Dossiê Completo Direito e Relações Raciais
Dossiê Completo Direito e Relações Raciais
Dossiê Completo Direito e Relações Raciais
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v . 10 I n . 1
jan . / jun . 2 0 2 4
revista de direitos e movimentos sociais
dossiê
direitos e rela çõ es raciais
PPGDH
INSTITUTO DE PESQUISA. DIREITOS
E MOVIMENTOS SOCIAIS UnB
C í J U OVJ J J I I O U i
EDITOR RESPONSÁVEL
Alexandre Bernardino Costa (Universidade de Brasília)
CONSELHO CIENTÍFICO
Alexandre Bernardino Costa (Universidade de Brasília), Alfredo Wagner Berno de Almeida
(Universidade do Estado do Amazonas), Ana Ester Ceceña (Universidad Nacional Autónoma de
México), Ana Lúcia Pereira (Universidade Federal do Tocantins), Antonio Salamanca Serrano (Instituto
de Altos Estudios Nacionales, Equador), Breno Marques Bringel (Universidade do Estado do Rio de
Janeiro; Instituto de Estudos Sociais e Políticos), Carlos Frederico Mares de Souza Filho (Pontifícia
Universidade Católica do Paraná) Conceição Paludo (Universidade de Pelotas, Brasil), David Sanchez
Rubio (Universidad de Sevilla), Enrique Dussel (Universidad Autónoma de la Ciudad de México),
George Andrew Meszaros (University of Warwick), Jesús Antonio de la Torre Rangel (Universidad
Autónoma de Aguascalientes), Joaquim Shiraishi Neto (Universidade Federal do Maranhão), José
Geraldo de Sousa Júnior (Universidade de Brasília), Maria Tereza Sierra (CIESAS), Norman José
Solórzano Alfaro (Universidad Nacional, Costa Rica), Rachel Henriette Sieder (Centro de
Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social, México), Raquel Maria Rigotto
(Universidade Federal do Ceará), Regina Facchini (Unicamp, Brasil) e Rita Laura Segato (Universidade
de Brasília)
PROJETO GRÁFICO
Anna Carolina Murata Galeb e Guilherme Cavicchioli Uchimura
CAPA
Cabelo é história (2022) de Aline Guimarães, no Instagram @lineaaaa_, multiartista nas áreas de
arte urbana, ilustração, arte-educação e performance
EDITORAÇÃO
Leonardo Evaristo Teixeira, Matheus Daltoé Assis e Guilherme Cavicchioli Uchimura
CORPO DE PARECERISTAS
Alexandre Tortorella Mandl (Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais), Ana Luisa Leão de
Aquino Barreto (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Ana Radig Denne Lobão Morais (Instituto
de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais), Anna Carolina Murata Galeb (Universidade Federal
Fluminense), Ana Paula Martins Hupp (Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais), Ciani
Sueli das Neves (Universidade Federal de Pernambuco), Ciro de Souza Brito (Instituto
Socioambiental), Daniel Vitor de Castro (Universidade Federal de Minas Gerais), Diana Carolina
Caicedo Peñata (Universidad Autónoma de San Luis Potosí-México), Diogo Pinheiro Justino de Souza
(Universidad Nacional de Tres de Febrero-Argentina), Eder Fernandes Santana (Universidade Federal
de Minas Gerais), Érika Macedo Moreira (Universidade Federal de Goiás) Emília Joana Viana de
Oliveira (Universidade de Brasília), Felipe de Araújo Chersoni (Instituto de Pesquisa, Direitos e
Movimentos Sociais), Geraldo Miranda Neto (Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais),
Guilherme Cavicchioli Uchimura (Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais), Gustavo
Seferian (Universidade Federal de Minas Gerais), Helga Maria Martins de Paula (Universidade Federal
de Jataí), Hugo Belarmino de Morais (Universidade Federal da Paraíba), Inara Flora Cipriano Firmino
(Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), José Humberto de Góes Junior (Universidade
Federal de Goiás), José Jaime Freitas Macedo (Universidade Federal do Vale do São Francisco), Luiz
Otávio Ribas (Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais), Marco Alexandre Souza Serra
(Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais), Marília de Nardin Budó (Universidade Federal
de Santa Catarina), Marina Marques de Sá Souza (Universidade Federal de Santa Catarina), Mariana
Trotta Dallalana Quintans (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Moisés Alves Soares (Universidade
Federal de Jataí), Priscylla Joca (Universidade de Montreal-Canadá), Ricardo Prestes Pazello
(Universidade Federal do Paraná), Roberto Efrem Filho (Universidade Federal da Paraíba), Rodrigo
Portela Gomes (Universidade Federal da Paraíba), Tchenna Fernandes Maso (Universidade Federal do
Paraná), Thaís Henriques Dias (Universidade Federal Fluminense), Urânia Flôres da Cruz Freitas
(Universidade de Brasília).
PARECERISTAS AD HOC
Allan Alves da Mata Ribeiro (Universidade Federal Rural de Pernambuco), Ana Paula Cruz Penante
Nunes (Universidade de Brasília), Beatriz Martins Moura (Universidade de Brasília), Caíque Azael
Ferreira da Silva (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Carolina Rezende Moraes (Universidade de
Brasília), César Augusto Baldi (Núcleo de Estudos para Paz e Direitos Humanos, Universidade de
Brasília), Clarindo Epaminondas de Sá Neto (Universidade Federal de Santa Catarina), Daiane Santos
Ribeiro (Universidade Federal da Bahia), Daniela Marques Vieira (Universidade Federal do Paraná),
Deise Benedito (Universidade de Brasília), Deíse Camargo Maito (Universidade do Estado de Minas
Gerais), Deivide Julio Ribeiro (Universidade Federal de Minas Gerais), Edmo de Souza Cidade de Jesus
(Universidade Federal de Santa Catarina), Eduardo Wallan Batista Moura (Universidade de Brasília),
Érika Costa da Silva (Universidade Federal da Bahia), Fábio Accardo de Freitas (Associação Estadual
de Defesa Ambiental e Social), Gabriel Antonio Silveira Mantelli (Universidade de São Paulo), Geralda
Magella de Faria Rossetto (Universidade Federal de Santa Catarina), Géssica Arcanjo (Instituto
Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), Gianmarco Ferreira (Universidade de Brasília),
Givânia Maria (Universidade de Brasília e Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos),
Grazielly Alessandra Baggenstoss (Universidade Federal de Santa Catarina), Heiza Maria Dias de
Sousa Pinho Aguiar (Universidade de Brasília), Igo Zany Nunes Correa (Universidade Federal de Minas
Gerais e Tribunal Regional do Trabalho da 11ª Região), Jedivam Maria da Conceição Silva
(Universidade Federal Rural de Pernambuco), Jonnas Esmeraldo Marques de Vasconcelos
(Universidade Federal da Bahia), Juliana Fontana Moyses (Universidade de São Paulo), Lais da Silva
Avelar (Universidade Federal da Bahia), Lara Melinne Matos Cardoso (Universidade de Brasília), Laura
Rebecca Murray (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Lawrence Estivalet de Mello (Universidade
Federal da Bahia), Liliane Pereira de Amorim (Universidade de Brasília), Luanna Tomaz de Souza
(Universidade Federal do Pará), Luiz Eduardo Figueira (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Maíra
de Deus Brito (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), Maira de Souza Moreira
(Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), Marcelo de Mello Vieira (Tribunal de Justiça de
Minas Gerais), Marcio Camargo Cunha Filho (Direito do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento,
Ensino e Pesquisa), Milene Maria Xavier Veloso (Universidade Federal do Pará), Natali Galeano
Guzmán (Universidad Autónoma de Zacatecas-México), Paulo Fernando Soares Pereira (Advocacia
Geral da União e Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), Raissa Roussenq Alves (Universidade
de Brasília), Raíza Feitosa Gomes (Universidade Federal da Paraíba), Raquel Santana (Universidade de
Brasília e Tribunal Superior do Trabalho), Rebecca Forattini Lemos Igreja (Universidade de Brasília),
Ruan Didider Bruzaca (Universidade Federal do Maranhão), Thais Becker Henriques Silveira
(Universidade de São Paulo), Vinícius de Assis Romão (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
Campus Universitário Darcy Ribeiro - UnB, Pavilhão Multiuso I - PMU I, Bloco C, 1º andar, Asa Norte,
Brasília-DF, CEP: 70.910-900 | Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania -
UnB | [email protected]
A InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, ligada ao
Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) e vinculada ao
Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da
Universidade de Brasília (PPGDH/UnB), tem por objetivo difundir produção
teórica inédita concernente à temática “direitos e movimentos sociais”. Com
a perspectiva de impulsionar a atividade de pesquisa desenvolvida com, por
e para os movimentos sociais, mobilizando pesquisadoras e pesquisadores
de todo o Brasil em diversas áreas temáticas, o IPDMS se propõe a veicular
uma publicação, em formato de periódico internacional, que promova
produções teóricas que estejam comprometidas com a construção de
conhecimento crítico e libertador sobre o tema dos direitos e dos
movimentos sociais, permitindo a elaboração criativa e engajada de análises
e interpretações sobre os diversos assuntos que afetam o povo brasileiro e
latino-americano. A Revista admite produções acadêmicas, políticas e
artísticas relacionadas ao tema direitos e movimentos sociais, considerando
como áreas de interesse as ligadas aos Grupos de Trabalho (GTs) do IPDMS:
Assessoria jurídica popular, educação jurídica e educação popular; Cidade e
direito; Criminologia crítica e movimentos sociais; Direito e marxismo;
Direito, memória e justiça de transição; Direitos, infâncias e juventudes;
Gênero, sexualidade e direito; Mundo do trabalho, movimento sindical e
direito; Povos e comunidades tradicionais, questão agrária e conflitos
socioambientais; Pensamento crítico e pesquisa militante na América
Latina; Observatório do sistema de justiça, de políticas públicas e do
legislativo; Observatório da mídia, direitos e políticas de comunicação.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons 4.0.
Este trabajo es licenciado bajo una Licencia Creative Commons 4.0.
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InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684
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Sumário
Apresentação
Apresentação do dossiê
“Direitos e relações raciais” ......................................................................................... 9
Comissão Organizadora do Dossiê (Ciro de Souza, Emilia Joana Viana de Oliveira,
Inara Flora Cipriano Firmino e Rodrigo Portela Gomes)
Diálogos InSURgentes
A mulher Munduruku na luta pela vida e território do seu povo:
entrevista com Maria Leusa Munduruku .................................................................. 23
Entrevista concedida por Maria Leusa Munduruku a Inara Flora Cipriano Firmino
e Rodrigo Portela Gomes
As mulheres negras nos estudos acadêmicos sobre crimes raciais ...... 233
Nilvia Crislanna da Cruz Borges e Luanna Tomaz de Souza
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
O contrato racial como constituição não escrita do Brasil ignorância
branca e interpretação do direito à luz da filosofia política de Charles
Mills .................................................................................................................................................. 255
Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães e Heitor Moreira Lurine Guimarães
Em Defesa da Pesquisa
Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada
família de Marx e Engels ..................................................................................................... 515
Vitor Bartoletti Sartori
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 9 | n. 2 | jul./dez. 2023 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Sexo, dinheiro e escravidão moderna: tráfico de travestis e mulheres
trans do Brasil para a Europa com fins de exploração sexual ...................... 611
Leonam Lucas Nogueira Cunha, Jules Ponthieu e Lucas Isaac Soares Mesquita
Temas Geradores
Raça e racismo como conceitos jurídicos de resistência .............................. 697
Camilla Magalhães Gomes
Poéticas Políticas
Cabelo é história ...................................................................................................................... 803
Aline Guimarães
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Caderno de Retorno
Mulheres Atlânticas - a agência de mulheres negras no Judiciário
Brasileiro: resenha do livro “Cadê a Juíza?”, de Raíza Feitosa Gomes ... 837
Inara Flora Cipriano Firmino e Rodrigo Portela Gomes
Práxis de Libertação
Práxis de Libertação do dossiê "Direitos e relações raciais"........................ 860
1 Documento da Convenção Nacional Negro pela Constituinte
2 Da União das Nações Indígenas (UNI) para o Brasil
3 I Encontro Nacional de Comunidades Negras Rurais
4 Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 709
5 Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 742
6 Memorial de amicus curiae apresentado pelo Grupo de Estudo e
Pesquisa sobre Sistema Interamericano de Direitos Humanos (GEP-SIDH –
PUC/RJ) à Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Neusa dos
Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira v. Brasil (n. 12.571)
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 9 | n. 2 | jul./dez. 2023 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Apresentação do dossiê “Direito e
relações raciais”
Ciro de Souza Brito, Emília Joana Viana de
Oliveira, Inara Flora Cipriano Firmino, e Rodrigo
Portela Gomes
1 O Grupo Temático (GT) foi inicialmente coordenado pela pesquisadora Emília Joana
Viana de Oliveira e a professora Thula Rafaela de Oliveira Pires. Posteriormente contou
com a colaboração do professor Rodrigo Portela Gomes. Atualmente, o GT está em fase
de consolidação de uma nova coordenação.
Ciro de Souza Brito - Emília Joana Viana de Oliveira - Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes 10
Como uma travessia crítica que precisa ser encarada, isso demanda recursos de
pesquisa específicos, sobretudo, a partir das reflexões que surgem das agências
dos movimentos sociais no Brasil. Com isso, também pretendemos prestigiar as
diferentes trajetórias do pensamento negro brasileiro ao longo dos anos,
considerando as insurgências da intelectualidade orgânica negra e suas
resistências diante dos rearranjos do pacto da branquitude.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 9 | n. 1 | jan./jun. 2023 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
11 Apresentação do dossiê “Direito e relações raciais”
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 9 | n. 1 | jan./jun. 2023 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Ciro de Souza Brito - Emília Joana Viana de Oliveira - Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes 12
Olhando para as reflexões da temática racial a partir das artes, buscamos trazer ao
dossiê produções culturais e artísticas que expressam parte dos esforços das
agendas de pesquisa do campo, na seção Poéticas Políticas. Dialogamos com a
agência das mulheres quilombolas pelas mãos de Walisson Braga; com a luta pelos
territórios pelas lentes de Leticia Reis; falamos sobre educação contracolonial e
defesa da cultura de religiões de matriz africana com os registros de Stela Caputo;
e falamos das disputas de estéticas com a produção de Aline Guimarães, cuja arte
fora emprestada à capa desta edição. Essas imagens sinalizam nossas formas de
pensar, fazer e ser no mundo, mesmo diante das violências. Ademais, tem-se
ainda, em Poéticas Polícias, o poema Premonição, de José D'Assunção Barros.
Ainda buscando ampliar a episteme tradicional do direito, o dossiê conta com duas
resenhas, na seção Cadernos de Retorno. A primeira foi feita pelos coordenadores,
Inara Firmino e Rodrigo Portela, na qual compartilham suas experiências de
leitura do livro de Raiza Gomes, “Cadê a Juíza?”. A segunda resenha foi escrita
por Daniel Castro, na qual é uma análise da publicação em português, no Brasil,
do clássico “Marxismo Negro”, de Cedric Robinson.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 9 | n. 1 | jan./jun. 2023 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
13 Apresentação do dossiê “Direito e relações raciais”
Assassinato de Dom e Bruno, crise humanitária dos Yanomami, garimpo ilegal são
questões que trazem como pano de fundo um modelo de desenvolvimento
neoextrativista baseado na necropolítica, na degradação ambiental e,
consequentemente, no racismo ambiental. Essa é a tese reforçada pela autora
Mariana Rodrigues Vianna, no artigo Environmental racism, necropolitics, and climate
crisis: reflections from the humanitarian crisis of indigenous peoples and traditional
communities in Brazil. Esse modelo, como aborda a autora, reforça um projeto de
política de morte direcionado a povos indígenas e comunidades tradicionais no
Brasil e, em maior escala, intensifica a crise climática. O trabalho traz reflexões
sobre empreender esforços por outro modelo de produção, em harmonia com a
natureza, o que implica priorizar direitos e perspectivas de povos indígenas e
comunidades tradicionais.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 9 | n. 1 | jan./jun. 2023 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Ciro de Souza Brito - Emília Joana Viana de Oliveira - Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes 14
Como falar de crimes raciais sem mobilizar gênero e raça? Revisando a produção
de trabalhos que se propõem à análise de crimes raciais para além do campo
jurídico, entendendo como necessária a mobilização das categorias interseccionais,
as autoras Nilvia Crislanna da Cruz Borges e Luana Tomas de Souza nos
apresentam em “As mulheres negras nos estudos acadêmicos sobre crimes raciais” a
pertinência do questionamento. Partem da necessidade de deslocamento das
mulheres negras dentro das concepções universais sobre ser mulher, apresentando
como foi sistematizada a revisão por meio de perfilamento das produções nas
ciências sociais, linguística, história, direitos humanos e cidadania e no direito e
nos levam à conclusão de que um dos impactos do racismo na produção científica
segue sendo o silêncio. No campo da criminologia em especial, o racismo e o
sexismo seguem orientando análises que reiteram os vetores de controle sobre mas
não repercutem nas análises acadêmicas, além da baixa presença de reflexões sobre
as mulheres negras da região norte.
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15 Apresentação do dossiê “Direito e relações raciais”
É possível ser morto com uma bala no tórax por meio de “troca de tiros” em uma
ação policial de combate ao tráfico de drogas no Rio de Janeiro e ser mantido em
prisão preventiva? A autora Luciana Costa Fernandes demonstra no artigo “Pactos
Narcísicos, violência antinegra e a atuação da magistratura na criminalização de um
homem morto em uma operação policial no Rio” como a produção da morte por meio
do estado permite a continuidade do processo de execução penal e sua extinção 4
somente anos depois. Por meio de estudo de caso, etnografia documental e
antropologia das práticas de poder, a autora analisa como o caso revela os efeitos
da hermenêutica jurídica da branquitude arquitetada pelo direito e reproduzida
nos pactos de enunciação de magistrados, categoria majoritariamente composta
por esse grupo racial produzem repercussões da violência antinegra nos processos
criminais de associação para o tráfico de drogas.
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17 Apresentação do dossiê “Direito e relações raciais”
Inara Flora Cipriano Firmino nos contempla com a tradução da palestra Teoria
Crítica Racial, “Teoria Crítica Racial” e a armamentização do analfabetismo racial: um
relatório da linha de frente, do professor Kendall Thomas, no sentido de nos
aproximar das leituras sobre Teoria Crítica Racial (TCR), majoritariamente
disponíveis em texto em inglês. A tradução é motivada também pela presença da
TCR nas agências de incidência por justiça racial junto ao Supremo Tribunal
Federal, em especial na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
973, “ADPF vidas negras”. No texto, que surge da palestra de Thomas, ele mobiliza
a Ordem Executiva nº13.950, emitida pelo então presidente dos Estados, Donald
Trump, em setembro de 2020, que orientava a retirada em espaços educacionais
do que considerava conceitos “divisionistas”. Parecido ao que acompanha o Mito
da Democracia Racial e os períodos antidemocráticos no Brasil, naquele contexto,
(os conceitos divisionistas referiam-se à sexo além da raça) as preocupações
institucionais apresentadas pelo chefe do poder executivo revelam a intenção de
ocultar, como aqui, as consequências das relações sociais de uma sociedade
organizada a partir da raça e do racismo. Em diálogo com Stuart Hall, Thomas
apresenta, também, a tentativa de interdição da alfabetização racial, em diálogo
com as incidências da sociedade civil pela desarticulação de um letramento racial
crítico da população. Esse movimento, afeta não só o rearranjo das narrativas que
dissolvem as tensões raciais no bojo da democracia racial, como também incide
sobre o fascismo segue mobilizando ataques ao que ele chamou de contranarrativa
da república.
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Baggenstoss busca compreender o que pode ser entendido como assédio no âmbito
laboral ou no de formação escolar e acadêmico, entendendo que são práticas que
podem ser estruturantes das instituições no Brasil. Já em Sexo, dinheiro e escravidão
contemporânea: tráfico de travestis e mulheres trans do Brasil para a Europa com fins de
exploração sexual, Leonam Lucas Nogueira Cunha, Jules Ponthieu e Lucas Isaac
Soares Mesquita visam entender a exploração sexual de travestis e mulheres trans
no contexto de imigração à Europa e que acabam por serem vítimas de exploração
sexual, cujo fenômeno é identificado pelos autores como uma forma de escravidão
contemporânea.
Por fim, os dois últimos artigos dessa seção foram igualmente pré-publicados na
seção Pré-Publicação (Ahead of Print). Maria Mostafa, em Emergência da primeira
infância: ampliação dos direitos das crianças ou aprofundamento do neoliberalismo?, busca
demonstrar a existência de argumentos que endossam um determinismo
biológico, na emergência da primeira infância no Brasil, com uma tendência que
se alinha à estratégia neoliberal de responsabilizar o sujeito por seus fracassos. E
com o último artigo de Wederson Santos e Olemar Guilherme da Cunha, A
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como um novo paradigma para
implementação de políticas sociais, se analisa a referida Convenção, incorporada ao
ordenamento jurídico nacional em 2009, e demonstram como alguns princípios de
fundo desta Convenção inovam quando comparados com as garantias expressas
na Constituição de 1988.
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19 Apresentação do dossiê “Direito e relações raciais”
Referências Bibliográficas
BERTÚLIO, Dora Lúcia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdução crítica
ao racismo. Florianópolis: Curso de Pós-Graduação (Mestrado) em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina, 1989.
BERTÚLIO, Dora Lúcia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdução crítica
ao racismo. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
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Diálogos InSURgentes
Trata-se de seção dedicada a publicar entrevistas com
pesquisadores e militante que tenham relevância para a relação
entre direitos e movimentos sociais. A seção de entrevistas da
revista do IPDMS é uma homenagem ao advogado popular Miguel
Pressburger, resgatando, em sua denominação, a proposta de
uma práxis insurgente para o direito.
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52349
diálogos insurgentes
Submetido em 22/01/2024
Aceito em 25/01/2024
• • V
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InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684
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24 Maria Leusa Munduruku - Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes
No entardecer do dia e nas proximidades do rio Tapajós, ocorria mais uma etapa
da Escola de Formação em Direito no Tapajós3, que reunia representantes de várias
comunidades tradicionais, povos indígenas, movimentos sociais e organizações da
sociedade civil da região. Na oportunidade, e com o apoio remoto, entrevistamos
Maria Leusa Munduruku, liderança do povo Munduruku para registro memorial
da sua trajetória na luta por direitos, os impactos da educação para sua atuação
política e os desafios da resistência das mulheres.
O itinerário da conversa não segue uma linha do tempo reta que demarque ponto
a ponto os 36 anos de vida, luta e resistência. Esses dois últimos foram recursos da
língua portuguesa repetidamente mobilizados por Maria Leusa para traduzir sua
experiência. A linearidade como recurso da narrativa colonial é contraposta por
Leusa, sendo uma forma de fazer, criar e viver comum ao seu povo e de outras
comunidades tradicionais. Conduz o tempo e os principais marcos de sua
narrativa sobre a organização política das mulheres Munduruku, desde as
histórias orais dos seus antepassados contadas e repassadas de geração em
geração, até os recentes agenciamentos do povo Munduruku, que testemunhou e,
mais recentemente, tem liderado na região, mas, também, no cenário nacional e
internacional.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
A mulher Munduruku na luta pela vida e território do seu povo: entrevista com Maria Leusa Munduruku 25
***
Optamos pela reprodução quase literal do conteúdo da entrevista, nesse sentido foram feitos
apenas ajustes gramaticais em algumas passagens para assegurar a experiência do diálogo
e valorizar a dimensão da oralidade reivindicada na tradição dos povos originários.
***
Dossiê Direito e Relações Raciais: Boa tarde, Maria Leusa, sou Rodrigo. Esta que
está acompanhando a gente é a Inara. Nós queríamos agradecer, primeiro, pela
oportunidade de fazer essa conversa e pedir autorização para fazer a gravação e
ter esse registo para publicação no Dossiê Direito a Relações Raciais, da Revista
InSURgência.
Maria Leusa Munduruku: Boa tarde, meu nome é Maria Leusa Munduruku,
atualmente sou coordenadora da Associação das Mulheres Munduruku -
Wakoborũn, situado no município de Jacareacanga (PA) e sou estudante também
na UFOPA, estou cursando direito, primeiro período. E autorizo usar a minha
imagem na entrevista, minha fala, que pode ser usada para educação. Para passar
e compartilhar as experiências para as nossas futuras gerações.
4 Ameaçada a anos por garimpeiros a liderança narra os impactos dessa violência na sua vida
quando do ataque à sede da Associação das Mulheres. Disponível em:
https://apublica.org/2021/04/maria-leusa-munduruku-sobre-garimpo-ilegal-estamos-em-um-
estado-muito-grave-de-ameacas-fisicas/. Acesso em: 14 jan. 2024.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
26 Maria Leusa Munduruku - Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes
Maria Leusa Munduruku: Hum...Tá! Como eu falei, eu sou Maria Leusa, sou
liderança feminina. Primeira liderança Munduruku e venho participando,
principalmente, no movimento na defesa do território e dos direitos. E eu venho
dessa luta. Somando o povo Munduruku dá mais de 14.000. É ... o alto e o médio
Tapajós, em 7 territórios: Sawré Muybu, Sawre Ba’pim, Mundurucu, Sai-Cinza,
Apiaká-Kayabi e outros territórios que estão no processo de reconhecimento, como
Sawré Apompu e demais territórios. Então, a gente, principalmente eu, atuo nesses
territórios.
Então, a gente está nessa luta pela defesa do nosso território, principalmente eu,
como me dediquei muito, a gente vai tomar à frente dessa luta como mãe, como
defensora. Hoje, atualmente, vivo é... vivo nisso, na luta, porque meu povo
depende de mim, que eu estudo as coisas, eu tenho que estar presente,
participando dos encontros, de reuniões, e demais formações. Então, hoje sou mãe,
que eu tenho os filhos também. Tive que ir para a universidade também depois de
sofrer vários ataques, pois eu sou ameaçada também por estar nessa luta, por estar
incentivando, por estar líder na defesa do nosso território tomando à frente.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
A mulher Munduruku na luta pela vida e território do seu povo: entrevista com Maria Leusa Munduruku 27
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28 Maria Leusa Munduruku - Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes
Hoje estou aqui. Continuo colaborando, contribuindo nessa luta do nosso povo
Munduruku pelo território, pelo direito e as demais coisas... aquelas formações dos
nossos jovens que a gente está fazendo. Então, hoje é o nosso papel de estar na luta,
que é a nossa obrigação, não é, de cuidar do nosso território, cuidar do nosso povo
Munduruku.
Dossiê Direito e Relações Raciais: Deixa eu te perguntar uma coisa... já que você
falou um pouco sobre a sua trajetória, eu estava lendo um pouco mais sobre a sua
vida, e tem uma entrevista que fala que você nasceu em 1988.
Dossiê Direito e Relações Raciais: 87? Ah, entendi. Então você nasceu perto da
constituinte? Se você pudesse falar um pouco de como era antes desse, tipo assim,
o que era Maria Leusa antes dessa experiência de virar a liderança que ela é,
denunciando o garimpo, porque você virou essa liderança. E se essa Maria Leusa
que existia antes, ela ainda existe? Como é que é essa vida da Maria Leusa?
Aí quando eu comecei, a gente tinha muita, assim, era muita dificuldade no acesso
à educação. Por conta mesmo que não tinha essas condições de chegar uma escola
dentro das aldeias. Só que depois a gente foi, principalmente eu fui estudando e
comecei a participar de reuniões, encontros dentro da comunidade e eu fui
aprendendo. E depois, participei de assembleia... a primeira assembleia que
participei foi na Aldeia Katon e em seguida eu comecei a participar dessas coisas
e o pessoal falava que eu era muito inteligente e curiosa de perguntar, de participar
das coisas. Então, eu aprendi a andar com as lideranças, participar dos eventos e,
depois, comecei a estudar. Aí comecei a estudar, terminei meu ensino
fundamental. E a gente já vem sofrendo esses conflitos internos por conta de
garimpo. Eu sofro desde 10 anos, porque a invasão era muito tempo, só que não
era invasão igual é hoje. Eu já sofria isso. Eu já dizia que meus pais sempre foram
contra as invasões dentro do território. Tivemos conflitos nas aldeias por conta
disso, porque sempre existia uma divisão dentro da aldeia, uns que eram
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
A mulher Munduruku na luta pela vida e território do seu povo: entrevista com Maria Leusa Munduruku 29
favoráveis, uns que não. Então, sempre era assim. Depois eu fui estudar, fui parar
em Jacareacanga também e terminei meu ensino fundamental.
Depois, teve conflito interno e eu tive que sair da aldeia onde eu morava antes,
porque teve uma invasão e teve conflito interno. Então, de lá eu saí e entrei dentro
do movimento, em 2012. A gente começou a fazer os movimentos. Comecei a
participar, principalmente, porque tivemos o assassinato do nosso parente, o Lelo
Akay, assassinado pelos garimpeiros que estavam invadindo o nosso território.
Tivemos revolta com a queima da delegacia e eu comecei a participar junto com os
homens. Era a única mulher que estava participando. Então, depois, eu achei mais
uma amiga minha, convidei uma mulher para ir comigo. Ela participou dessas
ações também. Tivemos que queimar delegacia por revolta e paramos até em
Belém cobrando o governador pela justiça, pelas responsabilidades da polícia
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30 Maria Leusa Munduruku - Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes
E, também, a gente vê... eu vim aprendendo junto com os homens. Ai de lá, tivemos
outras mortes também, a operação6 que era contra o garimpo dentro do TI Kayabi,
naquele momento ainda eu estava sozinha e eu comecei a mobilizar as mulheres.
Aí eu falei: não, a gente está vendo o sofrimento de uma mulher por conta do
esposo que tinha perdido e a gente viu as crianças chorar naquele momento,
quando era o Adenílson Krixi que foi assassinado pela operação da polícia federal
naquela região. Então, aí eu comecei mesmo e já tinha dois filhos. Já como
professora eu comecei a entrar nesse movimento de participar. Aí a gente
começou.... Eu tive que conversar com a minha família, com meus pais e com meus
tios que estavam dentro do movimento, e eu tinha que pedir autorização, porque
para nós Munduruku não é normal mulher sair, largar tua família e ir para o
movimento. Então, foi uma coisa que meus pais, naquele momento, me apoiaram,
porque a gente estava vendo que a gente estava sofrendo e vendo a família do
Adenílson triste e sofrendo.
6 Operação Eldorado, realizada em novembro de 2012 pela Polícia Federal. Disponível em:
https://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/2012/11/operacao-da-pf-prende-16-presos-por-
extracao-ilegal-de-ouro-em-7-estados.html. Acesso em: 14 jan. 2024.
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A mulher Munduruku na luta pela vida e território do seu povo: entrevista com Maria Leusa Munduruku 31
a construção das hidrelétricas no nosso Rio Tapajós... foi um momento bem assim
muito ruim e, também, ao mesmo tempo, a gente conseguiu se organizar.
Com essas invasões aumentando, vieram muitas mulheres nesse movimento, pois
tivemos ataques de vários, de todos os lados, tanto pelas próprias autoridades do
município de Jacareacanga. Eu tive também a minha casa depredada, a perna do
meu irmão foi queimada por rojões.... Aí a gente tinha uma casa de apoio. Então,
isso aconteceu e aí depois a gente fez uma mobilização com os movimentos sociais
para tirar o governo municipal que estava lá. Aí logo depois a gente ganhou. A
gente colocou, pensando que era uma solução, mas, na verdade, não foi uma
solução, que é uma coisa que a gente não deveria ter aceitado e estar no cargo do
poder público. Aí foi indicado, principalmente eu tive que assumir a Secretaria de
assuntos indígenas, fui a secretária durante dois anos de mandato do prefeito e eu
senti que eu estava sendo presa. E saiu muita fofoca de que eu estava fazendo
desvio e, na verdade, não era. Eles não aceitavam eu estar em um cargo na
Secretaria e participar de movimento. Eles tentavam me obrigar a sentar e falei
não! Eu tive que largar o cargo. Então, a gente falou não. Depois fizemos vários
intercâmbios, tivemos que sair do território fora do país para o México. Quando a
gente retornou, a gente começou mais a se organizar. Daí que a Alessandra veio,
eu tive a primeira viagem. Conheci a Alessandra Munduruku, convidei ela e como
a gente não tinha a presença das mulheres, nenhuma mulher no médio. Ela foi a
primeira mulher no médio também, e aí a gente entrou na luta, até hoje. A gente
começou a se organizar com a criação da associação de mulheres, porque estava
sendo muito difícil para gente mesmo. A invasão parlamentar, a violência estava
aumentando, mas nós também conseguimos nos organizar. Criamos a nossa
associação de mulheres aí dali a gente vêm como uma estratégia nossa. Então, daí
a gente vê.
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32 Maria Leusa Munduruku - Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes
aqui para salvar, para ajudar e para lutar junto com os homens. A gente não é
maior do que os homens e nem menos do que os homens! Somos iguais! Então, a
balança vai ser igual. A gente vai lutar pelo nosso território, pelo nosso direito,
mas a gente não aceita que vocês negocia, porque naquele momento estava o
processo de construção da hidrelétrica de Teles Pires e de São Manoel, onde a gente
sofreu muito e até hoje sofre pelos impactos. Naquele momento, o governo
chegava com seu discurso, dizia que a gente tinha que negociar, tinha que aceitar
as compensações para melhorar a saúde, a educação ou ganhar benefícios sociais
em troca de embarcação... Ou teria que ter um prédio novo para a educação e
algumas pessoas Munduruku aceitava. E a gente sempre dizia não! O nosso direito
não se negocia e não podemos trocar a vida dos nossos filhos!
Então, já veio várias mulheres. Então, começou depois da assembleia que a gente
fez em 2017... não... depois de 2018, depois da criação da associação aí tivemos
várias mulheres. Dentro da associação viemos fazer formações, vieram mulheres
de várias regiões, pois temos cinco lá no alto: região de Teles Pires, Cabitutu,
Cururu, região do Rio das Tropas... Em cada região vem a mulher para compor a
coordenação da associação de mulheres. Então, dali a gente vem fazendo os
projetos próprios, fazendo o monitoramento dentro do território, a fiscalização,
fazer a capacitação das mulheres e de jovens. Hoje, eles falam “não... é isso que
tem que fazer”, porque a associação de mulheres, atualmente, ela vira uma mãe,
somos a mãe para o nosso povo, porque eles dependem muito da gente. Eles
dependem muito das orientações das mulheres. A ideia de compartilhar, como
seria, se daria para aceitar ou não... então, a gente sempre está ali dizendo “não! A
gente não negocia! A gente tem que exigir do governo, porque é a obrigação dele
e não trocamos os nossos direitos e a vida dos nossos filhos em troca de qualquer
empreendimento”. A gente tem essa visão, não é?
E hoje, atualmente, vem a Ediene, da região de Teles Pires, as mulheres que ela é
assessora política da associação de mulheres, que também está bem na frente me
ajudando. Enquanto eu estou na universidade, tem um grupo de mulheres muito
forte dentro da organização das mulheres e, por isso, eu consigo sair um pouco do
território. E eu tive que usar essa estratégia também. Eu nunca pensei de estudar e
sair do meu território, mas eu fui obrigada, porque eu estava sofrendo as ameaças
e a gente sofreu a violência, porque a minha aldeia foi atacada, foi queimada e a
gente denunciou as pessoas envolvidas, mas não fizeram nada. Então, por isso, a
minha revolta de estar na universidade hoje fazendo direito. Então, hoje eu estou
lá tentando, mas a gente tem essa luta grande. Agora tem que estar na
universidade, tem que estar na formação, tem que ir para o território nessa luta.
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A mulher Munduruku na luta pela vida e território do seu povo: entrevista com Maria Leusa Munduruku 33
Então, depois alguém contou, um sábio contou para ela... “olha, mataram o seu
irmão, tiraram a cabeça dele e guardaram no quartel dos homens”. Aí ela começou
a chorar, e ninguém queria ajudar ela a fazer a justiça pela morte do irmão dela. Aí
ela falou... “agora eu vou, eu vou! Quem quiser me seguir”. Aí ela... acho que foi
com quatro guerreiros: Pukarao Pik Pik, Surup Surup, Pusuru Kao, Waremucu Pak
Pak, e ela. Então, eram cinco guerreiros, até hoje a gente se espelha nesse grupo de
guerreiros. A gente vem ouvindo muito isso, o que nos dá força, nos inspira como
ela era uma mulher que buscou essa cabeça. Então, ela falou assim... “eu vou
pegar”... ela não fez nada, ela só fez mesmo dominar. Não matou ninguém para
resgatar essa cabeça. Aí ela falou e escolheu esses quatro guerreiros que seguiram
ela. Aí ela foi cantando, cantava, cantava, cantava até que dominou.
Quando chegou lá, já está todo mundo dormindo no quartel dos homens e ela
conseguiu resgatar essa cabeça. Quando começou, ela bateu em alguma coisa,
ouviram o barulho e acordaram, mas ela já tinha fugido com a cabeça do irmão
dela. Aí depois os homens começaram a se matar, porque os guerreiros que ela
tinha escolhido para proteger ela, eles tiveram que proteger ela enquanto ela corre.
Então, isso aconteceu. E dali os homens tiraram “o grupo das mulheres vão criar
guerra”. Aí a gente dizia que não, não era isso. Isso é uma história de muitos
antigos. A gente não viu ela. Era uma história dos nossos antepassados que sempre
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
34 Maria Leusa Munduruku - Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes
conta para nós. Então, é isso. Ai hoje a gente se inspira nela. Que nós que temos
que fazer justiça. Tudo o que a gente vem vivendo depois dessa luta que a gente
tem. E tá dando certo. As mulheres estão se fortalecendo e estão aí fazendo o papel
de mãe, apoio de defensora de lei e, hoje, Wakoburun é uma guerreira mesmo.
Porque, antigamente, a cabeça era um troféu para uma Munduruku, então,
ninguém pegava aquele troféu que estava ali dentro do quartel dos homens, que é
como chamava. Então é isso!
Dossiê Direito e Relações Raciais: Outra coisa a gente queria ouvir você falar,
porque você falou várias vezes, na verdade, queríamos ouvir você compartilhando
um pouco mais sobre um ponto importante que foi fazer a escola quando você
tinha 10 anos. Aí depois você falou que fez parte daquele projeto de formação
depois que você fez o ensino fundamental, você fez magistério e, que depois que
você passou a ser uma liderança e perceber a importância das mulheres, você
também apostou na formação de outras mulheres e você, também, agora, entra no
Direito. Então, em vários momentos que você foi colocando como parte da sua
trajetória, você foi destacando a educação como um momento, seja a educação
formal da escola, mas, também, a educação pelos conhecimentos dos costumes,
dos saberes dos territórios. E aí, eu queria que você compartilhasse qual é sua
percepção sobre a importância da educação na luta por diretos. Como é que você
enxerga isso? Porque a sua trajetória revela isso em vários momentos a educação
como um ponto importante para você e como ela se relaciona com a luta por
direito.
Maria Leusa Munduruku: Sim... se hoje a gente faz muito, falar muito, primeiro
da educação Munduruku, a gente fala que não é o pariwat7 que vai trazer para os
nossos filhos. É nós que temos que ensinar os nossos filhos na educação
Munduruku de respeitar primeiro o seu território. O próprio seu território, que é
a nossa mãe, que são o nosso local sagrado. A gente pede muito. Depois a gente
tem essas escolas nas comunidades também. Atualmente a gente tem essa
formação.
Então, isso é uma formação que a gente faz dando e repassando essas informações.
Continuar repassando esse historicamente quem somos o povo Munduruku.
Como educar? Quais são os educação Munduruku? Qual é a educação pariwat que
a gente tem? Hoje é, infelizmente, a gente tem que aprender esses dois, tanta
educação Munduruku, quanto a educação pariwat na escola, estudando, aprender
a segunda língua portuguesa, porque a gente precisa também aprender para nós
7 Para os munduruku pariwat é o homem branco mal, mas também é usado para todos os não-
indígenas (Munduruku, 2021, p. 210)
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A mulher Munduruku na luta pela vida e território do seu povo: entrevista com Maria Leusa Munduruku 35
Então, a gente vem fazendo essas formações. É importante os dois e hoje a gente
vem fazendo essas formações de Direito. Porque o Direito a gente tem que saber
também. Isso para nós se defender mesmo, defender o nosso povo, nosso território,
porque se a gente não aprender e o pariwat do jeito que eles querem, eles sempre
vão querer decidir por nós. Então, nós temos que saber mostrar também a nossa
capacidade, o que somos capazes também de construir, de realizar. Então, a gente
tem que mostrar essa força também. E tem que ter essa educação Munduruku
sempre também. Então, sem educação Munduruku, também, a gente não ia chegar
onde a gente tá. É... a gente tá num segundo, formação para nós essas coisas de
cultura pariwat. Então é isso.
Maria Leusa Munduruku: Hoje a gente ainda não tenha divulgado o Munduruku.
São todos... Eu acho que hoje o Munduruku tem... deixa eu ver, eu acho que tem
mais de 20 Munduruku cursando direito. Mulheres e homens. Mulheres são bem...
eu acho que de mulheres, a gente só tem duas mulheres, eu acho, Munduruku do
Alto-Tapajós, eu e a Alessandra cursando. O resto são homens. Então, isso é muito
importante pra gente, porque a gente quer participar desse processo. Sabemos que
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eu acho que isso é uma luta que a gente quer, e a gente torcendo que a gente
consiga também... é difícil, é muito difícil a gente entender esse processo.
Então, isso nós fortalecemos, porque mesmo que a gente não sabe como a gente
vai ser e como vai ser o processo de ensino dentro de uma sala longe da aldeia
ainda, apesar de um clima muito diferente, nós saindo do nosso território, chegar
numa cidade e não saber como conviver, mas a gente aprende tudo isso. É difícil
sair do seu território e depois entrar numa universidade que está ali. Sabemos que
nenhuma universidade está preparada para receber os indígenas, mas eu acho que
a gente tem muita força. E muita vontade, também, para enfrentar tudo isso dentro
da universidade. Mas, a gente vê que não é só nós, que a gente já vê também outros
exemplos, como os nossos parentes já cursaram universidade! Já sofreram
também, principalmente, a gente sempre fala do Eloy Terena que está ali, que
participou de várias contestações pela demarcação do território contra o marco
temporal. A gente se inspira neles também. E tem uns quilombolas, os advogados,
então, a gente fala que a gente não está sozinho. A gente tem que estar ali e
aprender para estar ali para somar essa força, principalmente nessa questão
jurídica, que a gente não entende nada, que não entende nada com a cultura
pariwat com a cultura Munduruku. Então, mas a gente está aprendendo devagar.
Acredito que a gente vai conseguir, porque já tivemos várias vitórias, tivemos
vários desafios de conseguir chegar. E por que que a gente não vai conseguir
agora? Mas a gente está aqui na luta. E mesmo que a gente não sabe, a gente vai
aprendendo os poucos.
Dossiê Direito e Relações Raciais: Uma coisa, também, que eu fiquei pensando
enquanto a senhora falava sobre essa necessidade de vocês precisarem sair desse
espaço, como a senhora falou, as mulheres não podem se afastar do território, mas
a senhora se viu obrigada a sair para começar a estudar e ir para a universidade
fazer Direito para a construção de defesa, para a defesa do seu território e do seu
povo. Eu queria que a senhora falasse um pouquinho como é o acesso à justiça, no
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A mulher Munduruku na luta pela vida e território do seu povo: entrevista com Maria Leusa Munduruku 37
Maria Leusa Munduruku: É... aqui onde a gente está, a gente sempre faz muita
denúncia ao Ministério Público, através das nossas associações, principalmente, de
organização das mulheres. Hoje, a gente tem os nossos assessores jurídicos próprio
trabalhando para nós e a gente faz essa denúncia, a gente faz fiscalização. Então, a
associação é uma fiscalizadora de tudo o que está acontecendo. Toda a violação
que está acontecendo dentro do território a gente faz essa denúncia para o
Ministério Público, ou então para a ONU, porque o Estado que está violando o
nosso direito. A gente fez muita denúncia por conta... no tempo da pandemia. E a
gente fez muito, por conta da invasão, para a ONU, denunciando o Estado
brasileiro por estar violando o nosso direito. Então, a gente pede muito essa
denúncia, a gente faz através das nossas organizações. A gente faz a assembleia
primeiro. E depois faz uma denúncia coletiva. Então, é isso que a gente sempre faz.
Dossiê Direito e Relações Raciais: Maravilha! Então, para fechar, vou fazer aqui
uma pergunta, porque hoje você pintou meu rosto duas vezes de urucum. Então,
primeiro você vai dizer, se for possível falar, por que você pintou nossos rostos de
urucum e o que isso significa para o povo Munduruku?
Maria Leusa Munduruku: Isso é uma cultura. Todos os eventos a gente tem, essa
pintura de urucum é para fortalecer, para ter essa energia. O urucum é uma coisa
que a gente usa nas brincadeiras e para fortalecer também durante as assembleias,
encontros, a gente usa muito ela. Não pode lavar o rosto, aí já passa de novo. Tem
que passar de novo. Então, ela traz uma força para nós como nossas antepassadas
falavam que tem que usar, não pode esquecer dessas brincadeiras tradicionais.
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Maria Leusa Munduruku: Eu que agradeço também você e Inara, muito prazer...
de longe, mas eu que agradeço por oferecer essa oportunidade, porque é muito
difícil a gente ter esse espaço, de estar ali falando da luta, de compartilhar para o
mundo vê. Para outras pessoas, receber a transmissão dessas mensagens que a
gente tem. Então só tenho que agradecer.
Referências
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A mulher Munduruku na luta pela vida e território do seu povo: entrevista com Maria Leusa Munduruku 39
Sobre a entrevistada e os
entrevistadores/as
Maria Leusa Munduruku
Liderança do povo Munduruku, do estado do Pará, no município de
Jacareacanga. Tem 36 anos de idade, nasceu na aldeia Missão Cururu,
no alto rio Tapajós, na Terra Indígena Munduruku. Mãe de cinco filhos e
dois netos. Guerreira e defensora do território e da vida do povo
Munduruku. Atualmente, coordenadora da Associação de Mulheres
Wakoborun.
__________________________________________________________________
A fotografia que ilustra a entrevista é de autoria de Marizilda Cruppe
(arquivo Amazonia Real).
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52392
diálogos insurgentes
Submetido em 26/01/2024
Aceito em 30/01/2024
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ISSN 2447-6684
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons 4.0.
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42 Deise Benedito - Inara Flora Cipriano Firmino - Emília Joana Viana de Oliveira - Rodrigo Portela Gomes
Além do domínio conceitual que pôde construir nestes 40 anos para este leque de
conteúdos que atravessam sua vida, Deise nos oportunizou acessar um acervo
memorial relevante para o campo do Direito e Relações Raciais. Em grande
medida, ainda tomamos os registros acadêmicos para credenciar os pressupostos
dos estudos críticos raciais no direito. Entretanto, Deise nos ajuda a identificar, e
1 Entrevista realizada por videochamada, no dia 19 de dezembro de 2023, por meio da plataforma
Teams. Duração de 1 hora e 53 minutos.
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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 43
Deise é a tradução da complexa rede que a agência negra vem produzindo para
resultados políticos, culturais, econômicos, jurídicos e sociais que assegurem a
continuidade da vida negra no país. O seu papel aglutinador e a habilidade de
negociação, que ela destaca, também evidenciam a força dos movimentos e
organizações negras. Quando olha o seu passado, ela mesma reconhece o quanto
os seus horizontes foram ampliados ao se deixar ser atravessada por estes projetos
coletivos.
A mulher preta que ocupou e ainda ocupa muitas posições de poder simbólico,
institucional ou político reverencia sua ancestralidade negra ao se definir como
uma pessoa em movimento que diariamente deve cumprir a sua missão de vida:
lutar contra aquilo que não se transformou. Naveguemos, assim, pela imensidão
de movimentos desta entrevista.
***
Optamos pela reprodução quase literal do conteúdo da entrevista, nesse sentido, foram
feitos apenas ajustes gramaticais em algumas passagens para assegurar a experiência do
diálogo e valorizar a dimensão da oralidade reivindicada como recurso importante da
agência negra no contexto da diáspora africana.
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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 45
Dossiê Direito e Relações Raciais: Então vamos lá começar esse espaço em que a
gente está recebendo a Deise Benedito para ouvi-la para a contribuição no Dossiê
de Direito e Relações Raciais, na sessão de diálogos insurgentes, onde a gente traz
entrevistas. Pensamos no seu nome, pois traz a sua contribuição enquanto
pensadora, tendo em vista que a nossa geração não dividiu todos esses caminhos
com você. Então, poder te ouvir no sentido de sistematização memorial, pois
entendemos que os diferentes espaços que a gente vai falar aqui são espaços muito
relevantes, onde a sua trajetória também conta um pouco para gente a história dos
debates institucionais, dos movimentos sociais, enfim, diferentes espaços, né, de
enfrentamento ao racismo no Brasil.
Deise Benedito:
A questão racial eu tive que ver muito cedo, porque uma das questões era, assim,
os meus pais brancos e eu, pretinha, e eu perguntava para minha mãe: “mãe, por
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46 Deise Benedito - Inara Flora Cipriano Firmino - Emília Joana Viana de Oliveira - Rodrigo Portela Gomes
que que eu sou preta e vocês são brancos?”. E minha mãe dizia: “a cegonha deixou
você cair da chaminé”. Tinha uma empresa, uma fábrica, uma siderúrgica perto de
casa e ela falava “você caiu lá e ficou pretinha”. Mas eu sempre fui uma criança
insurgente. Com uns cinco anos de idade eu já sabia ler e já sabia escrever, porque
eu fui alfabetizada muito cedo. E aí, minha mãe às vezes saia e eu fuçava nas coisas
e aí eu fucei em uma gaveta que tinha uns papéis dentro de uma pasta, e lá eu
defrontei com a minha certidão de nascimento. Filha de Patrocínia Inácia Correia,
pai ignorado, nome da avó, Maria Juliana Soledade, avô Joaquim Antônio Sena
Cor parda. E aquilo ficou assim. Então, eu descobri muito cedo que eu não era filha
da minha mãe de criação. E ela sempre contando historinha, sempre contando
histórias. E o confronto com a questão racial quando era criança, na década de 70,
começou, assim, de eu ir para escola, ia para o pré-primário toda arrumadinha e
quando chegava lá as meninas: “cadê a sua mãe?” e eu falava assim: “ela é minha
mãe, aquela é a minha mãe”. “Mas a sua mãe é branca? Ela não é a sua mãe!” eu
falava “é minha mãe, é minha!”. Entendeu? E esse conflito era muito, também, em
sala de aula. Era a única criança negra. Ou era eu e mais uma. E a minha mãe, às
vezes eu chegava em casa chorando e falava: “Ah, me chamaram de negrinha, de
negrinha preta...” e a minha mãe de criação me ensinou “olha, quando alguém te
chamar de negrinha preta, você fala que negrinha preta é o que a mãe delas tem
no meio das pernas, pode falar desse jeito mesmo”. [risos] E aí “ó, minha mãe
mandou dizer que negrinha preta é o que a sua mãe tem no meio das pernas” e
assim eu era um terror. E eu sempre fui uma criança muito ativa. Eu sempre fui
uma criança que não parava. Muito curiosa.
E eu mudei muito de escola por conta da questão racial. Minha mãe, quando eu
reclamava, às vezes minha mãe falava: “pede para ir ao banheiro, não responde
para a professora...”. E aí, um dia, teve uma das professoras que eu tive, eu pedi
para ela deixar aí no banheiro. Ela “não vai no banheiro, não, sua negrinha”. Aí eu
falei: “negrinha não! Minha mãe mandou dizer que negrinha é o que a senhora tem
no meio das pernas”. A professora ficou louca e eu fiz xixi na sala de aula... eu
tinha acho que uns oito anos de idade. E fiquei de castigo virada para a parede, ela
escreveu que a minha mãe tinha que comparecer em casa, aí minha mãe todo dia
via meu caderno, que era a única filha. Então minha mãe via o caderno tal, viu lá
comparecer na escola e minha mãe: “o que aconteceu?”. Aí eu falei: “Ah, mãe, eu
fiz o que a senhora falou. Eu pedi para professora para ir ao banheiro. Ela não me
deixou ir ao banheiro, ela me chamou de negrinha, e eu falei que negrinha era o
que ela tinha no meio das pernas. Ela mandou chamar a senhora na escola”. E aí
minha mãe foi para escola. E quando chegou na escola, minha mãe chegou comigo,
minha mãe foi para diretoria e lá na diretoria a diretora perguntou: “Deise, cadê
sua mãe?”. Eu falei: “essa é a minha mãe”. Aí minha mãe virou uma arara. Minha
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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 47
mãe falou assim: “eu sou a mãe da Deise! Ela é a minha filha e eu tiro minha filha
agora dessa escola. Ela não volta mais estudar aqui!”. Então, a minha mãe branca,
muito cedo, teve que enfrentar a questão racial. Aí ia para outra escola e era a
mesma coisa, eu queria ir ao banheiro e era a mesma bagunça. E a minha mãe
quando tinha que enfrentar o conflito, ela me transferia de escola. E ela não... ela
percebia, mas não tinha o que fazer na época, pela discriminação. E não era só eu,
outras meninas na sala de aula também a gente sofria muito racismo. E em uma
das escolas que eu estive, na sala de aula todo mundo já estava usando caneta de
tinta, caneta bic, e eu não usava. Aí eu falei: “professora, por que todo mundo usa
e eu não uso?” Ela fala assim: “porque você tem a letra muito feia e você não sabe
usar uma caneta”. Eu falei: “tá bom! Quando eu crescer, eu vou ter a letra bem
bonita. A senhora vai ver!” Entendeu? E assim, todo mundo com uns seis meses,
sete meses já estava usando caneta e eu usava lápis. Aí eu falei pra minha mãe,
minha mãe ficou puta da vida, foi na escola, brigou com a professora, me tirou de
lá. Eu passei por umas quatro escolas na fase de ensino fundamental. Eu também
não era um anjo [risos] e aí, a essa altura do campeonato, eu sempre enfrentei essa
questão racial e minha mãe e meu pai sempre falavam “quando alguém te chamar
de preta, suja, fedida, fedorenta, pobre, não sei o quê, te xingar... você responde!
Você não traga desaforo para casa! Se você brigar na escola e chegar chorando,
aqui você vai apanhar de novo!”. Então, eu sempre tive que responder.
E aí quando eu já tinha meus... eu entrei para o ginásio e tal, fiz ginásio, entrei e fiz
o colégio, aquela coisa toda, fui trabalhar. Fui com 14 anos, eu já estava
trabalhando e já tinha minha carteira profissional, já estava trabalhando... trabalhei
de costureira, trabalhei em fábrica, trabalhei de passadeira, trabalhei de manicure
e eu sempre punha na minha cabeça e minha mãe ficava sempre falando: “se você
não estudar, você vai ser empregada doméstica. Vai ter que lavar a roupa, ficar
lavando bunda de patroa, limpando a sujeira dos outros”. Minha mãe falava: “você
não sabe o que é ser empregada doméstica. Empregada doméstica sofre muito”. E
tinha uma família negra na minha rua, e eu via que as moças que eram empregadas
domésticas elas saiam no domingo e só voltavam no sábado à tarde. Ficava o
domingo em casa e depois segunda-feira já ia embora. Então, eu falava: “eu não
quero isso para mim!” Então, minha mãe sempre... e eu fui... como eu morava num
bairro pobre, aquelas ruas de terra, tudo... Então, eu fui uma criança da terra, da
rua, entendeu? E perto de casa era uma boca de fumo, entendeu? A gente conhecia
a bandidagem, a bandidagem respeitava a gente, então eu fui criada num bairro
de periferia, num bairro pobre, mas, assim, eu sempre tive muita relação com
pessoas negras por causa da minha própria identidade.
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E, por um lado, tinha aquela busca pela minha mãe biológica. Porque, eu nunca
falei para minha mãe que eu sabia, que eu já tinha visto a certidão de nascimento.
Ela pensava que eu nunca ia saber. Quando eu tinha meus nove anos de idade –
como foi a adoção plena, antigamente você ficava com a criança, e você tinha que
passar a cada três em três meses no Juizado de Menores e a minha adoção levou
oito anos, porque era muito, era muito lento o processo de adoção antigamente –
eu fui, era na Asdrúbal Nascimento, no centro de São Paulo, minha mãe me levou
lá no Juizado de Menores, como eu era uma criança impossível, e aí arrumadinha,
sapatinho, cabelinho arrumadinho, tal, tudo direitinho... esta criança que vos fala
resolve descer as escadas do andar que eu estava, ia passar com a assistente social,
com a psicóloga e com o juiz, aí eu não sei o que a minha mãe estava conversando
com outras mulheres lá, eu só sei que eu só larguei a mão da minha mãe, peguei e
desci as escadas. Fui descendo, descendo, descendo e acabei chegando em uma
triagem e nessa triagem eu deparei com um monte de meninos negros, todos
dentro de uma grade. Era o extinto RPM, Recolhimento Provisório de Menores, e
como era na época da ditadura, tinha uma lei em alguns bairros que era um toque
de recolher, então, crianças que estavam nas ruas a partir das 8:00 da noite, eram
recolhidas pelo Juizado de Menores e os pais tinham que buscar no outro dia. Se
não fosse buscar, aquela criança ficava lá internada até o dia que Deus quiser. E eu
muito curiosa, desci. Quando eu vi aquelas crianças, eu vi que não tinha guarda
nem nada, cheguei perto da grade e aí os meninos: “menina, abre aqui para gente!
Abre aqui para mim, para gente fugir!”. Aí eu olhava assim e eu falei: “olha, eu
não tenho a chave, mas eu vou dizer uma coisa para vocês, aí não é lugar de criança
ficar! Quando eu crescer, eu vou tirar todas as crianças daí. Aí não é lugar de ficar”.
Eu tinha nove anos de idade, cara! Aí, de repente chegou um cara e eu tenho essa
imagem, essa cena muito nítida na cabeça, me marcou muito na vida isso. Aí minha
mãe pegou... o guarda me pegou, me levou com a minha mãe, minha mãe
desesperada para saber onde é que eu estava... e aí eu ainda passei pelo juiz, pela
assistente social, tal, tudo direitinho e, no meio do caminho, que eu estava voltando
para gente pegar o ônibus pra casa, passei na frente do Fórum Criminal, em São
Paulo. Aí eu olhei o prédio do Fórum Criminal Mário Guimarães, mostrei para
minha mãe, falei: “mãe, tá vendo aquele prédio?” Minha mãe: “Estou!”. “Quando
eu crescer, eu vou trabalhar ali. Vou trabalhar nesse prédio, mãe”. E vida que
seguiu.
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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 49
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estava o Milton Cardoso, estava Sueli Carneiro, Edna Rolan, Ana... as pessoas do
Movimento Negro, que o pessoal chama de dinossauro, mas estavam todos
novinhos. E aí eu olhei assim e eu fiquei encantada.
Eu nunca tinha visto preto que tinha feito história, era advogado, psicólogo... eu
fiquei assim... pra mim era um outro mundo, porque os pretos que eu conhecia
eram ou faxineiro, ou empregada doméstica ou era trabalhador da siderúrgica. Era
trabalhador de siderúrgica e o máximo que os meninos estudavam, na minha
época, era curso de ferramenteiro, torneiro mecânico. Eu nunca tinha visto
nenhum negro da minha idade, da minha geração, fazendo faculdade ou formado
em faculdade. Então, pra mim aquilo era um outro mundo. É possível, você
entendeu? E aí eu fiquei observando eles discutindo e falando do racismo, do
mercado de trabalho, da violência policial, e aí foi “alguém quer falar?”. Aí eu
levantei a mão e a Dulce Pereira falou: “deixa essa mocinha, essa menina falar”.
Eu tinha 22 anos. Aí eu falei: “Ah, o que eu quero contar para vocês é que eu fui
arrumar emprego, e no emprego falaram de gente de cor, e eu não tenho cor, e não
sei o quê, não sei o quê, não sei o quê”. Eu chutei o balde. Aí a Dulce Pereira falou:
“Ah, e qual é o nome?” “É Deise”. “Ah, aguarda aí, Deise. No final da reunião, eu
quero conversar com você”. E aí... porque o meu sonho era ir naquele lugar,
denunciar e que, possivelmente, ia ser feito alguma coisa por aquilo que aconteceu
por eu ter sido tão diretamente vítima de racismo. Aí eu de bairro pobre, então, a
gente não tem tanta formação assim. E aí a Dulce me chamou, começou a conversar
comigo, me apresentou ao Miltão, o Milton Barbosa, e me apresentou as outras
pessoas do MNU2 e eu nunca tinha visto. Foi quando me apresentou pra Sueli e
ela falou assim: “Deise, você não quer participar de uma reunião de mulheres que
a gente vai fazer tal dia? Vai ser na Funap. Você não quer ir? Seria legal você ir”.
Eu falei: “tá bom”. E aí, nesse período, já tinha passado alguns anos, e eu comecei
a ir nas reuniões na Funap, aí eu conheci a Edna Roland, tal, então eu me encantei.
Eu ia nas reuniões muda e calada, porque eu queria entender. Eu queria aprender
aquilo que aquelas pessoas... sabe assim? Você nunca imaginar uma mulher ser
psicóloga? Uma mulher negra, uma pessoa negra, nunca, nunca, nunca! Era uma
coisa distante... um sonho muito, muito, muito distante, né? E o meu sonho, como
toda menina do bairro, era casar com 23/24 anos, ter filhos... olha só [risos].
E aí, cara, ao mesmo tempo que eu queria sonhar com casa nova, ao mesmo tempo
eu queria curtir, porque eu era muito presa, então, minha mãe não deixava ir para
os bailes, sair tal, era um inferno. E aí, quer dizer, eu tinha que trabalhar. Eu
2 O Movimento Negro Unificado (MNU) é uma organização política e social, fundada em 1978.
Disponível em: https://mnu.org.br/mnu-3/. Acesso em: 14 jan. 2024.
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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 51
3 O Geledés é uma organização da sociedade civil que atua na defesa das mulheres e negros. Foi
fundada em 1988. Disponível em: https://www.geledes.org.br/geledes-instituto-da-mulher-
negra/quem-somos/. Acesso em: 14 jan. 2024.
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E aí, a essa altura do campeonato, eu sempre observava tudo isso. Aí eu fui para o
fórum e me envolvi. Já estava em Geledés trabalhando e aí era movimento dos
anos 88/89, redemocratização, greve, aquele inferno todo e eu comecei a ferver.
Depois do engajamento de Geledés, juntamente com o sindicato, que buscava a
melhoria de salário, porque a gente tinha estabilidade, mas não tinha salário legal
ainda. E aí eu fui indo, indo, indo, aí depois, um certo dia, teve uma atividade de
Geledés na Câmara Municipal, eu tinha ido, era no meio dessas greves que a gente
era relotado. O funcionário que fazia muita greve, era relotado e em uma das
greves eu falei, a gente estava na frente do Fórum João Mendes, em São Paulo, eu
falei: “aqui, a gente trabalha que nem escravo. Só falta saber a hora que é o açoite!
Tenho certeza que aqui onde eu estou foi um Pelourinho”. Anos depois, eu
descobri que realmente tinha um Pelourinho ali onde eu falava que era lugar de
açoite. E aí eu respondi um processo administrativo por causa das minhas
bagunças, e fui relotada para a Vara de Execução Criminal, que era o pior lugar
para mandar funcionária. Ali era de tirar cadeia mesmo! Cadeia dura! E se eles
soubessem o bem que eles me fizeram... [risos]. Eu não estaria aqui falando com
vocês, não teria virado criminóloga se eu não tivesse caído naquele lugar.
Eu fui para a Vara de Execução Criminal, trabalhava com carta de guia, expedição
de carta de guia, mandado de prisão, cálculo de penas, esses negócios todos. E aí,
como eu sempre fui muito rápida no meu trabalho, eu fazia tudo depressa para
ficar lendo os processos e quando nem se pensava em fazer recorte racial, de
gênero, crime, essa coisa, eu estava nos anos 90... nem se imaginava. Acho que era
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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 53
89/90. Acho que era 90. Aí eu estava trabalhando no Tribunal de Justiça, na Vara
de Execução Penal e começava a fazer quadradinho pelos processos que eu lia e eu
via que a maioria era de jovens negros. E era artigo 155 e 1574 que era furto e roubo,
e eu falava, mas que coisa? Aí eu fui fazendo, aí eu fui observando e sempre que
tinha as reuniões de Geledés eu comentava: “óh, gente, a maioria dos meninos que
estão na prisão é tudo preto! É tudo preto! É tudo preto!” Sabe? Isso em 1990! As
detenções, na época, tinham 1.500, não... 7.000 presos e a capacidade era de 1.500.
E eu não via só os processos. Eu vi aquelas mães, aquela senhorinha que ia lá ver
o julgamento do filho, porque não tinha audiência de custódia. Então, ia para as
audiências para ver se o filho ia ser preso ou não. Não tinha Defensoria e eu via
aquela senhorinha, aquelas velinhas, aquelas mulheres pretas com 3/4 criança,
quando o réu passava na frente era algemado e as mães gritavam “meu filho, meu
filho”. Ah, aquilo me doía o coração, sabe? E quando ele saia condenado, então,
era uma choradeira, sabe... “eu vou te ver, meu filho, eu vou te ver!”. Ah, era muito
triste. E aí aquilo foi aumentando a minha curiosidade e eu falei, gente, deve ter
um outro lugar para gente desaguar tudo isso. Teve uma reunião de Geledés na
Câmara Municipal que Harlem Désir5, o fundador do Stop Racismo - era uma
organização francesa que trabalhava contra o racismo na França, nos anos 90. E aí
Harlem Désir falava, discutia a questão racial e eu, assim enlouquecida,
absorvendo tudo. Foi quando eu vi um padre branco, dos olhos azuis olhando para
aquele Harlem Désir e fez uma pergunta: “você sabe que, no Brasil, a maioria dos
caras que estão nas prisões são negros?” E aí Harlem Désir respondeu: “eu não
sabia!” e ele tinha tudo escrito. Era o Padre Chico da Pastoral Carcerária, ele
parecia o Paul Newman, era muito bonito. E ele fez aquela pergunta, impactou
todo mundo, porque era um homem branco falando da questão racial.
Aí todo mundo se despediu dele e tal e ele ficou me olhando, eu falei oi, ele falou:
“você é quem?” Aí eu falei: “sou a Deise”. Ele “você trabalha em Geledés?”. “É
sim! E trabalha no Tribunal de Justiça”. Ele: “onde?”. “Na vara de Execução
Criminal”. Ai, meu filho, aí a amizade valida né? Aí ele “trabalha na Vara de
Execução, é? Onde tem uns processos, os pedidos que eu vou na detenção,
converso com os presos, ele vê, tem muito preso negro lá... você podia olhar...”. Aí,
cara, vira um parceiro. Ele passava pra mim o número dos processos e eu via as
execuções, respondia para ele a situação dos presos, e aí foi por anos a gente
4 Referência aos artigos que estabelecem os crimes de furto e roubo no Código Penal. Disponível
em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 14 jan.
2024.
5 Harlem Désir é um político francês, que fundou a instituição SOS Racisme em 1984. O SOS
Racismo de Geledés foi lançado em 1991 com a presença de Harlem Désir. Disponível em:
https://www.geledes.org.br/harlem-desir/. Acesso em: 24 jan. 2024.
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fazendo isso. Até que um dia ele me convidou para participar da Subcomissão de
Política Criminal e Penitenciária na OAB/SP e eu fui e chegando lá aquele mundo
de branco. Advogado? Bem alimentado e a minha era a única cara preta. Aí o
pessoal “ah, seria legal alguém do movimento negro participar da subcomissão”.
Aí eu falei ah, eu vou falar com o pessoal do Geledés e ver o que o pessoal acha.
Como eu trabalhava na área de direitos humanos, falei pra Sueli, a Sueli: “Ah, é a
sua cara! Pode ir! Você que gosta disso vai, você que é da área de violência, vai”.
Aí eu fui, eu trabalhava... eu era de Geledés, da Subcomissão e trabalhava na Vara
de Execuções Penais. Então, era melhor dos sonhos. Os melhores dos mundos pra
aprender tudo que eu aprendi ali. E na subcomissão, a gente começou a fazer as
primeiras visitas nos presídios... nos presídios não, nos distritos policiais, porque
em São Paulo não tinha o Centro de Detenção Provisória ainda, então, os presos
ficavam todos nos distritos policiais. Então, no lugar que cabia 20, tinha mais de
200, era superlotado, era horrível. Eram gaiolas e sempre me vinha aquela imagem
daqueles meninos. “Me tira daqui”. Eu olhava aquilo e lembrava daqueles dos
meus irmãos que eu não conhecia e vinha: “Será que meu irmão está preso? Será
que eu tenho irmão preso? Será que eu tenho um sobrinho preso?” E eu tinha isso
e mais um uma ideia, também, que aconteceu e que eu pulei, mas depois eu retorno
pra vocês, que eu comecei a ir para os distritos. Dava um perdido, a minha chefe
era minha diretora e ela era maravilhosa, ela era ativista do movimento contra a
ditadura daqueles jovens insurgentes de classe média. O marido era da VAR-
Palmares6 e ela sempre apoiou todas as minhas bagunças que eu pudesse fazer lá
ela apoiava, porque ela achava sensacional. E aí eu falava: “olha, eu vou ter que ir
lá...” e ela falava: “você volta às 8:00”. “Não beleza, chego aqui 8 horas”. E eu ia
junto com o pessoal da OAB para os distritos policiais, tanto de homem como de
mulher, então, eu comecei conhecendo os distritos policiais, então eu conheci a
Vara de Execução Criminal; eu conheci a rotina das mães, a rotina de ir, de chegar
lá às 8:00 da manhã... é 5/6 horas da manhã na fila e o fórum só abrir às 11h; eu
conheci o ritual dos presos chegarem no camburão, tipo 6 horas da manhã, ficar
sem comer o dia, praticamente o dia todo, e só comer 6 horas da tarde, quando saia
de lá, quando estavam indo para a casa de detenção, a maioria ficava lá na
detenção e alguns que vinham dos Distritos.
O massacre do Carandiru
6 Organização política de esquerda que participou de resistência armada durante a ditadura civil-
militar. Disponível em: https://atlas.fgv.br/capitulos/nova-republica-1985-2009. Acesso em: 24
jan. 2024.
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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 55
o ano passado, saiu até uma publicação de um livro sobre a pandemia da Covid-
19 que eu conto os 31 anos do Massacre. Esse ano eu também escrevi para o
Migalhas7 falando de mais um aniversário do Massacre do Carandiru. E aí eu
trabalhava lá e como a gente não tinha todas as informações, a gente estava
trabalhando, aí estourou o Carandiru, estourou aquela rebelião, aquele rebuliço lá
dentro do setor que eu trabalhava. Toda a Vara de Execução, todo mundo
preocupado com o que tinha acontecido no Carandiru. E aí, no dia seguinte a gente
não podia sair... como o tribunal era perto da OAB, então era tudo pertinho a pé a
gente fazia o circuito, era perto de Geledés, era perto do tribunal e perto da OAB.
Então, era um triângulo que a gente fazia e estava tudo pertinho. E aí não deu para
ir na Casa de Detenção naquele dia, na hora do massacre, mas a gente ficava
acompanhando da televisão, porque não tinha celular, não tinha nada. A gente
ficou na OAB, eu e umas colegas minha ficamos na OAB, eu era a única cara preta
dessa comissão.
No outro dia a gente combinou que de manhã a gente ia para a Casa de Detenção
de São Paulo e, quando foi de manhã, às 6/7 horas da manhã, a gente estava na
porta da Casa de Detenção, com aquele monte de mãe, monte de mulher preta
chorando, os filhos, a polícia jogando os cavalos em cima e a gente estava perto do
portão junto com os deputados, a comissão, uma parte da comissão, e a outra parte
já tinha entrado. Eu estava aguardando autorização. Quando foi dando a hora de
eu entrar, eu tomei uma borrachada no peito e o policial falando: “você não vai
entrar não”. Eu falei: “como que eu não vou? Eu sou da comissão da OAB, como é
que eu não vou entrar?”. “Não, você não vai entrar não”. Ai, veio um deputado
que me puxou pelo braço, Walter e disse: “Não, ela vai entrar, porque ela está
comigo. Eu sou deputado estadual, ela vai entrar”. E aí eu entrei e no meio do
caminho, antes deles tirarem aquela montanha de gente que estava, uma mulher
me olhou e deu um papelzinho, bem pretinha. Ela falou assim: “olha, aqui está o
nome do meu marido. Eu não sei se ele está vivo ou está morto. Eu tenho 6 filhos.
Fala para mim, moça, se você conseguir achar meu marido. Eu vou ficar aqui
esperando a senhora”. Aquilo me cortou o coração e eu fui, levei o papelzinho do
marido dela na mão com o nome e aí a gente entrou, aquele cenário, aquela
sangueira, aquele desespero, os presos nas grades chorando. Uma das coisas mais
terríveis! E aí eu consegui entrar no Pavilhão 9 e ainda os presos lavando o chão
cheio de sangue. Eu cheguei lá e quando a gente sobe pra ir lá no lugar, tudo aquela
sangueira e eu fui na parte dos presos que estavam trabalhando na área
7 É o texto “31 anos do massacre do Carandiru - Onde estão os filhos do massacre”. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/coluna/direitos-humanos-em-pauta/395050/31-anos-do-massacre-
do-carandiru--onde-estao-os-filhos-do-massacre. Acesso em: 14 jan. 2024.
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56 Deise Benedito - Inara Flora Cipriano Firmino - Emília Joana Viana de Oliveira - Rodrigo Portela Gomes
Aí eu e o Caco batemos todos os nomes. Eu peguei, fiz uma lista escrita à mão, falei
vou levar esses nomes lá para a Vara de Execução, ver quem já tem execução e
quem não tem. Saí de lá umas 4 horas da tarde, cheguei no meu serviço, a chefe
estava lá e bateu o meu ponto, e aí eu falei para ela: “olha, está aqui a lista. Dá para
levantar?”. Ela respondeu: “Dá, Deise, dá para levantar. Que horas você tem que
entregar essa lista?”. Falei: “Ah, assim, é mais rápido possível, né? Ninguém sabe
quem é que está vivo, quem está morto, quem tem execução, quem não tem”. Ela
pediu para uns quatro funcionários levantar as execuções. Passou todos os nomes
dos presos, os que tinham execução. A maioria dos que morreram não tinham
ainda passado na audiência. Eram jovens de 18 a 25 anos. Tiro na cabeça, tiro na
nuca. E não tinha execução. Aí eu levei para o pessoal da OAB, como eu tinha
falado, e aí o pessoal fez os levantamentos. Eu acompanhei uma boa parte do
inquérito, os laudos da Casa de Detenção de São Paulo. Acompanhei por muitos
anos e aí fiquei lá.
Continuei e Geledés fazendo as coisas e aí, quando foi em 90... no mesmo ano de
92, o massacre foi em outubro, né? Em maio eu estava em Geledés e aí estava tendo
uma manifestação no metrô dos jovens do movimento hip-hop, do rap. Os rappers
estavam fazendo a respeito de um jovem que tinha sido morto dentro do metrô,
porque estava cantando Rap. E aí estava o Miltão, estava todo mundo do
movimento, e aí o pessoal pegou e falou, precisa falar, Geledés tem que falar
alguma coisa. Deise está aí, então você fala. Aí, eu fiz um discurso enlouquecido.
E fiz amizade com os meninos do movimento do hip-hop, o KL Jay... todos os
meninos do movimento, o Dexter, que era novinho. Todos esses meninos eu
conheci do hip-hop eu conheci lá, na Praça da Sé, nessa manifestação. E aí eles
queriam mais informação sobre questão racial e eu falei de Geledés... “Ah, a gente
quer ir lá! A gente quer ir lá”. Eu falei pra Sueli. Sueli achou a ideia interessante. E
os meninos começaram a frequentar o Geledés, a ler os livros, a discutir texto, essa
coisa toda. Até que surgiu a ideia de criar o Projeto Rappers8, que está fazendo 30
8 Desenvolvido entre 1992 e 1998 pelo Geledés foi um projeto voltado para a juventude negra
provocada pelo movimento hip-hop a partir do impacto da ação SOS Racismo que a entidade
vinha desenvolvendo. No passado foi lançado o documentário “Projeto Rappers: A Primeira Casa
do Hip Hop Brasileiro – História e Legado”, nele é narrado o pioneirismo do projeto administrado
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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 57
anos. Depois eu mando para vocês o vídeo sobre os velhos hoje falando do Projeto
Rappers, e eu apareço lá no vídeo falando como foi.
E aí, eu comecei a falar em público depois dessa parte de 92, eu comecei a falar na
OAB, eu comecei a colocar a questão racial. O pessoal da subcomissão criou o
primeiro curso de execução penal, porque muitos juízes não sabiam lidar com a
execução penal e muitos advogados depois da sentença, não sabia o que fazer. Aí
eu fui explicando a carta de guia; quanto é o tempo; o lapso temporal para fazer
pedido de progressão; o que é que precisava; o laudo criminológico, que eu
devorava aqueles laudos lombrosianos. E aí, eu fui ficando e quando foi em 99, eu
saí de Geledés. O Padre Chico da Pastoral Carcerária faleceu e muita gente saiu da
subcomissão, mas fiquei ainda até 2003/2004, quando foram os primeiros
julgamentos dos policiais do massacre e fui ganhando minha vida. Aí mais para
frente, eu fui para a Fala Preta9, a organização de mulheres negras. E fui trabalhar
também com questão de violência, direitos humanos. E aí foi a minha vida.
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58 Deise Benedito - Inara Flora Cipriano Firmino - Emília Joana Viana de Oliveira - Rodrigo Portela Gomes
10 O primeiro encontro da juventude negra brasileira ocorreu, nos dias 27 a 29 de julho, na cidade
Lauro de Freitas (BA). Disponível em: https://www.palmares.gov.br/?p=2211. Acesso em: 14 jan.
2024.
11 Deise foi secretária-executiva do fórum que reunia cerca de 40 organizações de 15 estados
brasileiros. No ano de 2005, teve importante contribuição no 1ª Conferência Nacional de
Promoção da Igualdade Racial, quando apresentou mais de 150 propostas. Disponível em:
http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil//noticia/2005-07-01/forum-nacional-de-mulheres-
negras-apresenta-mais-de-150-propostas-na-conferencia. Acesso em: 14 jan. 2024.
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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 59
das mulheres presas na OAB, em 91, eu, a Ruth, Adriana e a Margarida (Deus a
tenha) e eu sempre fui a única mulher preta.
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60 Deise Benedito - Inara Flora Cipriano Firmino - Emília Joana Viana de Oliveira - Rodrigo Portela Gomes
durante tantos anos tinha se concretizado. Minha mãe estava ali na minha frente e
ela me olhava: “Me perdoa! Me perdoa, mas se eu não fizesse isso você ia morrer
de fome. Você não estaria aqui. Eu sempre vi você de longe. Eu ficava te vendo de
longe. Descia lá, eu sabia a hora que você ia trabalhar e eu ficava atrás do poste te
vendo. Via você ir para escola. Via que você estava sendo bem-criada”. Eu falei:
“mas o que que vocês fizeram?”. Ai ela disse: “A gente fez um acordo que eu nunca
procuraria você. Que já que foi dado, foi dado e que eu nunca ia poder ficar perto
de você. Mas, eu estava preocupada que você já ia fazer 18 anos. Eu tinha medo de
você conhecer seu irmão e de repente vocês namorarem e não saber que são
irmãos. Então, seu irmão sabia que quando você fizesse 18 anos ele ia te procurar
e dizer que era teu irmão, ia trazer você aqui pra gente te conhecer, pra você
conhecer os seus irmãos”.
E aí eu conheci aqueles meus irmãos... uma branca, outra mais escura, tudo, e nem
um parecia comigo, né? Porque eu era filha de um outro casamento e eu perguntei
para a minha mãe, do meu pai. E minha mãe: “Ah, seu pai era um vagabundo, um
mulherengo, um sem-vergonha”. Aí eu perguntei onde estava o meu pai. Levou
quase dois anos para minha mãe... mais de dois anos... 16, 17, 18, 19, 20... quatro
anos para a minha mãe dizer onde estava o meu pai. E aí ela falou que ele estava
em Minas, e eu fui conhecer meu pai, fui na casa de um tio, e me apresentei, aí ele
era um indígena preto, preto, preto, com o cabelo liso. E aí, combinei com ele e ele
falou: “não, você vai conhecer seu pai”. Aí ele falou para o filho dele me levar no
dia seguinte. Eu fui até um bar que meu pai estava jogando sinuca, quando eu vi
o meu pai, um cara de cabelo amarrado, cabelo de linho, uma cor assim que nem
a minha, mas mais vermelha. E aí quando eu cheguei, fiquei olhando assim,
procurando traços do meu pai nele.
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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 61
soube que o meu pai ia ficar noivo e eu estava na casa desse meu tio. Acho que eu
conheci meu pai na sexta... na quinta, e meu pai ia ficar noivo no sábado.
Como eu não era de Deus, com 21 anos toda a juventude é rebelde, eu fui no meu
pai e eu vi a menininha bem novinha que era noiva dele. Fiquei só na espreita,
quando eu vi que estavam tudo lá perto do bolo, eu entrei, falei: “você vai casar
com esse cara aí? Esse cara aí eu sou a filha dele, viu?” Aí ele: “você é louca! Isso
aí é uma louca!”. Eu falei: “louca não! Eu não sou louca. Você não disse que a cadela
tem os filhos e quem cria é o mundo? Eu sou cria do mundo! Vem calar minha
boca”. Aí sai, né? Aí o pau quebrou lá entre eles e eu vim embora. E só fui ver meu
pai depois quando ele foi atrás de mim, conversar comigo e eu falei: “Não quero
saber! Você já fez a sua escolha, cara”. Meu pai tinha filho pra caramba, entendeu?
Devo ter irmão esparramado por aí pelo mundo afora. Anos depois, eu soube que
ele morreu. Então, esse é o pedaço do meu pai, entendeu? Então, eu não tenho
fotos dos meus irmãos por parte de pai, devo ter sobrinhos, sobrinhas, mas eu não
conheço ninguém. A única relação que eu estabeleci foi com a parte da minha mãe,
que eu acho que foi o sacrifício maior. Foi a dor maior de dar um filho. Então eu
tenho... Nós somos em três mulheres, eu sou a caçula, e três homens. Eu tenho um
monte de sobrinho, tem mais de 40 sobrinhos. E é a vida, né, cara? E eu sempre
ajudei meus irmãos, minha mãe biológica já falei isso há muitos anos, minha mãe
adotiva, meu pai adotivo também e, desde os 28 anos, eu sempre morei sozinha.
Fui criada sozinha, uma criança sozinha. Perdi minha mãe, depois perdi meu pai
com 28 anos e sempre vivi sozinha, entendeu? Sempre me virei sozinha. E aí, hoje
eu tenho entendimento, que eu acho que eu vim já preparada para essa missão de
fazer o que eu tenho que fazer sozinha, entendeu?
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Monte Cristo, Aníbal Bruno, que foi o que virou a minha dissertação de mestrado.
Fiquei lá na Secretaria de Direitos Humanos e meu acordo para eu ficar
trabalhando com ela foi que eu não ia deixar o movimento negro. Que sempre que
as pessoas me pedissem alguma coisa, uma participação, que eu ia continuar
participando. Ela falou que eu estava certa, e eu disse que um dia eu ainda volto
para a sociedade civil. Hoje eu estou governo, mas um dia eu volto e um dia a
sociedade civil vai falar você deu as costas e eu não quero dar as costas. Eu sou
muito crítica sobre isso. Aí eu fiquei lá na Secretaria, depois eu passei no processo
seletivo para ser perita do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura14, fiquei
quatro anos, fui a primeira mulher negra, a ser perita do mecanismo. Fui a primeira
mulher negra diretora de um departamento de promoção e defesa na Secretaria de
Direitos Humanos. Sofri racismo, porque uma vez eu cheguei para trabalhar,
mijaram na minha sala e saiu até na nota na revista Veja, na época. E tinha uma
disputa interna que tinha uma pessoa que queria ser diretora e era branca e não
aceitava que eu fosse diretora. Eu comi o pão que o diabo amassou. Quando eu ia
para as reuniões na Casa Civil, vinha aquela coisa de pegar sua mão pela metade,
ou então perguntar você trabalha na SEPPIR ou você trabalha na Palmares? Aí eu
tinha que dizer “não, eu sou diretora do Departamento de Defesa da Secretaria de
Direitos Humanos. Tudo bem com você?” E aí, aqueles impactos que eu vivi na
questão racial dentro da Secretaria, que eu vivi como perita do mecanismo, quando
eu ia em presídios junto com meus colegas a gente levava sempre a nomeação. Que
foi nomeado dando o protocolo da ONU contra a tortura e, geralmente, os
diretores chamava “a senhora é o que?”. “Eu sou perita, diretor!” Porque eu estava
no lugar errado, era pra eu estar atrás das grades, e não preocupada com o que
estava acontecendo dentro das grades.
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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 63
E aí, eu estou aí... estou na vida, gente, e estou na casa dos meus doces e leves
65...64, quer dizer, estou com 46 [risos]. Estou com 64 anos e não tenho
preocupação com idade, porque eu não sinto essa idade, a idade cronológica que
está no papel, mas a minha idade da cabeça é outra. E estou na vida, gente, então
essa é minha vida. Tem vários artigos publicados em vários livros, vários artigos
publicados. Comecei a escrever, em 2005, comecei a escrever, porque eu tinha
medo de começar a escrever e comecei a escrevendo sobre a construção da
identidade negra no Brasil, que foi a primeira publicação que falava sobre essa
construção, desde o tempo do processo da escravidão. Eu sou do direito, mas eu
amo a história, principalmente a história da escravidão e agora participei, também,
de uma formação no CNJ, no Conselho Nacional de Justiça, onde eu fui falar de
traficados à traficantes, que é o meu novo foco, onde eu discuto o tráfico de
escravos e a semelhança com o tráfico de drogas. Onde jovens que foram traficados
ilicitamente, após 1831, têm seus descendentes presos nas prisões na condição de
traficantes, da mesma faixa de idade. Então, agora eu estou discutindo isso é isso,
meninas.
Dossiê Direito e Relações Raciais: Obrigado por esse panorama que você já deu.
Nessa primeira fala você já trouxe muito do que a gente também ia abordar.
Tínhamos um bloco de perguntas sobre o período da ditadura, mas também
achamos interessante você destacar o diálogo com a Pastoral Carcerária, ao mesmo
tempo que você, como muitas interlocutoras da sua geração já faziam essa crítica
de que o marco de violência no Brasil não era a ditadura. E aí, considerando tudo
isso que já falou, a partir desse cenário na durante a ditadura, como é que você via
os principais desafios de organização da militância de São Paulo? Como aparecia
o mito da democracia racial ao mesmo tempo em que se tinha já um debate sobre
a estética negra muito forte? E queria, também, se você pudesse trazer um pouco
mais desse processo que você fala da agência de mulheres da construção do
Geledés. E por último, para fechar as caixinhas da ditadura, que você também
trouxesse algum marco do momento da redemocratização dentro do debate que
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Deise Benedito:
Bom, vamos dividir por parte. Na ditadura militar eu era criança, então eu morava
num bairro pobre, num bairro que tinha toque de recolher, que volta e meia
passava uma viatura preto e branca do DOI-CODI15 e eu não sabia o que era. Sabia
que tinha que entrar para dentro de casa e a criançada toda entrava para dentro de
casa. Então, a ditadura dos anos 67, 68, 69, eu era criança. Quando eu entro na
adolescência, a única coisa que eu me lembro quando eu estudava sábado, eu tinha
aulas de uma professora que era do OSPB, Organização Social e Política no Brasil,
e ela fechava a porta quando ela dava aula, porque ela falava várias coisas de
liberdades, do direito de se organizar, e não sei o quê, e a gente não entendia o
porquê ela fechava a porta. Só fui entender depois, porque era a questão da
ditadura. E quando eu era criança, quando a gente entrava na sala de aula, todo
dia de manhã a gente tinha que jurar bandeira. Tinha que fazer fila, com a mão no
peito, cantar o Hino Nacional e jurar fidelidade à bandeira brasileira.
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Mas eu não entendia direito a causa, mas era a ditadura militar. Então, a minha
infância, adolescência e a entrada na idade madura, ficando mocinha, era a
ditadura militar. Quando eu passo a frequentar as reuniões de Geledés, quando eu
passo a frequentar as reuniões do Movimento Negro, foi a questão das Diretas-Já
e eu fui para as Diretas-Já, porque todo mundo dizia que era a democracia, que
teria direito de votar, que era o fim da ditadura. Foi quando eu fui despertando
para entender melhor essa ditadura, porque morte sempre teve na periferia,
entendeu? Tortura sempre tinha nas delegacias, então, para quem era da periferia,
para os jovens negros da periferia, ditadura sempre existiu. Era a ditadura mais os
grupos de extermínio, eles atuavam em conjunto. Está lá o Caco Barcelos não me
deixa mentir. Hoje o livro “A fé e fuzil: crime e religião no Brasil do século XXI”,
do Bruno Paes Manso, também não me deixa mentir, entendeu? E aí foi quando eu
vi as primeiras manifestações, eu participei das manifestações pelas Diretas-Já, eu
ia, eu achava maravilhoso aquele célebre comício no Anhangabaú com mais de
30.000 pessoas e eu estava. Então, eu começo a engajar ali.
Agora a discussão de Geledés, que era mais voltada para a questão das mulheres,
começa também a se discutir as questões do feminismo e a crítica ao feminismo
branco se deu a partir de 1988, na fundação de Geledés. Mesmo dentro do
Conselho Estadual da Condição Feminina16, que as mulheres brancas discutiam os
problemas de classe média, discutiam a questão de trabalho, de violência, mas não
falavam da questão racial. Foi quando o grupo de mulheres negras dentro do
Conselho resolveu sair e fundar o Geledés para realmente ter um ponto de
marcação real mesmo sobre a questão das mulheres negras, que não era uma coisa
que passava pelas mulheres brancas, feministas e a grande maioria de classe
média. Então, essa é uma coisa que vem desde os anos 1980. Um outro detalhe
também interessante era a questão do fenômeno da mulatização. Então, mulheres
que tivessem o tom da minha pele, eram consideradas mulatas. Então, eram as
mulheres altamente sexualizadas, bonitas, eram mulatas e não eram morenas, cor
de jambo, cor de chocolate - eram as mulheres negras. Aí você tem, nesses mesmos
anos 80, o fenômeno da mulatização das mulheres negras, e da hipersexualização
16 Foi o primeiro órgão governamental de gênero criado no país em 1983. Disponível em:
https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=448646. Acesso em: 14 jan. 2023.
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das mulheres negras aliado com o fenômeno da xuxalização, da branca, loira, dos
olhos azuis, que era a beleza respeitável e as mulheres negras que eram comestíveis
e duráveis. Se vocês pesquisarem, vocês vão ver “as mulatas do Sargentelli”, e aí
tinha esse produtor musical, que tinha as boates no Rio e São Paulo, que punha as
mulheres negras para sambar, para dançar e ser mulata do Sargentelli.
Na minha época também era uma questão de status, porque eram mulheres
bonitas, que sambavam e ganhavam muito dinheiro, mais do que as outras. E tinha
aquelas que trabalhavam em fábricas e à noite como mulata do Sargentelli para
ajudar com o dinheiro dentro de casa. Então, também teve esse fenômeno que eu
acho que não é muito estudado. As pessoas vão atrás de outras coisas, mas esse
fenômeno da mulatização, dos anos 70 e 80, seria interessante que o pessoal
começasse a se debruçar nessa questão do que foi as mulatas do Sargentelli, a
mulata e a desconstrução do mito da mulata. Não é só a palavra misturada de
mula, mas o que vem junto com essa mulata? Quem é essa mulata? Como é que eu
passo a desconstruir essa mulher negra? Como é tornar-se uma mulher negra,
deixando-se de ser mulata? Eu acho que é isso... dá até para fazer um artigo, deixar
de ser mulata, tornar-se uma mulher negra, e eu acho que esse é um dos grandes
fenómenos. E essa construção do feminismo, quer dizer, o direito ao aborto, o
direito pelo próprio corpo, o mercado de trabalho (...).
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porque alguém chegou antes e alguém que chegou antes, chegou antes daquelas
que chegaram antes de vocês, então, tem muito esses detalhes que eu acho
interessante se observar.
E dentro dessa questão da ditadura militar, pouco se falava... e eu era uma das
mulheres negras que frequentava a discussão de direitos humanos, que era uma
discussão branca quando eu estava em Gelédes. E aí eu comecei a pensar que eu
tinha que aprender como os brancos fazem para mim poder fazer. Então, eles leem
tal livro, eu também vou ler. Só que eu vou ler pela ótica racial, entendeu? Eu vou
ler pela ótica de raça o que os brancos leem sobre direitos humanos. E aí eu começo
a fazer muitas críticas aos direitos humanos. Uma das críticas que eu falo é que
enquanto estava lá no Égualité, Fraternité e Liberté, nós aqui estávamos a se “fuder”,
porque estava chegando escravizados aqui no Brasil, em 1789. As maiores cargas
de africanos para serem escravizados estavam aqui e na Carta da Declaração de
Direitos Humanos não se fala da abolição da escravidão. Você tem a carta do
Keita17, de 1222, escrita no Império do Mali, a carta dos caçadores, que foi traduzida
pela Unesco, que ele vai descrever o que são os direitos humanos. E qualquer
semelhança não é mera coincidência, as pessoas foram lá e chuparam mais de 20
artigos dessa famosa Carta Mandinga. Mas eles não falam sobre. O mundo se dá a
partir do João sem Terra, que vem 1250, e a Cara Mandinga foi datada desde 1222
e foi na África, no Mali. Então, né, uma visão eurocêntrica de direitos humanos
jamais vai se debruçar sobre uma visão africana de direitos humanos.
E aí, a essa altura do campeonato, eu fui buscando outras coisas. Então, tem
relações com o movimento de mulheres brancas que me conheceram desde jovem,
e tem algumas delas que, realmente, foram muito parceiras no movimento negro,
que não só denunciaram o racismo, mas apoiaram que as mulheres negras
tivessem uma posição mais firme diante a questão racial, que é o fator crucial. Lélia
Gonzales, eu não vou discutir... Eu não a conheci, infelizmente, mas ela já falava
de interseccionalidade, então, eu não vou beber Kimberle, eu vou beber Lélia, cara.
Sabe? A questão do Quilombo, eu vou beber Neusa, que é a primeira mulher negra
que vai falar de Quilombo no Brasil, que faz uma discussão sobre território no
Brasil. Então, eu sou uma pessoa muito crítica, porque nós temos uma produção
intelectual negra extraordinária! Extraordinária dentro das condições que as
mulheres negras viveram e vivem, e todas as dificuldades. Então, quando a gente
17 Sundiata Keita, de acordo com a tradição oral pertencia ao povo Mandingo e nasceu final do
século XII na região do atual Estado Guiné. A Carta (oralidade) do Mandinga é assim considerada
uma das primeiras declarações de Direitos Humanos. Disponível em: https://www.dw.com/pt-
002/sundiata-keita-o-lend%C3%A1rio-rei-le%C3%A3o-que-governou-o-imp%C3%A9rio-do-
mali/a-43523048. Acesso em: 14 jan. 2024.
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Então, a gente tem sempre tem esse olhar. A questão da sexualidade negra das
gays, dos gays, das lésbicas, das trans, isso tudo passa por uma coisa mais nova,
mas já no Movimento Negro isso foi sempre discutido e discutido com cuidado,
porque, querendo ou não, o que vem primeiro a questão racial ou a questão sexual?
E aí você vai ouvir falar “o Movimento Negro foi homofóbico, é homofóbico”. Eu
acredito que em determinadas situações, realmente foi homofóbico, porque,
primeiro as nossas condições de vida, de sobrevivência, passam pela cor da nossa
pele. E agora é agregar com a desigualdade o fato de ser lésbica, ou ser gays, ou
ser trans. Isso são agravantes a questão de ser negro. Agrava muito mais ainda no
ponto de vista do preconceito, da discriminação. Obviamente que de 10 anos para
cá, a questão mudou muito. Você tem muito mais a discussão sobre sexualidade,
a questão racial. Você tem o auxílio da internet, que é a tendência das coisas, a
evoluírem. Não regredirem, a gente tem a regressão do racismo, por conta do
empobrecimento de muitos brancos de classe média. Que não aceitam ser
empobrecidos ou ficar numa situação pior. E você vê um crescimento de uma
“pseudo”, que eu chamo de “pseudo” classe média negra. Porque, para mim,
negros de elite tem que ter fazenda; tem que ter ações em quais empresas da
Nasdaq; aqui no Congresso quantas vezes vem, qual a influência desses negros
dentro dos lobbys, junto aos deputados federais para fazer passar a proposta das
suas empresas? A gente não tem isso, cara. Então, a gente não tem uma elite, a
gente tem uma população flutuante em ascensão devido às cotas nas
universidades. Não se tem, ainda, nítido como está o mercado de trabalho para
que possamos ter negros daqui 30 anos com fazendas, produzindo, exportando,
para a gente poder chegar a dizer que nós temos uma elite negra. Sou muito clara...
nós não temos uma elite negra, nós temos negros vivendo em situações
confortáveis em relação ao que viveram seus pais, seus avôs, seus bisavôs. Mas
18 Dentre as já citadas conferências está foi a terceira edição, realizada em 2001. É apontada por
muitas ativistas e intelectuais como um marco da articulação de mulheres negras, pois
possibilitou ampliação de uma agenda antirracista na América Latina a partir do protagonismo
das mulheres negras.
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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 69
elite, elite, não. Eu não considero! Uma coisa é elite de internet, vai na casa dos
outros que é rico, fica tirando retrato, posta na internet fazendo pose. Na vida como
ela é, está pegando o “busão”, está pegando o Uber, está lá no sufoco comendo no
bandejão, então, é isso. E você tem muito isso. Você entendeu? É, cara, porque o
gostoso de ter vivido... esse ano completo 40 anos de movimento! 40 anos de
movimento! Então, quando você está em 40 anos de movimento, mais nada te
abala, entendeu?
Então, quando o povo fala “a, elite negra”, eu olho assim... mas quantas fazenda
tem a criatura? Quantas empresas ele tem? Quantas fábricas? Como que ele
contribui com os meios de produção? Onde tem os meios de produção, cara? Sabe?
Não detém nada! Não tem poder nenhum, sabe? É essa a realidade, que é a
realidade que se vende do sonho americano. Pior que é o sonho americano. E eu
que estive nos Estados Unidos, já fui para lá já algumas vezes, eu digo pra vocês
que com tudo, com tudo, é muito difícil ser negro nos Estados Unidos. É muito
difícil. Não é fácil. [você estava lá, né, Inara?] Né... você vê que ali o buraco é mais
embaixo, não dá para ser preto nos Estados Unidos. Uma coisa é o que eles vendem
nos cliques. Uma coisa é Nelson Rodrigues, a vida Como Ela É, né? Você vai no
Harlem, a casa só tem um quarto, sala e cozinha. Por isso que o povo só fica na
escada, porque não tem espaço dentro de casa, você está entendendo? Então a
extensão da casa é a calçada. Então, a gente tem essa impressão, esse desejo... Existe
uma construção de um desejo e nessa construção desse desejo a gente tem que ter
sempre muito cuidado quando a gente consegue esse desejo.
E a outra coisa que você me perguntou da democracia, sobre como entra a questão
racial... a questão racial entra pelo PT. Já entrava na década de 30 nos partidos
políticos, mas ela passa a ter mais força dentro do PT, mas aí começa a criar aquele
conselho da comunidade negra, conselho de promoção de igualdade racial,
secretaria... Porque antes pegava os pretinhos “ah, não, a gente é a favor do fim do
racismo”. Aí abriu a Secretaria da cultura para colocar os pretinho tudo na cultura
como se fosse só pra criar, sair batendo bumbo. Aí, com o passar do tempo, com a
criação dos conselhos de comunidade negra e a transversalização, mesmo que
goela abaixo, da questão racial obriga, os outros partidos, mas isso não quer
dizer...a gente tem que ter esse cuidado quando a gente faz essas avaliações. Uma
questão para falar para vocês que eu considero importante, a questão de se falar
das drogas do sistema prisional é novo. Entendeu? É novo... todo mundo está
discutindo isso, mas é novo. Há 10 anos atrás não se discutia. Eu que era doida de
ficar falando de droga, de falar de prisão, entendeu? Mas não se fala e agora que
está se falando, agora que ganhou a coisa do encarceramento, não é? E eu sempre
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Dossiê Direito e Relações Raciais: Deise, eu posso fazer só mais uma pergunta, e
aí a gente encerra? Mas se você estiver cansada, eu posso mandar por áudio e você
pode me responder depois. Pode ser sincera, por favor.
Dossiê Direito e Relações Raciais: Eu queria, na verdade, que você amarrasse toda
essa narrativa que você fez, principalmente pensando na construção histórica.
Porque você fala que foi se construindo dentro do Movimento Negro antes de
chegar no Movimento de Mulheres Negras, por uma situação vivida ali de
discriminação. Depois o movimento de mulheres negras e agora você está mais
institucionalmente, sem estar atuante em algum movimento social. E aí o que eu
queria é que você amarrasse como você percebe toda essa construção. Por exemplo,
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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 71
Deise Benedito:
E aí, quando eu estou dentro do movimento que eu consigo perceber para além
daquilo que é demonstrado, a pobreza, as mulheres como empregadas domésticas,
as mulheres naquela vida de mendicância, as mulheres... me abre que eu não quis
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ser empregada doméstica. Eu fui incentivada pela minha mãe branca, a não ser
quando dizia “vai estudar”. Porque ela tinha uma visão ampla, ela falava “vai
chegar um tempo que para ser lixeiro, vão pedir diploma”. São mais de 40 anos,
entendeu? E hoje a gente vê isso. Então ela era uma mulher visionária e por um
lado, essa forma dela ser uma mulher visionária, que estudou até o quarto ano,
quando a minha mãe negra era analfabeta, ela já estava muito na frente, porque
ela tinha condições de ler, de ver, compreender e interpretar, coisa que a minha
mãe biológica não teve condições. E não foi porque quis. Então, quando eu
atravesso, quando a minha vida, a minha infância foi perpassada pela
desigualdade, pela questão de oportunidades de ter sido criada com a minha
família, quando eu dentro para escola, quando eu convivo desde criança com a
discriminação pela cor da minha pele, entendeu? Quando eu bebi cândida [água
sanitária] para ficar branca, porque uma vez uma menina japonesa disse “quer
ficar branca? Você fica branca tomando cândida”. E minha mãe foi parar comigo
no pronto socorro, desesperada, pensando que eu ia morrer. Então, tudo isso a
questão racial, a cor da pele sempre foi um fator determinante para mim. Em todas
as escolhas da minha vida. De ser preterida para ter namorado, de ser preterida
para ter um bom trabalho, de ser preterida. Então, isso foi me levando. Quando eu
sofro, e não existe acaso, se eu cheguei aonde eu cheguei, eu devo àquela senhora
japonesa que disse para mim que eu não podia trabalhar, porque eu era de cor e
que a empresa não pegava pessoas de cor.
Então eu fui naquele meu rompante de já saber que existia o racismo, eu já sabia
que tinha discriminação, mas eu não sabia que tinha movimento. E foi nesse vácuo
que eu entro. Então eu entro a partir da minha indignação. Então, a minha
indignação é que... a indignação da minha mãe biológica que fez ela me dar; a
indignação da minha mãe biológica, que fez, desde criança, eu entender a questão
do racismo e, mais uma vez, o fator determinante da discriminação. Então, quando
falei para vocês que eu vejo o movimento e eu nunca... Às vezes eu me vejo
olhando lá para trás, e eu nunca imaginaria 40 anos atrás, eu nunca ousaria
imaginar que o movimento negro chegaria no apogeu que ele chegou hoje. A gente
teve conquistas extraordinárias. Extraordinárias de não só denúncia pela
denúncia, denúncia com proposta. Nos anos 70, denunciava; nos anos 80, já
começo a propor; nos anos 90, denuncio, proponho e avalio. Você está
entendendo? Isso tudo é crescimento. Hoje eu tenho a denúncia, eu faço a
proposta, e faço avaliação, eu reconstruo e eu desconstruo. Entendeu? Nós estamos
numa fase de construção e de desconstrução o tempo todo.
A Dulce tem me acolhido no dia que eu fiz a denúncia foi fantástico. Eu nunca
tinha falado em público, sabe? Então foi fantástico, porque a Dulce, eu sou muito
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grata a ela, quando eu encontro com ela, ela vem, me abraça, e eu falo assim
“obrigado”, porque há 40 anos atrás ela pegou uma menina de 23 anos, que
morava num bairro de periferia, que o máximo que poderia ser era auxiliar de
escritório. O máximo era eu ser uma auxiliar de escritório, entendeu? Então, eu
não vislumbrava fazer universidade, porque eu achava que não era meu lugar,
assim como várias meninas da minha idade achavam que a universidade era
muito, muito, muito distante de nós. Então, eu conheço o Geledés, eu conheço
Sueli, eu conheço todas essas pessoas que passaram na minha vida, eu sou muito
grata, porque eram mulheres que liam. As reuniões que a gente fazia, que eu
participava, elas punham o texto na mesa e começavam a discutir aquele texto. E
eu ficava só ouvindo, depois eu ia buscar saber o que é que elas estavam falando,
que eu tinha vergonha de perguntar e falar errado. Porque eu também falava
muito errado. Entendeu? Era muito maloqueira mesmo e falava muito errado,
então, eu fui aprendendo a falar, aprendendo a observar momento de fala, sabe?
Eu fui, aprendo, foi tudo um aprendizado para mim. Então estar em Geledés foi
uma puta de um aprendizado, sabe? Conhecer Edna Rolan, conhecer Sueli, conheci
Diva Moreira, conheci pessoas maravilhosas e sempre ouvindo essas mulheres. A
história que você fala hoje, de ouvir os mais velhos, eu sem saber, sem elas falarem
isso de ouvir mais velhos, eu ouvia, porque eu estava em um processo de
aprendiza como até hoje.
Eu sempre que falo que eu não sei tudo. Eu estou em um processo de aprendizado
e esse processo de aprendizado me permitiu compreender a questão do
feminismo, o que é feminismo? O que é igualdade? De que igualdade a gente está
falando? Eu fui aprendendo isso. Quando você vem da periferia, a gente age, a
gente é feminista nata, mas não com conceituações do feminismo. Quando é da
periferia, é feminista, cara! Trabalha, leva os filhos para a escola, faz salgadinho,
vai de diarista, divide, racha e tal, porra... A mulher é feminista; é política, porque
tem uma habilidade na negociação, só que não tem o conceito e sabe que sofre
discriminação, porque ninguém fala pela que ela sofre de interseccionalidade.
Entendeu? Ela sabe que ela está ferrada se ela não fizer o corre. E eu sou uma
mulher que veio dessa base da periferia, tanto que eu nunca vou cuspir no prato
de onde eu vim. Conheci minha mãe biológica morando em um barraco. Não dá
pra mim “eu sou intelectual, sou mestre”. Sou nada! Você está entendendo? Então,
essa que é a questão. A mosca azul nunca me picou, sabe, de achar que eu sou
melhor do que ninguém, não. Estou em fase de aprendizado.
E aí, quando a gente está nesse movimento de mulheres, que você vê outras
mulheres falando, trazendo suas experiências, o grande choque que sempre teve
no movimento de mulheres é questão de classe. E que se reproduz no movimento
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74 Deise Benedito - Inara Flora Cipriano Firmino - Emília Joana Viana de Oliveira - Rodrigo Portela Gomes
Então, quando a gente vê isso, a gente discute essa questão do feminismo, veio
essa onda do feminismo negro e aí às vezes eu fico com medo, porque você, para
discutir o feminismo, primeira coisa que que você tem que ser, você é mulher, você
é negra, você é feminista negra, mas as feministas também... que inferno, que
inferno é esse? Que coisa chata esse feminismo de mulher negra é muito chato,
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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 75
gente. Olha, eu tenho sim que politizar as mulheres pelos seus direitos. Eu tenho
que levar informação sobre os direitos que todos nós temos, agora, compreender,
fazer que elas aceite que o feminismo, ele é a base e a base do feminismo é branco
e nós temos que criar um feminismo...Então, o que que a gente faz com o
feminismo da Irmandade da Boa Morte da Bahia que tem mais de 200 anos? O que
eu faço com a Irmandade da Boa Morte? As mulheres se organizaram para
comprar carta de alforria, em 1830. Era escravizada e essas mulheres foram para a
rua para juntar dinheiro para poder enterrar os filhos e o marido com dignidade.
A Irmandade da Boa Morte que foi a primeira organização das mulheres negras
no país abolicionista. Se isso não é feminismo, me diz o que é? Se isso não é
autodeterminação dos povos, você me diz o que que é? Se isso não é autonomia
sobre um processo escravista que você tinha dono e você resolve fazer tudo isso
numa organização que está aí 200 anos, então me diz o que é? Então, eu tenho às
vezes medo, principalmente das lideranças que surgem na internet. E veio muita
liderança na pandemia, viu? Eu vi, às vezes, umas lives que eu ficava até com
medo, mas é umas lideranças assustadoras, mas eu falo dessa questão de como é
para nós mulheres negras.
E aí, para eu amarrar tudo isso, eu amarro, assim: a minha história de vida, ela
perpassa pela história do Movimento Negro em busca de direitos. Eu tenho a
minha vida cercada pela busca de direitos e de me firmar enquanto pessoa,
enquanto mulher, enquanto negra, enquanto uma pessoa que não casou, que não
teve filhos, e que tem uma opção sexual de ser hétero. E pago o preço das minhas
escolhas, porque tudo tem um preço. É assim que eu amarro tudo isso e hoje as
pessoas me convidam sem eu estar numa organização, porque eu acredito na força
desse movimento e eu estou nesse movimento sem estar no movimento. Eu sou
uma pessoa em movimento, sem estar necessariamente no movimento. Então,
quando eu sou convidada para vim, eu falo, eu não vou renunciar ao movimento.
Eu não preciso estar vinculada a uma organização para defender uma bandeira.
Eu não preciso estar em uma frente de desencarceramento para defender o fim do
encarceramento. Eu não preciso de estar numa plataforma de política de drogas
para dizer que eu sou antiproibicionista, que eu sou abolicionista penal.
Então, eu acredito que eu não estou tecnicamente vinculada, mas eu sou vinculada
a todas as organizações. Eu estou em todas e todas estão em mim. Eu acho que,
resumindo, é isso. Todas as organizações estão aí, eu estou em todas as
organizações, porque elas estão dentro dos meus princípios naquilo que eu
acredito, que é aquilo que eu considero importante. Então, eu acho que se eu
aprendi uma coisinha assim nessa vida de 40 anos, a minha obrigação é devolver.
O que eu sei, eu tenho que devolver, tanto que eu não cobro palestra. Eu não cobro.
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76 Deise Benedito - Inara Flora Cipriano Firmino - Emília Joana Viana de Oliveira - Rodrigo Portela Gomes
Dossiê Direito e Relações Raciais: Obrigada, Deise! Foi ótima a sua fala.
Referências
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40 anos em movimentos, uma vida pela juventude negra: entrevista com Deise Benedito 77
_______________________________________________________________________
As fotografias que ilustram a entrevista são de autoria de G. Dettmar
(Agência do Conselho Nacional de Justiça), por ocasião do 4º FONAPE –
Fórum Nacional de Alternativas. Deise Benedito participou do painel
(Re)produção das desigualdades de raça e de gênero no contexto da
política de drogas. Brasília, 14/09/2023.
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Dossiê
“Direitos e relações raciais”
No dossiê de artigos científicos desta edição, são apresentados 15
trabalhos com diferentes perspectivas críticas, diálogos e interseções
teóricas resultantes de pesquisas concluídas ou em andamento, que
contribuam para a compreensão do racismo na cultura jurídica
brasileira.
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50332
dossiê
Submetido em 31/07/2023
Aceito em 09/12/2023
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ISSN 2447-6684
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82 Alex Bruno Feitoza Magalhães
Resumen
Este escrito analiza la dictadura militar brasileña y su conexión con la colonización,
utilizando como metodología la corriente historiográfica de la nueva historia indígena. El
objetivo es identificar categorías temáticas y desarrollar un léxico estratégico decolonial. A
través de la investigación bibliográfica y de técnicas de análisis narrativo, se busca
comprender los aspectos coloniales en la dictadura militar y en la justicia transicional,
valorizando las narrativas indígenas. Se abordan los desafíos de la justicia transicional en
Brasil y la necesidad de tratar las dinámicas coloniales. El análisis documental de los
procesos de la Comisión de Amnistía revela categorías y contribuye al debate sobre
dictadura, justicia transicional y colonialidad, proporcionando un marco reflexivo para
futuras investigaciones.
Palabras-clave
Justicia transicional. Pueblos Indígenas. Dictadura Militar. Colonialidad. Decolonialidad.
Abstract
This writing analyses the Brazilian military dictatorship and its connection with
colonization, using the historiographical current of the new indigenous history as
methodology. The aim is to identify thematic categories and develop a decolonial strategic
lexicon. Through bibliographic research and narrative analysis techniques, it seeks to
understand the colonial aspects in the military dictatorship and transitional justice, valuing
indigenous narratives. Challenges of transitional justice in Brazil and the need to address
colonial dynamics are addressed. The documentary analysis of the Amnesty Commission
processes reveals categories and contributes to the debate on dictatorship, transitional
justice and colonial issues, providing a reflective framework for future research.
Keywords
Transitional Justice. Indigenous People. Military Dictatorship. Coloniality. Decoloniality.
1 Artigo originalmente escrito para subsidiar as discussões sobre o “Caso Suruí-Aikewara: das
reinvenções ditatoriais da lógica colonial aos limites da justiça de transição” (2022).
Posteriormente, revisei e ampliei o escrito com base em novas discussões e pesquisas que realizei.
Em todo caso, optei por manter as construções teóricas e discursivas, para preservar o registro do
percurso e elaboração do meu pensamento.
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Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 83
estratégico decolonial
Introdução
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84 Alex Bruno Feitoza Magalhães
Este ensaio tem como ponto de partida a análise do papel da questão indígena na
justiça de transição, buscando identificar novas categorias temáticas e sua relação
com a matriz colonial. Um aspecto fundamental é compreender o espaço político-
jurídico ocupado pelos povos indígenas dentro desse contexto e a necessidade de
examinar a dimensão colonial nos processos de reparação no campo da justiça de
transição. Além disso, a busca por um léxico estratégico decolonial se torna
premente para uma abordagem mais inclusiva.
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Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 85
estratégico decolonial
destacando ausências e urgências que precisam ser abordadas. Por fim, apresenta
um panorama sobre a participação dos povos indígenas na Comissão de Anistia,
analisando o papel desse mecanismo como uma tecnologia e/ou burocracia
colonial – ou seja, fomentar críticas e ampliar a compreensão dessas temáticas
interconectadas.
A luta pela verdade encontrou respaldo no relatório elaborado por uma equipe
multidisciplinar, liderada pela psicanalista Maria Rita Kehl, que investigou as
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86 Alex Bruno Feitoza Magalhães
O SPI foi criado em 1910 com a missão de assistir os indígenas em todo território
nacional, porém acabou como um instrumento de controle durante a ditadura
militar. Sua criação ocorreu em um momento crítico, à medida que as “frentes de
expansão” avançavam rumo ao interior do país, provocando conflitos e guerras
contra os indígenas (PIB, 2018). Foi nessa conjuntura que surgiu a noção de que o
indígena deveria abandonar sua ancestralidade e aderir ao modelo civilizatório.
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Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 87
estratégico decolonial
FUNAI, criada em 1967, também atuou como órgão de controle durante o período
autoritário.
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p. 31). A questão indígena, como destaca Ramos (2011), revela as imperfeições mais
profundas das questões morais do país. Assim, seria impossível imaginar o Brasil
sem seus indígenas, “não como coletividades, mas como objetos do imaginário e
da manipulação nacional” (p. 31).
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estratégico decolonial
A chegada dos militares trouxe consigo a proibição das atividades essenciais dos
indígenas, como a caça, a coleta e a pesca. Suas reservas de alimentos foram
queimadas e suas casas destruídas. Sob a mira das armas, os Aikewara foram
mantidos em cativeiro, sofrendo torturas, privações de água e alimentos. Além
disso, foram forçados a servir como guias para as tropas do Exército, em uma
situação de tensão constante e desconfiança mútua.
Para Garcia (2015), três memórias atravessam a história do Povo Aikewara desde a
chegada dos militares: a dos homens sequestrados para atuarem como guias nas
buscas pelos guerrilheiros, a das mulheres e crianças aprisionadas na aldeia, e a
construção da BR-153, conhecida como Rodovia Belém-Brasília.
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90 Alex Bruno Feitoza Magalhães
“Aí foi assim que, a gente tava em festa, né, que aconteceu, a primeira! Aí
chegaram lá, as tropas, vinham por terra, dentro da mata. E nós num
sabemos que ia acontecer essas coisas [...] Nós tava lá em baixo, na aldeia
velha mesmo, a primeira, né? Aí chegaram lá a tropa, vinha... por terra, aí vieram...
os comandante vinha de avião. Aí avião chegou primeiro. Aí nessa época, naquela
época, quer dizer, hoje as mulheres são mãe, né? era tudo criancinha, eles ficaram
com medo daquele barulho de avião, helicóptero, né? Ele desceu bem no meio da
aldeia que... arrancou tuuudo... a copote da casa, da aldeia... Aí as criança
(que ta sendo hoje mãe) correram pra dentro da mata que, primeira vez... num
sabiam o que era aquilo, né? Elas correram! Até a mãe, correu dentro da mata,
outro entrou dentro de casa, pra ficar lá, pra ninguém ver!! [...] Aí... chegaram
lá, invadindo, assim, né? botaram arma nas mulheres, os homens que
tavam, aí eles ficaram com medo... por que era... por quê que eles tavam
fazendo aquilo com eles? Ficaram com medo... as criança tudo
chorando...”2 (grifo nosso).
A narrativa de Tawé pode ser entendida como uma forma de resgatar a memória
histórica do Povo Aikewara, mostrando como foram vítimas de invasões e cercos
em seu próprio território.
“[...] eles tocaram fogo! Queimou farinha, arroz, milho... as coisas que
sempre a gente usa... a cultura que a gente tinha, né? A gente tava fazendo...
planejando para fazer festa nesse dia, né? [karuwara] que eles chegaram,
bagunçando lá, e nós num sabia não... Aí nós fiquemo tudo desesperado mesmo!
[...] E as crianças tudo com fome, dormia com fome! O que nós tinham, tacaram
fogo mesmo! Aldeia já tava limpo, queimou... aldeia era bem pequeninho, não
é igual aqui não, era bem pouquinho... mais ou menos umas seis casa, por aí tinha,
assim, era bem pouquinho. Aí eles foram embora! Foram lá pro rumo da Serra das
Andorinhas, lá eles ficaram. Ouvimos muito aquele... tiroteio! Muito avião
rodando aí por cima” 3 (grifo nosso).
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estratégico decolonial
Existe uma lacuna que clama por atenção. Uma lacuna que revela a união entre
colonialismo e militarismo, uma conexão sinistra que deu origem a processos
sistemáticos de violações de Direitos Humanos contra os povos indígenas. A
subsunção do colonialismo ao militarismo nos leva a um terreno permeado por
relações opressivas e injustas – foi desse cenário que se forjaram os episódios
dolorosos que marcaram a história dos povos indígenas.
“Só de noite que a gente conseguia comer alguma coisa. Na mata o soldado
num dava comida pra gente não! Dizia que nós num podia comer. Quando
chegava no São Raimundo um homem perguntava se a gente comia charque, eu
dizia que sim, minha barriga só doía de fome! Ele me deu um pedacinho assim,
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92 Alex Bruno Feitoza Magalhães
mas não servia pra nada... com farinha. Eu tentei voltar sozinho pra casa, mas
soldado veio atrás de mim falando:
- Aonde é que você vai, índio? Eu dizia que ía voltar pra minha aldeia porque
tava com fome... nem café a gente tomava na mata, nada!! Aí ele me pegou de
volta e me trouxe, dizendo que eu num podia ir embora não. Nem me deixava
levar farinha pra comer na mata de volta pra casa”4 (grifo nosso).
Percebe-se, que existe uma espécie de índole colonial dos agentes da ditadura, em
consonância com as narrativas dos indígenas Aikewara, cujas experiências
encarnaram as marcas da sociedade colonial e senhorial (Chauí, 2001). As
colocações de Chauí remetem ao conceito de “mundo colonial” descrito por Fanon,
onde a sociedade é dividida em duas partes distintas e a fronteira é demarcada
pelos quartéis de polícia.
4 In: Comissão de Anistia. Requerimento de Anistia nº 2010.01. 66653 de autoria de Marari Suruí p.
114.
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estratégico decolonial
Na narrativa de Muruá, fica clara a reclusão forçada na aldeia, bem como a fome e
o medo constante:
“Eu tava ‘buchudo’ [grávida] da Akóngotia, né? Ele [o marido] num queria
ir no mato! Soldado levou acochado ele! Ele disse [kui’muá]
- Não! eu num vou não, minha mulher ta buchudo!! – ele falou:
- Não! vai assim mesmo! [Soldado] levou acochado! Eu tava [tinha] só
Kuiná, dois [filhas]. Eu tava cum fome! aqui num tinha comida! Num
tinha arroz também... Comia só cara mesmo! comia aí... se num fosse
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94 Alex Bruno Feitoza Magalhães
arrancar batata, tava tudo cum fome aí!! Uma hora dessa aí... até chegar...
[...] Ficou só nós mesmo... a Muretama, Arihêra, Sawara’á também ficava
na aldeia... ficamo só nós mesmo, ‘capitão’, só mulher mesmo! nós tinha
medo mesmo! tava com medo mesmo!”
O caso emblemático dos Aikewara serve como ponto de partida para compreender
a violência sistemática perpetrada pelo militarismo em relação aos indígenas. Essa
violência assume contornos coloniais, impondo uma visão de mundo que nega as
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Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 95
estratégico decolonial
Quadro 1
Categorias temáticas à ditadura militar ou subsunção colonial-ditatorial
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96 Alex Bruno Feitoza Magalhães
Cada país possui sua conjuntura histórica particular, o que implica em diferentes
manifestações e experiências no campo da justiça de transição (Silva, 2016). Nesse
contexto surgem as particularidades, os (des)encontros e as nuances que moldam
esses processos.
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estratégico decolonial
Um dos desafios mais significativos diz respeito à tensão entre a busca pela
verdade judicial e a busca pela verdade extrajudicial. Enquanto a primeira se refere
à verdade produzida por meio de processos judiciais e julgamentos, a segunda é
construída pelas Comissões da Verdade e por projetos oficiais ou não oficiais de
memória.
6 Leia também: “Justiça de Transição e sexualidades dissidentes: alguns apontamentos para novos
debates” (2016), por César Augusto Baldi.
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Ressalta-se que a busca pela verdade e pela justiça não se limita apenas aos
tribunais. Comissões da Verdade e outros projetos de memória desempenham um
papel ímpar na construção de uma narrativa coletiva, na preservação da memória
histórica e na responsabilização do Estado.
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Na intricada teia dos discursos, há algo poderoso e sutil que muitas vezes passa
despercebido: os enquadramentos. Butler (2015) nos alerta para o fato de que esses
enquadramentos modelam, classificam, hierarquizam e delimitam as vidas das
pessoas. Eles têm o poder de distinguir quais vidas são consideradas legítimas e
dignas de serem apreendidas, enquanto outras são relegadas ao esquecimento.
Essa dinâmica dos enquadramentos se estende também ao campo da justiça de
transição, onde surgem os chamados “enquadramentos justransicionais”
(Magalhães, 2021).
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estratégico decolonial
A questão da justiça das vítimas remete a uma crítica sobre as diferenças entre a
justiça dos tempos antigos e a justiça dos tempos modernos. Embora essas formas
de justiça possuam características distintas, há algo em comum entre elas: a falta
de espaço para a memória (Mate, 2009). É como se as vítimas fossem privadas da
oportunidade de manter viva a sua história, de lembrar e compartilhar suas
experiências.
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estratégico decolonial
Esses “campos de reflexão” são espaços de diálogo e debate, nos quais se busca
ampliar as fronteiras do conhecimento sobre justiça de transição. Neles diferentes
vozes e experiências são acolhidas e valorizadas, permitindo uma compreensão
mais aprofundada dos desafios e dilemas presentes nesse campo. A partir desse
encontro de saberes críticos, é possível questionar as lacunas existentes, as falhas
nas interações e as inconsistências nas redes de conhecimento estabelecidas.
7 Ver mais em: “Lineamientos para la Implementación del Enfoque Étnico Racial em la Jurisdicción Especial
para la Paz” (2021).
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Quadro 2
Categorias temáticas à justiça de transição
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estratégico decolonial
A análise dos dados revela uma realidade sintomática: os povos indígenas ocupam
uma posição social de subalternidade no contexto político e jurídico da justiça de
transição. Essa constatação corrobora com a hipótese de que esse processo, em
busca pela verdade, não conseguiu romper efetivamente com dinâmicas coloniais
que permeiam a sociedade. Pelo contrário, os resultados evidenciam a existência
de práticas opressivas, subalternizantes e segregacionistas que continuam a afetar
os povos indígenas.
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Entre esses indígenas, destaca-se um indígena cujo nome ecoa pela história: José
Humberto Nascimento, conhecido como Tiuré Potiguara. Ele foi o primeiro a abrir
caminho e acionar a Comissão de Anistia, compartilhando sua história de
perseguição, prisão e tortura durante os sombrios tempos da ditadura militar.
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indígena e, pela segunda vez, de uma mulher negra (Almeida; Viana; Carneiro,
2023).
Ressalta-se que a JEC e a JEP têm recebido pouca atenção nas discussões e políticas
de reparação das vítimas, principalmente no âmbito da justiça de transição e justiça
social. Isso evidencia a necessidade de um maior engajamento com essas
abordagens, em busca de valorizar as perspectivas e demandas dos povos
indígenas e comunidades tradicionais.
8 Ver mais em: “Anistia Política Coletiva - Reflexões sobre uma nova perspectiva da Justiça de Transição
no Brasil” (2023), de autoria de Eneá de Stutz E. Almeida, Thiago Gomes Viana e Maíra de Oliveira
Carneiro.
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Por fim, o quarto critério destaca a necessidade de entender que cada comunidade
possui demandas e necessidades únicas, que devem ser consideradas ao definir as
medidas de reparação. Por meio de uma abordagem flexível, capaz de se adaptar
às particularidades de cada grupo, levando em conta fatores como história,
cultura, território e organização social.
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estratégico decolonial
lutas e esperanças – é um convite para que essas vozes sejam valorizadas e que a
escuta seja um ato transformador, capaz de gerar empatia, compreensão e
mudança.
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Quadro 3
A Comissão de Anistia como tecnologia e/ou burocracia colonial
Considerações finais
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estratégico decolonial
Além disso, a adoção de uma justiça anamnética se mostra essencial. Esse tipo de
justiça coloca a memória como elemento central nos processos de enfrentamento
das injustiças e violações de direitos; que não se limite apenas a aspectos legais,
mas que também leve em consideração a dimensão humana e emocional das
vítimas.
