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Eleuthería

Revista do Curso de Filosofia – Vol. 06, N. 10 – janeiro de 2021 – junho de 2021


ISSN 2527-1393 – Publicação Semestral

Editores-Chefes Dr. Ricardo Pereira de Melo (UFMS)


Dra. Marta Nunes da Costa (UFMS)
Dr. Stefan Vasilev Krastanov In Memoriam

Editoras Jade Oliveira Chaia (UFMS) Michelly Alves Teixeira (UnB)


Associadas

Editores Ariana Conceição da Silva (UFMS) Isabela Pereira da Cunha (UFMS)


Assistentes Luciano Magalhães Alves (UFMS) Paula Silva Ribeiro Fontes (UFMS)
Sarah Tavares de Oliveira (UFMS)

Conselho Dr. Erickson Cristiano dos Santos (UFMS) Dr. José Carlos da Silva (UFMS)
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Científico Dr. Amós Nascimento (University of Washington, EUA)
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Responsáveis Dr. Caio Padovan Soares de Souza (Université Paul Valéry Montpellier 3 / PUCPR)
pela edição Dr. Richard Theisen Simanke (Universidade Federal de Juiz de Fora)
Dr. Francisco Verardi Bocca (Pontifícia Universidade Católica do Paraná)

Pareceristas Dr. Alexandre Augusto Garcia Starnino (Universidade Estadual de Campinas)


ad hoc Dra. Aline Sanches (Universidade Estadual de Maringá)
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Diagramação e Jade Oliveira Chaia (UFMS)
Preparação dos
Originais

Capa Michelly Alves Teixeira (UnB)

Imagem O Pintassilgo, de Carel Fabritius (1654)

Endereço para Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Cidade Universitária


correspondência Faculdade de Ciências Humanas – Curso de Filosofia
Avenida Costa e Silva s/n – Unidade XII
Cep: 79070-900 – Campo Grande (MS)
Telefone: (67) 3345-7701 / 7702

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Eletrônico E-mail: [email protected]
Sumário

Editorial .............................................................................................................................................. 06 – 12

Artigos
[Filosofia da Psicanálise]
A descoberta acidental de Freud: um esboço de uma nova filosofia e a filosofia do freudismo .... 13 – 28
Daniel Cardozo Severo
Psicanálise e filosofia: algumas considerações a partir da relação entre Freud e Fechner ............. 29 – 41
André Santana Mattos

[Estudos lacanianos]
Para além de Kant com Sade: o impasse ético a partir da psicanálise lacaniana ............................ 42 – 61
Allysson Alves Anhaia
Os desdobramentos do ensino de Lacan na filosofia política de Slavoj Žižek .............................. 62 – 74
Pedro Henrique Marques Silva Mauad
Outro objeto para outro sujeito: a contribuição lacaniana à revolução freudiana a partir da noção de
objeto............................................................................................................................................... 75 – 99
Izabela Loner Santana
Estrutura e topologia na psicanálise de Jacques Lacan ............................................................... 100 – 125
Pedro Henrique Bedin Affonso; José Francisco Miguel Henriques Bairrão

[Diálogos]
Rorty e Schafer: afinidade eletivas em torno da psicanálise freudiana....................................... 126 – 142
Orlando Pinto Guerra Filho
Catherine Malabou leitora de Freud............................................................................................ 143 – 170
Diego Luiz Warmling
Politzer, Laplanche e Freud: o problema do conflito psíquico ................................................... 171 – 199
Munique Gaio Filla
Prazer e felicidade em Freud e em Mill ...................................................................................... 200 – 217
Marcelo Galletti Ferretti

[Estudos interdisciplinares]
O modelo heurístico sintético das redes neurais: uma intersecção entre metapsicologia e inteligência
artificial ....................................................................................................................................... 218 – 242
Fernando Alberto Pozetti Filho
Michel Henry: a phenomenological approach to the subjective body – contribution towards the
epistemology of corporality ........................................................................................................ 243 – 254
Ignacio Iglesias Colillas
Metodologia para a recepção filosófica: o caso Nietzsche como exemplo................................. 255 – 270
Geraldo Pereira Dias; Ivo da Silva Júnior

[Estudos aplicados]
Identificação imaginária e neopentecostalismo à brasileira ........................................................ 271 – 285
Alexandre Starnino; Daniel Omar Perez
Les signes du pâtir: une anthropologie clinique négro-africaine des marges entre croyances et
psychanalyse ............................................................................................................................... 286 – 327
David-Le-Duc Tiaha
Merleau-Ponty, o inconsciente e a arte: uma leitura da obra dos artistas de Engenho de dentro ...............
..................................................................................................................................................... 328 – 344
Marina Coelho Santos

Tradução
[1912] Philosophie und Psychoanalyse – Filosofia e Psicanálise .............................................. 345 – 358
Sándor Ferenczi
Caio Padovan; Guilherme Germer (tradução e notas)
Caio Padovan; Weiny César Freitas Pinto (nota editorial)

Resenha
[2018] Adoecimentos psíquicos e estratégias de cura: matrizes e modelos em psicanálise, de Luís
Cláudio Figueiredo e Nelson Ernesto Coelho Junior .................................................................. 359 – 363
Wilson de Albuquerque Cavalcanti Franco

Entrevista
História e filosofia da psicanálise – fundamentos e questões de método: entrevista com Richard Theisen
Simanke....................................................................................................................................... 364 – 383
Weiny César Freitas Pinto
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

[EDITORIAL]
HISTÓRIA E MÉTODO DA RECEPÇÃO FILOSÓFICA DA PSICANÁLISE

Em homenagem a Luiz Roberto Monzani (1946-2021)

Foram necessários quase sessenta anos para aprendermos como


não se deve ler Freud. Temos muito pouco tempo de trabalho e
muitos problemas1.

Filosofia da psicanálise, já que se trata de uma reflexão que faz


do discurso e da teoria freudianos o seu objeto; mas, também,
filosofia da psicanálise, já que se trata da filosofia que a
psicanálise parece impor aos filósofos, exigindo mudanças
cruciais no aparato conceitual que faz a tradição da própria
filosofia2.

Desde seu surgimento, no início do século XX, a psicanálise tem sido objeto constante
do pensamento filosófico. Presente nos debates das principais correntes da filosofia
contemporânea, a invenção de Freud foi – e ainda é – tema recorrente nas tradições do
marxismo, existencialismo, fenomenologia, estruturalismo, hermenêutica, filosofia analítica,
filosofia da mente, filosofia da ciência, entre outras. Representantes de todas as principais
tradições filosóficas contemporâneas mantiveram e continuam mantendo diálogo com as ideias
e teorias freudianas. Há, portanto, ampla e significativa repercussão da psicanálise no interior
da filosofia.
Na tradição anglo-saxã, podemos citar nomes como os de Nagel, Popper, MacIntyre,
Grünbaum, Rorty, Davidson, Wittgenstein. Na tradição alemã, são expressivos os trabalhos de
Jaspers e, na linha de pensamento aberta por Heidegger, as contribuições da psiquiatria suíça
filosoficamente informada, como as de Binswanger e Boss, por exemplo. Além desses, a Escola
de Frankfurt, com Fromm, Adorno, Marcuse e Habermas também fez da psicanálise um
interlocutor importante. Na tradição francesa, praticamente todos os filósofos do último século
se confrontaram com a psicanálise. A relação vai desde o diálogo mais ou menos implícito de
Bergson com seu contemporâneo Freud, passando efetivamente por Politzer, Dalbiez,
Bachelard, Sartre e chegando até ao famoso “retorno a Freud” de Lacan, que estimulou ainda
mais o debate entre filosofia e psicanálise. Basta notar os trabalhos de Hyppolite, Merleau-
Ponty, Ricœur, Lévi-Strauss, Althusser, Henry, Castoriadis, Lyotard, Deleuze, Foucault,

1
MONZANI, L. R. Discurso filosófico e discurso psicanalítico: balanços e perspectivas. Novos Estudos
CEBRAP, São Paulo, n. 20, p. 134, 1988.
2
PRADO JR. B.; et al. Filosofia da psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 8.
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

Derrida, entre tantos outros que se poderia mencionar. Contemporaneamente, esse diálogo
filosófico com a psicanálise continua ainda bastante vivo no interior dessas três tradições,
incluindo autores como Butler e Cavell, Sloterdijk e Honnet, Vatimmo e Agamben, além de
Maldiney e Badiou, por exemplo.
Além disso, é significativamente relevante a produção dos filósofos brasileiros na área
de filosofia da psicanálise. Nomes como os de Prado Jr., Monzani, Mezan, Gabbi Jr., Loparic,
Stein, Japiassu, Garcia-Roza e Birman compõem o quadro geral do que poderíamos chamar de
fundadores desta forte e crescente tendência da filosofia brasileira contemporânea, que tem na
interdisciplinaridade da interrogação filosófica um de seus traços distintivos.
Mas, o que explica este fenômeno, esta intensa e diversificada atenção filosófica dirigida
à psicanálise? O que é exatamente “filosofia da psicanálise”? Por que, afinal, tomar a
psicanálise como objeto do pensamento filosófico? Quais interesses da filosofia justificam suas
severas críticas e seus muitos reconhecimentos a Freud e a seus sucessores? Qual concepção de
filosofia é capaz de melhor absorver um pensamento como o de Freud e dos demais teóricos da
história da psicanálise? Que sentido novo podemos extrair dessa renovação constante da
recepção filosófica da psicanálise? Quais são, enfim, os resultados, as consequências filosóficas
mais radicais da interlocução entre filosofia e psicanálise?
O conjunto dessas questões retrata um programa de investigação teórica que deu origem
a uma nova linha ou tendência de pesquisa no interior do campo de estudos das relações entre
filosofia e psicanálise. Esta nova frente investigativa, caraterizada fundamentalmente pela
abordagem histórica e metodológica, inaugurou o trabalho de sistematização de uma história e
método da recepção filosófica da psicanálise.
Todavia, se do ponto de vista geral, a literatura é relativamente pródiga ao indicar vários
modos distintos de relacionar filosofia e psicanálise, de um ponto de vista mais estrito, os
trabalhos de sistematização histórica e metodológica dessa relação são ainda bastante
incipientes.
Isso quer dizer, precisamente, que embora os temas história da recepção e questão do
método possam ser encontrados de forma fragmentada na literatura internacional, foi
notadamente na pesquisa brasileira sobre as relações entre filosofia e psicanálise que eles
ganharam maior consistência e profundidade filosóficas.
Inicialmente, esses temas apareceram de forma tímida e dispersa naquilo que se
consolidou entre nós, no Brasil, como um variado campo de estudos chamado “filosofia da

7
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

psicanálise” – campo surgido na década de oitenta, que acabou por constituir-se em uma ampla
e autêntica área de pesquisa da investigação filosófica nacional 3 .
Em seguida, mais recentemente, ao longo da última década, vimos a história da
recepção e a questão do método se imporem como temáticas de maior relevância e vigor,
articulando-se de forma cada vez mais sistematizada. Com efeito, os temas se converteram em
problemas de pesquisas e paulatinamente se tornaram objetos de análises e debates específicos
no interior do campo da “filosofia da psicanálise”: eventos, iniciativas institucionais e
publicações científicas – inclusive internacionais –, duas pesquisas de doutorado, uma
investigação de pós-doutorado, um projeto de pesquisa interinstitucional e a presente edição
temática de periódico científico, são as expressões mais evidentes da forte vitalidade e do nível
de sistematização atuais que esta nova linha de pesquisa – história e método da recepção
filosófica da psicanálise – alcançou.
Sobre os eventos, destaque-se: i) os Seminários anuais do Grupo de pesquisa
subjetividade, filosofia e psicanálise (UFMS), que especialmente desde 2016 dedica sua
programação ao tema, ii) as duas atividades realizadas em 2017 na Université Paris Diderot
(Paris VII): Atelier Contributions de la philosophie brésilienne de la psychanalyse e a Journée
Philosophie et psychanalyse: interlocutions franco-brésiliennes, iii) as Jornadas de história da
psicanálise (PUCPR), evento que teve início em 2019, segunda edição em 2020, e também se
dedica ao tema. Destaque-se igualmente a série de entrevistas Filosofia e psicanálise hoje,
iniciativa institucional do GT Filosofia e Psicanálise (ANPOF), que desde 2020 vem gerando
acervo histórico em seu canal do YouTube, por meio de entrevistas com os seus membros.

3
Sobre os temas específicos da história da recepção e da questão do método neste momento inicial, Cf.,
correlativamente, PRADO JR., B. Autorreflexão ou interpretação sem sujeito? Habermas intérprete de
Freud. Discurso, São Paulo, n. 14, p. 49-66, 1983; MEZAN, R. Rumo à epistemologia da psicanálise. In: A
vingança da esfinge. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 43-60 (Texto original, 1983); BIRMAN, J.
Freud e a experiência psicanalítica. Rio de Janeiro: Taurus-Timbre Ed., 1989. 177p.; e, mais notadamente,
MONZANI, L. R. Discurso filosófico e discurso psicanalítico: balanços e perspectivas. Novos Estudos
CEBRAP, São Paulo, n. 20, p. 119-136, mar. 1988; DI MATTEO, V. (Org.). Ressonâncias do pensamento
freudiano na literatura filosófica. Recife: Mestrado em Filosofia da UFPE, 2003; e, FULGÊNCIO, L.;
SIMANKE, R. T. Apresentação. In: ______. (Org.). Freud na filosofia brasileira. São Paulo: Escuta, 2005.
pp. 5-12. São necessários ainda levantamentos mais detalhados a respeito desse mapeamento temático nos
inícios da Filosofia da psicanálise no Brasil.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

Além das publicações científicas4, das teses de doutorado5 e da investigação de pós-


doutorado6, há ainda o projeto interinstitucional de pesquisa, A recepção filosófica da
psicanálise: história, tradições e doutrinas, desenvolvido na UFJF, UFMS, PUCPR e
Université Paul Valéry, pelos pesquisadores Richard Simanke, Weiny Freitas, Francisco Bocca
e Caio Padovan. Todos esses trabalhos evidenciam o desenvolvimento e a consolidação de um
verdadeiro programa de pesquisa em torno do problema história- método-recepção.
Por fim, claro, há esta edição temática de periódico científico, história e método da
recepção filosófica da psicanálise, que realiza, pelo menos, três tarefas importantes: sintetiza o
primeiro grande conjunto de esforços empreendidos no sentido de estabelecer o problema
história- método-recepção como nova orientação de trabalho – nova “linha de pesquisa” –, faz
avançar as investigações em andamento e, de algum modo, abre novo ciclo de trabalho sobre o
tema.
Eis, pois, o nosso “estado da arte”. Como se vê, estamos no início da consolidação de
uma linha investigativa, que seguramente requer ainda muito mais estudos de precisão e de
aprofundamento. Se, por um lado, já temos uma espécie de comunidade de interesse em torno
à problemática central dessa nova tendência de pesquisa, por outro, falta-nos ainda atrair mais
pesquisadores, ampliar referenciais teóricos, aprofundar hipóteses, aprimorar as circunscrições
conceituais, formular e desenvolver a crítica etc. Ou seja, temos um ponto de partida, mas ainda
estamos muito longe do ponto de chegada, embora saibamos onde queremos chegar.
Entre os principais objetivos desta nova tendência de pesquisa estão i) a compreensão
da recepção filosófica da psicanálise desde o ponto de vista de uma ampla análise histórica da
relação entre as duas disciplinas, ii) a formalização, tantas vezes insinuada, mas nunca
efetivada, de um método epistemológico extraído da experiência dessa relação, iii) a

4
Cf., por exemplo, BOCCA, F. V. A recepção filosófica brasileira da psicanálise: um caso de descolonização.
In: ANPOF. Gênero, psicanálise, filosofia na América Latina, filosofia da libertação e pensamento
descolonial. São Paulo: ANPOF, 2019, v. 1, p. 83-91. PADOVAN, C. Introdução à análise empírico-conceitual
como método de investigação em história da psicanálise. Lacuna - uma revista de psicanálise, v. 9, s/p. 2020.
SIMANKE, R. T. Considérations préliminaires à propos d’une méthode historico-philosophique pour la
recherche conceptuelle en psychanalyse: une réflexion à partir de l’expérience brésilienne. Critical
Hermeneutics. Biannual International Journal of Philosophy, Cagliari, v. 4. n. 2, p. 59-78, 2020. FREITAS
PINTO, W. C. Por uma história e método da recepção filosófica da psicanálise: esboço de um programa de
pesquisa. Aurora, v. 33, n. 58, p. 145-168, jan./abr. 2021.
5
Cf. FREITAS PINTO, W. C. Do círculo à espiral: por uma história e método da recepção filosófica da
psicanálise segundo o freudismo filosófico francês (Ricoeur) e a filosofia brasileira da psicanálise (Monzani).
2016. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas,
Campinas, 2016., e, ROCHA, R. G. N. da. História das ideias: genealogia formativa e disposições da teoria
da leitura de L. R. Monzani. 2021. Tese (Doutorado em Filosofia) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná,
Curitiba, 2021.
6
Estágio pós-doutoral de Caio Padovan junto ao Programa de pós-graduação em Filosofia da PUCPR, 2021.
Título: História e filosofia da psicanálise: origens e desenvolvimentos. Os resultados da pesquisa serão em
breve publicados.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

interrogação pelas consequências filosóficas mais radicais que, tanto essa análise histórica,
quanto esse método epistemológico, podem produzir.
É a partir desse contexto – e para esse contexto – que organizamos esta edição.
Quisemos reunir publicações sobre o problema da história e método da recepção filosófica da
psicanálise, sem, no entanto, ignorar a fecundidade das mais diversas orientações de trabalho
da “filosofia da psicanálise”, ou mesmo as contribuições diretas de outras análises filosóficas,
caso, por exemplo, da relação entre teorias da recepção e história da filosofia. Ao mesmo tempo,
quisemos também registrar publicamente o breve inventário de existência e desenvolvimento
dessa nova linha de pesquisa. Nossa expectativa com isso é dupla: i) anunciar o que estamos
fazendo, os nossos objetivos e os resultados que buscamos, e ii) despertar, quem sabe, o
interesse e a dedicação de novos pesquisadores ao tema.

*****

A edição de História e método da recepção filosófica da psicanálise abriu chamada para


receber contribuições que considerassem, desde os amplos pontos de vista filosófico e histórico,
os vários e diferentes modos de recepção adotados pela filosofia em sua relação com
psicanálise. Duas grandes orientações temáticas, desdobradas em vários itens teóricos, foram
propostas para acolher os trabalhos: 1) História da recepção filosófica da psicanálise:
fundamentos e métodos e 2) A recepção filosófica da psicanálise: autores e tradições.
Recebemos mais de quarenta submissões, sendo quatro delas em línguas estrangeiras: inglês,
francês, espanhol e italiano. Composta de artigos, traduções, resenhas e entrevistas, a edição
será realizada em dois volumes, por meio deste número e de um número especial a ser publicado
em outubro próximo.
Neste número, o leitor encontrará, além deste Editorial, o conjunto de dezesseis artigos,
divididos em cinco seções temáticas. Filosofia da psicanálise, que traz a intenção de Silveira
em relacionar o pensamento filosófico de Merleau-Ponty à “filosofia do freudismo”; e a
aproximação teórica entre Freud e Fechner, realizada por Mattos, com o objetivo de ressaltar
uma nova modalidade de interlocução entre filosofia e psicanálise.
Estudos lacanianos, que apresenta a investigação de Anhaia sobre o problema ético em
Lacan, pensado para além de Kant com Sade; a análise de Mauad sobre os desdobramentos do
ensino lacaniano na filosofia política de Zizek; a proposta de Santana a respeito da
radicalidade teoria do objeto em Lacan; e, por fim, o estudo de Affonso e Bairrão sobre a
estrutura e a topologia da psicanálise lacaniana.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

A seção Diálogos, por sua vez, mostra, por meio do artigo de Guerra Filho, certas
afinidades entre Rorty e Schafer acerca da psicanálise freudiana; identifica, com o auxílio do
texto de Warmling, as características da relação entre psicanálise, neurociências e filosofia, tal
como levada adiante por Malabou, leitora de Freud; retoma, pelas mãos de Filla, o importante
debate entre Laplanche e Politzer sobre o problema do conflito psíquico em Freud; e discute,
mediante a análise de Ferretti, as condições do diálogo teórico entre Freud e Mill sobre
felicidade e prazer.
Em Estudos interdisciplinares encontrar-se-á a proposta de Pozetti Filho a respeito de
uma possível intersecção entre metapsicologia e inteligência artificial; há também a sugestão
de Colillas, em inglês, que convoca a fenomenologia de Henry a contribuir para uma
epistemologia da corporalidade; e há ainda a significativa contribuição de Dias e Silva Júnior,
autores com experiência na pesquisa da recepção brasileira de Nietzsche, que propõem uma
metodologia para a recepção filosófica.
A última seção temática, Estudos aplicados, reúne contribuições específicas da
interlocução entre filosofia e psicanálise, aplicadas a questões políticas, étnico-culturais-
religiosas e estéticas: Starnino e Perez dedicam-se a explorar o fenômeno político da
identificação imaginária no contexto do neopentecostalismo brasileiro; Tiaha, em francês,
analisa os signos do sofrimento humano, nos termos de uma antropologia clínica negro-africana
margeada pela religião e pela psicanálise; e Coelho articula os referenciais da filosofia de
Merleau-Ponty e da psicanálise de Nise da Silveira, aplicando-os a uma leitura estética da obra
dos artistas de Engenho de dentro.
Após apreciar criticamente a vasta gama de artigos, o leitor se deparará, na parte final
da edição, com um triplo convite: conhecer a tradução do famoso texto de Ferenczi, Filosofia
e Psicanálise [Philosophie und Psychoanalyse, 1912], primeira e única tradução brasileira da
versão original alemã, realizada por Padovan e Germer; se informar com a resenha, feita por
Franco, de Adoecimentos psíquicos e estratégias de cura: matrizes e modelos em psicanálise,
2018, dos autores Figueiredo e Coelho Junior; e, enfim, acompanhar a entrevista História e
filosofia da psicanálise: fundamentos e questões de método, em que Simanke e Freitas Pinto
refletem e problematizam o tema.
Que o conteúdo, a extensão e a diversidade teórica da edição (volumes I e II) sirvam
para demonstrar não apenas o quanto a área de Filosofia da psicanálise é aberta, dinâmica e
atuante, mas também, que esta nova orientação de trabalho – história e método da recepção

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

filosófica da psicanálise – é filosoficamente relevante, entre outras razões, porque


comprometida com os principais problemas do pensamento contemporâneo, aqui e alhures7.

*****

Quando já estávamos na fase final dos trabalhos de edição deste número, fomos
surpreendidos com a notícia da morte de Luiz Roberto Monzani. Queremos dedicar-lhe esta
edição, não apenas em homenagem por tudo o que ele representa para a filosofia brasileira,
especialmente para o campo da filosofia da psicanálise, mas também porque ele é um dos
responsáveis diretos pelo tipo de trabalho, de abordagem metodológica, que justamente a
proposta da nossa edição visa promover e desenvolver. Monzani foi o primeiro a sistematizar
o problema de uma história e método da recepção filosófica da psicanálise. Prometemos para
o volume II da nossa edição uma homenagem mais detalhada a seu respeito.

Os Editores,
Prof. Dr. Weiny César Freitas Pinto (UFMS)
Prof. Dr. Caio Padovan (UPV – Montpellier 3 / PUCPR)
Prof. Dr. Richard Simanke (UFJF)
Prof. Dr. Francisco Bocca (PUCPR)

7
Não é possível deixar de agradecer, além dos autores (as) que confiaram a nós os seus trabalhos, a
inestimável contribuição dos colegas do GT Filosofia e Psicanálise (ANPOF), que não pouparam esforços
para nos auxiliar, especialmente no processo de avaliação dos artigos, seja se disponibilizando-se para tal,
seja indicando avaliadores ad hoc.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

Recebido em:13/05/2021
Aprovado em: 14/06/2021
Publicado em: 15/07/2021

A DESCOBERTA ACIDENTAL DE FREUD


um esboço de uma nova Filosofia e a Filosofia do Freudismo

FREUD’S ACCIDENTAL DISCOVERY


a draft of a new Philosophy and the Philosophy of Freudianism

Daniel Cardozo Severo1


([email protected])

Resumo: O presente artigo visa explicitar a interpretação de Merleau-Ponty sobre a Psicanálise e a obra
de Freud. O filósofo percebeu nos trabalhos do pai da Psicanálise a presença de um projeto de uma nova
Filosofia, o qual denominou de freudismo ou Filosofia do Freudismo. Nesse projeto, segundo o filósofo,
há a presença de um pensamento técnico revolucionário que superaria as dicotomias gestadas na tradição
filosófica, a qual o filósofo tanto critica. Entretanto, esse projeto não se efetivou em uma Filosofia em
ato ainda, e isso se deu não só devido aos problemas de formalização teórica da Psicanálise, mas também
devido ao modo pelo qual alguns psicanalistas recepcionaram e interpretaram o pensamento de Freud.

Palavras-Chave: Filosofia da Psicanálise. Psicanálise. Freud. Merleau-Ponty. Filosofia do Freudismo.

Abstract: This article aims to clarify the interpretation of Merleau-Ponty on Psychoanalysis and Freud's
work. The philosopher saw in the works of the father of Psychoanalysis the presence of a project of a
new philosophy, which called the Philosophy of Freudianism or Freudianism. This project has the
presence of a revolutionary technical thought that would overcome the dichotomies generated in the
philosophical tradition that the philosopher criticizes. However, this project was not carried out in a
Philosophy in action. Because there were problems with theoretical formalization of Psychoanalysis and
the way in which psychoanalysts received and interpreted Freud's thought.
.
Keywords: Philosophy of Psychoanalysis. Psychoanalysis. Freud. Merleau-Ponty. Philosophy of
Freudism.

*****

O primeiro ponto de destaque desse trabalho refere-se ao título, mais especificamente


aos termos “descoberta” e “acidental” contidos nele. Esses dois termos foram escolhidos em
respeito à visão de Freud (1919; 1933) de que a Psicanálise não é uma Weltanschauung (uma
visão de mundo ou uma Filosofia). Aliás, para Freud (1890), os nascimentos da técnica psíquica

1
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo – Unifesp.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7682100151879757.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9953-7438.
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ou anímica e do tratamento psicanalítico só foram possíveis em virtude das conquistas do campo


médico obtidas pelo abandono da infrutífera (segundo o autor) dependência da Filosofia da
Natureza, que as submeteu às influências das Ciências Naturais. Por meio dessa troca se
estabeleceram as condições necessárias para viabilizar a criação de um tratamento psíquico
científico. Denota-se, portanto, que só nesse momento de mudança de influências se tornou
plausível a Freud (1890) as conquistas e os avanços no campo científico, ou seja, ao se diferirem
do campo especulativo. Isso não significa da parte do pai da psicanálise uma adesão cega ao
discurso científico natural da época, uma vez que Freud (1890) compreende que houve “uma
tendência de juízo errônea”, a qual fez com que “os médicos limitassem o seu interesse ao
físico” (FREUD, 1890, p. 20). Apesar da postura crítica de Freud (1890) ao discurso científico
da época, a separação entre Filosofia e Ciência Natural lhe é central, e compreendida como uma
evolução que permite o nascimento do tratamento psíquico. O que Freud (1890; 1919; 1933)
entende por Filosofia (e/ou Weltanschauung) e Psicanálise e o que os filósofos e psicanalistas
contemporâneos entendem o que elas são apresentam suas diferenças e revisões. É curioso e
benéfico ao pensamento contemporâneo que, apesar da insistência freudiana em separar a
Psicanálise da Filosofia, as diferentes perspectivas do que seriam a Filosofia e a Psicanálise
atuais fazem com que, aos olhos de inúmeros filósofos e psicanalistas contemporâneos, elas se
aproximem e muitas vezes se misturem – pois se vê a abertura de um novo campo chamado
Filosofia da Psicanálise, por exemplo. Dessa forma, caracteriza-se a descoberta filosófica
acidental freudiana, ou seja, a contragosto de Freud (1890; 1919; 1933). Infelizmente para ele
e felizmente para nós, o seu pensamento “esboça uma filosofia” como afirma Merleau-Ponty
(1958-59), que possibilita essa não-Filosofia – a Psicanálise – “ser talvez uma filosofia mais
profunda” (MERLEAU-PONTY, 1960-61, p. 389). Aí então reside a outra parte do título “um
esboço de uma nova Filosofia”, a qual é percebida por Merleau-Ponty (1958-59; 1960-61;
SEVERO, 2018) e que o presente trabalho visa explicitar.
Esse esboço de uma nova Filosofia permanece para Merleau-Ponty (1964a; SEVERO,
2018) nesse registro, ou melhor, como algo a ser realizado ou como projeto não desenvolvido.
A título de ilustração, selecionamos duas notas de trabalho de Le visible et l’invisible em que o
filósofo deixa isso claro. A primeira nota chama-se Nature, de novembro de 1960, nela
Merleau-Ponty pontua “uma psicanálise da Natureza: é a carne, a mãe”, pois “uma filosofia da
carne é uma condição sem a qual a psicanálise permanece antropologia” (MERLEAU-PONTY,
1960a, p. 321). Já a segunda nota intitula-se Corps et chair – Eros – Philosophie du
Freudisme, de dezembro de 1960, onde se vê o sentido de ambas as notas se
complementarem, pois, Merleau-Ponty discorre “a filosofia de Freud não é filosofia do

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corpo, mas da carne” (MERLEAU-PONTY, 1960b, p. 324) e por isso é necessário fazer “não
uma psicanálise existencial, mas uma psicanálise ontológica” (MERLEAU-PONTY, 1960b, p.
324). Esses exemplos demonstram a percepção de Merleau-Ponty (1958-59; 1960-61; 1964)
em relação ao pensamento freudiano sobre a existência de uma Filosofia e na Psicanálise um
projeto filosófico em potência – percepção essa que caminha por toda sua obra (Severo, 2018).
Pode-se ver também esse projeto na Psicanálise pós-freudiana aparecendo, por exemplo, aos
olhos de Bion (1962) como a Psicanálise sendo uma Filosofia aplicada ou a aplicação de uma
determinada Filosofia. Entretanto, ao filósofo, o motivo da Psicanálise ainda não ser uma
realização filosófica ou uma Filosofia aplicada se dá devido à necessidade de uma depuração
de suas propostas teóricas (SEVERO, 2018), que estariam contaminadas por causalidades e
cientificismo, ou como Merleau-Ponty (1945; 1964b) preferiu chamar de prejuízos clássicos
e/ou pensamento de sobrevoo. Essa contaminação ocorreu não só pelos equívocos
interpretativos de psicanalistas ao pensamento freudiano baseados nos prejuízos clássicos e/ou
pensamento de sobrevoo, como também por um desejo equívoco do próprio Freud: o de
formalizar teoricamente suas descobertas e intuições colhidas por meio de sua inovadora técnica
em premissas científicas naturais ultrapassadas. Para Merleau-Ponty (1951), Freud desejou
estruturar toda a sua teoria nessas premissas ultrapassadas e calcadas em um espólio de ideias
do fim do século XIX e início do século XX que precisam ser superadas, embora a técnica
freudiana seja revolucionária exatamente porque realiza essa superação (SEVERO, 2018).
Esses equívocos teóricos impregnaram as interpretações de alguns psicanalistas freudianos e
pós-freudianos, distorcendo o pensamento de Freud até os dias atuais (SEVERO, 2020). Esse
conflito entre uma formalização teórica equivocada e uma inovação técnica, para Merleau-
Ponty, é algo permanente na obra de Freud (SEVERO, 2018). Isso faz com que um trabalho
filosófico, quiçá fenomenológico, seja necessário para que se depure e se realize a Filosofia do
Freudismo presente na obra do pai da Psicanálise e faça com que o projeto filosófico em
potência se torne uma Filosofia em ato. Em relação às várias obras de Merleau-Ponty nas quais
Freud e a Psicanálise aparecem, e que revelariam essa perspectiva apresentada, citamos
L’homme et l’adversité de 1951 como ponto de elucidação.
O texto L’homme et l’adversité contribui de forma fundamental para a explicitação da
perspectiva de Merleau-Ponty sobre Freud, sobre a Psicanálise e como esta poderia se tornar
uma Filosofia em ato. Nesse trabalho, o filósofo visa, dentre outras coisas, fazer um balanço do
progresso das investigações filosóficas contemporâneas a ele, tomando como período o início
da metade do século XX – e nesse contexto se destacam o papel da Psicanálise e de Freud.
Merleau-Ponty (1951) considera, a princípio, que a tarefa de refletir acerca do progresso das

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investigações filosóficas é impossível para uma só pessoa, e isso se daria devido a uma lei da
cultura ou coletiva que faz com que cada ideia progrida transversalmente, tornando-se outra
coisa daquilo que era quando instituída. A marcha dessa progressão transversal ocorre, então,
no exato momento em que cada geração filosófica recebe o espólio de ideias das gerações
anteriores e se dispõe a pensá-las, pois, ao pensá-las, transforma-as realizando alguma
progressão, ou melhor, algum movimento novo de ideias e pensamentos. Ao tomar essas ideias
e ao conhecê-las, inevitavelmente, imprime-se nelas uma maneira de ser própria e outra a elas,
mobilizando-as como uma necessidade expressiva que metamorfoseia a própria linguagem e os
conhecimentos instituídos. Essas ideias e verdades instituídas ou instituintes não conseguem
revelar completamente as experiências às quais elas respondem e muito menos explicitar por
completo a conexão das situações às quais elas se definem. Logo, as grandes obras do
pensamento serão sempre retomadas dessas experiências e das estruturas mais gerais – serão
sempre dialeticamente instituintes e instituídas. Essa dialética instituinte-instituída delimita
uma determinada paisagem histórica e certo estado de problemas que inevitavelmente excluem
certas soluções e impõem determinadas respostas. Dessa forma, o ponto central para Merleau-
Ponty encontra-se no movimento dialético das ideias, pois, ao se movimentarem, elas revelam
verdades ao responderem “a alguma pulsação da vida interindividual que se expressa e traz
mudanças ao conhecimento do homem que se relaciona com uma nova maneira de exercer sua
existência em si mesmo” (MERLEAU-PONTY, 1951, p. 366), mesmo que seja dentro de uma
determinada paisagem histórica. Portanto, essa maneira de exercer a existência em si mesmo
revela que o homem não se vê como uma coisa e não coincide consigo mesmo, ele se vê sempre
dentro de uma determinada paisagem histórica, pois para ele faz-se necessário representar-se a
si mesmo, ver-se, imaginar-se, criar símbolos para si. Qualquer mudança nas percepções sobre
o homem, ou sobre o si-mesmo, abrange mudanças dele mesmo ou nele mesmo, abalando os
horizontes da paisagem na qual está inserido e forçando a abertura desses horizontes.
Vemos também que essa paisagem permeia a relação do homem com o conhecimento,
pois o conhecimento no homem se sedimenta em valores ou se instituem, sendo sua substância
(instituído) e indo além (instituinte), visto que o conhecimento é sentido por ele como uma
forma ou modulação de experiências. Ao observar esse movimento das ideias em nós leitores,
por exemplo, vemos que as obras se comunicam, traduzem-se em sistemas conceituais distintos,
em relações objetivas, formam conexões entre filósofos díspares. Isso se dá devido ao próprio
movimento das ideias ou dos sistemas conceituais diferentes que “se reconciliam porque
eles respondem a uma só situação da cultura” (MERLEAU-PONTY, 1951, p. 367). Desse
modo, nossas respostas às nossas vivências possuem formas que circunscrevem não só os

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meios sensíveis de nossa experiência, como também nos ajudam a formulá-las – tanto o que
somos ou a representação de homem que usamos quanto novos meios a novas experiências da
nossa própria condição. Para Merleau-Ponty (1951), Freud não escapa a essa condição, nem da
função de pensador.
Segundo o filósofo, a paisagem histórica de Freud fora construída a partir de um espólio
de ideias oriundas do fim do século XIX, e que, no início do século XX, formou um horizonte
histórico que, ao invés de ir além das antíteses das épocas anteriores, promoveu uma renovação
delas, culminando em uma dicotomia restaurada entre o materialismo e o espiritualismo. Além
dessa perseverança dicotômica, o filósofo percebe também a existência de um ponto de partida
comum: a ideia de que desde o princípio a vida humana necessita a sua existência de uma ordem
particular, original ou única. Isto é, sem essas condições especiais, nenhuma organização
natural do mundo conseguiria oferecer possibilidades de existência a vida humana. Merleau-
Ponty (1951) afirma que no início do século XX houve muitos pensadores que, de um lado
desse ponto comum e dicotomia, conceberam essas condições especiais à existência da
humanidade a partir de um sentido estrito material e biológico; e, de outro lado, conceberam
que essas condições residiam em alguma uma força motriz ou sobrenatural. Para uns, a
humanidade é assim concebida como um episódio da evolução e um caso específico de
adaptação, reduzindo-se a vida a componentes físico-químicos, a dimensão verdadeiramente
humana no mundo passa a ser vista como uma contingência elementar do organismo. Para
outros, a condição especial da humanidade reside em uma força motriz que, quando não
derivava de alguma fonte sobrenatural, depositava-se na natureza humana, salvaguardando a
incondicionalidade e as características próprias da espécie humana. Dessa forma, para o
filósofo, o início do século XX se caracteriza como sendo uma época repleta de noções
absolutas, ou pontos de partida comum, e dicotômicas. Uma época cindida entre valores e
realidades; interior e exterior; o eu (interior) e o outro (exterior); matéria e espírito. Portanto,
caberia aos pensadores do século XX, segundo o filósofo, superar essas dicotomias e não as
realizar ou aprofundá-las ainda mais. Freud aparece para Merleau-Ponty (1951) como um
pensador que as irá superar de modo bem peculiar, diga-se de passagem, mas irá - diríamos
acidentalmente.
Apesar do século XX, em seu início ser um século em que se renovaram as dicotomias,
da perspectiva de sua superação, para Merleau-Ponty também (1951) é uma época em que
surgiram pensadores que as ultrapassaram. Encontramos perspectivas em que a linha que
separava corpo de um lado e espírito de outro fora desfeita, permitindo que uma visão nova
sobre a vida humana se formasse distinta da visão materialista ou espiritualista. Vendo a vida

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humana como “espiritual” e corporal, e sempre sustentada pelo corpo, pensadores perceberam
formas carnais incrustadas nas relações pessoais e mundanas. O filósofo afirma que no decorrer
do século XX, diferente do início do mesmo e do final do século XIX que via o corpo como
pedaço de matéria e como uma máquina ou estrutura mecânica, restaurar-se-á e se desenvolverá
a noção de carne e/ou corpo animado. Merleau-Ponty (1951) esclarece que é nesse projeto de
restauração que surge a centralidade da Psicanálise, pois, é por meio dela ou nela que nos
revelará caminhos em que conseguiremos perceber essa mudança - inclusive as próprias
concepções teóricas freudianas passaram por esse mesmo processo. Vemos na própria
Psicanálise e por ela que uma visão inicial de corpo segundo o século XIX passa a uma noção
hodierna de corpo vivido. Um leitor apressado, alerta-nos Merleau-Ponty (1951), poderá
entender os primeiros trabalhos de Freud de modo antagônico a sua intenção (técnica e
filosófica – freudismo). Ou seja, que Freud repetiria ou renovaria as dicotomias, não percebendo
que, na medida em que ele toma e alinha a Psicanálise e suas noções em contato com a
experiência clínica, uma nova concepção de corpo já era convocada desde as suas teorizações
iniciais.
Merleau-Ponty (1951) não fecha os seus olhos ao desejo freudiano de apoiar seus
conceitos em noções ultrapassadas (século XIX e início do XX) das Ciências Naturais. De
propor algumas noções de desenvolvimento humano sustentando sobre o biológico, como, por
exemplo, o instinto – ou seja, uma ânsia de Freud em estabelecer a Psicanálise como Ciência
Natural2, diríamos. Entretanto, as propostas contidas em sua obra já perturbam as noções
dicotômicas (inclusive, no caso, do instinto) desde o início. Freud acabou por dissolver os
critérios tradicionais que pretendia usar quando acreditava que os circunscrevia. Prosseguindo
no exemplo, Freud ao tomar o sentido do termo instinto até então, ao defini-lo no homem,
mostra algo distinto e tem como resultado que o sentido de instinto tradicional e preponderante
em sua época não se aplica ao homem. Merleau-Ponty (1951) ilustra sua percepção ao resgatar
a visão freudiana da criança perverso-polimorfa, visto que, para o filósofo, esse conceito ilustra
uma intuição original: a de que só estabelecemos nossa sexualidade adulta por meio de uma
difícil história individual. Essa intuição original revela, assim, a essência do freudismo, a saber;
a dissolução dos conceitos tradicionais e a formulação de novas noções que fornecem novos
meios de formalizarmos nossas experiências. Um dos trabalhos freudianos centrais, que ilustra
muito bem esse movimento de dissolução dos conceitos tradicionais quando Freud acreditava
que os circunscrevia e que fornece novos meios para formalizarmos nossas experiências,

2
Como ilustração dessa tentativa ver: GLYMOUR, 2018.

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é o texto As pulsões e seus destinos de 1915 – um dos textos cardinais da metapsicologia. Nele,
vemos Freud (1915) iniciar sua definição de pulsão (Trieb) em parâmetros tradicionais e
circunscritos no universo da Ciência Natural para logo em seguida dissolver esse biologismo e,
ao longo de sua exposição, revelar para a Ciência um novo corpo – a Carne (MERLEAU-
PONTY, 1951). É esse também um dos textos freudianos principais em que se discute o porquê
de traduzir Trieb por pulsão e não instinto, e, por isso, empregaremos a seguir o termo pulsão
e não instinto como utilizado por Merleau-Ponty (1951).
Após iniciar e apresentar o procedimento conceitual e o estatuto científico dos conceitos
fundamentais da Psicanálise (IANNINI, 2019), Freud (1915) se propõe a preencher com
conteúdo de diferentes lados o conceito fundamental de pulsão. O primeiro lado escolhido e
eleito é a Fisiologia. Antes de entrarmos nesse primeiro lado, vale a pena se ater ao termo lado3.
Por si só conseguimos ver que a Ciência Natural – representada inicialmente pela Fisiologia no
texto freudiano -, é um lado e não o único. A Fisiologia seria, portanto, um ponto de integração
e não de sobreposição; que compõe e que não é a causa ou a natureza da pulsão – algo relevante
na dissolução dos critérios tradicionais quando Freud acreditava circunscrevê-los (MERLEAU-
PONTY, 1951). Adentrando na colheita de conteúdos ao conceito pulsão por esse lado
fisiológico, Freud (1915) afiança que esse lado lhe proveu dois elementos importantes: “o
conceito do estímulo e o esquema do arco reflexo” (FREUD, 1915, p. 17). A importância do
primeiro reside na relação com a pulsão, em que ela seria um modo de aplicação específico do
estímulo, no caso “a pulsão seria um estímulo para o psíquico4” (FREUD, 1915, p. 17). Já o
segundo elemento, destaca a necessidade de descarregar esse estímulo por meio da ação.
Especificando o primeiro elemento, a pulsão seria uma das formas de estímulo ao psíquico, mas
não a única forma. Em especial e singular, o estímulo pulsional nasce sempre do interior do
organismo e, por esse motivo, requer ações específicas à sua eliminação. A sua força constante
caracteriza esse estímulo pulsional de modo único, e isto faz com que Freud (1915) compreenda
que “uma denominação melhor para o estímulo pulsional seria “necessidade”, e para o que
suspende essa necessidade, ‘satisfação’” (FREUD, 1915, p. 19). Esse lado fisiológico já

3
Hanns (2004) em sua tradução do mesmo texto de Freud optou pelo termo ângulo e não lado. O importante é
sublinhar a ideia de fronteira que o termo pulsão possui e o quanto, devido a sua condição, consegue-se somente
designá-la e não a nomear. Logo, para intuirmos o que ela seria, precisamos adotar perspectivas distintas para
captá-la, irmos aos limites da nomeação e das perspectivas para chegarmos às suas designações e, assim,
contemplá-la. Não podemos esquecer também que a pulsão possui fonte somática (ponto de vista biológico),
mas o seu objeto encontra-se no registro psíquico (ponto de vista anímico), portanto, podemos falar sobre ela
e designá-la de ambos os pontos de vista, tanto do ponto de vista somático quanto do ponto de vista psíquico,
no entanto, ela não se encontra em nenhum deles (GARCIA-ROZA, 2014).
4
Aqui vale destacar a observação de Garcia-Roza (2008) sobre o “para o psíquico”, pois, segundo o autor, isso
revela a indeterminação do conceito, ou seja, a pulsão não seria nem instinto nem psíquico.

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proveria, segundo o autor, uma descrição das primeiras formas de um ser vir-a-ser; ou de um
ser vivo que, por meio de estímulos em sua substância nervosa, organiza sua existência; ou de
estar “em condições de estabelecer uma primeira diferenciação e adquirir uma primeira
orientação” (FREUD, 1915, p. 19). Devido à premência do estímulo pulsional e a variância de
outro estímulo qualquer (outro estímulo existente – não-pulsional), podemos distinguir um
“dentro” de/ou um “fora”, um mundo interior de/ou mundo externo. Importante vermos o
movimento de dissolução dos critérios tradicionais, que ao colher conteúdos ao conceito pulsão
de um lado e por meio de um ramo da Ciência Natural, Freud (1915) já dá indícios de sua
dissolução à medida que circunscreve o conceito. Freud (1915) alça da matriz fisiológica a
possibilidade de algo além da própria matriz e, por meio da própria matriz e de fatos
fisiológicos, a possibilidade de mundo interno e mundo externo – matriz e fatos anímicos.
Assim, um primeiro ensaio de dissolução, que se efetivará em um momento de virada do texto
freudiano mais à frente, ocorre quando falarmos dos destinos da pulsão.
Permanecendo ainda no texto, Freud (1915) coloca que esse primeiro lado, o fisiológico,
ainda lhe revela e lhe serve certos pressupostos “complexos” que são guias à sua incursão no
mundo dos fenômenos psicológicos. Assim, dotado de um pressuposto de natureza biológica –
de que a tarefa do sistema nervoso é o domínio dos estímulos – Freud (1915) o aproveita no
tocante às pulsões. A primeira rota indicada pelo guia fisiológico é que a pulsão obriga “o
sistema nervoso a abdicar de sua intenção ideal de conservar afastados os estímulos distantes,
pois mantêm um inevitável e contínuo afluxo de estímulos” (FREUD, 1915, p. 23); e, segundo,
exatamente por obrigar essa abdicação, a consequência é reveladora, pois seriam as pulsões “os
verdadeiros motores dos progressos que conduziram o sistema nervoso, com sua infindável
capacidade de realização, ao seu tão elevado patamar atual de desenvolvimento” (FREUD,
1915, p. 23). Na sequência ao elevado patamar de desenvolvimento, Freud (1915) expõe a
presença e participação de uma atividade psíquica no processo: o princípio de prazer, provendo
o conceito de elementos de outro lado – o anímico no caso. Apesar disso, e se mantendo ainda
no lado biológico, Freud (1915) encontra um “lugar” para a pulsão, o de conceito fronteiriço
ou conceito limite entre o anímico ou psíquico e o somático. Veja que Freud (1915), de um
lado, diz que a pulsão se apresenta como “representante5 psíquico dos estímulos do interior do
corpo” (FREUD, 1915, p. 25), e enquanto representante, a mensagem que a pulsão transmite é

5
É válido mais uma vez observar as traduções, Hanns (2004) em sua tradução do texto freudiano aponta
que o autor usou o termo Repräsentant nesse momento e não Vorstellung, algo que Garcia-Roza (2008)
também verifica. O primeiro termo alemão apresenta uma conotação de “estar no lugar de” no sentido mais
de ser um enviado ou mensageiro, algo não presente no segundo termo alemão – que possui uma tradição
filosófica que o insere em um sentido distinto ao usado pelo primeiro termo.

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de uma demanda e exigência de trabalho ao anímico ou psíquico, ou seja, a pulsão “informa”


ou “narra” ao psíquico quais são as exigências do somático. De outro lado, ele diz que a pulsão
só consegue enviar essas demandas ao anímico “em decorrência de sua relação com o corporal”
(FREUD, 1915, p. 25), logo, se há uma relação com o corpo ou o corporal, e devido ao fato
dela ser um conceito fronteiriço ou limite, vemos que a pulsão é outra coisa que o somático. A
partir desse ponto do texto, Freud (1915) apresenta os termos utilizados em correlação ou
conexão com o conceito de pulsão. Dentre eles (pressão, meta, objeto e fonte), vemos que a
fonte nos fornece inicialmente alguns dados relevantes desse processo de dissolução dos
critérios tradicionais quando Freud acreditava que os circunscrevia como indica Merleau-Ponty
(1951).
Freud (1915) diz que “por fonte da pulsão entende-se o processo somático em um órgão
ou parte do corpo, cujo estímulo é representado na vida anímica pela pulsão” (FREUD, 1915,
p. 27). Vemos que Freud (1915) não diz que a pulsão é esse processo e nem o estímulo que ela
representa, o autor nos informa que há um processo, o qual gera um estímulo, e que é informado
ou narrado (representado) ao psíquico pela pulsão – nos revelando sua essência ou natureza de
mensageiro. Por essa razão não faz sentido a Psicologia e a Psicanálise estudarem a fonte da
pulsão para Freud (1915), pois sendo um processo somático foge de seus domínios. Interessa à
Psicanálise estudar a mensagem e como ela chega ao psíquico, por isso, Freud (1915) considera
necessário investigar a meta – que é o que nos faz conhecer a pulsão na vida anímica. A meta,
apesar de ser sempre a satisfação, só é possível por meio do objeto, que, por sua vez, “é o que
há de mais variável na pulsão, não estando originariamente a ela vinculada, sendo apenas a ela
atribuído por sua capacidade de tornar possível a satisfação” (FREUD, 1915, p. 25). A
vinculação pulsão/objeto é contingente, a qual transborda e ultrapassa os limites da Fisiologia
e da Biologia – impostos pelo conceito de instinto, por exemplo. O texto das pulsões, a partir
dessa perspectiva sobre o objeto, chega, assim, aos destinos da pulsão (a reversão em seu
contrário, o retorno em direção à própria pessoa, a sublimação e o recalque) em que qualquer
tentativa biológica fica inteiramente desqualificada (GARCIA-ROZA, 2014). São os destinos
da pulsão, que não deixam de ser o objeto, que mostram a efetivação de uma dissolução dos
conceitos tradicionais à medida que Freud (1915) os circunscreve, pois, esses caminhos ou os
destinos das pulsões estão mais para uma gramática das pulsões do que para o solo
epistemológico da Biologia (DUNKER, 2019).
Como mencionado por Merleau-Ponty (1951), cada época possui grandes obras que
respondem a estruturas mais gerais que delimitam e determinam uma paisagem histórica. A
paisagem histórica freudiana é a do fim do século XIX e início do XX, uma paisagem que

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renova a dicotomia e as antíteses do materialismo e do espiritualismo. Desse modo, vemos em


Freud o valor de sua paisagem história, na qual havia uma imensa estima em atrelar a Psicologia
à Física e à Biologia – representadas, por exemplo, na busca de situar os mecanismos do
pensamento em regiões do sistema nervoso ou em leis termodinâmicas (GLYMOR, 2018).
Freud bebe dessa água em suas especulações sobre a fisiologia da mente ou do aparelho
anímico, isto é, percebemos a tentativa dele de estipular um modelo de “máquina mente”, que
embasa até muito das teorias cognitivas contemporâneas, por sinal (GLYMOR, 2018). Logo,
não se nega que há em Freud uma tentativa ou que permeia em seu pensamento uma concepção
de que somos máquinas biológicas, que computa e apreende informações por meio do princípio
de prazer, por exemplo, da mesma forma que se alteram os estados materiais segundo as leis
da Física. Vemos esses elementos ilustrados, por exemplo, nas explicações freudianas das
distribuições de energia por meios representacionais (de coisa ou de palavra) de modo
espontâneo em que surgem de forma natural e anterior a qualquer linguagem natural ou idioma
a ser apreendido e adquirido (GLYMOR, 2018).
Entretanto, para Merleau-Ponty (1951), cada geração filosófica não consegue receber
uma herança de ideias sem transformá-las no exato momento em que se dispõe a pensá-las – o
papel do pensador. Portanto, Freud, enquanto pensador, irá transformar sua herança. O psíquico
como máquina ligada à Física, à Biologia e às representações mentais se transforma em Freud
tanto a partir da lógica (do inconsciente) e da linguagem, quanto da arte. Há em Freud uma
comunicação tanto imagética como por linguagem, que revela uma dimensão tanto do dizer
quanto do mostrar ou designar, além dos limites da própria linguagem (GLYMOR, 2018) – o
qual habita a pulsão, no caso. A pulsão opera e habita em um campo indeterminado em que não
há distinção entre o corpo e o aparelho psíquico, e isso a torna, ao lado do conceito de
inconsciente, um conceito fundamental. Podemos dizer que do seu lugar indeterminado, a
pulsão é tão ou até mais fundamental que o conceito de inconsciente devido ao fato dela ser
precedente ao aparelho anímico e ser o elo de passagem entre o corpo e o psíquico. Isso obriga
Freud a forjar um léxico que escapa à metodologia das Ciências da Natureza (IANNINI, 2019)
e coloca a pulsão e sua teoria como um método, clínico no caso, que nos obriga a discorrer
sobre uma gramática das relações (DUNKER, 2019). Logo, em virtude dessa zona
indeterminada e desconhecida na qual habita a pulsão, tornar-se mais previsível, determinado
e controlável, “biologizar” o conceito para adequá-lo aos moldes científicos tradicionais do que
buscar descrever e compreender sua especificidade indeterminada, indizível e irredutível
(GARCIA-ROZA, 2014). Desse modo, podemos observar que, no caso da pulsão, há em
sua constituição o desvio em relação à função, isto é, ela seria o “instinto” que se

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desnaturaliza por se desviar de suas fontes e de seus objetos (GARCIA-ROZA, 2011). Cada
objeto encontrado pela pulsão só lhe pode oferecer uma satisfação parcial, isso implica que a
apropriação do objeto mostra que ele não é, ou não dará, ou não será por ele que ela achará a
satisfação almejada. A satisfação parcial encontrada revela que ela acontece no território do
princípio de prazer e no campo dos destinos da pulsão. Em um território de objetos, em que
cada um deles se mostra como candidato a objetos perfeitos e absolutos. No entanto, sob essa
aparência de perfeição e completude, esses objetos não passam da ordem da representação e
incompletude (GARCIA-ROZA, 2008). Portanto, o conceito de pulsão constitui-se como um
enigma que vai além da mera definição de um conceito ou sobre questões metodológicas, pois
ela problematiza a representação de natureza ou a nossa representação dela, e, devido à forma
como a Psicanálise aborda o corpo, ela nos obriga a repensá-la (GARCIA-ROZA, 2004) e a
ultrapassar o horizonte histórico freudiano e o nosso. Por isso, Merleau-Ponty (1951) afirma
ser próprio do freudismo a dissolução dos conceitos tradicionais e a formulação de novas noções
que fornece novos meios de formalizarmos nossas experiências.
Devido à necessidade de repensarmos a ideia de natureza a partir do modo como a
Psicanálise aborda o corpo, Merleau-Ponty (1951) vê que Freud o faz quando, por exemplo,
circunscreve o amor ou o amar e a sexualidade (no caso, os destinos da pulsão; reversão em seu
contrário e o retorno em direção à própria pessoa). Freud revela a nós, aos olhos do filósofo, as
nossas incertezas ante a natureza graças ao caminho para constituir esse poder sexual – repleto
de dispositivos e objetivos que requerem um conjunto de investimentos antecipados em outros
investimentos que regressamos, repetimos e os superamos. Regressão, repetição e superação
conectados ao lugar com que se estabeleceu o nexo da criança com os parentes ou cuidadores,
lugar que funda sua história, lugar que não é da ordem instintiva, que “é para Freud, uma ligação
ou vínculo espiritual” (MERLEAU-PONTY, 1951, p. 371). Espiritual em um sentido renovado,
isto é, no sentido em que a realidade última psicológica está para Freud como um conjunto de
regras que forma um campo de atrações que conecta tencionando a criança às figuras parentais.
Figuras essas que se constituem como um ponto de passagem pelo qual se acessa o mundo e os
outros, e são destituídas das pessoas parentais, pois são por meio de suas imagens (imago’s). O
espiritual aqui não é, então, uma essência contida em um ente, mas um campo de relações no
qual existimos nas relações e por meio delas. Um campo de atração que nada mais é do que um
lugar de ensaio e experiências primeiras do conjunto de posições (vemos mais uma vez a
presença dos destinos da pulsão reversão em seu contrário e o retorno em direção à própria
pessoa) que serão exercidas por toda uma vida. Conclui assim Merleau-Ponty (1951), para
Freud não é só o objeto de amor que escapa ao instinto, mas a própria forma de amar, pois

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ela ultrapassa a dimensão instintual conservando-a em uma nova dimensão e modo de ser que
supera e conserva, ao mesmo tempo, os modos instituais. Logo, o amor adulto só é possível ao
ser sustentado por uma ternura infantil que precisa, ao mesmo tempo, ser superada em uma
genitalidade, mas que também doa o impossível em todo amor, isto é, doa exatamente aquilo
que dá conteúdo às relações genitais e consegue ir além, pois é também a fonte de inúmeras
obras de arte e criações (sublimação), por exemplo. Como saímos de uma demanda que exige
provas e apego absoluto a todo momento para um amor que fomenta autonomia e toma o outro
como ele é? Isso só é possível com uma conquista sobre o amor infantil, transformando-o, mas
também o conservando como a vitalidade das relações. Entretanto, para Merleau-Ponty (1951),
o apogeu da Filosofia do freudismo, no que tange a esse ponto, não está somente nessa
superação do instinto, mas se encontra principalmente em descrever os meios pelos quais isso
tudo é possível na criança e como isso se dá nela por intermédio de regiões e funções corporais.
Isto é, como o corpo, ponto de fundação a Merleau-Ponty desde sua Phénoménologie de la
perception (1945), ou como esse corpo próprio estabelece para Freud as relações com outrem
por meio de suas regiões (zona erógenas, por exemplo), funções e relações primordiais que
permanecem e dão sentido aos atos adultos. Há uma unidade corporal em Freud para Merleau-
Ponty (1951) que ultrapassa a visão dicotômica de sua época, propondo algo distinto do
materialismo e espiritismo renovados no início do século XX.
É assim, portanto, que Merleau-Ponty (1951) compreende que a Filosofia do freudismo
ou simplesmente freudismo, por meio da sexualidade e pulsionalidade, revela a corporeidade
como o solo de nossa existência e/ou como um poder de doação absoluto e universal. Dessa
forma, em Freud, “o fisiológico e o instinto estão envoltos em uma exigência central de posse
absoluta que não pode ser obra de um pedaço de matéria, que é da ordem do que normalmente
chamamos de a consciência” (MERLEAU-PONTY, 1951, p. 372). No entanto, alerta o filósofo
sobre o termo consciência e seu possível uso inapropriado aqui, pois retoma dicotomias
impugnadas pelo freudismo, transformando as perspectivas de corpo e espírito correntes. Para
Merleau-Ponty (1951), no momento em que Freud afirma que todo fato psíquico possui um
significado, expõe-se que nenhuma ação humana é o efeito ou a consequência de mecanismos
corporais e, simultaneamente, isso significa a recusa da existência de algum espírito ou
automatismo no comportamento. Portanto, o que Freud quer dizer é que “todos nossos gestos
participam à sua maneira desta única atividade de explicitação e significação que é nós
mesmos” (MERLEAU-PONTY, 1951, p. 373). A partir disso, Merleau-Ponty (1951)
entende que Freud nos descreve a Psicologia pelo corpo e a significação psicológica do
corpo por meio de uma lógica latente e oculta. Impede-se de definir o corpo como uma

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massa material e revela que as noções filosóficas correntes até àquele momento são
insuficientes para pensar as relações do corpo com a vida total. Com a Psicanálise, entende o
filósofo, “o espírito passa no corpo como inversamente o corpo passa no espírito” (MERLEAU-
PONTY, 1951, p. 373), pois a Psicanálise revela o corpo não apenas como enigma, mas também
como parte do mundo, como um habitante que deseja não só se aproximar dos demais, e se unir
a eles em seus corpos. Entretanto, segundo Merleau-Ponty (1951), há ainda muito por ser feito
em relação à experiência psicanalítica revelada aqui e muito a se revelar de seu conteúdo –
apesar de todas as suas benesses filosóficas –, pois muitos psicanalistas, inclusive o próprio
Freud como vimos, acabaram edificando o seu conteúdo ou a sua teoria em noções
insatisfatórias e ultrapassadas.
Merleau-Ponty (SEVERO, 2018) defende que há ainda problemas de formulação teórica
a serem superados em algumas noções psicanalíticas, os quais não invalidam as descobertas
freudianas, mas obscurecem nossa percepção e apreensão de sua intuição original, e aquilo que
foi a sua grande descoberta, a saber: essa “osmose entre a vida anônima do corpo e a vida oficial
da pessoa” (MERLEAU-PONTY, 1951, p. 374). A fim de tentar dar conta dessa osmose,
Merleau-Ponty (1951) entende que Freud equivocadamente introduziu um elemento entre os
organismos e nós à moda tradicional: o inconsciente. O equívoco freudiano ocorre, então, na
formulação desse elemento, pois devido à diversidade dos usos, das contradições resultantes
desses usos e o modo como Freud deixa compreender em várias passagens de sua obra, faz com
que essa noção ainda precise, aos olhos de Merleau-Ponty (1951), ser formulada corretamente.
Uma vez que “o inconsciente à primeira vista evoca o lugar de uma dinâmica pulsional da qual
apenas a resultante nos seria dada” (MERLEAU-PONTY, 1951, p. 374), essa noção não pode
ser concebida como um processo em terceira pessoa6 de modo mecânico e/ou energético,
exatamente por ser do inconsciente que nossas escolhas emergem e serão admitidas ou não em
nossa existência oficial. Portanto, o inconsciente “não é então um não saber, mas sim um saber
não reconhecido, informulado, que nós não queremos assumir. Em uma linguagem aproximada,
Freud está aqui a ponto de descobrir isso que outros autores de modo mais adequado nomearam
como percepção ambígua” (MERLEAU-PONTY, 1951, p. 374). A qualificação do
inconsciente como percepção ambígua por Merleau-Ponty (1951) é fundamental. Sem entrar
em todos os meandros do que seria a percepção para o filósofo e o motivo dela ser
essencialmente ambígua, o ponto relevante aqui é que uma formulação adequada do
inconsciente, exigida por Merleau-Ponty (1951) e para harmonizar o conceito com a Filosofia

6
Termo que aparece em vários momentos da obra de Merleau-Ponty no que se refere a sua interpretação sobre
a Psicanálise e que o filósofo retirou de Politzer (1928).

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do freudismo, requer uma inserção a uma dimensão originária da experiência. Dimensão essa
na qual a percepção participa doando e captando sentidos e significados – uma vez que somos
participantes da experiência e não somente passivos ante ela. Desse modo, imbuídos de licença
poética, reformulando a famosa definição lacaniana e considerando as observações do filósofo,
percebemos que o inconsciente se estrutura como percepção, como nascedouro de experiências
ou local, no qual elas se articulam passando a existir. É só desse lugar que é possível para
Merleau-Ponty (1951) reconhecer não só o inconsciente, mas também a consciência, isto é,
encontrar “um estado civil para essa consciência que esbarra em seus objetos, que lhes escapa
quando está para colocá-los e os levar em conta, cega aos obstáculos” MERLEAU-PONTY,
1951, p. 374). Uma consciência que “ao invés de reconhecê-los, não quer conhecê-los, os ignora
na medida em que os conhece, e os conhece na medida em que os ignora” (MERLEAU-
PONTY, 1951, p. 375). Por isso, a necessidade da ambiguidade, no sentido que ela é o terreno
e fundamento de nossas ações e, por fim, do nosso próprio conhecimento. De qualquer forma,
Merleau-Ponty (1951) compreende que, apesar dos problemas freudianos de formulação a
serem superados, Freud percebeu cada vez mais no caminhar de sua obra “a função espiritual
do corpo e a encarnação do espírito” (MERLEAU-PONTY, 1951, p. 375), sendo que esse é um
dos sentidos basilares de seu pensamento. Portanto, Merleau-Ponty (1951) conclui que, no
desenrolar da obra freudiana, ocorre um amadurecimento de suas ideias neste sentido. Quando
Freud fala da agressividade, por exemplo, quando ele insere a questão da agressividade e a
aborda na relação sexual-agressiva com outrem, ele aprofunda a sua e a nossa percepção sobre
elementos e experiências fundamentais de nossa vida. Freud observa um fator elementar em
nossa agressividade, a saber, que ela não visa coisas, mas sim pessoas, e isso confere, no
entrelaçamento do sexual e da agressividade, um interior refletido, um quiasma, ou um
imbricamento por toda extensão das relações - de pessoa a pessoa. A relação sexual-agressiva
revela “que o sexual é o nosso caminho carnal, porque somos carne, e de viver a relação com
outrem” (MERLEAU-PONTY, 1951, p. 375). Dessa forma, conseguimos perceber por Freud e
pela sexualidade que somos o outro (corpo). A sexualidade e a agressividade constroem entre
mim e o outro um campo de relações circulares calcados em projeções e introjeções que lançam
luz sobre uma rede especular em mim e no outro, que me faz ser o outro e o outro ser eu. Tece-
se, assim, a nervura da Carne – o estofo do mundo.

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REFERÊNCIAS

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SEVERO, D. C. O Projeto de uma Psicanálise Ontológica em Merleau-Ponty. 2018. Tese


(Doutorado em Filosofia) - Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal
de São Paulo, Guarulhos, São Paulo, 2018.
SEVERO, D. C. Os sujeitos do homem psicanalítico: rumo à arqueologia dos sentidos. Curitiba:
CRV, 2020.

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Volume 06, Número 10, Ano 2021

Recebido em:16/05/2021
Aprovado em: 14/06/2021
Publicado em: 15/07/2021

PSICANÁLISE E FILOSOFIA
algumas considerações a partir da relação entre Freud e Fechner

PSYCHOANALYSIS AND PHILOSOPHY


some considerations from the relation between Freud and Fechner

André Santana Mattos1


([email protected])

Resumo: O artigo apresenta uma reflexão sobre a relação entre psicanálise e filosofia a partir do
encontro teórico entre Freud e Fechner. Autor de uma considerável obra filosófica e científica, Fechner
é citado por Freud, entre outros lugares, em Além do princípio de prazer (1920), onde o seu princípio
da tendência à estabilidade será articulado à teoria freudiana, que, por sua vez, passará a considerar o
princípio de constância como um caso especial do princípio fechneriano. Nesta articulação, os campos
da psicanálise e da filosofia se tocam no domínio interseccional das hipóteses teóricas que têm por
intento a representação da realidade, no que se pode delinear um trabalho que se insere no campo mais
geral da história das ideias. Ao final, apresenta-se ainda o esboço de um panorama geral dos tipos
possíveis de trabalho que envolvem a relação entre psicanálise e filosofia.

Palavras-Chave: Psicanálise. Filosofia. Freud. Fechner.

Abstract: The article presents a reflection about the relationship between psychoanalysis and
philosophy, parting from the theoretical encounter between Freud and Fechner. The author of a
considerable philosophical and scientific work, Fechner is cited by Freud, among other places,
in Beyond the pleasure principle (1920), where his principle of the tendency towards stability is
connected to the Freudian theory, which then starts to consider the principle of constancy as a special
case of Fechner’s principle. In this connection, the fields of psychoanalysis and philosophy touch each
other in the intersectional domain of theoretical hypotheses that have the intent of representing reality,
where one can delineate a work that inserts itself in the more general field of the history of ideas. At the
end, it is also presented the sketch of a general panorama of the possible types of work that involve the
relationship between psychoanalysis and philosophy.

Keywords: Psychoanalysis. Philosophy. Freud. Fechner.

INTRODUÇÃO

A relação entre psicanálise e filosofia pode se dar e tem se dado sob múltiplas formas,
desde o nascimento da primeira. Um desses entrelaçamentos, que se encontra registrado na obra

1
Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0371831964052713.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1041-2936.

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de Freud, consiste na relação entre o seu pensamento e o de Gustav T. Fechner, autor que
desenvolveu, ao longo do século 19, uma considerável obra filosófica e científica, percorrendo
campos como a física, a ética, a metafísica, a psicofísica e a estética.
Assim como Freud, Fechner fez seus estudos universitários em medicina, mas seu
percurso intelectual posterior foi bastante diferente daquele que viria a ser trilhado pelo
fundador da psicanálise. Insatisfeito com a qualidade da maior parte das disciplinas que assistia
na Universidade de Leipzig e reconhecendo que ele mesmo não possuía o talento necessário
para a prática médica, Fechner pretendeu dedicar-se por um tempo à filosofia da natureza2,
dando aulas sobre as filosofias de Schelling e Oken, mas acabou em um primeiro momento
direcionando sua carreira para o campo da física. Após a conclusão de seus estudos em
medicina, atuou como professor de física na Faculdade de Filosofia da Universidade de Leipzig,
realizando contribuições nesta área por meio de experimentos, publicações e traduções, até que
uma crise psicológica, acompanhada de perturbações visuais provocadas por experimentos que
conduzira na época sobre a visão, o levou a interromper suas atividades de ensino e a se afastar
da área. Após sua recuperação, Fechner ressurge com interesses renovados, direcionando-se
novamente para a filosofia e assumindo, a partir de 1846, o posto de professor de filosofia da
natureza na mesma faculdade em que lecionara anteriormente, permanecendo ali até sua
aposentadoria em 1875 (HEIDELBERGER, 2004; UNIVERSITÄT LEIPZIG, s/d).
Esta nova fase é inaugurada com a publicação do livro Ueber das höchste Gut (Sobre o
bem mais elevado), em 1846, e do artigo Ueber das Lustprincip des Handelns (Sobre o
princípio de prazer no agir), em 1848, que apresentam a formulação de uma ética centrada no
conceito de “princípio de prazer” – mesmo termo que viria a ser mais tarde utilizado por Freud 3.
Em 1851, publica Zend-Avesta, onde desenvolve uma concepção metafísica que apresenta a
natureza como algo vivo e animado, que encontra inspiração nas filosofias da natureza de
Schelling e Oken. Nos anos seguintes, retoma o interesse científico, não sem relação com sua
obra filosófica, realizando estudos experimentais que buscaram estabelecer uma relação
matemática entre o estímulo físico e a sensação psíquica, o que teve como resultado a lei
psicofísica que ficou conhecida como lei Weber-Fechner e lhe rendeu grande prestígio como
um pioneiro da psicologia experimental, publicando seus resultados em 1860 nos Elemente der

2
Aqui temos ainda um notável ponto em comum, já que Freud, enquanto estudava medicina na Universidade
de Viena, pretendeu, em dado momento, se formar concomitantemente em filosofia, tendo cursado algumas
disciplinas na área, como podemos acompanhar através de sua correspondência com Eduard Silberstein (ver
FREUD; BOEHLICH, 1995, em especial pp. 120-122).
3
Em Freud, o termo aparece como Lustprinzip, havendo, portanto, apenas uma pequena diferença na grafia,
o que se pode observar tanto nesse quanto em outros termos usados por Fechner, devido à ortografia alemã
de sua época.

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Psychophysik (Elementos de psicofísica). Depois disso, desenvolveu ainda uma estética


experimental e publicou, em 1873, o livro Einige Ideen zur Schöpfungs- und
Entwickelungsgeschichte der Organismen (Algumas ideias sobre a história do surgimento e
desenvolvimento dos organismos), onde, propondo-se a uma reavaliação da teoria da evolução
de Darwin, apresenta uma concepção própria de vida e de mundo, no espírito de sua filosofia
da natureza, que envolve a formulação do princípio da tendência à estabilidade, o qual seria
recepcionado pela obra de Freud em Além do princípio de prazer (FREUD, 1982 [1920]).
Procederemos aqui a uma breve descrição deste encontro teórico (Freud/Fechner), para,
a partir daí, tecer algumas considerações a respeito da relação entre psicanálise e filosofia que
se pode depreender desse caso, buscando ainda o inserir em um panorama geral dos diversos
tipos possíveis de relação entre esses dois campos.

1 A RELAÇÃO ENTRE FREUD E FECHNER

Apesar das consideráveis diferenças intelectuais entre Freud e Fechner – o primeiro, não
apenas adepto de um naturalismo sóbrio, mas veementemente ateu4 e antimetafísico, o segundo,
autor de um naturalismo animista, cuja metafísica era ainda recheada de temas religiosos –, as
obras dos dois autores se tocam em mais de um ponto.
Em 1925, na apresentação autobiográfica de Freud, na passagem em que este trata de
sua relação com a filosofia, Fechner figura entre os três nomes próprios mencionados5, sendo o
único no qual é reconhecida uma influência direta: “Sempre fui receptivo às ideias de G. T.
Fechner, e apoiei-me nesse pensador em alguns aspectos importantes” (FREUD, 2011, p. 148).
Referindo-se a essa passagem, Assoun afirma: “Há aí o signo de uma filiação epistemológica
que funda o privilégio concedido a Fechner”, se levamos em conta que “o reconhecimento de

4
As cartas de Freud a Silberstein revelam que, em março de 1875, durante os seus estudos universitários, o
contato com Franz Brentano e seus argumentos em favor da existência de Deus o levaram momentaneamente
a vacilar em direção ao teísmo (ver FREUD; BOEHLICH, 1995, sobretudo pp. 123-124). Também no mesmo
período observamos que a sua crítica à religião pode ter encontrado apoio e inspiração em Feuerbach, a quem
ele se refere como aquele “que, entre todos os filósofos, eu mais respeito e admiro” (FREUD; BOEHLICH,
p. 116). Os nomes de Brentano, Feuerbach e Fechner aparecem, inclusive, em uma mesma passagem, na carta
de 8 de novembro de 1874: “Ficaria com pena se tu, o jurista, negligenciasses inteiramente, por exemplo, a
filosofia, enquanto eu, um ímpio estudante de medicina e empírico, ouço duas preleções sobre filosofia e leio
Feuerbach em companhia do Paneth. Uma delas trata – escuta e pasma! – da existência de Deus, sendo que o
professor Brentano, que as lê, é uma esplêndida pessoa, sábio e filósofo, embora ache necessário sustentar a
diáfana existência de Deus com os seus pareceres. [...] Se estiveres ouvindo as preleções do Fechner e ficares
conhecendo argumentos interessantes, teria prazer em tomar conhecimento deles e espalhá-los noutros
círculos.” (FREUD; BOEHLICH, p. 90).
5
Os outros dois são Schopenhauer e Nietzsche.

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paternidade é raro e precioso sob a pena de Freud” (ASSOUN, 1981, pp. 155-6)6. Ellenberger
chega mesmo a condicionar a existência de muitas ideias de Freud à influência de Fechner:
“Uma grande parte do arcabouço teórico da psicanálise dificilmente teria surgido sem as
especulações do homem a quem Freud chamou o grande Fechner” (ELLENBERGER, 1970, p.
218). Em uma direção oposta, contudo, Riepe defende que “a influência de Freud por Fechner
é um mito de história da recepção” (RIEPE, 2002, p. 757) e que o uso que Freud faz dos
conceitos de princípio de prazer e outro cenário “não apenas não tem nada em comum com os
conceitos de Fechner, mas implica em sua direta refutação” (RIEPE, 2002, p. 758)7.
Em uma apresentação geral da relação entre Fechner e Freud, Ellenberger (1993 [1956])
aponta cinco aspectos onde identifica convergências entre as obras dos dois autores: o conceito
de energia mental; a concepção espacial da mente; o princípio de prazer; o princípio de
constância de Freud e o princípio da tendência à estabilidade de Fechner; e, por fim, o princípio
de repetição em Fechner e a compulsão à repetição em Freud. Destes pontos, contudo, apenas
dois aparecem na obra de Freud a partir de uma remissão explícita a Fechner. O primeiro deles
se trata da concepção espacial da mente, desenvolvida por Freud no capítulo 7 de A
interpretação dos sonhos, onde se lê: “No contexto de algumas discussões dedicadas ao sonho,
o grande Fechner expressa em sua Psicofísica [...] a hipótese de que a cena dos sonhos é distinta
daquela da vida representacional de vigília” (FREUD, 2012 [1900], pp. 563-564). Freud extrai
desta passagem, retirada dos Elemente der Psychophysik, a ideia de uma “localidade psíquica”,
proporcionando assim o ensejo para a formulação da sua representação espacializada do
aparelho psíquico e para a distinção dos sistemas pré-consciente e inconsciente, com a qual se
conecta a explicação dos sonhos em geral como realização disfarçada de um desejo reprimido.
Esta relação, contudo, parece ainda um tanto indireta ou alusiva, o que nos leva ao
segundo aspecto, a nosso ver o mais interessante e frutífero, que consiste na relação entre o
princípio de constância de Freud e o princípio da tendência à estabilidade de Fechner,
estabelecida pela primeira vez em 1920, em Além do princípio de prazer. Nesta obra, Freud
parte da investigação de um conjunto de fenômenos que manifestariam uma compulsão à
repetição supostamente mais primária que o próprio princípio de prazer, para daí formular sua
nova teoria das pulsões, que entenderá a pulsão em geral como um ímpeto a retornar a um
estado anterior, classificando as pulsões em pulsões de vida e pulsões de morte.

6
As traduções de textos citados em língua estrangeira são de nossa responsabilidade.
7
Como o nosso propósito aqui é apenas discutir a relação entre psicanálise e filosofia a partir de uma
articulação teórica efetivamente tecida por Freud, não examinaremos neste momento a pertinência desta
articulação, o que teremos a oportunidade de fazer em trabalhos futuros.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

O princípio de Fechner é mencionado já na seção introdutória da obra, que tece algumas


considerações gerais acerca do princípio de prazer, o qual é inicialmente apresentado como a
“suposição” [annehmen] de que “o decurso dos processos anímicos [...] é sempre incitado por
uma tensão desprazerosa, e depois toma uma direção tal que seu resultado final coincide com
uma diminuição desta tensão, logo com uma evitação de desprazer ou produção de prazer”
(FREUD, 1982 [1920], p. 217). Após observar a dificuldade em encontrar apoio em alguma
teoria que traga informações sobre o significado das sensações de prazer e desprazer, Freud
afirma que optou pela hipótese mais frouxa em relação a isso, que já se deixava entrever na
definição do seu princípio: “Decidimos relacionar prazer e desprazer à quantidade de excitação
presente na vida anímica – e de nenhum modo ligada –, de tal maneira que o desprazer
corresponda a um incremento dessa quantidade e o prazer, a uma redução dela” (FREUD, 1982
[1920], pp. 217-218).
Apesar do escasso apoio teórico, Freud afirma ter encontrado uma concepção que
coincidiria essencialmente com a sua, a qual é apresentada por Fechner em uma passagem do
livro Algumas ideias sobre a história da criação e do desenvolvimento dos organismos,
publicado em 1873. Na passagem citada por Freud, Fechner relaciona o prazer e o desprazer
com situações de estabilidade e instabilidade:

Uma vez que impulsos [Antriebe] conscientes estão sempre em relação com
prazer ou desprazer, prazer ou desprazer podem também ser pensados em
relação psicofísica com condições de estabilidade e instabilidade; e pode-se
em seguida fundamentar a hipótese, a ser desenvolvida por mim mais
detalhadamente em outro lugar, de que todo movimento psicofísico que supera
o limiar da consciência seria marcado [behaftet] pelo prazer, na medida em
que ele se aproxima da estabilidade completa para além de um certo limite, e
pelo desprazer, na medida em que ele se afasta dela além de um certo limite,
ao passo que, entre ambos os limites, que devem ser designados como limiar
qualitativo do prazer e do desprazer, há uma certa extensão de indiferença
estética [...]. (FECHNER, 1873, p. 94; citado em FREUD, 1982 [1920], p.
218)

Na sequência do texto, Freud insere na discussão o princípio de constância, apresentado


como a “hipótese [Annahme] de que o aparelho psíquico se empenha [Bestreben] em conservar
a quantidade de excitação nele existente o mais baixa possível, ou ao menos constante”, do qual
seria derivado o princípio de prazer, e afirma que “esse empenho [Bestreben] do aparelho
psíquico, que nós supomos, subordina-se, como caso especial, ao princípio fechneriano da
tendência à estabilidade, ao qual ele, Fechner, relacionou as sensações de prazer-desprazer”
(FREUD, 2010 [1920], p. 164).

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

O princípio da tendência à estabilidade é apresentado no terceiro capítulo do livro de


Fechner8, que se inicia com algumas observações sobre a noção de estabilidade ali empregada,
pensada em relação ao estado de movimento das partículas ou massas de um sistema material.
Fechner distingue três níveis de estabilidade: a estabilidade absoluta seria “o estado de repouso
das partículas ou massas umas em relação às outras”, sendo entendida como “o caso-limite onde
as mesmas relações mantêm-se permanentemente”, tendo como contraparte o caso-limite
oposto da instabilidade absoluta, entendido como “uma dispersão ao infinito das partículas ou
massas em direções divergentes” (FECHNER, 1873, p. 26); a estabilidade completa seria “o
caso onde, embora ocorram movimentos, estes sempre reconduzem, em seções temporais
exatamente iguais, para as mesmas relações das partículas ou massas entre si” (FECHNER,
1873, p. 26); por fim, a estabilidade aproximativa descreveria os casos em que “as partículas
ou massas de um sistema nunca retornem novamente de modo exato, mas sim de modo
aproximado, em seções temporais iguais, para as antigas relações que mantinham entre si”
(FECHNER, 1873, p. 26), estado que tem o Sistema Solar como um exemplo.
Após tecer algumas considerações preparatórias, Fechner então enuncia o seu princípio
da tendência à estabilidade:

Em todo sistema de partes materiais que se encontra abandonado a si mesmo


ou sob condições externas constantes, e portanto também no sistema do
mundo material, uma vez que o consideramos como um sistema fechado, tem
lugar, com a exceção de movimentos que vão ao infinito, uma progressão
contínua de estados instáveis para [estados] estáveis, até um estado final
completamente ou aproximadamente estável. (FECHNER, 1873, p. 30)

O estado final presente na formulação do princípio, como se pode notar, não seria a
estabilidade absoluta. A razão para isso está na observação de que “um progresso irrestrito do
mundo para a estabilidade absoluta” é limitado pelo “princípio da conservação da força [Princip
der Erhaltung der Kraft]”, que determina que “a força viva [lebendige Kraft]9 não pode de
modo algum [...] ser alterada no mundo como um todo segundo sua quantidade, mas apenas
segundo a forma na qual ela se manifesta” (FECHNER, 1873, pp. 34-35).

8
Após a formulação inicial do princípio em seu escopo físico geral, o capítulo 4 o desenvolve em sua aplicação
ao domínio orgânico e o capítulo 11, onde se encontra o trecho citado por Freud, o insere em uma discussão
teleológica e psicofísica.
9
Ao longo do século 19, parte daquilo que na física se designava como “força” (Kraft) passou a ser chamado
de “energia” (Energie), e aquilo que desde Leibniz se chamava “força viva” (lebendige Kraft, vis viva) passou
a ser conhecido como “energia cinética”, o que não deve ser confundido com o conceito de “força vital”
(Lebenskraft).

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Volume 06, Número 10, Ano 2021

As relações de estabilidade aproximada podem ser constatadas, de acordo com Fechner,


não apenas nos movimentos planetários do Sistema Solar, mas ainda nos movimentos
observados no interior da Terra, em decorrência de sua relação com a Lua e o Sol,
exemplificados nos fenômenos periódicos de “maré baixa e maré alta, ciclo das águas, ventos
periódicos, alterações periódicas da temperatura, da pressão atmosférica etc.” (FECHNER,
1873, p. 32). Fechner também enxerga tal estabilidade nos organismos, que são “inteiramente
estruturados a partir da periodicidade de suas funções e, com isto, das relações estáveis de sua
vida” (FECHNER, 1873, p. 32), o que também pode ser estendido à vida mental:

Mesmo o domínio mental [geistig] se mostra submetido a esse princípio. Pois


achamos que, quanto mais uma pessoa se retira da influência variável das
circunstâncias externas, toda a sua vida de representações, sensações,
sentimentos se ordena em ciclos cada vez mais regulares ou, dito brevemente,
se torna cada vez mais estável; um dia se torna para ela logo como o outro; o
que podemos pensar como relacionado à estabilidade crescente dos processos
materiais que subjazem à vida mental [geistig]. (FECHNER, 1873, p. 32)

2 FREUD E FECHNER: UM ENCONTRO ENTRE PSICANÁLISE E FILOSOFIA

Se partimos da relação entre Freud e Fechner como um caso que deve propiciar uma
reflexão sobre a relação entre psicanálise e filosofia, cumpre precisar qual é o estatuto
epistêmico dos princípios teóricos através dos quais se dá a articulação entre os dois autores e
tentar delinear as convergências e divergências entre os dois campos do conhecimento que este
encontro nos permite traçar.
Além disso, contudo, seria ainda necessário discutir em que medida é adequado tomar
Fechner, como o fizemos, como um representante da filosofia, sobretudo pela razão de que se
trata de um autor que transitou notavelmente entre os campos da filosofia e da ciência. Seus
trabalhos de mensuração psicofísica se detêm na experiência segundo o laborioso rigor do
método científico mais estrito, enquanto suas especulações metafísicas se alçam a alturas a que
muitos filósofos de sua época não ousariam ir. Mas em que domínio do conhecimento se
encontra o seu princípio da tendência à estabilidade?
O livro onde o princípio é formulado parte de uma questão científica, se apresentando
como uma discussão da teoria da evolução de Darwin, mas de nenhum modo se atém apenas à
experiência ou a teorias que teriam algum direito de reivindicar o estatuto da cientificidade.
O princípio teórico que nos interessa, no entanto, é estabelecido através de uma

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

argumentação que faz um certo recurso à experiência, mas não parece poder se desvencilhar do
seu caráter hipotético ou especulativo. Vale notar uma observação de Fechner no prefácio, que
nos parece interessante, por explicitar a presença da hipótese também no trabalho científico:
“Ainda assim, do modo como se apresenta até agora, ela [a doutrina da descendência] não está
livre de dificuldades, inverossimilhanças, lacunas e hipóteses [Hypothesen] que não são tão
certas quanto os fatos [Thatsachen] que podem ser conectados através dela” (FECHNER, 1873,
p. III). Quanto ao estatuto das suas próprias formulações, Fechner afirma, ao se referir ao
princípio da diferenciação relativa, que esse princípio “é apenas hipotético [hypothetisch], como
a maior parte do que há nesse escrito e na teoria da descendência em geral” (FECHNER, 1873,
p. V).
De acordo com Fechner, apesar de o princípio da tendência à estabilidade parecer à
primeira vista puramente apriorístico, ele estaria apoiado na pressuposição incerta de que,
“entre as condições do movimento, estão em geral [überhaupt] aquelas que reconduzem ao seu
próprio retorno” (FECHNER, 1873, p. 28). Feita esta constatação, ele se volta então à
contribuição que a experiência e o cálculo lhe podem fornecer, observando que o cálculo só
poderia avaliar até o momento alguns casos simples, nos quais permite estabelecer que a
estabilidade completa deve ser alcançada, como os casos dos pêndulos e das cordas oscilantes,
supondo a eliminação das resistências externas, assim como o caso de um sistema isolado “de
apenas duas partículas ou massas que são determinadas uma em relação à outra pela atração
mútua e pelo efeito de um impulso defletor primordial para o movimento” (FECHNER, 1873,
p. 29). Fechner emenda ainda que os fatos mais gerais da experiência permitiriam constatar a
ocorrência de ao menos algum grau de aproximação à estabilidade completa em qualquer
sistema que esteja isolado ou sob influências externas constantes, julgando assim haver
condições suficientes para estabelecer o seu princípio.
No intento de emitir um juízo epistemológico sobre o princípio de Fechner, não nos
parece fácil delinear uma clara demarcação entre uma hipótese científica e uma especulação
filosófica; e é interessante notar que o procedimento adotado aí por Fechner se aproxima
bastante daquele que é levado a cabo por Freud em Além do princípio de prazer, quando, após
a formulação da hipótese da pulsão de morte, o autor faz uma incursão em experimentos
biológicos, nos quais julga encontrar apoio para a sua hipótese (FREUD, 2010 [1920], pp. 212-
219). Trata-se, nos dois casos, de hipóteses próprias cuja sustentação empírica é buscada em
experiências de terceiros.
Por outro lado, o princípio de constância em Freud, que também é descrito como
uma “hipótese [Annahme]” (FREUD, 1982 [1920], p. 219), é remetido pelo autor à sua

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própria experiência, afirmando que ele tem por base os mesmos fatos que sustentam a hipótese
do princípio de prazer, sobre o qual comenta:

Não há para nós nenhum interesse em investigar até que ponto, com a
formulação do princípio do prazer, nos aproximamos ou aderimos a um
sistema filosófico determinado e historicamente estabelecido. Nós chegamos
a tais hipóteses especulativas [spekulativen Annahmen] pelo esforço em
descrever e dar conta dos fatos da observação diária em nosso campo.
(FREUD, 1982 [1920], p. 217)

Freud se sente à vontade aqui, como se vê, para fundir as designações de hipotético e
especulativo, o que talvez possamos seguir, sobretudo se consideramos o domínio epistêmico
interseccional no qual se insere nossa análise. É também de se notar a evitação de uma
confrontação com os sistemas filosóficos, justamente em um ponto que poderia revelar a maior
aproximação com a filosofia de Fechner. Esta postura, contudo, não é mantida em relação a
outros elementos teóricos, quando, mais adiante na mesma obra, Freud reconhece, após suas
formulações sobre as pulsões de vida e de morte, uma confluência com o pensamento filosófico
de Schopenhauer: “E há outra coisa que não podemos ignorar: que inadvertidamente
adentramos o porto da filosofia de Schopenhauer, para quem a morte é ‘o autêntico resultado’
e, portanto, o objetivo da vida, enquanto o instinto sexual é a encarnação da vontade de vida”
(FREUD, 2010 [1920], p. 220). Aqui temos de modo claro um encontro com a filosofia, ainda
que Freud não realize uma concatenação mais efetiva de suas teorias com aquelas de
Schopenhauer, como ocorre no caso do princípio fechneriano.
Em 1925, em sua apresentação autobiográfica, Freud afirma, se referindo à nova teoria
das pulsões, que nos últimos anos dera “rédea larga ao pendor à especulação, que havia muito
era contido” (FREUD, 2011 [1925], p. 145), e tece mais algumas observações sobre sua relação
com a especulação e a filosofia:

Não se deve ter a impressão de que nesse último período eu dei as costas à
observação paciente e me entreguei totalmente à especulação. Sempre
permaneci em contato íntimo com o material analítico e nunca deixei de
trabalhar sobre temas específicos de natureza clínica ou técnica. Mesmo
quando me afastei da observação evitei cuidadosamente me aproximar da
filosofia propriamente dita. (FREUD, 2011 [1925], pp. 147-148)

Estas considerações parecem significar certamente uma demarcação entre a filosofia e


a sua nova teoria das pulsões, mas é possível que também signifiquem que Freud não
percebia a incorporação teórica do princípio da tendência à estabilidade como uma

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

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aproximação à “filosofia propriamente dita”. Contudo, a menção a Fechner no estudo


autobiográfico o insere no campo da filosofia, ainda que Freud se refira a ele com a designação
mais indeterminada de “pensador” (FREUD, 2011 [1925], p. 148).
Ainda que todas estas considerações nos tenham levado a uma aproximação, nos casos
examinados, entre o trabalho filosófico e o trabalho científico, parece-nos que a obra de Fechner
na qual é formulado o princípio da tendência à estabilidade se coloca primordialmente no
domínio metafísico. Isto porque, além de não partir de experiências próprias, o livro trata, com
destaque, de ideias bastante gerais e marcadamente especulativas, como a definição da vida
(FECHNER, 1873, capítulo 1) e uma hipótese sobre o seu surgimento, que inverte a concepção
segundo a qual os organismos surgiram a partir da matéria inorgânica, supondo um estado
original do universo por ele denominado de estado “cosmorgânico” (FECHNER, 1873, capítulo
5). É neste contexto que se insere o princípio citado por Freud; e, ainda que, em sua formulação,
se faça recurso à experiência, ele parece se inserir em uma conjuntura mais marcadamente
filosófica.
A hipótese freudiana do princípio de constância parte, por sua vez, de um campo próprio
de experiências do seu autor, como é também o caso da hipótese do princípio de prazer. Talvez
se possa dizer que mesmo a formulação da nova teoria das pulsões, que é apresentada por Freud
como “especulação que vai longe [weitausholende Spekulation]” (FREUD, 1982 [1920], p.
234), ainda estaria inserida mais propriamente no campo científico, pelo fato de partir dos
fenômenos observados da compulsão à repetição.
Portanto, a convergência entre psicanálise e filosofia que aqui examinamos no contato
entre o princípio da tendência à estabilidade e o princípio de constância, se dá no campo da
hipótese ou da especulação, que pode ser considerado uma interseção entre os dois domínios
epistêmicos, cuja fronteira neste caso não se torna tão clara. Ainda assim, acreditamos poder
identificar, nos princípios em questão, a distinção entre uma hipótese filosófica e uma hipótese
científica, utilizando como critério de diferenciação o contexto epistêmico mais geral onde se
insere a hipótese, assim como a presença ou ausência de um campo próprio de experiências do
seu autor. Deve-se reconhecer, entretanto, que o princípio fechneriano certamente se aproxima
de um caso limítrofe, o que deve ter contribuído para que Freud o tenha incorporado às suas
teorias com certa naturalidade.
Nesta interseção onde se insere a hipótese ou especulação filosófica, notemos ainda que,
o que está em questão é tão-somente a disciplina particular da filosofia que busca representar a
realidade em geral, a qual se costuma dar o nome de metafísica ou, segundo a tradição a
que Fechner se filia, filosofia da natureza. O seu ponto de contato com as ciências se dá,

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

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evidentemente, pelo fato de estas também terem o objetivo de representar a realidade, ainda que
em domínios específicos e a partir de uma relação mais estrita com a experiência. Na medida
em que a metafísica se volta sobre domínios específicos do real, obtém-se a sua correspondência
com as ciências particulares: filosofia da natureza (física), filosofia da vida (biologia), filosofia
da alma (psicologia) etc.; no que se pode depreender as múltiplas relações entre as obras de
Fechner e de Freud, quando estas perpassam vários destes campos10.
A relação entre psicanálise e filosofia que se pode estabelecer dessa maneira consiste,
portanto, em uma relação entre teorias que têm por objetivo a representação da realidade. Aqui
não seria necessário se ater, contudo, às teorias científicas que devem se contentar com o seu
caráter hipotético, sendo possível ainda incluir aquelas que poderiam ser chamadas de teorias
empíricas11 ou que puderem reclamar o estatuto de teses bem estabelecidas. O ponto de
encontro entre os dois campos, contudo, estaria restrito ao elemento do pensamento, em sua
visada ontológica, e o seu estudo caracterizaria um tipo de trabalho que poderia ser inserido na
designação mais geral de história das ideias ou história do pensamento.

3 Psicanálise e filosofia: um panorama geral

Para finalizar, gostaríamos de inserir este tipo de trabalho que descrevemos em um


panorama geral das diversas formas possíveis pelas quais se poderia relacionar a filosofia e a
psicanálise, o que tentaremos esboçar a seguir.
A psicanálise e a filosofia podem se relacionar em níveis diferentes de discurso, de
maneira que uma sujeitaria a outra como objeto. Por um lado, a psicanálise pode tomar a
filosofia como objeto de análise, considerando-a como um produto da atividade psíquica, o que
é ilustrado de modo mais notável pela avaliação que Freud fez por vezes da filosofia,
associando-a a um enquadramento psicopatológico depreciativo. Por outro lado, a filosofia
pode tomar a psicanálise como um objeto de análise, o que geralmente é feito a partir da
epistemologia, considerando a psicanálise como uma forma de conhecimento, mas também
pode ser feito a partir de outras disciplinas filosóficas, como a estética ou a ética. No caso de

10
Além da relação mais estrita entre o princípio da tendência à estabilidade com o princípio de constância (e
o princípio de prazer), a estrutura teórica freudiana certamente sugere uma relação entre o princípio
fechneriano e a pulsão de morte, o que ganha interesse ainda maior quando consideramos a concepção
fechneriana de vida e de morte. Hyppolite (1989) remete ainda a segunda teoria das pulsões de Freud à
filosofia da natureza, a partir da associação que o próprio Freud tece com os princípios de Empédocles.
11
Ver Fulgencio (2003), onde a distinção entre teorias empíricas e teorias especulativas é utilizada para
analisar o papel da especulação na obra de Freud.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

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uma análise epistemológica, esta pode ter por resultado uma avaliação positiva ou negativa, ou
ainda uma avaliação parcialmente positiva e parcialmente negativa, como ocorre em autores
como Politzer e Dalbiez. Mas esta análise pode ser feita também como uma caracterização
histórico-descritiva da epistemologia inerente à psicanálise, que não envolve necessariamente
a emissão de um juízo de valor12.
A psicanálise e a filosofia também podem se relacionar no mesmo nível discursivo, que
pode se dar enquanto discurso ontológico ou discurso epistemológico. No caso do discurso
ontológico, entendido no sentido geral de um discurso que tem por objeto a representação da
realidade, é possível um diálogo entre as especulações filosóficas e as teorias psicanalíticas que
têm como objeto especialmente domínios como a psique, a sociedade e a vida. Aqui pode ter
lugar tanto uma relação positiva, onde a psicanálise é influenciada por ideias filosóficas13 ou a
filosofia é influenciada por ideias psicanalíticas, quanto uma relação negativa, onde a
psicanálise critica ideias filosóficas ou a filosofia critica ideias psicanalíticas. Nos casos em que
não há a explicitação de uma influência ou crítica entre filósofos e psicanalistas, o estudioso
pode ainda construir esta relação, ao analisar as semelhanças e diferenças entre os pensamentos
dos autores.
No caso de um diálogo no âmbito do discurso epistemológico, que pode se dar nas
mesmas modalidades apresentadas em relação ao discurso ontológico, trata-se da relação que
se pode estabelecer entre a epistemologia dos filósofos e as formulações epistemológicas que
podemos encontrar em obras psicanalíticas. Este tipo de trabalho, no entanto, provavelmente se
confundirá, parcialmente, com aquele em que a filosofia toma a psicanálise como objeto de uma
análise epistemológica, especialmente se incluirmos aqui também a epistemologia implícita nas
obras psicanalíticas, trazida à luz por um trabalho prévio de explicitação.
Este breve esboço apresentado naturalmente não deve ser tomado de maneira rígida –
nem como uma categorização dos trabalhos já efetivamente realizados na área, que certamente
não se enquadrarão aí de maneira inteiramente ajustada, nem como uma proposta limitadora
dos trabalhos a serem realizados –, mas, antes, como um exercício de compreensão da área e
de suas possibilidades. Assim esperamos, com estas considerações, poder dar uma modesta
contribuição para o trabalho histórico sobre a relação entre filosofia e psicanálise, tanto na
análise do caso específico da relação entre Freud e Fechner, quanto na reflexão mais geral sobre
o campo, as quais poderão receber maior desenvolvimento em trabalhos futuros.

12
Ver, nesse sentido, Assoun (1981) e Monzani (1991).
13
Aqui se insere a relação por nós examinada entre Freud e Fechner.

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REFERÊNCIAS

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FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos [1900]. Trad. R. Zwick. Porto Alegre: L&PM,
2012.
FREUD, Sigmund. Jenseits des Lustprinzips [1920]. In: FREUD, Sigmund. Studienausgabe.
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16. Trad. P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. pp. 75-167.
FREUD, Sigmund; BOEHLICH, Walter (org.). As cartas de Sigmund Freud para Eduard
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Professorenkatalog der Universität Leipzig. Sem data. Disponível em: <https://research.uni-
leipzig.de/catalogus-professorum-lipsiensium/leipzig/Fechner_807/>. Acesso em: 23/01/2021.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

Recebido em:29/03/2021
Aprovado em: 14/06/2021
Publicado em: 15/07/2021

PARA ALÉM DE KANT COM SADE


o impasse ético a partir da psicanálise lacaniana

BEYOND KANT WITH SADE


the ethical impasse from Lacanian psychoanalysis

Allysson Alves Anhaia1


([email protected])

Resumo: O objetivo deste artigo é oferecer uma proposta ética que leve em consideração as contradições
inerentes ao pensamento contemporâneo. Isso se dá no horizonte da distância entre a teoria moral e as
práticas do dia a dia, assim como exposto por Adorno em seu livro Problemas da Filosofia Moral
(1963/2001). Dessa forma, direcionaremos nossa abordagem para a obra Kant com Sade (1963/1998)
de Lacan, a fim de demonstrar como o psicanalista entende a estrutura de uma ética fundamentada na
pura forma da lei. Em seguida, discutiremos as implicações da análise lacaniana da tragédia Antígona
de Sófocles, assim como é apresentado no sétimo seminário (1959-60/2008) de Lacan, como uma
possível saída para o impasse apresentado por Adorno, uma vez que a ética que surge de Antígona é
pensada a partir do ponto de vista do desejo, de modo a possibilitar um intermédio entre a teoria e a
prática.

Palavras-Chave: Antígona. Desejo. Imperativo categórico. Ética. Morte.

Abstract: The purpose of this paper is to offer an ethical proposal that considers the contradictions
inherent in contemporary thinking. This happens in the horizon of the distance between the moral theory
and the daily practices, exposed by Adorno in his Problems of Moral Philosophy (1963/2001). In this
way, we will direct our approach towards the work Kant with Sade (1963/1998) by Lacan, in order to
demonstrate how the psychoanalyst understands the structure of an ethics founded on the pure form of
the law. Then the implications of Lacan's analysis of Sophocles' Antigone are discussed, as is also
presented by Lacan in his seventh seminar (1959-60/2008), as a possible way out of the impasse
presented by Adorno, since an ethics that emerges from Antigone is thought from the point of view of
desire, so that it can present an intermediary between theory and practice.

Keywords: Antigon. Desire. Categorical Imperative. Ethics. Death.

INTRODUÇÃO – O PROBLEMA DA CONTEMPORANEIDADE

O problema ético da contemporaneidade é exposto por Adorno em seu livro Problemas


da Filosofia Moral (2001), uma vez que, segundo ele, a dificuldade em conceber uma teoria

1
Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0826084343515698.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1757-0400.

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moral coerente reside na tensão entre a teoria e o universal de um lado, e a prática e o particular
de outro. Isso quer dizer que, mesmo que a filosofia moral, por meio de seus conceitos e
abstrações, afaste-se da materialidade do mundo, ela ainda tem uma relação necessária com as
ações práticas. Assim, nas palestras ministradas em 1963, que constituem o Problemas da
Filosofia Moral, Adorno esforça-se para demonstrar a tensão existente entre a prática e a teoria,
isto é, a tensão entre uma moral abstrata, que tem a si própria como objetivo, e uma moral de
responsabilidade, que leva em consideração as consequências dos atos praticados. Dessa forma,
para ele, ainda que a teoria corra o risco de cair em um espaço vazio e a prática do dia a dia não
a leve em conta, só seria possível uma prática verdadeiramente moral quando pensada através
da teoria. Em vista disto, a questão principal de uma filosofia moral em nosso tempo seria como
relacionar interesses individuais a normas subjetivas, que visam abranger a humanidade em sua
totalidade. Sendo assim, propomos a análise desse problema a partir da psicanálise lacaniana,
já que, através do que é indicado por Lacan em seu texto Kant com Sade (1963/1998), bem
como em seu sétimo seminário sobre a ética da psicanálise (1959-60/2008), tal problemática
pode ser analisada sob outro ponto de vista, o do desejo, pois, se em Kant com Sade, o
psicanalista francês aponta para como a teoria kantiana e a sadeana são abstrações formais, que
acabam por ignorar a prática e materialidade do mundo 2 – ainda que a primeira o faça a partir
do dever moral e a segunda pelo gozo excessivo3 –, em sua análise de Antígona4, por outro lado,
ele indica uma alternativa para a ética baseada na pura formalidade da lei.
Assim sendo, a partir do incremento da psicanálise lacaniana, visamos proporcionar uma
outra roupagem daquilo que Adorno (2001, p. 167) identifica como a impossibilidade de uma
vida boa em uma ruim. Isso significa que, do lado da prática, tem-se a resistência à moralidade,
enquanto do lado da moralidade, tem-se um apego à teorização e à própria forma da lei, de

2
Vale salientar que a teoria lacaniana aponta para o distanciamento para com a materialidade, a partir da
distinção entre as ordens do simbólico, imaginário e real. De forma geral, em Lacan, o registro do simbólico
faz referência ao mundo que se abre a partir do universo da linguagem e do significante e é lugar da relação
entre o sujeito e o Outro, que é o representante da ordem da linguagem. Já o imaginário, diz respeito à relação
do ser humano com o universo da imagem e a relação do sujeito com o outro, que é seu duplo e semelhante,
enquanto o real faz referência à efetividade do mundo, mas que escapa tanto do simbólico quanto do
imaginário, de forma que é o universo da falta e do não-senso. Isso significa que a prática do dia a dia é
experienciada pelos seres humanos a partir da abstração e distanciamento da realidade efetiva através das
ordens do simbólico e do imaginário.
3
O gozo excessivo, como será tratado mais adiante, faz referência ao jouissance, termo que se estende por
praticamente toda obra de Lacan mas que, no âmbito do seminário sobre a ética da psicanálise (1959-60/2008),
articula-se junto ao paradigma do gozo impossível, já que neste seminário o psicanalista define o desejo como
o universo da falta, que surge da impossibilidade do acesso ao Das Ding, objeto impossível usado por Lacan
para representar que a verdadeira satisfação se encontra no registro do real e por conta dele.
4
De acordo com Haute (2007, p. 289), ao tratar de Antígona nas últimas seis sessões de seu sétimo seminário,
Lacan oferece, além dos temas referentes à ética, uma teoria do desejo, outra da sublimação e uma do término
da análise. Contudo, a teoria do desejo deve ser entendida como central, de forma que as outras são articuladas
ao redor dessa.

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modo que a vida se torna tão deformada e distorcida que ninguém se faz apto a viver uma vida
moralmente boa. Em outras palavras, as teorias morais, justamente por seu afastamento da
realidade material, perderam a capacidade de responder à pergunta kantiana – que para o autor
alemão é o começo de qualquer teoria moral – a respeito do que devemos fazer. Isso porque a
redução da filosofia moral a apenas uma ética, que ignora tanto a realidade externa e sua
influência, intrínseca ao sujeito, passa a ser entendida como aquilo que Adorno chama de
irracionalidade da esfera moral. Ele atribui o termo irracionalidade para expor aquilo que a
abstração tenta evitar através da teoria moral, mas acaba por afundar, isto é, ao afastar-se da
materialidade, a moralidade não reconhece a faculdade do desejo e é nisso que constitui a
irracionalidade da qual fala Adorno. Dessa maneira, visamos demonstrar, a partir de Kant com
Sade, como Lacan entende esse distanciamento da teoria para com a prática na forma de uma
ética baseada em uma lei sem conteúdo, além de demonstrar como até mesmo uma ética, que
visa se afastar da moralidade – como a de Sade –, incorre nessa mesma legalidade. Vale ressaltar
que não é nosso objetivo apontar para excessos ou equívocos, tanto na leitura que Lacan faz de
Kant como na de Sade, mas sim seguir o psicanalista na interpretação desses autores a partir de
seus próprios conceitos, a fim de evidenciar o problema destacado por Adorno a partir da
psicanálise lacaniana. Já com a análise lacaniana de Antígona, temos por objetivo extrair da
psicanálise de Lacan uma alternativa5 para essa ética fundada na lei sem conteúdo, uma vez que
a proposta do psicanalista parisiense é uma ética que se estrutura ao redor do desejo, da
materialidade e da efetividade.

1 A PURA FORMA DA LEI EM KANT COM SADE

Lacan, em sua crítica direcionada a Kant, demonstra como se dá a relação entre um


sujeito descentrado e a moral. É importante ter isso em mente, porque o sujeito descentrado,
assim como é proposto pelo psicanalista francês, difere substancialmente daquele da tradição
filosófica da qual tanto Kant quanto Sade estão inseridos. Se para esses autores o sujeito se
estrutura e garante sua existência – bem como a do mundo a sua volta – a partir da faculdade
da razão e do ato de pensar, o sujeito da psicanálise lacaniana se encontra no inconsciente, de

5
Entretanto, assim como apontam Bispo e Couto (2011, p, 124 - 125), o próprio Lacan abandona a ética que
tem Antígona como exemplo nos anos finais de seu ensino, mais precisamente a partir do seminário XVII,
para articular, já no seminário XX, uma lógica do gozo para além do gozo fálico. Contudo, consideramos que
o ato de Antígona ainda se mostra pertinente para a discussão acerca da ética e da moralidade, como será
demonstrado no decorrer do texto.

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modo que sua constituição se dá na relação com o desejo6. A partir disso, o psicanalista, em
1963, articula seu texto Kant com Sade7 (1998), no qual demonstra como a Filosofia na Alcova,
de Marquês de Sade, não apenas completa, mas expõe a verdade do sistema moral proposto por
Kant em sua Crítica da Razão Prática de 1788. Em outras palavras, na visão de Lacan, o gozo,
que é ponto central na obra sadeana, é um reflexo direto e obsceno do rigor moral de Kant 8, de
modo que as duas propostas na verdade formam uma dupla contradição, de maneira que uma
não existiria sem a outra.
Kant propunha uma moral que deve ser necessariamente desvinculada de qualquer
pressuposto metafísico. Não obstante, essa moral pretendida pelo filósofo alemão deveria
afastar-se também de todo objeto patológico, isto é, tudo aquilo que é derivado de uma pulsão,
impulso ou paixão que faça o sujeito padecer em seu interesse por tal objeto (LACAN, 1998,
p. 778), já que tal autor entende essas inclinações patológicas como impedimentos para uma
moral verdadeiramente universal. Isso porque qualquer ética que é baseada em inclinações
patológicas, das quais fazem parte o prazer e o bem-estar, de acordo com a perspectiva kantiana,
constituem um ato de egoísmo, visto que, embora tenha como objetivo o bem, ainda é apenas
uma projeção de uma satisfação individual e particular, de maneira que o único modo de
alcançar uma moral verdadeiramente universal seria esvaziar as ações dos prazeres e da
sensibilidade.
Frente a isso, a alternativa encontrada por Kant foi o estabelecimento de um imperativo
formal que serviria de base para uma lei universal e seria alcançado apenas através da razão
universal. É assim que toma forma o imperativo categórico, que se expressa, segundo o filósofo
alemão (KANT, 2016, p. 51), com a seguinte máxima: “age de tal modo que a máxima de tua
vontade possa sempre valer, ao mesmo tempo, como princípio de uma legislação universal”.

6
É importante lembrar que o desejo em Lacan, por ser sempre o desejo do Outro, tem a estrutura de uma falta.
Isso porque o Outro é o representante da cadeia significante, na qual o sujeito precisa estar inserido para
existir. Entretanto, o sujeito apresenta uma demanda que ultrapassa o Outro, mas a única coisa que existe onde
a demanda aponta é o desejo enquanto demanda, como o que ainda não está formulado, uma vez está fora da
linguagem, do simbólico. Assim, como afirma Safatle (2003, p.p 193-194), o desejo é uma relação do ser com
a falta, e a falta é nada mais que falta-de-ser, não é falta disto ou daquilo, mas falta-de-ser, através da qual o
ser encontra espaço para sua existência.
7
Segundo Safatle (2003, pp. 200-201), esse texto é na verdade um golpe intelectual, no qual Lacan coloca
Kant em seu lugar para poder criticá-lo e assim oferecer uma alternativa aos problemas teóricos que
enfrentava. Além disso, o psicanalista não o faz diretamente, mas por intermédio de Sade, ou seja, ele
encarrega os dois autores de sustentar os desafios que a psicanálise direciona ao discurso da dimensão prática
da racionalidade moderna, bem como o impasse da intersubjetividade e da negatividade do desejo.
8
De acordo com Fonseca e Rech (2017, p. 166), a dupla formada por Kant e Sade está diretamente relacionada
às questões levantadas pelos teóricos da escola de Frankfurt (especialmente Adorno, Horkheimer, Marcuse e
Benjamin) sobre o esclarecimento e a barbárie, mais precisamente sobre a ligação dos ideais modernos com
os grandes marcos do século XX, tais quais as duas grandes guerras mundiais, o holocausto e a bomba atômica.
Desse modo, para eles é válido reconhecer uma linha que vai do formalismo ético de Kant à indústria da morte
do reich nazista.

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Entende-se então que, a partir do esvaziamento e rejeição das sensações, a lei moral corresponde
à pura forma de uma lei universal expressa pelo imperativo categórico, em contraposição às
inclinações patológicas, de forma que é uma lei completamente vazia de determinação, já que,
a partir deste esvaziamento, a única substância que a lei encontra para si é ela mesma. A partir
disso, Lacan inicia sua articulação. Com base nesse esvaziamento, o psicanalista (LACAN,
1998, pp. 777-778) identifica a primordial diferença entre a posição da psicanálise e do projeto
kantiano em relação ao campo da moral. Isso porque, enquanto o bem, que é objeto da lei moral
kantiana, o das Gute, é um bem alcançado a partir da razão universal e, portanto, vazio de
sensações e determinação, o bem, que é objeto da psicanálise, o das Wohl, é, em contrapartida,
o bem da lei moral, diretamente relacionado às sensações e aos impulsos, de modo que é
particular e que consiste no bem-estar do indivíduo. A partir desse bem moral esvaziado e,
portanto, sem objeto, a não ser ele mesmo, o psicanalista parisiense afirma que, ao encontrar-
se com essa lei, o sujeito não se encontra com outro fenômeno senão com algo que já é
percebido e formulado, que se faz como uma voz na consciência do sujeito9 e, paradoxalmente,
quando articulado a uma máxima universal, propõe a ordem de uma razão prática.
Dessa forma, dor e humilhação (KANT, 2016, p. 117)10 são os sentimentos que existem
na lacuna entre a lei formal e os impulsos patológicos experimentados pelo sujeito, assim que
confrontado pela injunção do imperativo categórico. Isso porque a lei moral, como princípio de
determinação da vontade, por causar danos a todas as inclinações patológicas, produz o
sentimento de dor. Assim, a voz interior em que consiste a máxima kantiana faz exigências
impossíveis e sem concessões, culminando em o sujeito precisar lutar contra tudo aquilo que
orienta o princípio do prazer que, por sua vez, encontra-se no campo das patologias. Desse
modo, o ser humano só alcança o bem enquanto das Gute, através de uma luta consigo mesmo,
através da autoimposição de um regime disciplinar ininterrupto, de maneira que tem de
sacrificar seu amor próprio e a procura pelo seu bem-estar.

9
É valido salientar, assim como faz Zupančič (1998, pp. 49-51), que a máxima moral de Kant é algo
ultimamente subjetivo, isto é, não existe em nenhum lugar fora do sujeito. Pode-se entender que isso acontece
por conta da elevação da lei ao status de seu próprio objeto, de forma que o imperativo categórico não tem
como objetivo dizer ao indivíduo qual é o seu dever, mas apenas orientá-lo a desempenhar esse dever. Isso
implica em a própria característica da lei moral kantiana ser vazia de conteúdo e vinculada à forma, fazendo
com que seja possível ao sujeito subvertê-la e utilizá-la como um escudo contra a ação moral, isto é, o sujeito
pode utilizar-se da inflexibilidade de lei, tal como exposta no Suposto direito de mentir por razões altruístas,
para fazer o mal ao próximo, ainda que dentro da norma da lei.
10
Assim, Lacan (2008, p. 100) pontua que Kant tem a mesma opinião de Sade, isto é, para que se pratique a
lei moral com excelência, em ambos os casos, deve-se fazê-lo através da dor, ainda que para Kant seja uma
dor auto infligida e para Sade seja decorrente do extremo prazer vivenciado pelo outro, como será visto a
seguir.

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Nesse ponto, faz-se pertinente para Lacan incluir no tabuleiro a máxima sadeana.
Contudo, como pontua Safatle (2003, p. 217), Lacan não o faz para empregar ou defender uma
dignidade moral na proposta de Sade, mas sim para demonstrar como a lei moral era incapaz
de anular o discurso perverso. Isso porque a máxima sadeana, que se expressa como “tenho o
direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei esse direito, sem que
nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar”11,
funciona do mesmo modo que a kantiana, ou seja, busca um formalismo universal em
detrimento das inclinações patológicos e particulares, já que, o resultado de tal máxima, não
corresponde à satisfação de desejos imediatos, mas sim ao excesso que está para além do
princípio do prazer. Em outras palavras, é um gozo que excede o simples bem-estar particular.
Isso porque o gozo aqui em questão é o jouissance lacaniano, um dos termos mais importantes
introduzidos por Lacan. Sua tradução significa “gozo”, entretanto não se deve reduzir o termo
a sua simples tradução. De acordo com Stavrakakis (2007, p. 71), esse termo foi inicialmente
relacionado aos prazeres da masturbação e ao orgasmo, porém, mais perto de alcançar seu lugar
definitivo na teoria lacaniana, o jouissance é tido como oposto ao prazer. Agora, tal conceito é
postulado como a parte do real que é limitada pela introdução do princípio do prazer, de forma
que está localizado para além do prazer. Isso faz com que ele apenas seja experimentado por
intermédio do sofrimento, ganhando um status de um gozo doloroso que cada indivíduo extrai
de seu sintoma, já que, esse gozar a partir do sintoma, está além do prazer, que é considerado
uma satisfação legitima, enquanto o desejo, que é moldado pelo princípio do prazer, está
articulado à busca desse jouissance impossível, porque refere-se ao desejo real e efetivo, além
daquele que é permitido e simbolizado. No contexto do sétimo seminário, o jouissance não
atinge sua relação com o sintoma, mas ainda sim faz referência ao real, porém, através da falta
e do das Ding12 – o objeto impossível a partir do qual se articula o desejo do sujeito.
Em vista disto, a experiência sadeana é modificada em relação à kantiana a partir da
noção de gozo, pois, segundo Lacan (1998, p. 783), “[...] ela só projeta monopolizar uma
vontade ao já havê-la atravessado para instalar-se no mais íntimo do sujeito que ele [gozo]
provoca mais além, ao atingir seu pudor.” Ele faz tal afirmação, ao articular sobre a dor que, no
projeto kantiano, encontra-se entre as conotações da experiência moral, enquanto na

11
É importante ressaltar que, a máxima sadeana, como é exposta por Lacan (1998, p. 780), não é encontrada
na obra A Filosofia na Alcova (2008). Ainda que o sentido dessa máxima vá de encontro com aquilo que é
exposto na obra de Sade, é importante sublinhar que se trata de uma citação de cabeça, ou seja, a máxima
sadeana, na verdade, foi criada por Lacan.
12
O das Ding é, em Lacan, a coisa freudiana, o desejo fundamental, e, por isso, segundo ele (LACAN, 2008,
p. 85), algo que não pode ser satisfeito, pois é o fim último, e satisfazê-lo representaria o fim de um mundo
inteiro que se desenvolve a partir da demanda, que é a estrutura mais profunda do inconsciente.

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experiência sadeana, por outro lado, é abordada a partir do desprezo. Isso significa que, mesmo
que alguém se lamente por ter sua perna quebrada pelo outro que usufrui de seu corpo, por
exemplo, o gozo de quebrar a perna não poderá ser reduzido à miséria de ser transformado em
horror, de forma que se constitui o desprezo na perspectiva sadeana. Além disso, como o pudor
é algo que surge somente entre dois indivíduos, a violação do pudor de um pelo outro, produz
a asserção do lugar do Outro no sujeito, de forma que o gozo se encontra preso ao Outro. Por
conta disso, a máxima sadeana, diferentemente do imperativo categórico, é expressa, não com
algo já significante, mas sim a partir do Outro enquanto sujeito da enunciação, o que leva Lacan
(1998, p. 782) a afirmar que ela é mais honesta que o recurso da voz interior, uma vez que ela
escancara a fenda na constituição do sujeito, que é comumente encoberta pela tradição
filosófica13, de forma a externalizar a voz interior da moral kantiana.
A partir disso, Lacan identifica a relação entre a lei moral e o gozo, que é sustentada
pela fantasia ($◊a). Essa relação faz referência ao das Wohl, já que, para o psicanalista, a
universalidade da lei moral, proposta por Kant, longe de frear o gozo e afastar-se das inclinações
patológicas, serve de pressuposto para elas. Acontece que, para ele (LACAN, 1998, p. 785), o
prazer, que é o objetivo da máxima sadeana, é nada mais que um cúmplice precário da razão
prática de Kant, que estaria fora do jogo caso não intervisse através da lei moral para sustentá-
lo, a partir da discórdia com as inclinações patológicos implicada pela própria forma da lei
moral. Isso só é possível por conta da fantasia, que torna o prazer apropriado ao desejo, uma
vez que é ela que situa o desejo em seu lugar, de forma que possibilita a simbolização do desejo.
Ora, a fantasia é o modo segundo o qual se efetua o relacionamento entre o desejo e o objeto e,
mais precisamente, o lugar de constituição do objeto. Isso quer dizer que o objeto se constitui
na fantasia a partir do encontro com o desejo do Outro, no qual o sujeito coloca-se como um
objeto a parte de si mesmo, na ânsia de ter importância para o Outro, de maneira que, embora
não haja uma separação de fato, o sujeito vive uma experiência de separação em si. Todavia, o
desejo do sujeito continua progredindo em direção ao Outro e choca-se com a falta, uma vez
que a plenitude que o sujeito enxergava no Outro é da ordem do imaginário. Entretanto,
diferentemente de outras relações imaginárias, essa constrói algo que é flexível em relação ao
outro, isto é, o que o sujeito reflete para o outro que olha é ele mesmo enquanto falante. Essa

13
É interessante notar que, já no início do Kant com Sade (1998, p. 776), Lacan, mesmo ao negar a obra de
Sade como predecessora da de Freud, argumento que a obra sadeana foi responsável por um aplanamento que,
após cem anos, tornou viável que Freud enunciasse seu princípio do prazer sem se preocupar em demarcar o
que o distingue em sua função na ética tradicional e sem o risco que caísse num eco de preconceito de dois
milênios da tradição ocidental. Isso foi imprescindível, pois a descoberta da psicanálise aponta para uma
ruptura tanto no sujeito quanto em relação à filosofia moderna, de forma que Sade adianta aspectos da
psicanálise de Freud e do sujeito descentrado de Lacan.

