Livro CINEMA E OUTRAS ARTES - Final PDF
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LUSO-BRASILEIRAS EM
ARTES E COMUNICAO
Vol. 1: Cinema e outras Artes
(Org.)
Jorge Carrega
Ingrid Fechine
Organizadores
Jorge Carrega
Ingrid Fechine
PERSPECTIVAS
LUSO-BRASILEIRAS EM
ARTES E COMUNICAO
Vol. 1: Cinema e outras Artes
ORGANIZAO
Grupo de Pesquisa
Comunicao, Memria e Cultura Popular da Universidade Estadual da Paraba
Rua Baranas, n: 351, Bairro Universitrio, Campina Grande, CEP: 58429500
[email protected]
ISBN: 978-989-20-6501-4
INTRODUO
Jorge Carrega e Ingrid Fechine | 9
PARTE I: Cinema
Mirian Tavares
Coordenadora do CIAC
99
INTRODUO
lhos de investigao sobre cinema, abre com dois artigos dos investigadores
do CIAC, Bruno Silva, Mirian Tavares, Vtor Reia-Batista e Susana Costa, que
refletem sobre as questes do tempo no cinema interativo e investigam as pos-
sibilidades de experimentao da interatividade na linguagem cinematogrfica.
Maicon Ferreira de Souza (UTP) e Roziane Keila Grando (UNICAMP) pesqui-
sam sobre a viabilidade de aplicao do cinema interativo na televiso digital
atravs dos seus diversos suportes tecnolgicos, e Denize Araujo e Luis Fernan-
do Severo (UTP) pesquisam as novas possibilidades narrativas e expressivas do
cinema como linguagem artstica na era digital.
Jorge Carrega (CIAC) investiga a importncia da coproduo cinematogrfica
no florescimento dos gneros populares no cinema da Europa mediterrnea
durante as dcadas de 1950 e 1960, e Wiliam Pianco (CIAC) analisa as primeiras
obras de Manoel Oliveira, procurando a gnese dos elementos temticos e for-
mais que caraterizam a sua filmografia a partir dos anos setenta.
Olivia Novoa Fernndez e Filipa Cerol Martins (CIAC), investigam a mudana
de regime e a evoluo dos jornais cinematogrficos em Portugal e Espanha,
em meados da dcada de 1970, durante o perodo de transio democrtica,
e Margarida Maria Adamatti (USP) avalia os critrios de anlise da crtica enga-
jada no Brasil para demonstrar como o debate esttico em torno do cinema se
tornou um imperativo da resistncia ao regime militar.
Silvia Vieira e Mirian Tavares (CIAC) analisam o papel da mulher, e em parti-
cular das prostitutas e adolescentes, na obra do cineasta moambicano Licnio
Azevedo, e Liliana Dias (CIAC) investiga a representao da mulher no cinema
de Hollywood dos anos vinte e trinta, e a influncia do cdigo Hays nesta mes-
ma representao.
Encerramos a primeira parte, dedicada aos estudos flmicos, com o artigo
de Joo Carvalho e Ana Carvalho (CIAC), que abordam as relaes entre a lite-
ratura e o cinema, na perspetiva da compreenso da natureza das linguagens
literria e cinematogrfica, dos conceitos de experimentao narrativa, de in-
tertextualidade e de adaptao.
A segunda parte deste livro concerne diversos temas relacionados com as ar-
tes e comunicao, desde a literatura de cordel s artes plsticas. Ingrid Fechi-
ne, Orlando Angelo e Elissama Barreto (UEPB) investigam a religiosidade pre-
sente na literatura de cordel, a partir de uma anlise de contedo. Os folhetos
selecionados fazem parte do acervo da Biblioteca tila Almeida da Universida-
de Estadual da Paraba.
12
Jorge Carrega
Ingrid Fechine
Junho 2016
PARTE I: Cinema
14
14 CONSIDERANDO O TEMPO (E O CINEMA [INTERATIVO])
primeira parte
RESUMO
ABSTRACT
This paper is divided in two different parts: Considering time (and cinema [interac-
tive]) first part and Considering time (and cinema [interactive]) second part. In the
first part we intent to approach discussions on the idea of chronological time: tem-
poral models, relationship between time and cinematographic language and, finally,
the aspects of time in interactive cinema. Starting from interactive experiences The
book of dead (http://oscaminhosquesebifurcam.com/livros-dos-mortos.html) and
Haze (http://oscaminhosquesebifurcam.com/neblina.html#neblinaimagem), which
are part of the project The forking paths developed at Research Center for Arts and
Communication. In the second part of this paper we intent to analyze ideas related to
new possibilities on interactive experimentation in cinematographic language, while
keeping the background on the issue of time.
A referncia base deste estudo ser o projeto Os Caminhos que se Bifurcam, uma
plataforma online dedicada a experincias flmicas interativas, onde se encontram os
filmes em anlise: O Livro dos Mortos (2015) e Neblina (2014). Principiado no incio de
2013, no Centro de Investigao em Artes e Comunicao (CIAC) e implementado no
Laboratrio de Estudos Flmicos (LEF), o projeto Os Caminhos que se Bifurcam insere-
-se na linha de investigao Criao de Artefactos Digitais do Centro. Esta diretriz do
CIAC pauta-se pela produo de artefactos digitais que procuram relaes intrnsecas
entre arte e tecnologia. Este projeto procura dar continuidade pesquisa iniciada na
tese de doutoramento Eterno Presente, o tempo na contemporaneidade, que resultou
na publicao do livro A mquina encravada, a questo do tempo nas relaes entre
cinema, banda desenhada e contemporaneidade (2010). Esta investigao bsica o
ponto de partida do projeto atual, que procura alinhar investigao aplicada e desen-
volvimento experimental, encerrando as seguintes propostas:
2. TEMPO
Mas o que agora parece claro e manifesto e que nem o futuro, nem o passado
existem, e nem se pode dizer com propriedade, que ha tres tempos: o passa-
do, o presente e o futuro. Talvez fosse mais certo dizer-se: ha tres tempos: o
presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro, porque
essas tres especies de tempos existem em nosso espirito e nao as vejo em outra
parte. O presente do passado e a memoria; o presente do presente e a intuicao
direta; o presente do futuro e a esperanca. (Agostinho, 1964)
Para Markosian (2014), a topologia padro da estrutura temporal pode ser re-
sumida a uma linha reta contnua, sem ramificaes e infinita em ambas as direes.
Para o autor, as questes relacionadas com a topologia do tempo esto diretamente
ligadas s temticas do Platonismo vs Reducionismo, relativamente ideia de tempo.
Se, na linha Reducionista, as caractersticas do tempo esto diretamente dependentes
de factos ligados relao entre as coisas e os eventos do mundo, na linha Platonista
o tempo acontece independentemente do que lhe possa estar relacionado (Marko-
sian, 2014). Assim, presumivelmente, o tempo ter as suas propriedades topolgicas
por uma questo de necessidade. No entanto, mesmo que assumamos o platonismo
enquanto verdade, no ficam claras quais as propriedades que lhe devem ser atribu-
18
das (Markosian, 2014).
Relativamente questo da infinitude da linha do tempo, Aristteles defende
que o tempo no pode ter um incio, tendo em conta que para isso ter de haver um
primeiro momento do tempo e, para tal, esse momento ter que ser antecedido de
um perodo de tempo anterior e procedido de um perodo de tempo posterior, o que
torna a ideia de primeiro momento incoerente. Pela mesma razo o tempo tambm
no poder ter um fim5.
Markosian levanta, ainda, uma outra questo pertinente: o tempo dever ser
representado por uma simples linha? Segundo o autor, deveramos colocar a hiptese
do tempo ser constitudo por mltiplas linhas, isoladas umas das outras.
Neste sentido, cada momento poder ter um paralelismo com outros momentos
de outras linhas. No sendo os paralelismos obrigatrios, podero existir linhas de
ramificao, crculos fechados e linhas descontinuadas.
6 SMITH, Richard Curson The Last Machine. BBC, 1995. Documentrio televisivo, 1 episdio: Space
and Time Machine, Sonoro. Col.
7 Ibid.
8 SMITH, Richard Curson The Last Machine. BBC, 1995. Documentrio televisivo, 1 episdio: Space
and Time Machine, Sonoro. Col.
9 Ibid.
20
Deleuze10 refere que aps a segunda guerra mundial surge, em algumas cine-
matografias (como a nouvelle vague ou o neo-realismo italiano), uma tentativa de
insubordinao contra uma imagem-movimento, em favor de uma imagem-tempo.
Essa transio implica uma nova perceo da realidade que j no baseada no mo-
vimento, nem sequer numa sequncia temporal linear de passado, presente e futuro.
Assim, as sensaes sensrio-motoras (representao indireta do tempo) tendem a
ser substitudas por conjunturas exclusivamente visuais e sonoras (opsigno11 e sonsig-
no12 apresentaes diretas do tempo).
Podemos, ento, considerar que a relao direta entre o espao e o tempo
condicionada pelo movimento, ou seja, se a ausncia de movimento implica neces-
sariamente uma ausncia de tempo, tambm uma acelerao no espao implica uma
acelerao na perceo do tempo.
No primeiro filme Neblina (Haze) esta questo foi desenvolvida pela via do
espetador-protagonista que vivencia o mesmo momento mais do que uma vez,
at que esse mesmo momento se torna numa outra coisa: um momento que
simultaneamente o mesmo e outro. Assim, a relao espao-tempo torna-se uma
relao espao-tempos. No segundo filme O livro dos mortos a questo temporal
incide principalmente na questo da leitura do filme, oferecendo ao espetador a
possibilidade de ler ao seu prprio ritmo (ou tempo), como se da leitura de um
livro se tratasse.
Enquanto base terica, as noes de imagem-movimento, imagem-tempo e
imagem-cristal propostas por Deleuze servem de base estruturante neste trabalho.
Ao apelarem imerso provocam uma reao contrria costumeira reao passiva-
-submissa. Os Caminhos que se Bifurcam, atravs deste fundo terico, utiliza no filme
Neblina (Haze) situaes eminentemente visuais atravs do recurso cmara sub-
jetiva13 e repetio exaustiva das imagens, procurando ir ao encontro da ideia de
opsigno. Encontra, ainda, correspondncia na ideia de sonsigno em situaes sonoras
que surgem sem quaisquer imagens correspondentes ou referentes. No filme O livro
dos mortos, a ideia de opsigno est intimamente relacionada com momentos onde
dois planos paralelos, ligados pelo mesmo som, acontecem em simultneo (de acor-
do com as escolhas do espetador). Estes momentos (sempre referentes ao presente)
O fascnio pela questo do tempo e das suas possveis relaes com o cinema,
com o cinema interativo, e com a literatura, foram o fio condutor do projeto Os Cami-
nhos que se Bifurcam. Os processos psicossomticos que nos podem conferir diferen-
tes sensaes e, consequentemente, diferentes percees relativas sua passagem
(tantas vezes divergente dos aparelhos de medio os relgios), ganham, no suporte
cinematogrfico, um potencial de experimentao eminente. Foi esse potencial, que
j tinha sido trabalhado na literatura (nomeadamente atravs do conto) por autores
como Jorge Lus Borges e Italo Calvino, que tentmos trazer para o projeto. Na segun-
da parte deste artigo continuaremos a desenvolver estas questes, tentando compre-
ender at que ponto a possibilidade de interao com o espetador (que agora se torna
em espetador/utilizador - sem ele no existe filme interativo) se pode converter uma
relao mais ativa com a narrativa flmica, onde se potencializa o desenvolvimento da
linguagem audiovisual.
14 Johan Huizinga pensa o jogo como um retalho da narrativa temporal onde o jogador interpreta uma
outra vida paralela e sublinha, na sua obra Homo ludens: o jogo como elemento da cultura, a importncia
essencial do jogo na edificao da cultura de qualquer sociedade.
22
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
BENJAMIN, Walter. (1985). A Obra de Arte na Era da sua Reproduo tcnica in Ge-
ada, E. (Org.). Estticas do Cinema. Lisboa: Publicaes Dom Quixote.
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JAMES, William (1890). The Principles of Psychology, New York: Henry Holt.
LE POIDEVIN, Robin (2015), 2015b, Perception and Time, in Mohan Matthen (ed.),
Oxford Handbook of the Philosophy of Perception, Oxford: Wiley-Blackwell.
MANOVICH, L. (2011) The language of new media. Massachusetts: The MIT Press.
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ma, banda desenhada e contemporaneidade. Porto: Editorial Novembro.
SILVA, B.; COSTA, Susana. (2015) Personagens que saem e que entram no ecr: in-
teratividade e cinema, in Bruno Silva; Albio Sales (org.). Poticas Contemporneas
- Arte e Tecnologia. Cear: Edies Universidade Federal do Cear, pp. 377 398.
SILVA, B.; DOMINGUEZ, M. (2014). Between the Sacred and the Profane in the S. Joo
dArgas Festivities: A Digital Art Installation. International Journal of Creative Inter-
faces and Computer Graphics (IJCICG). DOI: 10.4018/ijcicg.2014010101.
SILVA, B.; RODRIGUES, J.; ALVES, R.; MADEIRA, M.; FERRER J.; CASTA S.; MARTINS,
J. (2014). FTIMA REVISITED: AN INTERACTIVE INSTALLATION. SGEM proceedings.
24
DOI: 10.5593/sgemsocial2014B4.
SILVA, B.; SALES, Albio (Org.) (2015). Poticas Contemporneas - Arte e Tecnologia.
Cear: Edies Universidade Federal do Cear. http://www.uece.br/eduece/dmdocu-
ments/livro_arte.pdf.
SILVA, B.(2013). Neblina: notas sobre o projeto Os caminhos que se bifurcam, Revis-
ta Texto Digital, V.9, n 2, Dezembro, 2013.
TAVARES, M. (2014). Special Issue on Digital Media-Art: New Experiences in Arts and
Technology, International Journal of Creative Interfaces and Computer Graphics 5, 1:
1 - 8.
RESUMO
ABSTRACT
This paper is divided in two different parts: Considering time (and cinema [interac-
tive]) first part and Considering time (and cinema [interactive]) second part. In the
first part we intent to approach discussions on the idea of chronological time: tem-
poral models, relationship between time and cinematographic language and, finally,
the aspects of time in interactive cinema. Starting from interactive experiences The
book of dead (http://oscaminhosquesebifurcam.com/livros-dos-mortos.html) and
Haze (http://oscaminhosquesebifurcam.com/neblina.html#neblinaimagem), which
are part of the project The forking paths developed at Research Center for Arts and
Communication. In the second part of this paper we intent to analyze ideas related to
new possibilities on interactive experimentation in cinematographic language, while
keeping the background on the issue of time.
A referncia base deste estudo ser o projeto Os Caminhos que se Bifurcam, uma
plataforma online (oscaminhosquesebifurcam.com) dedicada a experincias flmicas in-
terativas, onde se encontram os filmes em anlise: O Livro dos Mortos (2015) e Neblina
(2014). Principiado no incio de 2013, no Centro de Investigao em Artes e Comunica-
o (CIAC) e implementado no Laboratrio de Estudos Flmicos (LEF), o projeto Os Cami-
nhos que se Bifurcam insere-se na linha de investigao Criao de Artefactos Digitais
do Centro. Esta diretriz do CIAC pauta-se pela produo de artefactos digitais que procu-
ram relaes intrnsecas entre arte e tecnologia. Este projeto procura dar continuidade
pesquisa iniciada na tese de doutoramento Eterno Presente, o tempo na contempora-
neidade, que resultou na publicao do livro A mquina encravada, a questo do tempo
nas relaes entre cinema, banda desenhada e contemporaneidade (2010). Esta inves-
tigao bsica o ponto de partida do projeto atual, que procura alinhar investigao
aplicada e desenvolvimento experimental, encerrando as seguintes propostas:
Desde os finais do sculo XIX foram muitos os projetos levados a cabo no sentido
de absorver os sentidos do espetador, ampliando e desenvolvendo as telas de proje-
o e, consequentemente, o campo de perceo do pblico. Em 1924, a Paramount
introduziu o Magnascopio, composto por uma tela circular e vrios projetores, pro-
porcionando ao espetador a impresso de estar envolto na ao. Por outro lado, para
concorrer com a televiso e para aumentar o nmero de espetadores, que j tinham
comeado a diminuir, nos anos 50, comearam a surgir os ecrs widescreen. Em 1952,
Fred Waller apresentou um complexo processo cinematogrfico de ecr panormico,
o Cinerama, e no ano seguinte a Twentieth Century-Fox lanou o Cinemascope, um
ecr panormico anamrfico de 35 mm5.
Originalmente havia trs cmaras com um nico disparador. No cinema, as ima-
gens eram projetadas a partir de trs cabines de projeo de 35 mm sincronizadas
para uma tela de grandes propores, com um arco de 146. Um dos grandes incon-
venientes deste processo eram as emendas que nunca deixavam de se notar no ponto
onde se juntavam as diferentes projees.
No incio dos anos 60, Morton L. Heilig, considerado por muitos um precursor
da realidade virtual, desenvolveu o Sensorama, o Cinema do Futuro, uma experincia
que abrangia todos os sentidos humanos, com um ecr que envolvia completamente
o espetador, fazendo uso de som estreo, imagens 3D, odor e resposta cinestsica aos
movimentos do utilizador/espetador: the screen will curve past the spectators ears
on both sides and beyond his sphere of vision above and below (Heilig, 1992) de for-
ma a potenciar a experincia cinematogrfica.
Mais tarde, surge o formato IMAX, introduzido nos anos 90, capaz de projetar
imagens com maior resoluo do que os sistemas de projeo at a utilizados. Este
formato propiciava a projeo de documentrios, nomeadamente espaos fantsticos
e inacessveis como Monte Evereste ou o Grand Canyon. Comercialmente, foi um su-
cesso (GRAU, 2003) e permitiu abrir caminho para a comercializao do cinema digital
e do cinema 3D (com o auxlio de lentes especiais).
No obstante, ao mesmo tempo que a tecnologia evoluiu no sentido da imerso
do espetador, afigura-se como fundamental continuar a esconder do pblico quais-
quer referncias que possam lembrar a mquina que proporciona o momento de ilu-
perdas de memrias recentes e convulso para contar histrias, frequentes entre alcolicos crnicos. Foi a
partir destas experincias que construiu o Sistema Korsakow.
10 http://manovich.net
11 http://www.softcinema.net/
31
De 2007, Late Fragment12 uma co-produo entre o Canadian Film Centre e Na-
tional Film Board of Canada que oferece uma estrutura arborescente onde o espeta-
dor/utilizador pode escolher diferentes caminhos e ganhar novas perspetivas relativas
narrativa atravs da escolha de qual a personagem que quer seguir.
Mais tarde, em 2010, o filme de terror Last Call do canal 13th Street, especiali-
zado em filmes de terror, foi anunciado como o primeiro filme de terror interativo do
mundo. Atravs de um programa que permite o reconhecimento de voz e comandos,
um dos espetadores/utilizadores, presentes na sala de cinema, recebe um telefonema
da protagonista, pedindo ajuda para escolher o melhor caminho de modo a conseguir
fugir do assassino em srie que a persegue. Atravs desta tecnologia, o mesmo filme
torna-se nico, dependendo das indicaes de quem atender o telefone.
Take This Lollipop13, realizado em 2011 por Jason Zana, enquadra na narrativa da-
dos e imagens do perfil do Facebook do espetador/utilizador como estratgia para o
passar de um nvel extradiagtico para um nvel intradiagtico. Em 2012, Evan Boehm
e a Nexus Interactive Arts criam The Carp and the Seagull14 um filme interativo 3D que
tira partido das tecnologias WebGL e HTML5. O filme descreve um conto do pescador
Masato que, um dia, confrontado com o esprito Yuli-Onna, que lhe surge na forma de
gaivota.
Em 2006, na parque temtico Hong Kong Disneyland, surge pela primeira vez o
espetculo Stitch live, enquanto combinao de marionetismo digital, animao em
tempo real e projeo hologrfica. Neste espetculo, que atualmente pode tambm
ser visto na Disneyland Paris e na Tokyo Disneyland, a personagem virtual conversa
diretamente com os convidados com a ajuda de um moderador. As crianas so incen-
tivadas a sentarem-se nas filas da frente para que a personagem virtual as possa ver
facilmente, facilitando o processo comunicativo entre a personagem animada 3D e os
jovens espetadores/utilizador.
Recentemente, tm surgido novos filmes que permitem ao espetador/utilizador
construir o seu percurso dentro a narrativa flmica. Em 2014, surge o filme Possibilia15
(2014), realizado por Daniel Kwan e Daniel Scheinert (a dupla DANIELS16). Aqui, Rick
e Pollie encontram-se numa separao difcil, Pollie prepara-se para sair, deixando
Rick. Este pede-lhe que fique, iniciando uma discusso. Ao pblico dada a possibi-
lidade de visualizar a discusso das personagens, atravs de diferentes perspetivas,
oferecidas por pequenas imagens (thumbnails) que se encontram na parte inferior do
ecr. O texto mantm-se o mesmo, no entanto o ponto de vista e o tom da discusso
alteram-se, de acordo com as escolhas do espetador/utilizador. Ao longo do filme,
12 Latefragment.com
13 www.takethislollipop.com
14 thecarpandtheseagull.thecreatorsproject.com
15 Este filme foi produzido com tecnologia da empresa de meios digitais Interlude, conhecida pelo
recente videoclip interativo Like a Rolling Stone ( http://video.bobdylan.com/desktop.html).
16 http://www.danieldaniel.us/
32
estas pequenas imagens paralelas multiplicam-se, permitindo ao espetador mudar a
forma como a histria contada, mantendo sempre o mesmo argumento. No final,
esgotadas todas as possibilidades, Pollie volta a dirigir-se porta, deixando Rick sozi-
nho, fechando a narrativa flmica no ponto onde esta tinha principiado.
Por sua vez, a experincia Circa 1948 (2014) 17, de Loc Dao, leva os espetadores/
utilizadores a visitarem, virtualmente, espaos em Vancouver, tal como estes eram em
1948, atravs da utilizao de imagens projetadas que envolvem o espetador, numa
sala, onde os seus movimentos so acompanhados por tecnologia cintica.
Neblina (2014) o primeiro filme do projeto Os Caminhos que se Bifurcam18.
Atravs da imerso na narrativa interativa, Neblina pretende criar um efeito de espe-
lho entre o espetador/utilizador e o protagonista da ao, tornando-se um espeta-
dor-protagonista. Apesar de a narrativa ser pr-definida, a forma como vivenciada
depende diretamente das escolhas do espetador-protagonista. Para tal, utilizada a
voz off enquanto recurso morfolgico. Esta, alm de entrar em discurso direto com
o espetador-protagonista, dando-lhe conselhos, dicas e opinies, funciona tambm
como narrador polaco19 ao dobrar as deixas de todas as personagens.
Neblina divide-se em trs fluxos distintos: um central e dois laterais, estando um
escondido esquerda e o outro escondido direita. A escolha dos fluxos ser reali-
zada pelo espetador-protagonista. Cada fluxo transmite-lhe uma experincia distinta
da narrativa. A ttulo de exemplo, as personagens coprotagonistas mudam de gnero
conforme o fluxo selecionado. O filme pode ser visionado em dispositivos com acesso
internet, como computadores portteis, tabletes ou smartphones. No entanto, este
filme tambm pode vir a ser visionado em ecrs clssicos para projeo de cinema ou
vdeo20. Nesta variante, o fluxo central encontra-se projetado no ecr e os fluxos laterais
podero ser visionados nos dispositivos dos elementos da plateia21. Assim, todos os es-
petadores podero tornar-se, durante o visionamento, espetadores-protagonistas.
Estes projetos parecem concretizar os vaticnios de Manovich relativamente ao
cinema do futuro: The typical scenario for twentieth-first century cinema involves a
user represented as an avatar existing literally inside the narrative space, () inter-
acting with virtual characters and perhaps other users and affecting the course of the
narrative events (MANOVICH, 2011).
Os exemplos de cinema interativo que aqui abordamos, embora no esgotem as
experincias feitas neste mbito, mostram de forma inequvoca que tm sido explora-
2.2 Modelos
2.3 - Os Filmes
enquadramentos.
25 http://file.org.br/videoarte_sp_2015/file-sao-paulo-2015-video-art-53/
37
Alm disso, tendo em conta que o filme se encontra dividido em trs fluxos de
imagens distintos, por vezes com alteraes no gnero das personagens entre fluxos,
o narrador polaco dobra todas as deixas das personagens do filme (inclusivamente
as deixas do espetador-protagonista). A estrutura da narrativa no pode ser alterada,
no entanto, a experincia flmica depende das escolhas do espetador-protagonista
relativas aos fluxos referidos. Esses fluxos (Figura 4) esto divididos em central, la-
teral-direito e lateral-esquerdo, sendo o caminho entre eles da responsabilidade do
espetador-protagonista. A navegao entre fluxos feita atravs da aproximao do
cursor s laterais da imagem.
Como j foi referido, o filme pode ser visionado tanto individualmente como co-
letivamente. Individualmente, atravs de dispositivos com acesso internet. Coleti-
vamente, pode ser visionado em ecrs fsicos, sendo que o fluxo central encontra-se
projetado e os fluxos laterais acessveis em dispositivos sincronizados. Deste modo
podero coexistir, no mesmo visionamento, vrios espetadores-protagonistas. Na
produo deste filme tambm foi utilizada uma cmara Canon EOS. As filmagens fo-
ram feitas numa caixa preta (o laboratrio de teatro do CIAC da UAlg). Assim, e com a
ajuda de uma mquina de fumo, foi criado o ambiente propcio ao desenrolar da nar-
rativa (figura 5), sublinhado tambm pela ausncia de cor em todo o filme. O resulta-
do foi a ausncia da dimenso espacial da histria. Embora o narrador polaco (voz off)
faa inmeras referncias a um espao urbano que envolve uma estao de caminho
de ferros, esse espao fsico nunca explicitado. No existe nada. Nem dentro, nem
fora da estao. Deste modo, pretendeu-se que a relao espao-tempo do filme fos-
se inteiramente dominada pela dimenso temporal. Existe ainda uma referncia a um
terceiro filme interativo na plataforma: Valsa, da autoria de Rui Antnio, doutorando
(Doutoramento em Mdia Arte Digital da Universidade do Algarve e da Universidade
Aberta) e colaborador do CIAC.
A PLATAFORMA
CONCLUSO
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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vol.6no.12,July/Dec.
RESUMO
ABSTRACT
2 CINEMA INTERATIVO
Maciel (2004) expressa que o cinema deve extrapolar o que est na moldura e
oferecer uma oportunidade, um extra filme ao telespectador que no seja uma obri-
gao, que v alm, no caminho de uma escolha da narrativa, na aplicao de um
conceito ldico de que o filme pertence ao prprio espectador, em que a imerso
proporciona um ambiente em que ele atua no contexto do filme. Esse desejo no tem
objetivo de romper com o atual paradigma do cinema, nem de quebrar as novas to-
nalidades vitrometlicas que adquiriu sem perder o seu perfil bsico (XAVIER, 2000:
83). O objetivo da interao justamente colaborar com a narrativa e com o vigor dos
gneros do cinema.
