubar estátuas de nossos fundadores para enfrentar nossos
memoriais mais sagrados e desencadear uma onda de crimes violentos em nossas
cidades”. Ele fulminou contra um novo fascismo de extrema-esquerda que
censuraria, baniria a lista negra, perseguiria e puniria qualquer um que se
recusasse a falar sua língua, realizar seus rituais, recitar seus mantras e seguir seus
mandamentos. O Sr. Trump levantou o espectro de uma revolução cultural de

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um relatório da linha de frente

esquerda cujo objetivo seria derrubar a revolução americana e derrubar todas as


estátuas símbolos e memórias de nosso patrimônio nacional. O presidente disse a
seus ouvintes que, contra todas as leis da sociedade e da natureza, as crianças
americanas estavam sendo ensinadas nas escolas a odiarem seu próprio país.

Em uma prévia a conferência presidencial que continuaria até o outono, Trump


declarou, finalmente, que toda visão radical da história americana é uma teia de
mentiras. Toda a perspectiva seria removida, toda virtude obscurecida, todo
motivo distorcido, cada fato seria distorcido e toda falha seria ampliada, até que a
história fosse expurgada e o registro desfigurado além de todo reconhecimento.
Nosso povo, declarou Trump, tem uma grande memória. Em nenhum lugar de seu
discurso, o Sr. Trump notou o fato de que dois dos presidentes americanos, cujas
imagens foram esculpidas no granito das colinas negras atrás dele, terem sido
proprietários de outros seres humanos.

Observe o registro retórico muito diferente do discurso de Trump, em Rushmore.


A prosa é mais quente e trabalhada para elevar a temperatura emocional de seu
público. O movimento que ele usa no discurso de 4 de julho pode incluir pessoas
que não têm ideia do porquê estão fazendo isto, mas isso não as torna menos uma
ameaça à nação. Poucos dias depois do discurso de Rushmore, Trump gravou uma
entrevista com o jornalista Chris Wallace, no canal Fox News de Rupert Murdoch,
que vou ler um pouco dele.

Chris Wallace: nossos filhos são ensinados a odiar na escola, para odiar
nosso país. Como você vê isso?
Donald Trump: Eu só olho para isso. Olho para a escola, assisto, leio. Olha
essas coisas. Agora eles querem mudar o ano de 1492, quando Colombo
descobriu a América. Sabe, nós crescemos com isso. Foi o que aprendemos.
Agora eles querem torná-lo o projeto de 161916. De onde veio isso? O que
isso representa? Eu nem sei.
Chris Wallace: Escravidão.
Donald Trump: É o que eles estão dizendo. Que eles nem sabem. Eles só
querem fazer uma mudança e cancelar a cultura. Eu odeio o termo, mas eu
realmente uso.
Chris Wallace: Mas eles estão ensinando as pessoas a odiarem a América?
Donald Trump: A cancela a cultura. Bem, eu acho que sim. Sim, acho que
sim. Olhe para os professores, veja o que está acontecendo nas faculdades.

16 [N.T.] Donald Trump faz referência ao ano em que, no Porto de Virgínia, chegaram negros
escravizados. Para contar a história de como a escravização norte americana moldou as
instituições políticas, econômicas e sociais do país, a jornalista Nikole Hannah-Jones publicou em
agosto de 2019, no New York Times Magazine, o Projeto 1619. Nesse projeto, o jornalista diz que
1619 seria a data que marca o momento verdadeiro de fundação dos Estados Unidos. O projeto
está disponível em: https://pulitzercenter.org/lesson-plan-grouping/1619-project-curriculum
(The New York Times Maganize, [s.d.]).

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502 Kendall Thomas

Se um conservador vai para uma faculdade e olha, temos tantos quanto


eles. Desculpe-me, acho, que até onde sei, estou sentado na Casa Branca e
o escritório oval está bem atrás de mim. Temos tantos como eles.
Chris Wallace: Quem são eles?
Trump: A esquerda radical liberal e eu não estou falando tudo. Eu acho
liberal, posso te dizer, eu gosto de muita gente liberal. Eu gosto muito de
governadores e senadores liberais, mas temos uma ideologia destrutiva de
esquerda radical e isso está sendo ensinado em nossas escolas e não agimos
assim. Você fica surpreso ao ouvir isso. Há livros escritos sobre isso e não
podemos deixar isso continuar. Não podemos deixar que eles mudem o
verdadeiro significado do que somos e é isso que eles estão tentando fazer,
e eu não quero que isso aconteça. Não no meu relógio. Isso não vai
acontecer no meu tempo.

Quando o presidente Donald Trump fez seu discurso em Rushmore, o termo


Teoria Crítica Racial ainda não havia entrado em nenhum documento oficial. Mas,
na época da entrevista com Chris Wallace, alguém havia claramente chamado a
atenção de Trump para o Projeto de 1619, uma iniciativa massiva de um ano do
New York Times. Sob a direção editorial da jornalista Nicole Hannah Jones, o
Projeto de 1619 se propôs, em suas próprias palavras, “a reformular a história do
país, colocando as consequências da escravidão e as contribuições dos negros
americanos no centro da narrativa nacional da nação”. Embora Trump pronuncie
o nome do Projeto de 1619, não está claro do diálogo com Wallace se ele tem a
menor noção do que é real do New York Times e do que são notícias falsas. O que
ele sabe, primeiro, é que tem algo a ver com a mudança em particular e, segundo,
que a mudança que eles querem nos deixaria alcançar o “verdadeiro significado
do que somos”.

O desempenho aberto na gestão de Trump, particularmente o implacável


confronto de nós contra eles, é uma janela para o uso político da ambiguidade
racial. De fato, podemos ir além e Stuart Hall vai nos ajudar aqui. Na obra The
Fateful Triangle: Race, Ethnicity17, Nation, de 1994, Hall palestra em Harvard sobre
raça, etnia e nação e argumenta que raça é um discurso. Colocando o ponto de
outra forma social, histórica e política, ele escreve que raça opera como uma
linguagem que não é completa, porque raça é uma figura que produz significados.
Fica em segundo lugar, porque os discursos raciais constituem um dos grandes
sistemas classificatórios da diferença cultural: os sentidos que a raça produz são

17 [N.T.] The Fateful Triangle (Hall, 2017b) faz parte de uma série de publicações da Universidade
de Harvard baseadas em palestras (lectures) conferidas por diferentes especialistas de diversas
áreas do conhecimento sobre temas que foram estudados por W.E.B. Du Bois, sociólogo
estadunidense, historiador e ativista pelos direitos civis.

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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 503
um relatório da linha de frente

sempre postos em prática, inscritos nas palavras de Hall, em projetos e práticas


que envolvem relações de poder.

Então, a partir dos insights de Hall, ofereço três pontos sobre o discurso racial que
opera na, e através, da presidência simbólica de Donald Trump. Christopher Ruffo,
a quem Trump deve seu conhecimento sobre o que é a Teoria Crítica Racial, acusou
em uma entrevista que “a Teoria Crítica Racial se tornou, em essência, a ideologia
padrão da burocracia federal e agora está sendo armada contra o povo americano”.
Agora, por que isso acontece? Bem, acho que tem relação com a crise da
alfabetização americana e a ausência de alfabetização racial nos Estados Unidos.
Mas o ponto que quero dizer é que o privilégio racializado de Trump de não ser
alfabetizado racialmente. É uma rede densamente chapeada que manipula o
conhecimento, e o conhecimento de Trump. E o analfabetismo racial, que é uma
espécie de pano de fundo da presidência simbólica de Trump e para o qual,
francamente, acho que podemos apontá-lo como um exemplo, aparece mais
salientemente na pura energia e esforço do governo Trump em humilhar e,
literalmente, desacreditar dos apelos da população negra no debate nacional nos
Estados Unidos quando falava sobre a escravidão e suas consequências. E digo
isso, se não o disse antes, tendo plenamente em mente que não contém em nenhum
dos outros documentos, mas a Ordem Executiva contém uma dupla proibição de
raça e sexo imposta pelo Poder Executivo.

A Ordem Executiva, os tuítes, os discursos, os memorandos e outros textos e


imagens utilizados nas manifestações presidenciais, devem ser lidos a partir de
Michael apenas no conhecido termo de Howard Weining, um projeto racial que
mobiliza a força do poder do Governo Federal para expurgar o Estado dos EUA
de qualquer foro para a prática de linguagem racial crítica e alfabetização.
Particularmente, se de alguma forma perturba a narrativa neutra e cega à raça de
um povo, tem em um único destino.

Estamos longe, por exemplo, da narrativa histórica que me foi ensinada na


faculdade e que inúmeras gerações foram ensinadas antes de mim, que contava a
história da América como uma história de conflito dentro do consenso. Esta é uma
história puramente conflituosa. Em Trump, a linguagem da raça é uma arma
política. Então, quando ele realmente começa a pronunciar as palavras “Teoria
Crítica Racial”, em setembro, os outros textos de que tenho falado estabeleceram
uma espécie de fuga modal em movimento, que permite que as palavras “Teoria
Crítica Racial” sejam ou signifiquem qualquer coisa, a depender de seus termos de
engajamento. E como a CRT não pode ser ou significar todas as coisas que o
presidente acusa de ser, não precisa ser ou significar nada. A questão é se, à força
de dizer repetidamente de maneira a reforçar os traços de sua criação, Trump usa

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504 Kendall Thomas

o discurso racial para jogar uma espécie de jogo de palavras, no qual a Teoria
Crítica Racial passa a significar o que ele quiser que signifique, ou simplesmente
não signifique nada.

Meu próximo e último conjunto de textos, que na verdade é uma combinação de


texto e imagens, deixa este meu argumento claro18. Estas são observações que
Trump fez após a Convenção política Republicana das primárias de Nevada, em
2016, momento em que ele declarou seu amor pelos mal-educados. N próximo slide
uma imagem de texto que tirei da conta do Twitter do Sr. Trump. Ele ordena o
expurgo da Teoria Crítica Racial das agências federais. “Esta é uma doença que
não pode continuar. Por favor, denuncie qualquer avistamento para que possamos
extinguir rapidamente!”. De acordo com o presidente Trump, o escritório de
gestão e orçamento da Casa Branca se moverá para identificar e eliminar qualquer
vestígio da Teoria Crítica Racial no Governo Federal. Então, eu quero dizer
algumas coisas. Oficialmente, se analisarmos todos juntos a armação de Trump
para o analfabetismo racial dos Estados Unidos e a prática disso no contexto de
sua presidência simbólica, existem dois componentes: 1) é uma espécie de
analfabetização tática; 2) e o outro é um tipo de combate a uma alfabetização que
eles não conhecem. Nessa perspectiva, o único valor da Teoria Crítica Racial não é
o seu significado, e sim o fato de torná-la um arsenal e o seu mau uso. É deturpação
- usando uma palavra que citei anteriormente ao ler a Ordem Executiva.

Na leitura pedagógica de Trump que venho oferecendo aqui, o analfabetismo se


constitui do fato de não só o povo americano não sabe o que é a raça, mas também
de o povo americano não sabe ler: 50 dos adultos americanos não conseguem ler
um livro escrito ao nível do oitavo ano; que todos os anos, um a cada seis jovens
adultos americanos nos Estados Unidos abandonou o ensino médio; que 43% dos
adultos que leem abaixo do nível do quinto ano, vivem na pobreza; que 70% dos
adultos que recebem assistência social têm baixos níveis de educação; que 32
milhões de adultos nos EUA não sabem ler ou escrever acima de um nível de
terceiro ano.

Essa articulação, para usar outro termo de Stuart Hall, de alfabetização básica ou
funcional, de um lado, e alfabetização racial, de outro, é o espaço dentro do qual
Trump pode criar, não apenas confusão e incoerência, mas um caos significativo
em torno da questão do trabalho. Então, o que os ataques à Teoria Crítica Racial,
mesmo que sem nome, ao Projeto de 1619 e à proibição de uso dos conceitos
divisionistas tornam evidente é o trabalho específico que a raça em conjunto com

18 [N.T.] Para acompanhar a explicação do professor Kendall Thomas, é interessante acompanhar


no vídeo as imagens que ele compartilha durante a palestra.

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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 505
um relatório da linha de frente

a alfabetização racial e com o analfabetismo funcional básico fizeram por Trump


ao longo de sua carreira. E aqui eu poderia voltar à 1989, no anúncio de página
inteira que ele publicou no New York Times, depois de uma mulher ter sido
agredida por um grupo de adolescentes negros. Todos eles moravam a seis
quadras de onde estou falando com vocês, e todos foram presos. Alguns deles
foram enviados para a prisão, sendo que nenhum deles foi realmente responsável
pela agressão sexual. A ignorância, se é que posso usar esse termo como sinônimo
de analfabetismo, está no centro da implantação da raça por Trump, desde a
indignação durante os anos Obama até o discurso deste verão. A manipulação do
analfabetismo racial tem sido uma chave tática na maneira como Trump imagina
e exorta os americanos a se imaginarem.

Então, porque devemos nos preocupar com a política de palavra em que Trump se
envolve? Devemos nos preocupar, porque o armamento do Governo Trump e a
deturpação da Teoria Crítica Racial parecem ter tirado uma página da cartilha de
jogos de seus equivalentes de direita na Europa e na América do Sul. Os
movimentos nesses países usam algo a que chamam de Teoria de Gênero ou
Ideologia de Gênero para atacar os movimentos sociais que buscam justiça
democrática para mulheres, pessoas negras, migrantes e outros na Europa e na
América do Sul.

No livro Queer Theory: The French Response, o estudioso francês Bruno Perreau19
relata as controvérsias políticas que acompanharam a lei do casamento ao estender
na França o casamento civil a gays e lésbicas. Uma coalizão de políticos,
intelectuais, instituições e figuras religiosas e outras organizações da sociedade
civil mobilizaram-se, não apenas para se opor à reforma governamental da lei do
casamento francesa, mas também para atacar aquilo a que o movimento contra o
casamento entre pessoas do mesmo sexo chamou de Teoria de Gênero. Ora, o
interessante sobre a Teoria de Gênero, na perspectiva de Bruno Perreau, é que se
trata, na verdade, de uma fantasia política criada pelo próprio movimento. A visão
da Teoria de Gênero na qual os opositores franceses do casamento igualitário
estavam obsessivamente focados, por exemplo, não existia antes de sua
enunciação e implantação no debate de políticas públicas. Uma vez que foi
constituída para servir a ambos como uma arma política, a Teoria de Gênero
tornou-se um dispositivo político e um campo de batalha na legislação e na cultura
francesa sobre o casamento para todos. A lição que o professor Perreau tira do

19 [N.T.] Bruno Perreau é especialista em teoria crítica, política e literatura e cultura francesa
contemporânea. É Professor de Estudos Franceses, no Massachusetts Institute of Technology e é
docente associado do Centro de Estudos Europeus de Harvard.

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506 Kendall Thomas

exemplo francês é que os discursos de citação não existem antes da política pública,
assim como não são o resultado dela. Eles são como parasitas.

Quero sugerir que o mesmo pode ser dito sobre a Teoria Crítica Racial e a guerra
de Trump contra essa fantasia política que ele construiu da Teoria Crítica Racial.
Eu poderia, na época se me fosse permitido, analisar cada uma das nove ou dez
subcláusulas da seção de definição da Ordem Executiva e contestar a
caracterização que alguns fizeram de que cada uma delas como um princípio da
Teoria Crítica Racial. Eu começaria, por exemplo, com a utilização do termo
inerente como arma, o que é particularmente irrelevante dado o que venho
dizendo sobre o fato de a Teoria Crítica Racial, como apontam os movimentos
sociais antirracistas associados ao abolicionismo, ser uma visão e uma prática
intelectualmente enraizada de forma rigorosa na atenção cuidadosa à história. O
que quero dizer agora é que a Teoria Crítica Racial é uma teoria e prática do
letramento racial crítico, que visa escavar e aprender com o conhecimento
subjugado, segundo expressão de Michel Foucault, daqueles que foram deixados
de fora da balança da justiça e excluídos da plena participação no direito, na
política, na cultura e na história dos Estados Unidos.

O pretendo agora é conectar a afirmação que fiz sobre a Teoria Crítica Racial
enquanto uma teoria e prática do letramento racial crítico com a história nos
Estados Unidos de algo que chamo de educação para a abolição, sobre a qual o
grande historiador W.E.B. Du Bois escreve em sua magistral história Reconstrução
negra na América. Nesse livro, Du Bois observa “que a massa dos escravos não
poderia ter educação. As leis sobre esse ponto eram explícitas e severas”. Du Bois
antecipa aqui uma sentença semelhante à da decisão de 1954 da Suprema Corte
dos EUA, Brown versus The Board of Education, na qual o juiz Earl Warren,
escrevendo para a Corte sobre o caso envolvendo uma contestação do espaço racial
legalmente imposto em uma escola pública, também observa que havia leis contra
ensinar escravos a ler e escrever.

O que Du Bois esquece de dizer é que essas leis eram leis criminais que impunham
sanções penais. A criminalização e punição criminal do ato de aprender enquanto
negro, por exemplo, esteve por trás na origem da promulgação do código revisado
da Virgínia, de 1819 -estatuto que antecipou a adoção, na década de 1830, de leis
semelhantes em quase todos os outros estados escravistas, após a revolta de Nat
Turner de 1831. Essa lei proibia “todas as reuniões ou ajuntamento de escravos,
negros livres ou mulatos que se misturassem ou se associassem a tais escravos”.
Mesmo que pudessem ser seus maridos, esposas, filhos, irmãos, irmãs. A mistura
e associação com escravizados em qualquer casa de reunião ou casas durante à
noite ou em qualquer escola para ensiná-los a ler ou escrever, de dia ou de noite,

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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 507
um relatório da linha de frente

sob qualquer pretexto, a lei impunha uma punição de castigo corporal de até 20
chibatadas. Assim, nos Estados Unidos, o regime de escravatura infantil era um
regime, a que me referi anteriormente de analfabetismo compulsório, que usava a
criminalização e as sanções criminais para proibir e punir a educação de afro-
americanos escravizados.

A pré-história da criminalização e da governação através do crime, para usar a


expressão de Jonathan Simon desse uso do direito penal durante a escravatura,
continuaria após a guerra civil, após a emancipação e até o resto do século XIX. E
é ainda mais notável quando se considera que os Estados Unidos são,
aparentemente, o único país do mundo que é conhecido por ter proibido e punido
a alfabetização de escravizados. O pai do meu avô era filho de escravos. A meu
ver, as sanções penais impostas antes da guerra às tentativas de alfabetização de
pessoas escravizadas, bem como a história que se conta sobre as ligações entre o
recurso ao direito penal, antes e depois da guerra, como uma ferramenta para a
continuação da escravidão por outros meios, tem sido uma das mais preciosas
pepitas de conhecimento que o movimento abolicionista - de que falei no início de
minha palestra - nos escavou. Isso porque, nos diz que há essas continuidades
entre o analfabetismo racial compulsório no período escravagista, o analfabetismo
racial obrigatório sob a segregação de Jim Crow e o analfabetismo obrigatório nas
escolas públicas de todos os Estados Unidos, por exemplo, aqui em Nova York,
que é o sistema de escolas públicas mais segregado racialmente nos Estados
Unidos.

Os negros sempre perceberam, como escreveu o grande abolicionista Frederick


Douglass em My bondage and my freedom, que educação e escravatura eram
incompatíveis entre si. Os negros americanos compreenderam no período da
reconstrução, assim como o fazem hoje, que a educação não era apenas um
baluarte contra as predações da escravidão, mas uma condição prévia da
propriedade e uma prática de liberdade. Os negros americanos, Du Bois escreveu
na Reconstrução negra Americana, foram consumidos pelo desejo de escolas. Eles
viram claramente que a fundação da escola pública poderia ser um laboratório
cívico para aquilo que Du Bois chama de uma “experiência de democracia” não
apenas para eles, mas para os brancos pobres a quem também foram negados os
rudimentos da educação. Como escreve Du Bois, no Sul, o primeiro grande
movimento de massas pela educação pública, em detrimento do Estado, veio dos
negros. E conclui numa frase maravilhosa “a educação pública para todos, a custos
públicos, foi, no Sul, uma ideia negra”. Em certo sentido, então, a reconstrução
culturalmente negra e a campanha pela educação pública em massa, na qual os

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508 Kendall Thomas

afro-americanos foram a vanguarda, marcam os primórdios da modernidade


política africana como uma possibilidade vivida, se não uma realidade.

O frenesi afro-americano pela escola levou a um esforço organizado pela educação


nos 10 anos, entre 1861 e 1871, que Du Bois argumenta ter sido “uma das
ocorrências mais maravilhosas do mundo moderno, quase sem paralelo na história
da civilização”. O movimento iniciado foi irresistível. Implementou a escola
comum gratuita em uma parte da nação e em uma parte do mundo onde ela nunca
havia sido conhecida e nunca havia sido reconhecida. E o fizeram sabendo que as
comunidades brancas do Sul, nas quais buscavam criar uma cultura de
alfabetização negra, eram mais hostis ao estabelecimento de escolas do que à posse
de terras.

O letramento racial, cujas bases foram lançadas pela geração da reconstrução, tem
sido crucial não apenas para a prática da democracia racial, mas para a formação
de um letramento racial crítico. A jurista Carol Lani Guinier definiu o letramento
racial como “a capacidade de decifrar a gramática racial duradoura que estrutura
hierarquias racializadas e enquadra a narrativa de nossa república”. O letramento
racial, cujas bases foram lançadas por esta geração, viria a se tornar, nas décadas
seguintes e até hoje, um recurso crítico no projeto afro-americano em curso de
escrever uma contra-narrativa de nossa república, que inscrevesse os afro-
americanos na narrativa americana.

Para concluir, em 1995, Kimberly Williams Crenshaw, Neil Gotanda, Gary Peller e
eu publicamos em nossa coletânea de Teoria Crítica Racial, de 1995, os principais
escritos que fundaram o movimento, naquele mesmo ano, em uma reflexão
profética sobre racismo e fascismo. Tony Morrison, já falecida, insistia que não
poderíamos medir e nem compreender plenamente o significado do racismo
contemporâneo sem atender ao seu “gêmeo súcubo, o fascismo”. Para Morrison, o
coração do fascismo, aquilo que o torna reconhecível, chama-se sua necessidade
de expurgo. Essa frase começa a ganhar grande ressonância com o expurgo da
Teoria Crítica Racial. No entanto, como nos lembra o historiador Robert Paxton, à
semelhança de outras características do fascismo, esta política purgativa não é a
mesma ao longo do tempo e do espaço. Paxton afirma que “cada variante nacional
do fascismo extrai sua legitimidade não de alguma escritura ou cartilha universal,
mas sim do que considera, ou, pelo menos, pode persuadir”. Seus seguidores
acreditam que são “os elementos mais autênticos de sua própria identidade
comunitária”. A título de exemplo, Paxton sugere que nos EUA a religião
“certamente desempenharia um papel muito maior em um fascismo autêntico” do
que na Europa. Na Ordem Executiva que combate os estereótipos de raça e sexo,
como nos outros textos que pesquisei, Donald Trump não deixa dúvidas de que,

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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 509
um relatório da linha de frente

em sua América, nenhuma fé cívica ou credo de resistência será permitido coexistir


além da religião da cegueira da cor. Nenhuma outra alfabetização, certamente
nenhuma alfabetização racial crítica, terá acesso ao domínio do Estado.

Coloco a vocês que a promessa de Donald Trump de extinguir a doença dos


movimentos antirracistas de hoje e da alfabetização racial crítica, que eles
defendem, apresenta um exemplo exclusivamente americano de populismo
autoritário. Resta saber até que ponto o projeto político purgativo de Donald
Trump apresenta um estudo de caso - para tomar emprestado um título de Jason
Stanley - de como o fascismo funciona. Stanley afirma que a direita apresenta “o
seu próprio desejo de controlar linhas aceitáveis de investigação, avançando
taticamente seu ataque a instituições e indivíduos” que “defendem a razão pública
e o debate aberto sob o manto desses mesmos ideais”. Ele está descrevendo uma
técnica projetada. Se Stanley estiver certo, o armamento simbólico de Trump
contra a alfabetização racial americana para defender a mitologia e a política de
identidade branca da república racial cega a cor da pele oferece um exemplo
didático do fascismo do antifascismo. Mas não temos medo, basta lembrar o pai
do meu avô e o pai e a mãe dele escravos. Enquanto a memória deles continuar e
viver, a busca pela Teoria Crítica Racial e os movimentos pela cidadania
democrática plena dos afro-americanos e de outras pessoas negras não pode deixar
de continuar.

Referências

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Sobre o autor
Kendall Thomas
Professor de Direito na Universidade de Columbia, em Nova York, desde
1984. Dedica-se ao direito constitucional comparado e aos direitos
humanos, cujo ensino e pesquisa concentram-se na Teoria Crítica
Racial, na filosofia jurídica, na teoria jurídica feminista e direito e
sexualidade. Cofundador e diretor do Center for the Study of Law and
Culture da Columbia Law School, onde lidera projetos e programas
interdisciplinares que exploram como o direito funciona como uma das
formas centrais de criar significado na sociedade. Coeditor da coletânea
Critical Race Theory: The Key Writings that Founded the Movement
(The New Press, 1996) e do livro What's Left of Theory? (Routledge Press,
2000).

Sobre a tradutora
Inara Flora Cipriano Firmino
Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), na área de
concentração em Teoria do Estado e Direito Constitucional, na Linha de
Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Ordem Internacional.
Pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV- Direito SP.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo. Mestra em Ciências (área de concentração:
Desenvolvimento no Estado Democrático de Direito) pelo Programa de
Pós-Graduação em Direito da FDRP/USP, sendo bolsista CAPES.

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Em defesa da pesquisa
Trata-se de seção dedicada a socializar pesquisas, ensaios e artigos
livres, que, em chave crítica, contribuam para a construção de reflexões
e propostas atinentes à temática de direitos e movimentos sociais. A
seção de artigos livres da revista do IPDMS é uma homenagem à
escritora e militante Patrícia Galvão (Pagu), resgatando, em sua
denominação, o título de um ensaio escrito para a edição de 26 de
outubro de 1945 do semanário Vanguarda Socialista.
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.47722

em defesa da pesquisa

Sociedade civil-burguesa, política e


direitos humanos em A sagrada família
de Marx e Engels
Sociedad civil-burguesa, política y derechos
humanos en A Sagrada Familia de Marx y Engels

Civil-bourgeois society, politics and human rights in


The Holy Family of Marx and Engels

Vitor Bartoletti Sartori1


1
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E-
mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9570-9968.

Submetido em 23/03/2023
Aceito em 30/06/2023
Pré-Publicação em 10/07/2023

Como citar este trabalho


SARTORI, Vitor Bartoletti. Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A
sagrada família de Marx e Engels. InSURgência: revista de direitos e movimentos
sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 515-550, jan./jun. 2024.

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ISSN 2447-6684

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516 Vitor Bartoletti Sartori

Sociedade civil-burguesa, política e


direitos humanos em A sagrada família
de Marx e Engels

Resumo
Pretendemos mostrar que A sagrada família é um nexo importante entre os textos marxianos
de 1843-44 e A ideologia alemã. Para tanto, explicitaremos como que a crítica de Marx e de
Engels vai constantemente em direção ao aprofundamento da crítica à sociedade civil-
burguesa. Os autores deixam claro que os Direitos do homem, bem como a vida política,
têm suas raízes na vida civil-burguesa, tal qual na sociedade em que essa vida aparece
como algo natural, aquela marcada pelo domínio da burguesia. Mostraremos também que
há, em A sagrada família, um modo de representação específico do domínio burguês, aquele
das ilusões e das superstições políticas.
Palavras-chave
Marx. A sagrada família. Crítica da religião. Política. Direitos humanos.

Resumen
Pretendemos mostrar que La Sagrada Familia es un eslabón importante entre los textos
marxianos de 1843-44 y La ideología alemana. Explicaremos cómo la crítica de Marx y Engels
va constantemente hacia la profundización de la crítica a la sociedad civil-burguesa. Los
autores aclaran que los Derechos del hombre, así como la vida política, tienen sus raíces en
la vida civil-burguesa, al igual que en la sociedad en que esa vida aparece como algo
natural, marcada por el dominio de la burguesía. También mostraremos que hay, en La
Sagrada Familia, una manera de representación específica del dominio burgués, el de las
ilusiones y supersticiones políticas
Palabras-clave
Marx. Holy Family. Critic of Religion. Politics. Human Rights.

Abstract
We intend to show that The Holy Family is an important link between the Marxian texts of
1843-44 and The German Ideology. To do so, we will show how the critique of Marx and
Engels constantly goes towards the deepening of the critique of civil-bourgeois society. The
authors show how the Humam Rights, as well as political life, have their roots in civil-
bourgeois life, as well as in the society in which this life appears as something natural, the
one marked by the dominance of the bourgeoisie. We will also show that there is, in The
Holy Family, a specific mode of representation of bourgeois rule, that of political illusions
and superstitions.
Keywords
Marx. Holy Family. Critic of Religion. Politics. Human Rights.

1 Introdução: a importância de A sagrada família no


itinerário de Marx

A sagrada família é uma obra que possui um papel importante no itinerário de Marx
e de Engels. Ao contrário de obras como Crítica à filosofia do Direito de Hegel (2005a),

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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 517

de 1843, dos Manuscritos econômico-filosóficos (2004a) e de A ideologia alemã (2007),


de 1845-1846, para que fiquemos nos textos de fôlego da década de 1840 e
posteriores à inflexão que se dá no pensamento de Marx em 1843 (Cf. Chasin,
2009), trata-se de um livro publicado durante a vida de Marx (e de Engels, que
assina o trabalho).

Isso traz destaque ao texto que aqui analisaremos no que diz respeito à política e
aos direitos humanos, que são temas bastante recorrentes nos textos de 1843-44,
bem como depois, tanto na década de 1840, quanto nos últimos escritos de Marx.1

A publicação de um livro significa que os autores, no geral, estão satisfeitos com


aquilo que escreveram; e, desse modo, A sagrada família ganha relevância no
itinerário de Marx e de Engels: trata-se do primeiro texto mais longo publicado por
Marx e por Engels, esse último que, logo depois, publicaria A Situação da classe
trabalhadora na Inglaterra (2008). No que se deve destacar algo importante para a
obra que vamos analisar: a ironia de seus título e subtítulo. Se a crítica da religião
já havia sido colocada como central em 1843 por Marx em Crítica à filosofia do Direito
de Hegel – introdução – “a crítica da religião é o pressuposto da toda crítica.” (Marx,
2005 b, p. 145) – ela volta no final de 1844. O fato de, na Alemanha, sequer a crítica
da religião estar completa na época (Cf. Lukács, 2020; Marcuse, 2004), mesmo com
Feuerbach (Cf. Engels, 1982), leva Marx e Engels a enfatizarem que a filosofia pós-
hegeliana se colocava como uma espécie de sagrada família, tendo os irmãos Bauer
à frente. De acordo com os autores de A sagrada família, a busca dos neohegelianos
por um Estado político pleno, bem como pela emancipação política como a solução
para a miséria religiosa, faz com que os Bruno e Edgard Bauer em especial, acabem
por aceitar o fundamento mundano da própria religião. E, assim, os dois irmãos
formam o núcleo de uma espécie de sagrada família. Um elemento a se destacar,
portanto, é: a crítica à religião (e à especulação, como veremos à frente) ganha
especial destaque nessa obra de Marx e de Engels tal qual em seus textos da década
de 1840.2 Mostraremos como isso se dá em A sagrada família.

E mais: tem-se a situação alemã trazida como algo essencial no livro de Marx e
Engels. E isso aparece tanto nas comparações que os autores realizam entre a

1 Para uma visão geral do assunto no último Marx, Cf. Musto, 2018. No que diz respeito aos direitos
humanos e à política no final da vida de Marx, Cf. Sartori, 2018.
2 A década de 1840 é muito discutida na literatura sobre Marx. Aqui, não entraremos nos
pormenores dos embates sobre o tema, trazendo os debates à tona somente quando necessário à
linha vermelha de nosso texto, que acaba por se focar na concepção de política presente em A
sagrada família.

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518 Vitor Bartoletti Sartori

França e a Alemanha3 (tema importante também à Crítica à filosofia do Direito de


Hegel – introdução) como na crítica àquilo que chamaram de miséria alemã, que
viria a ganhar especial destaque na Ideologia alemã. Um segundo ponto a se
destacar, portanto, é que A sagrada família aparece como uma espécie de liame entre
os artigos dos Anais franco-alemães e o texto de 1845-46. Trata-se do momento em
que, em conjunto com Engels, em Bruxelas, Marx busca “acertar as contas com a
antiga concepção filosófica”, sendo que “o propósito se realizou sob a forma de
uma crítica da filosofia pós-hegeliana” com o manuscrito do texto que hoje
conhecemos como A ideologia alemã sendo deixado “à crítica roedora dos ratos.”
(Marx, 2009, p. 49) A publicação de A sagrada família, portanto, pode até mesmo
ajudar a esclarecer algumas ligações entre a crítica da religião e a crítica da política
e do Direito, todas elas centrais ao autor de O capital desde 1843 e bastante
presentes tanto nos artigos do começo da década de 1840 e no texto de 1845-46,
que não foi publicado por Marx e Engels.4 Voltemos, porém, à peculiaridade do
subtítulo.

Bruno Bauer e seus consortes pretendiam uma “crítica crítica” sendo que sequer
se davam conta de algo, de acordo com Marx, basilar: não seria possível criticar o
céu da religião sem criticar igualmente o mundo profano. Tratar-se-ia de algo vão
atacar a teologia sem buscar a própria crítica terrena da política. Como diz Marx
em 1843, na Crítica à filosofia do Direito de Hegel - introdução: “a crítica do céu
transforma-se, assim, na crítica da terra, a crítica da religião, na crítica do direito, a
crítica da teologia, na crítica da política.” (Marx, 2005 b, p. 146) Assim, no título e no
subtítulo da obra que pretendemos tratar aqui há nuances que remetem à crítica
da religião e da política, à especificidade nacional (em especial a alemã) e ao modo
pelo qual uma crítica efetiva precisa se colocar: de acordo com nossos autores, não
tanto se afirmando como “crítica crítica” ou como uma “crítica à crítica crítica”
como colocam ironicamente Marx e Engels no subtítulo da obra, mas como uma
atividade que busque a supressão das oposições que se expressam
mundanamente. Trata-se de algo que não diz respeito só ao acerto ou desacerto
das concepções de mundo; antes, tem-se a necessidade de apreensão reta da
própria realidade efetiva, do ser da realidade, como diz Lukács (2012). A

3 É preciso destacar que não se tem uma Alemanha propriamente unificada nesse momento. Desse
modo, por mais que Marx e Engels se refiram repetidamente aos alemães, à Alemanha, à miséria
alemã e à ideologia alemã, é bom dizer que o elemento nacional não se coloca como hoje nesse
momento. Nesse sentido, a contraposição à França, que passou por uma revolução burguesa e
que traz a unificação nacional consolidada é elucidativa.
4 Para uma análise das linhas gerais desse movimento, de 1842, na Gazeta renana, até 1845-46 em
A ideologia alemã, em especial no que diz respeito à relação entre religião e política, Cf. Sartori,
2021a.

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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 519

publicação de A sagrada família, e a análise da obra, podem ajudar a apreender essa


posição.

O livro, assim, está revestido de um relevo especial aos estudiosos da obra de


Marx, bem como, acreditamos, dos desdobramentos presentes no marxismo e na
crítica à sociedade capitalista.5 Ele traz tanto as teorias de Marx e de Engels quanto
os posicionamentos concretos dos autores diante da realidade de suas épocas. As
páginas a mais de uma obra de fôlego também permitem que a ligação entre esses
dois elementos seja bastante orgânica e mais visível. O ano de 1844, portanto, é um
ano importante para a compreensão do pensamento marxiano: tanto os
Manuscritos econômico-filosóficos (é verdade que de modo mais fragmentário e não
publicados) quanto A sagrada família são redigidos, sendo o último texto
disponibilizado ao público. Antes disso, tem-se só artigos publicados, estando os
textos maiores de Marx em formato de manuscritos somente ou, anteriormente a
1843, dotados de concepções que não mais correspondem àquelas do autor.6 O
doutoramento de Marx, com forte influência hegeliana, sobre os materialismos de
Demócrito e Epicuro (1972, 2018), de 1841, não foi publicado.7 Os demais textos do
autor de O capital, são artigos, como aqueles da Gazeta renana (1998), de 1842, textos
esses os quais ainda apostam no Estado racional, politicamente pleno, bem como
nos direitos do homem. (Cf. Sartori, 2020a; Pereira Neto, 2018)

Já no início de 1843, a Crítica à filosofia do Direito de Hegel, também não publicada,


ainda adota uma concepção positiva sobre a política, ao mesmo tempo em que se
volta à sociedade civil-burguesa8 como sujeito, sendo o Estado o predicado da
sociedade. (Cf. Palu, 2019; De Deus, 2014) Ou seja, no começo de 1843, os dois
maiores textos do autor alemão ainda não trazem a sua própria posição, aquela do
pensamento propriamente marxiano (Cf. Chasin, 2009), que se esboçaria ainda

5 No que diz respeito a esses desdobramentos para o presente, em especial em relação à crítica da
política, Cf. Chasin, 2012.
6 Não seguimos aqui a oposição althusseriana (1979) entre o jovem Marx “humanista” e marcado
pela influência de Hegel e, em especial, de Feuerbach e Marx “científico” de O capital. Também
não podemos concordar com a centralidade que uma posição ainda contemplativa da classe
trabalhadora adquiriria em 1844 na obra de Marx, o que seria índice de imaturidade de sua teoria
tanto para autores como Michael Löwy (2002) como para Celso Frederico (2009). Para uma análise
cuidadosa dos anos de 1843-44, acreditamos que as análises de José Chasin (2009) sejam
essenciais. Para a compreensão desse ponto no que diz respeito aos direitos humanos e à política,
Cf. Sartori, 2019.
7 Para uma análise do modo sui generis pelo qual Marx se apropria de modo mediado e reflexivo
de Hegel nesse texto, Cf. Sartori, 2020a.
8 No presente texto, optamos por traduzir a expressão bürgerliche Gesellschaft por sociedade civil-
burguesa (e não somente sociedade civil ou sociedade burguesa), enfatizando tanto a
contraposição entre tal sociedade e a organização política estatal quanto o caráter especificamente
burguês dela. O mesmo procedimento foi adotado no que diz respeito à expressão bürgerliche
Leben, traduzida por vida civil-burguesa.

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520 Vitor Bartoletti Sartori

nesse ano, nos Anais franco-alemães, nos textos Sobre a questão judaica (2010a) e Crítica
à filosofia do Direito – introdução (2003b). O “acertar as contas com a antiga
concepção filosófica” (Marx, 2009, p. 49) pode até aparecer de modo esparso em
artigos de 1843-1844, bem como nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 – em
especial na crítica a Hegel (Cf. Lukács, 2018). Porém, há de se destacar: somente
com A sagrada família e, depois, em A ideologia alemã é que há um corpus mais
robusto e “sistemático”9 para ser analisado: as páginas desses livros repassam de
modo extenso os temas que mencionamos acima de maneira orgânica e articulada
e, por isso, precisam ser analisadas.

Na mesma época, tem-se também o artigo Glosas marginais ao artigo “O rei da Prússia
e a reforma social”, de um prussiano (2010b), publicado no Vorwärtz, em 1844. Nesse
momento, também são redigidos os Manuscritos econômico-filosóficos (2004a), que,
como a denominação denota, permaneceram no estado de manuscritos e, assim,
não foram publicados. E, com isso, a obra que pretendemos analisar aqui realiza
um papel importante de elo entre os artigos publicados por Marx em 1843-44 e
suas obras não publicadas. Grande parte da produção marxiana é realizada em
artigos jornalísticos, tanto na década de 1840 quanto depois, sendo a publicação de
um livro algo considerável. O próximo a ser publicado pelo autor seria A miséria
da filosofia (2004b), de 1847 e, depois, em conjunto com Engels, tem-se o Manifesto
comunista (1998). E, assim, acreditamos que a análise de A sagrada família pode ser
de grande valia para nosso tema.

Um alerta: é verdade que a não publicação de um texto não depõe contra ele;
também não significa que haja insatisfação por parte do autor do texto. Por vezes,
inclusive como no caso dos Grundisse (2011), – como demonstrou Rosdolsky (2001)
– o caráter inconcluso do texto pode até mesmo esclarecer muito sobre a obra
publicada de um autor. Porém, a publicação de um texto, bem como a envergadura
dele, não podem ser desconsiderados de modo algum. Como pretendemos
demonstrar, isso precisa ser levado em conta para que possamos explicitar o modo
como aparece a temática da política em A sagrada família, modo esse que pode
ajudar muito a elucidar alguns aspectos da crítica à política presente em Marx,
aspectos esses que são trazidos nos artigos (bem como nos textos não publicados)
e que foram analisados, sobretudo, por José Chasin (2009).

9 Usamos das aspas aqui porque o pensamento marxiano não é sistemático como aquele da filosofia
clássica alemã de Kant, Fichte e Hegel, por exemplo. Trata-se de uma crítica imanente da própria
realidade, em que são explicitadas as determinações do próprio real. Quando falamos de algo
mais “sistemático” somente queremos dizer que, em A sagrada família, a exposição dessas
determinações é trazida de modo a abranger de modo aproximado a totalidade da realidade da
época dos autores.

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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 521

Assim, a partir da análise imanente10 do texto mencionado, explicitaremos a crítica


à política e aos direitos humanos presente na obra marxiana na primeira metade
da década de 1840. Analisar um livro publicado em vida dos autores, A sagrada
família, pode trazer aspectos decisivos sobre a concepção de política de Marx e
Engels de modo mais destacado. Assim, intentamos elucidar elementos que, em
artigos, ou em textos não publicados, muitas vezes estariam menos presentes, ou
colocados com menor clareza. Acreditamos que esse é o caso da política, que, em
A sagrada família, aparece relacionada à peculiaridade nacional, à crítica à religião,
bem como aos direitos do homem.

2 Sociedade civil-burguesa e Estado nos textos da


primeira metade da década de 1840

Uma das temáticas centrais da Crítica da filosofia do Direito de Hegel é a relação entre
sociedade civil-burguesa e Estado. Nessa relação, segundo Marx, tem-se uma
inversão entre sujeito e predicado em Hegel. (Cf. Sartori, 2014) E, assim, seria
preciso notar que tal inversão, no autor da Fenomenologia do espírito, traz um ímpeto
especulativo. Em 1843, diz Marx, assim, que há uma ligação entre tal inversão e o
idealismo hegeliano: “o importante é que Hegel, por toda parte, faz da Ideia o
sujeito e do sujeito propriamente dito, assim como da ‘disposição política’, faz o
predicado. O desenvolvimento prossegue, contudo, sempre do lado do
predicado.” (Marx, 2005a, p. 34) A disposição política, em Hegel, apareceria como
uma determinação da ideia. E, com isso, como diria Marx nos Manuscritos de 1844,
“sujeito e predicado têm assim um para com o outro a relação de uma absoluta
inversão.” (Marx, 2004a, p. 133) No autor da Filosofia do Direito, portanto, a política
teria uma grande importância. Porém, ela – assim como a natureza, em verdade –
seria uma espécie de “estranhamento do espírito”. (Hegel, 1992, p. 39) Ou seja, há
na teoria hegeliana, de acordo com Marx, uma inversão entre sujeito e predicado,
inversão essa que está subordinada à posição idealista de Hegel.

No que diz respeito à relação entre sociedade civil-burguesa e Estado, isso seria
essencial já que uma posição materialista precisaria trazer consigo um enfoque na

10 Como diz Chasin sobre a análise imanente: “tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o
texto – a formação ideal – em sua consistência autosignificativa, aí compreendida toda a grade de
vetores que o conformam, tanto positivos como negativos: o conjunto de suas afirmações,
conexões e suficiências, como as eventuais lacunas e incongruências que o perfaçam.
Configuração esta que em si é autônoma em relação aos modos pelos quais é encarada, de frente
ou por vieses, iluminada ou obscurecida no movimento de produção do para-nós que é elaborado
pelo investigador, já que, no extremo e por absurdo, mesmo se todo o observador fosse incapaz
de entender o sentido das coisas e dos textos, os nexos ou significados destes não deixariam, por
isso, de existir [...]”. (Chasin, 2009, p. 26)

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522 Vitor Bartoletti Sartori

própria sociedade, mais precisamente, como se diz na Ideologia alemã


posteriormente: isso é necessário porque “se mostra que essa sociedade civil[-
burguesa] é o verdadeiro foco e cenário de toda a história”. (Marx; Engels, 2007, p.
39) Desse modo, seria preciso analisar a maneira pela qual a sociedade civil-
burguesa atua, explicando, inclusive, como são desenvolvidas as atividades
mundanas com as mais diversas formas ideológicas.

Como se diz em A ideologia alemã posteriormente:

A sociedade civil[-burguesa] em seus diferentes estágios, como o


fundamento de toda a história, tanto a apresentando em sua ação como
Estado como explicando a partir dela o conjunto das diferentes criações
teóricas e formas da consciência – religião, filosofia, moral etc. etc. (Marx;
Engels, 2007, p. 42)

A temática da sociedade civil-burguesa, assim, é muito importante para Marx nos


anos de 1843 a 184611. Ela traz consigo, primeiramente, uma crítica à posição
hegeliana, que coloca o Estado como sujeito e a sociedade como predicado. Em
verdade, grande parte dos textos da época traz embates com os pensadores pós-
hegelianos no contexto alemão. Há, porém, mais: de acordo com Marx e Engels, tal
postura de Hegel teria ligação com seu ímpeto idealista e especulativo, de modo
que há, em Marx, uma ligação íntima entre a crítica da especulação hegeliana e a
crítica à política. Tal crítica é desenvolvida tanto contra o Estado político pleno,
advogado por autores como Bruno Bauer quanto diante do ímpeto da chamada
“crítica crítica”, que toma a ideia como supostamente correspondente ao conceito
como critério para a realidade efetiva. Para que se use outros termos: a crítica do
céu é tomada como medida da crítica da terra, e não o oposto.

Para Marx, por outro lado, a crítica da terra seria o essencial. E, com isso, o enfoque
daqueles dispostos a apresentar o desenvolvimento histórico efetivo, portanto,
precisaria estar na sociedade civil-burguesa. (Cf. Maciel, 2021) Seria dela que a
análise das formas de consciência deveria partir. E é preciso destacar: a atuação da
sociedade civil-burguesa se daria também de modo dúplice: tanto como sociedade
quanto como Estado. No que se tem outro ponto importante: para os autores de A

11 Isso é verdade também para a obra posterior de Marx, que traz uma análise seminal da chamada
anatomia da sociedade civil-burguesa, que leva à crítica da economia política. Veja-se o que diz
o autor sobre isso no seu famoso prefácio de 1859: “minhas investigações me conduziram ao
seguinte resultado: as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser
explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações
têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência em suas totalidades, condições
estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e franceses do século 18, compreendia sob o nome de
‘sociedade civil-burguesa’. Cheguei também à conclusão de que a anatomia da sociedade civil-
burguesa deve ser procurada na economia política.” (Marx, 2009. p. 47)

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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 523

sagrada família, em verdade, quem atua no campo da política (no Estado) é a


própria sociedade.

Os problemas dessa atuação, com isso, não estão essencialmente nas diferentes
figuras do Estado (e em suas formas de governo), mas na própria estrutura da
sociedade. Com isso, Marx e Engels trazem não só que “a sociedade civil[-
burguesa] em seus diferentes estágios, como o fundamento de toda a história”
(Marx; Engels, 2007, p. 42) e que “essa sociedade civil[-burguesa] é o verdadeiro
foco e cenário de toda a história”. (Marx; Engels, 2007, p. 39) Em verdade, eles
explicitam que é necessária a crítica a essa sociedade como um todo, e não só em
suas figuras específicas, como a alemã, por exemplo. Nesse momento, portanto,
surge de modo claro a necessidade da crítica à própria sociedade e vida civil-
burguesas. A década de 1840, com a adesão de Marx e de Engels ao comunismo,
traz esse marco e tal posição de modo destacado. Em verdade, o desenvolvimento
das obras da primeira metade da década gira em torno do aprofundamento dessa
crítica, que ruma, cada vez mais, em direção à economia política.

Tais aspectos são essenciais para que se perceba como A sagrada família se coloca
como uma espécie de elo entre os anos de 1843-44 e 1845-46.

3 A economia política na primeira metade da década de


1840 em meio à problematização da sociedade civil-
burguesa

É preciso um pequeno parêntese sobre o período de que tratamos e a ligação dele


com a crítica marxiana à economia política. Em 20 de janeiro de 1845, Engels
estimula Marx em uma carta: “disponha-te a terminar teu livro sobre economia
política; pouco importa que muitas páginas não te satisfaçam: os espíritos estão
maduros e temos que golpear o ferro agora que ele se apresenta em brasa.” (Marx;
Engels, 2020, p. 44) E, com isso, tem-se dois aspectos a serem destacados. O
primeiro deles diz respeito à escrita por parte de Marx de um texto sobre a
economia política, texto esse correspondente, de acordo com José Paulo Netto, “ao
projeto de Marx, que lhe comunicara [a Engels] em Paris no encontro que tiveram
em agosto/setembro de 1844, de publicar em dois tomos ‘uma crítica da política e
da economia política.” (Netto, 2020, p. 44) Depois, esclarece ainda o autor brasileiro
tratar-se de um “projeto marxiano nunca concluído”. E se diz que “a obra – para a
qual Marx chegou a firmar [...] um contrato editorial – reuniria parte de sua Crítica
à filosofia do Direito de Hegel – introdução e extratos de seus Manuscritos econômico-
filosóficos de 1844.” (Netto, 2020, p. 44) Um segundo aspecto, porém, precisa ser
mencionado: a insatisfação de Marx com partes de seu texto.

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524 Vitor Bartoletti Sartori

Esses dois lados mencionados se relacionam. Um ano depois, em 1846, em uma


carta a Leske, Marx afirma que Joseph Arnold Weymeyer “praticamente garantiu
a publicação da minha crítica da economia.” (Marx; Engels, 2020, p. 48) Percebe-
se, portanto, que o projeto do autor continua em sua mente e não é abandonado
no ano de 1846, quando é escrita A ideologia alemã. As insatisfações do autor alemão
quanto à sua crítica da economia, portanto, não o levam a renegar seu texto em
momento algum. Não fazem com que ele estabeleça qualquer ruptura ou corte em
sua compreensão.

Ele trata, aliás, com naturalidade, a necessidade de rever e revisar um texto,


mesmo que essa revisão passe tanto pela forma quanto pelo conteúdo. Ele fala
sobre a sua crítica da economia que “como o manuscrito quase terminado do
primeiro volume de minha obra se encontra aqui há algum tempo, não o entregarei
para impressão sem voltar a repassá-lo outra vez a partir do ponto de vista do
conteúdo e forma.” (Marx; Engels, 2020, p. 49) Logo depois Marx afirma que “é
muito compreensível que um escritor que avança em seu trabalho não possa
mandar à impressão palavra por palavra, seis meses depois, o que havia escrito
seis meses antes.” (Marx; Engels, 2020, p. 49) Ou seja, o projeto de uma crítica à
economia está na ordem do dia para nosso autor. E mais: aquilo que ele escreveu
nos seus Manuscritos de 1844, por mais que precisasse de revisão, poderia ser
aproveitado em sua crítica da política e da economia política. Os anos de 1843-44,
portanto, trazem questões que adentram nos anos seguintes da obra marxiana.
Não se tem como deixar de analisar em conjunto tais anos, em que a ligação entre
as críticas da especulação, da política e da economia política se torna mais coesa.

Marx diz em carta de 1 de agosto de 1846: “o primeiro volume, revisado e


corrigido, estará pronto para impressão em fins de novembro. O segundo volume,
que é mais histórico, pode segui-lo rapidamente.” (Marx; Engels, 2020, p. 49) A
revisão mencionada, portanto, sequer seria substancial, de modo que há uma
relação de complementariedade entre a crítica da especulação e da política que
vinham sendo publicadas por Marx e por Engels (inclusive, em A sagrada família) e
o desenvolvimento de uma crítica da economia, no caso, à economia política.
Todas essas críticas estão presentes nos textos de Marx que se colocam depois de
1843, a partir dos Anais franco-alemães; o grau de maturação delas, bem como o
modo de exposição que o autor escolhe em cada texto, porém, variam muito, sendo
preciso olhar tais temáticas em conjunto.

Falando a Engels sobre outro texto, que hoje conhecemos como A ideologia alemã,
Marx diz que “enviamos a maior parte do manuscrito do segundo volume para
esta publicação.” [...] Por causa dessa edição, dado o acordo com aqueles
capitalistas alemães, interrompi momentaneamente meu trabalho de economia.”

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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 525

(Marx; Engels, 2020, p. 48) E, assim, nota-se que Marx trabalhava simultaneamente
as temáticas dos dois livros inconclusos e não publicados. E, com isso, não há como
se colocar uma muralha chinesa entre os anos de 1843-44, em que são escritos tanto
A sagrada família quanto os Manuscritos econômico-filosóficos, e 1845-46, de A Ideologia
alemã. Marx ainda explica que haveria uma lógica para a ordem de publicação
mencionada acima:

Parecia-me, com efeito, importante publicar primeiro um escrito polêmico


contra a filosofia alemã e contra o socialismo alemão, que é sua
consequência, antes de abordar desenvolvimentos positivos. Isto é
necessário para preparar o público para o ponto de visa de minha
economia política, que se opõe diametralmente à ciência alemã dominante
até hoje. (Marx; Engels, 2020, p. 48)

A crítica à filosofia e ao socialismo alemães se colocam em meio às mencionadas


críticas à especulação e à política. Para realizar tal crítica, porém, Marx precisa
desenvolver sua crítica da economia, explícita ou como pressuposto de sua teoria.

O tratamento marxiano sobre a economia política, inclusive, seria oposto àquele


da ciência alemã da época, de modo que seria preciso demolir a última. A obra
crítica da economia de Marx, inclusive, seria “científica, mas [...] essa palavra não
deveria ser tomada no sentido que lhe dá o governo prussiano.” (Marx; Engels,
2020, p. 47) De um lado, haveria uma tarefa negativa, portanto: derrubar a ciência,
a filosofia e a política alemãs; doutro, seria preciso trazer uma crítica à economia
política para o público alemão.

A exposição das obras é diferente, certamente. Em uma obra, há uma polêmica,


que procura explicitar os pontos de partida equivocados da filosofia e da política
alemã; noutra, aparece aquilo que o autor dos Manuscritos econômico-filosóficos
chamou de desenvolvimentos positivos e que viria a tomar a dianteira nos anos
seguintes e, em verdade, até o final da vida de Marx. Ou seja, não se tem ruptura
entre os anos de 1843-44 e os anos seguintes; antes, o amadurecimento da crítica à
sociedade civil-burguesa é que se coloca na obra de Marx (e de Engels). A
exposição marxiana mostra a dificuldade de conjugar tais críticas, porém, também
deixa clara a necessidade delas, bem com o empenho dispendido nesse sentido.
Tanto os Manuscritos de 1844 quanto os textos dos Anais franco-alemães e do
Vorwärtz são uma espécie de pano de fundo de A sagrada família, em que Marx e
Engels aprofundarão suas críticas à sociedade civil-burguesa. Pelo que se nota, A
sagrada família também aparece tanto como uma antessala de A ideologia alemã
quanto do tratamento posterior de Marx sobre a sociedade civil-burguesa.

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4 Sociedade civil-burguesa, interesses e Estado em A


sagrada Família

A sociedade civil-burguesa, já em Hegel (2003), mas também nos textos de Marx,


é enxergada como uma esfera ligada às necessidades. A base para isso está na
relação entre o homem e a natureza, no caso, tratada por Marx e Engels em A
sagrada família como “necessidade natural”; essa necessidade, de acordo com os
autores, está na base da vida dos homens, tratada por Marx como “vida civil-
burguesa”. A política, e a vida política, somente poderiam se apoiar nessa vida e
nessa sociedade. Os autores mencionam “a necessidade natural, as qualidades
essencialmente humanas” e continuam dizendo que, “por estranhas que possam
parecer umas às outras” (Marx; Engels, 2003, p. 139), elas têm uma relação
indissociável entre si. Desse modo, a necessidade natural “e o interesse mantêm a
coesão entre os membros da sociedade [civil-]burguesa”. (Marx; Engels, 2003, p.
139) Ou seja, a sociedade civil-burguesa precisa ser entendida a partir de seu
próprio funcionamento interno, das necessidades e dos interesses. Isso leva ao
caráter urgente do entendimento sobre as relações econômicas, sobre as classes
sociais, sobre a produção etc. É preciso compreender a anatomia da sociedade
civil-burguesa.

Que ela se relacione com o Estado é um fato. Porém, é da análise do modo pelo
qual a vida civil-burguesa organiza que advém a compreensão da política, e não o
oposto. De acordo com Marx e com Engels, aquilo a manter coesa a sociedade, em
verdade, são as próprias necessidades e os próprios interesses colocados na
sociedade; o Estado aparece como uma predicação da sociedade. E tais interesses
e necessidades ganham a dianteira na análise crítica, que, cada vez mais, leva a
crítica da terra ao solo material.

Marx e Engels são explícitos quanto a isso e reforçam aquilo que já haviam dito
quando falam sobre os indivíduos dessa sociedade que “a vida [civil-]burguesa e
não a vida política é o seu vínculo real.” (Marx; Engels, 2003, p. 139) E, assim, tal
qual nos artigos de 1843-44, bem como na Crítica à filosofia do Direito de Hegel, há
uma afirmação da sociedade como o sujeito e do Estado como o predicado. No
caso, há também um complemento: a vida social dos indivíduos – no caso, a vida
civil-burguesa, com suas necessidades, interesses e classes sociais12 – e não a

12 Tais complementos são recorrentes na obra que aqui analisamos. Há, nesse sentido, avanços em
relação aos textos anteriores. Porém, de modo algum, tem-se uma ruptura, ou um corte em
desenvolvimento em relação à Ideologia alemã, como quer Althusser (2015). Em verdade, caso se
analise a obra marxiana como um todo, percebe-se que sempre há avanços. Sua obra não é um
sistema fechado e há abertura para aprofundamento das análises, bem como da apreensão das

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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 527

política é que precisaria ser compreendida como a base do desenvolvimento social.


Para Marx e Engels, a correlação entre a vida e as necessidades naturais é um
fundamento ineliminável da sociedade, portanto; e, com isso, cresce a necessidade
de compreensão das relações materiais de produção, que serão analisadas com
mais cuidado em A ideologia alemã. Somente ao se compreender essas
determinações da própria realidade, em seus pressupostos reais, é que seria
possível olhar para as formas de consciência, bem como para o desenvolvimento
da vida política. Aquilo colocado nos anos de 1843-44, em especial nos textos dos
Anais franco-alemães e nas Glosas marginais aparece aqui com força. E, com isso, em
A sagrada família, a correlação entre vida civil-burguesa e vida política é destacada,
ao mesmo tempo em que há incursões na análise das bases materiais da sociedade.

A temática apareceu em Sobre a questão judaica na oposição entre bourgeois e citoyen


e é retomada aqui com maior grau de concretude. Aliás, o maior número de
páginas da obra, bem com a maior variedade de autores com quem se tem embates,
trazem em A sagrada família uma relação mais orgânica entre os diferentes graus
de abstração diante da realidade. Nesse sentido, tal obra acaba por aprofundar os
assuntos que são trazidos anteriormente nos artigos de 1843-44. A questão fica
clara também nos embates de Marx com Bruno Bauer, em que o tema da religião e
do judaísmo reaparecem relacionados com os direitos humanos. No item Questão
judaica III, Marx (essa parte do texto não é escrita em conjunto com Engels) retoma
justamente esse embate. E, com isso, tem-se a possibilidade de se aprofundar
aquilo que foi trazido anteriormente. Os termos utilizados pelo autor também são
muito similares àqueles de Sobre a questão judaica; e, assim, as continuidades do
desenvolvimento da temática da política são claras nos anos de 1843-44.
Novamente vale destacar: há incrementos, avanços, não rupturas e cortes entre
esses textos que mencionamos aqui para tratar da política e dos direitos humanos.
Também é preciso deixar claro que a crítica à sociedade civil-burguesa ganha
espaço.

5 A crítica da religião, do Direito e da política: burguesia,


sociedade civil-burguesa, vida civil-burguesa e
direitos humanos em A sagrada família

No livro que aqui analisamos, como já se mencionou, tem-se a unidade entre os


temas mencionados de modo menos orgânico anteriormente. E, com isso, a
inversão entre sujeito e predicado, que está presente em Hegel, bem como na

determinações da realidade, havendo sempre incremento em sua análise, por exemplo, ao se ter
em mente a crítica da sociedade civil-burguesa.

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528 Vitor Bartoletti Sartori

filosofia pós-hegeliana, é criticada por Marx ao se aprofundar a ligação entre a vida


civil-burguesa, a política, as necessidades naturais. Em suma, aquilo que, em A
ideologia alemã, foi colocado como “a base do Estado e da restante superestrutura
idealista” (Marx; Engels, 2007, p. 74) é analisada com cuidado em A sagrada família.
Devemos destacar isso, também, pois são poucas vezes que as palavras “base” e
infraestrutura” aparecem na obra marxiana.

Alguns desses momentos são o famoso prefácio de 1859 (2009) e tal passagem de
A ideologia alemã mencionada acima. Há uma breve referência no 18 Brumário de
Luís Bonaparte (1997) e se tem uma menção em nota de O capital (1996) e em
algumas cartas.

Tal metáfora de Marx – que se prestou a muitas interpretações simplificadoras na


história do marxismo (Cf. Lukács, 2012, 2013) – pode até mesmo não ter a
centralidade que lhe foi atribuída, mas precisa ser analisada quando aparece em
alguma obra. E, nesse sentido, a relação entre a sociedade civil-burguesa e o
Estado, bem como entre a vida civil-burguesa, a vida política e os direitos do
homem pode ser de grande relevo.

Aqui, nosso ponto é que, a partir da análise de A sagrada família, e de seu contexto,
tal relação ganha maior concretude diante do cenário que estamos abordando: só
é possível compreender a relação mencionada remetendo à crítica marxiana à
especulação (ligada à inversão entre sujeito e predicado), à política (relacionada à
subordinação dessa à vida civil-burguesa) e, ao fim, à crítica à própria sociedade
civil-burguesa, cuja anatomia, como diria Marx (2009) posteriormente, está
justamente na economia política. Ou seja, se for para olharmos com calma para a
relação entre a “base” e a “superestrutura” não se prescinde da compreensão
daquilo que José Chasin (2009) chamou das três críticas fundantes do pensamento
propriamente marxiano: a crítica da especulação, da política e da economia
política. Sem olhar para o período formativo da posição propriamente marxiana,
não se tem uma visão adequada da teoria do autor sobre o assunto. Mesmo que
seja essencial tratar das obras posteriores, deixar de lado uma análise detida da
década de 1840 é inaceitável para qualquer estudo sério sobre Marx.

Em A sagrada família, em continuidade com a temática de Sobre a questão judaica,


trata-se do modo pelo qual os indivíduos se apresentam atomizados na sociedade
civil-burguesa. O indivíduo egoísta tratado no texto de 1843 no embate com Bruno
Bauer, assim, aparece aqui também. E a concretude das relações a que está
submetido são explicitadas justamente ao se tratar da subordinação vida política à
vida civil-burguesa.

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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 529

No que é preciso acrescentar: em A sagrada família, a sociedade civil-burguesa


aparece ligada ao domínio de uma classe específica, da burguesia. Esse domínio é
associado por Marx, na continuação de sua polêmica com Bruno Bauer, à vigência
do Direito (em oposição ao privilégio), que, por sua vez, em sua manifestação mais
idealista, remete aos direitos do homem (ou direitos humanos), os quais seriam
explicados a partir da vida civil-burguesa. E, com isso, a universalidade dos
direitos humanos também se liga à tentativa de se universalizar um domínio
específico, aquele da classe burguesa.

Na obra há uma afirmação da natureza classista da vida civil-burguesa: trata-se de


uma vida subsumida aos interesses burgueses e aos imperativos da produção
burguesa. Não se trata só do particularismo de uma sociedade que não consegue
alcançar a unidade em uma espécie de comunidade ilusória como em Sobre a
questão judaica. (Cf. Sartori, 2020b) Agora, as oposições classistas já são tratadas
com maior ênfase no texto que analisamos e no contexto da vida de Marx e Engels.
E, assim, tem-se um momento essencial para o modo de produção capitalista: “a
sociedade civil[-burguesa] é representada positivamente pela burguesia. A
burguesia começa, pois, a governar. Os direitos humanos deixam de existir tão só
na teoria.” (Marx, Engels, 2003, p. 142)

Tanto as Glosas quanto Sobre a questão judaica não eram tão explícitas quanto a tal
aspecto. A necessidade da crítica à sociedade civil-burguesa já aparecia com todas
as letras nesses textos; aqui, ela avança como uma crítica mais detida à sociedade
e à vida civil-burguesa. O movimento que se mostra no texto é aquele de
aprofundamento na apreensão da riqueza de determinações dessa sociedade, que
passa a ser criticada cada vez mais com mais afinco e dedicação pelos autores de
A sagrada família. Há, assim, explicitações e avanços no final do ano de 1844,
momento em que Marx já estuda de modo mais sistemático os autores da economia
política, como mostram seus Manuscritos.

Na obra que aqui analisamos, a vida civil-burguesa, bem como a sociedade civil-
burguesa, possuem uma legítima representante: a burguesia. Trata-se da classe
que ganha destaque no modo de produção capitalista, esse último o qual, no livro,
ganha maior ênfase que anteriormente. Mesmo que seu domínio não esteja
completo na Alemanha, como na França, a França deixa de se colocar como um
norte em qualquer sentido.

Em verdade, tem-se o oposto. A crítica à política é realizada, em A sagrada família,


como uma crítica às ilusões da Revolução Francesa e do entendimento político.

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A base mesma da política está em formas diferentes de escravidão, segundo Marx.


Ele diz que “Robespierre, Saint-Just e seu partido sucumbiram por terem
confundido a antiga comunidade realista-democrática, baseada na real escravidão,
com o moderno Estado representativo espiritualista-democrático, que descansa
sobre a escravidão emancipada, sobre a sociedade [civil-]burguesa.” (Marx;
Engels, 2003, p. 141) O ímpeto heroico, bem como parte das ilusões políticas dos
franceses, repousariam nessa confusão entre a política antiga, baseada na
escravidão, e em uma esfera pública democrática e comunitária para os indivíduos
do sexo masculino, e, doutro lado, a comunidade ilusória da moderna sociedade
civil-burguesa.

A ausência de conhecimento efetivo sobre as bases reais da política, de acordo com


os autores de A sagrada família, é, na verdade, parte constitutiva das ilusões dos
revolucionários franceses, bem como do entendimento político em geral. E, assim,
aqueles que pretendiam a vitória do citoyen e da vida política sobre o bourgeois e a
vida civil-burguesa vieram justamente a efetivar o domínio burguês. A política,
em especial em sua vertente francesa, é criticada profundamente pelos autores.
Eles podem mesmo criticar Bruno Bauer e consortes por adulterar profundamente
os socialistas franceses. Porém, isso não se dá com um apoio à política francesa.
Antes, a crítica presente no livro que aqui analisamos atinge tanto os expoentes da
ideologia alemã quanto o entendimento político, que se desenvolve de modo
clássico justamente nos franceses. Não há, portanto, qualquer elogio acrítico à
política e ao materialismo franceses; antes, a crítica à política, que se coloca no
livro, é detalhada justamente na explicitação das ilusões dos franceses.

Para nossos autores, tal ímpeto político dos franceses baseia-se em uma grande
ilusão. Marx fala, inclusive de uma ilusão gigantesca. A tentativa de implementar
as virtudes cidadãs levaria justamente à anarquia, ao domínio dos interesses
privados, da indústria, da concorrência, enfim, daquilo que perfaz a domínio da
vida civil-burguesa e que precisaria ser tratado com calma em uma crítica da
economia política.

Que ilusão gigantesca ter de reconhecer e sancionar nos direitos humanos


a moderna sociedade [civil-]burguesa, a sociedade da indústria, da
concorrência geral, dos interesses privados que perseguem com liberdade
seus próprios fins, da anarquia, da individualidade natural e espiritual
alienada [estranhada] de si mesma e, ao mesmo tempo, anular a posteriori
em alguns indivíduos concretos as manifestações de vida dessa sociedade,
e ao mesmo tempo formar a cabeça política dessa sociedade à maneira
antiga! (Marx; Engels, 2003, p. 141)

A França e o entendimento político, ao mesmo tempo, trariam consigo certo


heroísmo e gigantescas ilusões. Certamente há diferenças sobre o modo pelo qual

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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 531

se desenvolve o entendimento alemão sobre a situação (o qual é criticado por Marx


e por Engels de modo ácido) e o francês. Porém, em hipótese alguma, seria possível
tomar a vida política francesa, os direitos do homem e o Estado como algo
resolutivo.

Os próprios franceses somente teriam conseguido nutrir tal posição em meio a


ilusões e com certo grau de superstição política. Já em A sagrada família, Marx critica
o domínio burguês como um todo e, para isso, ele precisa também tratar de criticar
o modo pelo qual ele é representado aos homens na vida civil-burguesa e na vida
política. Com isso, tem-se a crítica às ilusões políticas, que, em verdade, se baseiam
no reconhecimento pleno da vida civil-burguesa, tanto no caso alemão quanto no
caso francês.

Trata-se da especificidade nacional dos países e das limitações inerentes à política


e ao entendimento político como tais, retomando a temática das Glosas marginais.

O domínio burguês, inclusive, coloca-se em termos de governo; há também a


afirmação dos direitos humanos e da universalidade do Estado representativo
diante da particularidade dos privilégios e da política medievais. Em A sagrada
família, assim, a ascensão da burguesia significa, portanto, que a unidade dos
indivíduos egoístas é dada, não pelo Estado (como nas filosofias hegelianas e pós-
hegelianas), mas pela sociedade, no caso, aquela em que se tem o domínio burguês,
a sociedade civil-burguesa.

O modo pelo qual se colocam a comunidade ilusória do Estado e a vida em


sociedade, portanto, explicitamente – e não só de modo implícito como antes –
relacionam-se com o domínio da classe burguesa e, portanto, do governo burguês,
da vida civil-burguesa e dos direitos do homem. Marx, em A sagrada família, está
deixando muito clara a ligação indissociável entre a vigência universal dos direitos
humanos e a sociedade civil-burguesa, capitalista, em que a classe que assume a
dianteira é a burguesia.

Sobre esse assunto, em A ideologia alemã, chega-se a dizer que somente se pode falar
da sociedade civil-burguesa como tal com a burguesia, bem como com a ligação
da produção e da troca com o Estado e as distintas formas de consciência que se
colocam na sociedade em que a burguesia aparece como classe dominante. Tem-
se que “a sociedade civil[-burguesa], como tal, desenvolve-se somente com a
burguesia”. (Marx; Engels, 2007, p. 74) O elemento de participação na sociedade,
de “civilidade”, e o elemento “burguês”, portanto, ligam-se de modo ineliminável
na vigência dessa sociedade específica, a sociedade capitalista. Porém, é preciso
destacar também que há um uso da expressão que não corresponde ao modo mais

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próprio dessa sociedade: “com este mesmo nome, no entanto, foi continuamente
designada a organização social que se desenvolve diretamente a partir da
produção e do intercâmbio e que constitui em todos os tempos a base do Estado e
da restante superestrutura idealista.” (Marx; Engels, 2007, p. 74)13

No que se tem tanto o aspecto mais geral da crítica de Marx e de Engels à política
quanto algo mais estrito: de um lado, os autores expressam que em todas as épocas,
é a sociedade, e não o Estado, que é o sujeito da relação existente entre essas duas
esferas. Doutro, porém, os autores da Sagrada família tratam do modo específico
pelo qual a vida política acredita ser capaz de controlar a vida civil-burguesa na
atualidade; tem-se a política, bem como a vida política, ganhando proeminência
justamente com a organização inerente ao domínio burguês e ao modo de
produção capitalista. Nesse sentido, fala-se da forma pelo qual o atomismo aparece
na sociedade capitalista, e da maneira pela qual o Estado parece manter a coesão
dessa sociedade ao passo que isso se dá no próprio âmbito social. Percebe-se,
portanto: só com o domínio burguês é que a ilusão segundo a qual a vida política
é capaz de controlar e subordinar a vida civil-burguesa ganha todas as suas cores
e formas. Pelo que vemos, portanto, a historicidade daquilo que José Chasin
chamou de politicismo é destacada por Marx e por Engels e, em verdade, é parte
importante da sociabilidade burguesa, colocada na vida civil-burguesa. O
momento histórico das ilusões políticas é aquele do domínio burguês, portanto. E
é preciso dizer: especialmente em sua figura francesa, a política traz grandes
ilusões, sendo as ilusões da ideologia alemã muito mais pueris que as francesas. A
crítica marxiana, assim, não se volta somente às ilusões, ou, no limite, à superstição
política. Ele está explicitando a conformação da política como tal, bem como do
modo pelo qual se caracterizam objetivamente os direitos humanos.

A representação dos indivíduos sobre si mesmos, e sua real constituição, convivem


na vida civil-burguesa. A moderna sociedade que Marx está criticando traz como
contraposta à vida civil-burguesa a vida política, ao mesmo tempo em que elas são
complementares ao domínio burguês. Nesse momento é que se tem a superstição
política:

Não é, pois, o Estado que mantém coesos os átomos da sociedade [civil-


burguesa], mas eles são átomos apenas na representação, no céu de sua
própria imaginação...na realidade, no entanto, eles são seres completa e
enormemente diferentes dos átomos, ou seja, nenhuns egoístas divinos,
mas apenas homens egoístas. Somente a superstição política ainda pode
ser capaz de imaginar que nos dias de hoje a vida [civil-]burguesa deve ser

13 Esse uso ainda aparece em Marx na Crítica à filosofia do Direito de Hegel e ele também é retomado
em outras obras, como na própria Ideologia alemã e em A sagrada família.

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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 533

mantida em coesão pelo Estado, quando na realidade o que ocorre é o


contrário, ou seja, é o Estado quem se acha mantido em coesão pela vida
[civil-]burguesa. (Marx; Engels, 2003, p. 139)

Os homens egoístas se conformam dessa maneira devido ao modo pelo qual estão
organizados em sociedade. Não se tem, assim, real e efetivamente, um atomismo
dos indivíduos; antes, os interesses, bem como as necessidades naturais, mediadas
pela vida civil-burguesa, é que fazem com que os indivíduos se apresentem e se
representem a si mesmos como átomos. Há, portanto, um modo de representação
bastante característico à moderna sociedade civil-burguesa: aquele das ilusões e da
superstição política.

Aquilo que José Chasin (2009) chamou de politicismo acaba por ter suas raízes
fincadas, não tanto em um enfoque epistemologicamente equivocado no Estado;
antes, tais raízes estão colocadas na própria sociabilidade burguesa e na vida civil-
burguesa.

Tal aspecto fica especialmente claro no livro que aqui analisamos. Isso ilumina
tanto os artigos de 1843-44, que têm um tratamento mais esparso do assunto,
quanto A ideologia alemã, em que a exposição é mais cifrada em diversos momentos.

Na representação dos homens da sociedade civil-burguesa, em suas vidas, a ilusão


política aparece como um ponto de partida. No que, novamente, volta-se à
temática da inversão especulativa, que é atacada em A sagrada família.

A representação da realidade é tomada como critério dela mesma; ao invés de se


adaptar as representações às determinações do real, as coisas aparecem, como se
dirá posteriormente em A ideologia alemã, como em uma câmara escura, ao
contrário. A representação mesma aparece como uma espécie de substância da
realidade. No caso aqui analisado, o atomismo é tomado como substância (por
vezes, divina) da individualidade; depois, essa substância passa a servir de
parâmetro para os próprios indivíduos reais. Os homens egoístas reais, que se
colocam como tais devido a uma conformação específica da vida, bem como da
sociedade (aquela conformação civil-burguesa), passam a ser vistos como mera
exteriorização da ideia de átomo. E, com isso, tem-se uma inversão pungente. Isso
ocorre tal qual no exemplo, presente em A sagrada família, das frutas, em que “as
frutas reais e específicas passam a valer apenas como frutas aparentes, cujo ser real
é ‘a substância’, ‘a fruta’. Por esse caminho não se chega a uma riqueza especial de
determinações.” (Marx; Engels, 2003, p. 72) Ao invés da apreensão reta das
determinações da própria realidade, um idealismo patente da especulação
filosófica da ideologia alemã. Tal inversão, que é muito comum na esfera da
representação religiosa, aparece também nas filosofias hegeliana e pós-hegeliana

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534 Vitor Bartoletti Sartori

quando tratam da política. E ela acaba por se ligar com a inversão entre sujeito e
predicado colocada na oposição entre sociedade civil-burguesa e Estado: uma vez
os indivíduos aparecem efetivamente como átomos, seria preciso algo alheio à
sociedade para que pudessem ser organizados. E, com isso, na concepção idealista
que é criticada na obra, o Estado é que organiza a sociedade.

Novamente vale ressaltar: ao analisar o livro, não há como separar a crítica da


especulação da crítica da política. E, com isso, remete-se àquilo que daria a tônica
de toda a obra de Marx posterior a 1843, à crítica da sociedade civil-burguesa, que
ganhará destaque em seus textos posteriores em uma crítica à economia política.

Tem-se, assim, uma superstição política, que emerge ao lado da tonalidade


religiosa que ainda aparece no idealismo especulativo de Hegel e dos
neohegelianos. Marx e Engels atacam de modo decidido tal posição. E, para isso,
voltam-se à crítica da sociedade civil-burguesa, crítica essa que progressivamente
ganha concretude. Isso se dá, inclusive, na medida em que a figura francesa da
política é atacada de modo explícito.

Contra tal superstição, seria preciso afirmar de modo decidido que é a vida civil-
burguesa que organiza a vida política e o Estado, e não vice-versa. Tal superstição
aparece como tal com o domínio da burguesia, de modo que ela tem um caráter
classista, tal qual ocorre, de acordo com Marx e Engels, com os direitos humanos.
E, assim, chega-se a um ponto em que a ligação entre a crítica da religião e da
política se mostra explicitamente.

Remetendo aos seus textos anteriores, eles dizem o seguinte em A sagrada família:

Nos “Anais franco-alemães” desenvolveu-se para o senhor Bauer a prova


de que essa “humanidade livre” e seu “reconhecimento” não são nada
mais do que o reconhecimento do indivíduo burguês egoísta e do
movimento desenfreado dos elementos materiais e espirituais que formam
o conteúdo de sua situação de vida, o conteúdo da vida [civil-]burguesa
atual; que, portanto, os direitos humanos não liberam o homem da
religião, mas apenas lhe outorgam a liberdade religiosa, não o liberam da
propriedade, mas apenas lhe conferem a liberdade da propriedade, não o
liberam da sujeira do lucro, mas, muito antes, lhe outorgam a liberdade
para lucrar. (Marx; Engels, 2003, p. 132)

Em A sagrada família, Marx explicitamente remete a Sobre a questão judaica,


publicada nos Anais franco-alemães. Em sua polêmica com Bauer, nos dois
momentos, Marx critica as limitações da emancipação política e do Estado político
pleno, defendidos pelo neohegeliano. (Cf. Sartori, 2020b) Com isso, aquilo que
aparece como a “humanidade livre” e seu “reconhecimento” nos direitos humanos
e na cidadania, em verdade, decorre da própria vida, bem como do movimento

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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 535

dos elementos materiais e espirituais que dão o conteúdo dessa vida, a vida civil-
burguesa. A passagem do céu à terra faz com que a categoria “vida” tenda a ganhar
algum destaque nas teorizações marxianas da época, que procuram aprofundar a
crítica à própria sociedade civil-burguesa. A vida, no entanto, nunca aparece
descaracterizada; ela sempre remete às condições concretas da época e ao modo
pelo qual os homens se colocam em sociedade. Tanto é assim que, no texto que
aqui analisamos, ela aparece principalmente como a vida civil-burguesa, aquela
inerente à própria sociedade civil-burguesa e ao domínio burguês.

Tal qual nos Manuscritos de 1844 (Cf. Hallak, 2018), a categoria vida é importante
para Marx nesse contexto, em que se discute a ligação e correlação do indivíduo
com o gênero humano no processo da atividade humana, cuja mediação
ineliminável e basilar está no trabalho.14 No entanto, em A sagrada família, essa
correlação aparece em um nível de concretude maior que no texto mencionado
anteriormente. E, assim, se nos Manuscritos Marx trata do trabalho estranhado, da
vida e da exteriorização da vida, o que aparece na obra que aqui analisamos tem
outra ênfase: a determinação do modo pelo qual se dá a atividade humana sensível
pela forma pela qual figura a vida, no caso como vida civil-burguesa. Os elementos
trazidos no tratamento marxiano sobre as exteriorizações da vida estão ainda
presentes, certamente. Mas é preciso destacar: as condições concretas pelas quais
essas exteriorizações se dão ganham mais destaque em A sagrada família. Em ambas
as obras, tem-se explícita a necessidade da crítica à sociedade civil-burguesa;
porém, as ênfases são diferentes. O momento de 1844 deixa claro que é preciso
compreender as determinações da própria sociedade. Assim, a crítica à
especulação e à política leva à crítica à sociedade civil-burguesa, o que, como já
dissemos, será desenvolvido posteriormente em uma crítica à economia política.

E, com isso, em A sagrada família, de acordo com o autor alemão, os direitos


humanos trazem, não o reconhecimento da “humanidade livre”, mas o
reconhecimento da riqueza de determinações da própria sociedade e da própria
vida civil-burguesas.

A oposição entre o bourgeois e o citoyen – essencial à Sobre a questão judaica – ainda


está presente, mas isso se dá em maior concretude e com as determinações sociais
mais esmiuçadas. Não há, portanto, qualquer ruptura: há incremento na apreensão

14 É preciso notar que o universo categorial marxiano certamente traz um embate com outros
autores, como o Hegel da Fenomenologia (1992) e com Feuerbach. Porém, de modo algum, há como
reduzir o autor de A sagrada família a qualquer das posições dos outros autores. Em nenhum
momento há simplesmente uma identidade entre Marx, Hegel e Feuerbach. Para uma análise da
especificidade do pensamento de Marx desde o início da década de 1840, Cf. Chasin, 2009 e
Sartori, 2020a.

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536 Vitor Bartoletti Sartori

das determinações do ser-propriamente-assim da sociedade, da vida e das formas


ideológicas.

No movimento histórico analisado no texto que aqui tratamos, não se tem


propriamente a superação da religião, ou da teologia na política ou na filosofia.
Antes, convivem dois movimentos opostos: primeiramente, a vida política se torna
dependente da vida civil-burguesa, em que a liberdade religiosa vige. Em segundo
lugar, a filosofia (mesmo nas versões mais radicais da filosofia pós-hegeliana)
acaba sendo marcada por certa tonalidade religiosa e supersticiosa. Tal aspecto,
diga-se de passagem, é lembrado por Engels até o final de sua vida, ao comentar
sobre a década de 1840, em especial sobre Feuerbach.15 (Cf. Engels, 1982) Marx e
Engels são claros em A sagrada família: tanto teórica, quanto praticamente, não se
tem a superação, a supressão da religião. Em verdade, os direitos do homem
reconhecem a base mesma da religião e da religiosidade, no caso, a vida civil-
burguesa e seus pressupostos reais. E, com isso, vai-se, também, da religião ao
Direito, havendo uma decidida crítica aos direitos humanos no livro dos autores.

Para que a crítica da religião tome um curso adequado, é preciso a crítica ao Direito
e à política. Esses, por sua vez, baseiam-se na vida civil-burguesa, e o movimento
dos textos posteriores será sempre aquele do aprofundamento da crítica a essa
vida.

A superação da sociedade e da vida civil-burguesas são necessárias. No entanto,


ela nunca poderia ocorrer no Estado e na vida políticos. Acreditar nisso seria
igualmente ilusório e traria consigo, no limite, a superstição política. Em verdade,

15 Ao mencionar o nome do autor alemão, não é possível deixar de destacar que importantes autores
chegaram a ver A sagrada família como uma obra essencialmente feuerbachiana, o que não
podemos concordar. Althusser diz sobre a obra que e sobre a crítica Hegel presente nela que “essa
crítica a Hegel não é outra coisa senão, nos princípios teóricos, a retomada, o comentário, ou o
desenvolvimento e a extensão da admirável crítica a Hegel formulada várias vezes por
Feuerbach.” (Althusser, 2015, p. 27) Celso Frederico diz sobre o ano de 1844 que Marx segue
“concebendo o comunismo como a plena realização do ideário comunista de Feuerbach.”
(Frederico, 1995, p. 141) Ele diz ainda que “Marx se aproxima dos aforismos de Feuerbach com
certa liberdade, atribuindo-lhes alcance inimaginável para o autor.” (Frederico, 1995, p. 183) Por
fim, Löwy diz que se tem “o caráter paradoxal da evolução da Introdução à crítica da filosofia do
Estado de Hegel à Sagrada família: o Marx idealista alemão de fevereiro bem como o Marx
materialista francês do fim de 1844 são implícita ou explicitamente “feuerbachianos”!” (Löwy,
2002, p. 159) Não podemos discutir a fundo a posição desses autores, ou as diferenças existentes
entre elas, que são muitas. Porém, é preciso deixar claro que nosso expediente, aquele de uma
análise imanente do texto de Marx, é oposto ao método desses pensadores, que procuram
enquadrar o pensamento marxiano naquele de outros autores (no caso, no de Feuerbach) ao passo
que o desenvolvimento categorial do texto marxiano, por vezes, acaba recebendo menos atenção
do que deveria. Isso se dá porque a preocupação principal acaba sendo ver qual é a referência de
Marx em cada uma de suas frases ao passo que se tem a formação do pensamento propriamente
marxiano, que se coloca desde 1843, como apontou Chasin (2009).

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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 537

tanto o lucro quanto a propriedade não se contrapõem ao citoyen e aos direitos do


homem, portanto.

Elementos importantes para aquilo que posteriormente Marx chamaria de


anatomia da sociedade civil-burguesa, como a propriedade privada e o lucro – e
“a anatomia da sociedade [civil]-burguesa deve ser procurada na economia
política” (Marx, 2009. p. 47) – também ganham mais destaque que antes. Com a
mudança de enfoque (mas nunca o abandono) da crítica da religião e da teologia à
crítica do Direito e da política, Marx, nos anos de 1843-44, vai se aproximando
crescentemente dos elementos que compõem uma crítica da economia política. (Cf.
Maciel, 2021) Com a vigência desses elementos mencionados, bem com o avanço
da burguesia, o privilégio medieval é superado para que o Direito apareça como
uma mediação essencial à vida; tem-se a liberdade religiosa, a liberdade da
propriedade e a liberdade para lucrar. Ou seja, tem-se o reconhecimento do lucro,
da propriedade e da religião como partes da vida do “homem” e como
pressupostos dos direitos humanos, bem como da vida civil-burguesa.

O Estado laico, bem como os direitos humanos, que foram tomados como centrais
por Marx em 1842, na Gazeta Renana, portanto, passam longe de ser resolutivos
agora. (Cf. Pereira Neto, 2018; Sartori, 2020a) Eles são partes importantes do
problema. Os direitos humanos, portanto, não superam a religião e não trazem a
emancipação dos homens concretos diante da religião. Antes, tem-se a superstição
política sendo reconhecida na esfera estatal em um grau de universalidade nunca
visto.

De acordo com A sagrada família, as bases reais da religião, com isso, são elevadas
a outro nível. Elas aparecem, por meio da manutenção de seus pressupostos, tanto
no da política quanto no Direito e, em especial, nos direitos humanos, esses últimos
os quais são parte essencial daquilo que Marx chamou de emancipação política.
Sobre esse contexto, diz-se no texto que aqui estudamos o seguinte:

Assim como o Estado se emancipa da religião ao emancipar-se da religião


do Estado, mesmo ficando a religião confiada a si mesma no seio da
sociedade [civil-]burguesa, assim também o indivíduo se emancipa
politicamente da religião ao comportar-se em relação a ela não mais como
se ela fosse um assunto público, mas sim como se fosse um assunto
privado. (Marx; Engels, 2003, p. 130)

A religião sai do seio do Estado e vai à sociedade civil-burguesa. Como dito


anteriormente, “os direitos humanos não liberam o homem da religião, mas apenas
lhe outorgam a liberdade religiosa”. (Marx; Engels, 2003, p. 132) A religião e a
religiosidade amparam-se na vida civil-burguesa e não no Estado. Assim, a

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538 Vitor Bartoletti Sartori

religião deixa de ser um assunto ligado à forma política da esfera pública e se liga
à vida privada.

A emancipação política do indivíduo diante da religião mantém a política


intocada, bem como sua base, a vida civil-burguesa. No que, com o auxílio de A
sagrada família, é necessário trazer um esclarecimento suplementar a uma
passagem de 1843, que já citamos, na qual Marx diz que “a crítica do céu
transforma-se, assim, na crítica da terra, a crítica da religião, na crítica do direito, a
crítica da teologia, na crítica da política.” (Marx, 2005b, p. 146) É preciso perceber que,
agora, trata-se de criticar as bases da religião, as quais se encontram nos direitos
humanos e na política e que remetem aos elementos da vida civil-burguesa. O fato
de a religião, por vezes, nos países em que segundo Marx a emancipação política
se completa16, ter deixado de ser um assunto público e ter se voltado à vida privada
a torna parte da vida civil-burguesa de modo mais decidido ainda. Na sociedade
em que a forma política ganha proeminência na esfera pública, a vida relaciona-se
com a religião de modo mais próximo ainda, portanto.

No que, novamente, vale destacar: não se supera a religião; ela é colocada em outro
patamar. Os direitos humanos universais trazem uma forma de universalidade
(aquela da política) que se contrapõem à presença da religião no Estado e na esfera
pública. Porém, ela mantém as bases da religião na vida civil-burguesa,
transformando a religião em um assunto privado e tomando os homens, como tais,
como indivíduos, ao mesmo tempo, atomizados e religiosos, egoístas e membros
de uma comunidade ilusória, tanto na esfera privada com a religião quanto na
pública com a política e o Direito.

Ainda sobre esse assunto, é interessante mencionar aquilo que foi chamado em A
sagrada família de comportamento terrorista da Revolução Francesa perante a
religião.17 Nessa revolução, em que a ilusão política foi destacada enfaticamente
por Marx e por Engels, a busca por um Estado laico e o clamor pelo citoyen foram
pungentes. Procurou-se, de modo decidido, o domínio do citoyen sobre o bougeois,
inclusive, sob Napoleão, mesmo que de modo dúplice. 18 E, com isso, não só se teve

16 Quando Marx trata do assunto, ele não diz que todos têm acesso a direitos civis e políticos. Toma
como exemplo a França e os Estados Unidos, de modo que a emancipação política completa não
é sinônimo de abrangência universal da participação cidadã e política. Sobre as dificuldades
dessa abrangência, Cf. Losurdo, 2006, 2004.
17 Como se diz na Sagrada Família, logo depois da passagem que citamos acima: “mostrou-se, enfim,
que o comportamento terrorista da Revolução Francesa perante a religião, longe de contradizer
essa concepção, fez, muito antes, confirmá-la.” (Marx; Engels, 2003, p. 130)
18 O modo pelo qual Napoleão é visto por Marx e por Engels não pode ser tratado aqui. Porém, vale
citar uma passagem dos autores. Nela, vê-se a relação dúplice de Napoleão com a sociedade civil-
burguesa: “Napoleão foi a última batalha do terrorismo revolucionário contra a sociedade

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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 539

a tentativa de se reconciliar as contradições da sociedade civil-burguesa no Estado;


buscou-se a plenitude do Estado, aquilo que apareceu aos filósofos pós-hegelianos
como o “Estado político pleno”.

A política, assim, explicita-se em sua força mais característica justamente na


França, não havendo contradição entre a tentativa decidida e plebeia (no caso,
terrorista, de acordo com Marx e Engels) de colocar a religião na esfera privada e
a afirmação da sociedade civil-burguesa, da vida-burguesa, do interesse classista
e de tudo aquilo que o Estado e a política não podem controlar real e efetivamente.
Em A sagrada família, portanto, a crítica à política adquire uma tonalidade que
remete à Revolução Francesa, a qual, em solo alemão, é tomada como modelo do
Estado político pleno.

Para Marx, no entanto, tal apego à política constitui, em verdade, a superstição


política, bem como as ilusões políticas. Como já se mencionou, a posição defendida
na obra que aqui analisamos é aquela segundo a qual “somente a superstição
política ainda pode ser capaz de imaginar que nos dias de hoje a vida [civil-
]burguesa deve ser mantida em coesão pelo Estado”, no que se continua dizendo:
“quando na realidade o que ocorre é o contrário, ou seja, é o Estado quem se acha
mantido em coesão pela vida [civil-]burguesa.” (Marx; Engels, 2003, p. 139) Ou
seja, o caso francês é tomado criticamente, para que se questione a política e o
entendimento políticos como tais.

Tal concatenação já havia aparecido antes, nas Glosas marginais. Ali também Marx
é claro ao tratar das limitações da política ao dizer que “o intelecto [o
entendimento] político é político exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da política.” E, então, continua o autor deixando clara a unilateralidade da
vida política ao tratar do entendimento político: “quanto mais agudo ele é, quanto
mais vivo, tanto menos é capaz de compreender os males sociais.” (Marx, 2010b,
p. 62) No texto de 1844, tal qual em A sagrada família, a crítica da política é bastante
destacada: vai-se da crítica da religião e da teologia à crítica ao Direito e à política.

burguesa, também proclamada pela Revolução, e sua política. É certo que Napoleão já possuía
também o conhecimento da essência do Estado moderno, e compreendia que este tem como base
o desenvolvimento desenfreado da sociedade burguesa, o livre jogo dos interesses privados etc.
Ele decidiu-se a reconhecer esses fundamentos e a protegê-los. Não era nenhum terrorista
fanático e sonhador. Porém, ao mesmo tempo, Napoleão seguia considerando o Estado como um
fim em si e via na vida burguesa apenas um tesoureiro e um subalterno seu, que não tinha o
direito de possuir uma vontade própria. E levou a cabo o terrorismo ao pôr no lugar da revolução
permanente a guerra permanente. Satisfez até a saciedade o egoísmo do nacionalismo francês,
mas reclamou também o sacrifício dos negócios, o desfrute, a riqueza etc. da burguesia, sempre
que assim o exigisse a finalidade política da conquista.” (Marx; Engels, 2003, p. 142-143)

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540 Vitor Bartoletti Sartori

Também se tem a França como algo importante para a compreensão das


determinações (e limitações) da política.

Sobre isso, Marx aponta que “o período clássico do intelecto [do entendimento]
político é a Revolução Francesa.” No que ele especifica a unilateralidade da vida
política: “bem longe de descobrir no princípio do Estado a fonte dos males sociais,
os heróis da Revolução Francesa descobriram antes nos males sociais a fonte das
más condições políticas.” (Marx, 2010b, p. 62) Com isso, tanto na Glosas quanto na
Sagrada Família, há uma crítica decidida à política, a qual deixa bastante claro: não
se trata da necessidade de se criticar uma figura específica de política, aquela da
Alemanha, em que não estaria desenvolvido o Estado político pleno, ou não estaria
completa a emancipação política. Não se trataria também de buscar a existência, a
vigência e o desenvolvimento completos dos direitos humanos. Antes, em todos
esses textos, tratar-se da crítica à forma política como tal, de modo que se explicita
a própria limitação que caracteriza a política.19

Para Marx e Engels, a superstição política faz parte da própria sociedade civil-
burguesa, sendo a vida política dominada pela vida civil-burguesa. Para nossos
autores, portanto, trata-se de criticar essa própria vida civil-burguesa, bem como
sua organização, a qual posteriormente será analisada com em uma crítica da
economia política. O Estado moderno, por conseguinte, reconhece sua base nos
direitos do homem; porém, esses últimos são o produto autêntico da igualmente
moderna sociedade civil-burguesa. Como já mencionado, isso leva à necessidade
não só da crítica à religião, mas da crítica à política, que redunda naquilo foi
chamado primeiramente por Engels (2020) e, depois, por Marx, de crítica da
economia política. Como diz Marx na Sagrada família:

O Estado moderno reconhece essa sua base natural, enquanto tal, nos
direitos gerais do homem. Mas não os criou. Sendo como é, o produto da
sociedade [civil-]burguesa, impulsionada por seu próprio
desenvolvimento até mais além dos velhos vínculos políticos, ele mesmo
reconhece, por sua vez, seu próprio local de nascimento e sua própria base
mediante a proclamação dos direitos humanos. (Marx; Engels, 2003, p. 132)

Os direitos humanos não são, efetivamente, uma criação estatal, portanto. Em


verdade, de acordo com Marx, eles têm sua base na sociedade civil-burguesa; o
Estado somente reconhece os elementos dessa sociedade de modo oficial.20

19 Acreditamos que essa posição permaneça na obra inteira de Marx; porém, não podemos
desenvolver tal aspecto nesse texto. Para uma visão sobre o assunto na década de 1840, Cf. Sartori,
2020a. A análise do assunto em O capital pode também ser vista. Cf. Sartori, 2021b.
20 Para uma análise cuidadosa da noção de reconhecimento oficial, Cf. Lukács, 2013.

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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 541

Percebe-se, portanto: por mais que o Estado enxergue sua base natural nos direitos
humanos, isso é uma verdade parcial. Ao mesmo tempo em que tais direitos
trazem consigo uma forma de universalidade que se coloca além do privilégio
medieval, essa universalidade mesma é aquela da vida civil-burguesa. Tem-se,
assim, o rompimento com os velhos vínculos políticos e o estabelecimento de
novos. Tais vínculos, agora, remetem aos direitos humanos. O Estado moderno,
com isso, reconhece o local de nascimento e sua base não mais na forma de
privilégios, mas a partir da generalidade desses direitos. Tem-se, com isso, uma
situação em que o Estado pretende controlar a vida dos homens ao mesmo tempo
em que o lucro, o interesse e as necessidades naturais se impõem na sociedade
civil-burguesa e são reconhecidos como uma espécie de base natural.

No livro que aqui tratamos, o “controle social” – para que se utilize a dicção que
Mészáros (1987) tornou célebre – não é possível por meio da vida política. O Estado
e a política tentam reconciliar essa sociedade somente ao passo que não podem e
que vêm a aceitar todos os seus pressupostos e bases. No limite, de acordo com A
sagrada família, há uma interdependência entre a anarquia dessa sociedade e dessa
vida civil-burguesas e a vida política. A situação mesma a qual os revolucionários
franceses ainda buscavam heroicamente dominar, domina os homens que
assumem o governo do Estado moderno.

Como vimos, trata-se do burguês, que, na medida mesma de seu ímpeto ativo,
submete-se a potências estranhadas e sente-se à vontade em meio delas. Como
dizem Marx e Engels na Sagrada família, “a classe possuinte [...]” é marcada pelo
autoestranhamento e ela “se sente bem e aprovada nessa autoalienação [nesse
autoestranhamento], sabe que a alienação [o estranhamento] é seu próprio poder
e nela possui a aparência de uma existência humana” (Marx; Engels, 2003, p. 48) O
deixar-se dominar pelas potências da vida civil-burguesa é visto como uma
existência autenticamente humana, representada na vida política em tons mais ou
menos ilusórios.

Há, portanto, uma ligação entre domínio da burguesia, anarquia, direitos


humanos e sociedade civil-burguesa. Em A sagrada família, isso fica bastante claro
e a simultânea contraposição e condicionamento entre anarquia e a vida política é
destacada:

A anarquia é a lei da sociedade [civil-]burguesa emancipada dos


privilégios que distinguem, e a anarquia da sociedade [civil-]burguesa é a
base do estado de coisas público moderno, assim como o estado de coisas
público é, por sua vez, o que garante essa anarquia. Na mesma medida em
que ambos se contrapõem, ambos se condicionam mutuamente. (Marx;
Engels, 2003, p. 134)

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542 Vitor Bartoletti Sartori

A anarquia e as potências estranhadas da sociedade civil-burguesa passam a fazer


parte da vida dos homens. A vida civil-burguesa é marcada pelo interesse, pelo
lucro e pelo movimento deles na sociedade civil-burguesa. A emancipação diante
dos privilégios, portanto, traz como base natural os direitos humanos, os quais,
com dito, não se opõem ao egoísmo, ao lucro e ao interesse; antes, os pressupõem.
Trata-se, com isso, de um peculiar “estado das coisas público moderno”. Haveria,
porém, outras maneiras pelas quais a esfera pública se manifestaria historicamente
e a forma política não é uma necessidade absoluta, mas algo inerente e
proeminente com o domínio da burguesia.

Na sociedade criticada por Marx e Engels em A sagrada família, a esfera pública


aparece sob a forma política, com a oposição entre a vida civil-burguesa e a vida
política, entre o bourgeois e citoyen, entre a sociedade civil-burguesa e o Estado. O
ímpeto de reconciliar essas oposições, bem como a tentativa de controlar o impulso
dos interesses e do lucro, levam, não tanto à progressiva perfectibilidade da
política e do Estado, como queriam nos filósofos neohegelianos. Antes, tem-se,
objetivamente, em tal sociedade, uma interdependência entre a anarquia que
marca a vida civil-burguesa e a vida política.

Mesmo os direitos humanos, portanto, não são capazes de resolver essas oposições
mencionadas. Eles dependem real e efetivamente delas. No que se tem uma
passagem bastante clara sobre os limites de tais direitos, bem como de sua
dependência:

Demonstrou-se como o reconhecimento dos direitos humanos por parte


do Estado moderno tem o mesmo sentido que o reconhecimento da
escravatura pelo Estado antigo. Com efeito, assim como o Estado antigo
tinha como fundamento natural a escravidão, o Estado moderno tem como
base natural a sociedade [civil-]burguesa e o homem da sociedade [civil-
]burguesa, quer dizer, o homem independente, entrelaçado com o homem
apenas pelo vínculo do interesse privado e da necessidade natural
inconsciente, o escravo do trabalho lucrativo e da necessidade egoísta,
tanto da própria quanto da alheia. (Marx; Engels, 2003, p. 132)

O fundamento natural do Estado antigo seria a escravidão; o Estado moderno teria


como base os direitos humanos, bem como tudo aquilo que acompanha a vida
civil-burguesa. Desse modo, é interessante notar que sequer haveria, real e
efetivamente, uma tensão entre a realização desses direitos, o interesse privado, a
necessidade natural inconsciente, o trabalho lucrativo e a necessidade egoísta; em
verdade, o “homem” das declarações de direitos humanos seria justamente o
homem da sociedade civil-burguesa.

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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 543

Para Marx e Engels, em A sagrada família, tem-se o Estado, reconhecimento e


escravidão nos dois casos; no primeiro, aquela vigente na sociedade antiga; no
segundo, aquela da sociedade moderna, a sociedade civil-burguesa, que traz o
escravo do trabalho lucrativo e da necessidade egoísta. Os autores são categóricos:
aquilo que compõe a vida civil-burguesa é deixado intocado pelas declarações de
direitos; na verdade, elas reconhecem tais elementos como uma espécie de
fundamento natural. É preciso ser explícito, portanto: o que posteriormente será
tratado na crítica da economia política já elaborada aparece nos direitos humanos
como um pressuposto insuprimível.

A existência desses direitos significa justamente que estão vigentes os impulsos do


interesse privado e da necessidade inconsciente, os quais se impõem como uma
potência estranha sobre os homens. Com isso, o autoestranhamento dos homens
da sociedade civil-burguesa “é seu próprio poder e nela possui a aparência de uma
existência humana.” (Marx; Engels, 2003, p. 48) O estranhamento político que se
coloca entre o Estado e a sociedade, assim, é pungente. (Cf. De Deus, 2014) Os
direitos do homem – ou direitos humanos – estão fundados nesse estranhamento
e na escravidão diante das potências estranhadas que se impõem. Eles tomam a
vida civil-burguesa como sua base natural. No lugar do controle consciente das
condições de vida, da necessidade consciente, tem-se a anarquia. A superação do
privilégio no Direito leva a vida dos homens à submissão a potências estranhas de
modo ainda mais forte que anteriormente.

A vigência dos direitos gerais do homem, bem como seu reconhecimento pelo
Estado moderno, é um produto da sociedade civil-burguesa. E, com isso, tem-se
tanto um desenvolvimento para além dos velhos vínculos que se colocam de
maneira política quanto a emergência de potências estranhas que fundamentam
uma vida política marcada pela imposição do interesse privado, da necessidade
inconsciente, o trabalho lucrativo e a necessidade egoísta. A superação do
privilégio, bem como a vigência dos direitos humanos e de seu caráter universal,
trazem a universalidade da vida civil-burguesa.

Para A sagrada família, isso é reconhecido pelo Estado na moderna sociedade civil-
burguesa, com seus direitos naturais do homem, e com o domínio da burguesia.

6 Apontamentos finais

A sagrada família é um livro que esclarece os posicionamentos de Marx e de Engels


sobre a política, os direitos humanos e a sociedade civil-burguesa. Todos esses
temas são recorrentes nos artigos de 1843-44. Porém, como vimos, eles aparecem
de modo mais articulado na obra. Essa articulação explicita a relação entre a crítica

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544 Vitor Bartoletti Sartori

à religião e à teologia e a crítica ao Direito e à política. Isso ocorre de modo que a


ligação existente entre a crítica à especulação, à política e à economia política
acabam por se mostrar como indissociáveis e como algo que, na obra dos autores,
está em constante desenvolvimento.

A obra de que tratamos, assim, traz uma espécie de liame entre os artigos dos Anais
franco-alemães, do Vorwärtz e dois textos de mais fôlego, os Manuscritos de 1844, em
que explicitamente Marx se depara com a economia política de modo mais intenso,
e A ideologia alemã, em que, pela primeira vez, a contradição fundamental colocada
entre desenvolvimento de forças produtivas e as relações de produção é trazida à
tona. Há, em A sagrada família um aprofundamento na crítica à própria sociedade
civil-burguesa, que ganharia centralidade posteriormente, principalmente, a partir
da crítica à sua anatomia.

Mostramos aqui que o desenvolvimento da crítica à sociedade civil-burguesa


ganha densidade. Com isso, a obra que analisamos prepara terreno para o modo
pelo qual o processo histórico que marca essa sociedade seria tratado em A ideologia
alemã. Tem-se também uma articulação mais clara entre a crítica da religião, da
política e do Direito. Ou seja, o papel dessa obra na conformação do pensamento
de Marx e de Engels é grande.

Nela, aparecem também as especificidades da Alemanha e da França no que diz


respeito à política. E, sobre esse ponto, é importante destacar que Marx e Engels
são muito duros quanto àquilo que viriam a chamar depois de a ideologia alemã;
eles mostram como que a “crítica crítica” lê a seu modo – um modo equivocado,
na essência – a tradição francesa. Porém, fica claro também que os autores de A
sagrada família não estão defendendo como suas posições aquelas do materialismo
francês e da política francesa.

Antes, eles são explícitos: as ilusões políticas são abundantes na França. A


superstição política aparece tanto por lá quanto na Alemanha, por sua vez. E,
assim, não se trata de encontrar uma figura política capaz de reconciliar a
sociedade civil-burguesa.

Seria preciso criticar tanto a vida política quanto a vida civil-burguesa. Tal qual
nos artigos de 1843-44, há uma clara crítica à política, não só em uma manifestação
específica, mas naquilo que lhe é inerente. A contraposição entre Alemanha e
França mostra como é vil o idealismo especulativo da ideologia alemã; porém,
passa longe de trazer a França como modelo político. Antes, o que se dá é que os
franceses fornecem o modo clássico pelo qual se desenvolvem as ilusões políticas,
que precisam ser criticadas.

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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 545

Tais ilusões, por sua vez, não são somente um simples equívoco francês, ou um
erro na cognição daqueles que enxergam a França de modo idealista. De acordo
com Marx e com Engels, tanto a religião quanto a ilusão política passam a fazer
parte da vida civil-burguesa. Os autores alemães identificam um modo específico
de representação que caracteriza o domínio da burguesia: aquele das ilusões
políticas. Trata-se, portanto, de algo assentado sobre vida dos homens da
sociedade civil-burguesa, ou seja, sobre condições objetivas de uma época. A
superação dessas ilusões, portanto, não poderia se dar no plano simplesmente
teórico. Seria necessário suprimi-las praticamente. E, para isso, a compreensão da
organização da sociedade civil-burguesa, com o fim de a suprimir, seria necessária.
Em A sagrada família, portanto, tem-se passos importantes em direção à crítica à
própria sociedade e àquilo que seria chamado de anatomia dessa sociedade, a
economia política, a qual já começa a ser estudada com afinco nos Manuscritos de
1844.

O entendimento político, por sua vez, buscaria dominar a sociedade civil-


burguesa, bem como retirar a religião da esfera pública, como ocorreu na França.
De acordo com nossos autores, porém, o que ocorreu foi: a religião é retirada da
esfera pública e é tomada como parte da própria vida civil-burguesa; os homens
tentam controlar a sociedade por meio da política somente ao passo que se deixam
dominar por potências estranhas que se impõem no lucro, no interesse, no
comércio etc. Todos esses são tomados como uma espécie de base natural tanto na
vida política quanto nos direitos humanos. E, assim, longe de o Direito e a política
conseguirem se opor àquilo que se coloca como a anarquia da sociedade civil-
burguesa (anarquia essa marcada pelos indivíduos proprietários com interesses
contrapostos e irreconciliáveis), eles reconhecem o estranhamento das potências
sociais como uma base espécie de segunda natureza. Direito e política são
incapazes de reconciliar as oposições que marcam a vida civil-burguesa.

A superação do privilégio leva à universalidade do Direito, colocada nos direitos


do homem; esses últimos aparecem como uma base natural; seus fundamentos se
encontram na vida e na sociedade civil-burguesas, que tomam a escravidão diante
do trabalho e do lucro como pressuposto. Isso não seria somente uma
peculiaridade dos países em que a política não está desenvolvida suficientemente.
Marx e Engels são bastante claros: o reconhecimento dos direitos humanos possui
a mesma função na sociedade moderna que o reconhecimento da escravidão teve
na sociedade antiga. Em verdade, a aceitação de figuras distintas de escravidão é
um pressuposto daqueles que tomam as declarações de direitos, ou a vida política,
como algo que pode ser resolutivo. E isso é verdade, seja na Alemanha, na França
ou em qualquer outro lugar.

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546 Vitor Bartoletti Sartori

A sagrada família, portanto, mostra-se como um texto que reafirma a posição de José
Chasin segundo a qual haveria no pensamento marxiano uma confluência entre
crítica à especulação, à política e à economia política. Também se tem confirmada
a crítica marxiana à política e à forma política como tais. E é possível se notar que,
depois de 1843, há um reforço e um desenvolvimento da crítica marxiana (e
engelsiana) à sociedade civil-burguesa, de modo que não se pode falar
simplesmente de “obras de juventude” que se colocaria entre “dois grandes
períodos essenciais: o período ‘ainda ideológico’, anterior ao corte de 1845, e o
período científico, posterior ao corte de 1845.” (Althusser, 2015, p. 24) O ímpeto
marxiano é aquele de uma crítica decidida à sociedade civil-burguesa e à sua
organização interna, desde os artigos dos Anais franco-alemães.

Se é verdade que essa crítica vai progredir e ganhar concretude durante toda a
vida do autor, não se pode estabelecer cortes e rupturas. É preciso perceber as
diferenças entre os diversos textos de Marx, certamente. Porém, as continuidades
precisam ser destacadas e, na percepção desses elementos – tanto que diferenciam
quanto que trazem similitudes –, A sagrada família pode ser importante,
estabelecendo nexos entre textos que foram vistos como pertencentes a períodos
marcados por uma ruptura ou por um corte.

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550 Vitor Bartoletti Sartori

Sobre o autor
Vitor Bartoletti Sartori
Professor adjunto da faculdade de Direito e Ciências do Estado da
UFMG, doutor em filosofia do Direito pela USP e mestre em história
social pela PUC SP

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.48981

em defesa da pesquisa

A economia política latino-americana da


pena
La economía política latinoamericana de la pena

The Latin American political economy of punishment

Leonardo Evaristo Teixeira1


1
Universidad Autónoma de San Luis Potosí, San Luis Potosí, San Luis Potosí,
México. E-mail: [email protected]. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-3025-9537.

Submetido em 08/06/2023.
Aceito em 18/07/2023.
Pré-Publicação em 16/08/2023.

Como citar este trabalho


TEIXEIRA, Leonardo Evaristo. A economia política latino-americana da
pena. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 551-
585, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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552 Leonardo Evaristo Teixeira

A economia política latino-americana da


pena

Resumo
A economia política da pena tem sido um importante marco de análise e interpretativo
entre as formas de produção e as modalidades de punir, no entanto, as formulações desde
o Norte global não servem em sua totalidade para interpretar a realidade latino-americana.
Nesse sentido, o artigo busca situar esse marco na América Latina a partir de uma
economia política latino-americana da pena cujo contexto é o da dependência e da
autocracia estatal burguesa. Após aprofundar estas balizas, situaremos as produções
brasileiras neste campo e articulando duas importantes contribuições críticas e oxigenadas
deste marco.
Palavras-chave
Economia política latino-americano da pena. Teoria Marxista da Dependência. Estado
autocrático burguês.

Resumen
La economía política de la pena ha sido un importante marco de análisis e interpretativo
entre las formas de producción y las modalidades de castigar, sin embargo, las
formulaciones desde el Norte global no sirven en su totalidad para interpretar la realidad
latinoamericana. En este sentido, el artículo busca situar ese marco en América Latina a
partir de una economía política latinoamericana de la pena cuyo contexto es el de la
dependencia y la autocracia estatal burguesa. Después de profundizar estas balizas,
situaremos las producciones brasileñas en este campo y articulando dos importantes
contribuciones críticas y oxigenadas de este marco.

Palabras-clave
Economía política latinoamericana de la pena. Teoría Marxista de la Dependencia. Estado
autocrático burgués.

Abstract
The political economy of punishment has been an important framework of analysis and
interpretation between the forms of production and the modalities of punishment,
however, the formulations from the global North do not serve in their entirety to interpret
the Latin American reality. In this sense, the article seeks to situate this framework in Latin
America from a Latin American political economy of punishment whose context is that of
dependence and bourgeois state autocracy. After deepening these goals, we will situate the
Brazilian productions in this field and articulating two important critical and oxygenated
contributions of this framework.
Keywords
Latin American political economy of punishment. Marxist Theory of Dependency.
Bourgeois autocratic State.

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A economia política latino-americana da pena 553

Introdução

A economia política da pena tem sido tratada como uma orientação da


criminologia crítica, de derivação marxista e foucaultiana, que, a partir da década
de 1970, investigou a relação existente entre a economia e o controle social por
meio de estudos conjuntos das formas de produzir e determinadas modalidades
de punir (De Giorgi, 2006, p. 31). Inclusive, é vista como um marco interpretativo,
de caráter estrutural, para explicar e situar a pena (sua característica, extensão e
intensidade) em uma determinada sociedade de forma concreta (Brandariz, 2019,
p. 13-14).

Essa tradição do pensamento criminológico parte sobretudo da clássica obra de


Georg Rusche e Otto Kirchheimer, em Pena e estrutura social (2004), originalmente
publicada em 1939, e de seus sucessores, como Dario Melossi e Massimo Pavarini,
com Cárcere e Fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX) (2010), ao
analisarem o contexto do Norte global (Europa e Estados Unidos).

No entanto, nossa preocupação é outra. Não é realizar uma revisão bibliográfica


desses estudos, senão, é contribuir às bases do pensamento jurídico crítico latino-
americano com a economia política da pena. Para tanto, buscaremos compreender
como a economia política da pena configura-se na realidade da América Latina.

Partiremos das contribuições, sobretudo, da Teoria Marxista da Dependência


(TMD) e da categoria Estado autocrático burguês, de Florestan Fernandes, com o fim
de entender como o nosso contexto (ou contextos, no plural), de um Estado
historicamente autocrático e forjado estruturalmente no capitalismo dependente,
exige pensarmos a particularidade das estruturas dessa economia política da pena,
desde uma episteme crítica e heterodoxa como nos inspira José Carlos Mariátegui
(2007).

Apesar de partirmos nesta investigação de uma economia política latino-americana


da pena1 –embora a tradição não a situe geograficamente–, fazemos isso por duas
razões. Os seus fundamentos estruturantes são heterogéneos, primeiro, por
partirmos de uma realidade de capitalismo dependente; segundo, pela autocracia
violenta do Estado latino-americano desde sua gênese colonial constituída na
opressão de classe, raça, gênero e sexualidade.

1 Este termo foi por nós utilizado inicialmente em Breves apuntes para una economía política
latinoamericana de la penalidad (Teixeira, 2022a), o qual desenvolvemos rapidamente acerca da
vinculação da economia política da pena na América Latina com a TMD, sendo aprofundado
posteriormente em Teixeira (2022b).

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554 Leonardo Evaristo Teixeira

E ao partir da análise brasileira, não é retirado a sua latinidade uma vez que esses
dois fundamentos encontram sustentação na realidade heterogênea dessa América
Latina, e que refletem diretamente no modo como ocorre a economia política da
pena e o pensar criminológico.

Nesse sentido, é possível perceber certos padrões na essência (e não na aparência)


no modo como determinados fenômenos são desenvolvidos. Em outras palavras,
podemos perceber divergências quanto à manifestação ou configuração da
criminalidade ou do desenrolar da política da segurança pública, para citar alguns
exemplos, entre Brasil, México e El Salvador, que são aparentes, pois existe uma
tendência similar entre padrões das políticas criminais e das políticas de
(in)segurança pública. Uma dualidade contínua entre um maior uso da força
coercitiva, mais criminalização e menos garantias processuais, em contraste com a
contenção do braço penal do Estado. Diga-se de passagem, um Estado “cada vez
mais” neoliberal e com as respectivas características inclusive inerentes a sua
formação sociohistórica.

Adentrando nesses exemplos, as operações nas favelas brasileiras com a


espetacularização da ocupação do Morro do Alemão, em 2010, no Rio de Janeiro,
seguida com a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs),
recuperadas desde a experiência de Medellín, Colômbia, ou até mesmo com a
assunção da segurança pública pelos militares –ou seja, militarização da segurança
pública– desde o uso das operações de garantia da lei e da ordem (GLOs), são um
dos inúmeros casos da maximização do direito penal aqui no Brasil. Igualmente,
com as experiências do México com a guerra às drogas de Felipe Calderón (2006-
2012) e Enrique Peña Nieto (2012-2018), tiveram na centralidade desta guerra a
suspensão das garantias individuais e na instauração de uma guerra interna e
declarada no país. O caldeirão da violência latino-americano não pararia e não
para por aí, pois, a isso e mais recentemente podemos testemunhar o ostracismo à
democracia pelo presidente eleito, em 2019, em El Salvador, Nayib Bukele. Ao
surfar na onda de combate à criminalidade, por meio da guerra às drogas e ao
crime organizado, e ante à crise de legitimidade da política tradicional, Bukele tem
implementado um verdadeiro Estado de exceção, começando com a destituição
dos ministros da Suprema Corte salvadorenha, sanha esta almejada e não
conquistada pela administração de Jair Bolsonaro (2019-2022), além das prisões
indiscriminadas e em massa. Assim, o modo de atuação de cada Estado diverge-
se, mas apresenta especificidades na essência, em suma: o controle territorial, logo,
de grupos e/ou classes sociais sob a famigerada guerra às drogas, combate à
criminalidade ou crime organizado etc.

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A economia política latino-americana da pena 555

Esse parêntesis é aberto justamente para dizer que há uma totalidade que não pode
ser homogeneizada, assim como as especificidades de cada rincão da América
Latina. Estamos situando o que Aníbal Quijano (2000, p. 354-355) entendeu como
particularidade heterogênea, cujas partes do todo não devem ser atomizadas e
movem-se conjuntamente, com autonomia relativa e até mesmo conflitiva, mas
que não deixa de ser uma unidade total em sua heterogeneidade.

O método do materialismo histórico-dialético de Marx (2013) é o nosso


movimentar e elaboração de nossas análises, que se entrelaça com o marco da
economia política da pena, geralmente, por seus autores ou autoras que fazem o
seu uso enquanto método de análise dos fenômenos estudados, além da própria
TMD.

É por meio das duas mencionadas mobilizações, que apresentaremos a situação da


economia política da pena na América Latina, partindo de seus fundamentos e
situando as formulações brasileiras nesse sentido.

1 Breves apontamentos da criminologia e sua


epistemologia crítica e marxista na América Latina

O pensar a partir da América Latina tem sido um desafio não só epistemológico,


senão também da própria práxis: trata-se de pensar a partir daqui que, para
Edgardo Lander (2005, p. 7), é necessário um esforço para desconstruir o
universalizado e naturalizado da sociedade capitalista-liberal, o que requer
questionamento da objetividade e neutralidade dos elementos que legitimam a
ordem social, muitas vezes instrumentalizados em saberes pelos quais se
denominam ciências sociais.

Tal como se deu com as criminologias críticas do sul latino-americanas –


criminologia da libertação, criminologia radical, criminologia latino-americana,
criminologia feminista, criminologia marxista, criminologia dialética etc.–, na
busca por sua legitimação e autonomia científica, é o que passa com a economia
política da pena que reivindica refletir desde a realidade concreta e, em grande
medida, de verniz marxista.

No entanto, ao menos a partir do Brasil, é visto um intenso debate com propósitos


de desqualificar as contribuições do pensamento marxista com a Criminologia
Crítica quando sustentam a tentativa de uma imposição de uma teoria universal
sem o contato com a realidade da América Latina, além das perspectivas chamadas
descoloniais, que discutem raça e gênero (Batista, 2021, p. 15).

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556 Leonardo Evaristo Teixeira

Na verdade, esse não é um debate novo na América Latina e Rosa del


Olmo foi a grande pioneira de uma crítica que Máximo Sozzo denominou
de tradução literal de teorias do hemisfério norte, do positivismo ao
pensamento marxista, sobre a questão criminal. A grande Rosa apresentou
sua proposta em dois livros: A Ruptura Criminológica e a Segunda
Ruptura Criminológica. Toda a sua imensa e intensa obra trata de um olhar
sobre nossa realidade: das drogas à situação das mulheres presas na região
andina. Quero dizer com isso que a Criminologia Crítica latino-americana
desde sempre tratou de aprofundar-se em nossa realidade letal. O grande
livro de Zaffaroni no final da década de oitenta, Em Busca das Penas
Perdidas, tratava da deslegitimação do sistema penal e da crise do discurso
jurídico-penal em nosso continente. Seu livro anterior, Criminologia -
Aproximación desde un Margen, é uma aula sobre a questão criminal na
Pátria Grande. Junto ao livro de Rosa, A América Latina e sua
Criminologia, formam a base de uma história de nosso pensamento
criminológico partir de um olhar deslegitimante da pena (Batista, 2021, p.
15, itálico no original).

De qualquer modo, como nos recorda Vera Regina Pereira de Andrade, a base
epistêmica originária da criminologia crítica é o interacionismo simbólico e o
marxismo, a partir dos Estados Unidos e Europa, ao longo da década de 70, até
chegar à América Latina, proporcionando um salto qualitativo com sua moldura
analítica em nossas análises. E não há como renegar sobretudo quando, em sua
origem, o pensamento criminológico latino-americano alarga essa mesma
moldura, agregando uma episteme plural com o interacionismo simbólico e o
marxismo (com Lola Aniyar de Castro, Juarez Cirino dos Santos, Roberto Lyra
Filho), assim como com os estudos da teoria da dependência, da microfísica do
poder, e do funcionalismo e liberalismo político (com Roberto Bergalli, Rosa Del
Olmo, Raúl Zaffaroni); e também quando o sistema capitalista continua sendo, no
século XXI, a estrutura central e constitutiva de nossa forma de produção e
reprodução social, condicionando o controle sociopenal (Andrade, 2020).

Sem dúvida, as contribuições criminológicas da América Latina têm buscado


incessantemente deslegitimar a pena, bem como as formas do controle social e
jurídico-penal, os processos de criminalização, as instituições totais, e as
contribuições do(s) marxismo(s) são essenciais a esse processo, apesar de não
serem as únicas. Como nos lembra Lola Aniyar de Castro (2005, p. 58), nossa
criminologia tem que ser como uma teoria crítica do controle social, que em seus
pressupostos anseia pela superação da criminologia como controle social.

Em maior ou menor medida, é esse caminho que segue a reivindicação de uma


economia política latino-americana da pena. Tem-se assim a necessidade imediata
em compreender os processos de conformação da criminalização, a configuração
da pena e a atuação das instituições e agentes estatais na periferia dependente

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A economia política latino-americana da pena 557

formada na gênese da violência autocrática do Estado, o que torna um grande


desafio para nós criminólogos e criminólogas marxistas partir da dinâmica da
totalidade crítica e de uma crítica heterodoxa.

Para proporcionar a especificidade da economia política da pena na América


Latina, veremos agora a importância de partirmos da dependência latino-
americana, e de suas categorias de análise.

2 Por que partir da dependência?

Ao falar em dependência latino-americana, fazemos referência às contribuições da


TMD, pensadas por autores como Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra, Ruy
Mauro Marini, além de André Gunder Frank, apesar de este não estar vinculado
necessariamente a esta corrente. Para além deles e dela, há diversos outros estudos
e sínteses que dali derivam, como, por exemplo, de Mathias Seibel Luce, Jaime
Osorio, Ricardo Prestes Pazello etc.

Nossa discussão central está nas categorias da transferência de valores entre


economias subdesenvolvidas/dependentes com as consideradas desenvolvidas; e
na superexploração da força de trabalho, sendo o modo necessário para que o
controle sociopenal possibilite que ocorra a acumulação e expansão do capital em
sua ordem sociometabólica2 na América Latina.

Sem qualquer pretensão de apresentar alguma definição sobre a dependência


latino-americana, sob possibilidade de limitar sua vasta formulação teórica, vemos
mais frutífero situar seu contexto de formulação e trabalhar com categorias 3 que
dão seu sentido nesta investigação.

O seu surgimento, entre as décadas de 1960 e 1970, é dado pela ebulição social de
grupos populares e sociais na América Latina e da contrarrevolução empreendida
pelos setores empresariais-militares. Neste momento, ocorreria a configuração de

2 Entendemos que a expansão e acumulação do capital está inserido naquilo que István Mészáros
(2011) denominou de ordem sociometabólica do capital, cujas crises são inerentes à forma desse
sistema de expandir-se e acumular cada vez mais, porém, fundando-se na necessidade de criar
mediações de segunda ordem para a maximização e naturalização de sua orientação. O controle
social e o jurídico-penal cumprem o papel da mediação das necessidades do capital no tecido
social mesmo, e exercendo seu controle a partir daquilo que a criminologia crítica classicamente
define como parte do controle formal e informal, subterrâneo ou aparente etc.
3 Devido a nossa limitação, não abordaremos aqui as cinco categorias sintetizadas por Ricardo
Prestes Pazello (2014) ao partir da TMD e de seus autores/as, permitindo a apreensão de seus
sentidos e apesar de sua importância, quais sejam: totalidade, relacionalidade, condicionalidade,
internalidade e rigor tipológico, que são trabalhadas sobretudo a partir de Dos Santos, Bambirra
e Marini.

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558 Leonardo Evaristo Teixeira

uma nova etapa de produção capitalista com a associação da burguesia interna


com a burguesia internacional. Para além disso, tentam compreender o processo
de industrialização latino-americano de substituição de importações que se
direcionou na década de 1930 e das transformações geopolíticas que daí
decorreram (Dos Santos, 1998, p. 7).

Se historicamente, ante o processo de espoliação colonial, impunha-se à América


Latina uma economia exportadora de matérias-primas e de bens agrícolas para as
metrópoles ou ao centro global, os processos de independências, assim como os
conflitos que assolaram o Norte global, possibilitou um certo grau de
desenvolvimento nos países até então considerados atrasados. Desse modo, o
processo de industrialização criou uma dualidade entre Norte e Sul marcados pela
ideia de desenvolvimento e subdesenvolvimento.

Abrir-se-ia caminho à compreensão do que tanto o desenvolvimento como o


subdesenvolvimento tratavam de resultados históricos do próprio
desenvolvimento capitalista, em que o subdesenvolvimento seria sinônimo da
ausência de desenvolvimento. É justamente por esse momento que os críticos desta
ideia começam suas formulações, entre 1960 e 1970, para compreender as
limitações dessas formulações (Dos Santos, 1998, p. 7). Como lembrou Vânia
Bambirra (1974, p. 13): “Los países capitalistas desarrollados y los países periférico
componen una misma unidad histórica que hizo posible el desarrollo de uno e
inexorable el atraso de otros”.

O fato de existir, de um lado, países avançados e, de outro, países considerados


atrasados mostra a lógica estrutural do capital, a partir do desenvolvimento
desigual e combinado formulado por Léon Trotsky4. Evidencia, assim, que este
desenvolvimento entre os indistintos países ocorre por avanços per saltum, devido
à desigualdade no ritmo do processo histórico que combina, no complexo sistema
das relações socioeconômicas, as estruturas arcaicas com aquelas mais modernas
(Löwy, 1998). Não por causalidade que, nesse período, as formulações, como dos
partidos comunistas, objetivavam a aliança de classes entre os explorados e a
burguesia interna progressistas, devendo o proletariado buscar a hegemonia neste
processo; e a Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (CEPAL)
fomentava uma visão desenvolvimentista em que a América Latina deveria seguir
o caminho das sociedade tradicionais no seio do Estado (Gava Caciatori, 2021, p.

4 Mathias Seibel Luce (2018, p. 11) faz uma importante observação sobre a influência do
desenvolvimento desigual e combinado, que apesar de ser formulado por Trotsky, as fontes
principais da TMD são “a teoria do valor de Marx e a teoria do imperialismo e o debate sobre a
diferenciação das formações econômico-sociais e o desenvolvimento desigual em Lenin”.

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A economia política latino-americana da pena 559

13-14). Portanto, vemos aqui formulações etapistas ou gradualistas do capital em sua


forma pura.

Assim, o capital e os países capitalistas centrais, ao se desenvolverem desde o


esbulho colonial e de uma organização internacional do trabalho que os
favorecessem, possibilitaria a dual ideia entre desenvolvido e subdesenvolvido. A
análise do desenvolvimento do subdesenvolvimento viria com André Gunder Frank
(1967), em que entenderia que o subdesenvolvimento só existe dentro de uma
totalidade do capitalismo que se estrutura a partir da ideia do desenvolvimento,
pois, para que um possa ser desenvolvido, necessita do subdesenvolvimento do
outro, traduzindo-se normalmente em superexploração da força de trabalho, categoria
esta de Marini.

Avançando no debate, daremos atenção às discussões da transferência de valores


entre as economias subdesenvolvidas e desenvolvidas e sobre a superexploração
da força de trabalho.

No capitalismo dependente, enquanto as economias centrais têm vigente a lei do


valor, nas economias dependentes há sua transgressão, sendo o capital uma
totalidade integrada e diferenciada (Luce, 2018, p. 28-31). Nesse sentido, o capital
necessita negar a lei do valor, o que permite a valoração deste capital e não
significaria a sua superação, sendo estes os termos da dialética da dependência.

Na Dialéctica de la dependencia, Marini (1981) explica sobre a diferente formação


entre o Norte e Sul, e suas respectivas especializações, que, enquanto o Norte
industrializava-se, o Sul consolidava como uma economia agroexportadora, com
uma divisão internacional do trabalho.

O imprescindível papel da América Latina para o desenvolvimento das forças


produtivas nos países desenvolvidos, possibilitou que o mercado mundial
dividisse a produção do mais-valor em absoluto e relativo5, em outros termos,
possibilitou que a acumulação passasse a depender mais do aumento da
capacidade produtiva do trabalho do que simplesmente da exploração do
trabalhador. Sem embargo, o processo é contraditório, ao mesmo tempo que
permitiu a menor exploração do trabalhador nas economias centrais, foi necessário
uma maior exploração do trabalho nas economias dependentes (Marini, 1981, p.

5 Em suma, o mais-valor absoluto refere-se ao lucro proveniente do aumento das horas de trabalho,
enquanto no relativo há uma diminuição do trabalho necessário devido ao incremento das forças
produtivas –o aumento da composição orgânica do capital– como pelo desenvolvimento
tecnológico. No entanto, como o capital não objetiva o desenvolvimento humano, senão o lucro,
as horas de trabalho que não mais são necessárias seguem aumentando.

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560 Leonardo Evaristo Teixeira

23). E isso foi possível porque houve a diminuição do valor mínimo necessário
para a subsistência da classe trabalhadora, justamente pela transferência de valor
como intercambio desigual desde a superexploração da força de trabalho das
economias periféricas6.

Essa transferência de valor é a não-identidade entre a magnitude do valor


produzido e a do valor apropriado, provocado pela existência de distintos níveis
de intensidade nacional do trabalho. Refere-se assim à possibilidade das nações
produtivas (e não dependentes) de não necessitarem e de não se verem obrigadas
a baixar o preço de venda de suas mercadorias até o limite do seu valor. Isso
porque, produzem abaixo do preço de produção e podem ser apropriados na
esfera da circulação do excedente do mais-valor produzido pelas economias
menos produtivas e/ou dependentes (Luce, 2018, p. 35-36).

Com isso, os capitais e economias que atingem uma intensidade nacional


superior na divisão internacional do trabalho logram realizar suas
mercadorias como se fossem portadoras de mais trabalho incorporado do
que efetivamente contêm – ou capturam riqueza que flui para si além
daquela que foi gerada por eles. E ao fazê-lo, fazem-no porque outros
capitais e economias estão perdendo ou transferindo valor. Aqui reside o
segredo do intercâmbio desigual – ou sendo mais preciso – o segredo da
transferência de valor como intercâmbio desigual (Luce, 2018, p. 36, itálico no
original).

Portanto, a transferência de valor como intercâmbio desigual ocorre através da


deterioração dos termos de intercâmbio, pelo serviço da dívida (como remessas de
juros), remessas de lucros, royalties e dividendos, e pela apropriação de renda
diferencial e de renda absoluta do monopólio sobre os recursos naturais (Luce,
2018, p. 50).

Dessa forma, para que se possa entender a relação desta transferência com a
superexploração da força de trabalho, necessitamos primeiro entender o que é essa
superexploração.

A superexploração da força de trabalho é o fenômeno que viola a própria lei do


valor, conforme mencionamos anteriormente. Nas palavras de Mathias Luce, a:

Determinação negativa do valor contida na lei do valor, em que a


corporeidade viva da força de trabalho é submetida a um desgaste

6 Há uma identificação por Adrian Sotelo Valencia (2009) da existência de uma tendência em
extensão da superexploração aos países de capitalismo avançado/desenvolvido. No entanto,
devemos entender que essa superexploração não possui um caráter estrutural e sistemático que
possibilite a perda de mais-valor no mercado internacional, tal como ocorre nas economias
dependentes.

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A economia política latino-americana da pena 561

prematuro; e/ou a reposição de seu desgaste acontece de tal maneira em


que a substância viva do valor não é restaurada em condições normais (isto
é, mas condições sociais dadas), ocorrendo o rebaixamento de seu valor. A
superexploração é explicada como tendência negativamente determinada
da lei do valor, sendo esta última simultaneamente o intercâmbio de
equivalentes e a negação do intercâmbio de equivalentes (Luce, 2018, p.
135).

Como forma de compensar a perda do mais-valor, o que ocorre nas economias


dependentes é a sua compensação interna através do aumento das formas do mais-
valor por meio da superexploração da força de trabalho (ver Marini, 1981). Para
Marini, são três as formas: o aumento da intensidade do trabalho, a prolongação
da jornada de trabalho e a redução do consumo do trabalhador abaixo de seu limite
normal. Ademais, Luce apresenta um quarto procedimento que se dá através do
hiato entre o elemento histórico-moral do valor da força de trabalho e da
remuneração recebida.

O aumento da intensidade do trabalho não é o aumento de sua produtividade,


senão é a maior exploração do mais-valor com o aumento do ritmo do trabalho no
tempo de trabalho, ou seja, há uma transformação de maior quantidade dos meios
de produção no mesmo tempo de trabalho, desgastando física e psicologicamente
o trabalhador (Luce, 2018, p. 189; Marini, 1981, p. 38).

Já o prolongamento da jornada de trabalho é o aumento do mais-valor em sua


forma clássica, que aumenta o tempo de trabalho excedente. Não é
necessariamente a hora extra, porém quando se trata de uma violação do fundo de
vida do trabalhador7, provocando uma deterioração na vida útil para o trabalho,
estaremos ante a esta forma de superexploração. Assim, se a jornada de trabalho
está passando de forma estrutural os limites impostos, significa que o capital está
apropriando anos de vida futura do trabalhador (Luce, 2018, p. 183 e 185; Marini,
1981, p. 38).

Com relação ao pagamento da força de trabalho abaixo de seu valor demonstra


que o consumo da classe trabalhadora é reduzido, de maneira recorrente, abaixo
do valor necessário para sua reprodução social, de modo que o fundo necessário

7 Para Luce (2018, p. 159, itálico no original), “Fundo de consumo e fundo de vida expressam,
dialeticamente, a transubstanciação do valor diário e do valor total. Uma insuficiência do fundo de
consumo provocada pelo rebaixamento do pagamento da força de trabalho influi negativamente
sobre o fundo de vida. E os ataques atentando contra o fundo de vida obrigam ao aumento dos
meios de subsistência para restaurá-lo, mas somente até um limite, a partir do qual o desgaste
físico-psíquico só poderá ser regenerado mediante repouso, não bastando mais compensá-lo com
o incremento de valores de uso acessados”.

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562 Leonardo Evaristo Teixeira

de consumo tem seu eixo deslocado para o fundo de acumulação do capital (Luce,
2018, p. 182; Marini, 1981, p. 38-39).

Dessa forma, se os trabalhadores aceitam trabalhar horas extras para receberem


um complemento em sua renda, evidencia-se que o pagamento está sendo
realizado abaixo de seu valor ao ponto de o próprio trabalhador submeter-se à
violação de seu fundo de vida com o fim de que possa, em determinados limites,
compensar parcialmente o que foi apropriado em seu fundo de consumo.
Combina-se assim formas de superexploração (prolongamento da jornada de
trabalho e o pagamento da forma de trabalho abaixo de seu valor), e tem-se
convertido o fundo de consumo do trabalhador em um fundo de acumulação do
capital e o prolongamento da jornada de trabalho para além da jornada normal.
Ou seja, há tanto uma violação do fundo de consumo como do fundo de vida da
classe trabalhadora (Luce, 2018, p. 188).

Finalmente, temos o hiato entre o elemento histórico-moral do valor da força de


trabalho e a remuneração recebida, que significa que, a partir do desenvolvimento
material da sociedade, determinados bens passam a ser parte do consumo
necessário da classe trabalhadora, como produtos que outrora eram de luxo, como
a televisão, a máquina de lavar roupa ou o refrigerador. Não obstante, se o
endividamento crônico ou a submissão a uma carga de horário extra de trabalho é
uma forma de acessar a tais bens de consumo que se tornaram bens necessários,
estaremos ante uma alteração do elemento histórico-moral sem ser acompanhado
pela remuneração. Isto é, aumenta-se o valor da força de trabalho e não aumenta
o seu salário, violando mais uma vez o fundo de vida da classe trabalhadora para
ter acesso a parte de seu fundo de consumo apropriado pelo capital (Luce, 2018, p.
193 e 195).

Para que ocorra a superexploração é necessário que se tenha elementos que


garantam o funcionamento das relações da forma jurídica, como bem abordou
Pachukanis (2017), que se dá através do uso da força/coerção. Com ela
desenvolveu o aparato repressivo por meio de uma modernização à medida que o
capital necessitou de uma força externa que pudesse colocar ordem na sociedade
ante a ausência de legitimidade dos atos praticados. Vânia Bambirra recordou que,
na nova orientação do capital, a partir da década de 1940, como nos países com
industrialização prévia desde o final do século XIX, os que ela categorizou no
grupo A, como Argentina, Brasil, Chile, México etc., sua forma imperialista de
impor controle e dominação do capital estrangeiro, nas indústrias nacionais latino-
americanas, necessitou que as classes dominantes realizassem uma articulação
junto ao âmbito militar. Isso implicou na atuação cooperativa entre forças policiais

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A economia política latino-americana da pena 563

e Forças Armadas na repressão contra tentativas de subversão à ordem (Bambirra,


1974, p. 90-91).

O uso do aparato repressivo foi e é essencial para possibilitar a violação do fundo


de vida e consumo da classe trabalhadora, sobretudo através da diminuição
salarial. Ao menos, até agora, foi possível compreender, em linhas gerais, o porquê
da dependência na América Latina e como atua para manter a compensação das
taxas de lucro das elites internas que perdem seus valores no processo de troca no
mercado internacional.

Antes de adentrarmos na discussão mais profunda sobre a incidência da economia


política da pena na América Latina, analisaremos no seguinte ponto um eixo mais
concreto –embora continue sendo abstrato– a partir das formações sociohistóricas
latino-americanas, com especial atenção à realidade brasileira.

3 Um Estado autocrático para quem?

Ao partir da categoria Estado autocrático burguês, de Florestan Fernandes (2006),


expressaremos que a formação sociohistórica brasileira tem sua gênese na
violência, que seguiram independente das etapas de acumulação do capital e da
configuração do Estado. Os debates que continuarão com Marini e Jaime Osorio,
respectivamente, sobre o Estado de Contrainsurgência e o Estado de Contrainsegurança
com quórum eleitoral, proporcionarão o sentido do poder coercitivo e o uso de
violência do Estado, um Estado autocrático e burguês.

Para Florestan Fernandes (2019), o Estado (democrático) burguês é visto dentro da


ciência política como um modelo ideal que se afasta dos extremos da direita
(Estados fascistas na Europa ou Estados latino-americanos ditatoriais) e da
esquerda (o Estado soviético, chinês e cubano), apesar do primeiro ser visto como
equivalente a uma democracia forte. Sendo assim, a democracia burguesa é
assumida como forma aceitável ao Estado –como uma variação normal–, cuja
representação é feita através de processos eleitorais e o regime vige a partir de uma
forte desigualdade social, econômica, cultural, além da monopolização encontrar-
se nas mãos da classe dominante.

Ocorre que a forma do Estado democrático burguês, na compreensão de Fernandes


(2019, p. 82-83), ao ser aplicado na América Latina, assume uma outra forma, a de
um Estado autocrático, sendo um instrumento de dominação externa e de um
despotismo burguês reacionário. Esse processo pode ser visto com maior
facilidade quando este sociólogo –também com os autores dependentistas–
trabalham com a categoria revolução burguesa, no caso brasileiro. Pois, trata-se de

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uma revolução acabada e própria da dependência latino-americana que dão os


contornos de nossa especificidade como sociedade, Estado, instituições jurídico-
políticas, consequentemente do controle sociopenal, mas principalmente do
capitalismo no lado de cá, a partir de sua transformação ao capital monopolista na
primeira metade do século XX.

Na Revolução burguesa no Brasil, ao ser compreendida por Fernandes sobre as


vicissitudes dos dinamismos históricos do Brasil, não nega que, desde a segunda
metade do século XIX, ocorreu uma transição de uma sociedade colonial/escravista
à uma sociedade burguesa sobre um capitalismo competitivo. No entanto, esse
processo não se trata de um modelo clássico da revolução burguesa como ocorreu
na Europa a partir de um sujeito histórico, pelo contrário, refere-se a um segmento
estamental que nasceu das entranhas da oligarquia escravista, urbanizou e
compartiu valores/utopias burguesas/capitalistas (Fernandes, 2006, p. 35), tal
como a burguesia oligárquica cafeteira sudestina do Brasil.

Esse segmento que surge da antiga ordem oligárquica refere-se a um segmento


especializado e que se encontrava em direção de uma outra sociabilidade, embora
dependesse da antiga ordem e com ele aliou-se. Por essa razão, a revolução
burguesa é realizada sem o elemento nacional, pois excluiu grande parte da
população, em especial por não haver a universalização do trabalho livre e
democrático, já que o poder político e a cidadania seriam restritas à burguesia
oligárquica e à oligarquia tradicional. Tal desenvoltura tem implicações no caráter
que teria o Estado (Fernandes, 2006).

Nesse sentido, é importante seus apontamentos sobre a característica da mudança


social no Brasil, pois é reconhecido as interferências do período colonial nas
relações sociodinâmicas que, constituídas àquele momento, reproduziam o
passado no presente. Entre as permanências destaca-se que o “patamar
psicossocial das relações humanas é a nossa herança mais duradoura (e, ao mesmo
tempo, mais negativa) do passado colonial e do mundo escravista” (Fernandes,
2008, p. 42-43).

Em suma, são três os pontos discutidos por ele acerca da organização da sociedade,
especificamente, no regime de classes, os quais citamos: (a) o regime de classe
brasileiro desenvolveu-se vinculado a um capitalismo dependente, onde uma
aliança entre a burguesia interna e externa articulam-se ativa e solidariamente ao
desenvolvimento do capitalismo ao mesmo tempo que mantêm as estruturas
arcaicas e coloniais; (b) a existência de um tipo de revolução burguesa que se
originou do regime de classe ou que deste foi demandado ao ter a burguesia
interna que se aliar a um perigoso aliado de rota, que é a burguesia externa, nesse

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A economia política latino-americana da pena 565

sentido, o Estado, ao estar nas mão das classes dominantes, torna-se um bastião da
autodefesa e de ataque, impondo seus interesses particulares como se fossem
próprios da nação, figurando os despossuídos como os inimigos da burguesia
interna, neutralizando e enfrentando pressões internas das classes trabalhadora e
marginalizada; (c) as mudanças sociais não foram frutos da ordem social
competitiva, já que não criavam dinamismos sociais suficientes para romper com
o antigo regime ou com suas estruturas arcaicas remanescentes, de maneira a
construir alternativas que fossem nacionais e democráticas, típicas de sociedades
de classe. O crescimento da ordem social competitiva existente tendia a favorecer
às classes privilegiadas, por outro lado, as vias autocráticas-conservadoras foram
necessárias para utilizar e controlar o poder, sendo fonte das tendências
antidemocráticas e antinacionais (Fernandes, 2008, p. 35-39).

A partir das formulações de Florestan Fernandes podemos ver suas contribuições


acerca das discussões da dependência, no entanto, o debate não foi direto com os
autores e autoras da TMD, e podem ser vistos a partir de três aspectos:

a) criticam o modelo explicativo que busca superar o subdesenvolvimento


através do controle nacional das atividades produtivas que, supostamente,
poderia levar a um desenvolvimento “voltado para dentro”; b) mostram a
natureza impotente das burguesias locais, transformando-as em
“burguesias dependentes” que por sua formação não estão aptas a
liderarem uma revolução democrático-burguesa, mas sim se encontram
alinhadas aos interesses imperialistas; c) colocam o socialismo como a
única alternativa política capaz de superar o subdesenvolvimento,
rompendo com as amarras da dependência, orquestrada pelos países
capitalistas centrais (Silva, 2020, p. 93-94).

Esta aproximação de Fernandes encontra-se com suas formulações a partir do final


dos anos de 1960 quando articulou suas reflexões sobre a dinâmica dos elementos
internos e externos da sociedade, consequentemente socioeconômico, o que leva a
imbricação do elemento do arcaico e do moderno, e também sobre os limites da
atuação das burguesias ante as condições inerentes do capitalismo dependentes
(Silva, 2020).

A dependência, portanto, é entendida como fruto de uma revolução burguesa de


tipo específico que se deu da articulação da burguesia externa e da interna,
culminando em uma forma de capitalismo que tem como fim a acumulação do
capital através da superexploração do trabalho. A opção para a superação de seu
caráter dependente é apontada tanto pelos autores da TMD como por Fernandes
através do socialismo. Os caminhos alternativos a esta opção não seriam os mais
libertários e a opressão seguiria em seu fundamento.

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566 Leonardo Evaristo Teixeira

Florestan realiza uma importante síntese desta discussão:

[...] a base material do Estado converte-o em um Estado burguês (contudo,


ele não pode ser um Estado democrático burguês). Na realidade, trata-se de
um Estado capitalista autocrático, ao qual cabe a qualificação específica de
Estado autocrático burguês. Nascido do contexto de uma contrarrevolução
política, para garantir a “modernização”, a incorporação e a
industrialização maciça, pelo menos em um certo período de tempo deve
funcionar como o instrumento político de uma ditadura de classe aberta.
Somente as Forças Armadas poderiam operar como um componente de
transição do obsoleto Estado representativo latino-americano para esse tipo
de Estado; e somente os tecnocratas, civis e militares, poderiam saturar
seus quadros e ocupar várias posições de liderança política ou burocrática
estratégicas (daí a militarização e a tecnocratização das estruturas e
funções do Estado autocrático burguês). Sob outros aspectos, esse Estado
também se adapta às suas funções contrarrevolucionárias e repressivas
através de várias inovações. Ele não se transforma para pôr em prática um
“bonapartismo”, mas para servir a interesses contraditórios das classes
burguesas. A variedade de interesses das classes dominantes força a
escolha de áreas de acordo que giram sobre os mínimos: para a
estabilidade política, o fortalecimento da ordem e o privilegiamento das
classes burguesas. Daí a saliência da defesa dos interesses comuns, de modo
preventivo mas ostensivo (como a propriedade privada, a iniciativa
privada e o capitalismo privado, bem como do novo modelo de
acumulação capitalista sem o qual não haveria incorporação, o que faz com
que o capitalismo monopolista e uma nova taxa de exploração da mais-
valia caminhem juntos e imponham o endurecimento do Estado). No
plano da organização do Estado são várias as consequências dessa situação
histórica. O poder político é ultraconcentrado ao nível estatal e vemos o
aparecimento de uma espécie de Estado neoabsolutista (F. Fernandes e F.
H. Cardoso). Não só porque possui meios absolutos de poder; mas ainda
porque o poder é manipulado por um grupo reduzido de pessoas ou
grupos de pessoas civis e militares, que ocupam posições estratégicas de
mando, tomam decisões sem recorrer ao consentimento expresso de
maiorias ou que dependem do consentimento tácito de pequenos setores
dominantes. Portanto, o governo possui uma quantidade ampla de poder
“absoluto” e “arbitrário” que, em sentido específico, nem sempre é um
poder excepcional ou de emergência. O poder central não é difuso e distribuído
pelos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Ele também não se
personaliza no presidente. No fundo, o poder central é desempenhado por
um executivo invisível (de composição militar, civil e militar, ou civil com
suporte militar: discutir com referência a vários países da América Latina),
no Brasil chamado “Sistema”. As aparências do regime democrático são
mantidas (Fernandes, 2019, p. 86-87, itálico no original).

Ao menos estas críticas de Fernandes são feitas em 1977, em plena ditadura


empresarial-militar brasileira, e demonstra a dinâmica do Estado autocrático que
tem sua origem na fetichizada compreensão da democracia burguesa. Esta
revolução tem expressado seu sentido desde um circuito fechado, à deriva dos

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A economia política latino-americana da pena 567

interesses burgueses associados internamente com as oligarquias e externamente


com a burguesia externa, onde a forma coercitiva da autocracia burguesa busca
legitimar a si mesma. Esta é a característica de um Estado autocrático, onde
Florestan Fernandes vai definir o golpe empresarial-militar de 1964 como a
expressão estrutural da dependência e dessa articulação burguesa local.

A este momento de transformação ao modo de acumulação do capital


monopolista, cuja manifestação no Brasil deu-se com o golpe de 1964, Florestan
Fernandes entendeu como o aprofundamento do Estado autocrático. Em sentido
similar, Marini (1978) entende como um processo de contrainsurgência que se
manifesta em um Estado de constrainsurgência. Este Estado é a forma do Estado
corporativo tanto da burguesia monopolista como das Forças Armadas que pode
assumir regimes políticos de aparências democráticas (como Colômbia e
Venezuela) ou ditatoriais (como Brasil, Chile, Argentina). A especificidade está em
sua essência corporativista e em sua estrutura funcional que se dá a partir da
hipertrofia do Poder Executivo, com um ramo militar com o Estado Maior, o
Conselho de Segurança Nacional, os serviços de inteligências, e de um ramo
econômico, com os tecnocratas civis e militares que levaram adiante a política
liberal a partir da administração do Estado.

O Estado de contrainsurgência, para Marini, está para além dos golpes de Estado,
sendo o próprio processo de transformação do Estado até sua forma em capital
monopólico, cujas Forças Armadas foram imprescindíveis na garantia deste
projeto e no combate aos inimigos criados com a Doutrina de Segurança Nacional
–tratando-se, para ele, da doutrina de contrainsurgência.

Mais que isso, as contribuições de Marini possibilitaram um avanço desde os


estudos da dependência, como o fez Jaime Osorio (2018), ao atualizar sua leitura
da democracia burguesa em sua fase neoliberal, especialmente no século XXI, com
a sugestão de uma nova forma de Estado, o Estado de contrainsegurança com quórum
eleitoral.

Para Osorio, existem a forma Estado e a forma aparato de Estado que tratam de
formas que mistificam e também encobrem as relações de dominação e de poder
de classe. No entanto, a forma Estado é mistificada na forma aparato de Estado,
possibilitando que a burguesia delegue a administração a partir de processos
eleitorais dos cidadãos (e não de classes) , consequentemente, “el aparato de Estado
permite sin mucha mediación que se estabelezca la identificación de las autoridades del
aparato como quienes detentan el poder político” (Osorio, 2018, p. 65-67, itálico no
original).

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568 Leonardo Evaristo Teixeira

O fetichismo da forma Estado com a forma aparato de Estado faz com que não se
coloque em risco o poder político nos processos eleitorais de modo a considerar
que o aparato Estado é um aparato de Estado específico com respectivas relações
de poder e dominação. Porém, mesmo a administração deste aparato de Estado
exige na forma de acumulação e expansão do capital uma conformidade com a
política do capital nesta nova etapa, o que requer também a configuração deste
Estado de contrainsegurança com quórum eleitoral. Isso demandaria o atuar
contra as políticas sociais de governos populares e progressistas na América
Latina, conforme explica Osorio (2018, p. 79):

El Estado de contrainseguridad con coro electoral también es resultado de


los embates de aquellas fracciones y del capital internacional con
inversiones en la región en contra de las políticas sociales de los gobiernos
populares y progresistas, lo que lleva al conjunto del capital a redoblar
esfuerzos para recuperar la gestión del aparato de Estado, buscando poner
término a aquellos gobiernos, y reforzar en toda la región las políticas de
seguridad, concebidas en un sentido amplio, no sólo para hacer frente al
crimen organizado o la delincuencia, sino también, en lugar destacado, a
las fuerzas sociales, organizaciones y líderes que cuestionan las políticas
del capital. Es así una respuesta a las exigencias económicas y políticas del
capital, lo que reclama nuevas derrotas del mundo del trabajo y de los
sectores populares.

O que permite, diversamente das ditaduras militares latino-americanas ou do


Estado de contrainsurgência, manter os processos eleitorais, realizando-os sob
procedimentos onde se pudesse ter mais controle em seus diversos âmbitos (das
forças participantes, dos candidatos ou dos resultados) (Osorio, 2018, p. 79), e
talvez é o lawfare esta ferramenta que neutraliza e destrói –ao menos tenta– seus
inimigos no ou para o processo eleitoral.

Então, conseguimos até aqui articular o Estado autocrático burguês –e utilizamos


este termo para designar todas as suas formas autocráticas, de contrainsurgência
ou variações– à forma latino-americana do Estado democrático burguês. Uma
forma instrumental de dominação, opressão e repressão para determinados
grupos sociais, fruto das distintas formações sociohistóricas, porém, que se faz
desde a revolução burguesa atípica do lado de cá, sob alianças políticas entre as
oligarquias transicionais e a emergente burguesia interna. Sua importância situa-
se na demonstração de um Estado instrumental para garantir os interesses com ou
sem hegemonia, embora, ao mesmo tempo, trata-se de um Estado em disputa –
como vimos em sua forma de Estado de contrainsegurança com quórum eleitoral–
e que se fetichiza em sua forma estrutural aos nossos olhos.

É nesta forma de Estado latino-americano que estaremos discutindo o controle


social e o controle jurídico-penal, um controle que na América Latina significa

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A economia política latino-americana da pena 569

dominação e poder, para recordarmos as lições de Lola Aniyar de Castro (2005). E


mais, trataremos de entender na próxima discussão essa economia política da pena
na realidade do lado de cá.

4 A produção de uma economia política latino-


americana da pena

Temos sustentado que a economia política da pena na América Latina tem exigido
uma imbricação entre as discussões da dependência e da autocracia do Estado
burguês. É com maior ou menor profundidade que estas categorias vêm sendo
articuladas nas produções criminológicas (brasileiras) e também especificamente
em nosso marco de análise.

Podemos dizer que as produções da economia política latino-americana da pena,


e ressaltamos a de origem brasileira, têm sido fortemente repensadas desde os anos
2000, embora com mais força e esforço teórico ao final dos anos da década de 2010
e início de 2020. Obviamente, com o apoio das contribuições da criminologia crítica
latino-americana do final do século XX.

Sobre essas produções teóricas brasileiras, consideramos essenciais os precursores


trabalhos como a dissertação de Marco Alexandre de Souza Serra, Economia Política
da Pena, de 2007; a tese doutoral de Carla Benitez Martins, Distribuir e punir?:
capitalismo dependente brasileiro, racismo estrutural e encarceramento em massa nos
governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016), de 2018, e seu recente artigo
Totalidade não totalitária: retorno ao método marxista e inflexões da economia política da
pena desde o Brasil, de 2021, como acerto de contas com os fundamentos teórico-
metodológicos de sua tese; e finalmente a dissertação de Fernando Russano
Alemany, Punição e estrutura social brasileira, de 2019. Sem dúvida, há outros
pesquisadores e pesquisadoras, e produção não menos importantes, referimos a
tese de Felipe Heringer Roxo da Motta, Quando o crime compensa: relação entre o
sistema de justiça criminal e o processo de acumulação do capital na economia dependente
brasileira, de 2015; a dissertação de Eduardo Granzotto Mello, A formação do
subsistema penal federal no período dos governos Lula e Dilma (2003-2014), de 2015, o
artigo de Luiz Phelipe Dal Santo, Economia política da pena: contribuições, dilemas e
desafios, de 2022; o recente livro de Juarez Cirino dos Santos, Criminologia:
contribuição para crítica da economia política da punição, e de Jackson da Silva Leal,
Criminologia da Dependência, ambos de 2021; o artigo de Nayara Rodrigues
Medrado, Marx e Engels como inauguradores de uma Economia Política da Pena, de
2021; a dissertação de Jéssica Domiciano Jeremias, Encarceramento masculino e suas
implicações na reprodução social da classe trabalhadora: diálogos entre a economia política

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570 Leonardo Evaristo Teixeira

da pena e a teoria unitária da reprodução social, de 2022; a tese de João Guilherme Leal
Roorda, Economia política da letalidade policial no capitalismo dependente brasileiro: o
caso do Estado do Rio de Janeiro (2000-2021), de 2022; a nossa dissertação, La
militarización de la seguridad pública de Brasil en la Nueva República: una crítica de la
economía política de la pena, de 2022; a dissertação de Felipe de Araújo Chersoni, A
criminologia campesina: os impactos do controle social na luta pela terra junto ao
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na região do Planalto Catarinense,
de 2023, entre outras e outros autores que desenvolveram ou desenvolvem dentro
deste marco crítico marxista.

É importante observar que muitos desses autores e autoras estão vinculados ao


Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais – IPDMS, que,
coincidentemente ou não, convergem suas investigações a partir do campo da
Criminologia Crítica e parte deles com enfoque marxista, tendo, por exemplo, a
produção da obra coletiva Economia política da pena e capitalismo dependente brasileiro,
de 2021, organizada por Carla Benitez Martins, Leonardo Evaristo Teixeira, Marco
Alexandre Souza Serra e Nayara Rodrigues Medrado, sido originada a partir do
curso de extensão Revisitar a economia política da pena desde a realidade do capitalismo
dependente brasileiro, contando com o apoio deste Instituto. Ainda, a Editora Revan
junto ao Instituto Carioca de Criminologia tem sido outro importante espaço de
tradução e divulgação de obras clássicas da economia política da pena, como A
miséria governada através do sistema penal, de Alessandro de Giorgi, e Cárcere e
Fábrica, de Dario Melossi e Massimo Pavarini etc.

Desde nosso ponto de análise, estas investigações podem ser divididas em três
distintas e profícuas linhas de investigação: (1) na afirmação de uma postura
epistemológica (latino-americana) da economia política da pena; (2) em uma
postura histórica e materialmente dialética da economia política da pena com a
formação sociohistórica brasileira; e (3) em uma postura de compreensão dos
fenômenos de nossa realidade brasileira contemporânea, como a política criminal,
segurança pública, sistema de justiça e pena.

Assim, ao dimensionar as produções latino-americanas na economia política da


pena, destacamos duas principais contribuições, as de Fernando Alemany e Carla
Benitez Martins, devido às importantes teses defendidas em razão da organicidade
crítica que promovem nas bases desse marco teórico e que se encontram no fundo
do que aqui buscamos desenvolver. Assim, deixaremos para analisá-las a seguir,
como uma oxigenação dessa economia política da pena.

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A economia política latino-americana da pena 571

5 A crítica oxigenada da economia política da pena

Como anteriormente afirmamos, os trabalhos de Carla Benitez Martins e Fernando


Alemany são imprescindíveis a esta análise. A dissertação de Alemany defende a
tese de que a pena deve também integrar aos fatores políticos e econômicos, uma
vez que a burguesia, para ter mais lucro, requer o pagamento mais baixo do valor
da força de trabalho, ou seja, trata da dialética do salário e do valor da força de
trabalho que explicam a dinâmica da punição sob o capitalismo. E a tese de Benitez
Martins, por sustentar a dinâmica recente do vínculo entre a distribuição de renda
e a punição, além da existência de um sistema híbrido na América Latina que
permite a coexistência dos sistemas disciplinares e de controle/neutralização; e seu
artigo posterior afirma pela necessidade de pensar a economia política da pena a
partir de uma totalidade não totalitária, desenvolvendo-a a partir da Teoria
Unitária da Reprodução Social (TRS). Assim, trataremos em explicar cada um
destes elementos.

Pois bem, a tese de Fernando Alemany (2019, p. 89) é essencial para as bases da
economia política latino-americana da pena pelo fato de evidenciar que os sentidos
da punição está em garantir –pela força, violência– que os trabalhadores e
trabalhadoras aceitam a espoliação da parte do fundo dos salários, de maneira que
nas economias dependentes o gerenciamento das superexploração seja um
instrumento permanente da política salarial8.

Por esta razão, de um lado, temos uma economia da pena que expressa a própria
violação da lei do valor, em que se necessita do pagamento do salário abaixo do
valor real9 da força de trabalho, de modo que esta espoliação do valor é realizada
desde as quatro formas de superexploração da força de trabalho. Como

8 Para Juarez Cirino dos Santos (2022, p. 116 e ss.), a tese de Alemany é um avanço notável com
relação à discussão feita em Pena e Estrutura Social, pois, enquanto Rusche e Kirchheimer
discutiam a relação entre mercado de trabalho e sistema de produção, o autor brasileiro busca explicar
o sistema penal através das próprias relações de produção capitalistas, ou seja, através da relação
entre sistema penal e relações de produção: a violência política que é convertida em potência
econômica para garantir a acumulação de capital nas economias dependentes.
9 Conforme Marx, a força de trabalho é medida pelo tempo de trabalho socialmente necessário (que
pode ser medido em hora, dia, semana, mês etc.) para a produção da mercadoria geral, o que
inclui a mercadoria específica que é a própria força de trabalho. Assim, o valor correspondente à
força de trabalho que contrata o capitalista é aquela representada pelo valor socialmente
necessário para a classe trabalhadora reproduzir-se, sendo o valor excedente produzido na
jornada de trabalho, além do trabalho necessário, o mais-valor (Marx, 2013, p. 292-293). Por tempo
de trabalho socialmente necessário, entende-se como aquele “requerido para produzir um valor
de uso qualquer sob as condições normais para uma dada sociedade e com o grau social médio
de destreza e intensidade de trabalho” (Marx, 2013, p. 117).

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consequência, tem uma transferência violenta do fundo de consumo salarial e da


vida da classe trabalhadora para o fundo de acumulação do capital.

