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Jean-Marc Berthoud
Copyright © 2020, de Editora Monergismo
1ª edição, 2020
PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.
Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) salvo
indicação em contrário.
O Moinho místico[1]
Moisés, vestido com uma túnica curta e os pés calçados como um escravo, se curva sobre o
funil de um moinho, no qual derrama o conteúdo de um saco de grãos que traz sobre os
ombros. Paulo, com os pés descalços, vestido como um cidadão, estende um outro saco sob
a marquise para recolher a farinha. A roda do moinho representa uma cruz incrustada num
círculo. A cruz está no centro do capitel, no qual todas as linhas seguem a curva da roda: o
corpo dos dois personagens, as dobras das suas vestimentas, arfando com o vento do
Espírito, o saco meio vazio sobre o ombro de Moisés, a barba de Paulo, o gesto de seu
braço impulsionado pelo movimento da roda e que corrige a curva oposta do seu rosto, com
testa e queixo recolhidos, nariz adunco e grandes olhos saltados.
Moisés derrama a semente bruta da Lei antiga na prensa da cruz. Por sua Paixão, Cristo
extrai a pura e fina farinha da Nova Aliança, que é recebida pelo apóstolo, liberto da
escravidão do pecado que a Lei tornava inevitável (Romanos 6.20 e 7.7), livre como um
filho de Deus e irmão de Cristo (Romanos 8.14-17). Esse é o capitel mais famoso da
basílica de Madalena, em Vézelay: o moinho místico.
À memória de uma herança:
Teólogos, filósofos, economistas e juristas
João Crisóstomo
Tomás de Aquino
Heinrich Bullinger
Pierre Viret
João Calvino
Théodore Agrippa d’Aubigné
Richard Hooker
Lancelot Andrewes
François Turrettini
Bénédict Pictet
Johann Georg Hamann
Friedrich Julius Stahl
Donoso Cortes
Robert L. Dabney
Herman Bavinck
Klaas Schilder
Hendrik G. Stoker
E. L. Hebden Taylor
Cornelius Van Til
Rousas John Rushdoony
Pierre Courthial
Sumário
Prefácio
Introdução
Capítulo I: A excelência do mandamento
Capítulo II: O conteúdo do Oitavo Mandamento: Transgredir um mandamento é
transgredir todos
Capítulo III: O espírito do Oitavo Mandamento: O amor ao dinheiro, a raiz de todos os
males
Capítulo IV: O roubo e o Natal
Capítulo V: O roubo antes do Decálogo
Capítulo VI: O Oitavo Mandamento e sua aplicação no Código da Aliança
Capítulo VII: O Código da Aliança e a reparação
Capítulo VIII: O Código da Aliança e as cauções
Capítulo IX: O oitavo mandamento e sua aplicação em Deuteronômio
Capítulo X: A usura (1)
Capítulo XI: A usura (2)
Capítulo XII: O ensino bíblico sobre balanças falsas
Capítulo XIII: Pierre Viret e uma economia sensata
Capítulo XIV: A generosidade de Deus
Capítulo XV: Abraão, o pai do dízimo
Capítulo XVI : Os três dízimos da Lei
Capítulo XVII: Os três dízimos na Nova Aliança: A prática do dízimo na Igreja de
Jerusalém
Capítulo XVIII: Os três dízimos na Igreja apostólica: As necessidades da igreja local e
da Igreja Universal
Capítulo XIX: Os dízimos na Igreja pós-apostólica: Algumas considerações práticas
Conclusão
Prefácio
Jean-Marc Berthoud
INTRODUÇÃO
A oitava palavra do Decálogo, ainda que seja das mais concisas, é um
mandamento divino de grande atualidade moral, política, econômica e
financeira. Porque muitos dos problemas que atualmente conhecemos no
âmbito das relações humanas, dos negócios e das finanças, da vida da cidade,
vêm do fato de ignorarmos tanto o seu conteúdo quanto suas implicações.
Mas, antes de abordar o oitavo mandamento, recordemos brevemente em que
consiste a fé cristã. A fé cristã é relativamente simples. Mas o fato de que
todos fomos, cada um à sua maneira, atingidos pelos efeitos do pecado, isso
torna sua compreensão frequentemente mais complicada.
Eis o que tão somente achei: que Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em
muitas astúcias. (Eclesiastes 7.29)[5]
MOISÉS
Suas palavras têm exatamente o mesmo sentido:
Porque este mandamento que, hoje, te ordeno não é demasiado difícil, nem está
longe de ti. Não está nos céus, para dizeres: Quem subirá por nós aos céus, que
no-lo traga e no-lo faça ouvir, para que o cumpramos? Nem está além do mar,
para dizeres: Quem passará por nós além do mar que no-lo traga e no-lo faça
ouvir, para que o cumpramos? Pois esta palavra está mui perto de ti, na tua boca
e no teu coração, para a cumprires.
E Moisés conclui com estas palavras dirigidas ao povo de Deus, àqueles que
fazem parte da Aliança divina renovada:
Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a
morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua
descendência, amando o SENHOR, teu Deus, dando ouvidos à sua voz e apegando-
te a ele; pois disto depende a tua vida e a tua longevidade; para que habites na
terra que o SENHOR, sob juramento, prometeu dar a teus pais, Abraão, Isaque e
Jacó. (Deuteronômio 30:11-14 et 19-20)[6]
Todo cristão fiel deve construir sua casa, não sobre a areia da incredulidade,
mas sobre a rocha de uma fé obediente à Palavra de Deus, tomando distância
da impiedade e da desobediência.
O Oitavo Mandamento: Não roubarás
Após esta introdução, que, no conjunto das Escrituras nos relembra do elo
inseparável entre a fé em Jesus Cristo e a obediência aos mandamentos de
Deus, vamos ao estudo do oitavo mandamento, que nos diz:
Não roubarás. (Êxodo 20.15; Deuteronômio 5.19)
Tenho constatado que toda a perfeição tem limite; mas não há limite para o teu
mandamento. (Salmos 119.96)
É exatamente isso, porque esse mandamento (como de resto toda a Lei
divina) reflete precisamente o caráter santo, justo e bom do Deus verdadeiro,
cuja natureza claramente não conhece nenhum limite.
Lembremos que a Lei divina revela não somente a ordem moral, própria das
criaturas humanas, mas também as estruturas essenciais que o Criador
concedeu a todas as suas obras. Porque não se trata apenas de uma estrutura
moral conferida por Deus aos indivíduos, mas, como explica a Palavra de
Deus, essa Lei é uma ordem conferida pelo Criador à sociedade e ao universo
como um todo.
Examinemos agora o nosso texto.
Tu ne commettras pas de vol [Tu não cometerás roubo, lit.]: Êxodo
20.15 (Bible à la Colombe, 1978).
Tu ne déroberas point [Tu não roubarás, lit.]: Êxodo 20.15 (Bible
Martin, 1707).
E acrescenta:
Se entendermos essa palavra como é usada pelas Santas Escrituras, vemos que
significa não somente tomar o bem do próximo sem que este saiba, mas também
enganá-lo e desapontá-lo de forma enganosa, em coisa que lhe pertence.[8]
Mas há duas outras palavras que são empregadas na Bíblia que exprimem a
ideia de roubo: gazal ou ashaq. Nos dois casos trata-se de uma ação violenta
pela qual alguém toma a propriedade do outro. Todas essas ações são
condenadas por esse mandamento.
O mandamento “Não roubarás” (Êxodo 20.15, Deuteronômio 5.19, Levítico
19.11), também está relacionado com a proibição de assaltar e ao ato de
apoderar-se de uma pessoa, isto é, sequestrá-la (Êxodo 21.16). A ação de
roubar e, por consequência, o próprio roubador eram alvos do maior desprezo
em Israel (Jeremias 2.26, Provérbios 6.30). Por outro lado, nos países da
África (e em outros também) a complacência com o roubo é tal que se chega
a dizer: “Ladrão é aquele que se deixa prender”. A Bíblia trata também do
caso daquele que rouba por extrema pobreza, para matar a fome. Tal ato é
considerado roubo, mas em geral o ladrão que rouba para matar a fome ou
para satisfazer as suas necessidades vitais e da sua família não é tratado com
o mesmo rigor. Evidentemente, a Bíblia condena aqueles que roubam para
satisfazer sua cobiça.
4. APLICAÇÃO DO MANDAMENTO
Em Israel, o roubo não era reprimido de maneira tão severa como em alguns
países vizinhos, nos quais a penalidade aplicada podia ser a pena de morte ou,
como ainda é o caso no direito islâmico, cortava-se a mão direita do ladrão.
Lembremos que no direito britânico da época vitoriana do século 19, algo em
torno de 130 infrações diferentes de leis, que reprimiam o roubo, eram
puníveis pelo enforcamento, isso num país que se considerava fortemente
cristão!
A lei em Israel exigia que o ladrão reembolsasse sua vítima o dobro do que
havia roubado (Êxodo 22.6). A quantia reembolsada, em razão do roubo,
aumentava proporcionalmente em função da gravidade do crime. A
compensação era paga, não sob forma de multa ao Estado, mas diretamente à
pessoa lesada. Na perspectiva do direito bíblico, obrigar o faltoso a pagar
uma quantia ao Estado ou deixá-lo apodrecer numa prisão seriam
considerados castigos monstruosos. Portanto, o ladrão devia devolver à sua
vítima o que lhe havia roubado, acrescentando o mesmo valor como
compensação. Na verdade, ele perdia exatamente a quantia que havia
esperado ganhar em seu roubo. A penalidade era dobrada (ou aumentada
ainda mais) se o ladrão tivesse matado ou vendido o animal roubado, ações
que indicavam que se tratava de roubo por negócio. No caso de roubo de
pessoa, de rapto (Êxodo 21.16) ou de roubo de objetos consagrados ao culto
(Josué 7.11, 25), a pena era bem mais pesada: o ladrão devia ser condenado à
morte. Aqui, o próprio Deus, em sua Pessoa, em seu culto e em sua imagem
— que é o ser humano — havia sido atacado pelo ato de roubar.
Esse mandamento nos mostra que o direito à propriedade, tanto familiar e
privado como comunitário, era considerado como criacional, natural, tendo
sido estabelecido pelo próprio Criador. Esse direito era cuidadosamente
protegido pela Lei de Israel, a Torá. Pode-se questionar então: “Qual a
origem do grande valor dado à propriedade e à sua proteção na Bíblia?”.
No salmo 24, versos 1 e 2, lemos estas palavras que afirmam a soberana
autoridade de Deus sobre toda a criação, propriedade do Deus Criador: “Ao
SENHOR pertence a terra e tudo o que nela se contém, o mundo e os que nele
habitam. Fundou-a ele sobre os mares e sobre as correntes a estabeleceu”.
A terra é do Senhor, isto é, foi Ele quem a fez e, em consequência, somente
Ele tem o direito de propriedade, de posse última. A terra não pertence ao
Estado nem aos grandes proprietários terrenos, nem mesmo aos simples
homens do campo, mas ao Senhor Deus e, somente depois dele, por
delegação, os homens podem possuí-la. Portanto, os homens são proprietários
por delegação e não por direito absoluto, e cada um terá de prestar contas ao
Senhor pelo uso que fez da terra colocada sob sua proteção. O livro de
Apocalipse fala do Deus que vai “[...] destruir aqueles que destroem a terra”
(Apocalipse 11.18).
Esse verso está próximo de algumas preocupações ecológicas de nossa época,
mas infelizmente, essas preocupações derivam, com demasiada frequência,
para uma impiedade ainda mais grave que a destruição da criação, ou seja,
para o panteísmo, abandonando-se ao culto de uma natureza colocada no
lugar de Deus como seu bem soberano. Entretanto, segundo a própria Bíblia,
nós somos os gestores desta terra e nunca seus proprietários absolutos, como
se fôssemos livres para dela extrair sem trégua e restrição, numa exploração
furiosa, todas as suas riquezas.
Por outro lado, os céus dos céus pertencem exclusivamente a Deus. Tendo
terminado a descrição de toda a obra da criação, o salmo 115.16 diz: “Os
céus são os céus do Senhor, mas a terra, deu-a ele aos filhos dos homens”.
Dessa forma, Deus transmite aos homens um direito de cultivar e proteger a
terra, mas esse direito depende, em última instância, Dele mesmo; um direito
que não é primário, mas delegado, cujo exercício é limitado pelas exigências
da Lei de Deus. A justificação para tal delegação de propriedade ao homem
se encontra bem expressa na ordem dada em Gênesis 1.28: “Enchei a terra e
dominai-a”.
Assim, o homem pode, pela ordem expressa de Deus, tomar posse da terra e
submetê-la, cultivá-la e fazer com que prospere. Nesse mandamento divino,
anterior à queda, se encontra o fundamento criacional e legal do direito à
propriedade privada, familiar e comunitária. Lancelot Andrewes explica as
origens históricas bíblicas da propriedade privada desta maneira:
Os Patriarcas deviam fazer a mesma coisa [encher a terra e dominá-la]. Foi o que
o próprio Noé fez. De uma maneira mais concreta, se o homem tivesse
perseverado no seu estado de inocência, todos os seres humanos, por não terem
pecado, não teriam dificuldade em satisfazer suas necessidades. Ninguém teria
problema com seus apetites desordenados ou dos outros, porque a terra seria
amplamente suficiente para todos. Mas após a entrada do pecado no mundo, uma
divisão [dos bens] tornou-se necessária [porque agora era preciso proteger a
propriedade da cobiça que tinha surgido]. E isso agradou a Deus. Porque, ainda
que essa divisão tenha sido feita em razão do mal, vemos aí como as boas leis
podem ser causadas pelo mal, criadas a partir de uma necessidade. Foi assim que
a perseguição de Abel por Caim permitiu a Sete tomar posse de uma terra e
defendê-la. Da mesma forma, depois do estabelecimento da primeira cidade
formada por Caim, à qual deu o nome de seu filho (Gênesis 4:17), os Pais foram
levados, logo após o dilúvio, a fazer mesmo. Os três filhos de Noé então
dividiram o mundo: Cão recebeu a África; Sem, a Ásia e Jafé, a Europa (Gênesis
11:31 e 13:9-11). Mais tarde, houve uma divisão parecida entre Abraão e Ló, que
escolheu a planície, enquanto Abraão contentou-se com a montanha [...].[12]
Lancelot Andrewes nos dá ainda esta ilustração esclarecedora:
Quando um prato com carne é posto sobre uma mesa, pode-se dizer, antes que a
carne seja cortada, que seu conteúdo pertence a todos. Mas uma vez a carne
cortada e servida nos pratos dos convidados, tendo cada um recebido sua parte,
não seria muito conveniente retirá-la dos pratos! Assim, no seu início, a terra
pertencia a todos os homens, porém mais tarde, cada um tomou posse de uma
parte, como disse o Senhor sobre a terra prometida: “Todo o lugar que pisar a
planta de vossos pés, vos será por possessão” (Deuteronômio 11.24).[13]
INTRODUÇÃO
Em primeiro lugar, vejamos como, ao transgredir esse mandamento,
violamos todos os outros. É o que nos lembra Tiago, o irmão do Senhor, em
sua carta:
Se vós, contudo, observais a lei régia segundo a Escritura: Amarás o teu próximo
como a ti mesmo, fazeis bem; se, todavia, fazeis acepção de pessoas, cometeis
pecado, sendo arguidos pela lei como transgressores. Pois qualquer que guarda toda a
lei, mas tropeça em um só ponto, se torna culpado de todos. Porquanto, aquele que
disse: Não adulterarás também ordenou: Não matarás. Ora, se não adulteras, porém
matas, vens a ser transgressor da lei. (Tiago 2.8-11)
Vejamos, brevemente, cada um dos dez mandamentos para entendermos que
ao roubar nosso semelhante transgredimos todos os mandamentos.
A definição mais comum de justiça é esta: “Pagai a todos o que lhes é
devido”.
Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a
quem respeito, respeito; a quem honra, honra. (Romanos 13.7)
O Decálogo está dividido em duas partes.
A Primeira Tábua diz respeito ao que devemos a Deus (Mandamentos de 1 a
4).
A Segunda Tábua diz respeito ao que devemos ao nosso próximo
(Mandamentos de 4 a 10).
Vimos nos estudos anteriores — sobre o 4º mandamento — relacionados à
guarda do sétimo dia, o sábado, que esse mandamento está ligado à Primeira
Tábua (relativa a Deus) e à Segunda Tábua (que diz respeito ao próximo).
Vejamos, agora, como o ato de roubar o próximo, ou não lhe dar o que lhe é
devido em relação aos seus bens (pessoais, humanos e espirituais), afronta
tanto a Deus como o próximo em seus direitos legítimos.
A. TRANSGREDIR UM MANDAMENTO É TRANSGREDIR TODOS
Primeira Tábua da Lei
1. Não há outros deuses
Não terás outros deuses diante de mim. (Êxodo 20.3)
Deus é o Criador de todas as coisas. Ele é nosso Criador. A ele devemos
tudo.
Pois ele mesmo é quem a todos dá vida, respiração e tudo mais. (Atos 17.25)
Então, disse Jesus a seus discípulos: Em verdade vos digo que um rico dificilmente
entrará no reino dos céus. E ainda vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo
fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus. Ouvindo isto, os
discípulos ficaram grandemente maravilhados e disseram: Sendo assim, quem pode
ser salvo? Jesus, fitando neles o olhar, disse-lhes: Isto é impossível aos homens, mas
para Deus tudo é possível. (Mateus 19.23-26)
INTRODUÇÃO
Continuemos nossos comentários sobre os dez mandamentos. É uma longa
peregrinação e espero que isso não nos canse demasiadamente! Pudemos
notar que esses estudos possuem uma variedade muito grande. A razão disso
é que a Palavra de Deus sonda todas as coisas e o conjunto das verdades e
das realidades visíveis e invisíveis que têm relação com nossas vidas pessoais
e comunitárias se encontra no interior dos próprios mandamentos. Este é a
terceiro estudo sobre o oitavo mandamento Não roubarás.
Damos continuidade ao que havíamos começado na segunda parte do nosso
último estudo, quando falávamos do espírito do oitavo mandamento.
Nosso texto se encontra em 1 Timóteo 6.1-20.
Façamos algumas observações introdutórias.
Em nosso estudo precedente, tínhamos visto, em primeiro lugar, que a
transgressão desse mandamento implicava a transgressão de todos os outros.
Vimos que ao roubar os bens de nosso próximo, transgredimos também cada
uma das Dez Palavras dadas por Deus a Moisés no Sinai.
Em segundo lugar, começamos a examinar o espírito que caracteriza
especificamente esse mandamento. Para isso utilizamos amplamente o
comentário de Pierre Viret sobre o Decálogo, que felizmente será reeditado
por L’Age d’Homme no próximo ano.[21]
Vimos ali não apenas como a avareza, que é reter tudo para si, e a
prodigalidade, que é o desperdício do que Deus nos deu, são infrações muito
graves contra o espírito desse mandamento, mas sobretudo consideramos
como a ordem que Deus nos deu para não roubarmos tem em si um caráter
iminentemente positivo. Se seu conteúdo é negativo, isso ocorre porque
primeiramente serve para restringir a força do pecado no mundo. A aplicação
dos mandamentos não está restrita a uma função puramente “religiosa” no
seio da Igreja, para santificar os fiéis, mas também diz respeito ao
restabelecimento da ordem da criação (o cosmos) e da sociedade, o que inclui
a restrição do mal fora da Igreja. Mas, no fundo, detém um caráter
profundamente positivo, porque, antes de tudo, é preciso amar nosso próximo
e fazer-lhe bem. Fazer o bem, nos diz Paulo, não é contrário à Lei, mas seu
cumprimento! Vimos também que Pierre Viret resumia em três pontos o
conteúdo completo e positivo desse mandamento:
1. Não causar nenhum dano aos bens do próximo.
2. Empenhar-se para que seus bens fossem preservados e, se possível,
aumentá-los.
3. E enfim, ter como socorrer o próximo em suas necessidades e dificuldades
— por alguma acumulação de reservas — e para isso fazendo uso dos
próprios bens. Esse é o aspecto de complementaridade do rico em relação ao
pobre. A dialética marxista destrói essa complementaridade, porque produz
uma animosidade profunda entre eles, isto é, a luta de classes, fundamento da
dialética social. A dialética marxista tem sua raiz na visão liberal (Adam
Smith 1723-1790 e David Ricardo 1772-1823) da concorrência como
produtora de riquezas.
Aqui há três pontos sobre os quais devemos concentrar nossa atenção: a) não
fazer o mal; b) trabalhar, na medida do possível, para fazer o bem ao próximo
e c) ter como ajudar aqueles que se encontram na miséria. Aqui vemos,
perfeitamente, até que ponto a observação generalizada tanto dos aspectos
negativos como positivos desse mandamento poderia perfeitamente substituir
a benevolência administrativa, fria e desumana — e na realidade muito frágil
— que é a bondade fictícia desse Estado Providência que atualmente toma o
lugar que deveria ser do amor concreto e mútuo entre homens e mulheres na
sociedade. O que chamamos de Estado social ou amor pseudoprovidencial da
administração pública e dos serviços sociais é, na verdade, uma resposta
defeituosa, frágil e perecível, às misérias de nosso mundo, que extrai toda sua
força do desaparecimento daquele amor fraternal, que seria a obediência do
coração dos cristãos e das Igrejas ao oitavo mandamento, Não roubarás. Isso
não é acidental, mas uma substituição consciente, feita pelos homens, da
Providência de Deus pelo Estado Providência: aquele paraíso revolucionário
que não tem mais sua esperança no porvir.
Vamos, agora, dar sequência à nossa reflexão sobre este tema, isto é,
discernir bem o que caracteriza o espírito do oitavo mandamento. Faremos
isso, principalmente, utilizando textos normativos do Novo Testamento e,
mais particularmente, recorrendo aos ensinos — notemos bem —
extraordinariamente abundantes que nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo
nos deixou sobre esse mandamento e pelo ensino que inspirou o apóstolo
Paulo. De fato, o Novo Testamento nos fala abundantemente dessas questões
materiais, que para ele são de extrema importância. Mas, hoje, não
começaremos pelas palavras específicas de Cristo registradas nos Evangelhos
sobre esse ensino, mas por um texto notável do apóstolo Paulo. Somente em
seguida examinaremos, se Deus permitir, diversas passagens dos Evangelhos
sobre esse assunto.
Nossa abordagem será diferente daquela que, no passado, frequentemente
praticávamos, porque não somos obrigados a trabalhar da mesma maneira, ou
seja, tudo depende das circunstâncias, mas também dos textos que
estudamos. Em geral, antes começávamos pelo estudo do ensino do Antigo
Testamento e só depois disso voltávamos para o estudo do Novo Testamento.
Mas tendo visto o caráter particular desse mandamento, me pareceu mais
importante levar em conta o espírito que acompanha essa palavra de origem
divina, Não roubarás. E esse espírito se manifesta de uma maneira
particularmente clara no Novo Testamento e, sobretudo, no ensino de Paulo.
Será, então, por ele que começaremos, para em seguida nos voltarmos às
aplicações detalhadas e bastante precisas dessa oitava Palavra do Decálogo
que encontramos na Lei de Deus, nos Profetas e nos livros de Sabedoria.
Eis, portanto, alguns textos que ocuparão nossa atenção nas próximas
exposições.
Hoje, em primeiro lugar, vamos nos voltar para este adágio tão claro do
apóstolo Paulo: “O amor ao dinheiro é a raiz de todos os males” (1 Timóteo
6.10). O texto para nossa meditação se encontra, então, em 1 Timóteo 6.1-20.
Em seguida, falaremos sobre Mateus 6.20, no qual Cristo nos exorta a juntar
tesouros no céu.
Enfim, examinaremos a parábola do servo iníquo, Mateus 18.28: “Paga-me o
que me deves”.
Em último lugar, falaremos sobre um texto, ao mesmo tempo extraordinário
e terrível, que é o de Lucas 16.9: “Granjeai amigos com as riquezas da
injustiça”.
Esse é o extenso programa dos próximos meses. Vamos descobrir, no
decorrer do nosso trabalho, como se desenvolve a exposição deste
mandamento “Não roubarás”. Somente então, voltaremos à explicação que a
Torá, os livros de Sabedoria e os Profetas dão a esta oitava Palavra do
Decálogo. O título de nosso estudo é, portanto, o seguinte:
O amor ao dinheiro é a raiz de todos os males.[22]
Por que o apóstolo Paulo faz aqui um ataque tão veemente, tão forte ao que
chama de “o amor ao dinheiro”? Para compreender o conteúdo verdadeiro do
pensamento de Paulo, precisamos considerar, rapidamente, o conjunto dessa
passagem, isto é, os capítulos 5 e 6 de sua primeira epístola à Timóteo.
Vejamos, brevemente, o capítulo 5 que, no capítulo seguinte, deságua nessa
exortação tão vigorosa. Após ter dirigido duas exortações bastante genéricas
a Timóteo sobre a atitude que devia ter para com os velhos e jovens, idosas e
mulheres jovens (1 Timóteo 5.1-2), Paulo dá alguns conselhos morais
precisos e concretos em primeiro lugar às viúvas (versos 3-16), depois aos
homens idosos, responsáveis pela direção da Igreja (versos 17-22) e,
concluindo suas exortações éticas, faz referência às relações entre escravos e
senhores (1Tm 6.1-2). Foi assim que introduziu novas considerações por uma
exortação dirigida àqueles que estão sob o jugo da escravidão — poderíamos
dizer proletários — isto é, homens que não possuíam outro bem para sua
sobrevivência senão sua própria mão e que, consequentemente, são
totalmente dependentes de seus senhores.
Leiamos, então, nosso texto:
Todos os servos que estão debaixo de jugo considerem dignos de toda honra o próprio
senhor, para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados. Também os
que têm senhor fiel não o tratem com desrespeito, porque é irmão; pelo contrário,
trabalhem ainda mais, pois ele, que partilha do seu bom serviço, é crente e amado.
“Ensina”, diz Paulo à Timóteo, “e recomenda estas coisas”.
Trata-se, então, da importância que Paulo dá à atitude dos subordinados para
com seus superiores.
Se alguém ensina outra doutrina e não concorda com as sãs palavras de nosso Senhor
Jesus Cristo e com o ensino segundo a piedade, é enfatuado, nada entende, mas tem
mania por questões e contendas de palavras, de que nascem inveja, provocação,
difamações, suspeitas malignas, altercações sem fim, por homens cuja mente é
pervertida e privados da verdade, supondo que a piedade é fonte de lucro. [Retira-te
do meio deles.][23] De fato, grande fonte de lucro é a piedade com o contentamento.
Porque nada temos trazido para o mundo, nem coisa alguma podemos levar dele.
Tendo sustento e com que nos vestir, estejamos contentes. Ora, os que querem ficar
ricos caem em tentação, e cilada, e em muitas concupiscências insensatas e
perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e perdição. Porque o amor do
dinheiro é raiz de todos os males; e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé e a si
mesmos se atormentaram com muitas dores.
Paulo prossegue nas instruções dirigidas a seu discípulo amado, Timóteo:
Tu, porém, ó homem de Deus, foge destas coisas; antes, segue a justiça, a piedade, a
fé, o amor, a constância, a mansidão. Combate o bom combate da fé. Toma posse da
vida eterna, para a qual também foste chamado e de que fizeste a boa confissão
perante muitas testemunhas. Exorto-te, perante Deus, que preserva a vida de todas as
coisas, e perante Cristo Jesus, que, diante de Pôncio Pilatos, fez a boa confissão, que
guardes o mandato imaculado, irrepreensível, até à manifestação de nosso Senhor
Jesus Cristo; a qual, em suas épocas determinadas, há de ser revelada pelo bendito e
único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores; o único que possui
imortalidade, que habita em luz inacessível, a quem homem algum jamais viu, nem é
capaz de ver. A ele honra e poder eterno. Amém!
E voltando ao tema sobre o perigo das riquezas, Paulo conclui:
Exorta aos ricos do presente século que não sejam orgulhosos, nem depositem a sua
esperança na instabilidade da riqueza, mas em Deus, que tudo nos proporciona
ricamente para nosso aprazimento; que pratiquem o bem, sejam ricos de boas obras,
generosos em dar e prontos a repartir; que acumulem para si mesmos tesouros, sólido
fundamento para o futuro, a fim de se apoderarem da verdadeira vida. E tu, ó
Timóteo, guarda o que te foi confiado, evitando os falatórios inúteis e profanos e as
contradições do saber, como falsamente lhe chamam, pois alguns, professando-o, se
desviaram da fé. A graça seja convosco. (1 Timóteo 6.1-21)
SOCIAIS
Todos os servos que estão debaixo de jugo considerem dignos de toda honra o próprio
senhor, para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados. (v. 1)
E insiste:
Tendo sustento e com que nos vestir, estejamos contentes. (1 Timóteo 6.7-8)
Esse amor por um lucro espúrio, ilícito, supérfluo, não necessário, nos
conduz à tentação, a armadilhas, a desejos insensatos e perniciosos. Os que a
ele se entregam, são levados à ruína e à perdição. Até onde compreendemos a
afirmação peremptória de Paulo de que o amor ao dinheiro está na raiz de
todos os males? Mas notemos: ele não diz aqui que o dinheiro, em si mesmo,
é a raiz de todos os males!
Podemos dar bons conselhos — como a Bíblia inteira e Paulo nos dão —
sobre a justa utilização da riqueza. Porque ser rico não é um mal em si; a
pobreza também não é uma virtude em si mesma. Além do mais, o dinheiro
não é em si mesmo um mal! Trata-se de algo necessário, especialmente hoje;
um bem absolutamente necessário para a vida em sociedade. Mas o amor ao
dinheiro, a cobiça, a transgressão do oitavo e décimos mandamentos são a
raiz de todos os males — como vimos num estudo anterior — a raiz de todas
as nossas transgressões dos mandamentos.
Lembremos que vamos tratar em seguida do décimo mandamento.
Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o
seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que
pertença ao teu próximo. (Êxodo 20.17)
O que Martin afirma é evidente e salta aos olhos! Isso não quer dizer que o
cristão, ou o não cristão, não possa ser rico! Mas não é permitido que ponha
o seu coração nas riquezas deste mundo. Vejamos, agora, Apostolos
Makrakis:
O amor ao dinheiro é diametralmente oposto ao amor a Deus; e como o amor a Deus é
a fonte e a causa de toda a felicidade, o amor ao dinheiro, seu contrário, é a fonte de
todos os males. Por isso Cristo falou que é impossível servir a Deus e ao dinheiro.[29]
Que Deus nos livre desse ídolo tão poderoso em nosso tempo! E que Deus
nos permita ver que este tempo, em sua organização mecanicamente
mercantilista, está organizado de maneira diametralmente oposta ao Reino de
Deus. O dinheiro e as riquezas não são maus em si mesmos, longe disso! Ao
contrário, é muito bom que existam pessoas ricas, prontas a contribuir com a
obra de Deus, a ajudar os miseráveis, a sustentar a arte de bom gosto de
forma inteligente, ou seja, uma cultura verdadeira. Porque não é papel do
Estado ajudar os miseráveis ou favorecer a cultura; mas essa é a tarefa dos
ricos, daqueles que possuem os bens deste mundo, ajudar os infelizes e as
variadas artes dos homens, a fim de que a ajuda concedida não seja o
resultado de uma simples e mecânica cifra administrativa, portanto
desumana, mas seja pessoal, o fruto do amor ao próximo, e conduza ao amor
mútuo, ao amor do pobre pelo rico, em gratidão aos seus benfeitores. Mas,
hoje, a desordem mental é tão imensa que a maior parte das pessoas tem
horror sagrado de receber favor, de ser alvo da ajuda de alguém! Esse é o
tamanho do nosso orgulho, do nosso individualismo tão independente.
Mas precisamos acrescentar aqui que o dinheiro, como meio de troca, não é
algo criado, como um cavalo, um carro ou uma propriedade! Mas é apenas
um meio de troca! Nada mais natural que, em certa medida, gostarmos do que
foi trocado, como por exemplo de uma bela pintura; mas como podemos
amar o que não passa de um meio para adquiri-la? Se tenho dez francos
suíços no bolso, posso dá-los ao dono da quitanda e receber algumas laranjas
em troca. Isto é um meio de troca, uma medida reconhecida por todos, que
corresponde ao valor do bem. Mas o bem legitimamente desejado são as
laranjas, não os dez francos. Nosso amor desmedido por esse meio de troca é
monstruoso! Por essa razão, o hábito atual, tão comum, de fazer multiplicar o
dinheiro, de fazer com que o crédito cresça de forma quase mágica, é
verdadeiramente um horror. Porque, dessa maneira se destrói o valor do
dinheiro como meio de troca e isso arruína a sociedade inteiramente e reduz
todo mundo à miséria mais terrível, salvo aqueles que emitem essa moeda
fictícia, ou que estão próximos das fontes de sua emissão. Assim, destrói-se
também a capacidade do dinheiro como meio de armazenamento de valor,
isto é, de capitalização. O dinheiro não representa mais o capital, mas é
apenas um denominador flutuante, a serviço de uma especulação desnaturada.
A especulação não é mais o capitalismo, porque o valor — o capital — não é
mais estável. Em tais condições, a moeda fictícia torna-se tão acessível que
não produz mais nenhum juros. Mas o desaparecimento do juros, maneira
iníqua de enriquecimento proibido pela Lei de Deus, não é uma melhora
moral, uma vez que é substituído pela especulação como de uma economia de
cassino, pior que a usura, ou seja, nada mais do que o roubo em grande
escala, pela falsificação da moeda, tanto pelos bancos centrais como pelos
bancos comerciais, todos elevados a um grau de poder nunca antes visto no
mundo!
O dinheiro, certamente, é um meio de troca muito útil, inventado pelo homem
para facilitar as trocas e substituir o escambo. Portanto, a moeda é um
simples meio de troca. É o meio pelo qual as coisas são medidas para se
determinar seu valor monetário. No passado, só era possível fazer comércio
através do escambo, isto é, pela troca de produtos que satisfaziam a todos. Se
eu tinha ovos e o outro tinha carne, este me passava certa quantidade de carne
e eu lhe fornecia os ovos. Era o escambo. Mas depois a situação tornou-se
mais complexa. Hoje, se preciso comprar um livro nos Estados Unidos, como
farei para pagá-lo? Não posso fazer escambo com alguma coisa que disponho
em casa! É preciso, então, um meio de troca que nos permita fixar o valor
desse livro. É o mercado que estabelece, principalmente, o valor comercial do
objeto a ser comprado e os meios de troca que permitirão efetuar, por cartão
de crédito, a troca entre francos suíços e dólares, para que o livro seja pago.
Mas cabe uma outra questão: qual é o valor desse dólar e do franco suíço?
Antigamente existia uma unidade de medida que permitia dar um valor
estável às moedas em papel ou moedas eletrônicas; era o ouro ou a prata,
materiais preciosos que tinham qualidades próprias para manter o valor
relativamente estável, isto é, fixar o valor verdadeiro das moedas. Isso porque
o ouro ou a prata são materiais raros, portanto preciosos e estáveis, ou seja,
não se degradam e podem ser divididos em peças de prata ou lingotes de
ouro, que podem ser facilmente pesados. Esses materiais serviam de
referência para a compra e venda dos produtos em livre circulação no
mercado. Eram, também, minerais raros, difíceis de ser produzidos e
extraídos da terra. Por muito tempo o ouro e a prata foram bons meios de
troca, desde que não tivessem seu conteúdo falsificado. Mais tarde, para
simplificar as trocas e o pagamento dos produtos trocados, inventaram o
título ou certificado de depósito e outros meios de troca. Finalmente,
inventaram o papel moeda como novo meio de troca, que conhecemos ainda
hoje, cujo valor era garantido por reservas de ouro ou prata depositados nos
bancos. Quando eu apresentava meu papel moeda no guichê, o Banco era
legalmente obrigado a me devolver o valor correspondente em ouro.