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Sobre a Comissão de Anistia e seu papel na busca pela justiça e reparação, surge a
necessidade de questionar suas estruturas e práticas em relação às dinâmicas
coloniais que ainda permeia seus processos. A descolonização desse órgão vai
além de uma mera desconstrução superficial, é preciso buscar a reciprocidade e a
escuta ativa das vozes subalternas.
Por fim, diante das narrativas testemunhais dos Aikewara, presente nos processos
da Comissão de Anistia, fui levado a pensar sobre as possíveis implicações de uma
“colonialidade justransicional”. Tal análise têm me permitido compreender como a
matriz colonial do poder permeia e influencia as dinâmicas sociais e políticas.
Referências
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Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 115
estratégico decolonial
BAUER, Caroline Silveira. Quanta verdade o Brasil suportará? Uma análise das
políticas de memória e de reparação implementadas no Brasil em relação a
ditadura civil-militar. Dimensões, Vitória, v. 32, p. 148-169, 2014.
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116 Alex Bruno Feitoza Magalhães
DUSSEL, Enrique. Método para uma filosofia da Libertação. São Paulo: Loyola, 1986.
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estratégico decolonial
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118 Alex Bruno Feitoza Magalhães
TEITEL, Ruti. Transitional justice genealogy. Havard Human na Right Jornal, v. 16,
p. 69-94, 2003.
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Justiça de Transição e Povos Indígenas: em busca de categorias temáticas e de um léxico 119
estratégico decolonial
Sobre o autor
Alex Bruno Feitoza Magalhães
Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco
(PPGD/UFPE). Mestre em Direitos Humanos - Universidade Federal de
Pernambuco (PPGDH/UFPE). Especialista em Filosofia e Teoria do
Direito - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas).
Graduado em Direito - Centro Universitário do Vale do Ipojuca
(Unifavip). Integrante dos Grupos de Pesquisa: Desigualdades, Lutas
Sociais e Democracia no Sul Global (UFPE), Contemporaneidade,
Subjetividades e Novas Epistemologias (G-pense/UPE) e Educação em
Direitos Humanos: políticas, currículo e práticas no ensino superior
jurídico do sertão de Pernambuco (UPE). Extensionista do Programa de
Apoio e Acompanhamento para Acesso à Pós-Graduação Stricto Sensu
- Pré-Pós Paulo Freire (UPE). Bolsista CAPES.
_________________
Agradecimentos
Gostaria de expressar meu sincero agradecimento aos professores Jayme
Benvenuto (UFPE) e Fernando Cardoso (UPE) por suas valiosas orientações
durante a elaboração deste trabalho.
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.49488
dossiê
Submetido em 30/06/2023
Aceito em 13/11/2023
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ISSN 2447-6684
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122 Maria Luiza Rodrigues Dantas - Lilian Márcia Balmant Emerique
Resumo
O questionamento se inicia desde a instrumentalização da propriedade quilombola no
ordenamento jurídico pátrio. Para adentrar na investigação foi necessário compreender
como a universalização do direito empreendeu a subalternização do saber negro e como o
contexto sociopolítico brasileiro interveio na percepção da territorialidade quilombola. A
pesquisa é essencialmente qualitativa, bibliográfica e construída a partir de um trajeto
metodológico atravessado por saberes diversos, os quais, em seu interior, dialogam entre
si, incidem em uma proposta disruptiva à produção do conhecimento jurídico positivado.
Assim, concluiu-se que a territorialidade, para as comunidades quilombolas,
independentemente de ser em contexto rural ou urbano, está relacionada ao território,
ancestralidade e cultura.
Palavras-chave
Quilombo. Hermenêutica jurídica. Urbano. Territorialidade.
Resumen
El cuestionamiento empieza con la instrumentalización de la propiedad quilombola en el
ordenamiento jurídico del país. Para entrar en la investigación, fue necesario comprender
cómo la universalización del derecho he comprometido la subalternización del saber negro
y cómo el contexto sociopolítico brasileño intervino en la percepción de la territorialidad
quilombola. La investigación es esencialmente cualitativa, bibliográfica y construida a
partir de un camino metodológico atravesado por conocimientos diversos, que, en su
interior, dialogan entre sí, enfocan una propuesta disruptiva a la producción de
conocimiento jurídico positivo. Así, se concluyó que la territorialidad, para las
comunidades quilombolas, independientemente de que se encuentren en un contexto rural
o urbano, está relacionada con el territorio, la ascendencia y la cultura.
Palabras-clave
Quilombo. Hermenéutica jurídica. Urbano. Territorialidad.
Abstract
The question starts from the instrumentalization of quilombola property in the national
legal system. To enter into the investigation it was necessary to understand how the
universalization of the direction undertakes the subalternization of black knowledge and
how the Brazilian sociopolitical context intervenes in the perception of quilombola
territoriality. The research is essentially qualitative, bibliographic and constructed from a
methodological suit traversed by diverse knowledge, as it is, in its interior, dialogue among
itself, it affects a disruptive proposal in the production of positive legal knowledge. Thus,
it is concluded that territoriality, for quilombola communities, regardless of being in a rural
or urban context, is related to territory, ancestry and culture.
Keywords
Quilombo. Legal hermeneutics. Urban. Territoriality.
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Hermenêutica negra para pensar a tutela jurídica dos quilombos urbanos 123
Introdução
As violações aos direitos do povo negro sofridas durante os mais de 500 anos de
escravidão no Brasil, têm como contraponto outros direitos consagrados, como o
direito à territorialidade, consolidado pela Convenção nº 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 20021. No ordenamento
jurídico pátrio, essa proteção que reconhece às comunidades quilombolas direitos
territoriais é firmada pela Constituição Federal de 1998 (Brasil, 1998), no art. 68 do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
1 Conferir Convenção 169 OIT parte II – Terras (art. 13 ao 19). Em particular art. 14: “Artigo 14 1.
Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as
terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas
medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam
exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas
atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à
situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes. 2. Os governos deverão adotar as
medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados ocupam
tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse. 3.
Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para
solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados.”
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O problema que norteia a pesquisa é: “em que medida a hermenêutica negra pode
ser empreendida para problematizar a concepção de corpo e território na tutela
jurídica dos quilombos urbanos?”. Assim, o objetivo geral do trabalho é
compreender em que medida a hermenêutica negra pode ser empreendida para
problematizar a concepção de corpo e território na tutela jurídica dos quilombos
urbanos. Portanto, os objetivos específicos que norteiam a investigação são: a)
Estudar a universalização do direito a partir da colonização de saberes outros; b)
analisar a territorialidade no ordenamento jurídico brasileiro a partir da
hermenêutica negra; c) compreender o corpo-território para além da matriz
eurocêntrica.
Assim como Carlos Marés (2011) para ir além acerca da ‘função social da
propriedade’, Milton Santos para pensar a ‘urbanização do Brasil’ e
‘territorialidade (2006; 2013) e Abdias do Nascimento (1980) para pensar a questão
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Além disso, Silvio Almeida (2020), ao trazer a leitura de Foucault para o campo
jurídico, analisando as questões pertinentes do racismo estrutural no direito,
descreve o poder como elemento intrínseco à realidade do direito. Acerca disso, o
autor propõe que ao considerar o “direito enquanto manifestação do poder”
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Para atravessar esta discussão entre as relações raciais e o direito, Dora Lúcia
Bertúlio (1989) promove, em sua pesquisa, um estudo crítico entre o racismo e o
aparelho jurídico. A autora sugere que os costumes para os povos tradicionais não
se diferem do que a modernidade chama de direito. Ao problematizar essa
questão, a autora propõe que a única diferença entre ambos está no processo de
formação.
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O autor, ainda propõe que as diferenças no território são, sobretudo, sociais e não
mais naturais. Esse processo é evidenciado a partir da acumulação de riquezas, o
qual instrumentalizou a base fundiária brasileira. De acordo com Ermínia Maricato
(2003), na década de 1980 houve o crescimento das periferias em detrimento dos
centros. Para a autora, esse fenômeno evidencia a segregação espacial ou
ambiental. A alta densidade demográfica associou-se à exclusão social e, assim, a
segregação urbana torna-se uma faceta da desigualdade social.
Ao mesmo passo que o desenho urbano, por mais que importado da Europa, tenha
sido modificado (SANTOS, 2013), a relação entre a população quilombola, o
território e o meio ambiente não deve ser categorizada a partir de construções
coloniais. Esses povos constroem comunidades em determinados territórios por
questões históricas e sociais, por descenderem de “populações refugiadas ou
marginalizadas social e economicamente pela escravidão, em territórios, no
período pós-abolição, não despertaram o interesse do capital” (Arrutti, 2006, p. 40
apud Baldi, 2014, p. 63).
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A compreensão desses conflitos requer uma análise crítica que considere não
apenas os aspectos legais e jurídicos, mas também os elementos culturais,
históricos e sociais que permeiam a luta dessas comunidades.
Por isso, a hermenêutica negra deve ser utilizada para pensar nessas disputas
judiciais quanto aos conflitos urbanos e socioambientais vivenciados pelas
comunidades quilombolas no contexto urbano. Apesar de haver legislação
consolidada acerca da tutela jurídica quilombola, o intérprete do direito ainda
pensa a partir da lógica binária neutra, universal e rígida operacionalizada pelo
positivismo jurídico.
Considerações finais
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2019.
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ferramenta de emancipação em Direitos Humanos? Rio de Janeiro: Programa de
Pós-Graduação em (Mestrado) Direito da Faculdade Nacional de Direito,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2019.
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138 Maria Luiza Rodrigues Dantas - Lilian Márcia Balmant Emerique
https://open.spotify.com/episode/7D6OzPVNIra1iSUqEOAf0M?si=c1f3d837d27e4
f84. Acesso em: 22 ago. 2022.
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140 Maria Luiza Rodrigues Dantas - Lilian Márcia Balmant Emerique
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Sobre as autoras
Maria Luiza Rodrigues Dantas
Mestranda em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
_________________
Agradecimentos
Agradecimentos à FAPERJ e ao Inpodderales - Inovação, Pesquisa e
Observação de Direito, Democracia e Representações da América Latina e Eixo
Sul (UFRJ/CNPq).
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50211
dossiê
Submetido em 23/07/2023
Aceito em 12/10/2023
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ISSN 2447-6684
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144 Mariana Rodrigues Viana
Abstract
This paper explores the link between Brazil's neo-extractivist model, environmental
degradation, violation of indigenous peoples' and traditional communities' rights, and
implications within the climate crisis. It addresses key questions: 1) How does the violation
of these rights relate to neo-extractivism? 2) How has the legal field been used to perpetuate
this model? 3) Why is ensuring indigenous peoples' and traditional communities' rights
vital during the climate crisis? The study adopts an interdisciplinary approach, analyzing
data reports on conflicts, violence, and environmental impacts. Furthermore, it surveys
relevant regulations and proposed bills. Findings underscore necropolitics, environmental
racism, and the urgent need to address these intertwined challenges.
Keywords
Indigenous Peopless and Traditional Communities. Neo-extractivism. Environmental
racism. Necropolitics. Climate Crisis.
Resumo
Este artigo explora a relação entre o modelo neoextrativista no Brasil, a degradação
ambiental, a violação dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais, e as
implicações para a crise climática. Aborda questões-chave: 1) Como a violação desses
direitos se relaciona com o neoextrativismo? 2) Como o campo jurídico tem sido utilizado
para perpetuar esse modelo? 3) Por que é vital garantir os direitos dos povos indígenas e
comunidades tradicionais na crise climática? O estudo é interdisciplinar, analisando
relatórios sobre conflitos, violência e impactos ambientais. Realiza também um
levantamento de regulamentos e projetos de lei relevantes. Os resultados destacam a
necropolítica, o racismo ambiental e a urgência de enfrentar esses desafios entrelaçados.
Palavras-chave
Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais. Neoextrativismo. Racismo Ambiental.
Necropolítica. Crise Climática.
Resumen
Este artículo explora la relación entre el modelo neoextractivista en Brasil, la degradación
ambiental, la violación de los derechos de los pueblos indígenas y las comunidades
tradicionales, y las implicaciones para la crisis climática. Aborda preguntas clave: 1) ¿Cómo
se relaciona la violación de estos derechos con el neoextractivismo? 2) ¿Cómo se ha
utilizado el campo jurídico para perpetuar este modelo? 3) ¿Por qué es vital garantizar los
derechos de los pueblos indígenas y comunidades tradicionales en la crisis climática? El
estudio es interdisciplinario, analizando informes sobre conflictos, violencia e impactos
ambientales. Además, revisa regulaciones y proyectos de ley. Los resultados destacan la
necropolítica, el racismo ambiental y la urgencia de abordar estos desafíos.
Palabras-clave
Pueblos Indígenas y Comunidades Tradicionales. Neoextractivismo. Racismo Ambiental.
Necropolítica. Crisis Climática.
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Environmental racism, necropolitics, and climate crisis: reflections from the humanitarian crisis 145
of indigenous peoples and traditional communities in Brazil
Introduction
More recently, in early 2023, the Yanomami indigenous land, the largest
indigenous territory in the country, has become the center of a humanitarian crisis.
The crisis has emerged due to the escalating presence of illegal mining, particularly
in the part of the territory situated in the state of Roraima. The magnitude of this
crisis has garnered significant global media attention, which highlighted that the
Yanomami region looked like a ‘concentration camp’ (Boadle, 2023).
This case exemplifies a larger context, a project of death policy directed towards
indigenous peoples and traditional communities in Brazil. It ultimately led to the
denunciation by the Articulation of Indigenous Peoples of Brazil - APIB, in late
2021, at the International Criminal Court (ICC), against former President
Bolsonaro for genocide and crimes against humanity, which will be expanded to
include the Yanomami case (Articulation of Indigenous Peoples from Brazil, 2021).
On the other hand, the violation of these rights and the intensification of neo-
extractivism have raised concerns regarding environmental racism and its
ramifications for the global community, particularly in light of the climate crisis.
This is due to the fact that safeguarding the territorial rights of indigenous peoples
and traditional communities is paramount in combating deforestation and tackling
the climate crisis - indigenous lands alone are responsible for protecting 30% of
Brazilian biodiversity (Fundação Nacional dos Povos Indígenas, 2012).
1 It is noteworthy that Bruno Pereira, a career servant of the National Indian Foundation (Funai),
was relieved of the position of general coordinator of Isolated Indians after combating illegal
mining in the Yanomami Indigenous Land, in Roraima (Carvalho, 2019).
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146 Mariana Rodrigues Viana
that deliver vital services at both regional and global levels (United States Agency
for International Development, 2022). Hence, the country's leadership in these
matters is of utmost importance, and investigating the root cause of the issue,
namely the unsustainable development model, is relevant.
In this sense, this article aims to explore the connection between the neo-
extractivist development model adopted in Brazil, the degradation of biomes such
as the Amazon and the Cerrado, the violation of indigenous peoples' and
traditional communities' rights, as well as the implications within the context of
the climate crisis. The main argument sustained is the significance of ensuring
indigenous peoples' and traditional communities' rights for both Brazilians and
the global community. This article addresses several research questions. First, to
what extent does the violation of indigenous peoples and traditional communities'
rights in Brazil correlate with the intensification of neo-extractivism? Second, how
has the legal field been utilized to sustain this development model in the country?
Lastly, why is it important not only for Brazilians but also for the global
community to ensure the rights of these communities in a moment of the climate
crisis?
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of indigenous peoples and traditional communities in Brazil
In this sense, Acosta (2013, p. 62) defines extractivism as activities that involve the
extraction of large volumes of non-processed (or partially processed) natural
resources primarily for exportation. This includes not only minerals and oil but
also agrarian, forestry, and fishing extractivism. The author clarifies that
“extractivism has been a mechanism of colonial and neocolonial plunder and
appropriation” taking on various forms over time but always aiming to meet the
needs of the global North's industrial development and well-being, without
considering the sustainability of this model or resource depletion (Acosta, 2013, p.
63)2.
Acosta analyzes how extractivism has been a constant feature in countries of the
global South, and while some elements have changed, this development model
“seems to be at the heart of the production policies of both neoliberal and
progressive governments” (Acosta, 2013, p. 63). Indeed, as Santos (2021, p. 24)
points out, when progressive governments came to power in several Latin
American countries in the early 2000s, they added their own characteristics to the
model, such as the recovery of state centrality and extensive freedom for market
forces, which came to be known as neo-extractivism or neo-developmentalism.
The author emphasizes that this model “is part of a concept of progress in which
2 As Gonzalez (2015, p. 152) explains, the terms North and South can be used to distinguish wealthy
industrialized nations (such as the United States, Canada, Australia, New Zealand, Japan, and
members of the European Union) from less prosperous nations in Asia, Africa, and Latin America
that share a history of political and economic domination.
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148 Mariana Rodrigues Viana
Therefore, it is no wonder that Santos (2021, p. 24-25) argues that one of the most
persistent colonial legacies is the portrayal of Asia, Africa, and Latin America as
Third World continents, underdeveloped, and the creation of developmentalism
as a structuring discursive field of post-World War II social and political reality.
As the author observes, anything that hinders economic growth is considered an
obstacle to development, creating an inherent incompatibility between the
adopted development model and the effectiveness of human rights.
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of indigenous peoples and traditional communities in Brazil
Similarly, this discourse was clear in the speech of former Minister of the
Environment, Ricardo Salles, who, in a ministerial meeting made public by a
Supreme Court's decision, advocated for “running the cattle herd”3, changing
regulations, and simplifying environmental norms while media attention was
focused on the Covid-19 pandemic (G1, 2020). However, as Acosta (2013, p. 61)
argues, the extractivist potential is more of a “resource curse” than a solution for
development. The author analyzes that accumulated experiences demonstrate that
resource-rich countries, whose economies are based on extractivism, face greater
difficulties in developing, to the point where they seem condemned to
underdevelopment.
As the author explains, the Inter-American Development Bank (IDB) itself has
acknowledged this curse of natural resources almost as a tropical fatalism in
several of its reports. In this sense, the author highlights some ills of extractivism,
such as the volatility of prices of raw materials in the international market; the
super concentration of profits in a few economic groups that generally do not
create incentives for domestic investments, leading to the denationalization of the
economy; the low generation of direct and indirect employment; the impacts on
communities in whose territories or surroundings extractive activities take place;
as well as the severe degradation of the environment (Acosta, 2013, p. 63-71).
3 The expression “run the herd” refers to the approval of sub-legal reforms aimed at relaxing socio-
environmental legislation.
4 Environmental racism is closely related to environmental and climate injustice, as the
disadvantaged ecological relationships between the global North and South, notably the global
South’s export-oriented production, result in environmental problems like climate change and
biodiversity loss. These issues disproportionately affect vulnerable populations, including racial
and ethnic minorities (Gonzalez, 2015, p. 154-155).
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150 Mariana Rodrigues Viana
5 Quilombos are communities created since colonial times by enslaved black peopleya who resisted
the slavery regime that prevailed in Brazil for over 300 years. A Comissão Pró-Índio de São Paulo
explains, “quilombos were formed from a wide variety of processes that include the escape of
slaves to free and generally isolated lands. However, freedom was also acquired through
inheritance, donations and land revenues as payment for services rendered to the state or for
stays on the lands they occupied and cultivated. There are also cases of land purchase both during
the term of the slave regime and after its abolition”. Today, there are contemporary quilombos,
that are included in a broader concept of traditional communities (Comissão Pró-Índio de São
Paulo, 2019).
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enslavement of the African peoples, but also the massive extermination of the
indigenous peoples in the Americas, allowed Mbembe to see real spaces of death,
also marked by the state of exception, where death became a form of political
management, process observed today with neocolonial practices (Mbembe, 2003,
p. 21). This is precisely what has been happening to indigenous peoples and
traditional communities in the country, but whose impacts go far beyond them,
being global in the face of the issue of climate change, as will be demonstrated in
the next section.
The case of the Yanomami indigenous peoples has shocked Brazil and the world,
making headlines in various global news outlets and exposing the existing
humanitarian crisis involving indigenous peoples and traditional communities
(Nicas, 2023; Gozzi, 2023; Phillips, 2023). The largest indigenous territory in the
country, the Yanomami Indigenous Land is facing a public health emergency due
to the lack of assistance to a population struggling with the encroachment of illegal
mining and numerous cases of severe malnutrition and malaria. Malnutrition
affected over 50% of children, in addition to the high number of malaria cases,
which are related to the expansion of illegal gold mining (Coll; Vilar de Menezes,
2023).
Only under the new government, led by President Lula, the Ministry of Health
declared a public health emergency in the Yanomami territory (Brasil. Ministério
da Saúde, 2023), despite the critical situation having existed for a long time.
Indeed, it is paradigmatic that the first death from Covid-19 among indigenous
peoples in Brazil was that of a Yanomami (Coll; Vilar de Menezes, 2023).
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152 Mariana Rodrigues Viana
The APIB dossier pointed out that the massive invasion of illegal gold miners in
the Yanomami indigenous land reached staggering figures, with over 20.000
miners causing devastation to an area equivalent to the size of 500 football fields.
The document also highlights that the advancement of the COVID-19 pandemic
has further exposed the devastating impacts of dismantling support systems for
indigenous communities, including the disintegration of SESAI (Special
Secretariat of Indigenous Health). This, coupled with the emergence of a new and
highly contagious virus with a high fatality rate, has tragically resulted in the loss
of over 1.1 thousand indigenous (Articulation of Indigenous Peoples from Brazil,
2021, p. 21- 28).
It is important to note that there were already decisions mandating actions by the
Brazilian State regarding this case, both by the Supreme Federal Court and the
Inter-American Commission on Human Rights. In the face of the State’s omission
during the pandemic, APIB took the initiative to approach the Supreme Court by
proposing a Claim of Noncompliance with Fundamental Precept (ADPF). The
ADPF 709 achieved success in its demand to compel the Union to establish an
emergency plan to combat the spread of COVID-19 in indigenous territories. In
May 2021, the Supreme Federal Court ruled on the ADPF 709, ordering the
removal of invaders from the Yanomami Indigenous Land, which clearly has not
been complied with by the Brazilian state (Articulation of Indigenous Peoples from
Brazil, 2021, p. 36).
On the other hand, on June 17, 2020, the Inter-American Commission on Human
Rights (IACHR) issued Resolution 35/2020, which grants precautionary measures
of protection in favor of members of the Yanomami and Ye'kwana indigenous
peoples, also not complied with by the Brazilian state (Inter-American Comission
on Human Rights, 2020).
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In 2021, Cimi recorded 305 cases of this type, affecting at least 226 Indigenous
Territories in 22 states, nearly three times the number recorded in 2018, when 109
cases were counted. The report further exposes that in addition to the increase in
the number of cases and affected lands due to the illegal actions of gold miners,
loggers, hunters, fishermen, land grabbers, among others, the invaders have
intensified their presence and brutality, as evidenced in cases such as the
Munduruku people in Pará and the Yanomami people in Roraima and Amazonas
(Conselho Indigenista Missionário, 2022, p. 08).
The data on interrupted indigenous lives recorded by the report confirms this
statement. In 2021, 176 indigenous peoples were murdered, six fewer than in 2020,
which had the highest number of homicides since the Cimi began tracking this
data in 2014. In contrast, the number of indigenous suicides in 2021 was the highest
ever recorded during the same period, with 148 cases. The report explains this
situation as being caused by a sequence of actions taken by the Executive power,
which promoted the exploitation and privatization of indigenous lands, as well as
by the efforts of the federal government and its supporters to pass laws that
undermine the constitutional protection of indigenous peoples and their
territories. It concludes that this set of actions provided the necessary confidence
for invaders to advance in their illegal actions (Conselho Indigenista Missionário,
2022, p. 08).
As Porto and Rocha (2023, p. 493) explain, mining and mining activities have direct
impacts on indigenous peoples, such as the loss of territory, deforestation, water
pollution, the reduction or degradation of arable land, the reduction in the variety
and availability of wild animals and other forest resources, fields, and waters, as
well as indirect impacts resulting from related productive activities, such as
mining transportation systems, manufacturing industries, export infrastructure,
all of which have impacts on the territories located in or around those areas, in
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154 Mariana Rodrigues Viana
addition to the impacts resulting from other marginal activities that worsen
processes of vulnerability, such as arms and drug trafficking and prostitution.
For these reasons, the authors conclude that allowing these activities within
indigenous territories is an update of the colonial policies of extermination that all
the legal frameworks developed in the last century sought to prevent. And they
question: “Until when and what must we do to stop killing and dying for material
wealth that prevents life on the planet and happiness to so many human beings”
(Porto; Rocha, 2022, p. 499).
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of indigenous peoples and traditional communities in Brazil
On the other hand, according to data from the Greenhouse Gas Emissions
Estimation System (SEEG), there was a 9.5% increase in gross greenhouse gas
(GHG) emissions in Brazil in 2020, possibly making it the only major emitter on
the planet to experience an increase during the COVID-19 pandemic year, mainly
due to deforestation, especially in the Amazon and the Cerrado. This led to a 23.6%
increase in GHG emissions from land-use changes (deforestation and emissions
from forest residue burning) in 2020 (Sistema de Estimativas de Emissões de Gases
do Efeito Estufa, 2021, p. 03-04).
46% of Brazil’s gross greenhouse gas (GHG) emissions in 2020 came from land-use
changes. The agricultural and livestock sector accounted for 27% of the total
emissions, predominantly (65%) from emissions generated by ruminant animal
digestion, which produces methane – commonly known as cow belching (enteric
fermentation). When combining the emissions from land-use changes and the
agricultural and livestock sector, it can be concluded that 73% of the national GHG
emissions are directly or indirectly linked to rural production and land speculation
(Sistema de Estimativas de Emissões de Gases do Efeito Estufa, 2021, p. 04).
These data demonstrate that all of these crises are interconnected, and “there is a
growing consensus on the catastrophic consequences of global warming and the
6 Region composed of the Cerrado biome in the states of Maranhão, Tocantins, Piauí, and Bahia.
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plundering of the earth’s resources” (Santos, 2021, p. 26). In this context, ensuring
the territorial rights of indigenous peoples, quilombolas, and other traditional
communities, as well as protecting these populations, are fundamental measures
to curb deforestation and, on a macro scale, contribute to addressing the climate
crisis.
The use of the legal framework to serve economic interests has reached its limit,
and it is time to recover the consensus agreed upon by Brazilian society in the 1988
constitutional process and, more importantly, to advance the legal protection of
nature and indigenous and traditional communities. Nonetheless, the current
political landscape has revealed that despite Bolsonaro's departure, the “cattle
herd continues to run” as destructive measures for the environment and
indigenous peoples continue to advance in the legislative sphere, as will be
discussed in the next section.
As Bercovici (2010, p. 96) clarifies, political dictatorship has been replaced by the
economic dictatorship of markets, creating a permanent state of economic
exception in the periphery of capitalism. This includes adapting domestic law to
the needs of capital in order to reduce the possibilities of interference by popular
sovereignty. The author adds that traditionally, powers would interfere with
political and economic freedoms for the collective well-being, but today there is a
reverse movement, limiting the rights of the population to ensure private property
and capitalist accumulation.
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of indigenous peoples and traditional communities in Brazil
The list is extensive, including several bills and institutional strategies that pose a
significant threat to the rights of indigenous peoples and traditional communities.
Among these, particular attention will be given to those that are deemed more
alarming and marked by constitutional concerns. This collection of measures has
come to be known as the “Package of Destruction” or the “Combo of Death”
(Observatório do Clima, 2022).
The second is Normative Instruction N. 09/2020 from FUNAI, which regulated the
application, analysis, and issuance of a document called the Declaration of
Boundary Recognition (DRL) by FUNAI. The DRL provides certification to both
property owners and private possessors, confirming that their property
boundaries respect the boundaries of Indigenous Territories. However, under this
normative, only homologated indigenous lands, indigenous reserves, and fully
regularized indigenous dominion lands were considered, while delimitated
indigenous lands, declared indigenous lands, and physically demarcated
indigenous lands were disregarded (Brasil. Ministério da Justiça e Segurança,
Fundação Nacional do Índio, 2020). In response to this, the Indigenistas
Associados, an association of FUNAI civil servants, stated that “Normative
Instruction 09 transforms FUNAI into an institution certifying properties for
7 In a search conducted on the IBAMA website on October 16, 2023, it was verified that Joint
Normative Instruction N. 1, dated February 22, 2021, is currently in effect.
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158 Mariana Rodrigues Viana
The third is the Normative Opinion 001/2017 issued by the Attorney General’s
Office (AGU) on July 20, 2017. This opinion imposes various restrictions on the
demarcation of Indigenous Lands and draws upon conditions established in the
Raposa Serra do Sol Indigenous Land case, from 2009, and the doctrine of the so-
called “temporal framework”, which asserts that Indigenous peoples are entitled
to the demarcation of lands only if they can prove continuous possession since
October 5, 1988, the date of the Brazilian Constitution’s promulgation. In effect,
Normative Opinion 001/2017 serves to impede and reassess ongoing or completed
demarcations, undermining the rights of Indigenous communities8.
The effects of this opinion were suspended in 2020 by a decision of the Supreme
Federal Court (STF) until the judgment of the Extraordinary Appeal (RE) 1017365,
which has been recognized as having general repercussions (Supremo Tribunal
Federal, 2020). According to estimates by the Socio-Environmental Institute (ISA),
this judgment regarding the temporal framework could have negatively affected
the demarcation of approximately 303 Indigenous Lands inhabited by over 19.000
indigenous individuals (Galzo, 2021)9.
8 According to an article by the National Indigenous Mobilization, the Opinion was issued by the
AGU during Michel Temer’s administration, amidst negotiations by the former president to
prevent corruption allegations against him. The negotiations involved the release of amendments
to lawmakers and also addressing the agenda of sectors and caucuses, such as the ruralist caucus
(Mobilização Nacional Indígena, 2020).
9 During the article’s review process, on September 21, 2023, in the judgment of the Extraordinary
Appeal (RE) 1017365, the Plenary of the STF rejected the temporal framework by a vote of 9 to 2,
and the thesis was established on September 27 th. The thesis recognizes the constitutional
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Among the bills, some that are part of the so-called “Combo of Death” will be
highlighted. The first notable bill in the national spotlight is Bill N. 490/2007,
known as the Temporal Framework Bill, which was approved on May 30, 2023, by
the Brazilian Chamber of Deputies (Brasil. Câmara dos Deputados, 2007). This bill
aims, among other things, to change the process of demarcating indigenous lands
in Brazil by transferring the authority for the demarcation of Indigenous Lands
from the Executive Branch to the Legislative Branch and enshrining into law the
temporal framework doctrine that recently underwent discussion in the Supreme
Federal Court (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2023a, p. 01). This
doctrine asserts that Indigenous peoples are only entitled to the lands they
occupied on the date of the promulgation of the Brazilian Federal Constitution -
October 5th, 1988 (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2023, p. 06). Various
protests against the bill and the temporal framework thesis are taking place across
the country (G1, 2023; G1 2023a).
The Bill N. 490/2007 was ‘rebranded’ in the Senate, receiving a new number: Bill
N. 2903/2023. On the same day that the STF concluded the judgment of RE 1017365,
establishing the thesis that rejects the temporal framework, the Federal Senate
approved Bill N. 2903/2023, which was then sent for either veto or enactment by
the President of the Republic (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2023c).
The Articulation of Indigenous Peoples of Brazil (APIB) sent Letter N. 207/2023 –
AJUR/APIB to President Lula da Silva, requesting a total veto of Bill N. 2.903/2023,
arguing the disregard by the National Congress for the decisions of the STF, as
evidenced by the approval of Bill N. 2903/2023 under an urgent regime to secure
political timing and exert pressure on the STF, challenging its decision and the
rights of indigenous peoples (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2023b).
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Finally, it is important to note that Bill N. 191/2020 (Brasil. Câmara dos Deputados,
2020), also known as the Genocide Bill, signed by former Minister of Mines and
Energy Bento Albuquerque and former Minister of Justice Sérgio Moro, was only
withdrawn from processing at the request of the current administration through
MSC n.107/2023, signed by the current Minister of Justice and Public Security,
Flávio Dino (Brasil. Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2023).
However, the challenges also extend to the Legislative branch, given the bills
currently under consideration that represent a threat to socio-environmental
rights, including the rights of indigenous peoples and traditional communities,
with a notable mention of the approval of Bill N. 2903/2023 by the Senate, which is
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now awaiting the President’s veto or enactment. They further extend to the
Judiciary and institutions of the justice system in general, as demonstrated by the
recent Supreme Federal Court (STF) judgment that is now facing challenges from
Congress, which has approved legislation conflicting with the STF’s decision,
leaving the current legal uncertainty evident. Furthermore, these challenges
extend to the international community, considering that the guarantee of socio-
environmental rights, especially for indigenous peoples and traditional
communities, is of global interest in the context of intensifying climate change and
global warming.
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included in the scope of the law. Additionally, it was noted that the inclusion of a
human rights element in the proposal is too limited and does not effectively protect
the rights of indigenous peoples and local communities, indicating the need for
more ambitious proposals (WWF, 2022).
Conclusion
Moreover, it is argued that at this moment when the climate issue is a global
priority, ensuring socio-environmental rights, especially those of indigenous
peoples and traditional communities, is an essential challenge that extends not
only to Brazil but to the entire international community. It is important to seek
another model of development in harmony with nature, which implies prioritizing
the rights and perspectives of indigenous peoples and traditional communities.
Internally, it requires efforts to halt the so-called “Combo of Death” and to
reinstate policies for socio-environmental protection and the demarcation of
indigenous and quilombola territories. On the international front, more effective
measures are required. The EU deforestation law is a starting point, but more
ambitious frameworks are necessary.
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Reference
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of indigenous peoples and traditional communities in Brazil
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50339
dossiê
Submetido em 31/07/2023
Aceito em 09/12/2023
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ISSN 2447-6684
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174 Sérgio Pessoa Ferro - Givanildo Manoel da Silva
Resumo
O artigo tem como objetivo estudar os discursos de categorização étnico-racial formulados
pelo Estado brasileiro, de modo a questionar o pardismo como ideologia etnocida na
perspectiva dos movimentos de retomada das identidades e territórios indígenas. O aporte
teórico está baseado nas epistemologias decoloniais indígenas, sobretudo na filosofia
política de Ailton Krenak, e na antropologia do colonialismo de João Pacheco de Oliveira,
tendo como método de coleta de informações a revisão bibliográfica, técnica empregada
sobretudo na conceituação do dispositivo de etnicidade. Além disso, na metodologia
utilizamos a pesquisa documental, cujos principais documentos consistem nos Censos
Demográficos realizados, inicialmente, pela Diretoria-Geral de Estatística e,
posteriormente, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística no período de 1872 a
2010. Verificamos que por mais de cem anos a racionalidade estatal silenciou sobre a
presença originária nas estatísticas oficiais. Diante da ausência de uma categoria específica,
a população indígena foi mensurada como população parda nos números definidores de
cidadania e políticas públicas, caracterizando uma prática discursiva institucional de
desindianização da sociedade até o momento em que foi inserida a categoria indígena no
questionário em 1991 pela primeira vez na história.
Palavras-chave
Identidade indígena. Colonialismo. Censo Demográfico. Direito Indigenista.
Resumen
El artículo tiene como objetivo estudiar los discursos de categorización étnico-racial
formulados por el Estado brasileño, con el fin de cuestionar el pardismo como ideología
etnocida desde la perspectiva de los movimientos de recuperación de identidades y
territorios indígenas. El aporte teórico se fundamenta en las epistemologías descoloniales
indígenas, especialmente la filosofía política de Ailton Krenak, y la antropología del
colonialismo de João Pacheco de Oliveira, utilizando como método de recolección de
información la revisión bibliográfica, técnica utilizada principalmente en la
conceptualización del dispositivo étnico. Además, en la metodología utilizamos la
investigación documental, cuyos documentos principales consisten en los Censos
Demográficos realizados, inicialmente, por la Dirección General de Estadística y,
posteriormente, por el Instituto Brasileño de Geografía y Estadística en el período de 1872
a 2010. Encontró que durante más de cien años, la racionalidad estatal guardó silencio
sobre la presencia original en las estadísticas oficiales. Ante la ausencia de una categoría
específica, la población indígena fue medida como población parda en los números que
definen ciudadanía y políticas públicas, caracterizando una práctica discursiva
institucional de desindianización de la sociedad hasta el momento en que la categoría
indígena fue insertada en el cuestionario en 1991 por primera vez en la historia.
Palabras-clave
Identidad indígena. Colonialismo. Censo Demográfico. Ley Indígena.
Abstract
The article aims to study the discourses of ethnic-racial categorization formulated by the
Brazilian State, in order to question pardismo as an ethnocidal ideology from the
perspective of movements for the recovery of indigenous identities and territories. The
theoretical contribution is based on indigenous decolonial epistemologies, especially the
political philosophy of Ailton Krenak, and the anthropology of colonialism by João
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Pardismo: um etnocídio de Estado 175
Introdução
Diversas foram as ações realizadas para esse intento, as inúmeras guerras foram
explícitas na determinação de subjugar os povos, que não se curvaram e ainda
lutam ferrenhamente para não se submeter aos interesses do invasor, que
sofisticou as suas ações e encontrou no etnocídio uma de suas práticas mais
eficazes no processo de subjugar os povos, utilizando táticas diferentes, que
começam nas ações assimilacionistas do Marquês de Pombal, passando pela
criminalização das línguas, proletarizando os indígenas em longos processos de
deslocamentos forçados dos seus territórios e na manipulação do Censo
Demográfico, retirando da contagem uma categoria específica para mensurar a
presença indígena por cem anos, já que o termo caboclo foi retirado no final dos
Oitocentos e o termo indígena só foi inserido na última década do século XX (Ferro;
Varão, 2021).
Esse processo que rasga a alma e o lugar de muitas e muitos, não ocorre sem
resistências, só nesses últimos 50 anos, com o início do processo de articulação da
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176 Sérgio Pessoa Ferro - Givanildo Manoel da Silva
União das Nações Indígenas, que teve papel central na Assembleia Nacional
Constituinte de 1987/1988 para mudar o status dos povos indígenas de tutelados
pelo Estado para a autoafirmação das identidades e, o que impulsionou os povos
a se afirmarem e a retomarem seus territórios ancestrais. O Nordeste foi uma das
principais regiões nos processos de autoafirmação das identidades, chegando aos
dias atuais quando diversas identidades silenciadas pelo colono-capitalismo
passam a reivindicar as suas memórias ancestrais, para voltar a caminhar guiados
pelo farol de suas histórias, podendo fazer escolhas de caminhos à luz do passado
e do presente.
Álvaro de Azevedo Gonzaga (2021) assevera que o termo “índio” utilizado nos
textos jurídicos é racista, pois derivado do famoso erro de rota de Cristóvão
Colombo, que, chegando à Pachamama ou Abya Yala, nomes originários da
América, acreditou ter ancorado na Índia, assim chamando de índios os povos
autóctones. Indígena, ao contrário, quer dizer povo nativo, preferindo-se este
termo por não carregar o estereótipo designado pelo colonizador. Estima-se que
em 1500, à época da invasão portuguesa, o território que hoje chamamos Brasil era
povoado por cerca de 3.600.000 indivíduos pertencentes a aproximadamente 1.400
povos distintos (Oliveira; Freire, 2006)1. O imaginário colonial descrito por Pero
Vaz de Caminha (1450-1500) em sua célebre carta ao rei D. Manuel I (1469-1521)
assim os nomeou: “Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse
suas vergonhas”.
1 Esta estimativa não é um consenso, pois o apagamento constitui traço marcante da memória
oficial sobre a presença indígena no Brasil
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Pardismo: um etnocídio de Estado 177
Assim, este artigo tem como objetivo geral estudar os discursos de categorização
étnico-racial formulados pelo Estado brasileiro, de modo a questionar o pardismo
como ideologia etnocida na perspectiva dos movimentos de retomada da
identidade indígena e de enfrentamento ao racismo anti-indígena. De forma mais
específica, o texto se propõe a examinar o dispositivo de etnicidade, enquanto uma
rede de relações de poder e de saber que formam os conceitos de raça e etnia por
meio da estratégia metodológica da revisão literária; estudar a presença indígena
na história dos censos demográficos brasileiros e do direito indigenista; e, por fim,
discutir o pardismo como uma das razões que o Estado colonial utilizou para
cometer o etnocídio. O aporte teórico está baseado nas epistemologias decoloniais
indígenas, tendo como método de coleta de informações a revisão bibliográfica e a
pesquisa documental, cujos principais documentos consistem nos Censos
Demográficos realizados pelo Estado brasileiro no período de 1872 a 2010.
1 O dispositivo de etnicidade
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Assim, Peter Wade (2000) demonstra que, tradicionalmente, a raça diz respeito ao
fenótipo, enquanto a etnicidade trata da cultura de um povo, de forma que as
identidades raciais e as identidades étnicas se sobrepõem, permitindo olhar para
além do enfoque marxista clássico por não reduzir a dominação colonial à
exploração econômica, acentuando a desigualdade racial. O autor questiona o
entendimento de que na América Latina a raça identifica a população negra ao
passo que a etnicidade identifica a população indígena, refletindo que estas
categorias não são tão isoladas assim (Wade, 2000).
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Spencer (2006) elaborou um quadro com a evolução dos discursos sobre raça: a)
monogenismo, focado na origem, na linhagem, na descendência de Adão e Eva,
ilustrando as ideias da moralidade cristã sobre os habitantes das terras
conquistadas durante as primeiras fases do colonialismo; b) poligenismo, baseado
na herança biológica e na classificação da população em rígidas categorias naturais
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Ademais, cabe fazer uma apertada diferenciação, para fins pedagógicos, entre os
conceitos de raça e etnia a partir da perspectiva decolonial. Quijano (2005) afirma
que a ideia de raça, em seu sentido moderno, surgiu com a invenção da América.
Ao compreender esta categoria enquanto uma construção histórica que imprime
nos corpos a experiência da dominação colonial; a decolonialidade inova ao
considerar que a raça “é um signo” (Segato, 2005) que indica a posição do sujeito
na história. Rita Segato (2005, p. 05) compara o conceito de raça no Brasil e nos
Estados Unidos, afirmando que, aqui, raça é uma marca fenotípica, enquanto lá
depende da origem: “no Brasil o racismo se manifesta nas relações interpessoais e,
sobretudo, intra-pessoais, num expurgo interior, enquanto nos Estados Unidos é
um antagonismo de contingentes, entre povos percebidos como diferentes”.
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Assim, “[...] o vasto genocídio dos índios nas primeiras décadas da colonização
não foi causado pela violência da conquista, [...], mas porque tais índios foram
usados como mão de obra descartável, forçados a trabalhar até morrer” (Quijano,
2005, p. 229). Portanto, visibilizar a exploração e a governabilidade da mão de obra
indígena no Brasil constitui uma prática decolonial na medida em que desvela as
continuidades do poder colonial sobre estes povos, que sofreram com o massacre
físico do genocídio e também com o apagamento cultural do etnocídio. No
próximo tópico, serão discutidas as categorizações étnico-raciais elaboradas pelo
Estado brasileiro, demonstrando como foi sendo forjado o conceito de pardo a
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partir do quesito raça ou cor nos censos demográficos diante da realidade social
colocada pelos povos indígenas que vivem em contexto urbano e estão em
retomada ancestral, encontrando no termo “pardo” uma armadilha na caminhada
para a luta por direitos. A seguir, a genealogia do pardismo analisará discursos e
práticas institucionais aparentemente dispersos, rearticulando demografia, direito
e política indigenista para estudar como esta ideologia de apagamento da
identidade indígena tornou-se uma razão de Estado.
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Pardismo: um etnocídio de Estado 185
Tabela 1
Categorias étnicas e raciais nos Censos Demográficos brasileiros (1872-2010)
Fonte: Elaboração dos autores baseada no quadro analítico criado por Nobles
(2000), atualizando-o quanto à presença indígena e censos de 2000-2010
conforme o IBGE (2000, 2012b).
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Foi, portanto, o Ato Adicional de 1834 que enunciou a questão indígena pela
primeira vez no discurso constitucional normativo brasileiro, estabelecendo a
política civilizatória da catequese e facilitando a expropriação das terras indígenas
pelas oligarquias locais com a transferência da competência legislativa aos estados
em matéria de terras devolutas (Lacerda, 2007). Com a abolição do regime
escravocrata e proclamação da República, o Censo 1890 manteve a categoria
cabocla e substituiu a categoria parda pela mestiça. O Censo 1920 não operou com
o quesito raça ou cor, todavia publicou um estudo eugenista que reproduzia a
narrativa do desaparecimento da “raça vermelha” no país. Na década de 1930 não
houve censo, porém, a Constituição de 1934 reconheceu pela primeira vez na
história os direitos territoriais dos povos originários, mantidos em todas as Cartas
Constitucionais posteriores (Araújo, 2006).
Nos anos de chumbo, o Censo 1960 utilizou a categoria indígena nos formulários,
definindo-a pelo critério da localização geográfica dos indígenas, abrangendo
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Dialogando com o campo das relações raciais, mencionamos que o retorno das
categorias de cor nos questionários do censo demográfico em 1980 se deu em
virtude da atuação política de Lélia Gonzalez (2020) e demais militantes do
movimento negro que pressionaram o presidente do IBGE com um abaixo-
assinado. A autora, que também afirmava ser descendente de indígenas, sintetizou
esse debate no texto A Cidadania e a Questão Étnica, resultado de um discurso
proferido no seminário A Construção da Cidadania realizado pela Universidade
de Brasília em 1986, em que estiveram presentes Marcos Terena, assessor do
Ministério da Cultura, e Eunice Paiva, advogada indigenista. Na ocasião, Gonzalez
(2020, p. 215) fez algumas comparações entre a questão negra e a questão indígena,
mas sempre se posicionando enquanto intelectual representante do Movimento
Negro Unificado: “tanto no caso do indígena quanto no do negro percebemos que
é o branco que controla sempre as decisões a nosso respeito”.
Como ensinava Antônio Bispo dos Santos (2015, p. 91), nosso diálogo, articulado
entre o movimento indígena e o movimento negro, é guiado pela política das
confluências no sentido de transformar “as nossas divergências em diversidades”.
Assim, a produção teórica de Gonzalez (2020, p. 223) contribui para a reflexão
sobre o pardismo como etnocídio na medida em que questiona o mito da
democracia racial e a ideologia de branqueamento institucionalizados pelo Estado
brasileiro às custas da “negação de si mesmo” e da “negação da própria
identidade”. Nós reconhecemos a legitimidade do direito de autoafirmação da
população negra em definir-se enquanto pretos e pardos, porém nos levantamos
contra o silêncio de cem anos nas estatísticas em que indígenas foram
contabilizados como pardos num processo continuado de exploração da força de
trabalho e expropriação dos territórios. Na maioria dos estudos das relações
étnicas e raciais, nada se comenta sobre a retirada da categoria cabocla do censo
desde 1890 ou a ausência de uma categoria específica depois dessa data,
sustentando-se uma narrativa etnocida de que a população indígena foi dizimada
ou obrigada a fugir para a floresta, reproduzindo estereótipos apoiados na lógica
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Vamos considerar que isso que está descrito aqui como o entendimento
que o IBGE toma para nos contar como a população no Brasil é uma
descrição das situações que engloba quase tudo o que eu procurei trazer
desde que o Caminha disse que nós somos pardos ou éramos pardos
quando ele avistou os nossos antepassados na praia. E como esse pardismo
veio evoluindo ao longo do tempo, veio se desenrolando ao longo do
tempo e como que coletivos de pessoas que viveram dentro da história
adotaram em diferentes épocas a estratégia de serem pardos para ficarem
vivos. Ou a estratégia de serem pardos para escapar a uma condição
subalterna e uma condição de fragilidade e que ser pardo naquela situação
podia ser uma vantagem para aquele coletivo, porque se eles fossem
índios, eles eram também sujeitos a uma outra apreciação, que era o gentio.
(Krenak, 2021).
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O professor relembra que até a década de 1970, o Estado brasileiro tinha o projeto
de emancipação dos povos indígenas e integração à força de trabalho na condição
de brasileiro (Krenak, 2021). A mudança de paradigma decorreu nos movimentos
indígenas, como a resistência de Marçal de Souza Tupã-Y (1920-1983) em defesa
dos direitos originários e contra a ditadura dos latifundiários. Para Krenak (2021),
a Constituição de 1988 inaugura um novo momento histórico com um capítulo
inteiro destinado ao reconhecimento dos direitos dos indígenas, possibilitando a
retomada das identidades por aqueles classificados como pardos, caboclos,
mestiços, sertanejos e outras categorias que variam no espaço e no tempo. O autor
argumenta que o direito à autodeclaração previsto na Convenção n. 169 da OIT faz
parte das lutas travadas na década de 1980 pelo movimento indígena, assim como
o direito às ações afirmativas, convocando os parentes para avançar na conquista
de direitos com sabedoria, enfrentando o pardismo, este “dispositivo
negacionista” do Estado brasileiro (Krenak, 2021).
Casé Angatu (2021, p. 16), atento aos recados da Jurema Sagrada, analisa os dados
estatísticos do IBGE pela perspectiva da indianização, ou seja, da retomada das
identidades indígenas: “indianidades retomadas em diferenciadas circunstâncias
através da busca de memórias, reminiscências, histórias ancestrais, do Tupixauara
(Espírito Originário) e, por vezes, retorno às Aupaba (Terras Originárias)”.
Contudo, o autor salienta que as retomadas das indianidades encontram diversas
barreiras colocadas pelas instituições na negação de direitos e agravamento de
preconceitos arraigados nas estruturas racistas, genocidas e etnocidas da
sociedade brasileira: “são partes que constituem um processo de negação de
direitos entre os quais encontra-se a retomada de indianidade pela autodeclaração
indígena” (Angatu, 2021, p. 17).
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Nas palavras de Gersem Baniwa (2006, p. 39): “após 500 anos de massacre,
escravidão e repressão cultural, hoje respiram um ar menos repressivo, o suficiente
para que, de norte a sul do país, eles possam reiniciar e retomar seus projetos
sociais étnicos e identitários”. Ademais, Pacheco de Oliveira (1998, p. 62) comenta
que o termo “etnogênese” foi cunhado pelo antropólogo Gerald Sider em oposição
ao fenômeno do etnocídio, de maneira que a “emergência étnica” abre caminhos
para discutir as resistências à proletarização dos povos indígenas e expropriação
de terras nos processos de expansão do capital.
Considerações finais
Esse texto teve como preocupação colocar questões que são relacionadas a um ator
coletivo que ainda está construindo o seu papel social, portanto, o seu papel
político, tendo assim a possibilidade de ser um sujeito coletivo na luta do que se
chama luta identitária com a possibilidade de provocar ou intervir em mudanças
estruturais significativas na conjuntura. Somos sujeitos indígenas, trabalhadores,
em contexto rural e urbano que vivemos em diáspora em nossa própria terra, que
fomos classificados pelo Estado como pardos por mais de um século e que hoje
lutamos pela existência, movidos por um chamado ancestral que nos coloca na
política e no direito enquanto devir originário, abrindo diálogos entre os povos,
instituições e classes sociais. Dito isto, é importante pensar algumas questões que
ainda não estão equacionadas na arena do debate público, uma delas diz respeito
à intersecção etnia-racismo, muito embora os fenótipos indígenas sejam diversos,
não é difícil encontrar diversas manifestações de racismo contra indígenas,
principalmente os indígenas que não estão dentro do fenótipo idealizado de forma
caricatural pelo colonizador.
Não é difícil encontrar falas públicas que remetem a uma posição racista, como
“cosplay de indígena” ou “falso indígena” que são proferidas cotidianamente nas
tribunas do Congresso Nacional ou em Assembleias Legislativas Estaduais diante
dos conflitos com indígenas no âmbito do Estado brasileiro. Por exemplo, as falas
do deputado Giovani Cherini do PL, que no dia da votação do Projeto de Lei
490/07, que pretende definir o marco temporal, as repetiu em exaustão. Ainda
expressões como “selvagens”, “bichos”, “programa de índio”, “índio come gente”,
“índio gosta de beber”, “índio não gosta de trabalhar”, “índio fede bicho”, “índio
come piolho”, “índio bom é índio morto”, entre tantas outras expressões de
racismo (Bicallo, 2022). Onde fica muito evidente essa discriminação é no Mato
Grosso do Sul, principalmente na região de Dourados, em que os estabelecimentos
têm adesivos proibindo a entrada de indígenas, portanto o racismo contra
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indígena não é uma abstração e sim uma questão que devemos nos debruçar para
entender e construir novas compreensões a respeito.
É necessário que façamos o reconhecimento das memórias e histórias, que não são
hegemônicas ou homogêneas, que são diversas, principalmente no que tange à
violência no processo de invasão e ocupação do território de Pindorama,
genocídio, epistemicídio, ecocídio e etnocídio, estes instrumentos utilizados de
forma permanente para afirmar um projeto de sociedade que não cabe às
diferentes expressões humanas, construindo uma única expressão, um mundo
excludente e auto-referenciado em um pequeno grupo. Temos ainda de pensar na
importância do sentido em compreender as diversas violações silenciosas, que um
determinado grupo social vem sofrendo ao longo de cinco séculos e compreender
qual a reivindicação que essa memória coletiva que pede passagem para se
afirmar, o que tem feito que envolve, entre outras questões, a formulação de uma
ética e pensamento coletivo de retomada.
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Essas mudanças provocadas por esse olhar sobre o mundo, é conceituado como
antropoceno, ou seja, é uma mudança geológica provocada pela forma como os
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Sobre os autores
Sérgio Pessoa Ferro
Doutor em Ciências Jurídicas pelo Programa de Pós-Graduação em
Ciências Jurídicas, da Universidade Federal da Paraíba, e professor na
Universidade Federal do Oeste da Bahia. Advogado na área dos direitos
humanos.
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50315
dossiê
Submetido em 31/07/2023
Aceito em 07/12/2023
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ISSN 2447-6684
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210 Hector Luís Cordeiro Vieira - Tédney Moreira da Silva
Resumo
O debate sobre democracia centra-se no modelo de sociedade formatada a partir de
processos socioeconômicos e culturais que espelham os vários elementos sociopolíticos que
a constituem. Neste contexto, a raça e o racismo devem ser considerados categorias
essenciais para compreender as sociedades nacionais e as democracias modernas. O
objetivo da pesquisa é estabelecer a relação entre racismo e democracia, dada a premissa
de que, sem considerar aquele, não é possível construir democracia sólida, ocasionando a
reprodução de estruturas hierárquicas que não articulam as demandas coletivas de forma
igualitária nas instâncias decisórias da sociedade e do Estado. Foca-se na
institucionalização do racismo pela branquitude no Judiciário e na proposta de reinvenção
democrática antirracista.
Palavras-chave
Racismo. Sistema Judicial e Branquitude. Democracia Antirracista.
Resumen
El debate sobre democracia se centra en el modelo de sociedad formateada a partir de
procesos socioeconómicos y culturales que reflejan los varios elementos socio-políticos que
la constituyen. En este contexto, la raza y el racismo deben considerarse categorías
esenciales para comprender las sociedades nacionales y las democracias modernas. El
objetivo de la investigación es establecer la relación entre racismo y democracia, dada la
premisa de que, sin considerar aquello, no es posible construir democracia sólida,
ocasionando la reproducción de estructuras jerárquicas que no articulan las demandas
colectivas de forma igualitaria en las instancias decisorias de la sociedad y del Estado. Se
centra en la institucionalización del racismo por la blancura en el Poder Judicial y en la
propuesta de reinvención democrática antirracista.
Palabras-clave
Racismo. Sistema Judicial y Blanquitud. Democracia Antirracista.
Abstract
The debate on democracy focuses on the model of society formatted from socioeconomic
and cultural processes that mirror the various sociopolitical elements that constitute it. In
this context, race and racism must be considered essential categories for understanding
national societies and modern democracies. The objective of the research is to establish the
relationship between racism and democracy, given the premise that, without considering
that, it is not possible to build solid democracy, structures that do not articulate the
collective demands in an egalitarian way in the decision-making instances of society and
the State. It focuses on the institutionalization of racism by whiteness in the judiciary and
the proposal for democratic reinvention antiracist.
Keywords
Racism. Judicial System and Whiteness. Antiracist Democracy.
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Democracia e racismo: da crise à construção de uma Democracia Antirracista 211
Introdução
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214 Hector Luís Cordeiro Vieira - Tédney Moreira da Silva
A raça pode ser compreendida a partir de duas acepções ou dimensões: pelo viés
biologicista (por meio da qual define-se a identidade racial por características
físicas, como a cor da pele) e por um viés étnico-cultural (por meio do qual a
identidade é associada à origem geográfica, à religião, à língua e outros fatores de
sociabilização) (Almeida, 2018, p. 24)3. Para compreender adequadamente a
questão relacional da raça com outras dimensões da política e do direito, deve-se
dar atenção ao fato de que ambas as acepções ou dimensões dialogam entre si,
além de se relacionarem diretamente com a conformação de determinados limites
e oportunidades colocados no cardápio das engrenagens institucionais, com seus
valores e lógicas de funcionamento, uma vez que a “[...] raça é um elemento
essencialmente político, sem qualquer sentido fora do âmbito socioantropológico”
(Almeida, 2018, p. 24).
1 Em diálogo com Costas Douzinas, Hector Luís Cordeiro Vieira (2011) argumentou sobre o
impacto da criação de um homem pretensamente abstrato e universal da Revolução Francesa. O
“homem” da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, é caracterizado pela
pretensão de servir de modelo compatível com todas as realidades. Para mais sobre o tema, ver:
(Douzinas, 2009).
2 Especificamente sobre o tema, ver: (Queiroz, 2017).
3 Esta concepção é a base para o que Frantz Fanon (1980, p. 36) chamará de racismo cultural.
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Democracia e racismo: da crise à construção de uma Democracia Antirracista 215
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Democracia e racismo: da crise à construção de uma Democracia Antirracista 217
Ao compreender que há formas sofisticadas com as quais estas esferas lidam com
o racismo, conclui-se que o racismo influencia os processos históricos e políticos,
sendo capaz de gerar, assim, democracias contraditórias em termos internos,
eminentemente paradoxais ou antidemocráticas.
8 Todas as perspectivas têm igualmente seu valor na contribuição em pluralizar as lentes para se
enxergar os horizontes. Dentre essas abordagens, a que mais se adequa à proposição do artigo é
a da decolonialidade. Para Joaze Bernardino-Costa e Ramón Grosfoguel (2016, p. 16) “se
constituiu na virada do milênio uma rede de investigação de intelectuais latino-americanos em
torno da decolonialidade ou, como nomeia Arturo Escobar, em torno de um programa de
investigação modernidade/colonialidade. [...] Ao evitar o paradoxal risco de colonização
intelectual da teoria pós-colonial, a rede de pesquisadores da decolonialidade lançou outras bases
e categorias interpretativas da realidade a partir das experiências da América Latina. Em outras
palavras, com essa iniciativa, parafraseando Chakrabarty, busca-se não somente provincializar a
Europa, mas também toda e qualquer forma de conhecimento que se proponha a universalização,
seja o pós-colonialismo seja a própria contribuição decolonial a partir da América Latina”.Para
mais sobre estudos subalternos, ver: (Múnera, 2008); Pivak, 2010). Sobre estudos culturais, ver:
(Escoteguy, 2010). Por fim, para mais sobre estudos pós-coloniais, ver: (Costa, 2006).
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218 Hector Luís Cordeiro Vieira - Tédney Moreira da Silva
Nesse contexto, há dois aportes teóricos que permitem elucidar a forma como o
racismo está entrelaçado na constituição de valores e no processo democrático. O
primeiro deles é a concepção institucional de racismo. Nesta via, segundo Silvio
de Almeida (2018, p. 29), “o racismo não se resume a comportamentos individuais,
mas é tratado como o resultado do funcionamento das instituições, que passam a
atuar em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e
privilégios a partir da raça”. Ainda, o sociólogo explica que:
Ora, ainda que o termo democracia esteja “[...] entre os termos mais contestados e
promíscuos de nosso vocabulário político moderno” (Nancy, 2012, p. 58) ou que
ela tenha se tornado um “caso exemplar de perda de poder de significar [...].
Democracia significa tudo – política, ética, lei, civilização – e nada” (Nancy, 2012, p.
58), há certas bases e valores que são compartilhados como elementos de
9 O autor lembra ainda que na perspectiva institucionalista, o racismo não se separa de um projeto
político e de condições socioeconômicas específicas.
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Democracia e racismo: da crise à construção de uma Democracia Antirracista 219
Vale frisar que todas essas dimensões que fariam uma democracia de qualidade
estão conectadas diretamente às agências individuais e coletivas dos atores que
participam diretamente de cada um dos critérios de construção democrática.
10 Alguns autores analisam sete dimensões controversas da teoria democrática. Segundo Mendonça
(2018): “as sete dimensões (ou eixos estruturadores) do campo de controvérsias da teoria
democrática: (1) autorização popular para o exercício do poder político; (2) participação e
autogoverno; (3) monitoramento e vigilância sobre o poder político; (4) promoção da igualdade
e defesa de grupos minorizados; (5) competição política e pluralismo; (6) discussão e debate de
opiniões; (7) defesa do bem comum.
11 Há discussões muito interessantes sobre a relação entre Democracia, Capitalismo e Racismo.
Dentre muitos outros, para mais, ver: (Castel, 2007; Gorender, 2000; Ianni, 2004; Paixão, 2008).
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Democracia e racismo: da crise à construção de uma Democracia Antirracista 221
Ainda, no que se refere à legislação, bem como ao uso de direito comparado nas
decisões judiciais, é imprescindível que se diferencie o racismo brasileiro de
experiências internacionais, pois as peculiaridades do sistema de opressão cá
vivido formam a base do Estado democrático como hoje se conhece, posto que as
ideias de raça e racismo seriam um produto do intercâmbio internacional de
pessoas, mercadorias e ideias (Ribeiro, 2019, p. 18). As agências estatais, dentre as
quais se inserem os tribunais, atuam na ratificação do pensamento social
estruturalmente racista, de forma que, para compreender a jurisprudência, exige-
se um estudo para além da legislação. Portanto, sendo a lei, desde sua concepção
inicial, desproporcional em relação aos grupos sociais, para manter e legitimar a
violência estatal, tende a ser a jurisprudência, portanto, o reflexo do histórico dessa
opressão.
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222 Hector Luís Cordeiro Vieira - Tédney Moreira da Silva
O racismo atua como óbice na obtenção do status supracitado. Dessa forma, sendo
branca a maioria dos agentes do sistema de justiça, a solidarização quase sempre
ocorre com o autor do fato e não com a vítima; consequentemente, a imagem do
grupo racial dominante permanece intacta. Como bem enuncia Abdias do
Nascimento, "o negro – tem sido julgado pelo branco, um juiz completamente
tendencioso em seu próprio interesse, certamente mais que parcial e injusto,
quando não flagrantemente criminoso” (Nascimento, 2016, p.71).
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Democracia e racismo: da crise à construção de uma Democracia Antirracista 223
Para Frantz Fanon (2008), o processo de desumanização das pessoas negras é efeito
do racismo estrutural que se reproduz nas instâncias de poder e na consolidação
dos valores institucionais. Significa dizer que a desvalorização das pessoas negras
macula o processo de reconhecimento do seu status de sujeitas de direitos,
submetendo-as a um quadro de não cidadania e, portanto, de irrelevância social.
Na descrição do reconhecimento de si como cidadão e indivíduo negro, Frantz
Fanon aponta o deslocamento estre essas categorias, o descompasso criado pela
branquitude que divide e opõe as pessoas a partir de critérios raciais:
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224 Hector Luís Cordeiro Vieira - Tédney Moreira da Silva
A democracia moderna falhou ao não garantir o respeito aos atores que participam
direta ou indiretamente da contínua construção dos valores em sociedade. Raça e
racismo são pontos-chave de compreensão deste processo de exclusão: se a
democracia liberal não é a causa, contribuiu para a não visibilização dessas
categorias, negando-se ampla participação dos atores sociais.
De acordo com Silvio Almeida (2018, p. 29), “[...] apesar de constituídas por formas
econômicas e políticas gerais – mercadoria, dinheiro, Estado e direito -, cada
sociedade em particular se manifesta de distintas maneiras”. Provenientes do
Iluminismo, valores como liberdade, igualdade e cidadania enfrentaram nas
colônias obstáculos decorrentes do próprio projeto colonial: racismo e escravização
(Almeida, 2018). Para Marixa Lasso (2013):
O poder desses opostos somente era igualado pela violência e duração das
lutas para resolvê-los. Foi na América onde a democracia se vinculou pela
primeira vez com a igualdade humana sem consideração alguma de raça
ou origem geográfica, e foi aqui que as guerras anticolonialistas
enfrentaram pela primeira vez a pergunta que se tornaria comum durante
as guerras de descolonização modernas: como construir identidades
nacionais unificadoras em sociedades atormentadas pelo racismo e os
conflitos étnicos e raciais? A resposta a essa pergunta, nunca fácil e
automática, não esteve determinada somente pelas elites brancas: também
esteve pelos indígenas e pelas pessoas de ascendência africana.
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Democracia e racismo: da crise à construção de uma Democracia Antirracista 225
São muitos os dados que revelam o total desequilíbrio entre negros e brancos em
várias frentes. A unissonância dos indicadores revela que o projeto democrático
brasileiro é incapaz de promover uma real igualdade de possibilidades entre os
indivíduos independentemente do fenômeno racial. Mencionem-se, por exemplo,
os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua,
coletados e sistematizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE, 2022), e que apontam que, embora as pessoas autodeclaradas negras (pretas
e pardas) constituam 56% do total da população brasileira, em 2022, o seu acesso
aos serviços públicos e, assim, aos direitos econômicos, sociais e culturais, é
prejudicado em comparação ao franqueado às pessoas brancas. No que tange ao
mundo do trabalho, por exemplo, as pessoas brancas apresentavam maiores
índices de ocupação (43,8%), contra pessoas pardas (45%) e pretas (10,2%), em
2021; “entretanto, em relação à população desocupada, tanto as pessoas pretas
como as pardas estiveram sobrerepresentadas com, respectivamente, 12,0% e
52,0%. As pessoas brancas, por outro lado, registraram sub-representação, pois
eram 35,2% dos desocupados em 2021” (IBGE, 2022). Da mesma forma, segundo o
Atlas da Violência (2023), 445.527 pessoas negras foram assassinadas entre 2011 e
2021 e o risco de letalidade de uma pessoa negra aumentou de 2,6 para 2,9 entre
2019 e 2021; a cada 100 mil habitantes, 31 homicídios são de pessoas negras contra
10,8 são de pessoas não negras; a violência letal mata 4,22 pessoas negras por hora,
em média. Estes e outros dados confirmam um quadro não só de exclusão, mas de
eliminação do corpo negro, visto como dissidente, subalterno ou sem dignidade.
O racismo, como sistema de crenças, práticas e símbolos sociais que operam sobre
os alicerces de diferença e inferioridade, está localizado efetivamente na disposição
da hierarquia entre os indivíduos nos espaços sociais, o que, para Evandro Charles
Piza Duarte (2011), permite inferir que “[...] a noção de raça não pode ser
dissociada da criação de mecanismos gerenciais (estatais ou não) e, sobretudo, da
criação das diversas formas burocratizadas de controle social que hoje tendem a
ser absorvidas pelo mercado, restando ao Estado os mecanismos repressivos,
fundados falsamente na igualdade perante a lei” (Duarte, 2011).
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uma vez que naquelas a eticidade torna-se reflexiva, isto é, capaz de voltar-se
criticamente sobre si própria. Cristiano Paixão e Menelick Netto apontam que:
Contudo, é inevitável reconhecer que há uma frente complexa de óbices para que
este fluxo de alterabilidade seja concreto e expansivo. Isso porque tradições,
práticas e atitudes podem permanecer não problematizadas e induzir a ideia de
sua naturalização. Dessa forma, tradições, práticas e atitudes novas acabam
ficando relegadas a uma forma vazia, de modo que o conteúdo ao qual se dá
continuidade é verdadeiramente o das antigas práticas. Portanto, de “[...] forma
latente, elas permanecem a nortear o imaginário da sociedade, quer por
manifestações naturalizadas de puro irracionalismo, quer pela lembrança de um
passado que se revela repentinamente idílico, confortante, feliz” (Paixão; Netto,
2007, p. 3).
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Considerações Finais
12 Habermas elabora um pouco sobre uma das premissas da ideia lançada acima. Para o autor: Os
direitos só se tornam socialmente eficazes quando os atingidos são suficientemente informados e
capazes de atualizar, em casos específicos, a proteção do direito garantida através de direitos
fundamentais de justiça (Habermas, 1997, p. 149).
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DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. Tradutora: Luzia Araújo. São
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ESCOSTEGUY, Ana Carolina D. Cartografias dos estudos culturais. Ed. on-line. Belo
Horizonte: Autêntica, 2010.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador:
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GORENDER, Jacob. Brasil em preto e branco: o passado escravista que não passou.
São Paulo: SENAC, 2000.
IANNI, Octavio. Raças e Classes Sociais no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2004.
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VAN DIJK, Teun (org.). Racismo e Discurso na América Latina. São Paulo, Contexto,
2008.
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Sobre os autores
Hector Luís Cordeiro Vieira
Doutor em Direito pela Universidade de Brasília. Possui graduação em
Direito pelo Centro Universitário de Brasília (2007) e graduação em
Sociologia pela Universidade de Brasília (2009). É Mestre em Direito
pelo programa de Pós Graduação da Universidade de Brasília (2009),
sob a linha de pesquisa: Direito, Estado e Sociedade, Políticas Públicas e
Democracia. Atualmente é Advogado e Professor de Direito
Constitucional e Administrativo no curso de Direito no Centro
Universitário de Brasília - UniCEUB, instituição na qual também já
lecionou Proteção Internacional dos Direitos Humanos e Direito
Internacional dos Conflitos Armados em Relações Internacionais. Ex-
Consultor Técnico do MEC/UNESCO em políticas de Educação em
Direitos Humanos e Cidadania e Consultor-Chefe da Endoxa
Consultoria Acadêmica e Jurídica. É o Primeiro Líder do Grupo de
Pesquisa Vozes - Teoria Crítica Constitucional e dos Direitos Humanos.
Foi Pesquisador do Centro de Pesquisa (CEPES) do Instituto Brasiliense
de Direito Público - IDP, bem como lecionou Metodologia de Pesquisa e
Direito Constitucional Social no âmbito da pós-graduação e Formação
Social do Brasil e Organização do Estado na graduação. Tem
experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional,
Direitos Humanos, Antropologia do Direito, Teorias Raciais, Racismo,
Formas Alternativas de Administração dos Conflitos, Sociologia Jurídica,
Metodologia de Pesquisa e Pesquisa Jurídica.
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.49670
dossiê
Submetido em 08/07/2023
Aceito em 30/10/2023
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ISSN 2447-6684
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234 Nilvia Crislanna da Cruz Borges - Luanna Tomaz de Souza
Resumo
O presente artigo tratará da forma com que a produção acadêmica brasileira tem
considerado as dinâmicas de gênero nos crimes raciais, compreendendo as construções
raciais no Brasil, a formação da identidade da mulher negra na sociedade brasileira e a
interseccionalidade enquanto categoria analítica. Para tanto, foi realizado um
levantamento bibliográfico de coleta e análise de teses e dissertações, que possuem como
objeto de estudo as relações raciais no Brasil, na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e
Dissertações. Após exame criterioso dos trabalhos e de seus indicadores, percebeu-se que,
na maioria dos estudos, não são apresentadas as dinâmicas de gênero e de raça de forma
articulada ou tal explanação se dá de modo superficial no que tange às reverberações na
vida das mulheres negras.
Palavras-chave
Racismo. Gênero. Crimes Raciais. Mulheres Negras.
Resumen
Este artículo abordará la forma en que la producción académica brasileña ha considerado
las dinámicas de género en los delitos raciales, incluidas las construcciones raciales en
Brasil, la formación de la identidad de la mujer negra en la sociedad brasileña y la
interseccionalidad como categoría analítica. Para ello, se realizó un levantamiento
bibliográfico para recolectar y analizar tesis y disertaciones, que tienen como objeto de
estudio las relaciones raciales en Brasil, en la Biblioteca Digital Brasileña de Tesis y
Disertaciones. Luego de un examen cuidadoso de los trabajos y sus indicadores, se percibió
que, en la mayoría de los estudios, las dinámicas de género y raza no son presentadas de
manera articulada o dicha explicación se da de manera superficial con respecto a las
repercusiones en la vida de la mujer negra.
Palabras-clave
Racismo. Género. Delitos Raciales. Mujeres negras.
Abstract
This article will deal with the way in which Brazilian academic production has considered
gender dynamics in racial crimes, including racial constructions in Brazil, the formation of
black women's identity in Brazilian society and intersectionality as an analytical category.
To this end, a bibliographical survey was carried out to collect and analyze theses and
dissertations, which have racial relations in Brazil as their object of study, at the Brazilian
Digital Library of Theses and Dissertations. After a careful examination of the works and
their indicators, it was noticed that, in most of the studies, the dynamics of gender and race
are not presented in an articulated way or such explanation is given superficially with
regard to the reverberations in the lives of women black.
Keywords
Racism. Gender. Racial Crimes. Black Women.
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As mulheres negras nos estudos acadêmicos sobre crimes raciais 235
Introdução
1 O enfrentamento ao racismo
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236 Nilvia Crislanna da Cruz Borges - Luanna Tomaz de Souza
categorização de seres humanos. Desde então, a raça passou a operar com base em
registros básicos referentes às características biológicas e étnico-culturais,
demarcando o objetivo político de inferiorização do ser negro e a afirmação da
supremacia do ideal de ser branco, como nos explica Fanon (2008, p. 27): “O negro
quer ser branco. O branco incita-se a assumir a condição de ser humano”.
O racismo, conforme Kabengele Munanga (2003, p. 8), pode ser concebido como
“uma crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas pela relação
intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural”. Dessa
forma, a raça se apresenta como fundamento para fortificar tal sistemática forma
de discriminação, apresentando-se por meio de práticas que podem ser conscientes
ou inconscientes.
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As mulheres negras nos estudos acadêmicos sobre crimes raciais 237
2 A criminalização do racismo
Castro e Almeida (2018) apresentam a Lei Afonso Arinos (Lei nº 1.390/51) de 1951
como a primeira lei brasileira que possuía como objetivo combater o racismo, na
qual incluiu entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de
preconceitos de raça ou de cor, cuja redação foi modificada em 1985 pela Lei nº
7.437. Com o objetivo de regulamentar a aplicação do artigo 5º, inciso XLII da
Constituição Federal de 1988, determinando que “a prática do racismo constitui
crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”,
em 5 de janeiro de 1989, a Lei Caó (Lei nº 7.716/89), tornou crime propriamente
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238 Nilvia Crislanna da Cruz Borges - Luanna Tomaz de Souza
Posteriormente, modificada pela Lei nº 9.459 de 1997, a Lei Caó passou a punir os
crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
procedência nacional. Além disso, no artigo 140 do Código Penal que tipifica o
delito de injúria, a Lei 9.459/97 inseriu um novo parágrafo para qualificar tal tipo
penal por preconceito: “§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos
referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou
portadora de deficiência: Pena - reclusão de um a três anos e multa” (Brasil, 1989).
Isto posto, Hasenbalg (1979, p. 299) analisa as notícias sobre discriminação racial
na imprensa de alguns estados entre 1968 e 1977. A partir da inspeção e
compreensão de seu estudo, temos que, para homens, é recorrente expressões
como “preto aqui não entra” e “preto não vale mesmo nada” serem utilizadas com
objetivos de ofender, enquanto que, para as mulheres, as expressões utilizadas são
“negra vagabunda”, “mulher preta só pode ser doméstica ou vagabunda” e “negra
suja”. No mesmo sentido, Santos (2015, p. 188-9) apresenta os resultados de sua
pesquisa dos casos de racismo no âmbito do sistema judiciário de São Paulo entre
2003 e 2011, no qual é observado que ofensas como “macaco”, “preto filho da
puta”, “urubu”, “africano” e “favelado” são comumente utilizados para atingir
homens negros, enquanto que “puta”, “vagabunda” e “negra fedida” se refere às
mulheres negras.
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240 Nilvia Crislanna da Cruz Borges - Luanna Tomaz de Souza
Após a coleta, passou-se para a criação dos indicadores em uma planilha do Excel,
para melhor observação e catalogação dos resultados. Os indicadores são
referentes: a) ao nome do(a) autor(a) do texto; b) ao gênero do(a) autor(a) do texto;
c) ao nome do texto; d) à região brasileira na qual o texto foi publicado; e) à raça
do(a) autor(a); f) ao ano de publicação do texto; g) à presença da palavra “gênero”
no texto; h) à presença da palavra “mulher” no texto; e i) à existência ou não de
debate de gênero no texto de forma centralizada.
Em seguida, foi feita a análise dos textos com base nos indicadores. Cada uma das
20 (vinte) teses e dissertações que datam do período de 2003 e 2019 foi lida e
observada. A partir disso, nota-se que apenas 04 (quatro) dos 20 (vinte) trabalhos
acadêmicos apresentam o debate de gênero de forma centralizada, isto é,
mencionam no estudo sobre os crimes raciais o contexto vivenciado por mulheres
negras, explicando-o e contextualizando-o, além de ofertar dados conclusivos ao
longo do texto de forma plena.
Realizou-se uma análise do perfil racial dos autores e autoras por meio de
heteroidentificação1, que é um método de identificação étnico-racial de um
1 No Brasil, a identidade racial é realizada por autoidentificação, isto é, são as “pessoas que se
autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto
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Observou-se também o gênero dos autores. Dos 20 (vinte) escritores, 07 (sete) são
homens e 13 (treze) são mulheres. Portanto, pela análise quantitativa dos dados,
percebe-se que são as mulheres que mais estudam a criminalização do racismo.
Por fim, é observado uma dinâmica pertinente relativa à região brasileira na qual
os trabalhos são publicados. Nota-se que dos 20 (vinte) trabalhos analisados, 03
(três) foram publicados no Centro-Oeste, 02 (dois) no Nordeste, 13 (treze) no
Sudeste, 02 (dois) no Sul e nenhum no Norte.
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Ser negro(a) no Pará, e por que não dizer na Amazônia, não é o mesmo que
nas outras partes do país. Pelo processo histórico, a presença da população
negra na região foi mitigada e relegada a segundo plano. A região tem a
marca das hipérboles e dos mitos, e essa marca condicionou a forma como
a população negra foi tratada nas análises acadêmicas e como teve a sua
identidade “sufocada” na metáfora do ser moreno/morena até os dias
atuais, embora o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística aponte que o Estado do Pará tem 73% de sua população
constituída de pretos e pardos, portanto, negros (Conrado; Campelo;
Ribeiro, 2015, p. 214).
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As mulheres negras nos estudos acadêmicos sobre crimes raciais 243
A área das ciências sociais foi contemplada com 06 (seis) trabalhos, dentre os quais
apenas 02 (dois)3 atingiram todos os critérios mencionados de abordagem do
gênero nos estudos dos crimes raciais. Santos (2009) apresenta a forma com que o
sistema judiciário trata as práticas de racismo, destacando o papel que a mulher
negra teve na implementação da Lei nº 7.716/89, a violência sofrida por ela em
crimes raciais e as particularidades do tipo de discriminação a ela destinada, e
apresentando casos concretos desse tipo de delito contra essa parcela da
população, reestabelecendo a todo momento as dinâmicas de gênero de forma
concisa. No mesmo sentido, Rodrigues (2018), ao atentar-se para os Boletins de
Ocorrência e as queixas da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância
(DECRADI), apresenta dados conclusivos, denota situações concretas de racismo
contra mulheres ao longo do texto e esclarece a dupla alteridade à que a mulher
negra é submetida, além de expor a dimensão de sua imagem como uma
pesquisadora negra que, segunda ela, trouxe para as entrevistas um sentimento de
segurança entre ela e os entrevistados.
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As mulheres negras nos estudos acadêmicos sobre crimes raciais 245
Nesta área, há a presença de 09 (nove) trabalhos, dos quais apenas 01 (um)7 atingiu
todos os critérios de abordagem do gênero nos estudos dos crimes raciais. Pires
(2014), na avaliação da eficiência das políticas públicas de caráter punitivo de
combate ao racismo como forma de promover a igualdade racial, faz menção à sua
identidade enquanto mulher negra, contextualiza as relações involuntárias que
configuraram a mestiçagem envolvendo mulheres negras escravizadas e oferta
dados sobre as desigualdades raciais, incluindo dados relativos às mulheres
negras, além de apresentar um caso específico de denúncia pelo Ministério Público
baseado no artigo 20 da Lei Caó, sobre o teor racista de uma letra de uma música
do Tiririca, que representa as características de uma mulher negra de forma
estereotipada, de modo que se observa o compromisso da autora com o estudo do
racismo e do sexismo em conjunto.
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Direitos Humanos (CIDH) por motivo de racismo com o Caso Simone A. Diniz,
uma mulher negra vítima de crime racial que não teve acesso à justiça de forma
plena. Dessa forma, espera-se que a abordagem teórica do racismo abarque as
dinâmicas de gênero, visto que a personagem central do trabalho corresponde a
essas expectativas, todavia observa-se que não há o devido cuidado com os
pressupostos teóricos em concordância com a articulação do racismo e do gênero.
Matos (2016), na busca pela percepção dos operadores do direito frente aos crimes
de racismo e de injúria, até mesmo menciona algumas particularidades da prática
de racismo às mulheres negras, como a presença de insultos sexuais, porém não
há a explicação e o aprofundamento na abordagem sobre a diferença da prática de
racismo sofrida entre homens negros e mulheres negras, o que ocorre também com
a pesquisa de Lima (2017), no percurso da compreensão referente à proteção às
vítimas de crimes raciais no Tribunal de Justiça do Acre, citando as
particularidades e, até mesmo, ofertando dados, mas não aprofundando-os.
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As mulheres negras nos estudos acadêmicos sobre crimes raciais 247
Considerações finais
O objetivo geral deste trabalho foi analisar de que forma os estudos acadêmicos
sobre crimes raciais no Brasil têm considerado as dinâmicas de gênero. O
resultado, então, foi insatisfatório. A centralidade no debate de gênero nos estudos
de criminalização do racismo encontra-se em um caráter mínimo e inicial.
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Além disso, com os resultados apontados nessa pesquisa, percebe-se que nenhum
ou poucos estudos relevantes sobre crimes raciais são desenvolvidos na Amazônia,
o que é preocupante ao se considerar as particularidades das pessoas negras e,
principalmente, das mulheres negras na região Norte.
Referências
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Sobre as autoras
Nilvia Crislanna da Cruz Borges
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Pará.
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.51538
dossiê
Submetido em 10/11/2023
Aceito em 02/01/2023
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ISSN 2447-6684
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256 Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães - Heitor Moreira Lurine Guimarães
Resumo
O artigo, essencialmente bibliográfico, se baseia no pensamento do filósofo afrojamaicano
Charles Mills para defender a tese de que o contrato racial, tal como concebido pelo autor,
é a verdadeira constituição do Brasil, não escrita e subjacente à Constituição Federal
propriamente dita, na medida em que estabelece os filtros epistêmicos de interpretação do
ordenamento jurídico como um todo. Para tanto, o trabalho reconstrói a crítica de Mills ao
contratualismo clássico, bem como os conceitos de epistemologia invertida e ignorância
branca. Argumenta-se, então, a partir de exemplos extraídos do direito brasileiro, que tal
referencial ajuda a explicar por que um sistema jurídico aparentemente comprometido com
direitos fundamentais convive com a violação sistemática de seus próprios preceitos.
Palavras-chave
Contrato Racial. Constitucionalismo. Contratualismo. Racismo. Charles Mills.
Resumen
El artículo, esencialmente bibliográfico, se basa en la teoría del filósofo afrojamaicano
Charles Mills para defender la tesis de que el contrato racial, como lo concibe el autor, es
la verdadera constitución de Brasil, no escrita y subyacente a la Constitución Federal
propiamente dita, puesto que establece los filtros epistémicos de interpretación del sistema
jurídico en su conjunto. Para ello, el trabajo reconstruye la crítica de Mills al contratualismo
clásico y los conceptos de epistemología invertida e ignorancia blanca. Entonces el artículo
argumenta, con ejemplos extraídos del derecho brasileño, que ese referencial ayuda a
explicar por qué un sistema jurídico aparentemente comprometido con derechos
fundamentales vive junto con su sistemática violación.
Palabras-clave
Contrato Racial. Constitucionalismo. Contractualismo. Racismo. Charles Mills.
Abstract
The article, essentially bibliographical, draws from the thought of the afro-jamaican
philosopher Charles Mills to argue that the racial contract, as conceived by him, is the real
constitution of Brazil, non-written and underlying the actual Federal Constitution, insofar
as it establishes the ruling epistemic filters when it comes to interpreting the legal system.
In order to do so, the essay resumes Mills’ critique of classical contractualism, as well as
the concepts of averted epistemology and white ignorance. The essay argues, then, from
examples extracted from Brazilian law, that such a framework helps explaining why a legal
system apparently committed to fundamental rights may coexist with the systematic
violation of its own precepts.
Keywords
Racial Contract. Constitutionalism. Contractualism. Racism. Charles Mills.
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O contrato racial como constituição não escrita do Brasil: ignorância branca e interpretação do 257
direito à luz da filosofia política de Charles Mills
Introdução
Toda exposição sobre a história recente do direito brasileiro, assim como qualquer
discussão dogmática em disciplinas jurídicas especializadas, tem de passar pela
Constituição de 1988. Muito mais que uma norma fundamental, ela é tida como
um símbolo maior do progresso moral e civilizatório que teria sido conquistado
com o término da ditadura-civil militar. O robusto rol de direitos e garantias
fundamentais, ao lado de mecanismos como o controle de constitucionalidade e os
remédios constitucionais, sinalizaria o fim definitivo, ao menos do ponto de vista
oficial, de toda uma era de arbitrariedades sistemáticas. Esses direitos, conhecidos
pelo seu viés de universalidade e inclusão, se colocam também como parâmetros
de orientação tanto para a produção legislativa quanto para a interpretação das
normas infraconstitucionais (Sarlet, 2018).
Contudo, nos países que, tal qual o Brasil, tiveram uma inserção no capitalismo
mundial sob os moldes da dependência (Marini, 2022), essa talvez não seja a
melhor maneira de representar o constitucionalismo. Se promulgar uma
constituição é uma maneira de determinar que tipo de sociedade se deseja
construir, há que se perguntar até que ponto, para nações como a nossa, a
possibilidade mesma de decidir a esse respeito não é constrangida pelo seu grau
de autonomia internacional, pela influência de interesses estrangeiros, pela
disponibilidade de recursos e – o que mais interessa a este trabalho – pelo seu
histórico de colonização e escravização.
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258 Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães - Heitor Moreira Lurine Guimarães
1 Na esfera criminal, as decisões do Supremo Tribunal Federal nos Inquéritos 2.131 – Distrito
Federal (acórdão proferido em 23.02.2012) e 3.412 – Alagoas (acórdão proferido em 29.03.2012)
foram relevantes para delimitação de alguns parâmetros sobre a caracterização do crime de
redução à condição análoga à de escravo, reforçando que a privação de liberdade não é requisito
indispensável para tal. Na esfera trabalhista, destaca-se o entendimento que vem se formando no
âmbito do Tribunal Superior do Trabalho acerca da imprescritibilidade da pretensão reparatória
em casos de escravidão contemporânea, a exemplo do acórdão proferido em recurso de revista
no processo nº 1000612-76.2020.5.02.0053, em 27 de outubro de 2023.
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O contrato racial como constituição não escrita do Brasil: ignorância branca e interpretação do 259
direito à luz da filosofia política de Charles Mills
No final dos anos 1990, o pensamento contratualista, até então tido apenas como
parte do cânone ocidental, foi submetido a uma poderosa revisão crítica pelo
filósofo afrojamaicano Charles Mills. Nas suas mãos, a velha metáfora do contrato
social reemerge sob nova roupagem, rebatizada de “o contrato racial”. Na obra
que carrega esse título – publicada em 1997, mas só recentemente traduzida para
o português –, Mills (2023) transforma o que era instrumento de legitimação do
poder político em dispositivo analítico da supremacia branca subjacente às
sociedades reais. O argumento central do livro é que as relações raciais na
modernidade capitalista são mais bem compreendidas quando as interpretamos
como resultantes de um contrato racial, firmado por um grupo seleto de
indivíduos que definem a si mesmos como brancos e aos demais como não
brancos, classificação essa que passará a orientar a distribuição de privilégios ao
primeiro grupo e de injustiças sistemáticas ao segundo.
Ocorre que o contrato racial, para Mills (2023), inclui não somente normas que
definem pertencimento racial, mas também normas de natureza epistêmica; isto é,
normas que estabelecem padrões segundo os quais os sujeitos apreendem a
realidade a seu redor. Essas normas epistêmicas, continua o autor, são
responsáveis por fazer com que as pessoas (especialmente pessoas brancas)
desenvolvam um olhar distorcido sobre o mundo; um olhar propositalmente
formatado para não enxergar a opressão racial ali onde ela se faz presente. É nesse
sentido que Mills (2018; 2023, p. 52) falará em uma “epistemologia invertida” e,
posteriormente, em uma “ignorância branca”. Com isso, ele quer se referir ao
contrato racial enquanto “um acordo para interpretar erroneamente o mundo”,
mas fazê-lo sempre de forma que “esse conjunto de percepções equivocadas será
validado pela autoridade epistêmica branca” (Mills, 2023, p. 52).
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2 Emprega-se aqui o termo “direito” com letra minúscula por se tratar do sistema jurídico
propriamente dito, não ao Direito como disciplina acadêmica ou campo de estudos no âmbito
das ciências sociais aplicadas.
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O contrato racial como constituição não escrita do Brasil: ignorância branca e interpretação do 261
direito à luz da filosofia política de Charles Mills
Ao construir sua teoria do contrato racial, Mills (2023) quer tornar a antiga figura
do contrato social um canal de interlocução crítica por meio do qual o pensamento
negro e afrodiaspórico possa adentrar o terreno eminentemente branco da filosofia
política universitária. Fazendo isso, ele pretende apresentar a questão racial sob
categorias já conhecidas do mainstream filosófico, forçando-as a confessar seu
compromisso implícito com a supremacia branca. Já que queremos mobilizar essas
intuições para a crítica da interpretação do direito, devemos começar entendendo
melhor como se dá, em Mills, essa apropriação do pensamento contratualista.
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Atento a essas nuances, Mills tenta manter da primeira versão o que ela tinha de
descritividade – isto é, o contrato social como explicação da realidade – e ao mesmo
tempo colocar em questão seu viés universal. Por isso, a definição que ele nos
fornece é que:
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direito à luz da filosofia política de Charles Mills
Nesse sentido, assim como seus antecessores, o contrato racial também tem uma
dimensão moral e uma dimensão política. Na próxima seção, quando falarmos da
dimensão epistêmica, veremos que esta constitui o subterfúgio que permite ao
contrato racial manter-se intacto mesmo quando subjacente a uma ordem jurídica
ou moral pretensamente igualitária, que é o caso da ordem constitucional brasileira
pós 1988. Antes disso, porém, precisamos abordar com maior profundidade as
dimensões política e moral.
Na dimensão política, o contrato racial, explica Mills, reserva a uma pequena parte
da humanidade a plenitude da cidadania, entendida como o mais amplo acesso a
direitos e à estima social. Tal grupo seleto é demarcado com a criação do
significante “branco”, cujo sentido mais exato é variável conforme o local e a época
histórica, sendo estabelecido por critérios, além de fenotípicos, geográficos,
socioeconômicos, linguísticos, regionais, religiosos, dentre outros. Em
contrapartida, todas as pessoas não abrangidas por essa parcela extremamente
seleta são definidas como “não brancas”, a qual também é internamente variada e
congloba setores da humanidade desde afrodescendentes, indígenas e asiáticos. O
que define os não-brancos é menos o compartilhamento de traços identitários do
que a exclusão das benesses asseguradas aos brancos (Mills, 2023).
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264 Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães - Heitor Moreira Lurine Guimarães
Para fundamentar essa parte da teoria, Mills (2023) se ampara sobretudo na obra
cujo esquema argumentativo foi a principal inspiração para a sua, a saber, The
Sexual Contract, de Carole Pateman. Naquele livro, Pateman sustentou que, a
despeito da maneira geral com os que contratualistas clássicos se referem ao ser
humano e seus dramas políticos, aparentemente sem fazer distinções de nenhum
tipo, uma análise atenta dos escritos de Hobbes, Locke ou Rousseau demonstra
que, na verdade, os sujeitos presentes em suas teorias são sempre caracterizados
como seres humanos autônomos e que têm nos seus interesses pessoais a sua maior
prioridade. Já que, em sociedades patriarcais, essa caracterização só se amolda
razoavelmente a sujeitos masculinos, conclui Pateman, então todas as teorias
clássicas do contrato social foram concebidas como contratos entre homens e
excluindo os pontos de vista femininos de consideração. Assim, o contrato social
se revela um contrato sexual (Pateman, 1988).
Seguindo nessa mesma direção, Mills também encontra vieses raciais notórios
implícitos nas concepções clássicas do estado de natureza. Conforme dito
anteriormente, no contratualismo clássico paira uma incerteza sobre até que ponto
o estado de natureza é considerado uma realidade histórica. Contudo, Mills (2023)
destaca que, quando olhamos de perto o que cada contratualista disse acerca do
estado de natureza, percebe-se que eles o fazem de tal maneira que os exemplos
de manifestação real desse estado, quando há, são sempre de povos e grupos não
europeus ou não ocidentais, a quem se atribui os signos da barbaridade e da
incivilidade. Estes são apontados como representantes por excelência do estado de
natureza, ao passo que para os povos europeus o mesmo estado é considerado
apenas uma possibilidade.
Da mesma maneira que Pateman concluiu que o contrato social clássico é firmado
entre homens, Mills acrescenta a essa conclusão o importante detalhe de que se
trata de homens brancos. Aqui, o procedimento por trás do argumento dos autores
é tão relevante quanto o conteúdo. O que ambos fazem consiste, primeiramente,
em se voltar para o modo como as teorias clássicas concebem os sujeitos das
relações políticas e examinar pacientemente as características que lhes são
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O contrato racial como constituição não escrita do Brasil: ignorância branca e interpretação do 265
direito à luz da filosofia política de Charles Mills
Contudo, ao contrário do que o nome pode sugerir, o contrato racial inscrito nas
sociedades reais não se constitui de uma única decisão ou de um único ato
realizado de uma única vez na história. Em vez disso, ele é composto de uma
infinidade de atos praticados ao longo da história e que se somam. Tais atos têm
seu termo inicial estabelecido, podemos dizer, com o início do empreendimento
colonial da Europa sobre os continentes americano, africano e asiático, desde que
se organizou o tráfico transatlântico de pessoas e mercadorias. Mas as bases do
contrato racial são plurais o bastante para abarcar, dentre outras coisas,
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266 Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães - Heitor Moreira Lurine Guimarães
As considerações feitas até aqui serviram para explicitar que o contrato racial
institui modos de dominação pautados na raça, os quais procedem pela
categorização de pessoas como brancas ou não brancas, seguida da desqualificação
política e moral dessas últimas. Porém, se quisermos sustentar a hipótese de que
esse contrato é a constituição sub-reptícia que precede à Constituição garantista
formalmente em vigor, temos de explicar como tal estrutura essencialmente injusta
e hierárquica pode se escamotear sob um sistema normativo tão comprometido,
na letra, com igualdade e dignidade humana. Para isso, precisamos nos voltar ao
aspecto mais difícil de identificar e denunciar no contrato racial: a epistemologia
invertida.
A certa altura de sua reflexão, Mills (2023) percebe que o contrato racial, para
colocar em funcionamento seus mecanismos político-morais de dominação,
precisa sustentar uma versão paralela da realidade dentro da qual as hierarquias
raciais ora pareçam coerentes justificadas, ora sejam imperceptíveis para quem
goza de posições racialmente privilegiadas. Trata-se de outra funcionalidade do
racismo, qual seja, a de condicionar sujeitos para ver o mundo de forma
propositalmente distorcida, abrindo espaço para que as dimensões moral e política
possam produzir os efeitos abordados anteriormente. Mills é preciso asseverar que
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O contrato racial como constituição não escrita do Brasil: ignorância branca e interpretação do 267
direito à luz da filosofia política de Charles Mills
Essa ideia viria a ser trabalhada novamente e com mais fôlego por Mills quase
vinte anos após O Contrato Racial em um artigo chamado Ignorância Branca. Com
esse texto, Mills (2018) reivindica seu lugar no campo do que hoje se conhece por
epistemologia social ou epistemologias situadas, alinhando-se às perspectivas de
autoras como Collins (2016), Harding (1993) e Haraway (1988). A premissa básica
desse tipo de abordagem é que processos cognitivos jamais se dão simplesmente
dentro da consciência isolada de um sujeito individualizado, mas sim no contexto
de relações sociais historicamente situadas. Por conseguinte, os atos de conhecer
são inevitavelmente contaminados pelos vieses de dominação que permeiam tais
relações. Disso se segue que há certas formas de desconhecimento engendradas
por posições sociais de privilégio, seja de raça ou de gênero, mas que são reputadas
como as formas oficiais de produção de verdade sobre o mundo.
Nesse ponto, devemos atentar para o fato de que a proposta de Mills (2023) não
flerta com relativismos de qualquer espécie. Se ele fala de ignorância branca, é
porque supõe, por oposição, a existência de um saber verdadeiro e objetivo a
respeito do mundo. Trata-se, isso sim, de concepções revigoradas de objetividade
e verdade, cujo diferencial, que lhes confere potencial crítico, reside justamente em
não se furtarem a reconhecer seu enraizamento em experiências corporificadas
concretas, quais sejam, a dos corpos racializados como não brancos.
É esse o pano de fundo epistemológico responsável por fazer com que situações
flagrantemente discriminatórias sejam lidas como não discriminatórias; por fazer
com que o acesso diferencial a direitos e oportunidades seja visto como alheio ao
racismo; por fazer com que textos normativos como “todas as pessoas” ou “todos
os cidadão” sejam interpretados (ainda que isso não se verbalize) como “todas as
pessoas brancas” ou “todos os cidadãos brancos”; por fazer com que normas de
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Já a concepção, no sentido que Mills (2018) lhe dá, diz respeito ao modo como
determinadas categorias, cujo sentido é vago quando as consideramos em abstrato,
são preenchidas de conotações racialmente carregadas e emolduram a percepção
que se tem de um fato, um acontecimento ou basicamente qualquer outro objeto.
Mills (2018, p. 426) cita, a título de ilustração, os conceitos de “selvagem”,
“civilização”, “homem”, “liberdade”, mostrando que, a cada caso, eles são
tendenciosamente utilizados para se referir a brancos e não brancos de forma
positiva sobre aqueles e pejorativa sobre estes, mesmo sem dizê-lo diretamente.
Mas os exemplos nesse sentido são abundantes, mais ainda no campo do direito.
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Diferente é o caso do Brasil, onde vigora um racismo que celebra a mestiçagem sob
a narrativa de que aqui se construiu um intercâmbio não violento e não opressor
entre portugueses, africanos e indígenas, narrativa que passou para a história com
o nome de “mito da democracia racial” (Amador de Deus, 2019). Esse racismo
envergonhado de si mesmo, que não ousa dizer o seu nome, nega a própria
possibilidade de falar em branco ou não branco acerca da população brasileira. Em
vez disso, propala-se a ideia de que a experiência brasileira é um exemplo de
sucesso na superação das hierarquias raciais e da assimilação perfeita dos vários
grupos étnicos sob uma sociedade plural e inclusiva, visão que só passou a ser
problematizada na década de 1950 do século passado (Amador de Deus, 2019).
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O contrato racial como constituição não escrita do Brasil: ignorância branca e interpretação do 271
direito à luz da filosofia política de Charles Mills
Tal qual nos Estados Unidos, a distorção na esfera da memória está associada a
distorções na esfera da cognição. Ocorre que, ao contrário daquele país, a presença
do racismo nos processos de concepção, ou seja, de definição do sentido e do
conteúdo de conceitos, se dá ainda mais ardilosamente. Pois se lá o discurso oficial
é que o fim da segregação limpou o racismo das instituições, aqui se trata de
afirmar que ele sequer existiu nos mesmos moldes, de sorte que nem faria sentido,
para o nosso contexto, a discussão e o enfrentamento sistemático do tema (Amador
de Deus, 2019).
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deverão ser usados para distinguir uma coisa da outra, especificados no âmbito do
artigo 28, §2º da mesma lei: “para determinar se a droga se destinava a consumo
pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao
local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e
pessoais, bem como a conduta e aos antecedentes do agente”.
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A despeito dessa norma poder ser considerada bastante clara quanto ao seu
sentido, vale mencionar que também há várias Instruções Normativas editadas
pelo Poder Executivo Federal, ou a Portaria do Ministério do Trabalho nº 1.293, de
28 de dezembro de 2017, que especificam o significado de cada terminologia ali
empregada.
Mesmo assim, a precisão do texto legal não impede frequentes distorções feitas
para afastar a caracterização de trabalho escravizado. Por exemplo, tomemos a
análise feita por Guimarães e Bouth (2023) sobre decisão proferida pelo Tribunal
Regional do Trabalho da 8ª Região (TRT8) nos autos do processo 0001300-
37.2016.5.08.0115 – julgado em segundo grau em 2018. Como se sabe, o TRT8 é o
órgão da Justiça do Trabalho com jurisdição sobre os Estados do Pará e Amapá,
que integram a oitava região. Trata-se de um tribunal significativo porque situado
na região amazônica, a qual se destaca pela numerosidade dos casos de resgate de
trabalhadores em situação de escravidão contemporânea (Soares, 2022).
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direito à luz da filosofia política de Charles Mills
Todavia, sem entrar aqui no mérito das considerações que teceu sobre o material
probatório, é de se notar que o órgão julgador de segundo grau, ao examinar o
recurso interposto pelos ex-empregadores vencidos, valeu-se de uma definição de
trabalho escravizado bem mais exigente que aquela da própria lei citada
anteriormente. Diz o acórdão que:
O que essas decisões têm em comum é que elas adotam pontos de vista que se
recusam a reconhecer a escravização em situações fáticas. No fundo, ambas são
representativas da tendência de só identificar a escravização com as circunstâncias
que mais se assemelham aos estereótipos das antigas modalidades escravistas
legalizadas, isto é, a violência física, a vigilância ostensiva, a privação de convívio
social com pessoas externas ao ambiente de trabalho, a ausência de remuneração
etc.
4 Agradecemos à Clínica de Combate ao Trabalho Escravo Frei Henri des Roziers da Universidade
Federal do Pará (CCTE-UFPA) e aos seus membros pela oportunidade de tomar conhecimento
dessa decisão e debatê-la, quando da atuação da instituição como amicus curiae no referido
processo, perante o Tribunal Superior do Trabalho.
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O contrato racial como constituição não escrita do Brasil: ignorância branca e interpretação do 277
direito à luz da filosofia política de Charles Mills
Considerações finais
Este trabalho teve como ponto de partida o que definimos como a imagem padrão
do constitucionalismo: a tentativa de pensar a ordem constitucional na forma de
um conjunto de preceitos estatuídos abstratamente por uma decisão política
determinada. O problema com essa ideia, corrente em nossa teoria constitucional,
estava em não atentar para o quão dependente do contexto histórico e social é todo
projeto de sociedade. E para sistemas constitucionais que se querem progressistas,
como é o brasileiro, isso impunha a necessidade de explicar a convivência entre a
letra da norma constitucional e uma prática jurídica que lhe é tão contrária e
violadora de direitos.
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278 Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães - Heitor Moreira Lurine Guimarães
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.49622
dossiê
Submetido em 05/07/2023
Aceito em 27/11/2023
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ISSN 2447-6684
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284 Danilo dos Santos Rabelo
Resumo
Essa investigação buscou retratar a práxis negra dos escravizados contra o sistema jurídico
de controle e de repressão, durante a escravidão, através do método da fabulação crítica.
Do tensionamento sobre os retalhos documentais, as notícias, os ofícios, os autos, os mapas
presentes nos arquivos oficiais, insere-se a fabulação crítica como um método de revisão
histórica e de vocalização contra as tentativas de despersonificação das pessoas negras na
história. Para tanto, a partir dos anúncios de “fugas de escravizados”, entre 1838 e 1888,
nos jornais de Sergipe, hospedados na Hemeroteca Digital, serão fabuladas quatro histórias
da resistência negra, suas variadas e sofisticadas estratégias de sobrevivência contra o
arcabouço jurídico de captura. Conclui-se sobre a potencialidade da fabulação crítica no
resgate das dinâmicas resistências dos escravizados, bem como sobre críticas e
reconstruções no campo da historiografia jurídica.
Palavras-chave
Escravidão. Práxis negra. Fabulação crítica. História do Direito. Captura Jurídica.
Resumen
Esta investigación buscó retratar la praxis negra de los esclavizados contra el sistema
jurídico de control y represión durante la esclavitud, utilizando el método de la fabulación
crítica. A partir del análisis de documentos fragmentados como noticias, oficios,
expedientes y mapas en los archivos oficiales, se utiliza la fabulación crítica como método
de revisión histórica y de expresión contra los intentos de despersonalizar a las personas
negras en la historia. Para ello, se fabularán cuatro historias de resistencia negra, basadas
en los anuncios de "fugas de esclavizados" entre 1838 y 1888 en los periódicos de Sergipe,
alojados en la Hemeroteca Digital. Estas historias mostrarán las diversas y sofisticadas
estrategias de supervivencia de los esclavizados frente al marco jurídico de captura. Se
concluye sobre el potencial de la fabulación crítica para rescatar las dinámicas de
resistencia de los esclavizados, así como para realizar críticas y reconstrucciones en el
campo de la historiografía jurídica.
Palabras-clave
Esclavitud. Praxis negra. Fabulación crítica. Historia del Derecho. Captura Legal.
Abstract
This investigation sought to portray the Black praxis of the enslaved against the legal
system of control and repression during slavery, through the method of critical fabulation.
From the tensioning of documentary remnants, news, official communications, records,
and maps found in official archives, critical fabulation is employed as a method of
historical revision and vocalization against attempts to de-personify Black individuals in
history. To this end, based on the announcements of "escaped slaves” between 1838 and
1888 in the newspapers of Sergipe, hosted in the Digital Hemeroteca, four stories of black
resistance will be fabulated, showcasing their varied and sophisticated survival strategies
against the legal framework of capture. It is concluded regarding the potential of critical
fabulation in rescuing the dynamics of enslaved resistance, as well as in critiquing and
reconstructing the field of legal historiography.
Keywords
Slavery. Black praxis. Critical fabulation. History of Law. Legal Capture.
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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 285
Introdução
Em 1880, de sua choupana no Brás, Luiz Gama escreve uma carta para o seu amigo
Dr. Ferreira Menezes (Gama, 2021, p. 57). Comenta que acabara de ler na “Gazeta
do Povo” a notícia de que quatro escravizados, ou quatro espártacos, mataram “o
infeliz filho do fazendeiro Valeriano José do Vale” (Gama, 2021, p. 58). Gama
questiona a seleção de fatos incluídos em uma simples e rápida nota no canto de
um jornal: quatro negros escravizados mataram o filho de um fazendeiro. Se a
mercantilização da memória pode confundir a vítima com o carrasco (Mbembe,
2002, p. 25), seria necessário tensionar aquela notícia, revisitar a história, os textos
e contextos.
Essa carta possibilita abrir o debate sobre uma premissa metodológica crucial em
torno da fabulação crítica e, portanto, para o objetivo dessa investigação. Os
sujeitos oprimidos pelas estruturas dominantes em uma época, aqui com foco nos
escravizados, não são meros objetos inertes, recepcionantes da violência. As fugas,
as revoltas, as insurreições, os diversos modos de reação contra o sistema
colonial/escravista, não apenas contrapõem essa mumificação historiográfica. Luiz
Gama ao narrar a reação dos quatro escravizados traz estes para o palco da
história. Nesse palco, os quatro personagens atuam em uma cena visceral de
reação ao filho do senhor de engenho.
Luiz Gama (2021, p. 60) vai além, demonstra que esse fato não é uma cena isolada,
mas a decorrência de um amplo roteiro de resistência e que as consequências desse
ato sempre o trasbordam. É construído um roteiro que traz em si um outro projeto
de futuro. Um roteiro que sai das mãos do senhor de engenho enquanto rasga a
estrutura colonial/escravista (Moura, 2022, p. 86-87). Um roteiro que contrapõe
ponto-a-ponto a narrativa dominante e nesse contra-ataque dinamiza a formação
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286 Danilo dos Santos Rabelo
Essas interpretações ganham novas roupagens, têm as suas pontas mais polêmicas
polidas, transitam por cuidadosas escolhas temporais para apagar a escravidão, a
violência racial, as resistências do povo negro contra o sistema jurídico de
legitimação. Um livro tradicional de História do Direito no Brasil, em seus
condensados recortes sobre os períodos históricos e a Constituição vigente em
cada época, reproduz os ditames ditos universais de um direito liberal que camufla
uma série de opressões-exclusões (Pereira, 2021, p. 286; Rabelo, 2021, p. 97). Esse
passado está no presente do ensino e das teorias jurídicas no Brasil.
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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 287
Essa tarefa nos estudos jurídicos é quase sempre interditada a partir da lembrança
da “queima dos arquivos da escravidão” (Duarte; Scotti; Carvalho-Netto, 2019, p.
25). O apagamento desses arquivos existiu. Isso é um fato. Nele, perdem-se
documentos oficiais que poderiam contribuir para reconstrução histórica sobre os
números oficiais da quantidade de ex-escravizados, suas origens. Contudo, a
participação do povo negro na formação social brasileira não estava restrita apenas
a eles, transitava pelos becos (Evaristo, 2018), pelos diários (Jesus, 2019), pelas
fugas (Nascimento, 2021, p. 129), pelos folhetins, pelos não-ditos dos arquivos
oficiais. Há um arsenal historiográfico que Ruy Barbosa jamais conseguiria
queimar. É desse comércio com a morte que surge o poder imaginário instituinte
dos arquivos (Mbembe, 2002, p. 22).
É contra essa interdição de uma única versão sobre o passado, atravessada pela
impossibilidade concreta de resgatá-lo este em sua totalidade, a partir de um
entrelace de vestígios existentes, que surge o método da fabulação crítica
(Hartman, 2022, p. 11). É sobre produzir uma contra-história e respeitar os limites
do indizível, do não mais recuperável. Não almeja a responsabilidade de
apresentar a história como “foi”, não é desse ponto de partida colonizante sobre a
propriedade da verdade que parte a fabulação crítica. É um método de
investigação, de revisitação crítica, recheado por uma ampla pesquisa documental,
sóciohistórica sobre os contextos, sobre o tempo/espaço em que se passaram os
fatos narrados. A fabulação crítica contribui para a reconstrução do que “pode ter
sido”, não do que “foi” (Hartman, 2020, p. 16). É um movimento cuidadoso e árduo
de se voltar aos arquivos, ao passado, para trazer à tona as possibilidades de um
outro presente.
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288 Danilo dos Santos Rabelo
aparece no conto “Pai contra Mãe”1, de Machado de Assis (1906). Embora seja esse
um sentido aqui utilizado para estampar essa batalha entre fugas e capturas, há
uma historiografia jurídica que aponta como o sistema jurídico não só legitimou e
organizou a escravidão (Jesus, 1980; Bertulio, 2019; Duarte, 1988; Queiroz, 2017),
mas que um amplo sistema de controle e repressão buscou capturar os passos, os
atos, os relacionamentos, os sonhos de liberdade das pessoas negras escravizadas
(Flauzina, 2008; Silva, 2019; Rabelo, 2021).
A captura jurídica atua nessa investigação dentro desse binômio. Entre uma
tentativa de controle imediato e uma tentativa de controle sobre as redes de
sustentação da escravidão para além daquele tempo. A resistência da práxis negra,
sofisticada e dialeticamente, atuava em ambas as frentes: “enquanto o primeiro
segmento negro, minoritário, procura reacender os valores culturais, religiosos e
históricos da África, o segundo atém-se a uma luta corpo-a-corpo, cotidiana e
inglória pela sobrevivência” (Moura, 1994, p. 244).
Nos anúncios de fugas, quase sempre localizados nas últimas folhas dos jornais da
época, têm-se a descrição dos atributos pessoais postos pelos anunciantes, os bens
levados, as ocupações, as técnicas empregadas nas fugas e as possíveis estratégias
para se manter em liberdade. A fuga exitosa abria caminhos entre as matas, entre
as florestas, mas também caminhos de liberdade no imaginário dos escravizados.
A fuga era a condição necessária para a construção do quilombo (Nascimento,
2021, p. 129), para o desgaste econômico do sistema escravista (Moura, 1992, p. 55).
Em razão disso, os anúncios de fuga não eram uma simples tentativa privada de
publicamente resgatar uma propriedade2 que fugia. Podem ser interpretados como
uma manifestação do medo branco (Azevedo, 1987, p. 129). Medo que ruísse a
materialidade dos privilégios e o contorno legal que lhe estruturava. Síndrome de
medo gerada pelo receio de que a rebeldia se tornasse incontrolável, que a sua
posição de sujeito universal fosse questionada (Moura, 1992, p. 62; Ramos, 1995, p.
192).
Como os jornais são as principais fontes documentais para a coleta dos anúncios
daquela época, a plataforma da Biblioteca Nacional Digital, precisamente a ampla
digitalização presente na Hemeroteca Digital, materializou-se como ferramenta
investigativa. Os poucos, mais crescentes, estudos sobre a resistência negra em
1 “O Espelho: esboço de uma nova Teoria da Alma Humana” é um outro conhecido conto de
Machado de Assis (2023, p. 143) por também centralizar o papel das fugas dos escravizados
enquanto um contra-ataque aos poderes e as ilusões de comando dos senhores de engenho.
2 Durante a escravidão a categoria jurídica de “res” tentava enquadrar o escravizado como uma
propriedade que podia ser envolvida em qualquer negócio jurídico (Rabelo, 2021, p. 45).
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Em relação ao recorte temporal para a seleção das fugas, as últimas cinco décadas
de escravidão em Sergipe (1838-1888) foram escolhidas. É nesse período que nasce
e cresce a impressa jornalística no estado5(Góes, 2020, p. 109), fato que tornou
possível um maior acesso dos grandes proprietários, das diversas regiões do
estado, a esse meio de comunicação e aos seus anúncios6.
3 Destacam-se o livro “O negro e a violência do branco”, de 1977, prefaciado por Clóvis Moura, do
professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, Ariosvaldo
Figueiredo. A tese de Sharyse Amaral: “Escravidão, Liberdade e Resistência em Sergipe:
Cotinguiba, 1860-1888”, de 2007. A tese de Igor Fônseca de Oliveira: ““Por não querer servir ao
seu senhor”: os quilombos volantes do Vale do Cotinguiba (Sergipe Del Rey, século XIX)”, de
2015.
4 As palavras-chave inseridas no campo de busca dos jornais materializados na plataforma da
Hemeretoca Digital, após a seleção do período (1838-1888) e do local (Sergipe) foram: “fugiu
escravo”; “fuga de escravo”; “procura-se escravo”; “escravo fugido”.
5 Cristian Góes (2020, p. 109) aponta que o primeiro jornal impresso de Sergipe surge em 1832, o
“Recopilador Sergipano”.
6 Esse período coincide, em parte, ao período que Clóvis Moura denomina como “escravismo
tardio” (1851-1888), período no qual a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz demarca a pressão
internacional pelo fim do tráfico de escravizados, enquanto que internamente estes continuavam
a tensionar o sistema produtivo a uma crise irrefreável (Moura, 2019, p. 83). A escassez de mão-
de-obra após à referida lei e a manutenção das fugas, tornavam o escravizado ainda mais caro,
visto que a sua ausência não podia mais ser rapidamente substituível. Outro fator é que os custos
com o aparelho repressivo de captura passavam onerar cada vez mais a produção (Moura, 1992,
p. 55).
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Como e por que dentre os milhões de escravizados aqui trazidos, no interior desse
incisivo processo de ocultamento, conhecemos Maria Ignacia e a sua fuga? Por que
a exumação dessa história e, de tantas outras, pode contribuir para abalar os
tradicionais pilares da historiografia do Direito brasileiro? Como resgatar esse
fragmento histórico, o anúncio da fuga de Maria, respeitar os limites do não-
resgatável, porém a partir de um entrelace com outras fontes, estudos, panoramas,
tensionar os limites do possível de ser dito?
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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 291
O ato de fuga de Maria Ignacia enquadra toda uma sociologia que vai manejar o
povo negro como um tema, como ser exótico ao Brasil (Ramos, 1995, p. 215), como
um experimento de laboratório a ser silenciado e enxergado de fora. A rasteira de
Maria se consuma quando mediante sucessivas fugas, inclusive de um sacerdote
que figura como anunciante, grita que esse era um povo que que não se deixa
imobilizar, que é multiforme, despistador (Ramos, 1995, p. 215). A fuga de Maria
não foi um ato isolado. Longe disso. O conjunto da documentação historiográfica
atesta que a fuga era a forma de resistência típica da escravidão, não só no Brasil,
mas em toda a América Latina (Gomes, 1996, p. 06; Reis; Silva, 2005, p. 62).
Os anúncios de fuga presentes nos jornais não apenas guardam informações sobre
a violência racial existente numa época. Eles a construíram e reciprocamente
fizeram parte dela (Hartman, 2020, p. 28). Inicia-se esse tópico sobre a fabulação
crítica através da fuga de Maria porque ela põe em xeque uma concepção de
memória coletiva que ao se apresentar como “nacional” excluiu a resistência, a
participação do povo negro.
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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 293
Por outro lado, não objetiva produzir uma ficção heroica, uma fabulação que seja
o resultado de histórias de celebração dos oprimidos (Hartman; Wilderson, 2003,
p. 185-186). É a tensão, as disputas, os desgastes, o medo envolvido na ânsia de
desfazer as garras opressivas, o pano de fundo dessa escrita. Uma fabulação crítica
que nesse resgate não ignora, nem omite, a performance da intervenção do
historiador sobre o passado e o seu entrelace com as lutas contemporâneas
(Hartman, 2020, p. 31).
Embora a produção teórica da Saidiya Hartman possua quase trinta anos, apenas
nos últimos três anos passou a ser traduzida, publicada e debatida com mais
intensidade no Brasil. O artigo “Vênus em dois atos”, publicado pelo dossiê “Crise,
Feminismo e Comunicação” em 2020, os livros “Perder a mãe: Uma jornada pela
rota atlântica da escravidão”, lançado em 2021; “Vidas Rebeldes, Belos
Experimentos: Histórias Íntimas de Meninas Negras Desordeiras, Mulheres
Encrenqueiras e Queers Radicais”, lançado em 2022; e a obra que reuniu dois textos
escritos em um intervalo de trinta anos: “A sedução e as artimanhas do poder” e
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Também no artigo 179, mas do Código Criminal do Império, era tipificado o crime
de redução de uma pessoa livre à escravidão (Brasil, 1830). Formalmente, se
poderia imaginar que todos os senhores de engenho incorreriam nesse crime.
Contudo, o direito brasileiro se voltava até o direito romano e a sua máxima partus
sequitur ventrem para destacar que todo escravizado nascido no Brasil não era um
cidadão um livre. A condição de escravizada de sua genitora lhe era transferida no
próprio ventre (Moraes, 1986, p. 166; Malheiro; 1866, p. 42).
Nas hipotecas sobre imóveis rurais (fazendas, sítios, engenhos), o artigo 140, §2,
do Decreto Imperial nº 3.453, de 26 de abril de 1865, para evitar disputas jurídicas
posteriores, incluiu expressamente que os instrumentos da lavoura, os escravos e
8 Transcrito em sua grafia original: “Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos
Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é
garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte” (Brasil, 1824).
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Nessa obra aponta ainda que a práxis negra não é só uma premissa metodológica-
interpretativa de sua produção teórica, mas uma categoria necessária para as
pesquisas que objetivem compreender a formação histórica brasileira (Moura,
2019, p. 39); a formação cultural (Moura, 2019, p. 59) e os seus mitos (Moura, 2019,
p. 89); a formação do capitalismo em suas dinâmicas nacionais-internacionais,
entre os seus ciclos de exploração (Moura, 2019, p. 287); pesquisas sobre a
síndrome do medo da classe branca-dominante (Moura, 2019, p. 276).
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Nesse livro apresenta a práxis negra em seu entrelace diaspórico (Moura, 2021).
Em a “História do Negro Brasileiro”, levanta a quilombagem como um agente de
mudança social crucial para a crise do sistema escravista e de seus pilares jurídicos
(Moura, 1992, p. 22). Em “Dialética Radical do Brasil Negro”, Clóvis Moura abre
um vasto leque sobre a atuação da práxis negra na formação do capitalismo
dependente. A partir da imprensa, da literatura e da linguagem, da valorização da
estética africana, das batalhas políticas/legislativas, assenta a irreversibilidade da
contribuição dessa práxis na formação sócio-histórica brasileira (Moura, 1994)
3.1 Maria Ignacia fugiu, um, duas, várias vezes e não caiu no
conto do vigário9
9 Com o objetivo de tornar a apresentação da fabulação crítica mais linear, sem interrupções em
razão de marcadores referenciais, apenas neste capítulo serão postas todas as referências das
citações nas notas de rodapé.
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A maior parte das fugas em Sergipe era de escravizados homens, já que tanto eram
maioria em proporção, como havia um maior distanciamento, nutrido pela
violência da lavoura, entre os laços familiares, principalmente com os filhos11. As
escravizadas quando não perdiam seus filhos antes, durante ou após o parto, eram
obrigadas a cuidar deles até o momento em que estes também fossem explorados.
Essa imposição, todavia, não impedia que diversas fugas fossem anunciadas sobre
escravizadas grávidas12, como Arminda na crônica machadiana, ou que fugiam
com os seus filhos. Um outro dado é que eram os crioulos que mais fugiam em
Sergipe frente aos escravizados africanos. Para estes, além de um menor
desconhecimento da região, os laços de solidariedade entre os escravizados ainda
eram menores.
Não era o caso da angolana Ignacia. Estima-se que não só escapou do Padre,
segundo o anúncio de sua fuga, como teria fugido no mínimo umas cinco outras
vezes. Vários senhores do Vale do Cotinguiba tentaram lhe possuir, mas tinha
escapulido de todos eles. Todos estes que viam Maria apenas como um
investimento econômico, após gastarem com o falho controle de capatazes no
engenho, com anúncios e recompensas, resolviam passar Maria para um novo
comprador.
O próprio Padre José Lino já tinha sido avisado pelo próprio Capitão Francisco
José Leite que ela já tinha fugido diversas vezes. Contudo, a igreja do Engenho
estava precisando de alguém para garantir que a velha estrutura centenária
estivesse ao menos limpa antes das missas senhoriais. Padre José Lino, na saída do
10 Ver Igor Oliveira (2015, p. 63) e o artigo de Petrônio Domingues (2015): João Mulungu: a invenção
de um herói afro-brasileiro”.
11 Embora em minoria, parte das fugas das escravizadas se dava acompanhada de seus filhos
(Amaral, 2012).
12 Ver Lenira Costa (2004, p. 08).
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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 301
cartório com o Capitão Francisco, com as notas dos impostos pagos e o restante da
papelada embaixo do braço, sussurrou para o antigo proprietário:
- Se tem alguém que vai segurar ela quieta é a misericórdia divina. Deixe comigo!
José Lino só tinha esquecido de um singelo detalhe. Não tinha combinado essa
certeza com Maria Ignacia. Ela já tinha fugido diversas vezes, conhecia os
caminhos entre as matas, as cavernas com cobertura e até mesmo onde poderia
estar sendo criado um novo quilombo. Afinal, à noite, as frestas das paredes de
pedra da senzala sussurravam novidades.
Tinha sido capturada algumas vezes, é verdade. Uma vez tentou fugir para bem
longe. Queria ir até o norte de Sergipe, atravessar o São Francisco, cair na mata dos
Palmares. Sabia que alguns remanescentes ainda estavam por lá, nas altas matas
fechadas. No entanto, em todas as outras vezes que fugiu e foi capturada, para a
comemoração dos senhores e dos capitães do mato, a sua fuga era estratégica,
reivindicatória13.
Certo dia, Maria, cansada da jornada que invadiu altas horas da noite fria anterior,
chegou tarde na casa-grande do Capitão Pereira. O sujeito que foi lá em Salvador
comprá-la. Não deu tempo de aprontar o café. Foi a primeira vez que aquilo tinha
acontecido em um ano. Não deu em outra, Luzia, escravizada sexagenária do
engenho, lembrou-lhe que iriam castigá-la. Destacou que ela poderia até escolher:
ou cem palmatórias ou vinte açoitadas nas costas e pernas. O que não tinha escolha
era o direito de não ser castigada. Capitão Pereira, português, sempre lembrava
que era um homem cordial. Batia porque estava na lei. Batia porque essa mandava.
Maria esperou a hora em que a família rezava o rosário, jogou-se por baixo da cerca
do quintal e partiu. Foi pega, punida, mas meses após quando novamente
castigada, não deu outra, novamente se rebelou contra o açoite. Foi capturada e
Dona Helena, esposa do Capitão Pereira, disse que não era para batê-la dessa vez.
Ela passaria a cuidar do comportamento de Ignacia, dia e noite, seria agora
“escrava da casa”. O plano de Helena também falhou. Arrependidos, venderam
Ignacia.
Assim foi o cotidiano de Maria nos vários engenhos, ora acatava, porque sentia
que era o melhor a ser feito dentro daquele espaço em que a violência e o medo
eram constantes, ora recusava e fugia, porque havia o limite do intolerável, porque
13 Em sua tese Igor Oliveira (2015, p. 68) detalha as principais diferenças entre a “fuga
reivindicatória” e a “fuga de rompimento”.
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302 Danilo dos Santos Rabelo
Não apenas por isso, de fato, o ato da fala pela escravizada era sempre um
princípio de medo pelo proprietário14, demonstrava que ela não era totalmente
submissa, que poderia estar tramando revoltas, novas fugas. Se o “criado mudo”
era o plano ideal para o proprietário, Maria Ignacia representava o oposto. Não foi
diferente no engenho em que ficava a igreja do Padre.
Fonte: Mapa de Bloem, 1844. Apud: Amaral (2007, p. 142). Sem grifos no original.
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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 303
Entre o trabalho na capela, os afazeres domésticos na casa do Padre José Lino, era
obrigada a fazer todas as refeições para os seminaristas que, de segunda à sexta,
iam tomar aulas de teologia e filosofia tomista com José. Maria se viu mais isolada
do que nunca.
Era proibida de ir à feira, de falar com os fiéis, até mesmo de entrar, durante as
missas, no lugar que passava a semana limpando. Ali era igreja de branco. Do
outro lado da cidade havia uma onde os pretos podiam entrar, mas Padre José Lino
também a tinha proibido de ir lá. Não queria dar alguma brecha para Ignacia. Às
vezes gritava seu nome apenas para que ela respondesse que estava ali, nas
redondezas. A existência dessa tentativa de controle absoluto, ironicamente, só
demonstrava a sua fragilidade. Sabia que qualquer fagulha que se mexesse, sem o
seu consentimento e conhecimento, poderia colocar a sua estabilidade em risco.