Já na política da pena, seu desenvolvimento dá-se pela ideia da guerra contra o crime,
em que se supõe que a pena é o antídoto para colocar fim a esta guerra. Porém não
se trata necessariamente de uma guerra contra o crime; é ao menos na aparência,
pois na essência é muito mais uma guerra contra os pobres cuja pretensão é a
reprodução dos interesses para a acumulação do capital, que de um modo ou de
outro é revelado na prática em uma ampla gama desta reprodução, que justifica a
polícia e o tanque subindo os morros, como na guerra contra as drogas, guerra contra
as organizações criminosas, guerra contra o terrorismo, e tantas outras formas de
guerras que conformam esse fenômeno (Alemany, 2019, p. 25-28).

O que permitiria que, a partir da punição, ocorresse um processo de acumulação


por espoliação onde a violência política converter-se-ia na própria potência
econômica que submete a classe trabalhadora a um bruto regime de
superexploração do trabalhador. Assim, a superexploração da força de trabalho
nas economias dependentes somente é possível por a burguesia dispor de
instrumentos políticos que permitissem constranger os trabalhadores com o uso da força
para aceitarem a espoliação de parte do fundo dos salários. A violência que nunca deixou
seu protagonismo na realidade latino-americana altera quantitativamente seu grau
de violência esporádico para um instrumento permanente de gerenciamento da
política salarial como forma de contorno das crises de superexploração (Alemany,
2019, p. 48 e 89).

No entanto, esta violência tem que se dar por uma violência legítima, de forma que
é através do próprio poder de punir do Estado, como do sistema penal em que esse
processo é levado adiante. Ocorre que tal violência em sua essência é legítima, pois
ela é nada mais que uma violência da burguesia que se apropria do fundo de
consumo da classe trabalhadora como forma de acumulação capitalista, onde, em
uma economia dependente, esta forma de acumulação é estrutural. Portanto, a
força política é o que sustenta o desenvolvimento na periferia capitalista e, em
outros termos, a punição converte-se na verdadeira política social deste
capitalismo (Alemany, 2019, p. 29).

Se, por um lado, a classe trabalhadora foi historicamente despojada de seus meios
de produção, como no período de acumulação originária, processo este que se
constituiu a partir da persistente violência burguesa, onde o processo de
acumulação originário demonstrou ter as leis econômicas nascido da pura
violência; por outro, o período subsequente de desenvolvimento do capital
demonstrou que a violência é a condição sine qua non para a realização das leis

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A economia política latino-americana da pena 573

puramente econômicas, modificando apenas sua forma, como o caso de acumulação


por espoliação ao qual defende David Harvey (Alemany, 2019, p. 40-41). Assim, esta
nova forma de acumulação (por espoliação) é, para Alemany,

um processo político de valorização, no sentido de dispor dos “fatores da


produção” – meios de produção e força de trabalho, mas,
fundamentalmente, força de trabalho – do modo mais propício à
acumulação capitalista, ou seja, como um processo de valorização
induzido pelo Estado, devemos buscar aquilo que, no Estado, constitui o
meio mais organizado de exercício da violência (Alemany, 2019, p. 46).

Sendo o sistema penal a forma legítima e organizada de exercer institucionalmente


a violência, ela é manifestada a partir de suas diversas e amplas facetas: do sistema
de justiça, sistema penitenciário, da política criminal e da segurança pública, para
citar alguns que atuam diretamente no âmbito do controle jurídico-penal10. Todos
eles desenvolvem um papel intrínseco ao outro, de complementação, de
corroboração, de retificação, embora, em um momento ou outro, a
excepcionalidade da contradição. O sistema penal opera em uma harmonia,
especialmente na periferia, ao ser esta força do desenvolvimento, em que Alemany
entende que nos momentos de maior crescimento econômico comportam
recrudescimento da punição (Alemany, 2019, p. 29), como ocorreu nos governos
progressistas brasileiros da administração federal do Partido dos Trabalhadores
(PT) (ver Benitez Martins, 2018).

Assim, para a classe trabalhadora resta a eleição entre a violência econômica da


produção e a violência política da pena:

Para isto, todavia, não basta a mera ameaça do castigo, pois toda
intimidação só é efetiva quando dispõe do exemplo concreto de sua
execução. O exercício efetivo da punição confirma socialmente o sentido
expresso em sua ameaça, convertendo-a em força material. Seus artífices
são os agentes do sistema penal. Através de sua ação concreta, vigiam-se
populações, ocupam-se territórios, destroem-se e erigem-se formas de
sociabilidade, vínculos e afetos. Desorganiza-se a economia familiar,
obrigando a juventude, cada vez mais cedo, ao hábito do trabalho sub-
remunerado. Violenta-se, física e simbolicamente, populações oprimidas.
Interrompem-se projetos de vida. Através do encarceramento, subtraem-

10 Com relação ao campo, por exemplo, Felipe de Araújo Chersoni (2023) proporciona-nos uma
importante observação ao partir de um olhar desde os movimentos de trabalhadores pela terra,
como o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em que, ao enfrentarem
a lógica do capital e da superexploração, a criminalização e repressão aos movimentos populares
do campo visa reforçar a superexploração da força de trabalho ao (tentar) impedir o acesso à terra
e de nela trabalhar e também impedem de desenvolver um possível modo de vida comunal e
compartilhado, garantindo a integralidade do latifúndio, além, obviamente, de conter o caráter
revolucionários dos movimentos.

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se temporariamente indivíduos do mercado de trabalho, apenas para


devolvê-los, mais à frente, mutilados em suas perspectivas de
desenvolvimento futuro. Prescrevem-se formas específicas de inserção
social. Noutro plano, obstaculiza-se o desenvolvimento das forças
produtivas (e a força de trabalho é a principal força produtiva),
conformando-as às relações de produção de uma economia de tipo
dependente. Em suma, limita-se o desenvolvimento das potencialidades
genéricas do ser social, confinando-se a classe trabalhadora a um
desenvolvimento unilateral de suas faculdades. Faz-se tudo isso e muito
mais em virtude de um objetivo inconfessável: assegurar a violação do valor
da força de trabalho e a maior lucratividade do capital. Este é o sentido da punição
no capitalismo dependente (Alemany, 2019, p. 90-91, itálico no original).

São esses artifícios que convertem a ameaça em força material, desde os agentes –
não como indivíduos atomizados– de uma estrutura burguesa que são inseridos
no entrelaçamento da juridicidade (que é política) da política criminal e da política
da segurança pública. Por isso, as agências de controle e repressão do Estado são
estruturadas nos modus operandi contra a classe trabalhadora fazendo-as
forçadamente escolher entre a superexploração ou a violência penal.

Para finalizarmos as contribuições de Alemany, devemos ir em direção aos sujeitos


que fazem parte deste processo. Para o autor, na realidade latino-americana não
existe um subproletariado, uma massa marginal ou uma mão-de-obra
marginalizada, senão o que existe é um exército industrial de reserva. Não
obstante, não é um exército nos termos conceitualizados por Marx, pois estaria
mais em uma abstração inferior ao que está em O Capital, ante a concretização do
capitalismo periférico e dependente.

Num sentido propriamente histórico, trata-se da dificuldade de encadear


as consequências da penetração do capital estrangeiro nas economias
latino-americanas para o aumento geral do grau de produtividade da
indústria, portanto, para a pressão sobre os trabalhadores urbanos da ativa
e para a formação de um exército industrial de reserva cada vez mais
numeroso, especialmente no seio de sua fração estagnada, onde a
ocupação irregular, a atividade precária, o máximo de trabalho e o mínimo
de salário são as regras (Alemany, 2019, p. 204).

Se é certo que as sociedades capitalistas necessitam de um exército industrial de


reserva, de outro modo, para que se possibilite uma superexploração da força de
trabalho, tal como nas economias periféricas de capitalismo dependente, é
necessário que se constitua uma fração estagnada deste exército que seja
superexplorado dentro dos que já são superexplorados. A constituição histórica da
estrutura social brasileira permitiu, a partir da integração tortuosa do negro na
sociedade de classes –ou da cidadania impedida–, com que tais sujeitos fossem
parte da fração estagnada. Esta divisão racista permitiu que a exclusão social fosse

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A economia política latino-americana da pena 575

a base para a superexploração de uma massa trabalhadora no capitalismo


dependente (Alemany, 2019, p. 204).

Sobre essa questão, a classe insere-se historicamente na informalidade do trabalho


e na precariedade da vida, sendo uma regra marcada pelo racismo, ou seja, têm
como sujeitos, em sua maioria, pessoas negras de espaços territoriais racializados
como a periferia das cidades, ou das favelas. Recebe por seus serviços abaixo de
seu valor real, e possibilita que o exército industrial de reserva da ativa consuma
seus bens-serviços por um baixo valor e compense sua perda através do aumento
do consumo, como de bens santuários. Porém, independente se esta dinâmica
passa a integrar o valor relativo do valor necessário para a sobrevivência da classe
trabalhadora da ativa, é este exército estagnado o mais espoliado pela venda de
seus bens-serviços já abaixo do valor de consumo regular (Alemany, 2019, p. 211-
212).

Quanto às contribuições de Carla Benitez Martins, a que se desenvolveu em sua


tese Distribuir e punir?..., a hipótese central que foi trabalhada trata de apontar um
paradoxo de uma política progressistas desenvolvida no Brasil pelo PT. Esta
política foi marcada por altos índices de encarceramento concomitante à uma
política criminal recrudescente, na qual aparenta conciliar, no marco da Pós-
Grande Indústria, uma distribuição de renda com a repressão/punição penal,
construindo a ideia de que houve um desenvolvimento conservador, ou seja, uma
administração social-liberal com toques de neodesenvolvimentismo. Ademais,
parece-nos que existe também uma outra hipótese que foi comprovada no caminho
da investigação, a coexistência histórica dos modelos de pena na América Latina e
especificamente no Brasil, melhor dizendo, a conformação de um hibridismo entre
autoritarismo, disciplina e neutralização desde a gênese do sistema penal latino-
americano (Benitez Martins, 2018, p. 22).

Sem adentrar na discussão da Grande Indústria à Pós-Grande Indústria11, o que


importa destacar é que o controle penal é visto na América Latina a partir de seu
gigantismo, localizando nesta parte do mundo nas transformações da ordem
sociometabólica do capital em sua etapa neoliberal. Assim, em sua análise

11 Partimos de Eleutério Prado (2005) quanto ao uso dos termos Grande Indústria e Pós-Grande
Indústria (ao invés de Fordismo e Pós-Fordismo, utilizados por autores clássicos da economia
política da pena, como De Giorgi) que foi expresso nos estudos de Ruy Fausto e onde este realizou
uma interpretação criativa nos Grundrisse (Fundamentos da crítica da economia política), de Marx.
Na Pós-Grande Indústria abarca-se a subsunção (formal e intelectual) do trabalho ao capital, isto
é, a alteração da natureza dos meios de produção de uma etapa a outra, da Grande Indústria até
sua transição à Pós-Grande Indústria. Considera-se ainda que a transição de um modelo a outro
não representa a absoluta superação dos elementos da antiga etapa, senão de uma possível
coexistência, o que diferencia conceitualmente o uso do Fordismo e do Pós-Fordismo.

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realizada na política criminal a partir dos treze anos dos governos do PT, Benitez
Martins compreende que o autoritarismo na América Latina é um elemento
constitutivo das instituições nestes países, sendo que, no momento neoliberal do
capitalismo, o que ocorre é a perpetuação e intensificação desta tendência
autoritária. Apesar de não se ter ocorrido um Estado de Bem-Estar Social nos
países periféricos, ocorreu por aqui um consumo massivo onde as gestões político-
econômicas eram desenvolvimentistas do Estado (Benitez Martins, 2018, p. 79-80).

[...] na América Latina o funcionamento dos órgãos repressivos e


punitivistas sempre operaram em outro patamar qualitativo. Além de
cumprirem um papel político de contenção popular violenta desde
sempre, também podemos perceber que a divisão estanque, paradigmática
entre mecanismos de controle penal disciplinar e de gestão dos riscos
(neutralização) não se apresenta aqui. O que não significa que em tempos
neoliberais não sintamos, e muito, o impacto da incorporação da política
criminal eficientista, seja nas alterações legais quanto a organizações
criminosas, típicas de um direito penal do inimigo; seja pela execução
penal com incorporações assumidamente neutralizadoras; seja com
alterações no processo penal de cunho negocial e restritivas de garantias
fundamentais; seja pela própria violência policial; pelo cada vez maior
encarceramento; pelas taxas de homicídio de jovens negros das periferias;
pela explosão e desproporcional porcentagem de mulheres em situação de
prisão etc” (Benitez Martins, 2018, p. 80).

Esta criminóloga toca no ponto nodal das condições materiais que determinam em
última instância o sentido da pena, nos novos tempos que definem o período
neoliberal da Pós-Grande Indústria. Para ela, é visto (fortes) políticas
redistributivas de renda, como no caso brasileiro, que são de baixa intensidade,
objetivando a ampliação das relações de consumo ao invés de tocar nas relações
de produção/exploração, uma vez que tratam dos interesses do grande capital. Por
outro lado, existe uma política que não tem como objetivo chegar nas dimensões
estruturais da exploração e das opressões da população, e que faz, paralelamente,
a incorporação de políticas com tendências de recrudescimento no âmbito criminal
(Benitez Martins, 2018, p. 81-82).

Esta tese de Benitez Martins está em sintonia com a compreensão material de


Alemany sobre o sentido da pena em que ele vê a mesma tendência crescente nos
governos progressistas que também coincidem com o período de maior
crescimento na política econômica brasileira. Existe um aproveitamento da
possibilidade de crescimento para que seja intensificado a acumulação do capital,
sendo onde se compreende a política redistributiva de renda. Em outros termos, a
existência de uma verdadeira política social do capitalismo dependente é referente
a uma dialética entre políticas sociais compensatórias e de intensificação da pena
(Alemany, 2019, p. 91).

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A compreensão heterodoxa de Benitez Martins permitiu a compreensão do sistema


de controle sociopenal a partir de um hibridismo entre a disciplina e a
neutralização própria da constituição autocrática da América Latina e que, no
Brasil, busca controlar a população historicamente racializada e territorializada, ao
levar adiante as técnicas da máxima modernidade tanto da fábrica quanto do
cárcere. E sua importância está no próprio contra-argumento daqueles que
recusam a existência de uma realidade disciplinar em nossa sociedade, como
defende Alemany.

Se na economia política da pena tradicional podemos ver a vigência e os limites


das proposições do Norte global no lado de cá, realmente devemos ter o cuidado
para não realizar assimetrias com uma categoria específica do modo de produção.
Porém, sua natureza híbrida, ante a própria ausência de rupturas nos modelos de
produção no lado de cá, possibilita-nos utilizar tal categoria da disciplina, embora
com cautela. Sua melhor forma, ao menos até então, é a contribuição de Melossi
com a inclusão subordinada e que pode ser traduzida a partir das considerações
de João Guilherme Roorda (2022, p. 86-87) ao compreender a disciplina não como
um fenômenos atomizado em cada sujeito encarcerado, porém como um
instrumento de disciplina social e, especificamente, de classe12, que subordina o
trabalhador e cria uma subjetividade da classe trabalhadora, impondo um
processo de adaptação do salário como condição de vida.

Por último, o aprofundamento de Benitez Martins com o marco da economia


política da pena ganhou novas contribuições a partir de uma análise posterior de
sua tese quanto ao método por ela adotado. Não que existisse uma contradição na
conformação de sua tese, senão, melhor dizendo, refere-se a um sentido oposto
que aqui preferimos entender a partir da conformação de novas sínteses e da
desconstrução da síntese anterior inerente ao método marxista. Para a autora,
trata-se de oxigenar o debate do marco teórico de análise da totalidade, no entanto,
uma totalidade não totalitária (Benitez Martins, 2021).

Esta totalidade desenvolvida tem como base as construções das feministas


marxistas ao redor da TRS, ao tentar alcançar as múltiplas determinações que
constituem dinamicamente a ordem sociometabólica do capital. Isso implica
compreender as categorias classe, raça, gênero e sexualidade não a partir de
sistemas autônomos que se interseccionam, senão compreendê-las como
determinadas e determinantes da ordem metabólica. A complexidade da
totalidade social é oxigenada ao questionar as abordagens tradicionais da

12 Em sentido similar, Eduardo Granzotto Mello (2021, p. 501) entende a disciplina como disciplina-
simbólica que igualmente destina-se a toda a classe trabalhadora.

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produção capitalista em que deve ser analisada desde uma reprodução ampliada
da sociedade, desse modo, incluindo o trabalho produtivo e improdutivo, visível
e invisível (Benitez Martins, 2021, p. 126 e ss.).

Esses debates chacoalham e sofisticam as noções de trabalho, classes


sociais e a imbricação produção/reprodução social, apresentando um olhar
sobre as opressões que ultrapassa uma sua caracterização a-histórica ou
localizada como relações de poder a se desenvolverem enquanto instâncias
ideológicas, morais ou culturais. Ao compreenderem o funcionamento da
sociedade partindo a análise da reprodução social, essas autoras [da TRS]
revelam a dimensão material, estrutural e concreta que origina e erige as
relações desiguais de poder entre homens e mulheres, entre brancos e não
brancos. Concretude que se faz em sua heterogeneidade e historicidade,
permeada pela luta de classes e, portanto, pelo poder de agência dos
sujeitos oprimidos e explorados (Benitez Martins, 2021, p. 127).

Desse modo, o debate dentro de uma totalidade materialmente histórica e dialética


não pode ser estática ao considerar a conformação das relações sociais apenas a
partir das relações de produção capitalista, devendo ser consideradas as demais
instâncias que reproduzem a sociedade (Benitez Martins, 2021, p. 127-128), como
relações de raça, classe, gênero e sexualidade, estudando-as dentro da relação
exploração-alienação-opressão. É a partir destes marcos que Benitez Martins (2021,
p. 131) pensa “o fenômeno das funções do controle penal no controle social da
ordem do capital, percebendo sua particularidade no capitalismo dependente
brasileiro”.

Pondera que o desafio é a compreensão do sistema penal como parte da


reprodução da própria sociedade e aponta aos desafios e a atualização da
economia política da pena, em suas complexidades e contradições desta relação de
produzir vidas precárias, de produção de mortes, assim como de impulsionar as
formas de exploração das e dos sujeitos (Benitez Martins, 2021, p. 137). Isto é, vai-
se além da visão mecanicista entre produção e pena, sendo a tentativa de explicar
as instituições de controle a partir da reprodução social ampliada do capital em
que se busca “sofisticar o olhar sobre disciplinarização dos corpos, percebendo o
fenômeno, particularizado a cada espaço/tempo”, que se dão através de “suas
parcelas efetivamente inseridas no mundo do trabalho, sejam as oscilantes,
precarizadas, ‘incluídas’ via mercado ilegal e componentes do exército industrial
de reserva” (Benitez Martins, 2021, p. 148) e que se desenvolva em suas
particularidades desigual e combinada na realidade periférica.

Esta dinâmica de reprodução social a partir do sistema penal é inclusive seguida


por Jéssica Jeremias (2022), realizando uma leitura pelas lentes da TRS, o que a
possibilitou perceber as influências da detenção das pessoas, especialmente,

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A economia política latino-americana da pena 579

homens, nas condições socioeconômicas de seus familiares, particularmente as


mulheres. Se o papel da mulher na realidade social já é a sobrecarga; a mulher com
algum familiar preso é ainda mais sobrecarregada. Normalmente trata-se de uma
mulher com sua família na condição do exército industrial de reserva estagnado,
que passa a sustentar a casa unicamente a partir de seu trabalho –considerando
que seu companheiro foi privado da liberdade–, e seguirá não só com os trabalhos
de cuidado e o trabalho não remunerado do trabalho doméstico, como terá que
fornecer produtos básicos às prisões para que seu companheiro possa receber o
mínimo de dignidade.

Podemos concluir nossa síntese dos trabalhos mais expoentes no âmbito da


economia política da pena e pensada desde o lado de cá. Referem-se a
contribuições, e não são as únicas, que buscam interpretar a realidade da punição
e das formas/relações de produção a partir da América Latina, e que possibilitam
um outro olhar à nossa estrutura social da punição.

Considerações finais

Ao longo deste trabalho buscamos apresentar os fundamentos da economia


política latino-americana da pena, entre os quais situando-a sobre a necessidade
de compreender a dependência latino-americana, com os autores e autoras da
TMD, e a autocracia do Estado burguês, a partir de Florestan Fernandes.

As especificidades da América Latina exigem um outro olhar para além dos


estudos do Norte global, e nossa realidade vem sendo não só analisada desde
Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra, Ruy Mauro Marini, Florestan Fernandes
etc., como também tem sido profundamente discutida desde os marcos da
criminologia crítica, especialmente brasileira, os quais, a partir dos estudos da
economia política da pena desde o lado de cá, apresentamos algumas produções
deste campo e que possibilitam conformar o arcabouço dessa economia política
latino-americana da pena.

Dois autores foram mobilizados para discutir esse marco, que são Fernando
Alemany e Carla Benitez Martins. Com Alemany vimos que a pena integra em sua
dinâmica fatos políticos e econômicos, sendo uma permanente política salarial que
garante a espoliação salarial do trabalhador ou trabalhadora a partir de sua
superexploração. Com Benitez Martins, ao partir de um marxismo quente, analisa
a vinculação entre distribuição de renda e a punição, além da existência de um
sistema híbrido na América Latina que permite a coexistência dos sistemas
disciplinares e de neutralização; e, por fim, afirma pela necessidade de pensar a

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580 Leonardo Evaristo Teixeira

economia política da pena a partir de uma totalidade não totalitária ao partir da


TRS.

São a partir destes elementos, mas não só restringindo a eles, que entendemos a
necessidade de reivindicar uma economia política latino-americana da pena, como
forma de situar nossas especificidades e nossa estrutura social da punição na
América Latina, independente de sua heterogeneidade.

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A economia política latino-americana da pena 585

Sobre o autor
Leonardo Evaristo Teixeira
Mestre em Direitos Humanos pela Universidad Autónoma de San Luis
Potosí, México, e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de
Goiás, campus Jataí. Integra o GT CLACSO Pensamiento jurídico crítico
y confictos sociopolíticos, e o GT Criminologia crítica e movimentos
sociais do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS).

_________________
Nota
Este artigo é fruto de nossa dissertação (Teixeira, 2022b) desenvolvida e
apresentada na Maestría en Derechos Humanos da Universidad Autónoma de
San Luis Potosí, México, tratando-se aqui de uma versão traduzida, revisada e
adaptada.

Agradecimentos
Este trabalho só foi possível devido ao financiamento de bolsas de estudos
proporcionado a estudantes estrangeiros pelo Consejo Nacional de Ciencia y
Tecologia (CONACyT), México. Ainda, agradeço imensamente a Carla Benitez
Martins pela coorientação a dissertação, cujo marco teórico deste trabalho, ao
menos em partes, deriva a presente contribuição; e ao Felipe de Araújo
Chersoni e à Aline Amábili Zimmermann pela leitura final deste artigo e pelas
sugestões de acréscimo.

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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50405

em defesa da pesquisa

Assédios: engrenagem estruturante de


instituições do Brasil
Acoso: engranaje estructurante de instituciones en
Brasil

Harassment: structuring gear of institutions in Brazil

Grazielly Alessandra Baggenstoss1


1
Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Direito/Programa
de Pós-Graduação Profissional em Direito, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.
E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9086-8019.

Submetido em 09/08/2023
Aceito em 26/09/2023

Como citar este trabalho


BAGGENSTOSS, Grazielly Alessandra. Assédios: engrenagem estruturante de instituições
do Brasil. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 587-
610, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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588 Grazielly Alessandra Baggenstoss

Assédios: engrenagem estruturante de


instituições do Brasil

Resumo
O questionamento sobre a forma com que as pessoas se relacionam em ambientes
organizacionais de trabalho e de formação escolar ou acadêmica alcança debates nacionais
e internacionais. É nesse contexto que se buscam levantar algumas dimensões de
compreensão sobre o que pode ser entendido como assédio. Como estudo ensaístico,
levanta-se a reflexão sobre o que significa práticas de assédio, as quais podem ser
estruturantes das instituições no Brasil. Como pesquisa exploratória-descritiva, de revisão
bibliográfica narrativa e abordagem qualitativa, está estruturada em três partes: sobre a
ideia de vulnerabilidade da vida e sua precarização; sobre o que pode ser visualizado como
assédio; e sobre propostas de políticas institucionais e protocolos, com ideário pedagógico,
de combate e de constante avaliação da instituição.
Palavras-chave
Assédio. Assédio Moral. Assédio Sexual. Política Institucional.

Resumen
Cuestionar la forma en que las personas se relacionan entre sí en los ambientes
organizacionales de trabajo y la formación escolar o académica alcanza debates nacionales
e internacionales. Es en este contexto que buscamos plantear algunas dimensiones de
comprensión acerca de lo que puede ser entendido como acoso. Como estudio ensayístico,
se plantea una reflexión sobre lo que significan las prácticas de acoso, que pueden estar
estructurando instituciones en Brasil. Como investigación exploratoria-descriptiva, con
revisión bibliográfica narrativa y enfoque cualitativo, se estructura en tres partes: sobre la
idea de vulnerabilidad de la vida y su precariedad; sobre lo que podría verse como acoso;
y sobre propuestas de políticas y protocolos institucionales, con ideas pedagógicas, de
combate y evaluación constante de la institución.
Palabras-clave
Acoso. Acoso Moral. Acoso Sexual, Política Institucional.

Abstract
Questioning the way people relate to each other in organizational work environments and
school or academic backgrounds reaches national and international debates. It is in this
context that we seek to raise some dimensions of understanding about what can be
understood as harassment. As an essayistic study, a reflection is raised on what harassment
practices mean, which can be structuring institutions in Brazil. As an exploratory-
descriptive research, with a narrative bibliographic review and a qualitative approach, it
is structured in three parts: on the idea of vulnerability of life and its precariousness; about
what might be viewed as harassment; and on proposals for institutional policies and
protocols, with pedagogical ideas, combat and constant evaluation of the institution.
Keywords
Harassment. Moral Harassment. Sexual harassment. Institutional Policy.

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Assédios: engrenagem estruturante de instituições do Brasil 589

Introdução

No dia 27 de julho de 2023, o governo federal brasileiro instituiu um grupo de


trabalho interministerial para discutir sobre temas como assédio e discriminação
na administração pública federal, que terá 6 (seis) meses elaborar um Plano de
Enfrentamento ao Assédio e à Discriminação, envolvendo o trabalho de 10
ministérios (G1, 2023). A institucionalização do Grupo de Trabalho
Interministerial de Combate ao Assédio e Discriminação segue ações anteriores do
governo federal de combate a violência. Entre outras medidas importantes,
destacam-se: (a) o Guia Lilás, lançado no dia 08 de março de 2023 pela
Controladoria-Geral da União, que é uma cartilha orientativa para auxiliar a
detecção, a denúncia e a responsabilização de casos de assédio moral e sexual no
Governo Federal (CGU, 2023); (b) a vigência da Lei n. 14.540, de 3 de abril de 2023,
que institui o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual e demais
Crimes contra a Dignidade Sexual e à Violência Sexual no âmbito da administração
pública, direta e indireta, federal, estadual, distrital e municipal. Essas medidas
referidas reconhecem a existência de violências cometidas no âmbito das
instituições públicas e as orienta e as aparelha com dispositivos jurídicos e
orientativos para organizarem a prevenção, o enfrentamento e o combate a práticas
abusivas.

Tais ações encontram coro em um contexto nacional e internacional em que se


fortalece o questionamento sobre a forma com que as pessoas se relacionam em
ambientes organizacionais de trabalho e de formação escolar ou acadêmica.

Durante a pandemia, por exemplo, determinadas situações em contextos


organizacionais trouxeram ao debate o tema assédio. Um exemplo desses casos foi
um movimento protagonizado por pessoas do setor laboral e que foi denominado
de “Grande Renúncia”, ou Great Resignation. Segundo alguns registros midiáticos
sobre esse termo informam que foi pensado para descrever a quantidade de
pedidos de demissão voluntários no contexto estadunidense a partir do começo da
pandemia da Covid-19 (UCL, s.d.)1. Esse fenômeno representaria o movimento de
demissão voluntária em massa de trabalhadores em meio à pandemia até
recentemente, ocorrido em países do norte global ocidental e também no Brasil:

Giovanni Alves, professor de sociologia do trabalho na Universidade


Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) vê a Grande Renúncia

1 O termo teria sido descrito por Anthony Klotz (Bloomberg Businessweek em maio de 2021),
pesquisador que investiga as motivações e os desestímulos para as pessoas se demitirem
(incluindo os fatores de relacionamentos e ambiente de trabalho).

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como um efeito do que ele chama de um “rebaixamento civilizatório por


conta da crise estrutural do capital” sobre uma fração da classe
trabalhadora que ele denomina de “precariado”. [...] “O que há de comum
é o mercado de trabalho degradado pela precarização salarial que vem
ocorrendo nos últimos 30 anos lá fora e que no Brasil veio com força a
partir da Reforma Trabalhista de 2017, que colocou as pessoas em uma
situação de insegurança salarial [...] Ele ressalta que, principalmente no
caso brasileiro, o fenômeno tende a ser mais marginal do que em outros
países, justamente pelas características do mercado de trabalho e das
condições sociopolíticas do Brasil. “Para a grande maioria dos
trabalhadores brasileiros não há possibilidade de escolha: ou você trabalha
ou morre de fome”, alerta Alves (Antunes, 2022)2.

O questionamento sobre formas com que profissionais se relacionam também


alcançou destaque nos ambientes educacionais e de formação profissional. Nos
últimos dez anos, pesquisas e notícias revelam como dinâmicas abusivas são
praticadas em ambientes acadêmicos e como as instituições respondem às
denúncias e notícias (Revista Galileu, 2016; Instituto Patricia Galvão, 2015). Dessas,
traz-se a notícia sobre a acusação de assédio contra o professor renomado
Boaventura de Sousa Santos, como um dos possíveis acusados de assédio sexual
no Centro de Estudos Sociais (CES) de Coimbra, no primeiro semestre de 2023. A
denúncia foi descrita em um capítulo de livro intitulado The walls spoke when no one
else would: autoethnographic notes on sexual-power gatekeeping within avant-garde
academia, de autoria de Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom.
Fazendo referências à escrita de um dos muros do Centro de Estudos Sociais, que
continha a escrita “Fora Boaventura, todas sabemos”, o texto integra o livro “Má
conduta sexual na Academia: para uma Ética de Cuidado na Universidade”
(tradução livre) (Baggenstoss; Teixeira, 2023). Essas dinâmicas denunciadas
apontam para perguntas sobre o modo com que profissionais estão sendo
formados nos espaços acadêmicos a partir das relações que estabelecem nesses
lugares (Baggenstoss, 2022).

E esse cenário episódico indica um panorama em que podem ser percebidos fluxos
de processos de precarização de ações de trabalho e da própria vida por meio de
relações de poder-saber. Esse pano de fundo nos direciona para refletir sobre como
as relações sociais se orientam por uma lógica neoliberalista – ou necroliberalista,
conforme aponta Mbembe (2020) –, produzindo lugares políticos que
vulnerabilizam determinadas vidas.

2 Pessoas que refletiram sobre a forma com que as relações laborais são praticadas estão neste
contexto, e, como aponta Anthony Klotz, a partir da pandemia, passaram a ser questionados os
modos relacionais no ambiente de trabalho e, com isso, relevadas situações supostamente nocivas
às pessoas, como assédio (Antunes, 2022).

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Assédios: engrenagem estruturante de instituições do Brasil 591

É nesse contexto que se buscam levantar algumas dimensões de compreensão


sobre o que pode ser entendido como assédio, refletindo-se sobre violência e
dinâmicas relacionais a partir de textos jurídicos e legislação. Propõe-se aqui,
então, um estudo ensaístico. A pretensão não é aprofundar campos semânticos, o
que demandaria extenso trabalho analítico e de profundidade metodológica.
Pretende-se levantar a reflexão sobre o que significa e quais os delineamentos das
práticas que podem ser denominadas de assédio, em uma perspectiva a partir da
categoria política de gênero, e contribuir para a continuidade das discussões.
Assim, este texto desenha-se como uma pesquisa exploratória-descritiva, de
revisão bibliográfica narrativa e abordagem qualitativa e está estruturado em três
partes, sendo a primeira definida pela ideia de vulnerabilidade da vida e sua
precarização, seguida da compreensão das configurações do que pode ser
visualizado como assédio, enquanto uma espécie de violência; e a terceira, por
propostas de políticas institucionais e protocolos, com ideário pedagógico, de
combate e de constante avaliação da instituição. A base metodológica do texto
articula-se com a construção teórica pós-estruturalista, alinhando-se com ideias
pós-coloniais, de estudos críticos e estudos de gênero.

1 Vulnerabilidade como condição humana e


precarização da vida

Entende-se que a vulnerabilidade é uma condição da vida humana e que nos


acompanha desde o início da vida (Butler, 2018a), tendo em vista a linguagem
conferida a um corpo desde seu nascimento e o exterior constitutivo que o
significa. No caso das mulheres, pensa-se na atribuição de gênero pela indicação
de um nome próprio, que já as faz ser afetadas pelo gênero antes de qualquer
compreensão sobre o que significa ou sobre os seus efeitos.

Essa vulnerabilidade, no entanto, não está associada à passividade ou a um locus


que demande, de algum outro polo relacional, uma postura paternalista; mas tem
uma potência de ensejar a formação da vontade própria (Butler, no livro O Clamor
de Antígona, 2014), bem como da aliança de corpos em assembleia (Butler, no livro
Corpos em Aliança e a Política das Ruas, 2018c). Nisso, nossa condição humana é
no sentido de precisarmos:

[...] ser tratados para viver, que são tratados por outras pessoas através da
linguagem ou outras práticas significativas, inclusive toque e ruído, e sem
essas formas de possibilitar o tratamento, realmente não sobrevivemos.
Sermos alimentados e colocados para dormir também são meios de ter o
corpo tratado a um nível muito básico. Assim, sem tratamento, não há
sobrevivência, mas a sobrevivência significa que não controlamos
totalmente os meios pelos quais somos tratados, e podemos viver com isso

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592 Grazielly Alessandra Baggenstoss

como adultos mais ou menos bem, ou podemos buscar exercer poder sobre
o modo como somos tratados. Na verdade, muito do nosso trabalho [...]
deriva seu poder político e apelo de manter a possibilidade de podermos
nos pronunciar contra quem nos trata de maneiras que são radicalmente
inaceitáveis ou contra quem realmente não se dirige a nós e, dessa forma,
potencialmente coloca nossa existência em perigo (Butler, 2017).

Nessa interdependência intrínseca à nossa condição humana (Butler, 2021), ocorre


a produção da precarização por parte do Estado, que se perfaz por uma situação
biopolítica que submete diversos grupos sociais. Esse processo, “geralmente
induzido e reproduzido por instituições governamentais e econômicas, esse
processo adapta populações, com o passar do tempo, à insegurança e à
desesperança” (Butler, 2018c, p. 21). Estrutura-se por meio de diversas instituições
jurídicas, tais como o trabalho temporário, os serviços sociais destruídos, os
serviços de saúde e educação sucateados, em conjunção com “o desgaste geral dos
vestígios ativos da social-democracia em favor das modalidades empreendedoras
apoiadas por fortes ideologias de responsabilidade individual e pela obrigação de
maximizar o valor de mercado de cada um como objetivo máximo de vida” (Butler,
2018c, p. 21).

A produção da vulnerabilização da vida consiste em uma constância depreciativa


sobre a vida em si, qualificando-a e hierarquizando-a em aspectos políticos, seja
via aparelhamento estatal ou relações interpessoais. Além disso, o
"aprisionamento do desejo na forma de mercadoria" e a "financeirização da vida"
(Almeida, 2021), fortalecem significados relacionais em que perspectivas que
busquem a dignidade da vida sejam desestimuladas. Em outros termos, a
hierarquização nas relações humanas, a retenção do desejo de vida e a
capitalização do viver instrumentalizam determinados corpos, aprisionando-os
em relações que lhes ofereçam aquém do que lhe seja digno. Esse é um estágio de
um processo multifatorial e complexo de subjetivação, que envolve a docilização
dos corpos por meio da violência (Foucault, 1987), o que pode ser percebido do
lugar político em que o sujeito se encontra em sua trama social.

Esse processo ocorre tanto em lugares institucionais informais (como a família),


como em lugares institucionais formais (como universidades e ambientes
corporativos), por meio de dinâmicas que seguem determinadas normas sociais
que reproduzem diversas ideias petrificadas e estereotipadas sobre a vida em si.
Essas normas sociais podem ser identificadas como normas de gênero, que são
diretivas hegemônicas de comportamento, afetividade, convivência, advindas de
regimes de verdade generificados e mantidos por sistemas de poder, relacionais e
difusos, presentes de forma fundante nos processos de subjetivação das pessoas
(Butler, 2018a; Foucault, 2000).

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Assédios: engrenagem estruturante de instituições do Brasil 593

As normas sociais aqui trabalhadas são as reconhecidas como produto do sistema


sexo-gênero, que articula mecanismos que regulam a organização dos corpos em
sociedade (Rubin, 1975) e determina uma imagem de um Ser Ideal (campo
ontológico) que se autoriza a conferir legitimidade dos corpos a partir da ideia de
dimorfismo ideal, da complementaridade do binarismo sexual, e a códigos de
pureza racial (Toneli; Becker, 2010).

A partir dessas normas que o gênero é produzido. Entendido como um fazer, o


corpo é constantemente estilizado por práticas direcionadas por uma estrutura
hegemônica de gênero. Essa regulação indica quais práticas devem ser executadas,
não questionadas e repetidas. Nesse processo, produzem a naturalização dos
sentidos orientados pelas normas de gênero e, consequentemente, promovem a
ideia de substância a essas formas, como se fossem naturais a uma classe
ontológica (Foucault, 2014; Butler, 2018a; Baggenstoss, 2022).

Tentando localizar as normas de gênero na prática, a Organização das Nações


Unidas lançou o “Índice de Normas Sociais de Gênero” (Gender Social Norms
Index - GSNI), que quantifica, a partir de alguns indicadores, o nível de
preconceito de gênero a partir de crenças sobre a igualdade de gênero em
capacidades e direitos. O GSNI é calculado por quatro dimensões principais, quais
sejam: integridade política, educacional, econômica e física. A dimensão política
contempla os indicadores: “é essencial para a democracia mulheres terem os
mesmos direitos que os homens” e “homens são melhores líderes políticos que
mulheres”; já a dimensão educacional apresenta o indicador “a universidade é
mais importante para os homens do que para as mulheres”; a dimensão econômica
“homens deveriam ter mais direito a acesso a emprego do que mulheres" e
“homens são melhores em negócios do que as mulheres”; e a dimensão física,
finalmente, contempla os indicadores “entender a violência por parceiro íntimo” e
a “busca por direitos reprodutivos” (United Nations Development Programme,
2023).

O GSNI promove uma sugestão de medida para se verificar como que mulheres e
meninas enfrentam desvantagens e discriminação sistemáticas (United Nations
Development Programme, 2023). No entanto, há o desafio desses indicadores
articularem questões raciais e de dissidência de gênero, dentre outros, sobre os
quais o Índice se silencia. Esses indicadores são úteis, com ressalvas, portanto, na
medida em que explora a ideia de naturalização de gênero e da categoria binária
de homem-mulher, reforçando significantes gerais e estigmatização das funções
reprodutivas das mulheres no contexto de trabalho; além disso, informam a
cisnormatividade e a heteronormatividade envolvidas na construção da
metodologia de análise. Junto a tais ideias, há as ideias associativas de raça, de

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594 Grazielly Alessandra Baggenstoss

classe, de origem, de sexualidade, que promoverão um direcionamento em como


as práticas serão estabelecidas. Essas normativas sociais são, assim, dominadas por
premissas coloniais e vão caracterizar práticas abusivas nas relações estabelecidas
em instituições (Baggenstoss, 2022).

Ressalta-se que as normas de gênero estão associadas diretamente às expectativas


dos indivíduos que compõem as organizações, que induzem à espera e à
conformação com aquilo que é praticado pelas pessoas que estão em uma posição
política hegemônica, como homens cis brancos (Burrell, 1984; Maddock, 1999).
Essa espera e essa conformação podem redundar na constituição de uma
autoridade dessas pessoas em lugar de destaque discriminatório social, hipótese
em que podem naturalizadas ações de violência, endossando indevidamente e
reproduzindo as práticas de assédio.

2 Configurações das práticas abusivas

As práticas identificadas como assédio podem ser reconhecidas com diversos


elementos, havendo um específico que centraliza o entendimento nuclear do
fenômeno: o abuso. O abuso, por sua vez, pode ser entendido como a extrapolação
de limites estabelecidos de forma legal ou contratual (verbal ou escrito) e, assim,
rompem com o consenso determinado por alguma determinação legal ou
contratual. Nesse sentido, o abuso é percebido quando não há um consenso
expresso sobre alguma prática, ou, ao menos, o conhecimento necessário para se
ter determinado consenso, o que pode nos levar a entender sobre violência (Tolfo;
Oliveira, 2013).

Violência é um termo polissêmico, variante a depender da perspectiva


epistemológica adotada. Butler nos orienta a “irmos além das explicações
racionais, que limitam nosso entendimento acerca de como funciona a violência”
e “encontrarmos quadros de referência mais abrangentes que aqueles que se
apoiam nas figuras de quem ataca e de quem é atacado” (Butler, 2021, p. 19-20).

Na instabilidade semântica do termo, portanto, é necessário o entendimento de


que o que é nomeado, pelo próprio Estado ou por organizações, como violento em
determinados contextos representa, na verdade, alguma ameaça à ideologia da
modernidade liberal assumida pela estrutura organizacional. Assim, tem-se como
exemplo as assembleias, greves, manifestações públicas, movimentos sociais. A
prática de nomeação sobre o que é violento, por parte dessas instituições, é “uma
guerra política no nível da semântica pública” e objetiva “garantir o próprio
monopólio da violência, caluniando a oposição, justificando o emprego da polícia
[...]” (Butler, 2021, p. 20) ou de outras medidas sancionadoras (como demissão,

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Assédios: engrenagem estruturante de instituições do Brasil 595

corte de bolsas) para a manutenção das dinâmicas organizacionais. A exemplo


disso:

Quando um grupo se reúne para protestar contra a censura ou a ausência


de liberdades democráticas, e quanto esse grupo é chamado de ‘bando’ ou
é compreendido como ameaça caótica e destrutiva à ordem social, ele é
tanto nomeado quanto representado como potencial ou efetivamente
violento, a ponto de o Estado apresentar uma justificativa para defender a
sociedade dessa ameaça violenta. Quando o passo seguinte é prisão, lesão
corporal ou assassinato, a violência da cena emerge como violência do
Estado (Butler, 2021, p. 21).

A partir disso, reconhece-se que, com a polissemia do termo, o que é nomeado


como violência ou não violência é definido instrumentalmente por interesses
políticos do contexto a ser analisado. Isso pode nos ajudar a compreender por que,
em determinados cenários, a violência das práticas assediadoras são naturalizadas;
talvez, inclusive, sejam essas práticas violentas que organizem o próprio cenário
das relações. Essa percepção é, portanto, relevante para que seja compreendido
como que, em determinados espaços, as práticas abusivas não só sejam
normalizadas, mas também integrem o próprio modus operandi dos integrantes das
instituições. Assim, devem ser examinadas a partir do ponto de vista explanado
anterioremente, qual seja do manejo da violência para a docilização de corpos e
sua correspondência de funcionalidade dentro das instituições (Foucault, 2014).

Nesse prisma, as práticas abusivas são estabelecidas em relações cujos atos


representam violência, podendo esta ser sutil, quase imperceptível, ou nítida, e
que pode ser considerada naturalizada em razão do contexto. A naturalização da
violência em ambientes institucionais é ainda reforçada quando pessoas
pertencentes a grupos políticos vulnerabilizados praticam tais violências. Essa
dinâmica pode configurar a negociação nas relações de poder-saber:

[...] a ideologia neoconservadora promete acesso ao poder político a quem


desejar renunciar à sua identificação com os "interesses particulares" de
uma minoria e, ao mesmo tempo, tira proveito, sobretudo econômico, da
presença das mulheres e minorias e da diferença sexual ou étnica que tão
presença manifesta em plena luz do dia (Fusco, 2008, p. 95).

O assédio em si, objeto de atenção desse escrito, representa um tipo de violência


que está tipificada na lei e vem sendo qualificada na literatura. Outras são práticas
complexas, que apresentam reforços de discriminação institucional, estrutural e
intergeracional.

Para fins didáticos, este escrito foca-se na categorização do assédio a partir de


alguns elementos: em razão do seu tipo (moral e sexual); em razão da natureza da

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596 Grazielly Alessandra Baggenstoss

relação abusiva (laboral, acadêmica); e em razão das pessoas envolvidas. Tanto o


assédio moral quanto o assédio sexual, cuja proposta de definição será apresentada
a seguir, surgem de discussões de ambientes de trabalho e sua observação em
contextos universitários amplia o debate para a cena acadêmica (Nascimento,
2009). Suas dinâmicas, no entanto, são específicas para o contexto organizacional
respectivo.

Destaca-se, ainda, que as dinâmicas também serão diversas em razão do perfil


político das pessoas envolvidas nas dinâmicas e que o próprio ordenamento
jurídico, pelos motivos já expostos, não apresenta o reconhecimento de algumas
formas de assédio que serão apresentadas.

2.1 Assédio moral

Segundo o Tribunal Superior do Trabalho, no ambiente laboral “assédio moral é a


exposição de pessoas a situações humilhantes e constrangedoras no ambiente de
trabalho, de forma repetitiva e prolongada, no exercício de suas atividades” e que
provoca “danos à dignidade e à integridade do indivíduo, colocando a saúde em
risco e prejudicando o ambiente de trabalho” (TST, s.d.). Pode ocorrer nas mais
diversas possibilidades de contratação laboral e serviço público e, neste, especifica-
se, caracterizando-se:

[...] por condutas repetitivas do agente público que, excedendo os limites


das suas funções, por ação, omissão, gestos ou palavras, tenham por
objetivo ou efeito atingir a autoestima, a autodeterminação, a evolução na
carreira ou a estabilidade emocional de outro agente público ou de
empregado de empresa prestadora de serviço público, com danos ao
ambiente de trabalho objetivamente aferíveis (TST, s.d.).

Em geral, tem-se como condutas abusivas (gesto, palavra, escritos,


comportamento, atitude, etc.) que, intencional e frequentemente, violam a
dignidade e a integridade física ou psíquica de uma pessoa, ameaçando seu
emprego ou degradando ambientes de convivência. Como será mencionado
posteriormente, também é percebida em ambientes acadêmicos.

Como característica de relações abusivas, o assédio moral pode ser percebido entre
pessoas que possuem o mesmo nível hierárquico (assédio moral horizontal); que
ocupem níveis hierárquicos diversos (assédio moral vertical); que ocupem
diversos níveis hierárquicos (assédio moral misto); e que represente uma política
organizacional, que atinja um determinado grupo da organização e que pode
caracterizar discriminação institucional (assédio moral coletivo) (TST, s.d.).

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Assédios: engrenagem estruturante de instituições do Brasil 597

O assédio moral horizontal ocorre entre sujeitos de mesmo nível profissional,


inexistindo, assim, relação de subordinação entre eles (Nascimento, 2009). Essas
relações podem ser reforçadas pode se dar pela competitividade, advinda da
exigência de escolaridade, eficiência, competência e produtividade. O assédio
moral vertical, por sua vez, ocorre entre as pessoas com níveis hierárquicos
diversos e se verifica quando o superior abusa de seu poder sobre seus
subordinados. O assédio moral misto é percebido com três partes: o assediador
vertical, o assediador horizontal e a vítima, em que está é agredida tanto por seus
superiores quanto pelos seus colegas (Nascimento, 2009). E o assédio moral
coletivo é aquele cometido pela empresa contra vários de seus trabalhadores. Os
exemplos mais recorrentes são aqueles que envolvem políticas motivacionais de
produtividade ou vendagem, nas quais os empregados que não atingem
determinadas metas são submetidos a situações vexatórias e humilhantes
(Muçouçah, 2009; Baggenstoss et al, 2013; TST, s.d.).

No ambiente organizacional público ou de formação educacional ou profissional


(escola, universidades públicas, etc.), o assédio moral não configura
necessariamente crime, mas fatos ilícitos que geram direito a indenização por
danos morais, nos termos do art. 5º, V, da Constituição Federal, c/c arts. 186, 927 e
932, III, do Código Civil3. Ressalta-se que, dependendo do fato, pode caracterizar
crimes contra a honra (difamação, injúria, calúnia) ou crimes relacionados a
discursos de ódio, como racismo ou LGBTfobia. Na Consolidação das Leis
Trabalhistas, ainda no campo sobre dano extrapatrimonial, são responsáveis pelo
dano extrapatrimonial todos os que tenham colaborado para a ofensa ao bem
jurídico tutelado, na proporção da ação ou da omissão (art. 223-E, CLT), sendo
estabelecido que:

3 Cf. DANO MORAL. ASSÉDIO MORAL. COMPROVADO. O dano moral, decorrente da relação
de trabalho, consiste na ofensa aos direitos da personalidade do empregado, em razão da conduta
ilícita de seu empregador. Dentre as classificações doutrinárias dos danos extrapatrimoniais, está
em especial o assédio moral, materializado pela conduta abusiva do causador. Tem natureza
psicológica e atinge a dignidade psíquica da vítima ao desestabilizar o equilíbrio emocional. Com
efeito, o assédio moral torna-se mais comum nas relações de subordinação e hierarquia, em que
há discrepância nos níveis ocupados pelo agente e pela vítima, estrutura que facilita a ocorrência
do comportamento antiético. Sendo certo que a característica primordial do assédio moral é a
prática reiterada da conduta ilícita, tendo como efeito final a sensação de exclusão, humilhação
ou diminuição da vítima. No caso dos autos, a prova testemunhal demonstrou a ocorrência de
conduta abusiva no ambiente laboral, configurando o dano moral in re ipsa (CRFB, art. 5º, V c/c
CC, arts. 186, 927 e 932, III).TRT 1a. Região, 1a. Turma, autos n. 0101171-59.2017.5.01.003, Data
de Publicação: 10/06/2021, Disponível em
http://bibliotecadigital.trt1.jus.br/jspui/handle/1001/2612499

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598 Grazielly Alessandra Baggenstoss

Art. 223-B. Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão


que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as
quais são as titulares exclusivas do direito à reparação.
Art. 223-C. A honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a
autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física são os bens
juridicamente tutelados inerentes à pessoa física.
Art. 223-C. A honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a
autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física são os bens
juridicamente tutelados inerentes à pessoa física.

Além disso, são cumulativos os pedidos de reparação por danos extrapatrimoniais


podem ser pedidos cumulativamente com a indenização por danos materiais
decorrentes do mesmo ato lesivo (art. 223-F, CLT).

2.2 Assédio sexual

Assédio sexual caracteriza uma relação abusiva que configura crime, nos termos
no art. 216-A, caput, do Código Penal, o qual dispõe: “constranger alguém com o
intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de
sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de
emprego, cargo ou função”.

É, portanto, uma forma de tratamento, não desejada pelo outro, com intenção
sexual ou insistência inoportuna de alguém em posição privilegiada que usa dessa
vantagem para obter favores sexuais de subalternos ou dependentes. Para sua
caracterização, o constrangimento deve ser causado por quem se prevaleça de sua
condição de superior hierárquico ou ascendência, inerentes ao exercício de
emprego, cargo ou função.

Até 2019, não havia ainda decisão judicial brasileira enfrentando a questão de
assédio sexual de forma relevante no campo educacional. Em 13 de agosto de 2019,
contudo, no REsp 1.759.135-SP, o Rel. Min. Sebastião Reis Júnior da Sexta Turma,
por maioria, conferiu a existência de superioridade hierárquica ou ascendência em
razão do emprego, cargo ou função nas relação professor-aluno para configurar o
crime de assédio sexual entre essas pessoas. Assim, reconhecendo a possibilidade
da configuração do delito de assédio sexual na relação entre professor e aluno,
afirmou-se que

[...] é irrazoável excluir a (nítida) relação de ascendência - elemento


normativo do tipo - por parte do docente no caso de violação de um de
seus deveres funcionais e morais, consistente em atribuir notas, reconhecer
o mérito e aprovar o aluno não apenas pelo seu desempenho intelectual,
mas por eventual barganha sexual. Ademais, é notório o propósito do
legislador de punir aquele que se prevalece da condição de professor para

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Assédios: engrenagem estruturante de instituições do Brasil 599

obter vantagem de natureza sexual. Nenhuma outra profissão suscita


tamanha reverência e vulnerabilidade quanto a que envolve a relação
aluno-mestre, que alcança, por vezes, autoridade paternal - dentro de uma
visão mais tradicional do ensino. O professor está presente na vida de
crianças, jovens e também adultos durante considerável quantidade de
tempo, torna-se exemplo de conduta e os guias para a formação cidadã e
profissional, motivo pelo qual a “ascendência” constante do tipo penal do
art. 216-A do Código Penal não pode se limitar à ideia de relação
empregatícia entre as partes. Assim, releva-se patente a aludida
"ascendência", em virtude da "função" - outro elemento normativo do tipo
-, dada a atribuição que tem o cátedra de interferir diretamente no
desempenho acadêmico do discente, situação que gera no estudante o
receio da reprovação.

Além de ser caracterizado como crime, sendo um fato ilícito nos termos do art. 186
do Código Civil, também enseja indenização por danos morais. Para seu
fundamento, é possível articular os dispositivos já mencionados, assim como a
Convenção 190, da Organização Internacional do Trabalho – OIT, que reconhece
que a violência contra mulheres é reforçada por estereótipos de gênero e relações
de poder desiguais em função do gênero (IBDFAM, 2023).

2.3 Assédio laboral e assédio acadêmico

Como referido anteriormente, os assédios moral e sexual podem ocorrer em


ambiente de trabalho e em ambiente acadêmico. Essa delimitação espacial é
importante para a possibilidade de visualização da ocorrência dos abusos,
especialmente em espaço acadêmico, cujas discussões ainda ocorrem de maneira
velada.

O assédio laboral é aquele decorrente de uma relação de trabalho em geral, em


instituições privadas ou públicas. Verifica-se também o assédio laboral em
ambiente acadêmico, quando estivermos nos referindo a pessoas com vínculo de
trabalho nessas organizações.

Apesar de também poder ser entendido uma atividade de trabalho, o estudo, a


pesquisa e atividades acadêmicas que não são juridicamente reconhecidas como
tal por não advirem de uma relação trabalhista formal ou de um vínculo de serviço
público. No entanto, isso não impede que reconheçamos a possibilidade de
práticas abusivas nas relações que ensejam essas atividades. A essas relações
abusivas, para este trabalho, damos o nome de assédio acadêmico.

O assédio acadêmico é apresentado no capítulo The walls spoke when no one else
would: autoethnographic notes on sexual-power gatekeeping within avant-garde academia,
de Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom, mencionado nas

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600 Grazielly Alessandra Baggenstoss

considerações iniciais. Consoante este texto, o assédio acadêmico se desdobra em


diversas dinâmicas, como o incesto acadêmico e o extrativismo intelectual e sexual.

O incesto acadêmico representaria o conjunto de dinâmicas de clientelismo na


universidade, envolvendo assimatria de poder. Segundo Basak (2013):

Incesto acadêmico é um termo para descrever a endogamia em instituições


de ensino superior para manter o status quo. Universidades respeitadas
nos Estados Unidos não favorecem a contratação de professores, que se
formaram em suas próprias universidades; em vez disso, eles preferem a
diversidade e contratam professores com diplomas de várias outras
universidades. Quando alguém recebe o diploma de uma universidade e
começa a trabalhar na mesma universidade imediatamente após a
formatura, isso é chamado de incesto acadêmico, sugerindo uma
conotação negativa ao termo biológico "incesto". Em alguns casos,
normalmente receber todos os diplomas de graduação e pós-graduação da
mesma instituição também é considerado “incesto acadêmico”, porque a
diversidade na formação educacional é sugerida como benéfica e torna a
educação de alguém mais valiosa. Nesse artigo, Discutirei as tradições
acadêmicas na Turquia e nos Estados Unidos como exemplos opostos de
incesto acadêmico. Por que tradicionalmente muitas universidades turcas
preferem o incesto acadêmico na contratação como forma de manter o
status quo e se é uma questão ética no ensino superior (tradução livre).

No Brasil, essas dinâmicas já foram estudadas por Milton Santos e relevadas no


discurso intitulado O intelectual e a universidade estagnada (Santos, 1997).
Questionando sobre a produção de conhecimento e possibilidade de autonomia
universitária, questionou:

Como fazê-lo no Brasil, onde a vida intelectual está organizada em torno


de clubes, de clãs e do enturmamento, sendo às vezes mais útil passar as
noites em reuniões com os colegas que mandam, do que queimar as
pestanas, como antigamente se dizia, em frente dos livros (Santos, 1997, p.
20).

Essas relações de poder revelam a formação de grupos de interesses e de influência


entre pessoas que tenham alguma linha de orientação em comum, que acabam
aparelhando e capturando as instituições educacionais, decidindo sobre seus
caminhos e perpetuando-se nas posições acadêmicas. A problemática, aí, reside
que “nós sabemos também que as citações são cada vez menos um crédito
acadêmico e cada vez mais um exercício político, uma das grandes distorções da
vida universitária neste fim de século” (Santos, 1997, p. 20). Isso compromete uma

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Assédios: engrenagem estruturante de instituições do Brasil 601

produção de conhecimento independente e a organização da própria


universidade4.

O extrativismo intelectual é trazido pelas autoras do capítulo referenciado a partir


de Theidon (2022), que escreve um texto editorial para descrever uma a prática de
produção de conhecimento que é creditado a uma pessoa que não auxiliou nessa
tarefa5. Na trama de relações com um determinado professor, que tenha renome e
seja creditado por um trabalho, ser vítima de extrativismo intelectual estaria no
“pacote de remuneração” exigido para pertencer a um determinado grupo de
trabalho acadêmico. O estudante irá produzir algum trabalho desse tipo e, mesmo
sem a participação do professor, o mesmo será incluído como autor desse produto.

Aliado ao extrativismo intelectual, está o extrativismo sexual, que terá como


sujeitos um determinado professor e estudantes mulheres. Na interação entre esses
sujeitos, haveria uma naturalização do assédio sexual contra as alunas, contra as
quais seriam investidas práticas de violência, caracterizadas como coação, para
que pudessem ascender academicamente (Viaene; Laranjeiro;Tom, 2023)6.

2.4 Assédio em razão da qualificação das pessoas envolvidas

A observação das práticas abusivas deve levar em consideração as pessoas que


integram as relações de poder porque as dinâmicas serão moldadas dependendo

4 “Isso está bem documentado por uma pesquisa do departamento de ciência da computação da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sobre circulação de pesquisadores no Brasil.
Analisando cerca de seis mil pesquisadores brasileiros, o grupo observou que apenas 20% (um
quinto do total, portanto) constroem suas carreiras profissionais a mais de quinhentos
quilômetros (500km) de onde fizeram sua formação universitária. A avassaladora maioria
permanece nos entornos de sua alma mater, o que facilita – geograficamente, inclusive – a
perpetuação de esferas de influência”. In Oliveira, 2017.
5 "Na academia, o extrativismo pode ser configurado como a extração de conhecimento sem a
participação daquele que o extrai. É o conhecido “colocou o nome”, que é assédio. Além de
assédio, o “colocou o nome” descumpre as “Diretrizes Básicas para a Integridade da Atividade
Científica” do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, que
orienta que, nos itens 17 e 18: 17. Somente as pessoas que emprestaram contribuição significativa
ao trabalho merecem autoria em um manuscrito. Por contribuição significativa entende-se
realização de experimentos, participação na elaboração do planejamento experimental, análise de
resultados ou elaboração do corpo do manuscrito. Empréstimo de equipamentos, obtenção de
financiamento ou supervisão geral, por si só não justificam a inclusão de novos autores, que
devem ser objeto de agradecimento. 18. A colaboração entre docentes e estudantes deve seguir
os mesmos critérios. Os supervisores devem cuidar para que não se incluam na autoria
estudantes com pequena ou nenhuma contribuição nem excluir aqueles que efetivamente
participaram do trabalho. Autoria fantasma em Ciência é eticamente inaceitável”. Cf.
Baggenstoss; Teixeira, 2023.
6 “‘Portanto, este é outro exemplo de “uma história mais familiar de instituições profundamente
fodidas, onde professores famosos têm muito poder para determinar o futuro de seus protegidos’
(Wang 2018)”. Cf. Viaene; Laranjeiro; Tom, 2023.

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602 Grazielly Alessandra Baggenstoss

das categorias políticas e dos significados contextuais de suas posições no grupo


social. Assim, é imprescindível a consideração de quais são as pessoas envolvidas
em uma ocorrência de assédio, seja moral ou sexual.

Como mencionado anteriormente, o extrativismo sexual mencionado, que


organiza uma determinada forma de assédio sexual, é estabelecido entre professor
homem e estudantes mulheres. A questão socioeconômica, aqui, também é
relevante, visto que a pessoa estudante que dependa da remuneração, advinda de
bolsa de pesquisa ou referente a qualquer outra atividade acadêmica, estará em
uma posição de vulnerabilização perante práticas abusivas. A condição sócio-
política de colonialidade no Brasil, igualmente, promove a formação de práticas
que possam ser revestidas pela branquitude e fomentadas pelo crime de racismo.
No mesmo sentido, a condição socioeconômica, ainda associada a sexualidade,
também deve ser elemento de atenção, considerando o processo de não
reconhecimento e de vulnerabilização de pessoas dissidentes sexuais,
especialmente pessoas trans e travestis (Benevides; Nogueira, 2021).

Além da percepção sobre questões interpessoais, é relevante também a


consideração sobre as políticas organizacionais e institucionais e sobre o padrão
de comportamento defendido por uma determinada organização e por
determinada categoria profissional. Indícios do funcionamento desses
comportamentos são ofertados pelos estudos organizacionais e, especialmente,
pela categoria "cultura organizacional" (Barreto et al, 2013).

Essas ideias gerais serão moduladas com a percepção das práticas em campo.
Assim, uma análise pormenorizada sobre essas dinâmicas deve aprofundar ou até
mesmo refutar essas considerações, além de buscar a observação das interações
contextuais desses lugares e das pessoas envolvidas, aprofundando-se nos estudos
das categorias políticas localizadas no campo, como a relações de trabalho e
sexualidades (Acker, 2006; Santos; Oliveira-Silva, 2021).

3 Políticas institucionais e protocolos

A violência e, especificamente o assédio, não é uma prática exclusivamente


produzida e nítida em relações interpessoais ou praticadas somente por homens
em lugar de hegemonia social. A violência é um “componente estruturante do
patriarcado e do capitalismo” (Vergès, 2021, p. 13) e integra o exercício de poder
endossado pelas normas de gênero. As normas de gênero não só organizam as
relações sociais, mas também são a base das organizações (Acker, 1989; 1992).

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Para este trabalho, traz-se algumas ideias de ferramentas de intervenção e


enfrentamento enfrentamento à violência referem-se a modelos adotados por
instituições europeias como estratégia de enfrentamento à violência baseada no
gênero. No contexto europeu, são aplicados métodos de exame denominado
abordagem por P: (a) abordagem 3Ps, sendo prevenção, proteção, persecução
(concretização); (b) a abordagem 4Ps é utilizada no Conselho da Europa com o
acréscimo de política; a abordagem 5P, com a inclusão de prevalência. Essas
abordagens visam a um exame sistêmico do regime de violência enquanto um
domínio institucional (Hearn et al, 2020).

A abordagem de 3Ps contempla protocolos de ação educativa, de amparo a pessoas


que sofreram violência de gênero e a responsabilização administrativa eficaz; a
abordagem de 4Ps amplia o exame para a reflexão de como a violência é
institucionalizada pelas relações de poder (Hearn et al, 2020); a abordagem 5P,
finalmente, inclui a prevalência, uma métrica estatística que objetiva mensurar, em
um determinado tempo e em dado grupo social, a ocorrência da violência,
permitindo, deste modo, o diagnóstico da extensão da violência de gênero
(Lombardo; Bustelo, 2021).

A abordagem 5P, então, contemplaria ações de prevenções, com protocolos de


ações educativas e de conscientização (cursos de formação; aperfeiçoamento;
capacitação); estrutura e ações de proteção, especialmente com protocolo de
acolhimento às vítimas; canais e estrutura para persecução dos autores de
violência, com o devido processamento e julgamento do caso; ações de pesquisa
para investigação científica sobre a incidência, amplitude e fatores de ocorrência
da violência, a fim de se mensurar a prevalência, que significa a métrica estatística
como diagnóstico da extensão da violência; e a política, seja institucional ou
pública, alinhavando compromissos políticos e legais de combate à violência
articulados com as ações anteriores (Baggenstoss, 2022).

Algumas instituições, ainda, efetivam convênios e parcerias de prestação de


serviço para envolver outras instituições e sujeitos na reflexão da discriminação de
gênero. Desse panorama, algumas instituições de ensino europeias já
implementaram políticas institucionais de gênero. Nesse contexto, as práticas
discriminatórias de gênero, desenvolvidas por relações interseccionais, são
verificadas em relações informais de dependência e o reforço de dinâmicas
pautadas por masculinidades consideradas tóxicas e desenvolvidas especialmente
no ambiente acadêmico, que favoreceriam o ambiente universitário para práticas
discriminatórias e violentas, como as de assédio sexual (Lombardo; Bustelo, 2021;
Comissão Europeia, 2019).

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Outras referências indicam modelos homônimos, mas com outras perspectivas,


relacionadas a “Prevenção, Proteção, Acusação, Programação e Parceria”
(Chatterjee; Kariuki, 2016, tradução livre). Chatterjee e Kariuki (2016) apontam
como ações imediatas a necessidade de se criarem canais para a conscientização
nas comunidades sobre a questão da violência e para a conexão entre instituições
de atendimento e acolhimento às vítimas. Conjuntamente, destacam a importância
de se processar e julgar as pessoas agressoras, como uma forma de proteção às
vítimas, e que todas as camadas de agenciamentos do desenvolvimento devem
estar unidas para combater a violência.

Esses modelos de análise e articulação das dimensões que envolvem a violência


podem ser orientativos para recalcular as ações propostas para o combate à
violência escolar no Brasil e para a reflexão sobre a necessidade de abrangências
das políticas públicas que deve existir.

Considerações finais

Legalmente, a prática de violências e uma de suas espécies aqui tratadas, o assédio,


é apresentada de uma forma interpessoal; em outras palavras, sua descrição é
estruturada para que o reconhecimento de uma dinâmica violenta localize “o
agressor” e “a vítima”. Alguns contextos são importantes, mas é a relação
interpessoal que dará a tônica da identificação da dinâmica abusiva, inclusive
como se fosse a exceção das formas relacionais de um determinado cenário
institucional. E se não for exceção?

Esse trabalho parte da ideia de que as instituições são organizadas por normas de
gênero e que funcionam na produção do condicionamento - ou assujeitamento -
dos indivíduos integrantes a seus parâmetros. Nos modos disciplinares, como
meios de sujeição e de correção dos indivíduos, estão as definições de
padronização que caracterizam uma tecnologia comportamental, a qual incide
sobre os corpos na instituição, produz formas de controlar seu corpo e direcionar
suas forças, bem como orientar ou diminuir sua força política.

As dinâmicas disciplinares organizam posições, as classificações, as fileiras e,


igualmente, cria determinados lugares, sejam arquitetônicos, hierárquicos ou
funcionais, que fixam categorias políticas de sujeitos e permitem o seu trânsito
dentro da lógica organizacional. Assim, são marcadas posições dos sujeitos, que
indicam crenças, valores e a garantia de obediência, juntamente com a economia
funcional das práticas e de tempo, operando conjuntamente a partir do sistema
sexo-gênero e de qualificações políticas, como racial e de classe. A política
institucional de uma instituição, pública ou privada, também subjetiva os

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Assédios: engrenagem estruturante de instituições do Brasil 605

indivíduos a partir de determinações que impõem formas de se fazer gênero,


revelando relações de poder que produzem hierarquias interseccionais, na
associação do gênero com raça, corporalidades, idade, sexualidade, regionalismos,
dentre outros.

Nesse raciocínio, o Estado brasileiro vem demonstrando alguns avanços


importantes no enfrentamento às violências praticadas em sua organização, tais
como o Grupo de Trabalho Interministerial de Combate ao Assédio e
Discriminação; o Guia Lilás; e o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao
Assédio Sexual e demais Crimes contra a Dignidade Sexual e à Violência Sexual
no âmbito da administração pública, direta e indireta, federal, estadual, distrital e
municipal (Lei n. 14.540, de 3 de abril de 2023). O esforço que se faz, nesse
momento, é de pensar em medidas suficientemente adequadas, nas diversas
instituições, como nas de formação profissional e de categorias de trabalho, para
que essa subjetivação formada e provocada por violências possa ser suplantada
por uma subjetivação de dignidade de vida.

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610 Grazielly Alessandra Baggenstoss

Sobre a autora
Grazielly Alessandra Baggenstoss
Professora do Curso de Graduação em Direito e do Programa de Pós-
Graduação Profissional em Direito, Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), Florianópolis, Brasil. Doutora em Direito (UFSC);
Doutora em Psicologia Social (UFSC).

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50069

em defesa da pesquisa

Sexo, dinheiro e escravidão


contemporânea: tráfico de travestis e
mulheres trans do Brasil para a Europa
com fins de exploração sexual
Sexo, dinero y esclavitud contemporánea: trata de
travestis y mujeres trans de Brasil hacia Europa con
fines de explotación sexual

Sex, money and modern slavery: trafficking of


travestis and trans women from Brazil to Europe for
sexual exploitation

Leonam Lucas Nogueira Cunha1


1
Universidade de Salamanca, Salamanca, Espanha. E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0931-9312.

Jules Ponthieu2
2
Universidade de Salamanca, Salamanca, Espanha. E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8653-5636.

Lucas Isaac Soares Mesquita3


3
Universidade de Salamanca, Salamanca, Espanha. E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7771-5237.

Submetido em 19/07/2023
Aceito em 11/01/2024

Como citar este trabalho


NOGUEIRA CUNHA, Leonam Lucas; PONTHIEU, Jules; MESQUITA, Lucas Isaac Soares.
Sexo, dinheiro e escravidão contemporânea: tráfico de travestis e mulheres trans do
Brasil para a Europa com fins de exploração sexual. InSURgência: revista de direitos e
movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 611-639, jan./jun. 2024.

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ISSN 2447-6684

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612 Leonam Lucas Nogueira Cunha - Jules Ponthieu - Lucas Isaac Soares Mesquita

Sexo, dinheiro e escravidão


contemporânea: tráfico de travestis e
mulheres trans do Brasil para a Europa
com fins de exploração sexual

Resumo
Se bem é certo que sexo e dinheiro podem aparecer como noções subversivas que atraem
facilmente muita atenção, também é nítido que as questões levantadas neste artigo – que
partem do nexo entre esses termos – são, paradoxalmente, vastamente invisibilizadas. Esta
invisibilidade parece ser contraproducente, tendo em vista a importância dos fenômenos
descritos neste trabalho, e justifica-o por si mesma. Ao debruçar-se sobre os vários
mecanismos que levam à imigração, voluntária ou não, de travestis e mulheres trans
brasileiras para a Europa, este artigo pretende enfatizar as realidades sociais e concretas
suportadas, nesse contexto, pelas vítimas de exploração sexual. Como veremos neste
estudo, essa migração particular é explicada e impulsionada por um forte desejo desses
sujeitos de se realizarem com mais liberdade e dignidade no contexto europeu e
escaparem, assim, de realidades sociais permeadas por discriminações e ataques que se
dão no cotidiano brasileiro. No entanto, evidencia-se que, quando chegam à Europa, essas
vítimas se deparam com uma amarga realidade, em que os seus direitos são violados e o
regresso ao passado parece, por vezes, impossível. Seguindo uma perspectiva
socioantropológica e jurídica, o objetivo deste trabalho é analisar as características desse
tipo de tráfico sexual que, como veremos, pode ser identificado como uma forma de
escravidão contemporânea. Assim, discutiremos as principais noções e conceitos
relacionados a essa questão, antes de analisarmos as manifestações concretas dessa forma
de escravidão contemporânea, no intuito de explicá-las mais detidamente.
Palavras-chave
Escravidão contemporânea. Prostituição. Tráfico de pessoas. Mulheres trans. Travestis.

Resumen
Es cierto que sexo y dinero pueden aparecer como nociones subversivas que atraen
fácilmente toda la atención; sin embargo, en la misma medida, es nítido que las cuestiones
planteadas en este artículo – que parten del nexo entre esos términos – son,
paradójicamente, ampliamente invisibilizadas. Dicha invisibilidad parece ser
contraproducente, teniendo en cuenta la relevancia de los fenómenos descritos en este
estudio, y lo justifica por sí misma. Al detenernos en los distintos mecanismos que
conducen a la migración, sea esta voluntaria o no, de travestis y mujeres trans brasileñas
hacia el continente europeo, este artículo pretende hacer hincapié en las realidades sociales
y concretas soportadas, en este contexto, por las víctimas de explotación sexual. Como
veremos en este estudio, tal migración particular se explica y se impulsa por un hondo
deseo de esos sujetos de realizarse con más libertad y dignidad en Europa, escapando así
de realidades sociales repletas de discriminaciones y ataques que se ven en el día a día
brasileño. No obstante, se advierte que, al llegar a Europa, esas víctimas se perciben ante
una amarga realidad, en la que sus derechos se vulneran y el regreso al pasado parece, en
ocasiones, imposible. Siguiendo una perspectiva socioantropológica y jurídica, el objetivo
de este trabajo es analizar las características de ese tipo de trata que, según veremos, puede
ser identificado como una forma de esclavitud contemporánea. De este modo, debatiremos
las principales nociones y conceptos relacionados con la cuestión, antes de analizar las

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Sexo, dinheiro e escravidão contemporânea: tráfico de travestis e mulheres trans do Brasil 613
para a Europa com fins de exploração sexual

manifestaciones concretas de esa forma de esclavitud contemporánea, con el fin de


explicarlas más detenidamente.
Palabras-clave
Esclavitud contemporánea. Prostitución. Trata de personas. Mujeres trans. Travestis.

Abstract
While sex and money may appear as subversive notions, attracting easily all the attention,
it is also true that the issues raised in this article are, paradoxically, largely invisibilised.
This invisibility seems to counterbalance the importance of the phenomena described in
this work and justifies it in itself. Indeed, by coming back to the various mechanisms that
lead to the immigration, voluntary or not, of Brazilian trans women and travestis to
Europe, this article aims to emphasise the social and concrete realities suffered by these
victims and related to their sexual exploitation. If, as we will see in our study, this
particular migration is explained and driven by a strong desire to accomplish themselves
more freely and decently in Europe and thus escape social realities such as discriminations
and attacks that are part of their daily lives in Brazil, it is clear that when they arrive in
Europe, these victims are confronted with a harsh reality, where their rights are violated
and where a return to the past appears sometimes impossible. From a socio-
anthropological and legal perspective, the objective of this work is to look at the
characteristics of this sexual trafficking, which, as we shall see, can be identified as a form
of modern slavery. We will, therefore, discuss the key notions and concepts related to this
issue, before analysing the concrete manifestations of this form of modern slavery and
attempting to explain it.
Keywords
Modern slavery. Prostitution. Human trafficking. Trans women. Travestis.

Introdução

A exploração sexual de mulheres cis e trans brasileiras, dentro e fora do país, é


uma realidade que merece ser analisada sob diferentes perspectivas e em
diferentes áreas do conhecimento. O presente estudo, nesse sentido, propõe uma
reflexão sobre a complexidade desse fenômeno social, tendo como foco as
mulheres trans e travestis1 brasileiras que migram para o continente europeu.
Nossa intenção é propor uma discussão baseada em dois eixos: (a) a construção de
uma subjetividade trans-feminina a partir da produção das identidades, das
experiências de vida e da transfobia estrutural; e (b) a invisibilização de uma
perspectiva de identidade e gênero no campo dos crimes de escravidão
contemporânea, atendo-nos especificamente aos casos de tráfico de brasileiras com
fins de exploração sexual.

1 A palavra “travesti” refere-se a uma identidade particularmente latino-americana, sem tradução


concreta e adequada para o inglês. Por isso, usa-se no texto original a palavra em português:
travesti.

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614 Leonam Lucas Nogueira Cunha - Jules Ponthieu - Lucas Isaac Soares Mesquita

O objetivo deste estudo é, portanto, esclarecer como se articula o tráfico sexual


internacional de mulheres trans e travestis brasileiras para a Europa, e quais são
os principais mecanismos de recrutamento, coerção e exploração dessas
trabalhadoras. Este artigo procurará ainda estabelecer pontes com os debates
contemporâneos sobre gênero, identidade de gênero e escravidão contemporânea,
e a realidade social dos mecanismos que surgem nesse tipo de tráfico.

Com tal intenção, construímos metodologicamente a nossa abordagem com base


numa revisão bibliográfica e na análise de documentos e dados nacionais e
internacionais anteriormente produzidos, buscando uma visão transdisciplinar.
Partimos da ideia de que é pertinente tratar essa questão, interligando debates
etnográficos e sociológicos com discussões jurídicas sobre a escravidão
contemporânea. O objetivo é elaborar uma análise jurídica, racial, de classe e de
gênero, observando as especificidades dos sujeitos trans oriundos de um contexto
geográfico e sociocultural particular, situados na periferia do mundo.

Para realizar essa análise, explicamos primeiramente o marco conceitual da


pesquisa, trabalhando os conceitos de “mulheres”, “trans”, “travestis” e as noções
de “escravidão contemporânea”, “escravidão em sentido estrito”, “servidão por
dívida”, “trabalho forçado”, “tráfico de pessoas” e “exploração sexual”. Em
seguida, apresentamos alguns fatos gerais e interpretações sobre a intersecção
entre escravidão, migração e gênero, antes de passarmos à análise sociocultural da
produção de sujeitos específicos – neste caso, mulheres trans e travestis –,
identificados como alvos claros do tráfico de pessoas com fins de exploração
sexual. Finalmente, abordamos os mecanismos utilizados pelas redes de tráfico
para recrutar essas pessoas, fazendo delas vítimas, bem como as estratégias
existentes para que tais redes se sustentem.

1 De que base conceitual partimos

Primeiramente, parece relevante identificar o marco conceitual com que


trabalhamos. O nosso objeto de pesquisa limita-se ao tráfico com fins de exploração
sexual, especificamente, de pessoas trans que se identificam num espectro da
feminilidade. Em outras palavras, pessoas medicamente designadas, ao nascer,
como homens, mas que socio-culturalmente se identificam como “mulheres” ou
como "sujeitos femininos", ou pessoas cuja identidade se aproxima à feminilidade,
não ao nível da expressão de gênero, senão em termos de uma autoidentificação
subjetiva. No que concerne a esse tema, parece necessário definir algumas noções
e conceitos que serão de particular interesse para este estudo.

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Sexo, dinheiro e escravidão contemporânea: tráfico de travestis e mulheres trans do Brasil 615
para a Europa com fins de exploração sexual

O primeiro ponto que merece ser esclarecido é a própria ideia de “mulheres”. A


categoria “mulheres” é aqui entendida como uma categoria histórica e política
generificada, altamente subjetiva e inter-relacionada com uma realidade social e
cultural. Com “categoria histórica”, queremos dizer que ela sempre contempla
variações e mudanças; não como se a história fosse um ente consciente, mas como
estando sujeita a interferências. Baseamos também o nosso trabalho na noção de
gênero como performatividade, como articulada especialmente por Judith Butler
(2007). Assim, as “mulheres” são indivíduos que se identificam como tal e que
assumem social e publicamente essa identidade. Por conseguinte, não se atribui
importância às tradicionais fronteiras biológicas impostas por uma discursividade
autorreferencial e pelo paradigma do “natural” e da “natureza”. Neste sentido,
com a categoria “mulheres”, referimo-nos tanto a mulheres cis como a mulheres
trans.

O segundo conceito importante que precisa ser mencionado é a noção do termo


“trans”. Utilizamos “trans” como uma forma de englobar diferentes definições (em
todo caso, inclusiva e para as quais seria impossível tecer uma definição estrita e
cerrada), como as de transexual, transgênero, travesti etc. Essa categoria pode
também incluir diferentes trans-identidades, como as pessoas não binárias, por
exemplo, gênero fluido, agênero etc. No entanto, neste estudo nos centraremos nas
identidades femininas. Quando nos referirmos a mulheres transexuais ou
transgênero, utilizaremos o termo “mulheres trans”, e quando falarmos de
travestis, utilizaremos o termo “travestis”.

E por que não usamos também o termo “mulheres trans” para nos referirmos às
travestis? Apesar de encarnarem espectros da feminilidade, as travestis
geralmente rejeitam o termo “mulher” para se referirem à sua própria identidade.
Tomando o contexto brasileiro como pano de fundo, seria inevitável falar da
categoria “travesti”, já que se trata de uma identidade latino-americana. Noutros
contextos, como o espanhol, o termo “travesti” está muito mais próximo das
definições fetichistas biomédicas de travestismo, que entendem “travesti” como
um homem cis que se veste e se apresenta – geralmente em espaços privados, mas
também é possível realizarem uma aparição pública – como uma “criatura
feminina”2. Dessa forma, seguindo esse entendimento, “travesti” corresponderia

2 Magnus Hirschfeld, sexólogo alemão, definiu "travestismo" como o desejo de usar roupas do sexo
"oposto", entendendo-o como um marcador ou faceta da homossexualidade. Em contrapartida,
Harry Benjamin, psiquiatra germano-americano que estudou mais pormenorizadamente o
“fenômeno trans”, desenvolveu quadros conceituais que tiveram um impacto significativo nos
protocolos e tratamentos médicos aplicados às pessoas trans com o objetivo de “corrigir a sua
não-conformidade sexual e de gênero”. Benjamin seguiu a definição de Hirschfeld, mas foi ainda
mais longe, diferenciando, por exemplo, travestis de transexuais. Para ele, estes últimos

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a “crossdresser”, “drag queen” etc. Esta definição, no entanto, não corresponde à


que se faz uso na América Latina.

No Brasil, as travestis constituem uma comunidade autodeclarada que vivencia


uma identidade feminina e apresenta uma expressão de gênero também feminina,
sem se definirem como mulheres. Ou seja, são pessoas que, tendo sido designadas
como homens ao nascer, antes de questionarem essa identidade imposta, colocam
em prática uma performatividade feminina sem reivindicar a categoria “mulher”
(sendo, portanto, também pessoas trans). Assim, expressam-se em termos de
gênero de forma feminina, identificam-se através de marcadores linguísticos
femininos, podem desejar (ou não) modificar cirurgicamente as suas características
sexuais, mas não se reconhecem como “mulheres”, senão como “travestis” (Cunha,
2021, p. 268). Por isso, podemos entendê-las como uma comunidade autodeclarada
em relação ao gênero. Neste sentido, Jacqueline Gomes de Jesus (2012) define uma
“travesti” como alguém que vivencia papéis de género femininos, mas que não se
reconhece nem como homem nem como mulher, mas como membro de um
terceiro gênero ou de um não-gênero.

Assim sendo, entendemos “travesti” como uma identidade de gênero enunciada


pela autoimagem e que ultrapassa as categorias binárias de masculino e feminino.
Desta forma, é possível vê-la mais claramente3 como uma construção performativa
de gênero: a autodesignação e a autodeclaração desse grupo, não só verbal, mas
também corporal, através da repetição, vão moldar e conferir-lhe “existência”.
Além disso, alguns estudos apontam que a ideia de “travestis” carrega consigo
uma radicalidade e está ligada a uma realidade social periférica e marginalizada
(Bento, 2008, p. 12; Kulick, 2008, p. 24). Desse modo, seria impossível compreender
a travestilidade sem considerar a sua intersecção com a classe.

Ainda, é frequente observarmos resquícios das classificações patológicas que


diferenciam travestis e transexuais conforme a in/disposição a realizarem
modificações permanentes em seus corpos. Em algumas situações, a categoria
transexual ainda é associada a modificações corporais/genitais, e a categoria
travesti, ao uso de roupas atribuídas a um gênero diferente. No entanto, as
experiências, as identidades e as vidas trans são múltiplas: há mulheres trans que

indivíduos queriam submeter-se a uma cirurgia de redesignação sexual, enquanto “travestis” se


sentiam confortáveis com os seus caracteres genitais. Ver Hirschfeld, 1992 [1910] e Benjamin,
1966, p. 10-31.
3 Destacamos o advérbio “mais claramente” não porque tratemos de dizer que a construção de
gênero das mulheres cis e dos homens cis não seja performativa, mas apenas que, por estar
embutida no discurso da “natureza” e da “biologia”, a sua performatividade fica escondida,
assimilada à normatividade sociocultural do sexo e do gênero.

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Sexo, dinheiro e escravidão contemporânea: tráfico de travestis e mulheres trans do Brasil 617
para a Europa com fins de exploração sexual

não querem se submeter a cirurgias e travestis que querem realizar não só uma
mamoplastia, como também uma vaginoplastia. Tudo isso deve ser considerado
em vistas à construção de uma definição abrangente e inclusiva dessas noções.
Noutras palavras, as travestis, enquanto categoria identitária, sobrepõem-se às
definições herméticas construídas pelas ciências biomédicas, que também
informaram o paradigma patologizante que impôs a necessidade das
“normalizações corporais”. Não porque, de alguma forma, não realizem ou não
queiram realizar modificações nos seus corpos, mas porque defendem, através da
sua própria experiência de vida, que isso não é um critério essencial para
transicionar de um gênero a outro.

O esquema patologizante gera a ideia das trans-identidades como “erros” para os


quais são indicados tratamentos, com o objetivo de recapturar as pessoas trans
para que se aproximem à cisnorma. Identificamos isso como uma consequência de
um esquema transfóbico que interpreta tudo que não segue o paradigma cis-sexual
como inferior, nocivo, não natural ou antinatural.

A terceira noção que é importante definir é o conceito de escravidão


contemporânea. Entendemos que se trata de um termo que engloba um conjunto
de violações de direitos humanos e, especificamente, de direitos trabalhistas,
incluindo a escravidão em sentido estrito, mas também o trabalho forçado ou
obrigatório, os sistemas e as formas de situações análogas à escravidão, e o tráfico
de pessoas. Referimo-nos, assim, a “homens, mulheres e crianças que vivem nos
limites do suportável, forçados a trabalhar em atividades ou condições não
escolhidas, sob constante coação e ameaça” (Goldman, 2014, p. 10).

A escravidão em sentido estrito refere-se ao exercício das atribuições do direito de


posse de uma pessoa sobre outra a fim de explorá-la economicamente; por
exemplo, através da compra, venda, transferência, doação, violação, uso, gestão
e/ou transmissão por herança de uma pessoa sobre as outras. Como resultado,
observa-se a “morte civil e social da pessoa escravizada”, que é assim convertida
numa subclasse, o que resulta na negação e na degradação da sua própria condição
humana (Alonso, 2017, p. 334-335).

No caso do trabalho forçado, há uma imposição de trabalho à pessoa trabalhadora


por meio de uma coação “injusta, abusiva, opressiva ou humilhante”, como
através da retenção de documentos ou salários, a denúncia às autoridades locais
em função de uma condição de irregularidade e/ou a sua expulsão do país, o
confinamento, a negação de necessidades básicas (alimentação, água e idas ao
banheiro), a ameaça ou a submissão a violência física, psicológica ou sexual
praticada sobre ela, a alguém da sua família ou a um ente querido (Morales, 2017,

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p. 294-295). Para além dessas violências citadas, entre os mecanismos de coação


percebidos no contexto do tráfico de pessoas e da escravidão, podemos ainda
mencionar os maus tratos, o encarceramento, o endividamento induzido, o
isolamento cultural e linguístico, entre outros. (Goldman, 2014).

A servidão por dívida consiste na cobrança abusiva e ilegal à pessoa empregada,


por parte de quem ocupa o papel de empregador, de supostas quantias – na
maioria das vezes superiores ao valor comercial – relativas a despesas relacionadas
a transporte, hospedagem, alimentação, vestuário, instrumentos de trabalho,
equipamentos de proteção (quando existentes), medicamentos e outros bens de
consumo. A intenção é criar uma relação de dependência econômica em que, por
mais que a pessoa trabalhadora se esforce, terminará contraindo uma dívida eterna
e impagável com quem a emprega (Repórter Brasil, 2015) e estará atada
indefinidamente ao local de trabalho, sendo privada da livre disponibilidade do
seu salário. Com a atribuição de preços de produtos ou despesas, do valor do
trabalho e do sistema de pagamento das dívidas, o domínio do controle financeiro
fica sendo exercido por quem a emprega ou a capta (Oliveira; Anjos, 2019, p. 116).
As informações, nesse sentido, são omitidas à pessoa trabalhadora, que não tem
acesso às suas finanças e despesas, ou, se o tem, vê a quitação total das dívidas
como algo praticamente inatingível.

No entanto, as modalidades da escravidão contemporânea não são estáticas. Elas


estão extremamente interligadas, podendo coexistirem e até se fundirem umas
com outras. Há uma tentativa de estabelecer diferenças com base na gravidade da
ilicitude, que começaria com o trabalho forçado, passando pela servidão até chegar
à escravidão, que seria a forma mais extrema entre elas (Morales, 2017, p. 294). Há
ainda uma relação de complementaridade entre essas modalidades; ou seja, em
situações de servidão, seria constatada a presença do trabalho forçado, e, em casos
de escravidão, seriam verificados elementos do trabalho forçado e da servidão
(Alonso, 2017, p. 350).

De acordo com a definição do artigo 3º do Protocolo Adicional à Convenção das


Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, relativo à Prevenção, à
Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, o
tráfico de pessoas refere-se:

[a]o recrutamento, [a]o transporte, [à] transferência, [a]o alojamento ou


[a]o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a
outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de
autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de
pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que
tenha autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração

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Sexo, dinheiro e escravidão contemporânea: tráfico de travestis e mulheres trans do Brasil 619
para a Europa com fins de exploração sexual

incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras


formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura
ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos
(United Nations, 2000).

Desse modo, o tráfico de pessoas pode ser compreendido a partir de três eixos: (a)
os atos – relacionados ao recrutamento, transporte e alojamento; (b) os meios, ou
seja, o uso de algum tipo de violência (física, psicológica, econômica, entre outras)
para manter o controle sobre a vítima; e (c) a finalidade: exploração sexual, física,
do trabalho etc. (Bronstein, 2019, p. 15). Assume-se, portanto, que o tráfico envolve
a exploração da pessoa para a realização de alguma atividade, sendo assim vista
como uma mercadoria.

Por fim, entendemos a exploração sexual comercial como “qualquer atividade


destinada a promover, facilitar, desenvolver ou beneficiar uma terceira pessoa
através de qualquer forma de comércio sexual”, incluindo a prostituição, a
pornografia e o turismo sexual (Goldman, 2014, p. 65)4.

2 Atravessando o Atlântico no sentido contrário

Nesta seção, trabalharemos acerca de diferentes questões que amparam o debate


que aqui nos interessa. Em primeiro lugar, apresentaremos um panorama geral,
baseado em estatísticas e ideias-chave sobre a escravidão contemporânea e a
migração, abordando a sua intersecção com o gênero. Mais adiante,
problematizaremos o contexto sociocultural que tornam os sujeitos mais
facilmente expostos às redes de recrutamento do tráfico com fins de exploração
sexual. Por fim, analisaremos a história do tráfico de travestis e mulheres trans (do
Brasil para a Europa) com fins de exploração sexual, bem como os mecanismos
dessas redes, suas estratégias, articulações e as suas respectivas consequências na
vida das vítimas.

2.1 Escravidão, migração e gênero: alguns dados e noções


gerais

A partir de um estudo hermenêutico das principais decisões dos tribunais


internacionais europeus, americanos e africanos, podemos traçar um perfil geral

4 É importante, ademais, observar que as definições jurídicas que construíram esse conceito estão
relacionadas com as convenções de direitos humanos promovidas pela Organização das Nações
Unidas (ONU) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) ao longo do século XX e início
do século XXI, bem como com a ação de organizações não governamentais, Estados, tribunais
internacionais de direitos humanos e outros atores globais.

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da pessoa que é escravizada atualmente: migrante de um país empobrecido, que


começou a ser explorada na infância ou na adolescência, em sua maioria, do gênero
feminino e completamente desassistida em termos de direitos e garantias
fundamentais. Essa informação, no que tange à análise qualitativa desenvolvida, é
consistente com a ideia da existência de uma divisão sociossexual, racial e étnica
do trabalho, e corresponde aos dados sistematizados pelas organizações
internacionais (Mesquita, 2022).

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, a Fundação Walk Free e


a Organização Internacional para as Migrações (2022, p. 1), existem atualmente 50
milhões de pessoas submetidas à escravidão contemporânea no mundo.

Dentro dessa população, o crime afeta mais diretamente a população feminina,


uma vez que 71,1% das vítimas são mulheres e meninas. O gênero surge como um
fator de risco para a escravidão, sobretudo quando se analisam as atividades em
que predomina o gênero feminino, como se pode ver no gráfico a seguir. Neste
sentido, 99,4% das pessoas trabalhadoras que estão ilegalmente na indústria do
sexo comercial são mulheres, escravas do comércio sexual (OIT, Walk Free
Foundation e OIM, 2017, p. 10).

Gráfico 1
Distribuição percentual das vítimas de escravidão contemporânea, por gênero e
categoria

Fonte: OIT, Fundação Walk Free e OIM5.

5 O marcador azul-escuro refere-se a mulheres e o verde, a homens. Modern slavery significa


escravidão contemporânea, forced labour exploitation: exploração laboral forçada, forced sexual

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Sexo, dinheiro e escravidão contemporânea: tráfico de travestis e mulheres trans do Brasil 621
para a Europa com fins de exploração sexual

Dentro da verificação da prevalência proporcional de mulheres e meninas, há


variações importantes que devem ser estudadas e aplicadas nas políticas públicas
pelos Estados, como o fato de que, no caso do trabalho forçado, há atividades que
concentram mais mão de obra feminina, como o trabalho doméstico e o trabalho
sexual, e outras em que se exploram mais os homens, como a agricultura, a
indústria e a construção civil. Além disso, ao analisar os tipos de coação no
contexto da escravidão, verifica-se que as mulheres são mais propensas a sofrer
violência, especialmente violência sexual, e a ter os seus passaportes retidos,
enquanto os homens são mais propensos a receber ameaças contra as suas famílias,
a ter os seus salários retidos, a serem confinados, ou a serem privados de
alimentação; além das intimidações legais, como a denúncia do seu estado de
irregularidade às autoridades (OIT, Walk Free Foundation e OIM, 2017, p. 35). A
violência diferencial de gênero, em particular a violência sexual, no contexto da
escravidão contemporânea, surgirá como um fator de controle sobre as mulheres
na maioria das violações de seus direitos laborais ou de outros direitos.

No entanto, os índices brasileiros parecem contrariar essa lógica, pois, segundo


dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de
Pessoas, 94,9% dos trabalhadores escravizados resgatados no país entre 2003 e
2021 eram homens. Porém, essa predominância não implica necessariamente que
a escravidão contemporânea no Brasil seja predominantemente masculina. Seria
surpreendente que, do total de trabalhadores escravizados em todo o país, apenas
5,1% fossem mulheres, tendo em vista que a maior parte da população nacional é
composta por mulheres e que globalmente o gênero aparece como um fator de
risco para a escravidão contemporânea.

Pode-se afirmar, portanto, que há uma invisibilização e uma subnotificação do


trabalho escravo contemporâneo feminino, seja pela falta de fiscalização, pelo não
reconhecimento de algumas atividades exercidas por mulheres ou pelas
dificuldades de fiscalização de profissões consideradas pela divisão sexual do
trabalho como feminilizadas, como as trabalhadoras do sexo ou as empregadas
domésticas6.

O trabalho escravo feminino geralmente só é visível quando as mulheres assumem


papéis laborais universalmente atribuídos, segundo a divisão sexual do trabalho,
aos homens, ocultando a importância de outros trabalhos mais diretamente

exploitation: exploração sexual forçada, State-imposed forced labour: trabalho forçado imposto pelos
Estados, forced marriage: casamento forçado e forced labour: trabalho forçado em geral.
6 As mulheres cis e trans resgatadas, com frequência, não se beneficiam do seguro-desemprego, o
que as torna mais vulneráveis à revitimização (Plassat, 2020).

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relacionados com a reprodução e a cadeia global de cuidados no setor doméstico


(Pereira, 2020, p. 8). No caso específico das trabalhadoras do sexo, existe uma forte
estigmatização, atribuição de culpa e falta de reconhecimento da sua
vulnerabilidade à escravização devido ao trabalho que realizam (Suzuki, 2020, p.
16). Quanto às mulheres trans e travestis, outra possível razão para essa
invisibilidade estatística pode ser o não reconhecimento de seu verdadeiro gênero,
a transfobia institucional e o baixo número, ou a ineficácia, de políticas públicas
voltadas para a garantia dos direitos e para a proteção dessa população.

2.2 Mulheres trans e travestis como vítimas do tráfico de


pessoas

Aqui, é fundamental enfatizar que a vulnerabilidade socioeconômica resultante


das desigualdades de classe, raciais e de gênero é o principal fator de risco para o
tráfico e a escravização. Quando falamos de escravidão contemporânea, um ponto
que articula a interseccionalidade entre identidade de gênero e migração é o tráfico
para exploração sexual de travestis e mulheres trans. Neste caso, a feminização da
pobreza se entrelaça com questões de raça e identidade de gênero, evidenciando-
se especificamente o machismo estrutural, a transfobia e o racismo (UNODC, 2021,
p. 12-13). A constante rejeição e marginalização familiar, social7 e laboral8 parece
ser uma forte causa para que esses sujeitos busquem a migração como uma
estratégia de sobrevivência, para noutro espaço geográfico poderem viver a sua
identidade de gênero sem tantas barreiras e ter uma qualidade de vida mais digna.

No caso das mulheres trans e das travestis, sejam elas enganadas com falsas
promessas de trabalho ou estejam convencidas e conscientes de que irão migrar

7 O Brasil é o país que registra o maior número de assassinatos de pessoas LGBTQIA+ no mundo,
demonstrando como se trata de um ambiente hostil e extremamente LGBTIfóbico. Em 2020,
“foram 237 mortes de LGBTQIA+ em território nacional, sendo 224 homicídios e 13 suicídios.
Além disso, os dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), que há anos
produz relatórios de assassinatos, apontam que no mesmo período ocorreram 184 mortes de
travestis e transexuais e 175 homicídios de gênero feminino” (ABGLT, 2021, p. 5). Esses
assassinatos são considerados crimes de ódio porque, além de manifestarem uma violência
direcionada a uma determinada população, são materializados com uma crueldade específica,
como o “uso [de] múltiplas armas brancas, asfixia/enforcamento, tortura prévia, afogamento,
apedrejamento, pauladas, carbonização, atropelamentos brutais, esquartejamento, mutilação,
órgãos genitais decepados, olhos perfurados, violência sexual e a própria forma como o agente
criminoso se ‘desfaz’ do corpo” (Lins Júnior; Mesquita, 2019, p. 176-177). Além dos dados
apresentados, outro chama bastante atenção: o Brasil é “o país que mais consome pornografia de
mulheres trans no mundo” (UNODC, 2021, p. 15). A ausência de dados produzidos pelo Estado
faz com que os próprios movimentos sociais os produzam, apesar dos problemas financeiros e
de pessoal encontrados.
8 A Associação Nacional de Travestis e Transexuais, ANTRA, estima que 90% das mulheres trans
e travestis no Brasil estão envolvidas na prostituição (Kometani, 2017).

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Sexo, dinheiro e escravidão contemporânea: tráfico de travestis e mulheres trans do Brasil 623
para a Europa com fins de exploração sexual

para exercer a prostituição – principalmente em países europeus –, elas podem


acabar sendo vítimas do tráfico de pessoas, submetendo-se a jornadas exaustivas
de trabalho sexual, num sistema de servidão por dívida em que ficam à margem
de qualquer legislação e proteção social, vendo-se vulneráveis a uma série de tipos
de violência (psicológica, econômica e física, por exemplo).

Nesse sentido, “[a] maioria das travestis chega ao tráfico com uma bagagem
semelhante: foram expulsas de casa, não conseguiram terminar a escola, não têm
acesso a empregos. [Elas, portanto, v]eem o tráfico como a grande esperança de
uma nova vida” (Marilac; Queiroz, 2019, p. 91). Além disso, o ideal de beleza
trans/travesti promovido no Brasil é um importante eixo na construção de suas
identidades. A busca pelo “corpo perfeito”, como dizem as próprias travestis,
parece compor em grande parte um processo entendido como fundamental para
elas, que é, em última instância, um exigente trabalho de corporificação
(Vartabedian, 2018, p. 7-8) para se tornarem sujeitos com melhor status social.
Noutras palavras, ter um determinado corpo pode dar-lhes outro reconhecimento
social, pode torná-las “sujeitos vistos” e mais dignos.

O trabalho dessa corporificação, que normalmente exige muito esforço, paciência


e recursos financeiros9, é caracterizado por uma complexidade de fatores:
idealizações da feminilidade, elevados padrões estéticos, interseccionalidade com
raça e classe. Primeiramente, comentando sobre as idealizações de feminilidade e
esses altos padrões estéticos mantidos, é comum ouvir das travestis que elas não
querem ser “mulheres” porque as mulheres têm corpos “comuns”; elas querem ser
mais do que isso, ou seja, espelham-se em pessoas específicas, geralmente estrelas
da moda, da televisão, que ocupam uma posição socioeconômica elevada (Jarrín,
2015, p. 542). Segundo Vartabedian (2018, p. 83), elas “procuram materializar nos
seus corpos um gênero que se define, sobretudo, pelo fato de se sentirem como
mulheres (...). [Procuram] assemelhar-se a elas através da construção de uma
feminilidade constantemente negociada. Mas esta imitação não se baseia em
nenhum tipo de mulher”. Geralmente inspiram-se, como já foi referido, em
mulheres específicas, poderosas e bem-sucedidas, com corpos volumosos e bem
torneados. Além disso, podem considerar-se mais “perfeitas” do que as mulheres
cis porque possuem uma concepção de feminilidade mais cultivada e desejada que

9 Como, de acordo com os escassos dados disponíveis, a grande maioria das travestis se dedica à
prostituição, ganhar dinheiro significa trabalhar mais e, para trabalhar mais, é necessário ter
corpos mais desejáveis, mais idealizados, o que envolve quase sempre cirurgias plásticas e
estéticas, para além das transformações clássicas dos processos de transformação MtF (Male to
Female: de homem para mulher). No entanto, esta corporificação de ideais de beleza não ocorre
apenas para atrair clientela, mas também para obter um reconhecimento social (ver o conceito de
“cidadania cosmética” de Jarrín, 2017, p. 156-187).

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fascina os homens, além da possibilidade de, no ato sexual, penetrarem.


Compreende-se que o desejo de manter o pênis, que a maioria das travestis
manifesta, possa dever-se ao fato de terem uma concepção mais “perfeita” da
feminilidade10, o que lhes confere uma singularidade que as empodera e atrai
homens bissexuais ou heterossexuais que procuram serviços sexuais com a
intenção de serem penetrados por figuras femininas. Assim, para as travestis, a
necessidade de cirurgia plástica para atingir um nível de beleza que consideram
perfeito (influenciada por uma idealização de uma corporeidade hiperfeminina)
parece ser muito maior do que, por exemplo, de uma vaginoplastia.

Em segundo lugar, as intersecções de raça e classe social são muito relevantes para
abordar a questão da construção da beleza que se quer encarnar. Segundo Duque
(2011), os tons de pele mais escuros não fazem parte do seu ideal de beleza. Embora
as recentes mobilizações dos movimentos negros brasileiros tenham contribuído
para uma revalorização e empoderamento dos traços negros e dos marcadores de
identidade negra (Gomes, 2006), e apesar da complexa diversidade da realidade
racial brasileira, ainda são comuns as estratégias cosméticas e estéticas de
embranquecimento:

alisar e iluminar o cabelo, mostrar as linhas de bronze do biquíni quando


tomam sol, para que as pessoas vejam como são “brancas”, usar lentes de
contato azuis ou verdes, bem como muita base e pó compacto para
esconder as imperfeições e parecerem mais claras (Vartabedian, 2018).

Por fim, é importante notar que esses processos de corporificação trans/travesti se


entrelaçam com uma questão de classe: as pessoas que exibem esses padrões
corporais, estéticos e de beleza são aquelas que ocupam uma posição privilegiada,
um lugar de respeito, legitimidade e poder. Nesse sentido, num contexto
neoliberal em que a beleza se insere num circuito de poder de acesso aos bens, e a
luta contra a exclusão social é entendida sob uma perspectiva de participação no
mercado de consumo (Edmonds, 2007, p. 371), os procedimentos estéticos
carregam consigo a ilusão de serem instrumentos úteis de mobilidade social.
Seguindo também essa perspectiva, Jarrín (2017, p. 156-187) articula o conceito de
“cidadania cosmética” para se referir à busca pela “cidadania” por parte das
pessoas de classe trabalhadora através das noções de beleza, corporeidade e
percepções contextuais da importância que a beleza tem nas redes de legitimidade

10 Isto distancia as travestis do modelo biomédico patologizante e normalizador, que sustenta uma
espécie de caminho pré-determinado para adequar os corpos de acordo com o entendimento
dominante de gênero/identidade de gênero, qual seja: viver uma experiência plena durante um
certo tempo como uma pessoa de outro gênero, tomar hormônios e submeter-se a cirurgias de
transgenitalização (Cunha, 2020, p. 367). Além disso, do ponto de vista institucional e estrutural,
isso as torna ainda mais invisíveis e ignoradas (Jarrín, 2016, p. 360).

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para a Europa com fins de exploração sexual

e prestígio social. Assim, é como se a beleza fosse interpretada como um elemento


indispensável de legibilidade sociocultural. No entanto, parece não se observar
que essa legibilidade através da beleza e da feminilidade não as transforma
necessariamente em sujeitos mais atrativos para o mercado de trabalho formal
(Kulick, 2008, p. 192-193).

Cabe ressaltar que esses ideais de beleza, de estética e de corporificação não são
uma herança trans/travesti, mas se veem refletidos no tecido social brasileiro. De
acordo com dados de 2015 da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética,
no ranking do número de cirurgias plásticas e procedimentos faciais, o Brasil
ocupa o segundo lugar: atrás somente dos Estados Unidos (ISAPS, 2016).

Correlacionando a ideia de migração trans/travesti, do Brasil para a Europa, com


as discussões que traçamos sobre corporificação, feminilidade e beleza, várias
questões podem ser destacadas. Em primeiro lugar, há uma crença, fomentada por
uma ideologia colonial que proclama a diferença radical (e mensurada em termos
de superioridade e inferioridade em todos os níveis) entre o Brasil e a Europa, de
que as melhores tecnologias de modificação corporal (estéticas e de gênero) são
encontradas no exterior11. Além disso, as mulheres trans e travestis brasileiras são
consideradas, “entre (...) outras travestis latino-americanas - como as mais ‘belas’
e ‘femininas’” (Vartabedian, 2018, p. 2). Essa fetichização e essa sexualização dos
seus corpos, que se veem na Europa em relação aos corpos brasileiros,
proporcionam uma distinção apreciada no mercado sexual internacional que, de
certa forma, mantém as mulheres trans e as travestis numa posição e num status
particulares dentro desse ambiente tão competitivo. Assim, a busca pelo corpo
perfeito e pela mobilidade social que está associada a ele, bem como o poder que
isso acarreta, leva as mulheres trans e travestis brasileiras a migrarem para a
Europa, pois veem lá uma possibilidade de “triunfo” socioeconômico, bem como
a possibilidade de acesso às melhores técnicas cirúrgicas para satisfazerem a
pressão pela perfeição corporal e as idealizações por ela geradas.

Assim, apresenta-se para elas a imagem de um cenário frutífero para a migração à


Europa: seria possível fugir de um espaço social hostil às trans-identidades e
impregnado de violência constante (nas instituições, nas famílias, nos campos
médico-sanitários, nas ruas, com a polícia, etc.); ganhar grandes quantias de
dinheiro através do mercado sexual (e graças aos estereótipos da beleza brasileira
e à fetichização e à sexualização da feminilidade brasileira); realizar cirurgias

11 Vartabedian (2018, p. 89) também registra a presença deste imaginário na sua pesquisa,
concretamente por meio das histórias das participantes que entrevistou.

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plásticas, procedimentos estéticos12 e cirurgias transfemininas-específicas13 com


grandes profissionais; para finalmente ter acesso a círculos de poder e riqueza que
nunca puderam ocupar.

As mulheres trans e travestis brasileiras, estando num contexto social em que


sofrem constantemente inúmeras formas de discriminação, tendo sido
historicamente relegadas ao mercado sexual por haverem sido sistematicamente
excluídas do mercado de trabalho formal, que assumem tão fortemente o desejo
de ascender socialmente e serem vistas como sujeitos inteligíveis, legítimos e
respeitados, acabam se tornando alvos fáceis do tráfico de pessoas com fins de
exploração sexual. É fundamental observar, portanto, como o ambiente
sociocultural brasileiro efetivamente produz sujeitos que logo se tornarão
potenciais vítimas dessas redes internacionais.

Dessa forma, a categoria “migração trans” pode ser muito útil para compreender
as travessias trans como estratégias de sobrevivência. Ela demonstra, por um lado,
a assimilação das mulheres trans e travestis brasileiras como sujeitos fetichizados
e sexualizados que fabricam corpos e estéticas específicas. Por outro lado, mostra
também as redes econômicas que se constroem por meio da migração de acordo
com as circunstâncias sociais do espaço geográfico de origem, as desigualdades –
bem como a possibilidade de mobilidade social que se apresenta – e as já referidas
corporeidade e estética que adquirem mais valor no mercado sexual transnacional.

A busca pela sobrevivência acaba por conduzi-las aos esquemas de complexas


redes de tráfico e de exploração sexual que envolvem proxenetas, crime
organizado, corrupção policial e de agentes de fronteira, dívida e morte,
diretamente relacionadas com a escravidão contemporânea e a servidão por
dívida. Para além disso, há que se ter em conta que:

Quem tenta impedir o tráfico sexual internacional de pessoas enfrenta um


problemão quando se trata de travestis e demais pessoas que desafiam
padrões tradicionais de gênero. Sequer conseguem saber de forma realista
quantas de nós são as vítimas resgatadas: em algumas delegacias somos
computadas como homens; em outras, como mulheres. Às vezes, como
“indefinidas”. No Brasil e na maioria dos países que fornecem dados à
ONU sobre tráfico não existe treinamento de pessoal para contabilizar

12 Como botox, peeling, alisamento de cabelo, depilação permanente a laser etc.


13 Por cirurgias transfemininas-específicas, entendemos a mamoplastia, a cirurgia de remoção do
pomo de adão, a feminização facial etc.

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Sexo, dinheiro e escravidão contemporânea: tráfico de travestis e mulheres trans do Brasil 627
para a Europa com fins de exploração sexual

cabeças de quem não deveria existir socialmente. Sumimos, invisibilizadas


nas estatísticas. (Marilac; Queiroz, 201914).

2.3 Nas redes da escravidão sexual

O período da ditadura militar brasileira, que teve início em 1964 e se estendeu até
1985, colocou as pessoas LGBT, e em especial as travestis, numa situação de
enfrentamento15, sendo objeto de perseguição policial, e à margem de qualquer
legitimação legislativa. Segundo Hutta e Balzer (2013, p. 75), o governo militar via
as travestis como inimigas da moral familiar brasileira, o que também contribuiu
para o profundo desejo de migrarem a outros países. Por estarem ligadas ao
mundo do entretenimento, da vida noturna e do drag, as travestis viram nesse
meio uma oportunidade dentro do mercado europeu. Foi assim que, no início da
década de 1970, algumas travestis migraram para a França para trabalhar nos
cabarés parisienses (Kulic, 2008, p. 180). Segundo Kulick, elas enxergaram no
contexto europeu uma oportunidade de auferir fama, de feminizar os seus corpos
e, assim, viver como travestis durante todo o dia (e não só à noite, no ambiente das
casas de espetáculos).

Depois, devido à rentabilidade notadamente maior, começaram a trabalhar no


mercado sexual: inicialmente na França, no final da década de 70, e depois na Itália,
a partir dos anos 80, quando foram estabelecidos requisitos mais rígidos para a
entrada em território francês (Kulick, 2008, p. 180-181). Assim, após atravessarem

14 A escolha pela utilização da biografia de Luísa Marilac no presente trabalho se integra ao contexto
das metodologias queer. Tais metodologias realizam uma crítica à hierarquização do
conhecimento e aos moldes herméticos da pesquisa acadêmica, favorecendo a
transdisciplinaridade e o uso de métodos de estudo mistos. A utilização, portanto, de uma
biografia num estudo como este incorpora, em alguma medida, a mescla do método da história
de vida, pouco comum no estudo do direito, com métodos tradicionalmente mais empregados
no campo jurídico. De acordo com propostas das metodologias queer, é problemática a
necessidade de, no objetivo de construir um texto acadêmico, basear-se somente em fontes
reconhecidas pela tradição ocidental como cientificamente válidas, excluindo outros
conhecimentos possíveis e tornando a pesquisa acadêmica hermética e menos acessível. Assim,
para construir uma pesquisa crítica sobre realidades complexas que estão em constante
movimento, de maneira antinormativa e contra-hegemônica, pode ser necessário pensar
metodologias afeiçoadas ao caos (Cunha, 2023).
15 Naquela época, o termo transexual ainda não era comum no Brasil. A noção de “transexual”
começou a ser conhecida e difundida socialmente a partir da década de 1990, com o
fortalecimento do discurso biomédico patologizante, que identificava as identidades trans como
um transtorno mental e propunha como tratamento a correção do corpo por meio de
modificações corporais. Essa lógica, herdada da tradição médico-discursiva europeia e
estadunidense, foi gradativamente incorporada às dinâmicas locais não ocidentais, como foi o
caso do Brasil na década de 1990 (Nery, 2019, p. 32-40).

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o Atlântico, elas fizeram uma outra travessia: do palco para a rua. No entanto, os
obstáculos que tiveram de enfrentar só viriam a ser conhecidos mais tarde.

Entre 2012 e 2014, estima-se que mais de 60% das vítimas de tráfico de pessoas
eram migrantes (OIT, Walk Free Foundation e OIM, 2017, p. 31). Nesse contexto
de imigração, a chegada a um novo país, as dificuldades linguísticas e de
integração social, inclusive entre si mesmas, já são elementos que diminuem o
glamour da vida na Europa. Ademais, a sua situação de vulnerabilidade vê-se
incrementada devido à flexibilidade do seu trabalho em relação ao racismo, ao
tráfico de pessoas, à exploração ilegal do trabalho, ao sequestro, aos pedidos de
resgate, à extorsão, à violência física e sexual, dada a falta de proteção social,
sobretudo quando se consideram situações de migração irregular (OIT, Walk Free
Foundation e OIM, 2017, p. 30).

Todo esse conjunto de situações de violência e precariedade é o que as mulheres


trans e travestis, ao migrarem para a Europa, só conhecem na prática a posteriori.
Muitas delas viverão esses anos de imigração com medo de serem deportadas,
tendo em vista a expiração do visto de turista; sujeitas às intempéries das ruas e ao
medo à polícia; ou à solidão de um apartamento no qual passam todo o tempo em
busca de clientes para trabalhar e conseguir cada vez mais dinheiro (Vartabedian,
2018, p. 11).

No Brasil, embora o tráfico de mulheres transexuais e travestis para fins de


exploração sexual seja bem conhecido, não existem dados oficiais que forneçam
uma visão geral da dimensão do problema. Assim, os números exatos, os
principais fluxos e as necessidades enfrentadas ainda são desconhecidos, sendo as
principais fontes de informação alguns estudos qualitativos. As operações "Fada
Madrinha" e "Cinderela" podem ser citadas como exemplos de casos em que a
polícia conseguiu desarticular parte de redes de tráfico.

A primeira delas foi realizada em 2018 e resultou na prisão de cinco pessoas nos
estados de São Paulo, Goiás e Minas Gerais. As vítimas eram aliciadas com
propostas de participação em concursos de beleza na Itália, mas na verdade eram
exploradas tanto nesse país quanto na França. Além disso, os próprios agentes
criminosos aplicavam silicone industrial (substância tóxica) nas vítimas, como
método de procedimento estético (Tavares, 2018).

Já a Operação Cinderela trata-se de um caso de tráfico interno de mulheres trans e


travestis, em sua maioria recrutadas nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, e
traficadas para a cidade de Ribeirão Preto, no estado de São Paulo. As promessas
de transformação no corpo, alimentação, hospedagem e uma vida melhor estavam

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Sexo, dinheiro e escravidão contemporânea: tráfico de travestis e mulheres trans do Brasil 629
para a Europa com fins de exploração sexual

presentes nas ofertas das pessoas responsáveis por captá-las. No entanto, a polícia
detectou muitos dos mecanismos ligados à escravidão contemporânea, entre os
quais podemos destacar a submissão à reprodução da escravização (jornada
exaustiva, condições degradantes de trabalho, servidão por dívida e limitação da
liberdade de locomoção), a existência de um tribunal que punia as vítimas com
castigos físicos, multas e outras penitências e a reincidência de alguns dos agentes
criminosos, o que certificava a naturalização do crime. Ocorrida em 2019, a
operação conseguiu resgatar cerca de 38 pessoas (G1 Ribeirão Preto e Franca;
Carvalho, 2022, p. 69).

A ausência de “informação desagregada segundo a identidade de gênero”, além


de representar uma omissão deliberada do Estado, foi registada pelo UNODC no
seu relatório nacional geral sobre tráfico de pessoas (UNODC, 2021, p. 42). Outro
fator relevante destacado por esse documento é a existência de uma rede de tráfico
e exploração sexual internacional de mulheres transexuais venezuelanas no Brasil,
principalmente no estado de Roraima (UNODC, 2021, p. 25).

Poderíamos perguntar-nos se, para a classificação das mulheres trans e das


travestis como vítimas de tráfico com fins de exploração sexual, seria indiferente
saber se elas têm ou não consciência do trabalho sexual que irão realizar no país
de destino. Em primeiro lugar, sem imputar uma posição de culpabilidade (em
sentido lato) aos sujeitos em questão, é necessário abandonar o discurso
generalizante de que todas elas são enganadas pelas redes de recrutamento, e de
que não têm consciência de que vão prostituir-se (Piscitelli, 2008, p. 45). Muitos
estudos indicam que não há plausibilidade nesse discurso (Piscitelli, 2008;
Teixeira, 2008; Patrício, 2008). Afinal, seria até ilógico ter de esconder isso a pessoas
que, no seu país de origem (neste caso, o Brasil), já estão na prostituição ou já
interiorizaram a prostituição como forma de escapar da marginalidade e ocupar
uma posição socioeconômica vantajosa. Por isso, é necessário não as infantilizar.
A maior parte delas tem consciência de que vai usar o seu corpo e a sua
sexualidade para satisfazer uma grande demanda do mercado europeu (algumas
podem mesmo ver a oportunidade de migrar, oferecida por quem as recruta, como
uma ajuda para elas16). No entanto, isso não significa que tenham plena consciência
das condições a que serão submetidas, das dívidas que contrairão e das horas
exorbitantes que terão de trabalhar.

Aqui, não entraremos num debate moral (ou moralizante) sobre o elemento da
consciência ou não consciência em relação ao tipo de trabalho a ser realizado ou se

16 Ver o estudo realizado por Piscitelli, 2008.

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o trabalho sexual é – ontologicamente – um trabalho indigno, ou se do contrário


podem ser inferidas dele condições de dignidade. Procuramos agora oferecer uma
perspectiva jurídica sobre a questão.

Ao fazê-lo, é importante observar que não pode ser invocado o argumento de que,
tendo consciência do trabalho que irão realizar ao outro lado do Atlântico, esse
grupo não seria vítima de tráfico de seres humanos ou de escravidão sexual. Essa
afirmação se torna irrelevante ante o fato de que a escravidão contemporânea se
verifica independentemente da voluntariedade da vítima, sobretudo quando é
evidente que esta foi, em certa medida, engazupada e não exerce plenamente a sua
liberdade de escolha (Vallejo, 2020, p. 48); e aqui podem entrar em jogo as
circunstâncias socioculturais, históricas e políticas de cada contexto.

Mas, como quisemos antecipar, deve-se fazer uma análise cautelosa ao estudar os
casos, evitando generalizações estigmatizantes. Há migração de mulheres trans e
travestis para o continente europeu que não está relacionada com a prostituição.
Existem também trabalhadoras do sexo que migram para a Europa e que não são
escravizadas. Assim, é necessário diferenciar esses grupos e compreender que,
dentro do universo das travestis e mulheres trans que migram a fim de trabalhar
com a prostituição, existem diferentes graus e mecanismos de subjugação e
exploração, incluindo os que conduzem à escravidão.

Um dos mecanismos que merece destaque é a rotação dessas migrantes por várias
cidades europeias, em parte para terem contato com uma clientela maior e
evitarem percalços com a polícia ou com os controles migratórios (Castro; Rosado;
Fernández, 2009). Por outro lado, estando sujeitas a redes de escravidão sexual, tal
estratégia faz também com que elas não estabeleçam residência e, portanto, não se
arraiguem em espaço algum e, por conseguinte, não construam redes de apoio.
Parece até um mecanismo sutil, mas que certamente cria um ambiente bastante
favorável para aquelas pessoas que lucram com a exploração sexual.

Vários outros mecanismos podem ser articulados para tornar a migrante uma
vítima da escravidão contemporânea: privação da liberdade, alojamento precário
e sem condições de higiene, vulnerando-se o seu direito à privacidade (Goldman,
2014, p. 71); sujeição a jornadas de trabalho exaustivas para pagar as despesas
relacionadas à viagem (Kulick, 2008, p. 186) – emissão de passaportes e vistos,
passagens, subornos de agentes do controle fronteiriço, etc. –, à sua manutenção –
alojamento, compra de agentes da polícia para evitar denúncias ou fiscalizações,

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Sexo, dinheiro e escravidão contemporânea: tráfico de travestis e mulheres trans do Brasil 631
para a Europa com fins de exploração sexual

pagamento de “ponto”17 (Piscitelli, 2008, p. 45), etc. – e em cirurgias


transfeminizadoras e procedimentos estéticos (o que configura, pelo menos, a
noção de servidão por dívida); a toxicodependência e o incitamento dos clientes a
tornarem-se também dependentes (Goldman, 2014, p. 101); entre outros
mecanismos.

É notável a complexidade dessas redes e a multiplicidade de estratégias


empregadas para manter essas travestis e mulheres trans na dependência
criminosa das pessoas que se utilizam delas. Além disso, é digna de nota a
capacidade de retroalimentação dessas redes por parte de outras mulheres (cis
e/ou trans) e travestis, inclusive que já foram escravizadas anteriormente.

Goldman, por exemplo, destaca a incidência de mulheres neste ramo criminoso:


“Nos bordéis, há normalmente mulheres responsáveis pelas instalações, cuidando
do caixa ou do bar, exercendo um controle direto sobre as meninas exploradas”
(Goldman, 2014, p. 84). Chama atenção ainda para o fato de existirem diferentes
proxenetas administrando esses negócios e muitas mulheres que são
“recrutadoras, transportadoras e intermediárias, [...] escolhidas porque inspiram
mais confiança nas vítimas do que os homens” (Goldman, 2014, p. 84). São também
recorrentes os relatos de mulheres e travestis que, de alguma forma, ganharam
prestígio e/ou reconhecimento socioeconômico nesse meio, que o viram como uma
oportunidade de negócio lucrativo e que, posteriormente, se tornaram
recrutadoras, transportadoras ou proxenetas de futuras vítimas18. Percebe-se que
se trata de uma estratégia ainda mais rebuscada: mulheres (cis ou trans) e travestis
se reconhecem mutuamente (Teixeira, 2008, p. 279); facilitam-se, portanto, o
contato e a comunicação entre elas, assim como o trabalho de convencimento e
captação para o tráfico.

Para além das possíveis consequências físicas desse tipo de escravidão, como a
vulnerabilidade a “doenças infectocontagiosas, especialmente as sexualmente
transmissíveis” (Goldman, 2014, p. 71), bem como a falta de prevenção e
tratamento de outras doenças, devido à dificuldade de acesso aos serviços de

17 As travestis e mulheres trans brasileiras que não estão nas casas de prostituição propriamente
ditas precisam pagar uma espécie de aluguel para ficarem em determinado ponto da rua e serem
protegidas das revistas policiais (Vartabedian, 2018, p. 209-2011) ou da violência de outros grupos
(de caráter transfóbico, putofóbico, xenofóbico ou com o fim de roubá-las).
18 Goldman elucida que este fato demonstra que se trata de “uma maquinaria perversa que se
retroalimenta, com a vitória da desesperança” (2014, p. 84). Ver também: Vartabedian (2018, p.
56), em que se faz referência à ideia de “madrinha”. Segundo esta estudiosa (2018, p. 17),
“madrinhas é o termo que as travestis empregam para nomear aquelas com mais experiência e
mais meios econômicos que protegem, orientam e aconselham as travestis mais jovens em troca
de respeito e dinheiro”.

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saúde, existem outras possíveis consequências psicológicas. Entre elas, a


despersonalização (ou seja, a pessoa não se vê como vítima, mas como algo que
aconteceu a outra pessoa), a alteração da percepção do tempo ou a perda de
memória, a indiferença/insensibilidade à violência e a fragmentação da sua
percepção acerca da realidade.

É curioso como o preconceito sofrido por essas pessoas, bem como a


estigmatização, faz com que, em vez de serem tratadas como vítimas, sejam vistas
como ameaças ao país para onde migraram. De fato, as contradições que existem
entre o “livre” exercício das suas identidades face à exploração sexual e o risco
constante fazem com que, para elas, essa visão de vítimas da escravidão
contemporânea seja posta em dúvida (Marilac; Queiroz, 2019, p. 91). Assim, muitas
vezes, as travestis e mulheres trans escravizadas nem sequer se veem como vítimas
(Teixeira, 2008, p. 289-290).

Conclusões (e algumas palavras de remate)

Por fim, e tendo em conta as várias discussões aqui elucidadas, cabe articular
algumas conclusões que parecem ser particularmente importantes no decurso da
nossa reflexão. Em primeiro lugar, quando discutimos esses temas, deve ser
reafirmada a grande variedade, a nível individual, das situações pessoais. Parece
realmente importante analisar essas problemáticas partindo de um paradigma
inclusivo e abrangente, pois cada travesti ou mulher trans que imigra encerra uma
realidade própria. Essa enorme variedade de situações pode ser ilustrada, por
exemplo, pelas diferentes formas de manifestação que a escravidão
contemporânea pode assumir. Embora tenhamo-nos centrado na questão das
mulheres trans e das travestis, outro ponto destacável neste trabalho é a clara
“diferenciação generificada” das múltiplas formas de violência. Além disso, e
ainda pensando na multiplicidade de situações individuais que podem ser
observadas, é também abordando as razões da migração ou, mais genericamente,
os fatores que de certa forma explicam este fenômeno, que uma ampla gama de
razões é ilustrada. Em grande parte ligadas às situações observadas na realidade
de transfobia que se vive no Brasil (é fundamental relembrar que o Brasil é o país
em que se registra o maior número de assassinatos de mulheres trans e travestis)
e, especificamente, a um ambiente historicamente propenso à violência, à rejeição
e à discriminação, as razões que motivam essa imigração podem ser diversas, com
o elemento da voluntariedade ou não, e motivadas por razões econômicas
(prostituição como meio de ganhar a vida), rejeição familiar e/ou social. Ademais,
alguns fatores de motivação se relacionam com a busca por uma vida decente, um
status social mais elevado e certa realização estética e física.

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Sexo, dinheiro e escravidão contemporânea: tráfico de travestis e mulheres trans do Brasil 633
para a Europa com fins de exploração sexual

Demonstramos, aqui, que o tráfico para fins de exploração sexual pode constituir
uma modalidade de escravidão, com redes que se constroem através de
proxenetas, corrupção policial e subornos. Outro aspecto da questão que também
abordamos é o fato de que, muitas vezes, as vítimas não são consideradas como
tal, seja pelas instituições políticas e autoridades públicas, seja pela sociedade civil,
seja por elas mesmas e entre elas. Essa visão enviesada sobre a situação desses
indivíduos, bem como a sua exclusão estrutural e sistemática do mercado de
trabalho e profissional formal, leva-os também a se envolverem, mais facilmente,
de forma concreta, nos processos de recrutamento e a participarem como
perpetuadores dessas atividades ilícitas, fomentando uma lógica de “círculo
vicioso”.

Ainda no que se refere ao processo de vitimização, parece também necessário


entender a questão do tráfico com fins de exploração sexual como um problema
não moral, mas político-econômico. Ao olhar para a realidade das travestis e
mulheres trans que se prostituem, é preciso abandonar o binarismo, muitas vezes
aplicado, que as divide em boas vítimas – as que são traficadas e abusadas nos
mais diversos níveis – e em culpadas – aquelas que vendem seus corpos e assim
“perpetuam” o poder masculino.

Segundo Lewis (2020), é fundamental entender o tráfico de pessoas, seja com fins
sexuais ou não, como um problema de economia política, já que as tantas pessoas
que caem nessas redes satisfazem uma demanda de um mercado transnacional
que gera riqueza para um determinado grupo extremamente reduzido. Lewis
(2020, p. 120) esclarece que:

o eufemismo das “mulheres que se vendem” é complicado porque todas


as pessoas que trabalham se vendem. A distinção entre o mercado de
trabalho e o tráfico global de pessoas é a diferença entre vender a sua força
de trabalho e ser vendido como uma mercadoria; assim, para “passar da
alienação e da exploração para a desumanização” só é preciso cruzar uma
linha bem tênue.

Trazendo outras perspectivas para o debate, Aizura (2014, p. 130-131) entende “a


transfobia como imbricada em circuitos transnacionais de trabalho reprodutivo e
controle biopolítico: os mesmos corpos cishetero-dissidentes sobre os quais se
exerce violência também circulam como valiosos dentro do capital global”. Nesse
sentido, cogitamos se uma possível regulamentação da prostituição poderia
favorecer uma migração e condições mais dignas para essas trabalhadoras. No
entanto, entendemos que essa discussão ainda é incipiente e que o caráter
transnacional tanto do crime de escravidão (e consequentemente das redes de
prostituição) quanto das migrações aumenta o grau de dificuldade para quem

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deve fiscalizar e elaborar soluções, que devem dar-se em diferentes escalas –


sendo, portanto, mais complexas.

O objetivo deste trabalho era, num primeiro momento, explicar o fenômeno da


escravidão contemporânea, do tráfico e da exploração sexual de mulheres trans e
travestis. Depois de discutirmos sobre os diferentes aspectos da nossa
problemática e, em particular, sobre as motivações que encorajam esse movimento
(razões econômicas e sociais), parece claro que uma das formas de reduzir essa
“migração desumanizante” e as suas consequências continua a ser através de
políticas públicas de igualdade, emprego e renda para travestis e mulheres trans.

Segundo Carvalho (2022, p. 78):

O desmantelamento da legislação trabalhista e das políticas públicas de


trabalho e emprego, assim como o não reconhecimento de cotas nas
universidades para travestis e transexuais e o desmonte de políticas
públicas para a diversidade, representa uma dupla sentença de morte para
essa parcela da população que tem uma expetativa de vida de 35 anos. Sem
que se levem em consideração uma divisão (trans)sexual do trabalho e, de
forma não exaustiva, políticas públicas na esfera da educação e saúde, o
cenário que se avizinha, inevitavelmente, é a manutenção da necropolítica
para os corpos travestis e transexuais.

Mesmo que o Estado brasileiro não o ponha em prática atualmente, resolver o


problema na sua origem aparece como o mecanismo mais eficiente e seguro para
reduzir diretamente a necessidade de fuga dessas pessoas de seu país e de seus
contextos familiares e sociais.

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Sexo, dinheiro e escravidão contemporânea: tráfico de travestis e mulheres trans do Brasil 639
para a Europa com fins de exploração sexual

Sobre os autores
Leonam Lucas Nogueira Cunha
Professor colaborador na Universidade de Salamanca. Doutor em
Estado de Direito e Governança Global e Mestre em Estudos de Gênero
pela Universidade de Salamanca, Espanha – USAL. Bacharel em Direito
pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil – UFRN.

Contribuição de coautoria: Construção da metodologia e pesquisa


bibliográfica. Redação (Ponto 1, Ponto 2.2, Ponto 2.3 e Conclusões).
Tradução ao inglês. Revisão.

Jules Ponthieu
Doutorando na Universidade de Salamanca. Licenciado em Ciência
Política pela escola francesa Sciences Po Lille e pela Universidade de
Salamanca, Espanha - USAL. Especialista em políticas públicas.

Contribuição de coautoria: Redação (Introdução, Ponto 1, Ponto 2.3 e


Conclusões). Tradução ao inglês. Revisão.

Lucas Isaac Soares Mesquita


Doutor em Direito do Trabalho pela Universidade de Salamanca,
Espanha - USAL. Mestre em Direito Público e graduado em Direito pela
Universidade Federal de Alagoas, Brasil - UFAL. É advogado e
pedagogo.

Contribuição de coautoria: Pesquisa bibliográfica e estatística. Registro


de dados. Organização de dados. Redação (Ponto 1, Ponto 2, Ponto 2.1 e
Ponto 2.3). Revisão.

_________________
Agradecimentos
Agradecemos à Revista Ameryka Łacińska, da Universidade de Varsóvia,
Polônia, por autorizar tão prestimosamente a publicação da versão em
português deste artigo que veio à luz originalmente em inglês (Ameryka
Łacińska 2022; 30 (3 (117)): 75-100 DOI: 10.7311/20811152.2022.117.05).

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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.46915

em defesa da pesquisa

Emergência da primeira infância:


ampliação dos direitos das crianças ou
aprofundamento do neoliberalismo?
Emergencia de la primera infancia: ampliar los
derechos de la niñez o profundizar el
neoliberalismo?

Early childhood emergence: expansion of children's


rights or deepening neoliberalism?

Maria Mostafa1
1
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em
Políticas Públicas e Formação Humana, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-
mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9105-
6672.

Submetido em 26/01/2023
Aceito em 17/08/2023
Pré-Publicação em 22/09/2023

Como citar este trabalho


MOSTAFA, Maria. Emergência da primeira infância: ampliação dos direitos das crianças
ou aprofundamento do neoliberalismo?. InSURgência: revista de direitos e movimentos
sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 641-664, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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642 Maria Mostafa

Emergência da primeira infância:


ampliação dos direitos das crianças ou
aprofundamento do neoliberalismo?

Resumo
Em 2016 foi aprovada a primeira lei federal 13.257 integralmente dedicada aos direitos e
políticas para as crianças de zero a seis anos, no mesmo ano também foi criado o Programa
Criança Feliz, o primeiro programa nacional de visitação domiciliar com foco na primeira
infância. Esse artigo busca investigar as mecânicas que possibilitaram a emergência da
primeira infância no Brasil e os efeitos que essa segmentação no campo maior da criança e
do adolescente vem produzindo. Para isso coloca em análise o discurso de dois médicos
brasileiros que tiveram uma atuação expressiva na consolidação da área da primeira
infância no país e conclui que os argumentos que endossam essa emergência trazem
consigo um forte determinismo biológico e uma tendência, alinhada com a estratégia
neoliberal, de responsabilizar do sujeito pelo seu fracasso.
Palavras-chave
Primeira infância. Biopolítica. Neoliberalismo. Normalização.

Resumen
En 2016 se aprobó la primera ley federal 13.257 dedicada íntegramente a los derechos y
políticas de los niños de cero a seis años, en el mismo año también se creó el Programa
Niño Feliz, el primer programa nacional de visitas domiciliarias enfocado a la primera
infancia. Este artículo busca investigar la mecánica que hizo posible el surgimiento de la
primera infancia en Brasil y los efectos que esta segmentación en el campo más amplio de
los niños y adolescentes viene produciendo. Para ello, analiza el discurso de dos médicos
brasileños que tuvieron un papel expresivo en la consolidación del campo de la primera
infancia en el país y concluye que los argumentos que avalan este surgimiento traen
consigo un fuerte determinismo biológico y una tendencia, alineada con la estrategia
neoliberal, culpar al sujeto de su fracaso.
Palabras-clave
Primera infancia. Biopolítica. Neoliberalismo. Normalización.

Abstract
In 2016, the federal law 13.257, fully dedicated to the rights and policies for children from
zero to six years old, was approved in Brazil and in the same year a national home
visitation program focused on early childhood, called Happy Child Program, was also
created. This article seeks to investigate the mechanics that made possible the emergence
of early childhood in Brazil and the effects that this segmentation in the larger field of
children and adolescents has been producing. For this, it analyzes the discourse of two
Brazilian physicians who had an expressive role in the consolidation of the area of early
childhood in the country and concludes that the arguments that endorse this emergence
bring along a strong biological determinism and a tendency, aligned with the neoliberal
strategy, to blame the subject for his failure.
Keywords
Early childhood. Biopolitics. Neoliberalism. Normalization.

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Emergência da primeira infância: ampliação dos direitos das crianças ou aprofundamento do 643
neoliberalismo?

Introdução

A primeira infância, definida no Brasil como a fase que vai dos 0 aos 6 anos de
idade (a partir do nascimento), vem ganhando importância em diferentes frentes,
seja em campos do saber como as neurociências ou a economia, seja como objeto
das organizações da sociedade civil que desde a Constituição Federal de 1988
(Brasil, 1988) têm sido conclamadas a agir no campo da garantia dos direitos da
criança e na formulação de políticas sociais. No Brasil, um dos efeitos da força
dessa emergência é a sua institucionalização com a formação, em 2010, de uma
rede de organizações chamada Rede Nacional Primeira Infância e a aprovação, em
2016, da Lei 13.257, conhecida como Marco Legal da Primeira Infância (Brasil,
2016). No mesmo ano também foi criado um programa federal de visitação
domiciliar com foco no desenvolvimento das crianças de até 6 anos, chamado
Programa Criança Feliz (Brasil, 2017).

A argumentação que vem embasando a emergência da primeira infância prioriza


o cuidado e o desenvolvimento dessa fase frente a outras da própria infância e da
adolescência. Essa prioridade tem como fundamento algumas correntes das
neurociências - linha do pensamento científico que é posta como universal - que
entendem que certo tipo de estímulo cerebral nos primeiros anos de vida seria de
tal modo determinante, que poderia até compensar os efeitos da pobreza e da
desigualdade social (Del Río, 2014). Do argumento das neurociências derivam
outros, como o do prêmio Nobel de economia James Heckman, de que a cada dólar
investido em políticas de primeira infância há uma economia de 7 dólares em
outras políticas sociais (Heckman, 2020).

O discurso da plasticidade do cérebro nos primeiros anos de vida é amplamente


reproduzido por diversos atores do campo da primeira infância, como
organizações sociais, frentes parlamentares (Lançamento, 2011), organizações
multilaterais (World Bank, 2023) e gestores públicos. Há uma articulação entre
essas produções científicas e a constituição do campo de investimento na primeira
infância, produzindo um saber-poder que atua como uma tecnologia de regulação.
O discurso que vem sendo produzido, confirmado pelo Banco Mundial, é de que
a primeira infância é a fase ótima para a intervenção, sendo possível prevenir uma
adolescência problemática e abrir caminho para uma juventude e uma idade
adulta economicamente produtivas (Penn, 2002).

Apesar do investimento recente do Banco Mundial na primeira infância, não é de


hoje que a infância tem sido objeto de preocupação social. Ao longo da história o
olhar para ela passou por diferentes formas, que não são descoladas das formas de
governo, de produção econômica e da forma como a sociedade se organiza como

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644 Maria Mostafa

um todo. Philippe Ariès (1978), importante referência do campo da história social


e da história da infância, por meio de uma detalhada pesquisa sobre as
representações de crianças na iconografia europeia durante a modernidade,
conclui que as representações da infância vão sofrendo mudanças, nos indicando
que a forma como a infância era percebida foi mudando de lugar na sociedade
europeia com o passar do tempo. A inegável contribuição de Ariès, embora já
discutida por diversos autores, é de que a própria concepção de infância é dotada
de historicidade.

Se as concepções de infância são históricas, como se deu a emergência da primeira


infância? A Convenção dos Direitos da Criança aprovada em 1989 e ratificada por
quase todos os países (com exceção dos Estados Unidos) considera “criança” todo
ser humano menor de 18 anos de idade (Arantes, 2016). Por que estamos agora
afirmando os direitos das crianças de zero a seis anos de idade, e quais efeitos essa
afirmação está produzindo? Como se deu essa clivagem no campo da infância?
Especificamente, como chegamos a essa concepção de primeira infância que tem
como fundamento a articulação do discurso das neurociências, da produtividade
econômica e a responsabilização das famílias pela interrupção do ciclo da pobreza?

1 Segmentações e a priorização da primeira infância

A divisão etária e a conformação da infância como modo de exercício do poder


vem sendo produzida fundamentalmente a partir do século XVIII. Essas
concepções estão diretamente ligadas aos saberes médicos articulados com uma
preocupação com a constituição do trabalhador para a manutenção da
engrenagem econômica. Essa mesma articulação segue atualizando as concepções
de infância que produzem a emergência da primeira infância como categoria de
investimento social e de mercado.

A máxima “primeira infância é prioridade” é usada por diversas organizações e


campanhas do campo da primeira infância como uma afirmação dos direitos das
crianças de até seis anos. A afirmação é usada como uma referência ao artigo 227
da Constituição Federal (Brasil, 1988) que afirma que os direitos das crianças são
absoluta prioridade. No entanto, o texto constitucional não menciona a primeira
infância, que não tinha sido produzida, em 1988, como segmento. Além disso, os
jovens foram incluídos em 2010 por meio de Emenda Constitucional decorrente do
Estatuto da Juventude, compartilhando da mesma prioridade das crianças. O
caput do artigo 227 diz que:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao


adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde,

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neoliberalismo?

à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à


dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão (Brasil, 1988).

Há um esforço por parte dos atores do campo da primeira infância em separar a


prioridade das crianças na primeira infância dos outros segmentos citados na
Constituição: “Primeira Infância Primeiro” como diz o nome de um projeto de uma
grande fundação brasileira desse campo. “Primeira infância é prioridade” se
tornou uma campanha difusa de comunicação que leva a um entendimento um
pouco diferente do próprio texto que é usado como fonte do enunciado, dando um
destaque para a primeira infância que não existe no texto constitucional, de forma
a atender uma demanda de segmentação do campo maior da criança e do
adolescente.

Interessa colocar em análise essa relação de forças que tensiona o campo “infância
e adolescência” para a fragmentação em segmentos menores que delimitam o
campo da primeira infância.

A priorização da primeira infância está inserida nas formas de funcionamento do


biopoder, produzindo uma preocupação com a maximização da vida que incide
sobre as famílias e sobre os corpos das crianças, especialmente o cérebro.

Foi fundamentalmente no século XIX, a partir da teoria da evolução das espécies,


que o interesse sobre o desenvolvimento humano e sobre a infância foi associado
à biologia (Lima, 2020). Dentre alguns autores que se dedicaram ao tema nessa
época figura o filósofo britânico Herbert Spencer (1820-1903), que sistematizou
diversos argumentos que colocavam o desenvolvimento das crianças como um
saber científico, cujas mecânicas de funcionamento deveriam ser ensinadas aos
pais para que esses, por sua vez, pudessem educar seus filhos da forma “correta”.
A obra de Spencer teve como cerne a crença de que todos os fenômenos seriam
governados por uma mesma lógica de evolução, e que, portanto, todo
conhecimento científico derivaria de uma lei universal.

A educação teve um papel central na teoria de Spencer, que escreveu um livro


totalmente dedicado ao assunto: “Education: Intellectual, Moral and Physical”
(1861). De acordo com o autor, a educação seria a forma de potencializar a lei do
desenvolvimento universal nos indivíduos e na sociedade. Se apoiando em
conhecimentos pedagógicos anteriores, como os formulados por Johann Pestalozzi
e por seu próprio pai, que fora seu professor de ciências, Spencer adotou uma
justificativa psicológica para os objetivos e métodos da educação, contribuindo
para que os conhecimentos educacionais da época constituíssem uma “ciência da

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educação” (Tomlinson, 1996). Na sua argumentação, da mesma forma que a


sociedade teria avançado seguindo os princípios da economia política, a educação
deveria avançar seguindo os princípios das ciências biológicas sobre o
desenvolvimento humano. Nessa concepção, os estímulos corretos desde o
nascimento da criança, aliado a um ambiente amável, seriam essenciais para o
desenvolvimento saudável do corpo, dos sentimentos morais e experiências
intelectuais. Assim, o papel dos pais seria mais de facilitadores do
desenvolvimento, centrando na criança a capacidade de se desenvolver. Os pais
forneceriam o estímulo alinhado com as leis universais do desenvolvimento que
estariam potencialmente contidas na criança.

Em diversos trechos do livro já aqui citado, Spencer faz duras críticas aos pais por
ignorarem a forma com que funcionaria o corpo e o processo de aprendizagem das
crianças e assim atrapalhariam o seu desenvolvimento: “A educação física, moral
e intelectual da mocidade é espantosamente deficiente. A maior parte da culpa
pertence aos pais pela sua ignorância dos conhecimentos por meio dos que a
educação pode ser dirigida com verdade.” (Spencer, 1861). Para alcançarem os
bons resultados os pais deveriam aprender alguns princípios científicos: “Para a
boa educação da mocidade são indispensáveis alguns conhecimentos dos
primeiros princípios de fisiologia e das verdades elementares da psicologia”
(Spencer, 1861).

A divulgação de trabalhos baseados na teoria evolucionista, como os de Spencer,


influenciaram diversos campos do saber, inclusive o campo que se dedicava a
compreender o desenvolvimento humano: a psicologia do desenvolvimento. A
partir do conceito de evolução, a divisão da vida em etapas foi equiparada às
etapas de evolução da humanidade, e essa aproximação com o conceito de
evolução conferiu à psicologia do desenvolvimento um caráter de cientificidade, e
de uma consequente maior legitimidade (Lima, 2020).

Seguindo essa linha mais alinhada ao que era visto como pesquisa científica na
época, ao final do século XIX proliferaram estudos sobre o desenvolvimento
humano a partir da observação de crianças. Quando essas práticas de observação
puderam ser realizadas em clínicas e escolas, e, portanto, com grupos grandes de
crianças, a psicologia do desenvolvimento estabeleceu etapas de vida mais
definidas e fechadas, construindo uma ideia de normalidade mais rígida para cada
etapa:

Os psicólogos passaram a identificar padrões de comportamento para cada


idade, alinhados em um eixo temporal dividido em etapas. Esse modo de
sistematização das observações tornou possível a comparação entre as

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neoliberalismo?

capacidades de qualquer indivíduo e a norma para a sua faixa etária.


(Lima, 2020, p. 824).

As concepções de normalidade, portanto, não foram resultado de um acumulado


da experiência social com as crianças, como poderia se supor, e sim elaborada por
especialistas que desejavam construir e validar um saber científico sobre a infância
(Rose, 1999). Além disso, as definições de normalidade com frequência foram
forjadas a partir da observação das crianças que não apresentavam o
comportamento desejado, muitas vezes patologizadas e de alguma forma
classificadas como anormais. Assim, as concepções de normalidade se
estabeleceram não a partir da observação da normalidade, e sim da ideia do que
seria um desenvolvimento desejável a partir da observação da diferença:
“Normalidade não é uma observação, mas uma avaliação. Contém não somente
um julgamento sobre o que é desejável, como uma prescrição de um objetivo a ser
alcançado” (Rose, 1999, p. 133, tradução nossa).

2 Médicos brasileiros na produção da primeira infância

A definição da primeira infância como uma etapa crucial para o desenvolvimento


humano se fez como uma continuidade dos mesmos mecanismos da produção da
normalidade, principalmente no que diz respeito ao olhar do especialista e na
observação da infância “problemática”.

Aqui traremos dois casos com especialistas que ajudaram a conformar o campo da
primeira infância no Brasil, na medida em que trazem em si esses mecanismos de
produção da normalidade: a trajetória político-cientifica do propositor do
Programa Criança Feliz, Osmar Terra, e os achados do médico brasileiro César
Victora, reconhecido internacionalmente por modificar a “curva normal” do
desenvolvimento infantil.

Osmar Terra começou sua vida política no movimento estudantil, se filiou ao


Partido Comunista do Brasil na juventude, foi exilado durante a ditadura militar,
e depois filiou-se ao então PMDB (atual MDB) em 1986. Em 1993 foi prefeito de
Santa Rosa, município do Rio Grande do Sul e depois se tornou deputado federal,
cargo que já ocupou seis vezes entre idas e vindas, sendo a mais recente a
legislatura 2019-2023. De 2003 a 2010 foi secretário de saúde do Rio Grande do Sul.
Foi nomeado ministro do Desenvolvimento Social no governo de Michel Temer de
2016 a 2018. Também foi ministro da mesma pasta, cujo nome foi alterado para
Ministério da Cidadania, no governo de Jair Bolsonaro, tendo ficado nesse cargo
no primeiro ano do governo, de 2019 a 2020 (Farah, 2021).

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Do lado científico, Osmar Terra é médico e tem mestrado em neurociência pela


PUC do Rio Grande do Sul, com a dissertação: “Relação entre o comportamento
agressivo e/ou violento e alterações na neuroimagem: revisão sistemática”,
defendida em 2009, época em que ocupava a secretaria de saúde do Rio Grande do
Sul.

O grupo de pesquisa ao qual o Terra estava vinculado pretendia comparar


imagens cerebrais de jovens em cumprimento de medida socioeducativa com
imagens de jovens que não cumpriam medida socioeducativa. Em notícia
intitulada “Estudo vai mapear cérebro de homicidas”, de novembro de 2007,
publicada na Folha de São Paulo informa-se o teor da pesquisa, que seria iniciada
no ano seguinte (2008):

Cientistas da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do


Sul) e da UFRGS (Universidade Federal do RS) querem saber se o que
determina o comportamento de um menor infrator é sua história de vida
e se há algo físico no cérebro levando-o à agressividade. “Algo que sempre
foi negligenciado foi o entendimento da violência como aspecto de saúde
pública”, diz Jaderson da Costa, neurocientista da PUC-RS que coordenará
os trabalhos de mapeamento cerebral. A ideia é entender quais pontos são
mais relevantes dentro da realidade brasileira na hora de determinar como
se produz uma mente criminosa. Para isso serão avaliados também
aspectos genéticos, neurológicos, psicológicos e sociais de cada
pesquisado. Serão examinados dois grupos: um de internos da Fase e outro
de meninos sem passado de crime, para efeito de comparação. O projeto
vai olhar para questões sociais, mas o foco é mesmo o fundo biológico da
questão. “Estamos nos baseando em trabalhos que já existem mostrando
que há um período crítico no início da vida e que se uma criança é
maltratada entre o 8º e o 18º mês ela adquire comportamento alterado na
idade adulta", diz um dos mentores do projeto, o secretário de Estado da
Saúde do Rio Grande do Sul, Osmar Terra, aluno de mestrado de Costa.
"Decidi no ano passado retomar a neurociência como uma opção de vida;
minha opção não é fazer política até morrer”, diz. (Garcia, 2007).

A partir desta notícia, a pesquisa foi alvo de denúncias e reações por parte de
psicólogos e outros profissionais da área social, que produziram uma nota de
repúdio (Rodrigues, 2008) e um movimento público que promoveu debates e
interferiu na análise do Comitê de Ética da UFRGS sobre o projeto. A própria Folha
de São Paulo noticiou a repercussão do caso com matéria intitulada: “Psicólogos
tentam impedir pesquisa com homicidas” (Garcia, 2008), mas também publicou,
em janeiro de 2008 um editorial contrário à nota de repúdio, considerando-a
enviesada e precipitada (Razão, 2008).

O debate seguiu com outros artigos, como o publicado também na Folha de São
Paulo, de autoria de Esther Arantes e Suyanna Barker, intitulado “Por que

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Emergência da primeira infância: ampliação dos direitos das crianças ou aprofundamento do 649
neoliberalismo?

assinamos a nota de repúdio”, em fevereiro de 2008, e mais à frente com um artigo


acadêmico de Rodrigues (2008), que apresenta uma compreensão sobre o ocorrido,
com a qual nos identificamos: o caso é um exemplo das interdições que se colocam
a qualquer contestação das verdades científicas que amparam o governo da vida.

Na conflitiva ligada à “pesquisa dos cérebros”, a defesa pretendida não é


tanto, pois, a dos direitos do “homem” – o que seria esse “curioso objeto...
o homem” [...], fora do que dele fazem discursos (hoje predominantemente
científicos) e práticas correlatas? –, mas a dos direitos dos governados –
melhor dizendo, dos direitos de não sermos governados, se não em
absoluto, ao menos de não o sermos por princípios, agentes e instâncias
que nos pretendem conduzir, sem contestação possível, mediante o poder
da verdade (científica, biológica... neurocientífica, cerebral?) (Rodrigues,
2008).

A pesquisa com os adolescentes, que foram categorizados pela Folha de São Paulo
como detentores de “cérebros homicidas” não foi adiante e parece que a solução
para a dissertação de Terra foi fazer uma revisão sistemática de estudos já
realizados fora do Brasil sobre o assunto.

Na introdução da dissertação, Terra discorre:

Quem teve a oportunidade de conhecer mais de perto os meninos em


privação de liberdade da FASE (Fundação de Atendimento
Socioeducativo) no Rio Grande do Sul, pode ter tido sua atenção
despertada pelos visíveis problemas psiquiátricos e neurológicos, que
importante parcela deles apresenta, muitas vezes sem diagnóstico ou
tratamento adequado. São, com grande probabilidade, portadores de
transtornos que certamente antecedem, em muito tempo, as ações
agressivas que cometeram. Tais comportamentos alterados precocemente
poderiam ter servido de alerta para o risco e prevenida a ação violenta,
mas não o foram. Tal constatação pode levar ao entendimento de que o
senso comum existente, sobre a violência e o comportamento agressivo
serem frutos única e exclusivamente da miséria e das desigualdades
sociais, fornece apenas uma parte da explicação. Informações que se
acumulam, com enorme rapidez, mostram empiricamente que outros
fatores, não só os sociais contribuem e muito, para a transgressão violenta.
O mau funcionamento do cérebro e da mente, provocado por
determinadas patologias com origem em danos específicos, traumas
físicos e emocionais, e mesmo em alterações genéticas, são mais frequentes
do que pensávamos e podem predispor uma parcela da população às
alterações comportamentais maiores. Isso leva à manifestação de condutas
antissociais com mais frequência, abrindo caminho para a violência física
extrema (Terra, 2009, p. 1).

Mesmo com a pesquisa com os cérebros não autorizada, pelo trecho acima citado
e pela fala de Terra na primeira notícia da Folha de São Paulo, em que dizia
“Estamos nos baseando em trabalhos que já existem mostrando que há um período

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650 Maria Mostafa

crítico no início da vida e que se uma criança é maltratada entre o 8º e o 18º mês
ela adquire comportamento alterado na idade adulta” (Garcia, 2007), fica clara a
visão de Terra sobre a correlação entre primeira infância e prevenção: se a criança
for maltratada na primeira infância será produzido um dano no cérebro, e é esse
dano, e não as desigualdades sociais, que levariam as crianças e adolescentes a
cometerem atos violentos. Portanto, para que o “problema” dos adolescentes em
conflito com a lei seja resolvido, seria preciso prevenir o suposto dano cerebral. Ao
localizar a violência no cérebro e relacioná-la a um dano, Osmar Terra reforça o
discurso de que os adolescentes que cumprem medidas socioeducativas são
pessoas “danificadas”, se aproximando de uma abordagem eugênica. Como evitar
esse dano? Investindo na primeira infância, como por exemplo, segundo o próprio
Terra, com os programas de visitação domiciliar como o Primeira Infância Melhor
do Rio Grande do Sul e o Criança Feliz, ambos elencados no rol das realizações
políticas do médico. A pobreza e a questão racial no sistema prisional não são
questões que merecem a atenção de Terra, a não ser pela produção do dano
cerebral na primeira infância. Desviando do dano, o problema estaria resolvido.

A pesquisa de Terra parte da observação de adolescentes que apresentaram um


comportamento indesejado para a produção de uma normalidade cerebral. Rose
(2013) afirma que essa argumentação dos efeitos dos primeiros anos de vida nas
condutas problemáticas (que é a base da pesquisa que seria feita pelo grupo de
Terra), não difere muito dos argumentos formulados desde o século XIX, passando
pelo movimento higienista dos anos 1930 e dos programas de primeira infância
como o programa norte-americano “Head Start” criado em 1965, hoje apoiado
principalmente nos estudos sobre o cérebro.

Em 2017, durante a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Maus Tratos, no


Senado Federal, Osmar Terra, então Ministro de Estado, foi convidado para
participar de uma audiência pública para falar sobre os maus tratos na infância e
sobre o Programa Criança Feliz. Na sua apresentação Terra discorreu sobre como
o PCF atua na prevenção do dano cerebral, por um lado ensinando às famílias a
estimular os cérebros das crianças de forma que produza as ligações desejadas, e
por outro lado, com uma vigilância para que as crianças não sofram maus tratos,
como afirma matéria publicada pela assessoria de comunicação do então
Ministério do Desenvolvimento Social:

Os maus-tratos são um fator desagregador e devastador. Podem produzir


uma quantidade muito maior de pessoas com traumas e até pessoas
violentas. O Criança Feliz ajuda a prevenir isso (...) O programa vai colocar
na casa das pessoas toda semana um visitador para orientar a família. Ele
vai passar informações e dar o apoio necessário para aquela família

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Emergência da primeira infância: ampliação dos direitos das crianças ou aprofundamento do 651
neoliberalismo?

superar episódios de violência doméstica que podem causar danos


definitivos na criança. (Criança, 2017).

Da mesma forma, o então Ministro fez a seguinte declaração sobre os visitadores


durante um evento para a adesão de Sergipe ao PCF:

Eles vão avaliar o ambiente familiar e identificar fatores capazes de


comprometer o desenvolvimento integral da criança, vão orientar sobre
cuidados essenciais nos primeiros anos de vida e vão estabelecer vínculos
entre as famílias e promover serviços de diferentes áreas, a exemplo da
saúde e assistência social. Os visitadores serão como anjos da guarda.
(Jackson, 2017).

No discurso, a possibilidade de sofrer um dano cerebral parece ser a linha que


separa a primeira infância das outras etapas da infância. De acordo com essa ideia,
até os seis anos de idade, as crianças precisam ser protegidas, com visitadores-
anjos-da-guarda, para não sofrerem um trauma que danifique seus cérebros de
forma definitiva, o que comprometeria o desenvolvimento das crianças e
produziria “até pessoas violentas”. Seguindo a mesma concepção das primeiras
políticas de visitação domiciliar ligadas ao movimento higienista do século XIX,
há uma desconfiança das famílias sobre as quais incide um saber médico
normalizador (Vieira, 2013). A primeira infância é colocada por um lado, como
uma fase de um potencial quase mágico de desenvolvimento cerebral, e por outro
lado como uma fase extremamente vulnerável, e por isso segmentada das outras
infâncias, para que possa ser muito bem protegida e corretamente estimulada.

Em outro contexto, em audiência pública da Comissão Parlamentar de Inquérito


destinada a combater os maus tratos a crianças e adolescentes em 2017 (CPI dos
Maus Tratos), Terra falou sobre como os primeiros mil dias são importantes para
que as crianças superem a pobreza, e que o dano, quanto mais cedo acontecer, mais
tempo irá durar na vida daquela criança (6ª Reunião da CPIMT, 2017).

A referência dos mil dias está bastante relacionada com um outro médico que
ajudou a construir, junto com Osmar Terra, essa cena de valorização da primeira
infância brasileira: Cesar Victora, epidemiologista atuante na Universidade
Federal de Pelotas (UFPel), cidade também do estado do Rio Grande do Sul.
Victora e Terra apresentam algumas proximidades, pois ambos são médicos, são
do Rio Grande do Sul e atuantes na primeira infância, mas enquanto Terra seguiu
carreira na política, Victora é um renomado pesquisador. Em diversas ocasiões
Terra convidou Victora para referendar, com os argumentos e a legitimidade da
ciência, as discussões políticas sobre primeira infância. Inclusive, a equipe de
Victora foi responsável por desenvolver a metodologia de avaliação do Programa
Criança Feliz (Seminário, 2020).

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652 Maria Mostafa

O epidemiologista conduziu uma grande pesquisa acompanhando todas as


crianças de Pelotas nascidas num determinado ano, por 30 anos, e os achados dessa
pesquisa serviram de base para mudanças nos parâmetros internacionais de saúde
para as crianças. Ao associar o aleitamento exclusivo à redução da mortalidade
infantil, não só foi ampliado o tempo indicado para o aleitamento exclusivo, como
verificou-se que os bebês que recebiam aleitamento exclusivo tinham um tamanho
menor do que a curva até então utilizada como parâmetro internacional de
crescimento. Em 2006 a Organização Mundial de Saúde alterou a curva de
crescimento com base nessa e em outras pesquisas semelhantes. Por esse feito,
Victora é um pesquisador muito premiado, reconhecido internacionalmente, e
uma grande referência para o campo da primeira infância brasileira.

Quando o Marco Legal da Primeira Infância estava tramitando na Comissão


Especial da Câmara dos Deputados, na época como o Projeto de Lei 6998-13,
Osmar Terra, relator do PL, presidiu uma audiência pública em maio de 2014 sobre
primeira infância. Cesar Victora foi um dos palestrantes convidados. Nessa
audiência pública Victora apresentou suas pesquisas, com muitos dados para
convencer os parlamentares sobre a importância da primeira infância para o
desenvolvimento humano. A fala do epidemiologista na audiência pública é
bastante esclarecedora sobre os impactos que sua pesquisa teve na área da saúde
da criança e sobre a influência do saber médico sobre o Marco Legal da Primeira
Infância:

Então, eu vou falar sobre algumas pesquisas que a gente tem feito aqui e
vou também tentar mudar um pouquinho a percepção que talvez vocês,
nossos colegas da Câmara, tenham sobre a importância das diferentes
fases da infância. Essas são pesquisas que nós realizamos aqui nos últimos
anos e que, de alguma maneira, têm influenciado as políticas no mundo.
Eu vou falar sobre aleitamento, sobre as curvas que o Osmar mencionou
rapidamente, sobre os mil primeiros dias - uma questão muito importante
- e sobre os objetivos do milênio e o que nos espera no futuro.
O próximo eslaide vai mostrar a questão do aleitamento materno. Então,
eu vou falar muito rapidamente como era a situação até, mais ou menos,
os anos 80 e o que eu fazia com os meus filhos e com os meus pacientes
naquela época. A gente recomendava que, logo a partir dos 2 ou 3 meses
de idade, a criança começasse a receber chás, água, suquinhos, além do
leite materno. Era essa a recomendação naquela época.
(...)
O próximo eslaide mostra o que foi mais surpreendente naquela época:
cada mamadeira que a criança recebia de água ou chá, que nós
considerávamos algo inócuo, que não faria mal nenhum dar um chazinho
para a criança, aumentava em 1,7 vez o risco de morte por diarreia, ou seja,
aumentava em 70% o risco de ela morrer. Por quê? Porque, muitas vezes,
a mamadeira estava contaminada, não era bem esterilizada, e foi a

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Emergência da primeira infância: ampliação dos direitos das crianças ou aprofundamento do 653
neoliberalismo?

primeira vez que isso foi descoberto. Esse foi o primeiro artigo no mundo
que relatou esse efeito.
(...)
Então, nós passamos a definir a amamentação como o normal do ser
humano e passamos a julgar o crescimento de outras crianças com base no
crescimento das crianças amamentadas. É o contrário do anterior, porque,
até então, o normal era aquela criança norte-americana obesa, que recebia
mamadeira. Nós redefinimos o normal. (Câmara dos Deputados, 2014).

Nesse trecho Victora apresenta as pesquisas que relacionaram o aleitamento


exclusivo do bebê com a redução da mortalidade infantil, e a partir dessa
constatação uma mudança no que era até então o “normal”. A curva de
crescimento recomendada pela OMS foi adequada ao crescimento dos bebês que
recebiam aleitamento materno de forma exclusiva. O normal foi atualizado com os
achados da sua pesquisa: aleitamento materno exclusivo e bebês com um peso
menor do que o peso dos bebês do normal vigente até então.