Mais tarde, a maior parte dos países abandonou a obrigação de reembolsar o
papel moeda pelo ouro, porque, de fato, a partir dos acordos de Bretton
Woods de 1944, o único país que tinha a obrigação de reembolsar em ouro
era os Estados Unidos, tendo o dólar se tornado a reserva para o comércio
mundial. Em última instância, no comércio internacional, tudo se pagava em
dólares. Atualmente, desde a decisão tomada em 1973 pelo presidente
americano Richard Nixon de cancelar a obrigação de reembolso em ouro dos
diversos pagamentos em dólar, essa moeda começou a flutuar de acordo com
o mercado de câmbio.
A consequência dessa decisão foi o desaparecimento de qualquer medida que
estabelecesse limite às especulações monetárias. A última fronteira no mundo
foi, de fato, a garantia constitucional do valor do franco suíço, obrigando o
Banco Nacional a reter uma reserva em ouro de 49% da massa monetária em
circulação, para garantir o valor de sua moeda. Essa garantia constitucional
foi discretamente abolida por um artigo, sobre essa questão, na nova
constituição helvética de 1999, organizada para essa finalidade. Desde então,
a desregulamentação do sistema financeiro mundial — como também da
Suíça — não teve mais limite. Consequência lógica, visto que não existia
mais nenhuma referência fixa para as diversas moedas do mundo.
Atualmente, países como a Rússia e a China procuram acumular grandes
reservas em ouro, para fazer com que suas moedas voltem à estabilidade. O
grande ganhador nesse sistema de moedas flutuantes foi o dólar americano
que, mesmo não tendo mais garantia quanto ao seu valor, permaneceu o meio
de troca internacional obrigatório. Isso lhe permitiu pagar todas as suas
faturas, as mais extravagantes e assassinas, através de dólares virtuais,
fabricados pela máquina de dinheiro, depois por meio de simples escrituras
contábeis eletrônicas do sistema bancário (fractional reserve banking), que
permitiu aos bancos multiplicar seus haveres fictícios por simples escritura
contábil. Outros países, inclusive a Suíça, outrora tão conservadora nessa
área, lançaram-se no cassino mundial das especulações monetárias e
financeiras, alimentadas pela máquina de moedas insaciável dos bancos
centrais.
O amor ao dinheiro, como dizia justamente o apóstolo Paulo, depois de seu
Mestre Jesus Cristo, é certamente a raiz de todos os males. Isso acontece
mesmo em termos de geopolítica. É evidente que não podemos servir a dois
senhores, a Deus e a Mamon, a Jesus Cristo e ao dinheiro, a Deus e ao diabo!
“Mas tu, ó homem de Deus”, diz Paulo ao seu amado discípulo, “foge destas
coisas, e segue a justiça, a piedade, a fé, o amor, a constância, a mansidão”.
Não se trata, então, de procurar a autorrealização, nem a felicidade a qualquer
preço; trata-se menos ainda de correr atrás da satisfação de todos os desejos,
mas fugir de tais coisas, como quem foge da peste. Então, é preciso rejeitar o
amor ao dinheiro, que é o instrumento para satisfazer todos os nossos desejos
desordenados! É claro que o cristão pode prosperar cuidando bem dos seus
negócios, com honestidade, submetendo-se aos mandamentos de Deus e
esperando a bênção do alto. Não há nenhum mal nisso! Mas não deve pôr seu
coração nas riquezas que Deus lhe deu como fruto do seu trabalho! Timóteo
devia procurar a justiça, submetendo-se à lei de Deus, como também a
piedade, o amor e o temor a Deus, tudo isso pela obediência da fé. Ele devia
colocar sua esperança em Deus e não nas realidades terrestres que são boas,
mas passageiras. Sua vida cristã devia manifestar o amor, a compaixão, a
piedade, mas sobretudo aquela paciência que suporta as provações, disciplina
que produz mansidão, esperança e grande domínio próprio.
7. MANTENHA O DEPÓSITO DA FÉ
O que fazemos para Deus aqui embaixo está sendo investido no Banco
Celeste, naquele céu no qual não há ferrugem nem traça que rói e menos
ainda inflação. O que fizermos de bom, isso nos seguirá; as boas obras que
temos realizado para Jesus Cristo e para os seus, nos precederão nos lugares
celestes, e será então, no último dia, a medida de nossa recompensa. Leiamos
com atenção o que nos diz o apóstolo Paulo: a fim de tomar posse da
verdadeira vida. Ó Timóteo, é assim que você guardará bem o bom depósito.
Vejam novamente esta surpreendente palavra: depósito. Um depósito é o que
fazemos quando pomos dinheiro num lugar seguro, em princípio, no banco.
Mas depositar nosso dinheiro no banco não nos livra de todo problema!
A gente se pergunta: mas o banco UBS vai se manter? O banco deveria ter
uma reserva em ouro para cobrir o que depositei. Não é uma grande soma,
mas essa cobertura o banco não tem! Os banqueiros têm medo, porque não
dispõem de cobertura para os depósitos recebidos e isso por terem gasto,
gananciosamente, mil vezes mais e talvez até mais do que possuem. Os
banqueiros têm medo de emprestar a outros bancos, porque sabem muito
bem que seu vizinho não tem melhor cobertura do que ele, e se perguntam:
tal banco teria como garantir o empréstimo que eu lhe fizer? Porque os
bancos fazem empréstimos e sustentam uns aos outros. Mas essa mutualidade
nos empréstimos, sem cobertura por fundos verdadeiros, é como uma carreira
de dominós. Se uma das peças cai, faz com que todas as outras caiam. Esse
sistema faz com que os negócios funcionem bem; ele tem permitido que o
dinheiro renda mais do que é depositado. E essa fraude universal perdura há
muito tempo! Ela vai, certamente, se acelerar, mas quanto maior a
velocidade, mais dura será a queda!
Tal incerteza deveria nos assustar, do mesmo modo que enche de pavor
aqueles que não têm esperança? Vejamos mais uma vez o que diz o apóstolo
a seu discípulo Timóteo:
Guarda o depósito — o depósito da fé é a sã doutrina — evitando os falatórios inúteis
e profanos e as contradições do saber, como falsamente lhe chamam, pois alguns,
professando-o, se desviaram da fé.
INTRODUÇÃO
É a ele que devemos a honra suprema. Ao único Deus, o Pai, Filho e Espírito
Santo. De fato, não lhe dar a honra é o mesmo que roubar o que lhe pertence.
E conhecemos a esse Deus Pai pelo seu Filho, nosso Mediador, por meio do
Espírito Santo. Lemos na epístola de Paulo aos Colossenses 1.15 a 18:
Este é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação [em sua
encarnação]; pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as
visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer
potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de todas as
coisas. Nele, tudo subsiste. Ele é a cabeça do corpo, da igreja. Ele é o princípio, o
primogênito de entre os mortos [em sua ressurreição corporal], para em todas as
coisas ter a primazia.
Como podem ver, trata-se aqui da Pessoa de Jesus Cristo, plenamente Deus e
plenamente homem. É a essa Pessoa divina, o Filho eterno de Deus, que no
tempo e no espaço de sua própria criação assumiu nossa humanidade, e a ele
somente — com o Pai e o Espírito Santo, um único Deus — devemos dar
toda a honra e toda a glória. Vejamos ainda 1 Timóteo 3.16:
Evidentemente, grande é o mistério da piedade: Aquele que foi manifestado na
carne foi justificado em espírito, contemplado por anjos, pregado entre os
gentios, crido no mundo, recebido na glória.[31]
Mas quem foi exaltado? O Filho eterno de Deus! Mas como é possível que o
Filho eterno de Deus tenha sido exaltado na glória? O fato de compartilhar na
glória a mesma substância eterna com o Pai e com o Espírito Santo, um único
Deus, bendito eternamente, não tornaria isso impossível? Trata-se aqui da sua
humanidade; sua humanidade é que foi exaltada na glória, por ser inseparável
do Filho de Deus. Deus, o Filho, por sua encarnação, baixou até nós; com sua
ascensão foi exaltado, na sua própria humanidade, acima de todos os céus.
[...] para que ao nome de Jesus [seu nome humano] se dobre todo joelho, nos
céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor
[pela união sem confusão das duas naturezas], para glória de Deus Pai.
(Filipenses 2.10-11)
Portanto, o Natal não diz respeito apenas à vinda do Filho eterno de Deus à
terra, mas (algo ainda mais misterioso!) também ao fato de que o Filho eterno
de Deus, feito homem, cumpriu toda a vontade do Pai e subiu ao céu em sua
própria humanidade, a fim de que todo joelho se dobre e toda boca confesse
que esse Deus, feito homem, está plenamente cheio da glória de Deus, tanto
no que concerne à sua humanidade como à sua divindade.
GLÓRIA
a) Zacarias
Em primeiro lugar leiamos em Lucas, capítulo 1, do verso 5 ao 25, um relato
sobre Zacarias, que comentaremos no decorrer da leitura. Veremos aqui que
Zacarias deu glória apenas parcial a Deus; por sua incredulidade, não confiou
com inteireza de coração.
Nos dias de Herodes, rei da Judeia, houve um sacerdote chamado Zacarias, do
turno de Abias. Sua mulher era das filhas de Arão e se chamava Isabel [ele fazia
parte da classe sacerdotal, da elite intelectual e da nobreza de Israel]. Ambos
eram justos diante de Deus, vivendo irrepreensivelmente em todos os preceitos e
mandamentos do Senhor.
De fato, ambos estavam entre aqueles justos como Natanael, mais tarde
mencionado por Cristo e reconhecido como um israelita sem dolo, um
homem íntegro, não hipócrita. Zacarias e Isabel faziam parte desses
remanescentes fiéis da Antiga Aliança.
E não tinham filhos, porque Isabel era estéril, sendo eles avançados em dias.
Esse velho casal, durante muitos anos, orava por um filho; talvez a paciência
de Zacarias tivesse se esgotado e deixado de orar; ou talvez não cresse mais
na resposta às suas orações. O anjo prosseguiu:
e Isabel, tua mulher, te dará à luz um filho, a quem darás o nome de João. Em ti
haverá prazer e alegria, e muitos se regozijarão com o seu nascimento.
O nascimento daquele que mais tarde seria chamado João Batista, o
precursor, que anunciaria a vinda eminente do Messias, Salvador de Israel,
profetizado na Escritura.
Pois ele será grande diante do Senhor, não beberá vinho nem bebida forte [será
separado para servir somente a Deus, como os nazireus] e será cheio do Espírito
Santo, já do ventre materno [o que veremos em seguida]. E converterá muitos dos
filhos de Israel ao Senhor, seu Deus [isto é, ao Messias, a Jesus Cristo]. E irá
adiante do Senhor no espírito e poder de Elias, para converter o coração dos pais
aos filhos, converter os desobedientes à prudência dos justos e habilitar para o
Senhor um povo preparado.
Foi assim que o anjo definiu o ministério de João Batista: preparar para esse
Senhor um povo que estivesse bem-disposto. Mas Zacarias não cria mais
nisso, o que infelizmente também acontece conosco! Nós cansamos, não
cremos mais nas promessas e duvidamos das palavras infalíveis de Deus.
Zacarias, tomado pela dúvida, não compreende que foi alvo de uma graça
prodigiosa da parte de Deus. Quando somos invadidos pelo medo nossa
adoração e a submissão que dela decorre desaparecem. Tenhamos, portanto,
grande temor de Deus. Confiemos nele, mas não temamos este mundo. Esse
temor confiante deve levar-nos ao louvor e à adoração do Senhor da glória.
Então, perguntou Zacarias ao anjo: Como saberei isto? Pois eu sou velho, e
minha mulher, avançada em dias.
O anjo não sabia disso? O anjo não tinha vindo de diante do trono de Deus
para lhe dar essa notícia maravilhosa? Para Deus não é tudo possível? Até
mesmo vencer nossa incredulidade e a esterilidade de Isabel?
Respondeu-lhe o anjo: Eu sou Gabriel [um general do exército celeste], que
assisto diante de Deus, e fui enviado para falar-te e trazer-te estas boas-novas.
Você não crê nisso? Você ainda crê na velha lei de uma natureza caída, nessa
velhice estéril da sua mulher, em sua própria velhice, mais do que no Deus
que criou todas as coisas do nada e que pode recriar tudo? Esta velha árvore
seca que sou, poderia em sua idade avançada gerar em Isabel aquele filho
esperado há tantos anos? Você esqueceu de Abraão? Você esqueceu de Sara?
Todavia, ficarás mudo e não poderás falar até ao dia em que estas coisas venham
a realizar-se; porquanto não acreditaste nas minhas palavras, as quais, a seu
tempo, se cumprirão.
Portanto, Zacarias não creu na palavra do anjo, naquela palavra divina eficaz
que jamais volta ao seu Autor sem cumprir o que lhe apraz. Mas isso não
significava indiferença ou revolta! Tratava-se de um medo totalmente
humano e de pouca fé! E medos como esse, diante dos homens, da história e
do mundo, fecham nossas bocas! Que Deus aumente nossa fé! Zacarias não
deu glória a Deus! Ele não se revoltou contra Deus, mas não o adorou diante
dos propósitos tão maravilhosos do Senhor para com ele. Dessa maneira,
roubou de Deus a glória que lhe era devida, o qual, por algum tempo, lhe
tirou a voz! Ficou mudo até que as promessas divinas sobre ele, sobre Israel e
sobre todas as nações da terra se cumprissem.
Que possamos crer em Deus com base em sua Palavra, porque todas se
cumprirão a seu tempo!
O povo estava esperando a Zacarias e admirava-se de que tanto se demorasse no
santuário. Mas, saindo ele, não lhes podia falar; então, entenderam que tivera
uma visão no santuário. E expressava-se por acenos e permanecia mudo. Sucedeu
que, terminados os dias de seu ministério, voltou para casa. Passados esses dias,
Isabel, sua mulher, concebeu...
Isabel concebeu naturalmente, como tinha sido com Sara e Ana, mãe de
Samuel. Mas essas concepções foram todas produto de milagre! Não foram
milagres como o de Maria, sem a participação masculina. Maria ficou
grávida, logo em seguida, de uma maneira totalmente sobrenatural, pois
concebeu sob o poder direto do próprio Criador.
e ocultou-se por cinco meses, dizendo: Assim me fez o Senhor, contemplando-
me, para anular o meu opróbrio perante os homens.
b) Maria
Vamos, agora, ver o que se deu com Maria, nos versos 26 a 38 de Lucas
capítulo primeiro.
No sexto mês, foi o anjo Gabriel enviado, da parte de Deus, para uma cidade da
Galileia, chamada Nazaré [o mesmo arcanjo que apareceu a Zacarias diante do
altar de incenso], a uma virgem desposada com certo homem da casa de Davi [o
Filho de Deus deveria vir da família de Davi], cujo nome era José; a virgem
chamava-se Maria. E, entrando o anjo aonde ela estava, disse: Alegra-te, muito
favorecida! O Senhor é contigo. Ela, porém, ao ouvir esta palavra, perturbou-se
muito e pôs-se a pensar no que significaria esta saudação.
Mesmo tendo mostrado surpresa por essa aparição, Maria não manifestou
incredulidade; apenas fez uma pergunta: o que isso significa? Sua fé foi mais
viva que a de Zacarias.
Mas o anjo lhe disse: Maria, não temas; porque achaste graça diante de Deus.
Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o
trono de Davi, seu pai; ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu
reinado não terá fim.
Ou seja, o próprio Deus vai gerar em você um filho; o filho, que você levará
no ventre e do qual será mãe, vai ser gerado pelo poder criador do próprio
Espírito Santo.
Por isso, também o ente santo que há de nascer será chamado Filho de Deus.
Sim, ele será o pequeno menino de Maria, sua mãe; então, herdará
plenamente sua natureza humana; ela será sua mãe biológica; mas por sua
paternidade divina milagrosa, ele será também o Filho de Deus, isto é, Deus e
homem numa só pessoa. Para que nossa salvação fosse realizada, era preciso
que o Messias fosse ao mesmo tempo — sem mistura e sem confusão, sem
separação, sem transformação (Calcedônia 451) — Deus e homem! Ser
somente Deus não bastaria; ser somente homem, menos ainda. Era necessário
que Deus assumisse nossa natureza, a fim de levar sobre ela o nosso pecado,
a pena pelo nosso pecado, sua condenação humana, seu castigo. Mas deveria
também manifestar uma obediência humana perfeita — visando nossa justiça
— aos mandamentos de Deus. Então, era necessário que Cristo tivesse uma
dupla justiça, verdadeiramente humana, para realizar nossa salvação: a
primeira, para pagar, como homem, o castigo que nos era devido; a segunda,
para nos comunicar — imputar, é a melhor palavra — igualmente como
homem, a plena justiça de sua obediência à lei de Deus. Portanto, é
necessário receber pela fé essa dupla justiça — tanto ativa como passiva,
construtiva e punitiva — para que sejamos purificados dos nossos pecados e
revestidos, diante de Deus, de uma justiça perfeita, proveniente da obediência
de Jesus Cristo, homem.
O anjo Gabriel prossegue:
E Isabel, tua parenta, igualmente concebeu um filho na sua velhice, sendo este já
o sexto mês para aquela que diziam ser estéril.
Notem isso! Ninguém sabia. Isabel não havia contado; ela tinha guardado
essa notícia extraordinária em seu coração somente para ela, isto é, que a
estéril tinha, em sua velhice, concebido um filho de seu velho marido, já
impotente pela natureza das coisas e estava agora no seu sexto mês de
gravidez. Que encorajamento para a virgem Maria! O anjo prossegue com
seus encorajamentos:
Porque para Deus não haverá impossíveis em todas as suas promessas.
Essa deveria ser uma palavra de ordem para cada um de nós no curso deste
ano que se inicia e também para os dias que Deus nos dará ainda de vida
nesta terra:
Porque para Deus não haverá impossíveis
Que também nós possamos dizer a cada dia: Aqui está o servo e a serva do
Senhor.
Que se cumpra em mim conforme a tua palavra.
c) Isabel
Voltemo-nos, agora, a Isabel, nos versos 39 a 45 e depois nos versículos 46 a
56 desse capítulo tão cheio de maravilhas — naturais como sobrenaturais —
da Santa Escritura! Vocês também verão que ela em nada roubou a glória que
devia dar a essa pequena criança no ventre virginal de sua parente Maria.
Naqueles dias, dispondo-se Maria...
Isabel estava em seu sexto mês de gravidez. O anjo deixou Maria, mas o
próprio Espírito Santo veio até ela e a cobriu com sua sombra, fazendo com
que concebesse o Filho de Deus feito homem. José não sabia nada sobre isso;
estavam noivos e logo iriam casar-se. Ele era um homem justo. Ela uma
jovem pura; como poderia estar grávida?
... foi apressadamente à região montanhosa, a uma cidade de Judá.
Isabel era sua parente, talvez sua tia, e elas se conheciam bem.
Ouvindo esta a saudação de Maria,
Maria entrou na casa de Isabel e a saldou. Lembremos que Isabel tem em seu
ventre um bebê de seis meses, alvo de um verdadeiro milagre, porque ela era
estéril e de idade avançada. Além dessa família, ninguém mais sabia dessa
boa notícia. Mas a criança que trazia em seu ventre estava alerta!
a criança lhe estremeceu no ventre.
Vejam como Isabel dá glória a Deus; como ela não minimiza em nada a
maior bênção que poderia ser dada ao mundo, isto é, alguém ter em seu
ventre o próprio Filho de Deus. Não se tratava de uma bênção qualquer, mas
era uma graça extraordinária de Deus para Maria, vaso puro do qual a graça
de Deus se servia. Isabel, então, se voltou a esse pequeno bebê que Deus
acabara de conceber no ventre dessa prima bendita, e diz:
e bendito o fruto do teu ventre! E de onde me provém que me venha visitar a mãe
do meu Senhor?
Vejam, escutem bem! Trata-se da “mãe do meu Senhor”! Em grego, a palavra
senhor é kurios. Essa palavra significa o único Deus verdadeiro, aquele que é
o Senhor sobre todas as coisas, Senhor dos senhores, Senhor do próprio
César! Esse é o sentido exato da expressão “mãe de Deus” — theotokos em
grego — que foi dirigida a Maria na Declaração sublime do Concílio de
Calcedônia, organizado para definir a natureza desse menino e, por
necessidade, a da sua mãe. Ele é o Filho de Deus feito homem e Maria é sua
mãe, aquela que o carrega em seu ventre, tanto em sua divindade como em
sua humanidade. Não que Maria pudesse, de alguma maneira, ser a mãe da
divindade dessa criança! Ninguém jamais pensou em tal absurdo! Porque o
Filho de Deus, aquele que foi eternamente gerado do Pai, não pode ter mãe.
Não, esse pequeno menino é Deus Filho feito homem. Portanto, Maria é mãe
da humanidade de Cristo, carne de sua carne, ossos de seus ossos, sangue do
seu sangue! Mas como separar, no seio de Maria, a humanidade da divindade
do nosso Senhor e Salvador, sem incorrer em impiedade e rejeição da nossa
própria salvação? Como — erro pior ainda — confundir essas duas naturezas,
ou seja, fazer de Deus um homem e fazer desse homem o próprio Deus? Essa
humanidade está tão estreitamente ligada à divindade de Jesus Cristo que não
se trata aqui de duas pessoas, uma humana e outra divina, mas de uma única
Pessoa divina, o Senhor Jesus Cristo, Deus feito homem no ventre de Maria,
para a salvação do mundo. A criança que Maria tem em seu ventre é o
próprio Deus Filho em toda a sua glória, a qual, por algum tempo, ficou
escondida!
Isabel explicou para Maria, como também para nós, essas maravilhas que
acabara de compreender:
Pois, logo que me chegou aos ouvidos a voz da tua saudação, a criança
estremeceu de alegria dentro de mim.
O menino — lembremos que se tratava de João Batista em seu sexto mês de
gestação — que no ventre de Isabel percebeu a voz de Maria, teve seu ânimo
profético agitado e reconheceu que aquela era a mãe do seu Senhor! Vocês
creem que uma criança possa ouvir, ainda no ventre, a voz de sua mãe?
Conheço o caso de um chefe de orquestra que ao se preparar para reger um
concerto para violoncelo, que nunca havia regido nem visto a partitura ou
ouvido a música, confessou: conheço essa música, a conheço muito bem.
Falou isso à sua mãe, violoncelista profissional, que lhe respondeu: “Meu
querido, enquanto você estava em meu ventre eu estudava essa mesma
partitura e você claramente a ouvia! Agora que se prepara para reger esse
concerto você se lembrou. Nada mais normal! Você está se lembrando do que
então ouvia”. Notem como essas realidades naturais são maravilhosas! Isabel
reconheceu a voz de Maria, sua prima. Essa voz, seu filho — João Batista —
também ouviu e, por uma revelação do Espírito Santo, do qual estava cheio
naquele instante, reconheceu que se tratava da mãe do seu Senhor — do
Senhor da glória, do qual era o precursor — que se dirigia à sua mãe. Notem
como João Batista, no seio de sua mãe, dá glória a Deus. Há três meses do
seu nascimento, João Batista não roubou a glória que pertence a Deus, mas
deu graças a seu Senhor ao exultar de alegria no ventre de sua mãe. E Isabel,
em nada embaraçada pela incredulidade de seu marido Zacarias, também
exulta de alegria.
Bem-aventurada a que creu [felizes todos os que têm crido], porque serão
cumpridas as palavras que lhe foram ditas da parte do Senhor.
Vimos que o próprio João Batista glorificou a Deus no ventre de sua mãe;
Isabel, sua mãe, também glorificou a Deus. Nem um nem outro roubou do
Filho de Deus, desse pequeno embrião, ao mesmo tempo divino e humano, a
glória que lhe era devida! Teríamos a ousadia de, nesta festa de sua
natividade, recusar dar-lhe a glória?
Lemos, a partir do versículo 57, o que aconteceu depois a Isabel:
A Isabel cumpriu-se o tempo de dar à luz, e teve um filho. Os vizinhos e parentes
ouviram falar da grande bondade do Senhor para com Isabel, e todos ficaram
alegres com ela. Sucedeu que, no oitavo dia, foram circuncidar o menino e
queriam dar-lhe o nome de seu pai, Zacarias. De modo nenhum! Respondeu sua
mãe. Pelo contrário, ele deve ser chamado João.
Seu marido não podia falar. Sem dúvida Deus revelou também a Isabel que o
menino se chamaria João, como o anjo havia declarado a Zacarias no templo.
Disseram-lhe: Ninguém há na tua parentela que tenha este nome. E perguntaram,
por acenos, ao pai do menino que nome queria que lhe dessem.
Então Zacarias, renovado em sua fé, lembrando-se do que lhe havia sido
revelado pelo anjo Gabriel, pediu que lhe trouxessem algo onde escrever.
Então, pedindo ele uma tabuinha, escreveu: João é o seu nome. E todos se
admiraram. Imediatamente, a boca se lhe abriu, e, desimpedida a língua, falava
louvando a Deus.
Notem a prova, tão necessária para Zacarias como para nós! Quando
duvidamos das promessas de Deus, ele nos faz também passar pela provação
do silêncio para purificar nossos corações e renovar nossa fé. As provas têm
esse papel em nossas vidas, ou seja, é aquele fogo divino que queima tudo o
que é palha, para que possamos glorificar melhor a Deus e para nossa
salvação.
d) José
Tendo percorrido o que o Evangelho de Lucas nos diz sobre Isabel e
Zacarias, como também sobre João Batista e Maria, os quais não roubaram a
glória divina, vamos agora ao Evangelho de Mateus para considerarmos a fé
de José. Teria José dado glória àquele menino, Deus Filho feito homem, que
lhe foi dado como filho adotivo, pela visitação divina de sua esposa Maria?
Em que José teria roubado a glória pertencente ao Deus Filho feito homem?
Leiamos, então, Mateus 1, versículos de 18 a 24. Procuramos descobrir aqui
se também deram glória a Deus essas pessoas que estavam diretamente
ligadas aos eventos relacionados à vinda ao mundo desse menino. Em José,
vemos que estamos diante de uma fé talvez mais forte que a de Maria.
Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: estando Maria, sua mãe, desposada
com José, sem que tivessem antes coabitado, achou-se grávida pelo Espírito
Santo.
Para Zacarias, o anjo apareceu diante dele; para Maria, aconteceu o mesmo.
Mas para José, o anjo lhe apareceu em sonho. Quem vai crer num sonho?
[...] dizendo: José, filho de Davi, não temas receber Maria, tua mulher, porque o
que nela foi gerado é do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho e lhe porás o
nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos pecados deles.
Mas José creu! Ele creu perfeitamente nesse sonho e nas palavras do anjo.
Um anjo lhe apareceu e lhe disse: Não tema receber essa moça como sua
mulher; a criança que está em seu ventre não foi gerada por um homem, mas
pelo Espírito Santo. Mas quem já tinha ouvido falar que o Espírito Santo gera
crianças? José creu, sem hesitar, na veracidade de seu sonho e na palavra que
ouviu! A mensagem do anjo em si era ainda mais inverossímil: Maria, sua
noiva, vai ter um filho que não será seu, porque provém de Deus; você deve
dar a esse menino o nome de Jesus, que significa Deus salva! Ele salvará o
seu povo dos seus pecados. Tratava-se, nada mais nada menos, do
cumprimento de todas as profecias messiânicas de Israel. Que fé maravilhosa
de José! Ele creu! José também não roubou a glória de Deus manifestada
nesse pequeno menino, glória ainda escondida no ventre de sua noiva. Ele lhe
deu toda a glória que lhe era devida e manifestou isso em sua pronta
obediência. O evangelista Mateus comenta:
Ora, tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor por
intermédio do profeta: Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele
será chamado pelo nome de Emanuel (que quer dizer: Deus conosco). Despertado
José do sono, fez como lhe ordenara o anjo do Senhor e recebeu sua mulher.
(Mateus 1.18-24)
Vejam, esse homem, encorajado por uma fé tão simples, obedeceu ao que
ouviu em sonho da parte de Deus. Que fé dócil, como de uma criança, mas
num homem em plena maturidade! É a fé que todos nós devemos ter: crer na
Palavra de Deus! José obedeceu sem nada perguntar; ele não perguntou como
essas coisas poderiam acontecer. Nele não houve nenhuma daquelas dúvidas
que perturbaram Zacarias; sua fé parece até mais forte que a de Maria. Ele
deu a Deus a glória que lhe era devida; ele creu na palavra do anjo de Deus
visto em sonho e em nada questionou! E na sequência desse extraordinário
relato vemos um José sempre estável, que não questionou a Palavra de Deus
ao ouvi-la! Ele creu e obedeceu. Façamos o mesmo. Quando duvidarmos,
lembremos do exemplo de Zacarias, ou seja, voltemos a Deus em
arrependimento. Consideremos o exemplo de Maria e nos submetamos a
Deus sem vacilar. Tomemos o exemplo de José, isto é, creiamos e
pratiquemos a Palavra de Deus sem fraquejar, pois é nisso que se resume toda
a vida do cristão.
Vejamos, brevemente, a sequência do texto.
Após a partida dos magos — que também tinham sido advertidos por Deus
para evitar o rei Herodes — um anjo do Senhor apareceu novamente em
sonho a José e lhe disse:
Dispõe-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egito e permanece lá até que eu
te avise; porque Herodes há de procurar o menino para o matar. (Mateus 2.20)
e) Os pastores
Vejamos, ainda brevemente, o que nos diz Lucas 2.8 a 20. Os pastores
ficaram tomados de pavor, por causa da visão que também tiveram de um
anjo resplandecente que, de repente, durante a noite, apareceu nas campinas
em que guardavam seus rebanhos. Então, ouviram o anjo anunciar-lhes uma
boa notícia.
E um anjo do Senhor desceu aonde eles estavam, e a glória do Senhor brilhou ao
redor deles; e ficaram tomados de grande temor [Não ficaríamos também, diante
de tal espetáculo?]. O anjo, porém, lhes disse: Não temais; eis aqui vos trago boa-
nova de grande alegria, que o será para todo o povo: é que hoje vos nasceu, na
cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor.
O anjo, então, anunciou aos pastores — esses desprezados de Israel! — que
um Salvador lhes havia nascido; e como poderiam conferir, nascera pobre
entre os pobres, numa estrebaria em Belém, envolto em panos e deitado numa
manjedoura. Era o próprio Cristo, o Senhor! Em seguida, com o anjo
apareceu uma milícia celeste glorificando e louvando a Deus. Os pastores
também glorificaram a Deus. Sem demora, responderam à boa nova e na
mesma noite foram imediatamente à Belém, para ver o que havia sido dito
sobre esse pequeno menino. Ao encontrá-lo, alegraram-se com José e Maria
por aquele nascimento. Eles também não roubaram a glória que é devida a
esse pequeno bebê.
f) Simeão
Depois disso, temos Simeão. Leiamos Lucas 2.21 a 28.
Completados oito dias [após o nascimento] para ser circuncidado o menino,
deram-lhe o nome de Jesus, como lhe chamara o anjo, antes de ser concebido.
Passados os dias da purificação deles segundo a Lei de Moisés [após 40 dias,
para um menino — Lv 12.1-8], levaram-no a Jerusalém para o apresentarem ao
Senhor, conforme o que está escrito na Lei do Senhor: Todo primogênito ao
Senhor será consagrado; e para oferecer um sacrifício, segundo o que está escrito
na referida Lei: Um par de rolas ou dois pombinhos.
A família sendo pobre, não podia oferecer um cordeiro como sacrifício. Foi
somente após esses acontecimentos — quarenta dias após o nascimento do
Filho de Deus feito homem — que os magos chegaram a Belém trazendo os
ricos presentes.
Havia em Jerusalém um homem chamado Simeão; homem este justo e piedoso
que esperava a consolação de Israel; e o Espírito Santo estava sobre ele.
Revelara-lhe o Espírito Santo que não passaria pela morte antes de ver o Cristo
do Senhor. Movido pelo Espírito, foi ao templo; e, quando os pais trouxeram o
menino Jesus para fazerem com ele o que a Lei ordenava, Simeão o tomou nos
braços e louvou a Deus.
f) Os magos
Vamos agora aos magos. Que história impressionante. Vieram de tão longe e
haviam crido no que Deus lhes revelara pela estrela que seguiram. Vieram,
sem dúvida, da Babilônia onde talvez circulassem as profecias de Daniel. O
que sabemos é que Deus lhes havia revelado que seguissem a estrela até
Jerusalém e, lá chegando, descobrissem em que lugar deveria nascer o rei dos
judeus, do qual haviam visto o sinal no Oriente. Essa estrela os havia
conduzido até Jerusalém, onde os escribas e doutores da Lei certamente
responderiam suas perguntas. As profecias diziam muito claramente: O Rei
de Israel deveria nascer em Belém. Para lá deviam ir. Belém ainda estava
longe? Não, somente dez quilômetros. Pouco mais de três horas de marcha.
Vão, então. Vão para ver! Mas Herodes, muito preocupado, chamou-os à
parte para lhes pedir que, em seu retorno, viessem até ele, para informá-lo
sobre o lugar onde haviam encontrado a criança, pois também queria adorá-
lo. Os magos, sempre conduzidos pela estrela, encontraram a casa — não era
mais o estábulo — onde estava o menino, pois a estrela parou sobre aquele
lugar. Eles entraram, adoraram o Filho de Deus feito homem e lhe ofereceram
preciosos presentes. Ouro, um presente real; incenso, uma homenagem
sacerdotal; e mirra, um presente que apontava para sua morte sacrificial e
sepultura. Depois, advertidos também em sonho, tomaram outro caminho
para a longa viagem de volta.
Todos esses personagens que lembramos honraram e glorificaram a Deus
com seus bens, com seu reconhecimento, mas sobretudo com seu louvor e
adoração. Que neste Natal façamos o mesmo. Que não estejamos entre
aqueles que roubam a glória de Deus, a glória que devemos dar a esse
menino. Porque ele é o Deus Filho, encarnado nesse pequeno bebê que, sob o
olhar amoroso de seus pais, se tornou homem e, em seus trinta anos
completos, assumiu plenamente a vocação prodigiosa que seu Pai lhe deu,
isto é, realizar a salvação de seu povo e de todas as nações da terra, expiando,
em seu lugar, o pecado do mundo, operando a vitória definitiva sobre a
corrupção e a morte, a carne e o mundo, destruindo assim, sobre a madeira da
cruz, o diabo e todas suas obras.
ERA DEVIDA
Para terminar, algumas palavras sobre aqueles que não creram, aqueles que
neste primeiro Natal roubaram de Deus a glória que lhe era devida. Herodes,
que não creu, embora, é preciso ser dito, tenha considerado seriamente a
profecia por temer pela segurança do seu poder. Depois, os habitantes de
Jerusalém; ninguém dentre eles fez o curto trajeto até Belém. Nem um
sequer! No entanto, tinham compreendido muito bem que era ali que deveria
nascer o Filho de Deus. Nenhum dos escribas e fariseus se deu ao trabalho de
caminhar alguns quilômetros para adorar o Filho de Deus que acabara de
nascer, o Messias de Israel, sobre o qual haviam sondado minuciosamente as
Escrituras! Notem a apostasia de Israel! E os habitantes de Belém? Quem
deles se deu conta desse acontecimento grandioso em sua pequena vila?
Apenas alguns pobres pastores do campo se regozijaram nisso. Vejam os
sacerdotes, os escribas que conheciam a Bíblia, que a compreendiam e que,
no entanto, não tiraram proveito dessa ocasião maravilhosa, ou seja, adorar o
Deus Filho que, segundo as profecias, acabara de nascer em Belém.
Poderíamos perguntar: seria diferente em nossos dias?
Vejam, fiquei feliz em revelar muitos traços positivos nesses belos relatos.
Combatamos o lado negativo que temos em nossos corações. Não roubemos
de Deus o que lhe pertence por direito, ou seja, a glória, o louvor, a honra!