Era esse o caminho, Ignacia sabia que deveria ser algo bem planejado para que a
sua ausência só fosse notada um bom tempo depois. A hora da missa. Era Páscoa,
missa de ressureição. Embora proibida de entrar na capela durante a missa, Padre
18 Embora não existam imagens conhecidas do Engenho Tábua, foi possível localizar uma fotografia
do Engenho Bom Retiro, construído em 1701, localizado em Laranjeiras (Engenho Retiro, s. d.).
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304 Danilo dos Santos Rabelo
José Lino exigia que ela ficasse na porta, sob a justificativa de ter de segurar os
guarda-sóis vitorianos das madames. Era um pretexto para a permanência da
vigilância.
Ignacia tinha escutado entre as refeições dos seminaristas que a pomba branca era
um símbolo do cristianismo. Tinha algo relacionado com a paz, com o espírito
santo. Sugeriu então ao Padre que após a homilia, ela poderia pegar duas pombas
brancas no pombal próximo ao curral e soltar na Capela. Seria a paz e o espírito
santo que entrariam ali, os fiéis iriam aplaudir tamanho efeito visual. Padre José
Lino, com uma expressão de surpresa, acatou a ideia. Por dentro ficou orgulhoso
em saber que Maria não só estava totalmente integrada ao trabalho, como já estava
a assimilar os preceitos religiosos do cristianismo.
No meio da homilia, José Lino fez um sinal com a cabeça para Maria, que
rapidamente correu para traz da igreja. O padre acompanhou todo o percurso de
Maria pelas diversas janelas da igreja. Quer dizer, quase todo. Ao chegar ao fundo
da igreja, não mais sendo vista por José Lino, ao invés de ir para a direita em
direção ao curral, com os seus pés pequenos e ágeis, correu para a esquerda,
rapidamente. Ergueu um pouco o longo vestido com as mãos e correu. Sem parar.
Era missa de Páscoa e seria uma desfeita o Padre José Lino se retirar no meio dela.
As autoridades locais estavam todas lá. Era a primeira missa de páscoa após
Laranjeiras se tornar a sede da comarca19. Igreja lotada.
E Maria? Maria correu, voou e girou como uma pomba. Uma pomba negra, livre,
pelas matas.
No dia seguinte Padre José Lino, passou horas remexendo a papelada da capela,
recuperou o contrato de compra, dirigiu-se à Aracaju, foi ao Jornal “O Correio
Sergipense” e escreveu no fim do desesperado anúncio:
Quem a levar presa ao mesmo seo Engenho, ou lhe der noticia certa, onde
esteja será generosamente recompensado. Engenho Tabua, 24 de Maio de
1842, O Padre, José Lino d’Oliveira" (O Correio Sergipense, Aracaju, 01 de
Junho de 1842, p. 04).
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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 305
Em 1854, Manoel Diniz Vilas Boas enviava para o Presidente Inácio Joaquim
Barbosa um mapa estatístico com a população de Sergipe dividida entre a
população livre e escravizada. A Vila de Capela era a terceira que mais possuía
escravizados, perdia apenas para Laranjeiras e Estância20. Nos levantamentos de
1838, 1856 e 1875, era a vila com maior número de engenhos21. O plantio de açúcar
e algodão é oficialmente apontado como o responsável pelo desenvolvimento da
região22.
Contudo, quem movimentava mesmo o lugar era o povo negro, que erguia a
economia nos sacos de catar algodão, nas foices de cortar cana, enquanto
reivindicava a superação daquele sistema. Capela fazia parte do Vale do
Cotinguiba, região com maior número de revoltas, conflitos, fugas23. Esse era o
cenário onde ficava o Engenho Lagartixa. Um pouco afastado do centro da vila e
por estar bem próximo a uma grande serra, tinha um clima fresco garantido
durante quase todo o ano.
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306 Danilo dos Santos Rabelo
Fonte: Mapa de Bloem, 1844. Apud: Amaral (2007, p. 142). Sem grifos no original.
O Nordeste passava por uma derrocada econômica, há muito o Brasil não era o
maior produtor de açúcar, há muito os investimentos foram sendo transferidos
para o litoral do Sudeste. Foi ali próximo da Serra, que Quiteria, crioula, conheceu
e fugiu, em 1853, com o seu esposo, angolano.
Filha de uma escravizada da Costa da Mina que foi estuprada pelo seu senhor de
engenho24, Quiteria cresceu na região de Capela, conhecia todas as serras, os
limites da maioria dos engenhos. Sabia de cachoeiras tão isoladas na mata fechada
que ela tinha certeza que além dos tupinambás que viveram na região e que foram
exterminados no século anterior25, só ela sabia daqueles lugares.
Ele era alto, magro, trabalhava na lavoura, mas dominava como poucos o manejo
com couro na região. Aprendeu tudo com o seu pai em Angola, esse que tinha
aprendido com seu avô. Quando traficado para o Brasil, foi separado de seus
irmãos no Porto de Salvador. Estes eram mais jovens, fortes, foram levados por um
atravessador com uma outra centena para o Rio de Janeiro. Era o tempo áureo do
ciclo de café. Quando fora levado para o Engenho Lagartixa, com as mãos e os pés
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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 307
Esse orgulho no grito se justificava porque fora trazido ilegalmente26 após a lei para
o “inglês ver” 27 e o escravizado não. Era uma forma de demonstrar que o poder
senhorial tanto se beneficiava do sistema legal, como conseguia ultrapassá-lo sem
maiores barreiras. Nas notas arranhadas daquele grito acompanhava a mensagem
de que com ou sem a Eusébio de Queiroz28, ainda conseguiam trazer escravizados
de África. Da lavoura pescoços se erguiam para ver aquele que era trazido. Era
uma curiosidade dolorosa. Era uma curiosidade que via-sem-querer-ver.
Com a redução do tráfico internacional para aquela região, com a diminuição dos
corpos negros comprados para trabalhar na lavoura, havia uma maior proporção
entre escravizados homens e mulheres no Vale do Cotinguiba29. A existência e o
crescimento de famílias de escravizados, ainda que não legalizadas, não era uma
dinâmica movida e apenas explicada por um olhar econômico. A compreensão
sobre a resistência dos escravizados ali passava também pela luta em torno
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308 Danilo dos Santos Rabelo
Nas noites frias enquanto Akin e Quiteria comiam o engrossado de milho, receita
da falecida mãe desta, sonhavam que teriam um pedacinho de terra, que teriam
roupas de tecido bom. Sonhavam que trabalhariam apenas para si. Sonhavam que
tinham um ao outro em sua completude.
A realidade era diversa. Era trabalho de sol a sol, de chuva a chuva. Chicotadas
eram recorrentes, diárias. Na dúvida sobre um trabalho mal feito ou não, uma
palavra mal dita ou não, o chicote estralava seco nas costas, nas pernas, onde
pegasse. Quiteria segurava o grito de dor, sabia que a sua alforria se aproximava,
a de Akin nunca chegaria se dependesse de alguma benevolência de João Boto.
Fazia cinco anos que este tinha o comprado, que João Boto repetia “ter investido
uma grana alta no angolano”. Faziam cinco anos daquele dia em que o ferro quente
estampou as siglas “J. B.32 em Akin. Fazia cinco anos que aquele descontava a
desvalorização do açúcar através do discurso da baixa produtividade dos
escravizados33. De lá pra cá a jornada de trabalho só vinha aumentando em um
ciclo retroalimetável. Aumentava a jornada em um ano, morriam dois
escravizados. No ano seguinte, sem economias para a reposição, aumentava mais
ainda o tempo diário da labuta, morriam três.
Aproveitaram que tinham direito a uma roda de samba na noite de Natal34 para
traçar um habilidoso plano, composto por o que levariam, como levariam, quando
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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 309
levariam, para onde iriam. O pandeiro batia alto para que nada saísse da roda de
samba. Quiteria estava feliz, tão feliz que quando soltou descuidadamente a
panela de mugunzá na fogueira, uma brasa fervente saltitou e atingiu o seu peito.
Ficou uma marca feia em carne viva, rapidamente coberta por goma de babosa.
Após aquele susto começou a roda de capoeira. João Boto e alguns amigos, da
varanda da casa-grande, apostavam goles de vinho do Porto para quem acertasse
o ganhador do confronto. Mal sabiam que ali era o treinamento de Akin. Lutou
contra todos e não perdeu uma sequer na noite. Seus pulos pareciam querer acertar
a lua cheia. Chutou o ano de 1853 com tanta força que logo chegou o dia 08 de
janeiro de 1854.
Quiteria gozou de seu privilégio de ir vender na feira. Por baixo das batatas-doces
que iam em um cesto equilibrado em sua cabeça dobrou um pano da costa com
listas vermelhas. Estava irradiante, com uma saia de zuarte e camisa branca. João
Boto nunca tinha visto Quiteria ir trabalhar daquela forma, a poeira do caminho
de ida e de volta sujaria toda a sua roupa, porém o dinheiro que retornaria com ela
era o que importava. Nem ela, nem o dinheiro voltaram.
Três dias depois, com quase todos os capatazes procurando Quiteria nas serras,
afinal, Boto e o seu engenho não poderiam abrir mão de nenhum escravizado mais,
foi a vez de Akin. Pegou a melhor calça e camisa branca de algodão, seus
equipamentos de sapateiro e partiu sem deixar rastros. Só parou quando
encontrou Quiteria toda de branco na cachoeira do fundão.
João Boto correu para Laranjeiras, no mesmo anúncio destacou as duas fugas.
Fugiu uma escravizada chamada Quiteria, com marcas de queimadura no peito, e
o seu esposo, da nação angola. Destacou ainda que esse levou os equipamentos de
sapataria, em que, segundo as suas próprias palavras: “trabalha sofrivelmente” 35.
Ao fim e ao cabo, tinha que fazer uma propaganda bem ruim daquele, não poderia
correr o risco de alguém querer ficar com o melhor sapateiro da região. Nem ele,
nem Quiteria, eram de alguém. Eram só deles. Experimentavam a liberdade com
a mesma potência da água que caía do alto da cachoeira.
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310 Danilo dos Santos Rabelo
Em seu ensaio jurídico de 1866, Agostinho Malheiro destacava que não sendo o
escravizado um cidadão36 não poderia ser admitido no exército e na marinha37.
Como então teria Jacob conseguido essa faceta? Como teria conseguido fugir de
Estância para Aracaju, driblado os impedimentos jurídicos e assentado praça no
Exército?
Foi nessas idas ao pacato porto que ficou sabendo que tinham dois soldados ali,
Pedro e Benedito, que eram escravizados em Alagoas e que fugiram para Sergipe.
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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 311
Como a instabilidade era uma marca da escravidão45, como existia uma pública
cobrança pelo aumento de braços e de equipamentos da força armada no sistema
escravista46, o assento voluntário de praça não era uma atividade revestida por
muitas formalidades. Essa brecha foi estrategicamente conduzida pela práxis
negra. Permitia, imediatamente, que o escravizado espacialmente se distanciasse
do engenho. Além disso, o modo no qual o exército absorvia o contingente para as
linhas de frente, composto também por escravizados, não era o mesmo quando
tinha um soldado requisitado por um antigo proprietário. Não raro foi a existência
de controvérsias administrativas e judiciais para recuperar um escravizado que se
refugiava no “abrigo da farda” 47. Sobre essa cinzenta massa burocrática48, foi que
Luiz Gama, em 1848, fugiu e alcançou seu alistamento no exército.
Em cada ida ao porto de Estância, Jacob colhia uma informação a mais. Estas
chegavam de modo salpicado, rapidamente era dita no momento em que um
embrulho chegava em suas mãos, em uma fala pronunciável por alguém não
40 Ver Flávio Gomes (1996, p. 14). Durante a seleção do recorte foi localizada a fuga de Afonso no
ano de 1848 em Estância. O anúncio aponta que este “costuma dizer, que se chama João” (Correio
Sergipense, Aracaju, 30 de setembro de 1848, p. 04). Hendrik Kraay (1996, p. 45) também faz
referência essa comum mudança de nome entre os escravizados que fugiam.
41 A fuga de Pedro e Benedito de Alagoas para Aracaju é retratada por Hendrik Kraay (1996, p. 46).
Estes não só conseguiriam se alistar em Aracaju, como foram enviados para o Rio de Janeiro.
42 Ver Hendrik Kraay (1996, p. 38).
43 Ver João José Reis (2022, p. 83).
44 Ver André Toral (1995, 273).
45 Ver Júlio Vellozo e Silvio Almeida (2019, p. 2148).
46 Ver Luiz Mott (1986, p. 127)
47 Para um maior aprofundamento sobre essa estratégia, bem como para a compreensão da
expressão acima, destaca-se o artigo “O abrigo da farda: o Exército brasileiro e os escravos fugidos
1800-1881), do historiador Hendrik Kraay (1996).
48 Ver Hendrik Kraay (1996, p. 35).
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312 Danilo dos Santos Rabelo
Quando a mãe de Jacob morreu deixara ela uma quantia suficiente para pagar a
alforria de seu filho. Contudo, o Sr. Francisco de Carvalho, Seu Chico, dissera que
com a valorização da mão-de-obra escrava no mercado interno, o preço de Jacob
tinha mais que duplicado. Além do mais, este era jovem, acabara de completar
vinte anos, gozava de boa saúde. Faria então o seguinte, como já era uma pessoa
idosa, podendo bater as botas a qualquer momento, passaria a metade daquela
propriedade para a sua filha. Possuir uma cota de metade de Jacob foi um dos
vários presentes recebidos por sua filha na festa de debutante. Caso esta
posteriormente não tivesse interesse no escravizado, caberia a Jacob pagar a parte
correspondente para ser dono por completo de si.
Para ele, porém, não fazia sentido trabalhar anos e anos, talvez décadas, apenas
para comprar a sua metade. Depois estaria ele jogado ao léu, todo o seu suor teria
sido dado à filha de Seu Chico simplesmente porque ela nasceu em berço de ouro.
Se tinha alguém que não precisava daquele dinheiro era ela. A revolta casou-se
com as vozes do porto. Deveria tentar.
Dois meses antes de sua fuga Jacob já tinha pegado um sapato social que Seu
Chico deixara secando sob a janela. Um dos passaportes inclusivos no “mundo dos
cidadãos” era a presença dos sapatos nos pés50. Chegar descalço na capital era ser
uma presa fácil, avisaram-lhe. O desaparecimento do calçado não se deu sem
nenhuma consequência, é claro. Todos os escravizados receberam bolos de
palmatórias até o tempo em que Seu Chico chegou à conclusão que o sapato não
mais apareceria de modo algum.
No dia da fuga, a adrenalina foi tão alta que Jacob lembra apenas de ter desterrado
os sapatos e pegado um par de calça e camisa no varal. Cena esta seguida por uma
piscadinha de olhos de Ambrósio que lavava os cavalos no estábulo. Conferiu que
o bilhete recebido no porto, com o endereço do Batalhão em Aracaju, estava em
seu bolso e correu. Foram seis dias cansativos. Sentiu medo, fome e até um leve
arrependimento: - “E se a vida no batalhão fosse pior que no engenho? E se descobrissem
que fugiu?”. Nenhuma dúvida era mais paralisante do que seguir no engenho.
Estava certo.
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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 313
O percurso de 60km entre Estância e Aracaju foi percorrido em sua maior parte a
pé. O caminho foi atravessado por uma série de temperos que fizerem ele ter a
certeza que jamais seria capturado. Não tão facilmente, ao menos. Catadores de
mariscos no Rio Vaza-Barris lhe atravessaram em suas simples canoas. Algumas
carroças andantes pelo sertão lhe ofereceram carona e até mesmo um pedacinho
de rapadura com água.
Ao chegar em Aracaju viu, antes de tudo, uma cidade em construção. Em 1873 não
fazia nem duas décadas que tinha se tornado capital do estado. Não era muito
grande, um quadradinho praticamente restrito a duas ou três ruas próximas ao Rio
Sergipe. Entrou no Batalhão e seguiu exatamente o que lhe passaram. A estratégia
infalível. Mudou o seu nome. Era agora João Marcos. Enquanto o capitão do
batalhão procurava um bico de pena para registrar algumas informações básicas,
fez um comentário aparentemente despretensioso sobre o brilhantismo de Duque
de Caxias na Guerra do Paraguai. Estava tudo no roteiro. Destacou que embora
estivesse desempregado, sendo essa a razão para o alistamento, se lhe garantissem
um pouco de comida e onde dormir durante os primeiros meses, aceitaria sem
maiores problemas. Deu certo. Esse estranho drible nas entranhas cinzentas do
Estado deixou Seu Chico no chão.
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314 Danilo dos Santos Rabelo
Passou-se um mês, as mesmas águas do Rio Piauí que levaram essa estratégia de
liberdade para Jacob rebateram naquele porto em Estância levando boas notícias.
A sua faceta circulava entre os burburinhos do porto, das feiras, das senzalas.
Fugiu. Fugiu sem mais a ser contado. Fugiu diante da convicção imediata de que
não era aquele o seu lugar.
Fugiu.
Considerações finais
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316 Danilo dos Santos Rabelo
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A práxis negra contra a captura jurídica: a inserção da fabulação crítica no Direito 323
Sobre o autor
Danilo dos Santos Rabelo
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Sergipe; Doutorando
em Direito pela Universidade Brasília. Integrante do “Núcleo de Estudos
Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal de Sergipe”
(NEABI-UFS), e do “Núcleo de Estudos e Pesquisas em Cultura Jurídica
e Atlântico Negro – Maré” da Universidade de Brasília.
_________________
Agradecimentos
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50289
dossiê
Submetido em 29/07/2023
Aceito em 09/12/2023
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684
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326 Alejandro Knaesel Arrabal
Resumo
Realizado por meio de revisão bibliográfica, o presente artigo debate aspectos que tornam
a linguagem e a tecnologia, não apenas instrumentos de comunicação, mas fatores
coadjuvantes na produção de identidades e, nessa condição, instâncias que participam das
confluências e conflitos étnico-raciais. O texto está estruturado em duas unidades de
conteúdo que procuram atender aos seguintes objetivos específicos: compreender o caráter
artificial e constitutivo da linguagem, assim como o seu papel na formulação dos conceitos
de raça e etnia no contexto de articulações identitárias; e avaliar a relação entre linguagem
e tecnologia, apontando suas implicações sobre o racismo. Como resultado, o trabalho
indica que, a par dos benefícios que as redes telemáticas proporcionam em termos de
acesso à informação e comunicação, a experiência mediada por plataformas digitais
também assumem contornos ideológicos que modulam posturas discriminatórias e
racistas, fortalecendo a objetificação humana em detrimento dos valores fundamentais da
diversidade e dignidade existencial.
Palavras-chave
Linguagem. Identidade. Raça. TIC. Dignidade.
Resumen
Realizado a través de una revisión bibliográfica, este artículo analiza los aspectos que
convierten al lenguaje y la tecnología no solo en instrumentos de comunicación, sino
también en factores coadyuvantes en la producción de identidades y, en esta capacidad, en
instancias que participan en confluencias y conflictos étnico-raciales. El texto se estructura
en dos unidades de contenido que buscan cumplir los siguientes objetivos específicos:
comprender el carácter artificial y constitutivo del lenguaje, así como su papel en la
formulación de los conceptos de raza y etnicidad en el contexto de las articulaciones
identitarias; y evaluar la relación entre lenguaje y tecnología, señalando sus implicaciones
para el racismo. A consecuencia, el trabajo indica que, junto con los beneficios que las redes
telemáticas proporcionan en términos de acceso a la información y comunicación, la
experiencia mediada por plataformas digitales adquiere contornos ideológicos que
modulan actitudes discriminatorias y racistas, fortaleciendo la objetificación humana en
detrimento de los valores fundamentales de la diversidad y la dignidad existencial.
Palabras-clave
Lenguaje. Identidad. Raza. TIC. Dignidad.
Abstract
Carried out through bibliographic review, this article discusses the aspects that make
language and technology not only instruments of communication but also contributing
factors in the production of identities, and, in this capacity, instances that take part in
ethnic-racial confluences and conflicts. The text is structured into two content units that
seek to meet the following specific objectives: understanding the artificial and constitutive
character of language, as well as its role in formulating the concepts of race and ethnicity
in the context of identity articulations; and evaluate the relationship between language and
technology, pointing out its implications for racism. As a result, the work indicates that,
alongside the benefits that telematic networks provide in terms of access to information
and communication, the experiences mediated by digital platforms take on ideological
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contours that shape discriminatory and racist attitudes, reinforcing the objectification of
humans at the expense of fundamental values of diversity and existential dignity.
Keywords
Language. Identity. Race. ICT. Dignity.
Introdução
Considerando esses fatores, o presente artigo propõe debater aspectos que tornam
a linguagem e a tecnologia, não apenas instrumentos de comunicação, mas fatores
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Echeverría (2003, p. 12) afirma que “o social, para os seres humanos, se constitui
na linguagem. Todo fenômeno social é sempre um fenômeno linguístico”. Assim,
o pensamento é determinado pelas características da língua.
O idioma é pura ideologia. Ele não apenas nos instrui dos nomes das
coisas, mas, mais importante, de que as coisas podem ser nomeadas. Ele
divide o mundo em sujeitos e objetos. Indica que eventos devem ser vistos
como processos e como coisas. Ele nos instrui do tempo, do espaço e do
número e forma nossas ideias de como estamos em relação à natureza e
aos outros (Postman, 1994, p. 129).
Também Castells (2002) reconhece que o acesso a realidade não é possível para
além do que há na linguagem. Essa é uma concepção que tem lugar especialmente
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A partir de Heidegger, Gracia (2005, p. 36) observa que “somos vítimas de uma
traiçoeira ilusão egocêntrica quando acreditamos ser donos de nossos discursos e
quando consideramos a linguagem como instrumento, [...] é a própria linguagem
que manda em nós, causando, modelando, constrangendo e provocando nosso
discurso”.
1 “‘Giro linguístico’ é uma expressão que esteve em moda nos anos 1970 e 1980 para designar uma
certa mudança que ocorreu na filosofia e em várias ciências humanas e sociais, e que estimulou a
dar uma atenção maior ao papel desempenhado pela linguagem, tanto nos próprios projetos
dessas disciplinas quanto na formação dos fenômenos que elas costumam estudar. [...] O giro
linguístico teve efeitos e implicações que vão bem mais além do simples aumento da ênfase dada
à importância da linguagem. Ele contribuiu para que fossem esboçados novos conceitos sobre a
natureza do conhecimento, seja ele o do sentido comum ou o científico, para permitir que
surgissem novos significados para aquilo que se costuma entender pelo termo ‘realidade’ – tanto
‘social’ ou ‘cultural’ quanto ‘natural’ ou ‘física’ – e a desenhar novas modalidades de investigação
proporcionando outro contexto teórico e outros enfoques metodológicos” (Gracia, 2005, p. 19-20).
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2 “Um nome não é uma palavra aleatória ou qualquer. Ele sempre quer dizer alguma coisa e sua
relação com a significação é complexa. Dizer isso significa que a questão dos nomes e seus
significados sempre geraram muita polêmica e inquietação. As propriedades de um nome nem
sempre estão postas às claras, o que geralmente cria muita discórdia entre os filósofos e linguistas.
Quando pensamos em nome e no que ele significa logo nos vem à cabeça alguma designação.
Como se um nome servisse para designar as coisas, pessoas, lugares, etc. Enfim, como se ele
servisse para especificar algo que é nomeado. Especificar ou designar algo quer dizer separar
alguma coisa para lhe dar destaque. Para lhe conferir uma ‘certa’ exclusividade de tratamento,
quero dizer, para se referir a algo sem recorrer a alguma interferência que um objeto pode ter em
outro” (Moreira, 2010, p. 2914).
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para o domínio de uma raça ou de uma classe sobre outra, podendo ser usado
tanto a favor como contra a discriminação racial”. Contudo, o fator biológico
representa um entre outros critérios (religiosos, geográficos, por exemplo)
adotados ao longo da história a fim de justificar posturas discriminatórias e
políticas de segregação.
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Cupani (2011, p. 14) nota que “pensamos e valoramos cada vez mais em função de
categorias tecnológicas. A mentalidade e a atitude tecnológicas são fáceis de
advertir, bastando reparar no uso cada vez mais disseminado de expressões como
‘programar-se’ para tal ou qual coisa”. Soma-se a esse repertório palavras como
“rede” de contatos, "conectar-se” com os amigos, entre outras. De forma análoga,
a tecnologia “se apodera imperiosamente de nossa terminologia mais importante.
Ela redefine ‘liberdade’, ‘verdade’, ‘inteligência’, ‘fato’, ‘sabedoria’, ‘memória’,
‘história’ – todas as palavras com que vivemos. E ela não para de nos contar. E nós
não paramos para perguntar” (Postman, 1994, p. 18).
3 Por ideologia entende-se aqui toda predisposição (disciplinar) a uma certa forma de ser e existir.
Assim, o idioma é ideologia porque “divide o mundo em sujeitos e objetos. Indica que eventos
devem ser vistos como processos e como coisas. Ele nos instrui do tempo, do espaço e do número
e forma nossas ideias de como estamos em relação à natureza e aos outros” (Postman, 1994, p.
129).
4 Nemer parte dos ensinamentos de Paulo Freire (2018, p. 46) que, entre outros aspectos, considera
a prescrição “um dos elementos básicos na mediação opressores-oprimidos [...]. Toda prescrição
é a imposição da opção de uma consciência a outra. Daí, o sentido alienador das prescrições que
transformam a consciência recebedora no que vimos chamando de consciência ‘hospedeira’ da
consciência opressora. Por isto, o comportamento dos oprimidos é um comportamento prescrito.
Faz-se à base de pautas estranhas a eles – as pautas dos opressores”.
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p. 29): “[...] as relações de poder, base das instituições que organizam a sociedade,
são amplamente constituídas na mentalidade das pessoas através de processos de
comunicação”, de modo que “a moldagem de mentalidades é uma forma mais
decisiva e duradoura de dominação do que a subordinação de grupos por
intimidação ou violência”. Desse modo, concebidas predominantemente a partir
das matizes culturais do Norte global, as TICs atuam como estruturas de Soft
Power, instituindo no Sul um espaço de afirmação de seus interesses. Segundo o
ITS (2016, p. 4), “os países no Sul Global são basicamente consumidores, e não
fornecedores, das tecnologias que estruturam o Big Data, o que, em teoria, pode
fazer com que essas tecnologias não sejam tão adequadas às suas necessidades
específicas”. Para Kwet (2021, n. p.), “vivemos em um mundo onde o colonialismo
digital corre o risco de tornar-se uma ameaça para o Sul Global tão significativa e
de longo alcance quanto o colonialismo clássico foi nos séculos anteriores”.
5 Com o desenvolvimento das redes telemáticas durante a segunda metade do século XX, surge o
conceito de ciberespaço, “marcado pela contracultura e por ideais libertários que, entre outros
aspectos, fomentaram a licenciosidade para transgredir o status quo, o que pressupõe a
legitimidade para, entre outras práticas, agir anonimamente e criar identidades e vidas
alternativas. Comunicar-se sob condição anônima ou mesmo tornar-se outra persona, constituem
práticas que se tornaram comuns e, por vezes, admitidas como importantes ou mesmo
necessárias ao convívio no Ciberespaço. (Arrabal, 2022, p. 211).
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Mesmo que o fenômeno das bolhas6 digitais revele alguma relação com as
dinâmicas identitárias, ocorre que a facilidade, a instantaneidade e a
instrumentalização algorítmica o tornam diferente da sociabilidade cujos valores
são historicamente sedimentados. Bauman (2007, p. 9) destaca que “a exposição
dos indivíduos aos caprichos dos mercados de mão-de-obra e de mercadorias
inspira e promove a divisão e não a unidade”, em um contexto tecno-ideológico a
partir do qual “a ‘sociedade’ é cada vez mais vista e tratada como uma ‘rede’ em
vez de uma ‘estrutura’ [...]: ela é percebida e encarada como uma matriz de
conexões e desconexões aleatórias e de um volume essencialmente infinito de
perturbações possíveis”.
6 O termo “bolha” se tornou comum para referir processos e recursos digitais de personalização,
orientados a convergência de interesses pessoais. Pariser (2012, n. p.) afirma que “O código básico
no seio da nova internet é bastante simples. A nova geração de filtros on-line examina aquilo de
que aparentemente gostamos – as coisas que fazemos, ou as coisas das quais as pessoas parecidas
conosco gostam – e tenta fazer extrapolações. São mecanismos de previsão que criam e refinam
constantemente uma teoria sobre quem somos e sobre o que vamos fazer ou desejar a seguir.
Juntos, esses mecanismos criam um universo de informações exclusivo para cada um de nós – o
que passei a chamar de bolha dos filtros – que altera fundamentalmente o modo como nos
deparamos com ideias e informações”.
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Rajagopalan (2012) observa que as pesquisas das áreas humanas e sociais foram (e
continuam sendo) orientandas pelo rigor dos métodos das ciências exatas e
biológica. Nesse sentido:
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7 Para Sodré (2029, p. 878), no Brasil, “os ideais da República se associam aos ideais eugênicos
europeus. A partir disso, derivam modos de vida baseados em julgamentos e preferências que se
repetem nas seleções de emprego, na maneira de tratar e na maneira de lidar entre as pessoas.
Penso, por meio desse paradigma baseado numa consciência da branquitude, a consequência de
grande parte dos problemas de repulsão e aproximação nas relações sociais. A forma da
escravidão está incrustada na forma social brasileira.”
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Appiah (2018b, n. p.) adverte que a própria categoria “racista” carrega o germe da
exclusão, na medida que se apresenta como um rótulo social negativo. Observa o
filósofo que “ser racista” não é uma opção de vida, trata-se de um constructo
histórico que (in)forma pensamentos e ações, de modo que os problemas
decorrentes dos estigmas ético-raciais não encontram solução no fomento de mais
estigmas. Sugere, portanto, uma abordagem comunicativa voltada a descrever os
fenômenos, esclarecendo as implicações discriminatórias e excludentes que
decorrem das práticas racistas.
Souza (1983, p. 17-18) considera que “a descoberta de ser negra, é mais do que a
constatação do óbvio”. Por um lado, “Saber-se negra é viver a experiência de ter
sido massacrada em sua identidade, confundida em suas expectativas, submetida
a exigências, compelida a experiências alienadas”, por outro “é também, e
sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em
suas potencialidades”. Nesse sentido, o combate resiliente ao racismo não se reduz
8 Nesse sentido verifica-se, por exemplo, o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948, ao considerar que “reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros
da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça
e da paz no mundo” (DUDH, 1948).
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Considerações finais
Reconhecer que as tecnologias não são neutras, não é o mesmo que conferir a elas
uma orientação essencial determinista. Qualquer artifício técnico pode ser
transformado e ressignificado. Nesse sentido, Nemer (2021, n. p.) refere-se a
“tecnologia mundana” como os “processos em que oprimidos se apropriam de
tecnologias cotidianas – artefatos, operações e espaços tecnológicos – e as utilizam
para aliviar a opressão de suas vidas”.
Mesmo que seja possível afirmar que o racismo prejudica a todos, suas
consequências nefastas atingem de forma muito mais contundente àqueles cuja
identidade foi historicamente negada. Reconhecer a diversidade como valor, sem
9 Por ocasião da Lei Áurea, “a absorção do negro na vida nacional, enquanto cidadão, não era uma
questão fundamental. Tanto que, ainda que houvesse alguns abolicionistas defendido uma
reforma de base, especialmente na estrutura agrária do país a fim de que os recém libertados
pudessem administrar suas vidas dentro das suas ocupações habituais – a lavoura -, outros
lutavam para a indenização aos donos de escravos que seriam ‘lesados’ em sua propriedade com
a abolição” (Bertúlio, 1989, p. 3).
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Referências
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Sobre o autor
Alejandro Knaesel Arrabal
Doutor em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade do Vale dos Sinos – UNISINOS. Mestre em
Ciências Jurídicas pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.
Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Regional de
Blumenau – FURB. Professor e pesquisador dos Programas de
Mestrado em Direito (PPGD) e Administração (PPGAd) da FURB. Líder
do grupo de pesquisa Direito, Tecnologia e Inovação – DTIn (CNPq-
FURB). Vice-líder do Grupo de Pesquisa SINJUS - Sociedade, Instituições
e Justiça (CNPq-FURB). Membro do grupo de pesquisa
Constitucionalismo, Cooperação e Internacionalização - CONSTINTER
(CNPq-FURB). Membro da AGIT – Agência de Inovação Tecnológica da
Universidade Regional de Blumenau – FURB.
_________________
Nota
O artigo é um desdobramento de estudos e debates vinculados ao Grupo de
Pesquisa SINJUS - Sociedade, Instituições e Justiça.
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50276
dossiê
Submetido em 28/07/2023
Aceito em 28/11/2023
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ISSN 2447-6684
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348 Ygor Leonardo de Sousa - Hugo Cavalcanti Melo Filho
Resumo
O presente trabalho tem por objetivo averiguar as condições do jovem negro brasileiro no
mundo do trabalho. Há diversas pesquisas abordando a situação da juventude negra
brasileira nas áreas da educação, penal, cultural, esportiva. Entretanto, constata-se uma
reduzida exploração no campo científico de apontamentos acerca da empregabilidade, as
possibilidades existentes e suas atuais condições. Nesse sentido, é oportuno o exame da
hipótese de que, no mundo do trabalho, há uma reprodução do racismo brasileiro,
restando a essa população a informalidade, o trabalho análogo à escravidão e, quando
existe a possibilidade da formalidade, a ocupação das profissões mais perigosas.
Fundamentado a partir das reflexões teóricas provenientes da Teoria Social Crítica do
Direito do Trabalho e da Interseccionalidade, realizou-se uma análise qualitativa e
quantitativa de dados de censos oficiais abordando o regaste de trabalhadores em
condições análogas à de escravo e com maior número de acidentes de trabalho para
comprovação da hipótese. Dessa forma, a partir interseccionalidade entre idade, gênero,
raça e classe, pode-se concluir de que a população negra, especialmente a juventude negra
e as mulheres, é a mais vulnerabilizada.
Palavras-chave
Mundo do trabalho. Juventude negra. Interseccionalidade.
Resumen
El presente trabajo tiene como objetivo investigar las condiciones de los jóvenes negros
brasileños en el mundo del trabajo. Hay varios estudios que abordan la situación de la
juventud negra brasileña en las áreas de educación, penal, cultural, deportiva. Sin
embargo, existe poca exploración en el ámbito científico de apuntes sobre la empleabilidad,
las posibilidades existentes y sus condiciones actuales. En ese sentido, es oportuno
examinar la hipótesis de que, en el mundo del trabajo, se reproduce el racismo brasileño,
dejando a esa población en la informalidad, trabajo análogo a la esclavitud y, cuando existe
la posibilidad de formalidad, ocupación de las profesiones mas exigentes peligrosas. A
partir de reflexiones teóricas surgidas de la Teoría Social Crítica del Derecho del Trabajo y
la Interseccionalidad, se realizó un análisis cualitativo y cuantitativo de datos censales
oficiales, abordando el rescate de trabajadores en condiciones similares a la esclavitud y
con mayor número de accidentes laborales para comprobar la hipótesis. Así, a partir de la
interseccionalidad entre edad, género, raza y clase, se puede concluir que la población
negra, especialmente los jóvenes y mujeres negros, es la más vulnerable.
Palabras-clave
Mundo del trabajo. Juventud negra. Interseccionalidad.
Abstract
The present work aims to investigate the conditions of young black Brazilians in the world
of labor. There are several studies addressing the situation of Brazilian black youth in the
areas of education, criminal, cultural, sports. However, there is little exploration in the
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Uma discussão urgente: as possibilidades da juventude negra no mundo do trabalho brasileiro 349
sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica
scientific field of notes about employability, existing possibilities and their current
conditions. In this sense, it is opportune to examine the hypothesis that, in the world of
work, there is a reproduction of Brazilian racism, leaving this population to remain
informal, work analogous to slavery and, when there is a possibility of formality,
occupation of the most demanding professions dangerous. Based on theoretical reflections
arising from the Critical Social Theory of Labor Law and Intersectionality, a qualitative and
quantitative analysis of official census data was carried out, addressing the rescue of
workers in conditions similar to slavery and with a greater number of accidents work to
prove the hypothesis. That way, based on the intersectionality between age, gender, race
and class, it can be concluded that the black population, especially black youth and women,
is the most vulnerable.
Keywords
World of labor. Black youth. Intersectionality.
Introdução
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350 Ygor Leonardo de Sousa - Hugo Cavalcanti Melo Filho
Por exemplo, sabe-se que, mesmo com a queda nas taxas de desemprego no último
trimestre de 2022, a população de idade entre 18 e 24 anos segue sendo a mais
atingida pelo desemprego, com 19,3% de desempregados. Somado a isso, as
pessoas de cor branca permaneceram registrando a maior estimativa (58,5%) de
ocupação de emprego, no segundo trimestre de 2022, conforme os dados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Mostrando assim que até
mesmo em situações de melhoria na ocupação de empregos, a juventude negra
brasileira permanece sendo a mais atingida pelo desemprego.
Pode-se dizer que isso ocorre em relação a toda população negra, incluindo
homens e mulheres negras adultos, pois conforme explicita a doutora Cida Bento,
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sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica
Além disso, pode-se afirmar que o desejo por um emprego digno perpassa todas
as juventudes, especialmente a juventude negra, na qual as gerações mais adultas
depositam expectativas de melhoria da situação socioeconômica.
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sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica
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354 Ygor Leonardo de Sousa - Hugo Cavalcanti Melo Filho
Gráfico 1
Resgatados – Raça
Indígena
3%
Amarela
12%
Branca Parda
21% 50%
Preta
14%
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Uma discussão urgente: as possibilidades da juventude negra no mundo do trabalho brasileiro 355
sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica
Nota-se, assim, que metade dos resgatados são pardos que somados aos 14% de
negros, perfazem 64% dos resgatados, o que demonstra que a negritude do país
contribui para a maioria dos resgatados do trabalho análogo à escravidão, bem
como o local de precariedade no mundo do trabalho brasileiro ocupado pela
população negra.
Gráfico 2
Resgatados – Perfil etário e de gênero
Feminino Masculino
>60
55-59
50-54
45-49
40-44
35-39
30-34
25-29
18-24
<18
A partir dos dados acima, é possível notar que a juventude masculina, entre 18 e
29 anos, foi a principal força de trabalho empregada para o trabalho em condições
análogas à de escravo nas últimas duas décadas, o que possibilita afirmar que a
população negra é a principal força de trabalho em condições extenuantes.
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356 Ygor Leonardo de Sousa - Hugo Cavalcanti Melo Filho
Figura 1
Os percentuais de participação das diferentes ocupações nas notificações de acidente no
período de 2012-2022
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Uma discussão urgente: as possibilidades da juventude negra no mundo do trabalho brasileiro 357
sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica
Gráfico 3
Ocupações mais frequentemente citadas em notificações de acidente de trabalho no
período de 2012-2022
313.654
307.115
181.121
137.852
TÉCNICO DE ALIMENTADOR DE FAXINEIRO SERVENTE DE
ENFERMAGEM PRODUÇÃO OBRAS
Por conseguinte, passa-se a examinar o perfil racial das quatro profissões com mais
comunicações de acidente de trabalho, de 2012 a 2022, para se constatar se há
presença majoritária da juventude negra nessas profissões, aqui consideradas
como as mais perigosas do mercado formal, na última década.
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Gráfico 4
Auxiliares e Técnicos de Enfermagem segundo Cor ou Raça – Brasil
Indígena
1%
Branca
Parda 38%
46%
Preta
13%
Amarela
2%
Fonte: Relatório final da Pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil - FIOCRUZ/COFEN
Gráfico 5
Auxiliares e Técnicos de Enfermagem segundo Gênero
NR
0%
Masculino
15%
Feminino
85%
Nota-se, a partir dos dados disponibilizados nos gráficos, que a maioria dos
técnicos de enfermagem pertence à população negra, pois 44,5% declaram-se
pardos e 12,9% declaram-se pretos. Nesse sentido, para esta análise, importa sejam
somados os pretos e pardos, com o que esse percentual atinge 57,4% da categoria.
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Uma discussão urgente: as possibilidades da juventude negra no mundo do trabalho brasileiro 359
sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica
No entanto, quando analisados os dados que mostram a faixa etária com mais
notificações de acidentes de trabalho apurados no país, considerado o universo de
trabalhadores com vínculo de emprego, incluídos também os técnicos de
enfermagem, no período de 2012-2022, percebe-se a maior incidência na faixa de
18 a 29 anos e do gênero masculino.
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Gráfico 6
Notificações de Acidente de Trabalho por idade e gênero
Feminino Masculino
>60
55-59
50-54
45-49
40-44
35-39
30-34
25-29
18-24
<18
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Uma discussão urgente: as possibilidades da juventude negra no mundo do trabalho brasileiro 361
sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica
Gráfico 7
Proporção de ocupados negros e não negros em ocupações selecionadas Regiões
Metropolitanas
22,8
20,4
19,5
17,9
17
15,6
11,1
9,8
9,6
8,6
7
5,6
3,9
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362 Ygor Leonardo de Sousa - Hugo Cavalcanti Melo Filho
Gráfico 8
Proporção de ocupados negros e não negros em ocupações selecionadas Regiões
Metropolitanas
67,4
62,2
61,9
61,2
60,8
55,6
54,5
52,7
52,6
38,6
36,2
29,4
23,3
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Uma discussão urgente: as possibilidades da juventude negra no mundo do trabalho brasileiro 363
sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica
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364 Ygor Leonardo de Sousa - Hugo Cavalcanti Melo Filho
Nesse sentido, mesmo tendo sido eleito objeto prioritário do campo jurídico,
percebe-se ausência de pesquisas refletindo acerca da sua própria eficiência no
plano fático enquanto resposta jurídica para os trabalhadores. Levando-nos ao
campo crítico do Direito do Trabalho e a necessidade de reconstruí-lo para
proteger efetivamente todas as pessoas que necessitam viver de um trabalho.
Por essa razão, elegeu-se a investigação interseccional para revelar o caráter fático
do trabalho livre e subordinado alcançado pelo Direito do Trabalho brasileiro, isto
é, de qual maneira a proteção legal tem ocorrido, pois se não alcança mais a maioria
da população com as diversas formas de trabalho existente no neoliberalismo,
tampouco sua própria existência alcança toda a população do mercado formal de
maneira igual, em especial a população negra e jovem.
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Gráfico 9
Taxa de desocupação, por cor ou raça, segundo os níveis de instrução- Brasil- 2021
20,8
17,6
16,6
16,3
15,2
13,4
11,3
10,5
8,3
6,6
TOTAL SEM INSTRUÇÃO ENSINO ENSINO MÉDIO ENSINO SUPERIOR
OU ENSINO FUNDAMENTAL COMPLETO OU COMPLETO
FUNDAMENTAL COMPLETO OU ENSINO SUPERIOR
INCOMPLETO ENSINO MÉDIO INCOMPLETO
INCOMPLETO
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sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica
Gráfico 10
Rendimento-hora médio real do trabalho principal das pessoas ocupadas, por cor ou
raça, segundo o nível de instrução- Brasil- 2021
34,4
24,5
19
11,2
13
9,9
9,9
9,2
8,2
7,3
Pode-se dizer que deve ser afastada a hipótese de que os cargos de ocupação no
trabalho formal analisados no presente artigo são ocupados meramente pelo nível
de instrução da população negra. Prosseguir nessa hipótese é um equívoco, pois é
de se observar que a população negra, mesmo com o nível de instrução
semelhante, encontra-se mais desocupada e recebe menos.
Considerações finais
Longe de um ponto final no debate que precisa ser feito, o presente artigo
configura a tentativa de ampliar a discussão acerca do racismo no mundo do
trabalho brasileiro, a partir da teoria jurídico-trabalhista crítica e sob a ótica da
interseccionalidade. A opção metodológica deste artigo foi a de utilização de dados
oficiais advindos do mercado de trabalho formal, uma vez que o debate sobre a
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368 Ygor Leonardo de Sousa - Hugo Cavalcanti Melo Filho
Impõe-se, assim, no atual cenário brasileiro, a exemplo do que se fez com a Lei
14.611/2023, produzida na busca pela igualdade salarial entre homens e mulheres,
e da decisão judicial do Tribunal Superior do Trabalho que reconheceu o racismo
estrutural, o avanço nas proposições acerca das desigualdades raciais trabalhistas,
nas esferas de atuações dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), para
a desconstrução do permanente estado da desigualdade racial.
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Uma discussão urgente: as possibilidades da juventude negra no mundo do trabalho brasileiro 369
sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica
Referências
ABDALA, Vitor. Desemprego é maior entre mulher e negros. Agência Brasil, maio
de 2023, Rio de Janeiro. Disponível em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-05/desemprego-e-maior-
entre-mulheres-e-negros-diz-ibge. Acesso em: 22 jun. 2023.
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen,
2019. E-book Kindle.
BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. [s./l.]: IBGE, 2023.
Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/2421/pnact_2023_1tri.pdf.
Acesso em: 23 nov. 2023
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370 Ygor Leonardo de Sousa - Hugo Cavalcanti Melo Filho
content/uploads/2023/06/OLHERacaEGenero-Diag-v7-R05-26-06-2023.pdf.
Acesso em 28 jun. 2023.
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sob a perspectiva da interseccionalidade e da teoria jurídico-trabalhista crítica
Sobre os autores
Ygor Leonardo de Sousa Araujo
Mestrando em Direito na Universidade Federal de Pernambuco.
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.
Participação e atuação principalmente nos seguintes temas: uberização
do trabalho, direito do trabalho, processo do trabalho, direitos
humanos, reforma trabalhista e acesso à justiça.
_________________
Agradecimentos
Participantes do Grupo de Pesquisa Direito do Trabalho e Teoria Social Crítica
da UFPE.
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.49674
dossiê
Submetido em 08/07/2023
Aceito em 11/01/2024
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ISSN 2447-6684
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374 Luciana Costa Fernandes
Resumo
Neste artigo, debato como foram construídas as narrativas de dois juízes, em um caso que
relatou a morte de um jovem negro preso e criminalizado como “traficante”, no contexto
de uma operação policial em uma favela da zona norte do Rio de Janeiro, não obstante já
estivesse sem vida. Analiso duas decisões e reflito sobre o papel que categorias jurídico-
normativas tiveram - como sistematicamente têm - para a construção dos pactos que
sustentam a hermenêutica jurídica da branquitude e o solipsismo branco. Bem como a
maneira como têm contingenciado a atuação da magistratura, nas tramas destas incursões,
produzindo discursivamente os repertórios judiciais que concluem a ontologia da
antinegritude, ao passo que mantém preservada a supremacia branca como eixo desta
instituição.
Palavras-chave
Operações policiais. Branquitude. Antinegritude. Política de drogas.
Resumen
En este artículo discuto cómo se construyeron las narrativas de dos jueces, en un caso que
denunció la muerte de un joven negro, quien fue detenido y criminalizado como
“narcotraficante”, en el contexto de un operativo policial en una favela. en la zona norte de
Río de Janeiro, a pesar de estar ya sin vida. Analizo dos decisiones y reflexiono sobre el
papel que las categorías jurídico-normativas tuvieron -como lo tienen sistemáticamente-
en la construcción de pactos que sustentan la hermenéutica jurídica de la blanquitud y el
solipsismo blanco. Así como la forma en que han restringido la actuación del poder
judicial, en las tramas de estas incursiones, produciendo discursivamente los repertorios
judiciales que completan la ontología de la antinegritud, conservando la supremacía blanca
como eje de esta institución.
Palabras-clave
Operaciones policiales. Blanquitud. Antinegritud. Política de drogas.
Abstract
In this article, I discuss how the narratives of two judges were constructed, in a case that
reported the death of a young black man, who was arrested and criminalized as a “drug
dealer”, in the context of a police operation in a favela in the northern zone of Rio de
Janeiro. Janeiro, despite already being lifeless. I analyze two decisions and reflect on the
role that legal-normative categories had - as they systematically have - in the construction
of pacts that support the legal hermeneutics of whiteness and white solipsism. As well as
the way in which they have restricted the performance of the judiciary, in the plots of these
incursions, discursively producing the judicial repertoires that complete the ontology of
anti-blackness, while preserving white supremacy as the axis of this institution.
Keywords
Police operations. Whiteness. Antiblackness. Drug policy.
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Pactos narcísicos, violência antinegra e a atuação da magistratura na criminalização de um 375
homem morto em uma operação policial no Rio
Introdução
1 Embora não tenha espaço para desenvolver com maior densidade a construção da categoria
“território negro”, lanço mão aqui da citação de Raquel Rolnik, cuja produção é central para este
trabalho: “Usamos para isso a noção de território urbano, uma geografia feita de linhas divisórias
e demarcações que não só contém a vida social mas nela intervém, como uma espécie de notação
das relações que se estabeleceram entre os indivíduos que ocupam tal espaço. A história da
comunidade negra é marcada pela estigmatização de seus territórios na cidade: se, no mundo
escravocrata, devir negro era sinônimo de subumanidade e barbárie, na República do trabalho
livre, negro virou marca de marginalidade. O estigma foi formulado a partir de um discurso
etnocêntrico e de uma prática repressiva; do olhar vigilante do senhor na senzala ao pânico do
sanitarista em visita ao cortiço; do registro esquadrinhador do planejador urbano à violência das
viaturas policiais nas vilas e favelas. Para a cidade, território marginal é território perigoso,
porque é daí, desse espaço definido por quem lá mora como desorganizado, promíscuo e imoral,
que pode nascer uma força disruptiva sem limite. Assim se institui uma espécie de apartheid
velado que, se por um lado, confina a comunidade à posição estigmatizada de marginal, por
outro, nem reconhece a existência de seu território, espaço-quilombo singular” (RONILK, 2010,
p. 88-89).
2 O livro “Políticas da Inimizade” de Achille Mbembe (2020) é um dos mais centrais para a algumas
das minhas atuais formulações sobre política de drogas brasileira, especialmente com o que o
projeto das operações policiais no Rio tem desvelado. Mbembe resgata as bases fanonianas e tece
as relações com o estágio atual do neoliberalismo a partir da categoria do phármakon, para
destacar o modo como as guerras, desde o terror colonial, tornaram-se sacramentos - e, daí,
pensar em novas interfaces destas guerras coloniais. Como ele sintetiza na introdução: “a guerra
se inscreveu como fim e como necessidade, não só na democracia, mas também na política e na
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Pactos narcísicos, violência antinegra e a atuação da magistratura na criminalização de um 377
homem morto em uma operação policial no Rio
A categoria “branquitude” vem tomando a cena dos debates sobre relações raciais
no Brasil, inclusive nas análises que têm o direito e o exercício do poder punitivo
como ponto de partida. Como dispositivo analítico, reflexões que a tomam como
eixo podem produzir deslocamentos epistêmicos, passando a desnudar os
organogramas de privilégios brancos que marcam instituições, práticas e sujeitos,
invertendo a tradição do chamado “negro-tema” ao “branco-tema” (Ramos,
1995[1957]). E que, por esse motivo, contribuem para a fragmentação do mito da
democracia racial e com a ontologização dos contratos raciais4 que fundam nossas
hierarquias de poder e a partir dos quais as elites de classes brasileiras ainda se
sustentam.
Uma primeira nota sobre a redação deste trabalho diz respeito ao fato de que
considero que é a “antinegritude” chave que “dá conta” (Vargas, 2020) de
descrever as dinâmicas que decorrem de um sistema mais amplo de
desconsideração da humanidade de corpos, territórios, sujeitos, subjetividades,
marcadas racialmente, que foram e são implantados pelas diversas interfaces das
colonialidades5. Como proposto por João Vargas - que é o autor que escreve sobre
4 O conceito de “contrato racial”, tal como trabalhado por Charles Mills, é importante neste debate:
“[...] uma sociedade organizada racialmente, um Estado racial e um sistema jurídico racial, onde
o status de brancos e não-brancos é claramente demarcado, quer pela lei, quer pelo costume. E o
objetivo desse Estado, em contraste com o estado neutro do contratualismo clássico, é, inter alia,
especificamente o de manter e reproduzir essa ordem racial, assegurando os privilégios e as
vantagens de todos os cidadãos integrais brancos e mantendo a subordinação dos não-brancos.
(Mills, 1997, p. 13-14).
5 O termo colonialidade traz em si a ideia da permanência e longa duração do fenômeno que
descreve. Utilizo neste artigo alinhando-me à seguinte reflexão: “(...) se a colonialidade for
entendida como mera “continuação da colonização” depois de uma “independência formal”, é
um conceito de pouco interesse, um mero substantivo da expressão “situação colonial” de
Georges Balandier. Perde-se a dimensão de longa duração da colonialidade, nascida com a
expansão capitalista antes da colonização, atravessando o período colonial para persistir ainda
hoje em vastas partes do planeta. Simplifica excessivamente o que foram as “independências
formais”, visto que, nas Américas, as independências foram independências sem descolonização
ao passo que os colonos criaram os Estados das suas próprias colônias, isto é, Estados coloniais”
(grifos do autor) (Cahen, 2018, p. 51-52). Tenho construído minha trajetória de reflexão sobre as
inscrições das colonialidades nas instituições jurídicas, a partir do pensamento decolonial
(Fernandes, 2022) - o que não poderei, com a densidade que demanda e em face dos limites deste
trabalho, desenvolver melhor. Mas deixo anotado que o plural marca os vários espectros, que
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378 Luciana Costa Fernandes
Uma segunda nota que importa ser feita é que esta inversão epistemológica para
os estudos da branquitude vem para o campo, mais específico, das reflexões
criminológicas, como caminho possível desde o legado de produções que, nas
últimas décadas, tomaram raça como chave analítica para a reflexão sobre
violência policial e sistema de justiça criminal (Flauzina, 2008). Nesse sentido,
considero que, muito embora seja crescente o número de produções que destacam
que a antinegritude (ou o racismo, como percebo vem mais sendo nomeado) é o
que, em essência, modula contra quem e como operam as agências do sistema
penal, encerrando desde a sua origem um verdadeiro programa de extermínio
antinegro, ainda está incipiente o campo de nomeações das estruturas e dos pactos
da branquitude que informam o agir das burocracias estatais brasileiras (Pires,
2017; Prando, 2018).
refuto perceptíveis em nossas burocracias: a do poder (Quijano, 2000), saber (Lander, 2005), ser
(Maldonado-Torres, 2008) e gênero (Lugones, 2008).
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Pactos narcísicos, violência antinegra e a atuação da magistratura na criminalização de um 379
homem morto em uma operação policial no Rio
Tenho, então, a intenção de aderir este artigo a este tal movimento e, antes de
trabalhar com seus efeitos, faço outra breve consideração sobre o fato de que estou
mobilizando o vocabulário “branquitude”. Uso esta chave como Cida Bento o fez
quando da tradução do conceito whiteness e abertura dos chamados “estudos sobre
branquitude”, que remontava à década de 90 nos Estados Unidos, e emergia uma
década depois no Brasil. A autora a definia como “traços da identidade racial do
branco brasileiro a partir das ideias sobre branqueamento” (Bento, 2002, p. 29) e
complexificou sua possibilidade analítica trabalhando com seus efeitos, reflexão
que fez espraiar as possibilidades de seu uso - dentre os quais destacarei em
seguida o pacto narcísico. Tendo se tornado a principal referência nesses estudos,
a opção de Bento pela palavra “branquitude” acabou sendo - como ainda é -
reproduzida por diferentes pesquisadoras/es e aqui estou aderindo a esta opção6.
6 Também ganhou a cena destes estudos a categoria “branquidade”, que acabou guardando
sinonímia de sentidos com o vocabulário “branquitude”. Lourenço Cardoso recupera essa
história: “Diante disso, fica a questão, se ela tivesse optado por utilizar o termo branquidade, faria
uso do termo branquidade? A resposta é sim. Naquela ocasião os termos não apareciam como
distintos e sim como sinônimos, em nossa literatura científica. Dois anos depois, do livro de
Carone e Bento (2002) o termo branquitude também se coloca nas publicações acadêmicas
brasileiras como tradução de uma palavra de origem inglesa Whiteness (Ware, 2004). O termo da
mesma forma foi traduzido por “branquidade”. Contudo, a opção ainda mais utilizada pelos
pesquisadores da área persiste em ser “branquitude” (Oliveira, 2007; Cardoso, 2008; Schucman,
2012; Lopes, 2013). Dessa forma se evidencia o uso dos termos “branquitude” e “branquidade”
como sinônimos.” (Cardoso, 2014, p. 101).
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Interesso-me, ainda, por nomear um dos processos que penso dão ainda maior
densidade ao que a expressão “branquitude” assume, tal como eixo de análise, em
torno da qual os fenômenos institucionais podem ser estudados. Assim, me refiro
mais diretamente ao que Cida Bento nomeia como “pacto narcísico da
branquitude” que, em suas palavras, também se expressa discursivamente:
Bento cria esta categoria refletindo sobre o que pessoas brancas, que foram por ela
entrevistadas, disseram a respeito de desigualdades raciais, concluindo que
silenciamentos também estão amalgamados em um conteúdo de “amor à si
mesmo” que é trabalhado na psicanálise como mecanismo de “(auto)preservação”.
Quer dizer, de mantença de laços entre pares (no caso, daqueles que desfrutam
diretamente dos subsídios da supremacia branca) e que se sustentam através da
rejeição da sua antítese, nesse caso, da possibilidade de existência de corpos
negros. Como ela afirma:
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Pactos narcísicos, violência antinegra e a atuação da magistratura na criminalização de um 381
homem morto em uma operação policial no Rio
Para este artigo, a análise dos pactos narcísicos implica em pensar o caso da
atuação da magistratura, atribuindo uma legibilidade jurídico-normativa às
operações, como parte dos constructos ideológicos que sustentam vantagens
materiais e simbólicas, no organograma dos poderes político, econômico e social,
aos brancos (e à brancura, ideologicamente inculcada) em detrimento daquilo que
é referido como negro (nesse caso, os corpos e os territórios construídos a partir da
inimizade antinegra que, também atores que configuram discursivamente a guerra
contra as drogas em favelas da zona norte, implantam). E que me parecem ter
estado construídos em um modo de sustentação típica da branquitude, na linha do
que conclui Camila Moreira:
7 Mobilizo o conceito de governança racial para pensar na violência antinegra praticada pelas
polícias no Brasil, tal como construído por Adilson Moreira: “a ação policial é uma ação estatal
informada por interesses do grupo racial dominante em reproduzir formas de controle
destinadas a manter um sistema de privilégios raciais que sustenta a hegemonia branca no nosso
país. Creio que esse conceito de governança racial é relevante porque exemplifica como a raça
informa diversas instâncias da vida social e da atuação das instituições sociais. Observamos o
surgimento de uma nova forma de governança racial nas últimas décadas, sendo que ela utiliza
dois mecanismos para manter a exclusão social: o genocídio da juventude negra e o
encarceramento da população negra. Como alguns autores afirmam, o racismo é um sistema de
dominação que adquire novos aspectos em diferentes momentos históricos e contextos sociais. O
caso Rafael Braga é um exemplo do que estou chamando de governança racial. Ele começa com
a tradicional ação discriminatória da policia de voltar sua atenção especialmente a homens
negros, indivíduos que são condenados mesmo na falta de provas ou a partir de provas absurdas
(...) Ele foi preso meses depois sob outra alegação: a de ser um traficante. A decisão judicial é um
triste desfile de estereótipos descritivos e prescritivos utilizados contra negros, sendo que alguns
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382 Luciana Costa Fernandes
que são sustentadas especialmente pelos recursos da dogmática, que deixo apenas
como comentário introdutório neste trabalho8. Calcado nos pilares da zona do ser
e na cisão inconciliável com tudo aquilo que é referido à zona do não ser (Fanon,
2008), o direito pôde, desde a sua implantação quando da intrusão colonial,
oferecer um corpo técnico-acadêmico-dogmático que, no discurso
autoreferenciado da sua “generalidade” e “abstração”, foi instrumentalmente
mobilizado para a manutenção do pacto narcísico das elites que compunham as
agências que lhe davam forma. Como propõem Edmo de Jesus e Clarindo:
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Pactos narcísicos, violência antinegra e a atuação da magistratura na criminalização de um 383
homem morto em uma operação policial no Rio
Marcas essas que tendem a estar mais confabuladas nas previsões normativas, mas
que escancaram-se nas atividades de hermenêutica e aplicação do direito
cotidianamente. Em especial, nos termos de processos que, literalmente,
organizam o genocídio contra territorialidades e corporalidades negras faveladas,
sob a justificativa da guerra às drogas, cena que formula o caso concreto analisado
neste trabalho.
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Neste trabalho, estudo discursos que estão documentados em uma ação penal
pública10, que teve como origem a denúncia contra dois homens pelo crime de
associação para o tráfico de drogas (artigo 35, caput, da Lei 11.343/06) e foi
sentenciada no primeiro semestre de 2019, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio
de Janeiro. Desenvolvo, neste terceiro item, algumas notas sobre a metodologia da
etnografia documental, que mobilizo para estudá-lo, assim como do campo a qual
9 Em um dos mais clássicos artigos que trabalham com a chave da “hermenêutica jurídica da
branquitude”, Gleidson Dias analisa o caso das cotas raciais, pontuando como a interpretação
sobre classificações raciais, especificamente, tem sido revertida para atuações que sustentam o
racismo: “(...) a Hermenêutica Jurídica da Branquitude é o fenômeno pelo qual, em qualquer
possibilidade de interpretação, quando a matéria refere-se a questões raciais, a interpretação, na
enormidade das vezes, prejudicará o avanço do combate ao racismo. HJB é a base ideológica
(consciente ou inconsciente, direta ou indireta) que afeta os operadores jurídicos lato senso, isto
é, doutrinadores, ministros, desembargadores, juízes, promotores, defensores públicos,
advogados, delegados e servidores da Administração Pública. Ao analisarem e/ou produzirem
algum regramento e/ou posicionamento jurídico não raras vezes irão materializar uma das
formas do Racismo Institucional” (Dias, 2017). O letramento racial no debate sobre cotas e
operações policiais é bastante diverso, por isso vou tomar essas considerações como ponto de
partida, mas buscar ampliar em termos o conceito.
10 A qual integrou um dos 15 (quinze) casos, que estudei em minha tese de doutorado, de
“operações policiais” em territórios de favelas da zona norte do Rio de janeiro julgadas naquele
período relatado, e que trago neste trabalho já com reflexões que fiz e sistematizei após o depósito
definitivo, bem como de uma nova releitura e posição em relação ao marco teórico-metodológico.
Esta é uma ação penal que não tramitou com sigilo de justiça, estando no domínio público, mas
ainda assim utilizo apenas nomes fictícios e não cito dados de identificação da Vara onde
tramitou, bem como dos juízes/as responsáveis pelas decisões.
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Pactos narcísicos, violência antinegra e a atuação da magistratura na criminalização de um 385
homem morto em uma operação policial no Rio
inscrevo este debate, da antropologia das práticas de poder, para então partir para
a exploração mais direta dos elementos do caso concreto a partir dos marcos que
elaborei anteriormente.
11 No caso, uma operação policial de 2015; que chegou ao conhecimento do judiciário, no mesmo
ano, dois meses depois de acontecer; só foi julgada quatro anos mais tarde, em 2019; e está sendo
analisada em 2023.
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386 Luciana Costa Fernandes
Por fim, porque o caso está em uma ação mediada pelo aparelhamento do
judiciário, localiza-se no contexto das análises em/sobre burocracias estatais, em
um amplo campo de pesquisas que pode ser referido como “antropologia das
práticas de poder”. Lugar de produções sobre o Estado, particularmente das
“agências e agentes que compõem a dimensão organizacional e nela crêem”
(Rodrigues Castilho, et al, p. 13), desde onde se investigam as discursividades, os
compromissos, pactos, agenciamentos e, de forma ampla, as redes de pessoas que
dão forma às práticas de poder da administração pública. Quanto ao caso
específico da magistratura, esta é uma pesquisa sobre uma elite própria, dotada
“de capital sem par: a autoridade de descrever/prescrever a legitimidade de certas
relações em detrimento de outras” (Vianna, 2014, p. 44).
12 O primeiro depoimento policial que é assumido como referência foi: “que estava em operação na
Comunidade Praia da Rosa, sendo que sua equipe ficou responsável por adentrar no referido
local; que, no interior da comunidade, ao chegar em uma quadra esbatida, percebeu que os
indivíduos que ali estavam empreenderam fuga; que, diante disso, a guarnição seguiu os rastros
dos fugitivos até chegarem a uma casa, cuja varanda possuía diversas anotações referentes à
facção criminosa que dominava a região, qual seja, Terceiro Comando; que, logo em seguida, os
policiais ouviram alguns elementos utilizando jargões típicos de integrantes do tráfico de drogas;
que, inclusive, ouviram o nome do líder da organização criminosa da região, conhecido como
'Leo Malucão'; que, ao avistarem os indivíduos, o depoente iniciou a abordagem daqueles
elementos, momento em que o corréu falecido apontou uma arma de fogo em direção à
guarnição; que, neste momento, efetuou um disparo na direção do acusado Jeferson, levando-o a
Óbito; que, a equipe policial, rendeu o réu Maurício; que os demais indivíduos empreenderam
fuga; que, no local, foi apreendida uma arma de fogo com um dos elementos, mas não sabe dizer
com quem; que não se recorda se o acusado Maurício disse que integrava o tráfico de drogas (..)"
“(..) que entraram na comunidade Praia da Rosa e houve uma troca de tiros entre o grupo que o
acusado integrava e a equipe policial; que um indivíduo apontou uma alma para o Tenente; que,
nesse momento o Tenente deu um tiro em um dos elementos; que socorreram a pessoa que foi
alvejada; que a comunidade da Praia da Rosa é comandada pela facção denominada Terceiro
Comando; que se recorda de ouvir jargões do tráfico; que, antes dos disparos, o depoente ouviu
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Pactos narcísicos, violência antinegra e a atuação da magistratura na criminalização de um 387
homem morto em uma operação policial no Rio
os elementos conversando entre si dizendo Onde está a peça?; referindo-se a uma arma de fogo;
que não se recorda do acusado; que não conhecia os acusados antes dos fatos; que foi apreendida
uma arma de fogo com o indivíduo que veio a óbito; que o indivíduo que faleceu foi o mesmo
que efetuou os disparos contra a guarnição; que o local era um ponto de venda de drogas; (..)"
13 Depois de citar o depoimento dos policiais, que é como começa a sentença, nesta constam os
seguintes termos de fundamentação: “Como se percebe, o depoimento dos policiais militares é
mais do que contundente para confirmar a existência do vínculo associativo entre os dois
denunciados e os demais elementos que encontravam-se naquela casa, espancando qualquer
dúvida que as pessoas que se encontravam naquele imóvel faziam parte do grupo criminoso
responsável pelo tráfico de droga da localidade. A jurisprudência do Tribunal de Justiça deste
Estado já se consolidou no sentido da validade do depoimento policial a servir de lastro para o
decreto condenatório, com a edição do seguinte verbete:(...)Tal posicionamento encerra a
discussão jurídica destacada pela defesa em suas alegações finais no sentido de que a prova seria
inapta para a condenação, já que os policiais teriam interesse em justificar e legitimar sua atuação.
O importante é que, como já fiz sublinhar acima, os depoimentos constantes dos autos são firmes
e estão em harmonia com o resto da prova. No caso dos autos, a prova inconteste da autoria a
materialidade delitiva sequer decorre unicamente do relato dos policiais militares já transcritos.
O laudo de exame em arma de fogo às fls. 63/65 demonstra que o aparato bélico efetivamente
apresenta capacidade para produzir disparos, assim como a munição, sendo, portanto, de
letalidade ou capaz de infligir ferimentos. No caso vertente extrai-se com clareza, de forma
contundente, também que os acusados encontravam-se associados ao grupo criminoso
responsável pela traficância de drogas, subsumindo-se suas condutas à norma proibitiva do art.
35 da Lei 11.343/06. Deve-se observar que não há dúvidas de que um dos réus portava uma pistola
calibre 9mm, bem como dez munições de mesmo calibre, e que o objetivo do porte da arma era a
eventual contenção de ingresso naquele local por pessoas indesejadas, com o propósito de
permitir que entorpecentes fossem livremente vendidos. Observa-se, assim, que a mera
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388 Luciana Costa Fernandes
Foi só na fase de “dosimetria” do réu que foi, com ele, preso (que estou chamando
por Maurício), que é quando já está decidido sobre a culpabilidade da pessoa
acusada e passa-se a determinar o valor da pena e quais vão ser os efeitos penais,
que o juiz decidiu reconstruir a operação e falar sobre o óbito. E o fez da seguinte
forma:
apreensão da arma de fogo com o acusado evidencia uma estrutura criminosa que congrega em
seus quadros pessoas alocadas em diversas funções, distribuídas de maneira piramidal e com
divisão hierárquica, sendo os réus apenas alguns de seus integrantes. Nessa esteira, impõe-se a
condenação também pel e do art. 35 da Lei de Drogas, eis que delineados o vínculo associativo e
a estabilidade e permanência da associação (...)”
14 A informação da raça (pardo) foi extraída dos arquivos de identificação criminal produzidos na
fase da investigação policial e reproduzidos na fase judicial, especificamente nos mandados de
intimação.
15 Todos os nomes de pessoas do conflito narrado neste artigo, para a defesa do anonimato, são
fictícios.
16 Como ficou documentado no material de campo, quando da investigação policial, a mãe de
Jeferson foi ouvida, tendo falado para a autoridade policial: ”QUE a declarante é mãe de Jeferson.
QUE Jeferson O residia com a declarante e estava desempregado há 2 semanas; QUE diariamente
Jeferson pedia dinheiro para a passagem para a declarante, alegando que iria ao encontro do pai
trabalhar em uma obra; QUE o pai de Jeferson disse à declarante que não via o filho há 15 dias;
QUE, em 23/09/2015, às 10h15min, a declarante estava no trabalho, quando foi avisada por
vizinhos que Jeferson fora baleado em uma operação do 17° BPM (...) QUE, em 24/09/2015,
Jeferson não resistiu aos ferimentos e veio a óbito. E nada mais disse”,
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Pactos narcísicos, violência antinegra e a atuação da magistratura na criminalização de um 389
homem morto em uma operação policial no Rio
E foi esta citação das autoras que me levou à segunda decisão que quero expor, da
prisão preventiva no caso exposto. Ela foi decretada no dia seguinte à operação,
mas posteriormente à finalização do registro de ocorrência que é levado junto ao
auto de prisão em flagrante (ambos documentos produzidos pelas polícias) para
exame do judiciário, no ato da audiência de custódia. Nestes dois documentos
policiais, já havia notícia da morte de Jeferson, tanto pelo já mencionado
depoimento de sua mãe; quanto pela técnica do hospital em que estivera
internado, que foi ao batalhão fazer o comunicado18. Mesmo assim, decidiu o juiz:
17 Prevista no Código Penal, art. 25, segundo o qual “Entende-se em legítima defesa quem, usando
moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu
ou de outrem. Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste artigo,
considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou
risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.”
18 O depoimento foi elaborado da seguinte forma “Relata a comunicante, auxiliar administrativa do
Hospital Municipal Evandro Freire, que, em 23/09/2015, às 11h53min, deu entrada no referido
hospital o nacional JEFERSON, vítima de PAF na região do tórax e abdomen, referente a
confronto com Policiais Militares do tr BPM, na Comunidade Praia da Rosa. JEFERSON foi
submetido a procedimento cirúrgico, porém em 24/09/2015, às 07h20min, o mesmo veio a óbito,
morte atestada pela Dra. ADELIA, CRM 0000”.
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390 Luciana Costa Fernandes
medida em que o delito que lhe é imputado possui pena máxima superior
a quatro anos, nos termos do artigo 313, I do CPP. Com efeito, verificada a
presença do imprescindível requisito objetivo, necessária se revela a
análise das hipóteses do artigo 312 do CPP, que autorizam a manutenção
da custódia cautelar. No caso dos autos, verifico que estão presentes o
fumus boni iuris e o periculum libertatis, uma vez que há indícios da autoria
e da materialidade do crime, o que é consubstanciado pelos depoimentos
constantes do flagrante e pelo auto de reconhecimento. Ademais, as
circunstâncias concretas do crime demonstram que o custodiado
MAURÍCIO foi preso juntamente com JEFERSON, sendo que JEFERSON
portava uma arma de uso restrito e chegou a desferir disparos contra os
policiais, vindo a ser baleado. Além disso, em sede policial, o custodiado
MAURÍCIO confessou estar ligado ao tráfico e atuar como olheiro, tendo
também dito que conhecia JEFERSON e que este trabalhava há mais tempo
para o TCP. Dessa forma, ao menos neste momento, a conduta do
custodiado MAURICIO e de JEFERSON revela que esses são uma efetiva
ameaça a ordem pública. Ademais, não há qualquer documento que
comprove residência fixa ou ocupação lícita, de forma que a soltura será
prejudicial a aplicação da lei penal. Finalmente, em atenção ao disposto no
artigo 310, 11 do CPP, ressalto que é inviável a concessão de liberdade
provisória com a imposição das medidas cautelares previstas no artigo
3.19 do CPP, uma vez que, diante de tudo o que foi acima exposto,
nenhuma delas se revela adequada. Por essas razões, CONVERTO a prisão
em flagrante em prisão preventiva de MAURÍCIO e JEFERSON, na forma
do artigo 310, 11 do CPP.
A decisão sobre a custódia deixa também explícito o modo como jargões jurídicos
podem confabular sequencialmente sentidos da prisão e transbordar a própria
possibilidade do reconhecimento da produção da morte de um jovem negro, ação
que parece poder ser ininteligível em um contexto de obliterações sistemáticas -
como o das violências antinegras dessas operações -, que já é produtor da morte
social19. Jeferson, já sem vida, foi mantido em prisão preventiva durante todo o
processo em razão da referida decisão, sendo que a ação penal só foi extinta
formalmente quatro anos depois, na sentença.
19 Para Moten, “a morte social não é imposta à pretitude desde ou pelo posicionamento ou
posicionalidade do político antes, ela é o campo do político, do qual a pretitude está relegada à
massa ou mancha supostamente indiferenciada do social (...)” (Moten, 2021, p. 156).
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homem morto em uma operação policial no Rio
Maria Aparecida Bento (2005) nos lembra que o silêncio não é neutro. Na
verdade o não dito é tão significativo quanto às próprias palavras e os
elementos da branquitude estão em operação exatamente no que é
silenciado. Não podemos esquecer que o poder é exercido sempre
acompanhado de certo silêncio, o silêncio da opressão (Laborne, 2017, p.
103)
Considerações finais
Os termos a partir dos quais operações policiais são legitimadas e ganham uma
inteligibilidade jurídico normativa quando transformadas em narrativas de crimes
da Lei de drogas são indiciários de como a hermenêutica jurídica da branquitude
e o solipsismo branco sustentam um antagonismo categórico entre o “princípio da
humanidade” e a ontologia da antinegritude manifestada nas operações. E que
finalizam o que Sexton sintetiza como reflexão matriz do afropessimismo, de que:
vida negra não é vida social no universo formado pelos códigos de estado
e sociedade civil, de cidadão e sujeito, de nação e cultura, de pessoa e lugar,
da história e do patrimônio, de todas as coisas que a sociedade colonial
tem em comum com os colonizados, de tudo que o capital tem em comum
com o trabalho – o sistema mundial moderno. A vida negra não é vivida
no mundo em que o mundo vive, mas é vivida no subsolo, no espaço
sideral (Sexton, 2011, p. 28 apud Pereira, 2021, p. 64).
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Referências
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colonialidade: uma abordagem "pós-póscolonial” da subalternidade. In: CAHEN,
277 Michel; BRAGA, Ruy (Org.). Para além do pós(-) colonial. São Paulo: Alameda,
2018.
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Pactos narcísicos, violência antinegra e a atuação da magistratura na criminalização de um 393
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FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o
projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
GUHA, Ranahit. Las voces de la historia. In: Las voces de la historia y otros estudios
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MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.
MILLS, Charles W. The Racial Contract. Ithaca: Cornell University Press, 1997.
MOTEN, Fred. Ser prete e ser nada: misticismo na carne. In: SPILLERS, Hortense
J. et al. Pensamento negro radical. Crocodilo, 2021.
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminologia crítica e pacto narcísico: por uma
crítica criminológica apreensível em pretuguês. Revista brasileira de ciências
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homem morto em uma operação policial no Rio
VARGAS, João Costa. A diáspora negra como genocídio: Brasil, Estados Unidos
ou uma geografia supranacional da morte e suas alternativas. Revista da
Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), v. 1, n. 2, p. 31-66, 2010.
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Sobre a autora
Luciana Costa Fernandes
Doutora (2022) em Teoria do Estado e Direito Constitucional pelo
Programa de Pós Graduação em Direito da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PPGD/PUC-Rio). Professora Assistente do
Departamento de Ciências Jurídicas do Instituto Multidisciplinar da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.51488
dossiê
Submetido em 06/11/2023
Aceito em 30/01/2024
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ISSN 2447-6684
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398 Poliana Aguiar Luiz - Alan Augusto Moraes Ribeiro
Resumo
Este trabalho é resultado de uma pesquisa de mestrado realizada em contexto prisional. O
estudo de caso foi desenvolvido na Escola Penitenciária Prof. Delson Afonso Mourão,
localizada no Centro de Recuperação Agrícola Silvio Hall de Moura (Crashm), em
Santarém – PA. O objetivo da pesquisa foi conhecer como as metas propostas no Plano
Estadual de Educação para Pessoas Privadas de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional
(Peesp), foram implementadas na escola penitenciária em 2022 e 2023. Além disso,
buscamos identificar o perfil socioeconômico dos alunos e levantar informações sobre a
finalidade da educação empreendida no cárcere. Verificamos que algumas das metas
propostas pelo Plano Estadual foram atingidas, como as referentes ao ensino médio, ensino
superior e cursos profissionalizantes, enquanto que as metas para a alfabetização e ensino
fundamental não foram alcançadas até o ano de 2023. A partir do “Questionário
Socioeconômico”, identificamos que os alunos são predominantemente jovens adultos,
negros, solteiros, de baixa escolaridade, santarenos, pais de dois filhos, com composição
familiar de cinco ou mais membros, com renda familiar de até dois salários mínimos, que
moravam na zona urbana, em residência familiar e que estudavam na escola pública. A
partir dos relatos dos alunos, percebemos que a educação no cárcere é compreendida como
uma importante ferramenta de inserção social, que contribui para reduzir o tempo ocioso
e que possibilita a remição de pena.
Palavras-chave
Educação para privados de liberdade. Educação de jovens e adultos. (Re)inserção social.
Resumen
Este trabajo es el resultado de una investigación de maestría realizada en un contexto
penitenciario. El estudio de caso se llevó a cabo en la Escuela Penitenciaria Prof. Delson
Afonso Mourão, ubicada en el Centro de Recuperación Agrícola Silvio Hall de Moura
(Crashm), en Santarém – PA. El objetivo de la investigación fue conocer cómo se
implementaron los objetivos propuestos en el Plan Estatal de Educación para Personas
Privadas de Libertad y Ex Presos (Peesp) en la escuela penitenciaria en 2022 y 2023.
Además, se buscó identificar el perfil socioeconómico de los alumnos y reunir información
sobre la finalidad de la educación realizada en la cárcel. Constatamos que algunas de las
metas propuestas por el Plan Estadual fueron alcanzadas, como las de enseñanza media,
superior y cursos de formación profesional, mientras que las metas de alfabetización y
enseñanza primaria no fueron alcanzadas hasta 2023. A partir del “Cuestionario
Socioeconómico”, identificamos que los alumnos eran predominantemente adultos
jóvenes, negros, solteros, con bajo nivel de escolaridad, de Santarem, padres de dos hijos,
con una composición familiar de cinco o más miembros, con una renta familiar de hasta
dos salarios mínimos, que vivían en la zona urbana, en una casa de familia y que
estudiaban en escuelas públicas. A partir de los relatos de los estudiantes, nos damos
cuenta de que la educación en la cárcel es vista como una herramienta importante para la
inclusión social, que ayuda a reducir el tiempo ocioso y que permite la redención de penas.
Palabras-clave
Educación para reclusos. Educación para jóvenes y adultos. (Re)integración social.
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Estudo sobre educação para privados de liberdade em Santarém-PA 399
Abstract
This work is the result of a master's research project carried out in a prison context. The
case study was carried out at the Prof. Delson Afonso Mourão Penitentiary School, located
in the Silvio Hall de Moura Agricultural Recovery Center (Crashm), in Santarém – PA. The
aim of the research was to find out how the goals proposed in the State Education Plan for
People Deprived of Liberty and Former Prisoners (Peesp) were implemented at the prison
school in 2022 and 2023. In addition, we sought to identify the socio-economic profile of
the students and gather information on the purpose of the education undertaken in prison.
We found that some of the targets proposed by the State Plan have been achieved, such as
those for secondary education, higher education and vocational courses, while the targets
for literacy and primary education have not been achieved by 2023. From the
“Socioeconomic Questionnaire”, we identified that the students were predominantly
young adults, black, single, with low levels of education, from Santarem, parents of two
children, with a family composition of five or more members, with a family income of up
to two minimum wages, who lived in the urban area, in a family home and who studied at
public schools. From the students' reports, we can see that education in prison is seen as
an important tool for social inclusion, which helps to reduce idle time and enables
sentences to be redeemed.
Keywords
Education for prisoners. Education for young people and adults. Social (Re)insertion.
Introdução
Este artigo situa-se no campo da educação para pessoas privadas de liberdade nos
estabelecimentos penais. Os resultados do estudo são embasados em uma
pesquisa de mestrado, realizada na Escola Penitenciária Prof. Delson Afonso
Mourão, localizada no Centro de Recuperação Agrícola Silvio Hall de Moura
(Crashm), uma das três unidades prisionais do Complexo Penitenciário de
Santarém, município do Estado do Pará.
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Estudo sobre educação para privados de liberdade em Santarém-PA 401
Na segunda fase, ocorrida entre março e agosto de 2023, focalizamos o estudo nos
dados educacionais e nas metas propostas pelo Peesp, assim, conseguimos avaliar
resultados mais recentes. Vale ressaltar que no Plano Estadual, constam as
diretrizes, objetivos, metas e estratégias, planejados com o objetivo de expandir a
oferta de vagas de estudo nas penitenciárias paraenses. Esses dados devem ser
supervisionados por uma Comissão de Monitoramento Avaliação e
Acompanhamento do Plano. Para complementar esse estudo, buscamos conhecer
os fatores que limitam o acesso à educação no Crashm.
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1 Ortografia atualizada.
2 Ortografia atualizada.
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Estudo sobre educação para privados de liberdade em Santarém-PA 403
Em 2019, o Crashm, assim como outras penitenciárias do Pará, passou por uma
intervenção penitenciária. A operação foi uma ação conjunta entre o Governo do
Estado do Pará e o Ministério da Justiça e Segurança Pública, estabelecida pela
Portaria nº 676, de 30 de julho de 2019 (Brasil, 2019). Com o advento da
intervenção, foi possível incrementar protocolos de segurança e uma nova cultura
no ambiente carcerário do Pará, previstos no Manual de procedimentos
operacionais elaborado pela Seap. A partir da intervenção penitenciária, houve
diversas mudanças na rotina da Unidade Prisional, consequentemente, alterou-se
também a rotina da escola.
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404 Poliana Aguiar Luiz - Alan Augusto Moraes Ribeiro
Figura 1
Registro fotográfico da “cela de aula” da Escola Penitenciária Prof. Delson Afonso
Mourão
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Estudo sobre educação para privados de liberdade em Santarém-PA 405
Figura 2
Mapa ilustrativo da Escola Penitenciária Prof. Delson Afonso Mourão
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406 Poliana Aguiar Luiz - Alan Augusto Moraes Ribeiro
Tabela 1
Relação de alunos da educação formal da Escola Penitenciária Prof. Delson Afonso
Mourão, no período de 2022 – 2023
3 Em 2022, foram matriculados 40 alunos. No entanto, oito deles foram desligados da escola: um
aluno foi transferido para outra penitenciária, outro perdeu a vaga por indisciplina, dois
receberam alvará de soltura, e quatro progrediram de regime (eles cumpriam pena em regime
fechado, e passaram a cumprir pena no regime semiaberto). Isso se deve ao fato de que, em 2022,
as vagas de estudo eram destinadas preferencialmente aos custodiados que cumpriam pena em
regime fechado. Ao final do ano letivo de 2022, havia, portanto, 32 alunos. Ressalta-se que a partir
de 2023, os alunos que progrediram de regime de cumprimento de pena continuaram estudando
normalmente.
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Estudo sobre educação para privados de liberdade em Santarém-PA 407
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408 Poliana Aguiar Luiz - Alan Augusto Moraes Ribeiro
Gráfico 1
Evolução da oferta de vagas na educação formal na Escola Penitenciária Prof. Delson
Afonso Mourão, 2005 – 2023.
200
162
Número de matrículas
137 142
150 115
109 104 102 104 106
100 81 71
62 62 70
50 55
50 30 40
18
0
Tempo (anos)
Fonte: Elaborado pelos autores a partir de dados dos registros da Escola Penitenciária
Prof. Delson Afonso Mourão, da Escola Municipal E. F. Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro e da Escola Estadual de E.F.E.M Prof.ª Terezinha de Jesus Rodrigues.
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2 Resultados e discussão
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410 Poliana Aguiar Luiz - Alan Augusto Moraes Ribeiro
Quadro 1
Avaliação das metas propostas pelo Peesp, no período de 2020 para 2023, na Escola
Penitenciária Prof. Delson Afonso Mourão
Número de Número
Atingiment
Crescimento planejado vagas de de vagas
Ação o das metas
para 2023 estudo em de estudo
2023
20204 em 20235
Elevar a oferta para 83% dos
Alfabetização 00 00 -
estabelecimentos penais.
Elevar para 18% a oferta da
EJA na etapa do ensino
Ensino
fundamental para as pessoas
Fundamental 35 28 -20%
privadas de liberdade e para
(1º ao 9º ano)
os egressos do Sistema
Prisional.
Elevar para 18% a oferta da
EJA na etapa do ensino
médio para as pessoas
20 39 95%
privadas de liberdade e para
os egressos do Sistema
Prisional.
Ensino Médio
Garantir a oferta do ensino
médio em articulação com a
educação profissional técnica
00 00 -
em 8 unidades prisionais
e/ou equipamentos de
atenção ao egresso.
Garantir e ampliar para 7% o
percentual de cobertura do
ensino superior presencial e
Ensino Superior educação a distância às 01 4 300%
pessoas privadas de
liberdade e aos egressos do
sistema prisional.
Ofertar cursos
Curso
profissionalizantes em 90% 00 01 Realizado
Profissionalizante
dos estabelecimentos penais.
Fonte: Elaborado pelos autores a partir dos dados obtidos na pesquisa de campo (2023).
Quanto ao ensino médio, a meta, que era elevar o número de vaga em 18%, foi
atingida, pois a quantidade de alunos foi aumentada em 95%. No que diz respeito
4 Para esta análise, consideramos quantitativo de alunos que participaram das atividades durante
o ano letivo, ou seja, 55 alunos.
5 Dados coletados no Relatório Educacional de março de 2023.
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à meta que trata da oferta do ensino médio técnico, pode-se afirmar que não foi
atingida, pois não houve oferta de ensino médio técnico na escola penitenciária em
estudo.
Em relação ao ensino superior, a meta, que era de 7%, foi alcançada, tendo em vista
que a quantidade de alunos foi aumentada de 01 (um) para 04 (quatro) alunos. A
oferta de ensino superior na unidade, no momento da pesquisa, estava em fase de
implementação, o que foi possível após a construção do Laboratório de
Informática. O acesso ao ensino superior no cárcere é altamente relevante, não só
pela aprendizagem adquirida, mas por dar condições à continuidade dos estudos.
A partir dessa análise, buscamos conhecer, os fatores que limitam a oferta de vagas
de estudo no Crashm. Identificou-se a insuficiência de policiais penais para fazer
a condução dos alunos do bloco carcerário e a vigilância aproximada na escola. De
acordo com a Resolução nº 09/2009, do Conselho Nacional de Políticas Criminais
e Penitenciárias (CNPCP), a recomendação de proporção mínima de agentes
penitenciários/policiais penais nas unidades prisionais é de 05 (cinco) presos para
cada agente penitenciário/policial penal. No momento da pesquisa, havia, no
Crashm, em torno de 75 policiais penais, divididos em quatro escalas de serviço.
Considerando a população carcerária fixada para fins de análise (929 custodiados),
e a recomendação do CNPCP, pode-se dizer que o ideal seria que no Crashm
houvesse em torno de 185 policiais penais, isto é, há um déficit de pelo menos 110
policiais penais.
Outro fator que limita o acesso à educação é a estrutura escolar, que é composta
por cinco salas de aula, com capacidade máxima de 80 alunos por turno. E, ainda
que funcionasse com sua capacidade máxima, nos turnos: manhã, tarde e noite,
apenas 240 apenados seriam atendidos na educação formal, o que significa dizer
que 689 custodiados não teriam a oportunidade de estudar na educação formal,
restando-lhes apenas as atividades não formais. Além da questão da estrutura
escolar, considera-se a estrutura física do Crashm outro ponto de atenção, tendo
em vista a localização dos blocos carcerários, que ficam afastados da escola,
dificultando a retirada dos alunos.
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Figura 3
Mapa Ilustrativo do Crashm
6 In memoriam.
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na escola, tendo em vista que o Sr. Delson esteve à frente do setor pedagógico, de
2003 até seu falecimento, no dia 19 de outubro de 2020.
Figura 4
Fachada da Escola Penitenciária Prof. Delson Afonso Mourão
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população não tem acesso regular a esse serviço (padrões semelhantes são
observados em relação à eletricidade, a redes de esgoto e ao acesso a
computadores e à internet). A população residente em favelas no Pará é
quase três vezes a proporção de Santa Catarina (64% versus 25%), e a taxa
de analfabetismo é quase duas vezes maior (11% versus 6%) (Freire et al.,
2018, p. 62-63)
Os dados sobre o “Estado civil” dos participantes indicam que a maioria deles, em
todas as esferas: local (65,61%), estadual (41,28%) e nacional (45,08%) é de solteiros.
Os alunos da escola penitenciária informaram que as restrições ocasionadas pela
intervenção penitenciária e a pandemia causada pela Covid-19 influenciaram no
afastamento de suas companheiras, devido a isso, muitos deles demonstraram
dúvida quanto ao seu estado civil. Um deles descreveu que se sentia
“abandonado” (P4).
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A partir dos relatos dos alunos, percebemos, portanto, que a educação no cárcere
compreende finalidades para além da aquisição de conhecimento, sendo vista
como ferramenta de inserção social, que contribui para minimizar o tempo ocioso
e possibilita a remição de pena. Assim, a educação no cárcere é entendida como
instrumento de transformação, de mudança de vida, de autoestima. A
reciprocidade presente na relação educador-educando tende a impactar
positivamente a vida pessoal e social dos educandos.
Faz-se, portanto, necessário que outras pesquisas sejam desenvolvidas para que
acadêmicos e instituições sociais conheçam essa realidade. Assim, a sociedade civil
poderá contribuir com as autoridades para a implantação de políticas e projetos
para o Sistema Penitenciário. Os benefícios desse tipo de parceria não se limitam
aos custodiados, mas se estende à sociedade, tendo em vista a possibilidade da
redução da criminalidade, considerando que muitas dessas pessoas que se
encontram em situação de privação de liberdade, precisam apenas de oportunidades.
3 Considerações finais
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Os resultados indicaram que as metas propostas pelo plano para o ensino médio,
ensino superior e cursos profissionalizantes foram alcançadas, enquanto as metas
para o ensino fundamental e alfabetização não foram atingidas até o momento.
Consideramos que algumas das metas previstas no Plano precisam ser repensadas,
como é o caso da meta prevista para a realização de cursos profissionalizantes, que
deve “alcançar 100% das unidades prisionais no prazo de quatro anos”, porém,
não estipula a quantidade de cursos por unidade prisional e/ou por período, ou
seja, a realização de 01 (um) apenas, apesar de suprir a meta, certamente, é
insuficiente para atender à demanda dos apenados.
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Referências
BRASIL. Lei de execução Penal. Lei nº 7210 de 11 de julho de 1984. Institui a Lei
de Execução Penal. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 13 set. 2023.
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.51924
dossiê
Submetido em 18/12/2023
Aceito em 25/01/2024
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ISSN 2447-6684
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426 Bárbara Crateús Santos
Resumo
Este artigo sugere que há um processo racializador que coloniza a percepção dos atores do
sistema de justiça sobre territórios urbanos violentos. A compreensão de comunidades
próximos à Sobradinho-DF – que essencializa vivências negras como o “outro” violento e
incivilizado - produz efeitos na experiência de justiça de mulheres negras junto à rede de
enfrentamento à violência doméstica. Esse processo produz um risco de violência
incapturável pela política pública do Formulário de Nacional de Avaliação de Risco de
Violência Doméstica (Lei n. 14.149/2021). Os padrões de segregação socioespacial que
caracterizam as desigualdades raciais definem experiências de justiça, sobretudo na
relação das vítimas com a polícia. A desapropriação da cidadania de mulheres negras no
Brasil também é produzida pelo Poder Judiciário em suas práticas cotidianas e discursos
jurídicos.
Palavras-chave
Violência doméstica. Risco. Territórios racializados.
Resumen
Este artículo sugiere que existe un proceso de racialización que coloniza la percepción de
los actores del sistema de justicia sobre los territorios urbanos violentos. La comprensión
de las comunidades cercanas a Sobradinho-DF - que esencializa las experiencias negras
como el "otro" violento e incivilizado - tiene un efecto sobre la experiencia de justicia de las
mujeres negras dentro de la red de violencia doméstica. Este proceso produce un riesgo de
violencia que no puede ser captado por la política pública del Formulario Nacional de
Evaluación de Riesgo de Violencia Doméstica (Ley 14.149/2021). Los patrones de
segregación socioespacial que caracterizan las desigualdades raciales definen las
experiencias de justicia, especialmente en la relación entre las víctimas y la policía. La
desposesión de la ciudadanía de las mujeres negras en Brasil también es producida por el
poder judicial en sus prácticas cotidianas y discursos jurídicos.
Palabras-clave
Violencia doméstica. Riesgo. Territorios racializados.
Abstract
This article suggests the existence of a racializing process wich colonizes the perception of
justice system actors about violent urban territories. The understanding of communities
near Sobradinho-DF - that essentializes black lives as the violent and uncivilized "other" -
takeseffect in the black women's experience of justice next to the network to
combatdomestic violence. This process produces a risk of violence uncaptureable by the
public politic of the National Domestic Violence Risk Assessment Form (Law 14.149/2021).
The socio-spacial patterns segregation that characterize racial inequalities define
experiences of justice, especially in the relationship between victims and the police. The
dispossession of citizenship of black woman in Brazil is also produced by the Judiciary in
its daily practices and legal discourses.
Keywords
Domestic violence. Risk. Racialized territories.
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Territórios racializados e a produção risco de violência doméstica pelo Sistema de Justiça 427
Introdução
Dito isso, há um campo de pesquisa ainda pouco explorado no Brasil que é sobre
análise de risco. O conceito de avaliação de risco significa um conjunto de
informações sobre os envolvidos na situação de violência que auxilia na tomada
de decisões sobre como intervir de acordo com risco de reincidência de violência.
Seu principal objetivo é a prevenção, a partir da criação de um plano de segurança
na tentativa de minimizar os riscos (Almeida; Soeiro, 2010).
De uma maneira geral, Juízes e demais atores, como a equipe psicossocial, realizam
estudos psicossociais, mobilizam a rede e promovem audiências para verificar o
grau de risco que a vítima se encontra. Esses movimentos são realizados
considerando o lapso temporal entre a denúncia junto à Delegacia e o andamento
do processo, arranjos familiares, históricos de violência, problemas com
dependência química, vulnerabilidades sociais, entre outras questões que
caracterizam e fundamentam decisões de intervenção. São diversas variáveis
circunstanciais que dependem muito de cada caso.
1 Algumas pesquisas têm tratado sobre esses temas, como: Prando, 2016; Pereira, 2013;
Montenegro, 2015; Flauzina, 2015; Prando; Costa, 2018; Almeida; Pereira, 2012; Alencar, 2017;
Zabala, 2020. Pereira; Tavares, 2018; Lins, 2014.
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428 Bárbara Crateús Santos
Neste texto, a partir das noções sobre risco dos interlocutores da pesquisa, reflito
sobre um processo de racialização que coloniza suas percepções sobre territórios
favoráveis à ocorrência de violências. Quando perguntados sobre suas noções
sobre risco, o fator território apareceu na fala de todos os entrevistados da
pesquisa2. Há um movimento de essencialização de um espaço geográfico que
seria violento e que coexiste com o tráfico de drogas, ressignificando signos de
desigualdade e inferioridade da população negra residente nesses espaços
residenciais.
2 Na pesquisa de mestrado, busquei entender como a raça e o gênero se relacionam com enfoque
na compreensão de análise do risco violência, da sua gestão e da sua relação com a racialização.
A pesquisa possuiu o objetivo contribuir para o avanço do entendimento das complexidades que
envolvem a violência de gênero, a partir de uma leitura que conecta o gênero e a raça, na
contramão do comum silenciamento e a obliteração da dimensão racial, inserindo novos
elementos para o aprofundamento das experiências de aplicação da Lei Maria da Penha, para
além de uma perspectiva de gênero. (Santos, 2022)
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Territórios racializados e a produção risco de violência doméstica pelo Sistema de Justiça 429
Desta forma, para situar o/a leitor/a, inicialmente farei breves considerações sobre
políticas de avaliação de risco de violência doméstica e a questão racial no Brasil.
Em seguida, descrevo a política pública utilizada no Distrito Federal- o Guia de
Avaliação de Risco para o Sistema de Justiça. Por fim, discutiremos sobre processos de
criminalização e segregação de territórios coletivos fundados na desigualdade de
classe, gênero e raça que penalizam e estigmatizam experiências urbanas negras.
A ausência de estado e de políticas públicas urbanas – infraestrutura e
equipamentos de uso coletivo- também são consideradas constitutivas desse
processo.
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430 Bárbara Crateús Santos
Dessa forma, a régua que mede e identifica o alto índice de vitimização entre
mulheres negras não parece estar em sintonia com as práticas judiciais e jurídicas
- em constante atualização - pelos atores dos Juizados de Violência Doméstica. Daí
a importância de entender os processos de racialização e questionar suas
estruturas.
No ano de 2021, 2.601 mulheres negras foram vítimas de homicídio no Brasil. Isso
representou 67,4% do total de mulheres assassinadas naquele ano. Entre as
mulheres não negras, esta taxa foi de um número quase 45% menor. O risco
relativo de sofrer um homicídio é 1,8 vez maior entre as mulheres negras do que
entre as não negras. Em alguns estados, o risco de ser vítima de homicídio foi mais
que três vezes maior entre mulheres negras do que entre não negras, como Rio
Grande do Norte, Sergipe e Ceará (Cerqueira; Bueno, 2023, p. 47-48)
Entre os anos de 2020 e 2021, a taxa de homicídios para mulheres negras cresceu
0,5%; entre as mulheres não negras houve uma redução de 2,8%. Nos últimos cinco
anos (2016 a 2021), a queda no número de mulheres negras mortas foi de 17,6%,
enquanto a de mulheres não negras foi de 21,3%. O movimento de queda do
cenário geral de homicídio de mulheres foi mais acentuado para mulheres negras,
traduzindo em números a relação de violência e morte entre o racismo e o sexismo
(Cerqueira; Bueno, 2023, p. 48).
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Territórios racializados e a produção risco de violência doméstica pelo Sistema de Justiça 431
com seus agressores foi um fator que dificultou o acesso a redes de apoio e ao
serviço público A conjuntura pandêmica também foi fator de subnotificações.
(Souza; Farias, 2022; Ruiz; Dusek; Avelar et al, 2022.)
Esse fundo comportamental e biologizante dos instrumentos pode fazer com que
se produza análise racializada e racializadora de autores e experiências de
violência que podem contribuir, em última instância (ou diretamente), para a
manutenção do controle penal de corpos negros na medida em que fornece
informações sobre situações de risco ensejadoras de prisão3-4.
A esse respeito, é preciso lembrar que, como afirma Pires e Tomaz (2019, p. 134),
vivemos em uma sociedade “forjada na adoção do discurso punitivista como
forma de gestão das hierarquias sociais que nos constituem, não há como negar
como menosprezar os efeitos causados pelo apelo punitivo de alguns movimentos
feministas”. O apelo punitivista pode encontrar mais uma política pública aliada
para a sua manutenção majoritária do enfrentamento à violência doméstica. É
preciso ter cautela na recepção dessa política importada e, sobretudo, na sua
aplicação.
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432 Bárbara Crateús Santos
Este estudo, por exemplo, pode ser prejudicial na medida em que se corre o risco
de essencializar a figura do agressor negro, violento, usuário de drogas, com
antecedentes criminais e, eventualmente, com problemas psicológicos. No artigo
intitulado Race, class, and violence: research and policy implications, Clarence Spigner
(1998) aponta que a prevenção da violência criminal é uma resposta política
apropriada e necessária, mas é preciso cautela devido às crenças persistentes da
sociedade de que a criminalidade e outros comportamentos disfuncionais estão
ligados à raça.
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Para Walklate (2018), o risco de gênero “constrói as mulheres como aquelas que
evitam os riscos em vez de serem as que buscam os riscos e incorpora uma gama
de diferentes suposições tanto na criminologia quanto na vitimologia”. Tais
suposições oferecem uma visão confortável e reconfortante das mulheres como
sendo uniformes, temíveis, sujeitos vulneráveis (Walklate, 2018, p. 2), suavizando
e silenciando experiências cotidianas de mulheres, e experiências de ser mulher
em diferentes contextos (Machado; Dias; Coelho, 2010 apud Walklate, 2010).
De fato, essa visão sobre o risco permite observar a maneira como as tecnologias
jurídicas ou de políticas públicas universalizam e desracializam discussões sobre
violências e sobre o papel do Estado na sua intervenção, com a criação e o uso de
categorias abstratas.
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436 Bárbara Crateús Santos
Como resultado, foi criado e instituído o Guia de Avaliação de Risco parao Sistema de
Justiça (2018)13, cujo Formulário Nacional, instituído pela Lei 14.149/2021, foi
inspirado. Os processos do Juizado de Combate à Violência Doméstica e Familiar
de Sobradinho utilizam esse guia. O documento traz orientações sobre como
aplicar o questionário e traduz o significado dos fatores de risco apontados a partir
da literatura hegemônica sobre o campo14. Evidencia que o questionário deverá ser
preenchido pela própria vítima, caso necessário, o agente policial poderá ajudá-la
no preenchimento.
O guia sugere que a apreciação do risco não deverá contar apenas com os
resultados algorítmicos da pontuação, mas também com o julgamento subjetivo e
experiência do avaliador. A avaliação não deverá ser definitiva, pois os riscos
podem se alterar ao longo do tempo e, em razão disso, sugere que outras
avaliações devem ser realizadas em momentos distintos, nos diversos serviços que
compõem a rede (Núcleo de Direitos Humanos- MPDFT, 2018, p.12)
O guia apresenta 20 fatores de risco que seguem o modelo dos apontados pela
literatura trazida até aqui, são eles:
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De uma maneira geral, o texto dissertativo evidenciou que a percepção de risco dos
(as) magistrados (as) e promotores (as) possui um caráter mais objetivo e coaduna
com o que é considerado risco pela literatura hegemônica. (Medeiros, 2015; Matias;
Gonçalves et al., 2020; Campbell et al. 2003; Ávila et al., 2021; Walklate, 2018). Os
fatores comportamentais do autor (dependência química, acesso à arma e ideação
suicida, por exemplo) ficam em evidência e relacionam-se com fatores estruturais,
como dependência econômica da vítima, ter filhos dos agressores, e possuir
dificuldade de se perceber em risco, aliada a uma rede de apoio escassa.
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Este tópico parte da relação entre territórios vulneráveis e violência, realizada por
alguns atores entrevistados. Em muitas passagens, suas afirmações reificam signos
de desigualdade e de atributos negativos à determinados sujeitos e a espaços
urbanos. Há um olhar racializador das dinâmicas de violência experenciados
naquele território e, por conseguinte, um processo que revitimiza mulheres em
situação de violência que lá vivem.
médico prever, prevenir e aconselhar sobre feminicídio e sua tentativa. O trabalho pode ser
acessado no link: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1494930/>.
17 Laurence Bardin (1977) afirma que, além de compreender o sentido da comunicação, é importante
desviar o olhar para outra significação, outra mensagem por meio ou ao lado da mensagem
primeira, é um realce do sentido que se encontra em segundo plano, é atingir através de
significantes ou de significados outros <significados> de natureza psicológica, sociológica,
política e histórica. Na análise de uma comunicação, pude me servir de um indicador linguístico
(ordem de sucessão dos elementos significantes, extensão das frases) ou paralinguísticos
(entonação e pausa) (Bardin, 1977, p. 41-42).
18 Núcleo de atendimento à família e aos autores de violência doméstica. Mais informações:
https://www.df.gov.br/nucleo-de-atendimento-a-familia-e-aos-autores-de-violencia-domestica-
nafavds/ . Acesso em 08 de dezembro de 2023.
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440 Bárbara Crateús Santos
19 Os interlocutores da pesquisa foram juízes (as), promotores (as), defensores públicos (as), e
membros (as) de uma equipe multidisciplinar da rede de enfrentamento à violência doméstica de
Sobradinho-DF.
20 A esse respeito, cito o trecho de uma entrevista onde o/a magistrado/a faz uma afirmação
paradoxal “[...] ... No que diz respeito... por exemplo, assim... sobre “ah, as mulheres negras, elas
são mais vulneráveis do que as mulheres brancas?” [...] eu acho que é até razoável afirmar que
sim, mas não porquê... e aí é uma percepção pessoal, tá? Não porque são negras, mas porque
estão numa situação de vulnerabilidade social e econômica material maior e que possibilita um
ambiente mais favorável à violência. [...]” (Santos, 2022, p. 101-102).
21 A partir da escuta das profissionais que atuam na rede de proteção na região metropolitana do
Rio de Janeiro, foi possível constatar alguns limitadores no acesso de determinados grupos de
mulheres aos serviços e às iniciativas ofertadas. Disponível em: https://assets-dossies-ipg-
v2.nyc3.digitaloceanspaces.com/sites/3/2022/08/Pesquisa_ViolenciContraMulheres.pdf. Acesso
em 08 de dezembro de 2023.
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Territórios racializados e a produção risco de violência doméstica pelo Sistema de Justiça 441
Janeiro, coordenada por Thais Gomes et al (2022). Para a autora, quando a política
pública de enfrentamento à violência é focada na segurança pública tende a ser
ineficaz para vítimas negras.
A relação genocida que pessoas negras têm com a polícia simboliza um fator de
risco racializado, seja para vítimas mulheres como para homens agressores. Ainda,
as dinâmicas de acesso aos equipamentos da rede de enfrentamento também são
constituídas da dimensão territorial que delimita as possibilidades de acesso a
direitos (Gomes et al., 2022). Essa compreensão foi observada pelos (a)
profissionais do NAFAVD.
[...] E, outra coisa que você falando me fez lembrar é que, assim, a gente
escuta muito relato dos homens, aí alguns autores, tá? Mas eu acho que
cabe também. A camaradagem masculina, teve um cara que a gente tava
atendendo, né, (nome ocultado), que a gente tá atendendo e ele foi à
delegacia fazer a denúncia primeiro e o policial chegou pra ele e falou: “Ó,
vai embora, porque se você entrar aqui e relatar, sua ex já tá aí dentro, você
vai ser preso”. O cara é branco, classe média alta, chegou lá de camisa
social, então, eu acho que isso tem muito a ver... vários negros que a gente
atende falam assim: “ninguém nem me ouviu, me tiraram de casa
algemado, fui atrás no camburão. Todos os que falaram que o policial
falou: “nem era pra você tá aqui, cara, você é doido”, todos são brancos,
né, e tiveram esse tratamento da polícia. Então, isso, dá uma revolta, né,
porque tem essa diferenciação.
Flauzina (2015) e Tomaz e Pires (2020) tematizam o problema da relação das partes
com a polícia. Considerando o racismo como critério de controle social que recai
de maneiras distintas em relação àquelas pessoas localizadas na zona do “não ser”,
o problema da centralidade do meio punitivo para resolução de conflitos reifica o
encarceramento de corpos negros, na contramão dos anseios das vítimas (IPEA,
2015; Flauzina, 2015).
22 “O critério que passou a separar de modo incomensurável humanos de não humanos em países
de herança colonial como o Brasil, a própria percepção dos efeitos desproporcional e injustamente
distribuídos pelo sistema penal precisa necessariamente enfrentar o fato de que é o racismo que
determina a seletividade (inclusive social) do sistema de (in) justiça criminal” (Pires; Tomaz, 2020,
p. 140).
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442 Bárbara Crateús Santos
23 A respeito disso, sempre me pareceu fazer sentido nesse campo o termo utilizado por Ana
Flauzina e Felipe Freitas (2017): “O paradoxal privilégio de ser vítima” Segundo os autores, é uma
interdição do reconhecimento do negro como vítima pelo problema da distribuição seletiva ao
sentido de humano. O direito de politizar o sofrimento é cativo da branquitude, estando a dor
negra encarada como natural ao seu espaço social de humanidade duvidosa, à revelia de todas
as mobilizações históricas político-intelectuais da população negra na busca por reconhecimento
e humanização.
24 Géssica Arcanjo (2023) avalia em sua dissertação de mestrado como a comoção tem o condão de
realizar mobilizações políticas e jurídicas. Ela o faz analisando como os afetos moldam o Poder
Judiciário e influenciam suas respostas na prática, a partir do Caso Miguel Otávio.
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Territórios racializados e a produção risco de violência doméstica pelo Sistema de Justiça 443
JUIZ (a) 2: Às vezes a mulher denuncia que não foi bem atendida na
delegacia, mas nunca associei isso à raça;
Em outro momento, ao ser perguntado sobre a relação entre raça e risco, o (a)
magistrado (a) 2 afirma que a mulher negra estaria numa situação vulnerável
decorrente de uma “questão social”, obliterando a dimensão racial, em um claro
paradoxo.
Como afirma o autor, o social tem nome e endereço, e a raça se dilui nessa solução
química do “social”. Tal afirmação demonstra a emergência do letramento racial
(Schucman, 2020) na produção do conhecimento jurídico e nas suas práticas que
ainda são colonizadas por noções hegemônicas dos sujeitos localizados na zona do
ser. Essa ausência de letramento sobre a questão racial é demonstrada na fala
clássica caracterizadora do mito da democracia racial: “não vejo cores” (Juiz (a) 2).
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444 Bárbara Crateús Santos
O que pode significar a expressão “eu não entro nessa”? A expressão sugere a
dificuldade da perspectiva racial ser tangível, em suas dimensões sutis pelo (a)
ator. A abstração processual que não consegue apreender a questão racial é
resultado do colonialismo jurídico que, para além de suas dimensões estruturais,
informa práticas individuais embranquecidas. Além de simbolizar a emergência
da produção de estratégias institucionais para o seu enfrentamento.
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Territórios racializados e a produção risco de violência doméstica pelo Sistema de Justiça 445
ônibus e fala que: “dá parada de ônibus até o acompanhamento dá mais ou menos
6km”. E, aí, a gente ia conversando até que acabava (a internet). E aí, ela
teve uma medida protetiva e o cara lá [...] Lá os barracos são de ninguém,
assim... esse aqui o que é meu esse aqui é o seu e aí o governador do acampamento
falou que: “a gente vai arrumar um barraco pra ele que fica a 500 m do seu porque
ninguém vai ser expulso do acampamento. E, aí, eles decidiram isso, a polícia
nem ficou sabendo, sabe, e são as leis próprias que eles precisam de criar e se o
coordenador entende que tá beleza, acaba o risco, eles falam volta, então ela tá em
um risco maior [...] (destque nosso).
25 Com a Lei de Terras, o Estado brasileiro se preparava para atender as transformações que o
capitalismo internacional exigia dos Estados dependentes, impedindo que escravizados libertos
se constituíssem enquanto proprietários de terras. (Bertúlio, 1989).
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446 Bárbara Crateús Santos
Uma das autoras mais significativas no campo de estudos urbanos, Raquel Rolnik
(1989), ao tratar sobre o processo de urbanização excludente de São Paulo e Rio de
Janeiro, sobre territórios negros específicos de São Paulo de 1890, aponta que
26 “Mas a história da ideia de Brasília também se confunde com a própria história da economia
colonial, aprimorada no final do século XIX. A transição de um capital mercantil escravista, que
fundamentou todos os supostos “ciclos” econômicos nacionais, ao capital financeiro com
investimentos no setor agrário e da construção civil concatenam as mudanças políticas que
orientaram a nação na contemporaneidade”. (Lemos, 2022. p.189).
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Territórios racializados e a produção risco de violência doméstica pelo Sistema de Justiça 447
27 Reflexões desenvolvidas pela professora Juliana Farias na disciplina optativa (Tópicos Especiais
em Sociologia de Gênero e Raça): Processos de generificação e racialização de territórios em
contextos de exercício de poder colonial, ministrada em 2023.2 no Programa de Pós-Graduação
em Sociologia, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília.
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448 Bárbara Crateús Santos
O (a) magistrado (a), mais uma vez, essencializa o território que seria vulnerável
como criminoso; local onde provavelmente vai existir tráfico de drogas, sem
apresentar outra possibilidade; como uma espécie de destino. A forma de
visualizar a desistência, ou a resiliência, ou, ainda, outras possibilidades de
resolução de conflitos –sem envolvimento do Estado– é compreendida apenas
como um atributo da desinformação. Esta percepção segue um modelo de justiça
disputado por uma militância feminista hegemônica, que centraliza essa forma de
resolução de conflitos domésticos –majoritária via aparelhos da segurança
pública–, silenciando possibilidades outras.
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Territórios racializados e a produção risco de violência doméstica pelo Sistema de Justiça 449
Ana Flauzina (2015), ao comentar sobre os diferentes anseios por justiça no campo
da violência doméstica, sobretudo em relação ao fator prisão, aponta que há no
plano discursivo o reconhecimento das limitações do cárcere e, ao mesmo tempo,
28 É possível observar nos trabalhos “A produção de sentidos sobre violência racial no atendimento
psicológico a mulheres que denunciam violência de gênero” de Maria de Jesus Moura (2009) e
“Um olhar racial para a violência conjugal contra as mulheres negras” de Mirian Lúcia dos Santos
(2012).
29 Trata-se de um trabalho de dissertação apresentada na Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo no Programa de Medicina Preventiva. Em sua pesquisa, Stephanie buscou
compreender se existia diferenças entre mulheres negras e brancas no acesso e na assistência dos
serviços que compõem a rede de enfrentamento à violência doméstica. O fluxograma das rotas
críticas demonstra que as mulheres negras entrevistadas vivenciaram mais episódios de violência
institucional e receberam menos informações nos serviços. Tais questões resultaram em uma rota
mais tortuosa e com mais passagens por instituições, na busca pela garantia de viver uma vida
sem violência. As mulheres negras reconhecem o racismo, além de outros eixos de opressão em
sua rota. Observou-se também que as mulheres brancas entrevistadas não reconhecem o racismo
como barreira na efetivação de direitos de mulheres negras”.
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450 Bárbara Crateús Santos
[...] Da vítima, né? É, eu acho que o fato da vítima ser negra já traz um
olhar para a gente de um risco maior que corre [...] acende esse alerta no
sentido de que ela tá mais exposta, ela tá mais vulnerável, ela sofre
preconceitos de outra ordem além de ser mulher. E, uma coisa que a gente tem
observado até conversando com o (nome ocultado) ele nos chamou
atenção, e eu vejo, quando o casal é negro, da periferia, aqui em
Sobradinho é muito variado, né, tem condomínios e tem que gente tem
poder econômico muito baixo, às vezes, o pessoal negro da periferia eles
não chamam a polícia, porque eles não chamam a polícia porque eles
entendem que a polícia é contra eles, a polícia não vai ajudar. Então, isso
me chama atenção, se teve uma violência e eles chegaram a chamar a
polícia é porque já deve ter acontecido um monte de coisa antes pra chegar
nesse ponto, eu observo muito isso, assim. Pras pessoas brancas chamar a
polícia é no automático, pros negros, não. Eles tentam resolver entre eles porque a
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Territórios racializados e a produção risco de violência doméstica pelo Sistema de Justiça 451
polícia, muitas vezes, vai chegar com um olhar discriminatório, isso a gente
observa (destaque nosso).
Como o território se inscreve como uma variável que apresenta maior risco aliado
a dimensão racial? Para iniciar o debate, enquadramos algumas respostas: i) a
ausência de infraestrutura urbana - que dificulta o diálogo do jurisdicionado com
o sistema de justiça; ii) a relação de morte que a população negra possui com a
polícia; iii) e a própria compreensão do sistema de justiça que essencializa
experiencias urbanas negras, ao reificar, signos de desigualdades raciais, situando
sujeitos negros em um local do “outro” violento e incivilizado.
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452 Bárbara Crateús Santos
Considerações finais
Referências
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460 Bárbara Crateús Santos
Sobre a autora
Bárbara Crateús Santos
Doutoranda em Direito, Estado e Constituição na Faculdade de Direito
da Universidade de Brasília (UnB). Advogada, Mestre em Direito pela
FD-UnB, especialista em Direitos Humanos pelo Instituto Esperança
Garcia.
_________________
Nota
Os dados parciais que formam o argumento do texto são oriundos da
dissertação de mestrado “RAÇA, GÊNERO E RISCO: Uma análise dos processos
de avaliação e gestão de risco de mulheres em situação de violência doméstica
no Juizado de Sobradinho-Distrito Federal” (2022), disponível em:
http://repositorio2.unb.br/jspui/handle/10482/44924
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50317
dossiê
Cicera Nunes2
2
Universidade Regional do Cariri, Crato, Ceará, Brasil. E-mail:
[email protected]. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6352-8991.
Submetido em 31/07/2023
Aceito em 03/01/2024
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ISSN 2447-6684
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462 Livia Maria Nascimento Silva - Cicera Nunes
Resumo
Este trabalho analisa a (in)efetividade da política de cotas em concursos públicos de
docência superior, a partir de um estudo de caso dos editais das universidades estaduais
do Ceará: URCA, UECE e UVA. A investigação parte das teses jurídicas sustentadas nos
processos coletivos, ajuizados pelo Grupo de Valorização Negra do Cariri – GRUNEC para
correção das violações à lei de cotas. Metodologicamente, utiliza-se das técnicas de revisão
bibliográfica, análise documental e o estudo de caso. Discute-se os métodos de reserva de
vagas em concursos públicos de magistério superior, a postura administrativa das
instituições de ensino, do poder executivo e judiciário, traçando paralelo com a atuação do
movimento negro, enquanto agente educador das referidas instituições públicas de
poder/saber.
Palavras-chave
Ações Afirmativas. Cotas em concursos de universidades. Litigância estratégica.
Movimento negro educador.
Resumen
Este trabajo analiza la (in)eficacia de la política de cuotas en los concursos públicos de
enseñanza superior a partir de un estudio de caso de las convocatorias públicas de las
universidades estatales de Ceará: URCA, UECE y UVA. La investigación parte de las tesis
jurídicas sustentadas en los procesos colectivos promovidos por el Grupo de Valorização
Negra do Cariri – GRUNEC para corregir violaciones a la ley de cuotas.
Metodológicamente utiliza las técnicas de revisión bibliográfica y análisis de documentos.
Discute los métodos de reserva de vacantes en los concursos públicos de educación
superior, la postura administrativa de las instituciones educativas, el poder ejecutivo y
judicial, trazando un paralelo con la actuación del movimiento negro, como agente
educativo de las mencionadas instituciones públicas del poder/saber.
Palabras-clave
Acciones Afirmativas. Cuotas en concursos universitarios. Litigio estratégico. Movimiento
de educadores negros.
Abstract
This work analyzes the (in)effectiveness of the policy of quotas in public competitions for
superior teaching from a case study of the public notices of the state universities of Ceará:
URCA, UECE and UVA. The investigation starts from the legal theses sustained in the
collective processes filed by the Grupo de Valorização Negra do Cariri – GRUNEC to
correct violations of the quota law. Methodologically, it uses the techniques of
bibliographic review and document analysis. It discusses the methods of reserving
vacancies in public competitions for higher education, the administrative posture of
educational institutions, the executive and judiciary, drawing a parallel with the
performance of the black movement, as an educational agent of the aforementioned public
institutions of power/knowledge.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Violação à lei de cotas em concursos públicos para docentes de nível superior: uma análise 463
da atuação do GRUNEC como movimento negro educador das instituições públicas cearenses
Keywords
Affirmative Actions. Quotas in university contests. Strategic Litigation. Movement of black
educators.
Introdução
O retrocesso social nas cotas raciais nos Estados Unidos (Supreme Court Of The
United States, 2023), recentemente, chamou a atenção do mundo ao evidencializar
para população, que nenhum direito conquistado, após anos de luta, se constitui
direito adquirido. Existe uma verdadeira insegurança jurídica para os grupos que,
historicamente, foram racialmente hierarquizados e, assim, as políticas de ações
afirmativas, enquanto empreitada da agência negra para reparação histórica das
desigualdades estruturais, ao passo que demorou a ser reconhecida e garantida,
pode a qualquer momento ser violada e/ou retroceder totalmente, desviando a
finalidade dessa importante política pública para materialização do direito à
igualdade.
O Brasil, que sempre teve um racismo diferente dos Estados Unidos, embora
igualmente cruel (Andrews, 2011), apesar de ter avançado no campo formal, no
que diz respeito às cotas raciais enquanto política de ação afirmativa, tem
demonstrado, por práticas silenciosas e métodos supostamente neutros, que há
uma constante ameaça ao que deveria ser direito. Fraudes, inobservância aos
preceitos normativos, metodologias não eficazes, entre outros meios, vêm
demonstrando que, mesmo após duas décadas de início da implantação dessa
política no país, ainda faz-se necessária firme legislação, fiscalização e
fortalecimento de jurisprudência que garanta a finalidade precípua desta política
(Freitas; Sarmento, 2020).
Nesse contexto, o presente trabalho busca elucidar o quanto a política de cotas vem
sendo sistematicamente violada no Brasil, apresentando a tese jurídica sustentada,
processualmente, pelo Grupo de Valorização Negra do Cariri - GRUNEC em face
da realidade enfrentada nas universidades do estado do Ceará, propondo uma
possível solução para esses conflitos, com uma interpretação extensiva sobre a
legislação de cotas, recorrendo-se ao processo estrutural coletivo como
instrumento de resolução adequada de litígios estratégicos. Objetiva-se neste
estudo, expor o quanto o movimento negro deve ser reconhecido como educador
jurídico por meio de suas lutas por direitos.
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464 Livia Maria Nascimento Silva - Cicera Nunes
O GRUNEC foi escolhido para o presente estudo de caso, por ser o movimento
negro mais antigo do interior do estado do Ceará e possuir, ao longo de sua
trajetória, muitas contribuições em prol da equidade racial. O grupo surgiu em
2001, a partir de debate local acerca dos reflexos das discussões sobre racismo,
visibilizados pela Conferência Mundial das Nações Unidas de 2001 contra o
Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância1, ocorrida de 31 de
agosto e 8 de setembro em Durban, na África do Sul (Silva, 2022).
1 Organizada pela Organização das Nações Unidas, a Conferência de Durban em 2001, o evento
marca na agenda internacional o estabelecimento de diretrizes para combate ao racismo e outras
formas de discriminação racial por meio de debates intensos que geraram a elaboração da
Declaração e Programa de Ação de Durban.
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Violação à lei de cotas em concursos públicos para docentes de nível superior: uma análise 465
da atuação do GRUNEC como movimento negro educador das instituições públicas cearenses
(...) Para todos do grupo era sumariamente importante a sua fundação uma
vez que não constava nesta região nenhuma organização deste tipo. O
GRUNEC decidiu-se ter como objetivo a organização da população negra
do Cariri, atuando no momento na cidade do Crato e também congrega as
pessoas não negras que se identifiquem com a luta e causa desta etnia e
que assumam sua identidade afrodescendente. Visando a organização
desta parcela da população o GRUNEC se propõe a realizar diversas
atividades que contribuam para o resgate e a inclusão destes na sociedade
como: estudos, palestras, seminários, cursos, encontros e comemorações
de momentos relevantes na história do povo negro, bem como sua origem,
cultura, crenças, costumes, danças, formas de trabalho, educação, dentre
outros momentos históricos significativos. Além de atividades educativas
e de reflexão sobre a condição dos negros no Cariri, o grupo se propõe
ainda a ser um veículo de apoio e divulgação de situações discriminatórias
e preconceituosas sofridas por qualquer cidadão por pertencer a esta etnia
ou aqueles que com ela identifique na condição de afrodescendente. Ainda
é objetivo do GRUNEC, ajudar no combate a toda e qualquer forma de
exclusão sofridas por pessoas de cor negra e que pertençam a classe menos
favorecida da população que não tiveram oportunidade de ascender sócio,
político economicamente sendo relegado a margem da sociedade e não
contando como cidadão que contribuiu para o crescimento desta nação,
fato que ocorre desde o início da colonização do Brasil. O GRUNEC terá
duração indeterminada até que seus membros estejam empenhados em
defender os seus objetivos e se comprometam a cumprir o estatuto que,
como fundadores o elaborarão (...). (GRUNEC, 2001, n.p.).
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Violação à lei de cotas em concursos públicos para docentes de nível superior: uma análise 467
da atuação do GRUNEC como movimento negro educador das instituições públicas cearenses
Nilma Lino Gomes (2017) explica que o movimento negro é educador, pois
constrói saberes nas suas lutas. Educador não só do ponto de vista formal das
instituições de ensino, embora seja importante ressaltar que, em 2003, conseguiu
que fosse sancionada a Lei n° 10.639, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nº. 9.394/1996, incluindo no currículo oficial da Rede de Ensino, a
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468 Livia Maria Nascimento Silva - Cicera Nunes
2 O nome do evento foi pensado para simbolizar o que queriam representar: artes e fatos – artefatos
– da cultura negra.
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Violação à lei de cotas em concursos públicos para docentes de nível superior: uma análise 469
da atuação do GRUNEC como movimento negro educador das instituições públicas cearenses
Considerando que cada um desses processos tem a violação à lei de cotas como
tema central, apesar de que tais violações venham ocorrendo de maneiras
distintas, o GRUNEC tem sustentado a tese jurídica de violação sistemática à lei
de cotas, visando progredir em uma litigância estratégica3 para um processo
estrutural, promovendo não só uma mudança jurisprudencial, mas normativa de
regulamentação efetiva da política pública garantidora do direito material à
igualdade4, inclusive por meio de fiscalização.
Apenas em 2021 a lei estadual n.º 17.432/2021, foi sancionada no estado do Ceará,
instituindo a política pública social e afirmativa consistente na reserva de vagas
para candidatos/as negros/as em concursos públicos destinados ao provimento de
cargos ou empregos no âmbito dos órgãos e das entidades do poder executivo
estadual. A referida lei prevê a reserva de 20% (vinte por cento) das vagas
oferecidas para pessoas negras em concursos públicos estaduais, considerando
3 Litigância estratégica é o termo utilizado para se referir aos casos emblemáticos sobre temas
relativos a violações de direitos e escolhidos para acionar o sistema de justiça com a finalidade de
alterar os entendimentos dos tribunais sobre a matéria, assim como vincular os atos
administrativos ao que for decidido, visando aperfeiçoar as políticas públicas.