Alain Resnais, cineasta conhecido pelas experincias estticas no cinema, dirigiu
um filme que pode ser considerado o comeo da interatividade no cinema em alta es-
cala. Em Smoke/No Smoke, um filme baseado em uma obra escrita, o diretor conduz
uma histria sobre a escolha de fumar ou no e, em determinado momento, oferece
as opes de enredo: fumar ou no fumar, j que, na primeira opo, o personagem
deve acender um cigarro e, na segunda, no deve, pois cada uma das opes guia a
uma histria diferente. Neste sentido, Baio (2008: 10) comenta que,
Neste caso, a deciso de assistir a uma histria ou outra configura-se uma inte-
ratividade simples, praticamente fsica da construo do filme. Entretanto, a lgica
da escolha e da configurao da narrativa a partir dos anseios do pblico o que
configura o cinema interativo, ou seja, o cinema interativo est ligado possibilidade
de manuseio de informao. Griffith, cinfilo e cineasta, apesar de no ter vivencia-
do experincias como essa, j pensava o manuseio da informao como um recurso
desenvolvido para dar o mximo de tenso aos melodramas e para aumentar a carga
dramtica das sequencias (Costa, 2006: 47).
Muito de carter experimental, outra experincia realizada foi o filme A Gruta,
no Festival de Braslia, de 2008, em que a produtora FilmeJogo exibiu um audiovisual
que oferecia recursos advindos dos jogos eletrnicos de computador e de videogame.
47
O filme tem 120 minutos de durao e conta a histria de um grupo de amigos que
saiu em viagem e foi obrigado a fazer uma srie de escolhas, com a consequncia de
que cada escolha leva a outra sucessivamente e assim o filme construdo. Esse filme
foi apresentado em uma sala semelhante sala de cinema, onde foram distribudos
200 controles remotos plateia que, durante 30 vezes, escolheu o rumo do filme, e os
caminhos mais votados foram exibidos para o pblico.
A relao de utilizao de outros dispositivos, como novas tecnologias no cine-
ma, explicada por Maciel que sugere:
1 Traduo nossa: televiso est deixando de ser progressivamente uma ferramenta de massa para
converter-se num meio de comunicao consumido individualmente, por meio de diversas plataformas,
de forma diferida e personalizada. Texto traduzido do espanhol, disponvel em: http://www.monde-
diplomatique.es. Autor Ignacio Ramonet, Edio n 231 . Data de consulta: 05 de janeiro de 2015.
48
comum, a de que a televiso cada vez mais estar conectada internet, como o
caso da Frana, em que a internet j est presente em 47% das televises. No Brasil,
percebe-se uma situao semelhante, onde a maioria das televises venda j so
conectadas internet. O autor tambm cita o Canad, onde o vdeo disponibilizado na
internet e acessado em diversos dispositivos, j est prximo da audincia televisiva.
Ramonet (2015: 2) projeta um cenrio em que a internet vai acabar pouco a
pouco com a televiso, uma perspectiva at certo ponto correta, quando v-se ape-
nas o cenrio pelo lado da televiso como estrutura tradicional broadcast sem a pos-
sibilidade de nenhum servio adicional. A chave de contraponto para a televiso ainda
continuar sendo a produo de contedo com qualidade e atratividade, questo que
passa por um processo de reestruturao motivada pelo perfil do pblico, da tecno-
logia e do contedo por ela transmitido. Os filmes so contedos que ocupam grande
parte das programaes e a construo do filme tramada de tal forma a produzir
sentido dentro de uma organizao sincrtica que conecte diversos significados que,
quando combinados, formam a narrativa de um filme.
Tomando como base a nova configurao da cultura de convergncia expressa, o
estilo das pessoas assistirem a televiso, potencializado pela convergncia miditica,
pela conectividade e interatividade em tempo integral nas redes sociais, pelo gran-
de crescimento de vdeo sob demanda na televiso e em aparelhos mveis, levando
em conta ainda o pensamento de Ramonet (2015) a respeito da individualizao da
televiso, pode levar concluso que a televiso, a longo prazo, poder deixar de ser
um meio de massa, em que as pessoas renem-se para assistir algo que lhes interesse
para dar espao a aparelhos individualizados que disponibilizem meios de interao
com o contedo consumido, como demanda o cinema interativo que disponibiliza
a oportunidade do espectador interagir na narrativa do filme. Assim, se a televiso
digital traz consigo o recurso da interatividade e, ainda, um conjunto de ferramentas
interativas, quais tecnologias possibilitam a disponibilizao de cinema interativo na
televiso digital?
A Televiso Digital, no Brasil, traz avanos tecnolgicos cada vez mais significa-
tivos e presentes no cotidiano da populao, tanto por sua tecnologia de produo
e transmisso de imagem, quanto pela interatividade que, como reflexo, oferece a
possibilidade de novos formatos de contedo.
um sistema de radiodifuso televisiva que transmite sinais digitais em lugar
dos analgicos. Mais eficiente no que diz respeito recepo dos sinais, a transmis-
so digital apresenta uma srie de inovaes sob o ponto de vista esttico, como a
possibilidade de se obter uma imagem mais larga que a atual e com um maior grau de
resoluo, bem como um som estreo envolvente, alm da disponibilidade de vrios
49
programas num mesmo canal. Sua maior novidade, no entanto, parece ser a capaci-
dade de possibilitar a convergncia entre diversos meios de comunicao eletrnicos,
entre eles a telefonia fixa e mvel, a radiodifuso, a transmisso de dados e o acesso
Internet. (Boloo; Vieira, 2004:5 )
Pesquisas indicam que 92% das residncias brasileiras possuem aparelhos de te-
leviso e, de acordo com decreto presidencial, at 2016, todos esses aparelhos de-
vero estar adaptados para receber o sinal digital. A televiso digital que est sendo
discutida e em voga nas mdias a televiso digital aberta, a TV digital terrestre com
transmisso via UHF, a qual qualquer um com uma simples antena de baixo custo
pode receber o sinal. Entretanto o termo televiso digital tambm utilizado para
determinar a televiso digital a cabo, via satlite e IPTV televiso via internet.
O Cinema Interativo pode utilizar a televiso digital como meio, desde que haja
adaptaes, testes tcnicos e estudos a respeito de outras plataformas tecnolgicas
que possuem suporte a esse conceito. No caso da televiso aberta terrestre, neces-
srio alto processamento interno do aparelho e a incluso do Ginga conectado in-
ternet. O celular, que tambm recebe contedo via broadcast, traz a possibilidade de
consumir o contedo por meio de aplicativos especficos. A opo Netflix, desde que
passe por adequaes no quesito software, mais vantajosa por no apresentar pro-
blemas com tela e transmisso, alm de ser on-demand e conectada com a internet.
A televiso modifica seu modo de uso quando se torna participativa, por outro
53
lado, as pessoas passam a adotar comportamentos diferentes frente televiso. As-
sim, abre-se uma oportunidade de utilizao do cinema interativo de formar um novo
segmento de pblico. Aquele que gosta da linguagem cinematogrfica est disposto
participar ativamente da histria e deseja assistir ao filme em sua casa quando for
conveniente. Este trabalho apresentou uma perspectiva de uso atravs do exemplo
do game The Walking Dead como um dispositivo que pode ser adaptado como um
filme cinematogrfico interativo e disponibilizado na televiso digital, entretanto, o
produto da aproximao destes trs elementos: o contedo interativo, o cinema e a
televiso no se restringem somente a games, mas sim, aberto as produes criativas
nos diversos gneros.
REFERNCIAS
MANOVICH, L (2001). The language of new media. Cambridge, UK: The MIT Press.
Denize Araujo
Luis Fernando Severo
Universidade Tuiuti do Paran UTP Brasil
RESUMO
ABSTRACT
The new digital technologies have caused many changes in the filmmaking process,
increasing the narrative possibilities of film and expanding its expressive capacity as
artistic language. In this new field of experimentation, the realization of a feature film
in a single long take, simulated by Hitchcock in Rope, could become reality in Russian
Ark, by Sokurov.
KEYWORDS: film directing; art language; film narrative; long take, digital technology.
55
1 The art film is nonclassical in that it creates permanent narrational gaps and calls attention to processes
of fabula construction. But these very deviations are placed within new extrinsic norms, resituated as realism
or authorial commentary. Eventually, the art-film narration solicits not only denotative comprehension but
connotative reading, a higher-level interpretation. (Bordwell, 1985:212)
58
autoral. No se trata mais tanto de falar de cineastas autores, mas de filmes auto-
rais, que assim so identificados por essa autoconscincia que revela ao espectador
a prpria instncia narradora. Enquanto os filmes de narrativa clssica trabalham
no sentido de no revelar essa conscincia do processo narrativo, atravs da lin-
guagem transparente obtida pela invisibilidade do corte entre os planos, os filmes
de arte fazem justamente o contrrio, o que para Bordwell um indicativo de que
esses filmes podem ser vistos como autorais. Essas formulaes de Bordwell e de
outros tericos que transitam nessa linha acontecem num momento onde a tcnica
cinematogrfica gira em torno da captao da imagem em pelcula e dos processos
analgicos que a envolvem, tanto no momento da filmagem como na finalizao e
exibio do filme concludo.
o ingls Peter Greenaway se destacou nas ltimas dcadas), falamos aqui das ruptu-
ras dos cdigos de linguagem estabelecidos ao longo de dcadas em relao ao es-
pectador tradicional do cinema, aquele que paga ingresso para fruir um espetculo
ilusionista intermediado por um aparato criativo do qual no se tem conscincia no
momento da exibio. justamente esse espectador que tem sido confrontado por
propostas narrativas anteriormente confinadas s obras que aspiram ao circuito do
cinema dito de arte, e informado pela ampla circulao de imagens via internet, que
se torna tolerante quebra de convenes que at recentemente confinariam uma
produo audiovisual s categorias amadoras e excluso do campo referenciado
pela crtica cinematogrfica.
Robert Stam e Ella Shohat argumentam que o desenvolvimento das novas tec-
nologias audiovisuais representa um impacto dramtico sobre praticamente todas
as eternas questes enfrentadas pela teoria do cinema: a especificidade, a autoria,
a teoria do dispositivo, a espectatorialidade, o realismo e a esttica (Stam & Sho-
hat, 2005: 415).
Diversos fatores diferenciam o equipamento digital de imagem e som do equi-
pamento analgico, mas dois dos mais destacados aspectos que influenciaram os
procedimentos narrativos do cinema foram a facilidade em gerar imagens a baixo
custo e a gravao de sons de alta qualidade em equipamentos facilmente aces-
sveis. No Dogma, cmeras amadoras e ausncia de iluminao artificial geraram
imagens de baixa qualidade tcnica, cujas deficincias foram validadas em troca da
possibilidade do diretor filmar uma enorme quantidade de material, com ngulos
ilimitados e grande velocidade de realizao. Em seu texto A cmera digital, rgo
de um corpo em mutao, Laurent Roth sugere que a cmera uma extenso do
corpo:
Uma das mais nobres e difceis estratgias de mise en scne, o plano-sequncia, tra-
dicionalmente de difcil execuo tcnica, um dos elementos da linguagem cinemato-
grfica que mais se beneficiou da adoo em massa da tecnologia digital na realizao
flmica. Esse procedimento, que tecnicamente consiste numa filmagem de longos planos
sem cortes aparentes, atinge seu apogeu em Arca Russa (Alexsandr Sokurov, 2002), obra
referencial na histria do cinema, filmada em uma tomada nica ininterrupta de 96 mi-
nutos, registrada com uma cmera steadicam no Museu Estatal Hermitage de So Pe-
tesburgo, na Rssia, em 23 de dezembro de 2001, com a participao de 4.500 pessoas,
entre tcnicos, elenco e figurao. Um tour de force de mise-en-scne e enquadramento
filmado num percurso que envolveu trinta e trs salas do Museu. Representando o olhar
de um observador invisvel, alter ego de Sokurov, a cmera tambm protagonista do
filme, transportando o espectador atravs de trezentos anos de histria, desde os tempos
de Pedro, o Grande a turistas admirando as pinturas nas salas expositivas do Hermitage.
O filme de Sokurov oferece um tesouro de histria e cultura russa preservada no Her-
mitage, uma arca deriva em um mundo inquieto e em perptua transformao. At
o advento das cmeras digitais de alta resoluo, que mimetizam com perfeio a quali-
dade esttica da pelcula, a durao mxima de um plano-sequncia era de dez minutos,
tempo limite de uma bobina de filme em uma cmera de 35mm. Apesar de experimen-
tos que simulavam uma durao maior, como aqueles empreendidos em Festim Dia-
blico, que disfaravam habilmente seus cortes e simulavam uma filmagem contnua,
somente no novo milnio a tecnologia digital expande as possibilidades desse recurso
de linguagem, to louvado por importantes crticos e tericos da arte cinematogrfica.
Fazer um longa-metragem ao vivo em apenas um nico plano-sequncia uma
proeza tcnica e tambm uma espcie de defesa radical e expressiva do tipo de cine-
64
ma preconizado por tericos como Andre Bazin e Gilles Deleuze, embora o extenso
trabalho de ps-produo e o uso da tecnologia digital criem facilidades que tornam
essa experincia impura, se tomarmos literalmente algumas premissas tericas des-
ses autores. A transfigurao do tempo em formulao esttica expressa, no uso de
planos longos em movimento ao invs da tradicional decupagem em mltiplos planos
e cortes, elogiada por Bazin e Deleuze em seus escritos pela maior sensao de re-
alismo (como nos filmes de Rossellini), e pela ambiguidade sugerida na manipulao
do tempo, fundamentando a crena de Bazin de que um filme um ato de fotografia,
no de edio. Admirando diretores que se relacionam com os aspectos plsticos da
imagem e no com os recursos da montagem, que, afinal de contas, simplesmente
a ordenao das imagens no tempo, Bazin investe em certos diretores para colocar a
sua f na realidade ao invs da imagem, acreditando que uma tomada em movimento
proporciona uma forma de viso mais real do mundo do que a abordagem clssica fo-
cada na edio (montagem psicolgica), onde uma cena dividida em certo nmero
de elementos fortemente manipulados pelo diretor.
Para Bazin, em contraposio aos filmes como os de Eisenstein e Vertov, onde
a montagem usada para criar contrastes e conflitos em combinaes infinitas, o sig-
nificado no est na imagem, mas na esfera mental e num tempo abstrato criado pela
edio, sendo que um filme uma srie de eventos individuais em que cada um deles
deve ser testemunhado como um todo a partir de apenas um ponto de vista, como
seria o caso na vida real. Este conceito de Bazin fica mais perto da essncia do cinema
e regenera o realismo, sem deixar de gerar ambiguidade. Segundo Bazin, o cinema se
desenvolveu inicialmente como uma espcie de prolongamento da fotografia (se consi-
derarmos que o cinema nada mais do que a projeo sucessiva de quadros estticos
nos dando a iluso de movimento). Porm, o cinema foi tambm, desde o princpio, a
arte que carregou sobre si a tarefa imensa de atingir o ideal da verossimilhana abso-
luta. Segundo Bazin, no se pode dizer que o cinema foi progressivamente percebendo
cada vez maiores potenciais de imitao da realidade, medida que os desenvolvimen-
tos tcnicos foram possibilitando um grau superior de registro. Segundo o autor, desde
o seu incio, o cinema j tinha como inteno-guia, ou at mesmo como um ideal, ento
inalcanvel, a imitao perfeita da realidade. A filmagem num suposto tempo real atra-
vs do plano-sequncia seria a coroao dessa vocao cinematogrfica.
Atravs do controle exercido pelo corte, o cineasta reduz ao mnimos as pos-
sibilidades do espectador estabelecer ele mesmo uma escolha pessoal em relao
fruio do tempo. Quando um realizador abdica inteiramente ao longo do filme ao
poder do corte, est buscando uma relao diferenciada no processo comunicacional
do espectador, principalmente na questo da percepo temporal em relao ao que
a imagem prope claramente ou insinua atravs da mise-en-scne. No caso do filme
Arca Russa, essa proposta esttica se alia a um movimento quase perptuo da cme-
ra, deslizando infinitamente ao longo da narrativa pelos sales, escadas, corredores,
alas e ptios do Hermitage, numa espcie de coreografia sintonizada com os movi-
65
mentos dos atores e prpria expresso esttica irradiada pelas centenas de obras
escultricas e pictricas que desfilam diante da cmera no desenrolar do filme.
A proposio esttica desafiadora estabelecida por Arca Russa, moldada a partir
de sua recusa ao corte e montagem e da sua quebra de cdigos temporais, est for-
temente enraizada numa percepo bergsoniana do tempo, se tomarmos como ponto
de partida a constatao de que os eventos duram e mudam num contnuo heterog-
neo, e que para o filsofo no h mudanas de estados, mas estados de mudana. Por
sua vez, essa expanso das possibilidades da captura da imagem e do som no cinema
digital est intrinsicamente ligada aos avanos possibilitados pelas novas tecnologias,
cujas possibilidades de filmagem contnua com som direto reconfiguram a percepo
do tempo flmico. Ao enveredar pela narrativa que privilegia bruscos saltos temporais
num movimento contnuo dentro do tempo, Sokurov estabelece uma subjetividade
temporal que busca apreender o tempo no cronolgico em sua fundao e mold-lo
sob a aparncia de elegantes e minuciosamente tramados movimentos de cmera.
Ao se lanar na empreitada desafiadora de realizar o primeiro filme da histria do
cinema rodado inteiramente em plano-sequncia, Sokurov utiliza as novas tecnolo-
gias para territorializar o que at ento no passava de um desejo de transcendncia
de uma arte ainda aprisionada pelas limitaes tcnicas inerentes a seus suportes fsi-
cos. Uma arte agora liberada por Arca Russa para maiores vos pelo tempo, espao e
histria. De posse de um pleno domnio sobre seu aparato flmico digital, que permite
a seu cinema apreender o passado e o futuro que coexistem com a imagem, Sokurov
em Arca Russa leva adiante o conceito da imagem-tempo deleuziana, imagem flmica
ps-classicismo, portanto a imagem do cinema moderno, que tem seu marco inicial
em Cidado Kane (Orson Welles, 1941), filme que inaugura uma nova compreenso
do tempo e do movimento no cinema do sculo XX, atravs da ruptura com os elos
sensrio-motores do cinema clssico, fazendo emergir uma estratificao e complexi-
ficao do tempo. Na construo da imagem-tempo, a cmera deixa de captar somen-
te os movimentos para flagrar as relaes mentais implcitas, e subordina a descrio
de um espao a funes do pensamento, dotada que est de um rico conjunto de
funes tcnicas (travellings, planos-sequncia e profundidade de campo).
Segundo Laymert Garcia dos Santos:
O desejo do diretor, que foi pensado e repensado por muitos anos, s poderia ser re-
alizado com a nova tecnologia digital. Nas palavras do prprio diretor, Aleksandr Sokurov3,
3 The idea was for a film shot, as it were, in a single breath. The screen format, cinematography
everything depends on the scissors, on the knife. Editors and producers accumulate then edit using time
66
() a ideia foi para uma tomada de filme, como foi feito, em um nico sopro. O
formato da tela, a cinematografia tudo depende da tesoura, da faca. Editores
e produtores acrescentam, ento, a edio usando tempo de acordo com seus
desejos. E eu queria tentar me encaixar dentro do prprio fluir do tempo, sem
refazer, de acordo com meus desejos (Greer, 2003: 65).
Kristen Daly, PhD em Comunicao pela University of Columbia, NY, com pesquisa
em tecnologia, novas mdias e cinema, explicita, em seu artigo sobre a mudana causa-
da pelas novas tecnologias no cinema, New Mode of Cinema: How Digital Technologies
are Changing Aesthetics and Style, as dificuldades de filmar em processo analgico4:
BORDWELL, David (1985). Narration in the fiction film. Madison: University of Wisconsin Press.
DALY, Kristen M. (2009). New Mode of Cinema: How Digital Technologies are Chang-
ing Aesthetics and Style. Kinephanos. http://www.kinephanos.ca/2009/new-mode-
-of-cinema-how-digital-technologies-are-changing-aesthetics-and-style/ (data de
consulta: abril de 2016).
GREER, Darroch (2003). No Cut = Directors Cut. Millimeter, Vol. 31, Nm. 3, 2003, p. 65.
LIPOVETSKY, Gilles (2010). A Tela Global - mdias culturais e cinema na era hipermo-
derna. Porto Alegre: Editora Sulina.
MANOVICH, Lev, The Language of New Media. Cambridge: The MIT Press, 2001.
SANTOS, Laymert Garcia (2002). Entrando na Arca Russa. In: Alvaro Machado (org.).
Aleksandr Sokurov. So Paulo: Cosac Naify, pp. 64-103.
Filmografia
Arca Russa (Russkiy Kovcheg). Aleksandr Sokurov (2002). Rssia, 96 minutos.
Festim Diablico (Rope). Alfred Hitchcock (1948). Estados Unidos, 77 minutos.
70 1952-1974: GNEROS POPULARES E COPRODUO
CINEMATOGRFICA NA EUROPA MEDITERRNEA
RESUMO
Entre o incio dos anos cinquenta e meados da dcada de setenta do sc. XX, a Europa
mediterrnea viveu uma era de ouro dos gneros populares, graas, em larga medi-
da, a um modelo de coproduo que permitiu revitalizar as indstrias de cinema em
Itlia, Frana e Espanha, e concorrer com o cinema de Hollywood na produo de g-
neros como o western e o filme policial, nos quais se destacaram cineastas talentosos
como Sergio Leone e Jean-Pierre Melville.
ABSTRACT
INTRODUO
OS GNEROS POPULARES
4 Em 1952, apenas se realizaram duas dezenas de coprodues entre Frana e Itlia mas, em 1960,
das 158 longas-metragens com participao francesa, 50% resultaram de coprodues, envolvendo Itlia,
Espanha ou a antiga RFA (Temple e Witt, 2004: 212).
5 Com efeito, em 1957, dos 411.600.000 bilhetes de cinema vendidos no territrio gauls, 50%
correspondia a filmes franceses (incluindo coprodues) e apenas 32% a filmes norte-americanos (Billard,
1995: 657). No final dos anos sessenta, o nmero de filmes europeus exibidos em pases como Portugal,
Espanha, Grcia e Turquia, j superava os norte-americanos, graas, em larga medida, enorme popularidade
dos westerns europeus (Eleftheriotis, 2001: 106).
6 A ttulo de exemplo, em 1962 foram distribudas 43 produes e coprodues italianas nos EUA, 54
na Argentina, 39 no Brasil e 26 no Egipto. Em Portugal, foram 43. (Nowell-Smith e Ricci, 1998: 77).
74
a produo cinematogrfica7. Os acordos governamentais estabelecidos entre
Frana e Itlia, tendo em vista recuperar as indstrias de cinema nacionais e con-
trariar a hegemonia do cinema norte-americano, atravs do incentivo coprodu-
o de filmes de gnero (capazes de atrair o grande pblico s salas de cinema),
estiveram na origem de obras como Nez de Cuir (1952) de Yves Alegret, Fanfan
La Tulipe (1952) e Lucrce Borgia (1953) de Christian- Jacques, D. Camilo (1952) e
Le Retour de D. Camilo (1953) de Julien Duvivier, Les Trois Mousquetaires (1953)
de Andr Hunebelle ou Attila (1954) de Pietro Francisci, cujo sucesso permitiu
cimentar um modelo de coproduo que, no s garantiu o florescimento dos
gneros populares na Europa mediterrnea, como estimulou o desenvolvimento
de um cinema transnacional, claramente dirigido a um pblico adepto do filme de
aventuras hollywoodiano.
Apesar do sucesso dos melodramas de Raffaello Matarazzo e das comdias
classificadas como neorrealismo rosa8, o declnio de popularidade destes gneros
no final dos anos cinquenta constituiu um reflexo das enormes transformaes so-
cioculturais que se verificaram num perodo marcado pelo boom demogrfico do
ps-guerra e o chamado milagre econmico dos anos sessenta, abrindo caminho a
novos gneros (bastante estilizados), que fizeram furor nas dcadas de 1960 e 1970
(Brunneta, 2011: 116), coincidindo com o que Ennio De Concini classificou como
middle-classicization of the proletariat (Bondanella, 2009: 170). O chamado cine-
ma de massas deste perodo caracteriza-se assim pelo surgimento, apogeu e decl-
nio de trs grandes ciclos que dominaram a coproduo cinematogrfica na Europa
mediterrnea: o peplum e o cinema de aventuras de capa e espada (entre 1958 e
1964), o euro-western (entre 1965 e 1971), e o filme policial/criminal, que comea
a desenvolver-se em meados da dcada de 1950 e assume a primazia entre 1972 e
19769. Estes filmes revelam, contudo, uma linha de continuidade que aponta para
a crescente hibridizao dos gneros populares, e para o desenvolvimento de um
modelo cinematogrfico transnacional que, nascendo numa clara relao com o ci-
nema de Hollywood, possui razes em diversas formas da cultura popular europeia,
em especial o imaginrio histrico e lendrio, a mitologia greco-romana, a novela
de aventuras do sc. XIX e a banda desenhada.
7 A ttulo de exemplo, enquanto obras aclamadas como Les Mepris (J. L. Godard, 1963) e Pierre le
fou (J. L. Godard, 1964), registavam respetivamente 1.330.000 e 1.625.000 espetadores em Frana, filmes
de aventuras como Cartouche (P. De Broca, 1962) e La Tulipe Noir (C. Jacque, 1963), registaram 3.600.000 e
3.100.000 espectadores, respetivamente, s no mercado gauls.
8 Cujo epitome foi a srie Po, Amor e (1954-1956) protagonizada por Gina Lollobrigida, Sophia
Loren e Vittorio De Sica.
9 A estes, poderamos juntar tambm a comdia, sendo de destacar o enorme sucesso internacional
da srie de filmes dedicados personagem Don Camilo (1952-1965), e o filme de terror que ganhou expresso
no incio dos anos sessenta, graas a filmes como La ragazza che sapeva troppo (1963) e I tre volti della paura/
Black Sabath (1963) de Mario Bava.
75
O PEPLUM E O FILME DE CAPA E ESPADA
O EURO-WESTERN
O xito de Per un pugno di dolari (S. Leone, 1964) assinalou o rpido declnio do
peplum e a emergncia do euro-western, o mais prolfico dos gneros populares eu-
ropeus, vulgarmente conhecido como spaghetti western. Foram cerca de 450 filmes,
produzidos durante as dcadas de 1960 e 1970, meia centena dos quais, realizados por
cineastas talentosos como Sergio Leone, Sergio Corbucci, Tonino valerii, Gianfranco Pa-
rolini e Sergio Sollima, conquistaram um lugar na histria deste gnero cinematogrfico.
Coincidindo com o fim do perodo clssico do cinema de Hollywood (e o declnio
do western norte-americano), a emergncia do euro-western em meados da dcada
de sessenta assinala a reinveno (europeia) do mais americano dos gneros cinema-
77
togrficos. Com efeito, apesar da enorme admirao que nutriam pelo trabalho dos
mestres norte-americanos John Ford, Howard Hawks, Raoul Walsh ou John Sturges,
os realizadores e argumentistas europeus protagonizaram uma rutura com a tradio
narrativa e formal do western de Hollywood, distinguindo-se destes pelo tratamento
mais explcito e estilizado da violncia, e pela amoralidade dos protagonistas, num es-
tilo que acabaria por influenciar tambm os westerns norte-americanos. Recheados
de referncias aos grandes westerns clssicos, os melhores euro-westerns revelam
uma sensibilidade ps-moderna (Frayling, 1998: xii). Com efeito, os filmes de Leone,
Corbucci e Parolini so filmes sobre filmes, obras conscientes de uma tradio cine-
matogrfica que estes realizadores admiravam, mas qual no pertenciam.