Vejam Herodes, os habitantes de Jerusalém, de Belém, os escribas, os
sacerdotes, todos aqueles que conheciam a verdade bíblica, mas
permaneceram indiferentes. Esses não deram a Deus o que lhe era devido.
Eles roubaram desse pequeno menino — o próprio Deus revestido com nossa
natureza — toda a glória que lhe deviam! Todos ali transgrediram o oitavo
mandamento. Então, que não estejamos entre aqueles que vão transgredir
esse mandamento “Não roubarás”, por qualquer que seja a incredulidade em
relação a Deus Pai, Filho e Espírito Santo. No tempo de Natal,
particularmente, rendamos graças a Deus pela vinda de seu Filho ao nosso
mundo, que em seu grande amor por nós, no primeiro Natal, se fez menino.
CONCLUSÃO
Vamos terminar lendo juntos alguns textos que poderão nos conduzir na
adoração ao Deus feito homem, ao bebê recém-nascido, deitado na
manjedoura daquele estábulo tão hospitaleiro de Belém.
Comecemos pelo cântico de Maria:
Então, disse Maria: A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se
alegrou em Deus, meu Salvador, porque contemplou na humildade da sua serva.
Pois, desde agora, todas as gerações me considerarão bem-aventurada, porque o
Poderoso me fez grandes coisas. Santo é o seu nome. A sua misericórdia vai de
geração em geração sobre os que o temem. Agiu com o seu braço valorosamente;
dispersou os que, no coração, alimentavam pensamentos soberbos. Derribou do
seu trono os poderosos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e
despediu vazios os ricos. Amparou a Israel, seu servo, a fim de lembrar-se da sua
misericórdia a favor de Abraão e de sua descendência, para sempre, como
prometera aos nossos pais. (Lucas 1.46-55)
INTRODUÇÃO
Vejamos o caminho já percorrido até aqui em nosso estudo do oitavo
mandamento, Não roubarás.
I. A excelência desse mandamento
Lembramos do papel dos mandamentos em todo o propósito aliancial de
Deus no Antigo e Novo Testamentos, e mostramos a definição de roubo dada
pela própria Bíblia.
II. Transgredir um mandamento é transgredir todos.
Vimos que esse mandamento tem relação com todas as Dez Palavras do
Decálogo e como é transgredido pelos diversos sistemas econômicos —
liberalismo, socialismo e comunismo.
III. O espírito do oitavo mandamento
Mostramos que esse mandamento deveria ser interpretado através dos ensinos
de Cristo, nos Evangelhos, e pelas explicações dadas pelos Apóstolos.
IV. O roubo e o Natal
Aplicamos esses ensinos à vinda de Cristo no primeiro Natal, mostrando os
que na Judeia daquela época lhe deram glória, como também os que não lhe
deram, e assim roubaram de Cristo o que lhe era mais precioso: a honra e a
glória como Deus feito homem. Neste capítulo veremos o seguinte assunto: O
roubo antes do Decálogo.
Sabemos o que aconteceu depois. Caim ficou irado com Deus por ele ter
rejeitado seu trabalho. Irou-se a ponto de roubar de seu irmão sua própria
vida e o matou.
Podemos caminhar por todo o livro de Gênesis e encontraremos ali diferentes
transgressões desse mandamento. Isso não deve nos surpreender, uma vez
que os Dez Mandamentos refletem:
1. O próprio caráter de Deus, sua justiça, seu amor, sua santidade e sua
verdade;
2. A ordem moral e religiosa da consciência de todos os homens criados à
imagem de Deus;
3. Até mesmo, não tememos dizer — diante de uma ciência que se pretende
objetiva, que define o objeto pela materialidade mensurável, unicamente
quantitativa, portanto, sem nenhum valor qualitativo, moral e espiritual — a
ordem do universo e do próprio cosmos.
Por diversas vezes vimos a que ponto a desordem moral dos homens acaba
afetando a própria natureza. Por isso que o primeiro esforço ecológico dos
homens devia ser lutar contra sua própria poluição moral e espiritual. Buscar
primeiro o Reino dos céus e sua justiça (ou seja, Jesus Cristo e a obediência à
sua lei), e todo o resto — o que inclui uma criação nova onde habitará a
justiça — nos será acrescentado.
Por último, consideremos o exemplo de Cam, que roubou de seu pai sua
honra, quando contemplou sua nudez e, sem o menor pudor, denunciou a seus
irmãos a vergonha paterna:
Sendo Noé lavrador, passou a plantar uma vinha. Bebendo do vinho, embriagou-se e
se pôs nu dentro de sua tenda. Cam, pai de Canaã, vendo a nudez do pai, fê-lo saber,
fora, a seus dois irmãos. (Gênesis 9.20-22)
Labão, então, se deu conta de que Jacó e sua família haviam fugido e os
perseguiu e alcançou. Mas Deus vela soberanamente pelo cumprimento de
sua aliança. Essa aliança passa por Jacó e se situa, pela bondosa fidelidade de
Deus, acima de todos os temores, trapaças e fraquezas dos homens. Foi então
que Deus advertiu Labão, através de um sonho, para que não fizesse nenhum
mal ao seu genro Jacó. Labão, no entanto, com raiva, interpelou o fugitivo e o
acusou de ser um ladrão trapaceiro [ganab]:
E disse Labão a Jacó: Que fizeste, que me lograste [ganab] e levaste minhas
filhas como cativas pela espada? Por que fugiste ocultamente, e me lograste
[ganab], e nada me fizeste saber? (Gênesis 31.26-27)
Labão procurou em vão, porque sua filha havia aprendido numa boa escola e
era ainda mais trapaceira e enganadora que seu pai.
Labão, pois, entrou na tenda de Jacó, na de Lia e na das duas servas, porém não
os achou. Tendo saído da tenda de Lia, entrou na de Raquel. Ora, Raquel havia
tomado os ídolos do lar, e os pusera na sela de um camelo, e estava assentada
sobre eles; apalpou Labão toda a tenda e não os achou. Então, disse ela a seu pai:
Não te agastes, meu senhor, por não poder eu levantar-me na tua presença; pois
me acho com as regras das mulheres. Ele procurou, contudo não achou os ídolos
do lar. (Gênesis 31.33-35)
Diante da inspeção sem resultado, Jacó liberou sua ira contra o seu sogro há
muito tempo recalcada:
Vinte anos eu estive contigo, as tuas ovelhas e as tuas cabras nunca perderam as
crias, e não comi os carneiros de teu rebanho. Nem te apresentei o que era
despedaçado pelas feras; sofri o dano; da minha mão o requerias, tanto o furtado
de dia como de noite. De maneira que eu andava, de dia consumido pelo calor, de
noite, pela geada; e o meu sono me fugia dos olhos. Vinte anos permaneci em tua
casa; catorze anos te servi por tuas duas filhas e seis anos por teu rebanho; dez
vezes me mudaste o salário. (Gênesis 31.38-41)
Labão, confundido por Jacó, pede uma aliança com seu genro que fosse
selada por duas testemunhas, por uma coluna de pedra, um monte de pedras,
que eram sinais visíveis de sua palavra empenhada, visando socorro recíproco
em caso de necessidade.
O que podemos aprender com esses relatos?
1) Não somente a realidade do roubo, mas também que sua reprovação moral
e legal foi bem atestada no livro de Gênesis, muito tempo antes da entrega da
Lei no Sinai.
2) A palavra ganab utilizada, significando roubo nas duas versões do oitavo
mandamento — em Êxodo 20.15 e Deuteronômio 5.19 — já tinha esse
sentido muito tempo antes de sua utilização por Deus nas Dez Palavras. Ela
foi inscrita pelo próprio dedo de Deus sobre a pedra das Tábuas da Lei, dadas
a Moisés, para Israel e mais tarde para todas as nações da terra.
3) Mais ainda, nosso texto atesta o uso da palavra gazal (roubar com
violência) e a reprovação desse tipo de ação, considerada profundamente má.
4) Vemos nesse texto um contraste impressionante entre a retidão e
honestidade de Jacó, que serviu seu senhor e sogro — astuto e ladrão — com
total integridade, como também a atitude de Labão e Raquel, ambos
trapaceiros e ladrões. Aqui percebemos a diferença entre a fé de Abraão e o
paganismo de sua família deixada por ele no outro lado do rio Eufrates.
5) Enfim, que contraste vemos entre a fé intransigente de Jacó em Deus, o
único e verdadeiro Deus, que tem ciúme e não admite ao seu lado nenhuma
divindade rival, e o politeísmo, como o de Labão e de sua filha Raquel, que é
tolerante com tudo, até com o Deus de Israel, mas rouba e engana.
CONCLUSÃO
INTRODUÇÃO
Vejamos, em primeiro lugar, a aplicação do oitavo mandamento através da
Torá. A formulação Não roubarás [ganab em hebraico], é idêntica nas duas
versões dos Dez Mandamentos (Êxodo 20.15 e Deuteronômio 5.19).
No livro de Êxodo, a seção que vai do capítulo 20.22 a 23.19, texto chamado
de Livro da Aliança, contém uma série de mandamentos que ilustram, através
de casos concretos, a aplicação precisa das Dez Palavras do Decálogo. Essa
seção termina de duas maneiras: em primeiro lugar ela culmina na promessa
de conquista da terra de Canaã (Êxodo 23.20-33) e em seguida encerra com a
conclusão da aliança com o povo (todo o capítulo 24.1-18).[34]
Encontramos, novamente, a palavra roubar (ganab) no versículo 16 do
capítulo 21, sobre o roubo de seres humanos: aquele que raptar [ganab]
alguém e o vender ou for achado em sua posse, será morto. Mas essa seção
(21.12-36), intitulada na Bible à la Colombe [versão francesa da Escritura]
como Lois sur les coups et les blessures [Lei sobre golpes e ferimentos], trata
mais das diversas transgressões ao sexto mandamento Não matarás. Várias
passagens tratam dos variados aspectos do roubo:
— 21.1-11, leis sobre os escravos;
— 21.37 a 22.14, leis sobre a compensação que deve ser paga à pessoa lesada (não
ao Estado) por diferentes formas de roubo;
— 22.20-26, leis sobre a proteção do imigrante, da viúva e daquele que empobreceu.
Portanto, é possível demonstrar que certas passagens tratam mais
especificamente de um ou de outro mandamento, mas essa caracterização é
delicada porque, como já vimos, a transgressão de um deles claramente
implica a transgressão de outro. Assim, explorar o pobre pela usura ou por
garantias abusivas, evidentemente é roubo (oitavo mandamento), mas tais
ações levam ao assassinato, porque são na verdade um atentado à vida (sexto
mandamento) e também à família, em razão do caráter essencialmente
familiar das empresas em Israel (sétimo mandamento).
As referências ao oitavo mandamento se encontram, então, dispersas em
diferentes partes da Torá ou, mais especificamente, nos seus quatro últimos
livros. É, portanto, nesses quatro livros (Êxodo, Levítico, Números e
Deuteronômio) que devemos procurar a aplicação exata das leis relacionadas
ao oitavo mandamento. Para fazer isso, vamos seguir o comentário feito pelo
livro de Deuteronômio sobre as Dez Palavras do Decálogo, nos capítulos 12 a
26, como já fizemos muitas vezes.
Para tanto, vamos utilizar o excelente artigo do comentarista judeu Stephen
A. Kaufman, datado de 1977, intitulado La structure de la Loi du
Deutéronome [A estrutura da Lei do Deuteronômio],[35] no qual, de maneira
pioneira, desenvolve um estudo muito claro, coerente e sistemático desses
quinze capítulos dos Dez Mandamentos.
Mas tudo isso será assunto para uma segunda exposição. Agora daremos
início ao exame das aplicações do oitavo mandamento pelo estudo detalhado
do Livro da Aliança nos textos de Êxodo (20.22 a 22.19 e até o verso 33, que
diz respeito, particularmente, ao roubo e 21.1-11 e 21.37 a 22.14). Por fim,
examinaremos o ensino de Deuteronômio sobre o oitavo mandamento, como
também de Levítico e Números.
Mas antes de atacarmos nosso primeiro texto, que trata da escravidão entre os
hebreus (Êxodo 21.1-11), é preciso dizer algumas palavras sobre o que
chamamos de o Código da Aliança, inserido no livro de Êxodo após o
Decálogo. Seguiremos aqui o excelente comentário de John Durham.[36]
1) Em primeiro lugar é preciso constatar o caráter inclusivo desses capítulos,
porque essa passagem constitui um todo, possui um só pensamento, centrado
em Deus, explicitamente teocrático do começo ao fim do texto.
Primeiramente lemos:
Não fareis deuses de prata ao lado de mim, nem deuses de ouro fareis para vós
outros. (Êxodo 20.23)
E no fim encontramos estas palavras:
Não farás aliança nenhuma com eles, [os cananeus] nem com os seus deuses.
Eles não habitarão na tua terra, para que te não façam pecar contra mim; se
servires aos seus deuses, isso te será cilada. (Êxodo 23.32-33)
Toda esta seção de Êxodo constitui, então, uma unidade.
2) Assim John Durham caracteriza o Livro da Aliança:
A conclusão e o início do Livro da Aliança resumem seu objetivo e orientação,
ligando, de maneira indiscutível, toda essa parte do livro de Êxodo ao Decálogo, onde
está sua raiz. Tal como o Decálogo, o Livro da Aliança se apresenta como expressão
do que Deus espera de Israel (Êxodo 20.1-17). Os princípios diretivos, os
mandamentos e as proibições que constituem essa coleção de ordenanças (Êxodo
20.23 a 23.19) têm como alvo manter a integridade da relação de Israel com Yawé,
seu Deus.[37]
Vejamos o que podemos extrair das indicações que nosso texto nos fornece:
Então, o seu senhor o levará aos juízes, e o fará chegar à porta ou à ombreira, e o seu
senhor lhe furará a orelha com uma sovela; e ele o servirá para sempre. (verso 6).
Hoje esse texto nos parece chocante. Esse sentimento é acentuado pela
tradução que temos (la Colombe), a qual utiliza a palavra escrava onde o
texto hebreu poderia ser traduzido por serva ligada à família de seu senhor.
De fato, o hebraico não parece conhecer a expressão equivalente que
nomeamos escravo. Aqui o comentário de Gispen pode tornar isso mais
claro:
O que quer que seja essa última afirmação, fica claro que, como em relação
ao divórcio, a lei procura aqui regulamentar para melhor, uma situação
completamente desastrosa. Vejamos o que é isso:
a) É claro que a situação da filha, vendida pelo pai para a família de um
senhor, é diferente da situação do homem hebreu, obrigado a seis anos de
trabalho servil. Ela agora faz parte dessa nova família e normalmente para
sempre.
[...] esta não lhe sairá como saem os escravos [servos vassalos]. (verso 7).
c) Se for destinada a seu filho, será tratada como todas as moças casadas de
Israel. Se for sua primeira esposa, de maneira nenhuma poderá ser lesada em
seus direitos se o filho tomar uma segunda esposa.
Mas, se a casar com seu filho, tratá-la-á como se tratam as filhas. Se ele der ao filho
outra mulher, não diminuirá o mantimento da primeira, nem os seus vestidos, nem os
seus direitos conjugais. (versos 9 e 10, veja Dt 21.15-17)
E acrescenta:
A Bíblia associa o exercício do poder à responsabilidade e coloca as pessoas
dependentes sob a proteção especial de Deus. [...] As disposições da lei de Deus
vão até ao ponto de associar proteção à moça pobre, ligada pela servidão à
família de seu senhor, contra todo ato abusivo da parte de seu marido. Essa moça,
vendida a seu senhor, não é menos filha de Israel, tendo direito a todos os
privilégios que essa posição lhe confere.[49]
CONCLUSÃO
Nossa conclusão terá por base algumas reflexões feitas por Rousas
Rushdoony sobre esses capítulos do livro de Êxodo que começamos a
examinar. Ele compara a Lei de Deus às leis que produziram o Estado
moderno, francamente sem Deus, acima de toda lei absoluta transcendente e
imanente, acima até mesmo dos princípios que estabeleceram a ordem da
criação:
A Lei de Deus, em sua orientação, difere das leis do Estado. A lei puramente
humana procura reformar o criminoso, enquanto que a Lei de Deus tem como
objetivo a justiça, a restauração da ordem divina [o que inclui a restauração social
do ladrão, depois de cumprida a pena, por exemplo].[50] Quando o objetivo da lei
é simplesmente a reforma do criminoso, a justiça é substituída pelo bem-estar do
homem. O resultado não pode ser outro, ou seja, uma deformação séria tanto da
sociedade como do exercício da própria justiça [...] O direito deve visar a ordem
divina e sua justiça. O alvo a ser buscado também não deve ser o interesse e o
bem-estar de gente piedosa, mas a justiça divina. O que vemos na sociedade
moderna é uma preocupação exagerada por direitos de uns e de outros, pelos
direitos dos criminosos e até pelos direitos dos animais. O resultado desse
abandono da justiça divina é o que Cornelius Van Til descrevia como: “Uma
integração descendo para o nada”.[51]
Rushdoony prossegue:
Mas a justiça e a verdade são as aspirações normais dos homens. É o que se
espera do templo e dos tribunais, da Igreja e do Estado. É difícil tirar do coração
humano esse desejo. Entretanto, quando a justiça desaparece da vida da Igreja e
das decisões dos tribunais, e a verdade torna-se pragmática, a própria sociedade é
distorcida e o corpo social entra numa via suicida a longo prazo. Então, mais
nenhuma direção sadia se manifesta no mundo e a morte que a sociedade carrega
em seu seio torna-se iminente.[52]
INTRODUÇÃO
No último capítulo, iniciamos o estudo da aplicação que a própria Bíblia faz
do oitavo mandamento às realidades da vida pessoal e social dos homens.
Nesta manhã vamos prosseguir em nosso estudo do Código da Aliança no
livro de Êxodo. Anteriormente examináramos a maneira pela qual a lei divina
busca proteger a vida dos homens, até mesmo nas mais extremas situações
sociais, tal como a necessidade de vender-se como escravo ou até mesmo
vender sua filha em razão da pobreza, ou por falência, para assegurar seu
futuro. Vimos que a solução proposta para esse problema econômico e
humano dramático havia sido motivada por uma dupla preocupação: (1) Não
ignorar as realidades econômicas difíceis, ou seja, um homem podia falir por
negligência ou em consequência de circunstâncias que escapavam ao seu
controle. A Bíblia considera que, em certa medida, ele deve arcar com as
consequências e recusa também a ideia do Estado Providência moderno, que
ignora as duras realidades econômicas e instaura um assistencialismo, quase
sem controle, em relação às pessoas em dificuldade. (2) Mas a segunda
preocupação do legislador bíblico foi descartar o fatalismo econômico e
social, tão comum hoje em dia. Segundo o ensino bíblico, a penalidade por
ineficácia econômica deve ter um limite e culminar na reinserção, após seis
anos de “escravidão”,[53] da pessoa socialmente sancionada, ou seja, a
devolução de sua antiga liberdade ou sua integração definitiva, como escravo
permanente, na comunidade familiar em que se encontra, com a perda de sua
posição de cidadão livre; ou ainda, na reintegração social e familiar da
menina israelita vendida como escrava, em razão de extrema necessidade,
pelo casamento com alguém da família que a acolheu.
Antes de caminharmos mais e começarmos o estudo e a aplicação atual do
texto do Código da Aliança no livro de Êxodo, gostaríamos, brevemente, com
a ajuda do excelente exegeta israelense de origem italiana, Umberto Cassuto,
de considerar o caráter próprio das leis bíblicas que estamos estudando.
Depois de examinar cuidadosamente as leis babilônicas, assírias e hititas
correspondentes, Cassuto fez as seguintes observações:
O exame desses códigos de leis e desses documentos mostra claramente que
existia entre os povos do Oriente uma tradição legal unitária em seus elementos
de base e nos seus princípios. Essa tradição tinha sua origem na Mesopotâmia e
seus ramos se estendiam para o Norte e para o Oeste, em razão do dinamismo
conquistador da cultura mesopotâmica.[54]
Cassuto continua:
A tradição legal do antigo Oriente estava em todos os seus ramos, secular, laico e
não religioso. As fontes da lei eram, de um lado, os costumes e, de outro, a
vontade do rei. Em todos os códigos que mencionamos notamos que a lei não
decorria da vontade dos deuses. [...] Além disso, e de uma maneira geral, os
códigos não continham leis relativas aos rituais de culto ou outras questões
religiosas; seu conteúdo era, de fato, inteiramente secular.[55]
Sobre a palavra hebraica tabah, abate para venda (crime vil e organizado),
outro comentarista judeu, Benno Jacob, escreveu com muita propriedade:
A Torá desejava proteger toda a vida, inclusive a do animal, porque sua nephesh
[sua alma] era um dom de Deus.[63] O homem tinha recebido autorização para
trabalhar a carne do animal e nutrir-se com ela, tal como o tribunal tinha o direito
de executar um criminoso; mas o abate gratuito, fútil e violento dos animais era
ilegal.[64]
Esta seção contém duas partes: (1) animais que foram soltos no campo ou na
vinha do próximo; (2) o fogo que tomou conta do campo de trigo do
próximo. Examinemos separadamente.
De início notamos a hierarquia de infrações nas duas passagens. Em primeiro
lugar (a) o homem que provoca os estragos; (b) depois, os animais; (c) e
enfim, o fogo. Vemos aqui a ordem hierárquica da criação: matéria (o fogo);
a vida animal (o gado); o homem (a imagem de Deus, portanto deve ser
responsável).
Nosso texto nos mostra, claramente, que o roubo não consiste somente na
ação voluntária de roubar as propriedades de outro, mas que o fato de causar
dano aos bens do outro, de maneira voluntária ou não, é também uma forma
de roubo. Apropriar-se do carro de outra pessoa é roubo, mas também causar
dano, por negligência ou descuido, ao veículo de outra pessoa também é uma
forma de roubo. A grande vantagem de se fazer uma leitura atenta dos
mandamentos de Deus é descobrir, nos detalhes dessas leis, como hoje
podemos, de diversas maneiras, roubar ou enganar nosso próximo. Estudo
como esse serve para revelar os pecados e os crimes camuflados de nossa
própria época. Notemos, de passagem, que nos versos 4 e 5 as palavras
hebraicas que traduzimos por danos, gado, pastar, incêndio, possuem a
mesma raiz, BA’AR, que poderíamos traduzir pela expressão devorar pelo
fogo.
1) Animais soltos no campo
Esta é a situação. Um pastor de ovelhas leva seu rebanho para pastar no
campo de um vizinho, sem autorização, causando danos e devastando o
campo ou a vinha. Para isso rompeu a cerca ou o muro que separava uma
propriedade da outra. Esse pastor não tem nenhum respeito pela propriedade
alheia. Trata-se, evidentemente, de uma infração da qual os animais não têm
culpa; mas, por outro lado, o pastor do rebanho é responsável por isso, pouco
importando se invadiu de forma voluntária ou involuntariamente. Os danos
são dobrados, porque os animais comem e pisam em tudo. Se são ovelhas ou
gado, os animais arrancam a erva que não pertence ao seu dono. Se são
cabras, comem os arbustos e até mesmo a casca das árvores. Como será
calculada a pena para isso? Uma vez que não é mais possível estimar o valor
dos danos — tudo foi devastado — o nível de compensação a ser dado ao
proprietário lesado é elevado:
[...] pagará com o melhor do seu próprio campo e o melhor da sua própria vinha.
(verso 5b).
Evidentemente que a referência aqui não é ao que havia de melhor no campo
devastado do vizinho, mas do dono do rebanho que causou o dano. Como se
trata de roubo, deve ser punido.
2) O fogo se propaga sobre a colheita (verso 6)
O segundo caso não tem o mesmo caráter voluntário, a menos que o incêndio
tenha sido provocado por vingança. Mas o texto se refere, principalmente, ao
fogo provocado para queimar as ervas daninhas e preparar a terra para uma
nova cultura e, involuntariamente, o fogo invade outro campo e devasta o
trigo vizinho prestes a ser colhido. Aqui não se trata de um rebanho que vai e
pasta no campo vizinho, mas de uma força natural, do fogo que escapa ao
controle daquele que o provocou. As observações de Benno Jacob a esse
respeito são muito pertinentes:
Aqui não é um ser vivo, um animal que foi solto no campo, mas a força da natureza,
que uma vez desencadeada segue o seu próprio caminho. O fogo em si mesmo não é
responsável pelo dano que causa, mas aquele que o provocou.
E mais adiante, acrescenta:
Aquele que acendeu o fogo fez isso sem intenção de alastrá-lo, mas tinha a obrigação
de monitorar essa força perigosa. Além de ser responsável pelos danos causados pelo
fogo, também era responsável por uma fossa, sem cobertura, na qual seu vizinho
caísse.[69]
Isso nos lembra que precisamos lidar com as forças da natureza que Deus nos
confiou, pelo mandato criacional, com muita prudência e sabedoria. É
lamentável que, em geral, esse tipo de advertência — tão necessária
atualmente, época em que a ciência e a técnica não têm freios sobre a terra —
venha do panteísmo ecológico e, salvo alguma exceção, raramente das
igrejas.[71] O homem deve agir com prudência e sabedoria. As consequências
involuntárias de sua imprudência podem ser terríveis!
CONCLUSÃO
O primeiro texto, sobre os animais que pastam além das cercas do próximo,
nos lembra a que ponto devemos respeitar os limites estabelecidos por Deus,
tanto na esfera criacional como no âmbito dos princípios primários da moral.
No livro de Eclesiastes, lemos:
Quem abre uma cova nela cairá, e quem rompe um muro, mordê-lo-á uma cobra.
Quem arranca pedras será maltratado por elas, e o que racha lenha expõe-se ao perigo.
(Eclesiastes 10.8-9)
Que equilíbrio e quanta sabedoria na lei divina! Ela nos exorta a não
hipotecarmos o futuro (preservando as árvores frutíferas), mas também há
lugar para as necessidades de ordem militar (utilizando as árvores que não
servem como alimento).
Podemos extrair lições semelhantes do texto sobre incêndio no campo de
trigo. O fogo pode provocar estragos terríveis quando foge ao controle de
quem o provocou e não cuidou para que não se propagasse. É o que também
nos ensina o apóstolo Tiago:
Assim, também a língua, pequeno órgão, se gaba de grandes coisas. Vede como
uma fagulha põe em brasas tão grande selva! Ora, a língua é fogo; é mundo de
iniquidade; a língua está situada entre os membros de nosso corpo, e contamina o
corpo inteiro, e não só põe em chamas toda a carreira da existência humana,
como também é posta ela mesma em chamas pelo inferno. Pois toda espécie de
feras, de aves, de répteis e de seres marinhos se doma e tem sido domada pelo
gênero humano; a língua, porém, nenhum dos homens é capaz de domar; é mal
incontido, carregado de veneno mortífero. Com ela, bendizemos ao Senhor e Pai;
também, com ela, amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus. De
uma só boca procede bênção e maldição. Meus irmãos, não é conveniente que
estas coisas sejam assim. (Tiago 3.5-10)
Dessa maneira, Deus tirará — como fez com o Israel infiel, do qual a parcela
que permaneceu fiel, por sua fé em Jesus Cristo, tornou-se o fundamento da
Igreja — o candelabro de uma comunidade cristã local que, ao perseverar no
mal, acaba por receber o julgamento de Deus. Então, dará aquela vela
flamejante a outros, para que deem fruto para a glória de Deus.
Concluiremos com as palavras que o apóstolo Paulo dirigiu aos hebreus
dispersos pelo mundo do Império Romano e que enfrentavam as mesmas
tentações e seduções que hoje ainda sofremos, provações que já sofria o povo
de Deus no tempo do profeta Isaías. Nos termos lembrados pelos textos que
acabamos de meditar, o Senhor ainda adverte seu povo sobre o perigo de
afrouxar, de seguir a carne e conformar-se com o mundo. Que perigo
manifestar em pleno dia a vaidade de sua fé efêmera quanto ao Reino de
Deus, plantada numa terra improdutiva e estéril!
Porque a terra que absorve a chuva que frequentemente cai sobre ela e produz
erva útil para aqueles por quem é também cultivada recebe bênção da parte de
Deus; mas, se produz espinhos e abrolhos, é rejeitada e perto está da maldição; e
o seu fim é ser queimada. (Hebreus 6.7-8)
O apóstolo acrescenta estas palavras que devem ser, para cada um de nós,
motivo para nos recompor, olharmos para Jesus Cristo e retomarmos o
caminho de uma fé repleta de uma confiança vitoriosa:
Quanto a vós outros, todavia, ó amados, estamos persuadidos das coisas que são
melhores e pertencentes à salvação, ainda que falamos desta maneira. Porque
Deus não é injusto para ficar esquecido do vosso trabalho e do amor que
evidenciastes para com o seu nome, pois servistes e ainda servis aos santos.
Desejamos, porém, continue cada um de vós mostrando, até ao fim, a mesma
diligência para a plena certeza da esperança; para que não vos torneis indolentes,
mas imitadores daqueles que, pela fé e pela longanimidade, herdam as
promessas. (Hebreus 6.7-12)
Capítulo VIII: O Código da Aliança e as cauções
INTRODUÇÃO
Nossos dois últimos estudos sobre o oitavo mandamento foram dedicadas ao
estudo do que chamamos de Código da Aliança, que é uma explicação
divinamente inspirada do Decálogo que encontramos no livro do Êxodo. Essa
explicação particular da Bíblia pela Bíblia vai de Êxodo 20.22 a 23.33. Nesta
série de estudos, nos ocupamos unicamente dos textos ligados ao oitavo
mandamento Não roubarás (Êxodo 20.15).
Em nosso primeiro estudo sobre o Código da Aliança, examinamos o que a
Bíblia nos ensina sobre essas sanções econômicas, inevitáveis num mundo
caído marcado pelo reino da escassez e do pecado. Depois vimos as respostas
que a Bíblia oferece a um homem caído em desgraça financeira — por falha
pessoal ou por circunstâncias fora do seu controle — que poderia levá-lo a
vender-se como escravo vassalo, ou como servo, a um senhor. Vimos que
essa condição servil era limitada no tempo: seis anos. Em seguida
observamos que, numa comunidade familiar israelita, essa situação de
dependência, após seis anos de “servidão” — verdadeira perda de liberdade
para decidir — permitia a reabilitação social do homem caído em desgraça,
ou o reduzia permanentemente a um estado de dependência.
No segundo estudo examinamos diversos casos de roubo e as penalidades
impostas ao criminoso em razão de infrações mais ou menos graves. Vimos
que os diversos casos considerados foram tratados de maneira diferenciada e
a ênfase legal caía particularmente sobre a responsabilidade concreta daquele
que, de forma voluntária ou por negligência, havia danificado ou privado seu
próximo dos seus bens. Constatamos ali que a penalidade por roubo não tinha
esse lado brutal — pena de morte ou mutilação — que havia no direito das
nações do Oriente Médio antigo (ou da Inglaterra “cristã” do século 19), mas
consistia, essencialmente, numa reparação proporcional ao crime cometido,
que não devia ser paga ao Estado — como ocorre entre nós—– mas à pessoa
lesada.
Neste capítulo, vamos tratar do ensino contido no Código da Aliança do livro
de Êxodo no que se refere ao desrespeito às propriedades cedidas, de boa-fé,
a outra pessoa. Encontramos isso em Êxodo 22.7 a 15. Assim terminaremos o
estudo dos comentários sobre esse mandamento que encontramos no “Código
da Aliança” e, adiante, voltaremos ao ensino do oitavo mandamento em
Deuteronômio.
O Código da Aliança e as cauções (Êxodo 22.7-15)
Como é costume na casuística — a ciência dos casos legais — contida na
Torá, estamos aqui diante de diferentes situações típicas que interpretam a
palavra do Decálogo. Temos quatro: 1. A caução em relação aos objetos
(versos 7-8); 2. A caução em relação aos animais e objetos (verso 9); 3. A
guarda de animais como caução (versos 10-13); 4. A guarda de animais
emprestados ou alugados (versos 14-15).
Vocês que trocam o direito pela injustiça e que creem, como Eva, ser deuses
com poder em si mesmos para estabelecer o bem e o mal, o justo e o injusto,
não passam de homens mortais, que terão de prestar contas a Deus pelo
exercício do seu cargo. Enfim, o salmista clama pelo julgamento de Deus, o
Juiz supremo, o Senhor de seu povo eleito:
Vemos a menção do nome Elohim [os deuses], palavra que comumente refere-se
a Deus, mas que às vezes é utilizada em relação aos juízes, que são os agentes de
Deus na administração da justiça.
E, então, acrescenta:
Para nós, o ponto importante é que a lei e o exercício do direito são de tal
maneira considerados [por nosso texto] como pertencentes e reservados à esfera
divina que o tribunal se torna um lugar de encontro com Deus tanto quanto o
templo. Portanto, do ponto de vista bíblico, uma lei que não seja teísta não é uma
lei, e nem mesmo uma anti-lei, porque somente Deus é a fonte legítima da lei e
do direito. Segundo esse ponto de vista, a secularização [isto é, a exclusão de
Deus] da lei e dos tribunais só pode ser fonte de injustiça.[74]
Neste caso o depositário nega ter recebido um bem sob sua guarda. O
proprietário do objeto afirma: o objeto é este! O detentor do objeto responde:
não é este! Como então decidir para que a justiça seja feita e o mentiroso
ladrão seja penalizado e o lesado justamente recompensado pelo dano
sofrido? Diante desse impasse jurídico era preciso ir ao Juiz supremo, ao
Deus que desde o seu tribunal celeste devia julgar sobre a terra (por ordália,
juízo de Deus) tanto o ladrão que negava seu crime como o que teria feito
uma falsa acusação de roubo contra seu próximo.[76]
Para os habitantes do Oriente Médio, que tinham ainda temor a Deus, se
entregar assim nas mãos do julgamento de Deus era um ato de extrema
gravidade. Evidentemente isso se aplicava ainda mais a Israel, povo que
conhecia o único e verdadeiro Deus. Para concluir esta seção, citamos uma
vez mais Benno Jacob:
Os bens do próximo, deixados sob sua guarda [por exemplo, nossas economias
nos bancos], são considerados como sagrados, intocáveis e não devem ser
danificados; isso servia tanto para os que eram deixados na mão do próprio
senhor [ou do banqueiro] ou na casa [ou no banco] em que exercia sua
autoridade. Isso valia para qualquer espécie de propriedade. [...] Aquele que se
apropria do bem de seu vizinho é chamado, em hebraico, de “rasha”.[77]
Tais costumes antigos fazem com que compreendamos melhor por que o
proprietário do animal aceitava de pronto o juramento de seu vizinho que, por
isso, não dava nenhuma compensação pelo animal perdido (verso 11).
De sua parte, Rushdoony comenta:
Aquele que guarda os animais jura que é inocente, então é perdoado por todo
dano.
E acrescenta:
O juramento então, e até recentemente, tinha um papel importante no processo.
Quando o temor a Deus era generalizado, era possível que o juramento tivesse
uma função jurídica significativa.[79]
b) A responsabilidade do depositário
Examinemos, agora, o segundo caso, ou seja, aquele em que o depositário
pode ser considerado responsável por danos sofridos pelos animais sob sua
guarda:
Porém, se, de fato, lhe for furtado [não no campo], pagá-lo-á ao seu dono. Se for
dilacerado [por um animal selvagem], trá-lo-á em testemunho disso [prova
material de sua inocência] e não pagará o dilacerado. (Êxodo 22.12-13)
No campo, qualquer coisa pode acontecer e não se exige do pastor do
rebanho a mesma atitude de Jacó, que pôs em sua própria conta as ovelhas
que eram mortas pelos animais selvagens, quando pastoreava o rebanho de
Labão:
Vinte anos eu estive contigo, as tuas ovelhas e as tuas cabras nunca perderam as
crias, e não comi os carneiros de teu rebanho. Nem te apresentei o que era
despedaçado pelas feras; sofri o dano; da minha mão o requerias, tanto o furtado
de dia como de noite. (Gênesis 31.38-39)
Também não é exigido que se aja com o mesmo heroísmo de Davi que
declarou a Saul:
Teu servo apascentava as ovelhas de seu pai; quando veio um leão ou um urso e
tomou um cordeiro do rebanho, eu saí após ele, e o feri, e livrei o cordeiro da sua
boca; levantando-se ele contra mim, agarrei-o pela barba, e o feri, e o matei. O
teu servo matou tanto o leão como o urso; este incircunciso filisteu será como um
deles, porquanto afrontou os exércitos do Deus vivo. Disse mais Davi: O Senhor
me livrou das garras do leão e das do urso; ele me livrará das mãos deste filisteu.