4 Por muito tempo o direito à igualdade esteve presente nas legislações brasileiras, o que significa
que no campo formal da lei o direito estava previsto expressamente. Contudo, a realidade
nacional demarcada por desigualdades demonstra que não basta apenas está previsto em lei, faz-
se necessário atuação positiva e prestacional do estado para efetivar esse direito, materializando
a igualdade, principalmente por meio de políticas públicas de ações afirmativas.
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470 Livia Maria Nascimento Silva - Cicera Nunes
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Violação à lei de cotas em concursos públicos para docentes de nível superior: uma análise 471
da atuação do GRUNEC como movimento negro educador das instituições públicas cearenses
Quadro 1
Vagas nos concursos das universidades estaduais do Ceará, conforme Edital de abertura
(i) os percentuais de reserva de vaga devem valer para todas as fases dos
concursos; (ii) a reserva deve ser aplicada em todas as vagas oferecidas no
concurso público (não apenas no edital de abertura); (iii) os concursos não
podem fracionar as vagas de acordo com a especialização exigida para
burlar a política de ação afirmativa, que só se aplica em concursos com
mais de duas vagas; e (iv) a ordem classificatória obtida a partir da
aplicação dos critérios de alternância e proporcionalidade na nomeação
dos candidatos aprovados deve produzir efeitos durante toda a carreira
funcional do beneficiário da reserva de vagas (STF, 2017).
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No curso do processo, foi discutido que não é novidade que os dados estatísticos
demonstram o pequeno número de pessoas negras nos espaços de poder e saber,
como o cargo de docentes de ensino superior e outros de maior prestígio social
(Mello e Resende, 2019). Essa realidade é consequência do racismo estrutural,
delineado pelo jurista Dr. Silvio de Almeida (2018). Visando a combater essa
mazela social, em 12 de maio de 2021, foi ratificada a Convenção Interamericana
contra o Racismo, a Discriminação Racial e formas correlatas de intolerância. O
tratado internacional de Direitos Humanos foi aprovado pelo Congresso Nacional
de acordo com o rito previsto no art. 5º, § 3º da Constituição Federal e promulgado
em janeiro de 2022, portanto, incorporado com status de norma constitucional.
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Violação à lei de cotas em concursos públicos para docentes de nível superior: uma análise 473
da atuação do GRUNEC como movimento negro educador das instituições públicas cearenses
prazo de dez dias, conforme os pedidos das partes autoras da ACP, sob pena de
multa diária em caso de descumprimento. Em face da decisão interlocutória, a
URCA apresentou recurso ao Tribunal de Justiça do Ceará, que foi denegado5.
5 A ação civil pública atualmente está em fase de cumprimento de sentença e pode ser
acompanhada pelo site do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará
(https://esaj.tjce.jus.br/cpopg/open.do) por meio do número processual 0201613-
44.2022.8.06.0071.
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474 Livia Maria Nascimento Silva - Cicera Nunes
Quadro 2
Vagas nos concursos das universidades estaduais do Ceará após o Decreto 34.821/2022
Universidade Total de Vagas para cotas no edital Vagas para cotas, conforme
vagas após Decreto 34.821/22 percentual legislativo
URCA 184 37 CN e 9 CPCD 37 CN e 9 CPCD
UECE 135 21 CN e 6 CPCD 27 CN e 7 CPCD
ADJUNTO
UECE 182 37 CN e 11 CPCD 36 CN e 9 CPCD
ASSISTENTE
UVA 145 6 CN e 5 CPCD 29 CN e 7 CPCD
Por meio do Decreto do Poder Executivo, ficou legitimada a divisão de vagas por
região e setor de estudos, assim como o limite máximo da aplicabilidade das cotas.
Com esse amparo normativo, a URCA sustentou sua defesa na ACP com
fundamento no referido Decreto, recorrendo-se ao princípio da autonomia
universitária, prevista na Constituição, para ao final requerer o reconhecimento de
perda superveniente do processo.
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da atuação do GRUNEC como movimento negro educador das instituições públicas cearenses
Quadro 3
Preenchimento de vagas nos concursos da UECE, conforme resultado final
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Violação à lei de cotas em concursos públicos para docentes de nível superior: uma análise 477
da atuação do GRUNEC como movimento negro educador das instituições públicas cearenses
Esses são apenas alguns exemplos para ilustrar as diferentes maneiras de garantir
a maximização dos efeitos da política de cotas, pois, como nos ensina a Vaz (2022),
o percentual legislativo de vagas reservadas, não é teto, mas o mínimo legal. Se a
política de fracionamento adotada restringe a possibilidade de efetivar as cotas
para negros/as e pessoas com deficiência, obviamente deve-se alterar a
metodologia, extinguindo-se o fracionamento como opção.
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478 Livia Maria Nascimento Silva - Cicera Nunes
Deste modo, o GRUNEC vem abrindo caminhos por meio da litigância estratégica,
para promover um verdadeiro processo estrutural de combate as violações à lei de
cotas, atuando como educador jurídico antirracista, ao ressignificar os sentidos das
normas sobre igualdade, combate ao racismo, ações afirmativas e sua
aplicabilidade, a partir da realidade e contexto atual.
França, Möller e Nóbrega (2022) explicam que a origem do processo estrutural está
ligada ao ativismo da Suprema Corte americana durante a “Corte Warren” (1953
a 1969), período em que foi julgado o caso Brown v. Board of Education of Topeka.
Depois de reconhecer a inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas de
Topeka, a Suprema Corte percebeu a dificuldade de implementar de modo amplo
a decisão, em um quadro de grande complexidade. Deflagrou-se, então, o caso
Brown II, no qual a Corte autorizou a elaboração de planos, visando à eliminação
gradual da prática segregacionista, a serem supervisionados pelos tribunais locais.
Depois, o modelo expandiu-se e foi usado pelo Judiciário norte-americano em
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Violação à lei de cotas em concursos públicos para docentes de nível superior: uma análise 479
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Considerações finais
É nesse contexto que se insere a defesa das ações afirmativas como uma das
bandeiras mais importantes da luta antirracista ao longo do século XX e início do
século XXI. Temos na Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação
Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Declaração de Durban, 2001), um marco
histórico, quando o Estado brasileiro, diante de uma intensa mobilização das
organizações negras brasileiras, assume o compromisso pela implementação de
ações afirmativas. No Estado do Ceará, o GRUNEC surge nesse contexto das
mobilizações internacionais e nacionais, a partir das trajetórias de luta antirracista
de parte dos/as seus/suas integrantes.
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Referências
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482 Livia Maria Nascimento Silva - Cicera Nunes
https://www.scielo.br/j/rbeped/a/P776XJTh5SHWPgDKhpGJT8p/?format=pdf&la
ng=pt. Acesso em 05 jul. 2023.
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas
populares. Petrópolis: Vozes, 2017.
MELLO, Luiz; RESENDE, Ubiratan Pereira de. Concursos públicos para docentes
de universidades federais na perspectiva da Lei 12.990/2014: desafios à reserva de
vagas para candidatas/os negras/os. Revista Sociedade e Estado, v. 34, n. 1, jan./abr.
2019. Disponível em:
scielo.br/j/se/a/FxSgTjKCPwjckjYxwX5jR9g/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 31
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v. President and fellows of Harvard College. Disponível em:
https://www.supremecourt.gov/opinions/22pdf/20-1199_hgdj.pdf. Acesso em 27
jun. 2023.
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Violação à lei de cotas em concursos públicos para docentes de nível superior: uma análise 483
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Sobre as autoras
Livia Maria Nascimento Silva
Mestra em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas pela
Universidade Federal da Paraíba. Graduada em Direito e Especialista
em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri.
Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação, Gênero
e Relações Étnico-Raciais – NEGRER/URCA. Advogada. Presidente e
assessora jurídica do Grupo de Valorização Negra do Cariri – GRUNEC.
Cicera Nunes
Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará.
Professora adjunta do Departamento de Educação da Universidade
Regional do Cariri – URCA. Coordenadora do Núcleo de Estudos e
Pesquisas em Educação, Gênero e Relações Étnico-Raciais –
NEGRER/URCA.
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52423
dossiê
Kendall Thomas1
1
Universidade de Columbia, Columbia Law School, Nova Iorque, Nova Iorque,
Estados Unidos da América. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4369-3084.
Submetido em 30/01/2024
Aceito em 30/01/2024
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ISSN 2447-6684
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488 Kendall Thomas
Resumo
Em palestra proferida em 2020 no seminário Oxford Law and Equality Lecture, a partir de
leituras e escritos interdisciplinares sobre o direito e a política da raça nos Estados Unidos,
o Professor Kendall Thomas apresentou descrição crítica dos ataques que a Teoria Crítica
Racial (Critical Race Theory – CRT) sofreu pela administração de Donald Trump e os
grupos políticos de extrema-direita. A palestra foi transcrita e traduzida por Inara Flora
Cipriano Firmino para o dossiê “Direitos e relações raciais” da InSURgência.
Palavras-chave
Teoria crítica da raça. Analfabetismo racial. Donald Trump.
Resumen
En una conferencia impartida en 2020 en el seminario Oxford Law and Equality Lecture,
basada en lecturas y escritos interdisciplinarios sobre el derecho y la política racial en los
Estados Unidos, el profesor Kendall Thomas presentó una descripción crítica de los
ataques que la Teoría Crítica de la Raza sufrió la administración de Donald Trump y los
grupos políticos de extrema derecha. La conferencia fue transcrita y traducida por Inara
Flora Cipriano Firmino para el dossier de InSURgência “Derechos y relaciones raciales”.
Palabras-clave
Teoría Crítica de la Raza. Analfabetismo racial. Donald Trump.
Abstract
In a lecture given in 2020 at the Oxford Law and Equality Lecture seminar, based on
interdisciplinary readings and writings on the law and politics of race in the United States,
Professor Kendall Thomas presented a critical description of the attacks that Critical Race
Theory suffered from the administration of Donald Trump and far-right political groups.
The lecture was transcribed and translated by Inara Flora Cipriano Firmino for the
InSURgência dossier “Rights and racial relations”.
Keywords
Critical Race Theory. Racial Illiteracy. Donald Trump.
Nota da tradutora
A razão pela qual escolhemos dialogar com o professor Kendall Thomas e seus
escritos recentes sobre a Critical Race Theory (CRT)1 advém do cenário atual, no qual
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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 489
um relatório da linha de frente
Por tal razão, o diálogo acadêmico intercultural com a palestra proferida pelo
professor Thomas torna-se interessante por conectar teoria racial, política e o
direito, a partir de análises do sistema jurídico constitucional. A Teoria Crítica
Racial, como argumenta o professor, pode ser usada para destacar a consciência
de raça/cor e as escolhas politizadas inerentes à jurisprudência supostamente
neutra e cega à cor da pele. Aqui no Brasil, crença no discurso metarracial,
compreendido pela miscigenação da identidade nacional e a ausência de
desigualdades sociais entre brancos e negros no Brasil, mascara o silêncio e as
forma como a supremacia branca e o racismo institucional estão difundidos nas estruturas sociais
e, particularmente, no direito. Através de um exame das formas como as instituições jurídicas
perpetuam a marginalização das comunidades negras e das formas racializadas legitimadas de
violência, a CRT fornece uma lente analítica específica para identificar e começar a desmantelar
o racismo sistémico apoiado pela lei.
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490 Kendall Thomas
Em um país com desigualdades raciais tão gritantes e tão profundas como o Brasil,
onde muitas pessoas simplesmente não têm acesso a cuidados de saúde,
alimentação adequada, acesso à justiça e principalmente à educação, os
movimentos sociais têm mobilizado o judiciário em diferentes ações
impulsionando, de forma pedagógica, uma leitura a contrapelo do ordenamento
jurídico nacional. Estamos falando de uma política pedagógica de alfabetização
das relações raciais no país pela presença e pela oralidade da pluralidade dos
grupos sociais que o constitui. Avaliar o direito brasileiro em termos de
incorporação de discursos de proteção igualitária em pretuguês (Pires, 2017), dado
que o direito tem a capacidade de produzir poder racial da branquitude, nos
interessa diante de uma proposta de abordagem que seja ao mesmo tempo
afrocentrada, como a CRT ou Direito e Relações Raciais, e baseada na conjuntura
histórica e contemporânea da sociedade brasileira.
Nesse sentido, sem a pretensão de que a Teoria Crítica Racial tenha uma aplicação
direta no contexto brasileiro, a ideia da conversa intercultural é de ampliar nossas
perspectivas sobre os limites do trabalho acadêmico e das teorias sobre racismo
desenvolvidas em contextos nacionais específicos, também considerando as
questões raciais intersectadas a outros marcadores.
Com isso em mente, sigamos com a análise do professor Thomas sobre o cenário
contemporâneo da Teoria Crítica Racial, nos Estados Unidos. A partir de leituras
e escritos interdisciplinares sobre o direito e a política da raça nos Estados Unidos,
em 2020, por ocasião do seminário Equality and Diversity Lecture na Faculdade de
Direito de Oxford, o autor ministrou palestra com uma descrição crítica dos
ataques que a CRT sofreu pela administração de Donald Trump e os grupos
políticos de extrema-direita. A palestra foi intitulada Teoria Crítica Racial, “Teoria
Crítica Racial” e a armamentização do analfabetismo racial: um relatório da linha de frente
(Thomas, 2020), aqui apresentada, com anuência do autor, pela primeira vez
traduzida ao português brasileiro.
***
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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 491
um relatório da linha de frente
Uma marca deste movimento moderno por justiça racial é o lugar de destaque que
dá ao problema do racismo institucional, que é a face da injustiça racial no século
XXI. O racismo institucional escapa à ótica da ordem jurídica e política liberal que
tornou possível a chamada “revolução dos direitos civis”. O liberalismo vê a raça
e o racismo através de uma lente moral e não política. Na visão liberal do mundo,
a injúria racial é uma negação discreta, proposital e intencional de direitos legais
formais aos indivíduos, não uma subordinação estrutural arraigada de um grupo
social.
2 [N.T.] O Presidente Donald Trump emitiu uma Ordem Executiva, em setembro de 2020,
procurando excluir a formação/educação em diversidade e inclusão dos contratos federais, caso
essas formações contivessem os chamados “conceitos divisionistas”, teoria “da divisão” e
"antiamericana"., como estereótipos e bodes expiatórios com base na raça e no sexo. Na sequência
da Ordem Executiva, os ataques à Teoria Crítica Racial dispararam. No entanto, muitas dessas
discussões descaracterizaram a CRT, como o professor Thomas explica em sua palestra.
3 [N.T.] No texto original, Kendall Thomas fala black and brown, que no texto foi traduzido como
pretos e pardos, nomenclatura que não é utilizada nos Estados Unidos.
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492 Kendall Thomas
Esta noite, quero falar sobre uma segunda dimensão, igualmente significativa,
deste movimento moderno de justiça americano: a prioridade que ele concede ao
desenvolvimento de uma política de alfabetização racial crítica. A alfabetização
racial crítica é, acima de tudo, um projeto histórico que busca moldar uma
linguagem comum que possa conectar lutas presentes e passadas. Uma das
características mais marcantes do ativismo antirracista defendido pelo movimento
por vidas negras de resistência crítica, entre outros, é a escavação da história da
escravidão e o renascimento do conceito de abolicionismo. Os ativistas do
movimento pelo fim do encarceramento em massa, que primeiro se voltaram para
o estudo da filosofia e da política abolicionistas, o fizeram como forma de destacar
as raízes históricas do moderno complexo industrial prisional na instituição da
escravidão.
Desde então, o abolicionismo tornou-se uma bandeira sob a qual uma ampla gama
de movimentos de justiça social tem trabalhado, e aqui estou citando Dorothy
Roberts5, “desmantelar uma ampla gama de sistemas, instituições e práticas além
da punição criminal”. O engajamento com questões da escravidão e da memória
produziu novos modos de análise, argumentação e ativismo, que ampliaram o
vocabulário e transformaram a agenda dos movimentos antirracistas
contemporâneos. O que espero mostrar esta noite, é que não é a Teoria Crítica
Racial (CRT), mas o projeto de alfabetização crítica dos movimentos de justiça
racial que é o verdadeiro alvo dos ataques de Donald Trump.
Meu argumento, em resumo, é que o que interessa à Trump não é a Teoria Crítica
Racial em si mesma, mas sim a produção e distribuição de uma fantasia cultural
que ele pode chamar de Teoria Crítica Racial e que, por sua vez, lhe permitirá se
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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 493
um relatório da linha de frente
Ora, embora cada um destes diferentes tipos de textos - chamemos, por enquanto,
apenas de textos - apresente certas formas de pensar e de falar sobre raça por parte
do Poder Executivo do Governo Federal, nenhum deles, realmente, usa a noção de
Teoria Crítica Racial. Permitam-me que volte a dizê-lo. Nenhum deles, na verdade,
usa o termo Teoria Crítica Racial. Há uma razão para isso: a estranha escolha de
textos que não mencionam nem uma palavra sobre a CRT é inspirada em Michel
Foucault que, escrevendo há muitos anos, propôs uma abordagem para o estudo
das relações de poder que buscaria, ao citá-lo, descobrir o que nossa sociedade
entende por legalidade, investigando a maneira como ela define e demarca o
domínio da ilegalidade.
6 [N.T.] Texto original da Ordem Executiva 13.950 pode ser consultada no site do Governo Federal
dos Estados Unidos. Ver Combating... (2020).
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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 495
um relatório da linha de frente
documento se recusa a usar o termo Teoria Crítica Racial em qualquer lugar de sua
lista de conceitos oficialmente “divisionistas”.
Devo dizer, ainda, que esse descuido parece ter sido deliberado, uma vez que a
expressão Teoria Crítica Racial junto com o termo “privilégio branco” já havia
aparecido em uma carta de 4 de setembro do chefe do escritório de gestão e
orçamento. Uma possibilidade óbvia que foi levantada contra outras Ordens
Executivas de Trump é que a falha em mencionar a Teoria Crítica Racial pelo
nome, simplesmente reflete uma má redação legal. Mas, novamente, dado o
barulho que estava acontecendo dentro do Governo na Fox News e nas páginas de
quase todos os jornais de registro nos Estados Unidos, é difícil acreditar na
incompetência como uma explicação completa para a ausência do termo Teoria
Crítica Racial em uma ordem administrativa que teria sido uma resposta direta à
Teoria Crítica Racial.
Agora, para o início de uma resposta à pergunta de por que a Teoria Crítica Racial
não aparece em nenhum lugar do texto, vamos à seção 01 da Ordem, que contém
a declaração preparatória do Governo sobre o propósito da ordem, revelando as
verdadeiras apostas por trás da agenda política do Governo Trump. A primeira
coisa a notar sobre a seção de abertura da Ordem Executiva é que se trata de um
registro retórico radicalmente diferente, que eu só posso realmente transmitir
lendo longamente o texto, então, espero que vocês me compreendam.
7 [N.T.] Texto original: “Purpose. From the battlefield of Gettysburg to the bus boycott in
Montgomery and the Selma-to-Montgomery marches, heroic Americans have valiantly risked
their lives to ensure that their children would grow up in a Nation living out its creed, expressed
in the Declaration of Independence: “We hold these truths to be self-evident, that all men are
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496 Kendall Thomas
Em seus termos de tenor, essa linguagem tem pouca semelhança com a prosa
estatal que se costuma encontrar em documentos deste tipo. Baseando-se nas
convenções literárias da versão liberal moderna do sermão político, as disposições
preliminares da Ordem Executiva 13.590 encenam uma lição cívica presidencial
atingindo todos os nacionalistas de direita que combatem o hino da república. Nos
parágrafos que se seguem, porém, o tom transpõe-se abruptamente para uma
chave decididamente mais feia e iliberal. O documento continua:
created equal.” It was this belief in the inherent equality of every individual that inspired the
Founding generation to risk their lives, their fortunes, and their sacred honor to establish a new
Nation, unique among the countries of the world. President Abraham Lincoln understood that
this belief is “the electric cord” that “links the hearts of patriotic and liberty-loving” people, no
matter their race or country of origin. It is the belief that inspired the heroic black soldiers of the
54th Massachusetts Infantry Regiment to defend that same Union at great cost in the Civil War.
And it is what inspired Dr. Martin Luther King, Jr., to dream that his children would one day
“not be judged by the color of their skin but by the content of their character.” (Combating...,
2020).
8 [N.T.] Texto original: “Today, however, many people are pushing a different vision of America
that is grounded in hierarchies based on collective social and political identities rather than in the
inherent and equal dignity of every person as an individual. This ideology is rooted in the
pernicious and false belief that America is an irredeemably racist and sexist country; that some
people, simply on account of their race or sex, are oppressors; and that racial and sexual identities
are more important than our common status as human beings and Americans.” (Combating…,
2020).
9 [N.T.] E Pluribus Unum é o lema nacional dos Estados Unidos. Traduzido do latim, significa “de
muitos, um”. Refere-se à integração das treze colônias independentes em um país unido e ganhou
um outro significado, da natureza pluralística da sociedade norte-americana devido à imigração.
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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 497
um relatório da linha de frente
Agora, a Casa Branca realmente chega perigosamente perto de insinuar que pode
não haver cegueira racial, o que, ironicamente, a alinharia com o argumento a que
me referi anteriormente sobre a impossibilidade de uma neutralidade. O problema
político a que a Ordem Executiva responde não são os conceitos “divisionistas”
referidos nas suas disposições operacionais. O problema, ao contrário, ao qual a
seção de propósito preparatório se dirige é o problema político da disputa entre
muitas pessoas e o Governo Federal sobre o que proponho chamar de “domínio
narrativo” sobre a história estadunidense.
Os estudiosos de raça de hoje, em outras palavras, podem afirmar que suas ideias
sobre raça, racismo e hierarquia racial são novas e revolucionárias, mas não são
nenhuma das duas. Muito poderia ser dito sobre esta estranha passagem, a
começar pela linha forçada de sucessão intelectual e ideológica que ela traça entre
os americanos do século XXI, que argumentam que raça e racismo ainda importam
neste país, e as gerações de escravocratas brancos e seus apologistas que
compraram, venderam e defenderam a compra e venda de negros como escravos.
No entanto, resistirei a esta tentação e me limitarei a três pontos rápidos: 1) note-
se que esta é a primeira e única referência do texto à escravidão; 2) a principal
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498 Kendall Thomas
As 193 Ordens Executivas que Donald Trump emitiu até agora excedem o número
das emitidas por seus antecessores. Escrevendo no Jornal Washington Post da
semana passada, a repórter da Casa Branca Ann Guerin argumentou que “as
ordens agressivas, altamente politizadas e, às vezes, desleixadas do presidente se
destacam tanto no estilo quanto na substância”. Guerin também observa a
frequência com que Trump tem usado Ordens Executivas “para atrair sua base
política majoritariamente branca, alimentando a divisão racial e cultural”. Guerin
cita um especialista em política externa conservador e aliado de Trump, que
admite que “é uma espécie de coisa de relações públicas, o poder da presidência é
exatamente o mesmo”.
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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 499
um relatório da linha de frente
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500 Kendall Thomas
pessoas se imaginam e suas conexões umas com as outras ocupa um lugar crucial.
A presidência simbólica de Donald Trump reconfigurou radicalmente a linha entre
política e administração, por um lado, e política e imaginação, por outro.
Durante seu mandato no Salão Oval, aliás, a corrida presidencial tem sido um
elemento-chave na projeção imaginária de Trump do poder presidencial. Isso não
é surpreendente quando se considera que Trump pavimentou seu caminho para a
Casa Branca ao alimentar suspeitas de que o primeiro presidente negro dos
Estados Unidos não estava de fato constitucionalmente qualificado para ocupar o
cargo. Nesse sentido, na leitura que estou propondo, a Ordem Executiva sobre o
combate aos estereótipos de raça e sexo se torna um palco textual para um jogo
presidencial simbólico de imaginação política. É, também, um local para uma
atuação específica, uma vez que seu status como exercício do poder executivo
administrativo lembra a linguagem da cláusula de cuidado do artigo 2º da
Constituição, permitindo que Trump fale à nação através, e como a voz, do Estado.
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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 501
um relatório da linha de frente
Chris Wallace: nossos filhos são ensinados a odiar na escola, para odiar
nosso país. Como você vê isso?
Donald Trump: Eu só olho para isso. Olho para a escola, assisto, leio. Olha
essas coisas. Agora eles querem mudar o ano de 1492, quando Colombo
descobriu a América. Sabe, nós crescemos com isso. Foi o que aprendemos.
Agora eles querem torná-lo o projeto de 161916. De onde veio isso? O que
isso representa? Eu nem sei.
Chris Wallace: Escravidão.
Donald Trump: É o que eles estão dizendo. Que eles nem sabem. Eles só
querem fazer uma mudança e cancelar a cultura. Eu odeio o termo, mas eu
realmente uso.
Chris Wallace: Mas eles estão ensinando as pessoas a odiarem a América?
Donald Trump: A cancela a cultura. Bem, eu acho que sim. Sim, acho que
sim. Olhe para os professores, veja o que está acontecendo nas faculdades.
16 [N.T.] Donald Trump faz referência ao ano em que, no Porto de Virgínia, chegaram negros
escravizados. Para contar a história de como a escravização norte americana moldou as
instituições políticas, econômicas e sociais do país, a jornalista Nikole Hannah-Jones publicou em
agosto de 2019, no New York Times Magazine, o Projeto 1619. Nesse projeto, o jornalista diz que
1619 seria a data que marca o momento verdadeiro de fundação dos Estados Unidos. O projeto
está disponível em: https://pulitzercenter.org/lesson-plan-grouping/1619-project-curriculum
(The New York Times Maganize, [s.d.]).
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502 Kendall Thomas
17 [N.T.] The Fateful Triangle (Hall, 2017b) faz parte de uma série de publicações da Universidade
de Harvard baseadas em palestras (lectures) conferidas por diferentes especialistas de diversas
áreas do conhecimento sobre temas que foram estudados por W.E.B. Du Bois, sociólogo
estadunidense, historiador e ativista pelos direitos civis.
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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 503
um relatório da linha de frente
Então, a partir dos insights de Hall, ofereço três pontos sobre o discurso racial que
opera na, e através, da presidência simbólica de Donald Trump. Christopher Ruffo,
a quem Trump deve seu conhecimento sobre o que é a Teoria Crítica Racial, acusou
em uma entrevista que “a Teoria Crítica Racial se tornou, em essência, a ideologia
padrão da burocracia federal e agora está sendo armada contra o povo americano”.
Agora, por que isso acontece? Bem, acho que tem relação com a crise da
alfabetização americana e a ausência de alfabetização racial nos Estados Unidos.
Mas o ponto que quero dizer é que o privilégio racializado de Trump de não ser
alfabetizado racialmente. É uma rede densamente chapeada que manipula o
conhecimento, e o conhecimento de Trump. E o analfabetismo racial, que é uma
espécie de pano de fundo da presidência simbólica de Trump e para o qual,
francamente, acho que podemos apontá-lo como um exemplo, aparece mais
salientemente na pura energia e esforço do governo Trump em humilhar e,
literalmente, desacreditar dos apelos da população negra no debate nacional nos
Estados Unidos quando falava sobre a escravidão e suas consequências. E digo
isso, se não o disse antes, tendo plenamente em mente que não contém em nenhum
dos outros documentos, mas a Ordem Executiva contém uma dupla proibição de
raça e sexo imposta pelo Poder Executivo.
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504 Kendall Thomas
o discurso racial para jogar uma espécie de jogo de palavras, no qual a Teoria
Crítica Racial passa a significar o que ele quiser que signifique, ou simplesmente
não signifique nada.
Essa articulação, para usar outro termo de Stuart Hall, de alfabetização básica ou
funcional, de um lado, e alfabetização racial, de outro, é o espaço dentro do qual
Trump pode criar, não apenas confusão e incoerência, mas um caos significativo
em torno da questão do trabalho. Então, o que os ataques à Teoria Crítica Racial,
mesmo que sem nome, ao Projeto de 1619 e à proibição de uso dos conceitos
divisionistas tornam evidente é o trabalho específico que a raça em conjunto com
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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 505
um relatório da linha de frente
Então, porque devemos nos preocupar com a política de palavra em que Trump se
envolve? Devemos nos preocupar, porque o armamento do Governo Trump e a
deturpação da Teoria Crítica Racial parecem ter tirado uma página da cartilha de
jogos de seus equivalentes de direita na Europa e na América do Sul. Os
movimentos nesses países usam algo a que chamam de Teoria de Gênero ou
Ideologia de Gênero para atacar os movimentos sociais que buscam justiça
democrática para mulheres, pessoas negras, migrantes e outros na Europa e na
América do Sul.
No livro Queer Theory: The French Response, o estudioso francês Bruno Perreau19
relata as controvérsias políticas que acompanharam a lei do casamento ao estender
na França o casamento civil a gays e lésbicas. Uma coalizão de políticos,
intelectuais, instituições e figuras religiosas e outras organizações da sociedade
civil mobilizaram-se, não apenas para se opor à reforma governamental da lei do
casamento francesa, mas também para atacar aquilo a que o movimento contra o
casamento entre pessoas do mesmo sexo chamou de Teoria de Gênero. Ora, o
interessante sobre a Teoria de Gênero, na perspectiva de Bruno Perreau, é que se
trata, na verdade, de uma fantasia política criada pelo próprio movimento. A visão
da Teoria de Gênero na qual os opositores franceses do casamento igualitário
estavam obsessivamente focados, por exemplo, não existia antes de sua
enunciação e implantação no debate de políticas públicas. Uma vez que foi
constituída para servir a ambos como uma arma política, a Teoria de Gênero
tornou-se um dispositivo político e um campo de batalha na legislação e na cultura
francesa sobre o casamento para todos. A lição que o professor Perreau tira do
19 [N.T.] Bruno Perreau é especialista em teoria crítica, política e literatura e cultura francesa
contemporânea. É Professor de Estudos Franceses, no Massachusetts Institute of Technology e é
docente associado do Centro de Estudos Europeus de Harvard.
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506 Kendall Thomas
exemplo francês é que os discursos de citação não existem antes da política pública,
assim como não são o resultado dela. Eles são como parasitas.
Quero sugerir que o mesmo pode ser dito sobre a Teoria Crítica Racial e a guerra
de Trump contra essa fantasia política que ele construiu da Teoria Crítica Racial.
Eu poderia, na época se me fosse permitido, analisar cada uma das nove ou dez
subcláusulas da seção de definição da Ordem Executiva e contestar a
caracterização que alguns fizeram de que cada uma delas como um princípio da
Teoria Crítica Racial. Eu começaria, por exemplo, com a utilização do termo
inerente como arma, o que é particularmente irrelevante dado o que venho
dizendo sobre o fato de a Teoria Crítica Racial, como apontam os movimentos
sociais antirracistas associados ao abolicionismo, ser uma visão e uma prática
intelectualmente enraizada de forma rigorosa na atenção cuidadosa à história. O
que quero dizer agora é que a Teoria Crítica Racial é uma teoria e prática do
letramento racial crítico, que visa escavar e aprender com o conhecimento
subjugado, segundo expressão de Michel Foucault, daqueles que foram deixados
de fora da balança da justiça e excluídos da plena participação no direito, na
política, na cultura e na história dos Estados Unidos.
O pretendo agora é conectar a afirmação que fiz sobre a Teoria Crítica Racial
enquanto uma teoria e prática do letramento racial crítico com a história nos
Estados Unidos de algo que chamo de educação para a abolição, sobre a qual o
grande historiador W.E.B. Du Bois escreve em sua magistral história Reconstrução
negra na América. Nesse livro, Du Bois observa “que a massa dos escravos não
poderia ter educação. As leis sobre esse ponto eram explícitas e severas”. Du Bois
antecipa aqui uma sentença semelhante à da decisão de 1954 da Suprema Corte
dos EUA, Brown versus The Board of Education, na qual o juiz Earl Warren,
escrevendo para a Corte sobre o caso envolvendo uma contestação do espaço racial
legalmente imposto em uma escola pública, também observa que havia leis contra
ensinar escravos a ler e escrever.
O que Du Bois esquece de dizer é que essas leis eram leis criminais que impunham
sanções penais. A criminalização e punição criminal do ato de aprender enquanto
negro, por exemplo, esteve por trás na origem da promulgação do código revisado
da Virgínia, de 1819 -estatuto que antecipou a adoção, na década de 1830, de leis
semelhantes em quase todos os outros estados escravistas, após a revolta de Nat
Turner de 1831. Essa lei proibia “todas as reuniões ou ajuntamento de escravos,
negros livres ou mulatos que se misturassem ou se associassem a tais escravos”.
Mesmo que pudessem ser seus maridos, esposas, filhos, irmãos, irmãs. A mistura
e associação com escravizados em qualquer casa de reunião ou casas durante à
noite ou em qualquer escola para ensiná-los a ler ou escrever, de dia ou de noite,
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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 507
um relatório da linha de frente
sob qualquer pretexto, a lei impunha uma punição de castigo corporal de até 20
chibatadas. Assim, nos Estados Unidos, o regime de escravatura infantil era um
regime, a que me referi anteriormente de analfabetismo compulsório, que usava a
criminalização e as sanções criminais para proibir e punir a educação de afro-
americanos escravizados.
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508 Kendall Thomas
O letramento racial, cujas bases foram lançadas pela geração da reconstrução, tem
sido crucial não apenas para a prática da democracia racial, mas para a formação
de um letramento racial crítico. A jurista Carol Lani Guinier definiu o letramento
racial como “a capacidade de decifrar a gramática racial duradoura que estrutura
hierarquias racializadas e enquadra a narrativa de nossa república”. O letramento
racial, cujas bases foram lançadas por esta geração, viria a se tornar, nas décadas
seguintes e até hoje, um recurso crítico no projeto afro-americano em curso de
escrever uma contra-narrativa de nossa república, que inscrevesse os afro-
americanos na narrativa americana.
Para concluir, em 1995, Kimberly Williams Crenshaw, Neil Gotanda, Gary Peller e
eu publicamos em nossa coletânea de Teoria Crítica Racial, de 1995, os principais
escritos que fundaram o movimento, naquele mesmo ano, em uma reflexão
profética sobre racismo e fascismo. Tony Morrison, já falecida, insistia que não
poderíamos medir e nem compreender plenamente o significado do racismo
contemporâneo sem atender ao seu “gêmeo súcubo, o fascismo”. Para Morrison, o
coração do fascismo, aquilo que o torna reconhecível, chama-se sua necessidade
de expurgo. Essa frase começa a ganhar grande ressonância com o expurgo da
Teoria Crítica Racial. No entanto, como nos lembra o historiador Robert Paxton, à
semelhança de outras características do fascismo, esta política purgativa não é a
mesma ao longo do tempo e do espaço. Paxton afirma que “cada variante nacional
do fascismo extrai sua legitimidade não de alguma escritura ou cartilha universal,
mas sim do que considera, ou, pelo menos, pode persuadir”. Seus seguidores
acreditam que são “os elementos mais autênticos de sua própria identidade
comunitária”. A título de exemplo, Paxton sugere que nos EUA a religião
“certamente desempenharia um papel muito maior em um fascismo autêntico” do
que na Europa. Na Ordem Executiva que combate os estereótipos de raça e sexo,
como nos outros textos que pesquisei, Donald Trump não deixa dúvidas de que,
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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 509
um relatório da linha de frente
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510 Kendall Thomas
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KENDALL, Thomas. Critical Race Theory, 'Critical Race Theory', and the
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PERREAU, Bruno. Queer Theory: The French Response. Stanford, Calif.: Stanford
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https://www.nytimes.com/interactive/2019/08/14/magazine/1619-america-
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Teoria Crítica Racial, “Teoria Crítica da Raça” e a armamentização do analfabetismo racial: 511
um relatório da linha de frente
Sobre o autor
Kendall Thomas
Professor de Direito na Universidade de Columbia, em Nova York, desde
1984. Dedica-se ao direito constitucional comparado e aos direitos
humanos, cujo ensino e pesquisa concentram-se na Teoria Crítica
Racial, na filosofia jurídica, na teoria jurídica feminista e direito e
sexualidade. Cofundador e diretor do Center for the Study of Law and
Culture da Columbia Law School, onde lidera projetos e programas
interdisciplinares que exploram como o direito funciona como uma das
formas centrais de criar significado na sociedade. Coeditor da coletânea
Critical Race Theory: The Key Writings that Founded the Movement
(The New Press, 1996) e do livro What's Left of Theory? (Routledge Press,
2000).
Sobre a tradutora
Inara Flora Cipriano Firmino
Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), na área de
concentração em Teoria do Estado e Direito Constitucional, na Linha de
Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Ordem Internacional.
Pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV- Direito SP.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo. Mestra em Ciências (área de concentração:
Desenvolvimento no Estado Democrático de Direito) pelo Programa de
Pós-Graduação em Direito da FDRP/USP, sendo bolsista CAPES.
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Em defesa da pesquisa
Trata-se de seção dedicada a socializar pesquisas, ensaios e artigos
livres, que, em chave crítica, contribuam para a construção de reflexões
e propostas atinentes à temática de direitos e movimentos sociais. A
seção de artigos livres da revista do IPDMS é uma homenagem à
escritora e militante Patrícia Galvão (Pagu), resgatando, em sua
denominação, o título de um ensaio escrito para a edição de 26 de
outubro de 1945 do semanário Vanguarda Socialista.
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.47722
em defesa da pesquisa
Submetido em 23/03/2023
Aceito em 30/06/2023
Pré-Publicação em 10/07/2023
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ISSN 2447-6684
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516 Vitor Bartoletti Sartori
Resumo
Pretendemos mostrar que A sagrada família é um nexo importante entre os textos marxianos
de 1843-44 e A ideologia alemã. Para tanto, explicitaremos como que a crítica de Marx e de
Engels vai constantemente em direção ao aprofundamento da crítica à sociedade civil-
burguesa. Os autores deixam claro que os Direitos do homem, bem como a vida política,
têm suas raízes na vida civil-burguesa, tal qual na sociedade em que essa vida aparece
como algo natural, aquela marcada pelo domínio da burguesia. Mostraremos também que
há, em A sagrada família, um modo de representação específico do domínio burguês, aquele
das ilusões e das superstições políticas.
Palavras-chave
Marx. A sagrada família. Crítica da religião. Política. Direitos humanos.
Resumen
Pretendemos mostrar que La Sagrada Familia es un eslabón importante entre los textos
marxianos de 1843-44 y La ideología alemana. Explicaremos cómo la crítica de Marx y Engels
va constantemente hacia la profundización de la crítica a la sociedad civil-burguesa. Los
autores aclaran que los Derechos del hombre, así como la vida política, tienen sus raíces en
la vida civil-burguesa, al igual que en la sociedad en que esa vida aparece como algo
natural, marcada por el dominio de la burguesía. También mostraremos que hay, en La
Sagrada Familia, una manera de representación específica del dominio burgués, el de las
ilusiones y supersticiones políticas
Palabras-clave
Marx. Holy Family. Critic of Religion. Politics. Human Rights.
Abstract
We intend to show that The Holy Family is an important link between the Marxian texts of
1843-44 and The German Ideology. To do so, we will show how the critique of Marx and
Engels constantly goes towards the deepening of the critique of civil-bourgeois society. The
authors show how the Humam Rights, as well as political life, have their roots in civil-
bourgeois life, as well as in the society in which this life appears as something natural, the
one marked by the dominance of the bourgeoisie. We will also show that there is, in The
Holy Family, a specific mode of representation of bourgeois rule, that of political illusions
and superstitions.
Keywords
Marx. Holy Family. Critic of Religion. Politics. Human Rights.
A sagrada família é uma obra que possui um papel importante no itinerário de Marx
e de Engels. Ao contrário de obras como Crítica à filosofia do Direito de Hegel (2005a),
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 517
Isso traz destaque ao texto que aqui analisaremos no que diz respeito à política e
aos direitos humanos, que são temas bastante recorrentes nos textos de 1843-44,
bem como depois, tanto na década de 1840, quanto nos últimos escritos de Marx.1
E mais: tem-se a situação alemã trazida como algo essencial no livro de Marx e
Engels. E isso aparece tanto nas comparações que os autores realizam entre a
1 Para uma visão geral do assunto no último Marx, Cf. Musto, 2018. No que diz respeito aos direitos
humanos e à política no final da vida de Marx, Cf. Sartori, 2018.
2 A década de 1840 é muito discutida na literatura sobre Marx. Aqui, não entraremos nos
pormenores dos embates sobre o tema, trazendo os debates à tona somente quando necessário à
linha vermelha de nosso texto, que acaba por se focar na concepção de política presente em A
sagrada família.
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518 Vitor Bartoletti Sartori
Bruno Bauer e seus consortes pretendiam uma “crítica crítica” sendo que sequer
se davam conta de algo, de acordo com Marx, basilar: não seria possível criticar o
céu da religião sem criticar igualmente o mundo profano. Tratar-se-ia de algo vão
atacar a teologia sem buscar a própria crítica terrena da política. Como diz Marx
em 1843, na Crítica à filosofia do Direito de Hegel - introdução: “a crítica do céu
transforma-se, assim, na crítica da terra, a crítica da religião, na crítica do direito, a
crítica da teologia, na crítica da política.” (Marx, 2005 b, p. 146) Assim, no título e no
subtítulo da obra que pretendemos tratar aqui há nuances que remetem à crítica
da religião e da política, à especificidade nacional (em especial a alemã) e ao modo
pelo qual uma crítica efetiva precisa se colocar: de acordo com nossos autores, não
tanto se afirmando como “crítica crítica” ou como uma “crítica à crítica crítica”
como colocam ironicamente Marx e Engels no subtítulo da obra, mas como uma
atividade que busque a supressão das oposições que se expressam
mundanamente. Trata-se de algo que não diz respeito só ao acerto ou desacerto
das concepções de mundo; antes, tem-se a necessidade de apreensão reta da
própria realidade efetiva, do ser da realidade, como diz Lukács (2012). A
3 É preciso destacar que não se tem uma Alemanha propriamente unificada nesse momento. Desse
modo, por mais que Marx e Engels se refiram repetidamente aos alemães, à Alemanha, à miséria
alemã e à ideologia alemã, é bom dizer que o elemento nacional não se coloca como hoje nesse
momento. Nesse sentido, a contraposição à França, que passou por uma revolução burguesa e
que traz a unificação nacional consolidada é elucidativa.
4 Para uma análise das linhas gerais desse movimento, de 1842, na Gazeta renana, até 1845-46 em
A ideologia alemã, em especial no que diz respeito à relação entre religião e política, Cf. Sartori,
2021a.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 519
5 No que diz respeito a esses desdobramentos para o presente, em especial em relação à crítica da
política, Cf. Chasin, 2012.
6 Não seguimos aqui a oposição althusseriana (1979) entre o jovem Marx “humanista” e marcado
pela influência de Hegel e, em especial, de Feuerbach e Marx “científico” de O capital. Também
não podemos concordar com a centralidade que uma posição ainda contemplativa da classe
trabalhadora adquiriria em 1844 na obra de Marx, o que seria índice de imaturidade de sua teoria
tanto para autores como Michael Löwy (2002) como para Celso Frederico (2009). Para uma análise
cuidadosa dos anos de 1843-44, acreditamos que as análises de José Chasin (2009) sejam
essenciais. Para a compreensão desse ponto no que diz respeito aos direitos humanos e à política,
Cf. Sartori, 2019.
7 Para uma análise do modo sui generis pelo qual Marx se apropria de modo mediado e reflexivo
de Hegel nesse texto, Cf. Sartori, 2020a.
8 No presente texto, optamos por traduzir a expressão bürgerliche Gesellschaft por sociedade civil-
burguesa (e não somente sociedade civil ou sociedade burguesa), enfatizando tanto a
contraposição entre tal sociedade e a organização política estatal quanto o caráter especificamente
burguês dela. O mesmo procedimento foi adotado no que diz respeito à expressão bürgerliche
Leben, traduzida por vida civil-burguesa.
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520 Vitor Bartoletti Sartori
nesse ano, nos Anais franco-alemães, nos textos Sobre a questão judaica (2010a) e Crítica
à filosofia do Direito – introdução (2003b). O “acertar as contas com a antiga
concepção filosófica” (Marx, 2009, p. 49) pode até aparecer de modo esparso em
artigos de 1843-1844, bem como nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 – em
especial na crítica a Hegel (Cf. Lukács, 2018). Porém, há de se destacar: somente
com A sagrada família e, depois, em A ideologia alemã é que há um corpus mais
robusto e “sistemático”9 para ser analisado: as páginas desses livros repassam de
modo extenso os temas que mencionamos acima de maneira orgânica e articulada
e, por isso, precisam ser analisadas.
Na mesma época, tem-se também o artigo Glosas marginais ao artigo “O rei da Prússia
e a reforma social”, de um prussiano (2010b), publicado no Vorwärtz, em 1844. Nesse
momento, também são redigidos os Manuscritos econômico-filosóficos (2004a), que,
como a denominação denota, permaneceram no estado de manuscritos e, assim,
não foram publicados. E, com isso, a obra que pretendemos analisar aqui realiza
um papel importante de elo entre os artigos publicados por Marx em 1843-44 e
suas obras não publicadas. Grande parte da produção marxiana é realizada em
artigos jornalísticos, tanto na década de 1840 quanto depois, sendo a publicação de
um livro algo considerável. O próximo a ser publicado pelo autor seria A miséria
da filosofia (2004b), de 1847 e, depois, em conjunto com Engels, tem-se o Manifesto
comunista (1998). E, assim, acreditamos que a análise de A sagrada família pode ser
de grande valia para nosso tema.
Um alerta: é verdade que a não publicação de um texto não depõe contra ele;
também não significa que haja insatisfação por parte do autor do texto. Por vezes,
inclusive como no caso dos Grundisse (2011), – como demonstrou Rosdolsky (2001)
– o caráter inconcluso do texto pode até mesmo esclarecer muito sobre a obra
publicada de um autor. Porém, a publicação de um texto, bem como a envergadura
dele, não podem ser desconsiderados de modo algum. Como pretendemos
demonstrar, isso precisa ser levado em conta para que possamos explicitar o modo
como aparece a temática da política em A sagrada família, modo esse que pode
ajudar muito a elucidar alguns aspectos da crítica à política presente em Marx,
aspectos esses que são trazidos nos artigos (bem como nos textos não publicados)
e que foram analisados, sobretudo, por José Chasin (2009).
9 Usamos das aspas aqui porque o pensamento marxiano não é sistemático como aquele da filosofia
clássica alemã de Kant, Fichte e Hegel, por exemplo. Trata-se de uma crítica imanente da própria
realidade, em que são explicitadas as determinações do próprio real. Quando falamos de algo
mais “sistemático” somente queremos dizer que, em A sagrada família, a exposição dessas
determinações é trazida de modo a abranger de modo aproximado a totalidade da realidade da
época dos autores.
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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 521
Uma das temáticas centrais da Crítica da filosofia do Direito de Hegel é a relação entre
sociedade civil-burguesa e Estado. Nessa relação, segundo Marx, tem-se uma
inversão entre sujeito e predicado em Hegel. (Cf. Sartori, 2014) E, assim, seria
preciso notar que tal inversão, no autor da Fenomenologia do espírito, traz um ímpeto
especulativo. Em 1843, diz Marx, assim, que há uma ligação entre tal inversão e o
idealismo hegeliano: “o importante é que Hegel, por toda parte, faz da Ideia o
sujeito e do sujeito propriamente dito, assim como da ‘disposição política’, faz o
predicado. O desenvolvimento prossegue, contudo, sempre do lado do
predicado.” (Marx, 2005a, p. 34) A disposição política, em Hegel, apareceria como
uma determinação da ideia. E, com isso, como diria Marx nos Manuscritos de 1844,
“sujeito e predicado têm assim um para com o outro a relação de uma absoluta
inversão.” (Marx, 2004a, p. 133) No autor da Filosofia do Direito, portanto, a política
teria uma grande importância. Porém, ela – assim como a natureza, em verdade –
seria uma espécie de “estranhamento do espírito”. (Hegel, 1992, p. 39) Ou seja, há
na teoria hegeliana, de acordo com Marx, uma inversão entre sujeito e predicado,
inversão essa que está subordinada à posição idealista de Hegel.
No que diz respeito à relação entre sociedade civil-burguesa e Estado, isso seria
essencial já que uma posição materialista precisaria trazer consigo um enfoque na
10 Como diz Chasin sobre a análise imanente: “tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o
texto – a formação ideal – em sua consistência autosignificativa, aí compreendida toda a grade de
vetores que o conformam, tanto positivos como negativos: o conjunto de suas afirmações,
conexões e suficiências, como as eventuais lacunas e incongruências que o perfaçam.
Configuração esta que em si é autônoma em relação aos modos pelos quais é encarada, de frente
ou por vieses, iluminada ou obscurecida no movimento de produção do para-nós que é elaborado
pelo investigador, já que, no extremo e por absurdo, mesmo se todo o observador fosse incapaz
de entender o sentido das coisas e dos textos, os nexos ou significados destes não deixariam, por
isso, de existir [...]”. (Chasin, 2009, p. 26)
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522 Vitor Bartoletti Sartori
Para Marx, por outro lado, a crítica da terra seria o essencial. E, com isso, o enfoque
daqueles dispostos a apresentar o desenvolvimento histórico efetivo, portanto,
precisaria estar na sociedade civil-burguesa. (Cf. Maciel, 2021) Seria dela que a
análise das formas de consciência deveria partir. E é preciso destacar: a atuação da
sociedade civil-burguesa se daria também de modo dúplice: tanto como sociedade
quanto como Estado. No que se tem outro ponto importante: para os autores de A
11 Isso é verdade também para a obra posterior de Marx, que traz uma análise seminal da chamada
anatomia da sociedade civil-burguesa, que leva à crítica da economia política. Veja-se o que diz
o autor sobre isso no seu famoso prefácio de 1859: “minhas investigações me conduziram ao
seguinte resultado: as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser
explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações
têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência em suas totalidades, condições
estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e franceses do século 18, compreendia sob o nome de
‘sociedade civil-burguesa’. Cheguei também à conclusão de que a anatomia da sociedade civil-
burguesa deve ser procurada na economia política.” (Marx, 2009. p. 47)
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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 523
Os problemas dessa atuação, com isso, não estão essencialmente nas diferentes
figuras do Estado (e em suas formas de governo), mas na própria estrutura da
sociedade. Com isso, Marx e Engels trazem não só que “a sociedade civil[-
burguesa] em seus diferentes estágios, como o fundamento de toda a história”
(Marx; Engels, 2007, p. 42) e que “essa sociedade civil[-burguesa] é o verdadeiro
foco e cenário de toda a história”. (Marx; Engels, 2007, p. 39) Em verdade, eles
explicitam que é necessária a crítica a essa sociedade como um todo, e não só em
suas figuras específicas, como a alemã, por exemplo. Nesse momento, portanto,
surge de modo claro a necessidade da crítica à própria sociedade e vida civil-
burguesas. A década de 1840, com a adesão de Marx e de Engels ao comunismo,
traz esse marco e tal posição de modo destacado. Em verdade, o desenvolvimento
das obras da primeira metade da década gira em torno do aprofundamento dessa
crítica, que ruma, cada vez mais, em direção à economia política.
Tais aspectos são essenciais para que se perceba como A sagrada família se coloca
como uma espécie de elo entre os anos de 1843-44 e 1845-46.
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524 Vitor Bartoletti Sartori
Falando a Engels sobre outro texto, que hoje conhecemos como A ideologia alemã,
Marx diz que “enviamos a maior parte do manuscrito do segundo volume para
esta publicação.” [...] Por causa dessa edição, dado o acordo com aqueles
capitalistas alemães, interrompi momentaneamente meu trabalho de economia.”
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(Marx; Engels, 2020, p. 48) E, assim, nota-se que Marx trabalhava simultaneamente
as temáticas dos dois livros inconclusos e não publicados. E, com isso, não há como
se colocar uma muralha chinesa entre os anos de 1843-44, em que são escritos tanto
A sagrada família quanto os Manuscritos econômico-filosóficos, e 1845-46, de A Ideologia
alemã. Marx ainda explica que haveria uma lógica para a ordem de publicação
mencionada acima:
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526 Vitor Bartoletti Sartori
Que ela se relacione com o Estado é um fato. Porém, é da análise do modo pelo
qual a vida civil-burguesa organiza que advém a compreensão da política, e não o
oposto. De acordo com Marx e com Engels, aquilo a manter coesa a sociedade, em
verdade, são as próprias necessidades e os próprios interesses colocados na
sociedade; o Estado aparece como uma predicação da sociedade. E tais interesses
e necessidades ganham a dianteira na análise crítica, que, cada vez mais, leva a
crítica da terra ao solo material.
Marx e Engels são explícitos quanto a isso e reforçam aquilo que já haviam dito
quando falam sobre os indivíduos dessa sociedade que “a vida [civil-]burguesa e
não a vida política é o seu vínculo real.” (Marx; Engels, 2003, p. 139) E, assim, tal
qual nos artigos de 1843-44, bem como na Crítica à filosofia do Direito de Hegel, há
uma afirmação da sociedade como o sujeito e do Estado como o predicado. No
caso, há também um complemento: a vida social dos indivíduos – no caso, a vida
civil-burguesa, com suas necessidades, interesses e classes sociais12 – e não a
12 Tais complementos são recorrentes na obra que aqui analisamos. Há, nesse sentido, avanços em
relação aos textos anteriores. Porém, de modo algum, tem-se uma ruptura, ou um corte em
desenvolvimento em relação à Ideologia alemã, como quer Althusser (2015). Em verdade, caso se
analise a obra marxiana como um todo, percebe-se que sempre há avanços. Sua obra não é um
sistema fechado e há abertura para aprofundamento das análises, bem como da apreensão das
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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 527
determinações da realidade, havendo sempre incremento em sua análise, por exemplo, ao se ter
em mente a crítica da sociedade civil-burguesa.
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528 Vitor Bartoletti Sartori
Alguns desses momentos são o famoso prefácio de 1859 (2009) e tal passagem de
A ideologia alemã mencionada acima. Há uma breve referência no 18 Brumário de
Luís Bonaparte (1997) e se tem uma menção em nota de O capital (1996) e em
algumas cartas.
Aqui, nosso ponto é que, a partir da análise de A sagrada família, e de seu contexto,
tal relação ganha maior concretude diante do cenário que estamos abordando: só
é possível compreender a relação mencionada remetendo à crítica marxiana à
especulação (ligada à inversão entre sujeito e predicado), à política (relacionada à
subordinação dessa à vida civil-burguesa) e, ao fim, à crítica à própria sociedade
civil-burguesa, cuja anatomia, como diria Marx (2009) posteriormente, está
justamente na economia política. Ou seja, se for para olharmos com calma para a
relação entre a “base” e a “superestrutura” não se prescinde da compreensão
daquilo que José Chasin (2009) chamou das três críticas fundantes do pensamento
propriamente marxiano: a crítica da especulação, da política e da economia
política. Sem olhar para o período formativo da posição propriamente marxiana,
não se tem uma visão adequada da teoria do autor sobre o assunto. Mesmo que
seja essencial tratar das obras posteriores, deixar de lado uma análise detida da
década de 1840 é inaceitável para qualquer estudo sério sobre Marx.
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Tanto as Glosas quanto Sobre a questão judaica não eram tão explícitas quanto a tal
aspecto. A necessidade da crítica à sociedade civil-burguesa já aparecia com todas
as letras nesses textos; aqui, ela avança como uma crítica mais detida à sociedade
e à vida civil-burguesa. O movimento que se mostra no texto é aquele de
aprofundamento na apreensão da riqueza de determinações dessa sociedade, que
passa a ser criticada cada vez mais com mais afinco e dedicação pelos autores de
A sagrada família. Há, assim, explicitações e avanços no final do ano de 1844,
momento em que Marx já estuda de modo mais sistemático os autores da economia
política, como mostram seus Manuscritos.
Na obra que aqui analisamos, a vida civil-burguesa, bem como a sociedade civil-
burguesa, possuem uma legítima representante: a burguesia. Trata-se da classe
que ganha destaque no modo de produção capitalista, esse último o qual, no livro,
ganha maior ênfase que anteriormente. Mesmo que seu domínio não esteja
completo na Alemanha, como na França, a França deixa de se colocar como um
norte em qualquer sentido.
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530 Vitor Bartoletti Sartori
Para nossos autores, tal ímpeto político dos franceses baseia-se em uma grande
ilusão. Marx fala, inclusive de uma ilusão gigantesca. A tentativa de implementar
as virtudes cidadãs levaria justamente à anarquia, ao domínio dos interesses
privados, da indústria, da concorrência, enfim, daquilo que perfaz a domínio da
vida civil-burguesa e que precisaria ser tratado com calma em uma crítica da
economia política.
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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 531
Sobre esse assunto, em A ideologia alemã, chega-se a dizer que somente se pode falar
da sociedade civil-burguesa como tal com a burguesia, bem como com a ligação
da produção e da troca com o Estado e as distintas formas de consciência que se
colocam na sociedade em que a burguesia aparece como classe dominante. Tem-
se que “a sociedade civil[-burguesa], como tal, desenvolve-se somente com a
burguesia”. (Marx; Engels, 2007, p. 74) O elemento de participação na sociedade,
de “civilidade”, e o elemento “burguês”, portanto, ligam-se de modo ineliminável
na vigência dessa sociedade específica, a sociedade capitalista. Porém, é preciso
destacar também que há um uso da expressão que não corresponde ao modo mais
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532 Vitor Bartoletti Sartori
próprio dessa sociedade: “com este mesmo nome, no entanto, foi continuamente
designada a organização social que se desenvolve diretamente a partir da
produção e do intercâmbio e que constitui em todos os tempos a base do Estado e
da restante superestrutura idealista.” (Marx; Engels, 2007, p. 74)13
No que se tem tanto o aspecto mais geral da crítica de Marx e de Engels à política
quanto algo mais estrito: de um lado, os autores expressam que em todas as épocas,
é a sociedade, e não o Estado, que é o sujeito da relação existente entre essas duas
esferas. Doutro, porém, os autores da Sagrada família tratam do modo específico
pelo qual a vida política acredita ser capaz de controlar a vida civil-burguesa na
atualidade; tem-se a política, bem como a vida política, ganhando proeminência
justamente com a organização inerente ao domínio burguês e ao modo de
produção capitalista. Nesse sentido, fala-se da forma pelo qual o atomismo aparece
na sociedade capitalista, e da maneira pela qual o Estado parece manter a coesão
dessa sociedade ao passo que isso se dá no próprio âmbito social. Percebe-se,
portanto: só com o domínio burguês é que a ilusão segundo a qual a vida política
é capaz de controlar e subordinar a vida civil-burguesa ganha todas as suas cores
e formas. Pelo que vemos, portanto, a historicidade daquilo que José Chasin
chamou de politicismo é destacada por Marx e por Engels e, em verdade, é parte
importante da sociabilidade burguesa, colocada na vida civil-burguesa. O
momento histórico das ilusões políticas é aquele do domínio burguês, portanto. E
é preciso dizer: especialmente em sua figura francesa, a política traz grandes
ilusões, sendo as ilusões da ideologia alemã muito mais pueris que as francesas. A
crítica marxiana, assim, não se volta somente às ilusões, ou, no limite, à superstição
política. Ele está explicitando a conformação da política como tal, bem como do
modo pelo qual se caracterizam objetivamente os direitos humanos.
13 Esse uso ainda aparece em Marx na Crítica à filosofia do Direito de Hegel e ele também é retomado
em outras obras, como na própria Ideologia alemã e em A sagrada família.
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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 533
Os homens egoístas se conformam dessa maneira devido ao modo pelo qual estão
organizados em sociedade. Não se tem, assim, real e efetivamente, um atomismo
dos indivíduos; antes, os interesses, bem como as necessidades naturais, mediadas
pela vida civil-burguesa, é que fazem com que os indivíduos se apresentem e se
representem a si mesmos como átomos. Há, portanto, um modo de representação
bastante característico à moderna sociedade civil-burguesa: aquele das ilusões e da
superstição política.
Aquilo que José Chasin (2009) chamou de politicismo acaba por ter suas raízes
fincadas, não tanto em um enfoque epistemologicamente equivocado no Estado;
antes, tais raízes estão colocadas na própria sociabilidade burguesa e na vida civil-
burguesa.
Tal aspecto fica especialmente claro no livro que aqui analisamos. Isso ilumina
tanto os artigos de 1843-44, que têm um tratamento mais esparso do assunto,
quanto A ideologia alemã, em que a exposição é mais cifrada em diversos momentos.
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534 Vitor Bartoletti Sartori
quando tratam da política. E ela acaba por se ligar com a inversão entre sujeito e
predicado colocada na oposição entre sociedade civil-burguesa e Estado: uma vez
os indivíduos aparecem efetivamente como átomos, seria preciso algo alheio à
sociedade para que pudessem ser organizados. E, com isso, na concepção idealista
que é criticada na obra, o Estado é que organiza a sociedade.
Contra tal superstição, seria preciso afirmar de modo decidido que é a vida civil-
burguesa que organiza a vida política e o Estado, e não vice-versa. Tal superstição
aparece como tal com o domínio da burguesia, de modo que ela tem um caráter
classista, tal qual ocorre, de acordo com Marx e Engels, com os direitos humanos.
E, assim, chega-se a um ponto em que a ligação entre a crítica da religião e da
política se mostra explicitamente.
Remetendo aos seus textos anteriores, eles dizem o seguinte em A sagrada família:
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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 535
dos elementos materiais e espirituais que dão o conteúdo dessa vida, a vida civil-
burguesa. A passagem do céu à terra faz com que a categoria “vida” tenda a ganhar
algum destaque nas teorizações marxianas da época, que procuram aprofundar a
crítica à própria sociedade civil-burguesa. A vida, no entanto, nunca aparece
descaracterizada; ela sempre remete às condições concretas da época e ao modo
pelo qual os homens se colocam em sociedade. Tanto é assim que, no texto que
aqui analisamos, ela aparece principalmente como a vida civil-burguesa, aquela
inerente à própria sociedade civil-burguesa e ao domínio burguês.
Tal qual nos Manuscritos de 1844 (Cf. Hallak, 2018), a categoria vida é importante
para Marx nesse contexto, em que se discute a ligação e correlação do indivíduo
com o gênero humano no processo da atividade humana, cuja mediação
ineliminável e basilar está no trabalho.14 No entanto, em A sagrada família, essa
correlação aparece em um nível de concretude maior que no texto mencionado
anteriormente. E, assim, se nos Manuscritos Marx trata do trabalho estranhado, da
vida e da exteriorização da vida, o que aparece na obra que aqui analisamos tem
outra ênfase: a determinação do modo pelo qual se dá a atividade humana sensível
pela forma pela qual figura a vida, no caso como vida civil-burguesa. Os elementos
trazidos no tratamento marxiano sobre as exteriorizações da vida estão ainda
presentes, certamente. Mas é preciso destacar: as condições concretas pelas quais
essas exteriorizações se dão ganham mais destaque em A sagrada família. Em ambas
as obras, tem-se explícita a necessidade da crítica à sociedade civil-burguesa;
porém, as ênfases são diferentes. O momento de 1844 deixa claro que é preciso
compreender as determinações da própria sociedade. Assim, a crítica à
especulação e à política leva à crítica à sociedade civil-burguesa, o que, como já
dissemos, será desenvolvido posteriormente em uma crítica à economia política.
14 É preciso notar que o universo categorial marxiano certamente traz um embate com outros
autores, como o Hegel da Fenomenologia (1992) e com Feuerbach. Porém, de modo algum, há como
reduzir o autor de A sagrada família a qualquer das posições dos outros autores. Em nenhum
momento há simplesmente uma identidade entre Marx, Hegel e Feuerbach. Para uma análise da
especificidade do pensamento de Marx desde o início da década de 1840, Cf. Chasin, 2009 e
Sartori, 2020a.
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536 Vitor Bartoletti Sartori
Para que a crítica da religião tome um curso adequado, é preciso a crítica ao Direito
e à política. Esses, por sua vez, baseiam-se na vida civil-burguesa, e o movimento
dos textos posteriores será sempre aquele do aprofundamento da crítica a essa
vida.
15 Ao mencionar o nome do autor alemão, não é possível deixar de destacar que importantes autores
chegaram a ver A sagrada família como uma obra essencialmente feuerbachiana, o que não
podemos concordar. Althusser diz sobre a obra que e sobre a crítica Hegel presente nela que “essa
crítica a Hegel não é outra coisa senão, nos princípios teóricos, a retomada, o comentário, ou o
desenvolvimento e a extensão da admirável crítica a Hegel formulada várias vezes por
Feuerbach.” (Althusser, 2015, p. 27) Celso Frederico diz sobre o ano de 1844 que Marx segue
“concebendo o comunismo como a plena realização do ideário comunista de Feuerbach.”
(Frederico, 1995, p. 141) Ele diz ainda que “Marx se aproxima dos aforismos de Feuerbach com
certa liberdade, atribuindo-lhes alcance inimaginável para o autor.” (Frederico, 1995, p. 183) Por
fim, Löwy diz que se tem “o caráter paradoxal da evolução da Introdução à crítica da filosofia do
Estado de Hegel à Sagrada família: o Marx idealista alemão de fevereiro bem como o Marx
materialista francês do fim de 1844 são implícita ou explicitamente “feuerbachianos”!” (Löwy,
2002, p. 159) Não podemos discutir a fundo a posição desses autores, ou as diferenças existentes
entre elas, que são muitas. Porém, é preciso deixar claro que nosso expediente, aquele de uma
análise imanente do texto de Marx, é oposto ao método desses pensadores, que procuram
enquadrar o pensamento marxiano naquele de outros autores (no caso, no de Feuerbach) ao passo
que o desenvolvimento categorial do texto marxiano, por vezes, acaba recebendo menos atenção
do que deveria. Isso se dá porque a preocupação principal acaba sendo ver qual é a referência de
Marx em cada uma de suas frases ao passo que se tem a formação do pensamento propriamente
marxiano, que se coloca desde 1843, como apontou Chasin (2009).
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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 537
O Estado laico, bem como os direitos humanos, que foram tomados como centrais
por Marx em 1842, na Gazeta Renana, portanto, passam longe de ser resolutivos
agora. (Cf. Pereira Neto, 2018; Sartori, 2020a) Eles são partes importantes do
problema. Os direitos humanos, portanto, não superam a religião e não trazem a
emancipação dos homens concretos diante da religião. Antes, tem-se a superstição
política sendo reconhecida na esfera estatal em um grau de universalidade nunca
visto.
De acordo com A sagrada família, as bases reais da religião, com isso, são elevadas
a outro nível. Elas aparecem, por meio da manutenção de seus pressupostos, tanto
no da política quanto no Direito e, em especial, nos direitos humanos, esses últimos
os quais são parte essencial daquilo que Marx chamou de emancipação política.
Sobre esse contexto, diz-se no texto que aqui estudamos o seguinte:
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religião deixa de ser um assunto ligado à forma política da esfera pública e se liga
à vida privada.
No que, novamente, vale destacar: não se supera a religião; ela é colocada em outro
patamar. Os direitos humanos universais trazem uma forma de universalidade
(aquela da política) que se contrapõem à presença da religião no Estado e na esfera
pública. Porém, ela mantém as bases da religião na vida civil-burguesa,
transformando a religião em um assunto privado e tomando os homens, como tais,
como indivíduos, ao mesmo tempo, atomizados e religiosos, egoístas e membros
de uma comunidade ilusória, tanto na esfera privada com a religião quanto na
pública com a política e o Direito.
Ainda sobre esse assunto, é interessante mencionar aquilo que foi chamado em A
sagrada família de comportamento terrorista da Revolução Francesa perante a
religião.17 Nessa revolução, em que a ilusão política foi destacada enfaticamente
por Marx e por Engels, a busca por um Estado laico e o clamor pelo citoyen foram
pungentes. Procurou-se, de modo decidido, o domínio do citoyen sobre o bougeois,
inclusive, sob Napoleão, mesmo que de modo dúplice. 18 E, com isso, não só se teve
16 Quando Marx trata do assunto, ele não diz que todos têm acesso a direitos civis e políticos. Toma
como exemplo a França e os Estados Unidos, de modo que a emancipação política completa não
é sinônimo de abrangência universal da participação cidadã e política. Sobre as dificuldades
dessa abrangência, Cf. Losurdo, 2006, 2004.
17 Como se diz na Sagrada Família, logo depois da passagem que citamos acima: “mostrou-se, enfim,
que o comportamento terrorista da Revolução Francesa perante a religião, longe de contradizer
essa concepção, fez, muito antes, confirmá-la.” (Marx; Engels, 2003, p. 130)
18 O modo pelo qual Napoleão é visto por Marx e por Engels não pode ser tratado aqui. Porém, vale
citar uma passagem dos autores. Nela, vê-se a relação dúplice de Napoleão com a sociedade civil-
burguesa: “Napoleão foi a última batalha do terrorismo revolucionário contra a sociedade
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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 539
Tal concatenação já havia aparecido antes, nas Glosas marginais. Ali também Marx
é claro ao tratar das limitações da política ao dizer que “o intelecto [o
entendimento] político é político exatamente na medida em que pensa dentro dos
limites da política.” E, então, continua o autor deixando clara a unilateralidade da
vida política ao tratar do entendimento político: “quanto mais agudo ele é, quanto
mais vivo, tanto menos é capaz de compreender os males sociais.” (Marx, 2010b,
p. 62) No texto de 1844, tal qual em A sagrada família, a crítica da política é bastante
destacada: vai-se da crítica da religião e da teologia à crítica ao Direito e à política.
burguesa, também proclamada pela Revolução, e sua política. É certo que Napoleão já possuía
também o conhecimento da essência do Estado moderno, e compreendia que este tem como base
o desenvolvimento desenfreado da sociedade burguesa, o livre jogo dos interesses privados etc.
Ele decidiu-se a reconhecer esses fundamentos e a protegê-los. Não era nenhum terrorista
fanático e sonhador. Porém, ao mesmo tempo, Napoleão seguia considerando o Estado como um
fim em si e via na vida burguesa apenas um tesoureiro e um subalterno seu, que não tinha o
direito de possuir uma vontade própria. E levou a cabo o terrorismo ao pôr no lugar da revolução
permanente a guerra permanente. Satisfez até a saciedade o egoísmo do nacionalismo francês,
mas reclamou também o sacrifício dos negócios, o desfrute, a riqueza etc. da burguesia, sempre
que assim o exigisse a finalidade política da conquista.” (Marx; Engels, 2003, p. 142-143)
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540 Vitor Bartoletti Sartori
Sobre isso, Marx aponta que “o período clássico do intelecto [do entendimento]
político é a Revolução Francesa.” No que ele especifica a unilateralidade da vida
política: “bem longe de descobrir no princípio do Estado a fonte dos males sociais,
os heróis da Revolução Francesa descobriram antes nos males sociais a fonte das
más condições políticas.” (Marx, 2010b, p. 62) Com isso, tanto na Glosas quanto na
Sagrada Família, há uma crítica decidida à política, a qual deixa bastante claro: não
se trata da necessidade de se criticar uma figura específica de política, aquela da
Alemanha, em que não estaria desenvolvido o Estado político pleno, ou não estaria
completa a emancipação política. Não se trataria também de buscar a existência, a
vigência e o desenvolvimento completos dos direitos humanos. Antes, em todos
esses textos, tratar-se da crítica à forma política como tal, de modo que se explicita
a própria limitação que caracteriza a política.19
Para Marx e Engels, a superstição política faz parte da própria sociedade civil-
burguesa, sendo a vida política dominada pela vida civil-burguesa. Para nossos
autores, portanto, trata-se de criticar essa própria vida civil-burguesa, bem como
sua organização, a qual posteriormente será analisada com em uma crítica da
economia política. O Estado moderno, por conseguinte, reconhece sua base nos
direitos do homem; porém, esses últimos são o produto autêntico da igualmente
moderna sociedade civil-burguesa. Como já mencionado, isso leva à necessidade
não só da crítica à religião, mas da crítica à política, que redunda naquilo foi
chamado primeiramente por Engels (2020) e, depois, por Marx, de crítica da
economia política. Como diz Marx na Sagrada família:
O Estado moderno reconhece essa sua base natural, enquanto tal, nos
direitos gerais do homem. Mas não os criou. Sendo como é, o produto da
sociedade [civil-]burguesa, impulsionada por seu próprio
desenvolvimento até mais além dos velhos vínculos políticos, ele mesmo
reconhece, por sua vez, seu próprio local de nascimento e sua própria base
mediante a proclamação dos direitos humanos. (Marx; Engels, 2003, p. 132)
19 Acreditamos que essa posição permaneça na obra inteira de Marx; porém, não podemos
desenvolver tal aspecto nesse texto. Para uma visão sobre o assunto na década de 1840, Cf. Sartori,
2020a. A análise do assunto em O capital pode também ser vista. Cf. Sartori, 2021b.
20 Para uma análise cuidadosa da noção de reconhecimento oficial, Cf. Lukács, 2013.
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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 541
Percebe-se, portanto: por mais que o Estado enxergue sua base natural nos direitos
humanos, isso é uma verdade parcial. Ao mesmo tempo em que tais direitos
trazem consigo uma forma de universalidade que se coloca além do privilégio
medieval, essa universalidade mesma é aquela da vida civil-burguesa. Tem-se,
assim, o rompimento com os velhos vínculos políticos e o estabelecimento de
novos. Tais vínculos, agora, remetem aos direitos humanos. O Estado moderno,
com isso, reconhece o local de nascimento e sua base não mais na forma de
privilégios, mas a partir da generalidade desses direitos. Tem-se, com isso, uma
situação em que o Estado pretende controlar a vida dos homens ao mesmo tempo
em que o lucro, o interesse e as necessidades naturais se impõem na sociedade
civil-burguesa e são reconhecidos como uma espécie de base natural.
No livro que aqui tratamos, o “controle social” – para que se utilize a dicção que
Mészáros (1987) tornou célebre – não é possível por meio da vida política. O Estado
e a política tentam reconciliar essa sociedade somente ao passo que não podem e
que vêm a aceitar todos os seus pressupostos e bases. No limite, de acordo com A
sagrada família, há uma interdependência entre a anarquia dessa sociedade e dessa
vida civil-burguesas e a vida política. A situação mesma a qual os revolucionários
franceses ainda buscavam heroicamente dominar, domina os homens que
assumem o governo do Estado moderno.
Como vimos, trata-se do burguês, que, na medida mesma de seu ímpeto ativo,
submete-se a potências estranhadas e sente-se à vontade em meio delas. Como
dizem Marx e Engels na Sagrada família, “a classe possuinte [...]” é marcada pelo
autoestranhamento e ela “se sente bem e aprovada nessa autoalienação [nesse
autoestranhamento], sabe que a alienação [o estranhamento] é seu próprio poder
e nela possui a aparência de uma existência humana” (Marx; Engels, 2003, p. 48) O
deixar-se dominar pelas potências da vida civil-burguesa é visto como uma
existência autenticamente humana, representada na vida política em tons mais ou
menos ilusórios.
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542 Vitor Bartoletti Sartori
Mesmo os direitos humanos, portanto, não são capazes de resolver essas oposições
mencionadas. Eles dependem real e efetivamente delas. No que se tem uma
passagem bastante clara sobre os limites de tais direitos, bem como de sua
dependência:
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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 543
A vigência dos direitos gerais do homem, bem como seu reconhecimento pelo
Estado moderno, é um produto da sociedade civil-burguesa. E, com isso, tem-se
tanto um desenvolvimento para além dos velhos vínculos que se colocam de
maneira política quanto a emergência de potências estranhas que fundamentam
uma vida política marcada pela imposição do interesse privado, da necessidade
inconsciente, o trabalho lucrativo e a necessidade egoísta. A superação do
privilégio, bem como a vigência dos direitos humanos e de seu caráter universal,
trazem a universalidade da vida civil-burguesa.
Para A sagrada família, isso é reconhecido pelo Estado na moderna sociedade civil-
burguesa, com seus direitos naturais do homem, e com o domínio da burguesia.
6 Apontamentos finais
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544 Vitor Bartoletti Sartori
A obra de que tratamos, assim, traz uma espécie de liame entre os artigos dos Anais
franco-alemães, do Vorwärtz e dois textos de mais fôlego, os Manuscritos de 1844, em
que explicitamente Marx se depara com a economia política de modo mais intenso,
e A ideologia alemã, em que, pela primeira vez, a contradição fundamental colocada
entre desenvolvimento de forças produtivas e as relações de produção é trazida à
tona. Há, em A sagrada família um aprofundamento na crítica à própria sociedade
civil-burguesa, que ganharia centralidade posteriormente, principalmente, a partir
da crítica à sua anatomia.
Seria preciso criticar tanto a vida política quanto a vida civil-burguesa. Tal qual
nos artigos de 1843-44, há uma clara crítica à política, não só em uma manifestação
específica, mas naquilo que lhe é inerente. A contraposição entre Alemanha e
França mostra como é vil o idealismo especulativo da ideologia alemã; porém,
passa longe de trazer a França como modelo político. Antes, o que se dá é que os
franceses fornecem o modo clássico pelo qual se desenvolvem as ilusões políticas,
que precisam ser criticadas.
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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 545
Tais ilusões, por sua vez, não são somente um simples equívoco francês, ou um
erro na cognição daqueles que enxergam a França de modo idealista. De acordo
com Marx e com Engels, tanto a religião quanto a ilusão política passam a fazer
parte da vida civil-burguesa. Os autores alemães identificam um modo específico
de representação que caracteriza o domínio da burguesia: aquele das ilusões
políticas. Trata-se, portanto, de algo assentado sobre vida dos homens da
sociedade civil-burguesa, ou seja, sobre condições objetivas de uma época. A
superação dessas ilusões, portanto, não poderia se dar no plano simplesmente
teórico. Seria necessário suprimi-las praticamente. E, para isso, a compreensão da
organização da sociedade civil-burguesa, com o fim de a suprimir, seria necessária.
Em A sagrada família, portanto, tem-se passos importantes em direção à crítica à
própria sociedade e àquilo que seria chamado de anatomia dessa sociedade, a
economia política, a qual já começa a ser estudada com afinco nos Manuscritos de
1844.
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546 Vitor Bartoletti Sartori
A sagrada família, portanto, mostra-se como um texto que reafirma a posição de José
Chasin segundo a qual haveria no pensamento marxiano uma confluência entre
crítica à especulação, à política e à economia política. Também se tem confirmada
a crítica marxiana à política e à forma política como tais. E é possível se notar que,
depois de 1843, há um reforço e um desenvolvimento da crítica marxiana (e
engelsiana) à sociedade civil-burguesa, de modo que não se pode falar
simplesmente de “obras de juventude” que se colocaria entre “dois grandes
períodos essenciais: o período ‘ainda ideológico’, anterior ao corte de 1845, e o
período científico, posterior ao corte de 1845.” (Althusser, 2015, p. 24) O ímpeto
marxiano é aquele de uma crítica decidida à sociedade civil-burguesa e à sua
organização interna, desde os artigos dos Anais franco-alemães.
Se é verdade que essa crítica vai progredir e ganhar concretude durante toda a
vida do autor, não se pode estabelecer cortes e rupturas. É preciso perceber as
diferenças entre os diversos textos de Marx, certamente. Porém, as continuidades
precisam ser destacadas e, na percepção desses elementos – tanto que diferenciam
quanto que trazem similitudes –, A sagrada família pode ser importante,
estabelecendo nexos entre textos que foram vistos como pertencentes a períodos
marcados por uma ruptura ou por um corte.
Referências
ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. Trad. Dirceu Lindoso. São Paulo: Zahar,
1979.
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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 547
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Vaz. Petrópolis: Vozes, 1992.
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548 Vitor Bartoletti Sartori
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Sociedade civil-burguesa, política e direitos humanos em A sagrada família de Marx e Engels 549
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Federal de Minas Gerais, 2018.
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550 Vitor Bartoletti Sartori
Sobre o autor
Vitor Bartoletti Sartori
Professor adjunto da faculdade de Direito e Ciências do Estado da
UFMG, doutor em filosofia do Direito pela USP e mestre em história
social pela PUC SP
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.48981
em defesa da pesquisa
Submetido em 08/06/2023.
Aceito em 18/07/2023.
Pré-Publicação em 16/08/2023.
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ISSN 2447-6684
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552 Leonardo Evaristo Teixeira
Resumo
A economia política da pena tem sido um importante marco de análise e interpretativo
entre as formas de produção e as modalidades de punir, no entanto, as formulações desde
o Norte global não servem em sua totalidade para interpretar a realidade latino-americana.
Nesse sentido, o artigo busca situar esse marco na América Latina a partir de uma
economia política latino-americana da pena cujo contexto é o da dependência e da
autocracia estatal burguesa. Após aprofundar estas balizas, situaremos as produções
brasileiras neste campo e articulando duas importantes contribuições críticas e oxigenadas
deste marco.
Palavras-chave
Economia política latino-americano da pena. Teoria Marxista da Dependência. Estado
autocrático burguês.
Resumen
La economía política de la pena ha sido un importante marco de análisis e interpretativo
entre las formas de producción y las modalidades de castigar, sin embargo, las
formulaciones desde el Norte global no sirven en su totalidad para interpretar la realidad
latinoamericana. En este sentido, el artículo busca situar ese marco en América Latina a
partir de una economía política latinoamericana de la pena cuyo contexto es el de la
dependencia y la autocracia estatal burguesa. Después de profundizar estas balizas,
situaremos las producciones brasileñas en este campo y articulando dos importantes
contribuciones críticas y oxigenadas de este marco.
Palabras-clave
Economía política latinoamericana de la pena. Teoría Marxista de la Dependencia. Estado
autocrático burgués.
Abstract
The political economy of punishment has been an important framework of analysis and
interpretation between the forms of production and the modalities of punishment,
however, the formulations from the global North do not serve in their entirety to interpret
the Latin American reality. In this sense, the article seeks to situate this framework in Latin
America from a Latin American political economy of punishment whose context is that of
dependence and bourgeois state autocracy. After deepening these goals, we will situate the
Brazilian productions in this field and articulating two important critical and oxygenated
contributions of this framework.
Keywords
Latin American political economy of punishment. Marxist Theory of Dependency.
Bourgeois autocratic State.
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A economia política latino-americana da pena 553
Introdução
1 Este termo foi por nós utilizado inicialmente em Breves apuntes para una economía política
latinoamericana de la penalidad (Teixeira, 2022a), o qual desenvolvemos rapidamente acerca da
vinculação da economia política da pena na América Latina com a TMD, sendo aprofundado
posteriormente em Teixeira (2022b).
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554 Leonardo Evaristo Teixeira
E ao partir da análise brasileira, não é retirado a sua latinidade uma vez que esses
dois fundamentos encontram sustentação na realidade heterogênea dessa América
Latina, e que refletem diretamente no modo como ocorre a economia política da
pena e o pensar criminológico.
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A economia política latino-americana da pena 555
Esse parêntesis é aberto justamente para dizer que há uma totalidade que não pode
ser homogeneizada, assim como as especificidades de cada rincão da América
Latina. Estamos situando o que Aníbal Quijano (2000, p. 354-355) entendeu como
particularidade heterogênea, cujas partes do todo não devem ser atomizadas e
movem-se conjuntamente, com autonomia relativa e até mesmo conflitiva, mas
que não deixa de ser uma unidade total em sua heterogeneidade.
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556 Leonardo Evaristo Teixeira
De qualquer modo, como nos recorda Vera Regina Pereira de Andrade, a base
epistêmica originária da criminologia crítica é o interacionismo simbólico e o
marxismo, a partir dos Estados Unidos e Europa, ao longo da década de 70, até
chegar à América Latina, proporcionando um salto qualitativo com sua moldura
analítica em nossas análises. E não há como renegar sobretudo quando, em sua
origem, o pensamento criminológico latino-americano alarga essa mesma
moldura, agregando uma episteme plural com o interacionismo simbólico e o
marxismo (com Lola Aniyar de Castro, Juarez Cirino dos Santos, Roberto Lyra
Filho), assim como com os estudos da teoria da dependência, da microfísica do
poder, e do funcionalismo e liberalismo político (com Roberto Bergalli, Rosa Del
Olmo, Raúl Zaffaroni); e também quando o sistema capitalista continua sendo, no
século XXI, a estrutura central e constitutiva de nossa forma de produção e
reprodução social, condicionando o controle sociopenal (Andrade, 2020).
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A economia política latino-americana da pena 557
O seu surgimento, entre as décadas de 1960 e 1970, é dado pela ebulição social de
grupos populares e sociais na América Latina e da contrarrevolução empreendida
pelos setores empresariais-militares. Neste momento, ocorreria a configuração de
2 Entendemos que a expansão e acumulação do capital está inserido naquilo que István Mészáros
(2011) denominou de ordem sociometabólica do capital, cujas crises são inerentes à forma desse
sistema de expandir-se e acumular cada vez mais, porém, fundando-se na necessidade de criar
mediações de segunda ordem para a maximização e naturalização de sua orientação. O controle
social e o jurídico-penal cumprem o papel da mediação das necessidades do capital no tecido
social mesmo, e exercendo seu controle a partir daquilo que a criminologia crítica classicamente
define como parte do controle formal e informal, subterrâneo ou aparente etc.
3 Devido a nossa limitação, não abordaremos aqui as cinco categorias sintetizadas por Ricardo
Prestes Pazello (2014) ao partir da TMD e de seus autores/as, permitindo a apreensão de seus
sentidos e apesar de sua importância, quais sejam: totalidade, relacionalidade, condicionalidade,
internalidade e rigor tipológico, que são trabalhadas sobretudo a partir de Dos Santos, Bambirra
e Marini.
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558 Leonardo Evaristo Teixeira
4 Mathias Seibel Luce (2018, p. 11) faz uma importante observação sobre a influência do
desenvolvimento desigual e combinado, que apesar de ser formulado por Trotsky, as fontes
principais da TMD são “a teoria do valor de Marx e a teoria do imperialismo e o debate sobre a
diferenciação das formações econômico-sociais e o desenvolvimento desigual em Lenin”.
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A economia política latino-americana da pena 559
5 Em suma, o mais-valor absoluto refere-se ao lucro proveniente do aumento das horas de trabalho,
enquanto no relativo há uma diminuição do trabalho necessário devido ao incremento das forças
produtivas –o aumento da composição orgânica do capital– como pelo desenvolvimento
tecnológico. No entanto, como o capital não objetiva o desenvolvimento humano, senão o lucro,
as horas de trabalho que não mais são necessárias seguem aumentando.
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560 Leonardo Evaristo Teixeira
23). E isso foi possível porque houve a diminuição do valor mínimo necessário
para a subsistência da classe trabalhadora, justamente pela transferência de valor
como intercambio desigual desde a superexploração da força de trabalho das
economias periféricas6.
Dessa forma, para que se possa entender a relação desta transferência com a
superexploração da força de trabalho, necessitamos primeiro entender o que é essa
superexploração.
6 Há uma identificação por Adrian Sotelo Valencia (2009) da existência de uma tendência em
extensão da superexploração aos países de capitalismo avançado/desenvolvido. No entanto,
devemos entender que essa superexploração não possui um caráter estrutural e sistemático que
possibilite a perda de mais-valor no mercado internacional, tal como ocorre nas economias
dependentes.
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A economia política latino-americana da pena 561
7 Para Luce (2018, p. 159, itálico no original), “Fundo de consumo e fundo de vida expressam,
dialeticamente, a transubstanciação do valor diário e do valor total. Uma insuficiência do fundo de
consumo provocada pelo rebaixamento do pagamento da força de trabalho influi negativamente
sobre o fundo de vida. E os ataques atentando contra o fundo de vida obrigam ao aumento dos
meios de subsistência para restaurá-lo, mas somente até um limite, a partir do qual o desgaste
físico-psíquico só poderá ser regenerado mediante repouso, não bastando mais compensá-lo com
o incremento de valores de uso acessados”.
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de consumo tem seu eixo deslocado para o fundo de acumulação do capital (Luce,
2018, p. 182; Marini, 1981, p. 38-39).
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A economia política latino-americana da pena 563
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564 Leonardo Evaristo Teixeira
Em suma, são três os pontos discutidos por ele acerca da organização da sociedade,
especificamente, no regime de classes, os quais citamos: (a) o regime de classe
brasileiro desenvolveu-se vinculado a um capitalismo dependente, onde uma
aliança entre a burguesia interna e externa articulam-se ativa e solidariamente ao
desenvolvimento do capitalismo ao mesmo tempo que mantêm as estruturas
arcaicas e coloniais; (b) a existência de um tipo de revolução burguesa que se
originou do regime de classe ou que deste foi demandado ao ter a burguesia
interna que se aliar a um perigoso aliado de rota, que é a burguesia externa, nesse
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A economia política latino-americana da pena 565
sentido, o Estado, ao estar nas mão das classes dominantes, torna-se um bastião da
autodefesa e de ataque, impondo seus interesses particulares como se fossem
próprios da nação, figurando os despossuídos como os inimigos da burguesia
interna, neutralizando e enfrentando pressões internas das classes trabalhadora e
marginalizada; (c) as mudanças sociais não foram frutos da ordem social
competitiva, já que não criavam dinamismos sociais suficientes para romper com
o antigo regime ou com suas estruturas arcaicas remanescentes, de maneira a
construir alternativas que fossem nacionais e democráticas, típicas de sociedades
de classe. O crescimento da ordem social competitiva existente tendia a favorecer
às classes privilegiadas, por outro lado, as vias autocráticas-conservadoras foram
necessárias para utilizar e controlar o poder, sendo fonte das tendências
antidemocráticas e antinacionais (Fernandes, 2008, p. 35-39).
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A economia política latino-americana da pena 567
O Estado de contrainsurgência, para Marini, está para além dos golpes de Estado,
sendo o próprio processo de transformação do Estado até sua forma em capital
monopólico, cujas Forças Armadas foram imprescindíveis na garantia deste
projeto e no combate aos inimigos criados com a Doutrina de Segurança Nacional
–tratando-se, para ele, da doutrina de contrainsurgência.
Para Osorio, existem a forma Estado e a forma aparato de Estado que tratam de
formas que mistificam e também encobrem as relações de dominação e de poder
de classe. No entanto, a forma Estado é mistificada na forma aparato de Estado,
possibilitando que a burguesia delegue a administração a partir de processos
eleitorais dos cidadãos (e não de classes) , consequentemente, “el aparato de Estado
permite sin mucha mediación que se estabelezca la identificación de las autoridades del
aparato como quienes detentan el poder político” (Osorio, 2018, p. 65-67, itálico no
original).
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568 Leonardo Evaristo Teixeira
O fetichismo da forma Estado com a forma aparato de Estado faz com que não se
coloque em risco o poder político nos processos eleitorais de modo a considerar
que o aparato Estado é um aparato de Estado específico com respectivas relações
de poder e dominação. Porém, mesmo a administração deste aparato de Estado
exige na forma de acumulação e expansão do capital uma conformidade com a
política do capital nesta nova etapa, o que requer também a configuração deste
Estado de contrainsegurança com quórum eleitoral. Isso demandaria o atuar
contra as políticas sociais de governos populares e progressistas na América
Latina, conforme explica Osorio (2018, p. 79):
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A economia política latino-americana da pena 569
Temos sustentado que a economia política da pena na América Latina tem exigido
uma imbricação entre as discussões da dependência e da autocracia do Estado
burguês. É com maior ou menor profundidade que estas categorias vêm sendo
articuladas nas produções criminológicas (brasileiras) e também especificamente
em nosso marco de análise.
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da pena e a teoria unitária da reprodução social, de 2022; a tese de João Guilherme Leal
Roorda, Economia política da letalidade policial no capitalismo dependente brasileiro: o
caso do Estado do Rio de Janeiro (2000-2021), de 2022; a nossa dissertação, La
militarización de la seguridad pública de Brasil en la Nueva República: una crítica de la
economía política de la pena, de 2022; a dissertação de Felipe de Araújo Chersoni, A
criminologia campesina: os impactos do controle social na luta pela terra junto ao
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na região do Planalto Catarinense,
de 2023, entre outras e outros autores que desenvolveram ou desenvolvem dentro
deste marco crítico marxista.
Desde nosso ponto de análise, estas investigações podem ser divididas em três
distintas e profícuas linhas de investigação: (1) na afirmação de uma postura
epistemológica (latino-americana) da economia política da pena; (2) em uma
postura histórica e materialmente dialética da economia política da pena com a
formação sociohistórica brasileira; e (3) em uma postura de compreensão dos
fenômenos de nossa realidade brasileira contemporânea, como a política criminal,
segurança pública, sistema de justiça e pena.
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A economia política latino-americana da pena 571
Pois bem, a tese de Fernando Alemany (2019, p. 89) é essencial para as bases da
economia política latino-americana da pena pelo fato de evidenciar que os sentidos
da punição está em garantir –pela força, violência– que os trabalhadores e
trabalhadoras aceitam a espoliação da parte do fundo dos salários, de maneira que
nas economias dependentes o gerenciamento das superexploração seja um
instrumento permanente da política salarial8.
Por esta razão, de um lado, temos uma economia da pena que expressa a própria
violação da lei do valor, em que se necessita do pagamento do salário abaixo do
valor real9 da força de trabalho, de modo que esta espoliação do valor é realizada
desde as quatro formas de superexploração da força de trabalho. Como
8 Para Juarez Cirino dos Santos (2022, p. 116 e ss.), a tese de Alemany é um avanço notável com
relação à discussão feita em Pena e Estrutura Social, pois, enquanto Rusche e Kirchheimer
discutiam a relação entre mercado de trabalho e sistema de produção, o autor brasileiro busca explicar
o sistema penal através das próprias relações de produção capitalistas, ou seja, através da relação
entre sistema penal e relações de produção: a violência política que é convertida em potência
econômica para garantir a acumulação de capital nas economias dependentes.
9 Conforme Marx, a força de trabalho é medida pelo tempo de trabalho socialmente necessário (que
pode ser medido em hora, dia, semana, mês etc.) para a produção da mercadoria geral, o que
inclui a mercadoria específica que é a própria força de trabalho. Assim, o valor correspondente à
força de trabalho que contrata o capitalista é aquela representada pelo valor socialmente
necessário para a classe trabalhadora reproduzir-se, sendo o valor excedente produzido na
jornada de trabalho, além do trabalho necessário, o mais-valor (Marx, 2013, p. 292-293). Por tempo
de trabalho socialmente necessário, entende-se como aquele “requerido para produzir um valor
de uso qualquer sob as condições normais para uma dada sociedade e com o grau social médio
de destreza e intensidade de trabalho” (Marx, 2013, p. 117).
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572 Leonardo Evaristo Teixeira
Já na política da pena, seu desenvolvimento dá-se pela ideia da guerra contra o crime,
em que se supõe que a pena é o antídoto para colocar fim a esta guerra. Porém não
se trata necessariamente de uma guerra contra o crime; é ao menos na aparência,
pois na essência é muito mais uma guerra contra os pobres cuja pretensão é a
reprodução dos interesses para a acumulação do capital, que de um modo ou de
outro é revelado na prática em uma ampla gama desta reprodução, que justifica a
polícia e o tanque subindo os morros, como na guerra contra as drogas, guerra contra
as organizações criminosas, guerra contra o terrorismo, e tantas outras formas de
guerras que conformam esse fenômeno (Alemany, 2019, p. 25-28).
No entanto, esta violência tem que se dar por uma violência legítima, de forma que
é através do próprio poder de punir do Estado, como do sistema penal em que esse
processo é levado adiante. Ocorre que tal violência em sua essência é legítima, pois
ela é nada mais que uma violência da burguesia que se apropria do fundo de
consumo da classe trabalhadora como forma de acumulação capitalista, onde, em
uma economia dependente, esta forma de acumulação é estrutural. Portanto, a
força política é o que sustenta o desenvolvimento na periferia capitalista e, em
outros termos, a punição converte-se na verdadeira política social deste
capitalismo (Alemany, 2019, p. 29).
Se, por um lado, a classe trabalhadora foi historicamente despojada de seus meios
de produção, como no período de acumulação originária, processo este que se
constituiu a partir da persistente violência burguesa, onde o processo de
acumulação originário demonstrou ter as leis econômicas nascido da pura
violência; por outro, o período subsequente de desenvolvimento do capital
demonstrou que a violência é a condição sine qua non para a realização das leis
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A economia política latino-americana da pena 573
Para isto, todavia, não basta a mera ameaça do castigo, pois toda
intimidação só é efetiva quando dispõe do exemplo concreto de sua
execução. O exercício efetivo da punição confirma socialmente o sentido
expresso em sua ameaça, convertendo-a em força material. Seus artífices
são os agentes do sistema penal. Através de sua ação concreta, vigiam-se
populações, ocupam-se territórios, destroem-se e erigem-se formas de
sociabilidade, vínculos e afetos. Desorganiza-se a economia familiar,
obrigando a juventude, cada vez mais cedo, ao hábito do trabalho sub-
remunerado. Violenta-se, física e simbolicamente, populações oprimidas.
Interrompem-se projetos de vida. Através do encarceramento, subtraem-
10 Com relação ao campo, por exemplo, Felipe de Araújo Chersoni (2023) proporciona-nos uma
importante observação ao partir de um olhar desde os movimentos de trabalhadores pela terra,
como o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em que, ao enfrentarem
a lógica do capital e da superexploração, a criminalização e repressão aos movimentos populares
do campo visa reforçar a superexploração da força de trabalho ao (tentar) impedir o acesso à terra
e de nela trabalhar e também impedem de desenvolver um possível modo de vida comunal e
compartilhado, garantindo a integralidade do latifúndio, além, obviamente, de conter o caráter
revolucionários dos movimentos.
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574 Leonardo Evaristo Teixeira
São esses artifícios que convertem a ameaça em força material, desde os agentes –
não como indivíduos atomizados– de uma estrutura burguesa que são inseridos
no entrelaçamento da juridicidade (que é política) da política criminal e da política
da segurança pública. Por isso, as agências de controle e repressão do Estado são
estruturadas nos modus operandi contra a classe trabalhadora fazendo-as
forçadamente escolher entre a superexploração ou a violência penal.
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A economia política latino-americana da pena 575
11 Partimos de Eleutério Prado (2005) quanto ao uso dos termos Grande Indústria e Pós-Grande
Indústria (ao invés de Fordismo e Pós-Fordismo, utilizados por autores clássicos da economia
política da pena, como De Giorgi) que foi expresso nos estudos de Ruy Fausto e onde este realizou
uma interpretação criativa nos Grundrisse (Fundamentos da crítica da economia política), de Marx.
Na Pós-Grande Indústria abarca-se a subsunção (formal e intelectual) do trabalho ao capital, isto
é, a alteração da natureza dos meios de produção de uma etapa a outra, da Grande Indústria até
sua transição à Pós-Grande Indústria. Considera-se ainda que a transição de um modelo a outro
não representa a absoluta superação dos elementos da antiga etapa, senão de uma possível
coexistência, o que diferencia conceitualmente o uso do Fordismo e do Pós-Fordismo.
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576 Leonardo Evaristo Teixeira
realizada na política criminal a partir dos treze anos dos governos do PT, Benitez
Martins compreende que o autoritarismo na América Latina é um elemento
constitutivo das instituições nestes países, sendo que, no momento neoliberal do
capitalismo, o que ocorre é a perpetuação e intensificação desta tendência
autoritária. Apesar de não se ter ocorrido um Estado de Bem-Estar Social nos
países periféricos, ocorreu por aqui um consumo massivo onde as gestões político-
econômicas eram desenvolvimentistas do Estado (Benitez Martins, 2018, p. 79-80).
Esta criminóloga toca no ponto nodal das condições materiais que determinam em
última instância o sentido da pena, nos novos tempos que definem o período
neoliberal da Pós-Grande Indústria. Para ela, é visto (fortes) políticas
redistributivas de renda, como no caso brasileiro, que são de baixa intensidade,
objetivando a ampliação das relações de consumo ao invés de tocar nas relações
de produção/exploração, uma vez que tratam dos interesses do grande capital. Por
outro lado, existe uma política que não tem como objetivo chegar nas dimensões
estruturais da exploração e das opressões da população, e que faz, paralelamente,
a incorporação de políticas com tendências de recrudescimento no âmbito criminal
(Benitez Martins, 2018, p. 81-82).
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A economia política latino-americana da pena 577
12 Em sentido similar, Eduardo Granzotto Mello (2021, p. 501) entende a disciplina como disciplina-
simbólica que igualmente destina-se a toda a classe trabalhadora.
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produção capitalista em que deve ser analisada desde uma reprodução ampliada
da sociedade, desse modo, incluindo o trabalho produtivo e improdutivo, visível
e invisível (Benitez Martins, 2021, p. 126 e ss.).
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A economia política latino-americana da pena 579
Considerações finais
Dois autores foram mobilizados para discutir esse marco, que são Fernando
Alemany e Carla Benitez Martins. Com Alemany vimos que a pena integra em sua
dinâmica fatos políticos e econômicos, sendo uma permanente política salarial que
garante a espoliação salarial do trabalhador ou trabalhadora a partir de sua
superexploração. Com Benitez Martins, ao partir de um marxismo quente, analisa
a vinculação entre distribuição de renda e a punição, além da existência de um
sistema híbrido na América Latina que permite a coexistência dos sistemas
disciplinares e de neutralização; e, por fim, afirma pela necessidade de pensar a
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São a partir destes elementos, mas não só restringindo a eles, que entendemos a
necessidade de reivindicar uma economia política latino-americana da pena, como
forma de situar nossas especificidades e nossa estrutura social da punição na
América Latina, independente de sua heterogeneidade.
Referências
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A economia política latino-americana da pena 581
CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan, ICC,
2005.
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582 Leonardo Evaristo Teixeira
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Boitempo,
2013. v. 1.
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São
Paulo: Boitempo, 2011.
MOTTA, Felipe Heringer Roxo da. Quando o crime compensa: relações entre o
sistema de justiça criminal e o processo de acumulação do capital na economia
dependente brasileira. Curitiba: Programa de Pós-Graduação (Doutorado) em
Direito da Universidade Federal do Paraná, 2015. Disponível em:
https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/40643.
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A economia política latino-americana da pena 585
Sobre o autor
Leonardo Evaristo Teixeira
Mestre em Direitos Humanos pela Universidad Autónoma de San Luis
Potosí, México, e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de
Goiás, campus Jataí. Integra o GT CLACSO Pensamiento jurídico crítico
y confictos sociopolíticos, e o GT Criminologia crítica e movimentos
sociais do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS).
_________________
Nota
Este artigo é fruto de nossa dissertação (Teixeira, 2022b) desenvolvida e
apresentada na Maestría en Derechos Humanos da Universidad Autónoma de
San Luis Potosí, México, tratando-se aqui de uma versão traduzida, revisada e
adaptada.
Agradecimentos
Este trabalho só foi possível devido ao financiamento de bolsas de estudos
proporcionado a estudantes estrangeiros pelo Consejo Nacional de Ciencia y
Tecologia (CONACyT), México. Ainda, agradeço imensamente a Carla Benitez
Martins pela coorientação a dissertação, cujo marco teórico deste trabalho, ao
menos em partes, deriva a presente contribuição; e ao Felipe de Araújo
Chersoni e à Aline Amábili Zimmermann pela leitura final deste artigo e pelas
sugestões de acréscimo.
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50405
em defesa da pesquisa
Submetido em 09/08/2023
Aceito em 26/09/2023
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ISSN 2447-6684
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588 Grazielly Alessandra Baggenstoss
Resumo
O questionamento sobre a forma com que as pessoas se relacionam em ambientes
organizacionais de trabalho e de formação escolar ou acadêmica alcança debates nacionais
e internacionais. É nesse contexto que se buscam levantar algumas dimensões de
compreensão sobre o que pode ser entendido como assédio. Como estudo ensaístico,
levanta-se a reflexão sobre o que significa práticas de assédio, as quais podem ser
estruturantes das instituições no Brasil. Como pesquisa exploratória-descritiva, de revisão
bibliográfica narrativa e abordagem qualitativa, está estruturada em três partes: sobre a
ideia de vulnerabilidade da vida e sua precarização; sobre o que pode ser visualizado como
assédio; e sobre propostas de políticas institucionais e protocolos, com ideário pedagógico,
de combate e de constante avaliação da instituição.
Palavras-chave
Assédio. Assédio Moral. Assédio Sexual. Política Institucional.
Resumen
Cuestionar la forma en que las personas se relacionan entre sí en los ambientes
organizacionales de trabajo y la formación escolar o académica alcanza debates nacionales
e internacionales. Es en este contexto que buscamos plantear algunas dimensiones de
comprensión acerca de lo que puede ser entendido como acoso. Como estudio ensayístico,
se plantea una reflexión sobre lo que significan las prácticas de acoso, que pueden estar
estructurando instituciones en Brasil. Como investigación exploratoria-descriptiva, con
revisión bibliográfica narrativa y enfoque cualitativo, se estructura en tres partes: sobre la
idea de vulnerabilidad de la vida y su precariedad; sobre lo que podría verse como acoso;
y sobre propuestas de políticas y protocolos institucionales, con ideas pedagógicas, de
combate y evaluación constante de la institución.
Palabras-clave
Acoso. Acoso Moral. Acoso Sexual, Política Institucional.
Abstract
Questioning the way people relate to each other in organizational work environments and
school or academic backgrounds reaches national and international debates. It is in this
context that we seek to raise some dimensions of understanding about what can be
understood as harassment. As an essayistic study, a reflection is raised on what harassment
practices mean, which can be structuring institutions in Brazil. As an exploratory-
descriptive research, with a narrative bibliographic review and a qualitative approach, it
is structured in three parts: on the idea of vulnerability of life and its precariousness; about
what might be viewed as harassment; and on proposals for institutional policies and
protocols, with pedagogical ideas, combat and constant evaluation of the institution.
Keywords
Harassment. Moral Harassment. Sexual harassment. Institutional Policy.
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Assédios: engrenagem estruturante de instituições do Brasil 589
Introdução
1 O termo teria sido descrito por Anthony Klotz (Bloomberg Businessweek em maio de 2021),
pesquisador que investiga as motivações e os desestímulos para as pessoas se demitirem
(incluindo os fatores de relacionamentos e ambiente de trabalho).
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590 Grazielly Alessandra Baggenstoss
E esse cenário episódico indica um panorama em que podem ser percebidos fluxos
de processos de precarização de ações de trabalho e da própria vida por meio de
relações de poder-saber. Esse pano de fundo nos direciona para refletir sobre como
as relações sociais se orientam por uma lógica neoliberalista – ou necroliberalista,
conforme aponta Mbembe (2020) –, produzindo lugares políticos que
vulnerabilizam determinadas vidas.
2 Pessoas que refletiram sobre a forma com que as relações laborais são praticadas estão neste
contexto, e, como aponta Anthony Klotz, a partir da pandemia, passaram a ser questionados os
modos relacionais no ambiente de trabalho e, com isso, relevadas situações supostamente nocivas
às pessoas, como assédio (Antunes, 2022).
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Assédios: engrenagem estruturante de instituições do Brasil 591
[...] ser tratados para viver, que são tratados por outras pessoas através da
linguagem ou outras práticas significativas, inclusive toque e ruído, e sem
essas formas de possibilitar o tratamento, realmente não sobrevivemos.
Sermos alimentados e colocados para dormir também são meios de ter o
corpo tratado a um nível muito básico. Assim, sem tratamento, não há
sobrevivência, mas a sobrevivência significa que não controlamos
totalmente os meios pelos quais somos tratados, e podemos viver com isso
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592 Grazielly Alessandra Baggenstoss
como adultos mais ou menos bem, ou podemos buscar exercer poder sobre
o modo como somos tratados. Na verdade, muito do nosso trabalho [...]
deriva seu poder político e apelo de manter a possibilidade de podermos
nos pronunciar contra quem nos trata de maneiras que são radicalmente
inaceitáveis ou contra quem realmente não se dirige a nós e, dessa forma,
potencialmente coloca nossa existência em perigo (Butler, 2017).
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Assédios: engrenagem estruturante de instituições do Brasil 593
O GSNI promove uma sugestão de medida para se verificar como que mulheres e
meninas enfrentam desvantagens e discriminação sistemáticas (United Nations
Development Programme, 2023). No entanto, há o desafio desses indicadores
articularem questões raciais e de dissidência de gênero, dentre outros, sobre os
quais o Índice se silencia. Esses indicadores são úteis, com ressalvas, portanto, na
medida em que explora a ideia de naturalização de gênero e da categoria binária
de homem-mulher, reforçando significantes gerais e estigmatização das funções
reprodutivas das mulheres no contexto de trabalho; além disso, informam a
cisnormatividade e a heteronormatividade envolvidas na construção da
metodologia de análise. Junto a tais ideias, há as ideias associativas de raça, de
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Assédios: engrenagem estruturante de instituições do Brasil 595
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596 Grazielly Alessandra Baggenstoss
Como característica de relações abusivas, o assédio moral pode ser percebido entre
pessoas que possuem o mesmo nível hierárquico (assédio moral horizontal); que
ocupem níveis hierárquicos diversos (assédio moral vertical); que ocupem
diversos níveis hierárquicos (assédio moral misto); e que represente uma política
organizacional, que atinja um determinado grupo da organização e que pode
caracterizar discriminação institucional (assédio moral coletivo) (TST, s.d.).
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Assédios: engrenagem estruturante de instituições do Brasil 597
3 Cf. DANO MORAL. ASSÉDIO MORAL. COMPROVADO. O dano moral, decorrente da relação
de trabalho, consiste na ofensa aos direitos da personalidade do empregado, em razão da conduta
ilícita de seu empregador. Dentre as classificações doutrinárias dos danos extrapatrimoniais, está
em especial o assédio moral, materializado pela conduta abusiva do causador. Tem natureza
psicológica e atinge a dignidade psíquica da vítima ao desestabilizar o equilíbrio emocional. Com
efeito, o assédio moral torna-se mais comum nas relações de subordinação e hierarquia, em que
há discrepância nos níveis ocupados pelo agente e pela vítima, estrutura que facilita a ocorrência
do comportamento antiético. Sendo certo que a característica primordial do assédio moral é a
prática reiterada da conduta ilícita, tendo como efeito final a sensação de exclusão, humilhação
ou diminuição da vítima. No caso dos autos, a prova testemunhal demonstrou a ocorrência de
conduta abusiva no ambiente laboral, configurando o dano moral in re ipsa (CRFB, art. 5º, V c/c
CC, arts. 186, 927 e 932, III).TRT 1a. Região, 1a. Turma, autos n. 0101171-59.2017.5.01.003, Data
de Publicação: 10/06/2021, Disponível em
http://bibliotecadigital.trt1.jus.br/jspui/handle/1001/2612499
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598 Grazielly Alessandra Baggenstoss
Assédio sexual caracteriza uma relação abusiva que configura crime, nos termos
no art. 216-A, caput, do Código Penal, o qual dispõe: “constranger alguém com o
intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de
sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de
emprego, cargo ou função”.
É, portanto, uma forma de tratamento, não desejada pelo outro, com intenção
sexual ou insistência inoportuna de alguém em posição privilegiada que usa dessa
vantagem para obter favores sexuais de subalternos ou dependentes. Para sua
caracterização, o constrangimento deve ser causado por quem se prevaleça de sua
condição de superior hierárquico ou ascendência, inerentes ao exercício de
emprego, cargo ou função.
Até 2019, não havia ainda decisão judicial brasileira enfrentando a questão de
assédio sexual de forma relevante no campo educacional. Em 13 de agosto de 2019,
contudo, no REsp 1.759.135-SP, o Rel. Min. Sebastião Reis Júnior da Sexta Turma,
por maioria, conferiu a existência de superioridade hierárquica ou ascendência em
razão do emprego, cargo ou função nas relação professor-aluno para configurar o
crime de assédio sexual entre essas pessoas. Assim, reconhecendo a possibilidade
da configuração do delito de assédio sexual na relação entre professor e aluno,
afirmou-se que
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Assédios: engrenagem estruturante de instituições do Brasil 599
Além de ser caracterizado como crime, sendo um fato ilícito nos termos do art. 186
do Código Civil, também enseja indenização por danos morais. Para seu
fundamento, é possível articular os dispositivos já mencionados, assim como a
Convenção 190, da Organização Internacional do Trabalho – OIT, que reconhece
que a violência contra mulheres é reforçada por estereótipos de gênero e relações
de poder desiguais em função do gênero (IBDFAM, 2023).
O assédio acadêmico é apresentado no capítulo The walls spoke when no one else
would: autoethnographic notes on sexual-power gatekeeping within avant-garde academia,
de Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom, mencionado nas
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600 Grazielly Alessandra Baggenstoss
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Assédios: engrenagem estruturante de instituições do Brasil 601
4 “Isso está bem documentado por uma pesquisa do departamento de ciência da computação da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sobre circulação de pesquisadores no Brasil.
Analisando cerca de seis mil pesquisadores brasileiros, o grupo observou que apenas 20% (um
quinto do total, portanto) constroem suas carreiras profissionais a mais de quinhentos
quilômetros (500km) de onde fizeram sua formação universitária. A avassaladora maioria
permanece nos entornos de sua alma mater, o que facilita – geograficamente, inclusive – a
perpetuação de esferas de influência”. In Oliveira, 2017.
5 "Na academia, o extrativismo pode ser configurado como a extração de conhecimento sem a
participação daquele que o extrai. É o conhecido “colocou o nome”, que é assédio. Além de
assédio, o “colocou o nome” descumpre as “Diretrizes Básicas para a Integridade da Atividade
Científica” do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, que
orienta que, nos itens 17 e 18: 17. Somente as pessoas que emprestaram contribuição significativa
ao trabalho merecem autoria em um manuscrito. Por contribuição significativa entende-se
realização de experimentos, participação na elaboração do planejamento experimental, análise de
resultados ou elaboração do corpo do manuscrito. Empréstimo de equipamentos, obtenção de
financiamento ou supervisão geral, por si só não justificam a inclusão de novos autores, que
devem ser objeto de agradecimento. 18. A colaboração entre docentes e estudantes deve seguir
os mesmos critérios. Os supervisores devem cuidar para que não se incluam na autoria
estudantes com pequena ou nenhuma contribuição nem excluir aqueles que efetivamente
participaram do trabalho. Autoria fantasma em Ciência é eticamente inaceitável”. Cf.
Baggenstoss; Teixeira, 2023.
6 “‘Portanto, este é outro exemplo de “uma história mais familiar de instituições profundamente
fodidas, onde professores famosos têm muito poder para determinar o futuro de seus protegidos’
(Wang 2018)”. Cf. Viaene; Laranjeiro; Tom, 2023.
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602 Grazielly Alessandra Baggenstoss
Essas ideias gerais serão moduladas com a percepção das práticas em campo.
Assim, uma análise pormenorizada sobre essas dinâmicas deve aprofundar ou até
mesmo refutar essas considerações, além de buscar a observação das interações
contextuais desses lugares e das pessoas envolvidas, aprofundando-se nos estudos
das categorias políticas localizadas no campo, como a relações de trabalho e
sexualidades (Acker, 2006; Santos; Oliveira-Silva, 2021).
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Considerações finais
Esse trabalho parte da ideia de que as instituições são organizadas por normas de
gênero e que funcionam na produção do condicionamento - ou assujeitamento -
dos indivíduos integrantes a seus parâmetros. Nos modos disciplinares, como
meios de sujeição e de correção dos indivíduos, estão as definições de
padronização que caracterizam uma tecnologia comportamental, a qual incide
sobre os corpos na instituição, produz formas de controlar seu corpo e direcionar
suas forças, bem como orientar ou diminuir sua força política.
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Assédios: engrenagem estruturante de instituições do Brasil 605
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610 Grazielly Alessandra Baggenstoss
Sobre a autora
Grazielly Alessandra Baggenstoss
Professora do Curso de Graduação em Direito e do Programa de Pós-
Graduação Profissional em Direito, Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), Florianópolis, Brasil. Doutora em Direito (UFSC);
Doutora em Psicologia Social (UFSC).
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50069
em defesa da pesquisa
Jules Ponthieu2
2
Universidade de Salamanca, Salamanca, Espanha. E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8653-5636.
Submetido em 19/07/2023
Aceito em 11/01/2024
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ISSN 2447-6684
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612 Leonam Lucas Nogueira Cunha - Jules Ponthieu - Lucas Isaac Soares Mesquita
Resumo
Se bem é certo que sexo e dinheiro podem aparecer como noções subversivas que atraem
facilmente muita atenção, também é nítido que as questões levantadas neste artigo – que
partem do nexo entre esses termos – são, paradoxalmente, vastamente invisibilizadas. Esta
invisibilidade parece ser contraproducente, tendo em vista a importância dos fenômenos
descritos neste trabalho, e justifica-o por si mesma. Ao debruçar-se sobre os vários
mecanismos que levam à imigração, voluntária ou não, de travestis e mulheres trans
brasileiras para a Europa, este artigo pretende enfatizar as realidades sociais e concretas
suportadas, nesse contexto, pelas vítimas de exploração sexual. Como veremos neste
estudo, essa migração particular é explicada e impulsionada por um forte desejo desses
sujeitos de se realizarem com mais liberdade e dignidade no contexto europeu e
escaparem, assim, de realidades sociais permeadas por discriminações e ataques que se
dão no cotidiano brasileiro. No entanto, evidencia-se que, quando chegam à Europa, essas
vítimas se deparam com uma amarga realidade, em que os seus direitos são violados e o
regresso ao passado parece, por vezes, impossível. Seguindo uma perspectiva
socioantropológica e jurídica, o objetivo deste trabalho é analisar as características desse
tipo de tráfico sexual que, como veremos, pode ser identificado como uma forma de
escravidão contemporânea. Assim, discutiremos as principais noções e conceitos
relacionados a essa questão, antes de analisarmos as manifestações concretas dessa forma
de escravidão contemporânea, no intuito de explicá-las mais detidamente.
Palavras-chave
Escravidão contemporânea. Prostituição. Tráfico de pessoas. Mulheres trans. Travestis.
Resumen
Es cierto que sexo y dinero pueden aparecer como nociones subversivas que atraen
fácilmente toda la atención; sin embargo, en la misma medida, es nítido que las cuestiones
planteadas en este artículo – que parten del nexo entre esos términos – son,
paradójicamente, ampliamente invisibilizadas. Dicha invisibilidad parece ser
contraproducente, teniendo en cuenta la relevancia de los fenómenos descritos en este
estudio, y lo justifica por sí misma. Al detenernos en los distintos mecanismos que
conducen a la migración, sea esta voluntaria o no, de travestis y mujeres trans brasileñas
hacia el continente europeo, este artículo pretende hacer hincapié en las realidades sociales
y concretas soportadas, en este contexto, por las víctimas de explotación sexual. Como
veremos en este estudio, tal migración particular se explica y se impulsa por un hondo
deseo de esos sujetos de realizarse con más libertad y dignidad en Europa, escapando así
de realidades sociales repletas de discriminaciones y ataques que se ven en el día a día
brasileño. No obstante, se advierte que, al llegar a Europa, esas víctimas se perciben ante
una amarga realidad, en la que sus derechos se vulneran y el regreso al pasado parece, en
ocasiones, imposible. Siguiendo una perspectiva socioantropológica y jurídica, el objetivo
de este trabajo es analizar las características de ese tipo de trata que, según veremos, puede
ser identificado como una forma de esclavitud contemporánea. De este modo, debatiremos
las principales nociones y conceptos relacionados con la cuestión, antes de analizar las
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para a Europa com fins de exploração sexual
Abstract
While sex and money may appear as subversive notions, attracting easily all the attention,
it is also true that the issues raised in this article are, paradoxically, largely invisibilised.
This invisibility seems to counterbalance the importance of the phenomena described in
this work and justifies it in itself. Indeed, by coming back to the various mechanisms that
lead to the immigration, voluntary or not, of Brazilian trans women and travestis to
Europe, this article aims to emphasise the social and concrete realities suffered by these
victims and related to their sexual exploitation. If, as we will see in our study, this
particular migration is explained and driven by a strong desire to accomplish themselves
more freely and decently in Europe and thus escape social realities such as discriminations
and attacks that are part of their daily lives in Brazil, it is clear that when they arrive in
Europe, these victims are confronted with a harsh reality, where their rights are violated
and where a return to the past appears sometimes impossible. From a socio-
anthropological and legal perspective, the objective of this work is to look at the
characteristics of this sexual trafficking, which, as we shall see, can be identified as a form
of modern slavery. We will, therefore, discuss the key notions and concepts related to this
issue, before analysing the concrete manifestations of this form of modern slavery and
attempting to explain it.
Keywords
Modern slavery. Prostitution. Human trafficking. Trans women. Travestis.
Introdução
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para a Europa com fins de exploração sexual
E por que não usamos também o termo “mulheres trans” para nos referirmos às
travestis? Apesar de encarnarem espectros da feminilidade, as travestis
geralmente rejeitam o termo “mulher” para se referirem à sua própria identidade.
Tomando o contexto brasileiro como pano de fundo, seria inevitável falar da
categoria “travesti”, já que se trata de uma identidade latino-americana. Noutros
contextos, como o espanhol, o termo “travesti” está muito mais próximo das
definições fetichistas biomédicas de travestismo, que entendem “travesti” como
um homem cis que se veste e se apresenta – geralmente em espaços privados, mas
também é possível realizarem uma aparição pública – como uma “criatura
feminina”2. Dessa forma, seguindo esse entendimento, “travesti” corresponderia
2 Magnus Hirschfeld, sexólogo alemão, definiu "travestismo" como o desejo de usar roupas do sexo
"oposto", entendendo-o como um marcador ou faceta da homossexualidade. Em contrapartida,
Harry Benjamin, psiquiatra germano-americano que estudou mais pormenorizadamente o
“fenômeno trans”, desenvolveu quadros conceituais que tiveram um impacto significativo nos
protocolos e tratamentos médicos aplicados às pessoas trans com o objetivo de “corrigir a sua
não-conformidade sexual e de gênero”. Benjamin seguiu a definição de Hirschfeld, mas foi ainda
mais longe, diferenciando, por exemplo, travestis de transexuais. Para ele, estes últimos
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não querem se submeter a cirurgias e travestis que querem realizar não só uma
mamoplastia, como também uma vaginoplastia. Tudo isso deve ser considerado
em vistas à construção de uma definição abrangente e inclusiva dessas noções.
Noutras palavras, as travestis, enquanto categoria identitária, sobrepõem-se às
definições herméticas construídas pelas ciências biomédicas, que também
informaram o paradigma patologizante que impôs a necessidade das
“normalizações corporais”. Não porque, de alguma forma, não realizem ou não
queiram realizar modificações nos seus corpos, mas porque defendem, através da
sua própria experiência de vida, que isso não é um critério essencial para
transicionar de um gênero a outro.
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para a Europa com fins de exploração sexual
Desse modo, o tráfico de pessoas pode ser compreendido a partir de três eixos: (a)
os atos – relacionados ao recrutamento, transporte e alojamento; (b) os meios, ou
seja, o uso de algum tipo de violência (física, psicológica, econômica, entre outras)
para manter o controle sobre a vítima; e (c) a finalidade: exploração sexual, física,
do trabalho etc. (Bronstein, 2019, p. 15). Assume-se, portanto, que o tráfico envolve
a exploração da pessoa para a realização de alguma atividade, sendo assim vista
como uma mercadoria.
4 É importante, ademais, observar que as definições jurídicas que construíram esse conceito estão
relacionadas com as convenções de direitos humanos promovidas pela Organização das Nações
Unidas (ONU) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) ao longo do século XX e início
do século XXI, bem como com a ação de organizações não governamentais, Estados, tribunais
internacionais de direitos humanos e outros atores globais.
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Gráfico 1
Distribuição percentual das vítimas de escravidão contemporânea, por gênero e
categoria
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para a Europa com fins de exploração sexual
exploitation: exploração sexual forçada, State-imposed forced labour: trabalho forçado imposto pelos
Estados, forced marriage: casamento forçado e forced labour: trabalho forçado em geral.
6 As mulheres cis e trans resgatadas, com frequência, não se beneficiam do seguro-desemprego, o
que as torna mais vulneráveis à revitimização (Plassat, 2020).
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No caso das mulheres trans e das travestis, sejam elas enganadas com falsas
promessas de trabalho ou estejam convencidas e conscientes de que irão migrar
7 O Brasil é o país que registra o maior número de assassinatos de pessoas LGBTQIA+ no mundo,
demonstrando como se trata de um ambiente hostil e extremamente LGBTIfóbico. Em 2020,
“foram 237 mortes de LGBTQIA+ em território nacional, sendo 224 homicídios e 13 suicídios.
Além disso, os dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), que há anos
produz relatórios de assassinatos, apontam que no mesmo período ocorreram 184 mortes de
travestis e transexuais e 175 homicídios de gênero feminino” (ABGLT, 2021, p. 5). Esses
assassinatos são considerados crimes de ódio porque, além de manifestarem uma violência
direcionada a uma determinada população, são materializados com uma crueldade específica,
como o “uso [de] múltiplas armas brancas, asfixia/enforcamento, tortura prévia, afogamento,
apedrejamento, pauladas, carbonização, atropelamentos brutais, esquartejamento, mutilação,
órgãos genitais decepados, olhos perfurados, violência sexual e a própria forma como o agente
criminoso se ‘desfaz’ do corpo” (Lins Júnior; Mesquita, 2019, p. 176-177). Além dos dados
apresentados, outro chama bastante atenção: o Brasil é “o país que mais consome pornografia de
mulheres trans no mundo” (UNODC, 2021, p. 15). A ausência de dados produzidos pelo Estado
faz com que os próprios movimentos sociais os produzam, apesar dos problemas financeiros e
de pessoal encontrados.
8 A Associação Nacional de Travestis e Transexuais, ANTRA, estima que 90% das mulheres trans
e travestis no Brasil estão envolvidas na prostituição (Kometani, 2017).
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para a Europa com fins de exploração sexual
Nesse sentido, “[a] maioria das travestis chega ao tráfico com uma bagagem
semelhante: foram expulsas de casa, não conseguiram terminar a escola, não têm
acesso a empregos. [Elas, portanto, v]eem o tráfico como a grande esperança de
uma nova vida” (Marilac; Queiroz, 2019, p. 91). Além disso, o ideal de beleza
trans/travesti promovido no Brasil é um importante eixo na construção de suas
identidades. A busca pelo “corpo perfeito”, como dizem as próprias travestis,
parece compor em grande parte um processo entendido como fundamental para
elas, que é, em última instância, um exigente trabalho de corporificação
(Vartabedian, 2018, p. 7-8) para se tornarem sujeitos com melhor status social.
Noutras palavras, ter um determinado corpo pode dar-lhes outro reconhecimento
social, pode torná-las “sujeitos vistos” e mais dignos.
9 Como, de acordo com os escassos dados disponíveis, a grande maioria das travestis se dedica à
prostituição, ganhar dinheiro significa trabalhar mais e, para trabalhar mais, é necessário ter
corpos mais desejáveis, mais idealizados, o que envolve quase sempre cirurgias plásticas e
estéticas, para além das transformações clássicas dos processos de transformação MtF (Male to
Female: de homem para mulher). No entanto, esta corporificação de ideais de beleza não ocorre
apenas para atrair clientela, mas também para obter um reconhecimento social (ver o conceito de
“cidadania cosmética” de Jarrín, 2017, p. 156-187).