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instância que aparece para o outro pode ser entendida, na literatura lacaniana, como o $, o
sujeito barrado pelo significante – porque ao falar, o sujeito se coloca no meio da cadeia
significante. Já o outro, nesse caso, pode ser entendido como a, já que é um outro imaginário.
Esse a é definido, em primeiro lugar, como um suporte que o sujeito se dá quando fraqueja em
sua certeza e em sua designação enquanto sujeito. Dessa forma, a constituição da defesa do
sujeito frente ao desamparo, configura-se como $◊a (o sujeito barrado pelo significante frente
ao outro imaginário) que é, dentro da álgebra lacaniana, a fórmula da fantasia. Nas palavras de
Lacan:

Essa fantasia tem uma estrutura que reencontraremos mais adiante e na qual o
objeto é apenas um dos termos onde pode extinguir-se a busca que ela
representa. Quando o gozo se petrifica aí, ele se torna o fetiche negro em que
se reconhece a forma efetivamente oferecida de um certo tempo e lugar, ainda
nos dias atuais, para que nela se adore seu deus. (LACAN, 1998, p. 784)

Dessa maneira, é a fantasia o que possibilita o desejo, porque ela se coloca no espaço
postulado por Kant, entre as inclinações patológicas e a forma da lei, de modo que se identifica
com a dor e a humilhação e, a partir desse movimento, ela encontra o lugar para o prazer e o
gozo no edifício teórico de Kant. É dessa forma que, na perspectiva lacaniana, a fantasia torna
a dor e a humilhação algo necessário e incontornável para a obtenção do ato moral. Já a respeito
de Sade, no mesmo sentido, a fantasia faz com que o sujeito encontre a beleza e o bem no corpo
da vítima torturada, justamente por ela ser o pressuposto para o desejo e poder situá-lo onde for
necessário. A partir dessa identificação, tanto com a dor da vítima quanto com a humilhação
autoimposta, a cumplicidade entre Kant e Sade encontra seu ápice. Isso porque o sujeito se
encontra a partir do imperativo categórico, ou seja, a partir da voz em sua consciência. Com
isso, a fantasia consegue situar o desejo, da mesma maneira que o torturador frente à sua vítima.
Em outras palavras, a lei moral mascara, por meio da fantasia, o objeto de desejo pertencente
ao campo do prazer, tornando possível uma identificação entre o universal e o particular, entre
o das Gute e o das Wohl, da mesma maneira que o desejo o faz no campo da lei moral. Por esse
viés, a fantasia possibilita o desejo que, por sua vez, possibilita a lei moral. Isso culmina em
uma espécie de círculo vicioso, no qual sempre que se tem um Kant, haverá também um Sade,
isto é, sempre que houver a lei moral, haverá também o seu duplo obsceno, que escancara a
verdade que a lei recalca, bem como o gozo excessivo, que também serve como um fundamento
para a lei moral – sempre que houver lei, haverá também uma vítima torturada.
Isso se torna claro a partir do exemplo que Lacan (1998, pp. 793-794) subverte de
Kant (2016, pp. 50-51): alguém tem a oportunidade de ter relações sexuais com a pessoa

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que deseja, entretanto, se isso fizer, será enforcado. Para o filósofo alemão, não seria difícil
saber que qualquer um escolheria não manter relações se isso custasse a própria vida. Contudo,
o psicanalista parisiense afirma que “[...] nenhuma ocasião precipita alguns com mais certeza
para seu objetivo que vê-lo se oferecer ao desafio, ou mesmo ao ultraje do cadafalso.” Isso
porque a forca não representa a lei, mas sim o desejo, de forma que, sem a forca, a vida sob a
lei não teria sentido na visão de Lacan, de modo que, a lei e o desejo recalcado, confundem-se
em Kant, e isso só se tornou visível a partir dos escritos de Sade. De acordo com Safatle (2003,
p. 197), esse é um momento importante em Lacan, no qual, ao invés de opor-se, a lei poderia
dar uma determinação objetiva ao desejo, isto é, a lei estaria a serviço do desejo, pois o sujeito
só poderia gozar da lei se o gozo fosse recusado, para que, então, fosse alcançado na escala
invertida da lei do desejo. Assim, para além do prazer proporcionado pelo desejo alienado em
objetos empíricos e narcísicos através do imaginário, haveria também um gozo proporcionado
pelo reconhecimento do desejo na dimensão simbólica da lei. Portanto, é valido entender que a
proposta do psicanalista não é defender que todo o ato é derivado de algo patológico, de forma
a impossibilitar a ética kantiana, mas sim apontar para uma inversão desse argumento, ao propor
que a própria lei moral molda os desejos, fazendo-os existirem em função do gozo excessivo,
que só a transgressão da lei pode proporcionar.
Ainda segundo Safatle (2003, p. 205), “tanto Kant quanto Lacan procuram afirmar a
dimensão da lei contra o primado dos objetos empíricos na determinação da vontade e através
de um rebaixamento sensível”. Em Kant, o esvaziamento da lei está relacionado à liberdade que
só é obtida a partir da não dependência da causalidade da natureza, de forma que obedece
somente às leis que o próprio sujeito postula, a partir de uma causalidade advinda de uma razão
autônoma. Por outro lado, a operação que Lacan tem em vista é a aproximação da vontade livre,
que é derivada da razão autônoma com um desejo puro, de forma que os dois dispositivos
indicam uma inadequação do sujeito ao prazer prometido pelos objetos empíricos e pelas
inclinações patológicas. De acordo com Žižek:

Em outras palavras, Lacan não tenta fazer o argumento “reducionista” usual


de que todo ato ético, por mais puro e desinteressado que possa parecer,
sempre baseia-se em alguma motivação “patológica” (o interesse de longo
prazo do agente, a admiração de seus pares, até a satisfação "negativa"
proporcionada pelo sofrimento e extorsão frequentemente exigida por atos
éticos); o foco do interesse de Lacan reside antes na inversão paradoxal, por
meio da qual o próprio desejo (ou seja, agindo sobre o desejo de alguém, sem
comprometê-lo) não pode mais se fundamentar em interesses ou motivações
“patológicas” e, portanto, atende aos critérios do ato ético kantiano, de modo

50
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que “seguir o desejo de alguém” se sobreponha a “cumprir o dever”.14


(ŽIŽEK, 1998)

Além disso, é a partir do papel central da dor e da humilhação na experiência ética do


sujeito, que Lacan (1998, p. 781) introduz novamente a diferença entre o sujeito da enunciação
e do enunciado. Segundo Žižek (1998), Kant não aborda a questão de quem é o sujeito da
enunciação da lei moral, porque, para ele, essa questão não tem sentido, uma vez que a lei moral
é um comando impessoal auto postulado. Isto é, a partir da forma pura da lei, que também é seu
objeto, a lei moral é assumida autonomamente pelo próprio sujeito, de modo que não existe um
lugar do qual ele é enviado ou postulado. Isso porque, em Kant, o sujeito da enunciação da lei
moral não existe, o que faz com que o psicanalista francês utilize a obra de Sade justamente
para tornar visível aquilo que a teoria kantiana reprime, de modo que o sujeito da enunciação
da lei moral toma seu lugar na figura do carrasco torturador, que se utiliza do corpo da vítima
a bel-prazer.
Desta maneira, a noção de equilíbrio, que a lei moral universal kantiana empregaria não
somente ao prazer, mas também à dor e à felicidade, à pressão da miséria e até ao amor à vida
e em todo o patológico, não tem o mesmo sucesso com o desejo. A partir disso, esvai-se a
dualidade existente entre o que era considerado o animal humano – que se orientava pelos
impulsos patológicos – e o sujeito transcendental – que seria racional e regido apenas pela razão
universal. Com a interpretação lacaniana, as duas partes dessa dualidade não estão mais em
constante luta, mas tanto a lei moral quanto o princípio do prazer são um único princípio, mas
divididos por uma lacuna irredutível. Em outras palavras, se, para Kant, a condição para a moral
universal é numênica e a condição prática para tal moral reside no desvio pulsional que lhe
serve de suporte, isto é, na autoimposição de disciplina, ao invés de proporcionar um
autocontrole para o sujeito, o imperativo categórico proporciona o mantimento da existência da
compulsão à repetição. Dessa forma, o sujeito transcendental se configura como “[...] o
escândalo ontológico”, ou seja, nem fenômeno nem númeno, mas um excesso que se destaca
da ‘grande cadeia do ser’, um buraco, uma lacuna na ordem da realidade e, simultaneamente, o

14
In other words, Lacan does not try to make the usual "reductionist" point that every ethical act, as pure and
disinterested as it may appear, is always grounded in some "pathological" motivation (the agent's own long-
term interest, the admiration of his peers, up to the "negative" satisfaction provided by the suffering and
extortion often demanded by ethical acts); the focus of Lacan's interest rather resides in the paradoxical
reversal by means of which desire itself (i.e. acting upon one's desire, not compromising it) can no longer be
grounded in any "pathological" interests or motivations and thus meets the criteria of the Kantian ethical act,
so that "following one's desire" overlaps with "doing one's duty." As traduções não referenciadas foram feitas
pelos autores desse artigo.

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agente cuja atividade "espontânea" constitui a ordem da realidade (fenomenal)” (ŽIŽEK,


1998a, p. 5):15.
Sendo assim, o que Lacan identifica no sistema moral kantiano, não é somente a
compulsão à repetição, mas sim o que ele omite, o recalque dessa característica. Nesse sentido,
Sade escancara aquilo que Kant recalca, uma vez que o filósofo francês apresenta o que o
conteúdo edificante da lei moral tem de oculto e obsceno, pois, ao propor um universo ético
baseado no excesso de práticas sexuais desprovidas de significado, Sade simula o modus
operandi da moral kantiana, que é precisamente o agir baseado em uma lei formal vazia de
conteúdo, em um imperativo categórico que não delimita um objetivo a não ser ele próprio e
culmina em uma série de práticas automatizadas sem significado. Dessa forma, fica explícito o
porquê de Lacan identificar uma dupla entre Kant e Sade. Do mesmo modo, Fonseca e Rech
(2017, p. 173) pontuam: enquanto Kant proporciona a bela ideia do dever ético incondicional,
Sade proporciona a ideia do corpo torturado como suporte material dessa ideia. Por conseguinte,
Sade revela que a voz da consciência, que expressa a lei moral, não é clara e distinta como
acreditara Kant, mas é uma voz estranha e dissonante, que faz com que o sujeito enfrente um
estranhamento consigo mesmo, de maneira que o mérito do filósofo, que é destacado por Lacan,
é o de revelar mais uma cisão no sujeito que parte da voz que exprime a lei moral, que divide o
sujeito entre o gozo, que se encontra para além do princípio do prazer – jouissance, o prazer
excessivo que é também o núcleo real da lei moral –, e o desejo, que encontra seu lugar através
da fantasia possibilitada pela formalidade da lei.

2 ALÉM DE KANT COM SADE

Contudo, o próprio Lacan, no seminário a respeito da ética da psicanálise (2008), mina


a tese de que o círculo vicioso, que se instaura entre Kant e Sade, seria intransponível, bem
como a tentativa de vincular a ética ao afastamento dos objetos empíricos, ao articular a ética
da psicanálise a partir do ato de Antígona. Ela resolve não obedecer a um comando ou a um
dever que acarretasse na humilhação, que ocupa posição central tanto no sistema sadeano
quanto no kantiano. Ao invés disso, ela assumiu a responsabilidade pelo próprio desejo, de
modo a quebrar o círculo vicioso em questão, de maneira que permite ao psicanalista elaborar

15
[…] the "ontological scandal," neither phenomenal nor noumenal, but an excess that sticks out from the
"great chain of being," a hole, a gap in the order of reality, and, simultaneously, the agent whose "spontaneous"
activity constitutes the order of (phenomenal) reality.

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a necessidade da “crítica do desejo puro”16. Isso quer dizer que, de acordo com o psicanalista
parisiense (LACAN, 2008, p. 294) “Antígona nos faz, com efeito, ver o ponto de vista que
define o desejo”, justamente porque a tragédia grega encontra-se na raiz de nossa experiência.
De acordo com Lacan, isso faz com que, na tragédia, seja possível evocar uma zona na qual o
desejo se reflete. Isso acontece por conta de todo o carácter material da tragédia, de como ela
era encenada, visando gerar e despertar emoções no público. Em outras palavras, a capacidade
de comover a quem assistia à peça ocupava o espaço central na tragédia grega, de forma que
seu conteúdo ficava em segundo plano, fazendo com que o coro, que era a parte principal da
tragédia grega, pudesse despertar o que havia de mais humano no público.
A peça Antígona de Sófocles (2009), que faz parte da chamada Trilogia Tebana ao lado
de Édipo Rei e Édipo em Colono, é centrada na figura de Antígona, filha de Jocasta e Édipo,
que tem por irmãos Etéocles e Polinices, além de Ismênia por irmã. Como Édipo escolheu não
assumir o reinado em Tebas, por ter descoberto que sua mulher, Jocasta, era também sua mãe,
Etéocles e Polinices fizeram um acordo, segundo o qual consistia em revezar o comando da
cidade por um ano cada, começando por Etéocles. Entretanto, Polinices não cumpriu o acordo
e tentou tomar o poder à força antes do tempo previsto, de forma a iniciar uma disputa, em que
ambos acabaram mortos. Porém, antes dessa disputa, Polinices pediu à Antígona para que, em
caso de sua morte, conferisse-lhe sepultura, bem como rituais dignos e adequados. Como ambos
os sucessores de Édipo morreram, Creonte, irmão de Jocasta – portanto tio de Antígona –
assume o trono de Tebas. Seu primeiro ato como governante foi proibir o sepultamento de
Polinices, já que ele teria invadido e traído a cidade, de forma que quem se encontrasse em luto
por ele seria condenado à morte. Já Etéocles, por sua vez, recebeu um funeral com horarias por
ter, na visão de Creonte, defendido a cidade. Assim, Antígona decide honrar o pedido de seu
irmão, de forma que a peça se passa em torno dessa decisão. Creonte, no entanto, exige que
deixem o corpo de Polinices exposto, de maneira a permitir que cães e pássaros fossem devorá-
lo. Antígona, então, cobre o corpo de seu irmão com terra seca, mas os guardas da cidade, ao
encontra-lo coberto, tiram a terra que o protegia e o despem, além disso, comunicam o ocorrido
a Creonte. Com isso, Antígona retorna para cobrir o corpo do irmão, mas é detida pelos guardas
e levada até Creonte que, por sua vez, ordena que ela seja enterrada viva em uma caverna.
Contudo, seu noivo, Hêmon, filho de Creonte, tenta fazer com que seu pai retire a ordem de
matar sua noiva, do mesmo modo que fez Tirésias – uma espécie de oráculo de Tebas – ao

16
Entende-se o desejo puro como aquele que se direciona para longe da lei e do simbólico, aproximando-se
da efetividade, de forma que se coloca junto ao significante enquanto corte, enquanto das Ding, isto é, da
coisa primordial que é causa de todo desejo.

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profetizar que a morte de Antígona traria morte também à família de Creonte. Após a profecia,
Creonte decide recuar em sua decisão, mas já era tarde. Ao procurar por Antígona, ele a
encontra enforcada em seu próprio lenço, o que fez com que seu filho Hêmon, depois de tentar
em vão matar seu próprio pai, suicidasse-se devido ao profundo desespero. Eurídice, esposa de
Creonte, ao saber da morte de seu filho, também se mata, cumprindo a profecia de Tirésias.
Para Lacan (2008, p. 305), Creonte representa a estrutura de uma ética que é voltada
para o Bem. Dessa maneira, representa também a linguagem kantiana, isto é, uma ética baseada
na pura forma da lei e, por isso, sem conteúdo. Com efeito, a proibição do sepultamento de
Polinices é fundamentada na ideia segundo a qual, aqueles que traem ou atacam a pátria, não
merecem as mesmas honrarias daqueles que a defendem. Em outras palavras, de um ponto de
vista kantiano, trata-se de uma máxima que pode se tornar universal através da razão, de forma
que a tragédia de Antígona já antecipava a posição expressa por Lacan e também por Adorno,
de que a busca do Bem, através de uma legalidade formal, faz com que surja também um
excesso com consequências potencialmente fatais. De certa maneira, é disso que trata Adorno
(2001, pp. 158-167) ao abordar a peça Wild Duck, com a ressalva de que o autor alemão aborda
a peça ao tratar do problema do imperativo categórico kantiano, bem como da relação entre o
universal e o particular. Ele utiliza a peça de Ibsen para exemplificar sua posição a respeito dos
possíveis desdobramentos de tais questões no campo da moralidade, bem como expor a
estrutura e as implicações práticas de uma moral que, além de ter a si própria como fim, baseia-
se unicamente em preceitos abstratos. Desse modo, assim como Creonte em Antígona, a ética
em questão nessa peça não visa o bem para todos, mas sim seguir uma norma ou preceito, que
podem ser entendidos como a figura do certo em detrimento do errado, do Bem contrapondo-
se ao Mal.
De acordo com Adorno (2001, p. 158), a peça Wild Duck mostra como alguém pode ser
imoral apenas por seguir as leis morais e os mandamentos éticos em sua pureza, ignorando a
materialidade do mundo. Seus personagens centrais, Werle e Ekdal, são sócios nos negócios e
outrora estiveram envolvidos em transações financeiras ilícitas, de modo que tais crimes vêm à
tona. Enquanto Werle escapa e se torna um homem de grande riqueza, seu sócio é preso.
Contudo, tais eventos ocorrem antes dos acontecimentos da peça, de forma que a trama gira em
torno do velho Ekdal, uma figura arruinada, que busca consolo no alcoolismo. Seu filho,
Hjalmar, personagem principal, é um fotógrafo que leva uma vida modesta, bancada pelo velho
Werle. Além disso, Hjalmar casa-se com a amante descartada pelo ex-sócio de seu pai, que
estava grávida dele, de forma que acredita que a filha de Werle, Hewdig, é, na verdade, sua.
Contudo, o velho Werle tem outro filho, Gregers, que representa, segundo Adorno, o

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imperativo categórico, já que, por saber da verdade que seu pai esconde, não suporta o fato da
vida confortável que seu amigo, Hjalmar, leva, estar baseada em uma mentira, o que faz com
que ele sinta o dever moral de rebelar-se contra ela. O ponto chave, destacado pelo filósofo
alemão, é que Gregers, baseado apenas no que pode ser chamado de respeito por princípios
morais abstratos (ADORNO, 2001, p. 158), rejeita uma parceria com seu pai e prefere viver na
pobreza, bem como contar à família de seu amigo o segredo que a constitui. Como
consequência, Hjalmar passa a tratar sua filha como uma bastarda, como se não fosse sua, de
forma que ela se suicida.
O que Adorno visa extrair ao abordar tal peça, assim como Lacan em Kant com Sade, é
“[...] demonstrar que o conflito entre uma ética de convicção e uma ética de responsabilidade
pode ser insolúvel”17 (ADORNO, 2001, p. 160). Sendo assim, o ato de Gregers, além de ser
constituída da mesma maneira que foi o ato de Creonte, isto é, com a estrutura formal vazia do
imperativo categórico, tem o mesmo desfecho, a morte de terceiros. Entretanto, Antígona tem
uma postura totalmente diferente da postura de Hewdig, ponto esse que possibilita a saída do
ciclo indicado por Lacan entre Kant e Sade. A diferença constitui-se na característica de
Antígona ser uma vítima terrivelmente voluntária, de forma que ela não representa, em
linguagem lacaniana, nem a formalidade moral kantiana nem o excesso de Sade nem a
moralidade abstrata ou a de responsabilidade, como coloca Adorno. Isso porque ela se posiciona
naquilo que Lacan (2008, p. 308) chama de limite entre a primeira e a segunda morte18, um
limite entre o que seria a morte no nível do simbólico e aquela no nível material e biológica, na
qual o sentido ameaça se tornar o não-sentido. Dessa maneira, na ânsia de evitar a segunda
morte de seu irmão, na tentativa de humanizá-lo e eternizá-lo, Antígona está disposta a
sacrificar a sua vida. Assim, a posição19 em que ela se coloca, no limite entre a primeira e a
segunda morte, permite que ela possa iniciar um combate entre a morte e a vida, de forma que
a sua morte certa começa a confundir-se com a possibilidade de vida de Polinices, o que faz
com que a morte invada o domínio da vida e a vida invada o domínio da morte (LACAN, 2008,
p. 295). É dessa maneira que Antígona luta pela vida a partir da morte.

17
[…] demonstrates that the conflict between an ethics of conviction and an ethics of responsibility can be
insoluble.
18
Assim como afirma Bonfim (2016, p. 133), a distinção entre primeira e segunda morte em Lacan é baseada
em Sade, para quem a primeira morte seria a morte biológica e a segunda seria o apagamento do ser. Contudo,
para Lacan, a segunda morte faz referência ao sujeito enquanto barrado pelo significante, uma morte simbólica
que surge da castração que constitui o sujeito na linguagem.
19
É por conta dessa posição que, para Lacan, de acordo com Haute (2007, p. 292), Antígona é direcionada ao
das Ding, que não pode ser articulado na ordem do significante – já que representa o desejo primordial em
sua relação com a ordem do real, o que contribui para a característica de bagunçar a ordem do mundo que
estamos familiarizados, como veremos a seguir.

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Contudo, por estar no limite, isto é, onde não se é nem morto nem vivo, no ponto onde
se articula o significante, que não é nem simbólico nem real – uma vez que o limite indica a
posição entre a morte biológica, no real, e a simbólica, no campo da linguagem – a posição de
Antígona não deve ser entendida como a travessia da realidade rumo ao real 20, como uma
posição fora do simbólico, mas sim na posição junto ao significante em seu estado puro,
enquanto corte.21 Isso porque o significante introduz as ordens da verdade e do acontecimento
no mundo. Essas ordens podem ser entendidas como a linguagem e a realidade do lado da
verdade, uma vez que ela só existe enquanto linguagem por intermédio do simbólico, e o real e
o desejo do lado do acontecimento, já que estes últimos escapam à simbolização. Ainda que o
significante institua a diferença entre a verdade e o acontecimento, ou em outros termos, entre
a realidade e o real, ele não possibilita o acesso e a conexão entre essas ordens. Isso faz com
que não exista nenhum acontecimento efetivo para o sujeito, já que, tudo aquilo que é
experienciado pelo ser humano, passa pelo crivo do significante, que se situa na ordem do
simbólico. O que está fora do simbólico – e, por conta disso, inacessível – é o real e o desejo22,
de modo que o acontecimento efetivo seria apreensível somente através do ponto de vista do
desejo. Por isso, a posição de Antígona no limite entre a primeira e a segunda morte pode ser
entendida como um limite entre o simbólico e o real que, além de aproximar-se do significante
enquanto corte, permite acessar aquilo que define o desejo, mesmo que a atitude dela aponte
para não ceder ao seu desejo (no caso um desejo pela vida), mas sim permanecer inflexível,
ainda que isso cause sua morte.
Sendo assim, Antígona não comete o mesmo erro que Creonte. Tal erro constitui-se na
busca pelo Bem no sentido kantiano, isto é, pelo bem que a razão encontra na forma pura da

20
Na teoria lacaniana, é o real que faz referência à efetividade, àquilo que acontece e por isso poderia ser
apreendido objetivamente. Já a realidade, por outro lado, está relacionada à realidade psíquica dos indivíduos,
portanto, a algo subjetivo. Dito isto, mesmo que o real, que é o representante da objetividade, não possa ser
simbolizado e, consequentemente, não possa ser apreendido pelo sujeito, não significa que, a realidade que se
estrutura através do simbólico e da fantasia, tenha um caráter exclusivamente subjetivo.
21
Expresso na álgebra lacaniana como $ (que também pode ser lido como o sujeito barrado pelo significante),
o corte significante representa a divisão enfrentada pelo sujeito entre significado e significante. Isso quer
dizer que, em Lacan, o significado desaparece porque não está associado ao conceito, ou seja, não é possível
a união entre signo e significante, que implica na impossibilidade do significado, de forma que o significado
só é concebido como pertencente à ordem do real. É por isso que a barra não marca uma ligação íntima entre
o significante e o significado, porque o significante é anterior e autônomo em relação ao significado.
22
O real torna-se impossível somente se comparado a uma noção de realidade. Isso porque o real de Lacan
segue as ordens da libido, que aparece na fronteira entre o imaginário e o real. O que separa a experiência
humana do real enquanto efetividade, não é nem a teia do imaginário, que distorce aquilo que percebemos, de
modo a adequar-se ao desejo, nem a muralha da linguagem, que é a rede simbólica sob a qual nos relacionamos
com a realidade enquanto realidade psíquica. Para Lacan, o que nos separa do real é a característica de ele ser
estritamente inscrito sob o cerne da sexualidade humana e o do desejo. É por isso que Žižek (2010, p. 73)
explica que o que experimentamos como realidade, em termos lacanianos, é estruturado pela fantasia que nos
protege de sermos diretamente esmagados pelo real cru, de forma que a própria realidade pode ser encarada
como uma fuga de um encontro com o real enquanto realidade efetiva.

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lei, que acaba por impossibilitar o bem de alcançar a todos, já que não poderia, a partir da
abstração da legalidade, honrar da mesma forma aquele que defende e aquele que trai a pátria.
Como Haute argumenta (2007, p. 302), tanto Creonte quanto Kant são os representantes de uma
ética não essencialista, de modo que o Bem moral não se relaciona com os propósitos ou
sentimentos de alguém, mas única e exclusivamente com a demanda por universalidade que se
alcança através da razão em detrimento dos sentidos, tendências e tradições em que se está
inserido. Dessa maneira, a ética kantiana, na figura de Creonte, acaba por separar aqueles que
seguem as leis e pertencem ao corpo social e por isso merecem o bem, daqueles que são
excluído e não gozam do bem que existe no interior da legalidade. Em contrapartida, Antígona
identifica sua lei a nível terreno e material, porém particular. Isso permite que Lacan postule à
psicanálise uma ética descompromissada com a lei, pois não se interessa por um conjunto de
regras no campo do ideal, com um bem universal ou uma harmonia entre o sujeito e a sociedade
a ser alcançado. Isso porque o limite não faz referência a leis propriamente ditas, mas sim a
certa legalidade23 material, que não tem fundamento na razão, tampouco em uma busca
norteada pelo bem ou pelo mal, mas em algo que não está inscrito na cadeia significante, pois
está além dela, em leis que encontram suporte no desejo e na efetividade.
Sendo assim, a partir do exemplo de Antígona postulado por Lacan, a psicanálise
lacaniana não se coloca nem ao lado da lei universal nem ao lado da particularidade absoluta,
pois, mesmo que essa ética surja a partir do particular, ainda existe uma lei a ser seguida. A
partir disso, implica-se um horizonte fora da determinação causada pela relação estrutural
existente a partir da linguagem, além da exposição das consequências intransponíveis desse
horizonte. Isso é observado quando Antígona justifica-se diante de Creonte a respeito do que
fez, afirmando que é assim porque é assim (LACAN, 2008, p. 308). Através dessa frase, ela
exprime aquilo que Bonfim (2016, p. 144) coloca como “[...] saber não sabido, o impossível de
saber, mas estruturante – o inconsciente, que leva em consideração a causa de seu desejo.” Esse
saber não sabido está para além da linguagem, mas pode ser expresso como “mesmo que meu
irmão seja um traidor sob as leis de deus ou da cidade, ele ainda é meu irmão, ele ainda é o que

23
De acordo com Bonfim (2016, p. 130), no contexto grego antigo, os rituais fúnebres tinham valor de uma
norma divina, pois tinham o valor importante de assegurar ao defunto a reverência da legião de mortos na
vida após a morte. Assim, Antígona tem tanto um valor material, pois tem como cerne a vida e o desejo,
quanto um valor metafísico, a partir de sua relação com as normas divinas. Desse modo, segundo Furtado
(2013, p. 33), Antígona utiliza-se das leis dos deuses para contrapor-se às leis da cidade, já que o próprio
Lacan enfatiza que ela ainda carece de certa simbolização. Assim, as leis dos deuses podem ser entendidas,
de forma paradoxal, como aquelas que servem como afirmação da materialidade, da vida e do corpo, mesmo
que sejam, de certa maneira, metafísicas, porque ao contrapor Creonte com as leis dos deuses, que seriam
mais antigas, ela contrapõe na verdade a pura forma da lei com toda efetividade e vida enquanto movimento
no real.

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é”, ou seja, independentemente de sua identidade, que se articula na linguagem e no simbólico,


ele deve ser enterrado dignamente e, frente a isso, a formalidade da lei perde seu valor. É a
partir da posição de Antígona, ou seja, no limite, que implica a efetivação do desejo puro, a
materialidade é afirmada em detrimento da abstração moral, uma vez que a ética que surge
dessa posição busca afirmar o desejo24, a fim de que o sujeito possa conhecê-lo e não insista
mais apenas em algo recalcado. A partir dessa materialidade, aparece também a relação entre
desejo e destrutividade, entre desejo puro e morte. É por isso que Lacan afirma que:

Antígona apresenta-se como autônomos, pura e simples relação do ser


humano com aquilo que ocorre de ele ser miraculosamente portador, ou seja,
do corte significante, que lhe confere o poder intransponível de ser o que é,
contra tudo e todos. (LACAN, 2008, p. 333)

Assim, tem-se uma alternativa ao problema colocado por Adorno, uma articulação entre
o universal e o particular, entre a teoria e a prática. Entretanto, além de ser o meio pelo qual
Lacan propõe sua ética, de modo a bagunçar a harmonia do universo tradicional, como
argumenta Žižek (2016, p. XXI), Antígona pode ser entendida também como uma heroína
emancipatória, que fala por aqueles que não têm espaço no corpo simbólico da sociedade. O
ato desafiador de Antígona – que a fez ser expulsa da cidade e condenada à morte, de forma
que ela mesma se torna uma excluída – expressa certa insistência excessiva que, da mesma
maneira que sua ética pessoal imparável, que a coloca no limite, causa distúrbio na ordem civil.
Desse modo, ao mesmo tempo que tal atitude e ética representam a solidariedade e a ordem
humana por trás da legalidade, do ponto de vista da lei que rege o corpo social, ela é tida como
uma abominação. Assim, Antígona é colocada em um paradoxo: ao mesmo tempo que ela
representa uma ética para aqueles que não são ouvidos por conta de, assim como ela, não
fazerem parte do corpo social, ela busca certa legalidade, de modo a lutar no mesmo campo da
pura forma da lei do corpo social que a exclui, mas que também é negado por ela.
Dessa forma, propomos entender o ato de Antígona como uma tentativa de negociar
com a barreira que separa os excluídos daqueles que constituem o corpo social, de maneira que
a lei e seus benefícios englobem a todos, sem exceção. Assim, ainda que aquilo que fale mais
alto em Antígona seja Sade, o excesso imparável que a leva à morte, também está presente

24
Vale ressaltar, uma ética fundada no desejo não deve ser confundida com aquela fundada no prazer, de
forma que a primeira não afirma que cada um deva buscar a satisfação de seu desejo particular, mas sim mudar
o ponto de vista da racionalidade para o desejo. Além disso, deve-se lembrar que em Lacan, o desejo é sempre
o do Outro, portanto sempre pensado a partir do simbólico, de forma que não há possibilidade de pensá-lo
apenas no nível individual.

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Kant, uma legalidade da qual não se pode escapar. Dessa maneira, o ato de Antígona subverte
o que é colocado por Adorno: ao invés de uma prática que precisa ser pensada pela teoria, ela
interfere na teoria por intermédio da prática, de uma prática sem linguagem, uma prática que
aponta para o inconsciente e o desejo. Cabe ressaltar, não existe reconciliação entre Antígona e
Creonte, entre legalidade e ética a favor daqueles que não fazem parte do corpo social, de forma
que, em nome dos excluídos, que – por serem excluídos – carecem de linguagem para uma
teoria, Antígona utiliza-se da única ferramenta que lhe resta, seu corpo e sua vida, como meio
de troca para o alargamento da lei e do corpo social. Desse modo, a morte de Antígona é a morte
de todos os que morrem e continuam a morrer sem voz em um corpo social, no qual a lei é mais
importante que a vida25.

3 CONCLUSÃO: O BRILHO DE ANTÍGONA

Por esse viés, a posição que Lacan encontra para Antígona, em meio a sua ética, é no
entre-dois, ou seja, no limite entre a morte biológica e a simbólica, entre a realidade e o real.
Essa posição também é o seu brilho, pois possibilita a ela ser o pivô no combate entre a
legalidade da lei e as vidas que tal legalidade subtrai. O fato de Antígona recusar e interferir na
ordem social, faz com que ela possa ser entendida como uma rebelde e uma mártir, de forma
que o limite, no qual ela é colocada, exista também entre o corpo social e tudo aquilo que está
fora dele, entre aquele que vive e aquele que se permite morrer, de maneira que a ética, por
detrás do ato de Antígona, possa ser entendida como uma ética que afirma a vida frente à
legalidade da lei. Sendo assim, a análise do ato de Antígona, feita através de uma perspectiva
ética, tem a capacidade de propor um ponto de virada para o problema ético da
contemporaneidade. Isso porque, em Antígona, tem-se uma ética da materialidade que parte do
desejo e afirma a dimensão efetiva e material do mundo como sua principal ferramenta. Dessa
maneira, ela é colocada entre a formalidade de uma lei abstrata e o excesso de uma prática sem
compromisso com a lei, como uma opção para o círculo vicioso encontrado em Kant e Sade.
Assim, o ato de Antígona tem a capacidade de atar um nó entre esses dois opostos, justamente

25
Entretanto, Haute (2007) afirma que Creonte, por perceber que havia errado e tentar recuar em suas decisões,
mesmo sem sucesso em evitar a morte de Antígona, recebe a dimensão humana que faltava a sua sobrinha.
Contudo, mesmo que ele reconheça suas falhas e tente retificá-las, ele acaba por retornar à ética da legalidade,
de modo a insistir na divisão entre os que merecem o bem proporcionado pela lei e os que não merecem.
Nesse sentido, o ato de Antígona é verdadeiramente radical, pois insiste não em uma ética de exclusão, mas
em uma de inclusão, o que entendemos como a dimensão humana em suas últimas consequências, dimensão
esta que falta àqueles que se submetem à pura forma da lei, sem se importar com os que não tem tal privilégio.

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porque ela não tem a formalidade da lei, mas sim da materialidade como ponto de partida, de
forma que, a partir desse ato, tem-se uma ética cujo objetivo é uma lei que tenha o compromisso
com a prática, e não uma prática que tenha de ser pensada por uma lei.
Além de combate, Antígona também é coragem. Coragem de assumir a responsabilidade
e de não ceder ao desejo26. Coragem necessária para que se possa combater a lei que exclui e
que causa sofrimento, de colocar-se no limite e enfrentar a morte, além de experimentar o desejo
até suas últimas consequências. A ética material, que emerge de Antígona, necessita de certa
inflexibilidade, de certa postura incansável, que se coloca para além da lei no nível sócio-
simbólico, a fim de contrapor-se a ele, não para constituir um espaço fora do simbólico, mas
para buscar uma ordem social que não deixe espaços vazios. Evidentemente, Antígona não
esgota a discussão a respeito da questão nevrálgica posta por Adorno a respeito da
impossibilidade de uma vida boa em uma ruim, mas acaba por apontar para uma saída prática
através do embate dialético entre a teoria e a prática moral cuja síntese entre as duas é a
centralidade do desejo no âmbito material.

26
O “agistes conforme o desejo que te habita?” de Lacan (2008, p. 367), seria a máxima da ética da psicanálise
que surge de Antígona. Isso porque, segundo Furtado (2013, p. 36), a ética postulada por Lacan é
obrigatoriamente ligada ao desejo, além de compatível à consciência e à responsabilidade pelas consequências
do desejo, bem como dos limites da condição humana, de forma que a psicanálise não deve cair no devaneio
burguês da tentativa de alcançar o bem, mas debruçar-se sobre a busca do desejo de quem o busca.

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REFERÊNCIAS

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

Recebido em:12/05/2021
Aprovado em: 14/06/2021
Publicado em: 15/07/2021

OS DESDOBRAMENTOS DO ENSINO DE LACAN NA FILOSOFIA POLÍTICA DE


SLAVOJ ŽIŽEK

THE RAMIFICATIONS OF LACAN’S TEACHING IN SLAVOJ ŽIŽEK’S


POLITICAL PHILOSOPHY

Pedro Henrique Marques Silva Mauad1


([email protected])

Resumo: O presente artigo pretende demonstrar as implicações políticas que Slavoj Žižek tira da
intersecção entre a filosofia de Hegel e a psicanálise de Lacan. Trata-se de entender como, através da
leitura que Žižek faz de Hegel com Lacan, torna-se possível pensar em uma filosofia política de esquerda
radical e também os contornos de uma clínica capaz de ir além das atualidades do poder. Em suma, trata-
se de pensar de uma perspectiva política emancipatória como a psicanálise de Lacan conjuntamente à
filosofia de Hegel, tal como proposto por Žižek, nos fornecem as condições de visualização de um novo
Significante-Mestre capaz de superar a ordem capitalista vigente.

Palavras-Chave: Psicanálise. Filosofia política. Significante-Mestre. Hegel. Lacan.

Abstract: This article aims to demonstrate the political implications that Slavoj Žižek draws from the
intersection between Hegel's philosophy and Lacan's psychoanalysis. It is about understanding how,
through Žižek 's reading of Hegel with Lacan, it becomes possible to think of a radical left political
philosophy and also the outlines of a clinic capable of going beyond the actualities of power. In short, it
is a matter of thinking from an emancipatory political perspective as Lacan's psychoanalysis together
with Hegel's philosophy, as proposed by Žižek, provide us with the conditions for visualizing a new
Master Signifier capable of overcoming the current capitalist order.

Keywords: Psychoanalysis. Political philosophy. Master Signifier. Hegel. Lacan.

*****

Slavoj Žižek nasceu em 1949 na cidade de Liubliana, capital da Eslovênia. O fato de


ainda estar em plena atividade intelectual e de sua produção teórica além de vasta ser bastante
veloz e prolífera, dificulta um enquadramento do autor a partir da totalidade de sua obra, se é
que faz sentido falarmos em termos de uma totalidade que poderia ser separada de suas partes
ao tratarmos da filosofia de Žižek; quer dizer, talvez fosse o caso de encararmos as partes como

1
Mestrando em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1219958778669383.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0717-564X.

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manifestações da própria totalidade. Sendo assim, iremos privilegiar, aqui, as implicações


políticas que Žižek tira da intersecção entre a filosofia de Hegel e a psicanálise de Lacan.
Žižek se propõe a ler Hegel nos “termos da problemática lacaniana da falta no Outro”
(ŽIŽEK, 2017, p. 34), isto é, do que ele considera ser o vazio traumático contra o qual se
articula o processo de significação. Assim, ele iguala o Saber Absoluto no sistema hegeliano
com o momento final do processo analítico, a experiência da falta no Outro, a liquidação da
transferência, o fim da análise. À sua maneira, então, Lacan nos forneceria, segundo Žižek, a
verdade da filosofia de Hegel, aquilo que é nele mais do que ele mesmo. Mas isso só é possível
porque o psicanalista francês é fundamentalmente hegeliano, mas sem saber. Para Žižek, o
hegelianismo de Lacan não deve ser encontrado onde se espera, nas suas referências explícitas
a Hegel, principalmente nos trabalhos daquele que é considerado, segundo a divisão proposta
por Jacques-Alain Miller, o ‘primeiro Lacan’. Diferentemente, o hegelianismo de Lacan está
na última fase de seus ensinamentos, a saber, “na lógica do não-todo, na ênfase colocada no
Real e na falta no Outro” (ŽIŽEK, 2017, p. 35).
É do esforço de relacionar de forma original esses dois autores, até certo ponto distantes
e à primeira vista inconciliáveis, que Žižek escreveu, por exemplo, Menos que nada: Hegel e a
sombra do Materialismo Dialético2. Ao final do livro encontramos um texto intitulado A
suspensão política do ético, no qual Žižek nos convoca a deslocarmos a questão uma vez
colocada por Lacan de qual ética condiz com a psicanálise, para a pergunta: Qual política
condiz com a psicanálise?(2013, p. 597) Partiremos dessa indagação, portanto, para pensarmos
que tipo de desdobramento do ensino de Lacan realiza Žižek e que tipo de transformação
política a psicanálise de Lacan pode oferecer, por mais que sua posição [de Lacan], segundo
Zizek, fosse semelhante a de Freud no que diz respeito à política, a saber, de que a psicanálise
nada tem a oferecer para a ação política.

1 HEGEL COM LACAN

Para Žižek, a maior realização da psicanálise é atingir os “contornos de uma


‘negatividade’, uma força perturbadora, que põe uma ameaça a cada elo coletivo estável”
(ZIZEK, 2013, p. 597). Desse modo, a psicanálise nos colocaria diante do nível zero da política,
uma condição pré-política de possibilidade da política. Esse é o nível, nas palavras do autor,

2
Mas também poderíamos citar outros livros de igual importância, como por exemplo, O Sujeito Incômodo:
o centro ausente da ontologia política e A visão em paralaxe, entre tantos outros.

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em que “nada tem lugar, exceto o próprio lugar, enquanto a política propriamente dita intervém
nesse lugar com um novo Significante-Mestre, impondo fidelidade, dando-nos legitimidade
para ‘forçar’ na realidade o projeto sustentado por esse Significante-Mestre” (ŽIŽEK, 2013, p.
597). Ou seja, se a psicanálise lacaniana não nos fornece um programa positivo para a ação
política, é porque ela atua nas condições de possibilidade de toda a política. Ao abrir uma lacuna
no campo positivo da política através da negatividade, o ensino de Lacan cria novos sentidos
para a intervenção política saturar essa lacuna com a introdução de um novo Significante-
Mestre.
Vejamos como o filósofo esloveno explica a relação que há entre a política e o
Significante-Mestre. Para ele, a política só é possível porque a sociedade é clivada em seu
interior pela impossibilidade de existir plenamente, isto é, a sociedade não tem uma unidade
que a legitima enquanto tal, não há um elo de ligação orgânico entre seus membros; o que quer
dizer que a sociedade em si não existe. Daí que seja necessário a produção de significantes que
artificialmente possibilitem a existência do que compreendemos por sociedade. No entanto, tais
significantes são vazios, não trazem consigo nenhum conteúdo para além daquele que existe na
sua própria superfície. O que difere tais significantes, na política, é a capacidade de cada um de
se tornar hegemônico. Žižek diz, “uma vez que ‘a sociedade não existe’, a unidade definitiva
só pode ser simbolizada na forma de um significante hegemonizado por um conteúdo particular
– a batalha por esse conteúdo é a batalha política.” (2009, p. 195). A política, desse modo, é a
luta pelo conteúdo do significante vazio que representa a impossibilidade da Sociedade. E o
conteúdo do significante, por sua vez, é político, uma vez que não há política fora da ordem do
significante. Nas palavras de Žižek, “o espaço da política é a lacuna entre a série de significantes
‘comuns’ (S²) e o Significante-Mestre (S¹)” (2009, p. 195).
Com isso temos um primeiro exemplo de como o pensamento de Žižek é marcado pela
filosofia de Hegel e pela psicanálise de Lacan; e mais: como o pensamento de ambos os autores
guarda uma proximidade que é explicitada na filosofia de Žižek. O Significante-Mestre, termo
lacaniano do qual Žižek se apropria, pode ser equiparado àquilo que Hegel denomina Conceito:
a unidade racional da coisa na Ideia, isto é, sua Verdade ou efetividade. Por trás de tais termos,
o que está em jogo para Žižek é a ordem simbólica enquanto realidade da coisa. A palavra não
reflete ou representa a coisa, ela é a própria coisa. A coisa é internalizada e suprimida
(aufgehoben) em seu conceito existente na forma de palavra. Segundo o autor,

a coisa está mais presente em seu símbolo do que em sua realidade imediata.
A unidade da coisa, o traço que faz da coisa a coisa, é descentrado em relação

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à realidade da própria coisa: a coisa tem de morrer em sua realidade para


chegar, atravessando seu símbolo, à unidade conceitual (ŽIŽEK, 2017, pp. 40-
41).

Basta lembrarmos do primeiro capítulo da Fenomenologia do Espírito de Hegel, a


certeza sensível, para percebermos a dialética presente nessa problemática: o sensível, ou seja,
a coisa, aquilo que é visado, não é atingido pela consciência, é somente pelo universal da
linguagem que falamos da coisa. Para além disso que dizemos não há nada, apenas o não
inteligível, o puramente visado. A coisa, portanto, é uma multiplicidade que não deve ser
confundida com uma positividade exterior em si; muito mais, mas também muito menos, ela só
é enquanto relação dialética com a consciência sempre-já mediada pela universalidade da
linguagem. “O falar tem a natureza divina de inverter imediatamente o ‘visado’”, diz Hegel
(HEGEL, 2002, p. 92). Também podemos pensar na passagem da natureza ao espírito, do
singular ao universal, na Enciclopédia. A morte da natureza, isto é, do corpo material,
representa sua supressão e superação (aufhebung) no emergir do gênero3, que suprime o
singular e é posto como universal. A morte da natureza é a negação do natural, da singularidade
imediata, e com isso a natureza passa para sua verdade, ela efetiva seu conceito ao tornar-se
ideia

O fim [alvo] da natureza é matar-se a si mesma e quebrar sua casca do


imediato, sensível, queimar-se como fênix para emergir desta exterioridade
rejuvenescida como espírito. A natureza tornou-se para si algo outro, para de
novo se reconhecer como ideia e reconciliar-se consigo (HEGEL, 2016, p.
556).

Para compreendermos melhor tudo isso, vamos avançar um pouco mais. Passemos para
um segundo ponto de intersecção entre o pensamento do psicanalista francês e o do filósofo
alemão na filosofia do esloveno: o tempo lógico, para Lacan, e a negação da negação, para

3
“É o outro lado, a morte, o suprassumir do singular e, com isto, o emergir do gênero, do espírito; pois a
negação do natural, isto é, da singularidade imediata, é isto: que o universal, o gênero é posto, e, sem dúvida,
em forma de gênero. Na individualidade este movimento dos dois é o decurso, que se suprassume, e cujo
resultado é a consciência, a unidade, que em si e para si mesma é unidade de ambos como Si, não só como o
gênero no conceito interno do singular. A ideia existe com isto no sujeito independente, para o qual, como
órgão do conceito, tudo é ideal e fluido; isto é, ele pensa, faz tudo espacial e temporal ser o seu, tem assim
nele a universalidade, isto é, tem-se a si mesmo” (HEGEL, 2016, p. 555). Também podemos lembrar aqui de
uma famosa passagem da Fenomenologia do Espírito, em que Hegel diz: “não é a vida que se atemoriza ante
a morte e se conserva intacta da devastação, mas é a vida que suporta a morte e nela se conserva, que é a vida
do espírito. O espírito só alcança sua verdade à medida que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto.
Ele não é essa potência como o positivo que se afasta do negativo - como ao dizer de alguma coisa que é nula
ou falsa, liquidamos com ela e passamos a outro assunto. Ao contrário, o espírito só é essa potência enquanto
encara diretamente o negativo e se demora junto dele. Esse demorar-se é o poder mágico que converte o
negativo em ser” (HEGEL, 2002, p. 41).

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Hegel. Nesse ponto, temos o momento crucial do processo dialético, em que ocorre
retroativamente a reversão da antítese na síntese. Vamos ver, primeiramente, como isso
acontece em Hegel.
Ao realizar a negação da negação, a consciência, na certeza sensível, alcança o objeto,
que num primeiro momento era imediato, mas agora enquanto ‘algo em si refletido’, isto é, o
objeto aparece enquanto totalidade de diferentes momentos. O ‘isto’, aquilo que é visado,
enquanto certeza imediata e sensível, é negado pela mediação do Eu e da universalidade da
linguagem. A coisa é suprimida e superada (aufgehoben) na linguagem. Essa negação da
imediatez sensível é, por sua vez, também negada (negação da negação), e temos, assim, uma
negação determinada. Momento em que a coisa aparece em sua imediatez como verdade, mas
agora enquanto totalidade de uma relação universalizada, enquanto movimento que contém em
si momentos diversos. Isso quer dizer que muito além de ser um processo linear de estágios da
consciência, como se a coisa e a mediação do eu e da linguagem existissem em si mesmos
apartados dessa relação dialética, é um movimento que tem sua verdade em uma simultaneidade
retroativa. Não há uma relação de causa e efeito entre a palavra e a coisa, o que a negação da
negação hegeliana nos mostra é que, para a consciência, a coisa só é coisa enquanto palavra, e
a palavra só é palavra na medida em que exprime a imediatez de uma relação universalizada.
Negar determinadamente não é agir posteriormente a uma espécie de contato entre a palavra e
a coisa, mas sim retroativamente revelar o processo enquanto interdependência de seus
momentos. Nas palavras de Žižek,

a reconciliação própria da síntese não é uma ultrapassagem ou suspensão


(ainda que dialética) da cisão em algum plano superior, mas sim uma reversão
retroativa, que significa que nunca houve cisão alguma - a síntese anula
retroativamente essa cisão (ŽIŽEK, 2013, p. 55)4.

É ultrapassada, desse modo, a concepção materialista de que o pensar seria resultado da


matéria e que, por isso, a ela seria subordinado. Hegel explica como

A causa é suprimida e superada no efeito, o meio no fim realizado, assim


aquilo de que o pensar deve ser o resultado está, antes, suprimido e superado
no pensar; e que o espírito, enquanto tal, não é produzido por um Outro, mas

4
Slavoj Žižek tem uma interessante interpretação sobre a retroatividade em Hegel: “a principal implicação
filosófica da retroatividade hegeliana é que ela solapa o reino do princípio da razão suficiente: esse princípio
só é válido na condição de causalidade linear, quando a soma das causas passadas determina um evento futuro
– retroatividade significa que o conjunto de razões (passadas, dadas) nunca é completo e ‘suficiente’, posto
que as razões passadas são retroativamente ativadas pelo que é, dentro da ordem linear, seu efeito” (Žižek,
2013, p. 54).

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se faz passar a si mesmo de seu ser-em-si ao ser-para-si - de seu conceito à


efetividade - e faz daquilo, deve ser posto, algo posto por ele (HEGEL, 2011,
p. 48).

Não há passagem de uma coisa à outra e não há predominância da causa em relação


àquilo que dela decorre: a causa só se realiza quando já se suprimiu em seu efeito, não há causa
alguma enquanto o efeito não a supera ao se efetivar. Até que exista algum efeito, a causa não
é causa de nada; o efeito é que porta as condições de uma causa ser determinada. Sendo assim,
em consonância com Hegel, poderíamos dizer que a matéria só se realiza enquanto matéria
quando é suprimida e superada pelo pensamento, isto é, a matéria só existe na medida em que
é pensada, em que alcança seu conceito.
Não é por acaso que Žižek vai identificar na negação da negação hegeliana aquilo que
Lacan conceituou como ‘tempo lógico’. Lembremos, rapidamente, como Lacan conclui seu
texto O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada5. Ele sintetiza o movimento que, em
suas palavras, fornece a forma lógica de toda assimilação humana, da seguinte maneira:

1. Um homem sabe o que não é um homem;


2. Os homens se reconhecem entre si como sendo homens;
3. Eu afirmo ser homem, por medo de ser convencido pelos homens de não ser homem.

Isso nos mostra que, um homem só sabe o que não é um homem ao afirmar ser um por
medo de ser convencido pelos outros de que não é. Ser homem, portanto, é uma certeza
antecipada de um processo de reconhecimento. A verdade do sofisma que Lacan expõe nesse
texto aparece quando ela se antecipa ao erro e avança sozinha no ato que gera sua certeza – a si
mesma enquanto verdade –, isto é, o próprio antecipar-se em se afirmar como um homem por
medo de não o ser (errar) que o permite saber tanto que ele é, como saber que os outros homens
também o são: ocorre uma referência de um eu aos outros como tais, como sendo outro uns
para os outros. O tempo lógico, desse modo, antes de seguir uma cronologia, se consuma
retroativamente ao colocar os seus próprios pressupostos. A síntese (negação da negação), longe
de representar, no sentido cronológico, o momento final de um movimento dialético, é a
totalidade de uma relação que põe retroativamente aquilo que a antecede ao se antecipar. Nas
palavras de Žižek, “ao avançar, ainda não estávamos lá, mas, de repente, já estávamos lá o

5
LACAN, J. O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In: LACAN, J. Escritos. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2006.

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tempo todo – o ‘cedo demais’ transforma-se de repente em ‘tarde demais’, sem que possamos
detectar o momento da transformação” (ŽIŽEK, 2002, p. 42).
Por fim, antes de tratarmos das consequências políticas que Žižek tira da intersecção
entre Hegel e Lacan, convém mencionarmos a importância metodológica do conceito de
paralaxe para sua filosofia. Podemos dizer que a paralaxe é o ato de seu pensamento, pois
quando confrontado com uma antinomia, Žižek renuncia a todas as tentativas de reduzir um
aspecto a outro. Ele afirma a antinomia como irredutível e concebe a crítica não como uma
posição determinada em contraste com outra, mas como a própria lacuna irredutível entre as
posições, o interstício puramente estrutural entre elas. É assim que, por exemplo, devemos ler
as saídas que ele oferece para os impasses que tratamos até agora, desde a questão da
impossibilidade da sociedade até a negação da negação: ao invés de buscar uma solução para
determinado impasse por meio de alguma das posições em conflito, ele afirma a própria tensão
como a verdade do impasse. Longe de oferecer uma conciliação que neutraliza ou apazigua o
problema, a paralaxe o implode ao deslocar o modo como se enxerga esse problema. Dito de
outro modo, a paralaxe pode ser vista como uma mudança de perspectiva que transforma o
fracasso em sucesso, o problema em sua própria solução.

2 PSICANÁLISE E POLÍTICA

Com tudo o que vimos até aqui, podemos compreender melhor porque, por exemplo,
para Žižek, a relação entre psicanálise e política é a de uma cisão paralática, de um encontro
perdido entre um ainda não e um tarde demais. A psicanálise, como vimos, abre a lacuna antes
do ato, e a política, por sua vez, sutura essa lacuna introduzindo uma nova consistência, ou seja,
impondo um novo Significante-Mestre. O ato político de imposição de um novo Significante-
Mestre muda a própria estrutura que determina como as coisas funcionam, nas palavras do
filósofo, ela transforma os próprios parâmetros daquilo que é considerado ‘possível’ na
constelação existente. É assim que passamos de um ainda não para o sempre-já: depois de
consumado o ato político, é como se sempre já estivéssemos sob suas determinações, embora
isso só ganhe efetividade na medida em que é posto retroativamente. Tal forma é análoga ao
tratamento psicanalítico da clínica lacaniana, segundo Žižek, pois ao não se limitar em ser o
caminho de uma recordação com vistas à verdade interior recalcada, a psicanálise, e mais

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especificamente o ato analítico6 em seu momento crucial, realiza o renascimento simbólico do


sujeito, uma recriação ex nihilo de uma nova configuração simbólica. Pois como muito bem
compreendido por Safatle,

Há de ter isso em mente quando ouvirmos Lacan dizer que: “o ato tem lugar
em um dizer e ele modifica o sujeito”, ou ainda “o ato destitui em seu fim o
próprio sujeito que ele instaura”. Isso demonstra como o ato analítico é
solidário de um dizer que, ao invés de meramente exteriorizar o sujeito,
modifica-o em uma paradoxal instauração destituinte. Essa posição paradoxal
talvez explique por que “o ato se realiza da melhor forma ao fracassar”, o que
não significa que todo ato seja um fracasso. Há um tipo de fracasso que é
resultado da pressão da produtividade do desejo em direção a novas formas,
um pouco como os atos falhos são um fracasso da força de determinação da
linguagem ordinária. Pois há de sentir a linguagem atual fracassar, confessar
sua impotência e transmutar suas categorias (SAFATLE, 2017, p. 220)7.

No entanto, e Žižek não se cansa de insistir nisso, a distinção entre o nível zero da lacuna
e seu preenchimento com um novo Significante-Mestre deve ser rejeitada por ser falsa, cito: “o
nível zero nunca está ‘aí’, só pode ser vivenciado retroativamente, como a pressuposição de
uma nova intervenção política, da imposição de uma nova ordem.” A força política da
psicanálise, portanto, não antecede stricto sensu a própria política, ela atua justamente no
momento retroativo em que ao adentrarmos na dimensão do sempre-já, somos capazes de
postular um ainda não. Muito mais do que simplesmente preparar o terreno para a imposição
do Significante-Mestre, a psicanálise afirma a posteriori a lacuna - o antagonismo que define a
condição humana –, é ela quem nos fornece o reconhecimento da lacuna como verdade e
possibilidade do Significante-Mestre. De outro modo, a vinculação política com esse novo
Significante-Mestre se daria nos contornos de uma ideologização substancialista desse novo,
isto é, perderia de vista a condição radical da política ao desconsiderar a lacuna ou
inconsistência de toda ordem social, assim como perderia a dialética própria a retroatividade
enquanto constitutiva do sentido dos acontecimentos. Tal como a filosofia de Hegel, a
experiência clínica lacaniana, para Žižek, seria a coruja de Minerva que levanta voo na medida

6
Nas palavras de Vladimir Safatle: “Um ato é sempre a irrupção de outro tempo e outro espaço, esta é sua
função: permitir que o desejo seja cultivado em outro tempo e em outro espaço, que quebra a hierarquia dos
lugares, que dessacraliza as distâncias” (SAFATLE, 2017, p. 220).
7
Como também Žižek irá insistir: “Devemos rejeitar o senso comum segundo o qual, ao desfazer todas as
mistificações e ilusões, a psicanálise nos faz conscientes de tudo o que realmente somos, do que realmente
queremos, e assim nos deixa no limiar de uma decisão verdadeiramente livre, que não depende mais do
autoengano. [...] Uma vez que estamos cientes da contingência radical de nossos atos, o ato moral em sua
oposição ao político torna-se impossível, posto que cada ato envolve uma decisão fundamentada apenas em
si mesma, uma decisão que é, como tal e no sentido mais elementar, político” (ŽIŽEK, 2009, p. 219).

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em que o crepúsculo cai sobre os eventos do dia reconstituindo o Sentido de todo o processo.
(2013, pp. 65-66)
Mais uma vez, então, precisamos nos desvencilhar de qualquer pensamento cronológico
e linear ao refletirmos sobre as relações que existem entre o sujeito e a política. Nos limites de
nossa linguagem, podemos dizer que o que ocorre é um processo que se dá de trás pra frente,
em que o fim antecede o começo. Segundo o modo como Žižek interpreta a seguinte passagem
da Enciclopédia de Hegel: “a plena realização do fim infinito é somente suprassumir a ilusão
de que o fim não foi ainda realizado” (HEGEL, 2012, p. 347), não realizamos esse fim ao atingi-
lo, “mas provando que já o atingimos, mesmo que o caminho para sua realização esteja oculto
de nossas vistas” (ŽIŽEK, 2002, p. 42). O fim realiza o seu meio.
Essa posição teórica de Žižek não deixa de ser, ainda, uma resposta e alternativa aos
desdobramentos realizados por Jacques-Alain Miller sobre o ensino de Lacan. Miller não só
estabelece novos contornos e divisões que passam a ser considerados hegemônicos, como
também realiza mudanças no que diz respeito ao modo de tratamento da clínica8: a partir dos
anos noventa ele irá praticar um jogo de conciliações no interior da chamada ‘clínica do real’
ao realizar a junção da inexistência do Outro com o real. A clínica deveria, então, adequar-se
à duplicidade do sintoma, ser permeável às mudanças sociais e dirigida pela constância inercial
do real. Ocorre uma conversão da teoria lacaniana em discurso e práticas sociais. O que, na
visão de Nelson Ota, permite que a AMP passe a configurar um “espaço experimental para
gestão e desenvolvimento de técnicas e mecanismos de controle social nos exatos termos da
atualidade do poder” (OTA, 2011, p. 141). A partir dos anos noventa ele passa a se direcionar
para o social e para uma defesa da psicanálise aplicada fora do consultório, em outras palavras,
para o desenvolvimento de uma ‘psicanálise aplicada à terapêutica’. Numa época em que o
Outro já não mais existe e o laço social deslizou em direção ao objeto, a incitação do gozo
incorre em novos sintomas clínicos, “pois a plenitude pulsional veio substituir todos os outros
ideais anteriormente calcados nas noções de falta e lei” (OTA, 2011, p. 150). De tal modo que
a perversão, na visão de Ota, passa a ser alçada à condição de ‘norma social’ e a ‘depressão de
mal paradigmático da civilização’.

8
Das mudanças ocorridas no nível teórico, ocorrem, também, outras programáticas que são concretizadas
com a criação de novas instituições e programas que visam obter “efeitos terapêuticos rápidos”. São elas: a
Rede Internacional de Instituições Infantis (RI), Rede de Instituições de Psicanálise Aplicada (Ripa), o
Programa Internacional de Pesquisa em Psicanálise Aplicada de Orientação Lacaniana (Pipol) e, sobretudo,
os centros de atendimento (Centro Psicanalítico de Consulta e Atendimento – CPCT), que se iniciaram em
Paris, mas hoje já se encontram espalhados pelos países com escolas de psicanálise associadas à AMP.

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Outra transformação operada por Miller é a de que a análise deveria seguir a ideia de
finais cíclicos do tratamento ao invés de um ‘final final’, subtraindo a força trágica da
problematização freudiana sobre o fim da análise, excluindo a esfera da ética vislumbrada por
Lacan para o fim do tratamento. Fazendo do tratamento psicanalítico não mais uma
transformação radical da subjetividade, mas um remendo que nem sequer deixa rastros de
longo prazo (ŽIŽEK, 2013, p. 602). Como apontará, criticamente, o próprio Žižek, Miller
abandona as implicações políticas da travessia da fantasia, que estaria presente no que ele
considera ser o primeiro ensino de Lacan, para afirmar o real do gozo como a única coisa
verdadeira. Daí ele defender um “tipo particular de hedonismo chamado liberalismo do gozo
(jouissance)” (ŽIŽEK, 2013, p. 604), no qual o psicanalista, politicamente, não pode propor
projetos, só pode zombar dos projetos dos outros9.
A interpretação milleriana do último ensino de Lacan, desse modo, ao ressaltar o Real
em detrimento do simbólico, acaba por atribuir ao Real, e consequentemente também ao gozo,
uma existência em si, como se ele existisse independentemente dos processos de simbolização.
Porém, o gozo, nas palavras de Žižek, “não existe em si mesmo, simplesmente persiste como
um resto ou produto do processo simbólico, de seus antagonismos e inconsistências imanentes.”
(2013, p. 605). E o Real, por sua vez, só é discernível através dessas inconsistências da
simbolização. Por isso que a abordagem liberal e cínica de Miller falha em não considerar a
eficácia da tessitura simbólica, isto é, cito, “o modo como podemos intervir no Real por meio
do simbólico” (ŽIŽEK, 2013, p. 602). De modo que uma clínica que tem em vista
transformações radicais, de acordo com Žižek, só é possível através do horizonte de
engajamento político de uma esquerda radical, que imponha como Significante-Mestre uma
nova ordem comunista capaz de revolucionar as coordenadas atualmente existentes; sem perder
de vista, porém, a irredutibilidade da lacuna social, de seu antagonismo imanente,
possibilitando, assim, a abertura do campo social para idiossincrasias realmente autênticas.
Como aquela Utopia de desajustados e esquisitos que Fredric Jameson menciona em seu livro
As sementes do tempo e Žižek recupera, uma Utopia em que os seres humanos desabrocham
em neuróticos, compulsivos, obsessivos, paranoicos e esquizofrênicos, todos aqueles que nossa
sociedade considera doentes, mas que, em um mundo de verdadeira liberdade, podem construir

9
Nas palavras do próprio Miller, o psicanalista “não propõe projetos, não pode propô-los, só pode zombar
dos projetos dos outros, o que limita o escopo de suas declarações. O ironista não tem um grande esquema,
ele espera que o outro fale e depois provoca sua queda o mais rapidamente possível. [...] Digamos que essa é
a sabedoria política, nada mais” (MILLER, p. 109-10).

71
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a flora e a fauna da própria natureza humana10 (2013, p. 604). A verdadeira ilusão, tanto no
nível clínico da psicanálise quanto na esfera da política, é não considerar os semblantes
simbólicos como reais e, dessa forma, substancializar o Real, “tomar o Real como substancial
em si e reduzir o simbólico a uma mera tessitura de semblantes” (ZIZEK, 2013, p. 605). O
posicionamento cínico e não engajado dos liberais, assim, é que se equivoca ao não considerar
a eficácia da tessitura simbólica, o modo como ela afeta o Real e nos dá as condições de intervir
nesse Real.

3 CONCLUSÃO

O comunismo a ser reivindicado por um engajamento de esquerda radical, portanto, tal


como Žižek o conceitua, não seria uma socialização nivelada por baixo, que restringe as
idiossincrasias individuais, e muito menos, tal como no capitalismo, iria impor modos
padronizados de gozo como condição da mercadorização e do consumo de massa, mas sim
uma capacidade de intervenção e reestruturação no deserto capitalista do Real que criaria
espaço para um livre desenvolvimento. Ao custo de se saber que os mecanismos de repressão
não são apenas mecanismos que reprimem, isto é, os próprios mecanismos contra os quais se
luta tornam-se investidos libidinalmente por aqueles que lutam, e por isso uma estratégia
política emancipatória já não pode mais se pautar por uma resistência imaculada e marginal
contra “o poder”, mas sim em pensar em modalidades e formas de ruptura através da saturação
do Significante-Mestre da ordem capitalista por um novo Significante-Mestre que seja
emancipatório e radical, em suma, comunista11. Mas tudo isso só será possível, segundo Žižek,
se encararmos seriamente as questões que se colocam frente a esses problemas, ou melhor, nos
esforçarmos por formular essas questões, pois a resposta já temos, e nesse sentido nossa

10
Žižek ainda diz: “é óbvio que Miller critica a padronização do gozo demandada pelo mercado para vender
mercadorias, mas sua objeção permanece no nível da crítica cultural padrão; além do mais, ele ignora as
condições sócio-simbólicas para o bom desenvolvimento dessas idiossincrasias”.
11
Nas palavras de Žižek: “o ato político (intervenção) propriamente dito não é apenas aquilo que funciona
bem no interior da estrutura das relações existente, mas o que muda a própria estrutura que determina como
as coisas funcionam. [...] Também podemos dizer isso nos termos da conhecida definição de política como ‘a
arte do possível’: a política autêntica é justamente o oposto, isto é, a arte do impossível - ela transforma os
próprios parâmetros daquilo que é considerado ‘possível’ na constelação existente” (ZIZEK, 2009, p. 220).
Na mesma chave também podemos pensar a clínica: “o tratamento psicanalítico, em seu aspecto mais
fundamental, não é o caminho da recordação, do retorno à verdade interior recalcada, de seu vir à luz; seu
momento crucial, o da ‘travessia da fantasia’, designa antes o renascimento (simbólico) do sujeito, sua
(re)criação ex nihilo, um salto pelo ‘ponto zero’ da pulsão de morte para uma configuração simbólica
inteiramente nova de seu ser” (ŽIŽEK, 2009, p. 234).

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situação, conforme o esloveno, é semelhante a uma análise em que o paciente já sabe a resposta
para seus problemas (seus sintomas são essas respostas), mas ainda não sabe a quais questões
ela responde (2013, p. 644). Tal como em uma análise, então, trata-se de encontrarmos as
questões que nossos problemas já são a resposta e, assim, trazer à tona o que precisa ser
transformado e como precisa ser transformado. Inclusive, percebermos que por mais que o
horizonte comunista seja habitado por uma miríade de rebeliões igualitárias fracassadas, de
“causas perdidas”, segundo G. K. Chesterton – que Žižek cita na conclusão do texto que encerra
Menos que nada – “as causas perdidas são exatamente aquelas que poderiam ter salvado o
mundo” (ŽIŽEK, 2013, p. 646), e que retroativamente nossa ação no presente histórico é capaz
de reivindicá-las como a necessidade de uma sociedade que tem como seu verdadeiro fracasso
a ordem que hoje aparenta ser a vitoriosa.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

REFERÊNCIAS

HEGEL, F. W. Georg. Enciclopédia das Ciências Filosóficas 1830. A Filosofia do Espírito.


Editora Loyola. São Paulo, 2011.
HEGEL, F. W. Enciclopédia das Ciências Filosóficas 1830. A Filosofia da Natureza. Editora
Loyola. São Paulo, 2016.
HEGEL, F. W. Enciclopédia das Ciências Filosóficas 1830. A Ciência da Lógica. Editora
Loyola. São Paulo, 2012.
HEGEL, F. W. Fenomenologia do Espírito. Editora Vozes. São Paulo, 2016.
LACAN, Jacques. Escritos. Editora Perspectiva. São Paulo, 2006.
MILLER, Jacques-Alain. La psychanalyse, la cité, les communautés. In: La Cause freudienne,
2008/1 (N° 68), pp. 105-119.
OTA, Nilton. O social e suas vicissitudes na psicanálise lacaniana. In: Tempo Social, revista
de sociologia da USP, v. 23, n. 1.
SAFATLE, Vladimir. Lacan, revolução e liquidação da transferência: a destituição subjetiva
como protocolo de emancipação política. In: Revista Estudos Avançados, v. 31, n. 91 (2017).
ŽIŽEK, Slavoj. Interrogando o Real. Autêntica Editora. São Paulo, 2017.
ŽIŽEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. Editora
Boitempo. São Paulo, 2013.
ŽIŽEK, Slavoj. O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política. Editora Boitempo.
São Paulo, 2009.

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Recebido em:13/05/2021
Aprovado em: 19/06/2021
Publicado em: 15/07/2021

OUTRO OBJETO PARA OUTRO SUJEITO


a contribuição lacaniana à revolução freudiana a partir da noção de objeto

ANOTHER OBJECT FOR ANOTHER SUBJECT


the lacanian contribution to the freudian revolution from the concept of object

Izabela Loner Santana1


([email protected])

Resumo: Dada a descoberta do inconsciente pela psicanálise, que fere o sujeito filosófico tradicional
moderno, este artigo questiona: o que se passa com a noção de objeto, até então compreendida
principalmente como objeto posto em frente ao sujeito? Se Freud funda a psicanálise com o postulado
do sujeito dividido do inconsciente, pretende-se aqui acompanhar como Lacan sustenta tal revolução a
partir de uma crítica ao objeto, a partir de uma outra base epistemológica à altura da descoberta e do
campo psicanalítico.
Palavras-chave: Sujeito. Objeto. Psicanálise. Freud. Lacan.

Abstract: Given the discovery of the unconscious by psychoanalysis, which wounds the traditional
modern philosophical subject, this article questions: what happens with the idea of object, until then
understood mainly as object placed in front of the subject? If Freud founded psychoanalysis with the
postulate of the divided subject of the unconscious, it is intended here to follow how Lacan sustains
such a revolution from a critique of the object, from another epistemological measuring up to the
discovery and field of psychoanalysis.
Keywords: Subject. Object. Psychoanalysis. Freud. Lacan.

“[...] [A revolução freudiana] não se explica pela mera experiência, já caduca, do fato de
ter de tratar fulano ou sicrano. Ele [Freud] é realmente correlativo de uma revolução que se
estabelece no conjunto do campo daquilo que o homem pode pensar de si próprio ou de sua
experiência, no conjunto do campo da filosofia — já que temos de chamá-lo pelo seu nome.”
(LACAN, 1985 [1954-1955], p. 282)2

O filósofo Louis Althusser, em seu texto intitulado “Freud e Lacan” de 1964, afirma
que durante o século XIX houve alguns nascimentos inesperados no seio das ciências humanas,

1
Mestranda em Filosofia pela Universidade Federal do ABC (PPGFIL-UFABC).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/9830294071006375.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0973-8365.
2
Nas referências e citações de Freud e Lacan serão adicionados os anos originais dos textos e/ou aulas entre
colchetes logo após o ano da edição utilizada, de maneira que a leitora se localize nos momentos da obra
freudiana e do ensino lacaniano.

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dentre eles o nascimento da psicanálise, a partir da assim chamada “descoberta freudiana”3.


Inesperado pois, embora tenha nascido na Viena vitoriana, instalou uma peste no universo dos
valores culturais burgueses e em suas representações científico-teóricas (ALTHUSSER, 1985,
p. 51).
Nascimento de uma ciência, pois Freud não descobriu apenas um novo objeto4 ou novos
fenômenos a serem estudados pelas ciências já existentes ou em consolidação (sociologia,
psicologia, economia política, filosofia, entre outras), mas criou uma nova forma de conhecer
algo que já dava indícios de sua existência e efeitos, a saber, o inconsciente. Uma forma de
conhecer específica, dado que lidava com um objeto de investigação de natureza singular que
é, como afirma Althusser, um objeto fora do pensamento consciente, o qual era tomado como
evidente e pressuposto, tanto na construção e desenvolvimento das ciências quanto de seus
objetos de investigação (ALTHUSSER, 1985, p. 76).
A descoberta freudiana do inconsciente e da teoria que o circunda (desde a
metapsicologia até a prática-técnica, passando pelo método de investigação) se mostra
inesperada e crítica por ser, como denominou Freud no texto “Uma dificuldade da psicanálise”,
de 1917, uma das feridas narcísicas da civilização moderna ocidental, uma afronta ao amor-
próprio da humanidade empreendida pela pesquisa científica. Nesse sentido, para Freud, a
psicanálise, junto do descentramento do planeta Terra evidenciado por Copérnico e da evolução
das espécies de Darwin, desmente a ilusão narcísica de que o ser humano é o soberano de si
mesmo.
As perturbações, o sofrimento, os impulsos e desejos desconhecidos, em geral, as
situações nas quais “o eu se sente mal” e se “depara com limites de seu poder em sua própria
casa”, até então conferidas a demônios, espíritos ou patologias, é explicitado, a partir da

3
Como ficará mais claro com o seguir do texto, a descoberta freudiana, para Althusser, refere-se tanto à
descoberta do inconsciente quanto à descoberta de uma ciência passível de lidar com ele (cf. ALTHUSSER,
1985, p. 76). Em ambos os casos — de um objeto para uma ciência ou da ciência mesma —, porém, pode-se
considerar qual o estatuto de uma descoberta: descobrir o inconsciente é descobrir algo que existe
efetivamente, que existe na ‘realidade’, ou é uma instância criada e postulada para fazer funcionar uma ciência,
para dar conta de alguns fenômenos? O mesmo para a ciência psicanalítica: não foi ela mais criada e inventada
(científica e rigorosamente) do que descoberta por Freud? Aqui segue-se o vocabulário comum de descoberta
para acompanhar a argumentação althusseriana, mas, por uma opção epistemológica quanto a essas questões,
indica-se, nesta nota, a possibilidade de que Freud tenha realizado mais uma invenção do que uma descoberta,
assim como Lacan inventou o objeto a.
4
Utilizando do vocabulário de Althusser, tratar-se-á aqui, primeiramente, de objeto como objeto de uma
ciência, o que ela investiga. Em um segundo momento, o termo “objeto” remontará ao conceito de objeto
derivado, principalmente, do Gegenstand da filosofia alemã, o objeto posto ao sujeito em sua experiência.

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psicanálise, como constituinte do próprio sujeito humano5, como advindos não da consciência
ou do exercício da razão, mas como efeitos do inconsciente (FREUD, 2010b [1917], p. 184).
O sujeito que se confundia com o “eu” e que se predicava como autônomo, sendo autor
de seus próprios atos e vontades, independente em suas causas e motivações, racional quanto a
seus desígnios, ciente dos processos de sua “mente” e de seus pensamentos — em outras
palavras, o que se reconhece como o sujeito das filosofias modernas, do conhecimento e da
razão —, descobre que “uma parte de sua própria psique furtou-se ao seu conhecimento e ao
domínio de sua vontade” e que o “eu não é senhor em sua própria casa” (FREUD, 2010b [1917],
p. 184), mas sim desconhece grande parte dos seus pensamentos e de suas vontades. Nas
palavras lacanianas:

O homem contemporâneo cultiva uma certa ideia de si próprio que se situa


num nível meio ingênuo, meio elaborado. A crença de que ele tem de ser
constituído assim e assado participa de um certo medium de noções difusas,
culturalmente admitidas. Ele pode imaginar que ela é oriunda de uma
propensão natural, quando, no entanto, no atual estado da civilização ela lhe é
ensinada, de fato, por todos os lados. Minha tese é a de que a técnica de Freud,
em sua origem, transcende esta ilusão que, concretamente, exerce uma ação
sobre a subjetividade dos indivíduos. (LACAN, 1985 [1954-1955], p. 10)

Um sujeito ilusório que é construído, ensinado e naturalizado, embora situado


historicamente, em detrimento de uma nova concepção de sujeito vinda dos esforços freudianos,
que exige uma nova ciência, pois é irredutível ao aparato conceitual e científico existente até
então. Ainda mais se for lembrado que a psicanálise não se restringe à teoria, mas que também
elabora uma clínica que lida com o inconsciente e suas formações e efeitos. Inclusive, como diz
Freud, ainda no texto de 1917, “[a] psicologia, tal como é ensinada entre nós, dá respostas muito
pouco satisfatórias, quando questionada acerca dos problemas da vida psíquica” (FREUD,
2010b [1917], p. 180).
Uma nova ciência que não surge alheia ou fora do campo científico até então dado, mas
que se faz no diálogo ambíguo com as demais ciências e disciplinas. Assim, se por um lado,
como afirma Althusser, “uma ciência só se torna tal pelo recurso a outras ciências e pelo desvio
por outras ciências” (ALTHUSSER, 1985, p. 63), por outro, a psicanálise, ao emergir, fere o

5
Interessante apontar que Freud não falou de um sujeito da psicanálise com um estatuto de conceito como fez
Lacan. Assim, neste artigo, hesitando recair no uso do termo indivíduo, falar-se-á de sujeito humano, para
indicar a diferença em relação ao sujeito lacaniano do inconsciente e da psicanálise. Este, por sua vez, ainda
deve ser diferenciado do sujeito da tão tematizada relação sujeito-objeto, do qual Lacan buscará se distanciar,
reafirmando o sujeito do inconsciente e da psicanálise e um novo estatuto de objeto. Em cada trecho serão
indicadas formas de identificar e diferenciar essas três ocorrências.

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meio científico do qual se utiliza para nascer, desmentindo as ilusões que davam a este meio
consistência ao contestar sua compreensão de sujeito (ALTHUSSER, 1985, p. 83).
Somente com essa ambiguidade em vista, o nascimento da psicanálise pode ser
denominado “inesperado”, como o de uma criança de nascimento ofensivo e perigoso, pois
nasce utilizando-se de um meio no qual ela era improvável, denunciando-o em sua emergência.
Nasce como sintoma deste meio, i.e., como aquele elemento particular que desmentiria o
universal do qual participa, o indício de falha num todo até então aparentemente funcional (cf.
ŽIŽEK, 1991, p. 139).
Pensando, primeiramente, em um dos lados desta ambiguidade, a psicanálise só foi
possível porque se utilizou, em sua emergência, das demais ciências de sua época e território,
i.e., o meio médico e intelectual vitoriano. Segundo Freud, não concorrendo ou excluindo-se da
visão de mundo [Weltanschauung] da ciência moderna, mas participando e sendo possível
somente a partir dela (FREUD, 2010a [1933], p. 322).
Freud funda sua ciência, neste contexto, sem qualquer pai ou tradição, a partir da
experiência de sua prática clínica diária6, mas quando se deparou com a necessidade de
fundamentação teórica deste achado e desta clínica, teve de mobilizar conceitos importados de
outras ciências, obrigando-se a ser “seu próprio pai” e construindo, como um artesão, “o espaço
teórico em que pudesse situar sua descoberta”, tecendo “com fios emprestados aqui e ali, por
adivinhação, uma grande rede com a qual capturaria, nas profundezas da experiência cega, o
peixe abundante do inconsciente” (ALTHUSSER, 1985, p. 52).
Um nascimento sem pai por de trás ou para além de Freud e sem qualquer herança a não
ser essa herança desviada e importada às bricolagens das demais ciências, dentre as quais
encontra-se “um lote de conceitos filosóficos” — tais como os conceitos de consciência, pré-
consciente e inconsciente, as comparações entre noções de sua ciência e das mais diversas
filosofias ocidentais7 e até noções como a de objeto (que acompanhamos em detalhe com o

6
Se tomarmos isso como pressuposto talvez possamos falar, como muito se argumenta, de uma mãe para a
psicanálise, ou talvez de um harém histórico. Como diz Soler: “Freud não teria inventado a psicanálise sem a
amável colaboração das histéricas. Dentre essas pacientes mestras, uma conserva lugar à parte. É Anna O., a
primeira. Primeiro caso relatado nos Estudos sobre a histeria, que Sigmund Freud e Josef Breuer publicaram
em 1895, ela demonstrou pela primeira vez que o sintoma histérico reagia à fala. “Talking cure”, dizia a seu
médico deslumbrado. [...] O mais importante em Anna O. não são seus sintomas, pois estes eram os sintomas
clássicos das histéricas da época. É que, em matéria de Annas, havia pelo menos duas. Havia Anna, a enferma,
triste e angustiada, mas normal e havia também a Outra, a sonâmbula, em estado de ausência auto-hipnótica,
louca, má e alucinada. A clivagem era espetacular. [...] quando Anna, a sonâmbula, falava, do fundo de suas
ausências hipnóticas, a outra Anna, a do estado de vigília, curava-se de seus sintomas.” (SOLER, 2005, p. 5)
Filiação que, de qualquer forma, não desmente a solidão teórica freudiana: Anna O. e as histéricas fizeram
emergir o fenômeno, fizeram seus sintomas saltarem aos olhos freudianos, mas e a teoria, de onde veio?
7
Desde o imperativo categórico kantiano para falar do tabu em “Totem e tabu”, de 1913, até a vontade
schopenhaueriana para falar das pulsões e da importância dos impulsos sexuais no texto supracitado de 1917,

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seguir do texto). Herança que, mesmo desviada, tem seus efeitos, pois a ciência freudiana, ao
produzir seus conceitos a partir dos conceitos emprestados, é determinada, como elas, pelo
“horizonte dos mundos ideológicos nos quais se banhavam tais conceitos” (ALTHUSSER,
1985, p. 53), o que remonta à ambiguidade já citada.
O resultado disso é um corpo teórico-conceitual que, embora riquíssimo, potente e
(como veremos) subversivo, se mostrou, numa primeira elaboração, problemático, ambíguo e
contraditório. Nele se apoiam as mais diferentes vertentes teórico-clínicas, da psicologia do ego
ao lacanismo, permitindo diversos desencontros e confusões. Equívocos que não só produzem
mal-entendidos e dificuldades, mas que são aproveitados em prol de revisionismos, reduções e
normatizações da própria teoria.
Nisto reside o segundo ponto da ambiguidade acima posta: a psicanálise emerge e
utiliza-se das ciências contemporâneas a ela, mas essa própria emergência é subversiva,
perigosa ao seu campo de nascimento.
Como coloca Lacan em seu seminário de 1954-1955 sobre o eu na teoria e na técnica
freudianas: “Com Freud faz irrupção uma nova perspectiva que revoluciona o estudo da
subjetividade e que mostra justamente que o sujeito não se confunde com o indivíduo.”
(LACAN, 1985 [1954-1955], p. 16) E, “[a] respeito disto a psicanálise tem um valor de
revolução copernicana. A relação toda do homem consigo mesmo muda de perspectiva com a
descoberta freudiana [...] A ideia de um desenvolvimento individual unilinear, preestabelecido,
comportando etapas que vão aparecendo cada qual por sua vez conforme uma tipicidade
determinada, é pura e simplesmente o abandono, a escamoteação, a camuflagem, a denegação
propriamente falando, e inclusive o recalque, daquilo que a análise trouxe de essencial.”
(LACAN, 1985 [1954-1955], p. 23)
Uma revolução aos moldes da copernicana no registro do que o ser humano pode pensar
de si mesmo que incita, por sua vez, uma contrarrevolução, o que, segundo Althusser, é
realizado com revisionismos dos conceitos, anexações e reduções a outras disciplinas,
normatizações de sua radicalidade e diferença frente às demais.

Que esse revisionismo tenha podido autorizar-se do equívoco de certos


conceitos de Freud, que foi obrigado, como todo inventor, a pensar sua
descoberta nos conceitos teóricos existentes, constituídos, portanto, para
outros fins, também podemos compreendê-lo (o próprio Marx não foi
igualmente obrigado a pensar a sua descoberta em certos conceitos
hegelianos?). (ALTHUSSER, 1985, p. 48)

como até o Eros do “divino Platão” para falar da ampliação do campo da sexualidade operada pela psicanálise
em seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” de 1905.

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Um revisionismo que o autor ainda predica de ideológico, pois diagnostica que é em


favor de uma ideologia dominante e da manutenção de um status quo específico que se promove
a revisão. O que pode parecer estranho em uma discussão até então epistemológica sobre o
nascimento e constituição das ciências, mas que logo se aclara, se for lembrado que a ideologia
da qual fala Althusser é a burguesa. Algo deveras óbvio, mas que mostra seu valor nesta
argumentação se apontado que — desde o jovem Marx, passando por outros escritos
althusserianos8 — o modo de produção e reprodução de tal classe não está desvinculado de suas
formas de representação espirituais, filosóficas, morais e jurídicas. Sendo ela a detentora dos
meios de produção e das representações hegemônicas, tendo suas próprias formações teóricas,
suas representantes na filosofia, na economia política, na ciência política, na psicologia e
sociologia, por exemplo. Não por coincidência, as ciências humanas que possibilitaram
empréstimos para Freud foram por ele traídas em sua descoberta.
O que a psicanálise freudiana tem de tão perigoso frente a essas teorias dominantes e
ideologicamente revisionistas? Em outras palavras, por que se deve neutralizar a psicanálise?
“Existe, portanto, em Freud, algo de verdadeiro, de que é preciso apropriar-se, para rever seu
sentido, uma vez que isso que é verdadeiro é perigoso: é preciso revê-lo para neutralizá-lo”9
(ALTHUSSER, 1985, p. 78).
A ideologia que imperava no meio científico do qual e contra o qual Freud se erige
sustentava-se na concepção de ser humano como sujeito, não do inconsciente enquanto barrado,
como colocará mais à frente Lacan partindo de Freud, mas um sujeito de unidade assegurada
pela consciência, descrita e exaltada pela filosofia (em sua versão de formação ideológica
burguesa). Concepção de ser humano que domina a história, seja ela das ideias ou da vida
comum, há séculos e de várias formas, ou será que “[n]ão vale a pena recordar agora que a
grande tradição idealista da filosofia burguesa foi uma filosofia da consciência, empírica ou
transcendental?” (ALTHUSSER, 1985, p. 84).
Uma concepção de ser humano como sujeito individual, em outras palavras, como uma
unidade idêntica e identificável por si mesma, una e conhecida, consciente de si, independente

8
O que pode ser exemplificado com Os aparelhos ideológicos de estado, no qual Althusser retoma a metáfora
de Marx da relação entre estrutura e superestrutura, entre a base material que determina toda a sociedade e
suas formações, suas expressões “espirituais”: os campos do direito, da religião, da moral, da política e, inclui-
se, o da filosofia (cf. ALTHUSSER, 1991, pp. 25-26).
9
Este trecho continua com Althusser dizendo que essa “resistência-crítica-revisão” à psicanálise freudiana
começa sempre fora de seu campo, em outras disciplinas e ciências, em outros campos da experiência humana
que não a científico-teórica, mas os adversários acabam surgindo inclusive dentro da própria teoria. O
revisionismo mais severo é aquele que obriga tal ciência a se defender também por dentro dos infiltrados (cf.
ALTHUSSER, 1985, pp. 78-79).

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e pressuposta por toda psicologia, moral e economia burguesa. Aqui se entrecruzam várias
acepções de sujeito: o sujeito do direito, da moral, da religião, da política, todos sob uma mesma
identidade e coerência, uma unificação para sempre representar os sujeitos como indivíduos e
como estes devem ser para se submeterem a tal ideologia (ALTHUSSER, 1985, p. 85).
Como ilustração dessa constelação unidade-consciência-identidade, Althusser relembra
que não é por acaso ou coincidência que toda a tradição filosófica moderna, europeia e burguesa
se debruça sobre a consciência e a descreve como faculdade de unificação e de síntese desde
cartesianismo, passando pelo o empirismo lockeano ou humeano até o transcendental kantiano.
O sujeito sempre como primeiramente dado, lugar das únicas certezas, que, além de uno, tem o
poder de síntese sobre a diversidade caótica das impressões sensíveis, dos atos morais e
religiosos e até das práticas políticas. Se é sempre um e o mesmo, “[t]raduzindo essa linguagem
abstrata: a consciência é obrigatória, para que o indivíduo dela dotado realize, em si, a unidade
exigida pela ideologia burguesa, a fim de que os sujeitos se adequem à sua própria exigência
ideológica e política de unidade”10 (ALTHUSSER, 1985, p. 85).
Unidade, consciência, identidade do sujeito, percebe-se como tudo se costura: a mesma
categoria de sujeito que dá sustentação e consistência à ideologia dominante é exatamente onde
incide a descoberta do inconsciente, é exatamente com isso que a ciência freudiana cinde,
indicando a “natureza estranha, mista, problemática” – e, adiciono, histórica –, de tal concepção
de sujeito. Nisso vemos como Freud e a psicanálise são perigosos e por qual motivo geram tanta
resistência e ataques: é que eles tocam no cerne deste edifício ideológico.

[...] ao descobrir o inconsciente, Freud não apenas tocou um “ponto sensível”


da ideologia filosófica, moral e psicológica existente, não se chocou apenas
com ideias que estavam ali por casualidade, fruto do desenvolvimento do
saber ou da ilusão humana, não tocou apenas um ponto sensível, porém
secundário, de uma ideologia crucial e localizada. Não; talvez sem saber no
início, embora, em seguida, ele o tenha sabido muito bem, Freud tocou o ponto
teoricamente mais sensível de todo o sistema da ideologia burguesa.
(ALTHUSSER, 1985, p. 86)

Um horizonte científico-ideológico de unidade, identidade e síntese no qual se erige


uma ciência crítica, conflituosa, de cisões que, ao postular o inconsciente, divide o sujeito, bem
como o mundo de sua experiência e coloca implicações até nas próprias ciências. Em outras

10
Interessante lembrar que no texto do qual se retira essa citação, Althusser está fazendo uma comparação
entre Freud e Marx, como dois filhos inesperados e conflituosos do horizonte de sentido — científico,
econômico e filosófico — burguês e como ambos sofreram revisões e distorções, o que talvez dê mais unidade
e compreensão à argumentação que aqui se desenrola, embora não tenhamos espaço para tais reconstruções.

81
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palavras, é aquilo que, ao ser postulado, cinde o centro, o ponto de origem e de certeza de todo
o sistema baseado na consciência e no imperativo de unidade.

Posto este contexto ambíguo contra o revisionismo ideológico que Althusser


diagnostica, é possível retornar um pouco nesta argumentação e perguntar: os conceitos
psicanalíticos devem ser deixados na ambiguidade e mistificação permitidas — ou pelo menos
justificadas — pela letra freudiana, fruto de sua situação de fundador sem pai?

Numa disciplina que só deve seu valor científico aos conceitos teóricos que
Freud forjou no progresso de sua experiência, mas os quais, por serem ainda
mal criticados e por isso conservarem a ambiguidade da língua vulgar,
beneficiam-se dessas ressonâncias, não sem incorrer em mal-entendidos,
parecer-nos-ia prematuro romper a tradição de sua terminologia. Mas parece-
nos que esses termos só podem esclarecer-se ao estabelecermos sua
equivalência com a linguagem atual da antropologia ou com os mais recentes
problemas da filosofia, onde, muitas vezes, a psicanálise só tem a se
beneficiar. (LACAN, 1998 [1953], p. 241)

Escolhendo a orientação lacaniana, pode-se responder: não, pois há de se criticar tais


conceitos à luz de outras ciências, de outras disciplinas11. Fiel ainda à hipótese althusseriana de
colaboração entre as ciências, que só se fazem nos desvios e empréstimos umas às outras, deve-
se buscar aquelas que fornecem algo para além do horizonte ideológico até então posto na era
vitoriana de Freud e que permitam dar outra dignidade teórica e epistemológica à psicanálise.
Lacan cita aqui a antropologia e a filosofia. Seguindo seu conselho, propõe-se, para o
seguir deste texto, uma análise filosófica de um dos pontos mais revisados, criticados, ambíguos
e neutralizados pelos pós-freudianos e pelas ciências circundantes a teoria psicanalítica, a saber,
a noção de objeto.
Não é uma proposta arbitrária, se for lembrado que a revolução freudiana toca
exatamente no estatuto do sujeito, tão caro às ciências e disciplinas em geral, bem como à
ideologia em suas diversas expressões e representações, mas, principalmente, à filosofia da
época. Sujeito que, com a emergência da ciência e da filosofia modernas, é sempre

11
Como diz Lacan em uma das passagens em que trata as ambiguidades deixadas pelos conceitos freudianos,
mais especificamente, neste caso, na noção de Trieb: “Devemo-nos obrigar a apurar seu sentido [dos conceitos
freudianos] e criticar as confusões introduzidas, as ambiguidades significativas, bem mais graves do que
qualquer equívoco significante (LACAN, 2008 [1959-1960], p. 113).

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acompanhado do objeto de conhecimento e experiência12, sempre num par, numa dualidade,


num estatuto muito específico, como já entrevisto acima, a partir da síntese, da identidade, da
unificação como fundamental na sua noção de sujeito.
Objeto que pode ser definido, em sentido geral, como aquilo que está diante e oposto ao
sujeito, o que este considera e tem em vista, sendo-lhe ainda exterior e diferente, que se
representaria ao sujeito pelos sentidos e com o qual ele se relacionaria. Isto é, “aquilo que possui
uma existência em si, independente do conhecimento ou da ideia que os seres pensantes disso
possam ter” (LALANDE, 1993, p. 754).13
Assim posta a novidade freudiana na definição de sujeito, inclusive para a filosofia,
quais consequências se podem considerar para o objeto deste sujeito? Mudar o estatuto do
sujeito pode trazer novidades para a forma de se pensar o objeto?
Buscar-se-á responder isso a partir do estatuto do objeto em psicanálise, mais
especificamente das novidades que a orientação lacaniana introduz para pensarmos tal conceito.
Essa orientação foi escolhida porque busca trabalhar o objeto tendo sempre como horizonte a
descoberta freudiana do sujeito do inconsciente, dando a este um objeto a sua altura, e porque
elabora tal caminho sempre em diálogo crítico com a filosofia moderna, marcando o caráter
conflituoso e subversivo de seu campo de investigação à luz de novas ciências e disciplinas que
não só as do período de seu batismo.
Opera-se assim uma paralaxe na relação entre filosofia e psicanálise: se esta bebeu
profundamente do que Althusser chamou de “lotes de conceitos filosóficos”, agora ela também

12
Ainda mais seguindo um diagnóstico como o hegeliano, que aponta como as filosofias precedentes tinham
se reduzido à teoria do conhecimento, fazendo o espantalho dessas a partir da filosofia crítica de Kant: “Um
ponto de vista principal da filosofia crítica é que, antes de empreender conhecer a Deus, a essência das coisas,
etc., é mister investigar primeiro a faculdade do conhecimento, a ver se é capaz de dar conta do
empreendimento. Seria preciso primeiro aprender a conhecer o instrumento, antes de empreender o trabalho
que será executado por meio dele; se o instrumento for insuficiente, toda a fadiga será, aliás, inútil. Esse
pensamento pareceu tão plausível que suscitou a maior admiração e aprovação, e fez o conhecimento voltar-
se de seu interesse pelos objetos e de sua ocupação com eles, ao formal. Contudo, caso não se queira enganar-
se com palavras, fácil é ver que se pode eventualmente examinar e apreciar outros instrumentos de outro modo
que empreendendo o trabalho próprio a que são destinados. Mas o exame do conhecimento não pode ser feito
de outra maneira a não ser conhecendo; no caso deste assim-chamado instrumento, examinar significa o
mesmo que conhecê-lo. Ora, querer conhecer antes que se conheça é tão absurdo quanto o sábio projeto
daquele escolástico, de aprender a nadar antes de arriscar-se na água.” (HEGEL, 1995, §10) Isto é, reduziu-
se ao campo que privilegia, principalmente, as relações de conhecimento entre sujeito e objeto.
13
Uma objeção possível a esta argumentação é a imprecisão e a abrangência da noção de objeto em filosofia.
Para isso, deve-se lembrar que Lacan, que tematiza isso mais diretamente, não fala de uma filosofia, autor ou
tradição em especial, não predica ou nomeia o detentor ou criador da noção de objeto da qual ele busca
distanciar a psicanálise, mas trata isso com as expressões “o objeto no sentido filosófico”, “o objeto da relação
sujeito-objeto” entre outras. Pelos recortes e comentários que o psicanalista tece no direcionamento da teoria
do conhecimento e das filosofias alemãs modernas, pode-se tentar precisar esta noção com o Gegenstand, o
que se apoia ainda nos comentários de Le Gaufey (2007). Assim, tal vagueza não recai sobre a argumentação
aqui construída, mas na referência tomada, i.e., a própria letra lacaniana.

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retorna à filosofia criticamente, fazendo uma crítica da sua noção hegemônica moderna e
ocidental de sujeito e de objeto, buscando não só desmentir o engodo ideológico das filosofias
da consciência e da unidade, mas também levantar-se contra seu próprio revisionismo ao
separar-se desses resquícios das formações filosóficas ideológicas neutralizadas.
Lacan, em sua tentativa de retornar e ser fiel a Freud, lança mão de outra revolução,
desta vez a partir da noção de objeto, não descobrindo algo, mas inventando. Segundo ele
mesmo, sua contribuição à psicanálise foi um novo manejo da noção de objeto — que culminará
na sua invenção por excelência, o objeto a, nos anos 1962-1963. Seguir-se-á nas próximas
páginas tal manejo até a noção de objeto parcial, no que será demonstrado como a psicanálise
pôde, em seu campo e com suas premissas e seus fins, fazer uma crítica à noção de objeto
hegemônica em filosofia.
Para isso, persegue-se o caminho argumentativo indicado por Guy Le Gaufey em seu
livro El notodo de Lacan: consistencia lógica, consecuencias clínicas (2007, pp. 59-74). Neste
trabalho, o comentador diz que a noção de objeto, em suas muitas definições e desvios na
história da psicanálise freudo-lacaniana, não teria chegado ao objeto parcial, no qual Lacan
formaliza com rigor as diferenças frente ao objeto filosófico, se não tivesse antes chegado a
uma definição sem precedente de sujeito que, na retomada lacaniana, ressoando a Spaltung
freudiana, aparece como barrado, dividido, cindido14:

[...] semejante sujeto no podía ya tener que ver con el objeto clásico, el gegen-
stand, y que apelaba por sí solo a la llegada de un nuevo objeto — ique azar!
— heredero, desde su aparición, de cualidades extremadamente cercanas a las
del sujeto que será en adelante el suyo: tan refractario como el a caer bajo el
efecto de una unidad “unificante”, a ser un “individuo”, tan poco especular
aunque igualmente inscrito en el orden libidinal y pulsional. (LE GAUFEY,
2011, pp. 15-16)

O que não só reforça os efeitos que uma nova concepção de sujeito tem sobre a noção
de objeto, mas já mostra o caminho que tomará para repensar a noção de objeto em psicanálise:
refratário, não unificante ou unificado. Segue-se, assim, o caminho do objeto a partir destes
significantes, desta parcialidade e cisão, diferente do Gegenstand das filosofias modernas, do
objeto frente ao sujeito, com o qual este se defronta e empreende uma relação de conhecimento.
Ambos já constituídos em suas identidades que, em um só depois da constituição, entram em
relação especificamente de conhecimento, dado que entidades separadas e independentes.

14
A questão do sujeito neste período do ensino de Lacan já foi tratada em outro lugar. Cf. SANTANA; Piza
(2019).

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Lacan abre seu seminário intitulado A relação de objeto de 1956-1957 lidando, na aula
de 21/11/1956, com a questão do objeto e ressoando a denúncia do revisionismo, afirmando
que o tema da relação de objeto teve, em seus antecessores próximos e contemporâneos, uma
posição central na evolução histórica da psicanálise. No seguimento da aula, coloca em questão
o motivo pelo qual não abriu seus seminários, em 1953, com tal questão, já que ela era tão
“atual, preponderante e crítica”, dando a entender que seu próprio ensino poderia ter sido
iniciado com a questão do objeto, dada a centralidade desta para a história da psicanálise até
então. Ele responde dizendo que era preciso primeiro passar criticamente pelas estruturas
freudianas. Ou seja, tendo, no primeiro ano, tratado da técnica do tratamento, tematizando a
transferência e a resistência; no segundo retornado à “base da experiência e da descoberta
freudianas” (LACAN, 1995 [1956-1957], p. 9) com a noção de inconsciente; e, no terceiro ano,
introduzido o significante para melhor formalizar o simbólico, de maneira a tratar das estruturas
clínicas a partir não mais do comportamento, mas da posição do sujeito na linguagem (LACAN,
1995 [1956-1957], p. 10).
Só com isso – com essa base freudiana posta e criticada em seus desdobramentos
neutralizadores – Lacan pôde empreender seu programa de retorno a Freud. Esse programa tem
efeitos sobre a noção de objeto, pois aponta como ela é um desvio do caminho posto pela
revolução freudiana, dado que não aparece nos textos freudianos (LACAN, 1985 [1954-1955],
p. 12). Nestes encontramos menções e noções de objeto, claro, como, por exemplo, nos “Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade”, em que coloca o objeto não mais como de conhecimento,
mas como “objeto sexual”, definido como “a pessoa da qual vem a atração sexual” (FREUD,
2016 [1905], p. 21). Isto é, colocando tal noção já na ordem libidinal e na relação do sujeito,
não com o mundo natural, mas na relação entre sujeitos.
A isso Freud soma uma flexibilização na rígida relação, até então posta, entre pulsão
[Trieb] e objeto, dado que o primeiro seria independente e não mais algo que surge ou é atiçado
pela presença do objeto: “Assim, somos levados a afrouxar a ligação entre pulsão [Trieb] e
objeto que há em nossos pensamentos. É provável que a pulsão [Trieb] sexual seja de início
independente de seu objeto, e talvez não deva sequer sua origem aos atrativos deste” (FREUD,
2016 [1905], p. 38, tradução modificada).
Como consequência, o objeto sexual do ser humano teria duas possibilidades de ser: ou
se apoiando em modelos infantis (da situação edipiana sofrida pela criança) e sendo
reencontrado, ou à maneira narcísica, na qual o sujeito busca objetos a partir de seu eu,
reencontrando no outro o que o satisfazia, até então, em si, pondo uma grande marca
narcísica no objeto a ser reencontrado. Definições e aparições de objeto que marcam a

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mesma coisa: objeto que é sexual, pulsional e libidinal, e não mais de conhecimento e que não
atrai a pulsão por seus atrativos, pela substância que é, mas por traços outros, relacionais, de
experiências passadas.
Primazia da tendência sobre o objeto que se reafirma também na teoria do desejo
freudiana, quando passa a lidar com objetos de satisfação15, em que o objeto é sempre
redescoberto, pois seu “atrativo” não vem de algo intrínseco a ele, de suas qualidades ou
potências, mas sim de traços de memória de satisfações passadas. Na escolha objetal, o suposto
objeto de satisfação é determinado por traços mnemônicos advindos de um objeto primeiro,
perdido pelo sujeito no momento que passou da necessidade ao desejo, do instinto para a pulsão,
algo jamais reencontrado.
Lacan afirma, tanto na Interpretação dos sonhos, de 1900, quanto no “Projeto para uma
psicologia científica” de 1895, textos inaugurais da psicanálise freudiana, que “encontramos
[...] a mesma fórmula a propósito do objeto”, em “que toda maneira, para o homem, de encontrar
o objeto é, e não passa disso, a continuação de uma tendência onde se trata de um objeto perdido,
de um objeto a se reencontrar” (LACAN, 1985 [1954-1955], p. 13). Ainda sobre a teoria do
desejo introduzida por Freud, o psicanalista francês diz:

Cremos necessariamente que, no centro, as coisas estejam mesmo aí, sólidas,


estabelecidas, à espera de serem reconhecidas, e que o conflito esteja à
margem. Mas o que a experiência freudiana nos ensina, senão que o que ocorre
no campo chamado da consciência, isto é, no plano do reconhecimento dos
objetos, também é enganador com relação àquilo que o ser busca? Na medida
em que a libido cria os diferentes estádios do objeto, os objetos nunca são bem
isso [...] conserva um caráter que, é preciso reconhecer, é inefável, já que a
partir do momento em que se quer articulá-lo, cai-se em contradições de todo
tipo [...].
O desejo, função central em toda experiência humana, é desejo de nada que
possa ser nomeado. [...] Se o ser fosse apenas o que é, não haveria nem sequer
lugar para se falar dele. O ser se põe a existir em função mesmo desta falta. É
em função desta falta, na experiência de desejo, que o ser chega a um
sentimento de si em relação ao ser. É do encalço deste para-além, que não é
nada, ser ele volta ao sentimento de um ser consciente de si, que é apenas seu
próprio reflexo no mundo das coisas. (LACAN, 1985 [1954-1955], p. 302)

15
Como definida sua Interpretação dos sonhos: “[A situação primeira da psique humana] permanece
inalterada, pois a excitação proveniente de uma necessidade interna não se deve a uma força que produza um
impacto momentâneo, mas a uma força que está continuamente em ação. Só pode haver mudança quando, de
uma maneira ou de outra (no caso do bebê, através do auxílio externo), chega-se a uma “vivência de
satisfação” que põe fim ao estímulo interno. Um componente essencial dessa vivência de satisfação é uma
percepção específica (a da nutrição, em nosso exemplo) cuja imagem mnêmica fica associada, daí por diante,
ao traço mnêmico da excitação produzida pela necessidade. Em decorrência do vínculo assim estabelecido,
na próxima vez em que essa necessidade for despertada, surgirá de imediato uma moção psíquica que
procurará recatexizar [reinvestir] a imagem mnênica da percepção e reevocar a própria percepção, isto é,
restabelecer a situação da satisfação original. A um impulso dessa espécie chamamos desejo [Wunsch][...]
(FREUD, 1996 [1900], pp. 560-561).

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Isto é, Freud opera uma revolução com a centralidade do desejo: se até então o objeto
era primeiro, em sua substancialidade, sendo o que faz emergir a pulsão, o desejo, a tendência
do sujeito a ele, agora a tendência é primeira16. Tal mudança coloca duas novidades no objeto:
por um lado, (1) a falta de objeto e, para supri-la, (2) a libido, que passa a criá-los a partir do
modelo narcísico. Mas, seja pelo lado que for, o que se indica é uma diferença radical do objeto
das filosofias e ciências modernas, o qual seria “plenamente satisfatório, objeto típico, o objeto
por excelência, o objeto harmonioso” (LACAN, 1995 [1956-1957], p. 13).

Para dar plena ênfase ao que estou frisando aqui, seria preciso que nos
resolvêssemos a articulá-lo em termos filosoficamente elaborados. [...] Mas
aqueles para quem esses termos já têm um sentido, devido a certos
conhecimentos filosóficos, já podem perceber toda a distância que separa a
relação freudiana do sujeito ao objeto das concepções precedentes, que são
fundadas na noção do objeto adequado, o objeto esperado antecipadamente,
cooptado à maturação do sujeito. (LACAN, 1995 [1956-1957], p. 14)

Esta é uma mudança no estatuto substantivo do objeto que tem muitas implicações para
a satisfação, o desejo e demais pontos da teoria psicanalítica, mas que, para esta argumentação,
coloca no núcleo da relação sujeito-objeto uma tensão, um conflito fundamental, pois o que se
procura não é o que se acha, e o objeto enquanto harmonioso, substantivo, contraparte [stand]
do sujeito, vai perdendo seu estatuto. O objeto se inscreve, assim como o sujeito barrado e todo
o corpo teórico psicanalítico, em um quadro conflituoso (LACAN, 1995 [1956-1957]).
Como citado com Lacan, o objeto recebe, com Freud, duas novidades em sua noção:
criado pela libido-imagem e marcado pela falta. Se, no início da ciência psicanalítica, ele é
posto como sempre reencontrado, já que perdido na satisfação primeira, Lacan radicaliza isso,
colocando que só se pode expor a questão do objeto a tratando como falta de objeto. Nisso
ressoa, é verdade, o objeto perdido freudiano, mas soma a este não a mera impotência de
reencontrar o objeto primeiro de satisfação, mas sim a sua impossibilidade, dado que o sujeito
humano, ao entrar na linguagem, perde algo da possibilidade de uma satisfação, algo de uma
completude que lhe é interditado.

16
“A experiência freudiana parte de uma noção diametralmente contrária à perspectiva teórica [anterior a ela].
Ela começa por estabelecer um mundo do desejo. Ela o estabelece antes de toda e qualquer espécie de
experiência, antes de qualquer consideração sobre o mundo das aparências e o mundo das essências. O desejo
é instituído no interior do mundo freudiano onde nossa experiência se desenrola, ele o constitui, e isto não
pode ser apagado em instante algum do mais mínimo manejo de nossa experiência. O mundo freudiano não é
um mundo das coisas, não é um mundo do ser, é um mundo do desejo como tal” (LACAN, 1985 [1954-1955],
p. 301).

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Se, simbolicamente, o objeto natural complementar, harmonioso, satisfatório quanto ao


que se deseja é interditado ao sujeito, como suplência emerge na experiência humana um objeto
imaginário, construído pela libido, que não satisfaz o desejo, não lhe dá fim, mas permite que
as coisas funcionem.
Tanto de um lado (falta de objeto) quanto do outro (objeto imaginário), o estatuto do
objeto é radicalmente diferente do objeto das filosofias modernas: por um lado, ele é tirado da
realidade bruta e posto na linguagem, marcado ainda como falta, como perdido e impossível de
ser reencontrado; por outro, ele é imaginário, criado a partir das marcas libidinais e pulsionais
do sujeito e não garante uma satisfação última, mas apenas o funcionamento da cadeia
significante que a falta de objeto põe a funcionar em busca de um objeto nunca possível ou
encontrável.
Posto isso, para o seguimento deste texto, há de se fazer um recorte, dado que, para tratar
do objeto em psicanálise, pode-se ir tanto pelo objeto negativo no simbólico (a partir da falta
de objeto, do falo e dos diálogos lacanianos com o estruturalismo e com o hegelianismo)17,
quanto pelo objeto imaginário (aquilo que aparece na realidade do sujeito marcado pelo
pulsional, libidinal e narcísico), ou ainda pelos dois. Em qualquer um destes caminhos,
encontramos a maneira pela qual Lacan revolucionou a noção de objeto, rompendo com a noção
moderna e tradicional. A escolha, porém, será feita, como já indicado, aceitando a indicação de
Le Gaufey (2007) de seguir a noção de objeto imaginário, desde o estádio do espelho até a
noção de objeto parcial, pois, neste percurso, é possível ver os problemas e comprometimentos
que o objeto harmonioso herdado da filosofia engendra.

¿Por qué Lacan se veía llevado a tomar mayores precauciones que sus colegas,
que no tenían ninguna dificultad en hablar de objeto en el sentido común del
término? Esencialmente, debido a que tenía detrás suyo una concepción propia
de tal objeto, muy propicia y fructífera en sus comienzos, y en adelante muy
comprometedora si debiera revelarse como la única en curso: la imagen
especular. En efecto, desde sus primeros pasos en el psicoanálisis, con su
estadio del espejo y el texto más elaborado que se desprendió de ello, o sea
“La familia”, produjo una concepción del objeto exactamente en base al
modelo de la imagen especular: todo lo que aparezca como “objeto” en el
futuro llevará la marca de fábrica de ese primer objeto, esa imagen en el espejo
con la cual el niño se identifica y se aliena en el mismo movimiento, lo que

17
Caminho que tenho desenvolvido em parte da minha dissertação de mestrado (a ser defendida) e que pode
ser acompanhado também em Silveira (2007).

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Lacan llama en aquella época el “nudo de servidumbre imaginaria”. La


expresión es violenta. (LE GAUFEY, 2007, p. 60)

Embora no Seminário 4 (LACAN, 1995 [1956-1957]) tenha justificado o motivo de não


ter iniciado seu ensino com reflexões acerca do estatuto de objeto, vale lembrar que ele abre
seu percurso psicanalítico em 1936 com a comunicação “O estádio do espelho como formador
da função do eu”, na qual ele expõe que o eu se faz pela relação especular com o outro, relação
da qual se extrai também o objeto. Operações que se dão sempre pelo modelo da imagem no
espelho, de alienação na imagem do outro e do próprio eu.
Como indica Miller, a psicanálise sempre foi como as águas sujas de um pântano,
sempre atolada e travada em sua realização teórica — ainda mais se lembrado o revisionismo e
a ambiguidade na versão inaugural dos conceitos, tanto em Freud quanto nos pós-freudianos
em geral. Lacan, ao vê-la dessa forma, buscou maneiras de percorrê-la, refundá-la e torná-la
viável a partir de outros referenciais e fundamentos, sem se deixar afundar. Para isso:

[...] calçou as sandálias aladas de Hermes, detendo-se em outro lugar,


primeiramente no estádio do espelho — sua forma de deixar esse palácio
enlameado. Voando como uma gaivota sobre um mar sujo, cheio de resíduos
das cidades, Lacan foi pousar num pequeno promontório. Com suas pequenas
asas, pousou sobre o estádio do espelho e, em seguida, como esse promontório
era um pouco insuficiente, pousou, ou melhor, encontrou Lévi-Strauss,
Jakobson e a estrutura da linguagem. Esse era um promontório muito mais
interessante, pois podia servir-lhe de alavanca, de ponto de apoio de
Arquimedes, ao lado de quem foi pousar. (MILLER, 1999, p. 11)

Isto é, o estádio do espelho foi essencial para o início do ensino, uma maneira de entrar
nesta história a partir de um outro lugar18, mas que, embora útil e necessária, como afirma Le
Gaufey, se mostrou, no seguir do ensino, comprometedora aos próprios desígnios freudianos,
caso fosse mantida como a única definição de objeto.
Comprometedora, pois descreve o objeto como algo que sempre terá a marca da imagem
especular, com a imagem da criança e do outro no espelho. Comprometedora, pois, como ensina
Lacan no texto de 1936, a imagem do corpo do sujeito, bem como o objeto que disto extrai, são
organizados sob uma unidade.
A própria operação do estádio do espelho é essa: uma identificação especular na qual o
sujeito encontra a unidade de seu corpo e por isso pode ascender a um certo estatuto de sujeito,

18
Vide toda a crítica politzeriana à psicanálise que Lacan absorve, bem como todas as balizas conceituais que
teve de adotar para poder efetivamente se converter à psicanálise e aceitar o inconsciente (cf. SILVEIRA,
2007, pp. 43-50).

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bem como adquirir as faculdades motoras, lidar com o mundo. Uma unidade que, embora
possibilite ao sujeito neurótico tocar sua vida — iludindo-o quanto ao despedaçamento e à
fragmentação corporal —, é ilusória, imaginária, sendo um jogo especular entre espelhos
(LACAN, 1998 [1949], p. 98). Imagens que dão consistência à experiência humana, que dão as
coordenadas ao sujeito quanto a sua constituição, àquele com o qual se relaciona e ao que toma
e compreende como objeto.
Esta unidade imaginária é o que, em 1971, no Seminário 19, Lacan denominou ‘uniana’:
“una unidad englobante, que posee su propia circunscripción, que funciona como una bolsa,
pariente cercano de la unidad de conjunto y de su vocación por reunir en un ‘todo’ tantos
elementos como se quiera, ocasionalmente una infinidad” (LE GAUFEY, 2007, p. 61).
O que ao lado do objeto coloca alguns problemas em seu ensino, se for sabido o seu
destino: (1) o objeto ainda é marcado pelo um, não seguindo, ainda, a orientação barrada,
parcial, conflituosa de seu sujeito, logo não colocando uma crítica séria ao objeto uno da
filosofia. Qual o perigo disso? (2) O objeto em seus significados imaginários encerra-se sempre
no narcísico, na imagem do espelho, (3) o objeto se confunde com o outro semelhante, dado
que ambos derivam dessa matriz especular (LE GAUFEY, 2007, p. 61), o que permite recair
não só na confusão transitivista imaginária, mas também em sua agressividade 19.
Essa confusão entre objeto e outro, que ainda incluirá o eu, pode ser ilustrada com os
esquemas lacanianos, por exemplo, o esquema L que, não por acaso, é retomado por Lacan na
abertura do seminário de 1956-1957 para falar do desvio da noção de objeto como relação de
objeto, como relação dual de duas entidades plenas, pré-formadas que estariam em pé de
igualdade, em relação complementar (cf. LACAN, 1995 [1956-1957], p. 12).
Este esquema foi apresentado no Seminário 2 de Lacan (1954-1955) para introduzir o
Outro enquanto estrutura e lugar simbólico. Além das muitas coisas que esta formalização
permite compreender sobre esse momento de seu ensino, para a argumentação aqui proposta,
ele formaliza a relação entre o eu e o outro especular descrita de forma semelhante pelo estádio
do espelho. Uma relação imaginária, na qual o eu se constitui pela imagem e pela relação ao

19
Como aponta Lacan no Seminário 7, já com uma visão crítica disso, como veremos também no decorrer do
texto: “Vocês sabem que a função do espelho, que acreditei ter de introduzir como exemplar da estrutura
imaginária, se qualifica na relação narcísica. [...] que pode implicar os mecanismos do narcisismo e,
nomeadamente, a diminuição destrutiva, agressiva [...]” (LACAN, 2008 [1959-1960], p. 183). Ele retoma aqui
algo que trazia já em 1948 com o texto “Agressividade em psicanálise”: há uma tendência agressiva intrínseca
à identificação narcísica, dado que nela se instala a luta pelo prestígio, a luta de morte (retomada de Hegel),
pois, nessa confusão com o outro, acaba-se querendo seu lugar, seus objetos, ele próprio como objeto, o que
implica sua destruição, “Essa forma se cristalizará, com efeito, na tensão conflitiva interna ao sujeito, que
determina o despertar de seu desejo pelo objeto do desejo do outro: aqui, o concurso primordial se precipita
numa concorrência agressiva, e é dela que nasce a tríade do outro, do eu e do objeto [...]” (LACAN, 1998
[1948], p. 116)

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outro, uma relação transitivista, fazendo ilusão de completude, dualidade com esse outro/objeto,
mas que é curto-circuitada pelo inconsciente, pelo muro da linguagem que a atravessa.
O prosseguimento do ensino lacaniano mantém essa confusão: o a que é objeto e
(pequeno) outro/outro do eu que faz uma completude, um todo ilusório imaginário. O
emaranhado confuso do “nó da servidão imaginária” mencionado por Le Gaufey ainda não
permite um objeto à altura do sujeito do inconsciente, conflituoso como sua própria ciência,
pois ainda se adequa aos predicados filosóficos de completude, operação de síntese, totalização.
O objeto continua acoplado, fazendo par com o sujeito, sem perceber que o sujeito
mudou e não se restringe mais ao eu, ao âmbito do narcisismo e não é mais em si independente,
fechado e pleno, pronto a entrar em uma relação dual, na qual há dois lados que fazem um e
que, juntos, fazem dois.
Para Le Gaufey (2007), a saída deste engodo imaginário, dessa relação imaginária
transitivista, que permite uma confusão entre eu-outro-objeto, depende de uma diferenciação
entre o objeto e o outro como semelhante (p. 61), implicando manejar a concepção de unidade
até então posta, o objeto sempre pensado com a síntese, com a totalidade e a identidade, i.e.,
nos termos aqui trabalhados, com um retorno crítico ao lote conceitual filosófico herdado.
Embora Lacan tenha caminhado muito quanto ao objeto em sua vertente relacionada à
falta e ao significante, para Le Gaufey, um primeiro avanço acerca da noção de objeto, até então
uno e narcisicamente determinado, pode ser encontrado no Seminário 7, de 1959-1960,
intitulado A ética da psicanálise. O que é operado com a introdução da Coisa, das Ding,
conceito introduzido por outros motivos que os de definição objetal, mas que acaba sendo um
primeiro movimento rumo a uma noção não-narcísica de objeto, para além do “nó da servidão
imaginária”.
Ao falar da relação da libido com o eu, Lacan reconhece que

[…] o problema da relação com o objeto deve ser lido freudianamente. Vocês
o veem emergir [em Freud] numa relação narcísica, relação imaginária. Nesse
nível o objeto é introduzido na medida em que ele é perpetuamente
intercambiável com o amor que o sujeito tem por sua própria imagem [...]
entre a miragem do eu e a formação de um ideal. Esse ideal ocupa sozinho seu
campo, vem no interior do sujeito dar forma a algo que se torna preferível e
ao qual doravante vai se submeter. O problema da identificação está ligado a
esse desdobramento psicológico que situa o sujeito numa dependência em
relação a uma imagem idealizada, forçada, de si mesmo [...] É nessa relação
de miragem que a noção de objeto é introduzida. Mas esse objeto não é a
mesma coisa que aquele visado no horizonte da tendência. Entre objeto, tal
como estruturado pela relação narcísica, e das Ding, há uma diferença [...]
(LACAN, 2008 [1959-1960], pp. 121-122).

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Além de reconhecer e anunciar os problemas do objeto definido e resgatado desde


Freud, o objeto que emerge em seu estádio do espelho — idealizado, que submete o sujeito,
preso às amarras da identificação e aos problemas do imaginário — é considerado por Lacan
como diferente de das Ding, deste objeto absolutamente outro que se apresenta e se isola como
estranho [Fremde], fora do significado (logo, fora da representação, do pensamento e da
imagem, bem como do simbólico e do imaginário que estruturam tais âmbitos), como aquilo
que não obedece uma tendência, mas que a funda, que funda “a orientação do sujeito humano
em direção ao objeto”, sendo assim o objeto por excelência perdido (LACAN, 2008 [1959-
1960], p. 74).
Retomando o objeto reencontrado de Freud, Lacan diz que das Ding é, por sua natureza,
o objeto perdido como tal, que jamais será reencontrado a não ser na saudade, pois é o que dá
as coordenadas de prazer ao sujeito (LACAN, 2008 [1959-1960], p. 68), não sendo nem algo
substantivamente perdido que permite apenas traços de memória de uma satisfação impossível
de ser reconstruída (como na teoria do desejo em Freud), nem uma imagem extraída pelo sujeito
de sua relação com o espelho e com o outro, mas algo estranho, aquém do significado e do
significante, que funda a tendência, a pulsão e o desejo.
Com essa nova compreensão de objeto, Lacan pôde rever criticamente a noção corrente
de objeto, tanto na filosofia moderna quanto na tradição psicanalítica desde Freud, i.e., o objeto
em par com o sujeito, pleno, uno, consistente e sintetizado. Nova compreensão de objeto que
permite que o psicanalista perceba o comprometimento da antiga noção de objeto enquanto
determinado pelo ideal das imagens, pelas identificações, i.e., por um ideal dado pelo outro,
pelas imagens disponíveis e estruturantes do objeto e do eu do sujeito, além de abrigar essa
miragem de completude com o objeto e com o outro, de uma possível totalidade do sujeito.
Nova definição de objeto que é resgatada do “Projeto para uma psicologia científica” de
Freud e que desde lá fora subtraído da noção de objeto até então corrente, subtraída da unidade
(imaginária) que este até então carregava, não sendo mais este objeto que, para Le Gaufey,
remonta à unidade e à afirmação leibniziana de equivalência entre o ser e o um, no qual inexistia
a possibilidade de afirmar um objeto não-um, não uno, para além ou aquém da unidade
imaginária narcísica dada. Com das Ding, coloca-se algo que escapa à representação, ao
significante, ao simbólico, algo que encarna o inarticulável do juízo, abrindo caminho assim
para sustentar uma existência e um objeto para além da unidade, que rompa com ela — “Das
Ding, por su pretensión de escapar de la representación, encarnando lo que constituye la parte
inarticulable del juicio, abría un camino para llegar a sostener la existencia de un objeto que
habría roto las amarras con la unidad” (LE GAUFEY, 2007, p. 62).