Aps a saturao de mercado verificada no final dos anos sessenta, o euro-wes-
tern entrou inevitavelmente em declnio com o ciclo de pardias lanado pelo clebre
Trinit (1971) de Enzo Barbonni e foi rapidamente substitudo pelo filme policial/cri-
minal, que desde ento representa o principal modelo genrico do cinema de ao.
Sem dvida, um dos gneros maiores da histria do cinema, o filme policial foi
evoluindo ao longo do sculo XX, dando origem a subgneros como o filme de gangs-
ters, o film- noir, o filme de investigao policial e os chamados caper movies (filmes
de assaltos). Ao contrrio do western, o filme policial e o thriller criminal posicionam a
narrativa num perodo contemporneo, decorrendo em cenrios urbanos e com perso-
nagens que se movem no meio do crime. As suas origens remontam a obras como The
Musketeers of Pig Alley (D.W. Griffith, 1912), Regeneration (R. Walsh, 1915) e Fantmas
(L. Feulliade, 1914/1915), mas apesar do xito alcanado pelo seriado francs, foi o ci-
nema norte-americano que dominou o gnero, determinado toda a evoluo posterior
at ao incio da II Guerra Mundial. A ecloso do film-noir, durante e imediatamente
aps o conflito foi, no entanto, profundamente devedora da influncia exercida pelos
muitos profissionais da indstria de cinema europeia que procuraram refugio da ocu-
pao nazi em Hollywood. Assim, para alm do contributo (geralmente reconhecido)
de cineastas e diretores de fotografia germnicos como Fritz Lang e Robert Siodmak, o
film-noir bebeu igualmente inspirao no chamado realismo potico francs, em parti-
cular filmes-chave como La chienne (J. Renoir, 1931), Pp Le Moko (J. Duvivier, 1937),
Le jour se lve (M. Carn, 1939) e La bte humaine (J. Renoir, 1938), que viriam a ser
alvo de remakes hollywoodianos, mais ou menos assumidos, como Algiers (J. Cromwell,
1939), Scarlet Street (F. Lang, 1945) e Human Desire (F. Lang, 1954).
Em meados da dcada de 1950, coincidindo com o declnio do film- noir america-
no (bastante popular em Frana e Itlia), cineastas como Jacques Becker, Jean -Pierre
Melville e Henri Verneuil fundiram a esttica noir no filme policial e desenvolveram
o chamado euro-noir, em obras como Touchez pas au grisbi (J. Becker, 1954), Bob le
flambeur (J.P. Melville, 1955), Du rififi chez les hommes (J. Dassin, 1955), Un tmoin
78
dans la ville (E. Molinaro, 1959), Le Doulos (J.P. Melville, 1962), Mlodie en sous sol
(H. Verneuil, 1963) e Le Samourai (J. P. Melville, 1967). Por seu lado, Jean Delannoy
recupera o clebre inspetor Maigret, nascido da pena de George Simenon, e relan-
a o filme de investigao policial com Maigret tend un pige (J. Delannoy, 1958) e
Maigret et laffaire Saint-Fiacre (J. Delannoy, 1959), enquanto Jacques Becker, Andr
Hunebelle e Mario Bava, revisitam a tradio dos folhetins seriados sobre mestres
do crime e, absorvendo a influncia da banda-desenhada e da saga James Bond, re-
alizam xitos como Les aventures dArsne Lupin (J. Becker, 1957), Diabolik (M. Bava,
1968) e a nova trilogia Fantmas (A. Hunebelle, 1964-1967).
Paralelamente ao declnio do western nos EUA e na Europa, o incio da dcada
de setenta marca uma renovao do filme policial/criminal, que assimilou elementos
do western, em particular a figura do justiceiro solitrio e o tratamento explcito da
violncia nos filmes de Leone e Corbucci, adaptando-a realidade sociocultural con-
tempornea, incluindo, no caso de Damiano Damiani, uma forte crtica corrupo
do sistema poltico e judicial italiano.
Estimulado por algumas obras incontornveis do gnero, em particular The Fren-
ch Connection (W. Friedkin, 1971), Dirty Harry (D. Siegel, 1971), The Godfather (F.F.
Coppola, 1972) e Death Wish (M. Winner, 1974), o filme policial/criminal produzido
na Europa mediterrnea revela a influncia exercida pelo cinema de Hollywood, par-
ticularmente em filmes como Citt violenta (S. Sollima, 1971), The Valachi Papers (T.
Young, 1972), Un Flic (J.Pierre Melville, 1972), La Mala Ordina, (F. Di Leo, 1972), Il
cittadino si ribella (E.G. Castellari, 1974), Il giustiziere sfida la citt (U. Lenzi, 1975) e
Roma a mano armata (U. Lenzi, 1976), cujos realizadores e argumentistas souberam
interpretar o apetite do pblico internacional por filmes de ao que refletissem a
realidade social e urbana deste perodo.
11 Cineastas como Val Lewton, Jacques Tourneur, Edgar G. Ulmer, Don Siegel, Andr De Toth, Gordon
Douglas, Budd Boetticher e Samuel Fuller.
80
plums, westerns e filmes policiais europeus. Esta aposta em atores norte-americanos
representou uma estratgia algo oportunista, mas eficaz, tendo como objetivo explo-
rar a familiaridade do pblico internacional com o cinema de Hollywood (incluindo os
seus atores secundrios ou coadjuvantes), estabelecendo assim uma clara associao
entre os gneros populares da Europa Mediterrnea e a quase extinta srie B norte-
-americana, tendo em vista conquistar mercados tradicionalmente dominados pelo
cinema norte-americano12.
CONSIDERAES FINAIS
Dizia Andr Malraux que a arte se alimenta da arte. Sem dvida que os gneros
populares europeus no fogem regra. Frequentemente desvalorizados por uma su-
posta subservincia relativamente ao cinema de Hollywood, o filme de capa e espada,
o pepulm, o filme policial e at o euro-western, nascem e desenvolvem-se numa rela-
o direta no s com o cinema de Hollywood, mas tambm com formas da cultura
popular europeia, em particular o teatro burgus do sc. XIX, o folhetim ilustrado, o
romance policial e a banda desenhada, cuja popularidade esteve na origem de um
imaginrio ficcional transnacional, do qual o cinema de massas se apropriou. Apesar
do carter assumidamente transnacional dos gneros populares13, cujo florescimento
12 Com efeito, atores como Lex Barker e Gordon Scott eram bem conhecidos do pblico juvenil europeu,
pois haviam protagonizado o papel de Tarzan numa dezena de filmes dos anos cinquenta, enquanto outros
como: Cameron Mitchell, Charles Bronson, Jack Palance ou Lee Van Cleef, eram presena regular nos westerns
e filmes de ao e aventura made in Hollywood.
13 Sobre esta questo recomenda-se a leitura de BERGFELDER (2000). THE NATION VANISHES-European
co-productions and popular genre formula in the 1950s and 1960s.
81
s foi possvel graas aos acordos de coproduo estabelecidos na dcada de 1950
entre Itlia, Frana, Espanha e Alemanha, vrias so as obras que revelam uma resis-
tncia ao poder globalizante do cinema de Hollywood e homogeneizao cultural
americana, atravs da preservao de elementos culturais mediterrneos (geografia,
msica, tradies e costumes). Na crtica implcita ao imperialismo americano (Solli-
ma e Damiani), e na procura de solues formais maneiristas e barrocas (Cottafavi,
Melville, Bava ou Leone), os cineastas da Europa mediterrnea romperam com o pa-
radigma clssico de Hollywood e demonstraram uma criatividade e ambio esttica
ainda pouco reconhecida. Na verdade, como verdadeiros artistas que foram, estes
realizadores souberam libertar-se da influncia dos mestres clssicos (Ford, Curtiz,
Fleming, Hawks ou Walsh), e desenvolveram estilos prprios que ajudaram a revitali-
zar o filme de gnero, influenciando novas geraes de cineastas norte-americanos,
como George Lucas, John Carpenter, Quentin Tarantino e Roberto Rodriguez.
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uum.
83
EM RETROSPECTIVA: ALGUNS INCIOS
NA FILMOGRAFIA DE MANOEL DE OLIVEIRA
Wiliam Pianco
CIAC-Centro de Investigao em Artes e Comunicao
Universidade do Algarve
RESUMO
A partir dos anos 1970, a filmografia de Manoel de Oliveira apresenta notveis recor-
rncias temticas e formais. O objetivo deste artigo apresentar uma retrospectiva
que contemple o momento anterior de seu trabalho, no qual possvel observar os
diferentes incios de sua cinematografia. Em ttulos como Aniki-Bob, O pintor e a
cidade, Acto da primavera, A caa, O passado e o presente e Benilde ou a virgem me
encontram-se a gnese de elementos caros ao seu trabalho: o tempo; o olhar para a
mulher; a teatralidade; o mundo histrico; Portugal sociopoltico; a condio huma-
na; os amores frustrados; o texto dito.
ABSTRACT
From the 1970s, Manoel de Oliveiras filmography presents formal and thematic re-
currences. The goal of this article is to introduce a view of a previous moment of
Oliveiras work when we can find different beginnings of his cinematography. In
Aniki-Bob, The painter and the city, Spring act, The hunting, The past and the present
and Benilde or the virgin mother are the genesis of important elements of his work:
time; the gaze into women; theatricality; the historical world; sociopolitical Portugal;
human condition; frustrated love; text proclaimed.
5 Mais especificamente, Oliveira refere-se ao intervalo entre 1942 e 1956, os anos de realizao,
respectivamente, de Aniki-Bob e de O pintor e a cidade. Ou seja, trata-se da meno aos 14 anos de
inatividade cinematogrfica, quando o diretor esteve exclusivamente dedicado aos negcios da famlia e
atento s transformaes do cinema no perodo. Este relato encontra-se completo no livro Conversas com
Manoel de Oliveira (1999), saldo da longa entrevista que o realizador concedeu a Jacques Parsi e Antoine de
Baecque em meados dos anos 1990.
87
No entanto, essa caracterstica cinematogrfica oliveiriana no surge com o
primeiro cinema de Manoel de Oliveira. Entre a fixada marca autoral e a mise-en-
-scne trabalhada pelo diretor nos primrdios de sua carreira h uma consider-
vel variao perceptvel na comparao entre dois ttulos: Douro, faina fluvial e O
pintor e a cidade.
Douro, faina fluvial, a moderna poesia do ferro e do ao, o fascnio da na-
tureza nos seus diversos aspectos e matizes, a tonalidade das horas, a alegria e a
misria do homem na sua luta pelo po de cada dia (Rgio, 1934), conforme disse
Jos Rgio na altura da estreia da obra, o primeiro filme realizado por Manoel de
Oliveira, ento com 22 anos de idade. A mdia-metragem, com 18 minutos de dura-
o, ainda pertencente ao perodo do cinema silencioso e declaradamente inspira-
da em Berlim sinfonia de uma metrpole (1929), de Walter Ruttman, acompanha
a luta diria de trabalhadores mulheres e homens s margens do rio Douro, no Por-
to, cidade natal de Oliveira. E conforme a obra alem que o estimula, o realizador
explora a decupagem acelerada em seu trabalho de estreia para alcanar o ritmo
adequado para a sua poesia feita de ferro, ao, gua, mulheres, homens, animais,
suor e muitos planos.
Em 1956, portanto, 25 anos aps sua estreia como cineasta, Oliveira realiza O
pintor e a cidade6. Nesse filme, mais uma vez, o Porto volta a ter protagonismo frente
s lentes do diretor. Entretanto, o olhar para a localidade obedece motivos distintos
e modos mais meditativos do que os observados em 1931. Com O pintor e a cidade,
primeiro filme a cor de Oliveira (e um dos primeiros a cor do cinema portugus) a c-
mera acompanha Antnio Cruz, pintor que atravessa a cidade em busca de temas e
inspirao para os seus quadros. Nesse percurso, cenas da vida real alternam-se com
as cenas dos quadros; nessa rota, a apreciao atenta do artista que pinta funde-se
com a serena admirao daquele que registra o pintor, a cidade e os quadros, tornan-
do ele prprio a isso tudo uma nova composio de cores e tempo. O que mudou no
decurso de duas dcadas e meia explicado pelo prprio diretor:
6 Entre 1931 e 1956, Manoel de Oliveira realizou Esttuas de Lisboa (1932), Hulha Branca empresa
hidro-elctrica do Rio Ave (1932), Os ltimos temporais cheias do Tejo (1937), Miramar, praia das rosas
(1938), Portugal j faz automveis / J se fabricam automveis em Portugal (1938) tendo todas estas
curtas-metragens menos de 10 minutos de durao; a mdia-metragem Famalico (1940); e sua primeira
longa-metragem Aniki-Bob (1942), sobre a qual este artigo estar detido posteriormente. (Os ttulos e datas
referenciados aqui so retirados de Orlando Margarido, 2005).
88
ANIKI-BOB (1942): O OLHAR PARA A MULHER
7 O conjunto conhecido como tetralogia dos amores frustrados ser abordado mais atentamente ao
longo deste trabalho.
89
conjugando ambientes naturais e sequncias rodadas em locaes, bem como o pro-
veito de um registro naturalista. Por tais caractersticas, crticos como Andr Bazin,
por exemplo, no tardaram a sugerir que Aniki-Bob seria um precursor do Neorre-
alismo Italiano to afeito bandeira da representao objetiva da realidade social
como forma de comprometimento poltico. Ainda assim, Manoel de Oliveira sempre
negou que fosse essa a sua pretenso.
Retomando o olhar sobre a mulher, a partir da disputa de Eduardinho e
Carlitos que Teresinha ser explorada pelo filme como figurao do desentendimento
no mbito da convivncia harmoniosa dentro do universo masculino. No por acaso,
o enigmtico objeto de desejo proibido Teresinha metaforizado na boneca vista
por Carlitos em uma montra e por ele roubada para servir de prenda rapariga. Eis o
pecado instaurado e o potencial caminho irreversvel de um pobre rapaz!
evidente que a alegoria criada pelo cineasta em Aniki-Bob diz respeito ao concre-
to mundo adulto, espelhada ali em suas qualidades virtualmente embrionrias: o roubo
de Carlitos (e seu posterior arrependimento), o acidente sofrido por Eduardinho (o que
gera a injusta suspeita dos amigos sobre o rival), a recusa amorosa da menina (supera-
da pelos garotos, pois ainda crianas). No entanto, enquanto possvel testemunhar o
movimento redentor para os meninos, tal como a boneca roubada e a generalidade das
personagens femininas que a partir de ento passam a orbitar a obra oliveiriana, Teresi-
nha finda a histria no lugar que lhe imposto: a esttica e atemporal montra.
Sendo justo com a mxima oliveiriana, importante salientar que para o cineasta
a dimenso cinematogrfica enquanto modo de expresso reside na imaterialidade.
Ou seja, o cinema existe como espcie de resultado onrico da materialidade registrada
pelos aparatos tcnicos como efeito do registro teatral, no caso. E a relevncia de tal
estilo expressivo em sua obra alcana contornos to demarcados que a referida teatra-
lidade, por vezes, mencionada por crticos e espectadores como um fim em si mesmo
como quando ser teatral implica em sinnimo de ser bom, belo ou correto.
Evidentemente, alguns filmes do realizador reforam o cone construdo em tor-
no da relao cinema-teatro, quando o contato entre as duas artes de tal forma
90
patente que quase poderamos afirmar tratar-se de uma pea filmada. o caso, por
exemplo, de O sapato de cetim, O meu caso, Os canibais, O dia do desespero, Inquie-
tude, Vou para casa, O Quinto Imprio ontem como hoje, Painis de So Vicente de
Fora viso potica (2010) e, o primeiro de todos estes, O Acto da Primavera8.
Em O Acto da Primavera, Manoel de Oliveira mescla fico e documentrio ao
acompanhar o Auto da Paixo representado na Semana Santa por moradores da po-
voao da Curalha, em Trs-os-Montes. Interessado tanto no tema como na forma,
Oliveira mergulha no universo da ao registrando a atividade artstica anual daque-
las pessoas, mas, ao mesmo tempo, revelando o seu prprio aparato de captura ci-
nematogrfica cmera, magnetofones, mquinas, equipe tcnica, etc. so apresen-
tados ao espectador, que defronta o ferramental da produo diretamente no ecr.
Pela primeira vez em sua carreira, o cineasta portugus revela a artificialidade de seu
constructo: o teatro existe, o cinema no.
Se at esse momento de sua atividade o cineasta esteve com os olhos voltados para
o seu prprio pas, com a ateno ainda mais devotada sua terra natal, o Porto, o ttulo
de 1963 tambm inaugura a preocupao do realizador com o mundo histrico, o mun-
do poltico: findando o Acto da Primavera, Manoel de Oliveira opta por no representar
(ou registrar a representao) da ressureio de Cristo. Ao invs disso, expe imagens
documentais do sofrimento proveniente dos modernos conflitos blicos at o expressivo
cogumelo atmico, sendo essas imagens seguidas de rvores em flor, da primavera que
se avizinha, da esperana que ressurge a partir dos desgnios da moral catlica.
Com a metfora de um mundo que pode (deve) escolher entre os atos (e conse-
quncias) de homens afeitos guerra ou aurora de novos tempos, o cineasta comu-
nica um modo discursivo que encontrar eco futuramente, com seus filmes de viagem
e o uso da Alegoria Histrica como recurso narrativo que diz respeito ao passado para
debater o presente9.
Benilde uma obra a que eu dou, hoje, uma importncia muito grande na minha
evoluo, na minha reflexo. Conscientemente, foi quando me dei conta [...]
que tinha de conservar, de fixar (a unidade de tempo e ao da pea de teatro),
para que essa unidade se no perdesse. O cinema s pode fixar. Se houvesse
outro ponto de vista, a unidade perdia-se [...] O cinema no pode ir alm do
teatro, s pode ir sobre o teatro (Oliveira apud COSTA, 2005: 119).
13 Exemplo claro desse gnero de relao entre ator e personagem pode ser observado em O dia do
desespero, quando Teresa Madruga e Mrio Barroso dirigem-se cmera no incio do filme para informarem
quais sero os seus papis no enredo.
14 Este texto j referenciou o Acto da Primavera como caso em que o aparato da artificialidade
cinematogrfica de Oliveira faz-se propositalmente visvel ao espectador, mas podemos notar isso ainda em
Benilde ou a virgem me, O sapato de cetim ou O meu caso, para ficarmos com poucos exemplos.
94
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95
DINMICAS NO CONSENSO: A MUDANA DE REGIME NO
CINEMA DE ATUALIDADES EM PORTUGAL E ESPANHA
RESUMO
RESUMEN
* O texto aqui apresentado resulta da investigao desenvolvida no mbito de duas teses de doutoramento,
ambas sob orientao do Prof. Doutor Vtor Reia-Baptista (uma delas em co-orientao com o Prof. Doutor
Ignacio Aguaded).
96
A Revoluo dos Cravos em 1974 e a morte de Franco em 1975 iniciaram em
Portugal e Espanha processos democrticos mais ou menos contemporneos, mas
com caractersticas naturalmente singulares. As transformaes ocorridas nas so-
ciedades portuguesa e espanhola manifestaram-se no panorama meditico, como
em tantos outros setores. No cinema, em concreto, os jornais de atualidades cine-
matogrficas, instrumentos de propaganda em ambos os regimes e, por isso, mui-
to conotados com eles, foram um dos assuntos por resolver. A forma de os encarar
na mudana de regime em cada um dos pases est relacionada com a confluncia
de dois conjuntos de fatores: por um lado, o contexto socio-histrico de cada um
desses pases e, por outro, as caractersticas que os vrios jornais cinematogrfi-
cos apresentavam, manifestaes mais ou menos gerais de um gnero comum, os
seus esquemas de produo e distribuio e, enfim, o papel que desempenharam
em cada um dos regimes. O presente captulo prope um olhar sobre esse per-
odo de transio, social e meditica, que coincide com o declnio dos noticirios
cinematogrficos, na convico de que observar o trajeto que tiveram no contexto
da Pennsula Ibrica pode constituir mais um contributo para a sua compreenso
enquanto gnero.
CONTEXTOS DE CRIAO
1 O Jornal Portugus foi exibido entre 1938 e 1951. Em 1953 foi substitudo pela revista Imagens de
Portugal (1953-1971).
2 O NO-DO foi exibido entre 1943 e 1981, data da sua extino e converso em Arquivo Histrico NO-DO,
sob alada da Filmoteca Espaola.
3 Tambm o observa Ricardo Braga (2015: 9).
97
tre 1961 e 1975 (Matos-Cruz, 1989)4, ainda que todos, evidentemente, sujeitos a censu-
ra. Por outro lado, embora tenham sido criados com objetivos genericamente comuns,
com fins propagandsticos e doutrinrios, podemos observar que o Jornal Portugus e o
NO-DO tm na sua gnese intenes e circunstncias particulares.
Em Portugal, o contexto era de racionalizao de meios de produo de cinema,
como explica Piarra: A rarefaco da produo de documentrios e a criao do Jor-
nal Portugus, em 1938, deve-se diminuio de pelcula cinematogrfica disponvel.
Tal sucedeu a partir do incio da Guerra Civil espanhola, mas agudizou-se com a eclo-
so da II Guerra Mundial (Piarra, 2006: 91). Evocando a investigao desenvolvida
por Jos de Matos-Cruz, Piarra conta ainda que a estreia do Jornal Portugus ento
no se deveu apenas assumpo de que os jornais cinematogrficos eram um instru-
mento eficaz de propaganda mas correspondeu tambm necessria racionalizao
do uso de pelcula e a reorganizao progressiva do modelo de produo documental
(Piarra, 2006: 91).
Em Espanha, el nacimiento de NO-DO obedeci a intereses claramente polti-
cos, refere Rodrguez (1999: 85) recorrendo investigao desenvolvida sobre o caso
espanhol. Durante a Guerra Civil foram produzidos noticirios em ambos os lados da
barricada. E mesmo depois de terminada a guerra, a instabilidade e o conturbado
contexto poltico adiaram a criao de um rgo de propaganda oficial. Como explica
Tranche, entre a sublevao em 1936 e a criao do NO-DO em 1942, as tenses e
lutas entre as foras nacionalistas (Falange, monrquicos, militares, tradicionalistas,
catlicos, ...) para atingir mais poder tero tido un reflejo directo en los organismos
encargados del control de los medios de comunicacin y de la propaganda, sometidos
a diversos vaivenes polticos, tanto por factores internos como externos (Tranche,
Snchez-Biosca, 2006: 23).
4 Aos quais se acrescentam a produo especfica para os territrios ento colonizados, como foram os
casos de Actualidades de Angola (1957-1975) o Visor Moambicano (1961-1973) e as exibies de jornais
estrangeiros, como o Magazine Rivus Telecine (1979-1983) e o Cineforma-Magazine (1978-1988) (Matos-
Cruz, 1989).
98
lgica, h que ter em conta as caractersticas prprias do gnero, surgido da inter-
seco entre o entretenimento e o tratamento do real, bem como as suas condies
de produo. Desde logo, os noticirios cinematogrficos assumiram uma funo
ilustrativa e complementar dos outros meios de comunicao, abordando factos j
conhecidos do pblico. O seu objetivo geral no era tanto o de informar, pelo me-
nos em primeira mo, mas o de fornecer imagens que ilustrassem, com a espeta-
cularidade possvel, os acontecimentos que a imprensa abordava (McKernan, 2009:
96, entre outros). Nessa sua espetacularidade, poder persuasivo e entretenimento
proporcionado, respondiam tanto s expectativas do pblico quanto s do poder.
No caso das ditaduras estudadas, essas expectativas, e exigncias, permaneceram
para alm da Segunda Guerra Mundial. Neste ponto de vista, os noticirios cine-
matogrficos constituem uma evidncia da evoluo cinematogrfica e do contexto
histrico do sculo passado, ao longo do qual: La imagen cinematogrfica pas a
ser un elemento clave en la gestacin de un nuevo proceso de espectacularizacin
de la poltica (Quintana, 2003: 17).
Tudo isto refletiu-se na prevalncia de notcias relacionadas com o regime, de
acontecimentos de rotina e fait divers, nos quais se privilegiava o carcter cerimonial
e trivial, como refere Piarra relativamente ao caso portugus:
Esa manera de dar forma (in-formar) sobre las noticias, corresponda a ese
deseo de hacer olvidar los horrores pasados y las penurias consecuentes del
momento. (...) De ah que, muy en contra de los clsicos criterios periodsticos
de seleccin informativa en funcin de inters decreciente, se apostase por
un esquema o plantilla en que primase lo banal. Era la misma obsesin presente
en todo momento de olvidar a toda costa (Saturnino Rodrguez, 1999: 155).
El smbolo de esta continuidad fue la institucin del Jefe del Estado, ocupada
ahora por el Rey Don Juan Carlos. Se puede apreciar que los documentales
sobre los actos pblicos del Jefe del Estado siguen los mismos patrones, a ex-
cepcin de la identidad del protagonista. Los mismos desfiles, los mismos re-
cibimientos a dignatarios extranjeros, los mismos viajes por Espaa, etc., son
rodados de la misma manera que se haba hecho durante cuarenta aos con
Franco (Matud Juristo, 2009: 54).
100
Em Portugal, com a Revoluo de Abril, reivindicavam-se os muitos direitos sub-
trados nos tempos da ditadura, um deles o direito s imagens, as de fora e as de
dentro, antes proibidas, censuradas. Jos Filipe Costa resume o sentimento de ento:
Para Costa, essa declarao do fim das imagens do Estado Novo era indicadora
da inteno de mudar as polticas do cinema e at os instrumentos de produo de
imagens. Apesar desta pretenso, a produo nacional de jornais cinematogrficos,
bem como a exibio de atualidades estrangeiras, sobreviveu mais alguns anos para
alm do 25 de abril, e, entretanto, o pas ainda viu nascer, e morrer, um noticirio
criado de raiz no Instituto Portugus de Cinema (IPC): o Jornal Cinematogrfico
Nacional (JCN). Institudo em 1971, ainda no Estado Novo, o Instituto Portugus de
Cinema manteve-se como estrutura oficial durante a transio entre regimes at se
transformar em Instituto Portugus da Arte Cinematogrfica e Audiovisual em 1994
(Matos-Cruz, 1980). Na sequncia do 25 de Abril de 1974, o IPC foi ocupado por um
grupo de cineastas que pretendia a socializao dos meios de produo, distribuio
e exibio do cinema (Reia-Baptista, Martins, 2011: 47) em Portugal, o que suscitou
um dinmico e intenso debate:
Foi neste contexto que se constituiu uma equipa para a produo do Jornal
Cinematogrfico Nacional, que assumiria, de certa forma, as funes dos noticirios
oficiais de outros regimes, no sentido de constituir um veculo de todo um programa
poltico. Oscilando entre os modos e esquemas dos jornais de atualidades do regime
anterior e abordagens tomadas de emprstimo a outras correntes ideolgicas e ci-
nematogrficas, o Jornal Cinematogrfico Nacional foi produzido entre 1975 e 1977
e reportou os principais acontecimentos polticos e sociais da jovem democracia.