Então, disse Saul a Davi: Vai-te, e o Senhor seja contigo. (1 Samuel 17.34-37)
Mais ainda, a lei não exigia que o pastor morresse por seu rebanho, mas que
apenas o guardasse dos ladrões e animais selvagens tanto quanto possível.
Mas, para aquele que é o verdadeiro Pastor do rebanho, é bem diferente:
Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas. O mercenário, que
não é pastor, a quem não pertencem as ovelhas, vê vir o lobo, abandona as
ovelhas e foge; então, o lobo as arrebata e dispersa. O mercenário foge, porque é
mercenário e não tem cuidado com as ovelhas. Eu sou o bom pastor; conheço as
minhas ovelhas, e elas me conhecem a mim, assim como o Pai me conhece a
mim, e eu conheço o Pai; e dou a minha vida pelas ovelhas. Ainda tenho outras
ovelhas, não deste aprisco; a mim me convém conduzi-las; elas ouvirão a minha
voz; então, haverá um rebanho e um pastor. Por isso, o Pai me ama, porque eu
dou a minha vida para a reassumir. Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu
espontaneamente a dou. Tenho autoridade para a entregar e também para reavê-
la. Este mandato recebi de meu Pai. (João 10.11-18)
Nosso texto não exige esse espírito de sacrifício ao pastor ou ao proprietário a
quem o vizinho confiou seus rebanhos; a questão aqui é saber se o pastor é
responsável ou não pelo roubo ou dano causado aos animais. No campo
aberto presume-se que não, ou seja, o pastor não é responsável. Mas próximo
à fazenda presume-se que sim, isto é, o pastor é responsável e deveria tê-lo
guardado melhor. Se conseguir provar que a ovelha desaparecida foi morta
por um animal selvagem, então não pagará nada. Mas se não provar, terá de
compensar pelo animal perdido, mas não em dobro.
Esta nova situação geral é introduzida pela palavra Ki, quando; depois, dois
casos particulares são introduzidos por Im, se. Vejamos um e depois o outro.
Primeiro caso
Um homem do campo empresta ou aluga alguns animais a seu vizinho. O
animal que está sob a responsabilidade daquele que o alugou é ferido ou
morto na ausência do seu proprietário; nesse caso o locatário sofre as
consequências dos danos causados ao animal. A ausência do proprietário faz
com que o locatário seja o responsável pelo que aconteceu ao animal.
Consideremos um exemplo. Os avós estão cuidando de seus netos. Enquanto
os pais estão ausentes, os avós são totalmente responsáveis. Mas, se os pais
estão presentes, em primeiro lugar são os pais que têm de assumir a
responsabilidade de cuidar dos seus próprios filhos. Aqui, o locatário do
animal terá de dar uma compensação pela perda do animal, isto é, terá de
substituí-lo. Neste caso não se trata — e nem no caso precedente — de dar
uma compensação em dobro, porque não foi intencional e, portanto, não
houve dano moral. Mas neste primeiro caso, se o proprietário do animal
alugado veio ajudar seu vizinho (o locatário do animal), e ele mesmo conduz
o rebanho que sofreu o dano, pelo fato de estar presente torna-se responsável,
e não o locatário. A proximidade física do proprietário faz com que tenha a
responsabilidade primeira.
Segundo caso
Trata-se de um animal alugado, isto é, que não foi apenas emprestado; então
o preço da locação bastará como compensação pela perda do animal. Por
quê? A razão disso é simples. Ao alugar seu animal, o proprietário obtém
algum lucro nessa operação e corre, necessariamente, um risco. O que quer
que aconteça ao animal, o aluguel deve ser pago pelo locatário. O proprietário
aceita os riscos relativos ao ato comercial de locação. O proprietário aluga
um animal pelo dinheiro da locação e, como ocorre no caso de acionários de
uma empresa, tem também participação no risco. É por isso que a lei de Deus
aceita investimentos com risco ou com benefício variável (como são as ações
que capitalizam uma empresa, nas quais o acionário tem participação nos
lucros e nas perdas) mas condena a usura, na qual os juros sendo fixos e as
entradas automáticas, faz com que aquele que empresta não participe nos
riscos sofridos pelo empreendedor. Mas veremos tudo isso, se Deus quiser,
numa exposição futura.[80]
Facilmente podemos ver a sabedoria maravilhosa dessas leis quando nos
dedicamos a meditar nelas. Era isso que as nações estrangeiras notavam
quando comtemplavam a Lei que Deus havia dado a Israel. Vejamos as
palavras de Moisés sobre isso no quarto capítulo do Deuteronômio:
Eis que vos tenho ensinado estatutos e juízos, como me mandou o SENHOR, meu
Deus, para que assim façais no meio da terra que passais a possuir. Guardai-os,
pois, e cumpri-os, porque isto será a vossa sabedoria e o vosso entendimento
perante os olhos dos povos que, ouvindo todos estes estatutos, dirão: Certamente,
este grande povo é gente sábia e inteligente. Pois que grande nação há que tenha
deuses tão chegados a si como o SENHOR, nosso Deus, todas as vezes que o
invocamos? E que grande nação há que tenha estatutos e juízos tão justos como
toda esta lei que eu hoje vos proponho? (Deuteronômio 4.5-8)
Terminarei este estudo pela exortação feita por Moisés na sequência do texto
acima, dirigido ao povo de Israel, que sem dúvida alguma também nos serve:
Tão somente guarda-te a ti mesmo e guarda bem a tua alma, que te não esqueças
daquelas coisas que os teus olhos têm visto, e se não apartem do teu coração
todos os dias da tua vida, e as farás saber a teus filhos e aos filhos de teus filhos.
(Deuteronômio 4.9)
E conclui:
Estando separados do Deus vivo, os homens pecadores [aqueles que estão fora da
aliança da graça] se isolam cada vez mais uns dos outros. A via verdadeira é
como uma avenida de mão dupla. Aquele que dá, encontra seu próximo no
caminho da vida e toma consciência de suas necessidades; sua ajuda torna-se
então um ato de graça, sinal de gratidão aliancial pelas bondades recebidas de
Deus. Aquele que recebe, sabe bem que Deus é o senhor tanto daquele que dá
como do dom recebido, o que particularmente exclui o empréstimo a juros. Ao
aceitar essa graça, aquele que recebe a ajuda mostra seu reconhecimento.[91]
Como vimos várias vezes em nosso estudo da lei, em geral ela nos apresenta,
primeiramente, o caso mais importante. Foi o que vimos, por exemplo, em
nossas exposições sobre o terceiro mandamento, Não tomarás o nome do
Senhor, teu Deus, em vão (Êxodo 20.7). O compromisso mais elevado que
um homem pode ter é com Deus. Através de um voto solene, ele se
compromete com Deus a cumprir o prometido, como reconhecimento por
uma libertação ou em razão de um pedido de oração ou de uma súplica. A
prática desses votos e sua aplicação concreta é o sinal de que aqueles que se
comprometem possuem um forte senso da proximidade imanente de Deus em
suas vidas quotidianas. O distanciamento de nossa civilização em relação a
Deus foi o que levou ao quase desaparecimento da prática desses votos. Para
fazer tal voto é preciso crer verdadeiramente no Deus da Providência e não
naquela necessidade sobre a qual a ciência e a técnica estão fundamentadas.
Então, como esse mandamento se relacionaria com as questões econômicas?
Se o voto solene de um homem é a forma mais elevada de empenhar sua
palavra diante de alguém, por outro lado há outras formas de “votos”, de
menor gravidade, que são de importância vital para a vida comum e, em
particular, em nossas relações comerciais, ou seja, o respeito estrito aos
contratos e às palavras empenhadas. Onde essas duas coisas faltam, as
relações comerciais tornam-se difíceis e terminam frequentemente em litígios
diante dos tribunais.
O texto indica, entretanto, que tais votos e contratos ou compromissos feitos
através da palavra empenhada, em casos específicos, não são de maneira
alguma obrigatórios. Podemos deles nos abster.
Porém, abstendo-te de fazer o voto, não haverá pecado em ti. (v. 22)
Trata-se de não tomar o nome de Deus em vão; de não dar falso testemunho;
de abandonar o jogo duplo; de não fraudar seu próximo. A aplicação à vida
dos negócios é evidente. Como os relacionamentos humanos (locais e
internacionais) seriam mais fáceis e claros se cada pessoa se empenhasse em
manter sua palavra! O Senhor Jesus Cristo a esse respeito é preciso:
Seja, porém, a tua palavra: Sim, sim; não, não. O que disto passar vem do
maligno. (Mateus 5.37)
O casal não pode ser roubado de sua maior riqueza, isto é, da fecundidade
que está na base da consolidação de sua união conjugal enquanto família.
Sabemos que os primeiros anos de uma criança são decisivos para a formação
de seu caráter. O mesmo vale para um casal. No primeiro ano de vida
conjugal, no qual as bases da futura família são assentadas, não é bom que (a)
o serviço militar ou (b) qualquer encargo público roube da família o tempo
que deve ser consagrado à construção dos fundamentos sólidos do casamento.
E assim percebemos o alcance do oitavo mandamento. Portanto, a proibição
do roubo inclui o impedimento de que o casal seja privado desse tempo
precioso, na verdade insubstituível, reservado à sua constituição primeira. No
texto há duas razões para essa isenção do marido de todo serviço militar e do
exercício de qualquer encargo público em seu primeiro ano de casamento:
1) A primeira é “em razão da família”. A edificação da família, nas melhores
condições possíveis, é considerada, pela lei de Deus, como uma riqueza —
um capital — inestimável. A família, no pensamento bíblico, tem prioridade
sobre as responsabilidades militares e públicas.
2) A segunda razão mostra a profundidade e a delicadeza de sensibilidade
afetiva e moral do legislador bíblico. Lemos aqui que, durante o primeiro ano
do casamento, o marido deve permanecer em casa para “alegrar a mulher que
tomou”. Essa alegria, na qual se empenha e usa esse tempo para oferecê-la à
esposa, redundará em bênçãos para o casal e para a família. Por outro lado, se
essa alegria estiver ausente, males futuros sobrevirão.
INTRODUÇÃO
Tentaremos ver agora a aplicação concreta do mandamento “Não roubarás”
no âmbito dos negócios e das finanças. Mais especificamente, procuraremos,
nos próximos capítulos, determinar o ensino da Lei divina sobre três pontos:
(a) a usura ou o empréstimo a juros; (b) os pesos e balanças falsos, ou a
falsificação da moeda; (c) os diversos dízimos bíblicos.
No meio cristão atual é bastante incomum procurar aplicar as injunções da lei
de Deus na esfera pública.
Este é um aspecto da modernidade: a moral e a espiritualidade pertencem à
esfera pessoal, privada; a esfera pública foi abandonada ao jogo das forças
presentes, ou seja, foi privada da autoridade normativa da lei divina, lei
transcendente — vinda de Deus e que reflete a ordem que ele deu à criação
— e imanente, que nos revela também a própria ordem criacional, a ordem da
natureza e das criaturas. Essa lei divina revelada é perfeita e normativa; a lei
criacional, que dá ordem à natureza, agora imperfeita devido à desordem
produzida pelos efeitos do pecado sobre toda a criação, é reflexo da lei
divina.
Entretanto, no que concerne à prática do direito, hoje se afirma — no que
costumamos chamar de positivismo jurídico, fruto de um longo processo
histórico — que existe apenas uma lei legítima, ou seja, a lei editada pelo
legislador humano. Portanto, é o legislador humano, o rei absoluto, o povo
soberano, o ditador acima de toda a lei ou poder totalitário irresponsável, que
sozinho decide, pelo consenso de sua própria vontade autônoma em relação à
toda norma superior, o que deve ser considerado lei. A vontade soberana dos
homens torna-se a norma voluntarista do direito público. Assim, na
Faculdade de Direito da Universidade de Lausanne — cidade em que habito
— tornou-se um adágio, quase admitido por todos, que o direito positivo e a
justiça moral pertencem a esferas totalmente distintas. A técnica jurídica
científica, em tal perspectiva, não tem, portanto, nada a fazer com a moral
nem com Deus.
Uma atitude moral como essa teria horrorizado nossos ancestrais cristãos.
Para eles, o que chamavam de “direito natural” refletia necessariamente o
pensamento do Autor da natureza na boa ordem da criação. Em
consequência, toda lei positiva que se opusesse à justiça de Deus — imanente
e transcendente — só podia ser inválida, nula e não merecia o nome de
“direito”. Portanto, tais leis não podiam exigir nenhuma obediência por parte
daqueles sobre os quais esse poder tirânico procurava se impor. Tal atitude de
resistência a toda lei iníqua podemos encontrar em muitos pagãos como
Confúcio, na China, Aristóteles, na Grécia e Cícero, em Roma.
Um texto datado de 1949, redigido pelo papa Pio XII, descreve muito bem as
implicações que procuramos aqui fazer com que sejam compreendidas:[97]
É impossível observar com atenção o universo, tanto corporal como espiritual, físico e
moral, sem ser tomado por uma admiração da ordem e da harmonia que reinam nos
variados graus da escala dos seres vivos. No homem, até aquela linha que marca a
fronteira em que cessa sua atividade inconsciente [instintiva] e começam suas ações
conscientes e livres [responsáveis], essa ordem e harmonia são estritamente
percebidas, segundo as leis colocadas pelo Criador em cada ser existente. Além dessa
linha, a vontade ordenadora de Deus ainda continua; entretanto, sua atualização e seu
desenvolvimento são deixados à livre determinação dos homens, às ações que podem
se conformar ou se opor à Vontade divina.
Nessa esfera da ação consciente dos homens, consciência do bem e do mal, da ordem,
da autorização e da interdição, a vontade ordenadora do Criador se manifesta pelo
mandamento moral de Deus inscrito na natureza e na revelação, como também através
das ordens e leis editadas por uma autoridade humana legítima, seja na família, no
Estado ou na Igreja. Se a atividade humana é pautada e dirigida segundo essas
normas, ela naturalmente permanece em harmonia com a ordem universal desejada
pelo Criador.
Aqui se encontra a resposta à questão: o que distingue uma lei verdadeira da falsa? O
simples fato de o poder legislativo declarar uma regra obrigatória no Estado, não faz
dela, em si mesma, uma lei verdadeira. O critério do simples fato consumado vale
somente para aquele que é o Autor e a Norma Suprema de toda lei: Deus.
Aplicá-lo ao legislador humano, sem discriminação e de maneira definitiva, como se
sua lei fosse a norma suprema do que é justo, esse é o erro do positivismo jurídico no
sentido exato e técnico do termo. Esse erro está na raiz do absolutismo de Estado, que
não é outra coisa senão a deificação do Estado em si mesmo.[98]
E acrescenta, quando
[...] tomamos posse da nova vida, então, pela virtude do Verbo, somos separados das
impurezas dos autores que nos deram origem. Cortados, separados pelo corte afiado
da espada de Deus, discordamos daqueles sentimentos, se estes permanecerem nos
laços da infidelidade. E quando a luta se trava entre nossa nova vida e a antiga, se não
soubermos dar a preferência a Deus, se colocarmos o amor à família e à carne acima
do amor àquele que divinamente nos adotou, nos tornaremos indignos da herança das
bênçãos futuras.[102]
Mons. Eduardo Pio conclui descrevendo com a maior clareza qual era o
combate de seu tempo, que hoje tornou-se ainda mais temível, em razão da
presente dominação universal do espírito da Revolução, que se tornou
mundial, contra Deus, contra sua Igreja e suas leis:
A luta travada sob nossos olhos não é nada menos, e nos confessam, que o duelo entre
a Revolução e a Igreja. A Revolução criou para a sociedade moderna um evangelho
novo [expressão utilizada por Jules Ferry em seus discursos como ministro da
Educação nacional quando apresentou o projeto de escola laica, escola sem Deus],[106]
nosso evangelho, disse ele, incompatível com o Evangelho cristão.
Para lutar contra esse pensamento único, sem Deus e contra Deus, é que nos
próximos capítulos vamos nos voltar para o ensino bíblico sobre a usura, as
balanças fraudulentas e sobre os dízimos.
A) A usura
Vamos ao primeiro caso que queremos tratar: a usura ou o empréstimo a
juros. Esse assunto foi primeiramente desenvolvido no livro de Êxodo,
naquela seção (o “Código da Aliança”) que examinamos várias partes. Nosso
texto, que se refere às leis relativas aos necessitados, se encontra em Êxodo
22.21-27. Quatro casos específicos são ali tratados: (1) a exploração do
imigrante (verso 21); (2) a aflição da viúva e do órfão pela miséria (versos
22-24); (3) a importância de não aplicar juros sobre os empréstimos
concedidos aos israelitas pobres (verso 25); e (4) não tomar como garantia os
objetos necessários para a sobrevivência do pobre (versos 26 e 27).
Todos esses casos estão relacionados com pessoas economicamente
vulneráveis. Este é o texto que nos interessa:
Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre que está contigo, não te haverás com
ele como credor que impõe juros. (Êxodo 22.25)
Esse mesmo espírito encontramos nas palavras de nosso Senhor Jesus Cristo:
Não andeis, pois, a indagar o que haveis de comer ou beber e não vos entregueis
a inquietações. Porque os gentios de todo o mundo é que procuram estas coisas;
mas vosso Pai sabe que necessitais delas. Buscai, antes de tudo, o seu reino, e
estas coisas vos serão acrescentadas. Não temais, ó pequenino rebanho; porque
vosso Pai se agradou em dar-vos o seu reino. Vendei os vossos bens e dai
esmola; fazei para vós outros bolsas que não desgastem, tesouro inextinguível
nos céus, onde não chega o ladrão, nem a traça consome, porque, onde está o
vosso tesouro, aí estará também o vosso coração. (Lc 12.29-34)
Esse espírito cristão também se reflete nestas palavras extraídas do
Deuteronômio:
Quando entre ti houver algum pobre de teus irmãos, em alguma das tuas cidades,
na tua terra que o SENHOR, teu Deus, te dá, não endurecerás o teu coração, nem
fecharás as mãos a teu irmão pobre; 8antes, lhe abrirás de todo a mão e lhe
emprestarás o que lhe falta, quanto baste para a sua necessidade. (Deuteronômio
15.7-8)
E esta passagem acrescenta que no sétimo ano toda a dívida deveria ser
perdoada:
Guarda-te não haja pensamento vil no teu coração, nem digas: Está próximo o
sétimo ano [ano em que todas as dívidas eram perdoadas], o ano da remissão, de
sorte que os teus olhos sejam malignos para com teu irmão pobre, e não lhe dês
nada, e ele clame contra ti ao Senhor, e haja em ti pecado. Livremente [doação e
não empréstimo, porque em breve o empréstimo será perdoado], lhe darás, e não
seja maligno o teu coração, quando lho deres; pois, por isso, te abençoará
o Senhor, teu Deus, em toda a tua obra e em tudo o que empreenderes. Pois
nunca deixará de haver pobres na terra [Mateus 26.11; João 12.8];[108] por isso,
eu te ordeno: livremente, abrirás a mão para o teu irmão, para o necessitado, para
o pobre na tua terra. (Deuteronômio 15.9-11)
Isso porque nos é exigido o amor ao próximo, não ao que está distante. E até
mesmo o Alcorão, quando ecoa a Torá e o Evangelho, nos devia corar de
vergonha:
Empreste a Deus [sejam caridosos e deem esmola] e Deus os recompensará.
E Rushdoony acrescenta:
Cristo nos abriria a porta para uma obediência menor? Claro que não, mas para
uma fidelidade e poder com eficácia ainda mais verdadeira em nossa vida de
obediência.[115]
Em contraste, como nos maravilhamos com a santa, boa e justa lei divina, e
exclamamos com o salmista:
Os preceitos do Senhor são retos e alegram o coração; o mandamento do Senhor
é puro e ilumina os olhos. O temor do Senhor é límpido e permanece para
sempre; os juízos do Senhor são verdadeiros e todos igualmente, justos. São mais
desejáveis do que ouro, mais do que muito ouro depurado; e são mais doces do
que o mel e o destilar dos favos. Além disso, por eles se admoesta o teu servo;
em os guardar, há grande recompensa. (Salmo 19.8-11)
Introdução
Neste capítulo terminaremos nossa exposição sobre a usura ou empréstimo a
juros. Em nosso próximo estudo examinaremos a questão da fraude nos pesos
e medidas, o que nos levará às nossas últimas exposições sobre o oitavo
mandamento, nas quais examinaremos a questão fundamental sobre o ensino
bíblico dos dízimos e sua aplicação atual.
No último capítulo tínhamos considerado o juízo negativo que o conjunto da
Escritura faz sobre o empréstimo a juros. Agora, daremos sequência ao nosso
estudo, examinando um texto muito controverso que deixamos de lado por
demandar mais tempo. Trata-se de Deuteronômio 23.19-20. Deus às vezes
autoriza o empréstimo a juros? Se sim, por quê? Leiamos nosso texto:
A teu irmão não emprestarás com juros [me-sheki, mordida, usura; em inglês:
usury], seja dinheiro, seja comida ou qualquer coisa que é costume se emprestar
com juros [me-sheki, mordida, usura]. Ao estrangeiro emprestarás com juros,
porém a teu irmão [ach] não emprestarás com juros, para que o Senhor, teu Deus,
te abençoe em todos os teus empreendimentos na terra a qual passas a possuir.
(Deuteronômio 23.19-20)
E Jeremias também:
Ai de mim, minha mãe! Pois me deste à luz homem de rixa e homem de
contendas para toda a terra! Nunca lhes emprestei com usura [a juros, com
mordida ME-SHEKI], nem eles me emprestaram a mim com usura [a juros, com
mordida ME-SHEKI]; todavia, cada um deles me amaldiçoa. (Jeremias 15.10)
O profeta Amós resume nestes termos todo o horror que reina nesse povo que
se considera povo de Deus, mas que, no entanto, é tão voraz, tão ávido por
ganhar dinheiro de qualquer maneira:
Porque sei serem muitas as vossas transgressões e graves os vossos pecados;
afligis o justo, tomais suborno [corrompem-se com presentes, KOPHER, com
tonéis de vinho] e rejeitais os necessitados na porta [onde se reúne o tribunal].
Portanto, o que for prudente guardará, então, silêncio, porque é tempo mau.
Buscai o bem e não o mal, para que vivais; e, assim, o Senhor, o Deus dos
Exércitos, estará convosco, como dizeis. Aborrecei o mal, e amai o bem, e
estabelecei na porta o juízo; talvez o Senhor, o Deus dos Exércitos, se compadeça
do restante de José. (Amós 5.12-15)
(3) Então, diante de uma condenação tão unânime a esse amor ao dinheiro,
raiz de todos os males (1 Timóteo 6.10), dessa vontade de servir a Deus e a
Mamon — as riquezas (Mateus 6.24; Lucas 16.13) — diante de tudo isso
qual seria o significado da concessão colocada em Deuteronômio 23.20?
Leiamos mais uma vez nosso texto:
A teu irmão não emprestarás com juros [usura, mordida ME-SHEKI], seja
dinheiro, seja comida ou qualquer coisa que é costume se emprestar com juros.
Ao estrangeiro [NOKRI] emprestarás com juros [usura, mordida ME-SHEKI],
porém a teu irmão não emprestarás com juros, para que o Senhor, teu Deus, te
abençoe em todos os teus empreendimentos na terra a qual passas a possuir.
(Deuteronômio 23.19-20)
Essa era a situação de penúria do povo hebreu que retornou do exílio. Era
particularmente difícil porque no primeiro ano, após seu retorno, seus campos
e vinhas não tinham nenhuma produção, pois não tinham sido semeados no
ano anterior. Estavam, portanto, reduzidos à miséria a ponto de serem
obrigados a emprestar dinheiro a juros (mordida) de seus próprios irmãos,
que dessa maneira os mordiam e os roubavam através de juros ilícitos (ganho
fictício) sobre as quantias emprestadas. Agora, vejamos a reação de Neemias:
Ouvindo eu, pois, o seu clamor e estas palavras, muito me aborreci.
Depois de ter considerado comigo mesmo, repreendi os nobres e magistrados e
lhes disse: Sois usurários [MASHAH = exigência, palavra próxima de ME-
SHEKI = usura, mordida], cada um para com seu irmão; e convoquei contra eles
um grande ajuntamento.
Disse-lhes: nós resgatamos os judeus, nossos irmãos, que foram vendidos às
gentes, segundo nossas posses; e vós outra vez negociaríeis vossos irmãos, para
que sejam vendidos a nós?
Então, se calaram e não acharam o que responder. Disse mais: não é bom o que
fazeis; porventura não devíeis andar no temor do nosso Deus, por causa do
opróbrio dos gentios, os nossos inimigos?
Também eu, meus irmãos e meus moços lhes demos dinheiro emprestado e trigo.
Demos de mão a esse empréstimo.
Restituí-lhes hoje, vos peço, as suas terras, as suas vinhas, os seus olivais e as
suas casas, como também o centésimo do dinheiro, do trigo, do vinho e do azeite,
que exigistes deles [MASHAH = exigência, extorsão].
Então, responderam: Restituir-lhes-emos e nada lhes pediremos; faremos assim
como dizes [...]. E toda a congregação respondeu: Amém! (Neemias 5.1-13)
Notemos que a razão dada por Calvino não diz respeito à usura em si, ou seja,
receber mais que o capital emprestado. Também não se reporta a outros
textos da Escritura que condenam toda forma de empréstimo a juros. A razão
invocada é a da necessária reciprocidade — mutualidade — em tais
transações, para que fosse respeitada a equidade entre judeus e pagãos no
exercício de ações de extorsão! Calvino aqui esqueceu completamente a
aliança de Deus com seu povo. Uma ação iníqua — a usura, o empréstimo a
juros — exercida por um povo apóstata sobre um povo cristão, de maneira
alguma poderia justificar o fato deste mesmo povo entregar-se (de forma
recíproca e em igualdade de condições) a tão grande iniquidade! Foi assim
que o historiador católico, Michael Hoffman, após ter descrito a oposição
radical de Martinho Lutero a todo empréstimo a juros,[119] descreveu a
posição bem diferente de João Calvino:
Outros pais fundadores do protestantismo foram, de sua parte, influenciados
pelos argumentos nominalistas dos casuístas romanos. Entre eles, o mais
importante foi o jurista reformado, tornado teólogo, Jean Cauvin [nome de
origem]. João Calvino (1509-1564) nisso inspirou-se no pensamento do jurista
católico francês, Charles du Moulin (1500-1556) e, particularmente no teólogo
reformado que vulgarizou o ensino de Du Moulin, François Hottman (1524-
1590). Por seu lado, o pensamento de Charles du Moulin sobre essa questão foi
influenciado pelo teólogo alemão Konrad Summenhart (1450-1502) que não
considerava que o empréstimo a juros fosse ilícito por natureza. Para ele cada
empréstimo deveria ser julgado em função das circunstâncias próprias daquele
que recebia o empréstimo. Enquanto a taxa de juros exigida fosse “razoável”, não
havia nada de imoral em se exigir juro sobre empréstimo destinado ao aumento
da produção. Assim, o católico Charles du Moulin revertia completamente o
significado da antiga proibição, chegando a afirmar que o devedor que não
pagasse juros sobre um capital produtivo, de fato roubava o credor![120]
Hoffman prossegue:
Um mestre de Calvino, o teólogo protestante Martin Bucer (1491-1551), em seu
Tractatus de Usuris, estendeu o argumento dos nominalistas quando afirmou que
a palavra neshek, traduzida por “usura”, significava simplesmente que alguns
juros eram tão excessivos que constituíam verdadeiras “mordidas” sobre o
devedor e que somente esse tipo de juro era proibido. Depois de Bucer, o teólogo
protestante de Zurique, Heinrich Bullinger (1504-1575), escreveu: “A usura é
proibida pela Palavra de Deus quando ela acaba por morder [neshek] o próximo”.
Até então a usura (ou o juro), isto é, o ato de num empréstimo receber de
volta uma quantia em dinheiro a mais ou em forma de objetos, havia sido
considerada pelo cristianismo em toda parte — tanto o ortodoxo como o
católico romano — como um pecado grave e até mesmo um crime que
resultava em pesadas sanções religiosas e jurídicas. A oposição da
cristandade — desde os Pais dos primeiros séculos aos escolásticos da alta
Idade Média — eram unânimes em condenar o princípio do aumento da
quantia emprestada quando de seu reembolso. A razão disso era a distinção
(que Tomás de Aquino havia simplesmente resgatado) entre bens de consumo
(dizia-se fungíveis) e bens não consumíveis (dizia-se não fungíveis). Um bem
fungível, consumível, automaticamente se extinguiria pelo seu uso. É o caso
do dinheiro ou da comida; e era considerado que reclamar um acréscimo à
quantia emprestada seria como inventar um bem — o juro — que não tinha
nenhuma relação com o objeto da troca, o dinheiro, que era inteiramente
consumido por toda transação monetária. Todos esses desenvolvimentos nos
trazem à memória as palavras de Cristo:
Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar
ao outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e
às riquezas. (Mateus 6.24)
Há um ditado popular que expressa bem isso: “Você não pode ter [ao mesmo
tempo] a manteiga e o dinheiro da manteiga”. Por quê? Porque se você tiver a
manteiga, você já consumiu — gastou — o dinheiro (bem fungível,
consumível); se você tem o dinheiro porque não o gastou, você não pode ter a
manteiga, que também se extingue a partir do momento que você a consome.
Assim, é irracional e irreal querer possuir a manteiga, e além da manteiga, o
dinheiro, e além do dinheiro, o juro, isto é, a quantia emprestada e o valor a
mais, fictício, acrescentado a essa quantia. Porém, seria totalmente diferente
para os bens não fungíveis, não consumíveis, tais como os animais de carga,
o arado, uma casa, um apartamento, um campo, cujo empréstimo ou locação
poderia ser rentável, por um aluguel ou algo de benefício legítimo. Foi por
isso que com o desenvolvimento do comércio e das transações comerciais
desde o século 12 na Europa, algumas regras foram formuladas pelos
moralistas escolásticos, que permitiam estabelecer distinções entre bens
consumíveis e não consumíveis, entre empréstimo a juros (estritamente
proibido) e investimentos comerciais e industriais de risco, dos quais o
investidor podia esperar por ganhos, benefícios ou perdas, ligadas à
prosperidade (ou às dificuldades) da empresa, alvo de seus investimentos.
Havia quatro casos nos quais uma compensação — e não juro — podia ser,
legitimamente, esperada quando de um empréstimo. Vejamos como o
historiador belga Raymond de Roover esclarece essa questão difícil. Em seu
excelente livrinho O pensamento econômico dos escolásticos, ele escreveu o
seguinte:
Sejamos, então, precisos e comecemos fazendo a nós mesmos a pergunta
primordial: o que é usura? Atualmente entende-se por usura um juro exorbitante
e opressivo que ultrapasse de longe a taxa legal ou a exigida pelos bancos e
outras instituições de crédito. Mas NÃO era esse o significado que os
escolásticos davam à palavra usura. Segundo eles, era considerado usura [e,
portanto, condenável como um pecado ou mordida] todo o ganho derivado de um
empréstimo em razão do próprio empréstimo, ou ainda todo ganho recebido com
a intenção principal de tirar proveito de um empréstimo ou de um mutuum.[133] O
direito canônico definiu a usura como aquilo que ultrapassava a quantia principal
de um empréstimo.[134]
De Roover continua:
No fundo, todas essas definições davam na mesma e resultavam numa mesma
conclusão: a usura está relacionada somente ao empréstimo. Onde não há
empréstimo, explícito ou implícito, não pode haver usura. Dizemos explícito ou
implícito, porque é preciso distinguir entre a usura praticada abertamente
(aperta), exigida sem dissimulação no empréstimo, e a usura oculta sob a forma
de um outro contrato, que se torna então um contrato in fraudum usurarum.[135]
Como acabamos de ver, essa distinção feita por Calvino e seus colegas
Reformadores era falsa, porque distinguia uma usura legítima nos negócios
comerciais, de uma usura ilegítima nas obras de caridade aos pobres. Eles
faziam essa distinção também nos empréstimos comerciais, isto é,
distinguiam uma usura legítima, com taxa moderada, de uma usura ilegítima,
com taxa excessiva. A distinção bíblica e eclesiástica, até então em vigor na
Igreja, distinguia de forma diferente, ou seja, fazia distinção entre a usura ou
empréstimo a juros — sempre ilegítimo — e o investimento com risco —
perfeitamente legítimo.
O pensamento de Tomás de Aquino tendia a deixar mais clara essa distinção,
como também o de João Calvino, três séculos mais tarde. Mas, enquanto o
primeiro mantinha a natureza, a essência intrínseca (isto é, ontológica) ilícita
de todo empréstimo a juros, Calvino abria a porta para uma legitimação
moral e teológica do sistema econômico moderno, que legitima o empréstimo
comercial e financeiro a juros legítimos que, segundo ele, devem ser
moderados. Calvino não via que a prática de se cobrar juros, em si mesma,
era errada, mas condenava apenas algumas de suas aplicações. Ele confundia
a essência do empréstimo com seus acidentes. De Roover explica isso assim:
A doutrina escolástica [mas também patrística e bíblica, como também de alguns
reformadores como Martinho Lutero e muitos outros reformados de confissão
anglicana] repousa sobre o princípio de que o dinheiro, sendo uma coisa fungível,
é estéril. Pecunia pecuniam non partit (dinheiro não gera dinheiro). Estritamente
falando, isso é correto, porque é certo que uma nota de dez dólares deixada no
fundo de uma gaveta não é como um casal de ratos e não produz filhotes.[138]
Para concluir, devemos então fazer a pergunta decisiva: Mas pode-se dizer o
mesmo do dinheiro investido nos negócios? Calvino afirmava que era
ilegítimo extorquir os pobres através dos juros, mas legitimava os juros
comerciais moderados. Tomás de Aquino, mais próximo do pensamento
bíblico e patrístico, afirmava (com Aristóteles) que o dinheiro — em si
mesmo — era um bem fungível, consumível, como o alimento e, portanto,
desaparecia em seu consumo e não era produtivo. Assim, todo juro cobrado
num empréstimo era uma realidade fictícia — como, num outro plano, o
dinheiro virtual criado do nada por nossos bancos centrais — e se constituía
num roubo. Porém, ainda assim, Tomás de Aquino reserva um lugar para os
benefícios provenientes de investimentos comerciais e industriais com riscos.
[...] ele o compara [o dinheiro investido na indústria e no comércio com risco] a
uma semente que, enfiada no solo, vai germinar e produzir uma colheita.[139]
De Roover pensa que nisso Tomás de Aquino se contradiz. Mas esse não é o
caso! O pensamento escolástico já havia desenvolvido uma distinção
essencial — que Calvino procura retomar de maneira muito infeliz e com
consequências desastrosas incalculáveis — entre empréstimo a juros, claro
roubo ilegítimo, e os benefícios (ou perdas) vindos de investimentos a risco
numa empresa, isto é, benefícios legítimos, que são uma participação do
investidor nos lucros e perdas da empresa; ao contrário disso, o empréstimo a
juros é um benefício imaginário, automático e sem nenhum limite no tempo
— uma verdadeira usurpação do bem do outro — sobre o dinheiro
emprestado, sem relação nenhuma com a prosperidade ou perdas daquele que
recebe o empréstimo — empreendedor ou comerciante.