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Em segundo lugar, as intersecções de raça e classe social são muito relevantes para
abordar a questão da construção da beleza que se quer encarnar. Segundo Duque
(2011), os tons de pele mais escuros não fazem parte do seu ideal de beleza. Embora
as recentes mobilizações dos movimentos negros brasileiros tenham contribuído
para uma revalorização e empoderamento dos traços negros e dos marcadores de
identidade negra (Gomes, 2006), e apesar da complexa diversidade da realidade
racial brasileira, ainda são comuns as estratégias cosméticas e estéticas de
embranquecimento:
10 Isto distancia as travestis do modelo biomédico patologizante e normalizador, que sustenta uma
espécie de caminho pré-determinado para adequar os corpos de acordo com o entendimento
dominante de gênero/identidade de gênero, qual seja: viver uma experiência plena durante um
certo tempo como uma pessoa de outro gênero, tomar hormônios e submeter-se a cirurgias de
transgenitalização (Cunha, 2020, p. 367). Além disso, do ponto de vista institucional e estrutural,
isso as torna ainda mais invisíveis e ignoradas (Jarrín, 2016, p. 360).
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para a Europa com fins de exploração sexual
Cabe ressaltar que esses ideais de beleza, de estética e de corporificação não são
uma herança trans/travesti, mas se veem refletidos no tecido social brasileiro. De
acordo com dados de 2015 da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética,
no ranking do número de cirurgias plásticas e procedimentos faciais, o Brasil
ocupa o segundo lugar: atrás somente dos Estados Unidos (ISAPS, 2016).
11 Vartabedian (2018, p. 89) também registra a presença deste imaginário na sua pesquisa,
concretamente por meio das histórias das participantes que entrevistou.
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Dessa forma, a categoria “migração trans” pode ser muito útil para compreender
as travessias trans como estratégias de sobrevivência. Ela demonstra, por um lado,
a assimilação das mulheres trans e travestis brasileiras como sujeitos fetichizados
e sexualizados que fabricam corpos e estéticas específicas. Por outro lado, mostra
também as redes econômicas que se constroem por meio da migração de acordo
com as circunstâncias sociais do espaço geográfico de origem, as desigualdades –
bem como a possibilidade de mobilidade social que se apresenta – e as já referidas
corporeidade e estética que adquirem mais valor no mercado sexual transnacional.
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para a Europa com fins de exploração sexual
O período da ditadura militar brasileira, que teve início em 1964 e se estendeu até
1985, colocou as pessoas LGBT, e em especial as travestis, numa situação de
enfrentamento15, sendo objeto de perseguição policial, e à margem de qualquer
legitimação legislativa. Segundo Hutta e Balzer (2013, p. 75), o governo militar via
as travestis como inimigas da moral familiar brasileira, o que também contribuiu
para o profundo desejo de migrarem a outros países. Por estarem ligadas ao
mundo do entretenimento, da vida noturna e do drag, as travestis viram nesse
meio uma oportunidade dentro do mercado europeu. Foi assim que, no início da
década de 1970, algumas travestis migraram para a França para trabalhar nos
cabarés parisienses (Kulic, 2008, p. 180). Segundo Kulick, elas enxergaram no
contexto europeu uma oportunidade de auferir fama, de feminizar os seus corpos
e, assim, viver como travestis durante todo o dia (e não só à noite, no ambiente das
casas de espetáculos).
14 A escolha pela utilização da biografia de Luísa Marilac no presente trabalho se integra ao contexto
das metodologias queer. Tais metodologias realizam uma crítica à hierarquização do
conhecimento e aos moldes herméticos da pesquisa acadêmica, favorecendo a
transdisciplinaridade e o uso de métodos de estudo mistos. A utilização, portanto, de uma
biografia num estudo como este incorpora, em alguma medida, a mescla do método da história
de vida, pouco comum no estudo do direito, com métodos tradicionalmente mais empregados
no campo jurídico. De acordo com propostas das metodologias queer, é problemática a
necessidade de, no objetivo de construir um texto acadêmico, basear-se somente em fontes
reconhecidas pela tradição ocidental como cientificamente válidas, excluindo outros
conhecimentos possíveis e tornando a pesquisa acadêmica hermética e menos acessível. Assim,
para construir uma pesquisa crítica sobre realidades complexas que estão em constante
movimento, de maneira antinormativa e contra-hegemônica, pode ser necessário pensar
metodologias afeiçoadas ao caos (Cunha, 2023).
15 Naquela época, o termo transexual ainda não era comum no Brasil. A noção de “transexual”
começou a ser conhecida e difundida socialmente a partir da década de 1990, com o
fortalecimento do discurso biomédico patologizante, que identificava as identidades trans como
um transtorno mental e propunha como tratamento a correção do corpo por meio de
modificações corporais. Essa lógica, herdada da tradição médico-discursiva europeia e
estadunidense, foi gradativamente incorporada às dinâmicas locais não ocidentais, como foi o
caso do Brasil na década de 1990 (Nery, 2019, p. 32-40).
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o Atlântico, elas fizeram uma outra travessia: do palco para a rua. No entanto, os
obstáculos que tiveram de enfrentar só viriam a ser conhecidos mais tarde.
Entre 2012 e 2014, estima-se que mais de 60% das vítimas de tráfico de pessoas
eram migrantes (OIT, Walk Free Foundation e OIM, 2017, p. 31). Nesse contexto
de imigração, a chegada a um novo país, as dificuldades linguísticas e de
integração social, inclusive entre si mesmas, já são elementos que diminuem o
glamour da vida na Europa. Ademais, a sua situação de vulnerabilidade vê-se
incrementada devido à flexibilidade do seu trabalho em relação ao racismo, ao
tráfico de pessoas, à exploração ilegal do trabalho, ao sequestro, aos pedidos de
resgate, à extorsão, à violência física e sexual, dada a falta de proteção social,
sobretudo quando se consideram situações de migração irregular (OIT, Walk Free
Foundation e OIM, 2017, p. 30).
A primeira delas foi realizada em 2018 e resultou na prisão de cinco pessoas nos
estados de São Paulo, Goiás e Minas Gerais. As vítimas eram aliciadas com
propostas de participação em concursos de beleza na Itália, mas na verdade eram
exploradas tanto nesse país quanto na França. Além disso, os próprios agentes
criminosos aplicavam silicone industrial (substância tóxica) nas vítimas, como
método de procedimento estético (Tavares, 2018).
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para a Europa com fins de exploração sexual
presentes nas ofertas das pessoas responsáveis por captá-las. No entanto, a polícia
detectou muitos dos mecanismos ligados à escravidão contemporânea, entre os
quais podemos destacar a submissão à reprodução da escravização (jornada
exaustiva, condições degradantes de trabalho, servidão por dívida e limitação da
liberdade de locomoção), a existência de um tribunal que punia as vítimas com
castigos físicos, multas e outras penitências e a reincidência de alguns dos agentes
criminosos, o que certificava a naturalização do crime. Ocorrida em 2019, a
operação conseguiu resgatar cerca de 38 pessoas (G1 Ribeirão Preto e Franca;
Carvalho, 2022, p. 69).
Aqui, não entraremos num debate moral (ou moralizante) sobre o elemento da
consciência ou não consciência em relação ao tipo de trabalho a ser realizado ou se
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Ao fazê-lo, é importante observar que não pode ser invocado o argumento de que,
tendo consciência do trabalho que irão realizar ao outro lado do Atlântico, esse
grupo não seria vítima de tráfico de seres humanos ou de escravidão sexual. Essa
afirmação se torna irrelevante ante o fato de que a escravidão contemporânea se
verifica independentemente da voluntariedade da vítima, sobretudo quando é
evidente que esta foi, em certa medida, engazupada e não exerce plenamente a sua
liberdade de escolha (Vallejo, 2020, p. 48); e aqui podem entrar em jogo as
circunstâncias socioculturais, históricas e políticas de cada contexto.
Mas, como quisemos antecipar, deve-se fazer uma análise cautelosa ao estudar os
casos, evitando generalizações estigmatizantes. Há migração de mulheres trans e
travestis para o continente europeu que não está relacionada com a prostituição.
Existem também trabalhadoras do sexo que migram para a Europa e que não são
escravizadas. Assim, é necessário diferenciar esses grupos e compreender que,
dentro do universo das travestis e mulheres trans que migram a fim de trabalhar
com a prostituição, existem diferentes graus e mecanismos de subjugação e
exploração, incluindo os que conduzem à escravidão.
Um dos mecanismos que merece destaque é a rotação dessas migrantes por várias
cidades europeias, em parte para terem contato com uma clientela maior e
evitarem percalços com a polícia ou com os controles migratórios (Castro; Rosado;
Fernández, 2009). Por outro lado, estando sujeitas a redes de escravidão sexual, tal
estratégia faz também com que elas não estabeleçam residência e, portanto, não se
arraiguem em espaço algum e, por conseguinte, não construam redes de apoio.
Parece até um mecanismo sutil, mas que certamente cria um ambiente bastante
favorável para aquelas pessoas que lucram com a exploração sexual.
Vários outros mecanismos podem ser articulados para tornar a migrante uma
vítima da escravidão contemporânea: privação da liberdade, alojamento precário
e sem condições de higiene, vulnerando-se o seu direito à privacidade (Goldman,
2014, p. 71); sujeição a jornadas de trabalho exaustivas para pagar as despesas
relacionadas à viagem (Kulick, 2008, p. 186) – emissão de passaportes e vistos,
passagens, subornos de agentes do controle fronteiriço, etc. –, à sua manutenção –
alojamento, compra de agentes da polícia para evitar denúncias ou fiscalizações,
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Sexo, dinheiro e escravidão contemporânea: tráfico de travestis e mulheres trans do Brasil 631
para a Europa com fins de exploração sexual
Para além das possíveis consequências físicas desse tipo de escravidão, como a
vulnerabilidade a “doenças infectocontagiosas, especialmente as sexualmente
transmissíveis” (Goldman, 2014, p. 71), bem como a falta de prevenção e
tratamento de outras doenças, devido à dificuldade de acesso aos serviços de
17 As travestis e mulheres trans brasileiras que não estão nas casas de prostituição propriamente
ditas precisam pagar uma espécie de aluguel para ficarem em determinado ponto da rua e serem
protegidas das revistas policiais (Vartabedian, 2018, p. 209-2011) ou da violência de outros grupos
(de caráter transfóbico, putofóbico, xenofóbico ou com o fim de roubá-las).
18 Goldman elucida que este fato demonstra que se trata de “uma maquinaria perversa que se
retroalimenta, com a vitória da desesperança” (2014, p. 84). Ver também: Vartabedian (2018, p.
56), em que se faz referência à ideia de “madrinha”. Segundo esta estudiosa (2018, p. 17),
“madrinhas é o termo que as travestis empregam para nomear aquelas com mais experiência e
mais meios econômicos que protegem, orientam e aconselham as travestis mais jovens em troca
de respeito e dinheiro”.
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632 Leonam Lucas Nogueira Cunha - Jules Ponthieu - Lucas Isaac Soares Mesquita
Por fim, e tendo em conta as várias discussões aqui elucidadas, cabe articular
algumas conclusões que parecem ser particularmente importantes no decurso da
nossa reflexão. Em primeiro lugar, quando discutimos esses temas, deve ser
reafirmada a grande variedade, a nível individual, das situações pessoais. Parece
realmente importante analisar essas problemáticas partindo de um paradigma
inclusivo e abrangente, pois cada travesti ou mulher trans que imigra encerra uma
realidade própria. Essa enorme variedade de situações pode ser ilustrada, por
exemplo, pelas diferentes formas de manifestação que a escravidão
contemporânea pode assumir. Embora tenhamo-nos centrado na questão das
mulheres trans e das travestis, outro ponto destacável neste trabalho é a clara
“diferenciação generificada” das múltiplas formas de violência. Além disso, e
ainda pensando na multiplicidade de situações individuais que podem ser
observadas, é também abordando as razões da migração ou, mais genericamente,
os fatores que de certa forma explicam este fenômeno, que uma ampla gama de
razões é ilustrada. Em grande parte ligadas às situações observadas na realidade
de transfobia que se vive no Brasil (é fundamental relembrar que o Brasil é o país
em que se registra o maior número de assassinatos de mulheres trans e travestis)
e, especificamente, a um ambiente historicamente propenso à violência, à rejeição
e à discriminação, as razões que motivam essa imigração podem ser diversas, com
o elemento da voluntariedade ou não, e motivadas por razões econômicas
(prostituição como meio de ganhar a vida), rejeição familiar e/ou social. Ademais,
alguns fatores de motivação se relacionam com a busca por uma vida decente, um
status social mais elevado e certa realização estética e física.
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Sexo, dinheiro e escravidão contemporânea: tráfico de travestis e mulheres trans do Brasil 633
para a Europa com fins de exploração sexual
Demonstramos, aqui, que o tráfico para fins de exploração sexual pode constituir
uma modalidade de escravidão, com redes que se constroem através de
proxenetas, corrupção policial e subornos. Outro aspecto da questão que também
abordamos é o fato de que, muitas vezes, as vítimas não são consideradas como
tal, seja pelas instituições políticas e autoridades públicas, seja pela sociedade civil,
seja por elas mesmas e entre elas. Essa visão enviesada sobre a situação desses
indivíduos, bem como a sua exclusão estrutural e sistemática do mercado de
trabalho e profissional formal, leva-os também a se envolverem, mais facilmente,
de forma concreta, nos processos de recrutamento e a participarem como
perpetuadores dessas atividades ilícitas, fomentando uma lógica de “círculo
vicioso”.
Segundo Lewis (2020), é fundamental entender o tráfico de pessoas, seja com fins
sexuais ou não, como um problema de economia política, já que as tantas pessoas
que caem nessas redes satisfazem uma demanda de um mercado transnacional
que gera riqueza para um determinado grupo extremamente reduzido. Lewis
(2020, p. 120) esclarece que:
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634 Leonam Lucas Nogueira Cunha - Jules Ponthieu - Lucas Isaac Soares Mesquita
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para a Europa com fins de exploração sexual
Sobre os autores
Leonam Lucas Nogueira Cunha
Professor colaborador na Universidade de Salamanca. Doutor em
Estado de Direito e Governança Global e Mestre em Estudos de Gênero
pela Universidade de Salamanca, Espanha – USAL. Bacharel em Direito
pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil – UFRN.
Jules Ponthieu
Doutorando na Universidade de Salamanca. Licenciado em Ciência
Política pela escola francesa Sciences Po Lille e pela Universidade de
Salamanca, Espanha - USAL. Especialista em políticas públicas.
_________________
Agradecimentos
Agradecemos à Revista Ameryka Łacińska, da Universidade de Varsóvia,
Polônia, por autorizar tão prestimosamente a publicação da versão em
português deste artigo que veio à luz originalmente em inglês (Ameryka
Łacińska 2022; 30 (3 (117)): 75-100 DOI: 10.7311/20811152.2022.117.05).
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.46915
em defesa da pesquisa
Maria Mostafa1
1
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em
Políticas Públicas e Formação Humana, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-
mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9105-
6672.
Submetido em 26/01/2023
Aceito em 17/08/2023
Pré-Publicação em 22/09/2023
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ISSN 2447-6684
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642 Maria Mostafa
Resumo
Em 2016 foi aprovada a primeira lei federal 13.257 integralmente dedicada aos direitos e
políticas para as crianças de zero a seis anos, no mesmo ano também foi criado o Programa
Criança Feliz, o primeiro programa nacional de visitação domiciliar com foco na primeira
infância. Esse artigo busca investigar as mecânicas que possibilitaram a emergência da
primeira infância no Brasil e os efeitos que essa segmentação no campo maior da criança e
do adolescente vem produzindo. Para isso coloca em análise o discurso de dois médicos
brasileiros que tiveram uma atuação expressiva na consolidação da área da primeira
infância no país e conclui que os argumentos que endossam essa emergência trazem
consigo um forte determinismo biológico e uma tendência, alinhada com a estratégia
neoliberal, de responsabilizar do sujeito pelo seu fracasso.
Palavras-chave
Primeira infância. Biopolítica. Neoliberalismo. Normalização.
Resumen
En 2016 se aprobó la primera ley federal 13.257 dedicada íntegramente a los derechos y
políticas de los niños de cero a seis años, en el mismo año también se creó el Programa
Niño Feliz, el primer programa nacional de visitas domiciliarias enfocado a la primera
infancia. Este artículo busca investigar la mecánica que hizo posible el surgimiento de la
primera infancia en Brasil y los efectos que esta segmentación en el campo más amplio de
los niños y adolescentes viene produciendo. Para ello, analiza el discurso de dos médicos
brasileños que tuvieron un papel expresivo en la consolidación del campo de la primera
infancia en el país y concluye que los argumentos que avalan este surgimiento traen
consigo un fuerte determinismo biológico y una tendencia, alineada con la estrategia
neoliberal, culpar al sujeto de su fracaso.
Palabras-clave
Primera infancia. Biopolítica. Neoliberalismo. Normalización.
Abstract
In 2016, the federal law 13.257, fully dedicated to the rights and policies for children from
zero to six years old, was approved in Brazil and in the same year a national home
visitation program focused on early childhood, called Happy Child Program, was also
created. This article seeks to investigate the mechanics that made possible the emergence
of early childhood in Brazil and the effects that this segmentation in the larger field of
children and adolescents has been producing. For this, it analyzes the discourse of two
Brazilian physicians who had an expressive role in the consolidation of the area of early
childhood in the country and concludes that the arguments that endorse this emergence
bring along a strong biological determinism and a tendency, aligned with the neoliberal
strategy, to blame the subject for his failure.
Keywords
Early childhood. Biopolitics. Neoliberalism. Normalization.
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Emergência da primeira infância: ampliação dos direitos das crianças ou aprofundamento do 643
neoliberalismo?
Introdução
A primeira infância, definida no Brasil como a fase que vai dos 0 aos 6 anos de
idade (a partir do nascimento), vem ganhando importância em diferentes frentes,
seja em campos do saber como as neurociências ou a economia, seja como objeto
das organizações da sociedade civil que desde a Constituição Federal de 1988
(Brasil, 1988) têm sido conclamadas a agir no campo da garantia dos direitos da
criança e na formulação de políticas sociais. No Brasil, um dos efeitos da força
dessa emergência é a sua institucionalização com a formação, em 2010, de uma
rede de organizações chamada Rede Nacional Primeira Infância e a aprovação, em
2016, da Lei 13.257, conhecida como Marco Legal da Primeira Infância (Brasil,
2016). No mesmo ano também foi criado um programa federal de visitação
domiciliar com foco no desenvolvimento das crianças de até 6 anos, chamado
Programa Criança Feliz (Brasil, 2017).
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644 Maria Mostafa
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Emergência da primeira infância: ampliação dos direitos das crianças ou aprofundamento do 645
neoliberalismo?
Interessa colocar em análise essa relação de forças que tensiona o campo “infância
e adolescência” para a fragmentação em segmentos menores que delimitam o
campo da primeira infância.
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646 Maria Mostafa
Em diversos trechos do livro já aqui citado, Spencer faz duras críticas aos pais por
ignorarem a forma com que funcionaria o corpo e o processo de aprendizagem das
crianças e assim atrapalhariam o seu desenvolvimento: “A educação física, moral
e intelectual da mocidade é espantosamente deficiente. A maior parte da culpa
pertence aos pais pela sua ignorância dos conhecimentos por meio dos que a
educação pode ser dirigida com verdade.” (Spencer, 1861). Para alcançarem os
bons resultados os pais deveriam aprender alguns princípios científicos: “Para a
boa educação da mocidade são indispensáveis alguns conhecimentos dos
primeiros princípios de fisiologia e das verdades elementares da psicologia”
(Spencer, 1861).
Seguindo essa linha mais alinhada ao que era visto como pesquisa científica na
época, ao final do século XIX proliferaram estudos sobre o desenvolvimento
humano a partir da observação de crianças. Quando essas práticas de observação
puderam ser realizadas em clínicas e escolas, e, portanto, com grupos grandes de
crianças, a psicologia do desenvolvimento estabeleceu etapas de vida mais
definidas e fechadas, construindo uma ideia de normalidade mais rígida para cada
etapa:
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Emergência da primeira infância: ampliação dos direitos das crianças ou aprofundamento do 647
neoliberalismo?
Aqui traremos dois casos com especialistas que ajudaram a conformar o campo da
primeira infância no Brasil, na medida em que trazem em si esses mecanismos de
produção da normalidade: a trajetória político-cientifica do propositor do
Programa Criança Feliz, Osmar Terra, e os achados do médico brasileiro César
Victora, reconhecido internacionalmente por modificar a “curva normal” do
desenvolvimento infantil.
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648 Maria Mostafa
A partir desta notícia, a pesquisa foi alvo de denúncias e reações por parte de
psicólogos e outros profissionais da área social, que produziram uma nota de
repúdio (Rodrigues, 2008) e um movimento público que promoveu debates e
interferiu na análise do Comitê de Ética da UFRGS sobre o projeto. A própria Folha
de São Paulo noticiou a repercussão do caso com matéria intitulada: “Psicólogos
tentam impedir pesquisa com homicidas” (Garcia, 2008), mas também publicou,
em janeiro de 2008 um editorial contrário à nota de repúdio, considerando-a
enviesada e precipitada (Razão, 2008).
O debate seguiu com outros artigos, como o publicado também na Folha de São
Paulo, de autoria de Esther Arantes e Suyanna Barker, intitulado “Por que
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Emergência da primeira infância: ampliação dos direitos das crianças ou aprofundamento do 649
neoliberalismo?
A pesquisa com os adolescentes, que foram categorizados pela Folha de São Paulo
como detentores de “cérebros homicidas” não foi adiante e parece que a solução
para a dissertação de Terra foi fazer uma revisão sistemática de estudos já
realizados fora do Brasil sobre o assunto.
Mesmo com a pesquisa com os cérebros não autorizada, pelo trecho acima citado
e pela fala de Terra na primeira notícia da Folha de São Paulo, em que dizia
“Estamos nos baseando em trabalhos que já existem mostrando que há um período
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650 Maria Mostafa
crítico no início da vida e que se uma criança é maltratada entre o 8º e o 18º mês
ela adquire comportamento alterado na idade adulta” (Garcia, 2007), fica clara a
visão de Terra sobre a correlação entre primeira infância e prevenção: se a criança
for maltratada na primeira infância será produzido um dano no cérebro, e é esse
dano, e não as desigualdades sociais, que levariam as crianças e adolescentes a
cometerem atos violentos. Portanto, para que o “problema” dos adolescentes em
conflito com a lei seja resolvido, seria preciso prevenir o suposto dano cerebral. Ao
localizar a violência no cérebro e relacioná-la a um dano, Osmar Terra reforça o
discurso de que os adolescentes que cumprem medidas socioeducativas são
pessoas “danificadas”, se aproximando de uma abordagem eugênica. Como evitar
esse dano? Investindo na primeira infância, como por exemplo, segundo o próprio
Terra, com os programas de visitação domiciliar como o Primeira Infância Melhor
do Rio Grande do Sul e o Criança Feliz, ambos elencados no rol das realizações
políticas do médico. A pobreza e a questão racial no sistema prisional não são
questões que merecem a atenção de Terra, a não ser pela produção do dano
cerebral na primeira infância. Desviando do dano, o problema estaria resolvido.
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Emergência da primeira infância: ampliação dos direitos das crianças ou aprofundamento do 651
neoliberalismo?
A referência dos mil dias está bastante relacionada com um outro médico que
ajudou a construir, junto com Osmar Terra, essa cena de valorização da primeira
infância brasileira: Cesar Victora, epidemiologista atuante na Universidade
Federal de Pelotas (UFPel), cidade também do estado do Rio Grande do Sul.
Victora e Terra apresentam algumas proximidades, pois ambos são médicos, são
do Rio Grande do Sul e atuantes na primeira infância, mas enquanto Terra seguiu
carreira na política, Victora é um renomado pesquisador. Em diversas ocasiões
Terra convidou Victora para referendar, com os argumentos e a legitimidade da
ciência, as discussões políticas sobre primeira infância. Inclusive, a equipe de
Victora foi responsável por desenvolver a metodologia de avaliação do Programa
Criança Feliz (Seminário, 2020).
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652 Maria Mostafa
Então, eu vou falar sobre algumas pesquisas que a gente tem feito aqui e
vou também tentar mudar um pouquinho a percepção que talvez vocês,
nossos colegas da Câmara, tenham sobre a importância das diferentes
fases da infância. Essas são pesquisas que nós realizamos aqui nos últimos
anos e que, de alguma maneira, têm influenciado as políticas no mundo.
Eu vou falar sobre aleitamento, sobre as curvas que o Osmar mencionou
rapidamente, sobre os mil primeiros dias - uma questão muito importante
- e sobre os objetivos do milênio e o que nos espera no futuro.
O próximo eslaide vai mostrar a questão do aleitamento materno. Então,
eu vou falar muito rapidamente como era a situação até, mais ou menos,
os anos 80 e o que eu fazia com os meus filhos e com os meus pacientes
naquela época. A gente recomendava que, logo a partir dos 2 ou 3 meses
de idade, a criança começasse a receber chás, água, suquinhos, além do
leite materno. Era essa a recomendação naquela época.
(...)
O próximo eslaide mostra o que foi mais surpreendente naquela época:
cada mamadeira que a criança recebia de água ou chá, que nós
considerávamos algo inócuo, que não faria mal nenhum dar um chazinho
para a criança, aumentava em 1,7 vez o risco de morte por diarreia, ou seja,
aumentava em 70% o risco de ela morrer. Por quê? Porque, muitas vezes,
a mamadeira estava contaminada, não era bem esterilizada, e foi a
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Emergência da primeira infância: ampliação dos direitos das crianças ou aprofundamento do 653
neoliberalismo?
primeira vez que isso foi descoberto. Esse foi o primeiro artigo no mundo
que relatou esse efeito.
(...)
Então, nós passamos a definir a amamentação como o normal do ser
humano e passamos a julgar o crescimento de outras crianças com base no
crescimento das crianças amamentadas. É o contrário do anterior, porque,
até então, o normal era aquela criança norte-americana obesa, que recebia
mamadeira. Nós redefinimos o normal. (Câmara dos Deputados, 2014).
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Emergência da primeira infância: ampliação dos direitos das crianças ou aprofundamento do 655
neoliberalismo?
alterados, anormais, doentes. É uma visão que reduz a violência a uma questão
biológica, como uma doença. Nesse caso, não há remédio possível, o dano é
permanente para quem já tem o cérebro alterado. A única alternativa, de acordo
com seus pressupostos, é a prevenção da população que ainda não teve seu cérebro
comprometido: as crianças na primeira infância.
No bloco seguinte da audiência pública sobre primeira infância, Victora fala sobre
a importância dos primeiros mil dias (que inclui o período da gestação e os dois
primeiros anos), para o desenvolvimento infantil. Nessa fala ele defende a
segmentação da própria primeira infância:
Eu gostaria de passar para a terceira, que é a questão dos mil dias, e depois
falar um pouco mais sobre os objetivos do milênio. A questão dos mil dias
é um conceito muito interessante. Eu acho, Deputado Osmar e colegas da
Câmara, que isso tem muita relevância para a legislação brasileira. O que
acontecia? Todas as crianças menores de 5 anos eram consideradas uma
unidade única, um grupo homogêneo. Nós começamos a realizar uma
série de pesquisas e ver que não é bem assim: os primeiros 2 anos são muito
mais críticos do que o terceiro ano, o quarto ano e o quinto ano. São todos
importantes, mas o começo da vida é mais crítico ainda. (...) Daí, saiu esse
conceito dos mil dias, porque se vocês somarem os 270 dias da gestação,
que é um período crítico, com os 365 dias do primeiro ano e os 365 do
segundo ano de vida, dá exatamente mil dias. Então, criou-se esse conceito
dos mil dias críticos para o desenvolvimento da criança. (Câmara dos
Deputados, 2014).
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656 Maria Mostafa
O autor alega que a importância dos três primeiros anos ganhou credibilidade a
partir de declarações que alguns cientistas fizeram na mídia, mas de fato não
haviam novos resultados a serem compartilhados com o público amplo. Por isso
chamou esse movimento de mito. Esse caso é relevante pois nos lembra que há
debate nos meios de produção de ciência, há dissenso, inclusive nas neurociências.
E muitas vezes o que é divulgado nos meios de comunicação, ou usado nas
argumentações das políticas e programas de primeira infância, é uma determinada
corrente ou pesquisa, comunicada como se fosse um consenso geral dos cientistas.
A vontade de verdade (Foucault, 1999) que atravessa os discursos sobre a
importância da primeira infância apaga o debate científico, que é justamente um
dos pilares sobre o qual a produção científica se sustenta.
Por um argumento ou por outro, a segmentação da vida em faixas etárias pode ser
compreendida como um refinamento das formas de controle biopolítico, de uma
segmentariedade mais flexível, mais molecular (Deleuze; Guatarri, 1996). A
unidade de medida vai se tornando cada vez mais específica, mensurando e
capturando com mais precisão cada etapa da vida, neste caso a infância, a primeira
infância, a primeiríssima infância, os primeiros mil dias. A divisão da infância em
primeira infância é menos uma ruptura com um sistema maior que invisibilizaria
as crianças de 0 a 6 anos, e é mais uma forma refinada de ressoar as mecânicas de
funcionamento do neoliberalismo que produz uma certa forma de ser criança,
associando todas as etapas da vida à rentabilidade possível do capital.
Seguindo com o discurso de Victora, chegamos num dos argumentos centrais para
a priorização da primeira infância: os efeitos dessa etapa da vida no capital
humano:
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Emergência da primeira infância: ampliação dos direitos das crianças ou aprofundamento do 657
neoliberalismo?
O olhar da teoria do capital humano desloca a análise econômica para o sujeito que
trabalha. Não é sobre o que o trabalho produz. E sim o trabalho em si como
conduta econômica. Consequentemente, o trabalhador passa a ser visto como um
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neoliberalismo?
Considerações finais
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660 Maria Mostafa
pequenas prevenção dos traumas, cérebros estimulados com afeto, vínculo e livre
brincar. E para as crianças fora da primeira infância a constatação de que não há o
que fazer, já não podem mais ser “salvas”. O discurso sobre a prioridade das
crianças pequenas e da importância do desenvolvimento na primeira infância
carrega um determinismo biológico: de um lado da equação é preciso estimular as
crianças na primeira infância, pois é nos primeiros anos de vida que as principais
estruturas neuronais são formadas, do outro, os adolescentes que apresentarem
“falhas no desenvolvimento”, como a violência, estão danificados, provavelmente
pela falta de cuidados certos na primeira infância, não servem mais ao sistema, por
isso são elimináveis.
Referências
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Emergência da primeira infância: ampliação dos direitos das crianças ou aprofundamento do 661
neoliberalismo?
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Emergência da primeira infância: ampliação dos direitos das crianças ou aprofundamento do 663
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664 Maria Mostafa
Sobre a autora
Maria Mostafa
Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana pela UERJ (2022),
com pesquisa sobre as políticas públicas para a primeira infância, e
mestre em Saúde Coletiva pela mesma universidade (2009), com
dissertação sobre o curso “Gênero e Diversidade na Escola”. Possui
graduação em História pela Universidade Federal Fluminense (2006),
especialização em Políticas Públicas para a Igualdade na América
Latina pela CLACSO atuando principalmente nas seguintes áreas:
gênero, educação, políticas públicas e primeira infância.
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10.26512/revistainsurgncia.v10i1.43223
em defesa da pesquisa
Wederson Santos1
1
Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil. E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8769-
6984.
Submetido em 06/05/2022
Aceito em 01/08/2022
Pré-Publicação em 08/10/2022
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ISSN 2447-6684
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666 Wederson Santos - Olemar Guilherme da Cunha
Resumo
Analisa-se a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela ONU
em 2006 e incorporada ao direito brasileiro como emenda constitucional em 2009, como
um novo paradigma para reorientar as formas de implementação de políticas sociais no
país. Por meio de uma análise qualitativa e crítica com base nos estudos da deficiência,
argumenta-se que os princípios sobretudo de autonomia com apoios, participação das
pessoas com deficiência na elaboração de leis e políticas e da eliminação de barreiras
incapacitantes estão no plano de fundo da Convenção de um modo substancialmente
inovado ao comparar com as garantias constitucionais afirmadas em 1988 em torno das
noções de dignidade humana e cidadania. Este é o principal contributo da Convenção para
inaugurar novo paradigma para as políticas sociais no cenário brasileiro, compreendendo-
as em seus aspectos contraditórios e históricos de respostas coletivas a demandas por
atendimento de necessidades humanas, com potencial de superar inclusive as pessoas com
deficiência, ao alcançar toda a população, seja pela expectativa universalizante da
Convenção, seja pelas garantias assentadas na perspectiva da integralidade dos direitos
humanos.
Palavras-chave
Deficiência. Convenção. Políticas sociais. Paradigma. Princípios de justiça.
Resumen
Se analiza la Convención sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad, aprobada
por la ONU en 2006 e incorporada al derecho brasileño como enmienda constitucional en
2009, como un nuevo paradigma para reorientar las formas de implementar políticas
sociales en el país. A través de un análisis cualitativo y crítico basado en estudios de
discapacidad, se sostiene que los principios, sobre todo, de 1. autonomía con apoyo, 2.
participación de las personas con discapacidad en el desarrollo de leyes y políticas y 3.
eliminación de barreras invalidantes están en el trasfondo de la Convención de una manera
sustancialmente innovadora en comparación con las garantías constitucionales afirmadas
en 1988 en torno a las nociones de dignidad humana y ciudadanía. Esta es la principal
contribución de la Convención para inaugurar un nuevo paradigma de las políticas
sociales en el escenario brasileño, entendiéndolas en sus aspectos contradictorios e
históricos de respuestas colectivas a las demandas de satisfacción de las necesidades
humanas, con potencial de superar incluso a las personas con discapacidad, al llegar a toda
la población, ya sea a través de las expectativas universalizadoras de la Convención o a
través de garantías basadas en la perspectiva de la integralidad de los derechos humanos.
Palabras-clave
Discapacidad. Convención. Política social. Paradigma. Principios de justicia.
Abstract
The Convention on the Rights of Persons with Disabilities, approved by the UN in 2006
and incorporated into Brazilian law as a constitutional amendment in 2009, is analyzed as
a new paradigm to reorient the forms of implementation of social policies in the country.
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para implementação de políticas sociais
Through a qualitative and critical analysis based on disability studies, it is argued that the
principle, above all, of autonomy with supports, participation of people with disabilities in
the elaboration of law and the politics and the elimination of disabling barriers are in the
background of the Convention in a substantially innovative way when comparing to the
constitutional guarantees affirmed in 1988 around the notion of human dignity and
citizenship rights. This is the Convention's main contribution to inaugurate a new
paradigm for social policies in the Brazilian scencario, understanding them in their
contradictory and historical aspects of collective responses to demands for meeting human
needs, with the potential to overcome even people with disabilities by reach the entire
population, either by the universalizing expectation of the Convention, or by the
guarantees based on the perspective of the integrality of human rights.
Keywords
Disability. CRPD. Paradigm. Social policies. Principles of justice.
1 Introdução
Um corpo com deficiência expressa uma condição que faz parte da diversidade
humana (Diniz; Barbosa; Santos, 2009). Essa afirmação traz implicações
significativas para as pessoas que a experimentam, para a sociedade e para os
governos. No entanto, compreender a deficiência como componente da condição
humana não pode, por outro lado, resultar que essa população experimente
desigualdade, opressão ou tratamento discriminatório.
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pressuposto analítico sobre quais são, para além do universo jurídico, os limites e
possibilidades da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
enfrentar a corponormatividade. A Convenção é, hoje, o principal instrumento
jurídico internacional para a proteção e promoção da dignidade e cidadania dessas
pessoas (Dhanda, 2008). A Convenção, dentre várias inovações, trouxe uma nova
forma de compreender e descrever a experiência da deficiência, principalmente
ancorada nos princípios do modelo social da deficiência (Barnes et. al, 2002; Diniz,
2007; Pallacios, 2008). Para superar a hegemonia biomédica, prevalente por séculos
com uma autoridade discursiva e interventiva sobre o corpo deficiente (Courtine,
2009), a concepção de deficiência do modelo social e, portanto, da Convenção,
busca compreendê-la como um fenômeno multidimensional de causalidade social,
estruturada por valores culturais, políticos, além dos de saúde com afirmações
sobre corpos com alterações.
1 Ray Pereira (2009) apresenta com rigor argumentativo os desafios e riscos envolvidos em
nomearas pessoas com deficiência, bem como explora as possibilidades alternativas que tentam
afastar aspectos pejorativos e discriminatórios, ao acionar dispositivos de linguagens e de
discursos para se referir às pessoas que vivem em corpos diversos sem que devolva essas pessoas
a um lugar subalternizado. Diversidade funcional é uma categoria apresentada como alternativa
para superar o tema meramente enquanto questões individuais da esfera privada, deslocando-o
para a espera pública e das causalidades sociais que operam sobre as pessoas produzindo
situações de desigualdade. No entanto, tal escolha carece ainda de mais problematização para
eliminar possíveis consequências não previstas decorrentes de uma aproximação com uma
perspectiva funcionalista e produtivista pela adjetivação “funcional” que figura por vezes como
sinônimo de produtivo, útil, capaz.
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para implementação de políticas sociais
Segundo Jeni Morris (2011), para se ter políticas sociais capazes de enfrentar as
barreiras incapacitantes impostas às pessoas com deficiência é fundamental uma
defesa explícita de políticas sociais de promoção do bem-estar social, ligadas a uma
noção ampla de seguridade social. Como é evidente que pessoas com deficiência,
nas suas mais variadas expressões e fases da vida, estão em desvantagem numa
sociedade regida pela distribuição de bens e recursos via mercado, é urgente a
adoção de mecanismos coletivos e redistributivos de recursos sociais, econômicos
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Levou tempo para as reivindicações das pessoas com deficiência serem tratadas
como demandas por justiça e não como barganhas, privilégios ou caridade, o que
ocorreu apenas na elaboração da Constituição do final dos anos 1980. O próprio
desenvolvimento da assistência social a partir dos anos 1950 se deu no marco da
caridade, via Legião Brasileira de Assistência, sem ter o caráter de política pública
de responsabilidade estatal, menos ainda atrelada à lógica de direito de cidadania
(Boschetti, 2006), o que até atingiu as pessoas com deficiência, mas sem retirá-las
da situação subalternizada em que se encontravam, mantendo-as isoladas e
abrigadas, sem participar da sociedade.
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para implementação de políticas sociais
Por sua vez, a força dos direitos humanos, enquanto uma formulação capaz de
reivindicar proteções a liberdades e garantias básicas a todas as pessoas, não reside
meramente no seu aspecto formal ou jurídico (Filho; Sousa Júnior, 2016) – e a
Constituição Federal de 1988 foi preponderante para afirmar os direitos humanos
no Brasil. Essa compreensão poderia abrir brechas a uma interpretação de que os
direitos humanos apenas deslocam mais uma vez a discussão de realização
concreta do exercício das liberdades e da garantia da dignidade a todas as pessoas.
É comum a formalidade dos direitos humanos passar uma impressão ao
imaginário social de ser mais um deslocamento retórico de justificações para
garantias básicas que nunca se concretizam, principalmente quando se fala em
sociedades demarcadas por injustiças sociais e desigualdades socioeconômicas,
como é o caso brasileiro. Além disso, como alertam Escrivão Filho e Souza Júnior
(2016), é crescentemente verificada uma despolitização dos direitos humanos,
traduzindo-os apenas como procedimentos interpretados por técnicos e
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José Geraldo de Sousa Júnior compreende os direitos humanos como lutas sociais
concretas da experiência de humanização (Sousa Júnior, 2000). Eles podem ser
compreendidos, em síntese, como o ensaio de positivação da liberdade
conscientizada e conquistada no processo de criação das sociedades, na trajetória
emancipatória do homem (Sousa Júnior, 2000). Afirmar os direitos humanos nessa
perspectiva é direcionar a sociedade para o esforço de garantir um conjunto de
liberdades a todos os indivíduos apenas pelo fato de serem humanos e, no caso
das pessoas com deficiência, o valor central de contemplar as pessoas com
deficiência na reivindicação dos direitos voltados a elas mesmos.
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para implementação de políticas sociais
têm, entre suas funções, a concretização dos direitos humanos. Estas lições são
fundamentais para a discussão dos princípios da Convenção a serem analisados
na seção seguinte e o modo como a relação entre eles pode influenciar
decisivamente um novo escopo das políticas sociais no país.
Para Amita Dhanda (2008), a inovação das concepções da Convenção pode ser
apontada principalmente, por quatro razões: 1. a Convenção assinalou a mudança
da assistência para direitos das pessoas com deficiência, o que provocará alteração
nos marcos normativos dos países signatários da Convenção; 2. introduziu o
idioma da igualdade para conceder tratamento igualitário e ao mesmo tempo
equitativo às pessoas com deficiência; 3. reconheceu a autonomia com apoio para
pessoas com deficiência e 4. tornou a compreensão sobre deficiência como parte
da experiência humana (Dhanda, 2008). São cinquenta artigos que expressam esses
quatro conjuntos de mudanças que inovam na forma como os Estados Parte devem
ampliar a proteção dos direitos humanos das pessoas com deficiência. Dessa
forma, abaixo passa-se à apreciação das principais novidades da Convenção,
sobretudo, no que enseja relações com as políticas sociais, a fim de avaliar o
potencial da Convenção frente inclusive à corponormatividade que estrutura as
relações sociais na sociedade brasileira, principalmente com políticas precarizadas
em seu papel de promover direitos de cidadania.
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Conforme Dhanda (2008), um dos maiores entraves a ser superado por uma norma
de direitos humanos está relacionado com o enigma da uniformidade e da
diferença que persegue os grupos excluídos na busca pela inclusão na sociedade.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência busca pactuar ambos,
o mesmo e o diferente. Nesse sentido, é possível que as pessoas com deficiência
tenham sua dignidade respeitada tendo um razoável ajustamento das suas
diferenças com vistas à inclusão e participação plena (Dhanda, 2008). No entanto,
tal métrica dependerá dos instrumentos políticos e sociais para materializar essa
compreensão.
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para implementação de políticas sociais
Uma das questões para a qual a Convenção dá uma significativa contribuição para
alterar a ênfase dos direitos das pessoas com deficiências é a da autonomia com
apoios (Dhanda, 2008). É possível perceber tais contribuições em dois conjuntos
amplos de situações em muitos artigos da Convenção: o primeiro conjunto diz
respeito à novidade do reconhecimento da capacidade civil das pessoas com
deficiência, como tratado anteriormente e até mesmo nas exigências de políticas,
programas e outras ações necessárias à materialização dessa novidade. Sobre esse
ponto, é importante abordar, o que será tratado adiante, o instituto da decisão
apoiada, prevista na Convenção e disciplinada no contexto brasileiro pela LBI em
2015.
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A tomada de decisão apoiada pode ser requerida, pelo apoiando, tanto para
suporte em assuntos patrimoniais ou extrapatrimoniais, sendo que a necessidade
da pessoa requerente é que determinará a extensão do apoio (ONU, 2006).
Menezes (2015) explica que o apoio envolve esclarecer a pessoa sobre fatores
relativos à decisão, inclusive o alcance dos efeitos, além disso pode envolver ainda
a comunicação da decisão aos interlocutores.
Raquel Guimarães (2008) demonstra que o cuidado é tido, por vezes, como uma
tarefa feminina a ser exercida no contexto doméstico e familiar. No entanto, para
Joan C. Tronto (2007) o cuidado constitui um dever a ser exercido de modo
indistinto com a finalidade de se construir uma sociedade democrática pautada na
igualdade. Isso ocorre no sentido de que é necessário a desconstituição da
naturalidade de que o cuidado é uma tarefa feminina de modo a se desenvolver e
implementar políticas públicas envolvendo pessoas cuidadoras de deficientes
(Tronto, 2007).
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para implementação de políticas sociais
Para reforçar, política social é aqui compreendida como uma ação de redistribuição
de recursos, permeadas por contradições na sociedade capitalista, tendo como
principal atribuição a concretização de direitos sociais para atender necessidades
que, no sistema capitalista, constituem a força desencadeadora da conquista da
cidadania e das mudanças sociais (Pereira, 2014). Essa afirmação é particularmente
relevante quando retomamos os ensinamentos de Alfredo Bosi (1996), já citados.
Ou seja, é recente no país uma base jurídica capaz de orientar ações públicas e
estatais que materializam o acesso a bens econômicos, sociais e de status para
promover os direitos humanos, tendo como objetivo favorecer uma participação
plena dos sujeitos em suas múltiplas vivências e corporalidades.
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para implementação de políticas sociais
Essas duas garantias da Convenção, para fazer valer sua implantação (uma de
abrangência internacional e outra interna, ambas independentes e autônomas na
relação com governos), podem fazer com que os avanços nela contidos se
transformem em realidade para as pessoas com deficiência o mais cedo possível,
se aproximando de forma decisiva das demandas reais de todas as pessoas com
deficiência e suas singularidades. Com efeito, não seria demais estender essa
compreensão até mesmo para políticas sociais de modo geral, uma vez que os
avanços para as pessoas com deficiência repercutem para outros públicos, como é
o caso de ações de acessibilidade, desenho universal, direitos sociais e econômicos,
participação política, igualdade e não discriminação, entre outras.
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para implementação de políticas sociais
Sobre os autores
Wederson Santos
Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Assistente social do
Instituto Nacional de seguridade Social (INSS) desde dezembro de 2012.
Já foi Coordenador-Geral de Promoção dos Direitos das Pessoas com
Deficiência da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República entre 2015 e 2017. É professor universitário para os cursos de
Serviço Social.
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Temas geradores
Trata-se de seção dedicada a fomentar a elaboração de textos que, sem
perder seu rigor com a pesquisa, permitam a difusão de sínteses a
respeito de expressões, conceitos ou institutos, que comportem
múltiplas interpretações ou significado, concernentes ao tema geral
que relaciona direitos e movimentos sociais. A seção de verbetes da
revista do IPDMS é uma homenagem ao educador popular Paulo Freire
que incluía, em sua proposta pedagógica, temas geradores a serem
trabalhados junto à consciência das classes populares.
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.51527
temas geradores
Submetido em 10/11/2023
Aceito em 21/11/2023
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698 [autor/a]
Este verbete tem por objetivo apresentar os sentidos produzidos por intelectuais
negras/os para a elaboração de conceitos jurídicos de raça e racismo como
conceitos de resistência. Propõe-se, como tema gerador, pensar como o direito
pode se relacionar com o debate sobre raça e racismo, ou melhor escrevendo, como
a linguagem jurídica, como linguagem performativa que é, deve respeitar a cadeia
histórica de significados produzida pela população negra a respeito dos termos
raça e racismo.
Falar de raça e racismo no Direito começa por fazer algumas escolhas prévias:
quem produz conceitos jurídicos? De quem é a autoridade para produzir esses
conceitos? Mencionar essa autoridade, contudo, não é fazer referência à autoridade
para produzir normas jurídicas, mas aquela concedida à doutrina, aos
(auto)denominados juristas que criam os conceitos que serão manejados pelos que
formulam e os que aplicam as normas. A norma – a lei, por exemplo – usa termos
como sexo, gênero, discriminação, violência de gênero, raça, racismo,
discriminação racial, injúria racial, etc. O sentido deles, contudo, se constrói fora
das instâncias produtoras dessas normas. Fora, mas nem tão fora. Essa atribuição
de autoridade se dá por meio de critérios não ditos e escolhas ocultas que, no
entanto, não são difíceis de serem mapeadas, uma vez que passam pelos mesmos
critérios de poder de tantas outras escolhas do meio. Nesse processo, o “Direito” –
aquele produzido por seus atores hegemônicos - filtra que sentidos ou quais
sentidos produzidos por quem irão compor o modo como um termo será tomado
como “instituto jurídico” – aqui como categorias, conceitos ou termos pertencentes
ao Direito.
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Raça e racismo como conceitos jurídicos de resistência 699
Estes termos, entretanto, têm uma história. Foram forjados na história, uma
história muito diferente daquela comumente levantada pela doutrina dominante
quando sistematiza o histórico de um instituto para tecer suas explanações
dogmáticas. Buscar a compreensão desses termos, portanto, ao adotá-los como
conceitos jurídicos, deve passar pelo conhecimento e reconhecimento dessa
história e do(s) sentido(s) que se formou através dela. Assim, o(s) movimento(s)
feminista(s), por meio de sua luta, sua atuação política, sua produção intelectual,
teórica, científica e acadêmica fez do termo gênero um termo relevante política e
juridicamente. Do mesmo modo, é nas trilhas da luta do(s) movimento(s) negro(s),
da sua atuação política e produção intelectual, teórica, científica e acadêmica que
os conceitos de raça (e racismo) ganham significado distinto daquele que dominou
os debates no século XIX com suas teorias biológicas da raça. Afinal, “a raça é um
elemento essencialmente político, sem qualquer sentido fora do âmbito
socioantropológico” (Almeida, 2021, p. 22).
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700 [autor/a]
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Raça e racismo como conceitos jurídicos de resistência 701
Nem se diga, portanto, que essa produção teórica não se reflete nos votos por não
ter chegado ao STF e aqui voltamos à elaboração inicial: a linguagem jurídica é
performativa e faz algo ao dizer algo e esse fazer inclui a produção de autoridade
de seus próprios conceitos, ao mesmo tempo em que confere autoridade a
determinados sentidos que lhe são apresentados ou a sentidos produzidos por
determinados sujeitos e, também como já dito, essa performatividade é – como
toda – constituída por dinâmicas e estruturas socioculturais e de poder alicerçadas
na raça, na classe e no gênero.
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702 [autor/a]
Com o descrédito acima mencionado, raça como termo da linguagem geral deixa
de ser uma suposta descrição da realidade natural, um dado da natureza apenas
constatado pela linguagem da biologia. A ressignificação do termo, assim,
demonstra seu caráter performativo. Há, de início, uma cadeira histórica de
sentidos e isso que lhe confere força, permite-lhe funcionar e ser repetido fora do
contexto “original”. Tal característica também significa, entretanto, que essa cadeia
pode ser quebrada, esse sentido pode ser subvertido e outro pode ocupar o seu
lugar. A performatividade pode ser subversiva e Nilma Lino Gomes mostra isso
ao identificar o movimento negro como “ator político que ressignifica e politiza a
raça de forma emancipatória”, em um processo de ressignificação e politização
emancipatória da raça” (2012, p. 728). Por consequência, se a performatividade do
termo serve a permitir que ele seja reapropriado pelo movimento e ressignificado,
a performatividade do termo jurídico nos autorizaria o mesmo.
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Raça e racismo como conceitos jurídicos de resistência 703
Com o abandono das teorias raciais, raça passa a ser também uma politização
afirmativa, ou seja, que identifica não apenas esse processo negativo de
classificação acima descrito por Guimaraes, mas também um termo “entendendo-
a como potência de emancipação e não como uma regulação conservadora;
explicita como ela opera na construção de identidades étnico-raciais”, sentido que
trará a dimensão da raça como orgulho para a população negra, como “trunfo e
não como empecilho para a construção de uma sociedade mais democrática, onde
todos, reconhecidos na sua diferença, sejam tratados igualmente como sujeitos de
direitos” (Gomes, 2012, p. 731), como instrumento para resistência do movimento
e como “rejeição da existência de raças superiores e inferiores”, como parte da
“reivindicação de identidade (Firmino, 2016, p. 40-41).
Ciro de Souza Brito, Emília Joana Viana de Oliveira, Inara Flora Cipriano Firmino
e Rodrigo Portela Gomes mencionam que os anos 80 observam um movimento de
“formulação acadêmica no campo de Direito e Relações Raciais desenvolvido no
Brasil”. Tal movimento é por eles compreendido como “resultado de um processo
transatlântico de articulações políticas, culturais e sociais, na segunda metade do
século XX, contra o estatuto racial do mundo moderno-colonial”. Nesse processo,
“se constituiu não só uma nova semântica para a igualdade, mas desestabilização
dos mitos racistas fundadores dos aparatos políticos-jurídicos nestas
comunidades” (2023). Esse movimento de ressignificação vai se ampliando e
ganhando novos espaços e nos anos 90 ela ganha também “outra centralidade na
sociedade brasileira e nas políticas de Estado” e o que foi construído pelo
movimento negro, com sua releitura e ressignificação emancipatória, “extrapola os
fóruns da militância política e o conjunto de pesquisadores interessados no tema”
(Brito, Oliveira, Firmino, Gomes, 2023). Nos anos 2000, vemos a continuidade e a
intensificação desse processo de politização que se expande, com “a criação da
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em 2003” e a
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704 [autor/a]
implementação das ações afirmativas por cotas raciais nas universidades publicas
brasileiras. (Gomes, 2012, p.).
Adilson Moreira, Philippe Almeida e Wallace Corbo conceituam raça como uma
categoria socialmente construída, ligada “ao conceito de racialização, noção que
designa um processo cultural a partir do qual status sociais diferenciados entre
grupos humanos são criados por meio da atribuição de sentidos a traços
fenotípicos” (2022, p. 112). Os autores, assim, designam a raça como um lugar
social “que as pessoas ocupam dentro das hierarquias sociais criadas por meio de
relações hierárquicas de poder entre grupos sociais”, (Moreira; Almeida; Corbo,
2022, p. 113) como um status, portanto “configurado a partir de imagens sociais
sobre as pessoas. Ela não designa fundamentalmente traços biológicos, mas as
diferenciações de status decorrentes da atribuição de sentidos dados a eles”
(Moreira; Almeida; Corbo, 2022, p. 113).
Conceituam, nessa esteira, racismo como o “sistema de dominação que tem dois
objetivos centrais: a garantia das vantagens competitivas para pessoas brancas e a
caracterização da respeitabilidade social como um traço distintivo delas” sendo,
assim, “um tipo de retorica cultural e uma prática social que objetiva legitimar
relações hierárquicas de poder a partir da utilização da raça como critério de
tratamento diferenciado entre coletividades humanas” (Moreira; Almeida; Corbo,
2022, p. 114).
Unindo os dois termos, Silvio Almeida define o racismo como “uma forma
sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta
por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens
ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam”.
(2019, p. 32)
É também a partir da raça e como “um complexo sistema de opressão” que Chiara
Ramos e Livia Sant’anna Vaz definem o racismo, sistema esse “que impõe a
superioridade de uma raça em detrimento de outras. (...) Em outras palavras,
pode-se afirmar que o racismo se configura a partir da imputação de atributos e
comportamentos deterministas de inferioridade associados a padrões fenotípicos
específicos” (Sant’anna Vaz; Ramos, 2021, p. 174).
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Raça e racismo como conceitos jurídicos de resistência 705
Com essa alteração promovida pelo movimento, “tal conceito tem uma realidade
social plena, e o combate ao comportamento social que ele enseja é impossível de
ser travado sem que se lhe reconheça a realidade social que só o ato de nomear
permite” (Guimarães, 2009, p. 11) e são esses significados autonomeados que
devem compor os sentidos jurídicos dos institutos, a fim de que não sejam
reproduzidos colonialismos jurídicos, como nos alerta Gabriela Barreto de Sá
(2020, p. 32). A História do Direito, diz a autora, é marcada pelo racismo estrutural
e é ela mesma “uma narrativa marcada pela justificativa ou naturalização do
epistemicídio (Carneiro, 2005) acerca da análise sociojurídica” (Sá, 2020, p. 33-34).
Refazer a história de um conceito jurídico, assim, precisa ser mais do que o que se
convencionou na dogmática jurídica, uma vez que esse processo é também um
processo de resgate de memória e “o direito à memória se configura como uma
construção teórica contra o epistemicídio que marca a construção do conhecimento
jurídico e nega enquanto fontes legítimas as escrevivências das populações
negras” (Sá, 2020, p. 51).
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706 [autor/a]
fora, como uma linguagem produzida pelo um (branco) sobre o outro (não-
branco). Mas essa atribuição não é sinônimo de toda forma de preconceito ou
discriminação, ao menos não nessa cadeia de significados que aqui vimos. Visto o
racismo como utilização da gramática social da raça para atribuir sentido negativo
e desumanizar o outro, a raça ganha um duplo sentido específico quando o
movimento negro dela se apropria: de um lado, um termo que identifica a
atribuição social de sentidos a sujeitos a partir de dados elementos fenotípicos e,
de outro, a de linguagem de autoidentidade, a de linguagem de resistência. Contra
o racismo construído e produzido nas bases da cadeia histórica de significados da
colonialidade, afirma-se a raça como conceito de resistência.
A linguagem importa. Ela nos produz como sujeitos e nos produzimos nela, assim
como, obviamente, produzimos linguagem. Como Toni Morrison, “nós
produzimos linguagem e essa é a medida de nossas vidas” (1993). Como ativistas,
acadêmicas, teóricas e profissionais do Direito comprometidos com os direitos de
populações vulneráveis, precisamos ter cuidado ainda maior nesse uso, atentando
para o fato de que os sentidos do Direito são construídos como luta, em luta e como
resultado da luta histórica dos grupos precarizados, contra a hegemonia colonial
capitalista patriarcal e racista.
É necessário colocar “o critério raça como informador das reflexões sobre o direito,
não apenas no seu ordenamento normativo, mas também institucional, histórico,
político e estrutural” para permitir que sejam evidenciados “aspectos
negligenciados e obscurecidos pela ‘convergência de interesses’ que o modelo de
supremacia branca fomenta” (Silva; Pires, 2015, p. 74).
Referências
ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. 1. ed. Editora Jandaíra. São Paulo, 2021.
AUSTIN, John L. How to do things with words. 2. ed. Harvard: Harvard University
Press, 1975.
BERTÚLIO, Dora Lúcia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao
racismo. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2019.
BRITO, Ciro de Souza; OLIVEIRA, Emília Joana Viana; FIRMINO, Inara Flora
Cipriano, GOMES, Rodrigo Portela Gomes. Dossiê “Direito e relações raciais”,
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, 2023. Disponível em:
https://periodicos.unb.br/index.php/insurgencia/announcement/view/687. Acesso
em: 28 de novembro de 2023.
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Raça e racismo como conceitos jurídicos de resistência 707
FIRMINO, Inara Flora Cipriano. Estudos da teoria crítica racial (critical race theory):
seletividade do sistema penal e a subalternização da população negra. Ribeirão
Preto: Faculdade de (Monografia) Direito da Universidade de São Paulo, 2016.
SANT’ANNA VAZ, Lívia; RAMOS, Chiara. A justiça é uma mulher negra. Belo
Horizonte: Casa do Direito, 2021.
SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do ser negro: um percurso das ideis
que naturalizaram a inferioridade dos negros. São Paulo: Educ/Fapesp; Rio de
Janeiro: Pallas, 2002.
SILVA, Fernanda Lima da; GOMES, Rodrigo Portela; DEUS, Maíra Brito de.
(Sobre)vivências negras: desafios da cidadania diante da violência. Revista Direito
e Práxis, v. 12, n. 1, p. 580-607, 2021. Disponível em: https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/56991/37085. Acesso em:
28 de novembro de 2023.
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708 [autor/a]
Sobre a autora
Camilla Magalhães Gomes
Doutora em Direito, Estado e Constituição (UnB). Professora Adjunta de
Direito Penal e Criminologia da Faculdade Nacional de Direito -
Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Co-líder do
Corpografias - Grupo de Pesquisa e Extensão em Gênero, Raça e Direito.
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50956
temas geradores
Submetido em 27/09/2023
Aceito em 04/11/2023
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ISSN 2447-6684
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710 Philippe Oliveira de Almeida
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Educação jurídica antirracista 711
acrítica na arquitetura institucional estabelecida. Vale dizer que, nos últimos anos,
na esteira de Venancio Filho e Adorno, vários acadêmicos têm se inserido no
debate acerca da crise do ensino jurídico, tomando por ponto de partida a
interdependência entre a dogmática jurídica e o modo de produção capitalista
(Carvalho, 2023). Os tecnicismos que dominam as salas de aula das faculdades de
Direito – denunciados por Giordano Bruno Soares Roberto (2016) – encobrem os
grandes dilemas ideológicos que perpassam a atividade jurisdicional, fomentando,
nos estudantes, a crença de que não compete ao operador do direito indagar acerca
das implicações político-sociais das normas que aplica. É por isso que, nas classes
de Direitos Reais, debatemos “aquisição por aluvião” mas, não, “direito real de
laje”; falamos sobre compliance mas, não, sobre o shopping-chão e o estatuto
jurídico do camelô. Gradualmente, o espírito do estudante cinde-se: da porta da
sala de aula para fora, é um cidadão, afligido pelas tensões que atravessam a
comunidade em que vive; da porta da sala de aula para dentro, é um jurista,
comprometido única e exclusivamente em destrinchar as relações de imputação
que sedimentam a pirâmide normativa, fazendo dela um edifício lógico “perfeito”.
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712 Philippe Oliveira de Almeida
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Educação jurídica antirracista 713
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714 Philippe Oliveira de Almeida
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Educação jurídica antirracista 715
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716 Philippe Oliveira de Almeida
1 Tradução nossa para: “Teaching, like any other human interaction, is only partly articulable in
language” (Harris, 2010, p. 739).
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Educação jurídica antirracista 717
Esses cinco movimentos são basilares, para que tenhamos uma educação jurídica
genuinamente comprometida com a justiça racial. E é possível, a partir deles,
mensurar o quanto nossas instituições de ensino se encontram, hoje, engajadas no
combate ao racismo estrutural. A partir dessas cinco facetas, podemos mapear os
avanços e os recuos das faculdades de Direito, avaliando: 1) a existência de
disciplinas específicas voltadas a relações étnico-raciais; 2) a presença, nos syllabi
das demais disciplinas, de pontos específicos sobre raça e racismo; 3) a utilização
de metodologias de ensino-aprendizagem dialógicas; 4) o quantitativo de
professores pretos e pardos no corpo docente; e 5) a implementação, nas esferas de
deliberação e de administração, de espaços voltados à discussão de questões
raciais. A superação da crise do ensino jurídico passa por esforço dessa natureza:
é imprescindível que ultrapassemos o fosso entre a comunidade e as escolas de
Direito, possibilitando que as aflições que pautam o dia-a-dia dos estudantes
(como as tensões de natureza racial que atravessam nossa sociedade pós-
escravista) sejam vocalizadas e debatidas em classe. Uma proposta de educação
jurídica antirracista implica numa transformação radical das escolas de Direito, em
todas as suas esferas. A sala de aula, nas faculdades de Direito, deve ser um
laboratório no qual diferentes perspectivas de futuro – diferentes expectativas
quanto ao destino da sociedade – sejam experimentadas e testadas. E no qual
diferentes projetos de justiça (social e racial) sejam explorados.
Referências
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718 Philippe Oliveira de Almeida
BELL, Derrick A. Who’s Afraid of Critical Race Theory. University of Illinois Law
Review, Champaign, v. III, n. 4, p. 893-910, 1995.
HARRIS, Angela P. Race and essentialism in feminist legal theory. Stanford law
review, v. 42, n. 3, p. 581-616, 1990.
HARRIS, Angela P. Teaching the tensions. Saint Louis University Law Journal,
Saint Louis, v. 54, n. 3, p. 739.754, primavera de 2010.
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Educação jurídica antirracista 719
QUEIROZ, Marcos. O Haiti é Aqui: Ensaio sobre formação social e cultura jurídica
latino-americana (Brasil, Colômbia e Haiti, século XIX). Brasília: Programa de
Pós-Graduação (Doutorado) em Direito da Universidade de Brasília, 2022.
ROBERTO, Giordano Bruno Soares. A educação jurídica faz mal à saúde?. Belo
Horizonte: Arraes, 2016.
SILVA, Caroline; PIRES, Thula. Teoria Crítica da Raça como referencial teórico
necessário para pensar a relação entre direito e racismo no Brasil. XXVI
CONPEDI. Florianópolis 2015.
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720 Philippe Oliveira de Almeida
Sobre o autor
Philippe Oliveira de Almeida
Professor adjunto de Filosofia do Direito na Faculdade Nacional de
Direito – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em
Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com estágio
pós-doutoral na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na
UFMG. Mestre em Direito pela UFMG. Bacharel em Direito pela UFMG e
em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE).
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52078
temas geradores
Hermenêutica Senhorial
Hermenéutica Señorial
Seigneurial Hermeneutics
Marcos Queiroz1
1
Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, Brasília, Distrito
Federal, Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-
0003-3644-7595.
Submetido em 29/12/2023
Aceito em 03/01/2024
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ISSN 2447-6684
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722 Marcos Queiroz
Hermenêutica senhorial
Estamos entre 1840 e 1850. Brás Cubas encontra-se com seu cunhado, Cotrim, para
tratar de assuntos de família. Melhor, “negócio de parentes”. Ele irá se casar com
Nhã-loló, sobrinha do próprio Cotrim. Ao contar das suas intenções, Brás recebe
do cunhado palavras evasivas: “lavo inteiramente as mãos”. Para afastar do leitor
qualquer acusação de excesso de escrúpulos do seu interlocutor, o “defunto autor”
traça um perfil de Cotrim com o intento de demonstrar o seu “caráter ferozmente
honrado”. O cunhado era acusado de avaro, seco e bárbaro pelos seus inimigos,
no entanto, para todo defeito haveria escusa. Os adjetivos negativos eram, na
verdade, qualidade de caráter ou motivo de elogio. De acordo com as lições de
Aristóteles, a mesquinhez seria apenas a “exageração de uma virtude, e as virtudes
devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o déficit”. Cotrim seria bom
pai de família e era tesoureiro de uma confraria, irmão de várias irmandades,
sendo até́ remido de uma dessas, “o que não se coaduna muito com a reputação
da avareza”. Era um encorajador de atitudes filantrópicas, a “mandar para jornais
a notícia de um outro benefício que praticava”. Se requeria algumas atenções,
Cotrim “não devia um real a ninguém”.
Sobre a pecha de bárbaro, não havia prova alguma, exceto a de “mandar com
frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue”. Porém,
isso não era verdadeiramente um defeito, mas sim atributo daqueles que se
prestavam à relevante atividade econômica. “Ocorre que, tendo longamente
contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais
duro que esse gênero de negócio requeria”. Acusar Cotrim de violento era inverter
os fatos, pois chibatadas, grilhões e pelourinhos eram utilizados somente na
medida das necessidades. “Não se pode atribuir à índole original de um homem o
que é por efeito de relações sociais”. Prova disso era que ele só́ mandava torturar
os “perversos e os fujões”. Um mestre na aplicação do princípio da
proporcionalidade.
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Hermenêutica Senhorial 723
Para levar a cabo essa missão, grandes proprietários, negociantes de grosso trato,
fornecedores das redes de abastecimento e negreiros articulam-se na construção e
direção do Estado brasileiro, operando a institucionalidade e o direito na defesa
dos seus objetivos. Reflexivamente, articulavam-se enquanto classe na montagem
do Estado e, neste processo, valiam-se do Estado para forjar a própria classe. Ao
instrumentalizarem os aparelhos estatais, puderam universalizar os valores
senhoriais e a cultura negreira pelo tecido social brasileiro, fazendo dos seus
interesses específicos os interesses nacionais. Assim, entre 1831 e 1869, estrutura e
superestrutura envergaram sob o domínio da Casa-Grande, num período
conhecido como tempo saquarema, em que a hegemonia senhorial estabeleceu um
consenso sobre a escravidão (Mattos, 1987). Tendo o Vale do Paraíba expandido
como base social (Parron; Youssef; Estefanes, 2014), essa hegemonia tinha como
principal instrumento de classe o Partido Conservador, também chamado de
Partido da Ordem, Partido da Constituição e Partido Negreiro, alcunhas que
simbolizavam o Programa Político do Regresso: repressão contra as revoltas
populares, escravas e liberalizantes e submissão das forças políticas às instituições
do Império (Coroa, Parlamento e Conselho de Estado), tornando-as
representativas das distintas frações da classe dominante; defesa do marco
centralizador, monárquico e autoritário do texto constitucional de 1824; e
blindagem absoluta da escravidão diante das contestações internas e estrangeiras
(Parron, 2011; Chalhoub, 2012; Salles, 2013; Mamigonian, 2017).
1 Art. 179, XXII. É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público
legalmente verificado exigir o uso e emprego da Propriedade do Cidadão, será ele previamente
indenizado do valor dela. A Lei marcará os casos em que terá lugar esta única exceção e dará as
regras para se determinar a indenização.
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724 Marcos Queiroz
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Hermenêutica Senhorial 725
Esse segredo público (Taussig, 1999; French, 2017), de uma aparente legalidade
constituída por zonas abundantes de ilegalidade, é o centro moral do tempo
saquarema, em que os homens de bem, tais quais Cotrim, enriqueciam-se ao
arrepio das leis por eles elaboradas enquanto mandavam pessoas negras
legalmente livres escorrendo sangue para o calabouço. Com as Memórias Póstumas
do defunto autor, que segue falando desde o além, como a dizer que a perspectiva
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726 Marcos Queiroz
senhorial do morto sobre a realidade continuará nos regendo para além do seu
tempo vital, Machado de Assis talvez nos tenha legado não só uma radiografia do
Império. Seguindo a trilha de Roberto Schwarz (2012), para quem o romance
machadiano revela e ancora-se na estrutura histórica da sociedade brasileira,
operando como uma estilização da ordem social e da luta de classes, a estética de
Machado pode nos ser útil para reler o romance constitucional brasileiro. Neste
romance, não só a história é ruim – atravessada por violências notórias e
inconfessáveis –, como talvez o próprio relato não seja pautado pelo compromisso
com a integridade, mas sim com o princípio da volubilidade: a constante
inconsistência de critérios. A rigidez de Hércules se desmorona perante a
moralidade elástica de Brás Cubas, mestre daquilo que chamamos hermenêutica
senhorial.
Dworkin elaborou uma das mais famosas aproximações entre romance, história e
teoria constitucional. A associação ocorreu pela primeira vez no livro O Império do
Direito por meio da expressão “romance em cadeia” para retratar a interpretação
do direito. A hermenêutica jurídica deveria ser pensada como um livro escrito de
maneira coletiva. Feito a várias mãos, o autor seguinte deveria ter
responsabilidade de ler as páginas precedentes e de dar a elas a melhor
continuação possível (Dworkin, 2007). “Uma continuidade que faça honra ao já
escrito e prepare caminho para o próximo participante”, diz Roberto Gargarella
(2015, p. 10-11). Assim, a interpretação precisa ser realizada com atenção ao que já
foi feito antes, estabelecendo um fio condutor com a história jurídica existente. Da
mesma forma, ela deve levar em consideração que essa mesma história irá
continuar por muito tempo. Portanto, o ato hermenêutico é um ato reconstrutivo
coletivo que olha para o futuro, demandando a consciência dos seus limites e
exigências (Queiroz; Scotti, 2021).
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Hermenêutica Senhorial 727
por meio de uma teoria da melhor interpretação do direito, que Dworkin chama
de teoria do valor (Dworkin, 2014). Essa teoria é a radicalização da ideia de
integridade: os conceitos jurídicos devem ser defendidos substantivamente a
partir de argumentos que demonstrem consistência e apoio mútuo geral entre eles.
A hermenêutica deve conduzir a um processo no qual cada conceito deve ser lido
à luz dos demais, entrelaçando e unindo valores de maneira coerente. “Somos
moralmente responsáveis na medida em que nossas diversas interpretações
concretas alcançam uma integridade geral, de tal modo que cada uma delas
sustente as outras numa rede de valores que abraçamos autenticamente”
(Dworkin, 2014, p. 153).
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2011; Carvalho Netto; Scotti, 2012) é suspensa ao ser posta em questão os próprios
termos no qual ela se dá, isto é, ao alargar as fronteiras dos incluídos dentro do
paradigma humano legado pela modernidade, são também alargados os
territórios da zona do não-ser daqueles que ainda não são vistos como humanos.
A escravidão instituiu um paradigma no qual a inclusão nos direitos humanos tem
como pressuposto a expansão dos humanos objetos. Portanto, não se trata de
questão ingenuamente epistêmica – a cada novo incluído é possível ver melhor
aqueles que ainda são excluídos –, mas sim de que certa noção do humano implica
concretamente na desumanização massiva de outros seres humanos. Incluir é
necessariamente excluir, explorar, silenciar, apagar, matar e genocidar.
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732 Marcos Queiroz
Mas o que diz o texto importa para a hermenêutica senhorial? Como já ensinava
Brás Cubas, segredos públicos exigem desfaçatez.
Referências
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Hermenêutica Senhorial 733
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ao racismo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2019.
DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010a.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2010b.
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734 Marcos Queiroz
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: HUCITEC, 1987.
QUEIROZ, Marcos. O Haiti é aqui: ensaio sobre formação social e cultura jurídica
latino-americana (Brasil, Colômbia e Haiti, século XIX). Brasília: Programa de Pós-
Graduação (Doutorado) em Direito da Universidade de Brasília, 2022.
TAUSSIG, Michael. Defacement: Public Secrecy and the Labor of the Negative.
Stanford: Stanford University Press, 1999.
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Hermenêutica Senhorial 735
Sobre o autor
Marcos Queiroz
Professor na graduação e na pós-graduação no Instituto Brasileiro de
Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa. Doutor em Direito pela
Universidade de Brasília, com sanduíche na Univerisdad Nacional de
Colombia (Programa Abdias Nascimento – Capes) e na Duke University
(Fulbright Commission). Coordenador do Peabiru – Núcleo de Pesquisa
em História e Constitucionalismo da América Latina (IDP). Autor do livro
Constitucionalismo Brasileiro e o Atlântico Negro: a experiência
constituinte de 1823 diante da Revolução Haitiana (Menção Honrosa
Prêmio Thomas Skidmore - 2018). Editor-chefe da Revista Jacobina.
_________________
Agradecimentos
Esse artigo é dedicado às turmas de Direito e Literatura no IDP, nas quais a
ideia de hermenêutica senhorial foi originalmente desenvolvida e debatida.
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Submetido em 03/01/2024
Aceito em 18/01/2024
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738 Tiago Vinicius André dos Santos
1 A Plataforma Feminismos Plurais foi um projeto idealizado pela escritora e filósofa Djamila
Ribeiro. Durante seu período de atividade (julho/2020 a fevereiro/2023) foi considerada uma das
maiores plataforma de ensino virtual sobre a temática antirracismo e sua relação com os mais
variados temas como filosofia, direito, sociologia, literatura, etc. Diversos projetos foram
realizados como os Aulões ao vivo na Plataforma do Youtube, artigos semanais escritos pelo corpo
docente, lives no Instagram, mentoria acadêmica para pessoas negras interessadas em ingressar
nos cursos de mestrado e doutorado, entre outros. Além do autor, o corpo docente era composto
por Juliana Borges, autora de “Encarceramento em Massa”, Thiago Teixeira, autor de
“Decolonizar Valores: ética e diferença”, Ana Lucia Silva Souza, autora de “Letramentos de
Reexistência: culturas e identidades no movimento hip hop”, Fernanda Bastos, jornalista da TVE
Rio Grande do Sul, e Marjorie Chaves, doutoranda em Política Social e mestra em História pela
Universidade de Brasília (UnB).
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Letramento jurídico-racial crítico 739
Moreira, 2019), sobre seu processo de formação enquanto jurista num curso de
graduação em Direito. Esse tipo de abordagem era justificada em razão do objetivo
do seu trabalho, qual seja, realizar uma análise crítica com relação ao sistema de
justiça, especialmente o criminal, tendo como referencial de análise a produção
musical do grupo de rap brasileiro Racionais MC’s e a Teoria Crítica Racial. O
capítulo recebeu um nome que sintetizava sua trajetória até aquele momento, “Um
jurista negro em formação: basquete, hip hop e leis” e destacaremos o seguinte
trecho para ilustrar a proposta deste ensaio:
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740 Tiago Vinicius André dos Santos
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Letramento jurídico-racial crítico 741
Nos estudos sobre o ensino jurídico no Brasil, é muito comum nos depararmos
com o que se denomina de “crise do ensino jurídico”, argumenta-se que ele é
predominantemente baseado em técnicas e métodos que tem como objetivo a
memorização e a reprodução de conceitos e teorias, o que empobrece a visão do
bacharel sobre o fenômeno jurídico e, por conseguinte, sua prática (Freitas Filho;
Musse, 2013; Carrion, 1999). Em termos gerais, o ensino jurídico pode ser
compreendido como um programa de estudos de leis e de decisões dos tribunais
de justiça (Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiçam, Tribunais de
Justiça, etc.) para a formação de técnicos que terão competências para a aplicação
de normas a determinados casos concretos.
Analisado ainda que brevemente esse diagnóstico e sua relação com a temática
racial, podemos compreender que o letramento jurídico daqueles que passam por
um curso de graduação em Direito, ou seja, a maneira como fazem uso do discurso
apreendido nos cursos de Direito nas mais diversas dimensões e funções, não
permite o envolvimento com problemas estruturais da sociedade brasileira de
maneira mais real ou efetiva e é impeditiva da realização de uma justiça racial mais
abrangente. Esta constatação decorre do diagnóstico relativo à crise do ensino e a
forma como o debate racial se apresenta nesse cenário, ou seja, incipiente ou quase
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742 Tiago Vinicius André dos Santos
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Letramento jurídico-racial crítico 743
Para ilustrar o que pretendemos dizer, analisemos o caso das ações afirmativas
para a população negra e todo contexto que ela impacta e possui relevância para
nossa reflexão. A decisão pela constitucionalidade das cotas raciais no Supremo
Tribunal Federal (STF) pode ser compreendida como um “novo direito”, na
medida em que o pensamento hegemônico da sociedade brasileira compreendia,
e ainda compreende, a discriminação racial como um desvio de conduta capaz de
ser remediado com uma legislação que criminaliza o racismo. Com a decisão do
STF, são consideradas constitucionais políticas públicas com critérios de raça que
tem como objetivo promover a igualdade racial entre negros e brancos (Brasil,
2017). Dentro da lógica legalista, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010)
dispõe que a sociedade brasileira é composta por sujeitos detentores de direitos
previstos em leis específicas que levam em consideração o processo histórico de
exclusão, como o caso da população negra (conjunto de pretos e pardos), esses são
os “novos sujeitos de direitos”. Por fim, com “novas alunas e novos alunos”
estamos nos referindo àqueles e àquelas destinatárias das políticas públicas de
promoção da igualdade racial e que passaram a frequentar cursos jurídicos
elitizados e restritos, até então, a alunas e alunos pertencentes a um determinado
grupo étnico-racial.
Diante desse cenário otimista para o debate qualificado sobre raça e racismo nos
cursos de Direito, e da constatação de uma prática de letramento jurídico omissa
ou até mesmo refratária a esses assuntos, é que a reflexão e prática do letramento
racial ganha dimensão importante. Quando nos referimos ao letramento jurídico-
racial crítico estamos partindo exatamente dessa “tomada de consciência” do
ordenamento jurídico – provocada especialmente pela atuação de diversos atores
sociais que demandam por dignidade da população negra –, de que vivemos em
uma sociedade multirracial, que compartilha visões distintas de mundo e
demanda pela coexistência dessa pluralidade em espaços institucionais como as
Faculdades de Direito.
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744 Tiago Vinicius André dos Santos
Esse conceito é interessante pois busca fazer com que as pessoas procurem
informações sobre racismo no seu cotidiano, a partir de leituras que as orientarão
a compreender questões fundamentais no engajamento antirracista e que,
infelizmente, apesar dos esforços de alguns colegas, necessitam de maior atenção
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Letramento jurídico-racial crítico 745
nos cursos de Direito, dentro e fora das salas de aula. Algumas situações que
iremos discorrer a seguir partem de relatos compartilhados entre acadêmicas e
acadêmicos interessados sobre a temática direito e raça, em espaços de conforto
para a discussão sobre esses assuntos, que demonstram alguns desafios do
cotidiano acadêmico. Ao mencioná-las nosso objetivo é demonstrar como a
ausência de uma contranarrativa sobre esses assuntos é elemento constitutivo da
chamada crise do ensino jurídico e a importância do letramento jurídico-racial
crítico.
Outro ponto importante diz respeito a uma certa negligência dos cursos de Direito
quanto a compreensão das várias formas com que o racismo se manifesta e a
ingenuidade com a qual é debatida a criminalização do racismo como instrumento
suficiente para sua superação. Na imensa maioria das vezes, o racismo é percebido
como um problema moral, uma conduta desviante a ser remediada, sem
considerar as diversas pesquisas apontando seu caráter institucional e estrutural
(Almeida, 2018; Moreira, 2018). O mesmo pode ser dito com relação ao
pensamento dominante segundo o qual o racismo atinge pessoas negras de forma
indistinta, quando na realidade há diversos estudos demonstrando que mulheres
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Não é verdade que nas Faculdades de Direito esses assuntos sejam inteiramente
negligenciados. Há grupos de professores e professoras que procuram
desenvolver estes temas de forma bastante comprometida, mas mesmo quando
estamos diante de debates mais progressistas, percebe-se uma certa dificuldade
dos seus participantes em entender que o racismo também racializa pessoas
brancas e distribui privilégios injustos, daí a necessidade do estudo sistemático do
que se denomina de branquitude ou privilégio racial como uma dimensão do
racismo (Schucman, 2012).
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Letramento jurídico-racial crítico 747
Referências
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748 Tiago Vinicius André dos Santos
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Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/nunca-imaginei-diz-
aluna-que-se-formou-na-1a-turma-com-cotistas-do-direito-usp/. Acesso em 10 dez
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MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva,
2013.
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750 Tiago Vinicius André dos Santos
SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramento da reexistência. Poesia, grafite, música, dança:
hip-hop. São Paulo: Parábola, 2011.
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Letramento jurídico-racial crítico 751
TWINE, F. W. A white side of black Britain: The concept of racial literacy. Ethnic
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752 Tiago Vinicius André dos Santos
Sobre o autor
Tiago Vinicius André dos Santos
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Estadual de Mato
Grosso do Sul (UEMS) tendo já realizado estágio de pesquisa e cursos de
Direitos Humanos na Faculdade de Direito da Universidade de
Columbia em Nova Iorque, no Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra e na Organização das Nações Unidas em
Genebra. Coordenador do Projeto de Pesquisa “Fundamentos Teóricos
do Direito Antidiscriminatório”, vinculado à Pró-Reitoria de Pesquisa e
Pós-Graduação da UEMS.
_________________
Nota
Este texto é fruto das reflexões decorrentes do projeto de pesquisa
“Fundamentos Teóricos do Direito Antidiscriminatório”, cadastrado na Pró-
Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UEMS em atendimento ao EDITAL
UEMS N° 004/2018.
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52207
temas geradores
Submetido em 10/01/2024
Aceito em 12/01/2024
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754 Eduardo Wallan Batista Moura - Iago Masciel Vanderlei -
Lara Melinne Matos Cardoso - Zilda Letícia Correia Silva
Você conhece professora Sueli? Com um sorriso aberto essa é a pergunta com que
uma estudante baiana, ao saber que uma das autoras deste verbete era do Piauí,
responde a pergunta sobre onde havia um local para alimentação nas
proximidades. Devolvemos a pergunta a você, leitor(a): você conhece a professora
Maria Sueli Rodrigues de Sousa? Este verbete busca apresentar essa sujeita
histórica complexa a partir do seu fazer acadêmico e de três chaves de leituras das
suas proposições teóricas: descentramento cognitivo, socioambientalismo e
constitucionalismo.
Profa., Professora Sueli, Maria Sueli, Sueli Rodrigues, atuou como educadora e
pesquisadora vinculada ao curso de direito da Universidade Federal do Piauí
(UFPI) e integrou o Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/UFPI), o
Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública (PPGP/UFPI) e o Núcleo de
Pesquisa sobre Africanidades e Afrodescendências (IFARADÁ/UFPI). Nasceu no
Saco da Ema (Campestre), comunidade do município de Francinópolis, Piauí,
Brasil, em 1964, graduou-se em ciências sociais pela UFPI e em direito pela
Universidade Estadual do Piauí (UESPI), possuía mestrado em Desenvolvimento
e Meio Ambiente (UFPI) e doutorado em Direito, Estado e Constituição (UnB).
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Maria Sueli Rodrigues de Sousa 755
Essa imbricação exigia que seu fazer acadêmico fosse marcado pela
propositividade, exigência que ela fazia a todos(as) os seus orientandos(as/es). Ela
nos ensinava que a curiosidade era um instrumento importante da pesquisa, que
com ela vinha a pulsão para conhecer e era esse local de conhecimento, de quem
produziu conhecimento em sua relação com os(as) sujeitos(as) e as fontes de
pesquisa, que gerava a responsabilidade de propor uma solução para os problemas
pesquisados. Descrever era muito importante, mas também era preciso propor
uma solução, ainda que precária, mas que pudesse ser aperfeiçoada depois, pelo(a)
próprio(a) pesquisador(a) ou por outro(a). A mudança da área interdisciplinar no
mestrado, com orientação da sociologia, para o direito no doutorado, ocorreu por
essa característica do seu fazer científico: era preciso diagnosticar e elaborar
soluções, ainda que preliminares.
Eu achava que eu não ia fazer nada de Direito e, além disso, fiquei muito
empolgada com o mestrado. Pensava: “é essa linha que eu quero seguir”.
Aí me deu a louca quando me deparei com a Serra da Capivara. E me
animei: “eu vou fazer isso no Direito”. Porque o Direito não tem pudor de
dar solução. E os outros cursos têm muito pudor (Sousa, 2022, p. 56).
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Lara Melinne Matos Cardoso - Zilda Letícia Correia Silva
Em nossas conversas refletimos que boa parte do que produziu e realizou também
foi por gosto, ainda que isso pouco apareça em suas reflexões sobre sua trajetória.
Era comum ela responder com um breve silêncio seguido um sorriso de travesso.
A entrevista concedida a Fernanda Lima, Gabriela Sá e Marcos Queiroz, um dos
últimos textos publicados com seu pensamento, é um momento em que ela relata
sua mudança de perspectiva. Tanto quando relata que foi “empurrada pra
pesquisa não porque eu quisesse, mas porque o mercado de trabalho me empurrou.
Eu fui sentindo interesse durante o doutorado” (Sousa, 2022, p. 57), como quando
afirma que
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Maria Sueli Rodrigues de Sousa 757
Católica e iniciado pela edição de Bulas Papais (e.g. Dum Diversas) que autorizaram
a colonização de territórios para pregar o cristianismo. A expansão ideológica
acompanhou a exploração territorial: os processos de dominação e espoliação
advém dessas bases.
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758 Eduardo Wallan Batista Moura - Iago Masciel Vanderlei -
Lara Melinne Matos Cardoso - Zilda Letícia Correia Silva
racismo estruturante? Não há”. Ela percebe, entretanto, que a positivação deste
ponto discursivo autoriza que sejam reconstruídos os modos de pactuação de
comunidades, pensando além da racionalidade moderna.
1 Publicado originalmente na Alemanha, pela Revista Brot & Rosen Unser tägliches Brot gib uns
heute, Berlim, 2004, p. 53-55.
2 “as mulheres que no Nordeste brasileiro foram abandonadas por seus maridos, quando estes
migraram fugindo da seca, em busca de vida melhor e nunca mais voltaram” (Sousa, 2021, p. 51).
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Maria Sueli Rodrigues de Sousa 759
A história de Joana, assim como a experiência vivida por Sueli com o deslocamento
forçado de seu pai por conta da seca, reforça o principal fundamento de sua obra
para se pensar a questão socioambiental, que é a necessidade de enfrentamento à
lógica antropocêntrica da modernidade-colonialidade de que existe uma cisão
entre natureza e cultura (Sousa, 2021). Em toda sua obra, Sueli foi uma crítica da
racionalidade moderna que enxerga, em diversos espaços e temporalidades, uma
fratura entre seres humanos e natureza – como na entrega da natureza para
domínio do homem em Gênesis 1:28; a acumulação primitiva de capital na
espoliação colonial; a racionalidade cartesiana que fundamentou cientificamente a
relação sujeito-objeto entre homem e natureza; a crise dos limites do antropoceno;
dentre outros.
Narra em entrevista que por ser apaixonada pela natureza decidiu pesquisar o tema
no mestrado. Na dissertação buscou entender como o imaginário social do
semiárido havia se formado, sem aderir à narrativa simplificadora dos
“condenados da seca”, pois mesmo ali, “via cada pessoa criando gado, plantando
milho, plantando arroz, feijão, que não era propício para um lugar que não chovia
em abundância” (Sousa, 2022, p. 54). Foi ainda durante a pesquisa de mestrado,
aprofundando-se nas complexidades dos modos de vida do semiárido piauiense,
que identificou o conflito entre o povo de Zabelê e a administração do Parque
Nacional da Serra da Capivara, seu tema de doutorado. Na tese, Sueli dialoga com
3 Em discurso durante o evento Show da Resistência, em 2017, na praça Pedro II, Sueli afirma
enfaticamente ser “contra o desenvolvimento”, defendendo que a modernidade prega o des
envolver, quando na verdade precisamos pautar a vida por uma lógica de envolvimento. Sueli
defende que o envolvimento (com a natureza, com a comunidade, etc) é o verdadeiro caminho
para a felicidade.
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Essa agenda de pesquisa comprometida com a defesa dos modos de vida das
comunidades do campo ganhou ainda mais corpo após a criação do DiHuCi,
grupo de pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania vinculado à Universidade
Federal do Piauí, criado e coordenado por Sueli. Com a formação do grupo, reuniu
uma comunidade de pesquisadores(as) que se empenham não apenas em realizar
pesquisas empíricas em matéria socioambiental, mas em ingressar na luta pelos
direitos fundamentais dos sujeitos envolvidos nas pesquisas por meio de espaços
de assessoria jurídica popular prestado às comunidades em paralelo às pesquisas.
Projetos de desenvolvimento baseados nos “desertos” de eucalipto para produção
de carvão e celulose; inundação de áreas habitadas para construção de barragens
no Rio Parnaíba para exploração de energia hidrelétrica; deslocamento forçado de
comunidades pesqueiras para especulação imobiliária; tentativa desapropriação
de territórios quilombolas por latifundiários; destruição ambiental e deslocamento
forçado de comunidades quilombolas para construção de ferrovias, dentre outros,
são exemplos de pesquisas comprometidas com a transformação que foram
conduzidas pela professora Sueli e que a racionalidade do desenvolvimento se
colocou como um vetor de violações de direitos fundamentais.
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Utiliza-se a justiça de transição por ser uma abordagem que se baseia em medidas
de reconstrução da memória e de recuperação de narrativas anteriormente
negadas, e também porque não foram aplicadas medidas transicionais em relação
às violências decorrentes do período colonial em nenhum território (Sousa, 2021).
A memória coletiva é essencial nos processos históricos para preservar o valor do
passado para os grupos sociais (Halbwachs, 1990) e, no caso brasileiro, estando a
memória coletiva afetada pelo racismo, há evidentes danos na formação da
identidade do sujeito constitucional (Sousa, 2021).
Referências
DIEGUES, Antônio Carlos Sant'Ana. Mito moderno da natureza intocada. São Paulo:
HUCITEC, 2008.
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Maria Sueli Rodrigues de Sousa 763
SOUSA, Maria Sueli Rodrigues de. A Vida não é uma Estrada em Linha Reta.
Revestrés, Teresina, n. 36, 2018. Disponível em:
https://revistarevestres.com.br/entrevista/vida-nao-e uma- estrada-em-linha-reta/.
SOUSA, Maria Sueli Rodrigues de et al. (Org). Dossiê Esperança Garcia: símbolo de
resistência na luta pelo direito. Teresina: EDUFPI, 2017.
SOUSA, Maria Sueli Rodrigues de. O Povo do Zabelê e o Parque Nacional da Serra da
Capivara no Estado do Piauí: tensões, desafios e riscos da gestão principiológica da
complexidade constitucional. Brasília: Programa de Pós-Graduação (Doutorado)
em Direito da Universidade de Brasília, 2009.
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764 Eduardo Wallan Batista Moura - Iago Masciel Vanderlei -
Lara Melinne Matos Cardoso - Zilda Letícia Correia Silva
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Maria Sueli Rodrigues de Sousa 765
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52340
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Submetido em 22/01/2024
Aceito em 22/01/2024
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ISSN 2447-6684
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768 Ricardo Prestes Pazello
O final do ano de 2023 foi marcado pela triste notícia do falecimento de Enrique
Dussel, um dos maiores nomes do pensamento crítico latino-americano. Cultor da
filosofia da libertação, sua multifacética obra se desdobra em um tão amplo leque
de enfoques sobre as possibilidades da América Latina, do sul do mundo e de todo
o bloco social dos oprimidos, que seu desaparecimento repercute como um duro
golpe em todos os que se dedicam a essa abordagem. No entanto, seu legado tende
a seguir firme, justamente devido ao quão ancha e profunda fora sua produção
teórica.
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aqui. Também, houve razoável utilização de suas reflexões para se propor uma
teoria crítica (ou mesmo teorias críticas, no plural) do direito. Além disso,
entendemos que estes dois caminhos de encontros entre Dussel e o direito podem
oferecer uma metodologia de estudos de mão dupla: por um lado, podemos buscar
o direito em sua obra, mesmo aquela que não se atém propriamente ao tema, ainda
que o referindo de passagem; por outro, é mais do que possível, porque necessário,
valermo-nos da condução epistêmica dusseliana, em várias sendas – das questões
filosóficas mais amplas àquelas mais específicas em torno da ética, da economia
política ou ainda da política –, para a aplicarmos aos estudos jurídicos.
Sendo assim, esboçamos este verbete como um guia de leitura da obra de Dussel,
que tamanho serviço pode prestar à pesquisa jurídica. Na realidade, toda uma
geração de intelectuais veio se forjando sob sua influência, especialmente no
âmbito da crítica jurídica brasileira. A prova disso é que, por exemplo, o Instituto
de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) – que organiza a revista
InSURgência – é composto por várias pesquisadoras e vários pesquisadores que
frisamos a importância do autor, reivindicando-o desde sua fundação. Assim, o
primeiro número de nosso periódico, que publicamos três anos após a criação do
próprio Instituto, já contava com a tradução de um de seus textos sobre o direito
(Dussel, 2015) e, mais recentemente, em coletivo produzimos um ensaio-
homenagem fazendo um balanço de como a fundamentação teórica de seis teses
de nossas teses de doutorado, escritas e defendidas na década de 2010, se deu a
partir do pensamento dusseliano (Pazello; Maldonado Bravo; Diehl; Ferrazzo;
Leonel Júnior; Machado, 2024).
Como dissemos, trata-se não de um artigo analítico mas de um guia de leitura, que
terá de constranger, em espaço bastante limitado, um sem número de
possibilidades de interpretações filosóficas sobre o direito, a partir de Dussel.
Destacaremos, sem dúvida, referências explícitas em suas obras. Mas não podemos
deixar de registrar também que houve pesquisas jurídicas pioneiras. Tomando o
Brasil como exemplo, lembramos aquelas que se ancoraram em sua perspectiva,
sendo que uma das primeiras e mais aprofundadas foi a de Ludwig (2006), cuja
dissertação de mestrado de 1993 seria lançada, anos depois, como livro. Também,
mostra-se relevante consignar a produção de Wolkmer, que, após trajetória
envolvida com essa interlocução, chega a figurar como coautor (Wolkmer;
Machado, 2022) no último volume do projeto de Dussel (2022) que encerra a
trilogia deste sobre a Política da libertação, em livro coletivo organizado pelo próprio
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Foi assim que Enrique Domingo Dussel Ambrosini nomeou um dos textos da fase
final sua produção bibliográfica que destaca sua própria trajetória: En búsqueda de
sentido: sobre el origen y desarrollo de una filosofía de la liberación. A prática de refletir
sobre o mundo mas também de pensar como refletir esse mundo acompanhou
toda a obra dusseliana. Em vários momentos dela, evocou seu contexto biográfico
e histórico para situar o que estava escrevendo e sobre o que estava refletindo.
Aqui, tomaremos uma das referências mais recentes por ele deixada, para
apresentarmos algumas notas sobre sua trajetória pessoal.
1 Neste livro, um dos últimos, senão o último, publicado por Dussel, afora textos de sua própria
lavra, sem prejuízos de outros que também façam abordagens gerais, há pelo menos mais dois
especialmente concentrados na problemática do direito, escritos por Mario Ruiz Sotelo (2022) e
José Guadalupe Gandarilla Salgado (2022).
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De 1975 em diante foram tempos novos para Dussel, com dolorosas adaptações,
mas também do desenvolvimento de sua filosofia da libertação até a interlocução
filosófica tricontinental – entre África, Ásia e América Latina –, passando pela
aprendizagem do inglês, por certo, assim como pela fundação, dentre outras, da
Asociación de Filosofía y Liberación (AFYL), em 1982, em Bogotá, na Colômbia.
Como movimento filosófico diverso, a filosofia da libertação (mas também a
teologia da libertação, corrente anterior a sua contribuição) tinha em Dussel um de
seus mais importantes formuladores, ainda que sem deixar de se abrir para seu
contínuo enriquecimento. O segundo meado da década de 1970, assim, conduziu
Dussel a estudar com profundidade a obra marxiana, o que ele chamou de “tarea
de reconstrucción radical del pensamiento de Marx” (Dussel, 2012a, p. 54). A
realidade do capitalismo no Terceiro Mundo foi o decisivo para isso, demandando
uma crítica que com Marx se aproxima da perfectibilização. Mas sempre tendo em
vista a historicidade latino-americana, sem dogmatismos, portanto.
O fim dos anos de 1980 trouxe a queda do muro de Berlim e, em seguida, ocorreu
a desintegração da União Soviética. Neste momento, Dussel estava, curiosamente,
mais marxista que antes e, ao mesmo tempo, se lançaria a um conjunto de debates
filosóficos internacionais que ficaram conhecidos como diálogos norte-sul,
promovidos, a partir do emblemático ano de 1989, pelo cubano-alemão Raúl
Fornet-Betancourt, famoso cultor da interculturalidade filosófica. Entre os
interlocutores esteve, principalmente, Karl-Otto Apel, mas também Jürgen
Habermas, Paul Ricoeur, Richard Rorty, Charles Taylor, Gianni Vattimo e Alasdair
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MacIntyre, por exemplos. Esse contexto de trocas intelectuais permitiu com que
Dussel fundamentasse de maneira muito madura sua Ética da libertação e pudesse,
em seguida, aplicá-la também a uma Política da liberação, última fase de sua
produção teórica. Da década de 1990 à de 2020, portanto, Dussel pôde viver
intensamente seu quefazer intelectual, como professor das Universidades
Autônomas do México e da Cidade do México (tendo sido reitor, nesta última) e
um dos formuladores do movimento do giro descolonial no contexto da episteme
latino-americana dos anos de 1990. Mas também apoiou, como agente político e
com vivacidade, os movimentos populares latino-americanos (a influência
decisiva dos zapatistas se fez sentir logo no início do levante de 1994, assim como
a constituição bolivariana da Venezuela ou o simbolismo de Evo Morales, primeiro
presidente indígena da Bolívia – como já haviam sido importantes as experiências
transformadoras em Cuba, Chile e Nicarágua – ressoam em toda sua obra
conforme ela foi sendo escrita). Além disso, participou da organicidade política,
como no caso do Movimiento de Regeneración Nacional (MORENA), no México,
já sob a regência, antes e depois de se tornar presidente, de López Obrador. Nos
últimos anos, chegou a ocupar o cargo de secretário de educação, formação e
capacitação política do comitê executivo nacional deste partido criado e
formalizado entre 2011 e 2014. Seu falecimento a 5 de novembro de 2023 ocorre
logo após o lançamento do terceiro tomo de sua Política da liberação e, até onde
sabemos, sem poder ter concluído textos que prometia (mais a si mesmo do que a
seus seguidores) sobre uma estética da libertação, uma definitiva lógica analética
da libertação, uma nova erótica da libertação e suas memórias intelectuais e
militantes.
Sua rica biografia comprova o que dissemos anteriormente, de que é muito difícil
dar conta, em poucas páginas, de toda sua produção teórica. O mesmo vale para a
trajetória pessoal e, considerando a influência de suas ideias, para toda sua fortuna
crítica, na filosofia, no direito ou em outros campos, assim como no contexto latino-
americano ou mesmo no de outros continentes. Se serve como consolo, ao menos
percebemos um notável esforço de disponibilização de sua obra em sua página na
rede mundial de computadores2, assim como na de alguns institutos que
hospedam também seus textos digitalizados3. Do que traremos a seguir, quase
tudo pode ser encontrado nesses sítios da internet.
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Referências esparsas, com essa mesma índole, principalmente sobre a “lei”, podem
ser encontradas em Para una de-strucción de la historia de la ética (Dussel, 1974b) ou
El dualismo en la antropología de la cristiandad: desde los orígenes hasta antes de la
conquista de América (Dussel, 1972) – esta última fechando uma espécie de trilogia
sobre o humanismo ocidental (entre gregos, hebreus – com os dois livros citados
sobre o assunto anteriormente – e cristãos). Já no final da década de 1970 (em 1978),
Dussel publica seu De Medellín a Puebla – uma década de esperança e sangue, que, em
português, aparece em três volumes (Dussel, 1981; 1982g; e 1983a), também
trazendo remissões gerais ao direito. No primeiro, podemos apontar para a
questão no item 1.3 do primeiro capítulo, sobre “A instituição Igreja e os aparatos
do estado” (Dussel, 1981, p. 34 e seg.). No segundo, porém, destaca mais
propriamente a temática dos “Direitos humanos e direitos do pobre” (Dussel,
1982g, p. 488 e seg.), quando, no quinto capítulo da segunda parte, coloca-se
“Diante da Terceira Conferência do Episcopado Latino-Americano”. Já o terceiro
volume (Dussel, 1983a) traz mais questões de documentos internos, especialmente
quanto à Conferência de Puebla, que podem servir de analogia para a questão
jurídica, em âmbito institucional-eclesial.
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A propósito, é a esta analogia que pretendemos remeter para citar o texto que
Dussel escreve sobre a Teologia da libertação: um panorama de seu desenvolvimento. O
livro, de caráter mais político-pedagógico (para intervenção e difusão da teologia
da libertação), acaba trazendo a discussão sobre um documento eclesial que não
deixa de ter caráter normativo circunscrito ao Vaticano. Trata-se da “Instrução
sobre alguns aspectos da Teologia da libertação” que, como diz Dussel, vem “da
Sagrada Congregação para a Doutrina da fé – promulgada em Roma no dia 6 de
agosto de 1984, mas só publicada em 3 de setembro pelo Cardeal Joseph Ratzinger
(meu professor em Muenster em 1964)” (Dussel, 1999, p. 7). A primeira versão do
livro é de 1986, que reaparece aumentado e modificado em 1995, abordando o
assunto em seu capítulo terceiro, que continua a periodização dusseliana sobre a
história da igreja de libertação, o que considerou como sendo o “Quinto período.
Desde a ‘Instrução’ romana de 1984” (Dussel, 1999, p. 102 e seg.). Referida
“Instrução” acusava a teologia da libertação de ser marxista e lhe dirige algo como
que uma condenação, tendo sido Leonardo Boff o teólogo da libertação mais
conhecido no episódio.
Devemos, ainda, mencionar um dos muitos livros que Dussel organizou sobre a
história da igreja e do cristianismo na América Latina, do ponto de vista dos de
baixo. Em Historia liberationis: 500 anos de história da igreja na América Latina,
encontramos um texto dusseliano que tematiza os “regimes de Segurança
Nacional”, as “situações de repressão menor” e a “‘abertura’ democrática” (Dussel,
1992, p. 270; 275; e 287 e seg.) – problemáticas assentes em De Medellín a Puebla
igualmente. Na mesma compilação, temos também um exemplo de texto como o
do teólogo José Comblin (1992), apresentando sua interpretação sobre “A igreja
em vinte anos de luta pelos direitos humanos”.
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Fechando esse arco de anotações, que teve por intuito enumerar as obras histórico-
antropológico-teológicas naquilo que a elas pertinia sobre o direito, podemos
chegar ao livro que reúne cinco de seus trabalhos, em 2012, intitulado Paulo de Tarso
na filosofia política atual e outros ensaios. O primeiro texto, que dá título à obra,
aborda o problema da “lei” em São Paulo (cf. Dussel, 2016, p. 21 ou 25, entre
outras), nos moldes em que a aproximação se realizava nos escritos dusselianos
dos anos de 1960. Por sua vez, no quinto ensaio que expõe “Cinco teses sobre o
‘populismo’”, Dussel (2016, p. 222 e seg) fala sobre “O poder, instituições de
participação e de democracia” (quarta tese) ou faz a crítica “ao ‘estado de direito’
injusto” (Dussel, 2016, p. 228) – no contexto da quinta tese sobre as “Exigências
democráticas do exercício da liderança” –, já na chave de leitura própria da política
da libertação.
4 Vide, a respeito do assunto, ainda que bastante exemplificativamente, obras como as de Jesús
Antonio de la Torre Rangel (2007) e Alejandro Rosillo Martínez (2008).
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número de ensaios, dando a eles uma organicidade própria. Neles, assenta-se uma
interdisciplinar abordagem da teoria de libertação que já vinha sendo construída
desde fins dos anos de 1960, mesmo que os volumes pendam nitidamente para
uma perspectiva histórico-teológica. A dimensão ético-filosófica, entretanto,
também se faz sentir e permite aproximações ao direito, inclusive.
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Em Para uma ética da libertação latino-americana, pentalogia que Dussel lança entre
1973 e 1980, mas que a partir de seu terceiro volume consolida-se com novo título
– Filosofía ética latino-americana – a questão jurídica ganha uma reflexão especial.
No entanto, ela fica concentrada, em sua singularidade, no segundo dos tomos da
obra.
Depois de propor “um acesso ao ponto de partida ético” (Dussel, 1982a) – primeiro
dos volumes –, Dussel acerca-se da problemática que envolve “eticidade e
moralidade” – subtítulo do segundo volume de Para uma ética da libertação latino-
americana. É neste que, de alguma maneira, o direito vai aparecer com contornos
próprios mais bem delimitados.
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tratar de questões de método (que não se reduzem ao nível do pensar mas chegam
ao agir ético), encontramos o derradeiro item 39 referido à “Normatividade
existencial-analética da ética meta-física”, em que propõe uma ética da libertação
partindo da alteridade ou exterioridade e não da totalidade (meta – para além da
– física/totalidade): “a normatividade da ética na pessoa do ético é interpretação e
provocação à justiça”, enquanto também “é norma pensada para os que se
comprometem na libertação” (Dussel, 1982b, p. 239).
Os demais tomos de Para uma ética da libertação latino-americana também podem ser
compulsados para encontrar o mesmo posicionamento. Transborda os limites de
nossos objetivos aqui analisá-los todos, mas deixamos indicado que no primeiro
volume, Dussel aborda o problema kantiano da “lei”, no item 11 sobre “Destinação
e ob-rigação do ser a ser” (Dussel, 1982a, p. 84 e seg.). Já nos outros livros, questões
afins aparecem sempre que está em jogo a “moralidade da práxis”: no terceiro
volume, esta se faz presente, por exemplo, nos itens 47 – “A moralidade da práxis
de libertação erótica” (Dussel, 1982c, p. 137 e seg.) – e 53 – “A moralidade da práxis
de libertação pedagógica” (Dussel, 1982c, p. 230 e seg.); no quarto, item 66 – “A
moralidade da práxis de libertação política” (Dussel, 1982d, p. 138 e seg.); e, no
quinto (sobre “uma filosofia da religião antifetichista”, item também designado
como 66 – “A moralidade da práxis de libertação arqueológica” (Dussel, 1982e, p.
230 e seg.).
Lembramos que no percurso da escrita de Para uma ética..., Dussel começa a operar
suas transitividades, em que se implicam a experiência do exílio e o início de um
interesse mais aprofundado pela obra de Marx. Talvez tais questões de ordem
pessoal tenham impactado na mudança do título da obra, a partir do volume
terceiro, para Filosofía ética latinoamericana (ver, por exemplo, Dussel, 1977a), ainda
que em português a preferência editorial tenha sido a da manutenção do nome dos
cinco volumes – no mesmo ano em que ocorre a alteração, 1977, sua obra de
viragem vem à tona, talvez o mais conhecido livro de sua produção, a Filosofia da
libertação, sobre a qual nos referiremos a seguir.
5 Filosofia da libertação
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É, porém, com a Filosofia da libertação que nosso autor fechará um ciclo de estudos
dedicados à ética – forçosamente, é verdade – e iniciará outro, fundamental para a
história do pensamento crítico latino-americano (que será sua contribuição ao
marxismo do continente). Este livro a que nos referimos é uma espécie de balanço
e projeto, ao mesmo tempo: “este curto trabalho, sem bibliografia alguma, porque
os livros de minha biblioteca estão longe, na pátria, escrito na dor do exílio”, diz
Dussel em suas “Palavras preliminares”, “não pretende ser uma exposição
completa, mas antes um discurso que vai travando tese após tese, proposta após
proposta. É somente um marco teórico filosófico provisório” (Dussel, 1982f, p. 7).
Em suas páginas, lemos todo o repertório dusseliano sobre totalidade e alienação,
exterioridade e libertação, os momentos metafísicos da política, erótica,
pedagógica e antifetichismo, o percurso da natureza à econômica (da libertação,
dir-se-á no futuro) e questões metodológico-científicas sobre a filosofia da
libertação. Passar por Dussel sem conhecer o modo como ele assentou tais noções
é não ter em vista a fundamentalidade dessa elaboração para a continuidade de
sua obra.
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pode não ser ilegal, contra as leis vigentes, que por serem as vigentes de uma
ordem antiga justa porém agora opressora, são injustas” (Dussel, 1982f, p. 72).
Nos dez anos seguintes ou mais, provocado pelos debates que enfrentou no início
de seu exilio no México, Dussel toma o caminho, em algum sentido inusitado, de
aprofundar-se na obra de Marx. Se antes o encontro da alteridade, tal como
descoberta em Lévinas (ver, por exemplo, Dussel; Guillot, 1975) – e superando a
adesão à ontologia de tipo heideggeriano ou husserliano –, havia levado a
elaboração dusseliana a tecer críticas duras ao próprio marxismo (cf. Dussel, 1974c,
p. 137 e seg.), agora o aprofundamento na obra marxiana fazia-o mudar de posição
e encontrar na dialética de Marx a analética, tal como Dussel cunhara sua proposta
de método.
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publicaria uma tradução do texto de Marx (1984) – feita por Enrique Dussel Peters,
seu filho –, inserindo nela seu “estudo preliminar”.
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Dussel se interessa mais pela obra de Marx. Aliás, a partir de 1985, terá vez a
trilogia dusseliana dedicada a manuscritos marxianos, até então pouco conhecidos
e difundidos, especialmente na América Latina. Dussel estará, portanto, entre os
que deram sua contribuição nodal para o desenvolvimento do marxismo,
debruçando-se sobre obras inéditas ou de pouco acesso pela militância e mesmo
pelos estudiosos.
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7 1492 e a transmodernidade
É evidente que Dussel vinha operando viragens epistêmicas desde quando passou
a formular, junto a outros intelectuais, a filosofia ou a teologia da libertação – o que
nós poderíamos chamar de teorias da libertação. A perspectiva latino-americana,
a crítica ao eurocentrismo e a denúncia do capitalismo são marcas de sua trajetória.
Nos anos de 1990, contudo, sua reflexão converge para preocupações semelhantes
de outros intelectuais e assistimos à constituição do debate sobre
colonialidade/modernidade. Mais ou menos autônomos entre si, os autores que
dele participam acabam por concluir pela necessidade de um giro epistêmico, a
propósito da data rememorativa dos quinhentos anos da conquista da América,
em 1992. Dussel apresenta seus argumentos a respeito do assunto em uma série de
conferências, ministradas em Frankfurt, no livro 1492: o encobrimento do outro (a
origem do “mito da modernidade”).
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No que toca ao direito, aparece uma vez mais de modo fluido, mas é interessante
registrar que Dussel, até por adotar uma perspectiva histórica para enfrentar o
mito da modernidade (observando-o seja do ponto de vista da crítica ao ego
europeu seja a partir da história ameríndia dos vencidos), chega a definir a
“conquista” como “uma figura jurídico-militar” (Dussel, 1993, p. 42), tal qual se
verifica na terceira conferência dedicada ao tema “Da ‘conquista’ à ‘colonização’
do mundo da vida”.
Mais do que isso, trata-se de um livro orgânico e coerente, que ultrapassa a lógica
da reunião de artigos (muitas das vezes necessária, para tornar possível à
comunidade de leituras o acesso a textos dispersos) ou uma apresentação histórica
mais simplificada, com fins mais introdutórios. O próprio Dussel não se recusou a
organizar livros com esse cariz – ainda que muito provavelmente a pedido de seus
editores. É o caso da edição brasileira, de 1997, dos Oito ensaios sobre cultura latino-
americana e libertação, que recolhe ensaios datados de 1965 a 1991 – aliás, em um
deles (sobre “A arte do oprimido na América Latina”, de 1980), Dussel já
problematizava “o fundamento do direito à conquista da América” (Dussel, 1997,
p. 161). Um segundo exemplo tem a ver com a característica mais introdutória de
um tema, como é o caso do pequeno livro publicado em 2020, chamado El primer
debate filosófico de la modernidad, que retoma a problemática de 1492 (e, em alguma
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8 Diálogos norte-sul
Não temos condições aqui de descrever toda a riqueza, por exemplo, dos
seminários internacionais do “Programa de Diálogo Norte-Sul” (organizados por
Raúl Fornet-Betancourt), que ocorreram entre 1989 e 2002, entre América Latina e
Europa, fundamentalmente Alemanha (outros eventos com intuitos similares,
ainda que talvez não com a mesma centralidade, também ocorreram, como os
“Confrontos europeus” na Itália [ver Dussel; Balducci, 1991]). No entanto, eles
antecipam ou mesmo amadurecem várias posições que Dussel sustentaria nos
ciclos subseqüentes de sua teorização, seja no âmbito da ética seja no da política,
que repercutem diretamente sobre o tema do direito. Da mesma maneira, seus
interlocutores também são reconhecidos filósofos que se dedicam ao problema
jurídico, em algum nível. Embora Habermas seja o mais conhecido deles, quem se
tornou verdadeiramente constante no debate foi Apel, mas outros também
mereceram atenção de Dussel, sendo por este provocados, nos mais diversos
contextos de discussão.
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parece ter sido o mais disponível dos interlocutores europeus de nosso filósofo
latino-americano. Outra publicação que segue a mesma prioridade é a coletânea
Ética del discurso y ética de la liberación (Dussel; Apel, 2005). Nesse conjunto de
publicações é possível refletir sobre a relação que existe entre ética do discurso,
ética da libertação e direito (que, aqui e acolá, se faz presente no contexto mais
amplo do debate dos autores).
9 Ética da libertação
Novamente, seria um esforço descomunal sintetizar uma obra como esta, que tem
sido uma das mais exploradas pelos muitos intérpretes do autor. De todo modo,
ela guarda consigo o intuito de consolidar um projeto de mais de duas décadas de
investigações. É o próprio Dussel quem nos diz, ao comparar esta obra com a
similar, que estruturou na década de 1970: “aquela obra intitulava-se ‘Para’ uma
ética... Esta, porém, é urna ‘Ética’, simplesmente” – e adenda: “aquela obra
denominava-se ‘...da libertação latino-americana’. Agora pretendemos situar-nos
num horizonte mundial planetário, além da região latino-americana, do
helenocentrismo e do eurocentrismo próprio da Europa e dos Estados Unidos
atuais”, logo, “do ‘centro’ e da ‘periferia’ para a ‘mundialidade’” (Dussel, 2002, p.
14-15).
No interior de uma intrincada e bastante sofisticada, ainda que por vezes rígida,
fundamentação positiva mas também negativa da ética – a partir do que Dussel
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Podemos dizer que a fase final da produção teórica de Dussel durou coisa de vinte
anos e se preocupou intensamente com o problema da política. Após interpretar
eticamente o mundo, nosso filósofo se inquietou para transformá-lo. Longe de ter
sido um academicista ao longo de seu percurso intelectual, Dussel, porém,
intensificou suas preocupações politológicas, tendo tido a oportunidade de se
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Em 2001, Dussel escreve na apresentação de seu Hacia una filosofía política crítica:
“esta obra se encuentra en un período de transición entre mi Ética de la Liberación y
la Política de Liberación, que estamos elaborando” (Dussel, 2011, p. 9).
Reconhecendo serem trabalhos parciais, Dussel realiza um trânsito que contempla,
até por ter sido desenvolvido à luz dos diálogos norte-sul, algumas relevantes
discussões jurídicas. Nos capítulos VII e VIII da primeira parte de referida obra, o
tema aparece pela via da intersecção entre “Derechos humanos y ética de la
liberación” (Dussel, 2011, p. 145 e seg.; traduzido em Dussel, 2015) ou pelo
delineamento do que seria “La transformación del sistema del derecho” (Dussel,
2011, p. 159 e seg.). O primeiro texto fora apresentado no “VII Seminario del
Programa del Diálogo Norte-Sur”, em 1998; o segundo, na VIII edição de referido
evento, em 2000.
Algum tempo depois, em 2006, vêm à luz suas 20 teses de política, em nítido
exercício educativo-popular para com os assim conhecidos novos movimentos
sociais. Tais 20 teses... configuram-se como verdadeiro curso para lideranças
populares (como tivemos oportunidade de acompanhar uma feita em Curitiba, no
“Seminário Nacional de Fé e Política”, que contou com a presença do próprio
Enrique Dussel, em atividade nada acadêmica, pois destinada às comunidades
eclesiais de base do Paraná, no sul do Brasil). O passo que a teoria política
dusseliana está dando aqui é bastante largo. A passagem da ética à política já se
concretiza com o estabelecimento de sua discussão em torno da ordem política
vigente, em que a potentia popular tem sido deslocada por uma potestas que
fetichiza a institucionalidade. Tomando por base a experiência zapatista, por
exemplo, Dussel formula sobre o poder obediencial (da tradição maia-chiapaneca,
segundo o qual se manda obedecendo) e seu contrário, a fetichização do poder
(prática prevalente na política ocidental ainda-colonial, em que se manda
mandando). Contrastando com tal análise, Dussel advoga por uma transformação
da ordem política, a partir dos três níveis do campo político: a ação política
estratégica, as instituições políticas e os princípios normativos. Como transparece
nessa própria nomenclatura, é possível encontrar o direito transversalmente nos
três níveis, mas nós destacamos algumas das teses nas quais sua presença está mais
evidente, seguindo o discurso dusseliano: as teses nona e décima, sobre “A ética e
os princípios normativos políticos implícitos. O princípio material da política” e
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anteriores dentro desta fase. É o que fica evidenciado, por exemplo, no capítulo
segundo, quando trata de “A esfera formal da legitimidade (O Estado de Direito e
a opinião pública política)”, em seu parágrafo 23 (Dussel, 2020c, p. 307 e seg.); no
terceiro, voltado a “Os princípios implícitos fundamentais: a normatividade da
política” (Dussel, 2020c, p. 363 e seg.); e na “Conclusão da Arquitetônica. A ordem
ontológico-política”, quando no parágrafo 28 fala sobre a “Pretensão política de
justiça” (Dussel, 2020c, p. 535 e seg.).
A nosso ver, é mais ou menos evidente que Dussel está aportando em uma
consolidação de seus escritos anteriores, no que se refere ao direito, mas não só.
Isto se torna ainda mais visível quando retoma ensaios anteriores, atualizando-os
para os inserir no terceiro volume da Política de la liberación (para este, não há
tradução em português). Assim, a juridicidade se faz de algum modo presente no
que ele chama de segundo excurso (excurso para diferenciar os seus próprios
textos dos demais autores que compõem o terceiro volume), sobre “Los principios
normativos críticos de la política en la segunda y la tercera constelaciones” (Dussel,
2022, p. 187 e seg.) e, depois, mais expliticamente no quarto excurso relativo a “La
transformación del sistema del derecho” (Dussel, 2022, p. 637 e seg.). Por fim, o
parágrafo 44 trabalha com o mesmo tema que concluía o segundo volume, qual
seja, a “Pretensión crítico-política de justicia” (Dussel, 2022, p. 717 e seg.).
Cabe ainda mencionar dois livros, para encerramos esse que consideramos ser um
verdadeiro guia de leitura da obra de Dussel sobre o direito, se pensada a partir
das preocupações de encontros (e desencontros) com este campo de investigação.
De um lado, o compilado que resulta em Carta a los indignados, com vários textos
que atacam a temática jurídica. Citemo-los, por zelo didático, ainda que como
meras exemplificações: “Estado de derecho, Estado de excepción, Estado de
rebelión”; “La ética y la normatividad política, I”; “La ética y la normarividad
política, II”; “Moralidad, legalidad y legitimidad política”; “Legalidad y
legitimidad”; “La vida, la ley y la fuerza”; “¿Juicio político: simplemente legal o
también justo?” e “El poder ciudadano en la Constitución Bolivariana.
Articulación de la democracia participativa con la democracia representativa”
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Enrique Dussel e o direito 793
(respectivamente Dussel, 2011b, p. 131; 147; 150; 153; 184; 187; 206; 224 e seguintes
para cada uma das referências).
De outro, a última e uma das mais diferentes publicações assinadas por Dussel:
Hacia una nueva cartilla ético política. Trata-se de uma nova cartilha política
inspirada na Cartilla moral, de 1944, lançada por Alfonso Reyes sob os cuidados
editoriais da Universidade Autônoma de Nuevo León, no México. Partindo do
contexto político mexicano, com o qual se envolveu intensamente, inclusive ao
nível da organização política MORENA, sendo seu dirigente nacional e partícipe
da formação política de seus quadros, assim é que a brigada cultural Para Leer En
Libertad lança, com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, referida “nova
cartilha”. Dentro dela podemos acessar cinco textos que, de um jeito ou de outro,
aplicam as teses da política da libertação à conjuntura, sendo que um dos capítulos,
o quarto, fala exatamente da “Transformación ética de las instituciones”, lugar
teórico-político por excelência em que Dussel aloca questões atinentes à
juridicidade.
Dessa maneira, tendo a política da libertação como esteio é que podemos entender
a contribuição específica para o assim chamado giro descolonial do poder e do
saber que os autores latino-americanos vieram promovendo desde as efemérides
de 1992. A distinção que notabiliza a produção teórica dusseliana é a de não
arredar pé da materialidade e da visualização da necessidade de organização
popular, enriquecendo a crítica marxista à economia política capitalista mas
também o livre-pensar das teorias críticas latino-americanas da sociedade.
***
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796 Ricardo Prestes Pazello
DUSSEL, Enrique Domingo. Hacia una filosofía política crítica. 2. ed. Bilbao: Desclée
de Brouwer, 2011a.
DUSSEL, Enrique Domingo. Hacia una nueva cartilla ético política. México, D. F.:
Para Leer en Libertad AC; Rosa Luxemburg Stiftung, 2019.
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Enrique Dussel e o direito 797
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798 Ricardo Prestes Pazello
DUSSEL, Enrique Domingo (comp.). Debate en torno a la ética del discurso de Apel:
diálogo filosófico Norte-Sur desde América Latina. 1 reimp. México, D.F.: Siglo
XXI; UAM-Iztapalapa, 2013.
COMBLIN, José. A igreja em vinte anos de luta pelos direitos humanos. Em:
DUSSEL, Enrique Domingo (org.). Historia liberationis: 500 anos de história da
igreja na América Latina. Tradução de João Rezende Costa. São Paulo: Paulinas;
CEHILA, 1992, p. 607-632.
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Enrique Dussel e o direito 799
RUIZ SOTELO, Mario. De la crítica del sistema del derecho: el principio formal
negativo de legitimidad política. Em: DUSSEL, Enrique Domingo. Política de la
liberación: crítica creadora. Madrid: Trotta, 2022, v. III, p. 267-290.
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800 Ricardo Prestes Pazello
Sobre o autor
Ricardo Prestes Pazello
Professor do Curso de Direito e do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pesquisador em
estágio pós-doutoral do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e
Sociedade da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
Líder do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania (NDCC/UFPR).
Pesquisador do Grupo Temático de Direito e Marxismo do Instituto de
Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS). Coordenador do
projeto de extensão/comunicação popular Movimento de Assessoria
Jurídica Universitária Popular - MAJUP Isabel da Silva, integrante do
coletivo Planejamento Territorial e Assessoria Popular (PLANTEAR), da
UFPR.
_________________
Dedicatória
Este ensaio, escrito em memória de Enrique Dussel por ocasião de seu
falecimento - que muito nos sensibilizou -, nós o dedicamos a Celso Luiz
Ludwig, professor que nos apresentou a filosofia da libertação durante o curso
de graduação em direito da Universidade Federal do Paraná, nos anos 2000,
abrindo portas para nossos futuros interesses de pesquisa.
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Poéticas políticas
Trata-se de seção dedicada a divulgar produções artísticas e literárias
que expressem o compromisso de valorização da cultura popular e de
construção artística militante, típica dos atores envolvidos com e nos
movimentos sociais. A seção de texto e manifestações artísticas da
revista do IPDMS é uma homenagem a Augusto Boal, criador do teatro
do oprimido, ensejando na dramaturgia uma “poética política”
(subtítulo de seu livro mais conhecido – Teatro do oprimido e outras
poéticas políticas).
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.5239
poéticas políticas
Cabelo é história
El cabello es historia
Hair is history
Aline Guimarães1
1
Teresina, Piauí, Brasil. Instagram: @lineaaaa_.
Submetido em 02/12/2023
Aceito em 02/12/2023
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804 Aline Guimarães
Cabelo é história
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Cabelo é história 805
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806 Aline Guimarães
Sobre a autora
Aline Guimarães
Natural de Teresina, capital do Piauí. É multiartista nas áreas de arte
urbana, ilustração, arte-educação e performance. Seu trabalho é uma
contação de histórias ancestrais, passa pela brincadeira das crianças e a
sabedoria dos velhos, atravessada diretamente pela dança, sua
formação inicial. Tem participado de festivais de graffiti e arte urbana
pelo Brasil, ilustrando diversas temáticas como infância,
afrodescendência e cultura popular. Desde 2020, pesquisa a terra como
elemento de criação, tanto na feitura de suas próprias tintas, quanto no
entendimento do território para a experiência da diáspora africana. No
Instagram: @lineaaaa_.
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.5239
poéticas políticas
Submetido em 14/01/2024
Aceito em 14/01/2024
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808 Stela Guedes Caputo
Em uma das fotografias vemos Equede Lara de Oxóssi, aos seis anos, em seu
terreiro, o Ilê Axé Omi Lare Iyá Sagbá, em Santa Cruz da Serra, Duque de Caxias.
Fiz essa foto em um momento de pausa, onde todas nós ajudávamos a preparar
nosso terreiro para o Olubajé, o banquete do rei, a grande festa para Obaluaê,
poderoso orixá da boa saúde e da cura. “O olubajé é a festa para o rei da terra, ele
veste a palha para espalhar vida, espalhar amor. Ele não é a doença, ele cura a
doença da gente”, ensina equede Lara.
Na outra fotografia, vemos Mariah de Souza Pimentel, do Ilê Axé Iyá Omim Delê,
em Cabuçu, Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Ela é de Oxum e na foto tem 3
anos. Dessa vez, fiz a foto no quintal de seu terreiro, em frente ao quarto dos eguns.
Os eguns são os mortos, pessoas importantes no culto que fizeram por merecer
durante sua existência no aiyê (aqui na terra) o ritual de voltar vestindo a roupa
sagrada, casa temporária da morte refazendo a vida. “O egun sai da morte e vem
viver com a gente”, explica Mariah.
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Fotografia como ato de insurgência contracolonial 809
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810 Stela Guedes Caputo
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Fotografia como ato de insurgência contracolonial 811
Diferenciam, mas não quer dizer que determinem, já que, como indicou Cohn
(2005), as crianças não são seres determinados pelas culturas, mas sim agentes
produtores de culturas, ativas na fabricação de sentidos. Nos terreiros, as crianças
incorporam orixás, cantam para folhas e comidas, falam yorubá, fazem preces nos
ouvidos de bichos, falam com parentes mortos.