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Com este objeto por excelência, vemos uma cisão entre objeto e determinação narcísica,
bem como entre objeto e unidade, objeto e outro, pois inscreve-se uma cisão no seio da noção
de objeto, assim como já havia ocorrido com o sujeito. Objeto passa a remontar ao objeto
perdido freudiano, não mais de consistência orgânica ou biológica, como poderíamos pensar os
objetos imaginários da pulsão, e sim um objeto de consistência lógica, havendo assim uma
diferença entre o objeto perdido e o reencontrado, das Ding e os objetos pulsionais que
encarnam esse lugar impossível, respectivamente (LACAN, 2008 [1959-1960], p. 74).
Mas a separação entre objeto e um, existência e unidade, pelo menos quanto à questão
do objeto, não para por aí, Lacan não conclui sua crítica da noção de objeto apenas com das
Ding. Ele ainda lança mão de outras operações para manter a marcha do objeto ao não uno,
como, por exemplo, no seminário do ano seguinte, de 1960-1961, sobre a transferência. Neste,
a partir da noção de agalma, tratou do objeto como objeto precioso, como um ornamento, um
adorno, no qual sublinha o aspecto brilhante: “[...] o importante é o sentido brilhante, o sentido
galante, pois este termo vem de gal, brilho no francês antigo. Em suma, de que se trata? —
senão daquilo do qual nós, analistas, descobrimos a função sob o nome do objeto parcial”
(LACAN, 2010 [1960-1961], p. 146).
O brilhante é importante, pois permite um primeiro deslizamento de sentido, dado que
não é mais o objeto particular ou em sua consistência que aparece a partir do agalma, mas sim
uma propriedade deste objeto, um acidente deste, não sua substância. Não-substantivação que
tem como consequência a apresentação do objeto sem recair nos universais dos quais
decorreriam a unidade, a totalidade, o fechamento; não recaindo, em suma, no objeto como
conhecido e compreendido até então.

No se trata en efecto de considerar el agalma como ‘lo brillante’, un brillo al


que se le otorgaría una existencia fuera de los objetos a los que se refiere. Es
un objeto… que no tiene el ser pleno y estable que se suele esperar de un
objeto, del cual creemos saber de antemano que es a la vez: sustantivo en la
lengua, duradero en el espacio y el tiempo, dotado de un ser que lo hace
participar de una ontología natural, etc. El agalma por su parte se presenta de
entrada al revés con respecto a esa plenitud. (LE GAUFEY, 2007, p. 65)

Lacan identifica, assim, o agalma ao objeto parcial, comum na tradição analítica de sua
época, o que não significa que o fará sem alguma subversão. Objeto parcial que reconhece como
um achado analítico, mas que fora arredondado, totalizado pelos analistas que tentaram de novo
retornar ao 1 — eis, novamente, outro exemplo do revisionismo em prol das formações
filosóficas ideológicas, como diria Althusser. Lacan, operando contra isso, diz que:

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[...] nós [analistas] também apagamos o mais que pudemos aquilo que quer
dizer objeto parcial. Havia ali uma descoberta, a do lado fundamentalmente
parcial do objeto na medida em que ele é pivô, centro, chave do desejo
humano. Isso bem valeria que nos detivéssemos um instante. Mas não, qual
nada, nosso primeiro esforço foi interpretá-lo apontando para uma dialética da
totalização, transformá-lo no objeto chato, o objeto redondo, o objeto total, o
único digno de nós, o objeto esférico sem pés nem patas, o todo do outro,
onde, como todos sabem, irresistivelmente nosso amor acaba, encontra seu
término. (LACAN, 2010 [1960-1961], p. 147)

Embora tenha havido a descoberta do objeto parcial, os analistas o totalizaram 20, o ser
voltou a equivaler ao um. É interessante notar nessa citação como ele próprio joga com os
termos unidade, todo, totalização, mostrando as várias consequências do fechamento e
unificação deste objeto, chegando a falar de uma dialética, de um processo, de um esforço de
totalização.
Embora Lacan coloque o objeto parcial na história da psicanálise, fazendo parecer uma
descoberta freudiana, Le Gaufey aponta que tal noção, em verdade, é de construção lacaniana,
um sentido inédito tecido pelo psicanalista francês: “en un sentido totalmente inédito, un objeto
que no viene de ninguna totalidad, que no pertenecen ni se destina a ninguna, y para el cual el
término griego de agalma viene a ofrecer su refugio” (LE GAUFEY, 2007, p. 68).
Isto é, o objeto no ensino de Lacan sempre esteve às voltas com o problema da unidade,
do um, algo posto e anunciado já pelo primeiro estatuto que este recebeu no ensino com o
especular, imaginário e narcísico no estádio do espelho. Com esse pano de fundo, vê-se que, na
citação acima, o comentador afirma que o objeto parcial posto por Lacan não vem, pertence ou
se destina a totalidade alguma, i.e., não tem uma totalidade, nem anterioridade lógica,
cronológica ou biológica, nem se destina, visa, se move visando fazer ou compor uma
totalidade.

4
Tendo introduzido, criticamente, a noção de objeto parcial em seu ensino, Lacan,
buscando dar um tratamento teórico e até filosófico para este objeto não um, entra, segundo Le
Gaufey, em diálogo com Kant a partir do Seminário 9, no ano letivo de 1961-1962.

20
Dos quais Le Gaufey cita Abraham e Klein com o amor parcial de objeto e o objeto parcial e até Freud que
introduz a noção de parcialidade para falar das pulsões, embora todos esses tenham sempre em seu horizonte
a síntese, o todo, i.e.: o objeto é parcial, pois é parte de um todo ou objeto de pulsões que tenderiam à
unificação (LE GAUFEY, 2007, p. 68).

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Neste seminário, entre um debate e outro com a estética transcendental kantiana, nas
aulas entre 28 de fevereiro e 28 de março de 1962, o psicanalista traz as quatro diferentes
divisões do conceito de nada, apresentadas por Kant em sua Crítica da razão pura (2001, pp.
292-4). Ao comentá-las, diz que sempre que os analistas se deparam com a relação entre o
sujeito e o nada, eles escorregam entre duas concepções: “a inclinação comum, que tende em
direção a um nada de destruição, [que] é a inoportuna interpretação da agressividade” e a
“nadifícação que se assimilaria à negatividade hegeliana”. Já o nada, a negatividade que tenta
introduzir em seu ensino em relação à instituição do sujeito — e, nesta argumentação, adiciona
também a instituição do objeto —, é outra coisa, de outra ordem, não redutível a estas duas
(LACAN, 2003 [1961-1962], pp. 227-228).
Ele ainda continua dizendo que a negatividade, o nada que tenta introduzir é “distinto
de qualquer ser de razão, que é aquele da negatividade clássica, de qualquer ser imaginário
[uniano], que é aquele ser impossível quanto a sua existência”, que remete à pena dos lógicos
e metafísicos que impossibilitam a existência do nada e de qualquer coisa fora do conceito.
Enquanto a sua negatividade seria, isto sim, o que Kant, em sua tábua do nada, chama de nihil
negativum: um objeto vazio sem conceito, i.e., “sem ser possível agarrá-lo com a mão”
(LACAN, 2003 [1961-1962], p. 228).21
Isso muito tem a ver com a parcialidade, por não estar localizado nem no conceito, nem
na representação (como posto com das Ding), nem na conjunção entre ser e um, i.e., abaixo do
juízo leibniziano (como colocado com Le Gaufey acima), mas no sem conceito, fora daquilo
que, ao final da citação, Lacan retoma da noção de Begriff como aquilo que se pega com a mão,
passível de ser agarrado.
A saída do impasse posto no início de seu ensino em sua definição de objeto (objeto
dado e unificado especularmente a partir das imagens e ideais dadas pelo outro) está em rejeitar
tanto o especular-imaginário, quanto toda a amarração que se acompanha em grande parte da
filosofia moderna ocidental, as amarras do um com o conceito, com a totalidade, com a unidade,
revendo as heranças filosóficas que Freud imputou à sua ciência e desafiando o próprio campo
da filosofia que, hegemonicamente, põe-se a trabalhar neste registro.
Para isso, Lacan coloca-se, como aponta Le Gaufey, do lado do nihil, do nada, da
negatividade mesma, enquanto os demais teóricos (filósofos ou psicanalistas) estariam do lado

21
Vale lembrar o tipo de uso que Lacan fazia da filosofia, não um uso exegético ou fiel à letra dos autores ou
das mais diferentes tradições, mas que servia a seus fins de ensino e pesquisa, o que além de melhor justificar
a referência à noção de objeto da filosofia em geral de maneira vaga e abrangente, não o compromete com
uma leitura pretensamente rigorosa ou correta, mas subordinada aos seus fins.

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do ser ou, quando muito, do lado da mera negação deste ser. Vemos assim que ele “se esforça
para sustentar a existência paradoxal de um nada livre de toda essência”, de uma existência que
não presta contas à essência, ao um, ao conceito, à totalidade (LE GAUFEY, 2007, p. 74),
noções e conceitos chaves à filosofia ocidental, principalmente em seu recorte moderno.
Pondo em impasse a definição de objeto que tinha até então, a partir do modelo da
imagem una e narcísica do estádio do espelho, Lacan abre dois caminhos para lidar com o
objeto: primeiro, a partir de sua teoria do desejo e da falta de objeto acoplada ao significante e,
em segundo lugar, dos significados imaginários que em tal falta poderia encarnar. Seguindo
esta segunda via, esta argumentação mostrou que a determinação narcísica (as partes do corpo
pulsional) e una (garantido pela imagem) prevalecem no ensino até que, com das Ding e com
o objeto enquanto agalma, Lacan consegue dar outra fundamentação epistemológica à
objetalidade.
Assim, Lacan retoma criticamente não só o problema filosófico da unidade ou da
totalidade, mas das relações destas com o ser e com o conceito. Ele toca, com seu tratamento
da noção de objeto, não só num tema caro à filosofia, mas, usando termos althusserianos, no
próprio cerne do edifício ideológico-filosófico, no seu ponto mais central e sensível: a
metafísica que o sustenta e lhe dá consistência. Ao buscar um objeto para além do Gegenstand,
que estivesse à altura do sujeito da psicanálise, ele enfrenta o conceito, põe em sua ciência uma
existência que não se reduz à essência, que não se inscreve no campo conceitual e que, por isso,
não recai no um e no ser, não os considera equivalentes e não se permite sintetizar, totalizar. O
que tem como resultado não só a crítica do objeto ou uma nova noção deste, mas um
aprofundamento, uma radicalização da revolução posta em curso por Freud no seio das ciências
humanas, dando-lhe novas perspectivas epistemológicas, novos “conceitos” não mais de
empréstimo, mas à altura da descoberta freudiana. Conceito entre aspas, pois até a noção de
conceito, daquilo que se agarra com a mão — como citado acima com Lacan — é posto em
questão, dado que se está em um campo de investigação que busca, como bem formula
Althusser, lidar com um objeto que está fora do pensamento (ALTHUSSER, 1985, p. 76).
Seguindo a tese althusseriana de cooperação e codeterminação entre as ciências, ainda
mais entre as chamadas ciências humanas, se a psicanálise se utilizou da filosofia e de sua
história para fundamentar seu campo em Freud e radicalizar-se na abordagem lacaniana, agora
devemos, enquanto filósofas, conferir o que isso implica para filosofia, quais consequências se
podem tirar dos desafios postos pela psicanálise ao sujeito, ao objeto, mas também à existência
e à essência, ao conceito, ao ser e à unidade. Como bem resumiu Badiou, “o anti-filósofo
Lacan é uma condição do renascimento da filosofia” (1991, p. 47), o que, como esta

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argumentação buscou introduzir, nos coloca orientações de pesquisa e investigação, tarefas


teóricas para o fazer filosófico. Tentemos estar à altura disso.

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REFERÊNCIAS

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Recebido em:15/05/2021
Aprovado em: 11/06/2021
Publicado em: 15/07/2021

ESTRUTURA E TOPOLOGIA NA PSICANÁLISE DE JACQUES LACAN

STRUCTURE AND TOPOLOGY IN JACQUES LACAN'S PSYCHOANALYSIS

Pedro Henrique Bedin Affonso1


([email protected])
José Francisco Miguel Henriques Bairrão2
([email protected])

Resumo: O presente artigo perfaz a trajetória da noção de estrutura que atravessa o ensino de Jacques
Lacan, no intuito de ressaltar a especificidade de suas ocorrências, situar as problemáticas que permeiam
suas variações, evidenciar suas implicações e indicar o horizonte derradeiro para o qual apontam.
Propõe-se uma abordagem intrinsecamente coerente com a problemática a que se dedica, tomando a
noção de estrutura como termo cuja consistência está atrelada à enunciação de um sujeito e articulada
estruturalmente por um discurso, portanto, submetido à covariância e à retroação, permitindo especular
sobre o sentido desta noção, mas também do ensino de que é tributária, a partir das hiâncias abertas por
suas reformulações. Encontra-se que, para além de uma concepção formalista, a estrutura, no ápice de
sua articulação topológica, ultrapassa o patamar ontológico e se enraíza na especificidade de uma
abordagem da significância, explicitando a inextricabilidade entre ética e topologia subsumida no ato
analítico.

Palavras-chave: Psicanálise. Jacques Lacan. Estrutura. Sujeito. Topologia.

Abstract: This article outlines the trajectory of the notion of structure that crosses Jacques Lacan's
teaching, in order to highlight the specificity of its occurrences, situate the problems that permeate its
variations, evidence its implications and indicate the ultimate horizon to which they aim for. It proposes
an approach that is intrinsically coherent with the problem to which it is dedicated, taking the notion of
structure as a term whose consistency is linked to the enunciation of a subject and structurally articulated
by a discourse, therefore, submitted to covariance and retroaction, allowing to speculate on the meaning
of this notion, but also of the teaching of which it is tributary, from the gaps opened by its reformulations.
It is found that, beyond a formalistic conception, the structure, at the apex of its topological articulation,
surpasses the ontological level and is rooted in the specificity of an approach to significance, pointing
out the inextricability between ethics and topology that is subsumed in the analytical act.

Keywords: Psychoanalysis. Jacques Lacan. Structure. Subject. Topology.

1
Doutorando em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/3231397503602671.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1062-367X.
2
Professor Doutor na Universidade de São Paulo (USP).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6050765190622445.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6372-8873.

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1 PREÂMBULO À PROBLEMÁTICA CIENTÍFICO-METODOLÓGICA NA


PSICANÁLISE

No final do século dezenove, mediante a extrapolação progressiva do programa


naturalista em campos do conhecimento dedicados ao estudo do ser humano e da cultura,
decorrente da adesão generalizada às teses evolucionistas de Darwin, surge um movimento de
resistência que proclama a especificidade do método científico para as ciências naturais,
propondo então uma cisão entre ciências humanas e naturais.
De acordo com Simanke (2009), essa reação antinaturalista afirmava a “especificidade
metodológica das Geisteswissenschaften, condensada na célebre oposição entre explicação e
compreensão, tanto que esse debate passou para a história das ideias como a ‘disputa dos
métodos’” (SIMANKE, 2009, p. 222). Entretanto, a discussão logo teria rumado do embate
metodológico para um problema ontológico, de forma que “a irredutibilidade das ciências
humanas passou a ser justificada em termos de especificidade ontológica de seus objetos – o
ser humano e os produtos da sua ação – que, de uma forma ou de outra, constituir-se-iam em
exceções à ordem da natureza” (SIMANKE, 2009, p. 223).
Essa disputa no âmbito científico, também conhecida como “querela dos métodos”, do
ponto de vista dos pesquisadores em ciências humanas, buscava legitimar sua atividade como
científica a partir de outros critérios metodológicos, tão válidos quanto os das ciências naturais,
porém mais adequados a seu objeto de estudo. Tratava-se de sustentar um método da
compreensão, a hermenêutica, pelo qual a “realidade do espírito poderia ser interpretada — ao
invés de explicada — quando se levasse em consideração que suas características permitiriam
uma modalidade de estudo diferente da adotada para os fenômenos naturais, a saber, o
entendimento, o autoconhecimento e a consciência histórica” (ORQUIZA DE CARVALHO &
MONZANI, 2015, p. 796).
O debate acerca do dualismo metodológico surge no seio da filosofia da ciência no final
do século dezenove e, de certa forma, permanece vigente até hoje, não tendo ainda sido
completamente superado. A psicologia se viu no meio desse debate, desde as influências da
fisiologia na criação, por Wundt, do primeiro laboratório de psicologia científica em Leipzig,
em 1879, inscrevendo a quantificação em seu programa, a fim de seu reconhecimento como
ciência natural (ASSOUN, 1983). Tratava-se, para Wundt, de possibilitar a integração da física
na psicologia pela adoção do paralelismo psicofísico, ou seja, considerar que processos
físicos e psíquicos ocorriam paralelamente, sem interação ou possibilidade de reducionismo

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a um dos lados (ORQUIZA DE CARVALHO & MONZANI, 2015). Wundt, posteriormente,


sofreu críticas de Haeckel por supostamente derivar do paradigma das ciências naturais para as
ciências do espírito (ASSOUN, 1983), mas também de Karl Popper (2013), em relação à ideia
de consciência de si, pela perspectiva representacionista (MENDES, 2018).
O problema não se esgotou com Wundt, tendo afetado de modo geral o campo da
psicologia que se desenvolveu desde então. De acordo com Simanke (2009, p. 225), “desde
suas origens, o status científico da psicologia [...] permaneceu indefinido, como no debate que
opôs Dilthey (que sustentava a psicologia como uma “ciência do espírito”) aos filósofos da
escola de Baden (que lhe recusavam essa condição)”. Assim, o campo da psicologia se viu
fragmentado em uma pluralidade de correntes de investigação concorrentes, algumas mais
próximas do naturalismo — como no caso da psicologia comportamental e cognitiva — e outras
das humanidades — como as psicologias humanistas (SIMANKE, 2009).
Embora a psicanálise tenha surgido justamente na época em que florescia essa disputa
metodológica no âmbito científico, Freud não teria demonstrado grande interesse no debate,
estando convencido de que a única opção para a psicanálise ser considerada uma ciência seria
subscrevendo-se ao paradigma das ciências da natureza (ASSOUN, 1983; ORQUIZA DE
CARVALHO & MONZANI, 2015; SIMANKE, 2009). Apesar do aparente desinteresse de
Freud no debate que lhe era contemporâneo, a psicanálise por ele desenvolvida não somente
possuía uma aspiração para tratar de questões relativas às ciências humanas, como a arte, a
cultura e a religião (FREUD, 1996a, 1996b; SIMANKE, 2009), como também apresentava certa
discrepância metodológica com as ciências naturais, principalmente no que se refere a um de
seus conceitos principais, estreitamente relacionado à práxis psicanalítica, a saber, a
interpretação. Esse problema metodológico é identificado por Orquiza de Carvalho e Monzani
na obra de Freud, deixando a seguinte questão sem resposta: “se a interpretação seria um
componente do método das ciências do espírito, como poderia ele inseri-la de modo tão
expressivo na técnica psicanalítica sem se preocupar com suas implicações para a natureza de
sua cientificidade?” (2015, p. 796).
De acordo com Assoun (1983), a dicotomização entre explicação e
compreensão/interpretação não se aplica exatamente à psicanálise freudiana, na medida em que
interpretação e explicação “exprimem uma démarche homogênea que não justifica turbulência
no modelo epistemológico naturalista” (p. 49). Para o autor, a interpretação visa desvelar “o
vínculo objetivo entre o conteúdo manifesto e o conteúdo latente do sonho [...] a eficiência
material da causa. Por conseguinte, o ato interpretativo nunca se liberta totalmente do ato
explicativo pelo qual se remonta do efeito à causa” (ASSOUN, 1983, p. 50). Para o autor,

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a epistemologia freudiana possuiria um fundamento monista radical, tomado de Haeckel, que


teria por efeito “recusar a separação de duas substâncias distintas que seriam caracterizadas
como ‘alma’ e ‘corpo’. Ora, somente essa distinção ontológica funda a distinção
epistemológica: uma vez recusada a primeira, a segunda se torna, ipso facto, caduca”
(ASSOUN, 1983, p. 51)3.
Devemos, no entanto, sublinhar a limitação de uma concepção monista para a
psicanálise, conforme o próprio Assoun (1983) reconhece, pois esta, em última instância, se
distancia de um naturalismo monista na medida em que “a ideia de natureza (instintiva) não
combina com um valor monista” (p. 241), se dirigindo a um descentramento de si, sem
possibilidade de retorno. Indo além na crítica à leitura proposta pelo autor, há que se considerar
que, ao pender para uma aproximação ao monismo — ainda que o rejeite como ato final —, ela
não permite uma apreciação apurada do dualismo pulsional freudiano e escamoteia a
problemática concernente à relação entre sujeito e objeto em psicanálise, a nosso ver,
fundamental.
De qualquer modo, é certo que o impacto do legado freudiano produziu ondas na
superfície da epistemologia de sua época, que são até hoje sentidas nos mais variados campos
do saber. Essas reverberações freudianas também foram alvo de abafamento, não somente dos
críticos que a ele se opuseram, mas, principalmente, dos próprios psicanalistas. Ao menos é o
que indicou reiteradamente o psicanalista francês Jacques Lacan, tendo como objetivo
declarado de seu ensino um retorno à letra de Freud, visando extirpar as concepções,
hegemônicas em sua época, que supostamente estariam deturpando a virulência da obra do
fundador da psicanálise para poder amplificar seu alcance. Tratar-se-ia de uma reestruturação
da psicanálise, dando um novo estatuto ao inconsciente — “estruturado como uma linguagem”,
e não mais representacionista, reformulando a metapsicologia freudiana em termos de uma
estrutura significante — que visava ir além da dicotomia psique-soma, não sem requerer antes
uma reforma da estética transcendental kantiana — a qual o próprio Freud pôde sucintamente
indicar a necessidade no fim de sua vida4.
Partimos da hipótese de que, ao percorrer a trajetória do ensino de Lacan, seguindo o
fio da noção de estrutura que o atravessa e delineando suas variações em relação às

3
De acordo com o autor, a obra de Haeckel seria um referente constante ao longo de toda elaboração freudiana,
pois, segundo ele, “encontramos sua influência em numerosos pontos da conceitualização freudiana, desde a
teoria das pulsões fundamentais, que descobre a inspiração atomística e cosmogônica, até a teoria da
civilização, com as considerações antifinalistas que a adornam”. (ASSOUN, 1983, pp. 236-238).
4
Cf. Freud: “O espaço pode ser a projeção de extensão do aparelho psíquico; nenhuma outra derivação é
provável. Em vez dos determinantes a priori, de Kant, nosso aparelho psíquico. A psique é estendida; nada
sabe a respeito” (1996c, p. 318).

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problemáticas que bordeja, seria possível desvendar as consequências dessas sucessivas


transformações e lançar luz sobre o sentido da empreitada do psicanalista, especialmente acerca
de seus derradeiros desenvolvimentos topológicos nos anos setenta.
Para abordar essa problemática, primeiramente resgatamos o problema metodológico
instaurado no meio intelectual no final do século dezenove, o posicionamento de Freud e suas
repercussões para a psicanálise. Em seguida, apresentaremos o delineamento do programa
estrutural do “retorno a Freud” de Lacan, no qual a estrutura surge como noção privilegiada
para subverter o problema metodológico e articular sua concepção de sujeito. Retraçaremos a
interlocução do psicanalista com Lévi-Strauss em torno da problemática da estrutura, situando
suas divergências em termos epistemológicos e ontológicos. Mostraremos como a reformulação
dos problemas da causalidade inconsciente, da estética transcendental kantiana e da
objetalidade em psicanálise nos anos sessenta convergem para o requerimento de articulação
topológica da estrutura. Por fim, abordaremos o problema do estatuto da estrutura do nó
borromeano empregado por Lacan nos anos setenta, destituindo a esperança de fundamentação
pela axiomática conjuntista. Esse panorama se constitui de forma homóloga à noção de
estrutura, concebida não apenas como rigorosamente articulada pelo ensino de Lacan, mas
também como fio condutor estruturante de sua lógica interna e, portanto, menos afeita a
conceitualização do que à covariância das relações a outros termos, extraindo seu sentido
retroativamente.
A noção de estrutura, em sua especificidade no âmbito do ensino de Lacan, é solidária
de uma concepção renovada do significante, o qual se distingue radicalmente de sua acepção
originária da linguística, como objeto semiótico. Trata-se do significante irredutível à
materialidade sonora — ainda que se utilize de recursos que produzam certa ressonância, como
a homofonia, justamente para produzir o equívoco que viria a dissolver uma significação
cristalizada —, tomado puramente em sua significância, como marca constitutiva do corpo
erógeno, elemento da produção de sentido e identificação.
O significante como definido pela diferença em relação aos demais significantes, mas
também em relação a si mesmo, é inapreensível por uma razão identitária, subsistindo somente
enquanto representante do sujeito mediante outro significante. Sendo indefinível em si, só pode
ser apreendido enquanto relação aos demais significantes do Outro. A (in)fundamentação dessa
definição tem como referente último nada menos que a alteridade que, tomada rigorosamente
como tal, não se deixa definir conceitualmente ou se cristalizar em uma significação qualquer,
nem mesmo se caracterizando por uma opacidade que criaria uma espécie de
inacessibilidade ilusória a sua inexistente essência. Trata-se justamente do ser da

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significância que, para se sustentar como tal – ou seja, em relação à alteridade absoluta –, jamais
pode ser definido proposicionalmente. É por essa razão que, se no limite está posta a dimensão
ontológica como producente de realidades fantasísticas, convém caminhar no tênue limiar em
que a estrutura produtora de sentido se sustente como desprovida de sentido em si, se
restringindo a operar um equacionamento dos limites e torções da dimensão da significância
que convoca o sujeito cada vez que se produz, implicando-o eticamente na enunciação de um
dizer mediante sua cisão entre saber e verdade. Em última instância, a estrutura – e,
particularmente, o ápice de sua articulação topológica, apresentado pelo nó borromeano –
evidencia a inelidível dimensão ética subsumida no ato analítico, conforme abordaremos mais
adiante.

2 O PROGRAMA ESTRUTURAL DE “RETORNO A FREUD” DE JACQUES


LACAN

Insurgido contra as concepções de psicanálises biologicistas, adaptacionistas e


cognitivistas, Jacques Lacan propõe uma refundação da psicanálise a partir da apropriação das
elaborações do movimento estruturalista, a saber, da linguística de Saussure e Jakobson e da
antropologia de Lévi-Strauss. O estruturalismo surgia com a promessa de superar o dualismo
metodológico entre ciências naturais e humanas sem ter que adotar uma postura naturalista ou
hermenêutica. De acordo com Simanke, esse movimento se propunha a “ultrapassar a
alternativa entre explicação e compreensão, dotando as ciências sociais de estratégias de
análise, teorização e formalização comparáveis em rigor às das ciências da natureza, mas
assumindo plenamente a fratura ontológica entre os dois domínios” (2009, p. 223).
Cabe destacar que as noções de formalização ou teorização empregadas pelos
estruturalistas não se confundem com uma abordagem formalista. Sales (2008) apresenta uma
citação de Lévi-Strauss em que o autor sintetiza o eixo da divergência entre o formalismo e o
estruturalismo, a qual reproduzimos na íntegra:

Ao inverso do formalismo, o estruturalismo recusa opor o concreto ao


abstrato, e não reconhece no segundo um valor privilegiado. A forma se define
por oposição a uma matéria que lhe é estranha; mas a estrutura não tem
conteúdo distinto: ela é o próprio conteúdo, apreendido numa organização
lógica concebida como propriedade do real. (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 121
apud SALES, 2008, p. 98)

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A autora ainda menciona em nota de rodapé que, por esta razão, Merleau-Ponty afirmou
que “por princípio, a estrutura não é uma ideia platônica” (1984, p. 197 apud SALES, 2008, p.
98). Acrescentamos que, de acordo com Maniglier “é justamente porque a estrutura é
rigorosamente definida como um sistema de transformação, que ela não pode ser representada
sem fazer de sua representação uma parte de si mesma” (MANIGLIER, 2000, p. 238 apud
VIVEIROS DE CASTRO, 2015, n.p). Assim, a unidade da estrutura se constitui, não pelo que
se repete identicamente em duas variantes de um mito, mas pela diferença que surge “entre”
elas, como uma matriz que articula a transformação de uma variante em outra, destacando o
“entre”, de maneira que “a estrutura é rigorosamente coextensiva a suas atualizações. Eis por
que Lévi-Strauss insiste na diferença entre o estruturalismo e o formalismo, que se tende
obstinadamente a negligenciar” (MANIGLIER, 2000, pp. 234-235 apud VIVEIROS DE
CASTRO, 2015, n.p).
Não restam dúvidas quanto à influência de Lévi-Strauss no programa de Lacan,
geralmente relacionada ao período inicial de seu ensino, especificamente sob a bandeira de
“retorno a Freud” que se inaugura no início dos anos cinquenta. O próprio Lacan jamais tentou
ocultar a influência de Lévi-Strauss em seu programa de reestruturação da psicanálise, tendo-o
mencionado por diversas vezes em seus seminários. Não obstante, o questionamento acerca da
intensão e extensão dessa interlocução por vezes implícita com a antropologia estrutural e sua
influência no desenvolvimento de conceitos psicanalíticos foi, de maneira geral, relegado a um
plano secundário, dando maior destaque para outros autores e disciplinas, especialmente para a
linguística e a filosofia (ZAFIROPOULOS, 2018).
Os primeiros indícios da influência de Lévi-Strauss no ensino de Lacan são logo
explicitados, especialmente na conferência proferida no Collège Philosophique em 1952
intitulada “O mito individual do neurótico ou Poesia e verdade na neurose” (2008e). O próprio
termo “mito individual” é empregado originalmente por Lévi-Strauss (1975) no artigo “A
eficácia simbólica” de 1949, se referindo à narrativa do neurótico a ser constituída no
tratamento analítico — em distinção ao tratamento xamânico, no qual o mito é utilizado no
tratamento de determinado padecer. O emprego deste termo por parte do psicanalista pode ser
entendido como uma atitude no mínimo irreverente, pois não somente se trata de uma fórmula
autocontraditória ao individualizar o mito, o qual é nada menos que uma narrativa
compartilhada de uma lenda fundante para determinado povo, como também remete, no sentido
oposto, à atribuição de Freud à religião como uma neurose obsessiva universal. Cabe ainda
lembrar que é nesse artigo que Lévi-Strauss apresenta sua concepção de um inconsciente
que “deixa de ser o inefável refúgio das particularidades individuais, o depositário de uma

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história única, que faz de cada um nós um ser insubstituível” (1975, p. 234) se reduzindo à
função simbólica, marcando, portanto, seu distanciamento em relação à Freud.
Nesta conferência, Lacan apresenta uma análise do caso freudiano do “Homem dos
Ratos” a partir do referencial emprestado da antropologia estrutural. Em suma, trata-se para
Lacan de indicar como a relação edípica triangular é insuficiente para dar conta do citado caso,
o que também pressupõe uma possível generalização desta insuficiência em relação aos demais
casos neuróticos, precisamente em relação ao que identificou como uma diplopia, a saber, a
coexistência de uma problemática (no caso em questão, da dívida) em dois planos distintos e a
impossibilidade de seu recobrimento, fazendo com que sua sobreposição gere uma operação
circular infindável. De acordo com Lacan:

O sistema quaternário, tão fundamental nos impasses, nas insolubilidades da


situação vital dos neuróticos, tem uma estrutura bem diferente daquela dada
tradicionalmente — o desejo incestuoso pela mãe, a interdição do pai, seus
efeitos de barreira e, em torno disso, a proliferação mais ou menos luxuriante
de sintomas. Creio que essa diferença deveria nos levar a discutir a
antropologia geral que se depreende da doutrina analítica tal como foi
ensinada até agora. Numa palavra, todo o esquema do Édipo deve ser
criticado. Não posso me pôr a fazer isso hoje à noite, mas nem por isso posso
deixar de tentar introduzir aqui o quarto elemento de que se trata. (LACAN,
2008e, n.p)

Esse quarto elemento é nada menos que a morte como presença de uma ausência sob o
fundo de toda presença, implicada não somente no complexo de Édipo como também na
constituição da imagem especular, o qual havia sido elaborado por Lacan sob o termo de
“estádio do espelho”. Mais do que afirmar a insuficiência do sistema ternário edipiano, Lacan
empregou a fórmula canônica dos mitos de Lévi-Strauss em sua análise do caso do homem dos
ratos, o que o psicanalista admite numa intervenção apresentada diretamente a Lévi-Strauss, na
ocasião de uma exposição do antropólogo na Société Française de Philosophie em 1956,
intitulada “Sobre as relações entre a mitologia e o ritual” (LACAN, 2008f).
Não pretendemos incorrer em uma análise pormenorizada de tais relações entre a
antropologia estrutural e a psicanálise lacaniana, nos restringindo ao desenvolvimento do
argumento que perfaz uma análise da crítica de Lacan ao monismo de Lévi-Strauss e o ponto
de virada ou de ruptura que indica uma divergência crucial entre os autores quanto ao estatuto
epistemológico de suas disciplinas.
Se esse momento inicial do ensino lacaniano é caracterizado pelo recurso ao referencial
teórico da antropologia estrutural em sua reelaboração da psicanálise freudiana, veremos
como ao passar dos anos vão surgindo divergências inconciliáveis que o fazem se afastar

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de algumas concepções de Lévi-Strauss. Um dos primeiros indícios desse afastamento pode ser
encontrado na aula de primeiro de dezembro de 1954 de seu seminário, em que Lacan comenta
uma exposição de Lévi-Strauss realizada no dia precedente, intitulada La parenté contre la
famille, parte de uma série de conferências organizadas pela Sociedade Francesa de Psicanálise
sobre o tema “Psicanálise e Ciências Humanas”, na qual o psicanalista também fez sua
apresentação alguns meses depois. O debate entre Lacan e seus colegas em determinado
momento remete à hesitação de Lévi-Strauss em relação à distinção sustentada por seu
programa estruturalista mediante o receio do retorno da transcendência divina:

Primeiro, há o problema que ele está colocando, e que se enuncia sob a forma
signatura rerum — será que as próprias coisas apresentam, naturalmente, um
certo caráter de assimetria? Há um real, um dado. Este dado se acha
estruturado de uma certa maneira. Em particular, existem assimetrias naturais.
Será que, no eixo de progressão do conhecimento em que nos encontramos,
vamo-nos pôr a sondar seu misterioso sentido? Uma tradição humana inteira,
que se denomina filosofia da natureza, dedicou-se a este gênero de leitura.
Sabemos no que dá. Isto nunca leva muito longe. Leva a coisas altamente
inefáveis, mas que estacam logo, a não ser que se queira, no entanto, continuar,
e entra-se, então, no plano daquilo que é comumente denominado um delírio.
[...] A segunda coisa é saber se este é o ponto a que Lévi-Strauss visava
quando, ontem à noite, nos disse que, no final das contas, ele se acha aí, à beira
da natureza, tomado de uma vertigem, perguntando-se se não era nela que lhe
era preciso reencontrar as raízes de sua arvore simbólica. Meus diálogos
pessoais com Lévi-Strauss permitem-me esclarecer-lhes este ponto. Lévi-
Strauss está recuando diante da bipartição muito categórica que faz entre a
natureza e o símbolo, e cujo valor criativo ele, no entanto, bem percebe, pois
é um método que permite distinguir os registros entre si, e, da mesma feita, as
ordens de fatos entre si. Ele oscila, e por uma razão que pode parecer-lhes
surpreendente, mas que é perfeitamente confessada por ele – teme que, por
detrás da forma da autonomia do registro simbólico, reapareça mascarada,
uma transcendência pela qual, em suas afinidades, em sua sensibilidade
pessoal, ele só sente temor e aversão. Em outros termos, teme que depois de
termos feito Deus sair por uma porta, o façamos entrar pela outra. Não quer
que o símbolo, e nem mesmo sob a forma extremamente depurada com a qual
ele mesmo o apresenta a nós, seja apenas uma reaparição de Deus por detrás
de uma máscara. Eis o que está na origem da oscilação que ele manifestou
quando colocou em causa a separação metódica do plano simbólico do plano
natural. (LACAN, 1985, pp. 51-52)

O termo signatura rerum remete à obra de Jakob Boehme, a qual Lacan menciona
explicitamente no seu seminário seguinte, referindo se tratar da “noção de que o significante
significa algo, de que há alguém que se serve deste significante para significar algo [...] Isso
queria dizer que, nos fenômenos naturais, o nomeado Deus ali está para nos falar sua língua”.
(LACAN, 2008a, p. 216). O receio de Lévi-Strauss seria, portanto, de que os significantes
que isola pela função simbólica em última instância se convertessem em uma espécie de

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mística pela qual só pudesse fazer ecoar a voz de Deus. Para que isso não ocorresse, Lévi-
Strauss toma rumos inesperados. De acordo com o antropólogo Philippe Descola, a análise
estrutural de Lévi-Strauss seria “inseparável de uma teoria monista do conhecimento que
anulava, em parte, o dualismo do método” (DESCOLA, 2011, p. 46).
Acerca da questão de saber se há assimetria no real, Lacan esclarece que:

Indiquei também que temos, bem entendido, de levar em conta o lado formal
da natureza, no sentido em que eu o qualificava de assimetria pseudo-
significativa, porque é disto que o homem se apossa para fabricar seus
símbolos fundamentais. O importante é aquilo que confere às formas que estão
na natureza valor e função simbólicos, o que faz com que funcionem umas em
relação às outras. É o homem quem produz a noção de assimetria. A assimetria
na natureza não é nem simétrica, nem assimétrica — ela é o que ela é.
(LACAN, 1985, p. 56)

A discordância entre Lacan e Lévi-Strauss gira em torno desta questão, pois, enquanto
o antropólogo encontra na natureza a matéria do simbólico, o psicanalista sustenta a
irredutibilidade da materialidade significante à res extensa. Em seu seminário de 1962, Lacan
se mostra atento aos rumos da antropologia estrutural, indicando não desconhecer que a
indistinção entre natureza e cultura culmina na conformação a um materialismo ingênuo, o que
critica duramente:

Este mundo tal como é, eis o que concerne à razão analítica, aquela a que o
discurso de Claude Lévi-Strauss tende a dar primazia. Com essa primazia, ele
também lhe confere uma homogeneidade afinal singular, que é justamente o
que choca e perturba os mais lúcidos dentre vocês. Estes não podem deixar de
discernir o que isso comporta de retorno ao que poderíamos chamar de um
materialismo primário, na medida em que, no limite desse discurso, o
funcionamento da estrutura, o da combinatória tão poderosamente articulada
pelo discurso de Claude Lévi-Strauss, só faria aproximar-se da própria
estrutura do cérebro, por exemplo, ou da matéria, e representaria, segundo a
chamada forma materialista, no sentido do século XVIII, apenas seu par e nem
sequer seu substituto. (LACAN, 2005, p. 42)

Sales (2008) identifica um argumento de Lacan que sugere uma tentativa de


ultrapassagem do estruturalismo lévi-straussiano, correspondente a assunção da incompletude
do simbólico. O psicanalista nega a equivalência entre o significante da falta no Outro e o
sentido do Mana, pois, não bastaria articulá-lo “a partir da miséria do fato social, ainda que
acuado num pretenso fato total”, indicando na sequência que “Claude Lévi-Strauss,
comentando Mauss, quis reconhecer nisso o efeito de um símbolo zero. Mas é do

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significante da falta desse símbolo zero, antes, que nos parece tratar-se em nosso caso.”
(LACAN, 1998d, p. 835-836).
Cabe ressaltar, em acordo com o que Sales (2008) indica, que não se vislumbra um
abandono dos pressupostos estruturalistas, menos ainda da noção crucial de estrutura, mas uma
espécie de ultrapassagem que visa relançar os problemas encontrados pelas próprias definições
estabelecidas pelo paradigma linguístico-estruturalista. De acordo com a autora, trata-se de uma
relativização da determinação totalizante do significante sobre o sujeito, “inaugurando o valor
teórico de uma estrutura reinterpretada no sentido da incompletude e da inserção da falta no
fundamento de seu mecanismo como condição de sua convivência necessária com a
preservação do lugar do sujeito” (SALES, 2008, p. 293).
Embora tenha sido considerado por alguns teóricos como representante do
estruturalismo, Lacan jamais admitiu esse rótulo, recusando-o em diversas ocasiões (2003a;
1972). Os conceitos e operadores que toma da linguística e da antropologia estrutural são
completamente reformulados no interior de seu próprio ensino. Lacan ainda menciona algumas
vezes o nome de Lévi-Strauss nos anos setenta: seja ao indicar que a psicanálise não espera
recensear os mitos que condicionam o sujeito, encontrando somente o grande mito do Édipo
que condiciona o discurso da psicanálise, e que a única universalidade reencontrada é a
topologia, que reduz a mitologia ao extremo, destacando que a articulação do antropólogo
rejeita tudo o que promoveu acerca da instância da letra no inconsciente (LACAN, 2003b); seja
para reafirmar sua dívida com Lévi-Strauss, indicando uma divergência crucial em relação a
sua concepção do que seria uma noção de estrutura pertinente para a psicanálise (LACAN,
2016).
A noção central de sujeito, a primazia do significante e o entendimento de estrutura
como não meramente simbólica, mas Real (LACAN, 2003a), são alguns dos principais pontos
de divergência em relação às principais figuras do estruturalismo, além do estatuto atribuído à
natureza, ou seja, da posição perante a fratura ontológica a que se refere Simanke (2009), a qual
é explicitamente negada por Lacan ao dizer: “não pensem que sou daqueles que opõem a cultura
à natureza. Primeiramente, porque a natureza é precisamente um fruto da cultura” (1997, p. 23).
Trata-se de uma afirmação que incide precisamente na dimensão ontológica e que deve
ser lida como adesão às teses modernas, ou seja, de que a natureza só existe como correlato
matematizável da ciência. Outra asserção tardia de Lacan que vai nesse mesmo sentido é a de
que “a natureza se especifica por não ser una [...] a natureza não se arrisca a nada senão a se
afirmar como uma miscelânea de fora-da-natureza” (LACAN, 2007, p. 13), a qual implica
que a natureza, na acepção moderna, prescinde de uma sistematização, justamente por se

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apresentar de forma heterogênea no discurso científico, como formalizada, e não como


substância “em-si”, mas “fora-de-si”.

3 LACAN, A FILOSOFIA E A CIÊNCIA: A ESTRUTURA É REAL

Lacan foi explicitamente um admirador da obra de Koyré (2006) — à qual teve acesso
especialmente através da leitura de Kovèje — que trata de um corte epistemológico em relação
à episteme antiga introduzido pela ciência moderna, ciência de Galileu, cujo tipo é a física
matematizada, na medida em que a matematização opera um despojamento das qualidades
sensíveis do objeto. Nas palavras de Lacan, “a ciência moderna, a nascida de Galileu, não se
pôde desenvolver senão a partir da ideologia bíblica, judaica, e não da filosofia antiga e da
perspectiva aristotélica” (2008b, p. 149). Assim, rejeita-se a tese gradualista duhemiana acerca
da evolução contínua da ciência e sua confiança na referência a um sistema de mundo,
dispensando “o complemento transcendente implícito na posição do positivista, o qual se refere
sempre a uma unidade última de todos os campos” (LACAN, 2008c, p. 16).
Trata-se, sobretudo, da subversão da noção aristotélica de um ethos, obtido conforme
uma ordem que é preciso reunir “num Bem Supremo, ponto de inserção, de vínculo, de
convergência, em que uma ordem particular se unifica num conhecimento mais universal, em
que a ética desemboca numa política e, mais além, numa imitação da ordem cósmica” (LACAN,
2008b, p. 33), ao que acrescenta que “macrocosmo e microcosmo estão supostos no princípio
de toda a meditação aristotélica” (p. 33). Em oposição ao pensamento cosmológico de um
mundo fechado e necessário, o cogito cartesiano introduz a ideia de a-cosmicidade e é somente
“a partir daí que pode se inscrever uma ciência, a partir do momento em que se rompe o
paralelismo do sujeito com o cosmo que o envelopa e que faz do sujeito, psique, psicologia,
microcosmo” (LACAN, 2006, p. 54). Trata-se do sujeito da ciência como correlato do universo
infinito e da contingência, em rompimento com uma subjetividade interiorizada ou psicológica.
Em “A ciência e a verdade” (1998a), Lacan assinala que é “impensável [...] que a
psicanálise como prática, que o inconsciente, o de Freud, como descoberta, houvessem tido
lugar antes do nascimento da ciência” (p. 871), reconhecendo a seguir que “dizer que o sujeito
sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência talvez passe por um
paradoxo” (p. 873). Trata-se aqui ainda do cogito cartesiano, na medida em que supõe um
sujeito dividido, o sujeito da dúvida.

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Vemos aqui como o empreendimento de formalização que caracteriza e delimita o


campo de investigação na psicanálise lacaniana não se deve somente à influência de Lévi-
Strauss, mas a uma reflexão epistemológica devedora de Koyré. Lacan não somente rechaça o
dualismo metodológico como solução imposta para delimitação das fronteiras entre as ciências
naturais e as ciências humanas, ou melhor, entre as ciências exatas e as ciências conjecturais,
nos termos do psicanalista5, como questiona a própria delimitação:

não parece aceitável a oposição que se traçaria entre as ciências exatas e


aquelas para as quais não há por que declinar da denominação de conjecturais,
por falta de fundamento para essa oposição. Pois a exatidão se distingue da
verdade, e a conjectura não impede o rigor. E, se a ciência experimental herda
das matemáticas sua exatidão, nem por isso sua relação com a natureza é
menos problemática. [...] nossa física é apenas uma fabricação mental cujo
instrumento é o símbolo matemático. (LACAN, 1998c, p. 287)

A oposição das ciências exatas às ciências conjecturais não pode mais


sustentar-se, a partir do momento em que a conjectura é passível de um cálculo
exato (probabilidade) e em que a exatidão baseia-se apenas num formalismo
que separa axiomas e leis de agrupamento dos símbolos. (LACAN, 1998a, p.
877)

Não se trata aqui de afirmar ou negar o caráter científico da psicanálise, questão com a
qual Lacan oscilou em seu posicionamento, mas de um entendimento de que a ciência não se
define por seu método, por ser ou não experimental ou empírica, mas pela consistência interna
de suas conjecturas.
Cabe ainda ressaltar que a formalização visada pelo psicanalista não implica uma
reformulação do saber inconsciente em termos de um conhecimento objetivável
cognitivamente. De acordo com Bairrão,

O posterior interesse [de Lacan] pela problemática da formalização e da


axiomatização de modo algum se insere numa revisão de suas ideias a esse
respeito [de que para o estabelecimento de uma ciência sejam imprescindíveis
um objeto concreto e um modo de determinismo], pelo contrário prestando-se
(pelos impasses a que se chega) a uma crítica geral do empreendimento
cognitivo, e à sua correlata dedicação a pensar o real eticamente. (BAIRRÃO,
p. 251, 2004)

Quanto a esse ponto, abordaremos mais adiante exatamente o impasse a que chega
Lacan nos anos setenta com a tentativa de prover um fundamento pela axiomática conjuntista

5
Cf. Lacan: “É conhecida a minha repugnância de sempre pela denominação ‘ciências humanas’, que me
parece ser a própria voz da servidão” (LACAN, 1998a, p. 873).

112
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

para a estrutura significante do sujeito, encaminhando o problema para uma articulação


topológica. Por ora, destacamos que a concepção de formalização adotada por Lacan, ainda que
esteja em estreita aproximação com a lógica e com as matemáticas, especialmente de Bourbaki,
está intrinsicamente contaminada pela noção de estrutura e, em última análise, carrega em si,
não somente a crítica ao formalismo realizada por Lévi-Strauss, como a proposta de dar um
passo adiante, pela reintrodução da objetalidade inexorável à operação formal na consideração
da causalidade no formalismo kantiano:

Nosso vocabulário promoveu, para esse objeto, o termo ‘objetalidad’', na


medida em que ele se opõe a ‘objetividade’. Para reunir essa oposição em
formulações rápidas, diremos que a objetividade é o termo supremo do
pensamento científico ocidental, o correlato de uma razão pura que, no final
das contas, traduz-se — resume-se, articula-se — num formalismo lógico. Se
vocês têm-me acompanhado em meu ensino dos últimos cinco ou seis anos,
sabem que a objetalidade é outra coisa. Para lhes dar o relevo dela em seu
ponto crucial e forjar uma formulação equilibrada em relação à anterior, direi
que a objetalidade é o correlato de um pathos de corte. Mas, paradoxalmente,
é aí que esse próprio formalismo, no sentido antigo do termo, liga-se a seu
efeito. Esse efeito, desconhecido na Crítica da razão pura, dá conta desse
formalismo, no entanto. (LACAN, 2005, pp. 236-237)

Trata-se de sair do plano da reflexão epistemológica, do conhecimento, para tratar do


corte que a linguagem incide no corpo, produzindo uma perda constitutiva do sujeito. O termo
objetalidade se refere a uma forma de pensar o objeto como “falta de objeto”, objeto perdido,
não objetivável, objeto a, como causa do desejo, “a parte de nós mesmos, a parte de nossa carne
que permanece necessariamente aprisionada na máquina formal, sem o que o formalismo
lógico, para nós, não seria absolutamente nada”. (LACAN, 2005, p. 237)
A fantasia, como máquina que põe em cena o sujeito desejante e instaura a realidade
como campo de sentido, é a articulação ao objeto faltante, perda irreparável de ser do sujeito:

A relação do sujeito com o significante exige a estruturação do desejo na


fantasia, e o funcionamento da fantasia implica uma síncope temporalmente
definível na função do a, que, forçosamente, apaga-se e desaparece numa dada
fase do funcionamento fantasístico. Essa afânise do a, o desaparecimento do
objeto como aquilo que estrutura um certo nível da fantasia, é aquilo cujo
reflexo temos na função da causa. Toda vez que nos encontramos diante desse
funcionamento último da causa, irredutível até mesmo à crítica, devemos
buscar seu fundamento e sua raiz nesse objeto oculto, como algo sincopado.
(LACAN, 2005, p. 240)

A problemática acerca do sujeito e do objeto em psicanálise é retomada por Lacan


(1967-1968) a partir da recuperação heideggeriana da distinção entre hypokeimenon e ousia

113
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

em Aristóteles, permitindo ao psicanalista articular a relação do sujeito, como sempre suposto,


ao seu “ser”, objeto a, objeto não predicável, causa do desejo. Assim, Lacan identifica no
hypokeimenon de Aristóteles6 uma antecipação do “advento do sujeito da ciência moderna, que
considera como o mesmo sujeito do inconsciente, pelo fato de indicar literalmente su-por, a su-
posição, ou seja, que de saída é preciso supor algo no real para começar a pensar” (FLEIG,
2006, p. 327). Tal constatação evidencia a hesitação de uma concepção estrita do corte
epistemológico entre a epistemé antiga e a modernidade, na medida em que “o antigo sujeito da
predicação e o superposto moderno sujeito do conhecimento (aparentemente destituído de
conexões com o primeiro) com a psicanálise desvelam-se perspectivas de uma única
desideração realizante, cindida entre ser e sujeito” (BAIRRÃO, 2004, p. 232).
Com essa manobra, Lacan visa subverter a concepção moderna de substância, a qual se
refere às propriedades objetais, retomando-a como hypokeimenon, relativo ao sujeito como
suporte, enquanto do lado da ousia situa o objeto, o gozo:

[o “pequeno a”] nele indicamos algo que é de algum modo a substância do


sujeito, a ser entendida no sentido em que Aristóteles a designa na ousia, a
saber – o que esquecemos –, que o que a especifica é justamente que ela não
poderia de forma alguma ser atribuída a nenhum sujeito, entendido como
hypokeimenon7. (LACAN, 1966-1967, lição de 12/04/1967, tradução nossa)

se introduzimos o gozo, foi sob o modo lógico do que Aristóteles chama uma
ousia, uma substância, quer dizer, algo que — é assim que ele se exprime em
seu livro das Categorias — que não pode ser nem atribuído a um sujeito, nem
colocado em algum sujeito. É algo que não é suscetível de “mais” ou de
“menos”, que não se introduz em nenhum comparativo, em nenhum signo de
“maior que” ou de “menor que”, nem mesmo de “menor que ou igual a” 8.
(LACAN, 1966-1967, lição de 31/05/1967, tradução nossa)

Trata-se para Lacan, sobretudo, de reafirmar o estatuto do sujeito dessubstancializado


(no sentido comum), como estranho ao indivíduo, ao ego, tomando-o como instância em que

6
Aristóteles configura uma das principais referências do psicanalista, sobretudo na consideração do sujeito
através dos pressupostos da metafísica e da lógica aristotélica, recorrência que se intensifica em meados dos
anos sessenta e início dos anos setenta (CATHELINEAU, 2001).
7
Do original, em francês, na versão de Staferla: “[...] ce petit(a), où nous indiquons ce quelque chose qui est
en quelque sorte la substance du sujet… si vous entendez cette substance au sens où ARISTOTE la désigne
dans l’οὐσία [ousia], à savoir - ce qu’on oublie - c’est que ce qui la spécifie est justement ceci qu’elle ne
saurait d’aucune façon être attribuée à aucun sujet, le sujet étant entendu comme l’ὑποχείμενον
[upokeimenon]…”
8
Do original, em francês, na versão de Staferla: “si nous avons introduit la jouissance, c’est sous le mode -
logique - de ce qu’ARISTOTE appelle une οὐσία [ousia], une substance, c’est-à-dire quelque chose, très
précisément qui ne peut être… c’est ainsi qu’il s’exprime dans son livre des Catégories ...qui ne peut être ni
attribué à un sujet, ni mis dans aucun sujet. C’est quelque chose qui n’est pas susceptible de plus ou de moins,
qui ne s’introduit dans aucun comparatif, dans aucun signe plus petit ou plus grand, voire plus petit ou égal.”

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se articula a enunciação de um dizer, para além dos ditos enunciados. Cabe aqui retomar a
questão da justificativa metodológica de Lacan para o emprego de estruturas matemáticas e
topológicas, às quais é atribuída a própria substância do que constitui o campo da psicanálise:

qual a relação dessa estrutura com o campo de nossa experiência? Alguém me


perguntou recentemente se [...] eram modelos matemáticos ou mesmo
metáforas. Achei que poderia responder a ele que as coisas em meu
pensamento foram mais longe, e que as estruturas em questão têm o direito de
serem consideradas da ordem de um ὑποχείμενον [hypokeimenon], de um
suporte, de uma substância do que constitui nosso campo. (LACAN, 1965-
1966, lição de 30/03/1966, tradução nossa).

A estrutura é tomada pelo psicanalista como real; desta forma, “a apreensão do sujeito
sempre em ato (discursivo) visa substituir a concepção de modelo por algo que impeça a
cristalização, o “congelamento”, do sujeito por uma função inativa, subsumível a qualquer viés
tendente a imaginarizar o objeto” (BAIRRÃO, 2003, p. 134).
Em suma, essa reformulação da noção de estrutura que se encaminha para a sua
articulação topológica está posta pela necessidade de uma reforma da estética transcendental
kantiana, pois, ao se fiar em uma concepção criacionista da linguagem — ainda que subverta a
noção de causa, desvinculando-a de uma origem cronológica, para situá-la na ação retroativa
da cadeia significante — para a qual não haveria realidade pré-discursiva, não poderia, portanto,
admitir que houvesse condições da sensibilidade a priori, senão aquelas já estruturadas pela
linguagem. A seguinte passagem explicita esse ponto:

Ora, a estrutura não é a forma, como insistimos noutro contexto, e a questão é


justamente abrir o pensamento para uma topologia, exigida pela simples
estrutura. Sustentamos que a estética transcendental está por ser refeita, desde
o momento em que a linguística introduziu na ciência seu status incontestável:
com a estrutura definida pela articulação significante como tal. Portanto,
quando Daniel Lagache parte da escolha que nos propõe, entre uma estrutura
como que aparente (que implicaria a crítica daquilo que o caráter descritivo
comporta de natural) e uma estrutura que ele pode declarar distante da
experiência (já que se trata do “modelo teórico” que ele reconhece na
metapsicologia analítica), essa antinomia desconhece um modo da estrutura
que, por ser terceiro, não deve ser excluído, ou seja, os efeitos que a
combinatória pura e simples do significante determina na realidade em que se
produz. Pois, é ou não o estruturalismo aquilo que nos permite situar nossa
experiência como o campo em que isso fala? Em caso afirmativo, “a distância
da experiência” da estrutura desaparece, já que opera nela não como modelo
teórico, mas como a máquina original que nela põe em cena o sujeito.
(LACAN, 1998b, p. 655)

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Destaca-se a dimensão performativa atribuída pelo psicanalista ao significante,


ultrapassando a dicotomia entre teoria e prática ou experiência. Neste sentido, Lacan parece
reivindicar para a psicanálise um estatuto similar ao que definiu previamente ser a concepção
antiga de teoria [théôria], a qual não é a “abstração da práxis, nem sua referência geral, nem o
modelo daquilo que seria sua aplicação. Em seu surgimento ela é a própria práxis” (LACAN,
2010, pp. 105-106).
Lacan ressalta que a marca do estruturalismo a ser notada pela psicanálise seria de
introduzir uma “modalidade muito especial do sujeito, aquele para o qual não encontramos
nenhum índice senão o topológico, digamos, o signo gerador da banda de Möebius, que
chamamos de oito interior. O sujeito está [...] em uma exclusão interna a seu objeto”. (1998a,
p. 875). A topologia se mostra crucial para articular essa relação paradoxal entre sujeito e
objeto, a qual se via até o momento na dependência da intuição, remetendo ao espaço euclidiano
tridimensional, o qual não permitiria ir além de uma subjetividade aprisionada no interior do
corpo. De acordo com Lacan,

Desde que a introduzi em nosso manejo, tentei indicar que a função do gozo
é, essencialmente, uma relação com o corpo, mas essa relação não é qualquer
uma. Baseia-se numa exclusão que é, ao mesmo tempo, uma inclusão. Daí
nosso esforço em prol de uma topologia que corrija os enunciados aceitos até
hoje na psicanálise. Não recordarei todos eles, mas está claro que só falamos
disso, em todas as etapas — formação do não-eu por rejeição, função do que
é chamado de incorporação, e que se traduz por introjeção, como se se tratasse
de uma relação do interior com o exterior, e não de uma topologia muito mais
complexa. Tal como se exprimiu até aqui, em suma, a ideologia analítica é de
uma inabilidade notável, que se explica pela não construção de uma topologia
adequada. (LACAN, 2008d, p. 112)

Trata-se da superação da dicotomia cartesiana entre res extensa e res cogitans, a qual é
subvertida pela introdução da substância gozante (LACAN, 2008g). O recurso à topologia
empregado por Lacan é um bom exemplo do tipo de materialidade suposta à estrutura do
significante que requer a psicanálise, a qual transgrede o princípio partes extra partes
cartesiano, pois se trata de superfícies que se auto atravessam, como a garrafa de Klein ou o
cross-cap. (LACAN, 1961-1962; 2008c). Há que se tomar essas estruturas topológicas como
um forçamento que seria homólogo ao gozo, afinal, “como sofrimento, o gozo é tensionamento
dos limites do interdito em direção ao impossível. Conceituá-lo objetivamente, não
estruturalmente, seria reificar imaginariamente o sujeito, afastando-se mais e mais da sua
‘inexperiência’. O único modo de abordá-lo é topologicamente” (BAIRRÃO, 2004, p. 223).

116
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No entanto, ainda que assuma uma concepção da estrutura como real, não meramente
descritiva ou contemplativa, articulando em ato o sujeito em sua exclusão interna ao objeto, até
o início dos anos setenta Lacan carrega a tocha do estruturalismo matemático bourbakista, a
saber, da busca pela formalização alicerçada na teoria conjuntista, da qual se esperava um
equacionamento da estrutura, ainda que já articulada pela topologia das superfícies.

4 O IMPASSE DA FORMALIZAÇÃO E SEU RESTO: A ESTRUTURA


TOPOLÓGICA DO NÓ BORROMEANO

Lacan (1972) afirmou reiteradamente sua pretensão em fundamentar sua teoria do


significante pela teoria axiomática dos conjuntos. Mas o que isso quer dizer factualmente? Ou
melhor, quais as consequências que se extrai dessa proposição? O axioma de Lacan de que não
há relação sexual, ou melhor, da impossibilidade de escrita da relação sexual, seria o melhor
exemplo dessa concepção em seu ensino. De acordo com Lacan,

o significante não é apropriado para dar corpo a uma fórmula que seja da
relação sexual. Daí minha enunciação: não há relação sexual — subentenda-
se: formulável na estrutura. Esse algo que o psicanalista, ao interpretar, produz
a intrusão do significante, esfalfo-me há vinte anos, para que ele não o tome
por uma coisa, já que se trata de uma falha, e estrutural. (LACAN, 2003b, p.
411)

A condição de existência da estrutura significante é de que não haja proporção [rapport]


sexual inscritível, ou seja, não há escrita que dê conta de tal proporção, mas também, e mais
importante, não há demonstração da impossibilidade dessa escrita. Isso também não escapou
ao psicanalista, afirmando que:

Somente a psicanálise justifica aqui a mítica da natureza a ser discernida no


gozo, que faz as vezes dela ao se produzir por efeito de textura. Sem ela, basta
a lógica matemática para transformar em superstição o ceticismo, tornando
irrefutáveis afirmações tão pouco vazias quanto: — um sistema definido como
da ordem da aritmética só obtém a consistência de distinguir em seu seio o
verdadeiro do falso ao se confirmar incompleto, isto é, ao exigir o
indemonstrável de fórmulas que só se confirmam alhures; — esse
indemonstrável é assegurado, por outro lado, a partir de uma demonstração
que decide independentemente a verdade que lhe diz respeito; — existe um
indecidível que se articula pelo fato de que o próprio indemonstrável não pode
ser garantido. Os cortes do inconsciente mostram essa estrutura ao atestá-la a
partir de quedas similares a serem contornados. (LACAN, 2003b, pp. 426-
427)

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Aqui vemos já um indício da distinção crucial realizada por Lacan entre demonstração
e mostração, pois não se trataria mais da tentativa (fracassada) de demonstrar a impossibilidade
de resolver a questão última do sujeito, tampouco de afirmar a impossibilidade de demonstração
do axioma fundante, mas de rejeitar o problema (metafísico, inefável) do indemonstrável como
tal, em proveito do que se mostra topologicamente.
É somente com a introdução da topologia dos nós nos anos setenta que se opera uma
ruptura com seu bourbakismo. Este argumento encontra evidências no dizer de Lacan, ao
afirmar que:

Mas não é certo que a teoria dos conjuntos seja correta para qualquer coisa na
psicanálise. Não existe um conjunto do Simbólico, do Imaginário e do Real.
Há algo que se funda numa heterogeneidade radical, mas que, graças à
existência deste utensílio que é o homem, passa a realizar o que chamamos de
nó, e que não é um nó, mas uma cadeia. Que o homem esteja efetivamente
encadeado por esta cadeia, isso é sem dúvida9. (LACAN, 1976, n.p)

Com a topologia do nó borromeano, Lacan teria abandonado esse referencial


bourbakista-conjuntista-axiomático para a articulação de uma estrutura infundada 10. Isso
implicaria que as condições de possibilidade da existência da estrutura não devam ser
procuradas mais-além de seus limites, pois subsistem enquanto articuladas, e as limitações de
suas articulações só podem ser apreendidas pela articulação de seus limites, como limites do
articulável.
O passo adiante para a topologia do nó borromeano operaria essa ultrapassagem — que
pode também ser entendida como um retorno a um aquém de sua captura pela ilusão de
fundamentação axiomática — de uma concepção de estrutura axiomaticamente fundamentada
para uma concepção de estrutura pautada estritamente pela não-identidade de seus elementos
que se articulam segundo as dimensões sincrônicas e diacrônicas, privilegiando o efeito de
retroação e covariância11.

9
No original, em francês: “Mais il n’est pas sûr que la théorie des ensembles rende raison de quoi que ce soit
dans la psychanalyse. Il n’y a pas d’ensemble du symbolique, de l’imaginaire et du réel. Il y a quelque chose
qui est fondé sur une hétérogénéité radicale, et pourtant qui, grâce à l’existence de cet ustensile qu’est
l’homme, se trouve réaliser ce qu’on appelle un nœud, et qui n’est pas un nœud, mais une chaîne. Que
l’homme soit effectivement par cette chaîne enchaîné, c’est ce qui ne fait pas de doute.”
10
Tal movimento estaria de acordo com as considerações de Deleuze (1972) acerca do estruturalismo,
afirmando a incompatibilidade da estrutura com o pensamento axiomático, o qual deveria ser situado no eixo
imaginário, pois prescinde da relação de covariância entre os elementos que caracterizaria o simbólico.
11
Frisa-se que não estamos aqui mais na oposição entre formalismo e estruturalismo, mas em uma divergência
interna à categoria de estrutura, quer se a compreenda como fundamentada por axiomas inacessíveis, quer se
a compreenda como infundamentada. Não obstante, caberia nos questionarmos se essa primeira concepção

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A propriedade de covariância se refere à articulação da dimensão espacial à dimensão


temporal, a saber, à sincronia como transformação topológica que determina as variações e os
invariantes estruturais. Não há lugar para a concepção de fundamento mediante a retroação
significante, pois não pode haver fundamento a priori, somente a posteriori, identificado aos
invariantes estruturais. Essa estrutura infundada produz uma subversão da concepção de
origem, pois não se tratará mais de uma origem fixada no tempo cronológico, mas pautada pela
repetição, no que se repete sempre que há uma transformação da estrutura, originando um
reordenamento das relações entre os elementos.
Com o nó borromeano, Lacan articula três condições cruciais desenvolvidas ao longo
de seu ensino: a acosmicidade, como não correspondência biunívoca entre microcosmo e
macrocosmo, indistinção entre o Innenwelt e o Umwelt, que se assenta na inacessibilidade de
seus componentes à apreensão do encadeamento que os agrupa; a acefalia, pela supressão do
questionamento das origens em favor da assunção do nó como recalcamento originário; o jogo
da morra, o qual estabelece uma dominância circular entre os elos do Real, Simbólico e
Imaginário (STOÏANOFF-NÉNOFF, 1997). Deste modo, longe de operar uma ruptura com
suas elaborações prévias acerca da estrutura, o nó borromeano consiste em uma articulação
sincrônica de seus postulados referentes à ciência moderna e ao sujeito, especialmente no que
diz respeito ao problema da causalidade inconsciente.
Cabe acrescentar que, no horizonte de seus desenvolvimentos topológicos acerca do nó
borromeano, sempre esteve posto um princípio organizativo em seu limite, nomeadamente, a
propriedade brunniana de se sustentar na condição de que a subtração de qualquer elemento o
faria se desfazer. Pois é em função desse um-a-menos que se estrutura a cadeia borromeana, na
justa medida em que a verificação da qualidade brunniana só pode ser obtida pelo ato que desfaz
a cadeia. A rigor, não há cadeia que seja brunniana, tampouco que não seja, pois, assim como
Lacan pôde dizer acerca do sujeito, a propriedade brunniana só se mostra a posteriori, no futuro
anterior (futuro do presente composto do indicativo), portanto, a cadeia terá sido brunniana ou
não12.

axiomática da estrutura não seria a expressão de um formalismo latente, enquanto a segunda concepção
operaria factualmente uma ruptura com seu resquício formalista. A grande diferença entre essas duas
concepções se refere, sinteticamente, a haver ou não um fundamento da estrutura aquém ou além do que por
ela se articula. Axiomaticamente, há um fundamento que constitui a estrutura, dela se excluindo.
Estruturalmente, não há nada que não esteja articulado pela estrutura, rechaçando a concepção de um
fundamento que não seja por ela articulável.
12
No entanto, nossa hipótese é de que haveria um impasse intransponível colocado implicitamente no
horizonte de suas articulações com o nó borromeano e suas variações, que seria uma tentativa de forçar o
estabelecimento de uma homologia entre a propriedade brunianna e a noção de covariância, a qual seria, a
nosso ver, insustentável. O ponto de partida desse equívoco seria a sobreposição entre o fato de que, pela
propriedade brunianna, a subtração de um único elemento implica na reestruturação da cadeia, com a

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Cabe indicar que certamente houve outras tentativas de compreender o alcance


epistemológico da articulação borromeana desenvolvida por Lacan. Talvez a proposta mais
conhecida seja a de Milner (1996), cuja obra se tornou uma referência praticamente
incontornável no meio lacaniano, sendo legítimo identificá-la como constituinte de uma leitura
ortodoxa da psicanálise lacaniana que difundiu amplamente a ideia de que Lacan teria
abandonado a noção de estrutura para se agarrar àquela de letra ou matema, tendo por fim
derivado para a antítese colocada pelo nó borromeano. Milner (1996) toma a afirmação de
Lacan de que “a natureza tem horror do nó” (1974-1975, aula de 14/01/1975) — a qual remete
à expressão “horror vacui”, atribuída a Aristóteles, acerca da ideia de que a natureza tem horror
do vazio, tendendo a preenchê-lo — considerando-a como uma formulação expressamente
antigalileana, pois, “além de sua forma, verdadeiro brasão daquilo que a história elementar das
ciências empresta aos adversários aristotélicos de Galileu, tal logion tem uma consequência
radical: [equiparando nó e matema, a Natureza seria incompatível ao matema] o que se opõe
diretamente ao axioma fundador da ciência moderna” (p. 135). Segundo Milner, o qual entende
que o ensino lacaniano configura um doutrinal da ciência — como conjunção de proposições
sobre a ciência e sobre o sujeito —, a abolição do matema e, com isto, do galileísmo ampliado
de que era portador, faz cair por terra a sustentação deste doutrinal, desde a conjectura de um
galileísmo ampliado que culmina no que o autor chama de hiperbourbakismo, a saber, uma
concepção da matematização estritamente literalizada que prescinde de toda dedução,
arrastando, por sua vez, a conjectura hiper-estrutural que a precede. Para o autor, uma espécie
de desconstrução deste doutrinal estaria posta, portanto, pela introdução do nó borromeano, o
qual, a princípio, figuraria como corolário do galileísmo ampliado do psicanalista, mas
rapidamente deriva para uma antimatemática, na medida em que o nó, diferentemente das
superfícies topológicas, resistiria à matematização.
Ainda que estejamos de acordo com a indicação de Milner (1996) acerca da assunção,
por parte de Lacan, da falência de seu projeto axiomático-conjuntista ou (hiper)bourbakista,
conforme desenvolvemos por uma argumentação distinta, impõe-se a crítica à sua proposta de
leitura, de que, ao supor que as indagações de Lacan sobre a estrutura significante cessam ao
final dos anos sessenta, ignora que o nó borromeano deve ser abordado como uma estrutura.

operatividade da covariância, a saber, que qualquer alteração mínima implica em uma rearticulação de todos
os elementos entre si. O problema é que, sustentando-se na propriedade brunniana, a alteração mínima resulta
na desestruturação completa, pois não há uma reorganização dos elementos restantes, ou seja, a covariância
seria então sinônima de dissolução, o que simplesmente é incompatível com sua própria definição. Essa nos
parece uma questão crucial acerca do que se articula nesse último período do ensino de Lacan, a qual mereceria
uma reformulação, além do alcance que o psicanalista lhe pôde dar (AFFONSO, 2020).

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Tal concepção foi explicitamente afirmada por Lacan (1977) ao dizer que “meus nós me servem
por serem o que encontrei de mais próximo da categoria de estrutura”. Ou seja, Lacan dá a
entender que o nó borromeano não somente é uma estrutura, mas uma estrutura que, em
comparação com as demais estruturas com que havia operado, seria mais adequada ou
pertinente para a psicanálise.
O recurso à estrutura, especialmente em sua vertente topológica, foi a via escolhida por
Lacan pela razão de que poderia servir para “estabelecer as relações fundamentais que nos
permitirão situar com o rigor que jamais é obtido com a linguagem ordinária, porquanto a
linguagem ordinária leva a uma ontificação do sujeito que é o verdadeiro nó e chave do
problema” (LACAN, 1965-1966, Lição de 15/12/1965, tradução nossa) 13. Esta empreitada
inegavelmente falhou, tendo a própria estrutura sido investida metafisicamente por seus
discípulos. A asserção de que o nó borromeano é uma estrutura — e não uma versão atualizada
da metapsicologia freudiana — não o previne de ser tomado como uma ferramenta de
diagnóstico de cunho metapsicológico. Deve haver conformidade entre o que se propõe e as
consequências que se extrai de tal proposição. Nesse sentido, mais do que equacionar essa
problemática por uma questão extrínseca – a saber, da possibilidade ou não da axiomatização
da estrutura –, tratar-se-ia de se manter fiel a uma concepção intrínseca ao seu ensino, que é a
da não prevalência da letra sobre o significante (LACAN, 2003c). Ou ainda, trata-se de atentar
para a hiância que se evidencia pela não coincidência entre uma concepção da letra ou
literalização axiomático-científica com àquela articulada por Lacan. Há que se destacar que o
psicanalista concebia o nó borromeano como uma estrutura topológica pela qual letra e
significante se articulavam inexoravelmente, não somente entre si, como também à dimensão
da enunciação que se refere à posição do sujeito. Em suas palavras:

Uma escrita é, portanto, um fazer que dá suporte ao pensamento. Para dizer a


verdade, o nó bo muda completamente o sentido da escrita. Ele dá a tal escrita
uma autonomia, ainda mais notável por haver uma outra escrita, aquela que
resulta do que poderia ser chamado de uma precipitação do significante. [...]
O que permanece é o significante. Mas o que se modula na voz não tem nada
a ver com a escrita. Em todo caso, é o que demonstra perfeitamente meu nó
bo, e isso muda o sentido da escrita. Isso mostra alguma coisa em que podemos
enganchar os significantes. E como esses significantes podem ser

13
Do original: “Nous pouvons à partir de ces définitions premières concernant le S barré concevoir à quoi
peuvent nous servir ces deux autres structures de la bouteille de Klein et du tore pour établir des relations
fondamentales qui nous permettront de situer, avec une rigueur qui n’est jamais obtenue jusqu’ici avec le
langage ordinaire, pour autant que le langage ordinaire aboutit à une ontification du sujet qui est le véritable
nœud et clé du problème”.

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enganchados? Por intermédio do que chamo diz-mensão [dit-mension] [...]


Diz-mensão é mensão do dito14. (LACAN, 2007, pp. 140-141)

Esse último passo dado por Lacan não teve a apreciação merecida em sua extensão.
Trata-se, em última instância, do abandono da suspeição de uma causa suprema que a tudo
comanda sorrateiramente — seja ela sexual, teológica, econômica — em prol da assunção plena
de uma ética que não encontra nenhuma garantia extrínseca, sustentando-se somente do que se
pode depreender implicitamente de sua enunciação.
Deve-se admitir que o não reconhecimento da façanha de Lacan se deve, ao menos em
boa parte, a sua própria inabilidade em bem desenvolvê-la, pois o emprego que fez de seu nó
também não ressalta essas propriedades, as quais permaneceram implícitas, requerendo sua
explicitação. A abordagem do nó estritamente através da escrita planificada ou projetiva
empregada por Lacan ignora suas próprias recomendações exaustivas acerca da equivocação
em sustentar a existência de um objeto dado aprioristicamente, desvinculado de sua escrita, ao
qual só se tem acesso através de representações.
A abordagem do nó borromeano mergulhado no toro triplo se apresenta como
alternativa promissora ao tratamento ortodoxo dispensado à topologia, constituindo um novo
paradigma dessa problemática, a partir da articulação entre topologia das superfícies e dos nós.
Tal proposta, ao resgatar e avançar na hipótese do nó borromeano como uma estrutura
covariante, tomando as variações do nó desenvolvidas diacronicamente por Lacan como
sincronicamente articuladas por uma única estrutura, sustenta uma homologia entre o trabalho
de investigação em psicanálise e o ato analítico (AFFONSO, 2020).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A noção de estrutura atravessa o ensino de Lacan, jamais perdendo sua relevância, ainda
que ela própria se transforme radicalmente, sem que, no entanto, se explicitem claramente as
implicações e consequências dessas sucessivas transformações. Se, num primeiro momento,
Lacan visa implementar na psicanálise uma concepção de estrutura similar àquela proposta pela
antropologia estrutural de Lévi-Strauss, posteriormente irá se distanciar radicalmente, não

14
Lacan grafa desta maneira para fazer ressoar a homofonia entre dimensão [dimension], menção de um dito
[dit-mension] e mansão do dito [dit-mansion] – possivelmente uma alusão à morada do ser heideggeriana.
Imediatamente a seguir, se remete também a mentira [mensonge], na medida em que esta menção de um dizer,
pelo dizer ser a mansão da verdade, comporta também a mentira.

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somente pelo requerimento de articulação do sujeito, mas também pelo enfrentamento das
questões da objetalidade, da causalidade e do gozo.
O último capítulo do ensino de Lacan, que data do início dos anos setenta, deriva para
uma radicalização de seu projeto de reforma da estética transcendental kantiana — empreendida
até o esgotamento de sua vida, o que se evidencia pela intitulação de seu último seminário “A
topologia e(é) o tempo” (1978-1979) —, a partir da investigação incansável dos nós, vertente
mais recente da topologia, pouco desenvolvida no meio matemático em sua época. Sob a égide
do nó borromeano, Lacan, com o auxílio de alguns topólogos que acompanhavam seu ensino,
passa a explorar uma variedade de estruturas e propriedades topológicas.
Com o recurso à topologia, não se trata de atingir um purismo, o que promulgaria uma
espécie de ontologia formal ou insubstancial. Tampouco se trata de adotar o nó como pura
pragmática de uma razão instrumental-classificatória de diagnóstico ou intervenção clínica,
renegando o fundamento metapsicológico freudiano em que tal empreendimento se sustenta —
ainda que se articule em termos lacanianos. No entanto, para evitar recair em tais concepções,
não basta afirmar o esvaziamento de sentido das formalizações, na medida em que a psicanálise
só pode delas se servir pela correlação ou homologia com seus próprios operadores lógico-
estruturais, os quais são inevitavelmente formuláveis na linguagem comum.
Lacan afirmou reiteradamente que a estrutura é o real, o que implica na impossibilidade
de sua apreensão total, ou ainda, como vimos mais explicitamente no caso do nó borromeano,
que sua apreensão requer um ato que implique sua dissolução, o que a faz subsistir em uma
temporalidade específica, homóloga à do sujeito inconsciente.
Buscamos mostrar como o nó borromeano, como estrutura privilegiada por Lacan no
final de seu ensino, condensaria uma série de teses acerca da ciência e do sujeito, o que, por si
só, já seria um argumento que deveria rechaçar algumas concepções equivocadas sobre o nó,
que, em comum, apontam, explicitamente ou não, para uma essência última.
Em última instância, a investigação acerca da estrutura topológica do sujeito legada por
Lacan sustenta que o único universal possível para a psicanálise está dado pelo mergulho na
linguagem que implica a constituição simbólica do corpo, em uma estrutura significante,
caracterizada pela covariância e retroação, em que sujeito e objeto se articulam
fantasisticamente. Somente a topologia permitiria situar as operações que transformam a
estrutura do sujeito, em especial, os cortes topológicos homólogos ao ato analítico, que não são
nada mais do que os modos de recortar as relações entre os significantes. Assim, deve-se
ressaltar a relação inextricável entre ética e topologia subsumida no ato analítico, o qual
deve ser equacionado intrinsecamente pelo discurso do analista na prática clínica.

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Volume 06, Número 10, Ano 2021

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Volume 06, Número 10, Ano 2021

Recebido em:13/05/2021
Aprovado em: 31/05/2021
Publicado em: 15/07/2021

RORTY E SCHAFER
afinidades eletivas em torno da psicanálise freudiana

RORTY AND SCHAFER


elective affinities around Freudian psychoanalysis

Orlando Pinho Guerra Filho1


([email protected])

Resumo: O presente artigo tem como propósito identificar e articular pontos de contato entre as
interpretações da psicanálise freudiana do filósofo Richard Rorty e do psicanalista Roy Schafer.
Interessado na contribuição de Freud para a reflexão moral, o primeiro elabora sua interpretação pondo
o acento no aspecto conversacional das instâncias psíquicas. Assim, ego, superego e id são entendidos
por Rorty como “quase-pessoas” com crenças, desejos e intenções. Por sua vez, Roy Schafer explora a
psicanálise a partir da revisão da linguagem metapsicológica freudiana, através de uma versão
hermenêutica e narrativa da psicanálise. Propomos que, entre a leitura que Rorty faz de Freud e a versão
narrativa da psicanálise por parte de Schafer, há certa “afinidade eletiva” entre os dois pensadores, que
consiste no abandono da metapsicologia freudiana através de uma versão antiessencialista da
psicanálise.

Palavras-chave: Redescrição. Linguagem-ação. Psicanálise.

Abstract: This article aims to identify and articulate points of contact between the Freudian
psychoanalysis interpretations of the philosopher Richard Rorty and the psychoanalyst Roy Schafer.
Interested in Freud's contribution to moral reflection, Rorty elaborates his interpretation, emphasizing
the conversational aspect of psychic instances. Thus, ego, superego and id are understood by Rorty as
“quasi persons” with beliefs, desires and intentions. Roy Schafer, for his part, explores psychoanalysis
beginning with the revision of Freudian metapsychological language through a hermeneutic and
narrative version of psychoanalysis. We propose that between Rorty's reading of Freud and Schafer's
narrative version of psychoanalysis, there is a certain “elective affinity” of the two thinkers that consists
in abandoning Freudian metapsychology through an anti-essentialist version of psychoanalysis.

Keywords: Redescription. Action-language. Psychoanalysis.

INTRODUÇÃO

Em Philosophy and the Mirror of Nature (1979), Richard Rorty lança críticas contra a
ideia de que “possuímos uma natureza profunda, oculta, metafisicamente significativa que nos

1
Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/3504573411362637.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1813-0033.

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torna ‘irredutivelmente’ diferentes de tinteiros ou átomos” (RORTY, 1979, p. 373), ou seja, que
possuímos uma natureza humana. O significado ético dessa questão foi pensado mais tarde,
quando Rorty desenvolveu seu conceito de “contingência da individualidade” em Contingency,
Irony, and Solidarity (1989). Na verdade, o caminho havia sido preparado em dois artigos
anteriores: Freud, Morality, and Hermeneutics (1980) e Freud and Moral Reflection (1986)2.
Como indicam os títulos, ambos artigos têm Freud como personagem principal e figura central
na elaboração rortyana sobre individualidade e moral.
Para Rorty, o self é uma “teia sem centro de crenças e desejos” (RORTY, 1991, p. 1) ou
um “conjunto coerente e plausível de crenças e desejos” (RORTY, 1991, p. 147). Tal descrição
foi possibilitada por Freud, pois foi ele quem rejeitou a ideia de um ser humano paradigmático
e, portanto, da própria necessidade de uma teoria da natureza humana. (RORTY, 1989, p. 35).
Segundo Rorty, o criador da pasicanálise nos dá uma maneira de nos ver como poetas
empenhados no ato de criar a própria maneira de encarar a vida, a própria história, nosso próprio
eu.
Como sabido, a psicanálise tem sido objeto de controvérsia ao longo de sua história. A
validade epistemológica da interpretação clínica, a sua metapsicologia e o seu método foram
todos sujeitos a debate. Esses debates foram formulados em vários termos e em várias
dimensões: psicanálise é ciência ou não?3 A psicanálise oferece causas ou razões? Oferece uma
“verdade histórica” ou “verdade narrativa”?4
O trabalho de Roy Schafer faz parte desse debate e começa com a revisão da linguagem
metapsicológica de Freud, através de uma versão hermenêutica e narrativa da psicanálise5. No
seu A New Language for Psychoanalysis (1976), ele argumenta que sua linguagem-ação
providenciaria uma solução para os problemas que envolvem a metapsicologia freudiana, que
consiste basicamente em ser uma teoria da mente envolvida no dualismo cartesiano e uma teoria
da explicação que sai da mecânica newtoniana e gera uma descrição das ações humanas em

2
Foi uma palestra dada em 1984 no Fórum de Psiquiatria e Humanidades em Washington, D.C. A primeira
publicação foi em Pragmatism's Freud: The Moral Disposition of Psychoanalysis, Joseph H. Smith and
William Kerrigan, eds. (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1986), pp. 1-27. Posteriomente, entrou
em sua coletânea de ensaios: Essays on Heidegger and Others (Cambridge University Press, 1991), pp. 143-
163. Todas as citações foram traduzidas pelo autor deste artigo, as exceções serão foram devidamente
assinaladas.
3
Cf. Michael Lacewing, Could Psychoanalysis be a Science?, 2013, pp. 1103-1127, publicado em The Oxford
Handbook of Philosophy and Psychiatry. eds. (K.W.M. Fulford, Martin Davies, Richard G.T. Gipps, George
Graham, John Z. Sadler, Giovanni Stanghellini, and Tim Thornton.).
4
Cf. SPENCE, 1982.
5
Em Freud and beyond: a history of modern psychoanalytic thought, Stephen A Mitchell e Margaret J Black
apresentam um conjunto de autores que desenvolveram novas abordagens a psicanálise freudiana.
Especialmente, no cap. 7, intitulado: Contemporary Freudian revisionists: Otto Kernberg, Roy Schafer, Hans
Loewald, and Jacques Lacan. (Cf. MITCHELL, 1995, pp. 277-325).

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termos de causa em vez de razões. Essas duas características da metapsicologia freudiana levam
a psicanálise para o que Schafer chama de “o problema da discrepância” entre teoria e prática.
A solução que ele oferece é trocar a metapsicologia mecânica-dualística de Freud por um
sistema alternativo, chamado linguagem-ação. (SCHAFER, 1976, p. 6-15).
No presente artigo, identificaremos pontos de contato entre Rorty e Schafer em torno da
psicanálise freudiana. Entre eles, podemos citar, a saber, uma visão alternativa à metapsicologia
através de uma versão antiessencialista6 da psicanálise.

1 RORTY LEITOR DE FREUD

Rorty em seu artigo “Freud and Moral Reflection” (1991), elaborou uma interpretação
da teoria freudiana com vistas às consequências morais. Ele observa que Freud se vê como parte
do movimento de “descentralização” com Copérnico e Darwin. Isso ocorre quando Freud
destitui a razão consciente da determinação das ideias e dos atos humanos, tirando do ego o
poder absoluto de si ao afirmar que outras instâncias da mente também têm grande
importância7. “O ego não é senhor em sua própria casa” (FREUD, 1917 [2010], XIV, p.186)8,
diz Freud e Rorty tenta compreender todas as consequências dessa afirmação.
De acordo com Rorty, a mecanização da natureza com Copérnico e Newton não alterava
em nada a autoimagem do homem, nem dizia nada sobre como ele deveria viver. A diferença
de Freud residiria no fato de que ele introduz uma visão que pode ser associada à consciência
moral em termos de dar à mente a oportunidade de encontrar maneiras de expandir a
mecanização. (RORTY, 1991, p. 144). Assim, segundo Rorty, a inovação verdadeiramente
significativa está na mudança operada por Freud em nossa autoimagem. Se antes de Freud, o

6
O antiessencialismo na filosofia de Rorty é uma objeção ao essencialismo que procura a "realidade"
escondida sob toda a "aparência". Rorty nega completamente essa maneira de ver as coisas; do ponto de vista
rortyano, essa distinção (aparência/realidade) é uma relíquia de nossa tradição teológica que alguns filósofos
contemporâneos criticaram. (RORTY, 1994b, pp. 47-71). Em relação a psicanálise, o antiessencialismo está
relacionado a mudança de perspectiva da proposta freudiana de vincular sua disciplina as ciências da natureza,
seja para resolver os impasses que essa vinculação ocasionaria, como no caso de Roy Schafer, seja para
atribuir a Freud um papel central para reflexão moral, em Rorty.
7
No artigo de 1917, Eine Schwierigkeit der Psychoanalyse (Uma dificuldade da Psicanálise), Freud trata de
certa antipatia e da resistência perante a Psicanálise, devidas a um dos “três severos golpes” sofridos pelo
“narcisismo universal” do homem, ou seja, em “seu amor-próprio”. O primeiro golpe, o cosmológico, dado
pela teoria copernicana, marca a destituição da Terra da posição central do Universo; o segundo é o biológico,
causado por Charles Darwin, pelo qual o homem é colocado no fluxo da evolução comum das espécies, sem
nenhum privilégio. O terceiro, é o próprio Freud. (FREUD, 1917 [2010], XIV, pp. 179-187).
8
As obras de Freud envolvem problemas de tradução e discussões acerca do seu vocabulário, serão utilizadas
as traduções de Paulo César de Souza. No entanto, optamos por traduzir o termo Verdrängung por Recalque,
Ich, Uber Ich e Es são substituídos pelos termos latinos que se consagraram no Brasil: ego, superego e id.

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sujeito era pensado e identificado com a consciência, com ele e a partir dele é preciso perguntar
pelo sujeito do inconsciente e por sua articulação com o eu consciente. A noção de sujeito
centrado, dotado de razão e consciência, conhecido como sujeito cartesiano, vai dando lugar a
uma nova concepção do sujeito.
Dessa forma, a psicanálise passa a elaborar uma teoria, defendendo que “o ego não é o
senhor em sua própria casa”. (FREUD, 1917 [2010], XIV, p.186). Enquanto o cogito cartesiano
aponta o eu como o lugar da verdade, o “cogito freudiano” revela que o eu é o lugar do
ocultamento. São duas concepções de subjetividade completamente diferentes. Freud não
aponta um novo campo da consciência, algo que se pudesse entender como a sua face oculta,
mas um novo objeto, isto é, o inconsciente. A questão propriamente dita do sujeito sofre um
descentramento radical.
Para Rorty, faz-se necessário entender os dois sentidos de inconsciente, presentes na
obra freudiana9, para que a sua proposta de leitura seja aceitável. Vejamos:

(1) um sentido que representa um ou mais sistemas bem articulados de crenças


e desejos, sistemas que são tão complexos, sofisticados e internamente
consistentes quanto as crenças e desejos conscientes dos adultos normais; e
(2) um sentido que representa uma massa fervilhante de energias instintivas
inarticuladas, um “reservatório de libido” para o qual a consistência é
irrelevante. (RORTY, 1991, p. 149).

No segundo sentido, o termo inconsciente seria só outra designação de “paixões”, a parte


animalesca aprisionada nos porões da alma, a má alma, etc. A consequência disso seria uma
visão pautada na dicotomia razão/instinto em que o autoconhecimento é considerado como um
processo de purificação em busca da parte pura e racional do homem. Tratar-se-ia de extirpar
do “eu” verdadeiro as “impurezas” das paixões e dos instintos. Já o primeiro sentido, ao
contrário, distante de se referir a algo animal, soturno e repulsivo, visaria a relação com o
consciente como a de “parceiros conversacionais”10, ou seja, quase-selves astutos, criativos,

9
Freud pensou o inconsciente de duas formas, durante sua carreira: a primeira forma refere-se à “primeira
tópica”, que foi dividida em três instâncias (consciente, pré-consciente, inconsciente), mas Freud entendeu os
limites dessa concepção e então criou uma “segunda tópica”, construída sobre o tríptico ego, superego e id.
Freud de fato define três instâncias presentes no ser humano, que governam seu comportamento, tanto
consciente quanto inconsciente. Ou seja, a noção de inconsciente em Freud sofreu mudança de sentido quando
ocorreu a reformulação das tópicas. Parece que os sentidos elencados por Rorty são mais genéricos e
imprecisos do que a operada no seio da teoria psicanalítica. Ainda, chamo atenção que essa espécie de
“antropomorfização” se encontra mais na segunda tópica. Thomas Nagel trata desse tema em Freud's
anthropomorphism, publicado em Philosophical Essays on Freud, ed. Richard Wollheim and J. Hopkins,
Cambridge, 1983.
10
A ideia de “conversação” em Rorty advém de sua noção de filosofia como uma grande conversa, diálogo.
A filosofia seria uma disciplina como as outras e em diálogo com elas, com critérios históricos e contingentes,
que se ocuparia de mostrar as vantagens e desvantagens de visões de mundo em competição, em contraposição

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inventivos, etc., em inter-relações. Assim, para demarcar o caráter estético de sua proposta,
Rorty cita Rieff (RIEFF, 1959, p. 35) com aprovação, quando ele diz que, “Freud democratizou
o gênio ao dar a todos um inconsciente criativo.” (RORTY, 1991, p. 149). De outra forma,
podemos dizer que a autoimagem do homem como um intelecto, tendo que se ver às voltas com
brutos irracionais – as paixões, os instintos animais –, dobra-se à outra, mais requintada, de dois
ou mais intelectos que podem agir mutuamente entre si.
Justamente, segundo Rorty, o que é novo na visão freudiana é essa compreensão do
inconsciente definido no primeiro sentido da citação, em que o inconsciente não é visto como
tosco ou obtuso, mas como um par intelectualmente inventivo e tão articulado quanto o
consciente. Essa perspectiva gera uma revisão em nossa autoimagem, pois substitui a ideia de
uma parte racional dos seres humanos, lutando contra as paixões (as irracionalidades provindas
de nossa parte animal) por uma ideia de rede de diversas crenças e desejos, de transações
sofisticadas entre diferentes intelectos. Nessa concepção, o inconsciente pode ser interpretado
como um sistema coerente internamente, de modo a equiparar-se com uma quase pessoa, ainda
que diferenciada e estranha ao conjunto de crenças e desejos conhecidos e que denominamos
consciência.
O interessante na redescrição antiessencialista do inconsciente oferecida por Rorty é que
ela rompe com as dicotomias e as relações hierárquicas, tratando de conceber as instâncias
psíquicas como equivalentes. Nessa concepção, o inconsciente pode ser interpretado como um
sistema coerente interno, de modo a equiparar-se com uma quase pessoa, ainda que diferenciada
e estranha ao conjunto de crenças e desejos conhecidos, que denominamos consciência.
Segundo essa visão, nossa tarefa moral seria uma espécie de familiarização com o estranho em
nós, nosso componente “irracional”. Só esse autoconhecimento vai nos permitir negociar entre
nossas identidades e nossas “pessoas”. Esta noção de múltiplos “eus” é uma boa maneira de
naturalizar e desmistificar a noção freudiana de inconsciente. (RORTY, 1994a, p. 78).
Outra característica dessa leitura é o abandono de toda explicação metapsicológica, ou
seja, ao abandonar toda metapsicologia, supostamente implicada nas “metáforas energéticas,
topográficas e econômicas”, Rorty procurará, no mesmo passo, integrar as descobertas
psicanalíticas em outra chave, ao seu próprio projeto filosófico, o de uma pragmática, a partir
do momento em que o psiquismo, em sentido amplo, passa a ser pensado como conjunto de

à filosofia como a responsável de oferecer a última palavra sobre o conhecimento, capaz de criticar e julgar
as outras áreas da cultura. (cf. MATTIO, Eduardo. La Construcción Pragmatista del Sujeto y de la
Comunidade Moral. Buenos Aires: Ed. Del Siglo, 2009, p. 38.). No caso de “parceiros conversacionais”,
Rorty leva essa posição para as instâncias psíquicas da teoria de Freud, onde, para ele, não há nenhuma
hierarquização das instâncias e elas operariam em uma grande conversação.

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Volume 06, Número 10, Ano 2021

crenças e desejos. Nessa esteira, Rorty entende o processo analítico freudiano como um grande
movimento de familiarização dessa rede diversificada de crenças e desejos, no intuito de lidar
com a variedade de “quase-selves” como processo de auto engrandecimento [self-
Enlargement], por se tratar de encontrar e conhecer a diversidade de aspectos existentes dentro
de nós e não de encontrar o verdadeiro eu. Nisso, Rorty nos parece muito fiel ao propósito da
psicanálise. É na possibilidade de descrição plural de vários discursos e práticas, mesmo aquelas
aparentemente antagônicas numa mesma pessoa, que o auto engrandecimento toma o lugar do
autoconhecimento. Podemos dizer que se trata de uma redescrição da máxima do Templo de
Delfos – “conhece-te a ti mesmo!”; trata-se de substituir o afã religioso e metafísico de
encontrar o “verdadeiro self”, pelo desejo de tornar conhecidos e comuns esses estranhos em
nós, como uma nova obrigação moral.
Para Rorty, o “desenvolvimento moral no indivíduo e de progresso moral na espécie
humana como um todo, é uma questão de refazer eus humanos, de modo a ampliar a variedade
das relações que constituem os eus.” (RORTY, 1994, p. 79). O que Freud fez, foi proporcionar
um instrumento apropriado para este processo de autocultivo, a psicanálise. Rorty vislumbra a
estreita relação entre psicanálise e autocriação. A psicanálise é descrita como um dispositivo de
ironização11, na medida em que proporciona ao sujeito a possibilidade de um olhar irônico sobre
o próprio eu e a própria história. Se não podemos mais arrolar uma verdade ou essência sobre
o eu, como também sobre os fatos, a análise conduz o indivíduo a um trânsito incessante entre
as diferentes versões propostas pelas diferentes instâncias psíquicas, processo que implica o
desenvolvimento de uma saudável “tolerância às ambiguidades”, expressão que Rorty empresta
de Rieff.
Com a seguinte passagem, encontramos a redescrição psicanalítica como instrumento
de mudança:

A maturidade, de acordo com essa visão [que Rorty oferece de Freud],


consistirá numa capacidade de perseguir novas redescrições do nosso passado

11
Para Rorty, o ironista é aquele que tem três características: I - tem "contínuas dúvidas sobre o seu
vocabulário final", porque teve acesso a vocabulários considerados finais por outras pessoas ou livros que
tenha entrado em contato. Por vocabulário final, Rorty designa aquele conjunto de palavras que todo ser
humano carrega e que é empregado para justificar suas ações, suas crenças e sua vida, II- percebe que os
argumentos de seu vocabulário final não dissolvem nem subscrevem suas dúvidas e III - "não acha que seu
vocabulário final é mais próximo da realidade do que outros." (RORTY, 1989, p. 73). É alguém
suficientemente historicista, para quem a ideia de que suas crenças e desejos mais importantes não se referem
a algo que o ultrapassa, nem ao tempo e ao acaso. (RORTY, 1989, p. xv). O oposto do ironista é aquele que
pensa haver resposta bem fundada ou algoritmos para resolver dilemas morais. No limite, o oposto do ironista
é o teólogo, ou o metafisico, pois acredita numa ordem (além do tempo e da mudança) que determina a
existência humana. Num artigo intitulado, Ironia (s) em Freud: Da escrita à ética, Inês Loureiro nos apresenta
o ironismo em Rorty e como ele se diferencia de outras formas de ironia. (LOUREIRO, 2007).

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

– uma capacidade de assumir uma visão nominalista, irônica de nós mesmos.


Ao transformar as partes da alma platônicas em companheiras de conversação
umas das outras, Freud fez da variedade de interpretações do passado de cada
um o que a abordagem baconiana da ciência e da filosofia fez à variedade de
descrições do universo como um todo. Deixou-nos ver narrativas alternativas
e vocabulários alternativos como instrumentos para mudança, em vez de
candidatos a uma representação correta de como as coisas são em si mesmas.
(RORTY, 1991, p. 152).

Esta é uma maneira de ver a construção da subjetividade como uma luta constante de
aperfeiçoamento, em que o próprio sujeito é ator e autor de sua história e cujo sentido é fruto
da criação constante de si mesmo. Rorty afirma que deveríamos tratar tudo como “produto do
tempo e do acaso” e não como “quase divindade”. Essa é a postura de quem leva em
consideração a contingência, segundo ele, postura comum a Freud.

2 ROY SCHAFER: A PSICANÁLISE COMO NARRATIVA

Roy Schafer considera que os impasses encontrados pela a teoria e pela clínica
psicanalíticas podem ser solucionados com um “novo vocabulário”, abandonando o vocabulário
metapsicológico12. Ele propõe uma linguagem-ação para a psicanálise freudiana ser vista como
uma disciplina histórica, desenvolvendo a tese de que o psicanalista deve ter uma visão histórica
da vida do analisando como ação13. Ou seja, a psicanálise como uma disciplina interpretativa
cujos praticantes têm por objetivo desenvolver um modo sistemático de descrever a ação
humana.

Ao falar de qualquer aspecto da atividade psicológica ou ação, não devemos


mais nos referir à localização, movimento, direção, quantidade absoluta, e
assim por diante, pois esses termos são adequados apenas para coisas e
entidades semelhantes. Assim, não falaremos de internalização, exceto no

12
Bezerra Jr. elenca de maneira muito objetiva esses impasses: “Como afirmar a existência de ideias e estados
num mundo privado da mente que só posso perceber sua presença quando se tornam reconhecíveis, isto é,
quando há possibilidade de serem linguisticamente descritos? Como e em que condições uma “representação
de palavra” e uma “representação de coisa” são conectadas como sendo representação de uma mesma “coisa”,
se elas existem dissociadas e desconectadas entre si? Como solucionar o impasse criado quando afirmo que
processos inconscientes obedecem a leis que são a princípio completamente diferentes das que regem a
gramática dos processos conscientes, e, no entanto, apesar dessa diferença essencial de natureza, só posso
falar de inconsciente usando as regras da elaboração secundária? [...] Se o inconsciente não pensa e suas
atividades não podem ser descritas de modo proposicional, como ter acesso ao que não é descritível
linguisticamente?”. (BEZERRA Jr., 1994, p. 130).
13
Cf. SCHAFER, Roy. A New Language for Psychoanalysis, New York: Yale University Press, 1976; The
analytic attitude, London: The Hogarth Press Ltd, 1983; Narration in the Psychoanalytic Dialogue em Critical
inquiry, on narrative, v.7, n.1, Autumn 1980; e Action Language and the Psychology of the Self. Annual of
Psychoanalysis 8, 1980a, pp. 83-92.

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sentido de uma pessoa imaginar que está incorporando algo; pois, como não
há outro interior concebível além do imaginário, não pode haver nenhum outro
movimento concebível para este interior. Da mesma forma, não vamos falar
de profundidade psicológica, impulsos que fundamentam as ações, descarga
ou esgotamento de energia acumuladas ou deslocadas ou investidas.
(SCHAFER, 1976, pp. 10-11).

Para Schafer, teóricos psicanalistas têm diferentes maneiras de persuadir seus


seguidores e empregam diferentes princípios interpretativos, ou de melhor modo, diferentes
estruturas narrativas para desenvolver seus próprios caminhos de fazer psicanálise e falar sobre
o que fazem. Essas estruturas levam em conta que: ou Freud estava desenvolvendo um conjunto
de princípios, compreensão e explicação do diálogo entre o analista e o analisando em termos
mecânicos, ou que ele estabelecia um conjunto de códigos para gerar significado psicanalítico,
reconhecendo esse significado em cada instância para ser apenas um dos vários tipos do que
pode ser gerado (SCHAFER, 1980, p. 341).
Segundo Schafer, uma das estruturas narrativas encontradas para ler Freud é baseada na
física newtoniana transmitida através dos laboratórios de fisiologia e neuroanatomia do século
XIX. Essa descrição apresenta a psicanálise como o estudo da mente vista como uma máquina,
ou no jargão freudiano, aparelho mental. Essa máquina é caracterizada pela inércia e trabalha
como um sistema fechado. Armazena ou gasta um montante de energias fixas, dependendo da
operação, ou seja, diminui a energia disponível em algumas operações e investe em outras. A
máquina tem um mecanismo de funcionamento automático, como o de defesa, responsável
pelos “checks” e “balance”. Essa narrativa assume completamente o determinismo:
determinismo das forças newtonianas, sem espaço para responsabilidade e liberdade. Dessa
forma, a psicanálise freudiana pode ser entendida como uma ciência natural, essencialista e
positivista (SCHAFER, 1980, p. 343).
Como núcleo dessa narrativa temos a metapsicologia, coisa que Freud considerou
indispensável para tornar sua disciplina científica. Schafer aponta, em conjunto à física
newtoniana, o dualismo cartesiano como fundamento da metapsicologia. Em conferências
introdutórias, Freud afirma:

Não queremos apenas descrever e classificar os fenômenos, mas compreendê-


los como sinais de um jogo de forças na psique, como manifestação de
tendências (intenções) dotadas de meta, que trabalham em consonância ou
dissonância uma com as outras. Esforçamo-nos em obter uma concepção
dinâmica dos fenômenos psíquicos. Nessa nossa concepção, os fenômenos
percebidos devem ficar em segundo plano perante tendências apenas supostas.
(FREUD, 1916[2014], XIII, p. 71).

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Podemos encontrar essa maneira de descrever os eventos psíquicos em várias partes da


obra freudiana. Para Schafer, há nesta maneira de descrever os fenômenos psíquicos a suposição
da mente como um lugar com quantidade de energias, barreiras, uma entidade espacial,
contendo os estados mentais ou processos psicológicos, tais como “inconsciente dinâmico”,
“energia libidinal”, “funções autônomas do ego”, etc.
Por essa perspectiva, Freud criou a psicanálise dentro de uma tradição essencialista e
positivista da ciência natural14. Contudo, não precisamos ser aprisionados por seus
compromissos científicos. Schafer escreveu:

Os termos da metapsicologia freudiana são os de ciência natural. Freud,


[Heinz] Hartmann e outros usaram deliberadamente o vocabulário de forças,
energias, funções, estruturas, aparelhos e princípios para estabelecer e
desenvolver psicanálise na linha de uma psicobiologia fisicalista. É
inconsistente com o tipo de linguagem científica falar de intenções,
significados, razões, subjetividade ou experiência. [...] [então], as razões se
tornam forças, as ênfases tornam-se energias, a atividade se torna função, os
pensamentos se tornam representações, os afetos se tornam descargas ou
sinais, atos tornam-se resultantes e formas particulares de lutar com a
inevitável diversidade de intenções, sentimentos e situações tornam-se
estruturas, mecanismos e adaptações. (SCHAFER, 1976, p. 103).

As explicações gerais e interpretações que Freud deu sobre seus casos clínicos podem
ser lidas de outra forma. Schafer diz:

Devemos considerar cada processo psicológico, evento, experiência ou


comportamento como algum tipo de atividade, doravante denominado ação, e
designar cada ação por um verbo ativo que declara sua natureza e por um
advérbio (ou locução adverbial), quando aplicável, indicando o modo dessa
ação. [...]. Devemos entender a palavra ação para incluir toda a atividade
psicológica privada que pode ser tornada pública através do gesto e do
discurso, como o sonho e o pensamento tácito da vida cotidiana, bem como
todas as atividades públicas iniciais, como a fala comum e o comportamento
motor, que tem algum objetivo, propriedades direcionadas ou simbólicas.
(SCHAFER, 1976a, pp. 9-10).

Para Schafer, existem estruturas narrativas na psicanálise que implicam duas formas
coordenadas: a) o desenvolvimento humano e b) o curso do diálogo psicanalítico. Longe de ser

14
Para Bezerra Jr. “esse essencialismo foi acentuado pelo cientificismo frequentemente presente em Freud.
Várias vezes ele expressou a expectativa de que a psicanálise fosse agraciada com a dignidade reconhecida às
ciências. Isso significava ter que oferecer explicações casuais, e não meramente intencionais (entendidas como
incompatíveis e excludentes entre si). [...] [Neste sentido], explicar cientificamente significava revelar como
as coisas se passavam “em si mesmas” no sujeito, e não apenas descrevê-las de modo a permitir ao sujeito
uma narrativa plausível do que antes lhe parecia irracional, absurdo, ou sem sentido.” (BEZERRA Jr., 1994,
p. 131).

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narrativas secundárias sobre dados coletados em análise, essas estruturas provêm de narrativas
primárias que estabelecem o que conta como dado. Uma vez instalados como principais
estruturas narrativas, são tomados como certos para desenvolver relatos coerentes da vida e da
técnica (SCHAFER, 1980, p. 341).
Ao apresentar a psicanálise em termos narrativos, Schafer parece levar adiante o projeto
de aceitar que não há dados psicanalíticos objetivos, autônomos ou puros, como Freud disse ter
encontrado. Especificamente, não existe um relato único, necessário e definitivo da história de
uma vida, da psicopatologia, da influência social sobre a personalidade, ou do método
psicanalítico e dos seus resultados. O que tem sido apresentado como dados empíricos simples
são inseparáveis dos pressupostos pré-críticos e inter-relacionados do investigador sobre as
origens, a coerência, a totalidade e a inteligibilidade da ação pessoal (SCHAFER, 1980, p. 342).
Dessa forma, as estruturas narrativas são importantes não porque analisam “dados”, tal
como o projeto inicial de Freud, mas porque nos dizem o que deve ou não “ser considerado
dado” na história que está sendo construída. Isso é importante porque não há interpretações
definitivas. Há interpretações que fazem sentido, outras não. Os dados não são encontrados, são
construídos ou constituídos ou, até mesmo, buscados (SCHAFER, 1980, p. 342).
Schafer levantou questões sobre o alcance da teoria psicanalítica, a ideia de
interpretação e o abandono da metapsicologia, temáticas próximas das rortyanas, com uma
preocupação de revisar os conceitos psicanalíticos de maneira tal que poderíamos abandonar o
mentalismo encontrado nas formulações de Freud15.

3 REDESCRIÇÃO COMO LINGUAGEM-AÇÃO: RORTY E SCHAFER

15
Podemos sumariamente dizer que mentalismo se refere à doutrina filosófica que atribui a entidades mentais,
processos e estados inobserváveis (intenções, desejos, crenças, etc.) – todas eles internos –, a causa do
comportamento humano: a mente explica o comportamento e não o inverso. Para Bezerra Jr. existem várias
maneiras de entender o desenvolvimento das teorias psicanalíticas, e ele esboça, de maneira sintética, três
delas: a versão mentalista, estrutural e pulsional (BEZERRA Jr., 1994, p. 129). Segundo ele, a versão
mentalista está fundamentada numa visão da linguagem como representação do mundo, uma teoria
representacional da linguagem. A ideia principal é que nossa mente espelhe a natureza e nos dê representações
diretas do mundo. Essa ideia é fundamental para o projeto da epistemologia moderna, e no século XIX era
hegemônica. A estrutural, diz respeito a uma nova leitura da psicanálise baseada em uma outra concepção de
linguagem, que veio com uma combinação da linguística de Saussure e a antropologia de Lévi-Strauss
realizada por Lacan. (BEZERRA Jr., 1994, p. 133). E a pulsional, é aquela que, ao criticar as concepções
estruturalistas, realizam uma defesa da importância da dimensão propriamente econômica do psiquismo.
Tomam a questão da força como fundamental no entendimento do psiquismo. (BEZERRA Jr., 1994, p. 139).

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Para Rorty, “precisamos de menos metodologia e metafísica” (RORTY, 1980, p.177)


na teoria freudiana, a favor de avançar na reflexão do âmbito prático. Uma das estratégias
argumentativas de Rorty para esse movimento, consiste na ideia de redescrição. Para dizer um
pouco mais sobre o que envolve a redescrição rortyana em sentido geral, talvez seja melhor ir
direto às palavras do autor:

A Filosofia interessante raras vezes é um exame dos prós e contras de uma


tese. Em geral, de maneira implícita ou explícita, é uma disputa entre um
vocabulário arraigado, que se transformou num incômodo e um novo
vocabulário, parcialmente formado, que traz a vaga promessa de coisas
grandiosas. Este último ‘método’ da filosofia [...] consiste em descrever
muitas e muitas coisas de novas maneiras, até criar um padrão de
comportamento linguístico que tente a geração em ascensão a adotá-lo, com
isso fazendo-a buscar novas formas apropriadas de comportamento não
linguístico [...] Tentarei fazer com que o vocabulário que prefiro pareça
atraente, mostrando como é possível usá-lo para descrever uma variedade de
tópicos. (RORTY, 1989, p. 9).

Rorty está decidido, em sua afirmação, de que nós podemos substituir vocabulários
antiquados, herdados de longa data, por novos, simplesmente porque estes são, em certo
sentido, mais úteis. Essa abordagem é uma consequência direta de sua visão de mundo
pragmática.
Podemos dizer que para Schafer a linguagem-ação seria uma técnica a ser implementada
em psicanálise, pelo qual o paciente é levado a redescrever alguns de seus estados mentais. A
ideia é que certos analisandos sofrem, em parte, por ter perdido de vista o fato de que a presença
de estados mentais, tais como desejos, crenças e similares são, em grande parte, de sua
responsabilidade. Eles esqueceram que esses estados são ações realizadas, em vez de conteúdo
mental a ser descoberto – e, portanto, que esses são eventos em relação aos quais são
responsáveis. Dessa maneira, ações deletérias e/ou provocadoras de sofrimento são candidatas
à redescrição.

[Analisandos] falam ao analista sobre eles mesmos e sobre os outros no


passado e no presente. Ao fazer interpretações, o analista reconta essas
histórias. Ao recontar, certas características são acentuadas enquanto outras
são colocadas entre parênteses; certas características são relacionadas com
outras de um jeito novo ou pela primeira vez; algumas características são
desenvolvidas posteriormente, talvez em longos períodos. Esse recontar é
feito ao longo do processo psicanalítico. [...] O produto final desse
entrelaçamento de textos é uma maneira radicalmente nova de trabalho
conjunto. Pode-se dizer que no decurso da análise, desenvolve-se um conjunto
de novas narrações mais ou menos coordenadas, cada uma correspondendo a

136
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

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períodos de intenso trabalho analítico sobre certas questões principais.


(SCHAFER, 1980, p. 346).

Aqui, Schafer reafirma a psicanálise como um processo essencialmente narrativo,


produzido em coautoria entre analisando e analista. Neste esforço cooperativo, o analisando
fornece a história, envolvendo certas alternativas práticas, como se sente, os desejos que podem
motivá-lo, a relação entre esses desejos, valores e compromissos, e assim por diante. Enquanto
isso, o analista auxilia o analisando na formação do que é dito, sugerindo uma sequência coesa
de eventos em que o analisando é alçado à personagem principal.
A abordagem de Schafer e a sua maneira de ver a psicanálise, procurando tratá-la de
forma contingente16, converge para a ideia de redescrição antiessencialista de Richard Rorty. A
pessoa, como praticante da ação, não pode ser obrigada por qualquer coisa “interna” ou
“exterior” ou “mais profunda” a fazer isso ou aquilo. O conceito de redescrição, em Rorty,
captura o sentido que Schafer espera restituir sobre nossa compreensão do tratamento
psicanalítico e sobre os processos aí envolvidos. É a tentativa de contar novas histórias sobre
nós, sem a necessidade de apelar para a busca do verdadeiro eu ou de uma essência, que se
encontraria no fim da investigação. Redescrevendo, estamos esquadrinhando diversos aspectos
da nossa história que, segundo Rorty, nos habilita a suportar uma certa ambiguidade de nossa
relação com o mundo, o que teria como consequência, o self estar continuamente construindo
narrativas sobre seu lugar no mundo. Essas narrativas pessoais não estariam subsumidas em
nenhuma narrativa maior.
A ideia de Rorty sobre o self, como uma “rede sem centro de crenças e desejos
historicamente condicionados”, em vez de ser uma entidade preexistente que “tem essas crenças
e desejos”, desafia os indivíduos não a descobrirem a sua “verdadeira essência”, mas a criarem
uma descrição de sua experiência, de suas crenças e paixões, que formariam uma narrativa
coerente, sendo sempre um ato de criação, ao invés de descoberta. O autoconhecimento, para
Rorty, significa autocriação. A autocriação é um processo dialético, no sentido de que para uma
pessoa ser realmente capaz de redescrever sua vida com uma narrativa significativa, ela deve
primeiro aceitar a sua própria contingência e o que isso significa. Nessa visão estetizada de
Rorty, da vida vista como arte ou literatura, uma psicanálise como apresentada por Roy Schafer
é a mais conveniente. A redescrição de um conjunto contingente de crenças e desejos em uma

16
Schafer escreveu: “Escolhi desenvolver uma alternativa à linguagem eclética do mecanismo, força,
estrutura, etc. [i.e., uma alternativa à metapsicologia freudiana]. Numa linguagem-ação […] Ao desenvolvê-
la, usei, da melhor forma possível, certas ideias de escritos filosóficos modernos sobre existencialismo,
fenomenologia, mente e ação; e.g., de Binwanger, Sartre, Wittgenstein, Ryle e outros.” (SCHAFER, 1976a,
pp. 7-8).

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narrativa original e criativa é equivalente a tomar a psicanálise como linguagem-ação, onde a


psicanálise freudiana passa a ser apresentada como uma disciplina interpretativa cujo objetivo
é desenvolver narrativas: uma maneira sistemática de descrever a ação humana, sem recorrer a
aspectos mentalistas. Através do discurso, segundo Schafer, o analisando narra os
acontecimentos passados, trechos de histórias vividas, suas impressões e percepções, as cenas
traumáticas, os episódios conflituosos, enfim, toda sorte de construções narrativas das ações
possíveis de significação, e o psicanalista constrói junto com o analisando uma narrativa que,
para ele, faça mais sentido.
Essa interpretação narrativa da teoria psicanalítica tem por pressuposto que a história
inteira do indivíduo seja o movimento de histórias não narradas e recalcadas em direção a
histórias efetivas que o indivíduo poderia tomar em troca e ter como matéria prima para
constituir seu self. Esse é o processo de conhecer as “quase-pessoas” em nós, como na visão de
Rorty. É a busca de familiarizar-se com essas histórias alternativas, não tematizadas e
recalcadas que, segundo Rorty, abre o caminho para um progresso moral.
Trata-se, portanto, de uma conexão entre fatos aparentemente não relacionados que
ganham inteligibilidade por meio da narrativa e por isso possibilita redescrever-se de maneira
nova, podendo gerar novos indivíduos e por que não, novas maneiras de ser no mundo. Rorty e
Schafer fazem avançar profundamente essa ideia, uma espécie de espiral baseada em contar e
recontar, interpretar e reinterpretar histórias pessoais, o que seria, para ambos, o movimento
próprio da psicanálise.
Desse modo, a verdade da experiência psicanalítica não é descoberta, é criada17. A meta
terapêutica passa da verdade científica para a inteligibilidade narrativa, seja em Rorty, seja em
Schafer. O psicanalista passa de um arqueólogo das profundezas da alma para um romancista

17
Rorty argumenta que o mundo é causalmente independente de nós, mas que não é descrito independente de
nós. Com esta distinção podemos ver a perspectiva holista da linguagem e do conhecimento defendida por
Rorty, “explicar todas as propriedades relacionais de alguma coisa – todas as suas causas e seus efeitos – é
explicar a coisa em si própria” (RORTY, 1998, p. 99), de modo que, a partir dessa perspectiva, todo objeto
(como a mente ou um carro) só existe sob uma descrição (1998, p. 105), e quando a descrição se modifica, se
modifica o objeto. Estas alegações constituem a negação da existência de propriedades intrínsecas (não
passiveis de descrição) em qualquer coisa, mas Rorty pretende que elas não sejam a negação do mundo, que
existe independentemente de nós. Podemos dar um exemplo para ilustrar esse ponto: em 2006, o até então
planeta Plutão deixou de ser considerado planeta. Isso ocorreu pela descoberta de outros corpos celestes
similares e até maiores que Plutão. Os astrônomos tiveram que fazer uma escolha, ou incluir estes corpos
também como planetas do sistema solar, ou criarem uma nova categoria para Plutão. Eles decidiram designar
Plutão de “planeta anão” e os outros de “planetas principais”. Com esse exemplo da ciência, o argumento da
“relatividade das descrições aos propósitos”, de Rorty, ganha força. Para Rorty, “a investigação visa ser-nos
útil, e não fazer um relatório acurado das coisas em si” (RORTY, 1994a, p. 127). Assim, a experiência
psicanalítica, um planeta ou a mente são assim, porque assim os descrevemos, por que consideramos deles as
características que satisfazem a nossos objetivos. Cf. Relativismo: Encontrar e fabricar. Em CÍCERO,
Antonio; SALOMÃO, Waly. (orgs.). O relativismo enquanto visão de mundo. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1994a, pp. 115-134.

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criativo, que abandona a tentativa de construir um quadro verdadeiro do passado e encontra seu
desafio em construir narrativas auto coerentes. Tomar a explicação psicanalítica como narrativa
é levar a sério a ideia de que nossa mente não é um teatro interno onde as representações se
apresentam, assistidas por um olho interior, à moda cartesiana, e sim, um conjunto de narrativas
por nós construídas para justificar o que pensamos e como agimos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como James Tartaglia afirma, as interpretações operadas por Rorty podem,


frequentemente, ser consideradas tão “entusiasmantes” quanto “imprecisas e evasivas”,
perspectiva de que Pablo de Greiff partilha 18. Oferecemos um esboço da interpretação rortyana
de Freud, tentando pontuar em linhas gerais a sua leitura. Na redescrição do inconsciente que
Rorty oferece, o inconsciente pode ser interpretado como um sistema coerente internamente, de
modo a equiparar-se a uma “quase-pessoa”, ainda que diferenciada e estranha ao conjunto de
crenças e desejos conhecido e denominado consciência. A distinção operada no seio da ideia
de inconsciente demonstra claramente que Rorty opta por um dos seus significados excluindo
o outro e, sendo essa escolha não gratuita, cumpre um propósito. Rorty tem em vista uma forma
de reflexão moral que é possibilitada por essa escolha.
De maneira semelhante a Rorty, Roy Schafer considera que os problemas que a teoria e
a clínica psicanalíticas encontram, podem ser solucionados com um “novo vocabulário”,
abandonando o vocabulário metapsicológico. Ele propõe uma “linguagem-ação” para a
psicanálise freudiana ser tomada como uma disciplina histórica, desenvolvendo a tese de que o
psicanalista deve ter uma visão histórica da vida do analisando como ação, ou seja, a psicanálise
como uma disciplina interpretativo-descritiva em termos de ação humana.
Schafer despe o vocabulário freudiano de toda dimensão metapsicológica. Em vez de
falar de energia libidinal, pulsão, aparelho psíquico, etc., fala sobre experiências individuais. A
noção de linguagem-ação proposta por ele envolve uma estratégia para ouvir, reconhecer,
traduzir, interpretar e organizar as ações do indivíduo, isto é, refere-se a uma abordagem que
visa justificar a existência das atividades conscientes ou inconscientes – os atos mentais internos
– externalizados por meio de palavras ou gestos, para que esses atos mentais possam estar
relacionados a conflitos, sentimentos e emoções, desejos e crenças que o indivíduo expressa.

18
(TARTAGLIA, 2007, p. 23); (GRIEFF, 1990, pp. 51-64).

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A explicação para esses autores, em termos de narrativa, é suficiente para entender a


psicanálise e seu caráter inovador. Sem dúvida, as redescrições de ambos formam um retrato
comum da teoria freudiana, no sentido de oferecer uma contrapartida para o que Freud
imaginava do psiquismo, em termos de competição de forças, aparelho e estruturas. Eles
propõem ignorar as explicações metapsicológicas, envolvidas por um vocabulário mentalista, e
abordar a psicanálise como processo essencialmente narrativo.

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REFERÊNCIAS

BEZERRA Jr, Benilton. Descentramento do sujeito – versões da revolução copernicana de


Freud. In: COSTA, Jurandir Freire (org.). Redescrições da psicanálise. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1994, pp. 119-167.
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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

Recebido em:17/04/2021
Aprovado em: 19/06/2021
Publicado em: 15/07/2021

INCONSCIENTE E PLASTICIDADE
Catherine Malabou leitora de Freud

UNCONSCIOUS AND PLASTICITY


Catherine Malabou reader of Freud

Diego Luiz Warmling1


([email protected])

Resumo: Das tensões entre neurociências e psicanálise, interrogaremos a leitura de Malabou sobre
Freud, feita através da plasticidade. Veremos que o inconsciente freudiano assinala um sujeito habitado
pela consciência de seu descentramento. Apesar de Freud romper com muitos paradigmas, a leitura de
Malabou indica que certos traumas podem resultar em alterações irreversíveis à subjetividade. Inserida
na temporalidade, a plasticidade aponta ao problema do sofrimento psíquico, aplicável ao diagnóstico
da atualidade. Reconfigurando a psicanálise à luz dos novos feridos e da crise ecológica, veremos como
o humano é um acidente incontornável, e que encontra na plasticidade maneiras de receder, enformar,
explodir e transformar as coisas, conferindo-lhes novas dimensões. Articulando na materialidade do
cérebro modos de enfrentamento ao capitalismo, Malabou encontra na plasticidade uma nova relação
com a negatividade. Redimensionando os projetos humanistas, ela ensina como é possível dizer se é o
cérebro que resiste, explode, não quer ou não pode fazer mais.

Palavras-chave: Psicanálise. Inconsciente. Plasticidade. Neurociências. Malabou.