S. C. Mooney resume bem toda a questão, quando cita o teólogo católico
romano, Patrick Cleary:
Se um excedente pudesse ser cobrado [num empréstimo], sua legalidade não teria
como base o contrato de mutuum [empréstimo de um bem fungível, consumível],
mas um contrato paralelo, explícito ou implícito, que permitiria ao credor uma
compensação por perdas ocasionadas por circunstâncias extrínsecas [isto é,
exteriores, como por exemplo a inflação da moeda] à natureza do contrato
principal [de empréstimo].[140]
Mooney explica:
Havia, principalmente, quatro razões que autorizavam essas compensações: (1)
Damnum emergens (perda decorrente de danos importantes); (2) Lucrum cessans
(benefício perdido); (3) Poena coventienalis (penalidade estabelecida por acordo
mútuo, essencialmente uma multa por atraso no reembolso do empréstimo); (4)
Periculum sortis (compensação pelo risco). Os teólogos tinham debatido a
questão desses títulos extrínsecos no empréstimo durante séculos, mas foi
somente no fim da Idade Média que eles encontraram aceitação geral na Igreja e
passaram a fazer parte da prática comum dos negócios.[141]
CONCLUSÃO
INTRODUÇÃO
Nossas duas últimas exposições foram dedicadas ao ensino bíblico sobre a
usura ou o empréstimo a juros. Neste capítulo daremos sequência ao nosso
exame, através da Bíblia e da Lei de Deus, dedicado às implicações atuais
relacionadas com o oitavo mandamento. Examinaremos o que diz a Palavra
de Deus sobre a utilização de balanças falsas pelos homens, com o objetivo
de roubar melhor seu próximo e, mais grave ainda, ofender seu Criador.
Veremos o que a Bíblia nos diz sobre o uso das falsas balanças e sobre a
falsificação dos pesos e medidas. Em seguida, tentaremos compreender como
essas regras, tão antigas, se aplicam às situações presentes:
Em seguida esse Deus soberano afirma que ele mesmo é o autor da aliança da
graça que fundamenta a prática de seus mandamentos, ou seja, foi exatamente
ele quem fez Israel sair do Egito e sua Igreja da escravidão do pecado.
Eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos tirei da terra do Egito.
Nosso texto termina com a afirmação forte sobre a obrigação absoluta, para
os israelitas, de colocar em prática todas as ordenanças de Deus e, em
particular, de ser perfeitamente justo em seus negócios, nas suas relações
comerciais e financeiras. A fé cristã também começa pelo Deus soberano; ela
se manifesta pela salvação que ele operou por nós em Jesus Cristo e que
resulta, necessariamente, em nossa vida de obediência aos mandamentos de
Deus. Deus assina essa lei com o selo de sua divina autoridade: Eu sou o
Senhor. Essa é a exposição desse primeiro texto da lei.
Agora, façamos algumas observações:
(a) Notaremos que esse texto é o ponto culminante do que chamamos a lei de
santidade contida no livro de Levítico. A santidade na Bíblia não diz respeito
apenas à nossa piedade pessoal, ao culto que damos a Deus, à nossa vida
religiosa interior, mas a toda nossa vida pública e privada, inclusive a todos
os aspectos da vida dos negócios. Para simplificar, a santificação não é
unicamente um negócio de domingo — a religião — mas diz respeito a toda
nossa vida, a todos os nossos pensamentos, os nossos sentimentos e todas as
nossas ações mais quotidianas, mais corriqueiras, mais ordinárias. Não somos
cristãos gnósticos ou pietistas, super espirituais, que fazem separação (isso é
dualismo gnóstico e pietista) entre a vida religiosa e profana. Nosso Senhor é
o Senhor de toda a realidade criada, preservada e salva por ele, e nossa
obediência de fé a seus mandamentos, cumprida em Jesus Cristo e pelo poder
do Espírito Santo, diz respeito a todos os ângulos da nossa vida, tanto público
como privado.
Em seu belo comentário sobre Levítico, Samuel Kellogg diz muito bem:
Todos os que professam a fé devem, particularmente, lembrar que sem
santificação ninguém verá o Senhor e que hoje essa santidade é a mesma referida
por Deus quando deu a Israel o livro de Levítico. Essa santidade, se de um lado é
inspirada pelo temor a Deus, de outro exige do fiel que ame seu próximo como a
si mesmo.
Acrescentamos, até nos negócios. Kellogg continua:
É uma completa contradição, por exemplo, respeitar o Dia do Senhor [...] e
durante a semana misturar água no leite que se vende, falsificar medicamentos ou
guloseimas, diminuir o tamanho do metro quando se mede, apertar a balança
quando se pesa alguma coisa [e acrescentamos hoje, traficar a venda ou compra
de ações na bolsa ou jogar com dívidas hipotecárias!].
Ele comenta:
Deus detesta e até os ateus desprezam esse tipo de religião. Os que pensam assim
da religião têm uma noção muito estranha do cristianismo. Imaginam [como
gnósticos miseráveis que são] que a fé cristã não toca nos aspectos práticos da
vida ordinária dos cristãos. Não entendem que, na verdade, uma religião de
domingo não mostra o menor traço de santidade do Criador e Salvador.
O resultado:
Quando chegar o dia do julgamento de Deus — e virá sem dúvida para cada
pessoa — ele passará pela peneira de fogo todas as ações dos homens. Na
fornalha ardente do juízo de Deus, todas essas obras religiosas [pietistas e
gnósticas] serão reduzidas a pó, como o fogo faria com uma teia de aranha.[150]
Tal homem passará pela peneira e todas as suas obras religiosas juntamente
perecerão. O apóstolo Paulo escreveu aos coríntios exatamente sobre isso:
Segundo a graça de Deus que me foi dada, lancei o fundamento como prudente
construtor; e outro edifica sobre ele. Porém cada um veja como edifica. Porque
ninguém pode lançar outro fundamento, além do que foi posto, o qual é Jesus
Cristo. Contudo, se o que alguém edifica sobre o fundamento é ouro, prata,
pedras preciosas, madeira, feno, palha, manifesta se tornará a obra de cada um;
pois o Dia a demonstrará, porque está sendo revelada pelo fogo; e qual seja a
obra de cada um o próprio fogo o provará. Se permanecer a obra de alguém que
sobre o fundamento edificou, esse receberá galardão; se a obra de alguém se
queimar, sofrerá ele dano; mas esse mesmo será salvo, todavia, como que através
do fogo. (1 Coríntios 3.10-15)
(b) A segunda coisa que devemos notar aqui é que as balanças — os pesos e
as medidas justas — na época não serviam apenas para pesar ou verificar a
qualidade das mercadorias comercializadas, mas também serviam para pesar
(mensurar) dinheiro, porque as peças de moeda, longe de serem uniformes,
necessitavam que seu peso exato, em prata ou ouro, fosse aferido para
determinar o valor verdadeiro. Então, fraudar balanças e pesos implicava,
necessariamente, falsear também a moeda e, consequentemente, fraudar o
valor das mercadorias comercializadas.
Vejamos alguns textos que revelam o aspecto financeiro e monetário do uso
correto das balanças e dos pesos. Em primeiro lugar vejamos em Gênesis:
Tendo os camelos acabado de beber, tomou o homem [tratava-se do servo de
Abraão envia além do rio para procurar uma esposa para o filho de seu mestre,
Isaque] um pendente de ouro de meio siclo de peso e duas pulseiras para as mãos
dela [de Rebeca], do peso de dez siclos de ouro. (Gênesis 24.22)
Se duas pedras fossem marcadas com o mesmo peso, mas tivessem, de fato,
pesos diferentes, a pedra mais pesada daria a impressão de que o objeto
comprado seria mais leve do que na realidade. O peso da mercadoria seria
fraudado, porque indicaria ser mais leve do que realmente era e seria uma
fraude na compra. Se a pedra utilizada na venda fosse mais leve, a impressão
dada ao comprador seria que a mercadoria vendida era mais pesada do que
era de fato. Seria, portanto, uma fraude na venda. Tratava-se de uma ação
criminosa organizada, cuidadosamente engendrada, portanto, um crime
abominável. É o que vemos nas manobras desonestas e sofisticadas de nossos
corretores — esses verdadeiros banksters, ladrões de estrada, traficando
sobre as diversas bolsas do mundo, que fazem subir ou baixar à vontade o
preço das ações nas bolsas ou a taxa de câmbio das moedas, através de
compras ou vendas massivas. Compram para fazer subir o preço; vendem
para fazê-lo baixar. Uma vez atingido o preço desejado, vende-se (ou
compra-se massivamente) para maximizar os lucros. É a vilania financeira
em larga escala.
O mesmo valia para o uso em casa de um grande efa (uma cesta, por
exemplo, para medir a quantidade de cereais comercializados) ou de um efa
pequeno. Usava-se a cesta grande de medir se fosse compra, recebendo assim
mais do que era oficialmente indicado. Ao usar o menor efa para a venda,
vendia-se ao cliente menos do que havia oficialmente comprado. Tratava-se
também de um crime vil, pensado e organizado.
Aqui temos a última (Deuteronômio 25.13-16) da grande série das leis
dedicadas a comentários sistemáticos sobre o Decálogo. Trata-se, também, de
um comentário sobre a aplicação do décimo mandamento, que proíbe a
cobiça. Essa dupla proibição sobre pesos e medidas é seguida da ordem para
se ter pesos e efas justos e exatos. A consequência de se preservar a justiça
nos negócios é claramente indicada, isto é, a preservação de uma vida longa
no país que Deus dava a seu povo. Essa feliz consequência é natural, uma vez
que as exigências da lei de Deus correspondem à própria natureza humana, a
uma vida social justa, como também à ordem estabelecida por Deus na
criação. Agir de maneira contrária a essa lei leva à maldição, porque o Deus
de Israel, que é também dos cristãos, tem como abominável tal
comportamento e o coloca no mesmo plano da idolatria, das piores
perversões sexuais ou da desonra aos pais ou do desprezo às autoridades de
sua Igreja.
Vejamos o comentário de Lutero sobre essa lei:
Peso e medida justos têm de ser preservados na comunidade, a fim de que seu
vizinho, e mais especificamente os pobres, não sejam alvo de trapaça. Essa lei se
aplica de maneira geral a todos os negócios e contratos, a fim de que o vendedor
forneça mercadorias justas que correspondam ao dinheiro recebido. A cobiça
humana tem a capacidade de inventar abusos dos mais inimagináveis,
modificando, diminuindo, imitando e adulterando as mercadorias. Tarefa
importante do governo é velar por suprimir tais abusos e assim defender o bem
comum.[152]
E para concluir esta seção sobre os textos da Torá, citemos uma vez mais
aquele que é, sem dúvida, o melhor comentarista moderno da lei divina,
Rousas Rushdoony:
Pesos e medidas falsos têm por efeito deformar o tecido social. Empobrecem os
pobres e colocam numa posição social mais alta uma classe dominante desonesta.
Quando essas medidas falsas prevalecem, geralmente levam à eliminação da
classe média. As vítimas dessas injustiças comerciais, financeiras e monetárias
são, em geral, incapazes de se defender contra tais costumes iníquos. A justiça
nas transações comerciais também diz respeito a todo mundo, porque uma moeda
sadia é o sangue vivificante de todo comércio útil.[154]
Um segundo ponto que merece nossa atenção é o uso que nosso texto faz de
duas expressões que caracterizam a atitude de Deus para com a balança falsa
e peso justo. Balança falsa é um “horror ao Senhor”, diz nossa tradução. O
termo hebraico para “horror”, toebah, é mais forte do que a expressão
francesa. Essa palavra é frequentemente usada pelo profeta Ezequiel para
exprimir o desprazer total, absoluto e irremediável de Deus pela conduta
apóstata do seu povo, Israel. Toebah tem, portanto, o sentido de detestar,
aborrecer, ter horror, de ser abominável. Aplica-se de maneira bastante
uniforme aos pecados seguintes: idolatria, homossexualidade, sacrifícios
humanos (inclusive aborto), ocultismo, consumo de animais impuros,
prostituição e desonestidade nos negócios. Por outro lado, o peso justo recebe
o “favor” (conforme nossa tradução) de Deus. Aqui ainda, o termo hebraico
ratsum é muito mais forte que a palavra francesa traduzida, que significa:
prazer, delícias, favor, bênção, ter acesso, ser aceito por Deus ou pelo rei.
Deus ama a retidão; nela ele encontra o seu maior prazer e detesta, com todo
o seu ser, as balanças falsas, os pesos adulterados, a falsidade e a hipocrisia.
Nada deixa Deus mais horrorizado que a duplicidade nos pesos e medidas
praticados pelos cristãos. Deus quer a integridade do coração e de ação, a
retidão, a sinceridade em querer o bem e não a complacência carnal com seus
próprios pendores e disposições pecaminosas.
Seja, porém, a tua palavra: Sim, sim; não, não. O que disto passar vem do
maligno. (Mateus 5.37)
Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também
a eles; porque esta é a Lei e os Profetas. (Mateus 7.12)
Finalmente, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que
é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se
alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o vosso
pensamento. O que também aprendestes, e recebestes, e ouvistes, e vistes em
mim, isso praticai; e o Deus da paz será convosco. (Filipenses 4.8-9)
Confúcio disse muito bem quando falou que a tarefa principal do homem de
Estado era recompor as palavras e dar o seu verdadeiro sentido. Ele podia ter
acrescentado que o mesmo deveria valer para os pesos e medidas. Depois, os
versos 13 a 17 mostram que uma das consequências mais importantes do
restabelecimento da ordem estável e exata das medidas será permitir que a
troca dos bens seja justa, o que fará com que o povo de Judá volte a ser capaz
de entregar corretamente os dízimos que pertencem a Deus. Não dar a Deus e
à sua Igreja o que lhe é devido, nos diz Malaquias (1.6-2.9), é fraudá-lo, é
roubá-lo no que lhe pertence! Nós também, gravemos em nossos corações
essas palavras de Malaquias:
Se o não ouvirdes e se não propuserdes no vosso coração dar honra ao meu
nome, diz o SENHOR dos Exércitos, enviarei sobre vós a maldição e amaldiçoarei
as vossas bênçãos; já as tenho amaldiçoado, porque vós não propondes isso no
coração. (Malaquias 2.2)
Esse texto começa lembrando a Israel (e a Igreja) que o Senhor dos exércitos
é soberano e que só ele é Deus; ele é quem comanda e a ele o povo deve
submeter-se. Ele é a lembrança e a memória verdadeira do povo de Deus, de
seu povo, a quem faz lembrar a realidade soberana de um passado aliancial
sempre presente! Portanto, ainda há esperança para Israel. Ela poderá voltar-
se para Deus. Mas, como isso será feito? Guardando “a lealdade e o direito”.
Assim se volta a Deus. Seja nos negócios ou no tribunal; na vida privada ou
na vida pública; na família ou na Igreja. Israel deve sempre esperar em Deus
e não nos truques, nos estratagemas, nos esquemas que tenta fabricar para se
dar bem, essa arte diabólica da manipulação de pessoas, da linguagem e dos
acontecimentos. Do contrário, se não retornar à aliança, Israel será para Deus
como Canaã, povo de mercadores sem escrúpulos, praticantes da
manipulação de balanças falsificadas — como aquelas fabricadas ex nihilo,
do nada, de riquezas virtuais, imaginárias — gatunagem que serve apenas
para oprimir e pilhar o mundo inteiro!
Vejamos, agora, a ameaça que Amós, porta-voz de Deus, faz contra essa
nação infiel de negociantes sem escrúpulos.
(d) Amós 8.1-8
O SENHOR Deus me fez ver isto: eis aqui um cesto de frutos de verão. E
perguntou: Que vês, Amós? E eu respondi: Um cesto de frutos de verão. Então,
o SENHOR me disse: Chegou o fim para o meu povo de Israel; e jamais passarei
por ele. Mas os cânticos do templo, naquele dia, serão uivos, diz o SENHOR Deus;
multiplicar-se-ão os cadáveres; em todos os lugares, serão lançados fora.
Silêncio! Ouvi isto, vós que tendes gana contra o necessitado e destruís os
miseráveis da terra, dizendo: Quando passará a Festa da Lua Nova, para
vendermos os cereais? E o sábado, para abrirmos os celeiros de trigo, diminuindo
o efa, e aumentando o siclo, e procedendo dolosamente com balanças
enganadoras, para comprarmos os pobres por dinheiro e os necessitados por um
par de sandálias e vendermos o refugo do trigo? Jurou o SENHOR pela glória de
Jacó: Eu não me esquecerei de todas as suas obras, para sempre! Por causa disto,
não estremecerá a terra? E não se enlutará todo aquele que habita nela?
Certamente, levantar-se-á toda como o Nilo, será agitada e abaixará como o rio
do Egito.
Deus adverte Amós, seu profeta, por uma visão do fim definitivo, final,
irremediável de Israel, das dez tribos do reino de Samaria. Como uma cesta
de frutos maduros, Israel está madura para o julgamento. Deus não tem mais
nada para ela! Os cantos no palácio se transformarão em gemidos; os
gemidos, em silêncio de morte. Os cadáveres incontáveis não terão sepultura.
Por que tamanha infelicidade? Por que um julgamento tão terrível caiu sobre
Samaria, sobre o reino das dez tribos do Norte?
A razão é simples. O país, em sua corrida frenética por riquezas (e pelos
prazeres que elas dão), engoliu o pobre, excluiu o necessitado. O amor ao
dinheiro, a sede de riquezas, a paixão pela acumulação e o prazer nos bens
deste mundo tornam-se uma obsessão irresistível, incontrolável, destruidora
de todo sentimento de humanidade, de retidão, de justiça e misericórdia.
1. As festas de Israel são um obstáculo insuportável à corrida frenética por
lucro.
2. O sábado não é mais guardado porque tornou-se um impedimento
inadmissível à circulação dos negócios.
3. Sua sede por lucro os estimula a ir ainda mais longe. Eles trabalham para
destruir os fundamentos morais de uma economia sadia quando falsificam
balanças (hoje seria a falsificação da moeda no jogo do crédito imaginário);
exploram os pobres sem pena; reduzem os necessitados à escravidão; vendem
mercadorias avariadas e alimentos vencidos.
4. Isso provoca a justa ira de Deus. Ele jamais esquecerá seu comportamento
injusto, ímpio e desumano.
5. As consequências? O país será sacudido; seus habitantes cairão em
depressão, a própria terra sofrerá consequências desses crimes, pois se
elevará e cairá, açoitada por tremores políticos e sociais terríveis.
Vemos, assim, a relação aliancial entre os atos econômicos imorais — a
falsificação das normas econômicas que conduzem a esse materialismo
universal em que o ganho se torna deus — e a decomposição social; mas
também sua relação com as desordens terríveis na própria ordem da natureza,
que não suporta tais iniquidades.[162]
(e) Miqueias 6.9-16
A voz do Senhor clama à cidade (e é verdadeira sabedoria temer-lhe o nome):
Ouvi, ó tribos, aquele que a cita. Ainda há, na casa do ímpio, os tesouros da
impiedade e o detestável efa minguado? Poderei eu inocentar balanças falsas e
bolsas de pesos enganosos? Porque os ricos da cidade estão cheios de violência, e
os seus habitantes falam mentiras, e a língua deles é enganosa na sua
boca. Assim, também passarei eu a ferir-te e te deixarei desolada por causa dos
teus pecados. Comerás e não te fartarás; a fome estará nas tuas entranhas;
removerás os teus bens, mas não os livrarás; e aquilo que livrares, eu o entregarei
à espada. Semearás; contudo, não segarás; pisarás a azeitona, porém não te
ungirás com azeite; pisarás a vindima; no entanto, não lhe beberás o
vinho, porque observaste os estatutos de Onri e todas as obras da casa de Acabe e
andaste nos conselhos deles. Por isso, eu farei de ti uma desolação e dos
habitantes da tua cidade, um alvo de vaias; assim, trareis sobre vós o opróbrio
dos povos.
Que reconheça sua iniquidade, que se arrependa de seu pecado e que se volte
para Deus com todo o seu coração para ser salvo!
Amém.
[163]
Capítulo XIII: Pierre Viret e uma economia sensata
INTRODUÇÃO
Tenho o prazer de dedicar este breve memorial sobre o reformador suíço de
língua francesa Pierre Viret (Orbe, Vaud 1509 – Nérac, Navarra 1571) ao
eminente historiador protestante francês Pierre Chaunu (1923-2009) que,
juntamente com sua esposa Huguette, passou vários anos nesta cidade,
fazendo pesquisas inéditas para sua gigantesca tese de doutorado intitulada
Séville et l’Atlantique, 1504-1650 [Sevilha e o Atlântico].[164] Ele não
somente aplicou as técnicas quantitativas da escola dos Annales à história do
Império espanhol na América, mas fez mais que isso. Porque suas pesquisas
constituíram um passo fundamental na desconstrução da lenda negra de triste
memória,[165] mistificação ideológica e histórica que tornou a cultura
hispânica e sua história tão incompreensível ao povo reformado do norte da
Europa e da América de língua inglesa. Mas essa desinformação religiosa e
cultural em nenhum outro lugar foi tão notável como na história da Reforma
espanhola. Não somente a Inquisição espanhola fez tudo que estava ao seu
alcance — e seu poder era então imenso — para erradicar da consciência
deste grande país o menor traço daquele movimento de retorno à Bíblia — a
Reforma nascente que entre vocês marcou tão fortemente o Renascimento
das Letras antigas na primeira parte do século 16 — mas também conseguiu
apagar da herança Reformada europeia a memória histórica desses fatos
gloriosos de seu passado cristão.
Mas essa amnésia histórica, infelizmente, não afetou apenas seus ancestrais
reformados da Espanha. Permitam-me fazer uma pergunta: Quem,
atualmente, conhece Pierre Viret? Mesmo em Lausanne, em sua própria
pátria, país em que exerceu um ministério tão frutífero durante mais de vinte
anos, Viret foi amplamente esquecido.
1. Breve biografia de Pierre Viret
Pierre Viret nasceu em 1509 em Orbe,[166] antiga cidade romana e
burgúndia[167] situada aos pés do Jura, região hoje compreendida pelo cantão
de Vaud. Seu pai era um modesto tecelão, que junto à sua esposa, compunha
um piedoso casal católico romano. Tendo terminado sua formação básica em
sua pequena cidade, em 1527 foi para Paris, com a idade de 18 anos, para
prosseguir seus estudos objetivando o sacerdócio. Foi em Paris que cursou no
rigoroso Colégio Montaigu, fundado pelos Irmãos da Vida Comum e famoso
por alguns de seus estudantes como João Calvino e Ignácio de Loyola. Foi
nesse contexto de estudos rigorosos, iluminados pelas fogueiras dos
primeiros mártires franceses, que Pierre Viret veio a descobrir os erros
mortais da religião romana na qual havia sido ensinado, como também a
necessidade, para si mesmo, de encontrar um Salvador pessoal capaz de
libertá-lo da maldição decretada sobre o pecador, por um Deus ao mesmo
tempo justo e misericordioso.
A perseguição levou Viret a buscar refúgio em Orbe, sua cidade natal. Foi ali
que foi confrontado por sua vocação. Na primavera de 1531, Guilherme
Farel, pregador intrépido do Evangelho e agente político de Suas Excelências
de Berna, recentemente ingressado na Reforma, chamou Viret (como fez com
Calvino cinco anos mais tarde) da tranquilidade de seus estudos, fazendo com
que entrasse no campo de batalha da Reforma da Igreja, pela implantação, em
seu próprio país, do Reino de Deus. Foi assim que, com a idade de vinte e
dois anos, Viret tornou-se o pastor da pequena paróquia de Orbe, na qual teve
o privilégio de ser o instrumento da conversão de seus pais. Durante vários
anos Viret exerceu um ministério itinerante na Suíça Romanda [de língua
francesa], ao lado de Guilherme Farel (dois anos antes da chegada de
Calvino), pregando o Evangelho na cidade de Genebra.
Em 1536, o cantão de Vaud foi invadido, ostensivamente, pelo exército de
Berna, para defender Genebra das reais ameaças da Savoia. Mas essa
ofensiva era uma nova manifestação da pressão constante de Berna para
estender seu domínio territorial para o oeste. É interessante notar que por
meio dessas ambições políticas, Deus abriu diversas regiões da Confederação
Helvética à mensagem do Evangelho. Após a célebre Disputa de Lausanne,
de outubro desse mesmo ano, debate público no qual o jovem pregador de
vinte e sete anos teve um papel fundamental, Viret tornou-se o pastor
principal dessa cidade. Com exceção de curto período (1541-1542), no qual
assistiu Calvino em Genebra quando este retornou de seu exílio em
Estrasburgo, Viret exerceu durante vinte e três anos a função de pastor
principal da igreja reformada do cantão de Vaud, no qual assumiu o cargo de
pregador da Palavra de Deus, sob a mão pesada das autoridades políticas e
eclesiásticas da República de Berna. No auge de uma grande luta contra o
poder de Berna, para que a igreja tivesse a liberdade de exercer por si mesma
a disciplina sobre seu próprio rebanho, Viret, em fevereiro de 1559, foi
expulso de seu país, encontrando refúgio na cidade vizinha de Genebra.
Entre 1559 e 1561, Viret exerceu um ministério muito admirado em Genebra,
ao lado de seu grande amigo Calvino,[168] mas sua saúde frágil forçou-o a
procurar um clima mais ameno no sul da França. Tendo melhorado seu
estado de saúde, pôde retomar seu ministério e foi o instrumento de um
notável avivamento espiritual, primeiramente em Nimes e Montpellier,
depois na segunda cidade do Reino, Lyon, onde exerceu um ministério
altamente abençoado durante os primeiros anos das guerras civis. Presidiu
vários Sínodos nacionais que reuniam as igrejas reformadas da França.[169]
Terminou sua frutífera e movimentada vida como Pastor principal e
Superintendente acadêmico da Igreja Reformada do Reino de Navarra, onde
morreu em abril de 1571, com a idade de sessenta e dois anos, tendo sido
sepultado em Nérac.[170] A Rainha de Navarra, Jeanne d’Albret, escreveu
estas emocionantes palavras sobre sua morte:
Entre as grandes perdas que tive, durante e desde as últimas Guerras, a primeira
delas foi a perda do Senhor Viret, que Deus levou para si.[171]
Viret responde:
O grande mal nisso é quando a bolsa pública é pobre e os particulares são ricos.
Esse é um sinal evidente de que o regime é mau e a gestão pública é ruim e é
governada por ladrões e bandidos que fazem dela sua presa.[186]
Para Pierre Viret, tal procura por riquezas estéreis não passava de um pacto
iníquo com o Príncipe deste mundo caído, de uma idolatria, do culto à
criatura e desprezo ao Criador. Tal concentração e acumulação egoísta de
riquezas são contrárias às doutrinas bíblicas da produtividade, da mordomia,
da caridade e do sacrifício pessoal. É em si mesma um indício claro da
decadência da sociedade que aponta para um futuro de desastres sociais,
acompanhados de julgamentos divinos. Porque os mecanismos econômicos
que têm como resultado tal concentração de riqueza nas mãos de uma
oligarquia financeira, de fato prepara o caminho que leva a catástrofes de
ordem social e política que destruirão, inevitavelmente, uma classe dirigente
amoral e irresponsável.
De fato, para Viret, esse círculo vicioso de injustiça econômica resulta,
necessariamente, na revolução.[187] A opressão econômica tem sua origem
direta no desejo desordenado de acumulação de riquezas e, a longo prazo,
certamente produzirá distúrbios sociais; tal sentimento de frustração social,
quando dele se toma consciência, acaba na revolta. Entretanto, com grande
lucidez, Viret percebeu o caráter dramático desse processo negativo (e é aí
que o historiador moderno Claude-Gilbert Dubois toma um outro caminho),
pois em sua visão cristã do mundo, a sedição e a revolução não são, de forma
alguma, forças construtivas. Viret percebeu muito bem que essa nova
oligarquia se servia generosamente de sua dominação monopolista do
aparelho de Estado, para trazer para si os bens da nação inteira, perturbando
(ela também) a circulação natural das riquezas, ao desviá-las dos canais
habituais de produção e comércio. Para Viret, esse sufocamento do fluxo
econômico da produção industrial e das trocas comerciais por uma oligarquia
parasitária, devia ser combatido se quiséssemos restabelecer uma distribuição
natural e equilibrada das riquezas e dar à sociedade uma saúde econômica
verdadeira.
Portanto, Viret não era, de forma alguma, um adversário da função
econômica do mercado como regulador dos negócios e distribuidor dos bens.
Ele se oporia fortemente a toda espécie de planificação socialista da
economia ou de qualquer redistribuição comunista, pelo Estado, das riquezas
da nação. Ele teria reivindicado, apenas, que o mercado estivesse legal e
judicialmente sujeito às exigências econômicas e financeiras da Lei de Deus e
que os “ladrões e bandidos” de sua época — como aqueles que reinam
atualmente e não têm quem os freie nos sistemas bancários e nos governos de
nossas nações — fossem levados aos tribunais para ali prestar contas de suas
pilhagens e crimes econômicos. Aproveitamos a ocasião para indicar um
estudo econômico e moral contemporâneo que em muitos aspectos se
assemelha à análise feita por Viret dos problemas econômicos de seu tempo.
Trata-se de um pequeno livro de Maurice Allais, físico de renome mundial e
prêmio Nobel em economia, obra que rapidamente foi esquecida, intitulada:
La crise mondiale d’aujourd’hui: pour de profondes réformes des institutions
financières et monétaires[188] [A crise mundial atual: por profundas reformas
das instituições financeiras e monetárias]. O pensamento ético de Viret sobre
questões sociais, econômicas e políticas também, em muitos aspectos, se
assemelha ao de Alexandre Soljenitsin.[189] Seguem dois textos desse autor
que mostram a semelhança de suas preocupações com as de Pierre Viret. O
primeiro se chama “Esgotamento da cultura?”. O segundo se chama “Uma
oração”:
Tudo o que atualmente enche as ondas de um barulho lamentável e estéril, e de
suas caricaturas, de todos esses exageros que invadem nossas telas de televisão –
tudo isso passará, desaparecerá, se perderá na história como poeira esquecida. Se
o povo vai sobreviver ou perecer, isso dependerá daqueles que terão de atravessar
esta época sombria, contribuindo com seu próprio trabalho ou com a ajuda
material trazida pelo trabalho de outros, para salvar da destruição, recuperar,
consolidar e desenvolver nossa vida interior, vida do pensamento e da alma, que
é a cultura. Como me alegra viver contigo, Senhor! Como é leve crer em ti!
Quando meu espírito enfraquece ou se perde no incompreensível, quando os mais
inteligentes não veem além da noite que cai e ignoram o que terão de fazer
amanhã, tu me envias do alto a certeza clara de que tu és e agirás, de sorte que
todos os caminhos do bem não serão fechados. No auge da glória terrena, me
encontro nesse caminho que jamais teria encontrado sozinho e que, além do
desespero, me conduziste para ali, onde pude transmitir à humanidade os raios da
tua luz. E enquanto puder refleti-la, tu me darás o poder para fazê-lo. E tudo
aquilo para o que me faltou tempo, foi porque tu o confiaste a outro.
Mas as “vagas proposições teológicas” de Viret não são tão estéreis como
Dubois imagina. Vemos nelas a maravilhosa sabedoria prática e intelectual
que muitos anos de meditação sobre a Lei de Deus podem dar, em particular
no que diz respeito às implicações econômicas da Torá. E se Viret, de um
lado, via tão bem os julgamentos de Deus contra um mundo rebelde e ingrato
como resposta às destruições produzidas pela prática do mal, por outro lado
demonstrou, de modo ainda mais claro, as bênçãos que decorrem da
obediência fiel aos mandamentos de Deus. Falando das bênçãos e
julgamentos que aconteciam diante dos seus olhos atentos, Viret escreveu:
Se considerarmos a graça que Deus nos deu pela revelação de seu Santo
Evangelho e a restauração de todo bom ensino e disciplina, podemos chamar
isso, justamente, de idade do ouro e dizer que somos os mais felizes desde a
época dos Apóstolos. Mas, ao contrário, se opusermos nossa malícia e ingratidão
à bondade de Deus, e à graça que nos apresenta, podemos dizer que estamos
numa época pior que a idade do ferro e nos julgar os mais infelizes dos homens e
que jamais estivemos sob o manto dos céus.[192]
Calvino passa, então, à aplicação dessa lei ao que chama de a doutrina geral.
Por essa expressão ele se refere à aplicação às diferentes áreas da vida cristã
do princípio de integridade, que surge como pano de fundo dessa lei. As
relações comerciais são chamadas à lealdade, ao preço justo no comércio, à
compaixão pelos pobres; denuncia a hipocrisia do nosso pretenso
cristianismo, ao mesmo tempo que negligenciamos nossas obrigações para
com o próximo; denuncia a corrupção inata do homem e a necessidade de um
comportamento leal em nossas relações com as pessoas. Calvino conclui com
a seguinte nota:
Mas temamos o que aqui nos é demonstrado e cada um caminhe lealmente com
seu próximo; que aqueles que fazem comércio cuidem para ter balanças e
medidas justas, como também mercadorias pesadas honestamente e de forma
alguma falsificadas; que tudo seja feito com tal fidelidade que se saiba que há
uma lei dominando nossos corações; que não estejamos debaixo das ameaças e
punições que foram ordenadas, mas que a vontade declarada por Deus nos baste.
Que, então, isso nos valha e tenha força sobre nós para nos conduzir e corrigir.
Além disso, quando diz: Todos os que assim procedem são abominação ao
Senhor, diz assim para que os homens não se enganem com seus sofismas e
sutilezas, como sempre fazemos quando nos utilizamos de subterfúgios; aqueles
que querem astutamente enganar seu próximo, sempre farão uso de alguma cor
para maquiar seu caso. Mas ainda que os homens nos desculpem, isso de nada
valerá, pois teremos de comparecer diante do Juiz celeste.[196]
Pierre Viret procede de forma bastante diferente. Ele consagra nada menos
que cinquenta e cinco grandes páginas impressas com pequenos caracteres
em uma exposição detalhada somente do oitavo mandamento.[197] Sobre o
texto que aqui nos interessa, seus comentários cobrem seis páginas (p. 551 a
556 do Primeiro volume da edição de 1564 de sua Instrução Cristã). Em vez
de extrair lições morais desse estatuto particular, Viret se põe a estudar as
aplicações específicas desse mandamento da Lei aos diversos aspectos das
relações comerciais, isto é, ele desenvolve as aplicações casuísticas, próprias
desse estatuto bíblico. E ele faz isso de tal maneira que mesmo sendo
cuidadosamente adaptadas às condições de seu tempo e de sua cultura, suas
observações permanecem válidas para nossa época. Entretanto, suas
explicações não constituem, de forma alguma, uma deformação do
significado mosaico da lei em consideração. Notemos, em primeiro lugar, as
divisões que estabeleceu, para entender melhor o escopo dessa lei.[198] Estes
são os subtítulos que foram dados ao seu comentário: roubos cometidos no
volume, nos pesos e nas medidas das coisas vendidas ou fornecidas e como
essa forma de roubo é considerada detestável nas Santas Escrituras (p. 619); a
invenção e o uso da moeda e os falsificadores; a dimensão desse crime e o
roubo cometido por esse meio (p. 620); os ladrões e falsificadores da Palavra
de Deus e os roubos dos homens e dos seus bens por esse meio (p. 621);
aqueles que raspam as moedas e que usam moedas sabendo que são falsas e,
principalmente, aqueles que cuidam do dinheiro público (p. 622); corrupção
através de doações e comerciantes que vendem e compram o governo e os
pobres (p. 623); roubos cometidos por vendedores de mantimentos e os
perigos que representam sua alteração (p. 624); o cuidado que os
magistrados devem ter quanto aos víveres e o grande desrespeito pelos
juramentos prestados em razão disso (p. 625); o erro dos magistrados e
oficiais nessa área, pelo qual se tornam culpados de roubo e impiedades
cometidas nessas coisas (p. 626); o perigo, nessa matéria, no que diz respeito
aos médicos e farmacêuticos e a lei dada por Deus sobre pesos e medidas e
suas ameaças contra aqueles que os falsificam (p. 627).