Fotoetnografia miúda
Em nossas pesquisas, o que nos move não é analisar crianças nos cotidianos das
casas de axé (candomblés de todas as nações e também os terreiros de umbanda),
mas, nesses cotidianos, compartilhar seus modos de significar e interpretar a si
mesmas e os terreiros, em todas as suas dimensões. Nos move também
compartilhar com elas como significam e se relacionam com a sociedade para além
do terreiro.
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812 Stela Guedes Caputo
Saramago (1995, p. 10), disse: “se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.
Chamamos o que fazemos de Reparar Miúdo e Narrar Kékeré (Caputo, 2018). Sim,
a ênfase do escritor português é no olhar, sendo este mais profundo quando
conseguirmos ver e, mais profundo ainda, se conseguimos reparar, olhar mais
detidamente e, por fim, ver, ou perceber melhor. Talvez essa percepção mais
aprofundada do ver não se limite aos olhos. Se a discussão é importante para
etnografias, ela se torna imprescindível para nós que pesquisamos com o que
chamamos de Fotoetnografia Miúda, uma etnografia praticada com ênfase nas
fotografias com crianças de terreiros. Mais recentemente, ampliamos nossas
pesquisas com crianças ciganas, ribeirinhas, quilombolas e indígenas.
Para Alex Schlenker (2019), descolonizar a escrita significa que permitamos outras
formas de percorrer o que é pesquisado e conhecido do mundo: o corpo, os
movimentos, as imagens, os sons, os objetos etc. Além disso, Schlenker enfatiza a
importância de descolonizar o estatuto fotográfico, desde o ato de fotografar aos
arquivos fotográficos. Porque a fotografia, diz ele, é um exercício pensado para a
posteridade, no qual se trata de criar documentos visuais que pretendem falar de
um momento determinado com veracidade”. (Schlenker, 2019, p.31).
Equede Lara e Mariah nos ensinou que o Senhor da Terra, com sua roupa de palha
espalha a vida. Mariah Pimentel explica que o egun sai da morte e vem viver. São
relações outras, relações contracoloniais, no dizer do nosso querido e agora
ancestralizado, Antônio Bispo dos Santos. Nêgo Bispo preferia usar a palavra
“contracolonial”, no lugar de “decolonial” ou mesmo “descolonial”. Para ele, se o
colonialismo continua e pretendemos desmanchar o colonialismo, vamos morrer
cansados. “Eles fazendo e eu desmanchando, eles fazendo e eu desmanchando. É
isso que os decolonialistas fazem. Já nós, contracolonialistas, que temos uma
trajetória que são quilombos, aldeias, terreiros, queremos bloquear o colonialismo.
Não precisa matar o colonialista, mas curá-lo de sua cosmofobia”. (Bispo, 2023,
p.27). Para ele, a bíblia funda um regime monoteísta em que só existe UMA
verdade, UM modo de existir no mundo. Funda, portanto, a imagem de um Deus
terrorista. Esse Deus terrorista, diz Nêgo Bispo, aparta o ser humano da natureza
e faz com que todos nasçam sob o terror. Isso é a cosmofobia e é preciso curar a
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Fotografia como ato de insurgência contracolonial 813
Referências
BÂ, Amadou Hampâté. A tradição viva. In: História Geral da África. v. 1. São
Paulo: Unesco e Cortez, 2010.
BÂ, Amadou Hampâté. Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Palas Athena, 2008.
BISPO, Antônio. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora, 2023.
BONNEFOY, Yves. In: Henri Cartier Bresson. Fotógrafo. São Paulo, Cosac Naify,
2009.
CAPUTO, Stela Guedes. Reparar Miúdo, Narrar Kékeré — Notas sobre nossa
fotoetnopoética com Crianças de Terreiros. Revista Teias, v. 19, n. 53, abr./jun.
2018.
CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros — e como a escola se relaciona com
crianças de candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.
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814 Stela Guedes Caputo
Sobre a autora
Stela Guedes Caputo
Doutora em Educação, fotógrafa, professora da Faculdade de Educação
da UERJ e coordenadora do Kékeré (pequeno em yorubá), Grupo de
Pesquisa do Proped/UERJ. Dofonitinha de Logunedé.
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10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52399
poéticas políticas
Mulheres da CONAQ
Mujeres de la CONAQ
CONAQ women
Submetido em 01/12/2023
Aceito em 01/12/2023
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ISSN 2447-6684
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816 Walisson Braga da Costa
Mulheres da CONAQ
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Mulheres da CONAQ 817
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818 Walisson Braga da Costa
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Mulheres da CONAQ 819
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820 Walisson Braga da Costa
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Mulheres da CONAQ 821
Sobre o autor
Walisson Braga da Costa
Quilombola da comunidade Mesquita, Cidade Ocidental, Goiás.
Umbandista e fotógrafo por amor. É formado em Licenciatura de Artes
Plásticas pela Universidade de Brasília, integrou o coletivo de
comunicação da Coordenação Nacional de Articulação das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas. Atualmente é chefe de
divisão de Gabinete da secretaria de Políticas para Quilombolas, Povos
e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e
Ciganos do Ministério de Igualdade Racial. No Instagram:
@instadowalisson.
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DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52439
poéticas políticas
Letícia Reis1
1
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.
E-mail: [email protected].
Submetido em 30/01/2024
Aceito em 30/01/2024
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ISSN 2447-6684
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824 Letícia Reis
Nessa primeira fotografia, usando um boné roxo da Teia dos Povos, uma camisa
verde sobre agroecologia com os dizeres “Mondeggi Bene Comune / Fattoria Senza
Padroni” e com uma lagoa translúcida ao fundo, está Mestra Solange Brito. Na
ocasião de nosso encontro, eu estava compondo a equipe audiovisual dos Saberes
Tradicionais da UFMG gravando seu Retrato — uma conversa em forma de
documentário em que mestras de conhecimentos tradicionais compartilham
saberes educacionais que salvaguardam as memórias de suas comunidades.
Solange está no quintal de sua casa e enquanto conversávamos sobre o papel das
mulheres na luta pela terra, na educação popular, no cuidado de sementes nativas,
na espiritualidade contracolonial e nas conexões que compõem a transição
agroecológica, os peixes passavam por trás, nadando plenamente nas águas limpas
da lagoa que contorna o caminho para a Terra do Bem-Virá.
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Epistemologias da terra: articulações interseccionais pelo bem viver
825
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826 Letícia Reis
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Epistemologias da terra: articulações interseccionais pelo bem viver
827
Por fim, Mestra Mayá (Andrade, 2021), irmã de Cacique Nailton e de Pajé Nega,
nos ensina sobre ouvir os encantados e fabular uma escola de retomadas, traçando
caminhos possíveis e conscientes rumo à ruptura completa de todas as
permanências opressivas ao reivindicar nossas raízes. Nós, enquanto mulheres,
quilombolas, de religiões de matriz africana, das comunidades tradicionais, das
lutas pela terra, dos movimentos sociais de base, de periferias, da preservação das
florestas, das perspectivas LGBTTQIAPN+, de povos indígenas, de organizações
de pessoas com deficiência e das articulações de juventude queremos
comunidades que sonhem e que se permita sonhar, porque nossa transformação
só acontece quando é gestada em futuros coletivos.
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828 Letícia Reis
Referências
MESTRA Nega Pataxó está viva em nós e lutou com o maracá nas mãos. Justiça
para o povo Pataxó-hã-hã-hãe. Teia dos Povos, 22 jan. 2024. Disponível em:
<https://teiadospovos.org/mestra-nega-pataxo-esta-viva-em-nos-e-lutou-com-o-
maraca-nas-maos-justica-para-o-povo-pataxo-ha-ha-hae/>. Acesso em 29 jan.
2024.
OLIVEIRA, Joelson Ferreira de. As lutas existem pela nossa terra. Belo Horizonte:
Escola de Arquitetura da UFMG, 2022
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Epistemologias da terra: articulações interseccionais pelo bem viver
829
Sobre a autora
Letícia Reis
Mestranda em História da África na Universidade Federal de Minas
Gerais e pesquisadora em Gestão de Acervos Fotográficos:
Acessibilidade e Ações Afirmativas da Terceira Edição da Bolsa Funarte
de Estímulo à Conservação Fotográfica Solange Zúñiga. Há sete anos
escreve histórias fotográficas por olhares interseccionais sobre
mulheres negras. Atua com patrimônio cultural em busca de
perspectivas emancipatórias para comunidades tradicionais. É
candomblecista, sapatão e feminista negra.
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10.26512/revistainsurgncia.v10i1.49678
poéticas políticas
Premonição
Premonición
Premonition
Submetido em 01/12/2023
Aceito em 01/12/2023
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684
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832 José D’Assunção Barros
Premonição
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Premonição 833
Igualmente iluminados,
os andarilhos nas estradas:
Pés descalços, chapéus de palha,
– ou capacetes e mãos de graxa –...
Todos, embora cansados,
querendo correr o chão.
Arre!
Tanto sol
arde como uma tarde
de Verão...
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
834 José D’Assunção Barros
Sobre o autor
José D’Assunção Barros
Professor-Associado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em História. Professor-
Permanente do Programa de Pós-Graduação em História Comparada
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em História pela
Universidade Federal Fluminense. Mestre em História pela
Universidade Federal Fluminense. Graduado em História pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Graduado em Música pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Caderno de retorno
Trata-se de seção dedicada a realizar interpretações críticas, por meio
de resenhas, de publicações recentes ou clássicas de textos e livros de
interesse dentro do tema direitos e movimentos sociais. A seção de
resenhas da revista do IPDMS é uma homenagem ao escritor e político
martinicano Aimé Césaire que, como poeta da negritude, escreveu
Caderno de um retorno ao país natal, poema de resgate da identidade
negra e de crítica ao colonialismo.
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52440
caderno de retorno
Submetido em 30/01/2024
Aceito em 30/01/2024
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684
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838 Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes
Mulheres Atlânticas
– a agência de
mulheres negras no
Judiciário
Brasileiro: resenha
do livro “Cadê a
Juíza?”, de Raíza
Feitosa Gomes
GOMES, Raíza Feitosa. “Cadê a juíza?”:
travessias de magistradas negras no
judiciário brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2020.
Sobreviver e despertar são verbos acentuados nas narrativas de seis juízas negras1
brasileiras. Elas tiveram suas trajetórias alinhavadas por Raíza Feitosa Gomes2 no
1 É importante ressaltar que no livro, assim como na dissertação de mestrado, por aspectos éticos
da pesquisa, as juízas negras entrevistadas não foram identificadas. Os seus nomes, e eventuais
outros nomes que elas tenham citado, foram preservados e modificados. A autora optou por
utilizar nomes de mulheres negras reconhecidas por seu protagonismo e resistência contra a
escravização: Aqualtune, Tereza, Acotirene, Anastácia, Dandara e Zeferina.
2 É advogada popular, atualmente Analista Plena no Instituto Guaicuy - SOS Rio das Velha. Mestra
em Ciências Jurídicas pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade
Federal da Paraíba, na área de concentração em Direitos Humanos e linha de pesquisa em Gênero
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Mulheres Atlânticas - a agência de mulheres negras no Judiciário Brasileiro: resenha do livro 839
“Cadê a Juíza?”, de Raíza Feitosa Gomes
livro “Cadê a Juíza?” (2020), que compõe as travessias enfrentas por mulheres
negras antes e depois de ingressarem na carreira da magistratura. A obra da jurista
piauiense é fruto de pesquisa de Mestrado realizada no Programa de Pós-
Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, a
dissertação “Magistradas negras no Poder Judiciário brasileiro:
representatividade, política de cotas e questões de raça e gênero”, defendida em
2018.
Como qualificado no prefácio do livro, escrito por Maria Sueli Rodrigues de Sousa
(2020), a obra é uma ferramenta científica de denúncia que é capaz de
“desconcertar” a magistratura, o Judiciário e até a igualdade3. Além da denúncia
do racismo e do sexismo, enquanto relações de poder que impactam a carreira, a
instituição e os princípios tão importantes para o pacto constitucional, lemos a
pesquisa como um instrumento catalisador de outras gramáticas e éticas da
magistratura.
e Direitos Humanos (2018). Graduada em Direito pela Universidade Federal do Piauí (2015).
Participou do Projeto Cajuína - Centro de Assessoria Jurídica Popular de Teresina (2010- 2014).
Integrou o Programa Direitos Humanos e Cidadania - DiHuCi (UFPI), no Projeto de Pesquisa e
Extensão “Conhecimentos tradicionais e quilombolas na conservação da biodiversidade
piauiense numa perspectiva sócio-jurídica” (2011- 2014).
3 Por constituírem conteúdos e arranjos fundamentais do constitucionalismo contemporâneo, ou
mesmo, pelo fato da magistratura conformar um poder não só institucional, mas simbólico,
econômico e cultural na formação social brasileira, demonstrado na identidade da carreira, no
passado ou presente, prepondera no imaginário um homem branco da elite econômica.
4 A pesquisadora conduziu as entrevistas a partir de um roteiro de 30 perguntas, com os seguintes
tópicos: 1 - A trajetória pessoal incluindo a condição de magistrada negra; 2 - A percepção da
identidade feminina e negra; 3 - A relação com os pares, progressão funcional, efeito da carreira
na vida pessoal; 4 - Experiência de discriminação; 5 - A relação entre a identidade negra e
feminina e a produção da decisão judicial; 6 - A diversidade de gênero e raça na composição do
judiciário brasileiro; 7 - A política de cotas; 8 - Luta das mulheres, feminismo, feminismo negro,
movimento negro, Interseccionalidade; 9 - Questão racial no Brasil e no judiciário.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
840 Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes
5 Nos últimos dados publicados pelo Conselho Nacional de Justiça sobre a composição do Poder
Judiciário, divulgados após a realização da pesquisa e a sua publicação como livro, os números
indicam que existem 12% de pessoas pardas e apenas 1,7% pessoas pretas na magistratura.
Disponível em: https://www.cnj.jus.br/consciencia-negra-presidente-do-cnj-afirma-que-
judiciario-tera-tolerancia-zero-com-o-racismo/. Acesso em: 27 jan. 2024.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Mulheres Atlânticas - a agência de mulheres negras no Judiciário Brasileiro: resenha do livro 841
“Cadê a Juíza?”, de Raíza Feitosa Gomes
6 A própria jurista identifica nos relatos esses instrumentos interpelativos e resolutivos, muitas
vezes protagonizado pela agência negra contemporâneos ou não ao seu estudo: i) o Encontro
Nacional de Juízas e Juízes Negras e Negros (Enajun); ii) o Fórum Nacional de Juízas e Juízes
contra o Racismo e todas as formas de Discriminação (Fonajurd).
7 O pacto incluiu: i) o Recadastramento de Dados Étnico-Raciais, realizado no primeiro semestre
de 2023 e que produziu o Diagnóstico Étnico-Racial do Poder Judiciário (CNJ, 2023); ii) o Fórum
Nacional do Poder Judiciário para a Equidade Racial (Fonaer), instalado pela Resolução nº
490/2023; iii) o Cadernos de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: Concretizando Direitos
Humanos – Direito à Igualdade Racial; iv) a Jornada Justiça e Equidade Racial. Antes existiram
medidas importantes na esfera institucional como: i) a Resolução CNJ nº 175/2013, que impede
os cartórios de negar o registro de casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo; ii) a Resolução
nº 203/2015 do CNJ, institui o sistema de cotas raciais, em cumprimento ao Estatuto da Igualde
Racial (Lei n. 12.288/2010), os indígenas e comunidades tradicionais; iii) o Provimento nº 73/2018
da Corregedoria Nacional da Justiça, que tornou menos burocráticas as regras para a mudança
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
842 Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Mulheres Atlânticas - a agência de mulheres negras no Judiciário Brasileiro: resenha do livro 843
“Cadê a Juíza?”, de Raíza Feitosa Gomes
elaboradas para sobreviver quanto dos recursos para despertar das amarras do
racismo e sexismo. Para construir essa reflexão, Raíza (2020) manuseia o
instrumental teórico e político do “pensamento feminista negro”, com
interlocuções com Patrícia Hilll Collins (2019), Lélia Gonzalez (2018), bell hooks
(1995), Sueli Carneiro (2005), Neusa Souza (1983) e outras tantas intelectuais-
ativistas negras.
Há outros sentidos que podem ser explorados a partir da obra, mas, os dois aqui
ressaltados (epistêmico e metodológicos) remetendo a trajetória das mulheres
negras da diáspora africana, foram escolhidos para destacar a produção de redes
políticas na resistência ao racismo e sexismo, como poderes estruturantes das
instituições da justiça.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
844 Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes
Referências
BERTÚLIO, Dora Lúcia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdução crítica
ao racismo. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. Trad. Rane Souza. 1. ed.
São Paulo: Boimtempo, 2021.
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Mulheres Atlânticas - a agência de mulheres negras no Judiciário Brasileiro: resenha do livro 845
“Cadê a Juíza?”, de Raíza Feitosa Gomes
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Direitos humanos e Améfrica Ladina: por uma
crítica amefricana ao colonialismo jurídico. In: Dossier: El pensamento de Lélia
Gonzalez, un legado y un horizonte. Lasa Forum, v. 50, n. 3, p. 69-74, 2019.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
846 Inara Flora Cipriano Firmino - Rodrigo Portela Gomes
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.50337
caderno de retorno
Submetido em 31/07/2023
Aceito em 14/01/2024
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684
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848 Daniel Vitor de Castro
A Encruzilhada
do Marxismo
com a Tradição
Radical Negra:
resenha da
edição brasileira
de “Marxismo
Negro”, de
Cedric Robinson
ROBINSON, Cedric J. Marxismo Negro: A criação da Tradição Racial Negra.
Tradução de Fernanda Silva e Sousa, Caio Neto dos Santos, Margarida
Goldsztajn. São Paulo: Perspectiva, 2023.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
A Encruzilhada do Marxismo com a Tradição Radical Negra: Resenha da edição brasileira de 849
“Marxismo Negro”, de Cedric Robinson
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
850 Daniel Vitor de Castro
Marx - bem sistematizadas por Kevin B. Anderson (2019) em “Marx nas Margens”
- sobre a questão irlandesa e a perspectiva de que a “alavanca revolucionária”
estaria na colônia e não na metrópole, sobre como a possibilidade real da
“revolução escrava” na Guerra Civil dos EUA era o que havia de mais sofisticado
e radical na luta de classes de sua época (ponto de vista da obra marxiana inclusive
fortemente difundido nos EUA por Raya Duyanaveskaia, principal companheira
intelectual e política de C.L.R James, radical negro central na obra de Robinson,
tanto que fundaram juntos uma tendência trotskista que carregou os nomes que
ambos usavam para assinar textos políticos: Jonhson-Forest. Em “Marxism and
Freedom” (1958), ela coloca os textos políticos de Marx sobre Guerra Civil nos EUA
ao lado de seus textos sobre a Comuna de Paris como os principais contributos
sobre a centralidade da “luta de classes” na obra marxiana), e, ainda, sobre a
Revolta dos Sipaios na Índia.
Defendo aqui que o grande contributo da obra de Cedric Robinson está na sua
extensa arqueologia das lutas negras em diáspora (com boa visibilização das lutas
de escravizados e escravizadas brasileiros, já mais atento do que boa parte do que
chamamos de “intérpretes do brasil” e clássicos do pensamento social brasileiro”)
e na criativa tese de como a intelectualidade negra encontra no marxismo um
método rigoroso para compreensão da realidade de exploração no capitalismo
mundial e sensibilidade política para com a “tradição dos oprimidos”. Entretanto,
reforça, acertadamente, que a história do marxismo não estava imune ao racismo,
nacionalismo e eurocentrismo, o que levou diversos de seus setores a erros trágicos
de interpretação e intervenção política. Nas palavras de Robinson:
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
A Encruzilhada do Marxismo com a Tradição Radical Negra: Resenha da edição brasileira de 851
“Marxismo Negro”, de Cedric Robinson
Esta síntese entre radicalismo negro e marxismo elevava ambos a um outro nível,
ao da encruzilhada com a tradição radical negra: “o desenvolvimento contínuo de
uma consciência coletiva impregnada das lutas históricas por libertação e
motivada pelo senso compartilhado da obrigação de preservar o ser coletivo, a
totalidade ontológica” (Robinson, 2023, p. 328). A percepção de particularidades
tanto de organização do capitalismo em realidades estruturadas pelo racismo e
colonialismo, quanto de formação cultural dos explorados que herdaram
epistemologias e rebeldias próprias de sua origem africana e diaspórica.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
852 Daniel Vitor de Castro
Haiti. Mas seu foco estava sempre nas estruturas da mente. Sua epistemologia
outorgava supremacia à metafísica, não ao materialismo” (Robinson, 2023, p. 326).
Robinson propõe uma categoria de análise que resiste à simples negação de uma
perspectiva pela outra e percebe um caminho de suprassunção que se atenta às
particularidades das formas de resistências negras ao colonialismo, escravidão e
racismo e de como elas rementem a tradições africanas, onde passado, presente e
futuro se articulam combinadamente. Parafraseando Robin Kelley, no Prólogo,
vemos que Robinson não se interessava em saber se essas formas coletivas de luta
e consciência eram ‘essencialistas’, mas sim em compreender de onde vieram e
porque ainda se mantem vivas nas lutas negras, já que são práticas que de fato
existem.
Acredito ser possível ler a assim chamada “tradição radical negra”, enfim, como
unidade dialética entre memória africana e movimento diaspórico. Vejamos a
conclusão do autor:
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
A Encruzilhada do Marxismo com a Tradição Radical Negra: Resenha da edição brasileira de 853
“Marxismo Negro”, de Cedric Robinson
Apesar de essa não ser a forma como eu pensava o meu trabalho na época,
certamente que hoje não hesitaria em relacionar essa pesquisa com o
esforço de tornar a Tradição Radical Negra, portanto feminista, mais
visível. A nova formação de um campo científico – estudos prisionais
críticos e sua estrutura explicitamente abolicionista – situa-se dentro da
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
854 Daniel Vitor de Castro
Referências
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
A Encruzilhada do Marxismo com a Tradição Radical Negra: Resenha da edição brasileira de 855
“Marxismo Negro”, de Cedric Robinson
KELLEY, Robin. Freedom Dreams: the black radical imagination. Boston: Beacon
Press, 2002.
KELLEY, Robin. What did Cedric Robinson mean by Racial Capitalism? Boston
Review, January 12, 2017. Disponível em:
https://www.bostonreview.net/articles/robin-d-g-kelley-introduction-race-
capitalism-justice/. Acesso em 16 de março de 2022.
LÖWY, Michael. Por um Marxismo Crítico. Tradução de José Correa Leite. São
Paulo: Revista Lutas Sociais, n. 03, 1997.
MARTUSCELLI, Danilo Enrico; SILVA, Jair Batista (orgs.). Racismo, etnia e lutas de
classes no debate marxista. Chapecó: Coleção marxismo21, 2021.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Escritos sobre a Guerra Civil Americana: artigos
do New-York Daily Tribune, Die Presse e outros (1861-1865). Organização, notas
e tradução de Felipe Vale da Silva e Muniz G. Ferreira. Londrina, São Paulo:
Aetia Editorial, Peleja, 2020.
NIMTZ, August. Marxismo e a luta negra: o debate “classe vs. raça” revisitado.
Tradução de Mario Soares Neto. Direito & Práxis, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p.
2051–2078, 2021.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
856 Daniel Vitor de Castro
ROBINSON, Cedric J. Black Marxism: the making of the black radical tradition.
EUA: University of North Carolina Press, 2000.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
A Encruzilhada do Marxismo com a Tradição Radical Negra: Resenha da edição brasileira de 857
“Marxismo Negro”, de Cedric Robinson
Sobre o autor
Daniel Vitor de Castro
Doutorando em Direito pela UFMG e mestre em Direito pela UnB.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Práxis de Libertação
Trata-se de seção dedicada a visibilizar textos e documentos
produzidos por organizações populares ou movimentos sociais,
veiculando produções intelectuais próprias que não podem ser
ofuscadas pelo saber formal. Estão publicados nesta seção
documentos selecionados pela comissão organizadora do dossiê
“Direitos e relações raciais”. A seção de textos e documentos dos
movimentos sociais da revista do IPDMS é uma homenagem ao
filósofo argentino-mexicano Enrique Dussel, um dentre tantos
intelectuais e militantes comprometidos com uma práxis de
libertação dos povos.
861 Práxis de Libertação – Dossiê “Direitos e relações raciais”
Práxis de Libertação
Dossiê “Direitos e relações raciais”
Rodrigo Portela Gomes, Inara Flora Cipriano
Firmino, Emilia Joana Viana de Oliveira e Ciro de
Souza
Referência: HECK, Dionísio Egon; SILVA, Renato Santana da; FEITOSA, Saulo Ferreira
(orgs.). Povos indígenas: aqueles que devem viver – Manifesto contra os decretos de
extermínio. Brasília: Cimi – Conselho Indigenista Missionário, 2012, p. 101-102.
Foto: Raoni Metuktire e indígenas que ocuparam o auditório do PMDB durante a
Constituinte (Beto Ricardo/ISA).
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 9 | n. 1 | jan./jun. 2023 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Rodrigo Portela Gomes - Inara Flora Cipriano Firmino - Emilia Joana Viana de Oliveira - Ciro de Souza 862
6) Memorial de amicus curiae apresentado pelo Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Sistema
Interamericano de Direitos Humanos (GEP-SIDH – PUC/RJ) à Corte Interamericana de
Direitos Humanos no caso Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira v. Brasil
(n. 12.571). O documento é datado de julho de 2023 e foi submetido à InSURgência
por integrantes do GEP-SIDH que contribuíram na elaboração da peça: Andrea
Schettini, professora do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Malu Stanchi, Rudá Ferreira Pinto de Oliveira, Thaís
Detoni Rocha, Vitória Westin Barros, Fernando López Rangel, Nina Barrouin,
Manuela Machado Novaes, Melissa Brandão Ferreira Kreil, Victoria Kurkdjian
Teixeira, Maria Clara Pinho Valente, João Teixeira Duque, Manuel Netto, Ana
Carolina Gonçalves Soares, Cristina Figueira Shah, Jose da Silva Raimundo,
Amanda Nascimento Gonçalves, Letícia da Silveira Lobo, Dayanna Gomes de
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
863 Práxis de Libertação – Dossiê “Direitos e relações raciais”
Moura, Carolina Sibilio Villas Bôas e Sophia Costa Tabatchnik. O Grupo de Estudo
e Pesquisa sobre Sistema Interamericano de Direitos Humanos (GEP-SIDH) é
vinculado ao Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direito da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 9 | n. 1 | jan./jun. 2023 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Rodrigo Portela Gomes - Inara Flora Cipriano Firmino - Emilia Joana Viana de Oliveira - Ciro de Souza 864
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
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- Que o§ lQ do Artigo 153 da ~ons titui çio Federal , passe a ter cm sua
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.e.lw, CJcedo 1tC!1i9..l01.>o e eo11v.i.cçÕM po~cM, sv,ã pw.i.do pela Lu o
plleconc(!.ÜO de /laça , como c/l,Úne. .i.na6-úutç.á.ve.l, com pe.na de. .11.e.chu,ão e.
pa.11.a o ILe.6VÚdo p.11.0cu.10 ado.ta- <1e o ~ o ./iwi11VÚ.6<1,imo . 11;
2 - Que seja mantida a redação dada ao§ 119 , do Artigo 153 da Consti tui
ção Federal , vuú..l./i;
1
"Na.o havuã. p e.11a de. 11101t..te, de plÚl>â.o pv,pe.-tua , de ba1w11e.11.to . Quan.to
ã. pe.na ele. 1110,t..te., 6..lca ILU.!>a.(vada a le.9..lólação p~.11a.e apticéivee em e~
60 de. 9uwrn e.x..tvu,a . A .f.u clú.pOJr.á ./i·ob1tc. o pvuumen..t o de. ben.6 po1t
dano6 ca.,u,ado-1> ao v,âluo ou 110 cMo de. e.1vt.i.rcllcc..lme11..<:o .LCZc..i..to 110 P.
XC!/LcÃ.c..fo ele 6unç.ã.o pÚbl,i,ca. 11 ;
4 - Que seja efeti vada a c ria ção de um T1úbw1a.l E./ipe.c..i.a.l pa.11.a ju.f.9ru11e.1úo
clo6 clt,ÚnvA d e. cü..6C1t.{J11..l11açéio 1,ac..i.a.t;
-
11
Q.ue a. üc.enc;a.-ma;tehrú.dade pMH de ,tnv., mMM palta. ,1,e.u., meóu . 11 ;
11
2 - Ca.be1tã. a.o E-0-Cado a leg.v..la.c;ã.o 1te6ehen.te a.o 60/t-Ca.leumento do pltO!JIL~
ma. de JJ/1.evenc;ão de doenç.M . F.i.c.ru1do pOJtê,11 , lll.>6egl(Jtada. ã Leg-ú.la.ç.ão
E-0-Ca.dua.l, u-ta.bele.c.Vt upeúM,c,i.da.du , 6 egundo o qua.cvw 1teg,<.ona.l . 11;
11
3 - E-1>-Ca.-Cüa.ç.ão, i oc,í.a.lüa.ç.ão e wi.í.6,<.c.aç.ão do S.u..tema de Saúde., 6endo
lll.>H.gl(Jtado â6 c.omu,u".dadu popula.c,í.onw, a e6e.üva 6.v..ciliza.ção do
6unc,í.ona111en-Co dUl> e S.u.-Cema.. 11 ;
4 - 11
E elevv, do E-1>-Ca.do p1,u-ta1, lll.>l>,<.6-Cênua. a.o ,<.do-1>0 , ,<.11depe11den-te111e11-te
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7 - 11
SVLÕ.o dv.,üna.dol> ã Saúde, 20% do 01tçru11e.11.to da. U1i.i.ão . 11 ;
8 - 11
Se1tão na.uoniliza.da.1.> -Codcv., cv., 1ndÚh.tJúcv., e Labo1ta.-CÕ1úo<1 FC11u11ac.êu,t,<.
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11
E clevv, do Eó.ta.do a educ.aç.êio e 111rum.te11ç.ão eia. C/Úanç.a. caJcen.te, de
zvw a dezel.>óW anoó , obje.üva.ndo ,1,eu deõ envolv,<.Jnen.to pleno e -.1a.-
ru 6a.-tÕ1uo na. Mc.ú.da.de.. 11 ;
2 -
11
F,<.c.a JJIW,<.b,<.da. a 111ru1u-Cençiio de Ccv.,a. ele Ve-te.nc;ão ele Me.11011.e-.1 . O Me.11011.
In61ta..to1t .tvcii M<1«.tênúa. óoúal ex.t:e111.>,<.va ã <1ua 6ru11Wa.. 11 •
,,
- "0 /:JJtOc.M60 educ.aúo11al JtMpútcvúi .todo6 06 Mpec..to~ da c.u.Uwta bll~
6il.Wta. E obiuiJCU:ÔIÚo a .üic.lMão 1106 c.Wl/Úc.ul.06 uc.olMe-6 de I, II
e III !Jllau.6, do e.,v..ino da l/.u..,tô1úa da Á61Úca e. da /1.u..,tõiua do Ne.!JILO
110 BILMU. ";
3 '
- "A elabo1t.a.ção do6 cuNÜc.ul.06 McolMe-6 6e1tã , 11e.cM6a/Úru11e,t.te, <1ubme-
üda ã. ap1tovação de. ltC/)ltMe11,Crut.Ce6 da.1. c.0111u1údadv., loc(l.{.-6 . ";
GOU O N."
5.
4 - "Apoóen.ta.do1tút po!t .teinpo de l> e/LV.(.ÇO com óa.livúo .l,~te91ta.l, a.CILU údo
de 30% , a. ,Ü,tu,f.o de bon-<.6-<.ca.ção . ";
5 - " O E6,ta.clo a.ó6<!!JWta. a -todOl> 06 .tlta.ba.llta.dot,C/.l , ele qw:u'.quVt ca.-te901úa.
P'W6-<.óó.(.011a.l ou ILaJIIO de a.ü.v-<.da.de, -<.llciM-<.VC. ILWta.l :
- ó a.lâlt-<.o m2.rw110 1tea.l;
- CÜ/te-<..to -<.NtUtlú.to de 91teve;
- Ubvtda.de e a.u.t:0110111.la. l>úilica.l;
- ptto.lbú;ão de d.l6eJLenc;.a. de óalãlúoó e, de C/1.,ÜVÚM de adm-<.óóÕeó 110
10
'
- "Que óeja. VÚa.do o "Juüa.do de PequenM Ca.MM" na â.ttea. -tlta.ba.lli.w.ta..";
11 - "Ruponóa.bil..i.da.de do E,1,.ta.do pela. .{,1tden-<.za.ção ,Ü11ec:üa.-ta. ·d e a.c.úfen.tu
ou pttejtÜzo.i que o Tlta.boJ'.lta.do!t 601t v~ra.do 110 ex.elLÜci.o ptw6.{,,6l>.l~
11a.l, Móe9Wta.do a.o El>.ta.do o w,c.i..to de a.çã.o 1,eg1tUl>.(.Va. co11.tlta. o ei11
ptte9a.do1t ou con.tlla. o p!tÔp!t.(.o. einpttegado quando a.pWta.da a. ILUpo,u,a.bil.f:._
da.de..";
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OE i\TUL OS
R CO. oRl'SIL•A • o~ MIC"OFIL.ME
• ROUIV1'D1' COP\" E
F ICOU ~
r,QO O ti_-
6.
3 - " Que o OC!.111 .{J11Õve..f. .ú111J1Lodl.l,Ü,vo rião 1.>e.ja brnlt-6111.(.MZve..f. pon l1C11t<11·1ça. Que
o l:1.>.tado /J1Lo111ova a dc.v.{_da. dMa/:VW/J/Úa.ção . ";
X- 6ou1te RELAÇOE.S INTElmACIONAIS:
" Ro111p.{J11eJ1.to .{JIIC!.<Í..{.a..to de. /te.Caç.Õe.-6 cf..{.plomã.âc.M e/ou C.OIIIC!.Ji.C,.(.~ C.0111 .to
do1., e. qua,ú,quC?/L PaM>e.-6 que .te.nliam .{.116.t.U:uC.{.011alüado qu.alqu.C?/L ü.po
de fuc.J(..(111-<.11aç.ão e1Wte 6u.a população .".
Br,sili,,
• 'I
A - ENTIDADES PARTICIPANTES
•'
\
I - PARÁ
II - JWWIHÃO
IV - PEIUM.HI3UCO
VI - ALAGOAS
VII·- BAHIA
16 . AfOXÉ OJÚ-OBÁ
A/C Idoline Conceição - Rua da Alegria , n• 21 - ~iberdade
40000-SALVADOR (DA)
XIV - GOIÁS
XV T DISTRITO FEDEnAL
• À •
1nsurnoní'l:l
Ili bVIIVI\A
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
ISSN 2447-6684
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Da União das Nações Indígenas para o Brasil
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
União das Nações Indígenas
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
Da União das Nações Indígenas para o Brasil
a.3. Todas as leis sobre os povos Indígenas foram elaboradas sem a nossa
participação;
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
União das Nações Indígenas
***
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais | v. 10 | n. 1 | jan./jun. 2024 | Brasília | PPGDH/UnB | IPDMS
17 a 20 de Nove1nbro de 1995
Brasífia - DF
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INSTITUTO SOCIOMlB!ENTAL~
RELATÓRIO
1 º ENCONTRO NACIONAL DE
COMUNIDADES NEGRAS RURAIS
TEMA:
TERRA, PRODUÇÃO E CIDADANIA
PARA OS QUILOMBOLAS
17 A 20 DE NOVEMBRO DE 1995
BRASÍLIA - DF
Apresentação
O !2 Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais Qullom-
bolas, realizado no período de 17 a 20 de novembro de 1995, em Brasília-DF,
foi um momento muito importante para o conhecimento dos problemas e
experiências de luta das comunidades negras rurais ou das chamadas ter-
ras de preto, no momento em que se comemorava os 300 anos de ZUMBI
DOS PALMARES, o grande héroi da história dos quilombos do passado e a
grande referência para a luta dos quilombos do presente.
Objetivo
Durant e muitos anos, a história de ZUMBI EDO QUILOMBO DE PAL-
MARES não mereceu nem citação nos livros da história ofic ial. Mas a luta
pela liberdade, a resistência de um povo subjugado não se apaga facil-
mente. A história de ZUMBI E DE PALMARES continuou viva ao longo desses
três séculos e se hoje ganha não só as póginas, mas as comemorações
oficiais, é graças à obstinação e a perseNerança dos que, como ZUMBI,
nunca se renderam.
1 Encontro .N ocional de
Comunidades Negras Rurais
1 7 a 20 de novembro de 1995
Brasília-DF
Abertura
O acesso à terra neste país foi dificulta- Contamos com a participação da Ora.
Vera - INCRA, Dr. Aurélio - Procuradoria da
do para impedir nossa cidadania. Então
quando vejo diversas comunidades discutin- República, Valdêlio Santos Silva - Movimento
do sua cidadania, a terra, a produção, per- Negro Unificado, Ivan Costa - SMDDH s CCN/
cebo que Zumbi deve estar orgulhoso de seus MA- Lúcia Andrade-Comissão Pró-Índio/SP
filhos. Que suo figura continue nos incentivan-
do.
Expositor:
Valdina Oliveira Pinto (Ter- Dra. Vera/Incra/Nacional
reiro Tanuir Juncara/BA)
No dia 24 de novembro de 1995, o IN-
Nós, negros preservamos o vida. Nós CRA estará titulando a comunidade de Boa
negros usamos a terra com a intenção de Vista no Pará, b eneficiando l 12 famílias. Isto
vida. Nós negros tiramos da terra a vida, a representa o resultado da luta de todos vo-
energia, a resistência. cês. O INCRA queria fazer a titulação lndlvi-
7
vindicaram que queriam o título coletivo, 7. Quem dentro do estado reconhece es-
para o seu melhor desempenho. sas comunidades negras o Governo Fe-
Sobre o problema de Rio das Rãs, esta- deral ou o Governo Estadual?
mos tentando fazer a desapropriação do gri-
leiro que está na área e entregá-la a comu-
nidade, mas isso está um pouco difícil mais
chegaremos lá.
Expositor
Dr. Aurélio-Procuradoria
Geral da República
Brasília/DF
Henrique - Jamary/MA
Nós temos área que está em julgamen-
to. A terra lá é dos netos de Jamary, é só da
geração de pretos.
Ouvimos as dificuldades colocadas
mas, queremos uma resposta. Não queremos
enfrentar mais pressão, espancamento de ne-
gros até a morte.
9
José Ribamar Ferreira tal quem tem são eles e ficam nos colocan-
Morais - Pitorá dos Pretos/MA do. Sabe da nossa situação, da nossas rein-
vindicação de aposentadoria, títulos definiti-
Que a gente quer é a desapropriação, vos, técnicos para desenvolver atividades
que nos tomos com cinco anos de luta. agrícolas precisamos, financiamento para o
Já perdemos companheiros e esta não é a pequeno e médio produtor, enfim queremos
primeira vez que a gente faz esta cobrança. o nosso direito como cidadão.
de e uma Escola de 59 a
apicultura onde produzimos o mel. posto te-
82 Série. lefônico conseguimos também um trator, uma
escola.
1~
• que o Governo Federal crie programas de
. ,:!; /~ produção, através de cursos de curta
• ·'.~ /ii . { ' duração ministrados pela EMBRAPA, DA-
r ~~
:4t.
;
TRER, Faculdade de Agronomia das uni-
~~ versidades federais.
É um poder que vamos ter que cons- As comunidades afirmam que são qui-
truir. Por que é nós que vamos alterar a nossa lombos conteporâneos porque estão se or-
realidade. ganizando em quilombos para defesa de suas
E o movimento negro tem participa- terras.
ção nesse surgimento da consciência negra Temos que definir quilombo de uma for-
pois realizou uma profunda transformação ma que interessa a nós, não podemos redu-
cultural alterando as formas de viver do coti- zir quilombo a uma nomenclatura acadêmi-
d iano do negro.Essa revolução não alterou ca.
nossa realidade material. Os nossos projetos, as ações unificadas
Quero descartar qualquer tipo de ava- elas não alteram apenas as relações, alteram
liação da realidade brasileira que não tenha a vida dos negros.
como prioridade as relações raciais. O Brasil pode ser diferente a partir de
Temos Palmares como a 12 manifesta- nós, eu acho que essa é a mensagem desse
ção de oposição e da afirmação da nossa 1Encontro e com certeza outros irão aconte-
dignidade enquanto povo negro e da nossa cer a partir do contato com outras comuni-
liberdade. dades.
18
RELAÇÃO DAS COMUNIDADES NEGRAS RURAIS QUILOMBOLAS
E ENTIDADES QUE PARTICIPARAM DO l g ENCONTRO NACIONAL DE
COMUNIDADES NEGRAS RURAIS.
BAHIA
Rio das Rõs/Bom Jesus da Lapa Só assim/Alcântara
Barra do Brumado/Rio das contas Santo Antônio/Penalva
Bananal/Rio das Contas Pitoró dos Pretos/Codó
Fazenda Pilar/Sôo Felix Tingidor/ltapecuru-Mirim
Lages dos Negros/Formoso Santa Joana/ltapecuru-Mirim
Parateca/Malhadas Santa Maria dos Pinheiros/ltapecuru-Mirim
Movimento Negro Unificado da Bahia Guaraciaba/Bacabal
NIGER-OKAN/Organizaçõo Negro da Bahia Saco das Almas/Brejo
Sindi. dos Trab. Rurais de Bom Jesus do Lapa Santa Cruz/Buríti de Inácio Vaz
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Fellx Cond. Est. dos Quilombos Maranhenses
Centro de Cultura Negra do Maranhão
DISTRITO FEDERAL: Soe. Maranhense de Defesa dos Direitos
Movimento Negro Unificado Humanos/Projeto Vida de Negro
Instituto Sócio-Ambíental Sind. dos Trab. Rurais de ltapecuru-Mirim
Coletiva de Mulheres Negras Slnd. dos Trabalhadores Rurais de Turiaçu
Comissão Pastoral da Terra - Nacional Sind.dos Trabalhadores Rurais de Mirinzal
Slnd.dos Trabalhadores Rurais de Brejo
GOIÁS:
Kalunga/Covalcante PERNAMBUCO:
Kalunga/Monte Alegre Conceição das Crioulas/Salgueiro
Kalunga/Terezina de Goiás Centro Luiz Freire/Recife
Movimento Negro Unificado
RIO DE JANEIRO:
MATO GROSSO DO SUL: Campinho da lndependência/Paraty
Furnas do Dionísio Movimento Negro Unificado
Furnas da Boa Sorte/Coquinho Centro de Articulação das Populações
São Benedito/Campo Grande Marginalizadas - CEAP
Grupo de Trabalho e Estudos Zumbi - TEZ
Conselho do Comunidade Negra OUTROS CONVIDADOS:
Grupo Hip-Hop Instituto de Colonização e Reforma
Agrária - INCRA-DF
MINAS GERAIS: Procuradoria Geral da Repúblico - DF
Movimento Negro Unificado Deputado Estadual Ben Hur - MS
Vereadora da Comunidade de Kalungo
MARANHÃO: (Sra. Ester) - GO
Frecha/Mirinzal Valdina Oliveira - Terreiro Tanuir Juncara-BA
Jamary/Turiaçu Comissão Pró-Índio de São Paulo
Entre Rios/Cururupu
PROMOTORES DO ENCONTRO: CCN-MA. MNU, TEZ-MS. Rio das Rãs-BA, Furna da Boa Sorte-MS, Furna do
Dionísio-MS. Kalunga-GÇ) e Frechai/MA
ANEXOS:
TERRA, PRODUÇÃO E
CIDADANIA PARA OS
QUILOMBO LAS
COMISSÃO ORGANIZADORA
Ctntso de Cultura Negra do Maranhão, Mo1 imcn!1l
Ne~o Unili~, ,0Q!Pf'N1MA. Grui,J Cu!lur.l
Coisa de Nêgoi"Pl, Comunidaéts de: Acchal'NIA.
Rio das RiifBA, Ori:<iminá/FA. Furnas do
Dionizio/MS, Fumas de Boa Sorte/MS, Mlnibó/PL
APN's, Comissão Pastoral d:I Terra eCampinho d.1
In~ciai1U.
1,. l'
- 1
i."
.1° Encontro
Nacional de
Comunidades Negros Rurais
APOlO:
CESE 17a 19 de Novembro de 1995
Mlsercor
Endcro;o: Gomno do Distrito Federal
Setor Comercial Sul, Ed. Goiás. Sala 415 •CEP Secretaria do Governo Brasília/DF
70347-900 · Brasilia-DF • Caixa Pos!al m2 Universidade de Brasllia
· CEP 709 l9-970 • Fone: (061 )32l•7326 • Senadora Benedita da Silva •PT/RJ
Secretaria Nadon.il Dcp1laOO Domingos Dutra •PTIMA
cefer
Programação 12:00 hs -Almoço
14:30 hs •Animacào
Dia 17/U •Faculdade de Tcrnolo~a- Campu~ Uni\'~itário • 14:4S hs ·EJperiêndu de Exploração nu Terras das
Terra, Produção eCidadania Para UNB •Auditório Comunidades (Trabalhos em Grupo)
G111po 1-Produção AgriCQla
os Quilombolas 09:00 hs-Café da Manha• E~tádio Mané Garrincha
12:00 hs -Almoço
Grupo 2•Comercialização Agricola
Grupo 3•Linhas deCrédilo Rural
14:30 hs -Abertura • Coordenaç~o Nacional • Cenlro de Gnipo 4-Assistência Técnica (atral'és de órgãos
No Período de 17 a20 de novembro/95, Cultura Negra do Maranhãc, Movimento Negro Unificado, governamentais, instituições emol'imentos sociais)
Grupo Tei'JMS, Coisa de Nego/PI, Comunidades de: Flcd1~1/ Grupo 5-Preservação do Meio Ambiente
MA, Rio das Ras/BA, Orixlminâ/PA, Furnas do Dionizio/MS e 17:30 hs •lnlervalo
•será realizada em Brasilia-DF, ol Enconlro Fumas de Boa Sonc/MS, Kalunga/GO eMimbó/PI. 18:00 hs •Jantar
Nacional das Comunidades Negras Rurais • Aprcsenta~o das Delegações 19:00 hs ,Animação
16:30 hs -Lanche 19:15 hs -Plenária
(Quilombos) , que terá como lema central, 17:00 hs •Debate sobre legalizaç~o das terras de Quilombos
300 anos de Zumbi: Terra, Produção e a
11
i Dia 19/11 • Faculdade de Saúde • Campus Unh·~itirio •
11 Con\'idados UNB •Auditório
Cidadania para os quilombolas •
•INCRA NACIONAL· Sr. Francisco Grmiano
•Associação Brasileira de.Antropologia 07:00 hs as 08:00 hs • Cafc da Manhã
•Coordenação E~adual dos Quilombos Maranhense 08:30 hs •Animação
Neste ano que se comemora a nível •Procuradoria Geral da Republica 08:45 hs-Debate sobrt e~periência nu Comunidades
nacional a celebração dos 300 anos da (Trabalho cm Grupo)
. Debatcdores Grupo 1•Cultura Neg~
imortalidade de Zumbi, Líder maior do , Comunidade de Oriximina/PA Grupo 2•O Negro eRclíg1ao
Quilombo dos Palmares eogrande herói da •Mol'imcnto Negro Unificado •¼ldélio Santos da Sil\'3 Grupo 3•Saúde
•Sociedade Maranhcnse de Direitos Humamos •Projeto Vida Grupo 4-Educação
história Afro-brasileira, a exislência e os de Negro ' Grupo 5-Criança'Adolescenle
direitos de centenas de comunidades negras •Comissão Pro-lndiolSP Grupo 6•Mulher Negra
Plenária •~O minutos . 11:30 hs •lnlCl'l'alo
descendentes dos quilombos, lodizadas nas Coordenação· Grupo Tez 12:00 hs •Almoço
mais diversas regiões do pais. continuam 20:00 hs •Jantar U:00 hs •Animação
14:15 hs-Pleniria
sendo negados.Apesar de ter ga:t::iido oseu Dia 18111 •Faculdade de Saúde: Campus Unin'sltãrio • 16:30 bs ,Lanche
reconhecimento na Constituiçf :' Federal, UNB •Auditório 16:45 hs •Debate sobrt Con,ciêncla Ne;·r:.
alravés do Arl. 68 das Di•:~osições 07:00 hs as 08:00 hs •Café da Manhã Comidados
Transilórias até hoje nenhuma ,. ·:umidade 08:JO hs •Anim~ção •Morimento Negro Unificado• Edson e~:.
08:45 hs-Debatc sobre Resistência n2s Terras das •Comunidade de Mimlxi.lPI
negra rural quilombola receb1: 1.! o ti!ulo Comunidade$ Negras Rurais •Comunidade deFumas doOionizlo1MS
definitivo de propriedade de suas !~rras, onde Experiência relatadas das Comunidades de: Pclnário •45 minutos
•flcchal/MA Coordenação:Centro de Cultura Negra do~!aranhão
vivem a séculos. Ao realizarmos esle I •Rlo das Rãs/BA 19:00 hs •Janiar
Encontro estamos dando mais um passo no •Oriximina/PA 20:00 hs -Plenária com leitura das propostas aprendas e
•KalungalGO Documento aser entregue ao Presidente Femando Henrique
sentido de nossa organização edeexiginnos •Sindicato dos Trabalhad,ores Rurais de Bom Jesus da Lapa Cardoso
10:00 hs -Debate 20:30 hs, Encerramento
que, de fato, ~e cumpra alei. •Coordenação;Grupo Cullural Coisa de N~ 22:00 h~ -Festa dasComunidades
&I
Encontro Nacion·a1 de
Comunidades Negras Rurais
Informativo da Coordcnaçfü> Org:u1iz;11lora N" 01/9.~
E,ano. Sr.
Fernando Henrique Cardoso
MD ·Presidente: da República
Com este documento, ora encaminhado a V.EX", queremos ser ouvidos. Nunca
fomos em toda a história do Brasil. Somos negros e vivemos em comunidades rurais.
Descendemos de africanos que escravizados lutaram, fugiram das fazendas, buscaram todas
as formas para viver em liberdade e em plena hannonia com a terra e a natureza. Nunca
aceitamos que o escravismo retirasse nossa dignidade de ser humano.
A terra que temos hoje foi conquistada por nossos antepassados com muito sacrificio
e luta. E passados 107 anos do fim oficial da escravidão, estas terras continuam sem o
reconhecimento legal do Estado. Estamos: assim, expostos à sanha criminosa da grilagem dos
brancos, que são, na atualidade, os novos senhores de t.ão triste memória. No papel somos
cidadãos. De fato, a escravidão para nós não tenninou. E nenhum governante da Colônia, do
Império e da República reconheceu nossos direitos.
O direito à terra legalizada é o primeiro passo. Queremos mais. Somos cidadãos e
cidadãs e como ta.is temos direito a tudo que os demais grupos já usufruem na sociedade.
Sabemos que a cidadania só será wn fato quando nós, nossos filhos e netos tiverem terra
legalizada e paz para trabalhar; condições para produzir na terra; um sistema de educação
que acabe com o analfabetismo e respeite nossa cultura negra; assistência à saúde e
prevenção às doenças e wn meio ambiente preservado da ganância doa fazendeiros e grileiros
que destroem nossas florestas e rios. Não temos esses direitos assegurados, portanto, não
somos reconhecidos como cidadãos!
O I ENCONTRO NACIONAL DE COMUNIDADES NEGRAS RURAIS, o único
acontecimento do gênero realiz.ado na história do Brasil, não poderia, neste momento que
celebramos os 300 anos da imortalidade de Zumbi de Palmares, deixar de apresentar ao
Presidente da República nossas dificuldades para existir enquanto povo e as soluções que
competem ao atual governo dar como resposta.
Senhor Presidente o que reivindicamos é muito pouco diante da contribuição que
damos para a construção do Brasil.
A seguir, apresentamos nossas principais reivindicações.
3. MEIO AMBIENTE
Reivindicamos a ação energica do IBAMA contra fazendeiros, mineradoras,
garimpeiros e madeireiras que destroem o meio ambientes das comunidades negras.
~
A Comunidade Kalunga reivindica que o governo cancele a instalação das
Hidroelétricas de Foz de Bezerra e Boa Vista, que, se construídas inundarão suas terras.
4. SAÚDE
Reivindicamos que:
- a Fundação Nacional de Saúde .implemente um programa junto às comunidades visando a
erradicação de doenças como sarampo, tétano, febre amarela e outras mais.
- o Governo Federal fiscalize o repasse das verbas de saúde/SUS que tem se mostrado falho.
com o sistemático atraso no repasse do pagamento dos agentes de saúde.
5. EDUCAÇÃO
Reivindicamos que o governo federal implemente um programa de educação 1º e 2
graus especiahnente adaptado à realidade das comunidades negras rurais, com elaboração de
material didático e a formação e aperfeiçoamento de professores.
Extensão do programa que garante o salário base nacional de educação para os
professores leigos das comunidades negras.
Implementação de cursos de alfabetização para adultos nas comunidades negras.
6. MULHER NEGRA
Devido as denúncias de que as mulheres negras que trabalham como diaristas nas
fazendas recebem salários inferiores ao dos homens, solicita-se que o Ministério do Trabalho
apure a situação e tome as devidas providências.
Q. ~
Comunidade Kalunga (GO) ~
Comwúdade Conceição das Crioulas (PE) •<j ...-il~ ~ cl.t>-
'f~~ /4 fa)/4,<,T>
Comwúdade Parateca (BA) i ~
/) li ,. <·' a , l ( , ~
( ( /i ti ,.J( , , ~ ~ (V\, 9 { u11~~
Comwúdade Pau D'arco (BA) -l_j (j_j--(.)Y,Y/V
ComonidadeBananal(BA)~c, ~
~o{-~
Comunidade Entre Rios (MA) · ol)/J»u 'o... ~~~<:~ ·
. e - _ , ,,,!,.., IDo t N ~
Comunidade Santa Cruz (MA) WJ--(VV(_,,V'-V'-U'- \2/"--
-
c,JJCJ!,~O
Comunidade Santa Joana (M.A) ,:i)
Comunidade São Benedito (MS) (~~ ~
Secretaria Executiva
Telefax: 061-3237326
DEt:ttETO DE "?,o DE N vVE:f\'\~Ro DE 199s.
VIII - contribuir para a mobilização de novos recursos para programas e ações na criação
de mecanismos cíir icnr<'s t: p<·• 111:11,entcs na defesa contra o racismo e em áreas de interesse da
População Negra . .1 1n , i:~ .•:ur,1.:ri r prioridade para otimizar sua aplicação;
IX - estimular e apoiar iniciativas públicas e privadas que valorizem a presença do negro
nos meios de comunicação;
a) da Justiça;
b) da Cultura:
e) da Educação e do Desporto;
d) Extraordinário dos Esportes;
e) do Planejamento e Orçamento;
f) das Relações Exteriores;
g) da Saúde:
h) do Trabalho;
Art. 4(> O Grupo de Trabalho poderá convidar outros reprc.c;entantes cuja colaboração
seja necessária ào cumprimento de suas atribuições.
Art. 5(> As despesas dccom~ntes do disposto neste Decreto correrão à conta das dotações
orçamentárias dos órgãos da /\dministraç.1o Pública Federal que integram o Gmpo de Trabalho.
O-GTI(4)
,.,
COORDENAÇAO ORGANIZADORA NACIONAL
Comunidades Negras rurais: FrechaJ/MA, Rio das Rãs/BA
Kalunga/GO, Furnas do Dionísio/MS, Furnas da Boa Sorte/MS
Mimbó/PI, CCN/MA, MNU, APN's, TEZ/MS, Coisa de Nêgo/PI, CPT
,_140 UERJ 01re1tos
C:
da nFacul
. .
D eit, Fund, en .. ,s
ª dea de de Direito da UER
rf•
,
*
PARTIDO DOS TRABAUIADORES
Dir~toriO Nacional
A
~
~PCdoB PDT
1 Davi Kopenawa; Bruce Albert. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São
Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 310.
2
–I–
Introdução
2. Diante desse quadro aterrador, os povos indígenas do Brasil não poderiam ficar inertes.
Protagonistas da sua própria história, eles vêm, através da entidade nacional que os representa – a
APIB –, e coadjuvados pelos partidos Arguentes, defender perante esta Suprema Corte o mais
básico dos seus direitos constitucionais: o direito de existir.
3. O Brasil possui atualmente pelo menos 305 povos indígenas, que se utilizam de 274
línguas diferentes. Segundo o último censo demográfico, realizado em 2010, 896 mil pessoas se
declararam ou se consideraram indígenas neste país. Isso demonstra a diversidade étnica e cultural
da República Federativa do Brasil, que é uma das nossas maiores riquezas. São diferentes
cosmovisões, culturas, modos de fazer e viver, relações com a natureza – em geral, muito
superiores às da sociedade ocidental. Essa riqueza insuperável, patrimônio das presentes e futuras
gerações, encontra-se hoje gravemente ameaçada.
2 Cf. Eduardo Galeano. Las venas abiertas de América Latina. 23ª ed. 5ª reimp. Buenos Aires: Catálogos, 2007, p. 35.
Veja-se também: Tzvetan Todorov. A conquista da América: a questão do outro. Trad. Beatriz Perrone Moi. 2ª ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1993.
3
aliadas à baixa imunidade dos povos indígenas a doenças como varíola, sarampo, tuberculose e
gripe, custaram a vida de milhões de indígenas, com a dizimação de inúmeros grupos.3
5. Essa dinâmica de morte teve continuidade ao longo da história nacional. No século XX,
os contatos interétnicos acarretaram mais epidemias e óbitos em massa, com impactos quase tão
graves como os do início da colonização.4 Ao estudar os efeitos da “gripe espanhola” de 1918
sobre os povos indígenas, Darcy Ribeiro descreve como a marcha da epidemia atingiu, muitos
anos depois de sua eclosão, populações inteiras, mesmo nos lugares mais distantes: “Muito mais
letais foram as formas graves de gripe, como aquela que, com o nome de “espanhola”, grassou
por todo o país a partir de 1918, fazendo vítimas em toda a população. Os relatórios do SPI
referentes àquele período mostram claramente a marcha da epidemia, que, começando pelos
grupos vizinhos das grandes cidades, prosseguiu sempre com a mesma violência até alcançar
tribos arredias nos confins das regiões mais afastadas. Ainda em 1922 chegavam ao SPI notícias
de malocas inteiras dizimadas na Amazônia pela “espanhola”, que as atingira com cinco anos de
atraso”.5
3
Cf. Manuela Carneiro da Cunha. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Editora Claro Enigma,
2012, p. 14-15.
4
No período de 1910 a 1967, o aumento do contato entre indígenas e não indígenas no interior brasileiro gerou a
disseminação de doenças como gripe e sarampo. Nesse sentido: BRASIL. Fundação Nacional de Saúde. Política
Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde,
2002, p. 07. Disponível em <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_saude_indigena.pdf>. Acesso em: 13
jun. 2020.
5 Darcy Ribeiro. Os índios e a civilização: A integração das populações indígenas no Brasil moderno. 6ª reimp. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 308.
6 Disponível em: <http://www.docvirt.com/docreader.net/docmulti.aspx?bib=museudoindio&pagfis=>.
7 Cf. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Vol. II. Texto 5. Violações de Direitos Humanos dos
Povos Indígenas.
4
e a presença impune de invasores em suas terras – como garimpeiros e madeireiros –, estimulados
por políticas governamentais e pelo discurso de ódio do próprio Presidente da República; a maior
vulnerabilidade socioepidemiológica dos indígenas; as dificuldades logísticas para tratamento da
doença em localidades remotas; as graves deficiências já existentes do sistema de saúde indígena;
e as falhas e omissões de órgãos estatais nas políticas públicas específicas para enfrentamento do
COVID-19, notadamente da Secretaria de Saúde Indígena (SESAI), vinculada ao Ministério da
Saúde, e da Fundação Nacional do Índio (Funai).
8. De acordo com o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena da APIB,8 até o dia
27 de junho de 2020, o país registrava 378 indígenas falecidos, 9166 infectados e 112 povos
atingidos pelo vírus. Existe – é certo – grande discrepância entre esses números e os dados oficiais
da Secretaria Especial de Saúde Indígenas, em razão da enorme subnotificação de casos no âmbito
do governo federal. É que a SESAI está contabilizando apenas os casos ocorridos dentro de terras
indígenas, e, além disso, existem graves falhas e inaceitável morosidade na alimentação dos seus
dados.
9. Na verdade, o vírus está se alastrando com grande rapidez entre os povos indígenas. À
medida que a epidemia se interioriza – como vem ocorrendo –, os números de contaminados e de
óbitos tendem a aumentar drasticamente. Com base nos dados da APIB, verifica-se que o índice
de letalidade da COVID-19 entre povos indígenas é de 9,6%, enquanto que, entre a população
brasileira em geral, é de 5,6%.
10. O cenário de risco gravíssimo para os povos indígenas tem sido ressaltado, desde o
início da pandemia, por pesquisadores que trabalham com a temática da saúde indígena. O Núcleo
de Métodos Analíticos para Vigilância em Saúde Pública, em conjunto com o Grupo de Trabalho
sobre Vulnerabilidade Sociodemográfica e Epidemiológica dos Povos Indígenas no Brasil à
Pandemia de COVID-19 – ambos integrados pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e por
outras instituições –, publicou o relatório “Risco de espalhamento da Covid-19 em populações
indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e sociodemográfica”.9
No estudo, destacou-se a especial vulnerabilidade dos povos indígenas diante da COVID-19:
8
O Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena foi criado pela APIB ao final da Assembleia Nacional da
Resistência Indígena, realizado entre os dias 08 e 09 de maio de 2020. O grupo reúne ativistas e comunicadores
indígenas que coletam diariamente dados das organizações locais e comunidades indígenas sobre o avanço da
pandemia nas terras indígenas e indígenas que estão fora de seus territórios.
9
Grupo formados pelos (as) seguintes pesquisadores (as): Aline Diniz Rodrigues Caldas, Ana Lúcia Pontes, Andrey
M. Cardoso, Bárbara Cunha e Ricardo Ventura Santos. FIOCRUZ. Risco de espalhamento da COVID-19 em
populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e sociodemográfica. 4º relatório
5
“Em geral, os resultados do Censo indicam condições de desvantagem dos
indígenas em comparação à população não indígena em inúmeros indicadores
sociodemográficos e sanitários, com destaque para as populações residentes nas
Terras Indígenas (TI), nas quais se observa, por exemplo, menor proporção de
escolaridade formal, menor cobertura de saneamento e elevada mortalidade
precoce. [...] A vulnerabilidade sociodemográfica e sanitária da população
indígena tem sido também evidenciada em inúmeros estudos, com destaque para
o Primeiro Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas
(Coimbra et al. 2013). Os resultados desta investigação, a mais ampla já
realizada no país, indicaram níveis de desnutrição, diarreia e anemia em
crianças, além de sobrepeso/obesidade e anemia em mulheres mais
pronunciadas do que na população brasileira. Questões ligadas à
sustentabilidade alimentar, atenção à saúde e garantia dos territórios, além de
inúmeros problemas associados à invasão e contaminação ambiental por
atividades garimpeiras e agropecuárias, têm sido apontadas como centrais na
determinação dos perfis de desigualdade apresentados pela população indígena
no Brasil.
[...]
Globalmente, povos indígenas são altamente vulneráveis às infecções
respiratórias agudas (La Ruche et al., 2009; Flint et al., 2010). Nos séculos
anteriores, há registros de que a introdução de diferentes vírus, como os do
sarampo, da varíola e da influenza, levaram a grandes epidemias e até ao
extermínio de alguns povos indígenas no Brasil. Evidências recentes confirmam
que a introdução de vírus respiratórios em comunidades indígenas suscetíveis
apresenta elevado potencial de espalhamento, resultando em altas taxas de
ataque e de internações, com potencial de causar óbitos, como foi o caso da
Influenza A (H1N1)pdm09 e do Vírus Sincicial Respiratório, em 2016 (Cardoso
et al., 2019). Mesmo fora dos períodos epidêmicos, as infecções respiratórias
agudas se situam entre as principais causas de morbidade e mortalidade em
populações indígenas, afetando sobretudo o segmento infantil. Também no caso
das infecções respiratórias agudas, determinantes sociais estão estreitamente
associados a esse perfil”
6
impactada devido à alta transmissibilidade da doença, vulnerabilidade social de
populações isoladas e limitações relacionadas com a assistência médica e
logística de transporte de enfermos. A possibilidade de subnotificação das
populações indígenas e a falta de vigilância dos vetores de dispersão da doença
podem impactar seriamente a capacidade de controlar a transmissão da Covid-
19. Além da mortalidade populacional, a diminuição da integridade
socioeconômica pode reduzir ainda mais a capacidade dos povos indígenas em
lidar com a crescente fragilização das políticas públicas de saúde e proteção
territorial.”10
12. Tal estudo concluiu que, dentre as terras indígenas (TIs) com maior vulnerabilidade,
figuram os territórios Yanomami e Vale do Javari – este último a área com o maior número de
povos indígenas isolados no país, o que evidencia o risco de extermínio integral de etnias hoje
enfrentado.
14. Diversos órgãos internacionais vêm também advertindo para a necessidade de proteção
especial para os povos indígenas no contexto da pandemia do coronavírus. Nessa linha, o Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos expediu diretrizes para o
enfrentamento da COVID-19, destacando medidas que devem ser adotadas em relação aos povos
indígenas:
“Os Estados devem levar em conta que os povos indígenas utilizam um conceito
diferente de saúde, que compreende a medicina tradicional, e devem consultar e
considerar o consentimento prévio e informado destes povos com vistas à
elaboração de medidas preventivas para impedir o COVID-19.
10
Disponível eletronicamente em:
<https://www.socioambiental.org/sites/blog.socioambiental.org/files/nsa/arquivos/nota_tecnica_modelo_covid19.pdf#
overlay-context=pt-br/noticias-socioambientais/vulnerabilidade-social-e-motor-da-pandemia-de-covid-19-em-terras-
indigenas-mostra-estudo>.
7
Os Estados devem impor medidas que regulem o acesso de pessoas ao território
indígena, em consulta e colaboração com os povos interessados, especialmente
com suas instituições representativas.
Em relação aos povos indígenas que vivem em isolamento voluntário ou na fase
inicial de contato, os Estados e outros agentes devem considerá-los como grupos
populacionais especialmente vulneráveis. As barreiras que forem implantadas
para impedir o acesso de pessoas de fora de seus territórios devem ser
gerenciadas rigorosamente, a fim de evitar qualquer contato.”12
15. A Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), por sua vez, emitiu
comunicado aos Estados-membros, instando-os a prestarem especial atenção às populações
indígenas durante a crise de saúde causada pelo COVID-19. Devido à dupla situação de
vulnerabilidade das comunidades indígenas, resultantes de sua marginalização histórica e do seu
isolamento geográfico, “as autoridades locais, regionais e nacionais de cada Estado Membro a
trabalhar em coordenação com protocolos específicos que visam garantir a saúde e o bem-estar
de sua população indígena desde uma perspectiva intercultural, conforme contemplado na
Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas das Nações Unidas, aprovada em 2007, e na
Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas da Organização dos Estados
Americanos, aprovado em 2016”.13
11
Disponível eletronicamente em <http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/em-nota-publica-mpf-alerta-sobre-
descaso-com-a-saude-indigena-durante-pandemia-da-covid-1>.
12
ONU. Oficina do Alto Comissionado das Nações Unidas. Directrices Relativas a la COVID-19, p. 8. Genebra, 14 de
abril de 2020. Disponível eletronicamente em: <https://www.ohchr.org/Documents/Events/COVID-
19_Guidance_SP.pdf>.
13
Disponível eletronicamente em: <https://www.oas.org/es/centro_noticias/comunicado_prensa.asp?sCodigo=C-
029/20>.
14
Disponível eletronicamente em: <https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf>.
8
55. Respeitar de forma irrestrita o não contato com os povos e segmentos de
povos indígenas em isolamento voluntário, dados os gravíssimos impactos que o
contágio do vírus poderia representar para sua subsistência e sobrevivência
como povo.
56. Extremar as medidas de proteção dos direitos humanos dos povos indígenas
no contexto da pandemia da COVID-19, levando em consideração que estes
coletivos têm direito a receber uma atenção à saúde com pertinência cultural,
que leve em conta os cuidados preventivos, as práticas curativas e as medicinas
tradicionais.
57. Abster-se de promover iniciativas legislativas e/ou avanços na
implementação de projetos produtivos e/ou extrativos nos territórios dos povos
indígenas durante o tempo que durar a pandemia, em virtude da impossibilidade
de levar adiante os processos de consulta prévia, livre e informada (devido à
recomendação da OMS de adotar medidas de distanciamento social) dispostos
na Convenção 169 da OIT e outros instrumentos internacionais e nacionais
relevantes na matéria.”
9
[...]
Numa etapa seguinte, as medidas de mitigação e recuperação de danos devem
valorizar em seu projeto, implementação e avaliação as prioridades de
desenvolvimento dos povos indígenas [...]. É especialmente importante que os
Estados garantam processos de consulta prévia, livre e informada,
culturalmente apropriados e de boa fé para os povos e comunidades indígenas
sobre qualquer nova política de recuperação que possa afetar seus direitos e
interesses legítimos”
18. Todos esses atos e recomendações internacionais apontam claramente as obrigações dos
governos nacionais de garantir os direitos dos povos indígenas durante a pandemia. Elas se
baseiam no Direito Internacional dos Direitos Humanos, mas são plenamente convergentes com a
Constituição de 1988, que além de proteger os direitos fundamentais à vida (art. 5°, caput) e à
saúde (arts. 6º e 196), consagra o direito dos povos indígenas a viver em seus territórios, de acordo
com os seus costumes e tradições (art. 231).
20. Pior ainda: muitas vezes, é o Estado que causa ativamente a disseminação do vírus entre
povos indígenas. Como bem destacou a APIB:
10
A chegada do vírus na região com o maior número de povos em isolamento
voluntário e de recente contato no mundo, o Vale do Javari, no estado do
Amazonas, também aconteceu através de agentes de saúde do Governo Federal,
que entraram no território sem a adoção das medidas de proteção necessárias.
No Parque do Tumucumaqui, uma região isolada e de difícil acesso entre os
estados do Amapá e Pará, foram militares do Exército que levaram o vírus para
a região.”15
21. E não é só. Com seu discurso assimilacionista e inconstitucional, francamente contrário
ao direito dos povos indígenas aos seus territórios tradicionais, o governo tem incentivando
ativamente invasões criminosas em terras indígenas, que cresceram exponencialmente na gestão
do Presidente Jair Bolsonaro. Nessa linha de incentivo às invasões, além de manifestações
frequentes e odiosas do Presidente, deve ser também citada a edição, em plena pandemia, da
Instrução Normativa nº 09 da Funai,16 que favorece o desrespeito aos direitos territoriais dos povos
indígenas.
22. Por outro lado, a SESAI – como dito, órgão encarregado da saúde indígena no país –
adotou o entendimento absolutamente discriminatório e inconstitucional de apenas prestar
atendimento aos indígenas aldeados, que vivem em TIs homologadas. Isso exclui tanto os índios
que habitam terras em processo de demarcação – e convém lembrar que o governo paralisou todos
os processos demarcatórios, cumprindo sua hedionda e inconstitucional promessa de campanha de
não demarcar mais “nem um centímetro de terras indígenas” –, como também os que vivem em
contexto urbano, mas que não se despem da sua identidade étnica por conta disso. É preciso afastar
essa orientação, para proteger todos os indígenas brasileiros, especialmente no contexto da
pandemia do COVID-19.
23. Não bastasse, a SESAI e a FUNAI, que já vinham sendo sucateadas desde muito antes,
não formularam políticas públicas adequadas para o enfrentamento da pandemia para os povos
indígenas brasileiros, e têm se abstido de adotar medidas concretas minimamente suficientes para a
garantia do direito à saúde dos povos indígenas diante da pandemia.
15
APIB. Emergência Indígena: Plano de enfrentamento da Covid-19 no Brasil: uma proposta, 2020, p. 03.
16
A Instrução Normativa nº 9, de 16 de abril de 2020, editada em plena pandemia, assegura a certificação de imóveis
para posseiros, grileiros e loteadores em terras indígenas ainda não formalmente homologadas. A APIB escreveu uma
nota técnica a esse respeito. Disponível eletronicamente em: <apib.info/2020/04/28/nota-tecnica-a-instrucao-
normativa-da-funai-no-092020-e-a-gestao-de-interesses-em-torno-da-posse-de-terras-publicas/>
11
24. É verdade que a SESAI até elaborou um plano de contingência – o chamado “Plano de
Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus (Covid-19) em Povos
Indígenas”. Mas se trata de documento que, além de formulado sem qualquer participação dos
povos indígenas, à revelia do que dispõe a Convenção nº 169 da OIT, é absolutamente vago, sem
medidas concretas, e não vem sendo operacionalizado de forma minimamente adequada.
25. Nesse cenário, cientes da violação dos seus direitos mais básicos, os povos indígenas
vêm protestando. Foi o que fez a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia
Brasileira (COIAB). Em 10 de junho de 2020, após coletiva de imprensa da SESAI, que se
limitara a fazer propaganda enganosa de ações não comprovadas do governo em favor dos povos
indígenas, a COIAB emitiu nota para denunciar o avanço do coronavírus em direção às terras
indígenas e os riscos de contaminação dos territórios.17 No documento, a entidade ressalta que os
planos até agora elaborados não contaram com qualquer participação das entidades
indígenas, e denuncia a tentativa da SESAI de mascarar os dados reais acerca da contaminação de
indígenas pela COVID-19. Afirma, ainda, que as equipes de saúde estão despreparadas e entram
em área sem sequer cumprir a quarentena, em flagrante desrespeito às estratégias de isolamento
das próprias comunidades. Na corajosa nota, a dramaticidade do quadro não impediu o uso da
ironia:
12
Saúde Indígena afirmar que a Sesai vai continuar discriminando indígenas que
vivem nas cidades.
Diferente do que foi falado ontem na coletiva de imprensa, até agora a resposta
da Funai e da Sesai à Covid-19 tem sido lenta, descoordenada e insuficiente. A
Covid-19 entrou nas Terras Indígenas e está se espalhando rapidamente.
Estamos à beira do caos, enquanto o Presidente da Funai e o Secretário da
Sesai comemoram a vitória sobre o coronavírus e se gabam de um suposto
trabalho bem feito. Mascarar a realidade não vai resolver o problema!
O governo está distante do que os povos indígenas têm demandando e alertado.
Sabemos que existem bons profissionais nos órgãos públicos fazendo o possível,
e até o impossível, nas pontas, mas é necessário que Funai, Sesai e Forças
Armadas de fato elaborem e implementem um plano sério para salvar vidar e
impedir efetivamente o avanço da Covid19 em nossos territórios. A
vulnerabilidade que tanto atribuíram ontem aos povos indígenas não é inata, ela
é resultado do descaso do Estado e se reflete na alta letalidade da Covid-19
entre os indígenas Segundo os dados da Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil, a letalidade da Covid-19 entre povos indígenas chega a 8,8%, enquanto
entre a população brasileira geral é de 5,1%.
Alertamos que estamos em uma batalha diária para sobreviver, não só ao
Covid-19, mas ao desmonte das políticas indigenistas e da demarcação e
proteção dos nossos territórios, ao avanço da cobiça às nossas terras e nossas
vidas, aos assassinatos de lideranças, às medidas legislativas anti-indígenas do
Governo Federal. Depois de resistirmos ao Covid-19, não é essa a
“normalidade” do país que aceitaremos!”
26. Para o enfrentamento dessa gravíssima situação, os Arguentes propõem medidas, que
serão mais bem especificadas e justificadas adiante, notadamente:
13
da Defensoria Pública da União e dos povos indígenas, estes indicados pela
APIB;
– II –
Legitimidade Ativa dos Arguentes
28. Os Arguentes PSB, PSOL, PCdoB, REDE, PT e PDT são partidos políticos com
representação no Congresso Nacional (doc. 04). Desse modo, na forma do art. 2º, inciso I, da Lei
nº 9.882/1999 c/c art. 103, inciso VIII, da Constituição, eles possuem legitimidade ativa universal
para o ajuizamento de ações de controle concentrado de constitucionalidade, inclusive a Arguição
14
de Descumprimento de Preceito Fundamental. A legitimidade ativa de tais Arguentes já é
suficiente para o conhecimento da presente ação.
29. Nada obstante, também é fundamental assentar a legitimidade ativa da APIB, que
representa os povos indígenas de todo o país. Essa legitimidade se assenta em duas razões.
30. Em primeiro lugar, trata-se de uma entidade de classe de âmbito nacional, na forma
do art. 103, inciso IX, CF/88, c/c art. 2º, inciso I, da Lei nº 9.882/1999. A interpretação desse
dispositivo não pode ficar presa à jurisprudência tradicional e defensiva do STF, que só admitia as
representações de categorias profissionais e econômicas, deixando de fora as entidades nacionais
que representam outros segmentos da sociedade, notadamente grupos vulneráveis e minorias.
31. Em segundo lugar, mesmo que assim não se entenda, a legitimidade ativa da entidade
deriva de interpretação conjugada do art. 103, inciso IX, CF/88, com o disposto no art. 232 da
Constituição, segundo o qual “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas
para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em
todos os atos do processo”. Afinal, seria profundamente ilegítimo e antidemocrático negar à
organização nacional dos povos indígenas a possibilidade de defender, perante a Suprema Corte do
país, os direitos fundamentais das próprias populações indígenas, especialmente quando se discute
o seu direito de não serem exterminadas!
32. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) é a organização que representa
nacionalmente os povos indígenas. Trata-se, aliás, da única entidade nacional de representação dos
indígenas brasileiros. De acordo com o art. 4º do seu regimento, ela é composta pelas seguintes
organizações regionais: (i) Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas
Gerais e Espírito Santo (APOINME);18 (ii) Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia
Brasileira (COIAB);19 (iii) Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL);20 (iv)
Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPIN-SUDESTE);21 (v) Conselho do Povo
Terena;22 (vi) Aty Guasu Kaiowá Guarani;23 e (vii) Comissão Guarani Yvyrupa.24 Ela está
18
Composta por povos presentes nos Estados do Piauí, do Ceará, do Rio Grande do Norte, da Paraíba, de Pernambuco,
de Alagoas, de Sergipe, da Bahia, de Minas Gerais e do Espírito Santo.
19
Abrange povos dos Estados do Amazonas, do Acre, do Amapá, do Maranhão, do Mato Grosso, do Pará, de
Rondônia, de Roraima e do Tocantins.
20
Representa povos localizados nos Estados do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul.
21
Organização que abrange povos dos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo.
22
Organização tradicional de Mato Grosso do Sul.
15
presente em mais de nove unidades da federação brasileira, satisfazendo o requisito assentado pela
jurisprudência sobre o caráter nacional da entidade.
33. Segundo seu regimento interno,25 a APIB foi criada pelo Acampamento Terra Livre
(ATL) de 2005, mobilização nacional realizada todo ano em Brasília, para tornar visível a situação
dos direitos indígenas e reivindicar do Estado brasileiro o atendimento das demandas e
reivindicações dos povos indígenas. A entidade tem por missão a “promoção e defesa dos direitos
indígenas, a partir da articulação e união entre os povos e organizações indígenas das distintas
regiões do país”.
35. Pois bem. O acesso dos diferentes grupos presentes na sociedade à jurisdição
constitucional – especialmente os tradicionalmente excluídos – é essencial para que essa possa se
converter num campo de efetiva concretização dos direitos fundamentais. Trata-se de dar voz a
quem não tem voz. Na Colômbia, que tem provavelmente o tribunal constitucional mais avançado
em matéria de direitos humanos de todo o mundo, o fácil acesso à Corte26 é apontado como uma
das causas do êxito da instituição em se converter em um espaço privilegiado para lutas
emancipatórias.27 Na Índia, cuja Suprema Corte também tem atuação destacada em matéria da
proteção dos direitos fundamentais, foi necessária uma construção jurisprudencial extremamente
ousada para viabilizar a defesa dos direitos dos grupos mais vulneráveis. O Tribunal, sem base
23
Localizada no Estado do Mato Grosso do Sul.
24
Abrange povos dos Estados do Rio de Janeiro, de São Paulo, do Espírito Santo, do Paraná, de Santa Catarina e do
Rio Grande do Sul.
25
Disponível eletronicamente em: <http://apib.info/apib/>.
26
Na Constituição da Colômbia de 1991, qualquer cidadão pode suscitar o controle abstrato de constitucionalidade de
atos normativos na Corte Constitucional, por meio da chamada acción pública, bem como buscar a proteção dos seus
direitos fundamentais naquele tribunal, quando não houver outro meio eficaz para fazê-lo, por meio da acción de
tutela.
27
Cf. Manuel José Cepeda-Espinosa. “Judicial Activism in a Violent Context: The Origin, Role and Impact of the
Colombian Constitutional Court”. Washington University of Global Studies Law Review, vol. 03, 2004; e Rodrigo
Uprimny Yepes. “A Judicialização da Política na Colômbia: Casos, Potencialidades e Riscos”. Sur – Revista
Internacional de Direitos Humanos, vol. 06, 2007.
16
legal expressa, flexibilizou ao extremo as regras sobre legitimidade ativa (locus standi) e
formalidades processuais para permitir que qualquer pessoa ou entidade lhe peticionasse na defesa
de interesses de terceiros, sem sequer a necessidade de representação por advogado, sempre que
estivessem em jogo os direitos fundamentais de indivíduos ou grupos miseráveis, desprovidos de
acesso à justiça.28
37. Não há qualquer razão legítima que justifique essa interpretação restritiva do texto
constitucional. Ela não decorre da interpretação literal do preceito, pois a palavra “classe” é
altamente vaga, comportando leituras muito mais generosas. Ela não se concilia com a
interpretação teleológica da Constituição, pois, como se viu acima, frustra o objetivo do texto
magno, que foi democratizar o acesso ao controle concentrado de constitucionalidade. A exegese
não se ajusta ao elemento histórico, pois não corresponde à intenção do constituinte originário de
28
Esta linha jurisprudencial é identificada na Índia pelo rótulo de public interest litigation. Veja-se, a propósito,
Menaku Guruswamy e Bipin Aspatwar. “Access to Justice in India: The Jurisprudence (and Self-Perception) of the
Supreme Court. In: Daniel Bonilla Maldonado (Ed.). Constitutionalism of the Global South: The Activist Tribunals of
India, Colombia and South Africa. Cambridge: Cambridge University Press, 2013; S. P. Sathe. Judicial Activism in
India. 2ª ed., New Delhi: Oxford University Press, 2002, pp. 201-211.
29
Luís Roberto Barroso. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p.
145.
30
STF. ADI n° 42, Tribunal Pleno, Rel. Min. Paulo Brossard, julg. 24/09/1992.
17
abrir as portas da jurisdição constitucional para a sociedade.31 Pior, ela colide frontalmente com a
interpretação sistemática da Carta, afrontando o postulado de unidade da Constituição.
38. Com efeito, inexiste na Constituição de 88 uma priorização dos direitos e interesses
ligados às categorias econômicas e profissionais, em detrimento dos demais. Pelo contrário, a
Constituição revelou preocupação no mínimo equivalente com a garantia de outros direitos
fundamentais. Ela cuidou, ademais, da proteção de minorias e grupos vulneráveis, como povos
indígenas, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, afrodescendentes, quilombolas,
mulheres etc. – grupos que têm interesses comuns, que não se reconduzem à profissão ou à
economia. A Carta de 88 se abriu, por outro lado, para múltiplas demandas por justiça, não só no
campo da distribuição, como também na esfera do reconhecimento,32 por admitir que as ofensas à
dignidade humana também decorrem de práticas estigmatizadoras e opressivas, que desdenham os
grupos portadores de identidades não hegemônicas. Tais questões não têm, via de regra, qualquer
ligação com categorias profissionais ou econômicas específicas.
39. Não há, assim, porque permitir o acesso à jurisdição constitucional para atores que
encarnam os interesses das profissões e categorias econômicas, mas não para os que corporificam
outros direitos e interesses, que são valorados, no mínimo, com o mesmo peso pela ordem jurídica
brasileira. Essa assimetria no campo das garantias jurisdicionais é absolutamente
injustificada. Em boa hora, esta Suprema Corte a vem abandonando, como se infere de decisões
importantes da lavra dos Ministros Luís Roberto Barroso e Marco Aurélio, abaixo reproduzidas:
31
Nesse sentido, Plínio de Arruda Sampaio, relator da subcomissão da Constituinte responsável pela organização do
Judiciário e do Ministério Público afirmou que: “[...] havia [...] um clima que era importante dar peso à sociedade
civil. No Brasil, o partido só ainda era uma coisa muito limitada. A ideia era não subordinar isso [o acesso] a
interesses, deixar o mais possível aberto [...]” (Ernani Carvalho. “Política Constitucional no Brasil: a ampliação dos
legitimados ativos na Constituinte de 1988”. Revista da EMARF, Cadernos Temáticos, 2010, p. 97-118). Na mesma
linha, Andrei Koerner e Lígia Barros de Freitas. “O Supremo na Constituinte e a Constituinte no Supremo”. Lua Nova,
vol. 88, 2013, p. 141-184.
32
Sobre o reconhecimento como dimensão da justiça, veja-se Nancy Fraser. “Redistribuição, reconhecimento e
participação: por uma concepção integral de justiça”. In: Daniel Sarmento, Daniela Ikawa e Flávia Piovesan (Coord.).
Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010; Axel Honneth. Luta por
Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. Luiz Repa. Sâo Paulo: Ed. 34, 2003. Destaque-se que
a importância do reconhecimento no campo dos direitos fundamentais vem sendo reconhecida pelo STF em várias
decisões, como na ADPF n° 186, que tratou das cotas raciais em universidades, e na ADPF n° 132 e ADI n° 142, que
trataram da união homoafetiva.
18
1. De acordo com a jurisprudência do STF, as entidades de classe de âmbito
nacional devem reunir os seguintes requisitos para configuração da legitimidade
ativa para propor ação direta: (i) comprovação de associados em nove Estados
da federação; (ii) composição da classe por membros ligados entre si por
integrarem a mesma categoria econômica ou profissional; (iii) pertinência
temática entre seu objetivo social e os interesses defendidos em juízo.
2. Superação da jurisprudência. A missão precípua de uma suprema corte em
matéria constitucional é a proteção de direitos fundamentais em larga escala.
Interpretação teleológica e sistemática da Constituição de 1988. Abertura do
controle concentrado à sociedade civil, aos grupos minoritários e vulneráveis.
3. Considera-se classe, para os fins do 103, IX, CF/1988, o conjunto de pessoas
ligadas por uma mesma atividade econômica, profissional ou pela defesa de
interesses de grupos vulneráveis e/ou minoritários cujos membros as integrem.
4. Ação direta admitida.” (ADPF n° 527-MC, Decisão Monocrática, Rel. Min.
Luís Roberto Barroso, julg. 29/06/2018)
19
40. Não bastasse, ainda que não se queira adotar, em todos os casos, essa leitura mais
generosa da expressão “entidade de classe”, contida no art. 103, inciso IX, da CF/88, no mínimo
se justifica a abertura da categoria em relação às organizações nacionais de representação dos
povos indígenas, à luz de interpretação harmonizada com o disposto no art. 232, CF/88.
41. Tal preceito – o art. 232 – se inscreve no modelo não paternalista com que a Carta de 88
tratou os povos indígenas. Pretendeu o constituinte empoderá-los, rompendo com o paradigma
pretérito calcado no paternalismo e na tutela. Por isso, os povos indígenas e suas organizações
devem poder defender seus direitos e interesses em todos os espaços jurisdicionais, sem depender
para tanto da intermediação necessária de instituições “dos brancos”, como a Funai, os partidos
políticos, o Ministério Público Federal etc. Cuida-se de tratar os povos indígenas como
protagonistas de suas lutas, e não como meros beneficiários da ação, ainda que benevolente, de
terceiros. Trata-se de respeitar o seu “lugar de fala”.
42. Nessa perspectiva, sendo a jurisdição constitucional um locus privilegiado para proteção
de direitos fundamentais – especialmente direitos de minorias –, não faz sentido adotar
interpretação que exclua as organizações nacionais dos índios do campo dos legitimados ativos
para propositura de ações diretas no STF, relativas à defesa dos direitos dos próprios povos
indígenas. A interpretação sistemática dos arts. 103, inciso IX, e 232 da CF/88 impõe, no mínimo,
que se reconheça às organizações nacionais indígenas o direito de defenderem na jurisdição
constitucional brasileira o direito desses povos tradicionais.
43. É certo que, como ocorre com praticamente todas as organizações indígenas, a APIB
não se encontra formalmente constituída como pessoa jurídica, nos moldes da “lei dos brancos”.
Nada obstante, não há dúvida de que a entidade congrega e representa os povos indígenas do
Brasil. Como organização indígena, a APIB se rege por costumes e tradições também indígenas,
afigurando-se inexigível a sua formalização como pessoa jurídica para que possa defender em
juízo, inclusive perante esta Suprema Corte, os direitos dos povos indígenas brasileiros. Pretender
o contrário seria negar o espírito do art. 232 da Constituição, que abriu as portas do sistema de
justiça às comunidades e organizações indígenas, sem submetê-las à ilegítima exigência de prévia
regularização, de acordo com o formalismo jurídico da sociedade envolvente. Destaque-se, neste
particular, que no RE nº 1.017.365, em que se discute, em regime de repercussão geral, a questão
do chamado “marco temporal” para demarcação de terras indígenas, a APIB foi admitida como
amicus curiae por esta Suprema Corte, assim como diversas outras comunidades e organizações
20
indígenas também desprovidas de constituição formal como pessoas jurídicas (RE n° 1.017.365,
Decisão Monocrática, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 21/05/2020).
44. Assim, deve-se reconhecer a legitimidade ativa da APIB para o ajuizamento da presente
ADPF.
– III –
Cabimento da ADPF
46. Nesse contexto, a ADPF, prevista no art. 102, § 1°, da CF/88, e regulamentada pela Lei
n° 9.882/1999, é a ação vocacionada para o enfrentamento da questão. Como se sabe, a ADPF se
volta contra atos dos Poderes Públicos que violem ou ameacem preceitos fundamentais da
Constituição. Dessa forma, para o seu cabimento, é essencial que estejam presentes os requisitos
legais de admissibilidade, a saber: (i) a presença de lesão ou ameaça de lesão a preceito
fundamental, (ii) causada por ato do Poder Público, e (iii) a inexistência de outro instrumento apto
a sanar essa lesão ou ameaça (subsidiariedade).
47. Tais pressupostos estão plenamente configurados no presente caso, como se verá a
seguir.
48. Nem a Constituição nem a Lei n° 9.882/1999 definiram quais preceitos constitucionais
são fundamentais. Nada obstante, há sólido consenso doutrinário e jurisprudencial no sentido de
21
que, nessa categoria, figuram os fundamentos e objetivos da República, bem como os princípios e
direitos fundamentais.33
49. Ora, a situação dramática descrita nesta petição inicial envolve afrontas graves a
princípios e direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, CF/88),
os direitos à vida (art. 5º, caput) e à saúde (art. 6º e 196), e o direito dos povos indígenas a viverem
em seu território, de acordo com suas cultura e tradições (art. 231). Este último, conquanto não
inserido expressamente no catálogo dos direitos fundamentais, reveste-se inequivocamente de
fundamentalidade material, haja vista a sua importância no sistema constitucional, e ligação direta
com a dignidade da pessoa humana.
50. Mais ainda: como há risco real de extinção de povos indígenas – especialmente os
isolados ou de recente contato –, a ADPF envolve a própria defesa da Nação brasileira, com a
plurietnicidade e interculturalidade que a caracteriza. O risco é para os próprios povos indígenas,
mas também para todos os demais brasileiros, das presentes e futuras gerações, que tanto
perderiam com os danos irreparáveis à riqueza e a diversidade cultural do país.
51. De acordo com o art. 1º da Lei n° 9.882/1999, os atos que podem ser objeto de ADPF
são todos aqueles emanados do Poder Público, aí incluídos os de natureza normativa,
administrativa ou judicial. A ADPF não se volta apenas contra normas jurídicas, podendo também
questionar atos, comportamentos e práticas estatais de outra natureza, comissivos ou omissivos.34
E é isso que se verifica na presente hipótese, já que, como visto, as lesões a preceitos fundamentais
aqui impugnadas se originam de uma multiplicidade de atos comissivos e omissivos de instituições
públicas federais.
52. Dentre as afrontas a tais preceitos, destaca-se a omissão da União em impedir o ingresso
de não índios nos territórios indígenas – mesmo aqueles em que vivem povos isolados ou de
recente contato –, possibilitando, com isso, a disseminação do coronavírus entre essas populações,
33
Cf., e.g., Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2014, p. 1267-1269; e Luís Roberto Barroso. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro:
exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 562-563.
34
Cf., e.g., STF. ADPF nº 347-MC, Tribunal Pleno, Rel. Marco Aurélio, DJe 19/02/2016.
22
com risco até de extinção. Do mesmo modo, a omissão federal em retirar invasores de TIs, como
ocorre com os garimpeiros nas terras Yanomami, o que contribui para aumentar gravemente o
risco sanitário nessas regiões.
53. Ainda como violação a preceito fundamental, tem-se a orientação da SESAI de limitar a
sua atuação, como órgão responsável pela saúde indígena, apenas aos índios aldeados em TIs
homologadas, o que implica negação do direito aos que vivem em contexto urbano, bem como aos
que habitam em áreas ainda não definitivamente demarcadas. Como se verá adiante, essa limitação
não se compatibiliza com o direito dos povos indígenas a terem acesso à saúde que observe suas
especificidades e tradições culturais. Trata-se de uma discriminação inconstitucional, incompatível
com os direitos à saúde, à isonomia e à diferença cultural.
55. Enfim, a ação não se volta contra o vírus, mas contra a ação equivocada e a inação
irresponsável do Poder Público no seu combate. Resta, pois, satisfeito o segundo requisito para o
cabimento da ADPF.
III.3. Subsidiariedade
23
“13. Princípio da subsidiariedade (art. 4º, § 1º, da Lei nº 9.882/99): inexistência
de outro meio eficaz de sanar a lesão, compreendido no contexto da ordem
constitucional global, como aquele apto a solver a controvérsia constitucional
relevante de forma ampla, geral e imediata.
14. A existência de processos ordinários e recursos extraordinários não deve
excluir, a priori, a utilização da argüição de descumprimento de preceito
fundamental, em virtude da feição marcadamente objetiva desta ação.”35
58. Dessa maneira, atendidos todos os seus pressupostos, não há dúvidas de que a
presente Arguição é cabível e, por isso, deve ser conhecida por esta Corte.
59. Antes de passar ao desenvolvimento e justificação dos pedidos, vale um breve registro
sobre o sistema de saúde indígena, desenvolvido no próximo item.
– IV –
60. Os indígenas são titulares do direito universal à saúde, como todos os demais brasileiros.
Esse direito, contudo, deve ser implementado com observância das respectivas especificidades
socioculturais, o que envolve o respeito às suas práticas tradicionais, à cultura e aos modos de
organização de cada etnia. Ademais, as políticas de saúde que incidem sobre povos indígenas
devem ser implementadas com a sua participação, sujeitas ao seu controle social. É o que decorre
do disposto no art. 231 da Constituição, segundo o qual os índios têm direito ao respeito “à sua
organização social, seus costumes, línguas, crenças e tradições”. Nessa linha, o art. 25.1 da
Convenção 169 da OIT, que desfruta, no mínimo, de hierarquia supralegal na ordem jurídica
35
STF. ADPF n° 33, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 27/10/2006. No mesmo sentido, cf. e.g., ADPF n°
388, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 01/08/2016; e ADPF n° 97, Tribunal Pleno, Rel. Min. Rosa
Weber, DJe 30/10/2014.
24
brasileira, prevê que os serviços de saúde “deverão ser planejados e administrados em
cooperação com os povos interessados e levar em conta as suas condições econômicas,
geográficas, sociais e culturais, bem como seus métodos de prevenção, práticas curativas e
medicamentos tradicionais”.
61. Até 1988, sequer havia uma política pública para a saúde dos povos indígenas. As
únicas medidas oficiais remontam à logística organizada no passado pelo SPI, por meio dos
chamados “socorros médicos” (art. 17 do Decreto nº 8.072/1910), que se limitavam a intervenções
esporádicas em caso de surtos, sem sistematicidade, o que se repetiria na gestão pela Funai, a partir
de 1967.36 Sob a nova ordem constitucional, foi editada a Lei nº 9.836/1999, que incluiu na Lei do
SUS (Lei nº 8.080/1990) o capítulo do subsistema de saúde indígena (art. 19-A a 19-H).
63. Até 2010, o subsistema de saúde indígena era gerido pela Fundação Nacional de Saúde
(FUNASA), que, durante anos, foi alvo de frequentes denúncias ligadas à corrupção e a
deficiências no atendimento. O movimento indígena lutou para que a gestão da saúde indígena
passasse às mãos de uma secretaria específica, diretamente vinculada ao Ministério da Saúde –
demanda que foi atendida em 2010, com a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena
36
Cf. Julio José Araujo Junior. “O despertar de uma política: as dificuldades de concretização do subsistema de saúde
indígena entre 1999 e 2015”. Boletim científico da Escola Superior do Ministério Público da União, v. 53, p. 13-447,
2019
25
(SESAI), por meio da MP n° 483, posteriormente convertida na Lei nº 12.413/2010. A estrutura e
as competências da SESAI encontram-se detalhadas no Anexo III do Decreto nº 8.901/2016.
65. A sede de cada DSEI está situada em um dos municípios da sua área de atribuição.
Dentro de cada DSEI, há ainda os polos-base, unidades menores que se situam em outros
municípios ou até em aldeias, dotados de uma estrutura básica, com estoque de medicamentos e
presença de um grupo de funcionários. Existem também os postos de saúde, que são unidades
básicas de saúde indígena para oferecimento de medicamentos e apoio ao trabalho dos agentes de
saúde indígena. Compõem a estrutura, por fim, as chamadas casas de saúde (CASAIs),
consistentes em espaços de acolhimento dos indígenas, que se deslocam aos municípios centrais
para aguardar um procedimento médico, uma consulta ou mesmo uma transferência para outra
localidade que possua um hospital de referência. O atendimento nas aldeias deve ser feito por
equipes multidisciplinares, de forma periódica.
66. O controle social em cada DSEI se dá por intermédio dos Conselhos Distritais de Saúde
Indígena (CONDISIs), que garantem, ao menos no plano da legislação, a participação dos
indígenas na gestão do subsistema de saúde indígena. De acordo com o art. 4º da Portaria nº
755/2012 do Ministério da Saúde, 50% dos integrantes de cada CONSIDI são representantes
eleitos das comunidades indígenas localizadas no seu âmbito de abrangência.
37 Este conceito é abordado expressamente na publicação que trata da Política Nacional de Saúde Indígena, porém já
vinha sendo objeto de preocupações dos povos indígenas desde pelo menos 1986, tendo sido apresentado nas
conferências de saúde indígena. O modelo piloto foi o do DSEI Yanomami, após a edição do Decreto nº 23/91.
BRASIL. Fundação Nacional de Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2. ed. Brasília:
Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde, 2002, p. 13. Disponível eletronicamente em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_saude_indigena.pdf>.
38
Por exemplo, o DSEI Litoral Sul, com sede em Curitiba, atende indígenas de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Já o Estado do Amazonas tem 7 DSEIs.
26
67. Embora a constituição do subsistema em questão tenha representado inequívoco avanço
na legislação, ele não tem sido capaz de enfrentar todos os desafios para a implementação da saúde
indígena no país. A precariedade de atendimento e a carência de profissionais, os preconceitos
contra a medicina tradicional e a persistência de índices muito piores que os da população não
indígena mostram que há muitas barreiras a superar.
68. Com efeito, estudos apontam a grande vulnerabilidade sanitária da população indígena,
com dados que indicam níveis de mortalidade infantil,39 desnutrição, diarreia e anemia em
crianças e sobrepeso/obesidade em mulheres superiores aos do restante da população brasileira.40
O decréscimo de aplicação de recursos nesse subsistema nesses últimos anos, aliado a outras
mazelas, já vinha, muito antes da eclosão da pandemia, comprometendo gravemente o direito dos
povos indígenas à saúde, com impactos ainda mais graves sobre as comunidades localizadas em
áreas remotas, como as existentes na Amazônia.
70. Firmadas essas premissas, passa-se à discussão de cada um dos blocos de pedidos
apresentados pelos Arguentes.
39
Cf. Gerson Luiz Marinho et al. “Mortalidade infantil de indígenas e não indígenas nas microrregiões do Brasil”.
Revista Brasileira de Enfermagem, vol. 72, n° 01, jan./fev. 2019. Disponível eletronicamente em:
<https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672019000100057&tlng=pt>.
40
Cf. FIOCRUZ. Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas. Relatório final; E. A. Coimbra Carlos
Jr. “Saúde e povos indígenas no Brasil: reflexões a partir do I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição Indígena”. Cad.
27
–V–
71. No Brasil, existem registros da presença de 114 povos indígenas isolados, sendo 20
deles confirmados42 (doc. 26). Há, ainda, o reconhecimento de, ao menos, 18 povos indígenas de
recente contato (docs. 27 a 29).
72. Segundo a legislação brasileira, povos indígenas isolados “são povos ou segmentos de
povos indígenas que, sob a perspectiva do Estado brasileiro, não mantêm contatos intensos e/ou
constantes com a população majoritária, evitando contatos com pessoas exógenas a seu coletivo”
(art. 4º, inciso I, da Portaria Interministerial nº 4.094/2019, do Ministério da Saúde e da Funai). Já
povos indígenas de recente contato “são povos ou agrupamentos indígenas que mantêm relações
de contato ocasional, intermitente ou permanente com segmentos da sociedade nacional, com
reduzido conhecimento dos códigos ou incorporação dos usos e costumes da sociedade
envolvente, e que conservam significativa autonomia sociocultural (art. 4º, inciso II, do mesmo
diploma).
73. Até 1987, a política oficial do Estado brasileiro era atrair e provocar o contato com
povos indígenas isolados. A concepção então adotada era profundamente paternalista e
assimilacionista. O contato forçado era justificado com base na intenção de “proteger” os povos
originários, e a perspectiva era de assimilação a longo prazo, quando os índios seriam
“aculturados”, integrando-se à “comunhão nacional” e perdendo a sua identidade étnica específica.
No contexto da redemocratização do país, essa concepção se alterou, e, a partir de 1987, “teve
início a implantação de uma política diferenciada para povos indígenas isolados, com o objetivo
de fazer respeitar seus modos de vida, afastando-se a concepção de obrigatoriedade do contato
para sua proteção”.43 Sob a vigência da Constituição de 1988 e da Convenção nº 169 da OIT, não
28
teria como ser diferente, haja vista a superação do paradigma assimilacionista que marca esses
textos normativos, que se pautam pelo respeito à autonomia e às culturas indígenas.
74. De acordo com Fabrício Amorim,44 existe ampla diversidade de situações de índios
isolados, desde grupos demográficos relativamente grandes, que se organizam em grupos locais
menores, e que possivelmente se relacionam entre si – tal como ocorre na TI Vale do Javari –, até
grupos extremamente reduzidos em função dos históricos de massacres, doenças e violência
territorial, tal como os Piripkura, no noroeste do Mato Grosso, ou o denominado “Índio do
Buraco”, único indivíduo remanescente de uma etnia, em Rondônia. Como afirma o mesmo autor,
há também uma diversidade de contextos de “isolamento”. Isso porque alguns grupos fogem e
rechaçam todo e qualquer contato com pessoas de fora, mantendo-se praticamente invisíveis, tal
como os Kawahiva do Rio Pardo no Mato Grosso. Já outros estabelecem, por seus próprios modos,
relações indiretas com seu entorno, deixando vestígios propositais e, muitas vezes, permitindo-se
ver à distância, tal como os Mashco, no Acre. Em comum entre todos, está a vontade de ter maior
controle sobre as relações que estabelecem com as sociedades ou indivíduos que os rodeiam.45
Como ressaltou Eduardo Viveiros de Castro, “longe de ignorarem a existência de outras
sociedades, eles recusam qualquer interação substancial com elas, especialmente, com os
‘brancos’, palavra usada por índios e brancos, no Brasil, para designar os representantes diretos
ou indiretos, desse Estado-nação que exerce soberania sobre os territórios indígenas”.46
75. Povos indígenas isolados e de recente contato estão submetidos, de forma peculiar, a um
grande leque de vetores de vulnerabilidade, que se reforçam mutuamente. São eles:47 (i) a
vulnerabilidade epidemiológica, decorrente da inexistência de memória imunológica em
seus organismos para defesa contra determinadas doenças – a exemplo de uma simples gripe –; (ii)
a vulnerabilidade demográfica, que ocorre pela fragilidade do contingente populacional, em
consequência dos números reduzidos e das grandes taxas de mortalidade decorrentes do contato;
(iii) a vulnerabilidade territorial, pela contínua pressão da nossa sociedade sobre seus territórios
e a estreita relação desses povos com os recursos naturais e suas respectivas cosmologias; e (iv)
44
Cf. Fabrício Amorim. “Povos indígenas isolados no Brasil e a política indigenista desenvolvida para efetivação de
seus direitos: avanços, caminhos e ameaças”. Revista Brasileira de Linguística Antropológica, vol. 08, n° 02, UNB,
2016.
45
Cf. Fabrício Ferreira Amorim e Erika Magami Yamada. “Povos indígenas isolados: autonomia e aplicação do
direito de consulta”. Revista Brasileira de Linguística Antropológica, vol. 08, n° 02, dez. 2016, p. 41-60.
46
Eduardo Viveiros de Castro. “Nenhum povo é uma ilha”. In: Fany Ricardo e Majoí Fávero Gongora (orgs.). Cercos
e resistências: povos indígenas isolados na Amazônia brasileira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2019.
47
Beatriz Huertas. Corredor Territorial de Pueblos Indígenas en Aislamiento y Contacto Inicial Pano, Arawak y
otros. FENAMAD 2015.
29
a vulnerabilidade política, que ocorre pela impossibilidade desses povos se manifestarem através
dos mecanismos de representação comumente aceitos pelo Estado, tais como partidos políticos,
associações ou assembleias.
77. Cabe salientar que a vulnerabilidade epidemiológica dos povos indígenas como um todo
– inclusive dos povos isolados e de recente contato – não decorre de supostas deficiências em
seus sistemas imunológicos. Ao contrário, a competência imunológica de seus organismos é a
mesma de qualquer outra pessoa sadia: quando vacinados, produzem anticorpos e defesas
adequadas, fato já demonstrado em estudos.49 Essas populações em isolamento mantêm uma
relação estável com agentes de doenças infectocontagiosas que lhes são conhecidas.50 Todavia, o
surgimento de novos agentes infecciosos provoca um significativo desequilíbrio, produzindo
velozes processos de disseminação, de adoecimento coletivo e, consequentemente, de mortes.
Segundo a Oficina General de Epidemiología do Peru,51 possivelmente em face de outros fatores,
inclusive sociais, os povos indígenas, quando expostos a novos agentes infecciosos, demoram
entre três a cinco gerações para estabilizar a resposta a esses novos agentes:
48
Douglas A. Rodrigues A. Proteção e Assistência à Saúde dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato no
Brasil. OTCA: São Paulo, 2014, p. 80. Disponível eletronicamente em:
<https://boletimisolados.trabalhoindigenista.org.br/wp-content/uploads/sites/3/2017/08/Saude _PIIRC_-Douglas-
Rodrigues.pdf>.
Cf. Douglas A. Rodrigues. “Desafio da atenção à saúde dos povos isolados e de recente contato”. In: Fany Ricardo e
49
Majoí Fávero Gongora (orgs.) Cercos e resistências: povos indígenas isolados na Amazônia brasileira. Op. cit.
50
Ibidem, p. 19.
51
Oficina General de Epidemiología, OGE. Pueblos en situación de extrema vulnerabilidad: El caso de los Nanti de
la Reserva Territorial Kugapakori Nahua – Río Camisea. Cusco, 2003.
30
“La recurrencia y frecuencia con que se producen brotes de enfermedades
virales e infecciosas en estas poblaciones impide que dispongan de tiempo
suficiente para recuperarse y afrontar de mejor manera las nuevas epidemias,
agravando aún más su situación.”52
78. De fato, os condicionantes sociais e culturais dos índios isolados e de recente contato
contribuem para o impacto das doenças que, com frequência, geram mortes que podem
ocasionar verdadeiro etnocídio.
79. Com efeito, são diversos – e dramáticos – os relatos de povos indígenas isolados ou de
recente contato dizimados por epidemias de doenças infectocontagiosas causadas por contatos com
grupos externos. Aliás, desde a chegada dos primeiros europeus, há inúmeros casos de processos
velozes de genocídio de povos indígenas, em decorrência, sobretudo, de doenças desconhecidas
por seus sistemas imunológicos. É consenso na historiografia que as doenças foram mais fatais e
rápidas no desaparecimento das populações autóctones do continente americano até do que as
armas dos europeus.
80. Nesse sentido, o médico indigenista Lucas Albertoni aponta situação gravíssima
ocorrida com os Korubo, em 2015, que foram quase dizimados, pelo contato com as doenças dos
brancos. Muitos doentes ficaram, inclusive, incapazes de realizar atividades básicas de
sobrevivência, como a caça, a coleta e a agricultura. A falta de alimentos agravou ainda mais o
quadro, acarretando um número de óbitos assustador.
81. O caso do contato com os Kajkwakratxi Tapayuna, no oeste do Mato Grosso, que
começou na década de 1960, realizado por missionários e pela Funai, também é exemplo
emblemático de tragédia. Durante o início dessas relações, os indígenas relatam que haviam
contraído uma gripe que se alastrou nas habitações dos que ainda recusavam o contato. As equipes
procuraram essas habitações. Encontraram todas abandonadas, algumas queimadas, cadáveres
espalhados pelo chão, homens, mulheres, jovens e velhos. Não houve tempo e força sequer para
enterrar os mortos. Os sobreviventes fugiram para a floresta, reunidos posteriormente pela
equipe.53 Inicialmente com população calculada em mil pessoas, foram reduzidos a 48
52
Beatriz Huertas. Autodeterminacion y salud. In: El derecho a la salud de los pueblos indigenas en aislamiento y en
contacto inicial. IWGIA, 2008.
53
Cf. Daniela Batista de Lima. Transformações, Xamanismo e Guerra entre os Kajkwakratxi (Tapayuna). Tese de
Doutorado, UNB, 2019.
31
sobreviventes, removidos em 1970 para o Parque do Xingu, com a justificativa de salvar o povo
Tapayuna do completo extermínio.
82. Os Kararaô, por sua vez, foram contatados no Rio Iriri, próximo à foz do rio Xingu. A
equipe de sertanistas da Funai encontrou um grupo de 48 indígenas. Depois do contato, os técnicos
retornaram a Belém para obter medicamentos, alimentação e outros materiais.54 No entanto,
quando regressaram, já encontraram um quadro grave de enfermidades. Quando organizaram uma
incursão por via terrestre já era tarde: dos 48 Kararaô contactados, encontraram apenas 7 vivos e
muito debilitados. O sertanista Afonso Alves conta que os indígenas “[...] estavam sendo
enterrados dentro de casa. Eles cavaram essas sepulturas dentro de casa mesmo, não fora. Não
tinham condições de caminhar, de fazer nada [...]. Só um que escapou e os outros saíram pro
mato, morreram no mato. Urubu comeu”.55 E muitos outros casos dramáticos poderiam ser relatos
sobre contatos de povos isolados com a “civilização” que resultaram em muitas mortes e até em
etnocídio. Eles evidenciam a necessidade de proteção desses grupos, no contexto de uma
pandemia.
84. Embora os usos, costumes e tradições dos povos isolados e de recente contato não sejam
tão acessíveis a nós, uma coisa é certa: a própria ação do isolamento é a parcela mais evidente de
seus costumes, ou seja, é a forma como manifestam sua de vontade de viver afastados de outros
grupos sociais, sejam indígenas ou não indígenas. Segundo Amorim e Yamada:
54
Cf. Carlos Augusto da Rocha Feire. Sagas Sertanistas: práticas e representações do campo indigenista no século
XX. Tese de doutorado, UFRJ, 2005.
55
Rubens Valente. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017.
32
indígenas isolados de não aceitação de relações intensas ou constantes com seu
entorno. Isso pode ser traduzido comparativamente pela afirmação externa de
que estes povos não estão dispostos a relações forçadas nem a formas de
interação que não desejam.”56
87. Em outras palavras: a proteção da saúde dos povos isolados e de recente contato não
se faz sem a proteção dos territórios onde vivem, pois somente com a garantia da integridade
desses espaços é possível assegurar a distância de agentes capazes de levar doenças e, ao mesmo
tempo, proteger a integridade de um meio ambiente saudável, onde possam encontrar alimentos e
medicamentos tradicionais.
88. Por isso, os direitos à saúde e à vida dessas populações pressupõem, especialmente em
contexto de uma epidemia, a formação de barreiras sanitárias, que são viabilizadas por ações de
atenção a outros povos não isolados, os quais vivem no entorno daquelas, e por ações de combate
ao ingresso de invasores ilegais nos seus territórios. A constituição de barreiras sanitárias deve
ser a ação primordial do Estado brasileiro para a proteção da saúde dessas populações.
56
Fabrício Ferreira Amorim e Erika Magami Yamada. “Povos indígenas isolados: autonomia e aplicação do direito de
consulta”. Revista Brasileira de Linguística Antropológica, vol. 08, n° 02, dez. 2016, p. 41-60.
57
Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Pueblos Indigenas em Aislamiento Voluntario y Contacto Inicial
em las Americas, 2013, p. 11. Disponível eletronicamente em:
<http://www.oas.org/es/cidh/indigenas/docs/pdf/Informe-Pueblos-Indigenas-Aislamiento-Voluntario.pdf>.
33
89. Recorde-se que, que dentre as diretrizes para o enfrentamento do COVID-19 expedidas
pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, frisou-se que, “em relação
aos povos indígenas que vivem em isolamento voluntário ou na fase inicial de contato, os Estados
e outros agentes devem considerá-los como grupos populacionais especialmente vulneráveis. As
barreiras que forem implantadas para impedir o acesso de pessoas de fora de seus territórios
devem ser gerenciadas rigorosamente, a fim de evitar qualquer contato”.59 Na mesma linha, a
Resolução nº 01/2020 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sobre ‘Pandemia e
Direitos Humanos nas Américas’, foi também expressa ao recomendar: “55. Respeitar de forma
irrestrita o não contato com os povos e segmentos de povos indígenas em isolamento voluntário,
dados os gravíssimos impactos que o contágio do vírus poderia representar para sua subsistência
e sobrevivência como povo”.60
90. Para que se tenha dimensão do risco envolvido, vale mencionar as TIs Vale do Javari e
Yanomami, ambas com importante presença de indígenas isolados e de recente contato. Na
primeira, tais grupos étnicos estão indevidamente expostos ao contato com indivíduos que
circulam pelo estado da Federação com a maior taxa de mortalidade do país – o Amazonas – e, na
segunda, já foram confirmados 117 casos de COVID-19, e quatro óbitos. Ambas figuram no
ranking das 5 terras indígenas mais vulneráveis do país em relação ao COVID-19.61 Além disso, a
Terra Indígena Vale do Javari se encontra próxima aos municípios de Tabatinga e Benjamin
Constant, onde já foram registrados 645 e 570 casos, respectivamente. Já a Terra Indígena
Yanomami se encontra próxima aos municípios de Boa Vista, São Gabriel da Cachoeira e Santa
Isabel do Rio Negro, onde já foram registrados 1870, 672 e 24 casos, respectivamente.
91. Os dois exemplos servem para mostrar a urgência da imposição de barreira sanitária nas
terras indígenas com registros de povos isolados e naquelas com a presença de povos de recente
contato. Considerando que muitas terras são compartilhadas entre eles, estamos falando de
apenas 31 terras indígenas que exigem a barreira sanitária.
58
Ibidem, p. 83.
59
ONU. Oficina do Alto Comissionado das Nações Unidas. Directrices Relativas a la COVID-19, p. 08. Genebra, 14
de abril de 2020. Disponível eletronicamente em: <https://www.ohchr.org/Documents/Events/COVID-
19_Guidance_SP.pdf>.
60
Disponível eletronicamente em: <https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf>.
61
Como indicador de vulnerabilidade social considerou-se a disponibilidade de leitos hospitalares, números de casos
por município, número de óbitos, perfil etário da população indígena, vias de acesso e outros fatores relacionados com
a estrutura de atendimento da saúde indígena e mobilidade territorial. Disponível eletronicamente em:
<https://covid19.socioambiental.org>.
34
92. Porém, esse o isolamento não vem sendo assegurado pelo Estado brasileiro, pelo
contrário. Basta ver as declarações do Presidente da República, defendendo até o garimpo em
terras indígenas – o que obviamente estimula invasões –, bem como a recente nomeação para a
coordenação-geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai do pastor Ricardo Lopes
Dias, que já trabalhou por vários anos como missionário na Missão Novas Tribos do Brasil,
promovendo exatamente a tentativa de evangelização de povos indígenas isolados.62 Nem mesmo
o contexto de pandemia do coronavírus alterou esse cenário de desrespeito.
93. Nessa linha, o Observatório de Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de
Recente Contato – OPI emitiu o Informe nº 02, intitulado “A Ameaça do COVID-19 e o Risco de
Genocídio de Povos Indígenas e Isolados”, em que se destacou:
62
Veja-se <https://www.google.com.br/amp/s/www.bbc.com/portuguese/amp/brasil-51319113>.
35
que ocupavam. Diante de o todo o cenário que já conhecem bem, isolar-se
tornou-se a principal estratégia de sobrevivência.
[...]
Não se vê nem a sombra de um monitoramento sério ocorrendo em nível
central. Temos a impressão que as diversas iniciativas locais são dispersas e
não coordenadas e, aparentemente, independentes uma das outras. É cada um
por si, do jeito que sempre ocorreu. Os povos indígenas criam estratégias
próprias de defesa como o isolamento e, os que têm apoiadores e colaboradores,
se viram como podem. Os profissionais de saúde, por sua vez, continuam usando
todos os tipos de improvisos pela falta crônica de infraestrutura e de materiais
básicos. E agora, mais ainda, desprovidos de Equipamentos de Proteção
Individual – EPIs adequados para se protegerem e também protegerem os
indígenas contra o Coronavírus.”
95. Por isso, deve ser determinado à União Federal que imponha imediatamente essas
barreiras sanitárias, de modo a proteger a integridade dos territórios indígenas em que haja registro
de presença de povos indígenas isolados ou de recente contato, pelo menos enquanto não forem
plenamente debelados os riscos inerentes à pandemia do coronavírus. Seguem, abaixo, duas
tabelas – uma sobre índios isolados e outra sobre índios de recente contato – com indicação do
nome dos grupos (quando existente) e das terras indígenas que ocupam. Elas são integralmente
baseadas em informações oficiais fornecidas pela Funai (docs. 26 a 29).
Himerimã Himerimã
36
Kulina do Rio Envira Isolados do Alto Humaitá
Piripkura Piripkura
Pirititi Pirititi
Uru-Eu-Wau-Wau Yraparariquara
Waimiri-Atroari Pirititi
Yanomami Mochëatetea
*Devido a política do não contato, adotada desde 1987 pelo Estado brasileiro, muitos nomes ainda não são
conhecidos, sendo a referência do povo denominada pela localização geográfica.
Zo'é Zo'é
Omerê Akun'tsu
Omerê Kanoê
Waimiri-Atroari Waimiri-Atroari,
37
Araweté Araweté
Suruwahá Suruwahá
Yanomami Yanomami
Pirahã Pirahã
Enawenê-Nawê Enawenê-Nawê
Juma Juma
Apyterewa Parakanã*
*Vide docs. 28 (p. 25) e 29.
“Art. 12. Deverá ser ativada uma Sala de Situação para subsidiar a tomada de
decisões dos gestores e a ação das equipes locais diante do estabelecimento de
situações de contato, surtos ou epidemias envolvendo os Povos Indígenas
Isolados e de Recente Contato.
§ 1º A Sala de Situação terá como objetivos precípuos o compartilhamento e a
sistematização de informações, o favorecimento do processo decisório, a
organização de respostas para emergências e o monitoramento e avaliação das
intervenções realizadas.
§ 2º A Sala de Situação será composta por membros indicados pela SESAI/MS e
membros indicados pela FUNAI e poderá ser integrada também por
colaboradores convidados, com a anuência conjunta de ambos os órgãos.
§ 3º A Sala de Situação será convocada indistintamente pela SESAI/MS ou pela
FUNAI.
§ 4º A Sala de Situação não substitui as respectivas competências legais da
SESAI/MS e da FUNAI frente à promoção e proteção dos direitos dos Povos
Indígenas Isolados e de Recente Contato.”
38
97. No cenário da pandemia, o efetivo funcionamento da Sala de Situação é vital para que
possam ser dadas respostas rápidas e adequadas aos problemas surgidos com povos indígenas e
isolados, na medida em que eles forem aparecendo. Porém, pelo que se sabe, embora formalmente
constituída, não se têm notícias do efetivo funcionamento da Sala de Situação, e tampouco de suas
orientações. É fundamental que a Sala de Situação desempenhe suas funções, tão essenciais neste
momento – e não só no papel.
98. Por outro lado, diante da gravidade do quadro ora vivenciado – e considerando a
omissão e antagonismo político do governo federal diante dos direitos indígenas –, é fundamental
assegurar a participação, na Sala de Situação, de representantes de instituições independentes,
entre cujas missões figure atuar em favor de direitos indígenas, como o Conselho Nacional de
Direitos Humanos, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, além de
representantes indígenas, a serem indicados pela APIB.
– VI –
99. As invasões de terras indígenas demarcadas afrontam o comando contido no art. 231, §
2º, da Constituição, que destina aos índios a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas
do solo, dos rios e dos lagos existentes nas TIs. Em tais territórios, que foram objeto de
regularização e homologação, também já houve apreciação pelo Poder Público sobre eventuais
direitos de ocupações de não indígenas, assim como a definição e pagamento de indenizações por
benfeitorias de boa-fé porventura cabíveis (art. 231, § 6º, CF/88).64 É fora de dúvida, portanto, que
invasores atuais de terras indígenas agem de forma absolutamente ilícita e violadora aos
direitos desses povos tradicionais.
63
Item elaborado com base no “Relatório técnico sobre o risco iminente de contaminação de populações indígenas
pelo novo coronavírus em razão da ação de invasores ilegais”, do Instituto Socioambiental – ISA, produzido por
Antonio Ovied, Elis Nice Oliveira de Araújo, Juliana de Paula Batista e Tiago Moreira dos Santos (doc. 30). Os
mapas, gráficos e vários trechos deste item foram extraídos do mencionado relatório.
64
Art. 231, § 6º, CF/88: “São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a
ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo,
dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei
complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma
da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.”
39
100. Todavia, é de conhecimento geral que o desmatamento e a mineração em terras
indígenas demarcadas apresentaram um aumento dramático a partir de 2018, e que esse
cenário se agrava a cada dia. Dados do PRODES, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais – Inpe, revelam que, em 2019, a taxa anual de desmatamento (avaliada entre agosto de
2018 e julho de 2019) em toda a Amazônia foi de 34,41%, mas que esse incremento foi de
80% quando consideradas apenas as terras indígenas!65 Confira-se, a propósito, gráfico que
compara o desmatamento em terras indígenas na Amazônia Legal na última década:
101. A mesma conclusão decorre da análise de dados coletados pelo Sistema de Detecção do
Desmatamento em Tempo Real – DETER do Inpe, que se destina a apoiar as atividades de
fiscalização dos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama) e que inclui
também dados de 2020:
65
BRASIL. Monitoramento do Desmatamento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite. PRODES/Inpe.
Disponível eletronicamente em: <http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/prodes>.
40
Desmatamento acumulado até 2019 e incremento até 10.06.2020 na Amazônia Legal (PRODES/Inpe)
102. Entre janeiro e maio de 2020, o DETER registrou aumento de 32% nos alertas de
desmatamento em relação ao mesmo período de 2019. Com 61.200 hectares de áreas desmatadas,
equivalentes ao mesmo número de campos de futebol, maio foi o mês com a maior área de alerta
de desmatamento em 2020. Com efeito, os dados mostram que, em maio de 2020, houve aumento
de 34% nos alertas de desmatamento por corte raso de vegetação na Amazônia legal em relação ao
mês de abril do mesmo ano.
103. As principais terras indígenas atingidas pelo desmatamento acumulado entre 2019 e
2020 são: Ituna/Itatá, Cachoeira Seca do Iriri, Apyterewa, Trincheira Bacajá, Parque Indígena do
Xingu, Marãiwatsédé, Kayapó, Munduruku, Manoki, Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayabi,
Parque Indígena Aripuanã, Batelão, Sete de Setembro, Waimiri Atroari, Zoró, Yanomami,
Roosevelt, Panará, Urubu Branco, Rio Guaporé e Wawi. Elas concentram 90% do desmatamento
em terras indígenas ocorrido no período.
41
naturais e de apropriação fundiária.66 Nesse sentido, destaca-se que cerca de 6% do
desmatamento detectado pelo DETER em 2019 foi classificado como advindo de mineração ilegal,
atividade de alto impacto químico e biológico para o meio ambiente, e de grave impacto humano
para os povos indígenas.67 Os registros realizados até junho de 2020 mostram que esse índice
já chega a 23%, quase quatro vezes mais do que ocorreu no ano anterior, tendo atingido um
recorde histórico de 10.557 hectares degradados.68 Confira-se:
20
15
~
~
ê:
~
o 10
CL
5 5 6
4
o
2017 2018 2019 2020
Ano
Desmatamento causado por garimpo em TI, detectado pelo DETER entre 2017 e 2020 (até 10.06.2020).
105. Pois bem. Se, em condições normais, as invasões de terras indígenas demarcadas já
constituem comportamentos ilícitos graves, que demandam a intervenção do Poder Público
em favor dos direitos dos povos indígenas e da proteção ao meio ambiente, isso se torna
ainda mais urgente no contexto da pandemia provocada pelo novo coronavírus.
66
Ao lado do desmatamento, a degradação ou o corte seletivo de madeira nas terras indígenas, estágio anterior à
derrubada total da floresta, é um outro indicador importante da ocorrência de invasões ou atividades ilegais nas TIs. O
DETER também vêm identificando o aumento dessas atividades, informando que entre 2018 e 2019 ele foi da ordem
de 83%.
67
De acordo com o Parecer Técnico nº 1.495 de agosto de 2019 produzido pela Secretaria de Perícia, Pesquisa e
Análise do Ministério Público Federal (SPPEA/MPF), que busca a quantificar os danos ambientais decorrentes de
atividades de exploração mineral de ouro no bioma amazônico, o método de lavra a céu aberto, usado pela maioria das
minas de minerais metálicos, provoca impactos no nível fisionômico, químico, biológico e humano, tais como
“Desmatamento, destruição da fauna e da flora locais, alterações físico-químicas dos leitos aquáticos e poluição com
insumos químicos utilizados na mineração estão entre os principais danos ocasionados”. BRASIL. MINISTÉRIO
PÚBLICO FEDERAL. Parecer Técnico nº 1.495/2019 – SPPEA. Disponível eletronicamente em:
<http://www.mpf.mp.br/am/sala-de-imprensa/docs/parecer-sppea-ft-amazonia>.