101
OS PROTAGONISTAS NA MUDANA DE REGIME
La primera ley social que dimos a Espaa, dice, fue la de la Fiscala de la Vivienda,
que nos permiti conocer el mal de sus viviendas insalubres. Vino inmediatamen-
te el Fuero del Trabajo, carta magna de nuestra justicia social y le sigui la Ley
del Instituto de la Vivienda y despus el Ministerio hoy encargado de crear todos
estos polgonos para que no haya una familia sin hogar. Las palabras del Genera-
lsimo fueron subrayadas expresivamente por la multitud. No hay duda de que la
batalla de la paz y el bienestar de los espaoles se est ganando cada da.
5 Snchez- Biosca (Tranche, Snchez-Biosca, 2006: 323-346) aborda o 18 de julho e a sua representao
no NO-DO, assim como associao veiculada entre a sublevao e incio da guerra face paz instaurada pelo
Regime.
103
respeito dos assistentes. A culminar, novamente discurso de Franco: El Generalsimo
pronuncia unas palabras de felicitacin a todos los que en esta hermosa obra de la orga-
nizacin sindical cooperan a dignificar el trabajo y a elevar a los trabajadores.
Se estas trs reportagens do NO-DO do conta do tratamento feito do calendrio
franquista e da sua figura mxima, o nmero 1646A, de 1974, no qual o futuro rei Juan
Carlos I preside s comemoraes do 18 de julho, ilustrador da transio poltica le-
vada a cabo em Espanha, iniciada pelo prprio Franco, quando o nomeia seu sucessor.
Desde logo, o monarca vai substituindo Franco nas cerimnias do regime e a sua figura
vai ganhando protagonismo ao longo dos anos at cobertura mais extensiva das suas
primeiras viagens oficiais j como rei. Por exemplo, no noticirio 1646B h ainda uma
breve pea, sem ttulo, sobre a inaugurao, presidida pelo prncipe de Espanha, de v-
rias obras do plano de estradas circulares de Madrid. A data coincide com a comemora-
o do 38. Alzamiento Nacional e, embora a inaugurao seja, segundo Snchez-Biosca
(Tranche, Snchez-Biosca, 2006: 241), um dos atos associados ao 18 de julho, o facto
que a referncia efemride vai perdendo destaque. A pea compe-se apenas de ima-
gens areas das estradas e de veculos em circulao, e a narrao explica as caracters-
ticas das estradas. O prncipe apenas mencionado e no merece, ainda, o tratamento
habitualmente dado pelo NO-DO a Franco. O mesmo acontece na reportagem do n.
1646A, de 1974. A estrutura da pea tradicional, composta por planos contexto dos
jardins exteriores e da sala onde decorre a cerimnia, planos da entrega dos prmios e,
por fim, planos do discurso e de aplausos. A narrao marca o tom:
Embora o prncipe substitua Franco e comece a ganhar destaque como seu su-
cessor, no alvo de uma cobertura sequer equivalente que dada ao general. A
sua presena tratada como a de um suplente e a sua relao com o povo no abor-
dada. preciso esperar at depois da morte de Franco para que o j ento rei Juan
Carlos I seja o protagonista do NO-DO, sobretudo nos documentrios produzidos pela
entidade, como observa Matud Juristo:
Perante a referida crispao poltica, interessante que, ainda antes de ser dada
voz ao Presidente da Repblica, a comunicao social seja apontada como moderado-
ra pela narrao: Enquanto se procedia ao contacto direto com o pblico, a rdio e
TV e a imprensa estatizadas, sob rigoroso controlo, distribuam igualmente pelos v-
rios partidos os seus tempos e espaos. Segue-se, ento, a declarao do Presidente:
A voz off do narrador era, nos noticirios, mediadora e comentadora das ideo-
logias, e no deixa de surpreender que as estratgias discursivas sejam to perma-
nentes. A presena da comunicao social nacional e internacional legitimadora
da importncia do ato eleitoral e tambm da Revoluo como marco num novo ca-
lendrio. Do mesmo modo que, em 1962, na pea do NO-DO j abordada sobre uma
106
receo no Palcio da Granja aquando da comemorao do 18 de julho, a presena
da diplomacia conferia legitimidade ao regime franquista: en la conmemoracin de
la fecha histrica que instaur en Espaa la paz fructfera que reconocen y acreditan
con su presencia los representantes de los pases extranjeros. Neste caso, a comu-
nicao social, instrumento da liberdade e da democracia, substitui a diplomacia
estrangeira como mecanismo de validao do regime. Apesar da mudana histrica
em Portugal, a abordagem que se faz dos assuntos continua a ser a mesma do ponto
de vista cinematogrfico.
Na edio n. 13 do Jornal Cinematogrfico Nacional, de setembro de 1976, abor-
dam-se as primeiras visitas oficiais de Ramalho Eanes, recentemente eleito Presidente
da Repblica, ao Norte e aos Aores. Esta reportagem contm todos os elementos ca-
ractersticos da cobertura de visitas oficiais: os planos do aeroporto, as saudaes de
chegada, os militares e as comitivas, a escolta policial, os aplausos do povo e as ban-
deiras de apoio, os acenos, os discursos perante a multido. Num primeiro momento,
esto presentes os mecanismos narrativos anteriormente referidos, entre os quais a
valorizao do apoio inequvoco da populao:
En los ltimos meses tambin las ideologas polticas han acudido all a vender
su mercanca. Aprovechando la atraccin y poder de convocatoria del Rastro se
han levantado tenderetes a modo de escaparate y tribuna de ideologas con-
virtiendo una parte del popular mercado en gora poltica. El enfrentamiento
entre los diversos partidos se ha hecho tan frecuente que, retrada la habitual
clientela, se ha puesto en peligro la supervivencia de este popular mercado.
Entre outros planos das bancas, como a da UGT, e alguns pormenores do rebulio
habitual da feira, o narrador explica que um grupo de comerciantes que extienden
sus puestos por la calle, amenaz con no abrirlos si el acoso de los partidos no con-
clua. Durante varias semanas las correras y luchas han sido tan intensas que, espan-
109
tada la clientela, la economa de los pequeos comerciantes se ha visto seriamente
afectada.
Posicionando-se do lado dos pequenos comerciantes, e como que salientando os
perigos do exerccio da poltica na rua, o narrador conclui:
Tal como as bancas dos polticos de ocasio foram deslocadas no Rastro, tam-
bm a poltica e o debate ideolgico foram excludos desta reportagem, em nome
da tradio. O facto que, no perodo da transio, no eram esses os propsitos do
noticirio NO-DO8.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
COSTA, Jos Lus (2001). A revoluo de 74 pela imagem: entre o cinema e a te-
leviso. Princpios para a compreenso do cruzamento dos dispositivos televisivo e
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alidades Filmadas. Coimbra: Minerva.
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Noticirios consultados
NO-DO:
N 10 de maio de 1976
N. 13 de setembro de 1976
N. 18 de janeiro de 1977
N. 23 de 1977
112
112
ARTE E POLTICA NA CRTICA DE CINEMA
ENGAJADA DOS ANOS SETENTA
RESUMO
Aps a ecloso do Cinema Novo brasileiro e do golpe militar nos anos sessenta, al-
guns crticos articulam critrios artsticos com a discusso a respeito do papel poltico
dos filmes. O artigo avalia os critrios de anlise da crtica engajada e as variaes
em torno da esttica e da poltica para demonstrar como o debate da forma artstica
tornava-se um imperativo da resistncia ao regime militar.
ABSTRACT
After the outbreak of the Brazilian Cinema Novo and the military coup in the sixties,
some critics articulate artistic criteria to the discussion about the political role of the
films. The article evaluates the analysis criteria of engaged criticism and variations
around the aesthetics and politics to show how the debate the art form became an
imperative of resistance to the military regime.
O estudo comea pelo contedo e pelo enredo. O vis sociolgico revela ao mes-
mo tempo a representao da violncia e a viso de mundo conservadora dos fil-
mes estrangeiros. Esse tipo de anlise caracteriza o especfico do projeto editorial
de Opinio e sinaliza a presena forte de uma cultura engajada. Embora os crticos
entrevistados no se refiram a esse padro de maneira consciente, vez por outra, eles
exercitam este modelo (Adamatti, 2015). Trata-se da liga entre crticos estetas e enga-
jados num jornal de resistncia: explicar de maneira didtica o que existe por detrs
do discurso dos filmes e qual sua relao com a realidade. Esse mtodo de trabalho
aplicado ao cinema de gnero, geralmente hollywoodiano, quando no se localizam
maiores virtudes artsticas no material. Em alguns colaboradores pouco conhecidos
de Opinio, a produo vista quase como reflexo, reacionrio ou conservador, da
maneira de pensar da sociedade capitalista. s vezes fora-se uma comparao com o
imperialismo americano. Ao mesmo tempo se dilui o estudo da forma cinematogrfi-
ca em prol do contedo poltico.
Esse critrio dialoga com a crtica marxista e v as obras como produto da histria,
deixando de lado o ponto de vista artstico. Interessada em auxiliar no desenvolvimento
analtico do pblico e informar sobre os efeitos inconscientes da produo de sentido da
linguagem, a crtica marxista revela a correlao entre a ideologia dos filmes e o dispo-
sitivo cinematogrfico. Seu mtodo de anlise parte da comparao entre a produo, a
viso de mundo do diretor e sua classe social (Eagleton, 2011, Coutinho, 1968).
O trabalho com a viso de mundo dos cineastas transita entre os critrios da
crtica esttica e da poltica. Na primeira matriz, o filme visto como um veculo
encarregado de trazer a sensibilidade, a viso de mundo e a expresso pessoal do
cineasta. Era muito comum a Poltica dos Autores relacionar a temtica de uma obra,
a personalidade de um diretor com a ideia de um dirio ntimo (Bernardet, 1994). En-
1 Bernardet, Jean-Claude. Viva a morte. Opinio. n. 115, p. 24, 17 jan. 1975.
116
quanto isso, a matriz da crtica marxista reala a correlao entre determinada classe
social e a viso de mundo de um realizador.
Partindo do projeto editorial acima esboado, aprofundamos na sequncia as
gradaes em torno da conjuno entre a esttica e a poltica nos crticos. H desde
artigos que no decompem as cenas dos filmes e estabelecem relaes maquinais
com a viso de mundo professada, at outros que avanam na anlise da imagem,
com ateno ao especfico do cinema e conexo entre a obra e a situao histrica.
Um crtico voltado mise en scne como Srgio Augusto at pode observar o discur-
so poltico dos filmes, mas foge do paralelo com a ideologia, porque no planifica a
representao social mostrada nas telas. Nele, a viso de mundo das obras pode ter
carter pessoal ou social, sem recorrer ideia de ocultao da realidade.
Sobre o percurso histrico da figura do delinquente e sua reinterpretao em
Hollywood, afirma Augusto que:
3 Dahl, Gustavo. Polanski - a linguagem intil. Opinio. n. 116, p. 24, 24 jan. 1975.
4 Avellar, Jos Carlos. Bolero Serrano. Opinio, n. 180, p. 20, 16 abr. 1976.
5 Bernardet, Jean Claude. O anjo de enfeite. Opinio. n. 112, p. 21-2, 27 dez. 1974.
118
() o constrangedor superficialismo do drama encaixa-se perfeio com a
mise en scne: um mistifrio de truques (zoom, cmera lenta, cmara rpida,
planos fixos, tomadas com lente grande-angular, e at um beijo circularmente
descrito como os que Hitchcock aprecia mostrar em melhores lbios e sem tri-
nados de flauta ao fundo) para encher os olhos dos ingnuos. Ou a confluncia
exata entre a frescura de Lelouch, a comiserao de De Sica e o didatismo da
revista Pais e filhos. 6
Esta foi a nica vez que o crtico utilizou a palavra mise en scne para um filme nacio-
nal. Embora o termo seja usado, a descrio no de um autor, mas de um ornamento.
Para piorar O casal cosmopolita e falso: um filme to brasileiro quanto as calas Levis
fabricadas em So Paulo. Isto , no h algo genuinamente nacional e sim uma mera
cpia do cinema estrangeiro. Aqui temos um imperativo poltico como critrio de anlise.
Portanto, o vis poltico aparece em Augusto quando o tema assim o impe,
geralmente atrelado discusso da poltica cinematogrfica. Nesses casos, o mer-
cado surge como inimigo da cinematografia do pas. Alm disso, o tom naciona-
lista e no admite concesses. Para esse tema, os crticos formalistas e militantes
tomam um discurso comum. Tanto Srgio Augusto quanto Jean-Claude Bernardet
defendem a produo nacional e o protecionismo estatal, sem colocar sob questo
estes temas 7. Endossando a atitude do INC (Instituto Nacional de Cinema) de fechar
65 cinemas em So Paulo e Minas Gerais, Augusto declara que se tratou de uma
medida de proteo necessria, no s indstria nacional de filmes, mas tam-
bm aos brios do prprio Instituto (...). Como vemos, at o ncleo esttico incor-
pora ferramentas externas ao campo do cinema quando o debate gira em torno da
poltica cinematogrfica. O tom cinfilo de Srgio Augusto pelas obras estrangeiras
muda nestes casos, porque existe uma guerra pelo mercado. Esse vis indicativo
do perodo, e Pcaut (1990) revela que a tese do nacionalismo era s vezes dotada
de ambivalncia, referindo-se aos pases ricos, ao mesmo tempo, com admirao e
rancor. Esta duplicidade pode ser notada quando Augusto sai de sua postura de neu-
tralidade jornalstica e faz crticas aos americanos que sempre descobrem novos
sub-reptcios de explorar ainda mais a complacncia do nosso mercado exibidor 8.
A tenso entre os parmetros artsticos e polticos torna-se mais evidente quando
os leitores de Opinio questionam os comentrios de Augusto sobre o cinema poltico e
hollywoodiano. A disputa aponta para um acirramento em torno desses critrios entre
os dois grupos. Duas crticas de Srgio Augusto renderam vrias cartas indignadas do
pblico, porque ele questionou Sacco e Vanzetti (1972) de Guiliano Montaldo, que na
poca era considerado um filme poltico de esquerda 9. O autor viu apenas um falso
filme militante que descambava para o melodrama de tribunal, com todos os ex-
cessos de coincidncia e de maniquesmo possveis. Antes da publicao desse texto,
6 Augusto, Srgio. O Love Story de Ipanema. Opinio. n. 151, p. 22-23, 26 set. 1975.
7 Augusto, Srgio; Bernardet, Jean-Claude. A luta fora da tela. Opinio. n. 23, p.17, 09 a 16 abr. 1973.
8 Augusto, Srgio. Luz! Cmera! Depresso. Opinio. n. 125, p. 22, 28 mar. 1975.
9 Augusto, Srgio. Um melodrama de tribunal. Opinio. n. 20, p. 21, 19 a 26 mar.1973.
119
Augusto realizou uma defesa cinfila de Ensina-me a viver (1971) de Hal Ashby 10.
O pblico tomou os comentrios como um ataque frontal ao cinema poltico.
Logo depois, um redator do jornal encontrou Augusto na rua e declarou sem meias
palavras que o teria demitido por causa do texto. Era a esquerda raivosa dogmti-
ca, explicou o crtico em entrevista (Adamatti, 2015). De todas as cartas, a de Jos
Luiz A. da Silva resume indiretamente os argumentos metodolgicos entre a crtica
esttica e a engajada 11. Ele taxa Augusto de minicrtico ahistrico e apoltico e o
condena por seu envelhecimento poltico. Declara: (Opinio) no tem o direito de
nos impor, j que no nos d outra opo, (...) algum que coloque o cinema acima de
suas implicaes sociais. A frase diz muito sobre o acirramento em relao esttica
do cinema na crtica engajada e o pensamento dos leitores sobre o projeto editorial
de Opinio. Subjulgando a arte poltica, o leitor no aceita que um jornalista passe
por cima dos cnones da esquerda e aborde o cinema acima da poltica, num jornal
da resistncia. como se Augusto sofresse com esse texto um processo de retaliao
dentro da prpria imprensa alternativa, quando Luiz da Silva declara tal crtico no
honra a oportunidade que lhe dada e destoa excessivamente dos demais articulis-
tas. Ou seja, o crtico teria tido a honra de entrar para a resistncia, mas no fez por
merecer. Preferiu pensar o cinema alheio realidade, fora da cultura poltica de es-
querda. No fundo, a acusao de abandonar a crtica poltica e retroceder esttica.
Luiz da Silva tenta descredenciar Augusto por suas preferncias artsticas, mas os
termos utilizados revelam a presena de uma cultura poltica engajada. O missivista v
a produo americana como apoltica simplesmente por seu lugar de origem. Declara
que a histria de amor entre uma idosa e um jovem com tendncias mrbidas pro-
fundamente reacionria e um subproduto capitalista, feito para fingir o combate
sociedade americana. O comentrio demonstra como a anlise do discurso poltico
dos filmes era o critrio mais interiorizado pelos leitores. inconcebvel para Luiz
da Silva que Srgio Augusto desconsidere o debate em torno da ideologia e aprecie
Ensina-me a viver assim mesmo. Essa disputa acirrada entre a funo do cinema como
ilustrao poltica ou campo autnomo recebeu uma resposta altura de Srgio Au-
gusto, acusando os leitores de defender o utilitarismo da arte 12.
Augusto sabe muito bem que Ensina-me a viver no se encaixa no projeto ideolgico
do jornal, mas ousa quebrar esse imperativo em nome do bom cinema. O artigo um
exemplo da dualidade entre a busca de autonomia da arte em relao poltica e a auto-
-colocao do crtico. No texto, ele expe seu encantamento cinfilo e a certeza de que o
filme no tem nenhum intuito de alterar a sociedade. E mesmo assim recomenda a obra.
Quando observamos que as maiores polmicas da seo de cartas estruturam-
-se em torno de Augusto, a afirmao suscita dois debates em torno da autonomia:
10 Augusto, Srgio. O Love Story do Protesto. Opinio. n. 14, p. 20, 05 a 12 fev. 1973.
11 Silva, Jos Luiz A. da. Sacco e Vanzetti um debate Opinio dos leitores. Opinio. n. 23, p. 2; 23, 09 a
16 abr. 1973.
12 Augusto, Srgio. Polmica provinciana e estril. Opinio dos leitores. Opinio. n. 25, p. 2, 23 a 29 abr. 1973.
120
a independncia da arte frente poltica e o direito de escolha do crtico de cinema.
A tenso com o pblico gerada porque Augusto cumpre a funo de defender a
autonomia da arte num jornal onde a cultura poltica engajada muito forte. Geral-
mente, os missivistas veem qualquer manifestao contrria aos fins polticos como
provas de alienao. H, inclusive, uma quase excluso do direito de subjetividade
do crtico e praticamente um desprezo polissemia da arte (Adorno, 1973). Se no
incio do sculo, Ricciotto Canudo lutava pela legitimao artstica do cinema; no
contexto da resistncia parecia um retrocesso aos missivistas que escreviam na se-
o Opinio dos Leitores a reafirmao da autonomia da arte.
como se nestes casos Augusto cumprisse em Opinio o papel de um phr-
makon, como o representante da matriz esttica na resistncia contra o imperati-
vo poltico. A exigncia tem relao com o lugar de origem do debate: a imprensa
alternativa. Ao comentar os filmes, Srgio Augusto exige o direito subjetividade
e se apoia na autoridade conquistada no campo artstico contra a moralidade do
contedo poltico. Ele sintetiza a descrio de Bourdieu (1996) sobre a dualidade
entre arte e engajamento do intelectual. Entra, portanto, na discusso poltica em
nome da autonomia do cinema. O movimento destes textos de Augusto retoma um
debate do sculo XIX, quando a arte afirmava sua autoridade contra o imperativo
poltico e em oposio aos defensores do vis social.
Enquanto isso, os missivistas questionam o parmetro artstico por si s e as
noes de desinteresse, ausncia de funo e primado da forma (Bourdieu, 1996).
Para os leitores e para a matriz poltica, a crtica esttica tem uma concepo ide-
alista e conservadora que mantm as estruturas de poder, ignora as condies de
produo e os conflitos sociais (Ginzburg, 2012). Os missivistas no aceitam a ideia
de um conhecimento desinteressado do cinema americano por seu afastamento
das preocupaes sociais. Contudo, Srgio Augusto no caiu nesses pressupostos.
Ele procurava os antagonismos da realidade na forma ou na temtica do filme, sem
deixar de lado o contexto de produo.
Coube a Srgio Augusto exercer a dualidade entre a crtica voltada esttica
e poltica num jornal de resistncia, sem se subjulgar ao imperativo poltico. O
debate possibilita repensar o papel das vanguardas formalistas na tradio da arte
engajada, que segundo Marcos Napolitano (2011) precisa ser revisto. Trata-se da
antinomia de exercer uma crtica formalista e atuante ao mesmo tempo. Se a en-
trada no debate poltico pela intelectualidade significou uma luta pelo direito dis-
cusso esttica (Bourdieu, 1996), o problema comea quando essa disputa ocorre
dentro de um jornal de resistncia.
Na outra ponta, Jean-Claude Bernardet utiliza duas metodologias diferentes
em suas crticas. A anlise do discurso poltico surge para avaliar o cinema de gne-
ro, brasileiro ou estrangeiro. O segundo parmetro usado para os filmes nacionais
(autorais bom que se diga) que abordam a realidade social. Nesses casos, Bernar-
det une critrios artsticos e polticos. Ele no divide os filmes para analisar, no
121
realiza um julgamento esttico voltado mise en scne, mas procura compreender
a estrutura da sociedade. O pice desse conceito aparece no artigo sobre Lio de
amor (1975) de Eduardo Escorel 13. Longe de um vis sociolgico, Bernardet estabe-
lece uma relao entre a estrutura flmica e a social.
Uma dicotomia interessante surge em relao linguagem do cinema. Quan-
do o tema a poltica cinematogrfica em geral, Bernardet defende a decupagem
clssica e convencional como forma do filme brasileiro conquistar o pblico e o
mercado. Na outra ponta, o cinema moderno questionado por sua inaptido para
atingir o espectador e fornecer informaes sobre a situao do pas. Esse critrio
muda quando Bernardet analisa a produo em cartaz. Nesses casos, a linguagem
clssica criticada por no realar os mecanismos ideolgicos e por no gerar a
reflexo crtica no espectador. A principal queixa em relao decupagem clssica
fingir dar acesso a um pedao da realidade. Nesse sentido, a atitude poltica do
cinema e da resistncia nascia pelo debate em torno da forma e da linguagem.
Com um ponto de vista dialtico, Bernardet aprofunda como um mesmo fil-
me pode ser parte da estrutura do regime militar e da resistncia. Para chegar a
essa concluso, ele aplica uma anlise muito sutil sobre a linguagem da resistn-
cia atravs da composio da personagem. O crtico explica que Lio de amor re-
cebeu recursos do Estado autoritrio. Por esse motivo, Eduardo Escorel no fez
nenhum tipo de denncia desse financiamento na forma do filme, como era de
se esperar do principal montador do Cinema Novo. Portanto, o realizador no
questionou os mecanismos ideolgicos da linguagem clssica. Conseguiu apenas
tematizar, atravs da personagem feminina, sua prpria contradio de cineasta
que quer fazer a oposio ao regime militar, mas precisa trabalhar junto ao Estado
por necessidade de subsistncia. Frulein contratada para fazer a iniciao sexual
do filho de um burgus, mas realmente tem um envolvimento afetivo com o garoto.
Atravs do amor ensinado ao aluno, ela faz uma resistncia sutil ao pensamento
autoritrio dos anos vinte. Esse tipo de observao acurada sobre outras formas
da resistncia mostra o quanto Bernardet estava atento a avaliar como o trabalho
esttico traz uma dimenso poltica na caracterizao da personagem. O crtico
demonstra que as preferncias estticas de Escorel explicam a predileo pela
linguagem clssica, mas o prprio contexto poltico tambm incidiu no formato da
estrutura flmica. Assim, forma e contexto esto to imbricados que impossvel
determinar fronteiras claras entre o projeto poltico e a criao autoral.
No artigo, Bernardet foge de duas posturas estanques da crtica poltica e ar-
tstica. Ele no v uma imposio da superestrutura sobre a forma do filme. Tambm
no analisa a obra por si s a partir de critrios autorais, porque nesse caso estaria
ao lado da crtica obra de arte pura, deslocada do contexto. Ao contrrio, Bernardet
aborda o quanto o estilo de Escorel no o detonador nico da estrutura interna,
13 Bernardet, Jean-Claude. Uma esttica bem comportada? Opinio. n. 194, p. 32, 23 jul. 1976.
122
porque o contexto ditatorial incide na forma da produo cinematogrfica. Surge,
ento, uma metodologia da crtica engajada voltada esttica para demonstrar que
a dimenso social e o estilo no devem ser desconectados. Afinal os fatores externos
so agentes da estrutura interna. Como consequncia, a realidade social transforma-
-se em componente da estrutura cinematogrfica, sem inibir a autonomia da forma
flmica. Bernardet no trata a arte como forma de subordinao poltica, nem v o
cinema somente como parte da estrutura social. Ao contrrio, esttica e poltica com-
plementam-se porque uma fator de composio da outra.
Para os filmes que unem solicitaes estticas e polticas coincidentes com a
forma da sociedade, Bernardet no usa o critrio do ornamento. No se trata de ter
acesso ao real, mas de uma reelaborao factvel da realidade, trazendo a prpria
dinmica da contradio estrutural brasileira na forma flmica. O elogio cabe aos ci-
neastas que abdicam de sua viso de mundo e incorporam a das classes populares,
associando a autoria ao interesse social. Bernardet procurava por grandes obras, cujo
valor esttico determinado na tenso entre a coerncia da estrutura e a multiplici-
dade do universo imaginrio. Os cineastas preferidos renem a esttica apurada com
apelo ao pblico e o engajamento pelo cinema brasileiro.
A possibilidade de separar os crticos de cinema de Opinio entre os polos da arte
e da poltica poderia parecer muito sedutora, mas Pierre Bourdieu (1996) demonstra
que a dicotomia entre os dois lados pertence a qualquer campo da intelectualidade.
Cronologicamente, o intelectual conquistou sua liberdade dentro do campo artstico
contra a poltica. Graas a esse prestgio, ele adentra neste campo para aumentar sua
liberdade de crtica em relao aos poderes. A operao lhe garante um pressuposto
tico, poltico e esttico. Portanto, foi a conquista da autonomia no campo cultural
que tornou possvel o ato inaugural de interveno do intelectual na poltica.
Nenhum intelectual num regime autoritrio pensa a si mesmo como algum dis-
tante das causas polticas. Sob as acusaes de subordinao da arte por causa do
contexto repressivo, pode-se dizer que a discusso poltica do cinema feita em nome
da arte. Isto , os critrios artsticos, mesmo para os crticos engajados, veem antes
dos valores polticos. Tanto verdade que os articulistas de Opinio no apreciam o
contedo poltico de filmes de esquerda como Costa Gravas, Guiliano Montaldo e Elio
Petri. Em nome do cinema como arte, no s como forma de conscientizao, agem
primeiro os crticos de Opinio. Nesse sentido tambm as melhores crticas do polo
engajado utilizaram armas que no so as da poltica a servio da causa pblica.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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RUBIM, Antonio Albino Canelas (1987). Partido comunista, cultura e poltica cultural.
Doutorado em Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Uni-
versidade de So Paulo, So Paulo.