Abstract: From the tensions between neurosciences and psychoanalysis, we will question Malabou's
reading about Freud, made through plasticity. We will see that the Freudian unconscious marks a subject
inhabited by the awareness of his decentralization. Although Freud breaks with many paradigms,
Malabou's reading indicates that certain traumas can result in irreversible changes to subjectivity.
Inserted in temporality, plasticity points to the problem of psychological suffering, applicable to the
diagnosis of today. Reconfiguring psychoanalysis in the light of the new wounded and the ecological
crisis, we will see how the human is an unavoidable accident, and which finds in plasticity ways to
recede, shape, explode and transform things, giving them new dimensions. Articulating in the materiality
of the brain ways of coping with capitalism, Malabou finds in plasticity a new relationship with
negativity. Resizing humanist projects, she teaches how it is possible to say whether it is the brain that
resists, explodes, does not want or can’t do more.

Keywords: Psychoanalysis. Unconscious. Plasticity. Neurosciences. Malabou.

1 FREUD E AS NEUROCIÊNCIAS: PENSANDO A PLASTICIDADE


1.1. O inconsciente e suas características

1
Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/3640290996876588.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4400-8170.

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Como um dos principais conceitos psicanalíticos, o inconsciente não é só um sistema


diferenciado, mas qualitativo de noções como Id, Eu e Super-eu; topologias que fazem pensar
o quanto os processos psíquicos vacilam no interior de si mesmos. Para além das teorias
fisicalistas e consciencialistas, trata-se de uma instância não plenamente reconhecível ao
conjunto das representações téticas ou determinações médicas. Não puramente neurológico,
“nem cognitivo, nem metafísico, nem metapsíquico, nem simbólico” (ROUDINESCO, 1999,
p. 20), fala-se de uma “cena outra” cujas leis de funcionamento, a consciência e o Eu não tem
acesso.
Em Freud, esta estilização vem tensionar as tradições médicas e filosóficas segundo as
quais o cogito racional deve domesticar as manifestações que não estão “presentes no campo a
tual da consciência” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1986, p. 306). Interpretável desde um
ponto de vista pulsional, o inconsciente não trata nem de uma coisa na qual as intenções são
distorcidas nem do “mais profundo”, do qual desponta um conteúdo psíquico misterioso.
Estruturados e encadeados por uma linguagem própria (Cf. LACAN, 1988a, p. 139), seus
construtos são tributários de uma sintaxe que não lhes pertence, mas que os transborda, pois
apontam àquilo que a fala interdita nos desejos, obrigando-nos a entender que não há uma
síntese última do indivíduo para si.
Dispondo os seus motores no inconsciente e no dinamismo pulsional, a clínica
psicanalítica busca fazer-nos lidar com o “não-dito”, supondo aí uma “outra cena”,
transbordante aos saberes científicos e filosóficos. Contudo, é bem verdade que Freud tampouco
menosprezou a importância destas contribuições à compreensão do sofrimento psiquico. Jamais
depreciando, por exemplo, os aportes da neurologia, ele – como um psiquiatra de sua época –
entende que a psicanálise está aberta a recolher evidências capazes de proporcionar uma revisão
dos seus conceitos e métodos, na esperança de encontrar marcadores biológicos para os seus
construtos. Não obstante, é imperativo que hoje interroguemos até que ponto as topologias
freudianas são realmente eficazes quando consideradas as atualizações feitas pelas
neurociências. Para tanto, acreditamos que seja fundamental uma rápida explanação dos
conceitos psicanalíticos relativos a esta interlocução, principalmente se nossa meta é
problematizar o tema da plasticidade à luz da leitura de Freud feita por Catherine Malabou.
Com efeito, no capítulo VII d’A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud inaugura sua
primeira tópica, sugerindo que o dinamismo psíquico é formado por três instâncias antitéticas:
o “Ics (Ubw), que se contrapõe a outro sistema psíquico, o Pcs/Cs (Vbw/Bw), que é em parte
inconsciente (unbewusst), mas que não é o inconsciente (das Unbewusste)” (GARCIA-

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ROZA, 2014b, p. 210). Tais instâncias suscitam lugares psíquicos cujas relações com o desejo
se dão de distintas maneiras. Assim, se o Pcs/Cs é responsável pelo modo como cada um
percebe a si e ao mundo e se relaciona com ele, o Ics surge como um sistema psíquico
independente cujo modus operandi não se confunde com o da consciência.
Em Das Unbewusste (1915), Freud diz ser possível verificar certos atos que “a
consciência não dá testemunho” (FREUD, 2010a, p. 101). Contra toda forma de subjetividade
monolítica, o inconsciente, neste contexto, “não é uma franja ou margem da consciência,
também não é o profundo da consciência, assim como não é o lugar do caótico e do misterioso”
(GARCIA-ROZA, 2014b, p. 209). Trata-se de “uma outra estrutura, diferente da consciência,
mas igualmente inteligível” (GARCIA-ROZA, 2014a, p. 173). Irredutível aos esforços de
pensá-lo como um atributo de células nervosas, ele só é o que é mediante aos efeitos lacunares
que produz na consciência. Inalterável e não ordenado temporalmente, seus construtos –
diferentemente do que veremos em Malabou – são irredutíveis ao “conceito tradicional de
tempo e sobretudo à temporalidade característica do sistema Pcs/Cs” (GARCIA-ROZA, 2014b,
p. 233). Neste sentido, ativo, extratemporal e inesgotável, também não é observável enquanto
tal, pois seus processos “tampouco levam em consideração a realidade” (FREUD, 2010a, p.
128). “Mais além” de aferições empíricas, metafísicas ou puramente neurológicas, ele só é
narrável mediante aos efeitos que produz na consciência.
Todavia, se na primeira tópica o inconsciente é substantivamente pensado através da
clivagem entre Ics e Pcs/Cs, é desde Além do Princípio do Prazer (1920) que Freud atenta às
relações com o novo dualismo pulsional. Dada a persistência de Thanatos, ele declara, em O
Eu e o Id (1923), que apenas uma parcela do Eu pertence ao Pcs/Cs, que o inconsciente recobre
a maior parte do psiquismo e que é necessário qualificá-lo entre três novas instâncias: o Id, o
Eu e o Super-Eu.
Em 1920, Freud concebe o novo dualismo pulsional e a pulsão de morte. Para além do
primado do prazer, agora é Thanatos que surge como indício de um impulso subjacente às
determinações racionais, e que nos transforma ao ponto de reconfigurar o sentido inteiro de
uma vida (Cf. MALABOU, 2012a, p. 13). Similar à atualização de Malabou, Freud fala de um
impulso que faz querer reviver o reprimido, ou melhor, daquilo que persiste disjuntiva e
silenciosamente sob o psiquismo.
Ainda neste escopo, a segunda tópica leva à admissão de que boa parte da subjetividade
advém do inconsciente. Indicando uma via de contato com o vazio e com o descentramento da
subjetividade, fala-se de um impulso regressivo ao estado de repouso absoluto, que nos faz
“querer morrer” (ASSOUN, 1978, p. 188). Tornando secundária a estabilidade promovida

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pelas pulsões de vida (pulsões sexuais e pulsões do Eu), é aqui que Freud circunscreve um
impulso ao estado de não-vida, desde o qual temos acesso ao quadro geral do psiquismo: as
pulsões de morte.
Visto que “o objetivo de toda vida é a morte” (FREUD, 2010b, p. 204), esta é a tese de
que a vida serve à realização do vazio enquanto ausência de significação e do nada em torno do
qual a subjetividade é performada. Para além do princípio do prazer, eis o dualismo de Eros e
Thanatos: de um lado, as pulsões de morte que – atuando sob os desígnios de Thanatos –
“pretendem conduzir a vida à morte” (FREUD, 2010b, p. 214) e, do outro, as pulsões de vida
que – reputadas a Eros – “buscam e efetuam a renovação da vida” (FREUD, 2010b, p. 214).
Corroendo o progressismo científico e filosófico de Eros, a pulsão de morte surge, neste
interim, como uma potência criadora relativa a Thanatos, ao inconsciente e, portanto,
subversiva aos normativismos médicos, ainda que não os recuse por completo. Silenciosa, ela
é a cena não-figurável contra a qual o psiquismo se constitui.
Nesta viragem, O Eu e o Id (1923) ratifica a ideia segundo a qual a essência do
psiquismo não está mais na consciência nem na egoidade, pois o núcleo do Eu “é em si mesmo
inconsciente” (FREUD, 2010b, p. 178). Sem requerer novos empréstimos da neurobiologia, dá-
se aqui a consolidação da segunda tópica, representada pelas instâncias do Id, do Eu e do Super-
Eu. Ora, se até então o Eu estivera ligado ao Pcs/Cs, é pela pulsão de morte que Freud constata
o quanto o “recalcamento, e mais geralmente o conjunto dos mecanismos de defesa do eu,
trabalham a serviço do inconsciente” (NÁSIO, 1999, pp. 73-74). Portanto, o Eu não é uma
consciência translúcida. Diante de Thanatos, o Ics comporta todas as instâncias do psiquismo.
Corporal, o Eu abrange os sistemas da consciência e da inconsciência, sem se opor ao
Ics. Mas é para indicar o oposto do Eu que Freud abre mão daquilo “que em nós é impessoal”
(FREUD, 2011b, p. 59), comporta-se como o Ics, mas é estranho ao Eu. Estamos falando do Id,
que vem enfatizar o quanto o Eu é atravessado por forças internas desconhecidas e não-
normalizáveis. Disposto entre o mundo e o Id, o indivíduo é, pois, um Isso “psíquico,
irreconhecido e inconsciente, em cuja superfície se acha o Eu” (FREUD, 2011b, pp. 21-22).
Feito um inquilino estranho que mora no Eu, o Id é o núcleo do nosso ser. Impessoal,
heterogêneo e animado pelo vazio não figurável que nos habita, o Id traduz “essa coisa em nós
tão íntima que nos faz agir, e, paradoxalmente, tão obscura, primitiva e inapreensível” (NÁSIO,
1999, p. 75).
Contudo, Freud ainda considera que, no interior do Eu, persiste o “Super-Eu”. Desde
os anos 1920, o Super-Eu surge como uma formação reativa que não se esgota nas demais
instâncias, mas é responsável por conter os costumes que, se interiorizados no Eu, o

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condicionam quase por inteiro. Para nós, isso confirma o quanto a subjetividade, diluída no
inconsciente e marcada pela pulsão de morte, coloca-se a serviço do vazio que a descentra. Se
o Super-Eu é recordação da “fraqueza e dependência do Eu” (FREUD, 2011b, p. 46), então é
como se a identidade estivesse ameaçada por “três perigos: do mundo exterior, da libido do Id
e do rigor do Super-eu” (FREUD, 2011b, p. 53). Portanto, jogada ao vazio de suas demandas,
compreendemos que a subjetividade psicanalítica, assim como na plasticidade destrutiva de
Malabou, é constantemente ameaçada pelas contingências da morte, entendida como uma
dimensão de autonomia pulsional inalienável, irreversível e irredimível.
Entre a primeira e a segunda tópica, o inconsciente freudiano assinala o déficit dos
projetos consciencialistas, pelos quais o Eu é cristalino para si. Esta estilização busca pensar
um ponto de desfalecimento e despossessão da subjetividade, onde o Eu é marcado por sua falta
de significação. Reivindicando uma determinação “outra” à subjetividade, Freud aponta modos
de presentificação do sujeito no qual a identidade é vivificada como um contínuo estado de
errância. Fundado no inconsciente, o sujeito psicanalítico vacila no interior de si mesmo,
levando à admissão de que “penso onde não sou, logo sou onde não penso” (LACAN, 1998, p.
521). Não isento de justas críticas e atualizações, Freud nos é original, pois concebe um sujeito
habitado “pela consciência de seu próprio desapossamento” (ROUDINESCO, 1999, p. 24).
Não obstante, é imperativo que hoje nos questionemos até que ponto este
desapossamento proposto por Freud é realmente eficaz quando se trata de considerar, por
exemplo, os modos de subjetivação de pacientes com danos cerebrais. Considerando o quanto
Freud reiterou a abertura da psicanálise aos demais saberes, é em função de adversidades como
estas que entendemos: a leitura da psicanálise empreendida por Catherine Malabou, através do
encontro da filosofia com as neurociências, não apenas vai além de pretensas antinomias, como
nos coloca diante da instância fundadora da subjetividade, ao dispor o cérebro nos planos da
mutação e da temporalidade. Atualizando o significado do inconsciente cerebral à luz da noção
de plasticidade, Malabou nos leva a pensar o quão contingencial é a vida humana, sendo a lesão
cerebral uma barreira nas tentativas de reconstituir um modelo totalizante do humano. A
começar pelas fronteiras entre Freud e as neurociências, vejamos o que a autora tem a dizer
sobre estes enigmas psicanalíticos.

1.2. A psicanálise sob a ótica das neurociências

No texto “Psicanálise” e “teoria da libido”: dois verbetes para um dicionário de


sexologia (1923), Freud define sua disciplina da seguinte maneira:

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1) de um procedimento para a investigação de processos psíquicos que, de


outro modo, são dificilmente acessíveis; 2) de um método de tratamento de
distúrbios neuróticos, baseado nessa investigação; 3) de uma série de
conhecimentos psicológicos adquiridos dessa forma que, gradualmente,
passam a constituir uma nova disciplina científica. (FREUD, 2011a, p. 245)

Definida nestas palavras, a psicanálise é uma disciplina de viés científico. Aliás, não
podemos esquecer que Freud ensaiou o uso do inconsciente “na elaboração teórica dos
fenômenos clínicos e não apenas deu nome a uma evidência” (PEREZ, 2017, p. 69). Contudo,
diante dos métodos que fixam a atividade cerebral como causa do sofrimento psíquico, crescem
as interpelações acerca da interlocução entre a psicanálise e as teorias biologicistas. Atualmente,
são vários os discursos que colocam em xeque o método psicanalítico. Questiona-se, por
exemplo, se as recentes descobertas da neurologia são capazes de pôr fim na disciplina
inaugurada por Freud. Este embate entre o inconsciente e a cerebralização do sofrimento
psíquico surge, nos anos 1960, com a biologização da psiquiatria, e é reavivado, na década de
1980, com a emergência do DSM-III, um instrumento “que, embora seja declarado como
ateórico, é também tomado como um dos principais fatores responsáveis pela remedicalização”
(AGUIAR, 2004, p. 05).
Apontando erros, impasses e fraquezas, muitos estudos já contestam a eficácia da
psicanálise pelo fato desta não focar na redução sintomática. Junto a estas contestações, tem
sido grande a difusão de explicações psiquiátricas e neurocientíficas. Seja como for, a
neurologia – com suas fórmulas, instrumentos e tecnologias2 – vem ocupando “o lugar de uma
Verdade de cunho assertivo, para não dizer de uma Verdade definitiva” (HERZOG &
PINHEIRO, 2017, p. 39). Possibilidando ver o cérebro em ação, as tecnologias de imagem, por
exemplo, tiveram profundos impactos no processo de materialização do mental. Facultando
uma progressiva identificação das redes neurais relativas aos transtornos e condutas mentais,
elas tendem a favorecer a ilusão de capturar em imagem o conjunto dos processos mentais
pertinentes à subjetividade. Nas últimas décadas, isso acarretou uma considerável expansão das
neurociências como espaços de produção de conhecimentos, sabereres, métodos e disciplinas
focados no estudo científico do cérebro.
Partindo da ideia segundo a qual a subjetividade corresponde aos processos
neurofisiológicos, argumenta-se que, apesar da impressionante difusão, o método psicanalítico,
além de falacioso, contava apenas com uma boa estratégia de divulgação, pela qual pôs “em

2
Caso se interesse, o leitor encontrará um debate sobre as tecnologias de imagem em DUMIT, Joseph.
Picturing personhood: brain scans and biomedical identity. Princeton: Princeton University Press. 2004.

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funcionamento um sistema de defesa muito engenhoso e eficaz, mas que apresenta, para os
especialistas, numerosas falhas” (RILLAER, 2011, p. 339). Tais adeptos contam com uma
antinomia implícita entre experimentações teóricas e refinamento científico, colocando em jogo
distintas compreensões de humano, de causalidade, de sofrimento psíquico, bem como de suas
expectativas terapêuticas. Caricaturando a psicanálise como um projeto falho, repousa aqui uma
concepção valorativa do labor científico, pelo qual acessaríamos um conhecimento fisicalista
da natureza, do humano e da doença mental.
Em sentido análogo, há quem afirme que as terapêuticas de bases neurológicas incidem
sobre o “modo de vida dos sujeitos para além da doença, e que as terapias comportamentais não
passam de adestramento” (HERZOG & PINHEIRO, 2017, p. 40). Ora, se é verdade que Freud
se manteve aberto aos demais saberes, então as neurociências promovem uma validação
objetiva dos enigmas psicanalíticos. Ainda que o inconsciente nada tenha “a ver com a
anatomia” (FREUD, 2010a, p. 112), põe-se fé na hipótese de um hiato a ser desfeito, o qual
será possível observar no cérebro o que o psicanalista só acessa mediante relatos clínicos.
Em contraposição, também não falta quem atente à inadequação das tecnologias de
imagem à teoria freudiana. Ocorre que, os métodos de observação de ambas as disciplinas,
passam por comunidades científicas historicamente afetadas. Por mais experimentalista que
Freud tenha sido, é injusto que possamos extrair de uma imagem cerebral a explicação da
subjetividade. As narrativas psicanalíticas são vitais à compreensão das influências que os
outros e a cultura têm sobre o sujeito. Como pedra de toque, o inconsciente se manifesta através
de “sintomas sem qualquer causa física detectável. Esses sintomas se modificaram ao longo dos
anos, mas sua base na vida relacional permanece” (HERZOG & PINHEIRO, 2017, p. 41).
Todavia, as práticas biomédicas têm passado por profundas transformações. A
imbricação entre ciência, técnica e biomedicina vem oferecendo não apenas novos
procedimentos/materiais ao diagnóstico de doenças mentais, mas definições originais da
subjetividade, do sofrimento psíquico e da identidade pessoal. Na biologia, o dualismo mente-
corpo tem sido ocupado pelo “entendimento monista de que mente e corpo coexistem no mundo
físico” (HERZOG & PINHEIRO, 2017, p. 41). Ocorre como que uma “cerebralização da
subjetividade”, na qual as afecções são entendidas como parte do espectro das capacidades
humanas observáveis no cérebro.
Radicalmente materialistas, estes pesquisadores localizam no corpo os processos
mentais. Eles encarnam a mente no corpo, fazendo dela o cérebro em seus processos neuro-
anátomo-fisiológicos. Nele vivificadas, a atividade psíquica nada mais é que um
agrupamento de células nervosas e moléculas a elas associadas (Cf. CRICK, 1994, p. 03).

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Especificar os processos, circuitos e comportamentos ligados às atividades neuromoleculares,


seria compreender a mente. Esta interpretação serve a uma variedade de terapêuticas que tomam
o cérebro como objeto passível de intervenção extrospectiva.
Em outra vertente materialista, o cérebro é determinante, mas não suficiente para
compreendermos o psiquismo. Não-reducionistas, os neuropsicanálistas tentam conjugar a
psicanálise aos estudos do cérebro, afirmando que as bases neurológicas da época de Freud
eram limitadas. Neste sentido, propõem unir a psicanálise e a neurociência numa base sólida,
de modo não apenas a validar as teses freudianas, mas a conjugar as narrativas do sujeito, que
vive o sintoma, com as do analista, que enxerga o correlato orgânico necessário ao consulente
(Cf. KAPLAN-SOLMS & SOLMS, 2000). Segundo Kandel (2019, p. 85, tradução nossa), “a
primeira forma de psicoterapia foi a psicanálise”3. Ensinando seus membros a escutarem como
nunca antes os pacientes, Freud “presagió un nuevo método de investigación psicológica, un
método basado en la asociación libre y la interpretación” (KANDEL, 2019, p. 86).
Sendo verdade que o Eu psicanalítico se vê descentrado entre instâncias determinadas
desde o inconsciente, estes estudos atribuem uma natureza inconsciente aos processos
psíquicos, por mais distintas que sejam suas acepções. Contudo, alegam que a psicanálise
precisa reconhecer a concretude que a neurociência tem a lhe oferecer. Ela “deve comprometer-
se de maneira construtiva com a nova biología da mente”4 (KANDEL, 2019, p. 278, tradução
nossa). Só as neurociências viabilizariam a cientificidade necessária para levar a cabo o
desenvolvimento das teses freudianas. Sem deixar de discutir questões ligadas à plasticidade
cerebral, o método neuropsicanalítico reivindicaria sua eficácia na localização das zonas
cerebrais correspondentes aos fenômenos inconscientes.
No entanto, as biomedicinas atuais já veem a natureza e a biologia não mais como
categorias estanques, mas como passíveis de mutação, em razão das novas tecnologias e dos
impactos da situação socioambiental. Assim, as questões pertinentes aos debates entre
psicanálise e neurociências podem, hoje, ser redefinidas à luz do espaço ambíguo de
intervenção suscitado pela noção de plasticidade, que põe “o cérebro em um espaço aberto à
interação com o ambiente social e à influência terapêutica do dispositivo psicanalítico”
(MANTILLA, 2017, p. 144). Ora, visto que o inconsciente é formado por restos de vivências
que formam uma personalidade descentrada, se estes restos indicam, para as neurociências, que
algumas experiências acarretam modificações nas conexões neurais, então boa parte dos

3
La primera forma de psicoterapia fue el psicoanálisis.
4
debe comprometerse de manera constructiva con la nueva biología de la mente.

150
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estudos atuais supõem que a rede neuronal não é estanque, mas é modificável por múltiplos
fatores.
Enquanto conceito relativo à mutação, a plasticidade vem promover uma articulação
entre cérebro e mente que contribua à compreensão da subjetividade em termos cerebrais, mas
sem deixar de abrir caminho à psicanálise. Sabendo-se hoje que as sinapses neurais mudam de
forma, tamanho e quantidade conforme nossas vivências, a plasticidade é o que fornece espaço
para nos movermos e transformamos, de modo a tornarmo-nos autores de um processo distinto
do que nos foi, possivelmente, determinado. Para nós, isso indica, segundo Ansermet &
Magistretti, que a “plasticidade neural é condição para uma possível plasticidade do vir a ser” 5
(ANSERMET & MAGISTRETTI, 2007, p. 239, tradução nossa). Enquanto fenômeno que
assume seu próprio devir, a plasticidade é o traço que nos faz lembrar o quanto os organismos
estão abertos ao mundo, transformando o ambiente ao mesmo tempo que se transformam.
Aberta aos eventos, ela não só possibilita ao analisando libertar-se de uma fantasia, mas dar
nova forma ao modo como performa sua existência: “para usar a fantasia ao invés de ser usado
por ela”6 (ANSERMET & MAGISTRETTI, 2007, p. 239, tradução nossa).
Quando disposta na intersecção das neurociências com a psicanálise, a plasticidade
revela o quanto “o cérebro é a combinação de fatores genéticos e marcas deixadas por
vivências” (HERZOG & PINHEIRO, 2017, p. 43). Criando e modificando vínculos conforme
as experiências, ela é a evidência do quanto, mesmo em pessoas com lesões cerebrais, o cérebro
– ligando e desligando seus circuitos – pode transformar-se, dadas as suas capacidades de
adaptação e desenvolvimento. Modelando, modificando e reparando as conexões neurais (Cf.
MALABOU, 2008, p. 05), é através dela que a suposta fixidez dos conceitos neurológicos
assume uma faceta volátil, pois a arquitetura cerebral é colocada no plano da temporalidade.
Trata-se de uma noção chave à interlocução das neurociências com o inconsciente, pois indica
que nossas vivências podem resultar em alterações irreversíveis na expressão da subjetividade.
Facultando uma implicação entre os processos psicológicos, neurais e bioquímicos, este
conceito tem gerado inúmeros de debates, na medida em que localiza o funcionamento do
cérebro numa zona ambígua, pela qual nos deparamos com o problema de saber se somos ou
se temos um cérebro. Considerando a ineficácia da antinomia mente-corpo, é dialogando com
Freud e parte da tradição filosófica que Malabou vem destacando-se por apresentar uma
dimensão crítica, dialética e emancipatória da plasticidade, aplicável ao diagnóstico de nossa
época. Ela insere o tema na cultura contemporânea, considerando-o uma justificativa para

5
Neural plasticity is thus a condition of a possible plasticity of becoming.
6
To use the fantasy instead of being used by it.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

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pensarmos o “problema do sofrimento psíquico, que representa uma tomada original e poderosa
aos problemas teóricos e políticos atuais”7 (PRATI, 2019, p. 42, tradução nossa).
Reconfigurando a psicanálise à luz dos novos feridos e da crise ecológica atual, ela parte do
indicativo de que o humano é um acidente irremissível. Trata-se de conceber uma via de
transformação que parta do “próprio sujeito, distanciando-o do cérebro, ao mesmo tempo que
o reconhece como instância fundante da subjetividade” (MANTILLA, 2017, p. 150).

2 MALABOU CRÍTICA DA PSICANÁLISE FREUDIANA

2.1. A plasticidade e o encontro da filosofia com as neurociências

Atualmente, a plasticidade é pensada como indicativo de que a vida humana se constitui


como um acidente incontornável, na contramão das pautas domesticadoras do humano. Muito
em função dos novos modelos biotecnológicos, nosso século vem alertando aos perigos de uma
apropriação política e econômica da vida. Remodelando o futuro pela ação no presente, estamos
vivendo novas formas de biossocialidade. A produção, o consumo e a circulação da vida partem
do princípio de que o motor do capitalismo atual é o controle farmacológico da subjetividade.
Dá-se valor a todos os materiais que ajudam “na produção de estados mentais e
psicossomáticos de excitação, relaxamento e descarga, de onipotência e de controle total”8
(PRECIADO, 2008, p. 37, tradução nossa). Os indivíduos têm suas identidades marcadas por
tecnologias voltadas ao replanejamento da vitalidade. Dada a ameaça à intangibilidade da
dignidade humana, é facultando novas dinâmicas de escolha e intervenção que tais fatores não
apenas transvaloram antigas dicotomias (natureza-cultura, corpo-mente, real-artificial, normal-
patológico etc), como apontam à confirmação da plasticidade humana como fator inalienável
das sociedades ocidentais.
Neste contexto, as neurociências têm demonstrado que o sistema nervoso é capaz de
alterar-se estruturalmente. Pela plasticidade neural, o cérebro é enxergado como uma “obra de
arte em constante construção” (FREITAS, 2016, p. 234). Fala-se que os neurônios estão em
transformação e isto ocorre tanto pelo desligamento intencional de conexões não utilizadas
quanto pela alteração funcional dos neurônios em uso. Cedendo espaço a dinamismos “mais

7
Problema del sufrimiento psiquico, que representa un acercamiento original y potente a problemas teoricos
y políticos de suma actualidad
8
A la produccion de estados mentales y psicosomaticos de excitación, relajación y descarga, de omnipotencia
y de total control.

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eficazes”, estas “podas neurais” são influenciadas pelo meio e afetam a vida subjetiva. Elas
atestam a mutabilidade do indivíduo na sociedade, dada a necessidade de compreender o
humano em todas as suas dimensões. Assim, trata-se de redimensionar o projeto humanista
desde o qual somos mobilizados à dominação dos entes vivos e dos não-humanos ou inumanos.
Disto, serge a urgência de uma ontologia segundo os moldes de Malabou, pela qual o fenômeno
da plasticidade se torna central.
Diante da acidentalidade da vida, a tecnicização do humano carrega o desafio de pensar
estilos de ser, capazes de pôr em xeque os processos identitários dos humanismos clássicos.
Ecoando no campo das “ciências da vida”, isso faz com que os acidentes anatômicos sejam
tornados vitais à compreensão da subjetividade. Nesse âmbito, Malabou tem se destacado ao
retomar noções biológicas para problematizar o humano. Segundo ela, a aproximação entre
filosofia e neurociências serve a esse problema. Sem deixar de tensionar as contribuições
freudianas, é pensando a finitude que Malabou empreende uma crítica da razão neurobiológica,
desde a qual mobiliza a biopolítica para além da instrumentalização da vida. De modo similar
ao descentramento psicanalítico, seu trabalho enfatiza as situações em que transformamos a
noção clássica de indivíduo.
Sem admitir que o real foi dominado pela tecnociência, Malabou pergunta-nos se o vivo
e o não vivo estão submetidos ao mesmo grau de manipulação de suas estruturas. Ora, sendo
verdade que alguns traços vitais não correspondem à ação de órgãos, morfologias ou funções
prefixadas, se as singularidades dos viventes são atravessadas por técnicas que as reestruturam,
então é a dispersão, enquanto via de indeterminação, que perfaz um horizonte de resistência à
biopolítica, outorgando novas dimensões ao tratamento filosófico conferido à relação entre vida
e técnica. Redimensionando a distinção práxis-techné, é nesse sentido que Malabou recupera a
significação filosófica da noção de plasticidade.
De acordo com ela, a plasticidade coloca para as filosofias contemporâneas caminhos
alternativos à biopolítica. Cristalizando certos usos e hábitos humanos, a antropotécnica atual
não raramente se confunde com uma “forma vivendi do sujeito” (FREITAS, 2016, p. 244). Não
obstante, o problema não é sua expansão às custas dos viventes, e sim que a plasticidade esteja
relacionada às catástrofes potenciais decorrentes da aparição de uma ontologia qualquer no
mundo capitalista.
Emergindo por adição ou subtração de certas qualidades de uma cultura, a
antropotécnica faz indagarmo-nos se, o fato de o humano nascer errante aos coeficientes
instintuais, exigiria certo agenciamento até daqueles que encontram um modus vivendi
endossável pelos demais. Nessa direção, as investigações de Malabou podem oferecer-nos

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um experimentum. Desde o ponto de vista da plasticidade, a filósofa interroga o que devemos


fazer para que o espírito do capitalismo não coincida com a consciência do cérebro: “o que
devemos fazer para que a consciência do cérebro não coincida pura e simplesmente com o
espírito do capitalismo?”9 (MALABOU, 2008, p. 12, tradução nossa).
Com efeito, a plasticidade atesta, para o humano, sua qualidade distintiva de
perfectibilidade, aqui entendida não como um processo de se tornar perfeito, mas como
capacidade de autoaperfeiçoamento. Consideradas as nossas imperfeições, a perfectibilidade
designou, ao longo da história, uma das qualidades humanas. Na construção humanismo
filosófico, referia-se a um processo em adaptação, voltado aos ideais de liberdade e autonomia
(Cf. GOLDSCHMIDT, 1983, pp. 288-292), o que conferiu à plasticidade a tarefa de “encarnar
as virtualidades da natureza humana e a crença no seu aperfeiçoamento” (FREITAS, 2016, p.
246). Nesse âmbito, é em Hegel que Malabou se apoia para repensar crítica e ontologicamente
a plasticidade.
Em El porvenir de Hegel: plasticidad, temporalidad, dialectica (1996), ela a enxerga
como uma “instância que forma o devir e o tempo na filosofia de Hegel”10 (MALABOU, 2013,
p. 24, tradução nossa). Fornecendo novos horizontes para ideias como subjetividade, razão e
liberdade, Malabou concebe uma leitura hegeliana das neurociências, atribuindo à plasticidade
a responsabilidade pela singularização do sujeito diante da transformação da natureza em
liberdade. Ela entende que homem, Deus e filosofia são lugares onde “a subjetividade se
constitui em instâncias plásticas, onde os três momentos de autodeterminação – o grego, o
moderno e o conhecimento absoluto – ganham a forma de momentos, ou seja, criam sua
temporalidade específica”11 (MALABOU, 2013, pp. 48-49, tradução nossa). Deslocando o
conceito de “estágio” ao designativo de um corte na autoformação do tempo (Cf. MALABOU,
2013, p. 49), diz-se que tempo e futuro estão imbricados num processo dialógico operado pela
plasticidade. Assinaladas as consequências relativas à implicação entre o psíquico e o físico,
Malabou acredita que a articulação entre temporalidade, plasticidade e dialética destaca uma
estrutura antecipatória interior ao Eu.

A composição dialética dos conceitos de devir, plasticidade e temporalidade,


forma a estrutura de antecipação que opera na subjetividade tal como Hegel a
concebe. Para diferenciar essa estrutura do futuro daquela comumente

9
What should we do so that consciousness of the brain does not purely and simply coincide with the spirit of
capitalism?
10
Instância que forma el porvenir y el tiempo en la filosofia de Hegel.
11
La subjetividade se constituye, instancias plasticas, donde los tres momentos de la auto-determinacion – el
griego, el moderno y el del saber absoluto – se dan la forma de momentos, es decir, crean su temporalidad
especifica.

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entendida, vamos chamá-la, de acordo com o imperativo hegeliano, de


filosofar em nossa linguagem, o “Voir venir” (ver o que está vindo). Em
francês, “Voir venir” significa, ao mesmo tempo, esperar com prudência,
observando a evolução dos acontecimentos, mas também adivinhar as
intenções de uma pessoa e penetrar em seus desígnios. Portanto, essa
expressão designa, ao mesmo tempo, “estar seguro do que está por vir” e “não
saber o que virá”. “Voir venir” designa, com isso, o jogo conjugado da
necessidade teleológica e da surpresa na filosofia hegeliana. 12 (MALABOU,
2013, p. 38, tradução nossa).

Mobilizando termos quase invisíveis, é tornando central a transformação implicada na


plasticidade que Malabou repensa “aquilo que constitui o acontecimento do acontecimento:
tanto no que se refere ao que vem e ao que volta quanto ao que se pode antecipar do futuro” 13
(MALABOU, 2013, p. 345, tradução nossa). Pela plasticidade, é possível esclarecer o
paradoxo do porvir, perante o qual o “isso foi” do passado surge como estabilidade, o “isso é”
ou “está sendo” do presente aparece como índice de referência e o futuro, como conjuração do
que “está por vir”. Para a filósofa, isto não só revela que a estrutura antecipatória do Eu não é
a-histórica, como põe em relevo o fato de que o “observar” pressupõe tanto o “estou certo (do)
que vem” quanto o “ainda não sei o que vai vir”. O elemento central desta dialogia é o hábito.
Enquanto passagem da natureza ao espírito, o hábito se dá como um “processo mediante
o qual o espírito se constitui como uma segunda natureza”14 (MALABOU, 2013, p. 58,
tradução nossa). Sinonímia do hábito, esta segunda natureza refere-se ao “‘stádio do espelho’
do espírito, no qual se constitui a primeira forma de sua identidade. O homem aparece como o
duplo invertido do animal, e não como seu oposto”15 (MALABOU, 2013, 58, tradução nossa).
Neste interim, o self antropológico resulta de uma automodelação entre corpo e alma, mediada
pelo hábito, cujo trabalho é parafraseado por Malabou como uma integração da “corporeidade,
que pertence às determinações que dependem do sentimento enquanto tal e das determinações
que dependem da representação e da vontade, enquanto traduções corporais”16 (HEGEL, 1995

12
La composicion dialectica de los conceptos de porvenir, plasticidad y temporalidad, forma la estructura de
anticipacion que opera en la subjetividad tal como Hegel la concibe. Para diferenciar esta estructura del
porvenir de aquella entendida corrientemente, la denominaremos, de acuerdo con el imperativo hegeliano de
filosofar en nuestra lengua, el "ver venir". En frances, "ver venir" significa, a la vez, esperar prudentemente
observando la evolucion de los acontecimientos, pero tambien adivinar las intenciones de una persona y
penetrar en sus designios. Por consiguiente, esta expresion designa, a la vez, "estar seguro de lo que viene" y
"no saber lo que vendra". El "ver venir" designara, con ello, el juego conjugado de la necesidad teleologica y
la sorpresa en la filosofia hegeliana.
13
Aquello mismo que constituye lo acontecedero del acontecimiento: en lo referido a lo que viene, adviene,
vuelve, en lo que se refiere a lo que se puede ver venir del porvenir.
14
Proceso mediante el cual el espiritu se constituye como una segunda naturaleza.
15
‘Estadio del espejo’ del espiritu, en el cual se constituye la primera forma de su identidad. El hombre aparece
como el doble invertido del animal, y no como su opuesto.
16
Corporeidad, que pertenece a las determinaciones que dependen del sentimiento en cuanto tales y a las
determinidades que dependen de la representacion y la voluntad, em cuanto traducidas corporalmente.

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apud MALABOU, 2013, p. 38, tradução nossa). Portanto, se a consistência do self o permite
ligar-se ao futuro, “o hábito é a operação plástica que forja o corpo como instrumento” 17
(MALABOU, 2013, p. 77, tradução nossa) constitutivo do sujeito. Daqui decorre o interesse
de Malabou por individualidades plásticas, expressão utilizada em Hegel para designar o povo
grego.
Parafraseando a estética hegeliana, Malabou entende que as individualidades plásticas
partem daquilo que os gregos faziam consigo quando se consideravam como modelos
formativos. Por suas esculturas, os gregos foram exemplos de humanos crescidos “no terreno
de sua própria particularidade substancial, sempre engendrando e tendendo, sem cessar, a
converterem-se naquilo que queriam ser”18 (HEGEL, 2000 apud MALABOU, 2013, p. 31,
tradução nossa). Eles versavam sobre suas vidas, partindo de técnicas plásticas, que buscavam
identificações miméticas capazes de gerar e modificar certas disposições. Indispensável à
formação humana, o hábito viabilizaria um tipo de sujeito aberto à própria plasticidade.
Pensadas como relações entre o acidental e o substancial, as individualidades plásticas,
portanto, enformam de tal modo o espiritual na incorporação que repercutem hoje sobre as
reflexões acerca das neurociências, da interpenetrabilidade entre o psíquico e o físico e da
despossessão do inconsciente. Capaz de se reconhecer na diferença, a subjetividade aparece,
então, como ela é:

A unidade originariamente sintética que permite às determinações se


articularem e, num só tempo, sucederem-se. A idealização da corporeidade
confere à alma a capacidade de se considerar como uma “unidade ideal
simples”, ou melhor, não mais que uma consigo mesma. Não obstante, esta
“base”, enuncia Hegel, “não é um Eu”, mas sua possibilidade. Síntese entre
espírito e natureza, ela abre para o sujeito o horizonte do progresso, da
formação, da cultura. Ela o liberta das travas e dos limites de uma natureza
demasiadamente imposta em suas influências. Com “o intuir totalmente puro”,
abre-se para o espírito a possibilidade de “Voir venir”19 (MALABOU, 2013,
p. 78, tradução nossa).

Marcada por esse matiz interpretativo, Malabou, requerendo uma aproximação entre
cérebro e história, problematiza as “ideologias neurológicas”, no intuito de enfatizar ao menos

17
El habito es la operacion plastica que forja al cuerpo como instrumento.
18
En el terreno de su propia particularidad sustancial, engendrando-se siempre ellos mismos y tendiendo sin
cesar a convertirse en aquello que querian ser.
19
La unidad originariamente sintetica que permite a las determinaciones encadenarse y, al mismo tiempo,
sucederse. La idealización de la corporeidade da al alma la capacidad de plantearse como "unidad ideal
simple", es decir, no es mas que una consigo misma. Esta "base", enuncia Hegel, "todavia no es un Yo", ella
es su posibilidad. Sintesis del espiritu y la naturaleza, ella abre para el sujeto la perspectiva del progreso, de
la formacion, de la cultura. Ella lo libera de las trabas y de los limites de una naturaleza todavia demasiado
impuesta en sus influencias. Con el "intuir totalmente puro" se abre para el sujeto la posibilidad de "ver venir”

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dois sentidos da noção de plasticidade: “daquilo que é suscetível tanto de receber quanto de
dar forma”20 (MALABOU, 2013, p. 29, tradução nossa). Em suas obras, ela indaga maneiras
de não suturar o “não-saber” sobre a plasticidade, partindo da crítica de uma suposta sinonímia
sua: a flexibilidade. Interrogando as neurociências, ela diz que nos desviamos do verdadeiro
sentido da plasticidade: “tendemos constantemente a substituí-la por sua falsa cognata, a
flexibilidade”21 (MALABOU, 2008, p. 12, tradução nossa).
A diferença entre estes termos é fundamental para entendermos que a ênfase concedida
à flexibilidade tende a amputar os horizontes inventivos da plasticidade: “por um lado, o
adjetivo ‘plástico’ significa ‘estar suscetível à mudança de forma’, maleável [...] e, por outro,
significa ‘o que tem o poder de dar forma’”22 (MALABOU, 2013, p. 28, tradução nossa). Sendo
uma máscara e um confisco da plasticidade neste mundo empresarial, a flexibilidade é “o avatar
ideológico da plasticidade”23 (MALABOU, 2008, p. 12, tradução nossa). Ela abarca apenas
um dos registros da plasticidade: o de receber forma ou, ainda, ser capaz de se dobrar – “para
ser dócil, para não explodir”24 (MALABOU, 2008, p. 12, tradução nossa). Sem negar à
plasticidade em seu correlato neoliberal, Malabou defende que há, na historicidade do cérebro,
um campo de resistência material ao espírito dócil e flexível do capitalismo.
Diante de tantos avatares, é na contramão da cumplicidade entre neurociências e
capitalismo que ela diz ser preciso recuperar a dimensão transformadora da plasticidade,
supondo que os “materiais plásticos” retém uma impregnação que os torna resistentes ao
polimorfismo. Não totalmente rígida, a plasticidade impõe restrições “sobre a capacidade de
deformação, reforma ou explosão”25 (MALABOU, 2008, p. 15, tradução nossa). Assim, se o
que falta é uma forma plástica, devemos resistir à flexibilidade enquanto ideologia veiculada
por um discurso reducionista, que modela os processos neuronais, no intuito de naturalizar e
perpetuar um modus operandi social e político. Como numa espécie de hibridização entre o
natural e o político, Malabou propõe uma crítica à “ideologia neurológica” que nos permita ter
ciência da radical liberdade que a plasticidade do cérebro pode viabilizar.
Política e epistemologicamente, o cérebro, assim como o inconsciente psicanalítico, não
se confunde com uma entidade ontologicamente atestável, pois “a plasticidade é o seu modo

20
Es decir, de lo que es susceptible tanto de recibir como de dar forma.
21
We tend constantly to substitute for it its mistaken cognate, flexibility.
22
Por un lado, el adjetivo ‘plastico’ significa ‘susceptible de cambiar de forma’, maleable [...]; y, por otra
parte, significa ‘lo que tiene el poder de dar forma’.
23
Flexibility is the ideological avatar of plasticity.
24
To be flexible is to receive a form or impression, to be able to fold oneself, to take the fold, not to give it.
To be docile, to not explode.
25
On the capacity for deformation, re-formation, or explosion.

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próprio de existência” (FREITAS, 2016, p. 250). De acordo com Malabou, se não opera aí
independência ou superioridade, é preciso que criemos uma ponte à aparente antinomia entre o
cérebro e a história, visto que se trata de um modo de trabalho, e nós não sabemos disso: “o
cérebro é um trabalho, e não sabemos disso” 26 (MALABOU, 2008, p. 01, tradução nossa).
Conjugando história coletiva e experiência pessoal, o trabalho de antecipação, realizado pelo
cérebro, leva o nome de plasticidade: “o que chamamos de historicidade constitutiva do cérebro
nada mais é que sua plasticidade”27 (MALABOU, 2008, p. 04, tradução nossa). Posicionada
no limiar de uma necessidade de determinação formal e de uma remobilização da forma, a
plasticidade denota o princípio de instabilidade da vida, responsável pela configuração e
reconfiguração do mundo. Atestativa da fugacidade humana, sua riqueza conceitual permite
uma mudança de destino e uma inflexão nas trajetórias. Estamos diante não só de uma
impugnação à velha caricatura do cérebro como matéria inerte, mas da possibilidade de
deflagração de toda forma, tal como quando falamos dos explosivos plásticos.

2.2. Plasticidade destrutiva e crise ecológica: o embate com Freud

Dialogando com disciplinas como biologia, antropologia, neurociências, filosofia e


psicanálise, Malabou entende que é preciso “assimilar as consequências e o significado das
grandes transformações das últimas décadas, e revisar seus conceitos e métodos de maneira
coerente”28 (PRATI, 2019, p. 46, tradução nossa). Convencida da necessidade do diálogo entre
psicanálise e neurociência, ela diz que a plasticidade é fundamental não só por indicar a
transmutabilidade do “esquema-motor”, mas por se mostrar plástica, visto ser capaz de
metamorfosear as formas, conferindo-lhes novas dimensões. Trata-se de um termo detentor de
três significações: 1) indicativo da capacidade de receber forma; 2) denotativo do poder de
conferir forma; 3) como quando se fala de “explosivo plástico”, nominativo de deflagração de
toda forma. Portanto, se, lendo Hegel, Malabou explorou os dois primeiros aspectos, é quando
problematiza a destrutividade que abre campo para pensarmos a plasticidade como via de
organização espontânea, situada nos extremos da criação e da destruição da forma (Cf.
MALABOU, 2012b, p. 17).
Em função desta faceta destrutiva, a autora inquere um sentido de plasticidade que não
coincida nem com o espírito excludente do capitalismo nem com o ideário da flexibilidade,

26
The brain is a work, and we do not know it.
27
What we have called the constitutive historicity of the brain is really nothing other than its plasticity.
28
Asimilar las consecuencias y el significado de las enormes mutaciones de las últimas decadasy revisar sus
conceptos y sus metodos de modo acorde.

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responsável pela impossibilidade da explosão (Cf. MALABOU, 2008, pp. 41-54). Opondo-a à
elasticidade, Malabou concebe a plasticidade neural como um horizonte de resistência ao
capitalismo atual, que extrai recursos da renúncia do sentido político da violência. Não
redutivista ou cognitivista, é sem se opor às contribuições das neurociências que articula no
cérebro uma forma de enfrentamento à brandura aí requisitada. Essa articulação estaria
implicada na definição dos distúrbios psíquicos normalmente associados ao estado de guerra
(Cf. MALABOU, 2012b, p. xvi). Transbordante ao “receber” (passividade) e “dar” (atividade)
forma, Malabou explora a plasticidade destrutiva enquanto via de metamorfose do Ser em algo
totalmente outro.
Analisando os efeitos de certos acidentes, é aqui onde a pensadora, em diálogo com as
neurociências e a psicanálise, problematiza alguns fenômenos traumáticos da
contemporaneidade: os novos feridos – “the new wounded”. Seja pelo Alzheimer, seja por
aqueles que padecem de uma lesão cerebral, ela se refere aos indivíduos que “sofreram alguma
forma de metamorfose súbita das suas identidades em decorrência de situações traumáticas”
(FREITAS, 2016, p. 250). Por isso, não se trata de uma simples defesa dos postulados
freudianos perante as neurociências, mas de uma reconfiguração dos seus fundamentos à luz
das descobertas proporcionadas pelos novos feridos.
Ora, dada a recusa capitalista do sentido da violência, Malabou associa os sofrimentos
causados por esses fenômenos ao ethos da guerra. É como se as vítimas de catástrofes naturais
ou acidentes graves apresentassem o mesmo perfil dos traumas sociopolíticos atuais, o que
desembocaria em patologias distintas daquilo que, a começar pelo inconsciente, a psicanálise
fora capaz de lidar. O desbotamento do sentido da violência surge como uma nova face do
social, que confirma um tipo de patologia ainda desconhecida, mas globalizada (Cf.
MALABOU, 2007, pp. 258-259). Pela falta de motivação que lhes é própria, os novos feridos
neutralizam suas intenções, tratando o acidente como algo casual e não interpretável.
Descobertos, a partir de categorias que permitem uma reelaboração de si, estes fenômenos
evidenciam uma autorregulação cerebral, a qual é operada uma mudança no sentido
psicopatológico do trauma. Eles acentuam, por exemplo, que o post-traumatic stress disorder
(PTSD) é um quadro irredutível à metapsicologia (Cf. MALABOU, 2012b, p. xvii).
Para Malabou, tal como no Alzheimer, os novos feridos se comportam feito ex-
combatentes cujas condutas apresentam frieza afetiva, deserção e indiferença, associadas à total
metamorfose da identidade (Cf. MALABOU, 2012b, p. xviii). Tornando porosas as fronteiras
entre trauma orgânico e sóciopolítico, eles caracterizam não apenas os portadores de lesões
cerebrais, mas aqueles que já vivificaram algum tipo de violência relacional extrema

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(guerras, abuso sexual, cativeiro, etc.). Assinalando uma economia do acidente (Cf.
MALABOU, 2012b, pp. 10-11; 154-55), Malabou se esforça em pensar “o acidente, a
contingência, o azar, justo no momento em as possbilidades parecem ter se esgotado”29 (PRATI,
2019, p. 47, tradução nossa). E é em diálogo crítico com as neurociências e a psicanálise que
descreve algo como uma “viagem só de ida”, na qual a identidade pode ser radical e
irreversivelmente alterada.
Interrogando a causalidade do trauma, Malabou parte da disputa entre os princípios
etiológicos do inconsciente e da sexualidade30 psicanalíticos e a cerebralidade, entendida por
ela como paradigma dos traumas contemporâneos. Ora, do mesmo modo que, desde o
inconsciente, as pulsões sexuais não se confundem com o sexo, a cerebralidade tampouco se
limita ao cérebro. Diante do avanço das neurociências, trata-se de uma noção não-normativa,
pela qual mensuramos os danos gerados sobre as funções cerebrais, no caso de um acidente.
Conjugando os eventos cerebrais e psíquicos, há uma mensuração capaz de usurpar o lugar
privilegiado que foi concedido à sexualidade no discurso psicanalítico (Cf. MALABOU, 2012b,
p. 02).
Por mais que Freud não exclua o sensentido, subordina-o, já que sua meta é alcançar
narrativas que se organizem segundo os princípios supracitados. Perante os mesmos, “a
materialidade do cérebro, por exemplo, no caso da força destruitiva de um trauma, não se
encaixa neste sistema; se é incluída, é de forma condicional e hierarquizada”31 (PRATI, 2019,
p. 57, tradução nossa). Amparado na tese da extratemporalidade e indestrutibilidade do
inconsciente, Freud pautou sua teoria por uma perspectiva criativa e formativa da subjetividade,
desde a qual não apenas a doença mental implicaria uma repetição ativa dos conteúdos de
outrora, mas a plasticidade seria a sobrevivência mutante do recalcado em nós, jamais
desaparecendo por completo.
Balizada pelas descrições neurocientíficas dos novos feridos, Malabou pensa o trauma
como provocador de uma radical metamorfose daquilo que dele sobrevive. Se é verdade que a
perda psicanalítica só se inscreve no registro da própria morte, a psicopatologia contemporânea
já sabe que a morte é uma forma de vida: “hoje, a psicopatologia deve lutar contra o fato temível

29
El accidente, la contingencia, el azar, justamente en un momento en el que las posibilidades parecen haberse
agotado.
30
Em psicanálise, o termo sexualidade não se refere apenas ao genital, mas a todo um conjunto de “atividades
presentes desde a infância que proporcionam um prazer irredutível à satisfação de uma necessidade fisiológica
fundamental [...], e que se encontra à título de componentes na chamada forma normal do amor sexual”
(LAPLANCHE & PONTALIS, 1986, p. 476).
31
A materialidad del cerebro, por ejemplo, en el caso de la pura fuerza destructiva de un trauma, no encaja
em ese sistema; si se la incluye, suele ser de forma condicional y jerarquizada.

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de que essa suposta 'morte' seja, na realidade, uma forma de vida”32 (MALABOU, 2012b, p.
66, tradução nossa). Vivificando no trauma a aleatoriedade da vida, os novos feridos são
exemplos de uma experiência extrema de encontro, com uma diferença capaz de provocar “uma
forma de morte em vida, a qual o que sobrevive passa a ser totalmente outro” (FREITAS, 2016,
p. 250). Em relação à identidade pregressa, o traumatizado se torna uma nova pessoa; alguém
que impõe o desafio de pensar uma existência implicada numa forma destrutiva da plasticidade.
Analisando os novos feridos, Malabou aponta para um caminho sem retorno, no qual a
hipótese freudiana da plasticidade como permanência do “primitivo” decai em relevância. Tudo
opera como se o núcleo do psiquismo tivesse se perdido, acarretando um novo estilo de ser, em
que o novo modelo é a forma aniquilada. Criando uma nova identidade, a partir da perda da
identidade pregressa – “uma identidade sem infância”33 (MALABOU, 2012b, p. 60, tradução
nossa) –, a lesão cerebral indica que, por vezes, não há sentido nas contingências da vida.
Transbordantes às teses freudianas, os novos feridos são a evidência de que o acidente é
puramente ocasional, como no caso do crânio perfurado de Phineas Gage34, que se tornou um
sobrevivente de si mesmo, mas indiferente a tudo (Cf. MALABOU, 2012b, pp. 15-20; 52-53).
Maleabilizando a fixidez do inconsciente, fala-se de um tipo de déficit emocional, segundo o
qual não só “não há mais transferência possível – o que remete à necessidade de repensar o
tratamento psicanalítico –, como não pode haver solidariedade ou comunidade com e entre esses
sujeitos”35 (PRATI, 2019, p. 64, tradução nossa). São dis-afecções do viver e do morrer; modos
de desdobramentos da vida sem uma vida para desdobrar (Cf. MALABOU, 2012b, p. 60)
Sob o cenário da violência contemporânea, é da constatação, segundo a qual as lesões
cerebrais constituem um novo paradigma à compreensão da traumatologia, que Malabou
demonstra o quanto a conexão “trauma-inconsciente-sexualidade” falha quando considerados
os danos cerebrais ocorridos pela invasão de um corpo estranho no corpo próprio. Relativo ao
inconsciente e aos destinos pulsionais, os traumas psicanalíticos são sempre endógenos, frutos
de gatilhos internos: “a causalidade é, em última instância, interna e pessoal, psíquica, mas não
material”36 (PRATI, 2019, p. 58, tradução nossa). Mas em casos como os de Phineas Gage, o
acaso pode provocar rupturas germinativas de uma nova personalidade. No lugar dos neuróticos

32
Today, however, psychopathology must contend with the redoubtable fact that this supposed ‘death’ is in
reality a form of life.
33
An identity without childhood.
34
Como modelo de vivência dos novos feridos, Malabou retoma o acidente provocado por uma barra de ferro
que perfurou o crânio de Phineas Gage, um supervisor de construção de ferrovias, que viveu nos anos 1880
em Vermont, nos Estados Unidos (Cf. MALABOU, 2012b, pp. 15-20; 52-53).
35
No hay ya transferencia posible – lo que remite a la necesidad de repensar el tratamiento psicoanalitico–;
tampoco puede haber solidaridad ni comunidad con y entre estos sujetos.
36
La causalidad es en ultima instancia interna y personal, psíquica y no material.

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descritos por Freud, os novos feridos põem à baila a possibilidade de haver um ponto
irreversível, desde o qual nasce uma nova pessoa na própria pessoa, totalmente desconectada
dos restos da identidade anterior: “este é o enigma de um segundo nascimento que não é
renascimento”37 (MALABOU, 2012a, p. 90, tradução nossa).
Sendo a prova da finitude, é como se os novos feridos encarnassem uma existência outra,
em que o corpo se transforma “em um outro corpo no mesmo corpo” (FREITAS, 2016, p. 252).
Para além das tríades psicanalíticas relativas ao psiquismo, Malabou propõe, então, que
incluamos na acepção do trauma uma dimensão material que recuse não só a antinomia cérebro-
mente, mas cérebro-inconsciente, biológico e simbólico: “a dimensão material constitui o
sentido de uma economia afetiva que se solicita sem se ver” 38 (MALABOU, 2012b, p. 140,
tradução nossa). Relativa a tal dimensão, é através da explosão ou aniquilação da forma que a
plasticidade destrutiva indica modos de subjetivação sem mediações simbólicas. Referimo-nos
a uma forma explosiva, estabelecida pelo sofrimento enquanto formativo da identidade que o
suporta (Cf. MALABOU, 2012b, p. 18).
Por esse viés, Malabou entende que a forma destrutiva da plasticidade anuncia de tal
modo nossas fragilidades, que os acidentes da vida assumem o status de estruturas relativas “ao
modo de ser do vivente” (FREITAS, 2016, p. 253). Inquerindo uma ontologia do acidente, é
por esse percurso que ela repensa o conceito de metamorfose, considerando que a tradição
ocidental nunca suportou uma ruptura completa com o curso da identidade. Neste interim, a
plasticidade destrutiva vem confirmar que certos acidentes dão origem não a um outro
redimido, mas a subjetividades descentradas e absolutamente estrangeiras de si mesmas,
sentenciadas pelo puro acaso da vida.
Sendo verdade, desde os gregos, que a metamorfose origina uma nova forma, mas não
uma mudança na essência (Cf. MALABOU, 2012a, p. 07), a plasticidade destrutiva faz
aparecer um outro onde o outro está ausente. Trata-se de uma forma de alteridade apartada de
toda transcendência, onde o outro só existe como ser-outro-de-si-mesmo (Cf. MALABOU,
2012a, p. 11). Malabou se refere a um tipo de plasticidade alheia à própria redenção, sendo tão
radical que destrói qualquer relação do Eu com seu passado, guardando-o num estado
irreconhecível, tal qual um acidente que desfaz o sentido de uma vida. Estamos falando de algo
sem casca, sem armadura nem galhos, e, por mais que mantenha a mesma pele, é para sempre
irreconhecível (Cf. MALABOU, 2012a, p. 12).

37
This enigma of a second birth that is not rebirth.
38
The Material would constitute the sense of an affective economy that solicits itself without seeing itself.

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Convidando-nos a pensar uma subjetivação estranha a si mesma, a autora fala de


mudança a partir do sujeito que sofre e se torna indiferente ao seu sofrer, devido à ação de forma
estrangeira em suas vivências. Com todas as consequências, este tipo explosivo de plasticidade
seria, segundo ela, uma encarnação da pulsão de morte e de toda despossessão aí suscitada:
“uma plasticidade muito específica, trabalha aqui uma que se parece muito com a pulsão de
morte”39 (MALABOU, 2012a, p. 18, tradução nossa). Presente nas novas formas de
subjetivação, esse horizonte negativo e “mais além” da plasticidade é o que Malabou entende
por plasticidade destrutiva. Atentando-se ao trabalho de Damásio40, ela diz que, ocorrido o
trauma, as tonalidades afetivas são completamente metamorfoseadas. Se há sobrevida, o ferido
se torna apático e indiferente, destituído inclusive de tristeza. Sem deixar rastros, o acaso do
acidente destruiu por completo uma história.
Esquivando-se da mera afirmação da vida, é assim que Malabou, considerando a recusa
via plasticidade, define o acidente como um possível negativo. Desligando-nos da possibilidade
de reapropriação do trauma, esta dimensão explosiva se refere àquilo que nem se introjeta nem
se rejeita, mas invade e destrói o sistema, jogando-nos à total falta de sentido, no qual um corpo
ferido morre sem estar morto. Enquanto possível negativo, ela não diz que o acidente “poderia
ter sido de outro modo”, pois é logo interdito. A plasticidade destrutiva desfaz a confiança no
real. Ela desconstrói a promessa numa negatividade apropriável e redimível (Cf. MALABOU,
2012a, p. 75).
Ora, mas também cumpre discutir, segundo Malabou, a plasticidade destrutiva pelos
termos políticos atuais, uma vez que certos traumas transbordam as fronteiras psicanalíticas,
desembocando numa total transformação do indivíduo, que não deixa quaisquer rastros da
identidade anterior. Resultante de um acidente sem recuperação, a plasticidade destrutiva se
apresenta como uma ferramenta de compreensão da violência contemporânea: “a plasticidade
destrutiva do cérebro deve ser tomanda como uma ferramenta hermenêutica para compreender
as faces contemporâneas da violência”41 (MALABOU, 2012a, 38, tradução nossa). E uma
destas faces é o problema da crise ecológica da Terra.

39
A very specific plastic art is at work here, one that looks a lot like the death drive.
40
Na segunda metade do século XX, Damásio utilizou os recursos da computação gráfica para calcular a
trajetória da barra de aço pelo cérebro de Phineas Gage. Este cálculo permitiu-lhe rastrear os déficits
percebidos nos processos racionais e emocionais de Phineas, transformando o seu caso num modelo para os
debates sobre o cérebro emocional (Cf. DAMÁSIO, 1996). Chamando atenção para este estudo, Malabou
mostra como a plasticidade destrutiva excede até mesmo a singularidade de Spinoza no tratamento equilibrado
entre razão e emoção, mesmo sendo ele modulável e já congregando em si as dimensões cognitivas e afetivas,
de modo a tornar a autoconservação uma experiência aberta.
41
We must take destructive brain plasticity into account as a hermeneutic tool to understand the contemporary
faces of violence.

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Com efeito, pensar a crise ecológica, coloca-nos diante de uma negatividade que não
comporta o reverso da redenção. Isso implica uma espécie de metamorfose explosiva integrada
na economia do acidente. Para Malabou, o acaso a tudo se desconstrói e isto não apenas
suspende a certeza reconciliatória do espírito, como nos notifica sobre a fragilidade que
compartilham os paradigmas do cérebro e da Terra (Cf. MALABOU, 2008). Dada a
possibilidade de erradicação dos recursos em função das condições atuais de existência na
Terra, não se trata apenas da plasticidade de receber e dar forma, mas de sua destrutividade,
entendida como via de compreensão e resposta à violência humana sobre a Terra.
Segundo Malabou, não há reconciliação quando destruídos os recursos que possibilitam
a vida. Apontando aos limites dos discursos salvíficos, ela diz que não há significado
suplementar para a extinção, pois a materialidade, da qual depende a vida, evapora junto ao
material destruído. Diante da plasticidade destrutiva da Terra, só resta o negativo e a recusa
como alternativa.
Do mesmo modo, só conhecemos a relação de autoafecção do cérebro mediante sua
destruição. Estamos falando de uma espécie de inconsciente rastreável nos efeitos dos acidentes
que o atingem. Revelando nossa absoluta fragilidade, a autoafecção é um ponto sensível cujos
danos podem provocar uma metamorfose radical da identidade, visto que a disrupção não se
refere ao encerramento da vida psíquica, antes sua sobrevivência em formas vegetativas, fora
do alcance psicoterapêutico (Cf. MALABOU, 2012b, p. 48). Assim como o cérebro, o
equilíbrio da Terra só pode ser sentido pela disrupção daquilo que não enxergamos e não se
destrói totalmente.
De modo negativo, a Terra sobrevive na sua forma aniquilada e, se é lesionada, opera
como o cérebro, por meio de um processo sem volta. Portanto, abordar a crise ecológica é
reconhecer-se como portador de um tipo de trauma que não pertence nem à competência nem
à jurisdição da psicanálise, pois a perda do “primitivo” equivale, para Freud, à morte psíquica.
Seja por estruturas simbólicas, intersubjetivas ou comunitárias, o “fim da Terra” retorna como
sintoma e como real, mas sem desencadear visivelmente os efeitos destrutivos, irreversíveis
correspondentes à dimensão Material (Cf. NETO, 2012). Trazendo à baila uma forma de
plasticidade capaz de transvalorar certos limiares entre neurociências e psicanálise, Malabou
propõe uma radical interrupção do impulso de dominação da natureza e do antropocentrismo
como condição para qualquer política que procure por estilos de ser capazes de dar conta do
problema de contração civilizatória diante da possível metamorfose da Terra.

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3 CONCLUSÃO: UMA NOVA RELAÇÃO COM A NEGATIVIDADE

Em relação ao inconsciente, a psicanálise assinala o déficit dos projetos


consciencialistas. Não isento de justas críticas, Freud demarca o ponto de desfalecimento e
despossessão da subjetividade. Reivindicando uma determinação “outra” à subjetividade, ele
suscita modos de presentificação do sujeito, pelos quais vivificamos um contínuo estado de
errância. Fundado no inconsciente enquanto cena não-figurável e fragmentária do real, o sujeito
psicanalítico derrapa a partir de algo que, pelo desejo, o desconstrói a todo momento. Vacilando
no interior de si, esta compreensão da subjetividade leva à admissão de que “penso onde não
sou, logo sou onde não penso” (LACAN, 1998, p. 521). Assim, sua originalidade ao escopo
desta análise reside em conceber um sujeito habitado “pela consciência de seu próprio
desapossamento” (ROUDINESCO, 1999, p. 24), supondo uma compreensão do psiquismo
capaz de romper com boa parte dos determinismos médicos e filosóficos.
Dispondo no inconsciente o motor de suas intervenções, a clínica psicanalítica espera
dos consulentes que sejam capazes de narrar e lidar com seus conteúdos recalcados (reais ou
imaginários). Não-normativa, sua meta é fazer-nos lidar com o “não-dito”, supondo aí uma
dimensão de que os saberes científicos e filosóficos não dão conta. Ora, mas também é verdade
que Freud nunca menosprezou a importância da neurologia para a vida psíquica. Deste “campo
de possibilidades ilimitadas” (FREUD, 2010b, p. 234), sua clínica espera recolher evidências
que facultem uma revisão dos seus conceitos e métodos. Assim, como médico, Freud muito
provavelmente apoiaria as atualizações feitas pelas neurociências e “não só por ver concretizada
sua esperança de encontrar marcadores biológicos para processos psíquicos, mas por poder
constatar o quão muito do que escreveu ainda é atual” (HERZOG & PINHEIRO, 2017, p. 56).
De modo similar ao que Malabou defende, a psicanálise atenta ao ponto de opacidade
“sem respostas universais, onde estão o desamparo e o imprevisível, e com o qual cada um de
nós deve deparar-se” (HERZOG & PINHEIRO, 2017, p. 56). Não obstante, é imperativo que
hoje questionemos até que ponto as topologias freudianas são realmente eficazes quando
considerados os modos de subjetivação de pacientes com danos cerebrais, por exemplo.
Vimos que psicanálise e neurociências guardam entre si diversos pontos de divergências
e interlocuções. Difusa desde suas fronteiras, a psicanálise se apoia na investigação dos
fenômenos psíquicos advindos do inconsciente, sem cristalizá-los num sistema hermético de
pensamento. Mas é preciso reiterar que Freud sempre buscou conferir rigor científico ao saber
que construía. Psicanálise, já dissemos, é um “procedimento para a investigação de
processos psíquicos que de outro modo são dificilmente acessíveis” (FREUD, 2011a, p.

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245). Assim, considerando sua abertura aos demais saberes, entendemos que a leitura de Freud,
empreendida por Malabou, através do encontro da filosofia com as neurociências, não apenas
vai além de pretensas antinomias, como nos coloca diante da instância fundadora da
subjetividade, no momento em que dispõe o cérebro na dimensão da mutação sem retorno.
Interrogando o significado da cerebralidade à luz da noção de plasticidade e por contraste aos
princípios psicanalíticos, Malabou faz-nos pensar o quão acidental é a vida humana, sendo a
lesão cerebral uma barreira nas tentativas de reconstrução de modelos totalizantes do humano
Quando pensada na intersecção entre neurociências e psicanálise, a plasticidade revela
que “o cérebro é a combinação de fatores genéticos e marcas deixadas por vivências”
(HERZOG & PINHEIRO, 2017, p. 43). Criando e modificando vínculos conforme as
experiências, ela é a evidência do quanto, mesmo em pessoas com lesões cerebrais, o cérebro –
ligando e desligando seus circuitos – pode transformar-se. Modelando, reparando e
modificando as conexões neurais (Cf. MALABOU, 2008, p. 05), é através dela que os conceitos
neurológicos são volatilizados, visto que insere a arquitetura neuronal no curso da vida, no
plano da temporalidade. A plasticidade é chave à interlocução das neurociências com o
inconsciente, pois indica que nossas vivências podem resultar em alterações irreversíveis à
expressão da subjetividade.
Facultando a imbricação entre os processos psicológicos, neurais e bioquímicos, este
conceito dispõe a identidade numa zona ambígua, pela qual nos depararemos com o problema
de saber se somos ou temos um cérebro. Considerando a ineficácia do dualismo corpo-mente,
é dialogando com Freud e parte da tradição filosófica que Malabou apresenta uma dimensão
crítica, dialética e emancipatória da plasticidade. Ela insere o tema na contemporaneidade,
considerando-o como uma justificativa para pensar o sofrimento psíquico, que representa uma
tomada original aos problemas teóricos e políticos da atualidade. Reconfigurando a psicanálise
à luz dos novos feridos e da crise ecológica, ela parte do indicativo de que o humano é um
acidente incontornável, destituído de redenção e, por vezes, apartado de toda transcendência,
sendo o outro um ser-outro-de-si-mesmo.
Nestes termos, sua investigação é fundamental não apenas por indicar a
transmutabilidade do cérebro, mas por se mostrar, ela mesma, plástica, visto ser capaz de
metamorfosear a vida psíquica, conferindo-lhe formas e dimensões completamente novas.
Abrindo-nos aos acidentes da vida, a plasticidade, segundo Malabou, é detentora de ao menos
três significações: 1) capacidade de receber forma; 2) poder de conferir forma ou “enformar”
as coisas; 3) possibilidade de explosão e mutação de toda forma. Problematizando esta
faceta destrutiva, a autora, em interlocução com a psicanálise e as neurociências, abre

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campo para pensarmos a plasticidade como via de organização espontânea dos fragmentos,
situada nos extremos da criação e destruição da forma.
Como numa crítica à “ideologia neurológica”, este horizonte destrutivo aponta para um
sentido de plasticidade que não coincide nem com o “novo espírito do capitalismo” nem com
o seu respectivo ideal de flexibilidade, responsável pela anulação das possibilidades de
explosão. Opondo-a à elasticidade, Malabou concebe a plasticidade neural como caminho de
resistência ao capitalismo, que extrai seus recursos da renúncia do sentido político da violência.
Para tanto, ela articula, na materialidade plástica do cérebro, modos de enfrentamento à cadura
requisitada pelas ideologias contemporênas. Sem deixar de mencionar a crise ecológica,
Malabou explora a plasticidade destrutiva como via de metamorfose do Ser em algo outro.
Lendo Malabou, vemos como é possível reconfigurar a psicanálise, de modo a pensar a
atualidade por um horizonte de plasticidade, que permite compreender o motivo de nos
sentirmos docilmente enclausurados. A insistência na negatividade e o convite à explosão, ao
carregarem uma crítica à ideologia neural e extraírem a plasticidade da flexibilidade, mostram
“um primeiro passo para uma reinvenção das ideias de liberdade e porvir”42 (PRATI, 2019, p.
66, tradução nossa). Para Malabou, a plasticidade nos presenteia com uma ferramenta ímpar
para enfrentarmos os paradoxos da vida contemporânea, visto que surge “como a possibilidade
de um sistema fechado acolher, transformando, novos fenômenos”43 (MALABOU, 2013, pp.
326-327, tradução nossa).
Acentuando um modo de transvalorar certas fronteiras, Malabou inquere uma nova
relação com a negatividade, que adquire pregnância ao se ver inscrita nos debates entre
psicanálise e neurociência. Para além da docilidade do capitalismo, sua meta reside não apenas
em criar formas de enfrentamento à elasticidade proposta pela “ideologia neural”, mas em
esclarecer que pensar o acidente e a fugacidade da vida não pode, de modo algum, “rejeitar a
negatividade nem evitar uma reflexão interdisciplinar sobre a relação entre o neuronal e o
mental”44 (PRATI, 2019, p. 67, tradução nossa). Interrogando o impulso de dominação da
natureza e o antropocentrismo como condição para políticas que sucitem novos estilos de Ser
capazes de dar conta da contração civilizatória diante da crise ecológica, Malabou redimensiona
os projetos humanistas a partir de possibilidades de carreguem ou abandonem essa
negatividade. Tornando central a plasticidade como forma de alteridade sem transcendência,

42
Un primer paso hacia una reinvencion de las ideas de libertad y de porvenir.
43
Como la posibilidad que tiene un sistema cerrado para acoger, transformándose, los fenomenos nuevos.
44
Rechazar la negatividad, ni tampoco evitar una reflexion interdisciplinaria acerca de la relacion entre lo
neuronal y lo mental.

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ela nos ensina em que sentido é possível dizer, neste mundo de flexibilidades, se é o próprio
cérebro que resiste, explode, não quer ou não pode fazer mais.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

Recebido em:13/05/2021
Aprovado em: 11/06/2021
Publicado em: 15/07/2021

POLITZER, LAPLANCHE E FREUD


o problema do conflito psíquico1

POLITZER, LAPLANCHE AND FREUD


the problem of the psychic conflict

Munique Gaio Filla2


([email protected])

Resumo: Neste artigo, proponho a retomada da leitura de Politzer sobre a psicanálise freudiana, à luz
de certas objeções de Laplanche expostas no estudo desenvolvido com Leclaire, apresentado pela
primeira vez no Colóquio de Bonneval em 1960, tomando como fio condutor o problema do conflito
psíquico. Como preparação para o percurso a ser traçado, retomarei a concepção de conflito psíquico
em textos fundacionais da teoria freudiana. Na sequência, apresentarei as diretrizes gerais da psicologia
concreta e sua hipótese para explicação do sonho, considerando a diferença em relação à hipótese
freudiana da distorção do conteúdo manifesto a partir do conteúdo latente. Por fim, destacarei da réplica
de Laplanche o argumento de que a posição de Politzer quanto ao problema do sonho tem como
consequência o enfraquecimento do conflito, o que coloca em risco a própria singularidade da
psicanálise, se consideramos o caráter indispensável dessa noção para a sustentação de seu edifício.

Palavras-chave: Politzer. Freud. Laplanche. Conflito psíquico. Sonho.

Abstract: In this article, I propose resuming Politzer's reading of Freudian psychoanalysis, in light of
certain objections by Laplanche exposed in the study developed with Leclaire, first presented at the
Bonneval Colloquium in 1960, taking the problem of psychic conflict as the common thread. In
preparation for the path to be traced, I will return to the concept of psychic conflict in foundational texts
of Freudian theory. Next, I will present the general guidelines of concrete psychology and its hypothesis
for explaining the dream, considering the differences in relation to the Freudian hypothesis of the
distortion of manifest content from latent content. Finally, I will detach from Laplanche's reply the
argument that Politzer's position on the dream problem results in the fading of the conflict, which puts
at risk the uniqueness itself of psychoanalysis, if we consider the indispensable character of this notion
for support its building.

Keywords: Politzer. Freud. Laplanche Psychic conflict. Dream.

INTRODUÇÃO AO PROBLEMA

1
Este artigo só se tornou possível pelo apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(Processo nº 2018/09039-0).
2
Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/1337863356487950.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7767-4968.

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O nome de Georges Politzer, se não é familiar àqueles que se interessam pela filosofia
da psicanálise, ao menos já ecoou aos ouvidos de qualquer um que tenha enveredado por este
território. Prado Jr. (2005) forneceu um excelente panorama da influência que a leitura
politzeriana de Freud, ou melhor, que a proposta da psicologia concreta, exposta na Crítica dos
fundamentos da psicologia: a psicologia e a psicanálise3, exerceu sobre sucessivas gerações de
pensadores na França e fora dela. O ensaio de Prado Jr. foi publicado originalmente em 1990,
em alusão aos sessenta anos da publicação da obra do fundador da filosofia francesa da
psicanálise, datada de 1928. Passam-se os anos desde o lançamento da Crítica…, com a
aproximação de seu centenário, e permanecem vivos os problemas levantados por ela, tanto
pelas marcas deixadas na história da psicanálise, como por sua capacidade de iluminar pontos
do pensamento freudiano.
Como se sabe, Politzer pretendia realizar um projeto mais extenso – este seria o primeiro
volume de um total de três escritos, dedicados a cada uma das tendências que prenunciavam a
orientação concreta, a serem seguidos por uma obra mais robusta de crítica aos fundamentos da
psicologia. Apesar de ainda cometerem erros que as alinhavam à psicologia tradicional, tais
tendências seriam a psicanálise, considerada “a mais importante”, a Gestalttheorie e o
behaviorismo, respectivamente (POLITZER, 2004, p. 46). No final das contas, foi escrito
apenas o volume dedicado à psicanálise de Freud, já que o filósofo marxista rompeu com o
projeto inicial e com a psicanálise de uma vez por todas nos anos seguintes 4.
O programa geral anunciado na Crítica… consiste, primeiramente, na realização de uma
denúncia implacável dos impasses ligados aos pressupostos da psicologia clássica e na proposta
de sua dissolução. Este termo – “psicologia clássica” – emgloba diversas escolas que, em última
instância, apesar de se dizerem científicas, como a psicologia experimental, não passam de
disfarces da psicologia escolástica, repetindo seus erros e perpetuando suas ilusões, já que a
última “só conseguiu correr de uma metafísica a outra” (POLITZER, 2004, p. 64). Em segundo
lugar, trata-se de fundar a psicologia concreta. Mas como “não há crítica verdadeira sem o
pressentimento da verdade” (POLITZER, 2004, p. 48), a psicanálise, principalmente – e depois
aquelas outras tendências citadas –, poderia fornecer a visão desta orientação futura, desde que
fosse reconhecida sua verdadeira inspiração. Por outro lado, ao mesmo tempo em que a
psicanálise freudiana ocupa esse lugar promissor, permanece no interior da psicologia

3
Doravante, a Crítica...
4
Depois da Crítica…, Politzer ainda escreve o último artigo sobre a psicanálise, que se configura como um
ataque voraz a ela, considerada dogmática, eclética e destinada ao desaparecimento. O escrito leva o título O
fim da psicanálise e foi originalmente publicado na Revista La pensée, em 1939, sob o pseudônimo de Th.
W. Morris. Recentemente, foi traduzido para o português e publicado na Revista Lacuna.

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tradicional e de sua esterilidade quando se propõe a explicar, na linguagem da metapsicologia,


suas descobertas clínicas.
A tendência inaugurada pelo filósofo húngaro, portanto, consiste em considerar “a
metapsicologia como um resíduo arcaico da filiação de Freud à ciência natural do século 19” e
afirmar “a sua heterogeneidade e incompatibilidade para com as descobertas clínicas da
psicanálise e a tarefa concreta da interpretação” (CAROPRESO e SIMANKE, 2010, p. 20). A
separação entre clínica e metapsicologia, com a possibilidade de abrir mão da segunda em prol
da primeira, adquire espaço a partir de então. Autores como Dalbiez, Sartre, Merleau-Ponty,
Ricœur e Lacan estão entre aqueles cujo trato com a obra freudiana é inspirado, de modo mais
ou menos explícito, em noções politzerianas, às quais foram introduzidas “precisões e
reformas” (PRADO JR., 2005, p. 41). Na filosofia da psicanálise brasileira, não é difícil
encontrar trabalhos que exploram as relações entre esses pensadores e Freud, levando em conta
a influência de Politzer5.
A literatura sobre o tema é vasta, de forma que não se trata de tentar aqui descrevê-la ou
sintetizá-la. O interesse deste artigo recai sobre uma das tantas repercussões da Crítica... – a
exposição de Jean Laplanche e Serge Leclaire, no famoso Colóquio de Bonneval, organizado
por Henry Ey, em 1960. O peso histórico da comunicação feita por eles, intitulada O
inconsciente: um estudo psicanalítico6, é comumente associado à postura que assumem diante
da teoria de seu professor Jacques Lacan, aquela do “inconsciente estruturado como uma
linguagem” (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 378). No entanto, como lembra Prado Jr. (2005,
p. 38), há nela uma crítica interessante em relação a Politzer7, apesar dos franceses enunciarem
que seu trabalho partia de uma homenagem ao pensador8. Gabbi Jr. (2004) também retoma o
ponto de vista de Laplanche em seu prefácio à tradução brasileira da Crítica.... No entanto, se

5
A título de exemplo, temos a obra de Simanke (2002), a dissertação de Aires (2003), as sugestões de Gabbi
Jr. (2004) e o trabalho de Silveira (2015), que exploram a influência de Politzer em Lacan; a tese de Freitas
Pinto (2016), que tem como um de seus eixos o freudismo de Ricœur e não deixa de considerar o peso da
leitura de Politzer para este; o trabalho de Furlan (1999), que revela a intermediação de Politzer na posição
que Merleau-Ponty toma em relação à psicanálise freudiana; entre outros.
6
No estudo de Laplanche e Leclaire, o capítulo que toca efetivamente nas questões levantadas por Politzer
foi escrito apenas por Laplanche, razão pela qual a referência a este trabalho se restringirá apenas a este daqui
por diante.
7
Para uma apreciação histórica e epistemológica mais geral da posição desse estudo em relação a Politzer e a
Lacan, ver Viguera (2012).
8
“É certo que essa homenagem à CFP [à Crítica…] acaba por se mostrar, ela própria, como crítica de uma
concepção demasiado simples do sentido dos fatos psicológicos. Na realidade, esquematizando o argumento,
o que se critica em Politzer é uma concepção dualista ou expressivista – e não ternária, como deveria – do
sentido, que pensa apenas a relação vertical entre um conteúdo manifesto e um sentido latente, ‘esses dois
personagens que, como numa farsa, quando um entra, o outro abandona necessariamente a cena’. Os tempos
agora são os da lógica e da linguística, em que importa menos a imanência significativa num signo qualquer
que os esquemas de substituição dos signos entre si” (PRADO JR., 2005, p. 39, colchetes meus, grifos do
autor). A questão da imanência do sentido em jogo na interpretação politzeriana será retomada mais à frente.

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chega a dizer que acredita “firmemente que Politzer seja o comentador que menos deturpa a
letra freudiana nessa empreitada digna de Sísifo” (GABBI JR., 2004, p. X), chamando a atenção
para “a gravidade, a relevância e a pertinência da crítica” (GABBI JR., 2004, p. VI), assume
uma posição diversa em relação à objeção de Laplanche. Considera as réplicas deste como “uma
forma de descaracterizar o essencial da crítica, de modo a perpetuar a psicologia clássica sob
formas mais sutis” (GABBI JR., 2004, p. VI), e as refuta rapidamente, qualificando algumas
delas de “falsas” (GABBI JR., 2004, p. XV – XVI).
A aposta deste trabalho é a de que vale a pena revisitar a crítica de Laplanche a Politzer,
mais especificamente no que ela incide sobre o problema do conflito psíquico. Como veremos,
o psicanalista francês indica que as hipóteses politzerianas de explicação do sonho pela via do
sentido - aquelas que estariam alinhadas com a psicologia concreta e contestariam a explicação
freudiana, abstrata e realista, que opõe conteúdo latente e conteúdo manifesto – implicam no
enfraquecimento do conflito psíquico; por conseguinte, em esmaecer uma das noções que
alicerça a própria teoria psicanalítica e confere a ela sua singularidade. Apesar de Gabbi Jr.
compreender o posicionamento de Laplanche como tentativa de reduzir ou atenuar o impacto
da Crítica…, a provocação aqui proposta é a de que talvez suas reflexões sejam tão pertinentes
quanto as de Politzer, justamente pela centralidade que conferem ao conflito psíquico, razão
pela qual merecem um tratamento mais demorado.
Tendo isso em vista, o caminho a ser trilhado será dividido em três partes, que têm como
fio condutor o problema do conflito psíquico: a primeira parte será dedicada à breve
recuperação desta noção em Freud, a partir de textos fundacionais da psicanálise, com o
objetivo de reiterar seu caráter fundamental e mapear aí os polos em oposição; a segunda parte
se voltará para a exposição geral da leitura de Politzer, com destaque à crítica da psicologia
concreta à explicação freudiana do sonho, considerando que essa crítica culmina na dificuldade
de sustentação do conflito; por fim, o enfoque será na análise do contra-argumento de
Laplanche. Espera-se que recuperar a leitura tão marcante de Politzer à luz desta réplica possa
tornar ainda mais nítida a importância do conflito psíquico para a psicanálise freudiana e
apontar para os riscos de descaracterização que ela sofre diante de seu enfraquecimento.

1. RECAPITULANDO: O CONFLITO PSÍQUICO NA PSICANÁLISE


FREUDIANA

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Não parece pretensioso admitir que há uma universalidade do conflito psíquico na teoria
psicanalítica freudiana, como o faz Claude Le Guen (2005), visto que ele se presentifica nos
indivíduos considerados normais a partir de sua constatação, a princípio, na histeria e,
posteriormente, enquanto mecanismo chave para a eclosão de todas as psiconeuroses. Tratar
desse tema impõe, contudo, além da exigência de reconhecer seu papel capital para as
elaborações que atravessam a obra do pai da psicanálise em sua totalidade, a necessidade de
considerar que sua “onipresença” nos textos psicanalíticos, que se estende dos escritos
freudianos até os de seus sucessores, revela também sua "polivalência", na medida em que os
conflitos travados na vida psíquica mobilizam tanto instâncias, quanto pulsões ou
identificações, assim como podem remeter ao amor e ao ódio ou ao conflito edípico
propriamente dito (PERRON-BORELLI, 2005, n. p.).
Embora o conflito psíquico brote no solo da histeria, em As neuropsicoses de defesa
(1894) Freud já considera que ele também está na origem dos sintomas fóbicos, obsessivos e
da psicose alucinatória. O estopim para a patologia consiste na ocorrência de uma “vivência”,
“representação” ou “sensação” que, por sua natureza sexual, “despertou um afeto tão penoso
que a pessoa decidiu esquecê-la, não confiando em poder solucionar com seu Eu, mediante um
trabalho de pensamento, a contradição que essa representação inconciliável lhe opunha"
(FREUD, 1986a, p. 49). A pessoa tem o propósito de empurrá-la para longe (fortschieben), não
pensar nela e agir como se ela não tivesse acontecido. Como isso não é possível, o Eu se
empenha em recalcá-la (verdrängen), em enfraquecê-la, por meio da retirada de sua “soma de
excitação” (Erregungssumme), impedindo que entre em associação com ele. Submetida a essa
operação de isolamento, aquela “vivência” forma o núcleo do que Freud chama nesse texto de
um “grupo psíquico segundo”, considerando a “cisão da consciência” em ação; conforme o
vocabulário de textos posteriores, torna-se inconsciente. O problema é que essa soma de
excitação encontra outra aplicabilidade na vida psíquica, que difere em cada uma das patologias
e concede a coloração de seu quadro sintomático: a conversão no corpo na histeria, o
deslocamento para representações substitutas na neurose obsessiva, e assim por diante.
A teoria da defesa, como o título do artigo revela, começa a ser esboçada e a psicanálise,
por sua vez, a ser delimitada como um novo método de tratamento e de investigação. Desde
muito cedo, toma forma a ideia geral de que há uma disputa entre o Eu e a sexualidade – o
primeiro enquanto agente do recalque e a segunda enquanto recalcada. Da mesma forma, ganha
espaço a ideia de que o recalcado sobrevive de modo inconsciente, se esforça para chegar à
consciência, para estabelecer novamente laços com o Eu, razão pela qual a ação defensiva
do último deve se manter constante e vigilante. A formação do sintoma consiste nos efeitos

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do recalcado sobre o Eu. Nas Novas observações sobre as neuropsicoses de defesa (1896),
Freud mostra como a representação obsessiva tem de ser distorcida (entstellt) devido à pressão
do polo que recalca. Aquilo de natureza sexual que foi expulso da consciência pelo recalque
realizado pelo Eu insiste em retornar, indicando que a defesa não é tão exitosa quanto parece,
e o faz através da formação dos sintomas, os quais são entendidos como “sintomas de
compromisso” (Kompromißsymptomen) (FREUD, 1986a, pp. 171-172). Estes são impostos
(aufgedrängt) ao Eu e figuram como “consequências de um compromisso entre resistência do
Eu e poder do retornante” (FREUD, 1986a, p. 182).
Conforme Laplanche e Pontalis (1970, p. 257, grifos meus): “É a partir do estudo do
mecanismo da neurose obsessiva que Freud ressalta a ideia de que os sintomas têm em si
mesmos a marca do conflito defensivo”, mais precisamente pela ideia de compromisso, que “é
rapidamente estendida a todos os sintomas, ao sonho, ao conjunto de produções do
inconsciente”, revelando, por sua vez, a presença universal de demandas antagônicas em
atividade na alma. Sobre o mecanismo psíquico do esquecimento (1898) e Sobre as recordações
encobridoras (1899) mostram o mesmo jogo de forças em trabalho tanto nas patologias, quanto
nos mecanismos normais da vida psíquica – como é o caso da memória –, a saber, “conflito,
recalque, substituição com formação de compromisso” (FREUD, 1986a, p. 302, grifos do
autor). O mesmo acontece nos atos falhos e nos lapsos na fala e na escrita. Em suma, o Eu se
defende de determinados conteúdos que entram em contradição com ele, mas o recalcado
pressiona para retornar, sendo a solução de compromisso entre intenções conscientes e desejos
inconscientes a única saída possível diante da oposição em vigor.
O sonho, por sua vez, consiste em mais um passo rumo à expansão das descobertas
psicanalíticas das neuroses para a normalidade. Passo fundamental e paradigmático, sem
dúvidas. Desde o capítulo quarto da Interpretação dos sonhos, sugere-se “a contraposição entre
conteúdo onírico manifesto e latente” (FREUD, 2016, p. 156, grifos do autor), considerando
que o que aparece no sonho difere dos pensamentos alcançados pela interpretação. Realização
disfarçada de um desejo recalcado, o sonho revela que há um desejo de origem infantil que quer
se expressar, mas que não tem caminho livre para fazê-lo, porque enfrenta uma tendência
contrária à sua realização – um “propósito recalcador em relação ao tema do sonho ou ao desejo
dele extraído” (FREUD, 2016, p. 181) –, de modo que só consegue algum tipo de manifestação
por meio da distorção empreendida pela censura onírica (FREUD, 2016, p. 163). Daí a
conclusão freudiana de que deve haver duas instâncias psíquicas, uma que submete a atividade
da outra à crítica e exclui sua participação da consciência. A “força pulsionante”
(Triebkraft) do sonho parte da instância criticada, uma vez que o desejo criador do sonho

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tem aí sua origem, ao passo que a instância criticadora exerce a atividade defensiva que torna
o produto onírico irreconhecível (FREUD, 2016, p. 167). Tal como o sintoma e seus correlatos,
o sonho reúne intenções opostas em si mesmo.
Assim, Freud chega ao modelo mais completo da primeira tópica psíquica e de seu
funcionamento econômico, apresentado no capítulo sétimo da Interpretação dos sonhos, tão
criticado por Politzer, como veremos. O aparelho psíquico é concebido como um instrumento
composto por duas extremidades, uma perceptiva e uma motora, e por lugares psíquicos.
Haveria um sistema pré-consciente na terminação motora, cujos conteúdos são passíveis de se
tornarem conscientes, a depender de certas condições, e o qual tem acesso à motilidade
voluntária. Situado atrás deste, estaria o chamado sistema inconsciente, onde se localiza o
desejo como força impulsora para a formação do sonho; seus conteúdos só acessariam a
consciência, ou, por assim dizer, o sistema consciente, através do pré-consciente e às custas de
algumas alterações, uma vez que sofreria a ação da censura (FREUD, 2015, pp. 564-570). A
energia psíquica também circularia de modo distinto em cada um dos sistemas. Processos
psíquicos primários, que aspiram somente à descarga da excitação para alcançar a satisfação,
seriam os únicos vigentes no inconsciente, ao passo que os processos psíquicos secundários
seriam próprios do pré-consciente e da consciência, por estenderem o caminho até a satisfação
por meio da atividade do pensamento (FREUD, 2015, pp. 628-630).
Note-se que a tópica não cria a ideia de partes em luta. Ela é produto da noção de que
há conflito na vida anímica, conforme sugere Claude Le Guen (2005); surge como consequência
das relações conflituosas observadas por Freud e é concebida como o espaço virtual onde estas
acontecem. Em outras palavras, antes mesmo do “trabalho do sonho”, há um “trabalho do
conflito” (PERRON- BORELLI, 2005, não paginado) em plena atividade, que resulta em
produtos psíquicos disfarçados e compromissados com forças opostas, como os sintomas e os
sonhos.
Vale ainda observar que, de modo geral, o que move todo o trabalho do conflito e o
consequente trabalho do sonho continua sendo, no limite, a oposição entre a sexualidade e o
Eu, embora estes possam parecer ausentes da Interpretação dos sonhos. A título de exemplo,
há quem entenda que Freud não explica muito bem os motivos da censura, quais os critérios
que justificariam o fato de um desejo ter de ser censurado e modificado pelo trabalho do sonho
(BERTANHA, 2006, p. 63), e que haveria um apagamento do Eu no livro dos sonhos,
responsável por conduzir a uma espécie de desaparecimento do agente promovedor das defesas,
de forma que a consequência disso seria o obscurecimento do próprio conflito, já que
permaneceria sem resposta a seguinte pergunta - quem exerce o recalque no aparelho do

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sonho? (BERTANHA, 2006, p. 77)9. No entanto, ainda que Freud privilegie os termos da
tópica, os sistemas pré-consciente, consciente e inconsciente em suas elucidações, a meu ver há
mais de uma razão que leva a supor a presença daqueles dois polos, o Eu e a sexualidade, no
mecanismo do sonho.
Em primeiro lugar, se este é mais um importante avanço das descobertas da patologia
rumo à normalidade, não há por que supor que nele os termos da disputa sejam diferentes
daqueles em jogo nos sintomas, nos esquecimentos, nas recordações encobridoras, etc. Além
disso, uma investigação mais rigorosa da obra e dos textos contemporâneos a ela, como o escrito
Sobre o sonho (1901), revela a proximidade do Eu com o sistema pré-consciente/consciente e
com a atividade crítica e censuradora dessa instância. De modo análogo, a sexualidade continua
sendo o alvo mais frequente da censura, o motivo mais comum que leva à defesa, como mostram
as análises de tantos sonhos dos capítulos quarto e quinto da Interpretação dos sonhos, que já
em sua primeira edição estabelece o papel formador do desejo sexual, papel que se confirma
por meio de afirmações ainda mais taxativas nas edições seguintes da obra, sobre o sentido
sexual da maioria dos sonhos dos adultos (FREUD, 2015, pp. 421-422)10.
De todo modo, interessa-me enfatizar que o sonho consiste em um “compromisso” entre
o Eu e os desejos infantis inconscientes, majoritariamente sexuais. No já mencionado Sobre o
sonho, Freud (1984, p. 661-662) esclarece que “a instância na qual reconhecemos nosso Eu
normal” se acomoda ao “desejo de dormir” – rebaixando a censura sobre o recalcado, já que o
acesso à motilidade está bloqueado nesse estado anímico – , de forma que o sonho “cria uma
espécie de resolução psíquica ao desejo sufocado ou formado com o auxílio do recalcado,
apresentando-o como realizado; mas também contenta a outra instância, visto que permite o
prosseguimento do dormir.” Podemos dizer, então, que a censura do Eu faz uma concessão aos
desejos recalcados ao permitir que se expressem, desde que cumpram a condição fundamental
da distorção de seus conteúdos. No entanto, tal concessão tem como pano de fundo a relação
conflituosa entre a defesa e seu alvo. Em última instância, é possível visualizar a pressão
incessante dos impulsos inconscientes, seu embate com o Eu que quer dormir e o sonho como
resultado possível dessa luta durante o sono, assim como acontece com os sintomas e outras
formações psíquicas já mencionadas na vida de vigília.

9
A propósito, talvez essa seja uma das brechas – a presença não tão explícita dos agentes do conflito na
Traumdeutung – que tenha dado margem para uma interpretação como aquela realizada por Politzer, que não
parece conceder à noção de conflito psíquico o peso que lhe é devido, como procurarei mostrar.
10
Para um tratamento mais detalhado do problema da presença do Eu e da sexualidade no aparelho do sonho,
ver Filla, 2019.

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Avançando mais um passo, é possível afirmar que, ainda que haja aquela “polivalência”
do conflito psíquico na teoria freudiana, trata-se, em última instância, de um “conflito da
vontade” (Willenskonflikt) (FREUD, 1984, p. 643, grifos do autor) por trás desses fenômenos.
De acordo com escritos posteriores, sabemos que este conflito pode ser remetido ao embate
entre pulsões – ponto de vista dinâmico, a partir do qual se edificam a tópica e a economia na
metapsicologia freudiana. Esta é a abordagem mais radical do conflito psíquico, afinal um
conflito entre identificações ou entre amor e ódio implica, em última instância, na batalha entre
pulsões que se inclinam a destinos divergentes. Hanns (1999, p. 39) esclarece que “o que move
Freud é explicar a raiz do conflito psíquico, isto é, o conflito pulsional. É este que ele pretende
encontrar na forma mais irredutível, expresso como um combate de dois princípios ou duas
pulsões básicas.” Ainda nas palavras do comentador, “o dualismo conflituoso tinha que ser
encontrado também na própria base pulsional ” (HANNS, 1999, p. 39).
Pensando nos termos do conflito psíquico antes de 1920, a “base pulsional” consiste,
justamente, na luta entre as pulsões do Eu e as pulsões sexuais, até que isso seja reformulado
com a entrada em cena da pulsão de morte, contraposta às pulsões de vida, que englobarão todas
as manifestações da libido. Desde 1905, com a publicação dos Três ensaios sobre teoria sexual,
o psicanalista já apontava para a relevância das pulsões sexuais e para as diferenças entre estas
e as funções de autoconservação (FREUD, 1978a, pp. 164-165). Em 1910, com A perturbação
psicogênica da visão segundo a psicanálise, conclui que o Eu também tem um suporte
pulsional, as pulsões interessadas na conservação de si, que se contrapõem às pulsões sexuais,
as quais buscam ganhar prazer sexual. No limite, as representações só se tornam inconciliáveis
porque “cada pulsão procura se fazer valer através da animação das representações adequadas
a sua meta” (FREUD, 1986b, p. 211).
Quando o conflito psíquico é reconduzido ao fundamento pulsional, nos vemos
novamente diante da briga entre o Eu e a sexualidade com a qual Freud inicia a psicanálise. Na
verdade, é como se cada um deles estivesse à frente de um lado da disputa psíquica que move
o indivíduo, ponto no qual estou de acordo com Costa:

De um lado, as pulsões sexuais, as representações recalcadas, o princípio de


prazer e os processos primários; do outro, as pulsões de autoconservação, as
forças recalcantes, o princípio de realidade e os processos secundários. O Ego
representava, no sistema Pcs-Cs, os interesses da autoconservação e o
princípio da realidade. Dele derivava a censura, que mantinha nas fronteiras
deste sistema as representações sexuais. Os polos da tensão eram claros. O
Ego recalcava; defendia os interesses da autoconservação e do equilíbrio

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psíquico: a representação inconsciente era recalcada, pois a realização da


noção sexual punha em risco este mesmo equilíbrio. 11 (COSTA, 1988, p.11)

Mesmo quando ocorre a revisão do dualismo pulsional e da primeira tópica, sabemos


que esse embate nunca deixa de ser considerado por Freud – é uma herança da observação das
psiconeuroses de defesa, à qual não se pode renunciar, já que se trata do ponto de partida da
própria psicanálise.
Considerando os propósitos deste trabalho, espera-se que esse esboço nada exaustivo da
teoria freudiana do conflito psíquico tenha cumprido a função de refrescar a memória do leitor
– há uma radicalidade do conflito psíquico, um antagonismo de forças com o qual a psicanálise
se depara, que inaugura o campo clínico e teórico que lhe é próprio. Tendo em vista este pano
de fundo, passemos à crítica de Politzer.

2 A HIPÓTESE EXPLICATIVA DA PSICOLOGIA CONCRETA SOBRE O SONHO,


OU A SAÍDA DE CENA DO CONFLITO PSÍQUICO NA LEITURA DE POLITZER

Para que seja possível compreender a crítica de Politzer, partirei de seus ataques à
psicologia clássica, mais precisamente a cinco de seus pressupostos, radicalmente condenados
na Crítica… e organizados por Gabbi Jr. (2004), em seu prefácio, nesta disposição: 1) a crença
de que o psicológico seja algo elementar, atomístico, que se relaciona por associação; 2) a tese
de que o psicológico é apreendido pela percepção de forma imediata; 3) a convicção de que
existe uma vida interior, que reproduz a vida exterior; 4) a concepção de que o psíquico resulta
desses processos internos e não dos atos da pessoa concreta; 5) o postulado da
convencionalidade do significado, segundo o qual os relatos têm somente significados
convencionais, compartilhados por todos.
Abstração, formalismo e realismo estariam entrelaçados nas malhas da psicologia
tradicional, conferindo-lhe a roupagem da qual é preciso se livrar completamente. Abstração,

11
O cenário da primeira teoria metapsicológica, pelo menos na maior parte do tempo, é este, mas é claro que
não se trata de reduzir o Ego/ Eu à consciência e de afastá-lo completamente da sexualidade – qualquer leitor
advertido por Monzani (1989) saberia da esterilidade de incorrer em pontos de vistas rígidos como este quando
se trata do “movimento do pensamento” de Freud. Desde textos como as já citadas Novas observações sobre
as neuropsicoses de defesa, o psicanalista se deparava com a dificuldade colocada pela questão de que a
própria defesa empreendida pelo Eu era inconsciente em muitos casos. Com o narcisismo, admite a
possibilidade de que o Eu também tenha uma natureza sexual, afinal todas as pulsões sexuais se dirigem a ele
no começo do desenvolvimento. Mas é apenas a partir da “virada” de 1920 que o quadro da tópica e da teoria
pulsional é explicitamente modificado.

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porque não basta ao psicólogo o relato do indivíduo – é preciso separá-lo do sujeito que o
produz e concebê-lo como “um estado em terceira pessoa” (POLITZER, 2004, p. 60).
Formalismo, já que a atenção se afasta do sentido individual e se volta à extração dos processos
elementares do fato psicológico, concebidos a partir das convicções teóricas do psicólogo, isto
é, das “classes” com as quais ele trabalha (POLITZER, 2004, p. 59), como as sensações,
imagens e emoções. Realismo, visto que os processos autônomos, explicados mecanicamente,
são tratados como coisas, dotadas de realidade e dispostas na mitologia da interioridade. Em
nome da suposta objetividade científica, a psicologia cometeria um erro crasso, aos olhos de
Politzer (2004, p. 59, grifos do autor), que “consiste em aplicar aos fatos psicológicos a atitude
que adotamos para a explicação dos fatos objetivos em geral, isto é, o método da terceira
pessoa”, o que faz com que deixem de ser “psicológicos”, posto que se perde o vínculo com o
sujeito concreto responsável por produzi-los.
Caberia, então, fundar a psicologia concreta em outros alicerces, que não conduzam aos
mesmos becos sem saída. Politzer caracteriza a nova psicologia a partir do que já pode ser
visualizado nas descobertas psicanalíticas, mais precisamente no paradigma do sonho. Para
Freud, o sonho é digno de ser concebido como fato psicológico, já que é um fenômeno positivo
regido por um funcionamento próprio, e, ao mesmo tempo, tem um sentido, e isso implica em
um rompimento com a concepção clássica e impessoal de fato psicológico, o qual passa a ser o
“ato” e estar, impreterivelmente, em primeira pessoa, “deve ser pessoal e atualmente pessoal –
essas são suas condições de existência” (POLITZER, 2004, p. 77). A psicanálise é capaz de
encerrar a nova definição de fato psicológico que é cara à psicologia concreta, justamente
porque Freud não aborda o sonho pela via da abstração; ao procurar o sentido do sonho, pelo
método da interpretação, faz dele um ato e o vincula à experiência singular do indivíduo, pois
“não quer concebê-lo como um estado em terceira pessoa, não quer situá-lo num vazio sem
sujeito. É ligando-o ao sujeito de quem o sonho é que ele quer dar-lhe seu caráter de fato
psicológico” (POLITZER, 2004, p. 60).
Como já foi exposto, para a psicanálise o sonho é a realização de um desejo, e Politzer
elogia, nesta atitude freudiana, a vinculação do sonho ao eu - entendido como a primeira pessoa,
e não como região do aparelho psíquico. O filósofo não deixa de notar que a atitude se repete
em relação à neurose e aos atos falhos, que não são estados em si para o pai da psicanálise, mas
sim atos de um indivíduo singular que só podem ser explicados individualmente (POLITZER,
2004, p. 81). De todo modo, é tomando a visão de Freud sobre o sonho como fio condutor que
Politzer chega a algumas das constatações mais famosas da Crítica… a respeito das bases
da psicologia futura. Uma delas é a de que “os fatos psicológicos devem ser homogêneos

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ao ‘eu’, só podem ser as encarnações da mesma forma do ‘eu’” (POLITZER, 2004, p. 66, grifos
do autor). Este eu, por sua vez, consiste no indivíduo concreto, o que nos leva a outra observação
crucial: “o ato do indivíduo concreto é a vida, mas a vida singular do indivíduo singular, isto é,
a vida no sentido dramático do termo” (POLITZER, 2004, p. 67, grifos do autor). A psicologia
concreta só pode se interessar pelo drama humano e a postura do psicólogo deve se aproximar
à do crítico de teatro: “um ato sempre se lhe apresentará como segmento do drama que só tem
existência no e pelo drama. Seu método não será, portanto, um método de observação pura e
simples, mas um método de interpretação” (POLITZER, 2004, p. 68, grifos do autor).
Para Politzer (2004, p. 92), “interpretar significa apenas ligar o fato psicológico à vida
concreta do indivíduo”, e o grande mérito dos psicanalistas é o de não abandonarem o “plano
teleológico das significações”. O que eles fazem consiste tão somente em “aprofundar” este
plano, “a fim de encontrar, no fundo das significações convencionais, as significações
individuais que não entram mais na teleologia ordinária das relações sociais, mas são
reveladoras da psicologia individual” (POLITZER, 2004, p. 92, grifos do autor). Mais uma vez,
é a partir do protótipo do sonho que esse “aprofundamento” pode ser visualizado. Interpretar
um sonho consiste em reportá-lo para além da significação convencional, ligá-lo ao drama
pessoal do sujeito, à sua vida concreta:

Precisará opor ao relato em termos convencionais um relato feito em termos


de experiência individual; ao relato superficial, um relato profundo: será
obrigado a fazer intervir a distinção entre o que o sonho parece expressar e o
que ele significa realmente.
Freud chama o relato convencional de conteúdo manifesto e é a tradução desse
relato em termos de experiência individual que ele chama de latente
(POLITZER, 2004, p. 93, grifos do autor).

É somente nesses termos, da diferença entre as significações convencional e individual,


que o filósofo chega a admitir a oposição entre conteúdos manifesto e latente em Freud – que
será abandonada pela psicologia concreta, mais adiante, na Crítica… -. Só há essa possibilidade
porque a identificação que Freud faz do conteúdo latente “com os ‘pensamentos oníricos’ será
criticada como a reintrodução de uma realidade psicológica oculta por trás do relato,
restaurando, em parte, o realismo intolerável da objetivação psicológica”, como afirma
Simanke (2002, p. 180).
A direção da interpretação vai da significação pública à significação privada. A primeira
é a que “coincide com a indicada nos dicionários” (POLITZER, 2004, p. 93), é a linguagem
cotidiana, a única considerada pela psicologia clássica, segundo o postulado da

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convencionalidade do significado, que a impediu de enxergar o sentido do sonho – ela só viu


nele o conteúdo manifesto. A segunda ultrapassa este campo, é a “significação íntima”, que tem
a mesma “estrutura” da significação convencional, mas decorre de uma “experiência secreta”
do indivíduo, que precisa ser penetrada para que possa ser alcançada (POLITZER, 2004, p. 98).
O psicanalista, ao pedir para o sujeito “dizer tudo, o que lhe vem à cabeça, sem crítica e sem
reticência, está pedindo que ele abandone todas as montagens convencionais, livre-se de toda
técnica e toda arte, para deixar-se inspirar pela sua dialética secreta ” (POLITZER, 2004, p.
100).
A inspiração concreta da psicanálise se encontra em conceber o sonho como criação
dessa dialética íntima, em vez de abordá-lo a partir da dialética convencional. O problema é
que ela inaugura a psicologia concreta e, simultaneamente, traz o antagonismo entre esta e a
psicologia abstrata em seu próprio seio. Suas descobertas exigem uma explicação – e Politzer
(2004, p. 103 e 130) não nega tal exigência –, porém Freud a encontra em especulações que se
perdem no labirinto realista, abstrato e formal dos pressupostos da psicologia clássica, ensaiadas
a partir do quinto capítulo da Traumdeutung e coroadas no famigerado capítulo sétimo. Aparece
a “mitologia freudiana dos processos e das instâncias” (POLITZER, 2004, p. 140), mas como
mostra Aires (2003, p. 52, grifos da autora), “o principal exemplo de construção teórica abstrata,
embora baseado em questões clínicas concretas, é a noção princeps da psicanálise: o
inconsciente”. Freud chega até ela pela via da distinção entre os conteúdos manifesto e latente;
mais precisamente, por meio da tentativa de responder ao problema da distorção (Entstellung)
onírica12 – qual a causa do disfarce do sonho? Por que ele precisa de um trabalho de análise
para revelar seu sentido?
O argumento freudiano é reconstruído da seguinte maneira por Politzer (2004, p. 106-
107, grifos do autor): o “relato” do sonho fornece um material “desproporcional” ao conteúdo
manifesto; este material revela ao sujeito coisas que ele ignorava, mas que dizem respeito à sua
própria vida íntima – o conteúdo latente; Freud supõe que esses pensamentos então revelados
são anteriores ao conteúdo manifesto e ao próprio sonho; uma vez que tais pensamentos não
estão “disponíveis” ao sujeito antes da análise, “eles não têm existência semelhante à maneira

12
Na tradução em português da obra de Politzer, seguindo a opção em francês do autor para traduzir
Entstellung, o termo escolhido foi “transposição”. Em nota, o revisor técnico explica que o termo alemão
chegou a ser traduzido por transposition em francês, mas que autores como Laplanche e Pontalis recusam
essa possibilidade, considerada “muito fraca” para o que Freud gostaria de exprimir com ela, razão pela qual
preferem déformation (POLITZER, 2004, p. 107, nota 43). Na nossa língua, considero pertinente a opção
“distorção”, encontrada na edição da Interpretação dos sonhos publicada pela L&PM. É interessante ter em
vista a escolha de Politzer por transposição, termo mais ameno do que deformação, para tratar do conteúdo
manifesto: isso não é sem relação com o enfraquecimento da dimensão conflituosa que resulta da leitura
politzeriana do sonho, a ser abordado na sequência.

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de ser dos pensamentos disponíveis”; logo, existem de outra maneira - são inconscientes. Faço
minhas as palavras de Simanke (2002, p. 183, grifos do autor): é “o pecado mortal do realismo,
que condena a noção de inconsciente.” É só pela “ótica do realismo” que aquela ignorância do
sujeito que relata o sonho pode se converter em prova do inconsciente, uma vez que aquilo que
é aparentemente ignorado, mas conhecido pelo sujeito (como mostra a análise), precisa existir
em algum lugar (POLITZER, 2004, p. 134). Com efeito, se não é possível dar um sentido ao
conteúdo manifesto de imediato, “é porque algo falta, e este ‘algo’ está em outro lugar (‘a outra
cena’), ou seja, no inconsciente, a partir de onde funciona como causa eficiente do que ocorre
à superfície da consciência” (SIMANKE, 2002, p. 183, grifos do autor).
O passo que teria permitido a Freud chegar à hipótese do inconsciente depende não
apenas da realização do conteúdo latente, como também da abstração, da projeção das
representações inconscientes em uma vida interior, a ser investigada em terceira pessoa. Para o
filósofo húngaro, o inconsciente não é uma simples constatação diante de provas fornecidas
pelo sonho e por outros fenômenos como a hipnose, os esquecimentos ou os sintomas, os quais
indicam que o sujeito sabe mais do que aparenta saber – sabe, mas não sabe que sabe -, de forma
que este saber inacessível só possa ser inconsciente. O inconsciente – seja ele meramente latente
ou dinâmico - é, antes, uma hipótese, já que só é possível chegar a essa conclusão por meio dos
procedimentos da psicologia tradicional. Mais do que isso, ele ocupa a posição de núcleo duro
das “hipóteses de estrutura” feitas por Freud, que passa a recorrer a noções gerais para explicar
o sonho, pautadas no esquema do aparelho psíquico da primeira tópica, na ideia mecanicista de
excitações ou energias que circulam nele por meio de processos primários e secundários,
segundo o princípio de desprazer, etc., afastando-se radicalmente dos dramas em primeira
pessoa, dos atos concretos, os quais têm de ser homogêneos ao eu, conforme já mencionado.
Tomando esta direção, “Freud comete o erro clássico: decompõe o ato do sujeito em elementos
que estão, todos, abaixo do nível do ‘eu’ e quer, a seguir, reconstituir o pessoal com o
impessoal” (POLITZER, 2004, p. 117). O paradoxo está delineado: um “edifício ao gosto da
psicologia clássica” é erguido pelo próprio “fundador” da psicologia concreta (POLITZER,
2004, p. 127; p. 129), tendo como centro a noção de inconsciente.
Nota-se que a essência do problema do inconsciente para Politzer gira em torno de sua
recusa da concepção freudiana de que o conteúdo latente seria o texto original, preexistente ao
conteúdo manifesto - o qual seria, por sua vez, o mesmo texto só que distorcido, alvo da censura
onírica -. Tal realização do conteúdo latente dependeria, ainda, do “postulado da anterioridade
do pensamento convencional” (POLITZER, 2004, p. 145). Freud teria suposto que o
conteúdo latente dá as “intenções significativas” com os “signos adequados” – visto que é

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o sentido do sonho propriamente dito –, ao passo que isso não acontece no conteúdo manifesto.
De acordo com o postulado, haveria um pensamento convencional anterior ao sonho, o qual é
distorcido e resulta no conteúdo manifesto, que é simbólico e por isso precisa ser decifrado.
Segundo Politzer (2004, p. 154, grifos do autor), “todo pensamento devido a uma dialética
individual aparecerá necessariamente como derivado, como devendo ser explicado a partir de
um pensamento que exprima o mesmo tema de maneira convencional”; em outras palavras,
“como um pensamento convencional deformado e desprezado.” O relato efetivo tem sempre
esse “duplo ontológico”, que é o conteúdo latente. Como esclarece Aires (2003, p. 69, grifos da
autora), a anterioridade da significação remete à existência “de um sentido verdadeiro presente
em outra realidade psicológica, oculta ao agente.”
Com isso, já temos recursos suficientes para abordar as especificidades da hipótese da
psicologia concreta para explicar o sonho e indicar seus inconvenientes. Retomemos, então, o
fio que deixamos solto em alguns parágrafos acima. Vimos que, para Politzer, até certa altura,
há uma única diferença possível entre conteúdo manifesto e conteúdo latente, que se estabelece
no nível das significações. O primeiro se limitaria à significação e à dialética convencionais, ao
passo que o segundo remeteria ao significado individual, secreto. Sob este ângulo, não é
possível conceber que o conteúdo manifesto – a “simbólica do sonho” - seja um “disfarce de
um texto primitivo” (POLITZER, 2004, p. 147), uma vez que seria preciso supor que esse texto
original teria uma realidade psicológica anterior ao relato efetivo do sonho. A citação abaixo
tem valor inestimável para indicar no que a posição da psicologia concreta difere da
psicanalítica a respeito do sonho:

Com efeito, estamos diante de duas hipóteses. A freudiana concebe o sonho


como uma transposição verdadeira que parte de um texto original que o
trabalho do sonho deforma; a outra, pelo contrário, vê no sonho o resultado do
funcionamento de uma dialética individual. A diferença essencial entre essas
duas concepções reside em que o sonho, na primeira, é algo derivado,
enquanto na segunda é o fenômeno primeiro que basta a si mesmo. Nessas
condições, o sonho não tem dois conteúdos: um latente e um manifesto. Pois,
só pode haver um conteúdo manifesto quando se procura interpretá-lo no
plano das dialéticas convencionais. Ora, precisamente essas dialéticas são
ineficazes no caso do sonho: o sonho não é obra delas, pois explica-se por uma
dialética pessoal. Só tem um conteúdo, o que Freud chama de latente
(POLITZER, 2004, p. 147, grifos do autor).

O argumento aqui é levado às últimas consequências, uma vez que a significação


convencional não tem nenhuma relevância para o sonho. Dito de outro modo, em
congruência com suas diretrizes, pautadas no drama humano, nos atos concretos da primeira

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pessoa, Politzer defende que só pode haver conteúdo latente, na medida em que a linguagem
do sonho diz respeito à intenção significativa individual. O sonho “basta a si mesmo” porque é
uma criação da dialética pessoal, concerne às significações íntimas do sujeito, ligadas a sua vida
concreta. No entanto, o conteúdo latente é admitido por Politzer sob a seguinte perspectiva:

Mas esse conteúdo, o sonho o tem imediatamente, não posteriormente a um


disfarce. O simbolismo só parece ser um disfarce quando se substitui a
dialética que explica o sonho pelo seu relato e quando se realiza esse relato
anteriormente ao próprio sonho. (POLITZER, 2004, p. 147, grifos do autor).

Não há, portanto, o disfarce de um conteúdo prévio, justamente porque essa hipótese
implica em atribuir realidade ao conteúdo latente no inconsciente e deixar o plano da
significação. Só importa, para a psicologia concreta, o relato efetivo do sonho, a dialética
individual que ele realiza na atualidade da análise. Nem por isso Politzer (2004, p. 146) deixa
de ver o sonho como realização de desejo, ou ainda de desejos infantis, mas, novamente,
sustenta essa ideia à sua maneira. Aproxima o sonho de um “cenário”, que tem a “forma” desse
desejo e segue a sua dialética, podendo reproduzir, inclusive “montagens infantis com materiais
recentes”, mas rejeita que o desejo ou as recordações infantis estejam alojados no inconsciente:

Ora, para que o arranjo de um certo número de elementos, conforme o cenário


do desejo, ou da montagem infantil, possa efetuar-se, não é necessário que o
desejo ou a montagem em questão seja, anteriormente ao próprio sonho, o
objeto de uma representação distinta para o sujeito, assim como não é
necessário pensar que durante uma partida de tênis as regras do jogo ajam
“inconscientemente”. Da mesma maneira, é inútil atribuir ao desejo ou à
montagem uma existência psicológica distinta. […] O que é verdadeiramente
real é a significação do relato em si, e se nos limitarmos a essa significação
não teremos motivo algum para realizar separadamente e no inconsciente o
que é implicado como dialética na montagem do sonho (POLITZER, 2004, p.
147, grifos do autor).

O filósofo defende que é possível explicar um sonho por uma “lembrança de infância”
desde que esta seja concebida como “signo de uma montagem ou de um comportamento”, quer
dizer, seja olhada de uma perspectiva que ele chama de verdadeiramente dinâmica e não
“estática”, como se fosse dotada de uma realidade psicológica, como se fosse uma
representação armazenada no inconsciente e sujeita às leis mecânicas com as quais Freud
descreve seus processos. Tal lembrança de infância apenas significa “um comportamento ou
uma montagem”, de forma que “não se pode dizer que esteja ausente do sonho: está presente
como as regras do jogo estão presentes numa partida de tênis” (POLITZER, 2004, p. 148).

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Nesse caso, quando o sujeito “toma posse” da lembrança em questão, “não arrancamos o véu
que encobria a entidade, mas obtemos uma luz nova, um esclarecimento decisivo do problema.
[…] aprofundamos a nossa compreensão com a ajuda de uma nova relação” (POLITZER, 2004,
pp. 148-149).
Tratemos com mais atenção da analogia convocada duas vezes pelo autor. Na equação
de Politzer, a lembrança de infância ou o desejo infantil estariam para o sonho, assim como as
regras do jogo estão para uma partida de tênis. Eis o cerne do problema que anima este artigo:
até que ponto é possível usar o modelo das “regras” de um “jogo” quando o assunto é a
formação do sonho? Considerando que a função das regras é a de “reger” ou “regular” a partida
de tênis, ainda que de maneira implícita, é pertinente dizer que o desejo infantil faz o mesmo
em relação ao sonho – apenas o rege, o regula? Isso só seria possível se nos esquecêssemos de
certos enunciados do psicanalista, visíveis na primeira parte deste artigo e em trechos como
este: “em nossa teoria do sonho, atribuímos ao desejo oriundo do infantil o papel de motor
imprescindível para a formação dos sonhos” (FREUD, 2015, p. 617, grifos meus). Motor, na
medida em que o desejo de origem infantil busca impetuosamente encontrar alguma expressão
no sonho, mas enfrenta a oposição de outras lembranças ou “maneiras de ser” – termo que
Politzer (2004, p. 111) considera mais adequado do que “representações” – que são contrárias
a ele. A lembrança de infância não somente significa “um comportamento ou uma montagem”;
ela não é simplesmente uma significação que tem caminho livre para se expressar na dialética
individual do sonho e da qual é possível “tomar posse” para, com isso, aprofundar ou lançar
uma luz nova, um esclarecimento sobre o relato atual do sonho.
É de um cenário bélico que se trata na concepção freudiana. O conflito psíquico está
atuante na criação do sonho, assim como na formação dos sintomas psiconeuróticos, dos atos
falhos, dos esquecimentos, e da vida psíquica normal, como já foi exposto. Se uma lembrança
infantil explica o sonho, não dá para dizer, como Politzer (2004, p. 148) o faz, que isso significa
tão somente “que, na base do sonho, encontra-se uma montagem que é a significação de uma
lembrança da infância”, sem enfraquecer a noção de conflito psíquico. Isso porque, na teoria
freudiana, o sonho carrega a marca do conflito defensivo. Ele é produzido a partir de um
trabalho precisamente pelo fato de que o desejo infantil trava uma luta com outras
representações13 do indivíduo, há forças opostas que se contrapõem e chegam a uma formação

13
É pertinente lembrar que Politzer critica o termo “representação” e o uso que Freud faz dele. Vale
considerar, no entanto, que, para o psicanalista, os processos psíquicos são compostos, além de energia, por
representações que “se organizam respondendo a um sentido e não a choques mecânicos cegos”, conforme
aponta Silveira (2016, p. 49). Não por acaso, encontramos essa afirmação em um artigo da autora dedicado a
questionar certos aspectos da crítica de Sartre a Freud, mais precisamente, no tópico em que ela apresenta um

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de compromisso, a uma solução intermediária que satisfaz parcialmente o polo defensivo e o


polo que é alvo da defesa. Por essa razão, a leitura de Laplanche sobre a posição de Politzer e
sua denúncia de que o conflito psíquico se esvai nas mãos do filósofo tem seu mérito, como
veremos a seguir. No cenário do sonho, parece que quem precisa sair de cena para que o drama
politzeriano opere é a noção de conflito psíquico.

3 A RÉPLICA DE LAPLANCHE

Tomarei como base o primeiro capítulo de O inconsciente: um estudo psicanalítico,


mais especificamente seu tópico inicial, que concentra a crítica de Laplanche a Politzer. O texto
foi republicado em francês em 1981, junto às Problemáticas IV- O inconsciente e o Id, que
trazem, por sua vez, o comentário de Laplanche sobre seus próprios argumentos expostos no
estudo feito com Leclaire. Mais de vinte anos depois, ele revê algumas de suas colocações e
reitera os pontos que julga mais importantes, razão pela qual ambos os escritos terão grande
valor para o percurso aqui proposto14.
No capítulo inaugural de O inconsciente…, Laplanche parte da retomada dos termos da
crítica de Politzer em tom de homenagem ao autor. Relembra as acusações de abstração e
realismo que incidem sobre a hipótese freudiana do inconsciente e retoma termos que já nos
são conhecidos a esta altura. Acrescenta que a psicologia concreta, em vez de afirmar a
realização do conteúdo latente enquanto texto original, prévio ao relato manifesto do sonho,
teria enveredado pela hipótese do sentido, mais precisamente em “uma teoria da imanência do
sentido que, se não extrai seus elementos da doutrina fenomenológica, poderia ser perfeitamente
por ela reivindicada” (LAPLANCHE, 1992, p. 216). Estaria em jogo, então, uma inspiração
fenomenológica de Politzer, que não teria a ver com as filiações diretas do “filósofo marxista”,
mas sim com “essa vontade de descobrir por trás da suposta maquinaria metapsicológica a

contraponto à acusação feita por Sartre de que Freud teria pressuposto a existência de forças antagônicas em
nós como se fossem coisas – justamente na esteira de leituras como a de Politzer, segundo a afirmação da
própria autora (p. 55, nota 9). Não são meramente “coisas”, mas sim oposições que respondem a um sentido,
o qual “continua a guiar os laços entre as representações” (p. 49). Tratar da questão da representação não é o
propósito deste artigo, evidentemente, mas o tema acabará reaparecendo adiante, mais uma vez de modo
secundário.
14
Daqui em diante, abordarei o escrito com Leclaire pela abreviação O inconsciente…, e a obra toda pela
abreviação Problemáticas… (Lembrando que a tradução desta em português, seguida pela tradução do
trabalho de Bonneval, foi publicada em 1992). Tentarei especificar se estou citando Laplanche em O
inconsciente… ou nas Problemáticas…, mas é preciso levar em conta que os argumentos que me interessam
não sofrem alterações substanciais entre um texto e outro. Na verdade, é como se Laplanche fosse
complementando e esclarecendo suas próprias palavras emitidas anteriormente, razão pela qual recorrerei
constantemente às duas exposições.