68
Nesse sentido, é o relatório do IBAMA obtido pelo repórter Leandro Prazeres e usado como base para a reportagem
“Desmatamento causado por garimpos na Amazônia aumenta 23% em 2019 e bate recorde histórico”. O Globo,
06.05.2020. Disponível eletronicamente em: <https://oglobo.globo.com/brasil/desmatamento-causado-por-garimpos-
na-amazonia-aumenta-23-em-2019-bate-recorde-historico-1-24412968>.
42
106. Como se sabe, o avanço do garimpo, da extração de madeira e outras atividades ilegais
sobre as terras indígenas é acompanhado do crescimento de contingentes de populações não-
indígenas empregadas no esforço de derrubada da floresta e extração de minerais. Além de
provocar extensivos danos ambientais às TIs, os invasores são disseminadores potenciais da
COVID-19 entre os indígenas, em violação ao seu direito à saúde e ao isolamento durante a
pandemia, além de pôr em risco a sobrevivência de grupos étnicos inteiros. Trata-se, repita-
se, de risco real de genocídio!
107. O fluxo migratório de não índios em terras indígenas na realização de atividades ilegais
cria situações favoráveis à transmissão e multiplicação de diferentes morbidades, como febre
amarela, malária e leishmaniose; além de doenças transmissíveis, como tuberculose; hanseníase;
sífilis, hepatites e HIV.69 Com a emergência do novo coronavírus, a presença de garimpeiros,
madeireiros e outros invasores nas áreas indígenas passa a representar fator gravíssimo de
risco à exposição das populações indígenas à COVID-19.
109. Como já destacado nesta petição, os povos indígenas são grupos étnicos de grande
vulnerabilidade socioepidemiológica, demandando a adoção de medidas especiais para sua
salvaguarda. Dada as características sociodemográficas das populações indígenas, com contato
69
A. F. Barbieri, I. O. Sawyer. e B.S Soares Filho. “Population and Land Use Effects on Malaria Prevalence in the
Southern Brazilian Amazon”. Hum Ecol 33, 847–874 (2005). Disponível em: <https://doi.org/10.1007/s10745-005-
8213-8>. Elisabeth Carmen Duarte e Cor Jesus Fernandes Fontes. “Associação entre a produção anual de ouro em
garimpos e incidência de malária em Mato Grosso - Brasil, 1985-1996”. Rev. Soc. Bras. Med. Trop. [online]. 2002,
vol.35, n.6 [cited 2020-06-12], pp.665-668.
70
BRASIL. FIOCRUZ. Risco de espalhamento da COVID-19 em populações indígenas: considerações preliminares
sobre vulnerabilidade geográfica e sociodemográfica. Disponível em:
<https://gitlab.procc.fiocruz.br/mave/repo/blob/master/Relat%C3%B3rios%20t%C3%A9cnicos%20-%20COVID-
19/procc-emap-ensp-covid-19-report4_20200419-indigenas.pdf>. Acesso em: 17.06.2020.
43
social intenso e constante entre seus integrantes, pode-se aplicar a elas modelos epidemiológicos
simples relativos à transmissão do vírus em ambientes fechados. Esses modelos revelam que uma
única pessoa infectada com o Sars-CoV-2 pode escalar um surto epidemiológico para até
30% de uma população de 148 pessoas. É o que se constata em estudo de caso conduzido por Ye
et al:71
Day
30
a ímear Seale
Populalion not
1mmune lO
disease.
l Susceptible
25 (l 6 _5296)
- 51 day 80
Population
currently 11
incubation.
l Exposed
31 (20.7596)
-21 day
Number oi.
infections actively
circulating
l
■ lnfectious
50 (33_6696)
2 1 day
60
QRemoved
Population oo :
longe, infectious ; 43 (29.08%)
due to ,solauon_ or : 41 day
1mmunny. ;
O Recovered
Fui recoveries. ! ll (7.7396)
O Hospitalized
ACiive : 3 (2. 0696)
hosprt.alizations. ! o/ day
■ Fatalities
Deaths. i
:
1 (O. 9596)
0/day
111111111111111111011111111111111111111111111111111111111110111
D 20 4G 6( 80 120 140 160 180
110. No modelo apresentado, o ‘R0’ – índice de reprodução básica da epidemia – pode ser
até três vezes maior para população em alto grau de contato do que para grupamentos
urbanos. Daí se pode ter uma noção da taxa de transmissibilidade da COVID-19 em povos
indígenas, o que também tende a se refletir no alto grau de letalidade da doença – agravado, como
já indicado, pela dificuldade ou inexistência de acesso à assistência médica e logística para o
transporte de enfermos.
111. Como se verá, esse quadro dramático já começou a se instalar em terras indígenas
brasileiras. Nelas, o fluxo ilegal de não índios, motivado pelo garimpo e pelo desmatamento,
dentre outras atividades, submete a inúmeros tipos de violência povos tradicionais que, de outra
forma, estariam mais protegidos dentro de suas comunidades. A mais recente dessas violências é
justamente a exposição ao novo coronavírus, que ameaça pôr fim à história de etnias que lutam, há
71
YE et al. Zhonghua Liu Xing Bing Xue Za Zhi. 2020;41(0): E065. doi:10.3760/cma.j.cn112338-20200316-00362.
Disponível em:https://gabgoh.github.io/COVID/.
44
séculos, para sobreviver. Cumpre ao Estado brasileiro evitar esse genocídio, tomando medidas
emergenciais para a retirada de invasores das terras indígenas e para impedir que, uma vez
retirados, a elas tentem retornar.
112. Os itens a seguir voltam-se a comprovar que os invasores de terras indígenas não
estão em home office, nem cumprem qualquer tipo de medida de isolamento social. Na
ausência de providências enérgicas do Poder Público, eles continuarão expondo os indígenas ao
risco real e iminente de contaminação pelo coronavírus.
114. Segundo o PRODES, 2019 foi o ano de maior taxa de desmatamento na TI Yanomami
nos últimos 10 anos. Foram 418 hectares, um aumento de 1.686% em relação a 2018! É o que
demonstra o gráfico de Desmatamento na Terra Indígena Yanomami entre 2010 e 2019,
apresentado a seguir:
450.00
400.00
350.00
ro
: . 300.00
o
ê: 250.00
~
E
"'
.;200.00
E 150.00
~
~
o
100.00
50.00
0.00
2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
Ano
45
115. Esse triste recorde não pôs fim à sanha dos invasores, como demonstra mapa relativo
aos dados mais recentes do DETER:
72
O Sirad é um sistema de monitoramento sistemático do desmatamento que utiliza imagens de radar. Ele usa scripts
da plataforma Google e técnicas de processamento e mapeamento de imagens para detectar anomalias na cobertura da
terra. Por meio das imagens de radar é possível obter informações mesmo em período de alta cobertura de nuvens
(quando o sistema DETER não funciona, pois os seus sensores detectam ondas e, por isso, não atravessa as nuvens).
73
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). O impacto da pandemia na Terra Indígena Yanomami. Relatório.
Disponível eletronicamente em: <https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/covid-19-pode-
contaminar-40-dos-yanomami-cercados-pelo-garimpo-ilegal>.
46
invasões, elas se encontram muito próximas – cerca de 5km – das residências de grande parte dos
yanomamis, sujeitando a TI a risco real e permanente de contaminação.
117. Diante desse quadro, estudo realizado pelo ISA, em parceria com a UFMG e revisado
pela Fiocruz, demonstra que, “se nada for feito para conter a transmissão da doença, cerca de
5.600 Yanomami podem ser infectados, considerando apenas as aldeias próximas às zonas de
garimpo. Isso representa 40% da população que vive nessas áreas”. O estudo explica que o
quadro geral de saúde da população indígena e suas práticas culturais agravam a probabilidade de
alta taxa de transmissão e mortalidade decorrente da COVID-19. Confira-se:
74
Ibidem, p. 04.
47
informações sobre a situação do garimpo na região do rio Catrimani, próximo
às comunidades de Waroma e Pacú, onde as informações recebidas indicam a
presença de 5 balsas de garimpeiros armados, que estão aliciando indivíduos
indígenas e mantendo as comunidades sob ameaça [...].
Ao mesmo tempo, monitoramentos por satélite apontam que a área degradada
pelo garimpo continuou avançando a despeito da pandemia [...]. O último
boletim do sistema de monitoramento elaborado a pedido da HAY pela
organização parceira Instituto Socioambiental (ISA) indica um aumento de 39
hectares em área degradada pelo garimpo na TIY em relação ao mês anterior,
concentrado principalmente nas regiões de Aracaça, Waikás, Kayanau, Homoxi
e Parima. Outras áreas de garimpo não puderam ser identificadas via satélite
pela menor escala de seus impactos. Sabe-se, contudo, dezenas de
acampamentos de garimpeiros menores, que ameaçam a saúde e a sobrevivência
física e cultural dos Yanomami e Ye’Kwana dentro da terra indígena.
Embora não haja informações novas em relação ao grupo indígena em
isolamento voluntário, Moxihatëtëma, persiste a situação de elevado risco em
que se encontram, com focos de garimpo localizados a poucos quilômetros de
sua maloca que chegam a contar com pistas de voo clandestinas. Os
garimpeiros perambulam pelas matas para caçar e pescar, qualquer encontro
acidental ou intencional com esse grupo poderá ser desastroso e ocasionar um
genocídio, visto que eles não possuem defesas imunológicas para doenças
comuns, como a gripe, não contam com qualquer atendimento de saúde e
estão em áreas remotas.”
119. Conforme exposto pela Hutukara Associação Yanomami, tais informações demonstram
a continuidade da circulação de garimpeiros na TIY de forma sistemática, rotineira e impune,
“invadindo comunidades indígenas e as ameaçando sem maiores constrangimentos, à revelia do
Estado e ignorando a situação de ilicitude em que se encontram. E mais, comprova-se o risco de
contágio por COVID-19 pelos mesmos garimpeiros que continuam circulando na TIY”. No
documento enviado à CIDH, a associação também denuncia a possibilidade de mortes em massa
na TI Yanomami, que carece de estrutura médica e logística para a retirada de eventuais doentes:
48
120. Ressalte-se, por fim, que desde o começo da pandemia, a Hutukara Associação
Yanomami vem oficiando ao Conselho da Amazônia, ao Ministério da Justiça e Segurança Pública,
ao Ministério da Defesa e Forças Armadas, ao Ibama e aos Presidentes da Câmara dos Deputados
e do Senado Federal sobre a gravidade da situação. A associação clama pela retirada dos mais de
20 mil garimpeiros que invadiram a TI, mas suas reivindicações vêm sendo ignoradas. No dia 26
de junho, houve grave confronto com garimpeiros, que resultou na morte de dois jovens
yanomamis. A situação é de gravíssima tensão, e iminência de conflito aberto entre indígenas e
garimpeiros, em plena pandemia.75
121. Por tudo isso, verifica-se a urgência da retirada de garimpeiros da TI Yanomami. Não se
pode perder de vista o alerta conjunto do ISA, da UFMG e da Fiocruz no sentido de que “os
Yanomami são o povo mais vulnerável à pandemia de toda a Amazônia brasileira. Além da
invasão garimpeira, os indígenas sofrem com uma grande vulnerabilidade social e um frágil
atendimento de saúde”.76 O cenário é dramático e exige providências imediatas.
122. A Terra Indígena Karipuna, habitada pelos indígenas de mesmo nome, está localizada
entre os municípios de Nova Mamoré e Porto Velho, em Rondônia, a uma distância de cerca de
150 quilômetros da capital. O acesso por estradas deveria facilitar a disponibilidade de serviços,
como atendimento médico, mas o que se vê é que a proximidade das frentes de expansão
econômica vem marcando de tragédia a história desse povo. A TI Karipuna foi homologada apenas
em 1998, por intermédio do Decreto s/n de 09 de setembro de 1998, com 152.930 hectares, 20
anos depois da primeira tentativa de estabelecer uma área para esse povo.
123. Nos últimos dez anos, a TI Karipuna tem se mantido entre as dez terras indígenas mais
desmatadas do país, sendo também uma das mais ameaçadas por queimadas promovidas por não
índios. Desde 2017, o crescimento do desmatamento se tornou ininterrupto, tendo-se observado, só
entre 2018 e 2019, um aumento de 75,5% do total acumulado, totalizando 2.484 hectares. Essa é a
maior taxa de desmatamento da última década e um sinal claro do aumento das invasões, que
75
Veja-se https://g1.globo.com.br/rr/roraima/noticia/2020/06/27/yanomami-temem-ciclo-de-violencia-apos-jovens-
indigenas-serem-mortos-por-garimpeiros-em-rr.ghtml.
76
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). O impacto da pandemia na Terra Indígena Yanomami. Relatório. Op.
cit., p. 04.
49
vêm sendo acompanhadas de ameaças e intimidações à população indígena. Com efeito, em
outubro de 2019, ganhou repercussão nacional a notícia de que invasores atacaram um posto da
Funai localizado dentro da TI, que foi queimado e depredado.77
124. Os dados mensais do DETER revelam que a TI Karipuna já está passando por
desmatamento crescente desde abril e que a tendência é de seguir aumentando nos próximos
meses, no período do verão amazônico, que se estende do final de maio até setembro. Confira-se:
~ 150
~
E 100
iE 50
~
~
o o
77
Carolina Dantas. “Terras indígenas têm alta de 74% no desmatamento; área mais afetada protege povo isolado”. G1,
28.11.2019. Disponível eletronicamente em: <https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/11/28/terras-indigenas-tem-
alta-de-74percent-no-desmatamento-area-mais-afetada-protege-povo-isolado.ghtml>.
50
Alertas de desmatamento na TI Karipuna entre 2019 e 10.06.2020 (DETER).
126. O ataque constante à área demarcada e ao povo que a habita tem apresentado resultados
terríveis. A população vivendo na TI hoje é de aproximadamente 21 pessoas, enquanto há seis
anos esse número era de 55.78 Nesse cenário, as invasões na TI Karipuna tendem a provocar a
dispersão do novo coronavírus entre o grupo, o que pode custar até a sua existência física e
sociocultural.
127. Não por acaso, a TI Karipuna foi uma das Terras Indígenas citadas em carta da
Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, enviada ao Ministério da
Justiça e da Segurança Pública em 20 de abril de 2020. A carta solicita a “adoção de medidas
urgentes” à proteção das terras indígenas “diante da possibilidade de uma catastrófica
mortandade entre povos” e até “da extinção de alguns grupos”. A carta alerta ainda para o fato de
78
ISA. Terras Indígenas no Brasil. TI Karipuna. Disponível eletronicamente em: <https://terrasindigenas.org.br/pt-
br/terras-indigenas/3723>.
51
que grileiros se aproximam da aldeia Panorama, na TI Karipuna, “onde os indígenas se
refugiaram para tentar se proteger do novo Coronavírus”.79
128. Em reportagem publicada pela Revista Veja, em 30 de abril 2020, o repórter Eduardo
Gonçalves destacou: “As entradas de áreas de reserva indígena costumam ser sinalizadas no
Brasil com uma placa escrita ‘Terra Protegida’ em letras maiúsculas. Proteção, no entanto, é o
que menos se vê por esses locais. Desde o ano passado, o garimpo ilegal tem avançado com força
sob as ‘terras protegidas’ e as ações aumentaram agora em meio à pandemia de Coronavírus.
Com as invasões, as tribos indígenas sofrem uma dupla ameaça - perder território e ser
infectada pela Covid-19”.80
129. Nesse quadro, a própria continuidade da existência do povo indígena Karipuna depende
da concessão das medidas requeridas na presente ADPF.
130. A Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau está localizada na região central de Rondônia, tem
1.867.120 ha e foi homologada pelo Decreto nº 275 de 29 de outubro de 1991. Além do povo
indígena Uru-Eu-Wau-Wau, vivem na terra também os Amondawa e os Oro Win – estes
sobreviventes de um massacre ocorrido em agosto de 1963.81 A população desses grupos é
estimada em 209 pessoas. Além desses povos, existem ao menos quatro registros de grupos
indígenas vivendo em isolamento voluntário na TI, cujo quantitativo populacional se desconhece.
131. A TI vem sofrendo com a ação de invasores e roubo de madeira, tendo sido a oitava
mais devastada no país em 2019. Naquele ano, o desmatamento na TI Uru-Eu-Wau-Wau
atingiu a maior taxa dos últimos 10 anos, 1.081,9 ha, um aumento de 15% em comparação
com 2018. Confira-se, a propósito, os dados do PRODES sobre o desmatamento na terra indígena:
79
Daniela Chiaretti. “Comissão alerta Moro para ‘imenso risco’ aos povos indígenas”. Valor Econômico, 22.04.2020.
Disponível eletronicamente em: <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/04/22/comissao-alerta-moro-para-
imenso-risco-aos-povos-indigenas.ghtml>.
80
Eduardo Gonçalves. “Vídeos flagram aviões e retroescavadeiras em garimpo ilegal na Amazônia”. Veja,
30.04.2020. Disponível eletronicamente em: <https://veja.abril.com.br/brasil/videos-flagram-avioes-e-
retroescavadeiras-em-garimpo-ilegal-na-amazonia/>.
81
O massacre foi organizado pelo então seringalista Manoel Lucindo da Silva, denunciado em 1978 e condenado em
1994 pelo Tribunal do Júri Popular pelo crime de genocídio.
52
Desmatamento na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau (PRODES)
1250
1000
750
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250
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2010
---
2011
---
2012
- - -2014
2013
- - -2015
- - -2016
- - -20-
17
- -2018
- - -2019
--
132. O primeiro semestre de 2020 já apresenta uma área desmatada e degradada maior
do que a dos anos anteriores, de acordo com dados do DETER.
133. Neste ano, a Polícia Federal desarticulou uma quadrilha de grileiros acusada de invadir,
grilar e desmatar a TI Uru-Eu-Wau-Wau.82 Os grileiros haviam dividido a terra em 328 lotes, que
eram vendidos por até R$ 40 mil. Em 2019 a Operação Terra Protegida desarticulou outra
organização criminosa que promovia invasões, grilagem e desmatamentos na TI.83
134. Para entender a dinâmica das invasões e depredações dessa TI – e que é extensível a
outras –, deve-se compreender como funciona o Cadastro Ambiental Rural (CAR). Invasores
fazem o CAR (que é autodeclaratório) de TIs como se fossem áreas privadas. Uma vez que os
órgãos ambientais demoram a fazer a validação e a anular esses cadastros ilegais, os invasores
usam o documento para desmatar, lotear e vender a área para terceiros. O objetivo desse
comportamento é criar fatos consumados, que depois auxiliarão o invasor ou o terceiro a busca
anular processos de demarcação em curso ou, ainda, a tentar a redução de TIs homologadas, sob a
82
AMAZÔNIA REAL. Por Elaíze Farias. PF desmonta esquema de grilagem que causou prejuízo ambiental de
R$ 22 mi na terra dos índios Uru-Eu-Wau-Wau. Notícia de 14.08.2017. Disponível em:
<https://amazoniareal.com.br/pf-desmonta-esquema-de-grilagem-que-causou-prejuizo-ambiental-de-r-22-mi-na-terra-
dos-indios-uru-eu-wau-wau/>. Acesso em: 19.06.2020.
83
BRASIL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Força-tarefa Amazônia fez quatro operações e denunciou 30
pessoas e oito madeireiras por crimes em Rondônia. Notícia de 16.10.2019. Disponível em:
<http://www.mpf.mp.br/ro/sala-de-imprensa/noticias-ro/forca-tarefa-amazonia-fez-quatro-operacoes-e-denunciou-30-
pessoas-e-oito-madeireiras-por-crimes-em-rondonia>.
53
alegação de que elas teriam deixado de ser essenciais à sobrevivência física e cultural dos grupos
indígenas.
135. Na TI Uru-Eu-Wau-Wau, há inúmeros cadastros que ainda não foram nem validados,
nem anulados pelo Estado de Rondônia. Cerca de 40% do total desmatado na TI incide em áreas
registradas no CAR. Ademais, existem CAR em áreas da terra indígena que ainda não foram
desmatadas. É o que mostra a figura abaixo:
Registros do Cadastro Ambiental Rural (CAR) incidentes sobre a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau e alertas de desmatamento
entre 2019 e 10.06.2020 (DETER).
136. Tudo indica que as áreas objeto de CAR e ainda não desmatadas terão prioridade para os
invasores e desmatadores, que provavelmente passarão a atuar de forma coordenada e sistemática
no início da seca, ou seja, entre maio e setembro. A tendência é uma explosão do desmatamento
na TI Uru-Eu-Wau-Wau nestes e nos próximos meses.
137. Embora o principal problema da Uru-Eu-Wau-Wau seja a invasão por grileiros, que
efetuam o corte raso na floresta, madeireiros e garimpeiros ilegais também atuam na TI. As
ameaças à referida terra indígena culminaram, em abril de 2020, com o assassinato de Ari
54
Uru-Eu-Wau-Wau, que fazia parte do grupo de vigilância territorial do povo indígena Uru-
Eu-Wau-Wau e registrava e denunciava as extrações ilegais de madeira na TI.84
139. Os Kayapó se destacaram nos anos 1980 e 1990 pela defesa de suas terras nos Estados
do Pará e Mato Grosso, que restaram homologadas, com 3.284.005 hectares, pelo Decreto nº 316,
de 29 de outubro de 1991. A população atual da TI supera 5 mil pessoas, distribuídas em uma rede
extensa de mais de 50 aldeias. Além dessa população, há registro de um grupo em isolamento
voluntário, ainda em estudo (isolados do Rio Fresco).
140. Dados do PRODES revelam que os dois últimos anos foram os de maior taxa de
desmatamento na TI Kayapó. O aumento do desmatamento em 2019 foi de 159%, a taxa mais alta
da última década:
84
G1. “Indígena Uru-eu-wau-wau morto em Rondônia vinha sofrendo ameaças havia meses, dizem ambientalistas”,
20.04.2020. Disponível eletronicamente em: <https://g1.globo.com/ro/rondonia/noticia/2020/04/20/indigena-uru-eu-
wau-wau-morto-em-rondonia-vinha-sofrendo-ameacas-havia-meses-dizem-ambientalistas.ghtml>.
55
Terra Indígena Kayapó
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- 400
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V\
Cl 0
~ 2019 - 2020
141. Por sua vez, dados do DETER indicam que a tendência do desmatamento na TI Kayapó
estava ascendente nos meses de abril e maio. Essa tendência tende a se manter no segundo
semestre de 2020, no período do verão amazônico (período da seca), como ocorreu no ano
passado. Veja-se gráfico e mapa de alertas de desmatamento na TI Kayapó para 2019 e início
de 2020 (até 10.06.2020):
2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
56
Alertas de desmatamento na TI Kayapó entre 2019 e 10.06.2020 (DETER)
57
isolamento voluntário. A população estimada da TI é de 16 mil pessoas. A TI, que conta com 413
mil hectares, foi homologada pelo Decreto nº 98.852, de 23 de janeiro de 1990.
145. A exploração madeireira na TI Araribóia intensificou-se a partir de 2019. Segundo
dados do PRODES, o desmatamento aumentou 23% entre os anos de 2018 e 2019. Os dados do
DETER de 2019 revelam que a exploração ilegal de madeira se concentra nas bordas da TI
Araribóia, como indicado abaixo:
146. Organizações criminosas que exploram a extração ilegal de madeira são presenças
constantes em Araribóia. O sistema de monitoramento do ISA (SIRAD) já detectou mais de 1,2
mil quilômetros de estradas e ramais ilegais no interior da TI.85 O desmatamento acumulado até
março de 2020 já consumiu 29.845,9 hectares de floresta (ou 29.845 campos de futebol). Durante
a pandemia da COVID-19, o desmatamento não cessou e em abril foram detectados 18,2
hectares desmatados.
85
Clara Roman. “Araribóia sofre com violência, invasões e desmatamento”. ISA, 06.11.2019. Disponível
em:<https://www.socioambiental.org/en/node/6576>
58
147. O contato de madeireiros com os povos indígenas naquela área é constante, e vem
frequentemente acompanhado de violência. Em um período de 5 meses, 5 indígenas
Guajajara foram assassinados na região! Em 1º de novembro do ano passado,86 Paulo Paulino
Guajajara foi morto dentro da TI Araribóia. Ele era um Guardião da Floresta – um grupo de
monitoramento territorial, formado pelos próprios indígenas para evitar invasões de madeireiros e
proteger a TI. O último homicídio, o de Zezico Rodrigues, ocorreu em 31 de março deste ano.87
Zezico também lutava pela expulsão de madeireiros da TI Araribóia.
148. A escalada de conflitos, segundo os Guajajara, está relacionada com as invasões, roubo
de madeira e ameaças. As invasões tendem a se intensificar nos próximos meses, no verão
Amazônico (período da seca). Assim, os Guajajara, Awá-Guajá e Awá estarão sujeitos a mais
violência, agravada por riscos reais de contaminação pela COVID-19.
149. A Terra Indígena Munduruku é habitada pelos Munduruku e pelos Apiaká, tendo uma
população estimada de 6.518 pessoas. A TI tem 2.382.000 hectares, está situada no sudoeste do
Estado do Pará e foi homologada pelo Decreto s/nº de 26 de fevereiro de 2004.
86
Diego Junqueira e Mariana Della Barba. “Omissão do Estado e impunidade: o que está por trás do massacre dos
guajajara no Maranhão”. Repórter Brasil, 04.04.2020. Disponível eletronicamente em:
<https://reporterbrasil.org.br/2020/04/omissao-do-estado-e-impunidade-o-que-esta-por-tras-do-massacre-dos-
guajajara-no-maranhao/>.
87
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Mais um Guajajara tomba! Até quando? Notícia de 01.04.2020. Disponível
em: <https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/mais-um-guajajara-tomba-ate-quando>.
59
Terra indígena Mundurucu
450
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~ 2019 ~ 2020
152. Veja-se, ainda, o mapa de alertas de desmatamento na TI Munduruku para 2019 e início
de 2020:
60
ilegal, o que corresponde a 95,6% de toda a área de desmatamento registrada pelo DETER nessa
TI. A área desmatada até o início de junho de 2020 supera o desmatamento registrado no ano
2017, já é mais da metade do de 2018, e pode escalar para um prejuízo ambiental maior do
que o registrado em 2019. É ver-se:
1000
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250
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2017 2018 2019 2020 (a té 10/06)
Ano
154. O cenário para os próximos meses é sombrio. De acordo com informações do Instituto
Escolhas, “com o aumento da demanda por ativos financeiros mais seguros, em um momento de
crise econômica provocada pela pandemia da Covid-19, o preço do ouro disparou nos mercados
internacionais e nos quatro primeiros meses de 2020, o valor das exportações brasileiras cresceu
15%, com a remessa para fora do país de 29 toneladas de ouro”.88 A reportagem, realizada com
fundamento no estudo “A Nova Corrida do Ouro na Amazônia”,89 conclui que “a falta de
controle sobre a cadeia econômica do ouro e diminuição na fiscalização incentivam o aumento da
extração ilegal na floresta”.
88
INSTITUTO ESCOLHAS. “Brasil exportou 29 toneladas de ouro em 2020 e parte dela extraída em garimpos ilegais
na Amazônia, estimulada pelo preço do ouro no mercado internacional”. Disponível eletronicamente em:
<http://www.escolhas.org/brasil-exportou-29-toneladas-de-ouro-em-2020-e-parte-dela-extraida-em-garimpos-ilegais-
na-amazonia-estimulada-pelo-preco-do-ouro-no-mercado-internacional/>.
61
VI.7. Terra Indígena Trincheira Bacajá
155. A Terra Indígena Trincheira Bacajá, localizada no estado do Pará, é habitada pelos
indígenas Mebêngôkre Kayapó, e Xikrin (Mebengôkre), com população estimada de 746 pessoas.
A TI tem 1.651.000 hectares e foi homologada pelo Decreto s/nº de 04 de outubro de 1996.
156. Dados do PRODES revelam que 2019 apresentou a maior taxa de desmatamento
observada na Trincheira Bacajá nos últimos 10 anos, totalizando 3.502 ha de áreas desmatadas, o
que representou um aumento de 176% em relação a 2018:
4000.0
3500.0
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2500.0
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2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
Ano
Desmatamento na Terra Indígena Trincheira Bacajá entre 2010 e 2019 (PRODES, Inpe).
89
INSTITUTO ESCOLHAS. “A Nova Corrida do Ouro na Amazônia”. Disponível eletronicamente em: <
http://www.escolhas.org/wp-content/uploads/2020/05/TD_04_GARIMPO_A-NOVA-CORRIDA-DO-OURO-NA-
AMAZONIA_maio_2020.pdf>.
62
Terra Indígena Trincheira Bacajá
1800
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Alertas de desmatamento do DETER na TI Trincheira Bacajá entre 2019 e maio de 2020 (DETER)
63
158. Atualmente, a TI Trincheira Bacajá é alvo de um intenso processo de invasão e
desmatamento em três regiões: nordeste, sudoeste e sudeste. Em 2019, a Rede Xingu+90
apresentou duas representações ao MPF sobre essas invasões e ressaltou o aumento de cerca de
32 km de estrada na frente de invasão sudoeste, que se origina em uma área invadida com
grandes desmatamentos dentro da TI Apyterewa. Essa estrada cruza de forma ilegal três terras
indígenas: partindo de dentro da TI Apyterewa, ela segue em linha reta pela TI Araweté/Igarapé
Ipixuna, até adentrar a TI Trincheira/Bacajá. O desmatamento acelerado nessa frente de invasão
revela a determinação dos invasores em ocupar e explorar os recursos florestais da TI
Trincheira/Bacajá. É o que se vê no seguinte mapa:
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.,.,,,,.-~ .... ,
~ .. 11 ArawetéAgarapé tpixuna
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Terras Indígenas
Hidrografia principal Desmatamento anterior a 2017
159. Entre janeiro e maio de 2020, o SIRAD – sistema de monitoramento do ISA – detectou
65 hectares desmatados na TI Trincheira Bacajá, concentrados em sua região sudeste. Em
90
A Rede Xingu+ é uma aliança entre as principais organizações de povos indígenas, associações de comunidades
tradicionais e instituições da sociedade civil atuantes na bacia para a consolidação e defesa do corredor e dos direitos
dos povos da floresta que o mantêm.
64
fevereiro deste mesmo ano, caciques e guerreiros reunidos na aldeia Krimex informaram a
continuidade das invasões por não indígenas e pediram apoio para contê-las. No mês de junho, os
Xikrin denunciaram nova invasão nas proximidades das aldeias Mrotdijãm, Bakajá, Kenkro,
Pykatum e RapKô – situadas naquela TI – e demonstraram grande preocupação com um
iminente confronto e com o risco de contraírem a COVID-19. Os indígenas informaram que
houve uma reunião dos invasores no dia 21 de junho de 2020, quando discutiram estratégias de
ampliação e continuidade da invasão. Disseram que os grupos invasores estão entrando pela ponte
chamada Pau Preto, localizada nas seguintes coordenadas geográficas: 05º 26' 42” S 51º 12' 24”
W, na região sudeste da TI.
65
Corredor Diversidade Socioambiental
161. Deve-se recordar que essa TI foi alvo de uma ação de fiscalização pelo Ibama em março
e início de abril de 2020. Contudo, ações tão importantes como esta estão sendo desestimuladas e
descontinuadas pelo governo brasileiro.91 De acordo com reportagem publicada pelo G1, a ampla
repercussão midiática das referidas ações foi “recompensada” pela exoneração injustificada dos
coordenadores de fiscalização da área:
91
Fabiano Maisonnave. “Bolsonaro desautoriza operação em andamento do Ibama contra madeira ilegal em RO”.
Folha de São Paulo, 14.04.2019. Disponível eletronicamente em:
<https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/04/bolsonaro-desautoriza-operacao-em-andamento-do-ibama-contra-
madeira-ilegal-em-ro.shtml>.
66
aldeias de quatro terras indígenas no Sul do Pará: Apyterewa, Cachoeira Seca,
Trincheira, Bacajá e Ituna Itatá.”92
163. O comportamento das autoridades públicas do mais alto escalão do país sugere,
portanto, um endosso tácito – às vezes, nem tão tácito assim – às invasões e ilegalidades cometidas
dentro de terras indígenas, que neles encontram estímulo valioso para se perpetuarem e agravarem.
92
“Governo exonera chefes de fiscalização do Ibama após operações contra garimpos ilegais”. G1, 30.04.2020.
Disponível eletronicamente em: <https://g1.globo.com/natureza/noticia/2020/04/30/governo-exonera-chefes-de-
fiscalizacao-do-ibama-apos-operacoes-contra-garimpos-ilegais.ghtml>.
93
Rubens Valente. “Bolsonaro reagiu contra fiscalização do Ibama 7 dias antes de exonerações”. UOL, 24.05.2020.
Disponível eletronicamente em: <https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2020/05/24/bolsonaro-
mensagens-sergio-moro.htm>.
67
VI.8. Providências Necessárias
165. Diante dos fatos expostos, resta claro o grave e iminente risco de transmissão do novo
coronavírus, decorrente das atuais invasões por não índios de terras indígenas demarcadas, que
vêm causando alto índice de desmatamento e degradação ambientais. Conforme já referido, as
invasões mostram-se absolutamente ilícitas e os indivíduos que as praticam não detêm o direito de
demandar do Estado a manutenção de sua presença nesses territórios. Não são de posseiros de
boa-fé, que têm na área a sua moradia permanente, mas sim pessoas que ingressaram de
modo ilegal naquelas áreas, que vêm degradando para desenvolver atividades econômicas
ilegítimas. Não bastasse, a alta vulnerabilidade epidemiológica dos povos indígenas, somada às
altas taxas de transmissibilidade da doença, periga dizimar povos inteiros e, com isso, provocar o
desaparecimento de culturas, modos de ser e de viver que jamais serão recuperados.
166. O governo federal não vem combatendo essas invasões. Pelo contrário, o
comportamento das autoridades públicas é de absoluta leniência, quando não de encorajamento,
como se vê de declarações do Presidente Jair Bolsonaro.
167. Nesse contexto, é imperativo que se determine à União Federal que proceda à retirada
imediata dos invasores nas Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau,
Kayapó, Araribóia, Mundurucu e Trincheira Bacajá, valendo-se, se necessário for, do auxílio
das Forças Armadas para tanto.
– VII –
68
169. No Estado de São Paulo, por exemplo, os dados apontam que existem 37.915 índios
vivendo em cidades, o que representa 91% da população indígena daquela unidade federativa.
Ainda segundo o IBGE, São Paulo é o 4º município com maior população indígena (população
absoluta) no Brasil: 12.977 índios. Na cidade de Campo Grande (MS), existem atualmente 05
(cinco) aldeias urbanas oficiais. Em Manaus, existe um bairro – o Parque das Tribos – em que
vivem cerca de 2500 indígenas, de 37 diferentes etnias. Essa realidade se reproduz em muitas
outras cidades.
170. São vários os fatores sociais que ocasionam o deslocamento de indígenas para os centros
urbanos, como casos de tratamento de saúde, formação profissional, busca de trabalho e renda,
problemas fundiários decorrentes da falta de demarcação de suas terras etc. Nesse contexto social,
os indígenas sofrem dupla discriminação, pois são tidos como não pertencentes àquele novo local,
e ao mesmo tempo, são classificados como aculturados. Essas afirmações recorrentes de que o
indígena na cidade “deixa de ser índio” são fruto de um preconceito, que congela o indígena no
tempo e no espaço, como se a sua identidade étnica dependesse apenas do local em que vive.
171. Como registrou a Professora Titular de Antropologia da USP, Manuela Carneiro Cunha
a “urbanização” de indígenas está muitas vezes ligada aos “ atratores das cidades e, por outro
lado, ao que os antropólogos chamam de ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico, ou seja,
grosso modo, à idade dos filhos de um casal. Esses atratores são sobretudo os serviços públicos,
principalmente os de educação, de saúde, de documentação, e atualmente os programas de
proteção social ou assistenciais como bolsa família, estendida aos indígenas em 2008, cinco anos
após sua criação”.
172. De todo modo, não cabe ao Estado definir quem é ou não indígena. Indígena é quem se
identifica e é identificado, por um grupo étnico originário, como integrante desse mesmo grupo
(art. 3º, inciso I, da Lei nº 6.001/1973). Pessoas indígenas não se despem dessa qualidade por
viverem em cidades, muito menos por habitarem terras ainda não demarcadas definitivamente pelo
Poder Público. O critério fundamental é “a consciência de sua identidade indígena” (art. 1º.1 da
Convenção nº 169 da OIT), coadjuvada pelo reconhecimento dela por comunidade indígena.
173. Ocorre que, como já se antecipou, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI),
sem qualquer base legal, adotou orientação segundo a qual lhe compete apenas o atendimento de
indígenas aldeados. Com efeito, em entrevista ao Instituto Socioambiental – ISA, o titular da
SESAI, Robson Santos da Silva, afirmou que “[t]oda a estrutura da Sesai está voltada para as
69
Terras Indígenas (TIs)” e que, “[q]uando o indígena é aldeado e ele vem para a cidade, para o
núcleo urbano, fazer o tratamento, a Sesai se responsabiliza por essa pessoa. Nos casos em que a
pessoa mora na cidade, estuda, trabalha, aí [o responsável] é o SUS normal”.94 Na mesma linha,
em nota de esclarecimento contrária aos termos do PL n° 1.142/2020, que também trata de saúde
indígena, o Secretário da SESAI afirmou (doc. 31):
“A alteração das atividades da SESAI, que é cuidar dos povos aldeados irá
trazer o seu enfraquecimento e debilidade no cuidado com os povos mais
vulneráveis perante o Subsistema de Saúde Indígena, ou seja, os povos
aldeados”
175. Como já afirmou corretamente este eg. Supremo Tribunal Federal – com as ressalvas
aqui registradas quanto a alguns termos empregados:
94
Instituto Socioambiental. “Indígenas de cidades com Covid-19 não ficarão sem assistência, mas responsabilidade é
do SUS, diz Sesai”. Disponível eletronicamente em: <https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-
socioambientais/indigenas-de-cidades-com-covid-19-nao-ficarao-sem-assistencia-mas-responsabilidade-e-do-sus-diz-
sesai>.
95
Sobre a superação desse paradigma, veja-se Júlio Jose de Araújo Júnior. Direitos Territoriais Indígenas. Rio de
Janeiro: Editora Processo, 2018.
70
176. A SESAI também não tem atendido os indígenas em áreas cujo processo demarcatório
ainda não foi concluído – orientação que se alinha à absurda política da Funai de não atuar nessas
áreas, para não favorecer supostos “invasores indígenas”. Ocorre que os processos de demarcação
estão completamente paralisados no Brasil desde o governo de Michel Temer. Na atual gestão, o
Presidente Jair Bolsonaro admite e até se vangloria disso, repetindo a todo momento o bordão
inconstitucional de que o governo não irá demarcar mais “nem um centímetro” de terras indígenas.
Nesse quadro, são muitos os grupos que ficam injustificadamente desassistidos pelo subsistema de
saúde indígena. São duplamente atingidos, já que, por um lado, a mora estatal lhes priva de
segurança no seu direito ao território, enquanto, por outro, veem-se também alijados de políticas
públicas voltadas à população indígena, como o acesso ao subsistema sanitário específico.
177. Essas restrições são manifestamente inconstitucionais. E é dever do Estado, diante dos
múltiplos contextos em que vivem os indígenas, assegurar a eles o pleno gozo dos seus direitos
fundamentais, promovendo a igualdade através do respeito à diferença, e oferecendo o
atendimento à saúde dentro do que determinam a sua diversidade cultural e necessidades
específicas. Em sentido semelhante, prevê a Convenção n° 169 da OIT, em seu art. 2.1.c, a
responsabilidade dos governos de adotar medidas para “ajudar os membros desses povos a
eliminar quaisquer disparidades socioeconômicas entre membros indígenas e demais membros da
comunidade nacional de uma maneira compatível com suas aspirações e estilos de vida”.
178. Dessa forma, nota-se que o entendimento adotado pela SESAI, por dispensar tratamento
discriminatório injustificado aos indígenas urbanos ou que não habitem territórios homologados,
viola o princípio da igualdade (art. 5º, caput, CF/88). Desde a elaboração da máxima aristotélica
de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais,96 tal postulado exige das autoridades
públicas que as diferenças de tratamento porventura instituídas sejam razoáveis e voltadas à
promoção de objetivos legítimos,97 o que não se verifica no presente caso. Não se é – ou deixa de
ser – indígena em razão apenas do lugar onde se vive, e é injustificável, sob a ótica da isonomia,
que pessoas que se encontram, sob o ângulo dos valores envolvidos, em situações semelhantes,
submetam-se a tratamentos tão díspares.
179. Cabe salientar que o caráter discriminatório da distinção entre indígenas aldeados e
urbanos, para fins de acesso à seguridade social, já vem sendo assentado pela jurisprudência.
96
Cf. Aristóteles. Ética a Nicômaco. Brasília: UnB, 1985.
97
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São Paulo: Malheiros, 1993.
71
Nessa linha, ao julgar ação civil pública que questionava a exclusão do indígena-artesão urbano da
condição de segurado especial da Previdência, na qual estavam incluídos os indígenas-artesãos
aldeados, decidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região: “por imposição do princípio da
igualdade, a adoção de um tratamento semelhante a ambos no âmbito previdenciário, pois não é
válido como critério de discrímen o aspecto puramente geográfico”. (TRF-4, Apelação Cível nº
0024546-35.20008.404.7100, 3ª Turma, Rel. Des. Fed. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz,
DJe 24/08/2010)
182. De um lado, alijar indígenas não aldeados ou que vivam em terras não homologadas do
atendimento pela SESAI significa, em última análise, negar-lhes o direito constitucional de receber
assistência sanitária compatível com as suas peculiaridades culturais. Recorde-se que aquela
própria Secretaria, na condição de órgão encarregado do subsistema de saúde indígena, surgiu
justamente da necessidade de reformulação da gestão do setor no país, demanda reivindicada pelos
próprios indígenas durante as Conferências Nacionais de Saúde Indígena. Sua principal missão
institucional está relacionada com a proteção, a promoção e a recuperação da saúde dos povos
originários. A regra, conforme o já citado art. 25.1 da Convenção n° 169 da OIT, é promover os
serviços de saúde indígena de acordo com as condições sociais e culturais dos índios.
98
STF. ADI n° 1.076-MC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 07/12/2000.
99
Jane Reis Gonçalves Pereira. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
p. 361.
72
183. De outro lado, qualquer interpretação capaz de colocar em risco a integridade de
indígenas que estejam em espaço diferente de suas terras tradicionais definitivamente demarcadas
afronta o direito desses indivíduos de serem tratados de acordo com a sua cultura. Como já
ressaltado nesta petição, o art. 231, caput, CF/88, confere expressa proteção a todos os povos
originários do Brasil, bem como à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.
Nas palavras de Carlos Frederico Marés de Souza Filho, “o reconhecimento da organização social
e cultural dos povos indígenas é o centro da mudança de paradigmas estabelecida pela
Constituição de 1988” e “o processo de desenvolvimento e os caminhos para o futuro são
assuntos internos de cada povo, que compõem o seu direto à organização social própria”.100
Nisso está inserido, sem dúvida, o direito de todo indígena de que seus direitos sociais – inclusive
a saúde – sejam-lhe assegurados de acordo com “sua identidade social e cultural, seus costumes e
tradições e suas instituições” (art. 2.1.b da Convenção n° 169 da OIT).
184. Logo, deve este eg. STF determinar que a SESAI passe a prestar atendimento a todos os
indígenas no Brasil, independentemente de estarem ou não aldeados ou vivendo em TI’s
homologadas. Essa imposição, evidentemente, não implica em privar os indígenas da faculdade de
buscar os serviços do SUS – fora do subsistema de saúde indígena –, se assim preferirem.
– VIII –
100
Carlos Frederico Marés de Souza Filho. “Comentário aos arts. 231 e 232”. In: J. J. Gomes Canotilho. Comentários
à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2018, p. 2254.
73
186. A adequada resolução de inconstitucionalidades sistêmicas, que comprometem
gravemente a eficácia de direitos fundamentais, é um sério desafio. Duas principais objeções
podem ser lançadas a essa atuação jurisdicional: (i) a de que não é democrática, porquanto permite
que juízes não eleitos interfiram em políticas públicas que deveriam ser formuladas e
implementadas pelos Poderes Legislativo e Executivo; e (ii) a de que não é eficiente, pois os
magistrados não teriam a capacidade institucional necessária para resolver esses complexos
problemas estruturais, que demandam expertise e conhecimentos extrajurídicos em temas
multidisciplinares subjacentes às políticas públicas.
187. Quanto à primeira objeção, sabe-se que a democracia não é o simples predomínio da
vontade da maioria, mas corresponde a sistema político baseado no respeito aos direitos
fundamentais das pessoas, notadamente das minorias.101 Por isso, não ofende o princípio
democrático a atuação jurisdicional que se volte à proteção de direitos fundamentais,
especialmente aqueles titularizados por grupos minoritários e vulneráveis, a exemplo dos povos
indígenas, em cenário de sérias violações e omissões dos poderes governamentais.102 A proteção
de direitos fundamentais, especialmente neste cenário de grave urgência, não pode ficar
condicionada aos azares da política majoritária ou às preferências dos governantes de ocasião.
Especialmente quando esses governantes declaram publicamente o seu absoluto desprezo pelos
direitos dos grupos minoritários, como o Presidente Jair Bolsonaro faz reiteradamente em relação
aos povos indígenas.
188. Já em relação à segunda objeção, cabe dizer que o déficit de expertise do Poder
Judiciário no campo das políticas públicas não exclui a possibilidade de se buscar soluções por
meio de técnicas decisórias mais flexíveis, baseadas no diálogo e na cooperação entre diferentes
órgãos estatais e instituições.103 Dessa maneira, ao invés de a resposta vir pronta do tribunal,
atribui-se a outro ente especializado a sua formulação, em prazo adequado, com o subsequente
monitoramento das medidas, por delegação do Judiciário.
189. Deve-se ressaltar que esse tipo de técnica de decisão alternativa vem sendo largamente
utilizada no Direito Comparado para a solução de graves e massificadas afrontas a direitos
101
Cf. Ronald Dworkin. Freedom’s Law: the moral reading of the American Constitution. Oxford: Oxford University
Press, 2005, p. 01-38.
102
Mesmo correntes da teoria constitucional mais reticentes em relação a uma atuação proativa da jurisdição
constitucional, como os procedimentalistas, reconhecem que, em se tratando da defesa de minorias vulneráveis, esta
atuação se justifica. Veja-se, a propósito, John Hart Ely. Democracy and distrust: a theory of judicial review.
Cambridge: Harvard University Press, 1980.
103
Cf. Carlos Alexandre de Azevedo Campos. Estado de Coisas Inconstitucional. Salvador: JusPodivm, 2016.
74
fundamentais, muitas vezes decorrentes de falhas estruturais em políticas públicas. Na jurisdição
constitucional norte-americana, tais técnicas foram usadas na tentativa de superação da segregação
racial de fato em escolas públicas, na melhoria de instituições psiquiátricas, e também para o
enfrentamento dos gravíssimos problemas prisionais do país.104
191. E a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal também não é estranha à necessidade
de intervenção judicial para a solução de violações sistêmicas a direitos fundamentais. Com efeito,
ao reconhecer o estado de coisas inconstitucional dos presídios brasileiros, no âmbito da ADPF nº
347, esta Corte consignou:
104
Sobre a questão, v. Charles F. Sabel e Willian H. Simon. “Destabilization Rights: How Public Law Litigation
Succeeds”. Harvard Law Review, n° 117, 2004. Em defesa deste modelo de atuação judicial, associado às structural
injunctions, cf. Owen Fiss. The Civil Rights Injunctions. Bloomington: Indiana, 1978.
105
Government of the Republic of South Africa and Others v Grootboom and Others (CCT11/00) [2000] ZACC 19;
2001 (1) SA 46; 2000 (11) BCLR 1169 (4 October 2000).
106
Tribunal Constitucional Federal da Alemanha. BverfGE 125, 175 (2010).
107
Corte Constitucional na Colômbia. Sentencia T-025/2014. Veja-se, a propósito, César Rodrigues Garavito (Coord).
Mas allá del desplazamiento: políticas, derechos y superación del desplazamiento forzado em Colombia. Bogotá:
Ediciones Uniandes, 2010.
75
dessas ações. Como destaca a doutrina colombiana, o Tribunal não chega a ser
um ‘elaborador’ de políticas públicas, e sim um ‘coordenador institucional’,
produzindo um ‘efeito desbloqueador’ [...].”108
192. No presente caso, o equacionamento da questão suscitada nesta petição inicial demanda
que este Tribunal imponha, com urgência, a elaboração de plano voltado à proteção dos povos
indígenas em relação ao avanço da pandemia do novo coronavírus.
194. Não se ignora que a SESAI apresentou um plano – o chamado “Plano de Contingência
Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus em Povos Indígenas” (doc. 32).109
Contudo, os povos indígenas não foram sequer consultados sobre o referido plano, nem tampouco
participaram minimamente de sua elaboração, à revelia do que dispõe o art. 6º, I, “a” e “b”, da
Convenção n° 169 da OIT, que preveem os direitos à consulta prévia e à participação dos povos
indígenas, em relação a medidas que os afetem. E essas não são exigências apenas formais, ou que
visam tão somente à legitimidade democrática das medidas. Mais que isso, elas são fundamentais
para a elaboração de um plano minimamente eficiente, que têm de levar em consideração as
especificidades culturais dos povos indígenas, suas demandas, e problemas que eles vivenciam, e
conhecem melhor que ninguém. Afinal, como pensar em atenção diferenciada à saúde em contexto
intercultural sem um efetivo diálogo com os povos diretamente interessados? Como formular um
plano sem ter o diagnóstico com a participação dos grupos atingidos? De que forma assegurar os
aspectos socioculturais no fluxo de referência do SUS, se a opinião dos indígenas sequer é levada
em consideração? Essa constatação já basta para desqualificar juridicamente o plano apresentado.
195. Além disso, o plano em questão é absolutamente vago e insuficiente, não apontando
medidas concretas, prazos e responsabilidades. Há, ademais, graves falhas e omissão na execução
108
STF. ADPF n° 347-MC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 19/02/2016
109
Disponível eletronicamente em:
<http://docs.bvsalud.org/biblioref/2020/04/1095139/plano_de_contingencia_da_saude_indigena_preliminar.pdf>.
76
das políticas públicas existentes, o que vem resultando no agravamento do risco sanitário para os
povos indígenas brasileiros – alguns deles em situação dramática. Além dos problemas já
apontados de falta de barreiras sanitárias, invasões e discriminação no atendimento pela SESAI,
há relatos de falta de testagem de coronavírus, inclusive para os próprios funcionários de saúde,110
de não instalação de unidades de saúde para o recebimento de casos suspeitos, de falta de
equipamentos de proteção individual em DSEIs, e de quantidade ínfima de insumos e outros
materiais e equipamentos indispensáveis para o atendimento dos povos indígenas,111 dentre
inúmeras outras mazelas.
197. A atuação francamente contrária aos povos indígenas, por parte do governo federal,
justifica que a tarefa de elaboração do plano não seja confiada a órgãos hierarquicamente
subordinados ao Presidente da República – autoridade que vem se notabilizando por reiteradas
manifestações públicas absolutamente hostis aos povos originários brasileiros. No corpo
administrativo da SESAI e da Funai, existem – é claro – agentes públicos com efetivo
compromisso com a sua missão institucional e com os povos indígenas. Porém, o aparelhamento
dos órgãos dirigentes dessas entidades por pessoas abertamente refratárias aos direitos indígenas, e
sem qualquer interlocução com suas organizações e comunidades, comprometeria a qualidade e
eficácia de planos que, no presente contexto, viessem dessas instituições. No atual governo, tais
entidades vêm atuando sistematicamente contra os povos indígenas, com decisões e políticas
refratárias aos seus direitos. Por isso, não se revelam confiáveis para o desempenho de missão
necessária para impedir ou minorar o verdadeiro genocídio que vêm ajudando a produzir.
110 Cf. João Soares. “Sem serem testadas para covid-19, equipes que atendem indígenas temem tragédia”. DW,
30.04.2020. Disponível eletronicamente em: <https://www.dw.com/pt-br/sem-serem-testadas-para-covid-19-equipes-
que-atendem-ind%C3%ADgenas-temem-trag%C3%A9dia/a-53286113>.
111 Cf. MPF recorre de decisão em ação que solicita efetivação de planos de contingência do coronavírus em
comunidades indígenas de MS”, 25.06.2020. Disponível eletronicamente em: <http://www.mpf.mp.br/ms/sala-de-
imprensa/noticias-ms/mpf-recorre-de-decisao-em-acao-que-solicita-efetivacao-de-planos-de-contingencia-do-
coronavirus-em-comunidades-indigenas-de-ms>.
77
198. Assim, a medida mais adequada é a atribuição ao CNDH da tarefa de elaboração do
plano concreto, com a indispensável participação de representantes dos povos indígenas – nos
termos do art. 6º da Convenção n° 169 da OIT –, bem como com a assessoria técnica da Fiocruz.
Sabe-se que tal responsabilidade deve recair sobre o órgão que reúna competência, pertinência
temática e independência. É justamente esse o caso do o CNDH, criado pela Lei nº 12.986/2014, e
que se destina à promoção e a defesa dos direitos humanos no Brasil.
112
Cf. André de Carvalho Ramos. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 415.
78
e a tarefa de elaboração de um plano, voltado à preservação dos direitos humanos mais básicos dos
povos indígenas brasileiros.
201. Há de se destacar, ainda, que o CNDH possui comissão permanente com finalidade
específica de atuar na defesa dos povos indígenas, qual seja, a “Comissão Permanente dos
Direitos dos Povos Indígenas, dos Quilombolas, dos Povos e Comunidades Tradicionais, de
Populações Afetadas por Grandes Empreendimentos e dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
Envolvidos em Conflitos Fundiários”. Como se vê, trata-se de órgão com expertise e competência
legal para formular o plano ora discutido, e depois monitorar a sua implementação, por delegação
desta Suprema Corte. E o CNDH conta ainda com a possibilidade de “nomear consultores ad hoc,
sem remuneração, com o objetivo de subsidiar tecnicamente os debates e os estudos temáticos”
(art. 8º, § 5º, Lei nº 12.896/2014).
202. Por outro lado, a consultoria técnica da Fiocruz e da Associação Brasileira de Saúde
Coletiva (ABRASCO) na elaboração e monitoramento do plano, também postulada pelos
Arguentes, agregaria ao CNDH a vasta experiência dessas renomadas instituições com o tema da
saúde indígena. Como dito, tanto a Fiocruz como a ABRASCO contam com grupos altamente
qualificados, que já estão trabalhando com a questão do impacto da COVID-19 sobre povos
indígenas. Com isso, além da expertise sanitária, elas teriam condições de imprimir maior
celeridade à elaboração do plano, pelo seu conhecimento já acumulado na matéria. E a celeridade
se afigura essencial, diante da urgência do quadro vivenciado.
79
204. Tal exigência funda-se, ainda, no art. 6º da Convenção nº 169 da OIT, que contempla o
direito dos povos indígenas a participarem na adoção das decisões que os afetem. Ela está também
contemplada no art. 18 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas,
segundo o qual os povos indígenas têm direito “a participar na adoção de decisões em questões
que afetem seus direitos, vidas e destinos”, através de representantes eleitos por eles, em
conformidade com seus próprios procedimentos”.
206. Parece razoável que a escolha dos representantes dos povos indígenas para participação
na formulação e implementação do plano em questão incumba: (i) a APIB, por se tratar da única
organização nacional de representação dos povos indígenas do Brasil, e (ii) aos CONDISIs, porque
são os órgãos incumbidos da realização do controle social do subsistema de saúde indígena.
Caberia à APIB indicar pelo menos 3 representantes, e aos presidentes dos CONDISIs designar
pelo menos outros 3 – todos necessariamente indígenas. Assim, restaria assegurada a participação
mínima de 6 representantes indígenas na formulação e monitoramento do plano de enfrentamento
do coronavírus para os povos indígenas.
207. Em síntese, a pretensão dos Arguentes é de que seja determinada a elaboração pelo
CNDH de plano voltado à proteção dos povos indígenas em relação ao avanço da pandemia do
novo coronavírus. Esse plano, a ser apresentado no prazo máximo de 20 dias, deve ser formulado
com auxílio técnico da Fiocruz, e participação indígena de, no mínimo, seis representantes, sendo
pelo menos três indicados pela APIB e pelo menos outros três pelos Presidentes dos CONDISIs.
Após a homologação do referido plano pelo Relator desta ADPF, esse deve ser implementado
113
Cf. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. “Derechos de los pueblos indígenas y tribales sobre sus tierras
ancestrales y recursos naturales: normas y jurisprudencia del sistema interamericano de derechos humanos”. 30 de
dezembro de 2009. Tradução livre. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/indigenas/docs/pdf/tierras-
ancestrales.esp.pdf.
80
pelos órgãos competentes Estado brasileiro, sob o monitoramento do CNDH, mais uma vez com o
auxílio técnico da Fiocruz, assegurada a participação indígena, realizada nos mesmos termos.
– IX –
Da Medida Cautelar
208. Estão presentes os requisitos para a concessão da medida cautelar ora postulada. A
plausibilidade do direito (fumus boni iuris) se assenta nas razões longamente expostas ao longo
desta petição e nos dados fáticos aportados.
209. O periculum in mora, por sua vez, é também evidente. Esta ADPF busca evitar danos
irreparáveis para os povos indígenas e para toda as presentes e futuras gerações, do Brasil e da
Humanidade. Existe risco real de que as gravíssimas falhas do governo federal no enfrentamento à
pandemia do coronavírus entre os povos indígenas, além de causar um elevado número de mortes
e doentes, ocasionem até o extermínio de determinadas etnias. O risco é de genocídio, como vêm
alertando as organizações indígenas, a imprensa e diversos organismos e instituições
internacionais.
210. Nesse cenário dramático, não é possível aguardar o julgamento desta ADPF para
adoção das providências postuladas pelos Arguentes. Até lá, danos terríveis e irreversíveis já
terão se consumado.
211. A extrema urgência – e o fato de que a ação está sendo proposta às vésperas do início do
recesso da Corte – justifica que a medida seja concedida monocraticamente pelo relator, como
expressamente autoriza o art. 5º, § 1º, da Lei nº 9.882/1999. Vale consignar que o ajuizamento da
ADPF neste momento não decorre de uma estratégia deliberada dos Arguentes, mas do caráter
recente da pandemia, da evolução subsequente dos fatos, e da grande dificuldade de reunir todos
os elementos e dados fáticos que embasam esta ação – o que se pode constatar da leitura desta
peça inicial.
81
(a) Seja determinada à União Federal que tome imediatamente todas as medidas
necessárias para que sejam instaladas e mantidas barreiras sanitárias para
proteção das terras indígenas em que estão localizados povos indígenas isolados
e de recente contato. As terras são as seguintes: dos povos isolados, Alto
Tarauacá, Araribóia, Caru, Himerimã, Igarapé Taboca, Kampa e Isolados do Rio
Envira, Kulina do Rio Envira, Riozinho do Alto Envira, Kaxinauá do Rio
Humaitá, Kawahiva do Rio Pardo, Mamoadate, Massaco, Piripkura, Pirititi, Rio
Branco, Uru-Eu-Wau-Wau, Tanaru, Vale do Javari, Waimiri-Atroari, e
Yanomami; e dos povos de recente contato, Zo'é, Awa, Caru, Alto Turiaçu, Avá
Canoeiro, Omerê, Vale do Javari, Kampa e Isolados do Alto Envira e Alto
Tarauacá, Waimiri-Atroari, Arara da TI Cachoeira Seca, Araweté, Suruwahá,
Yanomami, Alto Rio Negro, Pirahã, Enawenê-Nawê, Juma e Apyterewa.
(c) Seja determinado à União Federal que tome imediatamente todas as medidas
necessárias para a retirada dos invasores nas Terras Indígenas Yanomami,
Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayapó, Araribóia, Munduruku e
Trincheira Bacajá, valendo-se para tanto de todos os meios necessários,
inclusive, se for o caso, do auxílio das Forças Armadas.
82
Coletiva (ABRASCO), e participação de representantes dos povos indígenas,
elabore, em 20 dias, plano de enfrentamento do COVID-19 para os povos
indígenas brasileiros, com medidas concretas, e que se tornará vinculante após
a devida homologação pelo relator desta ADPF. Os representantes dos povos
indígenas na elaboração do plano devem ser indicados pela APIB (pelo menos
três) e pelos Presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (pelo menos
três).
–X–
Do Pedido
213. Diante do exposto, requerem os Arguentes que, após a prestação de informações pela
União Federal e pela Funai, responsáveis pelos atos e omissões violadores de preceitos
fundamentais descritos nesta petição, sejam ouvidos o Advogado-Geral da União (art. 103, § 3º,
CF/88); e o Procurador-Geral da República (art. 103, § 1º, CF/88).
214. Requerem, ainda, seja conhecida e julgada integralmente procedente esta ADPF, para se
confirmar, em caráter definitivo, todas as providências postuladas no item anterior, de modo a:
(a) Determinar à União Federal que tome todas as medidas necessárias para que
sejam instaladas e mantidas barreiras sanitárias para proteção das terras
indígenas em que estão localizados povos indígenas isolados e de recente
contato. As terras são as seguintes: dos povos isolados, Alto Tarauacá, Araribóia,
Caru, Himerimã, Igarapé Taboca, Kampa e Isolados do Rio Envira, Kulina do
Rio Envira, Riozinho do Alto Envira, Kaxinauá do Rio Humaitá, Kawahiva do
Rio Pardo, Mamoadate, Massaco, Piripkura, Pirititi, Rio Branco, Uru-Eu-Wau-
Wau, Tanaru, Vale do Javari, Waimiri-Atroari, e Yanomami; e dos povos de
83
recente contato, Zo'é, Awa, Caru, Alto Turiaçu, Avá Canoeiro, Omerê, Vale do
Javari, Kampa e Isolados do Alto Envira e Alto Tarauacá, Waimiri-Atroari,
Arara da TI Cachoeira Seca, Araweté, Suruwahá, Yanomami, Alto Rio Negro,
Pirahã, Enawenê-Nawê, Juma e Apyterewa.
(c) Determinar à União Federal que tome todas as medidas necessárias para a
retirada dos invasores nas Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-Eu-
Wau-Wau, Kayapó, Araribóia, Munduruku e Trincheira Bacajá, valendo-se
para tanto de todos os meios necessários, inclusive, se for o caso, do auxílio das
Forças Armadas.
84
(f) Determinar aos órgãos competentes o cumprimento integral do plano, após a
sua homologação, delegando o monitoramento do plano ao Conselho Nacional
de Direitos Humanos, com auxílio técnico da equipe competente da Fundação
Oswaldo Cruz, e participação de representantes dos povos indígena, nos termos
referidos no item anterior.
Pedem deferimento.
85
~
EUGÊNIO JOSÉ GUILHERME DE ANDRÉ MAIMONI
ARAGÃO OAB/DF n° 29.498
OAB/DF n° 4.935
CAMILLA GOMES
OAB/RJ n° 179.620 JOÃO GABRIEL PONTES
OAB/RJ n° 211.354
ACADÊMICO DE DIREITO
86
ROL DE DOCUMENTOS
Procuração da APIB
Procuração do PSB
Procuração e Substabelecimento
do PSOL
Procuração e Substabelecimento
do PCdoB
Procuração da REDE
Procuração e Substabelecimento
do PT
Procuração e Substabelecimento
do PDT
87
Documento 10 Certidão de composição da Comissão Executiva do
PSOL
Documento 20 Estatuto do PT
88
Documento 27 Oficina "Diretrizes para o atendimento dos povos
indígenas de recente contato: novas experiências,
velhos desafios" – FUNAI
89
*
PARTIDO DOS TRABAUIAOORES
Otretono NaclOnal
O B,§J?,J~ 18
~PCdoB
~
PSB40
CONAQCoordenação Nacional de
Articulação das Comunidades
Negras Rurais Quilombolas
QE 24, Conjunto A, Casa 02, Guará II, CEP: 71060-010. Brasília - DF/Brasil
Contato: [email protected] - [email protected]
(61) 3551-2164 - (61) 99157-7263
www.conaq.org.br
01.421.697/0001-37, com sede na SCLN 304, Bloco A, Sobreloja 01, Entrada 63,
Brasília/DF, CEP 70736-510; PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE – PSOL,
partido político com representação no Congresso Nacional e devidamente registrado no
Tribunal Superior Eleitoral, inscrito no CNPJ sob o n° 06.954.942/0001-95, com sede no
SCS, SC/SUL, Quadra 02, Bloco C, n° 252, 5º andar, Edifício Jamel Cecílio, Asa Sul,
Brasília/DF; PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL – PCdoB, partido político com
representação no Congresso Nacional e devidamente registrado no Tribunal Superior
Eleitoral, inscrito no CNPJ sob o n° 54.956.495/0001-56, com sede no SHN, Quadra 2,
Bloco F, n° 1.224, Edifício Executivo Office Tower, Asa Norte, Brasília/DF; REDE
SUSTENTABILIDADE – REDE, partido político com representação no Congresso
Nacional e devidamente registrado no Tribunal Superior Eleitoral, inscrito no CNPJ sob
o n° 17.981.188/0001-07, com sede no Setor de Diversões Sul, Bloco A, salas 107/109,
Ed. Boulevard Center, CONIC, Asa Sul, Brasília/DF, CEP 70391-900; PARTIDO DOS
TRABALHADORES – PT, partido político com representação no Congresso Nacional
e devidamente registrado no Tribunal Superior Eleitoral, inscrito no CNPJ sob o n°
00.676.262/0001-70, com sede em Setor Comercial Sul, Quadra 02, Bloco C, n° 256, Ed.
Toufic, 1º andar, Brasília/DF, vêm por meio de suas advogadas e advogados abaixo
assinados, com instrumento de mandato em anexo (Documentos 1.4, 2.5, 3.5, 4.4, 5.5,
6.4), com fundamento no art. 102, § 1º, da CRFB/1988 e Lei 9.882/1999, propor a
presente
a fim de que sejam adotadas providências acerca das graves lesões a preceitos
fundamentais da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, decorrentes de
atos comissivos e omissivos do Poder Executivo Federal no combate à pandemia de
Covid-19 nas comunidades quilombolas, pelas razões fáticas e jurídicas a seguir descritas:
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I – Introdução
1
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2020/04/25/coronavirus-quilombolas-
brasil.htm. Acesso em 05. set. 2020.
3
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digno desses grupos formadores da identidade nacional. Justamente em função desse
quadro histórico de maiores vulnerabilidades é que, na Constituição Federal de 1988, se
estabeleceu que o Estado brasileiro tem o dever de agir para assegurar a reprodução física,
social, étnica e cultural das comunidades quilombolas.
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8. Até 1988, essas comunidades viviam às margens dos levantamentos oficiais e
não possuíam marcos normativos próprios de seu reconhecimento enquanto sujeitos de
direitos. Esse quadro foi alterado pelo art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (ADCT) e, posteriormente, com a edição do Decreto 4.887/2003, julgado
constitucional por essa Suprema Corte em fevereiro de 2018 (ADI 3.239/2003).
9. De acordo com levantamento divulgado pelo IBGE, o Brasil conta com 5.972
localidades quilombolas2, tendo a CONAQ registrado a existência de mais de 6.300
comunidades quilombolas. Assim, é notória a nossa diversidade étnica, racial e cultural,
cuja proteção constitucional específica revela-se nos arts. 215 e 216 da CF/1988.
2
Importa registrar que uma mesma comunidade pode ser constituída de várias localidades, conforme as
características territoriais locais. Mais informações no site do IBGE. Disponível em:
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/27487-contra-
covid-19-ibge-antecipa-dados-sobre-indigenas-e-quilombolas. Acesso em: 27 ago. 2020.
3
Ver: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2020/06/13/como-o-coronavirus-esta-afetando-as-
comunidades-quilombolas.htm. Acesso em 05.ago. 2020.
4
Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_populacao_negra_3d.pdf. Acesso em
27. ago. 2020.
5
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Aplicada (IPEA), em 2008, “a população negra representava 67% do público total
atendido pelo SUS, e a branca 47,2%”5. Também indica que a maioria dos atendimentos
prestados a pessoas com renda na faixa de um quarto e meio salário mínimo foram
voltados a pessoas negras, o que deixa evidente a situação socioeconômica da população
negra, que depende do Sistema Único de Saúde (SUS)6.
12. Além disso, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 20137,
embora seja a população negra aquela que mais depende do SUS, é a que menos tem
acesso a ele, em comparação com a população branca. De fato, “(...) num período de um
ano, as pessoas brancas que consultam médico representam 74,8%, enquanto entre a
população preta esse número é de 69,5% e pardas 67,8%”8. Assim, pretos e pardos juntos
ficam abaixo da média nacional de 71,2% (142,8 milhões) de pessoas que consultaram
um médico nos últimos 12 meses.
13. Tal fato é ainda mais alarmante considerando que 67% das pessoas que
dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde são negros e negras 9.. Esse grupo
também corresponde à maioria de pacientes com diabetes, tuberculose, hipertensão e
doenças renais crônicas no país, todas consideradas comorbidades agravantes para o
desenvolvimento de quadros mais gravosos de Covid-19. Sendo notório o desinteresse do
Ministério da Saúde em catalogar essa variável na aferição das políticas de enfrentamento
à pandemia, considerando a situação da população negra quilombola.
5
IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de
Janeiro, 2016.
6
IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de
Janeiro, 2016.
7
IBGE. Pesquisa Nacional de Saúde. Rio de Janeiro, 2013.
8
BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO. Indicadores de Vigilância em Saúde, analisados segundo a variável
raça/cor. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, v. 46, n. 10, 2015.
9
Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_populacao_negra_3d.pdf. Acesso em:
27 ago. 2020.
6
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dos efeitos da pandemia nessa população, já que prevalece a ausência de notificação do
critério raça/cor/etnia em mais de 25% do total de óbitos.
16. Vê-se que a definição de quem importa e quem não importa, quem é
descartável e quem não é, é uma manifestação daquilo que o filósofo camaronês Achille
Mbembe chamou de necropoder. No caso das comunidades quilombolas, ele se manifesta
principalmente produzindo o estado de inanição em que se encontram as políticas
públicas11 destinadas a esse grupo – processo que se mostra urgentemente gravoso no
período de pandemia, com a ausência de medidas de proteção voltadas às comunidades
quilombolas12. Em Nota Técnica de 31 de agosto de 2020, o Instituto de Estudos
Socioeconômicos (Inesc) apresenta os dados do Orçamento Geral da União destinados ao
financiamento de políticas públicas para comunidades quilombolas em 2020, bem como
séries históricas anteriores, demonstrando a precária situação das ações de enfrentamento
à Covid-19 em relação ao grupo13.
17. Nesse sentido, além de chamar a atenção para o fato de que não existem
mais políticas públicas específicas para comunidades quilombolas no Plano
Plurianual (PPA) 2020-2023, as pessoas negras quilombolas também não são
10
MDS. Quilombos no Brasil: segurança alimentar e nutricional em territórios titulados. In: Cadernos de
Estudos Desenvolvimento Social em Debate. PINTO, Alexandro et al. (org.), n. 20. Brasília: Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação, 2005-
2012, 2014.
11
Ver: SILVA, Allyne Andrade e. Direito e políticas públicas. 1 ed. Belo Horizonte, São Paulo:
D’Plácido, 2020.
12
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte; traduzido
por Renata Santini. São Paulo n-1 edições, 2018, p. 41.
13
Ver: ALMEIDA, A. W. B.; MARIN, R. E. A.; MELO, E.A. Orgs. Pandemia e Território. São Luís:
UEMA Edições/ PNCSA, 2020. 1226 p.:il.
7
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destinatárias de uma política pública de saúde específica, subsumidas no orçamento geral
do SUS, que teve subfinanciamento de R$ 20 bilhões em 2020. Dentre as inúmeras
vulnerabilidades apontadas, a Nota Técnica expõe o atual estado de precariedade das
condições mínimas de existência das pessoas negras quilombolas, tendo em vista que,
no ano de 2020, foram autorizados R$ 3,2 milhões da Ação Orçamentária para
Reconhecimento e Indenização de Territórios Quilombolas, a ser executada pelo
Incra, mas nenhum recurso foi pago até o momento. Da mesma forma, até julho de
2020, nenhum recurso havia sido destinado para a promoção da igualdade racial, ainda
que tal política pudesse ter impactos significativos para o restabelecimento prático do
pacto constitucional de proteção das comunidades quilombolas14.
(...) Entregou-se tanto nossa nação que chegamos a esse ponto. Mas dá pra
mudar o nosso país! Isso aqui é só reserva indígena, tá faltando quilombolas...
é outra brincadeira. Eu fui num quilombola em Eldorado Paulista... olha, o
afrodescendente mais leve lá, pesava sete arrobas... (risos da plateia) não fazem
nada! Eu acho que nem pra procriador ele serve mais... (risos da plateia). Mais
de um bilhão de reais por ano gastado com eles. Recebem cesta básica e mais
material… implementos agrícolas e aí você vai em Eldorado Paulista você
compra, arame, de arame de farpado, você compra enxada, pá, picareta, por
metade do preço! Vendido em outra cidade vizinha, por quê? Eles revendem
tudo baratinho lá, Não querem nada com nada.
Esse quilombola era a montante e a jusante do rio Ribeira de Igua, depois
foram a jusantes! Pior ainda, afrodescendente ameaçando matar
afrodescendente! Porque algumas famílias, requereram e foi concedido e
outras famílias de afrodescendentes que tem terra lá tão fora do processo. Olha
a que ponto chegamos, um Governo Federal, estimulando a luta de classes. (...)
... se eu chegar lá não vai ter dinheiro pra ONG. Esses inúteis vão ter que
trabalhar. Pode ter certeza que se eu chegar lá (Presidência), no que depender
de mim, todo mundo terá uma arma de fogo em casa, não vai ter um centímetro
demarcado para reserva indígena ou para quilombola. (transcrição própria)
14
ZIGONI, Carmela. Nota Técnica Orçamento Público voltado para as comunidades quilombolas no
contexto da pandemia Covid-19. Inesc, agosto de 2020.
8
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19. Em 2 de janeiro de 2019, o Presidente Jair Bolsonaro afirmou que o governo
pretende “integrar” indígenas e quilombolas, retomando o discurso assimilacionista, que
não respeita a existência do grupo étnico-racial. Segundo ele, 15% do território nacional
seria destinado a essa população, que não chega a um milhão de pessoas15. Em 8 de maio
do mesmo ano, o Presidente Jair Bolsonaro afirmou, em entrevista para a Rede TV, que
“essa coisa do racismo, no Brasil, é coisa rara. O tempo todo jogar negro contra branco,
homo contra hétero, desculpa a linguagem, mas já encheu o saco esse assunto”16.
Infelizmente, declarações como essa atualizam o projeto de negação dos direitos à
diferença e à diversidade como valores fundamentais de um Estado Democrático de
Direito, os quais devem ser protegidos e resguardados pela Suprema Corte.
15
Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/apos-colocar-demarcacoes-na-agricultura-bolsonaro-
fala-em-integrar-indigenas-quilombolas-23340520.
16
Disponível em:
https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2019/05/08/interna_internacional,1052188/bolsonaro-
afirma-que-racismo-e-algo-raro-no-brasil.shtml. Acesso em: 19 jul. 2020.
17
Ver: MUNIZ, Izadora Nogueira dos Santos. A face feminina kalunga frente ao modelo de
desenvolvimento nacional: a condução do licenciamento ambiental da PCH Santa Mônica no sítio
histórico da comunidade quilombola Kalunga. 2020, 159 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal
do Goiás, Goiânia, 2020
9
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ponto de atenção médica da Marinha estar localizado a poucos metros de
distância.
22. De acordo com a CIDH, espera-se dos Estados de forma, “imediata, urgente
e com a devida diligência, todas as medidas que sejam adequadas para proteger os
direitos à vida, à saúde e à integridade pessoal das pessoas que se encontrem em suas
jurisdições frente ao risco que representa a presente pandemia”. E, ainda, “com base
nas melhores evidências científicas, em concordância com o Regulamento Sanitário
Internacional (RSI), bem como com as recomendações emitidas pela OMS e a OPAS, na
medida em que forem aplicáveis”. A CIDH recomenda, também, sobre as ações dos
Estados:
18
Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/decisiones/pdf/Resolucao-1-20-pt.pdf. Acesso em: 27 ago.
2020.
10
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72. Prevenir o uso excessivo da força baseado na origem étnico-racial e
padrões de perfilagem racial, no âmbito dos estados de exceção e toques de
recolher adotados pela pandemia.
73. Implementar medidas de apoio econômico, bônus e subsídios, entre outros,
para as pessoas afrodescendentes e comunidades tribais que se encontram em
situação de pobreza e pobreza extrema, e outras situações de especial
vulnerabilidade no contexto da pandemia.
74. Incluir nos registros de pessoas contagiadas, hospitalizadas e falecidas pela
pandemia da Covid-19 dados desagregados de origem étnico-racial, gênero,
idade e deficiência.
75. Garantir o acesso a serviços de saúde pública integral de forma oportuna a
pessoas afrodescendentes e comunidades tribais, incorporando um enfoque
intercultural e garantindo a esta população informação clara, acessível e
inclusiva sobre os procedimentos médicos nelas praticados.
11
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II – Da legitimidade ativa e da pertinência temática
26. Os Arguentes PSB, PSOL, PCdoB, REDE, PT e PDT são partidos políticos
com representação no Congresso Nacional. A legitimidade dos partidos políticos
proponentes encontra fundamento no art. 103, VIII, da Constituição Federal c/c art. 2º, I
da Lei 9.882/1999. Tratam-se de partidos políticos com representação no Congresso
Nacional (Documentos 2, 3, 4, 5 e 6), sendo reconhecidos como legitimados universais,
ou seja, cuja legitimidade não depende de demonstração de sua ligação com o objeto do
controle de constitucionalidade abstrato.
12
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30. O ato de constituição contou com a participação de lideranças quilombolas
representantes dos quilombos de Frechal/MA, da Coordenação Estadual Provisória dos
Quilombos Maranhenses (CEQ-MA), de Rio das Rãs, de Lages dos Negros e Rio de
Contas/BA, de Conceição das Crioulas e Castainho/PE, de Mimbó/PI, de Mocambu/SE,
do Campinho da Independência/RJ, de Ivaporunduva/SP, de Furnas do Dioniso e Furnas
da Boa Sorte/MS, do Kalunga/GO e das entidades Centro de Cultura Negra do
Maranhão/MA, da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, do Grupo de Trabalho
e Estudos Zumbi (TEZ/MS), da Comissão Pastoral da Terra (CPT/BA), do Grupo
Cultural Niger Okám - Organização Negra da Bahia, dos Agentes Pastorais Negros
(APNs/GO), do Grupo Cultural Afro Coisa de Nego/PI e do Movimento Negro Unificado
(MNU) dos Estados da Bahia, Goiás, Pernambuco, Rio de Janeiro e do Distrito Federal.
31. É uma organização social de âmbito nacional, sem fins lucrativos, que
representa comunidades quilombolas por todo Brasil. Dela participam representantes das
comunidades quilombolas de 24 estados da Federação, a saber: Alagoas, Amapá,
Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso,
Mato Grosso do Sul, Paraíba, Pará, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Sul, Rio
Grande do Norte, Rio de Janeiro, Rondônia, Sergipe, São Paulo, Santa Catarina e
Tocantins.
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Coordenação Estadual das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Estado do
Ceará (CERQUICE); Coordenação do Estado do Pará (Malungu); Coordenação Estadual
da Comunidades Quilombolas do Tocantins (COEQTO); Associação das Comunidades
Negras Rurais Quilombolas do Maranhão e Comissão Estadual dos Quilombos da Paraíba
(ACONERUQ/MA). Para além dessas há centenas de organizações quilombolas
regionais, municipais e locais, além de comunidades diretamente vinculadas à CONAQ.
34. A CONAQ, conforme art. 4º, “j” de seu regimento interno também tem entre
seus objetivos “propor ações judiciais quando for necessário em defesa de suas filiadas,
inclusive na questão do meio ambiente e contra todas as formas de degradação que
atinjam as comunidades quilombolas”.
Art. 3º A CONAQ tem como objetivo lutar pela garantia de uso coletivo do
território quilombola, propor o desenvolvimento sustentável de políticas
públicas culturais, econômicas, direitos humanos em consideração às
organizações existentes nas comunidades quilombolas nos estados brasileiros.
14
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d) Apoiar as comunidades e organizações quilombolas estaduais a fim de que
conheçam integralmente os direitos que lhes são assegurados por lei;
15
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37. Participou ativa e diretamente na construção do Decreto Federal 4887/2003,
que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos. Dispositivo esse julgado constitucional por esse E. Supremo Tribunal Federal
no âmbito da ação direta de inconstitucionalidade nº 3239.
38. Como dito acima, a CONAQ, constituída como movimento social, tem o
intuito de promover a articulação política das comunidades quilombolas existentes no
Brasil e atua, há mais de 24 anos, na luta pelo reconhecimento e efetivação de seus direitos
étnicos à vida e ao território.
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convencionou chamar de jurisprudência defensiva do STF, formada nos
primeiros anos de vigência da Constituição de 1988, quando se temia que a
ampliação dos legitimados para propor ações diretas pudesse ensejar um
grande aumento do volume de casos do controle concentrado.
11. Tal temor não se confirmou, e a referida interpretação acabou reduzindo as
oportunidades de atuação do Tribunal na proteção a direitos fundamentais, já
que não reconheceu às associações defensoras de direitos humanos (que não
constituem representação de categoria profissional ou econômica) a
possibilidade de acessá-lo diretamente, em sede concentrada. Dificultou,
portanto, a atuação do STF naquela que é uma das funções essenciais de uma
Corte Constitucional. Entendo ser o caso de superar tal interpretação restritiva
do conceito de “classe”, que além de obsoleta é incompatível com a missão
institucional do Tribunal. Como já tive a oportunidade de afirmar, reconheço
como classe “o conjunto de pessoas ligadas por uma mesma atividade
econômica, profissional ou, ainda, pela defesa de interesses de grupos
vulneráveis e/ou minoritários cujos membros as integrem”. Em sentido
semelhante: ADPF 527, rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 02.07.2018; e ADI
5291, rel. Min. Marco Aurélio, j. 06.05.2015[1].
12. Vale observar, ademais, que a Constituição assegurou aos indígenas a
representação judicial e direta de seus interesses (CF, art. 232), bem como o
respeito à sua organização social, crenças e tradições (CF, art. 231). Por essa
razão, entendo, ainda, que o fato de a APIB não estar constituída como pessoa
jurídica não é impeditivo ao reconhecimento da sua representatividade. Não se
pode pretender que tais povos se organizem do mesmo modo que nos
organizamos. Assegurar o respeito a seus costumes e instituições significa
respeitar os meios pelos quais articulam a sua representação à luz da sua
cultura. (ADPF 709/DF, voto do Min. Rel. Luís Roberto Barroso, julgamento
em 08/07/2020, DJ de 10/07/2020).
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considerar que tanto na norma constitucional quanto na norma regulamentadora não há
conceituação do que venha a ser preceito fundamental.
19
Ver: PEREIRA, Paulo F. Soares. Os Quilombos e a Nação: inclusão constitucional, políticas públicas e
antirracismo patrimonial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 103.
18
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proteção do patrimônio cultural (art. 216, §1º) e o tombamento dos sítios detentores de
reminiscências históricas dos antigos quilombos, na forma do art. 216, §5º da
Constituição Federal de 1988.
49. Também não pode haver dúvidas que a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, nos termos do art. 3º, I, III e IV da Constituição Federal, deve ter como
um de seus eixos centrais a garantia de reprodução física, social e cultural do segmento
da população que por mais de três séculos e meio foi sujeitado pelo próprio Estado às
agruras da ignóbil escravidão negra.
50. Não foi por outra razão que este E. Supremo Tribunal Federal assentou que:
51. Essa tutela constitucional aos quilombos é fruto de lutas seculares por
liberdade e igualdade que historicamente tiveram como ápice a busca pelo acesso à terra.
Assim, na experiência quilombola, a justiça social é a garantia do território, pois os
vínculos e os sentimentos atrelados à territorialidade viabilizam os modos de vida
tradicionais, reverenciado na ordem constitucional pelo fundamento de uma sociedade
plural (art. 1º, V da CF/88) e o princípio da autodeterminação dos povos (art. 4º, III da
CF/88) . Isto, uma vez que desde os tempos coloniais o acesso à terra é, e continua a ser,
fator central na luta pela garantia de reprodução física, social, política e étnico-cultural
das comunidades quilombolas, na forma do art. 2º do Decreto Federal 4887/03.
19
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reprodução física, social e cultural das comunidades quilombolas se inclui a proteção à
saúde, nos termos dos arts. 6º e 196 da Constituição Federal de 1988, bem como à vida
digna, nos termos do art. 1º, III e V também da Constituição.
53. Assim, para além do fator essencial de acesso à terra, há outros que demandam
atenção e ação positiva do Estado brasileiro, eis que:
20
GOMES, Rodrigo Portela. Constitucionalismo e quilombos: famílias negras no enfrentamento ao
racismo de Estado. 2 ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 242.
21
BARBOSA, Keith de Oliveira; GOMES, Flávio. Doenças, morte e escravidão africana: perspectivas
historiográficas. In PIMENTA, Tânia Salgado; GOMES, Flávio (orgs.). Escravidão, doenças e práticas de
cura no Brasil. Outras Letras, Rio de Janeiro, 2016, p. 275.
20
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55. No campo da saúde, assim como no acesso à terra, o Estado brasileiro não foi
apenas omisso para com quilombolas pois agiu, e ainda age, por meio de sua estrutura
para coibir e impedir, inclusive através do aparato de persecução penal, os ofícios de cura
relacionados à cultura negra quilombola, marcadamente quanto às religiões de matriz
africana22.
56. A garantia de acesso à saúde é direito fundamental de todas as pessoas (art. 6º;
art. 196 da CF/88). Em função de circunstâncias histórico-sociais, mas fundamentalmente
em vista do comando constitucional de proteção às comunidades quilombolas, é possível
afirmar que há tutela constitucional específica da saúde a essas comunidades, já que a
proteção do seu modo de criar, fazer e viver não pode ser fragmentada do rol de direitos
fundamentais assegurados na Constituição Federal23.
57. Desse modo, por toda a fundamentação jurídica e fática desta inicial os preceitos
violados que merecem proteção do Supremo Tribunal Federal para resguardar a
“integridade da ordem constitucional”24, podem ser sinteticamente descritos como: (i) a
dignidade da pessoa humana (art. 1º, IV, CF/88); (ii) o direito à vida (art. 1º da CF/88);
(iii) o direito à saúde (art. 6º; art. 196 da CF/88); (iv) os direitos quilombolas, revestidos
de fundamentalidade por se tratarem de garantia ao modo de vida quilombola, bem como
sua reprodução física, social, territorial, religiosa, econômica e cultural em sua
diversidade (art. 68 ADCT; art. 215, I e V; art. 216, II e §1º da CF/88); (v) o enfrentamento
as desigualdades étnico-raciais (art. 3º, I, III e IV da CF/88); (vi) a garantia do pluralismo
político e da autodeterminação dos povos (art. 1º, V; art. 4º, III da CF/88).
22
Ver: FERNANDES, Nathália Vince Esgalha; OLIVEIRA, Ariadne Moreira Basílio de. Plano nacional
de liberdade religiosa: os povos de terreiro e a construção do racismo religioso. Revista Calundu - vol. 1,
n. 2, jul-dez 2017.
23
Ver: SOUZA FILHO, Carlos F. Marés de.; PRIOSTE, Fernando G.V. Quilombos no Brasil e direitos
socioambientais na América Latina. Revista Direito e Práxis, v. 8, n. 4, 2017, p. 2903-2926.
24
ADPF 632/DF, voto do Min. Rel. Gilmar Mendes, decisão em 10/12/2019, DJ de 11/12/2019
25
ADPF 33-MC/PA, voto do Min. Rel. Gilmar Mendes, julgamento em 29/10/03, DJ de 06/08/04
21
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Federal de 1988 a garantia, por intermédio de ações positivas do Estado, de reprodução
física, social e cultural das comunidades quilombolas.
59. O atual quadro da crise sanitária é de gravidade sem precedentes. Por sua vez,
a situação de maior grau de vulnerabilidade das comunidades quilombolas aos efeitos da
Covid-19, quando comparadas com o restante da população, impõe a necessidade de
ações positivas por parte do Estado.
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ampliar o número de casos de contágio e de óbitos pela Covid-19 nos territórios
quilombolas. Nesse sentido, as ações e omissões do Poder Executivo Federal
caracterizam cenário de afronta ao projeto constitucional de 198826.
66. A inviabilização da vida quilombola faz com que esses grupos corram riscos
iminentes de desagregação ou desestruturação com a morte de seus integrantes e a perda
de suas referências culturais, especialmente ante os altos riscos de morte das pessoas mais
idosas contaminadas pela Covid-19. Isso porque o conhecimento das comunidades
quilombolas é transferido, principalmente, de maneira oral, pelas pessoas mais idosas das
comunidades.
26
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução: Nelson Boeira, 3. ed. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2010, p. 309.
27
Disponível em: https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/47215-primeiro-caso-de-covid-19-no-
brasil-permanece-sendo-o-de-26-de-fevereiro. Acesso em: 30 ago. 2020.
23
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70. Desse modo, em grande medida, a lesividade é observada na omissão da
União, destacando-se:
24
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III.2 – Subsidiariedade da tutela requerida
74. Observe-se que os requerimentos realizados pelos Arguentes nesta ação não
podem ser realizados, da mesma forma e com a mesma abrangência, através de outros
mecanismos processuais. As limitações impostas pelas ações ordinárias, pelo mandado
de segurança e, inclusive, pela ação civil pública, impedem o manejo desses instrumentos
processuais, assim como de outros quaisquer, para consecução dos fins almejados com a
presente ação.
75. Observe-se que quanto à inviabilidade de manejo da ação civil pública para os
fins pretendidos nesta ação esse E. Supremo Tribunal Federal, por meio do Recurso
Extraordinário nº 1.101.937, de relatoria do Exmo. Sr. Ministro Alexandre de Moraes, irá
julgar a constitucionalidade do art. 16 da Lei 7.347/1985, segundo o qual a sentença na
ação civil pública fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial
do órgão prolator.
28
ADPF 145, Min. Ricardo Lewandowski, decisão monocrática, julgamento em 2/2/2009, DJE de 9/2/2009
e cf. ADPF 3/CE, rel. Min. Sydney Sanches, ADPF 12/DF e 13/SP, ambas de relatoria do Min. Ilmar
Galvão, ADPF 129/DF. Rel. Min. Ricardo Lewandowski.
25
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tratem da questão, o que poderia atingir e suspender a tramitação de eventual ação civil
pública se eventualmente essa questão fosse suscitada.
77. Observa-se que não há outro mecanismo processual idôneo para que sejam
apreciados em conjunto os pedidos para a realização e implementação de um plano
nacional de combate aos efeitos da pandemia de Covid-19 nos quilombos, assim como
para a constituição e funcionamento de um grupo de trabalho interdisciplinar e paritário
para elaborar e monitorar a ação do referido plano.
79. Por fim, compreendendo que o objeto da presente ação é a garantia de vida de
quilombolas, bem como em função da urgência de adoção de medidas eficazes em todo
o território nacional, apenas a autoridade de decisão a ser proferida por esta E. Corte tem
potencial de impor à União, sem demoras, a adoção das medidas pleiteadas.
81. Assim, resta demonstrado que não há outro meio processual para alcançar os
fins que se pretende com a presente ação, sendo de rigor reconhecer o seu caráter
subsidiário.
26
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ação de Estado e orientam a atuação de modo a buscar a superação completa dessas
iniquidades.
a) Vulnerabilidade territorial
· 86. Desse total de títulos emitidos, apenas 129 foram expedidos pelo Incra,
resguardando o direito fundamental de apenas 2,16% das localidades quilombolas
identificadas pelo IBGE.
29
Ver: https://mapasinterativos.ibge.gov.br/covid/indeg/. Acesso em: 04. set. 2020.
30
Ver: MOREIRA, Maira de Souza. Do Direito à Política Pública: a produção social da política
quilombola no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária do Rio de Janeiro. Dissertação
(Mestrado em Sociologia e Direito). Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade
Federal Fluminense, 241 p. 2017.
27
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imprescindível para resguardar os modos de fazer, viver e criar31, não foi implementando
à maioria das comunidades quilombolas.
b) Vulnerabilidade socioeconômica
88. Com suporte nas informações da base sociodemográfica de 2010 do IBGE, o
estudo estimou o grau de precariedade econômica dos municípios com maior densidade
quilombola, usando os dados das rendas per capita média e mediana mensal.
91. Também relevante o dado do estudo que indica o decréscimo no valor médio de
rendimento per capita mensal proporcional ao número de localidades quilombolas do
município. Assim, quanto maior a quantidade de localidades quilombolas em
determinado município, menor é a renda.
31
Ver: SARMENTO, Daniel. A Garantia do Direito à Posse dos Remanescentes de Quilombos antes
da Desapropriação. Revista de Direito do Estado, v. 7, 2007, p. 345-360.
28
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municípios, maior o índice de inadequabilidade em relação ao saneamento dos
domicílios, alcançando o percentual de 32,80% dos domicílios em municípios com 30 ou
mais localidades quilombolas.
Fonte: IBGE, Censo Demográfico (2010); Base de Informações sobre os Povos Indígenas e Quilombolas
(2019).
· 95. O relatório aponta que dentre os 1.672 municípios com localidades quilombolas,
46 não possuem nenhum médico do SUS, 67 possuíam apenas um médico do SUS e 619
entre 2 e 10 médicos do SUS. Em 745 municípios (44%), há um médico do SUS para
mais de 1.000 habitantes;
29
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Total de médicos do SUS, segundo municípios e presença de
localidades quilombolas
Com localidades
Com 1o ou mais
localidades
Com 30 ou mais
localidades 793
Fonte: IBGE, Base de Informações Geográficas e Estatísticas sobre os Indígenas e Quilombolas (2019);
DataSUS, Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (2020).
30
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Munícípios com Localídades Quilombolas: leitos de UTI
AC
Fonte: IBGE, Base de Informações Geográficas e Estatísticas sobre os Indígenas e Quilombolas (2019);
DataSUS, Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (2020).
97. O estudo também identificou que cerca de 57% das localidades quilombolas
não dispõem de respiradores nos municípios a que estão vinculadas. Assim, no total de
1.674 municípios com incidência quilombola, 948 não possuem respiradores no SUS.
31
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Total de respiradores do SUS, segundo municípios e presença de
localidades quilombolas
Com localidades
Com 1o ou mais
localidades
Com 30 ou mais
localidades 89
Fonte: IBGE, Base de Informações Geográficas e Estatísticas sobre os Indígenas e Quilombolas (2019);
DataSUS, Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (2020).
e) Outras vulnerabilidades
98. Além dos recentes dados do IBGE, podemos verificar através de outros
estudos e notas técnicas que constituem conjunto probatório nestes autos (Documento 8,
9), outras vulnerabilidades a que estão condicionadas às comunidades quilombolas,
sobretudo no que tange à garantia de condições sanitárias adequadas, produção que
possibilite segurança alimentar e nutricional, bem como quanto ao fortalecimento e
monitoramento das políticas públicas setoriais e ao acesso à informação sobre as pessoas
negras quilombolas.
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sociedade civil Equipe de Conservação da Amazônia e Instituto Brasileiro de Pesquisa e
Análise de Dados, a pesquisa quilombola se desenvolveu a partir de um processo
participativo.
33
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105. O programa previa a implementação da agenda social quilombola, com
ações voltadas à promoção do acesso à terra, à infraestrutura e qualidade de vida, à
inclusão produtiva e desenvolvimento local e à cidadania.
32
Disponível em: http://monitoramento.seppir.gov.br/. Acesso em: 02. set. 2020.
33
Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/comunidades-tradicionais/programa-brasil-quilombola.
Acesso em: 02. set. 2020.
34
Link da gravação integral do evento: https://www.youtube.com/watch?v=YkVSHu4AVME.
34
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orçamentária específica para quilombolas. O Ministério da Mulher Família e Direitos
Humanos possui R$ 115 mil, porém, nem um real foi executado.
35
FAO. O estado da segurança alimentar e nutricional no Brasil: um retrato multidimensional. Brasília:
FAO, agosto de 2014, p. 76.
36
FAO. O estado da segurança alimentar e nutricional no Brasil: agendas convergentes. Brasília: FAO,
outubro de 2015.
35
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115. Segundo dados da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) de
2013, a segurança alimentar de domicílios urbanos era de 79,5%, enquanto na zona rural
o índice é de 64,5%, meio no qual majoritariamente vivem as comunidades quilombolas.
Se o domicílio rural é composto por negros, o percentual daqueles em segurança alimentar
é menor ainda, apenas 58%.
118. Outro dado da pesquisa acima mencionada aponta para a conclusão de que
mais da metade da população quilombola sofre com intensa insegurança alimentar.
37
CONSEA. Comida de verdade no campo e na cidade. 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar
e Nutricional. Relatório final. Brasília: CONSEA, 2015, p. 22.
38
BORGES, Júlio César et. al. Quilombos do Brasil: segurança alimentar e nutricional em territórios
titulados. Cadernos de Estudos n. 20, MDS. Brasília: SAGI/MDS, 2014.
36
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Observou-se que 55,6% dos adultos quilombolas ficam um dia todo sem comer ou só
fazem uma refeição no dia por ausência de alimentos na residência.
119. Este fato ainda é mais expressivo quando analisado separadamente, em que se
observa que no Baixo Amazonas a frequência da falta de refeições foi de 86,3% dos
adultos. Existe um gradiente de redução entre as regiões que decresce de 86,3% para
24,2% entre o Baixo Amazonas e o Centro-Sul. Estas duas regiões também são
respectivamente as mais inseridas em um contexto de baixa densidade demográfica e
urbanização e a mais inserida no contexto social.
37
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milhões, sob responsabilidade do Ministério da Cidadania. Até a data da publicação da
nota o Ministério havia executado na referida ação apenas R$ 364 mil.
39
Disponível em: https://fianbrasil.org.br/wp-content/uploads/2019/11/Informe-Dhana-2019_v-final.pdf.
Acesso em: 02. set. 2020.
40
CONSEA. Caderno de debates: Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional + 2. Brasília:
Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), 2018. Disponível em:
38
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125. Vale mencionar ainda a extinção do Consea, por meio da Medida Provisória
870/2020. O Conselho é um importante espaço de participação da sociedade civil na
formulação e implementação de políticas, planos, programas e ações e sua extinção
importa em grave retrocesso no tema dos direitos humanos.
128. Ocorre que o Estado brasileiro tem deixado de assegurar, de forma efetiva
e suficiente, o direito à segurança alimentar das comunidades quilombolas durante a
pandemia. Além do ano de 2020 ter sofrido um corte orçamentário drástico no que tange
à implementação da ação orçamentária 2792 (Distribuição de Alimentos a Grupos
Populacionais Específicos), o orçamento, mesmo considerando o contexto da pandemia
e a possibilidade de implementação de ações emergenciais, mesmo sem obrigatoriedade
de licitação, não tem sido executado.
130. Segundo o referido termo, os recursos destacados pelo TED estão sendo
utilizados para aquisição e distribuição de 14.618 cestas básicas, voltadas para 7.309
http://www4.planalto.gov.br/consea/comunicacao/noticias/2018/fevereiro/caderno-de-debates-apresenta-
conjunto-de-reflexoes-experiencias-e-caminhos/versao-web.pdf. Acesso em: 02. set. 2020.
39
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famílias quilombolas, sendo 02 cestas básicas por família. De acordo com o Guia de
Cadastramento de Famílias Quilombolas41, produzido pelo antigo Ministério de
Desenvolvimento Social (MDS) em 2011, estimava-se a existência de aproximadamente
100.000 famílias quilombolas42, distribuídas em cerca de 3.000 comunidades, o que
significa uma média de 33,33 famílias por comunidade. Considerando que o
levantamento realizado pelo IBGE indica a existência de 5.972 localidades no Brasil,
pode-se estimar um total de, no mínimo, 199.000 famílias quilombolas, o que faz com
que o número de famílias atendidas pela Ação de Distribuição de Alimentos da
União Federal seja ínfimo, configurando, de forma indubitável, grave lesão a
preceito fundamental.
Elaboração: AATR.
41
Disponível em:
http://www.mds.gov.br/webarquivos/licitacao/organismos_internacionais/anexo_13_3_guia_cadastrament
o_familias_quilombola.pdf. Acesso em: 01 set. 2020.
42
Estes dados foram obtidos considerando apenas o número de famílias inscritas no CAD Único.
40
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quantitativo, temos: 1.500 famílias quilombolas na Bahia, 567 no Maranhão, 908 no Pará,
2.779 no Paraná, 667 em Pernambuco, 888 no Piauí. Para o mês de agosto, houve
incremento de 20 mil cestas: 2.981 direcionadas para o território Kalunga (Goiás), 5.317
para Alagoas e Sergipe, 3.963 para Rio Grande do Norte e Pernambuco, 7.739 para o
Pará, Amapá e Maranhão.
41
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134. Sendo assim, de modo a resguardar preceito fundamental, cabe ao Poder
Judiciário intervir, garantindo o abastecimento alimentar, com o fornecimento de cestas
básicas compatível com o número de famílias quilombolas no país, bem como o
monitoramento e a publicidade da referida ação.
137. A Open Knowledge Brasil, organização sem fins lucrativos que avalia a
transparência dos dados públicos em diversos países, tem monitorado os dados referentes
à Covid-19 no Brasil e identificado debilidades importantes no que tange ao acesso à
informação.
43
Disponível em: https://transparenciacovid19.ok.org.br/files/ESTADOS_Transparencia-
Covid19_Boletim_3_2.0.pdf. Acesso em: 30 ago. 2020.
42
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139. Conforme preconiza a Constituição Federal, em seu artigo 200, compete ao
Sistema Único de Saúde “II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica,
bem como as de saúde do trabalhador”. E, em atenção aos objetivos da Política Nacional
de Saúde Integral da População Negra, o Ministério da Saúde editou a Portaria 344, em
2017, dispondo sobre o preenchimento da categoria raça/cor nas notificações do Sistema
Único de Saúde.
142. No que diz respeito aos óbitos, dos 111.258 mil casos registrados de morte
pelo novo coronavírus, cerca de 42% foram de pessoas negras (pretas e pardas), 30% de
pessoas brancas e em 26% das ocorrências o critério raça/cor foi ignorado ou está sem
informação. Verifica-se, portanto, que ainda que seja obrigatório o registro de raça/cor,
44
Disponível em: https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/August/27/Boletim-epidemiologico-
COVID-28-FINAL-COE.pdf. Acesso em: 30 ago. 2020.
45
Conforme determina o art. 1º, inciso IV da Lei 12.288/2010: “população negra: o conjunto de pessoas
que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga”.
43
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conforme determina a Portaria 344 de 2017 do Ministério da Saúde, a notificação de casos
ainda não tem sido realizada de forma satisfatória.
145. Ocorre que até o momento não se observa nenhum monitoramento oficial do
Estado brasileiro acerca da extensão dos impactos da Covid-19 nos quilombos, seja no
que diz respeito aos óbitos, à quantidade de pessoas contaminadas, ao número de pessoas
hospitalizadas com síndrome respiratória aguda grave, seja no que diz respeito ao impacto
regional das doenças nos quilombos e o efetivo acesso dessa população ao sistema de
saúde.
44
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mais de um mês após o início da vigência da Lei 14.021/2020, e não há uma única menção
a quilombolas no boletim.
151. Além da previsão do art. 15, inciso III, da Lei 14.021/2020, a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, por meio da Resolução 01/2020, apontou a
necessidade dos Estados membros observarem e adotarem medidas “interseccionais e
46
Disponível em: https://quilombosemcovid19.org/ Acesso em: 2 set. 2020.
45
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prestar especial atenção às necessidades e ao impacto diferenciado dessas medidas nos
direitos humanos dos grupos historicamente excluídos ou em especial risco”. Uma dessas
ações deve ser justamente a garantia de controle e monitoramento de dados desagregados
da pandemia a fim de identificar os diferentes impactos em grupos de especial situação
de vulnerabilidade e, assim, ser capaz de desenvolver políticas públicas eficazes para a
proteção dessas pessoas, conforme se observa na recomendação 74 relativa à população
afrodescendente:
74. Incluir nos registros de pessoas contagiadas, hospitalizadas e falecidas pela pandemia de
Covid-19 dados desagregados de origem étnico-racial, gênero, idade e deficiência.
46
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19, asseguradas a notificação compulsória dos casos confirmados entre quilombolas e sua ampla
e periódica publicidade.
156. Importa destacar que a constituição das ações de isolamento social pelas
comunidades quilombolas está amparada por diversas normas e enunciados nacionais e
internacionais que impõem o dever de o Estado e a sociedade civil respeitarem as
tradições desses grupos culturalmente diferenciados e o seu direito de autodeterminação.
Nesse sentido, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho estabelece
que:
Artigo 2º
1. Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a
participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática
47
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com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela
sua integridade. (grifou-se)
Artigo 4º
1. Deverão ser adotadas as medidas especiais que sejam necessárias para
salvaguardar as pessoas, as instituições, os bens, as culturas e o meio
ambiente dos povos interessados. (grifou-se)
Artigo 5º
Ao se aplicar as disposições da presente Convenção: a) deverão ser
reconhecidos e protegidos os valores e práticas sociais, culturais religiosos e
espirituais próprios dos povos mencionados e dever-se-á levar na devida
consideração a natureza dos problemas que lhes sejam apresentados, tanto
coletiva como individualmente; b) deverá ser respeitada a integridade dos
valores, práticas e instituições desses povos;
Artigo 25
1. Os governos deverão zelar para que sejam colocados à disposição dos povos
interessados serviços de saúde adequados ou proporcionar a esses povos os
meios que lhes permitam organizar e prestar tais serviços sob a sua própria
responsabilidade e controle, a fim de que possam gozar do nível máximo
possível de saúde física e mental.
(...)
4. A prestação desses serviços de saúde deverá ser coordenada com as
demais medidas econômicas e culturais que sejam adotadas no país.
(grifou-se).
157. Neste ponto, verifica-se que são atribuídos não apenas deveres ao Poder
Público, mas também há a previsão expressa de participação das comunidades para
garantia do direito à saúde. Mais ainda, deve o Estado “proporcionar a esses povos os
meios que lhes permitam organizar e prestar tais serviços sob a sua própria
responsabilidade e controle, a fim de que possam gozar do nível máximo possível de
saúde física e mental”.
48
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não apenas à possibilidade dos quilombos colocarem estruturas em seus territórios
determinando a proibição de entrada de terceiros, mas de definirem efetivamente como
será o trânsito de pessoas em seus territórios e de que modo ele será feito.
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saneamento básico, na segurança alimentar e nutricional e na atenção
integral à saúde.
50
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construção de um plano, sempre respeitando as particularidades, vulnerabilidades
e as definições de quilombolas.
167. Assim, por todos os dispositivos legais citados, bem como a indiscutível
situação de vulnerabilidade das comunidades quilombolas diante da proliferação da
Covid-19, e considerando as ações e omissões do Poder Público que violam preceitos
fundamentais e agravam a situação dos quilombos diante da pandemia, entende-se como
urgente a garantia do direito das comunidades quilombolas proporem medidas autônomas
que garantam a preservação de sua saúde.
170. Os despejos não são apenas inconsistentes com a política de “ficar em casa”,
são uma violação ao direito internacional dos direitos humanos, incluindo o direito à
moradia, assim como qualquer despejo que resulte em indivíduos e comunidades sem
51
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moradia47. Diante da pandemia, ser despejado de sua casa é uma potencial sentença de
morte.
172. Por sua vez, o Congresso Nacional, em sessão de 20 de agosto, derrubou veto
à Lei 14.010/20, proibindo o despejo de inquilinos durante emergência do Covid-19, até
30 de outubro de 2020. A lei agora proíbe a concessão de liminares para despejo de
inquilinos por atraso de aluguel, fim do prazo de desocupação pactuado, demissão do
locatário em contrato vinculado ao emprego ou permanência de sublocatário no imóvel.
Essa suspensão abrange imóveis urbanos (comerciais e residenciais) e atinge todas as
ações ajuizadas a partir de 20 de março.
173. Como ajuste pela equidade, a aplicação desse artigo em relação a ações
possessórias, reivindicatórias de propriedade e imissões na posse, que ensejem o despejo
ou deslocamento compulsório de indivíduos ou comunidades, inclusive rurais, requer
47
Ver Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Comentário Geral nº 7 sobre despejos forçados,
parágrafo 16.
48
Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/carta-ao-conselho-nacional-da-
justica-coronavirus. Acesso em: 02. set. 2020.
49
Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/Resolu%C3%A7%C3%A3o-
n%C2%BA-313-5.pdf. Acesso em: 02. set. 2020.
52
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uma interpretação não restritiva. Uma interpretação que assegure o mesmo direito de
permanecerem seguros em suas moradias, comunidades e territórios, em condições de
exercer o isolamento social enquanto durar a pandemia.
174. O relator especial da ONU para a moradia adequada considera que a crise da
Covid-19 no Brasil deve levar o país a suspender todas as ordens de despejo contra
famílias. O Dr. Balakrishnan Rajagopal considera que o Brasil tem o dever urgente de
proteger a todos, especialmente as comunidades sob maior risco e ameaça da Covid-19.
Forçar moradores para fora de suas terras, moradias e comunidades contribui para
fragilizar a segurança e a saúde dos mais vulneráveis.50
50
Disponível em : https://news.un.org/pt/story/2020/07/1719591. Acesso em: 02. set.2020.
51
Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/COVID19Guidance.aspx. Acesso em 02.
set. 2020.
53
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177. A Convenção 169 da OIT, por sua vez, proíbe o traslado de comunidades
quilombolas das terras que ocupam:
Art. 16
1. Com reserva do disposto nos parágrafos a seguir do presente Artigo, os povos
interessados não deverão ser transladados das terras que ocupam.
178. Quando não for possível o retorno às terras tradicionais ao cessarem as causas
que motivaram seu translado e reassentamento, as comunidades quilombolas devem ser
compensadas ou indenizadas:
Art. 16
[...] 4. Quando o retorno não for possível, conforme for determinado por acordo ou,
na ausência de tais acordos, mediante procedimento adequado, esses povos deverão
receber, em todos os casos em que for possível, terras cuja qualidade e cujo estatuto
jurídico sejam pelo menos iguais aqueles das terras que ocupavam anteriormente, e
que lhes permitam cobrir suas necessidades e garantir seu desenvolvimento futuro.
Quando os povos interessados prefiram receber indenização em dinheiro ou em bens,
essa indenização deverá ser concedida com as garantias apropriadas.
52
Disponível em : http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D10088.htm#art5.
Acesso em: 02. set. 2020.
54
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espaços públicos, por falta de políticas agrárias, habitacionais e de reassentamento que
atendam, inclusive, a necessidade excepcional de distanciamento social.
55
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Remeta-se o feito à Procuradoria-Geral da República, para que apresente
manifestação, no prazo de cinco dias. Após, retornem conclusos53.
184. A decisão teve por base o princípio constitucional da precaução, com assento
no artigo 225 da Constituição Federal, que exige do Poder Público um atuar na direção
de mitigar os riscos socioambientais, em defesa da manutenção da vida e da saúde. Para
o relator Ministro Edson Fachin:
185. Este E. Tribunal reconheceu na ADI 3239, por meio do voto da Exma. Sra.
Ministra Rosa Weber, relatora para o Acórdão, que a posse e o uso das terras que histórica
e tradicionalmente ocupam são imprescindíveis para a reprodução e o exercício do modo
específico de vida das comunidades quilombolas:
Lastreado na realidade do fenômeno social que descreve, o conceito de
ocupação tradicional aproxima semanticamente a ocupação quilombola da
ocupação indígena. A área ocupada pelos remanescentes das comunidades dos
quilombos pode ser conceituada como correspondente "às terras utilizadas por
aquele grupo social para garantir sua sobrevivência, ou mais ainda, para
assegurar a reprodução de seu modo de vida específico." Destaco que muitas
vezes a própria ideia de um território fechado, com limites individualizados,
parece estranha aos moradores dessas comunidades. (sem destaques no
original).
...
Pela similaridade, pertinente invocar, aqui, as palavras do Ministro Carlos
Ayres Brito, no julgamento da Pet 3.388, relativamente aos direitos dos povos
indígenas sobre as terras por eles tradicionalmente ocupadas, ao se referir
àquele tipo tradicional de posse como "um heterodoxo instituto de Direito
Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil"54.
53
http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442822&ori=1Relator.
54
ADI 3239. Inteiro teor do Acórdão, para. 4.4.1, p. 41. DJE 01/02/2019 - Ata nº 1/2019. DJE nº 19,
divulgado em 31/01/2019.
56
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186. A Ementa do Acórdão da ADI também expressa o reconhecimento da posse
quilombola como de tipo tradicional, a saber:
190. No caso das famílias cuja renda mínima advém da atividade agrícola, a qual
se destina tanto à segurança alimentar quanto à comercialização, o eventual despejo,
translado ou reintegração de posse comprometeria a produção comunitária e, por
seguinte, a segurança alimentar e nutricional. Se os dados apresentados indicam que as
comunidades quilombolas, mesmo em territórios já titulados, vivenciam situações de
55
ADI 3239. Inteiro teor do Acórdão, p. 3. DJE 01/02/2019 - Ata nº 1/2019. DJE nº 19, divulgado em
31/01/2019.
57
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preocupante insegurança alimentar, não é difícil de visualizar que esse quadro se
agravaria em caso de despejo.
58
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Ministro Edson Fachin, julgamento em 08-02-2018, DJ de 6-8-04 - sem destaque no
original).
195. Ou seja, até o advento da Constituição Federal de 1988 e, portanto, até cem
anos após a edição da lei que aboliu a forma de trabalho escravo do ordenamento jurídico,
as comunidades quilombolas eram invisíveis para o direito. Disso decorre que políticas
públicas só passaram a ter como beneficiárias as comunidades quilombolas com a nova
ordem constitucional. Até então nada havia no direito, ou na ação de Estado, relativo a
políticas públicas de saúde para comunidades quilombolas.
197. Hoje o cenário é distinto quanto às previsões abstratas do direito para a saúde
quilombola, mas ainda muito semelhante ao anterior no que diz respeito à fruição desses
direitos. Também é possível afirmar que o direito prescreve a participação obrigatória das
comunidades quilombolas na formulação das políticas públicas, mas essa não é a
realidade da ação do Estado.
198. No âmbito geral, se observa que a Lei Orgânica da Saúde, instituída pela Lei
8.080/1990, estabelece nos incisos de seu art. 7º que as ações e serviços públicos de saúde
devem ser desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição
Federal, obedecendo ainda aos princípios da: a) universalidade de acesso aos serviços de
saúde em todos os níveis de assistência; b) da integralidade de assistência, entendida
como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos,
individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do
sistema; c) da utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a
alocação de recursos e a orientação programática e d) da participação da comunidade,
entre outros.
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cultural das comunidades quilombolas, impor a necessidade de o Estado planejar ações
específicas para o combate aos efeitos da pandemia de Covid-19 nas comunidades
quilombolas.
200. Mas, muito além das previsões normativas generalistas, no tema da saúde
existem diversas previsões normativas especificamente relacionadas ao tema.
202. Por sua vez, o art. 25, 1, da mesma convenção, prevê que “os governos
deverão zelar para que sejam colocados à disposição dos povos interessados serviços de
saúde adequados ou proporcionar a esses povos os meios que lhes permitam organizar
e prestar tais serviços sob a sua própria responsabilidade e controle, a fim de que possam
gozar do nível máximo possível de saúde física e mental”.
203. Já o artigo 25, 2, prevê que os “serviços de saúde deverão ser organizados,
na medida do possível, em nível comunitário. Esses serviços deverão ser planejados e
administrados em cooperação com os povos interessados e levar em conta as suas
condições econômicas, geográficas, sociais e culturais, bem como os seus métodos de
prevenção, práticas curativas e medicamentos tradicionais”.
56
Ver: https://www.paho.org/hq/index.php?option=com_docman&view=download&category_slug=29-
pt-9251&alias=42015-csp29-7-p-015&Itemid=270&lang=p. Acesso em 02. set. 2020.
60
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conjunto com a 69ª Sessão do Comitê Regional da OMS para as Américas, a adoção de
proposta de políticas de saúde que levem em conta questões étnicas.
206. Por sua vez, no âmbito da Terceira Conferência Mundial contra o Racismo,
a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância foi adotada a
Declaração e o Programa da Ação de Durban, em 8 de setembro de 2001, que também
trata de questões relativas à saúde da população negra, aí incluindo quilombolas.
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210. Para além das previsões normativas que fundamentam a necessidade de
elaboração de um plano nacional de combate aos efeitos da pandemia decorrente da
Covid-19 nos quilombos há outras que impõem a participação ativa das comunidades.
212.
214. Contudo, ante à completa ausência de ações significativas por parte do Estado
brasileiro nas três esferas de governo, as comunidades quilombolas, em conjunto com
povos indígenas e outras comunidades tradicionais, propuseram, monitoraram e
aprovaram a Lei 14.021/2020, que dispõe sobre medidas de proteção social para
prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19.
215. Observa-se que no art. 14, parágrafo único, da Lei 14.021/2020 se impôs ao
Estado que enquanto perdurar o período de calamidade pública em saúde decorrente da
pandemia de Covid-19 deverão ser adotadas medidas urgentes para mitigar os seus efeitos
entre os quilombolas. O citado dispositivo ainda assegura que se aplicam às comunidades
57
Ver: AGUIAR, Heiza Maria Dias de Sousa Pinho. Consulta prévia, livre e informada e o direito como
produto dialético do conflito: o caso das comunidades quilombolas Barro Vermelho e Contente, no
Semiárido piauiense frente a construção da ferrovia Transnordestina. 2018, 101 p. Dissertação (Mestrado)
— Universidade de Brasília, Brasília, 2018.
62
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quilombolas as disposições referentes ao plano emergencial de que trata o Capítulo II da
mesma lei, incumbindo à União o planejamento e a execução das medidas que se fizerem
necessárias.
217. Por meio do referido plano, o Estado, precisamente a União, deveria organizar
ações com metas, prioridades e prazos para combate aos efeitos da Covid-19 nas
comunidades quilombolas, tendo por objetivo apresentar estratégias que orientarão as
gestões federal, estadual e municipal no processo de enfrentamento das iniquidades e
desigualdades em saúde.
219. Diante do exposto, requer-se que seja determinado à União Federal que, no
âmbito de sua competência e com a participação da CONAQ, elabore e implemente um
plano nacional de combate aos efeitos da pandemia de Covid-19 nas comunidades
quilombolas, em um prazo de no máximo 30 dias, devendo observar, no mínimo:
58
WILLIANS, David R.; PRIEST, NAOMI. Racismo e Saúde: um corpus crescente de evidência
internacional. Sociologias, Porto Alegre, ano 17, nº 40, set/dez 2015, p. 124-174. p. 160.
63
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2. Medidas de segurança alimentar e nutricional que incluam ações emergenciais de
distribuição de cestas básicas, indicando ações específicas e cronograma de
implementação;
220. Ademais, que seja determinado à União Federal que constitua um grupo de
trabalho interdisciplinar, participativo e paritário para debater, aprovar e monitorar a
implementação do Plano Nacional de Combate aos Efeitos da Pandemia de Covid-19 nas
Comunidades Quilombolas, e que conte ao menos com a participação de integrantes do
Conselho Nacional de Justiça, do Ministério da Saúde, Ministério da Mulher, da Família
e dos Direitos Humanos, da Fundação Cultural Palmares, da Defensoria Pública da União,
do Ministério Público Federal, do Conselho Nacional de Direitos Humanos, da
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e de representantes das comunidades
quilombolas a serem indicadas pela Coordenação Nacional de Articulação das
64
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Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), bem como um observador do
gabinete do eminente Ministro Relator.
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(iii) convocação da primeira reunião da Sala de Situação, pela União, no
prazo de 72 horas, a contar da indicação de todos os representantes, por
correio eletrônico com aviso de recebimento encaminhado a todos eles, bem
como por petição ao presente juízo;
(iv) designação e realização da primeira reunião, no prazo de até 72 horas da
convocação, anexada a respectiva ata ao processo, para ciência do juízo.
III.2. QUANTO A POVOS INDÍGENAS EM GERAL
1. Inclusão, no Plano de Enfrentamento e Monitoramento da Covid-19 para
os Povos Indígenas (infra), de medida emergencial de contenção e isolamento
dos invasores em relação às comunidades indígenas ou providência
alternativa, apta a evitar o contato.
2. Imediata extensão dos serviços do Subsistema Indígena de Saúde aos povos
aldeados situados em terras não homologadas.
3. Extensão dos serviços do Subsistema Indígena de Saúde aos povos
indígenas não aldeados, exclusivamente, por ora, quando verificada barreira
de acesso ao SUS geral.
4. Elaboração e monitoramento de um Plano de Enfrentamento da Covid-19
para os Povos Indígenas Brasileiros pela União, no prazo de 30 dias contados
da ciência desta decisão, com a participação do Conselho Nacional de
Direitos Humanos e dos representantes das comunidades indígenas, nas
seguintes condições:
(i) indicação dos representantes das comunidades indígenas, tal como
postulado pelos requerentes, no prazo de 72 horas, contados da ciência dessa
decisão, com respectivos nomes, qualificações, correios eletrônicos e telefones
de contatos, por meio de petição ao presente juízo;
(ii) apoio técnico da Fundação Oswaldo Cruz e do Grupo de Trabalho de
Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, cujos
representantes deverão ser indicados pelos requerentes, no prazo de 72 horas
a contar da ciência desta decisão, com respectivos nomes, qualificações,
correios eletrônicos e telefones de contato; (iii) indicação pela União das
demais autoridades e órgãos que julgar conveniente envolver na tarefa, com
indicação dos mesmos elementos.
63. Observa-se, por fim, que todos os prazos acima devem ser contados em
dias corridos e correrão durante o recesso. O término do recesso coincidirá
aproximadamente com a conclusão da elaboração dos planos e seu exame pelo
juízo, de modo que não há risco de concretização de medidas irreversíveis
antes do retorno do Supremo Tribunal Federal a pleno funcionamento,
ressalvadas novas situações emergenciais que possam ocorrer no período e
que demandem interferência imediata.
64. A implementação das cautelares não prejudica que se dê continuidade a
todas as ações de saúde já em curso e planejadas em favor das comunidades
indígenas, que não devem ser interrompidas. (ADPF 709/DF, voto do Min.
Rel. Luís Roberto Barroso, julgamento em 08/07/2020, DJ de 10/07/2020)
66
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1. Seja determinado à União Federal que, no âmbito de sua competência e com a
participação da CONAQ, elabore e implemente um Plano Nacional de Combate aos
Efeitos da Pandemia de Covid-19 nas Comunidades Quilombolas, em um prazo de no
máximo 30 dias, devendo observar, no mínimo:
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1.6. Medidas de apoio às comunidades quilombolas que adotarem ações e/ou
protocolos de isolamento social comunitário, incluindo atividades de
controle sanitário de acesso de terceiros aos territórios tradicionais,
indicando cronograma de implementação;
3. Seja determinado à União, por meio do Poder Executivo Federal, que adote as
medidas necessárias para, no âmbito de sua competência, e em prazo não
superior a 48 horas, inclua o quesito raça/cor/etnia no registro dos casos de
Covid-19, asseguradas a notificação compulsória dos casos confirmados entre
quilombolas e sua ampla e periódica publicidade.
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5º, § 3º, da Lei 9.882/1999, sejam nacionalmente suspensas as ações judiciais,
notadamente ações possessórias, reivindicatórias de propriedade, imissões na
posse, anulatórias de processos administrativos de titulação, bem como os
recursos vinculados a essas ações, sem prejuízo dos direitos territoriais das
comunidades quilombolas;
227. Seja determinado à União Federal que, no âmbito de sua competência e com
a participação da CONAQ, elabore e implemente um Plano Nacional de Combate aos
Efeitos da Pandemia de Covid-19 nas Comunidades Quilombolas, em um prazo de no
máximo 30 dias, devendo observar, no mínimo:
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1.2. Medidas de segurança alimentar e nutricional que incluam ações
emergenciais de distribuição de cestas básicas, indicando ações
específicas e cronograma de implementação;
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1.8. A aplicação do referido plano deve se estender na mesma medida e
proporção dos efeitos da pandemia do novo coronavírus nas
comunidades quilombolas;
Sem prejuízo de que outras medidas sejam estabelecidas no âmbito do grupo
de trabalho interdisciplinar.
2. Seja determinado à União Federal que constitua, em prazo de 48 h, um grupo
de trabalho interdisciplinar, participativo e paritário para debater, aprovar e
monitorar a implementação do Plano Nacional de Combate aos Efeitos da
Pandemia de Covid-19 nas Comunidades Quilombolas, e que conte ao menos
com a participação de integrantes do Conselho Nacional de Justiça, do
Ministério da Saúde, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos,
da Fundação Cultural Palmares, da Defensoria Pública da União, do Ministério
Público Federal, do Conselho Nacional de Direitos Humanos, da Associação
Brasileira de Saúde Coletiva e de representantes das comunidades quilombolas
a serem indicadas pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades
Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), bem como um observador do gabinete
do eminente Ministro Relator;
3. Seja determinado à União, por meio do Poder Executivo Federal, que adote as
medidas necessárias para, no âmbito de sua competência, e em prazo não
superior a 48 horas, inclua o quesito raça/cor/etnia no registro dos casos de
Covid-19, asseguradas a notificação compulsória dos casos confirmados entre
quilombolas e sua ampla e periódica publicidade.
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Nesses termos, pede deferimento.
Brasília, 09 de setembro de 2020.
JEFERSON DA S. PEREIRA
OAB- PE nº 53.237
JOICE S. BONFIM
OAB/BA 28.027
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LAYZA QUEIROZ SANTOS
OAB-PA nº 24483B
MAIRA DE S. MOREIRA
OAB/RJ nº 196.521
PAULO MACHADO
GUIMARÃES
OAB-DF 5358
EUGÊNIO JOSÉ
GUILHERME
DE ARAGÃO
OAB-DF 4.935
RAFAEL DE ALENCAR
ARARIPE CARNEIRO
OAB-DF 25.120
ANDRÉ BRANDÃO
HENRIQUE MAIMONI
OAB-DF 29.498
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ROL DE DOCUMENTOS
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Documento 4.2 - Certidão de Exercício da Comissão Executiva do PSOL
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Documento 10 - Termo de Execução Descentralizada, nº 3/2020 (Ministério da Mulher,
da Família e dos Direitos Humanos - Departamento de Políticas Étnico-Raciais)
IV - Outros
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o
PL!,Ç
NÚCLEO d,
DIREITOS
HUMANOS
Departamento
Jc Dircilo
DEPARTAMENTO DE
DIREITO AO
PL[Ç
CASO N. 12.571
Apresentado por:
Julho, 2023.