RESUMO
ABSTRACT
In most of Licnio Azevedos movies, the protagonists are women; brave, bold and
determined, it is in them that the filmmaker focuses his gaze. This article places a spe-
cial focus on the following characters: the prostitutes of Night Stop (2002), The Last
Prostitute (1999) and Virgin Margarida (2012); the widows in Disobedience (2002)
and Roofless (2008), and teenagers in The Pitas (1998).
AS PROSTITUTAS
Licnio Azevedo constri nos seus filmes diferentes olhares sobre as origens e o
quotidiano das mulheres que se prostituem, o que, segundo o cineasta, uma influ-
ncia dos filmes de Fellini (Vieira, 2015). No documentrio Paragem Nocturna (2002)
Licnio Azevedo d-nos a conhecer o dia-a-dia das prostitutas Suja, Antnia, Lili, Cinda,
Rosa, Margarida, Odete e Claudina. No caf Monte Mamuli, paragem de camionistas
malawianos, zimbabwianos e moambicanos, elas riem, bebem e conversam. Vtimas
de abandono e de violncia, optaram por prostituir-se para sustentar as famlias. Licnio
Azevedo filma o seu lado alegre e jovial mas tambm mostra que, apesar de estarem
conscientes dos riscos de contrair HIV/AIDS e outras doenas, algumas arriscam em no
se protegerem a troco de mais dinheiro.
Tambm no documentrio A ltima Prostituta (1999), inspirado numa fotografia
tirada pelo fotgrafo Ricardo Rangel em 1975, cinco mulheres falam da sua experincia
nos campos de reeducao, depois de serem levadas no dia 7 de Novembro de 1974,
durante a Operao Limpeza levada a cabo pelas foras portuguesas do governo de
transio e pela Frente de Libertao de Moambique. Nesse dia, grupos de militares
bloquearam a ento Rua Arajo e outras ruas, becos e praas do centro de Loureno
Marques, [] com o propsito de deter agitadores e marginais, afetando sobretudo
as trabalhadores do sexo que atuavam na regio(Thomaz, 2008:178). O documentrio
abre com um plano de pormenor do rosto de uma mulher. A montagem desenrola-se
alternadamente entre quatro momentos; no primeiro, vrias prostitutas contam a sua
1 Recebeu o prmio brasileiro de jornalismo Vladimir Herzog em 1980.
2 Jornal brasileiro publicado em Porto Alegre, entre 1969 e 1980.
126
histria num quarto enquanto arranjam o cabelo e se maquilham; no segundo o fot-
grafo Ricardo Rangel mostra e comenta as fotografias que tirou em 1975 na rua Arajo;
no terceiro o realizador filma em grandes planos fixos o testemunho de prostitutas e
no quarto Licnio Azevedo recorre a duas atrizes e filma o encontro entre uma das pros-
tituta e Margarida, uma virgem que foi por engano para um campo de reeducao. A
montagem alternada destas filmagens confere alguma rigidez ao documentrio, mas
inova ao fundir fico e realidade, caracterstica que vai manter na maior parte dos seus
filmes, ora filmando documentrios como se fosse fico ora o contrrio.
O realizador retorna a este tema em 2012, com a fico Virgem Margarida. Neste
filme assistimos s angstias de uma rapariga de 16 anos, Margarida, que, indo pela
primeira vez cidade de Maputo com a tia para comprar o enxoval para o casamento,
se perde dela na rua Arajo, e, sem Bilhete de Identidade, levada por engano para
um campo de reeducao. Neste filme a personagem principal no a Margarida. So
prostitutas com caractersticas muito fortes. Sem esquecer a comandante Maria Joo,
a militar responsvel, que representa a oposio (Azevedo, 2015). Podemos destacar
nesta histria Rosa, a prostituta franca e destemida, que no tem vergonha do que ,
e reivindica melhores condies de vida dentro do campo. Rosa personifica a mais ex-
cluda das mulheres, mas apresenta-se tambm como smbolo de sobrevivncia e de
luta. Merece tambm particular ateno no filme a personagem Maria Joo. Mulher/
soldado, ela representa o tema da independncia das mulheres pela fora dos seus po-
sicionamentos polticos quando grita no filme; o meu nome Maria Joo, comandante
Maria Joo, sou mulher mas tambm posso ser homem, ela que tambm diz mulhe-
res da m vida [] vo aprender a comportar-se como mulheres [] quando se trans-
formarem sero libertadas para poder servir o pas [] viva as mulheres novas! Mas
de salientar que, no filme, as prostitutas ou a comandante mostram tambm diferentes
perspetivas de uma luta diria em que as mulheres trabalham, mas so tambm irms,
mes, esposas, amantes e amigas.
Constatamos atravs da visualizao e anlise destes filmes que Licnio Azevedo
nunca d uma viso trgica da vida ou do destino das prostitutas, pelo contrrio, nos
seus filmes h histrias de vida difceis, mas h tambm sempre risos e uma mensagem
de esperana. No encara as prostitutas como mulheres fracas, nem as apresenta ape-
nas como vtimas, mas olha sobretudo para elas de uma forma humana encontrando
nos seus gestos e atitudes sofrimento mas tambm alegria.
AS VIVAS
ADOLESCENTES
CONCLUSO
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
TAVARES, Mirian; VIEIRA, Slvia (2015). Cartografias do desejo: a cidade como espa-
o do outro. http://www.proximofuturo.gulbenkian.pt/sites/default/files/ficheiros/
CIAC_FEV.pdf (Setembro de 2015).
THOMAZ, Omar Ribeiro (2015).Escravos sem dono: a experincia social dos campos
de trabalho em Moambique no perodo socialista. http://www.revistas.usp.br/ra/ar-
ticle/viewFile/27305/29077 (Outubro, 2015).
FILMOGRAFIA
ABSTRACT
RESUMO
Between the advent of sound and the enforcement of the Hays Code in 1934,
many female characters were temptresses, seductive women who used their sexual
appeal to seduce men, unmarried women who spent the night with their roman-
tic partners, or married women with lovers. An approach that would contrast with
the representation of women in the Post-Code period. In the end of the story, these
wicked women were not necessarily punished for their behaviour. Something that
could never happen after the enforcement of the Production Code. This type of rep-
resentation of female sexual freedom was the result of its time, a time of female em-
powerment and of new women.
After World War I, the United States had a thriving industry, added to the fact
that European countries owed money to the Unites States. The growth of the industry
provided good wages allowing investment. Many people had access to commodities,
especially a wide range of household appliances. The policies of the American govern-
ment protected the interests of the businessmen, since successful companies meant
less unemployment and higher consumption to stimulate industry (OCallaghan, 1990:
92-93). After 1919, criminality also prospered. A government amendment prohibited
the making and selling of alcoholic drinks to stop rampant alcoholism. The prohibi-
tion, however, was disobeyed and there were thousands of drinking places in base-
ments and backrooms, in many cities. Bootleggerslike Al Caponesold the drinks,
were part of gangs, bribed the police and other public officials and created havoc with
rival mobs fighting for power. They generated corruption, dishonesty and disrespect
for the law1 (OCallaghan, 1990: 95; Reeves, 2000: 92-93).
After the economic prosperity of the post-World War I period, the United States
plunged in an unprecedented economic and social depression. In October 1929, the
New York stock exchange crashed. Since factories were closing down or were re-
ducing its productivity, many Americans lost their jobs. By 1931, about eight million
Americans were unemployed and, as time went by, more people lost their jobs. With
unemployment came homelessness. The crisis also affected farmers who found it dif-
ficult to sell their produce. The situation became worse in 1933 because of pests,
excessive heat, dust storms and a drought that lasted almost ten years (OCallaghan,
1990: 96-99; Reeves 2000, 101-104).
After 1933, the United States government developed an economic programme,
the New Deal, passed a series of laws and set many agencies to help recover from
economic and social despair. These agencies and governmental laws sought to find
relief for the poor, to assist and achieve economic recovery. The agencies were in
charge of things like finding work for the unemployed, aiding the poor and farmers,
ensuring the payment of fair wages, controlling prices, putting the unemployed to
work for the community in exchange for food and a small pay. These measures not
1 The prohibition was abandoned in 1933, but gangsters continued to be powerful and dedicated
themselves to other criminal activities.
132
only gave people a sense of independence and self-respect, it also insured shops had
customers and factories had orders. Despite the efforts, by 1939, ten million people
were unemployed. As it had happened with the Great War, so would World War II be
Americas economic salvation (OCallaghan, 1990: 100-103; Reeves, 2000: 106-112).
By the 1900s, industrialisation had begun to change the role of women. More
women started to work outside their home, especially in the factories. During World
War I, many women joined the war effort and, with a great number of men away, nu-
merous job vacancies proved to be new job opportunities for women. They worked
in industry and business, made ammunitions and items to be used in the war, worked
for the government as typists or stenographs, or in the railroads as clerks or dispatch-
ers. Some jobs carried out by women in these years were actually redefined as wom-
ens jobs, such as telephone operators. Still, these women had to face discrimination,
sexual harassment and were unable to access many skilled jobs. When peace came
in 1918, many women lost their jobs. Some returned to domesticity, others, used to
earn their own money and to a certain independence, managed to keep their jobs
(Cott, 2000: 405-407).
Even in small numbers, there were women in government and politics, many of
them qualified: nurses, lawyers, teachers, professors, engineers, social workers and
even medical doctors. More than forty per cent of all college students were women,
but not all had a chance of enrolling, even if they could afford it, since some colleges
imposed quotas on the percentage of women in a class or the percentage of a certain
ethnic group of women. In the case of female doctors, even if they were able to enrol
and graduate, few hospitals actually accepted female interns. In spite of the growth
in the percentage of professional women, most women worked in domestic service
especially immigrants and black, agriculture, or factories. Many middle and working
class women relied on intermittent work, depending if their husbands were unem-
ployed or not. Still, womens jobs paid less and so they were still largely dependent
on men as breadwinners (Cott, 2000: 426, 429-430, 436-439).
The new woman of the 1920s, the flapper, presented herself in a striking way.
From a middle and upper class background, the flapper circulated socially, showed her
legs, smoked and drank in public, had a short haircut and wore makeup2. These women
did not wear corsets but rather opted to flatten their bosom to achieve straight lines,
enhanced also by the loose-waist dresses. The flapper even pioneered a new way of
dating, without previous introduction or chaperones. Yet, the idea of the flapper is an
over-simplification of 1920s women. Not all women were flappers, and some women,
especially from older generations, found this behaviour scandalous and indecent. The
1920s woman was protected by an increasing number of laws and could now even vote.
Birth control was another achievement of these years, but this was mainly for middle-
class women, working class women had little access and sometimes found their hus-
2 Before, only actresses and prostitutes used makeup.
133
bands unwilling to cooperate (Reeves, 2000: 86; Cott, 2000: 413-414, 435, 440-441).
The liberated behaviour of women, especially in a middle-class background, was
partly the result of the impact and influence of cinema. By this time, movie stars had
become role models. Previously, the example was set by political, professional and
artistic personalities. Female movie characters and themes were actually based on
the average new generation working woman, who formed the majority of theatre
audience. The presentation of such characters was supposed to facilitate the process
of identification in the theatre crowd. What made the movie character different from
the average woman was the glamourized construction of middle and working class
women. In this sense, the women of the 1920s used as their role models glamourized
representations of themselves. The flapper could be represented on film with all her
irreverence, but movie stories still ended with marriage and motherhood, or the pros-
pect of a family. Family life was the ideal and its importance was reinforced as the
flappers, with all their sense of independence, irreverence and defiant behaviour,
threatened to weaken and even destroy the American family (Cott, 2000: 435).
Advertisements played with womens guilt and insecurities. Publicity found in
newspapers, magazines and on the radio heightened the importance of housework so
that everything should be perfect, and that being a mother was a full-time job. Adver-
tising did not only dictate how women should behave, it also showed how they should
look like, by inciting women to groom themselves, to look well and attractive by using
cosmetics. Attractiveness and sexuality became a concern for the young women of
the decade (Cott, 2000: 419-420, 438).
The stock exchange crash had tremendous consequences for the economy and
families of the 1930s. It not only changed spending patterns but it also restricted the
creation and growth of families: couples delayed marriage, divorce rates dropped3,
the sales of contraceptives rose and, of course, birth rates diminished. Many women
in their twenties did not have children or get married. Another problem of the era was
male desertion: some men went abroad to look for work and never came back, which
naturally made the enlargement of their family, left behind, impossible (Cott, 2000:
447-448).
During the economic crisis, as married women held jobs to help support the fam-
ily, unemployed men soon came to believe married working women were stealing
their jobs and their families sustenance. This belief spread and, consequently, several
cities forced employers to fire married women whose husbands were already earning
acceptable wages. In 1931, some states began to limit the employment of married
women in governmental jobs and, in the next year, the federal government issued
the Economy Act, which stated that, if both members of the couple were government
employees, one of them had to forfeit his or her work. Forced to choose, normally
women declined their job since their husbands earned more than them. Womens
3 Because many people could not afford the costs of getting a divorce.
134
groups reacted with rallies and protests, but the Economy Act would only be repealed
in 1937. For many families, the wages resulting from womens work were essential
to their income, even if it was a small wage. In many other jobs, womens presence
was also limited especially in male dominated professions such as college teaching.
Politics was also a male monopoly. Magazines stressed the male point of view, in a
time when men wrote and edited womens magazines. Magazines like Ladies Home
Journal or Outlook and Independent advocated the best thing a woman could do for
her community was to refuse to work for gain as mens jobs were more important.
Women defended their work post by insisting some professions were more suited for
women (Cott, 2000: 452-454).
Before the Great War, the United States relied heavily on foreign cinema, es-
pecially French, Italian, British and even Danish. These films influenced techniques,
aesthetics, narratives and longer runtimes. During World War I, the decrease of Euro-
pean film production coincided with the growth of Hollywood and enabled the Unit-
ed States film market to expand. By 1916, the United States was already the main
supplier of films to the rest of the world. After the war, the American film industry
was thriving, taking advantage of the frail European film production and was able to
impose itself onto foreign markets. These markets were never again able to resume
their early success and productivity4. The success of feature films, in the United States
and abroad, was in part responsible for the development of the big budget films.
Wall Street investment, allied with the national and international success of Ameri-
can films, provided higher budgets used to buy state of the art equipment, lighting,
lavish sets and costumes and higher salaries, especially for internationally recognised
actors. Since films had already earned a profit at home, they were sold cheaply to
foreign markets, thus crippling the development of national cinemas (Nowell-Smith,
1990: 53-58).
The moving picture industry was prosperous after the war. Small companies had
either grown by absorbing others, or had been incorporated into other companies.
In the 1920s, the companies were divided into the Big Three and the Small Five. The
Big Three were Paramount-Publix, Loews MGM and First National, which controlled
big theatre chains. Others like Universal, Fox, Producers Distribution Company, Film
Booking Office and Warner Bros.the Small Fivehad small theatres, or no theatres
at all. One of those companies was Warner Bros., which had no theatres and no distri-
bution and profited mainly from Rin-Tin-Tin and Lubitsch films. In 1924, Warner Bros.
attracted the attention of Wall Street investors and started buying theatres (Dixon,
2008: 33-34).
The success of Warner Bros. after the Great War enabled it to be one of the
pioneers of the sound films. By 1930, the majority of American theatres had already
4 In the mid-twenties, the United Kingdom had to ensure by Act that theatres showed a great
percentage of British films, by setting a quota.
135
been converted to support a sound system5. With an imbedded sound system, the
film was the same independently of the theatre, not relying on external musical score
or sounds that could vary. The talkies not only contributed for the standardisation
of exhibition conditions but also changed the audiences behaviour. The audiences,
accustomed to express openly and loudly their views about the filmic action, were
now ushered by movie patrons or by other members of the audience in order to hear
the dialogue (Thompson, 2003: 194-195, 210; Nowell-Smith, 1990: 211-212; Dixon,
2008: 90).
The conversion to sound forced innovations in lighting, cameras and even edit-
ing. The coming of sound also terminated careers. Some actors with voices consid-
ered unpleasant, that did not match the actors appearance, or with thick foreign
accents were forced to retire from the business. The use of sound in moving pictures
enabled the development of new genres, such as the musical, or the development of
existent genres that took advantage of the sound, like crime and gangster films, or the
slapstick comedy. To crime and gangster films, sound conferred more realism; in the
case of the comedy it became a new source of humour. The script also grew in impor-
tance with great reliance on dialogue, in addition to the development of longer fea-
ture films. Sound permitted telling a more complex story, sometimes heavily based on
literature and more dependent on dialogue (Nowell-Smith, 1990: 207).
Theatre attendances rose due to the novelty of sound, even after the 1929 stock
exchange crash. The effects of the economic depression would reach Hollywood in the
beginning of the thirties, especially in 1933. The Great Depression affected all studios,
except MGM. Many studios had to reorganise themselves financially, to reduce bud-
gets and employees, close theatres and request government assistance. Paramount, for
instance, declared bankruptcy in 1933 and only became profitable again in 1936. RKO
was also bankrupt in the same year as Paramount but was only able to recover during
World War II. Fox Film was also in financial trouble until 1933 and eventually merged
with Twentieth-Century Pictures in 1935. The studios most affected were the ones that
had invested the most in theatre chains; they were the ones that owed more money
to the banks when the Depression hit. Apart from the debts contracted to buy theatres
and convert to sound, the studios also saw their profits fall due to lower cinema atten-
dances. The situation was worsened due to the fact that exports had stagnated because
of the language barrier resultant from Hollywoods conversion to sound, in addition
to the costs of patents disputes. To attract audiences the theatres were forced to set
incentives, promotions and offers. For many people, going to the cinema was an escap-
ism from the harsh and sad reality, which, at least for some hours, boosted their morale
and enabled them to avoid the cold of the streets and of their own houses. For modest
prices, neighbourhood theatres sometimes would be open 24 hours a day. Neverthe-
5 Yet, silent films and the early sound-on-disc system continued to be used until 1931 in order to meet
the need of small town theatres that had not yet converted and for export.
136
less, for many even a dime mattered; there was no money to spare for entertainment
(Nowell-Smith, 1990: 220-223; Bernstein, 2011: 6-7).
For many authors the establishment of Hollywoods studio system started in 1915.
In that year, the Unites States Supreme Court ruled that cinema, being a business, cre-
ated and developed to gain profit, was not covered by the First Amendment to the
Constitution of the United States, which defended the right of free speech and of a free
press6. The studios were to be treated like industries. Between about 1930 and 1948,
the eight largest film companies, the Big FiveParamount, Loews/MGM, Twentieth-
Century Fox, Warner Bros. and RKOand the Little ThreeUniversal, Columbia and
United Artistsoperated under a system called vertical integration. That is to say, a
studio controlled production, distribution and exhibition. The Big Five owned big the-
atre chains and had an international distribution system. These eight big companies
controlled the market by block-booking. Not only did these studios cooperate with
each other by sharing stars and playing each others films in their theatres, the Big Five
also controlled the rest of the market by forcing the unaffiliated theatres7 to rent films
in a packa seasons schedule at a time, films that were not yet in production. The
theatres needed films but this way they were forced to accept poor quality films along
with the good ones. The affiliated theatres, however, were not forced to accept the
same scheme. This arrangement enabled the big studios to control the market, to enjoy
predictable profits for films not yet made and independently of the quality of the prod-
uct, thus enabling them to sustain a stable and constant production rhythm. In order
to fulfil the needs of the market, the studios functioned as an ordinary industry, using a
kind of assembly line. They controlled schedules and budgets, especially in pre-produc-
tion and post-production, using a rigorous management of crew and work. Early on, the
different studios started to develop a generic identity and to be associated to certain
actors or certain films and even to a certain visual style. For instance, Warner Bros. was
known for their hard-boiled gangster films, social melodramas and Busby Berkeleys
musicals; Universal for their horror films; RKO for their Ginger Rogers and Fred Astaire
musicals. MGM was known to have the biggest stars under contract (Monaco, 2010:
15-16; Dixon, 2008: 90-91; Thompson, 2003: 144-146, 214-218; Nowell-Smith, 1990:
45-50; Bernstein, 2011: 5-6, 8-9).
The studios controlled not only film production, distribution and exhibition, but
also the professional, public and even the private lives of the actors. Performers could
be under a seven-year contract during which the studios groomed them with singing,
dancing and acting lessons. They would start by appearing in modest films, to gain
experience, until they were considered ready for the big movies8. Other actors could
be under a six-month option clause, which meant their contract could be terminated
6 But this could be limited in the case of defamation, obscenity and by forms of state censorship,
which occurred during the war.
7 Theatres that did not belong to the Big Five or the Little Three.
8 For some actors the great films and success never came.
137
at any time or they could be put in suspension until the termination of the contract,
especially when an actor refused a role. The studios kept the actors public lives under
tight control and sometimes the control reached the private sphere, as dates were set
between stars to publicise upcoming films. Additionally, a contractual morals clause
forbade stars from attending wild parties and from having extramarital affairs. This
measure was possibly a consequence of the series of crime and sex scandals in Hol-
lywood that shocked public opinion and, in part, led to the creation of the Hays Code
(Dixon, 2008: 93-94; Anderson, 2011: 1-22).
During the Great Depression, when men lost their jobs (and there was again
labor (sic) radicalism throughout the country), and World War II, when women again
entered the work force in significant numbers, media imagery of women was dichoto-
mized (sic) into good or bad (Kitch, 2001: 185). In that sense, until the end of the
1920s, women were represented as victims of men, of their lust, ambition, ideas or
ideals and their violence. However, women could be temptresses in contrast with
good girls, or just misguided, with the wrong values, who, at some point, realise
the importance of love. Bad girls were not always punished and good girls or
reformed girls did not always live happily ever after. After the introduction of sound
films, the thematic continued unaltered.
Sunrise (1927) and Queen Kelly (1929) oppose two types of women: the good
girl or wife and the bad woman. The latter, in the end, suffers some king of punish-
ment for her wrong deeds. In Murnaus Sunrise a woman of the city (Margaret Livings-
ton) seduces a married man (George OBrien) and convinces him to murder his wife
(Janet Gaynor) and move with her to the city. The man, at a critical moment, is unable
to murder his wife. The wife forgives the husband but she disappears during a storm
and he thinks she has died. The woman of the city assumes he has done what they
had planned and, when he sees the wicked woman again, he almost kills her blaming
her for his wifes death. The wife is found alive and the couple end happily together.
The woman of the city was defeated but her fate is unknown.
Erich von Stroheims Queen Kelly juxtaposes two very different women: a crazy
and absolute queen (Seena Owen) and an orphan girl living in an orphanage (Gloria
Swanson). The poor orphan girl, Kitty Kelly, is the focus of a mans lust, a prince,
and the object of rage of another woman, a queen. The prince (Walter Byron), a
well-known playboy, betrothed to the queen, falls for the poor girl, sets fire to the
orphanage just to find her, takes her to the palace and supposedly has sex with her.
After discovering the affair, the queen personally whips her while chasing her out
of the palace. The girl is called to attend her dying aunt in German East Africa. The
aunt owns a brothel and forces her niece to marry an appalling crippled old man.
Kitty Kelly refuses to live with the man she married and becomes a brothel madam
known as Queen Kelly. Stroheims Queen Kelly was never finished, so the ending is
unknown. What is important is that, as in other films of the period, the poor girl is
seduced, and her heart is broken because of a mans lust.
138
Sam Taylors Coquette (1929) tells a sad and tragic love story, an impossible ro-
mance because of familial opposition. Norma (Mary Pickford) is a rich and spoiled
Southern girl who loves to flirt and seduce men, but gets tired of them quickly. Norma
meets and falls in love with a poor man, Michael (Johnny Mack Brown), a relationship
disapproved by her father. Still she intends to marry him once he has saved some
money. They meet and talk alone all night about their future together. Rumours start
to circulate they spent the night together, destroying Normas reputation. Her father
kills Michael and kills himself on trial. Norma ends alone with only her brother. Her
love for a man that her father disapproved destroys her family. In the beginning of the
film Norma is a temptress, she seduces and loves the attention of men. Even though
she ceases that behaviour when she falls in love with Michael, she is still punished.
Produced in 1929 when Hays was doing every effort to eliminate certain behaviours,
in this case not sexual but amorous conduct, Norma seems to have been punished for
her seductiveness. In this sense, the film passes a message: a girl should always be-
have respectably, avoid circumstances where her honour can be questioned, beware
of gossip and always respect her fathers wishes. Otherwise, her reckless attitudes
may destroy her family.
In other movies, womens bad behaviour is pardoned. Show People (1928), di-
rected by King Vidor, presents a woman who becomes deluded by fame and fortune
but in the end realises only love matters. Peggy (Marion Davis) is a girl from Georgia
who goes to Hollywood to be an actress. A slapstick comedian Billy (William Haines)
helps her and finds her a part in a movie. Soon she becomes a successful film star and
changes her name. Her success has an effect on her and she becomes very conceited,
a diva. As her career starts to wane, and she is about to marry a man, who is deceiv-
ing her to take advantage of her success, Billy reappears in her life and brings her to
her senses. He reminds her of the good old days when she had fun and did not take
herself too serious. Billy saves her career and makes her happy again. Peggy learns an
important lesson. She learns that a simple and honest man is worth to know and love
and that appearance is deceptive.
Between the beginning of the 1930s and 1 July 1934, it was possible to find the
story of the bad girl who by the end of the narrative continues her wicked way of life.
Until the effective enforcement of the MPPDA Production Code under Joseph Breens
administration, female characters could be presented as bad, manipulative, or pro-
miscuous with no subsequent punishment. This type of plot occurred in Trouble in
Paradise or Red-Headed Woman both from 1932. In Lubitschs Trouble in Paradise
Lily (Miriam Hopkins) and Gaston (Herbert Marshall) are a couple of con artists who
devise a plan to defraud a very rich woman. In the end they get what they wanted
and simply leave, there is no punishment and no actual regret. Lily and Gaston may
continue their way of life. In Jack Conways Red-Headed Woman, Lillian (Jean Harlow),
also known as Red, is a secretary to a very rich married man, Bill (Chester Morris). Red
139
manages to seduce, taunt and corner him until he leaves his wife and marries her,
though he later recognises their relationship is deemed to failure since it was based
on sex alone. Red not only seeks money and power, she also wants to be socially ac-
cepted. In New York, still married to Bill, she becomes the mistress of a coal tycoon
and of his chauffeur, Albert (Charles Boyer). The two rich men eventually discover
her methods and ambitions and leave her, but not before she shoots Bill. Bill eventu-
ally returns to his forgiving wife. Some time later, the couple sees Red in Paris in the
company of a millionaire with Albert as chauffeur, indicating he is still her lover. At
the eyes of the audience, Red is a temptress, promiscuous, ambitious, unscrupulous,
a marriage wrecker, a threat to family. Both women, Lillian and Lily, continue their
lives of sin and loose morals with no type punishment. This kind of women, with such
behaviour, must have been seen as scandalous, so that when the Hays Code began to
be enforced Trouble in Paradise was not reissued until 1968. Also it is said that Red-
Headed Woman was one of the films that led to a strong enforcement of the Code.