A pesquisa de Victora atuou sobre o que Rose chamou de “matematização da


diferença” (1999, p. 141), algo que emergiu a partir dos testes de inteligência
desenvolvidos pelo psicólogo francês Alfred Binet e outros pesquisadores do
século XIX. O teste previu uma variação de inteligência a partir da pesquisa com
grande número de crianças em escolas. Com o estabelecimento dessa média de
variação para cada idade, conseguiu tornar visível a diferença possível pela
comparação entre pessoas, numa curva normal, localizando nesse desenho, de
forma individualizada, a medida de cada criança testada. Com iniciativas como
essa, a psicometria traduziu as capacidades mentais em números, estatísticas,
gráficos e curvas, dando uma visibilidade concreta ao que antes era impalpável.
Esse processo abriu caminho para o desejo de que as capacidades mentais se
tornassem governáveis.

Tag (2012) afirma que o desenvolvimento de indicadores internacionais, como os


desenvolvido por Victora, se baseiam na ideia de que todas as infâncias são
comparáveis e estabelecem medidas globais de uma infância universal: “a criança
é posicionada como uma criança universal que, independentemente dos contextos
sociais específicos, tem necessidades e direitos que podem ser alcançados com o
mesmo tipo de intervenções, programas e políticas no mundo todo” (Tag, 2012, p.
48). Como efeito desses indicadores que universalizam as concepções de infância,
o papel do Estado frente à infância também é universalizado e internacionalmente
verificável, já que os indicadores são os mesmos em todos os países. O
monitoramento dos Estados pelas organizações internacionais se torna mais
possível e adquire mais legitimidade, porque passa a ser baseado em dados
científicos e em números. “Nesse sentido, a quantificação é talvez um dos

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654 Maria Mostafa

mecanismos de universalização mais fortes, que posiciona metas internacionais


como universalmente apropriadas e significativas” (Tag, 2012, p. 49).

O governo das capacidades mentais foi ampliado pelas neurociências, com


trabalhos como a dissertação de Osmar Terra, que fez uma revisão sistemática das
pesquisas de neuroimagem com indivíduos considerados violentos. Embora tenha
concluído que a violência é um fator de “anormalidades cerebrais”, a pesquisa não
conseguiu relacionar as anormalidades com o abuso na infância, que seria um dos
objetivos iniciais da pesquisa de Terra. O pesquisador não concluiu que não há
relação entre abuso na infância e alterações cerebrais que levam ao comportamento
violento, e sim que há a necessidade de mais estudos relacionando as duas
questões (2009).

Erica Burman (2017) faz um paralelo entre os modelos de criança e as tendências


científico-tecnológicas do século XIX para cá. Da influência do evolucionismo que
comparava as crianças aos animais, passou-se para o behaviorismo, por volta do
período entre as décadas de 1920 e 1960. Nessa concepção, o ambiente e a
experiência teriam muito mais peso no desenvolvimento do que características da
própria criança, que por si só seria incompetente. Na década de 1970 essa
concepção foi alterada graças às novas tecnologias que permitiram visualizar as
capacidades dos recém-nascidos e também pela substituição do behaviorismo pelo
cognitivismo. A descoberta do ultrassom e a visualização dos embriões ampliou
essa noção da criança competente para as crianças que ainda não tinham nascido.

Nos anos 1980 as pesquisas se diversificaram e a maior parte das produções em


psicologia do desenvolvimento passaram a afirmar que as capacidades das
crianças são desenvolvidas em algum lugar no espaço entre a criança e o ambiente,
no qual está o adulto cuidador. Com as neurociências e as imagens cerebrais a
tendência nas pesquisas sobre crianças tem sido um retorno ao cognitivismo, isto
é, à concepção de que a criança tem tudo o que é preciso para se desenvolver antes
mesmo de se tornar uma criança: “Os últimos 30 anos têm testemunhado uma
aceleração e intensificação da pesquisa com foco no período pré-natal e na
primeiríssima infância, acarretadas pelo desenvolvimento tecnológico que
produziu as imagens cerebrais e análises neuro químicas” (Burman, 2017, p. 36,
tradução nossa).

“Para agir, é preciso ao menos localizar”: é a primeira frase do clássico de


Canguilhem “O Normal e o Patológico” (2002) publicado a primeira vez em 1954,
trazendo a ideia de que visualizar a doença é o primeiro passo para se agir sobre
ela. Na dissertação de Osmar Terra há uma coletânea de estudos de imagem do
cérebro de adolescentes com comportamento violento, que seriam cérebros

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Emergência da primeira infância: ampliação dos direitos das crianças ou aprofundamento do 655
neoliberalismo?

alterados, anormais, doentes. É uma visão que reduz a violência a uma questão
biológica, como uma doença. Nesse caso, não há remédio possível, o dano é
permanente para quem já tem o cérebro alterado. A única alternativa, de acordo
com seus pressupostos, é a prevenção da população que ainda não teve seu cérebro
comprometido: as crianças na primeira infância.

2.1 Os primeiros mil dias

No bloco seguinte da audiência pública sobre primeira infância, Victora fala sobre
a importância dos primeiros mil dias (que inclui o período da gestação e os dois
primeiros anos), para o desenvolvimento infantil. Nessa fala ele defende a
segmentação da própria primeira infância:

Eu gostaria de passar para a terceira, que é a questão dos mil dias, e depois
falar um pouco mais sobre os objetivos do milênio. A questão dos mil dias
é um conceito muito interessante. Eu acho, Deputado Osmar e colegas da
Câmara, que isso tem muita relevância para a legislação brasileira. O que
acontecia? Todas as crianças menores de 5 anos eram consideradas uma
unidade única, um grupo homogêneo. Nós começamos a realizar uma
série de pesquisas e ver que não é bem assim: os primeiros 2 anos são muito
mais críticos do que o terceiro ano, o quarto ano e o quinto ano. São todos
importantes, mas o começo da vida é mais crítico ainda. (...) Daí, saiu esse
conceito dos mil dias, porque se vocês somarem os 270 dias da gestação,
que é um período crítico, com os 365 dias do primeiro ano e os 365 do
segundo ano de vida, dá exatamente mil dias. Então, criou-se esse conceito
dos mil dias críticos para o desenvolvimento da criança. (Câmara dos
Deputados, 2014).

Embora o epidemiologista defenda a importância dos primeiros mil dias com


afinco, não parecia ser unânime entre os pesquisadores do desenvolvimento
infantil os argumentos que produziam as segmentações da primeira infância. Em
1999, John Bruer, professor de filosofia na Universidade de Washington e então
presidente da Fundação James S. McDonnell, que financiava pesquisas em
neurociência e psicologia e educação, publicou o livro “O mito dos três primeiros
anos”. De acordo com o próprio Bruer (2011), após ser amplamente divulgado em
meados dos anos 1990, nos Estados Unidos, que novos achados da neurociência
iriam revolucionar o cuidado das crianças, Bruer, que recebia muitos pedidos de
financiamento de pesquisas da área, estranhou, pois não teve conhecimento desses
novos achados. Ao ler os artigos e livros sobre o assunto, a maior parte de
divulgação científica, percebeu se tratar de resultados de pesquisas antigas que
foram cuidadosamente selecionadas, simplificadas e generalizadas para servir
como apoio para a aprovação de uma lei para criar o Early Head Star, programa
pré-escolar dos EUA para crianças em situação de vulnerabilidade de 0 a 3 anos

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de idade. O programa Head Start original, em que as crianças ingressavam a partir


dos 3 anos, não tinha sido bem avaliado e segundo os defensores da primeira
infância isso teria acontecido porque o programa não começava cedo o suficiente,
e aos três já não era mais possível alterar o desenvolvimento cerebral (Bruer, 2011).

O autor alega que a importância dos três primeiros anos ganhou credibilidade a
partir de declarações que alguns cientistas fizeram na mídia, mas de fato não
haviam novos resultados a serem compartilhados com o público amplo. Por isso
chamou esse movimento de mito. Esse caso é relevante pois nos lembra que há
debate nos meios de produção de ciência, há dissenso, inclusive nas neurociências.
E muitas vezes o que é divulgado nos meios de comunicação, ou usado nas
argumentações das políticas e programas de primeira infância, é uma determinada
corrente ou pesquisa, comunicada como se fosse um consenso geral dos cientistas.
A vontade de verdade (Foucault, 1999) que atravessa os discursos sobre a
importância da primeira infância apaga o debate científico, que é justamente um
dos pilares sobre o qual a produção científica se sustenta.

Por um argumento ou por outro, a segmentação da vida em faixas etárias pode ser
compreendida como um refinamento das formas de controle biopolítico, de uma
segmentariedade mais flexível, mais molecular (Deleuze; Guatarri, 1996). A
unidade de medida vai se tornando cada vez mais específica, mensurando e
capturando com mais precisão cada etapa da vida, neste caso a infância, a primeira
infância, a primeiríssima infância, os primeiros mil dias. A divisão da infância em
primeira infância é menos uma ruptura com um sistema maior que invisibilizaria
as crianças de 0 a 6 anos, e é mais uma forma refinada de ressoar as mecânicas de
funcionamento do neoliberalismo que produz uma certa forma de ser criança,
associando todas as etapas da vida à rentabilidade possível do capital.

2.2 Capital humano e neoliberalismo

Seguindo com o discurso de Victora, chegamos num dos argumentos centrais para
a priorização da primeira infância: os efeitos dessa etapa da vida no capital
humano:

Agora eu queria mostrar rapidamente a vocês, ainda dentro desse tema


dos mil dias, os resultados de um consórcio que nós fizemos. Nós pegamos
as cinco maiores coortes do mundo fora dos países ricos: uma no Brasil,
uma na Guatemala, uma na África do Sul, uma em Nova Deli, na Índia, e
outra nas Filipinas, em Cebu, e fizemos a seguinte pergunta: Como é que
o ganho de peso dessa criança influencia sua saúde na vida adulta? Porque
nós estamos preocupados também; nós não queremos que uma criança se
torne um adulto obeso, nós queremos que ela cresça bem, mas ela não pode

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neoliberalismo?

crescer demais, vamos dizer assim. E mais: Quais os riscos associados ao


ganho de peso.
E nós estudamos, então, não só doenças, nós estudamos muito o capital
humano. O capital humano é a criança atingir a sua altura para o qual ela
tem o potencial genético, é ela atingir o seu nível de inteligência, é ela
avançar na escola, é ela ser economicamente produtiva como adulto, e ela
ter filhos saudáveis também. Que seus filhos nasçam em boas condições.
Esse é o conceito que nós chamamos de capital humano. E o que ficou
muito claro, nós fizemos uma série de artigos científicos sobre isso,
mostrando que os primeiros mil dias, até os 2 anos de idade, é um período
fundamental. Simplificando muito esses resultados da pesquisa, a linha
azul, aqui nesse gráfico, mostra o capital humano e a própria sobrevivência
da criança. O índice de morte de crianças que não crescem, de crianças
subnutridas, é maior.
Nós vimos que crescer, veja em baixo nesses eslaide - falamos do
nascimento, primeiro ano, segundo ano, e assim por diante -, crescer bem,
ganhar peso, até os 2 anos de vida, aumenta o capital humano. Além de
estar desenvolvendo o cérebro dessa criança. Oitenta por cento do cérebro
se desenvolve até os 2 anos de idade. (Câmara dos Deputados, 2014).

O capital humano também é colocado nas métricas do desenvolvimento infantil, e


a importância dos mil dias não é só para que as crianças não morram e se tornem
adultos saudáveis, é também para que se tornem adultos economicamente
produtivos, para que desenvolvam esse capital que vem dos corpos das crianças,
mas só dos corpos que se desenvolvem de acordo com a normalização que ele
redefiniu.

O neoliberalismo dos Estados Unidos traz elementos que se relacionam


diretamente com a emergência do campo da primeira infância. Nos Estados
Unidos, diferentemente da Europa, o liberalismo foi fundamental na própria
constituição do Estado, e por isso “O liberalismo nos Estados Unidos, é toda uma
maneira de ser e pensar. É um tipo de relação entre governantes e governados,
muito mais do que uma técnica dos governantes em relação aos governados”
(Foucault, 2008, p. 301). Não por acaso foi nos Estados Unidos que a teoria do
capital humano foi formulada. Essa teoria coloca a análise econômica num lugar
em que a economia clássica ainda não havia explorado: o trabalho. Teóricos
neoliberais como Theodore Schultz, Gary Becker, entre outros, publicam a partir
dos 1950, mas de forma mais organizada nos anos 1970, livros e artigos em que
inserem o trabalho como campo da análise econômica. Para esses autores, a
questão a ser analisada pela economia será muito mais os recursos que o
trabalhador utiliza do que a questão do valor da venda da força de trabalho.

O olhar da teoria do capital humano desloca a análise econômica para o sujeito que
trabalha. Não é sobre o que o trabalho produz. E sim o trabalho em si como
conduta econômica. Consequentemente, o trabalhador passa a ser visto como um

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658 Maria Mostafa

sujeito econômico. O trabalho é decomposto em capital e renda, e a aptidão para o


trabalhar não se descola da pessoa do trabalhador: “Não é uma concepção da força
de trabalho, é uma concepção do capital-competência, que recebe, em função de
variáveis diversas, certa renda que é um salário, uma renda-salário, de sorte que é
o próprio trabalhador que aparece como uma espécie de empresa de si mesmo”
(Foucault, 2008, p. 310).

O capital humano é formado por elementos inatos, como a herança genética de


cada um, e elementos que agregam competência para o trabalho, para a empresa
de si próprio ser mais competitiva, como a educação nessa roupagem neoliberal.
Foucault então traz um exemplo em que discute justamente a infância na
perspectiva do capital humano.

Sabe-se perfeitamente que o número de horas que uma mãe de família


passa ao lado do filho, quando ele ainda está no berço, vai ser
importantíssimo para a constituição de uma competência-máquina, ou se
vocês quiserem para a constituição de um capital humano, e que a criança
será muito mais adaptável se, efetivamente seus pais ou sua mãe lhe
consagraram tantas horas do que lhe consagraram muito menos horas. Ou
seja, o simples tempo de criação, o simples tempo de afeto consagrado
pelos pais a seus filhos, deve poder ser analisado em termos de
investimento capaz de constituir um capital humano (Foucault, 2008, p.
315).

A teoria do Capital Humano opera uma espécie de monetização do afeto e do


cuidado na primeira infância. Essa teoria articula elementos como o afeto e o
vínculo como ativos, no sentido econômico, da empresa de si próprio. O sucesso
ou o fracasso desse universo empresarial seriam determinados pelo sujeito
empresa de sai intervenção na primeira infância estaria agregando capital humano
às crianças, para que no futuro elas possam ter alguma inserção na concorrência
do mercado. O cuidado de uma mãe com seu filho constitui um investimento que
gera o capital humano da criança, que gera renda: “Essa renda será o que? O salário
da criança quando ela se tornar adulta” (Foucault, 2008, p. 334-335).

Nessa lógica, o sujeito é o centro da desigualdade social, e a falta de investimento


no capital humano explicaria as desigualdades, inclusive a diferença entre países
ricos e pobres. Gerar capital humano é um dos argumentos para a intervenção nas
crianças na primeira infância. É como se, para se respeitar as leis desse mercado,
lugar de verdade com natureza própria que precisa ser respeitada, a intervenção
recaísse sobre as pessoas, que apresentam em si um potencial de desenvolvimento
praticamente sobre-humano que lhes permitirá operar com sucesso no mercado. E
o tempo mais adequado para aproveitar esse potencial, que é contido no humano,
é a primeira infância, de preferência os primeiros mil dias de vida, “janela crucial

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Emergência da primeira infância: ampliação dos direitos das crianças ou aprofundamento do 659
neoliberalismo?

de oportunidades” de acesso a esse pote de ouro que permitirá gerar renda no


futuro.

De acordo com a racionalidade neoliberal, o investimento na primeira infância se


torna o “ponto zero” para equalizar a concorrência: todos partindo de um mesmo
ponto do desenvolvimento cerebral poderiam chegar aos mesmos resultados, para
além das diferenças nas condições sociais. Será mesmo? Será que com a remoção
do impedimento neuronal para o exercício pleno da meritocracia, o sujeito pode
assumir a responsabilidade pelo seu sucesso ou fracasso? O investimento na
primeira infância retiraria um obstáculo do corpo para o desempenho do sujeito
neoliberal. Nessa lógica, a partir dessa correção de percurso nos primeiros mil dias
de vida, o sujeito empresarial (Dardot; Laval, 2016) poderá seguir seu caminho de
concorrência, está liberado para competir e vai depender só de seu próprio
desempenho para superar as duras condições do mercado. Seria a pobreza uma
questão possível de ser resolvida pelo desenvolvimento otimizado dos cérebros
das crianças? A concorrência, ainda que entre cérebros bem desenvolvidos, não
nos parece uma saída razoável para acabar com a desigualdade social.

Considerações finais

A segmentação do campo outrora denominado “infância e adolescência” em


partes menores, vem repleto de “boas intenções”, como uma forma de promover
os direitos das crianças pequenas que ficavam invisibilizadas no campo maior. O
discurso da prevenção e do capital humano estão sempre presentes. De acordo
com a dissertação de Osmar Terra, é preciso segmentar a infância para prevenir
que as crianças se tornem adolescentes perigosos. Na fala de Cesar Victora, é
preciso ajustar as estratégias de intervenção para essa faixa etária para prevenir
que as crianças se tornem adultos improdutivos: os primeiros mil dias são uma
janela de oportunidades para que a criança possa desenvolver todo o seu potencial,
como se a primeira infância fosse um atalho “cientificamente comprovado” para
acabar com a pobreza. A força do discurso das segmentações vai produzindo uma
ideia de que as crianças na primeira infância são prioridade, quanto mais novas
mais importantes, e as outras etapas desprezáveis, como parte da engrenagem
biopolítica que salva alguns e mata outros.

Com a segmentação da infância, os segmentos passam a se comportar como forças


sobre as quais age um poder que as coloca em movimento: a valorização da
primeira infância afeta as outras fases da infância e a adolescência. Nessa
correlação de forças a segmentação da infância forma um diagrama, como
proposto por Deleuze (2020), para a maximização da vida. Para as crianças

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660 Maria Mostafa

pequenas prevenção dos traumas, cérebros estimulados com afeto, vínculo e livre
brincar. E para as crianças fora da primeira infância a constatação de que não há o
que fazer, já não podem mais ser “salvas”. O discurso sobre a prioridade das
crianças pequenas e da importância do desenvolvimento na primeira infância
carrega um determinismo biológico: de um lado da equação é preciso estimular as
crianças na primeira infância, pois é nos primeiros anos de vida que as principais
estruturas neuronais são formadas, do outro, os adolescentes que apresentarem
“falhas no desenvolvimento”, como a violência, estão danificados, provavelmente
pela falta de cuidados certos na primeira infância, não servem mais ao sistema, por
isso são elimináveis.

A segmentação que cria a concepção de primeira infância, aqui colocada em análise


a partir do discurso médico, atualiza os padrões da normalidade psicométricos
para uma normalidade cerebral que somente pode ser alcançada com um
determinado manejo da primeira infância, ou ainda, como defende Cesar Victora,
dos dois primeiros anos de vida. Seguindo essa lógica, organizações sociais fazem
campanha de incidência política para a priorização da primeira infância,
produzindo como efeito uma hierarquização das etapas da infância criadas a partir
da segmentação. A última etapa da infância, a adolescência, também fica por
último na escala da normalidade, se localiza quase na fronteira da anormalidade,
pronta para ser patologizada e criminalizada.

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664 Maria Mostafa

Sobre a autora
Maria Mostafa
Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana pela UERJ (2022),
com pesquisa sobre as políticas públicas para a primeira infância, e
mestre em Saúde Coletiva pela mesma universidade (2009), com
dissertação sobre o curso “Gênero e Diversidade na Escola”. Possui
graduação em História pela Universidade Federal Fluminense (2006),
especialização em Políticas Públicas para a Igualdade na América
Latina pela CLACSO atuando principalmente nas seguintes áreas:
gênero, educação, políticas públicas e primeira infância.

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10.26512/revistainsurgncia.v10i1.43223

em defesa da pesquisa

A Convenção sobre os Direitos das


Pessoas com Deficiência como um novo
paradigma para implementação de
políticas sociais
La Convención sobre los Derechos de las Personas
con Discapacidad como un nuevo paradigma para la
implementación de políticas sociales

The Convention on the Rights of Persons with


Disabilities as a new paradigm for the
implementation of social policies

Wederson Santos1
1
Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil. E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8769-
6984.

Olemar Guilherme da Cunha2


2
Faculdade de Ciências e Tecnologias de Unaí, Unaí, Minas Gerais, Brasil. E-
mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2207-2123.

Submetido em 06/05/2022
Aceito em 01/08/2022
Pré-Publicação em 08/10/2022

Como citar este trabalho


SANTOS, Wederson; CUNHA, Olemar Guilherme da. A Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência como um novo paradigma para implementação de políticas
sociais. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 2, p. 665-
693, jan./jun. 2024.

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ISSN 2447-6684

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666 Wederson Santos - Olemar Guilherme da Cunha

A Convenção sobre os Direitos das


Pessoas com Deficiência como um novo
paradigma para implementação de
políticas sociais

Resumo
Analisa-se a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela ONU
em 2006 e incorporada ao direito brasileiro como emenda constitucional em 2009, como
um novo paradigma para reorientar as formas de implementação de políticas sociais no
país. Por meio de uma análise qualitativa e crítica com base nos estudos da deficiência,
argumenta-se que os princípios sobretudo de autonomia com apoios, participação das
pessoas com deficiência na elaboração de leis e políticas e da eliminação de barreiras
incapacitantes estão no plano de fundo da Convenção de um modo substancialmente
inovado ao comparar com as garantias constitucionais afirmadas em 1988 em torno das
noções de dignidade humana e cidadania. Este é o principal contributo da Convenção para
inaugurar novo paradigma para as políticas sociais no cenário brasileiro, compreendendo-
as em seus aspectos contraditórios e históricos de respostas coletivas a demandas por
atendimento de necessidades humanas, com potencial de superar inclusive as pessoas com
deficiência, ao alcançar toda a população, seja pela expectativa universalizante da
Convenção, seja pelas garantias assentadas na perspectiva da integralidade dos direitos
humanos.
Palavras-chave
Deficiência. Convenção. Políticas sociais. Paradigma. Princípios de justiça.

Resumen
Se analiza la Convención sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad, aprobada
por la ONU en 2006 e incorporada al derecho brasileño como enmienda constitucional en
2009, como un nuevo paradigma para reorientar las formas de implementar políticas
sociales en el país. A través de un análisis cualitativo y crítico basado en estudios de
discapacidad, se sostiene que los principios, sobre todo, de 1. autonomía con apoyo, 2.
participación de las personas con discapacidad en el desarrollo de leyes y políticas y 3.
eliminación de barreras invalidantes están en el trasfondo de la Convención de una manera
sustancialmente innovadora en comparación con las garantías constitucionales afirmadas
en 1988 en torno a las nociones de dignidad humana y ciudadanía. Esta es la principal
contribución de la Convención para inaugurar un nuevo paradigma de las políticas
sociales en el escenario brasileño, entendiéndolas en sus aspectos contradictorios e
históricos de respuestas colectivas a las demandas de satisfacción de las necesidades
humanas, con potencial de superar incluso a las personas con discapacidad, al llegar a toda
la población, ya sea a través de las expectativas universalizadoras de la Convención o a
través de garantías basadas en la perspectiva de la integralidad de los derechos humanos.
Palabras-clave
Discapacidad. Convención. Política social. Paradigma. Principios de justicia.

Abstract
The Convention on the Rights of Persons with Disabilities, approved by the UN in 2006
and incorporated into Brazilian law as a constitutional amendment in 2009, is analyzed as
a new paradigm to reorient the forms of implementation of social policies in the country.

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A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como um novo paradigma 667
para implementação de políticas sociais

Through a qualitative and critical analysis based on disability studies, it is argued that the
principle, above all, of autonomy with supports, participation of people with disabilities in
the elaboration of law and the politics and the elimination of disabling barriers are in the
background of the Convention in a substantially innovative way when comparing to the
constitutional guarantees affirmed in 1988 around the notion of human dignity and
citizenship rights. This is the Convention's main contribution to inaugurate a new
paradigm for social policies in the Brazilian scencario, understanding them in their
contradictory and historical aspects of collective responses to demands for meeting human
needs, with the potential to overcome even people with disabilities by reach the entire
population, either by the universalizing expectation of the Convention, or by the
guarantees based on the perspective of the integrality of human rights.
Keywords
Disability. CRPD. Paradigm. Social policies. Principles of justice.

1 Introdução

Um corpo com deficiência expressa uma condição que faz parte da diversidade
humana (Diniz; Barbosa; Santos, 2009). Essa afirmação traz implicações
significativas para as pessoas que a experimentam, para a sociedade e para os
governos. No entanto, compreender a deficiência como componente da condição
humana não pode, por outro lado, resultar que essa população experimente
desigualdade, opressão ou tratamento discriminatório.

É condição de possibilidade para a vivência humana habitar o corpo que se tem


(Butler, 2009). Embora pareça elementar, essa compreensão implica para as
pessoas com deficiência que as desigualdades sofridas por elas tenham impacto no
nível da própria noção de sua existência, configurando ameaças à sua dignidade.
É nesse sentido que afirmar a deficiência como expressão da diversidade, assim
como a cor da pele, gênero, raça, geração, diversidade sexual, pertencimento
cultural e comunitário é uma alegação para a proteção da dignidade humana
(Nussbaum, 2006). Essa alegação ganhou notáveis desdobramentos nos últimos
anos, e mais recentemente com a teoria crip que denuncia a corponormatividade,
isto é, uma ideologia da normalidade sobre os corpos, com uma força estrutural e
estruturante nas sociedades capaz de classificar e desclassificar corpos como
abjetos e indesejáveis, ou seja, distantes de uma expectativa moral e produtiva
sobre eles (Mello, 2016).

Se, por um lado, a corponormatividade impõe a compreensão de quais variedades


corporais são assimiláveis pelos arranjos sociais, do outro, a compulsoriedade do
normal impacta nos corpos com deficiência, traduzindo-os como inferiores se
contrastados aos sem deficiência (McRuer, 2002). Parte-se aqui, dentre outros, do

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668 Wederson Santos - Olemar Guilherme da Cunha

pressuposto analítico sobre quais são, para além do universo jurídico, os limites e
possibilidades da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
enfrentar a corponormatividade. A Convenção é, hoje, o principal instrumento
jurídico internacional para a proteção e promoção da dignidade e cidadania dessas
pessoas (Dhanda, 2008). A Convenção, dentre várias inovações, trouxe uma nova
forma de compreender e descrever a experiência da deficiência, principalmente
ancorada nos princípios do modelo social da deficiência (Barnes et. al, 2002; Diniz,
2007; Pallacios, 2008). Para superar a hegemonia biomédica, prevalente por séculos
com uma autoridade discursiva e interventiva sobre o corpo deficiente (Courtine,
2009), a concepção de deficiência do modelo social e, portanto, da Convenção,
busca compreendê-la como um fenômeno multidimensional de causalidade social,
estruturada por valores culturais, políticos, além dos de saúde com afirmações
sobre corpos com alterações.

Ao se distanciar de uma compreensão enquanto um atributo, deficiência seria uma


construção de causalidades sociais porque sociedades tratam de forma distinta e
impõe barreiras às pessoas em função de sua variedade corporal vivenciada, tais
como os diferentes níveis de comprometimentos físicos, mentais, sensoriais e
intelectuais em contextos poucos sensíveis à diversidade (Barnes et al, 2002), no
que se tem compreendido atualmente como diversidade funcional (Pereira, 2009)1.
Os estudos da deficiência, no marco do modelo social, contribuíram para a
formulação dessa alegação, embora a teoria crip nos últimos anos tenha alargado
a compreensão de forma ainda mais crítica sobre as consequências da
corponormatividade para a vivência humana (McRuer, 2002). Isto é, a deficiência
deixou de ser entendida como um atributo individual ligado às concepções de
anormalidade dos corpos, para se transformar em uma questão pública, originada
por contextos poucos sensíveis à diversidade corporal. A consequência imediata é
que necessidades particulares das pessoas com deficiência deixam de ter na
atenção médica, de saúde e de reabilitação seus requerimentos principais,

1 Ray Pereira (2009) apresenta com rigor argumentativo os desafios e riscos envolvidos em
nomearas pessoas com deficiência, bem como explora as possibilidades alternativas que tentam
afastar aspectos pejorativos e discriminatórios, ao acionar dispositivos de linguagens e de
discursos para se referir às pessoas que vivem em corpos diversos sem que devolva essas pessoas
a um lugar subalternizado. Diversidade funcional é uma categoria apresentada como alternativa
para superar o tema meramente enquanto questões individuais da esfera privada, deslocando-o
para a espera pública e das causalidades sociais que operam sobre as pessoas produzindo
situações de desigualdade. No entanto, tal escolha carece ainda de mais problematização para
eliminar possíveis consequências não previstas decorrentes de uma aproximação com uma
perspectiva funcionalista e produtivista pela adjetivação “funcional” que figura por vezes como
sinônimo de produtivo, útil, capaz.

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A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como um novo paradigma 669
para implementação de políticas sociais

passando a se localizar em outros instrumentos, como mudanças legislativas e


jurídicas para garantias variadas, como remover barreiras, alterações nos espaços
públicos e um conjunto de políticas sociais que materializam direitos de cidadania.

Como a Convenção transformou-se em um dos documentos internacionais mais


importantes para a assegurar os direitos humanos das pessoas com deficiência, ela
pode ser capaz de influenciar o conteúdo e o alcance das políticas sociais para
materializar a garantia destes direitos (Morris, 2011), e uma das motivações deste
artigo é refletir sobre como se dão essas influências. Segundo Lívia Barbosa (2013),
a Convenção protege as necessidades das pessoas com deficiência tanto no que se
refere à determinação coletiva da noção de sujeito típico, como nos casos
singulares, em um argumento assentado na filosofia política especificamente no
debate de justiça distributiva que se assemelha – embora pouco trabalhando no
caso brasileiro – às críticas trazidas pela teoria crip. Assim, concepções demarcadas
na Convenção resultaram de um debate internacional de mais de três décadas, –
contando inclusive de forma inédita com a participação das próprias pessoas com
deficiência nessa construção –, em que se deslocou o debate público sobre as
demandas por justiça e equiparação de oportunidades às pessoas com deficiência,
com uma força capaz de influenciar o perfil das políticas sociais a partir de então.

Políticas sociais são ações de redistribuição de recursos, permeadas por


contradições na sociedade capitalista que se estrutura por desigualdades, tendo
como principal atribuição a concretização de direitos sociais para atender
necessidades que, no sistema capitalista, constituem a força desencadeadora da
conquista da cidadania e das mudanças sociais (Pereira, 2014). Seu escopo e
características são determinadas por contingências econômicas, históricas e
políticas e também por arcabouços jurídicos de motivações variadas (Behring;
Boschetti, 2008). Desta forma, investigar como o modo de implementar políticas
sociais pode assumir novos contornos a partir de mudanças jurídicas mais amplas,
como alterações constitucionais, é imprescindível no debate dos direitos humanos
das pessoas com deficiência, principalmente partindo do marco do modelo social.

Segundo Jeni Morris (2011), para se ter políticas sociais capazes de enfrentar as
barreiras incapacitantes impostas às pessoas com deficiência é fundamental uma
defesa explícita de políticas sociais de promoção do bem-estar social, ligadas a uma
noção ampla de seguridade social. Como é evidente que pessoas com deficiência,
nas suas mais variadas expressões e fases da vida, estão em desvantagem numa
sociedade regida pela distribuição de bens e recursos via mercado, é urgente a
adoção de mecanismos coletivos e redistributivos de recursos sociais, econômicos

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e de status para atendimento das necessidades humanas básicas dessa população


(Moris, 2011; Fraser; Honneth, 2003). Morris complementa que tal redistribuição
precisa estar centrada em um código de princípios que valorize a diversidade – em
argumento semelhante aos postulados pela teoria crip – e trate as pessoas com
deficiência como pertencentes à sociedade, incentivando sua inclusão e
valorizando a ideia de que elas contribuem para as comunidades das quais fazem
parte (Morris, 2011).

O objetivo do artigo é analisar, por meio de uma pesquisa qualitativa no marco


dos estudos da deficiência, em que medida as garantias assinaladas na Convenção
são capazes de reorientar as políticas sociais no Brasil, constituindo-se em um novo
paradigma para este campo de intervenção. Em um primeiro momento, será feito
um resgate histórico da configuração das políticas sociais no país (fase caritativo-
burocrática). Em seguida, será problematizada a configuração das garantias às
pessoas com deficiência no ordenamento jurídico, como foram os avanços a partir
da Constituição Federal de 1988 (fase dos direitos de cidadania). Em terceiro
momento, analisa-se os principais eixos-estruturantes da Convenção, naquilo que
ela inova, que ensejam para uma nova fase de princípios orientadores para ações
estatais em nosso cenário (fase universalizante das políticas sociais). Por fim,
argumenta-se que, por ser um tratado de direitos humanos com força de emenda
constitucional, a Convenção tem potencial para inaugurar um novo paradigma
para as políticas sociais, superando inclusive a cobertura apenas às pessoas com
deficiência, ao alcançar a totalidade da população, seja pela expectativa
universalizante da Convenção seja pelas garantias assentadas no texto
constitucional, sobretudo, pelas inovações trazidas por princípios na Convenção
como são a autonomia com apoios, a participação das pessoas com deficiência na
elaboração de leis e políticas, além da acessibilidade e desenho universal que
apontam de forma radical para compromissos de eliminação de barreiras
incapacitantes.

2 Políticas sociais no Brasil: a fase caritativo-


burocrática e a fase de direitos de cidadania

O sistema de proteção social brasileiro teve início com a Constituição Federal de


1988. Antes disso, durante boa parte do século XX a cidadania no Brasil se limitava
aos direitos trabalhistas, ao ponto de Wanderley Guilherme dos Santos (1979), em
seu estudo clássico, ter denominado a cidadania no período até os anos 1980 como
cidadania regulada. Esta nomenclatura se deve ao fato de que o acesso à riqueza
socialmente produzida via garantia de direitos sociais ocorria apenas por uma

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A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como um novo paradigma 671
para implementação de políticas sociais

pequena parcela da população, os trabalhadores formais, como pré-condição para


exercício da cidadania. Parece decisivo que, para compreender os desafios atuais
para as políticas sociais para as pessoas com deficiência, reflexões sobre fases
anteriores das políticas sociais são necessárias: a fase dos direitos de cidadania não
rompeu com valores do passado, nem se abriu definitivamente ao novo.

Antes de 1988, portanto, só era possível falar em mediação do Estado na provisão


de bem-estar ou de criação de condições de atendimento de necessidades básicas
da população pelo acesso aos direitos trabalhistas, bem como a proteção aos
dependentes dos trabalhadores e trabalhadoras. Essa rede de proteção limitada
ficava ao lado de uma política de educação tímida, de um orçamento para área
habitacional quase inexistente e frente aos ocasos da assistência social e de saúde,
enquanto direitos de cidadania, (Boschetti, 2006; Santos; 1979), com praticamente
inexistência de garantias legais às pessoas com deficiência (Figueira, 2008).

2.1 A fase criativo-burocrática

No alvorecer do século XX, a industrialização nascente e a urbanização mais


intensa fizeram surgir a ideia de que o trabalho organizado poderia trazer a
pacificação necessária para tantas agruras da pobreza e da desigualdade
socioeconômica em um país de dimensões continentais (Santos, 1979). Entretanto,
uma maior proteção social veio não do trabalho institucionalizado, mas das lutas
por melhorias nas condições de trabalho e na proteção por meio de direitos criados
e afiançados aos trabalhadores. É desse embate entre capital e trabalho que as
reivindicações trabalhistas, ensejadas nos movimentos grevistas das primeiras
décadas do século XX, resultaram nos direitos previdenciários assinalados a partir
da Lei Eloy Chaves, sancionada em 1923 (Boschetti, 2006).

Para Alfredo Bosi (1996), as reivindicações por melhorias nas condições de


trabalho e a necessidade de modernização do aparelho do Estado a partir dos anos
1930 resultariam numa dinâmica própria para a formação de um Estado-
Providência completamente vinculado ao mundo do trabalho, em que se dependia
da intervenção estatal para direcionar os rumos do desenvolvimento econômico e
social no Brasil. Isto é, os direitos sociais começaram a ser materializados mais em
função do momento de amadurecimento da burocracia estatal no país do que da
própria pressão pública por respostas governamentais para o enfrentamento de
privações matérias da população.

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Dessa diretriz, surgiu um padrão histórico de formulação de políticas públicas no


Brasil: elaborações pioneiras de ações para materializar garantias sociais e
trabalhistas fizeram com que os indivíduos fossem concebidos antes como objetos
de regulação estatal do que como sujeitos de direitos (Bosi, 1996; Rios; Santos, 2009;
Santos, 1979). Como consequência, essa dinâmica delineou concepções frágeis
acerca da dignidade e da liberdade individual como objetos de proteção na
arquitetura do Estado de bem-estar social no Brasil. Alimentadas da disputa entre
as oligarquias agrárias enfraquecidas e do referencial do positivismo social, as
políticas públicas no Brasil caracterizaram-se pela centralidade da figura do
trabalhador como cidadão tutelado, criando um ambiente de progresso econômico
e social hostil aos princípios da dignidade, da autonomia e das liberdades
individuais (Bosi, 1996; Rios; Santos, 2009).

Desse modo, a proteção social no Brasil materializou-se de forma limitada aos


trabalhadores, que passaram a ter acesso a benefícios e direitos previdenciários ao
fazerem parte do mercado formal de trabalho, em profissões reguladas pelo
controle estatal. Ao mesmo tempo, os trabalhadores protegidos legitimaram e
deram a base de sustentação do governo getulista para se manter por quinze anos
no poder, ao passo que as pessoas com deficiência estavam à margem dessa
proteção (Figueira, 2008).

O regime capitalista pressupunha força e habilidade corporais para as quais os


corpos com deficiência não dispunham ou não estavam preparados (Barton, 1998).
Tais características faziam do mundo do trabalho uma realidade distante das
pessoas com deficiência no país ao longo de quase todo o século XX (França, 2014).
Além da incapacidade dos governos e sociedade em lidar com as demandas
particulares das pessoas com deficiência, é preciso considerar a escravidão como
um empreendimento que trouxe consequências diretas para a proteção social do
trabalhador, de modo geral, e das pessoas com deficiência, em particular.

Levou tempo para as reivindicações das pessoas com deficiência serem tratadas
como demandas por justiça e não como barganhas, privilégios ou caridade, o que
ocorreu apenas na elaboração da Constituição do final dos anos 1980. O próprio
desenvolvimento da assistência social a partir dos anos 1950 se deu no marco da
caridade, via Legião Brasileira de Assistência, sem ter o caráter de política pública
de responsabilidade estatal, menos ainda atrelada à lógica de direito de cidadania
(Boschetti, 2006), o que até atingiu as pessoas com deficiência, mas sem retirá-las
da situação subalternizada em que se encontravam, mantendo-as isoladas e
abrigadas, sem participar da sociedade.

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para implementação de políticas sociais

2.2 A fase dos direitos de cidadania

Para reformular o modelo de cidadania no Brasil, a estruturação da política de


seguridade social a partir da Constituição de 1988 se tornou central, além de
enfrentar grandes desafios (Boschetti, 2006). Segundo Ivanete Boschetti, “a
cidadania desejada não somente significava o reconhecimento do indivíduo como
sujeito político, mas também exigia a garantia de direitos sociais igualitários e
universais” (2006, p. 143). O baixo crescimento econômico e as altas taxas de
desemprego e inflação, acentuadas durante toda a década de 1980, impulsionaram
ainda mais os debates durante o período da Constituinte no que dizia respeito à
urgência de a Constituição Federal incorporar elementos capazes de enfrentar as
graves situações de desigualdade acumuladas ao longo do século XX.

Os anos 1990 no Brasil poderiam ser considerados a década perdida para as


políticas sociais, uma vez que os ambientes econômicos e políticos não foram
capazes de responder à altura das novidades trazidas pela Constituição de 1988.
Os ajustes macroeconômicos conduzidos pelo governo federal na sequência da
implantação do Plano Real trouxeram consequências graves para o financiamento
e alcance das políticas sociais (Behring; Boschetti, 2008). Somente a partir dos anos
2000, as políticas de assistência social, previdência, saúde, segurança alimentar,
educação, habitação, trabalho e emprego, mobilidade, dentre outras ganham
novos aportes, principalmente aumento do financiamento e tecnicidade na gestão
e operacionalização. Pela primeira vez, a desigualdade social cai de forma
significativa no país (Neri, 2009).

Por sua vez, a força dos direitos humanos, enquanto uma formulação capaz de
reivindicar proteções a liberdades e garantias básicas a todas as pessoas, não reside
meramente no seu aspecto formal ou jurídico (Filho; Sousa Júnior, 2016) – e a
Constituição Federal de 1988 foi preponderante para afirmar os direitos humanos
no Brasil. Essa compreensão poderia abrir brechas a uma interpretação de que os
direitos humanos apenas deslocam mais uma vez a discussão de realização
concreta do exercício das liberdades e da garantia da dignidade a todas as pessoas.
É comum a formalidade dos direitos humanos passar uma impressão ao
imaginário social de ser mais um deslocamento retórico de justificações para
garantias básicas que nunca se concretizam, principalmente quando se fala em
sociedades demarcadas por injustiças sociais e desigualdades socioeconômicas,
como é o caso brasileiro. Além disso, como alertam Escrivão Filho e Souza Júnior
(2016), é crescentemente verificada uma despolitização dos direitos humanos,
traduzindo-os apenas como procedimentos interpretados por técnicos e

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especialistas, eliminando-se, assim, a sua dimensão combativa, libertadora e de


luta instituinte popular, própria dos movimentos sociais que exercitam poderes
soberanos de luta por direitos em face de contextos de dominação, exploração e
discriminação – aspecto imprescindível para sua materialização.

José Geraldo de Sousa Júnior compreende os direitos humanos como lutas sociais
concretas da experiência de humanização (Sousa Júnior, 2000). Eles podem ser
compreendidos, em síntese, como o ensaio de positivação da liberdade
conscientizada e conquistada no processo de criação das sociedades, na trajetória
emancipatória do homem (Sousa Júnior, 2000). Afirmar os direitos humanos nessa
perspectiva é direcionar a sociedade para o esforço de garantir um conjunto de
liberdades a todos os indivíduos apenas pelo fato de serem humanos e, no caso
das pessoas com deficiência, o valor central de contemplar as pessoas com
deficiência na reivindicação dos direitos voltados a elas mesmos.

Filho e Sousa Júnior (2016) argumentam que apenas via garantia da


indivisibilidade, interdependência e integralidade dos direitos humanos os
Estados Parte que compõe a Nações Unidas têm condições de materializar, política
e institucionalmente, todos os direitos humanos a seus cidadãos e cidadãs (Filho;
Sousa Júnior, 2016). A realidade concreta dos países – intermediada por fatores
econômicos, políticos e culturais – varia e essa diversidade é responsável pela
concretização difusa dos direitos humanos nas mais diversas realidades dos
contextos de cada nação.

Segundo os autores, indivisibilidade é a noção de que os direitos humanos estão


intimamente ligados entre si no cotidiano das relações sociais. A noção de
interdependência dos direitos humanos afirma que eles não estão só ligados entre
si. Mas que é importante concebê-los enquanto efetivação de um direito como
condição para a realização de outros correlatos e os vários direitos nas declarações
internacionais dão suporte uns aos outros, fortalecendo-os (Filho; Sousa Júnior,
2016). Por sua vez, a integralidade dos direitos humanos significa que eles devem
ser socialmente exigidos, institucionalmente reconhecidos e amplamente
garantidos em sua totalidade. É uma forma de não aceitar o discurso ou
justificativa da impossibilidade material de efetivar ou um ou outro daqueles
elencados entre o rol dos direitos humanos (Filho; Sousa Júnior, 2016). Essa
concepção de integralidade dos direitos humanos se aproxima de forma
importante da compreensão das políticas sociais em sua natureza contraditória e,
bem como do modo em que a integralidade das ações em sua perspectiva universal
visa atenuar tais lacunas naturalmente existentes entre as políticas públicas que

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A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como um novo paradigma 675
para implementação de políticas sociais

têm, entre suas funções, a concretização dos direitos humanos. Estas lições são
fundamentais para a discussão dos princípios da Convenção a serem analisados
na seção seguinte e o modo como a relação entre eles pode influenciar
decisivamente um novo escopo das políticas sociais no país.

3 Convenção, ordenamento jurídico e o impacto para a


proteção social

Para Amita Dhanda (2008), a inovação das concepções da Convenção pode ser
apontada principalmente, por quatro razões: 1. a Convenção assinalou a mudança
da assistência para direitos das pessoas com deficiência, o que provocará alteração
nos marcos normativos dos países signatários da Convenção; 2. introduziu o
idioma da igualdade para conceder tratamento igualitário e ao mesmo tempo
equitativo às pessoas com deficiência; 3. reconheceu a autonomia com apoio para
pessoas com deficiência e 4. tornou a compreensão sobre deficiência como parte
da experiência humana (Dhanda, 2008). São cinquenta artigos que expressam esses
quatro conjuntos de mudanças que inovam na forma como os Estados Parte devem
ampliar a proteção dos direitos humanos das pessoas com deficiência. Dessa
forma, abaixo passa-se à apreciação das principais novidades da Convenção,
sobretudo, no que enseja relações com as políticas sociais, a fim de avaliar o
potencial da Convenção frente inclusive à corponormatividade que estrutura as
relações sociais na sociedade brasileira, principalmente com políticas precarizadas
em seu papel de promover direitos de cidadania.

3.1 Reconhecimento da capacidade civil das pessoas com


deficiência

A ausência de um regime de direitos políticos e civis para pessoas com deficiência


contribuiu de modo significativo para a abordagem assistencialista, porque a
“jurisprudência internacional sobre direitos humanos conferiu as qualidades de
disponibilidade imediata e justiciabilidade dos direitos políticos e civis” (Dhanda,
2008, pág. 46). Isto é, vistos como sujeitos que não participam das deliberações
políticas da sociedade, ora as pessoas com deficiência eram tratadas como
cidadãos incompletos, ora a atenção a suas demandas foi objeto tão somente de
proteção material de suas condições de sobrevivência via iniciativas da caridade e
assistencialismo (Nussbaum, 2009). Para superar tais desafios, a Convenção trouxe
uma série de garantias, sobretudo, aquelas assinaladas no art. 12 com um novo
modelo de reconhecimento da capacidade civil das pessoas com deficiência,
sobretudo, no tocante a administrar suas vidas e seu patrimônio.

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Além do conteúdo em si, essa garantia na Convenção trouxe efeitos de outra


ordem. Como os direitos sociais e econômicos costumam ser implementados
progressivamente, conforme a disponibilidade dos recursos, os direitos políticos e
civis acabam por ser inegavelmente admitidos como negociáveis em decorrência
de sua gradualidade (Dhanda, 2008). Desse modo, as características de
“disponibilidade imediata e justiciabilidade contribuem para a aparência não-
negociável dos direitos políticos e civis e permite que os detentores desses direitos
os afirmam sem ficar na defensiva ou sentir vergonha” (2008, pág. 46). Esse aspecto
tem estreito diálogo com a discussão no primeiro item deste artigo sobre a
integralidade e indivisibilidade dos direitos humanos apontado por Filho e Souza
Júnior (2016), o que demonstra a importância da Convenção quanto a esse aspecto.

Para tanto, a Convenção reconhece que é imprescindível a transição do regime


caritativo para o de direitos, e assim o faz ao reconhecer a capacidade civil plena
das pessoas com deficiência. Para efetivar o reconhecimento, elencou
expressamente como princípio o “respeito pela dignidade inerente, a autonomia
individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência
das pessoas” (ONU, 2006), e ainda o compromisso para os Estados signatários em
“assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de
discriminação por causa de sua deficiência” (ONU, 2006).

Ao passo que reforma o modelo da capacidade civil, a Convenção estabelece o


dever de os Estados signatários criarem “salvaguardas apropriadas para prevenir
abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos”
(ONU, 2006). Assim, além de positivar e conferir a capacidade civil e de exercício
às pessoas com deficiência cria o dever para os Estados de elaborar mecanismos
capazes de permitir o exercício da capacidade legal de modo que “respeitem os
direitos, a vontade e as preferências das pessoas, sejam isentas de conflito de
interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às
circunstâncias da pessoa” (ONU, 2006). Com efeito, essas salvaguardas deverão
ser proporcionais às características individuais da pessoa, bem como ter sua
aplicação limitada e revisada periodicamente, constituídas como medidas
excepcionais (ONU, 2006).

Então, para atender a dogmática implementada pela Convenção, foi elaborada a


Lei Brasileira de Inclusão (LBI) ou o Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei 13.146
de julho de 2015, com a finalidade de estabelecer instrumentos adequados a
reduzirem a falta de autonomia dessas pessoas. Isso ocorre, a priori, com a

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A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como um novo paradigma 677
para implementação de políticas sociais

reformulação da capacidade civil, efetuada por meio da alteração dos arts. 3º e 4º


do Código Civil que tratam da incapacidade absoluta e relativa, respectivamente
(Brasil, 2015; Figueiredo, 2019).

Como consequência, no plano interno, a redação original do referido art. 3º,


continha natureza segregatória e negativa da autonomia das pessoas com
deficiência. Nesse sentido, dizia o dispositivo legal: “São absolutamente incapazes
de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I – os menores de dezesseis anos; II
– os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário
discernimento para a prática desses atos; [...]” (Brasil, 2002, art. 3º). A justificativa
para esse antigo sistema de capacidades possuía como fundamento o
reconhecimento limitado de que pessoas com deficiência tinham em si condições
precárias e vulneráveis (Pereira; Matos, 2018). Assim, visando proteger os
interesses dessas pessoas, o direito civil elaborou a técnica segundo a qual seriam
reconhecidamente incapazes para praticar atos da vida civil, sendo-lhes nomeado
um terceiro indivíduo que tomaria as decisões sobre a vida e a administração dos
bens (Pereira; Matos, 2018).

A LBI, atendendo aos postulados da Convenção, alterou profundamente o


ordenamento relativo às pessoas absolutamente incapazes para figurar nessa
categoria apenas os menores de 16 (dezesseis) anos, conferindo às pessoas com
deficiência capacidade civil plena. Ainda, ocorreu a reformulação das pessoas
relativamente incapazes. Para demonstrar o paradigma, no texto do art. 4º anterior
à vigência da LBI os relativamente incapazes incluíam “os que, por deficiência
mental, tenham o discernimento reduzido” e “os excepcionais, sem
desenvolvimento mental completo” (Brasil, 2002).

O reconhecimento da capacidade civil plena decorre da concepção da


interdependência humana (Dhanda, 2008). A autora assevera que há poucas fases
na vida humana que fundamentam a autoconfiança, pontua que a “a infância,
adolescência e velhice são exemplos óbvios da vulnerabilidade e carência
humanas” (Dhanda, 2008), o que requer introduzir o valor da interdependência
como um princípio de justiça de modo tão urgente quanto o da dignidade e
liberdades individuais. Diante desse quadro, apesar da sociabilidade ser
constituída pelo fato de as pessoas constantemente se apoiarem, porém, o apoio
mútuo não possui reconhecimento no mundo jurídico (Nussbaum, 2006), o que
transformava as pessoas com deficiência em sujeitos com direitos limitados ou
cidadãos de dignidade inferior. Tão necessária quanto desafiante, a alteração na
capacidade civil implica uma profunda reorientação na disponibilização de

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práticas, recursos, estratégias, políticas e equipamentos públicos que primam pelo


exercício das liberdades das pessoas com deficiência e promoção da igualdade de
participação social delas, reconhecendo que muitas necessitarão de apoios,
sobretudo, materializados por políticas sociais, para alcançarem tal participação
plena.

3.2 Acessibilidade e desenho universal, sobretudo, na


eliminação de barreiras

Conforme Dhanda (2008), um dos maiores entraves a ser superado por uma norma
de direitos humanos está relacionado com o enigma da uniformidade e da
diferença que persegue os grupos excluídos na busca pela inclusão na sociedade.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência busca pactuar ambos,
o mesmo e o diferente. Nesse sentido, é possível que as pessoas com deficiência
tenham sua dignidade respeitada tendo um razoável ajustamento das suas
diferenças com vistas à inclusão e participação plena (Dhanda, 2008). No entanto,
tal métrica dependerá dos instrumentos políticos e sociais para materializar essa
compreensão.

Para fins de equacionar as diferenças e, com isso, realizar a inclusão e participação,


a Convenção prevê expressamente o direito à acessibilidade. No entanto, não basta
assegurá-la nestes termos, é imperioso que sejam elaborados, desenvolvidos e
implementados mecanismos eficazes a promover a efetiva acessibilidade. No
esforço de avançar nas estratégias para garantia da acessibilidade, a Lei Brasileira
de Inclusão destaca inclusive em seu art. 3º seis tipos principais de barreiras:
urbanísticas, arquitetônicas, nos transportes, nas comunicações, tecnológicas e
atitudinais. Esta lista das barreiras não significa que são as únicas, no entanto, dão
concretude para dimensões que precisam ser trabalhadas para tornar a sociedade
acessível.

Para Romeu Sassaki (1997), a inclusão social constitui o processo de adaptação da


sociedade para tornar-se apta a incluir as pessoas com deficiência de forma a
contribuir para que estes assumam seus papéis sociais. Esse processo tem natureza
bilateral por permitir que em unidade de desígnios as pessoas excluídas e a
sociedade atuem com a finalidade de efetivar a igualdade de oportunidades e
detectar soluções comuns.

Sendo assim, a inclusão das pessoas com deficiência decorre da compreensão da


necessidade de modificação do meio social em que ela se encontra. Em que é
imperioso que seja realizado o desenvolvimento de suas capacidades, por meio da

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A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como um novo paradigma 679
para implementação de políticas sociais

educação, qualificação profissional, reabilitação, entre outros, como um processo


de inclusão em igualdade de oportunidade com os sem deficiência. Ao passo que
não seja de forma a caracterizar um pré-requisito para que ela possa ingressar o
meio social (Sassaki, 1997).

Assegurar o direito à acessibilidade consiste em garantir às pessoas com


deficiência o direito à locomoção, ou ainda, o direito de liberdade com vistas a
proporcionar o exercício da cidadania e da participação social. Sendo assim, a LBI
prevê expressamente que “a acessibilidade é direito que garante à pessoa com
deficiência ou com mobilidade reduzida viver de forma independente e exercer
seus direitos de cidadania e de participação social” (Brasil, 2015).

3.3 Autonomia e apoio em situações de dependência:


mecanismos a partir da Convenção

Uma das questões para a qual a Convenção dá uma significativa contribuição para
alterar a ênfase dos direitos das pessoas com deficiências é a da autonomia com
apoios (Dhanda, 2008). É possível perceber tais contribuições em dois conjuntos
amplos de situações em muitos artigos da Convenção: o primeiro conjunto diz
respeito à novidade do reconhecimento da capacidade civil das pessoas com
deficiência, como tratado anteriormente e até mesmo nas exigências de políticas,
programas e outras ações necessárias à materialização dessa novidade. Sobre esse
ponto, é importante abordar, o que será tratado adiante, o instituto da decisão
apoiada, prevista na Convenção e disciplinada no contexto brasileiro pela LBI em
2015.

Um segundo conjunto de novidades sobre a afirmação da Convenção sobre a


autonomia com apoios às pessoas com deficiência diz respeito às prerrogativas
ensejadas no art. 19 da Convenção para “apoio em domicílio ou em instituições
residenciais ou a outros serviços comunitários de apoio, inclusive os serviços de
atendentes pessoais” (ONU, 2006), a ser tratado no último ponto deste item.

O dogma da incapacidade das pessoas com deficiência encontra reforço em


diversas legislações até então que, ao reconhecê-la, negam a elas capacidade legal.
Assim, essa legislação promove a tomada de decisões com autonomia em assuntos
relativos ao casamento ou residência, bem como a administração dos próprios bens
ou negócios (Dhanda, 2008), superando o paradigma da interdição pelo qual as
pessoas com deficiência perdiam o direito de administrar seus interesses jurídicos
e privados.

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Diante da violação ao princípio da igualdade e da autonomia das pessoas com


deficiência, desenvolveu-se o mecanismo da tomada de decisão apoiada. Segundo
Joyceane Menezes (2015), esse mecanismo visa conferir apoio ao exercício da
capacidade legal instituída pela LBI, constituindo um verdadeiro meio de proteção
sem suprimir a vontade da pessoa, por meio do qual receberá apoio de terceiros
no processo de tomada de decisão, especialmente em relação àquelas que culminar
efeitos jurídicos para terceiros ou para a pessoa em si.

A tomada de decisão apoiada pode ser requerida, pelo apoiando, tanto para
suporte em assuntos patrimoniais ou extrapatrimoniais, sendo que a necessidade
da pessoa requerente é que determinará a extensão do apoio (ONU, 2006).
Menezes (2015) explica que o apoio envolve esclarecer a pessoa sobre fatores
relativos à decisão, inclusive o alcance dos efeitos, além disso pode envolver ainda
a comunicação da decisão aos interlocutores.

Retratar o instituto da tomada de decisão apoiada implica abordar questões


atinentes à dependência e intersubjetividade. Para melhor posicionar a
dependência e o cuidado, é legítimo o reconhecimento do cuidado e dependência
como medida de justiça e igualdade social, como fundamento para o implemento
de políticas públicas que envolvam os deveres de cuidado interpessoal para afastar
qualquer sobreposição e continuidade de reproduções de desigualdade de gênero
pela dependência experimentada por corpos com deficiência (Luiz; Silveira, 2020).

Raquel Guimarães (2008) demonstra que o cuidado é tido, por vezes, como uma
tarefa feminina a ser exercida no contexto doméstico e familiar. No entanto, para
Joan C. Tronto (2007) o cuidado constitui um dever a ser exercido de modo
indistinto com a finalidade de se construir uma sociedade democrática pautada na
igualdade. Isso ocorre no sentido de que é necessário a desconstituição da
naturalidade de que o cuidado é uma tarefa feminina de modo a se desenvolver e
implementar políticas públicas envolvendo pessoas cuidadoras de deficientes
(Tronto, 2007).

4 Convenção: um novo paradigma para as políticas


sociais?

Para Thomas Kuhn, a quem se credita a formulação do conceito contemporâneo


usado para paradigma, ciência é um tipo de atividade que consiste em resolver
problemas como um quebra-cabeça, dentro de uma unidade metodológica própria
com influências determinadas e autorreferenciadas (Khun, 1985). Mesmo aberto à

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A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como um novo paradigma 681
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comunicação científica com suas regras características, um paradigma serve para


delimitar a capacidade de alcance, enquadramento e explicação para problemas a
serem resolvidos em determinado campo científico. Isto, é, estabelecendo um
padrão de racionalidade aceito em uma comunidade científica, em um campo do
saber, em práticas sociais, institucionais e jurídicas em dado período histórico por
circunstâncias singulares.

Diante dos apontamentos anteriores, em que se abordou algumas das principais


inovações da Convenção para o debate dos direitos humanos, resta questionar
quais podem ser as influências da Convenção para o padrão de políticas sociais no
Brasil. É possível falar em uma nova fase, em um novo paradigma, para as políticas
sociais, portanto, com maior potencial para materialização dos direitos sociais? Se
a vinculação das políticas sociais no interior dos princípios constitucionais de 1988
as filiaram aos direitos humanos, representando uma mudança significativa frente
ao modelo anterior, é possível perceber, por outro lado, que avanços ainda carecem
de se concretizar para a realidade das pessoas com deficiência. Principalmente,
quando se analisa a influência de fatores econômicos, políticos e institucionais para
implementação de tais ações.

É a partir dessas considerações que empreendimentos a respeito da avaliação do


impacto da Convenção para as políticas sociais no Brasil devem ser levados
adiante. Ancorando-se nas análises críticas do modelo social da deficiência, este
texto contribui com uma abordagem seminal para esse objetivo no debate
brasileiro. A aproximação que as políticas sociais tiveram ao arcabouço dos
direitos de cidadania no texto constitucional, com todas as consequências em leis
orgânicas e políticas nacionais implementadas na sequência nos anos 1990 e 2000,
nos impele a pensar na importância que tal aproximação tem para o universo das
pessoas com deficiência a partir da ratificação da Convenção.

Para reforçar, política social é aqui compreendida como uma ação de redistribuição
de recursos, permeadas por contradições na sociedade capitalista, tendo como
principal atribuição a concretização de direitos sociais para atender necessidades
que, no sistema capitalista, constituem a força desencadeadora da conquista da
cidadania e das mudanças sociais (Pereira, 2014). Essa afirmação é particularmente
relevante quando retomamos os ensinamentos de Alfredo Bosi (1996), já citados.
Ou seja, é recente no país uma base jurídica capaz de orientar ações públicas e
estatais que materializam o acesso a bens econômicos, sociais e de status para
promover os direitos humanos, tendo como objetivo favorecer uma participação
plena dos sujeitos em suas múltiplas vivências e corporalidades.

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682 Wederson Santos - Olemar Guilherme da Cunha

Se é verdade que o padrão de proteção social inaugurado com a Constituição de


1988 altera-se consideravelmente (Boschetti, 2006; Vaitsman et al., 2009) – e o é
principalmente pela sua vinculação aos direitos humanos –, as políticas sociais
ampliadas a partir dos anos 2000, inclusive com impactos para nossos históricos
índices de desigualdade social (Neri, 2009; Vaitsman et al., 2009), alcançaram de
forma tímida as pessoas com deficiência muito em função de considerar os sujeitos
típicos como a norma para serem objeto de ações estatais, sem considerar as
particularidades daqueles que vivenciam a deficiência. O arrojado compêndio de
direitos explícitos no texto constitucional sobre deficiência e um conjunto de novas
leis nos 1990 e 2000 voltadas para a população com deficiência convive ainda com
situações de privação, riscos e vulnerabilidades experimentadas por essas pessoas
(Becker, 2019; Costa et al., 2016; Nogueira et al, 2016; Baccolini et al., 2017;
Vaitsman; Lenaura, 2017).

Antes de abordar aspectos de conteúdo da Convenção que podem influenciar as


políticas sociais, vale destacar duas garantias nela dispostas que dizem respeito à
forma ou à metodologia na elaboração e acompanhamento das ações dos Estados
Parte. A primeira delas é a garantia de participação das pessoas com deficiência
em todos os processos decisórios relacionados a seus direitos. No artigo 4º, item 3,
da Convenção se estabelece que, na elaboração e também implantação de
legislações e políticas e em outros processos de tomada de decisão relativos às
pessoas com deficiência, “os Estados Partes realizarão consultas estreitas e
envolverão ativamente pessoas com deficiência, inclusive crianças com deficiência,
por intermédio de suas organizações representativas” (Brasil, 2009).

Reivindicação histórica dos movimentos políticos das pessoas com deficiência em


todo o mundo, a referida garantia remete à necessidade de qualificar e tornar
efetivas as ações ao envolver as pessoas com deficiência nos processos de
elaboração de leis e políticas desde o início. A Constituição de 1988 já havia
inaugurado no Brasil a participação da sociedade nos conselhos de políticas
públicas, principalmente de Saúde, Educação, Seguridade Social, Direitos da
Criança e do Adolescente pelo controle democrático das ações (Rocha, 2013). No
bojo dessas influências, o próprio Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com
Deficiência (Conade), com participação de conselheiros da sociedade e do governo
no acompanhamento dos direitos e políticas para esse público, foi criado em 1999
(Brasil, 1999). A inovação da Convenção, portanto, está em dois aspectos:
participação nas propostas de leis e políticas desde o momento inicial de suas
elaborações e não apenas no monitoramento e avaliação delas. Mas também pelo
status que adquire tal garantia pela Convenção como emenda constitucional.

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A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como um novo paradigma 683
para implementação de políticas sociais

Além disso, a Convenção estabelece dois dispositivos de monitoramento de sua


implantação que parecem originais. No art. 34 faz-se menção ao Comitê que será
constituído por membros dos Estado Parte que farão o monitoramento da
implantação da Convenção em todos os países signatários, ao terem ratificado
também seu Protocolo Facultativo. Por sua vez, no art. 33 será instituído, no Estado
Parte, um ou mais de um mecanismo independente das estruturas governamentais
para promover, proteger e monitorar a Convenção. Estas exigências se mostram
relevantes frente à estrutura já existente no país para controle social e democrático,
como é o Conade, cuja composição de seus membros contam com representantes
governamentais e da sociedade, isto é, não são totalmente independentes.

Essas duas garantias da Convenção, para fazer valer sua implantação (uma de
abrangência internacional e outra interna, ambas independentes e autônomas na
relação com governos), podem fazer com que os avanços nela contidos se
transformem em realidade para as pessoas com deficiência o mais cedo possível,
se aproximando de forma decisiva das demandas reais de todas as pessoas com
deficiência e suas singularidades. Com efeito, não seria demais estender essa
compreensão até mesmo para políticas sociais de modo geral, uma vez que os
avanços para as pessoas com deficiência repercutem para outros públicos, como é
o caso de ações de acessibilidade, desenho universal, direitos sociais e econômicos,
participação política, igualdade e não discriminação, entre outras.

Uma lição aprendida com o esforço, tanto político quanto institucional, da


sociedade brasileira em materializar políticas sociais nas últimas três décadas é a
de que, muito além da dependência de determinantes econômicos e políticos, o
alcance delas passa por uma capacidade de: 1. se basear em um arcabouço jurídico
abrangente amparado nos direitos humanos e 2. contar em sua elaboração,
acompanhamento e avaliação com a participação social e democrática dos sujeitos
plurais a quem se destinam, em um esforço concentrado de todas as instituições
democráticas envolvidas na implantação de tais ações (Santos, 2008). Esta lição,
curiosamente pode ser depreendida na trajetória de implantação e fortalecimento
do Benefício de Prestação Continuada (BPC) da assistência social para as pessoas
com deficiência (Santos, 2008). Em alguma medida, lição que se repetiu nas
políticas de saúde mental, programa saúde da família, iniciativas de combate à
mortalidade infantil, educação inclusiva, política de segurança alimentar,
programa de combate ao HIV-Aids, dentre outros, principalmente nos seus
resultados entre final dos anos 1990 e 2016.

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Com exceção da transferência de renda pelo BPC e dos avanços na educação


inclusiva (Macena et al., 2018), lições como as citadas acima praticamente foram
inexistentes para outras temáticas da deficiência nas últimas décadas. E é diante
desse cenário que a Convenção é ratificada no Brasil em 2009 como emenda
constitucional. O que poderia representar mais um deslocamento, retardando
ainda mais o processo de implantação de ações que alteram a realidade de pessoas
com deficiência, como alertam Filho e Souza Júnior (2008), tem, no entanto, razões
como valor instrumental para além das garantias jurídicas que poderiam ser vistas
como avanços subjetivos distantes da realidade por essa população em sua
múltipla diversidade de vivências e demandas.

O reconhecimento: a) da capacidade civil e das exigências para implementá-las, b)


das prerrogativas do desenho universal e de acessibilidade assentadas no
arcabouço dos direitos humanos (Pimentel; Pimentel, 2018), principalmente na
urgente eliminação de barreiras, bem como c) de que viver com deficiência pode
exigir um conjunto de iniciativas para garantir cuidados pessoais até mesmo em
domicílio para uma vida independente, seja por ações, programas e até assistentes
pessoais, além d) do princípio da participação substantiva das pessoas com
deficiência no processo decisório de políticas e legislações em temáticas correlatas,
aponta para um novo momento para políticas sociais sobre deficiência no Brasil.

A afirmação da autonomia dos sujeitos de direitos pela Convenção se dá não pelo


reconhecimento do sujeito moral e político que deve ter garantida sua
independência – como valores iluministas idealmente tanto contribuíram – mas,
pelo papel do Estado democrático de direito em promover a igualdade de
participação na sociedade pela promoção da autonomia com apoios (Dhanda,
2008), como argumentado anteriormente. Porque no fim, o que a experiência da
deficiência nos ensina sobre a condição humana é que nossa sociabilidade está na
interdependência nascida na liberdade e na igualdade usufruídas, desde que com
apoios protegidos e incentivados por políticas sociais.

A necessidade que pessoas com deficiência têm de benefícios sociais ou a urgência


por eliminação de barreiras para acesso ao trabalho, por exemplo, não pode
representar que essas pessoas não disponham de autonomia ou não tenham
condições para construir uma trajetória de relações sociais, de vida e de afetos, cuja
independência esteja no centro dessa sociabilidade. E o alcance desse objetivo
precisa ser afirmado desde que se compreenda sua materialização por meio de
apoios legais e institucionais às pessoas com deficiência, advindos de legislações e
de políticas públicas.

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A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como um novo paradigma 685
para implementação de políticas sociais

Essa compreensão de autonomia com apoios e de assistência que não seja


exatamente um contraponto e uma ameaça às ideias de independência e de
liberdade individual está no plano de fundo da Convenção de um modo
substancialmente avançado se comparado às garantias constitucionais afirmadas
em 1988. Foi significativa a afirmação dos direitos sociais e econômicos na nossa
última Constituição, ancorados na ideia de dignidade humana, por um lado, e com
as políticas de seguridade social, educação e acessibilidade, por exemplo, de outro,
sendo orientadas por essa prerrogativa, além dos direitos humanos e do objetivo
republicano de reduzir desigualdades. No entanto, nos anos subsequentes, os
avanços não se transformaram em concretos no cotidiano das pessoas com
deficiência também por ausência de indicativos de como materializar tais
prerrogativas, principalmente com as pessoas com deficiência sendo sujeitos
políticos ativos nesse processo. A Convenção e as garantias nela dispostas
apontam de forma mais instrumental os caminhos para esta materialização.

Desde o conceito de pessoa com deficiência estabelecido na Convenção até a


concepção de garantir, seja a capacidade civil, seja a acessibilidade e desenho
universal ou outras ações que materializam a autonomia com apoios, bem como a
participação substantiva das pessoas com deficiência na elaboração de leis e
políticas voltadas a elas mesmas, a relação com as políticas sociais se mostra
evidente como condição de possibilidade para materializar grande parte ou a
quase totalidade dos cinquenta artigos do referido tratado internacional. A
deficiência, compreendida como situação relacional surgida do corpo com
diversidade funcional submetido a arranjos sociais pouco preparados para a
diversidade, exige nesta abordagem políticas amplas para tratar as demandas
dessa população. O direito de participar da sociedade em igualdade de condições
com as demais pessoas, que aponta onde estão os fatores limitantes e as diferentes
barreiras a serem eliminadas, está colocado na Convenção e, refletido na LBI com
força instrumental, de um modo mais abrangente e explícito que o texto original
da Constituição de 1988, mesmo ele sendo avançado no tratamento dos direitos
para a deficiência. Como capítulo constitucional, a Convenção pode influenciar
decisivamente as políticas sociais para as pessoas com deficiência, sobretudo, em
todos estes aspectos inovadores aqui elencados.

Enquanto as políticas sociais são compreendidas em seu potencial para


materializar direitos de cidadania, e a Constituição havia assentado a proteção às
pessoas com deficiência no arcabouço dos direitos humanos, a Convenção teve o
papel de chamar a atenção de que só é possível garantir a dignidade das pessoas
com deficiência, considerando o tratamento de suas demandas na perspectiva da

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justiça igualitária, quando se reconhece a autonomia com apoios e a eliminação de


barreiras como valores centrais ao ordenamento democrático. Esta lição é
carregada de sentidos não só para as pessoas com deficiência, mas para diversos
públicos no país que, em razão de singularidades que particularizam suas
vivências, têm sua dignidade comprometida em função de ações ou inações do
Estado, que comprometem a garantia de direitos por uma equivocada defesa de
independência dos sujeitos que, na verdade, replica desigualdades.

Ao adicionar a Convenção como mais um capítulo da Constituição Federal de


1988, os cinquenta artigos dispostos no tratado internacional têm a força para
influenciar de forma decisiva o conteúdo das políticas sociais no país. Essa
alegação não tem apenas a ver com o contingente de pessoas com deficiência no
Brasil, que é significativo. Não diz respeito também apenas à experiência
compartilhada da deficiência em atingir cada vez a quase totalidade da população,
pela aproximação seja pelo envelhecimento populacional ou pela ocorrência de
deficiência por fatos triviais à vida social, como comprometimentos surgidos em
função de doenças e acidentes. O argumento tem a ver com a noção ampliada da
responsabilidade do Estado brasileiro, trazida pela Convenção, em criar
mecanismos para a garantia da dignidade humana, compreendendo a autonomia
e independência como valores que precisam de assistência e apoios para se
concretizarem, e eles se materializam pelas políticas sociais até para outros
públicos se orientados pelo princípio da isonomia para tratamento igualitário às
demais pessoas.

O paradigma para as políticas sociais com base na Convenção, portanto, estrutura-


se, principalmente, mas não só, em: 1. na compreensão de que os princípios de
universalidade e integralidade na atenção para promoção dos direitos humanos
deixam de ser meros postulados teóricos, com implicação ocasional para a gestão
e formulação de ações estatais, e passam a ser pré-condição para materializar
preceitos constitucionais e 2. nos princípios – sobretudo, da autonomia com apoios,
acessibilidade e desenho universal, além da participação das pessoas com
deficiência desde as fases iniciais na formulação de legislação e políticas
direcionadas a elas – que podem alcançar, pelo assento constitucional, outros
públicos que têm desigualdade de participação na sociedade, ao alegarem
isonomia e tratamento não discriminatório por parte do Estado para estender tais
compreensões também a suas demandas.

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A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como um novo paradigma 687
para implementação de políticas sociais

5 Considerações finais

Antes da Convenção, a atenção aos direitos das pessoas com deficiência na


perspectiva da integralidade e universalidade das políticas sociais era buscada, no
máximo, pela alegação dos direitos humanos, muitas vezes resultante de
reivindicações políticas por atendimento de demandas pontuais submetidas
inclusive a controvérsias quanto à justiciabilidade em alguns casos. Agora, a
universalidade das políticas sociais é uma decorrência explícita do ordenamento
constitucional pela indivisibilidade, integralidade e universalidade dos direitos
contidos na Convenção e dos instrumentos para materializá-los. Uma efetivação
com políticas sociais, por exemplo, de direitos econômicos e sociais às pessoas com
deficiência só se dará pela garantia concomitante do direito à acessibilidade que,
por sua vez, só será exercida se tiverem postulados apoios e assistência para fazer
valer tanto a capacidade civil, quanto o exercício de direitos políticos. E essa é a
força para conformar políticas públicas com tais objetivos. Estas lições para
proteções básicas à dignidade humana e cidadania das pessoas com deficiência são
ricas de possibilidades para alcançar até outros públicos que têm direitos básicos
violados no Brasil, sobretudo, pela inexistência ou insuficiência de políticas sociais.

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692 Wederson Santos - Olemar Guilherme da Cunha

VAITSMAN, Jeni; ANDRADE, Gabriela Rieveres Borges de; FARIAS, Luis


Otávio. Proteção social no Brasil: o que mudou na assistência social após a
Constituição de 1988. Ciência e Saúde Coletiva, v. 14, n. 3, p. 731-741, 2009.

VAITSMAN, Jeni; LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa. Benefício de


Prestação Continuada (BPC) para pessoas com deficiência: barreiras de acesso e
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A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como um novo paradigma 693
para implementação de políticas sociais

Sobre os autores
Wederson Santos
Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Assistente social do
Instituto Nacional de seguridade Social (INSS) desde dezembro de 2012.
Já foi Coordenador-Geral de Promoção dos Direitos das Pessoas com
Deficiência da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República entre 2015 e 2017. É professor universitário para os cursos de
Serviço Social.

Olemar Guilherme da Cunha


Advogado e consultor jurídico formado pela Faculdade de Ciências e
Tecnologias de Unaí – Factu (MG)

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Temas geradores
Trata-se de seção dedicada a fomentar a elaboração de textos que, sem
perder seu rigor com a pesquisa, permitam a difusão de sínteses a
respeito de expressões, conceitos ou institutos, que comportem
múltiplas interpretações ou significado, concernentes ao tema geral
que relaciona direitos e movimentos sociais. A seção de verbetes da
revista do IPDMS é uma homenagem ao educador popular Paulo Freire
que incluía, em sua proposta pedagógica, temas geradores a serem
trabalhados junto à consciência das classes populares.
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.51527

temas geradores

Raça e racismo como conceitos jurídicos


de resistência
Raza y racismo como conceptos jurídicos de
resistencia

Race and racism as legal concepts of resistance

Camilla Magalhães Gomes1


1
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade Nacional de Direito, Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-6993-7289.

Submetido em 10/11/2023
Aceito em 21/11/2023

Como citar este trabalho


MAGALHÃES GOMES, Camilla. Raça e racismo como conceitos jurídicos de
resistência. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p.
697-708, jan./jun. 2024.

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ISSN 2447-6684

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698 [autor/a]

Raça e racismo como conceitos jurídicos


de resistência

Este verbete tem por objetivo apresentar os sentidos produzidos por intelectuais
negras/os para a elaboração de conceitos jurídicos de raça e racismo como
conceitos de resistência. Propõe-se, como tema gerador, pensar como o direito
pode se relacionar com o debate sobre raça e racismo, ou melhor escrevendo, como
a linguagem jurídica, como linguagem performativa que é, deve respeitar a cadeia
histórica de significados produzida pela população negra a respeito dos termos
raça e racismo.

O ponto de partida, inspirado pela ideia dos Temas Geradores da Revista


InSURgência e pelo escopo do Dossiê “Direito e relações raciais” organizado por Ciro
de Souza Brito, Emília Joana Viana de Oliveira, Inara Flora Cipriano Firmino,
Rodrigo Portela Gomes, é, portanto, o modo como o movimento negro, intelectuais
negras e negros do Direito ou de outras áreas produzem sentidos sobre os dois
termos e a compreensão desses sentidos como a cadeia histórica de significados na
qual o performativo jurídico para esses termos deve se assentar. Os modos tidos
por oficiais – as formas de conceituar raça e racismo em decisões do Supremo, por
exemplo – são apenas um pano de fundo e não serão objeto de descrição ou
explicação, seja porque assim fazer não seria compatível com os objetivos do
Dossiê e/ou de um tema gerador da presente Revista, seja porque a produção de
intelectuais negras e negros é resistência, uma vez que se coloca como
“possibilidade de desestabilização de valores racistas acionados por algumas
matrizes teóricas tidas como canônicas” (Silva; Gomes; Brito, 2021, p. 585) e aqui
entendida a importância de raça e racismo como conceitos jurídicos.

Falar de raça e racismo no Direito começa por fazer algumas escolhas prévias:
quem produz conceitos jurídicos? De quem é a autoridade para produzir esses
conceitos? Mencionar essa autoridade, contudo, não é fazer referência à autoridade
para produzir normas jurídicas, mas aquela concedida à doutrina, aos
(auto)denominados juristas que criam os conceitos que serão manejados pelos que
formulam e os que aplicam as normas. A norma – a lei, por exemplo – usa termos
como sexo, gênero, discriminação, violência de gênero, raça, racismo,
discriminação racial, injúria racial, etc. O sentido deles, contudo, se constrói fora
das instâncias produtoras dessas normas. Fora, mas nem tão fora. Essa atribuição
de autoridade se dá por meio de critérios não ditos e escolhas ocultas que, no
entanto, não são difíceis de serem mapeadas, uma vez que passam pelos mesmos
critérios de poder de tantas outras escolhas do meio. Nesse processo, o “Direito” –
aquele produzido por seus atores hegemônicos - filtra que sentidos ou quais
sentidos produzidos por quem irão compor o modo como um termo será tomado
como “instituto jurídico” – aqui como categorias, conceitos ou termos pertencentes
ao Direito.

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Raça e racismo como conceitos jurídicos de resistência 699

Estes termos, entretanto, têm uma história. Foram forjados na história, uma
história muito diferente daquela comumente levantada pela doutrina dominante
quando sistematiza o histórico de um instituto para tecer suas explanações
dogmáticas. Buscar a compreensão desses termos, portanto, ao adotá-los como
conceitos jurídicos, deve passar pelo conhecimento e reconhecimento dessa
história e do(s) sentido(s) que se formou através dela. Assim, o(s) movimento(s)
feminista(s), por meio de sua luta, sua atuação política, sua produção intelectual,
teórica, científica e acadêmica fez do termo gênero um termo relevante política e
juridicamente. Do mesmo modo, é nas trilhas da luta do(s) movimento(s) negro(s),
da sua atuação política e produção intelectual, teórica, científica e acadêmica que
os conceitos de raça (e racismo) ganham significado distinto daquele que dominou
os debates no século XIX com suas teorias biológicas da raça. Afinal, “a raça é um
elemento essencialmente político, sem qualquer sentido fora do âmbito
socioantropológico” (Almeida, 2021, p. 22).

A incorporação dos sentidos produzidos na luta dos movimentos sociais à forma


com que o Direito irá manejar os conceitos já é uma dificuldade em si mesma. As
barreiras para tanto são ainda mais complexas quando se trata dos dois termos
objeto desse verbete. Como lembra Sueli Carneiro, quando se fala de gênero, a
identidade sujeito e objeto “constrói para as feministas a autoridade da fala ou da
prática discursiva feminista, diferente do que ocorre com o saber produzido sobre
o negro”. No caso desse último, diz a autora, ele “se construiu a maior parte do
tempo desconectado do negro e de suas reivindicações, ainda que seja possível
identificar em muitos dos estudos a intenção de transformação das condições
sociais produtoras de sua desigualdade social”. (Carneiro, 2023, p. 18) Nesses
temas, lembra, o negro é colocado apenas no lugar de objeto de uma área cuja
especialidade é “conhecer o outro e a diferença é então tornada como objeto de
investigação”. (Carneiro, 2023, p. 18)

Essa dinâmica contribui para a manutenção de privilégios e poder da branquidade,


seja de modo geral, seja de modo específico no campo jurídico. É possível, porém,
caminhar de outra forma. De um lado porque, como diz Sueli Carneiro, a disputa
em torno da produção do saber produz também a resistência a essa dinâmica
sujeito-objeto, produz “os saberes insurgentes que emergem do campo da
resistência, para disputar a produção da verdade sobre a racialidade dominada”
(2023, p. 40). De outro lado porque, como já pontuava Dora Bertúlio em 1989, o
poder econômico e político atua constantemente na manutenção dessas
desigualdades “produzindo e se reproduzindo dentro de uma elasticidade
prevista e suficiente para a sua perpetuação”, mas, ao mesmo tempo, ele é capaz
de ceder – ou é possível que o façamos ceder – diante das “pressões populares”.
(Bertúlio, 2019, p. 7) São esses saberes insurgentes, essa resistência, o saber forjado
nessa resistência que deve sempre fazer parte da forma de tomar raça e racismo
como conceitos jurídicos.

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700 [autor/a]

Raça e racismo e sua cadeia histórica de significados – a


performatividade da linguagem

Os conceitos jurídicos e, portanto, a linguagem jurídica é, em grande medida,


performativa. Por linguagem performativa ou atos de fala performativos entende-
se atos pelos quais “falar é fazer”, em oposição aos atos de fala que descrevem algo
– constatativos (Austin, 1975). Muitos dos atos de fala jurídicos – e o próprio Direito,
– são performativos, são uma performatividade, uma vez que, por mais que por
vezes descrevam algo, eles fazem: seus atos de fala produzem situações, criam
estados de sujeitos, constituem direitos e/ou obrigações. Essa compreensão é chave
para perceber como se dão as relações do Direito com diversas dimensões da
realidade e assim se nota nos casos de debater raça e racismo.

Essa performatividade não está apenas no fato de que ao produzir definições o


direito produz realidades. Está também no aspecto de que, ao assim fazer, ao
utilizar referências para suas definições, argumentos, fundamentos e votos, o
campo jurídico realiza uma série de escolhas que constituem atribuição de
autoridade e legitimidade ao saber produzido pela chamada doutrina jurídica. A
par de toda a história a respeito da estruturação do Direito de tradição de Civil law,
a realidade é que essa atribuição é bem menos óbvia ou transparente do que aquilo
que os livros jurídicos ou as menções jurisprudenciais dizem a respeito da tal
doutrina. Mais do que quem, o que confere legitimidade e autoridade a um
determinado sujeito a ponto de qualificar seus escritos como doutrina? Como deve
ser produzido o saber jurídico para que seja classificado como tal? A resposta a
isso, menos do que constituída por uma justificação racional de critérios de saber
produzido dentro do campo, passa por critérios socioculturais, constituídos por
dinâmicas de poder sustentadas na raça, na classe e no gênero.

Permita-me um rápido exemplo. Antes, o contextualizo. A “produção branca e


hegemônica sobre relações raciais”, diz Sueli Carneiro, “dialoga entre si,
deslegitimando a produção dos pesquisadores e ativistas negros sobre o tema”, em
um fluxo de referências e citações que se legitima mutuamente. Autores e autoras
brancas brasileiros se autorreferenciam, mantendo seus privilégios acadêmico-
científicos. Por vezes, citam autores e autoras negros, mas esses são, com maior
frequência, estrangeiros (2023, p. 49). O exemplo são os votos de Ministros e
Ministras do STF em ações e recursos que tratam diretamente da questão racial ou
que com ela de algum modo se comunicam: caso Ellwanger, cotas raciais,
criminalização da LGBTfobia, perfilamento racial, etc. Quem são as fontes de saber
sobre relações raciais, raça e racismo ali utilizadas? O que a leitora encontrará ao
consultar os votos em questão acompanha, em grande medida, a contextualização
feita acima: referência a homens brancos em maioria, menção a negros e negras
estrangeiros – estadunidenses, quase que preferencialmente – e o surgimento
apenas recente e ainda tímido de referências a teóricas/os, intelectuais,
pesquisadoras/es, juristas negras/os. Isso tudo, não podemos esquecer, a despeito
de tais votos serem proferidos em ações que ou foram movidas por organizações
do movimento negro ou contaram com essas organizações como os chamados

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Raça e racismo como conceitos jurídicos de resistência 701

amicus curiae e essas, em qualquer uma dessas duas formas de participação,


apresentaram petições e manifestações que contam com referências, elaborações,
citações de intelectuais negras e negros, além de serem elas mesmas, muitas vezes,
redigidas por intelectuais advogadas/os negras/os.

Nem se diga, portanto, que essa produção teórica não se reflete nos votos por não
ter chegado ao STF e aqui voltamos à elaboração inicial: a linguagem jurídica é
performativa e faz algo ao dizer algo e esse fazer inclui a produção de autoridade
de seus próprios conceitos, ao mesmo tempo em que confere autoridade a
determinados sentidos que lhe são apresentados ou a sentidos produzidos por
determinados sujeitos e, também como já dito, essa performatividade é – como
toda – constituída por dinâmicas e estruturas socioculturais e de poder alicerçadas
na raça, na classe e no gênero.

Intelectuais negras/os compondo os sentidos de raça e


racismo como conceitos jurídicos de resistência

Localizar o Direito e sua linguagem como performativos e identificar que a


autoridade da fala se dá por mais do que sua qualidade e conteúdo pode também
ser um elemento para a insurgência. Afinal, se falar é fazer e esse falar é constituído
por escolhas, podemos nos permitir construir de modo diverso esses processos de
constituição de autoridade/legitimidade de fala e preencher os institutos jurídicos
de sentidos produzidos na resistência, falando e fazendo de outro modo. Mas se o
ato performativo não descreve algo, como ele pode produzir sentido? Como ele
tem forca para criar? Como ele funciona ou permanece? É possível dizer que um
performativo funciona à medida que ele evoca os sentidos de uma “cadeia
histórica de significados” (Butler, 1997), ao mesmo tempo em que essa referência
possibilita que um performativo passe a funcionar de outro modo, a partir do
momento em que se rompe tal cadeia e ele passa a seguir – e construir - uma nova.

Na tentativa de compreender esse funcionamento e buscar um preenchimento de


sentidos de raça e racismo como conceitos jurídicos e performativos, em uma
genealogia simplificada, podemos nos valer daquilo que os estudos decoloniais
tem demonstrado: práticas racistas – ainda que não fossem assim denominadas -
são anteriores ao desenvolvimento das teorias biológicas sobre raça. A realidade é
que a teorias biológicas e filosóficas, como bem demonstrou Gislene Aparecida dos
Santos em A Invenção do Ser Negro - e jurídicas - sobre a raça aparecem após o início
do período colonial e aparecem, entre outros motivos, com a função de legitimar
as práticas coloniais de desumanização, inferiorização, dominação, genocídio e
escravização de populações não europeias/ não brancas (Santos, 2002). A
“invenção da raça”, diz Nilma Lino Gomes “antes mesmo de se consolidar como
um conceito da ciência, ela foi sendo formulada como uma ideia, uma
representação social e, portanto, uma forma de classificação social imbricada nas
estratégias de poder colonial” (2012, p. 730). Mais do que um termo ou conceito
criado para descrever uma realidade, as teorias biológicas da raça justificam uma
realidade ao performar classificações de sujeitos hierarquizando-os e

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desumanizando-os, justificam uma realidade racista, performam a legitimidade da


colonização e da escravização e desumanização da população negra e indígena no
território latino-americano. “Disso decorre que a essência do racismo, enquanto
pseudo-ciência, foi buscar legitimar, no plano das ideias, uma prática, e uma
política, sobre os povos não-brancos e de produção de privilégios simbólicos e/ou
materiais para a supremacia branca que o engendrou”. (Carneiro, 2023, p. 20-21)

Há uma história, portanto, sobre a construção da raça/racismo e ela não começa


com as teorias biológicas, nem termina após seu descrédito. Há uma história sobre
a raça e essa história é a história da América Latina e sua colonização. A história
da raça, assim, está ligada a uma história de origem: raça, classe, nação, origem são
formas pelas quais o racismo vai se deslocando para assentar as bases do seu
processo de desumanização. Não é à toa que, ao trabalhar o dispositivo da
racialidade, Sueli Carneiro (2023, p. 21) estabelece que a “raça é um dos elementos
estruturais de sociedades multirraciais de origem colonial” e que Nilma Lino
Gomes (2012, p. 728) identifica a raça como construção social “estrutural e
estruturante na formação da América Latina, de maneira geral, e do Brasil, em
particular, a partir dos processos de dominação colonial (Quijano, 2005)”.

Com o descrédito acima mencionado, raça como termo da linguagem geral deixa
de ser uma suposta descrição da realidade natural, um dado da natureza apenas
constatado pela linguagem da biologia. A ressignificação do termo, assim,
demonstra seu caráter performativo. Há, de início, uma cadeira histórica de
sentidos e isso que lhe confere força, permite-lhe funcionar e ser repetido fora do
contexto “original”. Tal característica também significa, entretanto, que essa cadeia
pode ser quebrada, esse sentido pode ser subvertido e outro pode ocupar o seu
lugar. A performatividade pode ser subversiva e Nilma Lino Gomes mostra isso
ao identificar o movimento negro como “ator político que ressignifica e politiza a
raça de forma emancipatória”, em um processo de ressignificação e politização
emancipatória da raça” (2012, p. 728). Por consequência, se a performatividade do
termo serve a permitir que ele seja reapropriado pelo movimento e ressignificado,
a performatividade do termo jurídico nos autorizaria o mesmo.

Os conceitos, termos ou atos de fala performativos e os sentidos que ganham na


formação dessa cadeia fazem deles conceitos relacionais e históricos, e essa
característica, lembra Silvio Almeida, está presente nos termos raça (2021, p. 24) e
racismo. Quando falamos de raça como uma construção social e do conceito de
raça como tal é, em parte, dessa dimensão que estamos falando ou, ao menos, ao
pensarmos na linguagem sobre raça, é disso que se trata. Afinal, “o critério racial
como unidade de análise não é definido por um conceito biológico ou genético”
como nos apresentam Caroline Lyrio Silva e Thula Pires, “mas como categoria
socialmente construída através da atribuição de determinadas características aos
grupos minoritários – indicativas de subalternidade e inferioridade – em
contraposição ao padrão definido como dominante” (2015, p. 66). Não é, contudo,
de qualquer ou toda forma de inferiorização ou subordinação que se fala ao
seguirmos essa genealogia dos conceitos. Como mencionam as autoras, há um

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Raça e racismo como conceitos jurídicos de resistência 703

elemento central no sentido que estes termos guardam que é “a denúncia do


sistema de supremacia branca (white-over-color ascendancy) ou sistema de
convergência de interesses ou determinismo material”. Tal sistema “faz com que
o racismo, de um lado, implique na subalternização e destituição material e
simbólica dos bens sociais que geram respeito e estima social aos negros – ciclo de
desvantagens –, de outro, coloque os brancos imersos em um sistema de
privilégios assumido como natural.” (Silva, Pires, 2015, p. 66)

A década de 70 é o momento em que a quebra dos sentidos sobre raça e racismo


ganha contornos a partir da atuação do movimento negro. Nesse momento,
“iniciam-se os estudos sobre as desigualdades raciais a partir das quais redefinem-
se os conceitos de raça e racismo e o peso que essas variáveis têm na estratificação
social”. Não mais um termo que descreve uma natureza, ela passa a ser uma
definição utilizada para identificar um conjunto de práticas sociais, “um conceito
que denota tão-somente uma forma de classificação social, baseada numa atitude
negativa frente a certos grupos sociais, e informada por uma noção específica de
natureza, como algo endodeterminado” (Guimarães, 2009, p.)

Com o abandono das teorias raciais, raça passa a ser também uma politização
afirmativa, ou seja, que identifica não apenas esse processo negativo de
classificação acima descrito por Guimaraes, mas também um termo “entendendo-
a como potência de emancipação e não como uma regulação conservadora;
explicita como ela opera na construção de identidades étnico-raciais”, sentido que
trará a dimensão da raça como orgulho para a população negra, como “trunfo e
não como empecilho para a construção de uma sociedade mais democrática, onde
todos, reconhecidos na sua diferença, sejam tratados igualmente como sujeitos de
direitos” (Gomes, 2012, p. 731), como instrumento para resistência do movimento
e como “rejeição da existência de raças superiores e inferiores”, como parte da
“reivindicação de identidade (Firmino, 2016, p. 40-41).

Ciro de Souza Brito, Emília Joana Viana de Oliveira, Inara Flora Cipriano Firmino
e Rodrigo Portela Gomes mencionam que os anos 80 observam um movimento de
“formulação acadêmica no campo de Direito e Relações Raciais desenvolvido no
Brasil”. Tal movimento é por eles compreendido como “resultado de um processo
transatlântico de articulações políticas, culturais e sociais, na segunda metade do
século XX, contra o estatuto racial do mundo moderno-colonial”. Nesse processo,
“se constituiu não só uma nova semântica para a igualdade, mas desestabilização
dos mitos racistas fundadores dos aparatos políticos-jurídicos nestas
comunidades” (2023). Esse movimento de ressignificação vai se ampliando e
ganhando novos espaços e nos anos 90 ela ganha também “outra centralidade na
sociedade brasileira e nas políticas de Estado” e o que foi construído pelo
movimento negro, com sua releitura e ressignificação emancipatória, “extrapola os
fóruns da militância política e o conjunto de pesquisadores interessados no tema”
(Brito, Oliveira, Firmino, Gomes, 2023). Nos anos 2000, vemos a continuidade e a
intensificação desse processo de politização que se expande, com “a criação da
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em 2003” e a

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implementação das ações afirmativas por cotas raciais nas universidades publicas
brasileiras. (Gomes, 2012, p.).

E é nesse movimento que esses significados chegam ao mundo jurídico. Em um


dos primeiros trabalhos produzidos no Direito a discutir Direito e Relações
Raciais, escrito em 1989, a jurista Dora Bertúlio diz que raça é uma “noção
estratificada pela própria sociedade que implica na percepção do “eu” e do
“outro”, além das distinções nacionais ou tribais, (...) dado que precedem da massa
necessariamente variáveis e comprometidas num jogo histórico de contatos e
caldeamentos constantes.” (2019, p. 88).

Adilson Moreira, Philippe Almeida e Wallace Corbo conceituam raça como uma
categoria socialmente construída, ligada “ao conceito de racialização, noção que
designa um processo cultural a partir do qual status sociais diferenciados entre
grupos humanos são criados por meio da atribuição de sentidos a traços
fenotípicos” (2022, p. 112). Os autores, assim, designam a raça como um lugar
social “que as pessoas ocupam dentro das hierarquias sociais criadas por meio de
relações hierárquicas de poder entre grupos sociais”, (Moreira; Almeida; Corbo,
2022, p. 113) como um status, portanto “configurado a partir de imagens sociais
sobre as pessoas. Ela não designa fundamentalmente traços biológicos, mas as
diferenciações de status decorrentes da atribuição de sentidos dados a eles”
(Moreira; Almeida; Corbo, 2022, p. 113).

Conceituam, nessa esteira, racismo como o “sistema de dominação que tem dois
objetivos centrais: a garantia das vantagens competitivas para pessoas brancas e a
caracterização da respeitabilidade social como um traço distintivo delas” sendo,
assim, “um tipo de retorica cultural e uma prática social que objetiva legitimar
relações hierárquicas de poder a partir da utilização da raça como critério de
tratamento diferenciado entre coletividades humanas” (Moreira; Almeida; Corbo,
2022, p. 114).

Unindo os dois termos, Silvio Almeida define o racismo como “uma forma
sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta
por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens
ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam”.
(2019, p. 32)

É também a partir da raça e como “um complexo sistema de opressão” que Chiara
Ramos e Livia Sant’anna Vaz definem o racismo, sistema esse “que impõe a
superioridade de uma raça em detrimento de outras. (...) Em outras palavras,
pode-se afirmar que o racismo se configura a partir da imputação de atributos e
comportamentos deterministas de inferioridade associados a padrões fenotípicos
específicos” (Sant’anna Vaz; Ramos, 2021, p. 174).

A insistência aqui nessa cadeia histórica de sentidos conforme construídos pelo


movimento negro se justifica pelo poder da autodefinição presente na linguagem,
poder que é individual e coletivo e que é “saqueado pelo racismo na tentativa de

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Raça e racismo como conceitos jurídicos de resistência 705

homogeneizar o outro através das lentes coloniais e da branquitude” (Arcanjo,


2023, p, 51). Quem nos lembra disso é Géssica Arcanjo, que, com Patrícia Hill
Collins, reafirma que “autodefinir-se é nomear a própria realidade”, na dimensão
pessoal que “estabelece o reconhecimento de si e a narrativa sobre a própria
história e uma dimensão coletiva na medida que a enunciação possibilita
emancipação, identificação e forja alianças para responder às violências” (2023, p.
52).

Nomear raça e racismo é ferramenta fundamental para a resistência, a insurgência


e o combate às práticas e às formas de dominação e distribuição de poder que a
constituem. Seja uma nomeação para identificação dos elementos negativos ou dos
afirmativos, como visto acima, é possível aqui repetir e afirmar, junto com Sueli
Carneiro, que a raça é “um dos elementos estruturais de sociedades multirraciais
de origem colonial.” (Carneiro, 2023, p. 20-21). Ainda que ela ganhe contornos
diversos, tenha uma significação múltipla ou fluida, “raça não é um termo fixo,
estático. Seu sentido está inevitavelmente atrelado às circunstâncias históricas em
que é utilizado” (Almeida, 2021, p. 24) e, como performativo, possui uma cadeia
histórica própria, um ponto central do que ela significa no contexto brasileiro, que
é esse conjunto de práticas classificatórias que se referem a corpos, origens,
fenótipos como forma de dividir brancos e não-brancos e manter os privilégios
daquele primeiro grupo. E que possui tanto uma dimensão política quanto teórica
que, “enquanto instrumento metodológico, pretende compreender as relações
desiguais entre os diferentes grupos humanos mais especificamente as
desigualdades de tratamento e de condições sociais percebidas entre negros e
brancos no Brasil” (Carneiro, 2023, p. 39-40). e, enquanto prática discursiva, seus
estudos “visam a modificação das relações sociais que produzem as
discriminações e assimetrias raciais” (Carneiro, 2023, p. 40).

Com essa alteração promovida pelo movimento, “tal conceito tem uma realidade
social plena, e o combate ao comportamento social que ele enseja é impossível de
ser travado sem que se lhe reconheça a realidade social que só o ato de nomear
permite” (Guimarães, 2009, p. 11) e são esses significados autonomeados que
devem compor os sentidos jurídicos dos institutos, a fim de que não sejam
reproduzidos colonialismos jurídicos, como nos alerta Gabriela Barreto de Sá
(2020, p. 32). A História do Direito, diz a autora, é marcada pelo racismo estrutural
e é ela mesma “uma narrativa marcada pela justificativa ou naturalização do
epistemicídio (Carneiro, 2005) acerca da análise sociojurídica” (Sá, 2020, p. 33-34).
Refazer a história de um conceito jurídico, assim, precisa ser mais do que o que se
convencionou na dogmática jurídica, uma vez que esse processo é também um
processo de resgate de memória e “o direito à memória se configura como uma
construção teórica contra o epistemicídio que marca a construção do conhecimento
jurídico e nega enquanto fontes legítimas as escrevivências das populações
negras” (Sá, 2020, p. 51).

O que o movimento negro fez e faz é inverter o olhar de fora da colonialidade.


Raça é construída na colonialidade como aquela atribuição de sentido vinda de

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fora, como uma linguagem produzida pelo um (branco) sobre o outro (não-
branco). Mas essa atribuição não é sinônimo de toda forma de preconceito ou
discriminação, ao menos não nessa cadeia de significados que aqui vimos. Visto o
racismo como utilização da gramática social da raça para atribuir sentido negativo
e desumanizar o outro, a raça ganha um duplo sentido específico quando o
movimento negro dela se apropria: de um lado, um termo que identifica a
atribuição social de sentidos a sujeitos a partir de dados elementos fenotípicos e,
de outro, a de linguagem de autoidentidade, a de linguagem de resistência. Contra
o racismo construído e produzido nas bases da cadeia histórica de significados da
colonialidade, afirma-se a raça como conceito de resistência.

A linguagem importa. Ela nos produz como sujeitos e nos produzimos nela, assim
como, obviamente, produzimos linguagem. Como Toni Morrison, “nós
produzimos linguagem e essa é a medida de nossas vidas” (1993). Como ativistas,
acadêmicas, teóricas e profissionais do Direito comprometidos com os direitos de
populações vulneráveis, precisamos ter cuidado ainda maior nesse uso, atentando
para o fato de que os sentidos do Direito são construídos como luta, em luta e como
resultado da luta histórica dos grupos precarizados, contra a hegemonia colonial
capitalista patriarcal e racista.

É necessário colocar “o critério raça como informador das reflexões sobre o direito,
não apenas no seu ordenamento normativo, mas também institucional, histórico,
político e estrutural” para permitir que sejam evidenciados “aspectos
negligenciados e obscurecidos pela ‘convergência de interesses’ que o modelo de
supremacia branca fomenta” (Silva; Pires, 2015, p. 74).

É necessário compromisso ético nos usos da linguagem jurídica.

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Sobre a autora
Camilla Magalhães Gomes
Doutora em Direito, Estado e Constituição (UnB). Professora Adjunta de
Direito Penal e Criminologia da Faculdade Nacional de Direito -
Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Co-líder do
Corpografias - Grupo de Pesquisa e Extensão em Gênero, Raça e Direito.

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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50956

temas geradores

Educação jurídica antirracista


Educación jurídica antirracista

Anti-racist legal education

Philippe Oliveira de Almeida1


1
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
2097-6823.

Submetido em 27/09/2023
Aceito em 04/11/2023

Como citar este trabalho


ALMEIDA, Philippe Oliveira de. Educação jurídica antirracista. InSURgência: revista de
direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 709-720, jan./jun. 2024.

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ISSN 2447-6684

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710 Philippe Oliveira de Almeida

Educação jurídica antirracista

Desde a produção do seminal Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao


racismo – dissertação defendida por Dora Bertúlio em 1989 –, muito se tem debatido
acerca do papel desempenhado pelo sistema jurídico brasileiro na perpetuação da
“supremacia branca” e do “genocídio negro”. Bertúlio mostra que, por trás de uma
arquitetura normativa “neutra” e “indiferente à cor” (materialização do “mito da
democracia racial”), as instituições jurídico-políticas pátrias escondem um
compromisso congênito com o racismo. Uma abolição inconclusa fez com que
afrodescendentes permanecessem, ao longo das décadas, privados de direitos
fundamentais e alijados do debate público. A retórica liberal e a lógica
meritocrática – “ideias fora do lugar”, para fazermos remissão ao ensaio clássico
de Roberto Schwarz – apenas escamoteiam uma ordem social injusta e segregada,
ainda fortemente marcada pela herança escravocrata. Nessa conjuntura, qual a
função desempenhada pelas escolas de Direito (instituições que começaram a se
sedimentar no país durante a escravidão)? Nesses espaços – que, como revela Lilia
Schwarcz (1993), abraçaram com entusiasmo teorias eugenistas – o fantasma de
Lombroso já foi devidamente exorcizado? Ou os juristas continuam buscando, em
suas doutrinas, conferir um verniz de racionalidade e objetividade a práticas que
reforçam a opressão de grupos raciais subalternizados? O objetivo deste verbete é,
a um só tempo, apresentar um diagnóstico acerca do papel do ensino jurídico
vigente na manutenção do racismo estrutural e uma terapêutica voltada à
construção de estratégias antirracistas nas faculdades de Direito.

Nos últimos anos, diversos intelectuais têm escrito acerca da persistência de


práticas racistas em espaços associados à atividade jurisdicional, como escritórios
de advocacia, delegacias, fóruns e tribunais (Moreira, 2019). Como variegadas
pesquisas sugerem, a cultura jurídica reproduz, em sua configuração, as
assimetrias de poder – mormente baseadas em raça, gênero e classe – que
estruturam a sociedade contemporânea (Almeida, 2010). As chamadas “minorias
sociais” não encontram medidas satisfatórias para enfrentar a discriminação,
dentro de uma ordem legal feita e aplicada por indivíduos pertencentes aos grupos
hegemônicos (Dimoulis, 2021). Esse fenômeno condiciona e é condicionado pelas
faculdades de Direito, que, no Brasil – e em outras nações do Ocidente, como os
EUA –, têm desempenhado papel cardeal na formação de elites incumbidas de
zelar pela manutenção da ordem socioeconômica vigente (Kennedy, 1998). Daí
que, como sugerem figuras tão diversas quanto Alberto Venancio Filho (2004) e
Sérgio Adorno (1988), o bacharelismo constitua-se na ideologia subjacente ao ensino
jurídico pátrio, incutindo, nos futuros operadores do Direito, uma confiança

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Educação jurídica antirracista 711

acrítica na arquitetura institucional estabelecida. Vale dizer que, nos últimos anos,
na esteira de Venancio Filho e Adorno, vários acadêmicos têm se inserido no
debate acerca da crise do ensino jurídico, tomando por ponto de partida a
interdependência entre a dogmática jurídica e o modo de produção capitalista
(Carvalho, 2023). Os tecnicismos que dominam as salas de aula das faculdades de
Direito – denunciados por Giordano Bruno Soares Roberto (2016) – encobrem os
grandes dilemas ideológicos que perpassam a atividade jurisdicional, fomentando,
nos estudantes, a crença de que não compete ao operador do direito indagar acerca
das implicações político-sociais das normas que aplica. É por isso que, nas classes
de Direitos Reais, debatemos “aquisição por aluvião” mas, não, “direito real de
laje”; falamos sobre compliance mas, não, sobre o shopping-chão e o estatuto
jurídico do camelô. Gradualmente, o espírito do estudante cinde-se: da porta da
sala de aula para fora, é um cidadão, afligido pelas tensões que atravessam a
comunidade em que vive; da porta da sala de aula para dentro, é um jurista,
comprometido única e exclusivamente em destrinchar as relações de imputação
que sedimentam a pirâmide normativa, fazendo dela um edifício lógico “perfeito”.

Num país pós-escravista e de capitalismo dependente, a raça segue sendo um


elemento crucial no reparto de poder e recursos – impactando, por conseguinte,
no modo como o Direito é ensinado e praticado. Para além do discurso “objetivo”,
“neutro” e “impessoal” encampado pelos juristas – a “cegueira da cor”, para
valermo-nos de conceito cunhado pela Teoria Crítica da Raça (Critical Race Theory)
– (Gotanda, 1991), a dogmática jurídica hegemônica contribui para a manutenção
do racismo estrutural, encobrindo e segregando a voz de comunidades não-
brancas, em especial, negras e ameríndias (Almeida, 2017). O encarceramento em
massa, que afeta, em especial, populações afrodescendentes em regiões periféricas,
é sintoma de um ensino jurídico comprometido com a colonialidade e com a
salvaguarda da supremacia branca, e que produz advogados, promotores e juízes
“indiferentes” às dinâmicas de hierarquização racial que atravessam nossa cultura
(Alexander, 2020; Borges, 2020).

São comuns – em especial, após a implementação das políticas de ação afirmativa,


que ampliaram a diversidade étnico-racial no ensino superior – os relatos de
estudantes negros que não se sentem representados nos debates travados nas salas
de aula das faculdades de Direito, fator que pode gerar frustração e revolta. A
propósito, são emblemáticas as considerações tecidas por Maria Angélica Santos,
em exercício de rememoração de suas vivências como aluna (Santos, 2023) Embora
a proporção de alunos pretos e pardos tenha se ampliado consideravelmente nos
últimos anos, não houve um esforço, da parte das instituições de ensino jurídico,
para adaptar os planos político-pedagógicos de seus cursos de sorte a inserir temas

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e problemas concernentes às vivências de pessoas não-brancas. Assiste-se, dessa


maneira, a uma dissonância entre as expectativas dos discentes negros – por vezes,
advindos de conjunturas marcadas pelo preconceito e pela violência – e as
propostas do corpo docente, composto, majoritariamente, por homens brancos
heterossexuais de classe média alta (Almeida; Franzoni, 2022). Questões relativas
à ‘guetificação’, à ‘seletividade penal’ e ao ‘genocídio negro’ – que dão o tom da
relação entre o Estado brasileiro e a população afrodiaspórica – têm sido
sistematicamente levantadas por estudantes, e descartadas (como incidentais, de
somenos importância) por professores sem letramento racial. A Ciência do Direito
– à semelhança de outros saberes acadêmicos, vale destacar – generaliza
experiências particulares de indivíduos brancos, transformando-as em referenciais
paradigmáticos, o que invisibiliza e invalida as trajetórias e os conhecimentos de
grupos não-brancos (Silva; Pires, 2015). Numa sociedade racista, o olhar do branco
é tido por universal (os mecanismos que o condicionam seguem ocultos), enquanto
que as perspectivas de grupos raciais subalternizados são exotificadas,
interpretadas como idiossincrasias e nuances (HARRIS, 1990). Ainda não fomos
capazes de reformar, substancialmente, as faculdades de Direito, de modo a
garantir que os subalternos falem, que saberes advindos de comunidades negras
(reiteradamente deslegitimados, em virtude do racismo epistêmico) interpelem a
dogmática jurídica.

O “racismo epistêmico” e a “colonialidade do saber” são traços característicos da


educação jurídica em vigor. A contribuição de comunidades negras para a
formação do Direito contemporâneo é sistematicamente ocultada, no seio de uma
narrativa eurocêntrica e branconormativa. Dois exemplos podem ilustrar essa
observação.

O primeiro exemplo advém do trabalho de Marcos Queiroz. A discussão a


propósito do desenvolvimento de nossa cultura constitucional centra-se,
fundamentalmente, na Revolução Americana e na Revolução Francesa, tomando a
Constituição dos Estados Unidos (de 1787) e a Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão (de 1789) como os documentos basilares do Estado de Direito. Ora,
a Revolução Haitiana foi a primeira a reivindicar o reconhecimento de garantias e
liberdades fundamentais a populações não-brancas, pleiteando um “humanismo
à medida do mundo”, e não “à medida da Europa” (para remetermos a categorias
de Aimé Césaire). Fomentou, dentre os senhores de escravos nas Américas, o
“medo branco” de uma “onda negra”, pautando diversos debates políticos ao
longo do século XIX. A sombra da Revolução Haitiana paira sobre a Constituição
de 1824 (que impõe diversos freios ao liberalismo então em voga, de sorte a
garantir que apenas homens brancos proprietários tenham acesso aos espaços

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Educação jurídica antirracista 713

decisórios) e sobre o Código Criminal de 1830 (que contém diversos instrumentos


destinados ao controle disciplinar de corpos negros). Todavia, os ecos do Haiti no
constitucionalismo atlântico permanecem silenciados (Queiroz, 2022).

O segundo exemplo deriva das pesquisas de Rodrigo Portela Gomes. Desde as


investigações de Beatriz Nascimento em meados dos anos 1970, a historiografia
tem que se esforçado para reafirmar a importância das comunidades quilombolas
na pavimentação de um projeto político afrodiaspórico. Longe de serem
excrescências na paisagem da América Portuguesa (e, posteriormente, do Brasil
independente), quilombos representaram importantes espaços de agenciamento,
no qual negros se mobilizaram contra os “dispositivos de racialidade” e criaram
formas próprias de socialização. Ainda hoje, a luta dos povos quilombolas segue
redefinindo a topografia do Direito vigente, com reivindicações em prol da
população negra que deslocam relações de poder instituídas. Porém, são raras as
escolas de Direito que se dedicam a discutir a importância das práticas de
aquilombamento para a afirmação histórica dos direitos humanos –
frequentemente apresentados como “concessões” e “benesses” das elites ilustradas
ao povo (Gomes, 2019).

Muitos acadêmicos – é o caso, por exemplo, de Adilson Moreira (2020) – tem


debatido a necessidade de racializarmos as abordagens adotadas pelo ensino
jurídico, partindo de “epistemologias situadas” (“epistemologias coloridas”, na
expressão de Thula Pires). Os processos de ensino-aprendizagem tradicionais
partem do pressuposto de que a “produção” e a “transmissão” de conhecimento
devem “colocar entre parênteses” as experiências prévias de educadores e
educandos. Em sala de aula, já não somos mais Fulano ou Cicrana, mas sujeitos
transcendentais, desistoricizados e desterritorializados, flutuando em um céu
platônico. Ora, essa visão, assentada em um modelo “bancário” de educação (para
valermo-nos da gramática de Paulo Freire), apenas reforça o caráter alienante das
instituições pedagógicas hodiernas, que deliberadamente trabalham para se
descolar da vida cotidiana das comunidades nas quais estão inseridas. Uma
educação comprometida com o pensamento crítico deve, antes de mais nada,
recordar-nos da corporeidade de professores e alunos, dos sinais e das cicatrizes que
demarcam o lugar que eles ocupam nas dinâmicas sociais que se impõe para além
dos muros da escola (hooks, 2017). De onde professores e alunos estão falando?
Que vivências condicionam os olhares que eles lançam sobre o real? Como Rubem
Alves, argutamente, observa: “O sujeito da educação é o corpo, porque é nele que
está a vida. É o corpo que quer aprender para poder viver. [...] A inteligência é um
instrumento do corpo cuja função é ajudá-lo a viver” (Alves, 2002, p. 32). Nesse
sentido, a reflexão sobre marcadores sociais – como raça e gênero – é essencial,

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714 Philippe Oliveira de Almeida

para que compreendamos as trajetórias de docentes e discentes, e a função que uns


e outros podem desempenhar em classe.

É preciso descolonizar e aquilombar as faculdades de Direito, tornando-as mais


propícias a uma reflexão multicultural e multiétnica. Mas quais estratégias
didático-pedagógicas poderiam ser empregadas, com o fito de fomentar o
letramento racial crítico? Tomando como inspiração considerações apresentadas
na obra Manual de educação jurídica antirracista, poderíamos sugerir cinco
“movimentos”, concomitantes, que se revelam indispensáveis para que as
faculdades de Direito avancem no processo de racialização.

Em primeiro lugar, é de suma importância que as grades curriculares comportem


disciplinas dedicadas a tratar de Direito e Relações Raciais. Há diversas orientações,
do Ministério da Educação, voltadas a estimular a inserção de conteúdos relativos
à cultura africana e afrodiaspórica no ensino infantil, fundamental, médio e
superior – é o caso, por exemplo, da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e da
Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, longamente analisadas pelo filósofo Renato
Noguera em ensaio já clássico (Noguera, 2014). A implementação dessas medidas,
todavia, tem se dado a passos lentos. É fundamental que, sob a égide de uma
constituição que tem por norte a defesa dos direitos humanos e da democracia, a
tutela de grupos vulneráveis seja o eixo do ensino jurídico – e, nessa esteira, o
enfrentamento do racismo e o empoderamento de comunidades não-brancas
precisa ganhar destaque. Todos os cursos superiores – em especial, no campo das
Humanidades – precisam institucionalizar espaços nos quais a reflexão sobre a
negritude, e sobre os saberes subalternizados da população afrobrasileira, seja
valorizada. Intelectuais como Nei Lopes – egresso da Faculdade Nacional de
Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro – têm procurado revitalizar
filosofias africanas, como uma alternativa à prevalência de cosmovisões europeias
no nosso imaginário (Lopes, 2020). É de crucial importância que as faculdades de
Direito curricularizem essas temáticas, mostrando como um olhar
afroperspectivado pode oxigenar a maneira como enfrentamos discussões caras ao
universo jurídico (Santos, 2020).

Em segundo lugar, é essencial que racializemos as disciplinas já curricularizadas. Se o


racismo é estrutural – ou seja, é “central, permanente e normal”, no Ocidente
contemporâneo, como propõe o jurista estadunidense Derrick Bell (1995) –, então,
podemos captar ecos da discriminação racial em todos os campos do ordenamento
jurídico. A “linha da cor” – que separa pessoas brancas e não-brancas – determina
os papeis sociais que os indivíduos podem desempenhar, e impacta no exercício
de direitos e no acesso a bens. O capitalismo moderno, que começa a germinar a
partir da expansão marítima europeia, nasce racializado (e generificado), valendo-

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Educação jurídica antirracista 715

se de características fenotípicas para definir o valor que corpos distintos terão


dentro das estruturas produtivas. O Estado soberano, que desponta como uma
ferramenta destinada a proteger essa nova ordem, também mostra-se racializado
e generificado (Almeida, 2022). Assim, mesmo em territórios nos quais não há
legislação que explicitamente referende políticas de apartheid, o Direito ocidental
segue indissociavelmente ligado ao racismo. Os impostos recaem
proporcionalmente sobre brancos e negros? As configurações familiares
construídas por povos de terreiro encontram o mesmo amparo legal que as
modeladas nos marcos das religiões cristãs? Negros e brancos têm paridade de
armas, no curso de litígios judiciais? Essas são perguntas que deveriam pautar as
discussões de tributaristas, civilistas e processualistas. A necropolítica e a
militarização do cotidiano, lógicas que se imiscuem em todas as esferas do “Direito
oficial”, em territórios do Sul Global, precisam ser detidamente estudadas,
quaisquer que sejam os interesses do jurista – pois elas enformam os mais diversos
ramos do conhecimento jurídico, definindo o modo como populações não-brancas
(os “corpos matáveis”, os “condenados da terra”, o “exército industrial de
reserva”) serão “inseridas” na divisão internacional do trabalho e em uma ordem
geopolítica global que as toma por descartáveis. O “genocídio negro” não é obra
apenas do policial militar que atua em operações no Jacarezinho ou na Maré – é a
lógica subjacente à atividade do promotor, no Ministério Público do Trabalho, que
ignora a disparidade salarial entre brancos e negros num mesmo campo de
atuação, ou do juiz, numa Vara da Infância e da Adolescência, que priva uma
criança preta do contato com sua mãe pelo fato de ela aderir ao candomblé
(Nascimento, 1978). Por essa razão, os planos de ensino de todas as disciplinas
dogmáticas deveriam comportar tópicos sobre temas ligados ao racismo.

Em terceiro lugar, precisamos alterar os métodos de ensino-aprendizagem


utilizados em classe. Não há educação revolucionária sem metodologia revolucionária:
como a pensadora afroamericana bell hooks (2020) salienta, o ensino bancário,
verticalizado e centrado no professor, constitui-se num obstáculo para que
estudantes oriundos de segmentos marginalizados manifestem suas posições. A
diversidade de gênero, sexual, étnica e religiosa só eclodirá, de fato, em sala, se
abordagens participativas forem promovidas, de maneira a garantir a construção
de espaços dialógicos. Nas escolas de Direito, a hegemonia da aula expositiva está
intrinsecamente ligada ao bacharelismo, à redução do ensino jurídico a um
“treinamento para a hierarquia”. Uma educação jurídica comprometida com a
justiça racial (e com a transformação social, de forma ampla) deve cerzir técnicas
que estimulem a interlocução entre discentes com backgrounds diferentes (Almeida,
2018; Pihlajamaki, 2014). A sala de aula deve ser um terreno hospitaleiro, no qual
estudantes negros (por vezes sujeitos, no espaço público, a violências físicas e

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simbólicas) sintam-se à vontade para traduzir suas opiniões e questionamentos. O


processo educativo pressupõe afeto, o estabelecimento de laços de confiança e
solidariedade – o que só se mostra viável quando colocamos de lado o modelo da
lecture, da aula-palestra, cronicamente hostil. Como pontifica Angela Harris:
“ensinar, à semelhança de outras interações humanas, é apenas parcialmente
articulável em linguagem”1. A gramática subterrânea dos afetos – esse currículo
não-oficial que pauta a sala de aula – se fortalece por meio de metodologias que
estimulam o acolhimento de vozes dissonantes.

Em quarto lugar, é imprescindível que as faculdades de Direito repensem seus


quadros docentes e técnico-administrativos, de modo a expandir a presença de
corpos não-brancos em suas equipes. Como estimular o comprometimento dos
estudantes com a diversidade, se os funcionários da instituição não são
diversificados? Pesquisas recentes indicam que menos de 25% dos professores
universitários brasileiros se declaram negros (Almeida; Rocha, 2021; Santos,
2021). Nas faculdades de Direito, a proporção revela-se ainda menor (há
instituições renomadas, no país, que não tem nenhum professor preto em seus
quadros). Quantos docentes negros o aluno verá, ao longo do curso? Quantos
autores negros serão lidos, no correr da disciplina? É preciso que sejam instituídas,
no âmbito das universidades, metas para a ampliação do número de professores
negros, que direcionem a utilização da reserva de vagas em seleções. Estudantes
não-brancos precisam se reconhecer no quadro de funcionários das instituições nas
quais estudam (essa estratégia é essencial para que a hospitalidade, de que falamos
no parágrafo anterior, efetivamente se instaure).
Por fim, precisamos, em quinto lugar, assegurar que as instâncias de deliberação,
no âmbito das faculdades de Direito, sejam horizontalizadas, permitindo que
alunos, professores e técnico-administrativos não-brancos tenham voz e voto,
podendo pautar seus dilemas. Numa universidade, não só as salas de aula, mas
também os corredores revelam-se espaços de aprendizagem – a mobilização
política, para a reforma do desenho institucional de nossas escolas, é, per se, um
processo pedagógico. Com frequência, episódios de racismo no interior das
instituições de ensino jurídico são ignorados e minimizados, pois os espaços
decisórios, hegemonizados por pessoas brancas, não tem letramento racial que os
permita identificar tais violências como violências. A criação de ouvidorias

1 Tradução nossa para: “Teaching, like any other human interaction, is only partly articulable in
language” (Harris, 2010, p. 739).

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especializadas em questões raciais, núcleos de estudos afrobrasileiros e indígenas,


coordenadorias de relações raciais etc. é etapa crucial, para que racializemos o
ensino jurídico.

Esses cinco movimentos são basilares, para que tenhamos uma educação jurídica
genuinamente comprometida com a justiça racial. E é possível, a partir deles,
mensurar o quanto nossas instituições de ensino se encontram, hoje, engajadas no
combate ao racismo estrutural. A partir dessas cinco facetas, podemos mapear os
avanços e os recuos das faculdades de Direito, avaliando: 1) a existência de
disciplinas específicas voltadas a relações étnico-raciais; 2) a presença, nos syllabi
das demais disciplinas, de pontos específicos sobre raça e racismo; 3) a utilização
de metodologias de ensino-aprendizagem dialógicas; 4) o quantitativo de
professores pretos e pardos no corpo docente; e 5) a implementação, nas esferas de
deliberação e de administração, de espaços voltados à discussão de questões
raciais. A superação da crise do ensino jurídico passa por esforço dessa natureza:
é imprescindível que ultrapassemos o fosso entre a comunidade e as escolas de
Direito, possibilitando que as aflições que pautam o dia-a-dia dos estudantes
(como as tensões de natureza racial que atravessam nossa sociedade pós-
escravista) sejam vocalizadas e debatidas em classe. Uma proposta de educação
jurídica antirracista implica numa transformação radical das escolas de Direito, em
todas as suas esferas. A sala de aula, nas faculdades de Direito, deve ser um
laboratório no qual diferentes perspectivas de futuro – diferentes expectativas
quanto ao destino da sociedade – sejam experimentadas e testadas. E no qual
diferentes projetos de justiça (social e racial) sejam explorados.

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720 Philippe Oliveira de Almeida

Sobre o autor
Philippe Oliveira de Almeida
Professor adjunto de Filosofia do Direito na Faculdade Nacional de
Direito – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em
Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com estágio
pós-doutoral na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na
UFMG. Mestre em Direito pela UFMG. Bacharel em Direito pela UFMG e
em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE).

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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52078

temas geradores

Hermenêutica Senhorial
Hermenéutica Señorial

Seigneurial Hermeneutics

Marcos Queiroz1
1
Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, Brasília, Distrito
Federal, Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-
0003-3644-7595.

Submetido em 29/12/2023
Aceito em 03/01/2024

Como citar este trabalho


QUEIROZ, Marcos. Hermenêutica Senhorial. Insurgência: revista de direitos e
movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 721-735, jan./jun. 2024.

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ISSN 2447-6684

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722 Marcos Queiroz

Hermenêutica senhorial

Estamos entre 1840 e 1850. Brás Cubas encontra-se com seu cunhado, Cotrim, para
tratar de assuntos de família. Melhor, “negócio de parentes”. Ele irá se casar com
Nhã-loló, sobrinha do próprio Cotrim. Ao contar das suas intenções, Brás recebe
do cunhado palavras evasivas: “lavo inteiramente as mãos”. Para afastar do leitor
qualquer acusação de excesso de escrúpulos do seu interlocutor, o “defunto autor”
traça um perfil de Cotrim com o intento de demonstrar o seu “caráter ferozmente
honrado”. O cunhado era acusado de avaro, seco e bárbaro pelos seus inimigos,
no entanto, para todo defeito haveria escusa. Os adjetivos negativos eram, na
verdade, qualidade de caráter ou motivo de elogio. De acordo com as lições de
Aristóteles, a mesquinhez seria apenas a “exageração de uma virtude, e as virtudes
devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o déficit”. Cotrim seria bom
pai de família e era tesoureiro de uma confraria, irmão de várias irmandades,
sendo até́ remido de uma dessas, “o que não se coaduna muito com a reputação
da avareza”. Era um encorajador de atitudes filantrópicas, a “mandar para jornais
a notícia de um outro benefício que praticava”. Se requeria algumas atenções,
Cotrim “não devia um real a ninguém”.

Sobre a pecha de bárbaro, não havia prova alguma, exceto a de “mandar com
frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue”. Porém,
isso não era verdadeiramente um defeito, mas sim atributo daqueles que se
prestavam à relevante atividade econômica. “Ocorre que, tendo longamente
contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais
duro que esse gênero de negócio requeria”. Acusar Cotrim de violento era inverter
os fatos, pois chibatadas, grilhões e pelourinhos eram utilizados somente na
medida das necessidades. “Não se pode atribuir à índole original de um homem o
que é por efeito de relações sociais”. Prova disso era que ele só́ mandava torturar
os “perversos e os fujões”. Um mestre na aplicação do princípio da
proporcionalidade.

“Reconheço que era um modelo”, veredito de Brás (Assis, 1992, p. 165-166).

Segundo o livro, Brás Cubas nasceu em 1805, ano de publicação da primeira


constituição haitiana pós-independência. Se a nação caribenha inaugurou a Era das
Abolições, o Brasil rumou no sentido oposto. Quando Brás encontra Cotrim, o país
vivia o apogeu do complexo escravocrata, abastecido por um volumoso comércio
negreiro no Atlântico Sul. A despeito de tratados internacionais, aprovados em
1818 e 1826, e da Lei Feijó de 1831, que proibiam o tráfico de seres humanos para
o Brasil, mais de 760 mil africanos e a totalidade de seus descendentes foram

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Hermenêutica Senhorial 723

ilegalmente escravizados neste processo. Entre 1836 e 1850, o volume do


contrabando negreiro atingiu a maior média da história desde o século XVI: 3 a
cada 4 novos africanos escravizados no Atlântico tinham como destino terras
brasileiras, totalizando 570.000 pessoas contrabandeadas. O Brasil engoliu um
Haiti inteiro em menos de 15 anos, fazendo com que, entre 1500 e 1850, a cada 100
pessoas desembarcadas no país, 86 viessem da África nos porões dos tumbeiros e
14 de Portugal (Parron, 2011; Alencastro, 2018).

Para levar a cabo essa missão, grandes proprietários, negociantes de grosso trato,
fornecedores das redes de abastecimento e negreiros articulam-se na construção e
direção do Estado brasileiro, operando a institucionalidade e o direito na defesa
dos seus objetivos. Reflexivamente, articulavam-se enquanto classe na montagem
do Estado e, neste processo, valiam-se do Estado para forjar a própria classe. Ao
instrumentalizarem os aparelhos estatais, puderam universalizar os valores
senhoriais e a cultura negreira pelo tecido social brasileiro, fazendo dos seus
interesses específicos os interesses nacionais. Assim, entre 1831 e 1869, estrutura e
superestrutura envergaram sob o domínio da Casa-Grande, num período
conhecido como tempo saquarema, em que a hegemonia senhorial estabeleceu um
consenso sobre a escravidão (Mattos, 1987). Tendo o Vale do Paraíba expandido
como base social (Parron; Youssef; Estefanes, 2014), essa hegemonia tinha como
principal instrumento de classe o Partido Conservador, também chamado de
Partido da Ordem, Partido da Constituição e Partido Negreiro, alcunhas que
simbolizavam o Programa Político do Regresso: repressão contra as revoltas
populares, escravas e liberalizantes e submissão das forças políticas às instituições
do Império (Coroa, Parlamento e Conselho de Estado), tornando-as
representativas das distintas frações da classe dominante; defesa do marco
centralizador, monárquico e autoritário do texto constitucional de 1824; e
blindagem absoluta da escravidão diante das contestações internas e estrangeiras
(Parron, 2011; Chalhoub, 2012; Salles, 2013; Mamigonian, 2017).

Do ponto de vista da relação entre Estado, direito e escravidão, a hegemonia


saquarema estabeleceu diretrizes na interpretação dos conceitos de propriedade,
liberdade, igualdade, legalidade e cidadania. O princípio fundamental era a
inviolabilidade da vontade senhorial, assentada no conteúdo absoluto do direito
de propriedade. Ancorada no art. 179, XXII da Constituição do Império1, essa
concepção colocava a propriedade privada acima das leis e de qualquer regulação

1 Art. 179, XXII. É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público
legalmente verificado exigir o uso e emprego da Propriedade do Cidadão, será ele previamente
indenizado do valor dela. A Lei marcará os casos em que terá lugar esta única exceção e dará as
regras para se determinar a indenização.

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724 Marcos Queiroz

pública. Na medida em que a principal forma de propriedade privada era a


propriedade escrava, isso significava que a escravidão não poderia ser
constrangida pelo princípio da legalidade. Consequentemente, os senhores tinham
plenitude para dispor como bem querer sobre a vida, a subjetividade, o trabalho e
o corpo das pessoas negras; e, ao mesmo tempo, a transição da escravidão para a
liberdade não deveria ser alvo de legislação. A soberania era exercida da soleira da
Casa-Grande, em que o poder de mando enlaçava o controle do trabalho na
plantation à extensão do horizonte da cidadania.

Preenchendo o cotidiano das diversas paisagens do Império, a generalizada


desumanização dos corpos negros era aquilo que tornava o direito de propriedade
um direito autoevidente, fundamental e humano, anterior e acima das leis
positivadas. Ao mesmo tempo em que o racismo fazia do negro o combustível da
economia nacional, sol a se consumir sobre as plantações, mineral a gerar a energia
modernizadora do progresso, ele também sedimentava materialmente as bases
teológicas da propriedade liberal.

Esse fundamentalismo da propriedade privada levava à defesa ostensiva do


contrabando negreiro e da escravidão até onde fosse possível. Com isso, o
cotidiano da burocracia do Império foi tracionado a garantir a posse ilegal dos
africanos escravizados. Seja nas instituições de cúpula, como Ministérios,
Conselho de Estado e Parlamento, seja na atuação cotidiana de policiais, juízes e
agentes alfandegários, por meio de decisões, despachos, pareceres, informativos e
representações, a proteção da propriedade escrava ilegal refreou a aplicação da lei
e, simultaneamente, inverteu a presunção da liberdade das pessoas negras. Isto é:
de acordo com a raça, presumia-se escravo ou livre e, consequentemente, também
de acordo com a raça, determinavam-se as fronteiras da cidadania e da
propriedade. Com isso, a ideia de cidadão era vinculada aos sentidos de
branquidade e proprietário (de outras pessoas).

Essa cisão racial das noções de cidadania e, consequentemente, de humano era


complementada por dispositivos penais. Promulgado em 1830 com a intenção de
trazer as “luzes” para o sistema penal brasileiro, dando conteúdo ao art. 179, XIX
da Constituição de 1824, que abolia “os açoites, a tortura, a marca de ferro quente
e todas as demais penas cruéis”, o Código Criminal do Império permitia a
continuidade da violência corporal contra os escravizados no contexto da ordem
jurídica liberal. No seu art. 60, estabelecia que “se o réu for escravo, e incorrer em
pena, que não seja a capital ou de galés, será condenado na de açoites, e depois de
os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro, pelo
tempo, e maneira que o Juiz designar”. Na medida em que a pena privativa de
liberdade representava um prejuízo para os senhores ao impedir o trabalho do

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Hermenêutica Senhorial 725

escravizado, a positivação da tortura calibrava os fins da pena, conciliando


liberalismo jurídico e escravidão, que jamais foram per si contraditórios. Além
disso, a liberdade negra era alvo de leis nacionais e provinciais de segurança
(Bertúlio, 2019; Brito, 2016), as quais geravam restrições drásticas de direitos civis
aos libertos, a generalização da suspeição, a permissividade dos linchamentos e
uma atmosfera de terror, a exemplo das Lei n. 9/1835, da província da Bahia, que
determinava a prisão e a deportação dos africanos livres, e a Lei n. 4/1835,
aprovada no Parlamento do Império, que regulamentava a pena de morte contra
escravizados rebeldes.

A operacionalização dessas leis, conceitos e perspectivas no cotidiano da


burocracia do Estado permitiu a entrada dos mais de 760 mil africanos
contrabandeados, a escravização ilegal deles e de seus descendentes e a
legitimação de toda a riqueza criminalmente produzida com base neste tipo de
propriedade. Forjaram-se, assim, as raízes de uma cultura jurídica ancorada na
ilegalidade estrutural, em que o casuísmo institucional, o capricho de quem segura
a chibata (ou a caneta), a mimesis entre arbítrio e burocracia e a irresponsabilidade
generalizada sedimentaram as bases da elaboração, interpretação e aplicação do
direito. Estado e cultura jurídica como mimesis da Casa-Grande para dar mais
poder e consistência à classe senhorial.

No ano de 2010, em parecer apresentado ao Supremo Tribunal Federal na


ADPF/186, que discutia a constitucionalidade das cotas raciais, Luiz Felipe de
Alencastro assim sintetizou os fundamentos do direito senhorial:

Resta que este crime coletivo guarda um significado dramático: ao arrepio


da lei, a maioria dos africanos cativados no Brasil a partir de 1818 -, e todos
os seus descendentes -, foram mantidos na escravidão até 1888. Ou seja,
boa parte das duas últimas gerações de indivíduos escravizados no Brasil
não era escrava. Moralmente ilegítima, a escravidão do Império era ainda
-, primeiro e sobretudo -, ilegal. Como escrevi, tenho para mim que este
pacto dos sequestradores constitui o pecado original da sociedade e da
ordem jurídica brasileira. Firmava-se duradouramente o princípio da
impunidade e do casuísmo da lei que marca nossa história e permanece
como um desafio constante aos tribunais e a esta Suprema Corte.
Consequentemente, não são só os negros brasileiros que pagam o preço da
herança escravista (Alencastro, 2012).

Esse segredo público (Taussig, 1999; French, 2017), de uma aparente legalidade
constituída por zonas abundantes de ilegalidade, é o centro moral do tempo
saquarema, em que os homens de bem, tais quais Cotrim, enriqueciam-se ao
arrepio das leis por eles elaboradas enquanto mandavam pessoas negras
legalmente livres escorrendo sangue para o calabouço. Com as Memórias Póstumas
do defunto autor, que segue falando desde o além, como a dizer que a perspectiva

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senhorial do morto sobre a realidade continuará nos regendo para além do seu
tempo vital, Machado de Assis talvez nos tenha legado não só uma radiografia do
Império. Seguindo a trilha de Roberto Schwarz (2012), para quem o romance
machadiano revela e ancora-se na estrutura histórica da sociedade brasileira,
operando como uma estilização da ordem social e da luta de classes, a estética de
Machado pode nos ser útil para reler o romance constitucional brasileiro. Neste
romance, não só a história é ruim – atravessada por violências notórias e
inconfessáveis –, como talvez o próprio relato não seja pautado pelo compromisso
com a integridade, mas sim com o princípio da volubilidade: a constante
inconsistência de critérios. A rigidez de Hércules se desmorona perante a
moralidade elástica de Brás Cubas, mestre daquilo que chamamos hermenêutica
senhorial.

Permita esclarecer os termos da discussão. Primeiro, extraída de Ronald Dworkin,


a ideia de romance constitucional para a interpretação do direito. Posteriormente,
a interrupção crítica ao romance moderno realizada por Machado de Assis. Por
fim, como o gesto machadiano revela o padrão senhorial na hermenêutica jurídica
brasileira.

Dworkin elaborou uma das mais famosas aproximações entre romance, história e
teoria constitucional. A associação ocorreu pela primeira vez no livro O Império do
Direito por meio da expressão “romance em cadeia” para retratar a interpretação
do direito. A hermenêutica jurídica deveria ser pensada como um livro escrito de
maneira coletiva. Feito a várias mãos, o autor seguinte deveria ter
responsabilidade de ler as páginas precedentes e de dar a elas a melhor
continuação possível (Dworkin, 2007). “Uma continuidade que faça honra ao já
escrito e prepare caminho para o próximo participante”, diz Roberto Gargarella
(2015, p. 10-11). Assim, a interpretação precisa ser realizada com atenção ao que já
foi feito antes, estabelecendo um fio condutor com a história jurídica existente. Da
mesma forma, ela deve levar em consideração que essa mesma história irá
continuar por muito tempo. Portanto, o ato hermenêutico é um ato reconstrutivo
coletivo que olha para o futuro, demandando a consciência dos seus limites e
exigências (Queiroz; Scotti, 2021).

Na elaboração teórica de Dworkin, o “romance em cadeia” está atrelado à


concepção de que o núcleo do sistema jurídico é formado por conceitos altamente
controversos e interpretativos, pois veiculam um propósito e não são remissíveis
a algo externo a eles (Dworkin, 2010a). Assim, princípios jurídicos, garantias
constitucionais e direitos fundamentais não possuem um conteúdo ontológico per
si, da mesma forma em que não são experienciados e afirmados de maneira
autoevidente. Se são essencialmente interpretativos, eles devem ser interpretados

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Hermenêutica Senhorial 727

por meio de uma teoria da melhor interpretação do direito, que Dworkin chama
de teoria do valor (Dworkin, 2014). Essa teoria é a radicalização da ideia de
integridade: os conceitos jurídicos devem ser defendidos substantivamente a
partir de argumentos que demonstrem consistência e apoio mútuo geral entre eles.
A hermenêutica deve conduzir a um processo no qual cada conceito deve ser lido
à luz dos demais, entrelaçando e unindo valores de maneira coerente. “Somos
moralmente responsáveis na medida em que nossas diversas interpretações
concretas alcançam uma integridade geral, de tal modo que cada uma delas
sustente as outras numa rede de valores que abraçamos autenticamente”
(Dworkin, 2014, p. 153).

Neste ponto, romance, história e direito convergem com agudez. Como


interpretativos, os conceitos jurídicos são atravessados pela historicidade.
Qualquer interpretação dos direitos fundamentais demanda uma reconstrução da
cadeia histórica do sistema jurídico capaz de argumentar e justificar o conteúdo
correto desses direitos em um determinado caso concreto ou contexto (Dworkin,
2007 e 2010b). Portanto, os conceitos jurídicos são, concomitantemente, uma
abertura para o passado (pois exigem uma argumentação coerente com certa
narrativa precedente) e uma forma deste mesmo passado se perfazer no presente
em direção ao futuro (pois atualizam e dão coerência ao que já passou através da
efetivação dos direitos fundamentais). Trata-se do romance em cadeia: o autor do
presente tem a tarefa de conferir a melhor continuação à história escrita, gerando,
assim, uma responsabilidade para com o passado e o futuro. Portanto, como a
escrita literária, a hermenêutica jurídica seria uma tarefa permanente de dar
consistência e coerência aos conceitos jurídicos, tomados como partes de um todo
íntegro. O esforço do intérprete seria como a labuta do escritor ao contar uma
história: fazer com que as palavras e conceitos se reforcem de maneira mútua e não
contraditória (Queiroz e Scotti, 2021).

Que caroço Machado põe no angu de Dworkin?

Primeiramente, ao trazer para o primeiro plano as violências da modernidade, ao


mesmo tempo encobertas e partes da paisagem cotidiana, o romancista interrompe
com toda concepção linear, progressiva e teleológica da história constitucional e
da afirmação dos direitos humanos. Ao borrar essa relação causal entre passado,
presente e futuro, Machado nos deixa a charada: o que fazer com uma história
constitucional que não é só recheada de solavancos e tensões internas, mas também
uma história péssima? É possível continuar escrevendo este romance quando suas
páginas anteriores estão lotadas do horror e do próprio indizível? Além disso, ele
nos alerta a respeito da ideia de progresso ao revelar o dispositivo refreador dentro
de cada alegado avanço. Neste ponto, a dialética entre inclusão e exclusão (Duarte,

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728 Marcos Queiroz

2011; Carvalho Netto; Scotti, 2012) é suspensa ao ser posta em questão os próprios
termos no qual ela se dá, isto é, ao alargar as fronteiras dos incluídos dentro do
paradigma humano legado pela modernidade, são também alargados os
territórios da zona do não-ser daqueles que ainda não são vistos como humanos.
A escravidão instituiu um paradigma no qual a inclusão nos direitos humanos tem
como pressuposto a expansão dos humanos objetos. Portanto, não se trata de
questão ingenuamente epistêmica – a cada novo incluído é possível ver melhor
aqueles que ainda são excluídos –, mas sim de que certa noção do humano implica
concretamente na desumanização massiva de outros seres humanos. Incluir é
necessariamente excluir, explorar, silenciar, apagar, matar e genocidar.

Para além da possibilidade de regresso e da desconfiança do narrador, o romance


machadiano nos diz que a história constitucional pode não apenas ser péssima,
mas também incongruente, absolutamente ausente de integridade. Como
argumenta Roberto Schwarz, Memórias Póstumas é o suprassumo da forma literária
descontinuada, volúvel, caprichosa, que não leva a lugar nenhum. As histórias de
um autor defunto que definitivamente não tenta e muito menos quer contar a
melhor história. Há a maximização da volubilidade do narrado, com o constante
desrespeito a algum tipo de norma, a absolutização da inconstância e a
entronização do arbítrio. Entorpecido pelo exagerado amor próprio, pelo capricho
despótico e pelo autoritarismo típicos da consciência senhorial, Brás Cubas é o
típico narrador que muda e se transforma a cada parágrafo. Ao manipular a forma
do romance, Machado estilizou o senso de superioridade e a certeza da
irresponsabilidade. Deu sentido estético ao gosto de estar por cima dos outros – de
estar acima de tudo, das leis, dos contratos sociais, das vidas alheias, do mundo,
da própria realidade (Schwarz, 2012).

As interrupções e viradas arbitrárias na narrativa, o deboche e a inferiorização do


leitor, a sensação de que nunca se sabe o que pode ocorrer no capitulo seguinte
pois a narrativa é teimosamente descontinuada, o abandono seco do modo prévio
de ser, o modismo e o gosto pela novidade, a indiferença como expressão de
superioridade, os capítulos apenas com sinais gráficos e nenhuma palavra ou letra,
os usos de formas editorais incomuns para a época, como assinaturas ou letras
caindo pelas laterais das página. Expressões de uma forma que manifesta a
universalização do capricho, que decorre dos prazeres e satisfações oriundas da
volubilidade daquele que tudo pode. E se tudo pode, o volúvel decorre de um
sujeito constituído na negação da dialética entre indivíduo e sociedade, entre
sujeito e qualquer tipo de exterioridade, como o sentimento de empatia, a
alteridade ou o constrangimento oriundo de normas jurídicas. Todo o plano de
validade da civilização moderna é submetido, reduzido e rebaixado à

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Hermenêutica Senhorial 729

volubilidade, com permanente oscilações valorativas e irregularidade de critérios.


Tal qual os discursos da classe senhorial a justificar o tráfico e a escravidão ilegal
ou, nos dias de hoje, a última sentença lavrada no tribunal mais próximo, a prosa
machadiana demonstra o gozo do arbítrio e da impunidade. O prazer caprichoso
em desafiar a norma de maneira irresponsável.

Essa satisfação subjetiva é realizada à custo do real – da narrativa, da coerência, do


compromisso, da alteridade, da empatia, da integridade. Ela é incapaz de se ater à
realidade, à razão, à exterioridade ou a algum tipo de lei objetiva. Tem como
substrato uma filosofia moral capaz de justificar toda e qualquer imoralidade e
desigualdade. Da mesma forma, sua teorização é marcada pela egolatria narcisista,
que engloba horizontes e universos mentais incompatíveis e irreconciliáveis,
legitimados pelos usos da variedade argumentativa, com seus brocardos ocos e
filosofia moral de orelha de livro, e pelo suposto poder da empiria (Schwarz, 2012).
A fórmula Casa-Grande e Senzala (e suas infinitas correlatas, como escravidão
benigna, ditabranda, fascismo moderado, vanguarda iluminista, bolsopetismo) como se
fossem elementos complementares e equilibrados nos seus modos de ser e ver o
mundo e não atravessados por um antagonismo estrutural, é a racionalização por
excelência dessa consciência senhorial. É o primado do inócuo, constituído por
discursos baseados no detalhismo do cotidiano, sem aplicação real, e no
universalismo sem função crítica. É Brás Cubas realizando considerações sobre
como a estrutura social determina o comportamento humano para escusar o
caráter de seu cunhado. É o professor da faculdade que, na aula sobre o princípio
da igualdade, passa a classe citando suas experiências nos cafés e livrarias de
Berlim. A nulidade dupla dos medalhões: negócios miúdos ou metafísica,
maneiras infalíveis de não dizer nada.

Em Memórias Póstumas, Machado revela essas características do estilo senhorial por


meio da técnica da interrupção: quando a narrativa parece que começa a tomar
corpo, Brás Cubas a leva arbitrariamente para outro caminho. Ela gera satisfação
subjetiva para o narrador (o poder despótico sobre o tempo, a história, a realidade
e os outros) e frustração objetiva (incapacidade de coerência e vínculos, negação
total de qualquer integridade). Há a universalização da segmentação por meio da
descontinuidade, dos trechos breves e dos permanentes contrastes morais, que
revelam a descrença e a relativização constante dos princípios. Toda essa
volubilidade tem como causa o privilégio de classe, a extrema desigualdade e o
racismo. Ela é o reverso da exploração senhorial e do empenho autêntico, em que
os grandes momentos da vida dos abastados não passam de vulgaridade de feição
barateada, as quais emprestam decoro e familiaridade ao horror da escravidão
(Schwarz, 2012). Assim, o tempo saquarema possui uma ontologia social

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730 Marcos Queiroz

constituída pela volubilidade. A realidade inexoravelmente incongruente


acessada por medidas duais e critérios inconsistentes. Ao interromper o processo
de universalização do mundo mantendo a linguagem abstrata do universalismo,
o Programa Político do Regresso não só instituiu a comunidade por meio da
reprodução do arbítrio fundamental, mas também deitou as bases não íntegras do
romance e da constituição.

Mais do que enredo, temas e personagens, o modo de composição da narrativa no


romance machadiano é uma maneira de estilizar a sociedade do Brasil Império, a
qual era fundada na escravidão ilegal. Ao espelhar o tempo saquarema, a forma
de Memórias Póstumas reflete no romance a forma jurídica de sua época, um direito
despótico, operado de forma birrenta, casuística e inconstante, cordialmente
mascarado sob a linguagem da modernidade.

Machado de Assis foi o melhor intérprete do modo de ver e falar da Casa-Grande,


que chamamos de hermenêutica senhorial (Queiroz, 2022). Seguindo a hipótese de
Ilmar Rohloff de Mattos (1987) de que os sentidos do tempo saquarema se
estendem até nós, podemos dizer que essa hermenêutica continua a reger nossas
relações sociais, particularmente a cultura jurídica, constituindo a forma
dominante com que o direito é teorizado, formulado, interpretado e aplicado no
Brasil.

Diante do exposto, podemos citar brevemente três características persistentes da


hermenêutica senhorial no sistema jurídico. Primeiro e de modo mais evidente, é
a tomada de decisão sem se ater à norma, ainda que sob o pretexto de se estar
seguindo e salvando o próprio direito. Trata-se do refreamento do princípio da
legalidade. O direito positivo e a jurisprudência são mobilizados de forma oca, não
estabilizam expectativas, nem geram compromissos argumentativos. A
Constituição, a lei x, o direito fundamental y e o princípio z podem até ser citados,
mas o são de forma volúvel, arbitrária e caprichosa, operando como cascas a
esconder o despotismo de quem decide. Chega-se ao extremo de se fundamentar
a sentença na literalidade do dispositivo normativo para se ir contra ele próprio.
Com isso, todo burocrata responsável por aplicar o direito (do policial na esquina
ao ministro do Supremo) torna-se soberano, capaz de delimitar na prática o campo
político do direito. A exceção vira a constância do sistema jurídico – a regra é o
descompromisso perante o previamente acordado, narrado e decidido.

No poder judiciário, regido pelo comportamento de casta em detrimento do


múnus republicano, supremocracia, ministocracia e magistocracia são termos
contemporâneos que denotam o enraizamento da cultura jurídica senhorial em
diferentes níveis, revelando o baixo grau de institucionalização dos processos

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Hermenêutica Senhorial 731

decisórios em favor do mandonismo dos togados, a ausência de transparência na


elaboração de pautas, o personalismo institucional e o completo descompromisso
com os precedentes (Vieira, 2018 e 2008; Arguelhes e Ribeiro, 2018; Hübner
Mendes, 2023). O romance em cadeia dá lugar à prosa insincera, frívola e
movediça, ao gosto de Brás.

Essa ausência de coerência e integridade, em que a inconsistência de critérios é


camuflada sob a teoria jurídica em moda da vez, conecta-se ao segundo elemento:
a justificação moral, científica, social e pragmática da barbárie, tornando
juridicamente natural a insidiosa e ilegal violência cotidiana (Flauzina e Pires,
2020). Neste aspecto, a hermenêutica senhorial opera como um duplo. Por um
lado, ela é a legitimação técnica ou a ausência de controle corretivo da brutalidade
social, que tem como protagonista principal o próprio Estado brasileiro. O seu
discurso cordial, pomposo e liberal realiza uma cisura, criando a ilusão de que
tribunais de mármore e engravatados em terno italiano não têm nenhuma relação
ou responsabilidade perante a violência que saem dos fuzis, fardas e coturnos nas
madrugadas adentro das periferias. Por outro lado e ao mesmo tempo, esses
derramamentos de sangue são incorporados como rituais jurídicos, em que o
sacrifício de pessoas negras opera como elemento saneador do direito, restaurando
a aparência de plena legalidade das instituições estatais. O linchamento, o
massacre e a chacina – vistos e tidos como excepcionais, “descontroles
esporádicos” contra “selvagens”, criminosos e inimigos públicos, os “ninguéns”
de toda ordem (Silva, 2014) – são necessários para contrastar com a atmosfera
calma, higienizada e pudica do mundo oficial, em que juízes, advogados,
professores, políticos, ministros e secretários constroem suas teses e decisões. Com
a sua nulidade dupla, indo dos negócios miúdos à metafísica para não dizer nada,
a hermenêutica senhorial é funcional justamente no entremeio entre aparência de
legalidade e ilegalidade estrutural, pois permite aos juristas lidar com a violência
sem se verem parte dela e, consequentemente, sem estabelecerem compromissos
efetivos para a mudança. O empirismo sem aplicação real e o universalismo sem
função verdadeiramente crítica.

Por fim, a hermenêutica senhorial é informada pelo conteúdo absoluto do direito


de propriedade. Consequentemente, a proteção da inviolabilidade da vontade dos
proprietários continua a ser o centro gravitacional do sistema jurídico, informando
o conteúdo dos conceitos nas mais diversas áreas, como direito civil, penal,
trabalhista, administrativo e constitucional. O direito de propriedade como o
direito dos direitos e o direito para ter direitos, subsumindo a interpretação das
demais normas e princípios jurídicos, dobrando e refreando a legalidade e dando
a régua e o compasso do que se entende como liberdade, igualdade e cidadania.

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732 Marcos Queiroz

Um direito fundamentalista ancorado na expansão permanente do juridicamente


infra-humano, para o qual os discursos de validação baseados na lei e no direito
pouco ou nada importam. O devir negro como lado noturno da teologia da
propriedade privada.

Sob a tônica da interpretação e da aplicação incongruente e arbitrária do direito,


princípio da ilegalidade, ritualização jurídica da violência sacrificial e propriedade
absoluta são o coração da hermenêutica senhorial. Eis o núcleo da cultura jurídica
brasileira, estendendo-se dos calabouços do Império aos camburões de hoje; das
conversas de Cotrim e Brás aos diálogos ouvidos pelos corredores de faculdades e
tribunais do presente; dos “negócios de parentes” e casamentos arranjados entre
os nobres da corte aos convescotes nos jantares do estamento jurídico, a reunir
ministros de tribunais superiores e presidentes da república.

Estamos em dezembro de 2023. Momento em que esse texto é concluído. O


presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Ricardo Rodrigues Cardozo,
acaba de decidir que a polícia pode apreender menores sem ser em casos de
flagrante nas praias do Rio. O desembargador avaliza a chamada “Operação
Verão”, implementada pelos governos municipal e estadual. Na sua opinião, as
autoridades competentes possuem a capacidade de avaliar a situação de
vulnerabilidade ou risco social deflagrada por crianças e adolescentes e que o
encaminhamento deles às instituições de acolhimento não viola o direito de ir e
vir. Logo após a decisão, o governador Claudio Castrou correu ao twitter para
celebrar: “A ordem foi restabelecida!!!”. Na sequência, acompanhado de uma foto
de policiais dando baculejo em crianças negras, editorial do O Globo: “Justiça do
Rio acerta ao permitir apreensão de menores sem flagrante. Quando se cobra da
polícia prevenção do crime, não se podem cercear as ações necessárias a isso”.
Diante do jovem negro e periférico, presume-se a escravidão, quer dizer, o “risco
social”. Tudo em nome da segurança e da propriedade. Tudo como se a
Constituição não dissesse expressamente no seu art. 5º, LXI: “ninguém será preso
senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade
judiciária competente”.

Mas o que diz o texto importa para a hermenêutica senhorial? Como já ensinava
Brás Cubas, segredos públicos exigem desfaçatez.

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Hermenêutica Senhorial 733

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Hermenêutica Senhorial 735

Sobre o autor
Marcos Queiroz
Professor na graduação e na pós-graduação no Instituto Brasileiro de
Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa. Doutor em Direito pela
Universidade de Brasília, com sanduíche na Univerisdad Nacional de
Colombia (Programa Abdias Nascimento – Capes) e na Duke University
(Fulbright Commission). Coordenador do Peabiru – Núcleo de Pesquisa
em História e Constitucionalismo da América Latina (IDP). Autor do livro
Constitucionalismo Brasileiro e o Atlântico Negro: a experiência
constituinte de 1823 diante da Revolução Haitiana (Menção Honrosa
Prêmio Thomas Skidmore - 2018). Editor-chefe da Revista Jacobina.

_________________
Agradecimentos
Esse artigo é dedicado às turmas de Direito e Literatura no IDP, nas quais a
ideia de hermenêutica senhorial foi originalmente desenvolvida e debatida.

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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52157

temas geradores

Letramento jurídico-racial crítico


Letramiento jurídico racial crítico

Critical racial legal literacy

Tiago Vinicius André dos Santos1


1
Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, Faculdade de Direito,
Paranaíba, Mato Grosso do Sul, Brasil. E-mail: [email protected];
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1706-4089.

Submetido em 03/01/2024
Aceito em 18/01/2024

Como citar este trabalho


SANTOS, Tiago Vinicius André. Letramento jurídico-racial crítico. InSURgência: revista
de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 737-752, jan./jun. 2024.

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ISSN 2447-6684

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738 Tiago Vinicius André dos Santos

Letramento jurídico-racial crítico

O verbete letramento jurídico-racial crítico surge da experiência como docente do


curso de Direito e de quando atuava, na função de Coordenador Pedagógico, em
uma plataforma de educação à distância1. A plataforma tinha como objetivo
democratizar o conhecimento sobre os mais diversos temas como filosofia,
literatura, sociologia, direito entre outros, a partir da produção acadêmica e de
referenciais teóricos produzidos por intelectuais negros e negras. Para ilustrar
nossa proposta de reflexão, iremos discorrer brevemente sobre duas experiências
prático-pedagógicas.

Na plataforma, as professoras e os professores se reuniam mensalmente para


debater e decidir sobre qual assunto seria abordado com o público e em agosto de
2020 foi escolhido o tema letramento racial. Assim, cada docente em sua área de
conhecimento deveria produzir um texto sobre o assunto que seria,
posteriormente, objeto de aulas ao vivo na plataforma do Youtube na internet. Uma
das razões pelas quais o tema nos chamou a atenção é porque o letramento racial
poderia ser compreendido como o uso que pessoas negras ou brancas fazem do
seu conhecimento sobre o racismo na sociedade, para se protegerem e/ou
engajarem na luta antirracista. Contudo, esse conhecimento não necessariamente
decorreria de uma agência de letramento formal, como a escola ou a universidade,
por exemplo. Ele pode surgir da experiência de pessoas junto aos movimentos
sociais, das relações familiares, da música, do seu pertencimento étnico-racial, por
exemplo (Souza, 2011).

Um ano antes do contato com a temática, em uma das minhas orientações de


trabalho de conclusão de curso (TCC), sugeri ao meu orientando que no primeiro
capítulo da monografia discorresse, a partir do referencial teórico da Teoria Crítica
Racial (TCR) e na perspectiva do academic storytelling (Delgado; Stefancic, 2021;

1 A Plataforma Feminismos Plurais foi um projeto idealizado pela escritora e filósofa Djamila
Ribeiro. Durante seu período de atividade (julho/2020 a fevereiro/2023) foi considerada uma das
maiores plataforma de ensino virtual sobre a temática antirracismo e sua relação com os mais
variados temas como filosofia, direito, sociologia, literatura, etc. Diversos projetos foram
realizados como os Aulões ao vivo na Plataforma do Youtube, artigos semanais escritos pelo corpo
docente, lives no Instagram, mentoria acadêmica para pessoas negras interessadas em ingressar
nos cursos de mestrado e doutorado, entre outros. Além do autor, o corpo docente era composto
por Juliana Borges, autora de “Encarceramento em Massa”, Thiago Teixeira, autor de
“Decolonizar Valores: ética e diferença”, Ana Lucia Silva Souza, autora de “Letramentos de
Reexistência: culturas e identidades no movimento hip hop”, Fernanda Bastos, jornalista da TVE
Rio Grande do Sul, e Marjorie Chaves, doutoranda em Política Social e mestra em História pela
Universidade de Brasília (UnB).

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Letramento jurídico-racial crítico 739

Moreira, 2019), sobre seu processo de formação enquanto jurista num curso de
graduação em Direito. Esse tipo de abordagem era justificada em razão do objetivo
do seu trabalho, qual seja, realizar uma análise crítica com relação ao sistema de
justiça, especialmente o criminal, tendo como referencial de análise a produção
musical do grupo de rap brasileiro Racionais MC’s e a Teoria Crítica Racial. O
capítulo recebeu um nome que sintetizava sua trajetória até aquele momento, “Um
jurista negro em formação: basquete, hip hop e leis” e destacaremos o seguinte
trecho para ilustrar a proposta deste ensaio:

O basquete e o hip-hop foram a minha base de consciência, eles me


alertaram que por tantas fatalidades marcadas na história contra o povo
preto, e que serão exploradas no decorrer do trabalho, que o Estado
Democrático de Direito nunca me passou credibilidade porque as suas
ações são (...) racistas, se não é na superfície visível ao nosso olhar, o teor
racial configura-se enquanto premissa de raciocínio (Lima, 2019, p. 14).

Nesta breve passagem, o então aluno, hoje advogado, desafiou premissas


hegemônicas do curso de Direito e do conhecimento científico. Afinal, por que
razão seu pertencimento étnico-racial, a prática de atividades físicas e sua
predileção musical, especialmente o hip hop, possuiriam importância na análise do
Estado Democrático de Direito? Segundo o discurso dominante, deve o
pesquisador se afastar do objeto de estudo para manter uma pretensa neutralidade
da pesquisa, garantindo, assim, a excelência acadêmica. Além disso, normalmente
o TCC tem como objetivo analisar se o aluno possui condições de sistematizar o
conhecimento a partir dos cânones sobre o assunto objeto de pesquisa. A
compreensão hegemônica sobre as leis é que elas têm como características a
abstratividade e a neutralidade, ou seja, aplicam-se a todos e todas e sem qualquer
tipo de distinção. Assumir que as ações do Estado possuem como premissa um
determinado teor racial, significa dizer que o TCC se afastou daquilo que foi
contínua e sistematicamente ensinado nos cursos jurídicos.

Num processo de diálogo entre orientando e orientador, o letramento racial do


então aluno, oriundo da prática desportiva, da sua relação com o hip hop e das
experiências pessoais decorrentes de seu pertencimento étnico-racial, recebeu a
devida atenção e foi utilizado, com base em referenciais teóricos contra-
hegemônicos, como forma de expandir sua análise sobre o letramento jurídico que
recebeu até aquele momento na Faculdade de Direito. Contudo, nem sempre esse
tipo de diálogo possui espaço. Esta tensão entre o letramento racial e o letramento
jurídico nos cursos de Direito constitui um locus privilegiado para nossa reflexão.

A expressão letramento surgiu em razão da necessidade de se diferenciá-la do


conceito de alfabetização. De acordo com Leda Tfouni (1995), enquanto a

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740 Tiago Vinicius André dos Santos

alfabetização preocupa-se com a aquisição da escrita por um indivíduo ou grupo


de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de
um sistema escrito por uma determinada sociedade. Uma abordagem interessante
sobre letramento para nossa reflexão é a que o compreende como uma prática
social. Disso decorrem duas consequências: primeiro de que são vários os
letramentos, daí podemos falar em letramento digital, matemático, de gênero,
entre outros; segundo, é que a análise do letramento não se resume a observar os
processos de aprendizagem de leitura, escrita e interpretação de texto, pois, leva
em consideração o tempo, o espaço e as relações de poder que interligam pessoas,
objetos e a forma de significar e ressignificar o mundo à nossa volta (Lemke, 2010,
apud Pereira, 2022). Percebam, portanto, que a prática do letramento é múltipla e
permite analisarmos criticamente os variados valores que os letramentos assumem
na sociedade a depender do contexto sociocultural.

Em Memórias da Plantação: episódios do racismo cotidiano, Grada Kilomba (2020) narra


uma breve experiência em sala de aula que ajuda a ilustrar o que estamos dizendo.
Quando a autora pergunta aos alunos e às alunas, na universidade onde leciona
na Alemanha, sobre algum fato histórico ou político relevante do continente
africano, os universitários senegaleses, congoleses ou sul-africanos geralmente se
destacam nas respostas. Contudo, segundo a pesquisadora, são os fatos históricos,
políticos e sociais do colonizador e não do colonizado que dominam o discurso
que informa o letramento na imensa maioria das vezes quando abrimos um livro
de história geral, quando acessamos um site de notícias ou quando percebemos em
nossas redes sociais o tratamento desigual que os algoritmos dão aos
acontecimentos localizados na Europa e nos Estados Unidos quando comparados
ao restante do mundo. Logo adiante, iremos continuar a discorrer sobre o potencial
crítico do referencial teórico do letramento, mas uma vez esclarecidos os aspectos
conceituais sobre o tema, iremos procurar desenvolver a ideia do que chamaremos
de letramento jurídico.