1
Equipe
Pesquisa
Amanda Nascimento Gonçalves
Ana Carolina Soares
Carolina Sibilio Villas Bôas
Cristina Figueira Shah
Dayanna Gomes
Fernando Lopez Rangel
Hannah De Gregorio Leão
João Teixeira Duque
José Raimundo
Julia Lima
Leticia da Silveira Lobo
Manuel Netto
Manuela Machado
Maria Clara Valente
Melissa Kreil
Nina Barrouin
Sophia Costa Tabatchnik
Victoria Kurkdjian
2
Índice
I. Apresentação 4
II. Introdução 5
V.1) Dados gerais sobre racismo estrutural na América Latina e no Brasil: uma
perspectiva interseccional
V.2) Dados sobre racismo no mercado de trabalho
V.3) Dados sobre a ausência de políticas públicas de combate ao racismo
VI. Conclusões e propostas de recomendações ao Estado brasileiro 65
3
I. Apresentação
4
II. Introdução
O caso 12.571 (Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira v. Brasil) trata da
discriminação racial1 sofrida por Neusa dos Santos e Gisele Ana Ferreira, ambas mulheres
negras2, em 26 de março de 1998. As duas mulheres foram excluídas de uma seleção de
emprego depois de serem vistas pelo entrevistador da empresa Nipomed Planos de Saúde,
situada em São Paulo. No mesmo dia, no turno seguinte, uma candidata branca apresentou-se
para a seleção e foi recebida por Munehiro Tahara, tendo sido contratada para a vaga.
Note-se que, apesar dos fatos narrados terem ocorrido antes do reconhecimento pelo
Brasil da competência da Corte IDH, em 10 de dezembro de 1998, este tribunal é competente
para analisar as ações e omissões do Estado brasileiro ocorridas posteriormente a essa data.
Isso porque o Estado brasileiro não cumpriu com seu dever de devida diligência, pois não
estabeleceu, até o presente momento, uma decisão judicial definitiva, não puniu o
responsável e, portanto, não reparou as vítimas.
Informa o Relatório de Mérito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) que, após o ocorrido, em 27 de março, as vítimas lavraram boletim de ocorrência na
14ª Delegacia de Polícia de São Paulo. Nessa ocasião, Neusa dos Santos Nascimento relatou
ter sido desencorajada, pela delegada de polícia, a apresentar a denúncia por racismo. A
vítima afirmou, em audiência realizada no dia 28 de junho de 2023, perante a Corte
1
De acordo com o artigo 1.1 da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e a
Intolerância Racial e Formas Correlatas de Intolerância, entende-se por discriminação racial: "qualquer
distinção, exclusão, restrição ou preferência, em qualquer área da vida pública ou privada, cujo propósito ou
efeito seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais
direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados
Partes. A discriminação racial pode basear-se em raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica." No
mesmo sentido, estabelece a Convenção 111 da OIT (Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação) que o
termo discriminação compreende: "a) toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo,
religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a
igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão."
2
Ao longo deste memorial, optamos por utilizar os termos negros/as, pretos/as e pessoas afrodescentes
indistintamente, em conformidade com o entendimento da CIDH. De acordo com a CIDH, "o termo
afrodescendente engloba distintas formas de autoidentificação adotadas pelas pessoas com ascendência africana;
que no caso das Américas corresponde, na sua maioria, a descendentes de pessoas africanas que foram
escravizadas no contexto do tráfico transatlântico de pessoas. Nesse sentido, a Comissão entende que o
reconhecimento da população afrodescendente inclui diferentes formas de autoidentificação de pessoas que
possuem uma ascendência em comum, como os termos “negro”, “moreno”, “pardo”, “zambo”, “preto” e
“creole”, ou conceitos referentes a comunidades coletivas, como “quilombolas” no Brasil; “raizales”, “conselhos
comunitários”, “palenqueras e palenqueros” na Colômbia; “garífunas” na América Central; “mascogos” no
México; ou “maroons” no Suriname."(CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las
personas afrodescendientes: Estándares interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la
discriminación racial estructural, OAS. Documentos oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021, p.16).
5
Interamericana que, ao comparecer à Delegacia Especializada em Crimes Raciais no seu
horário de almoço (afinal, após os fatos supramencionados, inseriu-se na equipe de uma
pesquisa realizada pela Fundação CEAT) enfrentou a seguinte afirmação da delegada que
registrou seu depoimento: "se você está na hora do almoço, você está trabalhando, e se você
está trabalhando [a conduta racista de Tahara] não teve nenhum impacto na sua vida".
Em 4 de novembro de 1998, o Ministério Público do Estado de São Paulo ofereceu
denúncia criminal contra Munehiro Tahara pela prática do crime de preconceito de raça ou de
cor, com base no art. 4º da Lei 7.716/89. A denúncia foi recebida pelo juiz de Direito da 24ª
Vara Criminal do Foro Central da Capital de São Paulo. Após a instrução, o juiz, em 27 de
agosto de 1999, julgou improcedente a ação penal e absolveu Munehiro Tahara, alegando
ausência de prova certa e segura, apesar do depoimento de ambas as vítimas.
Após pedido de recurso das vítimas, em 17 de novembro de 1999, e do Ministério
Público, em 3 de março de 2000, a Quinta Câmara Extraordinária Criminal do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo deu provimento à apelação criminal, em 11 de agosto de
2004, julgando procedente a ação penal e condenando o acusado à pena de dois anos de
reclusão. No entanto, a decisão declarou extinta a punibilidade do acusado pela ocorrência da
prescrição da pretensão punitiva do Estado. Vale destacar que a decisão contraria
frontalmente a Constituição Federal brasileira em seu artigo 5º, inciso XLII, segundo o qual
"a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão,
nos termos da lei".
Por essa razão, em 5 de outubro de 2004, foram interpostos embargos de declaração
contra o acórdão. Em 22 de setembro de 2005, os embargos foram julgados, excluindo-se a
prescrição e estabelecendo-se o regime semiaberto para o cumprimento da pena. Tal decisão
transitou em julgado no dia 8 de junho de 2006. Em 31 de agosto do mesmo ano foi expedido
mandado de prisão contra Munehiro Tahara. No entanto, em 6 de junho de 2007, o STJ, em
sede de habeas corpus impetrado por Munehiro Tahara, concedeu ordem para permitir ao réu
o cumprimento da pena em regime aberto. Em 7 de novembro de 2007, Munehiro ajuizou
processo de Revisão Criminal perante o Tribunal de Justiça de São Paulo. De acordo com a
perita, convocada pela CIDH na audiência realizada perante a Corte IDH, em 28 de junho de
2023, Thula Pires, Munehiro foi absolvido em sede de Revisão Criminal, não havendo
informações sobre o cumprimento da pena.
Do ponto de vista cível, em 25 de outubro de 2006, a vítima Neusa dos Santos
Nascimento iniciou ação cível de reparação de danos, posteriormente extinta pelo juízo da 9ª
6
Vara Cível do Estado de São Paulo, em 5 de dezembro de 2007, tendo sido alegado que a
peticionária não promoveu a citação ficta do réu no prazo judicial. Nenhuma das duas vítimas
foi civilmente reparadas até o momento3.
De acordo com a CIDH, a responsabilidade internacional do Estado pela violação dos
artigos 8.1, 24, 25 e 26 e 1.1 da CADH decorre da demora na prestação jurisdicional e da
falta de resposta judicial adequada aos atos de discriminação sobre o direito ao acesso ao
trabalho das vítimas. A CIDH destacou que:
apesar da existência de processos judiciais e condenações penais pelo direito
de discriminação [internamente], não havia uma decisão judicial definitiva,
e não foi aplicada nenhuma forma de restituição dos direitos violados
nem se havia procurado a reparação integral para as supostas vítimas
(grifo nosso).4
Este memorial de amicus curiae tem como objeto central de análise o contexto
brasileiro de racismo estrutural5, em especial o seu impacto na garantia do direito ao trabalho
de mulheres negras no Brasil. O caso de Neusa dos Santos e Gisele Ana Ferreira é
precisamente um reflexo desse contexto, revelando, conforme restará demonstrado, um
padrão sistemático de violação de direitos humanos de mulheres negras brasileiras.
Defendemos que o presente caso é também uma importante oportunidade para que esta Corte
aprofunde e avance no debate sobre a reparação plena e integral de vítimas de racismo e
discriminação racial, sobretudo em sua dimensão interseccional e estrutural da não-repetição.
Como se sabe, o sistema de peticionamento de casos perante a Corte IDH busca
estabelecer a responsabilidade internacional do Estado por violações de direitos humanos e
definir as reparações que deverão ser implementadas pelos Estados. A reparação é, portanto,
a "consequência maior do descumprimento de uma obrigação internacional (quebra de
3
Vale destacar, sobre esse ponto, que o ordenamento jurídico brasileiro prevê, na Lei n° 7.347/85, a
possibilidade jurídica de órgãos públicos – como o Ministério Público do Trabalho e a Defensoria Pública –
ajuizarem ação civil pública, com pedido de indenização por dano difuso não patrimonial. Lesados valores de
um grupo – como podemos considerar as mulheres negras, historicamente discriminadas no Brasil – há que se
garantir a essa coletividade a defesa dos seus direitos, de sua honra e dignidade. De acordo com o art. 1º, inciso
VII da referida Lei, "Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de
responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: VII – à honra e à dignidade de grupos raciais,
étnicos ou religiosos."
4
CIDH. Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira, Relatório N. 5/20 (Caso 12.571), Brasil,
OEA/Ser.L/V/II.175, 2020, p.13.
5
O conceito de racismo estrutural, segundo Silvio Almeida, indica que o "racismo é uma decorrência da própria
estrutura social, ou seja, do modo 'normal' com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e
até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural"
(ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020, p.50).
7
compromissos internacionais)". Em outras palavras, trata-se de "toda e qualquer conduta do
Estado infrator para eliminar as consequências do fato internacionalmente ilícito"6 .
O artigo 63 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos estabelece, nesse
sentido, que "quando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegidos nesta
Convenção, a Corte determinará que se assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou
liberdade violados". Tal dispositivo deve ser lido, pelo princípio da interpretação evolutiva
dos direitos humanos, à luz do artigo 10 da da Convenção Interamericana contra o Racismo, a
Discriminação Racial e a Intolerância Racial e Formas Correlatas de Intolerância, ratificada
pelo Brasil em 2021. Essa determina que:
os Estados Partes comprometem-se a garantir às vítimas do racismo, discriminação
racial e formas correlatas de intolerância um tratamento equitativo e não
discriminatório, acesso igualitário ao sistema de justiça, processo ágeis e eficazes e
reparação justa nos âmbitos civil e criminal, conforme pertinente.
Nesse sentido, a reparação no SIDH engloba não apenas aspectos pecuniários, mas
uma série de medidas de natureza diversa – psicológicas, sociais, estruturais – que buscam
melhor se adequar às demandas das vítimas. Fazem parte do conceito de reparação as
seguintes categorias: (i) restituição na íntegra, (ii) cessação do ilícito, (iii) satisfação
(reparação de danos de forma não pecuniária), (iv) garantias de não-repetição (estruturais),
(v) obrigação de investigar, processar e punir (medidas em matéria de verdade e justiça);
indenização pecuniária pelos danos (medidas de compensação)8. Essas categorias foram
construídas também em consonância com os Princípios Básicos da ONU de 2005 sobre o
Direito à Reparação das Vítimas de Graves Violações de Direitos.
6
RAMOS, André Carvalho. Responsabilidade internacional do Estado por violação de direitos humanos, R.
CEJ, n. 29, abr/jun 2005, p. 58.
7
PIOVESAN, Flávia; CRUZ, Julia. Curso de Direitos Humanos: Sistema Interamericano. Rio de Janeiro:
Forense, 2021, p. 210.
8
CIDH. Directrices generales de seguimiento de recomendaciones y decisiones de la Comisión Interamericana
de Derechos Humanos, OEA/Ser.L/V/II.173, 2019; CIDH. Compendio de la Comisión Interamericana de
Derechos Humanos sobre verdad, memoria, justicia y reparación en contextos transicionales, OAS. Documentos
oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021.
8
Se, por um lado, é possível afirmar que o debate sobre responsabilidade internacional
do Estado e sobre a consequente reparação integral das vítimas tem avançado no SIDH, por
outro lado, não se pode ignorar que ainda existem importantes lacunas a serem enfrentadas. A
própria CIDH, em seu relatório "Derechos Económicos, sociales, culturales y ambientales de
personas afrodescendientes", publicado em 2021, constata a existência de vazios na definição
de um conjunto de categorias, variáveis e indicadores que permitam a construção, no âmbito
do SIDH, de instrumentos pedagógicos e de reparação, desde uma perspectiva
interseccional9, capazes de dar resposta a violências transpassadas por múltiplas categorias de
vulnerabilidade, particularmente o gênero, a origem étnico-racial e a classe socioeconômica10.
O caso Neusa dos Santos e Gisele Ana Ferreira é, nesse sentido, uma importante
oportunidade para que esta Corte enfrente tais lacunas.
Por meio do presente memorial de amicus curiae, sustentamos que o caso Neusa dos
Santos e Gisele Ana Ferreira:
(1) É um reflexo do racismo estrutural que constitui a sociedade brasileira, devendo
ser necessariamente analisado à luz desse contexto. Não se trata de um caso isolado,
episódico ou esporádico, mas de um padrão de violência que recai sobre mulheres negras no
Brasil. Por isso, o julgamento do caso em questão requer uma análise contextual que
considere as circunstâncias históricas, materiais, temporais e espaciais do racismo. A
responsabilidade internacional do Estado por violações de direitos humanos, em um caso
como este, de discriminação estrutural11, decorre sobretudo da constatação de que o Brasil
não tem adotado, em sua história e até o presente, medidas específicas e eficazes para
transformar estruturalmente a situação particular de vitimação das mulheres negras em seu
território.
9
CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las personas afrodescendientes: Estándares
interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la discriminación racial estructural, OAS.
Documentos oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021, p.14.
10
Ibid., p.25.
11
De acordo com a CIDH, a discriminação estrutural ou sistêmica se refere ao conjunto de normas, regras,
hábitos, padrões, atividades, estandartes de conduta, de jure ou de fato, que geram de maneira generalizada uma
situação de inferioridade e exclusão de um grupo de pessoas; essas características se perpetuam com o papssar
do tempo e inclusive entre gerações. Por conseguinte, a discriminação estrutural não se dá de maneira isolada,
esporádica ou episódica, senão que emerge de um contexto histórico, socioeconômico e cultural (CIDH. Informe
Afrodescendientes, violencia policial, y derechos humanos en los Estados Unidos, OAS. Documentos oficiales;
OEA/Ser.L,2018, para. 48).
9
(2) É uma oportunidade para que esta Corte aprofunde e avance no debate sobre a
reparação plena e integral de vítimas de racismo e de discriminação racial, adotando uma
abordagem interseccional12 no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Entendemos que o SIDH deve se comprometer com a promoção de uma justiça reparadora, o
que implica, em situações de racismo, na adoção de uma perspectiva interseccional – que leve
em consideração os fatores que podem agravar a situação de vulnerabilidade, como gênero e
pobreza – e no consequente fomento de mudanças culturais e estruturais, capazes de
reconhecer, como afirma a CIDH, a memória histórica afrodescente, através da adoção de
medidas de satisfação, restituição de direitos, garantias de não repetição, reabilitação, e
indenização, como forma de reparação integral13.
A fim de fundamentar nossos argumentos, apresentamos a seguir: os parâmetros
interamericanos de combate ao racismo e à discriminação racial aplicáveis ao caso de Neusa
dos Santos e Gisele Ana Ferreira; os casos brasileiros, na CIDH e na Corte IDH, que
abordam, direta ou indiretamente, situações de discriminação racial no ambiente laboral; e
dados existentes – produzidos por órgãos oficiais e organizações não governamentais – sobre
o racismo e a discriminação racial no ambiente de trabalho no Brasil.
Ao buscar refletir sobre os aspectos da responsabilidade internacional do Estado e das
formas de reparação em casos de racismo, o presente memorial de amicus curiae adota uma
lente decolonial de análise dos direitos humanos. Iluminando o caráter estrutural (colonial) da
violência de Estado no Brasil e chamando atenção para as especificidades das violências que
recaem sobre os corpos de pessoas negras, a lente decolonial nos permite refletir criticamente
sobre os avanços e as lacunas em matéria de reparação integral, com perspectivas de gênero e
12
De acordo com Kimberlé Crenshaw, "a interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca
capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela
trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas
discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias,
classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram
opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento"
(CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial
relativos ao gênero, Estudos Feministas, ano 10, n. 172, 2002, p.177). Muito antes da criação desse conceito e
levando em consideração a realidade brasileira, Lélia Gonzalez já havia produzido um pensamento
interseccional e decolonial, sendo precursora em definir o marcador da raça como elemento central para a
análise da condição da mulher brasileira (RODRIGUES, Carla. Leiam Lélia Gonzales, Cult, 3 de março de
2020). Através da articulação entre racismo e sexismo, Lélia expôs não somente o racismo estrutural brasileiro,
fruto de nossa situação colonial, como também as resistências americanas protagonizadas sobretudo por
mulheres negras (GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira, : Revista Ciências Sociais Hoje,
Anpocs, 1984, p. 223-244). Ver também: STANCHI; PIRES, Memórias abolicionistas sobre a tortura no Brasil,
Revista de Direito Brasileito, Brasília, Volume 19, n. 101, 200-252, jan./mar. 2022.
13
CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las personas afrodescendientes: Estándares
interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la discriminación racial estructural, OAS.
Documentos oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021, p.13.
10
raça no Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Como aponta Thula Pires, uma perspectiva decolonial dos direitos humanos toma
como central a crítica às "múltiplas formas em que a colonialidade se impôs às culturas não
brancas"14, partindo do pressuposto de que é preciso pensar "a violência a partir dos impactos
desproporcionais dos processos de desumanização sobre a zona do não ser"15. Trata-se de
garantir não a inclusão "(sempre de maneira controlada) na noção de sujeito de direito que
está posta", mas de uma disputa pela "possibilidade de produzir o direito, o Estado e a
política a partir do nosso lugar e nos nossos termos"16.
No que se refere especificamente ao direito ao trabalho, a lente decolonial contribui
para revelar a "especificidade da formação da divisão social do trabalho brasileira"17, jogando
luz sobre as relações de trabalho contemporâneas, historicamente provenientes da divisão
laboral racial-sexual da colonização, sustentada concomitantemente pela servidão, escravidão
e pelo trabalho livre18. Conforme explica Muradas e Pereira:
As sujeições interseccionais nas relações de trabalho contemporâneas, provenientes da divisão
laboral racial-sexual da América Latina colonial, que articula concomitantemente servidão,
escravidão e trabalho livre conforme raça e gênero, são invisibilizadas pela doutrina
dominante juslaboral, que ainda celebra o paradigma jurídico moderno eurocêntrico-liberal,
enaltecendo a aporia do trabalho livre e subordinado como uma conquista trashistórica do
Direito do Trabalho. Verifica-se que o processo de produção de conhecimento juslaboral
brasileiro ainda está concentrado principalmente em instituições criadas no contexto do
"centro" global, recebendo instruções da "metrópole". No contexto deste artigo, isso significa
que a doutrina juslaboral brasileira aceita a aporia existente no núcleo protetivo do Direito do
Trabalho e não o aborda a partir da experiência social de quem foi colonizado19.
14
PIRES, Thula. Direitos Humanos traduzidos em pretuguês, Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 &
13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, p.2.
15
PIRES, Thula. Racializando o debate sobre Direitos Humanos, SUR, 28 - v.15 n.28, 2018, p. 74
16
Ibid., p. 73.
17
MURADAS, Daniela; PEREIRA, Flávia.do saber e do direito no trabalho brasileiro: sujeições interseccionais
contemporâneas. Rev. Direito Práx., Vol. 9, N. 4, 2018,p. 2237.
18
Idem.
19
Idem.
20
ONU (Relator Especial da ONU sobre Formas Contemporâneas de Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerância Racial). Contemporary forms of racism, racial discrimination, xenophobia and racial
intolerance, A/74/321, 21 August 2019, para.10 (tradução nossa).
11
A adoção de uma abordagem estrutural e abrangente para as reparações: Estados-membros
devem adotar uma abordagem para reparações voltada não apenas para erros históricos contra
indivíduos ou grupos, mas também para as estruturas persistentes de desigualdade,
discriminação e subordinação raciais, que têm a escravidão e o colonialismo como suas
causas principais. As reparações implicam em responsabilidade, incluindo a transformação e
reabilitação dessas estruturas e relações, fundamentalmente distorcidas pela escravidão e pelo
colonialismo, e que sustentam a contemporânea desigualdade, discriminação e subordinação
raciais. Os Estados também deveriam adotar uma abordagem abrangente das reparações,
buscando uma gama de formas, identificadas no presente relatório, de acordo com o
respectivo contexto. Uma abordagem abrangente implica também uma abordagem
interseccional para compreender e combater a discriminação racial, levando em consideração
o gênero, a classe, status de deficiência e outras categorias sociais. Também envolve
reparações por violações de direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos direitos
civis e políticos21.
12
contexto brasileiro de racismo, previamente reconhecido no âmbito do SIDH, os principais
fundamentos da responsabilização do Estado brasileiro e a relação das decisões anteriores
com o presente caso.
Por fim, sistematizamos uma série de dados – produzidos por órgãos oficiais e
organizações não governamentais –, bem como mapeamos as ausência de dados referentes ao
racismo estrutural, o racismo no mercado de trabalho e as políticas públicas de combate ao
racismo implementadas no Brasil (sobretudo voltadas às mulheres negras), levando em
consideração uma perspectiva interseccional de análise. Para tal propósito, foram
identificados documentos e plataformas de dados publicados entre os anos de 2018 e 2022
sobre o tema, produzidos por órgãos governamentais brasileiros responsáveis pela matéria e
pela sociedade civil organizada para as disputas pela ampliação dos direitos em questão,
objetivando o levantamento de informações recentes que desvelam os contextos da América
Latina e, especificamente, do Brasil e do estado de São Paulo.
Foram examinados os seguintes documentos e as plataformas: dados do Observatório
da Diversidade e da Igualdade de Oportunidades no Trabalho, iniciativa da OIT e do
Ministério Público do Trabalho no Brasil23; dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística - IBGE, veiculados no estudo "Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no
Brasil"24; dados da Coordenadoria de Estatística e Pesquisa do Tribunal Superior do
Trabalho25; dados e análises qualitativas do estudo "Desigualdades raciais e de gênero no
mercado de trabalho em meio à pandemia", do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento -
Cebrap26; dados do documento “Afrodescendientes y la matriz de la desigualdad social en
América Latina: retos para la inclusión” e "Mulheres Afrodescendentes na América Latina e
no Caribe", ambos da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe - CEPAL27.
Dessa forma, este memorial de amicus curiae empreendeu uma análise qualitativa e
comparativa dos relatórios indicados, tendo sistematizado os dados existentes e produzido um
diagnóstico qualitativo acerca do racismo no mercado de trabalho brasileiro.
23
Ver: https://smartlabbr.org/diversidade/localidade/0?dimensao=raca
24
Ver:https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/25989-p
retos-ou-pardos-estao-mais-escolarizados-mas-desigualdade-em-relacao-aos-brancos-permanece
25
Ver: https://www.tst.jus.br/documents/18640430/81161de4-d870-0b65-1021-c0c251e5986b
26
Ver:https://cebrap.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Informativo-7-Desigualdades-raciais-e-de-ge%CC%82n
ero-no-mercado-de-trabalho-em-meio-a%CC%80-pandemia.pdf
27
Ver:https://www.cepal.org/es/publicaciones/46191-afrodescendientes-la-matriz-la-desigualdad-social-america-l
atina-retos-la e https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/44171/1/S1800726_pt.pdf
13
III. Parâmetros interamericanos de combate ao racismo e à
discriminação racial
28
CHOWDHURY, Joie. Unpacking the minimum core and reasonableness standards. In: CHENWI, L.;
DUGARD, J.; IWAKA, D.; PORTER, B.;. Research Handbook on Economic, Social and Cultural Rights as
Human Rights. Cheltenham, Edward Elgar Publishing Limited, 2020, p. 251-274.
29
CORTE IDH. Caso Suárez Peralta Vs. Ecuador. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 21 de mayo de 2013. Serie C No. 261, para. 131.
14
uma dimensão tanto individual quanto coletiva dos DESCA, ferramentas importantes para se
garantir a equidade social30.
Como regra basilar, é possível afirmar que os DESCA – e, em especial, o direito ao
trabalho, objeto central deste memorial – devem ser garantidos à luz do direito à igualdade e
não discriminação, garantido no artigo 1.1 e 24 da CADH. Trata-se de uma obrigação estatal
tanto negativa (de não discriminar) quanto positiva (de implementar políticas e condições
reais para a promoção de igualdade)31. O acesso ao trabalho é, portanto, considerado uma
condição à sobrevivência do indivíduo e de sua família, constituindo um componente
inseparável e inerente da dignidade humana32.
Neste ponto, cabe destacar o entendimento consolidado da Corte Interamericana sobre
a possibilidade de judicialização direta e o reconhecimento autônomo de direitos econômicos,
sociais, culturais e ambientais. O caso Lagos Del Campo Vs. Perú (2017) inaugurou este
posicionamento do Tribunal, ao declarar expressamente a justiciabilidade do Art. 26 da
Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (desenvolvimento progressivo dos
DESCA), e, no caso, especificamente do direito ao trabalho. A partir do referido precedente,
o direito ao trabalho foi judicializado de forma autônoma em outras oportunidades no âmbito
da Corte IDH, incluindo-se na recente condenação brasileira, no caso Fábrica de Fogos Vs.
Brasil (2020).
Com efeito, o direito ao trabalho, em condições igualitárias, dignas e satisfatórias, é
protegido, no âmbito do SIDH, pela Convenção Americana (art. 6 e 26), pelo Protocolo de
São Salvador (arts. 6 e 7) e pela Carta da OEA (arts. 45.b, c, 46, 34 g), que inclui o trabalho
como um dever social e um direito33. E, segundo sua jurisprudência, esta Corte é competente
para conhecer e resolver controvérsias relativas ao artigo 26 da CADH que aborda os direitos
econômicos, sociais e culturais, dentre os quais o direito ao trabalho34. Em suas palavras:
fica clara a interpretação de que a Convenção Americana incorporou a seu catálogo
de direitos protegidos os denominados direitos econômicos, sociais, culturais e
ambientais (DESCA), mediante uma derivação das normas reconhecidas na Carta da
Organização dos Estados Americanos (OEA), bem como das normas de interpretação
dispostas no próprio artigo 29 da Convenção, especialmente, que impede limitar ou
30
CORTE IDH. Caso "Cinco Pensionistas" Vs. Perú. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 28 de febrero
de 2003. Serie C No. 98, para. 147
31
CIDH. Informe Afrodescendientes, violencia policial, y derechos humanos en los Estados Unidos, OAS.
Documentos oficiales; OEA/Ser.L,2018, para. 192.
32
CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las personas afrodescendientes: Estándares
interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la discriminación racial estructural, OAS.
Documentos oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021, p.82.
33
Ibid., p.79.
34
CORTE IDH. Caso Lagos del Campo Vs. Perú. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 31 de agosto de 2017. Serie C No. 340, para. 145. .
15
excluir o gozo dos direitos estabelecidos na Declaração Americana e inclusive os
reconhecidos em matéria interna. Em conformidade com uma interpretação
sistemática, teleológica e evolutiva, a Corte recorreu ao corpus iuris internacional e
nacional na matéria para dar conteúdo específico ao alcance dos direitos tutelados
pela Convenção, a fim de derivar o alcance das obrigações específicas de cada
direito35.
35
CORTE IDH. Caso Poblete Vilches e outros vs. Chile, Sentença de 8 de março de 2018, para 103. CORTE
IDH. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil, para. 153.
36
CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las personas afrodescendientes: Estándares
interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la discriminación racial estructural, OAS.
Documentos oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021, p.14.
37
Ibidem, p.80.
38
CORTE IDH. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil,
par. 172.
16
(3) O direito à igualdade e não discriminação demandam do Estado uma
atuação negativa (relacionada à proibição de tratamentos discriminatórios) e
uma atuação positiva (relacionada à obrigação estatal de criar condições de
igualdade real frente a grupos que foram historicamente excluídos ou que se
encontram em maior risco de ser discriminados). Sendo assim, os Estados
devem implementar estratégias concretas e eficazes para reverter ou modificar
situações de discriminação existentes em seus ordenamentos que possam
prejudicar um grupo determinado.39 De acordo com a Corte IDH, o direito à
igualdade implica na correção efetiva das desigualdades existentes, devendo o
Estado promover a inclusão e participação de grupos historicamente
marginalizados, bem como enfrentar profundamente as situações de exclusão e
marginalização.40 A CIDH e a Corte IDH já se manifestaram reiteradamente sobre
a obrigação dos Estados de combaterem formas de discriminação direta e
indireta, tais como: eliminar do ordenamento jurídico nacional leis com conteúdo
discriminatório; não expedir leis que tenham conteúdo discriminatório; enfrentar
crenças e esquemas discriminatórios; promover ações afirmativas para o
reconhecimento da igualdade material de todos/as perante a lei.41 Nesse sentido,
não basta que os Estados se abstenham de violar direitos, sendo imperativa a
adoção de medidas positivas que garantam a igualdade dos sujeitos, em
conformidade com suas necessidades singulares42.
39
CORTE IDH. Caso Furlán e familiares Vs. Argentina. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas.
Sentença de 31 de agosto de 2012. Série C No. 246, par. 267.
40
CORTE IDH. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares Vs. Brasil,
par. 199.
41
CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las personas afrodescendientes: Estándares
interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la discriminación racial estructural, OAS.
Documentos oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021, p.20.
42
CORTE IDH. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde v. Brasil. Sentença de 20 de outubro de 2016, para.
336-337.
17
laborais, atuem com a devida diligência em matéria de direitos humanos.43 Isso
porque é dever do Estado impedir que terceiros, com a tolerância ou aquiescência
estatal, atuem de forma discriminatória.44 De acordo com a CIDH e sua
REDESCA, para que o direito ao trabalho seja minimamente garantido é preciso
que os Estados regulamentem e realizem ações destinadas a verificar sua efetiva
realização, de modo a supervisionar, fiscalizar e punir eventuais violações
praticadas por empregadores privados. Sendo assim, diante da informação de que
uma empresa está discriminando seus empregados (e poderíamos acrescentar,
candidatos e empregados), o Estado deve investigar e eventualmente punir os
fatos, reparando integralmente as pessoas atingidas por meio de processos
legítimos em respeito ao devido processo45. Também é dever do Estado garantir
às pessoas negras o acesso a trabalhos decentes nos principais setores
econômicos, o que inclui a realização de programas de promoção de direitos
dentro das empresas, ainda que privadas.46 Como determina a Corte IDH, o
direito ao trabalho inclui, portanto, a obrigação do Estado de garantir o acesso à
justiça e à tutela judicial efetiva, também no âmbito privado das relações
trabalhistas.47
18
princípios ou obrigações básicas, no contexto de atividades empresariais sob sua jurisdição:
proteger, respeitar e remediar. “Proteger” corresponde à obrigação internacional dos Estados
em proteger os direitos humanos. “Respeitar” representa o dever de as empresas assumirem
um comprometimento com os direitos humanos, para não os violar. Por último, “remediar”
diz respeito às vítimas terem acesso a recursos efetivos em casos de violações de direitos
humanos cometidas por empresas.49
Apesar de os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU
não serem um tratado internacional vinculante para os Estados, estando tal matéria ainda em
processo de negociação nas Nações Unidas, ele se fundamenta nas normas de direito
internacional dos direitos humanos, vinculantes para os Estados. Dessa forma, o Escritório do
Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos reconhece que, apesar de os
Princípios Orientadores não serem formalmente vinculantes, não se tratam de diretrizes
apenas voluntárias, já que refletem as obrigações internacionais vinculantes aos Estados
constantes nos principais tratados internacionais de direitos humanos. O dever do Estado em
proteger, assim como previsto pelos Princípios Orientadores, deriva de suas obrigações de
direitos humanos no direito internacional. Representa, portanto, um conjunto de diretrizes
com embasamento jurídico na normativa internacional de direitos humanos.50
Casos de violações de direitos humanos por empresas já foram abordados por esta
Corte, especialmente no caso Povos Kalina e Lokoño v. Suriname (2015), no qual a Corte se
fundamentou, pela primeira vez, nos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos
Humanos da ONU para formular seu entendimento de que os Estados devem proteger os
indivíduos e grupos contra quaisquer formas de abusos aos direitos humanos dentro de seu
território ou jurisdição, inclusive com relação a empresas, o que requer a adoção de medidas
necessárias para prevenir, mitigar, punir e reparar tais abusos.51
Posteriormente, a Corte também se fundamentou uma segunda vez nos Princípios
Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos no caso Empregados da Fábrica de Fogos
Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil (2020). Tratou-se do primeiro caso no
qual a Corte aplicou os Princípios Orientadores em harmonia com as obrigações previstas nos
artigos 1.1 e 2 do Pacto de São José, com as Convenções nº 81 e 155 da Organização
Internacional do Trabalho e com demais interpretações referentes às obrigações dos Estados
49
ONU (OHCHR). Guiding Principles on Business and Human Rights: Implementing the United Nations
“Protect, Respect and Remedy” Framework. HR/PUB/11/04. New York and Geneva, 2011.
50
ONU (OHCHR). Frequently Asked Questions about the Guiding Principles on Business and Human Rights.
HR/PUB/14/3. New York and Geneva, 2014, os. 7-8.
51
CORTE IDH. Case of The Povos Kaliña e Lokono Vs. Suriname. Sentença de 25 de novembro de 2015, para.
224.
19
nesse contexto. Portanto, nesse caso, a Corte, ao ter sua decisão coerente com as obrigações
dos Estados em matéria de empresas e direitos humanos, aplicou o entendimento firmado
pelo relatório “Informe Empresas y Derechos Humanos: Estándares Interamericanos”, da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de que os Princípios Orientadores possuem
lugar no SIDH.52
Com efeito, o SIDH tem desenvolvido e reforçado importantes parâmetros relativos às
obrigações internacionais dos Estados no contexto de violação de direitos humanos por atores
empresariais, de modo complementar à agenda global de "Empresas e Direitos Humanos".
Destacamos, abaixo, alguns parâmetros relevantes para a análise do caso em questão.
(2) O Estado tem quatro deveres de garantia dos direitos humanos no marco de
atividades empresariais: (i) dever de regular e adotar disposições de direito
interno; (ii) dever de prevenir violações aos direitos humanos no marco de
atividades empresariais; (iii) dever de fiscalizar tais atividades; (iv) dever de
investigar, sancionar e assegurar o acesso a reparação integral às vítimas.54
Tais deveres devem ser analisados sempre de acordo com os fatos particulares de
cada caso.55
52
CORTE IDH. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e Seus Familiares Vs. Brasil
Sentença de 15 de Julho de 2020 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas), para 10 e 14.
53
CIDH; REDESCA. Informe Empresas y Derechos Humanos: Estándares Interamericanos. 2019, p. 34.
54
Ibidem. 54-55.
55
Idem
20
(3) Os Estados devem supervisionar o respeito aos direitos trabalhistas no
âmbito de empresas privadas. Nesse sentido, de acordo com a CIDH, cabe ao
Estado, por exemplo, implementar medidas de controle de vigilância dos espaços
de trabalho, controlando a jornada laboral, segurança e os mecanismos de
denúncia disponíveis. Em situações de trabalho escravo, é dever do Estado adotar
medidas de fiscalização imediata para a proteção dos direitos humanos dos
trabalhadores.56
21
categorias de vulnerabilidade, particularmente o gênero, origem étnico-racial e classe
socioeconômica, quando entrecruzadas, produzem impactos desproporcionais"60.
Foi somente a partir do Caso Gonzales Lluy e outros Vs. Equador (2015)61 que a
Corte IDH passou a mencionar expressamente o termo “interseccionalidade”, embora
anteriormente já tratasse do assunto com outras denominações (como “discriminações
múltiplas” ou “combinadas”). Merece destaque o voto do Juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor
Poisot no referido caso, ocasião em que pontua que uma discriminação interseccional não se
dá somente pelo fato de ser múltipla – há, inclusive, discriminações múltiplas que não são
consideradas de caráter interseccional. O juiz aponta que, para que seja tida como
interseccional, é preciso que haja um “encontro ou concorrência simultânea de diversas
causas de discriminação” que, ao final, forma uma discriminação que se produz somente
quando combinados estes motivos62. Mac-Gregor, em seu voto no Caso Guachalá Chimbo e
outros Vs. Equador, também dispõe que:
la interseccionalidad se configura cuando respecto de una persona o un grupo de personas
confluyen varias vulnerabilidades entendidas como una privación de derechos que producen
una discriminación más intensa, agravada por la asimetría en relación al resto de la sociedad y
por la simultaneidad, lo que también permite identificar un grupo o tipología con condiciones
especiales de vulnerabilidade.63
60
Ibidem, p.25.
61
CORTE IDH. Caso Gonzales Lluy y otros Vs. El Salvador. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y
Costas. Sentencia de 1 de septiembre de 2015. Serie C No. 298.
62
CORTE IDH. Caso Gonzales Lluy y otros Vs. El Salvador. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y
Costas. Sentencia de 1 de septiembre de 2015. Serie C No. 298. Voto concurrente del Juez Eduardo Ferrer
Mac-Gregor Poisot. para. 10.
63
CORTE IDH. Caso Guachalá Chimbo y otros Vs. Ecuador. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 26 de
marzo de 2021. Serie C No. 423. Voto razonado concurrente del Juez Ricardo C. Pérez Manrique. para. 13.
22
para que, na formulação das medidas, sejam levadas em conta possíveis especificidades que
possam ter impacto em diferentes subgrupos das pessoas destinatárias dessas medidas.64
64
CORTE IDH. Caso de los Empleados de la Fábrica de Fuegos de Santo Antônio de Jesus y sus familiares Vs.
Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de julio de 2020. Serie C No.
407. Voto concurrente del Juez Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot. para. 68.
65
CIDH. Caso Beatriz Vs. El Salvador. Informe No. 9/20. Caso 13.378. Informe de Fondo. para. 201.
66
CIDH. Informe sobre pobreza y derechos humanos en las Américas (OAS. Documentos oficiais;
OEA/Ser.L/V/II.164) 2017, para. 390.
67
CIDH. Informe Verdad, justicia y reparación: Cuarto informe sobre la situación de derechos humanos en
Colombia (OEA/Ser.L/V/II. Doc. 49/13), 2013, párr. 648.
23
interseccionais, como meninas68, mulheres indígenas69, crianças indígenas em situação de
pobreza70, mulheres migrantes71, mulheres gestantes72 e mulheres trans73.
Nos inúmeros documentos interamericanos que versam sobre interseccionalidade,
foram apresentadas uma série de recomendações aos Estados, dentre as quais merecem
atenção as seguintes: (i) o Estado deve adotar medidas que levem em consideração as
especificidades de certos grupos vulneráveis74; (ii) o Estado deve atentar-se à existência de
padrões de discriminação interseccional contra mulheres e meninas pobres em diferentes
zonas da região75; (iii) ao ter conhecimento de violação contra um grupo de especial
vulnerabilidade, o Estado deve realizar uma investigação séria e efetiva76; (iv) o Estado deve
adotar medidas de não repetição que levem em consideração as necessidades particulares
advindas das condições de vulnerabilidade interseccionais77; (vi) as ações e cursos de
capacitação desenvolvidos pelo Estado devem atentar-se aos grupos em situação de maior
68
CORTE IDH. Caso Veliz Franco y otros Vs. Guatemala. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y
Costas. Sentencia de 19 de mayo de 2014. Serie C No. 277. para. 134. Corte IDH. Caso Guzmán Albarracín y
otras Vs. Ecuador. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de junio de 2020. Serie C No. 405. para. 141.
69
CORTE IDH. Caso Fernández Ortega y otros Vs. México. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y
Costas. Sentencia de 30 de agosto de 2010. Serie C No. 215. para. 185. Caso Rosendo Cantú y otra Vs. México.
Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 31 de agosto de 2010. Serie C No. 216. para.
169. Corte IDH. Caso Rosendo Cantú y otra Vs. México. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 31 de agosto de 2010. Serie C No. 216. para. 70. CIDH. Informe Las mujeres indígenas y sus
derechos humanos en las Américas (OEA/Ser.L/V/II. Doc. 44/17), 2017, para. 40.
70
CORTE IDH. Caso Rosendo Cantú y otra Vs. México. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 31 de agosto de 2010. Serie C No. 216. para. 201.
71
CORTE IDH. Caso I.V. Vs. Bolivia. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de
30 de noviembre de 2016. Serie C No. 329. para. 136.
72
CORTE IDH. Caso de los Empleados de la Fábrica de Fuegos de Santo Antônio de Jesus y sus familiares Vs.
Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de julio de 2020. Serie C No.
407. para. 191.
73
CORTE IDH. Caso Vicky Hernández y otras Vs. Honduras. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 26 de
marzo de 2021. Serie C No. 422. para. 129.
74
CORTE IDH. Caso de los Empleados de la Fábrica de Fuegos de Santo Antônio de Jesus y sus familiares Vs.
Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de julio de 2020. Serie C No.
407. Voto concurrente del Juez Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot. para. 68. CIDH. Informe sobre pobreza y
derechos humanos en las Américas (OAS. Documentos oficiais; OEA/Ser.L/V/II.164), 2017, para. 11.
75
CORTE IDH. Caso Guachalá Chimbo y otros Vs. Ecuador. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 26 de
marzo de 2021. Serie C No. 423. Voto concurrente razonado del Juez Ricardo C. Pérez Manrique. para. 42.
76
CORTE IDH. Caso Rosendo Cantú y otra Vs. México. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 31 de agosto de 2010. Serie C No. 216. para. 130.
77
CORTE IDH. Caso I.V. Vs. Bolivia. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de
30 de noviembre de 2016. Serie C No. 329. para. 337. Corte IDH. Caso de los Empleados de la Fábrica de
Fuegos de Santo Antônio de Jesus y sus familiares Vs. Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y
Costas. Sentencia de 15 de julio de 2020. Serie C No. 407. Voto concurrente del Juez Ricardo C. Pérez
Manrique. para. 43.
24
vulnerabilidade, como as mulheres indígenas e as crianças78; (vii) O Estado tem acentuado
seu dever de garantia e respeito quando há vítimas em especial situação de vulnerabilidade79.
Daí ser possível concluir que violências estruturais e interseccionais – como é o caso
do racismo e da discriminação racial contra mulheres negras no Brasil – têm, por óbvio,
causas estruturais e sistêmicas, o que demanda do Estado, consequentemente, a
implementação de reparações de natureza positiva, complexa e estrutural (de não repetição).
De acordo com o juiz Ricardo Pérez Manrique, em seu voto apartado na sentença do Caso
Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus vs. Brasil (2020),
a obrigação positiva do Estado, ante a verificação de um padrão de discriminação
intersecional e estrutural como o descrito, consiste no desenvolvimento de linhas de ação,
mediante a elaboração de políticas sistemáticas que atuem sobre as origens e causas de sua
existência.80
78
CORTE IDH. Caso Rosendo Cantú y otra Vs. México. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 31 de agosto de 2010. Serie C No. 216. para. 246.
79
CORTE IDH. Caso de los Empleados de la Fábrica de Fuegos de Santo Antônio de Jesus y sus familiares Vs.
Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de julio de 2020. Serie C No.
407. para. 198.
80
Voto concor Ricardo Pérez Manrique in: CORTE IDH. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo
Antônio de Jesus v. Brasil. Sentença de 15 de julho de 2020, voto concordante, para. 43.
25
modo a visibilizar e superar o negacionismo em torno da persistência da
discriminação racional no presente.81
81
CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las personas afrodescendientes: Estándares
interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la discriminación racial estructural, OAS.
Documentos oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021, p.25.
82
CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las personas afrodescendientes: Estándares
interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la discriminación racial estructural, OAS.
Documentos oficiales; OEA/Ser.L/V/II, 2021, p.25.
83
Ibidem p.57.
84
Ibidem, p.25.
26
o acesso ao trabalho, em razão da condições de pobreza, tais como mulheres, pessoas
LGBTI, pessoas com deficiência, migrantes, trabalhadoras sexuais, pessoas em situação
de rua e comunidades rurais.85
85
Ibidem, p.81.
86
CIDH. Relatório No. 66/06. Caso 12.001. Mérito. Simone André Diniz vs. Brasil. 21 de outubro de 2006.
27
Em março de 1997, Simone Diniz encontrou nos classificados do jornal “A Folha de
São Paulo” anúncio de vaga de trabalho para empregada doméstica, no qual a contratante,
Aparecida Gisele Mota da Silva, informava a sua preferência pela contratação de pessoas de
cor branca. Simone Diniz tentou se candidatar a este emprego, porém, ao se declarar negra,
foi informada que não preenchia os requisitos para o referido cargo. Decidiu, então,
denunciar a discriminação racial às autoridades competentes87.
Em 5 de março de 1997, foi instaurado inquérito policial para investigar a prática do
delito de racismo, crime tipificado no art. 20 da Lei nº 7.716/89. Contudo, o Ministério
Público do Estado de São Paulo entendeu que não havia elementos suficientes para o
oferecimento de denúncia, tendo sido promovido o arquivamento do inquérito através de
sentença judicial, em 2 de abril de 1997. De acordo com os peticionários, houve falha na
devida diligência das autoridades brasileiras na investigação do racismo88.
Diante de tais fatos, em outubro de 1997, o Centro pela Justiça e o Direito
Internacional (CEJIL), a Subcomissão do Negro da Comissão de Direitos Humanos da
OAB/SP e o Instituto do Negro Padre Batista apresentaram petição à CIDH contra a
República Federativa do Brasil89. Ao analisar o mérito do caso, a CIDH considerou que,
embora se tratasse de relação entre particulares, o Estado brasileiro deveria garantir o respeito
aos direitos humanos e, diante de uma violação, buscar investigar, processar e sancionar
diligentemente o(s) autor(es) da violação, garantindo os direitos estabelecidos na Convenção
Americana.
87
Ibidem. Par. 28.
88
Ibidem. Pars. 29 a 37.
89
Ibidem. Par. 5.
90
Ibidem. Par. 44.
28
De acordo com a mesma, não existia sequer uma "igualdade mínima aceitável" entre pretos e
brancos, revelando-se um "padrão atentatório aos direitos humanos, especialmente à
igualdade, à não-discriminação e ao direito à dignidade"91.
A CIDH ainda reconheceu, em sua decisão, dados relevantes sobre o racismo no
Brasil: em 1999, os negros representavam 45% da população do país, mas correspondiam a
64% da população pobre e a 68% da população indigente; 21% da população afrodescendente
era analfabeta em comparação a 8% da população branca. Além disso, em relação ao sistema
criminal brasileiro, os negros eram proporcionalmente mais condenados e menos absolvidos
pelos mesmos delitos, assim como a violência policial ocasionava vítimas pretas e pardas de
forma desproporcional92.
Especificamente sobre as relações de trabalho, a CIDH reconheceu que, no ano de
1999, 5.7% da população branca empregada ocupava posições de empregadores contra 1.3%
de negros e 2.1% de mestiços e, por outro lado, 5.7% da população branca empregada
ocupava a posição de trabalhador doméstico contra 13.4% de negros e 8.4% de mestiços. No
mesmo sentido, pesquisa da época constatou que os salários da população negra eram
sistematicamente menores, e a discriminação racial era relatada em recrutamento para todos
os tipos de trabalho, sendo certo que o perfil racial era avaliado na etapa de admissão93. A
CIDH destacou que pesquisas apontaram que “a discriminação foi relatada em recrutamento e
seleção pessoal em todos os tipos de trabalho, seja entre empregadas domésticas, serviços
gerais ou trabalhadores profissionais”94.
Por sua vez, ao analisar o ordenamento jurídico brasileiro, a CIDH concluiu que a
evolução da normativa penal – sobretudo com a constitucionalização do crime de racismo em
1988 e com a criação da Lei 7.716 de 1989 (Lei Caó) – não foi capaz de produzir mudanças
estruturais, sendo a impunidade a "tônica nos crimes raciais" no Brasil. A CIDH verificou,
nesse sentido, a ineficácia da Lei nº 7.716/89, que definiu os crimes sobre preconceito de raça
e cor, devido ao seu laconismo, "que revelava um segregacionismo que não refletia o racismo
existente no Brasil e a resistência de membros do poder judiciário em aplicá-la"95.
A CIDH destacou que um dos padrões observados consistiu na ação dos órgãos de
Estado – investigativos e judiciais – de "minimizar a atitude do agressor, fazendo parecer que
tudo não passou de um mal entendido". Como decorrência, concluiu que são poucos os casos
91
Ibidem.
92
Ibidem. Pars. 45 e 46.
93
Ibidem. Pars. 53 e 55.
94
Ibidem. Par. 57.
95
Ibidem. Pars. 68 e 78.
29
de racismo que chegam a ser denunciados. Quando denunciados, poucos viram inquéritos e
ainda menos numerosos são os casos sentenciados pelo Poder Judiciário brasileiro, cujo
agressor é devidamente responsabilizado. A CIDH concluiu, então, que o racismo
institucional é um dos grandes obstáculos para a aplicação efetiva das normas anti-racismo no
Brasil: “[...] da prova testemunhal, passando pelo inquérito na polícia até a decisão do
Judiciário, há preconceito contra o negro. Os três níveis são incapazes de reconhecer o
racismo contra o negro"96.
96
Ibidem. Par. 84
97
Ibidem. Pars. 99 e 100.
98
Ibidem. Pars. 103 a 109.
99
Ibidem. Pars. 110, 113 e 126.
30
1. Reparar plenamente a vítima Simone André Diniz, considerando tanto o
aspecto moral como o material, pelas violações de direitos humanos determinadas
no relatório de mérito;
2. Reconhecer publicamente a responsabilidade internacional por violação dos
direitos humanos de Simone André Diniz;
3. Conceder apoio financeiro à vítima para que esta possa iniciar e concluir curso
superior;
4. Estabelecer um valor pecuniário a ser pago à vítima a título de indenização por
danos morais;
5. Realizar as modificações legislativas e administrativas necessárias para que a
legislação antirracismo seja efetiva, com o fim de sanar os obstáculos
demonstrados nos parágrafos 78 e 94 do presente relatório;
6. Realizar uma investigação completa, imparcial e efetiva dos fatos, com o
objetivo de estabelecer e sancionar a responsabilidade a respeito dos fatos
relacionados com a discriminação racial sofrida por Simone André Diniz;
7. Adotar e instrumentalizar medidas de educação dos funcionários de justiça e da
polícia a fim de evitar ações que impliquem discriminação nas investigações, no
processo ou na condenação civil ou penal das denúncias de discriminação racial e
racismo;
8. Promover um encontro com organismos representantes da imprensa brasileira,
com a participação dos peticionários, com o fim de elaborar um compromisso para
evitar a publicidade de denúncias de cunho racista, tudo de acordo com a
Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão;
9. Organizar Seminários estaduais com representantes do Poder Judiciário,
Ministério Público e Secretarias de Segurança Pública locais com o objetivo de
fortalecer a proteção contra a discriminação racial e o racismo;
10. Solicitar aos governos estaduais a criação de delegacias especializadas na
investigação de crimes de racismo e discriminação racial;
11. Solicitar aos Ministérios Públicos Estaduais a criação de Promotorias Públicas
Estaduais Especializadas no combate ao racismo e a discriminação racial;
12. Promover campanhas publicitárias contra a discriminação racial e o
racismo.100
No seu Relatório Anual de 2019, a CIDH apontou que o caso Simone André Diniz se
encontrava em estado de "parcial cumprimento" das recomendações elencadas. As
recomendações no. 1 (reparação moral e material da vítima), no. 2 (reconhecimento de
responsabilidade internacional); no. 4 (indenização pecuniária); e no. 12 (promover
campanhas publicitárias contra a discriminação racial e o racismo) foram consideradas
cumpridas101. No entanto, as recomendações no. 5 (reformas legislativas e administrativas
para legislação anti racista efetiva); no. 6 (retomar investigação completa, imparcial e
efetiva); e no. 7 (adotar medidas de educação de funcionários públicos sobre discriminação
racial nos procedimentos de investigação) foram consideradas parcialmente cumpridas102.
100
Ibidem. Par. 146.
101
CIDH. Relatório Anual 2019. Capítulo II. O sistema de petições e casos, soluções amistosas e medidas
cautelares. Par. 47.
102
Ibidem.
31
Por outro lado, as recomendações no. 3 (apoio financeiro para concluir estudos
superiores); no 8 (promover encontro na imprensa brasileira para compromisso de evitar
publicizar denúncias racistas); no. 9 (organizar seminários nos Poderes Judicial e Executito
para fortalecer combate ao racismo); no. 10 (criação de delegacias especializadas em delitos
de racismo e discriminação racial); no 11 (criação de Procuradorias Públicas nos Ministérios
Públicos especializadas em racismo e discriminação racial), permanecem ainda pendentes de
cumprimento103. No seu Relatório Anual de 2020, as recomendações nos. 10 e 11 foram
consideradas como parcialmente cumpridas104.
A CIDH concluiu que o caso Simone André Diniz se encontra parcialmente cumprido
e chamou a atenção do Estado brasileiro para adotar todos os esforços necessários para
avançar no cumprimento das recomendações estabelecidas. Apesar do resultado positivo em
relação às medidas de compensação e satisfação, assim como certos avanços estruturais, é
certo que recomendações caracterizadas como medidas de não-repetição não foram
plenamente cumpridas pelo Brasil até hoje.
IV.1.4) Um diálogo com o caso Neusa dos Santos e Gisele Ana Ferreira
O caso Simone André Diniz apresenta muitas similaridades com a violência sofrida
por Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira. Em ambos os casos, estamos diante
de uma situação de discriminação racial no acesso ao trabalho, sofrida por mulheres negras
que foram prontamente excluídas de seleções de emprego em razão de sua raça, em um
período temporal semelhante, isto é, no final da década de 90. Na decisão do caso Simone
André Diniz, a CIDH afirmou que excluir um indivíduo do acesso ao mercado de trabalho
por sua raça constituía um ato de discriminação racial, em conformidade com o artigo 1º da
Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e o
artigo 24 da CADH105, o que também se verifica no caso de Neusa dos Santos Nascimento e
Gisele Ana Ferreira.
Os dados analisados pela CIDH no caso Simone André Diniz são importantes para
demarcar o quadro social do racismo no Brasil daquela época. Destaca-se, nesse sentido, que
no Relatório de Mérito, a CIDH apontou que o racismo institucional era um obstáculo para a
aplicabilidade de instrumentos antirracistas106. Apesar de alguns fatores terem evoluído, estes
103
Ibidem.
104
CIDH. Relatório Anual 2020. Capítulo II. O sistema de petições e casos, soluções amistosas e medidas
cautelares. Par. 143.
105
Ibidem. Par. 99.
106
Ibidem. Par. 84.
32
não foram suficientes para impedir que casos semelhantes ocorressem no futuro, tendo em
vista que o racismo se perpetua nas estruturas da sociedade brasileira ainda hoje.
Ao analisar o ordenamento jurídico brasileiro, no caso Simone André Diniz, a CIDH
constatou a ineficácia da Lei nº 7.716/89. Isso porque a legislação não especificava ou
criminalizava o racismo praticado por pessoas que o exercem de forma estrutural, além de ser
lacônica e evasiva por exigir que, para a tipificação do crime de racismo, o autor declarasse
expressamente que sua conduta foi motivada por razões de discriminação racial. Conforme
pontuou a CIDH, a exigência de dolo específico e demonstração de uma intenção
discriminatória eleva o standard probatório ao nível de evidência inalcançável no caso
concreto. Sendo assim, o ordenamento jurídico brasileiro não é eficiente para prevenir crimes
resultantes de preconceito racial107.
No caso Simone André Diniz, a CIDH entendeu que as falhas na persecução penal da
discriminação racial não foi um fato isolado. Pelo contrário, refletia um padrão de
comportamento das autoridades brasileiras de condescendência quando confrontadas com
uma denúncia de racismo, gerando a tônica da impunidade nestes casos108. A insuficiência da
legislação brasileira pode gerar uma falsa impressão de que no Brasil não ocorrem práticas
discriminatórias, o que, somado à ineficácia das investigações, demonstra a manutenção de
uma situação generalizada de desigualdade no acesso à justiça e de impunidade nos casos de
denúncia de crimes com motivação racial.
Portanto, o emblemático caso Simone André Diniz é uma oportunidade de rever ações
e omissões das autoridades estatais que perpetuam práticas racistas no Brasil. Observando as
recomendações da CIDH ao Estado brasileiro, percebe-se que o país falhou em adotar
medidas positivas para prevenir, investigar e sancionar situações discriminatórias, em
particular no que se refere ao respeito do direito à igualdade no acesso ao trabalho de
mulheres negras. Esta mesma situação se repete no caso de Neusa dos Santos Nascimento e
Gisele Ana Ferreira.
107
Ibidem. Pars. 78 a 83.
108
Ibidem. Par. 70.
33
Pará, entre os anos de 1989 e 2000. Os trabalhadores eram proibidos de abandonar a fazenda,
sob ameaça de morte, não recebiam salário ou recebiam quantias ínfimas e mantinham-se
constantemente endividados, sendo a eles negada moradia, alimentação e saúde dignas.
Apesar de ter tomado conhecimento dos graves fatos, desde 1989, o Estado brasileiro não
adotou as medidas razoáveis para prevenir, investigar, punir os responsáveis e reparar as
vítimas.
Em 20 de outubro de 2016, a Corte IDH emitiu sentença, julgando o Estado brasileiro
internacionalmente responsável pela violação do direito a não ser submetido a escravidão,
consagrado no artigo 6.1 da Convenção Americana, em relação aos direitos ao
reconhecimento da personalidade jurídica, à integridade pessoal, à liberdade pessoal, à honra
e à dignidade, e à livre circulação e residência, previstos no artigos 1.1, 3, 5, 7, 11 e 22, do
mesmo instrumento, em prejuízo de 85 trabalhadores. Além disso, também responsabilizou o
Brasil pela violação do princípio do interesse superior da criança, estabelecido no artigo 19
da Convenção Americana, em relação a uma das vítimas109.
109
Corte IDH. Caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas.
Sentença de 20 de outubro de 2016. Série C No. 333. Par. 508.
110
Ibidem. Par. 111.
111
Ibidem. Par. 113.
112
Ibidem. Par. 340.
34
próprias nem situações de trabalho estáveis, muitos trabalhadores no Brasil se submetiam a
situações de exploração, aceitando o risco de submeter-se a condições de trabalho desumanas
e degradantes. Durante as décadas de 1960 e 1970, o trabalho escravo no Brasil aumentou
devido à expansão de técnicas mais modernas de trabalho rural, que requeriam um maior
número de trabalhadores. Em meados do século XX, intensificou-se a industrialização na
região amazônica, e o fenômeno de posse ilegal e adjudicação descontrolada de terras
públicas foi favorecido, propiciando com isso a consolidação de práticas de trabalho escravo
em fazendas de empresas privadas ou empresas familiares possuidoras de amplas extensões
de terra. Neste contexto existiu uma ausência de controle estatal na região norte do Brasil,
onde algumas autoridades regionais teriam se convertido em aliadas dos fazendeiros. No ano
de 1995, o Estado começou a reconhecer oficialmente a existência de trabalho escravo no
Brasil. Segundo a OIT, em 2010 existiam no mundo 12.3 milhões de pessoas submetidas a
trabalho forçado, 25.000 das quais estariam no Brasil113.
Resta clara a existência de uma estrutura discriminatória que, não somente impõe
condições precárias de trabalho àqueles empregados vítimas das violações analisadas, como
também submete todo esse grupo marginalizado à falta de opções no mercado de trabalho e,
consequentemente, submissão a condições laborais incompatíveis com a dignidade humana.
Importante destacar que o contexto de discriminação observado no Caso Fazenda Brasil
Verde prolongou-se no tempo, na medida em que as denúncias sobre a submissão das vítimas
ao trabalho escravo já eram endereçadas às autoridades brasileiras desde o início da década
de 90, mas a situação permaneceu até os anos 2000. Atualmente, os diversos retrocessos do
Brasil no tocante ao combate ao trabalho escravo demonstram que esse ainda é um desafio
central para a garantia dos direitos humanos no país.
113
Ibidem. Par. 111.
114
Ibidem. Pars. 303 a 305.
115
Ibidem. Par. 249.
116
Ibidem. Pars. 362 e 363.
35
trabalhadores da Fazenda Brasil Verde117. Sobre este dever especial do Estado, identificou a
Corte IDH que sua finalidade é
reverter ou alterar situações discriminatórias existentes em suas sociedades, em
prejuízo de determinado grupo de pessoas. Isso significa o dever especial de proteção
que o Estado deve exercer com respeito a atuações e práticas de terceiros que, sob sua
tolerância ou aquiescência, criem, mantenham ou favoreçam as situações
discriminatória118.
117
Ibidem. Pars. 363 e 364.
118
Ibidem. Pars. 336 a 338.
119
Ibidem. Par. 342.
120
Ibidem. Pars. 322 a 328.
121
Ibidem. Par. 319.
122
Ibidem. Par. 342.
36
seguimento das investigações e contrariando as obrigações internacionais nos termos da
Convenção Americana123.
No Relatório de Admissibilidade e Mérito da CIDH de 2015 sobre o Caso Fazenda
Brasil Verde vs. Brasil, foi recomendado que o Estado Brasileiro (i) reparasse adequadamente
as vítimas moral e materialmente, notadamente por meio da restituição dos salários devidos e
a restituição das deduções por supostas dívidas; (ii) investigasse os fatos relacionados ao
trabalho escravo e conduzisse as investigações num prazo razoável, punindo os responsáveis;
(iii) providenciasse as medidas administrativas, disciplinares ou penais pertinentes no que
concerne às omissões das autoridades estatais, que contribuíram para a impunidade dos
responsáveis; (iv) continuasse a implementar políticas públicas e medidas legislativas
voltadas à erradicação do trabalho escravo; (v) criasse mecanismos de coordenação entre a
jurisdição penal e trabalhista para a investigação dos fatos; e (vi) adotasse as medidas
necessárias para erradicar todo tipo de discriminação racial124.
Já na sentença de 2016 da Corte IDH, dentre as medidas de reparação impostas125,
destaca-se (i) adoção de medidas legislativas para o reconhecimento da imprescritibilidade da
redução de pessoas à escravidão; (ii) pagamento de indenização a título de danos imateriais às
vítimas; e (iii) o reinício, com a devida diligência e em prazo razoável, das investigações e/ou
processos penais a respeito dos fatos ocorridos na Fazenda Brasil Verde em março de 2000126.
A Resolução da Corte IDH de Supervisão de Cumprimento Sentença do Caso Trabalhadores
Fazenda Brasil Verde, de 22 de novembro de 2019, declarou o cumprimento parcial do
pagamento da indenização às vítimas, destacando que permanecem pendente de cumprimento
as outras medidas reparatórias citadas acima127.
IV.2.4) Um diálogo com o caso Neusa dos Santos e Gisele Ana Ferreira
Ainda que o caso Fazenda Brasil Verde verse essencialmente sobre trabalho análogo à
escravidão, trata-se de importante precedente sobre a falta de devida diligência estatal acerca
de violações de direitos de trabalhadores e, especificamente, trabalhadores pobres e negros.
São trabalhadores que enfrentam obstáculos estruturais para acessar o mercado de trabalho e
para obter condições laborais dignas, em razão da discriminação racial e econômica.
123
Ibidem. Par. 362 a 368.
124
CIDH. Relatório de Admissibilidade e Mérito N. 169/11. Caso 12.006. Fazenda Brasil Verde vs. Brasil.
2011, para. 265.
125
Corte IDH. Caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas.
Sentença de 20 de outubro de 2016. Série C No. 333. Par. 508.
126
Ibidem. Par. 488.
127
Corte IDH. Resolução de Supervisão do Cumprimento de Sentença. Caso Trabalhadores Fazenda Brasil
Verde vs. Brasil. 22 de novembro de 2019.
37
Os fundamentos utilizados pela Corte IDH na sentença do caso Fazenda Brasil Verde
são capazes de influenciar a análise do caso Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana
Ferreira no que tange, em especial, a três aspectos: a) o contexto estrutural e histórico de
discriminação, reconhecido pela Corte IDH; b) a identificação de um dever especial do
Estado com relação a violações de direitos cujos titulares integram grupos socialmente
vulneráveis; e c) a necessidade de adoção de medidas positivas pelo Estado como elemento
da devida diligência em casos de violações de direitos humanos por particulares.
Em primeiro lugar, destaca-se que a sentença do caso Fazenda Brasil Verde foi a
primeira a reconhecer a existência de uma discriminação estrutural histórica no Brasil, por
conta da situação econômica das 85 vítimas. Conforme informações refletidas na sentença, a
maior parte das vítimas sujeitas à escravidão estava composta por " homens pobres, entre 17
e 40 anos de idade, afrodescendentes e mulatos, originários de Estados muito pobres, [...]
onde viviam em situação de extrema pobreza e vulnerabilidade"128.
Portanto, não é possível dissociar a discriminação econômica analisada pela Corte
IDH e o racismo estrutural, intrínsecos ao desenvolvimento da sociedade brasileira. O
reconhecimento pela Corte IDH da existência de discriminação estrutural histórica, advinda
dos processos de escravidão, implica, necessariamente, o reconhecimento da existência de um
contexto de racismo estrutural no Brasil. Esse contexto desrespeita as obrigações
convencionais do Brasil e é determinante para a obstaculização do acesso ao trabalho de
Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira. De acordo com o voto apartado do Juiz
Eduardo Ferrer Mac-gregor Poisot:
“ [...] o comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, em sua Recomendação
Geral Nº 34, sobre discriminação racial contra afrodescendentes (2011), entendeu
que: "O racismo e a discriminação estrutural contra afrodescendentes, enraizados
no infame regime da escravidão, manifestam-se em situações de desigualdade que
afetam estas pessoas e que se refletem, entre outras coisas, no seguinte: o fato de
que formem parte, juntamente com as populações indígenas, dos grupos mais
pobres da população; suas baixas taxas de participação e representação nos
processos políticos e institucionais de tomada de decisões; as dificuldades
adicionais enfrentadas no acesso à educação, a qualidade desta e as possibilidades
de completá-la, o que faz com que a pobreza se transmita de geração em geração; o
acesso desigual ao mercado do trabalho; o limitado reconhecimento social e a
escassa valorização de sua diversidade étnica e cultural, e sua desproporcional
presença na população carcerária”.129
Em segundo lugar, a sentença sedimentou o entendimento de que há uma devida
diligência reforçada do Estado no caso de vítimas em situação de vulnerabilidade social.
128
Corte IDH. Caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas.
Sentença de 20 de outubro de 2016. Série C No. 333. Pars. 113 e 226.
129
ONU. Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, Recomendação Geral Nº 34 sobre Discriminação
Racial contra Afrodescendentes. 3 de outubro de 2011. CERD/C/GC/34. Par. 6.
38
Afinal, em se tratando de violações estruturais, o Estado não pode se valer do argumento do
desconhecimento para justificar omissões. Esta lógica é inteiramente aplicável ao presente
caso, uma vez que a disparidade entre pessoas negras e brancas em relação ao acesso ao
trabalho configura situação estrutural e estruturante da realidade brasileira, de modo que
caberia ao Estado Brasileiro atuar em conformidade com seu dever especial130.
Em terceiro lugar, a Corte IDH destacou no Caso Fazenda Brasil Verde que "o dever
de prevenção inclui todas as medidas de caráter jurídico, político, administrativo e cultural
que promovam a salvaguarda dos direitos humanos"131. O Tribunal também assinalou que tais
medidas devem refletir o compromisso estatal com a prevenção de violações de direitos
humanos e, caso não demonstrem eficácia real, são consideradas insuficientes para a sua
desoneração das obrigações internacionais assumidas132.
Portanto, ainda que a investigação e punição dos particulares responsáveis seja uma
maneira importante de reparar as vítimas, somente esta medida não pode ser suficiente para
reparar integralmente os danos causados, pelo caráter abrangente e estrutural da violação em
tela. Afinal, tanto no Caso Fazenda Brasil Verde, como no caso de Neusa dos Santos
Nascimento e Gisele Ana Ferreira, as vítimas representam grupos estruturalmente
discriminados e marginalizados, de forma que apenas a reparação integral demanda a adoção
de amplas políticas públicas.
130
CORTE IDH. Caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas.
Sentença de 20 de outubro de 2016. Série C No. 333. Pars. 363 e 364.
131
Ibidem. Par. 322.
132
Ibidem. Par. 328.
39
prevista no artigo 1.1 deste instrumento, em prejuízo das sessenta pessoas falecidas na
explosão da fábrica de fogos de Santo Antônio de Jesus (a maioria mulheres e crianças)133.
O caso evidencia o racismo estrutural que permeia o Brasil e expõe a sua conexão
direta com a extrema precarização do trabalho de mulheres negras, as quais carecem de
políticas voltadas para sua inserção no mercado de trabalho. As vítimas do caso eram
mulheres marginalizadas na sociedade, sendo cerca de 60% delas negras, que começaram a
trabalhar entre os 10 e 13 anos, com baixa escolaridade e sem outras opções de trabalho137.
De acordo com a Corte IDH, o contexto de pobreza e racismo estrutural foram os principais
fatores que tornaram possível o funcionamento sem fiscalização da fábrica de fogos na
região, e também o que fez com que as mulheres e crianças vítimas tenham sido compelidas a
trabalhar nessas condições138.
133
CORTE IDH. Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs.
Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de julho de 2020. Serie C No. Par.
318.
134
Ibidem. Par. 57 e 58.
135
Ibidem. Par. 67.
136
CORTE IDH. Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs.
Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de julho de 2020. Série C No. Par.
193.
137
Ibidem. Par. 65.
138
Ibidem. Par. 197.
40
Trata-se, com efeito, de um importante precedente, em que a Corte IDH
expressamente reconhece padrões de discriminação estrutural e intersecional de violência
contra mulheres negras no Brasil. Destaca a confluência de fatores de discriminação que,
juntos, aumentam a vitimização de mulheres negras e pobres. Em suas palavras:
Neste caso, a Corte pôde constatar que as supostas vítimas estavam imersas em padrões de
discriminação estrutural e intersecional. As supostas vítimas se encontravam em situação de
pobreza estrutural e eram, em amplíssima maioria, mulheres e meninas afrodescendentes,
quatro delas estavam grávidas e não dispunham de nenhuma alternativa econômica senão
aceitar um trabalho perigoso em condições de exploração. A confluência desses fatores tornou
possível que uma fábrica como a que se descreve nesse processo tenha podido se instalar e
funcionar na região, e que as mulheres e crianças supostas vítimas se tenham visto compelidas
a nela trabalhar139
139
CORTE IDH. Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs.
Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de julho de 2020. Série C No. Par.
197.
140
Ibidem. Par.78.
141
Ibidem. Par. 172 e 173.
41
relacionados a gênero e raça contribuam para a segregação de mulheres afrodescendentes e
indígenas nos empregos de menor qualidade”142. O mesmo Comitê manifestou sua
preocupação com os efeitos da pobreza sobre as mulheres brasileiras afrodescendentes e sua
segregação na sociedade e posição desvantajosa de acesso à educação, à saúde, ao emprego,
dentre outros direitos essenciais143.
É importante destacar que o fato de as vítimas pertencerem a um grupo em especial
situação de vulnerabilidade acentua os deveres de respeito e garantia de direitos a cargo do
Estado, segundo a Corte IDH144. Desta forma, foi identificado que o Estado não adotou
medidas destinadas a garantir o exercício do direito a condições de trabalho sem
discriminação, e a interseção de desvantagens comparativas fez com que a experiência de
vitimização fosse agravada145. Por este motivo, a Corte IDH condenou o Brasil também pela
violação do direito à igualdade.
No que diz respeito às garantias judiciais e a proteção judicial, houve uma demora de
quase 22 anos sem uma decisão definitiva que responsabilizasse penalmente os responsáveis
pelas violações no presente caso, levando o Tribunal a entender que o Estado não demonstrou
uma justificativa aceitável para essa mora, além de não ter atuado com a devida diligência146.
Além disso, as vítimas da explosão na fábrica de fogos não receberam qualquer indenização,
o que, segundo o Tribunal, gerou um impacto significativo em suas vidas, uma vez que elas e
seus familiares não dispunham de meios econômicos suficientes para pagar os custos dos
tratamentos médicos e psicológicos necessários147.
Dentre as reparações estabelecidas pela Corte IDH na referida sentença, destacamos
as seguintes: (i) o Estado deve dar continuidade ao processo penal para julgar e punir os
responsáveis pela explosão da fábrica de fogos; (ii) o Estado deve dar continuidade às ações
civis de indenização e aos processos trabalhistas; (iii) o Estado deve fornecer de forma
gratuita e imediata tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico às vítimas; (iv) o Estado
deverá inspecionar sistematicamente e periodicamente os locais de produção de fogos de
artifício; (v) o Estado deve apresentar relatório sobre andamento de projetos legislativos
sobre regulamentação da fabricação, do comércio e uso de fogos de artifício; (vi) o Estado
142
Ibidem. Par. 192.
143
ONU. Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher. Observações finais do Comitê. Brasil.
UN Doc. A/58/38. 18 de julho de 2003. Pars. 110 e 124.
144
CORTE IDH. Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs.
Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de julho de 2020. Série C No. Par.
198.
145
Ibidem. Par. 198.
146
Ibidem. Par. 231.
147
Ibidem. Pars. 234 a 247.
42
deve elaborar e executar programa de desenvolvimento socioeconômico com o objetivo de
promover a inserção de trabalhadores e trabalhadoras dedicadas à fabricação de fogos de
artifício em outros mercados de trabalho e possibilitar a criação de alternativas econômicas; e
(vii) o Estado deve apresentar relatório sobre a aplicação das Diretrizes Nacionais sobre
Empresas e Direitos Humanos148. De acordo com a Corte IDH, as medidas de reparação
elencadas ainda se encontram pendentes de serem cumpridas pelo Brasil149.
IV.3.4) Um diálogo com o caso Neusa dos Santos e Gisele Ana Ferreira
A sentença da Corte IDH traz importantes contribuições para a análise do Caso Neusa
dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira. Em particular, destacam-se três aspectos
relevantes, mencionados pela Corte IDH: a) o reconhecimento da discriminação intersecional,
em especial em relação a mulheres negras e pobres; b) o reconhecimento da violação ao
direito à igualdade e não discriminação, em relação ao direito ao trabalho; e c) os debates
sobre a responsabilidade do Estado por atos de atores privados.
A discriminação interseccional que sofreram as mulheres e crianças no Caso Fábrica
de Fogos, por motivos de classe, raça e gênero, consagrou uma violação de direitos em
cascata. Essa confluência de fatores evidencia um aumento das desvantagens sofridas pelas
vítimas, mulheres negras e pobres. O caso demonstra, assim, como as opressões estruturais
(de gênero, raça e classe) no Brasil são especialmente acentuadas diante de mulheres negras,
não sendo mera coincidência a histórica precarização de mão de obra dessa camada da
população. Com efeito, a desigualdade social não pode ser pensada de forma desconectada ao
racismo estrutural da sociedade brasileira, fruto da escravização de pessoas negras durante o
período colonial.
Nesse sentido, a perspectiva interseccional revela-se essencial para se analisar,
prevenir e reparar violações de direitos de mulheres negras e pobres, tendo a Corte IDH
destacado a situação de pobreza estrutural em que as mulheres e meninas afrodescendentes se
encontram no Brasil, obrigadas a se sujeitarem a situações informais e marginalizadas de
trabalho. Na sentença do Caso Fábrica de Fogos, a Corte IDH determinou, então, que o
Estado não adotou medidas destinadas a garantir o exercício do direito a condições de
trabalho sem discriminação, não havendo alternativas possíveis de trabalho digno na região
devido à carência de políticas públicas efetivas. O debate acerca da falta de alternativas de
148
Ibidem. Par. 318.
149
Casos em etapa de Supervisão de Cumprimento de Sentença. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/supervisiones/SCS/brasil/fabricafuegos/fabricafuegosp.pdf
43
trabalhos equitativos para as mulheres negras dialoga com os obstáculos ao acesso ao
mercado de trabalho enfrentados por Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira,
ainda que ambos os casos reservem suas particularidades.
Fato é que o Estado possui uma obrigação positiva, de especial proteção a grupos
sistematicamente discriminados como o de mulheres negras, devendo desenvolver políticas
públicas efetivas de promoção da igualdade racial. Na sentença do Caso Fábrica de Fogos,
restou claro que as as políticas públicas adotadas pelo Estado brasileiro nos últimos 20 anos
não teve impacto no município em que ocorreram os fatos150. Da mesma forma, é possível
dizer, em análise do caso Neusa dos Santos e Gisele Ana Ferreira, que as políticas públicas
adotadas pelo Estado brasileiro não foram capazes de gerar a inclusão equitativa de mulheres
negras no mercado de trabalho.
Outro ponto relevante, abordado no Caso Fábrica de Fogos, foi o debate sobre direitos
humanos e empresas. A Corte IDH reconheceu, na sentença, que os Estados têm obrigações
de fiscalização, supervisão ou inspeção das empresas como mecanismos de garantia e
prevenção dos direitos trabalhistas nos contextos de relações entre particulares151. Embora se
entenda que os Estados não são, per se, responsáveis pela ação de particulares, eventualmente
podem sê-lo, caso não tenham adotado medidas e não tenham tornado efetivas as medidas
adotadas, para garantir de forma preventiva os direitos humanos.
Na sentença em questão, foram invocados os Princípios Orientadores das Nações
Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos para reforçar as obrigações estatais frente às
atividades empresariais. Segundo tais Princípios, os Estados “devem proteger contra as
violações dos direitos humanos cometidas em seu território e/ou sua jurisdição por terceiros,
inclusive as empresas”152. Ademais, “[e]m cumprimento do seu dever de proteger, os Estados
devem: a) fazer cumprir as leis que tenham por objeto ou por efeito fazer as empresas
respeitarem os direitos humanos e, periodicamente, avaliar a adequação dessas leis e suprir
eventuais lacunas [...]”153.
150
CORTE IDH. Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs.
Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de julho de 2020. Serie C No. Par.
289.
151
Ibidem. Par. 148 e 149.
152
CORTE IDH. Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs.
Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de julho de 2020. Serie C No. Voto
Fundamentado do Juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot. para. 12.
153
CORTE IDH. Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs.
Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de julho de 2020. Serie C No.
Par.150.
44
Diante desse quadro, a Corte reconheceu expressamente que o Estado não só
descumpriu sua obrigação de fiscalização (diante de uma atividade perigosa e de alto risco),
como também deixou de adotar medidas destinadas a garantir a igualdade material no
exercício do direito ao trabalho de mulheres em situação de marginalização. Percebe-se,
assim, que a omissão do Estado brasileiro em fiscalizar a atuação de empresas – em
consonância e em respeito às normativas de direitos humanos – implica no aprofundamento
do racismo estrutural, bem como em formas discriminatórias interseccionais. Ainda que os
casos Fábrica de Fogos e Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira sejam factual e
contextualmente diferentes, ambos são resultados da ausência de políticas afirmativas e de
fiscalização adequadas, por parte do Estado brasileiro, capazes prevenir, responsabilizar e
reparar discriminações no exercício do direito ao trabalho de mulheres negras no Brasil.
45
socioestatísticos referentes às diferentes esferas de desigualdade que impactam de forma
imbricada e direta a realidade de mulheres negras no mercado de trabalho.
Assim como os demais países da América Latina, a desigualdade social no Brasil é
marcada pelos eixos estruturantes do gênero, raça, território, idade, orientação sexual e
identidade de gênero. Esses eixos estruturantes da desigualdade social na América Latina se
manifestam em diversas áreas de garantia de direitos e de desenvolvimento: renda, trabalho e
emprego, proteção e cuidado social, educação, saúde e alimentação, serviços básicos (como
água, saneamento, eletricidade, habitação, transporte ou acesso a tecnologias de informação e
comunicação), segurança cidadã e possibilidade de viver uma vida livre de violência, bem
como participar da tomada de decisões154.
Nesse sentido, o problema da discriminação racial no Brasil deve ser analisado a
partir de uma perspectiva estrutural e interseccional das múltiplas violências existentes contra
a população negra brasileira, que não se restringe apenas à violência letal imediata, mas
compreende também as diversas violações perpetradas pelos aparelhos estatais e por poderes
paralelos. Há maiores índices de vulnerabilidade social, econômica e política das populações
racializadas, apesar da invisibilidade estatística e da escassez de informação sobre a
população negra da América Latina, o que culmina na incapacidade de informar de modo
integral todas as dimensões das desigualdades étnico-raciais também no Brasil155.
Em consequência das desigualdades estruturais, de gênero e racial, engendradas por
meio de processos históricos, e em virtude da manutenção dos padrões e práticas
discriminatórias, mulheres negras são, no contexto brasileiro, o grupo mais vulnerabilizado
socialmente, o que pode ser observado a partir de uma análise de suas condições de vida, nas
esferas da saúde, trabalho, moradia, dentre outras156.
Nesta parte, damos especial atenção à desigualdade no mercado de trabalho,
culminando em um panorama no qual as mulheres pretas ou pardas, para além de enfrentarem
dificuldades para ocupar postos de trabalhos formais ou informais, também estão sujeitas ao
fenômeno da discriminação composta, isto é,“ (...) são as mulheres pretas ou pardas as mais
penalizadas, destacando-se a elevada concentração destas no emprego doméstico (22,4%) e
trabalhadores sem remuneração (10,2%)”157.
154
ONU. CEPAL. Fondo de Población de las Naciones Unidas.Afrodescendientes y la matriz de la desigualdad
social en América Latina Retos para la inclusión.LC/PUB.2020/14.p.21
155
ONU. CEPAL. Mulheres afrodescendentes na América Latina e no Caribe: Dívidas de igualdade.
LC/TS.2018/33. p.07.
156
Ibidem. p.18
157
IPEA e UNIFEM. Retrato das desigualdades de gênero e raça – 1ª edição. Brasília, 2005. Disponível em:
https://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/primeiraedicao.pdf. Acesso em: 01 Dez. 2022. p. 21.
46
V.1) Dados gerais sobre racismo estrutural na América Latina e no Brasil:
uma perspectiva interseccional
158
ONU. CEPAL.Fondo de Población de las Naciones Unidas.Afrodescendientes y la matriz de la desigualdad
social en América Latina Retos para la inclusión.LC/PUB.2020/14, p.108.
159
IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil – 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 15 Nov. 2022, p. 4-5.
160
IBGE. Síntese de Indicadores Sociais: Uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira. Rio de
Janeiro: IBGE, 2021. Disponível em:https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101892.pdf. Acesso
em: 01 de Dez. 2022. p. 66.
161
ONU. CEPAL .Mulheres afrodescendentes na América Latina e no Caribe: Dívidas de igualdade.
LC/TS.2018/33, p.18.
162
ONU. CEPAL.Fondo de Población de las Naciones Unidas.Afrodescendientes y la matriz de la desigualdad
social en América Latina Retos para la inclusión.LC/PUB.2020/14, p. 26
47
pobreza o valor de US$ 5,50 diários, a taxa de pobreza de brancos era de 15,4%, enquanto de
pessoas negras era de 32,9%.163
Em relação aos rendimentos de todas as fontes, a população preta ou parda, apesar de
maioria no país, compõe 75,2% dos indivíduos do grupo de 10% com menores
rendimentos164. Além disso, o rendimento domiciliar per capita também demonstra a
desigualdade racial, uma vez que na população branca, esse rendimento, em 2018, superou
em quase duas vezes o da população preta ou parda – R$ 1.846 contra R$ 934165.
Essas disparidades de rendimento estão intrinsecamente relacionadas à estruturação
do mercado de trabalho a partir de um viés racista, no qual pessoas brancas, além de serem
menos afetadas pela desemprego, também obtém vantagem no quesito rendimento166. A
combinação de raça e gênero demonstra que a maior vantagem dos homens brancos sobre os
demais grupos populacionais ocorre quando comparados às mulheres pretas ou pardas, que
recebem menos da metade do que os homens brancos auferem (44,4%).167
V.1.2) Educação
As desigualdades no âmbito educacional estão intimamente relacionadas à
capacidade de ingresso no mercado de trabalho, à qualidade salarial e ao nível de
formalidade. Observa-se que o menor nível dentro da escala educacional influi diretamente
na localização dentro da escala de renda, conforme demonstra o relatório da CEPAL
“Mulheres Afrodescendentes na América Latina e no Caribe: Dívidas de igualdade”:
(...) entre as pessoas de maior nível educacional (oito anos ou mais de
instrução), o extremo superior da escala de renda é ocupado pelos homens
não indígenas e não afrodescendentes, seguidos pelos homens
afrodescendentes, as mulheres não indígenas e não afrodescendentes, as
mulheres afrodescendentes, os homens indígenas e, finalmente, as mulheres
indígenas.168
Destaca-se que, entre 2016 e 2018, a taxa de analfabetismo na população preta ou parda
de 15 anos ou mais de idade era de 9,1%, enquanto os índices relativos à população branca
163
IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil – 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 15 Nov. 2022, p. 4-5.
164
Ibidem, p. 4.
165
Ibidem, p. 4.
166
Ibidem, p. 4-6.
167
Ibidem, p. 3.
168
ONU. CEPAL .Mulheres afrodescendentes na América Latina e no Caribe: Dívidas de igualdade.
LC/TS.2018/33, p. 24. - A Comissão destaca que o cálculo da média da renda do trabalho considera as
populações indígenas e afrodescendentes, de acordo com as informações recolhidas nas pesquisas domiciliares
de cada país. Assim, considera-se a população indígena do Estado Plurinacional da Bolívia, Brasil, Chile,
Equador, México, Panamá, Peru, Paraguai e Uruguai. Por sua vez, a população afrodescendente é considerada
no Estado Plurinacional da Bolívia, Brasil, Equador, Peru e Uruguai.
48
correspondiam a 3,9%. A mesma discrepância percebe-se na proporção de pessoas de 25 anos
ou mais de idade com pelo menos o ensino médio completo na comparação entre as
populações, uma vez que negros correspondem a 40,3% e brancos a 55,8%169.
A proporção de jovens de 18 a 24 anos de idade de cor ou raça branca que frequentavam
ou já haviam concluído o ensino superior em 2018 (36,1%) era quase o dobro da observada
entre aqueles de cor ou raça preta ou parda (18,3%)170. Nesse sentido, o IGBE afirma que:
enquanto a Meta 12 do Plano Nacional de Educação – PNE já havia sido
atingida na população branca, na população preta ou parda, os 33% de
frequência líquida no ensino superior estabelecidos no Plano, até 2024,
permaneciam distantes171.
V.1.3) Violência
As altas taxas de homicídios contra a população negra no Brasil, além de provocarem
sofrimento físico e psicológico, resultam também impactos sociais e econômicos, ao
169
IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil – 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 15 Nov. 2022, p. 7.
170
Ibidem.
171
Ibidem.
172
Ibidem, p. 8.
173
Ibidem, p. 8.
174
Ibidem, p 5-6.
175
Ibidem, p. 4.
49
implicarem na perda da produtividade econômica, sobretudo quando essas taxas atingem com
mais intensidade na população jovem176. A violência letal na adolescência e juventude produz
efeitos a longo prazo, uma vez que, em virtude da superexposição a contextos violadores, há
uma consequente maior propensão ao desenvolvimento de doenças como depressão, ao vício
de substâncias químicas, a problemas de aprendizado e ao suicídio, enfraquecendo a coesão
social e ensejando um impacto negativo sobre o desenvolvimento econômico177.
Segundo dados produzidos no Estudo “Desigualdades sociais por cor ou raça no
Brasil” produzido em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), “(...) a
taxa de homicídios foi 16,0 entre as pessoas brancas e 43,4 entre as pretas ou pardas a cada
100 mil habitantes em 2017. Em outras palavras, uma pessoa preta ou parda tinha 2,7 vezes
mais chances de ser vítima de homicídio intencional do que uma pessoa branca”178. Ademais,
o relatório constata que "a série histórica revela ainda que, enquanto a taxa manteve-se
estável na população branca entre 2012 e 2017, ela aumentou na população preta ou parda
nesse mesmo período, passando de 37,2 para 43,4 homicídios por 100 mil habitantes desse
grupo populacional"179.
Ainda segundo o documento, a taxa de homicídios da população preta ou parda
superou, em todos os grupos etários, a da população branca, cabendo salientar o alto grau de
letalidade ao qual jovens negros entre 15 e 29 anos estão sujeitos: “(...) nesse grupo, a taxa
chegou a 98,5 em 2017, contra 34,0 entre os jovens brancos. Considerando os jovens pretos
ou pardos do sexo masculino, a taxa, inclusive, chegou a atingir 185,0”180.
176
Ibidem, p. 9-10.
177
Ibidem, p. 10.
178
Ibidem, p. 9.
179
Ibidem, p. 9.
180
Ibidem , p. 10
50
relegar os negros a uma situação de desvantagem e vulnerabilidade social em relação aos
brancos em todos os indicadores mobilizados pelo instituto, que incluem, dentre outros,
renda, empregabilidade, escolaridade, habitação e violência. Tal cenário de desvantagem e
vulnerabilidade seria, ainda segundo o IBGE, resultado de um processo de clivagens raciais
realizado pelo próprio Estado brasileiro durante seu processo de desenvolvimento181.
O mercado de trabalho brasileiro tem sua formação ligada à escravidão e às barreiras
raciais, estabelecidas para dificultarem a inserção dos negros, como diagnosticaram o IBGE
(2019)182 e o CEBRAP183. O cenário do mercado de trabalho no Brasil circunscreve espaços
de atuação para as pessoas negras, relegadas majoritariamente ao trabalho informal, com
baixa remuneração e alto grau de subserviência184. As mulheres negras, por exemplo, são
super-representadas em serviços domésticos, enquanto os homens negros em serviços de
construção civil185. Esta conjuntura histórica está associada à baixa escolaridade das pessoas
negras186.
Conforme já mencionado, desvela-se imprescindível a consideração dos dados
educacionais para a realização de uma análise substancial e comprometida sobre a
discriminação racial no mercado de trabalho, em virtude da relação entre a empregabilidade,
a qualidade dos cargos que um indivíduo, ou grupo social, têm acesso, e o seu nível de
escolaridade ou “qualificação”. Nesse sentido, o IBGE demonstra que existe um vão
educacional entre pessoas brancas e negras no Brasil. Ainda que o instituto tenha observado
uma melhora na escolaridade da população negra, que se mantém aquém da observada pela
população branca, especialmente em níveis superiores de ensino187, essa expansão da
participação de negros (e também de mulheres e indígenas) nas profissões de nível superior
não resultou num acesso igualitário a todas carreiras188.
Segundo o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), no biênio
2017-2018 a proporção de pessoas com ensino superior completo entre os chefes de família
pretos e pardos teve um crescimento acumulado, respectivamente, de 157,4% e 131,6% em
181
IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil – 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 15 Nov. 2022, p. 1.
182
Ibidem.
183
CEBRAP. Desigualdades raciais e de gênero no mercado de trabalho em meio à pandemia, 2021. Disponível
em:
https://cebrap.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Informativo-7-Desigualdades-raciais-e-de-gênero-no-mercado
-de-trabalho-em-meio-à-pandemia.pdf . Acesso em: 28 Nov. 2022. p. 3.
184
Ibidem, p. 7.
185
Ibiden, p. 5-7.
186
Ibidem, p. 4.
187
IBGE, 2019. Op. Cit., p. 7.
188
CEBRAP, 2021. Op. Cit. p. 6-7.
51
relação à proporção em 1995-1996. Na população branca, esse número foi de 79,8%. Os
brancos deixaram de ser uma maioria absoluta no ensino superior, dado o aumento do
ingresso de pessoas pretas e pardas nas universidades189.
Ainda que tenha ocorrido uma expansão dos níveis de escolaridade, ou qualificação,
da população negra, isso não resultou numa melhora proporcional de cargos ocupados pelos
negros, e nem em suas rendas. Negros continuam sendo a minoria em cargos mais altos na
economia brasileira, compondo a maioria dos cargos que requerem menos qualificação, dos
empregos informais e dos desempregados no Brasil.190
Ao compararmos o número de negros e brancos lotados em cargos de direção, nos
deparamos com um cenário onde os negros ocupam apenas 29% de tais cargos. Tal
discrepância torna-se ainda mais preocupante quando notamos que no estado de São Paulo, o
estado com as maiores economia e população do Brasil (no qual os negros correspondem a
34,6%191), negros ocupam meros 15,6% dos cargos de direção192.
Outrossim, enquanto brancos ocupam a maioria esmagadora dos cargos de direção, no
que se refere ao trabalho doméstico, o cenário é inverso. Negros, em sua enorme maioria
mulheres (mais de 90%), correspondem a 60% do número total de pessoas que atuam como
trabalhadores domésticos193, ocupação notoriamente dominada pela informalidade,
fragilidade de direitos trabalhistas e condições de trabalho precárias, cuja remuneração média
é de apenas um salário mínimo (R$1.212,00 em 2022194). Segundo dados obtidos no Censo
demográfico de 2010, e tratados pela plataforma SmartLab195, dos 5,6 milhões de
trabalhadores domésticos (dos quais 3.150.989 são mulheres negras), apenas 40% contribuem
para a previdência. O percentual destes profissionais com carteira de trabalho assinada é
ainda menor, sendo equivalente a 35,4% do total196.
189
Ibidem, p. 5.
190
IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil – 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 15 Nov. 2022, p. 1-3.
191
Fundação SEADE - Portal de Estatísticas do Estado de São Paulo. Referente ao Censo de 2010. Disponível
em:
http://produtos.seade.gov.br/produtos/retratosdesp/view/index.php?indId=5&temaId=1&locId=1000#:~:text=No
%20Censo%20de%202010%2C%2063,brasileira%20reside%20em%20S%C3%A3o%20Paulo.. Acesso em:
18/11/2022.
192
IBGE - Censo Demográfico - Brasil, 2010 (após tratamento e análise pela SmartLab). Dados extraídos da
plataforma SmartLab, já referenciada acima. Seção: Segregação ocupacional de Negros em cargos de direção.
Disponível em: https://smartlabbr.org/diversidade/localidade/0?dimensao=raca. Acesso em: 18/11/2022.
193
IBGE - Censo Demográfico - Brasil, 2010 (após tratamento e análise pela SmartLab). Dados extraídos da
plataforma SmartLab, já referenciada acima. Seção: Trabalho Doméstico. Acesso no link supramencionado.
194
Fonte: Salário mínimo de R$ 1.212 é promulgado. Agência Senado, 02/06/2022. Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/06/02/salario-minimo-de-r-1-212-e-promulgado. Acesso
em: 18/11/2022.
195
Ibidem.
196
Ibidem.
52
Adentrando a problemática racial nos cargos associados à administração pública em
esfera municipal – cargos diretamente associados ao governo e ao funcionamento da máquina
estatal – pode-se observar a manifesta ausência de legislações específicas de combate a
discriminação racial. Dos 5.570 municípios brasileiros, apenas 1,6%, ou seja, meros 87
municípios contam com uma legislação específica sobre combate à discriminação racial no
âmbito da administração pública197.
Ademais, no que se refere ao acesso a tais cargos administrativos e a demais cargos
municipais cuja contratação se dá mediante concurso, nota-se mais uma grave ausência de
ações afirmativas que visem reduzir a desigualdade racial e assegurar a participação da
população negra. De todos os 5.570 municípios brasileiros, somente 282, ou seja, 5,1%,
possuem uma lei que garanta vagas para população negra ou afrodescendente em concursos
públicos no município198. No tocante aos concursos públicos estaduais e distritais, o mesmo
padrão se repete. Apenas 7 das 27 Unidades Federativas que compõem o estado brasileiro,
isto é, 25,9%, contam com alguma legislação que garanta vagas para população negra ou
afrodescendente em concursos públicos199.
Os dados revelam a permanência da não integração dos negros na economia, apesar
de serem eles, também, a maioria da mão de obra no país. Em comparação, a população
autodeclarada branca compõe apenas 46,1 milhões de trabalhadores brasileiros, uma parcela
25,2% menor do que a composta pelos negros.200
Ainda sobre a taxa de subutilização dos negros, é preciso destacar que ela se mantém
independentemente do nível de instrução201. Sendo assim, torna-se evidente que a
escolaridade da população negra não é suficiente para justificar as dificuldades que os negros
enfrentam no mercado de trabalho, visto que o racismo é um elemento relevante para a
explicação e a constituição desse cenário202.
Uma pesquisa realizada pela Catho, uma das principais plataformas de contratação no
Brasil, revela que 58% dos negros entrevistados disseram que existe discriminação no
197
IBGE - Pesquisa de Informações Municipais. Brasil, em 2019, na época da pesquisa (após tratamento e
análise pela SmartLab). Dados extraídos da plataforma SmartLab, já referenciada acima. Seção: Lei Específica
sobre Combate à discriminação racial no âmbito da administração pública.
Disponível em: https://smartlabbr.org/diversidade/localidade/0?dimensao=raca. Acesso em: 18/11/2022
198
Ibidem.
199
Ibidem.
200
Ibidem.
201
IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil – 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 15 Nov. 2022, p. 2.
202
CEBRAP. Desigualdades raciais e de gênero no mercado de trabalho em meio à pandemia, 2021. Disponível
em:
https://cebrap.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Informativo-7-Desigualdades-raciais-e-de-gênero-no-mercado
-de-trabalho-em-meio-à-pandemia.pdf . Acesso em: 28 Nov. 2022. p. 3.
53
mercado de trabalho, e que brancos e negros não conseguem acessar as mesmas chances ou
oportunidades203. Além disso, 48% dos negros também relataram já ter sofrido racismo no
ambiente de trabalho204. Em São Paulo, maior metrópole do Brasil e da América Latina, 67%
dos profissionais negros dizem ter sentido que perderam uma vaga de trabalho devido a sua
raça – essa porcentagem equivale a uma proporção de sete em cada dez trabalhadores negros
em atividade205. Uma pesquisa realizada pelo Grupo Croma, especializado em inovação e
análise, também revela que 56% das empresas ainda não contratam com base em
discriminações raciais. Isso foi percebido pelos próprios consumidores206.
Além de enfrentarem dificuldades de contratação e discriminação no ambiente de
trabalho, negros também recebem remuneração menor do que pessoas brancas. Negros
recebem, em média, 40,2% a menos que brancos por hora trabalhada207. Essa diferença é a
mesma há 10 anos208. Isso implica que negros precisam trabalhar mais horas para conseguir
receber o mesmo salário que os brancos. Se tomarmos o valor atual do salário mínimo
brasileiro como base (R$1.212,00), um trabalhador branco precisaria trabalhar 60 horas ao
mês, enquanto um negro precisaria trabalhar 105,5 horas no mesmo intervalo de tempo209.
Negros também recebem, em média, 17% a menos do que brancos de mesma origem
social210.
Considerando a remuneração média por raça/cor em escala nacional, utilizando os
cinco cortes definidos pelo IBGE, existe uma disparidade explícita entre pessoas de raça/cor
preta e parda e pessoas de raça/cor branca e amarela. Enquanto pessoas pretas e pardas
203
FILLIPE, Marina. Mulheres e Negros dizem não ter oportunidades iguais aos colegas. Revista Exame,
01/02/2022. Disponível em:
<https://exame.com/esg/mulheres-e-negros-dizem-nao-ter-oportunidades-iguais-aos-colegas/>. Acesso em: 18
Nov. 2022.
204
Ibidem.
205
MELO, Luísa. “60% dos negros dizem ter sofrido racismo no trabalho, aponta pesquisa”.G1, 25/07/2017.
Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/60-dos-negros-dizem-ter-sofrido-racismo-no-trab
alho-aponta-pesquisa.ghtml>. Acesso em: 18/11/2022.
206
GUIMARÃES, Juca. Pesquisa mostra que 56% das empresas não contratam negros por racismo. Alma Preta
Jornalismo, 28/05/2020.Disponível
em:<https://almapreta.com/sessao/cotidiano/pesquisa-mostra-que-56-das-empresas-nao-contratam-negros-por-ra
cismo>
Acesso em: 18/11/2022
207
MATOS, Thaís. Trabalhadores pretos ganham 40,2% menos do que brancos por hora trabalhada. G1,
15/11/2022. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/11/15/trabalhadores-pretos-ganham-402percent-menos-do-que-br
ancos-por-hora-trabalhada.ghtml>. Acesso em: 18/11/2022.
208
Ibidem.
209
Ibidem.
210
“Negros recebem 17% menos do que brancos de mesma origem social, diz estudo”. UOL, 20/11/2020.
Disponível em:
<https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/11/20/estudo-negros-salario-classe-social-brancos-pucrs.ht
m>. Acesso em:18/11/2022.
54
recebem, em média, R$2.226,6 e R$2.195,4 respectivamente, a remuneração média de
pessoas brancas corresponde a R$3.218, valor expressivamente superior. A diferença é ainda
maior face à média remuneratória de indivíduos de raça/cor amarela, cujo valor é de
R$4.033,9. Vale notar que tais dados se referem tanto à remuneração proveniente de vínculos
empregatícios com carteira assinada (CLT) quanto de vínculos de caráter administrativo ou
estatutário.211
Tal cenário de severa discrepância no tocante à remuneração se agrava ao
observarmos a interseccionalidade que abrange o grupo populacional de mulheres negras. O
maior grupo demográfico do país (que compõe cerca de 25,37% da população brasileira,
segundo o Censo Demográfico de 2010212) tem a menor remuneração média entre os demais,
mesmo no setor formal da economia. Se tomarmos como referência a remuneração média
recebida por homens brancos em tal setor, que equivale a R$3.579,50, podemos notar que
mulheres negras no mesmo setor, recebem, em média, apenas 54,5% desse valor, o montante
de R$1.950,00213.
211
ME - RAIS - Brasil, em 2019 (após tratamento e análise pela SmartLab). Dados extraídos da plataforma
SmartLab - Observatório da Diversidade e da Igualdade de Oportunidades no Trabalho, plataforma conjunta da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Ministério Público do Trabalho (MPT) - Seção de Raça e
Interseccionalidade. Seção: Remuneração Média de Trabalhadores por Raça/Cor. Disponível em:
https://smartlabbr.org/diversidade/localidade/0?dimensao=raca. Acesso em: 18/11/2022.
212
Cálculos realizados utilizando os dados disponíveis do Censo IBGE de 2010. Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/institucional/responsabilidade-social/oel/panorama-nacional/populacao-brasileira.
Acesso em: 18/11/2022.
213
Fonte: ME - RAIS - Brasil, em 2019 (após tratamento e análise pela SmartLab). Dados extraídos da
plataforma SmartLab, já referenciada acima. Seção: Diferenças de Remuneração pela Perspectiva Interseccional
(Sexo e Raça/Cor) no setor formal. Acesso no link supramencionado.
214
Ver mais em: OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS - CRISE E COVID-19. Desconstituição dos
serviços públicos no Brasil. FREITAS, Felipe; PORTELA, Rodrigo; ANDRADE, Marcelo (Orgs.). Disponível
em:
https://wp.observadhecovid.org.br/wp-content/uploads/2022/10/Desconstituicao-dos-Servicos-Publicos-no-Brasi
l.pdf . Acesso em: 15 Nov. 2022.
55
saúde, educação, assistência social, (in)segurança alimentar, trabalho e renda, as quais
afetaram sobremaneira a população brasileira negra e pobre, especialmente as mulheres.
O Observatório de Direitos Humanos - Crise e Covid-19 aponta que:
215
PRATES, Ian. Impactos econômicos da pandemia sobre renda e trabalho no Brasil. In OBSERVATÓRIO DE
DIREITOS HUMANOS - CRISE E COVID - 19, Desigualdades, Direitos e Pandemia. FREITAS, Felipe da
Silva; STANCHI, Malu; PIMENTEL, Amanda (Orgs.). Disponível em:
https://wp.observadhecovid.org.br/wp-content/uploads/2021/12/Livro-Desigualdades-Direitos-e-Pandemia_301
2_2021.pdf . Acesso em: 15 Nov. 2022, p. 15-16.
216
OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS - CRISE E COVID-19. Elas que Lutam: Mulheres e
sustentação da vida na pandemia. CUENTRO, Ana Cecília; SALOMÃO, Isadora (Orgs.). Disponível em:
https://wp.observadhecovid.org.br/wp-content/uploads/2021/12/EstudoElasqueLutam_0112-1.pdf . Acesso em:
15 Nov. 2022, p. 14
217
Ver mais em: OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS - CRISE E COVID-19. Elas que Lutam:
Mulheres e sustentação da vida na pandemia. CUENTRO, Ana Cecília; SALOMÃO, Isadora (Orgs.).
Disponível em:
https://wp.observadhecovid.org.br/wp-content/uploads/2021/12/EstudoElasqueLutam_0112-1.pdf . Acesso em:
15 Nov. 2022.
218
IBGE. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Brasília: Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), 2019.
219
CEBRAP. Desigualdades raciais e de gênero no mercado de trabalho em meio à pandemia, 2021. Disponível
em:
https://cebrap.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Informativo-7-Desigualdades-raciais-e-de-gênero-no-mercado
-de-trabalho-em-meio-à-pandemia.pdf . Acesso em: 28 Nov. 2022. p. 7-10.
56
pandemia220. Esse dado, por si só, já aponta para um impacto maior da pandemia entre os
negros, pois são eles, como dito anteriormente, a maioria entre os trabalhadores informais.
Sobre isso, também vale a pena destacar que os trabalhadores informais, cuja maioria
é negra, não têm acesso às leis trabalhistas em vigor no Brasil, o que os coloca em uma
posição mais vulnerável dentro do mercado de trabalho. Ademais, algumas das condições
especiais criadas pelo governo para apoiar empregadores e empregados durante a pandemia –
como a possibilidade de firmar acordos de férias coletivas, como aqueles abertos pela
MP-927, ou de ser contemplados com a manutenção do emprego com redução de jornada e
salários, possibilidade aberta pelo Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da
Renda – só alcançaram trabalhadores que ocupavam postos formais de trabalho. Sendo assim,
durante a pandemia, as especificidades, ou melhor, as vulnerabilidades, dos postos de
trabalho informal dificultaram o acesso desses trabalhadores às políticas de governo criadas
para assegurar trabalhadores e empresários221.
Sublinha-se que, com o encerramento das atividades consideradas não essenciais com
intuito de conter o avanço do vírus durante a pandemia, ocorreu uma expansão de
modalidades de teletrabalho, em nome da continuidade das atividades e da segurança dos
funcionários. Mas o teletrabalho não pode ser praticado em todos os postos. Muitos dos
cargos dos setores mais ocupados pela população negra (informais e de serviço) não
permitem esse tipo de jornada. Logo, negros também foram a minoria entre os trabalhadores
em regime de trabalho online, considerado o mais seguro para saúde física e financeira dos
trabalhadores no contexto pandêmico222.
Mas o impacto diferencial dos efeitos econômicos da pandemia sobre os negros não é
observado apenas na dicotomia informal/formal. Entre aqueles que trabalham no mercado
privado sem carteira de trabalho assinada, foram 37,4% a menos de trabalhadores negros e
26,6% a menos de trabalhadores brancos em 2020 em comparação ao ano de 2019. Entre os
trabalhadores domésticos sem carteira, foram 38,8% de negros e 29,0% de brancos. Entre os
empregadores, 19,1% contra 6,3%. Esse último dado é importante, porque mostra que,
mesmo entre os donos de estabelecimento, o nível de estabilidade entre os negros é menor.
Também vale ressaltar que, em 2019, a maioria dos empregadores negros (71,5% deles)
tinham estabelecimento com até 5 funcionários. Entre os brancos, esse percentual é de 54,3%.
220
Ibidem, p.13.
221
Ibidem, p. 12-13.
222
Ibidem, p.18-20.
57
Entre os donos de estabelecimentos com mais de 50 funcionários, brancos representavam
20,0% e negros 12,3%223.
O aumento no número de desempregados em decorrência da pandemia do covid-19
não foi propriamente registrado nas estatísticas nacionais sobre desemprego, uma vez que,
por não poderem sair para procurar emprego – devido às medidas de isolamento – muitos
foram registrados como profissionais inativos, e não como desempregados224. Quando as
medidas de contenção do vírus foram afrouxadas, e a população pode, mesmo que com
limitações, sair para buscar emprego, as estatísticas passaram a registrar um aumento do
desemprego.
A taxa de desocupação que, em maio de 2020, era de 9.6% da população brasileira,
passou a 14,2% em novembro. O número de pessoas desocupadas, entre os brancos, foi de 4
milhões, em maio, para 5,1 milhões, em novembro, o que equivaleria a um crescimento de
27,6%. Entre os negros, o número de desocupados saltou de 6 milhões para 8,8 milhões no
mesmo período, registrando um crescimento de 46,2%225.
Entre as mulheres negras, a queda na procura por emprego não está relacionada
somente às restrições ligadas às medidas de contenção do vírus da Covid-19. Existem outros
fatores relacionados a esses dados. Mulheres negras são super-representadas em setores muito
afetados pela pandemia, por não serem considerados serviços essenciais. O principal motivo
causador de efeitos negativos gerados pela covid entre as mulheres no mercado, independente
da raça, foi a segregação ocupacional e setorial, enquanto entre os negros a exclusão se deu
pela informalidade. As mulheres negras se encontram na intersecção desses dois grupos,
atingidas por ambos os desafios no mercado de trabalho. Muitas se viram sobrecarregadas
com tarefas domésticas, incluindo o cuidado de parentes e familiares, atividades que alegam
ter sofrido muita pressão para desempenhar. Quanto a isso, elas declaram possuir menos
apoio externo do que mulheres e homens brancos, apoio esse que, normalmente, é buscado
por elas entre os familiares. Já as mulheres brancas, conseguem ter acesso a apoio
institucionalizado, como creches e casas de idosos, por exemplo226.
Mesmo em face da situação calamitosa, a única medida adotada pelo governo para
mitigar a insegurança econômica com recorte de gênero foi o auxílio emergencial227.
223
Ibidem, p.13.
224
Ibidem.
225
Ibidem, p. 10-11.
226
Ibidem, p. 20-21
227
PRATES, Op. Cit., p. 17.
58
Contudo, a concessão do benefício foi insuficiente à manutenção dos núcleos familiares e
atravessada por inúmeros problemas de ordem estrutural, técnica e de execução:
228
OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS - CRISE E COVID-19. Elas que Lutam: Mulheres e
sustentação da vida na pandemia, Op. Cit., p. 15.
229
PRATES, Op. Cit., p. 17.
230
OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS - CRISE E COVID-19. Educação e Pandemia. FREITAS,
Felipe da Silva; PIMENTEL, Amanda; RODRIGUES, Thais. Disponível em:
https://wp.observadhecovid.org.br/wp-content/uploads/2022/05/Educac%CC%A7a%CC%83o-e-Pandemia_com
pressed.pdf . Acesso em: 15 Nov. 2022.
231
CAVALLINI, Marta. “ Proporção de pretos e pardos entre os pobres chega ao dobro em relação aos brancos,
mostra o IBGE”. G1, 11/11/2022.Disponível
em:<https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/11/11/proporcao-de-pobres-pretos-e-pardos-chega-ao-dobro-e
m-relacao-aos-brancos-mostra-o-ibge.ghtml>. Acesso em 18 Nov. 2022.
232
Ibid.
59
país também se configura como principal motivo para jovens negros terem abandonado os
estudos. Jovens negros são 71,7% daqueles que abandonam a escola no Brasil. Segundo eles,
a necessidade de trabalhar para ajudar a sustentar a família é o principal motivo de sua evasão
escolar233.
Como dito anteriormente, a escolaridade da população negra é um dos principais
fatores relacionada às dificuldades enfrentadas pelos negros no mercado de trabalho. A
evasão escolar dos estudantes negros pode levar a permanência da conjuntura inóspita
enfrentada por eles no mercado. Sendo assim, o panorama da situação dos negros no mercado
brasileiro após a pandemia de covid-19 aparenta apontar para a reversão dos avanços
registrados, nas últimas décadas, no cenário enfrentado pelas populações negras na educação
e no mercado de trabalho. Lembrando que, como dito anteriormente, a escolaridade da
população negra não é o único fator que explica a situação que ocupam no mercado.
Pelo que tudo indica, mesmo que o Estado brasileiro consiga reverter esse quadro,
como vinha sendo revertido nas primeiras décadas deste século, a população negra, ainda
assim, continuou a ser discriminada no mercado de trabalho pelo simples fato de ser negra.
Cabe, assim, ao Estado brasileiro adotar medidas para garantir que a maioria de sua
população tenha garantido plenamente seu direito ao trabalho.
A prática do racismo constitui crime inafiançável, como dispõe o inciso XLII do Art.
5º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. A Lei nº. 7.716, conhecida
popularmente como Lei Caó235, foi promulgada em 5 de janeiro de 1989 e definiu os crimes
resultantes do preconceito de raça ou de cor. Apesar da existência deste e de outros
instrumentos normativos que conferem tutela e contornos jurídicos à questão, é patente a
233
PALHARES, Isabela. Negros são 71,7% dos jovens que abandonam a escola no Brasil. Folha de São Paulo,
15/07/2020. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/06/negros-sao-717-dos-jovens-que-abandonam-a-escola-no-bra
sil.shtml> Acesso em: 18 Nov. 2022.
234
Os dados constantes desta seção foram obtidos, majoritariamente, no Observatório da Diversidade e da
Igualdade de Oportunidades no Trabalho – Seção de Raça e Interseccionalidade, resultado da parceria entre a
Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Ministério Púbico do Trabalho (MPT) que originou a
Plataforma SmartLab. A iniciativa SmartLab é responsável pelo tratamento e análise dos dados e, por se tratar
de uma plataforma, coleta informações de diversas fontes, principalmente do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados. Acesso em: 22 Nov. 2022.
235
A Lei nº. 7.716/1989 ficou conhecida como Lei Caó em razão do apelido do seu autor, Carlos Alberto
Oliveira dos Santos. Caó foi um nome de destaque na luta contra o racismo no Brasil, tendo sido eleito
Deputado Constituinte pelo Estado do Rio de Janeiro.
60
ausência de políticas públicas de combate ao racismo em âmbito estadual e municipal em
todo o Brasil.
O Estado brasileiro é dividido em 27 (vinte e sete) Unidades Federativas (UF), sendo
26 (vinte e seis) Estados236 e o Distrito Federal. O Estado de São Paulo, local onde ocorreram
os fatos do presente caso, é o mais populoso da federação237. O Brasil possui 5.570 (cinco mil
quinhentos e setenta)238 municípios distribuídos por seus Estados.
236
Unidades Federativas em ordem alfabética: Acre (AC); Alagoas (AL); Amapá (AP); Amazonas (AM);
Bahia (BA); Ceará (CE); Distrito Federal (DF); Espírito Santo (ES); Goiás (GO); Maranhão (MA); Mato
Grosso (MT); Mato Grosso do Sul (MS); Minas Gerais (MG); Pará (PA); Paraíba (PB); Paraná (PR);
Pernambuco (PE); Piauí (PI); Rio de Janeiro (RJ); Rio Grande do Norte (RN); Rio Grande do Sul (RS);
Rondônia (RO); Roraima (RR); Santa Catarina (SC); São Paulo (SP); Sergipe (SE); e Tocantins (TO).
237
O Estado de São Paulo possui população estimada pelo IBGE de 46.649.132 (quarenta e seis milhões
seiscentos e quarenta e nove mil e cento e trinta e duas) pessoas. Disponível em:
https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/sp/.html? acesso em 22.Nov.2022.
238
Dado produzido pelo IBGE, disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados. Acesso em 22
Nov.2022.
239
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. “Art. 144. A segurança pública, dever do Estado,
direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das
pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.
§ 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de
bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.”
240
Ibidem. “§ 6º As polícias militares e os corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do
Exército subordinam-se, juntamente com as polícias civis e as polícias penais estaduais e distrital, aos
Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.”
241
SmartLab - IBGE. Pesquisa de Informações Básicas Estaduais – ESTADIC. Brasil. 2014. Disponível em:
https://smartlabbr.org/diversidade/localidade/0?dimensao=raca. Acesso em 22.Nov.2022.
242
Ibidem.
61
A presença de Conselhos de Promoção de Igualdade Racial se dá de maneira mais
uniforme, estando presente em 20243 (74,1%) das 27 Unidades Federativas. O Estado de São
Paulo figura entre aqueles que possuem tais conselhos. Os Estados que não possuíam os
Conselhos de Promoção de Igualdade Racial eram: Amazonas; Ceará; Pernambuco;
Rondônia; Roraima; Sergipe; e Tocantins244.
Observa-se que quanto aos Fundos de Promoção da Igualdade Racial, os dados
apontam que só 4 (14,8%) das 27 Unidades Federativas brasileira possuíam tais fundo245:
Amapá, Goiás, Paraná e Rio de Janeiro. É interessante destacar que o Estado de São Paulo
não figura, mais uma vez, nessa lista e a plataforma SmartLab faz a ressalva de que a
existência dessas ações não implica na sua efetividade.
Quando os dados se referem a legislações que garantem vagas para a população negra
em concursos públicos, somente 7 (25,9%) das 27 Unidades Federativas possuíam essas
garantias: Bahia; Espírito Santo; Mato Grosso; Mato Grosso do Sul; Paraná; Pará; e Rio de
Janeiro246. Por sua vez, somente a Bahia e o Distrito Federal possuíam legislação instituindo o
Estatuto de Igualdade Racial247. Ou seja, 2 (7,4%) de 27 Unidades Federativas brasileiras
contavam com essa política pública instituída.
A situação não é melhor quando os dados se referem a presença de legislações que
instituem Planos de Promoção da Igualdade Racial e/ou de Enfrentamento ao Racismo. Só 3
(11,1%) das 27 Unidade Federativas brasileiras haviam instituídos estes planos248. Bahia, Rio
de Janeiro e Rio Grande do Sul contavam com essas políticas públicas e São Paulo, mais uma
vez, não figurava nessa vanguarda.
243
As Unidades Federativas que possuíam Conselho de promoção de igualdade racial em 2014 eram: Acre;
Alagoas; Amapá; Bahia; Distrito Federal; Espírito Santo; Goiás; Maranhão; Mato Grosso; Mato Grosso do
Sul; Minas Gerais; Paraná; Paraíba; Pará; Piauí; Rio de Janeiro; Rio Grande do Norte; Rio Grande do Sul;
Santa Catarina; e São Paulo.
244
SmartLab - IBGE. Pesquisa de Informações Básicas Estaduais – ESTADIC. Brasil. 2014. Disponível em:
https://smartlabbr.org/diversidade/localidade/0?dimensao=raca. Acesso em 22.Nov.2022.
245
Ibidem.
246
Ibidem.
247
Ibidem.
248
Ibidem.
249
Ibidem.
62
do total de municípios existentes nesse Estado)250 estavam localizados no Estado de São
Paulo. A presença de legislação que garanta vagas para a população negra ou afrodescendente
em concursos municipais ocorria em 282 (5,1%) municípios brasileiros251. O Estado de São
Paulo possui 29 (4,5%) dos 645 municípios existentes em seu território dispondo de leis
municipais que garantem tais vagas.
Os Fundos de Promoção da Igualdade Racial estão presentes em 49 (0,9%) dos
municípios brasileiros252. O Estado de São Paulo conta com 8 (1,20%) municípios que
instituíram Fundos nesse sentido. Do total de 5.570 municípios existentes no Brasil, só 365
(6,6%) haviam criado Conselhos Municipais de Igualdade Racial. Desses 365 municípios, 93
(14,40%) estavam localizados no Estado de São Paulo253.
As políticas ou programas de promoção de igualdade racial e/ou enfrentamento ao
racismo são os mecanismos observados pelo presente levantamento de maior distribuição
entre os municípios pátrios, estando presente em 1.367 (24,5%) municípios. No Estado de
São Paulo, 91 (14,10%) municípios dispõem dessas políticas ou programas254. O segundo
melhor número está relacionado à existência de programas e ações para a população negra.
945 (17%) dos 5.570 municípios brasileiros contam com a existências desses programas.
Desses 945, 89 (13,80%) estão localizados no Estado de São Paulo255.
A existência de lei específica municipal sobre programas ou políticas de promoção da
igualdade racial e/ou enfrentamento ao racismo ocorre em 212 (3,8%) municípios brasileiros.
O Estado de São Paulo conta com 37 (5,70%) municípios contando com esses mecanismos
em seus ordenamentos256. Quando observamos a existência de lei específica municipal sobre
combate à discriminação racial no âmbito da administração pública, somente 87 (1,6%) dos
municípios brasileiros contam com estas normas. Desses 87, 15 (2,30%) estão localizados no
Estado de São Paulo257.
250
O percentual se refere ao total de municípios existentes na Unidade Federativa. O Estado de São Paulo
possui 645 municípios. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/documentacao/municipios-paulistas/. Acesso
em: 22 Nov.2022.
251
SmartLab - IBGE. Pesquisa de Informações Básicas Estaduais – ESTADIC. Brasil. 2014. Disponível em:
https://smartlabbr.org/diversidade/localidade/0?dimensao=raca. Acesso em 22.Nov.2022.
252
SmartLab - IBGE. Pesquisa de Informações Básicas Municipais – MUNIC. Brasil. 2019. Disponível em:
https://smartlabbr.org/diversidade/localidade/0?dimensao=raca. Acesso em 22.Nov.2022.
253
Ibidem.
254
Ibidem.
255
Ibidem.
256
Ibidem.
257
Ibidem.
63
Por sua vez, a existência de programas ou políticas de reconhecimento do patrimônio
afro-brasileiro se dá em 195 (3,5% do total de 5.570) municípios brasileiros, 20 desses
(3,10% do total de 645) municípios são paulistas.
258
CEPAL. Afrodescendientes y la matriz de la desigualdad social en América Latina: Retos para la inclusión.
ONU, 2020. Disponível em:
https://www.cepal.org/es/publicaciones/46191-afrodescendientes-la-matriz-la-desigualdad-social-america-latin
a-retos-la . Acesso em: 17 Nov. 2022.
64
institucionais que resultaram na perda de sua capacidade de atuação. No âmbito
orçamentário, a Secretaria teve um repasse de verba de 23 milhões de reais, em 2018, dos
quais apenas 3 milhões foram executados259. O retrocesso provocado a níveis alarmantes pelo
governo executivo de 2018-2022 demonstra a fragilidade institucional destes mecanismos,
sujeitos à voluntariedade política dos governos em exercício260.
Ainda sobre a esfera pública e política, é importante mencionar a sub-representação
da população negra nas esferas legiferantes federais e estaduais. Em 2018, apesar de
constituir 55,8% da população, os negros representavam 24,4% dos deputados federais e
28,9% dos deputados estaduais eleitos261.
A situação é ainda mais grave quando se trata da representação de mulheres negras
nestes cargos públicos: "em 2018, as mulheres pretas ou pardas constituíram 2,5% dos
deputados federais e 4,8% dos deputados estaduais eleitos, e, em 2016, 5,0% dos vereadores.
Consideradas apenas as mulheres eleitas, foram 16,9%, 31,1% e 36,8%, respectivamente"262.
A disparidade, em parte, é explicada pela discrepância entre as receitas das candidaturas de
pessoas brancas e negras. O IBGE destaca que ao passo que 9,7% das candidaturas de
pessoas brancas a deputado federal obtiveram de receita igual ou superior a R$ 1 milhão,
entre as candidaturas de pessoas pretas ou pardas apenas 2,7% contaram com pelo menos
esse valor263.
O CEPAL indica que o Brasil junto à República Bolivariana da Venezuela são os
países que apresentam maiores disparidades entre a proporção de pessoas negras na
população nacional e sua representação proporcional nos parlamentos264.
(1) O caso Neusa dos Santos e Gisele Ana Ferreira deve ser compreendido à luz do racismo
estrutural que afeta mulheres negras no ambiente laboral brasileiro. Não se trata de um caso
isolado, mas do reflexo de um padrão de violência interseccional que recai até hoje sobre
259
Ibidem. p. 244.
260
Ibidem.
261
IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil – 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 15 Nov. 2022, p. 11.
262
Ibidem. p. 12.
263
Ibidem.
264
CEPAL, 2020. Op. Cit., p. 71
65
mulheres negras no Brasil. Com efeito, o contexto brasileiro de racismo tem sido reconhecido
e condenado por uma série de organismos internacionais de Direitos Humanos, em especial
pela Comissão Interamericana e por esta Corte em importantes precedentes anteriormente
analisados, cujas recomendações seguem reiteradamente sendo descumpridas pelo Estado. O
julgamento do caso em questão requer, portanto, uma análise contextual que considere as
circunstâncias históricas, materiais, temporais e espaciais do racismo que vitima mulheres
negras brasileiras até o presente.
(3) A análise da violação dos artigos 8º, 25 e 26 da CADH deve ser empreendida de forma
necessariamente interrelacionada ao dever estatal de não discriminação, contido no artigo 24
da CADH. O direitos às garantias e proteção judicial, cuja violação foi reconhecida pelo
Estado brasileiro em audiência pública perante esta Corte, não deve ser analisado
isoladamente, sob pena de se incorrer, mais uma vez, no apagamento e na denegação do
racismo que constitui a sociedade brasileira e que afetou diretamente o projeto de vida de
Neusa dos Santos e de Gisele Ana Ferreira.
66
lado, é ainda gritante a omissão do Estado brasileiro em produzir dados detalhados sobre a
prática de racismo no mercado de trabalho brasileiro, sobretudo em relação às mulheres
negras.
(5) Este caso é uma oportunidade para que esta Corte aprofunde e avance no debate sobre a
reparação plena e integral de vítimas de racismo e de discriminação racial, adotando uma
abordagem interseccional no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Entendemos que o SIDH deve se comprometer com a promoção de uma justiça reparadora, o
que implica, em situações de racismo, na adoção de uma perspectiva interseccional – que leve
em consideração os fatores que podem agravar a situação de vulnerabilidade, como gênero e
pobreza – e no consequente fomento de mudanças culturais e estruturais, capazes de
reconhecer, como afirma a CIDH, a memória histórica afrodescendente, através da adoção de
medidas de satisfação, restituição de direitos, garantias de não repetição, reabilitação, e
indenização, como forma de reparação integral.
(1) Produção de dados, pelo Estado brasileiro, com indicadores racial, de gênero, de condição
socioeconômica, de deficiência sobre o acesso, permanência e condições de permanência no
mercado de trabalho no Brasil (base salarial, cargos, salubridade, risco, etc).
(2) Tratamento, sistematização e transparência, pelo Estado brasileiro, dos dados produzidos,
imbricando os indicadores e produzindo análises interseccionais qualitativas sobre o acesso,
permanência e condições de permanência no mercado de trabalho no Brasil.
(3) Criação pelo Estado brasileiro de normativa com caráter imperativo para implementação,
por empresas privadas e públicas, de parâmetros internacionais de direitos humanos no
âmbito trabalhista, com especial foco às políticas de igualdade e não discriminação,
incluindo-se ações afirmativas de acesso e permanência no trabalho.
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(4) Estabelecimento, pelo Estado brasileiro, de políticas de fiscalização dos protocolos e
condutas da empresas privadas, à luz do princípio da igualdade e não discriminação, a ser
empreendida de forma períodica e reiterada, contemplando também procedimentos de
encaminhamentos de eventuais violações identificadas, com o devido tratamento e promoção
de responsabilização aos/as funcionários/as e à empresa violadora.
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