Other representations of wicked women were less excessive. Although these
womens way of life was mundane and untraditional, they could still find love and re-
demption. This was the case of Blonde Venus (1932), or Im no Angel (1933). In Stern-
bergs Blonde Venus, Marlene Dietrich is Helen, a German cabaret singer who married
an American chemist, goes to live in the United States and has a son. Helen decides
to go to work in a nightclub as her husband becomes sick and needs treatment in Eu-
rope. It is thanks to the money she collects that her husband gets the much-needed
treatment. However, when he is away, Helen is unfaithful. She confesses her infidel-
ity to her husband when he returns and he demands custody of their son. Helen runs
away with the boy, but later concedes him to her estranged husband. She becomes
a nightclub sensation in Paris, but in the end, when visiting her son, and after telling
the boy the story of how she met his father, the couple seems to end together. Appar-
ently, by telling the story, the two are reminded of their love. Helen proves she can be
a loving and sacrificing mother, even though she had an extramarital affair, and she
must have prostituted herself to support herself and the child while on the run. Helen
fights for her child and () never gives up her maternal role, her unorthodox femi-
ninity is the result of coexisting antithetical images of female identity. As a sexually
active woman, Helen challenges the conventions of the sexless mother, a convention
well respected by Hollywood cinema (Pravadelli, 2011: 12).
Wesley Ruggles Im no Angel presents Mae West as Tira, a circus singer, who
becomes a lion-tamer sensation. As the title suggests, she is not an angel for she is
smart and has no problems in accepting the courting and advances of a wealthy en-
gaged man. After a misunderstanding, she actually ends up with an even richer man.
The main difference between these last two films and Trouble in Paradise and Red-
Headed Woman, is not just the ending, it is the female characters. In Trouble in Para-
dise and Red-Headed Woman, the two leading women are unscrupulous. They do
140
whatever they need to win, to get their objectives, to get the money, and they do not
regret their actions or feel sorry for anyone. Im no Angel and Blonde Venus present
a different kind of women. Helen does not go after a mans money, she gets success
by her talent and merits, but she is seduced by another man. Tira is ambitious, very
smart and gets the attention of rich men. These men have their appeal for being
rich but they are the ones who go after her, she does not target them as Red does
in Red-Headed Woman. Tira and Helen genuinely get seduced and fall in love with
these men, Red does not. Regarding Lily, one never knows what she would do if a
rich man came along. Given her type of behaviour, and being her true allegiances
unknown, Lily would probably ditch her partner. Tira and Helen are not actually bad
women, and so they have their happy ending, but so do the wicked Lily and Red.
It is no wonder the censors targeted films like Red-Headed Woman or Trouble in
Paradise. These films present ambitious and determined women who live off fraud
and deceit. Instead of being punished, they manage to go on with their lives, doing
whatever they want, harming whoever is on their path, without consequences and
without guilt. Unlike Red and Lily, Tira and Helen have feelings for other people: for
their lovers, husband, or son.
George Cukors Dinner at Eight (1933) is a treaty about different kinds of wom-
en, with an underlying criticism to the rich. Millicent (Billie Burke) is a housewife
who tries to be a perfect hostess and plan the perfect dinner. She is married to a
New York shipping magnate, Oliver (Lionel Barrymore), who once had betrayed her
with a former stage star, Carlotta (Marie Dressler). Paula (Madge Evans), Millicent
and Olivers daughter, has a fianc but has an affair with Larry (John Barrymore), a
once successful silent film actor, who has failed to adapt to the changes in the film
industry. Larry is an alcoholic, is depressed and eventually commits suicide. Kitty
(Jean Harlow) is very ambitious and clever and married to a nouveau-riche mining
tycoon, whom she has married for money. Kitty also has a lover, Dr Wayne Talbot
(Edmund Lowe). The doctor is married to Lucy (Karen Morley), who eventually finds
out about his affair but accepts it because she loves him. These women will not have
very happy endings. Millicent, who values money and power, will soon be a widow
as her husband is dying and supposedly will lose her status. Carlotta will end up fi-
nancially broke. When her husband discovers she is unfaithful, Kitty blackmailsher
husbandto stop him from divorcing her. Their ending is not happy: they keepthe
marriage but it is a faade. Paula, having lost her lover, decides to keep her betrothal
not because she loves her fianc but as a kind of consolation, a second choice. Lucy
accepts being betrayed by her husband. The film is rather complex due to the rela-
tions and relationships between the characters and the variety of themes it touches.
It shows the faults, vices and troubles of the rich: infidelity, love, divorce, financial
ruin, class conflict, alcoholism, suicide and ending careers. In the end, it seems their
financial situation is about to deteriorate because of the Great Depression.
141
9 The application of the Code inevitably became less rigid after the late 1940s. Still, it was officially
maintained until 1968 when it was substituted by a rating system.
142
belief in the moral duty of cinema, in accordance with the sociological studies of the
time. Studies that had concluded cinema had a defining influence on the audiences.
In this sense, the Code recognised and defended the moral importance of film, admit-
ted it affected audiences in a way other arts did not. Therefore it had to function as a
role model to improve the standards of mankind (Leff, 2001: 285-300). Consequently,
in the 1930s and under censorship, prostitution and murder was of course a bad con-
duct for a woman, but so was social unconformity. Even if these women repented
their wicked lives, they would still be punished.
Pre-Code Hollywood, however, was not morally consistent. It pictured stories of
women who were good, victims of the lust and ambition of men and of other women,
or who were seduced by fame and fortune. There were stories of bad, manipulative,
ambitious, con artists, marriage wreckers, or gold-diggers who were not punished
and continued their path. There were tales of seductive women who found love while
looking for a rich husband, in the end finding both. But there were also stories about
good girls who were victims of mens lust, or just victims of gossip, and were not enti-
tled to a happy ending. While good girls would be punished for their supposed mis-
steps, seductive and ambitious girls could find happiness and unscrupulous women
would continue their way of life. In a way, these specimens of femininity reflected the
dichotomy of the traditional view of womanhood and the new woman. This Pre-
Code representation of femininity would be reshaped under the morality of the Hays
Code and female bad conduct would have to be strongly discouraged.
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and Art Simon (eds.). The Willey-Blackwell History of American Film: Volume I Origins
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FILMS
Blonde Venus (1932). Dir. Josef von Sternberg. USA: Paramount Pictures.
Coquette (1929). Directed by Sam Taylor. USA: Pickford Corporation.
Dinner at Eight (1933). Directed by George Cukor. USA: Metro-Goldwyn-Mayer
(MGM).
Im No Angel (1933). Directed by Wesley Ruggles. USA: Paramount Pictures.
Queen Kelly (1929). Directed by Erich von Stroheim. USA: Gloria Swanson Pictures.
Red-Headed Woman (1932). Directed by Jack Conway. USA: Metro-Goldwyn-Mayer
(MGM).
Show People (1928). Directed by King Vidor. USA: Metro-Goldwyn-Mayer (MGM).
Sunrise: A Song of Two Humans (1927). Directed by F. W. Murnau. USA: Fox Film Cor-
poration.
Trouble in Paradise (1932). Directed by Ernst Lubitsch. USA: Paramount Pictures.
144 LITERATURA E CINEMA:
EXPERIMENTAO, INTERTEXTUALIDADE E ADAPTAO
RESUMO
ABSTRACT
This text is constituted as a roadmap for a seminar on Literature and Film. It aims
to approach the relationship between literature and cinema from the perspective
of understanding the nature of literary and cinematic languages, the concepts of
narrative experimentation, intertextuality and adaptation.
O terceiro caso que inclumos neste roteiro o de um filme (de Karel Reisz) feito
a partir de um texto literrio (de John Fowles), no como simples fonte de inspirao
mas como adaptao ao cinema de um romance anterior, mantendo-lhe o mesmo
ttulo: The French Lieutenants Woman (em portugus, A Amante do Tenente Francs).
150
Tal adaptao ter como texto intermedirio o argumento de Harold Pinter.
Primeiramente, umas breves palavras sobre o romancista e esta sua obra
impem-se. John Fowles foi um reputado romancista ingls, nascido em Leigh-on-Sea
(no Essex), em 1926, e falecido em 2005, em Dorset. Licenciado em lngua francesa,
na Universidade de Oxford, foi um leitor e admirador de escritores franceses como
Albert Camus e Jean-Paul Sartre. Exerceu a profisso de professor, tendo-se tornado,
posteriormente, escritor. Em 1963, surge o seu primeiro romance, O Coleccionador.
O sucesso indu-lo escrita de outros romances (como The Aristos, 1963 e The Magus,
1965). Em 1969, publica aquele que se tornar o seu romance mais famoso e premiado,
The French Lieutenants Woman.
Trata-se de um romance baseado nos cdigos romanescos do chamado
romance romntico ou gtico, gnero cujos antecedentes nos fazem recuar ainda
mais, nomeadamente ao romance de costumes do sculo XVIII. Conta-nos a histria
de Charles Smithson, um aristocrata naturalista / antroplogo e noivo de Ernestina
Freeman (filha nica de um rico comerciante), que se apaixona por uma mulher
misteriosa, estranha, melanclica e proscrita pela moral e convenes da sociedade
vitoriana do seu tempo, Sarah Woodruff (a amante do tenente francs). Ela representa
o arqutipo da mulher demonaca (vestida de negro, furtiva), capaz de assumir a sua
inconformidade existencial aos cdigos que regem a condio feminina da poca
os do puritanismo vitoriano , mostrando-se independente do poder masculino
(questo do livre arbtrio) e, mais, evidenciando uma capacidade manipuladora e
instrumentalizadora do sexo oposto (deixa-se seduzir por Charles como terapia para
o seu antigo mal de amor o adltero tenente francs e, depois, deixa-o, numa
das alternativas oferecidas ao leitor). O mais interessante deste romance , no
apenas, o da rigorosa reconstituio da poca inglesa de meados do sculo XIX, mas
a manifestao clara que essa mesma poca objecto do olhar de Fowles enquanto
autor do sculo XX, assumindo-se uma postura irnica (decorrente do prprio fosso
epocal referido) atravs de intervenes na narrativa (comentrios sobre a sociedade
vitoriana; citaes de Darwin, Marx e de poetas da poca; notas de rodap; dilogos
com o leitor) e oferecendo ao leitor trs finais em aberto (em dois deles h casamentos:
um com Ernestina e o outro com Sarah; no terceiro, Charles abandonado pela
ex-governanta da casa dos Talbots). O carcter metaficcional, pardico e de feio
experimental deste romance, conjugado com a abordagem crtica da condio
feminina, situa-o nas fronteiras entre a modernidade e a ps-modernidade do sculo
XX. Dominando com perfeito -vontade os cdigos do romance romntico, bem como
os da comdia de costumes, Fowles abre caminho passagem do romance moderno
para o ps-moderno.
John Fowles entregar a responsabilidade da adaptao do seu romance ao
cinema ao dramaturgo ingls, Harold Pinter, futuro prmio Nobel da Literatura, e a
direco do projecto ao ingls de origem checa, Karel Reisz. Ser justo dizer-se que
aos dois nomes referidos (o do dramaturgo e o do realizador) se deve a criao de
151
uma nova obra-prima: o filme A Amante do Tenente Francs (1981).
Harold Pinter, nascido em Londres, em 1930, e a falecido, em 2008, foi um
reconhecido escritor, poeta, dramaturgo e activista poltico em prol do pacifismo.
Cultivador do chamado teatro do absurdo, conjuntamente com Samuel Beckett e
Eugne Ionesco, vir a ser distinguido pela Academia Sueca, em 2005, com o Prmio
Nobel da Literatura, enfrentando as crticas injustas dos seus ferozes oponentes
polticos que no lhe perdoaram a sua condenao da interveno militar britnica e
norte-americana de 2003 no Iraque. A Pinter se deve muito na concepo dramatrgica
original do filme, nomeadamente a sua condio ps-moderna patente na estrutura
narrativa e na natureza da linguagem.
Karel Reisz, nascido em Ostrava (Checoslovquia), em 1926, e falecido em
Londres, em 2002, foi um cineasta ingls de origem checa e judaica, uma vez que
ainda criana conseguiu escapar ao holocausto quando foi levado para Inglaterra,
a se naturalizando e estabelecendo para o resto da vida (os seus pais morreram em
Auschwitz). Realizou vrios filmes, alguns de grande sucesso, como o caso de A
Amante do Tenente Francs, de 1981. Estudou em Cambridge e cedo manifestou o seu
interesse pela arte cinematogrfica atravs da escrita sobre tcnicas de montagem e,
depois, como protagonista do movimento free cinema que postulava novos caminhos
estticos e empenhamento nas causas sociais. direco de Reisz tambm muito
deve o sucesso do filme, bem como direco artstica, fotografia e qualidade
excepcional do elenco de actores (Meryl Streep e Jeremy Irons, nos respectivos duplos
papis de Sarah / Anna e Mike / Charles). O filme no chegou a ser premiado, mas
Meryl Streep arrecadou o Globo de Ouro, o BAFTA e a sua segunda nomeao para o
scar.
Pinter e Reisz convertem o romance de Fowles numa original linguagem
cinematogrfica, reafirmando o sentido de modernidade / ps-modernidade, pois que
um olhar contemporneo est patente na estrutura metalingustica e metaficcional,
permitindo, por via do tratamento do tema da relao amorosa e do adultrio, a
anlise dos costumes e do problema de gnero (masculino / feminino). Num
desafiante jogo especular apresentam-se, em mise en abyme (the movie within the
movie), duas histrias protagonizadas pelos mesmos actores: uma histria de amor
entre os actores Mick e Anna dentro do filme, passada nos anos setenta do sculo
XX (que acaba com o desencontro final) e a histria de Charles e Sarah, um amor
infractor das rgidas regras de conduta moral da poca vitoriana inglesa (sculo XIX),
que inversamente termina com um desenlace feliz. Em vez dos trs finais possveis de
Fowles, no filme temos dois o da novela sentimental da poca vitoriana (narrativa
de 2 grau) com final feliz e o da poca actual (narrativa de 1 grau) com final infeliz: a
ambgua Anna mantm-se simultaneamente casada e descomprometida em relao
ao amante, Mike. De certo modo, de forma semelhante ao romance, observa-se, pois,
no filme, a contraposio de pontos de vista / tempos (dilogo presente-passado) e
de possibilidades alternativas, mas, na estrutura especular deste ltimo, os cdigos
152
existenciais, comportamentais, culturais e axiolgicos num tempo (sc. XIX) e no
outro (sc. XX) no permitem solues idnticas para as duas histrias: a felicidade
possvel na histria de 2 grau, mas no na de 1 grau.
2 Reveja-se a sequncia inicial da toilette de ambos como se se preparassem para uma justa ou um
duelo, tal como posteriormente a intriga vai desenvolver. Por outro lado, para alm da guerra dos sexos, a
sequncia sugere igualmente a preparao de dois actores colocando a mscara antes de entrarem em cena
e deve ser interpretada em relao com o final, quando Merteuil, desmascarada social e moralmente, retira
a maquilhagem diante do seu espelho.
3 Esta sequncia muda traduz bem o esprito do romance. Ao recital assistem Valmont, Merteuil,
Tourvel e Ccile. A posio das personagens, os olhares trocados, os movimentos da cmara sobre uns e
outros simulam a penetrao psicolgica. A marquesa compreende, ento, os verdadeiros sentimentos de
Valmont relativamente presidente.
159
decorre at vitria do sedutor sobre as suas vtimas (Ccile e Tourvel). A ltima
parte pe em cena a precipitao no confronto entre os dois libertinos e o desenlace
trgico. Por outro lado, no romance os dois libertinos apenas se encontram uma vez,
enquanto no filme contracenam frequentemente. Tal facto acentua a progresso
dramtica que conduz do dilogo cmplice ao confronto final. No obstante, a obra
cinematogrfica preserva algumas cartas lidas em voz off (acrescentando at aquela
em que Merteuil revela a Danceny a ligao entre Valmont e Ccile).
A imagem de abertura do genrico mostra, em grande plano, duas mos
femininas, uma delas ostentando uma pulseira composta por trs fiadas de prolas,
que seguram uma carta lacrada a vermelho, onde est escrito o ttulo do filme,
Dangerous Liaisons. Assim, e especialmente no caso do espectador que no leu o
romance, pode depreender-se que a histria se situa numa poca passada e num meio
social rico e aristocrtico. As mos femininas sugerem que a intriga ser conduzida por
uma mulher. A carta lacrada sugere ainda a correspondncia epistolar e o segredo,
mostrando-se a importncia do objecto carta no filme. Em seguida, assiste-se a
uma montagem alternada sobre os j referidos rituais de toilette da marquesa e do
visconde. Saliente-se o jogo de grandes planos da cmara tanto sobre o reflexo de
Merteuil no espelho como sobre a mscara que Valmont coloca no rosto enquanto
lhe empoam a cabeleira, como sugesto da duplicidade dos libertinos. Os actores
fixam a cmara quando esto prontos num frente-a-frente provocador. Recordemos
que o incipit do romance constitudo por quatro cartas. A primeira e a terceira so
da ingnua Ccile sua amiga e confidente Sophie (personagem eliminada no filme).
A segunda de Merteuil a Valmont, e a quarta constitui a resposta do visconde
marquesa. Aqui os libertinos expem os seus prfidos projectos num tom mundano,
que contrasta fortemente com o estilo da jovem, percebida agora como potencial
vtima inocente. No filme, temos uma longa sequncia de conversas de salo, primeiro
entre Merteuil, Madame de Volanges e a sua filha, s quais vem juntar-se Valmont. So
aqui resumidas cerca de cinquenta pginas do romance at exposio dos planos do
par libertino: seduo da virginal Ccile e da virtuosa presidente de Tourvel. Os dados
esto lanados, tanto para as vtimas como para os sedutores.
A declarao de guerra entre os libertinos ocorre numa cena muito movimentada,
com a cmara a alternar os planos afastados e os grandes planos enquanto mostra
Valmont a perseguir a marquesa pela diviso, ele que viera reclamar de Merteuil a
sua recompensa, depois de lhe anunciar a vitria sobre Tourvel. A recusa daquela,
por acreditar que o visconde est apaixonado pela presidente, deixa-o totalmente
fora de si. Ele afirma-lhe o contrrio, dizendo querer regressar ao porto. O jogo da
cmara aqui crucial, porque carrega de sentido as palavras e os silncios. Merteuil,
em silncio, mostra-nos um rosto que passa da emoo ao dio, acompanhando as
palavras de Valmont, onde ela sente a paixo deste pela rival. O recuo da marquesa
e a forma como se afasta so a sua reaco confisso de Valmont: ce nest
pas ma faute. Por outro lado, esta imagem explica a cena do cruel abandono da
160
presidente por Valmont, com base na mesma frase. A guerra assim declarada conduz
ao final trgico e condenatrio da libertinagem, destruidora tanto para as vtimas
como para os libertinos. O duelo entre Danceny e Valmont, que resulta na morte do
ltimo com a sugesto de um acto suicida, filmado alternadamente agonia da
presidente. Valmont entrega ao cavaleiro as cartas comprometedoras de Merteuil e
f-lo prometer dizer toda a verdade a Tourvel, que morre confortada, ao contrrio da
personagem laclosiana. Merteuil surge desesperada com a morte de Valmont. Depois
humilhada no teatro e, ao invs de ficar desfigurada pela doena, desmaquilha-se
diante do mesmo espelho da sequncia inicial, retirando simbolicamente a mscara.
Esta estrutura circular acentua a passagem do triunfo derrota do par libertino e a
leitura condenatria da libertinagem.
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Filmografia
Ingrid Fechine
Orlando Angelo
Elissama Vitor Barreto
Universidade Estadual da Paraba/Brasil
RESUMO
RESUMEN
La Literatura de Cordel se presenta como un hilo conductor de la comunicacin
presente en las actividades cotidianas, a travs de las informaciones encerradas en
las creencias, actualidad, vivencia y reflexiones sobre hechos. Como un medio de
comunicacin, el cordel estimula el debate social, a partir de un lenguaje peculiar,
compuesto por rimas y juegos de palabras. Desde su surgimiento, estuvo vinculado a
las manifestaciones artsticas, histricas y sociales de las clases populares. En Brasil,
esa funcin fue resaltada por poco acceso a los medios de comunicacin de masa,
haciendo con que los folletos fuesen las principales fuentes de informacin de la
poblacin. De esta forma, y debido a su importancia como documento histrico, el
presente artculo tiene como objetivo exponer los elementos del imaginario religioso
popular existente en los folletos de la Biblioteca tila Almeida, ubicada en el Campus
I de la Universidade Estadual da Paraba (UEPB).
PALABRAS CLAVE: comunicacin, cultura y religiosidad, folleto, literatura de cordel.
* Artigo resultante de parte da investigao intitulada: Escritos da cultura popular: a comunicao atravs da
religiosidade na Literatura de Cordel (Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Cientfica - PIBIC/UEPB
- Cota 2014-2015), apoiada nos estudos do Grupo de Pesquisa Comunicao, Memria e Cultura Popular.
163
1. INTRODUO
O cordel informa, aponta, conta, diverte e estimula a criao em torno dos cau-
sos, partindo do imaginrio popular, falando do cotidiano, da poltica, das realidades
e iluses, personagens pblicos ou annimos; de nossos fatos polmicos do passado,
presente, do que podemos esperar para o futuro. Esse encontro de espaos e ima-
gens sociais caminha com a busca do reconhecimento dessa arte popular, desse saber
peculiar, tradicional e criativo que mostra, com sua permanncia, o seu potencial
comunicativo.
Na cultura paraibana, a importncia do cordel se faz presente e ganha destaque
pela existncia de um grande nmero de admiradores, pesquisadores, leitores e pro-
dutores dessa atividade cultural, que se mantm viva, mesmo diante dos apelos da
modernidade, onde somente os produtos culturais considerados vendveis tm valor
junto mdia.
A cidade de Campina Grande, de modo especial, dispe de um ambiente prop-
cio Literatura de Cordel. Nesta, so realizados grandes eventos que favorecem a sua
divulgao. Cabe destacar que sede da Academia Paraibana de Literatura de Cordel
e, tambm, da Casa do Poeta.
Relevante, tambm, o fato de a UEPB ter uma das maiores bibliotecas de Lite-
ratura de Cordel do mundo, adquirida dos herdeiros do pesquisador, tila Almeida,
onde a pesquisa de campo foi desenvolvida, com a catalogao dos folhetos que
trazem como ttulo, assuntos religiosos. Alm disso, Campina Grande tem no cor-
del um instrumento representativo de sua prpria cultura, sendo o folheto parte
integrante da paisagem da cidade, contando com vrios pontos de vendas, o que
contribui para mant-lo em circulao e estimular a sua publicao.
Nesse contexto, busca-se ampliar os horizontes, entre a Literatura de Cordel e a
religiosidade, compreendendo a sua importncia como meio de informao, de senso
crtico e ldico. Verificou-se aqui, a possibilidade de avanar com os estudos sobre o
cordel, entendendo-o como um instrumento de comunicao e, que, assim sendo,
pode contribuir com o Campo da Comunicao, pelo seu carter interdisciplinar.
A pesquisa se realizou por meio da catalogao e classificao dos folhetos cujos
ttulos possussem vocbulos associados religiosidade, e posterior anlise de con-
tedo de seus versos, com base em Fonseca Jnior (2009). Ao estudar a religiosidade
encontrada nos cordis da Biblioteca tila Almeida, pode-se constatar sua importn-
cia como meio de comunicao, que aborda, de maneira engenhosa e descontrada,
contedos crticos e ldicos relacionados ao imaginrio religioso. Experincias sociais
so expostas com o auxlio da veracidade ou da fantasia dos fatos contados, narrados
com criatividade e descontrao inerentes linguagem que lhe prpria.
Desta forma, pde-se identificar, por meio de suas obras, as influncias e posicio-
namentos dos poetas e cordelistas a respeito de temas que circundam a religiosidade.
164
Tendo em vista, contudo, que suas condutas esto atreladas ao contexto histrico e
social em que esto inseridos, sendo seus folhetos, reflexo do mesmo.
Por ltimo, teve incio a anlise de contedo dos versos dos cordis, por isso
optou-se pela escolha dos folhetos cujas palavras-chave associem seus significados
ao tema F. Desta forma, foram eleitos os folhetos: Milagre na cidade santa, de
Gonalo Ferreira da Silva (1999), O evangelho primeiro do padre Ccero Romo, de
Gonalo Ferreira da Silva (2006), Discusso do macumbeiro com o crente, de Gon-
alo Ferreira da Silva (2001), O beato das praias da costa branca, de Luiz Cludio e
Dcio Germano (2006) e O homem mais importante aos olhos do senhor, de Janduhi
Dantas (2005), dando incio ao processo de inferncia dos folhetos selecionados.
Tendo em vista que a maioria dos folhetos analisados no possuem pginas nu-
meradas, optou-se por realizar a transcrio dos trechos dos cordis relevantes
pesquisa e em seguida executar a anlise de contedo.
No verso acima, o autor deixa claro que, apesar do parecer da Santa Igreja, o
acontecimento mudou a rotina de Juazeiro, hoje visitada por inmeros romeiros de-
votos do padre Ccero.
Os versos abaixo descrevem com preciso o sentimento do poeta, um homem
de f, com o orgulho ferido, por no ter sido reconhecido pela igreja um santo que
zele pelo penar do homem nordestino.
O ttulo do cordel faz referncia aos evangelhos da bblia, onde esto descritas as
proezas realizadas por Jesus e seus discpulos. Desta forma, Gonalo Ferreira da Silva
(2006) utiliza a Literatura de Cordel para narrar os primeiros passos do padre Ccero
Romo e os milagres realizados por ele. As palavras f e milagre so bastante
utilizadas no folheto, estes termos fazem associao temtica F, enquadrando o
cordel nesta categoria.
Aps um longo enunciado, onde so narradas as experincias vividas por padre
Ccero, do nascimento at sua posse como prefeito da cidade de Juazeiro, o autor se
dedica a descrever os milagres realizados pelo padre. No verso abaixo, o autor enuncia:
Em sua cegueira, o homem foi surpreendido com uma voz que lhe dizia fazer
companhia se estivesse indo a Juazeiro. Ao chegar cidade, o homem descobre ter
tido como companhia o famoso padre Ccero e diz:
Folheto: O beato das praias da Costa Branca, de Luiz Cludio e Dcio Germano (2006)
O folheto, de autoria dos poetas, Luiz Cludio e Dcio Germano (2006), descreve
a passagem do Beato Severino pelas praias da Costa Branca, no Estado do Rio Grande
do Norte. Ao longo dos versos pode-se verificar a presena dos vocbulos crena,
f, fiis e milagres, que classificam o folheto no tema recorrente: F.
No segundo verso, os autores revelam o protagonista da histria:
Conselheiro na Bahia
Z Maria em Contestado
Padim Cio em Juazeiro
E o meu povo revoltado
Com tanta badernao
Do sistema desgraado (CLUDIO & GERMANO, 2006, p.5).
Aps a revelao do sonho, Z Joo e sua esposa decidem fazer uma lista com
os nomes das pessoas mais importantes da cidade. Por meio das falas de D. Zefinha,
o autor destaca a ideia de que a importncia que se d s pessoas est associada aos
cargos que ocupa ou aos bens materiais que possui:
Nos versos acima, Janduhi Dantas nos releva quem era o homem mais importan-
te aos olhos do senhor. Sua importncia no vinha de sua ocupao profissional ou de
seus bens materiais, como muitos creem, mas sim de seus valores ticos em relao
vida, sua empatia pelos outros, o respeito pelas diferenas e a honestidade para com
as suas prprias crenas e opinies.
CONSIDERAES FINAIS
REFERNCIAS
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DANTAS, Janduhi (2005). O homem mais importante aos olhos do senhor. Patos.