Dentro do universo jurídico, há estudos que analisam o letramento jurídico


levando em consideração o ensino e aprendizagem de leis com o objetivo de
contribuir para a formação de cidadãos conscientes dos seus direitos (Silva, 2019)
– muito parecido com o que se chama de educação em direitos humanos. Uma
outra vertente procura estudar a relação entre discurso jurídico e letramento nos
processos judiciais. As audiências judiciais são consideradas eventos de
letramento e por meio dela são analisadas as práticas de letramento. Há uma
preocupação destes autores em demonstrar que estes eventos ignoram a
desigualdade nas formações sociais e marginalizam sujeitos com baixo grau de
letramento. Uma outra abordagem analisa as sentenças judiciais e a partir das

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Letramento jurídico-racial crítico 741

teorias do discurso, procura compreender o domínio discursivo presente nestas


sentenças. Na medida em que o discurso jurídico estaria nos níveis mais abstratos
da escrita, indivíduos não habituados a este tipo de letramento seriam como se
preteridos de um processo judicial em que a despeito de serem autores ou réus,
pouco compreendem o que acontece (Monte-Serrat; Tfouni, 2012; Monte-Serrat,
2013; Pereira, 2014). Nossa proposta com este verbete, diferente do analisado
acima, é pensarmos no letramento jurídico levando em consideração o ensino
jurídico nas Faculdades de Direito.

Nos estudos sobre o ensino jurídico no Brasil, é muito comum nos depararmos
com o que se denomina de “crise do ensino jurídico”, argumenta-se que ele é
predominantemente baseado em técnicas e métodos que tem como objetivo a
memorização e a reprodução de conceitos e teorias, o que empobrece a visão do
bacharel sobre o fenômeno jurídico e, por conseguinte, sua prática (Freitas Filho;
Musse, 2013; Carrion, 1999). Em termos gerais, o ensino jurídico pode ser
compreendido como um programa de estudos de leis e de decisões dos tribunais
de justiça (Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiçam, Tribunais de
Justiça, etc.) para a formação de técnicos que terão competências para a aplicação
de normas a determinados casos concretos.

É possível perceber que os estudos que se propõem a analisar o problema tem


apontado um diagnóstico comum com relação aos cursos jurídicos no Brasil. A
educação jurídica tem se caracterizado especialmente em razão do seu tecnicismo,
formalismo e legalismo exacerbado, do distanciamento da realidade social e de
uma metodologia de aula inviabilizadora de uma formação acadêmica de juristas
capazes de analisar criticamente a realidade que o cerca (Dantas, 1955; Faria, 1987).
Mais recentemente, alguns autores analisam e incluem no cenário da crise a
ausência de disciplinas no curso de Direito que contemplem o debate racial e de
gênero, a homogeneidade racial e de gênero do corpo docente, a uniformidade de
perspectivas sobre a questão racial, o fato de que as bibliografias obrigatórias dos
currículos jurídicos serem constituídas basicamente por juristas brancos,
heterossexuais e homens (Moreira; Almeida; Corbo, 2022, p. 27-41).

Analisado ainda que brevemente esse diagnóstico e sua relação com a temática
racial, podemos compreender que o letramento jurídico daqueles que passam por
um curso de graduação em Direito, ou seja, a maneira como fazem uso do discurso
apreendido nos cursos de Direito nas mais diversas dimensões e funções, não
permite o envolvimento com problemas estruturais da sociedade brasileira de
maneira mais real ou efetiva e é impeditiva da realização de uma justiça racial mais
abrangente. Esta constatação decorre do diagnóstico relativo à crise do ensino e a
forma como o debate racial se apresenta nesse cenário, ou seja, incipiente ou quase

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inexistente. Diante desse horizonte pessimista de reflexão e prática de justiça racial


nos cursos de Direito, como podemos pensar em mudanças criativas sobre a forma
de compreensão do que é racismo, de como se constitui as relações raciais no Brasil,
de mecanismos jurídicos para mitigação de um problema que não se resume à
discriminação, mas de negação da própria humanidade? A resposta
evidentemente não é simples, mas podemos observar uma certa evolução na seara
legislativa e jurídica, no campo das políticas públicas e no novo colorido de alunas
e alunos que passaram a frequentar os cursos de Direito. Iremos expor brevemente
sobre esse cenário, pois o entendemos como um fator importante para a tomada
de consciência sobre a necessidade do letramento jurídico-racial crítico nos cursos
de Direito. Essas circunstâncias permitem apontar alternativas para superação de
um letramento jurídico que se pretende desracializado, porém não é.

Com a redemocratização e a Constituição Federal de 1988, passamos a contar com


um sistema jurídico em que o Estado Democrático de Direito tem como
fundamento a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, II e III, CF); como
objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a
erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais, a promoção do bem
de todos sem preconceitos (art. 3º, I e II, CF). Passamos também a contar com um
mandado de criminalização do racismo (art. 5º, XLII, CF), fato inédito em toda
história jurídica de nosso país. Esses princípios que orientam a forma de
compreensão do Estado e dos sujeitos de direito abrem a possibilidade de reflexões
mais complexas e profundas para solucionar problemas estruturais de nossa
sociedade como, por exemplo, o racismo (Canotilho, 2003; Mendes, 2013). Soma-
se a essa constatação o fato de que desde a segunda metade do século passado,
diversas demandas do movimento negro passaram a fazer parte do cenário
jurídico nacional e internacional dentro de um contexto em que a figura do Estado
passa a ser compreendida como responsável pela proteção, promoção e
fiscalização de direitos fundamentais (Prudente, 1989; Santos, 2015).

Esse novo cenário tem colaborado para a elaboração de leis, a formulação de


políticas públicas e para decisões judiciais que decorrem direta ou indiretamente
das demandas da sociedade, especialmente do movimento negro, por justiça
racial. Isso significa dizer que chega na arena jurídica, e consequentemente no
horizonte do ensino jurídico, “novos direitos”, “novos sujeitos de direitos”, assim
como “novas alunas e novos alunos” nas salas de aula (Garcia e Vidica, 2023).
Todos esses temas e cabeças pensantes chegam nos cursos de Direito e passam a
disputar narrativas e espaços institucionais até então reservados a uma parcela
específica da sociedade.

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Letramento jurídico-racial crítico 743

Para ilustrar o que pretendemos dizer, analisemos o caso das ações afirmativas
para a população negra e todo contexto que ela impacta e possui relevância para
nossa reflexão. A decisão pela constitucionalidade das cotas raciais no Supremo
Tribunal Federal (STF) pode ser compreendida como um “novo direito”, na
medida em que o pensamento hegemônico da sociedade brasileira compreendia,
e ainda compreende, a discriminação racial como um desvio de conduta capaz de
ser remediado com uma legislação que criminaliza o racismo. Com a decisão do
STF, são consideradas constitucionais políticas públicas com critérios de raça que
tem como objetivo promover a igualdade racial entre negros e brancos (Brasil,
2017). Dentro da lógica legalista, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010)
dispõe que a sociedade brasileira é composta por sujeitos detentores de direitos
previstos em leis específicas que levam em consideração o processo histórico de
exclusão, como o caso da população negra (conjunto de pretos e pardos), esses são
os “novos sujeitos de direitos”. Por fim, com “novas alunas e novos alunos”
estamos nos referindo àqueles e àquelas destinatárias das políticas públicas de
promoção da igualdade racial e que passaram a frequentar cursos jurídicos
elitizados e restritos, até então, a alunas e alunos pertencentes a um determinado
grupo étnico-racial.

Diante desse cenário otimista para o debate qualificado sobre raça e racismo nos
cursos de Direito, e da constatação de uma prática de letramento jurídico omissa
ou até mesmo refratária a esses assuntos, é que a reflexão e prática do letramento
racial ganha dimensão importante. Quando nos referimos ao letramento jurídico-
racial crítico estamos partindo exatamente dessa “tomada de consciência” do
ordenamento jurídico – provocada especialmente pela atuação de diversos atores
sociais que demandam por dignidade da população negra –, de que vivemos em
uma sociedade multirracial, que compartilha visões distintas de mundo e
demanda pela coexistência dessa pluralidade em espaços institucionais como as
Faculdades de Direito.

Contudo, como dissemos anteriormente, ao discutirmos sobre letramento jurídico


não podemos perder de vista que estamos diante de processos pedagógicos por
meio dos quais transferimos e incutimos uma certa compreensão sobre leis,
sistemas de justiça, referenciais teóricos, carreiras jurídicas que veiculam relações
de poder e como tais determinam e condicionam as interações na sociedade. Há
um vínculo entre as atividades de leitura e escrita e as estruturas sociais às quais
são incorporadas que ajudam a moldá-las e refletem a racialização na qual estão
inseridas (Barton e Hamilton, 1998; Souza, 2011). A problematização sobre raça e
racismo na categoria de análise do letramento jurídico surge a partir dessa
perspectiva crítica e isso não é uma completa novidade na seara jurídica. Para citar

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apenas um exemplo, vários estudos já demonstraram como no início do século


passado as Faculdades de Direito, por meio de seus professores, utilizavam raça
como categoria de análise científica em suas pesquisas e como isso impactou e
ainda impacta um sistema penal seletivo e discriminatório com relação a
população negra (Schwarcz, 2003; Borges, 2019). Todavia, e no nosso momento
atual? Como analisar essa questão diante dessa “tomada de consciência” do
ordenamento jurídico e de uma produção intelectual instigante e profícua de
intelectuais negros e negras no campo jurídico ou fora dele, no Brasil ou no
exterior, que tem colaborado de forma significativa para a uma noção de cidadania
racial, senão mais conectada com a efetividade de direitos fundamentais, ao menos
propulsora de debates, reflexões e críticas merecedores de estudo sistemático nas
Faculdades de Direito? (Carta Capital, 2017; CNN, 2021). Ao utilizarmos a
categoria de análise do letramento estamos problematizando justamente “[...] o
que conta como letramento em dado tempo e lugar e questionando “de quem” são
os letramentos dominantes e “de quem” são os letramentos marginalizados ou que
resistem” (Street, 2013, p. 53). Enfim, chega o momento de tecermos algumas
considerações sobre letramento e raça.

A expressão letramento racial foi cunhada pela antropóloga afro-americana France


Winddance Twine (2004) e seu conceito foi introduzido no Brasil pela
pesquisadora Lia V. Shucman (2012). Desde então, tem sido utilizada como
categoria de análise nos estudos sobre educação antirracista e influenciado uma
série de pesquisas sobre raça e racismo nos mais diversos campos do saber. Twine
compreende o

Letramento racial [como] um conjunto de práticas. Pode ser melhor


caracterizado como uma “prática de leitura” - uma forma de perceber e
responder individualmente às tensões raciais e estruturas raciais. Os
critérios analíticos que empregamos para avaliar a presença do letramento
racial [...] e incluem o seguinte: 1) um reconhecimento do valor simbólico
e material da Brancura; 2) a definição de o racismo como um problema
social atual e não como um legado histórico; 3) um entendimento que as
identidades raciais são aprendidas e um resultado de práticas sociais; 4) a
posse de gramática racial e um vocabulário que facilite uma discussão
sobre raça, racismo e antirracismo; 5) a capacidade de traduzir e
interpretar códigos raciais e práticas racializadas e 6) uma análise das
formas como o racismo é mediado pelas desigualdades de classe, gênero
hierarquias, e heteronormatividade (Twine; Steinbugler, 2006, p. 344, apud
Pereira, 2022).

Esse conceito é interessante pois busca fazer com que as pessoas procurem
informações sobre racismo no seu cotidiano, a partir de leituras que as orientarão
a compreender questões fundamentais no engajamento antirracista e que,
infelizmente, apesar dos esforços de alguns colegas, necessitam de maior atenção

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Letramento jurídico-racial crítico 745

nos cursos de Direito, dentro e fora das salas de aula. Algumas situações que
iremos discorrer a seguir partem de relatos compartilhados entre acadêmicas e
acadêmicos interessados sobre a temática direito e raça, em espaços de conforto
para a discussão sobre esses assuntos, que demonstram alguns desafios do
cotidiano acadêmico. Ao mencioná-las nosso objetivo é demonstrar como a
ausência de uma contranarrativa sobre esses assuntos é elemento constitutivo da
chamada crise do ensino jurídico e a importância do letramento jurídico-racial
crítico.

Há uma significativa dificuldade no universo do letramento jurídico, por exemplo,


em compreender sobre que raça o problema do racismo tem origem. Apesar das
didáticas decisões do STF sobre a perspectiva política-histórico-social que raça
deve ser analisada (Brasil, 2003), não é incomum o debate sobre racismo ser
interditado enquanto objeto de pesquisa ou de diálogo nas salas de aula, pois
alguns docentes entendem que raça é uma construção puramente biológica e não
social e, sendo assim, não pode ser utilizada como categoria de análise do
fenômeno jurídico. Esse tipo de abordagem superficial sobre o debate racial
desconsidera todo o processo de exclusão por que a população negra passou e
como as leis foram instrumentos fundamentais para este tipo de opressão. Outra
questão bastante presente nos cursos de Direito, bem como na sociedade como um
todo, é a particularidade do Brasil quanto a questão racial ao ser comparada com
a África do Sul, a Alemanha ou os Estados Unidos. Argumenta-se que em razão
da miscigenação racial entre brancos (europeus), pretos (africanos) e vermelhos
(povos originários) não teríamos problemas relacionados ao racismo (Freyre,
2019). Essa narrativa quase hegemônica baseada na ideia da democracia racial,
desconsidera outros debates que problematizam essa visão romântica da
miscigenação e percebem a democracia racial como um instrumento para a própria
perpetuação do racismo na medida em que nega sua existência, e aloca todas as
possíveis problematizações decorrentes de racismo a um único contexto, o de
classe social (Gonzalez, 1988).

Outro ponto importante diz respeito a uma certa negligência dos cursos de Direito
quanto a compreensão das várias formas com que o racismo se manifesta e a
ingenuidade com a qual é debatida a criminalização do racismo como instrumento
suficiente para sua superação. Na imensa maioria das vezes, o racismo é percebido
como um problema moral, uma conduta desviante a ser remediada, sem
considerar as diversas pesquisas apontando seu caráter institucional e estrutural
(Almeida, 2018; Moreira, 2018). O mesmo pode ser dito com relação ao
pensamento dominante segundo o qual o racismo atinge pessoas negras de forma
indistinta, quando na realidade há diversos estudos demonstrando que mulheres

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746 Tiago Vinicius André dos Santos

negras, por exemplo, são atravessadas por mecanismos de exclusão decorrente do


machismo e do racismo, daí a necessidade da análise interseccional do problema
(Gonzalez, 1984; Crenshaw, 2002).

Não é verdade que nas Faculdades de Direito esses assuntos sejam inteiramente
negligenciados. Há grupos de professores e professoras que procuram
desenvolver estes temas de forma bastante comprometida, mas mesmo quando
estamos diante de debates mais progressistas, percebe-se uma certa dificuldade
dos seus participantes em entender que o racismo também racializa pessoas
brancas e distribui privilégios injustos, daí a necessidade do estudo sistemático do
que se denomina de branquitude ou privilégio racial como uma dimensão do
racismo (Schucman, 2012).

Ao apontarmos essas situações fica difícil assumirmos que o letramento jurídico é


universal e não racializado, porque ele o é, senão na superfície visível ao nosso
olhar, ao menos enquanto premissa de raciocínio baseado na sua negação. Seria
possível afirmar que o pensamento dominante no ambiente acadêmico das
Faculdades de Direito letra juridicamente negando o racismo, a existência de raças
enquanto fenômenos histórico, político e social, as formas de manifestação do
racismo, os diferentes processos de exclusão que o racismo alcança e dos
privilégios que o racismo produz. Dentro de um ambiente acadêmico que preza
pela pluralidade e circulação de ideias, o letramento racial constitui, sem sombra
de dúvidas, uma ferramenta fundamental para que outros olhares possam
coexistir nas mais diversas dimensões deste espaço institucional.

Para a compreensão do que entendemos sobre letramento jurídico-racial crítico e


sua importância, alguns questionamentos são fundamentais: “Quais” são e “de
quem” são os letramentos usados nos cursos de Direito para a análise de
problemas estruturais de nossa sociedade? Eles contemplam os letramentos
produzidos por aqueles que vivenciam o racismo – no caso, pessoas negras? O
letramento racial adquirido por pessoas negras ou brancas, antes ou até mesmo
após a entrada na Faculdade de Direito, possui ambiente acadêmico receptivo para
a necessária discussão, reflexão, crítica ou aperfeiçoamento dos mais variados
assuntos estudados durante o curso? Quais são os limites do letramento jurídico
diante de uma demanda de alunas e alunos ansiosos por conhecerem mecanismos
jurídicos de justiça racial? O letramento jurídico produzido pelas Faculdades de
Direito colabora para a emancipação ou para a manutenção do status quo racial de
grupos historicamente excluídos? Como é possível perceber, o letramento racial
nos leva a questionar os modelos de ensino e aprendizagem que negam a diferença
e normatizam o esvaziamento das narrativas de pessoas negras – assim como de
mulheres, pessoas LGBTQIAP+, portadores de deficiência, povos originários e de

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Letramento jurídico-racial crítico 747

todas as existências que são, em nome de um modelo normativo, apagadas das


cenas discursivas.

Ao defendermos a reflexão, diálogo e prática do letramento jurídico-racial crítico,


estamos nos referindo a um instrumento que pretende questionar as diretrizes
curriculares e as práticas pedagógicas dos cursos de Direito para que contemplem,
nas suas mais diversas dimensões, os letramentos que garantam a diversidade
racial no currículo escolar, na bibliografia, na composição do corpo docente e
discente, no ensino, na pesquisa e na extensão. Trata-se de um instrumento apto a
garantir que toda comunidade acadêmica possua condições de analisar o racismo
presente no cotidiano e ao mesmo tempo estabelecer uma agenda antirracista
distante do superficialismo do discurso dominante e mais próxima dos
letramentos que resistem à opressão racial. Ele é crítico, pois, ao mesmo tempo que
reconhece os limites que as leis podem ter na solução de problemas estruturais,
também reconhece que um ensino jurídico que valoriza e respeita os letramentos
produzidos por aqueles que vivenciam cotidianamente esses problemas
constituem fator fundamental para a sua superação.

Nossa reflexão inicial sobre o letramento jurídico-racial crítico procurou


especialmente considerar a importância de um letramento que se oriente a partir
da produção intelectual de autoras e autores negras e negros, a fim de influenciar
diálogos, discussões, ações e práticas pedagógicas no ensino jurídico e em toda a
comunidade acadêmica na qual está inserido. Não estamos, de forma alguma,
essencializando o debate, mas apontando alternativas, como bem nos diz Lélia
Gonzalez, para a superação de uma “cegueira em face da explosão criadora de algo
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752 Tiago Vinicius André dos Santos

Sobre o autor
Tiago Vinicius André dos Santos
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Estadual de Mato
Grosso do Sul (UEMS) tendo já realizado estágio de pesquisa e cursos de
Direitos Humanos na Faculdade de Direito da Universidade de
Columbia em Nova Iorque, no Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra e na Organização das Nações Unidas em
Genebra. Coordenador do Projeto de Pesquisa “Fundamentos Teóricos
do Direito Antidiscriminatório”, vinculado à Pró-Reitoria de Pesquisa e
Pós-Graduação da UEMS.

_________________
Nota
Este texto é fruto das reflexões decorrentes do projeto de pesquisa
“Fundamentos Teóricos do Direito Antidiscriminatório”, cadastrado na Pró-
Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UEMS em atendimento ao EDITAL
UEMS N° 004/2018.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52207

temas geradores

Maria Sueli Rodrigues de Sousa


Maria Sueli Rodrigues de Sousa

Maria Sueli Rodrigues de Sousa

Eduardo Wallan Batista Moura1 Lara Melinne Matos Cardoso3


1
Universidade de Brasília, 3
Universidade de Brasília,
Programa de Pós-Graduação em Programa de Pós-Graduação em
Direito, Brasília, Distrito Federal, Direito, Brasília, Distrito Federal,
Brasil; E-mail: Brasil. E-mail:
[email protected]. [email protected]. ORCID:
ORCID: https://orcid.org/0009- https://orcid.org/0000-0002-9270-
0004-7797-6973. 4632.

Iago Masciel Vanderlei2 Zilda Letícia Correia Silva4


2
Universidade de Brasília, 4
Universidade de Brasília,
Programa de Pós-Graduação em Programa de Pós-Graduação em
Direito, Brasília, Distrito Federal, Direito, Brasília, Distrito Federal,
Brasil. E-mail: Brasil. E-mail:
[email protected]. ORCID: [email protected].
https://orcid.org/0000-0003-2665- ORCID: https://orcid.org/0000-0001-
8911. 8369-9459.

Submetido em 10/01/2024
Aceito em 12/01/2024

Como citar este trabalho


BATISTA MOURA, Eduardo Wallan; MASCIEL VANDERLEI, Iago; MATOS CARDOSO, Lara
Melinne; CORREIA SILVA, Zilda Letícia. Maria Sueli Rodrigues de Sousa. InSURgência:
revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 753-765, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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754 Eduardo Wallan Batista Moura - Iago Masciel Vanderlei -
Lara Melinne Matos Cardoso - Zilda Letícia Correia Silva

Maria Sueli Rodrigues de Sousa

Você conhece professora Sueli? Com um sorriso aberto essa é a pergunta com que
uma estudante baiana, ao saber que uma das autoras deste verbete era do Piauí,
responde a pergunta sobre onde havia um local para alimentação nas
proximidades. Devolvemos a pergunta a você, leitor(a): você conhece a professora
Maria Sueli Rodrigues de Sousa? Este verbete busca apresentar essa sujeita
histórica complexa a partir do seu fazer acadêmico e de três chaves de leituras das
suas proposições teóricas: descentramento cognitivo, socioambientalismo e
constitucionalismo.

Profa., Professora Sueli, Maria Sueli, Sueli Rodrigues, atuou como educadora e
pesquisadora vinculada ao curso de direito da Universidade Federal do Piauí
(UFPI) e integrou o Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/UFPI), o
Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública (PPGP/UFPI) e o Núcleo de
Pesquisa sobre Africanidades e Afrodescendências (IFARADÁ/UFPI). Nasceu no
Saco da Ema (Campestre), comunidade do município de Francinópolis, Piauí,
Brasil, em 1964, graduou-se em ciências sociais pela UFPI e em direito pela
Universidade Estadual do Piauí (UESPI), possuía mestrado em Desenvolvimento
e Meio Ambiente (UFPI) e doutorado em Direito, Estado e Constituição (UnB).

A atuação acadêmica de Sueli é marcada por quatro características inter-


relacionadas: (i) compromisso com o fazer acadêmico: (ii) propositividade; (iii)
amorosidade; e (iv) coletividade. Professora Sueli encarava com seriedade o seu
fazer acadêmico, tratava-se de um compromisso com a universidade, com a
sociedade e com a vida de todos os seres. Sua trajetória escolar, do fundamental ao
doutorado, foi marcada pelo deslocamento territorial: Saco da Ema (PI) - Elesbão
Veloso (PI) - Francinópolis (PI) - Boa Vista (RR) - Teresina (PI) - Picos (PI) - Teresina
(PI) - Brasília (DF). A renúncia das vidas que não foram vividas para realizar sua
formação acadêmica parecem informar a exigência que ela estabelecia sobre o seu
próprio fazer. Profa. brincava, com tons de verdade, que o seu corpo era
disciplinado pelas amarras da modernidade-colonialidade, afirmação seguida de
uma saborosa gargalhada.

Nos agradecimentos de sua tese de doutorado afirmou que “o tempo de doutorado


na minha vida foi a seqüência (sic) do mestrado. Por isso, muito, muito longo. Tão
longo que, quando olho para trás, vejo muita vida não vivida, que eu queria muito
ter vivido” (Sousa, 2009, p. 5). Custos que não decorreram de uma escolha por
desejo de realização profissional ou vocação, apesar da competência com que
exerceu as atividades de ensino, pesquisa e extensão: “eu não escolhi fazer

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mestrado e doutorado, o mercado de trabalho escolheu para mim. E aquela vida


não vivida eu escolhi. Trocar o escolhido pelo não escolhido traz as marcas do
sacrifício, da dor” (Sousa, 2009, p. 5).

Esse compromisso acadêmico era imbricado com as necessidades da política de


contribuição para a melhoria de vida das pessoas e isso parece ter orientado parte
das suas movimentações acadêmicas. Integrante da diretoria do Sindicatos de
Professores (SINPRO), do Partido dos Trabalhadores (PT) e do movimento de
mulheres, decidiu não concluir o curso de letras por não contemplar as pautas
políticas que lhe mobilizavam e ingressou no curso de Ciências Sociais (Sousa,
2018; 2022). O curso de graduação em direito teria vindo da necessidade de
encontrar advogados coerentes com a defesa do movimento sindical (Sousa, 2022).

Essa imbricação exigia que seu fazer acadêmico fosse marcado pela
propositividade, exigência que ela fazia a todos(as) os seus orientandos(as/es). Ela
nos ensinava que a curiosidade era um instrumento importante da pesquisa, que
com ela vinha a pulsão para conhecer e era esse local de conhecimento, de quem
produziu conhecimento em sua relação com os(as) sujeitos(as) e as fontes de
pesquisa, que gerava a responsabilidade de propor uma solução para os problemas
pesquisados. Descrever era muito importante, mas também era preciso propor
uma solução, ainda que precária, mas que pudesse ser aperfeiçoada depois, pelo(a)
próprio(a) pesquisador(a) ou por outro(a). A mudança da área interdisciplinar no
mestrado, com orientação da sociologia, para o direito no doutorado, ocorreu por
essa característica do seu fazer científico: era preciso diagnosticar e elaborar
soluções, ainda que preliminares.

Eu achava que eu não ia fazer nada de Direito e, além disso, fiquei muito
empolgada com o mestrado. Pensava: “é essa linha que eu quero seguir”.
Aí me deu a louca quando me deparei com a Serra da Capivara. E me
animei: “eu vou fazer isso no Direito”. Porque o Direito não tem pudor de
dar solução. E os outros cursos têm muito pudor (Sousa, 2022, p. 56).

Como a dor, o sacrifício e os custos aparecem em diversos momentos na narrativa


de Sueli sobre sua vida acadêmica e profissional, o amor e a energia realizadora
com a qual ela desenvolveu suas atividades correm o risco de se tornarem, em
geral, espectros em sua narrativa. Havia uma dificuldade de Sueli em narrar a partir
da beleza a sua vida acadêmica, o que ela viveu e o que construiu em meio às
dificuldades que lhe foram impostas. Aspecto complexo de quem em seu fazer
tinha tanto compromisso disciplinar com a docência, a pesquisa, a extensão, as
comunidades com quem trabalhou, seus(suas) estudantes, mas também possuía
muito afeto, esperança e sonho nesse construir.

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Em nossas conversas refletimos que boa parte do que produziu e realizou também
foi por gosto, ainda que isso pouco apareça em suas reflexões sobre sua trajetória.
Era comum ela responder com um breve silêncio seguido um sorriso de travesso.
A entrevista concedida a Fernanda Lima, Gabriela Sá e Marcos Queiroz, um dos
últimos textos publicados com seu pensamento, é um momento em que ela relata
sua mudança de perspectiva. Tanto quando relata que foi “empurrada pra
pesquisa não porque eu quisesse, mas porque o mercado de trabalho me empurrou.
Eu fui sentindo interesse durante o doutorado” (Sousa, 2022, p. 57), como quando
afirma que

Eu pensava assim, que a academia é um lugar imprestável. Mas eu mudei


de ideia. Porque a gente conversando, a gente pode se encontrar. Se eu
estivesse boa, eu ia me aposentar com 70. Porque eu não preciso do meu
colega pra fazer nada. Eu preciso dialogar com estudante (Sousa, 2022, p.
63).

No seu fazer acadêmico, Professora Sueli construiu redes, promoveu o ensino


participativo e realizou pesquisas e atividades extensionistas coletivas, com
estudantes, comunidades e movimentos sociais. Possuía a capacidade de aglutinar
pessoas que acabavam conquistadas pelo desejo de participar das ações que
promovia e transitava entre a juventude e as “referências”. Um estar junto que não
esteve isento das tensões próprias da convivência em comunidade e que não deve
omitir a distribuição desequilibrada de tarefas que ela assumiu, um risco talvez
presumível em razão da diferença de experiência acadêmica e política entre ela e
seus(suas) parceiros(as), que teve um custo físico e emocional excessivo e que não
foi suficiente para protegê-la dos isolamentos e das violências sofridas no espaço
acadêmico.

O compromisso com a política transformativa e a formação cidadã dos(as)


estudantes levaram Sueli ao isolamento institucional dentro do corpo docente do
Departamento de Ciências Jurídicas da UFPI, ao mesmo tempo em que apresentou
e abriu caminhos para estudantes, militantes e integrantes das comunidades com
as quais dialogou. No âmbito acadêmico, apresentou a pesquisa como
possibilidade profissional para uma geração de pesquisadores que hoje integram
o quadro docente de universidades, o corpo discente de Programas de Pós-
graduação, a equipe de assessorias jurídicas populares e/ou diferentes espaços
profissionais, constituindo uma rede de sujeitos(as) afetados(as) pelo pensamento
de Maria Sueli Rodrigues de Sousa.

Uma das principais categorias que a intelectual mobilizou foi o descentramento


cognitivo. Para Sueli, a racionalidade moderna é gestada com o projeto político de
dominação da Europa sobre outras regiões do mundo, patrocinado pela Igreja

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Católica e iniciado pela edição de Bulas Papais (e.g. Dum Diversas) que autorizaram
a colonização de territórios para pregar o cristianismo. A expansão ideológica
acompanhou a exploração territorial: os processos de dominação e espoliação
advém dessas bases.

A concepção religiosa cristã, além da ideia da religiosidade manifesta, com


proselitismo (pregação para a revelação de uma “verdade”) e sacralização ligada
ao sobrenatural, afastando o sagrado de uma natureza imediata (Sousa, 2020b),
carrega em si noções de forte antagonismo (bom-mau; deus-diabo; branco-negro).
Mesmo com a posterior laicização dos Estados, isso ocasionou uma aproximação
do sagrado pela “imagem e semelhança” de um deus criado pelos europeus,
associando todo o diferente à negatividade e à ideia de que apenas a religião cristã
(por extensão, a civilização europeia) “salvaria o mundo”.

Com os eventos das duas Grandes Guerras, a justificação da racionalidade moderna


precisou ser reformulada: de tão encerrada em si mesma, a Europa começou a se
desintegrar pelo próprio ethos expansionista sem limites. Este período de crise
permitiu que mudanças fossem implementadas em relação às concepções
predominantes de identidade e comunidade: para sobreviver, a Europa fez
algumas concessões.

Vale lembrar que as categorias desenvolvimento, constitucionalismo,


direitos humanos e direitos fundamentais se tornaram estruturantes da
racionalidade moderna após as duas guerras mundiais, em que as
referidas categorias emergiram com natureza corretiva: o
desenvolvimento como correção do progresso; constitucionalismo,
direitos humanos e direitos fundamentais, como correção do direito.
Foram consensos, ainda que precários, produzidos no pós-guerra como
forma de salvar a lógica da racionalidade moderna (Sousa, 2020b, p. 59).

Sueli (Sousa, 2020) argumenta que no pós-Guerra a narrativa da racionalidade


moderna foi recuperada, reverberando nas construções acerca do
constitucionalismo liberal do “rule of law”, que se escusaram na “proteção aos
direitos humanos” para iniciativas colonialistas e guerras. Dessa forma, é preciso

evidenciar a pluralidade de vidas e culturas só é possível a partir de


reflexões que permitam identificar que o projeto eurocêntrico se firmou
atacando outras visões de mundo que são reveladas pelas resistências de
povos colonizados como os continentes América Latina, África e parte da
Ásia (Sousa, 2020b, p. 59-60).

A brecha discursiva do constitucionalismo moderno expressa pelo objetivo de


promover um igual pertencimento fez com que Sueli (Sousa, 2020b, p. 63)
indagasse: “Qual a reciprocidade numa sociedade racializada movida pelo

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racismo estruturante? Não há”. Ela percebe, entretanto, que a positivação deste
ponto discursivo autoriza que sejam reconstruídos os modos de pactuação de
comunidades, pensando além da racionalidade moderna.

Com esse alicerce, Sueli Rodrigues propõe a categoria de “descentramento


cognitivo” como novo horizonte, em que se consideram as múltiplas experiências
de vida de povos racializados e subalternizados, destacando o mundo da
diversidade de modos de ser, fazer, pertencer e pensar que foram atacados,
esquecidos ou desvalorizados. Os diferenciais desta proposição são a
horizontalidade e a noção de urdidura: não há mais como desfazer o caminho de
violência e opressão das colonizações: resta abrir caminhos para a manifestação da
diversidade que sempre existiu, mas permaneceu sufocada e deslegitimada.
Pertencer, é, assim, aglutinar, cruzar e unir cosmopercepções, modos de ser e fazer
para promover o Bem-Viver de todos de modo não hierarquizado (o que implica
também na consideração do igual pertencimento das vidas não- humanas).

Este exercício contempla também a mudança na percepção de uma temporalidade


linear para versões diversas: “a vida não é uma estrada em linha reta” (Sousa,
2018). Estas concepções divergem do imaginário moderno. Ao considerar a
multiplicidade de fatores que influem na vida e no bem-estar humano, Sueli
propõe uma reelaboração que implique conexão entre teoria, epistemologia e
ontologia com o objetivo de apresentar possibilidades da construção de
conhecimento relacionando subjetividades, abolindo a clivagem de sujeito-objeto
eurocêntrica.

A questão socioambiental esteve presente na trajetória de Sueli desde a infância,


quando aos seis anos de idade viu a separação de sua família em decorrência do
período de seca que castigou a caatinga piauiense na década de 1970. Em entrevista
concedida à revista Revestrés, ao relembrar de sua história, Sueli afirmou ser
“impressionada com a seca, porque nossa família se separou e eu só reencontrei
meu pai quando já era uma mulher adulta” (Sousa, 2018). Em “Coro dos
Anjinhos”, texto literário de Sueli publicado1 na Alemanha, ela descreve um
contexto semelhante ao da realidade que a cercava quando criança que a marcou
tão profundamente. No texto, Sueli narra a história de Joana, mostrando as veredas
entre dores e sutilezas do cotidiano de uma “viúva da seca”2 que enfrentava

1 Publicado originalmente na Alemanha, pela Revista Brot & Rosen Unser tägliches Brot gib uns
heute, Berlim, 2004, p. 53-55.
2 “as mulheres que no Nordeste brasileiro foram abandonadas por seus maridos, quando estes
migraram fugindo da seca, em busca de vida melhor e nunca mais voltaram” (Sousa, 2021, p. 51).

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diariamente as dificuldades da fome e da pobreza que tanto maltratou o povo do


sertão (Sousa, 2021).

A história de Joana, assim como a experiência vivida por Sueli com o deslocamento
forçado de seu pai por conta da seca, reforça o principal fundamento de sua obra
para se pensar a questão socioambiental, que é a necessidade de enfrentamento à
lógica antropocêntrica da modernidade-colonialidade de que existe uma cisão
entre natureza e cultura (Sousa, 2021). Em toda sua obra, Sueli foi uma crítica da
racionalidade moderna que enxerga, em diversos espaços e temporalidades, uma
fratura entre seres humanos e natureza – como na entrega da natureza para
domínio do homem em Gênesis 1:28; a acumulação primitiva de capital na
espoliação colonial; a racionalidade cartesiana que fundamentou cientificamente a
relação sujeito-objeto entre homem e natureza; a crise dos limites do antropoceno;
dentre outros.

O esforço do descentramento cognitivo da modernidade empreendido por Sueli


está na base do seu modo de pensar a sociedade como parte integrante da
natureza, constituindo-o como fundamento estruturante da sua agenda de
pesquisa acadêmica e agência política nos movimentos sociais, enxergando
sociedade e natureza de forma relacional, horizontal e complementar, não
instrumental e orientada por critérios de utilidade econômica conforme
determinado pela racionalidade moderna. Foi na pesquisa comprometida com a
transformação político-social que Sueli encontrou seu lugar, articulando
proposições implicadas na defesa dos direitos das comunidades tradicionais e de
seus territórios contra grandes projetos de desenvolvimento3.

Narra em entrevista que por ser apaixonada pela natureza decidiu pesquisar o tema
no mestrado. Na dissertação buscou entender como o imaginário social do
semiárido havia se formado, sem aderir à narrativa simplificadora dos
“condenados da seca”, pois mesmo ali, “via cada pessoa criando gado, plantando
milho, plantando arroz, feijão, que não era propício para um lugar que não chovia
em abundância” (Sousa, 2022, p. 54). Foi ainda durante a pesquisa de mestrado,
aprofundando-se nas complexidades dos modos de vida do semiárido piauiense,
que identificou o conflito entre o povo de Zabelê e a administração do Parque
Nacional da Serra da Capivara, seu tema de doutorado. Na tese, Sueli dialoga com

3 Em discurso durante o evento Show da Resistência, em 2017, na praça Pedro II, Sueli afirma
enfaticamente ser “contra o desenvolvimento”, defendendo que a modernidade prega o des
envolver, quando na verdade precisamos pautar a vida por uma lógica de envolvimento. Sueli
defende que o envolvimento (com a natureza, com a comunidade, etc) é o verdadeiro caminho
para a felicidade.

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os movimentos ambientalistas e a teoria habermasiana (Habermas, 2003) para


apontar a complexidade dos problemas do modelo de uma proteção ambiental que
pensa a natureza apartada da comunidade, como um mito intocável (Sousa, 2009;
Diegues, 2008).

Essa agenda de pesquisa comprometida com a defesa dos modos de vida das
comunidades do campo ganhou ainda mais corpo após a criação do DiHuCi,
grupo de pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania vinculado à Universidade
Federal do Piauí, criado e coordenado por Sueli. Com a formação do grupo, reuniu
uma comunidade de pesquisadores(as) que se empenham não apenas em realizar
pesquisas empíricas em matéria socioambiental, mas em ingressar na luta pelos
direitos fundamentais dos sujeitos envolvidos nas pesquisas por meio de espaços
de assessoria jurídica popular prestado às comunidades em paralelo às pesquisas.
Projetos de desenvolvimento baseados nos “desertos” de eucalipto para produção
de carvão e celulose; inundação de áreas habitadas para construção de barragens
no Rio Parnaíba para exploração de energia hidrelétrica; deslocamento forçado de
comunidades pesqueiras para especulação imobiliária; tentativa desapropriação
de territórios quilombolas por latifundiários; destruição ambiental e deslocamento
forçado de comunidades quilombolas para construção de ferrovias, dentre outros,
são exemplos de pesquisas comprometidas com a transformação que foram
conduzidas pela professora Sueli e que a racionalidade do desenvolvimento se
colocou como um vetor de violações de direitos fundamentais.

O esforço teórico empreendido por Sueli ao longo de sua obra-vida facilita a


compreensão em torno da lógica destrutiva do desenvolvimento. Em diálogo com
Ribeiro (1992), Sueli discute como o caráter macrointegrativo do desenvolvimento
faz com que a abertura e polissemia desse conceito seja capaz de nos ludibriar,
levando todos a acreditarem no caráter exclusivamente benéfico do
desenvolvimento, a ponto de críticas ao desenvolvimento serem tomadas como
algo absurdo, pois ele é tido como uma das bases cultura ocidental e seu significado
associado a algo positivo. No entanto, mostra como a lógica do desenvolvimento
corresponde a valores específicos da racionalidade moderna que

emergiu no âmbito das discussões sobre a situação social e econômica dos


Estados nação como uma espécie de correção de termos como progresso,
crescimento econômico, civilização, colonização, todos enfeixados na ideia
de projeto único de ocidentalizar as comunidades políticas. Quanto mais
próximo do modelo ocidental, mais desenvolvido, e quanto mais distante
do citado modelo, menos desenvolvida será a nação” (Sousa, 2020, p. 59).

Em síntese, define que a lógica do desenvolvimento representa “a manutenção do


projeto de colonialismo em forma de colonialidade” (Sousa, 2021, p. 113).

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Argumenta que a construção de alternativas ao desenvolvimento deve ser operada


a partir do descentramento cognitivo da modernidade, descortinando as
contribuições dos povos subalternizados das periferias do sistema. Um passo
primordial para a construção das alternativas ao desenvolvimento seria o
deslocamento da matriz ontológica e epistemológica da modernidade, pois não há
como sair da crise da modernidade seguindo seus roteiros. Esse descentramento é
necessário para que se possa enxergar reais alternativas ao desenvolvimento, e não
propostas como o desenvolvimento sustentável, que não rompem com a lógica
expansionista da modernidade, sobretudo nas periferias. Adotando esse
distanciamento dos enquadramentos da modernidade, vislumbra-se a
possibilidades concretas de enfrentamento à modernidade e construção de outros
mundos, como o decrescimento, o bem-viver e o novo constitucionalismo latino-
americano.

Na obra de Sueli, a reflexão sobre o constitucionalismo parte da afirmação de que


“temos constitucionalismo em todos os tempos!” (Sousa, 2019, p. 311), ao entender
o constitucionalismo enquanto existência de uma comunidade política em torno
de um território com regras para guiar as relações internas e a autoproteção. O
problema seria que a abstração europeia sobre a comunidade política como um
modelo construído a partir da negação de outras formas de vida atravessa o
constitucionalismo e faz com que a melhor narrativa que o povo faz sobre si
(Dworkin, 2003) seja marcada pelo colonialismo e pelo racismo. Sueli desvela que
a unicidade do projeto modernidade-colonialidade gera crises na experiência
constitucional e, nesse cenário, a expressão da pluralidade do constitucionalismo
se dá pela revelação do que foi ocultado e pela valorização do que foi inferiorizado
(Sousa, 2020b).

É a partir da percepção de que é necessário deixar de lado o modo de narrar a si


imposto pela experiência colonial que se torna possível observar as resistências
empreendidas por aqueles que tiveram os seus modos de vida e visões de mundo
violentados pelo projeto eurocêntrico. Trata-se do descentramento cognitivo em
relação às crises empreendidas por esse modelo (Sousa, 2020b). Por isso, Sousa
(2020b) impulsiona o exercício de voltar o olhar às lutas para se tornar igual
pertencente ao pacto de nação e as mudanças estruturais provocadas por elas.

O esforço para a consolidação de uma suposta superioridade europeia em


detrimento da inferiorização das populações colonizadas, materializado pelas
políticas eugenistas e pela hierarquização cultural, afeta a construção da
subjetividade do colonizado e gera o sentimento de não pertencimento ao pacto de
nação. Diante desse diagnóstico, Sueli propõe articular a memória coletiva como
justiça de transição para reparar a escravidão negra no Brasil (Sousa, 2021). A

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categoria do descentramento cognitivo é um instrumento de identificação das


estruturas que perpetuam a marginalização da população negra, mas também das
resistências que indicam os caminhos para reconstrução da memória coletiva
(Sousa, 2020b).

Utiliza-se a justiça de transição por ser uma abordagem que se baseia em medidas
de reconstrução da memória e de recuperação de narrativas anteriormente
negadas, e também porque não foram aplicadas medidas transicionais em relação
às violências decorrentes do período colonial em nenhum território (Sousa, 2021).
A memória coletiva é essencial nos processos históricos para preservar o valor do
passado para os grupos sociais (Halbwachs, 1990) e, no caso brasileiro, estando a
memória coletiva afetada pelo racismo, há evidentes danos na formação da
identidade do sujeito constitucional (Sousa, 2021).

Sueli pontua que, no contexto democrático, a centralidade do debate da reparação


à escravidão deve residir na pactuação da igualdade. Como o apagamento da
história dos registros dos atos heroicos do povo negro impede a sua inscrição na
memória coletiva, recuperar a história de Esperança Garcia e a sua luta pelo direito
apresenta-se como um mecanismo de reparação (Sousa, 2021). Por meio dos
trabalhos da Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB PI, que Maria
Sueli Rodrigues de Sousa presidiu, foi realizado o requerimento para reconhecer
Esperança Garcia como advogada piauiense. Os focos do projeto Esperança Garcia
eram o direito à memória e à verdade sobre a escravidão negra no Piauí e os crimes
cometidos nesse período, além da reparação (Sousa, 2017).

A discussão delineada sobre a natureza jurídica da carta de Esperança Garcia parte


do reconhecimento da pertença negríndia à comunidade política. A carta foi tida
como peticionamento por compreender qualificação, pedido, razão de pedir e
endereçamento: mas, para além disso, foi reconhecido que mesmo em uma
sociedade fundada na desigualdade entre o soberano e os súditos, Esperança
Garcia agiu como membro da comunidade política para acionar as garantias que
estavam ao seu alcance (Sousa, 2019, 2021). O sentido do processo no
reconhecimento de Esperança Garcia diz muito sobre a atuação política e
acadêmica de Sueli, empreendendo os significados da carta no presente para
denunciar os obstáculos promovidos pelas violências do racismo e para enunciar
a intelectualidade coletiva das figuras de resistência.

Referências

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HUCITEC, 2008.

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em Direito da Universidade de Brasília, 2009.

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764 Eduardo Wallan Batista Moura - Iago Masciel Vanderlei -
Lara Melinne Matos Cardoso - Zilda Letícia Correia Silva

SOUSA, Maria Sueli Rodrigues de. Imaginário Social de Semi-árido e o Processo de


Construção de Saberes Ambientais: o caso do município de Coronel José Dias - Piauí.
Teresina: Programa Regional de Pós-Graduação (Mestrado) em Desenvolvimento
e Meio Ambiente da Universidade Federal do Piauí, 2005.

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Maria Sueli Rodrigues de Sousa 765

Sobre os autores e as autoras


Eduardo Wallan Batista Moura
Doutorando e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade de Brasília. Membro do Grupo de pesquisa e
extensão em Direitos Humanos e Cidadania-DiHuCi (UFPI).

Iago Masciel Vanderlei


Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade de Brasília. Membro do Grupo de pesquisa e extensão em
Direitos Humanos e Cidadania-DiHuCi (UFPI).

Lara Melinne Matos Cardoso


Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade de Brasília. Mestre em Sociologia pelo Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Piauí.
Membro do Grupo de pesquisa e extensão em Direitos Humanos e
Cidadania-DiHuCi (UFPI).

Zilda Letícia Correia Silva


Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade de Brasília. Membro do Grupo de pesquisa e extensão em
Direitos Humanos e Cidadania-DiHuCi (UFPI).

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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52340

temas geradores

Enrique Dussel e o direito


Enrique Dussel y el derecho

Enrique Dussel and the law

Ricardo Prestes Pazello1


1
Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Direito,
Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-9961-0583.

Submetido em 22/01/2024
Aceito em 22/01/2024

Como citar este trabalho


PAZELLO, Ricardo Prestes. Enrique Dussel e o direito. InSURgência: revista de direitos e
movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 767-800, jan./jun. 2024.

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ISSN 2447-6684

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768 Ricardo Prestes Pazello

Enrique Dussel e o Direito

No fundo estamos contra o colonialismo teórico da filosofia política da maneira


como é praticada na América Latina (e também na Espanha e Portugal), pelo que
defendemos levar a sério o “giro descolonizador”, com o qual a filosofia da
libertação está comprometida há décadas, insistindo na necessidade de partir de
novas perspectivas na nossa reflexão, que não podem ser meramente imitativas ou
de comentadores autorizados da filosofia política europeia-norteamericana, que
necessariamente é muito diferente na prática, na institucionalização e na percepção
da normatividade dos princípios da política praticada na América Latina (Dussel,
2020c, p. 558).

Introdução (aos camaradas do IPDMS)

O final do ano de 2023 foi marcado pela triste notícia do falecimento de Enrique
Dussel, um dos maiores nomes do pensamento crítico latino-americano. Cultor da
filosofia da libertação, sua multifacética obra se desdobra em um tão amplo leque
de enfoques sobre as possibilidades da América Latina, do sul do mundo e de todo
o bloco social dos oprimidos, que seu desaparecimento repercute como um duro
golpe em todos os que se dedicam a essa abordagem. No entanto, seu legado tende
a seguir firme, justamente devido ao quão ancha e profunda fora sua produção
teórica.

O presente verbete foi-nos demandado pelos editores da InSURgência: revista de


direitos e movimentos sociais e assumimos a tarefa de escrevê-lo com a humildade de
quem tem certeza de que é impossível reduzir em poucas laudas as contribuições
de Dussel, mas também de quem não desconhece a necessidade de continuar
dando vida às interpretações que dele podem decorrer sobre os mais variados
temas. No caso do campo de investigações críticas sobre o direito, ainda mais,
porque é relativamente comum ler ou ouvir que Dussel não se dedicou em
específico aos problemas jurídicos (argumento que costuma acompanhar tantos
outros autores clássicos), sendo portanto de difícil apreensão e manejo. É uma
verdade bastante parcial, porém, esta que diz que a filosofia dusseliana não se
voltou ao direito.

A parcialidade reside em alguns fatos. O primeiro implica reconhecer que Dussel,


em vários momentos de sua obra, referiu-se explicitamente a questões jurídicas
que merecem ser sempre revisitadas – a elas é que mais dedicaremos nossa atenção

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Enrique Dussel e o direito 769

aqui. Também, houve razoável utilização de suas reflexões para se propor uma
teoria crítica (ou mesmo teorias críticas, no plural) do direito. Além disso,
entendemos que estes dois caminhos de encontros entre Dussel e o direito podem
oferecer uma metodologia de estudos de mão dupla: por um lado, podemos buscar
o direito em sua obra, mesmo aquela que não se atém propriamente ao tema, ainda
que o referindo de passagem; por outro, é mais do que possível, porque necessário,
valermo-nos da condução epistêmica dusseliana, em várias sendas – das questões
filosóficas mais amplas àquelas mais específicas em torno da ética, da economia
política ou ainda da política –, para a aplicarmos aos estudos jurídicos.

Sendo assim, esboçamos este verbete como um guia de leitura da obra de Dussel,
que tamanho serviço pode prestar à pesquisa jurídica. Na realidade, toda uma
geração de intelectuais veio se forjando sob sua influência, especialmente no
âmbito da crítica jurídica brasileira. A prova disso é que, por exemplo, o Instituto
de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) – que organiza a revista
InSURgência – é composto por várias pesquisadoras e vários pesquisadores que
frisamos a importância do autor, reivindicando-o desde sua fundação. Assim, o
primeiro número de nosso periódico, que publicamos três anos após a criação do
próprio Instituto, já contava com a tradução de um de seus textos sobre o direito
(Dussel, 2015) e, mais recentemente, em coletivo produzimos um ensaio-
homenagem fazendo um balanço de como a fundamentação teórica de seis teses
de nossas teses de doutorado, escritas e defendidas na década de 2010, se deu a
partir do pensamento dusseliano (Pazello; Maldonado Bravo; Diehl; Ferrazzo;
Leonel Júnior; Machado, 2024).

Como dissemos, trata-se não de um artigo analítico mas de um guia de leitura, que
terá de constranger, em espaço bastante limitado, um sem número de
possibilidades de interpretações filosóficas sobre o direito, a partir de Dussel.
Destacaremos, sem dúvida, referências explícitas em suas obras. Mas não podemos
deixar de registrar também que houve pesquisas jurídicas pioneiras. Tomando o
Brasil como exemplo, lembramos aquelas que se ancoraram em sua perspectiva,
sendo que uma das primeiras e mais aprofundadas foi a de Ludwig (2006), cuja
dissertação de mestrado de 1993 seria lançada, anos depois, como livro. Também,
mostra-se relevante consignar a produção de Wolkmer, que, após trajetória
envolvida com essa interlocução, chega a figurar como coautor (Wolkmer;
Machado, 2022) no último volume do projeto de Dussel (2022) que encerra a
trilogia deste sobre a Política da libertação, em livro coletivo organizado pelo próprio

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770 Ricardo Prestes Pazello

filósofo latino-americano.1 Tanto Ludwig quanto Wolkmer, aliás, estão presentes


na enciclopédia de mil páginas organizada por Dussel, ao lado de Eduardo
Mendieta e Carmen Bohórquez (2011), chamada El pensamiento filosófico
latinoamericano, del Caribe y “latino” (1300-2000): historia, corrientes, temas y filósofos.
Os dois têm artigos seus incluídos na obra (por exemplo: Ludwig, 2011; e
Wolkmer, 2011), mas também verbetes sobre sua produção jusfilosófica escritos
por outros autores (respectivamente: Chaves, 2011; e Costella, 2011).

A seguir, proporemos nossas indicações didáticas a respeito de como aparece, ao


longo da imensa obra de Enrique Dussel, a temática do direito, divididas em dez
momentos, os quais contemplam os principais ciclos de sua produção teórica
(considerando seus textos centrais em cada ciclo e, eventualmente, outros que
deles se desdobram), que tematizam a questão jurídica.

1 Pequeno apontamento biográfico em busca de


sentido

Foi assim que Enrique Domingo Dussel Ambrosini nomeou um dos textos da fase
final sua produção bibliográfica que destaca sua própria trajetória: En búsqueda de
sentido: sobre el origen y desarrollo de una filosofía de la liberación. A prática de refletir
sobre o mundo mas também de pensar como refletir esse mundo acompanhou
toda a obra dusseliana. Em vários momentos dela, evocou seu contexto biográfico
e histórico para situar o que estava escrevendo e sobre o que estava refletindo.
Aqui, tomaremos uma das referências mais recentes por ele deixada, para
apresentarmos algumas notas sobre sua trajetória pessoal.

De pai médico e agnóstico e mãe professora e católica, Dussel nasceu a 24 de


dezembro de 1934, em um povoado no interior da Argentina. La Paz, na província
de Mendoza, dera a Dussel a identidade de ser um provinciano de “tierra adentro”
(ele chegou a usar a expressão brasileira “sertanejo” [Dussel, 2012a, p. 18]). Depois,
viveu em Buenos Aires e retornou a Mendoza, dessa vez para sua capital
provincial. Militante estudantil, participara da Ação Católica e tivera a experiência
de ter sido preso político ainda na adolescência (por conta de greves de estudantes
contra Perón). Seus estudos passaram por uma escola técnica agrícola e a de belas
artes, até adentrar a faculdade de filosofia, na Universidade Nacional de Cuyo.

1 Neste livro, um dos últimos, senão o último, publicado por Dussel, afora textos de sua própria
lavra, sem prejuízos de outros que também façam abordagens gerais, há pelo menos mais dois
especialmente concentrados na problemática do direito, escritos por Mario Ruiz Sotelo (2022) e
José Guadalupe Gandarilla Salgado (2022).

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Enrique Dussel e o direito 771

Formando-se em 1957, foi como bolsista cursar o doutorado na Universidade


Complutense de Madri, para viver sua “experiencia europea” (Dussel, 2012a, p.
20). Seus primeiros trabalhos (ao menos, os formalmente registrados em seu
percurso universitário) foram escritos entre 1958 e 1959, versando sobre a temática
filosófica do “bem comum” a qual, afinal, guiaria sua tese de doutorado,
apresentada em três volumes e mais de novecentas páginas, denominada La
problemática del bien común desde los presocráticos hasta Kelsen. Como podemos ver, a
tese filosófica inevitavelmente se entrechoca com o campo do direito, citando um
de seus mais importantes autores no próprio título (até por isso, não é de estranhar
a referência a uma crítica a Kelsen, no livro Filosofia da libertação, que Dussel
escreverá em contexto mais adverso, em 1977). O estudo de base teórica
humanista, seguindo a filosofia de Jacques Maritain, foi feito com alguma
celeridade, pois antes de tê-la escrito vivera a experiência de atravessar a Europa,
pedindo carona nas estradas, para chegar a Israel e passar uma temporada mística
por lá, como trabalhador braçal em uma cooperativa árabe – queria, portanto,
regressar e continuar a vivência. É Dussel quem conta essa saga, em seu próprio
texto autobiográfico. Assim, ele viveu dois anos como migrante entre os palestinos,
ao lado do sacerdote operário francês Paul Gautihier que o convidara, sofrendo na
carne a pobreza de um trabalhador: “fueron años de exclusivo trabajo manual, diez
horas por días, entre pobres obreros cristianos palestinos de la construcción
excluidos injustamente en un Israel que ejercía un racismo despectivo y opresor
con respecto a mis compañeros palestinos” (Dussel, 2012a, p. 25).

Agregando o aprendizado da língua hebréia às demais que já dominava (espanhol,


alemão, francês, italiano, grego e latim), licenciou-se em estudos da religião, pelo
Instituto Católico de Paris. Na França, aprofundou seus conhecimentos filosóficos,
lendo Maurice Merleau-Ponty, Edmund Husserl e Paul Ricoeur, este último seu
professor. Após receber uma bolsa de estudos para uma investigação na Alemanha
(onde viria a conhecer sua esposa, Johanna, com quem teria dois filhos, Enrique e
Susanne), decidiu regressar à França e realizar um doutorado em história, na
Sorbona. A tese, defendida em 1967, intitulou-se El episcopado latinoamericano,
institución misionera en defensa del indio (1504-1620). Por este tempo, portanto,
desenvolvia-se em Dussel a necessidade de fazer uma história desde a América
Latina, logo não eurocentrada. Daí escrever, por exemplo, o livro Hipótesis para una
historia de la iglesia en América Latina (redigido, em sua primeira versão, na
Alemanha, em 1965, e lançado na Espanha, em 1967; depois, com pequena
modificação no título, chamar-se-ia apenas Historia de la iglesia en América Latina
[cf. Dussel, 1974a]), que concretizaria sua pesquisa doutoral (a qual contava com
mais de duas mil páginas, ainda que a parte apresentada em francês tivesse pouco
menos que trezentas). Já em 1966, ofereceu um curso na Universidade Nacional do

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772 Ricardo Prestes Pazello

Nordeste, em Resistencia, na Argentina, cujo texto permaneceu inédito até 2012,


quando se o publicou na íntegra com seu título original: Hipótesis para el estudio de
Latino América en la historia universal (Dussel, 2012b).

O regresso definitivo à Argentina se deu em 1967, tendo se tornado professor da


Universidade Nacional de Cuyo logo em seguida. No final da década, a realidade
argentina começou a exigir posicionamentos políticos mais fortes e Dussel foi
descobrindo como tomá-los, tendo conhecimento das mobilizações estudantis, das
teorias críticas latino-americanas de então (teoria da dependência, sociologia da
libertação, o debate sobre a filosofia no continente, de Leopoldo Zea a Augusto
Salazar Bondy), até chegar à descoberta da obra de Emmanuel Lévinas, que o
levará a viragens radicais em sua filosofia. A partir daí a turbulenta conjuntura
argentina – como no geral de toda a América Latina – passou a cobrar seu preço e
nosso filósofo sofreu um atentado a bomba, perpetrado pela extrema-direita de
seu país, que destruiu parte de sua casa e sua biblioteca, em 1973. Dois anos depois,
com a situação insustentável devido à expulsão como professor da universidade e
a uma jura de morte pelos paramilitares direitistas, lançou-se ao exílio, no México.

De 1975 em diante foram tempos novos para Dussel, com dolorosas adaptações,
mas também do desenvolvimento de sua filosofia da libertação até a interlocução
filosófica tricontinental – entre África, Ásia e América Latina –, passando pela
aprendizagem do inglês, por certo, assim como pela fundação, dentre outras, da
Asociación de Filosofía y Liberación (AFYL), em 1982, em Bogotá, na Colômbia.
Como movimento filosófico diverso, a filosofia da libertação (mas também a
teologia da libertação, corrente anterior a sua contribuição) tinha em Dussel um de
seus mais importantes formuladores, ainda que sem deixar de se abrir para seu
contínuo enriquecimento. O segundo meado da década de 1970, assim, conduziu
Dussel a estudar com profundidade a obra marxiana, o que ele chamou de “tarea
de reconstrucción radical del pensamiento de Marx” (Dussel, 2012a, p. 54). A
realidade do capitalismo no Terceiro Mundo foi o decisivo para isso, demandando
uma crítica que com Marx se aproxima da perfectibilização. Mas sempre tendo em
vista a historicidade latino-americana, sem dogmatismos, portanto.

O fim dos anos de 1980 trouxe a queda do muro de Berlim e, em seguida, ocorreu
a desintegração da União Soviética. Neste momento, Dussel estava, curiosamente,
mais marxista que antes e, ao mesmo tempo, se lançaria a um conjunto de debates
filosóficos internacionais que ficaram conhecidos como diálogos norte-sul,
promovidos, a partir do emblemático ano de 1989, pelo cubano-alemão Raúl
Fornet-Betancourt, famoso cultor da interculturalidade filosófica. Entre os
interlocutores esteve, principalmente, Karl-Otto Apel, mas também Jürgen
Habermas, Paul Ricoeur, Richard Rorty, Charles Taylor, Gianni Vattimo e Alasdair

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Enrique Dussel e o direito 773

MacIntyre, por exemplos. Esse contexto de trocas intelectuais permitiu com que
Dussel fundamentasse de maneira muito madura sua Ética da libertação e pudesse,
em seguida, aplicá-la também a uma Política da liberação, última fase de sua
produção teórica. Da década de 1990 à de 2020, portanto, Dussel pôde viver
intensamente seu quefazer intelectual, como professor das Universidades
Autônomas do México e da Cidade do México (tendo sido reitor, nesta última) e
um dos formuladores do movimento do giro descolonial no contexto da episteme
latino-americana dos anos de 1990. Mas também apoiou, como agente político e
com vivacidade, os movimentos populares latino-americanos (a influência
decisiva dos zapatistas se fez sentir logo no início do levante de 1994, assim como
a constituição bolivariana da Venezuela ou o simbolismo de Evo Morales, primeiro
presidente indígena da Bolívia – como já haviam sido importantes as experiências
transformadoras em Cuba, Chile e Nicarágua – ressoam em toda sua obra
conforme ela foi sendo escrita). Além disso, participou da organicidade política,
como no caso do Movimiento de Regeneración Nacional (MORENA), no México,
já sob a regência, antes e depois de se tornar presidente, de López Obrador. Nos
últimos anos, chegou a ocupar o cargo de secretário de educação, formação e
capacitação política do comitê executivo nacional deste partido criado e
formalizado entre 2011 e 2014. Seu falecimento a 5 de novembro de 2023 ocorre
logo após o lançamento do terceiro tomo de sua Política da liberação e, até onde
sabemos, sem poder ter concluído textos que prometia (mais a si mesmo do que a
seus seguidores) sobre uma estética da libertação, uma definitiva lógica analética
da libertação, uma nova erótica da libertação e suas memórias intelectuais e
militantes.

Sua rica biografia comprova o que dissemos anteriormente, de que é muito difícil
dar conta, em poucas páginas, de toda sua produção teórica. O mesmo vale para a
trajetória pessoal e, considerando a influência de suas ideias, para toda sua fortuna
crítica, na filosofia, no direito ou em outros campos, assim como no contexto latino-
americano ou mesmo no de outros continentes. Se serve como consolo, ao menos
percebemos um notável esforço de disponibilização de sua obra em sua página na
rede mundial de computadores2, assim como na de alguns institutos que
hospedam também seus textos digitalizados3. Do que traremos a seguir, quase
tudo pode ser encontrado nesses sítios da internet.

2 Referimo-nos à página: https://enriquedussel.com/


3 Remetemos a dois exemplos, da AFYL e do Instituto de Filosofia da Libertação (IFIL), com seções
contendo arquivos de Dussel, respectivamente em: https://afyl.org/archivos-en-linea/obras-
selectas-de-enrique-dussel/ e https://www.ifil.org/dussel/.

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774 Ricardo Prestes Pazello

2 Nota geral sobre as obras histórico-antropológico-


teológicas

Podemos dizer que a formação histórica, antropológica e teológica de Dussel


enriquece sua filosofia a tal ponto que não é plausível separá-las, mormente no
início de seu percurso intelectual. Ainda que a recepção do autor em alguma
dessas áreas do conhecimento tenha vindo acompanhada de certo cacoete
“purificador” de suas contribuições (que podemos resumir na seguinte lógica, a
ressaltar dois extremos: “filosofia é uma coisa, teologia é outra...”), é pouco
produtivo tornar tão definitivas suas fronteiras. Embora Dussel tenha tido
interesses específicos ao escrever sobre algum dos campos aos quais se dedicou, a
influência entre eles é visível, bastando lê-lo para o comprovar. Nesse sentido, sua
filosofia vem acompanhada de notáveis questionamentos teológicos, assim como
sua reflexão teológica é decididamente impactada por problematizações sócio-
históricas, do mesmo modo como ele antropologiza os períodos históricos que
estuda ou procura fundamentos filosóficos para sua antropologia...

Evidentemente, como já ressaltamos, não temos condições de dar conta de toda a


obra de Dussel. Se incluirmos a parte histórico-antropológico-teológica dela, a
tarefa eleva-se à enésima potência. No entanto, ao mesmo tempo parece
interessante notar que os muitos ensaios e estudos que dedicou ao assunto
carregam consigo também questões jurídicas, às vezes por analogia e às vezes por
força da conjuntura (ou seja, da história a que se reportam) – ademais das
possibilidades de aplicar à reflexão jurídica suas outras teorizações. Vamos a um
panorama a respeito disso, cuja intenção é meramente exemplificativa a partir de
suas obras com tal caráter.

Se tomarmos como primeira referência um texto de 1963 (mas publicado só em


1975) como El humanismo helénico, vamos poder ler, desde logo, sobre a lei no
âmbito de sua pesquisa que é, ao mesmo tempo, histórica, antropológica e
teológica. Na verdade, direito, justiça e lei apresentam-se reiteradamente ao longo
do discurso dusseliano, mas é a última que ganha destaque no item sobre “La ley
‘agónica’” (Dussel, 1975, p. 51 e seg.), primeiro parágrafo do capítulo IV – “El
humanismo juvenil helénico” – da segunda parte da obra, dedicada à “Evolución
de la noción del bien común”.

Já em El humanismo semita: estructuras intencionales radicales del pueblo de Israel y


otros semitas, livro de 1964 (ainda que com publicação feita em 1969), a lei aparece
no quarto item – “Dialéctica entre autoridad, ley e individuo” – da segunda seção
(“Intersubjetividad en el Islam”) do capítulo II do livro, que se chama
“Intersubjetividad o metafísica de la alianza”. Aqui, o exemplo da feitura de uma

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Enrique Dussel e o direito 775

aproximação jurídica é bastante interessante, a propósito da religião muçulmana:


“la Ley coránica fue explicitada por los doctores en jurisprudencia”, sendo que
“para un creyente es obligatoria la obediencia dentro de la Ley y la justicia”
(Dussel, 1969, p. 71).

É relativamente arbitrário, em alguns casos, delimitar que uma dada investigação


de Dussel pende para uma perspectiva teológica. Ainda assim, circunscreveremos
obras como El humanismo helénico e El humanismo semita a estas notas sobre sua
produção histórico-antropológico-teológica para facilitar nosso mapeamento. A
seguir, portanto, apenas faremos referências gerais a como dimensões que podem
tidas como jurídicas – da lei à justiça – ainda que nem sempre o sejam plenamente,
aparecem em seus textos com esse perfil.

Ao delinear uma história da igreja preocupada com a questão indígena, no período


colonial, Dussel escreve o livro El episcopado latinoamericano y la liberación de los
pobres, 1504-1620 (lançado em 1979, mas escrito em 1967 durante seu doutorado,
tendo sido publicado, parcialmente, em francês, no ano de 1970). Nele, esboça-se a
questão teológico-jurídica em vários momentos, como nos dois itens que compõem
o primeiro capítulo do livro, intitulado “El episcopado, protector del indio”
(Dussel, 1979, p. 11 e seg.): primeiro, sobre “El episcopado ante la causa de la
justicia” (item I); em seguida, sobre “La crisis de las leyes nuevas” (I.II). Depois, no
primeiro item do terceiro capítulo, Dussel abre um subitem dedicado a “Los
concilios y los sínodos en las Leyes de Indias” (I.1) (Dussel, 1979, p. 193 e seg.).

Referências esparsas, com essa mesma índole, principalmente sobre a “lei”, podem
ser encontradas em Para una de-strucción de la historia de la ética (Dussel, 1974b) ou
El dualismo en la antropología de la cristiandad: desde los orígenes hasta antes de la
conquista de América (Dussel, 1972) – esta última fechando uma espécie de trilogia
sobre o humanismo ocidental (entre gregos, hebreus – com os dois livros citados
sobre o assunto anteriormente – e cristãos). Já no final da década de 1970 (em 1978),
Dussel publica seu De Medellín a Puebla – uma década de esperança e sangue, que, em
português, aparece em três volumes (Dussel, 1981; 1982g; e 1983a), também
trazendo remissões gerais ao direito. No primeiro, podemos apontar para a
questão no item 1.3 do primeiro capítulo, sobre “A instituição Igreja e os aparatos
do estado” (Dussel, 1981, p. 34 e seg.). No segundo, porém, destaca mais
propriamente a temática dos “Direitos humanos e direitos do pobre” (Dussel,
1982g, p. 488 e seg.), quando, no quinto capítulo da segunda parte, coloca-se
“Diante da Terceira Conferência do Episcopado Latino-Americano”. Já o terceiro
volume (Dussel, 1983a) traz mais questões de documentos internos, especialmente
quanto à Conferência de Puebla, que podem servir de analogia para a questão
jurídica, em âmbito institucional-eclesial.

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776 Ricardo Prestes Pazello

A propósito, é a esta analogia que pretendemos remeter para citar o texto que
Dussel escreve sobre a Teologia da libertação: um panorama de seu desenvolvimento. O
livro, de caráter mais político-pedagógico (para intervenção e difusão da teologia
da libertação), acaba trazendo a discussão sobre um documento eclesial que não
deixa de ter caráter normativo circunscrito ao Vaticano. Trata-se da “Instrução
sobre alguns aspectos da Teologia da libertação” que, como diz Dussel, vem “da
Sagrada Congregação para a Doutrina da fé – promulgada em Roma no dia 6 de
agosto de 1984, mas só publicada em 3 de setembro pelo Cardeal Joseph Ratzinger
(meu professor em Muenster em 1964)” (Dussel, 1999, p. 7). A primeira versão do
livro é de 1986, que reaparece aumentado e modificado em 1995, abordando o
assunto em seu capítulo terceiro, que continua a periodização dusseliana sobre a
história da igreja de libertação, o que considerou como sendo o “Quinto período.
Desde a ‘Instrução’ romana de 1984” (Dussel, 1999, p. 102 e seg.). Referida
“Instrução” acusava a teologia da libertação de ser marxista e lhe dirige algo como
que uma condenação, tendo sido Leonardo Boff o teólogo da libertação mais
conhecido no episódio.

Também em 1986 surge o texto da Ética comunitária, verdadeiramente um livro


didático para ser lido a partir da metodologia do trabalho popular ou das
comunidades eclesiais de base. Seu caráter pedagógico, inserto nos
desdobramentos do horizonte teológico de libertação, não deixa de também se
deparar com o direito, como fica evidenciado em alguns de seus vinte capítulos. É
o caso do sexto, do sétimo e do décimo, sobre “Sensibilidade, justiça e
sacramentalidade”, “Legalidade moral e ilegalidade ética” e “Normas relativas e
ética absoluta” (Dussel, 1986, p. 73; p. 83; e p. 115 e seg.), respectivamente. Depois,
é possível encontrar o tema nos seguintes subitens, por exemplo: “Propriedade do
produto” (11.6); “Onde está a injustiça?” (14.6); “Segunda injustiça:
supertransferência de mais-vida” (14.7); “Terceiro nível” (14.8); e “A defesa justa e
o direito do povo à vida” (16.9) (Dussel, 1986, p. 133; p. 167; 168; 169; e p. 195 e
seg.).

Devemos, ainda, mencionar um dos muitos livros que Dussel organizou sobre a
história da igreja e do cristianismo na América Latina, do ponto de vista dos de
baixo. Em Historia liberationis: 500 anos de história da igreja na América Latina,
encontramos um texto dusseliano que tematiza os “regimes de Segurança
Nacional”, as “situações de repressão menor” e a “‘abertura’ democrática” (Dussel,
1992, p. 270; 275; e 287 e seg.) – problemáticas assentes em De Medellín a Puebla
igualmente. Na mesma compilação, temos também um exemplo de texto como o
do teólogo José Comblin (1992), apresentando sua interpretação sobre “A igreja
em vinte anos de luta pelos direitos humanos”.

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Enrique Dussel e o direito 777

Fechando esse arco de anotações, que teve por intuito enumerar as obras histórico-
antropológico-teológicas naquilo que a elas pertinia sobre o direito, podemos
chegar ao livro que reúne cinco de seus trabalhos, em 2012, intitulado Paulo de Tarso
na filosofia política atual e outros ensaios. O primeiro texto, que dá título à obra,
aborda o problema da “lei” em São Paulo (cf. Dussel, 2016, p. 21 ou 25, entre
outras), nos moldes em que a aproximação se realizava nos escritos dusselianos
dos anos de 1960. Por sua vez, no quinto ensaio que expõe “Cinco teses sobre o
‘populismo’”, Dussel (2016, p. 222 e seg) fala sobre “O poder, instituições de
participação e de democracia” (quarta tese) ou faz a crítica “ao ‘estado de direito’
injusto” (Dussel, 2016, p. 228) – no contexto da quinta tese sobre as “Exigências
democráticas do exercício da liderança” –, já na chave de leitura própria da política
da libertação.

É bom relembrar que Dussel foi um verdadeiro historiador do cristianismo latino-


americano, com especial enfoque em uma perspectiva popular. Escreveu e
organizou, portanto, muitas obras com esse perfil (muitas das quais não
referimos), que podem ser consultadas e também emprestar sugestões de análise
do direito, como analogia, referência histórica, lei/norma, justiça ou propriedade.
De alguma maneira, estas questões que adiantamos aqui ressurgirão nos próximos
itens, dedicados a mapear ciclos de pesquisas mais específicas do autor. Ainda
assim, vale a pena ressaltar que tanto agora como no que segue, Dussel parte do
mesmo arcabouço teórico-filosófico geral, conforme este se desenvolve. Tendo isso
em vista, talvez fosse oportuno fazer menção aos investigadores que, a partir do
direito, puderam estabelecer conexões mais explícitas entre o problema jurídico e
os textos histórico-antropológico-teológicos de Dussel (na verdade, o ideal seria
remeter a todas as interlocuções que juristas realizaram com a obra de Dussel,
porém, como dissemos, a fortuna crítica nesse tocante é tão diversa que não temos
condições de manejá-la aqui). Dada a impossibilidade de realizar toda essa
radiografia, entendemos ser suficiente dizer que a teoria crítica do direito
mexicana foi a mais exitosa no que concerne à relação teológico-jurídica4.

3 Caminhos de libertação latino-americana

A edição brasileira dos Caminhos de libertação latino-americana foi organizada em


quatro volumes e publicada em 1984. Em espanhol, porém, os textos começaram a
ser editados em 1972 e estruturados em ordem diversa. De qualquer modo, é a
organização da tradução para o português que reúne sob o mesmo título o maior

4 Vide, a respeito do assunto, ainda que bastante exemplificativamente, obras como as de Jesús
Antonio de la Torre Rangel (2007) e Alejandro Rosillo Martínez (2008).

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778 Ricardo Prestes Pazello

número de ensaios, dando a eles uma organicidade própria. Neles, assenta-se uma
interdisciplinar abordagem da teoria de libertação que já vinha sendo construída
desde fins dos anos de 1960, mesmo que os volumes pendam nitidamente para
uma perspectiva histórico-teológica. A dimensão ético-filosófica, entretanto,
também se faz sentir e permite aproximações ao direito, inclusive.

A primeira aparição do problema jurídico, em um item expressamente destinado


a pensar o tema (ainda que, repitamos, interdisciplinarmente) é quando Dussel
fala “Alguma coisa sobre a propriedade” (último tópico do quarto capítulo,
dedicado a “Acontecimentos marcantes no decênio 1962-1972”). Estamos no
contexto do primeiro volume da tetralogia, que tem por subtítulo: “interpretação
histórico-teológica”. É interessante observar que a partir da questão da
propriedade privada, Dussel reflete sobre ela ser um direito natural ou não e,
teologicamente, acaba por negá-lo, com base em Tomás de Aquino e outros
(Dussel, 1984a, p. 102 e seg.). No mesmo volume, só que na edição original
castelhana, também um pequeno apartado, coisa de uma página, toca no tema
“Sobre el orden y la legalidad de la liberación” (Dussel, 1973b, p. 168-169).
Defendendo uma espécie de direito de libertação, eis uma segunda passagem que
poderíamos pinçar em nosso mapeamento.

No segundo volume da obra – sobre “história, colonialismo e libertação” – o direito


reaparece mediado por questões histórico-concretas, tais como as atinentes à
biografia de um bispo do século XVI. A referência é a “Bartolomeu de las Casas
(1478-1566): no quinto centenário de seu nascimento” – título do quinto capítulo
deste volume. Os itens 5 e 6 tratam de “As leis novas e o bispo de Chiapas (1540-
1547)” e do “Defensor jurídico e teólogo do índio oprimido” (Dussel, 1984b, p. 139-
141), respectivamente. Os dois capítulos seguintes aprofundam o legado
lascasiano e este é mais um prisma das reflexões teológico-jurídicas que Dussel
aduz.

Já no volume atinente à “interpretação ético-teológica”, o terceiro, os Caminhos...


seguem para outro nível de aproximação com o direito, dessa vez analogamente,
no capítulo inicial da obra, chamado “Antropologia teologal I”. O seu sétimo item
diz respeito ao que revela seu título: “Sobre a herança institucional do pecado do
roubo”. A analogia leva Dussel do direito – a propriedade pelo roubo ou pela
herança, e não só pelo trabalho, a única verdadeiramente válida – à teologia, ou
seja, reflete sobre o “reino do pecado pela transmissão da cultura nas instituições
de injustiça” (Dussel, 1984c, p. 33).

Por fim, no quarto volume – dedicado a “reflexões para uma teologia da


libertação” – encontramos novamente a primeira problematização: “A

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Enrique Dussel e o direito 779

propriedade em crise”, segundo capítulo da segunda parte do livro (que aparece,


entretanto, no livro de 1973 chamado América Latina: dependencia y liberación,
[Dussel, 1973a, p. 178 e seg.] pela primeira vez). Aqui, Dussel dá um pouco mais
de fôlego a sua interpretação analógica: “a propriedade é uma noção análoga”. Ao
constatá-lo, nosso filósofo segue asseverando que “a propriedade é um direito –
objetivo ou subjetivo, natural, de gentes ou positivo – que, então, apresenta um
sujeito e um bem sobre o qual tal direito se exerce” (Dussel, 1984d, p. 40). A
explanação, tão familiar aos juristas, leva-o a reafirmar, todavia, que a propriedade
privada não é direito natural e que cabe sim uma sua “reestruturação
revolucionária” (Dussel, 1984d, p. 50), convivendo com a perspectiva subsidiária
do direito de apropriação privada.

Propriedade (comum ou privada, quer dizer, natural ou positiva), leis


(interpretadas por um sacerdote advogando para indígenas), injustiça (do roubo
ou da herança, como pecados) e, novamente, propriedade: eis o primeiro circuito
de referências de Dussel ao direito, que destacamos a partir de seus Caminhos de
libertação latino-americana.

4 Para uma ética da libertação latino-americana

Em Para uma ética da libertação latino-americana, pentalogia que Dussel lança entre
1973 e 1980, mas que a partir de seu terceiro volume consolida-se com novo título
– Filosofía ética latino-americana – a questão jurídica ganha uma reflexão especial.
No entanto, ela fica concentrada, em sua singularidade, no segundo dos tomos da
obra.

Depois de propor “um acesso ao ponto de partida ético” (Dussel, 1982a) – primeiro
dos volumes –, Dussel acerca-se da problemática que envolve “eticidade e
moralidade” – subtítulo do segundo volume de Para uma ética da libertação latino-
americana. É neste que, de alguma maneira, o direito vai aparecer com contornos
próprios mais bem delimitados.

O capítulo que abre o volume – sendo o quarto do todo da obra – já aborda a


questão no âmbito da “eticidade” (horizonte mais amplo que o da “moralidade”,
fundada naquela). É o que lemos no item 22, por exemplo, relativo a “O bem ético
como justiça”. No capítulo subseqüente (quinto), voltado à “moralidade”, temos a
discussão do item 26 sobre a “Legalidade da injustiça”: “falar de ‘legalidade’ da
injustiça é falar da ‘ilegalidade’ da justiça, ou da promulgação da imoralidade
como ordem legal ou da proibição da moralidade na mesma ordem” (Dussel,
1982b, p. 80). A partir daí, Dussel desenvolve toda uma discussão sobre a lei,
notadamente confrontando Kant e Hegel. Por fim, no último capítulo (sexto), ao

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780 Ricardo Prestes Pazello

tratar de questões de método (que não se reduzem ao nível do pensar mas chegam
ao agir ético), encontramos o derradeiro item 39 referido à “Normatividade
existencial-analética da ética meta-física”, em que propõe uma ética da libertação
partindo da alteridade ou exterioridade e não da totalidade (meta – para além da
– física/totalidade): “a normatividade da ética na pessoa do ético é interpretação e
provocação à justiça”, enquanto também “é norma pensada para os que se
comprometem na libertação” (Dussel, 1982b, p. 239).

Portanto, justiça, legalidade e normatividade, assim como seus contrários


(injustiça, ilegalidade...), se encadeiam em um conjunto de reflexões que Dussel,
de um modo ou de outro, faz dialogar com uma verdadeira filosofia (da libertação
– como proporão alguns) do direito.

Os demais tomos de Para uma ética da libertação latino-americana também podem ser
compulsados para encontrar o mesmo posicionamento. Transborda os limites de
nossos objetivos aqui analisá-los todos, mas deixamos indicado que no primeiro
volume, Dussel aborda o problema kantiano da “lei”, no item 11 sobre “Destinação
e ob-rigação do ser a ser” (Dussel, 1982a, p. 84 e seg.). Já nos outros livros, questões
afins aparecem sempre que está em jogo a “moralidade da práxis”: no terceiro
volume, esta se faz presente, por exemplo, nos itens 47 – “A moralidade da práxis
de libertação erótica” (Dussel, 1982c, p. 137 e seg.) – e 53 – “A moralidade da práxis
de libertação pedagógica” (Dussel, 1982c, p. 230 e seg.); no quarto, item 66 – “A
moralidade da práxis de libertação política” (Dussel, 1982d, p. 138 e seg.); e, no
quinto (sobre “uma filosofia da religião antifetichista”, item também designado
como 66 – “A moralidade da práxis de libertação arqueológica” (Dussel, 1982e, p.
230 e seg.).

Lembramos que no percurso da escrita de Para uma ética..., Dussel começa a operar
suas transitividades, em que se implicam a experiência do exílio e o início de um
interesse mais aprofundado pela obra de Marx. Talvez tais questões de ordem
pessoal tenham impactado na mudança do título da obra, a partir do volume
terceiro, para Filosofía ética latinoamericana (ver, por exemplo, Dussel, 1977a), ainda
que em português a preferência editorial tenha sido a da manutenção do nome dos
cinco volumes – no mesmo ano em que ocorre a alteração, 1977, sua obra de
viragem vem à tona, talvez o mais conhecido livro de sua produção, a Filosofia da
libertação, sobre a qual nos referiremos a seguir.

5 Filosofia da libertação

Em 1977, portanto, Dussel atravessa o rio caudaloso da ética da libertação e


estabelece uma filosofia da libertação. Neste ano, apareceu o terceiro volume de

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Enrique Dussel e o direito 781

Para uma ética da libertação latino-americana, mas também o livro de transição


Introducción a la filosofía de la liberación latinoamericana, no qual são reproduzidos
momentos escritos nos tomos anteriores daquele. Por exemplo, sobre questões
jurídicas, nos formatos já assinalados, podemos sublinhar as seções: b.5), do
capítulo III, sobre “El bien como ‘sí-al-Otro’: justicia” (Dussel, 1977b, p. 66 e seg.);
c.2), também do capítulo III, sobre “Legalidad de la injusticia” (Dussel, 1977b p. 71
e seg.); e b.6), do capítulo V, sobre “Apertura al Otro como justicia” (Dussel, 1977b
p. 113 e seg.).

É, porém, com a Filosofia da libertação que nosso autor fechará um ciclo de estudos
dedicados à ética – forçosamente, é verdade – e iniciará outro, fundamental para a
história do pensamento crítico latino-americano (que será sua contribuição ao
marxismo do continente). Este livro a que nos referimos é uma espécie de balanço
e projeto, ao mesmo tempo: “este curto trabalho, sem bibliografia alguma, porque
os livros de minha biblioteca estão longe, na pátria, escrito na dor do exílio”, diz
Dussel em suas “Palavras preliminares”, “não pretende ser uma exposição
completa, mas antes um discurso que vai travando tese após tese, proposta após
proposta. É somente um marco teórico filosófico provisório” (Dussel, 1982f, p. 7).
Em suas páginas, lemos todo o repertório dusseliano sobre totalidade e alienação,
exterioridade e libertação, os momentos metafísicos da política, erótica,
pedagógica e antifetichismo, o percurso da natureza à econômica (da libertação,
dir-se-á no futuro) e questões metodológico-científicas sobre a filosofia da
libertação. Passar por Dussel sem conhecer o modo como ele assentou tais noções
é não ter em vista a fundamentalidade dessa elaboração para a continuidade de
sua obra.

Quanto ao direito, a problemática volta a se fazer sentir, achando-se especialmente


em dois subitens dos iniciais níveis de reflexão. O primeiro, na esfera de domínio
da “Alienação” (item 2.5), e o segundo, no âmbito da “Libertação” (item 2.6). Em
um caso, Dussel considera o problema da “Legalidade da perversão” (subitem
2.5.9) e aí chega a criticar Kelsen e seu horizonte normativista jurídico: “as éticas
da lei, da virtude, dos valores, do fim (seja télos, finis ou constituição nacional
kelseniana, isto é, teleológicas e positivas), são éticas encobertadoras de seu
próprio mundo e sistema”. Em realidade, a crítica destina-se à base que propõe
Kant, segundo a qual “a legalidade era a concordância objetiva do ato com a lei, e
sua moralidade o querer cumprir a lei por dever”, por justificar no fundo uma
“moral imperialista” (Dussel, 1982f, p. 62-63).

No segundo caso, devotado à “Ilegalidade da bondade” (subitem 2.6.9), Dussel


apresenta o que chama de “inevitável posição da libertação: a ilegalidade
subversiva”, justamente porque “o ato libertador ou a bondade gratuita [...] é e não

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pode não ser ilegal, contra as leis vigentes, que por serem as vigentes de uma
ordem antiga justa porém agora opressora, são injustas” (Dussel, 1982f, p. 72).

O filósofo argentino-mexicano coloca em confronto, pois bem, legalidade e


ilegalidade, mas – partindo do pressuposto de que a primeira está dentro das
fronteiras da totalidade e a segunda, da exterioriedade – indica a alienação
legalizada e a libertação marginalizada. Toda uma filosofia jurídica crítica poderia
se fundar nesse parâmetro, que apresentamos simplificadamente, o que de algum
modo ocorreu, de fato, com as correntes das teorias críticas do direito que se
gestaram nas décadas de 1980 e 1990, em torno de perspectivas alternativas,
plurais, insurgentes, jusdiversas, achadas na rua, nascidas do povo sobre o
direito... A contribuição de Dussel ou foi absorvida ou, como na maioria dos casos,
afinava-se bem a novas posições jurídicas que, apesar de minoritárias, mostraram-
se relevantes para a produção do conhecimento jurídico crítico do período.

6 A produção teórica de Marx e as teses de economia


política

Nos dez anos seguintes ou mais, provocado pelos debates que enfrentou no início
de seu exilio no México, Dussel toma o caminho, em algum sentido inusitado, de
aprofundar-se na obra de Marx. Se antes o encontro da alteridade, tal como
descoberta em Lévinas (ver, por exemplo, Dussel; Guillot, 1975) – e superando a
adesão à ontologia de tipo heideggeriano ou husserliano –, havia levado a
elaboração dusseliana a tecer críticas duras ao próprio marxismo (cf. Dussel, 1974c,
p. 137 e seg.), agora o aprofundamento na obra marxiana fazia-o mudar de posição
e encontrar na dialética de Marx a analética, tal como Dussel cunhara sua proposta
de método.

O percurso dos estudos de Dussel que se aproximam do marxismo, notadamente


nos anos de 1980, inicia-se por obra que ganha sua versão definitiva com o título
de Filosofía de la producción, mas que reúne alguns ensaios de fins da década
anterior, tendo sido intitulada pelo autor ainda como Filosofía de la poiesis
(Dussel, 1977c) (nome, aliás, do primeiro escrito que compõe a edição final do
livro). Curiosamente, Dussel escreve, em tal obra, também sobre processo de
desenho e sobre tecnologia, tudo em chave de libertação (na sua juventude,
enquanto cursava a escola de belas artes, pensou em formar-se em arquitetura).
Mas o mais interessante mesmo é notar que nele está incluído o “Estudio
preliminar al ‘Cuaderno tecnológico-histórico’ (1851) de Marx” que, como o
próprio título diz, comenta um texto pouco discutido do fundador do
materialismo-histórico, escrito cerca de quinze anos antes de O capital. Dussel

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Enrique Dussel e o direito 783

publicaria uma tradução do texto de Marx (1984) – feita por Enrique Dussel Peters,
seu filho –, inserindo nela seu “estudo preliminar”.

Apesar de haver apenas referências esparsas sobre o direito, em Filosofía de la


producción, elas não deixam de ser notáveis. Em um exemplo, ao discorrer sobre a
tecnologia como capital constante a partir do Cuaderno tecnológico-histórico de
Marx, Dussel assevera que “lo que Marx defiende es el derecho del obrero a
emprender una lucha contra el capital que se le aparece diaria y materialmente
bajo la forma de la determinación del capital-maquinaria” (Dussel, 1984e, p. 160).
Em outro momento, já no apêndice sobre “Tecnología y necesidades básicas”, ao
considerar muito interessantemente “Los distintos lenguajes sobre las necesidades
básicas”, Dussel defende que “el lenguaje de los pueblos de las naciones
dependientes se estructura a partir del derecho al trabajo, que ve al hombre como
un ser productivo, creativo y digno” (Dussel, 1984e, p. 235). Entendemos que, de
certa maneira, Dussel está apontando aqui para duas possibilidades de um uso
insurgente (talvez ele preferisse dizer “subversivo”) do direito, como “direito do
operário empreender uma luta contra o capital” ou como “direito ao trabalho”,
entendido como “linguagem” dos povos oprimidos.

Filosofía de la producción é publicada, na sua versão definitiva, em 1984. Um ano


antes Dussel dava a conhecer sua obra intitulada Praxis latinoamericana y filosofía de
la liberación. Os ensaios reunidos por ele neste livro mostram uma diversidade de
abordagens de temas feitas já em seu exílio e enfatizam como a filosofia da
libertação compreende a práxis. Uma dessas aproximações diz respeito ao
problema do direito, no texto chamado de “Derechos básicos, capitalismo y
liberación”, em que Dussel destaca a dialética direitos-deveres: “el derecho es la
referencia de la mediación necesaria para el cumplimiento del proyecto con
respecto al sujeto. Es la referencia subjetiva de la mediación exigida, así como el
deber es la referencia objetiva (hacia el proyecto) del sujeto con respecto a la
mediación” (Dussel, 1983b, p. 147). Nesta citação encontra-se uma tentativa
dusseliana de definição do jurídico, tomando por base tal interação. Em seguida,
ela passa a refletir, desde a oposição entre direitos vigentes e utópicos, sobre
liberdade de escolha, direito a viver, direito ao trabalho, a comer, a educar-se, a
desenvolver-se, até chegar à “liberación como fundamento del derecho” (Dussel,
1983b, p. 155). Cada um desses temas está nominando uma das seções do ensaio
filosófico-jurídico citado.

Estamos diante, aqui, de um salto qualitativo da análise de Dussel sobre o direito,


agora pensando em sua referência como mediação para o sujeito, mas também
como elemento combativo e reivindicativo – sendo que antes prevalecia certa
dimensão normativa (legal) na análise. Não à toa essa mudança se dá conforme

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784 Ricardo Prestes Pazello

Dussel se interessa mais pela obra de Marx. Aliás, a partir de 1985, terá vez a
trilogia dusseliana dedicada a manuscritos marxianos, até então pouco conhecidos
e difundidos, especialmente na América Latina. Dussel estará, portanto, entre os
que deram sua contribuição nodal para o desenvolvimento do marxismo,
debruçando-se sobre obras inéditas ou de pouco acesso pela militância e mesmo
pelos estudiosos.

No primeiro dos livros, único traduzido para o português, Dussel trata de A


produção teórica de Marx: um comentário aos Grundrisse. É a partir da leitura
sistemática dos textos que ficaram conhecidos como Grundrisse que Dussel inicia
seu mergulho no legado marxiano mais profundo e não faltou, aí, lugar para uma
ancoragem jurídica. Ela aparece no quinto capítulo, relativo a “Igualdade,
liberdade, propriedade”. A questão do direito aparecer ao nível do problema
proprietário é desdobramento direto dos avanços anteriores que Dussel houvera
feito sob inspiração do debate marxista, ainda que crivado por um apelo latino-
americano de sua interpretação. Daí que menções aos Grundrisse são feitas
apresentando a “noção jurídica de pessoa” ou as “relações jurídicas”, para lastrear
comentário que sublinha que “é o próprio sujeito de troca que, ao ser
abstratamente considerado, é separado de toda relação histórica e concreta de
dominação” (Dussel, 2012c, p. 111, 112 e 109, respectivamente).

Segundo nossa perspectiva, a mesma pegada acompanha o segundo livro da


trilogia, lançado em 1988. Em Hacia un Marx desconocido: un comentario de los
Manuscritos del 61-63, Dussel (1988) faz prevalecer referências sobre
“propriedade”, ainda que não concentradas em um dos capítulos da obra, quando
se aproxima da questão do direito. Por sua vez, no livro de 1990 – El último Marx
(1863-1882) y la liberación latinoamericana: un comentario a la tercera y a la cuarta
redacción de “El capital” – que encerra a trilogia, a abordagem jurídica se
complementa com acentos à “relación jurídica”; mas também ao que podemos
considerar como sendo uma crítica à justiça natural. Para o primeiro caso, temos a
citação do famoso parágrafo inicial do capítulo 2 do livro 1 de O capital, de Marx,
que é o trecho por excelência em que se costuma pinçar o direito sob a crítica
marxista (Dussel cita-o dividindo o parágrafo e apresentando-o em dois momentos
[Dussel, 1990, p. 181 e 437]); para o segundo, remetemos ao que Dussel chamou de
“hegelianismo de Marx” (Dussel, 1990, p. 385), dado que teria espelhado a Lógica,
de Hegel, em O capital, sem descurar de uma crítica a certo jusnaturalismo que
invisibiliza o sentido profundo das transações capitalistas decorrentes de suas
relações de produção.

Após terminar os três livros, antecedidos por textos preparatórios, Dussel


incorporaria em definitivo a contribuição marxiana, que reaparecerá nos demais

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Enrique Dussel e o direito 785

momentos de sua produção. Talvez o exemplo maior seja o livro dedicado às 16


tesis de economía política: interpretación filosófica, de 2014. Nele, inclusive, a
problemática jurídica aparece em vários momentos, seja remetida ao tema da
propriedade (como na quarta tese, sobre “Sistemas económicos no-
equivalenciales. Propiedad y gestión hererónoma del excedente” [Dussel, 2014a,
p. 50 e seg.]) seja à perspectiva normativa (como ocorre em quase toda a segunda
parte do livro, intitulada “Principios normativos en la transición económica”, dos
capítulos 12 a 15 [Dussel, 2014, p. 183-296]). Dussel ainda escreveria sobre Marx
em pelo mais dois livros, expressamente: Las metáforas teológicas de Marx (Dussel,
1993) e Marx y la modernidad: conferencias de La Paz – neste último, inclusive, há um
item (o primeiro) da sétima conferência, sobre “La crítica ética”, dedicado a “El
concepto de ley” em Marx (Dussel, 2008, p. 135-136), ainda que não no sentido
jurídico clássico, mas no econômico-político, o que ainda assim é sugestivo a título
de estudos comparativos interessados na problemática do direito.

Eis o profundo mergulho dusseliano na crítica da economia política feita pela


tradição marxista, o que robustece seus próximos passos configurados como
verdadeiras rupturas epistêmicas contra a constituição colonial do mundo
moderno que não pode deixar de ser visto como capitalista, igualmente.

7 1492 e a transmodernidade

É evidente que Dussel vinha operando viragens epistêmicas desde quando passou
a formular, junto a outros intelectuais, a filosofia ou a teologia da libertação – o que
nós poderíamos chamar de teorias da libertação. A perspectiva latino-americana,
a crítica ao eurocentrismo e a denúncia do capitalismo são marcas de sua trajetória.
Nos anos de 1990, contudo, sua reflexão converge para preocupações semelhantes
de outros intelectuais e assistimos à constituição do debate sobre
colonialidade/modernidade. Mais ou menos autônomos entre si, os autores que
dele participam acabam por concluir pela necessidade de um giro epistêmico, a
propósito da data rememorativa dos quinhentos anos da conquista da América,
em 1992. Dussel apresenta seus argumentos a respeito do assunto em uma série de
conferências, ministradas em Frankfurt, no livro 1492: o encobrimento do outro (a
origem do “mito da modernidade”).

A crítica que, anteriormente, era por ele feita muda de qualidade. Se na


apresentação de 1977 à sua Filosofia da libertação, Dussel qualificava seu quefazer
teórico a partir da enumeração seguinte: “filosofia da libertação, filosofia pós-
moderna, popular, feminista, da juventude, dos oprimidos, dos condenados da
terra, condenados do mundo e da história” (Dussel, 1982f, p. 7); agora, em 1492: o

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786 Ricardo Prestes Pazello

encobrimento do outro, a questão reaparece com nova silhueta: “a necessidade da


‘superação’ da Modernidade é o que procuramos mostrar nestas conferências. ‘A
Trans-modernidade é um projeto futuro’ poderia ser o título deste ciclo de
conferências” (Dussel, 1993, p. 8). Ou seja, a crítica que Dussel propõe não pode
mais se confundir com pós-modernismo, via de regra europeu celebratório do fim
da história, mas também não pode ser uma defesa modernista ao estilo da filosofia
do agir comunicativo e nem mesmo um anticolonialismo puro e simples, de um
tempo histórico que trazia exigências próprias: trata-se, isto sim, de uma
transmodernidade, mais além (trans) do que é moderno sem deixar de reconhecer
nele a necessidade da razão emancipatória, transformando-a em de libertação.

No que toca ao direito, aparece uma vez mais de modo fluido, mas é interessante
registrar que Dussel, até por adotar uma perspectiva histórica para enfrentar o
mito da modernidade (observando-o seja do ponto de vista da crítica ao ego
europeu seja a partir da história ameríndia dos vencidos), chega a definir a
“conquista” como “uma figura jurídico-militar” (Dussel, 1993, p. 42), tal qual se
verifica na terceira conferência dedicada ao tema “Da ‘conquista’ à ‘colonização’
do mundo da vida”.

A nosso ver, o livro 1492 ocupa um lugar transcendental no conjunto da obra de


Dussel. Apesar de poder ser visto como um texto introdutório – aliás, para nós,
um texto perfeito para se começar a ler a vasta produção teórica de Dussel –, ele
condensa uma série de preocupações que desembocam na formulação
transmoderna. Toda a crítica anterior se didatiza em sua abordagem da história da
conquista da América e prenuncia as novas tendências gnosiológicas que
surgiriam como verdadeira corrente descolonial, ainda que sem abandonar o
marxismo (abdicação esta que parece prevalecer nas contemporâneas produções
dessa vertente de estudos).

Mais do que isso, trata-se de um livro orgânico e coerente, que ultrapassa a lógica
da reunião de artigos (muitas das vezes necessária, para tornar possível à
comunidade de leituras o acesso a textos dispersos) ou uma apresentação histórica
mais simplificada, com fins mais introdutórios. O próprio Dussel não se recusou a
organizar livros com esse cariz – ainda que muito provavelmente a pedido de seus
editores. É o caso da edição brasileira, de 1997, dos Oito ensaios sobre cultura latino-
americana e libertação, que recolhe ensaios datados de 1965 a 1991 – aliás, em um
deles (sobre “A arte do oprimido na América Latina”, de 1980), Dussel já
problematizava “o fundamento do direito à conquista da América” (Dussel, 1997,
p. 161). Um segundo exemplo tem a ver com a característica mais introdutória de
um tema, como é o caso do pequeno livro publicado em 2020, chamado El primer
debate filosófico de la modernidad, que retoma a problemática de 1492 (e, em alguma

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Enrique Dussel e o direito 787

medida, a estrutura da quinta conferência sobre a “Crítica do ‘mito da


modernidade’” [ver Dussel, 1997, p. 75 e seg.]), fazendo sobressair-se, a propósito,
o debate teológico-jurídico de Las Casas, mas confrontando-o com leituras mais
“modernas” sobre o direito, como aquelas que se desprendem das obras de autores
como Hegel ou Carl Schmitt (cf. Dussel, 2020a).

Curiosamente, porém, a década de 1990 leva Dussel a fixar sua proposta de


transmoderna para o debate filosófico-epistêmico, mas também proporciona
diálogos, com tensões bastante produtivas, com a filosofia europeia, notadamente
a da segunda geração da Escola de Frankfurt.

8 Diálogos norte-sul

Consideramos os assim chamados diálogos filosóficos norte-sul como uma espécie


de parênteses na produção teórica de Dussel, notadamente no que pertine a nossa
procura pelo direito. Apesar disso, sugerem interações com importantes quadros
da filosofia não latino-americana que, de um modo ou de outro, também se
preocuparam com a problemática jurídica.

Não temos condições aqui de descrever toda a riqueza, por exemplo, dos
seminários internacionais do “Programa de Diálogo Norte-Sul” (organizados por
Raúl Fornet-Betancourt), que ocorreram entre 1989 e 2002, entre América Latina e
Europa, fundamentalmente Alemanha (outros eventos com intuitos similares,
ainda que talvez não com a mesma centralidade, também ocorreram, como os
“Confrontos europeus” na Itália [ver Dussel; Balducci, 1991]). No entanto, eles
antecipam ou mesmo amadurecem várias posições que Dussel sustentaria nos
ciclos subseqüentes de sua teorização, seja no âmbito da ética seja no da política,
que repercutem diretamente sobre o tema do direito. Da mesma maneira, seus
interlocutores também são reconhecidos filósofos que se dedicam ao problema
jurídico, em algum nível. Embora Habermas seja o mais conhecido deles, quem se
tornou verdadeiramente constante no debate foi Apel, mas outros também
mereceram atenção de Dussel, sendo por este provocados, nos mais diversos
contextos de discussão.

A título de exemplo, podemos citar o livro que, na versão brasileira, ganhou o


título de Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão (Dussel, 1995). Nele,
Dussel compila ensaios, escritos entre 1991 e 1993, que debatem as idéias, além de
Apel, de Paul Ricoeur, Charles Taylor e Richard Rorty. Outro exemplo é o volume,
organizado por Dussel, sobre o Debate en torno a la ética del discurso de Apel: diálogo
filosófico Norte-Sur desde América Latina (Dussel, 2013), com primeira edição de 1994.
Como fica evidente, a preferência do debate se volta para a figura de Apel, que

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788 Ricardo Prestes Pazello

parece ter sido o mais disponível dos interlocutores europeus de nosso filósofo
latino-americano. Outra publicação que segue a mesma prioridade é a coletânea
Ética del discurso y ética de la liberación (Dussel; Apel, 2005). Nesse conjunto de
publicações é possível refletir sobre a relação que existe entre ética do discurso,
ética da libertação e direito (que, aqui e acolá, se faz presente no contexto mais
amplo do debate dos autores).

Já em publicação de duas décadas depois de iniciados referidos diálogos, para


lançar mão de mais um exemplo, Dussel volta à carga com o tema “Ética del
discurso y ética de la liberación”, resumindo o debate pedagogicamente (trata-se
de ensaio escrito em 2018, o terceiro do livro com seus Siete ensayos de filosofia de la
liberación: hacia una fundamentación del giro decolonial). Nele, podemos apontar para
a categoria-chave a qual é capaz de resumir este interregno que propusemos acerca
da obra de Dussel no que ela toca o direito: o “princípio formal procedimental”
(Dussel, 2020b, p. 48 e seg.). Já o dissemos mas repetimos: mediante estes debates
– e o giro epistemológico anterior – Dussel vai antecipando e maturando as
elaborações de maior fôlego que dará a conhecer, primeiro em torno da ética da
libertação e, depois, da política da libertação.

9 Ética da libertação

Entendemos já termos deixado explícito que a trajetória filosófica de Dussel vai


desbravando searas novas conforme as semeaduras antigas vingam. No livro Ética
da libertação na idade da globalização e da exclusão, lançado em 1998, reside, ao mesmo
tempo, uma espécie de desdobramento do debate anterior (entre norte e sul), mas
toda a antecipação do debate seguinte (sobre a política).

Novamente, seria um esforço descomunal sintetizar uma obra como esta, que tem
sido uma das mais exploradas pelos muitos intérpretes do autor. De todo modo,
ela guarda consigo o intuito de consolidar um projeto de mais de duas décadas de
investigações. É o próprio Dussel quem nos diz, ao comparar esta obra com a
similar, que estruturou na década de 1970: “aquela obra intitulava-se ‘Para’ uma
ética... Esta, porém, é urna ‘Ética’, simplesmente” – e adenda: “aquela obra
denominava-se ‘...da libertação latino-americana’. Agora pretendemos situar-nos
num horizonte mundial planetário, além da região latino-americana, do
helenocentrismo e do eurocentrismo próprio da Europa e dos Estados Unidos
atuais”, logo, “do ‘centro’ e da ‘periferia’ para a ‘mundialidade’” (Dussel, 2002, p.
14-15).

No interior de uma intrincada e bastante sofisticada, ainda que por vezes rígida,
fundamentação positiva mas também negativa da ética – a partir do que Dussel

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Enrique Dussel e o direito 789

edifica seus seis momentos éticos, adjetivado como material, formal e de


factibilidade, tanto afirmativos (três primeiros) quanto críticos (três últimos) –
nosso autor admite reflexões sobre o jurídico. Este aparece principalmente quando
da relação existente entre ética do discurso, teoria dos sistemas e direito (portanto
alocados nos capítulos 2 e 3, sobre “A moralidade formal. A validade
intersubjetiva” e “Factibilidade ética: o ‘bem’”, respectivamente [ver Dussel, 2002,
p. 169 e seg.; p. 237 e seg.]). Mas também marca presença a partir de uma
dialetização já anteriormente intuída, como fica patente quando pensa o
“momento ético originário”, a partir do que o “sujeito ético dis-tinto” ganha vida
“não só como igual, com direitos vigentes, mas como livre, como outro, como
sujeito de novos direitos” (Dussel, 2002, p. 418).

Anotemos que um artigo, publicado em 2010 na revista Crítica jurídica, importante


canal de difusão das teorias críticas do direito na América Latina (o que revela o
interesse na recepção do pensamento de Dussel para o campo jurídico), expressaria
justamente essa última proposta de dialetização do direito. O sugestivo título da
comunicação, que parece ser autonomização textual da fase da política da
libertação, indica o sentido da reflexão: “Derechos vigentes, nuevos derechos y
derechos humanos” (Dussel, 2010).

Posteriormente, no livro que condensa as 14 tesis de ética: hacia la esencia del


pensamiento crítico, algo como que uma sedimentação de sua proposta ética, Dussel
reapresenta a problemática de cerca de vinte anos antes e a questão jurídica torna
a aparecer por intermédio de discussões sobre princípio moral, ordem vigente e
dimensão institucional. Assim, a sexta tese se intitula “El principio formal de la
moral” (Dussel, 2016, p. 70); a oitava, “La pretensión moral de bondad y el orden
vigente” (Dussel, 2016, p. 100); a décima primeira, “La praxis de liberación I y la
deconstrucción institucional” (Dussel, 2016, p. 141); e, por fim, a décima segunda,
“La praxis de liberación II y la creación institucional” (Dussel, 2016, p. 158). Tudo
isso já se conforma como uma síntese do terreno para o qual avançou nosso filósofo
ao tematizar uma filosofia política crítica que deságua em verdadeira política da
libertação, última ambiência teórica do autor a qual trabalharemos.

10 Política da libertação e giro descolonial

Podemos dizer que a fase final da produção teórica de Dussel durou coisa de vinte
anos e se preocupou intensamente com o problema da política. Após interpretar
eticamente o mundo, nosso filósofo se inquietou para transformá-lo. Longe de ter
sido um academicista ao longo de seu percurso intelectual, Dussel, porém,
intensificou suas preocupações politológicas, tendo tido a oportunidade de se

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790 Ricardo Prestes Pazello

imiscuir em projetos políticos concretos, do México à Bolívia ou Venezuela. A


conjuntura latino-americana, com sua “primavera política” (Dussel, 2009) a partir
da década de 2000, abriu espaço para Dussel contribuir em várias frentes da luta
povo de nosso continente. Uma delas, lastreada em vivências práticas, uma teoria
política da libertação – que permitiu um salto de qualidade ao seu giro descolonial.

Em 2001, Dussel escreve na apresentação de seu Hacia una filosofía política crítica:
“esta obra se encuentra en un período de transición entre mi Ética de la Liberación y
la Política de Liberación, que estamos elaborando” (Dussel, 2011, p. 9).
Reconhecendo serem trabalhos parciais, Dussel realiza um trânsito que contempla,
até por ter sido desenvolvido à luz dos diálogos norte-sul, algumas relevantes
discussões jurídicas. Nos capítulos VII e VIII da primeira parte de referida obra, o
tema aparece pela via da intersecção entre “Derechos humanos y ética de la
liberación” (Dussel, 2011, p. 145 e seg.; traduzido em Dussel, 2015) ou pelo
delineamento do que seria “La transformación del sistema del derecho” (Dussel,
2011, p. 159 e seg.). O primeiro texto fora apresentado no “VII Seminario del
Programa del Diálogo Norte-Sur”, em 1998; o segundo, na VIII edição de referido
evento, em 2000.

Algum tempo depois, em 2006, vêm à luz suas 20 teses de política, em nítido
exercício educativo-popular para com os assim conhecidos novos movimentos
sociais. Tais 20 teses... configuram-se como verdadeiro curso para lideranças
populares (como tivemos oportunidade de acompanhar uma feita em Curitiba, no
“Seminário Nacional de Fé e Política”, que contou com a presença do próprio
Enrique Dussel, em atividade nada acadêmica, pois destinada às comunidades
eclesiais de base do Paraná, no sul do Brasil). O passo que a teoria política
dusseliana está dando aqui é bastante largo. A passagem da ética à política já se
concretiza com o estabelecimento de sua discussão em torno da ordem política
vigente, em que a potentia popular tem sido deslocada por uma potestas que
fetichiza a institucionalidade. Tomando por base a experiência zapatista, por
exemplo, Dussel formula sobre o poder obediencial (da tradição maia-chiapaneca,
segundo o qual se manda obedecendo) e seu contrário, a fetichização do poder
(prática prevalente na política ocidental ainda-colonial, em que se manda
mandando). Contrastando com tal análise, Dussel advoga por uma transformação
da ordem política, a partir dos três níveis do campo político: a ação política
estratégica, as instituições políticas e os princípios normativos. Como transparece
nessa própria nomenclatura, é possível encontrar o direito transversalmente nos
três níveis, mas nós destacamos algumas das teses nas quais sua presença está mais
evidente, seguindo o discurso dusseliano: as teses nona e décima, sobre “A ética e
os princípios normativos políticos implícitos. O princípio material da política” e

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sobre “Os princípios normativos políticos formal-democrático e de factibilidade”


(cf. Dussel, 2007a, p. 73 e seg.; e 79 e seg.). Isto na parte de fundamentação de sua
abordagem. Na parte crítica, por sua vez, sublinhamos a tese décima nona acerca
da “Transformação das instituições da esfera da legitimidade democrática.
Irrupção dos novos direitos. A paz perpétua e a alteridade” (cf. Dussel, 2007a, p.
147). Não há sombra de dúvidas de que o estudo do direito com base na obra de
Dussel ganha novas perspectivas e pode ser bastante impulsionado (algo a que
ainda estamos assistindo na teoria crítica do direito latino-americana).

A partir de 2007, Dussel publiciza a cristalização de sua política da liberação, do


que as 20 teses de política haviam sido um prenúncio. Podemos mencionar, em
primeiro lugar, a reunião de ensaios que denominou de Materiales para una política
de la liberación, mais uma leva de produções prévias a sua política da libertação
propriamente dita. Nesta publicação, Dussel disponibiliza textos sobre a filosofia
latino-americana, ética e filosofia política, sendo que esta última temática (na
verdade, a parte final do livro) traz várias reflexões que ensejam discussões
jurídicas. Para citar uma, podemos ir até o vigésimo capítulo e ler o item 20.2
(Dussel, 2007b, p. 305 e seg.), intitulado “La normatividad democrática (principios,
instituciones y praxis democrática)”. Mas ressaltemos, é só um de tantos exemplos.

O projeto de maior importância de Dussel, porém, que também é dado a conhecer


em 2007 vem a ser mesmo a Política da libertação, com seus três volumes. O primeiro
é lançado neste ano, o segundo em 2009 e o terceiro, como já referimos, só em 2022.
A propósito, os dois primeiros foram traduzidos para o português, ainda que em
edição sem circulação comercial – organizada pelo Instituto Superior de Filosofia
Bertuhier (IFIBE), de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul – à qual tivemos acesso.

No volume inaugural da Política da libertação, o direito surge difusamente,


considerando que Dussel faz, novamente, uma abordagem histórica. Ainda assim,
podemos pinçar a problemática na discussão sobre “O ‘Estado das Índias’
ocidentais. A Recompilação das Leis e dos Reinos das Índias (1681)”, no décimo
primeiro capítulo da obra, dedicado àquilo que pode ser objeto de reflexão “Na
dependência da ‘Modernidade madura’. Alguns temas para uma história da
política na América Latina” (Dussel, 2014b, p. 435 e seg.). O mesmo pode ser feito
quando vemos o esquema 10.1 sobre a “Arquitetônica da ética, da política e do
direito”, presente no décimo capítulo que é sobre “A ‘Modernidade madura’ na
ilustração alemã. Filosofia política e estado” (Dussel, 2014b, p. 378).

Já no segundo volume, a questão ganha corpo mais robusto. Como é um tomo


dedicado à arquitetônica filosófico-política, Dussel acaba tendo de enfrentar com
mais cuidado a questão jurídica, seguindo o que já fora apresentado nos livros

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792 Ricardo Prestes Pazello

anteriores dentro desta fase. É o que fica evidenciado, por exemplo, no capítulo
segundo, quando trata de “A esfera formal da legitimidade (O Estado de Direito e
a opinião pública política)”, em seu parágrafo 23 (Dussel, 2020c, p. 307 e seg.); no
terceiro, voltado a “Os princípios implícitos fundamentais: a normatividade da
política” (Dussel, 2020c, p. 363 e seg.); e na “Conclusão da Arquitetônica. A ordem
ontológico-política”, quando no parágrafo 28 fala sobre a “Pretensão política de
justiça” (Dussel, 2020c, p. 535 e seg.).

A nosso ver, é mais ou menos evidente que Dussel está aportando em uma
consolidação de seus escritos anteriores, no que se refere ao direito, mas não só.
Isto se torna ainda mais visível quando retoma ensaios anteriores, atualizando-os
para os inserir no terceiro volume da Política de la liberación (para este, não há
tradução em português). Assim, a juridicidade se faz de algum modo presente no
que ele chama de segundo excurso (excurso para diferenciar os seus próprios
textos dos demais autores que compõem o terceiro volume), sobre “Los principios
normativos críticos de la política en la segunda y la tercera constelaciones” (Dussel,
2022, p. 187 e seg.) e, depois, mais expliticamente no quarto excurso relativo a “La
transformación del sistema del derecho” (Dussel, 2022, p. 637 e seg.). Por fim, o
parágrafo 44 trabalha com o mesmo tema que concluía o segundo volume, qual
seja, a “Pretensión crítico-política de justicia” (Dussel, 2022, p. 717 e seg.).

Uma longa travessia consolida a política da libertação dusseliana e o direito vai


sempre se fazendo presente, até porque, inevitavelmente, é um dado da realidade
política (assim como da história, da ética, da filosofia ou da economia política). É
verdade que, nesse momento final, uma inflexão de retorno à dimensão
normativo-institucional do fenômeno jurídico se mostra acentuada, mas ainda
assim de muito interesse para nossa reflexão, mesmo que sob prisma
antinormativista (como entendemos ser a sugestão marxista, a qual perfilhamos).

Cabe ainda mencionar dois livros, para encerramos esse que consideramos ser um
verdadeiro guia de leitura da obra de Dussel sobre o direito, se pensada a partir
das preocupações de encontros (e desencontros) com este campo de investigação.

De um lado, o compilado que resulta em Carta a los indignados, com vários textos
que atacam a temática jurídica. Citemo-los, por zelo didático, ainda que como
meras exemplificações: “Estado de derecho, Estado de excepción, Estado de
rebelión”; “La ética y la normatividad política, I”; “La ética y la normarividad
política, II”; “Moralidad, legalidad y legitimidad política”; “Legalidad y
legitimidad”; “La vida, la ley y la fuerza”; “¿Juicio político: simplemente legal o
también justo?” e “El poder ciudadano en la Constitución Bolivariana.
Articulación de la democracia participativa con la democracia representativa”

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Enrique Dussel e o direito 793

(respectivamente Dussel, 2011b, p. 131; 147; 150; 153; 184; 187; 206; 224 e seguintes
para cada uma das referências).

De outro, a última e uma das mais diferentes publicações assinadas por Dussel:
Hacia una nueva cartilla ético política. Trata-se de uma nova cartilha política
inspirada na Cartilla moral, de 1944, lançada por Alfonso Reyes sob os cuidados
editoriais da Universidade Autônoma de Nuevo León, no México. Partindo do
contexto político mexicano, com o qual se envolveu intensamente, inclusive ao
nível da organização política MORENA, sendo seu dirigente nacional e partícipe
da formação política de seus quadros, assim é que a brigada cultural Para Leer En
Libertad lança, com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, referida “nova
cartilha”. Dentro dela podemos acessar cinco textos que, de um jeito ou de outro,
aplicam as teses da política da libertação à conjuntura, sendo que um dos capítulos,
o quarto, fala exatamente da “Transformación ética de las instituciones”, lugar
teórico-político por excelência em que Dussel aloca questões atinentes à
juridicidade.

Dessa maneira, tendo a política da libertação como esteio é que podemos entender
a contribuição específica para o assim chamado giro descolonial do poder e do
saber que os autores latino-americanos vieram promovendo desde as efemérides
de 1992. A distinção que notabiliza a produção teórica dusseliana é a de não
arredar pé da materialidade e da visualização da necessidade de organização
popular, enriquecendo a crítica marxista à economia política capitalista mas
também o livre-pensar das teorias críticas latino-americanas da sociedade.

***

Infelizmente, Dussel veio a falecer no final de 2023. Contudo, afortunadamente, a


partir de sua obra o marxismo latino-americano revivesce e pulsa com muito
potencial para continuar valendo como a senda para iluminar o pensamento crítico
do continente e buscar os movimentos populares que o realizem na prática
revolucionária. O verbete que damos a conhecer tratou, sem dúvida, do direito na
obra de Dussel, no entanto, em seu pano de fundo, pode ser lido como um roteiro
de estudo sobre o próprio autor, independentemente da questão jurídica. Sua
“produção teórica”, como ele gostava de se referir, é um legado do qual não
podemos abrir mão, por sua crítica insurgente e por seu apelo latino-americanista,
que tanta falta continuam fazendo em nossos contextos muitas das vezes
anestesiados e voltados para o norte global.

Viva Enrique Dussel e sua filosofia, história, antropologia, teologia, ética,


econômica e política da libertação!

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794 Ricardo Prestes Pazello

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Enrique Dussel e o direito 795

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InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
800 Ricardo Prestes Pazello

Sobre o autor
Ricardo Prestes Pazello
Professor do Curso de Direito e do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pesquisador em
estágio pós-doutoral do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e
Sociedade da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
Líder do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania (NDCC/UFPR).
Pesquisador do Grupo Temático de Direito e Marxismo do Instituto de
Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS). Coordenador do
projeto de extensão/comunicação popular Movimento de Assessoria
Jurídica Universitária Popular - MAJUP Isabel da Silva, integrante do
coletivo Planejamento Territorial e Assessoria Popular (PLANTEAR), da
UFPR.

_________________
Dedicatória
Este ensaio, escrito em memória de Enrique Dussel por ocasião de seu
falecimento - que muito nos sensibilizou -, nós o dedicamos a Celso Luiz
Ludwig, professor que nos apresentou a filosofia da libertação durante o curso
de graduação em direito da Universidade Federal do Paraná, nos anos 2000,
abrindo portas para nossos futuros interesses de pesquisa.

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Poéticas políticas
Trata-se de seção dedicada a divulgar produções artísticas e literárias
que expressem o compromisso de valorização da cultura popular e de
construção artística militante, típica dos atores envolvidos com e nos
movimentos sociais. A seção de texto e manifestações artísticas da
revista do IPDMS é uma homenagem a Augusto Boal, criador do teatro
do oprimido, ensejando na dramaturgia uma “poética política”
(subtítulo de seu livro mais conhecido – Teatro do oprimido e outras
poéticas políticas).
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.5239

poéticas políticas

Cabelo é história
El cabello es historia

Hair is history

Aline Guimarães1
1
Teresina, Piauí, Brasil. Instagram: @lineaaaa_.

Submetido em 02/12/2023
Aceito em 02/12/2023

Como este trabalho


GUIMARÃES, Aline. Cabelo é história. InSURgência: revista de direitos e movimentos
sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 803-806, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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804 Aline Guimarães

Cabelo é história

Ilustração digital, produzida em 2022 por Aline Guimarães, gentilmente cedida


pela autora para ilustrar a capa desta edição.

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Cabelo é história 805

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806 Aline Guimarães

Sobre a autora
Aline Guimarães
Natural de Teresina, capital do Piauí. É multiartista nas áreas de arte
urbana, ilustração, arte-educação e performance. Seu trabalho é uma
contação de histórias ancestrais, passa pela brincadeira das crianças e a
sabedoria dos velhos, atravessada diretamente pela dança, sua
formação inicial. Tem participado de festivais de graffiti e arte urbana
pelo Brasil, ilustrando diversas temáticas como infância,
afrodescendência e cultura popular. Desde 2020, pesquisa a terra como
elemento de criação, tanto na feitura de suas próprias tintas, quanto no
entendimento do território para a experiência da diáspora africana. No
Instagram: @lineaaaa_.

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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.5239

poéticas políticas

Fotografia como ato de insurgência


contracolonial
La fotografía como acto de insurgencia
contracolonial

Photography as an act of countercolonial insurgency

Stela Guedes Caputo1


1
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0133-3301.

Submetido em 14/01/2024
Aceito em 14/01/2024

Como este trabalho


CAPUTO, Stela Guedes. Fotografia como ato de insurgência contracolonial. InSURgência:
revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 807-814, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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808 Stela Guedes Caputo

Fotografia como ato de insurgência


contracolonial

Em uma das fotografias vemos Equede Lara de Oxóssi, aos seis anos, em seu
terreiro, o Ilê Axé Omi Lare Iyá Sagbá, em Santa Cruz da Serra, Duque de Caxias.
Fiz essa foto em um momento de pausa, onde todas nós ajudávamos a preparar
nosso terreiro para o Olubajé, o banquete do rei, a grande festa para Obaluaê,
poderoso orixá da boa saúde e da cura. “O olubajé é a festa para o rei da terra, ele
veste a palha para espalhar vida, espalhar amor. Ele não é a doença, ele cura a
doença da gente”, ensina equede Lara.

Na outra fotografia, vemos Mariah de Souza Pimentel, do Ilê Axé Iyá Omim Delê,
em Cabuçu, Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Ela é de Oxum e na foto tem 3
anos. Dessa vez, fiz a foto no quintal de seu terreiro, em frente ao quarto dos eguns.
Os eguns são os mortos, pessoas importantes no culto que fizeram por merecer
durante sua existência no aiyê (aqui na terra) o ritual de voltar vestindo a roupa
sagrada, casa temporária da morte refazendo a vida. “O egun sai da morte e vem
viver com a gente”, explica Mariah.

As duas são crianças de terreiro (Caputo, 2012). No caso de ambas, terreiros de


candomblé, religião brasileira, que começou a ser partejada no Atlântico enquanto
escravizados e escravizadas atravessavam um oceano de dor, angústia, desespero
e saudade. Cada terreiro, seja de que nação for, sempre esteve repleto de crianças
que participam dos rituais, da hierarquia dos cultos e ganham cargos
importantíssimos, de liderança, de sucessão e de continuidade das casas (Caputo,
2020).

Há 30 anos pesquisamos com crianças de Candomblé. No Programa de Pos-


Graduação em Educação da UERJ (PROPED), fundamos o Kékeré (pequeno,
miúdo, em yorubá) e por que fizemos isso? Porque compreendemos que as
crianças de terreiros eram invisibilizadas mesmo nos estudos afro-diaspóricos,
incluindo as pesquisas de religiões afro-brasileiras. Não é que nossos estudos as
tenham trazido para o centro, porque elas continuam nas casas de santo como
sempre estiveram, sendo iniciadas, recebendo cargos, brincando, tocando
atabaques, cantando, dançado, cuidando dos orixás, por exemplo, sem que
precisem de qualquer pesquisadora ou pesquisador. O que fizemos, então?
Apenas começamos a romper uma certa cegueira epistemológica e política em
diversas áreas de estudos e também de ativismo político.

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Fotografia como ato de insurgência contracolonial 809

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
810 Stela Guedes Caputo

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Fotografia como ato de insurgência contracolonial 811

Muito lentamente, pesquisadores e pesquisadoras, com diferentes interesses de


pesquisas, começam a perceber que as crianças de terreiros existem. Ou seja, as
crianças de terreiros não precisavam ser movidas de lugar algum. Quem precisava
(e precisa muito) sair do lugar continua sendo a Universidade, a chamada academia
e toda a sociedade que continua racista, inclusive praticando sua face racista
religiosa.

Para Sarmento (2005), as crianças são indivíduos com a sua especificidade


biopsicológica que, ao longo de sua infância, percorrem diversos subgrupos
etários e varia a sua capacidade de locomoção, de expressão, de autonomia de
movimento e de ação, etc. E acrescenta que as crianças “são também seres sociais
que distribuem-se pelos diversos modos de estratificação social: classe social, etnia,
raça, gênero, região do globo onde vivem. Os diferentes espaços estruturais
diferenciam profundamente as crianças”. (Sarmento, 2005, p. 370).

Diferenciam, mas não quer dizer que determinem, já que, como indicou Cohn
(2005), as crianças não são seres determinados pelas culturas, mas sim agentes
produtores de culturas, ativas na fabricação de sentidos. Nos terreiros, as crianças
incorporam orixás, cantam para folhas e comidas, falam yorubá, fazem preces nos
ouvidos de bichos, falam com parentes mortos.

Não é de estranhar que fôssemos localizando insuficiências nas teorias e


metodologias que conhecíamos. Prudentemente, ouvimos o conselho da boca do
mestre tradicionalista de Bandiagara, Tierno Bokar, ao dizer que a África dos
velhos sábios avisa ao jovem pesquisador e pesquisadora: “Se queres saber quem
sou. Se queres que te ensine o que sei. Deixa um pouco de ser o que tu és. E esquece
o que sabes” (Bâ, 2010, p. 212). O terreiro não é África, nem a reprodução fiel de
alguns de seus rituais, mas guarda ligação profunda com ancestrais africanos. O
aviso dos terreiros aos pesquisadores que buscam se aproximar de suas crianças é
o mesmo.

Fotoetnografia miúda

Em nossas pesquisas, o que nos move não é analisar crianças nos cotidianos das
casas de axé (candomblés de todas as nações e também os terreiros de umbanda),
mas, nesses cotidianos, compartilhar seus modos de significar e interpretar a si
mesmas e os terreiros, em todas as suas dimensões. Nos move também
compartilhar com elas como significam e se relacionam com a sociedade para além
do terreiro.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
812 Stela Guedes Caputo

Saramago (1995, p. 10), disse: “se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.
Chamamos o que fazemos de Reparar Miúdo e Narrar Kékeré (Caputo, 2018). Sim,
a ênfase do escritor português é no olhar, sendo este mais profundo quando
conseguirmos ver e, mais profundo ainda, se conseguimos reparar, olhar mais
detidamente e, por fim, ver, ou perceber melhor. Talvez essa percepção mais
aprofundada do ver não se limite aos olhos. Se a discussão é importante para
etnografias, ela se torna imprescindível para nós que pesquisamos com o que
chamamos de Fotoetnografia Miúda, uma etnografia praticada com ênfase nas
fotografias com crianças de terreiros. Mais recentemente, ampliamos nossas
pesquisas com crianças ciganas, ribeirinhas, quilombolas e indígenas.

Embora sejam fundamentais, nunca foram só os olhos. Sempre achei que


fotografava com o corpo inteiro por vários motivos. Sem flashes, por interdição e
estética, quando usada, a velocidade baixa pede uma respiração delicada, o dedo
leve. Olhos, ouvidos, respiração, todos os sentidos acionados, envolvidos e
conectados na Fotoetnografia Miúda. Afinal, Cartier Bresson estava certo ao dizer
que “fotografar é colocar na mesma linha de mira, a cabeça, o olho e o coração”.
(Bonnefoy, 2009, p. 9).

Para Alex Schlenker (2019), descolonizar a escrita significa que permitamos outras
formas de percorrer o que é pesquisado e conhecido do mundo: o corpo, os
movimentos, as imagens, os sons, os objetos etc. Além disso, Schlenker enfatiza a
importância de descolonizar o estatuto fotográfico, desde o ato de fotografar aos
arquivos fotográficos. Porque a fotografia, diz ele, é um exercício pensado para a
posteridade, no qual se trata de criar documentos visuais que pretendem falar de
um momento determinado com veracidade”. (Schlenker, 2019, p.31).

Equede Lara e Mariah nos ensinou que o Senhor da Terra, com sua roupa de palha
espalha a vida. Mariah Pimentel explica que o egun sai da morte e vem viver. São
relações outras, relações contracoloniais, no dizer do nosso querido e agora
ancestralizado, Antônio Bispo dos Santos. Nêgo Bispo preferia usar a palavra
“contracolonial”, no lugar de “decolonial” ou mesmo “descolonial”. Para ele, se o
colonialismo continua e pretendemos desmanchar o colonialismo, vamos morrer
cansados. “Eles fazendo e eu desmanchando, eles fazendo e eu desmanchando. É
isso que os decolonialistas fazem. Já nós, contracolonialistas, que temos uma
trajetória que são quilombos, aldeias, terreiros, queremos bloquear o colonialismo.
Não precisa matar o colonialista, mas curá-lo de sua cosmofobia”. (Bispo, 2023,
p.27). Para ele, a bíblia funda um regime monoteísta em que só existe UMA
verdade, UM modo de existir no mundo. Funda, portanto, a imagem de um Deus
terrorista. Esse Deus terrorista, diz Nêgo Bispo, aparta o ser humano da natureza
e faz com que todos nasçam sob o terror. Isso é a cosmofobia e é preciso curar a

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Fotografia como ato de insurgência contracolonial 813

humanidade da cosmofobia, ensinava. Para Bispo, a cosmofobia não é uma


questão religiosa e sim, uma incapacidade da sociedade de lidar com as diversas
linguagens e elementos. A essa incapacidade ele nomeou “cosmofobia”. Para
combatê-la, ele sugere o politeísmo, que também não se restringe ao religioso, mas
sim, uma relação diversificada com todas as vidas na natureza.

Nós do Kékeré temos andado por aí espalhando conhecimentos e fotografias de


crianças que vivem uma infância contracolonial porque não foram reduzidas ao
projeto terrorista e de morte do colonizador e reexistem até hoje. As fotografias,
tenho percebido ao longo de tantos anos, seja em exposições, conversas, aulas e
palestras, desacostumam lugares acostumados. Desassossegam e causam
estranhamento aos conservadores colonizados. Para nós, contracoloniais, isso é
bom porque sem desassossego, sem estranhamento, sem insurgências, inclusive
imagéticas, não é possível vencer a cosmofobia. Bispo falava da vida como
“começo, meio, começo de novo”. Para nós, a fotografia como ato de insurgência
contracolonial também é isso: “começo, meio, começo de novo”. Viva Nêgo Bispo!

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Paulo: Unesco e Cortez, 2010.

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SCHLENKER, Alex. Entrevista. Epistemologias do Sul, v, 3. n. 1, 2019.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
814 Stela Guedes Caputo

Sobre a autora
Stela Guedes Caputo
Doutora em Educação, fotógrafa, professora da Faculdade de Educação
da UERJ e coordenadora do Kékeré (pequeno em yorubá), Grupo de
Pesquisa do Proped/UERJ. Dofonitinha de Logunedé.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52399

poéticas políticas

Mulheres da CONAQ
Mujeres de la CONAQ

CONAQ women

Walisson Braga da Costa1


1
Cidade Ocidental, Goiás, Brasil. Instagram: @instadowalisson.

Submetido em 01/12/2023
Aceito em 01/12/2023

Como este trabalho


COSTA, Walisson Braga da Costa. Mulheres da CONAQ. InSURgência: revista de direitos
e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 815-821, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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816 Walisson Braga da Costa

Mulheres da CONAQ

O ensaio/exposição "Mulheres da CONAQ”, de autoria de Walisson Braga da


Costa, ocorreu durante o encontro do Coletivo de Mulheres da CONAQ, reunidas
em Brasília, no dia 18 de outubro de 2022.

Foram selecionados os registros das lideranças integrantes da Coordenação


Executiva da CONAQ: Sandra Braga, do quilombo Mesquita, Cidade Ocidental,
Goiás, e Maria Bernadete Pacífico, do quilombo Pitanga dos Palmares, Simões
Filho, Bahia.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Mulheres da CONAQ 817

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
818 Walisson Braga da Costa

Sandra Pereira Braga

Formada em turismo, coordenadora executiva da CONAQ na região centro-oeste


e coordenadora estadual da CONAQ – GO. Sandra é agricultora rural, faz parte da
Coalizão Negra por Direitos, do Coletivo de Mulheres Negras da CONAQ.
Representou o movimento quilombola na COP28 em Dubai. Sandra se define
como militante da causa negra feminina quilombola e da luta por direitos.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Mulheres da CONAQ 819

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
820 Walisson Braga da Costa

Maria Bernadete Pacífico Moreira

Ialorixá, foi coordenadora executiva da CONAQ na região nordeste, também


coordenava uma associação de agricultores. Foi secretária de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial em Simões Filho (2009/2016). A ativista “Mãe
Bernadete”, como era conhecida, foi uma importante voz contra a violência sobre
os quilombos, especialmente após o assassinato do seu filho Binho do Quilombo
(Flávio Gabriel Pacífico dos Santos) em 2017. Em 2023 sua trajetória de luta foi
interrompida com o seu assassinato.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Mulheres da CONAQ 821

Sobre o autor
Walisson Braga da Costa
Quilombola da comunidade Mesquita, Cidade Ocidental, Goiás.
Umbandista e fotógrafo por amor. É formado em Licenciatura de Artes
Plásticas pela Universidade de Brasília, integrou o coletivo de
comunicação da Coordenação Nacional de Articulação das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas. Atualmente é chefe de
divisão de Gabinete da secretaria de Políticas para Quilombolas, Povos
e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e
Ciganos do Ministério de Igualdade Racial. No Instagram:
@instadowalisson.

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poéticas políticas

Epistemologias da terra: articulações


interseccionais pelo bem viver
Epistemologías de la tierra: articulaciones
interseccionales para el buen vivir

Epistemologies of the earth: intersectional


articulations for good living

Letícia Reis1
1
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.
E-mail: [email protected].

Submetido em 30/01/2024
Aceito em 30/01/2024

Como este trabalho


REIS, Letícia. Epistemologias da terra: articulações interseccionais pelo bem
viver. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 823-
829, jan./jun. 2024.

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ISSN 2447-6684

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824 Letícia Reis

Epistemologias da terra: articulações


interseccionais pelo bem viver

“E a gente combinamos de lutar.” Nas interpelações de saberes afro-indígenas,


Cacique Nailton Pataxó-hã-hã-hãe tece comentários sobre suas estratégias de
retomada e me reacende instintivamente às palavras de Dona Conceição Evaristo
(2016) em Olhos d’água. Em uma voz uníssona sob o pipocar dos tiros, o juramento
dos meninos no poema se repete na Terra Indígena Catarina Caramuru
Paraguassu: a gente combinamos de não morrer! Naquele 21 de janeiro, perdemos
Maria de Fátima Muniz, a Pajé Nega Pataxó, pelas mãos da violência colonial.
Morreu com o maracá nas mãos, encantou como guerreira (Mestra..., 2024).

A morte incendiou a vida, como se estopa fosse, lembra a voz de Conceição.


Escancarou, mais uma vez, o genocídio negro-indígena em curso nesse país. Para
além de nossos corpos, o desejo era aniquilar toda conexão epistemológica que nos
mostra que vale a pena viver. Vale a pena lutar para seguir vivendo com os pés
descalços que, ao tocar o chão, rememoram a terra que conta a história de nossas
famílias.

No domingo vinte e um, as primeiras pessoas que chegaram no Território Pataxó


foram lideranças do Assentamento Terra Vista. Há 31 anos, Joelson e Solange
ocuparam as lavouras de cacau tomadas pela vassoura de bruxa em Arataca, Sul
da Bahia, para reescreverem uma história na luta pela terra com o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil. Pelo plantio de árvores nativas, a
recuperação de matas ciliares, o cultivo de produtos orgânicos e a preservação da
mata atlântica, a soberania alimentar era conquistada garantindo a autonomia dos
povos, a educação popular e a reafirmação da floresta (Oliveira, 2022).

Nessa primeira fotografia, usando um boné roxo da Teia dos Povos, uma camisa
verde sobre agroecologia com os dizeres “Mondeggi Bene Comune / Fattoria Senza
Padroni” e com uma lagoa translúcida ao fundo, está Mestra Solange Brito. Na
ocasião de nosso encontro, eu estava compondo a equipe audiovisual dos Saberes
Tradicionais da UFMG gravando seu Retrato — uma conversa em forma de
documentário em que mestras de conhecimentos tradicionais compartilham
saberes educacionais que salvaguardam as memórias de suas comunidades.
Solange está no quintal de sua casa e enquanto conversávamos sobre o papel das
mulheres na luta pela terra, na educação popular, no cuidado de sementes nativas,
na espiritualidade contracolonial e nas conexões que compõem a transição
agroecológica, os peixes passavam por trás, nadando plenamente nas águas limpas
da lagoa que contorna o caminho para a Terra do Bem-Virá.

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Epistemologias da terra: articulações interseccionais pelo bem viver
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826 Letícia Reis

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Epistemologias da terra: articulações interseccionais pelo bem viver
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Homônimo do filme de Alexandre Rampazzo, o projeto de plantio de árvores para


daqui a 3 mil anos nasce de um sonho de reflorestar o futuro. É este o cenário da
segunda fotografia. A Capitã Pedrina da guarda de Terno de Massambike de
Nossa Senhora das Mercês de Oliveira (MG) se emociona com os cânticos da terra
enquanto um grupo composto por Mestres da comunidade, Doutores em Notório
Saber da UFMG, estudantes de graduação, pós-graduação e professores da
instituição, militantes da Teia dos Povos Bahia e Minas se reuniam em roda para o
plantio de novas espécies no Bem-Virá. Pelos sons e palmas, muitos pontos e
cantigas de candomblé eram entoadas sobre as matas. Vestida de indumentária
religiosa, com ojá na cabeça e fio de conta no pescoço, Mestra Pedrina além de
Capitã de Rosário é também candomblecista e tem um Retrato gravado em sua
Casa de Candomblé Angola-Muxikongo em Juatuba (MG) (Pedrina..., 2018). Pela
confluência de saberes, percebemos as múltiplas manifestações populares que
compõem singularidades dos sujeitos. Há dinâmicas de trocas culturais entre
povos que evidenciam as articulações possíveis e fortalecem vínculos políticos na
reivindicação das lutas. Os olhares que a fotografia capta evidenciam a emoção de
conhecer os segredos da terra e se encantar com as energias que protegem as matas
— em forma de caboclo, de nkisi, de encantado, de orisà. A luta pela terra é uma
só.

Construir um horizonte em que a vida impera, que a natureza é respeitada, que as


proposições surgem das vivências cotidianas — produzidas e partilhadas a partir
de suas coletividades — por onde a ação política encontra terra fértil na direção de
uma sociedade multiétnica e pluricultural, é um projeto político de mulheres
negras: o bem viver. Visível também no momento em que as histórias dessas
fotografias foram contadas, em formações políticas e educacionais nas articulações
entre MST/Teia dos Povos, majoritariamente liderada por pessoas negras, e as
comunidades indígenas Pataxó-hã-hã-hãe e Tupinambá da Serra do Padeiro,
coordenadas pelos Saberes Tradicionais da UFMG em outubro de 2023.

Por fim, Mestra Mayá (Andrade, 2021), irmã de Cacique Nailton e de Pajé Nega,
nos ensina sobre ouvir os encantados e fabular uma escola de retomadas, traçando
caminhos possíveis e conscientes rumo à ruptura completa de todas as
permanências opressivas ao reivindicar nossas raízes. Nós, enquanto mulheres,
quilombolas, de religiões de matriz africana, das comunidades tradicionais, das
lutas pela terra, dos movimentos sociais de base, de periferias, da preservação das
florestas, das perspectivas LGBTTQIAPN+, de povos indígenas, de organizações
de pessoas com deficiência e das articulações de juventude queremos
comunidades que sonhem e que se permita sonhar, porque nossa transformação
só acontece quando é gestada em futuros coletivos.

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828 Letícia Reis

Referências

ANDRADE, Maria Muniz de [Mayá]. A escola da reconquista. Arataca (BA): Teia


dos Povos, 2021

EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2016.

MESTRA Nega Pataxó está viva em nós e lutou com o maracá nas mãos. Justiça
para o povo Pataxó-hã-hã-hãe. Teia dos Povos, 22 jan. 2024. Disponível em:
<https://teiadospovos.org/mestra-nega-pataxo-esta-viva-em-nos-e-lutou-com-o-
maraca-nas-maos-justica-para-o-povo-pataxo-ha-ha-hae/>. Acesso em 29 jan.
2024.

OLIVEIRA, Joelson Ferreira de. As lutas existem pela nossa terra. Belo Horizonte:
Escola de Arquitetura da UFMG, 2022

PEDRINA de Lourdes Santos. Saberes Tradicionais, 20 mar. 2018. Disponível em:


https://www.saberestradicionais.org/pedrina-de-lourdes-santos/. Acesso em 29
jan. 2024.

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Epistemologias da terra: articulações interseccionais pelo bem viver
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Sobre a autora
Letícia Reis
Mestranda em História da África na Universidade Federal de Minas
Gerais e pesquisadora em Gestão de Acervos Fotográficos:
Acessibilidade e Ações Afirmativas da Terceira Edição da Bolsa Funarte
de Estímulo à Conservação Fotográfica Solange Zúñiga. Há sete anos
escreve histórias fotográficas por olhares interseccionais sobre
mulheres negras. Atua com patrimônio cultural em busca de
perspectivas emancipatórias para comunidades tradicionais. É
candomblecista, sapatão e feminista negra.

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poéticas políticas

Premonição
Premonición

Premonition

José D’Assunção Barros1


1
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
3974-0263.

Submetido em 01/12/2023
Aceito em 01/12/2023

Como este trabalho


BARROS, José D’Assunção. Premonição. InSURgência: revista de direitos e movimentos
sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 831-834, jan./jun. 2024.

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832 José D’Assunção Barros

Premonição

Em um dia de meio dia,


meus olhos, somente os olhos,
tiveram uma visão.

Lembro-me que a luz me doía


como uma ponta de sabre
no corpo do coração.

Lembro-me, sem muito assombro,


que tudo quedava incompleto,
como se as luzes buscassem em vão
o preenchimento das coisas.

Na sintonia das imagens,


dissecavam-se as paisagens
sem mistificação:

Não obstante o colorido,


ficavam os homens repartidos
como se feitos de pão.
A uns: o ouro e a prata;
a outros: a fome e a crença;
a esses: a esperança;
para aqueles: quitutes em lata.

Tanto sol doía


nos ombros da nação
(Talvez não houvesse justiça
em sua distribuição).

E talvez por ser evidente,


ficavam doídas e claras
as sombras dos coqueiros:
Ali, onde outrora era verde,
espreitam crianças desamparadas.

Desamparadas, porém livres,


querem construir a nação
– mas faltam-lhe os instrumentos:
os braços, as mãos...

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Premonição 833

Igualmente iluminados,
os andarilhos nas estradas:
Pés descalços, chapéus de palha,
– ou capacetes e mãos de graxa –...
Todos, embora cansados,
querendo correr o chão.

Mas falta-lhes segmento:


as pernas da multidão.

Arre!
Tanto sol
arde como uma tarde
de Verão...

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834 José D’Assunção Barros

Sobre o autor
José D’Assunção Barros
Professor-Associado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em História. Professor-
Permanente do Programa de Pós-Graduação em História Comparada
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em História pela
Universidade Federal Fluminense. Mestre em História pela
Universidade Federal Fluminense. Graduado em História pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Graduado em Música pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Caderno de retorno
Trata-se de seção dedicada a realizar interpretações críticas, por meio
de resenhas, de publicações recentes ou clássicas de textos e livros de
interesse dentro do tema direitos e movimentos sociais. A seção de
resenhas da revista do IPDMS é uma homenagem ao escritor e político
martinicano Aimé Césaire que, como poeta da negritude, escreveu
Caderno de um retorno ao país natal, poema de resgate da identidade
negra e de crítica ao colonialismo.
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52440

caderno de retorno

Mulheres Atlânticas – a agência de


mulheres negras no Judiciário Brasileiro:
resenha do livro “Cadê a Juíza?”, de
Raíza Feitosa Gomes
Mujeres Atlánticas - la agencia de mujeres negras en
el Poder Judicial Brasileño: reseña del libro “¿Cadê a
Juíza?” de Raíza Feitosa Gomes

Atlantic Women - the agency of black women in the


Brazilian judiciary: review of the book "Cadê a
Juíza?", by Raíza Feitosa Gomes

Inara Flora Cipriano Firmino1


1
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-3745-8985.

Rodrigo Portela Gomes2


2
Universidade Federal da Paraíba, Departamento de Ciências Jurídicas, João
Pessoa, Paraíba, Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-5179-6024.

Submetido em 30/01/2024
Aceito em 30/01/2024

Como citar este trabalho


FIRMINO, Inara Flora Cipriano; PORTELA GOMES, Rodrigo. Mulheres Atlânticas - a
agência de mulheres negras no Judiciário Brasileiro: resenha do livro “Cadê a Juíza?”, de
Raíza Feitosa Gomes. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v.
10, n. 1, p. 837-846, jan./jun. 2024.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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838 Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes

Mulheres Atlânticas
– a agência de
mulheres negras no
Judiciário
Brasileiro: resenha
do livro “Cadê a
Juíza?”, de Raíza
Feitosa Gomes
GOMES, Raíza Feitosa. “Cadê a juíza?”:
travessias de magistradas negras no
judiciário brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2020.

A noite não adormece / nos olhos das mulheres / a


lua fêmea, semelhante nossa, / em vigília atenta
vigia / a nossa memória. / A noite não adormece /
nos olhos das mulheres / há mais olhos que sono /
onde lágrimas suspensas / virgulam o lapso / de
nossas molhadas lembranças. / A noite não
adormece / nos olhos das mulheres / vaginas
abertas / retêm e expulsam a vida / donde Ainás,
Nzingas, Ngambeles / e outras meninas luas /
afastam delas e de nós / os nossos cálices de
lágrimas. / A noite não adormecerá / jamais nos
olhos das fêmeas / pois do nosso sangue-mulher /
de nosso líquido lembradiço / em cada gota que
jorra / um fio invisível e tônico / pacientemente cose
a rede. /
Conceição Evaristo (2017, p. 26).

Sobreviver e despertar são verbos acentuados nas narrativas de seis juízas negras1
brasileiras. Elas tiveram suas trajetórias alinhavadas por Raíza Feitosa Gomes2 no

1 É importante ressaltar que no livro, assim como na dissertação de mestrado, por aspectos éticos
da pesquisa, as juízas negras entrevistadas não foram identificadas. Os seus nomes, e eventuais
outros nomes que elas tenham citado, foram preservados e modificados. A autora optou por
utilizar nomes de mulheres negras reconhecidas por seu protagonismo e resistência contra a
escravização: Aqualtune, Tereza, Acotirene, Anastácia, Dandara e Zeferina.
2 É advogada popular, atualmente Analista Plena no Instituto Guaicuy - SOS Rio das Velha. Mestra
em Ciências Jurídicas pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade
Federal da Paraíba, na área de concentração em Direitos Humanos e linha de pesquisa em Gênero

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Mulheres Atlânticas - a agência de mulheres negras no Judiciário Brasileiro: resenha do livro 839
“Cadê a Juíza?”, de Raíza Feitosa Gomes

livro “Cadê a Juíza?” (2020), que compõe as travessias enfrentas por mulheres
negras antes e depois de ingressarem na carreira da magistratura. A obra da jurista
piauiense é fruto de pesquisa de Mestrado realizada no Programa de Pós-
Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, a
dissertação “Magistradas negras no Poder Judiciário brasileiro:
representatividade, política de cotas e questões de raça e gênero”, defendida em
2018.

O objetivo da pesquisa, segundo a autora, é demonstrar e compreender como as


desigualdades de raça e gênero, bem como os processos de resistência à essas
violências, constituem o arranjo institucional da magistratura brasileira. O texto
coloca as mulheres negras na centralidade da ação e da narrativa para investigar
como o judiciário responde a chegada e a permanência de mulheres negras neste
espaço, que é tido como um espaço de não pertencimento.

Como qualificado no prefácio do livro, escrito por Maria Sueli Rodrigues de Sousa
(2020), a obra é uma ferramenta científica de denúncia que é capaz de
“desconcertar” a magistratura, o Judiciário e até a igualdade3. Além da denúncia
do racismo e do sexismo, enquanto relações de poder que impactam a carreira, a
instituição e os princípios tão importantes para o pacto constitucional, lemos a
pesquisa como um instrumento catalisador de outras gramáticas e éticas da
magistratura.

No decorrer da pesquisa, a autora mobiliza dados quantitativos e relatos de


magistradas negras para analisar o racismo e o sexismo, enquanto dispositivos que
intersectados resultam em violências no cotidiano de mulheres negras (Gonzalez,
2018; Carneiro, 2005; Collins; Bilge, 2021). Em entrevistas semiestruturadas4
conduzidas por Raíza Gomes (2020), as juízas reconstroem suas memórias de

e Direitos Humanos (2018). Graduada em Direito pela Universidade Federal do Piauí (2015).
Participou do Projeto Cajuína - Centro de Assessoria Jurídica Popular de Teresina (2010- 2014).
Integrou o Programa Direitos Humanos e Cidadania - DiHuCi (UFPI), no Projeto de Pesquisa e
Extensão “Conhecimentos tradicionais e quilombolas na conservação da biodiversidade
piauiense numa perspectiva sócio-jurídica” (2011- 2014).
3 Por constituírem conteúdos e arranjos fundamentais do constitucionalismo contemporâneo, ou
mesmo, pelo fato da magistratura conformar um poder não só institucional, mas simbólico,
econômico e cultural na formação social brasileira, demonstrado na identidade da carreira, no
passado ou presente, prepondera no imaginário um homem branco da elite econômica.
4 A pesquisadora conduziu as entrevistas a partir de um roteiro de 30 perguntas, com os seguintes
tópicos: 1 - A trajetória pessoal incluindo a condição de magistrada negra; 2 - A percepção da
identidade feminina e negra; 3 - A relação com os pares, progressão funcional, efeito da carreira
na vida pessoal; 4 - Experiência de discriminação; 5 - A relação entre a identidade negra e
feminina e a produção da decisão judicial; 6 - A diversidade de gênero e raça na composição do
judiciário brasileiro; 7 - A política de cotas; 8 - Luta das mulheres, feminismo, feminismo negro,
movimento negro, Interseccionalidade; 9 - Questão racial no Brasil e no judiciário.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
840 Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes

violência a partir da lente interseccional, marcando a sua autopercepção e as suas


interações. Esse processo leva à destituição do status de sujeitas políticas, de modo
a inferiorizá-las no contexto socioinstitucional. A partir dos episódios narrados,
observamos que: i) suas histórias são negligenciadas; ii) seus corpos são
objetificados; iii) suas identidades dilaceradas.

O racismo, enquanto um elemento estruturante, esteve entrelaçado na vida destas


mulheres até que chegassem à magistratura e dentro do espaço e da realidade
institucional, a situação não foi diferente. No espectro do Judiciário, as violências
sistematizadas são refletidas na sub-representação das mulheres negras no Poder
Judiciário5, assim como, na identidade profissional e na interação com os demais
integrantes da carreira, na progressão e concepção da carreira, na relação com os
jurisdicionados e em outros aspectos atinentes ao sistema de justiça. Quando
desata esse nó, Raíza Gomes (2020) nos revela um primeiro sentido de ordem
epistêmica, que é comum nos estudos orientados pela interseccionalidade. Collins
e Bilge (2021, p. 243), apontam que essas pesquisas decorrem de uma “relação
sinérgica entre a investigação e a práxis da interseccionalidade”, ou seja, da relação
entre os contornos teórico-intelectuais e a observância da ação política de mulheres
negras. Nesse sentido, a centralidade da narrativa de experiências de mulheres
negras conduz a escrita da pesquisa.

Enquanto análise, no campo da justiça social, a interseccionalidade se desenvolveu


a partir desta “tensão crítica e criativa”, desaguando novas ideias e práticas para
transformação da realidade imergida (Collins; Bilge, 2021). Assim, as juízas
Aqualtune, Tereza, Acotirene, Anastácia, Dandara e Zeferina são provocadas a
sentir-pensar-agir com os instrumentos da interseccionalidade a partir dos
desafios que lhes impostos pelas estruturas de poder institucional. A tomada de
consciência deste lugar, mobiliza uma ruptura no modo de enfrentar as violências
perpetradas. O despertar para essas questões e o sobreviver elas devem ser vistos
como atos simultâneos e dialéticos em suas trajetórias.

Embora estes episódios ganhem significados em momentos distintos da vida de


cada uma delas (a singularidade que importa na construção de suas identidades),
isso não significa uma cisão absoluta entre a observação crítica da violência e a
promoção criativa para enfrentá-la. Não identificamos que a pesquisa analisa a

5 Nos últimos dados publicados pelo Conselho Nacional de Justiça sobre a composição do Poder
Judiciário, divulgados após a realização da pesquisa e a sua publicação como livro, os números
indicam que existem 12% de pessoas pardas e apenas 1,7% pessoas pretas na magistratura.
Disponível em: https://www.cnj.jus.br/consciencia-negra-presidente-do-cnj-afirma-que-
judiciario-tera-tolerancia-zero-com-o-racismo/. Acesso em: 27 jan. 2024.

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Mulheres Atlânticas - a agência de mulheres negras no Judiciário Brasileiro: resenha do livro 841
“Cadê a Juíza?”, de Raíza Feitosa Gomes

travessia solitária e isolada de cada magistrada negra. Trata-se de uma análise de


experiências coletiva, comum ao conhecimento epistêmico de mulheres negras –
resistência é produção de conhecimento (Collins, 2019).

A mediação da pesquisadora catalisa um movimento de recuperação da memória


a partir da denúncia, o que é fundamental para a reconstrução das próprias
histórias das juízas e para a determinação de suas identidades. É importante para
a compreensão de como elas leem e ocupam os espaços que transitam.
Identificamos na obra a materialização do que a autora caracteriza de travessia
epistêmica, quando o objeto da interrogação é alterado radicalmente para a
narrativa das juízas negras.

Se na pergunta empregada no título – que expressa a ofensa racista e sexista mais


comum relatada nos testemunhos das juízas negras – é o corpo e a identidade
destas mulheres negras o objeto da interpelação, a trama reconstruída coloca no
centro da problematização a carreira da magistratura. Como formulou
criticamente Maria Sueli no prefácio (Sousa, 2020, p. 8) é preciso colocar o Poder
Judiciário “na frente do espelho em condição que o desconcerte” a partir dessa
práxis de desobediência epistêmica resultante da investigação de Raíza Gomes
(2020). Em outras palavras, este livro contribui cientificamente na fundamentação
de uma urgente autopercepção do Judiciário e, nesse sentido, a pesquisa integra
uma rede política6 que tem complexificado a denúncia contida (crítica) no relato
das juízas negras e deslocado a responsabilidade e resolutividade (criativa) do
racismo, classismo, cisheterosexismo e colonialismo para a institucionalidade. No
momento de escrita desta resenha, essa responsabilidade tem sido segurada por
pessoas negras que ocupam a carreira da magistratura nos Tribunais e no
Conselho Nacional de Justiça, o que tem resultado em iniciativas como o Pacto
Nacional do Judiciário pela Equidade Racial (2022)7.

6 A própria jurista identifica nos relatos esses instrumentos interpelativos e resolutivos, muitas
vezes protagonizado pela agência negra contemporâneos ou não ao seu estudo: i) o Encontro
Nacional de Juízas e Juízes Negras e Negros (Enajun); ii) o Fórum Nacional de Juízas e Juízes
contra o Racismo e todas as formas de Discriminação (Fonajurd).
7 O pacto incluiu: i) o Recadastramento de Dados Étnico-Raciais, realizado no primeiro semestre
de 2023 e que produziu o Diagnóstico Étnico-Racial do Poder Judiciário (CNJ, 2023); ii) o Fórum
Nacional do Poder Judiciário para a Equidade Racial (Fonaer), instalado pela Resolução nº
490/2023; iii) o Cadernos de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: Concretizando Direitos
Humanos – Direito à Igualdade Racial; iv) a Jornada Justiça e Equidade Racial. Antes existiram
medidas importantes na esfera institucional como: i) a Resolução CNJ nº 175/2013, que impede
os cartórios de negar o registro de casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo; ii) a Resolução
nº 203/2015 do CNJ, institui o sistema de cotas raciais, em cumprimento ao Estatuto da Igualde
Racial (Lei n. 12.288/2010), os indígenas e comunidades tradicionais; iii) o Provimento nº 73/2018
da Corregedoria Nacional da Justiça, que tornou menos burocráticas as regras para a mudança

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842 Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes

A partir da leitura da obra reconhecemos que outras agendas devem ser


impulsionadas, pois é comum nas produções do “Direito e Relações Raciais”
(Bertúlio, 2019; Gomes, 2021), as quais apresentam recursos analíticos para que o
racismo não seja mais circunscrito como “problema do negro” (Ramos, 1957).
Nesse sentido, o seu texto, ao centrar as narrativas das mulheres negras, nos
remete a necessidade de outro nicho de pesquisa no qual se dê maior efervescência
nas agendas de pesquisa em que se problematizem os privilégios das pessoas
brancas, bem com a responsabilidade da sua racialização (Gomes, 2020, p. 73).

Ainda como consequência da escolha epistemológica da interseccionalidade,


apontamos um segundo sentido de ordem metodológica que emerge do mergulho nas
travessias, que é a estratégia de centralizar a produção dos dados e da análise nos
testemunhos de mulheres negras. No âmbito do “Direito e Relações Raciais”
(Gomes, 2021, p. 1228) temos observado um esforço de ampliar as agendas de
investigação com esse compromisso de “reverberar a memória oral de mulheres
negras” (Firmino, 2020, p. 31). Pesquisas que tomam as mulheres negras como
agentes formadoras do conhecimento têm sido fundamentais para
compreendermos os objetos estudados na interlocução com as suas experiências,
sem que isso significa a validação científica de suas existências e agências. O
conhecimento está na memória de resistência. Assim, o deslocamento do objeto a
ser interrogado ainda requer uma mudança de postura sobre o enredo comumente
adotado no campo das ciências sociais e humanas, principalmente, nas pesquisas
que tematizam desigualdades e diversidades, em que a centralização está na
violência.

Como práxis interseccional, a pesquisa conduzida por Raíza Gomes (2020),


enfrentou o risco de objetificação das mulheres, dado o próprio conteúdo dos
relatos. Um exemplo, está no testemunho de Dandara “não tem um dia só da
minha vida [...] que não me lembre que eu sou negra”. Invariavelmente as reflexões
e as rememorizações da pesquisa acionaram os medos e as dores da violência.
Contudo, o enredo não teve como fio condutor apenas a denúncia desse lugar
difícil, que alude à passividade das vítimas. Na abordagem das seis histórias são
enfatizadas as capacidades criativas dessas mulheres negras, tanto das estratégias

do nome e do gênero em suas certidões de nascimento ou casamento; iv) a Resolução nº 287/2019


do CNJ, que estabeleceu procedimentos especiais para pessoas indígenas e comunidades
tradicionais quando acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade; v) a Resolução nº
296/2019 do CNJ que criou Comissão Permanente de Democratização e Aperfeiçoamento dos
Serviços Judiciários; vi) a Portaria CNJ nº 10/2020 do CNJ que instituiu o Grupo de Trabalho
destinado à elaboração de estudos e indicação de soluções com vistas à formulação de políticas
judiciárias sobre a igualdade racial no âmbito do Poder Judiciário; vii) a “Pesquisa sobre negros
e negras no Poder Judiciário” (CNJ, 2021).

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Mulheres Atlânticas - a agência de mulheres negras no Judiciário Brasileiro: resenha do livro 843
“Cadê a Juíza?”, de Raíza Feitosa Gomes

elaboradas para sobreviver quanto dos recursos para despertar das amarras do
racismo e sexismo. Para construir essa reflexão, Raíza (2020) manuseia o
instrumental teórico e político do “pensamento feminista negro”, com
interlocuções com Patrícia Hilll Collins (2019), Lélia Gonzalez (2018), bell hooks
(1995), Sueli Carneiro (2005), Neusa Souza (1983) e outras tantas intelectuais-
ativistas negras.

As investigações do campo “Direito e Relações Raciais” (Bertúlio, 2019) têm


mobilizado o conteúdo da diáspora africana para enfrentar a cultura jurídica
brasileira. Esse desafio, assumido em diferentes agendas por outras juristas negras,
tem desestabilizado a neutralidade jurídica e reconhecido a agência na luta por
direitos que sempre existiu no movimento de mulheres negras. Com esse arranjo,
os relatos das magistradas negras deixam de serem lidos apenas como conteúdo
empírico e, portanto, objeto da análise e são postos em interação com o
pensamento negro. Enquanto jurista e pesquisadora negra, Raíza Gomes (2020) é
uma articuladora importante desse diálogo. Seu ponto de vista distinto da cultura
jurídica hegemônica branca-masculina (Collins, 2019; Firmino, 2020; Gomes, 2021)
e o compromisso ético e político assumido com a agenda das mulheres negras,
fundamentam a valorização dos seus saberes e práticas na superação do racismo e
sexismo (Firmino, 2020). Assim, o saber-se negra também significa um lugar de
agência. Ou seja, a identidade e a história de mulheres negras antes vista como
mobilizadora de dores e medos, são recursos que possibilitam mudanças no
interior da magistratura, mesmo que os seus efeitos estejam situados localmente e
não em todo o poder judiciário.

Por fim, reconhecemos na investigação de Raíza Gomes (2020) uma rara


oportunidade de analisar o sistema de justiça desde as mulheres negras (Firmino,
2020), pois o controle sobre os seus corpos, conforme descrito na pesquisa, é
mediatizado por imagens e referências culturais que procuram interditar o seu
agenciamento (Pires, 2019; Bueno, 2020). Como consequência, produz um fardo
que não pode ser aqui ignorado, pois recaem sobre essas magistradas um lugar de
vigilância quanto aos impactos do racismo e sexismo nas suas vidas e das
repercussões dessas violências no próprio arranjo do Poder Judiciário.