Em seu diálogo entre Daniel e Timóteo, tratando da falsificação de pesos e
medidas, Viret escreveu:
Daniel. O roubo ali acontece quando os pesos e medidas são falsos. Porque ainda
que a essência e a matéria devam ser o que se espera e na quantidade e qualidade
requeridas, no entanto é diminuída. Porque não contém o que deveria. Segue-se,
portanto, que o que falta foi roubado daquele que recebeu a coisa. Essa espécie
de roubo é, por muitas vezes, totalmente condenada nas Santas Escrituras.
Timóteo. Ela é também muito mais frequente e comum por ser mais fácil roubar
os homens dessa maneira do que mudar a essência e o conteúdo corrompendo-os;
também porque é mais fácil perceber a adulteração, nesse tipo de corrupção, do
que o roubo nos pesos e medidas. Isso porque, quando compramos ou vendemos,
temos de confiar na maior parte dos pesos e medidas dos comerciantes com os
quais fazemos negócio, uma vez que não temos como levar pesos sempre
conosco.
Daniel. Iniquidade maior é daqueles que os falsificam, porque enganam da
maneira mais iníqua aqueles que confiam neles. Nisso eles são ladrões e
roubadores do povo.[199]
Viret aplica acertadamente essa lei aos falsificadores de moedas, uma vez que
na Antiguidade a falta de uniformidade nos pesos das moedas exigia que as
transações fossem efetuadas pesando-se o dinheiro para determinar seu valor
exato.
Daniel. Em primeiro lugar, os falsificadores de moeda são muito perigosos e
perniciosos. Porque a moeda e sua fabricação em ouro, prata e outros metais,
proporcionou aos homens fazer negócios mais facilmente e em conjunto, como
também se tornou um meio mais fácil para trocar entre si os bens que Deus lhes
deu. Porque o trânsito de mercadorias não é outra coisa senão uma troca feita
entre os homens, pela qual uns transferem aos outros o que cada um tem,
tomando do outro alguma coisa como recompensa, segundo o valor pelo qual as
coisas são negociadas. Ora, como seria ruim transportar para regiões distantes as
coisas que poderiam ser trocadas, a moeda foi colocada em seu lugar, segundo o
valor do bem, pois ela é mais fácil de ser transportada e mais apropriada do que
qualquer outra coisa para o trânsito de mercadorias. Como foi Deus quem deu
aos homens esse instrumento de troca, a fim de tornar mais fácil para uns e para
outros, aqueles que o pervertem e confundem essa ordem, ferem o bem público e
toda a sociedade humana e por isso são dignos de forte punição, tanto mais
porque provocam grande confusão entre os homens. Porque estes não podem
viver sem negociar uns com os outros. Portanto, aquele que lhes tira esse
instrumento de troca torna-se um bandido público, por cortar a garganta de toda a
comunidade dos homens e retirar, por esse meio, a confiança e a lealdade, sem a
qual a sociedade humana não pode se desenvolver nem se conservar. E assim os
homens ficam com um grande problema e numa desordem sem paralelo.
E Timóteo continua:
Ora, não há ninguém nisso que provoque maior desordem do que os
falsificadores de moeda; porque além de serem ladrões do povo, que roubam toda
a comunidade dos homens, também confundem a ordem pública, afrontando a
autoridade dos príncipes, aos quais é dado o poder para cunhar a moeda e fixar-
lhe o valor com a finalidade de manter essa ordem, a qual não poderia ser
mantida com justiça e equidade se fosse possível a cada um cunhar moeda a seu
bel prazer.[200]
Atualmente, a falsificação massiva de dinheiro tornou-se a prática corrente do
sistema bancário, conhecida pelo nome de “reserva bancária fracionária” que
permite, a cada empréstimo concedido pelo banco, acrescentar, para simples
efeito de escritura e a crédito do próprio banco, o dobro da soma emprestada.
No que concerne aos bancos centrais — a maior parte deles como se fossem
bancos privados — lhes foi dado o poder de emitir moeda quando quiserem,
apenas para efeito de escritura, criando assim montanhas de dinheiro por
simples fiat, isto é, a partir do nada, ex nihilo. Tal poder, até então, era
reservado apenas ao Criador do mundo! É dessa maneira que os bancos
emprestam aos Estados, mediante pagamento de juros, quantias virtuais
astronômicas, produzindo dívidas que alcançam somas inimagináveis! A
longo prazo, tais práticas dão origem a uma inflação destruidora.[201] A
consequência dessa expansão do crédito não é outra senão a expansão de
todas as formas de endividamento, tanto público como privado, o aumento
artificial e sem fim do crédito sem a menor cobertura, como também a
destruição do poder produtivo industrial da sociedade, pela concentração
desse capital virtual em transações puramente especulativas; enfim, ciclos de
explosão e ruína, de desenvolvimento e queda, particularmente destrutivos.
[202]
Em seguida advertiu seus leitores sobre o perigo de abuso por parte dos
magistrados:
Mas é preciso também que sejam sempre advertidos para que não passem da
medida. Porque, se não se contentam com o que é razoável, não sei o que
poderão alegar, senão seu próprio desejo e que lhes falta dinheiro e desejam
coletá-lo.[205] E para que não sejam obrigados a devolvê-lo, não querem que
lhes seja emprestado, mas que lhes seja dado, de bom grado ou não, por aqueles
de quem querem obter. Pois, uma vez que aqueles têm os bens em seu poder, se
quiserem deles usufruir e ser seus donos, é preciso que façam o que agrada aos
que são mais fortes do que eles e que podem extorqui-los a seu bel prazer. [...]
Mas quer emprestem ou não, esse meio de tributar os súditos e estrangeiros lhes
parece mais conveniente e mais rentável.[206]
Assim, para Viret, o direito que o magistrado tem de tributar seus súditos
não justifica, de forma alguma, uma tributação arbitrária e abusiva dos
cidadãos pelos poderes públicos. Anteriormente, Jerônimo, em resposta a
uma questão que ele mesmo havia feito a Tobias, personagem que
representa a posição sensata de um leigo católico romano atraído pelo
Evangelho, lhe perguntou:
Jérôme. Mas você sabe qual é a principal causa da tirania e extorsões feitas pelos
príncipes a seus súditos?
Tobias. Penso que são os pecados tanto de uns como de outros.
Dois séculos e meio mais tarde, no início do século 19, o inglês, grande
defensor dos pobres de seu país, William Cobbett (1763-1835), adversário
feroz da usura em todas as suas formas e da fabricação ex nihilo da moeda
pelo Banco central da Inglaterra (o Bank of England), ecoava as propostas
clarividentes, tão eloquentes e robustas de Pierre Viret. Protestando contra
os gastos abusivos do governo britânico e os altos impostos que os
alimentavam, Cobbett escreveu numa carta aos trabalhadores ingleses:
Há poucos artigos que ao comprá-los vocês não paguem imposto; sobre seus
sapatos, o sal, sua cerveja, sobre o lúpulo, o trigo, o açúcar, as velas, o sabão, o
papel, o café, o álcool, o tabaco, sobre os vidros de suas janelas, sobre as telhas
e tijolos. Sobre tudo isso e muitos outros objetos vocês pagam imposto; até
sobre o seu pão, porque tudo que entra em sua fabricação é tributado; em vários
casos o imposto é mais da metade do que vocês pagam pelo próprio objeto
comprado; e esse imposto serve, em parte, para sustentar pensionistas e
parasitas, e os bandidos da imprensa vendida tratam vocês como escória da
sociedade.[214]
Viret (como William Cobbett, em relação ao governo de seu país) discernia
muito claramente as consequências do caráter irrealista das ambições
pessoais, econômicas e políticas da monarquia francesa. O resultado disso
seria uma instabilidade social, uma cólera persistente do povo pobre contra
as classes dominantes e, enfim, a revolução. Claro, ele desaprovava tais
reações, mas percebia perfeitamente seu caráter inevitável. O mal produziria
seus efeitos, porque a manifestação dos julgamentos de Deus não poderia
ser freada. Esse transbordamento desmesurado de ambição, um dia teria sua
queda. Mas, no decorrer desses acontecimentos, a nação seria
irremediavelmente penalizada. É Teofrasto, o porta-voz historiador e
teólogo de Viret que, aqui, ao responder Eustáquio, o defensor da hierarquia
romana corrompida, exprime melhor seu pensamento:
Teofrasto. Quando ele quiser dizê-lo, o contradirei com são Bernardo, que no seu
tempo já havia dado este testemunho [sobre a hipocrisia do clero] que segue:
“Todos são amigos e todos inimigos; todos familiares queridos e todos
adversários; todos íntimos, mas nenhum deles é pacífico; todos próximos, mas
todos procuram o que serve ao seu próprio interesse. Eles são de Cristo, mas
servem ao Anticristo. Eles seguem se sentindo honrados pelos bens do Senhor,
quando eles mesmos não honram ao Senhor. Daí procede essa vestimenta de puta
que você vê todos os dias, esse hábito de malabarista de feira; a pompa e o
preparo real. Daí procede o ouro dos freios, das selas e esporas. Daí procedem as
mesas suntuosas, cheias de iguarias e bem guarnecidas, as carnes, as taças e
xícaras. Daí vêm as glutonarias e bebedeiras. Daí as harpas e clavicórdios, as
rabecas, alaúdes, cornetas e trompetes. Daí as prensas para os vinhos em
abundância e as adegas e celeiros cheios, escoando e escorregando de um para
outro. Daí os tonéis de vinhos finíssimos. Daí as sacolas cheias e recheadas.
Para essas coisas que eles querem ser os prelados das Igrejas, Diáconos,
Arcediáconos, Bispos e Arcebispos”. E, de novo, no sermão que são Bernardo
pronunciou no Sínodo dos Pastores, por um acaso não disse: “Vocês não
entregam o patrimônio da cruz de Cristo às Igrejas, mas apascentam as putas
em seus leitos. Vocês engordam os cães. Vocês não adornam os cavalos com
belas rédeas, dourando seus peitos e cabeças?”.[215]
Teofrasto, voltando sua atenção para os Príncipes, Imperadores e Reis,
assim se expressa:
Teofrasto. Porque não se importava com o povo, nem com a República, nem com
as leis, com o governo, com a justiça, nem com a salvação do reino. Toda sua
preocupação era arrecadar impostos, tirar dinheiro e encontrar um jeito de obtê-lo
para gastá-lo em seus prazeres e delícias. E atualmente, que diferença há entre ele
e nossos pastores e quase todos os príncipes da Europa, tanto seculares como
espirituais? São eles, outra coisa, senão coletores e tesoureiros que não cessam de
impor novas cargas sobre o povo pobre, que já foi comido até os ossos? Do que
se preocupam senão em sempre cobrar e recolher, sem jamais acharem que basta,
e depois gastar em todo o tipo de vaidades tanto privadas como públicas?[216]
INTRODUÇÃO
Prosseguimos com nossa peregrinação através dos mandamentos de Deus, o
que significa que procuramos definir, através do estudo de toda a Bíblia, qual
deve ser o comportamento, em todas as áreas da vida, do homem sob as
bênçãos da aliança criacional de Deus em relação a todos os homens e com
aqueles que pertencem à aliança da graça que Deus estabeleceu com seu
povo eleito.
Neste capítulo, retomamos nossa longa meditação sobre a Lei de Deus. Mas,
em razão da proximidade do Natal,[219] nos pareceu bom meditarmos sobre
um aspecto do oitavo mandamento, Não roubarás, que raramente é
examinado pelos comentaristas, isto é, a generosidade de Deus.
Sabemos que o nosso Deus exige obediência do seu povo aos mandamentos
da aliança e que ele é um Deus benigno e fiel, magnânimo e generoso, tardio
em irar-se e rico em bondade; um Deus compassivo, cuja vontade primeira
jamais foi a morte do pecador, mas seu arrependimento, seu retorno a Deus,
para que viva eternamente. Como diz Isaías, ele é um Deus para o qual a obra
de julgamento e de condenação é estranha à sua benignidade.
Essa obra de condenação, necessária e justa, é o fruto inevitável do pecado de
suas criaturas, primeiro dos anjos e depois dos homens. Essa benignidade,
essa generosidade, essa magnanimidade divina, repetimos, são antecedentes,
porque a bondade de Deus, como sua Palavra, dura eternamente. É por causa
de sua natureza generosa — não esqueçamos o amor imenso de Deus por
suas criaturas — que ele tem horror à avareza, ao roubo, ao espírito egoísta e
interesseiro do homem. É por causa da sua misericórdia e compaixão que ele
condena tão fortemente a recusa de perdão mútuo entre os homens, aquela
vontade de manter a trave nos olhos para condenar o cisco que se encontra no
olho do outro. Por isso, como vimos anteriormente, ele abomina tanto as
falsas balanças, os pesos duplos, as medidas duplas — a perversão dos dois
pesos e duas medidas — pelos quais procuramos diminuir nossos pecados
graves, ao mesmo tempo que aumentamos e denunciamos os pecadinhos dos
nossos irmãos.
Voltemos, agora, ao nosso tema: a generosidade de Deus. Nosso estudo terá
duas partes: I. A generosidade Deus através da Bíblia. II. A generosidade de
Deus no Evangelho do Natal.
Nossa conclusão consistirá em extrair, para nós mesmos, algumas aplicações
práticas.
Por duas vezes nosso texto nos fala que Deus é amor. E fala também que esse
amor é trinitário: o amor de Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Sem a Trindade
seria inconcebível que Deus fosse amor. Como alguém pode ser amor
sozinho, num amor estéril, narcisista, voltado para si mesmo, amor do tipo,
digamos, homossexual? Porque as emoções homossexuais e de lesbianismo
não conhecem propriamente o outro, o relacionamento complementar, o
amor do outro sexo, que é ao mesmo tempo diferente e semelhante.
Se Deus é amor, seu amor se irradia primeiro no interior do Deus trino, entre
as Pessoas eternas, de uma só Essência, mas não idênticas, nas Pessoas da
Trindade divina. O Pai ama o Filho; o Filho ama o Pai. O Pai ama o Espírito
e o Espírito ama o Pai. O Filho ama o Espírito e o Espírito ama o Filho. E
tudo isso, sem nenhuma inferioridade entre as Pessoas divinas, sem começo
nem fim, desde toda a eternidade e por todas as eras futuras. É assim que
Deus é amor. Mais ainda, um Deus não 6rinitário, puramente monoteísta,
como o deus do judaísmo após a vinda de Cristo, como também do islã,
religiões apóstatas do Deus da Bíblia, de nenhuma maneira podem ser Deus
de amor. Porque nessas duas falsas divindades monoteístas há somente um
Deus solitário que só pode amar a si mesmo.
Mas, para nós, a maravilha das maravilhas é que esse amor divino não ficou
enclausurado no interior da divina Trindade. Em sua magnanimidade, em sua
imensa generosidade, esse Deus de amor, único em Três Pessoas divinas,
derramou seu amor externamente. Ele manifestou esse amor ad extra, para
com outro. Como ele fez isso? Esse amor que extravasou para além das Três
Pessoas da divina Trindade, e que é a trama dessa generosidade divina, é o
amor que estava em seu ato criador quando criou todas as coisas e que
percorre toda a Bíblia. Vejamos algumas das grandes etapas pelas quais esse
amor divino foi extravasado aos outros.
(b) A aliança da criação
Toda a obra da criação descrita nos dois primeiros capítulos de Gênesis (à
qual inúmeras passagens bíblicas se referem) é uma manifestação grandiosa e
sublime do amor exteriorizado, ad extra, da Santa Trindade. É um
transbordamento majestoso da graça divina. Leiamos o começo desse texto,
no qual brilha a glória do nosso Deus generoso:
No princípio criou [bará, verbo no singular] Deus [Elohim, plural] o céu e a terra.
(Gênesis 1.1)
Nesse sopro, nesse vento, nesse Espírito, vemos a ação criadora e ordenadora
da Terceira Pessoa da Trindade. Enfim, surge em plena luz a obra do amor
do Filho de Deus, o Verbo eterno, a Palavra. Deus o Pai diz, é a Palavra
divina; o Filho eterno de Deus então fala:
Disse Deus: Haja luz; e houve luz. (Gênesis 1.3)
É a Palavra de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, que por um fiat divino criou
a luz, uma luz boa, manifestação do amor criador de Deus:
E viu Deus que a luz era boa; e fez separação entre a luz e as trevas. Chamou
Deus à luz Dia e às trevas, Noite. Houve tarde e manhã, o primeiro dia. (Gênesis
1.4-5)
O mesmo para a criação do homem. Vejamos nosso texto inspirado por Deus
em seus menores detalhes:
Também disse Deus [o Pai fala para o Filho, a Palavra]: Façamos [plural
trinitário, Pai, Filho e Espírito Santo] o homem à nossa [de novo, plural] imagem
[trinitária e una], conforme a nossa [plural] semelhança; tenha ele domínio sobre
os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda
a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra [antes da entrada brutal do
pecado, o homem é criado, o vice-rei abençoado de toda a criação]. Criou Deus,
pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus [singular, para marcar a unidade
de Deus de quem o homem é a imagem] o criou; homem e mulher os criou
[plural, para marcar a pluralidade trinitária da divindade e a unidade na
diversidade do casal humano e da família]. (Gênesis 1.26-27)
Foi então que o Senhor apareceu a Moisés na sarça ardente e o chamou para
ser o libertador de seu povo entregue à escravidão no Egito. Ao criar esse
povo, separado por ele, Deus fez com que o plano redentivo novamente
progredisse nessa aliança cujo alvo não seria outro senão a manifestação na
carne de seu Filho amado, nosso Senhor Jesus Cristo. Por sua obediência
passiva (o julgamento sofrido por nós) e ativa (sua justiça perfeita cumprida
por nós), ele realizou a salvação do mundo para manifestar uma terra nova e
novos céus no último dia, onde todo o pecado e todo sofrimento serão para
sempre abolidos e nos quais habitará a justiça.
Deus, então, chamou seu povo do Egito para a conquista da terra prometida,
como também chama a Igreja, pelo poder do testemunho de Jesus, que é o
espírito da profecia — Lei e Evangelho (Apocalipse 19.10) — para a
conquista espiritual e cultural de todas as nações da terra e para a fidelidade à
sua aliança nos países dos seus inimigos e inimigos de Deus. Estas são as
palavras que Moisés dirige a seu povo Israel e à sua Igreja (1 Pedro 2.4-10):
Porque tu és povo santo ao Senhor, teu Deus; o Senhor, teu Deus, te escolheu,
para que lhe fosses o seu povo próprio, de todos os povos que há sobre a
terra. Não vos teve o Senhor afeição, nem vos escolheu porque fôsseis mais
numerosos do que qualquer povo, pois éreis o menor de todos os povos, mas
porque o Senhor vos amava e, para guardar o juramento que fizera a vossos pais,
o Senhor vos tirou com mão poderosa e vos resgatou da casa da servidão, do
poder de Faraó, rei do Egito. Saberás, pois, que o Senhor, teu Deus, é Deus, o
Deus fiel, que guarda a aliança e a misericórdia até mil gerações aos que o amam
e cumprem os seus mandamentos. (Deuteronômio 7.6-9)
Há vários pontos nesse salmo que apontam para a vinda do Filho de Deus,
que foi o exemplo maior da generosidade sem limite de Deus em nosso favor.
Vejamos:
Preciosa é aos olhos do Senhor a morte dos seus santos. (Salmos 116.15)
Além da morte do seu Filho amado, qual morte poderia ter tido maior preço
aos olhos do Pai e ser o sinal maior da sua generosidade maravilhosa para
conosco?
Senhor, deveras sou teu servo, teu servo, filho da tua serva. (Salmos 116.16)
Quem, além de Jesus Cristo, seria o Servo por excelência do Senhor? Quem,
além dele, na sua humanidade, teria sido Filho daquela que, antes de todos,
foi a serva do Senhor, Maria? Vejamos sua resposta às palavras do anjo
Gabriel:
Disse, então, Maria: Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a
tua palavra. E o anjo ausentou-se dela. (Lucas 1.38)
Sim, temos sido plenamente beneficiados pelas riquezas do nosso Deus, Pai,
Filho e Espírito Santo. Porque, no sacrifício sem mácula de Cristo na cruz,
ele reconciliou sua bondade com a verdade do nosso pecado:
Próxima está a sua salvação dos que o temem,
para que a glória assista em nossa terra.
Encontraram-se a graça e a verdade,
a justiça e a paz se beijaram.
Da terra brota a verdade,
dos céus a justiça baixa o seu olhar.
Também o Senhor dará o que é bom,
e a nossa terra produzirá o seu fruto.
A justiça irá adiante dele,
cujas pegadas ela transforma em caminhos. (Salmos 85.9-13)
Mas, para os amados de Deus, para aqueles que se beneficiam das riquezas
de sua generosidade divina, será totalmente diferente:
Mas para vós outros que temeis o meu nome nascerá o sol da justiça, trazendo
salvação nas suas asas; saireis e saltareis como bezerros soltos da
estrebaria. Pisareis os perversos, porque se farão cinzas debaixo das plantas de
vossos pés, naquele dia que prepararei, diz o Senhor dos Exércitos. (Malaquias
4.2-3)
O anjo anuncia aqui três coisas maravilhosas que são manifestações de uma
generosidade incrível da parte de Deus: i) Ela ficará grávida, mesmo ainda
virgem; ii) Ela dará à luz um filho; iii) Esse filho se chamará Jesus, que
significa em hebraico, Deus Salvador.
Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o
trono de Davi, seu pai; ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu
reinado não terá fim.
Para terminar, são esses louvores que vemos da profetiza Ana que
[...] louvava a Deus e falava de Jesus a todos os que aguardavam a redenção de
Jerusalém. (Lucas 2.38)
CONCLUSÃO
Tal generosidade de Deus para conosco — aquele que enviou seu único Filho
sobre a terra para nossa salvação – deve suscitar uma resposta generosa da
parte daqueles que foram alvo desse amor que provém do Deus de toda
misericórdia. Nossa resposta generosa deve:
(a) em primeiro lugar, manifestar-se em ações de graças e louvores a Deus,
autor de tão grande salvação;
(b) suscitar generosidade em nós, oferecendo a Deus nossos corações e nosso
tempo, nossas forças, nossos bens e nosso dinheiro para Deus e em favor de
sua Igreja, a esposa do Senhor;
(c) renovar nossa generosidade para com nossos irmãos, nosso próximo em
sua angústia, e em relação àqueles que Deus colocou acima de nós, em sua
Igreja;
(d) enfim e sobretudo, deve criar em nós uma generosidade sem limites —
setenta vezes sete exigiu Jesus ao apóstolo Pedro — no perdão que devemos
a nossos irmãos e na misericórdia que devemos a eles, porque Deus,
primeiramente, exerceu sobre nós sua misericórdia sem limites. Porque a
advertência do Senhor é solene e terrível. Se não perdoarmos os pecados de
nossos irmãos contra nós, Deus, que pagou todos os nossos pecados na cruz,
não perdoará também nossa ingratidão.
Que Deus não permita que estejamos entre esses ingratos, avarentos,
mesquinhos e egoístas que guardam tudo para si mesmos, mas que sejamos
daqueles que perseveram nessa generosidade de coração, que deve animar
nossa vocação como filhos de Deus. Sejamos daqueles que, em resposta à
infinita misericórdia do Deus Triúno para conosco, servem a Deus, dia após
dia, como pobres e miseráveis pecadores e tratemos com generosa
misericórdia nosso próximo, em gratidão a esse Deus que, tendo sido bom
para com todos os homens, nos chamou a amar não somente aqueles que nos
amam, mas até os nossos inimigos, os que nos odeiam, que nos detestam e
procuram nos destruir.
O primeiro grande doutor da Igreja dos Gauleses, Ireneu de Lião, ao
contemplar o amor de Cristo por aqueles que o crucificavam, em seu
admirável Tratado contra as heresias, escreveu estas palavras tão belas e
comoventes, pelas quais terminamos esta meditação sobre a generosidade de
Deus, o dom maravilhoso do primeiro Natal:
A longanimidade, a paciência, a misericórdia e a bondade de Cristo foram
manifestadas na Palavra do Senhor sobre a cruz: Pai, perdoa-os, porque não
sabem o que fazem (Lucas 23.34), pelas quais vemos o quanto sofreu e perdoou
aqueles que o maltratavam. Porque o Verbo de Deus nos disse Amai vossos
inimigos e orai por aqueles que vos odeiam (Mateus 5:44), ele mesmo cumpriu
essa palavra sobre a cruz quando orou pelo homem e amou aqueles que o
matavam.[220]
INTRODUÇÃO
Há algum tempo, quando estávamos fazendo nosso culto doméstico, eu e
Rose-Marie lemos uma passagem do profeta Jeremias e em seguida uma
curta meditação de Hilário de Poitiers sobre a exposição do salmo 119 [118].
Hilário, que, junto com Atanásio, no século 4º de nossa era, foi um
extraordinário defensor da doutrina da natureza divina de Jesus Cristo diante
da heresia ariana, era também um homem de alta espiritualidade e um pastor
muito dedicado à condução do seu rebanho na alegria que vem da obediência
a Jesus Cristo, isto é, no caminho de uma santa obediência que procura
conformar seus pensamentos, sentimentos e sua ação aos ensinos da Lei-
Palavra de Deus. Como introdução desta nova exposição sobre o oitavo
mandamento, gostaria de citar uma passagem extraída desse comentário de
Hilário, texto que nos permite melhor compreender por que devemos
constantemente meditar na lei de Deus. Exatamente isso nos ensina o salmo
primeiro:
Feliz o homem [...] que tem prazer na lei do Senhor e nela medita dia e noite!
(Salmos 1.1-2)
O assunto geral das próximas exposições, neste capítulo e nos que seguirão, é
o seguinte: Os dízimos na Bíblia. Agora trataremos de Abraão, o pai do
dízimo. Com esse tema terminaremos nossa longa investigação sobre o oitavo
mandamento e sua aplicação prática em todos os aspectos de nossa vida
pessoal, familiar, eclesiástica e social.
O autor da carta aos Hebreus, por sua vez, confirma tanto a posição de Paulo
como a de Tiago. Vejamos, para nossa instrução:
Pela fé, Abraão, quando chamado, obedeceu, a fim de ir para um lugar que devia
receber por herança; e partiu sem saber aonde ia. Pela fé, peregrinou na terra da
promessa como em terra alheia, habitando em tendas com Isaque e Jacó,
herdeiros com ele da mesma promessa; porque aguardava a cidade que tem
fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador. (Hebreus 11.8-10)
É isso o que ele diz sobre a fé. Então, o que são essas obras da fé, dessa fé
que se manifesta por nossa ação, essa fé que age pelo amor a Deus e ao
próximo? Vejamos uma vez mais o ensino da carta aos Hebreus:
Pela fé, Abraão, quando posto à prova, ofereceu Isaque; estava mesmo para
sacrificar o seu unigênito aquele que acolheu alegremente as promessas, a quem
se tinha dito: Em Isaque será chamada a tua descendência; porque considerou que
Deus era poderoso até para ressuscitá-lo dentre os mortos, de onde também,
figuradamente, o recobrou. (Hebreus 11.17-19)
Devemos parar por aí? Temos de nos contentar em ver Abraão apenas como
nosso pai na fé e não também como nosso pai nas obras da fé? Abraão não
tem mais nada a nos ensinar e instruir? Novamente a carta aos Hebreus nos
mostra o caminho. Abraão foi, será e continua sendo ainda hoje nosso guia,
nosso instrutor. Ele é quem vai nos instruir sobre o lugar que deve ter, na vida
do cristão, a gratidão da fé, ou seja, esse reconhecimento dirigido a Deus pela
fé, em razão de incontáveis e tão diversas bênçãos. E essa gratidão da fé,
entre outros, tem o nome de dízimo.
Vejamos, mais uma vez, o ensino maravilhoso da carta aos Hebreus, que
mostra a passagem sublime da Antiga dispensação da Aliança, para a Nova,
com uma exatidão, perfeição e beleza incomparáveis:
Porque este Melquisedeque, rei de Salém, sacerdote do Deus Altíssimo, que saiu
ao encontro de Abraão, quando voltava da matança dos reis, e o abençoou, para o
qual também Abraão separou o dízimo de tudo (primeiramente se interpreta rei
de justiça, depois também é rei de Salém, ou seja, rei de paz; sem pai, sem mãe,
sem genealogia; que não teve princípio de dias, nem fim de existência, entretanto,
feito semelhante ao Filho de Deus), permanece sacerdote perpetuamente.
Considerai, pois, como era grande esse a quem Abraão, o patriarca, pagou o
dízimo tirado dos melhores despojos. Ora, os que dentre os filhos de Levi
recebem o sacerdócio têm mandamento de recolher, de acordo com a lei, os
dízimos do povo, ou seja, dos seus irmãos, embora tenham estes descendido de
Abraão; entretanto, aquele cuja genealogia não se inclui entre eles recebeu
dízimos de Abraão e abençoou o que tinha as promessas. Evidentemente, é fora
de qualquer dúvida que o inferior é abençoado pelo superior. Aliás, aqui são
homens mortais os que recebem dízimos, porém ali, aquele de quem se testifica
que vive. E, por assim dizer, também Levi, que recebe dízimos, pagou-os na
pessoa de Abraão. Porque aquele ainda não tinha sido gerado por seu pai, quando
Melquisedeque saiu ao encontro deste. (Hebreus 7.1-10)
Como sabem muito bem — e o texto de Hebreus nos diz mais adiante — esse
Melquisedeque era uma figura, talvez mesmo uma teofania, uma
manifestação visível do próprio Senhor Jesus Cristo. É exatamente o que
explica nossa epístola, citando o versículo quatro do salmo 110:
E isto é ainda muito mais evidente, quando, à semelhança de Melquisedeque, se
levanta outro sacerdote, constituído não conforme a lei de mandamento carnal,
mas segundo o poder de vida indissolúvel. Porquanto se testifica: Tu és sacerdote
para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque.
Abraão então vai, sustentado pela fé nas promessas de Deus, para o país de
Canaã, o qual, desde Harã, na Caldeia, Deus lhe havia prometido. Ele
percorreu a terra de cima a baixo e finalmente se estabeleceu no meio dela.
Foi quando sobreveio uma fome que fez com que se refugiasse,
acompanhado de seu clã já numeroso, no Egito, outra grande civilização
daquela época, tão ímpia e idólatra quanto a Mesopotâmia da qual havia
saído. Ali no Egito, cedendo ao medo, Abraão mentiu sobre sua mulher que
havia sido entregue a Faraó e introduzida em seu harém real. Mas Deus, que
olha além das fraquezas dos seus servos, graciosamente libertou Abraão e
Sara da armadilha na qual nosso patriarca havia caído e lhe devolveu Sara,
abençoando-o, enriquecendo-o e conduzindo-o na terra que lhe havia
prometido.
Retornando a Canaã, uma discussão aconteceu entre os pastores de Abraão e
de seu sobrinho Ló por causa da multiplicação dos seus rebanhos. Abraão
compreendeu então os perigos que lhe apresentavam as civilizações
sofisticadas e perversas da época e deixou Ló livre para escolher onde se
estabelecer. Ló escolheu a planície fértil onde estavam as cinco cidades
dominadas por Sodoma e Gomorra. Leiamos, ainda, o resumo que fez Moisés
sobre a separação entre Abraão e Ló, seu sobrinho:
Habitou Abrão na terra de Canaã; e Ló, nas cidades da campina e ia armando as
suas tendas até Sodoma. Ora, os homens de Sodoma eram maus e grandes
pecadores contra o SENHOR. (Gênesis 13.12-13)
Isso fez com que o comentarista judeu do livro de Gênesis, Benno Jacob,
destacasse corretamente o seguinte:
Todas as revelações divinas feitas a Abraão ocorreram após uma separação, uma
renúncia ou um sacrifício e servem de consolação e recompensa.[224]
Ele explica,
Abrão era escrupuloso e suficientemente cuidadoso para dar a décima parte de
tudo. Ele é exemplo para nós. Se seguirmos a fé de Abrão para sermos chamados
seus filhos (Gálatas 3.29), e imitarmos sua obediência para sermos chamados
amigos de Deus (Tiago 2.23), que possamos também imitar seu espírito de
gratidão para darmos com alegria (2 Coríntios 9.7). O dízimo, que devemos a
Deus, é muito diferente de uma impulsão fantasiosa ocasional.
7. Enfim, em sétimo lugar, devemos seguir Abraão quanto à finalidade para
que doamos. Ele deu o dízimo sobretudo a Melquisedeque, o sacerdote do
Deus Altíssimo, Criador e Senhor dos céus e da terra. Vimos que
Melquisedeque é, pelo menos, uma figura notável de Cristo e também o
representante de sua Igreja. Como rei de Salém, ele também prefigura Cristo.
A realeza soberana e universal de Jesus Cristo. Não podemos dar de qualquer
maneira, para qualquer lugar, para qualquer pessoa, mas com cuidado,
prudência, reflexão e oração. Ao dar nossas ofertas, devemos dá-las primeiro
à Igreja de Deus e em seguida a toda obra, em comunhão com a Igreja, que
contribua para o crescimento do Reino de Deus. Porque Cristo não é somente
Senhor soberano da nova criação, da qual a Igreja é o primeiro fruto. Mas ele
é o Rei do Reino de Deus, Rei dos céus e da terra, Rei também de todas as
nações da terra.
CONCLUSÃO
Como acabamos de ver, a instituição do dízimo entre o povo de Deus precede
a entrega da Lei no monte Sinai em aproximadamente quatrocentos anos. A
ação de Abraão diante de Melquisedeque é um exemplo que devemos seguir,
nós que vivemos pela mesma fé que tinha Abraão e que praticamos, como fez
Abraão, as obras da fé preparadas por Deus desde a criação do mundo. Vimos
também que devemos seguir o exemplo de Melquisedeque e Abraão — em
sua generosidade, gratidão e louvores que dirigiram a Deus — e não o
exemplo de Ló e Bera, rei de Sodoma, marcado pelo amor ao mundo, pela
avareza, pelo egocentrismo e pelo amor a si mesmos. Se Deus permitir,
veremos em nossa próxima exposição de que maneira a lei divina, revelada
no Sinai, se conforma exatamente ao modelo que Abraão nos oferece no que
diz respeito à nossa gratidão obediente a Deus e à Igreja de nosso Senhor
Jesus Cristo, através da entrega do dízimo, como também às obras aprovadas
por Deus.
Capítulo XVI : Os três dízimos da Lei
Introdução
No último capítulo, introduzimos nossa reflexão sobre o dízimo na Bíblia por
meio de Abraão e o dízimo que pagou a Melquisedeque sobre todo o despojo
tomado dos reis da mesopotâmia. Havíamos mostrado que, como a fé de
Abraão (Gálatas) e as obras da fé de Abraão (Tiago) são modelos para os
cristãos da Nova Aliança, o mesmo vale para a gratidão da fé — que exerceu
Abraão e sobre a qual também fala a epístola aos Hebreus — relacionada ao
dízimo que pagou a Melquisedeque, rei de Salem. Porque, como nos
explicam essas três epístolas, é essa fé de Abraão, acompanhada de suas
obras de obediência aos mandamentos e o reconhecimento das bênçãos de
Deus, que constituem os modelos para nossa vida cristã atual, para nós que
pertencemos à Nova Aliança.