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intencionalidade, a intenção significante15, incluindo nisso a maneira como essa intenção


significante é opaca para si mesma”16 (LAPLANCHE, 1992, pp. 33-34).
Prado Jr. (2005, p. 38) compartilha dessa opinião – “um certo estilo fenomenológico
parece impregnar todo o seu ensaio” -, o que teria aberto as portas para a posterior apropriação
fenomenológica da psicanálise na França. Gabbi Jr. (2004, p. XV), por sua vez, vê, nesse
posicionamento de Laplanche e de Prado Jr., uma maneira de “reduzir o impacto da Crítica…”,
de retirar sua especificidade e vinculá-la a uma tradição filosófica, com base no fato de Politzer
endossar “a tese da imanência do sentido”. Para os propósitos deste artigo, a importância não
recai em chegar a um veredito sobre se o autor estaria ou não ligado à tradição
fenomenológica17, mas sim em investigar quais as consequências do fato dele operar com tal
tese da imanência do sentido em sua interpretação da psicanálise freudiana, na medida em que
é justamente esse viés de leitura que enfraquece a noção de conflito psíquico.
É possível, assim, conceder contornos mais nítidos ao esboço iniciado no final do tópico
anterior. O conflito se esvai a partir do momento em que se supõe uma relação de imanência
entre o relato do sonho e seu conteúdo latente, conforme este é compreendido por Politzer. As
comparações evocadas pelo último tornam isso mais visível. Não por acaso, são recuperadas
por Laplanche (1992, p. 219) em O inconsciente...: “é a relação cênica que liga uma peça de
teatro ao seu tema, sem que se tenha de supor que esse tema já esteja inscrito em algum lugar”18;
“a relação de imanência que faz com que, numa partida de tênis, as regras estejam presentes de
modo implícito” – exemplo que conhecemos melhor -; ou ainda uma relação do tipo
“expressiva” como “a expressão de um afeto num gesto”19. A aposta na psicologia da primeira

15
Nota-se que, na tradução em português da Crítica…, é a expressão “intenção significativa” que traduz o
francês “intention significative” usado por Politzer no original (a referência deste será concedida na sessão
final do artigo).
16
No Vocabulário da psicanálise (LAPLANCHE e PONTALIS, 1970, p. 144), o verbete “conteúdo
manifesto” traz a mesma indicação - o viés fenomenológico da crítica de Politzer.
17
Ainda sobre esse ponto, convém ter em vista o que o próprio Prado Jr. (2005, p. 38) nos comunica: ele
afirma que o “vocabulário técnico da fenomenologia husserliana” não está presente na Crítica…, e que não
encontrou “nenhuma referência a Husserl nos escritos de Politzer, ainda que tão familiarizado com a literatura
teórica alemã”, mas que certamente o filósofo húngaro era “leitor da Erlebnispsychologie e da
Lebensphilosophie de seu tempo”, de forma que estava exposto, “pelo menos indiretamente”, à influência da
fenomenologia. Se nos lembrarmos do interesse de Politzer pela Gestalttheorie, à qual seria dedicado um dos
volumes de seu projeto original, e as possíveis relações que essa teoria trava com a fenomenologia, também
é possível inferir que ele tinha, em certa medida, conhecimento sobre o assunto.
18
Ainda no primeiro capítulo, em seu elogio ao método psicanalítico, Politzer (2004, p. 74) diz: “A cada passo
do relato surgem pensamentos que esclarecem a significação dos elementos do conteúdo manifesto, de tal
forma que, se confrontarmos esses pensamentos com o conteúdo manifesto, este é para aqueles como uma
peça de teatro é para seu tema, no sentido preciso que os primeiros expressam a ideia do desejo e o segundo,
o palco em que este se realiza.”
19
Já no capítulo quarto, esse paradigma aparece no exemplo concreto de explicação de um sonho fornecido
por Politzer: “No sonho da injeção aplicada em Irma, ‘Irma está com dor de garganta’ significa ‘desejo um
erro de diagnóstico’. Ora, só há ‘explicação’, inicialmente, no plano das significações, pois estamos diante de

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pessoa, no drama humano e, por conseguinte, a defesa de que interpretar um sonho consista tão
somente em se aprofundar na significação íntima que é imanente ao próprio sonho, tem um
preço. Para Laplanche (1992, p. 220, grifos meus), Politzer opera não apenas uma “redução”,
mas “um verdadeiro achatamento” da dimensão subjetiva apresentada por Freud: “Em outras
palavras, a simples oposição entre o relato ou o gesto manifesto e o drama ou a significação
que lhe são imanentes, e que a análise deveria simplesmente reconstruir, parece-nos incapaz de
explicar os dados da psicanálise.” Talvez seja possível complementar – porque não se trata
propriamente de uma relação de oposição.
Nas Problemáticas…, Laplanche (1992, p. 34, grifos meus) é mais preciso a esse
respeito: “Esse drama, esse núcleo dinâmico de significações, está numa relação de imanência
em relação aos conteúdos nos quais se exprime, e não numa relação de conflito, de dialética e
ainda menos de mecanicismo.” Convém acrescentar que, apesar de Politzer (2004, p. 155, grifos
meus) não deixar de falar em dialética, esta é concebida de um ponto de vista que não parece
ser o do conflito, como fica claro neste fragmento: “De fato, houve sonho: uma dialética
individual funcionou, laços imprevistos e imprevisíveis foram estabelecidos entre intenções
significativas e signos”. O sujeito tem acesso à significação íntima do sonho no presente, a
partir da interpretação de seu relato na análise, por meio da qual se mostram esses laços
inusitados. De acordo com o que já foi exposto, se a lembrança infantil ou o desejo que explicam
o sonho estão para este como o tema está para a peça de teatro, como as regras do jogo estão
para a partida de tênis, como o afeto está para o gesto que o expressa, é notável que entre eles
não se estabelece nenhum tipo de tensão ou embate. Essa série de analogias escancara o
problema central – em uma frase: tal relação de imanência não é, nem pode ser, uma relação
de conflito.
A objeção de Laplanche ganha corpo em O inconsciente… em uma nota de rodapé,
subsequente à afirmação de que a alternativa oferecida por Politzer para explicar o sonho não
dá conta dos dados da psicanálise, na medida em que reduz o conteúdo latente a um sentido.
Na nota, o francês reproduz a citação da Crítica… já destacada aqui20, na qual Politzer deixa
claro que a hipótese da psicologia concreta difere da hipótese psicanalítica quanto à explicação

uma explicação de texto, ou melhor, diante da análise de uma cena dramática. Então, o desejo do erro de
diagnóstico explica a dor de garganta, da mesma forma que o termo latino ‘pater’ explica o termo francês
‘père’, ou que o ciúme explica o gesto de Otelo” (POLITZER, 2004, p. 139, grifos do autor). O uso do exemplo
linguístico é, aliás, criticado por Laplanche (1992, p. 219), que levanta a possibilidade de que se trate menos
de uma relação de imanência do que de uma substituição de um signo por outro, ponto que será deixado de
lado aqui por não se circunscrever aos propósitos deste trabalho.
20
A citação se encontra nas páginas finais da segunda parte deste artigo e se inicia com a seguinte oração:
“Com efeito, estamos diante de duas hipóteses...”

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do sonho, precisamente porque só há conteúdo latente para a primeira; não há nenhum disfarce
em ação e só há a significação pessoal do relato em si, na medida em que é o resultado de uma
dialética pessoal. Laplanche então comenta:

Embora Politzer pretenda responder assim à teoria do inconsciente


“dinâmico”, pode-se muito bem afirmar que é nesse ponto que a teoria
freudiana permanece “irrefutável” (das Ich und das Es, […]): quando ele funda
a existência autônoma do inconsciente (isto é, autônoma e não puramente
correlativa da expressão consciente) nos fenômenos do recalcamento, da
resistência, em última análise na noção de conflito, nessa dialética a que
Politzer recorre aqui; mas em vão, já que eliminou a distinção dos planos que
lhe permitiria funcionar. (LAPLANCHE, 1992, p. 221)

Gabbi Jr. (2004, p. XV) entende essa réplica deste modo: “o conflito é essencial para
caracterizar a descoberta psicanalítica, contudo só se pode expressá-lo pela distinção entre dois
planos; traduzindo: pela oposição entre dois sistemas – pré-consciente e inconsciente”. Mas tal
oposição, que remete à divisão tópica, é produto de um conflito ainda mais fundamental para a
psicanálise, conforme vimos na parte inicial deste artigo. Há dois polos em conflito, o que o Eu
almeja se contrapõe ao que a sexualidade requer. Enquanto agente do recalque e recalcado, eles
ocupariam a linha de frente de cada um dos lados em disputa, que incluem, respectivamente, os
sistemas pré-consciente/consciente e inconsciente, os processos secundários e primários, e, por
último, na raiz, as pulsões de autoconservação e as sexuais. Com a rejeição do disfarce ou
distorção do conteúdo manifesto em relação ao conteúdo latente, o sonho deixa de carregar a
marca do conflito defensivo. Não é mais produto de um trabalho, afinal é justamente seu caráter
distorcido que dava a Freud as condições de visualizar que ele satisfazia tanto ao desejo
inconsciente, quanto à censura. Nesse sentido, Politzer não leva em conta que há exigências
contrárias em cada um de nós, que culminam nesses produtos.
Voltemos a Politzer (2004, p. 147): com efeito, a significação individual é a única que
está em jogo no relato do sonho – há uma “dialética individual que devemos analisar para ver
qual é essa dialética, qual a forma ou a montagem que explica o sonho, e não procurar remontar
a qualquer ‘texto original’.” Com a interpretação, é possível se aprofundar nessa dialética,
lançar uma luz nova sobre ela ou compreendê-la a partir de uma nova relação, por exemplo,
explicitando uma lembrança de infância ou um desejo que já estaria presente no sonho de modo
imanente. É notável como se trata tão somente de ter acesso aos “laços imprevistos e
imprevisíveis” entre “intenções significativas e signos” dessa dialética íntima; não se trata de
tendências opostas em luta, que aspiram por se expressarem, mas encontram dificuldades,
justamente por serem divergentes entre si.

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Nas Problemáticas…, Laplanche complementa seu argumento. O título do tópico


dedicado a esse ponto já diz muito: “O ‘querer significar’ não dá lugar ao conflito”
(LAPLANCHE, 1992, p. 36, grifos meus). Visto que, para Politzer, só há um plano – o da
intenção significativa -, “que, segundo o caso, pode-se materializar numa linguagem chamada
convencional, aquela que nos serve para comunicar, ou então numa ‘dialética’ e numa
linguagem puramente individual e pessoal, que seria o idioma do sonho” (LAPLANCHE, 1992,
p. 37), não há espaço para uma das descobertas fundamentais da psicanálise:

Ora, essa concepção, digamos, fenomenológica das formações do


inconsciente leva – e essa é a minha principal objeção – a apagar uma
dimensão essencial da descoberta freudiana do inconsciente ou,
simplesmente, a descoberta freudiana das neuroses, nas análises concretas, ou
seja, a elucidação do conflito psíquico e do compromisso em que este acaba
por traduzir-se, quer seja nessa formação particular que é o sintoma, quer em
todas as “formações do inconsciente”. Restituir o lugar dessa noção de conflito
é dar prova de uma ortodoxia freudiana da qual aqui me parece impossível
abdicar. A noção de conflito defensivo é um dos pivôs da análise, um eixo que
é impossível abandonar, mesmo que questionemos muitos outros conceitos
freudianos. […] Conflito e defesa são conceitos que não têm lugar na
concepção de Politzer e, em última instância, em qualquer tentativa de reduzir
a descoberta analítica a um esquema de tipo fenomenológico. […] Não há
conflito entre uma intenção significante (se esta não se encontra já consignada
num texto, se ainda não é mais do que intencionalidade) e o modo como ela
se realiza (LAPLANCHE, 1992, pp. 37-38, grifos meus).

O saldo da denúncia de Politzer acerca da subordinação da hipótese do inconsciente aos


postulados da psicologia abstrata, de sua proclamação da morte da metapsicologia e de sua
saída pela tese da imanência do sentido para resolver o problema da explicação do sonho
consiste em enfraquecer a dimensão do conflito psíquico que está em pauta na produção do
sonho, dos atos falhos, dos esquecimentos, das recordações encobridoras e das neuroses - no
limite, de todos fenômenos investigados pela psicanálise freudiana. Como procurei recuperar
na primeira parte deste artigo, é ao notar a defesa, primeiro no âmbito da histeria e das demais
psiconeuroses, depois no âmbito da vida psíquica comum, que Freud funda a psicanálise
propriamente dita. Como bem aponta Laplanche, se há noções freudianas que podem ser
questionadas e até abandonadas, a de conflito psíquico não é, definitivamente, uma delas. É a
descoberta freudiana. Será que é possível, como quer Politzer, preservar a “verdadeira
inspiração” da psicanálise, aquela em direção ao concreto, se esta requer que uma noção como
aquela seja atenuada ou mesmo eliminada? Isso não significa, em última instância,
descaracterizar o próprio pensamento freudiano? Nesse sentido, o autor não descarta apenas
a metapsicologia, mas também o alicerce do conflito psíquico, colocando então em xeque

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se o que sobra pode ser, de fato, chamado de psicanálise. Joga fora o bebê com a água do banho,
como ilustra a expressão popular21.
Parafraseando Politzer, assim como um fato precisa estar em primeira pessoa para ser
chamado de psicológico em sua psicologia concreta, o sonho precisa ser resultado de um
conflito e carregar sua marca para que se possa falar de uma abordagem psicanalítica dele. Ora,
a ideia politzeriana é a de que o sonho é o relato do sonho, cuja significação individual já está
presente imediatamente. Contudo, ainda que o sonho tenha um sentido pessoal, diretamente
relacionado à vida do indivíduo ao qual se liga, não podemos esquecer que é efeito do conflito,
tentativa de alcançar um equilíbrio provisório de forças, em um jogo de tensões constante. Seu
sentido só vem à tona no processo analítico, que é procurado pelo sujeito justamente quando
esse suposto equilíbrio sucumbe. Como diz Laplanche (1992, p. 55) nas Problemáticas…, o
sonho não é “diálogo” e nem “o relato do sonho”.
Lembremos da comparação feita por Freud, nas Conferências de introdução à
psicanálise, entre o “sistema expressivo” (Ausdruckssystem) do sonho e das línguas e escritas
antigas, como a hieroglífica, e da ressalva que o próprio autor acrescenta a essa analogia. As
línguas e escrituras primitivas estariam destinadas à “comunicação” (Mitteilung), afinal foram
feitas, no limite, para serem compreendidas. “Esse caráter, precisamente, falta ao sonho. O
sonho não quer dizer nada a ninguém; não é um veículo da comunicação; ao contrário, se
empenha em permanecer incompreendido” (FREUD, 1978b, p. 212). Tal constatação pode ser
estendida aos atos falhos, aos sintomas e às demais produções do inconsciente, na medida em
que consistem em formações de compromisso entre exigências contrárias, na busca de
satisfazer, simultaneamente, o polo defensivo e o polo alvo da defesa e encontrar um ponto de
relativa estabilidade. Laplanche (1992, p. 98) parece ter razão quando afirma que “o
inconsciente é fenômeno de sentido, mas sem nenhuma finalidade de comunicação”.
De todo modo, duas observações me parecem relevantes antes de encerrar esta
discussão. A primeira delas é que devemos fazer justiça a Politzer e reconhecer que ele não
deixa de falar em “conflito” na sua Crítica…, mais precisamente, na ocasião em que o filósofo
discorre sobre o que considera ser um sentido concreto do recalcamento, noção que, no geral,
concebe como mais uma das abstrações metapsicológicas de Freud. Parece ser uma das únicas
ocorrências do termo22. Haveria, de fato, pensamentos que são “penosos” para o sujeito, dos

21
A propósito, Roudinesco (1988, p. 80) utiliza a mesma expressão, mas para exprimir a relação mais geral
de Politzer com a psicanálise: “Em sua conversão ao marxismo, ele joga fora o bebê junto com a água do
banho, a psicanálise com a psicologia.”
22
Além das menções a um “conflito” entre as atitudes concreta e abstrata no interior da psicanálise freudiana
(por exemplo, POLITZER, 2004, p. 104; p. 111, nota 88; p. 129).

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quais ele não quer “tomar consciência” – entendida aqui no sentido de responsabilidade –; o
pensamento se torna penoso “quando o sujeito é obrigado a reconhecê-lo como sendo seu,
quando aparece como expressão de uma maneira de ser que implique para ele a indignidade, a
decadência, porque ao contrário do ‘ideal do eu (moi)’, por exemplo” (POLITZER, 2004, pp.
110-111, grifos meus). Nesse caso, trata-se dos atos concretos de um sujeito, de suas ações em
primeira pessoa:

[…] estamos em presença, não de simples representações, mas das próprias


formas nas quais o sujeito quer inserir-se; na presença de um conflito, não
entre representações, mas entre maneiras de ser, das quais umas são reais,
mas condenadas, outras desejadas, mas irrealizáveis (POLITZER, 2004, p.
111, grifos meus).

Quer dizer que há conflito, há dificuldade de assumir a responsabilidade de certos


pensamentos quando expressam uma “maneira de ser” condenada pelo sujeito, o que levaria ao
recalcamento, mas isso não teria nada a ver com representações, porque estas implicam
pressupostos da psicologia clássica. De todo modo, ainda que o conflito apareça na Crítica...,
parece que seu papel tão periférico não consegue dar conta de preservar o espaço que ele ocupa
na produção do sintoma, do sonho e de seus correlatos, já que, no limite, de acordo com o
pensamento freudiano, todos estes resultam de um conflito. Além disso, paira uma questão
curiosa: o que são as representações para Freud, senão inscrições, marcas ou traços deixados
pelas vivências, experiências e, por que não, pelas maneiras de ser? Ora, se voltamos ao início
do percurso aqui traçado, nos deparamos com aquele texto freudiano de 1894, no qual o autor
descrevia algo não muito distante da noção politzeriana de um “conflito entre maneiras de ser”:
o incômodo que os neuróticos traziam diante de uma “vivência”, de uma “sensação” ou de uma
“representação” por conta de sua natureza sexual, que era penosa para o indivíduo porque
entrava em contradição com outras tendências suas23.
A segunda observação diz respeito ao fato de que Politzer não retorna à tese da
exclusividade da consciência, mesmo considerando que a psicologia concreta deva prescindir
da hipótese do inconsciente. Ele endossa “a negação da onisciência do sujeito diante de si
mesmo” (POLITZER, 2004, p. 111). “Não nos parece legítimo exigir do sujeito outra coisa
senão o cumprimento do ato. A significação do ato pode ser do conhecimento dele, mas o sonho

23
Questão espinhosa na qual não me aprofundarei, já que não pretendo entrar aqui nos meandros da teoria
freudiana das representações, mas que vale a pena ser mencionada: talvez Simanke (2002, p. 184) esteja
falando justamente disso quando diz que as representações, para Freud, estão longe de serem concebidas como
“fantasmas vagando pelos abismos obscuros da mente”.

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e os fatos da patologia mental mostram-nos bem que ele pode também ignorá-la”, afirma o autor
(POLITZER, 2004, p. 159). Ou seja, o sujeito pode ignorar a significação de seu ato, o que não
quer dizer que tal significação remeta a um conteúdo inconsciente. Conforme a análise de
Silveira (2015, p. 388): “Politzer pretende, então, a um só tempo, preservar a ideia de que o
sujeito emite comportamentos que desconhece e sustentar que essa dimensão de opacidade não
exige a hipótese do inconsciente.” Como toma a direção das significações dramáticas e não a
do realismo, a psicologia concreta ultrapassaria a antítese entre consciente e inconsciente:

O sujeito sonhou: é só isso que lhe cabia fazer. Ele não conhece o sentido do
sonho; ele não precisa conhecê-lo enquanto sujeito puro e simples, pois esse
conhecimento cabe ao psicólogo; enfim, o conteúdo latente, isto é, o
conhecimento do sentido do sonho, não pode ser, antes da análise, nem
consciente e nem inconsciente: ele não existe, porque a ciência não resulta da
obra do cientista (POLITZER, 2004, p. 160, grifos do autor).

Cabe ao psicólogo conhecer o sentido do sonho (ou de qualquer outro ato em primeira
pessoa) na atualidade da análise, por meio do método da interpretação. Recordemos, psicólogo
este que se assemelha ao crítico do teatro, que interpreta o ato do sujeito como segmento do
drama individual (POLITZER, 2004, p. 92). Está certo que o filósofo não se propõe a responder
pelas consequências do abandono da hipótese do inconsciente pela psicanálise – isso seria
“tarefa para os técnicos” (POLITZER, 2004, p. 132). No entanto, não é possível deixar de notar
as perguntas que despontam dessa tentativa de preservar a opacidade do drama, sem recorrer
ao inconsciente. Mais uma vez, o diagnóstico de Silveira se mostra bastante preciso:

O enigma que Politzer entrega ao leitor é, então, algo como: de que maneira
certas dimensões da experiência podem ser simultaneamente concretas e
opacas? Ao se insistir na necessidade da interpretação, na existência de
significações íntimas e de experiências secretas e, simultaneamente, na
eliminação da distância entre real e aparência, pari passu, tornar-se-ia preciso
dizer por que o fato psicológico se afastou da vida concreta – por que, afinal,
o fato psicológico precisa ser interpretado e ainda como seria possível uma
interpretação que mantivesse seu resultado no mesmo nível e no mesmo
território daquilo que se oferece à interpretação (já que o fato psicológico deve
ser homogêneo ao “eu”). Politzer, nesse sentido, diz somente que “interpretar
significa apenas ligar o fato psicológico à vida concreta do indivíduo”,
quando tal alegação não parece poder passar sem que se diga, previamente,
que o fato psicológico se desligou da vida concreta e por que o fez.
(SILVEIRA, 2015, p. 389)

Tais reflexões da autora interessam na medida em que levantam questões que


Politzer deixa em aberto para não se comprometer com a metafísica da psicologia clássica,

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mas que Freud tenta responder por meio de noções fundamentais como a de conflito psíquico:
os fatos psicológicos com os quais a psicanálise trabalha são, em maior ou menor grau,
desconhecidos pelo sujeito ao qual se ligam e, por conta disso, precisam ser interpretados; esse
desconhecimento se justifica, por sua vez, pela atuação de um conflito psíquico entre exigências
que se opõem entre si, aquelas que podem ser assumidas pelo indivíduo e aquelas que ele quer
sufocar; o resultado são produtos híbridos, por assim dizer - as formações de compromisso,
como os sintomas e sonhos, que satisfazem parcialmente cada um dos lados da disputa. Se o
psicólogo interpreta, o faz na direção de rastrear o conflito psíquico que move os atos do
indivíduo e os influencia diretamente, fazendo com que sejam, muitas vezes, opacos para o
próprio indivíduo, por dizerem respeito a uma “maneira de ser” que ele não pode assumir sem
que haja uma contradição. Mais uma vez, nos deparamos com a centralidade desta noção e com
o fato de que Politzer parece não levar em consideração a dimensão que ela ocupa no
pensamento de Freud.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos retalhos que foram sendo alinhavados neste ensaio, é chegado o momento
de colocar um ponto final. Como era previsto, uma das razões pelas quais a fecundidade da
leitura de Politzer permanece viva é sua capacidade de iluminar pontos da psicanálise de Freud.
Analisar a explicação concreta do sonho, como criação da dialética individual, e os
desdobramentos disso, permitiu que o conflito psíquico ganhasse ainda mais nitidez na
explicação freudiana, como um dos alicerces sobre o qual se ergue o edifício todo. Pelo menos
é esse o jogo de luzes que espero ter exposto, com a apreciação do conflito nos primórdios da
psicanálise, a subsequente apresentação dos pontos-chave da Crítica… e a incidência da
objeção de Laplanche. Se a relevância e a qualidade dos argumentos de Politzer são
indubitáveis, a pertinência e o valor da réplica de Laplanche também não devem ser
subestimados, justamente porque apontam para o conflito como a espinha dorsal que faz com
que a psicanálise se mantenha em pé – ou ainda, como a assinatura que faz com que seja possível
reconhecê-la como método de tratamento e de investigação.
Talvez não seja, na verdade, um ponto final, mas reticências, já que uma multiplicidade
de fios poderia ser puxada a partir do percurso aqui traçado. Um deles poderia ser a discussão
sobre a via escolhida por Laplanche para sustentar o conflito psíquico na psicanálise – a da
afirmação do realismo do inconsciente. Ele defende a “materialidade” do inconsciente, sua

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“existência concreta, tangível”, não apenas enquanto lei ou processo, na medida em que a “a
noção de conflito obriga a conceber instâncias que já estão ambas situadas, num mesmo terreno;
ela pressupõe que sejam concretizadas, materializadas, as forças que vão se combinar”
(LAPLANCHE, 1992, p. 38). Ponto de vista totalmente contrário ao de Politzer, certamente,
que levaria às tantas questões envolvidas na discussão sobre as leituras realistas e antirrealistas
da metapsicologia freudiana, conforme mostra Simanke (2009).
Ou ainda seria possível questionar as condições de possibilidade da interpretação de
Politzer. Talvez o fato de o filósofo ter deixado as neuroses em um plano bastante secundário e
tomado o sonho como paradigma tenha sido a abertura para o enfraquecimento da noção de
conflito psíquico, uma vez que situar este no modelo do sonho parece requerer que não se perca
de vista sua analogia com os sintomas, ou pelo menos que a proximidade entre os dois seja
visivelmente reconhecida, como o faz Freud em vários momentos da Interpretação dos sonhos.
Que perguntas como estas – e tantas outras que podem ter surgido no leitor -, possam
continuar fazendo a investigação avançar, afinal é com cada uma delas que se compõe a história
desse campo tão fecundo que se chama a filosofia da psicanálise.

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Volume 06, Número 10, Ano 2021

Recebido em:16/05/2021
Aprovado em: 11/06/2021
Publicado em: 15/07/2021

PRAZER E FELICIDADE EM FREUD E EM MILL

PLEASURE AND HAPPINESS IN FREUD AND MILL

Marcelo Galletti Ferretti1


([email protected])

Resumo: Este artigo busca retomar brevemente as concepções de prazer e de felicidade nutridas por
John Stuart Mill e por Sigmund Freud, a fim de sopesar a suposta herança milliana das reflexões
freudianas a esse respeito. Para tanto, recupera-se brevemente as concepções de prazer e de felicidade
avançadas por Stuart Mill, retoma-se as três principais conceituações do princípio do prazer e da
felicidade feitas na obra freudiana e, por fim, compara-se as duas posições. O artigo conclui que tais
conceituações parecem ter sido, antes, informadas pelos projetos de psicologia evolucionários ensaiados
no século XIX, na esteira dos quais elas próprias se inserem, bem como deriva algumas consequências
que levam a alguns questionamentos tanto dos pressupostos ético-políticos de Mill quanto de parte do
que sustenta o neoliberalismo hoje.

Palavras-chave: Freud. Stuart Mill. Prazer. Felicidade. Utilitarismo.

Abstract: This article aims to briefly resume John Stuart Mill’s and Sigmund Freud’s concepts of
pleasure and happiness in order to ascertain the supposed Millian inheritance of Freudian reflections in
this regard. To do so, it recovers Stuart Mill's conception of pleasure and happiness, it takes up the three
main concepts of the pleasure principle and happiness made in Freud's work, and finally, it compares
the two author’s positions. The article concludes that such conceptualizations seem to have been
informed by the evolutionary psychology projects of the 19th century, in the wake of which Freud’s is
inserted. It also derives some consequences that lead to some questions both of the ethical-political
assumptions of Mill as much as part of what supports neoliberalism today.

Keywords: Freud. Stuart Mill. Pleasure. Happiness. Utilitarianism.

INTRODUÇÃO

O empirismo britânico figura entre as mais importantes fontes filosóficas que deram
origem à psicanálise, embora tenha recebido muito pouco destaque na literatura de comentário
psicanalítica até então. Siegfried Bernfeld, pioneiro na introdução do rigor ao estudo da história
da psicanálise (SIMANKE & CAROPRESO, 2016), já indicava, pouco depois do término da

1
Professor Doutor em Filosofia na Fundação Getúlio Vargas – Escola de Administração de Empresas de São
Paulo (FGC-EAESP).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2189451077651921.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4967-9352.

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Segunda Guerra, que o “interessante tópico” da influência da filosofia britânica sobre Freud, e
a de John Stuart Mill nomeadamente, mereceria “um estudo em separado” (BERNFELD, 1949,
p. 193). Na década seguinte, Watson (1958) fez notar a influência dos utilitaristas na
conceituação dos “princípios de dor-prazer-realidade” (p. 327) psicanalíticos a partir do resgate
das traduções de textos de Stuart Mill feitas por Freud. Tal vínculo, porém, permaneceu
praticamente inexplorado até o início dos anos 2000, quando autores como Molnar (1999) e
Ricaud (1999) retomaram a questão sob um enfoque histórico, e estudiosos como Gabbi Jr.
(2003) e Honda (2019) a exploraram sob um enfoque epistemológico e metodológico.
Apesar da escassez de estudos sobre o tema, estes dois grandes trabalhos nacionais
atestaram de forma robusta a importância do empirismo britânico sobre a metapsicologia e a
metodologia de Freud, que teve contato tanto direto quanto indireto, mediante autores como
Herbart, Helmholtz e Brentano, com as ideias de Stuart Mill. Ao passo que Gabbi Jr. (2003) se
deteve no manuscrito freudiano Projeto de uma Psicologia a fim de mostrar a análise
psicológica freudiana emprestada de Mill, Honda (2019) – cuja pesquisa se deu quase vinte
anos antes de sua publicação, na forma de tese de doutorado em 2002 – apresentou um amplo
panorama das ressonâncias da filosofia de Mill no percurso inicial de Freud em seus escritos
dos anos 1880 e 1890, sobretudo no que diz respeito às noções de causalidade e de
representação, às prescrições metodológicas e às hipóteses funcionais.
Todavia, essas investigações deixaram por fazer o estatuto da relação da psicanálise,
não com a teoria do conhecimento ou a psicologia de Stuart Mill, mas sim com a parte que este
mais prezava de sua obra e que acabou por se tornar a mais conhecida dela: as contribuições à
ética e à filosofia política. Ora, é de Stuart Mill o opúsculo que se tornou a obra emblemática
do utilitarismo e um dos três textos mais lidos e discutidos (juntamente com Ética a Nicômaco,
de Aristóteles, e Fundamentação da metafísica dos costumes, de Kant) de toda a filosofia moral
(CRISP, 1997). Além disso, como atesta Fumerton (2009), não apenas “é sem dúvida verdade”
que esse filósofo se tornou mais conhecido “pelas suas perspectivas em filosofia ética e política
do que em epistemologia e metafísica” (p. 273), como ainda se deve frisar que ele “estava
obviamente interessado sobretudo na teorização ética” (p. 27). Dessa forma, se a relação entre
esse filósofo britânico e Freud possui tantos pontos de contato como mostram os autores
destacados acima, parece natural se perguntar pelo vínculo do criador da psicanálise com essa
porção mais célebre e valorizada da filosofia de Mill.
Desta forma, este artigo pretende iniciar a investigação dessa relação não explorada
indagando o liame entre a teoria freudiana e o utilitarismo milliano no que se refere à
questão do prazer. Tal indagação praticamente se impõe quando nos lembramos de um dos

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conceitos mais importantes daquela teoria, o de princípio do prazer: estaríamos, de fato, diante
de um atestado do utilitarismo de Freud? Teria o princípio do prazer um parentesco não
reconhecido, por seu autor e pela maioria de seus estudiosos, com o princípio da utilidade – isto
é, aquele segundo o qual as ações corretas são as que produzem mais prazer ou felicidade para
a maioria, visto que, naturalmente, os seres humanos buscam o prazer e fogem da dor?
Perguntas que são reforçadas quando lemos o subtítulo da obra de Gabbi Jr. (2003): “as origens
utilitaristas da psicanálise”. De fato, mais do que o subtítulo, advoga-se ali que Freud teria
defendido um “naturalismo ético” pautado pelo “princípio do hedonismo na versão de Stuart
Mill, ou seja, [n]a busca de prazer e dos objetos que proporcionam prazer e [n]a esquiva da dor
e dos objetos que a causam” (GABBI JR., 2003, p. 54); que, enfim, o “hedonismo psicológico”
de Freud indicaria “o solo filosófico em que as suas especulações são propostas, ou seja, o
utilitarismo” (p. 56). Porém, não encontramos nessa obra qualquer consideração mais detida
sobre a relação entre Freud e a ética utilitarista de Mill – o que nos pareceria extremamente
necessário para sustentar tais afirmações. Da mesma forma, não a achamos na obra de Honda
(2019) e nem nas dos demais autores referidos acima.
Ainda, deve-se lembrar que, ao remontar à concepção negativa do prazer presente na
obra freudiana – isto é, conforme veremos, antes a fuga do desprazer que a busca do prazer –,
Monzani (1989, p. 326) indicou que “uma investigação mais acurada dos pontos de
convergência e divergência entre as concepções de Freud [...] e aquelas professadas pelos
‘hedonistas’ gregos (sobretudo Epicuro) talvez se revelasse frutuosa sob alguns ângulos”.
Frutuosa porque ao mesmo tempo que distante do hedonismo corrente, tal concepção tem uma
longa história, o que justifica um estudo sobre as consonâncias e dissonâncias das ideias de
Freud com a referida concepção. Porém, os indícios biográficos e textuais relacionando Stuart
Mill ao fundador da psicanálise parecem nos oferecer uma via de acesso mais explícita ao
exame da posição da psicanálise ante a tradição hedonista. Ao mesmo tempo, partir da
comparação com o utilitarismo permite que se possa estender, em grau a ser determinado, as
reflexões à tradição epicurista, porquanto o próprio Mill (1863/2003) e comentadores como
Scarre (1994) e Rosen (2003) salientaram as dívidas do hedonismo utilitarista para com o
epicurismo.
Por fim, começar pelo paralelo com Stuart Mill tem uma outra razão que poderia ser
considerada mais urgente. Como mostram Halévy (1949) e Laval (2007), retomando a via
aberta por Hegel e promovendo uma detalhada genealogia do homo economicus, deve-se ao
utilitarismo um giro antropológico crucial na modernidade ocidental: o advento da
concepção do conjunto das relações humanas – e não apenas as que implicam trocas

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econômicas – como um comércio pautado pelo cálculo de prazeres e pela demanda de


felicidade. Tal concepção, em seguida radicalizada pela “escola marginalista” de economia e
pelos arquitetos do neoliberalismo, conforme revelaram Franco et al (2020), deu origem à visão
neoliberal de sujeito, a qual patrocina o gerenciamento de práticas de mal-estar que extraem
mais trabalho dos indivíduos, gerando o enorme sofrimento e a profusão de formas de
adoecimento mental que testemunhamos hoje. Assim, inquirir qual seria a relação entre Freud
e a vertente da filosofia moral que teve parte – embora apresente substanciais diferenças
relativamente à visão neoliberal – na construção de uma visão antropológica cuja radicalização
esgarça o laço social hoje2 mostra-se indispensável, envolvendo um problema ético-político
premente. Lacan (1948/1998, p. 124) alertou para o peso da “concepção utilitarista do homem”
no “isolamento anímico” verificado em nosso tempo e, por conseguinte, no mal-estar
contemporâneo, o que levou o autor a afastar radicalmente a psicanálise de tal concepção. Cabe
ainda, contudo, retornar a Freud a fim de verificar qual é a medida dessa distância de fato.
Em busca de respostas a esses questionamentos, este artigo começa por recuperar
brevemente as concepções de prazer e de felicidade de Stuart Mill. Em seguida, retoma as três
principais conceituações do princípio do prazer na obra freudiana – presentes no manuscrito
Projeto de psicologia, no artigo Formulações sobre os dois princípios do funcionamento
psíquico e na obra Além do princípio do prazer e, muito brevemente, as considerações de Freud
acerca da felicidade em Mal-estar na civilização. Por fim, o artigo compara essas concepções
freudianas com as do utilitarista clássico visando a indicação de distinções nos planos ético e
político. Espera-se que, assim, possa-se aliar o trabalho de cunho epistemológico, bem
desenvolvido pelas investigações em filosofia da psicanálise, com a reflexão de cunho ético-
político, pouco frequente em tais investigações.

1 A CONCEPÇÃO POSITIVA DO PRAZER E A FELICIDADE EM STUART MILL

O conceito de prazer admitido por Stuart Mill é objeto de interminável exame e


controvérsia, como ressaltam os estudiosos de sua obra – tais quais Crisp (1997), Rosen (2003)
e Donner (2009), para ficarmos com uma pequena amostra de posições divergentes sobre a
questão. Desse modo, não se pode esperar – e nem se pretende – que as considerações tecidas

2
Não apenas “dilacerado”, como observou Antunes (2020, p. 19), como também “pautado pela letalidade”
desde a recente conjugação diabólica, e ímpar no Brasil, da extrema precarização do trabalho com o caos
político-sanitário.

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a seguir encampem toda a complexidade revelada por esse longo debate. O que se busca aqui é
recuperar apenas os traços desse conceito necessários à discussão que envolve a conceituação
freudiana do prazer e da felicidade. Tais traços podem ser identificados numa célebre passagem
do segundo capítulo da obra maior do utilitarismo clássico:

O credo que aceita como fundamento da moralidade a Utilidade, ou o


Princípio da Maior Felicidade, sustenta que as ações estão certas na medida
em que tendem a promover felicidade e erradas na medida em que tendem a
produzir o reverso da felicidade. Por felicidade, entende-se prazer ou ausência
de dor; por infelicidade, dor e a privação do prazer. Para se dar uma visão mais
clara do padrão moral estabelecido por essa teoria, é necessário dizer muito
mais – em particular, que coisas são incluídas nas ideias de dor e prazer e em
que medida isso ainda é uma questão aberta. Porém, essas explicações
suplementares não afetam a teoria da vida em que a presente teoria se funda –
nomeadamente, em que o prazer e livrar-se da dor são os únicos fins
desejáveis; e em que todas as coisas desejáveis [...] o são ou pelo prazer
inerente a elas ou por serem um meio de promoção de prazer e de prevenção
da dor (MILL, 1863/2003, p. 186)

Esse excerto apresenta o cerne da posição de Mill acerca do prazer e do princípio central
da ética utilitarista na obra em questão. Apesar de indicar que a ideia de prazer ainda não está
consolidada (“uma questão aberta”) – e, de fato, quem segue a construção dela, como Kuenzle
(2018), nota que Mill jamais nos oferecerá a clareza esperada –, o trecho nos fornece elementos
axiais para a discussão pretendida aqui. Nele podem ser identificados dois pressupostos, como
mostrou Crisp (1997, p. 26): aquele segundo o qual a felicidade e o bem-estar consistem em
experiências prazerosas e o de que estas assim o são por si mesmas, e não em razão de qualquer
outra coisa – por exemplo, por vontade divina ou porque elas satisfazem outros desejos das
pessoas. Crisp (1997) chama essa posição de “hedonismo total”, mas a denominação dada por
Luper (2019) é mais adequada aos fins deste artigo – pois é por meio dela que se poderá
enxergar mais claramente a diferença relativamente à concepção freudiana: “hedonismo
positivo”. Noutros termos, trata-se de promover uma equivalência entre, de um lado, o bem, a
felicidade e o prazer e, de outro, o mal, a infelicidade e o desprazer.
O excerto ressalta, repetidas vezes, que se entende a felicidade tanto como prazer quanto
ausência de dor, mas é preciso que nos aprofundemos nesse aspecto. De fato, seguindo a
argumentação desenvolvida ao longo do capítulo em questão, constatamos que Mill defende
uma concepção igualmente positiva acerca da felicidade. Ele deixa claro que se deve entendê-
la como, “não uma vida de êxtase, mas uma existência feita de poucas e transitórias dores,
muitos e variados prazeres [...]” (MILL, 1863/2003, p. 191). Noutros termos, que ela não
se reduz a uma vida de prazer completamente, mas que há o predomínio deste. Além disso,

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o decurso do capítulo mostra a opinião do autor de que os grandes desprazeres enfrentados ao


longo da vida podem e poderão, com o tempo, ser mitigados. Tal pressuposto se revela de forma
clara nesta afirmação conclusiva: “Em suma, todas as grandes fontes de sofrimento humano
são, em larga medida, e muitas delas quase totalmente, subjugáveis pelo zelo e esforço
humanos” (p. 193). Ainda que frise se tratar de obra lenta, Mill mostra que as fontes da
infelicidade humana – o egoísmo, a “falta da nobreza de caráter”, a pobreza – serão eliminadas
conforme opere o progresso da civilização. Daí por que ele julga “um exagero” (p. 191) a
admissão da impossibilidade da felicidade, reputando a infelicidade à “miserável educação
atual e às miseráveis estruturas sociais” (p. 191). Assim, conquanto o filósofo britânico enuncie
a equivalência, de jure, entre prazer e ausência de dor, o desenvolvimento de seu argumento ao
longo do segundo capítulo de Utilitarismo indica sua aposta, de facto, em que as fontes de
infelicidade são mitigáveis. Noutros termos, a felicidade é possível e deverá ser atingida pela
humanidade à medida que esta progride.
Essa aposta nas virtudes humanas e no progresso social é um dos traços distintivos da
teoria de Mill relativamente à de quem o guiou em matéria de filosofia moral: Jeremy Bentham.
Como mostrou Heydt (2006), as críticas ao utilitarismo geraram profunda ressonância em Mill,
que tratou de respondê-las mediante a construção de uma visão enriquecida da interioridade
amparada na ênfase do caráter e da educação. Parte dessa visão é apresentada justamente no
capítulo sobre o qual ora nos detemos, com o intuito de retorquir às censuras do escritor escocês
Thomas Carlyle especialmente, que reputava a utilitarismo como uma filosofia moral mais
adequada a porcos do que a humanos. Tal censura mirava o cálculo felicífico proposto por
Bentham, o qual repousava sobre a consideração do aspecto tão somente quantitativo dos
prazeres – isto é, sua soma aritmética. Noutros termos, aos olhos de Bentham, uma diversão
banal poderia ser vista como superior à contemplação da mais refinada forma de arte se o prazer
gerado por aquela fosse numericamente superior ao produzido por esta. A réplica de Mill
consistiu em avançar a tese da distinção qualitativa entre os prazeres, divididos entre superiores
e inferiores, e numa concepção da felicidade que deve muito à ética aristotélica, como mostrou
Donner (2009).
Mill se distanciou de Bentham e dos demais Radicais (como eram denominados os
utilitaristas dessa primeira geração, em razão de fazerem parte do movimento chamado de
Radicalismo Filosófico), por conseguinte, também no que diz respeito à própria concepção de
prazer. De fato, a referida réplica trouxe bastante elasticidade ao hedonismo milliano, o qual,
para alguns, desde Henry Sidgwick, sequer poderia ser chamado de hedonismo
efetivamente (BRINK, 2018). Trata-se de outro objeto de discórdia entre os estudiosos da

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obra de Mill, mas acompanharemos aqui a posição mais comedida de Brink (2018) a esse
respeito. Vimos no trecho destacado o filósofo afirmar que as coisas prazerosas “o são ou pelo
prazer inerente a elas ou por serem um meio de promoção de prazer e de prevenção da dor”.
Esse trecho já sinaliza a ultrapassagem das fronteiras do hedonismo mais tradicional, a qual de
fato ocorre com a divisão dos prazeres em inferiores e superiores anunciada em seguida. A
defesa de Mill da primazia dos últimos, embora clara no que diz respeito ao fato de eles serem
causados pelo exercício de nossas capacidades mais altas, “torna obscuro como um hedonista
iria explicar o fato de os prazeres superiores serem intrinsecamente mais prazerosos” (BRINK,
2018). Mill chega a afirmar que os juízes competentes (figura inventada pelo autor para
designar aqueles que já experimentaram os prazeres em causa e podem decidir qual deles é mais
elevado) optariam pelo prazer superior “mesmo sabendo que é acompanhado de maior
descontentamento” (MILL, 1863/2003, p. 187). Além disso, no quarto capítulo da obra em
questão, ao considerar que há casos, como o de se enamorar pela fama ou pelo poder, nos quais
“o que nós algum dia desejamos como um instrumento da conquista do prazer, tornam-se
desejáveis por si mesmos” (p. 212), Mill admite que podemos seguir com coisas que nos causam
dor. Isso se daria em razão da “forte relação de associação gerada entre eles [fama e poder] e
os nossos objetos de desejo” (p. 212).
Este último aspecto nos conduz, em contrapartida, a um ponto em comum – e central –
entre Mill e os Radicais: ancorar a ética numa psicologia. Ao que tudo indica, Mill se manteve
fiel às diretrizes gerais do projeto estabelecido por Bentham e seus seguidores, tal qual o
evidenciou o estudo clássico de Élie Halévy – isto é, o projeto “perquirido em comum, desde o
início do século [XVIII], por todos os moralistas e psicólogos ingleses – a fundação de uma
moral científica numa psicologia científica” (HALÉVY, 1948, p. 34, grifos meus). Projeto que,
efetivamente, revela-se desde a abertura de Uma introdução aos princípios da moral e da
legislação: “A natureza dispôs o gênero humano sob o domínio de dois senhores soberanos,
dor e prazer. Somente eles apontam o que devemos [ought to] fazer, assim como o que faremos
[shall do]” (BENTHAM, 1780/2007, p. 1, grifos do autor). Noutros termos, da constatação
psicológica da sujeição do ser humano ao prazer e à dor, poder-se-ia derivar a necessidade de
uma ética harmonizada com esse princípio natural. Ora, seria irracional que esta não o fizesse
– razão que autorizaria a passagem do ser (“shall”) ao dever ser (“ought to”). Mill não só reteve
esse movimento de Bentham – atualizado com o amparo da psicologia associacionista proposta
por seu pai, James Mill, e pela busca das leis de formação do caráter das pessoas (KUENZLE,
2018) – como também a crítica ao intuicionismo, uma das forças reacionárias de então, a

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qual defendia nossa capacidade de intuir verdades morais e obstava as reformas sociais exigidas
pelos utilitaristas (ANDERSON, 1991).
Todavia, tal projeto deu origem a empreitadas muito diferentes quando se compararam
os projetos éticos dos Radicais e de Mill. Como mostrou Halévy (1948, p. 477-478, grifos
meus), os Radicais inauguraram uma “moralidade plebeia, ou ainda burguesa, divisada por
laboriosos artesãos e astutos comerciantes”, na qual “o egoísmo aparece como condição
necessária a todas as virtudes sociais”, e que, por isso, poderia ser considerada uma “psicologia
econômica na forma de imperativo”. Por outro lado, como revelou Halliday (2004) de forma
cristalina, o “utilitarismo romântico” de Mill visava a combater essa perspectiva ética mercantil,
a qual então se tornava moda, promovendo as modificações identificadas acima a fim de
“melhor se adequar a uma filosofia do aprimoramento” (HALLIDAY, 2004, p. 38, grifos
meus). Tendo essa filosofia como norte, Mill advogou uma “ética do autodesenvolvimento”,
amparada numa “lógica da cultura pessoal [self-culture]” (p. 45), que o distanciou enormemente
de Bentham e dos Radicais. O subtexto dessa ética era o imperativo do apuro de si. Daí os
grandes ajustes e enriquecimentos promovidos na noção de prazer herdada dos Radicais.

2 O NÚCLEO NEGATIVO DO HEDONISMO FREUDIANO

Quem se debruça sobre a história da formulação do princípio que rege o modo de


funcionamento do inconsciente segundo Freud, não pode deixar de se surpreender quando nota
que ele foi enunciado da maneira como ficou conhecido – princípio do prazer – um tanto
tardiamente: apenas em 1911, quer dizer, mais de uma década depois do início da psicanálise e
do advento da obra magna freudiana, A interpretação dos sonhos. Desde então, ele havia sido
denominado de maneira negativa, isto é, como “princípio do desprazer”, como se pode ver
repetidas vezes na seção E do sétimo capítulo de tal obra (FREUD, 1900/2019, pp. 647-668).
Embora essa denominação tenha dado lugar àquela positiva – de fato, um nome mais curto,
como veremos –, isso não implicou substituição de uma concepção negativa por outra positiva
do prazer. Pois o núcleo do hedonismo freudiano sempre se manteve negativo.
Ora, isso se deve, em larga medida, às características do próprio aparelho psíquico
(Seelenapparat), estabelecidas por Freud no seminal Projeto de psicologia. Na oitava seção da
primeira parte desse manuscrito, Freud destaca “uma tendência da vida psíquica para evitar
desprazer” (FREUD, 1895/2003, p. 190, grifos do autor), já que tal aparelho seria,
basicamente, uma estrutura de escoamento de energia a fim de mantê-la num nível constante

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e o suficiente para a manutenção da vida. Dessa forma, “a arquitetura do sistema nervoso


serviria ao afastamento; a função, à eliminação de Qἠ [quantidade de energia] dos neurônios”
(p. 185). Tais características demandariam um enfoque do desprazer como aumento de tensão
e o prazer, como “sensação de eliminação” (pp. 190-191). Há, portanto, algo na concepção
mesma de aparelho psíquico de Freud, sobre a qual se assenta a teoria psicanalítica, que faz o
prazer ser concebido em sua forma negativa fundamentalmente, isto é, como fuga do desprazer
decorrente do aumento de tensão ou pressão.
É verdade que o criador da psicanálise deu ênfases diversas em suas considerações sobre
o prazer. Schuster (2016) mostra como a análise de fenômenos como as piadas, a sublimação,
a literatura e, sobretudo, a sexualidade demonstram um enfoque que transcende aquele
estritamente negativo. Este autor se detém sobre ao menos quatro acepções de prazer nos Três
ensaios sobre a sexualidade, o que nos mostra como algumas delas deixam entrever matizes
positivos. Com efeito, a noção mesma de Lust (prazer) em Freud guarda grande ambiguidade,
pois designa tanto o desejo, concebido como um aumento da tensão sexual, quanto sua
satisfação (SCHUSTER, 2016, p. 100). Dessa forma, deve-se constatar que as considerações
de Freud a esse respeito têm nuances e variações (p. 99).
Todavia, como interessa aqui, antes, chamar atenção para o núcleo negativo do
hedonismo freudiano, o qual se materializa nas considerações metapsicológicas sobre o
aparelho psíquico e sobre o princípio do prazer, devemos nos centrar sobre as abordagens axiais
deste, sendo a primeira delas a que surge em Projeto de psicologia, conforme se destacou acima.
Ainda que nesse manuscrito não se enuncie um princípio do desprazer estritamente (ao invés
disso, Freud designa um “princípio de inércia”) – o que, por outro lado, de fato ocorre de forma
cabal na seção E do capítulo sete de A interpretação dos sonhos –, Projeto de psicologia
apresenta todos os fundamentos da primeira conceituação. Como mostraram Simanke e
Caropreso (2006), a tendência de descarga do aparelho psíquico, introduzida no manuscrito de
1895, é retratada praticamente da mesma forma na seção C do sétimo capítulo do texto sobre
os sonhos.
Por outro lado, esses autores mostram que uma mudança importante ocorre de um texto
para outro, a qual, por sua vez, parece se relacionar ao fato de Freud não ter repisado o núcleo
negativo de seu hedonismo nos anos 1900. Quando cotejam os dois textos, eles concluem que
a tendência primária do funcionamento psíquico de reavivar recordações desprazerosas
desaparece em A interpretação dos sonhos (SIMANKE & CAROPRESO, 2006, p. 215). Essa
tendência havia sido identificada em Projeto de psicologia com a análise da problemática
da dor – crucial, conforme anuncia Freud, pois nos revelaria “os protótipos normais para o

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patológico” (FREUD, 1895/2003, p. 185), isto é, a chave para compreensão do cerne de


fenômenos patológicos com as neuroses. Numa palavra, a análise do fenômeno da dor física
serviria de modelo para a compreensão da dor psíquica ou do trauma, vinculado ao que o autor
denomina “vivência dolorosa”. Esta consistiria, fundamentalmente, no aumento, sentido como
desprazer, de uma quantidade de energia no aparelho psíquico, na necessidade de eliminação
desta e na tentativa de impedir que a recordação dolorosa fosse reavivada (ou, nos termos do
texto, que a representação do “objeto hostil” fosse “ocupada”), o que, porém, não seria possível
de início – apenas mediante repetidas tentativas. Dessa forma, o retorno de tais recordações se
revelaria uma tendência originária, fato que não é admitido, contudo, em A interpretação dos
sonhos. Como mostram os autores, a constatação do liame entre repressão e fantasias sexuais
infantis “retira a vivência de dor descrita no Projeto da sua condição de modelo normal do
trauma neurótico” (SIMANKE & CAROPRESO, 2006, p. 222), colocando, no lugar deste, o
desejo e a repressão. Ora, foi justamente nesse período que Freud passou a explorar os matizes
indicados por Schuster (2016) ao analisar fenômenos como as piadas e a sexualidade infantil.
A segunda grande abordagem do princípio do prazer ocorreu em 1911, com a publicação
do artigo Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico. Nele ocorre uma
tentativa de sistematização das hipóteses metapsicológicas que ora nos concernem – tentativa
bem caracterizada pela expressão que o próprio autor emprega para definir sua empreitada: “[...]
pequeno ensaio, mais preparatório do que conclusivo” (FREUD, 1911a/2010, p. 120). A
primeira novidade que o ensaio apresenta é a do batismo do princípio tal como o conhecemos:
“É fácil distinguir a tendência principal a que estes processos primários obedecem; ela é
designada como princípio do prazer-desprazer (ou, mais sinteticamente, princípio do prazer)”
(p. 111, grifos meus). Conforme anunciamos acima, trata-se de um nome mais curto, mas ambas
as suas faces são ressaltadas: “Tais processos se empenham em ganhar prazer; daqueles
processos que podem suscitar desprazer a atividade psíquica se retira (repressão)” (p. 111).
Como se pode ver, o modelo para a compreensão do patológico ainda é o do desejo e o da
repressão, presente em A interpretação dos sonhos – texto cujas “linhas de pensamento” (p.
111), de resto, Freud afirma estar apenas retomando. Porém, não se pode deixar de notar que o
caráter primitivo, tanto do ponto ontogenético como filogenético, do processo primário é
destacado com mais evidência: “Nós os vemos [os processos inconscientes] como os mais
antigos, como primários, vestígios de uma fase de desenvolvimento [Entwicklungsphase]3 em
que constituíam a única espécie de processos anímicos” (p. 111, grifos meus). Deve-se observar

3
A edição em português deste artigo está sendo cotejada com a do original alemão consultada em FREUD,
1911b/1975.

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que a expressão “Entwicklungsphase” pode ser vertida tanto como “fase desenvolvimento”
quando “estágio de evolução”. Trata-se de um aspecto importante de diferenciação
relativamente à psicologia de Mill, conforme veremos a seguir.
A segunda novidade a qual nos interessa destacar aqui está contida na forma como Freud
caracteriza a distinção entre os princípios do prazer e da realidade: “Assim como o Eu-de-prazer
não pode senão desejar, trabalhar pela obtenção de prazer e evitar o desprazer, o Eu-realidade
necessita apenas buscar pela utilidade [Nutzen]4 e proteger-se dos danos” (p. 116, grifos do
autor). Ao final desse trecho, Freud anexa uma nota de rodapé em que se serve de uma passagem
da peça Homem e Super-Homem: uma comédia e uma filosofia, do dramaturgo irlandês George
Bernard Shaw: “A vantagem do Eu-realidade sobre o Eu-de-prazer foi muito bem expressa por
Bernard Shaw, com as seguintes palavras: [...] ‘Ser capaz de escolher a linha de maior
vantagem, em vez de ceder na direção de menor resistência’ [...]” (p. 116). Noutros termos, o
Eu-realidade teria maior grau de domínio sobre o meio, na medida em que poderia efetuar um
balanço entre opções de maior benefício. O fato de Shaw ter sido bastante influenciado pelo
utilitarismo de Mill (IRVINE, 1947) e de Freud empregar o termo utilidade, seguido por uma
nota em que se aborda a questão sob o aspecto da vantagem, poderia, à primeira vista, dar
indicações do “solo filosófico” utilitarista em que o criador da psicanálise estaria a se mover.
Todavia, um olhar mais cuidadoso sobre a natureza da discussão presente na peça de Shaw –
uma sátira da defesa de um impulso vital feita darwinismo social então em vigor nas terras
britânicas (SCHWARTZ, 2005) – nos mostra que o “solo filosófico” é outro.
Se somarmos essas duas indicações da reverberação de temas evolucionários – aos quais
Freud iria se lançar muito mais abertamente dentro em pouco, a partir de Totem e Tabu – nas
reflexões freudianas à investigação de Young (1970), a qual mostra como as considerações
sobre o prazer e o desprazer eram presença frequente nos vários esboços de psicologia
evolucionária do século XIX – com os quais, conforme ressalta Simanke (2007, p. 75), “o
Projeto... pôde perfeitamente ser posto em continuidade” – , torna-se difícil sustentar que
aquelas reflexões teriam sido herdadas de Mill especificamente. Pois foi a “teoria da evolução
que justificou a extensão do paradigma sensório-motor a todo sistema nervoso [...]” (YOUNG,
1970, p. 249), tendo dado origem, desde Herbert Spencer, a um “associacionismo
evolucionário” que inspirou os grandes projetos anglófilos de psicologia do século XIX.
Considerando esse panorama, não parece implausível enxergar, antes, as vantagens do “Eu-

4
A tradução foi ligeiramente modificada a fim de evidenciar que Freud emprega o substantivo abstrato
“utilidade” (FREUD, 1911b/ 1975, p. 20), e não o adjetivo “útil”, que aparece na versão em português.

210
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realidade” nos termos de valor à sobrevivência (sobretudo na medida em que Freud ressalta a
função de “proteger-se dos danos”).
A terceira grande abordagem do princípio do prazer, feita em Além do princípio do
prazer, fornece elementos determinantes para a discussão que ora nos interessa. Tendo isso em
vista, três aspectos fundamentais do opúsculo devem ser destacados, sendo o primeiro deles a
denominação clara da precedência do desprazer sobre o prazer. No parágrafo de abertura do
texto, Freud afirma acreditar que o princípio do prazer “é sempre incitado por uma tensão
desprazerosa” (FREUD, 1920/2010, p. 162, grifos meus). Com a “especulação extremada” (p.
84) feita no quarto capítulo do texto, em que o autor esboça a filogênese e a ontogênese do
aparelho psíquico, originado de uma espécie de vesícula protoplasmática – esboço já feito em
Projeto de psicologia –, notamos que tal precedência se refere tanto ao desenvolvimento quanto
à evolução de tal aparelho. Dessa forma, fica patente, como ressaltou Monzani (1989, p. 190),
que “o desprazer é o grande motor que aciona e desenvolve o aparelho psíquico, o grande mestre
[...]”. Com isso, segundo esse autor, pode-se retraçar uma linha de especulação filosófica que
une “os primeiros discípulos de Aristipo” ao criador da psicanálise: “Na verdade, desde os
gregos até Freud, o ocidente desenvolveu uma concepção negativa do prazer, mesmo entre seus
supostos arautos” (MONZANI, 1989, p. 223). No opúsculo em questão, essa concepção
negativa ganha contornos mais evidentes, pois, como mostraram Simanke e Caropreso (2006),
Freud retoma a hipótese da vivência dolorosa engendrada em Projeto de psicologia, o que
confere ao desprazer ainda mais espaço, no qual é desenvolvida a hipótese de uma atividade
psíquica regida pela compulsão à repetição.
O segundo aspecto a ser destacado se relaciona às referências em que Freud ancora suas
especulações. Ele faz o seguinte alerta acerca das fontes de sua empreitada, logo no segundo
parágrafo da obra:

Não é de nosso interesse investigar em que medida, estabelecendo o princípio


do prazer, nos aproximamos ou afiliamos a um sistema filosófico particular,
historicamente assentado. [...]. Por outro lado, com prazer manifestaríamos
gratidão a uma teoria filosófica ou psicológica que nos pudesse informar sobre
o significado das sensações de prazer e desprazer, que tão imperativamente
agem sobre nós. Mas, infelizmente, nada de útil nos é oferecido nesse ponto.
[...]. Decidimos relacionar prazer e desprazer com a quantidade de excitação
– não ligada de nenhuma maneira – existente na vida psíquica, de tal modo
que o desprazer corresponde a um aumento, e o prazer, a uma diminuição
dessa quantidade. (FREUD, 1920/2010, p. 163, grifos meus).

Assim, procura deixar claro não apenas seu desinteresse pela procura de suas fontes
filosóficas como também a inutilidade da filosofia na tarefa de elucidação da natureza do

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prazer e do desprazer. Ante essa constatação, Freud indica que a elucidação deve ser obtida
mediante o ponto de vista econômico da metapsicologia e, a fim de respaldá-lo, cita um dos
fundadores da psicologia experimental, o “pesquisador arguto” (p. 163) Gustav Theodore
Fechner. Noutros termos, ao invés de recorrer ao saber filosófico, Freud recorre à psicologia
experimental e, ainda, a um texto cujo motivo é um diálogo com a doutrina evolucionária: “a
afirmação de Fechner está no seu breve escrito Einige Ideen zur Schöpfungs-und
Entwicklungsgeschichte der Organismen [...]” (p. 163). O intento desse texto do psicólogo
alemão, cuja tradução seria algo como “Algumas ideias sobre a história da criação e a evolução
dos organismos”, foi revelado por Ellenberger (1970, p. 218): “Numa avaliação crítica da teoria
de Darwin da evolução das espécies, Fechner formulou seu ‘princípio da tendência à
estabilidade’, um princípio finalista defendido como complementar ao princípio causal”. Tem-
se mais uma evidência, portanto, de que as elaborações freudianas sobre o princípio do prazer
se fizeram na esteira das psicologias oitocentistas feitas em diálogo com a teoria da evolução.
O terceiro aspecto a ser destacado, por fim, é a articulação que essa obra apresenta entre
essa abordagem evolucionária e uma visão sobre a cultura. Ao final do capítulo quinto, após
desenvolver a ideia do caráter restaurador dos impulsos vitais, pavimentando, assim, o caminho
para o avanço da hipótese da pulsão de morte, Freud refuta a ideia, então bastante ventilada, de
um impulso vital rumo ao progresso:

Para muitos de nós pode ser difícil abandonar a crença de que no próprio
homem há um impulso para a perfeição, que o levou a seu atual nível de
realização intelectual e sublimação ética e do qual se esperaria que cuidasse
de seu desenvolvimento rumo ao super-homem. Ocorre que eu não acredito
em tal impulso interior e não vejo como poupar essa benevolente ilusão. A
evolução humana, até agora, não me parece necessitar de explicação diferente
daquela dos animais, e o que observamos de incansável ímpeto rumo à
perfeição, numa maioria de indivíduos, pode ser entendido como
consequência da repressão instintual em que se baseia o que há de mais
precioso na cultura humana. (FREUD, 1920/2010, pp. 209-210, grifos meus).

Mostrando a mesma descrença de Shaw, na peça referida acima, em relação a uma força
vital aperfeiçoadora, Freud reputa tal crença a mero logro. A teoria da evolução havia
conseguido promover a substituição da ideia de progresso pela de adaptação, tirando o ser
humano do pedestal da criação ao qual ele próprio havia se alçado. Nessa perspectiva, as mais
altas realizações humanas, como a ética e a cultura, nada mais seriam do que satisfações
substitutivas conquistadas sob os auspícios de mecanismos psíquicos (sublimação e repressão).
Vê-se, dessa forma, o grande papel que a doutrina evolucionária exerceu no movimento
freudiano de desmistificar o lugar da cultura.

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O destaque a esses aspectos, sobretudo o último, permite que compreendamos o parecer


freudiano sobre “programa de ser feliz” emitido em Mal-estar na civilização. Porquanto, é “o
programa do princípio do prazer que estabelece a finalidade da vida” (FREUD, 1930/2010, p.
30) – isto é, a felicidade –, não surpreende que tal programa seja considerado pelo criador da
psicanálise “irrealizável” (p. 40). Ora, se “aquilo a que chamamos ‘felicidade’ [...] vem da
satisfação repentina de necessidades altamente represadas”, então ela “por sua natureza é
possível apenas como fenômeno episódico” (pp. 30-31). Isso é tudo que nosso aparelho
psíquico – ou nossa “constituição” – permite. Todavia, Freud assevera que nem por isso
abandonamos os esforços para realizar essa nossa quimera. Cada um vai tentar alcançá-la, seja
visando à conquista do prazer ou à ausência de desprazer. A questão é que, para a psicanálise
freudiana, nesse “sentido moderado em que é admita como possível, a felicidade constitui um
problema da economia libidinal do indivíduo” (p. 40). Noutros termos, Freud considera a
felicidade não mais como uma tarefa ético-política, e sim como algo que depende da
constituição psíquica de cada pessoa.

3 A DISTÂNCIA ENTRE MILL E FREUD NO PLANO ÉTICO-POLÍTICO: BREVES


INDICAÇÕES

Este breve apanhado das concepções básicas desses dois autores acerca do prazer e da
felicidade nos forneceu a medida da distância entre eles a esse respeito. Ao passo que Mill
apresenta um enfoque positivo, defendendo, ao fim e ao cabo, que a felicidade é atingível por
meio do progresso social e do apuro de si, Freud construiu um enfoque negativo, o qual resultou
na defesa de que a felicidade, entendida como satisfação, está condicionada à maneira como
opera a economia libidinal de cada um. A distância entre as posições dos dois autores pode ser
ainda mais ampliada se atentarmos para suas consequências nos planos ético e político. Visto
que uma análise mais apurada destas requereria, no mínimo, um outro artigo, devemos nos
contentar, aqui, com indicações mais gerais.
No plano ético, a perspectiva de Freud lançaria sérias suspeitas à possibilidade de uma
ética do apuro de si como a de Mill. Como vimos, o primeiro reputa ilusória a ideia de um elã
de perfectibilidade, a qual, como mostrou Hill (1995, p. 179), ao lado do pressuposto da
liberdade, embasa a perspectiva de Mill: “[...] a zona da privacidade é justificada em parte
porque ela proporciona o céu ao delicado e nascente eu (self). A liberdade permite ao
indivíduo transformar-se no que ele é, a atingir seu potencial inerente”. Nada mais distante

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da perspectiva freudiana, a qual, aliás, começa por desmontar a suposta unidade desse Eu. Além
disso, ao considerar a ética do ponto de vista libidinal, Freud desmistifica a espécie de pureza
que Mill conferiu a ela recorrendo ao eudaimonismo aristotélico. Sob a perspectiva
psicanalítica, tanto a “nobreza de caráter”, quanto a falta dela, seriam não mais do que soluções
de compromisso. Por fim, a suposta identidade de interesses sobre a qual repousa a perspectiva
utilitarista, como mostrou Halévy (1948), também cairia por terra aos olhos da psicanálise, tanto
pelo destronamento do eu demonstrado desde o início da obra freudiana quanto pela revelação,
em sua fase madura, do caráter irreconciliável entre as satisfações plenas do indivíduo e as
exigências da cultura, como salientado em Mal-estar na civilização (FREUD, 1930/2010).
Já no plano político, a perspectiva freudiana, pelas mesmas razões expressas acima,
também encararia com profundo ceticismo a felicidade social prometida pelo liberalismo de
base utilitarista proposto por Mill. Esse ponto requereria uma análise mais detida dos traços de
tal liberalismo, mas, como nosso objetivo é a visada da distância que separa Mill de Freud,
parece suficiente retomar as indicações de Roazen (1999, p. 250) a esse respeito: “O
estilhaçamento das pressuposições racionalistas promovido por Freud é talvez o aspecto de seu
pensamento que teve maior efeito em nosso pensamento político”, pois “poderia ser lido como
a tradição liberal virando-se contra si mesma numa autocrítica”. Dessa forma, a positividade
das categorias políticas dessa tradição, como liberdade, felicidade, autodesenvolvimento, tão
bem representada na obra de Mill, seria questionada sob a perspectiva psicanalítica freudiana,
a qual oporia a tais categorias as noções de sobredeterminação, mal-estar e sintoma. Isso não
implica, todavia, que tal perspectiva esteja fadada a permanecer no nível da crítica estéril. Pois
seria perfeitamente possível pensar uma política nesses termos, como revelou Safatle (2018),
trazendo ao primeiro plano a negatividade da noção freudiana de Hilflosigkeit (desamparo).
A percepção da distância entre Mill e Freud nos planos em questão nos dá elementos
para questionar a visão antropológica sobre a qual nos referimos no início deste artigo. É
verdade que essa visão foi radicalizada por doutrinas (marginalista e neoliberal) as quais
guardam consideráveis diferenças relativamente à visão proposta por Mill, como mostram
Dardot e Laval (2014). Dessa forma, o “sujeito-empresa” não poderia ser derivado de uma
doutrina como a de a Mill, e tampouco a ética da competição, cujo fundamento egoísta extremo,
sem qualquer consideração do bem do maior número, mostra-se incompatível com o cerne da
perspectiva utilitarista. Todavia, a extração de mais trabalho hoje, efeito maior do
neoliberalismo, juntamente com o sofrimento e as patologias a ele vinculadas, é feita sobretudo
em nome das categorias positivas mencionadas acima, isto é, da liberdade, da felicidade e
do autodesenvolvimento. Tais são as ilusões que guiam a faina sem limites imposta pela

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corrosão progressiva das estruturas de amparo social ao redor do globo. Dessa forma, quando
comparada com uma perspectiva positiva como a de Mill, a perspectiva negativa de Freud pode
nos dar a medida da distância entre a bonança que essa visão antropológica promete e a miséria
que ela nos entrega de fato.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo buscou promover uma comparação entre as visões de Stuart Mill e Freud no
que tange ao prazer e à felicidade a fim de avaliar melhor a herança daquele sobre este.
Enquanto a psicologia e a metodologia de Mill indicam ter informado as reflexões freudianas
de fato, o mesmo não ocorre com a ética utilitarista do filósofo britânico. O hedonismo negativo
freudiano parece ter sido, antes, informado pelas psicologias evolucionárias ensaiadas no século
XIX, na esteira das quais ele próprio se insere. A derivação das consequências éticas e políticas
da extração de tal hedonismo indicou que, sobre as categorias positivas que informam as
reflexões de Mill nesses campos, como liberdade, felicidade e autodesenvolvimento, Freud
lançou fortes suspeitas, o que pode municiar o questionamento das (falsas) promessas de
plenitude da sociedade neoliberal. Dessa forma, o presente artigo intentou mostrar a
possibilidade de contribuição da reflexão em filosofia da psicanálise tanto no costumeiro plano
epistemológico quanto no bem mais raro plano ético-político.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

Recebido em:10/04/2021
Aprovado em: 19/06/2021
Publicado em: 15/07/2021

O MODELO HEURÍSTICO SINTÉTICO DAS REDES NEURAIS


uma intersecção entre metapsicologia e inteligência artificial

THE SYNTHETIC HEURISTIC MODEL OF NEURAL NETWORKS


an intersection between metapsychology and artificial intelligence

Fernando Alberto Pozetti Filho1


([email protected])

Resumo: Busca-se neste artigo especular sobre questões de natureza teórica e prática concernentes aos
artefatos artificiais capazes de construírem uma inteligência sintética e autônoma. Para tal investimento,
aponta-se que os modelos gerativos da engenharia de inteligência artificial (AI - machine learning)
possuem caminhos dialetizáveis entre a diferenciação, integração e temporalização sistêmica de seus
microelementos neurais. O advento desta expertise mostra uma nova lógica processual cuja força
conectiva incorpora partículas mínimas de informações (pixels, morfemas e matemas) dispostas em um
ambiente semi-aleatório e em conflito e fazendo com que, mesmo sob um índice de plena
indeterminação, surjam operações avançadas e sistemas criativos sem supervisão humana e sejam
também capazes de anunciar novidades teóricas. Para analisar tais constructos devemos resgatar os
investimentos especulativos da formação das arquiteturas psíquicas presentes nas teorias psicanalíticas
de Sigmund Freud e Jacques Lacan uma vez que estes compartilham da mesma orientação epistêmica.

Palavras-chave: Inteligência Artificial. Memória. Metapsicologia. Lógica dialética. Psicanálise.

Abstract: This aims to investigate questions of a theoretical and practical nature concerning artificial
artifacts capable of building synthetic and autonomous intelligence. For such investment, it is pointed
out that the generative models of artificial intelligence engineering (AI-machine learning) have
dialectical paths between the differentiation, integration and systemic temporalization of their neural
microelements. The advent of this expertise shows a new procedural logic whose connective force
incorporates minimal particles of information (pixels, morphemes and mathematics) arranged in a semi-
random and conflicting environment, making even advanced operations appear under an indeterminate
index. and responsible systems without human supervision, capable, inclusive, of announcing theoretical
news. To analyze such constructs, we must rescue speculative investments in the formation of psychic
architectures present in the psychoanalytic theories of Sigmund Freud and Jacques Lacan, since they
share the same epistemic orientation.

Keywords: Artificial Intelligence. Memory. Metapsychology. Dialectical logic. Psychoanalysis.

INTRODUÇÃO

1
Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6608223590421910.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4814-536X.

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As conquistas recentes da cibernética ratificam a dicotomia entre a informática clássica,


que tem em seu cerne a construção de softwares pré-codificados baseados no acesso a um banco
de dados estático, e um novo dispositivo operacional, que é capaz de manejar formas de
aprendizados oriundos de experiências autônomas da máquina prescindindo, por sua vez, de
uma codificação prévia extraída de softwares e, sobretudo, dotado de uma memória baseada no
movimento de informação ao redor de um circuito vivo.
Na recente fundamentação da engenharia computacional de inteligência artificial (AI-
deep learning) e em eventos científicos revolucionários observados a partir de 20162, os novos
sistemas operacionais possuem em seu cerne uma cartografia topológica e arranjos funcionais
inspirados em características biológicas da própria disposição neurofuncional do cérebro, tal
como o “alto paralelismo, robustez, tolerância a falhas e aprendizado através de padrões”
(GRUBLER, 2018, on-line) e, também, possuem cartografias e arranjos cuja lógica de
processamento possui orientação direta à hipótese do inconsciente, por sua vez, consagrada
pelas teorias psicanalíticas. Será justamente esta possibilidade de se promover e confrontar
“híbridos tecnonaturais” (TADEU, 2009, p. 22) que se ratifica ser este um período de grande
efervescência não só aos respectivos campos da neurociência, psicanálise e engenharia de
computação, mas de uma gama já incontável de possibilidades de reaplicação da expertise
destes artefatos que conquistará, de forma definitiva, todas as esferas da vida humana.
O aprendizado não supervisionado de máquina (AI-machine learning) possui duas áreas
distintas quanto à natureza destas atividades de reconhecimento, cognição e aprendizado
sintético. O primeiro, mais robusto e datado da primeira década deste século XXI, é
denominado de Convolutional Neural Network (CNN) — tipos de Redes Neurais Artificiais
(RNA) — que arranjam de forma otimizada processos de conhecimento perante a computação
de elementos imagéticos; já o segundo, datado a partir de 2010, é intitulado de Long Short-
Term Memory Network (LSTM) e vislumbra o trâmite de formas autônomas de processamento

2
Iniciando da mais recente e seguramente mais significativa “quebra paradigmática” oferecida por esta
tecnologia, encontramos a Rede Neural Artificial AphaFold. Anunciada no final do ano de 2020 e ainda em
processo de aperfeiçoamento, tal mecanismo apresenta soluções de forma exímia a um “entrave” científico
que perdurava por décadas. Ele diz respeito ao “problema de dobramento de proteínas”, pois envolve “a
compreensão da termodinâmica das forças interatômicas que determinam a estrutura estável de uma sequência
de aminoácido”. Uma vez que cada elemento proteico for “dobrado”, poder-se-á “manusear” tais constructos
imagéticos (agora em 3-D) e habilitar ou desabilitar seus anéis moleculares. Isto refletirá, por exemplo, em
como encontrar compostos medicamentosos na cura de doenças ou mesmo no sequenciamento e antídotos de
combate a quaisquer vírus e bactérias. O imanente acesso a tal recurso metodológico mudará
fundamentalmente toda a pesquisa biológica, bem como habilitará avanços para a compreensão mais
substancial e rigorosa do cérebro humano. AlphaFold: a solution to a 50-year-old grand challenge in biology.
Disponível em: https://deepmind.com/blog/article/alphafold-a-solution-to-a-50-year-old-grand-challenge-in-
biology. Acesso em 13 de maio 2021. Wikipédia. Deep Mind: AlphaFold. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/AlphaFold#cite_note-DeepMindAlpha2-9. Acesso em: 13 de maio 2021.

219
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

e aprendizagem (igualmente autônomas e sintéticas) apenas direcionados à linguagem verbal.


Será através deste segundo segmento que especularemos sobre questões teóricas implicadas na
gênese de estruturas energéticas que manuseiam traços (mnêmicos e digitais) dentro de
escrituras neurais tanto psíquicas quanto “maquínicas”.3
Nossa hipótese paira no fato de que estas estruturas são passíveis de serem
fundamentadas e formalizadas pela lógica paramétrica característica da racionalidade do
método e dos sistemas dialéticos. As análises iniciais dos eventos deste aprendizado não
supervisionado da máquina apresentam, in loco, transformações de estruturas a partir do
reconhecimento de forças produtivas típicas de suas contradições internas; ou seja, estamos
finalmente nos aproximando e tateando signos da multiplicidade e do não idêntico, e inferindo-
os como capacitores determinantes da própria estruturação da realidade; agora, eles não flertam
mais com descrições apriorísticas, abstratas ou metafísicas, mas como uma organização
material da negatividade pela assunção recorrente, organizada e acessível ao se produzir
sínteses disjuntivas aptas à uma formalização lógica da transitoriedade; fulcro mesmo da
magnificência de qualquer forma de inteligência.
A aventurança da dialética observada em tais artefatos será retratada, neste texto, sob
uma ótica peculiar, o que não quer dizer que as possibilidades de confrontação e expansão de
tal tese fiquem restritas. Muito do contrário, tal investigação porvir possui caminhos profícuos
e vigorosos, cujas possibilidades e potencialidades flertam com uma nova força revolucionária
e diz respeito ao empuxo e combustão de todo contínuo processo que não se deixa interromper
ou constranger por nada. Haja vista que contribuições marcadas e estabelecidas no seio da
história da civilização humana foram capazes de especular e estruturar operações intrínsecas de
sistemas complexos em todos os seus níveis. “A dialética é o conjunto móvel das relações
internas de uma totalidade orgânica em processo de devir” (ANDRADE, 1971, p. 475).
Argumenta-se, por isso, que estes construtos cibernéticos, tais como o cérebro e a
psique, são orientados por sistemas dispostos em camadas profundas que habilitam ou
desativam passagens de mensagens. Nos estratos de codificações sobrepostos também se abre
a prerrogativa dos padrões de conectividade — entre seus microelementos constituintes —

3
Havendo um artefato como o AlphaFold que “embaralhará” as “cartas” do conhecimento científico em
campos como a biologia, medicina, neurobiologia, química, etc.; há um constructo semelhante que fará o
mesmo em relação às teorias de linguagem estética, teorias do reconhecimento, ciências psis, e etc, intitulado
Generative Pre-Training Transformer 3, ou GPT-3, também lançado em 2020, o qual se constitui de um
modelo de linguagem autorregressivo capaz de processar 175 bilhões de parâmetros de linguagem verbal. Sua
Rede Neural Artificial é capaz de produzir textos teóricos, poéticos, narrativos, literários sem supervisão
humana. Além disso, também encontramos formas de reconhecimento de fala, tradução automática e até a
possibilidade de construção de uma codificação computacional (software) sem a ação orientada de qualquer
programador. (ZARAMELA, 2021, on line).

220
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

atuarem ostensivamente no processamento de novas fórmulas, parâmetros, vieses, fatores,


conceitos e sentidos. Em tais tipografias cartográficas, modelos de redes neurais recebem,
armazenam e processam fluxos de informações diversas que não se reduzem a instrumentos de
comunicação e representação resolutos a uma linguagem representativa, e, no mais, suas
relações extrapolam as leis convencionais da física newtoniana, da lógica formal e dos planos
vetoriais cartesianos.
Por isso, representações projetivas e espaciais da cena da escritura neuronal devem
libertar-se da noção de linguagem pertencente a uma gramática rígida e pré-reflexiva; o mesmo
se passa com seus gráficos e equações que devem estar orientados a uma geometrização do
informe. Desta forma, léxicos codificados, leis de associações, inferências e equações auferem
soluções entre interação e dissociação, simetria e assimetrias, densidades e rarefação do cálculo
neuronal. Neste nível de interações, as propriedades, elementos, instâncias e estratos – internos
aos sistemas naturais e/ou psíquicos – são exibidas sob uma otimização sintetizada e disjuntiva
cujo produto ou logaritmo “se converte” em evidência fundamentada dos fulcros existenciários
no interior destas soluções heterodoxas.
Por isso, este artigo admitirá que as teorias da física e da matemática suplementam
igualmente a montagem das arquiteturas psíquicas e do aprendizado de máquina (machine
learning) pela incorporação de operadores, eventos e fenômenos que gravitam ao redor de
simetrias, invariantes, covariantes, combinatórias estruturais, topologias e tempos/espaços
sistêmicos. Na compreensão de tal hipótese, hoje ainda incipiente e da qual este artigo apenas
introduz, aponto que o investimento teórico inaugurado pela metapsicologia psicanalítica
seguida pelos programas neurocientíficos e cibernéticos optaram (e ainda deverão insistir) em
seguir referentes fundamentais à composição nocional da física contemporânea em seus jogos
de forças, sob princípios da energia livre e no cálculo de estados estacionários de não
equilíbrio4; ou, ainda, referências à termodinâmica sob seus fluxos de energia; por fim, na teoria
matemática dos conjuntos lidos pela “associação cinética” com a topologia de superfícies5.

4
O Princípio da Energia Livre parece comportar e aglutinar as declinações supra mencionadas. Este, por sua
vez, busca conjugar explicações para a percepção incorporada pela AI e neurociência através da noção de
inferência ativa. “É uma declaração formal que explica como os sistemas vivos e não vivos permanecem em
estados estacionários de não equilíbrio [...]. Estabelece que os sistemas minimizem uma função de energia
livre de seus estados internos, o que implica crenças sobre estados ocultos em seu ambiente. A minimização
implícita da energia livre está formalmente relacionada aos métodos variacionais Bayesianos”. (FRISTON,
2010, on line).
5
A articulação que este artigo ocupará ficará restrita aos operadores topológicos como ponto de intersecção
entre ontologia, matemática, teoria da linguagem e dialética. Tais recursos diretos à compreensão teórica dos
eventos neuronais apostam em sínteses funcionais cujas estruturas de reconhecimento se manifestarão de
maneira crítica à confrontação entre sujeito, conceito e objeto. Já o recurso à termodinâmica, apesar de
apresentar teorização e empirismo robusto e inovador dentro do campo de compreensão dos procedimentos

221
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

1 DA FÁBULA AO EMPIRISMO TECNOCIENTÍFICO

Dentre os experimentos até aqui mencionados, o primeiro experimento capaz de integrar


um sistema permeável aos operadores foi conjecturado por Sigmund Freud em 1895.
Atualmente, tal iniciativa ainda é considerada por muitos como uma “ficção teórica” ou como
um trabalho pertencente aos textos “pré-psicanalítico”; contudo, paira neste texto-processo
certo espírito invisível sobre as demais obras não apenas freudianas, mas de outros psicanalistas
e filósofos importantes do século XX, não menos impactante, aos próprios cientistas da
computação (PEYON, 2007, on-line).
Sua livre especulação almejou um sistema psíquico cujo cerne de processamento se
alinhasse com um princípio da diferença interno a uma escritura neural metamórfica. O
psiquismo deveria ser modelado a partir da exploração e “escavação” destas inscrições
heterodoxas da coreografia neuronal, desde que fosse, inclusive, mantido sob uma
temporalidade plural, ou seja, que não se ajustava a uma temporalidade mecanicista e
unidirecional. A vantagem de investir em tal modelo e recursos a tal ótica epistêmica imbricada
pairava no fato de que a opção pela “simulação computacional possui um maior poder
heurístico” (GARDNER, 1987, p. 32).
Já se assinalou, por exemplo, em STRACHEY (1954, Parte I)6, que na complexidade
dos eventos neuronais e nos princípios que os governam, como descritos por Freud, desde o
Projeto de 1895 — estendendo-se a outros textos metapsicológicos — poderíamos perceber
alusões implicadas às hipóteses da teoria da informação e da cibernética, não obstante, em sua
“reaplicação” à compreensão do sistema nervoso, da natureza da cognição, do processamento
da aprendizagem, e até nas “alucinações-bugs” (DERRIDA, 2011, p. 290) compartilhadas entre
mente e máquinas. A consonância, ainda mais profícua entre ambos os universos, pode também
ser pautada na descrição de simulações computacionais capazes de prover uma reorientação
sobre a competência técnico/instrumental e hermenêutica de arquivos que armazenam o

internos da própria inteligência artificial, ainda não possui o mesmo status e apreço pela teoria psicanalítica,
mesmo sendo explícita a adesão freudiana a tal escopo na formulação do texto original do Projeto Para uma
Psicologia Científica. A Termodinâmica trabalha em associação com a machine learning introduzindo um
modelo de classificação baseado em redes neurais artificiais para a determinação do melhor ajuste possível
para cada molécula e neurônio, que são frutos, agora, de um cálculo específico (PEREIRA, 2020, p. 7).
6
Texto disponível on-line. O documento digitalizado não apresenta divisão por páginas, sendo constituído
por um “bloco único”. O competente tradutor traz esta informação na apresentação e introdução do Projeto
Para uma Psicologia Científica. Disponível em: http://www.freudonline.com.br/livros/volume-01/vol-i-16-
projeto-para-uma-psicologia-cientifica-1950-1895/. Acesso em: 3 de jan. 2021.

222
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

conteúdo da memória. Freud anuncia, no mesmo projeto citado, que não seria possível uma
teoria psicanalítica ou psicológica sem uma posição crítica e idiossincrática destas ciências
sobre a natureza da memória. “A memória é representada (dargestellt) pelas diferenças de
explorações entre os neurônios Ψ” (FREUD, [1895] 1954, Parte I, s/p)7. Por isso, nunca haveria
na cartografia psíquica relações de simples tradução e transcrição entre o arquivamento e suas
representações inconscientes. No local, figura-se um espectro de funções conectivas
subversivas e diferenciais, revoltas de tensões entre a distribuição, mensuração, conservação e
escoamento de símbolos energéticos que exploraram os graus de diferença destes traçados
sinápticos; desta forma, surge o caráter virtual e relativo da memória, sendo, o mesmo, implícito
à própria hipótese do inconsciente. “Essa ‘rede freudiana’ [exposta no Projeto para uma
Psicologia Científica] é uma rede neural com a interessante propriedade de conservação global
das ativações neuronais, uma regra específica para o escoamento dessas quantidades, e outra
para a alteração dos pesos das conexões (aprendizado)” (PESSOA JR, 1998, pp. 52-54, grifos
nossos).
Nesta pequena citação encontramos o fulcro do funcionamento de um RNA de nossos
tempos. Sua natureza operacional está pautada justamente na comutação de propriedades entre
ativações e resistências ou na conservação e escoamento de elementos mínimos e difratados
de informações e dados. O cerne de tal operação formal é delimitar e interagir — sob a
densidade neuronal heterodoxa — a profusão de cálculos e gráficos topológicos entre pesos e
camadas de neurônios, ou seja, encontrar o valor mínimo e máximo de variação energética livre
em termos de uma função objetiva. Por fim, no mesmo mecanismo especulativo de tal
processamento híbrido e em sua mecânica suportada pelos processos energéticos de linguagem,
escrituração e diferenças, há alusões dinâmicas e tópicas cujo espaço de parâmetros é
intrinsecamente e coexistente a um método de diferença temporal sob o valor de realimentação
ou “feedback" (Freud, [1895] 1954, s/p). A atuação de tempos sistêmicos (não mecanicistas)
que desobedece à linearidade originária do “tempo da consciência” suscita esta diferença de
explorações neuronais articulando um devir-espaço do tempo; atualmente, tal preciosa intuição
freudiana é intitulada pela literatura de engenharia computacional da AI (deep learning) de
retro e backpropagation8.

7
No texto disponível on-line. O documento digitalizado não apresenta divisão por páginas, sendo constituído
por um “bloco único”. O trecho supra extraído pode ser localizado na Parte I do referido Projeto Para uma
Psicologia Científica. Disponível em: http://www.freudonline.com.br/livros/volume-01/vol-i-16-projeto-
para-uma-psicologia-cientifica-1950-1895/. Acesso em 3 de jan. 2021.
8
A técnica backpropagation propaga os sinais de erro na direção oposta ao feedforward, camada a camada,
computando os gradientes locais de cada neurônio. Esse processo permite que sejam executadas correções
nos pesos sinápticos através da equação original. Creio em indícios suficientes capazes de associarem a forma

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

Apenas unindo todas estas designações é que se tornará possível haver uma condição
elementar e propícia para a “forja” do algoritmo de aprendizagem. Ou seja, de uma matemática
que se baseia no cálculo — na medida em que o cálculo não é apenas uma dedução; e na letra
— na medida em que a letra não é apenas um signo; no espaçamento e na temporalização desde
que a duração e a ipseidade sejam pautadas sobre uma codificação numerável.
Devemos manter no horizonte determinada orientação dialética entre deduções e signos
que estão orientados, finalmente, a uma fundamentação de “estados quantitativamente
definidos de partículas [neurônios] materiais especificáveis” e, ainda, que estejam sujeitas às
mesmas “leis gerais de movimento”: uma “lei da constância” e uma “lei de permutações”
(FREUD, [1900], 2006, p. 574).

Nas funções mentais, deve-se distinguir algo — uma carga de afeto ou soma
de excitação — que possui todas as características de uma quantidade (embora
não tenhamos meios de medi-la) passível de aumento, diminuição,
deslocamento e descarga, e que espalha sobre os traços mnêmicos das
representações como uma carga elétrica espalhada pela superfície de um corpo
(FREUD, [1894], 1996 p.43).

Todos esses elementos certamente ofertaram possibilidades de investigações entre a


teoria psicanalítica e a engenharia computacional uma vez que tal intersecção encontraria um
solo fértil de entrecruzamentos conceituais e de fenômenos compartilhados. Tal
entrecruzamento efetivamente ocorreu e produziu uma imensa e rica literatura abordando a
interface entre psicanálise, cibernética e neurociências cognitivas; contudo, até o início deste
século, estes programas de pesquisas tinham como recurso o escopo da informática clássica,
de teorias da informação e linguagem denotativas e refratárias às jurisprudências da
representação; consequentemente, um arcabouço assumido pela organização epistêmica e ética
das ciências cognitivas.
O que será aqui exposto pertence a uma outra ordem, por isso, este texto incorre em um
movimento experimental e inaugural. Não nos cabe mensurar e avaliar em pormenores as
contribuições dos programas científicos cognitivistas terem tido, ou não, sucesso em repensar
a metapsicologia em sua base científica. Nosso foco é considerar que a dinâmica da

qualitativa dos tempos investidos pela teoria psicanalítica – como o tempo Nachtraglichkeit (a posteriori) e
de Verspatung (atraso) incluindo as contribuições lacanianas ao redor do tempo lógico – exatamente como é
característico da ativação e dinamismo de processamento de uma Rede Neural Artificial. É justamente tal
“receptividade” e “adaptabilidade” que se propõe o fato do reconhecimento do objeto, pelo cálculo neuronal,
ocorrer de forma retroativa e/ou postergada. Aqui, nossa hipótese é que isto somente é possível desde que se
atente para duas ou mais naturezas distintas do arquivo e da memória atuando concomitantemente no mesmo
mecanismo processual (STAUDENMAYER, 2019).

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

neurogênese, na cena da escritura psíquica, possui fundamentações ainda encobertas, mas que
parecem indicar um redirecionamento com a atuação destes RNA da comunidade de machine
learning; ou seja, um campo de operadores renovados por eventos de alta magnitude empírica
capazes de fundamentalmente e integralmente atuar estes modelos computacionais e gerativos
aptos à montagem artificial do aparelho mental, cerebral e digital.
Engajamo-nos em um exercício de mão-dupla, pois, ao investigar os fundamentos que
sustentam a operacionalidade de um RNA através do arcabouço metapsicológico, estaremos
em condições de divulgar à comunidade psicanalítica que a comprovação processual destes
mecanismos tecnológicos são posteriores aos avanços e à inventividade conceitual e
experimental preconizada pela própria teoria freudiana e lacaniana, as quais tiveram
contribuições marcadas e estabelecidas no seio da história da civilização humana haja vista
serem capazes de especular e estruturar operações intrínsecas de sistemas complexos em todos
os seus níveis.

2 A FACE EXPERIMENTAL DA DIALÉTICA EM SIMULAÇÕES NEURAIS

Apesar de todos os esforços interdisciplinares entre laboratórios líderes e avançados de


pesquisa, investimentos multimilionários, publicações de impacto e prêmio Nobel, ainda
persiste uma indefinição sobre como a mente e/ou cérebro “gravam” — ora na subjetividade,
ora no tecido nervoso — os sinais e as informações coletadas da realidade externa. Em um leque
imensurável de desafios para se auferir uma constatação neurocientífica de base como esta, as
ciências humanas contribuem em diferentes perspectivas: ora para auxiliar, ora para intensificar
e elaborar questões que distanciam a elucubração final deste fato fundamental e desconhecido.
Sugere-se, ao menos, que o receptáculo destes “objetos internalizados” e sua "transmutação em
traços” não são dados como “um fluxo linear a partir da realidade objetiva externa → percepção
→ representação, mas, sim, como fruto dialético do acoplamento estrutural entre a organização
autopoiética dos seres vivos e o meio em que vivem” (MATURANA E VARELA, 1996, p.
134).
Uma oportunidade de enfrentar este problema é apostar que tal “acoplamento estrutural
dialético” foi proposto pela fundamentação dos princípios que regem a psique, cujo esforço de
racionalização do Real era “adentrar na conceituação da experiência em todos os níveis da
estruturação do psiquismo do ser-humano” (LACAN, S. II, 1985 [1955-54], p. 69). Seja
pela ótica clínica, seja pela epistêmica, a psicanálise infere que “o real não é a contradição

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

ou a mistura de duas não substâncias, mas a negatividade que se deduz logicamente da


apreensão da realidade” (DUNKER, 2007, p. 226). O programa dialético contemporâneo
intensifica e expande o poder deste negativo — inerente às formalizações de conflitos entre
epistemes e ontologias — ao proclamar noções não correspondencialistas entre sujeito-objeto-
conceito-linguagem; por isso, a ordem Real e do inconsciente auxilia-nos a compreender tal
evento cibernético, ou seja, uma “negatividade que se deduz logicamente da desintegração
construída e objetivada dos conceitos que o sujeito clássico e cognoscente possui imediatamente
de si (ADORNO, 2009, p. 127, ênfase nossa).
Desde a mais alta antiguidade compreendemos que o mecanismo do pensamento (na
história da filosofia, por exemplo) funciona através de categorias, ou seja, formas através das
quais a consciência “pensa” ou “representa” os vários aspectos do mundo real. Todos os
sistemas filosóficos apresentaram um quadro mais ou menos restrito destas categorias.
Aristóteles indicou dez: “substância, qualidade, quantidade, estado, relação, lugar, tempo, ação,
paixão, possessão” (ARISTÓTELES, 2005, IV a IX, 11b p. 14). “Hegel não só ampliou esse
quadro, mas também mobilizou integralmente as categorias do pensamento”. Isto é, concebe-as
como deduzíveis umas das outras e redutíveis umas às outras (ANDRADE, 1971, p. 488). É
precisamente essa transformação e passagem das categorias umas nas outras que caracteriza
o método dialético e constitui o objeto de estudo da lógica dialética, desse modo, contraposta
à lógica formal.
Recuperar tal imanência condiz com uma operação que acompanha o teor operacional
(em ato) do núcleo de movimento e mutabilidade típicos de um RNA, ou seja, passamos de um
plano idealista e entraremos em um ambiente responsivo justamente a partir do momento em
que a cibernética solucionou como integrar e calcular as resistências que vem do objeto para,
assim, poder transcrevê-las em traços idiossincráticos e as reapresentar sobre outro regime
enunciação. Nestes artefatos, cuja descrição analítica percorre camadas hierárquicas, glosas
inferenciais e composicionalidades complexas, veremos uma indução à modelagem gerativa
capaz de mensurar, sob regras específicas, seus fluxos de sentidos e não sentidos, formas e
informes, marcas e digressões. Isto formata condições de experiências renovadas e críticas a
qualquer horizonte metafísico. Aqui, o pensamento precisa ser “capaz de recuperar sentido e a
força transformadora do que ‘diferença’ pode realmente significar” (SAFATLE, 2019, p. 51).
“(…) Se chegamos a ordenar uma série completa de variantes sob a forma de um grupo de
permutações, pode-se esperar descobrir a lei do grupo” (LACAN, [1954-55], 1985, p. 70). Esta
breve alusão é salutar, pois tais investimentos encontraram — na recente formalização de
conexões que compõem o interior de aparelhos neurais artificiais — uma oportunidade de

226
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

constituir algo muito aguardado pelas ciências: a comprovação de que as reações das
propriedades limítrofes de uma experiência aparecerão como um problema de ordem formal.
“Quando achamos a invariante de um grupo de fenômenos, funções ou relações, alcançamos o
fundo de permanência que se conserva sempre o mesmo apesar da infinita mutabilidade
daqueles” (ANDRADE, 1971, p. 74, ênfase do autor).

Representamos, então, o aparelho psíquico como um instrumento, no qual


chamamos as partes que o compõem de ‘instâncias’ ou, para maior clareza, de
‘sistemas’. Imaginemos em seguida que esses sistemas têm uma orientação
espacial constante uns em relação aos outros, um pouco como as lentes de um
telescópio. Nós não temos nem mesmo necessidade de imaginar uma ordem
espacial verdadeira. É-nos suficiente que uma sucessão constante seja
estabelecida graças ao fato de que, quando de certos processos psíquicos, a
excitação percorra os sistemas segundo uma ordem temporal determinada.
Reservamo-nos uma possibilidade: essa sucessão pode ser modificada
segundo os processos Ψ (FREUD, [1900], 1996, p. 456, ênfase nossa).

O desenho e o cálculo inaugural de um esquema artificial proposto pela metapsicologia


freudiana reproduziram os nexos causais entre o espectro de informações visuais,
representativas, afetivas e memorialísticas (atravessadas por nossa retina, linguagem,
consciência e inconsciente), e a disposição de tais fontes em uma tecnologia de traços (de
inscrição temporal e espacial subversivas); traços que circundam o aparelho mental e cerebral
em toda sua extensão, incluindo, em seus trajetos, uma gama de eventos negativos (mas
fenomenologicamente aceitos), ou seja, os referentes etiológicos disparadores do que em
seguida será caracterizado como campo para a psicopatologia. Tal artefato proposto por Freud
foi constituído ao redor de um sistema de representação articulado em rede de modo que,
qualquer variação em uma região de um sistema em particular, “pode afetar as regiões vizinhas
em função de sua intensidade” (WINOGRAD, 2006, p. 188). Isto demonstra a caracterização
rigorosa de um procedimento teórico que pressupõe mecanismos formais justamente apto à
tarefa de se conjugar circuitos e superfícies distribuidoras de energias e representações internas
focadas no movimento inconsciente e linguístico.
Nestas especulações teóricas observadas na neurogênese freudiana encontramos
referências recorrentes a conceitos de “energia psíquica”, “somas de excitação”, “catexia”,
“quantidade”, “qualidade”, “intensidade”. Toda a escassez de explicações sobre estes termos
de Freud — os quais durante mais de um século foram avaliados por parte dos comentadores
como um “flerte” com certa “psicologia abstrata” (POLITZER, 1998, p. 24) — ou, de uma
energética estéril e metafísica que deveria adequar-se (não se sabe como) a uma teoria do
sentido e da interpretação (RICOEUR, 1965, p. 32), filiando-se, por fim ou sendo cooptada

227
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

pelas ciências cognitivas; no momento, o recurso para a apreciação de uma “concretude”


permitirá uma revisão crucial à conceituação das metapsicologias, bem como oferecer novas e
profícuas possibilidades de teorização da formação subjetiva do inconsciente de nossa época.
Entre as “leis de associações e as regras de escoamento” encontramos este ambiente
“neuronal dialetizável” composto de uma pulsação ou devir ancorado por um aparelho reflexo,
tópico e dinâmico que comportaria “traços mnêmicos [que] só podem consistir em modificações
permanentes dos elementos dos sistemas” (FREUD, [1895], 1954). Por isso, a metapsicologia
nasceria como um “modelo de subjetividade cindida entre sistemas intrapsíquicos a partir dos
quais a coexistência de representações discordantes podia ser pensada” (IANNINI, 2012, p. 95).
O próximo passo é decisivo, visto que o próprio Freud reconhece a necessidade de se incorporar
o “signo (Zeinchen), a inscrição (Niederschrift) e a transcrição (Umschrift)” (DERRIDA, 2011,
p. 301) frente ao colossal desafio de se conjugar categorias teóricas com o sinuoso
materialismo da linguagem transmitida à clínica; linguagem como centralidade de seu
mecanismo de diferença entre o trabalho das forças no sistema psíquico. “Ele [Freud] descobre
o funcionamento do símbolo como tal, a manifestação do símbolo em estado dialético, em
estado semântico, nos seus deslocamentos” (LACAN, S.II, 1985 [1954-55], p. 101). Por fim, é
chegado o momento de a cibernética mostrar a Freud que há, sim, uma forma de medirmos estas
operações processuais “intraneuronais”, pois, sobretudo, este “traço tornar-se-á o grama e o
meio da facilitação, um espaçamento numerado” (DERRIDA, 2011, p. 302, grifo nosso).

A biologia freudiana não tem nada a ver com a biologia. Trata-se de uma
manipulação de símbolos no intuito de resolver questões energéticas, como
manifesta a referência homeostática, a qual permite caracterizar como tal não
só o ser vivo, mas também o funcionamento de seus mais importantes
aparelhos. É em torno desta questão que gira a discussão inteira de Freud –
energeticamente, o que é o psiquismo? (LACAN, SII. 1985 [1954-55], p.
100).

3 A MODELIZAÇÃO DE CARTOGRAFIAS NEURONAIS

Resgatarei uma das etapas da construção da arquitetura psíquica freudiana através do


“modelo do pente”, elaborado por volta de 1897, associando-o, posteriormente, a um esquema
elementar de processamento de um artefato cibernético de AI. Inicialmente, cabe-nos ressaltar
que ambas as arquiteturas, inspiradas por sistemas neurobiológicos, constituem-se por teias
de neurônios interconectados que, por sua vez, são passíveis de responderem a princípios

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

lógicos paramétricos ao redor da oposição dialética entre invariantes e mutações9; não distante
de interpor a tais relações lógicas, concepções de espaçamento e temporalização são
entrecruzadas por leis comuns de movimentos. Para que tais relações possam desempenhar o
aferimento das experiências técnicas e científicas envolvidas em tais modelagens cognitivas
sintéticas, inteligentes e autônomas faz-se necessário avançarmos sobre noções primitivas de
“continuidade”, de “limite”, de “número”, de “função”, de “grupo”, de “ordem”, de “série”, de
“correspondência” e isto ocorrerá, justamente, ao evocarmos operadores extraídos da teoria dos
conjuntos e da geometria não euclidianas como recursos necessários a tal articulação. Em
ambos os casos, ratificamos a pertinência do recurso à topologia e a duas famílias distintas de
variantes (covariantes e contravariante), pois constituem um corpo de princípios dialéticos
capazes de admitir um mundo em movimento em que todas as coisas se relacionam umas com
as outras e onde cada coisa só se explica em função de outras.

Figura 1: “Esquema do pente”. Fonte: FREUD, Sigmund [1900/1996, p. 571].

Figura 2: Rede neural artificial. Fonte: RUBER, M. (2018).

Podemos transpor a arquitetura da Figura 2, um diagrama simplificado de um


procedimento de aprendizagem profunda (deep learning) – cujo cerne da tecnologia se

9
O conceito matemático de invariante nasceu dentro do clima gerado pela descoberta e desenvolvimento da
análise infinitesimal e sob o influxo de sua cristalização: a teoria das funções. Propõe definir o “permanente
através do mutável e a constância em meio do fluxo” (ANDRADE, 1971, p. 51). Cabe-nos unir tal ideia a
orientação de gramáticas de relações capazes de discernir na constância e permanência das coisas uma
permanência e constância de relações.

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Volume 06, Número 10, Ano 2021

denomina brain reinforcement learning10 – ao esquematismo da arquitetura psíquica visto na


Figura 1, desde que mantenhamos no horizonte um objeto sendo internalizado via Pcpt., ou
input e dada “transmutação” deste em traços (mnêmicos/digitais). Tais traços são conectados
por “sinapses” que respeitam uma base de associação e inferências norteados pela disposição
de parâmetros e vieses.
Este objeto percorrerá um processo interativo uma vez que, nestes constructos, veremos
o surgimento de “mapas de ativações” que transmitem as “passagens de mensagens”
sobrepostas e interligadas a estratos de neurônios ativos. Tal evento é deflagrado no (Ics
[inconsciente] ver Fig. 1; e camada oculta [hidden layers], ver Fig. 2). Ao ser recebido pelo
tecido da rede o objeto (imagético ou linguístico) é “dissolvido” por estes modelos densamente
parametrizados (WELLING, 2020, informação verbal). No fundo, estamos diante da
constituição de uma “economia de informação através de condutores, reduzindo a elementos
essenciais, o modo pelo qual uma mensagem é transmitida” (LACAN, S.II, 1985 [1955], p 369).
É justamente o estímulo à gramática de conectividade destes “elementos essenciais de
mensagens” que se busca elaborar em ambos os exercícios de conexões, uma vez que eles
formam superfícies combinatórias possíveis para tanto.
Se reportarmo-nos ao esquema proposto no Projeto para uma Psicologia Científica,
estes parâmetros, vieses e inferências responderiam às especulações sobre propriedades
ramificadas em três caracteres, dimensões e estratos distintos de neurônios11. Assim, um
neurônio poderia estar “vazio” ou “cheio” de uma certa “quantidade”, ou seja, “catexizado”
(FREUD, [1900] 1996, p. 23).
Na cena desta escritura psíquica, tais interações foram previstas em termos de incisões
e sulcos que permitiriam uma reorganização da estrutura conforme as voltagens neuronais
fossem alternando-se entre facilitações e resistências das vias sinápticas, respeitando uma

10
Uma estratégia para obter aprendizado com dados esparsos dependerá, sem dúvida, de uma noção de meta-
aprendizagem. Referimo-nos a um cenário em que um agente aprende em dois níveis, cada um associado a
diferentes prazos. Este elemento chave à tecnociência, ao tratar das memórias para além do conteúdo rígido e
da localização, incorporou novas codificações de informações não sequenciais e pré-orientadas. Esta
passagem entre os dois estatutos de memória, segundo as orientações destas pesquisas recentes, associam-
se ao meta-aprendizado da máquina e, talvez, tragam luz às pesquisas sobre o funcionamento neural biológico
humano (SUTTON E BARTO, 2015; WANG, 2018) Prefrontal cortex as a meta-reinforcement learning
system.
11
O modelo freudiano apresentado no Projeto para uma Psicologia Científica consistia de uma orquestra de
neurônios divididos em três tipos: 1) o sistema de neurônios φ estava ligado à percepção do mundo externo e
eram permeáveis; seus estados eram constrangidos pelas barreiras de contato que forneciam a planificação do
fluxo de energia externa; 2) o sistema ψ consistia da memória e dos processos psíquicos em geral e eram
ocasionalmente impermeáveis e discretos; seus estados em relação às barreiras de contato eram de
desequilíbrio; e 3) o sistema ω estaria ligado à consciência, que distinguiria as sensações e sentimentos
conscientes.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

coexistência entre as funções perceptivas (Pcpt) e motora (M), entre a consciência e o


inconsciente; ainda, ou a coreografia neuronal era contingente ao contato das pulsões, ou,
mesmo, de uma rememoração.12 Agora, contudo, com o advento de algoritmos de
aprendizagem e sua fundamentação em equações específicas destas mesmas relações, podemos
iniciar investigações que nos apresentam princípios universais que regem tais manifestações,
ou seja, pode-se apresentar funções que nos orientam a observar tais conjuntos de fenômenos,
conjugá-los e observar como auferem um alto grau de eficácia, mesmo que suas propriedades
ocorram dentro de uma vasta dimensão neuronal e dentro de múltiplos estratos.
Por isso, há uma apreensão e interdependência entre os estratos periféricos e
concêntricos do desenho neuronal, pois são, em si mesmos, mecanismos ativos e dinâmicos que
concorrem para entalhar intervalos por inferências lógicas paramétricas, isto é, deflagrar
padrões ou a falta deles através de um limite de soma e um limite de quociente13.

Figura 3: A Multilayer Perceptron. Plain Vanilla. Fonte: 3Blue1Brown Series.

Esta representação é um “olhar ampliado” dentro de um segmento da camada oculta


(hidden layers) dos esquemas previamente apresentados nas Figuras 1 e 2. A frequência e a
atividade neuronal representadas pela variação tonal entre os círculos cinzas, pretos e brancos,

12
O traço mnésico (Erinnerungsspur) não é um traço neurológico nem sequer a “memória consciente”,
conforme Freud apontou em O Inconsciente (VL. XIV, 1915, p. 288). Ou seja, “ele é elemento que produz
enquanto percorre o seu caminho” (DERRIDA, 2011, p. 296). A prerrogativa de se construir o sentido no
elementar retardamento suplementar, ou seja, depois do labor subterrâneo de uma “impressão” e “inscrição”
tanto no tecido quanto na subjetividade, faz desta conceituação, lida muitas vezes como “pré-psicanalítica”,
algo de valor elementar para a clínica. A formulação de uma das formas de subjetivação crucial à psicanálise
é justamente a rememoração (Erinnerung), que possui, justamente, o mesmo radical dos significantes traços
mnésicos (Erinnerungsspur). “A rememoração deliberada e outros processos constitutivos de nosso
pensamento normal envolvem um movimento retrocedente do aparelho psíquico, retornando de um ato
complexo de representação para a matéria-prima dos traços subjacentes” (FREUD, [1990], 1996, p. 573).
13
Mas o que é uma Rede Neural? Descida gradiente, como as redes neurais aprendem? (3BLUE1BROWN
SERIES, informação audiovisual).

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Volume 06, Número 10, Ano 2021

representarão, em termos estatísticos, o coeficiente entre a variância mínima e máxima entre a


confrontação destas “partículas” de informação “difratada” do objeto. Tal processualidade
somente é possível desde que se atente para a “recorrência”, a “repetição” e o “retorno”, uma
vez que a dinâmica computacional é atualizada incessantemente após ser “rebatida” pelas
camadas de Rede mais profundas.
Logo, uma tentativa de exposição esquemática de todo o processo é, em parte,
inalcançável; tateamos certa abertura de uma multiplicidade não representável. Isto ocorre pela
dissociabilidade dos traços sinápticos e pelo laço recíproco de comunicação habilitada por
sensores de padrões (neurônios) alocados em estratos de camadas “permeáveis”. O ponto nodal,
pertinente a esta exposição introdutória, é mantermos em vista que a dinâmica computacional
é um sempre conflitiva e tensionada entre um limite e suas variáveis; que tais sinapses serão
sempre “frutos de um cálculo incompleto” (RAJA, 2016). Ou seja, que o princípio que rege a
atividade interna concerne, antes de mais nada, à latência do existente e é desta negatividade
mesma que se retira a força dialética para o movimento. I
Isto se deve pela permeabilidade e variância da voltagem ou “catexia” (em termos
freudianos) de neurônios interligados às múltiplas camadas de descargas variacionais de
energia e informação. Implica mudanças ou um processo dentro do qual todas as coisas
enfrentam suas contradições inerentes e se revelam como um resultado. A novidade é que este
resultado assume a expertise de construir, por si mesmo, sistemas autônomos e criativos, além
de propositivos e preditivos intitulados, apressadamente, de “inteligentes”. O que se apresenta
no núcleo operacional deste evento, portanto, é a “passagem da computação do cálculo para a
computação da comunicação” (DOELLINGER, 2014).

Figura 4. Relações entre um neurônio biológico e artificial. Fonte: site Médium Brasil14

14
A equação da figura realiza o somatório ponderado entre as sinapses de cada neurônio. (GRÜBLER, 2018).

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É fundamental salientar que tanto neurociência quanto cibernética ainda possuem


grandes flancos perante a explicação e exposição destes mecanismos “celulares”, ou na
compreensão da termodinâmica das forças interatômicas. O âmbito de inconclusão a que me
refiro foi intitulado de “caixa preta” (black box) pela engenharia de inteligência artificial
(TUBELLA, et al., 2021, on-line), e ela diz respeito a esta dinâmica de transformação de
estruturas em todos os seus níveis, onde ocorre a mobilização de forças simétricas ou informes,
que, por fim, serão também efeito de um cálculo. Ao empurrar o pensamento para ouvir a
estrutura indeterminada das coisas, mostra-se uma desconstrução da concepção
correspondencialista de “verdade”, “de representação”, “de identidade” e etc.
A relação entre redes neuronais biológicas e artificiais é que “ambas possuem axônios
e dendritos e comunicam-se por sinapses” (GRÜBLER, 2018). A representação dessa relação
é exibida na imagem acima, onde a letra x representa os sinais recebidos; já a força sináptica é
simbolizada por w. Ambas as redes ajustam a amplitude das sinapses em uma série de camadas
interligadas. Esse modelo é um dos mais antigos e lida com um único neurônio, classificando
o resultado de forma linear. Essas entradas multiplicam-se pelo peso da sinapse w e, no final,
somam-se formando um conjunto de entrada ξ = ∑ w * y(n). Esse resultado passa por uma
função de ativação linear e transmite a saída v. Quando o valor ξ exceder o limite da função de
ativação, o neurônio será ativado e retornará a recalcular seu valor.
A partir deste princípio foi possível, justamente nas recentes e decisivas conquistas do
campo, construir RNA’s Multilayer Perceptron (MLP). Aqui, as funções são não lineares.

A técnica logística sigmoidal é uma das mais populares em redes MLP, no


qual o símbolo x representa o valor obtido na soma ponderada do neurônio.
Cada neurônio recebe todos os valores das entradas, representados pelo
símbolo y, que são multiplicados pelos pesos sinápticos simbolizados pelo w
e somados entre si junto com uma constante chamada de polarização ou bias,
representada pelo símbolo b. (GRÜBLER, 2018, on line)

Vemos, indicativamente, como tais traços confrontam e extraem soluções através de


análises in loco de elementos opostos. Estas lógicas de transformações sobre conjuntos
heterogêneos reúnem entre eles uma unidade orgânica que permeia dada ação cognitiva. Com
a contribuição destes princípios investidos pela engenharia de aprendizado aprofundado de
máquina abre-se uma “janela” para se fundamentar uma lei de “correspondência” ou uma
“norma de comportamento” que apresente condições elucidadas entre a permanência e o
transitivismo destes microelementos informacionais internos a sistemas neuronais.
Insistimos que a realização de tais princípios é remissível ao método dialético, sendo

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

permissível que o referencial se flexione das típicas conjunturas macro (sociais, políticas,
econômicas, epistêmicas) e habitem-se constructos micros como estes, uma vez que a dialética
nunca abandona “certa concepção de movimento [...]. Será sempre questão de contradições, de
modos instáveis de produção, de conflitos de operadores de movimento e passagens no oposto
e intervenções, de mutações de quantidade em qualidade” (SAFATLE, 2019, p. 187).
Os movimentos observáveis dentro das camadas ocultas ou inconsciente são a própria
marca corruptível filiada à uma imperfeição ao inacabamento, ou, ainda, de lapsos, de um
recalque, de um cálculo incompleto. Tal movimento, desencadeado pelo controle neuronal,
indexa ou exclui o atributo contrário, e esta prerrogativa coreográfica entre receber em si
atributos equiparáveis ou contrários é uma das facetas dialéticas por excelência. Para
ANDRADE (1971, p. 70), a contrariedade é a expressão mesma da contingência do mundo, da
multiplicidade e heterogeneidade dos coexistentes. Esse conflito permanente, de que não
logramos fugir, há de resolver-se, entretanto, num problema de interação e simetria que é uma
das leis universais da Natureza e uma das polarizações constantes do processo do devir.
Se tudo no mundo pertence a grupos de fenômenos ora organizados entre si ora
repelidos, há noções relacionais (capazes de formarem funções que apresentem
correspondências das mais diversas) como, também, devem-se haver leis de proibições a certos
eventos e articulações fenomenais e mentais. Ainda, se a noção de função – que se assume no
fundo como articulação a qualquer objeto da ciência – for apresentada pela noção matemática
de correspondência, o conceito de estrutura também pode ser explicado por analogia com a
noção matemática de grupo ou conjunto. Foi justamente na teoria dos grupos, com efeito, que
a noção de invariante foi promovida e passará por um século de avanços formais até consolidar-
se como importância central na formalização destes artefatos “tecnonaturais”.
Um grupo de permutações sistêmicas neuronais não é senão um determinado número
de funções que darão “corpo” ao algoritmo, ou seja, relações que adquirem uma vida orgânica
e congregam-se num todo; seu comportamento e suas atividades processam-se em função deste
todo como elementos derivados dele ou como partes que nele integram-se. Encontrar a figura
do permanente através do mutável, achar o fundo invariante de todas as variações ou “acepção
profunda da unidade na multiplicidade e da permanência no fluxo” (ANDRADE, 1971, p. 438)
está em curso desde os programas filosóficos milenares dos gregos que, não por menos,
forneceram as fundamentações iniciais da própria matemática e que, não obstante, encontraram
na teoria psicanalítica do último século, um momento chave de realização e especulação.
Freud construiu um modelo que pressupõe a heterogeneidade de neurônios
coexistentes e buscou elaborar hipóteses de “grades de contato”, da “facilitação” (Bahnung)

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

e da “abertura do caminho” (Bahn) (DERRIDA, 2011, p. 295), e é justamente através dessa


possibilidade de organização composicional genérica de elementos diversos, que estaria apta a
relacionar-se entre si, que foi possível arquitetar um esquematismo profícuo da modelagem
computacional de uma rede neural. Tal como apresentado na introdução deste texto, esta
possibilidade deve estar sob conservação global das ativações além de manter regras
específicas para o escoamento e flexão dessas quantidades, pois ostenta, sobretudo, a
designação e o movimento para a alteração dos pesos das conexões. Sem dúvida, trata-se de
alterações nas catexias de energias ligadas aos diferentes sistemas, cujas alterações aumentam
ou diminuem a facilidade com que tais artefatos podem ser atravessados pelo processo
excitatório, transferencial, rememorativo e etc.
As combinatórias que operam tanto na invariância das relações, ocasionadas pela
abstração reincidente de signos “reminiscentes” do objeto, quanto na interação mutável,
decorrentes de novas possibilidades de associações, são compreendidas como reações
implicadas à possibilidade de um conhecimento autônomo ou, ainda, de altos níveis de
previsibilidade de valores, otimização escópica, desenvolturas semântico/sintáticas entre
outros. O cerne de tal operação formal é delimitar e integrar ambas as realidades e encontrar o
valor mínimo de variação energética livre em termos de uma função.15
Tal percurso e investimento psicanalítico foram recorrentes no ensino e na obra de
Jacques Lacan. Sua preocupação e inventividade de se buscar operadores para novas
possibilidades de formalização da metapsicologia puderam ser recuperadas, por exemplo,
através do termo matema, bem como da reiterada declinação do psicanalista em não deixar a
psicanálise reduzir-se aos procedimentos adaptativos da ego psychology, da lógica
intersubjetiva pragmática e de uma linguagem apreciada apenas como reduto representativo.
Criado no início da década de 1970, o termo matema designa uma escrita algébrica que
concorre para expor cientificamente os conceitos da psicanálise, permitindo, assim, transmiti-
los em termos estruturais, pois privilegia os modelos e símbolos gráficos. Ao privilegiá-los, ela
introduziu também uma álgebra cuja intenção explícita era de explicar o registro psíquico e a
estruturação do Real haja vista que: “É o princípio de regulação que permite inscrever, num

15
Como comprovação empírica, ressaltamos que, sob esta rede neural freudiana, “foi implementada a
linguagem computacional SCHEME (um dialeto de LISP)” (PESSOA JR., 1998). LISP é uma família de
linguagens de programação concebida por John McCarthy, em 1958, a qual utiliza funções matemáticas como
estruturas de dados elementares (o que é possível a partir do momento em que há um mecanismo formal para
manipular funções). A linguagem LISP foi projetada, primariamente, para o processamento de dados
simbólicos e, durante os anos de 1970 e 1980, tornou-se a principal linguagem da comunidade de inteligência
artificial tendo sido pioneira em aplicações como administração automática de armazenamento, linguagens
interpretadas eprogramação funcional (Wikipedia). Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Lisp. Acesso
em 15 de jan. 2021.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

sistema coerente de formulações simbólicas, o funcionamento concreto do homem considerado


como máquina” (Lacan, S.II, 1985 [1955-54], p. 45). Contudo, a perspicácia do psicanalista
será coroada com a inclusão dos matemas a um ambiente operacional plausível de integração
de tais categorias significantes, lógicas, modos de subjetivação, de sexuação, de linguagens e
etc.
Desde Platão e Aristóteles não se tem deixado de ilustrar por meio de imagens gráficas
as relações da razão e da experiência, da percepção e da memória (ANDRADE, 1971, p. 471).
Ao investigarmos os artefatos entre a cena da escritura psíquica e do aprendizado de máquina,
tal dualismo deve ser reorientado uma vez comparado ao percurso “clássico” de associação e
interdependência entre a própria razão, experiência, percepção e memória. Por isso, ao invés
de recorrermos às arquiteturas lineares e bidimensionais (ver Figuras 1, 2 e 3), pode-se invocar,
de forma mais proveitosa, a atuação das superfícies e dos nós trabalhados pelos operadores
topológicos. Isto intercorre justamente para “diagramar” redes neurais tanto em psicanálise
quanto em AI, pois tais operadores estão alinhados a perscrutar as propriedades entre os
elementos flexionáveis e, simultaneamente, conservar ostensivamente alguma invariante; ou
seja, mesmo que haja deformações fundamentais da organização inicial, há de se acessar os
resquícios estruturais inicialmente expostos. Segundo PETRY (2017, informação verbal), na
conceituação freudiana do esquema do pente interpõe-se entre as instâncias verticais (Mnem,
Mnem¹...), ou na camada oculta, a opção, feita por Freud, ao recurso de uma “figura topológica
moebiana do tipo WM:↑↓:MW”16.

Enfim, trata-se de sugerir que a característica fundamental do sistema


apresentado por Freud é a de uma coleção de conjuntos, os complexos, que,
pelo efeito de se estabelecerem vizinhanças pelo processo de facilitação,
configuram topologias, espaços. Analogamente, pela intervenção das
associações linguísticas, delegados desses conjuntos, ocorre a formação de
outras coleções, seja no nível dessas mesmas associações, seja no nível
daquilo de que elas são os delegados, conformando outros espaços, topologias,
reagrupando registros de experiências com objetos, mas das quais não se
excluem os registros do próprio corpo que, então, pela via da fala, poderiam
sofrer modificações (RONA, 2010, p. 225).