Há outros sentidos que podem ser explorados a partir da obra, mas, os dois aqui
ressaltados (epistêmico e metodológicos) remetendo a trajetória das mulheres
negras da diáspora africana, foram escolhidos para destacar a produção de redes
políticas na resistência ao racismo e sexismo, como poderes estruturantes das
instituições da justiça.

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Aliás, identificamos que após o relato da pesquisa, já na publicação do livro, a


autora apresenta um novo título. Nele a travessia nos remete a produção das
mulheres negras em diáspora, como a imensidão do mar. O atlântico é
dialeticamente memória das violências que ainda sobrevivem e da criatividade
que ainda despertam. Por isso, a “noite não adormece nos olhos das mulheres
atlânticas”, como anunciou Conceição Evaristo em poema que homenageia Beatriz
Nascimento, que encorajou nossa história transatlântica. As magistradas negras,
como atlânticas, narram a suas vivências como estratégia para seguimos o
movimento de travessias no Poder Judiciário, combatendo às violências e às
desigualdades que denunciam na carreira e buscando o reconhecimento das práxis
interconectadas, que formulam enquanto magistradas, para promoção de justiça
social.

Referências

BERTÚLIO, Dora Lúcia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdução crítica
ao racismo. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

BUENO, Winnie de Campos. Imagens de Controle: um conceito do pensamento de


Patricia Hill Collins. Porto Alegre, RS: Editora Zouk, 2020.

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A Construção do Outro como Não-Ser como


fundamento do Ser. São Paulo: Programa de Pós-Graduação (Doutorado) em
Educação da Universidade de São Paulo, 2005.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Pesquisa sobre negros e negras no


Poder Judiciário. Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário. Conselho
Nacional de Justiça. Brasília: CNJ, 2021.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Diagnóstico Étnico-Racial no


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COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a


política do empoderamento. Trad. Jamille Pinheiro Dias. 1. ed. São Paulo:
Boimtempo, 2019.

COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. Trad. Rane Souza. 1. ed.
São Paulo: Boimtempo, 2021.

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos.3. ed. Rio de


Janeiro: Malê, 2017.

FIRMINO, Inara Flora Cipriano. Re(Orí)entando o sistema de justiça através do


Pensamento Feminista Negro: uma análise interseccional da agência de mulheres
negras na Ouvidoria Externa da Defensoria Pública do Estado da Bahia. Ribeirão

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Mulheres Atlânticas - a agência de mulheres negras no Judiciário Brasileiro: resenha do livro 845
“Cadê a Juíza?”, de Raíza Feitosa Gomes

Preto: Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Direito da Faculdade de


Direito de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 2020.

GOMES, Raíza Feitosa. “Cadê a Juíza?”: travessias de magistradas negras no


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Direito e Relações Raciais e a Teoria Crítica da Raça. Revista Direito e Práxis, v. 12,
n. 2, p. 1203-1241, 2021.

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NASCIMENTO, Maria Beatriz. Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual:


possibilidade nos dias da destruição. 1. ed. Diáspora Africana: Editora Filhos da
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PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Direitos humanos e Améfrica Ladina: por uma
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SOUSA, Maria Sueli Rodrigues de. Prefácio – Constitucionalismo e negritude: o


retrato da negação do igual pertencimento. In: GOMES, Raíza Feitosa. Cadê a
Juíza?”: travessias de magistradas negras no judiciário brasileiro. Rio de Janeiro:
Editora Lumen Juris, 2020.

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro


brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

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Sobre a autora e o autor


Inara Flora Cipriano Firmino
Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), na área de
concentração em Teoria do Estado e Direito Constitucional, na Linha de
Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Ordem Internacional.
Pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV- Direito SP.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo. Mestra em Ciências (área de concentração:
Desenvolvimento no Estado Democrático de Direito) pelo Programa de
Pós-Graduação em Direito da FDRP/USP, sendo bolsista CAPES.

Rodrigo Portela Gomes


Doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília
(UnB) com período de visita técnica na Universidad Nacional de
Colombia, financiado pela FAP/DF. Mestre em Direito, Estado e
Constituição pela UnB.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50337

caderno de retorno

A Encruzilhada do Marxismo com a


Tradição Radical Negra: resenha da
edição brasileira de “Marxismo Negro”,
de Cedric Robinson
La Encrucijada del Marxismo y la Tradición Radical
Negra: Reseña de la edición brasileña de “Marxismo
Negro”, de Cedric Robinson

The Marxism and the Black Radical Tradition


Crossroads: Review of the Brazilian edition of “Black
Marxism”, by Cedric Robinson

Daniel Vitor de Castro1


1
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E-
mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
6273-6545.

Submetido em 31/07/2023
Aceito em 14/01/2024

Como citar este trabalho


CASTRO, Daniel Vitor de. A Encruzilhada do Marxismo com a Tradição Radical Negra:
Resenha da edição brasileira de “Marxismo Negro”, de Cedric Robinson. InSURgência:
revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 847-857, jan./jun. 2024.

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ISSN 2447-6684

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848 Daniel Vitor de Castro

A Encruzilhada
do Marxismo
com a Tradição
Radical Negra:
resenha da
edição brasileira
de “Marxismo
Negro”, de
Cedric Robinson
ROBINSON, Cedric J. Marxismo Negro: A criação da Tradição Racial Negra.
Tradução de Fernanda Silva e Sousa, Caio Neto dos Santos, Margarida
Goldsztajn. São Paulo: Perspectiva, 2023.

Chega, enfim, ao Brasil, edição, traduzida para o português, da obra “Marxismo


Negro: A criação da Tradição Radical Negra”, de Cedric Robinson. Publicada pela
editora Perspectiva e com tradução feita por equipe composta por Fernanda Silva
e Sousa, Caio Neto dos Santos, Margarida Goldsztajn e Daniela Gomes. O livro foi
originalmente publicado nos Estados Unidos em 1983, com edições de 2000 e 2020
e uma edição espanhola de 2021, que cito aqui pela maior proximidade ao público
brasileiro, que reafirmo desde minha experiência de ter tido um primeiro contato
com a edição em inglês, posterior revisão facilitada pela edição em espanhol e
agora com a oportunidade de reler a obra, enfim, em português brasileiro.

A “Apresentação à edição brasileira”, feita por Muryatan Barbosa cumpre a função


de ressaltar as contribuições principais da obra: as categorias de “capitalismo
racial” e “tradição radical negra”.

A edição brasileira vem com indispensável Prólogo, de Robin D. G. Kelley, que


atualizou sua participação na primeira edição. Indispensável, reitero, pois Kelley
faz o trabalho de contextualização da obra, tanto da época de sua primeira
publicação quanto em como as contribuições de Robinson mobilizaram debates e
ações políticas de lá para cá. Robin Kelley que nesse meio tempo publiciza
“Freedom Dream: The Black Radical Imagination” (2002), participa da coletânea
“Futures of Black Radicalism” (2017), organizada por Gaye Theresa Johnson e Alex
Rubin, em homenagem à obra de Cedric Robinson, e ainda ministra formações
políticas para o MST, na Escola Florestan Fernandes, em 2015 e 2017. O texto de

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A Encruzilhada do Marxismo com a Tradição Radical Negra: Resenha da edição brasileira de 849
“Marxismo Negro”, de Cedric Robinson

Kelley apresenta, sintetiza e faz verdadeira contribuição à obra, sendo dessas


clássicas introduções que se fundem organicamente ao todo do texto. Nele, o autor
já orienta que “Marxismo Negro” não é um livro sobre marxistas negros, nem
sobre como a intelectualidade negra contribuiu ao marxismo pelas suas análises
sobre raça e racismo, mas sim sobre como o marxismo foi o caminho que formou
uma intelectualidade negra e que ao se encontrar com a tradição do radicalismo
negro tiveram que, em maior ou menor medida, debater ou romper com o próprio
marxismo. Resolvendo muito da confusão que o título pode causar ao leitor
desavisado, Kelley já antecipa que não é um texto marxista, mas que também não
se rebaixa ao antimarxismo, é, pois, um contributo de “crítica dialética do
marxismo” desde a particularidade da, assim chamada por Robinson, Tradição
Radical Negra.

O próprio Cedric Robinson introduz em seu prefácio à edição de 2000 que “o


marxismo negro não era uma confrontação entre o marxismo e a tradição, nem
uma revisão. Era uma nova perspectiva centrada em uma teoria da corrupção
cultural da raça” (Robinson, 2023, p. 73). Mas o que é então “este” Marxismo
Negro?

Robinson defende a tese de que existe um giro na forma de determinada


intelectualidade negra trabalhar com as categorias marxistas a partir de seu
encontro com uma “tradição radical negra”. A experiência histórica de lutas
negras, e suas particularidades, produz um redimensionamento da leitura de
marxistas negros e negras tanto do próprio marxismo, quanto da realidade em si.

No século XX, quando pensadores radicais negros tinham adquirido novo


hábitos de pensamento, alguns deles preconcebidos, consonantes com as
novas condições de seu povo, sua tarefa se tornou, enfim, na revelação da
tradição mais antiga. Não é de surpreender que a tivessem descoberto
primeiro em sua história, e, finalmente, em tudo ao seu redor (Robinson,
2023, p. 328).

Para compreender esse movimento de síntese entre o que nomeia de “radicalismo


ocidental” e “radicalismo negro”, Robinson historicizou as raízes de ambos, e
encontra no marxismo o que há de mais radical no “ocidente”, tendo sido central
para a formação política e teórica de uma intelectualidade negra radical. Porém,
enquanto militantes e intelectuais negros e negras, imersos na cultura ocidental e
na vida cotidiana de classes trabalhadoras muito diferentes do moderno
operariado europeu, essa relação com o marxismo sempre se deu de forma
contraditória.

A primeira parte do livro de Robinson, de crítica ao marxismo como uma crítica à


modernidade eurocêntrica, defendo que pouco se sustenta frente às leituras de

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850 Daniel Vitor de Castro

Marx - bem sistematizadas por Kevin B. Anderson (2019) em “Marx nas Margens”
- sobre a questão irlandesa e a perspectiva de que a “alavanca revolucionária”
estaria na colônia e não na metrópole, sobre como a possibilidade real da
“revolução escrava” na Guerra Civil dos EUA era o que havia de mais sofisticado
e radical na luta de classes de sua época (ponto de vista da obra marxiana inclusive
fortemente difundido nos EUA por Raya Duyanaveskaia, principal companheira
intelectual e política de C.L.R James, radical negro central na obra de Robinson,
tanto que fundaram juntos uma tendência trotskista que carregou os nomes que
ambos usavam para assinar textos políticos: Jonhson-Forest. Em “Marxism and
Freedom” (1958), ela coloca os textos políticos de Marx sobre Guerra Civil nos EUA
ao lado de seus textos sobre a Comuna de Paris como os principais contributos
sobre a centralidade da “luta de classes” na obra marxiana), e, ainda, sobre a
Revolta dos Sipaios na Índia.

Além disso, ainda que seja importante a compreensão de como a formulação da


categoria “capitalismo racial” mobilizou movimentos sociais de negros e negras
nos EUA, ela pouco tem a acrescentar ao público brasileiro, já bem fluente na
linguagem proposta pela categoria de “racismo estrutural” (Almeida, 2018;
Oliveira, 2021) e formado nas obras de Clóvis Moura e Lélia Gonzales. Há muito
que os movimentos negros brasileiros mais expressivos se pautam pelo
anticapitalismo e partem da leitura da realidade que percebe como o capitalismo
no Brasil se objetivou desde as contradições do colonialismo e escravidão, se
modernizou com a sofisticação do controle racial e a morfologia da nossa classe
trabalhadora se deu no processo mesmo de conformação da raça e do racismo
antinegro e do protagonismo da práxis negra antiescravista, anticolonial e
antiracista.

Defendo aqui que o grande contributo da obra de Cedric Robinson está na sua
extensa arqueologia das lutas negras em diáspora (com boa visibilização das lutas
de escravizados e escravizadas brasileiros, já mais atento do que boa parte do que
chamamos de “intérpretes do brasil” e clássicos do pensamento social brasileiro”)
e na criativa tese de como a intelectualidade negra encontra no marxismo um
método rigoroso para compreensão da realidade de exploração no capitalismo
mundial e sensibilidade política para com a “tradição dos oprimidos”. Entretanto,
reforça, acertadamente, que a história do marxismo não estava imune ao racismo,
nacionalismo e eurocentrismo, o que levou diversos de seus setores a erros trágicos
de interpretação e intervenção política. Nas palavras de Robinson:

Parecia-lhes que os marxistas ocidentais, inconscientemente limitados por


uma perspectiva eurocêntrica, não podiam explicar nem avaliar
corretamente as forças revolucionárias que emergia no Terceiro Mundo. A

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A Encruzilhada do Marxismo com a Tradição Radical Negra: Resenha da edição brasileira de 851
“Marxismo Negro”, de Cedric Robinson

metafísica racial da consciência ocidental – o legado de toda uma


civilização – impedia que seus companheiros socialistas reconhecessem a
influência do racialismo no desenvolvimento e nas estruturas do sistema
capitalista, e conceitualmente os absolvia de uma investigação mais
acurada das categorias do seu própria pensamento (Robinson, 2023, p. 542-
543).

Esta síntese entre radicalismo negro e marxismo elevava ambos a um outro nível,
ao da encruzilhada com a tradição radical negra: “o desenvolvimento contínuo de
uma consciência coletiva impregnada das lutas históricas por libertação e
motivada pelo senso compartilhado da obrigação de preservar o ser coletivo, a
totalidade ontológica” (Robinson, 2023, p. 328). A percepção de particularidades
tanto de organização do capitalismo em realidades estruturadas pelo racismo e
colonialismo, quanto de formação cultural dos explorados que herdaram
epistemologias e rebeldias próprias de sua origem africana e diaspórica.

Uma tradição que não surgia apenas do domínio colonial e da escravidão


capitalista, mas que, como observa Robinson, ao promover uma extensa
arqueologia das resistências de escravizados e escravizadas nas Américas e Caribe,
teve origens pré-modernas e rearticulações diaspóricas de um povo que carregava
consigo sua humanidade por todo o Atlântico, independentemente do quão
desumanizadora era sua escravização

As cargas de trabalhadores também continham culturas africanas, mesclas


e combinações críticas de língua e pensamento, de cosmologia e metafísica,
de hábitos, crenças e moralidade. Esses eram os termos reais de sua
humanidade. Essas cargas, portanto, não consistiam negros isolados
intelectualmente ou privados de cultura, mesmo que de seu universo
anterior. A mão de obra africana trazia consigo o passado, um passado que
a havia produzido e no qual estavam assentados seus primeiros elementos
de consciência e compreensão (...) O transporte de mão de obra africana
das minas e plantations do Caribe, e posteriormente ao que ficaria
conhecido como Américas, significava também a transferências de
sistemas ontológicos e cosmológicos africanos; pressuposições africanas de
organização e da importância da estrutura social; códigos africanos que
incorporavam a consciência histórica e a experiência social; e construções
ideológicas e comportamentais para a resolução do inevitável conflito
entre o real e o normativo (Robinson, 2023, p. 254).

E quando essa particular formação cultural se realizava em movimentos concretos


de luta contra colonialismo e escravidão (em formação de classe, pois): “poderiam
se converter em Palmares, nos assentamentos do bush negro1 e, em seu máximo, no

1 “Bush Negros”, em referência às resistências de escravizados, organizadas desde bosques, nas


Guianas e Suriname.

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852 Daniel Vitor de Castro

Haiti. Mas seu foco estava sempre nas estruturas da mente. Sua epistemologia
outorgava supremacia à metafísica, não ao materialismo” (Robinson, 2023, p. 326).

Robinson propõe uma categoria de análise que resiste à simples negação de uma
perspectiva pela outra e percebe um caminho de suprassunção que se atenta às
particularidades das formas de resistências negras ao colonialismo, escravidão e
racismo e de como elas rementem a tradições africanas, onde passado, presente e
futuro se articulam combinadamente. Parafraseando Robin Kelley, no Prólogo,
vemos que Robinson não se interessava em saber se essas formas coletivas de luta
e consciência eram ‘essencialistas’, mas sim em compreender de onde vieram e
porque ainda se mantem vivas nas lutas negras, já que são práticas que de fato
existem.

Acredito ser possível ler a assim chamada “tradição radical negra”, enfim, como
unidade dialética entre memória africana e movimento diaspórico. Vejamos a
conclusão do autor:

A tradição radical negra sugere uma contradição ainda mais completa. Na


sua prática social e política, adquiriu seu ímpeto imediato da necessidade
de responder às ameaças aos povos africanos típicas do moderno sistema
mundial. Ao longo de muitas gerações, a especificidade da resistência, que,
na melhor das hipóteses, garantia apenas uma trégua momentânea, deu
lugar aos imperativos de coletividades mais amplas. Línguas, culturas e
sensibilidades sociais particulares evoluíram até uma consciência histórico
mundial. As distinções do espaço político e do tempo histórico
desapareceram de modo a formarem uma única identidade coletiva negra
única que impregna os nacionalismos. Abrigada na diáspora africana, há
uma identidade histórica única que se opõe às privações sistêmicas do
capitalismo racial. Ideologicamente, cimenta a dor ao propósito, a
experiência à expectativa, a consciência à ação coletiva. Ela se aprofunda
com cada decepção com a falsa mediação e reconciliação, e é cristalizada
em núcleos cada vez maiores pela traição e repressão. A determinação da
tradição radical negra avança à medida que cada geração reúne os dados
de sua experiência em uma ideologia de libertação. A experimentação com
inventários políticos ocidentais de mudança, especificamente com o
nacionalismo e a luta de classes, está chegando ao seu fim. O radicalismo
negro transcende essas tradições para aderir, enfim, a sua própria
autoridade. Chegará a pontos de resistência aqui, de rebeliões ali e de
movimentos revolucionários de massas ainda em outros lugares. Porém
cada caso será transformado pela tradição radical negra, consciente de que
não resta nada para a qual ela possa retornar. Moldada por uma
experiência longa e brutal e enraizada em um desenvolvimento
especificamente africano, a tradição não proporcionará nenhum meio
termo entre libertação e aniquilação (Robinson, 2023, p. 549).

Mesmo não concordando com o teor acusatório das críticas de Robinson na


primeira parte do livro “O Surgimento e as Limitações do Radicalismo Europeu”

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A Encruzilhada do Marxismo com a Tradição Radical Negra: Resenha da edição brasileira de 853
“Marxismo Negro”, de Cedric Robinson

que foca em demonstrar as origens de classe e raça do marxismo configurando-o


como eurocêntrico, e suas imprecisões teóricas no trato de categorias centrais da
obra marxiana, a perspectiva de “tradição radical negra” contribui para
dialogarmos com uma tradição historicamente existente de lutas negras que
participaram diretamente da particular formação de classe nas sociedades que
vivenciaram a escravidão moderna e colonialismo. Ainda, contribui para sínteses
com a diversidade das formas de organização políticas antirracistas se
preocupando em analisar como elas realmente são, em suas contradições e
formulações próprias, e não como deveriam ser desde nosso olhar de marxista
revolucionário.

Reforçar o contributo de Marx e do marxismo para as lutas anticoloniais e


antirracistas nos possibilita passar pelas contradições da obra de Robinson e
reivindicar o que avalio ser o seu saldo positivo: concluir que a experiência própria
das lutas negras carrega particularidades que tensionam as formulações marxistas
de sua época.

August Nimtz traz críticas acertadas à obra de Robinson ao desvelar seus


“espantalhos” que tomam o marxismo pelas suas degenerações positivistas,
economicistas e burocráticas, e politicamente nos provoca trazendo que “não é
suficiente afirmar a existência de uma tradição radical negra como faz Robinson.
A questão chave é: qual é a sua relevância como um programa de luta para os
negros hoje” (Nimtz, 2021, p. 23). Concordamos com Nimtz de que não basta olhar
para o passado de nossas tradições, mas recepcionar uma tradição não significa
cristalizar o passado, mas partir de práticas já consolidadas na cultura política de
um povo com vistas à ação radical de libertação. Não será a tradição a informar o
programa, pois este se dará a partir da própria práxis negra frente às contradições
materialmente existentes. Consciência e formação de classe se constituem apenas
em movimento, herdando experiências de lutas intergeracionais e transnacionais,
o que no caso do povo negro significa se constituir historicamente desde sua
particular tradição afrodiaspórica.

Angela Davis também participa deste debate, colocando a importância da obra de


Cedric Robinson para sua formação política e teórica e que as suas contradições na
análise do marxismo são as contradições mesmas de qualquer intelectual negra e
negro que tem o marxismo como método de análise:

Apesar de essa não ser a forma como eu pensava o meu trabalho na época,
certamente que hoje não hesitaria em relacionar essa pesquisa com o
esforço de tornar a Tradição Radical Negra, portanto feminista, mais
visível. A nova formação de um campo científico – estudos prisionais
críticos e sua estrutura explicitamente abolicionista – situa-se dentro da

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854 Daniel Vitor de Castro

Tradição Radical Negra (...) O trabalho do Cedric foi em parte inspirado


pelo seu desejo de responder às limitações do nacionalismo negro dos
tempos da sua (e da minha) juventude (...) Cedric Robinson nunca parou
de procurar ideias, produtos culturais e movimentos políticos do passado.
Tentou compreender por que razão as trajetórias de assimilação e
resistência nos movimentos de libertação negra nos Estados Unidos
coexistiam e as suas percepções – sobre os movimentos negros nos Estados
Unidos, por exemplo – continuam válidas (...) o marxismo, na minha
perspectiva, sempre foi simultaneamente um método e um objeto de
crítica. Consequentemente, eu não vejo os termos “marxismo” e
“marxismo negro” como opostos. Levo muito a sério os argumentos de
Cedric Robinson no livro Marxismo Negro (...) As análises brilhantes de
Cedric revelaram novas formas de pensar e agir geradas precisamente
através de encontros entre o marxismo e intelectuais/ativistas negros que
ajudaram a constituir a Tradição Radical Negra (Davis, 2017, p. 242-249).

Tendo a concordar com Angela Davis e com as respostas de Cedric Robinson em


seu prefácio à edição de 2000 de sua obra: marxismo negro, ao colocar a
necessidade de superação, fala-se em síntese, não em ruptura. Concordo também
com as necessárias ponderações de Nimtz aos “espantalhos” reproduzidos sobre
o marxismo e que a lida do “marxismo clássico” com a luta anticolonial deve ser
trabalhada com o devido rigor frente à diversidade da história dos marxismos.

Com as perspectivas de “marxismo crítico” (Löwy, 2017) e de um “arquipélago de


mil e um marxismos” (Bensaïd, 2022), acredito ser dever do marxista
revolucionário estar atento às produções teóricas comprometidas com a
necessidade de analisar rigorosamente a realidade para transformá-la. É
inquestionável a importância de Robinson para visibilizarmos, no Brasil, que a
intelectualidade negra radical se forma nos marxismos e se autonomiza frente as
sínteses no concreto fazer da luta política antirracista revolucionária. Buscar
construir mais sínteses, colocar sempre em movimento a dialética da crítica e da
autocrítica, saber ouvir e aprender e defender que a centralidade da perspectiva
de revolução do marxismo está na radical auto-organização dos oprimidos
explorados. Só assim, colocaremos o marxismo no lugar que lhe diz respeito: como
instrumento de libertação da classe trabalhadora mundial, em toda sua
diversidade.

Referências

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é Racismo Estrutural? Belo Horizonte:


Letramento, 2018.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
A Encruzilhada do Marxismo com a Tradição Radical Negra: Resenha da edição brasileira de 855
“Marxismo Negro”, de Cedric Robinson

ANDERSON, Kevin B. Marx nas Margens: nacionalismo, etnia e sociedades não


ocidentais. Tradução de Allan M. Hillani e Pedro Davoglio. São Paulo: Boitempo,
2019.

BENSAÏD, Daniel. O arquipélago dos mil (e um) marxismos. Insurgência, 2021.


Disponível em: < https://www.insurgencia.org/blog/daniel-bensaid-o-
arquipelago-dos-mil-e-um-marximos>. Acesso em: 15 de julho de 2022.

DAVIS, Angela. An Interview on the Futures of Black Radicalism. In: JOHNSON,


Gaye Theresa; LUBIN, Alex (org.). Futures of Black Radicalism. London; Brooklyn
NY: Verso, 2017. p. 242-249.

DUNAYEVSKAYA, Raya. Marxism and Freedom. New York: Bookman Associates,


1958.

JOHNSON, Gaye Theresa; LUBIN, Alex (org.). Futures of Black Radicalism.


London; Brooklyn NY: Verso, 2017.

KELLEY, Robin. Freedom Dreams: the black radical imagination. Boston: Beacon
Press, 2002.

KELLEY, Robin. What did Cedric Robinson mean by Racial Capitalism? Boston
Review, January 12, 2017. Disponível em:
https://www.bostonreview.net/articles/robin-d-g-kelley-introduction-race-
capitalism-justice/. Acesso em 16 de março de 2022.

LÖWY, Michael. Por um Marxismo Crítico. Tradução de José Correa Leite. São
Paulo: Revista Lutas Sociais, n. 03, 1997.

MARTUSCELLI, Danilo Enrico; SILVA, Jair Batista (orgs.). Racismo, etnia e lutas de
classes no debate marxista. Chapecó: Coleção marxismo21, 2021.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Escritos sobre a Guerra Civil Americana: artigos
do New-York Daily Tribune, Die Presse e outros (1861-1865). Organização, notas
e tradução de Felipe Vale da Silva e Muniz G. Ferreira. Londrina, São Paulo:
Aetia Editorial, Peleja, 2020.

NIMTZ, August. Marx e Engels eram eurocêntricos? In: MARTUSCELLI, Danilo


Enrico; SILVA, Jair Batista (orgs.). Racismo, etnia e lutas de classes no debate
marxista. Chapecó: Coleção marxismo21, 2021. p. 127-144.

NIMTZ, August. Marxismo e a luta negra: o debate “classe vs. raça” revisitado.
Tradução de Mario Soares Neto. Direito & Práxis, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p.
2051–2078, 2021.

OLIVEIRA, Dennis de. Racismo Estrutural: uma perspectiva histórico-crítica. São


Paulo: Editora Dandara, 2021.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
856 Daniel Vitor de Castro

ROBINSON, Cedric J. Black Marxism: the making of the black radical tradition.
EUA: University of North Carolina Press, 2000.

ROBINSON, Cedric J. Marxismo Negro: La formación de la tradición radical


Negra. Tradução de Juan Mari Madariaga. Madrid: Traficantes de Sueños, 2021.

ROBINSON, Cedric J. Marxismo Negro: A criação da Tradição Racial Negra.


Tradução de Fernanda Silva e Sousa, Caio Neto dos Santos, Margarida
Goldsztajn. São Paulo: Perspectiva, 2023.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
A Encruzilhada do Marxismo com a Tradição Radical Negra: Resenha da edição brasileira de 857
“Marxismo Negro”, de Cedric Robinson

Sobre o autor
Daniel Vitor de Castro
Doutorando em Direito pela UFMG e mestre em Direito pela UnB.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Práxis de Libertação
Trata-se de seção dedicada a visibilizar textos e documentos
produzidos por organizações populares ou movimentos sociais,
veiculando produções intelectuais próprias que não podem ser
ofuscadas pelo saber formal. Estão publicados nesta seção
documentos selecionados pela comissão organizadora do dossiê
“Direitos e relações raciais”. A seção de textos e documentos dos
movimentos sociais da revista do IPDMS é uma homenagem ao
filósofo argentino-mexicano Enrique Dussel, um dentre tantos
intelectuais e militantes comprometidos com uma práxis de
libertação dos povos.
861 Práxis de Libertação – Dossiê “Direitos e relações raciais”

Práxis de Libertação
Dossiê “Direitos e relações raciais”
Rodrigo Portela Gomes, Inara Flora Cipriano
Firmino, Emilia Joana Viana de Oliveira e Ciro de
Souza

Para a seção Práxis da Libertação, decidimos por apresentar documentos de


contextos diversos da luta por direitos dos movimentos negro, indígena e
quilombola.

1) O Documento da Convenção Nacional Negro pela Constituinte alude ao evento


realizado nos dias 26 e 27 de agosto de 1986, em Brasília/DF que sistematiza as
proposições das organizações do movimento negro brasileiro para a Assembleia
Nacional Constituinte de 1986/1987. Neste encontro de caráter nacional são
consolidadas discussões produzidas em caráter local e regional pela agência negra
para sua incidência na nova Constituição.

Fonte: Arquivo pessoal de Graça Santos.


Referência: SANTOS, Nara Menezes. Movimento Negro em Brasília: memórias da
ditadura. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania) – Universidade
de Brasília, Brasília, 2019.
Foto: Integrantes da Convenção Nacional o Negro e a Constituinte: Maria Luiza Júnior,
Carlos Moura, Hélio Santos, Milton Barbosa e Januário Garcia (Maria Luiza
Junior/Acervo pessoal).

2) O documento Da União das Nações Indígenas (UNI) para o Brasil, é registro da


reunião de segmentos representativos de povos indígenas, que ocorreu entre os
dias 9 a 12 de junho de 1986, na cidade de Goiânia/GO. Nele são apresentadas as
proposições da UNI para o Congresso Nacional, considerando o processo de
elaboração da Constituição Federal de 1988, destacaram-se nas reivindicações de
caráter constitucional em relação aos territórios e a identidades dos povos
originários.

Referência: HECK, Dionísio Egon; SILVA, Renato Santana da; FEITOSA, Saulo Ferreira
(orgs.). Povos indígenas: aqueles que devem viver – Manifesto contra os decretos de
extermínio. Brasília: Cimi – Conselho Indigenista Missionário, 2012, p. 101-102.
Foto: Raoni Metuktire e indígenas que ocuparam o auditório do PMDB durante a
Constituinte (Beto Ricardo/ISA).

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 9 | n. 1 | jan./jun. 2023 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Rodrigo Portela Gomes - Inara Flora Cipriano Firmino - Emilia Joana Viana de Oliveira - Ciro de Souza 862

3) O documento é um relatório do I Encontro Nacional de Comunidades Negras


Rurais, realizado nos dias 17 a 20 de novembro de 1995, na cidade de Brasília/DF.
O encontro ocorria paralelamente à Marcha Zumbi 300 anos, com o tema “Terra,
produção e cidadania para os quilombolas”. As atividades do encontro
centralizaram-se nas estratégias políticas e jurídicas necessárias para a efetividade
do art. 68 do ADCT.

Fonte: Acervo do Instituto Socioambiental.


Referência: GOMES, Rodrigo Portela. Kilombo: uma força constituinte. 2022. 594 f., il.
Tese (Doutorado em Direito) — Universidade de Brasília, Brasília, 2022.

4) Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 709, mobilizada pela


Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e partidos políticos diante das
violações de direitos dos povos indígenas no contexto da pandemia da covid-19,
apresentada em 2020.

Fonte: Acervo Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.

5) Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 742, mobilizada pela


Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas e partidos políticos diante das das violações de direitos das
comunidades quilombolas no contexto da pandemia da covid-19, no ano de 2020.

Fonte: Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais


Quilombolas.

6) Memorial de amicus curiae apresentado pelo Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Sistema
Interamericano de Direitos Humanos (GEP-SIDH – PUC/RJ) à Corte Interamericana de
Direitos Humanos no caso Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira v. Brasil
(n. 12.571). O documento é datado de julho de 2023 e foi submetido à InSURgência
por integrantes do GEP-SIDH que contribuíram na elaboração da peça: Andrea
Schettini, professora do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Malu Stanchi, Rudá Ferreira Pinto de Oliveira, Thaís
Detoni Rocha, Vitória Westin Barros, Fernando López Rangel, Nina Barrouin,
Manuela Machado Novaes, Melissa Brandão Ferreira Kreil, Victoria Kurkdjian
Teixeira, Maria Clara Pinho Valente, João Teixeira Duque, Manuel Netto, Ana
Carolina Gonçalves Soares, Cristina Figueira Shah, Jose da Silva Raimundo,
Amanda Nascimento Gonçalves, Letícia da Silveira Lobo, Dayanna Gomes de

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863 Práxis de Libertação – Dossiê “Direitos e relações raciais”

Moura, Carolina Sibilio Villas Bôas e Sophia Costa Tabatchnik. O Grupo de Estudo
e Pesquisa sobre Sistema Interamericano de Direitos Humanos (GEP-SIDH) é
vinculado ao Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direito da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

De acordo com as autoras e os autores: “O memorial teve como objeto central de


estudo o contexto brasileiro de racismo estrutural, em especial o seu impacto na
garantia do direito ao trabalho de mulheres negras no Brasil. O documento possui
quatro partes centrais. A primeira parte apresenta os fatos do caso, bem como os
argumentos centrais e a metodologia desenvolvida no amicus curiae. A segunda
parte expõe os principais parâmetros interamericanos sobre o combate ao racismo
e o consequente dever dos Estados de adotarem políticas de acesso ao trabalho em
condições satisfatórias, de igualdade e não discriminação. A terceira parte
sistematiza uma série de dados – produzidos por órgãos oficiais e organizações
não governamentais –, bem como mapeia as ausências de dados referentes ao
racismo estrutural, o racismo no mercado de trabalho e as políticas públicas de
combate ao racismo implementadas no Brasil. Por fim, apresentamos as conclusões
e sugestões de recomendações ao Estado brasileiro. Sustenta-se, ao longo do
memorial, que o caso Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira v. Brasil,
pendente ainda de julgamento, confere à Corte IDH uma importante oportunidade
para aprofundar e avançar no debate sobre a reparação plena e integral de vítimas
de racismo e de discriminação racial, adotando uma abordagem interseccional no
âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.”

Fonte: Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Sistema Interamericano de Direitos Humanos


(GEP-SIDH) do Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 9 | n. 1 | jan./jun. 2023 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Rodrigo Portela Gomes - Inara Flora Cipriano Firmino - Emilia Joana Viana de Oliveira - Ciro de Souza 864

Sobre a Comissão Organizadora

Ciro de Souza Brito


Mestre em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade
Federal do Pará (UFPA), com período de estudos no Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Graduado em
Direito pela UFPA, com período de estudos na Peking University.
Atualmente, é analista sênior de Políticas do Clima no Instituto
Socioambiental, fellow no China Legal Fellow Project do Center
for Transnational Environmental Accountability e coordenador do
GT Amazônia na Latin American Climate Lawyers Initiative for
Mobilizing Action. Foi professor de Direito da Universidade da
Amazônia e da Universidade Federal do Oeste do Pará.

Inara Flora Cipriano Firmino


Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), na área de
concentração em Teoria do Estado e Direito Constitucional, na
Linha de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Ordem
Internacional. Pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial e Direito
da FGV- Direito SP. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito
de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Mestra em
Ciências (área de concentração: Desenvolvimento no Estado
Democrático de Direito) pelo Programa de Pós-Graduação em
Direito da FDRP/USP, sendo bolsista CAPES.

Emília Joana Viana de Oliveira


Mulher negra do norte e doutoranda em Direito, Estado e
Constituição pela Universidade de Brasília (UnB).

Rodrigo Portela Gomes


Professor Adjunto da Universidade Federal da Paraíba, lotado no
Departamento de Ciências Jurídicas. Doutor em Direito, Estado e
Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) com período de
visita técnica na Universidad Nacional de Colombia, financiado
pela FAP/DF. Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB.

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
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I

Em atendimento ã ConvocatÕriJ Nacional, enviada a 580 Enti dades Ne


gras e Grupos atuantes'do Movimento Negro, compareceram ã "CONVENÇÃO NACIONAL VO
NEGRO PELA CONSTITUINTE", em 13rasiliil-DF, nos dias 26 e 27 de Agosto de 19136 , re
presentantes de 63 Entidades, compreendendo Entidades Negras, Sindicatos, Parti
dos Politi cos e Grupos Sociais, de 16 Estados da Federação: AL; 13A; DF; GO; MA;
1-11..; MS; PA; PB; PE; PI; RJ; RS; SC; SE e SP, totalizando 185 partici pantes inseri
tos na " CONVENÇÃO".

2. Emboru conscientes de a "CONSTITUINTE-87" não teriÍ a participação


democrãtica do brasileiro, uma vez que o "Grupo" daqueles que serio encarregados
1
da nova Carta Magna , vem sendo fonnado através de alianças entres as elites que
sempres dominaram e designaram, em conseguênci a, tanto cultura 1 quanto econômica-
mente , os destinos do Povo,.Nõs Negros, entendemos.que deveriamos nos esforçar P!!_
ra, conjuntamente , trazermos ã baila as nossas necessidades enquanto um segmento
itnico-social , politicamente definido dentro deste imenso Brasil multi-étnico.

13. Cabe esclarecer que nossa d~nominaçiio de "NEGROS", engloba todos


aqueles que pos suem caracteres, fenõtipos e, ou 9enõtipos, dos povos africanos
que aqui foram tn1zidos para o trabalho escravo. Conforme as lei s estabelecidas ,
os Africanos foram violentados e despojados de se us direitos inalieniÍveis,e , hoje,
a despeito de uma übvi,taçêio forjada juridicamente, hã 98 anos, NÕs Negros, os
descendentes daqueles que edificaram o patrimônio econômico nacional, continuamos
na aviltante cond i ção de marginalizados sociais, discriminados e majoritariamente
alijados do processo de evolução social. E, dessa feita, o MOVIMENTO NEGRO NAC10
NAL i formado por todos aqueles que consc ientes , de nossa condição enqua nto ci.d~
dêio4 ú1tM-<..CWL04, nos encontramos politicamente organizados em Grupos que sistem'.1_
ticamente, combatem o Rawmo no Brasil , e , ainda por a queles outros que lutam
por preservar os valores espirituais , morais , soc ia is e cul turais que nos foram
_l~~ad.os pelos i ncontâveis filhos apartados da Mêie, Ã61úca.
4. Assim, NÕs Negros, reunidos em Orasilia-DF, durante a CONVENÇÃO N~
C10NAL VO NEGRO_PELA CONSTITUINTE , enquanto segmento étnico-social politicamente
organizado, e, enquanto ci.dctdiio4 b1,M<lWt04 que, vimos ~rab~lhando e contribuin-
do para a efetiva formação e consoli dação dE:sta Nação, indicamos a seguir, aos di
r igen tes do Pais, e, em especial deferência , a todos os membros da "Assembl eia Na
cional Constituinte-87", as nossas reivindicações:

I - -0oú1te M VIREJTOS E GARANTIAS INVIVIVUAIS:

- Que o§ lQ do Artigo 153 da ~ons titui çio Federal , passe a ter cm sua
redaçiio, um acréscimo , ficando com o seguinte t eor:
-- - - - - i
2.

"Todo6 úio ..l9ua.ú pvrn1Ll:e a Le-i., 611111 clu..t.ú,ção d e <1exo , .11.aç.a , .o,aúa
.e.lw, CJcedo 1tC!1i9..l01.>o e eo11v.i.cçÕM po~cM, sv,ã pw.i.do pela Lu o
plleconc(!.ÜO de /laça , como c/l,Úne. .i.na6-úutç.á.ve.l, com pe.na de. .11.e.chu,ão e.
pa.11.a o ILe.6VÚdo p.11.0cu.10 ado.ta- <1e o ~ o ./iwi11VÚ.6<1,imo . 11;

2 - Que seja mantida a redação dada ao§ 119 , do Artigo 153 da Consti tui
ção Federal , vuú..l./i;
1
"Na.o havuã. p e.11a de. 11101t..te, de plÚl>â.o pv,pe.-tua , de ba1w11e.11.to . Quan.to
ã. pe.na ele. 1110,t..te., 6..lca ILU.!>a.(vada a le.9..lólação p~.11a.e apticéivee em e~
60 de. 9uwrn e.x..tvu,a . A .f.u clú.pOJr.á ./i·ob1tc. o pvuumen..t o de. ben.6 po1t
dano6 ca.,u,ado-1> ao v,âluo ou 110 cMo de. e.1vt.i.rcllcc..lme11..<:o .LCZc..i..to 110 P.
XC!/LcÃ.c..fo ele 6unç.ã.o pÚbl,i,ca. 11 ;

3 Que se esta beleça que:


" No <1..l./i.tema pc.1~te11c..i.âlúo, o duc.1.to e o /YtU..ld..lâlúo .tuão ,,upe.U:a-
da a 6ua ..l11.te91t.i,elade 6:ú....lca e moita(, due.11vo.f.vc.11do a.üv..ldade /:Yi.Od~
va 1,c.n.tâvc.l , <1c.ndo M,tct !tenda,' 1,c.vvt.t..i.da vn /Jlta.f. de 6ua 6amilia , na
p1Lapa1,ç.êiu de. 80~ , <1 c.ndo 06 20% 1tu.tan.tu , em /Jlta.f. do <1..ló.tema pc.1~e~
c..i.cÍ/L,{..O . ";

4 - Que seja efeti vada a c ria ção de um T1úbw1a.l E./ipe.c..i.a.l pa.11.a ju.f.9ru11e.1úo
clo6 clt,ÚnvA d e. cü..6C1t.{J11..l11açéio 1,ac..i.a.t;

5 - Que na Nova Carta Cons ti tu ci onal conste um disposi t ivo onde :


11
••• a .toJL,tuJ,a 6L6..lc_a e. ou p<1..lco.f.Õ9..lca 6C!.ja co11<1úlvcacla CJwne. contlta
a llw11aJ1,(dacle . 11 ;

6 - Que sej a ma n tida il redação do § 129 do Artigo 153 da Constituiçiio F~


deral:
" N..lll!JUCJII 6VtÕ. /YLC!,,,60 .!><'.llaO CJII 6.f.a91rnn.tC. cle,.{'...i,to OU f'Oll Oll ciCJII
de au..to!t..ldade co111pue1t.te. . A le...l fupo11.éi 1.> oú11.e a plLM,tação ele 6,la11ç.a.
A pwéio ou dúenç.ão ele. qua.lquv, pu<1oa 6Vtii .i.J11etl..la.ta111e1t.te comwúca
ela ao ju..lz compúc.11.te , que a 1,elaxa1téi., ,}e, 11ao 601, .f.e9a.l. 11 ;

1I - ,}o!,1,e a VIOLtNCIA POLICIAL:


1'UJt.i.6-<.caç.ã.o ela~ Po.l'ic..i.M C.i.v.i..f. e. ~klU:aJt, com a ..ln.6.t-<..tu..lç.ão ele. cuM06
pvu11<rnc.1LtM ele 1te.c..i.daa CJ11 e mellw,,M CJt.U:vúo6 de 6 e.f.eç.éio e adi11-<.Mão
elo.1 poUua,ú, , no 6e.11.t..ldo de 9a1ta1t.t.ú, o ,,Mpe...l.to ã. ..l1-i.tc.91úcladc. 6:ú..i
ca e. 11101,a.l do c..tdadão , ..lndc.pe11de.n.tCJ11C'.11.te de <lua 1taç.a ou coll . " ;

2 - " Toelo6 06 CJt.ÚIIM 1,e.f.ac..lo11aela<1 ao abcua do pode.Jt, camwcla1., pela Pa.l'i


c..ta ca ,,t.,,a o udadão , l> Vtiio ju.f.9ado6 pela J116;ti.~111wi,,-JL;-
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3.

111 - ,1, ob1te cv., CONVIÇOES VE VIVA E SAÜVE:

-
11
Q.ue a. üc.enc;a.-ma;tehrú.dade pMH de ,tnv., mMM palta. ,1,e.u., meóu . 11 ;
11
2 - Ca.be1tã. a.o E-0-Cado a leg.v..la.c;ã.o 1te6ehen.te a.o 60/t-Ca.leumento do pltO!JIL~
ma. de JJ/1.evenc;ão de doenç.M . F.i.c.ru1do pOJtê,11 , lll.>6egl(Jtada. ã Leg-ú.la.ç.ão
E-0-Ca.dua.l, u-ta.bele.c.Vt upeúM,c,i.da.du , 6 egundo o qua.cvw 1teg,<.ona.l . 11;
11
3 - E-1>-Ca.-Cüa.ç.ão, i oc,í.a.lüa.ç.ão e wi.í.6,<.c.aç.ão do S.u..tema de Saúde., 6endo
lll.>H.gl(Jtado â6 c.omu,u".dadu popula.c,í.onw, a e6e.üva 6.v..ciliza.ção do
6unc,í.ona111en-Co dUl> e S.u.-Cema.. 11 ;

4 - 11
E elevv, do E-1>-Ca.do p1,u-ta1, lll.>l>,<.6-Cênua. a.o ,<.do-1>0 , ,<.11depe11den-te111e11-te
dele haveA con-tlúbtÜdo pa1,a o .\,(,ó.tema de. ,,_,,e.v,<.dênua. l>OcÁ.o..('. . 11 ;

5 - " sv,ão v.,.ta.,t,<.za.clo,1, .todM 0-1> 111e.-i.0<1 de .t1ui111>po1,t<!A c.ole.üvo1.> . '~;


11
G - 0 E.1-tado a.-01.>egwuv,ã. a c.0111.>.0wç.ão de 11101ta.cl,<.a.1.> d,<.gna.1.> pa1,a cv., popttl.9c
c;õu c.a1teIitu e de ba.üa. 1,enda.. O gcv.,.to c.0111 a. 11101tad,<.a. não <l¾Ó. ,1,u
pvúoJt a 10% do -1, o..('.âlúo elo .o,~ba.lha.clo11.. 11 ;

7 - 11
SVLÕ.o dv.,üna.dol> ã Saúde, 20% do 01tçru11e.11.to da. U1i.i.ão . 11 ;

8 - 11
Se1tão na.uoniliza.da.1.> -Codcv., cv., 1ndÚh.tJúcv., e Labo1ta.-CÕ1úo<1 FC11u11ac.êu,t,<.
c.0,1, no Pw. 11 ;

I V - óOblLe a. mUIER :
11
- Q.ue ,1,e.ja cv.,.1e.gw,ado a. ple11a. ,<.gua.ldade de d,<.Jte.,i.,Co,1, en-Clte. o e.Mal , e
que., ã Mulhv, , mãe, 1.>eja. cv.,,1,egl(Jta.do o w ,e.,i.,to de 6az e/1. c.01'11.>.tClll no
Reg-ú.-Oto de Na.1.>cú11e1,.to do 6illio, o nome do pM , ,<.11depe1tde1iteme1ite.
do v...tado c,í.vil da. declMan.te. 11 ;

2 - 11
E /JILO,<.b,<.úo ao E,1,-tado a ,<.J11pla11.ta.ç.ão de. .toclo,1, e quwquv, p1,0911.ru11cv.,
de. c.o,w,ole da. na;tilida.de . O abolt-Co óehã de,ic./L,<.Ju.i.nilizado , i,a. 601U11a
que. dM pu,1, v, a. l ú 01,d,<.nã!L,{.a.. 11 ;

V - MblLe o /.IENOR:
11
E clevv, do Eó.ta.do a educ.aç.êio e 111rum.te11ç.ão eia. C/Úanç.a. caJcen.te, de
zvw a dezel.>óW anoó , obje.üva.ndo ,1,eu deõ envolv,<.Jnen.to pleno e -.1a.-
ru 6a.-tÕ1uo na. Mc.ú.da.de.. 11 ;

2 -
11
F,<.c.a JJIW,<.b,<.da. a 111ru1u-Cençiio de Ccv.,a. ele Ve-te.nc;ão ele Me.11011.e-.1 . O Me.11011.
In61ta..to1t .tvcii M<1«.tênúa. óoúal ex.t:e111.>,<.va ã <1ua 6ru11Wa.. 11 •

VI - <1ob11.e EVUCAÇÃ~: \." o


ttEG OE ~~U
4.

,,
- "0 /:JJtOc.M60 educ.aúo11al JtMpútcvúi .todo6 06 Mpec..to~ da c.u.Uwta bll~
6il.Wta. E obiuiJCU:ÔIÚo a .üic.lMão 1106 c.Wl/Úc.ul.06 uc.olMe-6 de I, II
e III !Jllau.6, do e.,v..ino da l/.u..,tô1úa da Á61Úca e. da /1.u..,tõiua do Ne.!JILO
110 BILMU. ";

2 - "A Educação 6VLÍl g1ta..áÜ-ta, em X:od06 06 MVW , i11de.pe.11de.1i.teJ11e.ru:.e. da


.ldade do educando. SVtâ. oblÚga.tÕIÚa a Mve.l de. I e. II !JMM. ";

3 '
- "A elabo1t.a.ção do6 cuNÜc.ul.06 McolMe-6 6e1tã , 11e.cM6a/Úru11e,t.te, <1ubme-
üda ã. ap1tovação de. ltC/)ltMe11,Crut.Ce6 da.1. c.0111u1údadv., loc(l.{.-6 . ";

4 - "A vl!Jtba do E6X:ado duüuada ii. Educação co1t1LMpo11de1tâ a 20% do Oitç~


111e.1t.Co da União. ";

5 - Que seja alterada a rcdaçao do§ 8~ do Artigo 153 da ConstitOição Fe


deral , ficando com a seguinte redação:
"A publicação de. livlWl:t , jo1tnMl:t e. pe.lÚÕcµ_c.01:t não de.pe.nde.m de. tice!!_
ça da au,tolÚdade. Fica pri.o.w.i..da. a f:JJtopaganda de. guvuta , de 6ubve.Mão
da 01tdv11 ou de p1te.c.oncll,.{.,t01., de. ite.ligiã.o, de itaça, de c.oit ou de c.lM-
-6 e, e Cl6 publicaçõu e ex-tvúoiúzaçõu co~~M ti 1110/la.l e ao6
bo 11.6 c.01:t.tw11u . ";

6 - "A ocupação do6 cMgo6 de CÍÁ/leção e cooitde.naç.ão nM uc.olM pÚblica.1.


e de delegado de eiu,ino, -6 e1tão e6eüva1M 111ed-<.a11,Ce e.lúção, com a
pcvttie,lpaçãc d06 pll06U1:to1Lu, aluno6 e pMl:t de a.lunol:t . ";

VII - hOblte a CULTURA :

"t pllo.lb.lda a ve..lc.ulaçiio de meMageiu,, eJII todo6 e quMl:tquelt vuculo<I>


de. c.omwi..foação de mM.õa , que o6endam a -<.M.C.IJIÚdade. 11101ta.l, M/:J-ÚIÁ..tua.l
e c.u.ltwta.l da pu6oa do udadão Negito. ";

2 - Em substituição ao § 59 do Artigo 153 da Constituição Federa l, que


passe a constar que :
"Fica M./legU.1Lada a libvtdade. de. cuUo 1te.l-i.g-fo<1>0 e ga1ta1iti.da a pi~
e.a de. .toda.ó e quMl:tqu.<?.JL ma,ú6u.taç.ÕM cu.UU.ILMl:t ,' incl.:penderu:.eJ11en.t:e
de 6ua O.IL-<.!JC!JII Jtaci.al, dude que não 1:te.jru11 06e1t6iva.1> ã I/IOlta.l e ao.6
borv.. co1:t.tumu . ";

3 - "Q.ue <1eja decla1tado F<?.JL,<.ado Nauona.l , o c{.{.a 20 VE NOVEMBRO , da.ta da


11101L.te de Zw11b.l, o ii.ltimo .ÚdVt do Q.uil.ombo do6 Pctí'111a1tc.6 , como o VIA
NACIONAL VA CONSCifNCIA NEGRA. ";

GOU O N."
5.

4 - "Que <1eja. e6e.ti.vado o 1teco11/tecú11en.to expltUl>o do callÍLtVt 111u.e..ü-1ta.ú-


oJ'. da. Cu.Uwta. lYLMilWta.. ";

VIII - 1>oblte o TRAMWO :

"Que a. dwta.ção da. j Oltnada. c:üâtua. do .tlla.bo.!.ho na.o exceda. a. 6 (l>W 1


hoJtM , 6.{,ca.ndo a.h1da., Ml>eg'Wtado o 1tep0Mo l>ema.noJ'. 1tei11w1e1Lado e, .f:..
guoJ'.me11.te , Ol> 6elL.(.a.doó CÁ.V-(,,6 e iteU!J-<.Ol>Oó, de a.co1tdo com a. -tlta.cüçã.o
local. ";
2 - " Eó.ta.bil..i.da.de do .tlLa.ba.lha.dOlt no ei11p1te90 , dude o ·úú.úo do con.tlta..to
d e .tl,a.ba.lho . ";

- " Recon/tecú11en.to da. p!to6.{,,6óã.o de Emp1te9a.da. Vo111Ü.Uea. e V-<.a.J[.{,,6j:M , de


a.coitdo com o u.ta.beleúdo na CLT. " ;

4 - "Apoóen.ta.do1tút po!t .teinpo de l> e/LV.(.ÇO com óa.livúo .l,~te91ta.l, a.CILU údo
de 30% , a. ,Ü,tu,f.o de bon-<.6-<.ca.ção . ";
5 - " O E6,ta.clo a.ó6<!!JWta. a -todOl> 06 .tlta.ba.llta.dot,C/.l , ele qw:u'.quVt ca.-te901úa.
P'W6-<.óó.(.011a.l ou ILaJIIO de a.ü.v-<.da.de, -<.llciM-<.VC. ILWta.l :
- ó a.lâlt-<.o m2.rw110 1tea.l;
- CÜ/te-<..to -<.NtUtlú.to de 91teve;
- Ubvtda.de e a.u.t:0110111.la. l>úilica.l;
- ptto.lbú;ão de d.l6eJLenc;.a. de óalãlúoó e, de C/1.,ÜVÚM de adm-<.óóÕeó 110

.tlla.ba.llw , polt mo.Uvo de ó exo , colL ou u.ta.do CÁ.vil .";

6 - "Eóca.la. móvel de óa.lâlt-<.M , de a.co1tclo com a. elevação do cM.to de v.úfa. . ";


7 - " Ucença. a.oó pa..{,,6 , noó pvü odo.i de na.tal e pÕó - na..ta.l do 6ilho , pMa.
Mu6ttU-<./t C0/11 ple,~cle da. pa..tVtn-<.da.de. ";
8 - "Que óeja. a.Me!JWta.do .trunbêm a.o 11ia.1údo ou co111pru1í1WtO, o ~c.i..to deu
óu6ttU-<.Jt dol> bene6Zúo<1 p!tev.lde.nCÁÁlúoó deco1t1,e.n.tu da. con.tlúbU-<.çã.o
da. upo-1>a. ou compa.nhwut. ";

9 - "O.úte-Uo de -1>.lncü.ca.l-<.za.ç.ã.o pa.Jta. 0-1> 6unúonwúo-1> pÜbUcoó . " ;

10
'
- "Que óeja. VÚa.do o "Juüa.do de PequenM Ca.MM" na â.ttea. -tlta.ba.lli.w.ta..";
11 - "Ruponóa.bil..i.da.de do E,1,.ta.do pela. .{,1tden-<.za.ção ,Ü11ec:üa.-ta. ·d e a.c.úfen.tu
ou pttejtÜzo.i que o Tlta.boJ'.lta.do!t 601t v~ra.do 110 ex.elLÜci.o ptw6.{,,6l>.l~
11a.l, Móe9Wta.do a.o El>.ta.do o w,c.i..to de a.çã.o 1,eg1tUl>.(.Va. co11.tlta. o ei11
ptte9a.do1t ou con.tlla. o p!tÔp!t.(.o. einpttegado quando a.pWta.da a. ILUpo,u,a.bil.f:._
da.de..";
o f I e IO
t .• E oOCU ME tlTOft
OE i\TUL OS
R CO. oRl'SIL•A • o~ MIC"OFIL.ME
• ROUIV1'D1' COP\" E
F ICOU ~

r,QO O ti_-
6.

IX - MOILC. (l @E.STAo Vi\ TERRA:

- "S!!lta a.66e!JU!Lada M popu.laçõv, pobltM o C.WL<Ú-to íi JJIW/JliÁ.e.dade. do J.>o


.to Ultbano , de.vendo o EJ.>.tado .{Jllpleme.1úa1L M c.ondú;.õv, oM.{.C.a./i de .(.11
61i.a-M.VtU-twr.a em a..te11clú11e11.to ã.~ 11ec.M6.{.c/ad.u cio /10111C?J11. ";
2 - " Se.Ji.ã gaJi.an.ü.do o Wu.lo de p1wp1úedade. da .tvwa M Comunúladv, N~.
!J"-M ILC?JIIQlte6c.e1}-CM de. qlÚlo111bo1., ' 'lU0 110 me.fo U/LU<l/10 ou ILWL<ll. ";

3 - " Que o OC!.111 .{J11Õve..f. .ú111J1Lodl.l,Ü,vo rião 1.>e.ja brnlt-6111.(.MZve..f. pon l1C11t<11·1ça. Que
o l:1.>.tado /J1Lo111ova a dc.v.{_da. dMa/:VW/J/Úa.ção . ";
X- 6ou1te RELAÇOE.S INTElmACIONAIS:
" Ro111p.{J11eJ1.to .{JIIC!.<Í..{.a..to de. /te.Caç.Õe.-6 cf..{.plomã.âc.M e/ou C.OIIIC!.Ji.C,.(.~ C.0111 .to
do1., e. qua,ú,quC?/L PaM>e.-6 que .te.nliam .{.116.t.U:uC.{.011alüado qu.alqu.C?/L ü.po
de fuc.J(..(111-<.11aç.ão e1Wte 6u.a população .".

Por f i m, par a legit i mar as r,eivi nd i cações ora a presentada s e em


obediência a determinação da CONVENÇÃO NAC IONAL VO NEGRO PELA CONSTITUINTE, que

Br,sili,,
• 'I

A - ENTIDADES PARTICIPANTES

•'
\
I - PARÁ

l, CENTRO DE ESTUDOS E DEFESA DO NEGRO DO PARÁ - CEDENPA


Caixa Postal : 9 47 fone : 222 , 1625
66000-BELÉM (PA)

II - JWWIHÃO

2, CENTRO DE CULTURA NEGRA DO MARANHÃO - CCN


Caixa Postal : 430
65000-SÃO LUIS (MA)
Prcs . Magno José Cruz !
III - PARAÍBA

3. COMISSÃO PRÓ-ASSOCIAÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DO DIREITO DA MULHER


A/C Francinetc D. Ro sas - Rua João Gualbcrto , n 2 3
58800-SOUSA (PD)

IV - PEIUM.HI3UCO

4 . MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO , Seção PE


Caixa Postal : 692
50000-RECIFE (PE)

5 . FUNDAÇÃO AFRO- BRASILEIRA - FUNDADRAS


A/C Murilo da Costa Sclassiã
50000- RECIFE (PE) .,
V - SERGIPE

6. CASA DE CULTURA AFRO-SERGIPANA - CCAS


Rua Mato Grosso , 677 - Siquiera Campos Prcs . Jose Severo dos Santos
49000- ARACAJU (SE)

7 . FEDERAÇÃO DOS CULTOS AFRO-BRASILEIROS E UMBANDA DE SERGIPE - FCABUS


Rua Mato Grosso, 677 - Siqueira Pres . Manoel Messias de Jesus
49000-ARACAJU (SE)

8 , UNIÃO DOS NEGROS DE SERGIPE - UNA


A/C José Fernandes Sales - Conj . Augusto Franco , Av . Canal 3 , n2 510
4 9000 -ARACAJU (SE)

9 , ASSOCIAÇÃO DE MORADORES DE ARACAJU - AMANOVA


A/C Jaconias Rosendo - Rua João Fcrreora Lima , 125- D. Nova Veneza
49000- ARACAJU (SE)
10 . COAGRJ
A/C , Marinalva David Santos - Rua Mato Grosso , n2 1174
49000-ARACAJU (SE)

VI - ALAGOAS

11 . GRUPO NEGRO FILHOS DE ZAMBI


A/C Aldo G. dos Santos - Rua São Paulo, 406 - Ponta Grossa
57000-MACEIÓ (AL)

VII·- BAHIA

12 . MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO , Seção BA - MNU/BA


Caixa Post al : 6423
40000-SALVADOR (BA)

13 . SOCIEDADE COMUNITÁRIA OJÚ-OBÁ


A/C Ivonildo D. Ferreira - Rua da Alegria , n• 21 - Liberdade
40000-SALVADOR (DA)

14 . BLOCO AFRO MUZENZA


A/C Janilson íl . Santos - Rua Silvino Pereira , 225 apto 205
40000-SALVADOH (UA)

15 . ~LOCO AFRO ORUNMILÁ


A/C José Carlos Correia - Av . Floresta , n2 55 - IAPI/Fundos
40000-SALVADOR (BA)

16 . AfOXÉ OJÚ-OBÁ
A/C Idoline Conceição - Rua da Alegria , n• 21 - ~iberdade
40000-SALVADOR (DA)

17. CONSELHO DAS ENTIDADES NEGRAS DA


Caixa Postal: 6429
40000-SALVADOR (BA)

VIII - MI NAS GERAIS

1 8 . SOCIEDADE CULTURAL BENEFICENTE QUILOMBO DOS PALMARES


Rua dos Palmares , 545 - Monte Castelo ex . Postal : 747
36100- JUIZ DE FORA (MG)

1 9 . MOVIMEN'l'O NEGRO UNIFICADO , Seção MG - MNU/MG


Caixa Postal : 526
30161-BELO HORIZONTE (MG)

20 . MOVIMENTO CULTURAL DE RAÇA NEGRA BARBACELENSE


A/C Mário A. da Silva - Rua Coronel João F . de Castro, 206/F
36200-BARBACENA ( MG)

21 . FRAÇÃO DO MOV I MENTO NEGfW DO PCD


A/C Antonio E . Fernandes - Rua Hilda de Oliveira , 22
30000-DELO HORIZONTE (MG)
22 . GRUPO DE UNIÃO E C0NSCIENCIA NEGRA - GRUC0 N
A/C Silvani S. Valentim - Rua Dom Jesus da Pe nha, 049 Bl . 51
apt.,6°' 304 Conj . Santa Terezinha - Itatiaia
40000-DEL0 H0HIZ0NTE (MG )

23 . MOVIMENTO NEGRO DE BETIM


A/ C Gilbert o s . Santos -Rua J u iz de Fora , 281
32500-DETIM (MG)

2 4 . MOVIMENTO DA MULHER DO TRIÂNGULO MINEIRO E ALTO PARANÁ


A/C Conceição Leal - Av . Sigi smundo Pereira , 3570
• 38400- UDERLÂNDIA (MO)

2 5 . ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA DO 12 AMÉRICA


A/ C Luiz H. Neto - Rua Espirito Santo , 49 , 14 2 and .
30.000-BEL0 HORIZONTE ( MG)

26. PARTIDO SOCIALI STA CRISTÃO - PSC


A/C Pedro Correia A. Barros - Rua Pouso Alegre , 1390
30000-BEL0 HORIZONTE (MG)

27. SOCIEDADE AFRO- BRAS I LE IRA


A/ C Carlos Antônio d a Silva - Rua Rio de Janeiro ,195 , 1 2 and . s/ 117
30 160-DEL0 H0HIZ0NTE (MG)

28 . GRUPO DE C0NGADA CATUPI


A/C Ivo Si l vério da Roc h a - Ru a do Cruzeiri nho , 1 71 - MILHO VERDE
39155- SERR0 (MG )

29 . CENTRO DE I NTEGRAÇÃO SÓCIO-CULT URAL DA RAÇA NEGRA - CISCURN


Ru a l , n• 733 Ap . 301 - Nova Pampulha- Ribeirão das Neve.s 1 0
...~ f \ C t,AE.tl"f08
33800-BEL0 HORIZONTE (MG) . - - - - -, .• o ot e ooc~ ,_.~
-~ E , 1s\JL 1 1,_ • o ,()('.::>1"'-
r::.C O 1:-.P t,S ~6f'\~ -E:,t ,- 41.,

,.. 1 \j\\' "'º : ,,\'..~


I X - SAO PAULO f•~"'-' ·"~ :~
1
-

30 . CONSELHO DE PARTICIPAÇÃO E DESENV0LVIME ,t_o..'.:rÍA~i::OMUN;DADE NEGRA


Rua Antonio de Godoy , 122 , 9• andar fone : 220 . 29 46
01034- SÃ0 PAULO (SP)

3 1. MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO , Seção SP - MNU/ SP


Caixa Postal: 4420
01051-SÃ0 PAULO (S P )

·32 . SINDICATO DOS MARCENEIROS DE SÃO PAULO


A/C Wilson R. Levy - Rua Sal omão Maieranitc h , n• 52 Vila Santa Maria
02562- SÃ0 PAULO (SP)

33 . CONSELHO NACIONAL DE CINEC LUBES


A/C J.Bati sta J.Félix -Rua Ma ri a Elisa Siqueira , 221
02558- São Paulo ( SP)

34 . PARTIDO SOCIALISTA DRASILEIR0 - PSD


A/C José R. Militão Ferreira - Rua Tonel e iros , 327 apto 1 31
05056-SÃ0 PAULO (SP)
----

35. CENTRAL GERAL DOS TRADALI-IADOflES - CGT


A/C Osvaldo de Oliveira - Av . Washington Luiz , nR 6979
0109.ó'-SÃO PAULO (SP)
\
i1
X - RIO DE JANEIRO 1

36 . MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO, Seção RJ - HNU/ llJ


Caixa Postal: 794
20001-RIO DE JANEIRO (RJ)

37 . INSTITUTO DE ESTUDOS DA RELIGIÃO ISER


Largo do Machado , 2~ - cobertura
22221 - RIO DE JANEIRO (RJ)
ex . Postal: 15011
j
1
30 . PARTIDO DOS THADALHADORES - P'l'/RJ
A/C Benedita da Silva - Ladeira Ari Barroso - Chapéu Ma ngueira
20010-RIO DE JANEIRO (RJ)

39. CENTRO DE MULHERES DA FAVELA E PERIFERIA


A/C Sandra Helena T. Bello -
Rua Euclides da Rocha, 17,casa 75
22031-RIO DE JANEIRO ( RJ)

40. CONSELHO NACIONAL DO DIREITO DA MULHER -


CNDM
A/C Denedita daSilva -
Ladeira Ari Darroso - Chapéu Mangueira
20010-RIO DE JANEIRO (RJ)

41. GREMIO RECREATIVO DE ARTE NEGRA E ESCOLA DE SAMBA QUILOMBO


A/C Edialeda Salgado do Nascimento
22210-RIO DE JANEIRO (RJ)

42 . CENTRO DE ESTUDOS AFRO-ASIÁTICOS


Rua da Assembléia, 10 sala 501
20011-RIO DE JANEIRO (HJ)

43. MOVIMENTO NEGRO SOCIALISTA DO PDT


A/C Edialeda S . Nascimento - Praia do Flamengo, 176 ap 1101-Flamengo
22210 - RIO DE JANEIRO (RJ)

44 . ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENFERMAGEM


A/C Ana LÚcia Jesuina - Rua Nossa S ra. de Lurdes,79/301-GrajaÚ
21540-RIO DE JANEIRO (RJ)

45 . INSTITUTO DE PESQUISAS DAS CULTURAS NEGRAS - I PCN


.\v . Mem de Sá , n2 208 fone: 252.6683
20241-RIO DE JANEIRO (RJ)

46 . SINDICATO DOS PUBLICITÁRIOS DO RIO DE JANEIRO


A/C Mari a Helena Morais - Av . Beira- Mar , 216 - Grupo 801
02140-RIO DE JANEIRO (RJ)

XI - MATO GROSSO DO SUL

47 , GRUPO TRABALHO E ESTUDOS ZUMDI - GRUPO TEZ


Caixa Postal: 1163 fone : 383 . 6789
78100-CANPO GRANDE (MS)
...!:t.~~.,
4 8 . UNIVe'fiSIDADE fEDEf!AL DE MATO GHOSSO DO SUL
,· -
A/~ - Jorge Manhaes - coordenador de a tividiades pa ra Constituinte
79100-CAMPO GRANDE (MS)

XII - SANTA CATARINA

49 . SEMANA AFRO-CATARINENSE - SEAFRO


A/C Osvaldo Vieiras . Filho - flua João de Carvalho, 110
88000- FLOf!IANOPOLIS (SC)

XIII - RIO GUANDE DO SUL I


'
50 . MOVIMENTO TRADALl!ISTA DE IN'l'ECRAÇÃO DA RAÇA NEGRA - MO'l'InAN
. A/C Antônio M. Ferreira - Rua Demétrio Ribeiro , 961 ap 80-Centro
90000 - POf!TO ALEGf!E (RS)

51 . PAf!TIDO NECno BRASILEif!O - PNB


Caixa Postal : 706 - EBTC Fone: 30 . 1946 -nua Alegrete,106/
90000 - POf!TO ALEGRE

52, FONDATION SENGOR


A/ C Mauro Paré - Av . Nilo Peçanha , 557 ap 59 4 fone : 33 . 4 142
90000 -PORT9 ALEGRE (RS)

XIV - GOIÁS

53 . MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO , Seção GO


Caixa Postal : 1290
74000-GOIÂNIA (GO )

5 4 . MOVIMENTO NEGRO DE MINEif!OS


A/C Ezalmonc M. d os Santos - Rua 10,
76360-MINEI ROS (GO)

55 . CENTf!O DE PROFESSOf!ES DE GOIÁS - CPG


A/C Ciriaco Mauricio da Silva - Conj. l HI- Rua 9 c/ 1 2 - Novo Gama
77223 - NOVO GAMA (GO)

XV T DISTRITO FEDEnAL

56 . MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO, Seção DF - MNU/DF


Caixa Postal: 11 .1 192
70084 - Df!ASILIA (DF)

57 . CENTRO DE ESTU~OS AFRO- DRASILEif!OS - CEA.8


SRTVN- Ed. Brisi li a Ridi o Center , s~9-20Pre . Wald1miro de Souza
70000-BRASILIA (DF)

58 . ASSOCIAÇÃO DOS DEFICIENTES FÍSICOS DE BRASILIA


A/C Ione P . França - SDS-Ed. Venâncio IV , s/ 409 f .: 225 , 9504
70000 - BRASILIA (DF)
59 . ASSESSOR lA PA RA ASSUNTOS DA CULTUHA AF RO- DRASILEI HA no MlnC
,\/C Ca::-lo:; Alv es Moura - a GGCGS•lr
SBN - Mini stéri o da Cultura , 5 2 andar
70000-UH/,SILIA (DF)

60 . J 011NAL Pl!AIA VE HDE


SDS- Ed . Venâncio , VI sala 41 0
70300-DílASILI A (DF)

61 . PARTIDO SOCI ALI STA DHASILEIHO - PSB


A/ C Waldim iro de So uf a - SQS 406 bl . Capto 203
70000- DHASILI A (OF)

62 . AS~OCIAÇÃO DOS SEHVIDOHES DO MIN . Hi::LAÇÕES EXTEHIOl!ES


A/C Nilt on S . Co:;ta - SON 1 05 bl . li élp . 106
7 0~34-DHASI LIA (OF)

63 . ANIGOS UNIDOS EM MOVIMENTO - A... U... M·...


A/C Arli ndos dos Santos - QNM 3 Co nj . I casa 01
72215 - CEILÂNDIA SU L (D F)
práxis de libertação

Da União das Nações Indígenas para o


Brasil

De la Unión de Naciones Indígenas a Brasil

From the Union of Indigenous Nations to Brazil

União das Nações Indígenas

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UNIÃO DAS NAÇÕES INDÍGENAS. Da União das Nações Indígenas para o
Brasil. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, jan./jun.
2024.

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InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684

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Da União das Nações Indígenas para o Brasil

InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
União das Nações Indígenas

Da União das Nações Indígenas para o


Brasil

Goiânia - GO, 11 de outubro de 1986

Os Povos Indígenas existentes no Brasil, representados na UNIÃO DAS


NAÇÕES INDÍGENAS – UNI, nos posicionamos perante as autoridades
constituídas, à opinião pública e em especial perante os Membros do
Congresso Nacional para informar e exigir o seguinte:

1. As várias nações indígenas que habitam o território brasileiro estão


sabendo que, por proposta do Presidente da República, o Congresso
Nacional vai aprovar uma Emenda Constitucional convocando uma
Assembléia Nacional Constituinte para elaborar uma nova
Constituição para o Brasil e que esta Constituinte será o próprio
Congresso Nacional a ser eleito no dia 15 de novembro de 1986;
2. Em razão disso, dias 09 a 12 de junho, a UNI realizou em Goiânia
uma reunião de representantes dos Povos Indígenas para, entre
outros assuntos, discutirem o posicionamento dos índios em relação
a Constituinte;
3. Nesta reunião decidimos PARTICIPAR DA ELABORAÇÃO DA
NOVA CONSTITUIÇÃO, POIS ESTA LEI TRATA DE QUESTÕES
DE INTERESSE IMEDIATO DOS POVOS INDÍGENAS, tais como: o
direito a terra e a incorporação dos índios à sociedade nacional e
como habitamos o território brasileiro, nos sentimos não só no
direito, mas no de ver de influir na forma de organização do Estado
brasileiro, para que ele respeite os Povos Indígenas e garanta a
liberdade e participação de todos os brasileiros, nas decisões estatais,
inclusive quanto à correta e justa utilização e distribuição das
riquezas;
4. Também nesta reunião de Goiânia discutimos sobre a melhor forma
de se elaborar a nova Constituição brasileira. Ou seja, é a
Constituinte e só para fazer a Constituição ou se vai ser o Congresso
Nacional de 1986 que irá fazê-la? E se os índios participarão da
Constituinte lançando candidatos através dos partidos políticos ou
se exigirão participar indicando diretamente seus representantes?
5. Os Coordenadores Regionais da UNI, reunidos também em Goiânia,
dias 09 a 11 deste mês de outubro, como resultado prático das

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discussões feitas, sobre aquelas questões, nas comunidades


indígenas que se fizeram. Representar na reunião de junho,
concluíram que:

A – OS POVOS INDÍGENAS EXIGEM PARTICIPAR DA ASSEMBLEIA


NACIONAL CONSTITUINTE ATRAVÉS DE REPRESENTANTES
ELEITOS E INDICADOS PELAS PRÓPRIAS COMUNIDADES
INDÍGENAS, NÃO SUBMETENDO ESTES REPRESENTANTES AO
SUFRÁGIO UNIVERSAL E SECRETO E NEM A FORMA DE
REPRESENTAÇÃO PARTIDÁRIA, POR QUÊ?

a.1. A população Indígena brasileira é constituída de grupos étnicos


diversos vivendo estágios culturais diferenciados entre si. Mantém, no
entanto, formas comuns de representação dos seus interesses e que são
diversos da maneira de representar os interesses definidos pela sociedade
nacional;

a.2. A maneira como estão constituídas as comunidades indígenas hoje e a


realidade econômica das comunidades indígenas colocam-se como
obstáculos a uma representação através dos Partidos Políticos – forma em
que estarão se fazendo representar outros setores da sociedade brasileira;

a.3. Todas as leis sobre os povos Indígenas foram elaboradas sem a nossa
participação;

a.4. Em outros países já se reconhece a participação de minorias étnicas


semelhantes à reivindicada por nós;

a.5. No processo de integração dos ‘Povos Indígenas à sociedade nacional,


conforme previsto nas Leis brasileiras – art.19 da Lei n9 6.001/73, bem como
na Convenção n9 107 da OIT – art.39.3, promulgada no Brasil pelo Decreto
n9 58.824/66, deverá ser resguardada a especificidade cultural, das
instituições e tradições dessas comunidades. Em consequência, o respeito a
estas especificidades se dá com a participação efetiva dos povos indígenas
nos poderes do Estado, segundo critérios definidos por eles próprios;

B – POR ISSO ESTAMOS INDICANDO DOIS (02) REPRESENTANTES E


SEUS RESPECTIVOS SUPLENTES POR CADA REGIÃO POLÍTICA EM
QUE O BRASIL ESTÁ DIVIDIDO: Norte, Sul, Leste, Centro-Oeste e
Nordeste, inclusive porque nos organizamos segundo esta divisão
geográfica;

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C – OS POVOS INDÍGENAS QUEREM UMA ASSEMBLEIA NACIONAL


CONSTITUINTE COM O OBJETIVO ÚNICO DE ELABORAR A
CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA.

Por fim, esperamos que o senhor deputado e relator da Comissão


Interpartidária, Flávio Bierrenbach, que aprecia a proposta do presidente
José Sarney e as emendas a ele apresentadas, bem como todos os outros
membros desta Comissão, acolham nossa exigência, como prova efetiva da
conquista de um Estado verdadeiramente democrático.

UNIÃO DAS NAÇOES INDÍGENAS


Coordenação Nacional e Coordenações Regionais

***

A fotografia que retrata Raoni Metuktire e indígenas que ocuparam o


auditório do PMDB durante a Constituinte é de autoria de Beto Ricardo
(ISA).

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17 a 20 de Nove1nbro de 1995
Brasífia - DF

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· Terra, Produção eCidadania para os ºuilombolas


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RELATÓRIO
1 º ENCONTRO NACIONAL DE
COMUNIDADES NEGRAS RURAIS

TEMA:
TERRA, PRODUÇÃO E CIDADANIA
PARA OS QUILOMBOLAS

17 A 20 DE NOVEMBRO DE 1995
BRASÍLIA - DF
Apresentação
O !2 Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais Qullom-
bolas, realizado no período de 17 a 20 de novembro de 1995, em Brasília-DF,
foi um momento muito importante para o conhecimento dos problemas e
experiências de luta das comunidades negras rurais ou das chamadas ter-
ras de preto, no momento em que se comemorava os 300 anos de ZUMBI
DOS PALMARES, o grande héroi da história dos quilombos do passado e a
grande referência para a luta dos quilombos do presente.

Estas Comunidades Negras Rurais por força da identidade étnica


organizaram-se no meio rural de forma particular. Mantêm uma relação har-
moniosa com a natureza, formas coletivas no uso comum de suas terras e
na produção agrícola. A preservação da cultura negra e a religião afro-
brasileira são também características marcantes entre a população negra
da zona rural.
4

Objetivo
Durant e muitos anos, a história de ZUMBI EDO QUILOMBO DE PAL-
MARES não mereceu nem citação nos livros da história ofic ial. Mas a luta
pela liberdade, a resistência de um povo subjugado não se apaga facil-
mente. A história de ZUMBI E DE PALMARES continuou viva ao longo desses
três séculos e se hoje ganha não só as póginas, mas as comemorações
oficiais, é graças à obstinação e a perseNerança dos que, como ZUMBI,
nunca se renderam.

1995 ano, que se comemora a nível nacional a celebração dos


300 anos da imortalidade de ZUMBI, líder maior do Quilombo de Palmares
e o grande herói da história Afro-brasileira, a existência e os direitos de
centenas de comunidade negras descendentes dos Quilombos, localiza-
da nas mais diversas regiões do país, continuam sendo negados. Apesar
de ter garantido o seu reconhecimento na Constituição Federal, através
do Art. 68 das Disposições Transitórias as comunidades negras rurais qui-
lombadas receberam o título d efinitivo de propriedade de suas terras, onde
vivem a séculos. Ao realizarmos este I Encontro Nacional de Comunidades
Negras Ruruais, estamos dando mais um passo no sentido de nossa organi-
zação e de exigimos que, de fato, se cumpra a lei.
5

1 Encontro .N ocional de
Comunidades Negras Rurais
1 7 a 20 de novembro de 1995
Brasília-DF

Abertura

17/1 las 14:30 h

A abertura oficial do I Ençontro Nacio-


nal de Comunidades Negras Rurais foi presi-
dida pelo Sr. Ivo Fonseca, da Coordef"'lação
Estadual dos Quilombos Maranhenses. A
mesa foi composta por representantes da Co-
ordenação Nacional do evento:

• Comunidade Negra Rio das Rãs/BA


•Comunidade Negra de Frechai/MA
• Comunidade Negra Kalunga/GO
Ivan Costa - CCN/MA
• Comunidade Negra Furnas de Dionísio/ MS
• Comunidade Negra Furnas da Boa Sorte/ MS
O representante do CCN falou da im-
• Centro de Cultura Negra/ MA portãncía do I Encontro Nacional das Comu-
• Movimento Negro Unificado nidades Negras Rurais neste ano em que se
• Grupo Trabalho e Estudos Zumbi - MS comemora aos 300 anos de imortalidade de
Zumbi, dando ênfase para os quilombos atu-
Foi feita uma saudação aos 300 anos de ais e a importância para a luta do Quilombo
Zumbi dos Palmares pelo companheiro Ha- de Palmares e o heroísmo de Zumbi.
milton Borges/ MNU
Simplício Arcanjo - Rio das
Rãs/BA

Eu quero pedir aos companheiros das


comunidades que pensem bem sobre o ·que
a gente tá reivindicando. Um documento e
de uma forma coletiva, que é meu sonho.

Nilton F. da .S ilva - Furnas do


Dionísio/MS
A luta é cumprida. Precisamos unir forças para
adquirir nossos direitos.
6
Manoel Eldeltrudes Moreira Eu invoco o poder de lnzambie, de Ka-
- Kalunga/ GO lunga (na língua bantu quer dizer o ser supre-
mo, completo) e dos báculos (ancestrais)
Nossa primeira necessidade é que afas- para nos proteger nestes três dias.
ta os grileiros da terra. Porque como foi con-
tado por nosso tataravô no começo não exis- Ivo Fonseca - Frechai/MA
tia nenhum fazendeiro. Ninguém deu, nin-
guém vendeu e hoje eles são a maioria e tem "Nos estamos agora com toda energia
Kalunga sem terra pra morar. Isto é falta de para começar o encontro."
cuidado das autoridades.
Temos que ter o direito da cidadania
igual ao do branco.

Sionei Ricardo Leão de


Araújo - Grupo TEZ/MS

A organização deste encontro surgiu da


união das comunidades e do apoio do Movi-
mento negro. Este evento é a maior home-
nagem ao "negiro rurar que não é reconhe-
cido pela sociedade.

lêddo Ferreira - MNU / RJ


A nossa luta tem que ser para todos os des-
cendentes de negros escravizados no Brasil. 18/ 11 às 17:00 h
Luta pela garantia da terra e pelas con-
dições para que o negro no meio rural rece- TEMA:
ba a titulação e possa se realizar economi-
camente.
LEGALIZAÇÃO DAS
TERRAS DE QUILOMBO
Ben Hur - Dep. Estadual/MS Coord. Carlos Porto/TEZ-MS

O acesso à terra neste país foi dificulta- Contamos com a participação da Ora.
Vera - INCRA, Dr. Aurélio - Procuradoria da
do para impedir nossa cidadania. Então
quando vejo diversas comunidades discutin- República, Valdêlio Santos Silva - Movimento
do sua cidadania, a terra, a produção, per- Negro Unificado, Ivan Costa - SMDDH s CCN/
cebo que Zumbi deve estar orgulhoso de seus MA- Lúcia Andrade-Comissão Pró-Índio/SP
filhos. Que suo figura continue nos incentivan-
do.
Expositor:
Valdina Oliveira Pinto (Ter- Dra. Vera/Incra/Nacional
reiro Tanuir Juncara/BA)
No dia 24 de novembro de 1995, o IN-
Nós, negros preservamos o vida. Nós CRA estará titulando a comunidade de Boa
negros usamos a terra com a intenção de Vista no Pará, b eneficiando l 12 famílias. Isto
vida. Nós negros tiramos da terra a vida, a representa o resultado da luta de todos vo-
energia, a resistência. cês. O INCRA queria fazer a titulação lndlvi-
7
vindicaram que queriam o título coletivo, 7. Quem dentro do estado reconhece es-
para o seu melhor desempenho. sas comunidades negras o Governo Fe-
Sobre o problema de Rio das Rãs, esta- deral ou o Governo Estadual?
mos tentando fazer a desapropriação do gri-
leiro que está na área e entregá-la a comu-
nidade, mas isso está um pouco difícil mais
chegaremos lá.

Expositor
Dr. Aurélio-Procuradoria
Geral da República
Brasília/DF

Em relação à legalização das terras de


quilombo o Art. 68 não diz como receber a
titulação das terras, como adquirir essas ter-
ras. Trata-se de uma negociação permanen-
te, pode ser que no futuro possa se resolver Debatedor:
estas questões. Ivan Costa/Projeto Vida de
OBS: Alguns questionamentos levanta- Negro-SMDDH e CCM/MA
dos pelo procurador, referentes ao art. 68°·
No Maranhão as comunidades negras
l . Quais são essas comunidades rurais e ur- são contra as demarcações de terra dividi-
banas que podem provar que são rema- da em lotes, a melhor maneira para se tra-
nescentes de quilombos, e como se faz balhar é que essas demarcações fossem fei-
isso? Raça: Questão étnica se estabele- tas a nível coletivo. A tendência do INCRA é
ce em situações complicadas. dividir as comunidades em lotes, é muito com-
plicado para as comunidades negras rurais.
2. O artigo 68 tem uma situação especial
O INCRA tem a possibilidade de titular
diferente e dá ao estado a obrigação de
as terra s de Quilombo, tem como fazer o le-
resolver sobre a titulação das terras. Como
vantamento sobre as terras de quilombos e
se faz isso?
Fundação Cultural Palmares não tem esta
3. Para serem reconhecidas o governo tem estrutura de técnicos na questão fundiária
que dar um parecer favorável ou não, para fazer este tipo de trabalho.
sobre as áreas de quilombos. O Processo de Regulamentação não
pode deixar de incluir a questão da raça.
4. A dificuldade não está propriamente na
demarcação das terras.
Debatedor:
5. De que modo os dois projetos que estão Valdélio Santos Silva-MNU /BA
dentro do Congresso podem ser reconhe-
cidos. Por pressão do movimento negro parla-
mentares incluíram na constituição federal,
6. A questão é quem vai Identificar essas Art. 68, mas não houve em contrapartida
comunidades o INCRA ou a Fundação nenhuma preocupação de adequá-lo para
Cultural Palmares? sua aplicação efetiva.
8
A gente tem que enfrentar a discussão Debatedor:
sobre a questão raça neste artigo que será Lúcia Andrade - Comissão
regulamentado sobe pena de sermos invia- Pró Índio/ SP
bilizados enquanto um grupo. Se a gente não
inclui neste artigo nenhuma referência ao fato A titulação de Boa Vista, confirma que
de que quem ocupa estas comunidades são o Art. 68 é auto aplicável, o título pode ser
negros a gente vai estar ao mesmo tempo coletivo. No início o INCRA queria a divisão
em lotes e a comunidade não aceitou. A As-
dizendo que estas comunidades são tratadas
sociação de Quilombo de Boa Vista que via
de forma democrática. Quando a realidade
receber o título.
é outra. O negro é tratado enquanto negro.
Pessoas consideradas pelos brancos como
interiores.

Outro problema levantado pelo Dr. Au-


rélio diz respeito a existência de um número
muito grande de comunidades negras no
meio rural que não tiveram seus direitos reco-
nhecidos. Eu descordo que esta seja uma mo-
tivação que vá colocar obstáculos para via-
bilidade do reconhecimento.

Eu fico feliz que o pessoal de Oriximiná


tenha seus direitos reconhecidos no dia 24. lêddo Ferreira/ MNU
Mas, eu quero que todas as comunidades
Boa Vista abre um precedente que
que estão aqui e as milhares que não estão deve ser utilizado por todos. O que precisa é
também sejam reconhecidas. Porque o Incra vontade política para titularmos todas terras
não toma esta mesma atitude com os de- dos descendentes de africanos no Brasil.
mais, ele tem instrumentos para isto. Tem tan-
to que no caso de Rio dos Rês por exemplo Gilberto Leal - Niger Ogan/ BA
houve até uma desapropriação de toda fa-
zenda. Não deve haver limites na aplicação do
artigo como defende o Dr. Aurélio.
As terras das comunidades negras pre-
cisam pertencer a elas pelas suas necessida-
des históricas. E não pelas limitações dos pes-
quisadores.

Henrique - Jamary/MA
Nós temos área que está em julgamen-
to. A terra lá é dos netos de Jamary, é só da
geração de pretos.
Ouvimos as dificuldades colocadas
mas, queremos uma resposta. Não queremos
enfrentar mais pressão, espancamento de ne-
gros até a morte.
9
José Ribamar Ferreira tal quem tem são eles e ficam nos colocan-
Morais - Pitorá dos Pretos/MA do. Sabe da nossa situação, da nossas rein-
vindicação de aposentadoria, títulos definiti-
Que a gente quer é a desapropriação, vos, técnicos para desenvolver atividades
que nos tomos com cinco anos de luta. agrícolas precisamos, financiamento para o
Já perdemos companheiros e esta não é a pequeno e médio produtor, enfim queremos
primeira vez que a gente faz esta cobrança. o nosso direito como cidadão.

Rosalino Cesário de Torres


( Kalunga - GO)

Solicitamos apoio as nossa necessida-


des, somos descendentes de quilombos e
convivemos a mais de 200 anos, foi demar-
cada uma área de 202 m il hectares de terra,
onde convive cerca de 6.000 pessoas. Que-
remos uma documentação legítima, o gover-
no não sabe para quem realmente dar as do-
cumentações da terra , se é para um ou para
outro, mas nós queremos o afastamento dos
fazendeiros a educação na nossa região não
18/ 11 às 9 :00h tem.
Existem pessoas de fora dentro da nos-
TEMA: RESISTÊNCIA NAS sa comunidade, como entraram não sabe-
TERRAS DAS COMUNI- mos. Os fazendeiros, não plantam e nem fa-
zem uso da terra, e nós que precisamos.Na
DADES NEGRAS RURAIS época da poITtica os políticos sabem que lá
Coordenação: Gilberto Leal existem eleitores.
Niger Ogan/ BA

Paulina Sousa Rodrigues Manoel Morena ( Kalunga -


( Rio das Rãs - BA) GO)
Somos remanescentes de quilombos, fi-
lhos de escravos fugidos e com a presença
Queremos o afastamento dos fazendei-
dos fazendeiros dificultou toda a área provo-
ros e o título coletivo, temos toda a documen-
cando todo o desmatamento. Antes dos fa-
tação da terra e não sabemos como os gri-
zendeiros já estávamos na terra e não acei-
leiros conseguiram entrar na nossa região.
tamos a nossa saída, resistimos e iremos con-
tinuar na luta.
Temos algumas criações como: porco,
ovelha, cabra, etc.
Procopia dos Santos Rosa
( Kalunga - GO)
Simplicio Arcanjo ( Rio das
Queremos todo o afastamento dos fa-
Rãs - BA) zendeiros porque nos outros tempos não ti-
Reivindicamos o d ireito da nossa terra,
nha fazendeiro, a mais de 200 anos que esta-
através da nossa luta. O governo tem uma
mos no nosso lugar. Precisamos de postos de
grande falha pois o documento fundamen-
saúde, escolas.
10
levar a coisa com
garra. Frechai
hoje está resístin-
d o para poder-
mos garantir nos-
sa terra.
Em 1994.
ocupamos a
sede do IBAMA e
levamos l 8(de-
zoito) dias para
resolver o nosso
problema, Os gri-
leiros queriam to-
mar a nossa terra.
Revertemos esse
quadro, eles que-
rem a gente
como instrumen-
to. O IBAMA deu uma definição de posse pro-
Leoneida Francisco maia visória e definição está com a nossa Associa-
(Kalunga - GO) ção de Moradores do Quilombo Frechai.

Assim como os fazendeiros merecem. Adão Pereira Nunes ( Rio


nós que já estávamos no lugar a muito tem- das Rãs - BA)
po. merecemos muito mais ainda, não sabe-
mos nem de onde eles vieram. Precisamos tra- Nós enfrentamos a luta desde 1984 e procu-
balhar, muitas vezes as crianças quando vão ramos os nossos d ireitos. Temos um marco na
a escola e chegam em casa, muita das ve- nossa comunidade que são pessoas que vi-
zes não tem o que comer. e isso é muito triste vem lá a muito tempo e sabem que somos
para todos nós. donos da terra.

Manoel Coelho ( Frechai/ Eduardo Pereira dos


MA) • Santos (STR - Bom Jesus
da Lapa - BA)
Nós temos uma luta desde 1974,já pas-
A nossa preocupação é muito grande
samos várias coisas que nem os animais me- sobre a documentação da terra. Uma mu-
recem passar. Nós nos organizamos e em 1985 lher para se aposentar tem que ter no miní-
formamos uma associação de moradores, mo 56 (cinqüenta e seis anos) e para se apo-
erramos muito perseguidos, que chegou até sentar é muito difíc il , eles querem o título da
ter policiais na área para nos tirar do local. terra que o governo não dó.
derrubando casa e plantações, hoje em dia
a nossa situação é precária. Tivemos que pro-
curar igrejas, entidades de apoio e órgãos Bolinho (Comunidade de
competentes para nos apoiar. Os governis- São Benedito - MS)
tas só nos conhecem quando está na época
da eleição, precisamos muda r a posição A nossa comunidade foi ~ ndada por uma
deste governo, temos que ter resistência e ex-escrava Ana Maria de Jesus (Eva), ela fez.
ll
Terezinha Maria de Aguiar
( Bananal/Rio das Contas -
BA)

Fizeram uma barragem e ficamos todos


prejudicados, a nossa comunidade perdeu
a posse da terra, a empresa tomou toda a
nossa documentação os nossos pais não co-
nheciam os nossos direitos e não tiveram ori-
entação sobre a documentação que nos
favorecia . Hoje vivemos

Ela adquiriu 08 (oito) hectares de terra


e registrou no município de Campo Grande
por volta de 1912. Na comunidade 9e São
Benedito, temos 31 (trinta e uma) famílias. O
nosso povo briga pela terra essa que perten-
ce a nossa comunidade deixada pela Tia Eva.
Hoje temos alguns convênios com a
Universidade, e o que mais queremos é que
implante uma escola na nossa comunidade

, como parceiros so-


mos em torno de 55 famílias com cerca de
Hilta Costa Araújo ( Lajes 300 pessoas em Bananal.
dos Negros -BA) Tem algumas comunidades vizinhas que
têm algumas coisas, mas nós não temos
Nossa comunidade foi fundada por vol- nada. Temos uma faixa de 80 crianças não
to de 1830 o 1840 por um escravo que se cha- temos escolas, a 8 Km tem uma comunidade
que tem energia elétrica e elas deram vórias
mava Luiz, ele el'a mais ou menos livre, mas
voltas para não passar energia pela nossa
precisava dos trabalhar para os fazendeiros comunidade.
para poder sobreviver.

Quando Luiz começou a construir sua Milton (Sindicato dos


família e no momento que ela jó estava mui- Trabalhadores Rurais - São
to grande, o fazendeiro falou a ele que não Felix - BA)
daria mais para morar no local. Luiz muito pre-
ocupado com sua família procurou junto a Tivemos um conflito de terra muito duro,
outros companheiros comprar umas terras. quiseram até torturar e me bateram, mas re-
Hoje em dia não conseguimos viver em paz agimos e fomos atrás dos nossos direitos. Te-
na terra pois alguns acham em vender a ter- mos 5.600 hectares de terra e queremos que
ra tentando achar outros meios, mas às ve- o própria o INCRA faça uma visita a nossa co-
zes não conseguem. munidade para realmente ver nossos direitos.
12
Andrelino Antônio Mendes dato de desapropriação. A nossa comunida-
(Conceição das Crioulas - de só sabe dizer que até hoje continuamos
na luta, e não aceitamos a nossa desapropri-
Salgueiro - PE)
ação. O nosso objetivo é chegar a uma de-
nominação, pois a nossa classe é negra e é
A nossa comunidade foi fundada por a menos favorecida.
seis negro ainda na época da escravidão. Por
volto de 1870 eles conseguiram a terra e •Nilton Ferreira
a documentação. Os·...·"57.~::.EZc,.•...:.2.-::=,~ :;;,:,.-:·"\.s-
g rileiros chegaram e .. ·: ···•:"t!'i ,-;- • ••
_
,;
:- 3
·""'·; ;;:~!~liii da Silva
tomaram a metade .,_
~--41 .;.~::~r; ·( Furnas do
das terras, quando eles - Dionízio - MS)
Viram que estavam nos ,.
organizando eles de- A nossa Associa-
ram sumiço no doeu- • ção de Moradores foi
fundada em 1989 por
mento por volta de
mim e na época nossa
1971,
presidente era uma mu-
Conceição das ;
. ,i:.:, lher branca. Hoje sou
Crioulas conse·guiu con- 1 ~ .., ~ ·i. -~-~ ~~,;
• ~·1. • ,... >...'lo'·,\

·:.\\;;:v;,:"1."" .1,. ~;••·.:•:1,1,.-·:,o:


.
eu o presidente negro.
1 ', ,_, .:;... '' !;,. ~
qulstar um Posto de Saú- Temos energia elétrica,
· - - - ·- - . , . _ _ _ : ; . : . : : : : •• _ _ . ;• ••• ·.o.. - - --

de e uma Escola de 59 a
apicultura onde produzimos o mel. posto te-
82 Série. lefônico conseguimos também um trator, uma
escola.

Valdivino Alves Moreira Justo Evangelista Concei-


( Pau D'Árco - MA) ção (ltapecuru Miri~ - MA)
Uma comunidade vizinha construída por
No Maranhão temos um companheiro
filhos e netos que esqueceram seus pais e fi-
que estó alojado no Sítio Pirapora que foi
caram voltados ao patrão, perdeu todo o do-
maltratado, ele pertence o uma comunida-
cumento das terras, e a justiça ainda não to-
de de Tutóia, teve uns pistoleiros que levaram
mou as devidas providências. A justiça falo
ele para o moto e o espancaram todo, as-
que é difícil, mas acreditamos que não, a jus-
sim ficando o companheiro impossibilitado de
tiça tem grande poder para dor uma do~u-
trabalhar.
mentoção legal sobre a nossa terra.

Raimundo Souza ( Jamary Ester ( Kalunga - GO)


dos Pretos - Turiaçu - MA)
Quando era criança conheci a minha
Hó 12 anos vivemos uma luta acompa- terra criando gado. depois de 1970 para cá
nhando a Igreja e o Sindicato dos Trabalha- os grileiros tomaram toda a terra e a nossa
dores Rurais. Certo dia chegou um pacote comunidade ficou quase sem nada. O que
de documento no minha casa paro a desa- queremos é o título definitivo do terra, tem os
propriação da terra de nossa comunidade fazendeiros que jogam capim na terra para
.no prazo de 15 dias, Reunimos e decidimos os seus gados e a gente fica impossibilitado
ficar mais um pouco para o segundo man- de trabalhar na pouc a terra que nos restou .
13
José de Ribamar ( Pitoró Procopia dos Santos Rosa
dos Pretos - MA) ( Kalunga - GO)
Existem certas pessoas que vão a nossa
Há 4 anos de luta já perdemos vários comunidade obter informações (pesquisas)
companheiros. Eu já fui quase morto, mas e depois não são capazes de nos ajudar no
continuamos na luta e hoje temos que falar e momento que precisamos. Vão em nossas
reivindicar os nossos direitos. O processo da casas, tratamos bem e o que ganhamos com
nossa área já esteve em cima da mesa do isso, quase nada ou melhor, nada mesmo.
presidente do INCRA/ Nacional e nada fez
para desapropriar d nossa terra. Os trabalha- Ka-Dú ( MNU - RJ)
dores só são conhecidos na época das elei- Tive oportunidade de conhecer um li-
ções, devemos conhecer e confiar na nossa vro que relata a história de D. Procopia, gos-
classe, na nossa luta na comunidade em que taria de dizer que a mesma tem direitos au-
vivemos. Temos muitas crianças que nem co- torais sobre o livro, o povo que forneceu as
nhecem o 12 grau. Isso se dá por conta dos informações não são contemplados com isso.
poITticos que só aparecem na época que vão
se eleger. Queremos que a justiça seja breve Juarez Antônio ( Kalunga - •
e que tenhamos uma educação para nos- GO)
sos filhos e até nós mesmos adultos precisa- Nos estamos sentindo falta de compa-
mos de uma escolaridade. nheiros na nossa terra que vão embora por
Acreditamos que també_m somos cida-
causa dos grileiros. Pedimos que a Justiça re-
dãos brasileiros, queremos os nossos títulos de
solva a situação de qualquer maneira.
terra que nos pertence por d ireito, queremos
trabalhar e dar d ignidade aos nossos filhos.
Claro Costa (Saco dos
Getúlio Moreira da Silva Almas Brejo - MA)
Tenho 64 anos, fui criado em Saco das
( Kalunga - GO) Almas. Estamos numa luta cansativa com
derramamento de sangue.
Não estamos encontrando o direito de Perdi mãe, parentes e amigos. Tudo ata-
recebermos a terra de herança do meu cado pelos grileiros. Eu peço que o Presiden-
tataravô, bisavô e hoje os netos do meu avô
te da República olhe para o Saco das almas,
não estão encontrando o direito de traba-
para todo o ~rasíl, para todo negro sofredor.
lhar na terra.
Porque foram os negros que fizeram e cons-
A fazendeira não aceita que os própri-
truíram este Brasil.
os dono da terra trabalhe para seu próprio
sustento.
, --(,~-::;>{(?;)}::.Ir::/{
Osvaldo Alves de Santana •. f,i:.:'~;-_
( Niger- Okan - BA) .,-.. ·~ --~·
. ,.-.

Todas as comunidade estão parabeni-


zadas por participarem do 12 Encontro Naci-
onal de Comunidades Negras Rurais, sabe-
mos que toda essa história que está sendo
relatada é o melhor e mais verdadeiro docu-
mento que possamos ter, ela mostra a resis-
tência e a luta do povo negro na zona rural.
14
18/ 11 as 14:00 h • que o Governo Federal acompanhe o
repasse de verbas para os municípios des-
tinadas à agricultura, exigindo, onde não
TEMA: EXPERIÊNCIAS DE haja, a criação de secretarias municipais
EXPLORAÇÃO NAS de agricultura e promoção social.
COMUNIDADES
NEGRAS RURAIS • que o CONAB repasse para as comuni-
GRUPOS DE TRABALHO dades, através dos órgãos competentes,
sementes para plantio.
PRODUÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO"
AGRÍCOLA
PROPOSTAS
• abertura da linha de crédito especlal,
através do Banco do Brasll, para o finan-
ciamento da produção agropecuária das
comunidades negras.

• que o Ministério da Agricultura responsa-


bilize-se em prestar assistência técnica em
pecuária, agricultura , piscicultura, apicul-
tura e horti-frutigrangeiros.

• que o Programa de Desenvolvimento de


Energia Alternativa (PRODEN) seja esten- • que sejam c riadas escolas agrícolas de
dido para as comunidades negras não
pequeno porte nas áreas de concentra-
contempladas neste programa.
ção das comunidades negras rurais.
• criação de um pro-
,
.. -.. '~· ,·ri
,: .

1. 1

.., .... ,::i~ ·:r


; , ,;

1~
• que o Governo Federal crie programas de
. ,:!; /~ produção, através de cursos de curta
• ·'.~ /ii . { ' duração ministrados pela EMBRAPA, DA-
r ~~
:4t.
;
TRER, Faculdade de Agronomia das uni-
~~ versidades federais.

• que as Faculdades de Agronomia e Ve-


terinária das Universidades Federais, co-
loquem estagiários das comunidades ne-
gras rurais.

• que sejam realizados perfurações de po-


gra ma naclonal ços artesianos nas á reas das comunida-
de eletrificação rural para as comunida- des negras carentes de abastecimento de
des negras, inc luindo energia solar e mini água potável.
usinas hidráulicas.

• que o programa de fomento a pecuária • que as Secretarias de Agriculturas Estadu-


do INCRA seja estendid o às comunida-
a is c riem departamento de agricultura
des negras rurais.
familiar.
15
Meio ambiente Educação
Propostas
• Reivindicamos a ação enérgica do IBA-
PROPOSTAS:
MA contra fazendeiros, mineradores, ga- • Reivindicamos que o governo federal im-
rimpeiros e madereiros que destroem o p lemente um programa de educação 1º·
meio ambiente dos comunidades negras. e 2°· graus especialmente adaptado à re-
a lidade das comunidades negras rurais,
• A implantação de grandes projetos com elaboração de material didático e
(como hidrelétricas e mineração) e m ter- a formação e aperfeiçoamento de pro-
ras quilombola deve estar sujeitos aos in- fessores.
teresses da comunidade.
A comunidade Kalunga reivindica que o • Extensão do programa que garante o sa-
governo cancele a instalação das hidre- lário base nacional de educação para os
létricas de Foz do Bezerra e Boa Vista, que professores leigos das comunidades negras.
se construídas inundarão suas terras. Implementação de cursos de alfabetiza-
ção para adultos nascomunidades negras.
• Desenvolvimento de planos de manejo
pelos órgãos governamentais, em comum • Ampliação de número de escolas, nas co-
acordo com a comunidade, munidades para
aprovei- atender todos os
tando as
experiênci-
as de pre- • Implementação
servação nas escolas já exis-
da mesma. tentes de p rogra-
mas de treinamen-
• Desenvolvi- t o e reciclagem
mento de dos p rofessores
programas adaptados à rea-
de educa- lidade das comu-
ção ambien- t '?. ,.: ;;:._. _ nidades negras ru-

;~~ (:~:st:~~~~ ·"1%\ ,i~,~t~ rais.

e futuras) pri- • Que os professores com origem nas co-


orizando os alunos do 12 grau. munidades, tenham prioridades nos pro-
cessos de seleção para as escolas.
• Programa de reflorestamento (com vege-
tação nativa e árvores frutífera nas á reas
Quilombolas degradadas com a partici- Mulher Negra
pação das comunidades.
Devido as denúncias de que as mulhe-
19/ 11 as8:00h res negras que trabalham como d iaristas nas
fazendas recebem salários inferiores aos dos
TEMA: EXPERIÊNCIAS homens, solicita-se que o Ministério do Tra ba-
NAS COMUNIDADES lho apur~ a situaç90 e tome as devidas p~o-
vid ências.
GRUPOS DE TRABALHO
16
Saúde • Construção de c reches nas comunida-
Propostas: des.

• a Fundação Nacional de Saúde imple-


mente um programa junto às comunida-
des visando a erradicação de doenças
com sarampo, tétano, febre amarela e
outras mais.

• o Governo Federal fiscalize o repasse das


verbas de saúde/SUS que tem se mostra-
do falho, com o sistemático atraso no repas-
se do pagamento dos agentes de saúde. ',J, ;1: J • . ., :
. 11
..z_
r -
• que os programas de saúde desenvolvi-
dos na comunidade considerem a expe-
riência dos remédios caseiros dos quilom- 19/ 1 1 às 17 :00 h
bos. TEMA:
CONSCIÊNCIA NEGRA
• implementação de serviço de tratamen-
COORDENAÇÃO:
to da água nas comunldados.
Valdina Oliveira Pinto/ PA
Terreiro Tanuir Juncara/ BA ,
• abertura de posto de saúde nas comuni-
dades, algumas pessoas c hegam a ca-
minhar 90 km para serem atendidos.
Nilton F. da Silva ( Furnas
• Aumento de número de agentes de saú- Dionísio/ MS)
de. Nos gostaríamos que todas comunida-
des se unissem. Temos que nos organizar e
• Incentiva a formação de hortas medici- buscar o poder político.
nais nas comunidades com plantas co-
nhecidas pelos moradores. Hilta Costa Araújo ( Lages
dos Negros/BA)
Cultura e Religião A gente dava pouc a Importância em
saber algo a mais sobre a nossa história. Ago-
Que o estado respeite as manifestações ra, já temos mais um pouco de consciência
da religião e cultura negra brasileira reconhe- depois de participar nesses movimentos e
cendo com isso a sua importância na história eventos.
do país. combatendo preconceito com que
tem sido tratadas essas atividades pela soci-
edade. Edson L. Cardoso ( MNU/ DF)

Criança e Adolescente De todos os lugares surgem uma cons-


ciência negra, e é uma forma de consciên-
cia negro que sabe que para alterar as con-
• Fiscalização das áreas como garlmpos,
dições de vida do negro no Brasil é preciso o
onde é grande a exploração de adoles-
exercício do poder.
centes em subempregos.
17

É um poder que vamos ter que cons- As comunidades afirmam que são qui-
truir. Por que é nós que vamos alterar a nossa lombos conteporâneos porque estão se or-
realidade. ganizando em quilombos para defesa de suas
E o movimento negro tem participa- terras.
ção nesse surgimento da consciência negra Temos que definir quilombo de uma for-
pois realizou uma profunda transformação ma que interessa a nós, não podemos redu-
cultural alterando as formas de viver do coti- zir quilombo a uma nomenclatura acadêmi-
d iano do negro.Essa revolução não alterou ca.
nossa realidade material. Os nossos projetos, as ações unificadas
Quero descartar qualquer tipo de ava- elas não alteram apenas as relações, alteram
liação da realidade brasileira que não tenha a vida dos negros.
como prioridade as relações raciais. O Brasil pode ser diferente a partir de
Temos Palmares como a 12 manifesta- nós, eu acho que essa é a mensagem desse
ção de oposição e da afirmação da nossa 1Encontro e com certeza outros irão aconte-
dignidade enquanto povo negro e da nossa cer a partir do contato com outras comuni-
liberdade. dades.
18
RELAÇÃO DAS COMUNIDADES NEGRAS RURAIS QUILOMBOLAS
E ENTIDADES QUE PARTICIPARAM DO l g ENCONTRO NACIONAL DE
COMUNIDADES NEGRAS RURAIS.

BAHIA
Rio das Rõs/Bom Jesus da Lapa Só assim/Alcântara
Barra do Brumado/Rio das contas Santo Antônio/Penalva
Bananal/Rio das Contas Pitoró dos Pretos/Codó
Fazenda Pilar/Sôo Felix Tingidor/ltapecuru-Mirim
Lages dos Negros/Formoso Santa Joana/ltapecuru-Mirim
Parateca/Malhadas Santa Maria dos Pinheiros/ltapecuru-Mirim
Movimento Negro Unificado da Bahia Guaraciaba/Bacabal
NIGER-OKAN/Organizaçõo Negro da Bahia Saco das Almas/Brejo
Sindi. dos Trab. Rurais de Bom Jesus do Lapa Santa Cruz/Buríti de Inácio Vaz
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Fellx Cond. Est. dos Quilombos Maranhenses
Centro de Cultura Negra do Maranhão
DISTRITO FEDERAL: Soe. Maranhense de Defesa dos Direitos
Movimento Negro Unificado Humanos/Projeto Vida de Negro
Instituto Sócio-Ambíental Sind. dos Trab. Rurais de ltapecuru-Mirim
Coletiva de Mulheres Negras Slnd. dos Trabalhadores Rurais de Turiaçu
Comissão Pastoral da Terra - Nacional Sind.dos Trabalhadores Rurais de Mirinzal
Slnd.dos Trabalhadores Rurais de Brejo
GOIÁS:
Kalunga/Covalcante PERNAMBUCO:
Kalunga/Monte Alegre Conceição das Crioulas/Salgueiro
Kalunga/Terezina de Goiás Centro Luiz Freire/Recife
Movimento Negro Unificado
RIO DE JANEIRO:
MATO GROSSO DO SUL: Campinho da lndependência/Paraty
Furnas do Dionísio Movimento Negro Unificado
Furnas da Boa Sorte/Coquinho Centro de Articulação das Populações
São Benedito/Campo Grande Marginalizadas - CEAP
Grupo de Trabalho e Estudos Zumbi - TEZ
Conselho do Comunidade Negra OUTROS CONVIDADOS:
Grupo Hip-Hop Instituto de Colonização e Reforma
Agrária - INCRA-DF
MINAS GERAIS: Procuradoria Geral da Repúblico - DF
Movimento Negro Unificado Deputado Estadual Ben Hur - MS
Vereadora da Comunidade de Kalungo
MARANHÃO: (Sra. Ester) - GO
Frecha/Mirinzal Valdina Oliveira - Terreiro Tanuir Juncara-BA
Jamary/Turiaçu Comissão Pró-Índio de São Paulo
Entre Rios/Cururupu

PROMOTORES DO ENCONTRO: CCN-MA. MNU, TEZ-MS. Rio das Rãs-BA, Furna da Boa Sorte-MS, Furna do
Dionísio-MS. Kalunga-GÇ) e Frechai/MA

APOIO: CESE-BA, MISEREOR·, Governo do Distrito Federal. Universidade de Brasília-UNS e 0EFER


19

ANEXOS:

01 - Programação do 12 Encontro Nacional das Comunidades Ne-


g ras Rurais (folder)

02 - Informativo sobre o 12 Encontro Nacional.

03 - Cópia do documento do l º Encontro Nacional, que foi entregue


ao Presidente da República Dr. Fernando Henrique Cardoso, no
dia 20 de novembro de 1995.

04 - Decreto do Presidente da República, criando, no dia 20/ 11/ 95,


Grupo de Trabalho lnterministerial, com a finalidade de desenvol-
ver políticas para a valorização da população negra do Brasil •

"

TERRA, PRODUÇÃO E
CIDADANIA PARA OS
QUILOMBO LAS

COMISSÃO ORGANIZADORA
Ctntso de Cultura Negra do Maranhão, Mo1 imcn!1l
Ne~o Unili~, ,0Q!Pf'N1MA. Grui,J Cu!lur.l
Coisa de Nêgoi"Pl, Comunidaéts de: Acchal'NIA.
Rio das RiifBA, Ori:<iminá/FA. Furnas do
Dionizio/MS, Fumas de Boa Sorte/MS, Mlnibó/PL
APN's, Comissão Pastoral d:I Terra eCampinho d.1
In~ciai1U.

1,. l'

- 1
i."
.1° Encontro
Nacional de
Comunidades Negros Rurais
APOlO:
CESE 17a 19 de Novembro de 1995
Mlsercor
Endcro;o: Gomno do Distrito Federal
Setor Comercial Sul, Ed. Goiás. Sala 415 •CEP Secretaria do Governo Brasília/DF
70347-900 · Brasilia-DF • Caixa Pos!al m2 Universidade de Brasllia
· CEP 709 l9-970 • Fone: (061 )32l•7326 • Senadora Benedita da Silva •PT/RJ
Secretaria Nadon.il Dcp1laOO Domingos Dutra •PTIMA
cefer
Programação 12:00 hs -Almoço
14:30 hs •Animacào
Dia 17/U •Faculdade de Tcrnolo~a- Campu~ Uni\'~itário • 14:4S hs ·EJperiêndu de Exploração nu Terras das
Terra, Produção eCidadania Para UNB •Auditório Comunidades (Trabalhos em Grupo)
G111po 1-Produção AgriCQla
os Quilombolas 09:00 hs-Café da Manha• E~tádio Mané Garrincha
12:00 hs -Almoço
Grupo 2•Comercialização Agricola
Grupo 3•Linhas deCrédilo Rural
14:30 hs -Abertura • Coordenaç~o Nacional • Cenlro de Gnipo 4-Assistência Técnica (atral'és de órgãos
No Período de 17 a20 de novembro/95, Cultura Negra do Maranhãc, Movimento Negro Unificado, governamentais, instituições emol'imentos sociais)
Grupo Tei'JMS, Coisa de Nego/PI, Comunidades de: Flcd1~1/ Grupo 5-Preservação do Meio Ambiente
MA, Rio das Ras/BA, Orixlminâ/PA, Furnas do Dionizio/MS e 17:30 hs •lnlervalo
•será realizada em Brasilia-DF, ol Enconlro Fumas de Boa Sonc/MS, Kalunga/GO eMimbó/PI. 18:00 hs •Jantar
Nacional das Comunidades Negras Rurais • Aprcsenta~o das Delegações 19:00 hs ,Animação
16:30 hs -Lanche 19:15 hs -Plenária
(Quilombos) , que terá como lema central, 17:00 hs •Debate sobre legalizaç~o das terras de Quilombos
300 anos de Zumbi: Terra, Produção e a
11
i Dia 19/11 • Faculdade de Saúde • Campus Unh·~itirio •
11 Con\'idados UNB •Auditório
Cidadania para os quilombolas •
•INCRA NACIONAL· Sr. Francisco Grmiano
•Associação Brasileira de.Antropologia 07:00 hs as 08:00 hs • Cafc da Manhã
•Coordenação E~adual dos Quilombos Maranhense 08:30 hs •Animação
Neste ano que se comemora a nível •Procuradoria Geral da Republica 08:45 hs-Debate sobrt e~periência nu Comunidades
nacional a celebração dos 300 anos da (Trabalho cm Grupo)
. Debatcdores Grupo 1•Cultura Neg~
imortalidade de Zumbi, Líder maior do , Comunidade de Oriximina/PA Grupo 2•O Negro eRclíg1ao
Quilombo dos Palmares eogrande herói da •Mol'imcnto Negro Unificado •¼ldélio Santos da Sil\'3 Grupo 3•Saúde
•Sociedade Maranhcnse de Direitos Humamos •Projeto Vida Grupo 4-Educação
história Afro-brasileira, a exislência e os de Negro ' Grupo 5-Criança'Adolescenle
direitos de centenas de comunidades negras •Comissão Pro-lndiolSP Grupo 6•Mulher Negra
Plenária •~O minutos . 11:30 hs •lnlCl'l'alo
descendentes dos quilombos, lodizadas nas Coordenação· Grupo Tez 12:00 hs •Almoço
mais diversas regiões do pais. continuam 20:00 hs •Jantar U:00 hs •Animação
14:15 hs-Pleniria
sendo negados.Apesar de ter ga:t::iido oseu Dia 18111 •Faculdade de Saúde: Campus Unin'sltãrio • 16:30 bs ,Lanche
reconhecimento na Constituiçf :' Federal, UNB •Auditório 16:45 hs •Debate sobrt Con,ciêncla Ne;·r:.
alravés do Arl. 68 das Di•:~osições 07:00 hs as 08:00 hs •Café da Manhã Comidados
Transilórias até hoje nenhuma ,. ·:umidade 08:JO hs •Anim~ção •Morimento Negro Unificado• Edson e~:.
08:45 hs-Debatc sobre Resistência n2s Terras das •Comunidade de Mimlxi.lPI
negra rural quilombola receb1: 1.! o ti!ulo Comunidade$ Negras Rurais •Comunidade deFumas doOionizlo1MS
definitivo de propriedade de suas !~rras, onde Experiência relatadas das Comunidades de: Pclnário •45 minutos
•flcchal/MA Coordenação:Centro de Cultura Negra do~!aranhão
vivem a séculos. Ao realizarmos esle I •Rlo das Rãs/BA 19:00 hs •Janiar
Encontro estamos dando mais um passo no •Oriximina/PA 20:00 hs -Plenária com leitura das propostas aprendas e
•KalungalGO Documento aser entregue ao Presidente Femando Henrique
sentido de nossa organização edeexiginnos •Sindicato dos Trabalhad,ores Rurais de Bom Jesus da Lapa Cardoso
10:00 hs -Debate 20:30 hs, Encerramento
que, de fato, ~e cumpra alei. •Coordenação;Grupo Cullural Coisa de N~ 22:00 h~ -Festa dasComunidades
&I
Encontro Nacion·a1 de
Comunidades Negras Rurais
Informativo da Coordcnaçfü> Org:u1iz;11lora N" 01/9.~

TERRA, PRODUÇÃO E CIDADANIA PARA OS QUILOMBOLAS


Elas são muitas. Espalhadas por todo país, as Comunidades Negras Rurais deram continui-
dade a história ele resistência de Zurnbi dos Palmares. Mcsm() ocupando as terras que herdaram
d~ seus antepassados há mais de 200 anos, o Estado e a sociedade se recusam a reconhecer o
direito de propriedade do povo negro.

Para se manterem vivas as C\lmu-


nidadcs Negras Rurais têm qui.: vencer
o isolamcnlo do mato, a fon1i.:, seca. en-
chentes. falta de crc!dito para pluntar, fal-
ta de escola, sa1ídc. estradas, as invasões
de· grilhciros. l.>arragcns. mi 11cratlorn.~.
Enfim, toda sorte de• <,h, :·;··:1L·-: -t·• !' •!1
lica racista vigl:nlc 1111 B, ., .. ,.

Estas comunidades por fon,:a de iden-


tidade i::u1ica se organiz.1ran1 111> campo
de forma particular. Mantcm uma rela-
ção harmoniosa com a natun:za. formas
coletivas de produção. A prcscrvat.;fio da
cultura e religião lll:gra são 1a111hém ca-
facterfslicils marcanti.:s cnt1\: os nq~ros no
meio rut'lll.

500 ANOS ZUMBI


Para trocar experiêncins, juntar forç.is, ener- deiro herói. E muitas vitórias já foram alcança-
gias e buscar soluções parn os problemas, as das. Não é por outrn razão que esmo discutindo
comunidades negras rurais estão caminhando o assunto no Congresso Nacional.
rumo ao I Encontro N acional. A proposta uo 1 Enconlro Naci onal uc Co-
O evento será o primeiro da história do país munidades Negras Rurais tem si do discutida
e se constilui numa homenagem digna aos 300 <lcsdc l 993, nos encontros e seminiirios das co-
anos de Zumbi dos Palmares. Esse Encontro é munidades negras rurais, movimento negro e
também muito importante porque irá marcar entidades de apoio. A realização do Encontro
toda urna luta iniciada há mais de 10 anos no foi aprovada diante o 1 Seminário de Negro do
Maranhão, Pará, Bahia, Goiás, Piauí, São Pau- Sertão da Bahia, l Seminário do Negro e.lo Ser-
lo e outros estados para afirmar que a proble- tão de Pernambuco, l Seminário Nacional <le
mática negra no meio rüral é um assunto que Comunidades Remanescentc.s de Quilombo e
interessa a lodos. Especialmente agora que es- JV Encontro Nacional de Co1illlnidades Negras
tamos confirmando .que Zumbi é nosso verda- Rurais do Maranhão.
I ENCONTRO NACIONAL
DAS CO:\IUNI DADES
Negros Lutan1 Pelo Direito a 1erra
NF,GRAS RURAIS Aconteceu cm sctembm, cm Br.L-.ília. dc!imilada.s e lilulaclas im.:lucm áreas de
um $emin,\rio prom,widn pela Câmara d1>s moradia, plantio, criação, pesca, extração,
17 a 20 úc novemb,rn úe Deputados par-.i <lcbater os dois prt~ietos de lazer e preservação ambiental:
. 19\>5 Brasília• DI• regulamentação do art. 68 dos ADTC. que <l· Os títulos de terra a serem emiti•
prevê a propricdc1<le dcli nitiv.1 <las tcn-:is dos devem ser em nome de tmla ;1 Comu•
Tema: 300 Anos de Zumbi: para os rcmanc.-.~ntes de quilomho. Os nidade ou suas reprc."enla<jiic..-. leg.tís. sem
Terra, Produção e Cidada• projetos cm 1ra111i1a~:àt1 na Giin.1r.1 dos l)e. prejuízo de que o uso da.<; áreas se dê de
nia para os Quilomboh1s puladús e no Setl.lúú aprcsenl,1111 várias la• a1.:ortJo com a experiência t.·onsol idada das
<--unas que prccii.~1111 ser supernd;L-. para aten- próprias comunidade.-.;
der cJc form.1 po..-.itiva ,L'- rcivin<.licaçfies úas e- Que seja cxplicila111cn1c estabele-
çomuni\latles negr:L-. mmis. cido que o ret-· onhccimento legal chls áre-
IUi:SIS'l'l1NCIA NAS Durante os tldr.lll'.S V:1hll~lio Sanlus as dos Renwnc.-;ccnles úe (.).uilomlms in•
TERRAS DAS COI\IUNI- Silva. 11111 ch>s l'Xpnsitur,·s rqwesc·nt:m<lll 1> dui a responsabilidade <la União implc-
DADl~S NE(:HA:, l'I:<' . . . . ;, ::•. :. • " · • •:1:,!t \ ;Í1 i.t, Sllt'.l'StÔCS Ç(llll 111cn1:1r uma política c.-.peci.tl voltacJa parJ:
, . ,;, ., 11,,;111 , ·um (.'IIIIHlllicladcs IIC· - dclini~-;í\l de linha de çrédilo para o !i-
• 1)ç fosa •l;c; tn 1., ·,
r: :1:: , ,1::11·,. 111t•,·i111t·111t, m:grn e çntida.tlcs n:mciamcnto <la produção agrkola. pcs•
• l ,\'f,isla..;au
ele .ipoio para st:r oliscr,·.1das na clabom• queira, exlrnlivb1a e a produção artcsa•
ç:10 dn texto linal dos l'mjetos de l .ei: na!. 1.:0111 condit,-õc.-; especiais ele amorti-
EXPfüU!i:N('IAS D1':
a- J\s Co111unidad~ Reruanesu:ntcs zação;
RXPLORAÇÃO DAS de Quilombos são populações negrns que • que sejam elahorados programas ele
TERRAS DAS COMUNI• vivem no meio rural e se aulo•iúcutilicam apoio à infr.1es!rulum. nas áreas de clclri•
OADRS NEGRAS RURAIS como Comunidades Ncgms. Quilombos. lka~-ão. c.·onstruçfü> de cslrncl.1s vicinais,
- Form;1s de orgaui:,..ição p.1r.1 Mucamoos. Terra de preto e outras dcsig• uhaslccimcmo de água. melhoria habita•
a _p ro<.lução e comerciali:,.m;ão naçõcs'correlalas; são um grupottnicocom dona!, entro outros;
• Como couseguir dinheiro çultumc história próprias; • que sej,1111 i mphrnlados programus edu-
pam os prujctos de produção l>· A reivindicação primcir.1 para a cacionais para jovem; e adultos. com ma•
• J\:;:;i:;t(:i1cia técnica defesa e sobrevivência dos Remancsccn• tcriais, currículos e calcncl.írio escolar
• Preservação do meio tcs ele Quilomllos é o rcconhcdmento le- adaptados às c,lf'Jclcríslk,L'- culturais d:1s
amhicnle gal das ár~. iâcntilicadas pelos próprios c.·omunida<lcs; e,
morrulon.:s 0 11<.lc se llcscnvolveu sua histó· • que sejam estendidas rara c.,;1:1s comu•
EXJ>füUÊNCIAS DE VIDA ria; nicladcs progr.unas regulares de preven-
- Cultura Negra c• As tcrrns a serem rcconltceillas, ção e ,1ssistêm:ia à saúde.
- O Negro e a religião
• Saúde "Nós NEGROS temos esperanças. Nossa história é toda feita e marcada
• liducm,:iit> por uma quase congênita esperança de que é possível acreditar que a luta pela
- Crianças e udolc,,;ccntcs aílrmaç.ão da nossa humanidade é mais que uma utopia, é mais que um sonho
lrrcllzável. As Comunidades Negras do Melo Rural que resistiram até hoje são
O QUE É CONSCll'tNCIA a certeza, a concretude, a visibilidade de que mais que um sonho elas são a
NgGRA? própria representação daquilo que de fato queremos, que é, no limite, ser
livre, humanamente livre. Por Isso dizemos mctaforlcamente que ZUMBI não
ELAIH)IV\ÇÃO DO morreu. Pois a causa de ZUMBI e de PALMARES tem para nós uma expressão
DOCUMENTO FINAL 00 Lio real, tão atual, como VIVA. Falar sobre Kalunga, Rio das Rãs, Frcxal,
1 ENCONTRO NACIONAi. Orixlmln.i, Mucambo, Castafnho, Mhnbó, Ribeira é falar de PALMARES e dos
DE COMlJNll>ADES mesmos anseios e sentimentos que embalaram os que resistiram dignamente
NEGRAS RURAIS A srm
até a morte. E ser digno, eticamente digno significa desplr•se de vaidades
mesquinhas para pensar que existem r~ponsávels no Drasll pela situação limite
ENTREGUIO:AO PRESI•
a que chegou o povo NEGRO. Que tem sentimentos humanltârios não deveria
DENTE DA tmP(JIU,ICA. dormir cm paz sabendo que crianças e velhos morrem de fome no campo por
não terem terra para plantar; que pessoas são assinadas por lutarem pelo direi·
o~ intcrcss:uJos cm to a uma vida digna; que para estas pessoas que estão escorraçadas no campo
participar deste l•:n contro só existem como opções migrarem para as cidades e viver nas favelas para
entrar em cont:lto com ;1 serem tratadas como "anlrnais".
Secretari:1 Executiva Como poderão comemorar os 300 ANOS DE ZUMOI e ao mesmo tem•
po fechar os olhos que ZUMBI somos nós e o ,que nos interessa agora é justa·
Nacional mente o reconhecimento dos direitos que nos são negados?
Nós ouvimos llrm:tis, falou-se muito sobre nós NEGROS e muita pouca
Setor Co1111:rcial Sul, E!!.
• " :·. • ' ··;:, :,i,111 ,•í,•tivamcntc feito como resposta às no~sas indag;ições e exigên·
Goi:ís, s:tla .11 : ; <!.t\ . i ·. iutlo tem limite, e este se esgota mais rapidamente do que se pensa."
Hrasíli:1 • l>f<'
CEP 70.317-900
COORDENAÇÃO ORGANIZADORA NACIONAL
Caixa Post~l 4422 Comunidades Negras Rurais: FrcchaVMA, Rio das Rãs/BA, Oriximiná/PA,
CEP 70.919-970 Kalunga/GO, Mimbó/PI, Furnas do DionfsiolMS, Conceição das Criolas/PE,
lvaporunduva!SP. Mucambo/SE, Campinho da lndependência/RJ.
Fone: (061) 323-7J26 CCN/MA, MNU, CE0ENPA/PA, APN'S, TEZ/MS, Coisa de Nego/PI, SACI/SE.
Das 15:00 ;\s 20:00 hs CPT. Comissão Pro lndio/SP. - 23
Brasília, 20 de novembro de 1995

E,ano. Sr.
Fernando Henrique Cardoso
MD ·Presidente: da República

Exrno. Sr. Presidente,

Com este documento, ora encaminhado a V.EX", queremos ser ouvidos. Nunca
fomos em toda a história do Brasil. Somos negros e vivemos em comunidades rurais.
Descendemos de africanos que escravizados lutaram, fugiram das fazendas, buscaram todas
as formas para viver em liberdade e em plena hannonia com a terra e a natureza. Nunca
aceitamos que o escravismo retirasse nossa dignidade de ser humano.
A terra que temos hoje foi conquistada por nossos antepassados com muito sacrificio
e luta. E passados 107 anos do fim oficial da escravidão, estas terras continuam sem o
reconhecimento legal do Estado. Estamos: assim, expostos à sanha criminosa da grilagem dos
brancos, que são, na atualidade, os novos senhores de t.ão triste memória. No papel somos
cidadãos. De fato, a escravidão para nós não tenninou. E nenhum governante da Colônia, do
Império e da República reconheceu nossos direitos.
O direito à terra legalizada é o primeiro passo. Queremos mais. Somos cidadãos e
cidadãs e como ta.is temos direito a tudo que os demais grupos já usufruem na sociedade.
Sabemos que a cidadania só será wn fato quando nós, nossos filhos e netos tiverem terra
legalizada e paz para trabalhar; condições para produzir na terra; um sistema de educação
que acabe com o analfabetismo e respeite nossa cultura negra; assistência à saúde e
prevenção às doenças e wn meio ambiente preservado da ganância doa fazendeiros e grileiros
que destroem nossas florestas e rios. Não temos esses direitos assegurados, portanto, não
somos reconhecidos como cidadãos!
O I ENCONTRO NACIONAL DE COMUNIDADES NEGRAS RURAIS, o único
acontecimento do gênero realiz.ado na história do Brasil, não poderia, neste momento que
celebramos os 300 anos da imortalidade de Zumbi de Palmares, deixar de apresentar ao
Presidente da República nossas dificuldades para existir enquanto povo e as soluções que
competem ao atual governo dar como resposta.
Senhor Presidente o que reivindicamos é muito pouco diante da contribuição que
damos para a construção do Brasil.
A seguir, apresentamos nossas principais reivindicações.

1. TERRA PARA OS QUILOMBOLAS


Desde o começo da história do Brasil, negros e índios estão sendo injustiçados. Até
hoje, muitas comunidades remanescentes de quilombos e povos indígenas não têm suas terras
garantidas.
Para que a história de genocídio contra negros e índios não mais se repita, é preciso
que o governo implemente uma política agrária que contemple os anseios e direitos das
comunidades negras e indígenas e dos sem-terra.
O Artigo 68 do ADCT da Constituição Federal garante às comunidades
remanescentes de quilombos a propriedade de suas terras. Desta forma, é preciso que o
governo tome providências urgentes para garantir a emissão dos título de propriedade
coletiva às comunidades negras.
Vários processos estão tramitando· em órgãos federais e estaduais, mas, até hoje, as
terras não foram regularizadas. •
Este é o caso, por exemplo, de Frexal (MA), Calunga (GO), Rio das Rãs (BA),
Piritoró dos Pretos (MA), Mocambo (SE), Jamari (MA), entre tantas outras.
Muitas comunidades não têm nem mesmo o processo de regulariz.ação fundiária
iniciado.
Na celebração dos 300 anos de Zumbi de Palmares queremos que todas as
comunidades negras deste País tenham seu direito à terra assegurado para que nossa
cidadania seja respeitada.

2. APOIO A PRODUÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO


Reivindicamos:
- abertura de linha de crédito especial, através do Banco do Brasil, para o financiamento da
produção agropecuária das comunidades negras. •
- que o Ministério da Agricultura responsabilize-se em prestar assistência técnica em
pecuária, agricultura, piscicultura, apicultura e horti-frutigrangeiros.
- que o Programa de Desenvolvimento de Energia Alternativa (PRODEN) seja estendido
para as comunidades negras não contempladas neste programa.
- criação de um programa nacional de eletrificação rural para as comunidades negras,
incluindo energia solar e mini usinas lúdráulicas.
- que o programa de fomento a pecuária do INCRA seja estendido às comunidades negras
rurais.
- que o Governo Federal acompanhe o repasse de verbas para os municípios destinadas à
agricultura, exigindo, onde não haja, a criação de secretarias municipais <le agricultura e
promoção social.
- que o CONAB repasse para as comunidades, através dos órgãos competentes, sementes
para o plantio. •
- que sejam criadas escolas agrícolas de pequeno porte nas áreas de concentração das
comunidades negras rurais.
- que o Governo Federal cria programas de produção, através de cursos de curta duração
ministrados pela EMBRAPA, DATRER, Faculdade de Agronomia das universidades
federais.
- que as Faculdades de Agronomia e Veterinária das Universidades Federais> coloquem
estagiários à disposição das comunidades negras rurais. •
- que sejam realizadas perfurações de poços artesianos nas áreas das comunidades negras
carentes de abastecimento de água potável.

3. MEIO AMBIENTE
Reivindicamos a ação energica do IBAMA contra fazendeiros, mineradoras,
garimpeiros e madeireiras que destroem o meio ambientes das comunidades negras.

~
A Comunidade Kalunga reivindica que o governo cancele a instalação das
Hidroelétricas de Foz de Bezerra e Boa Vista, que, se construídas inundarão suas terras.

4. SAÚDE
Reivindicamos que:
- a Fundação Nacional de Saúde .implemente um programa junto às comunidades visando a
erradicação de doenças como sarampo, tétano, febre amarela e outras mais.
- o Governo Federal fiscalize o repasse das verbas de saúde/SUS que tem se mostrado falho.
com o sistemático atraso no repasse do pagamento dos agentes de saúde.

5. EDUCAÇÃO
Reivindicamos que o governo federal implemente um programa de educação 1º e 2
graus especiahnente adaptado à realidade das comunidades negras rurais, com elaboração de
material didático e a formação e aperfeiçoamento de professores.
Extensão do programa que garante o salário base nacional de educação para os
professores leigos das comunidades negras.
Implementação de cursos de alfabetização para adultos nas comunidades negras.

6. MULHER NEGRA
Devido as denúncias de que as mulheres negras que trabalham como diaristas nas
fazendas recebem salários inferiores ao dos homens, solicita-se que o Ministério do Trabalho
apure a situação e tome as devidas providências.

Na certeza de que as reivindicações acima colocadas serão devidamente apreciadas e


consideradas por V. Ex\ subscrevemo-nos,
Respeitosamente,

Comunidade Frechai (MA) J u- ;P ;f 0'-77 S ê "--- e-. _ Ç__;;d_,_ e...._

Comunidade Jamary (MA)

Q. ~
Comunidade Kalunga (GO) ~
Comwúdade Conceição das Crioulas (PE) •<j ...-il~ ~ cl.t>-

Comunidade Fuma da Boa Sorte (MS) ~~f?~


(\
\ •. \; ,. 01..
Comwúdade Fuma do Diotúsio (MS)
"',., -.~t::
"X UJ,lS,11
J vvl.,.\,l,:U:J.. cLG-.. 5-4,t,
e "1 "7; ,

Comunidade Lages dos Negros (BA) ~/; (:k;) <"- e;,,_~


Comunidade Campinho da Independência (RJ)J

ComunidadeBarradoBrumado(BA)'~%i,w t / 9 ~ ofq_ ó'~


Comunidade Fazenda Pilar (BA)· ~ ,t-. ,/ _,/ /, _3 7~
'éJffe&~ ~
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'f~~ /4 fa)/4,<,T>
Comwúdade Parateca (BA) i ~

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( ( /i ti ,.J( , , ~ ~ (V\, 9 { u11~~
Comwúdade Pau D'arco (BA) -l_j (j_j--(.)Y,Y/V

ComonidadeBananal(BA)~c, ~
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Comunidade Entre Rios (MA) · ol)/J»u 'o... ~~~<:~ ·

Comunidade Sóassim (MA)


~? u.Pf>-êct~ w so: "fJOpt,f.l:,
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Comunidade Santo Antônio (MA) //fa,,J ,/,;1.L,._ /ÍDoÊ {)L_f:.i'iJ
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Comunidade Pitoró dos Pretos (MA) , ~Oo.J?, µ~ ~ ~ ~ , r ' J ? t J}1.o.,


Comunidade Tingidor (MA) ~ :fv ci,,,,~ ~<~~
Comunidade Guaraçiaba (M:A) if} 01')1.A• t~ ~ 1}1 c.../1A., .._ S . 5 o..... ltt ~

Comunidade Saco das·Almas (MA) . /:;/b 1 ~~ c::Ç"'/2C

. e - _ , ,,,!,.., IDo t N ~
Comunidade Santa Cruz (MA) WJ--(VV(_,,V'-V'-U'- \2/"--

Comunidade Jamary (MA)

-
c,JJCJ!,~O
Comunidade Santa Joana (M.A) ,:i)
Comunidade São Benedito (MS) (~~ ~

Movimento Negro Unificado {;µ~ W ~


Centro de Cultura Negra do Maranhão ~

Grupo de Trabalho e Estudos Zumbi/ MS '


Grupo Cultural Níger Okárn/ BA

Comissão Pastoral da Terra

Comissão Pró-Índio de São Paulo i C.Í "'-Í /1.Jt. •·1i1 · dt

Endereço para contato:

Secretaria Executiva

ses Ed. Goiás, sala 4JS CEP 70.317-900- Brasilia - DF

Telefax: 061-3237326
DEt:ttETO DE "?,o DE N vVE:f\'\~Ro DE 199s.

Institui Grupo de Trabalho lntenninistcriaJ, com a


finalidade de desenvolver políticas para a valorização da
População Negra, e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84,


inciso VI, da Consliluição,
DECRETA:

ArL 1º Fica instituído Grupo de Trabalho lntenninistcrial com a finalidade de


desenvolver p~lfücas para a vaJorização da População Negra.

Art. 2º Compete ao Grupo de Trabalho:

I - propor ações integradas de combate à discriminação racial, visando ao


desenvolvimento e à participação da População Negra;

II - elaborar, propor e promover políticas governamentais antidiscriminatórias e de


consolidação da cidadania da População Negra;

íll - estimular e apoiar a elaboração de estudos atuali1..a.dos sobre a situação da População


Negra;
IV • reunir. sistematizar, avaliar e divulgar infonnaçõcs relevantes para o
desenvolvimento da População Negra;

V • incentivar e apoiar ações de iniciativa privada que contribuam para o


desenvolvimento da População Negra;

VI • cstnbcleccr diálogo permanente com instituições e cnlidadcs, incluídas as do


movimento negro, nacionais e internacionais, cujos objetivos e atividades possam trazer contribuições
relevantes para as questões da População Negra e seu desenvolvimento:

VII - estimular os diversos sistemas de produção e coleta de infonnaçõcs sobre a


População Negra;

VIII - contribuir para a mobilização de novos recursos para programas e ações na criação
de mecanismos cíir icnr<'s t: p<·• 111:11,entcs na defesa contra o racismo e em áreas de interesse da
População Negra . .1 1n , i:~ .•:ur,1.:ri r prioridade para otimizar sua aplicação;
IX - estimular e apoiar iniciativas públicas e privadas que valorizem a presença do negro
nos meios de comunicação;

X - examinar a legislação e propor as mudanças necessárias. buscando promover e


consolidar a cidadania da População Negra:
XI - estabelecer mecanismos de diálogo e colaboração com os Poderes Legislativo e
Judiciário. com o propós!to de promover a cidadania da População Negra.

Art. 3º O Grnpo de Trabalho será integrado por:

1 - oito membros da sociedade civil, ligados ao Movimento Negro;

Il - um representante de cada Ministério a seguir indicado:

a) da Justiça;
b) da Cultura:
e) da Educação e do Desporto;
d) Extraordinário dos Esportes;
e) do Planejamento e Orçamento;
f) das Relações Exteriores;
g) da Saúde:
h) do Trabalho;

III - um representante da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República.

§ l º Os membros do Grupo de Trabalho serão designados pelo Presidente da República.

§ 2º O representante do Ministério da Justiça será o Presidente do Grupo de Trabalho,


que submeterá os resultados das atividades desenvolvidas pelo colegiado ao exame do respectivo
Ministro de Estado.

§ 3º As funções dos membros do Grupo de Trabalho não serão remuneradas e seu


exercício será considerado serviço público relevante.

Art. 4(> O Grupo de Trabalho poderá convidar outros reprc.c;entantes cuja colaboração
seja necessária ào cumprimento de suas atribuições.

Art. 5(> As despesas dccom~ntes do disposto neste Decreto correrão à conta das dotações
orçamentárias dos órgãos da /\dministraç.1o Pública Federal que integram o Gmpo de Trabalho.

,\11. (," O ~\lini:a!;rio da Justiça assegurará o apoio técnico e administrativo indispensável


ao funcionamento do (irupo tk Trabalho.

Art. 7º Este Decreto entra cm vigor na data de sua publicação.

de 1995; 174º da Independência e 107º da República.

O-GTI(4)
,.,
COORDENAÇAO ORGANIZADORA NACIONAL
Comunidades Negras rurais: FrechaJ/MA, Rio das Rãs/BA
Kalunga/GO, Furnas do Dionísio/MS, Furnas da Boa Sorte/MS
Mimbó/PI, CCN/MA, MNU, APN's, TEZ/MS, Coisa de Nêgo/PI, CPT
,_140 UERJ 01re1tos
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*
PARTIDO DOS TRABAUIADORES
Dir~toriO Nacional

A
~
~PCdoB PDT

EXMO. SR. MINISTRO PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

“Eu gostaria de ter dito aos brancos, já na época da estrada: ‘Não


voltem à nossa floresta! Suas epidemias xawara já devoraram aqui o
suficiente de nossos pais e avós! Não queremos sentir tamanha
tristeza de novo! Abram os caminhos para seus caminhões longe da
nossa terra!’. Mas não ousei me dirigir a eles. Eu ainda era jovem
demais e tinha pouco conhecimento. Não sabia o que é defender a
floresta. Não sabia como fazer ouvir minha voz nas cidades. Foi
apenas mais tarde, depois de a estrada ter rasgado a floresta, que
comecei a pensar com mais firmeza. Comecei a sonhar cada vez
mais com a floresta que Omama criou para nós e, pouco a pouco,
suas palavras aumentaram e se fortaleceram dentro de mim.”
(Davi Kopenawa, A Queda do Céu: palavras de um xamã
Yanomami)1

ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL – APIB,


organização indígena que representa os povos indígenas do Brasil, sediada à SDS, Ed. Eldorado,
sala 104, Brasília/DF, CEP 70.392-900, neste ato representado por sua Coordenadora Executiva
SONIA GUAJAJARA (art. 231 e 232 da CF/88), brasileira, indígena do Povo Guajajara,
divorciada, portadora do CPF n° 937.121.626-34 e da Cédula de Identidade RG n° 018075982001-
6 SSP-MA (docs. 01 a 03); PARTIDO SOCIALISTA BRASILEIRO – PSB, partido político
com representação no Congresso Nacional e devidamente registrado no Tribunal Superior

1 Davi Kopenawa; Bruce Albert. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São
Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 310.

SDS, Ed. Eldorado, sala 104, Brasília – DF – CEP 70.392-900


Telefone (61) 3034-5548 / E-mail: [email protected]
Eleitoral, inscrito no CNPJ/MF sob o nº 01.421.697/0001-37, com sede na SCLN 304, Bloco A,
Sobreloja 01, Entrada 63, Brasília/DF, CEP 70736-510 (docs. 04 a 08); PARTIDO
SOCIALISMO E LIBERDADE – PSOL, partido político com representação no Congresso
Nacional e devidamente registrado no Tribunal Superior Eleitoral, inscrito no CNPJ sob o n°
06.954.942/0001-95, com sede no SCS, SC/SUL, Quadra 02, Bloco C, n° 252, 5º andar, Edifício
Jamel Cecílio, Asa Sul, Brasília/DF (docs. 04, 09 a 11); PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL
– PCdoB, partido político com representação no Congresso Nacional e devidamente registrado no
Tribunal Superior Eleitoral, inscrito no CNPJ sob o n° 54.956.495/0001-56, com sede no SHN,
Quadra 2, Bloco F, n° 1.224, Edifício Executivo Office Tower, Asa Norte, Brasília/DF (docs. 04,
12 a 16); REDE SUSTENTABILIDADE – REDE, partido político com representação no
Congresso Nacional e devidamente registrado no Tribunal Superior Eleitoral, inscrito no CNPJ sob
o n° 17.981.188/0001-07, com sede no Setor de Diversões Sul, Bloco A, salas 107/109, Ed.
Boulevard Center, CONIC, Asa Sul, Brasília/DF, CEP 70391-900 (docs. 04, 17 a 19); PARTIDO
DOS TRABALHADORES – PT, partido político com representação no Congresso Nacional e
devidamente registrado no Tribunal Superior Eleitoral, inscrito no CNPJ sob o n°
00.676.262/0001-70, com sede em Setor Comercial Sul, Quadra 02, Bloco C, n° 256, Ed. Toufic,
1º andar, Brasília/DF (docs. 04, 20 a 22); e PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA –
PDT, partido político com representação no Congresso Nacional e devidamente registrado no
Tribunal Superior Eleitoral, inscrito no CNPJ sob o n° 00.719.575/0001-69, com sede no SAFS,
Quadra 2, Lote 3, CEP 70042-900, Brasília/DF (docs. 04, 23 a 25); vêm, por seus advogados
abaixo assinados (procurações e substabelecimentos em anexo), com fundamento no disposto no
art. 102, § 1º, da Constituição Federal e nos preceitos da Lei nº 9.882/1999, propor

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL


com pedido de medida liminar

a fim de que sejam adotadas as providências listadas ao final, voltadas ao


equacionamento de graves lesões a preceitos fundamentais desta Constituição, relacionadas às
falhas e omissões no combate à epidemia do novo coronavírus entre os povos indígenas
brasileiros.

2
–I–
Introdução

1. A pandemia da COVID-19 vem afetando dramaticamente a vida de toda a população


brasileira, com dezenas de milhares de mortos, mais de um milhão de pessoas contaminadas,
gravíssima crise econômica e sofrimento generalizado. Porém, os danos e riscos para os povos
indígenas são ainda maiores do que para o restante da população. Existe a possibilidade real de
extermínio de etnias inteiras, sobretudo de grupos isolados ou de recente contato. Outros povos
indígenas estão sendo também afetados de modo desproporcional. A irresponsabilidade sanitária
do governo federal – que, mesmo depois de 55 mil mortos no país, continua tratando o coronavírus
como “gripezinha”, com indiferença e negacionismo científico – se aliou ao aberto racismo
institucional contra os povos indígenas, para gerar uma verdadeira tragédia civilizacional. Está em
curso um genocídio! E vidas indígenas importam!

2. Diante desse quadro aterrador, os povos indígenas do Brasil não poderiam ficar inertes.
Protagonistas da sua própria história, eles vêm, através da entidade nacional que os representa – a
APIB –, e coadjuvados pelos partidos Arguentes, defender perante esta Suprema Corte o mais
básico dos seus direitos constitucionais: o direito de existir.

3. O Brasil possui atualmente pelo menos 305 povos indígenas, que se utilizam de 274
línguas diferentes. Segundo o último censo demográfico, realizado em 2010, 896 mil pessoas se
declararam ou se consideraram indígenas neste país. Isso demonstra a diversidade étnica e cultural
da República Federativa do Brasil, que é uma das nossas maiores riquezas. São diferentes
cosmovisões, culturas, modos de fazer e viver, relações com a natureza – em geral, muito
superiores às da sociedade ocidental. Essa riqueza insuperável, patrimônio das presentes e futuras
gerações, encontra-se hoje gravemente ameaçada.

4. Infelizmente, o dramático fenômeno do extermínio indígena causado por doenças “dos


brancos” não é novo. Como afirma Eduardo Galeano, as bactérias e os vírus foram os aliados mais
eficazes dos europeus na “conquista da América”.2 As cruéis estratégias coloniais de dominação,

2 Cf. Eduardo Galeano. Las venas abiertas de América Latina. 23ª ed. 5ª reimp. Buenos Aires: Catálogos, 2007, p. 35.
Veja-se também: Tzvetan Todorov. A conquista da América: a questão do outro. Trad. Beatriz Perrone Moi. 2ª ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1993.

3
aliadas à baixa imunidade dos povos indígenas a doenças como varíola, sarampo, tuberculose e
gripe, custaram a vida de milhões de indígenas, com a dizimação de inúmeros grupos.3

5. Essa dinâmica de morte teve continuidade ao longo da história nacional. No século XX,
os contatos interétnicos acarretaram mais epidemias e óbitos em massa, com impactos quase tão
graves como os do início da colonização.4 Ao estudar os efeitos da “gripe espanhola” de 1918
sobre os povos indígenas, Darcy Ribeiro descreve como a marcha da epidemia atingiu, muitos
anos depois de sua eclosão, populações inteiras, mesmo nos lugares mais distantes: “Muito mais
letais foram as formas graves de gripe, como aquela que, com o nome de “espanhola”, grassou
por todo o país a partir de 1918, fazendo vítimas em toda a população. Os relatórios do SPI
referentes àquele período mostram claramente a marcha da epidemia, que, começando pelos
grupos vizinhos das grandes cidades, prosseguiu sempre com a mesma violência até alcançar
tribos arredias nos confins das regiões mais afastadas. Ainda em 1922 chegavam ao SPI notícias
de malocas inteiras dizimadas na Amazônia pela “espanhola”, que as atingira com cinco anos de
atraso”.5

6. Nas décadas seguintes, as doenças continuaram impactando as populações indígenas,


inclusive, por vezes, de modo não acidental. O Relatório Figueiredo, de 1967, denunciou as
guerras bacteriológicas contra alguns grupos, como os Pataxó Hã-Hã-Hãe (BA), com milhares de
mortes em razão de introdução de varíola nas aldeias.6 Segundo a Comissão Nacional da Verdade
(CNV), durante a ditadura militar, as doenças trazidas pelos brancos causaram danos severos em
diversos grupos, como os Tapayuna (MT), Parakanã (PA), Guarani Kaiowá (MS), Xavante (MT),
Nambikwara (MT), Panará (PA) e Yanomami (RR), entre outros.7

7. No atual momento de pandemia da COVID-19, vários fatores contribuem para o


agravamento da situação e dos riscos para os povos indígenas brasileiros, notadamente: o ingresso

3
Cf. Manuela Carneiro da Cunha. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Editora Claro Enigma,
2012, p. 14-15.
4
No período de 1910 a 1967, o aumento do contato entre indígenas e não indígenas no interior brasileiro gerou a
disseminação de doenças como gripe e sarampo. Nesse sentido: BRASIL. Fundação Nacional de Saúde. Política
Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde,
2002, p. 07. Disponível em <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_saude_indigena.pdf>. Acesso em: 13
jun. 2020.
5 Darcy Ribeiro. Os índios e a civilização: A integração das populações indígenas no Brasil moderno. 6ª reimp. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 308.
6 Disponível em: <http://www.docvirt.com/docreader.net/docmulti.aspx?bib=museudoindio&pagfis=>.
7 Cf. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Vol. II. Texto 5. Violações de Direitos Humanos dos
Povos Indígenas.

4
e a presença impune de invasores em suas terras – como garimpeiros e madeireiros –, estimulados
por políticas governamentais e pelo discurso de ódio do próprio Presidente da República; a maior
vulnerabilidade socioepidemiológica dos indígenas; as dificuldades logísticas para tratamento da
doença em localidades remotas; as graves deficiências já existentes do sistema de saúde indígena;
e as falhas e omissões de órgãos estatais nas políticas públicas específicas para enfrentamento do
COVID-19, notadamente da Secretaria de Saúde Indígena (SESAI), vinculada ao Ministério da
Saúde, e da Fundação Nacional do Índio (Funai).

8. De acordo com o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena da APIB,8 até o dia
27 de junho de 2020, o país registrava 378 indígenas falecidos, 9166 infectados e 112 povos
atingidos pelo vírus. Existe – é certo – grande discrepância entre esses números e os dados oficiais
da Secretaria Especial de Saúde Indígenas, em razão da enorme subnotificação de casos no âmbito
do governo federal. É que a SESAI está contabilizando apenas os casos ocorridos dentro de terras
indígenas, e, além disso, existem graves falhas e inaceitável morosidade na alimentação dos seus
dados.

9. Na verdade, o vírus está se alastrando com grande rapidez entre os povos indígenas. À
medida que a epidemia se interioriza – como vem ocorrendo –, os números de contaminados e de
óbitos tendem a aumentar drasticamente. Com base nos dados da APIB, verifica-se que o índice
de letalidade da COVID-19 entre povos indígenas é de 9,6%, enquanto que, entre a população
brasileira em geral, é de 5,6%.

10. O cenário de risco gravíssimo para os povos indígenas tem sido ressaltado, desde o
início da pandemia, por pesquisadores que trabalham com a temática da saúde indígena. O Núcleo
de Métodos Analíticos para Vigilância em Saúde Pública, em conjunto com o Grupo de Trabalho
sobre Vulnerabilidade Sociodemográfica e Epidemiológica dos Povos Indígenas no Brasil à
Pandemia de COVID-19 – ambos integrados pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e por
outras instituições –, publicou o relatório “Risco de espalhamento da Covid-19 em populações
indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e sociodemográfica”.9
No estudo, destacou-se a especial vulnerabilidade dos povos indígenas diante da COVID-19:

8
O Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena foi criado pela APIB ao final da Assembleia Nacional da
Resistência Indígena, realizado entre os dias 08 e 09 de maio de 2020. O grupo reúne ativistas e comunicadores
indígenas que coletam diariamente dados das organizações locais e comunidades indígenas sobre o avanço da
pandemia nas terras indígenas e indígenas que estão fora de seus territórios.
9
Grupo formados pelos (as) seguintes pesquisadores (as): Aline Diniz Rodrigues Caldas, Ana Lúcia Pontes, Andrey
M. Cardoso, Bárbara Cunha e Ricardo Ventura Santos. FIOCRUZ. Risco de espalhamento da COVID-19 em
populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e sociodemográfica. 4º relatório

5
“Em geral, os resultados do Censo indicam condições de desvantagem dos
indígenas em comparação à população não indígena em inúmeros indicadores
sociodemográficos e sanitários, com destaque para as populações residentes nas
Terras Indígenas (TI), nas quais se observa, por exemplo, menor proporção de
escolaridade formal, menor cobertura de saneamento e elevada mortalidade
precoce. [...] A vulnerabilidade sociodemográfica e sanitária da população
indígena tem sido também evidenciada em inúmeros estudos, com destaque para
o Primeiro Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas
(Coimbra et al. 2013). Os resultados desta investigação, a mais ampla já
realizada no país, indicaram níveis de desnutrição, diarreia e anemia em
crianças, além de sobrepeso/obesidade e anemia em mulheres mais
pronunciadas do que na população brasileira. Questões ligadas à
sustentabilidade alimentar, atenção à saúde e garantia dos territórios, além de
inúmeros problemas associados à invasão e contaminação ambiental por
atividades garimpeiras e agropecuárias, têm sido apontadas como centrais na
determinação dos perfis de desigualdade apresentados pela população indígena
no Brasil.
[...]
Globalmente, povos indígenas são altamente vulneráveis às infecções
respiratórias agudas (La Ruche et al., 2009; Flint et al., 2010). Nos séculos
anteriores, há registros de que a introdução de diferentes vírus, como os do
sarampo, da varíola e da influenza, levaram a grandes epidemias e até ao
extermínio de alguns povos indígenas no Brasil. Evidências recentes confirmam
que a introdução de vírus respiratórios em comunidades indígenas suscetíveis
apresenta elevado potencial de espalhamento, resultando em altas taxas de
ataque e de internações, com potencial de causar óbitos, como foi o caso da
Influenza A (H1N1)pdm09 e do Vírus Sincicial Respiratório, em 2016 (Cardoso
et al., 2019). Mesmo fora dos períodos epidêmicos, as infecções respiratórias
agudas se situam entre as principais causas de morbidade e mortalidade em
populações indígenas, afetando sobretudo o segmento infantil. Também no caso
das infecções respiratórias agudas, determinantes sociais estão estreitamente
associados a esse perfil”

11. Em estudo conjunto da UFMG e do Instituto Socioambiental, intitulado “Modelagem de


vulnerabilidade dos povos indígenas no Brasil ao covid-19”, destacou-se:

“A perspectiva da Covid-19 entrar em comunidades indígenas pode representar


um cenário devastador. Uma alta porcentagem da população indígena pode ser

sobre risco de espalhamento da COVID-19 em populações indígenas. Disponível em


<https://portal.fiocruz.br/documento/4o-relatorio-sobre-risco-de-espalhamento-da-covid-19-em-populacoes-
indigenas>.

6
impactada devido à alta transmissibilidade da doença, vulnerabilidade social de
populações isoladas e limitações relacionadas com a assistência médica e
logística de transporte de enfermos. A possibilidade de subnotificação das
populações indígenas e a falta de vigilância dos vetores de dispersão da doença
podem impactar seriamente a capacidade de controlar a transmissão da Covid-
19. Além da mortalidade populacional, a diminuição da integridade
socioeconômica pode reduzir ainda mais a capacidade dos povos indígenas em
lidar com a crescente fragilização das políticas públicas de saúde e proteção
territorial.”10

12. Tal estudo concluiu que, dentre as terras indígenas (TIs) com maior vulnerabilidade,
figuram os territórios Yanomami e Vale do Javari – este último a área com o maior número de
povos indígenas isolados no país, o que evidencia o risco de extermínio integral de etnias hoje
enfrentado.

13. Em nota pública, a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal


também alertou para o descaso com a saúde indígena durante a pandemia. A falta de transparência
do Estado, a subnotificação de casos e a ausência de uma política coordenada e integral dos órgãos
de responsáveis pela política de saúde são algumas das constatações. O órgão ressalta que as
instituições públicas, sobretudo a FUNAI e a SESAI, devem atuar “para que o contexto da
pandemia da covid-19 não se transforme em um episódio de “genocídio consentido das
populações indígenas pelo Estado brasileiro”.11

14. Diversos órgãos internacionais vêm também advertindo para a necessidade de proteção
especial para os povos indígenas no contexto da pandemia do coronavírus. Nessa linha, o Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos expediu diretrizes para o
enfrentamento da COVID-19, destacando medidas que devem ser adotadas em relação aos povos
indígenas:

“Os Estados devem levar em conta que os povos indígenas utilizam um conceito
diferente de saúde, que compreende a medicina tradicional, e devem consultar e
considerar o consentimento prévio e informado destes povos com vistas à
elaboração de medidas preventivas para impedir o COVID-19.

10
Disponível eletronicamente em:
<https://www.socioambiental.org/sites/blog.socioambiental.org/files/nsa/arquivos/nota_tecnica_modelo_covid19.pdf#
overlay-context=pt-br/noticias-socioambientais/vulnerabilidade-social-e-motor-da-pandemia-de-covid-19-em-terras-
indigenas-mostra-estudo>.

7
Os Estados devem impor medidas que regulem o acesso de pessoas ao território
indígena, em consulta e colaboração com os povos interessados, especialmente
com suas instituições representativas.
Em relação aos povos indígenas que vivem em isolamento voluntário ou na fase
inicial de contato, os Estados e outros agentes devem considerá-los como grupos
populacionais especialmente vulneráveis. As barreiras que forem implantadas
para impedir o acesso de pessoas de fora de seus territórios devem ser
gerenciadas rigorosamente, a fim de evitar qualquer contato.”12

15. A Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), por sua vez, emitiu
comunicado aos Estados-membros, instando-os a prestarem especial atenção às populações
indígenas durante a crise de saúde causada pelo COVID-19. Devido à dupla situação de
vulnerabilidade das comunidades indígenas, resultantes de sua marginalização histórica e do seu
isolamento geográfico, “as autoridades locais, regionais e nacionais de cada Estado Membro a
trabalhar em coordenação com protocolos específicos que visam garantir a saúde e o bem-estar
de sua população indígena desde uma perspectiva intercultural, conforme contemplado na
Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas das Nações Unidas, aprovada em 2007, e na
Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas da Organização dos Estados
Americanos, aprovado em 2016”.13

16. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ao seu turno, expediu a Resolução n°


01/2020 sobre ‘Pandemia e Direitos Humanos nas Américas’,14 reconhecendo que grupos em
situação de especial vulnerabilidade, como os povos indígenas, sentem mais fortemente os
impactos do vírus, dada a realidade desigual e de violência generalizada a que estão submetidos.
Por isso, a CIDH recomenda aos Estados as seguintes medidas:

“54. Proporcionar informação sobre a pandemia em seu idioma tradicional,


estabelecendo, quando for possível, facilitadores interculturais que lhes
permitam compreender de maneira clara as medidas adotadas pelo Estado e os
efeitos da pandemia.

11
Disponível eletronicamente em <http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/em-nota-publica-mpf-alerta-sobre-
descaso-com-a-saude-indigena-durante-pandemia-da-covid-1>.
12
ONU. Oficina do Alto Comissionado das Nações Unidas. Directrices Relativas a la COVID-19, p. 8. Genebra, 14 de
abril de 2020. Disponível eletronicamente em: <https://www.ohchr.org/Documents/Events/COVID-
19_Guidance_SP.pdf>.
13
Disponível eletronicamente em: <https://www.oas.org/es/centro_noticias/comunicado_prensa.asp?sCodigo=C-
029/20>.
14
Disponível eletronicamente em: <https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf>.

8
55. Respeitar de forma irrestrita o não contato com os povos e segmentos de
povos indígenas em isolamento voluntário, dados os gravíssimos impactos que o
contágio do vírus poderia representar para sua subsistência e sobrevivência
como povo.
56. Extremar as medidas de proteção dos direitos humanos dos povos indígenas
no contexto da pandemia da COVID-19, levando em consideração que estes
coletivos têm direito a receber uma atenção à saúde com pertinência cultural,
que leve em conta os cuidados preventivos, as práticas curativas e as medicinas
tradicionais.
57. Abster-se de promover iniciativas legislativas e/ou avanços na
implementação de projetos produtivos e/ou extrativos nos territórios dos povos
indígenas durante o tempo que durar a pandemia, em virtude da impossibilidade
de levar adiante os processos de consulta prévia, livre e informada (devido à
recomendação da OMS de adotar medidas de distanciamento social) dispostos
na Convenção 169 da OIT e outros instrumentos internacionais e nacionais
relevantes na matéria.”

17. Por constatarem o crescimento exponencial da pandemia entre os povos indígenas da


Amazônia, a ONU e a Comissão Interamericana divulgaram comunicado conjunto, em que
advertiram que os Estados “devem aumentar as medidas para proteger os povos indígenas contra
o COVID-19, tanto no nível de contágio quanto nos impactos sobre seus direitos associados à
pandemia”. Como bem destacou a declaração conjunta:

“Enquanto os sistemas nacionais de saúde enfrentam sérias dificuldades em dar


uma resposta efetiva, o coronavírus tornou mais evidente a ausência histórica
ou presença limitada do estado em muitos territórios e sua capacidade
insuficiente para atender às necessidades desses povos, levando também em
consideração seus conhecimentos ancestrais, práticas de cura e medicamentos
tradicionais, a partir de uma abordagem intercultural.
A pandemia também destacou a importância de garantir que os povos indígenas
possam exercer seu autogoverno e autodeterminação. Portanto, é essencial que
os Estados garantam a participação dos povos indígenas por meio de suas
entidades representativas, líderes e autoridades tradicionais na formulação e
implementação de políticas públicas para enfrentar o alto risco de extinção
física e cultural dos povos indígenas amazônicos.
Nesse sentido, exortamos os Estados a respeitarem as medidas de auto-
isolamento adotadas pelos povos indígenas - sejam elas tradicionais ou
resultantes da pandemia, como os cordões sanitários -, bem como a fornecer-
lhes material de proteção individual de maneira segura. Também é de extrema
importância compartilhar com os povos indígenas informações culturalmente
apropriadas e em seus próprios idiomas ou dialetos, que sejam verdadeiras e
oportunas em relação à contingência.