FONSECA JNIOR, Wilson Corra (2009). Anlise de contedo. In: DUARTE, J.; BAR-
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ROS, A (orgs). Mtodos e tcnicas de pesquisa em comunicao. 2. ed. So Paulo:
Atlas, p. 208-304.
RESUMO
ABSTRACT
The novel by Carlos de Oliveira, Finisterra, published in 1978 , besides being a decay
portrait of a family and of a geographical region , it is also a meditation on literary
and artistic theory concepts. By reference to visual arts such as drawing or photo , the
author / narrator intends to demonstrate the relationship between the artwork and
the reality that is intended to perpetuate and the artwork can really capture the real
object. The purpose of this study is to reflect on how they are used the visual arts in a
search for capture and perpetuation of reality decaying.
Sem desprezar o dilogo do adulto com a criana (ou, mais precisamente, con-
sigo prprio) ou as opinies do pai acerca da fotografia e do rigor quase cientfico
182
da representao fotogrfica, esta talvez uma das mais lcidas reflexes acerca do
real, dos instrumentos intermedirios entre o real e a sua representao e acerca
dessas mesmas representaes. A representao no pode desprezar a componente
imaginativa, que altera o real; nem o sujeito, que sente e contamina com o seu sen-
tir e com a sua imaginao, e nem mesmo a imperfeio e a parcialidade com que
o sujeito se relaciona com o mundo. Essa imperfeio e essa parcialidade geram a
multiplicidade de vises possveis acerca de uma mesma realidade. A contaminao
d-se na modificao que o real sofre na sua representao e atravs do agente au-
tor da representao o sujeito criador. A percepo que o sujeito tem do real e a
maneira como o imagina agora o prprio real. No entanto, tanta lucidez em relao
capacidade de representao de um espao acaba por dar lugar a uma resignao
frustrada em tom de confisso: (desisti de perseguir a realidade ou, melhor, cansei-
-me) (OLIVEIRA, 2003: 77).
A realizao da pirogravura um espectculo de quase horror e, ao mesmo
tempo, traduz o esforo da autora para realizar o seu trabalho. Desde a escolha
do animal at ao mau estado do instrumento de gravao, visvel o esforo de
composio. Construir a representao uma tarefa penosa, cheia de hesitaes e
dificuldades. Curiosa a referncia metamorfose que se d no desenho infantil,
que vem agora interferir na construo da pirogravura. Quando o amigo da famlia
sai para adquirir o cordeiro (sacrificial, como se a construo do simulacro artstico
fosse uma espcie de ritual para apaziguar algo de terrvel) fala com os peregrinos
que povoam o desenho infantil, e o animal que adquire de dimenses estranhas
maior que os potros e os vitelos (OLIVEIRA, 2003: 120). O real que temos j no
o verdadeiro real, mas sim o olhar das personagens real transformado, me-
tamorfoseado pelos sujeitos, subvertido. A pirogravura, que pretende evidenciar o
abstrato da geometria e da imaginao do criador, pretende representar no ape-
nas os contornos de uma paisagem, mas tambm inclui o prprio sujeito criador.
Este sujeito criador da obra acaba por ser o principal filtro entre a obra e o objecto
representado, pois um elemento seleccionador que distingue o saliente em detri-
mento do acessrio.
A ampliao fotogrfica feita pelo pai pretende expressar rigor no retrato que
faz da paisagem que se v da janela. Se bem que o enquadramento o mesmo,
A imaginao cumpre o seu papel para suprir as lacunas para o que no vi-
svel possvel usar a imaginao. A representao do espao fsico familiar funciona
no regime do implcito e do subentendido. Para aquilo que no manifesto basta o
pensamento para o tornar real. O real torna-se domnio da imaginao. No entanto,
at a personagem est esgotada desta procura incessante e infrutfera. Cansada de
perseguir o real, a personagem trabalha com a imaginao e constri a paisagem
dentro da sua prpria conscincia. De repente, as dunas na maquete movem-se e o
que estava apenas imaginado torna-se real na representao. A personagem depara-
-se com o ressurgimento de um tempo anterior, de um cenrio de gnese no qual se
criam mundos paralelos e tempos paralelos. Fala-se de fico cientfica, de guerra
dos mundos, de planetas-robs que defendem o solo primordial contra um sol
destruidor um combate entre o bem e o mal. Tudo isto acontece sem explicao,
sem controlo:
Esta nova experincia que a personagem descreve uma realidade que foge ao
seu controlo, uma imposio feita pela representao construda. As representaes
anteriores dependeram, na sua maioria, dos seus autores, mas, neste caso, toda a me-
tamorfose do espao foge das mos e das intenes do adulto criador. O lugar primor-
dial, de gnese, que se revelou na maquete, no foi previsto pela reconstituio da
paisagem feita pelo adulto e foi alm da sua prpria imaginao. Curioso notar que as
nicas reprodues que no so apenas reprodues mas que se apresentam produti-
vas e criadoras, so as construdas pela dupla criana/adulto: o desenho e a maquete.
Elas sofrem metamorfoses, tal como a paisagem que gradualmente se arruinou. No en-
tanto, a restrio de informao est intensivamente marcada na maquete, enquanto
o desenho infantil se desvenda a si prprio atravs do dilogo, numa clara atitude me-
185
taficcional. A ideia de realidade paralela est bem presente quando a criana e o adulto
se encontram numa interseco de planos temporais passado e presente.
Atravs da anlise da construo das vrias representaes da realidade pode-
mos concluir que o autor faz uso das Artes Visuais para expressar um desejo de pre-
servao fsica e afectiva de uma realidade em decomposio. No entanto, at os
objectos de arte so atingidos pela passagem do tempo e pela gradual runa.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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RESUMO
RESUMEN
CONSIDERAES FINAIS
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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reira e Amlio Pinheiro. So Paulo: Companhia das Letras.
197
A FICO TELEVISIVA E SEU VIS CULTURAL: SIMBOLOGIAS
MSTICO-RELIGIOSAS DE TENDA DOS MILAGRES
RESUMO
ABSTRACT
Quem ateu e viu milagres como eu/Sabe que os deuses sem Deus
No cessam de brotar, nem cansam de esperar/ E o corao que soberano e que senhor
No cabe na escravido...
(Milagres do Povo - Caetano Veloso, tema de abertura de Tenda dos Milagres)
PERCURSO METODOLGICO
6 Joo Saraiva da Silva Neto e Walqusia Raquelle Freire Gouveia, alunos-pesquisadores do Curso de
Comunicao Social da UEPB.
204
SIMBOLOGIAS DE TENDA DOS MILAGRES
A TTULO DE CONCLUSO
REFERNCIAS
ALBUQUERQUE, Paulo Roberto Lopes de. Os smbolos de Xang. IN: MIELE, Neide
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BULHES, Marcelo. A fico nas mdias: um curso sobre a narrativa nos meios audio-
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211
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nal. So Paulo: Editora Senac, 2003.
ISAIA, Artur Cesar; MANOEL, Ivan Aparecido (orgs.). Espiritismo & religies afro-brasi-
leiras: histria e cincias sociais. So Paulo: Uniesp, 2012.
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tempos de globalizao. In: LOPES, Maria Immacolata Vassalo de (Org). Telenovela:
internacionalizao e interculturalidade. So Paulo: Edies Loyola, 2004.
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SILVERSTONE, Roger. Por que estudar a mdia? So Paulo: Edies Loyola, 2002.
RESUMO
RESUMEN
Se objetiva pensar la experiencia del Grupo ExperIeus iniciada a partir del proyecto
Las artes escnicas y sus mltiples lenguajes: aportes a la educacin (UEPB/Monteiro).
Sern descritos los estudios terico-prcticos fundamentales en este proceso, como el
rbol del Teatro del Oprimido, en dilogo directo con Freire y con la nocin de Teatro
Pobre de Grotowski, el concepto de arquetipo de Jung y la dobladura actor-chaman.
Concordando com Augusto Boal que o ser torna-se humano quando inventa
o Teatro (1996, p. 28), defendemos uma investigao e prtica teatral que incite
o pensamento e desenvolva a prpria condio humana. Nesta perspectiva, a arte
teatral defendida assume um papel crucial na formao do ser, exigindo a busca de
conhecimentos teraputicos, filosficos, biolgicos, lingusticos etc. Ou seja, a arte
teatral que se prope fomentar a prpria condio humana ao homem/ mulher deve
primar pelo autoconhecimento/conhecimento de cada um envolvido no processo, de
modo a possibilitar a verdadeira autonomia de cada cidado. claro que tal processo
permanente e contnuo, longo tambm. Cabe a ns no presente artigo descrever e
desdobrar uma experincia que se lanou nesta direo.
Temos como base a experincia que estamos vivendo desde 2014, a partir do projeto
de extenso As artes cnicas e suas mltiplas linguagens: aportes educao (proposto
pela Profa. Dra. Cristiane Agnes Stolet Correia/ UEPB Campus VI), que se pauta em
encontros para discusso terica e investigao prtica da arte teatral, abarcando tanto
aulas semanais abertas comunidade como o processo de consolidao de um grupo de
teatro com fins investigativos e educativos. Assim, a partir de nossa prpria experincia,
abarcando leituras/discusses tericas e experimentaes em aulas e criao de
espetculos, estamos buscando desenvolver questes pertinentes ao desenvolvimento
do artstico-humano, apontando inclusive para a ecloso de uma metodologia prpria,
considerando a singularidade que o grupo comporta.
No incio, o projeto promoveu discusses terico-prticas a partir da Esttica do
Oprimido, desenvolvida por Augusto Boal, com suporte em Paulo Freire (Pedagogia do
Oprimido), abarcando ainda a defesa de um teatro do oprimido, que funcione como arte
marcial1. Todas as questes levantadas durante as conversas pautadas nas leituras eram
concatenadas com atividades prticas, coadunadas com as dinmicas apresentadas
no livro Jogos para atores e no-atores, tambm de Augusto Boal. No decorrer do
processo, percebeu-se que muitas opresses sofridas pelos participantes eram oriundas
de si mesmos, pois muitos j haviam assimilado internamente as opresses do mbito
externo. Deste modo, consideramos importante trazer algumas contribuies do
prprio autor com o qual escolhemos trabalhar inicialmente (Augusto Boal) relativas
a este procedimento. Da a opo por se trabalhar com o livro O arco-ris do desejo:
mtodo Boal de teatro e terapia, onde o teatrlogo desenvolve questes pertinentes
ao que chama de presena de tiras na cabea (as prprias internalizaes das opresses
inicialmente apenas exteriores), tanto na esfera do pensamento como com propostas
de exerccios prticos que auxiliem neste desvelamento e, consequentemente, na
libertao das opresses.
s leituras da obra de Boal somaram-se outras de vrios autores, dentre as quais
1 Para tanto, foram usados como referencial terico os textos Esttica do Oprimido, Teatro do Oprimido
e outras poticas polticas e O teatro como arte marcial.
214
cabe citar as de autoria de Jerzy Grotowski: Para um teatro pobre e O Teatro Laboratrio
de Jerzy Grotowski, este ltimo no s com textos do autor polons, mas tambm de
Ludwik Flaszen e Eugenio Barba. Neste contexto, fez-se necessrio adentrar um pouco
os estudos de Sigmund Freud e Carl Jung, no tocante s neuroses e psicoses (com nfase
maior nas primeiras) e noo de arqutipos / inconsciente coletivo, respectivamente,
conjugando-os noo essencial do ator como xam, do espetculo teatral como ritual.
claro que no cabe aqui relatar minimamente todos os passos dados at ento,
mas vale destacar alguns pontos-chave no processo em que vem aventurando-se o
grupo ExperIeus, que nasceu dos estudos sistemticos aqui descritos.
O mtodo aqui escolhido ser: em um primeiro momento, apresentar algumas
questes tericas dos autores citados que vm embasando as aes e experimentaes
do Grupo ExperIeus e, em seguida, comentar um pouco o processo pelo qual o grupo vem
passando, relacionando algumas experincias com as questes tericas apresentadas.
Na parte inicial, de fundamentao terica, optamos por percorrer o seguinte
trajeto: primeiro trazer a imagem da rvore do Teatro do Oprimido, proposta por
Augusto Boal, relacionando os elementos terrenos ao ser humano que se busca criar,
da pensar a aliana entre o Teatro do Oprimido (Boal) e o Teatro Pobre (Grotowski).
Do Teatro Pobre, ousou-se a realizao de alguns desdobramentos: a conjuno do
ator-xam em um resgate de alguns arqutipos. Comecemos, pois.
Para que estes quatro objetivos sejam alcanados, no h dvidas de que o pensar
216
e agir ticos so o ponto de partida. Alguns estudiosos entendem moral e tica como
termos equivalentes, at mesmo sinnimos. Preferimos adotar uma perspectiva mais
prxima a Paulo Freire e a Augusto Boal. Segundo Boal, a moral o que j est estipulado,
so os costumes, os hbitos de um povo. Nem sempre tais hbitos e costumes apontam
para uma tica, para um respeito diversidade, para a dignidade humana. A tica, por
sua vez, aponta para um porvir, para a sociedade que se quer construir. J que ambos os
autores se unem voz dos oprimidos, a opo tica dos dois se pauta no tomar partido
dos oprimidos, lutando contra qualquer forma de opresso.
Os esforos pela humanizao da humanidade elegem como verdade suprema o
avano social em direo a uma sociedade sem oprimidos e sem opressores,em todos
os campos da vida humana: poltica, social, familiar e todos mais que possam existir.
Se tentar alcanar esta sociedade uma utopia, no importa: avanar em sua direo
no utpico, opo tica (BOAL, 2009: 33-34). Tal opo tica deve embasar toda
ao, por menor que parea ser, entrelaando assim discurso e prtica em uma rede
coerente, justa e solidria. Boal fala da tica da Solidariedade, na contramo dos
interesses mesquinhos e destrutivos de uma coletividade, fala de uma real democracia.
Assim, percebemos que a TICA, entendida como a atuao coerente com a
terra frtil humana, em consonncia com o respeito e a verdadeira liberdade (que se
perfaz na relao com a autoridade, no com o autoritarismo, conforme Paulo Freire)
a semente de onde brota a rvore do Teatro do Oprimido. Sem a semente, no h
semeadura, no h rvore, portanto, no h teatro do oprimido e, conforme nossa
leitura, no h teatro pobre (que de pobre s tem o nome, pois faz emergir o que
h de mais rico na natureza humana), no h ritual teatral, no h arte. do semear
TICA que se faz possvel o aparecimento real dos nutrientes imprescindveis para a
terra vital: Filosofia, Histria, Poltica, Economia, Solidariedade, Multiplicao.
2 Vale notar que os ingredientes que nutrem a rvore do Teatro do Oprimido formam uma espcie
de meia lua, conjugando o circular e o triangular de certo modo. Assim, a meia lua, sendo o circular que no
se fecha, aponta para a ampla abertura das possibilidades e, remetendo ao triangular (reforado pela raiz
tripla), assinala a potncia divina, trina do prprio humano.
217
filosofia, por sua vez, incita o pensar, o questionar, a liberdade de expresso. Ambas,
Filosofia e Histria, promovem o desconforto, a inquietao, a atuao consciente.
Economia e Poltica, por sua vez, so conhecimentos que contribuem tambm
para a conscientizao do cidado em nossa sociedade. extremamente importante
que o ser humano, como ser social, conhea a realidade na qual est inserido, e dela
participe efetivamente com verdadeiro senso poltico, com responsabilidade. Saber da
concretude poltica, econmica e histrica da qual se faz parte fazer jus filosofia,
sendo capaz de atuar como multiplicador solidariamente.
Tendo apontado ento a essncia teatral, o humano, que s se perfaz pela
semente tica, e se desenvolve com Filosofia, Economia, Solidariedade de um lado,
e Histria, Poltica, Multiplicao de outro, eis que tomamos a liberdade para nos
alimentarmos de outra rvore que surge da uma rvore que simboliza o ator-xam
a resgatar a pobreza/ a radicalidade dos arqutipos no ritual teatral, onde o espao
no permite separao, portanto, opresso, mas to somente experincia ritualstica,
comunho. nesta direo que o Grupo ExperIeus vem direcionando seus estudos/
trabalhos, conforme veremos brevemente mais adiante.
Sob esta perspectiva, o ator opera uma espcie de doao total de si mesmo, no
mais profundo que se possa alcanar. O corpo que se mostra est liberto das amarras
do julgamento, da vaidade e/ou de qualquer outro sentimento limitador e se entrega
plenamente em pblico, revelando o mais ntimo e sagrado, em um ato de redeno,
remetendo assim a uma retomada3. Mas o que pode estar sendo retomado?
Arriscamos uma possvel resposta: ao apagar a dicotomia entre a forma e o
contedo, entre o que se mostra e o que se , o ator opera uma espcie de comunho
com o cosmo. E nesta fuso adentra o mundo dos arqutipos, mexendo com as
dinmicas do inconsciente coletivo. Considerando o prprio reconhecimento de Jung
3 Vale notar a etimologia da palavra redeno: provm do latim re+emere, sinalizando a
obteno (emere) mais uma vez (re).
218
(2014: 13-14) de que os mitos so conhecidas expresses arquetpicas, nos valeremos
de dois mitos gregos para auxiliar-nos na nossa compreenso do que ele nomeia de
processo de individuao. Os mitos escolhidos so Apolo e Dioniso.
Sabendo de antemo da complexidade do conceito de arqutipo e de sua
abertura dada pelas mais variadas formas (vale frisar que, para Jung, o arqutipo
figura na imagem, na forma, no no contedo), tomaremos a liberdade de adotarmos
a concepo de arqutipo atrelada simbologia, que j aponta possveis sentidos para
as imagens mticas.
Na mitologia grega, Apolo encarna o deus da beleza, das artes, das belas formas,
remetendo luz solar, ao autoconhecimento, medida certeira, precisa. Por outro
lado, Dioniso o deus do vinho, portanto, da embriaguez, do ilimitado, do obscuro.
Interessante notar que ambas as ideias arquetpicas fulguram, cada uma a seu modo,
na instaurao do fazer teatral. Nietzsche, em O nascimento da tragdia, j defendia
a conciliao entre os dois deuses. Para o filsofo, a fora dionisaca ressoava no
coro trgico, ao passo que a configurao apolnea se dava na atuao do heri. No
discutiremos agora tais consideraes (se no perderamos nosso foco), mas vale
trazer a noo do apolneo atrelada a um sujeito, portanto, a uma forma delimitada,
e a noo do dionisaco fundida massa disforme do coro trgico, portanto, no
reconhecvel em suas singularidades (ningum sabe quem cada integrante do coro).
Relacionando tais consideraes aos estudos de Jung, podemos dizer, de modo
geral, que o apolneo est mais prximo da conscincia, enquanto o dionisaco se perfaz
no mbito de uma inconscincia coletiva. Sendo Apolo o deus das belas formas artsticas,
da justa medida, corporifica o limite da matria. A conscincia pessoal tambm se afirma
no limitado de seu conhecimento. Ou seja: o apolneo e a conscincia se irmanam por
sua condio essencial limitada, por mais que ambos possam ser ampliados, sempre
haver um limite, tanto suportvel para a forma como para a conscincia.
O dionisaco, por sua vez, no conhece limites, assim como o inconsciente. O
estado de embriaguez dionisaca apaga qualquer vestgio de conscincia e vige
na profundidade do abissal. O arqutipo, para Jung, como inconsciente coletivo,
tampouco pode ser apreendido plenamente por uma conscincia, por uma razo, ele
escapa a definies e se perpetua rumo ao desconhecido, projetando-se em fantasias.
Comungando da defesa nietzscheana da conciliao Apolo-Dioniso, assinalamos
nossa busca experimental da arte teatral. Objetivando um verdadeiro processo de
individuao, dando vazo prpria etimologia do termo indivduo (que no se
divide), almejamos um ator que seja pleno, que revele todo o seu ser, apagando as
fronteiras entre a conscincia e a inconscincia, entre a fora apolnea e dionisaca, e
harmonize-as em sua completude conflitiva. Por mais que parea utpico, sabemos
que justamente este no lugar (utopia) ainda (e sempre) que nos impulsiona busca
em ao, ao conjugar disciplina e espontaneidade (conforme Grotowski), promovendo
uma contnua ampliao das potencialidades e, consequentemente, uma proliferao
219
de experincias profundas, verdadeiras, transformadoras.
De tais embasamentos iniciais, surgiram alguns desdobramentos do curso de
extenso, culminando no Grupo de Teatro ExperIeus.
5 Vale destacar que o grupo ExperIeus o Ncleo do Grupo de Teatro, responsvel no s pela conduo das
aulas na oficina como pelo pensar a prpria arte teatral que se quer propor. O Grupo ExperIeus j apresentou
seu primeiro espetculo teatral em diversas cidades brasileiras e pode-se dizer que j se aventurou com sua
oficina, oriunda do projeto de extenso proposto pela Professora Doutora Cristiane Agnes Stolet Correia, de
modo itinerante, tendo ofertado aulas de teatro tanto em eventos acadmicos como em programas de ps-
graduao. Atualmente o Grupo ExperIeus formado pela Professora Doutora Cristiane Agnes (UEPB), pelo
Professor Especialista em Letras - Literaturas Portuguesa e Africanas (UFRJ) Adalto Carlos da Conceio e pelos
ex-alunos Guilherme Sinsio (formado em Letras-Portugus)e Luclia Alves (formada em Letras-Espanhol).
220
O ESPETCULO ANARQUIA MSTICA
Figura 2
222
Esta imagem apresenta-se a partir da experincia esttica de Cntico Negro,
logo no incio do espetculo. Por estarmos no plano baixo, ela nos remete ao cho,
terra, ao alicerce da rvore do Teatro do Oprimido. Cabe destacar as cores usadas:
os diferentes tons de azul configuram a cor preponderante em Anarquia Mstica,
justamente por querermos assinalar a potncia do infinito... As posies assumidas
pelas atrizes sinalizam uma espcie de complementaridade que se d pelos opostos,
j que uma est mais abaixo, outra mais acima; uma com as pernas e braos fechados,
outra com os membros abertos; o cabelo de uma para a esquerda, de outra para a
direita... As faixas usadas nos cabelos tambm se diferem pela cor: uma amarela,
outra, vermelha, ambas conjugando as cores gneas. Portanto, acreditamos que a
imagem sintetiza a descrio visual da invocao s foras artsticas em uma fuso
apolnea-dionisaca. A imagem a seguir tambm desponta do plano baixo, reforando
a fora terrena da qual se quer nutrir.
Figura 3
Figura 4
Figura 5
CONSIDERAES FINAIS
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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Sites consultados
RESUMO
ABSTRACT
*
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
230
Lapparition de la photographie en tant que preuve matrielle a fina-
lement renvoy la perspective dans le domaine des problmes archaques sans
que lon saperoive que loptique photographique se soumettait elle-mme
aux limitations de la thorie classique1. Albert Flocon / Andr Barre
Foi precisamente h 52 anos que os artistas Nan June Paik e Wolf Vostell2 inau-
guraram de forma consistente e sistemtica a utilizao da imagem em movimento
no contexto das artes plsticas. Em ambos os casos, o ecr eletrosttico, dos televiso-
res da poca, foi o suporte escolhido, seguindo-se a utilizao do filme (pelcula de 8
e 16mm) e do vdeo (fita magntica)3.
Abordar a tremenda expanso que ocorreu nas ltimas cinco dcadas em torno
da utilizao desta especfica modalidade da imagem uma tarefa considervel. Inte-
ressa pois compreender o atrativo que esta imagem despertou no seio da comunida-
de artstica, sobretudo a partir de finais da dcada de 50 do sc. XX, tendo em conta
que ela prpria j estava disponvel enquanto matria expressiva a partir de 18954,
e que esse interesse teve particular incidncia, por um lado na alterao da relao
com o espao da Representao e, por outro, na sua interseco com o campo do
espectador. Estas questes, de ndole tcnica e tambm sociocultural, acabariam por
transformar a imagem em movimento numa poderosa arma, associada a um vasto
conjunto de expresses, que a utilizam e potenciam. O que se traduz num territrio
contemporneo rico e diverso, capaz de multiplicar a sua fora motriz numa diversi-
1 FLOCON, Albert ; BARRE, Andr (1968). La perspective curviligne, de lespace visuel limage
construite. Paris: Flammarion, Pg. 211.
2 Em 1963, o artista Nan June Paik inaugurou o evento intitulado Exposition of Music Electronic
Television, na galeria Paranass, na cidade alem de Wuppertal. Durante esse mesmo ano, Television Dcollage
& Dcollage Posters & Comestible Dcollage foi o nome que Wolf Vostell deu sua exposio em Nova Iorque,
na Galeria Smolin. Ambos usaram crans electrostticos dos televisores e provocaram uma polmica que se
mantm at aos dias de hoje sobre quem inaugurou a utilizao da imagem em movimento no especfico
contexto das artes plsticas.
3 Antes do surgimento da tecnologia vdeo, os artistas utilizaram a imagem em movimento atravs
de ecrs electrostticos, disponveis em televisores e monitores e tambm atravs de projeces via pelcula
(8, 16mm e super 8). Nam June Paik, Michael Snow, Wolf Vostell, Vito Acconci, Bruce Nauman, Dan Graham,
entre outros, representam algumas das figuras maiores no pioneirismo da utilizao desta especfica imagem.
4 Embora, como afirma Michael Rush (RUSH; 2003), a exploso da utilizao da imagem
verdadeiramente em movimento aconteceu em simultneo com o aparecimento de inmeros dispositivos
domsticos no mercado, dispositivos acessveis, baratos e de fcil acesso em termos de manuseamento
tcnico que possibilitaram, desta forma, a captao e a edio generalizada de imagens em movimento.
231
dade sintomtica de categorias e subcategorias5. E sendo certo que foi o Cinema6 que
primeiro tirou partido desta imagem, insuflando-a de parte significativa daquilo que
ela hoje representa, tambm no deixa de ser verdade que a contribuio dos artistas
plsticos, em meados da segunda metade do sculo passado, foi deveras importante
no sentido em que foram capazes de a transpor para um outro patamar expressi-
vo7. Esse contexto viria a deixar uma estrondosa marca8, que Gilbert Durand (1994)
designou por revolucionria, nesse amplo e complexo palco9. E seria, justamente,
nesse cenrio que a imagem em movimento, agora entrelaada e instalada no
contexto das artes plsticas, enunciaria um territrio no qual a prpria imagem viria
a encontrar as suas mais singulares condies de funcionamento.
5 Autores como Hal Foster (2004) ou Rosalind Krauss (1976/1999) dizem-nos que a importncia da
incluso das imagens em movimento de forma generalizada no panorama das artes foi tal que acabou por
contaminar praticamente todo o territrio artstico conhecido: da Pintura Escultura passado pelo Teatro,
todas a categorias artsticas acabariam por sentir a influncia desta imagem. Quando a mesma comeou a
ser disseminada atravs do medium vdeo, acabou inevitavelmente por gerar derivados com cada vez mais
implementao no terreno: videoinstalao, videodana, videoescultura, videoperformance, etc.
6 Sem dvida, evocar a imagem em movimento trabalhada pelo dispositivo do Cinema, e a forma
como foi sendo usada ao longo dos tempos, tarefa rdua. Todavia, entre os inmeros assuntos associados
a este facto, podemos dizer, com algumas reservas, que se trata de uma imagem que se foi tornando
extremamente dispendiosa e complexa do ponto de vista tcnico, pois o cinema, grosso modo, ao se ter
deixado entrelaar pelas indstrias culturais, foi necessitando de uma imagem cada vez mais prodigiosa
em termos tecnolgicos. S com o fim do Modernismo e no seguimento da atitude proporcionada pelo
aco colectiva dos artistas afectos ao movimento FLUXUS, um perodo especial no qual as designadas
categorias artsticas tradicionais foram alvo de uma aturada reconfigurao e renovao, que se edificou e
sedimentou um espao prprio capaz de inundar o panorama artstico (Hendriks, 1988).