16
Conferência proferida pelo Prof. Dr Luís Carlos Petry no Corpo Freudiano de São Paulo em 7 de junho de
2018 sobre conceitos fundamentais para o entendimento da topologia no Seminário 9, A identificação (1961-
1962), de Jacques Lacan. Segundo Petry, “Freud tinha em sua mente uma estrutura topológica do tipo
WM:↑↓:WW”. O pesquisador reproduz em animação 3D o traçado desta lógica de inversão. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=1KGdVXT2g-k&t=4722s. Acesso em 19 de maio 2021. A noção da
atuação da topologia na obra freudiana também já foi discutida por Nelson da Silva Júnior em Um estado de
alma é uma paisagem: Explorações da espacialidade em Fernando Pessoa e Freud (1995).

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Figura 5: Gráfico Neural: Moebius band in Python. Fonte: https://cognitive-liberty.online/moebius/

A topologia, na engenharia de AI, é utilizada como o plano ideal de aprendizagem, pois


são estruturas compostas por uma geometria informe, relativista e em movimento, podendo
alcançar eficazmente os limites, os enlaces e o espectro dos parâmetros diferenciais e integrais
de cada grupo de funções computados entre neurônios e sinapses. Assim, são capazes de
demonstrar, graficamente, a tensão dialética entre elementos antagônicos e entre a resultante
de somas e quocientes. Basta lembrarmos também que, na metapsicologia lacaniana, tais
superfícies topológicas são extensivamente trabalhadas em termos da dialética entre
desejos/demandas e identificações. O psicanalista francês desenvolveu todo um programa que,
durante décadas, tentou coadunar a linguagem inconsciente ao perfil paramétrico da lógica
significante através de cinco superfícies topológicas.
Um termo simétrico diz respeito “a fenômenos que decorrem da lei universal da
conservação de energia” (ANDRADE, 1971, p. 529). Importante ressaltar que toda simetria
exprime balanceamento de força ou disposição proporcional delas, a fim de se obter formas
harmônicas e duráveis. Superfícies topológicas são recursos ideais com vistas a exporem e a
propagarem tais formas invariantes, pois, uma vez que são fixadas as relações de vizinhanças,
estas constituirão caminhos de facilitações e, quaisquer permutações de microelementos
recebidos na camada de entrada, serão aderidas nestes “mapas de explorações”
incessantemente talhados, porém será conservado seu viés, em sua forma durável ou imutável.
Contudo, é possível reinaugurar o desenho sináptico e atualizar associações que não se
efetivaram nas conjugações prévias, por isso o formato elíptico da figura topológica concorre
para que o movimento não seja somente passagem de um para outro lugar, senão uma mudança
do próprio objeto que se transforma em outro. A “deformação” é o recurso pleno de uma
relação estrutural alterada e nem todos os pontos e variáveis da sua superfície topológica

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

estarão nos mesmos lugares em que estavam nos instantes anteriores. Esta coreografia
demonstra o fulcro da eficácia destes mecanismos metamórficos entre conservação e dispêndio
de energia.

Nessa perspectiva do nó, nossa visualização contínua das representações


produzidas por uma rede neural não é apenas uma boa animação, é um
procedimento para desembaraçar links. Em topologia, chamamos de isotopia
ambiental entre o link original e os separados. [...] Existe uma isotopia
ambiental entre a entrada e a representação de uma camada de rede: a) WW
não é singular, b) estamos dispostos a permutar os neurônios na camada oculta
e c) há mais de uma unidade oculta (OLAH, 2014, on-line).

Seria possível, através de tais operadores topológicos, condicionar uma dobra entre a
camada de entrada com a camada de saída; entre a percepção e a memória; entre os intervalos
e os aprendizados, entre “as bordas e os nós” (WELLING, 2020, informação verbal), pois,
desta forma, modelam-se conectividades locais a partir do compartilhamento de pesos
orientados, ora pela equivariância ora pela dissemelhança. Existem propriedades projetivas que
são invariantes mesmo frente às distorções de um grupo de relações heterodoxas e
metamórficas, e estas são as quais o referente topológico ajuda-nos a deflagrar: seja
minimizando a variação e o dispêndio de energia que se torna interruptivo, por um lado; ou
maximizando as dinâmicas probabilísticas dos complementos de codificação propositivo do
poder de associação.
O treinamento destes modelos autônomos requer uma associação e permutação profícua
de vieses e parâmetros, os quais estão potencialmente compactuados pela lógica relacional entre
a evidência e o diagnóstico de ocorrências de simetrias e assimetrias ao redor de dados e
arquivos “semi-aleatórios” incorporados por tais RNAs. Ao se combinar permutações com
geometrias equivariantes, recorremos à natureza destas estruturas, pois elas são capazes de
interconectar âmbitos tanto do “conhecimento transcendental” (capazes de sondarem Leis
apriorísticas do universo e da abstração conceitual matemática) com o escopo empírico dos
eventos formais (capazes agora de legitimar a atuação de tais leis), produzindo, assim, novos
alcances de uma ciência aplicada, avançada e fértil. A modelagem de microelementos simulados
em estratos de neurônios artificiais trabalha na facilitação ou interrupção destes traços;
também, suas superfícies combinatórias podem ativam ou não os pesos variantes e transitivos
(translacionais), sendo, isto, convexo a uma concepção de memória cujas associações entre o
objeto e a rememoração não consiste em uma transcrição simples do primeiro pela segunda.

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Por isso, todos os sistemas aqui eleitos demandam a interposição de um espaço/tempo


(a-vetorial e anacrônico), pois as propagações destas operações ratificam o “policentrismo” da
cartografia neural e, no momento, abrem-se a uma brecha antropológica em nossa cultura e
ciência17.
Será preciso cada vez mais investir em construções de modelos funcionais altamente
evoluídos e capazes de conjugar cada avanço trazido pela neurociência, pela ótica
computacional e pela própria evolução dos procedimentos formais do pensamento psicanalítico,
pois não se deve haver barreiras ou circunscrição que restrinja tão magnificente aspiração.
Nossa ética é reconhecer cada etapa de imersão e contribuição científica e incorporá-la em nossa
comunidade, em nossas pesquisas, em nossas metodologias, em nossas hipóteses. Por isso, a
busca incessante e compartilhada entre áreas distintas concorre para trazer a lucidez definitiva,
aquilo que, no fundo, constrói-se a cada dia, ofertado ao ciclo que unem pesquisadores,
sondadores de si mesmos, exploradores de nossos sustentáculos interiores e cujas diretrizes
estão vivas, pois justamente temos o privilégio de ratificar a função intelectual tão característica
do ser do homem em conexão íntima com componentes que são espelhos convexos e definem-
se como aportes à organização seletiva e inventiva de grupos de fenômenos passíveis de
organização, de simbioses no longo caminho de uma jornada aos limites da realidade.

17
Os projetos lançados pelo Deep Mind, em 2016, RNA’s AlphaGo e AlphaZero (redes neurais que atuam em
jogos de tabuleiros como o xadrez e o Go) são capazes, além de vencerem softwares clássicos de extrema
força, fornecerem “novidades teóricas” sobre os jogos, inovações até então imprevistas pela literatura e
“estado da arte” humanos.

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REFERÊNCIAS

3BLUE1BROWN SERIES (informação audiovisual). Mas o que é uma Rede Neural? Capítulo
2. Descida gradiente, como as redes neurais aprendem? Disponível em
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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021


Recebido em:15/05/2021
Aprovado em: 08/06/2021
Publicado em: 15/07/2021

MICHEL HENRY: A PHENOMENOLOGICAL APPROACH TO THE SUBJETIVE BODY


contribution towards the epistemology of corporality

MICHEL HENRY: UMA APROXIMAÇÃO FENOMENOLÓGICA AO CORPO SUBJETIVO


contribuição para a epistemologia da corporalidade

Ignacio Iglesias Colilas1


([email protected])

Abstract: The main goal of this paper is to show the main concepts of M. Henry’s phenomenological
approach to corporality in Philosophie et Phénoménologie du corps (1965), the principal work where
M. Henry develops these analysis. Here he frequently uses Maine de Biran’s (1766–1824) arguments to
promote his own philosophy. Cartesianism, Empiricism and Kantian philosophy –the same as
mainstream Biomedicine– conceive the body as an object. Henry describes the kind of body outlined by
Biran as an 'incarnated body', highlighting the role of language operating in how we end considering our
body as an ‘object’. To Henry, the body is subjective and is the ego itself: a body which is an “I”. This
is the ‘original fact’ with which his phenomenology begins. Henry claims for the need of an ontology of
subjectivity, because an empirical conception of interior life only shows the failure of empirical
psychology in the attempt to explain movement and corporality in general. Henry tries to build a
phenomenological ontology of the body. The type of movement which intellectualism attempts to
reconstruct is in reality only a representation of movement.

Keywords: Phenomenological ontology incarnated. Body. Language. Michel Henry.

Resumo: O objetivo deste trabalho é mostrar os principais conceitos da fenomenologia da corporalidade


de M. Henry em Filosofia e Fenomenologia do corpo (1965), trabalho no qual Henry desenvolve esses
conceitos e com frequência utiliza os argumentos de Maine de Biran (1766-1824) para promover sua
própria filosofia. O cartesianismo, o empirismo e a filosofia kantiana – assim como a biomedicina
tradicional – concebem o corpo como um objeto. Henry descreve o tipo de corpo esboçado por Biran
como um “corpo encarnado”, destacando o papel da linguagem que opera na forma como acabamos
considerando nosso corpo como um “objeto”. Para Henry, o corpo é subjetivo e é o próprio ego: um
corpo que é um “eu”. Este é o “fato original” que funda sua fenomenologia. Henry reivindica a
necessidade de uma ontologia da subjetividade, porque uma concepção empírica da vida interior só
mostra o fracasso da psicologia empírica em seu intento de explicar o movimento e a corporalidade em
geral. Henry objetiva construir uma ontologia fenomenológica do corpo. O tipo de movimento que o
intelectualismo intenta construir é, na realidade, apenas uma representação do movimento.

Palavras-chave: Ontologia fenomenológica encarnada. Corpo. Linguagem. Michel Henry.

INTRODUCTION. BUILDING A PHENOMENOLOGICAL ONTOLOGY OF THE


BODY: A BODY WHICH IS AN “I”

1
Ph.D. in Psychikigy, University of Buenos Aires - UBA.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0675-0737.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

The English translation of M. Henry’s Philosophie et Phénoménologie du corps (PP)


(1965) appeared in 1975 as Philosophy and phenomenology of the body (Martinus Nijhoff, The
Hague). In this book «Henry frequently uses Biran's arguments to promote his own philosophy»
(O’SULLIVAN, 2006, p. 48), intending to deploy his first serious approach to a
phenomenological ontology of the body, under the strong influence of Maine de Biran (1766–
1824) and his analysis towards ‘movement’ (O’SULLIVAN, 2006, p. 44; COPPLESTON,
1982). Henry is undoubtedly the phenomenological thinker who has been most attentive to the
problem of self-manifestation and affectivity, and it would be completely incorrect not to
include those concepts within the problem of the body and corporality. Affectivity, corporality
and self-manifestation (self-affection) (ZAHAVI, 1999, pp. 2-4) are almost impossible to
separate in real life experience. At this point, psychoanalytic practice led me to the same
conclusion. I shall, unfortunately, be compelled to treat this subject far too briefly, as it can be
treated properly only by giving long catalogues of facts.
Maine de Biran «was an opponent of the eighteenth-century philosophy advanced by
the English empiricists Locke and Hume» (O’SULLIVAN, 2006, p. 44), who tried to end the
problem by treating the body as an object among others. Nowadays, mainstream biomedicine
– for example – upholds the same assumption. Conversely, «Henry describes the kind of body
outlined by Biran as an 'incarnated body'; it is the 'original fact' with which his phenomenology
begins (PP 4) » (O’ SULLIVAN, 2006, p. 45). As Henry puts it: «Because the body, in its
original nature, belongs to the sphere of existence which is the sphere of subjectivity itself»
(HENRY, 1975, p. 8). That’s why many authors agree with the idea that Henry’s
phenomenology is chiefly concerned not with what appears, but with the appearance itself.
Since Henry’s work consistently seeks to locate his phenomenology of the body in the joy and
pain of ‘ordinary reality’, specifically located in praxis and ‘real’ life, the way in which he
builds the concept of the subjective body seems to be a major contribution to the epistemology
of corporality. Moreover, Henry spends much of his time arguing against what he describes as
an ideology of science that has neglected the fact that our body is much more than a mere
‘object’, warding off the problem of subjectivity by reducing every notion to materially oriented
ideas.
According to Henry, the body must become «the theme of an investigation which takes
the real man as its object, not the abstract man of idealism, but this being of flesh and blood
which we all are». This is his «project of a first philosophy» (HENRY, 1975, p. 7). For
Henry – who follows Biran –, the body is subjective and is the ego itself: a body which is

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

an “I”. «Biran seeks to substitute a transcendental phenomenology for a classical and empirical
psychology» (O’SULLIVAN, 2006, p. 47), gesture followed by Henry with his material
phenomenology. Besides, «Biranism is ‘essentially a philosophy of motor effort’»
(O’SULLIVAN, 2006, p. 54) that wishes «to move the understanding of the body away from
rationalist approaches that regard movement as an ‘unconscious or physiological process’
(Henry, 1975, 100)».
Henry «supports Biran's argument against the dominant philosophies of the nineteenth
century by writing that contrary to rationalism ‘it is necessary to say that aIl knowledge derives
from experience, because the condition of possibility of experience is itself an experience’ (PP
34) » (O’Sullivan, 2006: 48). Henry’s later works such as La barbarie (1987) and Incarnation
(2000) are also strongly influenced by Biran’s rejection of empiricism and rationalism, which
deal with «the abstract man reduced to the condition of a pure subjectivity» (HENRY, 1975, p.
7), as we may find it in Kant. In fact, the rephrasing of being in terms of effort and resistance
brings Biran closer to Spinoza than Descartes, and Henry’s affinities with Spinoza are well
known by his master degree thesis (Le bonheur de Spinoza, 1942). This led us to think that
Spinoza remains as a main influence to Henry and his characterisation of affectivity as ‘first
philosophy’, that is, as ontology.

1 THE EPISTEMOLOGICAL BACKGROUND. THE REJECTION OF HUME’S


EMPIRICISM AND THE ONTOLOGICAL LACK IN KANTIAN
PRESUPPOSITIONS

«For Biran, empiricism only knows a region of ontology that describes being as
‘transcendent and sensible’ in terms of ‘facts’ regarded ‘as natural phenomena’ […]. It
conceives of the elements of life as 'purely artificial ideas of class or genre, as collections of
abstract modes of sensation'» (HENRY, 1975, pp. 32-33).
Hume understands the body as an «ensemble of transcendent masses», or as he writes
himself, as «the interior play of nerves and muscles that the will is supposed to put in action in
the movements of our limbs» (HENRY, 1975, p. 87).
In comparing Hume’s understanding of the body to that of an anatomist or a physiologist,
Biran asks ‘what species of analogy is there between the representative knowledge’ of «the play
and functions of our organs, that an anatomist or physiologist is capable of knowing, and
the intimate sentiment of existence which corresponds to these functions? » (HENRY, 1975,

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

p. 88). Henry points out that Hume does not have any «ontology of subjectivity» (1975, p. 88),
that it does not accept Biran’s claim that «we are able to have a sentiment without knowing in
any way its means», and that it «has no need to speak of our desire, our wish to accomplish
movement, since it is not disposed to any theory likely to take account of the belonging of these
psychic states to the self’ […] » (O’SULLIVAN, 2006, p. 52). As Henry himself puts it:

Once it becomes an instrument, the movement of the body is given to us only


in a transcendent experience. The theme of thought would then be this
instrument and not the goal of action or of movement which it wishes to
accomplish, which is absurd, for, presupposing that the subject can think of
both the means and the goal of its action at one and the same time, this does
not mean that it would execute this action, it would merely represent it, it
would represent to itself its [84] goal and the means for arriving at it, but it
would not act. This thought of the goal and of the means surely exists, but the
thought of movement is not movement. The latter is an entirely new
phenomenon with respect to this thought and this is precisely the phenomenon
with which we are dealing. The conception of the body as an instrument of
our action is therefore an element of our representation of movement, but it
cannot in any way be part of a theory of real movement itself. Hence, we
apperceive more and more clearly that the ontological theory of subjective
movement, far from reducing movement to its idea, rather makes us arrive at
the conception of the only foundation possible for the reality of movement and
the body. (HENRY, 1975, p. 61).

That’s why «we would have to be in possession of an ontology of subjectivity and not
an empirical conception of interior life […]. Hume, who bears the heavy inheritance of
Cartesian dualism, divides into a first phase which is will or desire to accomplish movement
and a second phase which consists in the corresponding material process» (HENRY, 1975, p.
63). From the perspective of a phenomenological ontology, «this causality, before being an
idea, is a power and this power is revealed to us in the same way as the being of the ego with
which it is fused» (HENRY, 1975, p. 71).
Henry points out that «The first condition which a theory of the movement of one's own
body must satisfy is to be in a position to account for a feeling of this movement which I
accomplish myself, of a power in the course of its exercise, a power which is mine» (HENRY,
1975, p. 65).
This type of analysis also shows the complete failure of empirical psychology, because
«the type of movement which intellectualism attempts to reconstruct is in reality only a
representation of movement whereas the being of movement and the problem of its original
knowledge completely escapes it» (HENRY, 1975, p. 66). While the field of inquiry
remains only at the level of representation, the variety of modes of givenness of our body

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

– shown clearly by Henry with the analysis of movement –, many of our direct experiences
with our body – mainly affectivity – remain unthought. One of the most important contributions
of Maine de Biran – recovered brilliantly by Henry – consists in accounting for the fact that the
core of our experience with ourselves usually remains far away from theoretical or intellectual
knowledge. It is evident that Freud dealt with the same problems, though of course from a
different perspective, where the clinical concerns come to first place, because the main
analytical task targets suffering, and not just representation. Continuing along this line, it was
Paul Ricœur in De l’interprétation (1965) one of the firsts to show the cardinal feature of
psychoanalysis: Freud’s mixed epistemology, mainly built by two different types of concepts
and lines of thought: on the one hand, the energetic one, where we may locate the concepts of
Trieb (drive), Affektbetrag (quantum of affect), Libido, Wunsch (wish) and all the processes
related to repression in general, which where described by Freud as Seelenvorgänge, as
processes related to the soul. What the Metapsychology names as ‘dynamics’ and ‘economics’,
in short. On the other hand, the hermeneutic one, related to the main issue of interpretation, the
meaning of symptoms, phantasies, our history and the whole symbolic dimension which, at last,
includes the very notion of ‘culture’. According to Freud, the Ego is ‘culture’ in each one of us.
Returning to our theme, similar objections arise towards Kantian presuppositions. In a
Kantian perspective, «only two sources of knowledge exist: sensation and judgment» (Henry,
1975, p. 70). As Henry puts it, the entire philosophy of Maine de Biran

consists precisely in the affirmation that the feeling of action does not result
from a sensation, that action is known in itself insofar as it pertains to the
sphere of subjectivity, insofar as it is a fact of the relationship of immediate
knowledge to itself” […]. We have asserted that movement is known to us
immediately and we have denied that muscular sensation or any other form of
mediation plays the smallest role in this primordial knowledge which is ours
and which is less a knowledge of our body than the phenomenological being
of this body itself. (HENRY, 1975, p. 70).

That’s why Henry asks:

Where does the being of the ego find a place in such an ontology, where is its
concrete life, its action, its movement? » […]. «In order to be in a position to
answer these questions, which are the lot of first philosophy, we must first
reject Kantian ontology and be possessed of an ontology which is first of all
an ontology of life, an ontology of subjectivity and the ego. Doubtless, I judge
that it is I who act; such a judgment presupposes the intervention within my
mind of the idea of causality, but the transcendental deduction of the
categories has shown us that the latter do not float in air nor do they occupy
our mind by accident; rather they have a foundation which is precisely the

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021


concrete life of the ego, its action and its movement, in a word, its body. Not
only […] the idea of necessity presupposes the idea of causality and that the
idea of causality presupposes the idea of action, we must still see that the idea
of action presupposes action itself. (HENRY, 1975, p. 71).

At this point, Henry shares the same ideas developed by Freud in his Project of
Psychology (1895) and the main role of energy and movement in the constitution of
subjectivity.

2 THE ‘TWOFOLD USAGE OF SIGNS’ AND THE PROBLEM OF THE


FUNDAMENTAL ONTOLOGICAL AMBIGUITY WHICH LEADS TO THE
‘BODY–OBJECT’

This section discusses the role of language operating in how we end considering our
body as an ‘object’. Cartesianism, Empiricism and Kantian philosophy –the same as
mainstream Biomedicine– (still) conceive the body as an object. According to these
perspectives, in which this body–object belongs to nature –res extensa–,

everything takes place as if the body were nothing other than this object which
we see and as if the original being of the body whose ontological analysis we
have given were nothing but a chimera […]. There is a sort of absorption of
the originally subjective being of the body in this body which manifests itself
to us among things, the first becomes interior to the second and the entire
being of our body is reduced to its constituted being. (HENRY, 1975, p. 109).

Henry –again following Biran– upholds the idea that if the element immanent to my
body is considered as the nucleus of the body–object, ‘object’ which I can see or touch, «that
which we call immanence has thus become the very essence of the transcendent» (Henry, 1975,
109). But

before clarifying the fundamental ontological ambiguity which presides over


the occurrence of such a transformation, we first must show how this
transformation is at the origin of the perception or the knowledge which we
have of our body, of this knowledge as it is expressed by common sense in
everyday language. (HENRY, 1975, p. 109).

After discarding the thesis according to which movement could be known by way of
muscular sensation, Henry turns to analyse how we use common language –a method very
well known by psychoanalysis– to show how this daily, cultural uses frequently refer to the

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

implicit assumptions we uphold unconsciously. From his peculiar phenomenological


perspective, the eye, the ear and the hand are elements of the transcendent body. This common
sense language says:

The eye sees the panaroma, the hand moves toward the table and touches it,
its ear hears the melody. The eye, the hand, the ear are elements of the
transcendent body, they manifest themselves to consciousness in the truth of
being, there they have a place, a spatial configuration and perceived or
scientifically determined relationships with all the objects of nature. It is
precisely such transcendent elements which bear within themselves the
nucleus of the body, i.e. this ensemble of powers whereby the body sees,
moves, touches, and hears. Nevertheless, the latter had been characterized by
us as belonging to a sphere of radical immanence, as constituting the being of
a subjective body. (HENRY, 1975, p. 109).

According to Henry, the results of the ontological analysis of the original being of our
body – the transcendent body– constitute a part of absolute knowledge upon which
phenomenological ontology is built. Here appears what we have referred to as the genuine
Biranian contribution. It is therefore clear that Henry uncovers a genuine epistemological
problem within empiricism:

Moreover how could we maintain this absurdity whereby ultimately what we


see and touch would also be that which sees and touches? This body which
we [152] see and which we call our own presupposes, as Biran has shown us,
another body which sees and which touches, which sees and touches all things
and among them this body which is seen and touched. It is this other body
which is the original body, whose being has been determined as belonging to
the sphere of absolute subjectivity outside which it was unable to arise without
losing everything which makes it what it is. (HENRY, 1975, pp. 109-110).

This original being of our body is an ontological power which cannot be identified or
incorporated into an element of nature. The arguments that support the impossibility of this
identification are given by Henry conjointly when he explains what Biran called “the twofold
usage of signs”. In fact – states Henry –

this identification is a naive representation and actually an illusion. It is the


general theory of this illusion that Maine de Biran proposes to us in the
analysis of what he calls "the twofold usage of signs." Let us consider the
experience of seeing: It is an internal transcendental experience. This
experience transcends itself toward a world, but it takes place entirely within
a sphere of radical immanence. If we now express in language this experience
of vision, we use the word "to see" which is, to speak as Maine de Biran, the
"sign" of seeing. How this sign is related to the internal experience of seeing,
how, in a general way, language is based on the life of absolute subjectivity

249
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021


which it expresses, this is what cannot be clarified here. (HENRY, 1975, p.
110).

3 THE PROCESS OF FOUNDATION OF REFLECTIVE LANGUAGE IS


ULTIMATELY REDUCED TO THAT OF NATURAL LANGUAGE

To Henry, this fundamental ontological ambiguity leads to call attention to language, as


many other phenomenological thinkers have remarked; and we may also suspect here the strong
influence of Freud’s psychoanalysis in this account. Of course, as it is well known, this is a
statement often made by psychoanalysts. As Henry puts it:

The process of foundation of reflective language is ultimately reduced to that


of natural language. Even if we assume that the words 'I see' designate the
representation of my seeing and not my seeing itself, nevertheless, it is upon
the latter, upon its radically immanent experience and upon it alone, that their
meaning ultimately rests […]. The entire ontological ambiguity in the
phenomenon described by Maine de Biran under the name of the "twofold
usage of signs" resides in the fact that a relationship is established between the
words 'I see' and a physiological organ, such that the sign 'to see' has a twofold
usage and designates both the eye, or at least a property thereof, as well as the
internal transcendental experience of seeing. (HENRY, 1975, p. 111).

And a few pages after Henry clarifies the main differences between the ‘physiological
objectivity’ and the ‘objectivity of being’, highlighting that the individual ego cannot be
identified with any organic center:

“From this stems a frequently illusory similarity between the physiologist and
the metaphysician who, while using the same terms, believe they are dealing
with the same things or subscribing to the same system of ideas”. The
relationship of the original being of the body to the system of organs which
physiology studies can only be, according to Biran, a symbolic relationship at
the end of which the physiological division appears as a symbol or a sign of
the transcendental division […[. For example, if we consider movement,
physiology will think that it can account for it by imagining a center of action
in the brain which will serve as the origin from which this movement begins.
"But is this anything other than a symbol? Can the individual ego be identified
with any organic center? Is the action which we relate 'objectively' to such a
center the same as that which we attribute to ourselves in the intimate
consciousness of effort? Are these not two ideas, two facts of a totally different
order? How can the mind pass from one to the other?'" [158]. (HENRY, 1975,
p. 114).

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

4 CONCLUSIONS: THE ONTOLOGICAL DIFFERENCE. THE RELATIONSHIP


BETWEEN THESE TWO "FACTS", THE PHYSIOLOGICAL BODY AND THE
ORIGINAL BEING OF OUR BODY

To a certain extent, it seems that Henry arrives to Heidegger and his idea of the
ontological difference, but he uses this concept to clarify the being of our body and its
transcendental constitution. Though the similarities, we should remember that Henry aims to
rise higher in the scale of understanding the philosophical status of the body, when Heidegger
followed another philosophical horizon.
Henry concludes that

since the relationship between these two "facts", i.e. between the physiological
body and the original being of our body, is analogous to the relationship
between the sign and the thing signified, the philosophical meaning of this
relationship is twofold: On the one hand, the sign aids us in our comprehension
of the thing signified, "Every metaphysical analysis, confidently basing itself
upon a physiological division between the organs, their functions and
interplay, receives therefrom this clarity, this apparent facility which images
communicate to reflective notions, by uniting themselves with them as
symbols destined to explain what is in itself obscure;" on the other hand, this
aid is illusory; it makes us believe that "by combining certain organic
movements we can deduce... psychological facts which can only be verified
by the intimate sense," such that "the so-called explanations teach us nothing
about the subject in question and only serve to obscure it by substituting
confused images for simple and perfectly clear ideas of reflection”. This latter
text, which again asserts the absolute character of the evidence inherent in the
sphere of transcendental immanence, suggests that we re-question many
analyses of Biran in which physiological investigations appear as a necessary
and useful complement to peculiarly psychological investigations. (Henry,
1975, pp. 114-115).

Towards circumscribing the problem of the constitution of one's own body and the
question of the ‘two bodies’ and the ontological difference, what Henry intends to signify when
he speaks of ontological dualism is merely the necessity of the existence of this sphere of
absolute subjectivity, without which our experience of the world would not be possible.
Towards the question of the two bodies, the ‘subjective–body’ and the ‘body–object’,

it becomes immediately apparent that the duality which splits in an


incomprehensible manner the unity of the being of my body and which causes
this being to be given to me twice, so to speak, finds its foundation in the
ontological structure of truth, a structure in virtue of which something
manifests itself to us in the truth of transcendent being only on condition of a

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Volume 06, Número 10, Ano 2021


more original revelation in a milieu of absolute immanence. (HENRY, 1975,
p. 115).

At last, Henry states that

Ontological dualism is the foundation for the twofold usage of signs. Because
there exist, as Maine de Biran says, "two sources of evidence", our body is
given us in a way such that each of its original powers, concerning which we
have an immediate knowledge in the subjective experience of movement
which constitutes its essence, also manifests itself to us in the form of an organ
or some physiological or spatial determination. The difference between the
original being of this power and the organ which seems to be its instrument is
in no way situated on an ontic level, it is not a difference between something
and something else, it is an ontological difference, not a difference in
individuality, but in the manner of being, i.e. relative to the region at the heart
of which being manifests itself and exists [161]. (HENRY, 1975, pp. 115-
116).

Though the ensemble of problems relative to the body are not –of course– fully solved,
Philosophie et Phénoménologie du corps let us find ourselves in the presence of certain
schemata of thought that will be enlarged in other studies like Incarnation (2003), for example.
To say that the ontological dualism is the foundation for the twofold usage of signs seems to be
a quite a Heideggerian conclusion, but with the addition of this new dimensions when referring
it to the body and its constitution, and with another ontological horizon interior to which he
philosophised. But much deeper and more notorious is the influence of Maine de Biran on
Henry, as we have tried to show along this paper. After studying Philosophie et
Phénoménologie du corps, it is even possible to conjecture that for Henry, Maine de Biran
would be a central and founding figure of a phenomenology of movement and action (J'agis,
donc j'existe, or j'agis, donc je suis), as proposed by Vancourt in La théorie de la connaissance
chez Maine de Biran (1942), who already highlighted the existence of a very precise conception
of the nature of unconscious representations in Maine de Biran (1806) (VANCOURT, 1944, p.
10).
We shall thus see that Maine de Biran already referred to the fact that the immediate
certainty of the existence of the body is entailed in 'the primitive fact' (the 'first philosophy' to
which Henry often refers, ontology), and that

la connaissance que nous avons de ce corps est une connaissance par


l’intérieur, par ‘sentiment’ (…). Sur le terrain de l’apperception immédiate,
du sentiment intérieur, l’union de l’âme et du corps s’impose (est une donnée)
purement a ma constatation (…). Dans le fait primitif, est une connaissance

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

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par l’intérieur et non une représentation objective par idées. (VANCOURT,
1944, pp. 70-74).

This connaissance par l’intérieur (et non une représentation objective par idées)
defines, in a certain way, one of the main cores of Henry’s phenomenology and, as far as I am
able to judge, a capital assumption to understand our corporality from the perspective of
absolute subjectivity.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

REFERENCES

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Recebido em:14/05/2021
Aprovado em: 11/06/2021
Publicado em: 15/07/2021

METODOLOGIA PARA A RECEPÇÃO FILOSÓFICA


o caso Nietzsche como exemplo

METHODOLOGY FOR PHILOSOPHICAL RECEPTION


the Nietzsche case as an example

Geraldo Pereira Dias1


([email protected])
Ivo da Silva Júnior2
([email protected])

Resumo: O objetivo deste artigo é o de contribuir para delinear, mesmo que em linhas gerais, uma
metodologia para o trabalho de recepção filosófica, haja vista não haver balizas consensuais para esse
tipo abordagem. Como forma de nos certificarmos da adequação da metodologia proposta, num primeiro
momento analisamos dois textos em que ocorrem a recepção da filosofia de Nietzsche, um de autoria de
Evaristo Morais Filho, e outro de Antonio Candido. Num segundo momento, procuramos, tendo por
base os dois textos analisados, explicitar e detalhar as balizas metodológicas que usamos nas análises
precedentes. Por fim, enfatizamos aquilo que consideramos ser o objetivo principal de um trabalho de
recepção filosófica.

Palavras-chave: Nietzsche. Recepção filosófica. Metodologia. Antonio Candido. Evaristo de Morais


Filho.

Abstract: This article aims to contribute to outline, even if in general lines, a methodology for the work
of philosophical reception, since there are no consensual guidelines for this type of approach. As a way
of making sure the adequacy of the proposed methodology, at first, we analyzed two texts in which the
reception of Nietzsche's philosophy occurs, one by Evaristo Morais Filho and the other by Antonio
Candido. In the second moment, we tried, based on the two proportional texts, to explain and take
advantage of the methodological points that they have in the previous analysis. Finally, we emphasize
what you consider to be the main objective of a work of philosophical reception.

Keywords: Nietzsche. Philosophical reception. Methodology. Antonio Candido. Evaristo de Morais


Filho.

INTRODUÇÃO

1
Professor Doutor em Filosofia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras – FAFIC.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0119495005867456.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6846-036X.
2
Professor Doutor em Filosofia na Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0867604979777627.
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-4171-8759.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

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Embora a recepção da filosofia de Nietzsche no Brasil tenha começado já no final do


século XIX, somente a partir dos 1940 ela terá maior envergadura. As comemorações do
centenário do nascimento do filósofo, em 1944, em muito contribuíram para essa nova etapa da
recepção. Naquele momento, muitos intelectuais saíram em defesa da filosofia nietzschiana
para tentar desfazer a sua aproximação com a ideologia nazista, comum no pós-Guerra, aqui
como alhures, como bem atesta Temístocles Linhares, que lamenta o fato de que essa injustiça
tenha assumido “grau tão elevado que se afigurava natural” (LINHARES, 1944, p. 01). Sérgio
Milliet, Mário Ferreira dos Santos, Florestan Fernandes, Evaristo de Morais Filho e Antonio
Candido foram alguns dos que procuraram reabilitar a filosofia de Nietzsche. No entanto,
mesmo com o empenho de muitos em desfazer esses equívocos, posições divergentes
permaneceram. O pensador marxista Edmundo Moniz foi bastante preciso ao considerar que
tanto “[a] ‘cultura reacionária’ assim como a ‘cultura inovadora’ o tem [Nietzsche] disputado
para suas fileiras”: uns o qualificando como “ultrarreacionário”; outros, por sua vez, o
considerando “como um ‘socialista’ inconsciente” (MONIZ, 1941, p. 08).
Neste artigo, não visando a um trabalho exaustivo sobre a recepção da filosofia de
Nietzsche, que procurou recuperar o pensador das abordagens da extrema-direita em meados
do século XX, analisaremos apenas a posição de dois intelectuais, a de Evaristo de Morais Filho
e a de Antonio Candido, nos textos “O centenário de Nietzsche e o nazismo” e “O portador”,
respectivamente3. Como num balão de ensaio, gostaríamos de fazer operar nesses dois textos
uma metodologia para a recepção filosófica4, que aqui procuraremos, ou mesmo, ousaremos,
esboçar em linhas gerais, sempre nos apoiando, em grande medida, nas contribuições de Agnes
Heller5.
Na primeira parte deste trabalho, analisaremos a recepção de Nietzsche realizada por
Evaristo Morais Filho e Antonio Candido; na segunda, discorreremos sobre a maneira pela qual

3
O texto de Evaristo Morais Filho foi publicado no jornal carioca Diário de Notícias, em 1945; já o de Antonio
Candido foi publicado no jornal Diário de São Paulo, em 1946, com o título “Notícia de crítica literária. Breve
nota sobre um grande tema”. Este texto foi recuperado quando da publicação d’O observador literário, em
1959 (4ª. edição, Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2008, p. 79-87). Depois foi reeditado como posfácio no
volume Obras incompletas de Nietzsche, da Coleção “Os Pensadores” e, com a autorização do autor e da
editora, nos Cadernos Nietzsche (São Paulo, Porto Seguro, GEN, vol. 32, 2013), numa série com textos sobre
a recepção de Nietzsche no Brasil.
4
Muitas são as dificuldades metodológicas para se realizar um trabalho de recepção filosófica. Se existem
métodos estabelecidos para o trabalho em História da Filosofia, o mesmo não ocorre com o de recepção, seja
a filosófica ou a literária (a respeito, cf. notas 13 e 15, respectivamente). Uma das ambições deste artigo, como
acabamos de indicar, é justamente dar um passo no estabelecimento de uma ferramenta metodológica, uma
vez que, pela experiência, como se bem pode verificar nos trabalhos desenvolvidos no CENBRA – Centro de
Estudos Nietzsche – recepção no Brasil (http://cenbra.sites.unifesp.br/), tal recurso é mais do que necessário.
5
HELLER, Agnes. A filosofia radical. Tradução Carlos Nelson Coutinho. São Paulo. Editora Brasiliense,
1983.

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pode ser realizado um trabalho de recepção filosófica; na última parte, como forma de concluir
o texto, mas não a discussão, enfatizaremos aquilo que consideramos ser a razão maior de um
estudo de recepção filosófica.

1 A RECEPÇÃO REABILITADORA DE NIETZSCHE, POR EVARISTO MORAIS


FILHO E ANTONIO CANDIDO

Os dois textos em questão, “O centenário de Nietzsche e o nazismo”, de 1945, e “O


portador”, de 1946, praticamente contemporâneos, procuram, como já dissemos, trazer
elementos para deslocar o pensamento de Nietzsche do espectro do nazismo6. Um dos autores,
Evaristo de Morais Filho, foi escritor conhecido à época, membro da Academia Brasileira de
Letras7; o outro, Antonio Candido, foi crítico literário e professor acadêmico8. Ambos, com
conhecimento da história da filosofia, numa medida mais ampla ou mais restrita. Nenhum deles,
contudo, com pretensões filosofantes. Ao dizer isso, queremos chamar a atenção, desde já, para
o fato de que diversa é a procedência dos receptores filosóficos: pode ser um escritor, jornalista,
músico, artista plástico, cineasta, diretor de teatro, agente político, dentre muitas outras.
Diversidade esta que indica haver interesses vários no contato com as filosofias.
Antes de levarmos adiante a discussão sobre a procedência e a do interesse, que vai se
mostrar como o preenchimento de um certo carecimento, isto é, falta ou lacuna numa
determinada área, assim como de discutir tipos de recepção possíveis, convém trazer o
“material” que servirá de auxílio para bem balizar o trato com a questão metodológica.
Evaristo de Morais Filho, no seu artigo “O centenário de Nietzsche e o nazismo”, denso
e polêmico, extrai conclusões, metodológicas e políticas da obra do pensador, contrárias à

6
Muitos são os trabalhos que investigam as razões da apropriação da filosofia de Nietzsche pelo nazismo, na
Alemanha e alhures. Aqui, não cabe tratá-los, visto que o objetivo deste artigo consiste em refletir sobre a
fundamentação de uma metodologia para a recepção filosófica a partir da análise dos textos de Evaristo de
Morais Filho e Antonio Candido. Como mera indicação, ver MONTINARI, M. “Interpretações nazistas”.
Trad. Dion Davi Macedo. In: Cadernos Nietzsche, 7, 1999, p. 55-77 / https://gen-
grupodeestudosnietzsche.net/wp-content/uploads/2018/05/cn_07_04-Montinari.pdf; ASCHHEIM, Steven E.
The Nietzsche Legacy in Germany 1890-1990. University of California Press, London, England, 1992.
7
Evaristo de Morais Filho (1914-2016), foi membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). Licenciou-se
em filosofia pela Universidade do Rio de Janeiro, mais tarde Universidade do Brasil e, atualmente,
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor de uma vasta bibliografia, publicou livros como “Perspectiva
de uma Filosofia do Trabalho”, de 1959, e “História do Positivismo no Brasil”, de 1965.
8
Antonio Candido (1918-2017) foi professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da
Universidade de São Paulo, tem uma vasta produção, das quais destacamos Os parceiros do Rio Bonito:
estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida, de 1964, e Formação da literatura
brasileira, de 1975.

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ideologia nazista. Vejamos então a seguir como ele recepcionou a filosofia de Nietzsche e como
procedeu para tentar a sua reabilitação, diante das apropriações da extrema-direita.

Não nego que seja fácil encontrar em sua obra farto material que sirva de
fundamento doutrinário do nazismo, mas, por outro lado, também seria bem
fácil colher ali inúmeros argumentos contra esse mesmo nazismo. A filosofia
de Nietzsche, pela forma com que foi exposta – de aforismos e contradições
constantes – serve de ponto de referência para mais de uma direção política.
Tanto pode ficar no centro, como caminhar para a direita ou orientar-se para
a esquerda. O que menos preocupou Nietzsche foi ver aplicadas na prática as
suas frases soltas, lançadas no papel ao correr da pena, entre uma e outra dose
de cloral, como marcos felizes dos seus intervalos sem dor. Vivesse ainda
Nietzsche, e estou certo, veria ele no nazismo o exemplo mais cruel da sua
moral de rebanho e de escravos, de filisteus da cultura, de covardes que se
assenhorearam ardilosamente do poder para o desafogo de vinganças e
ressentimentos recalcados (MORAIS FILHO, 1945, p. 01).

Pouco comum entre os intelectuais brasileiros preocupados em reabilitar a obra de


Nietzsche, Evaristo Morais Filho admite que nela é possível encontrar farto material que serviu
de fundamento doutrinário ao nazismo. Pouco comum porque geralmente as defesas que se
faziam eram bastante radicais e procuravam inocentar de forma integral o pensador, não
admitindo nenhum aspecto conversador em sua obra. Mas, deixando claro o seu ponto de vista,
Evaristo Morais Filho defende que também é fácil colher na obra de Nietzsche inúmeros
argumentos contrários ao nazismo. Em sua estratégia de reabilitação, comum à época,
argumenta ser o estilo de exposição, na forma de aforismos e contradições constantes, o
principal motivo para a obra do filósofo ter servido de referência para mais de uma direção
política, seja para o centro, para esquerda ou para a direita. No seu ver, esta forma singular de
filosofar de Nietzsche ocorria em virtude das dores do filósofo e do uso de substâncias para
estancá-las, obrigando-o a escrever de forma fragmentária e despreocupada. Além da biografia,
Evaristo Morais Filho recorre a conceitos do próprio filósofo para evidenciar que o nazismo é
fruto do ressentimento, composto por filisteus da cultura, configurando-se como uma moral de
escravos.
Ao logo do artigo, observamos que é sempre em vista do horizonte ideológico-político
brasileiro que o autor recepciona a filosofia de Nietzsche. Ao colher na sua obra argumentos
contrários ao nazismo, a questão que se coloca é a de saber a maneira pela qual ele teve acesso
à obra. E com qual material teria trabalhado. É possível ver que, para nela colher argumentos
contrários ao nazismo, ele recorreu sobretudo às obras a partir do período intermediário, embora
haja referências às Considerações inatuais: Humano, demasiado humano, Gaya Scienza,
Assim falava Zaratustra, Crepúsculo dos Deuses e A Vontade de Poder (que era tido por

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ele como uma obra de Nietzsche)9. O acesso às obras, ao que tudo indica, foi parcial e a ausência
de padronização dos títulos dos livros citados acima assinala que teria trabalhado com traduções
diversas, em espanhol e em francês.
A estratégia de mostrar que conceitos como “super-homem”, “vontade de poder” e
“eterno retorno” são contrários à doutrina nazista é bem-sucedida na época, embora seja feita
de forma parcial, isto é, sem levar em conta o conjunto da obra de Nietzsche. Parcial porque,
entre outros motivos, é a vida do pensador, “que sofria de dores terríveis em todo o corpo, e
particularmente na cabeça”, que serve como estratégia para interpretar seus conceitos, alegando
que esse foi o motivo de ele fazer “da filosofia a terapêutica para os seus males”. A filosofia de
Nietzsche seria assim uma “resistência, de vontade de poder, de afirmação da vida”, necessária
para o filósofo “desafiar e vencer as debilidades do corpo, e aceitar sempre a vida, ainda que
dolorosa e má”. Não somente “aceitá-la, como também desejá-la de volta uma infinidade de
vezes”. Assim teria nascido a sua “teoria do eterno retorno”, enquanto “triunfo mais alto sobre
a tortura cotidiana”: “Vale a pena viver na terra: um dia, uma festa em companhia de Zaratustra,
me ensinaram a amar a terra”, nas palavras que cita de Zaratustra. Partindo não do conjunto da
obra, mas das vivências de seu autor, conclui que “[n]ão queria Nietzsche fazer da humanidade
uma minoria de super-homens a tiranizar e a gozar a maioria de outros pobres homens comuns”.
Extraindo trechos isolados, associa o nazismo com a ideia de rebanho; quando, ao contrário, a
personagem Zaratustra teria saído à procura de companheiros, “não de rebanhos, nem de
crentes”. Por fim, entende que nesses trechos do Zaratustra estaria contido toda a crítica do
nazismo, uma vez que para Zaratustra o “que importa são companheiros vivos e livres,
independentes e em permanente atitude crítica, colaboradores, enfim, e não crentes, fanáticos”
(FILHO, 1945, p. 05).
Outro recurso estratégico de Evaristo Morais Filho consiste em argumentar que a
concepção dos instintos do filósofo é de proveniência “estoica e ascética”, ao passo que a dos
“nazistas são uns gozadores, reduzindo a criatura humana a um simples animal instintivo e
sedento de prazeres os mais baixos possíveis” (FILHO, 1945, p. 01). Novamente, como
podemos notar, não é a partir da totalidade da obra que argumenta, mas a partir de aspectos
parciais, explicados de maneira externa a ela.

9
Nota-se que o acesso de Evaristo Morais Filho às obras de Nietzsche se deu através de traduções diversas,
seja espanhol, francês, italiano e português. Com o título Crepúsculo dos Deuses, certamente ele quis referir-
se ao título Crepúsculo dos ídolos. Mas não se trata de erro tipográfico. Era comum à época certa imprecisão
e ausência de padronização ortográfica com os títulos das obras de Nietzsche. Sobre Vontade de potência,
sabemos que a obra é de Elisabeth Förster-Nietzsche.

259
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Ainda outro recurso estratégico adotado consiste em esvaziar a obra e seus conceitos de
todo elemento social concreto. Esse é mais um indicativo da recepção parcial realizada por
Evaristo Morais Filho, no sentido de não levar em conta todos os aspectos constitutivos da obra
e de forma integrada, deixando de fora o seu caráter de ação moral palpável no âmbito social.
Assim como é parcial argumentar que a obra de Nietzsche foi exposta na forma de aforismos e
contradições, deixando de fora as obras escritas na forma dissertativa.
As ambiguidades decorrentes dessa recepção se manifestam, entre outros pontos,
quando Evaristo Morais Filho argumenta que a “doutrina da vontade de poder de Nietzsche
tanto pode ser aplicada ao nazismo como ao seu oposto político ideológico, isto é, à doutrina
da luta de classes” (FILHO, 1945, p. 01). Uma leitura imanente da obra, considerada em sua
totalidade, muito provavelmente não autorizaria tal argumentação, entre outros motivos porque
são completamente opostas e auto excludentes.
Ao recorrer a trechos de aforismos de Humano, demasiado humano, novamente
observa-se uma leitura parcial da obra de pensamento do filósofo. Essa parcialidade se faz ver,
entre outros, na maneira insegura da tradução dos trechos escolhidos. Vejamos a seguir um
trecho do livro mobilizado por Evaristo Morais Filho em favor da reabilitação de Nietzsche e
contra a apropriação nazista.

E no aforismo 481 do “Humano, demasiado humano”, lê-se essa crítica ao


armamentismo, ao chauvinismo patriótico, à guerra, como não o faria melhor
nenhum de nós, que estamos assistindo diretamente as consequências desses
fatos: “Do mesmo modo que um povo sofre os grandes prejuízos que ocasiona
a guerra e a preparação desta pelos gastos de guerra, pelas perturbações do
comércio e das comunicações, nem tão pouco pela manutenção dos exércitos
permanentes – por graves que possam ser estes prejuízos, hoje oito Estados da
Europa gastam nisso anualmente a soma de cinco mil milhões – mas também
porque de ano em ano os homens mais sãos, os mais fortes, os mais laboriosos,
se veem arrancados de suas ocupações e de suas vocações próprias para ser
sodados, do mesmo modo a um povo que se constitui no dever de fazer grande
política e assegurar-se uma situação preponderante entre as potências não
sofre os mais graves prejuízos onde os encontra comumente. É verdade que a
partir deste momento sacrifica continuamente uma multidão de talentos de
primeira ordem “no altar da pátria” ou por ambição nacional, enquanto que
esses talentos, que agora devora a política, encontravam abertos outros
campos de ação” (FILHO, 1945, p. 05).

A tradução do trecho para o português subtrai ao menos uma vez o advérbio negativo
nicht, tornando a frase inicial afirmativa, quanto é negativa. Com efeito, no original, a negação
aparece três vezes; na tradução de Evaristo, duas vezes. Para melhor entender o trecho original,
desconsideremos o que vem entre os travessões e acrescentemos o uso do itálico nas
negações.

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Ebenso wie ein Volk die grössten Einbussen, welche Krieg und
Kriegsbereitschaft mit sich bringen, nicht durch die Unkosten des Krieges, die
Stauungen im Handel und Wandel erleidet, ebenso nicht durch die
Unterhaltung der stehenden Heere, sondern dadurch, dass Jahr aus Jahr ein die
tüchtigsten, kräftigsten, arbeitsamsten Männer in ausserordentlicher Anzahl
ihren eigentlichen Beschäftigungen und Berufen entzogen werden, um
Soldaten zu sein: ebenso erleidet ein Volk, welches sich anschickt, grosse
Politik zu treiben und unter den mächtigsten Staaten sich eine entscheidende
Stimme zu sichern, seine grössten Einbussen nicht darin, worin man sie
gewöhnlich findet (MA/HDH, § 481, KAS 2.314-316).

Uma outra tradução possível do trecho acima, sem a subtração das negações, poderia
ser feita da forma seguinte:

Assim como um povo não sofre as perdas maiores, trazidas pela guerra e pelo
estado de prontidão, nem com as despesas bélicas, a obstrução dos transportes
e do comércio ou a manutenção de um exército regular, mas sim com o fato
de que ano a ano os homens mais capazes, mais vigorosos, mais trabalhadores
são removidos em número extraordinário de suas ocupações e profissões, para
se tornarem soldados: de igual modo, um povo que se dispõe a praticar a
grande política e a garantir uma voz decisiva entre os Estados mais poderosos
não experimenta suas maiores perdas onde geralmente as encontramos
(tradução de Paulo César de Souza, modificada) (MA/HDH, § 481, KAS
2.314-316).

Além de uma subtração da negação, observa-se a substituição do uso dos dois pontos
por uma virgula, após a palavra “sein:”. Outro ponto problemático da tradução de Evaristo
encontra-se na seguinte parte final do trecho acolhido: “que agora devora a política”. No
original, lemos “welche jetzt die Politik verschlingt”, podendo ser mais bem traduzido por: “que
agora são devorados pela política”. O título do aforismo indica com precisão o seu ponto
central: “A grande política e suas perdas”. As maiores perdas de um povo não se encontram
tanto na manutenção de um exército, mas na disposição para “praticar a grande política” e por
meio dela tentar garantir um lugar decisivo entre os Estados mais poderosos. Ao contrário da
leitura de Evaristo Morais Filho, exclusivamente orientada pelo momento político que exige a
reabilitação da obra de Nietzsche, no aforismo não há tanto uma “crítica ao armamentismo” e
“à guerra”, e sim ao que o pensador chama de a grande política (grosse Politik) que, esta sim,
ocasionaria perdas.

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No que tange ao texto “O portador”, de 1947, do crítico literário Antonio Candido, a


recuperação da filosofia de Nietzsche vem na trilha aberta por pensadores franceses que, com
o final da segunda guerra, começam a resgatar esse pensamento dos escombros10.
Com uma leitura entusiasta, que transforma o pensador numa ferramenta antidogmática,
como farão com ênfase os franceses, já nos entreguerras, na trilha de George Bataille, e que
continua posteriormente na mesma direção, até chegar a nós, com a leitura de Gérard Lebrun,
Antonio Candido tinha a intenção de contribuir para a desnazificação do filósofo, mesmo que,
diríamos nós, ao preço de minimizar a sua filosofia11. Caminhemos neste sentido nas linhas que
se seguem, lembrando que o acesso do autor às obras de Nietzsche, na edição de Karl Schlechta,
que, embora sem equívocos de monta, também não deixa de apresentar muitos problemas
(MÜLLER-LAUTER, 1997, pp. 59-62), foi posterior à escrita de “O portador” (cf. nota 1 do
texto de Candido, acrescentada em 1959). Ou seja, o material utilizado (como o livro Vontade
de potência, forjado pela irmã do filósofo) é anterior às primeiras tentativas de sistematização
crítica das obras de Nietzsche.
Com a retomada necessária, neste momento do mundo, do humanismo, Antonio
Candido, no início de seu texto, pôde entender que – afastadas as leituras de má fé ou ingênuas
– a filosofia de Nietzsche poderia servir como portadora de meios para “muitos problemas do
humanismo contemporâneo”. Não afirma que a filosofia de Nietzsche é humanista, mas que
pode contribuir numa direção que talvez não fosse a do filósofo 12. Sugere, pois, no sentido do
que Foucault trará posteriormente, que se instrumentalize a filosofia de Nietzsche, encarando-
a como um modo de pensar. “Mesmo rejeitando o conteúdo das ideias, devemos reter e ponderar
a sua técnica de pensamento, como propedêutica à superação de condições individuais”
(CANDIDO, 2014, p. 419). “O essencial de uma filosofia é uma certa estrutura”13, poderíamos

10
As motivações pessoais de Antonio Candido para a escrita deste texto, que ele sempre narrava quando
indagado sobre, ou que trazia simplesmente quando se mencionava o nome de Nietzsche, não nos interessam
aqui, pois, como veremos na segunda parte deste trabalho, a recepção neste autor não se deu para o
preenchimento de um carecimento intelectual ou pessoal, mas para se certificar do acerto de posições de um
ente querido (cf., adiante, nota, 18). Importa-nos sobretudo verificar a “imagem” de Nietzsche, fruto da
recepção numa época determinada.
11
Cf. BATAILLE, G. Nietzsche et les fasciste, Acéphale, 1937 e LEBRUN, G. “Por que ler Nietzsche hoje?”.
In: Passeios ao léu. São Paulo: Brasiliense, p. 198. Não queremos, aqui, evidentemente, dizer que toda a
interpretação da filosofia de Nietzsche da segunda metade do século XX em diante, de lavra de autores
franceses, caminha na mesma direção aqui exposta, qual seja, a de minimizar, esvaziando conceitualmente a
filosofia nietzschiana. Embora esta seja uma das marcas desta tradição de comentários que não deve ser
relegada a um segundo plano, em particular por conta das consequências que acarreta.
12
Dentre os escritos da época sobre Nietzsche, Antonio Candido teve contato com a biografia realizada por
Daniel Halévy. Com isso queremos dizer que certa compreensão geral do pensamento de Nietzsche, malgrado
as “falhas” por conta da ausência de material, pode se fazer.
13
Recorremos aqui à conhecida frase de Brehier (BREHIER, É. La philosophie et son passé. Paris: PUF,
1950, p. 41).

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Volume 06, Número 10, Ano 2021

dizer, embora esta frase não traga consigo, posta no seu devido contexto, a ideia de uso para
fins precisos de um pensamento (no caso, a filosofia de Nietzsche). De qualquer forma, Candido
propõe um esvaziamento conceitual das ideias para ficarmos exclusivamente com as técnicas
que poderíamos reter do pensamento nietzschiano. Técnicas estas que, como trataremos em
seguida, limitam-se ao aspecto crítico àquilo que Nietzsche entende por modernidade. Em
suma, citando Gide, diria a respeito da filosofia nietzschiana que “sua influência (...) importa
mais do que sua obra” (CANDIDO, 2014, p. 419).
Antes, no entanto, vale ressaltar, o autor bem pontua o seu alvo: a “superação de
condições individuais”. É nessa direção que o texto continua exaltando a importância de
desdogmatizar para se atingir “estados mais completos de humanização”, que, resumidamente,
viria a partir da ideia de um certo vitalismo nietzschiano, que tiraria o homem de um estado
letárgico, abrindo possibilidades para a criação de novos estados de vida. Nada muito distante
da tônica entusiasta da recepção de Nietzsche na França, ao menos no mainstream filosófico14.
Aqui, há, com força, nesta ideia, a busca de meios para abandonar posições conservadoras e
reacionárias que tinham dado as cartas, as mais brutais e bestiais possíveis. Arejar o pensamento
se fazia premente, retirar o indivíduo de engajamentos que o submetem ao grupo, suprimindo
a sua autonomia, era urgente. O pano de fundo do Terceiro Reich é onipresente. E talvez por
isso, Candido acompanha de perto uma certa leitura de Nietzsche em que o aspecto libertário
era a ênfase.
Se os “valores rotinizados da civilização cristã e burguesa” aparecem como os
rechaçados pelo filósofo, os valores almejados não parecem efetivar-se numa outra civilização,
mas surgem, por sua vez, na letra de Candido, como valores que pairam sem pátria, que podem
ser instrumentalizados. Isso não significa que Candido tenha abandonado seus posicionamentos
de esquerda. Significa apenas que assim enquadra o pensamento de Nietzsche. Se cabe a Marx
“transmudar os valores sociais”, a Nietzsche caberia uma “transmutação do ângulo
psicológico”, afinal, o núcleo de seu empreendimento era a “personalidade”, que visava “lançar
as bases para uma nova ética”. Desta perspectiva, os pensamentos de Marx e Nietzsche se
complementariam (CANDIDO, 2014, pp. 419-21).
Concebendo que conhecimento e vida não se separam, Nietzsche traria “técnicas de
conhecimento” (o estilo aforismático, por exemplo) e “técnicas libertadoras” (encarnada na

14
Em seu Direito à literatura, Antonio Candido argumenta que, com a literatura, o homem tem um meio para
exercitar a reflexão, adquirir conhecimentos, refinar as emoções, bem perceber os problemas, construir
maneiras para bem se relacionar, enfim, o homem tem como se humanizar. A filosofia de Nietzsche parece se
encaixar neste figurino da literatura, que bem pode contribuir para a humanização do homem. Cf. CANDIDO,
Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. Rio de Janeiro: São Paulo: Ouro sobre azul, 1995.

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figura do andarilho, que rejeitaria a segurança que traz a estabilidade social, por exemplo) que
contribuiriam para a desdogmatização e para ação sem rédeas (CANDIDO, 2014, p. 423).
Referindo-se ao mundo do pós-guerra, em que a humanização do mundo precisava ser
reintroduzida, no ver de Candido, Nietzsche nisto poderia contribuir com suas “técnicas”, que
teriam impacto direto no homem: “Nossa época, ao se abrir a primeira fase da história em que
será preciso reorganizar o mundo sem apelo ao divino, o que se poderia dizer de melhor para
instalar o homem na sua pura humanidade? Recuperemos Nietzsche” (CANDIDO, 2014, p.
425).

2 RECEPTOR, TIPOS DE RECEPÇÃO E LINHAS BÁSICAS PARA O TRABALHO


EM RECEPÇÃO FILOSÓFICA

De forma diversa, nestes dois textos acima abordados, é feita a defesa do pensamento
nietzschiano. No de Evaristo Morais Filho, a defesa apoia-se na biografia do filósofo para
explicar seu pensamento e assim revelar seus aspectos contrários à ideologia nazista. No de
Antonio Candido, a recuperação da filosofia nietzschiana enfatiza a estrutura de pensamento do
filósofo, asseverando que suas estratégias poderiam contribuir com técnicas para a
humanização do mundo. Comecemos agora por nos indagar pelo carecimento que suscitou a
escrita destes textos, tendo por referência certas reflexões de Agnes Heller, em A filosofia
radical15.

15
Cabe sublinhar, mesmo que en passant, que os estudos de recepção fazem parte dos chamados estudos
culturais. Tal fato já seria mais do que suficiente para que se tenha certa precaução com esses estudos, pois o
solo no qual ele originalmente se assenta está minado. Dentro desse registro, esses estudos se apoiam, de um
lado, naquilo que Stuart Hall denomina de codificação e decodificação (HALL, 1980, pp. 35-74). Polissêmica,
a codificação, isto é, a linguagem ou as formas simbólicas de um discurso é decodificada por um receptor cujo
meio cultural, sociopolítico, econômico ou outro não necessariamente coincide com aquele do emissor do
discurso. O sentido original perde-se e um outro é formado. Nesta mesma direção, encontra-se a tradição
hermenêutica, notadamente a de Gadamer, que entende que o sentido depende do receptor, que oscila entre o
texto e suas visões de mundo (GADAMER, 1976). Nesta linha, é possível fazer com que os estudos de
recepção analisem a maneira pela qual se desenrola um discurso num outro contexto. Estes estudos de
recepção se afastam, no entanto, da teoria da recepção elaborada por Hans-Robert Jauss, a estética da recepção
(Rezeptionsästhetik), que preconiza, nos termos acima, a polissemia da codificação, portada por um receptor,
mas sempre referenciada a um discurso inicial, nunca a uma abertura que, no limite o suprimiria. Jauss aplica
o método da estética da recepção ao estudo da história da literatura com vista à formulação de uma teoria da
literatura que se distinga da teoria ligada ao marxismo e da teoria relacionada ao formalismo estrutural. Julga
que leitores, ouvintes e espectadores desempenham nestas duas teorias literárias um papel muito limitado.
Distintamente, defende que a qualidade e a categoria de uma obra literária dependem dos critérios de sua
recepção, “do efeito produzido pela obra e de sua fama junto à posteridade”. O leitor recepcionaria a obra a
partir de sua expectativa e da de sua época, daquilo que Jauss nomeia de “distância estética” (JAUSS, 1994
pp. 8-24). No Brasil, houve tentativas de transpor o seu método da estética da recepção para o trabalho de

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No desenvolvimento de seus temas principais, tais como a teoria das necessidades e a


teoria do cotidiano, Heller trabalha a questão do carecimento de filosofia, sustentando que
atualmente a sua carência é crescente e cada vez mais profunda. A seu ver, diversas áreas do
saber deparam-se hoje com questões que poderiam encontrar um porto seguro na filosofia.
Aqui, a filosofia seria definida como um “sistema de objetivações autônomo”, isto é, como um
conjunto de conceitos que engloba todas as dimensões da vida, quais sejam, o pensar, o agir e
o viver, que poderia preencher lacunas de compreensão e sentido, trazer balizas, enfim
satisfazer qualquer carência, independentemente da área do saber. Esta satisfação
proporcionada pela filosofia ocorreria sob a forma da recepção (HELLER, 1983, p. 13).
A recepção de uma filosofia tem assim por objetivo preencher uma carência, uma falta,
ou seja, uma necessidade precisa de um indivíduo. Essas carências são diversas e estão
intimamente ligadas ao tipo do receptor, que terá demandas específicas. Um receptor que
acolherá a seu modo a objetivação proposta por uma determinada filosofia, poderá recepcioná-
la de diversas maneiras: a) como uma aceitação acrítica, que faz da filosofia de outrem (de um
livro ou da totalidade da obra de um pensador) sua própria filosofia e que agiria no registro dos
sentimentos; como um ponto de partida para pensar conjuntamente com uma filosofia hodierna
ao receptor; ou como um elemento para criação de sua própria filosofia. Estas três maneiras de
recepção, Heller entende ser uma recepção completa, com um viés estético, de entendedor e
filosófico 16 . Aqui o receptor acolhe na integralidade os três traços fundamentais de uma
filosofia, o pensar, o agir e o viver. A recepção de uma filosofia pode ainda ocorrer sem o
objetivo de uma apropriação desta para a vivência ou experiência filosófica, mas visando à
satisfação de uma carência de um objeto de natureza não-filosófica, caso no qual esses três
traços a que acabamos de nos referir estarão presentes alternadamente. Neste caso, a recepção
de uma filosofia pode ter como objetivo b) a ação transformadora do mundo; o encontro de uma

pesquisa e ensino de história da filosofia. Para tanto, tratou-se de substituir a categoria da “distância estética”
pela de “distância conceitual” e/ou filosófica (PAVIANI, 1987, pp. 215-232). É numa direção similar a Hall
e Gadamer que trabalharemos a recepção do discurso filosófico. A eles irão se sobrepor uma categorização,
que encontramos em Agnes Heller (cf. HELLER, Agnes. A filosofia radical. Tradução Carlos Nelson
Coutinho. São Paulo. Editora Brasiliense, 1983).
16
Detalhando a recepção completa: esta pode ser a do receptor estético, que se apropria da obra filosófica por
meio de sua forma. Nesse caso, embora predomine o momento da filosofia orientado para o viver, os outros
dois momentos se encontram conjugados, no sentido de que o receptor estético não busca na filosofia uma
resposta apenas para os problemas da sua vida, mas sim para os problemas da vida em geral. Já o receptor
entendedor é aquele que se apropria da filosofia conscientemente, como parte orgânica da cultura humana,
enquanto receptor da cultura filosófica. Embora predomine em um momento específico da filosofia, o do
pensar, o receptor entendedor interpreta os sistemas filosóficos como algo inteiro. O receptor filosófico é
aquele que se apropria filosoficamente da filosofia. Neste caso, os três momentos da filosofia encontram-se
integrados: o receptor filosófico recebe a filosofia como uma forma prática de vida (HELLER, 1983, pp. 13-
50).

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resposta para questões de sua própria vida, preenchendo carecimentos que o mundo nos lega; e
a maneira de guiar o conhecimento. Em relação a este último aspecto, os pesquisadores da
ciência natural recorrem e apropriam-se da filosofia para balizar o impacto social de seus
trabalhos, guiando o conhecimento; os pesquisadores das ciências da sociedade, por sua vez,
para além da referida baliza, recorrem à filosofia para a avalição de suas teorias. Estas maneiras
de recepção, Heller as considera incompleta, subdividindo-as em política, iluminadora e guia
do conhecimento/avaliativo-cognoscitiva17.
Estes modos de recepção de uma filosofia não impedem a existência de outros. Dividem,
no entanto, a recepção que se restringe ao universo filosófico (no caso, da completa) e a que
pode se encontrar em qualquer outro setor da atividade humana (no caso, da
incompleta/parcial). Ao estudioso caberia identificar o tipo de recepção que ocorre de um
pensamento no seu objeto de investigação, de maneira que possa fornecer uma interpretação
que esclareça a importância de uma filosofia determinada na construção de um outro saber,
assim como o estatuto dessa apropriação (lógico, epistemológico, axiológico, político etc.).
No caso dos nossos dois autores, Evaristo de Morais e Antonio Candido, essa satisfação
de carência referiu-se, no primeiro autor, a uma recepção incompleta/parcial, preocupada em
recuperar a obra de Nietzsche da apropriação política da extrema-direita para realocá-la e
direcioná-la em proveito de uma realidade social que rumava na direção do estabelecimento de
uma sociedade democrática. Assim, a filosofia de Nietzsche pôde ser apropriada como
ideologia de ação política, assimilada parcialmente. E, no segundo, a satisfação de carência
referiu-se também a uma recepção incompleta/parcial, na qual a filosofia de Nietzsche
possibilitaria técnicas de conhecimento e técnicas libertadoras capazes de contribuir para a
desdogmatização em proveito do livre pensamento e da ação livre18.
Essas carências satisfeitas bem podem agora caracterizar o tipo de recepção nos textos
de cada um de nossos autores. A recepção de Nietzsche realizada por Evaristo de Morais pode

17
Detalhando a recepção parcial: esta pode ser política, no sentido da atividade dirigida para a transformação
ou reforma da realidade social, compreendendo o momento do como agir. Assim, a filosofia pode ser
apropriada como ideologia de ação política, assimilada parcialmente. Já a recepção iluminadora ocorre quando
o receptor separa o momento do como viver dos outros dois, isto é, do pensar e do agir. Nesse caso, a filosofia
é apenas um meio para dar sentido à vida do receptor ou para iluminar o sentido da sua vida. Por fim, a
recepção avaliativo-cognoscitiva compreende o momento do como pensar. Ao contrário da recepção política,
que guia o agir, e da iluminadora, voltada para o como viver, trata-se de uma recepção orientadora do
conhecimento. Ela oferece ao cientista a possibilidade de apropriar-se da filosofia para fundamentar sua teoria
científica e aplica princípios epistemológicos e valores-guia da filosofia para a fundamentação de pesquisas
científicas (HELLER, 1983, pp. 13-50).
18
Os intentos pessoais do autor, quais sejam, se certificar de que o pai não tinha em alta conta um pensador
maldito, não é uma carência a ser preenchida, mas apenas um meio de não se decepcionar com um ente querido
que, porventura teria se equivocado em ter a filosofia de Nietzsche em alta conta. À parte a intenção, o que
importa é que o texto produzido se coloca como um trabalho no registro da recepção.

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ser compreendida como um tipo de recepção ideológico-política. Já a recepção de Nietzsche


realizada por Antonio Candido pode ser compreendida como um tipo de recepção avaliativo-
cognoscitiva, com objetivos de fundo de ordem política. De maneira diversa, os autores
evidenciam o impacto e o alargamento contínuo da filosofia de Nietzsche na cena cultural e
política brasileira do pós-Guerra. Eles exploram um debate específico, no qual a cultura
brasileira medita acerca do legado dos escritos do filósofo. Embora com abordagem diversa,
cada autor concentra-se em afastar e reabilitar a obra de Nietzsche das apropriações da extrema-
direita, então predominantes. Dessa forma, como bem puderam ser exemplificados nos seus
textos que analisamos, essa satisfação que preenche uma lacuna perfaz um objeto, na verdade
dois, de natureza não filosófica, que se via carente de um ou vários elementos para se objetivar.
Cabe apontarmos, contudo, para um caso em que não poderíamos descrever como sendo
de recepção filosófica, qual seja, aquele do profissional da filosofia, do especialista, no qual
não há o intento de suprimir uma carência. Uma “recepção” desinteressada, que visaria
unicamente a analisar um objeto, com vistas a compreendê-lo ou apreendê-lo sem o intento de
utilizá-lo para o preenchimento de uma lacuna, não importando de qual ordem, não seria uma
recepção. E isto independentemente do receptor se localizar ou não no universo da filosofia. Se
tida como “material científico”, como ocorre comumente nos departamentos de filosofia que se
limitam aos comentários e interpretações de texto, ou como uma ciência qualquer que aporta
novos saberes a uma outra área do conhecimento, uma filosofia terá um outro destino
necessariamente, diverso do da recepção filosófica19.
Os textos de Evaristo Morais Filho e Antonio Candido, embora sejam de lavra de
acadêmicos, apostam em certa liberalidade com o trato das ideias, no anacronismo conceitual
etc., que é, aliás, a marca da recepção filosófica. Não queremos dizer que não há rigor nestes
trabalhos, mas apenas que, a ênfase político-ideológica e a avaliativa-cognoscitiva,
respectivamente, bem mostram que o figurino deles não é de natureza estritamente acadêmica,
um mero comentário ou interpretação de texto, que seguiriam métodos precisos para a

19
Partindo de uma concepção precisa e radical de filosofia enquanto sistema de objetivações autônomo, capaz
de abranger um conjunto de conceitos que engloba todas as dimensões da vida, o pensar, o agir e o viver,
Agnes Heller permite a devida circunscrição de uma recepção filosófica, separando o trabalho filosófico do
trabalho profissional. Essa separação se faz necessária, visto que a seu ver, “a tarefa da filosofia tornou-se
mais difícil por causa do seu enquadramento na divisão científico-social do trabalho. A atitude filosófica – o
thaumazein – é intolerável para a ‘profissão’. Todo pequeno empregado do setor se faz passar por filósofo,
enquanto esconde o seu não-saber por trás de uma floresta de notas”. A abordagem do profissional não decorre
de carecimento de filosofia, nem visa à função da filosofia enquanto objetivação de problemas radicais;
tampouco ela mantém, antes separa, a conexão entre filosofia como atitude e sistema filosófico; ela não
decorre da experiência do maravilhamento (thaumazein), ponto de partida da filosofia. Perde de vista a
unidade inseparável entre o sistema e a atitude filosófica, que se mostra evidente e inseparável no modo de
vida (HELLER, 1983, p. 34).

267
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Volume 06, Número 10, Ano 2021

realização de uma boa dissertação. Queremos apenas apontar que essa liberalidade e esse
anacronismo são intrínsecos à recepção, não cabendo ao estudioso esperar que o receptor tenha
tido contato com toda a obra do filósofo, que tenha trabalhado com os originais, com as
melhores edições ou traduções, que tenha, até mesmo, em certos casos, trabalhado com os textos
do próprio filósofo (há casos em que o contato se dá em segunda mão), que contextualize o
filósofo na obra e no tempo etc. Tais exigências são descabidas, pois o receptor, ao se apropriar
de um filósofo, ele está pragmaticamente servindo-se de um pensamento para preencher uma
carência. No caso de nossos autores, as carências supridas objetivavam esvaziar as ideias do
campo da direita e trazer elementos para contribuir com a humanização do homem. Afinal, a
outra recepção por eles combatida era a do filósofo Nietzsche apropriado pela extrema-direita,
muito graças a uma convergência objetiva. Isto dito, é evidente que cabe a cada autor a
responsabilidade e o devido discernimento ético impressos às suas apropriações.
Ao estudioso da recepção, no entanto, cabe, a nosso ver, atentar para alguns passos, de
modo que possa realizar corretamente um trabalho que será, necessariamente, de cunho
profissional-acadêmico. Cabe a ele bem identificar o receptor e as suas carências e/ou os seus
interesses, de modo a poder caracterizar, no curso do trabalho, o tipo de recepção (que não se
limita à lista que expusemos seguindo Heller); conhecer o material filosófico com o qual o
receptor trabalhou; e ter conhecimento do contexto histórico (injunções sociais, políticas,
econômicas, culturais) e dos interlocutores do receptor, para bem avaliar o impacto na
sociedade, em termos não apenas culturais, mas também políticos e econômicos, num
determinado país.

3 À GUISA DE CONCLUSÃO: O OBJETIVO PRINCIPAL DO ESTUDO DA


RECEPÇÃO FILOSÓFICA

Como é possível observar, não realizamos em relação aos textos de Evaristo Morais
Filho e Antonio Candido parte do que preconizamos linhas acima, em particular uma
investigação do impacto que estes trabalhos tiveram nos seus meios ou em outros (social,
cultural, político, etc.). Consideramos essencial esta última etapa do trabalho de recepção, pois
o estudo dela, no caso, a filosófica, importa sobretudo se analisarmos as transformações
promovidas num determinado país pela presença de tais pensamentos. Se este circuito amplo
(cultural, social, político, etc.) estiver ausente, o estudo fica deficitário, inacabado, pois o
trabalho da recepção filosófica deve contribuir sobretudo para trazer à luz o percurso

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intelectual das ideias que circulam num determinado país, revelando a maneira pela qual
pensamentos estranhos a uma determinada cultura nela interferem. Em outras palavras, um dos
objetivos fundamentais do estudo da recepção filosófica consiste em identificar a maneira pela
qual ocorre a construção de uma cultura a partir de um amálgama de elementos destoantes, que
poderão ser transformados em seu sentido e em sua significação, num processo de criação de
um outro objeto.
Dessa forma, em nosso caso particular, isto é, o da cultura brasileira, evitaríamos perder
de vista a maneira pela qual as ideias filosóficas chegaram e continuam a chegar até nós, que
efeitos provocaram e ainda provocam, que resultados produziram e estão ainda a produzir. Este
objetivo não é trabalho fácil de alcançar, visto que preencher essa lacuna, como bem esclarece
uma das pesquisadoras que trabalha nesse campo de pesquisa entre nós, é algo problemático,
uma vez que não é trabalho simples “mostrar onde, como e quando ocorre, o que faz com que
se efetive e que efeitos dela [no caso, da filosofia de Nietzsche] derivam”20.

20
Scarlett. Marton, “Nietzsche e a cena brasileira”, p. 254. Os estudos de recepção realizados por Scarlett
Marton estão voltados para a recepção acadêmica de Nietzsche na cena internacional, na França, na Itália, na
Alemanha e na América do Sul. Neles, ela conjuga bem o rigor genético-conceitual no trato com os textos do
filósofo e a análise da cultura na qual foram escritos e recebidos. Já os estudos de recepção de Nietzsche no
Brasil, estes vêm sendo desenvolvidos pelo CENBRA. Alguns resultados constam na revista Cadernos
Nietzsche, em seção dedicada aos estudos históricos de recepção da filosofia de Nietzsche no Brasil.

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Volume 06, Número 10, Ano 2021

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PAVIANI, Jayme. A recepção na história da filosofia. Conjuntura, Caxias do Sul, 1(1): 215-
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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021


Recebido em:01/03/2021
Aprovado em: 09/06/2021
Publicado em: 15/07/2021

IDENTIFICAÇÃO IMAGINÁRIA E NEOPENTECOSTALISMO À BRASILEIRA 1

IMAGINARY IDENTIFICATION AND NEO-PENTECOSTALISM BRAZILIANISH

Alexandre Starnino2
([email protected])
Daniel Omar Perez3
([email protected])

Resumo: O presente artigo, em sentido amplo, aborda as relações entre Psicanálise e o campo da
religião, algo bastante discutido na história do movimento psicanalítico e na mesma medida carregado
de tensão. Articulamos o fundamental conceito de identificação no interior da Psicanálise, tencionando
nossa reflexão para as identificações religiosas. Evidenciamos dois níveis de representações que se
entrelaçam nessas formações identitárias: um núcleo duro (ou rígido) e um outro núcleo adjacente
(sobredeterminações). Devido à sua atualidade, há certa ênfase para as construções identitárias
relacionadas ao fenômeno religioso denominado “neopentecostalismo” e ao papel que cumpre o
“líder/gestor” desses vínculos. Temos como objetivo neste trabalho contribuir com a reflexão e debate
psicanalítico, filosófico e político em torno da constituição identitária em suas mais variadas formas.

Palavras-chave: Psicanálise. Religião. Identificação. Neopentecostalismo.

Abstract: The present paper in a broad sense addresses the relations between Psychoanalysis and the
field of religion, something much discussed in the history of the psychoanalytic movement and in the
same measure charged with tension. We articulate the fundamental concept of identification within
Psychoanalysis intending our reflection to religious identifications. We highlight two levels of
representations that are intertwined in these identity formations: a hard core (or rigid) and another
adjacent core (overdeterminations). Due to its actuality, there is a certain emphasis on the identity
constructions related to the religious phenomenon called Neo-Pentecostalism and the role played by the
"leader/manager" of these bonds. The aim of this work is to contribute to the psychoanalytic,
philosophical and political debate on the constitution of identity in its various forms.

Keywords: Psychoanalysis. Religion. Identification. Neo-Pentecostalism.

INTRODUÇÃO

1
O presente texto relaciona-se com trabalhos anteriores e com pesquisas em andamento na Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp).
2
Doutorando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0724301867999043.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5876-1820.
3
Professor Doutor em Filosofia na Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3161542255903404.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5965-3490.

271
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

Para os mais habituados com os textos ditos culturais de Freud, não constitui novidade
o fato de o fundador da psicanálise demarcar que a estrutura dos laços identitários religiosos,
que atravessa a humanidade, se organiza pela polaridade desejo/desamparo
(Wunsch/Hilflosigkeit). Em O Futuro de uma ilusão (2006 [1927]) nos diz: “seria muito bom
se existisse um Deus que tivesse criado o mundo, uma Providência benevolente, uma ordem
moral no universo e uma vida posterior; constitui, porém, fator bastante notável que tudo isso
seja exatamente como estamos fadados a desejar que seja” (FREUD, 2006 [1927], p. 46). As
ideias e representações religiosas têm como origem “a necessidade que o homem tem de tornar
tolerável seu desamparo” (FREUD, 2006 [1927], p. 30, grifos nossos).
Nessa direção, o conhecido filósofo brasileiro e não menos religioso, Rubens Alves
(1999), na esteira de Ludwig Feuerbach e do próprio Freud, reconhece e endossa o papel
fundacional do desejo e das demandas na constituição desses vínculos, afirmando que: “as
entidades religiosas são entidades imaginárias [...]. A verdade da religião não está na infinitude
do objeto, mas antes na infinitude da paixão” (ALVES, 1999, p. 30). O determinante na
existência são “os fatos transfigurados pela emoção. O homem é um sonhador, mesmo
acordado. Esta é uma das contribuições mais importantes do pai da Psicanálise para a
compreensão do enigma do homem” (ALVES, 2007, p. 50).
À revelia do encontro divino com alguma realidade material a seu alcance, tudo se passa
numa encenação psíquica sagaz de um desejo irresistível que não pode ser saciado no “mundo
das coisas”. É no registro das Phantasievorstellungen, como aponta Freud, pela própria
estrutura do desejo humano, que teríamos os infinitos deslocamentos, as inúmeras substituições
imaginárias e simbólicas que se estabelecem na relação de identificação com o ideário religioso,
conforme corrobora acima Rubem Alves, reconhecendo a “perspicácia freudiana” para com os
“enigmas do homem”.
É preciso sublinhar que, da relação entre a Psicanálise e o amplo campo da religião,
bastante discutida na história do movimento psicanalítico e na mesma medida carregada de
tensão, nunca foi a pretensão de Freud ou de algum psicanalista, de maneira geral, revelar
alguma ‘suma essência’ de qualquer religião que seja. Inclusive, Freud irá se retratar em 1925,
no Post scriptum de Um Estudo Autobiográfico, com uma autocrítica acerca de uma possível
interpretação dominantemente “cientificista” e “negativa” que fez da religião em O Futuro de
uma Ilusão. Ele nos diz: “Em O Futuro de uma Ilusão, exprimi uma avaliação essencialmente
negativa da religião. Depois, encontrei uma fórmula que lhe fazia melhor justiça: embora
admitindo que sua força reside na verdade que ela contém, mostrei que a verdade não era
uma verdade material, mas histórica” (FREUD, 19766 [1925/26]).

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O que se apresenta como possibilidade, a partir do dispositivo teórico inaugurado por


Freud, não é a obtenção de respostas para algum dos desígnios metafísicos ou místicos do
entorno religioso, ao contrário, é possível fornecer alguma inteligibilidade ao fenômeno
identitário religioso, levando em conta sua história e articulando como os diversos laços afetivos
e identificatórios são desdobrados, conduzidos e coordenados e, principalmente, através de
quais significantes isso é estabelecido. Como diz Lacan em seu quinto seminário: “são os
significantes que constituem o desfiladeiro por onde é preciso que passe seu desejo” (LACAN,
1999, p. 309).
Circunscrito ao modo “como estamos fadados a desejar que seja” e organizando-se,
segundo Freud, como uma resposta imaginária ao desamparo, uma identificação dita religiosa
repousa na materialidade de sequências discursivas, que proporcionam o que podemos
denominar de laço afetivo entre um suposto sujeito, que sinalizamos como $ (sujeito cindido),
e a cadeia significante (S1+S2+S3+SN...). Grosso modo, essa seria a estrutura basilar das
identificações lida a partir de uma chave lacaniana, o que carece, evidentemente, de uma
elucidação.

1 A NOÇÃO DE IDENTIFICAÇÃO NA PSICANÁLISE

A título de introdução, podemos organizar um breve histórico do desenvolvimento do


conceito de identificação no percurso teórico de Freud e Lacan4. Provisoriamente, podemos
dizer que a Identificação é o processo de apropriação de atributos ou traços de outros seres
humanos, pelo qual se constitui e/ou se transforma o próprio sujeito em questão. A primeira vez
que Freud usou o conceito de identificação foi numa carta a Fliess de 17 de dezembro de 1896
relacionando a identificação ao desejo recalcado de “agir como, ser como”, vinculado ao
sentimento de inveja e ciúme. Na Interpretação dos sonhos (2001[1900]), a noção de
identificação aparece como “identificação histérica”. Devemos destacar que não se trata de
mera imitação, mas de apropriação. No mecanismo de condensação (explicado no capítulo VI
da respectiva obra), a identificação aparece ora sob a forma de aproximação, ora sob a da fusão.

4
Sobre a formulação e desenvolvimento amplo do conceito de identificação e identidade na Psicanálise,
enviamos o leitor a três textos recentes de nossa autoria: Sobre Identidade e identificação em Psicanálise: um
estudo a partir do Seminário IX de Jacques Lacan. Revista Dois Pontos, Curitiba, (STARNINO, 2016.); Entre
o couro e a carne: Jacques Lacan e questão da identidade e identificação. Dissertação – Universidade
Estadual de Campinas, Campinas (STARNINO, 2018). Por que nos identificamos? Curitiba: CRV, (PEREZ,
D. O.; STARNINO, A. (Org.). 2018.)

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O traço de identificação ao qual se identifica seria incorporado pelo sujeito da identificação.


Incorpora-se algo no “outro exterior” que ao mesmo tempo em que é estranho também é
próprio.
Em Totem e Tabu (2006b [1913/14]), Freud nos conduz a pensar na experiência de
devorar o inimigo como uma experiência de gosto ou, mais ainda, de amor do canibal em
relação ao inimigo. O canibal não come aqueles que, de algum modo, não goste. Uma relação
libidinal vincula os inimigos ao ponto de aquele que devora, incorporar parte do que é devorado,
para que, depois de morto, sobreviva no corpo do outro. No ato de devorar partes do inimigo,
o canibal incorpora, apropria-se das qualidades daquele. Mas o curioso é que a refeição só
transmitirá aquelas qualidades que o canibal considerar preciosas de serem conservadas. É
como se no processo de identificação, o sujeito apagasse o resto dos elementos em virtude
daquele que ama. O sentimento de incorporar as qualidades do alimento perpassa os diferentes
modos de alimentação. As propriedades da carne do animal incorporado como alimento
permaneceria como traço no caráter da criança. Assim, animais covardes, por exemplo,
transmitiriam covardia5.
No caso do banquete totêmico, o pai assassinado é devorado pelos filhos cujas
propriedades seriam incorporadas em um evento ritualizado o qual todos compartilhariam, por
identificação, do mesmo elemento de comum união. Por aproximação, poderíamos dizer que
seria o caso de algumas religiões atuais. Na sagrada comunhão, repetir-se-ia, simbólica e
imaginariamente, o mesmo processo de incorporação: a identificação. Nesse sentido, a
Eucaristia é uma cerimônia de amor que repetiria “o ato de devorar a carne e beber o sangue do
pai para que ele permaneça em nós e nos identifiquemos como irmãos”. (PEREZ; STARNINO,
2018, p. 31)
Através dessas indicações encontradas nesse momento das obras de Freud, podemos
formular que a identificação ocorre a partir da apropriação de traços de outros, como já
dissemos, atravessada necessariamente por uma dinâmica afetiva. Por isso, Freud nos afirma
que “a identificação é a mais antiga manifestação de uma ligação afetiva” (FREUD, 2001
[1900], p. 60).
Nessa direção, Laplanche e Pontalis (2001, p. 80) afirmam que, em termos formais, “a
exposição mais completa que [Freud] tentou apresentar, acha-se no cap. VII de Psicologia das
massas e análise do eu. Aí, acaba por distinguir três modalidades de identificação”. Tomemos
esses três modos em Freud:

5
Cf. PEREZ D. O., STARNINO, A., 2018, Cap. 1

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(a) Identificação primária: uma identificação pré-edípica com incorporação


do objeto. Diz respeito à identificação que surge primeiramente em Três
ensaios..., denominada canibal ou fase oral. Esse primeiro modo é articulado
por Freud como identificação paterna. (b) Identificação secundária: A
identificação do sintoma da pessoa amada que tem como exemplo a tosse de
Dora. (c) Identificação ao Ideal: a identificação com o ideal do eu ao colocar-
se no lugar do outro, o que produz a identificação de comunidade, as
identificações coletivas. Trata-se da relação entre cada indivíduo da
comunidade e o condutor da massa. (STARNINO, 2018, p. 122).

Em síntese, podemos situar os modos de identificação desenvolvidos no percurso


teórico freudiano como modos de distanciamento entre o sujeito e o objeto de identificação em
procedimentos de: incorporação – assimilação – idealização – algo repensado por Jacques
Lacan.

*****

A fim de abordar a questão identitária, Jacques Lacan dedica todo o nono seminário de
A Identificação (1961/62). É estabelecido pelo autor uma “reformulação estrutural” acerca dos
processos identitários, retomando o conceito freudiano de identificação na interlocução com os
pressupostos filosóficos, a respeito da problemática da identidade (do idêntico a si mesmo,
A=A), e com a sua lógica significante, fundada no princípio da diferença.
Lacan nos diz que “o importante na identificação deve ser, propriamente, a relação do
sujeito com o significante [...] identificação é uma identificação significante” (LACAN,
1961/62, p. 13; p. 25, tradução e grifos nossos). O fenômeno no qual um sujeito adquire,
sustenta, e assume para si algo que a princípio era do outro – uma ideia, um discurso, o jeito de
andar, o tom de voz, uma crença, etc. –, ampliando assim o que lhe é próprio, é denominado
por Lacan de identificação significante6.
Lacan insere no tema da identificação, como dissemos, a lógica de funcionamento do
significante. Assim, a constituição das diversas identidades se dá através da relação diferencial
de cada cadeia significante. Mais adiante, esse ponto ficará claro. A rigor, os significantes
assumem significado a partir da cadeia diferencial em que se inserem – em oposição, relação,
equivalência a outras cadeias – e não podem ser reduzidos a um único sentido. As
identificações significantes cumprem a dupla função de constituição do sujeito e marca
identitária para um outro sujeito. Em outras palavras, as identificações significantes

6
Cf. STARNINO, 2016.

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espelham a identidade de um sujeito, grupo ou coletivo através de seu discurso e narrativa,


estruturadas em cadeias significantes.

2 NÚCLEOS NODAIS E EQUIVALÊNCIA NOS PROCESSOS IDENTIFICATÓRIOS

A partir do que introdutoriamente apresentamos do percurso de Freud e Lacan, podemos


estabelecer, em termos estruturais, que na formação das identificações coletivas o que se
apresenta é um núcleo preciso de significantes que se combinam, relacionam-se e se organizam
numa cadeia de equivalência7. Tratando das identificações de matriz cristã, tais significantes
podem muitas vezes variar de acordo com a instituição de fé em questão (nas diversas
agremiações), mas há um núcleo significante nodal, comum, equivalente, que faz operar na
relação entre os identificados um dos mais bem-sucedidos laços afetivos que percorreu e
percorrerá por muito tempo a história da humanidade.
Os grandes ideais, o núcleo duro, nodal, os significantes privilegiados que caminham
na esteira de ‘Cristo’, encontram reforço em prementes desejos humanos articulados em
demandas. Cito alguns, na esteira de Freud (2006[1927]), desejo de vida eterna, justiça
transcendental, desejo de um superpai: “vida futura, post–mortem, os maus serão condenados
e os bons, salvos” 8.
Em sua maioria, os indivíduos que fazem parte dessa coletividade – da cristandade de
maneira geral –, unem-se em torno dessas insígnias idealizadas, nesse núcleo significante
(S1+S2+S3...) via identificação. Esse laço unificador, sustenta-se a partir da aptidão que os ideais
compartilhados adquirem em acolher e ‘atender’, de alguma forma, as diversas demandas e
desejos, sobretudo as demandas de amparo (Hilfe). Quando demandas libidinais – expressão de
desejos inconscientes trilhados em cadeias significantes – encontram um mínimo de gozo ou
usufruto na constituição, a ‘igreja’, o ‘partido’, o ‘grupo’, a ‘confraria’ perduram
historicamente. Podemos dizer, portanto, que ocorre um gozo coordenado pela via dessas
identificações significantes investidas9.

7
Terminologia utilizada por Ernesto Laclau em várias obras para se referir, grosso modo, a relação
combinatória entre aquilo que é demandado e os significantes sustentados que compõem as identidades
coletivas. Sobre isso ver A Razão Populista (LACLAU, 2013).
8
Esse conjunto de ideais, que “passaram por um longo processo de desenvolvimento”, só são válidas para as
religiões ocidentais, especialmente as cristãs (Cf. FREUD, 2006[1927]. p. 31).
9
Cf. STARNINO, 2016.

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3 SOBREDETERMINAÇÃO: NÚCLEOS ADJACENTES

É evidente que o cristianismo não se resume a uma única religião. Sua história é tão
vasta que seria inapropriado sequer esboçar aqui a regionalidade e gramática significante de
cada uma das religiões amalgamadas no que denominamos de cristianismo. Igualmente
inapropriado seria conjecturar uma única “identidade cristã”. ‘O católico não quer ser
confundido com o crente e vice-versa’; ‘o adventista não é a Testemunha de Jeová’; ‘Edir, meu
pastor, não é Valdomiro’, e assim por diante. Contudo, o que nos mostra Freud é que há pontos
nodais, um núcleo duro de representações investidas, mais ou menos estável, que pouco ou
quase nada mudam historicamente no interior das diversas agremiações. Como pontuamos
acima, não há cristianismo sem o arrime: “justiça transcendental, Deus protetor, vida eterna”,
sendo tais ideais uma interminável fonte para o homem lidar com o seu premente desamparo.
Aplicada uma lógica significante, tudo irá variar de acordo com as condições de
enunciação do coletivo, grupo, movimento ou agremiação em questão. Não só na visada do
núcleo duro da significação, mas também nas adjacências: “nos anéis cujo colar se fecha no
anel de um outro colar feito de anéis” como nos diz Lacan (1998, p. 505). É também verdade
que, por mais que se tenha um complexo de narrativas adjacentes, muitas vezes excludentes
entre os grupos que se afirmam cristãos, há inegavelmente situações discursivas onde se
encontra uma “união parcial” de conjuntura e de distinção entre o signo de ‘uma universidade
cristã’ em oposição a outras religiões. Ainda que seja apenas no plano formal, pedagógico e
convencional do discurso, em certa medida as arestas se aparam a ponto de formar campos
discursivos antagônicos entre ‘cristão vs muçulmanos’, ‘judeus vs muçulmanos’ ou ‘egípcios
vs judeus’, e assim por diante.
Freud irá abordar esse antagonismo entre as religiões. Mais especificamente, o
antagonismo entre os egípcios e o judaísmo é olhado por Freud com bastante importância em
Moisés e o Monoteísmo (2006a[1939]). Freud irá criticar a tradição judaica por “deformar” a
história e esconder absolutamente toda a influência egípcia na própria religião judaica, algo que
nos indica a fragilidade “factual” do antagonismo e demonstra que ele serve mais para criar
grupos e laços identitários que propriamente apontar possíveis diferenças profundas e
estatutárias em torno das ideias centrais de cada grupo religioso. O movimento de livrar-se da
influência egípcia, segundo Freud, foi orquestrado pela tradição judaica num movimento de
supressão, porque a influência egípcia, de certo modo, afetaria toda a narrativa de que o
povo judeu é um povo escolhido.

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Ernesto Laclau (2013) irá nos apontar uma certa ‘maleabilidade’ intrínseca ao corpo das
identidades coletivas, o que diz respeito ao próprio processo significante e equivalencial. O
autor, para ilustrar, cita como exemplo a disposição de uma suposta identificação a um
“nacionalismo iraquiano contemporâneo” ter aproximado sunitas e xiitas 10 . A própria
identidade que se constitui e se constrói, mostra-se porosa de tal modo que a disputa de sentido
lhe seja interna na formação da equivalência. Nesse caso, sunitas e xiitas unidos no “somos
nacionalistas”.
Esse processo é prenhe de exemplos nas diversas dinâmicas políticas. Noutro exemplo,
em certo momento do impeachment de Dilma Rousseff no Brasil, boa parte – não toda – de
gregos e troianos no interior da própria ‘esquerda’, uniram-se em torno de um lacônico ideal de
democracia, em oposição ao campo mais à ‘direita’, pró impeachment. Formaram-se dois polos
opostos, acoplando grupos divergentes, mas não no que tange ao fundamental e nodal que
estava em jogo: a contenção de um então ainda suposto ‘golpe parlamentar’.
A demanda que os unia girava determinantemente em torno do significante
‘democracia’. Este significante sobredeterminava contingentemente o processo identitário dos
identificados com “a esquerda” (pelo menos a maior parte) naquele contexto e momento. Esse
vínculo ocorreu mesmo com toda carga histórica, ambiguidade, polissemia radical, vagueza e
indeterminação que o termo democracia e o próprio espectro da esquerda acarretam. Ora, tal
vagueza e traço de indeterminação foram justamente o que nesta conjuntura fomentou os laços
coletivos gerados pela via destes significantes – esquerda e democracia – vazios por excelência.

4 NEOPENTECOSTALISMO LIBERAL BRASILEIRO

A fim de retornar à questão das identificações religiosas, percebemos que, ao concentrar


o nosso olhar nos núcleos adjacentes que as compõem, é possível espiar uma espécie de
transgressão de ideários, uma fusão de representações e insígnias que compõem e
sobredeterminam essas construções discursivas. O que dizer, então, de boa parte do fenômeno
neopentecostal brasileiro e sua dinâmica inscrita na prosperidade clientelista? As relações
nucleares do neoliberalismo são justapostas na incursão religiosa neopentecostal, em técnicas
altamente eficazes que se fundem com a ideologia que contempla o individualismo exacerbado,
sujeitos ‘empreendedores de si’.

10
Cf. LACLAU, 2013, p. 322.

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Os pastores nessas agremiações, num arranjo imaginário, inscrevem (ou vendem) a


ilusão catequizante de que “quanto mais próspero, mais próximo do paraíso se encontraria o
indivíduo”. Um processo de ‘individualismo’ com traços mercantis em detrimento de uma
‘bênção coletiva’11. Soma-se a isso, o fato de a bênção dos céus, na forma de prosperidade, ser
projetada na meritocracia da quantidade individual de doações ofertadas.
O exponencial crescimento do fenômeno neopentecostal brasileiro, estabeleceu-se
justamente no bojo dos centros mais pobres, no avesso do avesso dos ricos e ostentosos líderes
e templos religiosos, na promessa divina da prosperidade aos menos prósperos e mais
vulneráveis. Essa crença atingiu altos índices de fiéis nas últimas décadas, encontrando enorme
força nas periferias brasileiras. Ali, em larga medida, vê-se o devir do agudo desamparo
culminar na ida diária às lotadas igrejas, onde a ambígua figura do ‘sacerdote gestor’ tem por
objetivo domar o desamparo coletivo dos fiéis – seja de necessidades materiais, seja da aguda
fragilização psíquica –, amparando-os em várias direções, ainda que se cobre altíssimo pelos
serviços prestados.
Com os braços na política, mídia e comunidades, o encontro com o religioso, diário ou
semanal – presencial ou online, ora pelo rádio, ora pela a televisão, através de folhetins, redes
sociais e afins – é oferecido como uma espécie de ‘célula de Eros’. Como nos lembra Laclau
(2013): “todos os grupos – religiosos, econômicos, estéticos, políticos e assim por diante –
querem ter sua própria imprensa e constituir seu próprio público”. Os líderes e propagadores
tornam-se, ou se pretendem, doutrinadores do desejo de modo totalitário: transgressores hábeis
do limiar do mero ato religioso, investem no “como os fiéis devem desejar”, como efeito, “com
quem devem se identificar”, “em quem devem votar”, “o quê e aonde devem comprar”, “por
qual razão devem (nos) doar”.
Com efeito, isso retrata a própria aparelhagem do gozo dos sujeitos, da totalização, da
formação de reconhecimento, de identidade e do processo mercantil de hegemonização das
práticas sustentadas. Se nos termos descritos por Althusser temos aí ‘um aparelho ideológico
do estado’ atuante, a instituição religiosa funciona, antes, em sua própria constituição subjetiva,
como aparelho de gozo, instrumento de vínculo e identidade fantasmática: aparelhamento que
começa desde o tom invocante da voz do líder até às tentativas de totalizar o destino dos desejos
dos sujeitos e da reelaboração contínua da “história particular dos desejos desejados”.

11
Nesse sentido, Vladimir Safatle nos lembra, justamente, que o poder pastoral “é individualizador. Mesmo
dirigindo todo o rebanho, o pastor é aquele que pode individualizar suas ovelhas”. (SAFATLE, 2016, p.58,
grifos nossos)

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Funde-se, portanto, representações adjacentes ao “religioso”, próprias da prática


mercantil neoliberal, de indivíduos dentro de uma lógica empresarial, “empreendendo para o
futuro nos céus e promessa de prosperidade em vida”. É preciso sublinhar que, essa fusão de
cadeias adjacentes ao núcleo duro que abordávamos há pouco, não é menos importante na
efetividade dos vínculos identitários. É possível inclusive dizer que a promessa de prosperidade
material é o que amarra efetivamente o laço neopentecostal com os sujeitos, e que o próprio
núcleo rígido está em segundo plano na constituição do vínculo, daí o termo
sobredeterminação.
A questão toda que queremos apontar é que, por mais que exista um núcleo duro de
representações que gera certa “estabilidade” na condução de uma identidade coletiva, há
também núcleos adjacentes que podem sobredeterminar o destino da identidade. Freud
concentrou-se em nos mostrar um núcleo duro em torno de uma crença substancial no
monoteísmo e seus ideais, mas há também outros núcleos de relações que sobredeterminam
historicamente o modo no qual se sustenta o “significante Cristo” e seus profetas. É mirando
também as adjacências que se produz uma maior efetividade, alcance e compreensão da
equivalência identitária.
O mesmo significante Cristo é sustentado tanto por fascistas religiosos com suas sanhas
punitivistas de armas em riste, reivindicando absurdos em nome da moral e fé, como também
por grupos, por exemplo, de direitos humanos. Isto quer dizer que pouco importa – do ponto de
vista prático e político identitário – o significante Cristo, mas sim a cadeia que o entorna, isto
é, a identidade, o ator social em questão (lugar de enunciação), o que se quer e o que se faz em
“nome de Cristo”, as adjacências, os contornos das equivalências e as tipificações do gozo. Por
exemplo, ocorre a montagem de um modo de gozo perverso que se sustenta na eliminação desse
“outro” que não “pertence a minha horda”, desse “outro” que não me identifico, desse “outro”
que é um resto a ser eliminado. Ou um gozo que se sustenta na relação diferencial em que o
“outro” recebe o estatuto da diferença em forma de adversário, alteridade, disputa, oposição,
12
sem o traço do gozo perverso da eliminação . Trata-se, em última instância, do estatuto
político que os significantes assumem em embates discursivos e conflitos que variam de acordo
com a significação estabelecida por cada ator social, movimento político, identidade coletiva:
“os significantes justamente por não ter uma identidade consigo mesmos estariam em franca
disputa” (STARNINO; PEREZ, 2021, p. 97).

12
Abordamos com mais precisão as relações diferenciais entre hegemonia, homogenia e exclusão sistemática
no interior das ações políticas no artigo “A eliminação sistemática de pessoas e os limites do político: breve
ensaio sobre a ação política” (PEREZ, 2013).

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5 O LÍDER NO INTERIOR DA LÓGICA DE EQUIVALÊNCIA13

Normalmente, é incumbido a um líder propagar e efundir com maestria a narrativa


significante que convence e gera o laço identitário. O líder se inscreve no interior das relações
de equivalência de tal modo, como nos mostra Laclau (2014), que em muitos casos o próprio
líder dá o significado à cadeia equivalencional e às demandas de modo totalizante.
Freud nos diz algo nesse sentido. Apesar da abordagem freudiana, como nos diz Laclau
(2010), ser predominantemente “psicogenética”, no fim de Moisés e o Monoteísmo, o fundador
da Psicanálise nos dá sinais de como se organizaria, de um ponto de vista estrutural, uma
identificação com o líder no interior de uma coletividade. Tal identificação se constituiria de
dois modos:
No primeiro modo, teríamos a identificação com os “traços da personalidade do líder”,
isto é, os significantes relacionados à figura do líder, seu tom de voz, comportamento geral,
postura e conduta para com os identificados do grupo, etc. No segundo modo, teríamos a
identificação com os ideais que o líder propagaria para o contingente de sujeitos. É importante
frisar que, neste trecho da obra, Freud enfatiza e credita mais importância aos ideais propagados
pelo líder (no caso referindo-se a Moisés) para estabelecer a identificação, que propriamente
uma identificação presa à figura do líder 14 . As relações de identificação – seja por traços
marcantes do líder, como semblante, postura, etc., seja pelos ideais por ele propagados –
formam, sem fronteira muito nítida, o que Laclau chama de cadeia de equivalência. Tal cadeia
é sustentada pelo contingente de sujeitos que compõem o laço coletivo numa operação de
identificação.
O líder nomeado se estabelece no interior da própria equivalência, bastando sustentá-lo,
em muitos casos, para que todo o conjunto de representações do grupo venham à tona, como

13
Sobre uma espécie de “analítica da representatividade”, no interior das identidades coletivas, vale ver a
discussão estabelecida por Ernesto Laclau em A razão Populista (Capítulo VI – ‘Populismo, representação e
democracia’). Inclusive, Laclau irá analisar algumas das conceitualizações de Claude Lefort, Rawls,
Habermas e outros, traçando as aproximações de sua leitura em alguns pontos precisos desses autores e
distanciando-se em outros pontos.
14
Freud nos diz: “temos de lembrar, também, que não estamos interessados tanto na essência dos grandes
homens quanto na questão dos meios pelos quais eles influenciam seus semelhantes. [...]. Permitam-nos,
portanto, tomar como certo que um grande homem influencia seus semelhantes por duas maneiras: por sua
personalidade e pela ideia que ele apresenta. Essa ideia pode acentuar alguma antiga imagem de desejo das
massas, ou apontar um novo objetivo de desejo para elas, ou lançar de algum outro modo seu encantamento
sobre as mesmas. Ocasionalmente - e esse é indubitavelmente o caso mais primário -, a personalidade
funciona por si só e a ideia desempenha papel bastante trivial” (FREUD, 2006ª [1939], p.72, grifos nossos).

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efeito retroativo da nomeação: desperta-se toda a fantasmagoria no anúncio do premente nome.


Lacan nos diz:
Assim, proponho a alguns dos que estão aqui e que, como creio saber, tem
uma propensão a voltar ao que Freud enunciou sobre o líder como elemento
chave da identificação, em ‘Psicologia de massas análise do eu’, que
verifiquem como tudo isso se torna mais claro na perspectiva que desenho.
Com efeito, ela mostra a solução que possibilita que o sujeito, identificando-
se estritamente com o a, transforme-se no que ele verdadeiramente é, ou seja,
um sujeito enquanto ele mesmo barrado. O que vimos naquela época, e que
deve ser considerado, portanto, sempre capaz de se reproduzir, e, se assim
posso dizer, a passagem de toda uma massa para a função de um olhar
unívoco. Só o que pode explicar isso é a percepção das possibilidades
oferecidas ao significante privilegiado, nesse registro, de ser o mais sumário,
de ficar reduzido ao que Freud designa como sendo, pura e simplesmente, a
marca, a função como que única, do 1” (LACAN, 2008, p. 308, grifos nossos).

O líder, como pontuou Lacan, “funciona na dimensão de um olhar unívoco”, como um


espectro itinerante rigidamente designado no interior do próprio processo identificatório do
grupo. O líder é o espectro que ronda o infatigável continente das demandas. Evocá-lo, em certa
medida, faz com que o continente demandante se aflore numa mesma direção.
Desprender-se de um líder mostrou-se sim eficaz, mas para os adversários do ‘grupo’,
para a dissolução do grupo e de seu “empreendimento”, como nos lembra Freud em Moisés e o
Monoteísmo. Isso se relaciona com a conhecida afirmação atribuída a Alexandre Magmo,
bastante incorporada na contemporaneidade pelos ditos “formadores de liderança”: “eu não
temeria um grupo de leões conduzido por uma ovelha, mas eu sempre temeria um rebanho de
ovelhas conduzido por um leão”. A própria morte de Alexandre evidencia isso com precisão.
Dissipou-se em pequenos grupos todo o volumoso império alexandrino após seu falecimento. O
grande líder macedônio, que operava como significante privilegiado de liderança, nem
passando o “anel de sinete” diretamente as mãos de Pérdicas (o líder de sua cavalaria pessoal)
obteve êxito em manter a integração do grandioso império na figura de um suposto sucessor.
Ora, Alexandre não é Pérdicas.
Nessa direção, Freud nos diz: “se um povo ou uma tribo se dispõe a um grande
empreendimento, é de se esperar que um de seus membros assume o lugar de líder ou seja
escolhido para esse posto” (FREUD, 2006a[1939], p. 12). Quer dizer, o líder aparece no interior
– ou melhor, “é de se esperar que apareça” – das equivalências do coletivo. A pergunta sobre
se haveria ou não possibilidade de “grandes empreendimentos coletivos”, daqui em diante na
história, terem efetividade e força transformadora em seus desígnios dispendendo do líder,
parece o tipo de pergunta secundária que aparentemente quer garantir alguma
previsibilidade a priori ou imposição de caráter essencialista na constituição da identidade

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coletiva e de suas demandas. O que se sabe até então, a rigor, é que a função do líder, mesmo
que local e contingente, é comumente demandada e atribuída.
Não é possível também prever, no interior dos grandes movimentos coletivos, se as
instâncias de lideranças e micro lideranças locais necessárias a um “grande empreendimento”
(mesmo em movimentos ditos mais ‘horizontalizados’) cairão em profundo desuso; se lhes
serão negados absolutamente o cumprimento, a função e o papel, mesmo que momentâneos, de
direção e liderança. Laclau nos afirma que “uma identidade não precede, mas é resultado de
um processo de representação”. Representação essa constituída pelo processo significante: “o
significante vazio é questão sine qua non para tal emergência” (LACLAU, 2013, pp. 236-237).
E nesse processo de opacidade, que opera no vazio de cada significante, é de se esperar,
como nos diz Freud, que algo assim como o significante de um líder apareça, seja operando
como ‘liderança local’ (o chefe, o diretor, o pastor, o líder do bairro, o puxador do ato, etc) nas
micro instâncias dos grandes grupos, seja como ‘liderança principal’ do grupo ou coletivo como
um todo (o líder popular e carismático, por exemplo). Diferentemente ocorre com a função que
exerce o significante Cristo, que é um caso de identificação simbólica predominantemente
religiosa, no qual o laço significante, apesar de não encontrar a correspondência existencial que
há muito se perdeu na cruz, encontra nos ideais o símbolo vivo do laço secular que perdura. Os
líderes populares religiosos, como o Cristo ou Buda, por exemplo, podem tornar-se, no nível
significante, milenares, insígnias transeculares, operando enquanto símbolo e insígnia massiva
através dos infindáveis deslocamentos.
Tais ‘nomes’ no interior da religiosidade são muito mais uma insígnia de representação
e direção simbólica retroativamente evocados que propriamente um líder em termos
convencionais, por mais que comumente um cristão afirme, por exemplo, que ‘Cristo conduz
sua vida’, ou mesmo quando um muçulmano que diz ‘morrer pelo profeta’. Daí, resulta o fato
dos líderes pastorais (padres, pastores, bispos e afins) afirmarem em discurso que falam
enquanto líderes em nome de Cristo ou em nome do pai. Na própria representação pastoral de
liderança cristã, exercida a caráter provisório nos diversos contextos, está incluída a
significação da insígnia ‘Cristo’ ou ‘Deus’. A marca ‘Cristo’, a ideia e núcleo que o entorna, é
impressa à revelia da tipificação da liderança local e contextual.
Nesse sentido, o significante ‘Cristo’ não tem enquanto significado relevância como
significante e insígnia, digamos, pela determinância e concretude local e carnal, como poderia
ocorrer com um político popular: a presença corporal, a voz marcante, gestuário, etc.,
comumente são elementos determinantes ao grande político. Na verdade, trata-se
precisamente de resgate identitário simbólico. Em certos rituais, temos, inclusive, a visada

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Volume 06, Número 10, Ano 2021

de uma incorporação simbólica ‘do próprio corpo e sangue de Cristo’, o que revelaria “um
processo de incorporação identitária”, como dissemos, no ato de devorar “a carne e beber o
sangue do pai para que ele permaneça em nós e nos identifiquemos como irmãos”.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas seções anteriores, procuramos estabelecer uma reflexão em torno do fundamental


conceito de identificação no interior da Psicanálise, tencionando nossa discussão para as
identificações religiosas. Demos ênfase às identificações religiosas cristãs e procuramos
abordar, de modo bastante introdutório, os processos identificatórios que fazem parte do
fenômeno intitulado neopentecostalismo, em sua face brasileira. Além disso, circunscrevemos
a função determinante do que denominamos “líder/gestor” nesse processo.
Em resumo, sem evidentemente encerrar a questão, podemos estabelecer três
conjecturas a que chegamos. (a) Em primeiro lugar, a sustentação secular de certos significantes
privilegiados, no interior da equivalência dos processos identificatórios cristãos, no
cristianismo de maneira geral, atende milenarmente a um conjunto de demandas inscritas na
polaridade desejo/desamparo (Wunsch/Hilflosigkeit): o mais eficiente lenitivo para o
desamparo humano, conforme sustenta Freud (2006[1927]). (b) Essas representações nodais,
moldam-se com derivas no nível rígido de significação, mesclando em sua abrangência novas
adjacências no entorno da histórica significação. Nesse sentido, fizemos a distinção entre
núcleos nodais da significação e núcleos adjacentes. (c) Tratando-se do fenômeno
neopentecostal brasileiro, sem qualquer intenção, repetimos, de encerrar a questão, podemos
demarcar que há uma profunda fusão de representações adjacentes ao dito “religioso”, próprio
da prática mercantil neoliberal, de indivíduos dentro de uma lógica empresarial,
“empreendendo para o futuro nos céus e promessa de prosperidade em vida”. Inclusive,
devemos sublinhar que uma tal promessa de prosperidade material é o que amarra, com mais
efetividade, o laço identificatório neopentecostal, sendo esse o traço fundamental que
sobredetermina o processo identificatório.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

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https://doi.org/10.7213/1980-5934.33.058.DS05.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021


Recebido em:12/05/2021
Aprovado em: 19/06/2021
Publicado em: 15/07/2021

LES SIGNES DU PÂRTIR


une anthropologie clinique négro-africaine des marges entre croyances et psychanalyse

OS SIGNOS DO SOFRIMENTO
uma antropologia clínica negro-africana das margens entre crenças e psicanálise

THE SIGNES OF THE SUFFERING


a negro-african clinical anthropology of the sidelines between beliefs and psychoanalysis

David-Le-Duc Tiaha1
([email protected])

Résumé : Les ramifications souterraines d’une culture se manifestent lorsque ses sujets en crise, en
souffrance, laissent surgir d’eux l’étrange, ce que M. de Certeau appelle les figures de l’Autre, que cette
culture veut exorciser au milieu d’elle. Dans leur parcours thérapeutique, où la souffrance a pris pour
eux la forme de l'inquiétude, de l'angoisse et de l'indétermination aiguës, les malades en Afrique tiennent
à la fonction symbolique du soin caractérisée par la transversalité dialectique de la maladie et de la
guérison durant leur itinéraire thérapeutique entre médecine occidentale-scientifique et technicienne,
thérapies traditionnelles africaines et rites religieux. La crise du Muntu est une critique philosophique
du sujet africain ou afro-descendant confronté aux errances dans sa quête authentique du sens et de l’être
soi-même face à la violence symbolique de l’intrusion coloniale de l’Occident en Afrique. Comment
guérir de l’Autre pour être soi-même ? La crise de possession est ce type d’expérience pathologique du
conflit des interprétations révélateur des métamorphoses de l’univers mental et culturel en cours dans
les sociétés africaines. La démarche philosophique de l’interprétation des signes du pâtir dans le contexte
d’une anthropologie clinique des marges ouvre la voie pour une poétique dans l’institution de la
psychothérapie comme déplacement de la position du Muntu en tant que sujet dans sa relation à l’Autre
à travers un questionnement réciproque entre thérapies traditionnelles, exorcisme et psychanalyse autour
du maillage de l’imaginaire, du symbolique et du réel où la religion, la magie, la sorcellerie et la science
médicale sont en rivalité dans le parcours thérapeutique du malade qui, doublement souffrant de maladie
et de domination symbolique, est en quête de guérison et d’émancipation.

Mots-clés : Récit. Position subjective. Herméneutique. Psychanalyse. Subjectivité corporelle.

Resumo: As ramificações subterrâneas de uma cultura se manifestam quando seus sujeitos em crise, em
sofrimento, deixam transparecer neles o estranho, algo que M. de Certeau chama de as figuras do Outro,
que esta cultura busca exorcizar no interior dela mesma. Em seu percurso terapêutico, onde o sofrimento
assume para eles a forma da preocupação, da angústia e da indeterminação aguda, as doenças na África
carregam junto à função simbólica caracterizada pela transversalidade dialética da doença e da cura ao

1
Chercheur et Membre du conseil scientifique du Centre de recherche de philosophie Fonds Ricoeur rattaché
au CRAL-EHESS de Paris, professeur certifié de sciences physiques à l'Académie de Créteil dans la région
parisienne.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7561-4459.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021


longo do seu itinerário terapêutico entre medicina ocidental-científica e técnica, terapias tradicionais
africanas e ritos religiosos. A crise do Muntu é uma crítica filosófica do sujeito africano ou
afrodescendente confrontado às errâncias em sua busca autêntica do sentido e do ser si-mesmo face à
violência simbólica da intrusão colonial do ocidente na África. Como se curar do Outro para ser si-
mesmo? A crise de possessão é esse tipo de experiência patológica do conflito das interpretações que
revela as metamorfoses do universo mental e cultural em curso atualmente nas sociedades africanas. A
démarche filosófica da interpretação dos signos do padecimento no contexto de uma antropologia clínica
das margens abre a via para uma poética nas instituições de psicoterapia como deslocamento da posição
do Muntu enquanto sujeito em sua relação com o Outro através de um questi0namento recíproco entre
terapias tradicionais, exorcismo e psicanálise a da malha que entrelaça imaginário, simbólico e real,
onde a religião, a magia, a bruxaria e a ciência médica então em rivalidade na trajetória terapêutica do
doente que, duplamente sofredor, de doença e de dominação simbólica, está na busca pela cura e pela
emancipação.

Palavras-chave: Narrativa. Posição subjetiva. Hermenêutica. Psicanálise. Subjetividade corporal.

Abstract: The subterranean ramifications of a culture are manifested when its subjects in crisis, in
suffering, let out of them the strange, what M. de Certeau calls the figures of the Other, that this culture
wants to exorcise in the midst of it. In their therapeutic journey, where suffering has taken the form of
acute anxiety, anguish and indeterminacy for them, patients in Africa hold to the symbolic function of
care characterized by the dialectical transversality of the disease and healing during their therapeutic
route between Western medicine-scientific and technical, traditional African therapies and religious rites.
The Muntu Crisis is a philosophical critique of the African or Afro-descendant subject confronted with
wonderings in its authentic quest for meaning and being oneself in the face of the symbolic violence of
the West's colonial intrusion into Africa. How do you heal others in order to be yourself? The possession
crisis is that type of pathological experience of conflicting interpretations revealing the metamorphoses
of the mental and cultural universe underway in African societies. The philosophical approach to the
interpretation of the signs of the undergo in the context of a clinical anthropology of the margins opens
the way for a poetics in the institution of psychotherapy as a displacement of the position of the Muntu
as a subject in his relation to the Other through a reciprocal questioning between traditional therapies,
exorcism and psychoanalysis around the mesh of the imaginary, the symbolic and the real where religion,
magic, witchcraft and medical science are in competition in the therapeutic course of the patient who,
doubly suffering from disease and symbolic domination, is in search of healing and emancipation.

Keywords: Story. Subjetive position. Hermeneutics. Psychoanalysis. Body subjectivity.

******

L'interprétation de l'expérience de la maladie exige des lectures croisées à travers des


approches fragmentaires. Elle est envisagée par le médecin comme une pathologie qu'il
déchiffre à travers des manifestations symptomatiques liées aux propriétés physiques,
chimiques et biologiques du corps vivant. Il porte son attention sur ses anomalies et les
dysfonctionnements de ses organes. À ce corps souffrant sont appliqués mesures des paramètres
physico-chimiques de son fonctionnement systémique normal, mécanisation et prédictibilité :
« la médecine occidentale se construit autour des représentations erronées qui découlent d'un
idéal de rationalité inadéquat à l'essence de la maladie » (MARIN, 2015, p. 120). Cette
médecine défait l'homme de son corps et de ses liens symboliques. Ainsi ne désorganise-t-

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elle pas son rapport existentiel à la vie soutenue par la confiance ? Le malade dans la totalité
existentielle de sa vie subjective est oublié. On oublie ainsi que la maladie déstabilise non
seulement l'intégrité corporelle physique du malade, mais aussi son équilibre psychique.
Le sociologue l'inscrit dans un réseau social qui ne tient pas compte du sentiment de
dépossession de soi éprouvé dans l'intime. L'anthropologue interprète la maladie avec des
grilles herméneutiques puisées dans des schémas collectifs de la représentation de la maladie
sans rendre compte de l'effort de signification que le sujet malade essaie de dégager du non-
sens de la maladie. Quand la maladie est pensée en philosophie, le philosophe focalise son
attention sur l'objectivité de la science du vivant. Le conflit de la raison et de la foi a conduit le
théologien, tout comme l'anthropologue, à ne plus interroger les sciences du vivant en laissant
la dialectique de la maladie et de la guérison au soin de la médecine, là où elle pouvait apporter
un éclairage sur la fonction symbolique et l'éthique du soin qui témoignent des rapports
existentiels du patient – angoisse et confiance – à la vie au moment où il est violemment
confronté à sa propre désubjectivation (dépersonnalisation) opérée par la maladie. La maladie
est étroitement liée à la question du sujet au sens anthropologique dans la mesure où elle exerce
sur lui un impact violent désubjectivant sur le plan physique et psychique. L’impact
désubjectivant de l'événement de la maladie ne met-elle pas en ce sens en échec le processus
de symbolisation avec lequel tout sujet parvient à sa propre subjectivité comme habitant d'une
culture donnée ?
Dans leur parcours thérapeutique, où la souffrance a pris pour eux la forme de
l'inquiétude, de l'angoisse et de l'indétermination aiguës, les malades en Afrique tiennent à la
fonction symbolique du soin caractérisée par la transversalité de la dialectique de la maladie et
de la guérison entre médecine rationaliste occidentale, thérapies traditionnelles africaines et
rites religieux. La crise du Muntu est une critique philosophique du sujet confronté aux
errements dans sa quête authentique du sens et de l’être soi-même face à la violence symbolique
de l’intrusion de l’Occident en Afrique (EBOUSSI BOULAGA, 1977). Elle a trouvé de manière
insidieuse, silencieuse et invisible son expression la plus manifeste et puissante dans les
itinéraires thérapeutiques entre rationalité médicale de l’Occident, thérapies traditionnelles de
l’Afrique et exorcisme chrétien au cours desquels le Muntu est confronté à des pâtir
d’annihilation autour des réalités de croyance comme la sorcellerie, la magie et la religion qui
mettent en jeu l’articulation de l’imaginaire, du réel et du symbolique 2 dans l’interprétation
philosophique et clinique de la possession, la transe, la divination, ou du rêve.

2
« L’insignifiant, c’est aussi la confusion de l’imaginaire avec le réel : il condamne aux illusions inefficaces
de l’idéologie » du paranormal (EBOUSSI BOULAGA, 1977, p. 22).