9
[...]
Numa etapa seguinte, as medidas de mitigação e recuperação de danos devem
valorizar em seu projeto, implementação e avaliação as prioridades de
desenvolvimento dos povos indígenas [...]. É especialmente importante que os
Estados garantam processos de consulta prévia, livre e informada,
culturalmente apropriados e de boa fé para os povos e comunidades indígenas
sobre qualquer nova política de recuperação que possa afetar seus direitos e
interesses legítimos”

18. Todos esses atos e recomendações internacionais apontam claramente as obrigações dos
governos nacionais de garantir os direitos dos povos indígenas durante a pandemia. Elas se
baseiam no Direito Internacional dos Direitos Humanos, mas são plenamente convergentes com a
Constituição de 1988, que além de proteger os direitos fundamentais à vida (art. 5°, caput) e à
saúde (arts. 6º e 196), consagra o direito dos povos indígenas a viver em seus territórios, de acordo
com os seus costumes e tradições (art. 231).

19. Lamentavelmente, o Estado brasileiro vem falhando gravemente no seu dever de


proteger a saúde dos povos indígenas diante da COVID-19, gerando o risco de extermínio de
muitos grupos étnicos. São inúmeras e crescentes as invasões de territórios tradicionais – bem
detectadas pela devastação ambiental nas áreas –, em que os não indígenas se tornaram o principal
veículo de propagação do vírus nas comunidades autóctones. Na terra Yanomami, por exemplo, há
cerca de 20.000 garimpeiros, que representam um risco enorme para a vida dos integrantes daquela
etnia. O Estado vem se omitindo intencionalmente no seu dever de proteger esses territórios
indígenas – inclusive aqueles em que vivem povos isolados ou de recente contato –, abstendo-se
de impedir e de reprimir invasões, que tantos riscos ocasionam.

20. Pior ainda: muitas vezes, é o Estado que causa ativamente a disseminação do vírus entre
povos indígenas. Como bem destacou a APIB:

“O primeiro caso confirmado de contaminação por Covid-19 entre indígenas


brasileiros foi de uma jovem de 20 anos do povo Kokama, no dia 25 de março,
no município amazonense Santo Antônio do Içá. O contágio foi feito por um
médico vindo de São Paulo a serviço do Governo Federal pela Secretaria
Especial de Saúde Indígena (SESAI), que estava infectado com o vírus. Devido a
falta de adoção de medidas preventivas do Governo, atualmente o povo Kokama
é o mais afetado em casos de mortes, com 57 indígenas mortos e a região do
Alto Rio Solimões, local dos primeiros casos de transmissão da doença, é o local
com maior número de indígenas contaminados no Brasil.

10
A chegada do vírus na região com o maior número de povos em isolamento
voluntário e de recente contato no mundo, o Vale do Javari, no estado do
Amazonas, também aconteceu através de agentes de saúde do Governo Federal,
que entraram no território sem a adoção das medidas de proteção necessárias.
No Parque do Tumucumaqui, uma região isolada e de difícil acesso entre os
estados do Amapá e Pará, foram militares do Exército que levaram o vírus para
a região.”15

21. E não é só. Com seu discurso assimilacionista e inconstitucional, francamente contrário
ao direito dos povos indígenas aos seus territórios tradicionais, o governo tem incentivando
ativamente invasões criminosas em terras indígenas, que cresceram exponencialmente na gestão
do Presidente Jair Bolsonaro. Nessa linha de incentivo às invasões, além de manifestações
frequentes e odiosas do Presidente, deve ser também citada a edição, em plena pandemia, da
Instrução Normativa nº 09 da Funai,16 que favorece o desrespeito aos direitos territoriais dos povos
indígenas.

22. Por outro lado, a SESAI – como dito, órgão encarregado da saúde indígena no país –
adotou o entendimento absolutamente discriminatório e inconstitucional de apenas prestar
atendimento aos indígenas aldeados, que vivem em TIs homologadas. Isso exclui tanto os índios
que habitam terras em processo de demarcação – e convém lembrar que o governo paralisou todos
os processos demarcatórios, cumprindo sua hedionda e inconstitucional promessa de campanha de
não demarcar mais “nem um centímetro de terras indígenas” –, como também os que vivem em
contexto urbano, mas que não se despem da sua identidade étnica por conta disso. É preciso afastar
essa orientação, para proteger todos os indígenas brasileiros, especialmente no contexto da
pandemia do COVID-19.

23. Não bastasse, a SESAI e a FUNAI, que já vinham sendo sucateadas desde muito antes,
não formularam políticas públicas adequadas para o enfrentamento da pandemia para os povos
indígenas brasileiros, e têm se abstido de adotar medidas concretas minimamente suficientes para a
garantia do direito à saúde dos povos indígenas diante da pandemia.

15
APIB. Emergência Indígena: Plano de enfrentamento da Covid-19 no Brasil: uma proposta, 2020, p. 03.
16
A Instrução Normativa nº 9, de 16 de abril de 2020, editada em plena pandemia, assegura a certificação de imóveis
para posseiros, grileiros e loteadores em terras indígenas ainda não formalmente homologadas. A APIB escreveu uma
nota técnica a esse respeito. Disponível eletronicamente em: <apib.info/2020/04/28/nota-tecnica-a-instrucao-
normativa-da-funai-no-092020-e-a-gestao-de-interesses-em-torno-da-posse-de-terras-publicas/>

11
24. É verdade que a SESAI até elaborou um plano de contingência – o chamado “Plano de
Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus (Covid-19) em Povos
Indígenas”. Mas se trata de documento que, além de formulado sem qualquer participação dos
povos indígenas, à revelia do que dispõe a Convenção nº 169 da OIT, é absolutamente vago, sem
medidas concretas, e não vem sendo operacionalizado de forma minimamente adequada.

25. Nesse cenário, cientes da violação dos seus direitos mais básicos, os povos indígenas
vêm protestando. Foi o que fez a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia
Brasileira (COIAB). Em 10 de junho de 2020, após coletiva de imprensa da SESAI, que se
limitara a fazer propaganda enganosa de ações não comprovadas do governo em favor dos povos
indígenas, a COIAB emitiu nota para denunciar o avanço do coronavírus em direção às terras
indígenas e os riscos de contaminação dos territórios.17 No documento, a entidade ressalta que os
planos até agora elaborados não contaram com qualquer participação das entidades
indígenas, e denuncia a tentativa da SESAI de mascarar os dados reais acerca da contaminação de
indígenas pela COVID-19. Afirma, ainda, que as equipes de saúde estão despreparadas e entram
em área sem sequer cumprir a quarentena, em flagrante desrespeito às estratégias de isolamento
das próprias comunidades. Na corajosa nota, a dramaticidade do quadro não impediu o uso da
ironia:

“Mas em um ponto concordamos com o Secretário, este Governo de fato age de


forma integrada. Desde o início deste Governo, vimos o aumento drástico das
invasões em nossas terras, incentivadas pelos discursos do Presidente. Vimos a
Amazônia pegar fogo, enquanto o Governo se preocupava em proteger o
agronegócio e negar os dados da destruição da floresta. Vimos o ministério do
Meio Ambiente afrouxar a legislação ambiental e as ações de fiscalização.
Vemos as tentativas do Governo Federal legalizar a invasão dos nossos
territórios ao querer liberar a mineração e o arrendamento. Vimos o Ministério
da Justiça e Segurança Pública devolver à Funai para revisão estudos de
identificação e delimitação de Terras Indígenas já aprovados. Vimos a Funai
editar medidas que restringem a atuação de servidores em áreas não
homologadas e editar a IN 09/2020 legalizando a grilagem ao reconhecer
registro de terras privadas em cima das Terras Indígenas e áreas interditadas
com presença de povos isolados. Vimos a tentativa de extinguir a Sesai e sua
lenta desestruturação. Vimos, ontem, o Presidente da Funai dizer que é um
“problema social” a retirada dos garimpeiros da TI Yanomami, dando a
entender que a solução é regularizar o garimpo e o Secretário Especial de

17 Nota de resposta da COIAB. Disponível eletronicamente em: <https://coiab.org.br/conteudo/nota-de-resposta-


1591829458756x252157512144388100>.

12
Saúde Indígena afirmar que a Sesai vai continuar discriminando indígenas que
vivem nas cidades.
Diferente do que foi falado ontem na coletiva de imprensa, até agora a resposta
da Funai e da Sesai à Covid-19 tem sido lenta, descoordenada e insuficiente. A
Covid-19 entrou nas Terras Indígenas e está se espalhando rapidamente.
Estamos à beira do caos, enquanto o Presidente da Funai e o Secretário da
Sesai comemoram a vitória sobre o coronavírus e se gabam de um suposto
trabalho bem feito. Mascarar a realidade não vai resolver o problema!
O governo está distante do que os povos indígenas têm demandando e alertado.
Sabemos que existem bons profissionais nos órgãos públicos fazendo o possível,
e até o impossível, nas pontas, mas é necessário que Funai, Sesai e Forças
Armadas de fato elaborem e implementem um plano sério para salvar vidar e
impedir efetivamente o avanço da Covid19 em nossos territórios. A
vulnerabilidade que tanto atribuíram ontem aos povos indígenas não é inata, ela
é resultado do descaso do Estado e se reflete na alta letalidade da Covid-19
entre os indígenas Segundo os dados da Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil, a letalidade da Covid-19 entre povos indígenas chega a 8,8%, enquanto
entre a população brasileira geral é de 5,1%.
Alertamos que estamos em uma batalha diária para sobreviver, não só ao
Covid-19, mas ao desmonte das políticas indigenistas e da demarcação e
proteção dos nossos territórios, ao avanço da cobiça às nossas terras e nossas
vidas, aos assassinatos de lideranças, às medidas legislativas anti-indígenas do
Governo Federal. Depois de resistirmos ao Covid-19, não é essa a
“normalidade” do país que aceitaremos!”

26. Para o enfrentamento dessa gravíssima situação, os Arguentes propõem medidas, que
serão mais bem especificadas e justificadas adiante, notadamente:

(i) a determinação à União Federal de que imponha imediatamente barreiras


sanitárias que efetivamente protejam os territórios em que habitam os povos
indígenas isolados e de recente contato;

(ii) a determinação à União Federal de que, durante a pandemia do COVID-19,


providencie o efetivo e imediato funcionamento de “Sala de Situação para
subsidiar a tomada de decisões dos gestores e a ação das equipes locais diante
do estabelecimento de situações de contato, surtos ou epidemias envolvendo os
Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato” (art. 12 da Portaria Conjunta n°
4.094/2018, do Ministério da Saúde e da Funai), que deve necessariamente
contemplar, em sua composição, representantes do Ministério Público Federal,

13
da Defensoria Pública da União e dos povos indígenas, estes indicados pela
APIB;

(iii) a determinação à União Federal de que providencie a imediata retirada de


invasores não indígenas dos territórios indígenas a seguir listados, os quais se
encontram em situação especialmente crítica de vulnerabilidade ao COVID-19
em razão da presença ilícita dessas pessoas;

(iv) a determinação de que o subsistema de saúde indígena, administrado pela


SESAI, passe a contemplar todos os indígenas no Brasil, independentemente de
serem ou não “aldeados”, e de estarem ou não em TIs homologadas;

(v) a determinação para que Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH),


com apoio técnico da Fiocruz e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva
(Abrasco), e participação dos povos indígenas – por meio de representantes
indígenas indicados pela APIB e pelos Presidentes dos Conselhos Distritais de
Saúde Indígena (CONDISIs) –, formule um plano vinculante para o Estado
brasileiro de enfrentamento do COVID-19 para os povos indígenas, a ser
apresentado no prazo máximo de 20 dias a contar do deferimento da antecipação
de tutela;

(vi) após a sua homologação, o subsequente monitoramento do cumprimento do


plano referido acima pelo CNDH, com apoio técnico e da Fiocruz e participação
de representantes dos povos indígenas – por meio de representantes indígenas
indicados pela APIB e pelos CONDISIs.

27. Antes da justificação e especificação dessas medidas, cabe demonstrar a legitimidade


ativa dos Arguentes e o cabimento da presente ADPF.

– II –
Legitimidade Ativa dos Arguentes

28. Os Arguentes PSB, PSOL, PCdoB, REDE, PT e PDT são partidos políticos com
representação no Congresso Nacional (doc. 04). Desse modo, na forma do art. 2º, inciso I, da Lei
nº 9.882/1999 c/c art. 103, inciso VIII, da Constituição, eles possuem legitimidade ativa universal
para o ajuizamento de ações de controle concentrado de constitucionalidade, inclusive a Arguição

14
de Descumprimento de Preceito Fundamental. A legitimidade ativa de tais Arguentes já é
suficiente para o conhecimento da presente ação.

29. Nada obstante, também é fundamental assentar a legitimidade ativa da APIB, que
representa os povos indígenas de todo o país. Essa legitimidade se assenta em duas razões.

30. Em primeiro lugar, trata-se de uma entidade de classe de âmbito nacional, na forma
do art. 103, inciso IX, CF/88, c/c art. 2º, inciso I, da Lei nº 9.882/1999. A interpretação desse
dispositivo não pode ficar presa à jurisprudência tradicional e defensiva do STF, que só admitia as
representações de categorias profissionais e econômicas, deixando de fora as entidades nacionais
que representam outros segmentos da sociedade, notadamente grupos vulneráveis e minorias.

31. Em segundo lugar, mesmo que assim não se entenda, a legitimidade ativa da entidade
deriva de interpretação conjugada do art. 103, inciso IX, CF/88, com o disposto no art. 232 da
Constituição, segundo o qual “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas
para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em
todos os atos do processo”. Afinal, seria profundamente ilegítimo e antidemocrático negar à
organização nacional dos povos indígenas a possibilidade de defender, perante a Suprema Corte do
país, os direitos fundamentais das próprias populações indígenas, especialmente quando se discute
o seu direito de não serem exterminadas!

32. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) é a organização que representa
nacionalmente os povos indígenas. Trata-se, aliás, da única entidade nacional de representação dos
indígenas brasileiros. De acordo com o art. 4º do seu regimento, ela é composta pelas seguintes
organizações regionais: (i) Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas
Gerais e Espírito Santo (APOINME);18 (ii) Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia
Brasileira (COIAB);19 (iii) Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL);20 (iv)
Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPIN-SUDESTE);21 (v) Conselho do Povo
Terena;22 (vi) Aty Guasu Kaiowá Guarani;23 e (vii) Comissão Guarani Yvyrupa.24 Ela está

18
Composta por povos presentes nos Estados do Piauí, do Ceará, do Rio Grande do Norte, da Paraíba, de Pernambuco,
de Alagoas, de Sergipe, da Bahia, de Minas Gerais e do Espírito Santo.
19
Abrange povos dos Estados do Amazonas, do Acre, do Amapá, do Maranhão, do Mato Grosso, do Pará, de
Rondônia, de Roraima e do Tocantins.
20
Representa povos localizados nos Estados do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul.
21
Organização que abrange povos dos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo.
22
Organização tradicional de Mato Grosso do Sul.

15
presente em mais de nove unidades da federação brasileira, satisfazendo o requisito assentado pela
jurisprudência sobre o caráter nacional da entidade.

33. Segundo seu regimento interno,25 a APIB foi criada pelo Acampamento Terra Livre
(ATL) de 2005, mobilização nacional realizada todo ano em Brasília, para tornar visível a situação
dos direitos indígenas e reivindicar do Estado brasileiro o atendimento das demandas e
reivindicações dos povos indígenas. A entidade tem por missão a “promoção e defesa dos direitos
indígenas, a partir da articulação e união entre os povos e organizações indígenas das distintas
regiões do país”.

34. Além de congregar as maiores organizações indígenas regionais de todas as partes do


país, a APIB possui reconhecimento no campo internacional, tendo ocupado lugar de destaque na
Organização das Nações Unidas (ONU), na Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) e no Parlamento Europeu, denunciando as violações dos direitos das comunidades
indígenas e retrocessos sociais na política indigenista do país. Não faria sentido que não pudesse
fazer o mesmo perante a Suprema Corte brasileira.

35. Pois bem. O acesso dos diferentes grupos presentes na sociedade à jurisdição
constitucional – especialmente os tradicionalmente excluídos – é essencial para que essa possa se
converter num campo de efetiva concretização dos direitos fundamentais. Trata-se de dar voz a
quem não tem voz. Na Colômbia, que tem provavelmente o tribunal constitucional mais avançado
em matéria de direitos humanos de todo o mundo, o fácil acesso à Corte26 é apontado como uma
das causas do êxito da instituição em se converter em um espaço privilegiado para lutas
emancipatórias.27 Na Índia, cuja Suprema Corte também tem atuação destacada em matéria da
proteção dos direitos fundamentais, foi necessária uma construção jurisprudencial extremamente
ousada para viabilizar a defesa dos direitos dos grupos mais vulneráveis. O Tribunal, sem base

23
Localizada no Estado do Mato Grosso do Sul.
24
Abrange povos dos Estados do Rio de Janeiro, de São Paulo, do Espírito Santo, do Paraná, de Santa Catarina e do
Rio Grande do Sul.
25
Disponível eletronicamente em: <http://apib.info/apib/>.
26
Na Constituição da Colômbia de 1991, qualquer cidadão pode suscitar o controle abstrato de constitucionalidade de
atos normativos na Corte Constitucional, por meio da chamada acción pública, bem como buscar a proteção dos seus
direitos fundamentais naquele tribunal, quando não houver outro meio eficaz para fazê-lo, por meio da acción de
tutela.
27
Cf. Manuel José Cepeda-Espinosa. “Judicial Activism in a Violent Context: The Origin, Role and Impact of the
Colombian Constitutional Court”. Washington University of Global Studies Law Review, vol. 03, 2004; e Rodrigo
Uprimny Yepes. “A Judicialização da Política na Colômbia: Casos, Potencialidades e Riscos”. Sur – Revista
Internacional de Direitos Humanos, vol. 06, 2007.

16
legal expressa, flexibilizou ao extremo as regras sobre legitimidade ativa (locus standi) e
formalidades processuais para permitir que qualquer pessoa ou entidade lhe peticionasse na defesa
de interesses de terceiros, sem sequer a necessidade de representação por advogado, sempre que
estivessem em jogo os direitos fundamentais de indivíduos ou grupos miseráveis, desprovidos de
acesso à justiça.28

36. No Brasil, o constituinte originário quis estender o acesso à jurisdição constitucional às


entidades da sociedade civil, ao estabelecer o art. 103, inciso IX, da Lei Maior. Porém, sua
orientação vinha sendo parcialmente frustrada pelo STF, que, nas palavras de Luís Roberto
Barroso, adotou “posição severa e restritiva na matéria”,29 estabelecendo limitações à
legitimidade ativa para as entidades de classe claramente discrepantes do espírito da Constituição.
O leading case foi a ADI n° 42,30 julgada em 1992, em que a Corte assentou, por maioria, que
entidade de classe é apenas a que reúne pessoas que exerçam a mesma atividade profissional ou
econômica. Na ocasião, o voto vencido do Ministro Célio Borja já apontava para o equívoco dessa
construção: “a classe não é um numerus clausus de atividades ou interesses, identificados e
classificados pelo Estado, como no corporativismo estadonovista; mas, para compatibilizar-se
com uma Constituição que põe entre os objetivos fundamentais da República a construção de uma
sociedade livre e solidária (art. 3º, I), deve a classe ou categoria ser espécie ou gênero que as
pessoas elegem, a cada momento, como relevantes e para cuja defesa ou fomento se submetem à
disciplina societária que melhor lhes pareça”.

37. Não há qualquer razão legítima que justifique essa interpretação restritiva do texto
constitucional. Ela não decorre da interpretação literal do preceito, pois a palavra “classe” é
altamente vaga, comportando leituras muito mais generosas. Ela não se concilia com a
interpretação teleológica da Constituição, pois, como se viu acima, frustra o objetivo do texto
magno, que foi democratizar o acesso ao controle concentrado de constitucionalidade. A exegese
não se ajusta ao elemento histórico, pois não corresponde à intenção do constituinte originário de

28
Esta linha jurisprudencial é identificada na Índia pelo rótulo de public interest litigation. Veja-se, a propósito,
Menaku Guruswamy e Bipin Aspatwar. “Access to Justice in India: The Jurisprudence (and Self-Perception) of the
Supreme Court. In: Daniel Bonilla Maldonado (Ed.). Constitutionalism of the Global South: The Activist Tribunals of
India, Colombia and South Africa. Cambridge: Cambridge University Press, 2013; S. P. Sathe. Judicial Activism in
India. 2ª ed., New Delhi: Oxford University Press, 2002, pp. 201-211.
29
Luís Roberto Barroso. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p.
145.
30
STF. ADI n° 42, Tribunal Pleno, Rel. Min. Paulo Brossard, julg. 24/09/1992.

17
abrir as portas da jurisdição constitucional para a sociedade.31 Pior, ela colide frontalmente com a
interpretação sistemática da Carta, afrontando o postulado de unidade da Constituição.

38. Com efeito, inexiste na Constituição de 88 uma priorização dos direitos e interesses
ligados às categorias econômicas e profissionais, em detrimento dos demais. Pelo contrário, a
Constituição revelou preocupação no mínimo equivalente com a garantia de outros direitos
fundamentais. Ela cuidou, ademais, da proteção de minorias e grupos vulneráveis, como povos
indígenas, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, afrodescendentes, quilombolas,
mulheres etc. – grupos que têm interesses comuns, que não se reconduzem à profissão ou à
economia. A Carta de 88 se abriu, por outro lado, para múltiplas demandas por justiça, não só no
campo da distribuição, como também na esfera do reconhecimento,32 por admitir que as ofensas à
dignidade humana também decorrem de práticas estigmatizadoras e opressivas, que desdenham os
grupos portadores de identidades não hegemônicas. Tais questões não têm, via de regra, qualquer
ligação com categorias profissionais ou econômicas específicas.

39. Não há, assim, porque permitir o acesso à jurisdição constitucional para atores que
encarnam os interesses das profissões e categorias econômicas, mas não para os que corporificam
outros direitos e interesses, que são valorados, no mínimo, com o mesmo peso pela ordem jurídica
brasileira. Essa assimetria no campo das garantias jurisdicionais é absolutamente
injustificada. Em boa hora, esta Suprema Corte a vem abandonando, como se infere de decisões
importantes da lavra dos Ministros Luís Roberto Barroso e Marco Aurélio, abaixo reproduzidas:

“PROCESSO CONSTITUCIONAL. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE


PRECEITO FUNDAMENTAL. AÇÃO PROPOSTA PELA ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DE LÉSBICAS, GAYS, BISSEXUAIS, TRAVESTIS E
TRANSEXUAIS.

31
Nesse sentido, Plínio de Arruda Sampaio, relator da subcomissão da Constituinte responsável pela organização do
Judiciário e do Ministério Público afirmou que: “[...] havia [...] um clima que era importante dar peso à sociedade
civil. No Brasil, o partido só ainda era uma coisa muito limitada. A ideia era não subordinar isso [o acesso] a
interesses, deixar o mais possível aberto [...]” (Ernani Carvalho. “Política Constitucional no Brasil: a ampliação dos
legitimados ativos na Constituinte de 1988”. Revista da EMARF, Cadernos Temáticos, 2010, p. 97-118). Na mesma
linha, Andrei Koerner e Lígia Barros de Freitas. “O Supremo na Constituinte e a Constituinte no Supremo”. Lua Nova,
vol. 88, 2013, p. 141-184.
32
Sobre o reconhecimento como dimensão da justiça, veja-se Nancy Fraser. “Redistribuição, reconhecimento e
participação: por uma concepção integral de justiça”. In: Daniel Sarmento, Daniela Ikawa e Flávia Piovesan (Coord.).
Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010; Axel Honneth. Luta por
Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. Luiz Repa. Sâo Paulo: Ed. 34, 2003. Destaque-se que
a importância do reconhecimento no campo dos direitos fundamentais vem sendo reconhecida pelo STF em várias
decisões, como na ADPF n° 186, que tratou das cotas raciais em universidades, e na ADPF n° 132 e ADI n° 142, que
trataram da união homoafetiva.

18
1. De acordo com a jurisprudência do STF, as entidades de classe de âmbito
nacional devem reunir os seguintes requisitos para configuração da legitimidade
ativa para propor ação direta: (i) comprovação de associados em nove Estados
da federação; (ii) composição da classe por membros ligados entre si por
integrarem a mesma categoria econômica ou profissional; (iii) pertinência
temática entre seu objetivo social e os interesses defendidos em juízo.
2. Superação da jurisprudência. A missão precípua de uma suprema corte em
matéria constitucional é a proteção de direitos fundamentais em larga escala.
Interpretação teleológica e sistemática da Constituição de 1988. Abertura do
controle concentrado à sociedade civil, aos grupos minoritários e vulneráveis.
3. Considera-se classe, para os fins do 103, IX, CF/1988, o conjunto de pessoas
ligadas por uma mesma atividade econômica, profissional ou pela defesa de
interesses de grupos vulneráveis e/ou minoritários cujos membros as integrem.
4. Ação direta admitida.” (ADPF n° 527-MC, Decisão Monocrática, Rel. Min.
Luís Roberto Barroso, julg. 29/06/2018)

“A interferência do povo na interpretação constitucional, traduzindo os anseios


de suas camadas sociais, prolonga no tempo a vigência da Carta Magna,
evitando que a insatisfação da sociedade desperte o poder constituinte de seu
estado de latência e promova o rompimento da ordem estabelecida.
À luz dessas considerações deve ser interpretado o inciso IX do art. 103, não se
recomendando uma exegese demasiadamente restritiva do conceito de
‘entidade de classe de âmbito nacional’. A participação da sociedade civil
organizada nos processos de controle abstrato de constitucionalidade deve ser
estimulada em vez de limitada, quanto mais quando a restrição decorre de
construção jurisprudencial, à míngua de regramento legal.
Estou convencido, a mais não poder, ser a hora de o Tribunal evoluir na
interpretação do artigo 103, inciso IX, da Carta da República, vindo a
concretizar o propósito nuclear do constituinte originário – a ampla
participação social, no âmbito do Supremo, voltada à defesa e à realização dos
direitos fundamentais. A jurisprudência, até aqui muito restritiva, limitou o
acesso da sociedade à jurisdição constitucional e à dinâmica de proteção dos
direitos fundamentais da nova ordem constitucional. Em vez da participação
democrática e inclusiva de diferentes grupos sociais e setores da sociedade civil,
as decisões do Supremo produziram acesso seletivo. As portas estão sempre
abertas aos debates sobre interesses federativos, estatais, corporativos e
econômicos, mas fechadas às entidades que representam segmentos sociais
historicamente empenhados na defesa das liberdades públicas e da cidadania.”
(ADI n° 5.291, Decisão Monocrática, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe
11/05/2015).

19
40. Não bastasse, ainda que não se queira adotar, em todos os casos, essa leitura mais
generosa da expressão “entidade de classe”, contida no art. 103, inciso IX, da CF/88, no mínimo
se justifica a abertura da categoria em relação às organizações nacionais de representação dos
povos indígenas, à luz de interpretação harmonizada com o disposto no art. 232, CF/88.

41. Tal preceito – o art. 232 – se inscreve no modelo não paternalista com que a Carta de 88
tratou os povos indígenas. Pretendeu o constituinte empoderá-los, rompendo com o paradigma
pretérito calcado no paternalismo e na tutela. Por isso, os povos indígenas e suas organizações
devem poder defender seus direitos e interesses em todos os espaços jurisdicionais, sem depender
para tanto da intermediação necessária de instituições “dos brancos”, como a Funai, os partidos
políticos, o Ministério Público Federal etc. Cuida-se de tratar os povos indígenas como
protagonistas de suas lutas, e não como meros beneficiários da ação, ainda que benevolente, de
terceiros. Trata-se de respeitar o seu “lugar de fala”.

42. Nessa perspectiva, sendo a jurisdição constitucional um locus privilegiado para proteção
de direitos fundamentais – especialmente direitos de minorias –, não faz sentido adotar
interpretação que exclua as organizações nacionais dos índios do campo dos legitimados ativos
para propositura de ações diretas no STF, relativas à defesa dos direitos dos próprios povos
indígenas. A interpretação sistemática dos arts. 103, inciso IX, e 232 da CF/88 impõe, no mínimo,
que se reconheça às organizações nacionais indígenas o direito de defenderem na jurisdição
constitucional brasileira o direito desses povos tradicionais.

43. É certo que, como ocorre com praticamente todas as organizações indígenas, a APIB
não se encontra formalmente constituída como pessoa jurídica, nos moldes da “lei dos brancos”.
Nada obstante, não há dúvida de que a entidade congrega e representa os povos indígenas do
Brasil. Como organização indígena, a APIB se rege por costumes e tradições também indígenas,
afigurando-se inexigível a sua formalização como pessoa jurídica para que possa defender em
juízo, inclusive perante esta Suprema Corte, os direitos dos povos indígenas brasileiros. Pretender
o contrário seria negar o espírito do art. 232 da Constituição, que abriu as portas do sistema de
justiça às comunidades e organizações indígenas, sem submetê-las à ilegítima exigência de prévia
regularização, de acordo com o formalismo jurídico da sociedade envolvente. Destaque-se, neste
particular, que no RE nº 1.017.365, em que se discute, em regime de repercussão geral, a questão
do chamado “marco temporal” para demarcação de terras indígenas, a APIB foi admitida como
amicus curiae por esta Suprema Corte, assim como diversas outras comunidades e organizações

20
indígenas também desprovidas de constituição formal como pessoas jurídicas (RE n° 1.017.365,
Decisão Monocrática, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 21/05/2020).

44. Assim, deve-se reconhecer a legitimidade ativa da APIB para o ajuizamento da presente
ADPF.

– III –

Cabimento da ADPF

45. O governo federal vem agindo de maneira absolutamente irresponsável no controle da


pandemia do coronavírus em relação aos povos indígenas. As ações e omissões do Poder Público
estão causando um verdadeiro genocídio, podendo resultar no extermínio de etnias inteiras. Há
grave violação de preceitos fundamentais da Constituição Federal, como os direitos à vida e à
saúde, bem como o direito dos povos indígenas de viverem em seus territórios, de acordo com sua
cultura, seus costumes e tradições (art. 231). A gravidade ímpar do quadro e a dificuldade de
enfrentá-lo evidenciam a necessidade de intervenção do Supremo Tribunal Federal, no
desempenho da sua função maior de guardião da Constituição (art. 102, caput, CF/88).

46. Nesse contexto, a ADPF, prevista no art. 102, § 1°, da CF/88, e regulamentada pela Lei
n° 9.882/1999, é a ação vocacionada para o enfrentamento da questão. Como se sabe, a ADPF se
volta contra atos dos Poderes Públicos que violem ou ameacem preceitos fundamentais da
Constituição. Dessa forma, para o seu cabimento, é essencial que estejam presentes os requisitos
legais de admissibilidade, a saber: (i) a presença de lesão ou ameaça de lesão a preceito
fundamental, (ii) causada por ato do Poder Público, e (iii) a inexistência de outro instrumento apto
a sanar essa lesão ou ameaça (subsidiariedade).

47. Tais pressupostos estão plenamente configurados no presente caso, como se verá a
seguir.

III.1. Lesão a preceitos fundamentais

48. Nem a Constituição nem a Lei n° 9.882/1999 definiram quais preceitos constitucionais
são fundamentais. Nada obstante, há sólido consenso doutrinário e jurisprudencial no sentido de

21
que, nessa categoria, figuram os fundamentos e objetivos da República, bem como os princípios e
direitos fundamentais.33

49. Ora, a situação dramática descrita nesta petição inicial envolve afrontas graves a
princípios e direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, CF/88),
os direitos à vida (art. 5º, caput) e à saúde (art. 6º e 196), e o direito dos povos indígenas a viverem
em seu território, de acordo com suas cultura e tradições (art. 231). Este último, conquanto não
inserido expressamente no catálogo dos direitos fundamentais, reveste-se inequivocamente de
fundamentalidade material, haja vista a sua importância no sistema constitucional, e ligação direta
com a dignidade da pessoa humana.

50. Mais ainda: como há risco real de extinção de povos indígenas – especialmente os
isolados ou de recente contato –, a ADPF envolve a própria defesa da Nação brasileira, com a
plurietnicidade e interculturalidade que a caracteriza. O risco é para os próprios povos indígenas,
mas também para todos os demais brasileiros, das presentes e futuras gerações, que tanto
perderiam com os danos irreparáveis à riqueza e a diversidade cultural do país.

III.2. Atos do Poder Público

51. De acordo com o art. 1º da Lei n° 9.882/1999, os atos que podem ser objeto de ADPF
são todos aqueles emanados do Poder Público, aí incluídos os de natureza normativa,
administrativa ou judicial. A ADPF não se volta apenas contra normas jurídicas, podendo também
questionar atos, comportamentos e práticas estatais de outra natureza, comissivos ou omissivos.34
E é isso que se verifica na presente hipótese, já que, como visto, as lesões a preceitos fundamentais
aqui impugnadas se originam de uma multiplicidade de atos comissivos e omissivos de instituições
públicas federais.

52. Dentre as afrontas a tais preceitos, destaca-se a omissão da União em impedir o ingresso
de não índios nos territórios indígenas – mesmo aqueles em que vivem povos isolados ou de
recente contato –, possibilitando, com isso, a disseminação do coronavírus entre essas populações,

33
Cf., e.g., Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2014, p. 1267-1269; e Luís Roberto Barroso. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro:
exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 562-563.
34
Cf., e.g., STF. ADPF nº 347-MC, Tribunal Pleno, Rel. Marco Aurélio, DJe 19/02/2016.

22
com risco até de extinção. Do mesmo modo, a omissão federal em retirar invasores de TIs, como
ocorre com os garimpeiros nas terras Yanomami, o que contribui para aumentar gravemente o
risco sanitário nessas regiões.

53. Ainda como violação a preceito fundamental, tem-se a orientação da SESAI de limitar a
sua atuação, como órgão responsável pela saúde indígena, apenas aos índios aldeados em TIs
homologadas, o que implica negação do direito aos que vivem em contexto urbano, bem como aos
que habitam em áreas ainda não definitivamente demarcadas. Como se verá adiante, essa limitação
não se compatibiliza com o direito dos povos indígenas a terem acesso à saúde que observe suas
especificidades e tradições culturais. Trata-se de uma discriminação inconstitucional, incompatível
com os direitos à saúde, à isonomia e à diferença cultural.

54. Finalmente, outra violação relaciona-se à absoluta insuficiência de políticas públicas de


órgãos indigenistas, como a SESAI e a Funai, voltados a proteger os povos indígenas diante da
pandemia do COVID-19. Essa falta ou deficiência na formulação e implementação de políticas
públicas viola gravemente o dever estatal de proteger e promover os direitos fundamentais dos
povos indígenas, notadamente à sua vida e saúde. Como já afirmado, o plano de contingência da
SESAI para o enfrentamento do coronavírus entre povos indígenas, além de ter sido formulado
sem a participação dessas populações, é vago e sem medidas concretas. A atuação dos órgãos
indigenistas tem falhando gravemente no seu dever de proteger e promover os direitos desses
povos – inclusive os direitos à vida e à saúde.

55. Enfim, a ação não se volta contra o vírus, mas contra a ação equivocada e a inação
irresponsável do Poder Público no seu combate. Resta, pois, satisfeito o segundo requisito para o
cabimento da ADPF.

III.3. Subsidiariedade

56. A doutrina e a jurisprudência convergem no entendimento de que o pressuposto da


subsidiariedade da ADPF (art. 4º, § 1º, Lei n° 9.882/1999) se configura sempre que inexistirem
outros instrumentos processuais aptos a solução global da questão constitucional suscitada. Nesse
sentido, decidiu este STF:

23
“13. Princípio da subsidiariedade (art. 4º, § 1º, da Lei nº 9.882/99): inexistência
de outro meio eficaz de sanar a lesão, compreendido no contexto da ordem
constitucional global, como aquele apto a solver a controvérsia constitucional
relevante de forma ampla, geral e imediata.
14. A existência de processos ordinários e recursos extraordinários não deve
excluir, a priori, a utilização da argüição de descumprimento de preceito
fundamental, em virtude da feição marcadamente objetiva desta ação.”35

57. No presente caso, não há qualquer remédio processual no âmbito da jurisdição


constitucional concentrada que permita o questionamento global das práticas estatais ora
impugnadas, muito menos o equacionamento das gravíssimas lesões a preceito constitucional
apontadas. Também não há, no arsenal das demais ações judiciais ou medidas extrajudiciais
existentes, qualquer instrumento que possibilite o tratamento adequado e eficaz, em tempo hábil,
das gravíssimas lesões a preceitos fundamentais apontadas pelos Arguentes.

58. Dessa maneira, atendidos todos os seus pressupostos, não há dúvidas de que a
presente Arguição é cabível e, por isso, deve ser conhecida por esta Corte.

59. Antes de passar ao desenvolvimento e justificação dos pedidos, vale um breve registro
sobre o sistema de saúde indígena, desenvolvido no próximo item.

– IV –

Breves Notas sobre o Subsistema de Saúde Indígena

60. Os indígenas são titulares do direito universal à saúde, como todos os demais brasileiros.
Esse direito, contudo, deve ser implementado com observância das respectivas especificidades
socioculturais, o que envolve o respeito às suas práticas tradicionais, à cultura e aos modos de
organização de cada etnia. Ademais, as políticas de saúde que incidem sobre povos indígenas
devem ser implementadas com a sua participação, sujeitas ao seu controle social. É o que decorre
do disposto no art. 231 da Constituição, segundo o qual os índios têm direito ao respeito “à sua
organização social, seus costumes, línguas, crenças e tradições”. Nessa linha, o art. 25.1 da
Convenção 169 da OIT, que desfruta, no mínimo, de hierarquia supralegal na ordem jurídica

35
STF. ADPF n° 33, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 27/10/2006. No mesmo sentido, cf. e.g., ADPF n°
388, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 01/08/2016; e ADPF n° 97, Tribunal Pleno, Rel. Min. Rosa
Weber, DJe 30/10/2014.

24
brasileira, prevê que os serviços de saúde “deverão ser planejados e administrados em
cooperação com os povos interessados e levar em conta as suas condições econômicas,
geográficas, sociais e culturais, bem como seus métodos de prevenção, práticas curativas e
medicamentos tradicionais”.

61. Até 1988, sequer havia uma política pública para a saúde dos povos indígenas. As
únicas medidas oficiais remontam à logística organizada no passado pelo SPI, por meio dos
chamados “socorros médicos” (art. 17 do Decreto nº 8.072/1910), que se limitavam a intervenções
esporádicas em caso de surtos, sem sistematicidade, o que se repetiria na gestão pela Funai, a partir
de 1967.36 Sob a nova ordem constitucional, foi editada a Lei nº 9.836/1999, que incluiu na Lei do
SUS (Lei nº 8.080/1990) o capítulo do subsistema de saúde indígena (art. 19-A a 19-H).

62. De acordo com a Lei nº 9.836/1999, o subsistema de saúde indígena compreende as


ações e serviços de saúde voltados para o atendimento das populações indígenas. Trata-se da porta
de entrada do SUS para os povos indígenas, voltado à atenção básica, mas com a capacidade de
funcionar em integração com os demais órgãos do sistema de saúde e da política indigenista. A
existência de um subsistema diferenciado não afasta o acesso das populações indígenas a outras
áreas do SUS, nos âmbitos da atenção primária, secundária e terciária (art. 19 G, § 3º). Cabe à
União financiar o subsistema, mas os Estados, Municípios e outras instituições podem atuar de
forma complementar (arts. 19-C e 19-E). Além disso, o subsistema tem caráter descentralizado,
hierarquizado e regionalizado (art. 19-G). O legislador previu, como não poderia deixar de ser, que
os serviços de saúde devem considerar as especificidades locais e a cultura dos povos indígenas
(art. 19-F). Determinou, ainda, que o subsistema em questão “terá como base Distritos Sanitários
Especiais Indígenas” (art. 19-G, § 1º), e que “as populações indígenas terão direito de participar
dos órgãos colegiados de formulação, acompanhamento e avaliação das políticas de saúde” (art.
19-H).

63. Até 2010, o subsistema de saúde indígena era gerido pela Fundação Nacional de Saúde
(FUNASA), que, durante anos, foi alvo de frequentes denúncias ligadas à corrupção e a
deficiências no atendimento. O movimento indígena lutou para que a gestão da saúde indígena
passasse às mãos de uma secretaria específica, diretamente vinculada ao Ministério da Saúde –
demanda que foi atendida em 2010, com a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena

36
Cf. Julio José Araujo Junior. “O despertar de uma política: as dificuldades de concretização do subsistema de saúde
indígena entre 1999 e 2015”. Boletim científico da Escola Superior do Ministério Público da União, v. 53, p. 13-447,
2019

25
(SESAI), por meio da MP n° 483, posteriormente convertida na Lei nº 12.413/2010. A estrutura e
as competências da SESAI encontram-se detalhadas no Anexo III do Decreto nº 8.901/2016.

64. No âmbito da SESAI, os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) são as


unidades administrativas responsáveis pela condução da política nos territórios. Os DSEIs são
espaços etnoculturais de administração da saúde indígena em áreas delimitadas, que não coincidem
com as divisões territoriais políticas de Estados e municípios. A definição territorial de um DSEI
leva em conta critérios como população, perfil epidemiológico, relações sociais dos povos
indígenas do território com a sociedade regional, e distribuição demográfica tradicional das
comunidades indígenas.37 Existem atualmente 34 DSEIs, cuja abrangência pode extrapolar áreas
de mais de um Estado ou agrupar diversas unidades em um único ente federativo.38

65. A sede de cada DSEI está situada em um dos municípios da sua área de atribuição.
Dentro de cada DSEI, há ainda os polos-base, unidades menores que se situam em outros
municípios ou até em aldeias, dotados de uma estrutura básica, com estoque de medicamentos e
presença de um grupo de funcionários. Existem também os postos de saúde, que são unidades
básicas de saúde indígena para oferecimento de medicamentos e apoio ao trabalho dos agentes de
saúde indígena. Compõem a estrutura, por fim, as chamadas casas de saúde (CASAIs),
consistentes em espaços de acolhimento dos indígenas, que se deslocam aos municípios centrais
para aguardar um procedimento médico, uma consulta ou mesmo uma transferência para outra
localidade que possua um hospital de referência. O atendimento nas aldeias deve ser feito por
equipes multidisciplinares, de forma periódica.

66. O controle social em cada DSEI se dá por intermédio dos Conselhos Distritais de Saúde
Indígena (CONDISIs), que garantem, ao menos no plano da legislação, a participação dos
indígenas na gestão do subsistema de saúde indígena. De acordo com o art. 4º da Portaria nº
755/2012 do Ministério da Saúde, 50% dos integrantes de cada CONSIDI são representantes
eleitos das comunidades indígenas localizadas no seu âmbito de abrangência.

37 Este conceito é abordado expressamente na publicação que trata da Política Nacional de Saúde Indígena, porém já
vinha sendo objeto de preocupações dos povos indígenas desde pelo menos 1986, tendo sido apresentado nas
conferências de saúde indígena. O modelo piloto foi o do DSEI Yanomami, após a edição do Decreto nº 23/91.
BRASIL. Fundação Nacional de Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2. ed. Brasília:
Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde, 2002, p. 13. Disponível eletronicamente em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_saude_indigena.pdf>.
38
Por exemplo, o DSEI Litoral Sul, com sede em Curitiba, atende indígenas de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Já o Estado do Amazonas tem 7 DSEIs.

26
67. Embora a constituição do subsistema em questão tenha representado inequívoco avanço
na legislação, ele não tem sido capaz de enfrentar todos os desafios para a implementação da saúde
indígena no país. A precariedade de atendimento e a carência de profissionais, os preconceitos
contra a medicina tradicional e a persistência de índices muito piores que os da população não
indígena mostram que há muitas barreiras a superar.

68. Com efeito, estudos apontam a grande vulnerabilidade sanitária da população indígena,
com dados que indicam níveis de mortalidade infantil,39 desnutrição, diarreia e anemia em
crianças e sobrepeso/obesidade em mulheres superiores aos do restante da população brasileira.40
O decréscimo de aplicação de recursos nesse subsistema nesses últimos anos, aliado a outras
mazelas, já vinha, muito antes da eclosão da pandemia, comprometendo gravemente o direito dos
povos indígenas à saúde, com impactos ainda mais graves sobre as comunidades localizadas em
áreas remotas, como as existentes na Amazônia.

69. Na verdade, a pandemia expôs as fragilidades que as equipes de atenção primária à


saúde (APS) do Sistema Único de Saúde (SUS) e, mais intensamente, as do Subsistema de
Atenção à Saúde Indígena (SASISUS) enfrentam cotidianamente há anos, tais como falta de
infraestrutura adequada; insuficiência de equipamentos de proteção individual (EPI); reduzido
estoque de insumos e medicamentos; alta rotatividade de profissionais; dificuldades de garantir
formação adequada e implementar educação permanente com as equipes; problemas de integração
com a rede de saúde; e a situação de precariedade e insalubridade das Casas de Saúde do Índio
(CASAI). E a realidade das áreas e dos DSEIs mais remotos agrega dificuldades adicionais, como
restrições de comunicação (algumas áreas têm comunicação exclusivamente via rádio), dificuldade
de acesso e problemas logísticos decorrentes do isolamento geográfico (alguns DSEI têm acesso
apenas por via fluvial ou aérea).

70. Firmadas essas premissas, passa-se à discussão de cada um dos blocos de pedidos
apresentados pelos Arguentes.

39
Cf. Gerson Luiz Marinho et al. “Mortalidade infantil de indígenas e não indígenas nas microrregiões do Brasil”.
Revista Brasileira de Enfermagem, vol. 72, n° 01, jan./fev. 2019. Disponível eletronicamente em:
<https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672019000100057&tlng=pt>.
40
Cf. FIOCRUZ. Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas. Relatório final; E. A. Coimbra Carlos
Jr. “Saúde e povos indígenas no Brasil: reflexões a partir do I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição Indígena”. Cad.

27
–V–

Os Povos Indígenas isolados e de recente contato: necessidade de imposição de barreiras


sanitárias41

71. No Brasil, existem registros da presença de 114 povos indígenas isolados, sendo 20
deles confirmados42 (doc. 26). Há, ainda, o reconhecimento de, ao menos, 18 povos indígenas de
recente contato (docs. 27 a 29).

72. Segundo a legislação brasileira, povos indígenas isolados “são povos ou segmentos de
povos indígenas que, sob a perspectiva do Estado brasileiro, não mantêm contatos intensos e/ou
constantes com a população majoritária, evitando contatos com pessoas exógenas a seu coletivo”
(art. 4º, inciso I, da Portaria Interministerial nº 4.094/2019, do Ministério da Saúde e da Funai). Já
povos indígenas de recente contato “são povos ou agrupamentos indígenas que mantêm relações
de contato ocasional, intermitente ou permanente com segmentos da sociedade nacional, com
reduzido conhecimento dos códigos ou incorporação dos usos e costumes da sociedade
envolvente, e que conservam significativa autonomia sociocultural (art. 4º, inciso II, do mesmo
diploma).

73. Até 1987, a política oficial do Estado brasileiro era atrair e provocar o contato com
povos indígenas isolados. A concepção então adotada era profundamente paternalista e
assimilacionista. O contato forçado era justificado com base na intenção de “proteger” os povos
originários, e a perspectiva era de assimilação a longo prazo, quando os índios seriam
“aculturados”, integrando-se à “comunhão nacional” e perdendo a sua identidade étnica específica.
No contexto da redemocratização do país, essa concepção se alterou, e, a partir de 1987, “teve
início a implantação de uma política diferenciada para povos indígenas isolados, com o objetivo
de fazer respeitar seus modos de vida, afastando-se a concepção de obrigatoriedade do contato
para sua proteção”.43 Sob a vigência da Constituição de 1988 e da Convenção nº 169 da OIT, não

Saúde Pública, vol.30, n° 04, abr. 2014. Disponível eletronicamente em:


<https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2014000400855>.
41
Item elaborado com auxílio do Observatório de Direitos Humanos dos Povos Isolados e de Recente Contato – OPI.
42
Informe n°. 1 do Observatório de Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato - Opi.
Disponível eletronicamente em: <https://povosisolados.com/2020/02/11/informe-observatorio-opi-n-01-02-2020-
povos-indigenas-isolados-no-brasil-resistencia-politica-pela-autodeterminacao/>.
43
Afirmação da Funai, disponível eletronicamente em: <http://www.funai.gov.br/index.php/nossas-acoes/povos-
indigenas-isolados-e-de-recente-contato?start=1>.

28
teria como ser diferente, haja vista a superação do paradigma assimilacionista que marca esses
textos normativos, que se pautam pelo respeito à autonomia e às culturas indígenas.

74. De acordo com Fabrício Amorim,44 existe ampla diversidade de situações de índios
isolados, desde grupos demográficos relativamente grandes, que se organizam em grupos locais
menores, e que possivelmente se relacionam entre si – tal como ocorre na TI Vale do Javari –, até
grupos extremamente reduzidos em função dos históricos de massacres, doenças e violência
territorial, tal como os Piripkura, no noroeste do Mato Grosso, ou o denominado “Índio do
Buraco”, único indivíduo remanescente de uma etnia, em Rondônia. Como afirma o mesmo autor,
há também uma diversidade de contextos de “isolamento”. Isso porque alguns grupos fogem e
rechaçam todo e qualquer contato com pessoas de fora, mantendo-se praticamente invisíveis, tal
como os Kawahiva do Rio Pardo no Mato Grosso. Já outros estabelecem, por seus próprios modos,
relações indiretas com seu entorno, deixando vestígios propositais e, muitas vezes, permitindo-se
ver à distância, tal como os Mashco, no Acre. Em comum entre todos, está a vontade de ter maior
controle sobre as relações que estabelecem com as sociedades ou indivíduos que os rodeiam.45
Como ressaltou Eduardo Viveiros de Castro, “longe de ignorarem a existência de outras
sociedades, eles recusam qualquer interação substancial com elas, especialmente, com os
‘brancos’, palavra usada por índios e brancos, no Brasil, para designar os representantes diretos
ou indiretos, desse Estado-nação que exerce soberania sobre os territórios indígenas”.46

75. Povos indígenas isolados e de recente contato estão submetidos, de forma peculiar, a um
grande leque de vetores de vulnerabilidade, que se reforçam mutuamente. São eles:47 (i) a
vulnerabilidade epidemiológica, decorrente da inexistência de memória imunológica em
seus organismos para defesa contra determinadas doenças – a exemplo de uma simples gripe –; (ii)
a vulnerabilidade demográfica, que ocorre pela fragilidade do contingente populacional, em
consequência dos números reduzidos e das grandes taxas de mortalidade decorrentes do contato;
(iii) a vulnerabilidade territorial, pela contínua pressão da nossa sociedade sobre seus territórios
e a estreita relação desses povos com os recursos naturais e suas respectivas cosmologias; e (iv)

44
Cf. Fabrício Amorim. “Povos indígenas isolados no Brasil e a política indigenista desenvolvida para efetivação de
seus direitos: avanços, caminhos e ameaças”. Revista Brasileira de Linguística Antropológica, vol. 08, n° 02, UNB,
2016.
45
Cf. Fabrício Ferreira Amorim e Erika Magami Yamada. “Povos indígenas isolados: autonomia e aplicação do
direito de consulta”. Revista Brasileira de Linguística Antropológica, vol. 08, n° 02, dez. 2016, p. 41-60.
46
Eduardo Viveiros de Castro. “Nenhum povo é uma ilha”. In: Fany Ricardo e Majoí Fávero Gongora (orgs.). Cercos
e resistências: povos indígenas isolados na Amazônia brasileira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2019.
47
Beatriz Huertas. Corredor Territorial de Pueblos Indígenas en Aislamiento y Contacto Inicial Pano, Arawak y
otros. FENAMAD 2015.

29
a vulnerabilidade política, que ocorre pela impossibilidade desses povos se manifestarem através
dos mecanismos de representação comumente aceitos pelo Estado, tais como partidos políticos,
associações ou assembleias.

76. A vulnerabilidade epidemiológica vem sendo melhor conceituada como


“socioepidemiológica”, de modo a evidenciar aspectos sociais, tal como o fato de os povos
indígenas viverem de forma comunitária, em sociabilidades específicas – e.g., habitações
coletivas, compartilhamento comunitário de utensílios –, que podem, por vezes, potencializar a
transmissão e prolongar efeitos das doenças, sobretudo as infectocontagiosas. Fala-se, portanto, em
vulnerabilidade socioepidemiológica, que “consiste num conjunto de fatores, individuais e
coletivos, que fazem com que os grupos isolados e de recente contato sejam mais suscetíveis a
adoecer e morrer em função, principalmente, de doenças infecciosas simples como gripes,
diarréias e doenças imunopreveníveis, pelo fato de não terem memória imunológica para os
agentes infecciosos corriqueiros na população brasileira e não terem acesso, no caso dos
isolados, à imunização ativa por vacinas”.48

77. Cabe salientar que a vulnerabilidade epidemiológica dos povos indígenas como um todo
– inclusive dos povos isolados e de recente contato – não decorre de supostas deficiências em
seus sistemas imunológicos. Ao contrário, a competência imunológica de seus organismos é a
mesma de qualquer outra pessoa sadia: quando vacinados, produzem anticorpos e defesas
adequadas, fato já demonstrado em estudos.49 Essas populações em isolamento mantêm uma
relação estável com agentes de doenças infectocontagiosas que lhes são conhecidas.50 Todavia, o
surgimento de novos agentes infecciosos provoca um significativo desequilíbrio, produzindo
velozes processos de disseminação, de adoecimento coletivo e, consequentemente, de mortes.
Segundo a Oficina General de Epidemiología do Peru,51 possivelmente em face de outros fatores,
inclusive sociais, os povos indígenas, quando expostos a novos agentes infecciosos, demoram
entre três a cinco gerações para estabilizar a resposta a esses novos agentes:

48
Douglas A. Rodrigues A. Proteção e Assistência à Saúde dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato no
Brasil. OTCA: São Paulo, 2014, p. 80. Disponível eletronicamente em:
<https://boletimisolados.trabalhoindigenista.org.br/wp-content/uploads/sites/3/2017/08/Saude _PIIRC_-Douglas-
Rodrigues.pdf>.
Cf. Douglas A. Rodrigues. “Desafio da atenção à saúde dos povos isolados e de recente contato”. In: Fany Ricardo e
49

Majoí Fávero Gongora (orgs.) Cercos e resistências: povos indígenas isolados na Amazônia brasileira. Op. cit.
50
Ibidem, p. 19.
51
Oficina General de Epidemiología, OGE. Pueblos en situación de extrema vulnerabilidad: El caso de los Nanti de
la Reserva Territorial Kugapakori Nahua – Río Camisea. Cusco, 2003.

30
“La recurrencia y frecuencia con que se producen brotes de enfermedades
virales e infecciosas en estas poblaciones impide que dispongan de tiempo
suficiente para recuperarse y afrontar de mejor manera las nuevas epidemias,
agravando aún más su situación.”52

78. De fato, os condicionantes sociais e culturais dos índios isolados e de recente contato
contribuem para o impacto das doenças que, com frequência, geram mortes que podem
ocasionar verdadeiro etnocídio.

79. Com efeito, são diversos – e dramáticos – os relatos de povos indígenas isolados ou de
recente contato dizimados por epidemias de doenças infectocontagiosas causadas por contatos com
grupos externos. Aliás, desde a chegada dos primeiros europeus, há inúmeros casos de processos
velozes de genocídio de povos indígenas, em decorrência, sobretudo, de doenças desconhecidas
por seus sistemas imunológicos. É consenso na historiografia que as doenças foram mais fatais e
rápidas no desaparecimento das populações autóctones do continente americano até do que as
armas dos europeus.

80. Nesse sentido, o médico indigenista Lucas Albertoni aponta situação gravíssima
ocorrida com os Korubo, em 2015, que foram quase dizimados, pelo contato com as doenças dos
brancos. Muitos doentes ficaram, inclusive, incapazes de realizar atividades básicas de
sobrevivência, como a caça, a coleta e a agricultura. A falta de alimentos agravou ainda mais o
quadro, acarretando um número de óbitos assustador.

81. O caso do contato com os Kajkwakratxi Tapayuna, no oeste do Mato Grosso, que
começou na década de 1960, realizado por missionários e pela Funai, também é exemplo
emblemático de tragédia. Durante o início dessas relações, os indígenas relatam que haviam
contraído uma gripe que se alastrou nas habitações dos que ainda recusavam o contato. As equipes
procuraram essas habitações. Encontraram todas abandonadas, algumas queimadas, cadáveres
espalhados pelo chão, homens, mulheres, jovens e velhos. Não houve tempo e força sequer para
enterrar os mortos. Os sobreviventes fugiram para a floresta, reunidos posteriormente pela
equipe.53 Inicialmente com população calculada em mil pessoas, foram reduzidos a 48

52
Beatriz Huertas. Autodeterminacion y salud. In: El derecho a la salud de los pueblos indigenas en aislamiento y en
contacto inicial. IWGIA, 2008.
53
Cf. Daniela Batista de Lima. Transformações, Xamanismo e Guerra entre os Kajkwakratxi (Tapayuna). Tese de
Doutorado, UNB, 2019.

31
sobreviventes, removidos em 1970 para o Parque do Xingu, com a justificativa de salvar o povo
Tapayuna do completo extermínio.

82. Os Kararaô, por sua vez, foram contatados no Rio Iriri, próximo à foz do rio Xingu. A
equipe de sertanistas da Funai encontrou um grupo de 48 indígenas. Depois do contato, os técnicos
retornaram a Belém para obter medicamentos, alimentação e outros materiais.54 No entanto,
quando regressaram, já encontraram um quadro grave de enfermidades. Quando organizaram uma
incursão por via terrestre já era tarde: dos 48 Kararaô contactados, encontraram apenas 7 vivos e
muito debilitados. O sertanista Afonso Alves conta que os indígenas “[...] estavam sendo
enterrados dentro de casa. Eles cavaram essas sepulturas dentro de casa mesmo, não fora. Não
tinham condições de caminhar, de fazer nada [...]. Só um que escapou e os outros saíram pro
mato, morreram no mato. Urubu comeu”.55 E muitos outros casos dramáticos poderiam ser relatos
sobre contatos de povos isolados com a “civilização” que resultaram em muitas mortes e até em
etnocídio. Eles evidenciam a necessidade de proteção desses grupos, no contexto de uma
pandemia.

83. Pois bem. A Portaria Conjunta n° 4.094/2018, do Ministério da Saúde e da Funai, ao


definir princípios, diretrizes e estratégias para a atenção à saúde dos povos indígenas isolados e de
recente contato, dispõe, no art. 3º, que devem ser observados: i) o direito à autodeterminação e
respeito aos seus usos, costumes e tradições; ii) a salvaguarda do território e do acesso aos recursos
naturais tradicionalmente utilizados como fator fundamental da manutenção e promoção da
qualidade de vida e bem-estar da população; e iii) o reconhecimento de sua vulnerabilidade social
e epidemiológica em face da maior suscetibilidade ao adoecimento e à morte.

84. Embora os usos, costumes e tradições dos povos isolados e de recente contato não sejam
tão acessíveis a nós, uma coisa é certa: a própria ação do isolamento é a parcela mais evidente de
seus costumes, ou seja, é a forma como manifestam sua de vontade de viver afastados de outros
grupos sociais, sejam indígenas ou não indígenas. Segundo Amorim e Yamada:

“[...] podemos afirmar que as relações estabelecidas pelos diferentes grupos ou


povos isolados ocorrem sob diferentes formas e gradações de intensidade. No
entanto, em todos os casos, há uma manifestação clara dos povos ou grupos

54
Cf. Carlos Augusto da Rocha Feire. Sagas Sertanistas: práticas e representações do campo indigenista no século
XX. Tese de doutorado, UFRJ, 2005.
55
Rubens Valente. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017.

32
indígenas isolados de não aceitação de relações intensas ou constantes com seu
entorno. Isso pode ser traduzido comparativamente pela afirmação externa de
que estes povos não estão dispostos a relações forçadas nem a formas de
interação que não desejam.”56

85. Respeitar as tradições culturais e a autodeterminação dos povos isolados e de recente


contato, portanto, é garantir condições para que eles possam seguir vivendo desse modo. É o que
afirmou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ao assentar que “el principio de no
contacto es la manifestación del derecho de los pueblos indígenas en aislamiento voluntario a la
libre determinación”.57 Não por outra razão, a Comissão recomendou aos Estados “[a]doptar
acciones dirigidas a asegurar el respeto y garantía del principio de no contacto de los pueblos en
aislamiento por parte de cualquier persona o grupo, considerando la adopción de zonas de
protección, así como la prohibición y sanción apropiada del contacto forzado, incluyendo el de
organizaciones religiosas”.58

86. Ademais, diante de sua vulnerabilidade socioepidemiológica, o isolamento é a maior


garantia do direito fundamental à vida dessas populações, pois, entre os inúmeros efeitos de
um contato indesejado, destaca-se a elevada taxa de mortes por epidemias, que representa
uma das causas de maior impacto na redução demográfica dos povos indígenas.

87. Em outras palavras: a proteção da saúde dos povos isolados e de recente contato não
se faz sem a proteção dos territórios onde vivem, pois somente com a garantia da integridade
desses espaços é possível assegurar a distância de agentes capazes de levar doenças e, ao mesmo
tempo, proteger a integridade de um meio ambiente saudável, onde possam encontrar alimentos e
medicamentos tradicionais.

88. Por isso, os direitos à saúde e à vida dessas populações pressupõem, especialmente em
contexto de uma epidemia, a formação de barreiras sanitárias, que são viabilizadas por ações de
atenção a outros povos não isolados, os quais vivem no entorno daquelas, e por ações de combate
ao ingresso de invasores ilegais nos seus territórios. A constituição de barreiras sanitárias deve
ser a ação primordial do Estado brasileiro para a proteção da saúde dessas populações.

56
Fabrício Ferreira Amorim e Erika Magami Yamada. “Povos indígenas isolados: autonomia e aplicação do direito de
consulta”. Revista Brasileira de Linguística Antropológica, vol. 08, n° 02, dez. 2016, p. 41-60.
57
Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Pueblos Indigenas em Aislamiento Voluntario y Contacto Inicial
em las Americas, 2013, p. 11. Disponível eletronicamente em:
<http://www.oas.org/es/cidh/indigenas/docs/pdf/Informe-Pueblos-Indigenas-Aislamiento-Voluntario.pdf>.

33
89. Recorde-se que, que dentre as diretrizes para o enfrentamento do COVID-19 expedidas
pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, frisou-se que, “em relação
aos povos indígenas que vivem em isolamento voluntário ou na fase inicial de contato, os Estados
e outros agentes devem considerá-los como grupos populacionais especialmente vulneráveis. As
barreiras que forem implantadas para impedir o acesso de pessoas de fora de seus territórios
devem ser gerenciadas rigorosamente, a fim de evitar qualquer contato”.59 Na mesma linha, a
Resolução nº 01/2020 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sobre ‘Pandemia e
Direitos Humanos nas Américas’, foi também expressa ao recomendar: “55. Respeitar de forma
irrestrita o não contato com os povos e segmentos de povos indígenas em isolamento voluntário,
dados os gravíssimos impactos que o contágio do vírus poderia representar para sua subsistência
e sobrevivência como povo”.60

90. Para que se tenha dimensão do risco envolvido, vale mencionar as TIs Vale do Javari e
Yanomami, ambas com importante presença de indígenas isolados e de recente contato. Na
primeira, tais grupos étnicos estão indevidamente expostos ao contato com indivíduos que
circulam pelo estado da Federação com a maior taxa de mortalidade do país – o Amazonas – e, na
segunda, já foram confirmados 117 casos de COVID-19, e quatro óbitos. Ambas figuram no
ranking das 5 terras indígenas mais vulneráveis do país em relação ao COVID-19.61 Além disso, a
Terra Indígena Vale do Javari se encontra próxima aos municípios de Tabatinga e Benjamin
Constant, onde já foram registrados 645 e 570 casos, respectivamente. Já a Terra Indígena
Yanomami se encontra próxima aos municípios de Boa Vista, São Gabriel da Cachoeira e Santa
Isabel do Rio Negro, onde já foram registrados 1870, 672 e 24 casos, respectivamente.

91. Os dois exemplos servem para mostrar a urgência da imposição de barreira sanitária nas
terras indígenas com registros de povos isolados e naquelas com a presença de povos de recente
contato. Considerando que muitas terras são compartilhadas entre eles, estamos falando de
apenas 31 terras indígenas que exigem a barreira sanitária.

58
Ibidem, p. 83.
59
ONU. Oficina do Alto Comissionado das Nações Unidas. Directrices Relativas a la COVID-19, p. 08. Genebra, 14
de abril de 2020. Disponível eletronicamente em: <https://www.ohchr.org/Documents/Events/COVID-
19_Guidance_SP.pdf>.
60
Disponível eletronicamente em: <https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf>.
61
Como indicador de vulnerabilidade social considerou-se a disponibilidade de leitos hospitalares, números de casos
por município, número de óbitos, perfil etário da população indígena, vias de acesso e outros fatores relacionados com
a estrutura de atendimento da saúde indígena e mobilidade territorial. Disponível eletronicamente em:
<https://covid19.socioambiental.org>.

34
92. Porém, esse o isolamento não vem sendo assegurado pelo Estado brasileiro, pelo
contrário. Basta ver as declarações do Presidente da República, defendendo até o garimpo em
terras indígenas – o que obviamente estimula invasões –, bem como a recente nomeação para a
coordenação-geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai do pastor Ricardo Lopes
Dias, que já trabalhou por vários anos como missionário na Missão Novas Tribos do Brasil,
promovendo exatamente a tentativa de evangelização de povos indígenas isolados.62 Nem mesmo
o contexto de pandemia do coronavírus alterou esse cenário de desrespeito.

93. Nessa linha, o Observatório de Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de
Recente Contato – OPI emitiu o Informe nº 02, intitulado “A Ameaça do COVID-19 e o Risco de
Genocídio de Povos Indígenas e Isolados”, em que se destacou:

“Antes mesmo da pandemia, a vulnerabilidade epidemiológica dos povos


indígenas isolados e de recente contato já era um fator preocupante. Mais
vulneráveis à infecções virais, estariam expostos a todas as situações acima
relatadas, porém com maior risco.
De acordo com dois estudos realizados, pela Fiocruz e FGV e ISA e CSR/UFMG
algumas terras indígenas com a presença dos PIIRC são apontadas como as
mais vulneráveis do Brasil para a contaminação pelo COVID-19, como, por
exemplo, as terras indígenas Yanomami, Vale do Javari e Alto Rio Negro.
E pior, além da precária situação do sistema de saúde, a vulnerabilidade dos
PIIRC se intensifica com o aumento das invasões e da degradação
ambiental como no resto do Brasil. Isso porque praticamente todos os recursos
de vida desses povos estão conectados ao território. Sem o usufruto exclusivo de
seus territórios é impossível sobreviver com saúde.
Alguns PIIRC sofrem de maneira crônica com a invasão de seus territórios
tradicionais, sendo os invasores a maior fonte de contaminação para COVID-
19. As invasões, são, em geral, locais insalubres e violentos, com aglomeração
de pessoas e sem controle epidemiológico algum. Algumas invasões estão
localizadas muito próximas às aldeias e é frequente o encontro com invasores de
todo tipo, caçadores, pescadores ilegais e madeireiros. Além disso, é comum
serem deixados objetos contaminados pelo caminho que podem ser recolhidos
pelos isolados.
Como não há ações de fiscalização territorial ocorrendo, os povos indígenas de
recente contato que tiveram acesso à notícia da nova pandemia acionaram suas
próprias estratégias de defesa, já experenciadas no passado. Os grupos que
podiam, se isolaram em locais afastados dos postos de saúde e até das aldeias

62
Veja-se <https://www.google.com.br/amp/s/www.bbc.com/portuguese/amp/brasil-51319113>.

35
que ocupavam. Diante de o todo o cenário que já conhecem bem, isolar-se
tornou-se a principal estratégia de sobrevivência.
[...]
Não se vê nem a sombra de um monitoramento sério ocorrendo em nível
central. Temos a impressão que as diversas iniciativas locais são dispersas e
não coordenadas e, aparentemente, independentes uma das outras. É cada um
por si, do jeito que sempre ocorreu. Os povos indígenas criam estratégias
próprias de defesa como o isolamento e, os que têm apoiadores e colaboradores,
se viram como podem. Os profissionais de saúde, por sua vez, continuam usando
todos os tipos de improvisos pela falta crônica de infraestrutura e de materiais
básicos. E agora, mais ainda, desprovidos de Equipamentos de Proteção
Individual – EPIs adequados para se protegerem e também protegerem os
indígenas contra o Coronavírus.”

94. Em resumo, o Poder Público vem se omitindo gravemente na adoção de medidas


administrativas voltadas à garantia do isolamento dos povos indígenas isolados e de recente
contato. E essa omissão pode ter efeitos devastadores sobre esses povos, ceifando muitas vidas e
acarretando, talvez, até a extinção de grupos étnicos em situação de grande vulnerabilidade.

95. Por isso, deve ser determinado à União Federal que imponha imediatamente essas
barreiras sanitárias, de modo a proteger a integridade dos territórios indígenas em que haja registro
de presença de povos indígenas isolados ou de recente contato, pelo menos enquanto não forem
plenamente debelados os riscos inerentes à pandemia do coronavírus. Seguem, abaixo, duas
tabelas – uma sobre índios isolados e outra sobre índios de recente contato – com indicação do
nome dos grupos (quando existente) e das terras indígenas que ocupam. Elas são integralmente
baseadas em informações oficiais fornecidas pela Funai (docs. 26 a 29).

terra(s) indígena(s) povos isolados

Alto Tarauacá Isolados do alto Rio Humaitá*

Araribóia Awá Guajá

Caru Awá Guajá

Himerimã Himerimã

Igarapé Taboca, Isolados do Alto Humaitá

Kampa e Isolados do Rio Envira Isolados do Alto Humaitá e Mashco Piro

36
Kulina do Rio Envira Isolados do Alto Humaitá

Riozinho do Alto Envira Isolados do Riozinho

Kaxinauá do Rio Humaitá Isolados do Alto Humaitá

Kawahiva do Rio Pardo Kawahiva do Rio Pardo

Mamoadate Mashco Piro

Massaco Isolados da terra indígena Massaco

Piripkura Piripkura

Pirititi Pirititi

Rio Branco Isolados da terra indígena Massaco

Uru-Eu-Wau-Wau Yraparariquara

Tanaru "índio do buraco" ou Isolado da Terra


Indígena Tanaru

Vale do Javari Korubo e Warikama Dyapá

Waimiri-Atroari Pirititi

Yanomami Mochëatetea
*Devido a política do não contato, adotada desde 1987 pelo Estado brasileiro, muitos nomes ainda não são
conhecidos, sendo a referência do povo denominada pela localização geográfica.

terra(s) indígena(s) povos de recente contato

Zo'é Zo'é

Awa, Caru, Alto Turiaçu Awá,

Avá Canoeiro Avá Canoeiro,

Omerê Akun'tsu

Omerê Kanoê

Vale do Javari Korubo

Kampa e Isolados do Alto Envira e Alto Povo de Recente Contato do Xinane


Tarauacá

Waimiri-Atroari Waimiri-Atroari,

Arara da TI Cachoeira Seca Arara da TI Cachoeira Seca

37
Araweté Araweté

Suruwahá Suruwahá

Yanomami Yanomami

Alto Rio Negro Hupdah

Alto Rio Negro Yuhupdeh

Pirahã Pirahã

Enawenê-Nawê Enawenê-Nawê

Juma Juma

Apyterewa Parakanã*
*Vide docs. 28 (p. 25) e 29.

96. Outro ponto importante é o efetivo funcionamento da Sala de Situação, no contexto da


pandemia. O art. 12 da Portaria Conjunta nº 4.094/2018 do Ministério da Saúde e da Funai dispõe
sobre a necessidade de funcionamento da Sala de Situação, para subsidiar a tomada de decisões
dos gestores e a ação das equipes locais, diante do estabelecimento de situações de contato, surtos
ou epidemias envolvendo os Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato. Eis o teor do
preceito:

“Art. 12. Deverá ser ativada uma Sala de Situação para subsidiar a tomada de
decisões dos gestores e a ação das equipes locais diante do estabelecimento de
situações de contato, surtos ou epidemias envolvendo os Povos Indígenas
Isolados e de Recente Contato.
§ 1º A Sala de Situação terá como objetivos precípuos o compartilhamento e a
sistematização de informações, o favorecimento do processo decisório, a
organização de respostas para emergências e o monitoramento e avaliação das
intervenções realizadas.
§ 2º A Sala de Situação será composta por membros indicados pela SESAI/MS e
membros indicados pela FUNAI e poderá ser integrada também por
colaboradores convidados, com a anuência conjunta de ambos os órgãos.
§ 3º A Sala de Situação será convocada indistintamente pela SESAI/MS ou pela
FUNAI.
§ 4º A Sala de Situação não substitui as respectivas competências legais da
SESAI/MS e da FUNAI frente à promoção e proteção dos direitos dos Povos
Indígenas Isolados e de Recente Contato.”

38
97. No cenário da pandemia, o efetivo funcionamento da Sala de Situação é vital para que
possam ser dadas respostas rápidas e adequadas aos problemas surgidos com povos indígenas e
isolados, na medida em que eles forem aparecendo. Porém, pelo que se sabe, embora formalmente
constituída, não se têm notícias do efetivo funcionamento da Sala de Situação, e tampouco de suas
orientações. É fundamental que a Sala de Situação desempenhe suas funções, tão essenciais neste
momento – e não só no papel.

98. Por outro lado, diante da gravidade do quadro ora vivenciado – e considerando a
omissão e antagonismo político do governo federal diante dos direitos indígenas –, é fundamental
assegurar a participação, na Sala de Situação, de representantes de instituições independentes,
entre cujas missões figure atuar em favor de direitos indígenas, como o Conselho Nacional de
Direitos Humanos, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, além de
representantes indígenas, a serem indicados pela APIB.

– VI –

Desmatamento, doença e genocídio: a urgência sanitária da retirada de invasores não


indígenas das TIs63

99. As invasões de terras indígenas demarcadas afrontam o comando contido no art. 231, §
2º, da Constituição, que destina aos índios a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas
do solo, dos rios e dos lagos existentes nas TIs. Em tais territórios, que foram objeto de
regularização e homologação, também já houve apreciação pelo Poder Público sobre eventuais
direitos de ocupações de não indígenas, assim como a definição e pagamento de indenizações por
benfeitorias de boa-fé porventura cabíveis (art. 231, § 6º, CF/88).64 É fora de dúvida, portanto, que
invasores atuais de terras indígenas agem de forma absolutamente ilícita e violadora aos
direitos desses povos tradicionais.

63
Item elaborado com base no “Relatório técnico sobre o risco iminente de contaminação de populações indígenas
pelo novo coronavírus em razão da ação de invasores ilegais”, do Instituto Socioambiental – ISA, produzido por
Antonio Ovied, Elis Nice Oliveira de Araújo, Juliana de Paula Batista e Tiago Moreira dos Santos (doc. 30). Os
mapas, gráficos e vários trechos deste item foram extraídos do mencionado relatório.
64
Art. 231, § 6º, CF/88: “São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a
ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo,
dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei
complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma
da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.”

39
100. Todavia, é de conhecimento geral que o desmatamento e a mineração em terras
indígenas demarcadas apresentaram um aumento dramático a partir de 2018, e que esse
cenário se agrava a cada dia. Dados do PRODES, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais – Inpe, revelam que, em 2019, a taxa anual de desmatamento (avaliada entre agosto de
2018 e julho de 2019) em toda a Amazônia foi de 34,41%, mas que esse incremento foi de
80% quando consideradas apenas as terras indígenas!65 Confira-se, a propósito, gráfico que
compara o desmatamento em terras indígenas na Amazônia Legal na última década:

Desmatamento em Terras Indígenas na


Amazônia Legal (PRODES)
45 .000 ))0
4 2.679,27
40 .000 ))0
35 .000 ))0
30 .000 ))0
25.000 ))0
20.000 ))0
-.-. série l
15.000 ))0
10.000 ))0
5.000 ,00

º·ºº 20 10 2011 201 2 2013 2014 20 15 2016 20 17 2018 20 19

Desmatamento em Terras Indígenas na Amazônia Legal nos últimos 10 anos (PRODES/Inpe)

101. A mesma conclusão decorre da análise de dados coletados pelo Sistema de Detecção do
Desmatamento em Tempo Real – DETER do Inpe, que se destina a apoiar as atividades de
fiscalização dos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama) e que inclui
também dados de 2020:

65
BRASIL. Monitoramento do Desmatamento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite. PRODES/Inpe.
Disponível eletronicamente em: <http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/prodes>.

40
Desmatamento acumulado até 2019 e incremento até 10.06.2020 na Amazônia Legal (PRODES/Inpe)

102. Entre janeiro e maio de 2020, o DETER registrou aumento de 32% nos alertas de
desmatamento em relação ao mesmo período de 2019. Com 61.200 hectares de áreas desmatadas,
equivalentes ao mesmo número de campos de futebol, maio foi o mês com a maior área de alerta
de desmatamento em 2020. Com efeito, os dados mostram que, em maio de 2020, houve aumento
de 34% nos alertas de desmatamento por corte raso de vegetação na Amazônia legal em relação ao
mês de abril do mesmo ano.

103. As principais terras indígenas atingidas pelo desmatamento acumulado entre 2019 e
2020 são: Ituna/Itatá, Cachoeira Seca do Iriri, Apyterewa, Trincheira Bacajá, Parque Indígena do
Xingu, Marãiwatsédé, Kayapó, Munduruku, Manoki, Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayabi,
Parque Indígena Aripuanã, Batelão, Sete de Setembro, Waimiri Atroari, Zoró, Yanomami,
Roosevelt, Panará, Urubu Branco, Rio Guaporé e Wawi. Elas concentram 90% do desmatamento
em terras indígenas ocorrido no período.

104. Como se sabe, o aumento expressivo da perda de vegetação é um indicador


importante da ocorrência de invasões com as finalidades de exploração ilegal dos recursos

41
naturais e de apropriação fundiária.66 Nesse sentido, destaca-se que cerca de 6% do
desmatamento detectado pelo DETER em 2019 foi classificado como advindo de mineração ilegal,
atividade de alto impacto químico e biológico para o meio ambiente, e de grave impacto humano
para os povos indígenas.67 Os registros realizados até junho de 2020 mostram que esse índice
já chega a 23%, quase quatro vezes mais do que ocorreu no ano anterior, tendo atingido um
recorde histórico de 10.557 hectares degradados.68 Confira-se:

Participação do garimpo nos totais de desmatamento(% ) (DETER)


25

20

15
~
~
ê:
~
o 10
CL

5 5 6
4

o
2017 2018 2019 2020

Ano

Desmatamento causado por garimpo em TI, detectado pelo DETER entre 2017 e 2020 (até 10.06.2020).

105. Pois bem. Se, em condições normais, as invasões de terras indígenas demarcadas já
constituem comportamentos ilícitos graves, que demandam a intervenção do Poder Público
em favor dos direitos dos povos indígenas e da proteção ao meio ambiente, isso se torna
ainda mais urgente no contexto da pandemia provocada pelo novo coronavírus.

66
Ao lado do desmatamento, a degradação ou o corte seletivo de madeira nas terras indígenas, estágio anterior à
derrubada total da floresta, é um outro indicador importante da ocorrência de invasões ou atividades ilegais nas TIs. O
DETER também vêm identificando o aumento dessas atividades, informando que entre 2018 e 2019 ele foi da ordem
de 83%.
67
De acordo com o Parecer Técnico nº 1.495 de agosto de 2019 produzido pela Secretaria de Perícia, Pesquisa e
Análise do Ministério Público Federal (SPPEA/MPF), que busca a quantificar os danos ambientais decorrentes de
atividades de exploração mineral de ouro no bioma amazônico, o método de lavra a céu aberto, usado pela maioria das
minas de minerais metálicos, provoca impactos no nível fisionômico, químico, biológico e humano, tais como
“Desmatamento, destruição da fauna e da flora locais, alterações físico-químicas dos leitos aquáticos e poluição com
insumos químicos utilizados na mineração estão entre os principais danos ocasionados”. BRASIL. MINISTÉRIO
PÚBLICO FEDERAL. Parecer Técnico nº 1.495/2019 – SPPEA. Disponível eletronicamente em:
<http://www.mpf.mp.br/am/sala-de-imprensa/docs/parecer-sppea-ft-amazonia>.
68
Nesse sentido, é o relatório do IBAMA obtido pelo repórter Leandro Prazeres e usado como base para a reportagem
“Desmatamento causado por garimpos na Amazônia aumenta 23% em 2019 e bate recorde histórico”. O Globo,
06.05.2020. Disponível eletronicamente em: <https://oglobo.globo.com/brasil/desmatamento-causado-por-garimpos-
na-amazonia-aumenta-23-em-2019-bate-recorde-historico-1-24412968>.

42
106. Como se sabe, o avanço do garimpo, da extração de madeira e outras atividades ilegais
sobre as terras indígenas é acompanhado do crescimento de contingentes de populações não-
indígenas empregadas no esforço de derrubada da floresta e extração de minerais. Além de
provocar extensivos danos ambientais às TIs, os invasores são disseminadores potenciais da
COVID-19 entre os indígenas, em violação ao seu direito à saúde e ao isolamento durante a
pandemia, além de pôr em risco a sobrevivência de grupos étnicos inteiros. Trata-se, repita-
se, de risco real de genocídio!

107. O fluxo migratório de não índios em terras indígenas na realização de atividades ilegais
cria situações favoráveis à transmissão e multiplicação de diferentes morbidades, como febre
amarela, malária e leishmaniose; além de doenças transmissíveis, como tuberculose; hanseníase;
sífilis, hepatites e HIV.69 Com a emergência do novo coronavírus, a presença de garimpeiros,
madeireiros e outros invasores nas áreas indígenas passa a representar fator gravíssimo de
risco à exposição das populações indígenas à COVID-19.

108. A alta transmissibilidade da doença põe os povos indígenas diante de um cenário


devastador, pois ela se soma à vulnerabilidade social, econômica e de saúde dessas
populações, que vivem em regiões remotas, onde não há acesso à assistência médica e
logística para o transporte de enfermos. São grupamentos humanos que, não raro, apresentam
modos de vida com alto grau de contato social, moradias coletivas, elevada densidade demográfica
das habitações e aldeias, compartilhamento de utensílios etc – o que favorece o espraiamento do
vírus. Conforme alerta emitido pela Fiocruz ao governo brasileiro, em 22 de abril de 2020, “o
crescimento exponencial de casos confirmados de Covid-19 na população brasileira e a clara
interiorização da circulação viral, com destaque para os estados do Amazonas e Amapá, nos
alertam para os impactos dessa pandemia nos povos indígenas”.70

109. Como já destacado nesta petição, os povos indígenas são grupos étnicos de grande
vulnerabilidade socioepidemiológica, demandando a adoção de medidas especiais para sua
salvaguarda. Dada as características sociodemográficas das populações indígenas, com contato

69
A. F. Barbieri, I. O. Sawyer. e B.S Soares Filho. “Population and Land Use Effects on Malaria Prevalence in the
Southern Brazilian Amazon”. Hum Ecol 33, 847–874 (2005). Disponível em: <https://doi.org/10.1007/s10745-005-
8213-8>. Elisabeth Carmen Duarte e Cor Jesus Fernandes Fontes. “Associação entre a produção anual de ouro em
garimpos e incidência de malária em Mato Grosso - Brasil, 1985-1996”. Rev. Soc. Bras. Med. Trop. [online]. 2002,
vol.35, n.6 [cited 2020-06-12], pp.665-668.
70
BRASIL. FIOCRUZ. Risco de espalhamento da COVID-19 em populações indígenas: considerações preliminares
sobre vulnerabilidade geográfica e sociodemográfica. Disponível em:
<https://gitlab.procc.fiocruz.br/mave/repo/blob/master/Relat%C3%B3rios%20t%C3%A9cnicos%20-%20COVID-
19/procc-emap-ensp-covid-19-report4_20200419-indigenas.pdf>. Acesso em: 17.06.2020.

43
social intenso e constante entre seus integrantes, pode-se aplicar a elas modelos epidemiológicos
simples relativos à transmissão do vírus em ambientes fechados. Esses modelos revelam que uma
única pessoa infectada com o Sars-CoV-2 pode escalar um surto epidemiológico para até
30% de uma população de 148 pessoas. É o que se constata em estudo de caso conduzido por Ye
et al:71

Day
30
a ímear Seale

Populalion not
1mmune lO
disease.
l Susceptible
25 (l 6 _5296)
- 51 day 80

Population
currently 11
incubation.
l Exposed
31 (20.7596)
-21 day

Number oi.
infections actively
circulating
l
■ lnfectious
50 (33_6696)
2 1 day
60

QRemoved
Population oo :
longe, infectious ; 43 (29.08%)
due to ,solauon_ or : 41 day
1mmunny. ;

O Recovered
Fui recoveries. ! ll (7.7396)
O Hospitalized
ACiive : 3 (2. 0696)
hosprt.alizations. ! o/ day

■ Fatalities
Deaths. i
:
1 (O. 9596)
0/day
111111111111111111011111111111111111111111111111111111111110111
D 20 4G 6( 80 120 140 160 180

110. No modelo apresentado, o ‘R0’ – índice de reprodução básica da epidemia – pode ser
até três vezes maior para população em alto grau de contato do que para grupamentos
urbanos. Daí se pode ter uma noção da taxa de transmissibilidade da COVID-19 em povos
indígenas, o que também tende a se refletir no alto grau de letalidade da doença – agravado, como
já indicado, pela dificuldade ou inexistência de acesso à assistência médica e logística para o
transporte de enfermos.

111. Como se verá, esse quadro dramático já começou a se instalar em terras indígenas
brasileiras. Nelas, o fluxo ilegal de não índios, motivado pelo garimpo e pelo desmatamento,
dentre outras atividades, submete a inúmeros tipos de violência povos tradicionais que, de outra
forma, estariam mais protegidos dentro de suas comunidades. A mais recente dessas violências é
justamente a exposição ao novo coronavírus, que ameaça pôr fim à história de etnias que lutam, há

71
YE et al. Zhonghua Liu Xing Bing Xue Za Zhi. 2020;41(0): E065. doi:10.3760/cma.j.cn112338-20200316-00362.
Disponível em:https://gabgoh.github.io/COVID/.

44
séculos, para sobreviver. Cumpre ao Estado brasileiro evitar esse genocídio, tomando medidas
emergenciais para a retirada de invasores das terras indígenas e para impedir que, uma vez
retirados, a elas tentem retornar.

112. Os itens a seguir voltam-se a comprovar que os invasores de terras indígenas não
estão em home office, nem cumprem qualquer tipo de medida de isolamento social. Na
ausência de providências enérgicas do Poder Público, eles continuarão expondo os indígenas ao
risco real e iminente de contaminação pelo coronavírus.

VI.1 Terra Indígena Yanomami

113. A TI Yanomami, homologada pelo Decreto s/n, de 26 de maio de 1992, é coabitada


pelos Yanomami, pelos Yek’wana e pela confirmada presença dos índios isolados Moxihatëtëma.
Há, ainda, evidências em estudo de outros oito grupos indígenas em isolamento voluntário na área.
A população estimada é de 27.398 indígenas, vivendo em cerca de 331 comunidades. A TI
Yanomami se localiza em uma área de 9,6 milhões de hectares, entre o Amazonas e Roraima,
Estados que se encontram entre os primeiros do Brasil em proporção de casos da Covid-19, em
relação às suas respectivas populações totais.

114. Segundo o PRODES, 2019 foi o ano de maior taxa de desmatamento na TI Yanomami
nos últimos 10 anos. Foram 418 hectares, um aumento de 1.686% em relação a 2018! É o que
demonstra o gráfico de Desmatamento na Terra Indígena Yanomami entre 2010 e 2019,
apresentado a seguir:

450.00

400.00
350.00
ro
: . 300.00
o
ê: 250.00
~
E
"'
.;200.00
E 150.00
~
~
o
100.00
50.00
0.00
2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
Ano

45
115. Esse triste recorde não pôs fim à sanha dos invasores, como demonstra mapa relativo
aos dados mais recentes do DETER:

Alertas de desmatamento na TI Yanomami entre 2019 e 10.06.2020 (DETER)

116. Até 2018, estimava-se a existência de 4 mil garimpeiros na TI Yanomami. Desde o


início de 2019, contudo, houve um aumento dramático da atividade garimpeira na área, com um
número estimado em 20 mil invasores presentes na TI atualmente. O sistema de
monitoramento do ISA (SIRAD72) mostrou que 1.925,8 hectares de florestas já foram degradados
pelo garimpo ilegal, em dados acumulados até maio 2020. Somente em março de 2020, cerca de
114 hectares de floresta foram destruídos pelo garimpo.73 Não bastasse o volume assustador das

72
O Sirad é um sistema de monitoramento sistemático do desmatamento que utiliza imagens de radar. Ele usa scripts
da plataforma Google e técnicas de processamento e mapeamento de imagens para detectar anomalias na cobertura da
terra. Por meio das imagens de radar é possível obter informações mesmo em período de alta cobertura de nuvens
(quando o sistema DETER não funciona, pois os seus sensores detectam ondas e, por isso, não atravessa as nuvens).
73
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). O impacto da pandemia na Terra Indígena Yanomami. Relatório.
Disponível eletronicamente em: <https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/covid-19-pode-
contaminar-40-dos-yanomami-cercados-pelo-garimpo-ilegal>.

46
invasões, elas se encontram muito próximas – cerca de 5km – das residências de grande parte dos
yanomamis, sujeitando a TI a risco real e permanente de contaminação.

117. Diante desse quadro, estudo realizado pelo ISA, em parceria com a UFMG e revisado
pela Fiocruz, demonstra que, “se nada for feito para conter a transmissão da doença, cerca de
5.600 Yanomami podem ser infectados, considerando apenas as aldeias próximas às zonas de
garimpo. Isso representa 40% da população que vive nessas áreas”. O estudo explica que o
quadro geral de saúde da população indígena e suas práticas culturais agravam a probabilidade de
alta taxa de transmissão e mortalidade decorrente da COVID-19. Confira-se:

“Por razões culturais, a implementação de medidas de isolamento social é um


desafio. Os Yanomami, assim como outros povos indíge-nas, compartilham suas
casas entre várias famílias, assim como cuias e utensílios domésticos. Se uma
doença altamente contagiosa como a Covid-19 entrar na comunidade, é muito
difícil impedir a sua transmissão. Por isso, considerando a invasão garimpeira e
os hábitos culturais, cenários de transmissão intensa têm grande chance de
acontecer.
Os Yanomami apresentam várias fragilidades em seu quadro geral de saúde,
inclusive um histórico de doenças respiratórias. Assim, se a letalidade for duas
vezes maior do que a população não indígena, 207 a 896 Yanomami poderiam
morrer em decorrência da Covid-19 nessas zonas impactadas pelo garimpo, o
que representaria 6,5% da população da TI (ou destas comunidades).”74

118. Recentemente, a Hutukara Associação Yanomami pediu o deferimento de medida


cautelar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para a retirada dos garimpeiros
ilegais da TI Yanomami. Em informações adicionais prestadas à CIDH em 21 de junho de 2020, a
associação confirma a situação ora narrada, afirmando que garimpeiros estão muito próximos de
malocas dos indígenas isolados Moxihatëtëma e que, em plena pandemia, chegaram a invadir
malocas Yanomami:

“A Hutukara Associação Yanomami recebeu no dia 09 de junho uma carta [...]


da equipe missionária da Missão Catrimani com informações atualizadas sobre
a situação do garimpo, denunciando que três garimpeiros invadiram a maloca
de Maxiu e exigiram fazer uso dos equipamentos de radiofonia para solicitar
mantimentos que, segundo eles, ainda não haviam sido encaminhados. No dia
15 de junho, a Hutukara Associação Yanomami recebeu uma segunda carta com

74
Ibidem, p. 04.

47
informações sobre a situação do garimpo na região do rio Catrimani, próximo
às comunidades de Waroma e Pacú, onde as informações recebidas indicam a
presença de 5 balsas de garimpeiros armados, que estão aliciando indivíduos
indígenas e mantendo as comunidades sob ameaça [...].
Ao mesmo tempo, monitoramentos por satélite apontam que a área degradada
pelo garimpo continuou avançando a despeito da pandemia [...]. O último
boletim do sistema de monitoramento elaborado a pedido da HAY pela
organização parceira Instituto Socioambiental (ISA) indica um aumento de 39
hectares em área degradada pelo garimpo na TIY em relação ao mês anterior,
concentrado principalmente nas regiões de Aracaça, Waikás, Kayanau, Homoxi
e Parima. Outras áreas de garimpo não puderam ser identificadas via satélite
pela menor escala de seus impactos. Sabe-se, contudo, dezenas de
acampamentos de garimpeiros menores, que ameaçam a saúde e a sobrevivência
física e cultural dos Yanomami e Ye’Kwana dentro da terra indígena.
Embora não haja informações novas em relação ao grupo indígena em
isolamento voluntário, Moxihatëtëma, persiste a situação de elevado risco em
que se encontram, com focos de garimpo localizados a poucos quilômetros de
sua maloca que chegam a contar com pistas de voo clandestinas. Os
garimpeiros perambulam pelas matas para caçar e pescar, qualquer encontro
acidental ou intencional com esse grupo poderá ser desastroso e ocasionar um
genocídio, visto que eles não possuem defesas imunológicas para doenças
comuns, como a gripe, não contam com qualquer atendimento de saúde e
estão em áreas remotas.”

119. Conforme exposto pela Hutukara Associação Yanomami, tais informações demonstram
a continuidade da circulação de garimpeiros na TIY de forma sistemática, rotineira e impune,
“invadindo comunidades indígenas e as ameaçando sem maiores constrangimentos, à revelia do
Estado e ignorando a situação de ilicitude em que se encontram. E mais, comprova-se o risco de
contágio por COVID-19 pelos mesmos garimpeiros que continuam circulando na TIY”. No
documento enviado à CIDH, a associação também denuncia a possibilidade de mortes em massa
na TI Yanomami, que carece de estrutura médica e logística para a retirada de eventuais doentes:

“O trânsito contínuo de garimpeiros para as cidades com altas taxas de


contaminação e sua entrada na TIY pode levar a disseminação e contágio dos
Yanomami. Vale lembrar que a TIY está distante de qualquer centro urbano e
que a retirada dos indígenas do território demanda uma logística difícil e
demorada, que, ao lado das insifuciências estruturais do Distrito Sanitário
Especial Yanomami apontadas na inicial, poderá inviabilizar o socorro de
pessoas eventualmente contaminadas.”

48
120. Ressalte-se, por fim, que desde o começo da pandemia, a Hutukara Associação
Yanomami vem oficiando ao Conselho da Amazônia, ao Ministério da Justiça e Segurança Pública,
ao Ministério da Defesa e Forças Armadas, ao Ibama e aos Presidentes da Câmara dos Deputados
e do Senado Federal sobre a gravidade da situação. A associação clama pela retirada dos mais de
20 mil garimpeiros que invadiram a TI, mas suas reivindicações vêm sendo ignoradas. No dia 26
de junho, houve grave confronto com garimpeiros, que resultou na morte de dois jovens
yanomamis. A situação é de gravíssima tensão, e iminência de conflito aberto entre indígenas e
garimpeiros, em plena pandemia.75

121. Por tudo isso, verifica-se a urgência da retirada de garimpeiros da TI Yanomami. Não se
pode perder de vista o alerta conjunto do ISA, da UFMG e da Fiocruz no sentido de que “os
Yanomami são o povo mais vulnerável à pandemia de toda a Amazônia brasileira. Além da
invasão garimpeira, os indígenas sofrem com uma grande vulnerabilidade social e um frágil
atendimento de saúde”.76 O cenário é dramático e exige providências imediatas.

VI.2. Terra Indígena Karipuna

122. A Terra Indígena Karipuna, habitada pelos indígenas de mesmo nome, está localizada
entre os municípios de Nova Mamoré e Porto Velho, em Rondônia, a uma distância de cerca de
150 quilômetros da capital. O acesso por estradas deveria facilitar a disponibilidade de serviços,
como atendimento médico, mas o que se vê é que a proximidade das frentes de expansão
econômica vem marcando de tragédia a história desse povo. A TI Karipuna foi homologada apenas
em 1998, por intermédio do Decreto s/n de 09 de setembro de 1998, com 152.930 hectares, 20
anos depois da primeira tentativa de estabelecer uma área para esse povo.

123. Nos últimos dez anos, a TI Karipuna tem se mantido entre as dez terras indígenas mais
desmatadas do país, sendo também uma das mais ameaçadas por queimadas promovidas por não
índios. Desde 2017, o crescimento do desmatamento se tornou ininterrupto, tendo-se observado, só
entre 2018 e 2019, um aumento de 75,5% do total acumulado, totalizando 2.484 hectares. Essa é a
maior taxa de desmatamento da última década e um sinal claro do aumento das invasões, que

75
Veja-se https://g1.globo.com.br/rr/roraima/noticia/2020/06/27/yanomami-temem-ciclo-de-violencia-apos-jovens-
indigenas-serem-mortos-por-garimpeiros-em-rr.ghtml.
76
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). O impacto da pandemia na Terra Indígena Yanomami. Relatório. Op.
cit., p. 04.

49
vêm sendo acompanhadas de ameaças e intimidações à população indígena. Com efeito, em
outubro de 2019, ganhou repercussão nacional a notícia de que invasores atacaram um posto da
Funai localizado dentro da TI, que foi queimado e depredado.77

124. Os dados mensais do DETER revelam que a TI Karipuna já está passando por
desmatamento crescente desde abril e que a tendência é de seguir aumentando nos próximos
meses, no período do verão amazônico, que se estende do final de maio até setembro. Confira-se:

Terra Indígena Karipuna


300
V,
t 250
!i
] 200

~ 150
~

E 100
iE 50
~
~
o o

Alertas de desmatamento na TI Karipuna entre 2019 e maio de 2020 (DETER).

125. Observe-se, ainda, a distribuição das áreas abertas na TI Karipuna em 2019 e no


primeiro semestre de 2020 (até 10.06.2020), segundo os alertas de desmatamento DETER:

77
Carolina Dantas. “Terras indígenas têm alta de 74% no desmatamento; área mais afetada protege povo isolado”. G1,
28.11.2019. Disponível eletronicamente em: <https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/11/28/terras-indigenas-tem-
alta-de-74percent-no-desmatamento-area-mais-afetada-protege-povo-isolado.ghtml>.

50
Alertas de desmatamento na TI Karipuna entre 2019 e 10.06.2020 (DETER).

126. O ataque constante à área demarcada e ao povo que a habita tem apresentado resultados
terríveis. A população vivendo na TI hoje é de aproximadamente 21 pessoas, enquanto há seis
anos esse número era de 55.78 Nesse cenário, as invasões na TI Karipuna tendem a provocar a
dispersão do novo coronavírus entre o grupo, o que pode custar até a sua existência física e
sociocultural.

127. Não por acaso, a TI Karipuna foi uma das Terras Indígenas citadas em carta da
Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, enviada ao Ministério da
Justiça e da Segurança Pública em 20 de abril de 2020. A carta solicita a “adoção de medidas
urgentes” à proteção das terras indígenas “diante da possibilidade de uma catastrófica
mortandade entre povos” e até “da extinção de alguns grupos”. A carta alerta ainda para o fato de

78
ISA. Terras Indígenas no Brasil. TI Karipuna. Disponível eletronicamente em: <https://terrasindigenas.org.br/pt-
br/terras-indigenas/3723>.

51
que grileiros se aproximam da aldeia Panorama, na TI Karipuna, “onde os indígenas se
refugiaram para tentar se proteger do novo Coronavírus”.79

128. Em reportagem publicada pela Revista Veja, em 30 de abril 2020, o repórter Eduardo
Gonçalves destacou: “As entradas de áreas de reserva indígena costumam ser sinalizadas no
Brasil com uma placa escrita ‘Terra Protegida’ em letras maiúsculas. Proteção, no entanto, é o
que menos se vê por esses locais. Desde o ano passado, o garimpo ilegal tem avançado com força
sob as ‘terras protegidas’ e as ações aumentaram agora em meio à pandemia de Coronavírus.
Com as invasões, as tribos indígenas sofrem uma dupla ameaça - perder território e ser
infectada pela Covid-19”.80

129. Nesse quadro, a própria continuidade da existência do povo indígena Karipuna depende
da concessão das medidas requeridas na presente ADPF.

VI.3. Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau

130. A Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau está localizada na região central de Rondônia, tem
1.867.120 ha e foi homologada pelo Decreto nº 275 de 29 de outubro de 1991. Além do povo
indígena Uru-Eu-Wau-Wau, vivem na terra também os Amondawa e os Oro Win – estes
sobreviventes de um massacre ocorrido em agosto de 1963.81 A população desses grupos é
estimada em 209 pessoas. Além desses povos, existem ao menos quatro registros de grupos
indígenas vivendo em isolamento voluntário na TI, cujo quantitativo populacional se desconhece.

131. A TI vem sofrendo com a ação de invasores e roubo de madeira, tendo sido a oitava
mais devastada no país em 2019. Naquele ano, o desmatamento na TI Uru-Eu-Wau-Wau
atingiu a maior taxa dos últimos 10 anos, 1.081,9 ha, um aumento de 15% em comparação
com 2018. Confira-se, a propósito, os dados do PRODES sobre o desmatamento na terra indígena:

79
Daniela Chiaretti. “Comissão alerta Moro para ‘imenso risco’ aos povos indígenas”. Valor Econômico, 22.04.2020.
Disponível eletronicamente em: <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/04/22/comissao-alerta-moro-para-
imenso-risco-aos-povos-indigenas.ghtml>.
80
Eduardo Gonçalves. “Vídeos flagram aviões e retroescavadeiras em garimpo ilegal na Amazônia”. Veja,
30.04.2020. Disponível eletronicamente em: <https://veja.abril.com.br/brasil/videos-flagram-avioes-e-
retroescavadeiras-em-garimpo-ilegal-na-amazonia/>.
81
O massacre foi organizado pelo então seringalista Manoel Lucindo da Silva, denunciado em 1978 e condenado em
1994 pelo Tribunal do Júri Popular pelo crime de genocídio.

52
Desmatamento na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau (PRODES)
1250

1000

750

soo

250

0- ---
2010
---
2011
---
2012
- - -2014
2013
- - -2015
- - -2016
- - -20-
17
- -2018
- - -2019
--

Desmatamento na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau entre 2010 e 2019 (PRODES, Inpe).

132. O primeiro semestre de 2020 já apresenta uma área desmatada e degradada maior
do que a dos anos anteriores, de acordo com dados do DETER.

133. Neste ano, a Polícia Federal desarticulou uma quadrilha de grileiros acusada de invadir,
grilar e desmatar a TI Uru-Eu-Wau-Wau.82 Os grileiros haviam dividido a terra em 328 lotes, que
eram vendidos por até R$ 40 mil. Em 2019 a Operação Terra Protegida desarticulou outra
organização criminosa que promovia invasões, grilagem e desmatamentos na TI.83

134. Para entender a dinâmica das invasões e depredações dessa TI – e que é extensível a
outras –, deve-se compreender como funciona o Cadastro Ambiental Rural (CAR). Invasores
fazem o CAR (que é autodeclaratório) de TIs como se fossem áreas privadas. Uma vez que os
órgãos ambientais demoram a fazer a validação e a anular esses cadastros ilegais, os invasores
usam o documento para desmatar, lotear e vender a área para terceiros. O objetivo desse
comportamento é criar fatos consumados, que depois auxiliarão o invasor ou o terceiro a busca
anular processos de demarcação em curso ou, ainda, a tentar a redução de TIs homologadas, sob a

82
AMAZÔNIA REAL. Por Elaíze Farias. PF desmonta esquema de grilagem que causou prejuízo ambiental de
R$ 22 mi na terra dos índios Uru-Eu-Wau-Wau. Notícia de 14.08.2017. Disponível em:
<https://amazoniareal.com.br/pf-desmonta-esquema-de-grilagem-que-causou-prejuizo-ambiental-de-r-22-mi-na-terra-
dos-indios-uru-eu-wau-wau/>. Acesso em: 19.06.2020.
83
BRASIL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Força-tarefa Amazônia fez quatro operações e denunciou 30
pessoas e oito madeireiras por crimes em Rondônia. Notícia de 16.10.2019. Disponível em:
<http://www.mpf.mp.br/ro/sala-de-imprensa/noticias-ro/forca-tarefa-amazonia-fez-quatro-operacoes-e-denunciou-30-
pessoas-e-oito-madeireiras-por-crimes-em-rondonia>.

53
alegação de que elas teriam deixado de ser essenciais à sobrevivência física e cultural dos grupos
indígenas.

135. Na TI Uru-Eu-Wau-Wau, há inúmeros cadastros que ainda não foram nem validados,
nem anulados pelo Estado de Rondônia. Cerca de 40% do total desmatado na TI incide em áreas
registradas no CAR. Ademais, existem CAR em áreas da terra indígena que ainda não foram
desmatadas. É o que mostra a figura abaixo:

Registros do Cadastro Ambiental Rural (CAR) incidentes sobre a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau e alertas de desmatamento
entre 2019 e 10.06.2020 (DETER).

136. Tudo indica que as áreas objeto de CAR e ainda não desmatadas terão prioridade para os
invasores e desmatadores, que provavelmente passarão a atuar de forma coordenada e sistemática
no início da seca, ou seja, entre maio e setembro. A tendência é uma explosão do desmatamento
na TI Uru-Eu-Wau-Wau nestes e nos próximos meses.

137. Embora o principal problema da Uru-Eu-Wau-Wau seja a invasão por grileiros, que
efetuam o corte raso na floresta, madeireiros e garimpeiros ilegais também atuam na TI. As
ameaças à referida terra indígena culminaram, em abril de 2020, com o assassinato de Ari

54
Uru-Eu-Wau-Wau, que fazia parte do grupo de vigilância territorial do povo indígena Uru-
Eu-Wau-Wau e registrava e denunciava as extrações ilegais de madeira na TI.84

138. É preciso ressaltar o efeito avassalador que a contaminação da população da Terra


Indígena Uru-Eu-Wau-Wau pelo coronavírus pode representar, diante da vulnerabilidade
epidemiológica dessas comunidades. A ameaça é ainda maior para as populações vivendo em
isolamento voluntário no interior desta terra. Como dito no item anterior, diferentemente dos
povos com um histórico de contato com a população geral, os grupos em isolamento voluntário
não têm qualquer defesa imunológica às doenças trazidas por não indígenas. A disseminação do
coronavírus entre os índios isolados da TI Uru-Eu-Wau-Wau representa risco real de extermínio
em massa desses grupos. Em razão disso, é urgente que o Estado brasileiro retire os invasores da
referida terra indígena.

VI.4. Terra Indígena Kayapó

139. Os Kayapó se destacaram nos anos 1980 e 1990 pela defesa de suas terras nos Estados
do Pará e Mato Grosso, que restaram homologadas, com 3.284.005 hectares, pelo Decreto nº 316,
de 29 de outubro de 1991. A população atual da TI supera 5 mil pessoas, distribuídas em uma rede
extensa de mais de 50 aldeias. Além dessa população, há registro de um grupo em isolamento
voluntário, ainda em estudo (isolados do Rio Fresco).

140. Dados do PRODES revelam que os dois últimos anos foram os de maior taxa de
desmatamento na TI Kayapó. O aumento do desmatamento em 2019 foi de 159%, a taxa mais alta
da última década:

84
G1. “Indígena Uru-eu-wau-wau morto em Rondônia vinha sofrendo ameaças havia meses, dizem ambientalistas”,
20.04.2020. Disponível eletronicamente em: <https://g1.globo.com/ro/rondonia/noticia/2020/04/20/indigena-uru-eu-
wau-wau-morto-em-rondonia-vinha-sofrendo-ameacas-havia-meses-dizem-ambientalistas.ghtml>.

55
Terra Indígena Kayapó
700
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- 400
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Cl 0

~ 2019 - 2020

Desmatamento na Terra Indígena Kayapó entre 2010 e 2019 (PRODES, Inpe)

141. Por sua vez, dados do DETER indicam que a tendência do desmatamento na TI Kayapó
estava ascendente nos meses de abril e maio. Essa tendência tende a se manter no segundo
semestre de 2020, no período do verão amazônico (período da seca), como ocorreu no ano
passado. Veja-se gráfico e mapa de alertas de desmatamento na TI Kayapó para 2019 e início
de 2020 (até 10.06.2020):

Desmatamento na Terra Indígena Kayapó (PRODES)


2.500,00

2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019

Alertas de desmatamento na TI Kayapó entre 2019 e maio de 2020 (DETER).

56
Alertas de desmatamento na TI Kayapó entre 2019 e 10.06.2020 (DETER)

142. O garimpo é a principal causa da degradação ambiental na Terra Indígena Kayapó: em


2019 dos 1.926 hectares de desmatamento registrados na TI, 71% haviam sido causados por
atividades de mineração ilegal. Dos 197 hectares de degradação registrados nos primeiros
meses de 2020, 90% decorreram dessa atividade ilícita.

143. A exemplo do exposto em relação à TI Yanomami, a presença de garimpeiros na terra


Kayapó vem aumentando significativamente o risco dessa população ser infectada pelo novo
coronavírus. Deve-se destacar que muitas aldeias estão em locais isolados, muito distantes de
centros urbanos com UTIs. A presença de invasores aumenta enormemente o risco de
contaminação dessas comunidades.

VI.5. Terra Indígena Araribóia

144. A Terra Indígena Araribóia, localizada na região centro-oeste do Maranhão, é habitada


pelos indígenas Guajajara e Awá-Guajá. Nela, também residem grupos Awá, que vivem em

57
isolamento voluntário. A população estimada da TI é de 16 mil pessoas. A TI, que conta com 413
mil hectares, foi homologada pelo Decreto nº 98.852, de 23 de janeiro de 1990.
145. A exploração madeireira na TI Araribóia intensificou-se a partir de 2019. Segundo
dados do PRODES, o desmatamento aumentou 23% entre os anos de 2018 e 2019. Os dados do
DETER de 2019 revelam que a exploração ilegal de madeira se concentra nas bordas da TI
Araribóia, como indicado abaixo:

Alertas de desmatamento na TI Araribóia em 2019 e início de 2020 (até 10.06.2020).

146. Organizações criminosas que exploram a extração ilegal de madeira são presenças
constantes em Araribóia. O sistema de monitoramento do ISA (SIRAD) já detectou mais de 1,2
mil quilômetros de estradas e ramais ilegais no interior da TI.85 O desmatamento acumulado até
março de 2020 já consumiu 29.845,9 hectares de floresta (ou 29.845 campos de futebol). Durante
a pandemia da COVID-19, o desmatamento não cessou e em abril foram detectados 18,2
hectares desmatados.

85
Clara Roman. “Araribóia sofre com violência, invasões e desmatamento”. ISA, 06.11.2019. Disponível
em:<https://www.socioambiental.org/en/node/6576>

58
147. O contato de madeireiros com os povos indígenas naquela área é constante, e vem
frequentemente acompanhado de violência. Em um período de 5 meses, 5 indígenas
Guajajara foram assassinados na região! Em 1º de novembro do ano passado,86 Paulo Paulino
Guajajara foi morto dentro da TI Araribóia. Ele era um Guardião da Floresta – um grupo de
monitoramento territorial, formado pelos próprios indígenas para evitar invasões de madeireiros e
proteger a TI. O último homicídio, o de Zezico Rodrigues, ocorreu em 31 de março deste ano.87
Zezico também lutava pela expulsão de madeireiros da TI Araribóia.

148. A escalada de conflitos, segundo os Guajajara, está relacionada com as invasões, roubo
de madeira e ameaças. As invasões tendem a se intensificar nos próximos meses, no verão
Amazônico (período da seca). Assim, os Guajajara, Awá-Guajá e Awá estarão sujeitos a mais
violência, agravada por riscos reais de contaminação pela COVID-19.

VI.6. Terra Indígena Munduruku

149. A Terra Indígena Munduruku é habitada pelos Munduruku e pelos Apiaká, tendo uma
população estimada de 6.518 pessoas. A TI tem 2.382.000 hectares, está situada no sudoeste do
Estado do Pará e foi homologada pelo Decreto s/nº de 26 de fevereiro de 2004.

150. Apesar de recorrente, a presença de atividades ilegais de mineração na TI Munduruku


eram dispersas e pontuais até 2010. Desde então, ela vem crescendo exponencialmente. Segundo o
PRODES, 2019 foi o ano de maior taxa do desmatamento na TI Munduruku nos últimos 10
anos, totalizando 1.826,8 ha desmatados, o que representou um aumento de 177% em
relação a 2018.

151. O DETER detectou desmatamentos para todos os meses de 2019 na TI Munduruku e


continua emitindo alertas para os cinco primeiros meses de 2020, com exceção de março:

86
Diego Junqueira e Mariana Della Barba. “Omissão do Estado e impunidade: o que está por trás do massacre dos
guajajara no Maranhão”. Repórter Brasil, 04.04.2020. Disponível eletronicamente em:
<https://reporterbrasil.org.br/2020/04/omissao-do-estado-e-impunidade-o-que-esta-por-tras-do-massacre-dos-
guajajara-no-maranhao/>.
87
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Mais um Guajajara tomba! Até quando? Notícia de 01.04.2020. Disponível
em: <https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/mais-um-guajajara-tomba-ate-quando>.

59
Terra indígena Mundurucu
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Bu 350
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~ 2019 ~ 2020

Alertas de desmatamento do DETER na TI Mundurucu entre 2019 e maio de2020 (DETER).

152. Veja-se, ainda, o mapa de alertas de desmatamento na TI Munduruku para 2019 e início
de 2020:

Alertas de desmatamento na TI Mundurucu entre 2019 e 06.06.2020 (DETER)

153. As áreas de garimpo na Terra Indígena Munduruku apresentaram rápido crescimento a


partir de 2017. Em 2019, foram 1.130 hectares de florestas derrubadas por conta da mineração

60
ilegal, o que corresponde a 95,6% de toda a área de desmatamento registrada pelo DETER nessa
TI. A área desmatada até o início de junho de 2020 supera o desmatamento registrado no ano
2017, já é mais da metade do de 2018, e pode escalar para um prejuízo ambiental maior do
que o registrado em 2019. É ver-se:

Evolução das áreas de garimpo na TI Munduruku (DETER)


1250

1000

7 50

~
t,
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250

o
2017 2018 2019 2020 (a té 10/06)

Ano

154. O cenário para os próximos meses é sombrio. De acordo com informações do Instituto
Escolhas, “com o aumento da demanda por ativos financeiros mais seguros, em um momento de
crise econômica provocada pela pandemia da Covid-19, o preço do ouro disparou nos mercados
internacionais e nos quatro primeiros meses de 2020, o valor das exportações brasileiras cresceu
15%, com a remessa para fora do país de 29 toneladas de ouro”.88 A reportagem, realizada com
fundamento no estudo “A Nova Corrida do Ouro na Amazônia”,89 conclui que “a falta de
controle sobre a cadeia econômica do ouro e diminuição na fiscalização incentivam o aumento da
extração ilegal na floresta”.

88
INSTITUTO ESCOLHAS. “Brasil exportou 29 toneladas de ouro em 2020 e parte dela extraída em garimpos ilegais
na Amazônia, estimulada pelo preço do ouro no mercado internacional”. Disponível eletronicamente em:
<http://www.escolhas.org/brasil-exportou-29-toneladas-de-ouro-em-2020-e-parte-dela-extraida-em-garimpos-ilegais-
na-amazonia-estimulada-pelo-preco-do-ouro-no-mercado-internacional/>.

61
VI.7. Terra Indígena Trincheira Bacajá

155. A Terra Indígena Trincheira Bacajá, localizada no estado do Pará, é habitada pelos
indígenas Mebêngôkre Kayapó, e Xikrin (Mebengôkre), com população estimada de 746 pessoas.
A TI tem 1.651.000 hectares e foi homologada pelo Decreto s/nº de 04 de outubro de 1996.

156. Dados do PRODES revelam que 2019 apresentou a maior taxa de desmatamento
observada na Trincheira Bacajá nos últimos 10 anos, totalizando 3.502 ha de áreas desmatadas, o
que representou um aumento de 176% em relação a 2018:

4000.0

3500.0

3000.0

~
2500.0

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2000.0
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1500.0

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2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
Ano

Desmatamento na Terra Indígena Trincheira Bacajá entre 2010 e 2019 (PRODES, Inpe).

157. Dados do DETER reforçam esse cenário, demonstrando que os desmatamentos na TI


Trincheira Bacajá se concentraram no segundo semestre de 2019, o que pode voltar a ocorrer em
2020, se não houver fiscalização durante o período do verão amazônico (tempo da seca). Veja-se,
a propósito, o gráfico e o mapa de alertas de desmatamento na TI Trincheira Bacajá para 2019 e
início de 2020:

89
INSTITUTO ESCOLHAS. “A Nova Corrida do Ouro na Amazônia”. Disponível eletronicamente em: <
http://www.escolhas.org/wp-content/uploads/2020/05/TD_04_GARIMPO_A-NOVA-CORRIDA-DO-OURO-NA-
AMAZONIA_maio_2020.pdf>.

62
Terra Indígena Trincheira Bacajá
1800

1600

i... 1400
.,"' 1200
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B1000
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200

Alertas de desmatamento do DETER na TI Trincheira Bacajá entre 2019 e maio de 2020 (DETER)

Alertas de desmatamento na TI Trincheira Bacajá entre 2019 e 06.06.2020 (DETER)

63
158. Atualmente, a TI Trincheira Bacajá é alvo de um intenso processo de invasão e
desmatamento em três regiões: nordeste, sudoeste e sudeste. Em 2019, a Rede Xingu+90
apresentou duas representações ao MPF sobre essas invasões e ressaltou o aumento de cerca de
32 km de estrada na frente de invasão sudoeste, que se origina em uma área invadida com
grandes desmatamentos dentro da TI Apyterewa. Essa estrada cruza de forma ilegal três terras
indígenas: partindo de dentro da TI Apyterewa, ela segue em linha reta pela TI Araweté/Igarapé
Ipixuna, até adentrar a TI Trincheira/Bacajá. O desmatamento acelerado nessa frente de invasão
revela a determinação dos invasores em ocupar e explorar os recursos florestais da TI
Trincheira/Bacajá. É o que se vê no seguinte mapa:

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115 230

Terras Indígenas
Hidrografia principal Desmatamento anterior a 2017

- Corpos d'água Desmatamento 2018


["_:-J Bacia do Xingu - Desmatamento jan a ago 2019
, _ , Limite Municipal - Desmatamento setembro 2019

Desmatamento e invasões na TI Trincheira Bacajá.

159. Entre janeiro e maio de 2020, o SIRAD – sistema de monitoramento do ISA – detectou
65 hectares desmatados na TI Trincheira Bacajá, concentrados em sua região sudeste. Em

90
A Rede Xingu+ é uma aliança entre as principais organizações de povos indígenas, associações de comunidades
tradicionais e instituições da sociedade civil atuantes na bacia para a consolidação e defesa do corredor e dos direitos
dos povos da floresta que o mantêm.

64
fevereiro deste mesmo ano, caciques e guerreiros reunidos na aldeia Krimex informaram a
continuidade das invasões por não indígenas e pediram apoio para contê-las. No mês de junho, os
Xikrin denunciaram nova invasão nas proximidades das aldeias Mrotdijãm, Bakajá, Kenkro,
Pykatum e RapKô – situadas naquela TI – e demonstraram grande preocupação com um
iminente confronto e com o risco de contraírem a COVID-19. Os indígenas informaram que
houve uma reunião dos invasores no dia 21 de junho de 2020, quando discutiram estratégias de
ampliação e continuidade da invasão. Disseram que os grupos invasores estão entrando pela ponte
chamada Pau Preto, localizada nas seguintes coordenadas geográficas: 05º 26' 42” S 51º 12' 24”
W, na região sudeste da TI.

160. Os mapas a seguir mostram, respectivamente, a proximidade da nova frente de invasão


com as aldeias e uma estrada recém aberta pelos invasores, próxima à aldeia Kenkro:

Terra Indígena Trincheira Bacajá

Região da invasão denunciada pelos indígenas da TI Trincheira Bacajá em junho de 2020.

65
Corredor Diversidade Socioambiental

Desmatamento até dez 2018

Desmatamento alé dez 2019

Desmatamento até mai 2020

D Limite da Terra lndigena

Estrada aberta por invasores na TI Trincheira Bacajá em 2020.

161. Deve-se recordar que essa TI foi alvo de uma ação de fiscalização pelo Ibama em março
e início de abril de 2020. Contudo, ações tão importantes como esta estão sendo desestimuladas e
descontinuadas pelo governo brasileiro.91 De acordo com reportagem publicada pelo G1, a ampla
repercussão midiática das referidas ações foi “recompensada” pela exoneração injustificada dos
coordenadores de fiscalização da área:

“O Ministério do Meio Ambiente e o presidente do Instituto Brasileiro do Meio


Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Eduardo Bim,
exoneraram Renê Luiz de Oliveira e o coordenador de operação de fiscalização,
Hugo Ferreira Netto Loss, responsável por operações contra crimes ambientais
no Brasil.
[...]
Segundo funcionários do Ibama, os coordenadores foram ameaçados de
exoneração do cargo após a exibição de uma reportagem no Fantástico da mega
operação realizada pelo Instituto para fechar garimpos ilegais e proteger as

91
Fabiano Maisonnave. “Bolsonaro desautoriza operação em andamento do Ibama contra madeira ilegal em RO”.
Folha de São Paulo, 14.04.2019. Disponível eletronicamente em:
<https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/04/bolsonaro-desautoriza-operacao-em-andamento-do-ibama-contra-
madeira-ilegal-em-ro.shtml>.

66
aldeias de quatro terras indígenas no Sul do Pará: Apyterewa, Cachoeira Seca,
Trincheira, Bacajá e Ituna Itatá.”92

162. O Presidente da República chegou ao cúmulo de enviar mensagem ao então Ministro da


Justiça e Segurança Pública, Sr. Sérgio Moro, queixando-se da ação de fiscalização:

“Mensagem enviada por Jair Bolsonaro ao então ministro da Justiça, Sérgio


Moro, mostra a reação negativa do presidente a uma ação de fiscalização do
Ibama no combate a crimes ambientais. Ao reenviar a Moro um vídeo, o
presidente prometeu: ‘Força Nacional, Ibama e Funai... As coisas chegam para
mim por terceiros... Eu não vou me omitir...’ Sete dias depois dessa mensagem,
dois dos mais importantes servidores do Ibama na área de fiscalização foram
exonerados pelo ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) e pelo presidente do
Ibama, Eduardo Bim.
A mensagem integra o inquérito do STF que apura as denúncias de Moro de
suposta interferência do presidente na Polícia Federal.” 93

163. O comportamento das autoridades públicas do mais alto escalão do país sugere,
portanto, um endosso tácito – às vezes, nem tão tácito assim – às invasões e ilegalidades cometidas
dentro de terras indígenas, que neles encontram estímulo valioso para se perpetuarem e agravarem.

164. Os riscos do avanço do desmatamento e da presença de não índios para a saúde da


população indígenas não podem ser subestimados. Como visto, a TI Trincheira Bacajá é alvo cada
vez mais frequente de invasores, que, inclusive, construíram estradas e ramais, com a finalidade de
facilitar a entrada e a retirada de madeira de dentro da TI. Considerando o desestímulo à
fiscalização ambiental na região e a certeza de impunidade, os altos índices de desmatamento
observados em 2019 devem se repetir em 2020. Diante disso, é fundamental que medidas urgentes
sejam tomadas para resguardar os Mebêngôkre Kayapó e Xikrin (Mebengôkre) da TI Trincheira
Bacajá.

92
“Governo exonera chefes de fiscalização do Ibama após operações contra garimpos ilegais”. G1, 30.04.2020.
Disponível eletronicamente em: <https://g1.globo.com/natureza/noticia/2020/04/30/governo-exonera-chefes-de-
fiscalizacao-do-ibama-apos-operacoes-contra-garimpos-ilegais.ghtml>.
93
Rubens Valente. “Bolsonaro reagiu contra fiscalização do Ibama 7 dias antes de exonerações”. UOL, 24.05.2020.
Disponível eletronicamente em: <https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2020/05/24/bolsonaro-
mensagens-sergio-moro.htm>.

67
VI.8. Providências Necessárias

165. Diante dos fatos expostos, resta claro o grave e iminente risco de transmissão do novo
coronavírus, decorrente das atuais invasões por não índios de terras indígenas demarcadas, que
vêm causando alto índice de desmatamento e degradação ambientais. Conforme já referido, as
invasões mostram-se absolutamente ilícitas e os indivíduos que as praticam não detêm o direito de
demandar do Estado a manutenção de sua presença nesses territórios. Não são de posseiros de
boa-fé, que têm na área a sua moradia permanente, mas sim pessoas que ingressaram de
modo ilegal naquelas áreas, que vêm degradando para desenvolver atividades econômicas
ilegítimas. Não bastasse, a alta vulnerabilidade epidemiológica dos povos indígenas, somada às
altas taxas de transmissibilidade da doença, periga dizimar povos inteiros e, com isso, provocar o
desaparecimento de culturas, modos de ser e de viver que jamais serão recuperados.

166. O governo federal não vem combatendo essas invasões. Pelo contrário, o
comportamento das autoridades públicas é de absoluta leniência, quando não de encorajamento,
como se vê de declarações do Presidente Jair Bolsonaro.

167. Nesse contexto, é imperativo que se determine à União Federal que proceda à retirada
imediata dos invasores nas Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau,
Kayapó, Araribóia, Mundurucu e Trincheira Bacajá, valendo-se, se necessário for, do auxílio
das Forças Armadas para tanto.

– VII –

Dever de atendimento da SESAI a todos os indígenas, princípio da igualdade e direitos à


saúde diferenciada e à cultura

168. A presença de indígenas fora de territórios tradicionais é fenômeno inegável. Desde a


época em que ainda éramos colônia, índios povoaram muitas das nossas primeiras cidades, de
norte ao sul do país, aproveitando-se de suas oportunidades para formar alianças e obter recursos
que passaram a fazer parte da vida social de muitos povos originários, consideradas as variações
regionais e étnicas. Mais recentemente, o Censo de 2010 apontou para a existência de 315.180
indígenas vivendo em contexto urbano.

68
169. No Estado de São Paulo, por exemplo, os dados apontam que existem 37.915 índios
vivendo em cidades, o que representa 91% da população indígena daquela unidade federativa.
Ainda segundo o IBGE, São Paulo é o 4º município com maior população indígena (população
absoluta) no Brasil: 12.977 índios. Na cidade de Campo Grande (MS), existem atualmente 05
(cinco) aldeias urbanas oficiais. Em Manaus, existe um bairro – o Parque das Tribos – em que
vivem cerca de 2500 indígenas, de 37 diferentes etnias. Essa realidade se reproduz em muitas
outras cidades.

170. São vários os fatores sociais que ocasionam o deslocamento de indígenas para os centros
urbanos, como casos de tratamento de saúde, formação profissional, busca de trabalho e renda,
problemas fundiários decorrentes da falta de demarcação de suas terras etc. Nesse contexto social,
os indígenas sofrem dupla discriminação, pois são tidos como não pertencentes àquele novo local,
e ao mesmo tempo, são classificados como aculturados. Essas afirmações recorrentes de que o
indígena na cidade “deixa de ser índio” são fruto de um preconceito, que congela o indígena no
tempo e no espaço, como se a sua identidade étnica dependesse apenas do local em que vive.

171. Como registrou a Professora Titular de Antropologia da USP, Manuela Carneiro Cunha
a “urbanização” de indígenas está muitas vezes ligada aos “ atratores das cidades e, por outro
lado, ao que os antropólogos chamam de ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico, ou seja,
grosso modo, à idade dos filhos de um casal. Esses atratores são sobretudo os serviços públicos,
principalmente os de educação, de saúde, de documentação, e atualmente os programas de
proteção social ou assistenciais como bolsa família, estendida aos indígenas em 2008, cinco anos
após sua criação”.

172. De todo modo, não cabe ao Estado definir quem é ou não indígena. Indígena é quem se
identifica e é identificado, por um grupo étnico originário, como integrante desse mesmo grupo
(art. 3º, inciso I, da Lei nº 6.001/1973). Pessoas indígenas não se despem dessa qualidade por
viverem em cidades, muito menos por habitarem terras ainda não demarcadas definitivamente pelo
Poder Público. O critério fundamental é “a consciência de sua identidade indígena” (art. 1º.1 da
Convenção nº 169 da OIT), coadjuvada pelo reconhecimento dela por comunidade indígena.

173. Ocorre que, como já se antecipou, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI),
sem qualquer base legal, adotou orientação segundo a qual lhe compete apenas o atendimento de
indígenas aldeados. Com efeito, em entrevista ao Instituto Socioambiental – ISA, o titular da
SESAI, Robson Santos da Silva, afirmou que “[t]oda a estrutura da Sesai está voltada para as

69
Terras Indígenas (TIs)” e que, “[q]uando o indígena é aldeado e ele vem para a cidade, para o
núcleo urbano, fazer o tratamento, a Sesai se responsabiliza por essa pessoa. Nos casos em que a
pessoa mora na cidade, estuda, trabalha, aí [o responsável] é o SUS normal”.94 Na mesma linha,
em nota de esclarecimento contrária aos termos do PL n° 1.142/2020, que também trata de saúde
indígena, o Secretário da SESAI afirmou (doc. 31):

“A alteração das atividades da SESAI, que é cuidar dos povos aldeados irá
trazer o seu enfraquecimento e debilidade no cuidado com os povos mais
vulneráveis perante o Subsistema de Saúde Indígena, ou seja, os povos
aldeados”

174. Contudo, tal entendimento parte do pressuposto anacrônico e equivocado de que os


indígenas só mantêm sua identidade se vivem fora das áreas urbanas, em aldeias e comunidades
distantes, preferencialmente com pouco ou nenhum contato com a chamada “civilização”. Por trás
dessa visão, também subjaz a expectativa preconceituosa de que, um dia, os ditos “silvícolas” se
tornarão “aculturados” e integrados à sociedade nacional, deixando os seus costumes e modos de
vida para trás. Trata-se de paradigma assimilacionista com o qual a Constituição de 1988
pretendeu romper, atenta que está aos processos históricos que, há séculos, caracterizam as redes
de relações dos povos indígenas entre si, bem como das diferentes etnias com outros brasileiros.95

175. Como já afirmou corretamente este eg. Supremo Tribunal Federal – com as ressalvas
aqui registradas quanto a alguns termos empregados:

“O substantivo ‘índios’ é usado pela Constituição Federal de 1988 por um modo


invariavelmente plural, para exprimir a diferenciação dos aborígenes por
numerosas etnias. Propósito constitucional de retratar uma diversidade indígena
tanto interétnica quanto intra-étnica. Índios em processo de aculturação
permanecem índios para o fim de proteção constitucional. Proteção
constitucional que não se limita aos silvícolas, estes, sim, índios ainda em
primitivo estádio de habitantes da selva.” (Pet n° 3.388, Tribunal Pleno, Rel.
Min. Carlos Britto, DJe 25/09/2009)

94
Instituto Socioambiental. “Indígenas de cidades com Covid-19 não ficarão sem assistência, mas responsabilidade é
do SUS, diz Sesai”. Disponível eletronicamente em: <https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-
socioambientais/indigenas-de-cidades-com-covid-19-nao-ficarao-sem-assistencia-mas-responsabilidade-e-do-sus-diz-
sesai>.
95
Sobre a superação desse paradigma, veja-se Júlio Jose de Araújo Júnior. Direitos Territoriais Indígenas. Rio de
Janeiro: Editora Processo, 2018.

70
176. A SESAI também não tem atendido os indígenas em áreas cujo processo demarcatório
ainda não foi concluído – orientação que se alinha à absurda política da Funai de não atuar nessas
áreas, para não favorecer supostos “invasores indígenas”. Ocorre que os processos de demarcação
estão completamente paralisados no Brasil desde o governo de Michel Temer. Na atual gestão, o
Presidente Jair Bolsonaro admite e até se vangloria disso, repetindo a todo momento o bordão
inconstitucional de que o governo não irá demarcar mais “nem um centímetro” de terras indígenas.
Nesse quadro, são muitos os grupos que ficam injustificadamente desassistidos pelo subsistema de
saúde indígena. São duplamente atingidos, já que, por um lado, a mora estatal lhes priva de
segurança no seu direito ao território, enquanto, por outro, veem-se também alijados de políticas
públicas voltadas à população indígena, como o acesso ao subsistema sanitário específico.

177. Essas restrições são manifestamente inconstitucionais. E é dever do Estado, diante dos
múltiplos contextos em que vivem os indígenas, assegurar a eles o pleno gozo dos seus direitos
fundamentais, promovendo a igualdade através do respeito à diferença, e oferecendo o
atendimento à saúde dentro do que determinam a sua diversidade cultural e necessidades
específicas. Em sentido semelhante, prevê a Convenção n° 169 da OIT, em seu art. 2.1.c, a
responsabilidade dos governos de adotar medidas para “ajudar os membros desses povos a
eliminar quaisquer disparidades socioeconômicas entre membros indígenas e demais membros da
comunidade nacional de uma maneira compatível com suas aspirações e estilos de vida”.

178. Dessa forma, nota-se que o entendimento adotado pela SESAI, por dispensar tratamento
discriminatório injustificado aos indígenas urbanos ou que não habitem territórios homologados,
viola o princípio da igualdade (art. 5º, caput, CF/88). Desde a elaboração da máxima aristotélica
de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais,96 tal postulado exige das autoridades
públicas que as diferenças de tratamento porventura instituídas sejam razoáveis e voltadas à
promoção de objetivos legítimos,97 o que não se verifica no presente caso. Não se é – ou deixa de
ser – indígena em razão apenas do lugar onde se vive, e é injustificável, sob a ótica da isonomia,
que pessoas que se encontram, sob o ângulo dos valores envolvidos, em situações semelhantes,
submetam-se a tratamentos tão díspares.

179. Cabe salientar que o caráter discriminatório da distinção entre indígenas aldeados e
urbanos, para fins de acesso à seguridade social, já vem sendo assentado pela jurisprudência.

96
Cf. Aristóteles. Ética a Nicômaco. Brasília: UnB, 1985.
97
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São Paulo: Malheiros, 1993.

71
Nessa linha, ao julgar ação civil pública que questionava a exclusão do indígena-artesão urbano da
condição de segurado especial da Previdência, na qual estavam incluídos os indígenas-artesãos
aldeados, decidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região: “por imposição do princípio da
igualdade, a adoção de um tratamento semelhante a ambos no âmbito previdenciário, pois não é
válido como critério de discrímen o aspecto puramente geográfico”. (TRF-4, Apelação Cível nº
0024546-35.20008.404.7100, 3ª Turma, Rel. Des. Fed. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz,
DJe 24/08/2010)

180. Segundo a jurisprudência desta eg. Corte, o princípio da igualdade, “somado à


consagração explícita do princípio do devido processo legal, se traduz na exigência da
razoabilidade das disposições legais e na proscrição da lei arbitrária”.98 Em outras palavras, é
necessário que eventuais desequiparações normativas entre pessoas e situações “estejam
respaldadas em critérios objetivos e razoáveis”,99 o que não ocorre quando inexiste relação de
correspondência lógica entre o motivo do tratamento diferenciado e o fator de desigualação
utilizado pelo Estado. A presente hipótese configura violação à isonomia, justamente porque
traduz discriminação arbitrária entre indivíduos a quem a própria CF/88 reconhece a condição de
integrantes da população indígena, independentemente de critérios desarrazoados, como o
geográfico.

181. Não bastasse, esse tratamento discriminatório também ofende os direitos


fundamentais à saúde e à cultura.

182. De um lado, alijar indígenas não aldeados ou que vivam em terras não homologadas do
atendimento pela SESAI significa, em última análise, negar-lhes o direito constitucional de receber
assistência sanitária compatível com as suas peculiaridades culturais. Recorde-se que aquela
própria Secretaria, na condição de órgão encarregado do subsistema de saúde indígena, surgiu
justamente da necessidade de reformulação da gestão do setor no país, demanda reivindicada pelos
próprios indígenas durante as Conferências Nacionais de Saúde Indígena. Sua principal missão
institucional está relacionada com a proteção, a promoção e a recuperação da saúde dos povos
originários. A regra, conforme o já citado art. 25.1 da Convenção n° 169 da OIT, é promover os
serviços de saúde indígena de acordo com as condições sociais e culturais dos índios.

98
STF. ADI n° 1.076-MC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 07/12/2000.
99
Jane Reis Gonçalves Pereira. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
p. 361.

72
183. De outro lado, qualquer interpretação capaz de colocar em risco a integridade de
indígenas que estejam em espaço diferente de suas terras tradicionais definitivamente demarcadas
afronta o direito desses indivíduos de serem tratados de acordo com a sua cultura. Como já
ressaltado nesta petição, o art. 231, caput, CF/88, confere expressa proteção a todos os povos
originários do Brasil, bem como à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.
Nas palavras de Carlos Frederico Marés de Souza Filho, “o reconhecimento da organização social
e cultural dos povos indígenas é o centro da mudança de paradigmas estabelecida pela
Constituição de 1988” e “o processo de desenvolvimento e os caminhos para o futuro são
assuntos internos de cada povo, que compõem o seu direto à organização social própria”.100
Nisso está inserido, sem dúvida, o direito de todo indígena de que seus direitos sociais – inclusive
a saúde – sejam-lhe assegurados de acordo com “sua identidade social e cultural, seus costumes e
tradições e suas instituições” (art. 2.1.b da Convenção n° 169 da OIT).

184. Logo, deve este eg. STF determinar que a SESAI passe a prestar atendimento a todos os
indígenas no Brasil, independentemente de estarem ou não aldeados ou vivendo em TI’s
homologadas. Essa imposição, evidentemente, não implica em privar os indígenas da faculdade de
buscar os serviços do SUS – fora do subsistema de saúde indígena –, se assim preferirem.

– VIII –

Formulação e Monitoramento de Plano de Defesa dos Povos Indígenas diante da Pandemia.


Elaboração pelo CNDH, com participação dos povos indígenas e assessoramento técnico da
Fiocruz e da Abrasco

185. As inconstitucionalidades apontadas nesta petição, além de gravíssimas, demandam


equacionamento bastante complexo. Consequentemente, elas exigem providências das mais
variadas espécies. Há medidas que decorrem diretamente da incidência dos preceitos fundamentais
contemplados na CF/88 e que, por isso, podem ser aplicadas de plano por esta Corte. Porém,
existem providências que, por se voltarem à resolução de problemas estruturais e urgentes da
política indigenista e de saúde, exigem maior flexibilidade na sua definição, bem como diálogo e
cooperação com outros órgãos e instituições para sua formulação e monitoramento.

100
Carlos Frederico Marés de Souza Filho. “Comentário aos arts. 231 e 232”. In: J. J. Gomes Canotilho. Comentários
à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2018, p. 2254.

73
186. A adequada resolução de inconstitucionalidades sistêmicas, que comprometem
gravemente a eficácia de direitos fundamentais, é um sério desafio. Duas principais objeções
podem ser lançadas a essa atuação jurisdicional: (i) a de que não é democrática, porquanto permite
que juízes não eleitos interfiram em políticas públicas que deveriam ser formuladas e
implementadas pelos Poderes Legislativo e Executivo; e (ii) a de que não é eficiente, pois os
magistrados não teriam a capacidade institucional necessária para resolver esses complexos
problemas estruturais, que demandam expertise e conhecimentos extrajurídicos em temas
multidisciplinares subjacentes às políticas públicas.

187. Quanto à primeira objeção, sabe-se que a democracia não é o simples predomínio da
vontade da maioria, mas corresponde a sistema político baseado no respeito aos direitos
fundamentais das pessoas, notadamente das minorias.101 Por isso, não ofende o princípio
democrático a atuação jurisdicional que se volte à proteção de direitos fundamentais,
especialmente aqueles titularizados por grupos minoritários e vulneráveis, a exemplo dos povos
indígenas, em cenário de sérias violações e omissões dos poderes governamentais.102 A proteção
de direitos fundamentais, especialmente neste cenário de grave urgência, não pode ficar
condicionada aos azares da política majoritária ou às preferências dos governantes de ocasião.
Especialmente quando esses governantes declaram publicamente o seu absoluto desprezo pelos
direitos dos grupos minoritários, como o Presidente Jair Bolsonaro faz reiteradamente em relação
aos povos indígenas.

188. Já em relação à segunda objeção, cabe dizer que o déficit de expertise do Poder
Judiciário no campo das políticas públicas não exclui a possibilidade de se buscar soluções por
meio de técnicas decisórias mais flexíveis, baseadas no diálogo e na cooperação entre diferentes
órgãos estatais e instituições.103 Dessa maneira, ao invés de a resposta vir pronta do tribunal,
atribui-se a outro ente especializado a sua formulação, em prazo adequado, com o subsequente
monitoramento das medidas, por delegação do Judiciário.

189. Deve-se ressaltar que esse tipo de técnica de decisão alternativa vem sendo largamente
utilizada no Direito Comparado para a solução de graves e massificadas afrontas a direitos

101
Cf. Ronald Dworkin. Freedom’s Law: the moral reading of the American Constitution. Oxford: Oxford University
Press, 2005, p. 01-38.
102
Mesmo correntes da teoria constitucional mais reticentes em relação a uma atuação proativa da jurisdição
constitucional, como os procedimentalistas, reconhecem que, em se tratando da defesa de minorias vulneráveis, esta
atuação se justifica. Veja-se, a propósito, John Hart Ely. Democracy and distrust: a theory of judicial review.
Cambridge: Harvard University Press, 1980.
103
Cf. Carlos Alexandre de Azevedo Campos. Estado de Coisas Inconstitucional. Salvador: JusPodivm, 2016.

74
fundamentais, muitas vezes decorrentes de falhas estruturais em políticas públicas. Na jurisdição
constitucional norte-americana, tais técnicas foram usadas na tentativa de superação da segregação
racial de fato em escolas públicas, na melhoria de instituições psiquiátricas, e também para o
enfrentamento dos gravíssimos problemas prisionais do país.104

190. No julgamento do famoso caso Grootboom, a Corte Constitucional da África do Sul


constatou a inconstitucionalidade da política pública habitacional promovida pelo Estado e
determinou sua reforma para que esta contemplasse medidas de alívio imediato a pessoas
miseráveis.105 A Corte também atribuiu a um órgão técnico independente a tarefa de supervisionar
a elaboração e implementação do novo programa, reportando-se ao tribunal. Também a Corte
Constitucional da Alemanha pautou o equacionamento do caso Hartz IV pela técnica do diálogo
institucional, estabelecendo marcos a serem observados para que a definição legislativa a respeito
do cálculo de benefício assistencial observasse o mínimo existencial. 106 A Corte Constitucional da
Colômbia vale-se amplamente dessas técnicas dialógicas, para equacionamento de violações
sistêmicas aos direitos fundamentais, como se deu no importante caso dos desplazados.107

191. E a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal também não é estranha à necessidade
de intervenção judicial para a solução de violações sistêmicas a direitos fundamentais. Com efeito,
ao reconhecer o estado de coisas inconstitucional dos presídios brasileiros, no âmbito da ADPF nº
347, esta Corte consignou:

“Ao Supremo cumpre interferir nas escolhas orçamentárias e nos ciclos de


formulação, implementação e avaliação de políticas públicas, mas sem
detalhá-las. Deve formular ordens flexíveis, com margem de criação
legislativa e de execução a serem esquematizadas e avançadas pelos outros
Poderes, cabendo-lhe reter jurisdição para monitorar a observância da decisão
e o sucesso dos meios escolhidos. Ao atuar assim, reservará aos Poderes
Executivo e Legislativo o campo democrático e técnico de escolhas sobre a
forma mais adequada para a superação do estado de inconstitucionalidades,
vindo apenas a colocar a máquina estatal em movimento e cuidar da harmonia

104
Sobre a questão, v. Charles F. Sabel e Willian H. Simon. “Destabilization Rights: How Public Law Litigation
Succeeds”. Harvard Law Review, n° 117, 2004. Em defesa deste modelo de atuação judicial, associado às structural
injunctions, cf. Owen Fiss. The Civil Rights Injunctions. Bloomington: Indiana, 1978.
105
Government of the Republic of South Africa and Others v Grootboom and Others (CCT11/00) [2000] ZACC 19;
2001 (1) SA 46; 2000 (11) BCLR 1169 (4 October 2000).
106
Tribunal Constitucional Federal da Alemanha. BverfGE 125, 175 (2010).
107
Corte Constitucional na Colômbia. Sentencia T-025/2014. Veja-se, a propósito, César Rodrigues Garavito (Coord).
Mas allá del desplazamiento: políticas, derechos y superación del desplazamiento forzado em Colombia. Bogotá:
Ediciones Uniandes, 2010.

75
dessas ações. Como destaca a doutrina colombiana, o Tribunal não chega a ser
um ‘elaborador’ de políticas públicas, e sim um ‘coordenador institucional’,
produzindo um ‘efeito desbloqueador’ [...].”108

192. No presente caso, o equacionamento da questão suscitada nesta petição inicial demanda
que este Tribunal imponha, com urgência, a elaboração de plano voltado à proteção dos povos
indígenas em relação ao avanço da pandemia do novo coronavírus.

193. A elaboração e implementação de plano específico para essa finalidade se alinha às


diretrizes da Organização dos Estados Americanos (OEA) e das Nações Unidas (ONU), já antes
citadas, que registram a necessidade de os Estados atuarem em proteção às comunidades indígenas
em seus territórios diante do COVID-19. Se ajusta também às recomendações, também já
mencionadas nesta petição, da Corte Interamericana de Direitos Humanos e da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos.

194. Não se ignora que a SESAI apresentou um plano – o chamado “Plano de Contingência
Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus em Povos Indígenas” (doc. 32).109
Contudo, os povos indígenas não foram sequer consultados sobre o referido plano, nem tampouco
participaram minimamente de sua elaboração, à revelia do que dispõe o art. 6º, I, “a” e “b”, da
Convenção n° 169 da OIT, que preveem os direitos à consulta prévia e à participação dos povos
indígenas, em relação a medidas que os afetem. E essas não são exigências apenas formais, ou que
visam tão somente à legitimidade democrática das medidas. Mais que isso, elas são fundamentais
para a elaboração de um plano minimamente eficiente, que têm de levar em consideração as
especificidades culturais dos povos indígenas, suas demandas, e problemas que eles vivenciam, e
conhecem melhor que ninguém. Afinal, como pensar em atenção diferenciada à saúde em contexto
intercultural sem um efetivo diálogo com os povos diretamente interessados? Como formular um
plano sem ter o diagnóstico com a participação dos grupos atingidos? De que forma assegurar os
aspectos socioculturais no fluxo de referência do SUS, se a opinião dos indígenas sequer é levada
em consideração? Essa constatação já basta para desqualificar juridicamente o plano apresentado.

195. Além disso, o plano em questão é absolutamente vago e insuficiente, não apontando
medidas concretas, prazos e responsabilidades. Há, ademais, graves falhas e omissão na execução

108
STF. ADPF n° 347-MC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 19/02/2016
109
Disponível eletronicamente em:
<http://docs.bvsalud.org/biblioref/2020/04/1095139/plano_de_contingencia_da_saude_indigena_preliminar.pdf>.

76
das políticas públicas existentes, o que vem resultando no agravamento do risco sanitário para os
povos indígenas brasileiros – alguns deles em situação dramática. Além dos problemas já
apontados de falta de barreiras sanitárias, invasões e discriminação no atendimento pela SESAI,
há relatos de falta de testagem de coronavírus, inclusive para os próprios funcionários de saúde,110
de não instalação de unidades de saúde para o recebimento de casos suspeitos, de falta de
equipamentos de proteção individual em DSEIs, e de quantidade ínfima de insumos e outros
materiais e equipamentos indispensáveis para o atendimento dos povos indígenas,111 dentre
inúmeras outras mazelas.

196. Portanto, afigura-se indispensável a intervenção jurisdicional, com a imposição da


formulação do plano, com medidas concretas, cronogramas, definição de responsabilidades
etc – e não meras orientações gerais – a ser homologado pelo relator do feito, com o
subsequente monitoramento do mesmo. O pedido dos Arguentes é de que o plano seja elaborado e
monitorado pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), com a participação de
indígenas indicados pela APIB e pelos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (CONDISIs), e
com a assessoria técnica da Fiocruz, que tem grande expertise no tema da saúde indígena, e vem
fazendo trabalhos altamente qualificados sobre a defesa dos povos indígenas diante da COVID-19.

197. A atuação francamente contrária aos povos indígenas, por parte do governo federal,
justifica que a tarefa de elaboração do plano não seja confiada a órgãos hierarquicamente
subordinados ao Presidente da República – autoridade que vem se notabilizando por reiteradas
manifestações públicas absolutamente hostis aos povos originários brasileiros. No corpo
administrativo da SESAI e da Funai, existem – é claro – agentes públicos com efetivo
compromisso com a sua missão institucional e com os povos indígenas. Porém, o aparelhamento
dos órgãos dirigentes dessas entidades por pessoas abertamente refratárias aos direitos indígenas, e
sem qualquer interlocução com suas organizações e comunidades, comprometeria a qualidade e
eficácia de planos que, no presente contexto, viessem dessas instituições. No atual governo, tais
entidades vêm atuando sistematicamente contra os povos indígenas, com decisões e políticas
refratárias aos seus direitos. Por isso, não se revelam confiáveis para o desempenho de missão
necessária para impedir ou minorar o verdadeiro genocídio que vêm ajudando a produzir.

110 Cf. João Soares. “Sem serem testadas para covid-19, equipes que atendem indígenas temem tragédia”. DW,
30.04.2020. Disponível eletronicamente em: <https://www.dw.com/pt-br/sem-serem-testadas-para-covid-19-equipes-
que-atendem-ind%C3%ADgenas-temem-trag%C3%A9dia/a-53286113>.
111 Cf. MPF recorre de decisão em ação que solicita efetivação de planos de contingência do coronavírus em
comunidades indígenas de MS”, 25.06.2020. Disponível eletronicamente em: <http://www.mpf.mp.br/ms/sala-de-
imprensa/noticias-ms/mpf-recorre-de-decisao-em-acao-que-solicita-efetivacao-de-planos-de-contingencia-do-
coronavirus-em-comunidades-indigenas-de-ms>.

77
198. Assim, a medida mais adequada é a atribuição ao CNDH da tarefa de elaboração do
plano concreto, com a indispensável participação de representantes dos povos indígenas – nos
termos do art. 6º da Convenção n° 169 da OIT –, bem como com a assessoria técnica da Fiocruz.
Sabe-se que tal responsabilidade deve recair sobre o órgão que reúna competência, pertinência
temática e independência. É justamente esse o caso do o CNDH, criado pela Lei nº 12.986/2014, e
que se destina à promoção e a defesa dos direitos humanos no Brasil.

199. O CNDH, conquanto formalmente inserido na estrutura do Poder Executivo Federal, é


órgão independente, composto por representantes do Estado e da sociedade civil, tendo por
incumbência zelar pela proteção dos direitos humanos – dentre os quais figuram, naturalmente, os
direitos dos povos indígenas. O Conselho se inclui dentro do conceito de “conselhos de políticas
públicas de direitos humanos”, os quais dependem de participação do Poder Executivo no processo
decisório, mas permitem a participação social e a cogestão, efetivando o controle social da
implementação de direitos humanos.112 Disciplinado pela Lei nº 12.986/2014 – que transformou o
antigo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana em Conselho Nacional de Direitos
Humanos, “o CNDH tem por finalidade a promoção e a defesa dos direitos humanos, mediante
ações preventivas, protetivas, reparadoras e sancionadoras das condutas e situações de ameaça
ou violação desses direitos” (art. 2º).

200. Dentre as atribuições mais relevantes do CNDH, previstas no art. 4º da Lei nº


12.896/2014, figuram “promover medidas necessárias à prevenção, repressão, sanção e
reparação de condutas e situações contrárias aos direitos humanos, inclusive os previstos em
tratados e atos internacionais ratificados no País, e apurar as respectivas responsabilidades” (I) ;
“fiscalizar a política nacional de direitos humanos, podendo sugerir e recomendar diretrizes para
a sua efetivação” (II); “expedir recomendações a entidades públicas e privadas envolvidas com a
proteção dos direitos humanos, fixando prazo razoável para o seu atendimento ou para justificar
a impossibilidade de fazê-lo” (IV);” articular-se com órgãos federais, estaduais, do Distrito
Federal e municipais encarregados da proteção e defesa dos direitos humanos” (VI); “manter
intercâmbio e cooperação com entidades públicas ou privadas, nacionais ou internacionais, com
o objetivo de dar proteção aos direitos humanos e demais finalidades previstas neste artigo”
(VII); e “dar especial atenção às áreas de maior ocorrência de violações de direitos humanos,
podendo nelas promover a instalação de representações do CNDH pelo tempo que for
necessário” (XII). Esse feixe de competências legais bem demonstra a pertinência entre o CNDH

112
Cf. André de Carvalho Ramos. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 415.

78
e a tarefa de elaboração de um plano, voltado à preservação dos direitos humanos mais básicos dos
povos indígenas brasileiros.

201. Há de se destacar, ainda, que o CNDH possui comissão permanente com finalidade
específica de atuar na defesa dos povos indígenas, qual seja, a “Comissão Permanente dos
Direitos dos Povos Indígenas, dos Quilombolas, dos Povos e Comunidades Tradicionais, de
Populações Afetadas por Grandes Empreendimentos e dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
Envolvidos em Conflitos Fundiários”. Como se vê, trata-se de órgão com expertise e competência
legal para formular o plano ora discutido, e depois monitorar a sua implementação, por delegação
desta Suprema Corte. E o CNDH conta ainda com a possibilidade de “nomear consultores ad hoc,
sem remuneração, com o objetivo de subsidiar tecnicamente os debates e os estudos temáticos”
(art. 8º, § 5º, Lei nº 12.896/2014).

202. Por outro lado, a consultoria técnica da Fiocruz e da Associação Brasileira de Saúde
Coletiva (ABRASCO) na elaboração e monitoramento do plano, também postulada pelos
Arguentes, agregaria ao CNDH a vasta experiência dessas renomadas instituições com o tema da
saúde indígena. Como dito, tanto a Fiocruz como a ABRASCO contam com grupos altamente
qualificados, que já estão trabalhando com a questão do impacto da COVID-19 sobre povos
indígenas. Com isso, além da expertise sanitária, elas teriam condições de imprimir maior
celeridade à elaboração do plano, pelo seu conhecimento já acumulado na matéria. E a celeridade
se afigura essencial, diante da urgência do quadro vivenciado.

203. Finalmente, a participação dos povos indígenas, seja na formulação, seja no


monitoramento do plano, é também vital. Em primeiro lugar, trata-se de impostergável exigência
constitucional e convencional. Como se sabe, a Constituição de 88 representou verdadeira ruptura
com o regime tutelar que por longos anos pautou as interações entre índios e não-índios no Brasil.
Repudiando o modelo pretérito, que concebia os povos indígenas como coletividades em estágio
inferior de civilização, o constituinte instituiu um paradigma de valorização da autonomia e de
respeito aos modos de vida dos povos tradicionais. Em tal cenário, torna-se essencial a
participação dos povos indígenas na tomada de decisões sobre temas relevantes para a sua
existência. Independentemente do seu conteúdo, medidas que impactam a vida dos povos
indígenas, adotadas sem que eles tenham tido sequer a possibilidade de participar, não são
juridicamente válidas, violando o disposto no art. 231 da Constituição.

79
204. Tal exigência funda-se, ainda, no art. 6º da Convenção nº 169 da OIT, que contempla o
direito dos povos indígenas a participarem na adoção das decisões que os afetem. Ela está também
contemplada no art. 18 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas,
segundo o qual os povos indígenas têm direito “a participar na adoção de decisões em questões
que afetem seus direitos, vidas e destinos”, através de representantes eleitos por eles, em
conformidade com seus próprios procedimentos”.

205. O sistema interamericano de direitos humanos também reconhece o direito de


participação dos povos indígenas, que se entende compreendido no direito à participação política
previsto pelo art. 23 do Pacto de San José da Costa Rica. Com efeito, a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos já destacou que: “o art. 23 reconhece o direito de ‘[t]odos os cidadãos’ a
‘participar na direção dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes
livremente eleitos’. No contexto dos povos indígenas, o direito a participação política inclui o
direito ‘a participar na tomada de decisões sobre assuntos e políticas que incidem ou podem
incidir em seus direitos”.113

206. Parece razoável que a escolha dos representantes dos povos indígenas para participação
na formulação e implementação do plano em questão incumba: (i) a APIB, por se tratar da única
organização nacional de representação dos povos indígenas do Brasil, e (ii) aos CONDISIs, porque
são os órgãos incumbidos da realização do controle social do subsistema de saúde indígena.
Caberia à APIB indicar pelo menos 3 representantes, e aos presidentes dos CONDISIs designar
pelo menos outros 3 – todos necessariamente indígenas. Assim, restaria assegurada a participação
mínima de 6 representantes indígenas na formulação e monitoramento do plano de enfrentamento
do coronavírus para os povos indígenas.

207. Em síntese, a pretensão dos Arguentes é de que seja determinada a elaboração pelo
CNDH de plano voltado à proteção dos povos indígenas em relação ao avanço da pandemia do
novo coronavírus. Esse plano, a ser apresentado no prazo máximo de 20 dias, deve ser formulado
com auxílio técnico da Fiocruz, e participação indígena de, no mínimo, seis representantes, sendo
pelo menos três indicados pela APIB e pelo menos outros três pelos Presidentes dos CONDISIs.
Após a homologação do referido plano pelo Relator desta ADPF, esse deve ser implementado

113
Cf. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. “Derechos de los pueblos indígenas y tribales sobre sus tierras
ancestrales y recursos naturales: normas y jurisprudencia del sistema interamericano de derechos humanos”. 30 de
dezembro de 2009. Tradução livre. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/indigenas/docs/pdf/tierras-
ancestrales.esp.pdf.

80
pelos órgãos competentes Estado brasileiro, sob o monitoramento do CNDH, mais uma vez com o
auxílio técnico da Fiocruz, assegurada a participação indígena, realizada nos mesmos termos.

– IX –

Da Medida Cautelar

208. Estão presentes os requisitos para a concessão da medida cautelar ora postulada. A
plausibilidade do direito (fumus boni iuris) se assenta nas razões longamente expostas ao longo
desta petição e nos dados fáticos aportados.

209. O periculum in mora, por sua vez, é também evidente. Esta ADPF busca evitar danos
irreparáveis para os povos indígenas e para toda as presentes e futuras gerações, do Brasil e da
Humanidade. Existe risco real de que as gravíssimas falhas do governo federal no enfrentamento à
pandemia do coronavírus entre os povos indígenas, além de causar um elevado número de mortes
e doentes, ocasionem até o extermínio de determinadas etnias. O risco é de genocídio, como vêm
alertando as organizações indígenas, a imprensa e diversos organismos e instituições
internacionais.

210. Nesse cenário dramático, não é possível aguardar o julgamento desta ADPF para
adoção das providências postuladas pelos Arguentes. Até lá, danos terríveis e irreversíveis já
terão se consumado.

211. A extrema urgência – e o fato de que a ação está sendo proposta às vésperas do início do
recesso da Corte – justifica que a medida seja concedida monocraticamente pelo relator, como
expressamente autoriza o art. 5º, § 1º, da Lei nº 9.882/1999. Vale consignar que o ajuizamento da
ADPF neste momento não decorre de uma estratégia deliberada dos Arguentes, mas do caráter
recente da pandemia, da evolução subsequente dos fatos, e da grande dificuldade de reunir todos
os elementos e dados fáticos que embasam esta ação – o que se pode constatar da leitura desta
peça inicial.

212. Neste quadro, requerem os Arguentes:

81
(a) Seja determinada à União Federal que tome imediatamente todas as medidas
necessárias para que sejam instaladas e mantidas barreiras sanitárias para
proteção das terras indígenas em que estão localizados povos indígenas isolados
e de recente contato. As terras são as seguintes: dos povos isolados, Alto
Tarauacá, Araribóia, Caru, Himerimã, Igarapé Taboca, Kampa e Isolados do Rio
Envira, Kulina do Rio Envira, Riozinho do Alto Envira, Kaxinauá do Rio
Humaitá, Kawahiva do Rio Pardo, Mamoadate, Massaco, Piripkura, Pirititi, Rio
Branco, Uru-Eu-Wau-Wau, Tanaru, Vale do Javari, Waimiri-Atroari, e
Yanomami; e dos povos de recente contato, Zo'é, Awa, Caru, Alto Turiaçu, Avá
Canoeiro, Omerê, Vale do Javari, Kampa e Isolados do Alto Envira e Alto
Tarauacá, Waimiri-Atroari, Arara da TI Cachoeira Seca, Araweté, Suruwahá,
Yanomami, Alto Rio Negro, Pirahã, Enawenê-Nawê, Juma e Apyterewa.

(b) Seja determinado à União Federal que providencie o efetivo e imediato


funcionamento da “Sala de Situação para subsidiar a tomada de decisões dos
gestores e a ação das equipes locais diante do estabelecimento de situações de
contato, surtos ou epidemias envolvendo os Povos Indígenas Isolados e de
Recente Contato”(art. 12 da Portaria Conjunta n. 4.094/2018, do Ministério da
Saúde e da Funai), o qual deve necessariamente passar a contemplar, em sua
composição, representantes do Ministério Público Federal, da Defensoria Pública
da União e dos povos indígenas, estes indicados pela APIB.

(c) Seja determinado à União Federal que tome imediatamente todas as medidas
necessárias para a retirada dos invasores nas Terras Indígenas Yanomami,
Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayapó, Araribóia, Munduruku e
Trincheira Bacajá, valendo-se para tanto de todos os meios necessários,
inclusive, se for o caso, do auxílio das Forças Armadas.

(d) Seja determinado à União Federal que os serviços do Subsistema de Saúde


Indígena do SUS devem ser imediatamente prestados a todos os indígenas no
Brasil, inclusive os não aldeados (urbanos) ou que habitem áreas que ainda não
foram definitivamente demarcadas.

(e) Seja determinado ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) que,


com auxílio técnico das equipes competentes da Fundação Oswaldo Cruz do
Grupo de Trabalho de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde

82
Coletiva (ABRASCO), e participação de representantes dos povos indígenas,
elabore, em 20 dias, plano de enfrentamento do COVID-19 para os povos
indígenas brasileiros, com medidas concretas, e que se tornará vinculante após
a devida homologação pelo relator desta ADPF. Os representantes dos povos
indígenas na elaboração do plano devem ser indicados pela APIB (pelo menos
três) e pelos Presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (pelo menos
três).

(f) Após a homologação do plano referido acima, seja determinado o seu


cumprimento pelo Estado brasileiro, delegando-se o seu monitoramento ao
Conselho Nacional de Direitos Humanos, com auxílio técnico da equipe
competente da Fundação Oswaldo Cruz, e participação de representantes dos
povos indígena, nos termos referidos no item anterior.

–X–

Do Pedido

213. Diante do exposto, requerem os Arguentes que, após a prestação de informações pela
União Federal e pela Funai, responsáveis pelos atos e omissões violadores de preceitos
fundamentais descritos nesta petição, sejam ouvidos o Advogado-Geral da União (art. 103, § 3º,
CF/88); e o Procurador-Geral da República (art. 103, § 1º, CF/88).