Neste capítulo temos como tema “Os três dízimos da Lei”. Vamos considerar
o ensino sobre o dízimo contido em Levítico, Números e Deuteronômio. Na
exposição seguinte, dedicada ao oitavo mandamento, veremos o ensino do
Novo Testamento sobre essa questão. A exposição deste capítulo terá, então,
três partes que correspondem aos três dízimos ordenados na Torá.
I. O primeiro dízimo: o dízimo do Senhor ou o dízimo dos Levitas (Levítico
27.30-33; Números 18.20-24).
II. O segundo dízimo: o dízimo das festas (Deuteronômio 12.1-19).
III. O terceiro dízimo: o dízimo dos pobres (Deuteronômio 14.28-29).
Nossa conclusão mostrará a maneira pela qual nosso Senhor Jesus Cristo
considerou esses três dízimos, os quais ele mesmo havia ordenado a Israel
para observá-los, conforme a Lei dada a seu servo Moisés.
I. O PRIMEIRO DÍZIMO — O DÍZIMO DO SENHOR OU O DÍZIMO DOS LEVITAS
(LEVÍTICO 27.30-33; NÚMEROS 18.20-24)
Todo o capítulo dezoito do livro de Números trata das funções, dos deveres,
dos privilégios e das rendas do levitas e, em particular, dos sacerdotes
escolhidos entre suas classes, para servir primeiro no Tabernáculo e depois
no Templo, em Jerusalém, construído por Salomão. Lembremos que, no
período de conquista do país de Canaã, todas as tribos de Israel tinham
recebido como herança uma porção do território nacional, com exceção da
tribo de Levi, à qual havia sido dada quarenta e oito cidades, distribuídas
através de todo o país, para ser seu lugar de residência. É o que nos mostra o
capítulo trinta e cinco do livro de Números. O Senhor ali fala a Moisés,
nestes termos:
Dá ordem aos filhos de Israel que, da herança da sua possessão, deem cidades aos
levitas, em que habitem; e também, em torno delas, dareis aos levitas arredores
para o seu gado. Terão eles estas cidades para habitá-las; porém os seus arredores
serão para o gado, para os rebanhos e para todos os seus animais. Os arredores
das cidades que dareis aos levitas, desde o muro da cidade para fora, serão de mil
côvados em redor. Fora da cidade, do lado oriental, medireis dois mil côvados;
do lado sul, dois mil côvados; do lado ocidental, dois mil côvados e do lado
norte, dois mil côvados, ficando a cidade no meio; estes lhes serão os arredores
das cidades. Das cidades, pois, que dareis aos levitas, seis haverá de refúgio, as
quais dareis para que, nelas, se acolha o homicida; além destas, lhes dareis
quarenta e duas cidades. Todas as cidades que dareis aos levitas serão quarenta e
oito cidades, juntamente com os seus arredores. Quanto às cidades que derdes da
herança dos filhos de Israel, se for numerosa a tribo, tomareis muitas; se for
pequena, tomareis poucas; cada um dará das suas cidades aos levitas, na
proporção da herança que lhe tocar. (Números 35.2-8)
Quarenta e oito cidades foram dadas ao conjunto da tribo de Levi como lugar
de residência, distribuídas de maneira proporcional entre o povo de Israel,
para que ali exercessem uma autoridade tanto cultual como cultural, jurídica,
educativa e religiosa, em favor da nação como um todo. Podemos dizer que
exerciam uma função de ordem intelectual e cultural, em submissão total à lei
divina. Essas funções eram ao mesmo tempo: (a) Educativas: eles ensinavam
a Torá, primeiro aos filhos e depois a todo o povo; (b) Jurídicas: aplicavam os
mandamentos e a jurisprudência da Torá nos julgamentos das infrações
públicas da lei de Deus; (c) Culturais: eram o motor da vida intelectual,
educativa e artística da nação, que não podia, como ocorre em nossa
sociedade ímpia, ser considerada laica, secularizada, ou seja, “sem Deus e
sem Lei!”. Destacando apenas um exemplo, tornou-se quase impossível, até
mesmo nos meios tradicionalmente bíblicos, considerar que possa existir
relação das catástrofes naturais como furacões, secas, incêndios de florestas,
inundações, proliferação dramática de doenças que afetam os seres vivos,
com os julgamentos históricos pontuais de Deus sobre o crescimento da
maldade neste mundo; (d) Cultuais: os sacerdotes que oficiavam no
Tabernáculo e depois no Templo eram sorteados segundo suas famílias na
tribo de Levi. Consequentemente, o dízimo ofertado a Deus pelo povo servia
para a manutenção de toda a elite cultural e cultual da nação, porque,
evidentemente, as cidades e o pequeno território que as circundava (dois mil
côvados, aproximadamente um quilômetro, em qualquer direção) não era
suficiente para satisfazer as necessidades vitais essenciais dos levitas.
Além disso, os dízimos serviam para prover o sustento daqueles que
oficiavam exclusivamente no serviço do Tabernáculo e depois no Templo.
Trata-se aqui do sustento destinado especificamente ao que hoje
chamaríamos de “clero”, os pastores e sacerdotes que trabalham a serviço das
igrejas locais em tempo integral. Esse clero recebia do conjunto dos levitas o
que o livro de Números chama de o dízimo dos dízimos.
Disse o SENHOR a Moisés: Também falarás aos levitas e lhes dirás: Quando
receberdes os dízimos da parte dos filhos de Israel, que vos dei por vossa
herança, deles apresentareis uma oferta ao SENHOR: o dízimo dos dízimos.
Atribuir-se-vos-á a vossa oferta como se fosse cereal da eira e plenitude do lagar.
Assim, também apresentareis ao SENHOR uma oferta de todos os vossos dízimos
que receberdes dos filhos de Israel e deles dareis a oferta do SENHOR a Arão, o
sacerdote. De todas as vossas dádivas apresentareis toda oferta do SENHOR: do
melhor delas, a parte que lhe é sagrada. Portanto, lhes dirás: Quando oferecerdes
o melhor que há nos dízimos, o restante destes, como se fosse produto da eira e
produto do lagar, se contará aos levitas. Comê-lo-eis em todo lugar, vós e a vossa
casa, porque é vossa recompensa pelo vosso serviço na tenda da congregação.
Pelo que não levareis sobre vós o pecado, quando deles oferecerdes o melhor; e
não profanareis as coisas sagradas dos filhos de Israel, para que não morrais.
(Números 18.25-32)
Acabamos de citar o conjunto de textos da lei que trata da maneira como
Deus proveu, por meio dos dízimos que lhe eram consagrados, o salário da
classe eclesiástica dos levitas e, mais especificamente, as necessidades
materiais daqueles que dentre eles oficiavam no Tabernáculo e depois no
Templo. Henry Lansdell comenta Números 18.21-24 desta maneira: (i)
Nenhum produto da terra nem o menor crescimento dos rebanhos estava
isento desse dízimo universal; (ii) Aquele que ofertava, não escolhia o
destino de sua doação; (iii) Ainda que o dízimo tivesse o nome de oferta, o
ofertante não tinha direito a nenhuma recompensa; (iv) Esse dízimo era
constituído de uma quantidade fixa que não podia ser reduzida nem ofertada
de qualquer maneira. Retê-lo seria considerado por Deus como um ato de
desonestidade, um roubo (Malaquias 3.8).[229]
Podemos acrescentar as seguintes observações: (a) Tratava-se da renda da
classe levítica como um todo. Deixar de pagar o dízimo não significava
apenas privar Deus do que lhe era devido por direito, mas também privar
tanto aqueles que Deus havia colocado no serviço direto do culto em Israel,
como aqueles que promoviam — em todos os níveis e em todas as esferas —
a cultura bíblica da nação e que eram mantidos por esse meio. Não pagar o
dízimo aos levitas era o mesmo que privá-los de todo o meio de ação em
favor do bem espiritual e cultural do povo; (b) O dízimo do Senhor dado à
tribo sacerdotal cultual e cultural dos levitas era definido como pertencente a
Deus. A lei afirma a respeito dos levitas: “Aos filhos de Levi dei todos os
dízimos em Israel por herança”. Privar os levitas do dízimo era um ataque
direto a Deus, contra o serviço do culto e contra a cultura bíblica da nação:
educação, direito, herança histórica e literária, etc.; (c) Somente aqueles que
se consagravam a isso podiam se aproximar de Deus no Tabernáculo e no
Templo. De fato, o véu do Santo dos Santos foi rasgado de alto a baixo em
razão do sacrifício de Cristo sobre a cruz, e todos agora, por meio do Espírito,
têm livre acesso ao trono da graça pelo único Mediador celeste, Jesus Cristo.
Entretanto, somente os responsáveis pela Igreja Cristã dispõem de certos
privilégios espirituais — dons de Deus dados pelo Espírito Santo e próprios
dessas funções — que lhes permitem exercer sua vocação espiritual e
eclesiástica, à qual os cristãos comuns não têm acesso; (d) Aqueles que se
consagravam — os levitas e os sacerdotes — a essa vocação cultual e cultural
eram privados de terras, de rendas agrícolas, industriais ou comerciais,
próprias do ganho diário do resto da nação. Eles tinham de viver do que o
povo ofertava a Deus através do dízimo. Isso permitia aos levitas consagrar-
se inteiramente à sua vocação. De fato, Deus era sua herança. Por isso nosso
texto nos diz: “eles não receberão herança no meio dos filhos de Israel”. O
mesmo vale para o novo povo de Deus que é a Igreja. Os servos de Deus e
suas famílias e aqueles que trabalham para promover a cultura cristã da
nação, não precisam ser vítimas da avareza e da impiedade material,
monetária, financeira dos cristãos que recusam pagar os dízimos; (e)
Notemos, enfim, que se o culto e a cultura da nação, que deve promover o
clericalismo cultual e cultural do povo, não são de inspiração bíblica,
necessariamente serão antibíblicos e anticristãos, isto é, se Deus não é servido
na cultura de maneira cristã, certamente sofreremos a oposição de uma
cultura anticristã. Porque se não servirmos Jesus Cristo na esfera cultural,
seremos inevitavelmente submetidos à tirania mortal de uma cultura anticristã
e anti-humana.[230]
Vejamos, agora, como era a vida daqueles cuja vocação sacerdotal específica
os conduzia ao serviço de Deus no Tabernáculo ou no Templo. Podemos
extrair alguns ensinos do texto do livro de Números 18.25 a 32 que acabamos
de examinar: (i) O princípio geral do dízimo se aplicava também à tribo de
Levi. Do total do dízimo que recebiam do povo, os próprios levitas deviam
retirar um décimo, quantia que permitiria à classe dos sacerdotes
(principalmente os descendentes da família de Arão) sustentar o serviço
sacerdotal no Tabernáculo e depois no Templo. Vemos aqui que o ministério
pastoral, consagrado ao culto espiritual oferecido a Deus no Templo,
representava, em número, algo próximo a um décimo daqueles envolvidos na
tarefa espiritual e cultural de toda a tribo de Levi. Um décimo dos levitas —
falando em termos atuais — eram pastores ou sacerdotes em tempo integral.
Os levitas que não fossem pastores ou sacerdotes do Templo, exerciam a
função de juízes, professores, historiadores, teólogos, músicos, escritores,
artistas, etc., e todas essas funções eram, certamente, exercidas à luz e sob a
autoridade da Palavra de Deus, em conformidade com a ordem da criação e
somente para a glória de Deus. Trata-se aqui do princípio apologético
invocado pelo apóstolo Paulo em sua segunda carta ao coríntios: “Porque as
armas da nossa milícia não são carnais, e sim poderosas em Deus, para
destruir fortalezas, anulando sofismas e toda altivez que se levante contra o
conhecimento de Deus, e levando cativo todo pensamento à obediência de
Cristo” (2 Coríntios 10.5); (ii) No que diz respeito ao dízimo dos dízimos,
tratava-se exatamente de aplicar o mesmo princípio de retirada normal, como
era feito com o cereal da eira e plenitude do lagar [vinho]. Um décimo de
tudo que era recebido pelos levitas devia ser consagrado à manutenção
daqueles que serviam no Templo: como dizemos hoje, esse décimo dos
dízimos devia ser dado pelos levitas àqueles que foram consagrados, em
tempo integral, ao serviço de Deus na Igreja. O texto acrescenta que os
sacerdotes deviam receber a melhor parte dos dízimos recebidos pelos levitas,
o que nos faz pensar em Paulo quando se referiu à honra dobrada
(honorários) reservada aos presbíteros que serviam a Igreja em tempo
integral; (iii) Aqui não era o caso de estabelecer as mesmas restrições que se
aplicavam aos sacrifícios e às ofertas feitas no Templo, sobre os quais os
sacerdotes legitimamente tinham parte e não podiam ser vendidas no açougue
(como era o caso dos sacrifícios pagãos), mas consumidos no próprio lugar
do sacrifício por aqueles que oficiavam no Templo, porque essas ofertas
imoladas tinham um caráter sagrado. No que concerne ao dízimo dos dízimos,
o texto que se refere aos sacerdotes é particularmente claro: “esse é o vosso
salário” (Números 18.31). Tratava-se, de fato, da remuneração normal do
sacerdote ou do pastor atual; (iv) Enfim, nosso texto distingue bem o caráter
“profano”, por assim dizer, desse salário constituído pelo dízimo dos dízimos,
ao separá-lo das ofertas e dos sacrifícios oferecidos no Templo, considerados
“santos”. Era preciso distinguir bem um do outro a fim de que, diz nosso
texto, não profaneis as ofertas santas dos filhos de Israel e por isso não
morram ao vendê-las no açougue, por exemplo (verso 32). Isso não nos faz
lembrar a distinção que o apóstolo Paulo faz em 1 Coríntios 11.17-34, entre
as refeições comuns dos cristãos e a ceia do Senhor?
Conclusão: essas passagens de Levítico e Números, que acabamos de estudar,
nos mostram que era questão de justiça para os fiéis filhos de Israel,
consagrar a Deus e a seu serviço, cultual e cultural, a décima parte sobre o
aumento concedido pelo Senhor do fruto do seu trabalho. Era assim que Deus
sustentava, através dos dízimos a ele ofertados, aqueles que haviam sido
Henry Lansdell tira algumas lições desse segundo dízimo: (i) Ele provinha da
produção anual da terra; (ii) Ele devia ser consagrado pelo ofertante, sua
família, como também pelo vizinho levita, com as primícias dos rebanhos,
mas somente no lugar escolhido por Deus para lhe celebrar um culto; (iii) O
objetivo era fazer com que o povo de Israel sempre temesse ao Senhor e se
alegrasse nele; (iv) O produto do dízimo — cereais, frutos, animais — podia
ser trocado por dinheiro, para ser utilizado no lugar central de culto, na
compra de animais para oferecer em sacrifício a Deus e alegrar-se nele; (v)
Aquele que pagava esse segundo dízimo não devia dá-lo ao tesouro, mas
comer do fruto e se alegrar diante de Deus; (vi) O pagamento desse segundo
dízimo implicava a passagem do ofertante pelo menos uma semana durante a
Páscoa, na Festa dos Tabernáculos, ou num período mais curto, na Festa das
Semanas, no lugar escolhido por Deus onde as cerimônias deviam acontecer.
[231]
Que ensinos podemos tirar desse segundo dízimo, o dízimo das festas?
(a) O objetivo desse dízimo tinha um caráter também religioso. Para celebrar
um culto que agradasse ao Senhor, o fiel israelita devia, três vezes por ano, se
dirigir ao lugar central de culto da nação. Esse dízimo das festas servia para
financiar, tornar materialmente possível, a peregrinação;
(b) Alguém poderia dizer que essas três peregrinações anuais eram os
períodos de férias do povo de Deus. Mas, ao contrário das férias modernas,
puramente profanas, esses períodos de férias do povo de Israel tinham como
objetivo honrar, glorificar e celebrar a Deus. Era a alegria do povo de Deus.
Elas lembravam as peregrinações religiosas que davam ritmo a toda vida
cristã da Europa na Idade Média;
(c) Se a Páscoa judaica era também caracterizada pela lembrança da
libertação da escravidão no Egito — daí vem o fato de alimentar-se do pão da
aflição, dos pães sem fermento e das ervas amargas (Deuteronômio 16.3)
(como para os cristãos a Páscoa é a lembrança da crucificação de Cristo como
lugar de libertação de nossos pecados), as outras festas — à exceção do Dia
da Expiação, o Yom Kippur, festa judaica de arrependimento, na qual o jejum
era obrigatório e que é um tipo particularmente forte da expiação do Messias,
do nosso Senhor Jesus Cristo, no Gólgota[233] — eram alegres, de grande
alegria, nas quais o povo se reunia no lugar central do culto de Israel para ali
louvar a Deus, se alegrar nele e celebrá-lo por todos os seus benefícios tão
numerosos e incomparáveis. O verso 15 desse capítulo diz isso
enfaticamente:
Sete dias celebrarás a festa ao Senhor, teu Deus, no lugar que o SENHOR escolher,
porque o SENHOR, teu Deus, há de abençoar-te em toda a tua colheita e em toda
obra das tuas mãos, pelo que de todo te alegrarás.(Deuteronômio 16.15)
O segundo dízimo, como mostra muito bem Dennis Wretlind,[237] tinha como
objetivo inculcar no israelita a fidelidade. Vamos agora ao terceiro dízimo, o
dízimo dos pobres, o dízimo de misericórdia.
INTRODUÇÃO
Nos últimos capítulos tratamos de dois temas: (1) O pai do dízimo, Abraão;
(2) Os três dízimos da Lei.
Ali aprendemos, entre muitas outras coisas, dois pontos essenciais:
1. Que a prática do dízimo existia antes da revelação da Lei; que essa prática
tem seu fundamento no dízimo que Abraão pagou a Melquisedeque quando
de seu retorno vitorioso da campanha contra os reis do Oriente — para
recuperar seu sobrinho Ló — que tinham conquistado as cidades da planície
vizinha ao Mar Morto. Ali constatamos que se Abraão era o pai da fé
(Gálatas) e o pai das obras da fé (Tiago), era também o pai dessa gratidão da
fé, cuja marca visível é a prática do dízimo (Hebreus).
2. Considerando os três dízimos descritos na Torá, pudemos ver que os
dízimos normativos, ofertados pelo povo como um reconhecimento pelas
bênçãos recebidas de Deus, eram de três espécies: (i) O dízimo do Senhor,
consagrado aos levitas, que lhes fazia justiça, o dízimo de direito; (ii) O
dízimo das Festas, consagrado à celebração fiel do culto divino, o dízimo de
fidelidade e; (iii) O dízimo dos pobres, reservado para obras de caridade, o
dízimo de misericórdia. Cristo, longe de abolir esses três dízimos, confirmou
sua validade para os israelitas de seu tempo.
Esses três dízimos ordenados pela Torá são, então, mencionados — e
explicitamente confirmados por nosso Senhor Jesus Cristo — em meio ao
discurso de reprovação que dirigiu aos escribas e fariseus, registrado em
Mateus 23. Esses israelitas eram exageradamente escrupulosos, a ponto de
pagar o dízimo sobre o menor objeto que pudesse resultar em ganho, mas
esqueciam o essencial da lei divina. Vejamos de novo as palavras de Cristo:
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque dais o dízimo da hortelã, do
endro e do cominho e tendes negligenciado os preceitos mais importantes da Lei:
a justiça, a misericórdia e a fé; devíeis, porém, fazer estas coisas, sem omitir
aquelas! Guias cegos, que coais o mosquito e engolis o camelo! (Mateus 23:23-
24)
Explicávamos:
O direito [ou a justiça], representa o primeiro dízimo, devido a Deus para
sustento dos levitas; a fidelidade, representa o segundo dízimo, consagrado às
festas; e a misericórdia, o terceiro dízimo, dado aos pobres.
Observações preliminares
A questão do dízimo (ou melhor, como já vimos, a questão dos três dízimos),
no testemunho e ensino apostólico do Novo Testamento, nos coloca diante de
uma questão que já consideramos diversas vezes, ou seja, a passagem da
antiga para a nova dispensação da aliança. De fato, há muitos anos
examinamos essa questão de maneira precisa, quando de uma exposição
consagrada ao 4º mandamento intitulado Do sábado ao domingo, estudo que,
pela graça soberana de Deus, foi dado num domingo pela manhã na Igreja
Adventista de Sion, que havia emprestado seu lugar de culto à nossa Igreja.
Assim, de novo nos encontramos necessariamente diante dessa questão
essencial e temos de enfrentá-la, ou seja, o estudo das diversas áreas da
teologia bíblica que trata da passagem da antiga aliança para a nova. Trata-se,
em particular, da passagem da Páscoa judia para a santa ceia; da circuncisão
para o batismo; da substituição do sábado pelo domingo; e enfim, o pleno
cumprimento na Igreja, corpo de Jesus Cristo entre as nações, das promessas
da aliança antiga dadas à nação de Israel.
Isso nos leva a fazer algumas observações preliminares:
1) Não se trata aqui de abolir qualquer que sejam as ordenanças da Lei de
Deus. Cristo mesmo disse explicitamente no Sermão do Monte que não tinha
vindo para abolir, mas para cumprir a lei e os profetas, isto é, levar a cabo e a
seu clímax bíblico definitivo, todo o ensino do Antigo Testamento.
2) Também não se trata de que a Igreja tenha vindo para suplantar ou
substituir Israel, como certa vez afirmou o ensino católico romano tradicional
sobre o povo de Israel. A Igreja é, claramente, o clímax, o cumprimento em
Jesus Cristo, o Messias de Israel e Chefe de sua Igreja, de todas as promessas
da Antiga Aliança dirigidas a Israel. A razão de ser de Israel não foi outra,
senão a manifestação do Messias e, por ele, de seu corpo, a Igreja de Jesus
Cristo, na qual judeus e gentios foram reconciliados. O muro que os separava
foi derrubado, como explicou claramente o apóstolo Paulo aos cristãos de
Éfeso, de origem pagã.
Portanto, lembrai-vos de que, outrora, vós, gentios na carne, chamados
incircuncisão por aqueles que se intitulam circuncisos, na carne, por mãos
humanas, naquele tempo, estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel
e estranhos às alianças da promessa, não tendo esperança e sem Deus no mundo.
Mas, agora, em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, fostes aproximados
pelo sangue de Cristo. Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um; e, tendo
derribado a parede da separação que estava no meio, a inimizade, aboliu, na sua
carne, a lei dos mandamentos [que separavam judeus e gentios, mas agora todos
reunidos na Pessoa de Cristo] na forma de ordenanças, para que dos dois criasse,
em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse ambos em um só
corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade. E,
vindo, evangelizou paz a vós outros que estáveis longe e paz também aos que
estavam perto; porque, por ele, ambos temos acesso ao Pai em um Espírito.
Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois
da família de Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas,
sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular; no qual todo o edifício, bem-
ajustado, cresce para santuário dedicado ao Senhor, no qual também vós
juntamente estais sendo edificados para habitação de Deus no Espírito. (Efésios
2.11-22)
Mas para Zaqueu foi diferente. Estando em cima de uma árvore para ver
Jesus passar, o Senhor o viu e ocorreu o que segue:
Quando Jesus chegou àquele lugar, olhando para cima, disse-lhe: Zaqueu, desce
depressa, pois me convém ficar hoje em tua casa. Ele desceu a toda a pressa e o
recebeu com alegria. Todos os que viram isto murmuravam, dizendo que ele se
hospedara com homem pecador. Entrementes, Zaqueu se levantou e disse ao
Senhor: Senhor, resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e, se nalguma
coisa tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais. Então, Jesus lhe
disse: Hoje, houve salvação nesta casa, pois que também este é filho de Abraão.
Porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido. (Lucas 19.5-10)
Conclusão
Paulo, no capítulo 12 da epístola aos Romanos, recapitula a exigência
evangélica feita ao cristão para que se ofereça inteiramente a Deus, nestes
termos:
Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso
corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional.
E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da
vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade
de Deus. (Romanos 12.1-2)
Capítulo XVIII: Os três dízimos na Igreja
apostólica: As necessidades da igreja local e da Igreja
Universal
INTRODUÇÃO
É impressionante notar que se nos Evangelhos Cristo fala duas vezes sobre o
dízimo (Mateus 23.23, registrado também por Lucas 11.42 e 18.12), o mesmo
não ocorre nas epístolas, nos Atos dos Apóstolos ou no Apocalipse, com
exceção apenas de uma passagem (Hebreus 7.2-9) que estudamos em nossa
primeira exposição e que tratou do dízimo ofertado por Abraão a
Melquisedeque. Fora isso, não temos mais nada. Mas isso significa que o
Novo Testamento não tem nada a nos dizer sobre os dízimos, como os vemos
nos livros da antiga disposição da Aliança?
Por exemplo, o texto de Malaquias, relacionado ao nosso assunto, não teria
mais nada a ensinar ao cristão da Nova Aliança? Vejamos, no entanto, a
exortação do último profeta do Antigo Testamento:
Porque eu, o Senhor, não mudo; por isso, vós, ó filhos de Jacó, não sois
consumidos. Desde os dias de vossos pais, vos desviastes dos meus estatutos e
não os guardastes; tornai-vos para mim, e eu me tornarei para vós outros, diz o
Senhor dos Exércitos; mas vós dizeis: Em que havemos de tornar? Roubará o
homem a Deus? Todavia, vós me roubais e dizeis: Em que te roubamos? Nos
dízimos e nas ofertas. Com maldição sois amaldiçoados, porque a mim me
roubais, vós, a nação toda.
Tal texto não teria mais nada a dizer ao povo de Deus, à Igreja de Jesus
Cristo, simplesmente porque o Novo Testamento não fala explicitamente, isto
é, expressamente, nominalmente, sobre os nossos três dízimos, do direito, da
fidelidade e da misericórdia? (Mateus 23.23). As promessas e as ameaças da
Aliança de Deus teriam sido abolidas? Paulo, então, teria perdido tempo e
escrito em vão essa exortação à Timóteo sobre o valor eterno e atual de toda a
Escritura (Tota Scriptura)?:
Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para
a correção, para a educação na justiça. (2 Timóteo 3.16)
1) O dízimo de misericórdia
O amor seja sem hipocrisia. [...] compartilhai as necessidades dos santos; praticai
a hospitalidade. (Romanos 12.9 e 13)
Os cristãos devem carregar os fardos uns dos outros, ou seja, entre outras
coisas, devem estar atentos às necessidades práticas de seus irmãos na
comunidade local. Assim John Murray (um comentarista calvinista escocês)
comentou esse texto (verso 13):
O sentido disso é que devemos nos identificar com as necessidades dos santos e
fazer de sua privação como se fosse nossa.[250]
Ou seja, devemos amar nosso próximo como a nós mesmos, sofrer com os
que sofrem. Por sua vez, R. C. H. Lenski (um comentarista luterano
confessional americano de origem alemã) escreveu:
Manifestar sua comunhão com os santos em suas necessidades não é outra coisa
senão compartilhar suas necessidades e contribuir para que sua situação melhore.
[251]
Na sua primeira carta a Timóteo, Paulo faz a seguinte exortação aos ricos,
pela qual os estimula a manifestar caridade para com os pobres:
Exorta aos ricos do presente século que não sejam orgulhosos [crendo ser
superior aos outros], nem depositem a sua esperança na instabilidade da riqueza
[seu capital, seus seguros, sua conta bancária, seus imóveis e propriedades], mas
em Deus, que tudo nos proporciona ricamente para nosso aprazimento; que
pratiquem o (1) bem, sejam (2) ricos de boas obras, (3) generosos em dar e
prontos a (4) repartir; que (5) acumulem para si mesmos tesouros, sólido
fundamento para o futuro [sem risco de crise bancária nem inflação], a fim de se
apoderarem da verdadeira vida [não a nossa pretensa qualidade de vida pouco fiel
à Bíblia, frágil e medíocre]. (1Tm 6.17-19)
Vemos Paulo, aqui, juntando-se a Tiago: sem as obras da fé, que de maneira
visível fazem tocar nossa fé invisível e oculta, não há nenhuma esperança de
salvação. A segurança da salvação, sem a manifestação das obras decorrentes
da salvação, não passa de ilusão enganosa!
E não nos cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não
desfalecermos. Por isso, enquanto tivermos oportunidade, façamos o bem a
todos, mas principalmente aos da família da fé. (Gálatas 6.6-10)
Isso condena as Igrejas que não pagam corretamente (ou nem mesmo
pagam!) seus pastores.[253] A exigência aqui não é simplesmente de um
salário mínimo, mas de um tratamento honroso, que permita ao pastor
assumir todos os seus inúmeros e variados compromissos do ministério
pastoral, sem estar constantemente preocupado com suas finanças.
3) O dízimo manifesta a consagração do fiel a Deus
Em Hebreus 13, lemos ainda esta importante exortação para que a igreja local
caminhe bem, fruto de uma consagração real dos fiéis:
Por meio de Jesus, pois, ofereçamos a Deus, sempre, sacrifício de louvor, que é o
fruto de lábios que confessam o seu nome.
Em seguida o autor (sem dúvida o apóstolo Paulo) faz uma aplicação prática
dessa gratidão que o cristão deve ter a Deus:
Não negligencieis, igualmente, a prática do bem e a mútua cooperação; pois, com
tais sacrifícios, Deus se compraz.
E o apóstolo passa diretamente aos deveres morais dos fiéis para com os
pastores:
Obedecei aos vossos guias e sede submissos para com eles; pois velam por vossa
alma, como quem deve prestar contas, para que façam isto com alegria e não
gemendo; porque isto não aproveita a vós outros. (Hebreus 13.15-17)
IGREJA UNIVERSAL
Passemos, agora, da responsabilidade dos cristãos para com a igreja local,
para os seus deveres em relação à obra missionária da Igreja como um todo.
Vemos, particularmente, esse senso de responsabilidade das igrejas locais em
relação à Igreja universal, na prática da Igreja de Antioquia.
1) O dízimo de misericórdia entre as igrejas
Durante todo um ano, Barnabé e Paulo exerceram um ministério
particularmente frutífero em Antioquia. A generosidade missionária desses
cristãos testemunha isso abundantemente. Leiamos o relato que Lucas nos dá:
Naqueles dias, desceram alguns profetas de Jerusalém para Antioquia, e,
apresentando-se um deles, chamado Ágabo, dava a entender, pelo Espírito, que
estava para vir grande fome por todo o mundo, a qual sobreveio nos dias de
Cláudio. Os discípulos, cada um conforme as suas posses, resolveram enviar
socorro aos irmãos que moravam na Judeia; o que eles, com efeito, fizeram,
enviando-o aos presbíteros por intermédio de Barnabé e de Saulo. (Atos 11.27-
30)
Esse texto narrativo, extraído do livro de Atos, nos mostra algumas coisas
sobre a vida prática da Igreja apostólica.
(a) Eles estavam atentos às necessidades concretas das igrejas irmãs.
(b) Os discípulos, isto é, os membros da igreja, decidiram fazer alguma coisa
em resposta àquelas necessidades.
(c) O amor os motivava. O amor, nós sabemos, é a obediência aos
mandamentos de Deus. Trata-se aqui mais precisamente do dízimo de
misericórdia. Mas não simplesmente de um dízimo separado todos os anos,
como ordenava a Torá, em um fundo comum destinado aos pobres, mas de
um movimento de amor que ia além do simples dízimo trienal. Cada um dava
conforme suas posses, diz o texto. O que comanda aqui é o amor ao próximo.
Mas, notemos, não ao preço do empobrecimento de si mesmo, do prejuízo de
sua própria vida material. Menos, ainda, do endividamento por ter socorrido
as necessidades dos outros! Trata-se de amar seu próximo como a si mesmo e
não mais do que a si mesmo. O amor sacrificial vai muito além desse
exemplo.
(d) Não se trata, unicamente, de simples intenções. Os cristãos de Antioquia
põem imediatamente em prática sua generosidade.
(e) Essa obra de caridade intereclesial era o resultado das inciativas pessoais
dos discípulos, dos membros da Igreja de Antioquia, mas, no entanto, tem um
caráter oficial. Dois doutores, Barnabé e Paulo, são encarregados de levar
esses donativos aos presbíteros da Igreja de Jerusalém. Portanto, não se trata
de uma caridade de pessoa a pessoa simplesmente, mas tem um caráter
eclesial, institucional.
Vemos um segundo exemplo dessa caridade entre igrejas no capítulo 15 da
epístola aos Romanos. Paulo escreve de maneira urgente aos cristãos de
Roma sobre as necessidades dos cristãos da Judeia e os exorta, como segue:
Mas, agora, estou de partida para Jerusalém, a serviço dos santos. Porque
aprouve à Macedônia e à Acaia levantar uma coleta em benefício dos pobres
dentre os santos que vivem em Jerusalém.
Podemos, agora, nos perguntar por que os cristãos deviam separar seus bens
com alegria? Porque consideramos o valor imenso da bondade de Deus para
conosco, reconciliando-nos consigo mesmo por seu amor incompreensível e
salvando-nos do castigo eterno que merecíamos, por causa dos nossos
pecados.
Paulo, então, evoca a generosidade do Deus da aliança para com aqueles que,
de bom coração, doam à obra de Deus e ao próximo em sua aflição.
Precisamos lembrar, constantemente, que não fomos colocados por Deus num
universo fechado, no qual as leis mecânicas, pretensamente “científicas” de
uma economia impulsionada por um rigor implacável, reinariam como mestre
absoluto. Mas muito ao contrário, nos encontramos num universo plenamente
aberto à transcendência divina, no qual Deus, em sua fidelidade à aliança,
intervém constantemente, de maneira imanente, para que os ímpios lhe
prestem conta, mas, sobretudo, para agir, em sua misericórdia infinita, em
favor dos seus, como vemos:
Deus pode fazer-vos abundar em toda graça [também bênçãos materiais!], a fim
de que, tendo sempre, em tudo, ampla suficiência, superabundeis em toda boa
obra, como está escrito: Distribuiu [suas doações], deu aos pobres, a sua justiça
permanece para sempre. Ora, aquele que dá semente ao que semeia e pão para
alimento também suprirá e aumentará a vossa sementeira e multiplicará os frutos
da vossa justiça.
E mais, essa generosidade fará com que Deus seja ainda mais glorificado em
sua Igreja por todos os seus santos. Paulo concluiu com um magnífico cântico
de ação de graças:
Visto como, na prova desta ministração, glorificam a Deus pela obediência da
vossa confissão quanto ao evangelho de Cristo e pela liberalidade com que
contribuís para eles e para todos, enquanto oram eles a vosso favor, com grande
afeto, em virtude da superabundante graça de Deus que há em vós. Graças a Deus
pelo seu dom inefável! (2 Coríntios 9.8-15)
E coloca a razão que fundamenta o amor dos que estão engajados na obra de
Deus, no próprio amor de Jesus Cristo por nós.
Pois conheceis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez
pobre por amor de vós, para que, pela sua pobreza, vos tornásseis ricos. (2
Coríntios 8.7-9)
Manifestai, pois, perante as igrejas, a prova do vosso amor e da nossa exultação a
vosso respeito na presença destes homens. (2 Coríntios 8.24)
E afirma:
Não que eu procure o donativo, mas o que realmente me interessa é o fruto que
aumente o vosso crédito. Recebi tudo e tenho abundância; estou suprido, desde
que Epafrodito me passou às mãos o que me veio de vossa parte como aroma
suave, como sacrifício aceitável e aprazível a Deus. E o meu Deus, segundo a sua
riqueza em glória, há de suprir, em Cristo Jesus, cada uma de vossas
necessidades. Ora, a nosso Deus e Pai seja a glória pelos séculos dos séculos.
