A Tradução Capenga e o Imperialismo Linguístico

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15/11/2023, 14:53 A TRADUÇÃO CAPENGA E O IMPERIALISMO LINGUÍSTICO

A TRADUÇÃO CAPENGA E O IMPERIALISMO


LINGUÍSTICO
Set 24 Postado por Marcos Bagno em Parábola Editorial

O IMPERIALISMO LINGUÍSTICO

Uma das principais consequências da pressão esmagadora de uma língua imperial sobre as
línguas subalternizadas são as fissuras que vão se abrindo nessas línguas, fissuras por onde a
língua imperial vai se infiltrando sorrateiramente e colonizando o léxico e a gramática das
subjugadas. É o que se dá hoje em dia com o inglês, que ataca todas as outras línguas do
mundo de cima para baixo e de dentro para fora.

Não se trata apenas da importação de palavras: o uso de vocábulos estrangeiros é apenas a face
mais visível de um processo muito mais insidioso, a ponta reluzente de um iceberg. É possível
legislar contra os estrangeirismos, muitos governos fizeram isso, mas os resultados são, quando
muito, pífios. E os estrangeirismos estão longe de ter a gravidade que as pessoas desinformadas
lhes atribuem. Tem coisa pior! [Sim, hoje estou vestido de jacobino chauvinista!]

Os estrangeirismos estão longe de ter a gravidade que as pessoas


desinformadas lhes atribuem. Tem coisa pior.

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15/11/2023, 14:53 A TRADUÇÃO CAPENGA E O IMPERIALISMO LINGUÍSTICO

Uma das formas de contaminação linguística mais comum nesses casos é o chamado decalque.
O decalque pode ser a simples tradução literal de um termo alienígena: cachorro-
quente para hot-dog, placa-mãe para motherboard. Mas existe um tipo mais pernicioso de
decalque que é o decalque semântico: consiste na atribuição para uma palavra já existente na
língua dos significados e sentidos que ela tem em outra língua (sempre, é claro, na língua
imperial). Por exemplo, o verbo ignorar em português (e em latim, aliás) significou durante
séculos “não saber, desconhecer”, como em “Ignoro as razões de alguém votar no bolsoasno, se
razões há”. No entanto, por pressão dos sentidos do verbo to ignore em inglês, passamos a
usar ignorar com o sentido de “desprezar, desconsiderar”: “O TSE ignorou velhacamente a
decisão do comitê da ONU”. O mesmo se dá com a palavra evidência, utilizada no lugar de “prova,
comprovação”. Ou de agenda com o sentido de “interesses próprios, pauta particular”. Ou
de salvar no jargão da informática: afinal, a gente salva alguém de se afogar, salva as aparências,
salva uma empresa da falência, salva um passarinho das garras de um gato, mas salvar um
arquivo não tem nada que ver com salvamento, é simplesmente guardar, armazenar.

A TRADUÇÃO CAPENGA

Outra consequência do imperialismo linguístico é a tradução capenga. A tradução capenga é feita


sem um mínimo de reflexão demorada, na marra e a facão, quase sempre sem conhecimento
suficiente do patrimônio lexical e gramatical da língua-alvo. Língua-alvo, nos estudos da tradução,
é aquela para a qual se traduz, enquanto a língua da qual se traduz é chamada de língua-fonte.
No nosso caso, a língua é alvo no sentido militar mesmo, porque sofre o ataque maciço da língua
imperial, manipulada sem nenhuma habilidade por quem produz a tradução capenga. Vou tratar
aqui de um caso específico de capengagem tradutória: a preposição inglesa about.

Vou tratar aqui de um caso específico de capengagem tradutória: a


preposição inglesa about.

Alguém ouviu um galo rouco cantar que about corresponde a sobre em português. E toca a
produzir monstrengos idiomáticos. Tipo: “Amor é sobre compartilhar todos os momentos da vida”.
Blergh! Essa construção não tem absolutamente nenhum enraizamento na sintaxe, na morfologia,
na semântica, na pragmática, na culinária, na farmacopeia, na mitologia e na alfaiataria do
português: é um pedaço de pau boiando na enchente ou, como se diz em Minas, uma bosta
n’água, inconsistente, flutuando sem nada que a sustente. Por que não dizer simplesmente:
“Amar é compartilhar todos os momentos da vida”?

E aí vêm frases que começam simplesmente assim: “É sobre X e Y” ou “Não é sobre X e Y”.
Estrupícios, estrovengas, geringonças. Tem até uma musiquinha fuleira de autoajuda só com
versos começando com “é sobre”. Espere um minuto que vou ali vomitar e já volto.