214. Requerem, ainda, seja conhecida e julgada integralmente procedente esta ADPF, para se
confirmar, em caráter definitivo, todas as providências postuladas no item anterior, de modo a:

(a) Determinar à União Federal que tome todas as medidas necessárias para que
sejam instaladas e mantidas barreiras sanitárias para proteção das terras
indígenas em que estão localizados povos indígenas isolados e de recente
contato. As terras são as seguintes: dos povos isolados, Alto Tarauacá, Araribóia,
Caru, Himerimã, Igarapé Taboca, Kampa e Isolados do Rio Envira, Kulina do
Rio Envira, Riozinho do Alto Envira, Kaxinauá do Rio Humaitá, Kawahiva do
Rio Pardo, Mamoadate, Massaco, Piripkura, Pirititi, Rio Branco, Uru-Eu-Wau-
Wau, Tanaru, Vale do Javari, Waimiri-Atroari, e Yanomami; e dos povos de

83
recente contato, Zo'é, Awa, Caru, Alto Turiaçu, Avá Canoeiro, Omerê, Vale do
Javari, Kampa e Isolados do Alto Envira e Alto Tarauacá, Waimiri-Atroari,
Arara da TI Cachoeira Seca, Araweté, Suruwahá, Yanomami, Alto Rio Negro,
Pirahã, Enawenê-Nawê, Juma e Apyterewa.

(b) Determinar à União Federal que, durante a pandemia do COVID-19,


providencie o efetivo e imediato funcionamento da “Sala de Situação para
subsidiar a tomada de decisões dos gestores e a ação das equipes locais diante
do estabelecimento de situações de contato, surtos ou epidemias envolvendo os
Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato” (art. 12 da Portaria Conjunta n.
4.094/2018, do Ministério da Saúde e da Funai), o qual deve necessariamente
contemplar, em sua composição, representantes do Ministério Público Federal,
da Defensoria Pública da União e dos povos indígenas, estes indicados pela
APIB.

(c) Determinar à União Federal que tome todas as medidas necessárias para a
retirada dos invasores nas Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-Eu-
Wau-Wau, Kayapó, Araribóia, Munduruku e Trincheira Bacajá, valendo-se
para tanto de todos os meios necessários, inclusive, se for o caso, do auxílio das
Forças Armadas.

(d) Determinar que os serviços do Subsistema de Saúde Indígena do SUS devem


ser prestados a todos os indígenas no Brasil, inclusive os não aldeados (urbanos)
ou que habitem áreas que ainda não foram definitivamente demarcadas.

(e) Determinar ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) que, com


auxílio técnico das equipes competentes da Fundação Oswaldo Cruz (FIO
CRUZ) e do Grupo de Trabalho de Saúde Indígena da Associação Brasileira de
Saúde Coletiva (ABRASCO), e participação de representantes dos povos
indígenas, elabore, em 20 dias, plano de enfrentamento do COVID-19 para os
povos indígenas brasileiros, com medidas concretas, que tornar-se-á vinculante,
após a homologação pelo relator desta ADPF. Os representantes dos povos
indígenas na elaboração do plano devem ser indicados pela APIB (pelo menos
sete) e pelos Presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (pelo menos
três).

84
(f) Determinar aos órgãos competentes o cumprimento integral do plano, após a
sua homologação, delegando o monitoramento do plano ao Conselho Nacional
de Direitos Humanos, com auxílio técnico da equipe competente da Fundação
Oswaldo Cruz, e participação de representantes dos povos indígena, nos termos
referidos no item anterior.

Pedem deferimento.

DANIEL SARMENTO LUIZ HENRIQUE ELOY AMADO


OAB/RJ n° 73.032 Advogado indígena Terena
OAB/MS 15.440

ELIESIO DA SILVA VARGAS MARUBO MAURÍCIO SERPA FRANÇA


Advogado indígena Marubo Advogado indígena Terena
OAB/AM 11.182 OAB/MS 24.060

CRISTIANE SOARES DE SOARES MARIA JUDITE DA S. BALLERIO GUAJAJARA


Advogada indígena Baré Advogada indígena Guajajara
OAB AM 8.859 OAB/MA 18.249

SAMARA CARVALHO SANTOS ANTONIO FERNANDES DE JESUS VIEIRA


Advogada indígena Pataxó Advogado indígena Tuxá
OAB/BA 51.546 OAB/BA 31.615

IVO CÍPIO AURELIANO SHEYLLA JAQUELINE DE S. V. DE CARVALHO


Advogado indígena Macuxi CANTARELLI
OAB/RR 2001 Advogada indígena Pankará
OAB/SP 369.791

PAULO CELSO DE OLIVEIRA FELIPE MARTINS CÂNDIDO


Advogado indígena Pankararu Advogado indígena Apuriña
OAB/DF 12.405 OAB/AC 5585

THAYNAN JÚLIA A. DO NASCIMENTO PADILHA


Advogada indígena Potiguara
OAB/ PB 19.925

85
~
EUGÊNIO JOSÉ GUILHERME DE ANDRÉ MAIMONI
ARAGÃO OAB/DF n° 29.498
OAB/DF n° 4.935

PAULO MACHADO GUIMARÃES LUCAS DE CASTRO RIVAS


OAB/DF n° 5.358 OAB/DF n° 46.431

CAMILLA GOMES
OAB/RJ n° 179.620 JOÃO GABRIEL PONTES
OAB/RJ n° 211.354

ADEMAR BORGES EDUARDO LASMAR PRADO LOPES


OAB/DF nº 29.178 OAB/RJ nº 189.700

FREDERICO BOGHOSSIAN TORRES LETICIA MARQUES OSÓRIO


OAB/RJ nº 230.152 OAB/RS n° 31163

ACADÊMICO DE DIREITO

EDUARDO RAMOS ADAMI

86
ROL DE DOCUMENTOS

Procuração da APIB

Procuração do PSB

Procuração e Substabelecimento
do PSOL

Procuração e Substabelecimento
do PCdoB

Procuração da REDE

Procuração e Substabelecimento
do PT

Procuração e Substabelecimento
do PDT

Documento 01 Ata da Reunião da Coordenação Executiva da APIB

Documento 02 Regimento da APIB

Documento 03 Documento da Coordenadora Executiva da APIB

Documento 04 Deputados em Exercício – Diário da Câmara dos


Deputados

Documento 05 Estatuto do PSB

Documento 06 Certidão de composição da Comissão Executiva do


PSB

Documento 07 Certidão atestando a representatividade do PSB na


Câmara dos Deputados

Documento 08 Ata da eleição da Comissão Executiva do PSB

Documento 09 Estatuto do PSOL

87
Documento 10 Certidão de composição da Comissão Executiva do
PSOL

Documento 11 Certidão de presidente da Comissão Executiva do


PSOL

Documento 12 Estatuto do PCdoB

Documento 13 Certidão de composição da Comissão Executiva do


PCdoB

Documento 14 Certidão de presidente da Comissão Executiva do


PCdoB

Documento 15 Regimento Interno do PCdoB

Documento 16 Ata do 13º Congresso Nacional do PCdoB

Documento 17 Estatuto da REDE SUSTENTABILIDADE

Documento 18 Certidão de composição da Comissão Executiva da


REDE

Documento 19 Certidão de presidente da Comissão Executiva da


REDE

Documento 20 Estatuto do PT

Documento 21 Certidão de composição da Comissão Executiva do PT

Documento 22 Ata da Reunião do Diretório Nacional do PT

Documento 23 Estatuto do PDT

Documento 24 Certidão de composição da Comissão Executiva do


PDT

Documento 25 Ata da Reunião do Diretório Nacional do PDT

Documento 26 Informação Técnica nº


16/2018/COPLII/CGIIRC/DPT-FUNAI

88
Documento 27 Oficina "Diretrizes para o atendimento dos povos
indígenas de recente contato: novas experiências,
velhos desafios" – FUNAI

Documento 28 1ª Reunião do Conselho da Política de Proteção e


Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas Isolados e
de Recente Contato – CGIIRC

Documento 29 Portaria FUNAI nº 1.821/2011

Documento 30 Relatório técnico sobre o risco iminente de


contaminação de populações indígenas pelo novo
coronavírus em razão da ação de invasores ilegais –
ISA

Documento 31 Nota de esclarecimento contrária ao PL nº 1.142/2020


– Secretário Especial de Saúde Indígena

Documento 32 Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana


pelo novo Coronavírus em Povos Indígenas – SESAI

89
*
PARTIDO DOS TRABAUIAOORES
Otretono NaclOnal

O B,§J?,J~ 18
~PCdoB
~
PSB40
CONAQCoordenação Nacional de
Articulação das Comunidades
Negras Rurais Quilombolas

EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO PRESIDENTE DO SUPREMO


TRIBUNAL FEDERAL

A COORDENAÇÃO NACIONAL DE ARTICULAÇÃO DAS COMUNIDADES


NEGRAS RURAIS QUILOMBOLAS (CONAQ), organização quilombola que
representa nacionalmente as comunidades quilombolas de que trata o art. 68 do ADCT
da Constituição Federal de 1988, sediada à Qe 24 Conjunto E, Guará II - Guará, Brasília
- DF, 70297-400, neste ato representada por sua Coordenadora Executiva, SANDRA
MARIA DA SILVA ANDRADE, brasileira, quilombola da comunidade de Carrapato
da Tabatinga, viúva, contadora, inscrita no RG nº 1.639.827 e CPF sob nº 375.039.606-
04, endereço QE 24, Conjunto A, Casa 02, Guará II, CEP: 71060-010. Brasília -
DF/Brasil, endereço eletrônico: [email protected], PARTIDO SOCIALISTA
BRASILEIRO – PSB, partido político com representação no Congresso Nacional e
devidamente registrado no Tribunal Superior Eleitoral, inscrito no CNPJ/MF sob o nº
1

QE 24, Conjunto A, Casa 02, Guará II, CEP: 71060-010. Brasília - DF/Brasil
Contato: [email protected] - [email protected]
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01.421.697/0001-37, com sede na SCLN 304, Bloco A, Sobreloja 01, Entrada 63,
Brasília/DF, CEP 70736-510; PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE – PSOL,
partido político com representação no Congresso Nacional e devidamente registrado no
Tribunal Superior Eleitoral, inscrito no CNPJ sob o n° 06.954.942/0001-95, com sede no
SCS, SC/SUL, Quadra 02, Bloco C, n° 252, 5º andar, Edifício Jamel Cecílio, Asa Sul,
Brasília/DF; PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL – PCdoB, partido político com
representação no Congresso Nacional e devidamente registrado no Tribunal Superior
Eleitoral, inscrito no CNPJ sob o n° 54.956.495/0001-56, com sede no SHN, Quadra 2,
Bloco F, n° 1.224, Edifício Executivo Office Tower, Asa Norte, Brasília/DF; REDE
SUSTENTABILIDADE – REDE, partido político com representação no Congresso
Nacional e devidamente registrado no Tribunal Superior Eleitoral, inscrito no CNPJ sob
o n° 17.981.188/0001-07, com sede no Setor de Diversões Sul, Bloco A, salas 107/109,
Ed. Boulevard Center, CONIC, Asa Sul, Brasília/DF, CEP 70391-900; PARTIDO DOS
TRABALHADORES – PT, partido político com representação no Congresso Nacional
e devidamente registrado no Tribunal Superior Eleitoral, inscrito no CNPJ sob o n°
00.676.262/0001-70, com sede em Setor Comercial Sul, Quadra 02, Bloco C, n° 256, Ed.
Toufic, 1º andar, Brasília/DF, vêm por meio de suas advogadas e advogados abaixo
assinados, com instrumento de mandato em anexo (Documentos 1.4, 2.5, 3.5, 4.4, 5.5,
6.4), com fundamento no art. 102, § 1º, da CRFB/1988 e Lei 9.882/1999, propor a
presente

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL COM


PEDIDO DE MEDIDA LIMINAR

a fim de que sejam adotadas providências acerca das graves lesões a preceitos
fundamentais da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, decorrentes de
atos comissivos e omissivos do Poder Executivo Federal no combate à pandemia de
Covid-19 nas comunidades quilombolas, pelas razões fáticas e jurídicas a seguir descritas:

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I – Introdução

"Nosso povo não está conseguindo fazer os testes. Não está


tendo testes. Vão aos postos de saúde e lá pedem para voltar,
porque não tem. Na cesta básica é muita conversa e pouca ação.
É muito decreto, portaria, mas as cestas não estão chegando ao
nosso povo, que está com fome. Não está chegando a quem de
fato precisa, por causa de impedimento, não tem telefone, não
tem luz. Falando do auxílio emergencial, quem tem fome, quem
precisa, não será atendido porque a forma como foi usada para
inscrição, pela internet, por telefone, não funciona nos
quilombos. Os anseios e dúvidas continuam", disse Selma
Dealdina, quilombola do Quilombo Angelim III, Estado do
Espírito Santo.1

1. A pandemia de Covid-19, declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS)


em 11 de março de 2020, afeta o conjunto da população brasileira. Até o momento do
ajuizamento desta ação, foram registrados mais de cento e vinte mil mortos e mais de
quatro milhões de casos confirmados.

2. Na medida em que o quadro pandêmico se conformou no país foi possível


observar que distintos setores da população brasileira foram afetados de formas
diferentes. Nesse contexto, as comunidades quilombolas estão em maior grau de
vulnerabilidade aos efeitos da Covid-19 quando comparadas com o restante da população.

3. O maior grau de vulnerabilidade das comunidades quilombolas decorre, ente


outros fatores, dos racismos estrutural e institucional. Esse quadro historicamente colocou
as comunidades quilombolas à margem da sociedade, inviabilizando o acesso à direitos e
garantias fundamentais e, assim, prejudicando de forma substancial o desenvolvimento

1
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2020/04/25/coronavirus-quilombolas-
brasil.htm. Acesso em 05. set. 2020.
3

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digno desses grupos formadores da identidade nacional. Justamente em função desse
quadro histórico de maiores vulnerabilidades é que, na Constituição Federal de 1988, se
estabeleceu que o Estado brasileiro tem o dever de agir para assegurar a reprodução física,
social, étnica e cultural das comunidades quilombolas.

4. Ocorre que em função da omissão do Estado em agir para viabilizar o


enfrentamento aos efeitos da pandemia da Covid-19 nos quilombos, estes experimentam
graves e evitáveis lesões que afetam de forma relevante a possibilidade de continuidade
de reprodução física, social, étnica e cultural de cada comunidade.

5. As comunidades quilombolas, titulares do direito aos territórios tradicionais por


força do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), conforme
o art. 2º, caput, do Decreto 4887/2003, são “grupos étnico-raciais, segundo critérios de
auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais
específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à
opressão histórica sofrida”, sendo dever do Estado proteger os modos de viver, fazer e
criar, bens de natureza material e imaterial associados à identidade e à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade (arts. 215 e 216 CF/1988).

6. Além disso, conforme entendimento desta Suprema Corte, no julgamento da ADI


3239/2004 “a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre
Povos Indígenas e Tribais, consagra a "consciência da própria identidade" como critério
para determinar os grupos tradicionais aos quais aplicável” (ADI 3.239/DF, ementa do
acórdão, julgamento em 08/02/2018, DJ de 01/02/2019).

7. Destaca-se que sobre a população negra quilombola recai o legado doloroso


da história da formação social brasileira, estruturada na escravidão negra, que durou mais
de 350 anos. A abolição formal da escravidão, em 1888, foi acompanhada da negativa de
acesso aos direitos mais básicos, como o acesso à terra, ao trabalho, enfim, a todas as
demais políticas públicas essenciais.

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8. Até 1988, essas comunidades viviam às margens dos levantamentos oficiais e
não possuíam marcos normativos próprios de seu reconhecimento enquanto sujeitos de
direitos. Esse quadro foi alterado pelo art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (ADCT) e, posteriormente, com a edição do Decreto 4.887/2003, julgado
constitucional por essa Suprema Corte em fevereiro de 2018 (ADI 3.239/2003).

9. De acordo com levantamento divulgado pelo IBGE, o Brasil conta com 5.972
localidades quilombolas2, tendo a CONAQ registrado a existência de mais de 6.300
comunidades quilombolas. Assim, é notória a nossa diversidade étnica, racial e cultural,
cuja proteção constitucional específica revela-se nos arts. 215 e 216 da CF/1988.

10.A urgência de medidas de proteção voltadas às comunidades quilombolas se


justifica pela maior vulnerabilidade do grupo face à Covid-19, em comparação com a
sociedade brasileira amplamente considerada, principalmente em decorrência das
desigualdades raciais e socioeconômicas vivenciadas pelo grupo populacional3. Como
população negra, no atual contexto, as pessoas quilombolas se encontram
duplamente vulneráveis. Por um lado, sofrem com as omissões do poder público
que atingem o conjunto da população negra. Por outro, são afetadas de forma
específica e com consequências igualmente particulares para a manutenção plena da
existência do grupo étnico-racial.

11. Dados apresentados em 2017 pelo Ministério da Saúde, descritos no 3º Caderno


de Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, uma política dos SUS4,
revelam que indicadores de saúde, quando cruzados com características socioeconômicas,
demonstram a relação importante entre saúde, seus determinantes sociais e a organização
do sistema de saúde. Segundo estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica

2
Importa registrar que uma mesma comunidade pode ser constituída de várias localidades, conforme as
características territoriais locais. Mais informações no site do IBGE. Disponível em:
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/27487-contra-
covid-19-ibge-antecipa-dados-sobre-indigenas-e-quilombolas. Acesso em: 27 ago. 2020.
3
Ver: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2020/06/13/como-o-coronavirus-esta-afetando-as-
comunidades-quilombolas.htm. Acesso em 05.ago. 2020.
4
Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_populacao_negra_3d.pdf. Acesso em
27. ago. 2020.
5

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Aplicada (IPEA), em 2008, “a população negra representava 67% do público total
atendido pelo SUS, e a branca 47,2%”5. Também indica que a maioria dos atendimentos
prestados a pessoas com renda na faixa de um quarto e meio salário mínimo foram
voltados a pessoas negras, o que deixa evidente a situação socioeconômica da população
negra, que depende do Sistema Único de Saúde (SUS)6.

12. Além disso, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 20137,
embora seja a população negra aquela que mais depende do SUS, é a que menos tem
acesso a ele, em comparação com a população branca. De fato, “(...) num período de um
ano, as pessoas brancas que consultam médico representam 74,8%, enquanto entre a
população preta esse número é de 69,5% e pardas 67,8%”8. Assim, pretos e pardos juntos
ficam abaixo da média nacional de 71,2% (142,8 milhões) de pessoas que consultaram
um médico nos últimos 12 meses.

13. Tal fato é ainda mais alarmante considerando que 67% das pessoas que
dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde são negros e negras 9.. Esse grupo
também corresponde à maioria de pacientes com diabetes, tuberculose, hipertensão e
doenças renais crônicas no país, todas consideradas comorbidades agravantes para o
desenvolvimento de quadros mais gravosos de Covid-19. Sendo notório o desinteresse do
Ministério da Saúde em catalogar essa variável na aferição das políticas de enfrentamento
à pandemia, considerando a situação da população negra quilombola.

14. De acordo com o boletim epidemiológico nº 28 do Ministério da Saúde, de


26 de agosto de 2020, o percentual de óbitos de pessoas negras com COVID-19
corresponde a 41% do total de óbitos. Número que está longe de expressar o contexto real

5
IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de
Janeiro, 2016.
6
IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de
Janeiro, 2016.
7
IBGE. Pesquisa Nacional de Saúde. Rio de Janeiro, 2013.
8
BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO. Indicadores de Vigilância em Saúde, analisados segundo a variável
raça/cor. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, v. 46, n. 10, 2015.
9
Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_populacao_negra_3d.pdf. Acesso em:
27 ago. 2020.
6

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dos efeitos da pandemia nessa população, já que prevalece a ausência de notificação do
critério raça/cor/etnia em mais de 25% do total de óbitos.

15. Segundo pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à


Fome (MDS)10, Quilombos do Brasil: Segurança Alimentar e Nutricional em Territórios
Titulados, 75% da população quilombola vive em situação de extrema pobreza, dispondo
de precário acesso às redes de serviços públicos. Nesse contexto, somente 15% dos
domicílios têm acesso à rede pública de água e 5% à coleta regular de lixo, e em 89% dos
domicílios o lixo doméstico é queimado. Só 0,2% estão conectados à rede de esgoto e de
águas pluviais.

16. Vê-se que a definição de quem importa e quem não importa, quem é
descartável e quem não é, é uma manifestação daquilo que o filósofo camaronês Achille
Mbembe chamou de necropoder. No caso das comunidades quilombolas, ele se manifesta
principalmente produzindo o estado de inanição em que se encontram as políticas
públicas11 destinadas a esse grupo – processo que se mostra urgentemente gravoso no
período de pandemia, com a ausência de medidas de proteção voltadas às comunidades
quilombolas12. Em Nota Técnica de 31 de agosto de 2020, o Instituto de Estudos
Socioeconômicos (Inesc) apresenta os dados do Orçamento Geral da União destinados ao
financiamento de políticas públicas para comunidades quilombolas em 2020, bem como
séries históricas anteriores, demonstrando a precária situação das ações de enfrentamento
à Covid-19 em relação ao grupo13.

17. Nesse sentido, além de chamar a atenção para o fato de que não existem
mais políticas públicas específicas para comunidades quilombolas no Plano
Plurianual (PPA) 2020-2023, as pessoas negras quilombolas também não são

10
MDS. Quilombos no Brasil: segurança alimentar e nutricional em territórios titulados. In: Cadernos de
Estudos Desenvolvimento Social em Debate. PINTO, Alexandro et al. (org.), n. 20. Brasília: Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação, 2005-
2012, 2014.
11
Ver: SILVA, Allyne Andrade e. Direito e políticas públicas. 1 ed. Belo Horizonte, São Paulo:
D’Plácido, 2020.
12
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte; traduzido
por Renata Santini. São Paulo n-1 edições, 2018, p. 41.
13
Ver: ALMEIDA, A. W. B.; MARIN, R. E. A.; MELO, E.A. Orgs. Pandemia e Território. São Luís:
UEMA Edições/ PNCSA, 2020. 1226 p.:il.
7

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destinatárias de uma política pública de saúde específica, subsumidas no orçamento geral
do SUS, que teve subfinanciamento de R$ 20 bilhões em 2020. Dentre as inúmeras
vulnerabilidades apontadas, a Nota Técnica expõe o atual estado de precariedade das
condições mínimas de existência das pessoas negras quilombolas, tendo em vista que,
no ano de 2020, foram autorizados R$ 3,2 milhões da Ação Orçamentária para
Reconhecimento e Indenização de Territórios Quilombolas, a ser executada pelo
Incra, mas nenhum recurso foi pago até o momento. Da mesma forma, até julho de
2020, nenhum recurso havia sido destinado para a promoção da igualdade racial, ainda
que tal política pudesse ter impactos significativos para o restabelecimento prático do
pacto constitucional de proteção das comunidades quilombolas14.

18. Os impactos cumulativos de ordem social, econômica, sanitária e de saúde


gerados pela pandemia de Covid-19 às comunidades quilombolas se dão, principalmente,
em virtude do racismo institucional que segue inviabilizando o pleno acesso a direitos e
serviços básicos. A situação de desproteção das comunidades quilombolas, que as
vulnerabiliza de modo específico durante a pandemia, foi anunciada como projeto de
governo, pelo à época pré-candidato à Presidência da República. Em suas palavras:

(...) Entregou-se tanto nossa nação que chegamos a esse ponto. Mas dá pra
mudar o nosso país! Isso aqui é só reserva indígena, tá faltando quilombolas...
é outra brincadeira. Eu fui num quilombola em Eldorado Paulista... olha, o
afrodescendente mais leve lá, pesava sete arrobas... (risos da plateia) não fazem
nada! Eu acho que nem pra procriador ele serve mais... (risos da plateia). Mais
de um bilhão de reais por ano gastado com eles. Recebem cesta básica e mais
material… implementos agrícolas e aí você vai em Eldorado Paulista você
compra, arame, de arame de farpado, você compra enxada, pá, picareta, por
metade do preço! Vendido em outra cidade vizinha, por quê? Eles revendem
tudo baratinho lá, Não querem nada com nada.
Esse quilombola era a montante e a jusante do rio Ribeira de Igua, depois
foram a jusantes! Pior ainda, afrodescendente ameaçando matar
afrodescendente! Porque algumas famílias, requereram e foi concedido e
outras famílias de afrodescendentes que tem terra lá tão fora do processo. Olha
a que ponto chegamos, um Governo Federal, estimulando a luta de classes. (...)
... se eu chegar lá não vai ter dinheiro pra ONG. Esses inúteis vão ter que
trabalhar. Pode ter certeza que se eu chegar lá (Presidência), no que depender
de mim, todo mundo terá uma arma de fogo em casa, não vai ter um centímetro
demarcado para reserva indígena ou para quilombola. (transcrição própria)

14
ZIGONI, Carmela. Nota Técnica Orçamento Público voltado para as comunidades quilombolas no
contexto da pandemia Covid-19. Inesc, agosto de 2020.
8

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19. Em 2 de janeiro de 2019, o Presidente Jair Bolsonaro afirmou que o governo
pretende “integrar” indígenas e quilombolas, retomando o discurso assimilacionista, que
não respeita a existência do grupo étnico-racial. Segundo ele, 15% do território nacional
seria destinado a essa população, que não chega a um milhão de pessoas15. Em 8 de maio
do mesmo ano, o Presidente Jair Bolsonaro afirmou, em entrevista para a Rede TV, que
“essa coisa do racismo, no Brasil, é coisa rara. O tempo todo jogar negro contra branco,
homo contra hétero, desculpa a linguagem, mas já encheu o saco esse assunto”16.
Infelizmente, declarações como essa atualizam o projeto de negação dos direitos à
diferença e à diversidade como valores fundamentais de um Estado Democrático de
Direito, os quais devem ser protegidos e resguardados pela Suprema Corte.

20. Durante a visita ao país realizada no final de 2018, a CIDH analisou o


desmonte das políticas quilombolas e a situação de precariedade em que vivem as
comunidades quilombolas no Brasil, registrando nas observações preliminares que:

Da mesma forma, em todos os quilombos visitados, a CIDH encontrou uma


situação extremamente preocupante em relação às condições de vida de
seus habitantes. Além das condições extremamente precárias de moradia
e higiene, a CIDH observou o acesso limitado e inexistente aos serviços de
saúde e educação. Em particular, a CIDH verificou a existência de um
padrão de impedimento ou indisponibilidade de acesso à água potável e
saneamento básico. A esse respeito, a CIDH considera que o acesso à água
está intimamente ligado ao respeito e garantia de vários direitos humanos,
como o direito à vida, à integridade pessoal e ao princípio da igualdade e da
não discriminação, entre outros.

A Comissão também notou os obstáculos existentes para acessar os


serviços de assistência médica nas comunidades quilombolas, incluindo a
recusa de assistência em casos de emergências médicas, uma situação que
afeta particularmente as crianças, mulheres17, gestantes e pessoas idosas
pela atenção especial de que necessitam. Por exemplo, em sua visita ao Rio
dos Macacos, a Comissão foi informada sobre os partos sem assistência
médica que resultaram na morte de recém-nascidos, apesar do fato de um

15
Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/apos-colocar-demarcacoes-na-agricultura-bolsonaro-
fala-em-integrar-indigenas-quilombolas-23340520.
16
Disponível em:
https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2019/05/08/interna_internacional,1052188/bolsonaro-
afirma-que-racismo-e-algo-raro-no-brasil.shtml. Acesso em: 19 jul. 2020.
17
Ver: MUNIZ, Izadora Nogueira dos Santos. A face feminina kalunga frente ao modelo de
desenvolvimento nacional: a condução do licenciamento ambiental da PCH Santa Mônica no sítio
histórico da comunidade quilombola Kalunga. 2020, 159 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal
do Goiás, Goiânia, 2020
9

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ponto de atenção médica da Marinha estar localizado a poucos metros de
distância.

A CIDH lembra que, no marco de seu dever de combater a discriminação, o


Estado deve promover a igualdade de oportunidades, inclusão e progresso para
essas pessoas, o que inclui a implementação de programas e políticas
capazes de introduzir em estes territórios tradicionais o acesso à saúde,
educação e desenvolvimento. (grifos nossos).

21. Visando o quadro de desigualdades socioeconômicas, caracterizadas pelas


disparidades sociais de pobreza e pobreza extrema, em que se encontra a população
quilombola nos Estados da América, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
com o apoio de suas Relatorias Especiais sobre os Direitos Econômicos, Sociais,
Culturais e Ambientais e sobre Liberdade de Expressão, aprovou a Resolução 1 de 202018,
que estabelece padrões e recomendações, bem como medidas que os Estados devem
observar em atenção e contenção da pandemia sobre os povos e grupos em situação de
vulnerabilidade, respeitando os direitos humanos.

22. De acordo com a CIDH, espera-se dos Estados de forma, “imediata, urgente
e com a devida diligência, todas as medidas que sejam adequadas para proteger os
direitos à vida, à saúde e à integridade pessoal das pessoas que se encontrem em suas
jurisdições frente ao risco que representa a presente pandemia”. E, ainda, “com base
nas melhores evidências científicas, em concordância com o Regulamento Sanitário
Internacional (RSI), bem como com as recomendações emitidas pela OMS e a OPAS, na
medida em que forem aplicáveis”. A CIDH recomenda, também, sobre as ações dos
Estados:

(...) enfoque de direitos humanos em todas as estratégias, políticas e medidas


estatais dirigidas a enfrentar a pandemia da Covid-19 e suas consequências,
inclusive os planos para a recuperação social e econômica formulados. (...)
orientadas pelo respeito irrestrito aos padrões interamericanos e intersecionais
em matéria de direitos humanos, no âmbito de sua universalidade,
interdependência, indivisibilidade e transversalidade, particularmente os
DESCA.

23. Ainda com foco nas vulnerabilidades da população afrodescendente,


recomenda que os Estados da América devem:

18
Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/decisiones/pdf/Resolucao-1-20-pt.pdf. Acesso em: 27 ago.
2020.
10

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72. Prevenir o uso excessivo da força baseado na origem étnico-racial e
padrões de perfilagem racial, no âmbito dos estados de exceção e toques de
recolher adotados pela pandemia.
73. Implementar medidas de apoio econômico, bônus e subsídios, entre outros,
para as pessoas afrodescendentes e comunidades tribais que se encontram em
situação de pobreza e pobreza extrema, e outras situações de especial
vulnerabilidade no contexto da pandemia.
74. Incluir nos registros de pessoas contagiadas, hospitalizadas e falecidas pela
pandemia da Covid-19 dados desagregados de origem étnico-racial, gênero,
idade e deficiência.
75. Garantir o acesso a serviços de saúde pública integral de forma oportuna a
pessoas afrodescendentes e comunidades tribais, incorporando um enfoque
intercultural e garantindo a esta população informação clara, acessível e
inclusiva sobre os procedimentos médicos nelas praticados.

24. Neste momento da pandemia as comunidades quilombolas enfrentam cenário


de (i) ausência de monitoramento, divulgação pública e regular dos casos envolvendo
quilombolas infectados, (ii) ausência de monitoramento, divulgação pública e regular de
óbitos entre quilombolas, (iii) ausência de plano governamental destinado ao combate aos
efeitos da COVID-19 nos quilombos, (iv) violações ao direito de realizar isolamento
social comunitário como medida de autoproteção; (v) ausência de medidas
governamentais de apoio à proteção sanitária-territorial por meio do fornecimento de
equipamentos de proteção individual; (vi) ausência de medidas de proteção da posse
tradicional quilombola durante a pandemia, gerando riscos de deslocamentos forçados
coletivo dessas comunidades em período de máxima vulnerabilidade. (vii) ausência de
instância institucional de Estado no âmbito do Poder Executivo Federal voltada à consulta
e participação da entidade representativa nacional quilombola; (viii) acesso em menor
escala a políticas públicas destinadas a toda a população, a exemplo do acesso ao auxílio
emergencial; ix) ausência de ações em escala e com regularidade minimamente eficazes
que viabilizem segurança alimentar e nutricional, a exemplo da distribuição de sementes,
outros insumos agrícolas e cestas básicas.

25. Assim, mostra-se fundamental suprir, com a participação ativa de quilombolas,


as omissões do Poder Executivo Federal na promoção de medidas que possam fazer frente
aos efeitos evitáveis da pandemia de Covid-19 nas comunidades quilombolas.

11

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II – Da legitimidade ativa e da pertinência temática

II. 1 – Legitimidade dos partidos políticos

26. Os Arguentes PSB, PSOL, PCdoB, REDE, PT e PDT são partidos políticos
com representação no Congresso Nacional. A legitimidade dos partidos políticos
proponentes encontra fundamento no art. 103, VIII, da Constituição Federal c/c art. 2º, I
da Lei 9.882/1999. Tratam-se de partidos políticos com representação no Congresso
Nacional (Documentos 2, 3, 4, 5 e 6), sendo reconhecidos como legitimados universais,
ou seja, cuja legitimidade não depende de demonstração de sua ligação com o objeto do
controle de constitucionalidade abstrato.

27. Não obstante a legitimidade universal para propositura da presente ação


constitucional, vale registrar que o dever imposto pela Constituição de viabilizar meios
adequados para a reprodução física, social e cultural das comunidades quilombolas,
inclusive através de medidas de enfrentamento à Covid-19, encontra plena
correspondência com os compromissos políticos assumidos pelas entidades políticas
proponentes.

II. 2 – Legitimidade da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades


Negras Rurais Quilombolas (CONAQ)

28. A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais


Quilombolas (CONAQ), entidade de classe de âmbito nacional, na forma do art. 2º, IX,
da Lei 9.868/1999, foi criada no dia 12 de maio de 1996, em Bom Jesus da Lapa, Bahia.

29. A CONAQ teve como precedente o I Encontro Nacional das Comunidades


Negras Rurais Quilombolas, realizado em 1995, oportunidade em que foi instalada a
Comissão Provisória das Comunidades Negras Rurais Quilombolas. Esses fatos da
história ocorreram por ocasião da Marcha Zumbi Contra o Racismo, pela Igualdade e a
Vida, o marco fundamental do reconhecimento do racismo como fator estruturante da
sociedade brasileira, momento em que o combate à opressão racial entrou com maior
força na pauta política nacional.

12

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30. O ato de constituição contou com a participação de lideranças quilombolas
representantes dos quilombos de Frechal/MA, da Coordenação Estadual Provisória dos
Quilombos Maranhenses (CEQ-MA), de Rio das Rãs, de Lages dos Negros e Rio de
Contas/BA, de Conceição das Crioulas e Castainho/PE, de Mimbó/PI, de Mocambu/SE,
do Campinho da Independência/RJ, de Ivaporunduva/SP, de Furnas do Dioniso e Furnas
da Boa Sorte/MS, do Kalunga/GO e das entidades Centro de Cultura Negra do
Maranhão/MA, da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, do Grupo de Trabalho
e Estudos Zumbi (TEZ/MS), da Comissão Pastoral da Terra (CPT/BA), do Grupo
Cultural Niger Okám - Organização Negra da Bahia, dos Agentes Pastorais Negros
(APNs/GO), do Grupo Cultural Afro Coisa de Nego/PI e do Movimento Negro Unificado
(MNU) dos Estados da Bahia, Goiás, Pernambuco, Rio de Janeiro e do Distrito Federal.

31. É uma organização social de âmbito nacional, sem fins lucrativos, que
representa comunidades quilombolas por todo Brasil. Dela participam representantes das
comunidades quilombolas de 24 estados da Federação, a saber: Alagoas, Amapá,
Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso,
Mato Grosso do Sul, Paraíba, Pará, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Sul, Rio
Grande do Norte, Rio de Janeiro, Rondônia, Sergipe, São Paulo, Santa Catarina e
Tocantins.

32. Atualmente estão vinculadas à CONAQ dezessete entidades estaduais


quilombolas que, por sua vez, representam comunidades quilombolas em seus estados,
quais sejam: Associação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro
(ACQUILERJ); Comissão Estadual das Comunidades Quilombolas do Espírito Santo;
Coordenação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Amapá (CONERQ/AP);
Federação Estadual das Comunidades Quilombolas do Rio Grande do Sul (FAQ-RS);
Federação das Comunidades Quilombolas do Estado do Paraná (FECOQUI/PR);
Comissão Estadual dos Quilombos de Pernambuco; Conselho Estadual das Comunidades
Quilombolas da Bahia (BA); Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas/PI
(CECOQ); Coordenação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Mato Grosso
do Sul (CONERQ/MS); Coordenação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do
Mato Grosso (CONERQ/MT); Federação das Comunidades Quilombolas de Minas
Gerais (N’GOLO); Coordenação Estadual das Comunidades Negras de São Paulo;
13

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Coordenação Estadual das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Estado do
Ceará (CERQUICE); Coordenação do Estado do Pará (Malungu); Coordenação Estadual
da Comunidades Quilombolas do Tocantins (COEQTO); Associação das Comunidades
Negras Rurais Quilombolas do Maranhão e Comissão Estadual dos Quilombos da Paraíba
(ACONERUQ/MA). Para além dessas há centenas de organizações quilombolas
regionais, municipais e locais, além de comunidades diretamente vinculadas à CONAQ.

33. A entidade, ora Arguente, tem como objetivos, conforme os arts. 3º e 4º do


seu Estatuto (Documento 1.1) lutar pela garantia de uso coletivo do território em conjunto
com as organizações quilombolas estaduais; pela implantação de projetos de
desenvolvimento sustentável e de políticas públicas levando em consideração a
organização das comunidades de quilombo; por educação de qualidade e coerente com o
modo de viver nos quilombos e, acima de tudo, pelo uso comum do território e dos
recursos naturais em harmonia com o meio ambiente.

34. A CONAQ, conforme art. 4º, “j” de seu regimento interno também tem entre
seus objetivos “propor ações judiciais quando for necessário em defesa de suas filiadas,
inclusive na questão do meio ambiente e contra todas as formas de degradação que
atinjam as comunidades quilombolas”.

35. Para efeito de ilustração, transcrevem-se os dispositivos do regimento interno


da CONAQ logo acima citados:

Art. 3º A CONAQ tem como objetivo lutar pela garantia de uso coletivo do
território quilombola, propor o desenvolvimento sustentável de políticas
públicas culturais, econômicas, direitos humanos em consideração às
organizações existentes nas comunidades quilombolas nos estados brasileiros.

Art. 4º São objetivos específicos da CONAQ;

a) Promover as articulações entre as organizações quilombolas estaduais e


comunidades quilombolas dentro e fora do país;

b) Lutar conjuntamente com as organizações quilombolas estaduais e


comunidades quilombolas pela titulação de suas terras e acompanhar a
tramitação dos processos de titulação;

c) Estimular o manejo dos territórios quilombolas para garantir a sua


sustentabilidade econômica, social, ambiental e política cultural;

14

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d) Apoiar as comunidades e organizações quilombolas estaduais a fim de que
conheçam integralmente os direitos que lhes são assegurados por lei;

e) Apresentar e defender as reivindicações das organizações quilombolas


estaduais e comunidades quilombolas frente às autoridades municipais,
estaduais e federais;

f) Apoiar as organizações estaduais e das comunidades quilombolas no


desenvolvimento de seus trabalhos;

g) Articular convênios com organizações governamentais e não


governamentais e institutos de pesquisa para a elaboração de estudos de
interesses das associações e comunidades quilombolas;

h) Divulgar a luta dos quilombolas para a opinião pública;

i) Lutar contra todas as formas de preconceito e discriminação racial;

j) Propor ações judiciais quando for necessário em defesa de suas filiadas,


inclusive na questão do meio ambiente e contra todas as formas de degradação
que atinjam as comunidades quilombolas;

k) Valorizar, promover, estimular e divulgar as tradições, cultura e a


religiosidade afro-brasileira das comunidades quilombolas, reconstruindo a
história das populações negras;

l) Estimular e promover ações voltadas para eliminar as desigualdades de


direito e tratamentos entre homens e mulheres;

m) Propor a interação e articulação entre as comunidades de quilombo do


Brasil;

n) Fortalecer a organicidade do movimento quilombola nacional;

o) Organizar a agenda política através de seus entes federativos (União,


Estados e Municípios) para construção e consolidação da política pública para
as comunidades quilombolas;

p) Organizar a funcionalidade e controle da secretaria, levando em


consideração os princípios da coordenação nacional e suas participações e
representações nos eventos em que a CONAQ quando for convidada.

36. No âmbito do poder legislativo, a CONAQ é responsável por viabilizar


amplos debates sobre os procedimentos de regularização de territórios quilombolas,
conforme definidos pelo art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da
Constituição Federal de 1988.

15

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37. Participou ativa e diretamente na construção do Decreto Federal 4887/2003,
que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos. Dispositivo esse julgado constitucional por esse E. Supremo Tribunal Federal
no âmbito da ação direta de inconstitucionalidade nº 3239.

38. Como dito acima, a CONAQ, constituída como movimento social, tem o
intuito de promover a articulação política das comunidades quilombolas existentes no
Brasil e atua, há mais de 24 anos, na luta pelo reconhecimento e efetivação de seus direitos
étnicos à vida e ao território.

39. A questão territorial possui especial relevância para as comunidades


quilombolas e suas entidades representativas, sobretudo em seus desdobramentos
jurídicos e políticos, naquilo que pode afetar a reprodução física, social, étnica e cultural
das comunidades. O contexto de pandemia também coloca à CONAQ o desafio de
reivindicar o direito à saúde e à proteção da vida da população quilombola.

40. A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais


Quilombolas possui legitimidade ativa para propor Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF), para assim buscar a defesa do preceito fundamental constitucional
de garantia de reprodução física, social e cultural das comunidades quilombolas, sempre
que ações ou omissões do poder público lesarem a possibilidade de sobrevivência digna
dessas comunidades.

41.No que tange à legitimidade ativa da entidade, essa Suprema Corte, em


julgamento recente no âmbito da ADPF 709/2020, reconheceu a legitimidade jurídica da
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), entidade de representação nacional
dos povos indígenas, nos termos do art. 2º, IX, da Lei 9.868/1999. Vejamos excerto da
referida decisão:

I. LEGITIMIDADE ATIVA DA APIB E DOS DEMAIS REQUERENTES


10. Reconheço a legitimidade ativa da Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil – APIB para propor a presente ação, na condição de entidade de classe
de âmbito nacional (CF, art. 103, IX). É certo que a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal limitou a configuração de “entidades de classe” aquelas
representativas de pessoas que desempenham a mesma atividade econômica
ou profissional. Trata-se, contudo, de entendimento que integra aquilo que se
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convencionou chamar de jurisprudência defensiva do STF, formada nos
primeiros anos de vigência da Constituição de 1988, quando se temia que a
ampliação dos legitimados para propor ações diretas pudesse ensejar um
grande aumento do volume de casos do controle concentrado.
11. Tal temor não se confirmou, e a referida interpretação acabou reduzindo as
oportunidades de atuação do Tribunal na proteção a direitos fundamentais, já
que não reconheceu às associações defensoras de direitos humanos (que não
constituem representação de categoria profissional ou econômica) a
possibilidade de acessá-lo diretamente, em sede concentrada. Dificultou,
portanto, a atuação do STF naquela que é uma das funções essenciais de uma
Corte Constitucional. Entendo ser o caso de superar tal interpretação restritiva
do conceito de “classe”, que além de obsoleta é incompatível com a missão
institucional do Tribunal. Como já tive a oportunidade de afirmar, reconheço
como classe “o conjunto de pessoas ligadas por uma mesma atividade
econômica, profissional ou, ainda, pela defesa de interesses de grupos
vulneráveis e/ou minoritários cujos membros as integrem”. Em sentido
semelhante: ADPF 527, rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 02.07.2018; e ADI
5291, rel. Min. Marco Aurélio, j. 06.05.2015[1].
12. Vale observar, ademais, que a Constituição assegurou aos indígenas a
representação judicial e direta de seus interesses (CF, art. 232), bem como o
respeito à sua organização social, crenças e tradições (CF, art. 231). Por essa
razão, entendo, ainda, que o fato de a APIB não estar constituída como pessoa
jurídica não é impeditivo ao reconhecimento da sua representatividade. Não se
pode pretender que tais povos se organizem do mesmo modo que nos
organizamos. Assegurar o respeito a seus costumes e instituições significa
respeitar os meios pelos quais articulam a sua representação à luz da sua
cultura. (ADPF 709/DF, voto do Min. Rel. Luís Roberto Barroso, julgamento
em 08/07/2020, DJ de 10/07/2020).

42. A CONAQ, em âmbito nacional, representa as comunidades rurais negras


quilombolas, sendo a entidade que luta pelos interesses e direitos dessas comunidades.
Não restam dúvidas, portanto, que a CONAQ equipara-se às entidades de classe de âmbito
nacional, nos termos do art. 103, IX, da Constituição Federal de 1988.

III – Cabimento da presente Arguição de Descumprimento de Preceito


Fundamental

43. Com a presente Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental


(ADPF) busca-se tutela jurisdicional em benefício das comunidades quilombolas frente
ao contexto da pandemia decorrente da Covid-19.

44. Dentre as ações de controle constitucional abstratas, a ADPF, prevista no


artigo 102, § 1º, da Constituição Federal e regulamentada pela Lei 9.882/1999, é a que
possui como particularidade parâmetros mais restritos e objeto mais amplo. Cumpre
17

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considerar que tanto na norma constitucional quanto na norma regulamentadora não há
conceituação do que venha a ser preceito fundamental.

45. No entanto, há convergência de compreensões no campo doutrinário e na


jurisprudência dessa E. Corte que informam tratarem-se os preceitos fundamentais dos
fundamentos e objetivos da República, das decisões políticas fundamentais (arts. 1º a 4º
da CF/88), dos direitos fundamentais – individuais, coletivos, políticos e sociais (arts. 5º
ao 17 da CF/88), além das cláusulas pétreas (art. 60, § 4º) e dos princípios constitucionais
sensíveis (art. 34, VII, CF/88).

46. Assim, quanto aos pressupostos de admissibilidade da presente ação, em


especial no que se refere à imperiosa necessidade de “indicação do preceito fundamental
que se considera violado”, como aduz o art. 3º, I, da Lei 9.882/1999, demonstra-se que
na Constituição Federal de 1988 assenta-se como preceito fundamental a garantia de
reprodução física, social e cultural das comunidades quilombolas.

47. No caso das comunidades quilombolas, o preceito fundamental constitucional


relativo à garantia de reprodução física, social e cultural já foi objeto de apreciação desse
E. Supremo Tribunal Federal, consolidando interpretação constitucional no sentido de
que:

O art. 68 do ADCT assegura o direito dos remanescentes das comunidades dos


quilombos de ver reconhecida pelo Estado a propriedade sobre as terras que
histórica e tradicionalmente ocupam – direito fundamental de grupo étnico-
racial minoritário dotado de eficácia plena e aplicação imediata (ADI nº
3.239/DF, ementa do acórdão, julgamento em 08/02/2018, DJ de 01/02/2019
– sem destaque no original).

48. A aludida proteção constitucional às comunidades quilombolas não se limita


ao ato de reconhecer, delimitar e titular as terras tradicionais. A Constituição Federal
salvaguarda os modos de criar, fazer e viver das comunidades, eis que constituintes da
identidade e do patrimônio cultural brasileiros plural e diverso19, na forma dos arts. 215,
V e 216, II. De igual forma, explicitamente determina ao Poder Público promover a

19
Ver: PEREIRA, Paulo F. Soares. Os Quilombos e a Nação: inclusão constitucional, políticas públicas e
antirracismo patrimonial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 103.
18

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proteção do patrimônio cultural (art. 216, §1º) e o tombamento dos sítios detentores de
reminiscências históricas dos antigos quilombos, na forma do art. 216, §5º da
Constituição Federal de 1988.

49. Também não pode haver dúvidas que a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, nos termos do art. 3º, I, III e IV da Constituição Federal, deve ter como
um de seus eixos centrais a garantia de reprodução física, social e cultural do segmento
da população que por mais de três séculos e meio foi sujeitado pelo próprio Estado às
agruras da ignóbil escravidão negra.

50. Não foi por outra razão que este E. Supremo Tribunal Federal assentou que:

(...) o compromisso do Constituinte com a construção de uma sociedade livre,


justa e solidária e com a redução das desigualdades sociais (art. 3º, I e III, da
CF) conduz, no tocante ao reconhecimento da propriedade das terras ocupadas
pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, à convergência das
dimensões da luta pelo reconhecimento – expressa no fator de
determinação da identidade distintiva de grupo étnico-cultural – e da
demanda por justiça socioeconômica, de caráter redistributivo –
compreendida no fator de medição e demarcação das terras. (ADI
3.239/DF, Ementa do acórdão, julgamento em 08/02/2018, DJ de 01/02/2019
– sem destaques no original).

51. Essa tutela constitucional aos quilombos é fruto de lutas seculares por
liberdade e igualdade que historicamente tiveram como ápice a busca pelo acesso à terra.
Assim, na experiência quilombola, a justiça social é a garantia do território, pois os
vínculos e os sentimentos atrelados à territorialidade viabilizam os modos de vida
tradicionais, reverenciado na ordem constitucional pelo fundamento de uma sociedade
plural (art. 1º, V da CF/88) e o princípio da autodeterminação dos povos (art. 4º, III da
CF/88) . Isto, uma vez que desde os tempos coloniais o acesso à terra é, e continua a ser,
fator central na luta pela garantia de reprodução física, social, política e étnico-cultural
das comunidades quilombolas, na forma do art. 2º do Decreto Federal 4887/03.

52. Se os direitos à identidade e à terra têm natureza fundamental, é de se


reconhecer, com igual razão, que a garantia constitucional está diretamente relacionada à
sobrevivência digna das comunidades quilombolas. Portanto, na busca pela garantia de

19

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reprodução física, social e cultural das comunidades quilombolas se inclui a proteção à
saúde, nos termos dos arts. 6º e 196 da Constituição Federal de 1988, bem como à vida
digna, nos termos do art. 1º, III e V também da Constituição.

53. Assim, para além do fator essencial de acesso à terra, há outros que demandam
atenção e ação positiva do Estado brasileiro, eis que:

(...) a libertação da escravidão, com a assinatura da Lei Áurea em 13 de abril


de 1888, não trouxe consigo nenhum tipo de amparo à população negra, recém
liberta, mas sem acesso a qualquer política emancipatória ou aos mais básicos
direitos assegurados ao restante da população. Ao racismo já existente na
sociedade, associou-se um quadro de abandono que levou a maioria dos negros
à marginalização social, condição que envergonha, até os dias de hoje, uma
sociedade que se pretende plural, mas que ainda tem muitos passos no caminho
da igualdade social e da promoção das diferenças. (ADI 3.239/DF – voto vista
do Min. Edson Fachin, julgamento em 08/02/2018, DJ de 01/02/2019 – sem
destaque no original).

54. No Brasil, imperou meio milênio de rejeição da condição de sujeito aos


quilombolas pelo Estado, dimensão fática do racismo estrutural com a institucionalização
de práticas20 de significativa repercussão na afirmação ou negação de direitos
fundamentais. Sobre o tema não é demasiado anotar que no Brasil em determinadas
situações:

(...) a erradicação das enfermidades acabou associada às transformações das


políticas de dominação, implicando na identificação do escravo (leia-se o
africano) como foco principal de doenças que ameaçavam a ordem social.
Um processo histórico que acabou delineando as principais características das
políticas públicas de controle social adotadas no último quartel do século
XIX, ocasionando posteriormente intolerâncias e truculência contra
populações urbanas e rurais, especialmente as lógicas de ocupação e moradia21
(sem destaque no original).

20
GOMES, Rodrigo Portela. Constitucionalismo e quilombos: famílias negras no enfrentamento ao
racismo de Estado. 2 ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 242.
21
BARBOSA, Keith de Oliveira; GOMES, Flávio. Doenças, morte e escravidão africana: perspectivas
historiográficas. In PIMENTA, Tânia Salgado; GOMES, Flávio (orgs.). Escravidão, doenças e práticas de
cura no Brasil. Outras Letras, Rio de Janeiro, 2016, p. 275.
20

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55. No campo da saúde, assim como no acesso à terra, o Estado brasileiro não foi
apenas omisso para com quilombolas pois agiu, e ainda age, por meio de sua estrutura
para coibir e impedir, inclusive através do aparato de persecução penal, os ofícios de cura
relacionados à cultura negra quilombola, marcadamente quanto às religiões de matriz
africana22.

56. A garantia de acesso à saúde é direito fundamental de todas as pessoas (art. 6º;
art. 196 da CF/88). Em função de circunstâncias histórico-sociais, mas fundamentalmente
em vista do comando constitucional de proteção às comunidades quilombolas, é possível
afirmar que há tutela constitucional específica da saúde a essas comunidades, já que a
proteção do seu modo de criar, fazer e viver não pode ser fragmentada do rol de direitos
fundamentais assegurados na Constituição Federal23.

57. Desse modo, por toda a fundamentação jurídica e fática desta inicial os preceitos
violados que merecem proteção do Supremo Tribunal Federal para resguardar a
“integridade da ordem constitucional”24, podem ser sinteticamente descritos como: (i) a
dignidade da pessoa humana (art. 1º, IV, CF/88); (ii) o direito à vida (art. 1º da CF/88);
(iii) o direito à saúde (art. 6º; art. 196 da CF/88); (iv) os direitos quilombolas, revestidos
de fundamentalidade por se tratarem de garantia ao modo de vida quilombola, bem como
sua reprodução física, social, territorial, religiosa, econômica e cultural em sua
diversidade (art. 68 ADCT; art. 215, I e V; art. 216, II e §1º da CF/88); (v) o enfrentamento
as desigualdades étnico-raciais (art. 3º, I, III e IV da CF/88); (vi) a garantia do pluralismo
político e da autodeterminação dos povos (art. 1º, V; art. 4º, III da CF/88).

58. Logo, considerando que “ninguém poderá negar a qualidade de preceitos


fundamentais da ordem constitucional aos direitos e garantias individuais (art. 5º, dentre
outros)”25 é de se considerar como preceito fundamental insculpido na Constituição

22
Ver: FERNANDES, Nathália Vince Esgalha; OLIVEIRA, Ariadne Moreira Basílio de. Plano nacional
de liberdade religiosa: os povos de terreiro e a construção do racismo religioso. Revista Calundu - vol. 1,
n. 2, jul-dez 2017.
23
Ver: SOUZA FILHO, Carlos F. Marés de.; PRIOSTE, Fernando G.V. Quilombos no Brasil e direitos
socioambientais na América Latina. Revista Direito e Práxis, v. 8, n. 4, 2017, p. 2903-2926.
24
ADPF 632/DF, voto do Min. Rel. Gilmar Mendes, decisão em 10/12/2019, DJ de 11/12/2019
25
ADPF 33-MC/PA, voto do Min. Rel. Gilmar Mendes, julgamento em 29/10/03, DJ de 06/08/04
21

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Federal de 1988 a garantia, por intermédio de ações positivas do Estado, de reprodução
física, social e cultural das comunidades quilombolas.

III.1 – Ações e omissões lesivas ao preceito fundamental de garantia de reprodução


física, social, étnica e cultural das comunidades quilombolas

59. O atual quadro da crise sanitária é de gravidade sem precedentes. Por sua vez,
a situação de maior grau de vulnerabilidade das comunidades quilombolas aos efeitos da
Covid-19, quando comparadas com o restante da população, impõe a necessidade de
ações positivas por parte do Estado.

60. Contudo, o que se verifica é um quadro insustentável de inação por parte do


Estado brasileiro, em especial pelo Poder Executivo Federal, situação que gera graves
lesões às comunidades quilombolas e coloca em risco iminente a garantia de reprodução
física, social e cultural desses grupos formadores da identidade nacional.

61. Diante desse fato, se evidencia a necessidade de intervenção do E. Supremo


Tribunal Federal, no desempenho da sua função maior de guardião da Constituição, nos
termos do art. 102, caput, da Constituição Federal de 1988, com a finalidade de impedir
a contínua violação do preceito fundamental aqui aduzido.

62. O resultado da pandemia de Covid-19 nos territórios quilombolas é alarmante,


sobretudo pelas condições socioeconômicas e a precariedade na assistência à saúde nessas
localidades. Há preocupação especial com a população mais idosa, sujeitos que possuem
particular importância para essas comunidades, posto que são eles e elas que promovem
a transferência da memória e da cultura aos mais jovens, garantindo a reprodução étnica,
social e cultural dessas comunidades.

63. No paradigma constitucional, a vida é uma garantia máxima que fundamenta


o pacto político-jurídico, portanto, não se exige qualquer provocação perante o poder
público para sua proteção, pois se trata de dever do Estado.

64. Contudo, o que se observa é um conjunto de ações e omissões das autoridades


públicas federais que serão apresentadas, que tem contribuído de forma substancial para
22

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ampliar o número de casos de contágio e de óbitos pela Covid-19 nos territórios
quilombolas. Nesse sentido, as ações e omissões do Poder Executivo Federal
caracterizam cenário de afronta ao projeto constitucional de 198826.

65. Os casos de contágio e de mortes confirmadas por Covid-19 nos territórios


quilombolas aludem a graves lesões de outros preceitos fundamentais, como os direitos à
vida e à saúde de modo a inviabilizar o fazer, criar e viver quilombola.

66. A inviabilização da vida quilombola faz com que esses grupos corram riscos
iminentes de desagregação ou desestruturação com a morte de seus integrantes e a perda
de suas referências culturais, especialmente ante os altos riscos de morte das pessoas mais
idosas contaminadas pela Covid-19. Isso porque o conhecimento das comunidades
quilombolas é transferido, principalmente, de maneira oral, pelas pessoas mais idosas das
comunidades.

67. Identificado o quadro geral de lesões aos preceitos fundamentais, cumpre


delimitar os atos e omissões do poder público direcionados a violá-los.

68. Fica evidenciado, pelos fatos e fundamentos narrados ao longo da exordial,


que o maior impacto da pandemia de Covid-19 sobre as comunidades quilombolas está
diretamente relacionado à atuação do Poder Executivo Federal, pois, após seis meses
desde a primeira notificação27 confirmada de Covid-19 no Brasil, não foi ainda
assegurado às comunidades quilombolas um plano emergencial de contingência à Covid-
19 que seja adequado às vulnerabilidades territoriais, socioeconômicas, estruturais e
epidemiológicas desse segmento populacional.

69. Para além das omissões, verificaram-se ações dispersas e absolutamente


insuficientes diante do contexto e das possibilidades materiais de ação por parte do Estado
brasileiro.

26
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução: Nelson Boeira, 3. ed. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2010, p. 309.
27
Disponível em: https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/47215-primeiro-caso-de-covid-19-no-
brasil-permanece-sendo-o-de-26-de-fevereiro. Acesso em: 30 ago. 2020.
23

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70. Desse modo, em grande medida, a lesividade é observada na omissão da
União, destacando-se:

(i) ausência de monitoramento, divulgação pública e regular dos casos


envolvendo quilombolas infectados;
(ii) ausência de monitoramento, divulgação pública e regular de óbitos
entre quilombolas;
(iii) ausência de plano governamental destinado ao combate aos efeitos da
Covid-19 nos quilombos;
(iv) violações ao direito de realizar isolamento social comunitário como
medida de autoproteção;
(v) ausência de medidas governamentais de apoio à proteção sanitária-
territorial por meio do fornecimento de equipamentos de proteção
individual;
(vi) ausência de medidas de proteção da posse tradicional quilombola
durante a pandemia, gerando riscos de deslocamentos forçados
coletivos dessas comunidades em período de máxima vulnerabilidade;
(vii) ausência de instância institucional de Estado no âmbito do Poder
Executivo Federal voltada à consulta e participação da entidade
representativa nacional quilombola;
(viii) ausência de medidas de busca da equidade diante do acesso em menor
escala a políticas públicas destinadas a toda a população, a exemplo
do acesso ao auxílio emergencial;
(ix) ausência de ações em escala e com regularidade minimamente eficazes
que viabilizem segurança alimentar e nutricional, a exemplo da
distribuição de sementes, outros insumos agrícolas e cestas básicas.

71. As omissões acima apontadas indicam que o Estado, mais precisamente o


Poder Executivo Federal, deixou de adotar ações que são de execução absolutamente
viável e que têm o condão de minimizar significativamente os efeitos da pandemia
decorrente da Covid-19 e, assim, resguardar a garantia de reprodução física, social e
cultural das comunidades quilombolas.

24

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III.2 – Subsidiariedade da tutela requerida

72. A doutrina e a jurisprudência convergem no entendimento de que o


pressuposto da subsidiariedade da ADPF, expresso no art. 4º, § 1º, da Lei 9.882/1999, se
configura sempre que inexistir “outro meio juridicamente idôneo apto a sanar, com
efetividade real, o estado de lesividade do ato impugnado”28.

73. No presente caso, como se demonstrará adiante, não há qualquer remédio


processual que permita, de forma ampla e geral, impugnar as lesões e buscar as reparações
requeridas. Ou seja, não há outro meio processual apto a viabilizar reparações às lesões
às comunidades quilombolas que derivam da ineficiência da atuação do Estado para
enfrentamento dos efeitos da pandemia de Covid-19.

74. Observe-se que os requerimentos realizados pelos Arguentes nesta ação não
podem ser realizados, da mesma forma e com a mesma abrangência, através de outros
mecanismos processuais. As limitações impostas pelas ações ordinárias, pelo mandado
de segurança e, inclusive, pela ação civil pública, impedem o manejo desses instrumentos
processuais, assim como de outros quaisquer, para consecução dos fins almejados com a
presente ação.

75. Observe-se que quanto à inviabilidade de manejo da ação civil pública para os
fins pretendidos nesta ação esse E. Supremo Tribunal Federal, por meio do Recurso
Extraordinário nº 1.101.937, de relatoria do Exmo. Sr. Ministro Alexandre de Moraes, irá
julgar a constitucionalidade do art. 16 da Lei 7.347/1985, segundo o qual a sentença na
ação civil pública fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial
do órgão prolator.

76. Ou seja, no citado recurso extraordinário se debate justamente o alcance


territorial no manejo da ação civil pública em situações como a da presente ação, na qual
se postula por efeitos que vão além da competência territorial de qualquer órgão
jurisdicional que não seja esse E. Supremo Tribunal Federal. Ademais, no referido
recurso, decretou-se a suspensão do processamento de todas as demandas pendentes que

28
ADPF 145, Min. Ricardo Lewandowski, decisão monocrática, julgamento em 2/2/2009, DJE de 9/2/2009
e cf. ADPF 3/CE, rel. Min. Sydney Sanches, ADPF 12/DF e 13/SP, ambas de relatoria do Min. Ilmar
Galvão, ADPF 129/DF. Rel. Min. Ricardo Lewandowski.
25

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tratem da questão, o que poderia atingir e suspender a tramitação de eventual ação civil
pública se eventualmente essa questão fosse suscitada.

77. Observa-se que não há outro mecanismo processual idôneo para que sejam
apreciados em conjunto os pedidos para a realização e implementação de um plano
nacional de combate aos efeitos da pandemia de Covid-19 nos quilombos, assim como
para a constituição e funcionamento de um grupo de trabalho interdisciplinar e paritário
para elaborar e monitorar a ação do referido plano.

78. A abrangência nacional e a extensão do conteúdo dos requerimentos relativos


ao plano e ao grupo de trabalho recomendam o manejo da presente arguição para alcance
de seu máximo efeito no menor prazo possível.

79. Por fim, compreendendo que o objeto da presente ação é a garantia de vida de
quilombolas, bem como em função da urgência de adoção de medidas eficazes em todo
o território nacional, apenas a autoridade de decisão a ser proferida por esta E. Corte tem
potencial de impor à União, sem demoras, a adoção das medidas pleiteadas.

80. Nesse sentido, há precedente recente quanto à situação semelhante relativa a


povos indígenas, na decisão:

Tais atos e os pedidos veiculados pelos requerentes só poderiam ser


apreciados, em seu conjunto, por meio de arguição de descumprimento de
preceito fundamental. Não há outra ação direta que comporte tal objeto. E há
necessidade de que se produza uma decisão com efeitos vinculantes e gerais
para o Judiciário e para a Administração Pública (ADPF 709/DF, voto do Min.
Rel. Luís Roberto Barroso, julgamento em 08/07/2020, DJ de 10/07/2020).

81. Assim, resta demonstrado que não há outro meio processual para alcançar os
fins que se pretende com a presente ação, sendo de rigor reconhecer o seu caráter
subsidiário.

IV – Da vulnerabilidade dos quilombolas na pandemia de Covid-19

82. O dever de garantia da reprodução física, social e cultural às comunidades


quilombolas pelo Estado decorre de fundamento constitucional. As situações de
vulnerabilidade vivenciadas por quilombolas a um só tempo justificam a necessidade de

26

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ação de Estado e orientam a atuação de modo a buscar a superação completa dessas
iniquidades.

83. Assim, abaixo elencam-se situações que expressam e comprovam as


vulnerabilidades das comunidades quilombolas, de forma a justificar a tutela requerida
quanto às ações que devem ser efetivadas pelo Poder Executivo Federal para afastar as
lesões a preceitos fundamentais.

84. As informações abaixo estão respaldadas em nota técnica (Documento 7)


apresentada pela Universidade de Brasília, a partir de dados antecipados pelo IBGE na
Base de Informações sobre Indígenas e Quilombolas, com a finalidade de “apoiar os
órgãos governamentais, representantes da sociedade civil, e as próprias comunidades e
organizações indígenas na gestão dos impactos da pandemia de Covid-19 nas
populações Indígenas e Quilombolas ao consolidar uma série de informações
sociodemográficas e geográficas de interesse ao enfrentamento da pandemia ”29.

a) Vulnerabilidade territorial

· 85. Apoiado nos dados do Incra, atualizados em 20 de julho de 2020, o estudo


concluiu que apenas 5,34% das localidades quilombolas mapeadas pelo IBGE tiveram o
título de propriedade definitiva expedido por órgãos do Poder Executivo Federal ou
Estadual, nos termos do que preceitua o art. 68 do ADCT, da Constituição Federal.

· 86. Desse total de títulos emitidos, apenas 129 foram expedidos pelo Incra,
resguardando o direito fundamental de apenas 2,16% das localidades quilombolas
identificadas pelo IBGE.

87. Fica demonstrado amplo quadro de violação de direitos à posse e à propriedade


para com as comunidades quilombolas, falha estrutural do Estado em prover o que se
determinou na Constituição30. O direito constitucional quilombola de acesso ao território,

29
Ver: https://mapasinterativos.ibge.gov.br/covid/indeg/. Acesso em: 04. set. 2020.
30
Ver: MOREIRA, Maira de Souza. Do Direito à Política Pública: a produção social da política
quilombola no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária do Rio de Janeiro. Dissertação
(Mestrado em Sociologia e Direito). Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade
Federal Fluminense, 241 p. 2017.
27

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imprescindível para resguardar os modos de fazer, viver e criar31, não foi implementando
à maioria das comunidades quilombolas.

b) Vulnerabilidade socioeconômica
88. Com suporte nas informações da base sociodemográfica de 2010 do IBGE, o
estudo estimou o grau de precariedade econômica dos municípios com maior densidade
quilombola, usando os dados das rendas per capita média e mediana mensal.

89. Identificou-se que nos municípios com localidades quilombolas o rendimento


médio per capita é de R$ 360,65, enquanto nos municípios sem localidades quilombolas
o rendimento médio é de R$ 469,78.

90. E o rendimento mediano nos municípios com localidades quilombolas equivale


mensalmente a R$ 236,65, inferior aos rendimentos medianos dos municípios sem
localidades quilombolas que ao mês corresponde a R$ 328,86.

91. Também relevante o dado do estudo que indica o decréscimo no valor médio de
rendimento per capita mensal proporcional ao número de localidades quilombolas do
município. Assim, quanto maior a quantidade de localidades quilombolas em
determinado município, menor é a renda.

c) Vulnerabilidade estrutural relativa ao saneamento básico

92. O estudo identificou, a partir da análise sobre os dados do Censo Demográfico


2010, que os municípios com localidades quilombolas possuem o maior índice de
inadequabilidade no saneamento, correspondendo a 23,59% dos domicílios,
enquanto nos municípios sem localidades quilombolas, a inadequabilidade está presente
em 18% dos domicílios.

93. No relatório destaca-se o mesmo fenômeno verificado na vulnerabilidade


socioeconômica, pois quanto maior a presença de localidades quilombolas nos

31
Ver: SARMENTO, Daniel. A Garantia do Direito à Posse dos Remanescentes de Quilombos antes
da Desapropriação. Revista de Direito do Estado, v. 7, 2007, p. 345-360.
28

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municípios, maior o índice de inadequabilidade em relação ao saneamento dos
domicílios, alcançando o percentual de 32,80% dos domicílios em municípios com 30 ou
mais localidades quilombolas.

Adequação do saneamento(%), segundo quantitativo de


localidades quilombolas no município

30ou mais localidades ~1.0,,..


.s"'s __ 56,36 32,80

20ou mais localidades 19,16 50,02 30,82

10ou mais localidades 19,52 49,98 30,43

Sou mais loc.atidades 22,78 48,3 28,90

0,00 20,00 40,00 60,00 80,00 100,00 120,00

■ Saneamento adequado(%) ■ Saneamento semi-adequado(%) ■ Saneamento inadequado(%)

Fonte: IBGE, Censo Demográfico (2010); Base de Informações sobre os Povos Indígenas e Quilombolas
(2019).

d) Vulnerabilidade infraestrutural relativa à saúde


·
94. O estudo destaca a análise que sobrepõe a base de dados do IBGE às
localidades quilombolas e dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde
(DataSUS), divulgados no início de agosto de 2020, quanto à disponibilidade de médicos,
respiradores e leitos de UTI do sistema público de saúde nos municípios brasileiros.

· 95. O relatório aponta que dentre os 1.672 municípios com localidades quilombolas,
46 não possuem nenhum médico do SUS, 67 possuíam apenas um médico do SUS e 619
entre 2 e 10 médicos do SUS. Em 745 municípios (44%), há um médico do SUS para
mais de 1.000 habitantes;

29

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Total de médicos do SUS, segundo municípios e presença de
localidades quilombolas

Sem localidades 160078

Com localidades

Com Sou mais


localidades

Com 1o ou mais
localidades

Com 20 ou mais 2165


localidades

Com 30 ou mais
localidades 793

o 50000 100000 150000 200000

■ Quantidade de médicos do SUS

Fonte: IBGE, Base de Informações Geográficas e Estatísticas sobre os Indígenas e Quilombolas (2019);
DataSUS, Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (2020).

96. É destacado no estudo que dentre os 1.672 municípios com incidência


quilombola, 1.485 (89%) não possuem leitos de UTI. O relatório também destaca a
redução gradual de leitos de UTI disponíveis por municípios, chegando a apenas 40
leitos de UTI em todos os municípios com 30 ou mais localidades quilombolas;

30

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Munícípios com Localídades Quilombolas: leitos de UTI

AC

Fonte: IBGE. 2019: OataSUS. 2020.

Fonte: IBGE, Base de Informações Geográficas e Estatísticas sobre os Indígenas e Quilombolas (2019);
DataSUS, Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (2020).

97. O estudo também identificou que cerca de 57% das localidades quilombolas
não dispõem de respiradores nos municípios a que estão vinculadas. Assim, no total de
1.674 municípios com incidência quilombola, 948 não possuem respiradores no SUS.

31

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Total de respiradores do SUS, segundo municípios e presença de
localidades quilombolas

Sem localidades 22208

Com localidades

Com Sou mais


localidades

Com 1o ou mais
localidades

Com 20 ou mais 342


localidades

Com 30 ou mais
localidades 89

o 5000 10000 15000 20000 25000

■ Quantidade d• r•spirador•s do SUS

Fonte: IBGE, Base de Informações Geográficas e Estatísticas sobre os Indígenas e Quilombolas (2019);
DataSUS, Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (2020).

e) Outras vulnerabilidades

98. Além dos recentes dados do IBGE, podemos verificar através de outros
estudos e notas técnicas que constituem conjunto probatório nestes autos (Documento 8,
9), outras vulnerabilidades a que estão condicionadas às comunidades quilombolas,
sobretudo no que tange à garantia de condições sanitárias adequadas, produção que
possibilite segurança alimentar e nutricional, bem como quanto ao fortalecimento e
monitoramento das políticas públicas setoriais e ao acesso à informação sobre as pessoas
negras quilombolas.

e.1) Vulnerabilidades apresentadas pelas comunidades quilombolas por amostragem


a partir de territórios situados na Amazônia Legal

99. Além das informações oficiais reportadas acima, a CONAQ desenvolveu,


juntamente com as comunidades quilombolas, no período de 2017 a 2019, pesquisa de
dados qualitativos e quantitativos em 98 territórios tradicionais coletivos, abrangendo 172
comunidades e 3.203 famílias em 6 estados amazônicos (Mato Grosso, Rondônia, Pará,
Amapá, Maranhão e Tocantins). Realizada com o apoio técnico das organizações da
32

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sociedade civil Equipe de Conservação da Amazônia e Instituto Brasileiro de Pesquisa e
Análise de Dados, a pesquisa quilombola se desenvolveu a partir de um processo
participativo.

100. Ainda que a pesquisa quilombola tenha um horizonte restrito de indivíduos


e famílias, uma vez que se trata de um contingente populacional estimado em milhões, e
esteja limitada à região da Amazônia Legal, apresenta um cenário relevante que dialoga
com os resultados apurados nos estudos oficiais nacionais existentes e aprofunda a
percepção das vulnerabilidades dessas comunidades à pandemia de Covid-19.

101. O estudo apresentou dado expressivo sobre a renda, demonstrando que em


67% das famílias os proventos atingem o limite máximo de um salário mínimo.

102. Destaque-se, ainda, que a principal fonte de renda é a agricultura,


mencionada por 49% das famílias entrevistadas. Ao mesmo tempo, 94% das famílias que
têm renda de até um salário mínimo informaram que a mesma advém, em parte, da
atividade agrícola.

103. Sua prática se destina tanto à segurança alimentar quanto à comercialização,


mas a produção tem sido comprometida pela constante redução de seus territórios e
dificuldades de acesso a políticas públicas da agricultura familiar, balizadas pela omissão
estatal na titulação dos territórios e no estímulo à produção coletiva.

e.2) Vulnerabilidade quanto ao monitoramento, acesso à informação e combate ao


racismo institucional

104. O Programa Brasil Quilombola, estabelecido pelo Decreto Federal nº


6.261/2007, primeiro programa a prever ações de caráter nacional às comunidades
quilombolas, e que pretendia promovera articulação entre as diversas políticas públicas
setoriais, foi quase que integralmente extinto entre os anos de 2016 e 2020.

33

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105. O programa previa a implementação da agenda social quilombola, com
ações voltadas à promoção do acesso à terra, à infraestrutura e qualidade de vida, à
inclusão produtiva e desenvolvimento local e à cidadania.

106. A página eletrônica32 que continha informações sobre o monitoramento do


acesso a essas políticas, dispondo de painéis e mapas que facilitavam a visualização de
dados da população quilombola associados a variáveis do Cadastro Único, está
desativada. Também o link33 de referência ao programa na página institucional da
Fundação Cultural Palmares encontra-se desativado.

107. A falta de publicidade das informações sobre as políticas quilombolas tem


estreita relação com a inexecução de recursos orçamentários.

108. Em evento realizado na Comissão Externa de Enfrentamento à Covid-19 da


Câmara dos Deputados sobre os impactos da pandemia nas populações negras e
quilombolas34, em 26 de agosto de 2020, Carmela Zigone, assessora política do Instituto
de Estudos Socioeconômicos, apresentou dados sobre o desmonte da política de igualdade
racial a partir do corte de 80% dos recursos orçamentários apurados no período de 2014
a 2019.

109. O programa de enfrentamento e combate ao racismo foi excluído do Plano


Plurianual 2020-2024. Desde 2018, nenhum recurso foi disponibilizado para apoio ao
desenvolvimento sustentável. Também não houve recurso disponível para regularização
fundiária de 2017 a 2019. Em 2020, foram disponibilizados R$ 3,2 milhões para esta
última, sem que o orçamento tenha sido executado até o momento.

110. No âmbito do Ministério da Cidadania existe ação para distribuição de


alimentos para povos e comunidades tradicionais. Dos R$ 7,3 milhões autorizados, foram
gastos apenas R$ 364 mil. A Fundação Cultural Palmares não possui nenhuma rubrica

32
Disponível em: http://monitoramento.seppir.gov.br/. Acesso em: 02. set. 2020.
33
Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/comunidades-tradicionais/programa-brasil-quilombola.
Acesso em: 02. set. 2020.
34
Link da gravação integral do evento: https://www.youtube.com/watch?v=YkVSHu4AVME.
34

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orçamentária específica para quilombolas. O Ministério da Mulher Família e Direitos
Humanos possui R$ 115 mil, porém, nem um real foi executado.

111. Tais fatos revelam o modo de agir e uma intencionalidade governamental


estruturada e descompromissada com a garantia da vida quilombola. Firmadas essas
premissas, passa-se à discussão de cada um dos blocos de pedidos apresentados pelos
proponentes.

V – Das medidas de proteção à vida e à saúde nas comunidades quilombolas

V. 1 – Medidas de garantia da segurança alimentar e nutricional para a população


quilombola

112. A pandemia de Covid-19 agravou o desafio posto para as políticas de


segurança alimentar e nutricional especificamente concebidas para os grupos que
permanecem em estado de vulnerabilidade, dentre os quais as comunidades quilombolas.

113. Nesse contexto, o acesso e permanência nos territórios tradicionais é


primordial, pois, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a
Agricultura:

Um dos determinantes básicos da SAN que constitui um desafio histórico e


persistente no Brasil é o acesso à terra. O fortalecimento da reforma agrária e
a demarcação e regularização de terras de Povos e Comunidades Tradicionais
constituem mecanismos estruturantes de combate à fome e desigualdades entre
as populações de maior vulnerabilidade. 35

114. Entre os quilombolas, os fatores determinantes da insegurança alimentar,


além das limitações para o acesso à terra, incluem o preconceito e o racismo institucional,
baixa renda, desemprego, baixa escolaridade e pouco ou nulo acesso a programas sociais,
ausência de assistência financeira e técnica para produção de alimentos.36 (FAO, 2015).

35
FAO. O estado da segurança alimentar e nutricional no Brasil: um retrato multidimensional. Brasília:
FAO, agosto de 2014, p. 76.
36
FAO. O estado da segurança alimentar e nutricional no Brasil: agendas convergentes. Brasília: FAO,
outubro de 2015.
35

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115. Segundo dados da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) de
2013, a segurança alimentar de domicílios urbanos era de 79,5%, enquanto na zona rural
o índice é de 64,5%, meio no qual majoritariamente vivem as comunidades quilombolas.
Se o domicílio rural é composto por negros, o percentual daqueles em segurança alimentar
é menor ainda, apenas 58%.

116. Os dados disponíveis apontam para um quadro gravoso. É grande o número


de famílias cujos membros vivenciam situações que as colocam em insegurança
alimentar. “Há muito a ser feito para erradicar a pobreza e enfrentar as desigualdades
econômicas, sociais, de gênero, raça, etnia, entre outras. A insegurança alimentar ainda
persiste entre povos indígenas, povos e comunidades tradicionais”.37.

117. De acordo com a Pesquisa de Avaliação da Situação de Segurança


Alimentar e Nutricional em Comunidades Quilombolas Tituladas, as comunidades
quilombolas, mesmo em territórios já titulados, vivenciam situações de preocupante
insegurança alimentar38. Cenário comum é o isolamento geográfico e social e a baixa
integração dos territórios quilombolas com outros espaços geopolíticos dos municípios
nos quais a oferta de bens e serviços públicos é maior. Além disso, constatou-se que (i) a
situação de pobreza extrema é vivenciada por 45,8% dos indivíduos quilombolas e,
associado a isto, inadequações da qualidade de vida e bem-estar, segurança alimentar e
nutricional e do acesso às políticas públicas; (ii) o Programa Bolsa Família (PBF) chega
a 78,3% dos domicílios quilombolas que são elegíveis ao programa; (iii) a ação
emergencial das Cestas de Alimentos chega 31,4% dos domicílios; (iv) importantes
programas para estruturação produtiva das comunidades têm baixa cobertura: o Programa
Nacional de Apoio à Agricultura Familiar (Pronaf) chega a apenas 5,8% dos domicílios,
a Assistência Técnica e Extensão Rural a 1,3% e o Programa de Aquisição de Alimentos
a 0,6%.

118. Outro dado da pesquisa acima mencionada aponta para a conclusão de que
mais da metade da população quilombola sofre com intensa insegurança alimentar.

37
CONSEA. Comida de verdade no campo e na cidade. 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar
e Nutricional. Relatório final. Brasília: CONSEA, 2015, p. 22.
38
BORGES, Júlio César et. al. Quilombos do Brasil: segurança alimentar e nutricional em territórios
titulados. Cadernos de Estudos n. 20, MDS. Brasília: SAGI/MDS, 2014.
36

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Observou-se que 55,6% dos adultos quilombolas ficam um dia todo sem comer ou só
fazem uma refeição no dia por ausência de alimentos na residência.

119. Este fato ainda é mais expressivo quando analisado separadamente, em que se
observa que no Baixo Amazonas a frequência da falta de refeições foi de 86,3% dos
adultos. Existe um gradiente de redução entre as regiões que decresce de 86,3% para
24,2% entre o Baixo Amazonas e o Centro-Sul. Estas duas regiões também são
respectivamente as mais inseridas em um contexto de baixa densidade demográfica e
urbanização e a mais inserida no contexto social.

120. O maior grau de insegurança alimentar se dá quando as crianças do domicílio


passam por privação alimentar devido à falta de disponibilidade do alimento. O quadro
vivenciado no Baixo Amazonas é gravíssimo quando se constata que a cada cinco
residências, quatro possuem crianças com a vivência da falta de alimento, ou seja, fome.

121. A garantia do direito humano à alimentação adequada pressupõe uma


análise multidimensional a orientar a avaliação do estado de segurança alimentar e
nutricional de uma população. Ele se perfaz, nos termos o artigo 3º, Lei 11.346/2006, na
realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade,
em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais,
tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade
cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. No
mesmo sentido, estabelece o Programa Nacional de Acesso à Alimentação, criado pela
Lei 10.689/2003, através do art. 1º, §1º, que segurança alimentar significa o acesso à
alimentação todos os dias, em quantidade suficiente e qualidade necessária.

122. Os recursos orçamentários destinados à execução da ação de distribuição


de cestas de alimentos para populações tradicionais, segundo dados extraídos do Portal
da Transparência, tiveram flagrante redução no período de 2017 a 2020, em uma
proporção de 82,5%. O Instituto de Estudos Socioeconômicos também produziu nota
técnica (Documento 8), informando que em 2020 foram autorizados apenas R$ 7,3

37

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milhões, sob responsabilidade do Ministério da Cidadania. Até a data da publicação da
nota o Ministério havia executado na referida ação apenas R$ 364 mil.

Orçamento da União Federal para execução da Ação 2792


DISTRIBUICAO DE ALIMENTOS A GRUPOS POPULACIONAIS TRADICIONAIS E ESPECIFICOS
45000000
40000000
35000000
30000000
■ Orçamento atualizado
25000000
20000000
15000000
10000000
5000000
o
2017 2018 2019 2020

Fonte: Portal da Transparência (2017-2020).

123. O informe relativo ao Direito Humano à Alimentação e à Nutrição


Adequadas de 2019, sobre Autoritarismo, Negação de Direitos e Fome, produzido pela
FIAN Brasil39 destaca que desde 2014 tem havido crescente e contínua redução e
desestruturação dos programas de Soberania Alimentar e Nutricional (SAN), tendo se
agravado nos governos dos Presidentes Michael Temer e Jair Bolsonaro.

124. A mesma situação se verifica na redução orçamentária do Programa de


Cestas de Alimentação voltado para os povos indígenas e quilombolas. Em 2014, havia
orçamento destinado pela lei orçamentária anual ao programa Distribuição de Alimentos
a Grupos Populacionais Tradicionais e Específicos (Cesta de Alimentos) de R$ 82
milhões, reduzido em 2018 para R$ 27,4 milhões (CONSEA, 2018)40.

39
Disponível em: https://fianbrasil.org.br/wp-content/uploads/2019/11/Informe-Dhana-2019_v-final.pdf.
Acesso em: 02. set. 2020.
40
CONSEA. Caderno de debates: Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional + 2. Brasília:
Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), 2018. Disponível em:
38

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125. Vale mencionar ainda a extinção do Consea, por meio da Medida Provisória
870/2020. O Conselho é um importante espaço de participação da sociedade civil na
formulação e implementação de políticas, planos, programas e ações e sua extinção
importa em grave retrocesso no tema dos direitos humanos.

126. Diante do contexto da pandemia, a Ação de Distribuição de Alimentos a


grupos vulneráveis deveria ter sido intensificada, de modo a minorar os efeitos da
disseminação do Covid-19 e garantir às comunidades quilombolas a integridade física,
moral, psíquica e a reprodução das suas relações sociais e econômicas.

127. A Lei 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da


emergência à saúde pública, prevê em seu art. 4º, a dispensa de licitação para aquisição
de bens ou serviços destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública
decorrente do novo coronavírus. A referida lei estabelece também que se configura como
atividade essencial do Estado brasileiro o atendimento à população em estado de
vulnerabilidade, conforme dispõe o art. 3º, III.

128. Ocorre que o Estado brasileiro tem deixado de assegurar, de forma efetiva
e suficiente, o direito à segurança alimentar das comunidades quilombolas durante a
pandemia. Além do ano de 2020 ter sofrido um corte orçamentário drástico no que tange
à implementação da ação orçamentária 2792 (Distribuição de Alimentos a Grupos
Populacionais Específicos), o orçamento, mesmo considerando o contexto da pandemia
e a possibilidade de implementação de ações emergenciais, mesmo sem obrigatoriedade
de licitação, não tem sido executado.

129. Para atender à demanda de segurança alimentar das comunidades


quilombolas e indígenas durante a pandemia, o Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos celebrou o Acordo de Cooperação Técnica nº 01/20 com a Conab, no
qual foi produzido o Termo de Execução Descentralizada - TED nº 03/2020 (Documento
10).

130. Segundo o referido termo, os recursos destacados pelo TED estão sendo
utilizados para aquisição e distribuição de 14.618 cestas básicas, voltadas para 7.309

http://www4.planalto.gov.br/consea/comunicacao/noticias/2018/fevereiro/caderno-de-debates-apresenta-
conjunto-de-reflexoes-experiencias-e-caminhos/versao-web.pdf. Acesso em: 02. set. 2020.
39

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famílias quilombolas, sendo 02 cestas básicas por família. De acordo com o Guia de
Cadastramento de Famílias Quilombolas41, produzido pelo antigo Ministério de
Desenvolvimento Social (MDS) em 2011, estimava-se a existência de aproximadamente
100.000 famílias quilombolas42, distribuídas em cerca de 3.000 comunidades, o que
significa uma média de 33,33 famílias por comunidade. Considerando que o
levantamento realizado pelo IBGE indica a existência de 5.972 localidades no Brasil,
pode-se estimar um total de, no mínimo, 199.000 famílias quilombolas, o que faz com
que o número de famílias atendidas pela Ação de Distribuição de Alimentos da
União Federal seja ínfimo, configurando, de forma indubitável, grave lesão a
preceito fundamental.

Famílias Quilombolas atendidas pela Ação de Distribuição de Alimentos

■ Número mínimo estimado de


famílias quilombolas no Brasil
■ Número de famílias quilombo-
las atendidas pela Ação de
Distribuição de Alimentos na
pandemia

Fonte: Termo de Execução Descentralizada nº 3/2020.

Elaboração: AATR.

131. Os beneficiários quilombolas somam 7.309 famílias (uma cesta por


família), num total de 161.706 famílias, sendo as demais famílias de indígenas. Nesse

41
Disponível em:
http://www.mds.gov.br/webarquivos/licitacao/organismos_internacionais/anexo_13_3_guia_cadastrament
o_familias_quilombola.pdf. Acesso em: 01 set. 2020.
42
Estes dados foram obtidos considerando apenas o número de famílias inscritas no CAD Único.
40

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quantitativo, temos: 1.500 famílias quilombolas na Bahia, 567 no Maranhão, 908 no Pará,
2.779 no Paraná, 667 em Pernambuco, 888 no Piauí. Para o mês de agosto, houve
incremento de 20 mil cestas: 2.981 direcionadas para o território Kalunga (Goiás), 5.317
para Alagoas e Sergipe, 3.963 para Rio Grande do Norte e Pernambuco, 7.739 para o
Pará, Amapá e Maranhão.

132. Além do pequeno número de famílias atendidas, destaca-se também que o


referido termo de execução, no que diz respeito às famílias quilombolas, alcançou apenas
seis Estados brasileiros, conforme quadro extraído do documento.

ESTADO INDÍGENAS QUILOMBOLAS TOTAL FAMÍLIAS


AC 1.460 o 1.460
AL 11.882 o ll.882
AM 30.951 o 30.951
AP 147 o 147
BA 17.880 1.500 19.380
CE 5 .772 o 5.772
MA 9.191 567 9.758
MG 7.405 o 7.405
MS 17.109 o 17.109
MT 12.030 o 12.030
PA 5.483 908 5.483
PB 3 .127 o 3.127
PR 6.182 2.779 8.961
PE o 667 667
PI o 888 888
RO 2.2 14 o 2.214
RR 35 o 35
RS 12.332 o 12.332
se 7.781 o 7.781
SP 1.488 o 1.488
TO 1.928 o 1.9 28
TOTAL 154.397 7.309 161.706

Fonte: Termo de Execução Descentralizada nº 3/2020.

133. Portanto, resta mais que configurada a omissão estatal em garantir as


condições mínimas de dignidade e segurança alimentar às comunidades quilombolas no
contexto da pandemia, o que tem intensificado as condições de desassistência e o quadro
de vulnerabilidade impostos historicamente ao povo quilombola.

41

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134. Sendo assim, de modo a resguardar preceito fundamental, cabe ao Poder
Judiciário intervir, garantindo o abastecimento alimentar, com o fornecimento de cestas
básicas compatível com o número de famílias quilombolas no país, bem como o
monitoramento e a publicidade da referida ação.

V.2 – Do necessário cumprimento da notificação dos casos de Covid-19


confirmados entre quilombolas (art. 15, III, Lei 14.021/2020)

135. A população negra em geral e, mais especificamente a população


quilombola, tem sofrido de forma desproporcional as consequências da pandemia de
Covid-19.

136. Dessa forma, o monitoramento da disseminação do novo coronavírus, nas


comunidades quilombolas, com ampla divulgação das informações correspondentes são
medidas imprescindíveis na construção de ações e políticas públicas que atendam as
especificidades dessas populações. Todavia, desde o início da pandemia no Brasil, a
transparência e a disponibilização dos dados referentes à contaminação e óbitos por
Covid-19, sobretudo a partir de microdados e dados desagregados, têm sido insuficientes.

137. A Open Knowledge Brasil, organização sem fins lucrativos que avalia a
transparência dos dados públicos em diversos países, tem monitorado os dados referentes
à Covid-19 no Brasil e identificado debilidades importantes no que tange ao acesso à
informação.

138. Em boletim divulgado no dia 6 de agosto de 202043, a organização identificou


que um a cada quatro estados da federação não publica microdados, sendo que apenas
cinco Estados (Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte, Rondônia e
Governo Federal) publicam a base completa dos microdados. Entre os microdados,
destacam-se: faixa etária, sexo, raça/cor, etnias indígenas, população privada de
liberdade, entre outros. Em nenhuma das situações há dados relativos às comunidades
quilombolas.

43
Disponível em: https://transparenciacovid19.ok.org.br/files/ESTADOS_Transparencia-
Covid19_Boletim_3_2.0.pdf. Acesso em: 30 ago. 2020.
42

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139. Conforme preconiza a Constituição Federal, em seu artigo 200, compete ao
Sistema Único de Saúde “II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica,
bem como as de saúde do trabalhador”. E, em atenção aos objetivos da Política Nacional
de Saúde Integral da População Negra, o Ministério da Saúde editou a Portaria 344, em
2017, dispondo sobre o preenchimento da categoria raça/cor nas notificações do Sistema
Único de Saúde.

140. No entanto, a aplicação dessa determinação na sistematização e divulgação


das informações referentes à Covid-19 pelo Ministério da Saúde somente se iniciou em
11 de abril de 2020, por meio dos boletins epidemiológicos especiais, que não apresentam
dados abertos ou desagregados e demonstram ainda alto grau de imprecisão, em virtude
da presença significativa de casos com dados “ignorados” ou “sem informação”. Além
disso, os referidos boletins, quanto ao quesito raça/cor, apenas trazem dados referentes ao
“perfil de casos e óbitos da Covid-19 e hospitalizações e óbitos por Síndrome
Respiratória Aguda Grave (SRAG) no Brasil”, sem identificar os números de casos
confirmados considerando o referido quesito.

141. Conforme boletim epidemiológico publicado pelo Ministério da Saúde,


referente à semana epidemiológica número 34, de 16 ao dia 22 de agosto de 202044, das
316.814 pessoas que foram hospitalizadas no Brasil com síndrome respiratória aguda
grave (SRAG) em decorrência da Covid-19, cerca de 37% das pessoas eram negras45,
totalizando 119.172 pessoas, considerando a soma das autodeclaradas pretas e pardas. Ao
mesmo tempo, 32% eram brancas e 28% dos casos foram ignorados ou não continham a
informação raça/cor.

142. No que diz respeito aos óbitos, dos 111.258 mil casos registrados de morte
pelo novo coronavírus, cerca de 42% foram de pessoas negras (pretas e pardas), 30% de
pessoas brancas e em 26% das ocorrências o critério raça/cor foi ignorado ou está sem
informação. Verifica-se, portanto, que ainda que seja obrigatório o registro de raça/cor,

44
Disponível em: https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/August/27/Boletim-epidemiologico-
COVID-28-FINAL-COE.pdf. Acesso em: 30 ago. 2020.
45
Conforme determina o art. 1º, inciso IV da Lei 12.288/2010: “população negra: o conjunto de pessoas
que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga”.
43

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conforme determina a Portaria 344 de 2017 do Ministério da Saúde, a notificação de casos
ainda não tem sido realizada de forma satisfatória.

143. No que diz respeito especificamente a quilombolas, a Portaria nº 992 de maio


de 2009, que instituiu a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, elenca
como um dos objetivos específicos da política a garantia e a ampliação do “acesso da
população negra do campo e da floresta, em particular as populações quilombolas, às
ações e aos serviços de saúde”. E, para consecução de seus objetivos, essa mesma
portaria determina como estratégico o “estabelecimento de metas específicas para a
melhoria dos indicadores de saúde da população negra, com especial atenção para as
populações quilombolas”.

144. Nesse sentido, considerando os efeitos desestruturantes da pandemia nos


territórios tradicionais, foi editada a Lei 14.021, de 7 de julho de 2020, que estipula
medidas de apoio às comunidades quilombolas. Entre as medidas, destacam-se as
previstas no art. 15, III, que se refere justamente à notificação compulsória dos casos de
Covid-19 em quilombolas:

Art. 15. Serão desenvolvidas ações emergenciais de saúde, sem prejuízo


de outras, em prol das comunidades quilombolas, dos pescadores
artesanais e dos demais povos e comunidades tradicionais, que incluam,
no mínimo:
(...)
III - inclusão do quesito raça ou cor no registro dos casos de Covid-
19, asseguradas a notificação compulsória dos casos confirmados
entre quilombolas e sua ampla e periódica publicidade. (grifou-se).

145. Ocorre que até o momento não se observa nenhum monitoramento oficial do
Estado brasileiro acerca da extensão dos impactos da Covid-19 nos quilombos, seja no
que diz respeito aos óbitos, à quantidade de pessoas contaminadas, ao número de pessoas
hospitalizadas com síndrome respiratória aguda grave, seja no que diz respeito ao impacto
regional das doenças nos quilombos e o efetivo acesso dessa população ao sistema de
saúde.

146. Destaca-se que o último boletim epidemiológico especial do Ministério de


Saúde foi o da semana epidemiológica nº 34, referente ao período de 16 a 22 de agosto,

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mais de um mês após o início da vigência da Lei 14.021/2020, e não há uma única menção
a quilombolas no boletim.

147. Diante da omissão estatal no monitoramento dos dados da Covid-19 em


relação aos quilombos, a CONAQ, de forma autônoma e em parceria com o Instituto
Socioambiental, realiza levantamento dos casos de Covid-19, suspeitos e confirmados, e
os óbitos decorrentes por Estado, a partir do Observatório da Covid-19 nos Quilombos46.

148. De acordo com os dados atualizados até 19 de agosto de 2020, conforme já


apresentado, o Observatório aponta a existência de 155 óbitos e ao menos 4.276 casos
confirmados de Covid-19 nos quilombos. De 11 de abril, data do primeiro óbito registrado
pela CONAQ entre os quilombolas, até o dia 31 de agosto, morreu em média 1 quilombola
por dia no Brasil.

149. É a própria organização quilombola de incidência nacional que conta as


pessoas negras quilombolas, as trajetórias de luta, as memórias ancestrais e o sonho de
um dia verem seus territórios titulados, que se perderam desde o início da pandemia. Isso
significa que, apesar de todo o esforço autônomo e corajoso feito pela CONAQ, há notória
subnotificação e explícita omissão dos poderes públicos responsáveis pelo
monitoramento, e consequente falta de proposição de medidas destinadas a proteger as
vidas quilombolas. Vê-se que é necessário defender o óbvio: vidas quilombolas
importam!

150. Observe-se que esse monitoramento autônomo não tem a abrangência


nacional que apenas o Estado, por meio de suas estruturas, pode ter. O levantamento
extraoficial é apenas uma referência que está sendo utilizada para monitorar variáveis
dentro de uma metodologia que possui limites e obstáculos na coleta de dados. Dessa
forma, tal levantamento não substitui o necessário controle de Estado.

151. Além da previsão do art. 15, inciso III, da Lei 14.021/2020, a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, por meio da Resolução 01/2020, apontou a
necessidade dos Estados membros observarem e adotarem medidas “interseccionais e

46
Disponível em: https://quilombosemcovid19.org/ Acesso em: 2 set. 2020.
45

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prestar especial atenção às necessidades e ao impacto diferenciado dessas medidas nos
direitos humanos dos grupos historicamente excluídos ou em especial risco”. Uma dessas
ações deve ser justamente a garantia de controle e monitoramento de dados desagregados
da pandemia a fim de identificar os diferentes impactos em grupos de especial situação
de vulnerabilidade e, assim, ser capaz de desenvolver políticas públicas eficazes para a
proteção dessas pessoas, conforme se observa na recomendação 74 relativa à população
afrodescendente:

74. Incluir nos registros de pessoas contagiadas, hospitalizadas e falecidas pela pandemia de
Covid-19 dados desagregados de origem étnico-racial, gênero, idade e deficiência.

152. No mesmo caminho, a Lei 12.228/2010, que instituiu o Estatuto da Igualdade


Racial, determinou no artigo 7º como diretrizes da Política Nacional de Saúde da
População Negra, a “produção de conhecimento científico e tecnológico em saúde da
população negra” bem como o “desenvolvimento de processos de informação,
comunicação e educação para contribuir com a redução das vulnerabilidades da
população negra”. E, além das diretrizes, o Estatuto da Igualdade Racial também definiu
os objetivos da política, sendo um deles justamente o monitoramento e a análise de dados
desagregados:

Art. 8-o Constituem objetivos da Política Nacional de Saúde Integral da


População Negra:
(...)
II - a melhoria da qualidade dos sistemas de informação do SUS no que tange
à coleta, ao processamento e à análise dos dados desagregados por cor, etnia
e gênero; (grifou-se)
(...)
Parágrafo único. Os moradores das comunidades de remanescentes de
quilombos serão beneficiários de incentivos específicos para a garantia do
direito à saúde, incluindo melhorias nas condições ambientais, no saneamento
básico, na segurança alimentar e nutricional e na atenção integral à saúde.

153. Desse modo e diante da imperiosa exigência legal, seja em normativas


nacionais ou internacionais, e considerando a grave omissão do Estado brasileiro em
cumprir as destacadas determinações, requer-se que a União, por meio do Poder
Executivo Federal, adote as medidas necessárias para, no âmbito de sua competência, e
em prazo não superior a 48 horas, inclua o quesito raça ou cor no registro dos casos de Covid-

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19, asseguradas a notificação compulsória dos casos confirmados entre quilombolas e sua ampla
e periódica publicidade.

V. 3 – Proteção territorial e prevenção ao contágio: do fortalecimento das medidas


autônomas de isolamento social comunitário

154. Os quilombos têm se organizado para tentar garantir a integridade de seus


membros e das suas coletividades. Assim, seguindo as orientações de especialistas de
todo mundo e da Organização Mundial da Saúde, que preconizam o isolamento social
como a principal forma de evitar a contaminação pelo novo coronavírus, as comunidades
têm adotado medidas para controlar o acesso de pessoas externas aos territórios
tradicionais.

155. Essas medidas conformam uma estratégia de isolamento social comunitário,


expandindo o isolamento familiar realizado especialmente na zona urbana, considerando
as relações sociais eminentemente coletivizadas que organizam o modo de viver dos
povos tradicionais. Trata-se de adaptações da medida do isolamento social às condições
culturais das comunidades, nos termos dos arts. 215 e 216 da Constituição Federal. A
implementação de medidas de controle territorial pelos quilombos tem se dado diante da
omissão dos poderes públicos na adoção de políticas públicas específicas, coordenadas e
de amplo acesso às comunidades quilombolas para enfrentamento da pandemia.

156. Importa destacar que a constituição das ações de isolamento social pelas
comunidades quilombolas está amparada por diversas normas e enunciados nacionais e
internacionais que impõem o dever de o Estado e a sociedade civil respeitarem as
tradições desses grupos culturalmente diferenciados e o seu direito de autodeterminação.
Nesse sentido, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho estabelece
que:

Artigo 2º
1. Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a
participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática
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com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela
sua integridade. (grifou-se)
Artigo 4º
1. Deverão ser adotadas as medidas especiais que sejam necessárias para
salvaguardar as pessoas, as instituições, os bens, as culturas e o meio
ambiente dos povos interessados. (grifou-se)
Artigo 5º
Ao se aplicar as disposições da presente Convenção: a) deverão ser
reconhecidos e protegidos os valores e práticas sociais, culturais religiosos e
espirituais próprios dos povos mencionados e dever-se-á levar na devida
consideração a natureza dos problemas que lhes sejam apresentados, tanto
coletiva como individualmente; b) deverá ser respeitada a integridade dos
valores, práticas e instituições desses povos;
Artigo 25
1. Os governos deverão zelar para que sejam colocados à disposição dos povos
interessados serviços de saúde adequados ou proporcionar a esses povos os
meios que lhes permitam organizar e prestar tais serviços sob a sua própria
responsabilidade e controle, a fim de que possam gozar do nível máximo
possível de saúde física e mental.
(...)
4. A prestação desses serviços de saúde deverá ser coordenada com as
demais medidas econômicas e culturais que sejam adotadas no país.
(grifou-se).

157. Neste ponto, verifica-se que são atribuídos não apenas deveres ao Poder
Público, mas também há a previsão expressa de participação das comunidades para
garantia do direito à saúde. Mais ainda, deve o Estado “proporcionar a esses povos os
meios que lhes permitam organizar e prestar tais serviços sob a sua própria
responsabilidade e controle, a fim de que possam gozar do nível máximo possível de
saúde física e mental”.

158. Assim, em tempos de pandemia, é absolutamente desejável que as


comunidades participem de forma ativa do processo de prevenção ao novo coronavírus,
em especial com o reforço ao isolamento social comunitário, ou outras medidas que
sejam identificadas pelos quilombos como importantes para prevenir o contágio e
proteger seus territórios.

159. O isolamento social comunitário é direito vinculado à autonomia dos


indivíduos e das comunidades, de modo que sua legalidade precisa ser reafirmada e
reforçada pelos poderes públicos, inclusive pelo Poder Judiciário. E elas dizem respeito

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não apenas à possibilidade dos quilombos colocarem estruturas em seus territórios
determinando a proibição de entrada de terceiros, mas de definirem efetivamente como
será o trânsito de pessoas em seus territórios e de que modo ele será feito.

160. O exercício da autonomia comunitária constitui-se como uma solução criada


pelos quilombos frente o desamparo estatal e pela necessidade de se garantir a vida. Os
poderes públicos devem, pois, fortalecer essas ações e garantir a segurança e a integridade
física da comunidade e das pessoas

161. Na Constituição Federal também existem dispositivos importantes


relacionados ao direito dos quilombos estabelecerem medidas de controle de acesso aos
seus territórios durante o período de pandemia do novo coronavírus. Além de prever, de
maneira geral, os direitos fundamentais à vida no art. 5º e à saúde nos arts. 6º e 196, a
Constituição estabelece o dever de o Estado brasileiro proteger “as manifestações das
culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional”, conforme §1º, do art. 215.

Dessa forma, constitui direito de todo o povo brasileiro a


manutenção da integridade desses povos, uma vez que a
continuidade das comunidades tradicionais contribui para a
existência de uma sociedade mais democrática, diversa e justa.
Assim, o Estado não deve apenas acatar as ações que buscam
proteger os povos tradicionais, como as barreiras, deve ir além,
ou seja, atuar de maneira ativa e dialogada com esses grupos para
proporcionar-lhes o direito à saúde, à terra, à segurança e a viver
de acordo com seus modos de vida tradicionais, sempre em
diálogo e de modo a respeitar suas decisões, nos termos do art.
216 da Constituição Federal de 1988

162. Cite-se, ademais, as previsões da Lei Federal 12.288/2010, o Estatuto da


Igualdade Racial, que destina um capítulo ao tema da saúde da população negra, prevendo
especificamente direitos para as comunidades quilombolas:

Art. 8º Constituem objetivos da Política Nacional de Saúde Integral da


População Negra:

Parágrafo único. Os moradores das comunidades de remanescentes de


quilombos serão beneficiários de incentivos específicos para a garantia
do direito à saúde, incluindo melhorias nas condições ambientais, no
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saneamento básico, na segurança alimentar e nutricional e na atenção
integral à saúde.

163. Ainda no âmbito da legislação brasileira, o Decreto Federal 6.040/2007


estabelece a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais (PNPCT). Na Política estão previstos o direito à posse e
propriedade de seus territórios, à soberania e segurança alimentar, à autoidentificação, ao
acesso a políticas públicas, entre outros. Em especial, a PNPCT trata, no art. 3º, XIV, do
direito “ao pleno exercício dos direitos individuais e coletivos concernentes aos povos e
comunidades tradicionais, sobretudo nas situações de conflito ou ameaça à sua
integridade” e do direito à saúde.

164. No mesmo sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por


meio da já citada Resolução 01/2020, denominada “Pandemia e Direitos Humanos nas
Américas”, propõe a adoção de medidas para proteção destes grupos:

Recordando que, ao emitir medidas de emergência e contenção frente à


pandemia de Covid-19, os Estados da região devem aplicar perspectivas
intersecionais e prestar especial atenção às necessidades e ao impacto
diferenciado dessas medidas nos direitos humanos dos grupos historicamente
excluídos ou em especial risco, tais como idosos e pessoas de qualquer idade
que tenham doenças preexistentes, pessoas privadas de liberdade, mulheres,
povos indígenas, pessoas em situação de mobilidade humana, crianças e
adolescentes, pessoas LGBTI, afrodescendentes, pessoas com deficiência,
trabalhadores e pessoas que vivem em pobreza e pobreza extrema,
especialmente trabalhadores informais e pessoas em situação de rua, bem como
defensores de direitos humanos, líderes sociais, profissionais da saúde e
jornalistas.

165. Ademais, o art. 15, inciso I, da Lei 14.021/2020 estabelece que:


serão desenvolvidas ações emergenciais de saúde, sem prejuízo de outras, em
prol das comunidades quilombolas, dos pescadores artesanais e dos demais
povos e comunidades tradicionais, que incluam, no mínimo: I - medidas de
proteção territorial e sanitária, com a restrição de acesso a pessoas
estranhas à comunidade, ressalvadas as de missões religiosas que já estejam
atuando e os responsáveis pela prestação de serviços públicos devidamente
credenciados, como profissionais da saúde e de demais órgãos públicos,
visando a impedir a disseminação da Covid-19 e a circulação do coronavírus
entre os quilombolas e os pescadores artesanais";

166. Em se tratando das comunidades quilombolas, para a definição e


implementação do isolamento social comunitário ou outras medidas que garantam
o isolamento social, será necessário o estabelecimento de diálogo, por meio da

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construção de um plano, sempre respeitando as particularidades, vulnerabilidades
e as definições de quilombolas.

167. Assim, por todos os dispositivos legais citados, bem como a indiscutível
situação de vulnerabilidade das comunidades quilombolas diante da proliferação da
Covid-19, e considerando as ações e omissões do Poder Público que violam preceitos
fundamentais e agravam a situação dos quilombos diante da pandemia, entende-se como
urgente a garantia do direito das comunidades quilombolas proporem medidas autônomas
que garantam a preservação de sua saúde.

168. Por isso, o eventual impedimento da circulação de terceiros nos


territórios, é medida de direito que deve ser resguardada. Nesse sentido, requer-se que
seja determinada, a partir da construção de um plano de contenção da proliferação e
contenção da Covid-19 nos territórios quilombolas, com a imperiosa participação dos
quilombos por meio de suas instituições representativas, medidas de apoio ao isolamento
social comunitário, com atenção e respeito aos seus modos próprios de fazer, viver e criar.

V.4 – Da proteção possessória como requisito para proteção da vida da população


quilombola durante a pandemia de Covid-19

169. A moradia tornou-se a primeira linha de defesa contra o novo coronavírus.


Para evitar a disseminação da Covid-19, países em todo o mundo estão ordenando que as
pessoas “fiquem em casa”. E ainda, ao mesmo tempo, muitas famílias e comunidades
continuam a ser ameaçadas de despejo de suas casas e terras.

170. Os despejos não são apenas inconsistentes com a política de “ficar em casa”,
são uma violação ao direito internacional dos direitos humanos, incluindo o direito à
moradia, assim como qualquer despejo que resulte em indivíduos e comunidades sem

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moradia47. Diante da pandemia, ser despejado de sua casa é uma potencial sentença de
morte.

171. A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC)48 solicitou, em


março, providências ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com fundamento nos artigos
98 e 99 do seu Regimento Interno, para recomendação que indicassem medidas
preventivas à propagação da infecção pelo Covid-19 por meio da suspensão do
cumprimento de mandados de reintegração de posse coletivos em áreas urbanas e rurais.
Essa medida teria as finalidades de proteção da vida e da saúde das pessoas e comunidades
ameaçadas de deslocamento forçado, dos magistrados e de todos os servidores e agentes
públicos que integram o sistema de justiça afetos ao tema, sobretudo daqueles que
integram o grupo de risco. O que a PFDC busca é a redução dos fatores de propagação
do vírus por meio da adoção de medidas sanitárias e de isolamento, redução de
aglomerações nas unidades judiciárias e restrição às interações físicas na realização de
atos processuais. Em 19 de março, o CNJ emitiu a Resolução 313 que suspendeu os prazos
processuais até 30 de abril de 2020 (art. 5º).49 Desde então, não houve manifestação do
CNJ sobre o tema.

172. Por sua vez, o Congresso Nacional, em sessão de 20 de agosto, derrubou veto
à Lei 14.010/20, proibindo o despejo de inquilinos durante emergência do Covid-19, até
30 de outubro de 2020. A lei agora proíbe a concessão de liminares para despejo de
inquilinos por atraso de aluguel, fim do prazo de desocupação pactuado, demissão do
locatário em contrato vinculado ao emprego ou permanência de sublocatário no imóvel.
Essa suspensão abrange imóveis urbanos (comerciais e residenciais) e atinge todas as
ações ajuizadas a partir de 20 de março.

173. Como ajuste pela equidade, a aplicação desse artigo em relação a ações
possessórias, reivindicatórias de propriedade e imissões na posse, que ensejem o despejo
ou deslocamento compulsório de indivíduos ou comunidades, inclusive rurais, requer

47
Ver Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Comentário Geral nº 7 sobre despejos forçados,
parágrafo 16.
48
Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/carta-ao-conselho-nacional-da-
justica-coronavirus. Acesso em: 02. set. 2020.
49
Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/Resolu%C3%A7%C3%A3o-
n%C2%BA-313-5.pdf. Acesso em: 02. set. 2020.
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uma interpretação não restritiva. Uma interpretação que assegure o mesmo direito de
permanecerem seguros em suas moradias, comunidades e territórios, em condições de
exercer o isolamento social enquanto durar a pandemia.

174. O relator especial da ONU para a moradia adequada considera que a crise da
Covid-19 no Brasil deve levar o país a suspender todas as ordens de despejo contra
famílias. O Dr. Balakrishnan Rajagopal considera que o Brasil tem o dever urgente de
proteger a todos, especialmente as comunidades sob maior risco e ameaça da Covid-19.
Forçar moradores para fora de suas terras, moradias e comunidades contribui para
fragilizar a segurança e a saúde dos mais vulneráveis.50

175. Já a Resolução 1/2020 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos


recomenda que, ao emitir medidas emergenciais de contenção para enfrentar a pandemia
de Covid-19, os países devem aplicar uma abordagem intersetorial e prestar especial
atenção às necessidades e ao impacto diferenciado dessas medidas sobre os direitos
humanos de grupos historicamente excluídos ou de alto risco, como idosos e pessoas de
qualquer idade com problemas de saúde preexistentes, pessoas privadas de liberdade,
mulheres, povos indígenas, pessoas em um estado da mobilidade humana, crianças e
adolescentes, pessoas LGBTI, afrodescendentes, pessoas com deficiência, trabalhadores
e pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza, particularmente pessoas que
trabalham no setor informal e pessoas de rua, bem como defensores dos direitos humanos,
líderes sociais, profissionais de saúde e jornalistas.

176. A Resolução do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos


Humanos sobre diretrizes para a pandemia estabelece que as autoridades devem tomar
medidas específicas para evitar que mais pessoas fiquem desabrigadas – por exemplo,
quando as pessoas enfrentam o despejo frente à impossibilidade de pagar hipotecas,
aluguéis e propriedade. Boas práticas, como moratórias sobre despejos e adiamentos de
pagamentos de hipotecas, devem ser amplamente reproduzidas.51

50
Disponível em : https://news.un.org/pt/story/2020/07/1719591. Acesso em: 02. set.2020.
51
Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/COVID19Guidance.aspx. Acesso em 02.
set. 2020.
53

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177. A Convenção 169 da OIT, por sua vez, proíbe o traslado de comunidades
quilombolas das terras que ocupam:
Art. 16
1. Com reserva do disposto nos parágrafos a seguir do presente Artigo, os povos
interessados não deverão ser transladados das terras que ocupam.

2. Quando, excepcionalmente, o translado e o reassentamento desses povos sejam


considerados necessários, só poderão ser efetuados com o consentimento dos mesmos,
concedido livremente e com pleno conhecimento de causa. Quando não for possível
obter o seu consentimento, o translado e o reassentamento só poderão ser realizados
após a conclusão de procedimentos adequados estabelecidos pela legislação nacional,
inclusive enquetes públicas, quando for apropriado, nas quais os povos interessados
tenham a possibilidade de estar efetivamente representados.52

178. Quando não for possível o retorno às terras tradicionais ao cessarem as causas
que motivaram seu translado e reassentamento, as comunidades quilombolas devem ser
compensadas ou indenizadas:

Art. 16

[...] 4. Quando o retorno não for possível, conforme for determinado por acordo ou,
na ausência de tais acordos, mediante procedimento adequado, esses povos deverão
receber, em todos os casos em que for possível, terras cuja qualidade e cujo estatuto
jurídico sejam pelo menos iguais aqueles das terras que ocupavam anteriormente, e
que lhes permitam cobrir suas necessidades e garantir seu desenvolvimento futuro.
Quando os povos interessados prefiram receber indenização em dinheiro ou em bens,
essa indenização deverá ser concedida com as garantias apropriadas.

5. Deverão ser indenizadas plenamente as pessoas transladadas e reassentadas por


qualquer perda ou dano que tenham sofrido como consequência do seu deslocamento.

179. As condições excepcionais que poderiam justificar o reassentamento de


comunidades quilombolas durante a pandemia são aquelas relacionadas à proteção da
vida e da saúde e, mesmo nestas circunstâncias, somente mediante o consentimento das
mesmas.
180. As ações de reintegrações de posse que ameaçam comunidades quilombolas
as colocam em situação de extrema vulnerabilidade frente à perda do local de moradia e
produção (roças, áreas de pesca e acesso a recursos naturais). Eventuais remoções
tornariam ainda mais difícil o isolamento dessa população em caso de infecção, vez que,
ao deixarem seus territórios e moradias, terão de permanecer nas estradas e em outros

52
Disponível em : http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D10088.htm#art5.
Acesso em: 02. set. 2020.
54

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espaços públicos, por falta de políticas agrárias, habitacionais e de reassentamento que
atendam, inclusive, a necessidade excepcional de distanciamento social.

181. Conforme já exposto, a urgência de medidas de proteção à vida e à saúde


dos quilombolas se justifica pela maior vulnerabilidade do grupo face à Covid-19, em
comparação com a sociedade brasileira amplamente considerada. Considerando que 75%
da população quilombola vive em situação de extrema pobreza e que somente 15% dos
domicílios têm acesso à rede pública de água e 0,2% estão conectados à rede de esgoto e
de águas pluviais, o despejo ou remoção forçada de suas moradias e territórios somente
agravaria a vulnerabilidade.

182. Este E. Supremo Tribunal federal, sensível à semelhante situação vivida


pelos povos indígenas, determinou em 6 de maio a suspensão nacional de todos os
processos e recursos judiciais que tratam de áreas indígenas até o final da pandemia de
Covid-19 ou ao término do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com
repercussão geral reconhecida.

183. Ao deferir a suspensão, o relator frisou que a Organização Mundial de Saúde


vem orientando governos e populações a adotar o isolamento social, entre outras medidas,
a fim de impedir a disseminação da infecção. Alertou que a manutenção da tramitação
de processos, com o risco de determinações de reintegrações de posse, agrava a situação
dos indígenas, que podem se ver, repentinamente, sem condições mínimas de higiene e
isolamento para minimizar os riscos de contágio pelo novo coronavírus. A decisão
estabelece que:
(...) Assim, com base no artigo 1.035, § 5º, do Código de Processo Civil,
determino, nos termos do pedido, a suspensão nacional dos processos
judiciais, notadamente ações possessórias, anulatórias de processos
administrativos de demarcação, bem como os recursos vinculados a essas
ações, sem prejuízo dos direitos territoriais dos povos indígenas, modulando
o termo final dessa determinação até a ocorrência do término da pandemia da
Covid-19 ou do julgamento final da Repercussão Geral no Recurso
Extraordinário 1.017.365 (Tema 1031), o que ocorrer por último, salvo
ulterior decisão em sentido diverso. À Secretaria para as providências
cabíveis, sobretudo a cientificação dos órgãos do sistema judicial pátrio.

55

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Remeta-se o feito à Procuradoria-Geral da República, para que apresente
manifestação, no prazo de cinco dias. Após, retornem conclusos53.

184. A decisão teve por base o princípio constitucional da precaução, com assento
no artigo 225 da Constituição Federal, que exige do Poder Público um atuar na direção
de mitigar os riscos socioambientais, em defesa da manutenção da vida e da saúde. Para
o relator Ministro Edson Fachin:

A primeira questão versa sobre a existência do risco ou da probabilidade de


dano ao ser humano e à natureza. Há certeza científica ou há incerteza
científica do dano ambiental? Há ou não unanimidade no posicionamento dos
especialistas? Devem, portanto, ser inventariadas as opiniões nacionais e
estrangeiras sobre a matéria. Chegou-se a uma posição de certeza de que não
há perigo ambiental? A existência de certeza necessita ser demonstrada,
porque vai afastar uma fase de avaliação posterior. Em caso de certeza do dano
ambiental, este deve ser prevenido, como preconiza o princípio da prevenção.
Em caso de dúvida ou de incerteza, também se deve agir prevenindo. Essa é a
grande inovação do princípio da precaução. A dúvida científica, expressa com
argumentos razoáveis, não dispensa a prevenção. (MACHADO, Paulo
Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 24. ed. São Paulo: Malheiros,
2016, p. 103-104).

185. Este E. Tribunal reconheceu na ADI 3239, por meio do voto da Exma. Sra.
Ministra Rosa Weber, relatora para o Acórdão, que a posse e o uso das terras que histórica
e tradicionalmente ocupam são imprescindíveis para a reprodução e o exercício do modo
específico de vida das comunidades quilombolas:
Lastreado na realidade do fenômeno social que descreve, o conceito de
ocupação tradicional aproxima semanticamente a ocupação quilombola da
ocupação indígena. A área ocupada pelos remanescentes das comunidades dos
quilombos pode ser conceituada como correspondente "às terras utilizadas por
aquele grupo social para garantir sua sobrevivência, ou mais ainda, para
assegurar a reprodução de seu modo de vida específico." Destaco que muitas
vezes a própria ideia de um território fechado, com limites individualizados,
parece estranha aos moradores dessas comunidades. (sem destaques no
original).
...
Pela similaridade, pertinente invocar, aqui, as palavras do Ministro Carlos
Ayres Brito, no julgamento da Pet 3.388, relativamente aos direitos dos povos
indígenas sobre as terras por eles tradicionalmente ocupadas, ao se referir
àquele tipo tradicional de posse como "um heterodoxo instituto de Direito
Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil"54.

53
http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442822&ori=1Relator.
54
ADI 3239. Inteiro teor do Acórdão, para. 4.4.1, p. 41. DJE 01/02/2019 - Ata nº 1/2019. DJE nº 19,
divulgado em 31/01/2019.
56

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186. A Ementa do Acórdão da ADI também expressa o reconhecimento da posse
quilombola como de tipo tradicional, a saber:

4. O art. 68 do ADCT assegura o direito dos remanescentes das comunidades


dos quilombos de ver reconhecida pelo Estado a propriedade sobre as terras
que histórica e tradicionalmente ocupam – direito fundamental de grupo
étnico-racial minoritário dotado de eficácia plena e aplicação imediata. Nele
definidos o titular (remanescentes das comunidades dos quilombos), o objeto
(terras por eles ocupadas), o conteúdo (direito de propriedade), a condição
(ocupação tradicional), o sujeito passivo (Estado) e a obrigação específica
(emissão de títulos), mostra-se apto o art. 68 do ADCT a produzir todos os
seus efeitos, independentemente de integração legislativa55.

187. A remoção dos quilombolas de seus territórios, por meio de ações de


reintegração de posse, reivindicatórias de propriedade ou qualquer forma de despejo
forçado, além de agravar sua situação de vulnerabilidade social e econômica, os priva da
capacidade de desenvolver as suas formas tradicionais de subsistência e sustento.

188. Conforme já exposto na seção IV, a maior parte das comunidades


quilombolas vive em situação de extrema vulnerabilidade territorial, posto que apenas
129 territórios em todo o Brasil foram titulados pelo Incra, dentre os mais de 5 mil
levantados pelo IBGE.

189. A insegurança jurídica das localidades quilombolas frente à ausência de


títulos de propriedade coletivos, imprescindíveis para resguardar os modos de fazer, viver
e criar, expõe as comunidades ao risco iminente de remoções, despejos e outros conflitos
fundiários.

190. No caso das famílias cuja renda mínima advém da atividade agrícola, a qual
se destina tanto à segurança alimentar quanto à comercialização, o eventual despejo,
translado ou reintegração de posse comprometeria a produção comunitária e, por
seguinte, a segurança alimentar e nutricional. Se os dados apresentados indicam que as
comunidades quilombolas, mesmo em territórios já titulados, vivenciam situações de

55
ADI 3239. Inteiro teor do Acórdão, p. 3. DJE 01/02/2019 - Ata nº 1/2019. DJE nº 19, divulgado em
31/01/2019.
57

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preocupante insegurança alimentar, não é difícil de visualizar que esse quadro se
agravaria em caso de despejo.

191. Como exposto, a segurança da posse quilombola, a ser garantida pela


titulação dos territórios e pela proteção contra despejos forçados, é condição
indispensável para assegurar condições de isolamento necessárias para prevenir a
contaminação pelo novo coronavírus. 1É também fundamental para preservar os modos
de vida que asseguram o sustento e a segurança alimentar e nutricional dessas
comunidades, num contexto de recessão econômica. E é imprescindível para garantir a
preservação da vida dos quilombolas.

VI – Formulação, implementação e monitoramento do Plano Nacional de Combate


aos Efeitos da Pandemia de Covid-19 nas comunidades quilombolas e do Grupo de
Trabalho Para Enfrentamento aos Efeitos da Covid-19 nas Comunidades
Quilombolas

192. A formulação, implementação e monitoramento de um plano nacional de


combate aos efeitos da pandemia decorrente da Covid-19 nas comunidades quilombolas
é medida que se impõe. O direito e as situações fáticas vividas pelas comunidades
justificam a imposição de tal medida pelo Poder Judiciário ao Poder Executivo para
viabilizar atos que corrijam e afastem violações a preceitos constitucionais fundamentais.

193. A elaboração do referido plano deve ser precedida pela constituição de um


grupo de trabalho participativo e paritário, integrado por agentes de Estado e
representações quilombolas, na forma determinada pelo art. 6º da Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho. Tanto a elaboração do plano como sua aplicação
devem contar com a participação direta de quilombolas.

194. Nunca é demasiado rememorar que as comunidades quilombolas “eram


invisíveis ao ordenamento jurídico até a Assembleia Constituinte que originou o texto
constitucional vigente, quando o movimento negro obteve, na redação do artigo 68 do
ADCT, uma vitória contra um evidente racismo incrustado em nossa sociedade e a
recomposição histórica da dignidade dessas comunidades” (ADI 3239-DF – Voto

58

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Ministro Edson Fachin, julgamento em 08-02-2018, DJ de 6-8-04 - sem destaque no
original).

195. Ou seja, até o advento da Constituição Federal de 1988 e, portanto, até cem
anos após a edição da lei que aboliu a forma de trabalho escravo do ordenamento jurídico,
as comunidades quilombolas eram invisíveis para o direito. Disso decorre que políticas
públicas só passaram a ter como beneficiárias as comunidades quilombolas com a nova
ordem constitucional. Até então nada havia no direito, ou na ação de Estado, relativo a
políticas públicas de saúde para comunidades quilombolas.

196. No mesmo sentido é a ausência de consulta e diálogo do Estado para com as


comunidades quilombolas. Tais sujeitos, tomados em suas dimensões coletivas, poucas
vezes foram chamados a debater políticas de Estado, sejam aquelas diretamente
direcionadas a estes, sejam as relativas aos destinos da nação como um todo.

197. Hoje o cenário é distinto quanto às previsões abstratas do direito para a saúde
quilombola, mas ainda muito semelhante ao anterior no que diz respeito à fruição desses
direitos. Também é possível afirmar que o direito prescreve a participação obrigatória das
comunidades quilombolas na formulação das políticas públicas, mas essa não é a
realidade da ação do Estado.

198. No âmbito geral, se observa que a Lei Orgânica da Saúde, instituída pela Lei
8.080/1990, estabelece nos incisos de seu art. 7º que as ações e serviços públicos de saúde
devem ser desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição
Federal, obedecendo ainda aos princípios da: a) universalidade de acesso aos serviços de
saúde em todos os níveis de assistência; b) da integralidade de assistência, entendida
como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos,
individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do
sistema; c) da utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a
alocação de recursos e a orientação programática e d) da participação da comunidade,
entre outros.

199. Tais princípios já seriam suficientes para, em conjunto com o preceito


constitucional fundamental relativo à garantia de reprodução física, social, econômica e
59

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cultural das comunidades quilombolas, impor a necessidade de o Estado planejar ações
específicas para o combate aos efeitos da pandemia de Covid-19 nas comunidades
quilombolas.

200. Mas, muito além das previsões normativas generalistas, no tema da saúde
existem diversas previsões normativas especificamente relacionadas ao tema.

201. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, em seu art. 7º,


2, da assegura que a “melhoria das condições de vida e de trabalho e do nível de saúde
e educação dos povos interessados, com a sua participação e cooperação, deverá ser
prioritária nos planos de desenvolvimento econômico global das regiões onde eles
moram”.

202. Por sua vez, o art. 25, 1, da mesma convenção, prevê que “os governos
deverão zelar para que sejam colocados à disposição dos povos interessados serviços de
saúde adequados ou proporcionar a esses povos os meios que lhes permitam organizar
e prestar tais serviços sob a sua própria responsabilidade e controle, a fim de que possam
gozar do nível máximo possível de saúde física e mental”.

203. Já o artigo 25, 2, prevê que os “serviços de saúde deverão ser organizados,
na medida do possível, em nível comunitário. Esses serviços deverão ser planejados e
administrados em cooperação com os povos interessados e levar em conta as suas
condições econômicas, geográficas, sociais e culturais, bem como os seus métodos de
prevenção, práticas curativas e medicamentos tradicionais”.

204. No ano de 2017, a Organização Mundial de Saúde e a Organização Pan-


Americana de Saúde reconheceram que “a Região das Américas se caracteriza por ser
multiétnica e multicultural. Nela coexistem os povos indígenas, os afrodescendentes, os
roma e os membros de outros grupos étnicos, o que implica reconhecer diversas
realidades e necessidades no âmbito da saúde”56. Em função desse reconhecimento
propugnou-se, durante a 29ª Conferência Sanitária Pan-Americana, que ocorreu em

56
Ver: https://www.paho.org/hq/index.php?option=com_docman&view=download&category_slug=29-
pt-9251&alias=42015-csp29-7-p-015&Itemid=270&lang=p. Acesso em 02. set. 2020.
60

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conjunto com a 69ª Sessão do Comitê Regional da OMS para as Américas, a adoção de
proposta de políticas de saúde que levem em conta questões étnicas.

205. Nessa ocasião se observou ser necessário reconhecer os conhecimentos


ancestrais e a medicina tradicional, indicando que a participação social é estratégica para
a implementação de uma abordagem intercultural no contexto dos determinantes sociais
da saúde. Reconheceu-se a necessidade de propor políticas, com base no direito ao grau
máximo de saúde, que favoreçam e promovam a igualdade, a interculturalidade e o acesso
a serviços de saúde de qualidade, levando em conta o contexto nacional, inclusive para
“estimular a revisão, a adequação e a implementação eficaz das políticas existentes de
acordo com um enfoque intercultural”.

206. Por sua vez, no âmbito da Terceira Conferência Mundial contra o Racismo,
a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância foi adotada a
Declaração e o Programa da Ação de Durban, em 8 de setembro de 2001, que também
trata de questões relativas à saúde da população negra, aí incluindo quilombolas.

207. Na declaração de Durban se “solicita que os Estados, apoiados pela


cooperação internacional, considerem positivamente a concentração de investimentos
adicionais nos serviços de saúde, educação, saúde pública, energia elétrica, água potável
e controle ambiental, bem como outras iniciativas de ações afirmativas ou de ações
positivas, principalmente, nas comunidades de origem africana”.

208. Também se incita os Estados a “desenvolver programas destinados aos


afrodescendentes alocando recursos adicionais aos serviços de saúde, educação,
moradia, energia elétrica, saneamento, medidas de controle ambiental e promover a
igualdade de oportunidades no emprego, bem como em outras iniciativas de ações
afirmativas ou positivas”.

209. Por fim, se observa na Declaração de Durban a necessidades de os Estados


“coletarem, compilarem, analisarem, disseminarem e a publicarem dados estatísticos
confiáveis em níveis local e nacional e a tomarem todas as outras medidas necessárias
para avaliarem periodicamente a situação de indivíduos e grupos que são vítimas de
racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata”.
61

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210. Para além das previsões normativas que fundamentam a necessidade de
elaboração de um plano nacional de combate aos efeitos da pandemia decorrente da
Covid-19 nos quilombos há outras que impõem a participação ativa das comunidades.

211. O art. 6º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho


determina que os Estados signatários “deverão consultar os povos interessados, mediante
procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições
representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas
suscetíveis de afetá-los diretamente”.

212.

Essas consultas devem ser “efetuadas com boa-fé e de maneira apropriada às


circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento
acerca das medidas propostas”, na forma do art. 6º, 2, da Convenção 169 da OIT57.

213. As revisões normativas acima descritas, em especial quando tomadas em


conjunto, levam à conclusão de que o Estado brasileiro está juridicamente obrigado a
realizar, de forma participativa, ações positivas, específicas e direcionadas a comunidades
quilombolas no contexto da pandemia derivada da Covid-19.

214. Contudo, ante à completa ausência de ações significativas por parte do Estado
brasileiro nas três esferas de governo, as comunidades quilombolas, em conjunto com
povos indígenas e outras comunidades tradicionais, propuseram, monitoraram e
aprovaram a Lei 14.021/2020, que dispõe sobre medidas de proteção social para
prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19.

215. Observa-se que no art. 14, parágrafo único, da Lei 14.021/2020 se impôs ao
Estado que enquanto perdurar o período de calamidade pública em saúde decorrente da
pandemia de Covid-19 deverão ser adotadas medidas urgentes para mitigar os seus efeitos
entre os quilombolas. O citado dispositivo ainda assegura que se aplicam às comunidades

57
Ver: AGUIAR, Heiza Maria Dias de Sousa Pinho. Consulta prévia, livre e informada e o direito como
produto dialético do conflito: o caso das comunidades quilombolas Barro Vermelho e Contente, no
Semiárido piauiense frente a construção da ferrovia Transnordestina. 2018, 101 p. Dissertação (Mestrado)
— Universidade de Brasília, Brasília, 2018.

62

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quilombolas as disposições referentes ao plano emergencial de que trata o Capítulo II da
mesma lei, incumbindo à União o planejamento e a execução das medidas que se fizerem
necessárias.

216. Ou seja, a Lei 14.021/2020 explicitamente impôs a necessidade de elaboração


de um plano nacional de combate aos efeitos da pandemia decorrente da Covid-19 nas
comunidades quilombolas.

217. Por meio do referido plano, o Estado, precisamente a União, deveria organizar
ações com metas, prioridades e prazos para combate aos efeitos da Covid-19 nas
comunidades quilombolas, tendo por objetivo apresentar estratégias que orientarão as
gestões federal, estadual e municipal no processo de enfrentamento das iniquidades e
desigualdades em saúde.

218. Além de todo o arcabouço normativo que impõe a elaboração do plano, é


fundamental repisar “ser improvável avançar de modo significativo na redução das
desigualdades étnico-raciais em saúde, sem iniciativas intensivas, abrangentes e
continuadas para eliminação das desigualdades raciais em uma ampla variedade de
indicadores sociais, políticos e econômicos. Portanto, são necessários esforços mais
deliberados e coordenados para desenvolver uma base científica que possibilite intervir
efetivamente para reduzir e finalmente eliminar os efeitos patogênicos do racismo sobre
a saúde”58.

219. Diante do exposto, requer-se que seja determinado à União Federal que, no
âmbito de sua competência e com a participação da CONAQ, elabore e implemente um
plano nacional de combate aos efeitos da pandemia de Covid-19 nas comunidades
quilombolas, em um prazo de no máximo 30 dias, devendo observar, no mínimo:

1. Distribuição imediata de equipamentos de proteção individual (máscaras e


outros), água potável e materiais de higiene e desinfecção às comunidades
quilombolas, com indicação de cronograma;

58
WILLIANS, David R.; PRIEST, NAOMI. Racismo e Saúde: um corpus crescente de evidência
internacional. Sociologias, Porto Alegre, ano 17, nº 40, set/dez 2015, p. 124-174. p. 160.
63

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2. Medidas de segurança alimentar e nutricional que incluam ações emergenciais de
distribuição de cestas básicas, indicando ações específicas e cronograma de
implementação;

3. Medidas de logística que viabilizem a todas as pessoas integrantes de


comunidades quilombolas acesso regular a leitos hospitalares, incluindo Unidade
de Terapia Intensiva (UTI), indicando cronograma e ações específicas;

4. Fortalecimento dos Programas de Saúde da Família nos Quilombos como


estratégia fundante da ação de prevenção aos efeitos da Covid-19, indicando ações
específicas e cronograma de implementação;

5. Disponibilização de meios para testagem regular e periódica em integrantes das


comunidades quilombolas com suspeita ou ocorrência de contaminação pelo novo
coronavírus, conforme orientação médica;

6. Medidas que evitem o contágio de quilombolas pela Covid-19 em função da


existência de empreendimentos estatais e de particulares com potencial de afetar
territórios tradicionais, nos termos da Portaria Interministerial 60/2015, por meio
da elaboração e adoção de protocolo de prevenção ao contágio;

7. Medidas de apoio às comunidades quilombolas que adotarem ações e/ou


protocolos de isolamento social comunitário, incluindo atividades de controle
sanitário de acesso de terceiros aos territórios tradicionais, indicando cronograma
de implementação;

8. Medidas de combate ao racismo a quilombolas no atendimento médico e


hospitalar que contem com canal específico para recebimento e processamento de
denúncias, indicando medidas específicas e cronograma de implementação;

9. A aplicação do referido plano deve se estender na mesma medida e proporção dos


efeitos da pandemia do novo coronavírus nas comunidades quilombolas.

220. Ademais, que seja determinado à União Federal que constitua um grupo de
trabalho interdisciplinar, participativo e paritário para debater, aprovar e monitorar a
implementação do Plano Nacional de Combate aos Efeitos da Pandemia de Covid-19 nas
Comunidades Quilombolas, e que conte ao menos com a participação de integrantes do
Conselho Nacional de Justiça, do Ministério da Saúde, Ministério da Mulher, da Família
e dos Direitos Humanos, da Fundação Cultural Palmares, da Defensoria Pública da União,
do Ministério Público Federal, do Conselho Nacional de Direitos Humanos, da
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e de representantes das comunidades
quilombolas a serem indicadas pela Coordenação Nacional de Articulação das

64

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Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), bem como um observador do
gabinete do eminente Ministro Relator.

VII – Da medida cautelar

221. Indubitável que no decorrer da peça foram demonstrados os requisitos


fundamentais para a concessão de medida liminar na presente ação, quais sejam, o
periculum in mora e o fumus boni iuris. O direito das comunidades quilombolas a uma
série de medidas que garantam a sua proteção e garantia de preservação de suas vidas
diante do contexto de pandemia de Covid-19 é sucessivamente violado e, assim, preceitos
fundamentais de máxima relevância.

222. O periculum in mora se mostra objetivo, posto que já temos expressivo


número de óbitos em quilombos proporcionalmente à população em geral. Mais de cinco
mil comunidades quilombolas esperam por atuação do Poder Público, pela realização de
medidas pleiteadas nesta ação.

223. Nesse cenário dramático, não é possível aguardar o julgamento do mérito


desta ADPF para adoção das providências postuladas pelos Arguentes. Até lá, danos
terríveis e irreversíveis já terão se consumado. Nesse sentido, em recente julgado desta
Corte foram deferidas as seguintes cautelares:

III. SÍNTESE DAS CAUTELARES DEFERIDAS


62. Diante do exposto, são as seguintes as medidas cautelares deferidas por
este Relator:
III.1. QUANTO AOS POVOS INDÍGENAS EM ISOLAMENTO OU POVOS
INDÍGENAS DE RECENTE CONTATO:
1. Criação de barreiras sanitárias, que impeçam o ingresso de terceiros em
seus territórios, conforme plano a ser apresentado pela União, ouvidos os
membros da Sala de Situação (infra), no prazo de 10 dias, contados da ciência
desta decisão. 2. Criação de Sala de Situação, para gestão de ações de
combate à pandemia quanto aos Povos Indígenas em Isolamento e de Contato
Recente, nos seguintes termos:
(i) composição pelas autoridades que a União entender pertinentes, bem como
por membro da Procuradoria-Geral da República, da Defensoria Pública da
União e por representantes indígenas indicados pela APIB;
(ii) indicação de membros pelas respectivas entidades, no prazo de 72 horas
a contar da ciência desta decisão, apontando-se seus respectivos nomes,
qualificações, correios eletrônicos e telefones de contato, por meio de petição
ao presente juízo;
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(iii) convocação da primeira reunião da Sala de Situação, pela União, no
prazo de 72 horas, a contar da indicação de todos os representantes, por
correio eletrônico com aviso de recebimento encaminhado a todos eles, bem
como por petição ao presente juízo;
(iv) designação e realização da primeira reunião, no prazo de até 72 horas da
convocação, anexada a respectiva ata ao processo, para ciência do juízo.
III.2. QUANTO A POVOS INDÍGENAS EM GERAL
1. Inclusão, no Plano de Enfrentamento e Monitoramento da Covid-19 para
os Povos Indígenas (infra), de medida emergencial de contenção e isolamento
dos invasores em relação às comunidades indígenas ou providência
alternativa, apta a evitar o contato.
2. Imediata extensão dos serviços do Subsistema Indígena de Saúde aos povos
aldeados situados em terras não homologadas.
3. Extensão dos serviços do Subsistema Indígena de Saúde aos povos
indígenas não aldeados, exclusivamente, por ora, quando verificada barreira
de acesso ao SUS geral.
4. Elaboração e monitoramento de um Plano de Enfrentamento da Covid-19
para os Povos Indígenas Brasileiros pela União, no prazo de 30 dias contados
da ciência desta decisão, com a participação do Conselho Nacional de
Direitos Humanos e dos representantes das comunidades indígenas, nas
seguintes condições:
(i) indicação dos representantes das comunidades indígenas, tal como
postulado pelos requerentes, no prazo de 72 horas, contados da ciência dessa
decisão, com respectivos nomes, qualificações, correios eletrônicos e telefones
de contatos, por meio de petição ao presente juízo;
(ii) apoio técnico da Fundação Oswaldo Cruz e do Grupo de Trabalho de
Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, cujos
representantes deverão ser indicados pelos requerentes, no prazo de 72 horas
a contar da ciência desta decisão, com respectivos nomes, qualificações,
correios eletrônicos e telefones de contato; (iii) indicação pela União das
demais autoridades e órgãos que julgar conveniente envolver na tarefa, com
indicação dos mesmos elementos.
63. Observa-se, por fim, que todos os prazos acima devem ser contados em
dias corridos e correrão durante o recesso. O término do recesso coincidirá
aproximadamente com a conclusão da elaboração dos planos e seu exame pelo
juízo, de modo que não há risco de concretização de medidas irreversíveis
antes do retorno do Supremo Tribunal Federal a pleno funcionamento,
ressalvadas novas situações emergenciais que possam ocorrer no período e
que demandem interferência imediata.
64. A implementação das cautelares não prejudica que se dê continuidade a
todas as ações de saúde já em curso e planejadas em favor das comunidades
indígenas, que não devem ser interrompidas. (ADPF 709/DF, voto do Min.
Rel. Luís Roberto Barroso, julgamento em 08/07/2020, DJ de 10/07/2020)

224. Dessa forma, presentes os requisitos, o Poder Judiciário, tendo como


obrigação a defesa dos preceitos fundamentais elencados nesta ação, com a finalidade de
impedir que muitos outros quilombolas venham a óbito em virtude dos atos omissivos e
comissivos do poder público demonstrados, garantindo que sejam adotadas as medidas
cabíveis, a exemplo das mencionadas.

225. Neste quadro, requerem os Arguentes em caráter liminar:

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1. Seja determinado à União Federal que, no âmbito de sua competência e com a
participação da CONAQ, elabore e implemente um Plano Nacional de Combate aos
Efeitos da Pandemia de Covid-19 nas Comunidades Quilombolas, em um prazo de no
máximo 30 dias, devendo observar, no mínimo:

1.1. Distribuição imediata de equipamentos de proteção individual (máscaras


e outros), água potável e materiais de higiene e desinfecção às
comunidades quilombolas, com indicação de cronograma;

1.2. Medidas de segurança alimentar e nutricional que incluam ações


emergenciais de distribuição de cestas básicas, indicando ações
específicas e cronograma de implementação;

1.3. Medidas de logística que viabilizem a todas as pessoas integrantes de


comunidades quilombolas acesso regular a leitos hospitalares, incluindo
Unidade de Terapia Intensiva (UTI), bem como estrutura mínima para
os casos das transferências com a disponibilização de ambulâncias para
transporte – fluvial e terrestre – dessas populações, dos territórios até a
unidade de atendimento mais próxima, ou para transferência para outras
unidades, incluindo-se a disposição de ambulância de Suporte Avançado
(UTI móvel), indicando cronograma e ações específicas;

1.4. Fortalecimento dos Programas de Saúde da Família nos Quilombos


como estratégia fundante da ação de prevenção aos efeitos da Covid-19,
indicando ações específicas e cronograma de implementação;

1.5. Disponibilização de meios para testagem regular e periódica em


integrantes das comunidades quilombolas com suspeita ou ocorrência de
contaminação pelo novo coronavírus, conforme orientação médica;

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1.6. Medidas de apoio às comunidades quilombolas que adotarem ações e/ou
protocolos de isolamento social comunitário, incluindo atividades de
controle sanitário de acesso de terceiros aos territórios tradicionais,
indicando cronograma de implementação;

1.7. Medidas de combate ao racismo a quilombolas no atendimento médico


e hospitalar que contem com canal específico para recebimento e
processamento de denúncias, indicando medidas específicas e
cronograma de implementação;

1.8. A aplicação do referido plano deve se estender na mesma medida e


proporção dos efeitos da pandemia do novo coronavírus nas
comunidades quilombolas.
Sem prejuízo de que outras medidas sejam estabelecidas no âmbito do
grupo de trabalho interdisciplinar.
2. Seja determinado à União Federal que constitua, em prazo de 48 h, um
grupo de trabalho interdisciplinar, participativo e paritário para debater,
aprovar e monitorar a implementação do Plano Nacional de Combate
aos Efeitos da Pandemia de Covid-19 nas Comunidades Quilombolas, e
que conte ao menos com a participação de integrantes do Conselho
Nacional de Justiça, do Ministério da Saúde, Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos, da Fundação Cultural Palmares, da
Defensoria Pública da União, do Ministério Público Federal, do
Conselho Nacional de Direitos Humanos, da Associação Brasileira de
Saúde Coletiva e de representantes das comunidades quilombolas a
serem indicadas pela Coordenação Nacional de Articulação das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), bem como um
observador do gabinete do eminente Ministro Relator;

3. Seja determinado à União, por meio do Poder Executivo Federal, que adote as
medidas necessárias para, no âmbito de sua competência, e em prazo não
superior a 48 horas, inclua o quesito raça/cor/etnia no registro dos casos de
Covid-19, asseguradas a notificação compulsória dos casos confirmados entre
quilombolas e sua ampla e periódica publicidade.

4. Em razão da pandemia provocada pela Covid-19 e da consequente necessidade


de viabilizar isolamento social comunitário a quilombolas, e nos termos do art.
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5º, § 3º, da Lei 9.882/1999, sejam nacionalmente suspensas as ações judiciais,
notadamente ações possessórias, reivindicatórias de propriedade, imissões na
posse, anulatórias de processos administrativos de titulação, bem como os
recursos vinculados a essas ações, sem prejuízo dos direitos territoriais das
comunidades quilombolas;

5. Seja determinado à União, por meio do Poder Executivo Federal, que em 48


horas restabeleça o conteúdo das plataformas públicas de acesso à informação
http://monitoramento.seppir.gov.br/ e https://www.gov.br/mdh/pt-br/comunidades-
tradicionais/programa-brasil-quilombola, ao tempo que se abstenha de promover a
exclusão de dados públicos relativos à população negra quilombola, de modo a
garantir acesso à informação para que o monitoramento e o acompanhamento
das referidas políticas, tanto pelos próprios interessados quanto pela sociedade
civil em geral, não permaneça sendo obstaculizado.

VIII – Dos pedidos


226. Ante o exposto, requerem os Arguentes que, após a prestação de
informações pela União Federal e pelos órgãos e entidades federais, responsáveis pelos
atos e omissões violadores de preceitos fundamentais descritos nesta petição, sejam
ouvidos o Advogado-Geral da União, nos termos do art. 103, § 3º, da Constituição Federal
de 1988 e o Procurador-Geral da República, na forma do art. 103, § 1º, da Constituição
federal de 1988.

Requerem, ainda, seja conhecida e julgada integralmente procedente esta ADPF,


para se confirmar, em caráter definitivo, todas as providências postuladas cautelarmente,
de modo a requerer que:

227. Seja determinado à União Federal que, no âmbito de sua competência e com
a participação da CONAQ, elabore e implemente um Plano Nacional de Combate aos
Efeitos da Pandemia de Covid-19 nas Comunidades Quilombolas, em um prazo de no
máximo 30 dias, devendo observar, no mínimo:

1.1. Distribuição imediata de equipamentos de proteção individual (máscaras


e outros), água potável e materiais de higiene e desinfecção às
comunidades quilombolas, com indicação de cronograma;
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1.2. Medidas de segurança alimentar e nutricional que incluam ações
emergenciais de distribuição de cestas básicas, indicando ações
específicas e cronograma de implementação;

1.3. Medidas de logística que viabilizem a todas as pessoas integrantes de


comunidades quilombolas acesso regular a leitos hospitalares, incluindo
Unidade de Terapia Intensiva (UTI), bem como estrutura mínima para
os casos das transferências com a disponibilização de ambulâncias para
transporte – fluvial e terrestre – dessas populações, dos territórios até a
unidade de atendimento mais próxima, ou para transferência para outras
unidades, incluindo-se a disposição de ambulância de Suporte Avançado
(UTI móvel), indicando cronograma e ações específicas;

1.4. Fortalecimento dos Programas de Saúde da Família nos Quilombos


como estratégia fundante da ação de prevenção aos efeitos da Covid-19,
indicando ações específicas e cronograma de implementação;

1.5. Disponibilização de meios para testagem regular e periódica em


integrantes das comunidades quilombolas com suspeita ou ocorrência de
contaminação pelo novo coronavírus, conforme orientação médica;

1.6. Medidas de apoio às comunidades quilombolas que adotarem ações e/ou


protocolos de isolamento social comunitário, incluindo atividades de
controle sanitário de acesso de terceiros aos territórios tradicionais,
indicando cronograma de implementação;

1.7. Medidas de combate ao racismo a quilombolas no atendimento médico


e hospitalar que contem com canal específico para recebimento e
processamento de denúncias, indicando medidas específicas e
cronograma de implementação;

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1.8. A aplicação do referido plano deve se estender na mesma medida e
proporção dos efeitos da pandemia do novo coronavírus nas
comunidades quilombolas;
Sem prejuízo de que outras medidas sejam estabelecidas no âmbito do grupo
de trabalho interdisciplinar.
2. Seja determinado à União Federal que constitua, em prazo de 48 h, um grupo
de trabalho interdisciplinar, participativo e paritário para debater, aprovar e
monitorar a implementação do Plano Nacional de Combate aos Efeitos da
Pandemia de Covid-19 nas Comunidades Quilombolas, e que conte ao menos
com a participação de integrantes do Conselho Nacional de Justiça, do
Ministério da Saúde, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos,
da Fundação Cultural Palmares, da Defensoria Pública da União, do Ministério
Público Federal, do Conselho Nacional de Direitos Humanos, da Associação
Brasileira de Saúde Coletiva e de representantes das comunidades quilombolas
a serem indicadas pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades
Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), bem como um observador do gabinete
do eminente Ministro Relator;

3. Seja determinado à União, por meio do Poder Executivo Federal, que adote as
medidas necessárias para, no âmbito de sua competência, e em prazo não
superior a 48 horas, inclua o quesito raça/cor/etnia no registro dos casos de
Covid-19, asseguradas a notificação compulsória dos casos confirmados entre
quilombolas e sua ampla e periódica publicidade.

4. Em razão da pandemia provocada pela Covid-19 e da consequente necessidade


de viabilizar isolamento social comunitário a quilombolas, e nos termos do
artigo 5º, § 3º, da Lei 9.882/1999, sejam nacionalmente suspensos os processos
judiciais, notadamente ações possessórias, reivindicatórias de propriedade,
imissões na posse, anulatórias de processos administrativos de titulação, bem
como os recursos vinculados a essas ações, sem prejuízo dos direitos territoriais
das comunidades quilombolas;

5. Seja determinado à União, por meio do Poder Executivo Federal, que em 48


horas restabeleça o conteúdo das plataformas públicas de acesso à informação
http://monitoramento.seppir.gov.br/ e https://www.gov.br/mdh/pt-br/comunidades-
tradicionais/programa-brasil-quilombola, ao tempo que se abstenha de promover a
exclusão de dados públicos relativos à população negra quilombola, de modo a
garantir acesso à informação para que o monitoramento e o acompanhamento
das referidas políticas, tanto pelos próprios interessados quanto pela sociedade
civil em geral, não permaneça sendo obstaculizado.

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Nesses termos, pede deferimento.
Brasília, 09 de setembro de 2020.

VERCILENE FRANCISCO DIAS


OAB/GO nº 49924

ORIEL RODRIGUES DE MORAES


OAB/PR nº 81608

RAFAELA EDUARDA MIRANDA SANTOS


OAB/SP nº 445.160

JEFERSON DA S. PEREIRA
OAB- PE nº 53.237

NONNATO MASSON MENDES DOS SANTOS


OAB/MA nº 5.356

CARLOS FREDERICO MARÉS DE SOUZA FILHO


OAB/PR n°8277

FERNANDO GALLARDO V. PRIOSTE,


OAB/PR nº 53530

JOICE S. BONFIM
OAB/BA 28.027

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LAYZA QUEIROZ SANTOS
OAB-PA nº 24483B

LUIZA VIANA ARAÚJO

LETÍCIA MARQUES OSÓRIO


OAB/RS 3116

MAIRA DE S. MOREIRA
OAB/RJ nº 196.521

PAULO MACHADO
GUIMARÃES
OAB-DF 5358

EUGÊNIO JOSÉ
GUILHERME
DE ARAGÃO
OAB-DF 4.935

RAFAEL DE ALENCAR
ARARIPE CARNEIRO
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ANDRÉ BRANDÃO
HENRIQUE MAIMONI
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ROL DE DOCUMENTOS

I - Procurações e Atos Constitutivos

Documento 1 - Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras


Rurais Quilombolas (CONAQ)

Documento 1.1 - Estatuto da CONAQ

Documento 1.2 - Ata da Reunião da Comissão Executiva da CONAQ

Documento 1.3 - Documento da Coordenação Executiva da CONAQ

Documento 1.4 - Procuração da CONAQ

Documento 2 - Partido Comunista do Brasil (PCdoB)

Documento 2.1 - Estatuto do PCdoB

Documento 2.2 - Ata de Eleição do Diretório Nacional PCdoB

Documento 2.3 – Certidão de Exercício da Comissão Executiva do PCdoB

Documento 2.4 – Bancada do PCdoB em Exercício no Congresso Nacional

Documento 2.5 - Procuração

Documento 3 - Partido Socialista Brasileiro (PSB)

Documento 3.1 - Estatuto do PSB

Documento 3.2 – Ata de Eleição da Executiva do PSB

Documento 3.3 – Certidão de Exercício da Comissão Executiva do PSB

Documento 3.4 – Bancada do PSB em Exercício no Congresso Nacional

Documento 3.5 - Procuração

Documento 3.6 - Substabelecimento

Documento 4 - Partido Socialismo e Liberdade (PSOL)

Documento 4.1 - Estatuto do PSOL

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Documento 4.2 - Certidão de Exercício da Comissão Executiva do PSOL

Documento 4.3 - Bancada do PSOL em Exercício no Congresso Nacional

Documento 4.4 - Procuração

Documento 5 - Partido dos Trabalhadores (PT)

Documento 5.1 - Estatuto do PT

Documento 5.2 - Ata de Posse da Comissão Executiva do PT

Documento 5.3 - Certidão de Exercício da Comissão Executiva do PT

Documento 5.4 - Bancada do PT em Exercício no Congresso Nacional

Documento 5.5 - Procuração

Documento 6 - Rede Sustentabilidade (REDE)

Documento 6.1 - Estatuto do REDE

Documento 6.2 - Certidão de composição da Comissão Executiva do REDE

Documento 6.3 - Bancada da REDE em Exercício no Congresso Nacional

Documento 6.4 - Procuração

II - Estudos e Notas Técnicas

Documento 7 - Pesquisa “Vulnerabilidade Quilombola na Covid-19 – um estudo da base


de informações do IBGE”, realizado pela Universidade de Brasília (UnB).

Documento 8 - Nota Técnica “Orçamento Público voltado para as comunidades


quilombolas no contexto da pandemia Covid-19”, emitida pelo Instituto de Estudos
Socioeconômicos (INESC).

Documento 9 - Pesquisa “Quilombos e quilombolas na Amazônia: os desafios para o (re)


conhecimento”, realizado pela Equipe de Conservação da Amazônia (ECAM) e Instituto
Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados (IBPAD).

III - Prova do Descumprimento de Preceitos Fundamentais

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Documento 10 - Termo de Execução Descentralizada, nº 3/2020 (Ministério da Mulher,
da Família e dos Direitos Humanos - Departamento de Políticas Étnico-Raciais)

Documento 11 - Plano de Contingência para pessoas vulneráveis, em versão para povos


e comunidades tradicionais.

IV - Outros

Documento 12 - Observações preliminares da visita in loco da CIDH ao Brasil

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tt
o
PL!,Ç
NÚCLEO d,
DIREITOS
HUMANOS
Departamento
Jc Dircilo
DEPARTAMENTO DE

DIREITO AO

PL[Ç

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

MEMORIAL DE AMICUS CURIAE

CASO N. 12.571

NEUSA DOS SANTOS NASCIMENTO E GISELE ANA FERREIRA V. BRASIL

Apresentado por:

Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Sistema Interamericano


de Direitos Humanos (GEP-SIDH) do Núcleo de Direitos Humanos do
Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Julho, 2023.

1
Equipe

Coordenação, redação e pesquisa


Andrea Schettini
Malu Stanchi
Rudá de Oliveira
Thaís Detoni
Vitória Westin

Pesquisa
Amanda Nascimento Gonçalves
Ana Carolina Soares
Carolina Sibilio Villas Bôas
Cristina Figueira Shah
Dayanna Gomes
Fernando Lopez Rangel
Hannah De Gregorio Leão
João Teixeira Duque
José Raimundo
Julia Lima
Leticia da Silveira Lobo
Manuel Netto
Manuela Machado
Maria Clara Valente
Melissa Kreil
Nina Barrouin
Sophia Costa Tabatchnik
Victoria Kurkdjian

2
Índice

I. Apresentação 4
II. Introdução 5

II.1) Dos fatos do caso


II.2) Objeto do memorial de amicus curiae
II.3) Resumo da argumentação e metodologia
III. Parâmetros interamericanos de combate ao racismo e à discriminação racial 14

III.1) O direito à igualdade e não discriminação na efetivação dos direitos


econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA) de pessoas negras
III.2) A responsabilidade internacional dos Estado no âmbito da atuação das empresas
privadas
III.3) A discriminação interseccional e o dever estatal de reparação integral
IV. Casos contra o Brasil no Sistema Interamericano 27

IV.1) Caso Simone André Diniz (2005)


IV.2) Caso Trabalhadores Fazenda Brasil Verde vs. Brasil (2016)
IV.3) Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus
familiares vs. Brasil (2020)
V. Racismo estrutural e direito ao trabalho no Brasil 45

V.1) Dados gerais sobre racismo estrutural na América Latina e no Brasil: uma
perspectiva interseccional
V.2) Dados sobre racismo no mercado de trabalho
V.3) Dados sobre a ausência de políticas públicas de combate ao racismo
VI. Conclusões e propostas de recomendações ao Estado brasileiro 65

3
I. Apresentação

Como membros/as e colaboradores/as do Núcleo de Direitos Humanos do


Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio),
temos a honra de nos endereçar a esta Corte a fim de apresentar nossas observações no caso
12.571 (Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira v. Brasil), na qualidade de
amicus curiae, em conformidade com os artigos 2.3 e 44 de seu Regulamento. Busca-se,
através deste memorial, contribuir para uma análise contextual do referido caso,
especialmente no que se refere ao racismo estrutural e seu impacto na garantia do direito ao
trabalho de mulheres negras no Brasil.
Este memorial de Amicus Curiae foi desenvolvido pelo Grupo de Estudo e Pesquisa
sobre Sistema Interamericano de Direitos Humanos (GEP-SIDH) do Núcleo de Direitos
Humanos do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio). O grupo, formado por professores, pesquisadores, alunos de graduação e de
pós-graduação do Departamento de Direito da PUC-Rio, tem por objetivo promover o estudo
teórico e prático do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, fomentando a educação e
a extensão universitária em direitos humanos. A pesquisa contou também com a contribuição
do Public International Law Litigation Society (PILLS) da PUC-Rio, formada por alunos de
graduação do Departamento de Direito da PUC-Rio.

4
II. Introdução

II.1) Dos fatos do caso

O caso 12.571 (Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira v. Brasil) trata da
discriminação racial1 sofrida por Neusa dos Santos e Gisele Ana Ferreira, ambas mulheres
negras2, em 26 de março de 1998. As duas mulheres foram excluídas de uma seleção de
emprego depois de serem vistas pelo entrevistador da empresa Nipomed Planos de Saúde,
situada em São Paulo. No mesmo dia, no turno seguinte, uma candidata branca apresentou-se
para a seleção e foi recebida por Munehiro Tahara, tendo sido contratada para a vaga.
Note-se que, apesar dos fatos narrados terem ocorrido antes do reconhecimento pelo
Brasil da competência da Corte IDH, em 10 de dezembro de 1998, este tribunal é competente
para analisar as ações e omissões do Estado brasileiro ocorridas posteriormente a essa data.
Isso porque o Estado brasileiro não cumpriu com seu dever de devida diligência, pois não
estabeleceu, até o presente momento, uma decisão judicial definitiva, não puniu o
responsável e, portanto, não reparou as vítimas.
Informa o Relatório de Mérito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) que, após o ocorrido, em 27 de março, as vítimas lavraram boletim de ocorrência na
14ª Delegacia de Polícia de São Paulo. Nessa ocasião, Neusa dos Santos Nascimento relatou
ter sido desencorajada, pela delegada de polícia, a apresentar a denúncia por racismo. A
vítima afirmou, em audiência realizada no dia 28 de junho de 2023, perante a Corte
1
De acordo com o artigo 1.1 da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e a
Intolerância Racial e Formas Correlatas de Intolerância, entende-se por discriminação racial: "qualquer
distinção, exclusão, restrição ou preferência, em qualquer área da vida pública ou privada, cujo propósito ou
efeito seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais
direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados
Partes. A discriminação racial pode basear-se em raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica." No
mesmo sentido, estabelece a Convenção 111 da OIT (Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação) que o
termo discriminação compreende: "a) toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo,
religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a
igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão."
2
Ao longo deste memorial, optamos por utilizar os termos negros/as, pretos/as e pessoas afrodescentes
indistintamente, em conformidade com o entendimento da CIDH. De acordo com a CIDH, "o termo
afrodescendente engloba distintas formas de autoidentificação adotadas pelas pessoas com ascendência africana;
que no caso das Américas corresponde, na sua maioria, a descendentes de pessoas africanas que foram
escravizadas no contexto do tráfico transatlântico de pessoas. Nesse sentido, a Comissão entende que o
reconhecimento da população afrodescendente inclui diferentes formas de autoidentificação de pessoas que
possuem uma ascendência em comum, como os termos “negro”, “moreno”, “pardo”, “zambo”, “preto” e
“creole”, ou conceitos referentes a comunidades coletivas, como “quilombolas” no Brasil; “raizales”, “conselhos
comunitários”, “palenqueras e palenqueros” na Colômbia; “garífunas” na América Central; “mascogos” no
México; ou “maroons” no Suriname."(CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las
personas afrodescendientes: Estándares interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la
discriminación racial estructural, OAS. Documentos oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021, p.16).