7 Sem esquecer as aventuras iniciais em torno da imagem em movimento proporcionadas, por exemplo,
pelo prprio Modernismo. Do Surrealismo ao Dadasmo, incluindo as histricas e proliferas Vanguardas
Russas, podemos observar, embora de uma forma muito diferente, o manuseamento desta imagem. A ttulo
de exemplo podemos enunciar obras como Anemic Cinema de Marcel Duchamp, de 1925-26, ou ainda o
objecto flmico Ltoile de Mer, de 1928, da autoria de Man Ray, trabalhos afectos s vanguardas do incio
do sculo e que comearam logo por se distanciar do designado cinema mainstream. Mas mesmo quando
pensamos no cinema produzido no interior deste contexto, por exemplo, do Dadasmo ou mesmo produzido
pela segunda gerao futurista, se percebe imediatamente que a utilizao desta imagem tinha objectivos
distintos, nomeadamente em seguir, de alguma forma, os padres que iam sendo configurados pela pintura
e escultura. Atente-se, por exemplo, os trabalhos de Viking Eggeling ou de Hans Richter.
8 Deve-se ter ainda em conta um outro fator, diramos, essencial: se verdade que o final da dcada
de oitenta e toda a dcada seguinte foram, de certa forma, emblemticas para a utilizao desta imagem,
fenmeno que Barbara London (2002) atribui s capacidades tecnolgicas do vdeo, a actualidade, por
sua vez, assiste a um esfriamento em relao utilizao da mesma, por parte dos artistas plsticos, em
contraste com um numero crescente entre o grande pblico (via smartphones, software de edio, mquinas
fotogrficas etc.). Tanto o excesso da sua utilizao como o seu contrrio podem ser explicados atravs
de um argumentrio de prs e contras: um certo deslumbramento relacionado com as possibilidades
expressivas da imagem em si; o aparecimento em massa de equipamentos domsticos, baratos e fceis de
operar; e tambm um certo cansao face banalizao e disseminao da mesma. E sem nos esquecermos
de inmeras questes (outras) que tm atravessado o fenmeno.
9 O enfoque no em funo da(s) sua(s) origem(ns), ou sequer na sua particular apropriao pelos
vrios media responsveis pelos diversos dispositivos e mecanismos que a utilizam (televiso, filme e vdeo)
e que, de uma forma faseada, foram surgindo na cena artstica e com forte capacidade de se intrometer na
produo e disseminao artstica em geral.
232
Mas comecemos pelo princpio: em primeiro lugar, esta fantstica ideia de
instalar a imagem em movimento filha do peculiar contexto artstico surgido
em finais dos anos 50, com os designados filmes-instalaes e um pouco mais tarde
as videoinstalaes. Curiosamente, a performance aparece, desde o incio, aliada
a esta rea expressiva, nomeadamente com a interveno do corpo do artista, do
espectador, ou de ambos em simultneo. Na origem destes acontecimentos esta-
va subjacente um propsito muito particular: a produo de objetos artsticos que
em si mesmos contribussem para aproximar o mundo da Arte e os Espectadores,
propondo outros contornos de convivncia e, se possvel, com efetiva interao
dos espectadores. Ou seja, tambm em funo dos seus corpos, agora entendidos
como matria expressiva, e desse modo como parte integrante do processo. As
obras passariam a ser combinadas por um leque expressivo diverso e distinto, com
nfase nos particulares contedos produzidos especificamente para operar cogniti-
vamente no corpo e mente do espectador (nomeadamente entre os seus corpos e
os objetos artsticos), fato para o qual a imagem em movimento contribua signifi-
cativamente (Hershenson, 1999).
Assim, a dimenso corprea e a imagem em movimento tornam-se essenciais
para o pleno desenvolvimento de um espao que vai, justamente, albergar um pro-
cesso expressivo no qual o espectador passa a ser um elemento estruturante. A ques-
to da mobilidade passa a ser um factor determinante pois o corpo, passando a atuar
como um catalisador da prpria obra, disponibiliza um espao peculiar e apto a pro-
porcionar uma aventura tctil-sensorial, componente decisiva na implementao e
sucesso deste imenso dispositivo expressivo e imersivo que a videoinstalao. E, a
partir da, enquanto elemento fundador de um conceito mais alargado e abrangente:
a imagem em movimento instalada10.
A videoinstalao surgiria assim como uma resposta a problemas sentidos no
mundo artstico poca, de acordo com uma perspectiva ideolgica em que se pre-
tendia criar um espao de ampla mobilidade para os espectadores. Isto era o oposto
do que acontecia no Cinema, no qual a preeminncia era dada ao encadeamento
mecnico das imagens em movimento, ficando o corpo dos espectadores como que
algemado no processo. Na videoinstalao, pelo contrrio, a forma como a imagem
em movimento disponibilizada, no existindo a priori convenes rgidas a seguir,
sujeita-se de certa forma disperso que resulta da mobilidade dos espectadores.
10 Desde logo, a constatao de que estamos perante um equvoco que reside, justamente, no facto de
se tentar conferir ao vdeo um regime discursivo prprio, autnomo e como tal o compromisso de o elevar
natural condio que aufere qualquer categoria artstica. Contrariando dessa forma o seu entendimento
enquanto mero device tecnolgico que permitiu e continua a permitir pr as imagens mecanicamente em
movimento. Obviamente, tendo-se em conta as especificidades tcnica e tecnolgica, entendidas tambm
enquanto factores ideolgicos que assim tambm determinam e acabam por definir e interferir na natureza
operativa e expressiva deste medium em particular. De uma forma generalizada, a maioria dos autores
que se debrua sobre este assunto no introduz esta distino, ao invs denomina esta rea expressiva de
videoarte, um campo, se quisermos, mais vasto e menos preso ao contexto das artes plsticas.
233
Este aspecto muito relevante, pois atravs dele que, neste contexto, a imagem em
movimento passa a ser parte de um processo e no a um meio disponibilizado em
funo de uma finalidade. Imagem, espao e dimenso Corprea, fazem parte desta
cumplicidade expressiva, as suas armas de vanguarda (Hall/Fiffer, 1990).
neste contexto que a obra de Alexandre Estrela assume particular interesse,
desde logo porque vai ao encontro do que foi acima descrito, mas tambm porque,
dentro dessa intrnseca natureza, ainda prope como iremos ver outros interessantes
desafios que passam no s pelo questionamento da prpria utilizao desta imagem
neste especfico contexto, como pelo amplo conjunto de novidades que o autor consegue
introduzir no processo em si mesmo, interferindo, transformando e expandido, desse
modo, a singularidade que assinalamos na imagem em movimento instalada.
18 Painel que pertence a uma predella colocada no retbulo alusivo a Nossa Senhora. A representao
mostra-nos dois de vrios milagres atribudos ao Santo Nicolau. A grande questo reside no modo como
Fra Anglico tirou partido da iluminao do retbulo, estabelecendo um raccord lumnico que acompanha
este e todos os outros painis, contando para isso com a penumbra prpria do altar-mor. Esta situao
de alto contraste entre o claro e o escuro permitiu ao artista trabalhar a percepo da obra a partir do
comportamento do prprio olho, nomeadamente a forma como ele reagia luz e falta dela.
SALMI, S. (1970). Il Beato Anglico In MORANTE, Elsa e BALDINI, Umberto (org). LOpera completa
dellAngelico. Milo: Rizzoli Editore, pg. 14.
238
em muitos acontecimentos de mudana. Nos quais o desenvolvimento da geome-
tria, apoiada nos seus princpios cientficos19, se enquadra. Por outro lado, deve-se
realar, uma vez mais, todo o envolvimento que nos proporcionado pelo prprio
arrojo arquitectnico, tomado como palco ao servio de uma encenao que per-
mitia que tudo acontecesse: o efeito tridimensional a impor-se em consonncia
com a aparncia de cariz escultrico por parte dos elementos visuais presentes na
cena (Toman, 1998:406), ajudam a condicionar a prpria mobilidade do espectador,
acentuando assim o foco da tenso na dimenso retiniana. Alis, tudo aponta para
fixao do espectador, fornecendo-lhe sem dvida um lugar importante, um porto
de abrigo, um ponto de vista privilegiado mas imvel.
Podemos ainda ter acesso ao legado da representao espacial que Masaccio
introduziu 40 anos mais tarde, atravs de outro extraordinrio artista, Piero della
Francesca, em particular na visualizao do seu trabalho A Flagelao (1465 (?).20
Com esta obra, de pequenas dimenses (58x81cm), Piero parece estar em total
consonncia com os problemas anteriormente abordados por Masaccio, pois em-
bora a referida pintura evoque uma das temticas mais caras religio catlica A
Flagelao de Cristo aquilo que parece acontecer verdadeiramente tambm, tal
como acontecia em Masaccio, o desvio do alvo da representao, do prprio acon-
tecimento da flagelao para o dispositivo perspctico. Para isso, Piero desenvolveu
uma espantosa estratgia: por um lado, fornecer ao espectador um estimulante e
muito rgido quadrante visual e, por outro, estabelecer uma forte relao de empa-
tia entre os espectadores e a cena. Analisemos a obra. A pintura tem como pano de
fundo um templo. Dois planos dividem-na literalmente ao meio. Longitudinalmen-
te, esquerda de quem observa e em profundidade, observamos um plano que nos
mostra a flagelao de Cristo propriamente dita, com a presena de trs soldados.
Enquanto que no plano da direita, construdo de forma mais frontal (e mais apro-
ximado do espectador), d por sua vez acesso a outros trs personagens, trs ho-
mens que parecem trocar impresses entre si. Estes dois planos que dividem a cena
parecem coexistir entre si, porque o ponto de fuga colocado no centro da compo-
sio permite que o espectador fique fixo no seu centro, procedimento necessrio
para que pudesse contemplar os dois momentos na sua plenitude como se pu-
dssemos ter acesso simultaneamente a dois pontos de vista diferentes. por
isso que o pintor, em primeiro lugar, provoca um deliberado e intenso momento de
curiosidade no prprio espectador, estranheza que se apoia na prpria esquivana
19 Para alm de Masaccio, encontramos fortes seguidores dos princpios da geometria em artistas como
Paolo Uccello, Domenico Veneziano, Andrea del Castagno ouPiero della Francesca, por exemplo.
20 Piero della Francesca foi, sem dvida, um dos artistas que respeitou de forma apaixonada os princpios
da perspectiva linear. O tratado que escreveu intitulado De Prospectiva Pingendi prova disso mesmo. A
tenta esclarecer o mtodo, tanto do ponto de vista formal, como tambm no que diz respeito aplicao do
mesmo em relao ao espectador e consequente conduta tica e moral. A perspectiva devia ser usada com
rigor e com respeito divino, pois atravs dela podia-se entender e ter aceso divina racionalidade, e ser
capaz, deste modo, de integrar plenamente o Homem com a Natureza, ou seja com Deus (Sproccati, 1994).
239
da composio e que o leva a perscrutar a pintura. Neste sentido, o ponto de vista
a chave mestra da prpria cena, elegendo o lugar no qual todos os elementos que
compem a cena (pavimento, colunas, trajes, etc.) funcionam de acordo com o
pretendido. Como afirma Maetzke (...) la flagellazione di Cristo, significativamente
collocata, nellambito dello spazio delimitato dalle colonne, alla maggiore distanza
rispetto allosservatore. (1998:210).
Trata-se pois de algo, diramos mgico, pois as personagens, dado o fato de se
encontrarem em planos desnivelados e afastamentos e aproximaes diferentes,
acentuam fortemente a necessidade de fixar o espectador (Kemp,1990). Tambm
neste caso Piero, como Masaccio, faz questo de relevar o tratamento cromtico,
nomeadamente com o uso de cores contrastantes, procurando desse modo isolar
elementos em diferentes zonas da pintura, ajudando a conferir-lhes profundidade.
O resultado, como vemos, deveras interessante, pois as figuras quase que imer-
gem da cena, como se estivessem emplumadas ou possussem luz interior. Ofere-
cendo um espetculo de luz, cor e forma, com a condio de funcionar a partir de
um ponto fixo.
J em presena dos frescos da Capela Scrovegni21, na cidade de Pdua, tra-
balho da autoria de Giotto, somos confrontados com uma situao bem diversa.
Estes frescos esto integrados em diferentes ciclos narrativos e dispostos nas pa-
redes laterais (pintados nas suas superfcies) do interior da capela e tambm na
parte semicircular que circunda o altar. Na totalidade, representam 4 ciclos: A
Vida de Joaquina e Ana (painis 1 a 6), A Vida de Maria (painis 7 a 16), A Vida de
Jesus (painis 17 a 39) e, por ltimo, O Ciclo das Sete Virtudes e dos Sete Vcios
(painis 40 a 53)22. Neste caso, toda a relao de foras parece residir na forma
como Giotto foi capaz de adaptar os painis ao espao arquitetnico, a partir de
um tremendo esforo que podemos designar por simbitico. Pois, apesar de cada
ciclo representado ser autnomo, individual, face aos outros, aquilo que aconte-
cesse na realidade que o todo do espao produzido s funciona, em termos
eloquentes, numa expressiva comunho total o tal cruzamento simbitico entre
os contextos pictrico e arquitetnico.
Esta estratgia usada por Giotto, que entendemos como fundamental para
que o dispositivo opere plenamente, nomeadamente ao apostar na disperso da
colocao dos frescos ao longo das paredes da igreja, foi capaz de estabelecer um
raccord que permite, e sugere mesmo, ao espectador, encetar uma aventura tctil,
sensorial. Esta de fato a novidade introduzida por este espao, incitar o espec-
21 A Capela degli Scrovegni foi construda na cidade de Pdua, por volta de 1305, sobre os destroos de
um antigo anfiteatro romano. Esta fabulosa construo tem a ver com o culto de Santa Maria della Carita, e
enfoca directamente em aspectos fundamentais da vida de Jesus. Inicialmente chamou-se Capella dellArena.
22 Interessante tambm o facto de Giotto ter realizado cada painel de forma completamente autnoma.
Entre cada ciclo no existe uma leitura incessante mas epgona, ou seja, leituras em paralelo, onde cada
elemento (fresco) assume por si s uma leitura nica e ao mesmo tempo em sequncia.
240
tador a deslocar-se atravs das narrativas ali expostas, promovendo a sua mobili-
dade, e constitui necessariamente a parte mais relevante da estratgia de Giotto.
E, seguindo esta lgica, podemos ainda levantar uma outra questo, que consi-
deramos muito pertinente: para alm de uma maior e ntida liberdade motora, o
espectador pode, e deve, selecionar o enquadramento adequado para visuali-
zar os frescos. Este segundo e importantssimo aspecto, que resulta da progressiva
mudana operada por Giotto, ou seja na produo de uma sensao plstica de
grande dinamismo, ao invs dos ambientes visuais mais estticos e prprios que
marcaram, grosso modo, todo o perodo bizantino e ps-bizantino. Deste modo,
os mltiplos pontos de vista assim criados por esta estratgia, capazes de colocar
os espectadores em locais diferentes em termos espaciais, permitem transformar
a capela Scrovegni num autntico edifcio imersivo23, com os espectadores a pro-
curarem intuitivamente os pontos de fuga usados por Giotto para terem acesso s
localizaes adequadas para ver os episdios evocados nos frescos, como se de um
filme se tratasse, ou de uma banda desenhada, como nos diz Michael Baxandall, no
extraordinrio texto Formes de lintention.
Vejamos em particular o fresco O Massacre dos Inocentes, o painel 21, um
dos episdios intermdios do ciclo A Vida de Jesus, que se encontra localizado no
interior do corredor direito de quem est virado de frente para o altar-mor. Este
trabalho particularmente exemplar do que acabamos de afirmar. Desde logo, tra-
ta-se de uma cena particularmente forte, diramos at de uma invulgar violncia,
onde uma multido cerca um amontoado de corpos masculinos e femininos dei-
tados/empilhados no cho. A cena estranhamente dramtica, com os rostos das
personagens, com os olhos esbugalhados, a cruzarem os nossos e a dizerem-nos
coisas. A composio cuidada pois a colocao das figuras dos corpos e dos seus
rostos consegue produzir, no seu conjunto, um episdio em suspenso, como algo
que existe antes e algo que existe depois, uma parcela de qualquer coisa que est
em movimento. Mais uma vez, o uso a cor que isola e subtrai os personagens uns
em relao aos outros e tambm na sua relao fundo/forma. Como refere Martin
Kemp This sense of the eyewitness character of Giottos scene reflects one of the
major motives behind the new naturalism (...) to present the sacred narratives to
the spectator on human terms (...). (1999:10).
Como vimos, estas duas concepes pensadas por Francastel, no sendo to-
talmente antagnicas em si, constituem, no entanto, duas vises diferentes da Re-
presentao com consequncias bem distintas no prprio sistema artstico. Espao
23 Quando evocamos o termo imersivo, no estamos a falar exactamente de dispositivos
contemporneos com recurso a tecnologias de produo virtual, mas somente o uso do termo enquanto
gerador de ambientes hpticos, plurissensoriais.
241
aberto e espao fechado, entendidos enquanto espaos ideolgicos, ganham terre-
no se os pensarmos enquanto foras que continuam ativas aps o desmoronamento
do ecr euclidiano e da sua importncia no que toca ao sistema artstico. Mas a sua
natureza mecnica sobreviveu essencialmente atravs da Fotografia e do Cinema.
Como foi referido, tanto com a imagem fixa como com a imagem em movimento, os
princpios do ecr euclidiano, e de certa forma o seu sistema de representao do
espao, mantiveram-se ativos, o que significa que o legado espao aberto/espao
fechado continua a ter a capacidade de se intrometer nos parmetros da produo
artstica, em particular operando nos campos expressivos da Fotografia, do Cinema
e das Artes Plsticas, com nfase na videoinstalao.
A videoinstalao aparece-nos como um caso extraordinariamente especial,
um territrio que parece refletir de uma forma madura a utilizao da imagem
em movimento ao mesmo tempo em que opera, de acordo com os princpios enun-
ciados por Francastel, em particular acerca do designado espao aberto, como um
espao hptico capaz de possibilitar ao espectador uma forma diferente de parti-
cipar no dispositivo artstico, passando ele prprio a ser assim parte interveniente
no processo ajudando-o a transform-lo num aparatoso mecanismo operativo
polissensorial. A videoinstalao deve pois parte do seu sucesso ao facto de ter re-
cuperado um espao estratgico para o sistema artstico.
24 Um dos artistas que mais tem trabalhado a imagem em movimento, com recurso vasto a imensos
dispositivos. Os seus trabalhos so extremamente enigmticos, pois por norma so trabalhos centrados na
essncia da prpria imagem e a partir da qual, o artista estabelece procura incessante sobre os seus limites,
fitos e propsitos. Qual o seu comportamento e a sua eficcia so parte da procura de Alexandre Estrela,
deixando de lado motivos de outra espcie, e tratando apenas o valor residual e imanente da imagem.
243
imagem e o espectador.
Meio Concreto, uma extensa mostra25 (com trabalhos que vo desde 2006 a
2013), tudo o que acabamos de afirmar e mais ainda. Todo o desenho da exposio
foi concebido em torno desse tringulo mgico: Corpo Imagem Espao. Os espec-
tadores so convidados a percorrer o espao onde os trabalhos esto instalados e,
se cada trabalho vive individualmente, todavia Alexandre Estrela ligou-os atravs de
algumas subtilezas. Os trabalhos so portadores de uma enorme fora enigmtica e
enquanto entidades solitrias parecem convidar-nos a uma profunda meditao/in-
trospeco. A obra Fotossntese, de 2007, explora claramente este aspecto, pois tra-
ta-se de uma fotografia que irradiada pela luz de um projetor, em dias alternados,
ficando s escuras no dia impar. A imagem existe projetada na parede, entretanto
pr-aquecida, factor que acelera todo o processo. Esta luta, que acompanhada pe-
los espectadores, vai alternando entre o queimado progressivo da foto e uma acalmia
desestabilizadora. Ou ainda num outro espantoso trabalho, Waterfall. Aqui temos a
imagem em vertiginoso ritmo de movimento, no qual picados e contrapicados sur-
gem intermitentemente, obrigando os espectadores a moverem os seus corpos de
forma a acompanharem to abruptos e sbitos movimentos da imagem. So rvores
e suas copas que se agitam e que de repente param. Porm, os espectadores continu-
am a ver agitao, porque perceptivamente tudo se encontra ainda em movimento.
Estrela tira pois proveito do que se designa por efeito-cascata.
Desde logo, o percurso. Na realidade estamos perante duas exposies, pois
num dia (dia par) algumas peas esto a funcionar, enquanto no dia impar o mo-
mento das outras. E o mais estranho que tanto num dia como noutro as peas
apagadas e as acesas mantm-se ao mesmo nvel. E porqu? Porque a dimenso
tecnolgica, o aparato, leia-se crans, fios, dispositivos de projeo, equipamentos
com luz e som, toma conta e desenha outro espao, outra aventura ou, como afirma
Gamito (2013; 211) tentador pensar que estamos perante duas exposies. Mas
o que verdadeiramente acontece estarmos perante uma exposio em que peas
convivem na dinmica de dois intercambiveis e no cruzamento de quatro conceitos
estruturantes. E continua (...) a diferena de potencial entre as peas e o campo
energtico que elas definem nos seus dois estados, ambos ativados por uma luz que,
com informao, o conduz imvel omnividncia instaurada pela perspectiva e, sem
informao, o devolve mobilidade do corpo (...). Nesta aventura que o artista nos
prope alternamos entre um espao aberto, pela extrema mobilidade, devido s ca-
ractersticas tcnicas da instalao das imagens e dos objetos que compem cada
pea, mas tambm aqui e ali fixando o espectador e oferecendo-lhe uma radical di-
menso ultraretiniana. Meio Concreto, assim, um objeto valioso de estudo para o
futuro da utilizao desta imagem, uma imagem procura de um lugar decisivo num
leque expressivo que continua a abrir-se.
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A ARGUMENTAO NO DISCURSO VERBOMUSICAL 247
247
E O SISTEMA RETRICO DA CANO
RESUMO
O discurso verbomusical (Carlos, 2014) uma prtica formada pelo conjunto das
atividades de uma comunidade determinada constituda por todos os sujeitos
envolvidos na produo, circulao, divulgao e consumo do objeto musical cano
(o gnero textual por excelncia desse discurso): desde os cancionistas e produtores
musicais, passando pelos radialistas e chegando ao pblico. O objetivo principal deste
artigo analisar o discurso verbomusical em sua dimenso retrica e argumentativa.
Nesta anlise, utilizo o suporte terico da Retrica (Clssica e Nova Retrica) e da
Argumentao, especialmente os trabalhos de Aristteles, Ccero, Reboul e Mosca.
Alm dessa perspectiva, tomo como base a Anlise do Discurso orientada por
Dominique Maingueneau. Minha proposta analtica abrange duas etapas: na primeira
aplico separadamente os fundamentos do sistema retrico tradicional (inventio,
dispositio, elocutio, actio, memoria, docere, movere, delectare, ethos, pathos, logos)
ao discurso verbomusical e produo da cano e, em seguida, proponho uma
interao entre essas categorias na compreenso do processo de elaborao de uma
msica cantada.
ABSTRACT
The verbomusical discourse (Carlos, 2014) is a practice formed by the set of activities
of a certain community constituted by all the subjects involved in the production,
circulation, spreading and reception of the musical object song (the text genre par
excellence of that type of discourse): since the song writers and musical producers
through the radio broadcasters and up to the audience. The main goal of this article is
to analyse the verbomusical discourse in its rhetorical and argumentative dimensions.
In this analysis, I make use of the theoretical support of the Rhetoric (Classical and New
Rhetoric) and the Argumentation, especially the researches by Aristotle, Cicero, Reboul
and Mosca. Besides this perspective, my study is also based on the French Discourse
Analysis as oriented by Dominique Maingueneau. My program of analysis is based on
two steps: first, I apply the principles of the traditional rhetorical system (inventio,
dispositio, elocutio, actio, memoria, docere, movere, delectare, ethos, pathos, logos)
to the verbomusical discourse and then I propose an interaction between those two
categories in the comprehension of the process of elaborating a singing music.
1 Em minha tese de doutorado (Carlos, op. cit.), os preceitos da Retrica so aplicados na anlise de
canes do discurso verbomusical brasileiro. Seguindo uma perspectiva metodolgica paralela, o livro As
mulheres que a gente canta - MPB e retrica, organizado por Azevedo e Ferreira (2000), traz comentrios de
exemplares de canes da msica do Brasil, de diversos gneros.
249
Mais adequado seria, ento, analisar em cada cano, em seus variados gneros
musicais, como razo e emoo interagem a partir da trade ethos/pathos/logos, tarefa
essa que acredito ser de grande importncia, visto que no universo de circulao das
canes o que mais se sobressai perante o pblico o fator emoo, o que gera
uma srie de equvocos com relao produo desse discurso, a qual associada
muitas vezes a uma atividade de inspirao do cancionista, colocando-se em
primeiro plano o aspecto da emoo e deixando-se de lado quase sempre a presena
da razo. Engano basilar que compromete muito a compreenso do funcionamento
do discurso verbomusical.
FASES DE
FASES DE
ORGANIZAO ELEMENTOS ELEMENTOS
ORGANIZAO
DO DISCURSO VERBOMUSICAIS RETRICOS
RETRICA
VERBOMUSICAL
letras, melodias, inventio, dispositio, docere, movere,
Composio ritmos, gneros elocutio, memoria delectare, ethos,
musicais pathos, logos
253
CONSIDERAES FINAIS
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3. vol. (Original: 55 a.C.).
DENIZE ARAUJO
Doutora em Literatura, Cinema e Artes na UCR- USA; Ps-Doutora em Ci-
nema e Artes pela Universidade do Algarve-Portugal; Coordenadora da Ps
em Cinema e Docente do Mestrado e Doutorado, em Cinema e Audiovisual,
PPGCom-UTP- Univ. Tuiuti do Paran - Brasil; Lder do GP CIC, CNPq; Dire-
tora do Clipagem; Membro do SRC, do PC, do International Council e Vice-
-Chair do GT Cultura Visual da IAMCR-International Association of Media &
Communication Research. Membro do Conselho Deliberativo da SOCINE;
Co-Curadora do FICBIC Festival Internacional de Cinema da Bienal de Arte
de Curitiba. [email protected]
SUSANA COSTA
259
LILIANA LOPES DIAS
Licenciada em Lnguas e Literaturas Modernas-Estudos Portugueses e Ingleses
e em Lnguas, Literaturas e Culturas-Ramo de Portugus e Espanhol. Especiali-
zada em Literatura Comparada na rea de Literatura e Cinema. Doutoranda em
Comunicao, Cultura e Artes. Colaboradora do CIAC-Centro de Investigao
em Artes e Comunicao da Universidade do Algarve. Publicou artigos em re-
vistas, livros e outras publicaes cientficas. [email protected].
WILIAM PIANCO
VTOR REIA-BAPTISTA
MIRIAN TAVARES