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C'est pourquoi la représentation du mal, de la maladie et de la souffrance comme


problème de la théodicée biblique n'est pas dissociée de la problématique de la sorcellerie en
contexte colonial et post-colonial. Celle-ci a été rapidement assimilée à la démonologie et à la
possession par les Églises – catholique, protestante, évangélique et indépendantes - et prise en
charge par l'exorcisme et les prières de délivrance. C’est ainsi que la question de la sorcellerie
liée à la question de la représentation du mal, de la maladie et de la souffrance dans les cités
africaines s’est retrouvée à la croisée des institutions thérapeutiques : les thérapies
traditionnelles chez les nganga, la psychiatrie à l’Hôpital et l’exorcisme chrétien dans les
Églises. Cette confrontation autour de la question de la possession diabolique, ayant prise quant
à elle des expressions eschatologiques (CERTEAU, 2005), est un lieu spécifique pour
comprendre les métamorphoses de l’univers mental en cours dans les sociétés africaines.
La démarche de l’interprétation des signes du pâtir dans le contexte d’une anthropologie
clinique des marges s’organise en quatre étapes. D’abord, la recherche d’une complémentarité
des arts de soigner, promue autour des travaux d’E. de Rosny (1991, 2005) et de M. P. Hebga
(1998), est porteuse d’une théodicée implicite plus soucieuse de justifier la réalité de croyance
et sa vérité métaphysique que d’expliciter son intelligence thérapeutique au service de la
relation psychothérapeutique (KENMOGNE, 2016). Ensuite, une critique sociale des
ambiguïtés de la coalition des rationalités et des croyances contre le Mal de J. Tonda (2002)
dénonce l’idéologie de la domination à l’œuvre dans la rivalité des diverses pratiques
thérapeutiques entre agents de soin et patients. Ceux-ci négociant leur guérison moyennant une
reconfiguration de leurs identités personnelles par conversion et obéissance aux autorités des
institutions de soin dont leur efficacité viendrait justifier la vérité de leur système de
représentation du monde. Aussi, les critiques herméneutique et psychanalytique de
l’épistémologie des maladies paranormales décrivent les modalités de confusion ou de
coïncidence entre l’imaginaire, le réel et le symbolique qu’elle véhicule dans son interprétation
des récits de maladies paranormales dissociée de la psychopathologie du marginal (EVRARD,
2014; DEVEREUX, 1953) pour ensuite en proposer des critères épistémologique et
psychanalytique de leur distinction grâce à la théorie des genres littéraires à l’œuvre dans les
autobiographies d’affliction : le récit et la métaphore. Enfin, cette clarification herméneutique
et psychanalytique ouvre la voie pour une poétique dans l’institution de la psychothérapie
comme déplacement de la position du Muntu comme sujet dans un questionnement réciproque
entre thérapies traditionnelles, exorcisme et psychanalyse.

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1 LA COMPLEMENTARITE DES ARTS DE SOIGNER ET LA THEODICEE


IMPLICITE DE L’EPISTEMOLOGIE DES MALADIES DITES PARANORMALES

Le premier point de vue est à la fois anthropologique, religieux et métaphysique. Il est


développé chez E. de Rosny (1991), M. P. Hebga (1998) et, leur disciple, E. Kenmogne (2016).
Il correspond à la période où la culture africaine est revalorisée par la mission évangélisatrice
autour du thème théologique de l’inculturation. Il s’agit pour la théologie africaine de penser
de manière à réconcilier les grandes questions de la théologie occidentale et la pensée religieuse
africaine. C’est ce qui explique chez cet anthropologue l’absence de conflit entre ces trois
institutions de soin. L’anthropologie de la guérison selon cette perspective analyse le dispositif
de soin et les recours thérapeutiques de chaque institution de soin sans les mettre en rivalité, en
soulignant leur complémentarisme non simultanée (NUG, 2011). Elle développe une théorie
interculturelle de la guérison proche de l’orientation de G. Devereux (1970, 1972). La
complémentarité non simultanée entre les différentes institutions de soin explique aussi les
itinéraires thérapeutiques. La théorie de la guérison promue par Eric de Rosny n’est pas
psychanalytique, mais elle semble ouverte à l’interculturalité même si elle n’est pas exempte
du conflit des interprétations qui trouve sa source dans l’histoire catholique de sa
compréhension de la possession, de la transe et de l’extase.
L’état des lieux de cette problématique dans les cités africaines peut être éclairé par
analogie avec la méthodologie généalogique et analytique des espaces de sens de Michel
Foucault implicite à la démarche de M. de Certeau dans La possession de Loudun. Le
phénomène de possession devient un objet social et historique où sont distinguées trois
approches différentes en confrontation : la pratique de l’exorcisme par le discernement des
prêtres/pasteurs avec sa théodicée (le pastoral), le diagnostic du regard médical des médecins
sur la possession diabolique avec ses diagnostics tâtonnants sur le possible et la maladie d’esprit
(le médical), et le travail des juges devant appliquer un jugement au prétendu sorcier avec la
difficulté d’établir des preuves de faits (le judiciaire). Cette confrontation entre le pastoral, le
médical et le judiciaire autour de la question de la possession diabolique, ayant prise quant à
elle des expressions eschatologiques, est un lieu spécifique pour comprendre les
métamorphoses de l’univers mental d’une société (CERTEAU, 2005). Une investigation sur
l'art pluriel de soigner en Afrique permet d'explorer ces métamorphoses mentales en cours dans
les cités africaines.
Une telle méthodologie pluridisciplinaire d’exploration de la question – le pastoral,
le médical et le judiciaire sous-tend de nouvelle initiative de recherche actuelle en Afrique

290
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

(ROSNY, 2005). Le thème Punir le sorcier et guérir ses victimes ne serait-il pas l’intention
silencieuse du travail du Groupe de recherche sur la sorcellerie de Douala constitué de médecins,
d’anthropologues, d’économistes, de juristes, de tradipraticiens ? Ce non-dit est renforcé par un
fort préjugé de la croyance en la sorcellerie pour laquelle la foi chrétienne et la raison sont
mobilisées ici pour contrecarrer les effets dévastateurs de sa réalité dans toutes les sphères de
la vie humaine correspondant à toutes les disciplines des sciences humaines et sociales mises
au service de son élucidation scientifique et même métaphysique. Puisqu'elle est un « système »
ayant une fonction sociale.
La croyance en la sorcellerie serait le corollaire irréfutable de sa réalité ontologique
(ROSNY, 2005, pp. 25-32 ; 359-360). Ce préjugé tient la sorcellerie pour un fait total : comment
reconnaître le sorcier ? Mais il bute sur la difficulté à fournir des critères traditionnels et
« scientifiques » (à partir des sciences humaines et sociales) pour attester un fait de sorcellerie
et identifier le sorcier. La croyance en question est déplacée par les christianismes africains et
les protagonistes de cette épistémologie du paranormal sur le terrain de la science et de la
métaphysique. La justification métaphysique et apologétique de la foi chrétienne ne serait-elle
pas la préoccupation centrale de la pratique de l’exorcisme et de la délivrance ? Ne fonctionne-
t-elle pas avec une stratégie de désubjectivation des corps possédés contre l’esprit de l’évangile
qui a toujours mis la personne humaine avec son histoire individuelle au cœur du ministère
thérapeutique de Jésus ? Le corps subjectif du possédé ne cesse-t-il pas d’être le centre
d’orientation libre de soi pour n’être qu’un objet vidé de sa présence à soi et soumis à
l’aliénation des puissances de l’imagination ? Ce choix philosophique est d’ailleurs assumé par
l’apologie du paranormal (KENMOGNE, 2016)3.
Cette épistémologie du paranormale désarticule le mal subjectif, la dimension culturelle
et sociale de la maladie ainsi que le mal objectif livré pour l’essentiel au protocole du diagnostic
médical au profit d’une explication a priori métaphysique des maladies dites paranormales.
Celles-ci seraient caractérisées par des troubles fonctionnels dont les symptômes ne rentrent
dans aucune étiologie déjà connue, mais elles se manifestent avec des facteurs d’ordre
psychique, culturel et biographique. Ces maladies sont dites paranormales parce qu’elles ne
peuvent pas être interprétées par les canons rationnels de l’art médical du diagnostic.
A la suite de M. P. Hebga, pour E. Kenmogne, l’idée de maladies paranormales a trait à

3
« Mais ces réflexions sont épistémologiques, elles ne préoccupent guère immédiatement les personnes
souffrantes ; elles ne résolvent pas le problème du sujet qui se présentent au médecin, au prêtre, au psychiatre
ou au psychothérapeute dans le but de recouvrer une santé qu’il estime altérée ou perdue depuis un tel vécu »
(p. 29).

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tout ce qui touche à la sorcellerie et à la magie. Celles-ci constituent ensemble tout le domaine
de l’occultisme où la relation de cause à effet des maladies paranormales reste rationnellement
inexplicable. L’épistémologie de la santé promue par les représentants de cette École africaine
de philosophie veut élargir le champ de l’expérimentable à ce pâtir du « paranormal » au-delà
du vérifiable médical. L’expérience de ce « pâtir quelconque » (WIEZSÄKER, 2011), selon
l’expression de V. von Weizsäker, est portée au langage par la plainte du souffrant où sont
conjointes autobiographie et traduction verbale des symptômes qui traduisent l’imaginaire
culturel de la maladie.
Ces récits des péripéties du pâtir sont non seulement des récits dans le récit, mais
essentiellement des récits de rêve. Ils sont considérés comme des « faits vécus » en première
personne ouvrant l’esprit à une autre réalité ayant sa propre rationalité. La crédibilité du rapport
au réel de ces récits vient de ce que ceux-ci raconteraient des histoires qui renvoient à des
événements moins imaginaires que réels : « Le récit en soi, s’il n’était qu’hallucinatoire, serait
pathologique. Si l’on suppose qu’il est de contenu réel, la chose devient préoccupante »
(KENMOGNE, 2016, p. 29). Partant de l’affirmation d’une « autre réalité » à travers ces récits
de rêve, Kenmogne plaide pour que l’idée de santé, de maladie et de guérison articule la
rationalité biomédicale avec leurs représentations mentales, sociales et culturelles car la réalité
dont il est question dans les récits de rêve s’inscrit dans l’univers culturel de la vision religieuse
et cosmogonique du monde.
La relativité de la distinction du normal et du pathologique, de la santé et de la maladie
chez G. Canguilhem, puisqu’être en santé ne veut pas dire absence de maladie, permet à
Kenmogne de justifier sa théorie relativiste de la santé qui serait alors exclusivement,
culturellement et subjectivement déterminée par le pâtir du patient. En raison de cette relativité,
l’auteur en vient donc à justifier l’impertinence de l’opposition du normal et du pathologique
selon la rationalité médicale occidentale d’une part et, d’autre part, celle de l’opposition du réel
et de l’imaginaire selon les maladies paranormales qui ne rentrent pas dans cette rationalité du
vérifiable. Le diagnostic des maladies paranormales (KENMOGNE, 2016) 4, dont la sorcellerie
serait la cause efficiente, appartiendrait à une certaine « herméneutique du dévoilement » en
vue d’une esquisse d’action thérapeutique propre à une science de l’esprit (NKULU
KABAMBA, 2014). Cette Contribution à l’épistémologie de la santé s’articule dans une

4
« La ‘‘maladie paranormale’’ peut se définir comme une pathologie subjectivement perçue et clairement
déclarée par le patient, aux effets plus ou moins objectivement observables par un tiers, notamment le médecin
des hôpitaux, justement parce que l’étiologie de cette pathologie réelle ne tombe pas docilement sous la science
médicale conventionnelle » (KENMOGNE, 2016, p. 39).

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pratique thérapeutique qui est foncièrement une théodicée au sens d’une explication
métaphysique et religieuse de l’origine du mal, de la maladie et de la souffrance (ROSNY, 2005 ;
HEBGA, 1979) 5 . Cette théodicée 6 explicite sa réalité ontologique en traitant les effets
psychosomatiques des maladies paranormales comme des « faits objectivables » selon la
méthode sociologique d’E. Durkheim, dans Les règles de la méthode sociologique, dans la
mesure où quels qu’ils soient renvoient nécessairement à l’esprit humain.
Le recours aux thérapies nocturnes ou à la « prière à Dieu qui soigne par l’esprit en
dehors de tout recours aux médicaments » participe à cette théodicée (KENMOGNE, 2011,
souligné par l’auteur). Celle-ci se prolonge dans une anthropologie africaine en rupture avec le
dualisme métaphysique occidentale de la matière et de l’esprit pour faire place à un triadisme
de l’homme constitué du corps, du souffle et de l’ombre. Le recours à un pluralisme
thérapeutique n’est pas le fait de l’incrédulité, de l’incertitude et de la peur, mais il relève du
goût de la vie dans les limites de la raison technicienne et de la ruse de l’intelligence calculatrice
de la vie déterminée par l’instinct au sens de H. Bergson dans L’Évolution créatrice
(KENMOGNE, 2011, pp. 389-390 ; BERGSON, 1957).
Kenmogne fait le pari d’une connaissance effective de la sorcellerie comme objet de la
philosophie puisqu’elle est un « phénomène réel » naturel et non surnaturel suivant l’idée
hégélienne selon laquelle « tout ce qui est réel est rationnel ». Le questionnement philosophique
sur la sorcellerie ne saurait faire l’économie de la question suivante de l’auteur : « est-ce un fait,
un phénomène ou un simple discours fondé sur des représentations plus ou moins déterminées
par notre imagination » (KENMOGNE, 2016, p. 79). Cependant l’opposition de l’imaginaire
et du réel est aussitôt rompue par l’identification des effets psychosomatiques des maladies
paranormales et les faits au sens sociologique dans la mesure où les croyances sont prises pour
des faits réels parce qu’elles organisent et gouvernent l’univers mental et la vie culturelle,
religieuse et sociale des personnes qui y sont impliquées par leur appartenance à une
communauté. A la suite de M. P. Hebga, Kenmogne précise que dans cette démarche
épistémologique, il n’y a pas de confusion entre réflexion philosophique ou théologique,
révélation religieuse, initiation ésotérique, observation participante ; les genres littéraires sont
parfaitement distingués dans leurs rapports avec le réel (KENMOGNE, 2016, p. 85).

5
« Dire qu’elle [la sorcellerie] n’existe, écrit E. de Rosny, c’est nier tout simplement et avec une certaine
naïveté l’existence de la perversité dans ce monde » (p. 28) ; « La sorcellerie est l’ensemble des activités
mauvaises du sorcier. Elle s’inscrit dans la sphère du mal » (HEBGA, 1979, p. 16) ; « Par-delà les discours
sur la sorcellerie, il y a une réalité ontologique dont la découverte incombe à l’invention épistémologique »
(KENMOGNE, 2005, p. 46).
6
Cette théodicée est une caractéristique spécifique de l’ethnophilosophie décrite avec rigueur par Eboussi
Boulaga (1977, p. 29).

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L’épistémologie du paranormal de Kenmogne suit ici un pragmatisme de méthode


pluridisciplinaire qui conjoint de manière programmatique tant bien que mal anthropologie
structurale, science du vivant et métaphysique. A un premier niveau, elle prend à son compte
l’efficacité des pratiques magiques et sorcellaires impliquées dans la croyance en la magie et
en la sorcellerie où le sujet est entièrement déterminé de manière structurale par l’efficience du
système de croyances et de représentations du monde. Elle intègre à un deuxième niveau la
critique des interprétations scientifiques des phénomènes paranormaux qui tend à leur
démystification pour en tester la validité. A un troisième niveau, la science s’intègre après sa
critique dans une démarche métaphysique positive comme chez H. Bergson (KENMOGNE,
2016, p. 93). Elle est d’abord phénoménologie du rapport au réel où l’expérience est la seule
source de connaissance. Ensuite, elle se confronte au niveau épistémologique à d’autres savoirs
pour élucider l’intuition où science et métaphysique se croisent sans qu’elle ne soit limitée par
le réel comme articulation de l’espace et du temps comme chez Kant. La frontière entre intuition
sensible et intuition intellectuelle est rompue. En ce sens, l’hallucination peut être aussi
considérée comme une intuition pour laquelle l’imagination et la perception du réel perdent leur
distinction comme dans « Fantômes de vivants » de Bergson (KENMOGNE, 2016, pp. 139-
142).
Punir ou guérir ? Il arrive aussi parfois que les débats s'épuisent sur la sémantique même
de la sorcellerie et de sa traduction dans les langues locales. Les travaux s'appuient sur les
discours actuels et sur l'imaginaire de la sorcellerie pour développer leur prise de position.
L'analyse n'est-elle pas biaisée par ce choix méthodologique porté par des fantasmagories ? Une
herméneutique des contes traditionnels sur la sorcellerie (puisque c'est aussi un savoir) et une
enquête ethnographique sur la pratique de la sorcellerie ne permettrait-elle pas de dégager les
problématiques anthropologiques et thérapeutiques au cœur de cette question de la sorcellerie
qui a été d'entrée de jeu piégée par un préjugé moderne et post-colonial sus évoqué sur les
croyances africaines et sa culture en général.
Les approches théologique et pastorale de la sorcellerie ne prennent pas en compte les
dispositifs traditionnels judiciaire et thérapeutique pour faire face à la question. La loi traite des
affaires de sorcellerie dans le Code pénal camerounais. Dans le cas du Cameroun par exemple,
elle est prise dans une aporie : d'une part, le délit de sorcellerie est reconnu par le législateur, le
juge doit recevoir l'accusation des plaignants ; d'autre part, elle ne parvient pas à définir les
actes répréhensibles. C'est ainsi que le Groupe de recherche sur la sorcellerie (GRS) propose
une réforme pour pallier cette déficience du Code pénal en donnant aux juges des critères
plus précis et en faisant intervenir des tradipraticiens pouvant interpréter les signes du

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monde invisible ainsi que des anthropologues possédant un savoir traditionnel. C'est une
préoccupation post-coloniale dépourvue d'une connaissance réelle des traditions africaines sur
la question. Car le mode de juger des affaires de sorcellerie dans le contexte traditionnel, chez
les Bamilékés par exemple, ne repose sur aucune procédure d'instruction portant sur des délits
et ne renvoie pas à un code pénal classant les fautes, parce que punir n'est pas sa visée, mais
réinsérer et réconcilier les individus – accusé et plaignant - dans l'ordre social. Juger c'est guérir
et non punir. Autrement dit, le judiciaire a une vocation thérapeutique.
Le préjugé de la domination du pouvoir religieux travaille implicitement la comparaison
hiérarchisant des itinéraires thérapeutiques. La comparaison des itinéraires thérapeutiques à
travers des récits de maladie semble justifier une hiérarchisation des recours qui privilégierait
la thérapie religieuse (LADO e FOSSO, 2011). Est-il vraiment pertinent de les hiérarchiser ? Il
semble impertinent dans la mesure où la quête de guérison des patients ne s’élabore pas par un
choix rationnel et conscient des thérapies qui seraient appropriées les unes par rapport aux
autres par anticipation. Car ils ne savent pas par avance quelle thérapie serait la plus efficace.
Les récits thérapeutiques ne se racontent qu’après coup sans tenir compte des facteurs
irrationnels du choix du cheminement thérapeutique lié à la souffrance elle-même – qui est sans
raison - et du lien de causalité inexplicable entre type de thérapie et guérison effective. Car dans
leurs itinéraires thérapeutiques, ces sujets continuent à fréquenter le prêtre, le pasteur, le
médecin et le nganga. A quoi obéissent ces récits des itinéraires thérapeutiques ? N’obéissent-
ils pas à l’échange du miracle ou du don de guérison et de la conversion, de la soumission et de
l’obéissance des corps souffrants à des autorités religieuses ?

2 UNE CRITIQUE SOCIALE DES AMBIGUÏTES DE LA COALITION DES


RATIONALITES ET DES CROYANCES AUTOUR DE L'ART DE SOIGNER

Le second point de vue est sociologique. L'idéologie de suprématie du pouvoir chrétien


dans le champ thérapeutique ne serait-elle pas commandée par ce que Joseph Tonda appelle la
« théodicée du souverain moderne » qui est une description des structures mentales qui
gouvernent les significations imaginaires des puissances (médicale, religieuse et politique).
Cette théodicée est « une rationalisation destinée à expliquer l’inflation du Mal, du malheur et
des souffrances en Afrique en exemptant le Dieu de la mission civilisatrice (TONDA, 2002, p.
227). Tonda part de la thèse, inspirée de C. Castoriadis dans L’Institution imaginaire de la
société, selon laquelle toute société possède une capacité de s’instituer en créant des

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significations imaginaires à partir desquelles se conçoit la possibilité de distinguer le rationnel


et l’irrationnel, le naturel et le surnaturel, le réel et l’irréel, le corps et l’esprit, l’intérieur et
l’extérieur d’une société.
La formation sociale impliquée par cette capacité auto-instituante est confrontée à des
déficits historiquement produits, s’invente et s’institue à partir des « magmas » composés par
des combinaisons, des associations, des fusions des significations imaginaires hybrides
instituées. Elles reposent sur l’opposition radicale instituée entre le Dieu de la religion du Christ
et le sorcier comme représentant ultime du mal dont il faut se guérir. Cet auteur parle de
théodicée parce que précisément la nature de la puissance à laquelle les sujets s’abandonnent et
obéissent pour guérir et les discours de la maladie et de la souffrance reposent sur cette
opposition radicale où viennent se jouer les questions de rivalité, de légitimité et d’identité des
thérapies traditionnelles, médicales et religieuses.
L’interrogation de la puissance à l’œuvre dans ce procès de la guérison divine est l’objet
de la sociologie de la guérison envisagée sous l’angle des pouvoirs et de la domination, c’est-
à-dire de la rivalité. Cet échange entre obéir et guérir passe par des ruptures dans les pratiques
médicales et traditionnelles, des ruptures dans les relations familiales et l’éloignement du
monde, des ruptures dans les conceptions du monde en s’affiliant au groupe organisateur de la
thérapie : « Les définitions du divin sont donc nécessairement celles du sain, du pur, du propre,
du civilisé, du légal, du normal en opposition proclamée à celles du sauvage, de l’impur, du
pathologique, du malpropre, de l’illégal, de l’anormal. Elles sont de ce fait enjeux du pouvoir
et de domination à l’intérieur du champ des spécialistes de la guérison » (TONDA, 2002, p. 21).
C’est la pratique du discernement exercée par le prêtre, le pasteur ou toute personne ayant le
charisme de guérison divine qui disqualifie la guérison non divine des féticheurs et des nganga
diabolisés avec les sorciers.
A cette disqualification chrétienne des thérapies traditionnelles s’ajoute le problème de
l’identité même des thérapies traditionnelles, médicales et chrétiennes. Cette identité est
soutenue et produite par l’opposition radicale structurant les discours normatifs et ethno-
centristes de la théodicée du souverain moderne. Selon la sociologie de la guérison divine de J.
Tonda, cette rivalité entre thérapies transformée en problème d’identité participe à la
disqualification des pouvoirs autochtones inscrits dans la même matrice culturelle que la
sorcellerie ainsi que les cultes de possession qui sert à justifier la croyance au Dieu civilisateur
des missions d’évangélisation. En deçà de cette opposition radicale de façade entre les thérapies
traditionnelles et les thérapies chrétiennes dite divines, il y a une profonde ambiguïté des
secondes par rapport aux premières.

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Car l’hétérogénéité des dispositifs, des pratiques et les résultats des actions de la
guérison divine comme les identités chrétiennes qu’elle produit ne semble guère différente de
celle des dispositifs, des pratiques et des identités des thérapies traditionnelles qui sont exclues
par celle-là. Elles partagent des similitudes que J. Tonda situent autour deux éléments. Le
christianisme et le système des nganga se rapprochent sur le fait de l’exclusion de la sorcellerie.
La démarche missionnaire d’E. de Rosny conforte cette similitude entre thérapies
traditionnelles et les thérapies divines. Le deuxième élément, qui prête à confusion et conforte
l’hypothèse de J. Tonda, vient du sens magique du charisme qu’il reprend chez Max Weber.
Celui-ci est commun aux thérapies traditionnelles et aux thérapies divines. C’est pourquoi cet
auteur estime que leur opposition radicale n’est qu’un jeu « des rapports de force et de sens qui
président, d’une part, aux définitions, inventions, constructions sociales, politiques et
culturelles du mal, de la maladie, du sauvage, du traditionnel, du « païen » ou sorcier, et, d’autre
part, à celles du bien, du sain, du civilisé, du converti, de l’« évolué », du moderne et du divin »
(TONDA, 2002, pp. 24-5).
Ces rapports participent à ce que J. Tonda appelle la « modernité pathologique »
(TONDA, 2002, p. 28) de l’Afrique où la figure du Christ thérapeute et la figure du nganga
affrontent cette modernité nocturne de la sorcellerie et ses articulations avec l’imaginaire, le
symbolique, le biologique et le politique. Avec l’habile distinction de witchcraft et sorcery en
anglais empruntée à Evans-Pritchard, et en français sorcellerie et fétichisme, dans les
significations imaginaires sociales les aptitudes, les facultés et les capacités des hommes à
réaliser l’inhabituel, l’écart différentiel qui définit l’extraordinaire, l’exceptionnel, le hors-
norme, l’anormal, le pathologique, le fait rare, ou tout simplement ce fait extraordinaire qui
constitue la vie, dépendent du principe de la sorcellerie qui n’est ni bon ni mauvais (TONDA,
2002, p. 43).
Cette rivalité des pouvoirs et du sens entre christianisme et thérapies traditionnelles
constitue le ressort des discours idéologiques de part et d’autre qui expliquent les « structures
de causalité » de la maladie, du mal, de la souffrance et de l’infortune. On peut dès lors saisir
la thèse de J. Tonda formulée en ces propres termes : « Dans la mesure où tous ces discours ont
en commun de sortir le Dieu chrétien ou le Souverain moderne des structures de causalité du
malheur en Afrique, nous suggérons de les considérer comme participant d’une théodicée. Aussi,
à l’opposé de cette théodicée, défendons-nous la thèse selon laquelle le Dieu civilisateur et le
Génie sorcier, en tant que significations imaginaires sociales, et donc marquées par
l’ambivalence, ne se définissent pas dans un rapport d’extériorité irréductible en Afrique.
Selon nous, c’est une seule et même puissance que symbolisent Dieu, le Génie sorcier et la

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coalition des forces qui le soutiennent dans la « modernité africaine », c’est-à-dire le système
capitaliste et chrétien » (TONDA, 2002, p. 39).
Les itinéraires thérapeutiques de la guérison divine, les thérapies traditionnelles et la
biomédecine remettent en question les rivalités corporatistes instituées depuis la colonisation,
même si les institutions traditionnelles de soin connaissent une marginalisation idéologique et
institutionnelle de la part des deux autres. Mais aujourd’hui la question de la légitimité de ces
différents champs thérapeutiques est croisée par les itinéraires thérapeutiques des patients,
même si la biomédecine au cours de son histoire demeure un processus monopolisation parfois
idéologique de la construction du sens de la maladie au détriment de celle des guérisseurs et de
la religion (FASSIN, 1992, p. 210). Mais en réalité, le pluralisme éclaté des champs
thérapeutiques est marqué par des frontières très poreuses où chaque champ, chaque théorie,
chaque pratique s’ouvre à d’autres à la fois de manière positive et négative dans un processus
ininterrompu de négociation des identités lié à la précarité de chaque champ thérapeutique
(TONDA, 2002, p. 103). Il est possible de travailler sur les homologies entre les institutions de
soin et mettre en exergue une homologie possible de structures entre elles afin de lever
l’équivoque de la rivalité, de la légitimité et de l’identité des thérapies que révèle la revue de
littérature sur la question. Peut-on encore aujourd’hui en Afrique laisser ces jeux du normal, du
paranormale et du pathologique se faire dans cette rivalité de pouvoir et de sens entre le
christianisme et système traditionnel des nganga ?

3 CRITIQUES HERMENEUTIQUE ET PSYCHANALYTIQUE DE


L’EPISTEMOLOGIE DES MALADIES PARANORMALES. ARTICULATION DE
L’IMAGINATION, DU REEL ET DU SYMBOLIQUE

Il convient de préciser que les récits des maladies paranormales sont des récits d’une
expérience d’un pâtir quelconque portée au langage par la plainte du souffrant où sont
conjointes autobiographie et traduction verbale des symptômes traduisant l’imaginaire culturel
africain de la maladie. En général, ces récits de souffrance sont des récits de rêve et des récits
dans le récit du pâtir. La théodicée implicite de la philosophie des maladies paranormales ne
distingue pas l’imaginaire et l’histoire qui s’entremêlent dans l’autobiographie de la souffrance
puisque les effets psychosomatiques de la souffrance des patients sont pris pour des faits
sociologiques fortement impliqués dans les réalités sociales gouvernant l’univers mental,
culturel et religieux des souffrants.

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Dans son pragmatisme de méthode, l’épistémologie des maladies paranormales


revendique un certain structuralisme pour lequel le contenu du récit n’est pas différencié du
réel. Ce structuralisme que partagent l’épistémologie du paranormal et l’ethnophilosophie est
caractérisé par F. Eboussi Boulaga autour de deux points suivants : 1/« La culture est la
transmission d’une structure mentale qui explique, c’est-à-dire déploie des formes concrètes
qu’elle contient déjà : c’est elle-même qui se répète sous les figures variées des mœurs, des
institutions, des arts. La langue illustre bien ce fait, elle qui est comme le fondement de la
culture : elle est l’expression par excellence de l’ethnie » (EBOUSSI BOULAGA, 1977). Par
conséquent, le sujet n’existe pas, il n’a pas d’histoire subjective, il est impensable hors de
l’ethnie. Le sujet comme catégorie philosophique et l’individu comme catégorie ethnologique
ne sont pas à confondre.
2/ L’insignifiant est la confusion de l’imaginaire avec le réel, il livre aux illusions de
l’idéologie du paranormal. Une herméneutique des images et des figures explique cette
confusion de l’imaginaire, du réel et du symbolique dans l’ethnophilosophie. Elle est aussi
valable pour l’épistémologie du paranormal. Dans ces philosophies, est réel ce qui préserve en
soi l’origine selon trois modalités : d’abord, sous forme d’ordre identifiant, ensuite, sous forme
de hiérarchie ou de généalogie et, enfin, sous forme de destination. La différence est accessoire
dans tout ce qui s’enchaîne dans l’harmonie de la tradition par la force vitale.
Le symbole est image, indice et loi. Il est d’abord image de ce qu’il désigne ou
représente. Il est ensuite l’indice dans la mesure où ce qu’il désigne ou représente l’habite ou
l’affecte de quelque manière. Il est enfin loi qui n’est jamais arbitraire en ce sens que ce qu’il
désigne ou représente se fait selon un ordre de règles de substitution et de représentation dans
la connexion ou la coïncidence des opposés dans une symphonie de l’imaginaire, du réel et du
symbolique dans le monde de la vie. C’est pour cette raison que la métaphore et la métonymie
ne sont plus des figures de styles dans le discours, mais l’expression des procédés et des
procédures du savoir-être. Ainsi la métonymie exprime l’effet par la cause, une chose dans son
ordre peut en représenter une autre. Les rituels des sacrifices et des cadeaux s’entendent dans
le procès métonymique de la magie. Les choses se substituent mutuellement dans la métaphore
où les procès et les structures sont identiques. Dans un tel système dans sa tentative de coïncider
avec le réel, il ne cesse de se dédoubler et à se substituer en le réduisant au symbolique. C’est
ainsi que fonctionne le système divinatoire. La consultation du devin est suscitée par
l’incertitude provoquée par un événement qui transforme l’ensemble des configurations dans
lesquelles émergent les possibilités de l’individu par lesquels le monde entre dans le rapport
de soi à soi de l’homme, c’est-à-dire son ipséité. L’échec de l’identification de l’imaginaire

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à l’origine, celle qui précède la parole, le désir et le travail, dans l’art divinatoire indique ce que
Eboussi appelle le « sort symbolique » de l’individu représenté dans l’appareil divinatoire par
la mort.
Ce totalitarisme engendre son antithèse : l’extérieur démoniaque : « La divination n’est
pas seulement une fausse médiation qui se contente d’un va-et-vient imaginaire, d’un terme à
l’autre de l’opposition apparence/être […] Mais l’individualité comme telle se met en rupture
de participation. Dans le langage de la pensée mythico-symbolique, on dira que l’individu qui
tranche est sujet à la ‘‘possession’’. Il peut être l’habitacle de puissances bonnes ou mauvaises,
et c’est en quoi que réside l’anomalie » (EBOUSSI BOULAGA, 1977, pp. 64-5). Ce qui est
redouté dans cette réalité de croyance, c’est l’individualité du sujet et celle des autres,
puisqu’elles sont niées en raison de la culture comme structure mentale, surtout lorsqu’il
n’existe pas avec eux des liens de nature, mais seulement par des liens de culture sous forme de
parole donnée ou d’alliance : par exemple on attribuera des faits de sorcellerie principalement
à ses parents par alliance.
On peut y reconnaître ce qu’on pourrait appeler ici une idéologie structuraliste que
quatre remarques sur l’analyse structurales des récits de rêve permettent de mettre en évidence
dans la mesure où elle met en réduction l’intentionnalité du pâtir et de l’agir avec sa visée
ontologique. Cette visée n’a rien à voir avec la justification de l’existence ou de la non-existence
d’une réalité de croyance avec l’effectivité de son monde, mais elle est l’expression d’une quête
existentielle de sens et de guérison face à la violence symbolique de la maladie, du mal et de
leur pâtir.
1/ L'autonomie du récit implique à la fois la clôture du récit sur lui-même et l'abolition
complète de la dimension référentielle du langage. Cette immanence du sens abolit par
conséquent la fonction mémétique du récit et la visée référentielle du langage. Le code prime
sur le message (BARTHES, 1966). 2/ Les récits de rêve et de souffrance sont traités comme un
système de signes structuré par une logique de relations contradictoires au service d’une
explication métaphysique du monde invisible et du divin et non de leur interprétation au service
de la thérapie du patient comme en psychanalyse et dans les thérapies traditionnelles africaines
(LÉVI-STRAUSS, 1960, 1967). 3/ Lorsque l'analyse structurale est appliquée aux récits, on
constate que l'exégèse porte davantage sur le jeu de correspondances de la logique des relations
contradictoires que sur l'intrigue du récit. 4/ L'analyse structurale ne laisse place à aucune
transposition métaphorique pour l'interprétation du récit de rêve et de souffrance avec son
imaginaire. L'analyse structuraliste du récit suit uniquement la signification dans un « jeu
de miroirs », un « jeu du sens », un « miroitement du sens », mettant entre parenthèses les

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potentialités dramatiques et existentielles de l'intrigue. C'est ainsi qu'il y a une dissolution des
valeurs référentielles – telles que le désir, le corps - dans le jeu des correspondances au profit
d'une parole et des représentations ayant le statut de réalité.
Le récit de rêve ou le récit dans le récit de la souffrance raconte une histoire close sur
elle-même et dans laquelle la différenciation de la représentation, de l’imaginaire et du réel
devient impertinente, puisque rêver, vivre et fantasmer sont les différentes expressions de la
même réalité humaine et sociale, celle-ci étant commandée par l’efficacité magique des
systèmes de croyance. Il n’y a pas plus de différence entre l’imaginaire et le réel. N'y aurait-il
pas dans ce type de récit, des « marqueurs » de sa référence extérieure à la vie quotidienne - qui
ouvrent le récit à autre chose que ce qu'il veut dire qui serait une tentative manquée d’une
réappropriation du sens par rapport au non-sens du mal, de la maladie et de la souffrance ? Ne
faut-il pas précisément faire un travail d’épistémologie des genres littéraires des expressions de
la souffrance qui manifestent leurs différents rapports avec le réel ?
Il s’agit de montrer comment fonctionnent la métaphore dans le récit. Le procès
métaphorique dans un récit est une étape intermédiaire entre l'analyse structurale et
l'herméneutique existentielle. Les mots ont leur sens propre commun fixé dans une communauté
parlante par les normes d'usage de la langue d'une part et, d'autre part, inscrit dans un code
lexical. La rhétorique a affaire aux sens figurés d'un mot qui dévient de l'usage ordinaire. Le
fait qu'il y a plus d'idées que de mots suscite le besoin d'une extension du sens ordinaires des
mots disponibles dans une langue au-delà de leur usage habituel. En revanche, la métaphore n'a
pas pour fonction comme celle de la rhétorique de combler le déficit sémantique des mots par
rapport à la réalité ou d'orner le discours. Elle ne saurait être réduite à sa fonction émotionnelle.
La critique herméneutique de l’épistémologie des maladies paranormales est guidée par la
théorie du récit et la théorie de la métaphore de Ricœur.
La métaphore ne consiste pas en une simple illustration des idées par des images selon
le jeu de ressemblance. Il s'agit d'une véritable création instantanée de signification, une
innovation sémantique qui met en tension deux interprétations d'un énoncé métaphorique, l'une
littérale et l'autre allégorique. Cette création de sens est produite par la découverte simultanée
d'une ressemblance et d'une discordance inédites entre ces deux interprétations. Plus qu'une
simple valeur affective, la métaphore fait voir le nouveau sens de la réalité : « Le sens est ce
qu'un énoncé dit, la référence est ce sur quoi il le dit ». Si la fonction du langage est d'articuler
notre expérience du monde, de donner forme à cette expérience, cela veut dire qu'il est ouvert
sur le monde qu'il exprime et transmet sans être clos sur lui-même comme la langue. Le
procès métaphorique s'inscrivant dans cette vocation du langage à dire exprime notre

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expérience du monde rompt avec l'analyse structurale du récit qui occulte la dialectique du sens
et de la référence. La métaphore en mettant en tension deux interprétations – l'une littérale et
l'autre figurative – d'un énoncé, elle opère un premier mouvement qui suspend la visée
référentielle du sens ordinaire afin de faire apparaître dans un second mouvement une nouvelle
référence attachée à la nouvelle signification de la réalité (RICŒUR , 1975).
La fonction narrative dans le récit de rêve ou le récit dans le récit du pâtir est articulée
au procès métaphorique (RICŒUR, 1983). L’autobiographie des patients se construit avec la
fonction narrative tout en faisant recours la fonction du procès métaphorique de symbolisation
dans leur quête existentielle de sens et de guérison face à la violence symbolique du mal, de la
maladie et de la souffrance. Elle va de l'une à l'autre et réciproquement : dans les discours de
sorcellerie, le récit n'invite-t-il pas à se faire interpréter métaphoriquement que littéralement ?
Quels indices induisent-ils à interpréter un récit comme une parabole de la souffrance, c'est-à-
dire comme une histoire inventée – sans doute en lien avec le quotidien - pour transmettre un
message. Le récit de rêve ou le récit dans le récit de la souffrance tiennent ensemble les figures
métaphoriques et les intrigues narratives de la vie quotidienne de la souffrance. Il devient en ce
sens une fiction capable de re-décrire la vie. Cette considération se joue à deux niveaux de
l'interprétation du récit de rêve ou du récit dans le récit de la souffrance. Elle se joue d'abord au
premier niveau « de la théorie des ''genres'' qui règle la forme narrative » et, ensuite au second
niveau, « de la théorie des ''tropes'' qui règle le transfert de la signification de l'histoire prise
comme un tout à la sphère existentielle à laquelle elle est ''appliquée'' ».
L’économie de l’expérience du langage permet de mettre à l’épreuve les discours sur la
sorcellerie où les effets psychosomatiques ne visent pas à justifier une réalité de croyance
convoquée dans la quête existentielle de sens et de guérison. Il est important de souligner ici
que c'est avec la psychanalyse qu'il est possible de mettre en exergue les pièges du rapport entre
le langage et l'image dans le vécu de la réalité de la maladie. L'imaginaire avec le symbolique
et le réel constituent les trois topiques du maillage de la subjectivité chez Lacan. L'imaginaire
chez Lacan désigne un effet d'aliénation dans l'image qui, précisément, fait obstacle à la
créativité de la subjectivité. Cet effet d'aliénation dans l'image est une sclérose de la
représentation coupée de la créativité langagière de l'imagination poétique.
Sans retracer ici la genèse de l'aliénation dans l'image à partir de la problématique du
stade du miroir de la formation de la réalité psychique par le biais de l'image du corps chez
l'enfant (LACAN, 1966, 1978, 2001), il convient de dire que ce processus d'identification par
l'image est non seulement nécessaire pour la formation de la réalité psychique, mais aussi
source de fantasmes de toute-puissance de type narcissique (LACAN, 1975, p. 152). Le

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discours sur la sorcellerie comme expression d'un imaginaire de toute-puissance, d'un désir de
totalité sans faille peut être interprété comme un symptôme, tant que le sujet ne se rend pas
compte qu'il a vocation de ne jamais coïncider avec l'idéal de totalité trompeur renvoyé par le
miroir du monde des images.
Selon cette perspective où l'imagination est réduite à une fonction de reproduction de
l'image, on peut dire que le fantasme joue pour l'accomplissement du désir un rôle de
substitution par rapport à son objet perdu dont l'image n'est pas toujours rattachée au langage.
On se retrouve là devant une contradiction non résolue de la psychanalyse post-freudienne de
Lacan où les déterminants cruciaux de l'inconscient – tels que les « représentants » de pulsions,
c'est-à-dire les représentations inconscientes et les affects – relèvent de la linguistique et
demeurent coupés de l'énergétique (LACAN, 1953, 1966). La situation analytique comme
situation de parole autorise une reformulation linguistique de la psychanalyse. L'analysant n'est
capable de parler d soi qu'en adressant la parole à une autre. Dans le contexte de la talking cure,
il s'agit ainsi de passer, selon la remarque de Ricœur renchérissant la thèse de Lacan d'un « récit
inintelligible à un récit intelligible ». Le symptôme n'est plus de l'ordre d'un fantasme, mais de
l'ordre langagier, car il s'intègre dans la structure narrative d'une expérience personnelle
impliquant les rapports du langage et de l'expérience analytique (RICŒUR, 1978, 2008, p.
109) 7 , à l'aide de « l'historicisation primaire de l'expérience infantile » selon Lacan et des
« symbolisations construites dans l'enfance » selon Edelson (1984).
C'est en ce sens que dans les Études sur l'hystérie de Freud et Breuer (1956) une
sémiotique des symptômes est proposée. Les symboles, en tant que substituts mnésiques, sont
le moyen par lequel le traumatisme, dont le souvenir de la scène a été refoulé, continue d'exister
sous la forme déformée de symptômes. La valeur métaphorique des mots assure souvent le
passage du symptôme à son expression linguistique, où parfois un état psychique peut être
symbolisé par une expression corporelle. Ainsi ce qui a été enfoui dans le corps par la
conversion hystérique est porté au langage grâce à la traduction d'un symptôme hystérique par
une métaphore : « Ne dit-on pas […] quand on se sent désespéré, qu'on a les jambes brisées ?»
(RICŒUR, 1978, p. 112). Jusqu'où peut-on considérer la situation analytique comme un univers
de langage ?
Dans L'Interprétation du rêve (FREUD, 2004), le travail du rêve est une investigation
pour rendre intelligible la « pensée du rêve » par des procédés langagiers, c'est-à-dire de
traduire les pensées latentes du rêve en contenu manifeste. La condensation est une péripétie

7
L'hypothèse d'une reformulation linguistique de la psychanalyse a conduit Ricœur à dialoguer avec Lacan
(France) d'un côté et, de l'autre, avec M. Edelson (USA).

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de la représentation qui veut dire métaphoriquement « compression » de pensées de rêve,


« abréviation » et « laconisme » résultant de la disjonction de la figure de rêve en ses éléments
initiaux, porteurs de noms distincts et capables de descriptions distinctes, durant le cours des
chaînes associatives des pensées oniriques. Tandis que le déplacement est un transfert
d'intensité psychique visant à déjouer la censure imposée par la résistance, un élément éloigné
du foyer d'intérêt et, par conséquent, de la représentation interdite ayant reçu la valeur originelle
placée sur elle. Il s'agit d'exprimer l'énergétique du rêve avec un langage figuré, car « le travail
de rêve met en jeu des processus sémiotiques qui ont été désymbolisés par la situation de
refoulement » (RICŒUR, 1978, p. 116).
Le discours de l'état de veille se déploie ainsi dans un espace logique opposé à
l'expression des affects ayant animés le processus du rêve lui-même. Ce qui intéresse Ricœur
c'est l'homologie possible entre les ressources de la rhétorique de la parole et avec la découverte
de la psychanalyse. Roman Jakobson considère que l'opposition entre la métaphore - le trope
par ressemblance, et la métonymie - le trope par contiguïté, traverse toutes les opérations de
signification. Cette polarité de la signification est effective dans les processus symboliques
inconscients décrits par Freud dans le rêve. Du côté de la contiguïté, le déplacement serait
métonymique et la condensation serait synecdochique, et, du côté de la similarité,
l'identification et le symbolisme. Lacan va identifier déplacement et métonymie, condensation
et métaphore (LACAN, 1966, p. 266).
Peu importe cette divergence entre R. Jakobson et J. Lacan sur les rapports de la
rhétorique et de la psychanalyse, le travail de rêve selon Ricœur s'inscrit dans une organisation
symbolique au service de l'interprétation de l'existence du sujet au fil de son histoire. Or la
situation analytique est une expérience analytique de la talking cure dont l'univers le plus
approprié n'est pas seulement le discours, mais aussi l'image comme expression du désir. Que
l'inconscient soit structuré comme un langage d'après Lacan puisse justifier la reformulation
linguistique de la psychanalyse est nécessaire, mais cela n'induit pas à conclure que tous les
facteurs signifiants de l'inconscient appartiennent à l'ordre linguistique.
Dès 1965, c'est le reproche commun de Ricœur (1965, p. 386 ; 420) et de Green (2011,
pp. 37-8 ; 116) adressé sans concession à Lacan. Il est important de savoir comment le processus
primaire extralinguistique se fait langage, comment l'archéologie du désir s'inscrit dans le
registre de la parole. La capture de l'archè de la pulsion se fait lorsque le processus primaire
entre les faits de langage, c'est-à-dire lorsque les « mots » sont pris comme des « choses ». Le
symbolisme de l'inconscient n'est pas un phénomène linguistique stricto sensu. Car dans
L'Interprétation du rêve la condensation et le déplacement opèrent au niveau de l'image

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onirique distinct du niveau de l'élaboration du sens. Le rêve est fait de « matériel psychique ».
Dans le travail du rêve, la mise en image consiste dans une « présentation visuelle » des pensées
de rêve qui fonctionne comme le langage : « le langage fonctionne à un niveau pictorial qui le
met dans le voisinage de l'image visuelle et vice versa » (RICŒUR, 1978, p. 129). L'image
comme un travail de rêve est un processus de transformation des pensées latentes du rêve en
contenu manifeste. Ce processus du rêve est, selon Ricœur, similaire au schématisme kantien
de l'imagination qui consiste à procurer une image au concept.
Les mécanismes de rêve jouent dialectiquement entre le niveau infra-linguistique
rattaché au fantasme ou à l'image en deçà du niveau où l'éducation installe le régime distinctif
de la langue et le niveau supra-linguistique où les récits sont structurés par les grandes unités
discours que sont les proverbes, les dictons, le folklore et les mythes. Ainsi la subjectivité de
chaque individu dans une culture est prise entre inconscient et conscient subit d'une part l'archè
des pulsions dans une symbolisation d'ordre fantasmatique et, d'autre part, manifeste ses
procédés dans la rhétorique avec ses métaphores, les métonymies, ses synecdoques, ses
euphémismes, ses allusions, ses anti-phrases, ses litotes. Ceux-ci sont considérés par Ricœur
comme des manifestations de la vie imaginaire que le rêve côtoie. En quel sens peut-on dire
que ces manifestations de la vie imaginaire appartiennent au même niveau d'opération
psychique que le rêve ? Ricœur reconnaît que ce qu'il appelle « espace de fantaisie » (RICŒUR,
1976, 2008) est davantage caractérisé par sa diversité que par son unité : la diversité de
situations – de la veille au sommeil, la diversité des niveaux d'efficience – de l'hallucination à
l'œuvre d'art, la diversité des medias – du langage aux œuvres publiques en passant par les
images sensorielles.
L'unité de cet espace de fantaisie est tenue par l'accomplissement de souhait
(Wunscherfüllung) comme unité de motivation. Celle-ci est établie par la commune médiation
imaginaire analogue aux traits du travail de rêve. Le premier trait est le caractère de figurabilité,
une mise en image que le rêve partage avec le langage. Le langage travaille aussi à ce niveau
figuratif. Le deuxième trait est le caractère de substituabilité. L'image possède en ce sens un
caractère sémiotique. Elle a l'aptitude du signe à faire fonction de lieutenance, à remplacer autre
chose. C'est ainsi que l'interprétation du rêve peut passer de l'image du rêve à un mythe, à un
proverbe, à un poème. L'image a la fonction dynamique du procédé du schématisme kantien
qui consiste à fournir aux images des concepts. Le troisième trait, où Ricœur rejoint Lacan, est
la polarité de l'imagination en tension entre l'hallucination (le pur fantasme) et la construction
symbolique (le travail créateur de sens) (RICŒUR, 1978, pp. 134-7).
Mais Ricœur ouvre une nouvelle perspective, absente chez Lacan, sur les rapports

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de l'image et du langage qui rapproche la psychanalyse de la littérature poétique et de la


littérature de fiction et prolonge l'interprétation des dires eschatologiques dans la littérature
biblique. Ce n'est pas anodin que ce fut au cours d'une communication à la Journée de la Société
Française de Psychopathologie de l'Expression à Lille, les 23 et 24 mai 1981, adressée aux
psychologues et aux chercheurs en sciences sociales qui s'intéressent aux aspects
« psychiques » ou « mentaux » de la réalité individuelle ou sociale, que Ricœur fait une mise
au point sur les impasses épistémologiques d'une certaine articulation du langage, de la réalité
et de l'imagination (RICŒUR, 1982).
Lacan n'est pas nommé par Ricœur dans cette critique, mais lorsqu'on sait leur différend,
on peut vite imaginer la direction de sa mise en garde. Chez Lacan l'imaginaire est ancré dans
l'image spéculaire. Il recèle en lui-même sa propre unité. Le moi idéal en miroir, l'image
narcissique n'est pas une représentation symbolique. Elle ne doit rien à une signification.
L'imaginaire est séparé du symbolique et, donc, de toute opération de signification. L'image en
tant que trace dans ce cas est un résidu de la perception ramené à l'effet que les choses
produisent sur nous.
C'est contre cette conception de l'image séparée du langage dans la psychanalyse de
Lacan que Ricœur propose une nouvelle phénoménologie herméneutique des rapports de
l'image et du langage. Il convient de distinguer l'image au sens psychologique et
psychanalytique chez Lacan et l'image qui relève de la créativité langagière. Si l'image mentale
est l'évocation libre d'une chose absente qui présuppose un support physique ou psychique, elle
se joue alors dans le registre de la croyance et de l'absence pour lesquelles il y a souvent le
risque de confusion entre l'imaginaire et le réel. C'est plus précisément la situation dans les cas
où l'image est autant la reproduction d'une chose absente, mais réelle à l'instar d'un portrait et
d'une image-copie mentale ou physique, que la production d'un irréel, comme dans les modèles
scientifiques, les fictions littéraires, les représentations religieuses. La confusion possible entre
l'imaginaire et le réel est rattachée à deux ensembles de conceptions de l'imagination ayant
chacun sa forme extrême. D'un côté, la tradition de Montaigne, Pascal et Spinoza selon laquelle
l'image fait de l'imagination une fonction de capture dans l'illusion pouvant aller jusqu'à
l'hallucination. De l'autre, la tradition de Husserl et Sartre en fait le modèle de toute epochè, de
toute suspension ou distanciation par rapport au réel pouvant aller jusqu'au libre jeu de la
distance critique.
Si la fonction du symbole chez Ricœur est de configurer l’espace de la signification, le
symbole chez Lacan est détaché de tout enjeu de signification. Sa fonction est même, dit-il,
« de ne rien signifier » (LACAN, 1981, p. 214). Une confrontation serrée entre Lacan et

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Ricœur autour de ces trois topiques – le symbolique, le réel et l'imaginaire – est utile à la
description des obstacles possibles de la représentation par rapport à l'interprétation des récits
de la sorcellerie qui porte sur une réalité de croyance. Car l’imagination chez Ricœur a
fondamentalement à voir avec le pouvoir créateur (poético-métaphorique) du langage, tandis
que l’imaginaire chez Lacan désigne un effet d’aliénation dans l’image qui, précisément, fait
obstacle à la créativité de la vie subjective.
Il y a une souplesse, un dynamisme de l’imagination dans sa manière d’investir le champ
des représentations par le langage, là où l’imaginaire de Lacan est du côté d’une fixité, d’une
sclérose des images. Si l’imagination peut être assimilée, du moins en partie, à un processus de
révélation et de production du sens, l’imaginaire rétrécit l’espace du sens en poussant le sujet à
s’enfermer dans le miroir de ses identifications. La théorie des trois topiques de Lacan révèle
les pièges de la représentation dans la mesure où elle enferme doublement le sujet dans
l'insignifiance du symbole et dans l'illusion de ses identifications. Chez Lacan l’imaginaire n'est
pas vraiment articulé au langage, mais au champ de l’image qui est en soi distinct de celui du
langage. Chez Ricœur, la perspective est autre : la question de l’image elle-même se pose par
rapport à la question du langage et de l'interprétation. L’imagination, de ce point de vue,
s’articule au symbole, elle est une manière de faire jouer le symbole ou de jouer avec lui, sachant
que la notion de symbole n’a pas le même sens selon qu’on la trouve sous la plume de Ricœur
ou sous celle de Lacan.
Le fonctionnement langagier de la métaphore vient changer cette ancienne conception
psychologique de la fiction considérée comme une image complexe produite par l'association
d'images relevant elles-mêmes de traces d'impressions. Avec la métaphore et la fiction,
l'imagination n'est plus réduite à être une faculté de reproduction d'image de chose absente, une
activité productrice de sens. L'imagination est ainsi déplacée de la sphère perceptive de la
représentation à la sphère du langage. Sans exclusivité d'une sphère par rapport à l'autre, on
peut dire que la structure implicite de l'imagination est portée par l'image et le langage.

4 POUR UNE POETIQUE DANS L’INSTITUTION DE LA PSYCHOTHERAPIE


COMME DEPLACEMENT DE LA POSITION DU MUNTU COMME SUJET.
THERAPIES TRADITIONNELLES, EXORCISME ET PSYCHANALYSE

La sociologie critique de la guérison est focalisée sur la manière dont les itinéraires
thérapeutiques des agents sociaux aux prises avec les logiques de la théodicée religieuse

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populaire négocient leurs identités, à travers les contraintes de la foi, de la conversion et de la


guérison. Mais le fait de rabattre l’instituant sur l’institué dans une sociologie de la guérison
divine réduit les significations imaginaires sociales aux discours idéologiques de la théodicée
populaire. En revanche, en ouvrant les structures mentales des significations imaginaires
sociales à l’utopie, celle-ci permet réinterroger l’institué à partir de l’instituant dans une
perspective critique des possibles qui empêche de l’enfermer dans les revers des discours
idéologiques de la théodicée populaire et de la violence symbolique, que F. Eboussi Boulaga
appelle le fétichisme du christianisme colonial, impliquées dans les thérapies religieuses.
En tirant les conséquences d’une herméneutique de la démythologisation de la foi en
Europe où le savoir scientifique est intégré à la culture à la suite de l’exégète réformé R.
Bultmann, F. Eboussi Boulaga propose pour le christianisme africain une esthétique christique
de la guérison encore actuelle qui joue ce rôle efficace de l’instituant qui se conserve dans
l’institué (EBOUSSI BOULAGA, 1981). C’est en ce sens que notre projet prend en compte
l’écart entre l’instituant et l’institué dans l’imaginaire social, ouvre des possibilités de
renouvellement et de créativité. C’est ce qui permet de ne pas embrigader le miracle dans une
structure mentale magique et de pouvoir envisager existentielle-ment et psychanalytique-ment
les principes thérapeutiques dans un lien intersubjectif et communautaire. Cet écart est absent
de la sociologie de la guérison divine de J. Tonda très marquée par une perspective marxienne
et weberienne.
Par institution, nous entendons à la suite de Merleau-Ponty, « ces événements d’une
expérience qui la dotent de dimensions durables par rapport auxquelles toute une série d’autres
expériences auront sens, formeront une suite pensable ou une histoire – ou encore ces
événements qui déposent en moi un sens, non pas à titre de survivance et de résidu, mais comme
appel à une suite, exigence d’un avenir » (MERLEAU-PONTY, 2015). Dans sa préface à cet
ouvrage, pour Cl. Lefort ce terme prend un double sens : en premier, il est « action qui donne
un commencement et état de chose établi, social, politique, juridique » et en second,
« l’institution comme fondation, n’est pas considérée comme le produit d’un acte et que
l’institution comme établissement contient en même temps que la possibilité de sa perpétuation,
sous la forme de la répétition, voire de la pétrification, la possibilité de la réactivation de la
force instituante » (MERLEAU-PONTY, 2015, p. 7), voire de la créativité.
C’est grâce à cette tension à l’intérieur de l’institution que l’imaginaire social, comme
structure mentale, tient en rapport critique la figure de l’idéologie par la figure de l’utopie. Car
l’utopie est nécessaire dans sa fonction fondamentale de contestation et de projection dans
l’ailleurs radical afin de mener à bien une critique radicale de l’idéologie. De même aussi,

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pour guérir l’utopie des illusions du rêve où elle risque de sombrer, la fonction saine de
l’idéologie consiste à donner à une communauté et à des sujets une identité narrative (RICŒUR,
1986). Cette double fonction de l’imaginaire social est utile pour les différentes institutions de
soin.
Or, en Afrique, la connaissance scientifique dans le domaine biomédical ne participe pas
à la démythologisation/« démagification » de la guérison divine à l’œuvre dans la foi, elle
s’intègre plutôt dans l’imaginaire des puissances propres aux différents itinéraires de recherche
de guérison entre thérapies traditionnelles, l’exorcisme et les rituels de délivrance pratiqués par
les formes pentecôtistes, charismatiques, évangéliques et afro-indépendantistes du
christianisme et la médecine biochimique occidentale forgée par la méthode expérimentale.
L’interprétation scientifique du monde dans la culture européenne a conduit à la fois à
démythifier la croyance au miracle par psychanalyse avec Freud et à démythologiser la foi par
une interprétation existentiale des Écritures dans la tradition réformée avec R. Bultmann. Le
fonctionnement langagier de la métaphore renouvelle l'usage de la faculté d'imagination. Ce
travail de l'imagination dans la métaphore poétique dans la cure (LEBOVICI, 2002) opère à
trois niveaux différents.
Au premier niveau dans la production de sens, l'imagination est liée au travail de
ressemblance (RICŒUR, 1975). Le travail de l'imagination dans la métaphore est à l'œuvre
lorsque la production de sens met en tension l'incongruité de la prédication nouvelle avec l'écart
de sens au niveau des mots (lexique) comme de la phrase (syntaxe) et la volonté de réduire cette
incongruité par l'orientation de l'attention sur l'émergence de la nouvelle congruence après la
destruction de l'incongruité de l'usage commun devenu sémantiquement impertinente. En quoi
consiste le travail la ressemblance ? L'innovation sémantique est une erreur calculée, une
déviation de l'usage sémantique par rapport à une règle pour faire sens à partir d'une attribution
incongrue d'image à une réalité qui lui est contradictoire. Il y a d'une part une transgression
d'usage sémantique qui crée une incongruité du sens littéral et, d'autre part rapprochement
contradictoire entre une image et la réalité qui est dite et dont la congruence du sens
métaphorique est la visée de l'énoncé. La ressemblance est bien ici ce rapprochement qui
manifeste une familiarité générique entre des idées précédemment hétérogènes. L'imagination,
un « voir-comme », une saisie intuitive – l'insigth – assure un rapprochement sémantique dans
l'espace logique, une production de ressemblance qui n'est pas autre chose qu'une assimilation.
Aristote désigne cette assimilation en ces termes : « bien métaphoriser, c'est voir – contempler,
avoir le coup d'œil pour – le semblable » (Poétique, 1459 a 3-8) (RICŒUR, 1975, p. 248).
Cette assimilation est régie par la schématisation qui, selon Kant, est un « procédé général

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de l'imagination pour procurer à un concept son image » (KANT, 1980, p. 886).


Au deuxième niveau de la production de sens, on ne saurait comprendre comment la
production des concepts est accompagnée d'images dans la tension métaphorique si l'image est
envisagée comme une image mentale isolée, c'est-à-dire comme la reproduction d'une chose
absente. L'image serait ainsi extérieure au processus du rapprochement prédicatif de l'énoncé
métaphorique8. La tâche de l'imagination dans la métaphore poétique de faire la transition de la
schématisation à la présentation iconique. C'est la frontière d'une sémantique de l'imagination
productrice et d'une psychologie de l'imagination reproductrice.
L'énigme est résolue si l'image poétique9 se tient sur cette frontière psycho-linguistique.
Les images poétiques sont immanentes au procès métaphorique. Ce sont des images liées parce
qu'elles sont à la fois suscitées et contrôlées par le langage poétique ; elles coïncident avec le
son et les sens métaphoriques engendrés par la scène imaginaire déployée par l'icône verbale
(RICŒUR, 1975, pp. 265-266 ; WIMSATT e BEARDSLEY, 1954). Celle-ci est la fusion du
sens et du sensible. Ce n'est pas la réalité dont parle la métaphore poétique qui oriente l'attention,
mais le matériau (stuff) pour exprimer l'immanence de l'expérience affective relayée par la
figuration du sens ou l'« iconicité » du sens. Elle est encore mieux la fusion du sens avec le flot
d'images évoquées (HESTER, 1967). C'est en ce sens que l'image poétique demeure un « être
du langage », selon l'expression de G. Bachelard reprise par Ricœur.
Le poétique et l'esthétique se croisent ici sans se confondre. Le voir-comme n'est plus
une expérience intuitive, mais un acte de compréhension. La fonction poétique de la métaphore
n'ajoute rien à la description de la réalité, mais le fonctionnement iconique de l'imagination
accroît nos manières de sentir et le pouvoir cognitif, affectifs et pratique de la compréhension
du langage poétique. C'est que Bachelard appelle une « ontologie directe », une « ontologie
poétique », une phénoménologie de l'imagination poétique (BACHELARD, 2009, p. 2 ; 8).
L'image poétique est une image nouvelle issue d'un processus de création de sens ayant une
visée ontologique : « la communicabilité d'une image singulière est un fait de grande
signification ontologique » que l'on peut décrire en deux traits. D'un côté, elle opère
l'articulation « d'une subjectivité pure mais éphémère et d'une réalité qui ne va pas
nécessairement jusqu'à sa complète constitution ». De l'autre, la nouveauté de l'image poétique
dans son émergence est à l'origine l'être parlant : « Elle devient un être nouveau de notre langage,

8
Cette énigme est signalée par Paul Henle reprenant à Charles Sanders Peirce la distinction entre signe et
icône. Voir Henle (1958).
9
C'est chez G. Bachelard que Ricœur emprunte l'expression « image poétique » issue de la phénoménologie
psychiatrique d'E. Minkowski. Elle est un « soudain relief du psychisme », elle « met en branle toute activité
linguistique ». L'image poétique est un « événement du logos » (BACHELARD, 2009, p. 1, 7).

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elle nous exprime en nous faisant ce qu'elle exprime, autrement dit elle est à la fois un devenir
d'expression et un devenir de notre être. Ici, l'expression crée l'être » (BACHELARD, 2009, p.
7). La métaphore poétique tient ensemble la visée sémantique et la visée ontologique en suivant
« le fil du ''retentissement'' de l'image poétique dans la profondeur de l'existence. L'image
poétique devient une ''origine psychique''. Ce qui était un nouvel être du langage'' devient un
''accroissement de conscience'', mieux une ''croissance d'être'' » (RICŒUR, 1975, p. 272). La
tâche de l'imagination poétique à ce deuxième niveau retient en suspens la réalité dont parle de
l'énoncé métaphorique pour dépeindre les idées dans le champ imaginaire et sensoriel avec son
efficience de transformation sensible pour le sujet.
Au troisième niveau, l'imagination poétique met en suspens l'image métaphorique afin
de mettre en exergue son rapport au réel, puisque le langage poétique a aussi une portée
référentielle (RICŒUR, 1975). Le langage poétique porte à la fois sur l'image poétique et la
réalité à quoi renvoie l'énoncé métaphorique. Le fonctionnement de la référence dans un énoncé
métaphorique est aussi « bizarre » que ce dernier. Le sens littéral de l'énoncé métaphorique
renvoie à une référence descriptive de premier ordre dans le langage ordinaire tandis que le sens
figuré renvoie quant à lui à une référence de second ordre. Puisque le sens d'une métaphore vive
repose sur l'émergence d'une nouvelle congruence sémantique sur les cendres du sens littéral
ruiné par son incongruité. L'auto-suppression de la référence littérale est la condition de la
projection de nouvelles manières de re-décrire le monde sur les ruines de la référence ordinaire.
Comme la fiction, la métaphore poétique avec l'insight perce jusqu'au cœur des potentialités de
notre être au monde profondément enfouies dans la réalité masquée par nos échanges dans
l'actualité de la vie quotidienne.
L’expérience de la maladie et l’énigme de santé, à même la corporéité vécue, constituent
ce que Gadamer appelle le « primat méthodologique » pour penser non seulement les
perturbations et les tâches d’adaptation auxquelles l’existence est confrontée, mais aussi notre
existence charnelle (GADAMER, 1998, p. 84 ; 89). Le rôle de l’herméneutique au sein de la
psychiatrie à cheval entre médecine biochimique comme science de la nature et du vivant et la
psychothérapie comme science de l’esprit permet de dépasser les clivages entre thérapies
traditionnelles, médecine biochimique et l’exorcisme. Puisque toutes ces institutions de soin
sont confrontées fondamentalement à un problème herméneutique, celui de l’interprétation du
symptôme et du signe. Car le problème de la santé se situe à l’entrecroisement des sphères de
la nature et de l’esprit que l’on pense aujourd'hui comme étrangères l’une à l’autre.
La maladie est le phénomène le plus à même de mettre en évidence l’impertinence
du dualisme de l’esprit et du corps ou même du triadisme du corps, du souffle et de l’ombre.

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Elle est l’expression radicale du caractère incarné de l’esprit, et, inversement, du fait que le
corps humain est un corps subjectif. Ces philosophies de l’homme divisé ne rendent pas compte
de l’unité ontologique du corps propre. Elles reposent sur l’ambiguïté ontologique de la division
de l’homme reposant sur la césure entre l’expérience langagière et l’expérience interne de la
subjectivité. La constitution du corps propre est aussi marquée par ce que M. Henry appelle
« l’équivoque ontologique des signes » qui consiste à prendre le signifiant pour la signifié sans
prendre la mesure de leur différence dans une description phénoménologique où sont mises en
exergue trois manières d’être du corps subjectif, organique et objectif (HENRY, 1965, p. 186,
2003, 2000).
La première modalité, c’est le corps subjectif. C’est dans la résistance du corps
organique (la deuxième modalité) que la vie subjective intime éprouve l’épaisseur du réel selon
la problématique de l’ambivalence du signe avec le risque de confusion entre l’expérience
immédiate de soi et l’expression langagière. Cette double donation à soi n’instaure en aucune
manière une scission à l’intérieur de la vie propre de la subjectivité ni ne se manifeste
directement par aucun signe. C’est ensuite le mouvement immanent de l’expérience subjective
qui rend possible la représentation que la conscience se fait d’elle-même sous le double emploi
du signe selon une dualité de l’expérience immédiate et de l’expression langagière. Le système
formé par le mouvement de la vie originaire du corps subjectif et du corps organique serait un
système clos et fermé sur soi s’il n’était pas ouvert à la connaissance représentative du corps
objectif (la troisième modalité) dans une unité transcendante de la représentation entendue
comme acte de se rendre présent d’une part et, d’autre part, la réalité (le représenté) qui advient
à la présence à soi, à l’intérieur d’un tel acte qui est à la fois agir et pâtir (TIAHA, 2018).
L’apport de la philosophie de la science du vivant dans une herméneutique médicale
serait utile pour une délimitation préalable saine des champs thérapeutiques du nganga et du
religieux qui présupposent la souffrance comme une donnée existentielle qu’implique toute
théodicée. Une herméneutique médicale permet de trouver un espace neutre intermédiaire où la
question de la santé et de la maladie est abordée sous un angle épistémologique du normal et
du pathologique où se tiennent la science du vivant et les sciences de l’esprit libres de toute
rivalité. Elle se veut neutre dans la mesure où elle serait indépendante de la culture et de la
religion qui, quant à elles, interprètent la santé et la maladie sous l’angle existentiel de la
souffrance et de la théodicée.
Mais cette neutralité s’estompe lorsque la question du normal et du pathologique passe
de la science du vivant (JACOB, 1970) à la psychopathologie où les représentations
culturelles et religieuses de la santé, de la maladie, du mal et de la souffrance entrent en jeu.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

C’est bien ce que l’ethnopsychiatrie de Tobie Nathan met en évidence en montrant l’opposition
systémique entre psychopharmacologie d’une part et, d’autre part, la représentation de la
maladie dans les thérapies traditionnelles et la psychanalyse (NATHAN e STENGERS, 2004).
La psychanalyse permet non seulement de trouver une homologie de structure, mais de rendre
compte de ce qui fait guérir. Qu’est-ce qui fait guérir ? Ce n’est pas la question qui guérit avec
quel pouvoir (ancestral, spirituel et médico-psychologique) ? Mais il s’agit de mettre en relief
le principe de thérapie propre à chaque institution de soin : thérapies traditionnelles, soins
spirituels, soins médico-psychologiques. Le développement contemporain de l’inter/trans-
culturel dans le soin médico-psychologique (psychiatrie, psychanalyse) intègre dans sa
démarche clinique et thérapeutique la sensibilité culturelle et la spiritualité (MORO, 2006 ;
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2015).
L’épistémologie des maladies paranormales chez les théoriciens et praticiens de cette
Ecole de philosophie africaine est cloisonnée dans un structuralisme méthodologique pour
lequel la pathologie n’est qu’un épiphénomène de la sorcellerie comme système de croyance
dont le sujet malade n’en est qu’un lieu d’efficience. Cette problématique n’est pas une
spécificité africaine comme en témoigne une abondante littérature ethnologique et clinique en
Europe (EVRARD, 2014) et en Amérique (DEVEREUX, 1953). L’anthropologie clinique des
marges se démarque d’abord de l’exotisme des autres représentations culturelles du soin et de
la maladie comme chez Tobie Nathan, ensuite de la psychologie ethnique comme chez les
héritiers de G. Devreux et, enfin, d’une description des techniques de soin comme dans une
anthropologie médicale. Elle essaie de rendre compte des incidences des fractures sociales,
politiques et culturelles, bref, de l’Histoire, sur les subjectivités. A la différence d’une
épistémologie des maladies paranormales portée par une théodicée et coupée de la clinique,
l’anthropologie clinique des marges promeut une rencontre féconde entre la psychopathologie
psychanalytique et le point de vue d’un sujet croyant faisant une expérience subjective
exceptionnelle sortant du cadre habituel des perceptions, parfois interprétée comme illusion
voire hallucination : « Les expériences exceptionnelles sont des expériences vécues avec une
qualité subjective si particulière et qui s’écartent si distinctement des modèles explicatifs de
ceux qui les vivent qu’elles ne sont pas intégrées dans les schémas cognitifs et émotionnels
disponibles » (EVRARD, 2014, p. 30).
Un prolongement psychanalytique en dialogue avec les thérapies pourrait davantage
éclairer la prise en charge des crises et des souffrances humaines liées à ces affaires de
sorcellerie circonscrites à la vie de groupe – famille, entreprise, association, quartier, église.
Une approche psychanalytique de la violence dans la vie de groupe apporterait un éclairage

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fécond à leur résolution10. Ce qui importe ce n'est pas de réécrire des théodicées morales et
métaphysiques. Il faut le dire, les approches théologiques et pastorales de la question sont
encore à penser parce qu'elles ne se sont pas toujours confrontées au déni de leur impensée
magique et métaphysique de la réalité de la sorcellerie. Ces difficultés nécessitent aujourd’hui
des enquêtes ethnographiques plus précises qui pourront tenir ensemble une logique des
qualités sensibles, une grammaire des gestes et des énoncés de la possession dans les
théâtralisions actuelles des cultes et des prières de délivrance d'une part et, d'autre part, l'analyse
de la façon dont la politique (raison d'état) et les Églises se servent des croyances de la
sorcellerie.
La profusion des propositions religieuses chrétiennes de la guérison en Afrique répond
à un développement incessant de la demande de santé articulant le mental, le spirituel et le corps.
Cette demande croissante dans le christianisme correspond à une recherche de bien-être devenu
une raison d’être, un projet, une finalité de vie. La recomposition contemporaine du religieux
en Afrique, comme ailleurs, se déploie par de nouvelles aspirations et attentes spirituelles pour
lesquelles le corps est investi comme un médiateur d’émotions, un capteur de sens qui relierait
des réalités mystérieuses et, parfois, magiques. Ces demandes de rites de guérison et plus
largement d’une prise en compte par les Églises des situations concrètes de souffrance ne
refléteraient-elles pas le désir d’un Dieu vécu comme proche, sensible et agissant dans
l’existence humaine exposée à la vulnérabilité.
Si ces demandes semblent légitimes, elles ne manquent pas de susciter des malaises et
des hésitations dans les Églises qui y répondent soit sans discernement en développant des
attentes magiques du miracle par des rites d’exorcisme sauvages, par des phénomènes
exceptionnels tels que les phénomènes de transe, de « parler en langue » (la glossolalie) dans le
Renouveau charismatique et le pentecôtisme, soit par un scepticisme rationalisant qui réduit la
demande à sa seule expression strictement médico-pharmacologique. La hiérarchie du
catholicisme et le protestantisme luthéro-réformé ont souvent exprimé une réserve par rapport
à la pratique de délivrance. Il est devenu important d’explorer les possibilités d’un rite de
guérison ayant, malgré les dérives observées ici et là, une légitimité théologique qui participe à
mettre en œuvre un christianisme de délivrance, celui d’un salut pensé de manière
prioritairement empirique.
Le sujet possédé par qui ? par quoi ? L’Église n'a-t-elle pas une « position paradoxale »
vis-à-vis du Diable : On pourrait dire du point de vue psychiatrique qu'elle le fait « exister » en

10
Nous renvoyons aux développements post-freudiens da la psychanalyse des groupes et des institutions :
DRIEU e PINEL (2016) ; KAËS (2012, 2012)

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le nommant et en instaurant un outil pour le combattre, l'exorcisme ou le rite de délivrance. En


ce sens, le christianisme participerait indirectement à sa promotion là où la psychanalyse y voit
l'identification au symptôme de l'autre et la disposition aux états hypnoïdes (VELASCO, 2017,
p. 24-6). La possession, interprétée différemment en théologie pratique et en psychiatrie,
soulève la question suivante : la peur du diable implique-t-elle le désir de Dieu ? Le sujet qui
se dit possédé n'est-il pas soumis à une position subjective servile vouée corps et âme à un
maître qu'il cherche et trouve dans la figure du diable ? Le sujet n'est-il pas pris dans l'énigme
de son désir du bonheur et de son inquiétude du malheur ? La pratique de l'exorcisme et de la
délivrance n'a-t-elle pas une efficacité symbolique qu'il convient de mettre en regard avec celle
du psychodrame thérapeutique où l'on raconte son malheur dans une mise en scène ? Le langage
désordonné du corps possédé n'exprime-t-il pas à la fois la jouissance d'une illumination divine
ou la souffrance d'une mainmise diabolique ? La demande de délivrance ne cache-t-elle pas
dans la vie du sujet quelque chose d'inconscient à laquelle il ne veut pas renoncer ?
L'inconscient relève-t-il du psychique au sens psychanalytique et psychiatrique ou du
diabolique au sens religieux ?
La psychanalyse en interrogeant le signifiant « Diable » ouvre un nouveau débat sur la
théodicée pour la théologie en ces termes : le ''Diable'' ne serait-il pas un signifiant repris tout
au long de l'histoire cherchant des explications au malheur, à ses revers, à des énigmes, des
contrariétés ou au désir le plus profond et inavouable de l'homme ? C'est pourquoi ce signifiant
renvoie à une mosaïque de sens dont les pièces ne s'articulent pas si harmonieusement les uns
aux autres. C’est en ce sens qu’il est aussi important d’interroger la fonction du diable dans
l’imaginaire chrétien : « Car, écrit R. Picon, c’est bien ce monde du diable que les Églises et
leurs clercs devront traversées acceptant par-là de se laisser déposséder de leur certitude et de
s’exposer au désordre d’un monde brisé » (PICON, 2013, p. 13).
Comment recueillir une parole possible de Dieu dans la traversée du désordre ? La prière
dans sa dynamique narrative et créatrice, l’accompagnement repensé dans une démarche
herméneutique Bible en main conduit peut-être à découvrir dans les fracas de l’existence, dans
ce que Heidegger appelle le « fardeau de l’existence », une maladie physique et/ou mentale, un
trouble de comportement, une phobie, une obsession… un Dieu toujours et déjà là impliqué
dans les afflictions de la vie, ce Dieu exorciste capable de « guérir les malades et chasser les
démons ». La séquence rituelle a finalité thérapeutique animée par le pasteur, le prêtre ou un
chrétien thérapeute qualifié invite le fidèle à se laisser saisir par la puissance persuasive d’une
parole et d’un geste qui lui signifient qu’il est désormais autre, transformé aux yeux des
autres, de Dieu et de lui-même, qu'il a changé de position subjective, celle d'un être chosifié

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par la maladie et la possession à celle d'un être qui se reconnaît digne aux yeux de Dieu.
C’est sur ce point qu’il convient de rappeler que cette visée thérapeutique de la parole
persuasive du rituel de délivrance, qui fait changer de position au sujet, rejoint analogiquement
le principe thérapeutique de la psychanalyse. N’est-il pas possible de trouver une homologie de
structure entre la guérison chrétienne et celle de la psychanalyse ? (DREWERMANN, 1991,
1993, 1995). Mais il est important de bien mettre en relief le propre de la thérapie chrétienne
dans ce champ pluriel du soin.
Que les textes bibliques soient lus à la lumière du contexte dans lequel ils ont été écrits
ne choque plus personne. Mais chaque fois que Jésus guérit, chasse un démon, ramène à la vie
une personne considérée comme morte, accomplit un miracle, la foi semble se heurter à la
raison – et bien souvent des explications paraissent soit simplistes, soit tirées par les cheveux.
Qu’en était-il de la médecine du temps de Jésus ? Quelles étaient ses connaissances médicales ?
Que rapporte la littérature de l’époque de guérisons miraculeuses, voire de résurrections ?
L’évangile de Luc est porteur d’un grand nombre d’actes miraculeux attribués à Jésus. Chr.
Prieto s’arrête sur vingt récits de l’évangile selon Luc. Elle interroge parallèlement les
documents connus d’alors sur la médecine traditionnelle, revenant aussi sur des lectures
intertextuelles du Premier Testament.
La maladie dans l’antiquité était attribuée au divin mais bien des médecins cherchaient
déjà à dégager la part de la croyance de celle de la raison. Difficile frontière entre la magie, la
superstition et la médecine ! Sur quoi asseoir sa foi ? L’auteure, étudiant le savoir-faire de Jésus
à la lumière de ces documents extérieurs à la Bible, en déduit qu’il œuvrait tel un médecin
hippocratique au code de déontologie fondé sur une formation solide, le respect du malade, la
douceur pour méthode, le rejet de toute imposture, la volonté de soigner tout homme pauvre ou
riche. Jésus s’inscrit également dans la lignée des prophètes guérisseurs du Premier Testament
(Élie, Élisée), tout en les dépassant. Par Jésus, Dieu intervient dans le monde, et en lui les
hommes reconnaissent qu’il est « celui qui vient » (PRIETO, 2015).
Ces autres perspectives de la thérapie chrétienne rejoignent autrement l’esthétique
christique de la guérison dans Christianisme sans fétiche de F. Eboussi Boulaga. Même la
théologie de la guérison aujourd’hui ne s’accommode pas avec une explication surnaturelle du
miracle qui demeure embrigadée dans une structure mentale imaginaire magique. Notre projet
à ce niveau porte sur les rituels de délivrance et les exorcismes : les problèmes qu’ils posent
sont nombreux. Ils sont d’ordre théologique, ecclésiologique mais aussi anthropologique, et
restent à ce jour peu analysés. C’est pour cette raison que ces demandes de guérison et leur
prise en charge retiennent notre attention. Mais il faut aussi reconnaître que nulle guérison

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de maladie physique et/ou psychique n’est explicitement recherchée et attendue par les Églises
(catholique et protestantes). La pratique rituelle participe d’une thérapie globale de la personne
en apportant un soutien moral, en permettant aux personnes souffrantes de se savoir portées par
Dieu et par la communauté humaine. L’interrogation des Églises face aux démons, du
christianisme de la délivrance, les exorcismes, mais aussi du rite comme méditation symbolique,
de la prière comme une configuration narrative de l’intime entendent aussi offrir un cadre de
réflexion pour les pratiques rituelles relatives à la maladie afin de spécifier les thérapies
chrétiennes par rapport aux autres institutions thérapeutiques.
Avec Ricœur et Green contre Lacan, d’une part, dans l’expérience analytique de
l’interprétation de l’inconscient, l’univers de la parole thérapeutique ne se réduit pas seulement
au discours, mais intègre aussi l’image comme expression du désir. Contre le risque d’une
réification de l’identification à l’idéal dans une image comme chez Lacan, le pouvoir iconique
et poétique de la parole thérapeutique s’est focalisé sur le dynamisme de l’imagination dans sa
manière d’investir le champ des représentations par le discours.
C’est dans la relation à l’Autre par la médiation de la parole thérapeutique que la
question du sujet en quête de guérison se pose. Si l’idée d’un inconscient proprement culturel
est récusée par principe, mais Freud fait alors l’hypothèse d’une transmission héréditaire des
dispositions psychiques inscrites dans les corps qui survivent en nous sous forme de traces
mnésiques réactualisables (FREUD, 2011, p. 21, 1993, p. 314). Il n’est pas possible de reporter
l’inconscient à une communauté donnée. C’est le problème de la coupure entre la psychanalyse
et l’anthropologie, la subjectivité individuelle et l’objectivité symbolique du social. Cependant
l’une et l’autre se croisent lorsque les mythes et les rites des sociétés traditionnelles partagés
passivement en temps normal sont mobilisés efficacement par les fonctions subjectives en
temps de crise où il y a fusion entre des individus dans une solidarité identitaire (JUILLERAT,
2001, p. 106). Comment l’inconscient et la vie sociale sont-ils mis en rapport ? Pradelles de
Latour suit la désarticulation lacanienne de l’inconscient de son arrimage au père et à la filiation
pour l’arrimer au langage qui est pour le sujet une altérité inscrite en lui que Lacan appelle
l’Autre. C’est par la structure impersonnelle et universelle du langage que l’inconscient s’inscrit
dans le social qui commence, non pas avec la relation à autrui comme dans les philosophies
existentialistes, mais avec les valeurs normatives et les biens partagés par les membres d’un
groupe. La relation intersubjective se tient par des formes de discours (PRADELLES DE
LATOUR, 2014).
Mais, d’autre part, avec Lacan et contre Ricœur et Green, à la suite de C.-H.
Pradelles de Latour, dans des sociétés traditionnelles africaines, il y a une solidarité et une

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rivalité entre quatre formes élémentaires de discours qui mettent en jeu la relation
psychanalytique à l’Autre structurant la demande de guérison à travers la magie, la sorcellerie,
la plaisanterie et la religion. C’est ainsi que la question du sujet reprend place dans la relation
à l’Autre par la médiation de la parole thérapeutique.
L’anthropologie explicite des thérapies traditionnelles se distingue d’une philosophie
occidentale du sujet caractérisée par la représentation – le représentant et le représenté – où la
relation à autrui se fait dans un jeu de miroir. Chaque personne est divisée entre le réel et
l’imaginaire, celle qu’elle est réellement dans la vie quotidienne et son autre elle-même, sa
doublure, qui lui reste voilée dont elle n’est pas la maîtrise de tous ses actes. Lorsqu’une
personne est accusée de sorcellerie, elle est identifiée avec sa doublure supposée toute-puissante.
Elle perd ainsi la distance vis-à-vis de soi-même et des autres (PRADELLES DE LATOUR,
2014, p. 28).
La personne divisée dans l’anthropologie des thérapies traditionnelles est distincte du
sujet divisé de la psychanalyse de Lacan : celui-ci se caractérise par l’extériorité de l’altérité du
langage avec lequel il se construit et procède de cet Autre en tant que signification produite. Il
est donc à la fois agent de l’énonciation (le sujet qui parle) qui vise une jouissance et énoncé
rétroactif (le sujet parlé) venant de l’Autre. Il est divisé parce qu’il n’est pas agent de
l’articulation de l’effet de sens qui glisse dans le langage de façon inconsciente d’un signifiant
à l’autre en s’estompant. La structure du sujet et du discours est portée par la distinction du réel,
du symbolique et de l’imaginaire. Le réel constitue le socle du discours. Il est non seulement le
non-symbolisable, l’impossible à penser, mais aussi la « barrière de jouissance ». Dans la
structure même du discours, il tient de manière latente à distance le sujet qui parle du grand
Autre l’agent de l’énonciation. Cette limite joue un rôle de garde-fou pour le sujet. Le
symbolique appartient au signifiant qui ne se définit qu’à partir de la différence avec un autre
signifiant, permettant ainsi le jeu de substitutions entre eux selon la dialectique de la coupure
et de l’innovation du sens. La séparation du latent et du manifeste appartient à l’ordre de
l’énonciation où l’agent du discours de la vérité qu’il ignore. Le réel comme socle du discours
tient en celui-ci la distance entre l’autre et l’accomplissement de la jouissance. C’est ainsi qu’il
entretient l’exercice du désir. L’imaginaire est ancré dans le moi idéal en miroir, dans l’image
spéculaire qui ne repose sur aucune signification. Il façonne le rapport de l’agent de
l’énonciation et de la jouissance : projection amoureuse, relation duelle, fantasme et idéalisation.
« On dépliera de cette manière les positions subjectives de la cure psychanalytique –
transfert, frustration, castration, privation – par lesquelles un patient passe à plusieurs
reprises afin de se situer par rapport à l’Autre d’une façon différente que celle dictée par son

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symptôme » (PRADELLES DE LATOUR, 2014, p. 9, souligné par nous) Tous ces états
subjectifs ont chacun une spécificité psychique qu’il convient de décrire. Le moyen terme de
la frustration, de la castration et de la privation n’est pas unificateur, mais séparateur. Le manque
détermine la position subjective occupée par un sujet par rapport à un objet désiré. Ces quatre
positions subjectives par rapport à l’Autre sont structurées par l’agent, l’objet perdu producteur
de jouissance et le manque d’objet situé dans le lieu de l’Autre sur lesquels permutent les trois
registres du langage : le réel, le symbolique et l’imaginaire. La rotation entre ces positions
subjectives découle de l’état subjectif de l’amour (PRADELLES DE LATOUR, 2014, pp. 111-
129).
L’amour est centré sur le moi idéal dans la mesure où on aime l’autre pour satisfaire
primairement son narcissisme d’après Freud (1982, p. 177). Chez Lacan, le narcissisme n’est
pas une donnée primaire du psychisme car il est l’image en miroir du corps propre par lequel le
moi se perçoit comme une unité en dehors de lui. L’amour est d’abord une vive captation
imaginaire qui ramène l’autre à soi et celui-ci, du même coup, s’idéalise dans l’image de l’autre
aimé. L’amour est la fois distinct et proche du désir. L’amour s’oppose au désir car il est appel
réitéré de l’Autre supposé être en présence réelle et disponible en avoir appropriable là où le
désir est mû sans le savoir par l’avoir qui lui manque et le fait glisser symboliquement d’un
signifiant à l’autre. Dans la psychanalyse de Lacan, le désir n’est pas fondé comme chez Hegel
(2012) sur la reconnaissance de l’autre et de sa violence, mais sur l’ignorance de l’objet qui le
cause. Ce désir ne commande ni ne reconnaît un autre désir. L’amour (l’éros platonicien) est
proche du désir (la libido) lorsqu’il est une opération de substitution symbolique. Mais il est
surtout la métaphore de l’événement de rencontre.
La position subjective du transfert est du même ordre que l’état subjectif de l’amour.
Mais dans le développement de la cure psychanalytique elle oppose une résistance à la
dépossession de l’objet imaginaire porteur de jouissance par un blocage sur le plan symbolique
pour deux raisons. Parce que d’une part dans le transfert d’amour le sujet s’ignore comme un
être divisé, et, d’autre part, le patient en place d’agent dans une rencontre thérapeutique confère
à l’Autre, l’analyste, un savoir/pouvoir « infaillible » qui manque à son propre désir d’être
réconcilié avec soi-même. Ce désir sous-jacent au transfert est symbolisé par l’objet perdu. Il
est ambigu parce que cet objet, mobile de la pulsion et cause du désir, pourrait relever à la fois
du désir du patient et du désir de l’analyste. Pour que le patient devienne désirant, il est
important pour l’analyste de laisser vacante la place de cet objet. Il ne doit donc pour cette
raison ni faire preuve de savoir ni répondre à la demande d’amour du patient.
Parce qu’il est aussi un sujet désirant, par contre-transfert, l’analyste s’expose à

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choisir pour le patient et à sa place ce qu’il recherche dans le dédale de son désir et de sa quête
de sens dans la souffrance. L’efficience du transfert ne fonctionne que si le désir de l’analyste
est mis en jeu dans cette position subjective et auquel est adressée par la médiation de l’Autre
la demande du patient. Le transfert met ainsi en œuvre la réalité de l’inconscient. Le rôle de
l’analyste par son propre désir est de rapprocher le patient du savoir de soi comme moyen de
jouissance de l’inconscient sans pour autant lui donner immédiatement accès afin de produire
une tension dialectique qui pourrait le déplacer d’un état subjectif à un autre, plus précisément
à la « frustration » qui rend dynamique le processus psychothérapeutique.
Dans la positive subjective de la frustration, les places du patient et du psychothérapeute
s’inversent, celui-ci devient agent, et celui-là l’autre visé dans le grand Autre. Agi à son insu
par le savoir inconscient du patient, le psychothérapeute est frustrateur parce que le sujet qu’il
incarne est à la fois paradoxal et instable d’une part et, d’autre part, il est coupé du désir d’être
unifié dont il jouissait dans la position subjective précédente du transfert. En revanche, le patient
est doublement éprouvé parce qu’il est à la fois réduit à un objet du désir et exclu de l’ordre
symbolique. Il perd la distance vis-à-vis de soi-même et des autres, ne pouvant plus être un
sujet représenté par un signifiant premier pour un autre signifiant, il est en proie à l’angoisse et
à la régression.
La position subjective de la frustration est par excellence celle de la relation mère-enfant.
Ici la mère en tant qu’agent est symbolique par l’absence ou la présence de sa disponibilité à
donner ou pas le sein à son nourrisson. Cette mère absolue identifiée à l’objet perdu détient aux
yeux de l’enfant un pouvoir réel. Cette relation est animée par un savoir ambivalent de l’accueil
de la mère aimante ou de son rejet. L’enfant est ainsi réifié dans cette relation inconditionnelle
en tant qu’il est dépossédé de son désir sans être assuré de l’amour de sa mère qui peut aimer
un autre que lui ; le manque est imaginaire. L’état subjectif de frustration, le sujet se sent
dessaisi de ce qu’il est en droit d’attendre, ainsi la haine et la jalousie incitent à des
revendications violentes et incessantes. Cet état subjectif sous-tend les conflits dans lesquels ni
tiers ni équivalent ne peuvent être convoqués pour départager les protagonistes qui vice versa
sont à la fois persécuteur et persécuté. La Loi est l’alternative ignorée. La castration implique
pour les sujets d’accepter une coupure qui les sépare ponctuellement de l’Autre par la fonction
de la Loi.
Dans l’état subjectif de castration, le père réel (agent) dépossède le sujet d’un objet
imaginaire porteur de jouissance (objet perdu) et l’introduit ainsi dans une « dette symbolique »
(le manque) car ce qui manque est le support du désir intrinsèque à la castration
(PRADELLES DE LATOUR, 2014, p. 111, LACAN, 1994, p. 36). C’est ainsi que dans la

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position subjective de castration, l’agent est réel, l’objet perdu imaginaire et le manque
symbolique. Dans les deux positions subjectives précédentes, le psychothérapeute aimé dans le
transfert et supposé savoir dans la frustration est remis en question par le patient dans l’aspect
imaginaire de ses propres suppositions. C’est autour du Nom-du-Père que se structure le
symptôme du patient.
Dans la position subjective de la privation, l’agent est imaginaire, l’objet perdu
symbolique et le manque réel. Elle est à la fois une identification primaire par incorporation et
une identification secondaire où l’idéal du moi joue autant sur le signifié que sur le signifiant.
Le sujet divisé est agent de l’énonciation coupé de l’objet de son désir et par là-même du
fantasme. L’idéal du moi est le support d’identification. Il implique dans l’Autre des
renoncements de jouissances contraire à la constitution de l’inconscient où se susurrent les
tendances à la transgression et les sentiments de culpabilités engendrés par les idéaux.
Quatre formes de discours instaurent des types de relation à l’Autre avec ces postures
subjectives impliquées qui sont symboliquement efficaces dans l’accompagnement
thérapeutique car le rapport à la maladie et à la guérison est très chargé des représentations
culturelles et religieuses liées aux différents modes de subjectivation respectivement attachées
à ce que l'ethnopsychanalyste C.-H. Pradelles de Latour appelle selon les grilles
psychanalytiques de M. Klein et J. Lacan les positions psychiques subjectives induites par les
quatre formes de discours. Les états subjectifs décrits n’impliquent pas nécessairement ces
formes de discours, mais ceux-ci impliquent nécessairement ceux-là. Ainsi de la même manière
que l’inconscient croise le social, le sujet de l’énonciation et ses rapports singuliers au grand
Autre s’inscrivent dans certaines sociétés traditionnelles dans la vie commune par quatre formes
de discours – magie, sorcellerie, plaisanterie et religion – et se croisent dans ces postures
subjectives ainsi que dans le sujet de l’énonciation et l’altérité.
Les structures de ces quatre formes de discours se calquent sur celles des états subjectifs.
Ces formes de discours assurent le lien entre l’inconscient, qu’impliquent les positions
subjectives, et le social : « En vertu de l’homologie de structure qui existe entre états subjectifs
et croyances, on conjecture que la magie, la sorcellerie et la religion s’inscrivent respectivement
aux niveaux du transfert, de la frustration et de la privation ; et que les relations de plaisanterie,
qui relèvent de l’incroyance, ont pour support subjectif la castration » (PRADELLES DE
LATOUR, 2014, p. 132, souligné par l’auteur).
Le discours de la magie même s’il implique un état subjectif du transfert il fonctionne
exactement comme un exemple contraire du transfert en psychanalyse. En position d’agent
du discours, le magicien profère des injonctions conjuguées sous le mode impératif et avec

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des gestes rituels dont l’efficacité est garantie par un au-delà. Celui-ci est représenté par des
entités anthropomorphiques dans les religions tandis qu’il est impersonnel pour la magie. Ces
injonctions sont supposées commander dans l’Autre une efficience performative.
C’est un discours construit sur la structure de la métaphore. Il s’appuie sur des rapports
de ressemblance (l’eau appelant la pluie dans un rituel de fécondité) et des rapports de
contiguïté (la corne du buffle frottée sur la peau du chasseur lui confère la force du bovidé)
(FRAZER, 1903, o, 168-170). Se démarquant de l’analyse superficielle de la magie en
psychanalyse chez Freud (1993, pp. 212-213), Pradelles de Latour (2015, pp. 93-107) en
propose une interprétation psychanalytique chez les Pèrè au Nord du Cameroun.
Dans la cure psychanalytique, le transfert du patient sur l’analyste est reporté sur l’Autre
alors que dans la pratique de la magie l’officiant s’adresse à l’Autre pour satisfaire le désir du
client à travers multiples objets qui symbolisent les différentes fonctions orale, anale, phallique
de la jouissance sexuelle. L’objet magique est d’abord porteur de jouissance, ensuite voilé sous
des apparences trompeuses parce non symbolisable, enfin il n’a ni origine ni fin.
Comme dans le transfert d’amour, la magie ignore la division du sujet et nourrit
l’espérance car son énonciation comporte une jouissance non symbolisée inconnue dont
l’actualisation est différée dans l’avenir. L’effet thérapeutique du rite magique est fonction du
savoir et du pouvoir que le patient prête au magicien. La fonction thérapeutique de la magie
repose sur la position subjective du transfert et l’attente de guérison, un puissant adjuvant
thérapeutique.
Une accusation de sorcellerie répond à un état subjectif de frustration source de conflit
vis-à-vis de l’autre. En principe, le discours de la sorcellerie est une conception du mal opposée
à celle de la religion et de la morale. Autrement dit, le mal considéré respectivement comme
péché dans la religion et comme faute dans la morale relève du mal agi source de culpabilité
tandis que pour les croyances en la sorcellerie, le mal venant toujours d’autrui est un mal subi,
un mal-être, une souffrance. Le présumé sorcier est le persécuteur/bourreau tandis la victime
est persécutée/maltraitée. Mais le sorcier comme agent du mal demeure extérieur aux relations
de miroir usuelles dans la vie quotidienne car il est considéré comme radicalement Autre. Cette
radicalisation entraîne trois conséquences.
D’abord, les accusations de sorcellerie prennent sens dans des situations de souffrances
graves et de conflits aigus entre deux partenaires liés par une proximité parentale ou une rivalité
de pouvoir. Ensuite, parce que le sorcier échappe à toute représentation, les accusations de
sorcellerie n’affectent pas le narcissisme, l’image du corps, mais le rapport voilé du sujet à
la puissance de l’Autre. C’est pour cette raison qu’elles demeurent sur le terrain de la

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violence psychologique et non physique comme le soulignent les travaux de E. Evans-Pritchard


et J. Favret-Saada (PRADELLES DE LATOUR, 1996, p. 82). Enfin, l’agent du mal, extrait des
jeux spéculaires des ressemblances et des reconnaissances impliqués dans les relations
quotidiennes, appartient au monde irrationnel.
Ainsi les récits de sorcellerie prennent la forme narrative des contes fantastiques ayant
la structure suivante : la relation duelle de la souffrance d’une victime et de l’accusation d’un
prochain ; la mise en scène d’une série de tiers – l’annonciateur/trice, le devin-guérisseur… -
qui mettent en évidence le caractère paranormal de l’affaire par rapport à celui de l’expérience
quotidienne ; la nomination de l’agent du mal ; la propagation du soupçon sous forme de
rumeur ; l’agent du mal est extralucide, omnipotent, omniscient, ubiquitaire et ultrarapide. Il
inspire crainte et tremblement.
L’accusé(e) éprouve une angoisse à la fois imaginaire et symbolique dans la relation à
soi-même. Dans la dimension imaginaire, la relation du moi à son image, l’alter ego spéculaire,
à la base de la réciprocité des échanges et de la communication, est anéantie. Cette angoisse
s’attaque au narcissisme et défait le rapport de l’espace-temps qui conditionne la perception et
la connaissance de la réalité quotidienne. Sur le plan symbolique la frontière entre le monde
réel du quotidien et le spectre des doublures est abolie. Le sorcier, pas son ubiquité, habite les
deux registres. L’agent du mal et l’accusé sont désormais une seule et même personne. La
sorcellerie détruit la distance subjective par rapport à soi-même et par rapport aux autres. Elle
est assimilable dans l’ordre parental à la géhenne de l’inceste. Si des thérapies traditionnelles
visent à réinscrire les patients souffrant de divers maux, tant physiques que psychologiques,
dans l’interdit de l’inceste, autrement dit, dans la loi, elles re-établissent donc la distance
subjective.
Le discours de sorcellerie détruit le jeu de reconnaissances mutuelles. Ainsi le non-dit
interne à l’énonciation est projeté sur l’autre, qui désigné comme sorcier, est mise en position
de grand Autre omnipotent. La sorcellerie exprime un terrain relationnel de conflits, non
structurée par le jeu des reconnaissances mutuelles, déterminé par un cycle de réversibilité –
persécuté/persécuteur - sans commencement ni fin. S’il est possible de sortir d’un combat en
proclament un vainqueur et un vaincu, on ne se libère pas de la sorcellerie par la sorcellerie,
mais en changeant de discours en passant par la plaisanterie qui sépare l’énonciation de
l’énoncé ou en se réinscrivant à un idéal par le biais de l’identification à un signifiant de l’Autre.
Ainsi par exemple dans la société traditionnelle Bamiléké, « guérir consiste donc à changer de
discours et, par là même, à changer concomitamment de position subjective »
(PRADELLES DE LATOUR, 2014, p. 11).

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Dans la religion chrétienne, le croyant-agent est un sujet divisé car découvrant sa


faillibilité, sa finitude, son manque, il en appelle à une instance supérieure représentée par un
signifiant majeur extérieur à l’Autre. Autrement dit, cette instance est Autre de l’Autre : un
ancêtre, un esprit, un génie ou une divinité. La croyance religieuse implique ainsi un état
subjectif de privation. Elle représente des idéaux auxquels le croyant obéit comme normes
sociales du lignage, de la confrérie ou de la communauté avec ses rites. Le sujet de l’énonciation
ici est séparé de la cause de son désir. Ici la divinité régissant l’idéal social implique des
renoncements aux idéologies hérétiques comme la sorcellerie.
La religion est par essence anti-sorcellerie parce qu’elle est structurée par une
dissymétrie radicale entre le sujet et l’Autre de l’Autre, ce qui n’est pas le cas dans la sorcellerie :
« Si Dieu qui représente l’Autre, est radicalement différent du langage, en quoi l’Autre est-il
différent de lui ? Et si Dieu est dans le langage, en quoi l’Autre est-il différent de lui ? »
(PRADELLES DE LATOUR, 2014, p. 142). Pour résoudre ce paradoxe du lointain et du proche,
le christianisme en vient à penser la double nature du Christ en un Dieu divisé qui exige des
renoncements aux tentations démoniaques. L’impossible rédemption n’est possible que par acte
de foi où le sacrifice effectué du côté du sujet n’a aucun rapport avec les renoncements aux
tentations démoniaques. Si, dans la magie, la valeur de jouissance et l’idéal sont liés uniquement
par une attente, ils demeurent disjoints par une tension entre une promesse et une attente dans
la religion chrétienne.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

Recebido em:12/05/2021
Aprovado em: 14/06/2021
Publicado em: 15/07/2021

MERLEAU-PONTY, O INCONSCIENTE E A ARTE


uma leitura da obra dos artistas de Engenho de Dentro

MERLEAU-PONTY, THE UNCONSCIOUS AND ART


a reading of the work of the artists of Engenho de Dentro

“O ser tem estados inumeráveis e cada vez mais


perigosos”
(Antonin Artaud)

Marina Coelho Santos1


([email protected])

Resumo: Nosso objetivo é explicitar a importância da psicanálise para Merleau-Ponty através do uso
que este faz da noção de inconsciente na chamada “ontologia da carne”, presente na obra O visível e o
invisível. É a partir da psicanálise incorporada à ontologia, como um desapossamento do sujeito em
direção a um contato mais primitivo com o mundo, que a arte possui preeminência enquanto expressão
do Ser bruto em sua ambiguidade entre inconsciente e consciente. Desse modo, procuramos aplicar a
ontologia psicanalítica merleau-pontyana na leitura da obra dos internos psiquiátricos de Engenho de
Dentro, tutelados por Nise da Silveira, com intuito de interpretar, na expressão artística enquanto cura,
o entrelaçamento do inconsciente e do consciente. Concluímos que Merleau-Ponty possibilita, na
composição de sua ontologia em estreita relação com a psicanálise, uma abertura à experiência dos
sujeitos esquizofrênicos que têm sua percepção e expressão muitas vezes excluídas da filosofia e da
cultura.

Palavras-chave: Merleau-Ponty. Nise da Silveira. Inconsciente. Psicanálise. Arte.

Abstract: Our objective is to explain the importance of psychoanalysis for Merleau-Ponty through his
use of the notion of the unconscious in the so-called “ontology of the flesh”, present in the work The
Visible and the Invisible. It is from psychoanalysis incorporated into ontology, as a dispossession of the
subject towards a more primitive contact with the world, that art has preeminence as an expression of
the Being crude in its ambiguity between the unconscious and the conscious. In this way, we seek to
apply Merleau-Ponty’s psychoanalytic ontology in reading the work of the psychiatric interns of
Engenho de Dentro, tutored by Nise da Silveira, in order to interpret, in artistic expression as a cure, the
intertwining of the unconscious and the conscious. We conclude that Merleau-Ponty allows, in the
composition of his ontology in close relationship with psychoanalysis, an opening to the experience of
schizophrenic subjects who have their perception and expression often excluded from philosophy and
culture.

Keywords: Merleau-Ponty. Nise da Silveira. Unconscious. Psychoanalysis. Art.

1
Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/7908472089671174.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2918-9025.

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INTRODUÇÃO

Merleau-Ponty é o fenomenólogo que radicalizou a noção de percepção, corpo e


sensibilidade, para além das teses idealistas ou empiristas da filosofia moderna. A
fenomenologia é caracterizada, grosso modo, pelo célebre apelo de Husserl de volta às coisas
mesmas, isto é, por uma suspensão do aparato teórico objetivo em que a filosofia e a ciência
enxergam o mundo e uma volta aos fenômenos que formam a nossa experiência do mundo tal
como ela é vivida antes de qualquer tese. Sendo assim, Merleau-Ponty, em sua obra A
fenomenologia da percepção, de 1945, esforça-se para acentuar a primariedade da percepção
na experiência que temos das coisas, principalmente através do primado da corporeidade como
unidade perceptiva que possui acesso privilegiado, isto é, encarnado no mundo. Entretanto, no
final da década de 1950 a fenomenologia de Merleau-Ponty, a fim de superar os resquícios de
dualidades estabelecidas pela metafísica tradicional, extrema-se numa ontologia da carne – bem
expressa na obra inacabada O visível e o Invisível – que forma, sobretudo, o tecido originário
do mundo ao qual o ser humano e as coisas pertencem e se tocam em uma espécie de
reversibilidade da experiência entre visível e invisível, tocante e tangível, descentrando a
subjetividade em virtude de uma generalidade carnal2. Trata-se também da radicalização do
sensível e da visibilidade nesta ontologia da carne, na qual as coisas e os sentidos estão numa
relação de promiscuidade entre si, se interpenetrando, e a partir da qual Merleau-Ponty busca a
primariedade da experiência dos fenômenos. É nesse momento, após a Fenomenologia da
percepção, em que Merleau-Ponty está caminhando em direção a sua ontologia concreta da
década de 1950, que a psicanálise e os conceitos freudianos, como o de inconsciente, têm a sua
aceitação e elaboração ampliada dentro da obra do filósofo francês:

2
Há divergências interpretativas entre os estudiosos da obra de Merleau-Ponty sobre se há ou não uma ruptura
entre a Fenomenologia da percepção e o processo de elaboração de uma ontologia, explicitada em O visível
e o invisível, a partir da década de 1950. É nesse mesmo período, em que há uma espécie de “retorno à
ontologia” na obra do filósofo, que ocorre também uma maior aceitação dos conceitos psicanalíticos e
consequente reverberação dessa postura dentro de sua filosofia. Não poderemos abordar aqui as relações de
continuidade e/ou ruptura que se realizam entre a publicação da Fenomenologia da percepção e a redação de
O visível e o Invisível, visto que nosso foco se situa na noção de inconsciente tal como elaborada após 1950
em sua chamada ontologia da carne e, portanto, a partir da redação de O visível e o Invisível. No entanto, cabe
notar que mesmo na Fenomenologia da percepção parece já existir a prefiguração de teses que, através de
uma “radicalização da fenomenologia”, são generalizadas em sua ontologia da carne. É nesse sentido que, vez
ou outra, citações da Fenomenologia da percepção aparecem neste trabalho, de forma sempre relacionada aos
nossos propósitos. Para a discussão sobre a passagem, continuidade ou ruptura entre a Fenomenologia da
percepção e a elaboração de uma ontologia a partir de 1950, cf. Moura, C.A.R. “Entre fenomenologia e
ontologia: Merleau-Ponty na encruzilhada”, in: Racionalidade e crise. Estudos de História da filosofia
moderna e contemporânea. São Paulo: Discurso Editorial e Editora da UFPR, 2001.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

Merleau-Ponty amplia, depois de 1945, sua aceitação da psicanálise,


reconhecendo direito de cidadania aos conceitos freudianos, muito
especialmente ao conceito de inconsciente. Este deixa de ser considerado uma
formulação incipiente do tratamento alargado que Merleau-Ponty destinou à
noção de consciência fenomenológica em Phénoménologie de la perception,
para ser identificado à noção de percepção ambígua, que, dessa forma,
também tem seu sentido alterado. (MÜLLER, 2005, p. 401).

O diálogo que Merleau-Ponty estabelece com a psicanálise perpassa toda a sua obra, de
modo que é possível distinguir vários temas e abordagens a partir dos pontos de contato que o
filósofo francês intenta estabelecer entre a fenomenologia e a disciplina inaugurada por Freud
e, mais tarde, entre a sua ontologia e a psicanálise. De modo que Merleau-Ponty afirma em
Préface à L'œuvre et l'Esprit de Freud (1951-1961) que “é por aquilo que se insinua o que se
descobre no seu limite – pelo seu conteúdo latente ou inconsciente – que a fenomenologia está
em consonância com a psicanálise”3 (MERLEAU-PONTY, [1951-1961] 2000, p. 283). De fato,
a fenomenologia, no século XX, foi um importante método de aproximação e, também, de
contestação dos conteúdos psicanalíticos e mesmo psiquiátricos, como no caso da loucura, que
nos interessa (Cf. MÜLLER-GRANZOTTO, 2013). Segundo Ayouch, vários fenomenólogos
como “Husserl, Heidegger, Binswanger, Boss, Ricoeur etc. – reprovaram a dimensão
quantitativa reducionista da psicanálise freudiana assim como os seus modelos tomados das
ciências da natureza” (AYOUCH, 2012, p. 5). No entanto, Merleau-Ponty, ainda de acordo com
Ayouch, não retoma muitas das críticas dos fenomenólogos dirigidas à psicanálise; pelo
contrário, sua obra parece ser “infiltrada” pela psicanálise a todo momento e seu propósito é
convergente ao desenvolvimento de uma fenomenologia, e mesmo uma ontologia, que aponta
“em direção a mesma latência”4 (MERLEAU-PONTY, [1951-1961] 2000, p. 285) que a
psicanálise aborda e que se relaciona, da perspectiva do corpo e do sentir, ao conceito de
inconsciente.
Isso não significa que Merleau-Ponty não tivesse críticas importantes a Freud, no
sentido de que este último não teria explorado as implicações mais radicais que a psicanálise
possibilita; e é também por isso que Merleau-Ponty consegue estabelecer um diálogo tão
profícuo com essa disciplina. Evidentemente, não será possível neste trabalho abordar toda a
problemática da relação entre a obra de Merleau-Ponty e a psicanálise, nem mesmo em relação
à noção de inconsciente, que possui diferentes camadas de sentido ao longo da obra do filósofo

3
[Tradução de Ayouch, 2012]: “par ce qu'elle sous-entend ou dévoile à sa limite – par son contenu latent ou
inconscient - que la phénoménologie est en consonance avec la psychanalyse”.
4
[Tradução de Ayouch, 2012]: “se dirigent toutes deux vers la même latence”.

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francês. Entretanto, interessa-nos aqui evidenciar alguns recortes, inclusive já trabalhados por
estudiosos, que privilegiam a abordagem da noção de inconsciente dentro da obra de Merleau-
Ponty para que possamos chegar à importância da arte e comentar a singularidade das obras dos
artistas esquizofrênicos sob a ótica do inconsciente e da filosofia merleau-pontyana.

1 O INCONSCIENTE E A ONTOLOGIA DA CARNE

Para Merleau-Ponty a noção de inconsciente aparece ligada a uma teoria da percepção:


“seja como significação despercebida, ambivalência, um vivido não tematizado, uma
percepção ambígua, ou até como uma impercepção” (MANZI, 2012, p. 278). Após A
fenomenologia da percepção, o inconsciente faz parte, enquanto fundo, da generalidade carnal
a partir da qual Merleau-Ponty dissolve a corporeidade e pensa a dinâmica de uma subjetividade
descentrada, na qual há um ponto escuro e indestrutível que sustém o visível, “um verdadeiro
negativo no coração da consciência” (AYOUCH, 2012, p. 7). Trata-se de um “interior” que se
manifesta numa relação de reversibilidade, ou quiasma, com o exterior, o qual incrustado numa
ontologia da carne traduz uma forma de radicalidade do sentir em que está em jogo não uma
“possessão intelectual daquilo que é sentido, mas despossessão de nós mesmos em seu proveito,
abertura àquilo que em nós é necessário pensar para compreender” (MÜLLER, 2005, p. 427).
A carne de que fala o filósofo francês não é matéria, nem substância metafísica e nem
mesmo um ser-em-si oposto à consciência, mas “o ser das profundidades, em várias camadas
ou de várias faces, ser de latência e apresentação de certa ausência, é um protótipo do ser, de
que nosso corpo, o sensível sentiente, é uma variante extraordinária” (MERLEAU-PONTY,
2007 [1959], pp. 132-133). Além disso, a noção de carne é permeada pela reversibilidade
através da qual as coisas se comunicam numa espécie de mútua aderência em que Merleau-
Ponty busca desvendar a primariedade do sensível. Desse modo, dentro do primado da
percepção, Merleau-Ponty fala do sujeito vidente e das coisas habitando a mesma carne do
mundo: “abertura pela carne: os dois lados da folha do meu corpo e os dois lados da folha do
mundo visível… É entre esse avesso e direito intercalados que há visibilidade” (MERLEAU-
PONTY, 2007 [1959], p. 128).
O olhar apalpa as coisas, as investe com a sua carne e as desposa, de modo que há
também um entrelaçamento entre os sentidos, a abertura da tangibilidade do olhar: “como,
inversamente, toda experiência do visível sempre me foi dada no contexto dos movimentos

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do olhar, o espetáculo visível pertence ao tocar nem mais nem menos que as ‘qualidades
tácteis’” (MERLEAU-PONTY, 2007 [1959], p. 131). Ainda segundo Merleau-Ponty:

É preciso que nos habituemos a pensar que todo visível é moldado no sensível,
todo ser táctil está votado de alguma maneira à visibilidade, havendo, assim,
imbricação e cruzamento, não apenas entre o que é tocado e quem toca, mas
também entre o tangível e o visível que está nele incrustado (MERLEAU-
PONTY, 2007 [1959], p. 131).

Trata-se da imbricação entre tocar e ver, ver e ser visto, pelo outro ou pelas coisas, não
em uma síntese ou completude, mas em uma reversibilidade em que as partes relativas se
implicam, transitam de uma à outra, sem que essa experiência seja fechada numa consciência,
num sujeito solipsista ou numa visão teórica de sobrevoo – que vê de fora a experiência do
sujeito –, mas aberta e descentrada na carne do mundo. Desse modo, Merleau-Ponty pode falar
de uma atividade que é também passividade:

Há um narcisismo fundamental de toda visão; daí por que (sic), também ele
sofre, por parte das coisas, a visão por ele exercida sobre elas; daí, como
disseram muitos pintores, o sentir-me olhado pelas coisas, daí, minha
atividade ser identicamente passividade – o que constitui o sentido segundo e
mais profundo do narcisismo: não ver de fora, como os outros vêem, o
contorno de um corpo habitado, mas sobretudo ser visto por ele, existir nele,
emigrar para ele (...) de sorte que vidente e visível se mutuem reciprocamente,
e não mais se saiba quem vê e quem é visto. (MERLEAU-PONTY, 2007
[1959], p. 135).

Nesse sentido, ressalta-se, portanto, que é a partir dessa generalidade carnal, que
comporta a reversibilidade entre vidente e visível, entre o sujeito que percebe, os outros e as
próprias coisas intramundanas, que Merleau-Ponty passa a ler Freud em O visível e o invisível,
como atesta a seguinte nota de trabalho de 1960, anexada nesta obra, a respeito da filosofia do
freudismo: “O id, o inconsciente e o ego (correlativos) para serem compreendidos a partir da
carne” (MERLEAU-PONTY, 2007 [1960], p. 242). O inconsciente faz parte da percepção
como um ponto cego na consciência, relacionado, assim, ao “invisível que sustém o visível”
(AYOUCH, 2012, p. 7) e ao quiasma, como um “ponto de reversão da carne” (AYOUCH, 2012,
p. 7). Desse modo, como ressalta Ayouch, o inconsciente em Merleau-Ponty não está separado
da consciência, como afirma a psicanálise freudiana, mas faz parte da percepção e da
consciência formando uma relação de reversibilidade entre interior e exterior. Nas palavras de
Merleau-Ponty, em nota de trabalho de 1959: “isso quer dizer: a percepção é inconsciente.
O que é o inconsciente? O que funciona como pivô existencial, e nesse sentido, é e não é

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percebido” (MERLEAU-PONTY, 2007 [1959], p. 181). Assim, na radicalidade de sua


ontologia carnal, o inconsciente pertence à consciência e à percepção numa espécie de indivisão
do sentir. Essa tese também é atestada nos seus Résumés de cours (1952 - 1960) do Collège de
France em citação mencionada também por Manzi (2012):

Uma filosofia da carne é o oposto das interpretações do inconsciente em


termos de ‘representações inconscientes’, tributo pago por Freud à psicologia
de seu tempo. O inconsciente é o sentir mesmo, pois o sentir não é posse
intelectual do ‘isso que’ é sentir, mas desapossamento de nós mesmos em seu
proveito, abertura ao que não temos necessidade de pensar para reconhecê-lo.5
(MERLEAU-PONTY, 1968 [1952-1960], pp. 178-179, grifo nosso).

Essa concepção do inconsciente como uma indivisão do sentir e de uma ambiguidade


transitiva entre consciente e inconsciente suscita muitas críticas de psicanalistas em relação à
leitura fenomenológica da psicanálise feita pelo filósofo francês. Não entraremos aqui nessa
contenda visto que, ao nosso ver, Merleau-Ponty não está tão interessado em adotar as teses da
psicanálise freudiana ipsis litteris, mas em fornecer uma leitura sui generis que sustenta o
diálogo de sua filosofia com a psicanálise.
Nesse sentido, Ayouch (2012) afirma que, em parte, a noção de inconsciente em
Merleau-Ponty é oposta à noção psicanalítica de inconsciente, o que justifica algumas críticas
feitas por psicanalistas. O inconsciente fenomenológico elaborado pelo filósofo francês tem a
ver, desse modo, com uma “percepção primordial: ele é a camada anterior a toda codificação,
o lugar de um sentido não instituído, estabelecido, ou estruturado” (AYOUCH, 2012, p. 10),
enquanto o inconsciente psicanalítico é o inconsciente simbólico, fundamentado na linguagem,
“ele procede da estrutura dos significantes e do grande Outro” (AYOUCH, 2012, p. 10). Assim,
o inconsciente da psicanálise não procede da percepção, mas de lacunas da percepção, dando
lugar a um sujeito cindido entre consciente e inconsciente; cisão que o inconsciente
fenomenológico de Merleau-Ponty não sustenta em sua radicalidade, mas dilui numa relação
de reversibilidade.
Se é a experiência de indivisão do sentir que Merleau-Ponty busca evocar quando fala
do inconsciente, então esse inconsciente, segundo sua ontologia da carne, tem a ver não tanto
com um sujeito, mas com a despossessão do sujeito numa aderência à carne do mundo, como

5
[TRADUÇÃO DE MANZI, 2012]: “Une philosophie de la chair est à l’opposé des interprétations de
l’inconscient en termes de « représentations inconscientes », tribut payé par Freud à la psychologie de son
temps. L’inconscient est le sentir lui-même, puisque le sentir n’est pas la possession intellectuelle de « ce qui
» est senti, mais dépossession de nous-mêmes à son profit, ouverture à ce que nous n’avons pas besoin de
penser pour le reconnaître”

333
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fica claro na citação acima pertencente aos Résumés de cours. Além disso, a indivisão do sentir
de que fala o filósofo não repousa numa identidade e nem mesmo numa síntese dialética entre
opostos, mas remonta à tensão permanente que a reversibilidade carrega entre consciente e
inconsciente, ou, em outros termos, saber e não saber, assim como entre ver e ser visto, tocar
e ser tocado. A indivisão é invasão de um no outro, reciprocidade em que o visível é o verso do
invisível; sendo assim, há uma “identidade na diferença” (MANZI, 2012, p. 399).
Pensando o inconsciente a partir da indivisão do sentir, Manzi (2012) sustenta que o
mundo infantil, por exemplo, “parece ser o melhor exemplo para descrever essa identidade na
diferença” (MANZI, 2012, p. 399); assim como Müller também afirma, baseando-se na crítica
que Merleau-Ponty faz à interpretação superficial do freudismo, que a criança, por exemplo,
experimenta de forma singular “a indivisão da existência mundana” (MÜLLER, 2005, p. 427),
a qual a ontologia concreta, carnal, de Merleau-Ponty busca elaborar na forma de uma
transitividade da existência. É o “polimorfismo” e o “amorfismo” da experiência infantil que
evidenciam melhor o contato com um Ser que, para o filósofo, é um ser de promiscuidade,
transitividade entre interior e exterior.
Um último aspecto que gostaríamos de ressaltar da noção de inconsciente em Merleau-
Ponty é aquele que, já mencionado brevemente aqui, aparece constantemente em obras como
O visível e o invisível e em O olho e o espírito (1960), relacionado à visibilidade e à dimensão
de passividade experimentada de forma radical, por exemplo, pelos pintores e que despertou a
atenção de Jacques Lacan (1901-1981) especialmente no Seminário XI (1964). Trata-se do que
Lacan chamou, na obra de Merleau-Ponty, de um encontro “com o real do outro enquanto
vidente” (MÜLLER, 2015, p. 401). De acordo com Müller, este real se aproxima do real da
castração e do “traço insondável que bem define o inconsciente em sentido próprio (a diferença
do inconsciente sistemático, que seria o inconsciente do desejo, ou, na terminologia de Merleau-
Ponty, o invisível” (MÜLLER, 2015, p. 401). O inconsciente em sentido próprio revela, em
Merleau-Ponty, uma passividade na qual eu sou visto por todos os lados e mesmo pelas coisas,
de modo que o sujeito é diluído em um fundo visível imemorial que o precede e que Merleau-
Ponty chama de outrem. É esse aspecto da filosofia de Merleau-Ponty que ajudará Lacan na
ilustração do que este último chamou de pulsão escópica, isto é, um real que emerge da
visibilidade, enquanto outrem, e pelo qual somos olhados por todos os lados, e que não destrói
necessariamente, para Lacan, a organização simbólico-imaginária, mas inscreve o real da
pulsão que se insinua entre as ranhuras da cultura (Cf. MÜLLER, 2015, pp. 404-405).

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Essa discussão nos leva à questão da arte em Merleau-Ponty, pois é o artista que
expressa de forma pregnante a sensação de ser olhado pelas coisas, conforme nos diz a célebre
citação de André Marchand em O olho e o espírito:

Numa floresta, várias vezes senti que não era eu que olhava a floresta. Certos
dias, senti que eram as árvores que me olhavam, que me falavam [...]. Eu
estava ali, escutando [...]. Penso que o pintor deve ser transpassado pelo
universo e não querer transpassá-lo [...] Espero estar interiormente submerso,
sepultado. Pinto talvez para surgir. (MERLEAU-PONTY, 2004 [1960], p. 22).

É a pintura o âmbito privilegiado que, para o filósofo francês, revela também a


promiscuidade das coisas e dos sentidos que se interpenetram – de que tratamos anteriormente
– e a pertença à textura do Ser:

O mundo do pintor é um mundo visível, tão-somente visível, um mundo quase


louco, pois é completo sendo no entanto apenas parcial. A pintura desperta,
leva à sua última potência um delírio que é a visão mesma, pois ver é ter à
distância, e a pintura estende essa bizarra posse a todos os aspectos do Ser,
que devem de algum modo se fazer visíveis para entrar nela (MERLEAU-
PONTY, 2004 [1960], p. 19, grifo nosso).