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Outra vítima da tradução capenga de about é a locução trata-se de. A criatura lê ou ouve algo
como “What this book is about?” e tasca “Do que se trata esse livro?”. Cacilda Becker! A
locução trata-se de não pode ter sujeito, ela é impessoal, um livro não “se trata de” nada. Só se
deve usar trata-se de para retomar algo que foi dito antes: “Não se surpreenda com as
declarações balofas do presidente golpista. Trata-se de um energúmeno pusilânime medíocre”.
Seria possível traduzir a frase inglesa acima por: “Do que trata esse livro?”/“Qual o assunto desse
livro?”. Em sua fase de exílio londrino, Caetano Veloso compôs diversas músicas em inglês, e
uma delas tem o título Nostalgia ou “That’s what rock’n roll is all about”. Já pensou esse verso nas
mãos de um/a praticante da tradução capenga? Nem me arrisco a imaginar. Que tal
simplesmente “Isso é que é o rock’n roll” ou “O rock’n roll é isso e ponto” ou qualquer coisa que
não seja “ rock’n roll é sobre” ou “rock’n roll trata-se de”.

A tradução capenga reflete a sujeição acrítica ao que nos é imposto


pelo imperialismo linguístico.

Outro problema sério com trata-se de, além de traduzir capengamente o about e da atribuição de
um impossível sujeito, é a flexão do verbo no plural. Assim: “O judiciário não para de cometer
arbitrariedades. Tratam-se de atentados à democracia”. Que o judiciário atenta diuturnamente
contra a democracia é fato, mas trata-se, no singular, de arbitrariedades. Não se pode fazer
concordância entre um verbo e um complemento se entre os dois aparecer uma preposição, como
o de de trata-se de. A preposição barra qualquer concordância. Seria estranho dizer ou escrever
“Precisam-se de mais verbas para a educação” ou “Mexem-se nas aparências, mas não nos
problemas reais”, com plurais descabidos. A presença do se em trata-se de revela que se trata de
uma locução impessoal, que não pode ter sujeito: ninguém diz ou escreve “A educação precisa-
se de mais verbas”, assim como também não deve dizer nem escrever “Esse livro trata-se de um
clássico da área”, nem muito menos “Esses livros tratam-se de clássicos da área”. Aqui, de novo e
sempre, basta o simples e meigo verbo ser: “Esses livros são clássicos da área”, assim, de cara
limpa, sem botox.

A tradução capenga reflete a sujeição acrítica ao que nos é imposto pelo imperialismo linguístico,
é a contrapartida idiomática de todas as demais sujeições com que nos dobramos, canina e
servilmente, aos ditames dos centros da mundialização do capitalismo neoliberal histérico, o
mesmo que promove golpes de Estado, financia grupos de extrema-direita como MBL e outros
excrementos, seduz as estúpidas elites locais a entregar de bandeja todas as riquezas nacionais,
como o pré-sal, o aquífero Guarani, a Floresta Amazônica etc. etc. Nenhum dos nossos
milhões de analfabetos funcionais vai produzir coisas do tipo “amar é sobre compartilhar” ou
“esse livro trata-se de um clássico”: são capenguices típicas de uma pequena parcela que se julga
muito letrada e acha chique macaquear um inglês que ela mal conhece, enquanto acusa de “falar
errado” quem diz “menas” ou “pra mim fazer”, formas que têm muito mais razão de ser, do ponto
de vista da morfossintaxe do português, do que capenguices do tipo “é sobre”.

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Nenhum dos nossos milhões de analfabetos funcionais vai produzir


coisas do tipo “amar é sobre compartilhar” ou “esse livro trata-se
de um clássico”: são capenguices típicas de uma pequena parcela
que se julga muito letrada e acha chique macaquear um inglês que
ela mal conhece, enquanto acusa de “falar errado” quem diz
“menas” ou “pra mim fazer”, formas que têm muito mais razão de
ser, do ponto de vista da morfossintaxe do português, do que
capenguices do tipo “é sobre”.

E não me faça bocejar de tédio dizendo que sou preconceituoso. “É sobre” saber do que se está
falando por ter estudado muito o assunto, não “se tratam de” pitacos improvisados. Mas nem por
isso deixa de ser, também, uma tomada de posição ideológica explícita.

Tags linguístico línguas do mundo estrangeirismos tradução literal português Blog da Parábola
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