5
Interamericana que, ao comparecer à Delegacia Especializada em Crimes Raciais no seu
horário de almoço (afinal, após os fatos supramencionados, inseriu-se na equipe de uma
pesquisa realizada pela Fundação CEAT) enfrentou a seguinte afirmação da delegada que
registrou seu depoimento: "se você está na hora do almoço, você está trabalhando, e se você
está trabalhando [a conduta racista de Tahara] não teve nenhum impacto na sua vida".
Em 4 de novembro de 1998, o Ministério Público do Estado de São Paulo ofereceu
denúncia criminal contra Munehiro Tahara pela prática do crime de preconceito de raça ou de
cor, com base no art. 4º da Lei 7.716/89. A denúncia foi recebida pelo juiz de Direito da 24ª
Vara Criminal do Foro Central da Capital de São Paulo. Após a instrução, o juiz, em 27 de
agosto de 1999, julgou improcedente a ação penal e absolveu Munehiro Tahara, alegando
ausência de prova certa e segura, apesar do depoimento de ambas as vítimas.
Após pedido de recurso das vítimas, em 17 de novembro de 1999, e do Ministério
Público, em 3 de março de 2000, a Quinta Câmara Extraordinária Criminal do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo deu provimento à apelação criminal, em 11 de agosto de
2004, julgando procedente a ação penal e condenando o acusado à pena de dois anos de
reclusão. No entanto, a decisão declarou extinta a punibilidade do acusado pela ocorrência da
prescrição da pretensão punitiva do Estado. Vale destacar que a decisão contraria
frontalmente a Constituição Federal brasileira em seu artigo 5º, inciso XLII, segundo o qual
"a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão,
nos termos da lei".
Por essa razão, em 5 de outubro de 2004, foram interpostos embargos de declaração
contra o acórdão. Em 22 de setembro de 2005, os embargos foram julgados, excluindo-se a
prescrição e estabelecendo-se o regime semiaberto para o cumprimento da pena. Tal decisão
transitou em julgado no dia 8 de junho de 2006. Em 31 de agosto do mesmo ano foi expedido
mandado de prisão contra Munehiro Tahara. No entanto, em 6 de junho de 2007, o STJ, em
sede de habeas corpus impetrado por Munehiro Tahara, concedeu ordem para permitir ao réu
o cumprimento da pena em regime aberto. Em 7 de novembro de 2007, Munehiro ajuizou
processo de Revisão Criminal perante o Tribunal de Justiça de São Paulo. De acordo com a
perita, convocada pela CIDH na audiência realizada perante a Corte IDH, em 28 de junho de
2023, Thula Pires, Munehiro foi absolvido em sede de Revisão Criminal, não havendo
informações sobre o cumprimento da pena.
Do ponto de vista cível, em 25 de outubro de 2006, a vítima Neusa dos Santos
Nascimento iniciou ação cível de reparação de danos, posteriormente extinta pelo juízo da 9ª

6
Vara Cível do Estado de São Paulo, em 5 de dezembro de 2007, tendo sido alegado que a
peticionária não promoveu a citação ficta do réu no prazo judicial. Nenhuma das duas vítimas
foi civilmente reparadas até o momento3.
De acordo com a CIDH, a responsabilidade internacional do Estado pela violação dos
artigos 8.1, 24, 25 e 26 e 1.1 da CADH decorre da demora na prestação jurisdicional e da
falta de resposta judicial adequada aos atos de discriminação sobre o direito ao acesso ao
trabalho das vítimas. A CIDH destacou que:
apesar da existência de processos judiciais e condenações penais pelo direito
de discriminação [internamente], não havia uma decisão judicial definitiva,
e não foi aplicada nenhuma forma de restituição dos direitos violados
nem se havia procurado a reparação integral para as supostas vítimas
(grifo nosso).4

II.2) Objeto do Memorial de Amicus Curiae

Este memorial de amicus curiae tem como objeto central de análise o contexto
brasileiro de racismo estrutural5, em especial o seu impacto na garantia do direito ao trabalho
de mulheres negras no Brasil. O caso de Neusa dos Santos e Gisele Ana Ferreira é
precisamente um reflexo desse contexto, revelando, conforme restará demonstrado, um
padrão sistemático de violação de direitos humanos de mulheres negras brasileiras.
Defendemos que o presente caso é também uma importante oportunidade para que esta Corte
aprofunde e avance no debate sobre a reparação plena e integral de vítimas de racismo e
discriminação racial, sobretudo em sua dimensão interseccional e estrutural da não-repetição.
Como se sabe, o sistema de peticionamento de casos perante a Corte IDH busca
estabelecer a responsabilidade internacional do Estado por violações de direitos humanos e
definir as reparações que deverão ser implementadas pelos Estados. A reparação é, portanto,
a "consequência maior do descumprimento de uma obrigação internacional (quebra de
3
Vale destacar, sobre esse ponto, que o ordenamento jurídico brasileiro prevê, na Lei n° 7.347/85, a
possibilidade jurídica de órgãos públicos – como o Ministério Público do Trabalho e a Defensoria Pública –
ajuizarem ação civil pública, com pedido de indenização por dano difuso não patrimonial. Lesados valores de
um grupo – como podemos considerar as mulheres negras, historicamente discriminadas no Brasil – há que se
garantir a essa coletividade a defesa dos seus direitos, de sua honra e dignidade. De acordo com o art. 1º, inciso
VII da referida Lei, "Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de
responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: VII – à honra e à dignidade de grupos raciais,
étnicos ou religiosos."
4
CIDH. Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira, Relatório N. 5/20 (Caso 12.571), Brasil,
OEA/Ser.L/V/II.175, 2020, p.13.
5
O conceito de racismo estrutural, segundo Silvio Almeida, indica que o "racismo é uma decorrência da própria
estrutura social, ou seja, do modo 'normal' com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e
até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural"
(ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020, p.50).

7
compromissos internacionais)". Em outras palavras, trata-se de "toda e qualquer conduta do
Estado infrator para eliminar as consequências do fato internacionalmente ilícito"6 .
O artigo 63 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos estabelece, nesse
sentido, que "quando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegidos nesta
Convenção, a Corte determinará que se assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou
liberdade violados". Tal dispositivo deve ser lido, pelo princípio da interpretação evolutiva
dos direitos humanos, à luz do artigo 10 da da Convenção Interamericana contra o Racismo, a
Discriminação Racial e a Intolerância Racial e Formas Correlatas de Intolerância, ratificada
pelo Brasil em 2021. Essa determina que:
os Estados Partes comprometem-se a garantir às vítimas do racismo, discriminação
racial e formas correlatas de intolerância um tratamento equitativo e não
discriminatório, acesso igualitário ao sistema de justiça, processo ágeis e eficazes e
reparação justa nos âmbitos civil e criminal, conforme pertinente.

Ao longo de sua jurisprudência, a Corte IDH vem ampliando os contornos e o alcance


do conceito de reparação que, no âmbito do SIDH, tem sido guiado pelo princípio da
reparação integral. Como explica a ex-comissionada Flavia Piovesan,
a Corte entende que a reparação requer restituição plena, ou seja, o reestabelecimento
do status anterior à violação. Quando isto não é possível, o tribunal determina um
conjunto de medidas para garantir que os direitos passem a ser respeitados e para
eliminar efeitos da violação, além de estabelecer uma indenização para as vítimas. A
Corte também requer que o Estado adote medidas de natureza positiva para assegurar
que as violações não se repitam no futuro7.

Nesse sentido, a reparação no SIDH engloba não apenas aspectos pecuniários, mas
uma série de medidas de natureza diversa – psicológicas, sociais, estruturais – que buscam
melhor se adequar às demandas das vítimas. Fazem parte do conceito de reparação as
seguintes categorias: (i) restituição na íntegra, (ii) cessação do ilícito, (iii) satisfação
(reparação de danos de forma não pecuniária), (iv) garantias de não-repetição (estruturais),
(v) obrigação de investigar, processar e punir (medidas em matéria de verdade e justiça);
indenização pecuniária pelos danos (medidas de compensação)8. Essas categorias foram
construídas também em consonância com os Princípios Básicos da ONU de 2005 sobre o
Direito à Reparação das Vítimas de Graves Violações de Direitos.

6
RAMOS, André Carvalho. Responsabilidade internacional do Estado por violação de direitos humanos, R.
CEJ, n. 29, abr/jun 2005, p. 58.
7
PIOVESAN, Flávia; CRUZ, Julia. Curso de Direitos Humanos: Sistema Interamericano. Rio de Janeiro:
Forense, 2021, p. 210.
8
CIDH. Directrices generales de seguimiento de recomendaciones y decisiones de la Comisión Interamericana
de Derechos Humanos, OEA/Ser.L/V/II.173, 2019; CIDH. Compendio de la Comisión Interamericana de
Derechos Humanos sobre verdad, memoria, justicia y reparación en contextos transicionales, OAS. Documentos
oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021.

8
Se, por um lado, é possível afirmar que o debate sobre responsabilidade internacional
do Estado e sobre a consequente reparação integral das vítimas tem avançado no SIDH, por
outro lado, não se pode ignorar que ainda existem importantes lacunas a serem enfrentadas. A
própria CIDH, em seu relatório "Derechos Económicos, sociales, culturales y ambientales de
personas afrodescendientes", publicado em 2021, constata a existência de vazios na definição
de um conjunto de categorias, variáveis e indicadores que permitam a construção, no âmbito
do SIDH, de instrumentos pedagógicos e de reparação, desde uma perspectiva
interseccional9, capazes de dar resposta a violências transpassadas por múltiplas categorias de
vulnerabilidade, particularmente o gênero, a origem étnico-racial e a classe socioeconômica10.
O caso Neusa dos Santos e Gisele Ana Ferreira é, nesse sentido, uma importante
oportunidade para que esta Corte enfrente tais lacunas.

II.3) Resumo da argumentação e metodologia

Por meio do presente memorial de amicus curiae, sustentamos que o caso Neusa dos
Santos e Gisele Ana Ferreira:
(1) É um reflexo do racismo estrutural que constitui a sociedade brasileira, devendo
ser necessariamente analisado à luz desse contexto. Não se trata de um caso isolado,
episódico ou esporádico, mas de um padrão de violência que recai sobre mulheres negras no
Brasil. Por isso, o julgamento do caso em questão requer uma análise contextual que
considere as circunstâncias históricas, materiais, temporais e espaciais do racismo. A
responsabilidade internacional do Estado por violações de direitos humanos, em um caso
como este, de discriminação estrutural11, decorre sobretudo da constatação de que o Brasil
não tem adotado, em sua história e até o presente, medidas específicas e eficazes para
transformar estruturalmente a situação particular de vitimação das mulheres negras em seu
território.

9
CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las personas afrodescendientes: Estándares
interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la discriminación racial estructural, OAS.
Documentos oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021, p.14.
10
Ibid., p.25.
11
De acordo com a CIDH, a discriminação estrutural ou sistêmica se refere ao conjunto de normas, regras,
hábitos, padrões, atividades, estandartes de conduta, de jure ou de fato, que geram de maneira generalizada uma
situação de inferioridade e exclusão de um grupo de pessoas; essas características se perpetuam com o papssar
do tempo e inclusive entre gerações. Por conseguinte, a discriminação estrutural não se dá de maneira isolada,
esporádica ou episódica, senão que emerge de um contexto histórico, socioeconômico e cultural (CIDH. Informe
Afrodescendientes, violencia policial, y derechos humanos en los Estados Unidos, OAS. Documentos oficiales;
OEA/Ser.L,2018, para. 48).

9
(2) É uma oportunidade para que esta Corte aprofunde e avance no debate sobre a
reparação plena e integral de vítimas de racismo e de discriminação racial, adotando uma
abordagem interseccional12 no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Entendemos que o SIDH deve se comprometer com a promoção de uma justiça reparadora, o
que implica, em situações de racismo, na adoção de uma perspectiva interseccional – que leve
em consideração os fatores que podem agravar a situação de vulnerabilidade, como gênero e
pobreza – e no consequente fomento de mudanças culturais e estruturais, capazes de
reconhecer, como afirma a CIDH, a memória histórica afrodescente, através da adoção de
medidas de satisfação, restituição de direitos, garantias de não repetição, reabilitação, e
indenização, como forma de reparação integral13.
A fim de fundamentar nossos argumentos, apresentamos a seguir: os parâmetros
interamericanos de combate ao racismo e à discriminação racial aplicáveis ao caso de Neusa
dos Santos e Gisele Ana Ferreira; os casos brasileiros, na CIDH e na Corte IDH, que
abordam, direta ou indiretamente, situações de discriminação racial no ambiente laboral; e
dados existentes – produzidos por órgãos oficiais e organizações não governamentais – sobre
o racismo e a discriminação racial no ambiente de trabalho no Brasil.
Ao buscar refletir sobre os aspectos da responsabilidade internacional do Estado e das
formas de reparação em casos de racismo, o presente memorial de amicus curiae adota uma
lente decolonial de análise dos direitos humanos. Iluminando o caráter estrutural (colonial) da
violência de Estado no Brasil e chamando atenção para as especificidades das violências que
recaem sobre os corpos de pessoas negras, a lente decolonial nos permite refletir criticamente
sobre os avanços e as lacunas em matéria de reparação integral, com perspectivas de gênero e

12
De acordo com Kimberlé Crenshaw, "a interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca
capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela
trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas
discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias,
classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram
opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento"
(CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial
relativos ao gênero, Estudos Feministas, ano 10, n. 172, 2002, p.177). Muito antes da criação desse conceito e
levando em consideração a realidade brasileira, Lélia Gonzalez já havia produzido um pensamento
interseccional e decolonial, sendo precursora em definir o marcador da raça como elemento central para a
análise da condição da mulher brasileira (RODRIGUES, Carla. Leiam Lélia Gonzales, Cult, 3 de março de
2020). Através da articulação entre racismo e sexismo, Lélia expôs não somente o racismo estrutural brasileiro,
fruto de nossa situação colonial, como também as resistências americanas protagonizadas sobretudo por
mulheres negras (GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira, : Revista Ciências Sociais Hoje,
Anpocs, 1984, p. 223-244). Ver também: STANCHI; PIRES, Memórias abolicionistas sobre a tortura no Brasil,
Revista de Direito Brasileito, Brasília, Volume 19, n. 101, 200-252, jan./mar. 2022.
13
CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las personas afrodescendientes: Estándares
interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la discriminación racial estructural, OAS.
Documentos oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021, p.13.

10
raça no Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Como aponta Thula Pires, uma perspectiva decolonial dos direitos humanos toma
como central a crítica às "múltiplas formas em que a colonialidade se impôs às culturas não
brancas"14, partindo do pressuposto de que é preciso pensar "a violência a partir dos impactos
desproporcionais dos processos de desumanização sobre a zona do não ser"15. Trata-se de
garantir não a inclusão "(sempre de maneira controlada) na noção de sujeito de direito que
está posta", mas de uma disputa pela "possibilidade de produzir o direito, o Estado e a
política a partir do nosso lugar e nos nossos termos"16.
No que se refere especificamente ao direito ao trabalho, a lente decolonial contribui
para revelar a "especificidade da formação da divisão social do trabalho brasileira"17, jogando
luz sobre as relações de trabalho contemporâneas, historicamente provenientes da divisão
laboral racial-sexual da colonização, sustentada concomitantemente pela servidão, escravidão
e pelo trabalho livre18. Conforme explica Muradas e Pereira:
As sujeições interseccionais nas relações de trabalho contemporâneas, provenientes da divisão
laboral racial-sexual da América Latina colonial, que articula concomitantemente servidão,
escravidão e trabalho livre conforme raça e gênero, são invisibilizadas pela doutrina
dominante juslaboral, que ainda celebra o paradigma jurídico moderno eurocêntrico-liberal,
enaltecendo a aporia do trabalho livre e subordinado como uma conquista trashistórica do
Direito do Trabalho. Verifica-se que o processo de produção de conhecimento juslaboral
brasileiro ainda está concentrado principalmente em instituições criadas no contexto do
"centro" global, recebendo instruções da "metrópole". No contexto deste artigo, isso significa
que a doutrina juslaboral brasileira aceita a aporia existente no núcleo protetivo do Direito do
Trabalho e não o aborda a partir da experiência social de quem foi colonizado19.

No âmbito do Direito Internacional, a Relatora Especial da ONU sobre Formas


Contemporâneas de Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Racial (E.
Tendayi Achiume), em seu relatório temático de 2019 sobre reparações e justiça racial,
afirmou expressamente que "a busca e a realização de reparações pela escravidão e o
colonialismo exige uma verdadeira 'descolonização' das doutrinas do direito internacional,
que permanecem como barreiras para as reparações"20. E, para tanto, recomendou:

14
PIRES, Thula. Direitos Humanos traduzidos em pretuguês, Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 &
13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, p.2.
15
PIRES, Thula. Racializando o debate sobre Direitos Humanos, SUR, 28 - v.15 n.28, 2018, p. 74
16
Ibid., p. 73.
17
MURADAS, Daniela; PEREIRA, Flávia.do saber e do direito no trabalho brasileiro: sujeições interseccionais
contemporâneas. Rev. Direito Práx., Vol. 9, N. 4, 2018,p. 2237.
18
Idem.
19
Idem.
20
ONU (Relator Especial da ONU sobre Formas Contemporâneas de Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerância Racial). Contemporary forms of racism, racial discrimination, xenophobia and racial
intolerance, A/74/321, 21 August 2019, para.10 (tradução nossa).

11
A adoção de uma abordagem estrutural e abrangente para as reparações: Estados-membros
devem adotar uma abordagem para reparações voltada não apenas para erros históricos contra
indivíduos ou grupos, mas também para as estruturas persistentes de desigualdade,
discriminação e subordinação raciais, que têm a escravidão e o colonialismo como suas
causas principais. As reparações implicam em responsabilidade, incluindo a transformação e
reabilitação dessas estruturas e relações, fundamentalmente distorcidas pela escravidão e pelo
colonialismo, e que sustentam a contemporânea desigualdade, discriminação e subordinação
raciais. Os Estados também deveriam adotar uma abordagem abrangente das reparações,
buscando uma gama de formas, identificadas no presente relatório, de acordo com o
respectivo contexto. Uma abordagem abrangente implica também uma abordagem
interseccional para compreender e combater a discriminação racial, levando em consideração
o gênero, a classe, status de deficiência e outras categorias sociais. Também envolve
reparações por violações de direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos direitos
civis e políticos21.

A argumentação deste memorial parte, assim, dos seguintes pressupostos: (i) o


racismo e a discriminação racial e de gênero são estruturais nas Américas e, também, no
Brasil; (ii) a comprovação da violência de Estado (e sua consequente responsabilidade
internacional), em casos de racismo e de discriminação de raça e de gênero, demanda uma
análise estrutural complexa e heterogênea, em termos de fontes e metodologias; (iii) as
consequências – econômicas, psicológicas, sociais e políticas – da violência de Estado e suas
formas de reparação devem ser necessariamente pensadas a partir de um enfoque racial, de
gênero e socio-econômico.
Este memorial divide-se em três partes. Na primeira parte, apresentamos parâmetros
interamericanos sobre o combate ao racismo e o consequente dever dos Estados de adotarem
políticas de acesso ao trabalho em condições satisfatórias, de igualdade e não discriminação.
Foram analisados como fonte: os relatórios mais recentes da CIDH sobre a temática22 e a
jurisprudência da Corte IDH, dando especial atenção para casos contra o Estado brasileiro. O
objetivo dessa primeira parte foi sistematizar alguns dos parâmetros interamericanos
flagrantemente violados no caso de Neusa dos Santos e Gisele Ana Ferreira.
Na segunda parte, investigamos três decisões contra o Brasil no SIDH – uma na
CIDH e duas na Corte IDH – que abordam violações de direitos trabalhistas em contextos de
racismo estrutural e de discriminação racial contra pessoas negras: (i) Simone André Diniz,
(ii) Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde e (iii) Empregados da Fábrica de Fogos de Santo
Antônio de Jesus e seus Familiares. Através da leitura desses três casos, destacamos o
21
ONU (Relator Especial da ONU sobre Formas Contemporâneas de Racismo, Discriminação racial, Xenofobia
e Intolerância Racial). Contemporary forms of racism, racial discrimination, xenophobia and racial intolerance,
A/74/321, 21 August 2019, para.57 (tradução nossa).
22
São eles: "Afrodescendientes, violencia policial, y derechos humanos en los Estados Unidos" (2018);
"Empresas y Derechos Humanos: Estándares Interamericanos" (2019); e "Direitos econômicos, sociais, culturais
e ambientais das pessoas afrodescendentes: Parâmetros interamericanos para a prevenção, combate e
erradicação da discriminação racial estrutural" (2021)

12
contexto brasileiro de racismo, previamente reconhecido no âmbito do SIDH, os principais
fundamentos da responsabilização do Estado brasileiro e a relação das decisões anteriores
com o presente caso.
Por fim, sistematizamos uma série de dados – produzidos por órgãos oficiais e
organizações não governamentais –, bem como mapeamos as ausência de dados referentes ao
racismo estrutural, o racismo no mercado de trabalho e as políticas públicas de combate ao
racismo implementadas no Brasil (sobretudo voltadas às mulheres negras), levando em
consideração uma perspectiva interseccional de análise. Para tal propósito, foram
identificados documentos e plataformas de dados publicados entre os anos de 2018 e 2022
sobre o tema, produzidos por órgãos governamentais brasileiros responsáveis pela matéria e
pela sociedade civil organizada para as disputas pela ampliação dos direitos em questão,
objetivando o levantamento de informações recentes que desvelam os contextos da América
Latina e, especificamente, do Brasil e do estado de São Paulo.
Foram examinados os seguintes documentos e as plataformas: dados do Observatório
da Diversidade e da Igualdade de Oportunidades no Trabalho, iniciativa da OIT e do
Ministério Público do Trabalho no Brasil23; dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística - IBGE, veiculados no estudo "Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no
Brasil"24; dados da Coordenadoria de Estatística e Pesquisa do Tribunal Superior do
Trabalho25; dados e análises qualitativas do estudo "Desigualdades raciais e de gênero no
mercado de trabalho em meio à pandemia", do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento -
Cebrap26; dados do documento “Afrodescendientes y la matriz de la desigualdad social en
América Latina: retos para la inclusión” e "Mulheres Afrodescendentes na América Latina e
no Caribe", ambos da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe - CEPAL27.
Dessa forma, este memorial de amicus curiae empreendeu uma análise qualitativa e
comparativa dos relatórios indicados, tendo sistematizado os dados existentes e produzido um
diagnóstico qualitativo acerca do racismo no mercado de trabalho brasileiro.

23
Ver: https://smartlabbr.org/diversidade/localidade/0?dimensao=raca
24
Ver:https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/25989-p
retos-ou-pardos-estao-mais-escolarizados-mas-desigualdade-em-relacao-aos-brancos-permanece
25
Ver: https://www.tst.jus.br/documents/18640430/81161de4-d870-0b65-1021-c0c251e5986b
26
Ver:https://cebrap.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Informativo-7-Desigualdades-raciais-e-de-ge%CC%82n
ero-no-mercado-de-trabalho-em-meio-a%CC%80-pandemia.pdf
27
Ver:https://www.cepal.org/es/publicaciones/46191-afrodescendientes-la-matriz-la-desigualdad-social-america-l
atina-retos-la e https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/44171/1/S1800726_pt.pdf

13
III. Parâmetros interamericanos de combate ao racismo e à
discriminação racial

O Sistema Interamericano de Direitos Humanos tem desenvolvido importantes


parâmetros para o combate ao racismo e à discriminação racial de pessoas negras nas
Américas. À luz do princípio da interpretação evolutiva dos direitos humanos, destacamos
abaixo alguns desses parâmetros, evidenciando sua violação no caso de Neusa dos Santos e
Gisele Ana Ferreira.
Levando em consideração os fatos específicos deste caso – quais sejam: uma situação
de flagrante discriminação racial, perpetrada pelo funcionário de uma empresa privada,
contra duas mulheres negras, no âmbito de acesso ao trabalho, e a posterior omissão do
Estado em garantir a reparação das vítimas (na medida em que não sancionou o responsável,
nem garantiu mecanismos internos efetivos de reparação) –, dividimos os parâmetros em três
tópicos centrais: (1) o direito à igualdade e não discriminação na efetivação dos direitos
econômicos, sociais e culturais de pessoas negras; (2) a responsabilidade internacional dos
Estados no âmbito da atuação das empresas privadas; e (3) o dever estatal de reparação
integral com enfoque interseccional. Vale esclarecer, por fim, que a divisão é meramente
didática, uma vez que tais parâmetros, além de não serem exaustivos, devem ser lidos de
maneira necessariamente articulada.

III.1) O direito à igualdade e não discriminação na efetivação dos direitos


econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA) de pessoas negras

No âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, os DESCA são


considerados essenciais para a garantia de uma vida digna aos indivíduos28. Isso significa
que, além de direitos civis e políticos, os Estados devem assegurar uma série de direitos
relacionados ao trabalho, saúde, educação, cultura, dentre outras dimensões da vida dos
indivíduos. Estabelece-se, assim, uma relação de interdependência não hierarquizada entre os
direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais29. E afirma-se, ainda,

28
CHOWDHURY, Joie. Unpacking the minimum core and reasonableness standards. In: CHENWI, L.;
DUGARD, J.; IWAKA, D.; PORTER, B.;. Research Handbook on Economic, Social and Cultural Rights as
Human Rights. Cheltenham, Edward Elgar Publishing Limited, 2020, p. 251-274.
29
CORTE IDH. Caso Suárez Peralta Vs. Ecuador. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 21 de mayo de 2013. Serie C No. 261, para. 131.

14
uma dimensão tanto individual quanto coletiva dos DESCA, ferramentas importantes para se
garantir a equidade social30.
Como regra basilar, é possível afirmar que os DESCA – e, em especial, o direito ao
trabalho, objeto central deste memorial – devem ser garantidos à luz do direito à igualdade e
não discriminação, garantido no artigo 1.1 e 24 da CADH. Trata-se de uma obrigação estatal
tanto negativa (de não discriminar) quanto positiva (de implementar políticas e condições
reais para a promoção de igualdade)31. O acesso ao trabalho é, portanto, considerado uma
condição à sobrevivência do indivíduo e de sua família, constituindo um componente
inseparável e inerente da dignidade humana32.
Neste ponto, cabe destacar o entendimento consolidado da Corte Interamericana sobre
a possibilidade de judicialização direta e o reconhecimento autônomo de direitos econômicos,
sociais, culturais e ambientais. O caso Lagos Del Campo Vs. Perú (2017) inaugurou este
posicionamento do Tribunal, ao declarar expressamente a justiciabilidade do Art. 26 da
Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (desenvolvimento progressivo dos
DESCA), e, no caso, especificamente do direito ao trabalho. A partir do referido precedente,
o direito ao trabalho foi judicializado de forma autônoma em outras oportunidades no âmbito
da Corte IDH, incluindo-se na recente condenação brasileira, no caso Fábrica de Fogos Vs.
Brasil (2020).
Com efeito, o direito ao trabalho, em condições igualitárias, dignas e satisfatórias, é
protegido, no âmbito do SIDH, pela Convenção Americana (art. 6 e 26), pelo Protocolo de
São Salvador (arts. 6 e 7) e pela Carta da OEA (arts. 45.b, c, 46, 34 g), que inclui o trabalho
como um dever social e um direito33. E, segundo sua jurisprudência, esta Corte é competente
para conhecer e resolver controvérsias relativas ao artigo 26 da CADH que aborda os direitos
econômicos, sociais e culturais, dentre os quais o direito ao trabalho34. Em suas palavras:
fica clara a interpretação de que a Convenção Americana incorporou a seu catálogo
de direitos protegidos os denominados direitos econômicos, sociais, culturais e
ambientais (DESCA), mediante uma derivação das normas reconhecidas na Carta da
Organização dos Estados Americanos (OEA), bem como das normas de interpretação
dispostas no próprio artigo 29 da Convenção, especialmente, que impede limitar ou

30
CORTE IDH. Caso "Cinco Pensionistas" Vs. Perú. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 28 de febrero
de 2003. Serie C No. 98, para. 147
31
CIDH. Informe Afrodescendientes, violencia policial, y derechos humanos en los Estados Unidos, OAS.
Documentos oficiales; OEA/Ser.L,2018, para. 192.
32
CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las personas afrodescendientes: Estándares
interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la discriminación racial estructural, OAS.
Documentos oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021, p.82.
33
Ibid., p.79.
34
CORTE IDH. Caso Lagos del Campo Vs. Perú. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 31 de agosto de 2017. Serie C No. 340, para. 145. .

15
excluir o gozo dos direitos estabelecidos na Declaração Americana e inclusive os
reconhecidos em matéria interna. Em conformidade com uma interpretação
sistemática, teleológica e evolutiva, a Corte recorreu ao corpus iuris internacional e
nacional na matéria para dar conteúdo específico ao alcance dos direitos tutelados
pela Convenção, a fim de derivar o alcance das obrigações específicas de cada
direito35.

Sendo assim, sistematizamos – a partir de documentos produzidos pelos órgãos do


SIDH – alguns parâmetros centrais relativos à igualdade e não discriminação na efetivação do
direito ao trabalho de pessoas negras.

(1) Os direitos econômicos, sociais e culturais são indivisíveis e devem ser


garantidos, pelos Estados, à luz dos princípios da igualdade e não
discriminacão. Isso implica que os DESCA são direitos imperativos, o que
impõe ao Estados a proibição de qualquer forma de tratamento discriminatório
arbitrário, bem como o dever de adotar medidas que criem condições de
igualdade material a grupos historicamente marginalizados e com maior risco de
sofrerem discriminação36.

(2) O direito ao trabalho deve ser garantido pelo Estado em condições


equitativas, satisfatórias e sem qualquer discriminação. Isso significa que é
preciso garantir proteção especial contra o desemprego e assegurar que todos/as
trabalhadores tenham segurança e higiene laboral.37 De acordo com a Corte IDH,
tais obrigações incluem aspectos de exigibilidade imediata, bem como aspectos
de caráter progressivo. É obrigação imediata do Estado que o direito ao trabalho
seja exercido sem discriminação, devendo o mesmo adotar medidas eficazes para
sua realização. Por sua vez, a realização progressiva indica que cabe ao Estado a
obrigação de avançar eficazmente na plena efetividade desse direito, na medida
dos recursos disponíveis e através de todos os meios apropriados. Ressalte-se que
há ainda a obrigação estatal de não regressividade frente à realização dos direitos
econômicos, sociais e culturais já alcançados.38

35
CORTE IDH. Caso Poblete Vilches e outros vs. Chile, Sentença de 8 de março de 2018, para 103. CORTE
IDH. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil, para. 153.
36
CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las personas afrodescendientes: Estándares
interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la discriminación racial estructural, OAS.
Documentos oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021, p.14.
37
Ibidem, p.80.
38
CORTE IDH. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil,
par. 172.

16
(3) O direito à igualdade e não discriminação demandam do Estado uma
atuação negativa (relacionada à proibição de tratamentos discriminatórios) e
uma atuação positiva (relacionada à obrigação estatal de criar condições de
igualdade real frente a grupos que foram historicamente excluídos ou que se
encontram em maior risco de ser discriminados). Sendo assim, os Estados
devem implementar estratégias concretas e eficazes para reverter ou modificar
situações de discriminação existentes em seus ordenamentos que possam
prejudicar um grupo determinado.39 De acordo com a Corte IDH, o direito à
igualdade implica na correção efetiva das desigualdades existentes, devendo o
Estado promover a inclusão e participação de grupos historicamente
marginalizados, bem como enfrentar profundamente as situações de exclusão e
marginalização.40 A CIDH e a Corte IDH já se manifestaram reiteradamente sobre
a obrigação dos Estados de combaterem formas de discriminação direta e
indireta, tais como: eliminar do ordenamento jurídico nacional leis com conteúdo
discriminatório; não expedir leis que tenham conteúdo discriminatório; enfrentar
crenças e esquemas discriminatórios; promover ações afirmativas para o
reconhecimento da igualdade material de todos/as perante a lei.41 Nesse sentido,
não basta que os Estados se abstenham de violar direitos, sendo imperativa a
adoção de medidas positivas que garantam a igualdade dos sujeitos, em
conformidade com suas necessidades singulares42.

(4) Os Estados têm o dever de adotar medidas vinculantes para combater a


discriminação racial (prevenção, proibição, investigação e punição), em
matéria de emprego e trabalho, também no ambiente privado. Nesse sentido,
os Estados devem exigir que as empresas, no marco de suas atividades e relações

39
CORTE IDH. Caso Furlán e familiares Vs. Argentina. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas.
Sentença de 31 de agosto de 2012. Série C No. 246, par. 267.
40
CORTE IDH. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares Vs. Brasil,
par. 199.
41
CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las personas afrodescendientes: Estándares
interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la discriminación racial estructural, OAS.
Documentos oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021, p.20.
42
CORTE IDH. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde v. Brasil. Sentença de 20 de outubro de 2016, para.
336-337.

17
laborais, atuem com a devida diligência em matéria de direitos humanos.43 Isso
porque é dever do Estado impedir que terceiros, com a tolerância ou aquiescência
estatal, atuem de forma discriminatória.44 De acordo com a CIDH e sua
REDESCA, para que o direito ao trabalho seja minimamente garantido é preciso
que os Estados regulamentem e realizem ações destinadas a verificar sua efetiva
realização, de modo a supervisionar, fiscalizar e punir eventuais violações
praticadas por empregadores privados. Sendo assim, diante da informação de que
uma empresa está discriminando seus empregados (e poderíamos acrescentar,
candidatos e empregados), o Estado deve investigar e eventualmente punir os
fatos, reparando integralmente as pessoas atingidas por meio de processos
legítimos em respeito ao devido processo45. Também é dever do Estado garantir
às pessoas negras o acesso a trabalhos decentes nos principais setores
econômicos, o que inclui a realização de programas de promoção de direitos
dentro das empresas, ainda que privadas.46 Como determina a Corte IDH, o
direito ao trabalho inclui, portanto, a obrigação do Estado de garantir o acesso à
justiça e à tutela judicial efetiva, também no âmbito privado das relações
trabalhistas.47

III.2) A responsabilidade internacional do Estado no âmbito da atuação das


empresas privadas

O marco internacional de consolidação da agenda de Empresas e Direitos Humanos


foi a publicação, em 2011, dos Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e
Direitos Humanos no mandato do Representante Especial do Secretário-Geral das Nações
Unidas, John Ruggie48. Tais princípios estabelecem que os Estados devem zelar por três
43
CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las personas afrodescendientes: Estándares
interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la discriminación racial estructural, OAS.
Documentos oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021, p.81.
44
CORTE IDH. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde v. Brasil. Sentença de 20 de outubro de 2016, para.
336-337.
45
CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las personas afrodescendientes: Estándares
interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la discriminación racial estructural, OAS.
Documentos oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021, p.80.
46
Ibidem, p.81.
47
CORTE IDH. Caso San Miguel Sosa y otras Vs. Venezuela. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 8 de
febrero de 2018. Serie C No. 348, para. 221.
48
RUGGIE, John Gerard. Just Business: Multinational Corporations and Human Rights. 1ª edição, New
York/London: W. W. Norton & Company, 2013, p. 14.

18
princípios ou obrigações básicas, no contexto de atividades empresariais sob sua jurisdição:
proteger, respeitar e remediar. “Proteger” corresponde à obrigação internacional dos Estados
em proteger os direitos humanos. “Respeitar” representa o dever de as empresas assumirem
um comprometimento com os direitos humanos, para não os violar. Por último, “remediar”
diz respeito às vítimas terem acesso a recursos efetivos em casos de violações de direitos
humanos cometidas por empresas.49
Apesar de os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU
não serem um tratado internacional vinculante para os Estados, estando tal matéria ainda em
processo de negociação nas Nações Unidas, ele se fundamenta nas normas de direito
internacional dos direitos humanos, vinculantes para os Estados. Dessa forma, o Escritório do
Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos reconhece que, apesar de os
Princípios Orientadores não serem formalmente vinculantes, não se tratam de diretrizes
apenas voluntárias, já que refletem as obrigações internacionais vinculantes aos Estados
constantes nos principais tratados internacionais de direitos humanos. O dever do Estado em
proteger, assim como previsto pelos Princípios Orientadores, deriva de suas obrigações de
direitos humanos no direito internacional. Representa, portanto, um conjunto de diretrizes
com embasamento jurídico na normativa internacional de direitos humanos.50
Casos de violações de direitos humanos por empresas já foram abordados por esta
Corte, especialmente no caso Povos Kalina e Lokoño v. Suriname (2015), no qual a Corte se
fundamentou, pela primeira vez, nos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos
Humanos da ONU para formular seu entendimento de que os Estados devem proteger os
indivíduos e grupos contra quaisquer formas de abusos aos direitos humanos dentro de seu
território ou jurisdição, inclusive com relação a empresas, o que requer a adoção de medidas
necessárias para prevenir, mitigar, punir e reparar tais abusos.51
Posteriormente, a Corte também se fundamentou uma segunda vez nos Princípios
Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos no caso Empregados da Fábrica de Fogos
Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil (2020). Tratou-se do primeiro caso no
qual a Corte aplicou os Princípios Orientadores em harmonia com as obrigações previstas nos
artigos 1.1 e 2 do Pacto de São José, com as Convenções nº 81 e 155 da Organização
Internacional do Trabalho e com demais interpretações referentes às obrigações dos Estados
49
ONU (OHCHR). Guiding Principles on Business and Human Rights: Implementing the United Nations
“Protect, Respect and Remedy” Framework. HR/PUB/11/04. New York and Geneva, 2011.
50
ONU (OHCHR). Frequently Asked Questions about the Guiding Principles on Business and Human Rights.
HR/PUB/14/3. New York and Geneva, 2014, os. 7-8.
51
CORTE IDH. Case of The Povos Kaliña e Lokono Vs. Suriname. Sentença de 25 de novembro de 2015, para.
224.

19
nesse contexto. Portanto, nesse caso, a Corte, ao ter sua decisão coerente com as obrigações
dos Estados em matéria de empresas e direitos humanos, aplicou o entendimento firmado
pelo relatório “Informe Empresas y Derechos Humanos: Estándares Interamericanos”, da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de que os Princípios Orientadores possuem
lugar no SIDH.52
Com efeito, o SIDH tem desenvolvido e reforçado importantes parâmetros relativos às
obrigações internacionais dos Estados no contexto de violação de direitos humanos por atores
empresariais, de modo complementar à agenda global de "Empresas e Direitos Humanos".
Destacamos, abaixo, alguns parâmetros relevantes para a análise do caso em questão.

(1) Os Estados devem garantir o respeito ao princípio da igualdade e não


discriminação no âmbito de atividades e operações empresariais. De acordo
com a CIDH, sendo o princípio de igualdade – formal, material e estrutual – e não
discriminação um dos pilares centrais de qualquer sistema democrático, o mesmo
deve ser respeitado também no âmbito das atividades das empresas privadas.
Nesse sentido, cabe às empresas incorporarem um enfoque interseccional que
leve em consideração a maior gravidade e frequência de violação de direitos
humanos perpetradas contra certas pessoas, em razão de suas condições de
vulnerabilidade ou de sujeição à discriminações históricas e coletivas, como
aquelas geradas pela origem étnica e racial, pela identidade de gênero ou pela
orientação sexual, dentre outras.53

(2) O Estado tem quatro deveres de garantia dos direitos humanos no marco de
atividades empresariais: (i) dever de regular e adotar disposições de direito
interno; (ii) dever de prevenir violações aos direitos humanos no marco de
atividades empresariais; (iii) dever de fiscalizar tais atividades; (iv) dever de
investigar, sancionar e assegurar o acesso a reparação integral às vítimas.54
Tais deveres devem ser analisados sempre de acordo com os fatos particulares de
cada caso.55

52
CORTE IDH. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e Seus Familiares Vs. Brasil
Sentença de 15 de Julho de 2020 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas), para 10 e 14.
53
CIDH; REDESCA. Informe Empresas y Derechos Humanos: Estándares Interamericanos. 2019, p. 34.
54
Ibidem. 54-55.
55
Idem

20
(3) Os Estados devem supervisionar o respeito aos direitos trabalhistas no
âmbito de empresas privadas. Nesse sentido, de acordo com a CIDH, cabe ao
Estado, por exemplo, implementar medidas de controle de vigilância dos espaços
de trabalho, controlando a jornada laboral, segurança e os mecanismos de
denúncia disponíveis. Em situações de trabalho escravo, é dever do Estado adotar
medidas de fiscalização imediata para a proteção dos direitos humanos dos
trabalhadores.56

(4) Os Estados devem investigar, sancionar e garantir acesso a mecanismos


efetivos de reparação (penal, cível e administrativa) em casos de violação de
direitos humanos por empresas. Isso inclui a responsabilização de empresas e a
determinação de sua responsabilidade penal, cível ou administrativa. Para isso, os
Estados devem contar com um sistema amplo de reparação, cujas informações
sejam compartilhadas com a população57. Caso deixem de investigar, sancionar e
reparar violações de direitos humanos atribuídas a empresas, a responsabilidade
internacional do Estado pode restar configurada. Nesse sentido, de acordo com o
dever de devida diligência estatal, cabe aos órgãos investigativos internos levar a
cabo todas as ações e averiguações necessárias para se obter resultado e se
determinar a verdade, através de todos os meios legais disponíveis.58

(5) Os Estados devem realizar inspeções trabalhistas e verificar que as punições


a atores privados sejam adequadas e proporcionais ao dano, incluindo
sanções penais, administrativas e pecuniárias.59

III.3) A discriminação interseccional e o dever estatal de reparação integral

De acordo com os órgãos do SIDH, a discriminação interseccional ocorre quando


múltiplos fatores de vulnerabilidade se conjugam, resultando numa discriminação específica,
única e ainda mais agravada. Segundo a CIDH, trata-se de um "fenômeno no qual múltiplas
56
CIDH; REDESCA. Informe Empresas y Derechos Humanos: Estándares Interamericanos. 2019, p.60.
57
Ibidem, p.68.
58
Ibidem, p.71.
59
CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las personas afrodescendientes: Estándares
interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la discriminación racial estructural, OAS.
Documentos oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021, p.81.

21
categorias de vulnerabilidade, particularmente o gênero, origem étnico-racial e classe
socioeconômica, quando entrecruzadas, produzem impactos desproporcionais"60.
Foi somente a partir do Caso Gonzales Lluy e outros Vs. Equador (2015)61 que a
Corte IDH passou a mencionar expressamente o termo “interseccionalidade”, embora
anteriormente já tratasse do assunto com outras denominações (como “discriminações
múltiplas” ou “combinadas”). Merece destaque o voto do Juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor
Poisot no referido caso, ocasião em que pontua que uma discriminação interseccional não se
dá somente pelo fato de ser múltipla – há, inclusive, discriminações múltiplas que não são
consideradas de caráter interseccional. O juiz aponta que, para que seja tida como
interseccional, é preciso que haja um “encontro ou concorrência simultânea de diversas
causas de discriminação” que, ao final, forma uma discriminação que se produz somente
quando combinados estes motivos62. Mac-Gregor, em seu voto no Caso Guachalá Chimbo e
outros Vs. Equador, também dispõe que:
la interseccionalidad se configura cuando respecto de una persona o un grupo de personas
confluyen varias vulnerabilidades entendidas como una privación de derechos que producen
una discriminación más intensa, agravada por la asimetría en relación al resto de la sociedad y
por la simultaneidad, lo que también permite identificar un grupo o tipología con condiciones
especiales de vulnerabilidade.63

O Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares


vs. Brasil (2020), por sua vez, foi a primeira oportunidade em que a Corte IDH analisou a
discriminação interseccional sob a ótica estrutural:
Com esse entendimento, a sentença analisa a forma mediante a qual, paralelamente à posição
econômica, coexistem em algumas das vítimas outras formas de discriminação que também
estão associadas a fatores estruturais, como o gênero ou a raça. Poderíamos entender, então,
que a sentença contribui para a compreensão da ‘discriminação estrutural intersecional’ em
casos particulares. Finalmente, existe um conjunto de vítimas ao qual, além dos fatores
estruturais interseccionais, soma-se a idade (no caso das meninas) ou o estado de gravidez das
mulheres. Também, algo que não se explicita, mas que é possível entender do analisado pela
Corte IDH, é que, embora o enfoque intersecional tenha sido cunhado com base no enfoque
de gênero (a partir das desvantagens que sofrem alguns grupos de mulheres), o caso nos
mostra que as crianças, pobres e afrodescendentes também podem ser vítimas de
discriminação intersecional. Diante dessa forma de discriminação, é necessário que as ações
para erradicar essas situações de exclusão ou marginalização adotem um ‘enfoque diferencial’

60
Ibidem, p.25.
61
CORTE IDH. Caso Gonzales Lluy y otros Vs. El Salvador. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y
Costas. Sentencia de 1 de septiembre de 2015. Serie C No. 298.
62
CORTE IDH. Caso Gonzales Lluy y otros Vs. El Salvador. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y
Costas. Sentencia de 1 de septiembre de 2015. Serie C No. 298. Voto concurrente del Juez Eduardo Ferrer
Mac-Gregor Poisot. para. 10.
63
CORTE IDH. Caso Guachalá Chimbo y otros Vs. Ecuador. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 26 de
marzo de 2021. Serie C No. 423. Voto razonado concurrente del Juez Ricardo C. Pérez Manrique. para. 13.

22
para que, na formulação das medidas, sejam levadas em conta possíveis especificidades que
possam ter impacto em diferentes subgrupos das pessoas destinatárias dessas medidas.64

Com relação aos grupos em especial situação de vulnerabilidade sujeitos à


discriminação interseccional, cumpre mencionar, para fins de estudo sobre o Caso Neusa dos
Santos e Gisele Ana Ferreira vs. Brasil, um grupo frequentemente presente nos documentos
do SIDH: as mulheres. A CIDH reconhece que certos grupos de mulheres estão sujeitos à
discriminação com base em mais de um fator além do gênero, o que aumenta o risco de
sofrerem atos de violência e outras violações de direitos humanos65, como é o caso das
mulheres negras no Brasil.
No Informe sobre pobreza e direitos humanos nas Américas, a CIDH relata que a
situação deste grupo reflete a interseção das desigualdades de raça e gênero, o que resulta no
fato de as mulheres negras se encontrarem na escala mais baixa de nível de escolaridade e
ocupacional66. Já no Quarto informe sobre a situação dos direitos humanos na Colômbia, a
CIDH demonstra preocupação com os múltiplos fatores de discriminação que afetam este
grupo, instando o Estado colombiano a adotar um enfoque interseccional ao analisar sua
situação, sempre levando em consideração a raça, o gênero e, ainda, a pobreza – que assola a
maioria destas mulheres67. Embora não seja objeto do presente estudo, vale pontuar que a
CIDH e a Corte IDH também fazem menção a outros grupos com vulnerabilidades

64
CORTE IDH. Caso de los Empleados de la Fábrica de Fuegos de Santo Antônio de Jesus y sus familiares Vs.
Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de julio de 2020. Serie C No.
407. Voto concurrente del Juez Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot. para. 68.
65
CIDH. Caso Beatriz Vs. El Salvador. Informe No. 9/20. Caso 13.378. Informe de Fondo. para. 201.
66
CIDH. Informe sobre pobreza y derechos humanos en las Américas (OAS. Documentos oficiais;
OEA/Ser.L/V/II.164) 2017, para. 390.
67
CIDH. Informe Verdad, justicia y reparación: Cuarto informe sobre la situación de derechos humanos en
Colombia (OEA/Ser.L/V/II. Doc. 49/13), 2013, párr. 648.

23
interseccionais, como meninas68, mulheres indígenas69, crianças indígenas em situação de
pobreza70, mulheres migrantes71, mulheres gestantes72 e mulheres trans73.
Nos inúmeros documentos interamericanos que versam sobre interseccionalidade,
foram apresentadas uma série de recomendações aos Estados, dentre as quais merecem
atenção as seguintes: (i) o Estado deve adotar medidas que levem em consideração as
especificidades de certos grupos vulneráveis74; (ii) o Estado deve atentar-se à existência de
padrões de discriminação interseccional contra mulheres e meninas pobres em diferentes
zonas da região75; (iii) ao ter conhecimento de violação contra um grupo de especial
vulnerabilidade, o Estado deve realizar uma investigação séria e efetiva76; (iv) o Estado deve
adotar medidas de não repetição que levem em consideração as necessidades particulares
advindas das condições de vulnerabilidade interseccionais77; (vi) as ações e cursos de
capacitação desenvolvidos pelo Estado devem atentar-se aos grupos em situação de maior

68
CORTE IDH. Caso Veliz Franco y otros Vs. Guatemala. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y
Costas. Sentencia de 19 de mayo de 2014. Serie C No. 277. para. 134. Corte IDH. Caso Guzmán Albarracín y
otras Vs. Ecuador. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de junio de 2020. Serie C No. 405. para. 141.
69
CORTE IDH. Caso Fernández Ortega y otros Vs. México. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y
Costas. Sentencia de 30 de agosto de 2010. Serie C No. 215. para. 185. Caso Rosendo Cantú y otra Vs. México.
Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 31 de agosto de 2010. Serie C No. 216. para.
169. Corte IDH. Caso Rosendo Cantú y otra Vs. México. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 31 de agosto de 2010. Serie C No. 216. para. 70. CIDH. Informe Las mujeres indígenas y sus
derechos humanos en las Américas (OEA/Ser.L/V/II. Doc. 44/17), 2017, para. 40.
70
CORTE IDH. Caso Rosendo Cantú y otra Vs. México. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 31 de agosto de 2010. Serie C No. 216. para. 201.
71
CORTE IDH. Caso I.V. Vs. Bolivia. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de
30 de noviembre de 2016. Serie C No. 329. para. 136.
72
CORTE IDH. Caso de los Empleados de la Fábrica de Fuegos de Santo Antônio de Jesus y sus familiares Vs.
Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de julio de 2020. Serie C No.
407. para. 191.
73
CORTE IDH. Caso Vicky Hernández y otras Vs. Honduras. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 26 de
marzo de 2021. Serie C No. 422. para. 129.
74
CORTE IDH. Caso de los Empleados de la Fábrica de Fuegos de Santo Antônio de Jesus y sus familiares Vs.
Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de julio de 2020. Serie C No.
407. Voto concurrente del Juez Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot. para. 68. CIDH. Informe sobre pobreza y
derechos humanos en las Américas (OAS. Documentos oficiais; OEA/Ser.L/V/II.164), 2017, para. 11.
75
CORTE IDH. Caso Guachalá Chimbo y otros Vs. Ecuador. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 26 de
marzo de 2021. Serie C No. 423. Voto concurrente razonado del Juez Ricardo C. Pérez Manrique. para. 42.
76
CORTE IDH. Caso Rosendo Cantú y otra Vs. México. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 31 de agosto de 2010. Serie C No. 216. para. 130.
77
CORTE IDH. Caso I.V. Vs. Bolivia. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de
30 de noviembre de 2016. Serie C No. 329. para. 337. Corte IDH. Caso de los Empleados de la Fábrica de
Fuegos de Santo Antônio de Jesus y sus familiares Vs. Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y
Costas. Sentencia de 15 de julio de 2020. Serie C No. 407. Voto concurrente del Juez Ricardo C. Pérez
Manrique. para. 43.

24
vulnerabilidade, como as mulheres indígenas e as crianças78; (vii) O Estado tem acentuado
seu dever de garantia e respeito quando há vítimas em especial situação de vulnerabilidade79.
Daí ser possível concluir que violências estruturais e interseccionais – como é o caso
do racismo e da discriminação racial contra mulheres negras no Brasil – têm, por óbvio,
causas estruturais e sistêmicas, o que demanda do Estado, consequentemente, a
implementação de reparações de natureza positiva, complexa e estrutural (de não repetição).
De acordo com o juiz Ricardo Pérez Manrique, em seu voto apartado na sentença do Caso
Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus vs. Brasil (2020),
a obrigação positiva do Estado, ante a verificação de um padrão de discriminação
intersecional e estrutural como o descrito, consiste no desenvolvimento de linhas de ação,
mediante a elaboração de políticas sistemáticas que atuem sobre as origens e causas de sua
existência.80

A partir de tais considerações, sistematizamos, abaixo, alguns dos parâmetros


desenvolvidos pelo SIDH no que se refere ao dever de reparação plena dos Estados em
contextos de discriminação racial estrutural.

(1) Os Estados devem implementar políticas e ações afirmativas voltadas para a


população negra. De acordo com a CIDH, o reconhecimento dos direitos das
pessoas afrodescendentes não significou a superação da discriminação estrutural.
De acordo com o órgão, mantém-se até hoje nas Américas um esquema de
desvantagens que prejudica as oportunidades de participação e de
desenvolvimento de pessoas negras. Os persistentes obstáculos à garantia dos
direitos econômicos, sociais e culturais dos afrodescendentes contribuem, assim,
para a perpetuação do ciclo de pobreza multidimensional. Levando em
consideração que a discriminação estrutural e as desigualdades raciais afetam
desproprocionalmente as pessoas afrodescendentes, a CIDH demanda que os
Estados implementem políticas e ações afirmativas focadas nessa população, de

78
CORTE IDH. Caso Rosendo Cantú y otra Vs. México. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 31 de agosto de 2010. Serie C No. 216. para. 246.
79
CORTE IDH. Caso de los Empleados de la Fábrica de Fuegos de Santo Antônio de Jesus y sus familiares Vs.
Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de julio de 2020. Serie C No.
407. para. 198.
80
Voto concor Ricardo Pérez Manrique in: CORTE IDH. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo
Antônio de Jesus v. Brasil. Sentença de 15 de julho de 2020, voto concordante, para. 43.

25
modo a visibilizar e superar o negacionismo em torno da persistência da
discriminação racional no presente.81

(2) A proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais demandam uma


proteção integral e holística. De acordo com a CIDH, a erradicação de todas as
formas de discriminação racial demanda não apenas o reconhecimento
constitucional – elemento central para a visibilização e inclusão de grupos
historicamente marginalizados – como também o estabelecimento de garantias de
proteção integral e holística, capazes de compreender os direitos de pessoas
negras de forma interdependente e interseccional, levando-se em consideração
fatores que agravam sua situação de vulnerabilidade. Por isso, é dever dos
Estados adotar ações afirmativas, políticas e estratégias que abordem
especificamente as necessidades de pessoas negras nos âmbitos da educação,
economia, emprego e política.82

(3) Os Estados devem garantir às mulheres negras o acesso à justiça, levando em


consideração suas necessidades específicas. De acordo com a CIDH, os
sistemas judiciais devem atender as necessidades específicas de mulheres
afrodescendentes que sofreram uma história de discriminação, exclusão,
invisibilidade e desvantagens sociais devido tanto ao seu gênero como também à
sua origem étnico-racional, enfrentando uma série de desafios no acesso à
proteção judicial83.

(4) Os Estados devem formular políticas públicas com perspectiva interseccional


em benefício de pessoas afrodescendentes84. De acordo com a CIDH, é dever dos
Estados criarem políticas trabalhistas que beneficiem pessoas afrodescendentes,
garantindo acesso a empregos de qualidade em condições dignas e satisfatórias. Cabe
ainda aos Estados incorporar um enfoque interseccional em suas estratégias, visando
beneficiar grupos historicamente discriminados e que enfrentam maiores obstáculos para

81
CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las personas afrodescendientes: Estándares
interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la discriminación racial estructural, OAS.
Documentos oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021, p.25.
82
CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las personas afrodescendientes: Estándares
interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la discriminación racial estructural, OAS.
Documentos oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021, p.25.
83
Ibidem p.57.
84
Ibidem, p.25.

26
o acesso ao trabalho, em razão da condições de pobreza, tais como mulheres, pessoas
LGBTI, pessoas com deficiência, migrantes, trabalhadoras sexuais, pessoas em situação
de rua e comunidades rurais.85

IV. Casos contra o Brasil no Sistema Interamericano

Partindo da sistematização de parâmetros interamericanos violados no caso de Neusa


dos Santos e Gisele Ana Ferreira, esta segunda parte do memorial de amicus curiae apresenta
três casos do SIDH, em que o Estado brasileiro foi internacionalmente responsabilizado pela
violação do direito à igualdade e não discriminação no âmbito de suas relações laborais:
Relatório de Mérito da CIDH no caso Simone André Siniz (2006); Sentença da Corte IDH no
caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde (2016) e Sentença da Corte IDH no caso
Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus (2020).
Através da leitura dessas três decisões, buscamos destacar o contexto brasileiro de
racismo, previamente reconhecido por órgãos do SIDH; os principais fundamentos jurídicos
da responsabilização do Estado brasileiro; e a relação das decisões anteriores com o caso em
análise neste memorial. Trata-se, assim, de demonstrar que os fatos do caso de Neusa dos
Santos e Gisele Ana Ferreira correspondem a um padrão de violência sistemática que recai
sobre a população negra no Brasil, constatação anteriormente reconhecida tanto pela CIDH
quanto pela Corte IDH.

IV. 1) Caso Simone André Diniz vs. Brasil (2006)

IV.1.1) Breve relato do caso


Em 21 de outubro de 2006, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
emitiu o Relatório de Mérito no. 66/06, sobre o caso Simone André Diniz vs. Brasil86. A
CIDH concluiu que o Estado brasileiro é responsável pela violação do direito à igualdade
perante a lei, à proteção judicial e às garantias judiciais, consagrados respectivamente nos
artigos 24, 8 e 25 da Convenção Americana, assim como a obrigação de respeitar e garantir
direitos estabelecida no artigo 1.1 do mesmo instrumento.

85
Ibidem, p.81.
86
CIDH. Relatório No. 66/06. Caso 12.001. Mérito. Simone André Diniz vs. Brasil. 21 de outubro de 2006.

27
Em março de 1997, Simone Diniz encontrou nos classificados do jornal “A Folha de
São Paulo” anúncio de vaga de trabalho para empregada doméstica, no qual a contratante,
Aparecida Gisele Mota da Silva, informava a sua preferência pela contratação de pessoas de
cor branca. Simone Diniz tentou se candidatar a este emprego, porém, ao se declarar negra,
foi informada que não preenchia os requisitos para o referido cargo. Decidiu, então,
denunciar a discriminação racial às autoridades competentes87.
Em 5 de março de 1997, foi instaurado inquérito policial para investigar a prática do
delito de racismo, crime tipificado no art. 20 da Lei nº 7.716/89. Contudo, o Ministério
Público do Estado de São Paulo entendeu que não havia elementos suficientes para o
oferecimento de denúncia, tendo sido promovido o arquivamento do inquérito através de
sentença judicial, em 2 de abril de 1997. De acordo com os peticionários, houve falha na
devida diligência das autoridades brasileiras na investigação do racismo88.
Diante de tais fatos, em outubro de 1997, o Centro pela Justiça e o Direito
Internacional (CEJIL), a Subcomissão do Negro da Comissão de Direitos Humanos da
OAB/SP e o Instituto do Negro Padre Batista apresentaram petição à CIDH contra a
República Federativa do Brasil89. Ao analisar o mérito do caso, a CIDH considerou que,
embora se tratasse de relação entre particulares, o Estado brasileiro deveria garantir o respeito
aos direitos humanos e, diante de uma violação, buscar investigar, processar e sancionar
diligentemente o(s) autor(es) da violação, garantindo os direitos estabelecidos na Convenção
Americana.

IV.1.2) O contexto de racismo reconhecido pela CIDH


A fim de comprovar a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pelas
violações de direitos humanos perpetradas contra Simone Diniz, a CIDH expôs suas
"conclusões a respeito da situação dos afro-brasileiros". Para tanto, levou em consideração: a
visita in loco que realizou no Brasil em 1995; dados levantados por institutos de pesquisa
(como o IBGE); a evolução do ordenamento jurídico brasileiro anti-racismo; e uma série de
problemas na aplicação das leis anti-racismo no Brasil.
Durante a visita in loco de 1995, a CIDH pôde constatar que "os afro-brasileiros se
encontram em uma situação de vulnerabilidade como sujeitos de direitos humanos e
particularmente em uma situação de diferença de poder com relação à população branca"90.

87
Ibidem. Par. 28.
88
Ibidem. Pars. 29 a 37.
89
Ibidem. Par. 5.
90
Ibidem. Par. 44.

28
De acordo com a mesma, não existia sequer uma "igualdade mínima aceitável" entre pretos e
brancos, revelando-se um "padrão atentatório aos direitos humanos, especialmente à
igualdade, à não-discriminação e ao direito à dignidade"91.
A CIDH ainda reconheceu, em sua decisão, dados relevantes sobre o racismo no
Brasil: em 1999, os negros representavam 45% da população do país, mas correspondiam a
64% da população pobre e a 68% da população indigente; 21% da população afrodescendente
era analfabeta em comparação a 8% da população branca. Além disso, em relação ao sistema
criminal brasileiro, os negros eram proporcionalmente mais condenados e menos absolvidos
pelos mesmos delitos, assim como a violência policial ocasionava vítimas pretas e pardas de
forma desproporcional92.
Especificamente sobre as relações de trabalho, a CIDH reconheceu que, no ano de
1999, 5.7% da população branca empregada ocupava posições de empregadores contra 1.3%
de negros e 2.1% de mestiços e, por outro lado, 5.7% da população branca empregada
ocupava a posição de trabalhador doméstico contra 13.4% de negros e 8.4% de mestiços. No
mesmo sentido, pesquisa da época constatou que os salários da população negra eram
sistematicamente menores, e a discriminação racial era relatada em recrutamento para todos
os tipos de trabalho, sendo certo que o perfil racial era avaliado na etapa de admissão93. A
CIDH destacou que pesquisas apontaram que “a discriminação foi relatada em recrutamento e
seleção pessoal em todos os tipos de trabalho, seja entre empregadas domésticas, serviços
gerais ou trabalhadores profissionais”94.
Por sua vez, ao analisar o ordenamento jurídico brasileiro, a CIDH concluiu que a
evolução da normativa penal – sobretudo com a constitucionalização do crime de racismo em
1988 e com a criação da Lei 7.716 de 1989 (Lei Caó) – não foi capaz de produzir mudanças
estruturais, sendo a impunidade a "tônica nos crimes raciais" no Brasil. A CIDH verificou,
nesse sentido, a ineficácia da Lei nº 7.716/89, que definiu os crimes sobre preconceito de raça
e cor, devido ao seu laconismo, "que revelava um segregacionismo que não refletia o racismo
existente no Brasil e a resistência de membros do poder judiciário em aplicá-la"95.
A CIDH destacou que um dos padrões observados consistiu na ação dos órgãos de
Estado – investigativos e judiciais – de "minimizar a atitude do agressor, fazendo parecer que
tudo não passou de um mal entendido". Como decorrência, concluiu que são poucos os casos

91
Ibidem.
92
Ibidem. Pars. 45 e 46.
93
Ibidem. Pars. 53 e 55.
94
Ibidem. Par. 57.
95
Ibidem. Pars. 68 e 78.

29
de racismo que chegam a ser denunciados. Quando denunciados, poucos viram inquéritos e
ainda menos numerosos são os casos sentenciados pelo Poder Judiciário brasileiro, cujo
agressor é devidamente responsabilizado. A CIDH concluiu, então, que o racismo
institucional é um dos grandes obstáculos para a aplicação efetiva das normas anti-racismo no
Brasil: “[...] da prova testemunhal, passando pelo inquérito na polícia até a decisão do
Judiciário, há preconceito contra o negro. Os três níveis são incapazes de reconhecer o
racismo contra o negro"96.

IV.1.3) Fundamentos jurídicos da responsabilização do Estado brasileiro


Com base no exposto, a CIDH concluiu que o Estado brasileiro violou o direito à
igualdade e não discriminação (art. 24 combinado com 1.1 da CADH), em razão da exclusão
de Simone Diniz do mercado de trabalho, por sua raça, e da perpetuação da impunidade97. O
arquivamento automático da denúncia de racismo – considerado um padrão de
comportamento das autoridades brasileiras – impediu a investigação dos fatos e o acesso da
vítima à justiça. Considerou a CIDH que a omissão do Estado em atuar diligente e
adequadamente na persecução penal dos autores de disciminação racial e racismo "resulta
grave pelo impacto que tem sobre a sociedade na medida em que a impunidade estimula a
prática do racismo"98.
A CIDH concluiu, ainda, que o Estado brasileiro violou os direitos às garantias
judiciais e à proteção judicial (artigos 8.1 e 25 em conjunção com o artigo 1.1 da CADH), por
não ter iniciado a ação penal necessária para a apuração da denúncia de discriminação racial
sofrida por Simone Diniz. De acordo com a CIDH, a investigação para apurar o crime de
racismo não foi adequada e eficaz, na medida em que não foi proposta ação penal, como
determinava a legislação brasileira, e que não havia possibilidade de recurso de acesso à
justiça para amparar o seu direito após o arquivamento da denúncia. A CIDH recordou que o
artigo 6 da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial estabelece que as vítimas de discriminação racial devem ter recurso
efetivo junto aos tribunais internos99.
Devido à violação aos artigos 8.1, 24 e 25, combinados com o artigo 1.1 da CADH,
em face de Simone André Diniz, a CIDH recomendou à República Federativa do Brasil:

96
Ibidem. Par. 84
97
Ibidem. Pars. 99 e 100.
98
Ibidem. Pars. 103 a 109.
99
Ibidem. Pars. 110, 113 e 126.

30
1. Reparar plenamente a vítima Simone André Diniz, considerando tanto o
aspecto moral como o material, pelas violações de direitos humanos determinadas
no relatório de mérito;
2. Reconhecer publicamente a responsabilidade internacional por violação dos
direitos humanos de Simone André Diniz;
3. Conceder apoio financeiro à vítima para que esta possa iniciar e concluir curso
superior;
4. Estabelecer um valor pecuniário a ser pago à vítima a título de indenização por
danos morais;
5. Realizar as modificações legislativas e administrativas necessárias para que a
legislação antirracismo seja efetiva, com o fim de sanar os obstáculos
demonstrados nos parágrafos 78 e 94 do presente relatório;
6. Realizar uma investigação completa, imparcial e efetiva dos fatos, com o
objetivo de estabelecer e sancionar a responsabilidade a respeito dos fatos
relacionados com a discriminação racial sofrida por Simone André Diniz;
7. Adotar e instrumentalizar medidas de educação dos funcionários de justiça e da
polícia a fim de evitar ações que impliquem discriminação nas investigações, no
processo ou na condenação civil ou penal das denúncias de discriminação racial e
racismo;
8. Promover um encontro com organismos representantes da imprensa brasileira,
com a participação dos peticionários, com o fim de elaborar um compromisso para
evitar a publicidade de denúncias de cunho racista, tudo de acordo com a
Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão;
9. Organizar Seminários estaduais com representantes do Poder Judiciário,
Ministério Público e Secretarias de Segurança Pública locais com o objetivo de
fortalecer a proteção contra a discriminação racial e o racismo;
10. Solicitar aos governos estaduais a criação de delegacias especializadas na
investigação de crimes de racismo e discriminação racial;
11. Solicitar aos Ministérios Públicos Estaduais a criação de Promotorias Públicas
Estaduais Especializadas no combate ao racismo e a discriminação racial;
12. Promover campanhas publicitárias contra a discriminação racial e o
racismo.100

No seu Relatório Anual de 2019, a CIDH apontou que o caso Simone André Diniz se
encontrava em estado de "parcial cumprimento" das recomendações elencadas. As
recomendações no. 1 (reparação moral e material da vítima), no. 2 (reconhecimento de
responsabilidade internacional); no. 4 (indenização pecuniária); e no. 12 (promover
campanhas publicitárias contra a discriminação racial e o racismo) foram consideradas
cumpridas101. No entanto, as recomendações no. 5 (reformas legislativas e administrativas
para legislação anti racista efetiva); no. 6 (retomar investigação completa, imparcial e
efetiva); e no. 7 (adotar medidas de educação de funcionários públicos sobre discriminação
racial nos procedimentos de investigação) foram consideradas parcialmente cumpridas102.

100
Ibidem. Par. 146.
101
CIDH. Relatório Anual 2019. Capítulo II. O sistema de petições e casos, soluções amistosas e medidas
cautelares. Par. 47.
102
Ibidem.

31
Por outro lado, as recomendações no. 3 (apoio financeiro para concluir estudos
superiores); no 8 (promover encontro na imprensa brasileira para compromisso de evitar
publicizar denúncias racistas); no. 9 (organizar seminários nos Poderes Judicial e Executito
para fortalecer combate ao racismo); no. 10 (criação de delegacias especializadas em delitos
de racismo e discriminação racial); no 11 (criação de Procuradorias Públicas nos Ministérios
Públicos especializadas em racismo e discriminação racial), permanecem ainda pendentes de
cumprimento103. No seu Relatório Anual de 2020, as recomendações nos. 10 e 11 foram
consideradas como parcialmente cumpridas104.
A CIDH concluiu que o caso Simone André Diniz se encontra parcialmente cumprido
e chamou a atenção do Estado brasileiro para adotar todos os esforços necessários para
avançar no cumprimento das recomendações estabelecidas. Apesar do resultado positivo em
relação às medidas de compensação e satisfação, assim como certos avanços estruturais, é
certo que recomendações caracterizadas como medidas de não-repetição não foram
plenamente cumpridas pelo Brasil até hoje.

IV.1.4) Um diálogo com o caso Neusa dos Santos e Gisele Ana Ferreira
O caso Simone André Diniz apresenta muitas similaridades com a violência sofrida
por Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira. Em ambos os casos, estamos diante
de uma situação de discriminação racial no acesso ao trabalho, sofrida por mulheres negras
que foram prontamente excluídas de seleções de emprego em razão de sua raça, em um
período temporal semelhante, isto é, no final da década de 90. Na decisão do caso Simone
André Diniz, a CIDH afirmou que excluir um indivíduo do acesso ao mercado de trabalho
por sua raça constituía um ato de discriminação racial, em conformidade com o artigo 1º da
Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e o
artigo 24 da CADH105, o que também se verifica no caso de Neusa dos Santos Nascimento e
Gisele Ana Ferreira.
Os dados analisados pela CIDH no caso Simone André Diniz são importantes para
demarcar o quadro social do racismo no Brasil daquela época. Destaca-se, nesse sentido, que
no Relatório de Mérito, a CIDH apontou que o racismo institucional era um obstáculo para a
aplicabilidade de instrumentos antirracistas106. Apesar de alguns fatores terem evoluído, estes

103
Ibidem.
104
CIDH. Relatório Anual 2020. Capítulo II. O sistema de petições e casos, soluções amistosas e medidas
cautelares. Par. 143.
105
Ibidem. Par. 99.
106
Ibidem. Par. 84.

32
não foram suficientes para impedir que casos semelhantes ocorressem no futuro, tendo em
vista que o racismo se perpetua nas estruturas da sociedade brasileira ainda hoje.
Ao analisar o ordenamento jurídico brasileiro, no caso Simone André Diniz, a CIDH
constatou a ineficácia da Lei nº 7.716/89. Isso porque a legislação não especificava ou
criminalizava o racismo praticado por pessoas que o exercem de forma estrutural, além de ser
lacônica e evasiva por exigir que, para a tipificação do crime de racismo, o autor declarasse
expressamente que sua conduta foi motivada por razões de discriminação racial. Conforme
pontuou a CIDH, a exigência de dolo específico e demonstração de uma intenção
discriminatória eleva o standard probatório ao nível de evidência inalcançável no caso
concreto. Sendo assim, o ordenamento jurídico brasileiro não é eficiente para prevenir crimes
resultantes de preconceito racial107.
No caso Simone André Diniz, a CIDH entendeu que as falhas na persecução penal da
discriminação racial não foi um fato isolado. Pelo contrário, refletia um padrão de
comportamento das autoridades brasileiras de condescendência quando confrontadas com
uma denúncia de racismo, gerando a tônica da impunidade nestes casos108. A insuficiência da
legislação brasileira pode gerar uma falsa impressão de que no Brasil não ocorrem práticas
discriminatórias, o que, somado à ineficácia das investigações, demonstra a manutenção de
uma situação generalizada de desigualdade no acesso à justiça e de impunidade nos casos de
denúncia de crimes com motivação racial.
Portanto, o emblemático caso Simone André Diniz é uma oportunidade de rever ações
e omissões das autoridades estatais que perpetuam práticas racistas no Brasil. Observando as
recomendações da CIDH ao Estado brasileiro, percebe-se que o país falhou em adotar
medidas positivas para prevenir, investigar e sancionar situações discriminatórias, em
particular no que se refere ao respeito do direito à igualdade no acesso ao trabalho de
mulheres negras. Esta mesma situação se repete no caso de Neusa dos Santos Nascimento e
Gisele Ana Ferreira.

IV. 2) Caso Trabalhadores Fazenda Brasil Verde vs. Brasil (2016)

IV.2.1) Breve relato do caso


O caso em questão trata da submissão de trabalhadores, dentre eles crianças, à prática
de trabalho forçado e servidão por dívidas na Fazenda Brasil Verde, localizada no Estado do

107
Ibidem. Pars. 78 a 83.
108
Ibidem. Par. 70.

33
Pará, entre os anos de 1989 e 2000. Os trabalhadores eram proibidos de abandonar a fazenda,
sob ameaça de morte, não recebiam salário ou recebiam quantias ínfimas e mantinham-se
constantemente endividados, sendo a eles negada moradia, alimentação e saúde dignas.
Apesar de ter tomado conhecimento dos graves fatos, desde 1989, o Estado brasileiro não
adotou as medidas razoáveis para prevenir, investigar, punir os responsáveis e reparar as
vítimas.
Em 20 de outubro de 2016, a Corte IDH emitiu sentença, julgando o Estado brasileiro
internacionalmente responsável pela violação do direito a não ser submetido a escravidão,
consagrado no artigo 6.1 da Convenção Americana, em relação aos direitos ao
reconhecimento da personalidade jurídica, à integridade pessoal, à liberdade pessoal, à honra
e à dignidade, e à livre circulação e residência, previstos no artigos 1.1, 3, 5, 7, 11 e 22, do
mesmo instrumento, em prejuízo de 85 trabalhadores. Além disso, também responsabilizou o
Brasil pela violação do princípio do interesse superior da criança, estabelecido no artigo 19
da Convenção Americana, em relação a uma das vítimas109.

IV.2.2) O contexto de racismo reconhecido pela Corte IDH


O referido caso se insere no contexto de racismo e pobreza estrutural no âmbito
trabalhista brasileiro. Em sua sentença, a Corte IDH fez referência ao contexto escravocrata
do Brasil, destacando a manutenção das condições de pobreza extrema e da alta concentração
de terras como fatores que provocaram a continuidade do trabalho escravo no país110. A
situação de trabalhos análogos à escravidão está relacionada, nesse sentido, ao racismo
estrutural, tendo em vista que, conforme destacou esta Corte, a maioria destes trabalhadores
são negros ou pardos e de baixa classe social, que se dispõe a trabalhar em geral no setor
agropecuário devido a promessas de emprego e salário atrativos111.
Note-se que a Corte IDH, em sua sentença, deu especial destaque à pobreza estrutural
como "o principal fator da escravidão contemporânea no Brasil, por aumentar a
vulnerabilidade de significativa parcela da população, tornando-a presa fácil dos aliciadores
para o trabalho escravo"112. Ainda assim, não perdeu de vista o marcador racial da
desigualdade no Brasil, reconhecendo que:
Apesar da abolição legal, a pobreza e a concentração da propriedade das terras foram causas
estruturais que provocaram a continuidade do trabalho escravo no Brasil. Ao não terem terras

109
Corte IDH. Caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas.
Sentença de 20 de outubro de 2016. Série C No. 333. Par. 508.
110
Ibidem. Par. 111.
111
Ibidem. Par. 113.
112
Ibidem. Par. 340.

34
próprias nem situações de trabalho estáveis, muitos trabalhadores no Brasil se submetiam a
situações de exploração, aceitando o risco de submeter-se a condições de trabalho desumanas
e degradantes. Durante as décadas de 1960 e 1970, o trabalho escravo no Brasil aumentou
devido à expansão de técnicas mais modernas de trabalho rural, que requeriam um maior
número de trabalhadores. Em meados do século XX, intensificou-se a industrialização na
região amazônica, e o fenômeno de posse ilegal e adjudicação descontrolada de terras
públicas foi favorecido, propiciando com isso a consolidação de práticas de trabalho escravo
em fazendas de empresas privadas ou empresas familiares possuidoras de amplas extensões
de terra. Neste contexto existiu uma ausência de controle estatal na região norte do Brasil,
onde algumas autoridades regionais teriam se convertido em aliadas dos fazendeiros. No ano
de 1995, o Estado começou a reconhecer oficialmente a existência de trabalho escravo no
Brasil. Segundo a OIT, em 2010 existiam no mundo 12.3 milhões de pessoas submetidas a
trabalho forçado, 25.000 das quais estariam no Brasil113.

Resta clara a existência de uma estrutura discriminatória que, não somente impõe
condições precárias de trabalho àqueles empregados vítimas das violações analisadas, como
também submete todo esse grupo marginalizado à falta de opções no mercado de trabalho e,
consequentemente, submissão a condições laborais incompatíveis com a dignidade humana.
Importante destacar que o contexto de discriminação observado no Caso Fazenda Brasil
Verde prolongou-se no tempo, na medida em que as denúncias sobre a submissão das vítimas
ao trabalho escravo já eram endereçadas às autoridades brasileiras desde o início da década
de 90, mas a situação permaneceu até os anos 2000. Atualmente, os diversos retrocessos do
Brasil no tocante ao combate ao trabalho escravo demonstram que esse ainda é um desafio
central para a garantia dos direitos humanos no país.

IV.2.3) Fundamentos jurídicos da responsabilização do Estado brasileiro


Na sentença do caso, a Corte IDH concluiu que os trabalhadores resgatados da
Fazenda Brasil Verde foram submetidos à servidão por dívida e trabalho forçado. As
especificidades do caso levaram, ainda, a Corte IDH a afirmar que os fatos ultrapassaram as
características do trabalho forçado, alcançando os elementos mais estritos da definição de
escravidão.114 Por ser a proibição à escravidão uma regra imperativa de Direito Internacional
Público115, a Corte IDH sustentou a obrigação dos Estados de realizarem investigações de
ofício, a partir do momento em que tomam conhecimento da violação, buscando impedir a
impunidade de graves violações de direitos humanos116.
Segundo a Corte IDH, existe uma obrigação de devida diligência excepcional do
Estado, que decorre da situação particular de vulnerabilidade em que se encontravam os

113
Ibidem. Par. 111.
114
Ibidem. Pars. 303 a 305.
115
Ibidem. Par. 249.
116
Ibidem. Pars. 362 e 363.

35
trabalhadores da Fazenda Brasil Verde117. Sobre este dever especial do Estado, identificou a
Corte IDH que sua finalidade é
reverter ou alterar situações discriminatórias existentes em suas sociedades, em
prejuízo de determinado grupo de pessoas. Isso significa o dever especial de proteção
que o Estado deve exercer com respeito a atuações e práticas de terceiros que, sob sua
tolerância ou aquiescência, criem, mantenham ou favoreçam as situações
discriminatória118.

Portanto, é dever do Estado adotar medidas preventivas, obrigação reforçada pelo


caráter imperativo da proibição à escravidão119. Destacou a Corte IDH que tais medidas têm
natureza de obrigação de meio, e incluem não somente atuação no campo jurídico, mas
também no âmbito político, administrativo e cultural120. Neste sentido, a sentença ressaltou a
obrigação estatal positiva de investigar e punir os responsáveis por delitos de trabalhos
análogos à escravidão, de maneira imediata e diligente. Além disso, os Estados devem
eliminar normativa interna que legalize ou tolere a escravidão, tipificar criminalmente este
delito com punições severas, realizar fiscalizações adequadas para prevenir tais práticas e
adotar medidas de proteção e assistência às vítimas121.
No caso concreto, a Corte IDH considerou que o Estado não demonstrou que tenha
adotado medidas específicas para prevenir a ocorrência do trabalho escravo, levando em
consideração as diversas denúncias a partir das quais as autoridades tomaram conhecimento
da situação, sem que tenha havido atuação coordenada e eficaz dos órgãos estatais. Logo, o
Brasil não atuou razoavelmente para prevenção de formas contemporâneas de escravidão, e
tampouco atuou com a devida diligência de acordo com as circunstâncias do caso para pôr
fim às violações dos direitos dos 85 trabalhadores122.
Ademais, acerca das garantias e proteção judiciais, o julgamento da Corte IDH
expressa que o Estado não atuou com a devida diligência, que era excepcional devido à
vulnerabilidade particular que se encontravam os trabalhadores em questão. Desta forma, os
processos judiciais estabelecidos não adentraram em etapas de mérito, não tendo cumprido
reparação das vítimas ou punição dos responsáveis, tendo em vista que foi aplicada o
instrumento da prescrição para o delito internacional da escravidão, obstaculizando o

117
Ibidem. Pars. 363 e 364.
118
Ibidem. Pars. 336 a 338.
119
Ibidem. Par. 342.
120
Ibidem. Pars. 322 a 328.
121
Ibidem. Par. 319.
122
Ibidem. Par. 342.

36
seguimento das investigações e contrariando as obrigações internacionais nos termos da
Convenção Americana123.
No Relatório de Admissibilidade e Mérito da CIDH de 2015 sobre o Caso Fazenda
Brasil Verde vs. Brasil, foi recomendado que o Estado Brasileiro (i) reparasse adequadamente
as vítimas moral e materialmente, notadamente por meio da restituição dos salários devidos e
a restituição das deduções por supostas dívidas; (ii) investigasse os fatos relacionados ao
trabalho escravo e conduzisse as investigações num prazo razoável, punindo os responsáveis;
(iii) providenciasse as medidas administrativas, disciplinares ou penais pertinentes no que
concerne às omissões das autoridades estatais, que contribuíram para a impunidade dos
responsáveis; (iv) continuasse a implementar políticas públicas e medidas legislativas
voltadas à erradicação do trabalho escravo; (v) criasse mecanismos de coordenação entre a
jurisdição penal e trabalhista para a investigação dos fatos; e (vi) adotasse as medidas
necessárias para erradicar todo tipo de discriminação racial124.
Já na sentença de 2016 da Corte IDH, dentre as medidas de reparação impostas125,
destaca-se (i) adoção de medidas legislativas para o reconhecimento da imprescritibilidade da
redução de pessoas à escravidão; (ii) pagamento de indenização a título de danos imateriais às
vítimas; e (iii) o reinício, com a devida diligência e em prazo razoável, das investigações e/ou
processos penais a respeito dos fatos ocorridos na Fazenda Brasil Verde em março de 2000126.
A Resolução da Corte IDH de Supervisão de Cumprimento Sentença do Caso Trabalhadores
Fazenda Brasil Verde, de 22 de novembro de 2019, declarou o cumprimento parcial do
pagamento da indenização às vítimas, destacando que permanecem pendente de cumprimento
as outras medidas reparatórias citadas acima127.

IV.2.4) Um diálogo com o caso Neusa dos Santos e Gisele Ana Ferreira
Ainda que o caso Fazenda Brasil Verde verse essencialmente sobre trabalho análogo à
escravidão, trata-se de importante precedente sobre a falta de devida diligência estatal acerca
de violações de direitos de trabalhadores e, especificamente, trabalhadores pobres e negros.
São trabalhadores que enfrentam obstáculos estruturais para acessar o mercado de trabalho e
para obter condições laborais dignas, em razão da discriminação racial e econômica.
123
Ibidem. Par. 362 a 368.
124
CIDH. Relatório de Admissibilidade e Mérito N. 169/11. Caso 12.006. Fazenda Brasil Verde vs. Brasil.
2011, para. 265.
125
Corte IDH. Caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas.
Sentença de 20 de outubro de 2016. Série C No. 333. Par. 508.
126
Ibidem. Par. 488.
127
Corte IDH. Resolução de Supervisão do Cumprimento de Sentença. Caso Trabalhadores Fazenda Brasil
Verde vs. Brasil. 22 de novembro de 2019.

37
Os fundamentos utilizados pela Corte IDH na sentença do caso Fazenda Brasil Verde
são capazes de influenciar a análise do caso Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana
Ferreira no que tange, em especial, a três aspectos: a) o contexto estrutural e histórico de
discriminação, reconhecido pela Corte IDH; b) a identificação de um dever especial do
Estado com relação a violações de direitos cujos titulares integram grupos socialmente
vulneráveis; e c) a necessidade de adoção de medidas positivas pelo Estado como elemento
da devida diligência em casos de violações de direitos humanos por particulares.
Em primeiro lugar, destaca-se que a sentença do caso Fazenda Brasil Verde foi a
primeira a reconhecer a existência de uma discriminação estrutural histórica no Brasil, por
conta da situação econômica das 85 vítimas. Conforme informações refletidas na sentença, a
maior parte das vítimas sujeitas à escravidão estava composta por " homens pobres, entre 17
e 40 anos de idade, afrodescendentes e mulatos, originários de Estados muito pobres, [...]
onde viviam em situação de extrema pobreza e vulnerabilidade"128.
Portanto, não é possível dissociar a discriminação econômica analisada pela Corte
IDH e o racismo estrutural, intrínsecos ao desenvolvimento da sociedade brasileira. O
reconhecimento pela Corte IDH da existência de discriminação estrutural histórica, advinda
dos processos de escravidão, implica, necessariamente, o reconhecimento da existência de um
contexto de racismo estrutural no Brasil. Esse contexto desrespeita as obrigações
convencionais do Brasil e é determinante para a obstaculização do acesso ao trabalho de
Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira. De acordo com o voto apartado do Juiz
Eduardo Ferrer Mac-gregor Poisot:
“ [...] o comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, em sua Recomendação
Geral Nº 34, sobre discriminação racial contra afrodescendentes (2011), entendeu
que: "O racismo e a discriminação estrutural contra afrodescendentes, enraizados
no infame regime da escravidão, manifestam-se em situações de desigualdade que
afetam estas pessoas e que se refletem, entre outras coisas, no seguinte: o fato de
que formem parte, juntamente com as populações indígenas, dos grupos mais
pobres da população; suas baixas taxas de participação e representação nos
processos políticos e institucionais de tomada de decisões; as dificuldades
adicionais enfrentadas no acesso à educação, a qualidade desta e as possibilidades
de completá-la, o que faz com que a pobreza se transmita de geração em geração; o
acesso desigual ao mercado do trabalho; o limitado reconhecimento social e a
escassa valorização de sua diversidade étnica e cultural, e sua desproporcional
presença na população carcerária”.129
Em segundo lugar, a sentença sedimentou o entendimento de que há uma devida
diligência reforçada do Estado no caso de vítimas em situação de vulnerabilidade social.
128
Corte IDH. Caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas.
Sentença de 20 de outubro de 2016. Série C No. 333. Pars. 113 e 226.
129
ONU. Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, Recomendação Geral Nº 34 sobre Discriminação
Racial contra Afrodescendentes. 3 de outubro de 2011. CERD/C/GC/34. Par. 6.

38
Afinal, em se tratando de violações estruturais, o Estado não pode se valer do argumento do
desconhecimento para justificar omissões. Esta lógica é inteiramente aplicável ao presente
caso, uma vez que a disparidade entre pessoas negras e brancas em relação ao acesso ao
trabalho configura situação estrutural e estruturante da realidade brasileira, de modo que
caberia ao Estado Brasileiro atuar em conformidade com seu dever especial130.
Em terceiro lugar, a Corte IDH destacou no Caso Fazenda Brasil Verde que "o dever
de prevenção inclui todas as medidas de caráter jurídico, político, administrativo e cultural
que promovam a salvaguarda dos direitos humanos"131. O Tribunal também assinalou que tais
medidas devem refletir o compromisso estatal com a prevenção de violações de direitos
humanos e, caso não demonstrem eficácia real, são consideradas insuficientes para a sua
desoneração das obrigações internacionais assumidas132.
Portanto, ainda que a investigação e punição dos particulares responsáveis seja uma
maneira importante de reparar as vítimas, somente esta medida não pode ser suficiente para
reparar integralmente os danos causados, pelo caráter abrangente e estrutural da violação em
tela. Afinal, tanto no Caso Fazenda Brasil Verde, como no caso de Neusa dos Santos
Nascimento e Gisele Ana Ferreira, as vítimas representam grupos estruturalmente
discriminados e marginalizados, de forma que apenas a reparação integral demanda a adoção
de amplas políticas públicas.

IV. 3) Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e


seus familiares vs. Brasil (2020)

IV.3.1) Breve relato dos fatos


Em 15 de julho de 2020, o Estado brasileiro foi condenado pela Corte IDH na
sentença do caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus
familiares vs. Brasil. O caso tratou da explosão de uma fábrica de fogos de artifícios, no
município de Santo Antônio de Jesus, no estado da Bahia, em 11 de dezembro de 1998. A
Corte IDH declarou que o Estado foi responsável pela violação dos direitos à vida,
integridade pessoal, ao trabalho em condições equitativas e satisfatórias, direito das crianças,
o direito à igualdade, e as garantias e proteção judiciais, que constam nos artigos 4.1, 5.1, 19,
24 e 26 da Convenção Americana, em relação à obrigação de respeitar e garantir direitos

130
CORTE IDH. Caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas.
Sentença de 20 de outubro de 2016. Série C No. 333. Pars. 363 e 364.
131
Ibidem. Par. 322.
132
Ibidem. Par. 328.

39
prevista no artigo 1.1 deste instrumento, em prejuízo das sessenta pessoas falecidas na
explosão da fábrica de fogos de Santo Antônio de Jesus (a maioria mulheres e crianças)133.

IV.3.2) O contexto de racismo reconhecido pela Corte IDH


A Corte IDH reconheceu o aspecto estrutural das violações de direitos humanos.
Destacou que, na região onde ocorreu o acidente na fábrica de fogos, após abolição da
escravidão, muitas pessoas que foram escravizadas no período colonial do Brasil
permaneceram em condições de subordinação e de extrema pobreza, o que manteve boa parte
da população negra em relações trabalhistas informais e insalubres134. Nesse cenário, a
produção de fogos de artifício, principal meio de subsistência do município de Santo Antônio
de Jesus, se caracterizava por um alto grau de informalidade, clandestinidade e utilização de
mão de obra feminina negra, as quais eram excluídas de acesso a direitos trabalhistas135. De
acordo com a Corte IDH:
a discriminação contra a população negra no Brasil foi uma constante histórica. De acordo
com o Comitê dos Direitos da Criança, segundo dados de 2006, “[n]o Brasil, entre os 10%
mais ricos da população, unicamente 18% são pessoas de descendência africana (mestiços ou
negros); entre os 10% mais pobres, 71% são negros ou mestiços”. Por sua vez, o Comitê para
a Eliminação da Discriminação Racial reiterou ao Estado, em diversas oportunidades, sua
preocupação com a desigualdade que afeta as comunidades negras e mestiças, e com seu
impacto no exercício de outros direitos136

O caso evidencia o racismo estrutural que permeia o Brasil e expõe a sua conexão
direta com a extrema precarização do trabalho de mulheres negras, as quais carecem de
políticas voltadas para sua inserção no mercado de trabalho. As vítimas do caso eram
mulheres marginalizadas na sociedade, sendo cerca de 60% delas negras, que começaram a
trabalhar entre os 10 e 13 anos, com baixa escolaridade e sem outras opções de trabalho137.
De acordo com a Corte IDH, o contexto de pobreza e racismo estrutural foram os principais
fatores que tornaram possível o funcionamento sem fiscalização da fábrica de fogos na
região, e também o que fez com que as mulheres e crianças vítimas tenham sido compelidas a
trabalhar nessas condições138.

133
CORTE IDH. Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs.
Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de julho de 2020. Serie C No. Par.
318.
134
Ibidem. Par. 57 e 58.
135
Ibidem. Par. 67.
136
CORTE IDH. Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs.
Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de julho de 2020. Série C No. Par.
193.
137
Ibidem. Par. 65.
138
Ibidem. Par. 197.

40
Trata-se, com efeito, de um importante precedente, em que a Corte IDH
expressamente reconhece padrões de discriminação estrutural e intersecional de violência
contra mulheres negras no Brasil. Destaca a confluência de fatores de discriminação que,
juntos, aumentam a vitimização de mulheres negras e pobres. Em suas palavras:
Neste caso, a Corte pôde constatar que as supostas vítimas estavam imersas em padrões de
discriminação estrutural e intersecional. As supostas vítimas se encontravam em situação de
pobreza estrutural e eram, em amplíssima maioria, mulheres e meninas afrodescendentes,
quatro delas estavam grávidas e não dispunham de nenhuma alternativa econômica senão
aceitar um trabalho perigoso em condições de exploração. A confluência desses fatores tornou
possível que uma fábrica como a que se descreve nesse processo tenha podido se instalar e
funcionar na região, e que as mulheres e crianças supostas vítimas se tenham visto compelidas
a nela trabalhar139

IV.3.3) Fundamentos jurídicos da responsabilização do Estado brasileiro


No momento da explosão, a fábrica de fogos tinha autorização para funcionamento do
Ministério do Exército e do Município de Santo Antônio de Jesus, bem como dispunha de um
certificado de registro. Contudo, até o período da explosão, não houve notícia de nenhuma
atividade fiscalizatória realizada pelas autoridades estatais, tanto quanto às condições de
trabalho existentes, quanto no que concerne ao controle das atividades de grande
periculosidade, como é o caso da fabricação de fogos de artifícios. Nesse sentido, o Estado
admitiu, em audiência pública realizada em 2006 na CIDH, que havia falhado em seu dever
de fiscalizar a fábrica de fogos de Santo Antônio de Jesus140.
Na referida sentença, quanto à adoção de medidas necessárias para prevenção de
eventuais violações como o acidente ocorrido na fábrica de fogos, a Corte IDH observou a
responsabilidade internacional do Estado pela falta de fiscalização das condições trabalhistas
no local, as quais não cumpriam os parâmetros interamericanos. De acordo com o Tribunal, o
não cumprimento do dever de fiscalizar adequadamente permitiu a afetação do direito a
condições equitativas e satisfatórias que garantissem a segurança, a saúde e a higiene no
trabalho141.
Com relação à discriminação sofrida pelas mulheres negras, a Corte IDH destacou
pronunciamento do Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, das Nações
Unidas, em relatório de 2012, o qual salientou que a igualdade entre homens e mulheres no
mercado de trabalho é um problema no Brasil e que “lhe preocupa[va] que os estereótipos

139
CORTE IDH. Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs.
Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de julho de 2020. Série C No. Par.
197.
140
Ibidem. Par.78.
141
Ibidem. Par. 172 e 173.

41
relacionados a gênero e raça contribuam para a segregação de mulheres afrodescendentes e
indígenas nos empregos de menor qualidade”142. O mesmo Comitê manifestou sua
preocupação com os efeitos da pobreza sobre as mulheres brasileiras afrodescendentes e sua
segregação na sociedade e posição desvantajosa de acesso à educação, à saúde, ao emprego,
dentre outros direitos essenciais143.
É importante destacar que o fato de as vítimas pertencerem a um grupo em especial
situação de vulnerabilidade acentua os deveres de respeito e garantia de direitos a cargo do
Estado, segundo a Corte IDH144. Desta forma, foi identificado que o Estado não adotou
medidas destinadas a garantir o exercício do direito a condições de trabalho sem
discriminação, e a interseção de desvantagens comparativas fez com que a experiência de
vitimização fosse agravada145. Por este motivo, a Corte IDH condenou o Brasil também pela
violação do direito à igualdade.
No que diz respeito às garantias judiciais e a proteção judicial, houve uma demora de
quase 22 anos sem uma decisão definitiva que responsabilizasse penalmente os responsáveis
pelas violações no presente caso, levando o Tribunal a entender que o Estado não demonstrou
uma justificativa aceitável para essa mora, além de não ter atuado com a devida diligência146.
Além disso, as vítimas da explosão na fábrica de fogos não receberam qualquer indenização,
o que, segundo o Tribunal, gerou um impacto significativo em suas vidas, uma vez que elas e
seus familiares não dispunham de meios econômicos suficientes para pagar os custos dos
tratamentos médicos e psicológicos necessários147.
Dentre as reparações estabelecidas pela Corte IDH na referida sentença, destacamos
as seguintes: (i) o Estado deve dar continuidade ao processo penal para julgar e punir os
responsáveis pela explosão da fábrica de fogos; (ii) o Estado deve dar continuidade às ações
civis de indenização e aos processos trabalhistas; (iii) o Estado deve fornecer de forma
gratuita e imediata tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico às vítimas; (iv) o Estado
deverá inspecionar sistematicamente e periodicamente os locais de produção de fogos de
artifício; (v) o Estado deve apresentar relatório sobre andamento de projetos legislativos
sobre regulamentação da fabricação, do comércio e uso de fogos de artifício; (vi) o Estado

142
Ibidem. Par. 192.
143
ONU. Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher. Observações finais do Comitê. Brasil.
UN Doc. A/58/38. 18 de julho de 2003. Pars. 110 e 124.
144
CORTE IDH. Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs.
Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de julho de 2020. Série C No. Par.
198.
145
Ibidem. Par. 198.
146
Ibidem. Par. 231.
147
Ibidem. Pars. 234 a 247.

42
deve elaborar e executar programa de desenvolvimento socioeconômico com o objetivo de
promover a inserção de trabalhadores e trabalhadoras dedicadas à fabricação de fogos de
artifício em outros mercados de trabalho e possibilitar a criação de alternativas econômicas; e
(vii) o Estado deve apresentar relatório sobre a aplicação das Diretrizes Nacionais sobre
Empresas e Direitos Humanos148. De acordo com a Corte IDH, as medidas de reparação
elencadas ainda se encontram pendentes de serem cumpridas pelo Brasil149.

IV.3.4) Um diálogo com o caso Neusa dos Santos e Gisele Ana Ferreira
A sentença da Corte IDH traz importantes contribuições para a análise do Caso Neusa
dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira. Em particular, destacam-se três aspectos
relevantes, mencionados pela Corte IDH: a) o reconhecimento da discriminação intersecional,
em especial em relação a mulheres negras e pobres; b) o reconhecimento da violação ao
direito à igualdade e não discriminação, em relação ao direito ao trabalho; e c) os debates
sobre a responsabilidade do Estado por atos de atores privados.
A discriminação interseccional que sofreram as mulheres e crianças no Caso Fábrica
de Fogos, por motivos de classe, raça e gênero, consagrou uma violação de direitos em
cascata. Essa confluência de fatores evidencia um aumento das desvantagens sofridas pelas
vítimas, mulheres negras e pobres. O caso demonstra, assim, como as opressões estruturais
(de gênero, raça e classe) no Brasil são especialmente acentuadas diante de mulheres negras,
não sendo mera coincidência a histórica precarização de mão de obra dessa camada da
população. Com efeito, a desigualdade social não pode ser pensada de forma desconectada ao
racismo estrutural da sociedade brasileira, fruto da escravização de pessoas negras durante o
período colonial.
Nesse sentido, a perspectiva interseccional revela-se essencial para se analisar,
prevenir e reparar violações de direitos de mulheres negras e pobres, tendo a Corte IDH
destacado a situação de pobreza estrutural em que as mulheres e meninas afrodescendentes se
encontram no Brasil, obrigadas a se sujeitarem a situações informais e marginalizadas de
trabalho. Na sentença do Caso Fábrica de Fogos, a Corte IDH determinou, então, que o
Estado não adotou medidas destinadas a garantir o exercício do direito a condições de
trabalho sem discriminação, não havendo alternativas possíveis de trabalho digno na região
devido à carência de políticas públicas efetivas. O debate acerca da falta de alternativas de
148
Ibidem. Par. 318.
149
Casos em etapa de Supervisão de Cumprimento de Sentença. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/supervisiones/SCS/brasil/fabricafuegos/fabricafuegosp.pdf

43
trabalhos equitativos para as mulheres negras dialoga com os obstáculos ao acesso ao
mercado de trabalho enfrentados por Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira,
ainda que ambos os casos reservem suas particularidades.
Fato é que o Estado possui uma obrigação positiva, de especial proteção a grupos
sistematicamente discriminados como o de mulheres negras, devendo desenvolver políticas
públicas efetivas de promoção da igualdade racial. Na sentença do Caso Fábrica de Fogos,
restou claro que as as políticas públicas adotadas pelo Estado brasileiro nos últimos 20 anos
não teve impacto no município em que ocorreram os fatos150. Da mesma forma, é possível
dizer, em análise do caso Neusa dos Santos e Gisele Ana Ferreira, que as políticas públicas
adotadas pelo Estado brasileiro não foram capazes de gerar a inclusão equitativa de mulheres
negras no mercado de trabalho.
Outro ponto relevante, abordado no Caso Fábrica de Fogos, foi o debate sobre direitos
humanos e empresas. A Corte IDH reconheceu, na sentença, que os Estados têm obrigações
de fiscalização, supervisão ou inspeção das empresas como mecanismos de garantia e
prevenção dos direitos trabalhistas nos contextos de relações entre particulares151. Embora se
entenda que os Estados não são, per se, responsáveis pela ação de particulares, eventualmente
podem sê-lo, caso não tenham adotado medidas e não tenham tornado efetivas as medidas
adotadas, para garantir de forma preventiva os direitos humanos.
Na sentença em questão, foram invocados os Princípios Orientadores das Nações
Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos para reforçar as obrigações estatais frente às
atividades empresariais. Segundo tais Princípios, os Estados “devem proteger contra as
violações dos direitos humanos cometidas em seu território e/ou sua jurisdição por terceiros,
inclusive as empresas”152. Ademais, “[e]m cumprimento do seu dever de proteger, os Estados
devem: a) fazer cumprir as leis que tenham por objeto ou por efeito fazer as empresas
respeitarem os direitos humanos e, periodicamente, avaliar a adequação dessas leis e suprir
eventuais lacunas [...]”153.

150
CORTE IDH. Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs.
Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de julho de 2020. Serie C No. Par.
289.
151
Ibidem. Par. 148 e 149.
152
CORTE IDH. Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs.
Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de julho de 2020. Serie C No. Voto
Fundamentado do Juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot. para. 12.
153
CORTE IDH. Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs.
Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de julho de 2020. Serie C No.
Par.150.

44
Diante desse quadro, a Corte reconheceu expressamente que o Estado não só
descumpriu sua obrigação de fiscalização (diante de uma atividade perigosa e de alto risco),
como também deixou de adotar medidas destinadas a garantir a igualdade material no
exercício do direito ao trabalho de mulheres em situação de marginalização. Percebe-se,
assim, que a omissão do Estado brasileiro em fiscalizar a atuação de empresas – em
consonância e em respeito às normativas de direitos humanos – implica no aprofundamento
do racismo estrutural, bem como em formas discriminatórias interseccionais. Ainda que os
casos Fábrica de Fogos e Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira sejam factual e
contextualmente diferentes, ambos são resultados da ausência de políticas afirmativas e de
fiscalização adequadas, por parte do Estado brasileiro, capazes prevenir, responsabilizar e
reparar discriminações no exercício do direito ao trabalho de mulheres negras no Brasil.

V. Racismo estrutural e direito ao trabalho no Brasil

Esta terceira e última parte do memorial apresenta uma sistematização de dados –


produzidos por órgãos oficiais e organizações não governamentais –, bem como um
mapeamento das ausência de dados referentes ao racismo estrutural, o racismo no mercado de
trabalho e as políticas públicas de combate ao racismo implementadas no Brasil (sobretudo
voltadas às mulheres negras), levando em consideração uma perspectiva interseccional de
análise.
Para tal propósito, foram identificados documentos publicados entre os anos de 2018
e 2022 sobre o tema, objetivando o levantamento de dados recentes que revelam os contextos
de racismo da América Latina e, especificamente, do Brasil e do estado de São Paulo. Os
documentos investigados foram produzidos por órgãos governamentais brasileiros e pela
sociedade civil organizada. Por meio de tais documentos, foi desenvolvida uma análise
qualitativa e comparativa, bem como a sistematização das informações relevantes e a
produção de um diagnóstico qualitativo acerca do racismo no mercado de trabalho brasileiro.
Visando o adensamento crítico e a melhor compreensão das questões anteriormente
referidas, serão mobilizados e analisados dados de forma aplicada, conforme já especificado
na metodologia do documento, objetivando evidenciar as desigualdades e discriminações no
mercado de trabalho brasileiro enfrentadas pela população negra, com especial enfoque nas
mulheres negras. Para tanto, é importante salientar que a análise se debruçou sobre dados

45
socioestatísticos referentes às diferentes esferas de desigualdade que impactam de forma
imbricada e direta a realidade de mulheres negras no mercado de trabalho.
Assim como os demais países da América Latina, a desigualdade social no Brasil é
marcada pelos eixos estruturantes do gênero, raça, território, idade, orientação sexual e
identidade de gênero. Esses eixos estruturantes da desigualdade social na América Latina se
manifestam em diversas áreas de garantia de direitos e de desenvolvimento: renda, trabalho e
emprego, proteção e cuidado social, educação, saúde e alimentação, serviços básicos (como
água, saneamento, eletricidade, habitação, transporte ou acesso a tecnologias de informação e
comunicação), segurança cidadã e possibilidade de viver uma vida livre de violência, bem
como participar da tomada de decisões154.
Nesse sentido, o problema da discriminação racial no Brasil deve ser analisado a
partir de uma perspectiva estrutural e interseccional das múltiplas violências existentes contra
a população negra brasileira, que não se restringe apenas à violência letal imediata, mas
compreende também as diversas violações perpetradas pelos aparelhos estatais e por poderes
paralelos. Há maiores índices de vulnerabilidade social, econômica e política das populações
racializadas, apesar da invisibilidade estatística e da escassez de informação sobre a
população negra da América Latina, o que culmina na incapacidade de informar de modo
integral todas as dimensões das desigualdades étnico-raciais também no Brasil155.
Em consequência das desigualdades estruturais, de gênero e racial, engendradas por
meio de processos históricos, e em virtude da manutenção dos padrões e práticas
discriminatórias, mulheres negras são, no contexto brasileiro, o grupo mais vulnerabilizado
socialmente, o que pode ser observado a partir de uma análise de suas condições de vida, nas
esferas da saúde, trabalho, moradia, dentre outras156.
Nesta parte, damos especial atenção à desigualdade no mercado de trabalho,
culminando em um panorama no qual as mulheres pretas ou pardas, para além de enfrentarem
dificuldades para ocupar postos de trabalhos formais ou informais, também estão sujeitas ao
fenômeno da discriminação composta, isto é,“ (...) são as mulheres pretas ou pardas as mais
penalizadas, destacando-se a elevada concentração destas no emprego doméstico (22,4%) e
trabalhadores sem remuneração (10,2%)”157.

154
ONU. CEPAL. Fondo de Población de las Naciones Unidas.Afrodescendientes y la matriz de la desigualdad
social en América Latina Retos para la inclusión.LC/PUB.2020/14.p.21
155
ONU. CEPAL. Mulheres afrodescendentes na América Latina e no Caribe: Dívidas de igualdade.
LC/TS.2018/33. p.07.
156
Ibidem. p.18
157
IPEA e UNIFEM. Retrato das desigualdades de gênero e raça – 1ª edição. Brasília, 2005. Disponível em:
https://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/primeiraedicao.pdf. Acesso em: 01 Dez. 2022. p. 21.

46
V.1) Dados gerais sobre racismo estrutural na América Latina e no Brasil:
uma perspectiva interseccional

V.1.1) Pobreza, rendimento e distribuição de renda


Apesar de a população preta ou parda ser maioria no Brasil (55,8%), a extrema
pobreza é aproximadamente 2,5 vezes maior entre essa população em comparação com a
população branca158. As taxas de extrema pobreza e pobreza entre pretos e pardos orbitam
entre 7,4% e 31,0%, respectivamente – ou seja, mais que o dobro das taxas observadas entre
os brancos: 3,5% e 15,1%159.
De acordo com a análise da CEPAL, a desigualdade de gênero e étnico-racial estão
imbricadas, culminando na incidência da pobreza em maiores proporções às mulheres negras
e indígenas. Essa afirmação é respaldada pelos dados divulgados em 2019 pelo IBGE, que
revelam que as mulheres pretas e pardas apresentavam as maiores incidências de pobreza
(31,9%) e extrema pobreza (7,5%)160.
Em relação à renda média mensal do trabalho principal da população ocupada de 16
anos de idade ou mais, publicado no estudo Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça -
1995 a 2015, demonstra que, em 2015, enquanto os homens brancos recebiam uma renda
média de 2.509 reais, a renda média mensal das mulheres negras era de somente 1.027 reais,
ou seja, 40% da renda média mensal dos que se encontram no topo da pirâmide161.
Apesar do aumento da renda média de mulheres negras ter sido considerado o maior
em duas década, 80% entre 1995 e 2015, a hierarquia entre a população negra e a população
branca persiste, principalmente na hierarquia entre homens brancos e mulheres negras,
demonstrando, assim, que essa desigualdade é estrutural, pois permanece, apesar dos avanços
registrados162.
No que se refere à pobreza monetária, a proporção de pessoas pretas ou pardas com
rendimento inferior às linhas de pobreza, propostas pelo Banco Mundial, foi maior que o
dobro quando comparado com a população branca. No ano de 2018, considerando a linha de

158
ONU. CEPAL.Fondo de Población de las Naciones Unidas.Afrodescendientes y la matriz de la desigualdad
social en América Latina Retos para la inclusión.LC/PUB.2020/14, p.108.
159
IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil – 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 15 Nov. 2022, p. 4-5.
160
IBGE. Síntese de Indicadores Sociais: Uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira. Rio de
Janeiro: IBGE, 2021. Disponível em:https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101892.pdf. Acesso
em: 01 de Dez. 2022. p. 66.
161
ONU. CEPAL .Mulheres afrodescendentes na América Latina e no Caribe: Dívidas de igualdade.
LC/TS.2018/33, p.18.
162
ONU. CEPAL.Fondo de Población de las Naciones Unidas.Afrodescendientes y la matriz de la desigualdad
social en América Latina Retos para la inclusión.LC/PUB.2020/14, p. 26

47
pobreza o valor de US$ 5,50 diários, a taxa de pobreza de brancos era de 15,4%, enquanto de
pessoas negras era de 32,9%.163
Em relação aos rendimentos de todas as fontes, a população preta ou parda, apesar de
maioria no país, compõe 75,2% dos indivíduos do grupo de 10% com menores
rendimentos164. Além disso, o rendimento domiciliar per capita também demonstra a
desigualdade racial, uma vez que na população branca, esse rendimento, em 2018, superou
em quase duas vezes o da população preta ou parda – R$ 1.846 contra R$ 934165.
Essas disparidades de rendimento estão intrinsecamente relacionadas à estruturação
do mercado de trabalho a partir de um viés racista, no qual pessoas brancas, além de serem
menos afetadas pela desemprego, também obtém vantagem no quesito rendimento166. A
combinação de raça e gênero demonstra que a maior vantagem dos homens brancos sobre os
demais grupos populacionais ocorre quando comparados às mulheres pretas ou pardas, que
recebem menos da metade do que os homens brancos auferem (44,4%).167

V.1.2) Educação
As desigualdades no âmbito educacional estão intimamente relacionadas à
capacidade de ingresso no mercado de trabalho, à qualidade salarial e ao nível de
formalidade. Observa-se que o menor nível dentro da escala educacional influi diretamente
na localização dentro da escala de renda, conforme demonstra o relatório da CEPAL
“Mulheres Afrodescendentes na América Latina e no Caribe: Dívidas de igualdade”:
(...) entre as pessoas de maior nível educacional (oito anos ou mais de
instrução), o extremo superior da escala de renda é ocupado pelos homens
não indígenas e não afrodescendentes, seguidos pelos homens
afrodescendentes, as mulheres não indígenas e não afrodescendentes, as
mulheres afrodescendentes, os homens indígenas e, finalmente, as mulheres
indígenas.168

Destaca-se que, entre 2016 e 2018, a taxa de analfabetismo na população preta ou parda
de 15 anos ou mais de idade era de 9,1%, enquanto os índices relativos à população branca

163
IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil – 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 15 Nov. 2022, p. 4-5.
164
Ibidem, p. 4.
165
Ibidem, p. 4.
166
Ibidem, p. 4-6.
167
Ibidem, p. 3.
168
ONU. CEPAL .Mulheres afrodescendentes na América Latina e no Caribe: Dívidas de igualdade.
LC/TS.2018/33, p. 24. - A Comissão destaca que o cálculo da média da renda do trabalho considera as
populações indígenas e afrodescendentes, de acordo com as informações recolhidas nas pesquisas domiciliares
de cada país. Assim, considera-se a população indígena do Estado Plurinacional da Bolívia, Brasil, Chile,
Equador, México, Panamá, Peru, Paraguai e Uruguai. Por sua vez, a população afrodescendente é considerada
no Estado Plurinacional da Bolívia, Brasil, Equador, Peru e Uruguai.

48
correspondiam a 3,9%. A mesma discrepância percebe-se na proporção de pessoas de 25 anos
ou mais de idade com pelo menos o ensino médio completo na comparação entre as
populações, uma vez que negros correspondem a 40,3% e brancos a 55,8%169.
A proporção de jovens de 18 a 24 anos de idade de cor ou raça branca que frequentavam
ou já haviam concluído o ensino superior em 2018 (36,1%) era quase o dobro da observada
entre aqueles de cor ou raça preta ou parda (18,3%)170. Nesse sentido, o IGBE afirma que:
enquanto a Meta 12 do Plano Nacional de Educação – PNE já havia sido
atingida na população branca, na população preta ou parda, os 33% de
frequência líquida no ensino superior estabelecidos no Plano, até 2024,
permaneciam distantes171.

Os níveis de escolaridade são também impactados pela situação de pobreza dos


estudantes de modo que quando o critério de análise é o rendimento mensal domiciliar per
capita, os jovens pretos ou pardos no quinto da população com menores rendimentos (1º
quinto) encontravam-se na pior situação, com 42,6% fora da escola172. A necessidade de
trabalhar ou procurar emprego para garantir condições mínimas de subsistência é uma das
principais justificativas para o abandono escolar entre jovens de 18 a 24 anos, sendo eles
61,8% negros ou pardos173.
Nos últimos anos, apesar da expansão da escolaridade, principalmente das mulheres
negras, o esperado retorno em decorrência da maior qualificação e formalização por meio de
credenciais educacionais é menor tanto em termos de rendimento quanto na possibilidade de
inserção em melhores ocupações174. No caso de trabalhadores com ensino superior completo,
as distribuições de carreiras e quantificação dos rendimentos são determinadas a partir de um
processo de estratificação horizontal a partir dos viés de raça e de gênero. As disparidades de
rendimento de trabalho, independente do nível de instrução, demonstra que as pessoas
brancas ganham cerca de 45% a mais do que as de cor ou raça preta ou parda175.

V.1.3) Violência
As altas taxas de homicídios contra a população negra no Brasil, além de provocarem
sofrimento físico e psicológico, resultam também impactos sociais e econômicos, ao

169
IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil – 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 15 Nov. 2022, p. 7.
170
Ibidem.
171
Ibidem.
172
Ibidem, p. 8.
173
Ibidem, p. 8.
174
Ibidem, p 5-6.
175
Ibidem, p. 4.

49
implicarem na perda da produtividade econômica, sobretudo quando essas taxas atingem com
mais intensidade na população jovem176. A violência letal na adolescência e juventude produz
efeitos a longo prazo, uma vez que, em virtude da superexposição a contextos violadores, há
uma consequente maior propensão ao desenvolvimento de doenças como depressão, ao vício
de substâncias químicas, a problemas de aprendizado e ao suicídio, enfraquecendo a coesão
social e ensejando um impacto negativo sobre o desenvolvimento econômico177.
Segundo dados produzidos no Estudo “Desigualdades sociais por cor ou raça no
Brasil” produzido em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), “(...) a
taxa de homicídios foi 16,0 entre as pessoas brancas e 43,4 entre as pretas ou pardas a cada
100 mil habitantes em 2017. Em outras palavras, uma pessoa preta ou parda tinha 2,7 vezes
mais chances de ser vítima de homicídio intencional do que uma pessoa branca”178. Ademais,
o relatório constata que "a série histórica revela ainda que, enquanto a taxa manteve-se
estável na população branca entre 2012 e 2017, ela aumentou na população preta ou parda
nesse mesmo período, passando de 37,2 para 43,4 homicídios por 100 mil habitantes desse
grupo populacional"179.
Ainda segundo o documento, a taxa de homicídios da população preta ou parda
superou, em todos os grupos etários, a da população branca, cabendo salientar o alto grau de
letalidade ao qual jovens negros entre 15 e 29 anos estão sujeitos: “(...) nesse grupo, a taxa
chegou a 98,5 em 2017, contra 34,0 entre os jovens brancos. Considerando os jovens pretos
ou pardos do sexo masculino, a taxa, inclusive, chegou a atingir 185,0”180.

V.2) Dados sobre racismo no mercado de trabalho

V.2.1) Panorama geral


Ainda que o Estado brasileiro persista em minimizar o racismo, inclusive contestando
institucionalmente suas diversas consequências nocivas, o fenômeno discriminatório não só
faz parte da realidade brasileira, como também revela uma dimensão material expressiva, em
parte sistematizada e documentada por órgãos provedores de dados e informações no país.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o racismo é responsável por

176
Ibidem, p. 9-10.
177
Ibidem, p. 10.
178
Ibidem, p. 9.
179
Ibidem, p. 9.
180
Ibidem , p. 10

50
relegar os negros a uma situação de desvantagem e vulnerabilidade social em relação aos
brancos em todos os indicadores mobilizados pelo instituto, que incluem, dentre outros,
renda, empregabilidade, escolaridade, habitação e violência. Tal cenário de desvantagem e
vulnerabilidade seria, ainda segundo o IBGE, resultado de um processo de clivagens raciais
realizado pelo próprio Estado brasileiro durante seu processo de desenvolvimento181.
O mercado de trabalho brasileiro tem sua formação ligada à escravidão e às barreiras
raciais, estabelecidas para dificultarem a inserção dos negros, como diagnosticaram o IBGE
(2019)182 e o CEBRAP183. O cenário do mercado de trabalho no Brasil circunscreve espaços
de atuação para as pessoas negras, relegadas majoritariamente ao trabalho informal, com
baixa remuneração e alto grau de subserviência184. As mulheres negras, por exemplo, são
super-representadas em serviços domésticos, enquanto os homens negros em serviços de
construção civil185. Esta conjuntura histórica está associada à baixa escolaridade das pessoas
negras186.
Conforme já mencionado, desvela-se imprescindível a consideração dos dados
educacionais para a realização de uma análise substancial e comprometida sobre a
discriminação racial no mercado de trabalho, em virtude da relação entre a empregabilidade,
a qualidade dos cargos que um indivíduo, ou grupo social, têm acesso, e o seu nível de
escolaridade ou “qualificação”. Nesse sentido, o IBGE demonstra que existe um vão
educacional entre pessoas brancas e negras no Brasil. Ainda que o instituto tenha observado
uma melhora na escolaridade da população negra, que se mantém aquém da observada pela
população branca, especialmente em níveis superiores de ensino187, essa expansão da
participação de negros (e também de mulheres e indígenas) nas profissões de nível superior
não resultou num acesso igualitário a todas carreiras188.
Segundo o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), no biênio
2017-2018 a proporção de pessoas com ensino superior completo entre os chefes de família
pretos e pardos teve um crescimento acumulado, respectivamente, de 157,4% e 131,6% em

181
IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil – 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 15 Nov. 2022, p. 1.
182
Ibidem.
183
CEBRAP. Desigualdades raciais e de gênero no mercado de trabalho em meio à pandemia, 2021. Disponível
em:
https://cebrap.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Informativo-7-Desigualdades-raciais-e-de-gênero-no-mercado
-de-trabalho-em-meio-à-pandemia.pdf . Acesso em: 28 Nov. 2022. p. 3.
184
Ibidem, p. 7.
185
Ibiden, p. 5-7.
186
Ibidem, p. 4.
187
IBGE, 2019. Op. Cit., p. 7.
188
CEBRAP, 2021. Op. Cit. p. 6-7.

51
relação à proporção em 1995-1996. Na população branca, esse número foi de 79,8%. Os
brancos deixaram de ser uma maioria absoluta no ensino superior, dado o aumento do
ingresso de pessoas pretas e pardas nas universidades189.
Ainda que tenha ocorrido uma expansão dos níveis de escolaridade, ou qualificação,
da população negra, isso não resultou numa melhora proporcional de cargos ocupados pelos
negros, e nem em suas rendas. Negros continuam sendo a minoria em cargos mais altos na
economia brasileira, compondo a maioria dos cargos que requerem menos qualificação, dos
empregos informais e dos desempregados no Brasil.190
Ao compararmos o número de negros e brancos lotados em cargos de direção, nos
deparamos com um cenário onde os negros ocupam apenas 29% de tais cargos. Tal
discrepância torna-se ainda mais preocupante quando notamos que no estado de São Paulo, o
estado com as maiores economia e população do Brasil (no qual os negros correspondem a
34,6%191), negros ocupam meros 15,6% dos cargos de direção192.
Outrossim, enquanto brancos ocupam a maioria esmagadora dos cargos de direção, no
que se refere ao trabalho doméstico, o cenário é inverso. Negros, em sua enorme maioria
mulheres (mais de 90%), correspondem a 60% do número total de pessoas que atuam como
trabalhadores domésticos193, ocupação notoriamente dominada pela informalidade,
fragilidade de direitos trabalhistas e condições de trabalho precárias, cuja remuneração média
é de apenas um salário mínimo (R$1.212,00 em 2022194). Segundo dados obtidos no Censo
demográfico de 2010, e tratados pela plataforma SmartLab195, dos 5,6 milhões de
trabalhadores domésticos (dos quais 3.150.989 são mulheres negras), apenas 40% contribuem
para a previdência. O percentual destes profissionais com carteira de trabalho assinada é
ainda menor, sendo equivalente a 35,4% do total196.

189
Ibidem, p. 5.
190
IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil – 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 15 Nov. 2022, p. 1-3.
191
Fundação SEADE - Portal de Estatísticas do Estado de São Paulo. Referente ao Censo de 2010. Disponível
em:
http://produtos.seade.gov.br/produtos/retratosdesp/view/index.php?indId=5&temaId=1&locId=1000#:~:text=No
%20Censo%20de%202010%2C%2063,brasileira%20reside%20em%20S%C3%A3o%20Paulo.. Acesso em:
18/11/2022.
192
IBGE - Censo Demográfico - Brasil, 2010 (após tratamento e análise pela SmartLab). Dados extraídos da
plataforma SmartLab, já referenciada acima. Seção: Segregação ocupacional de Negros em cargos de direção.
Disponível em: https://smartlabbr.org/diversidade/localidade/0?dimensao=raca. Acesso em: 18/11/2022.
193
IBGE - Censo Demográfico - Brasil, 2010 (após tratamento e análise pela SmartLab). Dados extraídos da
plataforma SmartLab, já referenciada acima. Seção: Trabalho Doméstico. Acesso no link supramencionado.
194
Fonte: Salário mínimo de R$ 1.212 é promulgado. Agência Senado, 02/06/2022. Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/06/02/salario-minimo-de-r-1-212-e-promulgado. Acesso
em: 18/11/2022.
195
Ibidem.
196
Ibidem.

52
Adentrando a problemática racial nos cargos associados à administração pública em
esfera municipal – cargos diretamente associados ao governo e ao funcionamento da máquina
estatal – pode-se observar a manifesta ausência de legislações específicas de combate a
discriminação racial. Dos 5.570 municípios brasileiros, apenas 1,6%, ou seja, meros 87
municípios contam com uma legislação específica sobre combate à discriminação racial no
âmbito da administração pública197.
Ademais, no que se refere ao acesso a tais cargos administrativos e a demais cargos
municipais cuja contratação se dá mediante concurso, nota-se mais uma grave ausência de
ações afirmativas que visem reduzir a desigualdade racial e assegurar a participação da
população negra. De todos os 5.570 municípios brasileiros, somente 282, ou seja, 5,1%,
possuem uma lei que garanta vagas para população negra ou afrodescendente em concursos
públicos no município198. No tocante aos concursos públicos estaduais e distritais, o mesmo
padrão se repete. Apenas 7 das 27 Unidades Federativas que compõem o estado brasileiro,
isto é, 25,9%, contam com alguma legislação que garanta vagas para população negra ou
afrodescendente em concursos públicos199.
Os dados revelam a permanência da não integração dos negros na economia, apesar
de serem eles, também, a maioria da mão de obra no país. Em comparação, a população
autodeclarada branca compõe apenas 46,1 milhões de trabalhadores brasileiros, uma parcela
25,2% menor do que a composta pelos negros.200
Ainda sobre a taxa de subutilização dos negros, é preciso destacar que ela se mantém
independentemente do nível de instrução201. Sendo assim, torna-se evidente que a
escolaridade da população negra não é suficiente para justificar as dificuldades que os negros
enfrentam no mercado de trabalho, visto que o racismo é um elemento relevante para a
explicação e a constituição desse cenário202.
Uma pesquisa realizada pela Catho, uma das principais plataformas de contratação no
Brasil, revela que 58% dos negros entrevistados disseram que existe discriminação no

197
IBGE - Pesquisa de Informações Municipais. Brasil, em 2019, na época da pesquisa (após tratamento e
análise pela SmartLab). Dados extraídos da plataforma SmartLab, já referenciada acima. Seção: Lei Específica
sobre Combate à discriminação racial no âmbito da administração pública.
Disponível em: https://smartlabbr.org/diversidade/localidade/0?dimensao=raca. Acesso em: 18/11/2022
198
Ibidem.
199
Ibidem.
200
Ibidem.
201
IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil – 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 15 Nov. 2022, p. 2.
202
CEBRAP. Desigualdades raciais e de gênero no mercado de trabalho em meio à pandemia, 2021. Disponível
em:
https://cebrap.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Informativo-7-Desigualdades-raciais-e-de-gênero-no-mercado
-de-trabalho-em-meio-à-pandemia.pdf . Acesso em: 28 Nov. 2022. p. 3.

53
mercado de trabalho, e que brancos e negros não conseguem acessar as mesmas chances ou
oportunidades203. Além disso, 48% dos negros também relataram já ter sofrido racismo no
ambiente de trabalho204. Em São Paulo, maior metrópole do Brasil e da América Latina, 67%
dos profissionais negros dizem ter sentido que perderam uma vaga de trabalho devido a sua
raça – essa porcentagem equivale a uma proporção de sete em cada dez trabalhadores negros
em atividade205. Uma pesquisa realizada pelo Grupo Croma, especializado em inovação e
análise, também revela que 56% das empresas ainda não contratam com base em
discriminações raciais. Isso foi percebido pelos próprios consumidores206.
Além de enfrentarem dificuldades de contratação e discriminação no ambiente de
trabalho, negros também recebem remuneração menor do que pessoas brancas. Negros
recebem, em média, 40,2% a menos que brancos por hora trabalhada207. Essa diferença é a
mesma há 10 anos208. Isso implica que negros precisam trabalhar mais horas para conseguir
receber o mesmo salário que os brancos. Se tomarmos o valor atual do salário mínimo
brasileiro como base (R$1.212,00), um trabalhador branco precisaria trabalhar 60 horas ao
mês, enquanto um negro precisaria trabalhar 105,5 horas no mesmo intervalo de tempo209.
Negros também recebem, em média, 17% a menos do que brancos de mesma origem
social210.
Considerando a remuneração média por raça/cor em escala nacional, utilizando os
cinco cortes definidos pelo IBGE, existe uma disparidade explícita entre pessoas de raça/cor
preta e parda e pessoas de raça/cor branca e amarela. Enquanto pessoas pretas e pardas
203
FILLIPE, Marina. Mulheres e Negros dizem não ter oportunidades iguais aos colegas. Revista Exame,
01/02/2022. Disponível em:
<https://exame.com/esg/mulheres-e-negros-dizem-nao-ter-oportunidades-iguais-aos-colegas/>. Acesso em: 18
Nov. 2022.
204
Ibidem.
205
MELO, Luísa. “60% dos negros dizem ter sofrido racismo no trabalho, aponta pesquisa”.G1, 25/07/2017.
Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/60-dos-negros-dizem-ter-sofrido-racismo-no-trab
alho-aponta-pesquisa.ghtml>. Acesso em: 18/11/2022.
206
GUIMARÃES, Juca. Pesquisa mostra que 56% das empresas não contratam negros por racismo. Alma Preta
Jornalismo, 28/05/2020.Disponível
em:<https://almapreta.com/sessao/cotidiano/pesquisa-mostra-que-56-das-empresas-nao-contratam-negros-por-ra
cismo>
Acesso em: 18/11/2022
207
MATOS, Thaís. Trabalhadores pretos ganham 40,2% menos do que brancos por hora trabalhada. G1,
15/11/2022. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/11/15/trabalhadores-pretos-ganham-402percent-menos-do-que-br
ancos-por-hora-trabalhada.ghtml>. Acesso em: 18/11/2022.
208
Ibidem.
209
Ibidem.
210
“Negros recebem 17% menos do que brancos de mesma origem social, diz estudo”. UOL, 20/11/2020.
Disponível em:
<https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/11/20/estudo-negros-salario-classe-social-brancos-pucrs.ht
m>. Acesso em:18/11/2022.

54
recebem, em média, R$2.226,6 e R$2.195,4 respectivamente, a remuneração média de
pessoas brancas corresponde a R$3.218, valor expressivamente superior. A diferença é ainda
maior face à média remuneratória de indivíduos de raça/cor amarela, cujo valor é de
R$4.033,9. Vale notar que tais dados se referem tanto à remuneração proveniente de vínculos
empregatícios com carteira assinada (CLT) quanto de vínculos de caráter administrativo ou
estatutário.211
Tal cenário de severa discrepância no tocante à remuneração se agrava ao
observarmos a interseccionalidade que abrange o grupo populacional de mulheres negras. O
maior grupo demográfico do país (que compõe cerca de 25,37% da população brasileira,
segundo o Censo Demográfico de 2010212) tem a menor remuneração média entre os demais,
mesmo no setor formal da economia. Se tomarmos como referência a remuneração média
recebida por homens brancos em tal setor, que equivale a R$3.579,50, podemos notar que
mulheres negras no mesmo setor, recebem, em média, apenas 54,5% desse valor, o montante
de R$1.950,00213.

V.2.2) Impactos da pandemia e recrudescimento dos impactos do racismo no mercado


de trabalho
No contexto pandêmico, as desigualdades sociais foram recrudescidas no Brasil,
aprofundando as disparidades consequentes do racismo estrutural. A má gestão e negligência
pública ao enfrentamento da pandemia, com notória omissão do governo federal no combate
à crise sanitária, ensejaram o aprofundamento de contextos de desigualdade preexistentes e
um processo substancial de erosão democrática214. Nesse cenário, o desmantelamento de
serviços públicos ocasionou a progressão de violações de direitos humanos no âmbito da

211
ME - RAIS - Brasil, em 2019 (após tratamento e análise pela SmartLab). Dados extraídos da plataforma
SmartLab - Observatório da Diversidade e da Igualdade de Oportunidades no Trabalho, plataforma conjunta da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Ministério Público do Trabalho (MPT) - Seção de Raça e
Interseccionalidade. Seção: Remuneração Média de Trabalhadores por Raça/Cor. Disponível em:
https://smartlabbr.org/diversidade/localidade/0?dimensao=raca. Acesso em: 18/11/2022.
212
Cálculos realizados utilizando os dados disponíveis do Censo IBGE de 2010. Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/institucional/responsabilidade-social/oel/panorama-nacional/populacao-brasileira.
Acesso em: 18/11/2022.
213
Fonte: ME - RAIS - Brasil, em 2019 (após tratamento e análise pela SmartLab). Dados extraídos da
plataforma SmartLab, já referenciada acima. Seção: Diferenças de Remuneração pela Perspectiva Interseccional
(Sexo e Raça/Cor) no setor formal. Acesso no link supramencionado.
214
Ver mais em: OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS - CRISE E COVID-19. Desconstituição dos
serviços públicos no Brasil. FREITAS, Felipe; PORTELA, Rodrigo; ANDRADE, Marcelo (Orgs.). Disponível
em:
https://wp.observadhecovid.org.br/wp-content/uploads/2022/10/Desconstituicao-dos-Servicos-Publicos-no-Brasi
l.pdf . Acesso em: 15 Nov. 2022.

55
saúde, educação, assistência social, (in)segurança alimentar, trabalho e renda, as quais
afetaram sobremaneira a população brasileira negra e pobre, especialmente as mulheres.
O Observatório de Direitos Humanos - Crise e Covid-19 aponta que:

Os mais afetados pela crise foram mulheres e pessoas negras. A redução do


número de pessoas negras ocupadas entre 2019 e 2020 foi da ordem de
13,4%, contra 7,3% das brancas. Além disso, embora mais da metade dos
ocupados antes da pandemia fossem negros (54%), esses representam mais
de 2/3 (68,2%) das pessoas que perderam emprego no período. Essas
diferenças se devem, principalmente, à inserção laboral mais frágil no
mercado, destacando-se aí a informalidade, que tem como causas principais
os menores níveis de qualificação, mas, também, os recorrentes e
conhecidos mecanismos de discriminação. Brancos e brancas, por seu turno,
têm uma inserção mais estável e com maiores taxas de formalização, ao
tempo em que ocupam posições superiores na estrutura ocupacional215.

O desemprego das mulheres negras atingiu a alarmante taxa de 19,8%216, agravando a


pobreza e exclusão social deste grupo. A isso soma-se a sobrecarga das mulheres, com
destaque às mulheres negras, no que se refere ao sustento e manutenção da vida e de núcleos
familiares da pandemia, intensificando a sobreposição de trabalhos remunerados e
não-remunerados, produtivos e reprodutivos, frutos das expectativas de gênero217. Não
coincidentemente, a maior taxa de contágio e óbito por Covid-19 e seus efeitos reflexos foi
localizada entre as mulheres negras218.
Cerca de dois meses após a adoção de medidas de distanciamento social,
implementadas ainda em março de 2020, 1 milhão de postos de trabalho foram encerrados no
mercado formal de trabalho. No setor informal, esse número chegou a 2 milhões219.
Autônomos e informais representavam 2 a cada 3 postos de trabalho desfeitos no início da

215
PRATES, Ian. Impactos econômicos da pandemia sobre renda e trabalho no Brasil. In OBSERVATÓRIO DE
DIREITOS HUMANOS - CRISE E COVID - 19, Desigualdades, Direitos e Pandemia. FREITAS, Felipe da
Silva; STANCHI, Malu; PIMENTEL, Amanda (Orgs.). Disponível em:
https://wp.observadhecovid.org.br/wp-content/uploads/2021/12/Livro-Desigualdades-Direitos-e-Pandemia_301
2_2021.pdf . Acesso em: 15 Nov. 2022, p. 15-16.
216
OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS - CRISE E COVID-19. Elas que Lutam: Mulheres e
sustentação da vida na pandemia. CUENTRO, Ana Cecília; SALOMÃO, Isadora (Orgs.). Disponível em:
https://wp.observadhecovid.org.br/wp-content/uploads/2021/12/EstudoElasqueLutam_0112-1.pdf . Acesso em:
15 Nov. 2022, p. 14
217
Ver mais em: OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS - CRISE E COVID-19. Elas que Lutam:
Mulheres e sustentação da vida na pandemia. CUENTRO, Ana Cecília; SALOMÃO, Isadora (Orgs.).
Disponível em:
https://wp.observadhecovid.org.br/wp-content/uploads/2021/12/EstudoElasqueLutam_0112-1.pdf . Acesso em:
15 Nov. 2022.
218
IBGE. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Brasília: Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), 2019.
219
CEBRAP. Desigualdades raciais e de gênero no mercado de trabalho em meio à pandemia, 2021. Disponível
em:
https://cebrap.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Informativo-7-Desigualdades-raciais-e-de-gênero-no-mercado
-de-trabalho-em-meio-à-pandemia.pdf . Acesso em: 28 Nov. 2022. p. 7-10.

56
pandemia220. Esse dado, por si só, já aponta para um impacto maior da pandemia entre os
negros, pois são eles, como dito anteriormente, a maioria entre os trabalhadores informais.
Sobre isso, também vale a pena destacar que os trabalhadores informais, cuja maioria
é negra, não têm acesso às leis trabalhistas em vigor no Brasil, o que os coloca em uma
posição mais vulnerável dentro do mercado de trabalho. Ademais, algumas das condições
especiais criadas pelo governo para apoiar empregadores e empregados durante a pandemia –
como a possibilidade de firmar acordos de férias coletivas, como aqueles abertos pela
MP-927, ou de ser contemplados com a manutenção do emprego com redução de jornada e
salários, possibilidade aberta pelo Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da
Renda – só alcançaram trabalhadores que ocupavam postos formais de trabalho. Sendo assim,
durante a pandemia, as especificidades, ou melhor, as vulnerabilidades, dos postos de
trabalho informal dificultaram o acesso desses trabalhadores às políticas de governo criadas
para assegurar trabalhadores e empresários221.
Sublinha-se que, com o encerramento das atividades consideradas não essenciais com
intuito de conter o avanço do vírus durante a pandemia, ocorreu uma expansão de
modalidades de teletrabalho, em nome da continuidade das atividades e da segurança dos
funcionários. Mas o teletrabalho não pode ser praticado em todos os postos. Muitos dos
cargos dos setores mais ocupados pela população negra (informais e de serviço) não
permitem esse tipo de jornada. Logo, negros também foram a minoria entre os trabalhadores
em regime de trabalho online, considerado o mais seguro para saúde física e financeira dos
trabalhadores no contexto pandêmico222.
Mas o impacto diferencial dos efeitos econômicos da pandemia sobre os negros não é
observado apenas na dicotomia informal/formal. Entre aqueles que trabalham no mercado
privado sem carteira de trabalho assinada, foram 37,4% a menos de trabalhadores negros e
26,6% a menos de trabalhadores brancos em 2020 em comparação ao ano de 2019. Entre os
trabalhadores domésticos sem carteira, foram 38,8% de negros e 29,0% de brancos. Entre os
empregadores, 19,1% contra 6,3%. Esse último dado é importante, porque mostra que,
mesmo entre os donos de estabelecimento, o nível de estabilidade entre os negros é menor.
Também vale ressaltar que, em 2019, a maioria dos empregadores negros (71,5% deles)
tinham estabelecimento com até 5 funcionários. Entre os brancos, esse percentual é de 54,3%.

220
Ibidem, p.13.
221
Ibidem, p. 12-13.
222
Ibidem, p.18-20.

57
Entre os donos de estabelecimentos com mais de 50 funcionários, brancos representavam
20,0% e negros 12,3%223.
O aumento no número de desempregados em decorrência da pandemia do covid-19
não foi propriamente registrado nas estatísticas nacionais sobre desemprego, uma vez que,
por não poderem sair para procurar emprego – devido às medidas de isolamento – muitos
foram registrados como profissionais inativos, e não como desempregados224. Quando as
medidas de contenção do vírus foram afrouxadas, e a população pode, mesmo que com
limitações, sair para buscar emprego, as estatísticas passaram a registrar um aumento do
desemprego.
A taxa de desocupação que, em maio de 2020, era de 9.6% da população brasileira,
passou a 14,2% em novembro. O número de pessoas desocupadas, entre os brancos, foi de 4
milhões, em maio, para 5,1 milhões, em novembro, o que equivaleria a um crescimento de
27,6%. Entre os negros, o número de desocupados saltou de 6 milhões para 8,8 milhões no
mesmo período, registrando um crescimento de 46,2%225.
Entre as mulheres negras, a queda na procura por emprego não está relacionada
somente às restrições ligadas às medidas de contenção do vírus da Covid-19. Existem outros
fatores relacionados a esses dados. Mulheres negras são super-representadas em setores muito
afetados pela pandemia, por não serem considerados serviços essenciais. O principal motivo
causador de efeitos negativos gerados pela covid entre as mulheres no mercado, independente
da raça, foi a segregação ocupacional e setorial, enquanto entre os negros a exclusão se deu
pela informalidade. As mulheres negras se encontram na intersecção desses dois grupos,
atingidas por ambos os desafios no mercado de trabalho. Muitas se viram sobrecarregadas
com tarefas domésticas, incluindo o cuidado de parentes e familiares, atividades que alegam
ter sofrido muita pressão para desempenhar. Quanto a isso, elas declaram possuir menos
apoio externo do que mulheres e homens brancos, apoio esse que, normalmente, é buscado
por elas entre os familiares. Já as mulheres brancas, conseguem ter acesso a apoio
institucionalizado, como creches e casas de idosos, por exemplo226.
Mesmo em face da situação calamitosa, a única medida adotada pelo governo para
mitigar a insegurança econômica com recorte de gênero foi o auxílio emergencial227.

223
Ibidem, p.13.
224
Ibidem.
225
Ibidem, p. 10-11.
226
Ibidem, p. 20-21
227
PRATES, Op. Cit., p. 17.

58
Contudo, a concessão do benefício foi insuficiente à manutenção dos núcleos familiares e
atravessada por inúmeros problemas de ordem estrutural, técnica e de execução:

Com o fim do auxílio emergencial de R$ 600, as mulheres negras


conformaram o segmento mais afetado pelo crescimento da miséria e da
pobreza. Apenas a partir de abril de 2021 se iniciou uma nova rodada de
pagamentos do auxílio, com parcelas de R$ 150 a R$ 375, dependendo do
perfil da pessoa beneficiada. As famílias, em geral, recebem R$ 250; a
família monoparental, chefiada por uma mulher, recebe R$ 375; e pessoas
que moram sozinhas recebem R$ 150. A redução do benefício e as
alterações relacionadas aos processos de cadastro e quantidade de pessoas
atendidas trouxe ainda mais incerteza e vulnerabilidade às mulheres mais
pobres e negras do nosso país, aumentando a fome, a miséria e a falta de
acesso aos bens essenciais da cesta básica do povo brasileiro.228

Note-se, também, que o aprofundamento das desigualdades no mercado de trabalho


tende a ser um elemento intergeracional, a ser enfrentado ao longo dos próximos decênios.
Isso porque o aumento da exclusão de mulheres negras no mercado de trabalho, impactando
consequentemente nos seus rendimentos, apresenta graves projeções se atreladas à evasão
escolar de crianças negras no contexto da pandemia do Covid-19. As limitações do ensino
remoto deixaram quase o triplo de crianças negras e indígenas (4,3 milhões) sem atividades
escolares, quando comparadas às brancas (1,5 milhões)229, aumentando o índice de abandono
e evasão escolar230. Em síntese, a evasão escolar, que atingiu de modo acentuado as crianças
negras, é potencialmente ensejadora de não inserção futura nas universidades e no mercado
de trabalho, delineando um quadro prospectivo de recrudescimento das disparidades sociais e
manutenção da maior parte da população negra em subempregos ou em situação de
informalidade laboral.
Com a expansão da cobertura vacinal, e o declínio de infecções e mortes causadas
pela Covid-19, e o gradual retorno gradual a uma realidade pré-pandêmica, notou-se, além do
aumento do desemprego, o crescimento da extrema pobreza e da fome no país231, que tem
afetado mais fortemente as populações negras232. O avanço da fome e da extrema pobreza no

228
OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS - CRISE E COVID-19. Elas que Lutam: Mulheres e
sustentação da vida na pandemia, Op. Cit., p. 15.
229
PRATES, Op. Cit., p. 17.
230
OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS - CRISE E COVID-19. Educação e Pandemia. FREITAS,
Felipe da Silva; PIMENTEL, Amanda; RODRIGUES, Thais. Disponível em:
https://wp.observadhecovid.org.br/wp-content/uploads/2022/05/Educac%CC%A7a%CC%83o-e-Pandemia_com
pressed.pdf . Acesso em: 15 Nov. 2022.
231
CAVALLINI, Marta. “ Proporção de pretos e pardos entre os pobres chega ao dobro em relação aos brancos,
mostra o IBGE”. G1, 11/11/2022.Disponível
em:<https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/11/11/proporcao-de-pobres-pretos-e-pardos-chega-ao-dobro-e
m-relacao-aos-brancos-mostra-o-ibge.ghtml>. Acesso em 18 Nov. 2022.
232
Ibid.

59
país também se configura como principal motivo para jovens negros terem abandonado os
estudos. Jovens negros são 71,7% daqueles que abandonam a escola no Brasil. Segundo eles,
a necessidade de trabalhar para ajudar a sustentar a família é o principal motivo de sua evasão
escolar233.
Como dito anteriormente, a escolaridade da população negra é um dos principais
fatores relacionada às dificuldades enfrentadas pelos negros no mercado de trabalho. A
evasão escolar dos estudantes negros pode levar a permanência da conjuntura inóspita
enfrentada por eles no mercado. Sendo assim, o panorama da situação dos negros no mercado
brasileiro após a pandemia de covid-19 aparenta apontar para a reversão dos avanços
registrados, nas últimas décadas, no cenário enfrentado pelas populações negras na educação
e no mercado de trabalho. Lembrando que, como dito anteriormente, a escolaridade da
população negra não é o único fator que explica a situação que ocupam no mercado.
Pelo que tudo indica, mesmo que o Estado brasileiro consiga reverter esse quadro,
como vinha sendo revertido nas primeiras décadas deste século, a população negra, ainda
assim, continuou a ser discriminada no mercado de trabalho pelo simples fato de ser negra.
Cabe, assim, ao Estado brasileiro adotar medidas para garantir que a maioria de sua
população tenha garantido plenamente seu direito ao trabalho.

V.3) Dados sobre a ausência de políticas públicas de combate ao racismo234

A prática do racismo constitui crime inafiançável, como dispõe o inciso XLII do Art.
5º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. A Lei nº. 7.716, conhecida
popularmente como Lei Caó235, foi promulgada em 5 de janeiro de 1989 e definiu os crimes
resultantes do preconceito de raça ou de cor. Apesar da existência deste e de outros
instrumentos normativos que conferem tutela e contornos jurídicos à questão, é patente a

233
PALHARES, Isabela. Negros são 71,7% dos jovens que abandonam a escola no Brasil. Folha de São Paulo,
15/07/2020. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/06/negros-sao-717-dos-jovens-que-abandonam-a-escola-no-bra
sil.shtml> Acesso em: 18 Nov. 2022.
234
Os dados constantes desta seção foram obtidos, majoritariamente, no Observatório da Diversidade e da
Igualdade de Oportunidades no Trabalho – Seção de Raça e Interseccionalidade, resultado da parceria entre a
Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Ministério Púbico do Trabalho (MPT) que originou a
Plataforma SmartLab. A iniciativa SmartLab é responsável pelo tratamento e análise dos dados e, por se tratar
de uma plataforma, coleta informações de diversas fontes, principalmente do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados. Acesso em: 22 Nov. 2022.
235
A Lei nº. 7.716/1989 ficou conhecida como Lei Caó em razão do apelido do seu autor, Carlos Alberto
Oliveira dos Santos. Caó foi um nome de destaque na luta contra o racismo no Brasil, tendo sido eleito
Deputado Constituinte pelo Estado do Rio de Janeiro.

60
ausência de políticas públicas de combate ao racismo em âmbito estadual e municipal em
todo o Brasil.
O Estado brasileiro é dividido em 27 (vinte e sete) Unidades Federativas (UF), sendo
26 (vinte e seis) Estados236 e o Distrito Federal. O Estado de São Paulo, local onde ocorreram
os fatos do presente caso, é o mais populoso da federação237. O Brasil possui 5.570 (cinco mil
quinhentos e setenta)238 municípios distribuídos por seus Estados.

V.3.1) Proteção social e garantia de direitos: ações estaduais


A segurança pública, em nível estadual, fica a cargo das Polícias Militares239, estando
essas subordinadas aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal240. Das 27 Unidades
Federativas, somente 5 (18,5% das UF no Brasil) possuem capacitação da Polícia Militar para
o enfrentamento ao racismo241. Os Estados que possuem capacitação da Polícia Militar para
enfrentamento ao racismo são: Alagoas; Espírito Santo; Goiás; Paraná; e Rio Grande do Sul.
O Estado de São Paulo não figura entre os Estados que promovem a capacitação.
Em hipóteses nas quais os dados são relacionados a ações de prevenção da Polícia
Militar quanto ao enfrentamento ao preconceito e a violência racial, 6 (22,2%) das 27
Unidades Federativas possuem tais ações242. Os Estados que promovem ações de prevenção
da Polícia Militar quanto ao enfrentamento ao preconceito e à violência racial são: Bahia;
Mato Grosso do Sul; Paraná; Rio de Janeiro; e Rio Grande do Sul. O Estado de São Paulo,
mais uma vez, não figura entre os promotores das ações.

236
Unidades Federativas em ordem alfabética: Acre (AC); Alagoas (AL); Amapá (AP); Amazonas (AM);
Bahia (BA); Ceará (CE); Distrito Federal (DF); Espírito Santo (ES); Goiás (GO); Maranhão (MA); Mato
Grosso (MT); Mato Grosso do Sul (MS); Minas Gerais (MG); Pará (PA); Paraíba (PB); Paraná (PR);
Pernambuco (PE); Piauí (PI); Rio de Janeiro (RJ); Rio Grande do Norte (RN); Rio Grande do Sul (RS);
Rondônia (RO); Roraima (RR); Santa Catarina (SC); São Paulo (SP); Sergipe (SE); e Tocantins (TO).
237
O Estado de São Paulo possui população estimada pelo IBGE de 46.649.132 (quarenta e seis milhões
seiscentos e quarenta e nove mil e cento e trinta e duas) pessoas. Disponível em:
https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/sp/.html? acesso em 22.Nov.2022.
238
Dado produzido pelo IBGE, disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados. Acesso em 22
Nov.2022.
239
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. “Art. 144. A segurança pública, dever do Estado,
direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das
pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.
§ 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de
bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.”
240
Ibidem. “§ 6º As polícias militares e os corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do
Exército subordinam-se, juntamente com as polícias civis e as polícias penais estaduais e distrital, aos
Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.”
241
SmartLab - IBGE. Pesquisa de Informações Básicas Estaduais – ESTADIC. Brasil. 2014. Disponível em:
https://smartlabbr.org/diversidade/localidade/0?dimensao=raca. Acesso em 22.Nov.2022.
242
Ibidem.

61
A presença de Conselhos de Promoção de Igualdade Racial se dá de maneira mais
uniforme, estando presente em 20243 (74,1%) das 27 Unidades Federativas. O Estado de São
Paulo figura entre aqueles que possuem tais conselhos. Os Estados que não possuíam os
Conselhos de Promoção de Igualdade Racial eram: Amazonas; Ceará; Pernambuco;
Rondônia; Roraima; Sergipe; e Tocantins244.
Observa-se que quanto aos Fundos de Promoção da Igualdade Racial, os dados
apontam que só 4 (14,8%) das 27 Unidades Federativas brasileira possuíam tais fundo245:
Amapá, Goiás, Paraná e Rio de Janeiro. É interessante destacar que o Estado de São Paulo
não figura, mais uma vez, nessa lista e a plataforma SmartLab faz a ressalva de que a
existência dessas ações não implica na sua efetividade.
Quando os dados se referem a legislações que garantem vagas para a população negra
em concursos públicos, somente 7 (25,9%) das 27 Unidades Federativas possuíam essas
garantias: Bahia; Espírito Santo; Mato Grosso; Mato Grosso do Sul; Paraná; Pará; e Rio de
Janeiro246. Por sua vez, somente a Bahia e o Distrito Federal possuíam legislação instituindo o
Estatuto de Igualdade Racial247. Ou seja, 2 (7,4%) de 27 Unidades Federativas brasileiras
contavam com essa política pública instituída.
A situação não é melhor quando os dados se referem a presença de legislações que
instituem Planos de Promoção da Igualdade Racial e/ou de Enfrentamento ao Racismo. Só 3
(11,1%) das 27 Unidade Federativas brasileiras haviam instituídos estes planos248. Bahia, Rio
de Janeiro e Rio Grande do Sul contavam com essas políticas públicas e São Paulo, mais uma
vez, não figurava nessa vanguarda.

V.3.2) Proteção social e garantia de direitos: ações municipais


A atuação dos municípios na promoção de políticas públicas de enfrentamento ao
racismo revela-se, igualmente, preocupante. Do total de 5.570 municípios, só 34 (0,6%)
possuíam leis municipais que instituíram Estatuto de Igualdade Racial249, e desses só 6 (0,9%

243
As Unidades Federativas que possuíam Conselho de promoção de igualdade racial em 2014 eram: Acre;
Alagoas; Amapá; Bahia; Distrito Federal; Espírito Santo; Goiás; Maranhão; Mato Grosso; Mato Grosso do
Sul; Minas Gerais; Paraná; Paraíba; Pará; Piauí; Rio de Janeiro; Rio Grande do Norte; Rio Grande do Sul;
Santa Catarina; e São Paulo.
244
SmartLab - IBGE. Pesquisa de Informações Básicas Estaduais – ESTADIC. Brasil. 2014. Disponível em:
https://smartlabbr.org/diversidade/localidade/0?dimensao=raca. Acesso em 22.Nov.2022.
245
Ibidem.
246
Ibidem.
247
Ibidem.
248
Ibidem.
249
Ibidem.

62
do total de municípios existentes nesse Estado)250 estavam localizados no Estado de São
Paulo. A presença de legislação que garanta vagas para a população negra ou afrodescendente
em concursos municipais ocorria em 282 (5,1%) municípios brasileiros251. O Estado de São
Paulo possui 29 (4,5%) dos 645 municípios existentes em seu território dispondo de leis
municipais que garantem tais vagas.
Os Fundos de Promoção da Igualdade Racial estão presentes em 49 (0,9%) dos
municípios brasileiros252. O Estado de São Paulo conta com 8 (1,20%) municípios que
instituíram Fundos nesse sentido. Do total de 5.570 municípios existentes no Brasil, só 365
(6,6%) haviam criado Conselhos Municipais de Igualdade Racial. Desses 365 municípios, 93
(14,40%) estavam localizados no Estado de São Paulo253.
As políticas ou programas de promoção de igualdade racial e/ou enfrentamento ao
racismo são os mecanismos observados pelo presente levantamento de maior distribuição
entre os municípios pátrios, estando presente em 1.367 (24,5%) municípios. No Estado de
São Paulo, 91 (14,10%) municípios dispõem dessas políticas ou programas254. O segundo
melhor número está relacionado à existência de programas e ações para a população negra.
945 (17%) dos 5.570 municípios brasileiros contam com a existências desses programas.
Desses 945, 89 (13,80%) estão localizados no Estado de São Paulo255.
A existência de lei específica municipal sobre programas ou políticas de promoção da
igualdade racial e/ou enfrentamento ao racismo ocorre em 212 (3,8%) municípios brasileiros.
O Estado de São Paulo conta com 37 (5,70%) municípios contando com esses mecanismos
em seus ordenamentos256. Quando observamos a existência de lei específica municipal sobre
combate à discriminação racial no âmbito da administração pública, somente 87 (1,6%) dos
municípios brasileiros contam com estas normas. Desses 87, 15 (2,30%) estão localizados no
Estado de São Paulo257.

250
O percentual se refere ao total de municípios existentes na Unidade Federativa. O Estado de São Paulo
possui 645 municípios. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/documentacao/municipios-paulistas/. Acesso
em: 22 Nov.2022.
251
SmartLab - IBGE. Pesquisa de Informações Básicas Estaduais – ESTADIC. Brasil. 2014. Disponível em:
https://smartlabbr.org/diversidade/localidade/0?dimensao=raca. Acesso em 22.Nov.2022.
252
SmartLab - IBGE. Pesquisa de Informações Básicas Municipais – MUNIC. Brasil. 2019. Disponível em:
https://smartlabbr.org/diversidade/localidade/0?dimensao=raca. Acesso em 22.Nov.2022.
253
Ibidem.
254
Ibidem.
255
Ibidem.
256
Ibidem.
257
Ibidem.

63
Por sua vez, a existência de programas ou políticas de reconhecimento do patrimônio
afro-brasileiro se dá em 195 (3,5% do total de 5.570) municípios brasileiros, 20 desses
(3,10% do total de 645) municípios são paulistas.

V.3.3) Ineficiência e desmonte institucional de mecanismos de combate ao racismo


O cenário revela que, no Brasil, ainda são insuficientes os mecanismos de promoção
da igualdade racial. De acordo com o relatório da Comissão Econômica para a América
Latina e o Caribe - CEPAL, ONU, de 2020, intitulado Afrodescendientes y la matriz de la
desigualdad social en América Latina: Retos para la inclusión258, registram-se em âmbito
nacional os seguintes mecanismos de promoção da igualdade racial:
i) Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPIR -
Lei n. 10.678/1995) - Integra o Ministério da Justiça
ii) Fórum Intergovernamental de Promoção da Igualdade Racial (FIPIR - 2004)
iii) Secretaria Nacional de Promoção de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(SEPPIR - Lei n. 13.844/ 2019) - Integra o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos
iv) Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR) - órgão consultivo da
SEPPIR.
v) Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR - Instituído em 2010,
mediante o Estatuto da Igualdade Racial - Lei n. 12.288/2010)
vi) Programa Brasil Quilombola - 2004
vii) Conferências Nacionais de Promoção da Igualdade Racial - 2005 e 2018

Também foi registrada a existência de programas considerados como de inclusão


laboral para jovens de família de baixa renda, a saber PRONATEC (2011) e o Programa de
Fomento às Atividades Produtivas Rurais (2011).
Frisa-se, contudo, que há disparidades evidentes quanto à existência de mecanismos
voltados à questão em debate, ainda mais se consideradas as dimensões territoriais brasileiras
e as desigualdades regionais do país. Apesar da existência formal e legal de alguns
mecanismos de promoção da igualdade racial, percebe-se o desmonte institucional dos órgãos
nos últimos anos, ocasionando sua baixa ou nenhuma efetividade, especialmente nos últimos
4 anos (2018-2022), em virtude da gestão de um governo executivo de extrema direita, que
explicitamente desestimulava o impulsionamento de políticas públicas de direitos humanos.
Sobre esta questão, por exemplo, a CEPAL ressalta que, em virtude da mudança de
governo, decorrente das eleições presidenciais de 2018, a SEPIR foi alvo de mudanças

258
CEPAL. Afrodescendientes y la matriz de la desigualdad social en América Latina: Retos para la inclusión.
ONU, 2020. Disponível em:
https://www.cepal.org/es/publicaciones/46191-afrodescendientes-la-matriz-la-desigualdad-social-america-latin
a-retos-la . Acesso em: 17 Nov. 2022.

64
institucionais que resultaram na perda de sua capacidade de atuação. No âmbito
orçamentário, a Secretaria teve um repasse de verba de 23 milhões de reais, em 2018, dos
quais apenas 3 milhões foram executados259. O retrocesso provocado a níveis alarmantes pelo
governo executivo de 2018-2022 demonstra a fragilidade institucional destes mecanismos,
sujeitos à voluntariedade política dos governos em exercício260.
Ainda sobre a esfera pública e política, é importante mencionar a sub-representação
da população negra nas esferas legiferantes federais e estaduais. Em 2018, apesar de
constituir 55,8% da população, os negros representavam 24,4% dos deputados federais e
28,9% dos deputados estaduais eleitos261.
A situação é ainda mais grave quando se trata da representação de mulheres negras
nestes cargos públicos: "em 2018, as mulheres pretas ou pardas constituíram 2,5% dos
deputados federais e 4,8% dos deputados estaduais eleitos, e, em 2016, 5,0% dos vereadores.
Consideradas apenas as mulheres eleitas, foram 16,9%, 31,1% e 36,8%, respectivamente"262.
A disparidade, em parte, é explicada pela discrepância entre as receitas das candidaturas de
pessoas brancas e negras. O IBGE destaca que ao passo que 9,7% das candidaturas de
pessoas brancas a deputado federal obtiveram de receita igual ou superior a R$ 1 milhão,
entre as candidaturas de pessoas pretas ou pardas apenas 2,7% contaram com pelo menos
esse valor263.
O CEPAL indica que o Brasil junto à República Bolivariana da Venezuela são os
países que apresentam maiores disparidades entre a proporção de pessoas negras na
população nacional e sua representação proporcional nos parlamentos264.

VI. Conclusões e propostas de recomendações ao Estado brasileiro

A partir do desenvolvimento da pesquisa apresentada, foi possível concluir que:

(1) O caso Neusa dos Santos e Gisele Ana Ferreira deve ser compreendido à luz do racismo
estrutural que afeta mulheres negras no ambiente laboral brasileiro. Não se trata de um caso
isolado, mas do reflexo de um padrão de violência interseccional que recai até hoje sobre

259
Ibidem. p. 244.
260
Ibidem.
261
IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil – 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 15 Nov. 2022, p. 11.
262
Ibidem. p. 12.
263
Ibidem.
264
CEPAL, 2020. Op. Cit., p. 71

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mulheres negras no Brasil. Com efeito, o contexto brasileiro de racismo tem sido reconhecido
e condenado por uma série de organismos internacionais de Direitos Humanos, em especial
pela Comissão Interamericana e por esta Corte em importantes precedentes anteriormente
analisados, cujas recomendações seguem reiteradamente sendo descumpridas pelo Estado. O
julgamento do caso em questão requer, portanto, uma análise contextual que considere as
circunstâncias históricas, materiais, temporais e espaciais do racismo que vitima mulheres
negras brasileiras até o presente.

(2) O Estado brasileiro violou, no caso em questão, os mais importantes parâmetros


interamericanos sobre: o direito à igualdade e não discriminação na efetivação dos direitos
econômicos, sociais e culturais de pessoas negras; a responsabilidade internacional dos
Estados no âmbito da atuação das empresas privadas; e o dever estatal de reparação integral
com enfoque interseccional.

(3) A análise da violação dos artigos 8º, 25 e 26 da CADH deve ser empreendida de forma
necessariamente interrelacionada ao dever estatal de não discriminação, contido no artigo 24
da CADH. O direitos às garantias e proteção judicial, cuja violação foi reconhecida pelo
Estado brasileiro em audiência pública perante esta Corte, não deve ser analisado
isoladamente, sob pena de se incorrer, mais uma vez, no apagamento e na denegação do
racismo que constitui a sociedade brasileira e que afetou diretamente o projeto de vida de
Neusa dos Santos e de Gisele Ana Ferreira.

(4) A responsabilidade internacional do Estado por violações de direitos humanos, em um


caso como este, de discriminação estrutural, decorre tanto da omissão do Estado brasileiro em
responsabilizar atos racistas e reparar as vítimas, como da constatação de que o Brasil não
tem adotado, em sua história e até o presente, medidas eficazes para transformar
estruturalmente a situação particular de vitimização das mulheres negras no mercado de
trabalho. Ainda que o Estado venha adotando políticas antirracistas, elencadas durante a
audiência pública do caso, restou claro que as mesmas não incidiram no presente caso (e que,
portanto, não beneficiaram as vítimas) e tampouco tiveram sua eficácia comprovada. Por um
lado, dados recentes, produzidos entre 2018 e 2022 por órgãos oficiais e organizações não
governamentais, revelam claramente um contexto de perpetuação do racismo, em especial
contra mulheres negras (contexto este reconhecido inclusive pela perita convocada pelo
Estado na audiência pública do caso, membro do Ministério Público do Trabalho). Por outro

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lado, é ainda gritante a omissão do Estado brasileiro em produzir dados detalhados sobre a
prática de racismo no mercado de trabalho brasileiro, sobretudo em relação às mulheres
negras.

(5) Este caso é uma oportunidade para que esta Corte aprofunde e avance no debate sobre a
reparação plena e integral de vítimas de racismo e de discriminação racial, adotando uma
abordagem interseccional no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Entendemos que o SIDH deve se comprometer com a promoção de uma justiça reparadora, o
que implica, em situações de racismo, na adoção de uma perspectiva interseccional – que leve
em consideração os fatores que podem agravar a situação de vulnerabilidade, como gênero e
pobreza – e no consequente fomento de mudanças culturais e estruturais, capazes de
reconhecer, como afirma a CIDH, a memória histórica afrodescendente, através da adoção de
medidas de satisfação, restituição de direitos, garantias de não repetição, reabilitação, e
indenização, como forma de reparação integral.

Sendo assim, elencamos abaixo propostas de recomendações ao Estado brasileiro


baseadas no posicionamento dos peticionários do caso, bem como na fala da perita convocada
pela CIDH na audiência pública do caso, Profa. Thula Rafaela de Oliveira Pires. Sem
prejuízo de outras medidas reparatórias, destacamos, abaixo, algumas medidas de reparação
de natureza interseccional, voltadas para a não-repetição das violências estruturais
perpetradas contra Neusa dos Santos e Gisele Ana Ferreira:

(1) Produção de dados, pelo Estado brasileiro, com indicadores racial, de gênero, de condição
socioeconômica, de deficiência sobre o acesso, permanência e condições de permanência no
mercado de trabalho no Brasil (base salarial, cargos, salubridade, risco, etc).

(2) Tratamento, sistematização e transparência, pelo Estado brasileiro, dos dados produzidos,
imbricando os indicadores e produzindo análises interseccionais qualitativas sobre o acesso,
permanência e condições de permanência no mercado de trabalho no Brasil.

(3) Criação pelo Estado brasileiro de normativa com caráter imperativo para implementação,
por empresas privadas e públicas, de parâmetros internacionais de direitos humanos no
âmbito trabalhista, com especial foco às políticas de igualdade e não discriminação,
incluindo-se ações afirmativas de acesso e permanência no trabalho.

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(4) Estabelecimento, pelo Estado brasileiro, de políticas de fiscalização dos protocolos e
condutas da empresas privadas, à luz do princípio da igualdade e não discriminação, a ser
empreendida de forma períodica e reiterada, contemplando também procedimentos de
encaminhamentos de eventuais violações identificadas, com o devido tratamento e promoção
de responsabilização aos/as funcionários/as e à empresa violadora.

(5) Determinação de indenização a ser paga pelo Estado brasileiro às vítimas,


compreendendo os danos materiais e danos morais experimentados, incluindo-se os prejuízos
resultantes da violência racial sofrida e da decorrente falta de acesso ao mercado de trabalho
(situação de desemprego que tenham experienciado em virtude dos fatos violadores), bem
como apoio psicológico, se quiserem.

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