2 MERLEAU-PONTY, O INCONSCIENTE E A OBRA DOS ARTISTAS DE


ENGENHO DE DENTRO

Após a discussão da literatura acerca do diálogo entre Merleau-Ponty e a psicanálise,


precisamente no que diz respeito à questão do inconsciente – sobre a qual procuramos expor
alguns aspectos aqui, mesmo que longe de abarcar de forma completa essa problemática –,
gostaríamos, agora, de tentar entender de que modo a filosofia de Merleau-Ponty pode nos
ajudar a dar uma nova visão não para a obra de artistas comuns, isto é, que estão inseridos no
mundo simbólico da cultura, mas de artistas esquizofrênicos, psiquiatrizados, que vivem sua
criação interpenetrada pelo delírio como forma de se proteger daquilo que os invade na psicose.
Para isso, nos baseamos nos estudos e nas experiências de Nise da Silveira, importante
psiquiatra brasileira que, em 1946, introduziu no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de
Dentro, um ateliê de pintura para que os internos pudessem expressar aquilo que ela chamou de
imagens do inconsciente6.

6
As pinturas produzidas pelos internos chamaram atenção de estudiosos e artistas como Mário Pedrosa e
Ferreira Gullar. Algumas obras participaram de diversas exposições, de modo que em 1952 foi inaugurado

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Nise, cansada dos métodos tradicionais de tratamento psiquiátrico, procurou fornecer


com o ateliê de pintura uma atividade que, para além de oferecer um método de tratamento e
de entendimento do que se passava no mundo interior daqueles indivíduos, ressaltasse o aspecto
humano das vivências dos internos, tornando-os sujeitos do inconsciente:

Os loucos são considerados normalmente seres embrutecidos e absurdos.


Custará admitir que indivíduos assim rotulados em hospícios sejam capazes
de realizar alguma coisa comparável às criações de legítimos artistas – que se
afirmem justo no domínio da arte, a mais alta atividade humana (SILVEIRA,
1981, p. 16).

Nesse sentido, Nise encontrou apoio em obras de psiquiatras como H. Prinzhorn, “que
estuda as obras plásticas de esquizofrênicos, guiando-se unicamente pelo conceito de
configuração (Gestaltung) e mantendo-se independente da psiquiatria e da estética”
(SILVEIRA, 1981, p. 15), e artistas como Jean Dubuffet, que fundou o movimento da Arte
Bruta na França com objetivo de reunir obras de internos de hospitais psiquiátricos,
penitenciárias e sujeitos marginalizados no geral. Baseando-se em Dubuffet, Mário Pedrosa
intitulou a arte dos internos do hospital Pedro II de Arte Virgem, pois liberta de qualquer cânone
artístico ou tradição cultural, focada exclusivamente na pura (e necessária) atividade da
expressão. Mas como podemos entender a psicose, estrutura psíquica a qual esses indivíduos
estavam submetidos, a partir da psicanálise?7
Não é possível responder a essa questão aqui mais do que de forma muito breve. A
psicose é uma das formas de o sujeito responder à castração, ou à “insuficiência da linguagem
de dar conta da experiência pulsional” (GUERRA, 2010, p. 10). Diferentemente da neurose, na
psicose o complexo de castração não se efetiva, ocorrendo o que Lacan denomina de foraclusão
do Nome-do-Pai. Desse modo, de acordo com Quinet, há uma dificuldade do sujeito em se

por Nise da Silveira, no Rio de Janeiro, o Museu do Inconsciente, que conta com mais de 250.000 peças
criadas pelos internos. Existe amplo estudo bibliográfico sobre o trabalho revolucionário de Nise e dos artistas
por ela tutelados, além de produções artísticas como o famoso documentário de Leon Hirszman “Imagens do
inconsciente”, de 1987.
7
O referencial teórico que adotamos neste trabalho para esclarecer a estrutura psíquica da psicose é o
lacaniano. É importante observar que tanto a noção de inconsciente em Merleau-Ponty, que procuramos
elucidar aqui, quanto a noção de inconsciente de Jung, referência teórica maior de Nise da Silveira, diferem
da abordagem lacaniana deste problema e o modo como ele é articulado na estrutura da psicose. No entanto,
como vimos, há interseções entre o inconsciente merleau-pontyano, quando este é relacionado à passividade
enquanto ser visto por outrem, e a elaboração da pulsão escópica lacaniana, isto é, o real que emerge da
visibilidade enquanto outrem e, portanto, relacionado ao inconsciente em sentido próprio. A utilização do
referencial lacaniano da psicose justifica-se por essa afinidade teórica, que na arte de artistas esquizofrênicos,
como veremos aqui, revela com radicalidade o inconsciente associado à visibilidade merleau-pontyana e o
inconsciente real em Lacan, que na pulsão escópica emerge entre as frestas da cultura, como observado na
experiência de pintores, e na psicose, grosso modo, encontra-se “aberto” sem a intermediação do simbólico.

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situar no âmbito simbólico “tendo que se defrontar com o simbólico apreendido como uma
totalidade sem furo, sem falta, que se manifesta como Outro que faz do sujeito um objeto ou o
invade, através das vozes alucinadas, em seu corpo até o âmago de seu ser” (QUINET, 2011,
p. 249). A função Nome-do-Pai é ausente e, portanto, incapaz de deter o gozo que invade o
sujeito sob a forma de sofrimento insuportável, sendo o delírio e, também, a arte do sujeito
psicótico formas de criação – diferentemente da sublimação, instaurada no âmbito da cultura
estruturada pelo registro simbólico – para lidar com esse gozo “diante da ausência do
significante que poderia contê-lo” (QUINET, 2011, p. 250).
Para quando a arte não é produzida de forma imersa no sentido cultural, sublimatório
de seu produzir, estruturada pelo Nome-do-Pai, como é o caso da arte na psicose, Lacan
estabeleceu o conceito particular de sinthoma, com o qual se referiu, por exemplo, à obra de
James Joyce em seu seminário 23, de 1975. Com a criação pelo sinthoma o sujeito pode lidar
com o gozo da Coisa partilhando-o e investindo-o nos objetos para não ser invadido e
aniquilado por ele. Desse modo, tanto o delírio, mas também a arte, são tentativas de curar-se
daquilo que invade o doente por meio de uma reconstrução do mundo. É claro que, mesmo a
arte sendo produzida pelo sinthoma, ela pode, sem sombra de dúvidas, possuir qualidades e
méritos de uma verdadeira obra de arte e ser acoplada ao mundo da cultura; foi o que aconteceu
com alguns artistas de Engenho de Dentro, como Fernando Diniz (1918-1999), Emygdio de
Barros (1895-1986), Carlos Pertuis (1910-1977), Adelina Gomes (1916-1984), entre outros.
No caso de Nise, o referencial teórico maior da psicanálise para interpretar a pintura dos
internos não é Lacan, mas sim a obra de Carl Jung (1875-1961)8 e sua tentativa de entender o
inconsciente a céu aberto da psicose a partir dos arquétipos de um inconsciente universal e do
modo como eles aparecem na pintura enquanto forma de organização do delírio e de
desvelamento do mundo interno do doente. No entanto, o que nos interessa aqui, como já
mencionamos, é a relação entre a pintura dos artistas psicóticos e a ontologia fenomenológica
de Merleau-Ponty em sua imbricação com a noção de inconsciente. A fenomenologia, contudo,
não é deixada de lado nos estudos de Nise para a compreensão do mundo do paciente psicótico.
Em seu Imagens do Inconsciente (1981), a psiquiatra utiliza uma citação retirada da

8
Nesse sentido, é importante mencionar que a compreensão de Jung a respeito do inconsciente e da psicose
ficará de fora de nossa abordagem, de modo que utilizaremos os estudos de Nise da Silveira ressaltando a sua
aproximação com a fenomenologia merleau-pontyana na compreensão da esquizofrenia. Nossa leitura da arte
desses pacientes, por sua vez, tem por intuito prolongar a compreensão fenomenológica da experiência da
loucura a partir de Merleau-Ponty, bem como aplicar a sua ontologia da carne, carregada da reversibilidade
entre consciente e inconsciente, na interpretação das obras dos pacientes psiquiatrizados de Engenho de
Dentro.

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Fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty para ilustrar a subversão da noção de espaço


na experiência psicótica, vivência que também se manifesta na pintura:

O que garante o homem são contra o delírio ou a alucinação não é sua crítica,
é a estrutura de seu espaço: os objetos permanecem diante dele, conservam
suas distâncias [...]. O que cria a alucinação, assim como o mito, é o
estreitamento do espaço vivido, o enraizamento das coisas em nosso corpo, a
vertiginosa proximidade do objeto, a solidariedade entre o homem e o mundo
que está não abolida, mas recalcada pela percepção de todos os dias ou pelo
pensamento objetivo, e que a consciência filosófica reencontra. [...]. Para
saber o que significa o espaço mítico ou esquizofrênico, não temos outro meio
senão despertar em nós, em nossa percepção atual, a relação entre o sujeito e
seu mundo que a análise reflexiva faz desaparecer. É preciso reconhecer, antes
dos “atos de significação” do pensamento teórico e tético, as “experiências
expressivas”; antes do sentido significado, o sentido expressivo; antes da
subsunção do conteúdo à forma, a “pregnância” simbólica da forma no
conteúdo (MERLEAU-PONTY, 2018 [1945], pp. 390-391).

Existem várias passagens na Fenomenologia da percepção sobre a experiência da


loucura e, mais particularmente, sobre a alucinação. Mas o que queremos ressaltar aqui – e que
pertence a essa passagem citada por Nise em específico – é essa sensação vertiginosa de
desequilíbrio e descentramento do sujeito na proximidade dos objetos e do mundo que é
recalcada pela percepção convencional e que, de algum modo, faz parte da percepção de mundo
do esquizofrênico. Segundo Manzi, essa experiência recalcada de proximidade e enraizamento
das coisas em nós “talvez seja a experiência mais próxima do que ele [Merleau-Ponty]
denominará carne” (MANZI, 2012, p. 435, colchetes nossos), conceito que já trabalhamos mais
acima. Nesse sentido, argumenta Manzi, em seu diálogo com a psicanálise, Merleau-Ponty não
ignora a dimensão do recalque em Freud; mesmo não concordando com a linguagem empregada
por este último, é como se o filósofo, em sua fenomenologia e de forma mais ampla no
desenvolvimento de sua ontologia carnal, insistisse que há uma dimensão sedimentada em nós
que, por vezes, retorna de modo vertiginoso. Ousamos dizer que essa vertigem é experimentada
pelo paciente esquizofrênico enquanto uma textura do Ser. Nesse mesmo sentido, Nise afirma,
quanto às imagens pintadas pelos seus pacientes, que elas “revelavam perigosos estados do ser,
que não se deixavam aprender pelo modelo médico adotado pela psiquiatria vigente”
(SILVEIRA, 1986, p. 5).
Em um momento anterior ao comentário das obras de alguns de seus pacientes, Nise
afirma que a percepção psicótica exposta nas pinturas revela uma interpenetração entre espaço
interno e externo. Essa interpenetração de que fala Nise, expressa nas pinturas, assemelha-
se à mencionada reversibilidade merleau-pontyana entre conteúdos conscientes e

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inconscientes. Na pintura abaixo (figura 1), de autoria de Emygdio de Barros, o artista retrata
sua percepção da paisagem externa à janela do ateliê; no entanto, abaixo da janela, “conteúdos
do mundo interno, do inconsciente, borbulham” (SILVEIRA, 1981, p. 37) e são expressos de
forma muito clara no quadro, invadindo o olhar de Emygdio.

Figura 1: Emygdio de Barros, Óleo/tela, 1948. Fonte: https://br.pinterest.com/pin/669769775802771936/

Entretanto, na psicose, a força de invasão dos conteúdos inconscientes é tão forte que o
mundo externo da percepção cotidiana é desordenado, tornando-se, de certo modo, vertiginoso.
Nesse sentido, Merleau-Ponty, em O olho e o espírito, afirma que há uma “textura imaginária
do real” (MERLEAU-PONTY, 2004 [1960], p. 19) que se oferece ao olhar e que a pintura
revela; desse modo, o pintor, como afirma Paul Klee, artista mencionado tanto por Nise como
pelo filósofo francês, faz com que o “invisível se torne visível” (KLEE, 1959, p. 300). Essa
visão que “para além dos dados visuais, dá acesso a uma textura do Ser” (MERLEAU-PONTY,
2004 [1960], p. 20), ao nosso ver, revela o quiasma da relação entre homem e mundo, consciente
e inconsciente, isto é, a indivisão do sentir. A pintura, então, nos revela o “modo vertiginoso de
ser carne” (MANZI, 2011, p. 422), a indivisão do sentir, a qual Merleau-Ponty liga, como
afirmamos mais acima, o próprio inconsciente, e que o quadro de Emygdio, de algum modo,
faz ver.
No entanto, conforme Nise, “se o artista tem a possibilidade de partir para a pesquisa de
novas dimensões imaginárias, graças ao seu ego intacto traz sempre consigo a passagem de
volta ao espaço comum, onde cumpre como todo mundo as rotinas da vida diária” (SILVEIRA,
1981, p. 42); já com o artista psicótico as coisas se dão de modo diferente. Muitas vezes a
vivência cotidiana para este último torna-se quase impossível. É a percepção de todos os

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dias, de que fala Merleau-Ponty na Fenomenologia da percepção, o pensamento objetivo, que


sucumbe em virtude do “estreitamento do espaço vivido”, da vertiginosa proximidade entre
homem e mundo. Nesse sentido, parte da obra de Fernando Diniz, ilustre paciente de Nise,
busca recuperar a experiência da percepção e do espaço cotidiano, recriando-a em seus quadros.
Se as artes plásticas, como afirma Nise, na sua origem buscavam fixar objetos significativos e
retirá-los do fluxo caótico de impressões sensíveis, Fernando busca fixar em suas pinturas
objetos do espaço cotidiano, retirando-os do terrível turbilhão de imagens e sensações, como
na pintura abaixo, em que uma sala de estar é retratada em meio a pinceladas caóticas (figura
2).

Figura 2: Fernando Diniz, Óleo/tela, 1953. Fonte:


http://memoria.csasp.g12.br/frmRelembreAbrir.aspx?IdRelembre=52

Outra pintura de Fernando Diniz que chama atenção para os propósitos deste trabalho é
o desenho em guache de um emaranhado de linhas, à esquerda, em vermelho e, à direita, linhas
geométricas de diversas cores, acima das quais repousa o desenho de uma mão direita, a do
próprio Diniz (figura 3). Como Diniz via sua mão cobrindo o desenho enquanto estava pintando,
resolveu retratá-la. Essa percepção de Diniz nos lembra a proximidade radical das coisas ao
corpo e do olhar às coisas, de que fala Merleau-Ponty. A mão que trabalha, que pinta e que está
em ato, não some do desenho, como em uma visão objetiva, ou visão de sobrevoo,
desencarnada; ao contrário, a mão aparece imiscuída entre o olhar de Diniz e as linhas
geométricas. A pintura também nos recorda a promiscuidade dos sentidos na filosofia de
Merleau-Ponty, a visão tátil, que apalpa as coisas. Isto é, a visibilidade, como afirma o
filósofo francês, é “moldada pela sensibilidade” (MERLEAU-PONTY, 2007 [1959], p.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

131) e, por isso, o olhar abre-se ao tangível, “envolve as coisas visíveis” (MERLEAU-PONTY,
2007 [1959], p. 131). A mão na pintura também revela, segundo Nise, uma tentativa de
organização do caótico mundo do pintor em questão. A partir da mão ele organiza o mundo em
linhas e figuras geométricas e, nesse sentido, fazemos referência à observação de Merleau-
Ponty: “o olho é aquilo que foi sensibilizado por um certo impacto do mundo e o restitui ao
visível pelos traços da mão” (MERLEAU-PONTY, 2004 [1960], pp. 19-20).

Figura 3: Fernando Diniz, Guache sobre papel, sem data. Fonte:


http://www.ccms.saude.gov.br/cinquentenariodomuseu/fernando-diniz.php

Por vezes, na obra de Emygdio de Barros, por exemplo, estranhas faces que espiam
aparecem nos quadros, como no canto esquerdo da figura 4. Este não é um tema incomum na
pintura de pacientes psiquiátricos. Conforme vimos em Merleau-Ponty, a relação entre olhar e
ser olhado é radicalizada na pintura e evoca uma noção de passividade a outrem, como atesta a
observação de André Marchand, citada mais acima. Se a pintura é um âmbito privilegiado da
experiência da visibilidade e da passividade, no delírio essa relação é ainda mais pregnante,
pois, no vocabulário psicanalítico, o olhar que se encontra “elidido na neurose, é desvelado na
psicose” (QUINET, 2011, p. 247).

Figura 4: Emygdio de Barros, óleo/papel, sem data. Fonte: https://cutt.ly/CmGSSOi

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível sustentar que, partindo das profícuas relações da filosofia de Merleau-Ponty


com a psicanálise, mais especificamente no que diz respeito à aceitação e à elaboração pelo
filósofo francês do conceito de inconsciente, e aplicando-o à leitura de obras de pacientes
psicóticos, a filosofia deste autor apresenta uma certa receptividade, na composição de sua
ontologia, à experiência da loucura. O descentramento do sujeito na carne do mundo e sua
vertiginosa proximidade às coisas, a reversibilidade entre consciente e inconsciente, a
promiscuidade dos sentidos e a indivisão do sentir, a que Merleau-Ponty relaciona ao próprio
inconsciente, parecem revelar texturas do Ser que, em Freud, por exemplo, situar-se-iam,
arriscamos dizer, no âmbito do recalque. Muito do que Merleau-Ponty denomina de a
experiência vertiginosa de ser carne aproxima-se da experiência esquizofrênica. Como coloca
Manzi:

Diríamos mais: uma sensação vertiginosa porque há um desequilíbrio da nossa


unidade, uma revelação de que somos apenas carne do mundo. Ora, esse
sentimento de estranheza, desde Paul Janet, sempre foi associado às
experiências da esquizofrenia. Ou seja, nos sujeitos que sofrem certa
fragmentação de si (MANZI, 2011, p. 434).

Na ontologia da carne de Merleau-Ponty, contida em O visível e o invisível, como já


mencionamos, realiza-se realmente um descentramento do sujeito “como se a familiaridade do
que denominamos Eu se perdesse numa familiaridade mais primordial, mais original, estranha,
carnal” (MANZI, 2011, p. 435). Se o inconsciente é “o ponto de reversão da carne” (AYOUCH,
2012, p. 7), pode-se dizer que o sujeito, na ontologia de Merleau-Ponty, está mergulhado nessa
transitividade carnal, quase infantil, que ilustra a radicalização do sensível e da visibilidade,
onde não parece haver uma estrutura forte, como um cogito unificador, que barra o vínculo
entre consciente e inconsciente, mas sim um sistema de diferenciação e uma mútua implicação
dessas partes entre si. Ora, é essa mútua implicação, ou reversibilidade, que pensamos ser
figurada de forma plástica na pintura dos pacientes psicóticos de Nise da Silveira.
Desse modo, ressaltamos não ser de forma alguma o nosso intuito “romantizar” uma
condição mental muito séria, com graves consequências para o indivíduo e que acarreta
sofrimento ao seu portador e mesmo a sua família. Também não é nosso intuito dizer que a
ontologia de Merleau-Ponty é uma forma de ontologia baseada na experiência da loucura,

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

o que não se sustenta pois nem mesmo o filósofo francês buscou elaborar algo próximo de uma
teoria ou fenomenologia da psicose.
Não obstante, podemos concluir que, ao estabelecer um frutífero diálogo com a
psicanálise, a ontologia merleau-pontyana parece ter uma singular abertura à experiência desses
sujeitos cuja percepção e expressão estão quase sempre excluídas do mundo da filosofia e
mesmo da cultura. Se pintura e delírio se encontram imiscuídos na obra de Emygdio e Fernando
Diniz, na filosofia de Merleau-Ponty esses elementos estão também imbricados nesse mundo
que é “quase louco” do pintor e nesse “delírio que é a visão mesma” (MERLEAU-PONTY,
2004 [1960], p. 19). É desse modo que, nas palavras de Merleau-Ponty, “ter alucinações e, em
geral, imaginar é aproveitar essa tolerância do mundo antepredicativo e nossa vizinhança
vertiginosa com todo ser na experiência sincrética” (MERLEAU-PONTY, 2018 [1945], p.
459).

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

REFERÊNCIAS

AYOUCH, Thamy. Merleau-Ponty e a psicanálise: da fenomenologia da afetividade à


figurabilidade do afeto. J. psicanal, São Paulo, vol 45, nº 3. 1-17, dez. 2012.
GUERRA, Andréa. A psicose. São Paulo: Zahar, 2010.
KLEE, Paul. Journal. Paris: Grasset, 1959.
MANZI, Ronaldo. Quando os corpos se invadem – Merleau-Ponty às voltas com a psicanálise.
São Paulo. 456 p. Tese (Doutorado em filosofia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, 2012.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. Trad: José Artur Gianotti e Armando
Mora d’Oliveira. São Paulo: Perspectiva, 2007.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de
Moura. São Paulo: Martins Fonte, 2018.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Tradução de Paulo Neves e Maria
Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Préface à L'œuvre et l'Esprit de Freud. In: Parcours deux.
1951-1961. Paris: Verdier, 2000.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Résumés de Cours – Collège de France (1952-1960). Paris:
Gallimard, 1968.
MOURA, Carlos Alberto Ribeiro de. “Entre fenomenologia e ontologia: Merleau-Ponty na
encruzilhada”, In: Racionalidade e crise. Estudos de História da filosofia moderna e
contemporânea. São Paulo: Discurso Editorial e Editora da UFPR, 2001, p. 271-293.
MÜLLER, Marcos José. Merleau-Ponty leitor de Freud. Natureza Humana, vol. 7, nº2. 399-
432, jul-dez, 2005.
MÜLLER, Marcos José. A esquize do olho e do olhar na arte: Lacan leitor de Merleau-Ponty.
Sofia, Vitória (ES), vol. 4, nº 2, p. 393 - 406, ago-dez, 2015.
MÜLLER-GRANZOTTO, Marcos José; MÜLLER-GRANZOTTO, Rosane Lorena. Psicosis
y Creación. São Paulo: Summus, 2013.
QUINET, Antônio. Teoria e clínica da psicose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
SILVEIRA, Nise da. Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981.
SILVEIRA, Nise da. Os inumeráveis estados do ser (exposição), 1986. Disponível em:
http://www.ccs.saude.gov.br/saude_mental/pdf/inumeraveis_estado_ser.pdf. Acesso em 26 de
outubro de 2020.

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Recebido em:15/05/2021
Aprovado em: 29/06/2021
Publicado em: 15/07/2021

[TRADUÇÃO]
PHILOSOPHIE UND PSYCHOANALYSE
Por
Sándor Ferenczi

Tradução e notas
Caio Padovan1
([email protected])
Guilherme Germer2
([email protected])

[BREVE NOTA EDITORIAL]


Caio Padovan
Weiny César Freitas Pinto3
([email protected])

O texto aqui traduzido foi publicado por Sándor Ferenczi em 1912, no primeiro volume
da revista Imago, e constitui uma resposta à comunicação feita por James Jackson Putnam no
terceiro Congresso internacional de psicanálise, realizado no ano de 1911 em Weimar, cuja
versão escrita será publicada no ano seguinte com o título Ueber die Bedeutung philosophischer
Anschauungen und Ausbildung für die weitere Entwicklung der psychoanalytischen Bewegung.
Um comentário pormenorizado a respeito da história deste debate pode ser encontrado em
Freitas Pinto e Padovan (2019)4.

1
Professor de Psicologia clínica na Université Paul Valéry, Montpellier 3, pesquisador ligado ao Centre de
recherches Psychanalyse, Médecine et Société da Univeristé de Paris e ao Programa de Pós-graduação em
Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5546489394122208.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6397-6631.
2
Doutor em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9731890269292935.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3173-6750.
3
Professor Doutor do curso de Filosofia e da Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1411304686102041.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7101-9150.
4
Cf. FREITAS PINTO, W. C.; PADOVAN, C. James J. Putnam e as origens do diálogo entre filosofia e
psicanálise: Apresentação, tradução e notas de Um apelo para o estudo de métodos filosóficos na preparação

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Sabemos hoje que uma segunda versão do artigo de Ferenczi será publicada em húngaro
em 1914, com o título Filozófia és pszichoanalízis, na coletânea de textos: Ideges tünetek,
keletkezése és eltünése. És egyéb értekezések a pszichoanalízis köréből. Uma segunda edição
da mesma coletânea aparece em 1919, ao que tudo indica, sem modificações5.
Em 1922, uma terceira versão do mesmo texto será publicada em alemão, com algumas
modificações, na coletânea Populäre Vorträge über Psychoanalyse6. Esta será a versão de
referência do texto que, mais tarde, se tornará objeto das traduções inglesa, francesa e brasileira.
A primeira tradução inglesa será publicada em 1955, no volume Final Contributions to the
Problems and Methods of Psycho-Analysis7. A tradução francesa deste mesmo texto será
publicada em 1968, no primeiro volume de suas Œuvres complètes8. A tradução brasileira,
publicada pela editora Martins Fontes, aparecerá em 1991, feita a partir da edição francesa9.
A respeito destas sucessivas traduções, especialmente quanto às edições francesa e
brasileira, cabe ressaltar que, embora o editor francês indique a edição húngara de 1914,
cotejada com a edição inglesa de 1955, como o texto base da tradução publicada no primeiro
volume das Œuvres completes10, uma comparação inicial destes documentos sugere, na
verdade, que o texto base da tradução foi o da edição inglesa, que por sua vez, baseia-se, como
afirmamos acima, no texto da coletânea Populäre Vorträge über Psychoanalyse, edição
modificada alemã de 192211.
O texto que aqui propomos é a primeira tradução brasileira do artigo de Ferenczi feita
diretamente do alemão, e talvez a única, com exceção da versão húngara, de 1914, realizada a
partir da sua primeira edição, de 1912. Uma série de notas de rodapé foram incluídas chamando
a atenção para as principais diferenças entre as duas versões alemãs do texto, a primeira, de
1912, e a segunda, publicada dez anos mais tarde, em 1922.

para o trabalho psicanalítico (1911). Modernos & Contemporâneos – International Journal of Philosophy,
Campinas, v. 3, n. 6, p. 305-316, 2019.
5
Ver prefácio à segunda edição do referido texto em: FERENCZI, S. Ideges tünetek, keletkezése és eltünése.
És egyéb értekezések a pszichoanalízis köréből. Budapest: Dick Manó Kiadása, 1919.
6
Cf. FERENCZI, S. Populäre Vorträge über Psychoanalyse. Leipzig, Wien, Zürich: Internationaler
Psychoanalytischer Verlag, 1922.
7
Cf. FERENCZI, S. Final Contributions to the Problems and Methods of Psycho-Analysis. London: Hogarth
Press, 1955.
8
Cf. FERENCZI, S. Œuvres complètes 1. Paris: Payot, 1968.
9
Cf. FERENCZI, S. Obras completas I. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
10
Cf. FERENCZI, S. Œuvres complètes 1. Paris: Payot, 1968, p. 260.
11
Cf. FERENCZI (1955, p. 326). Embora a edição inglesa afirme se basear na edição alemã de 1912, publicada
no primeiro volume da revista Imago, um estudo comparativo da tradução inglesa, publicada em 1955, com
as versões alemãs de 1912 e 1922 revela que, na realidade, ela se baseou na edição de 1922, então publicada
na coletânea Populäre Vorträge über Psychoanalyse (pp. 118-127).

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Volume 06, Número 10, Ano 2021

*****

A presente tradução do texto Filosofia e psicanálise, de Sándor Ferenczi, integra o


conjunto de investigações e de traduções que temos realizado sobre a origem da relação entre
filosofia e psicanálise no interior do movimento psicanalítico. O primeiro resultado desse
trabalho foi a tradução do texto de James J. Putnam: Um apelo para o estudo de métodos
filosóficos na preparação para o trabalho psicanalítico (1911)12, acompanhada de uma longa
e informativa apresentação13. No próximo volume da edição história e método da recepção
filosófica, publicaremos a tradução da tréplica de Putnam a Ferenczi. Na sequência, nos
dedicaremos a publicar a réplica de Theodor Reik e a tréplica de Putnam a Reik.

12
Cf. PUTNAM, J. Um apelo para o estudo de métodos filosóficos na preparação para o trabalho psicanalítico.
Tradução de Weiny Freitas, Caio Padovan, Caroline Lourenzone e Fábio Fernandes. Modernos &
Contemporâneos – International Journal of Philosophy, Campinas, v. 3, n. 6, p. 316-332, 2019.
13
Cf. FREITAS PINTO, W. C.; PADOVAN, C. James J. Putnam e as origens do diálogo entre filosofia e
psicanálise: Apresentação, tradução e notas de Um apelo para o estudo de métodos filosóficos na preparação
para o trabalho psicanalítico (1911). Modernos & Contemporâneos – International Journal of Philosophy,
Campinas, v. 3, n. 6, p. 305-316, 2019. Especialmente sobre este texto de Ferenczi, será publicado em breve
um capítulo de livro, cf. FREITAS PINTO, W. C. Comentário explicativo de Filosofia e psicanálise (Ferenczi,
1912). No prelo.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

FILOSOFIA E PSICANÁLISE
(considerações sobre um artigo do Sr. Professor Dr. JAMES J. PUTNAM da Universidade de Harvard,
Boston EUA)

Por
Dr. S. FERENCZI (Budapeste)

[Tradução e notas: Caio Padovan e Guilherme Germer]

Em um ensaio motivado pelas mais nobres intenções, e redigido com a eloquência de


uma convicção sincera, o meritíssimo professor da Harvard Medical School defende
calorosamente que a psicanálise, cuja importância como método psicológico e terapêutico ele
reconhece sem reservas, passe a estabelecer uma relação mais estreita com perspectivas
filosóficas [philosophischen Anschauungen] mais amplas.
Uma boa parte das suas afirmações será, sem dúvida, julgada como correta e seguida
por todos os analistas. O psicólogo, cuja tarefa é aprofundar nosso conhecimento sobre a mente
[Seele] humana, não deve de modo algum se fechar à contemplação desses sistemas, tão
estimados – e com razão – pela humanidade, nos quais os espíritos elevados sintetizaram suas
convicções mais bem acabadas14 sobre a natureza e o sentido do mundo; e se a análise foi capaz
de realizar sólidas descobertas psicológicas, mesmo no campo das manifestações populares, por
muito tempo subestimadas, como os mitos e os contos – ainda que simbolicamente disfarçadas
–, podemos certamente esperar que novos pontos de vista, novos conhecimentos, também
surjam do estudo da filosofia e de sua história15. Ora, nenhum psicanalista discordará da
afirmação de que “pesquisa alguma poderá florescer sem levar em conta, com a devida atenção,
a sua relação natural com outros tipos de pesquisa”16. A psicanálise não é tão pretensiosa ao
ponto de querer explicar tudo através de seus próprios meios, e embora ainda estejamos longe
de ter esgotado tudo aquilo que pode ser explicado analiticamente, podemos já intuir onde se
encontram as fronteiras de nossa ciência e onde a explicação dos processos terá que ser deixada
para outras disciplinas (a física, a química e a biologia, por exemplo).

14
Nota dos tradutores (NT): “convicções ‘mais profundas’” [tiefsten] na edição de 1922, no lugar de ‘bem
acabadas’ ou ‘últimas’ [letzten].
15
NT: “‘da’ [der] história” na edição de 1922, no lugar de “‘sua’ [ihrer] história”.
16
NT: citação não literal de Putnam (1912, p.103).

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

Além disso, “que nós sabemos mais do que podemos expressar”17, que “aprender nada
mais é do que uma viagem exploratória no interior da própria alma [Seele]”18, que o dever dos
psicanalistas é “desvendar e examinar mais de perto, tanto quanto possível, os pensamentos e
os impulsos” [Ahnungen e Regungen]19 (incluindo aí os religiosos), todo analista que já entrou
alguma vez em contato com o pré-consciente, quer dizer, com a camada interna dos processos
produtivos da mente onde todo progresso espiritual [geistige Fortschritt] é preparado, deve ser
capaz de reconhecê-lo plenamente. Em suma, teríamos que reimprimir uma parte não
negligenciável da exposição de Putnam se quiséssemos destacar de seu trabalho tudo aquilo
com o que podemos20 concordar.
Apesar disso, neste artigo, tão estimulante e interessante, se encontram passagens que
despertaram em mim a mais viva oposição e em relação as quais, dado que sou de opinião
contrária, preferiria não me conter, mesmo que me falte a devida formação filosófica, enquanto
o Professor Putnam tem a grande vantagem de ter à sua disposição um espírito treinado em
filosofia.

1. Psicanálise e visão de mundo 21

O professor Putnam exige dos psicanalistas que subordinem seus conhecimentos recém-
adquiridos a uma certa visão de mundo filosófica [philosophische Weltanschauung]22 ou que a
ela devam ser integrados.
De uma maneira geral, acho isso perigoso para a ciência, especialmente para a
psicologia analítica [analytische Psychologie]23, que nem sequer lidou adequadamente com as
conexões no interior de seu próprio campo epistêmico [Wissengebiete]. A trégua que

17
NT: citação não literal de Putnam (1912, p. 115).
18
NT: citação não literal de Putnam (1912, p. 112-3).
19
NT: citação não literal de Putnam (1912, p. 113).
20
NT: “devemos” [dürfen] na edição de 1922, no lugar de “podemos” [müssen]. O tempo verbal foi adaptado
à passagem.
21
NT: o título desta primeira seção, assim como das demais, será suprimido na edição alemã de 1922, mas
não nas duas edições húngaras de 1914 e 1919.
22
NT: A noção de Weltanschauung, cara ao pensamento filosófico de língua alemã, encontra suas origens no
pensamento de Kant, sendo popularizada no início do século XX através dos trabalhos de Wilhelm Dilthey e
Karl Jaspers.
23
NT: Ferenczi estabelece aqui uma oposição em relação à dita psicologia descritiva, tal como fará Freud de
maneira explícita em 1915, no início da segunda seção de seu artigo metapsicológico sobre o Inconsciente, ao
abordar a questão da “psicologia descritiva da consciência” [deskriptive Bewußtseinspsychologie] (p.194-
195). Cf. Freud, S. (1915). “Das Unbewußte”, Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, 3(4), pp. 189-
203, 3(5), pp.257-269.

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concedemos à caça durante o período de crescimento [Entwicklung], não deve ser negada a uma
jovem ciência, sendo igualmente necessário nesses casos aguardar um bom tempo antes de se
aproximar dela com as armas da metafísica. Quanto mais adiarmos a formação de um sistema,
nos contentando em coletar dados sem reservas e em estabelecer conexões entre eles, mais
chances temos de encontrar algo novo e verdadeiro24. Em contrapartida, a formação muito
precoce de um sistema coloca o pesquisador em um estado de espírito desfavorável ao teste de
realidade [Realitätsprüfung], correndo assim o risco de desconsiderar ou subestimar fatos que
não querem se encaixar no sistema25.
Não devemos ainda esquecer que a psicanálise, como a psicologia em geral, tem o
direito e o dever de investigar todo tipo de realização mental [seelicher], sem excluir as
filosofias26, considerando e investigando suas condições de origem, e fazendo com que as
regularidades dominantes na esfera psíquica sejam também nelas igualmente válidas. Dito de
modo ainda mais preciso: provar que essas regularidades sejam igualmente válidas para as
filosofias. Mas como poderia a psicologia legiferar sobre a filosofia se a priori é exigido dela
que se subordine a um sistema filosófico particular, ou, em geral, a um sistema filosófico
qualquer?27

24
NT: o mesmo raciocínio epistemológico será mobilizado três anos mais tarde por Freud, em 1915, no
primeiro parágrafo de seu artigo metapsicológico sobre as pulsões e seus destinos. Cf. Freud, S. (1915).
“Triebe und Triebschicksale”, Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, 3(2), pp. 84-100.
25
A relação entre fato empírico e sistema teórico será desenvolvida por Ferenczi doze anos mais tarde, em
1924, na obra Metas para o desenvolvimento da psicanálise, escrita em parceria com Otto Rank. Cf. Ferenczi,
S. Rank, O. (1924). Entwicklungsziele der Psychoanalyse. Leipzig, Wien, Zürich: IPV, 67 p.
26
NT: “sistemas filosóficos” [philosophischen Systeme] na edição de 1922, no lugar de “filosofias”
[Philosophieen].
27
O fato de não ser impossível e, também, não completamente infrutífero, examinar psicologicamente as
condições de origem das filosofias pode ser aqui demonstrado por meio de um exemplo. As investigações
psicanalíticas sobre pessoas doentes levaram à distinção entre dois mecanismos opostos de repressão (isto é,
o afastamento da atenção consciente daquilo que produz desprazer). Pacientes paranoicos tendem a
experimentar subjetivamente processos mentais desprazerosos enquanto influências do mundo exterior
(projeção); por outro lado, os neuróticos também experimentam de maneira intensa processos do mundo
exterior (em outras pessoas, por exemplo), eles “introjetam” uma parte do mundo exterior buscando aliviar
certas tensões em sua psique. É curioso que existam sistemas filosóficos que possam ser colocados em analogia
com esses mecanismos, que certamente dependem das necessidades emocionais. O materialismo, que nega o
eu e permite que ele seja completamente absorvido pelo “mundo exterior”, pode ser entendido como a mais
completa forma de projeção concebível; o solipsismo, que nega o mundo inteiro, ou seja, o absorve no eu, é o
mais alto nível de introjeção*. Não é de forma alguma improvável que, no final das contas, uma grande parte
da metafísica possa ser explicada psicologicamente, ou, como diz Freud, transformada em metapsicologia**.
Freud também tem apontado para a analogia entre a construção de sistemas filosóficos e paranoicos. (Imago
I. Edição 4, p. 332.) [NT: referência à segunda parte da obra Totem e Tabu, publicado no quarto número deste
mesmo volume da revista Imago. A este respeito, ver: Freud, S. (1912). “Über einige Übereinstimmungen im
Seelenleben der Wilden und der Neurotiker”, Imago, 1(4), pp. 301-333].
Uma outra parte, porém, poderá mais tarde vir a antecipar o conhecimento científico.
*S. Ferenczi, Introjektion und Übertragung. (»Jahrbuch für psychoanalytische Forschungen«, I. Bd., 1909).
S. Ferenczi, Zur Begriffsbestimmung der Introjektion. (»Zentralblatt für Psychoanalyse«, II. Jahrg., 4. Heft.)
[NT: referência ao seu longo artigo de 1909, Introjeção e transferência, e ao curto artigo de divulgação
publicado sobre o mesmo assunto em 1912, Sobre a definição do conceito de introjeção. Cf. Ferenczi, S.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

A ciência pode ser comparada a um empreendimento industrial capaz de produzir novos


bens e serviços; em contrapartida, a “visão de mundo” [Weltanschauung] corresponde a um
balancete ainda muito rudimentar, que de tempos em tempos devemos realizar a fim de verificar
o estado atual dos nossos conhecimentos com vistas a planejar nossos futuros investimentos.
Contudo, uma verificação contínua do balancete perturbaria o curso dos negócios e consumiria
uma energia que poderia ser melhor empregada.
Tais como as religiões, as filosofias28 são obras de arte, poesias, que certamente
carregam em si uma porção de intuições formidáveis; seu valor não pode e não deve ser
subestimado. Mas elas pertencem a uma outra categoria que não se confunde com a ciência,
pela qual entendemos a somatória daquelas regularidades que, após a purificação máxima dos
produtos de fantasia do princípio de prazer, devemos assumir que existem como reais29. Há
apenas uma ciência, mas há tantas filosofias30 e religiões quanto pessoas inteligentes dotadas
de espíritos e estados de ânimo diferentes.
É do interesse de ambas as disciplinas, que obedecem a princípios diferentes, não
misturar suas teses. Ademais, a psicologia deve ser o juiz da filosofia;31 naturalmente e para tal,
ela tem que aceitar ser classificada in toto32 nos diferentes sistemas filosóficos. Mas permanece
soberana em seu próprio campo e não amarra seu destino a nenhum desses sistemas.

2. Sobre a visão de mundo [Weltanschauung] do Prof. Putnam

(1909). “Introjektion und Übertragung”, Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische


Forschungen, 1(2), pp. 422-457. Ferenczi, S. (1912). “Zur Begriffsbestimmung der Introjektion”, Zentralblatt
für Psychoanalyse, 2(4), pp. 198-200].
**S. Freud, Zur Psychopathologie des Alltagslebens. (IV. Aufl.) [NT: referência à quarta edição do Sobre a
psicopatologia da vida cotidiana de Freud, publicada com modificações em 1912. Cf. Freud, S. (1912). Zur
Psychopathologie des Alltagslebens. Berlim: Karger, 198 p.].
28
NT: “Sistemas filosóficos” [philosophischen Systeme] na edição de 1922, no lugar de “filosofias”
[Philosophieen].
29
NT: essa ideia havia sido proposta um ano antes por Freud, em seu artigo Formulações sobre os dois
princípios dos eventos psíquicos (1911), e desenvolvido por Ferenczi no ano seguinte, em seu artigo: Os
estágios de desenvolvimento do senso de realidade. Cf. Freud, S. (1911). “Formulierungen über die zwei
Prinzipien des psychischen Geschehens”, Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische
Forschungen, 3(1), pp. 1-8. Ferenczi, S. (1913). “Entwicklungsstufen des Wirklichkeitssinnes”,
Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, 1(2), pp. 124-138.
30
NT: “Sistemas filosóficos” [philosophischen Systeme] na edição de 1922, no lugar de “filosofias”
[Philosophieen].
31
NT: vírgula na edição de 1922, no lugar de ponto e vírgula.
32
NT: “totalmente” (expressão latina).

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

Segundo a visão de mundo do Prof. Putnam – à qual, na sua opinião, a psicanálise teria
que ser integrada – a única coisa real33 nesse mundo é uma energia autorrealizadora [selbsttätige
Energie]34, dotada das mais altas capacidades intelectuais e morais, uma espécie de, por assim
dizer: personalidade divina [göttliche Persönlichkeit] que, pela expressão da sua tendência,
permitiu e continua permitindo, a partir de si mesma, a emergência e o desenvolvimento do
“mundo físico” [Körperwelt]35. Esse espírito [Geist] já era dotado de inteligência e moralidade
mesmo antes do surgimento dos corpos [Körper] mais primitivos, não alcançando no homem o
pleno desenvolvimento dessas qualidades. – Isso soa como a adaptação à biogenética36 dos mais
antigos mitos da criação, diferindo apenas no fato de que aqui a criação do mundo não teria
ocorrido em um único ato criativo, mas sim em uma série infinita de atos desse tipo, ou melhor,
como algo que está em constante elaboração. Poderíamos, se assim quiséssemos, chamar este
sistema de monista, uma vez que considera o mundo físico [Körperwelt] como uma
manifestação da mesma energia espiritual [geistige Energie] que compõe o espírito criador do
mundo; mas este monismo é extraordinariamente semelhante a um dualismo. Seja como for,
disso não deve propriamente resultar nenhuma objeção; pois o mundo dualista é tão impossível
quanto37 o monista e, neste sentido, ambas as filosofias, monista e dualista, garantem seu direito
de existência. Só não entendemos por que a psicologia analítica deveria passar a estabelecer
relações mais íntimas com a visão de mundo delineada pelo Prof. Putnam. Afinal, os fatos da
psicanálise poderiam muito bem ser incorporados a um sistema materialista ou espiritualista,
monista ou dualista; eles seriam ainda bastante compatíveis, por exemplo, com uma visão de
mundo que enxerga a essência e o fundamento originário [Urgrund] do mundo em um impulso
[Drang] cego e desprovido de inteligência e moralidade; na vontade de Schopenhauer, por
exemplo. Não seria inconcebível que uma força cega, desprovida de significado e de objetivo,
pudesse, por meio da seleção natural, dar origem aos seres mais inteligentes; nossas

33
NT: “Wirkliche” na edição de 1922, no lugar de wirkliche.
34
NT: A noção de selbsttätige Energie será mobilizada com frequência por Putnam em seu artigo (p. 104,
107, 108, 109), sendo empregada de maneira intercambiável com aquela de selbsttätige Kraft (p. 105, 106,
107). Na versão inglesa de seu texto, publicada em 1911, encontramos a expressão correspondente self-active
energy (p. 252, 255). De maneira literal, poderíamos traduzir a expressão alemã como “energia auto-atuante”
ou “auto-efetiva”, um tipo de força ou energia “que age ou se efetiva por si só”. Em nossa tradução da versão
inglesa (Putnam, 2019), optamos por “energia autorrealizadora” e, por essa razão, a mantemos aqui, buscando
assim evitar confusões desnecessárias.
35
NT: Literalmente, “mundo corporal” ou “dos corpos”, neste caso dos corpos ou entidades materiais. A noção
de Körperwelt poderia ser aqui entendida em oposição àquilo que mais tarde Edmund Husserl irá chamar de
Lebenswelt, ou “mundo da vida”.
36
NT: relativo ao pensamento evolucionista da época, em particular aquele desenvolvido nos países de língua
alemã.
37
NT: “wie” na edição de 1922, no lugar de “als”.

352
ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

experiências psicológicas também não entrariam em contradição com esse modo de ver as
coisas.
A filosofia agnóstica [agnostizistische Philosophie]38, que admite com honestidade sua
incapacidade em resolver as questões últimas – e que, portanto, em seu fundamento, não é um
sistema fechado – também constitui uma visão de mundo possível, até mesmo benéfica, para
nós. Pois mesmo que o Professor Putnam esteja certo ao afirmar que a razão não pode ser usada
para negar a existência da razão, ele esquece por outro lado o perigo que repousa na tentação
de superestimar o papel da consciência no universo e de recair em um antropomorfismo não
inteiramente justificado.
Além do mais, [e mesmo]39, é uma sorte para as ciências que nenhuma dessas filosofias
possua uma evidência concludente; pois a solução final das questões últimas da vida destruiria
o impulso [Antrieb] para buscar novas verdades.

3. Sobre a psicologia do inconsciente

O Prof. Putnam distingue com razão os conteúdos mentais [seelischen Inhalte] dos
modos de funcionamento do espírito [Tätigkeitsformen des Geistes]40. Ele acrescenta, no
entanto, que, considerado do ponto de vista de seu modo de funcionamento, o espírito não é
nem capaz, nem carente de desenvolvimento, e afirma ainda que o espírito da criança, assim
como o inconsciente (tomado em sentido psicanalítico) se distinguem essencialmente do
espírito consciente do adulto apenas em termos de conteúdo, mas não quanto a seu modo de
funcionamento [Funktionsart].

38
NT: segundo o Dicionário de conceitos filosóficos de Rudolf Eisler, publicado em sua terceira edição em
1910 – contemporânea, portanto, ao texto de Ferenczi – a noção de “Agnosticismo” será associada ao
pensamento evolucionista do biólogo britânico Thomas Huxley. Encontramos neste dicionário a seguinte
definição, extraída de um texto do próprio Huxley: “o agnosticismo (...) não é um credo, mas um método, cuja
essência reside na rigorosa aplicação de um único princípio (...). Positivamente, este princípio pode ser assim
expresso: em assuntos de ordem intelectual, siga a sua razão até onde ela for, sem levar em consideração
qualquer outra coisa. E negativamente: em assuntos de ordem intelectual, não tome algo como certo se suas
conclusões não são demonstradas ou demonstráveis” (p.23). Cf. Eisler, R. (1910). Wörterbuch der
philosophischen Begriffe, Erster Band, A-K. Berlim: Ernst Siegfreid Mittler und Sohn, 3ª Edição, 686 p., p.20.
Para a citação do biólogo inglês, ver: Huxley, T. (1889). Agnosticism. In: Christianity and Agnosticism, a
controversy. New York: Humbolt Publishing, 162 p., pp. 9-30.
39
NT: Na edição de 1922, Ferenczi inclui nesta frase o advébio beinahe: “Es ist übrigens beinahe ein Glück
für die Wissenschaften”.
40
NT: A importante oposição entre “conteúdos mentais” [seelischen Inhalte] e “modos de funcionamento do
espírito” [Tätigkeitsformen des Geistes] será tematizada Putnam em seu artigo (p. 105-6). Segundo o autor, o
modo de funcionamento do espírito não estaria sujeito a desenvolvimento, ao passo que os conteúdos mentais
sim].

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Contrariamente a esta afirmação, a experiência psicanalítica tem mostrado que os


processos que ocorrem no inconsciente (e, em certa medida, também na mente infantil) são
diferentes dos processos conscientes não só no conteúdo, mas também na forma.
Os conteúdos psíquicos conscientes de pessoas normais em estado de vigília são
submetidos às categorias de espaço, tempo, causalidade; e são testados quanto à sua realidade.
A consciência é, portanto, lógica, desde que os elementos inconscientes não interfiram nela. Os
conteúdos psíquicos de adultos instruídos serão também organizados do ponto de vista da ética
e da estética.
No inconsciente, porém, encontramos conteúdos psíquicos organizados de acordo com
princípios completamente diferentes. O princípio [Grundsatz] dominante aqui é o do
evitamento do desprazer, enquanto a moeda temporal e causal tem nele pouco valor41.
Arrancado de seu contexto lógico, os conteúdos psíquicos ocupam aqui, por assim dizer,
uma zona de prazer [Lustraum] na qual serão estratificados42 de acordo com sua valência
específica de prazer [spezifischen Lustgewichte], de modo a manter os mais desprazerosos em
regiões mais afastadas da periferia da consciência. Desta forma, conteúdos logicamente
heterogêneos, mas igualmente carregados de prazer, acabam se associando [assim]43 de maneira
sólida, chegando mesmo a se misturarem uns aos outros; os opostos permanecem
tranquilamente uns ao lado dos outros; as semelhanças mais remotas dão lugar à identidade; o
incomum e “simples transbordamento das intensidades” (Freud)44 possibilita os deslocamentos
e condensações mais absurdos do ponto de vista lógico; a falta de abstração e de símbolos
linguísticos permitem um pensamento baseado apenas em imagens dramatizadas. É indubitável
para todo aquele que já analisou sonhos, chistes, atos sintomáticos e neuroses, que nesse estrato
da mente as categorias éticas e estéticas sejam de pouca ou, por vezes, mesmo de nenhuma
valia.
Após tudo isso, não podemos de modo algum excluir a possibilidade de que uma psique
dotada de um órgão consciente represente um estágio superior45 de desenvolvimento do
espírito, tanto em termos de conteúdo, quanto em seu modo de funcionamento [Tätigkeitsform].

41
NT: O parágrafo seguinte será unido ao presente parágrafo na versão de 1922.
42
NT: Deslocamento na edição de 1922 do substantivo schichten no interior da frase.
43
NT: O adverbo dazu será adicionado na edição de 1922.
44
NT: Citação não literal de Freud. Referência feita à hipótese energética, ligada à carga e à descarga de
intensidades, presente na obra do autor desde 1893 e que, mais tarde, será assimilada à dimensão econômica
da metapsicologia freudiana.
45
NT: a palavra “superior” será colocada entre aspas na edição de 1922.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

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Com isso, porém, e de modo geral46, é dada a possibilidade do desenvolvimento de formas mais
elevadas de atividade espiritual [hoher Formen geistiger Tätigkeit] a partir das mais simples.

4. Determinismo e psicanálise

Neste trabalho do Prof. Putnam, o que toca mais sensivelmente a psicanálise é o ataque
contra o determinismo psíquico. Afinal, o mais importante progresso que devemos à análise47
é justamente a possibilidade que ela nos deu de verificar também no interior da esfera mental o
mesmo tipo de regularidade e certeza invariáveis que observamos de modo geral na física48.
Que nossos atos de vontade sejam determinados, há muito e por muitos já foi postulado;
mas com Freud a psicanálise foi a primeira que, através do descobrimento dos determinantes
inconscientes, nos permitiu reconhecer o ato voluntário sentido pela consciência como livre,
assim como o chamado “livre curso das ideias”, como resultados inevitáveis de outros processos
psíquicos, eles mesmos igual e estritamente determinados. O psicanalista, que em sua
experiência cotidiana sente na pele os efeitos da determinação que o atravessa49 em seus
próprios processos voluntários, deve justamente a essa convicção o reconfortante sentimento
de não ter que abandonar o solo firme da lei de ferro [eherner Gesetzmäßigkeit]50 também no
campo psíquico.
Em um exame mais atento, no entanto, verifica-se que a diferença aparentemente tão
grande [entre] essa concepção [e aquela]51 sustentada pelo Prof. Putnam é, ao menos em parte,
apenas baseada em diferenças terminológicas. Aqui e acolá, o Dr. Putnam identifica os
conceitos de vontade e de vontade indeterminada, conceitos que nós gostaríamos de separar de
maneira mais rigorosa. A psicanálise não nega, de modo algum, a vontade [Willen] (o instinto
[Trieb]). Longe de ser uma descrição biogenética que “se contentou em traçar com certo grau
de precisão os sucessivos fenômenos de um processo evolutivo”52, ela encontra de modo geral
no psiquismo atos de boa vontade [Strebungen], isto é, processos mentais que podem ser

46
NT: deslocamento na edição de 1922 do advérbio überhaupt no interior da frase.
47
NT: Encontramos com certa frequência nos textos psicanalíticos escritos durante este período o uso do
termo “análise” como sinônimo de “psicanálise”.
48
NT: correção, physikalischen Überall em 1922 no lugar de Physikalischen überall.
49
NT: correção na edição de 1922, übergegangen no lugar de übergangen.
50
NT: literalmente “regularidade férrea”. Entendemos ser essa expressão uma variação de Ehernes Gesetz,
normalmente traduzida como “lei de ferro” e cujo sentido evoca a ideia de uma regularidade sólida e bem
estabelecida.
51
NT: A preposição zwischen e o conectivo und serão acrescentados na edição de 1922, tornando a frase mais
clara.
52
NT: citação não literal de Putnam (1912, p. 103).

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tomados por analogia à nossa vontade consciente. A psicologia psicanalítica não é, portanto,
uma simples descrição, mas sim uma tentativa de explicação dinâmica dos processos mentais.
A psicanálise nunca afirmou que “a pessoa de Hamlet deve ser considerada como desprovida
de vontade”53, mas sim que a personalidade de Hamlet, em virtude de suas qualidades inatas e
adquiridas, estava destinada a exercer sua vontade de modo vacilante e, em última análise,
trágica.
O Dr. Putnam também incorre em erro ao equiparar o princípio do “laissez-faire” ao
determinismo. – Os economistas políticos [Nationalökonomen] modernos estão certos quando
nos ensinam que as “ideologias”, ou seja, processos voluntários e conscientes, também são
fatores muito importantes no desenvolvimento da economia estatal54; mas isso não significa, de
modo algum, que esses processos voluntários e espirituais devam ser livres, isto é,
indeterminados. Determinismo não deve ser confundido com fatalismo. A doutrina da
determinação da vontade não afirma que não podemos fazer nada, que não podemos querer
nada (laissez-faire), e que podemos esperar que os “determinantes” façam todo trabalho por
nós. Ela afirma apenas que, ao realizarmos nossa vontade, sentida subjetivamente como livre,
não podemos nos emancipar da força diretriz dos determinantes. O fato de não nos
abandonarmos ao princípio do “laissez-faire”, e assumirmos ativamente as rédeas de nosso
próprio destino, não é um ato de resolução de nosso livre arbítrio, mas o resultado de
determinantes filogenéticos e ontogenéticos, que nos protegem de sucumbir em um não agir
[Nichtstun] deletério à preservação de si próprio e da espécie.
Quanto à essência do próprio processo voluntário, porém, a psicanálise nada tem a dizer,
e este é o ponto em que por ora termina a sua competência, e o espaço que deve ser deixado
livre para as tentativas de explicação filosóficas e biológicas55.

5. A interpolação do inconsciente

O Prof. Putnam não pode poupar a [psic]análise da acusação de que ela aborda de
maneira demasiado unilateral a psicologia do inconsciente, a psique das crianças, dos selvagens,
dos artistas, dos neuróticos e dos psicopatas, e que ela aplica os resultados aí encontrados ao

53
NT: citação não literal de Putnam (1912, p. 116).
54
NT: Provável referência aos princípios de economia política tal como discutidos pelo filósofo alemão Karl
Marx.
55
NT: O presente parágrafo foi suprimido nas traduções inglesa, francesa e brasileira do artigo de Ferenczi.

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conhecimento do funcionamento psíquico saudável e sublimado do adulto normal,


negligenciando, por outro lado, o caminho inverso, que parte das mais elevadas realizações
mentais do homem, buscando a partir daí alcançar a compreensão do psíquico em geral.
Não podemos negar a realidade desse fato. Mas a questão aqui é se a inversão de
perspectiva que caracteriza a psicanálise deve realmente ser considerada como prejudicial ou
se seria ela, ao invés disso, um dos avanços mais frutíferos e louváveis da metodologia
psicológica.
Durante séculos, nos dedicamos à compreensão dos processos mentais a partir do estudo
de seu aspecto consciente, tentando fazê-los entrar nas categorias da mente humana consciente
e erudita (lógica, ética, estética). Não podemos dizer que tivemos muito sucesso com isso. As
manifestações mais cotidianas da vida mental permanecem como complexos não resolvidos,
permanecendo sempre – apesar das garantias doutrinárias contrárias – sob o encanto de uma
estéril “psicologia das faculdades” [Vermögenpsychologie]56. A reação contrária foi a tentativa
de explicação fisicalista-fisiológica, que, no entanto, não conseguiu preencher a grande lacuna
entre os processos fisiológicos relativamente simples e as intrincadas conquistas mentais da
civilização humana [Kulturmenschen]. A psicofísica falhou tão logo quis sair do campo da
fisiologia sensorial descritiva, ou teve que recorrer às hipóteses mais ousadas 57 – em nítido
contraste com a tão apregoada exatidão de seus métodos.
Depois vieram as descobertas surpreendentes de Freud sobre os processos mentais
inconscientes e sobre a metodologia que nos permite explorar o conteúdo e os modos de
funcionamento do inconsciente. As descobertas foram feitas pela primeira vez em pessoas
doentes. Mas quando Freud tentou interpolar os processos mentais latentes, desmascarados nos
neuróticos, na brecha entre o biológico e o psiquismo consciente – levando ainda em
consideração as realizações mentais dos “normais” –, os problemas foram solucionados como
que por si sós, sem dificuldade, problemas com os quais a psicologia da consciência nunca teve
sucesso, e que a psicofísica nem mesmo se atreveu a enfrentar.
O sonho, o chiste, os atos falhos da pessoa normal podiam agora ser reconhecidos como
formações psíquicas plenas de sentido e obedecendo à mesma regularidade; a sua aparente
aleatoriedade ou arbitrariedade desapareceu; na psicologia do artista e do poeta, no conjunto

56
NT: A crítica da chamada psicologia das faculdades de base espiritualista e fundada em métodos
introspectivos de investigação pode ser considerado como um lugar-comum no contexto da psicologia
científica de língua alemã. A este propósito, ver o capítulo introdutório de Wundt, W. (1862). Beiträge zur
Theorie der Sinneswahrnehmung. Leipzig und Heldelberg: C.F. Winter’sche Verlashandlung, 451 p.
57
NT: referência ao projeto de Gustav Theodor Fechner (1801-1887), proposto em sua obra Elementos de
psicofísica, publicada em 1860, e que encontrará grande ressonância na psicologia científica da segunda
metade do século XIX.

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de fatos da mitologia e da religião, na psicologia dos povos e na sociologia, o entendimento


mais profundo das conexões começa a se cristalizar em torno do conhecimento do inconsciente;
com sua ajuda foi possível provar a validade da lei biogenética fundamental [biogenetischen
Grundgesetzes] também no âmbito mental.
Os surpreendentes sucessos da interpolação freudiana sugerem – penso eu – que não
devemos abandonar este método de trabalho tão frutífero, mas sim, tomando seus sucessos em
um sentido pragmático enquanto prova de sua correção, devemos estender ainda mais seu
campo de aplicação. Em nossa opinião, portanto, essa é uma tarefa muito mais conveniente,
porque promete muito mais êxito, a saber, a de também buscar58 explicar os processos
conscientes e seus modos de funcionamento tendo por base a psicologia profunda, do que seguir
os conselhos do Professor Putnam e, partindo da consciência, nos enterrar mais uma vez em
poços abandonados, dada a sua improdutividade.
É possível que o atual fluxo de conhecimento tão abundante, que a pesquisa do
inconsciente nos proporciona, se esgote, e que então o trabalho psicológico deva ser retomado
a partir da consciência,59 ou talvez com base física. –60 O que eu queria enfatizar é apenas que
nossa próxima tarefa é esta, a de desenvolver ainda mais a psicanálise, independentemente dos
sistemas filosóficos.

58
NT: o verbo “suchen”, traduzido aqui como buscar, será substituído pelo verbo “wollen” (querer) na edição
de 1922.
59
NT: vírgula suprimida da edição de 1922.
60
NT: travessão suprimido na edição de 1922.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

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Recebido em:04/05/2021
Aprovado em: 09/06/2021
Publicado em: 15/07/2021

[RESENHA]
ADOECIMENTOS PSÍQUICOS E ESTRATÉGIAS DE CURA: MATRIZES E
MODELOS EM PSICANÁLISE
De
Luís Cláudio Figueiredo e Nelson Ernesto Coelho Junior
(com a colaboração de Paulo de Carvalho Ribeiro e Ivanise Fontes)

Resenhado por
Wilson de Albuquerque Cavalcanti Franco1
([email protected])

Resumo: Figueiredo e Coelho Junior apresentam uma topografia das matrizes e modelos clínicos
operativos no campo psicanalítico. Sua topografia delineia três “matrizes” principais – freudo-kleiniana,
ferencziana e “transmatricial” – cada uma das quais se manifesta de forma prevalente nos “modelos”
avançados por autores de destaque em seus respectivos campos. Mais do que essa “topografia”, no que
ela tem de contribuição para o estudo da situação contemporânea da psicanálise, e mais do que um
estudo panorâmico no horizonte da teoria da técnica, parece interessar aos autores a sistematização das
características fundamentais da “psicanálise contemporânea transmatricial”, nitidamente o foco de seus
interesses e ponto de posicionamento peculiar deles enquanto psicanalistas.

Palavras-chaves: Adoecimento Psíquico. Estratégia de Cura. Matrizes e modelos. Psicanálise.

Figueiredo e Coelho Junior apresentam ao leitor deste livro uma proposta de


compreensão da psicanálise contemporânea, articulando uma sistematização tópica do campo
em suas manifestações teóricas e técnicas e suas consequências para a compreensão (e
mobilização) da clínica psicanalítica. Ou seja, quem lê o livro encontra uma apresentação
panorâmica do campo psicanalítico, panorama em que se mobiliza uma “visão de conjunto” de
articulações teóricas e técnicas, bem como se aponta para a forma como essa mesma visão de
conjunto ajuda a compreender o campo clínico contemporâneo.
O fio condutor do argumento dos autores é, como sinaliza o próprio subtítulo da obra, o
das matrizes e modelos em psicanálise. Neste sentido os autores mobilizam a proposta de

1
Doutor em Psicologia Clínica pela Univerisdade de São Paulo (USP).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7896142610922698.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8944-3531.

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topografia do campo psicanalítico a partir das matrizes freudo-kleiniana e ferencziana, portanto,


um campo psicanalítico contemporâneo “transmatricial”.
Não se trata, contudo, de simples “fotografia”, apresentação pretensamente neutra de
um estado de coisas. Os autores articulam modos de adoecimento psíquico prevalentes a modos
de teorização principais, articulando esses modos entre si em uma composição dinâmica – e
esse campo dinâmico é tomado como parâmetro crítico para compreender a configuração do
campo psicanalítico contemporâneo, a partir da articulação das matrizes “básicas” (freudo-
kleiniana e ferencziana) e suas composições “transmatriciais”.
Que esteja explícita, desde já, uma característica da obra que certamente incomodará a
muitos: o papel secundário, quase desprezível, conferido a Lacan. De fato, é bom que esteja
claro que o trabalho dos autores se inscreve, propriamente, no movimento da chamada
“psicanálise contemporânea”, em que o recurso a Lacan é destituído do destaque, pompa e
circunstância tão comuns na teorização psicanalítica brasileira contemporânea (sem que se
possa derivar disso, evidentemente, que os autores desconhecem Lacan. Trata-se apenas, até
onde pude compreender, de um posicionamento independente em relação ao empuxo
gravitacional voraz do lacanismo, o que não implica, portanto, em antagonismo ou ignorância).
Posto o alerta, a obra apresenta duas matrizes, associadas a dois “modos de
adoecimento”, prevalentemente abordados por cada uma delas, para enfim apresentar
produções teórico-clínicas consideradas “transmatriciais”, que são também compreendidas em
função de um modo peculiar de proposição que as caracteriza.
A matriz freudo-kleiniana parte, evidentemente, de Freud, encontra um
desenvolvimento potente na obra de Klein e se manifesta de forma marcada na obra de outros
autores, como Rosenfeld e Bion (que propõem, para retomar o jargão dos autores, “modelos
teórico-clínicos inspirados nesta matriz psicanalítica”). O que caracteriza a matriz freudo-
kleiniana é o destaque conferido aos excessos na dinâmica psíquica e aos mecanismos de defesa
que reagem a esses excessos de forma ativa e ruidosa – aqui se trataria, então, de sofrimentos
por ativação, ou seja, pela mobilização de mecanismos psíquicos que dão notícia de “mal-
estar”, de forma que o setting clínico será convocado a “conter” e “desativar” a manifestação
ruidosa desses excessos.
A matriz ferencziana, por sua vez, interage de maneira crucial e decisiva com a obra de
Freud, mas encontrará seu desenvolvimento mais potente na obra de Ferenczi e daqueles que
seguirão suas intuições fundamentais. O que caracteriza a matriz ferencziana é a precocidade
dos traumatismos abordados na clínica, com o que se dá notícia de um sofrimento que
antecede e (por assim dizer) desativa as capacidades psíquicas de expressão (e defesa) – o

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que significaria que a cena clínica acolhe sofrimentos caracterizados pela passivação (ou
silenciamento) da sintomática, da plasticidade e da capacidade expressiva do sujeito, de forma
que, diferentemente da matriz anterior, o setting clínico será convocado a “revitalizar”,
testemunhar e “acolher o silente”.
Haveria, por fim, os modelos transmatriciais – ou, como o colocam os autores, as
“estratégias e táticas de cura na psicanálise contemporânea transmatricial”. Note-se de
passagem que o “contemporâneo” que figura na expressão não é casual, nem denotativo de algo
“dos dias de hoje”, mas sim da situação desse modelo no horizonte da “psicanálise
contemporânea” articulada desde os anos 1970 e capitaneada (grosso modo) por André Green.
Ainda assim, os autores não estariam propondo nenhuma “matriz transmatricial”, mas sim
condições mínimas a partir das quais se reconhecem produções psicanalíticas que sintetizam
(no sentido hegeliano da Aufhebung, propriamente) os elementos operativos nas matrizes
descritas previamente.
O modelo paradigmático nesse sentido seria justamente o trabalho de André Green, que
apontou para a operação de elementos ativos e passivos na dinâmica metapsicológica, presentes,
por exemplo, em suas considerações acerca do “trabalho do negativo” na clínica psicanalítica.
Mas não se trata apenas de Green, nem propriamente da psicanálise que se reconhece sob a
alcunha de contemporânea. Nas obras de Winnicott e Bion, na verdade, se encontrarão os
elementos operatórios imprescindíveis para o delineamento de modelos transmatriciais. Como
afirmam os autores: “Bion e Winnicott permearão, de forma insistente e indispensável, todas
as elaborações transmatriciais” (p. 190), e isso porque esses psicanalistas articulam um
pensamento que nos permite “ter escuta para o branco, para o rubro e para o negro” (p.191) –
ou seja, escuta para os sofrimentos por ativação, por passivação e para o “trabalho do negativo”,
sem menosprezar a insistência (branca e negra) da pulsão de morte. O próprio Green, mas
também Ogden, Roussillon, Alvarez são elencados e discutidos naquilo de suas obras que
manifesta sua adequação aos parâmetros delineados pelos autores para a compreensão da
psicanálise transmatricial, em apresentações panorâmicas e sintéticas de suas obras ,“trançadas”
a partir de sua dimensão transmatricial, conforme a proposta do livro.
O livro conta ainda com dois anexos, de autoria dos colaboradores Paulo Ribeiro e
Ivanise Fontes, dedicados a apresentar as obras de Laplanche e de Fédida em sua interação com
a topografia dinâmica do campo psicanalítico que Figueiredo e Coelho Junior apresentam.
Cumpre notar a conformidade da proposta delineada no livro com o entendimento de
estarmos em uma “era pós-escolas”, conforme assinala Figueiredo desde, pelo menos, 2009,
considerando que o primeiro capítulo de seu “As diversas faces do cuidar” expõe e

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argumenta em defesa dessa proposta. Distancia-se, assim, de outros entendimentos e


mapeamentos do campo psicanalítico inscritos em outras lógicas – seja a já clássica organização
do campo psicanalítico estadunidense entre as matrizes “pulsional” e “relacional”, por
Greenberg e Mitchell nos idos de 1983, sejam aquelas inscritas em “escolas”, como no caso dos
autores de extração lacaniana, winnicottiana etc., sejam aquelas que não subscrevem ao
entendimento de estarmos em uma “era pós-escolas” (como este que vos escreve).
Cumpre notar ainda que, mesmo dentro do campo da “escola pós-escolas”, na verdade,
encontraremos posicionamentos distintos daquele apresentado pelos autores, como no caso de
Renato Mezan, que em seu “O tronco e os ramos” compreende o período atual do movimento
psicanalítico em termos distintos daqueles apresentados pelos autores na obra em apreço, como
se lê na passagem a seguir:

Na atualidade se defrontam duas grandes vertentes na psicanálise: a primeira


parece prolongar o período da era das escolas, [enquanto] a segunda vertente
é constituída por aqueles que [...] ou transitam por diversos campos
‘escolásticos’ (André Green e Joyce McDougall são os exemplos aqui) ou
então escolheram trilhar uma trajetória própria, um pouco à margem das
escolas institucionalizadas (por exemplo Conrad Stein, Piera Aulagnier,
Wilfred Bion, Heinz Kohut, Christopher Bollas) (MEZAN, 2014, p. 53).

O apontamento acerca das peculiaridades na situação da proposta dos autores não


pretende, evidentemente, polemizar ou contestar sua validade. Pelo contrário, a inovação e
originalidade da proposta de Figueiredo e Coelho Junior deve ser celebrada, por sua potência e
pregnância, e acolhida nos esforços vindouros para o desenvolvimento de uma psicanálise que
seja contemporânea – não no sentido de Green, mas no de Agamben (2009): uma psicanálise
que, pondo-se além de suas próprias mediocridades e jogos de interesses, interpele nosso tempo
e meio de forma potente, instigante e transformadora.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? In: O que é o contemporâneo? e outros


ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.
FIGUEIREDO, L.C. As diversas faces do cuidar: novos ensaios de psicanálise contemporânea.
São Paulo: Escuta, 2009.
FIGUEIREDO, L.C.; COELHO JUNIOR, N. E. Adoecimentos psíquicos e estratégias de cura:
matrizes e modelos em psicanálise. São Paulo: Blucher, 2018.
GREENBERG, J.; MITCHELL, S. Relações objetais na teoria psicanalítica. Porto Alegre:
Artmed, 1994.
MEZAN, R. O tronco e os ramos: estudos de história da psicanálise. São Paulo: Companhia
das letras, 2014.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021


Publicado em: 15/07/2021

[ENTREVISTA]
HISTÓRIA E FILOSOFIA DA PSICANÁLISE
fundamentos e questões de método
Com
Richard Theisen Simanke1

por
Weiny César Freitas Pinto2
([email protected])

INTRODUÇÃO

Com quase três décadas de produtiva experiência acadêmica – dezenas de artigos


publicados, participações em capítulos de livros e livros organizados ou editados – Richard
Simanke é um dos principais pesquisadores brasileiros da área de filosofia da psicanálise.
Mestre e doutor em filosofia, tem dedicado seus trabalhos a investigações no campo geral da
interface entre psicologia, psicanálise e o pensamento filosófico. Nesta entrevista, Simanke foi
convidado a explorar certa caracterização do conjunto de seus trabalhos e a tratar dos problemas
de fundamento e de método no contexto do debate entre história e filosofia da psicanálise. Este
debate, embora recente, tem se estabelecido de forma gradativa e vem ganhando cada vez mais
consistência e importância no interior das pesquisas brasileiras sobre as relações entre filosofia
e psicanálise. De algum modo, os termos iniciais desse debate remetem a questões com as quais
Simanke já, há muito, tem se deparado no conjunto geral dos seus trabalhos; contudo, é
especificamente uma das suas últimas publicações – Considerações preliminares a propósito
de um método histórico-filosófico para a pesquisa conceitual em psicanálise: uma reflexão a
partir da experiência brasileira –, que serviu de ponto de partida para esta entrevista3. Os temas

1
Professor titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5431145327759147.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6405-8776.
2
Professor Doutor do curso de Filosofia e da Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1411304686102041.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7101-9150.
3
Trata-se de um artigo científico publicado em francês. Estamos trabalhando para em breve torná-lo disponível
também em português. Cf. SIMANKE, R. T. Considérations préliminaires à propos d’une méthode historico-

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

centrais discutidos – história, método, recepção –, além de marcar com maior clareza a posição
de Simanke, fazem avançar ainda mais o debate em curso [WCFP].

*****

WCFP: Considerando o conjunto de suas publicações sobre filosofia da psicanálise, parece


haver inicialmente uma preocupação maior, cuja manifestação se dá de variadas formas,
primeiro com o tema da ciência e mais recentemente com o tema da história. Isso pode levar
alguns intérpretes a duas caricaturas: 1) a de que o seu trabalho é uma espécie de defesa
inveterada do naturalismo freudiano, 2) a de que suas investigações a respeito da história da
psicanálise reproduzem o velho “historicismo” tradicional do modo de fazer filosofia no
Brasil. Ciência e história seriam os grandes eixos das suas pesquisas em filosofia da
psicanálise? Como você caracteriza o conjunto do seu trabalho?

RTS: Com relação ao primeiro ponto, não se trata, evidentemente, de “defender” o naturalismo
freudiano, mas apenas de aceitar a reivindicação naturalista de Freud como um ponto de partida
para a compreensão de seu pensamento. Essa reivindicação é totalmente explícita em Freud.
Não é uma questão de interpretação. Do começo ao fim de sua obra, Freud deixa claro que ele
pensa a psicanálise como um projeto para uma ciência natural da mente ou do psiquismo. Foram
tradições pós-freudianas influentes – a psicanálise lacaniana, os diversos culturalismos, a
psicanálise existencial, entre outras – que trouxeram a ideia de que a psicanálise se acomodaria
melhor no nicho das assim chamadas ciências humanas ou ciências da cultura. Há argumentos
para tanto, é claro. Freud propõe a interpretação como método e introduz uma referência ao
sentido no cerne de sua explicação dos fenômenos da vida mental, além de dedicar uma parte
substancial de sua obra à análise da vida social e da cultura em suas diversas manifestações
(história, simbolismo, religião, arte e literatura etc.). Interpretação (Deutung), sentido
(Bedeutung), compreensão (Verstehung) são tradicionalmente associadas ao campo das
humanidades ou das “ciências do espírito” (Geisteswissenschaften), se nos remetermos às
origens da dicotomia entre as ciências da natureza e da cultura no neokantismo alemão, que foi
um movimento filosoficamente influente até mais ou menos o término da Primeira Guerra

philosophique pour la recherche conceptuelle en psychanalyse: une réflexion à partir de l’expérience


brésilienne. Critical Hermeneutics. Biannual International Journal of Philosophy, Cagliari, v. 4. n. 2, p. 59-
78, 2020. Disponível em: <https://ojs.unica.it/index.php/ecch/article/view/4658>. Acesso em: 14 jun. 2021.
[Todas as notas de WCFP]

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

Mundial. O que chama a atenção, no entanto, é como Freud simplesmente não leva em conta
essa distinção. Não é sequer o caso de que Freud tenha ponderado as virtudes relativas das duas
concepções possíveis de ciência e se decidido pelo naturalismo. Para ele, ciência da natureza é
ciência tout court. Então, caso se trate de tomar o pensamento de Freud como objeto de um
estudo histórico ou epistemológico, é preciso partir deste dado básico. Os destinos posteriores
da psicanálise resultantes da formação de outras escolas e tradições pós-freudianas é outra
questão. Eu, particularmente, penso que, para além do cuidado metodológico elementar de não
falsear a natureza de seu objeto antes de começar a estudá-lo, levar em conta a posição
naturalista de Freud pode produzir outros rendimentos em termos de resultados de pesquisa.
Não se pode desconhecer o dado de que, em que pese este posicionamento, Freud de fato aborda
questões que são mais familiares ao campo das humanidades. O interessante é que ele faz isso
sem mudar de diapasão. A teoria social freudiana e suas incursões no campo da investigação da
cultura não são apresentadas como uma aplicação secundária do conhecimento psicanalítico ou
como uma extrapolação do seu domínio próprio. As obras que tratam dessas questões estão
repletas de referências aos construtos metapsicológicos, à teoria dos instintos ou pulsões, à
teoria do aparelho psíquico, enfim, àquelas noções que parecem apontar na direção inversa,
para o enraizamento da teoria psicanalítica numa visão biológica e neurocientífica da vida
mental. Freud não se justifica quando passa da metapsicologia ou da clínica, em sentido estrito,
para a teoria da cultura, mas, ao mesmo tempo, ele não reduz simplesmente essa dimensão
social e cultural da vida mental aos determinantes individuais ou biológicos ou a um problema
terapêutico. Em suma, a psicanálise freudiana pretende ser uma teoria unificada de todos esses
aspectos do psiquismo, desde os processos inconscientes individuais que transcorrem num nível
subpessoal da atividade mental, na fronteira com seus fundamentos neurobiológicos, até o
campo da intersubjetividade que estrutura os aspectos relacionais e identificatórios do sujeito
psíquico. Ao contrário de outras tradições psicanalíticas posteriores, Freud não considerava
que, para dar conta da intersubjetividade, do simbolismo e do caráter intrinsecamente
significativo da experiência, fosse necessário renunciar à sua epistemologia naturalista. Nesse
sentido, além de compreender a psicanálise como um acontecimento de relevo na história das
ciências da mente, reconhecer o naturalismo freudiano pode fornecer, ainda, alguns insights
interessantes para se pensar a superação dessa dicotomia, já bem anacrônica, entre ciências
naturais e humanas, que é para onde se encaminha o pensamento científico contemporâneo e a
reflexão filosófica sobre a ciência.
Quanto ao historicismo, imagino que você se refira a uma concepção genealógica da
filosofia, que procure traçar filiações conceituais diacrônicas entre os diferentes pensadores

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

e escolas em seu desenvolvimento ao longo do tempo, na contramão da visão estruturalista da


história da filosofia que privilegia uma análise internalista da obra como um sistema fechado,
cujo sentido só se revelaria na imanência de sua arquitetura conceitual e nas articulações que
lhe dão forma. Eu, de fato, não acho essa perspectiva diacrônica e genealógica uma coisa tão
ruim assim e talvez já seja hora de recuperar a consideração desses fatores, por assim dizer,
externos ao sistema, na sua explicação e exegese. Esses fatores incluem filiações, rupturas,
críticas e divergências com outros pensadores e escolas, além das questões contextuais, tanto
em termos do contexto propriamente filosófico – o debate explícito ou implícito dos autores
com seus contemporâneos e predecessores – quanto do contexto intelectual ampliado – o debate
da filosofia com as ciências, as artes e a cultura em geral. Acho que vamos falar mais disso
daqui a pouco. Mas a referência à história da psicanálise, especificamente, é uma questão
diferente. Trata-se de pensar uma proposta, ainda em desenvolvimento, para aproximar a
perspectiva histórica da abordagem estritamente filosófica do texto psicanalítico – seja no
sentido de uma explicação metódica da sua estrutura argumentativa, seja de desenvolver uma
reflexão filosófica própria a partir de uma questão formulada ou iluminada pela psicanálise.
Este é um problema de natureza mais metodológica: compreender uma teoria psicanalítica tanto
na imanência de sua arquitetura conceitual quanto na historicidade de sua produção e verificar
como essas duas abordagens complementares podem lançar luz uma sobre a outra e contribuir
para a resolução de seus respectivos problemas.

WCFP: Especialmente sobre o tema da história, em entrevista de 2020, organizada pelo “GT
Filosofia e Psicanálise da ANPOF”, você aceitou a genérica caracterização do seu trabalho
como um trabalho “histórico-conceitual”. Em quais termos exatos esta caracterização deve
ser compreendida?4

RTS: O caráter conceitual do trabalho está pressuposto, claro. Todo trabalho filosófico é
conceitual por definição, embora possa ter desdobramentos práticos, como no caso do ensino
da filosofia ou das éticas especiais aplicadas, por exemplo. No caso da filosofia da psicanálise,
não se trata evidentemente de fazer um trabalho empírico, clínico ou aplicado, mas,

4
Cf. SIMANKE, R. T. Filosofia e Psicanálise hoje. [Entrevista concedida a] Eduardo Fonseca, Francisco
Bocca, Weiny Freitas Pinto, Julia Schlemm. Grupo de Trabalho Filosofia e Psicanálise da ANPOF, Canal
YouTube, mai., 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=3JgtEtmoa3E>. Acesso em: 23
mai. 2020.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

basicamente, uma análise dos conceitos psicanalíticos e de seus vínculos ou repercussões


filosóficas. Por isso, penso que o que precisa ser esclarecido nessa caracterização é seu aspecto
histórico.
Quanto a isso, em certo sentido, meu trabalho sempre foi histórico, já que o objetivo era
elucidar o sentido e as implicações de sistemas teóricos pertencentes à história da psicanálise.
Freud e Lacan não são autores do presente, embora seu pensamento certamente influencie muito
do que se faz hoje em dia no campo psicanalítico. Sob este aspecto, grande parte do trabalho
que se faz em filosofia da psicanálise é histórico também, pelas mesmas razões. Meus trabalhos
iniciais, sobretudo os mais longos, que acabaram publicados em formato de livro, eram
históricos também em outro sentido um pouco mais específico5. Eles procuravam acompanhar
o desenvolvimento de um conceito ou de um modelo teórico ao longo do percurso da obra do
autor, como no caso da teoria das psicoses em Freud ou das categorias metapsicológicas de
Lacan (simbólico, imaginário, real), no período inicial de sua obra. Havia então ali um elemento
diacrônico ou genealógico a ser considerado, além da elucidação da estrutura conceitual dos
textos e argumentos. Mas era ainda uma história quase exclusivamente interna das teorias, com
pouca ou nenhuma referência a quaisquer elementos externos aos textos, fossem estes de
natureza teórica ou não. Refletindo hoje, retrospectivamente, percebo que eu sentia já na época,
embora confusamente, a necessidade dessa referência. No entanto, era inviável naquele
momento seguir nessa direção. Em primeiro lugar, por limitações pessoais: meu conhecimento
da história da ciência, da história da psiquiatria e de outros campos da pesquisa histórica era
muito restrito e demandaria um esforço enorme para suprir essa deficiência. Em segundo lugar,
o acesso às fontes era muito difícil. Quando eu comecei a pesquisar essas coisas, nos anos 1990,
para conseguir a maior parte dos livros e outros documentos necessários era preciso pegar um
avião e ir para a Europa, Estados Unidos ou algum outro lugar do mundo e achar uma biblioteca
ou arquivo que tivesse o material e concedesse acesso ao mesmo. Para mim isso era inacessível,
por razões financeiras, familiares e outras mais. Não era como hoje que, com alguns cliques no
teclado, conseguimos tudo ou quase tudo de que precisamos. Pesquisando, por exemplo, a obra
do primeiro Lacan, eu percebia que uma compreensão mais ampla do seu pensamento
psiquiátrico – indispensável, por sua vez, para compreender sua transição para a psicanálise –
requeria investigar suas raízes na psiquiatria francesa e germânica do começo do século XX.
No entanto, as obras daqueles autores – os que ele citava e outros que permaneciam na sombra

5
Cf. SIMANKE, R. T. A formação da teoria freudiana das psicoses. São Paulo: Loyola, 2009. (Primeira
edição em 1994, pela Editora 34). Cf., igualmente, ______. Metapsicologia lacaniana: os anos de formação.
São Paulo/Curitiba: Discurso/EDUFPR, 2002.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

– eram completamente inacessíveis. Então, a gente trabalhava com aquilo em que conseguia
pôr as mãos. Mas uma consciência ainda confusa da necessidade de aprofundar a pesquisa
histórica e a curiosidade de fazê-lo já estava presente ali. Hoje, quando os meios para tanto já
estão à disposição de qualquer um com um celular mais ou menos e a senha do servidor do
vizinho, não há mais desculpas para não fazer isso.

WCFP: Por que, afinal, a história? Quer dizer, por que recorrer à história como meio ou como
método para a pesquisa conceitual em psicanálise? O que precisamente a história fornece que
você não encontrou em outro campo, lugar ou recurso?

RTS: A primeira coisa que o conhecimento do contexto histórico fornece para qualquer
pesquisa é perspectiva. A história permite certo distanciamento estratégico com relação ao
presente, fornece os meios para você se desidentificar com suas crenças arraigadas – aquelas
que estão tão entranhadas em nós que é difícil até perceber que elas estão ali. Nesse sentido, ela
permite um ganho em objetividade que é salutar para qualquer empreendimento intelectual. Em
segundo lugar, ela é um antídoto para certas ingenuidades, principalmente no caso da
psicanálise, em que a visão sobre o desenvolvimento dessa disciplina ainda é muito informada
por uma série de lendas douradas e mitos de fundação que tendem a apresentar seu nascimento
como resultado de intuições e descobertas geniais de Freud e, no caso das escolas posteriores,
de outros heróis do mesmo tipo, Lacan, Klein, Winnicott, e assim por diante. Essa ingenuidade
histórica resulta nas reivindicações bem conhecidas de que Freud “descobriu” o inconsciente,
a etiologia sexual dos transtornos mentais e a sexualidade infantil, entre tantas outras coisas,
quando há uma vasta literatura facilmente acessível – tanto em termos de fontes primárias,
quanto de estudos históricos rigorosos e detalhados, além de amplamente reconhecidos –
abordando esses temas e seu desenvolvimento anterior e independente de Freud. Não quero
dizer que não haja originalidade nas posições freudianas, muito pelo contrário. Há toda uma
literatura antifreudiana e antipsicanalítica que afirma isso, usando como argumento o fato
elementar que a reinvindicação de um ineditismo absoluto é insustentável. Mas a originalidade
de Freud e de outros autores tem que ser estabelecida de encontro ao pano de fundo formado
por essas outras concepções não psicanalíticas e pela análise comparativa entre elas. O que o
inconsciente freudiano traz de novo em meio à ampla proliferação de discursos sobre o
inconsciente – psicológico, fisiológico, metafísico – que marca o século XIX? Que tipo de
teoria sobre a sexualidade Freud propõe no âmbito de uma pluralidade de outras visões

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

sobre este problema em campos disciplinares tão diversos quanto a medicina, a psicologia, a
pedagogia, o direito e a literatura? Essas questões não podem ser respondidas sem o
conhecimento do contexto histórico em questão.
Outro problema é que a ausência dessa referência histórica pode comprometer a própria
compreensão da natureza conceitual da obra psicanalítica. Por exemplo, muitas vezes se lê que
o Projeto para uma psicologia científica (1895) é um trabalho inteiramente psicanalítico,
baseado na prática clínica e que apenas mimetiza a linguagem neurocientífica da época, sabe-
se lá por que razão. A evidência para tanto é que o texto do Projeto tal como o conhecemos
difere muito de um trabalho neurocientífico stricto sensu. Ergo só pode ser um texto clínico ou
metapsicológico disfarçado. Além do evidente non sequitur desta conclusão, esse raciocínio
comete um anacronismo grosseiro. Ele desconhece o que se produzia, nas décadas finais do
século XIX, em termos de tentativas de relacionar o conhecimento do cérebro e do sistema
nervoso com as funções mentais mais complexas. Esse conhecimento mostraria que, muito ao
contrário de ser uma anomalia no contexto da literatura neurocientífica, o Projeto é um trabalho
bastante típico de sua época. Se levarmos em conta que o texto que conhecemos é um esboço
muito preliminar, rascunhado às pressas, e imaginarmos como seria o trabalho concluído,
revisado, editorado, com notas de rodapé e bibliografia, obtemos um trabalho bastante
semelhantes a outros do período – aos quais Freud, aliás, se refere, implícita ou explicitamente
– tais como o Entwurf de Sigmund Exner, o primeiro volume da Psiquiatria de Meynert ou a
conferência Gehirn und Seele de Paul Flechsig, para mencionar apenas alguns. Portanto, o
Projeto só pode ser adequadamente compreendido reconhecendo a sua natureza como um
documento neurocientífico típico do século XIX, para além daquilo que ele contenha de
antecipação de teses psicanalíticas que Freud desenvolveria depois.
Para dar outro exemplo, saindo um pouco do universo exclusivamente freudiano, a obra
inicial de Lacan, organizada em torno de uma teoria do imaginário que tem a noção de estágio
do espelho como foco, se apoia decisivamente na psicologia do desenvolvimento de sua época
e das décadas imediatamente anteriores. Trabalhos de psicólogos como Henri Wallon e
Charlotte Bühler forneceram noções chave com as quais Lacan vai trabalhar, como o conceito
de transitivismo e a descrição e análise da experiência do reconhecimento especular. Os estudos
sobre a imitação de James Baldwin e Paul Guillaume foram também cruciais. Se você
desconhece essas contribuições, que a esmagadora maioria dos estudos sobre Lacan ignora, vai
encontrar-se na condição de analisar a estrutura de um trabalho sem levar em conta os materiais
com os quais ele foi construído. Isso conduz ao anacronismo frequente de projetar sobre
essa fase da obra o antipsicologismo de um período posterior, que só se manifesta quando

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

Lacan entra em contato com as ideias estruturalistas. As formulações sobre o imaginário do


primeiro Lacan são o fundamento de uma teoria psicológica do sujeito, daí que o recurso à
psicologia infantil e à psicologia do desenvolvimento da época faça inteiramente sentido. Se
isso não aparece no texto clássico sobre o estágio do espelho de 1949, é porque esse texto
apresenta uma reformulação tardia da teoria, já realizada sob a influência de Lévi-Strauss e da
disseminação inicial das ideias estruturalistas na linguística e na antropologia social.
Enfim, espero que esses exemplos tenham servido para deixar um pouco mais claro que
tipo de contribuição uma abordagem histórica pode dar ao trabalho de análise conceitual, além
de ilustrar as limitações desse trabalho e a quais distorções ele pode estar sujeito quando o seu
contexto histórico é deixado de lado ou ignorado.

WCFP: Sobre a ideia de um método “histórico-filosófico” para a pesquisa conceitual em


psicanálise, em qual medida este método é, ao mesmo tempo, histórico e filosófico?

RTS: Toda essa discussão sobre um método histórico-filosófico é ainda muito incipiente e
muito preliminar. Eu não tenho nenhuma proposta de um procedimento formalizado e
padronizado para articular essas duas perspectivas, que é mais ou menos o que a gente espera
quando se fala de um método. Na pesquisa teórica, é muito difícil padronizar procedimentos,
como se faz na pesquisa empírica, em que os instrumentos são criados, testados e validados de
antemão, antes de serem aplicados na coleta e análise de dados propriamente ditas. Nem sei se
é o caso de tentar isso. “Método”, então, na pesquisa filosófica, tem um sentido
consideravelmente distinto. Trata-se mais de estabelecer diretrizes gerais para esse tipo de
trabalho, que podem então ser levadas em conta no delineamento de cada pesquisa específica.
Feitas essas ressalvas, o elemento filosófico do método se refere, de modo geral, a toda
aproximação do texto psicanalítico que faça uma destas duas coisas (ou ambas): 1) seja
motivada por uma questão filosófica (um conceito ou princípio que a psicanálise e a filosofia
compartilhem, a influência de algum autor ou noção filosófica sobre a psicanálise e,
inversamente, da psicanálise sobre algum autor ou teoria do campo da filosofia); 2) utilize um
método filosófico para abordagem da obra ou teoria psicanalítica, sobretudo os procedimentos
de análise sistemática e explicação de textos praticados na história da filosofia. Com relação à
primeira dessas duas possibilidades, o elemento histórico diz respeito à reconstituição do
contexto intelectual e cultural em que o encontro entre filosofia e psicanálise ocorreu. Vale
notar que, nesse caso, a perspectiva histórica é exigida pela própria natureza do objeto, já

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

que esse encontro é um acontecimento situado no tempo e em determinado conjunto de


circunstâncias. Se você quer se perguntar sobre a relação entre o conceito freudiano de
inconsciente e a maneira como o tema do inconsciente é tratado nas filosofias que precedem e
acompanham o nascimento da psicanálise, você precisa conhecer a história dessas filosofias e
de como elas podem ter agido sobre a formação intelectual de Freud e sobre a produção concreta
de seu pensamento. Com relação à segunda possibilidade – em que o elemento filosófico diz
respeito mais ao método de abordagem do que ao conteúdo da teoria –, a reconstrução do
contexto histórico em que a obra a ser analisada foi produzida tem a função de informar essa
análise no sentido de criar condições para que as questões adequadas sejam endereçadas ao
texto. Se você fizer perguntas ruins, vai obter respostas ruins, por mais rigorosas que sejam a
análise e a explicação de texto realizadas. Assim, se você assumir que Freud foi o primeiro
autor a falar de uma sexualidade infantil, não haverá lugar para a pergunta sobre que tipo de
teoria sobre a sexualidade infantil ele propõe, pois, para formulá-la, é preciso reconhecer a
existência de uma pluralidade de teorias que podem ser agrupadas em determinadas classes,
como o fazem certos historiadores. Como consequência, você nunca vai se perguntar se Freud
manteve-se apegado a esse mesmo tipo de teoria ou mudou de posição ao longo do
desenvolvimento de seu pensamento. Não vai provavelmente perceber que Freud parte de uma
visão em que concebe a sexualidade infantil como fundamentalmente distinta da sexualidade
adulta e vai nuançando esse contraste nas sucessivas revisões da teoria, em resposta a impasses
e dificuldades teóricas que, então sim, a análise conceitual pode identificar e expor. Ora, uma
explicação sistemática do texto dos Três ensaios, por si só, não revelaria isso. O pesquisador
não encontraria ali aquilo que ele não sabe que deve procurar.
Nesse segundo caso, é preciso insistir mais enfaticamente na necessidade de se
acrescentar um viés historiográfico à pesquisa teórica, porque normalmente se assume que esse
tipo de pesquisa dispensa essa perspectiva. É claro que nem todo problema de pesquisa vai
exigir essa articulação entre uma abordagem estrutural interna e outra histórico-contextual.
Porém, esse conhecimento sempre será útil, mesmo que talvez, em certos casos, não seja
imprescindível. Deveria ser um truísmo metodológico que não se pode fazer pesquisa sobre
Freud, Lacan ou quem quer que seja, lendo apenas os textos destes autores e, no máximo, um
ou outro comentador consagrado (em geral, sempre os mesmos). Infelizmente, esse truísmo não
parece evidente a todos e ainda é preciso insistir nesse ponto.

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WCFP: Especialmente sobre a dimensão filosófica do método, em artigo recente você


atribui sua origem a uma experiência histórica brasileira bastante determinada: a ampliação
do modo estruturalista de fazer filosofia no Brasil, que teria ocorrido a partir da década de
sessenta, em torno, principalmente, da figura de Bento Prado Jr., a partir da qual, enfim,
constituir-se-ia a “filosofia da psicanálise” 6. Sabemos, porém, que esta “ampliação do
estruturalismo” não é exatamente um fenômeno exclusivo da história da filosofia brasileira.
Qual seria então precisamente a contribuição mais característica da experiência brasileira
para a constituição do método que você propõe?

RTS: Penso que o que há de característico na experiência brasileira é que essa “ampliação do
estruturalismo”, por uma série de razões que ainda é preciso compreender, assumiu também a
forma de uma aplicação do método estrutural aos textos psicanalíticos, dentre um conjunto de
outras estratégias. O caso de Bento Prado eu conheço melhor, não apenas porque convivi com
ele, mas também porque dediquei trabalhos específicos ao estudo de sua obra e do lugar que a
psicanálise nela ocupa7. Bento foi, com certeza, um personagem crucial na constituição dessa
área de pesquisa e na sua evolução até constituir um campo disciplinar bastante bem
caracterizado dentro da filosofia brasileira. Ele foi também emblematicamente seu padrinho,
por assim dizer, ao intitular a célebre coletânea que organizou em 1991 como “Filosofia da
psicanálise” e discutir o sentido desta expressão na introdução do livro8. Mas ele não foi o único
e outras correntes de pensamento se originaram e se desenvolveram fora de sua área de
influência. Todo esse movimento de ideias precisa ser estudado mais cuidadosamente para se
obter uma visão mais abrangente desse fenômeno – um estudo que ainda está em curso.
Outra circunstância que talvez tenha contribuído para que a filosofia da psicanálise
tenha adquirido a expressão que tem na filosofia nacional é a coincidência de dois fatores. O
primeiro deles é que o estruturalismo filosófico foi particularmente influente na filosofia

6
Cf. SIMANKE, R. T. Considérations préliminaires à propos d’une méthode historico-philosophique pour la
recherche conceptuelle en psychanalyse: une réflexion à partir de l’expérience brésilienne. Critical
Hermeneutics. Biannual International Journal of Philosophy, Cagliari, v. 4. n. 2, p. 59-78, 2020. Disponível
em: https://ojs.unica.it/index.php/ecch/article/view/4658. Acesso em: 14 jun. 2021.
7
Cf. SIMANKE, R. T. As ficções do interlúdio: Bento Prado Jr e a filosofia da psicanálise. O Que nos Faz
Pensar (PUCRJ), Rio de Janeiro, n. 22, p. 67-88, 2007., e, _____. O deslocamento do eixo da razão: Bento
Prado Jr sobre Lacan e Hegel. Modernos e Contemporâneos Revista Internacional de Filosofia, v. 3, n. 5, p.
3-41, 2019. Ver também: SIMANKE, R. T. “O que é a filosofia da psicanálise e o que ela não é”. Educação
temática digital, Campinas, v. 11, n. especial, p. 189-241, 2010., e, ______. “Reflexões sobre a área de
pesquisa filosofia da psicanálise: um depoimento sobre sua constituição em São Paulo”. Analytica, São João
del-Rei, v. 3, n. 4, p. 201-228, 2014. Estes dois últimos trabalhos, embora não sejam específicos sobre Prado
Jr., repercutem igualmente a sua contribuição e importância para a área.
8
Cf. PRADO JR. B.; et al. (Org.). Filosofia da psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1991.

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brasileira a partir dos anos 1960, com seu enraizamento na Universidade de São Paulo – e, mais
tarde, sua disseminação para outros centros de pesquisa filosófica que foram sendo criados. Isso
coincidiu com um momento em que a pesquisa e a formação filosófica estavam se deslocando
das faculdades de Direito e das instituições religiosas, além de certos institutos não acadêmicos,
que eram os espaços em que tinham predominantemente transcorrido até então, para cursos e
programas universitários especificamente voltados para a filosofia. O estruturalismo foi, então,
uma escola filosófica que participou fortemente da constituição de uma comunidade acadêmica
laica e profissionalizada, por assim dizer, no contexto universitário nacional e, nessas
circunstâncias, a amplitude da sua influência se torna mais compreensível. Mas é preciso
ressalvar que esta é uma leitura totalmente impressionista, baseada na leitura de algumas poucas
análises; eu nunca pesquisei especificamente a história institucional da filosofia brasileira. Seja
como for, a influência do estruturalismo foi importante e é ainda bastante influente hoje em dia.
Há muita gente por aí que acredita que o único método rigoroso para fazer filosofia é a análise
e a explicação sistemática dos textos clássicos da tradição.
O segundo fator é a dimensão e a popularidade que a psicanálise alcançou no Brasil.
Embora a Sociedade Brasileira de Psicanálise exista desde os anos 1920, esse movimento se
acelerou no pós-guerra, com a intensificação da formação de candidatos, a multiplicação dos
institutos e, mais tarde, com a chegada de correntes teóricas que corriam por fora do circuito
“oficial” e foram aos poucos criando a sua própria estrutura institucional. Essa propagação da
psicanálise se deu em parte a partir dos centros europeus e norte-americanos, mas também, de
forma bastante incisiva, pelas relações com outros países latino-americanos, sobretudo a
Argentina, onde a inserção da psicanálise era particularmente forte. A psicanálise lacaniana
desempenhou um papel importante nesse processo. Ela se desenvolveu com força no Brasil a
partir dos anos 1980, fosse via Paris ou via Buenos Aires. Ao mesmo tempo, o alívio relativo
da repressão política numa ditadura militar que se aproximava do fim tornou possível certa
normalização da vida acadêmica, além do retorno e reintegração dos professores cassados e
exilados. O lacanismo trouxe para a psicanálise uma familiaridade com o Panteão e o ideário
filosóficos. Por mais que as referências de Lacan à filosofia e aos filósofos fossem
frequentemente heterodoxas, metafóricas, analógicas ou, por vezes, simplesmente mal-
informadas, o discurso lacaniano, para o bem ou para o mal, estabeleceu a ideia de que a
psicanálise e a filosofia têm alguma coisa a ver uma com a outra. Daí que começou a parecer
normal que um psicanalista ou candidato a psicanalista lacaniano estudasse filosofia e muitos
começaram a procurar as instituições acadêmicas para tanto, estreitando, assim, os laços
entre a psicanálise e o campo dos estudos filosóficos.

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Enfim, a especificidade da experiência brasileira e o fato de que aqui se tenha


desenvolvido uma área de pesquisa em filosofia da psicanálise bastante robusta me parecem
decorrer, de modo geral, da convergência de todos esses fatores. É claro que os detalhes e
nuanças desse processo ainda precisam ser mais bem estudados e compreendidos. Mas, se existe
uma filosofia da psicanálise no Brasil é porque existe uma comunidade de filósofos que se
interessam por psicanálise e uma comunidade de psicanalistas que se interessam por filosofia.
Hoje em dia temos diversos pesquisadores que atuam nos dois campos, tanto em termos de
engajamento em pesquisa quanto em termos institucionais, além dessa figura do analista-
filósofo ou do filósofo-analista que não existe só no Brasil, mas se tornou particularmente
comum por aqui.

WCFP: No mesmo artigo mencionado acima, você propõe a junção metodológica entre
história das ideias e história da filosofia (estruturalismo ampliado), o que pode nos levar a
uma concepção demasiada filosófica da história das ideias psicanalíticas, caso em que
poderíamos falar abertamente de uma “história filosófica da psicanálise”. Se, por um lado,
isso resolve o duplo problema da historiografia tradicional da psicanálise – a alternativa entre
uma história estritamente social contextual e uma história heroica e biográfica –, por outro,
não há risco deste método historiográfico, ainda que contextual, se tornar muito “filosofante”?

RTS: A ideia de complementar a abordagem exclusivamente internalista da análise estrutural


com a contextualização histórica – pelo menos em termos de uma história intelectual ou história
das ideias, embora outros contextos históricos possam ser relevantes, dependendo do problema
em foco – provém da constatação de que o estruturalismo reproduz, à sua maneira e por razões
diferentes, um dos grandes problemas da história tradicional da psicanálise, que é a abstração
ou a neutralização do contexto. A história estruturalista da filosofia, nas suas versões mais
estritas, é uma abordagem curiosamente a-histórica. Ao privilegiar a análise da arquitetura
conceitual interna da obra filosófica, assumida como um sistema fechado em si mesmo, essa
abordagem, mesmo que para fins estritamente metodológicos, isola o sistema da história. Tudo
bem que uma história da filosofia tenha as suas peculiaridades em comparação à história de
outras disciplinas, e que os determinantes extra-filosóficos possam ser ali colocados entre
parênteses. Talvez o ambiente social, cultural ou político, ou o itinerário biográfico do filósofo
sejam irrelevantes para uma explicação da obra como uma expressão da ratio filosófica.
Mas o estruturalismo tende também a recortar a obra do próprio contexto intelectual e

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interlocucional em que ela inevitavelmente se produz. A estrutura conceitual e discursiva da


obra é sempre – ou quase sempre, em todo caso – um diálogo ou uma discussão com outros
pontos de vista, seja de forma implícita ou explícita. Ela é simultaneamente um argumento e
um contra-argumento, por assim dizer. Enfim, não é necessário recapitular aqui toda a discussão
crítica do estruturalismo, que já é, por si, bastante volumosa. Com relação à perspectiva
estruturalista aplicada estritamente à história da filosofia, pode-se facilmente conceder que o
ganho em rigor compense aquilo que se deixa de fora, que poderia então ser recuperado por
outras abordagens complementares. O Descartes de Gilson e o Descartes de Merleau-Ponty
complementam o Descartes de Gueroult, sem diminuir o valor da análise monumental levada a
cabo por este último.
No entanto, quando se transferem os princípios metodológicos do estruturalismo para
outro tipo de obra teórica, tal como as obras psicanalíticas, certos cuidados precisam ser
tomados e certas adaptações precisam ser feitas. Considerar a obra como um sistema fechado é
um artifício metodológico da análise estrutural que introduz algum grau de distorção, mesmo
que os ganhos superem as perdas. Mas a obra psicanalítica é ainda muito mais refratária a essa
redução a uma totalidade autossuficiente, fechada em si mesma. A psicanálise é uma disciplina
científica e uma prática clínica e, nessas duas dimensões, contém uma referência essencial a um
campo de fenômenos que ela procura compreender, explicar e/ou modificar. Além disso, a
relação entre vida e obra não é tão facilmente neutralizável nesse caso, como talvez seja no caso
da filosofia. O nascimento da psicanálise está indissociavelmente ligado à biografia de Freud
através do papel que sua autoanálise nele desempenhou. Embora o elemento biográfico tenha
sido muito frequentemente supervalorizado na história tradicional da psicanálise, não se pode,
no extremo oposto, simplesmente ignorá-lo no esforço de compreensão da obra. Existem
exemplos de um uso metodologicamente rigoroso da informação biográfica e do evento da
autoanálise freudiana nas pesquisas sobre as origens da psicanálise, como, por exemplo, a
abordagem de Carl Schorske, ainda nos anos 19709. Por outro lado, o desenvolvimento das
doutrinas psicanalíticas está também profundamente imbricado com as vicissitudes da
complicada e peculiar história institucional da psicanálise. O pensamento de Lacan, com
certeza, não pode ser bem compreendido sem essa referência, mas esse não é o único caso. Há
ainda a complexa rede de interlocuções com os mais diferentes campos do saber que caracteriza
o desenvolvimento da psicanálise desde os seus primórdios, o que faz com que uma teoria

9
Cf. SCHORSKE, C. E. Politics and Patricide in Freud's Interpretation of Dreams. The American Historical
Review, Bloomington, v. 78, n. 2, p. 328-347, 1973.

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psicanalítica muitas vezes se apresente como o ponto de convergência de um amplo programa


interdisciplinar, envolvendo não apenas diversos ramos do conhecimento científico, mas
também as artes, a literatura e a própria filosofia. Esse diálogo e esses empréstimos não
constituem apenas uma moldura ou um conjunto de adereços secundários, mas participam
muitas vezes de forma orgânica da construção de uma visão propriamente psicanalítica do
campo de problemas e objetos que a psicanálise se propõe.
Enfim, há muitas razões para que uma abordagem exclusivamente interna da obra
psicanalítica revele ainda mais limitações do que no caso da filosofia. Diante disso, trazer de
volta uma visão histórica ampliada para o trabalho de explicação do processo de formação das
teorias psicanalíticas pareceu uma alternativa possível. O problema é que esse encaminhamento
se confronta com os problemas inerentes ao campo específico da história da psicanálise – como
você mencionou, tradicionalmente uma história biográfica e heroica, uma tendência que ainda
está longe de se ter dissipado inteiramente. Assim, duas providências se fazem necessárias.
Primeiro, aproximar esse projeto do que há de melhor sendo praticado nos estudos históricos
sobre a psicanálise. Felizmente, já existe uma “nova historiografia” da psicanálise (essa
expressão já vendo sendo utilizada, aliás) que procura apreender com os erros do passado e
forjar uma abordagem mais rigorosa e abrangente da história dessa disciplina, tanto em termos
de metodologia quanto de sua fundamentação teórica e epistemológica. Essa nova
historiografia, no entanto, ainda teve pouco impacto, quer nos meios propriamente
psicanalíticos, quer na maneira como se pratica a interpretação filosófica da psicanálise. Trata-
se, então, de fazer essa aproximação e não desperdiçar um espaço de interlocução
potencialmente produtivo entre história e filosofia da psicanálise. A segunda providência é
estabelecer uma perspectiva própria para considerar e também pesquisar a história da
psicanálise, de modo a colocá-la a serviço de uma compreensão sistemática dos conceitos
psicanalíticos e de suas repercussões filosóficas. Isso é o que está esboçado no artigo que você
menciona. Agora, extrair daí a ideia de uma história filosófica da psicanálise parece algo ainda
bastante impreciso. Não se trata, portanto, de fazer uma história filosofante, mas de criar
critérios para identificar, entre a massa de informações que os estudos históricos disponibilizam
e o que é possível descobrir por si só ao se engajar nesse campo, aquilo que pode contribuir
para uma melhor e mais completa apreensão das implicações filosóficas das hipóteses e noções
que constantemente se renovam no desenvolvimento da psicanálise ao longo do tempo.
Dependendo da questão que se coloque aos textos psicanalíticos, as informações oriundas da
história da ciência, da história das ideias, enfim, da história intelectual como um todo, além
de outros campos da pesquisa histórica, se mostrarão mais ou menos relevantes. Enfim, essa

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Volume 06, Número 10, Ano 2021

história é filosófica não porque pretende pôr a história para filosofar – o que ela não precisa,
pelo menos não necessariamente –, mas porque procura lançar um olhar filosófico sobre a
pesquisa histórica, para incorporar à inquirição filosófica da psicanálise aquilo que for
efetivamente relevante para o problema em foco. Em outras palavras, para a filosofia da
psicanálise, a história da psicanálise será sempre um meio para um fim. É claro que, da
perspectiva do historiador, o conhecimento histórico aparece como um fim em si mesmo.
Talvez, porém, a interlocução filosófica possa lançar também alguma luz sobre a resolução de
problemas estritamente históricos: por que tal coisa aconteceu em tal momento e de
determinada maneira no desenvolvimento da psicanálise? Essa é uma possibilidade que eu
também estou tentando começar a explorar, ainda que incipientemente.

WCFP: A sugestão de uma historiografia crítica e filosófica como programa de pesquisa


teórica em psicanálise tem o mesmo valor para os dois campos: o da psicanálise e o da filosofia
da psicanálise? Quer dizer, o método histórico-filosófico não seria mais adequado e fecundo
para pensar uma “história da recepção filosófica da psicanálise”, que propriamente uma
“história da psicanálise”? Ou seja, como você enxerga a distinção dessas duas histórias?
Haveria, por exemplo, algum risco desse método tornar a psicanálise “refém” da filosofia?
Por fim, o que você pensa sobre a contribuição da sua proposta, tanto para a renovação
metodológica da história da psicanálise, quanto para a renovação metodológica da história
da filosofia?

RTS: Há muitas questões entrelaçadas aqui. Vou tentar distingui-las e respondê-las em


sequência. Sobre o ganho dessa abordagem histórico-filosófica para a filosofia da psicanálise,
creio que já respondi junto à questão anterior. Quanto a se essa história filosófica interessa mais
à filosofia da psicanálise do que à própria psicanálise, diria que em princípio sim, já que essa
proposta surgiu como uma maneira de complementar o trabalho mais frequentemente realizado
em filosofia da psicanálise e preencher algumas de suas lacunas – ou, pelo menos, o que me
parece ser suas lacunas ou limitações. No entanto, uma ampliação e aprofundamento da
compreensão da história da psicanálise talvez não seja sem valor para a prática clínica e teórica
da psicanálise propriamente dita. Todas as disciplinas têm seus mitos de fundação e seus heróis
pioneiros. Esses mitos são progressivamente dissolvidos pela historiografia da área e, com o
amadurecimento epistêmico e metodológico das disciplinas, eles tendem a se tornar
relativamente inócuos com o tempo. Imagino que um físico possa continuar sendo um bom

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físico mesmo se continuar acreditando que a maçã caiu na cabeça de Newton, e que um biólogo
possa ser um bom biólogo ainda que creia que Darwin teve uma epifania da seleção natural ao
observar os tentilhões das Ilhas Galápagos. Na psicanálise, as coisas ainda talvez sejam um
tanto diferentes, e a crença nessas narrativas mitológicas e idealizadas que se passam por
história interfira significativamente em como o psicanalista vê a psicanálise e como compreende
sua prática e seus conceitos. Nesse caso, o esclarecimento histórico, seja de que estilo for, pode
ter uma contribuição importante a dar também para a psicanálise e não apenas para a filosofia
da psicanálise. Esse é uma espécie de benefício colateral, que resulta de que, para se poder
delinear uma abordagem histórico-filosófica das teorias psicanalíticas, é necessário considerar
criticamente os estudos históricos disponíveis sobre a psicanálise e procurar preencher suas
lacunas e corrigir seus descaminhos.
Quanto à psicanálise se tornar “refém da filosofia”, esta é uma desconfiança que se
costuma encontrar entre alguns psicanalistas, principalmente aqueles que não estão
familiarizados com o trabalho na interface entre filosofia e psicanálise. A justificativa
normalmente apela para certa retórica antifilosófica que se pode encontrar tanto em Freud
quanto em Lacan, ainda que com estilos e motivações diferentes. É claro que interpretar
filosoficamente a psicanálise ou fazer a arqueologia de seus contatos com a tradição filosófica
não significa advogar nenhuma espécie de tutela da filosofia sobre a psicanálise, o que, de
qualquer maneira, não faria nenhum sentido. Talvez essa preocupação pudesse se justificar com
relação a certa filosofia normativa da ciência, de inspiração neopositivista, que se propunha a
legislar sobre o que é e o que não é ciência a partir de determinado critério filosófico
(verificação, falsificação etc.), amparado numa reconstrução racional de um modelo ideal de
cientificidade. Mas isso já ficou no passado, e não apenas com relação à psicanálise. Uma das
figuras fundadoras da filosofia da psicanálise no Brasil – a ideia de epistemologia da psicanálise
articulada por Monzani e outros autores – já era explicitamente contraposta à abordagem nos
termos de uma filosofia normativa da ciência. A ideia de epistemologia da psicanálise, como se
sabe, foi depois ampliada por Bento Prado e pelo próprio Monzani, entre outros, para dar origem
àquilo que hoje reconhecemos como uma filosofia da psicanálise em suas diversas dimensões.
Então, parece bem claro que a psicanálise não tem nada a temer, nem de uma leitura filosófica,
nem de uma abordagem histórica de viés filosófico.
No que diz respeito a uma história da recepção filosófica da psicanálise, a questão é um
pouco diferente e há outras coisas que precisam ser levadas em conta. Na verdade, este é um
interesse relativamente novo para mim e as questões de método não estão nem um pouco
claras. Elas estão se resolvendo au fur et à mesure. O problema é que, caso se queira

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compreender como se deu, historicamente falando, o encontro entre psicanálise e filosofia, não
há como evitar o tema da recepção, já que é disso exatamente que se trata – como a filosofia
“recebeu”, reagiu, respondeu ao advento da psicanálise. O que normalmente se chama de
“história da recepção” é uma variação dentro do tema mais geral das teorias da recepção e se
encontra expressa, nesses termos, na literatura, com relação principalmente aos estudos bíblicos
e aos estudos clássicos. Trata-se, nesses casos, de investigar as diversas maneiras como esses
temas foram assimilados e interpretados ao longo do tempo, em que contexto e por quais razões,
e assim por diante. São áreas de pesquisa muito distintas e qualquer espécie de inspiração
metodológica nas mesmas tem que passar por consideráveis adaptações, começando, é claro,
pelas dimensões temporais do processo, muito mais restritas. De qualquer maneira, uma história
da recepção filosófica da psicanálise não pode ser apenas filosófica, nem no sentido de uma
história da filosofia, nem de uma história filosófica das teorias psicanalíticas da qual estivemos
falando até agora. Quando se fala de “recepção”, muitas outras coisas entram em jogo além dos
conceitos. É certo que a exegese dos textos – a maneira como estes são lidos, interpretados e
como os resultados deste trabalho de interpretação são aplicados – desempenha um papel
central na questão da recepção. Mas não é possível compreendê-la de forma abrangente sem
considerações de ordem sociológica e institucional, por exemplo, ou até mesmo de ordem
biográfica. Se você quiser compreender como se deu a recepção filosófica da psicanálise no
Brasil, para ficarmos num contexto que nos é mais familiar, é preciso levar em conta o que
estava acontecendo no país e nas universidades em que esse movimento teve início, quem eram
as pessoas envolvidas, qual era o background biográfico e acadêmico de seus protagonistas, e
assim por diante. Até elementos do contexto sociopolítico ampliado podem ser relevantes, como
o declínio do regime de exceção da ditadura militar e o abrandamento da repressão política às
instituições acadêmicas a partir do final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, aos quais nos
referimos agora há pouco. Embora não sejam muitos, há alguns modelos nos quais a gente pode
começar a se inspirar para esboçar uma metodologia mais clara para estudar essas questões,
pelo menos em termos de estudos históricos. Como exemplo, poderia mencionar o Freud in
Cambridge, de Laura Cameron e John Forrester10, que, embora não trate apenas da filosofia,
examina também a recepção acadêmica da psicanálise no contexto britânico, além de outros
espaços em que esta recepção se deu e que vão muito além da estrutura institucional oficial
orquestrada por Ernest Jones com a fundação da Sociedade Britânica de Psicanálise e do
Instituto de Psicanálise em Londres. O fato é que, quando eu me propus a estudar mais

10
Cf. FORRESTER; J.; CAMERON, L. Freud in Cambridge. Cambridge: Cambridge University Press, 2017.

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sistematicamente o encontro entre filosofia e psicanálise no Brasil, procurando também


preencher certas lacunas sobre como se deu este encontro em outros contextos nacionais, o tema
da “recepção” pareceu se impor naturalmente e entrou como objeto de um dos meus atuais
projetos de pesquisa. Mas eu não tinha muita noção das complicações envolvidas e agora é
preciso lidar com elas para levar o projeto adiante. Este, porém, é um trabalho que está apenas
começando11.
Enfim, com relação à possibilidade de uma renovação metodológica da história da
filosofia, não sei muito bem o que dizer, não pensei muito desde esta perspectiva. Essa
possibilidade existe caso se considere que a emergência de algo que se pode chamar de
“filosofia da psicanálise” faz parte da história da filosofia. Num sentido óbvio, faz, é claro,
como qualquer coisa que envolva a filosofia de alguma maneira. Mas apenas se considerarmos
“história da filosofia” num sentido muito diferente daquele proposto pelo estruturalismo, que
ainda é, imagino, o que a maioria dos pesquisadores entende por história da filosofia, pelo
menos no Brasil.

WCFP: Quais expectativas filosóficas mais amplas podemos nutrir a respeito do método
histórico-filosófico para a pesquisa conceitual em psicanálise? Poderíamos expandi-lo para a
pesquisa filosófica em geral?

RTS: Imagino que sim, embora isso dependa de como se conceba a pesquisa filosófica. Em
algumas áreas dessa pesquisa, isso já é um ponto pacífico e, na verdade, a minha proposta
consiste muito em tentar trazer para o campo da filosofia da psicanálise estratégias que já se
praticam em outras áreas, ainda que com as necessárias adaptações. Na filosofia da ciência, por
exemplo, já é consenso que não se pode desenvolver uma reflexão sobre a ciência sem o recurso
à história da ciência. Mesmo as questões lógicas da teorização científica são atravessadas pelas
circunstâncias históricas que cercam o desenvolvimento das diversas disciplinas ao longo do
tempo. A história da ciência, por sua vez, não pode dispensar uma compreensão filosófica do
seu objeto, na medida em que focar os aspectos formais, lógico-epistêmicos, o problema dos
fundamentos, assim como as repercussões das descobertas e teorias científicas no campo
filosófico. Hoje, quando se fala de uma “história da ciência” sem maiores especificações,

11
A referência aqui é ao projeto interinstitucional de pesquisa intitulado A recepção filosófica da psicanálise:
história, tradições e doutrinas, desenvolvido na UFJF, UFMS, PUCPR e Université Paul Valéry, pelos
pesquisadores Richard Simanke, Weiny Freitas, Francisco Bocca e Caio Padovan.

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ELEUTHERÍA – Revista do Curso de Filosofia

Volume 06, Número 10, Ano 2021

normalmente tem-se em mente uma história filosófica da ciência, e não outra modalidade
qualquer de pesquisa histórica que tome a ciência como objeto. Quando é este o caso, é comum
explicitar esse viés mais externalista e falar de uma “história social da ciência”, uma “história
econômica da ciência”, uma “história transcultural da ciência”, e assim por diante. Enfim, as
discussões sobre as relações entre história e filosofia nessa área vêm já de longa data e se fala
frequentemente de “História e Filosofia da Ciência” como se fosse um único campo disciplinar.
Como Imre Lakatos disse, numa famosa paráfrase de Kant: a história da ciência sem a filosofia
da ciência é cega, e a filosofia da ciência sem a história da ciência é vazia. Trata-se, então, de
trazer para a filosofia da psicanálise esse tipo de discussão, já que ela parece ainda não ocorrer
aí, ou ocorrer muito pouco. A mesma coisa se dá, creio, em outras áreas em que a filosofia
forçosamente dialoga com outros campos, como a estética, por exemplo. Parece claro que não
é possível refletir filosoficamente sobre a arte, a criação e os valores estéticos sem estar
solidamente amparado no conhecimento da história da arte.
A questão parece se referir, assim, mais especificamente à pesquisa em história da
filosofia, em que a filosofia dialoga acima de tudo, quando não exclusivamente, consigo
mesma, pelo menos no tipo de história da filosofia com que estamos mais habituados por aqui.
É inegável que uma análise estrutural sistemática das obras e sistemas é imprescindível para o
conhecimento filosófico, e que um treinamento rigoroso nesse tipo de análise é uma ferramenta
indispensável para a formação do pesquisador. O problema, então, é se esse trabalho é
suficiente. Suponho que isso dependa dos objetivos da pesquisa e de que tipo de inquietação
filosófica a motiva. Eu, particularmente, gosto de conhecer mais a respeito de um sistema ou
de um pensamento do que a arquitetura conceitual das obras em que estes se exprimem, sem
contar que nem todo pensamento filosófico se apresenta sob a forma do sistema. Também
acredito que esse conhecimento enriqueça e aprofunde a compreensão dos conceitos. Enfim, a
questão em jogo é se uma história da filosofia pode se afastar do modelo estruturalista sem
deixar de ser filosófica. Não vejo por que não poderia, mas a minha área de pesquisa não é a
história da filosofia e cabe aos pesquisadores desse campo discutir essas questões. Retornando,
para fins ilustrativos, ao exemplo da filosofia da ciência mencionado anteriormente, o que
história e filosofia da ciência entendem por ciência é algo muito distinto. A filosofia da ciência
estrita se endereça a uma reconstrução lógica e racional da ciência, enquanto a ciência como
uma prática cultural e social concreta é descrita pela história da ciência. Uma compreensão
abrangente da ciência como uma realização intelectual e como um acontecimento histórico
contingente deve se construir sobre a tensão entre esses dois polos e, de algum modo,
articular suas perspectivas divergentes. Essas mesmas considerações podem ser feitas com

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relação à filosofia: a fotografia que se pode dela obter depende de qual modalidade de história
é empregada para compreender e avaliar suas realizações. A relevância de uma abordagem
histórico-filosófica para a pesquisa em filosofia num sentido mais amplo é relativa, portanto, a
qual concepção de filosofia se tenha em mente.

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