Amém! (Filipenses 4.16-20)
Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? Ou:
Com que nos vestiremos? Porque os gentios é que procuram todas estas coisas;
pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas elas; buscai, pois, em
primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão
acrescentadas. Portanto, não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã
trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal. (Mateus 6.31-34)
Capítulo XIX: Os dízimos na Igreja pós-apostólica:
Algumas considerações práticas
INTRODUÇÃO
No último capítulo tratamos do seguinte tema: Os três dízimos na Igreja
apostólica. Primeiramente nos referimos aos três dízimos na vida interna das
igrejas; depois, consideramos um segundo aspecto: a responsabilidade das
igrejas locais pelas necessidades da Igreja universal. Então, tratamos destes
três pontos:
1) Do dízimo de misericórdia entre as igrejas, quando examinamos bem a
questão da célebre coleta organizada pelo apóstolo Paulo em favor das igrejas
da Judeia, particularmente a de Jerusalém, que passavam grande necessidade.
2) Do dízimo em favor do desenvolvimento missionário do culto cristão.
3) Do dízimo como manifestação de consagração do fiel a Deus na
evangelização.
Agora, vamos considerar os dois pontos seguintes que permitirão concluir
esta série dedicada aos dízimos bíblicos:
A. O ensino da Igreja, dos primeiros séculos, sobre a prática dos dízimos e da
generosidade cristã.
B. Considerações práticas sobre a generosidade cristã, sobre os dízimos e
sobre a expressão concreta de nossa gratidão para com Deus por sua graça
inefável.
Vischer justifica sua cegueira, tanto no que diz respeito ao sentido dos textos
aos quais se refere, como em relação à oposição perversa que levanta entre o
Antigo e o Novo Testamento, a lei e a graça, nos seguintes termos:
Esse silêncio não é acidental, mas está na própria raiz da mensagem do
Evangelho. Tudo o que Cristo disse sobre possuir e dar se fundamenta em
pressupostos que tornam totalmente impossível para ele a adoção do
mandamento sobre o dízimo.
Haveria muito o que dizer sobre esse texto que mistura habilmente o que é
verdadeiro e o que é falso. Como é o caso de toda heresia, do conjunto do
testemunho bíblico, Vischer faz escolhas muito convenientes, extraindo
textos que convêm e excluindo tudo que seja contrário à sua tese sobre a fé
comunitária (comunista!) e super espiritual, que procura impor. A essência do
seu pensamento tem um caráter especificamente gnóstico. Ele procura
demonizar os bens materiais, as riquezas e, dessa maneira, deificar a pobreza,
[262]
como se os bens que Deus nos dá não fossem, na realidade, coisas boas,
de origem divina, dos quais não pudéssemos fazer uso legítimo, como ofertar
a Deus e à sua obra, por exemplo, conforme o ensino bíblico sobre os três
dízimos; ou, ao contrário, fazer mau uso deles, utilizando-os para a nossa
própria satisfação egoísta; ou ainda, dilapidando vergonhosamente os bens
que o Senhor nos confiou. Porque Deus nos dá esses bens para que, em
primeiro lugar, façamos uso deles de forma legítima; depois, para que os
utilizemos para o bem do nosso próximo; e, por fim, para o bem da Igreja e
do Reino de Deus. Cada um desses usos legítimos dos nossos bens terá, de
diversas maneiras e por fim último, a glória de Deus. Lukas Vischer, como
bom gnóstico que parece ser, nega ao mesmo tempo a bondade da criação (os
bens, as riquezas), sua boa origem criacional e a perfeita atualidade dos
ensinos do Antigo Testamento e, em particular, os da Lei de Deus, da Torá,
especificamente aqueles relacionados com os dízimos bíblicos.
Esse ponto de vista, tanto dualista como gnóstico — ensino que o autor
atribui, de maneira blasfema e totalmente imprópria, ao nosso Senhor Jesus
Cristo —, o conduz a conclusões concretas e práticas e ao mesmo tempo
utópicas e nefastas. Vejamos, de acordo com os escritos do próprio Lukas
Vischer, o ensino que foi, por vários anos, o mesmo ensino do Conselho
Ecumênico das Igrejas, organismo eclesiástico no qual ele teve uma atuação
importante: 1) Esse ponto de vista não deixa nenhum espaço para qualquer
dízimo cristão; 2) Mais ainda, exigir o dízimo aos cristãos é considerado
perigoso; 3) Isso nos leva a concluir que o problema com Mamon estaria
resolvido se o cristão não desse o dízimo; 4) Jesus teria aprofundado de tal
maneira o problema relacionado à posse de “bens” — note o termo bens! —
que não devemos considerar favoravelmente qualquer que seja o ensino do
Antigo Testamento sobre os dízimos; 5) Enfim, e para concluir, Vischer
afirma que [...] a vontade de Deus não pode ser cumprida pelo pagamento do
dízimo.[263]
Não há o que possa ser mais contrário à lei de Deus e ao espírito de toda a
revelação bíblica. Podemos concluir — com um Jacques Ellul por exemplo,
eminente e falso doutor protestante, se de fato for! — que a obediência à Lei
de Deus pelos cristãos os levaria a tomar sobre si a marca do Anticristo.[264]
Para nós é evidente que Jesus Cristo (e toda a Bíblia, que é sua Palavra
infalível) vê as coisas de forma totalmente diferente. Não são as riquezas que
seriam más em si mesmas, mas o amor às riquezas, a dependência das
riquezas, a idolatria dos bens deste mundo, em resumo, o fato de colocar a
criatura — aqui as riquezas — no lugar do Criador. Portanto, o problema não
está na matéria, nas riquezas, nos bens, mas no coração do homem, em sua
cobiça (a transgressão do Décimo Mandamento). No Evangelho segundo
Marcos lemos estas palavras que elucidam muito bem nosso assunto:
Então, lhes disse: Assim vós também não entendeis? Não compreendeis que tudo
o que de fora entra no homem não o pode contaminar, porque não lhe entra no
coração, mas no ventre, e sai para lugar escuso? E, assim, considerou ele puros
todos os alimentos. E dizia: O que sai do homem, isso é o que o contamina.
Porque de dentro, do coração dos homens, é que procedem os maus desígnios, a
prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios, a avareza, as malícias, o
dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Ora, todos estes males
vêm de dentro e contaminam o homem. (Marcos 7.18-23)
(2) Os dízimos na Igreja pós-apostólica
Não nos demoremos muito nas deficiências teológicas e bíblicas do livrinho
de Lukas Vischer, mas vejamos o que contém de mais positivo. Ele apresenta
inúmeras citações dos Pais dos primeiros séculos da Igreja, que atestam
claramente a prática dos diferentes dízimos pelos discípulos de Cristo,
introduzidos na vida cristã pela pregação dos apóstolos e seus sucessores.
Como foi o caso na Igreja de Jerusalém — e isso desde seus primeiros dias
— os cristãos consagraram seus bens para o serviço do Senhor e amor ao
próximo, o que para eles era como doar-se a si mesmos a Deus. Exatamente o
que Cristo havia pedido ao jovem rico (Marcos 10.21). Portanto, o sacrifício
exigido do jovem rico não era único nem exclusivo a esse texto. Mas o que
nos interessa aqui é o fato de que Lukas Vischer reconhece claramente a
adoção, pela primeira igreja, do ensino da Bíblia sobre os dízimos, quando
escreveu:
Por outro lado, é preciso notar que a igreja antiga tinha também adotado o
mandamento do dízimo. Várias normas da Igreja do Oriente mencionam a
obrigação de dar o dízimo, quantia constituída de uma taxa paga aos profetas, aos
padres e ao clero em geral [trata-se do dízimo do direito e da fidelidade], e outra
quantia que representava um capital destinado ao sustento dos pobres,
miseráveis, viúvas e órfãos [tratava-se do dízimo de misericórdia].[265]
Em seguida, Lukas Vischer mencionou várias citações dos Pais da Igreja que
refutam suas próprias teorias não bíblicas, sobre a prática dos dízimos no
Antigo Testamento pela primeira igreja. Sigamos passo a passo. Vejamos o
que escreveu Ireneu (130-200 d.C.):
Portanto, o gênero de obrigações não foi abolido: havia obrigações lá [entre os
judeus], havia aqui também [na igreja]. Somente a espécie foi alterada: não é
mais por escravos, mas por homens livres que é feita a oferta. Se, de fato, há
somente um único e mesmo Senhor, menos ainda a oferta teria um caráter
próprio dos escravos [judeus] e um caráter próprio dos homens livres [cristãos],
para que até nas ofertas se manifestasse a marca distintiva da liberdade, porque
nada é supérfluo ou carente de significado para com ele. Por isso, aqueles
queriam consagrar o dízimo [literalmente, “os dízimos”][266] dos seus bens,
enquanto estes, que compartilham da liberdade, põem tudo que têm para a obra
do Senhor, dando alegre e generosamente os menores bens, porque têm maior
esperança; a viúva pobre lançando aqui toda a sua subsistência no tesouro de
Deus.[267]
Agostinho se pergunta: Quanto é preciso dar aos pobres? Ele reconhece que
podemos guardar tudo que precisamos e até mesmo além do necessário para
prover nossas necessidades. Mas acrescenta:
Então, doemos uma porção precisa. Mas que porção? Um décimo. Os escribas e
os fariseus davam os dízimos. Irmãos, precisamos corar de vergonha, pois esses
homens pelos quais Cristo não tinha ainda derramado seu sangue, davam o
dízimo. Os escribas e fariseus davam seus dízimos. Portanto, vocês não deviam
imaginar que levar pão aos pobres seja uma obra extraordinária, pois isso
representa apenas um milésimo de seus bens. Não condeno isso, mas ao menos
façam o mesmo que eles.[271]
A Torá não fala outra coisa. Referindo-se ao ano sabático, o sétimo ano e ano
do perdão das dívidas em Israel, Moisés escreveu em Deuteronômio:
Quando entre ti houver algum pobre de teus irmãos, em alguma das tuas cidades,
na tua terra que o Senhor, teu Deus, te dá, não endurecerás o teu coração, nem
fecharás as mãos a teu irmão pobre; antes, lhe abrirás de todo a mão e lhe
emprestarás o que lhe falta, quanto baste para a sua necessidade. Guarda-te não
haja pensamento vil no teu coração, nem digas: Está próximo o sétimo ano, o ano
da remissão, de sorte que os teus olhos sejam malignos para com teu irmão
pobre, e não lhe dês nada, e ele clame contra ti ao Senhor, e haja em ti pecado.
Livremente, lhe darás, e não seja maligno o teu coração, quando lho deres; pois,
por isso, te abençoará o Senhor, teu Deus, em toda a tua obra e em tudo o que
empreenderes. Pois nunca deixará de haver pobres na terra; por isso, eu te
ordeno: livremente, abrirás a mão para o teu irmão, para o necessitado, para o
pobre na tua terra. (Deuteronômio 15.7-11)
3) Dar com alegria
Acabamos de ler no livro da Antiga Aliança: “Livremente, lhe darás, e não
seja maligno o teu coração, quando lho deres!”. Além disso, toda a Bíblia nos
ensina que precisamos ser generosos, de coração e na prática, como Deus é
generoso; temos de dar com alegria. No Sermão da Montanha, Jesus Cristo
nos exorta assim:
Dá a quem te pede e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes.
(Mateus 5.42)
E o salmista acrescenta:
Fui moço e já, agora, sou velho,
porém jamais vi o justo desamparado,
nem a sua descendência a mendigar o pão.
É sempre compassivo e empresta,
e a sua descendência será uma bênção. (Salmos 37.25-26)
Em seguida Paulo se contém, a fim de não lhes dar a impressão de que está
abusando de sua autoridade apostólica para impor sua vontade. E continua:
Não vos falo na forma de mandamento, mas para provar, pela diligência de
outros, a sinceridade do vosso amor. (2 Coríntios 8.8)
Em seguida ele os exorta a ter uma atitude pensada, a não agir por impulso,
como talvez tivessem agido em seu primeiro entusiasmo. Então, Paulo os
leva a fazer considerações com bom senso:
Porque, se há boa vontade, será aceita conforme o que o homem tem e não
segundo o que ele não tem. (2 Coríntios 8.12)
Ele termina manifestando aos cristãos de Corinto que não se trata aqui de
exercer uma generosidade impensada, mas de agir com sabedoria, não para
sua própria ruína, mas para que certa igualdade espiritual e material possa se
manifestar entre os cristãos com experiências diferentes:
Porque não é para que os outros tenham alívio, e vós, sobrecarga; mas para que
haja igualdade, suprindo a vossa abundância, no presente, a falta daqueles, de
modo que a abundância daqueles venha a suprir a vossa falta, e, assim, haja
igualdade, como está escrito: O que muito colheu não teve demais; e o que
pouco, não teve falta. (2 Coríntios 8.13-15)
Jeffress acrescentou: “No caso da Coreia do Norte, Deus deu a Trump toda a
autoridade necessária para eliminar Kim Jong-um”.
Numa conversa telefônica, Jeffress afirmou que foi levado a fazer essa
declaração após Trump ter declarado que, se as ameaças da Coreia do Norte
contra os Estados Unidos persistissem, Pyongyang “conheceria um fogo e um
furor jamais visto pelo mundo.”
A passagem bíblica referida por Jeffress — Romanos 13.1-7 — segundo ele
dá ao governo a autoridade necessária para impedir que os malfeitores
causem destruição. Jeffress interpretou esse texto desta maneira:
Isso dá ao governo [...] o poder de fazer tudo o que for necessário – o que inclui o
assassinato, a pena capital ou qualquer que seja o duro castigo, para impedir as
ações de malfeitores como Kim Jong-un.[295]
[1]
Michel Zink, “Le Moulin mystique. À propos d’un chapiteau de Vézelay: figures allégoriques dans
la prédication et dans l’iconographie romanes”, Annales, 1976, XXXI, 3, p. 481. Vézelay vit naître
Théodore de Bèze (1519-1605). Ce chapiteau exprime admirablement sa théologie du salut.
[2]
A primeira dessas exposições sobre o oitavo mandamento foi feita em 21 de setembro de 2008 e a
última em 20 de junho de 2010.
[3]
Os perigos totalitários do Ocidente: Uma tentativa de se identificar e analisar as causas e os
processos que podem conduzir as sociedades ocidentais ao totalitarismo, La Pensée Universelle, Paris,
1983.
[4]
A antiga doutrina social católica romana, anterior ao Vaticano II, ainda tinha a forte marca dos
ensinos bíblicos da Lei de Deus. Desde então, os Direitos do Homem reinam sem obstáculo nos
ensinos sociais e políticos dessa comunidade religiosa.
[5]
Em geral usamos a Bible à la Colombe. Além da Bíblia à la Colombe, outras traduções serão
assinaladas quando necessário. Outras versões traduzem “astúcias” por: “razões” (Osty) ; “dicursos”
(Martin); “cálculos” (Jerusalém); “complicações” (TOB); “artimanhas” (Rabbinat).
[6]
Veja a utilização desse texto pelo apóstolo Paulo em Romanos 10.5-11.
[7]
Pierre Viret, Instruction chrétienne en la Doctrine de la Loi et de l’Evangile, Volume I, Jean Rivery,
Genebra, 1564, p. 569. Nova edição, L’Age d’Homme, Lausanne, 2009, Tomo Segundo, p. 596.
[8]
Ibidem.
[9]
Tomás de Aquino, Os mandamentos, Nouvelles Éditions Latines, Paris, 1970, p. 195.
[10]
Lancelot Andrewes, An Exposition of the Ten Commandments, Richard Cotes, London, 1642, pp.
786-787. Esse notável comentário foi redigido por Lancelot Andrewes no fim do século XVI, mas só
foi publicado após a morte do autor. Está novamente disponível na Amazon.com: Lancelot Andrewes,
The Moral Law Expounded, EEBO Éditions Proquest, 2010. Lancelot Andrewes foi um dos mais
notáveis dirigentes da Comissão real encarregada por James I para traduzir a Bíblia para o inglês que
resultou na Authorised King James Version de 1611.
[11]
R. Laird Harris, Gleason L. Archer, Bruce K. Waltke, Theological Wordbook of the Old Testament,
Moody Press, Chicago, 1980, Article 64, p. 168. Os dados lexicográficos acima provêm desse excelente
dicionário.
[12]
Lancelot Andrewes, op. cit., p. 787. Veja a respeito dessa divisão do mundo entre Sem, Cão e Jafé
na obra pioneira de Bill Cooper, After the Flood, New Wine Press, Norwich, 1995, como também na
de Arthur C. Custance, Genesis and Early Man, Zondervan, Grand Rapids MA, 1975 et Noah’s Three
Sons. Human History in Three Dimensions, Zondervan, Grand Rapids MA, 1975.
[13]
Ibidem.
[14]
Andrewes, Ibidem.
[15]
Julio Meinvielle, Critique de la conception de Maritain sur la personne humaine, Éditions Iris,
Librairie Française, 1993 [Buenos Aires, 1948]
[16]
Pierre Viret, Instruction chrétienne en la Loi et l’Évangile, op. cit. [edição de 1564], Tomo I, p.
567.
[17]
Viret, op. cit., p. 567.
[18]
Viret, op. cit., p. 570.
[19]
Viret, op. cit., p. 573.
[20]
Viret, op. cit., p. 574-575.
[21]
Pierre Viret, Instruction chrétienne, Tome Segundo, Exposition sur les Dix Commandements de la
Loi donnée de Dieu par Moïse, L’Âge d’Homme, Lausanne, 2009, [1564], 846 p.
[22]
Alguns traduzem “uma raiz de todos os males”. Segue a tradução feita pela Bible Martin: “Porque
a raiz de todos os males não é outra senão a cobiça das riquezas”.
[23]
O Texto Recebido mantém aqui um elemento que foi retirado de nossas Bíblias: retira-te do meio
deles.
[24]
Apostolos Makrakis, Interpretation of the Entire New Testament, Orthodox Christian Educational
Society, Chicago, 1950, Volume Two, p. 1735-1736.
[25]
David Martin, Bible, op. cit., 1707, Tome II, p. 377c.
[26]
Apostolos Makrakis, op. cit., Tome II, p. 1737.
[27]
Tomás de Aquino, Os Mandamentos, Nouvelles Éditons Latines, Paris, 1970, p. 195-207.
[28]
David Martin, Bible, op. cit., 1707, Tomo II, p. 377c.
[29]
Apostolos Makrakis, op. cit., Tomo II, p. 1737.
[30]
Oração proferida antes da pregação do dia 21 de dezembro de 2008. Texto revisado em julho-
agosto de 2018.
[31]
Versão de Louis Segond, 1910 [no texto francês original].
[32]
Recomendamos a leitura das obras do filósofo existencialista russo Léon Chestov (1866-1938), que
constantemente lembra como foi importante para o homem comer do fruto proibido do conhecimento
autônomo (tanto de Deus como da ordem criada) do bem e do mal.
[33] Veja Henri Cazelles, Études sur le Code de l’alliance, Letouzey et Ané, Paris, 1946.
[34]
James B. Jordan, The Law of the Covenant. An Exposition of Exodus 21-25, Institute for Christian
Economics, Tyler TX, 1984.
[35]
Stephen A. Kaufman, “The Structure of the Deuteronomic Law”, Maarav, 1, 2, 1979, pp. 105-158.
http://www.maarav.com/issue1_2.shtml ; Daniel Arnold, “Le génie de la Loi Mosaïque”. Capítulo 4
de Vivre l’éthique de Dieu, Edição Emmaüs, Saint-Légier, 2010, p. 31-40. Enfim o capítulo 8 de
Walter C. Kaiser, “The Law of Deuteronomy”, em Toward Old Testament Ethics, Zondervan, Grand
Rapids, 1991, p. 127-137.
[36]
John I. Durham, Exodus, Word Book Publisher, Waco TX, 1987, p. 336-337.
[37]
Ibid., p. 336.
[38]
Ibid., p. 337.
[39]
Ibid.
[40]
Ao contrário do que faz entender a tradução La Colombe que utilizamos, não se trata aqui de
escravos, mas de uma servidão do tipo feudal, na qual o servo prometia fidelidade sem restrição ao seu
Senhor, recebendo em contrapartida sustento e proteção. Portanto, guardadas as proporções, em lugar
de escravidão, mais apropriado seria chamar de servidão.
[41]
Veja os belos estudos de Henri Baruk, Tsedek, Droit hébraïque et Science de la Paix, Zikarone,
Paris, 1970 ; Tsedek : where modern science is examined and where it is attempted to save man from
physical and spiritual enslavement, Swan House Publications, 1972 ; Henri Baruk e Maurice Bachet,
Le Test Tsedek. Le jugement moral et la délinquance, Presses Universitaires de France, Paris, 1950.
[42]
Rousas John Rushdoony, Exodus, Ross House Books, Vallecito CA, 2004, p. 291.
[43]
Benno Jacob, The Second Book of the Bible, Exodus, KTAV Publishing House, Hoboken NJ, 1992,
p. 611.
[44]
Benno Jacob, The Second Book of the Bible, Exodus, KTAV Publishing House, Hoboken NJ, 1992,
p. 615.
[45]
W. H. Gispen, Exodus, Zondervan, Grand Rapids MI, 1982, p. 209.
[46]
Benno Jacob, op. cit., p. 621.
[47]
Rousas J. Rushdoony, Exodus, op. cit., p. 292.
[48]
Ibid., p. 293.
[49]
Ibid., p. 293-294.
[50]
Segundo nosso costume, os colchetes indicam uma intervenção da redação.
[51]
Rousas J. Rushdoony, Exodus, op. cit., p. 311.
[52]
Ibid., p. 313.
[53]
Como vimos, trata-se de um vassalo, de uma relação quase familiar.
[54]
Umberto Cassuto, A Commentary on the Book of Exodus, The Magnes Press, The Hebrew
University, Jerusalem, 1967 [1961], p. 259.
[55]
Umberto Cassuto, Exodus, op. cit., p. 260.
[56]
Eugene Combs and Kenneth Post, The Foundations of Political Order in Genesis and the
Chandogya Upanisad, The Edwin Mellen Press, Lewiston/Queenston, 1987. Esses autores nessa obra
fazem uma abordagem parecida, mas utilizando-se do pensamento hindu. Veja o estudo bem
documentado do economista muito conhecido, Michael Hudson, sobre o perdão pontual de dívidas nas
legislações do Oriente Médio antigo e, em particular, na prática do Jubileu em Israel. Michael Hudson,
…and forgive them their debts. Lending, Foreclosure and Redemption from Bronze Age Finance to the
Jubilee Year, ISLET Verlag, Dresden, 2018.
[57]
Cassuto, p. 262.
[58]
Ibidem, p. 281-282.
[59]
Esse último ponto será objeto de nossa próxima exposição.
[60]
A perda da caução ou de bens emprestados ou de animais (Êxodo 22.6-17) será examinada, se Deus
quiser, numa próxima vez.
[61]
Veja a obra fundamental (editada recentemente) de Jean La Placette, Traité de la Restitution. Où
l’on trouvera la résolution des cas de conscience qui ont du rapport à cette matière, Éditions Pierre
Thierry Benoit, Genève 2012 [1696] (Podendo ser encomendada em Lulu.com).
[62]
Umberto Cassuto, Exodus, op. cit., p. 283.
[63]
Veja Gênesis 9.3-4: “Tudo o que se move e vive ser-vos-á para alimento; como vos dei a erva
verde, tudo vos dou agora. Carne, porém, com sua vida [nephesh -alma], isto é, com seu sangue, não
comereis”.
[64]
Benno Jacob, Exodus, op. cit., p. 679.
[65]
A. A. Pienaar, Histoire d’une famille de lions, Stock, Paris, 1941.
[66]
Benno Jacob, Exodus, op. cit., p. 679.
[67]
H. Cazelles, Le code de l’alliance, op. cit., p. 64.
[68]
Rousas Rushdoony, Exodus, op. cit., p. 308.
[69]
Benno Jacob, Exodus, op. cit., p. 686.
[70]
Rushdoony, Exodus, op. cit., p. 309.
[71]
Exceção notável, o site ecológico cristão de Calvin Beisner, Cornwall Alliance,
https://cornwallalliance.org/about/who-we-are/
[72]
Henri Cazelles, Études sur le Code de l’Alliance, op. cit., p. 68. Veja também a página 69.
[73]
Elohim aqui; trata-se de magistrados, daqueles que exercem a justiça.
[74]
Rousas J. Rushdoony, Exodus, op. cit., p. 311.
[75]
Benno Jacob, Exodus, op. cit., p. 691.
[76]
Examinaremos esse último ponto quando considerarmos o 9º Mandamento: Não dirás falso testemunho
(Êxodo 20.16), numa futura publicação.
[77]
Benno Jacob, Exodus, op. cit., p. 692.
[78]
Henri Cazelles, op. cit., p. 71.
[79]
Rousas Rushdoony, Exodus, op. cit., p. 312.
[80]
Na verdade é mesmo o contrário, porque o empréstimo a juros é sempre ilícito, uma vez que aquele
que empresta sempre cobra um juro fixo (automático e mecânico), seja o resultado financeiro positivo
ou negativo para quem emprestou. O empréstimo a juros, sendo um ganho imutável, assegurado
mecanicamente e sem risco, é a nagação da história, da Providência divina — bênção ou maldição — e,
em consequência, da própria Aliança de Deus.
[81]
Stephen A Kaufman, “The Structure of the Deuteronomic Law”, Maarav, 1, 2, 1979, pp. 105-158.
http://www.maarav.com/issue1_2.shtml Voyez: Stephen A. Kaufman, The Structure of the
Deuteronomic Law, Western Academic Press, Santa Monica CA, 1979.
[82]
Daniel Arnold, “Le génie de la Loi Mosaïque”. Capítulo 4 de Vivre l’éthique de Dieu, Éditions
Emmaüs, Saint-Légier, 2010, p. 31-40.
[83]
Walter C. Kaiser, “The Law of Deuteronomy:, Toward Old Testament Ethics, Zondervan,
Academie Books, Grand Rapids MI, 1983, Capítulo 8, p. 127-137
[84]
Veja também John H. Walton, “Deuteronomy. An Exposition of the Spirit of the Law”, Grace
Theological Journal 8.2, 1987, p. 213-25.
http://faculty.gordon.edu/hu/bi/ted_hildebrandt/OTeSources/05-Deuteronomy/Text/Articles/Walton-
Deut-GTJ.htmBruce Baugus, “Deuteronomy and the Decalogue”, Reformation 21,
http://www.reformation21.org/blog/2015/02/deuteronomy-and-the-decalogue.php
[85]
Shalom M. Paul, Studies in the Book of the Covenant in the Light of Cuneiform and Biblical Law,
Wipf and Stock, Eugene OR, 2006 [1970], p. 106.
[86]
Stephen Kaufman, op. cit., p. 115.
[87]
Walter Kaiser, Toward Old Testament Ethics, op. cit., p. 129.
[88]
Parágrafo que trata da lepra. Stephen Kaufman, op.cit., p. 116.
[89]
Rousas J. Rushdoony, Deuteronomy, Ross House Books, Vallecito CA, 2008, p. 355.
[90]
Rousas J. Rushdoony, op. cit., p. 356.
[91]
Rousas J. Rushdoony, op. cit., p. 358.
[92]
Alexandre Soljenitsyn, respondendo a um cristão evangélico que lhe perguntou: “Senhor
Soljenitsyne, você ora?”. Ele, muito supreso, levantou os braços e depois respondeu: “Você quer dizer,
falar com Deus? Mas ele está continuamente presente!”.
[93]
Christopher Wright, Deuteronomy, Paternoster Press, Leicester, 1996, p. 253.
[94]
Rousas J. Rushdoony, Deuteronomy, op. cit., p. 363-364.
[95]
Rousas J. Rushdoony, Deuteronomy, op. cit., p. 363-364.
[96]
Peter C. Craigie, The Book of Deuteronomy, Eerdmans, Grand Rapids MI, 1976, p. 307.
[97]
A propósito de Pio XII, sigamos o conselho de Paulo: “[…] examinai todas as coisas, retende o que
é bom ; abstenhai-vos de toda forma de mal” (1 Tessalonissenses 5.21; seguindo o exemplo dos
Bereanos que examinavam as Escrituras todos os dias, para ver se as coisas eram, de fato, assim (Atos
17.11).
[98]
John C. H. Wu, Fountain of Justice. A Study in the Natural Law, Sheed and Word, New York,
1955, p. 15-16. Sobre uma visão protestante dessas realidades, veja (entre outras) as obras de E. L.
Hebden Taylor e de Rousas John Rushdoony.
[99]
Trata-se aqui do pensamento do célebre economista liberal, Adam Smith e do seu amigo ateu,
David Hume.
[100]
Étienne Catta, Saint Hilaire et le Cardinal Pie, Éditons du Cèdre, Paris, 1970, p. 138.
[101]
Catta, Hilaire et Pie, op. cit., p. 139.
[102]
Catta, op. cit., p. 140.
[103]
Catta, op. cit., p. 158.
[104]
Catta, op. cit., p. 158.
[105]
Mgr Pie, Œuvres, Tome 10, Oudin, Paris, 1887, pp. 78-79.
[106]
Vejamos, ainda, o cônego Étienne Catta citando o Monsenhor Pio que comenta aqui os discursos
de Jules Ferry, o qual afirmou peremptoriamente que: “… toda consciência deve concordar com o
ensino indiscutível desse regulador soberano [que é o Estado laico, sem Deus], toda a manifestação
doutrinária em desacordo com o evangelho do Estado [sem Deus], todo o católico que escuta e segue a
Igreja é um faccioso [para Jules Ferry, o porta-voz infalível do Estado laico]. Ele escreveu que ninguém
pode servir a dois senhores, porque amará um e desprezará o outro. Ora, segundo nosso evangelho [sem
Deus, de Jules Ferry], o Estado é o único senhor, aos olhos de quem tudo mais deve ficar cego”. E o
Monsenhor Pio escreveu sobre as palavras que citou: “Nenhuma dessas palavras me pertence, Senhores
[…]; todas elas podem ser justificadas por citações extraídas das discussões destes últimos dias”
(Étienne Catta, Saint Hilaire et le cardinal Pie, p., 173, citando Monsenhor Pio, Œuvres, Tome 10,
Oudin, Paris, 1887, p. 26-27).
[107]
Catta, Saint Hilaire et le cardinal Pie, op. cit., p. 172-173.
[108]
Jesus: os pobres, sempre os tendes convosco, mas a mim nem sempre me tendes.
[109]
Benno Jacob, The Second Book of the Bible. Exodus, Kav Publishing, Hoboken, 1992, p. 706.
[110]
S. H. Kellogg, The Book of Leviticus, Hodder and Stoughton, London, s. d., p. 496. Como
indicamos acima, essa lei não se aplica apenas ao irmão israelita !
[111]
G. J. Wenham, The Book of Leviticus, Eerdmans, Grand Rapids, 1979, p. 321-322.
[112]
Andrew Bonar, Leviticus, Banner of Truth, Edinburgh, 1972 [1846], p. 463-463.
[113]
S. C. Mooney, Usury. Destroyer of Nations, Theopolis, Warsaw, 1988, p. 13-14.
[114]
Mooney, op. cit., p. 13-14.
[115]
Rousas Rushdoony, Leviticus, Ross House Books, Vallecito, 2005, p. 363-364.
[116]
J. H. Hertz, The Pentateuch and Haftorahs, Soncino Press, London, 1962, p. 534.
[117]
Theological Word Book of the Old Testament (TWOT), op. cit., p. 590. Veja Provérbios 2.16;
5.20; 6.24.
[118]
João Calvino, Leçons sur les livres des Prophètes Jérémie et Ezéchiel, Amsterdam, 1567, p. 170.
Citado por Eric Kerridge, Usury, Interest and the Reformation, Ashgate, Aldershot, 2002, p. 16. Sobre
uma defesa da posição de João Calvino veja, André Biéler, La pensée économique et sociale de Calvin,
Georg, Genève, Capítulo V. “As atividades econômicas”, Seção 6, “Os banqueiros e o empréstimo a
juros”, p. 453-476. 1961. Sobre as fontes, na casuística escolástica católica romana tardiva, da
justificação relativa por João Calvino de algumas formas de empréstimo a juros, veja a obra
fundamental de Michael Hoffman, Usury in Christendom. The Mortal Sin that Was and Now is Not,
Independent History and Research, Cœur d’Alene, 2013. Michael Hoffman mostra também a que ponto
a perspectiva Tomista e Aristoteliana estava sempre presente em Martinho Lutero e em alguns teólogos
anglicanos de convicções reformadas.
[119]
Veja a obra de Michael Hoffman citada acima (páginas 183-186) sobre a oposição bíblica
intransigente – de inspiração largamente tomista e aristoteliana – de Martinho Lutero sobre toda a
forma de empréstimo a juros. “Trade and Usury” (1524), Luther’s Works, Muhlenberg Press, Volume
45, 1962. Martin Luther, “Du commerce et de l’usure” (1524), Œuvres, Tome IV, Labor et Fides,
Genève, 1958, p. 119-144.
[120]
Charles du Moulin, Tractatus contractum et usurarum de 1547.
[121]
Michael Hoffman, op. cit., p 186-187.
[122]
Michael Hoffman, op. cit., p 189.
[123]
John Edwards, Theologia Reformata, Londres 1713, Volume II, p. 547-548. Reprint Gale ECCO,
2010. Texto citado por Michael Hoffman, op. cit., p 188.
[124]
Tomás de Aquino, Suma Teológica, A Justiça, Tome III, 2a-2ac, Questões 67-79, Desclée et Cie,
Paris, 1935, p. 208. Veja Tomás de Aquino, Opuscules de saint Thomas d’Aquin, Sete volumes,
Opúsculo LXXII, “Sobre as usuras em geral e os contratos usurários”, Volume sete, Louis Vivès, Paris,
1858, p. 566-661.
[125]
Tomás de Aquino, La Justice, op. cit., p. 213.
[126]
Thomas d’Aquin, Somme Théologique, La Justice, op. cit., p. 208-209.
[127]
Thomas d’Aquin, La Justice, op. cit., p. 213-214.
[128]
“Em Deuteronômio 28.12 e 44, a palavra hebraica para emprestar é LAVAH, que pode significar
estar bem junto à, ou se converter espiritualmente, ou emprestar. O desejo de emprestar é sinal de uma
generosidade cheia de graça (Sl 112 .5). Emprestar é sinônimo de dar. ‘As carências ou o estado de
pobreza, que levam ao dever de emprestar, indicam a ausência da bênção divina (Deuteronômio 28.44),
enquanto que a capacidade para emprestar caracteriza uma prosperidade que vem de Deus’
(Deuteronômio 28,12)”, Theological Wordbook of the Old Testament, op. cit., p. 1087/1088.
[129]
Thomas d’Aquin, La Justice, op. cit., p. 213-214.
[130]
Thomas d’Aquin, La Justice, op. cit., p. 211-212.
[131]
Sobre isso veja as páginas escritas pelo lúcido historiador católico romano, Michael Hoffman,
“The Protestant Reformation Pro and Contra Usury” em Usury in Christendom. The Mortal Sin that
Was and Now is Not. A Study of the Rise of the Money Power in the West, Independent History and
Research, Cœur d’Alene ID, 2013, p. 183-161.
[132]
Leão X na Bula de 4 de maio de 1515, Concilli in décima sessione super materia Montis Pietatis,
na décima sessão do Quinto Concílio de Latrão, acontecido em Roma de 1512 a 1517, Michael
Hoffman, Usury in Christendom, op. cit., p. 141.
[133]
Mutuum : Empréstimo de consumo. Contrato pelo qual uma pessoa (o credor) confia (credere)
certa quantidade de dinheiro ou de outra coisa consumível a outra pessoa (o devedor), que promete
restituir, em data fixa, uma mesma quantidade, natureza e qualidade da coisa emprestada. Ou ainda,
Mutuum, simples empréstimo de um objeto consumível, de dinheiro (um capital, por exemplo), que
será reembolsado pelo devedor na quantidade exata.
[134]
Raymond de Roover, La pensée économique des scolastiques, Doctrines et méthodes, Vrin, Paris,
1971.
[135]
Ibidem, p. 77-78.
[136]
De Roover, op. cit., p. 78.
[137]
Ibidem, p. 78-79. Como mostra, de maneira decisiva, Michael Hoffman, apesar dos erros dos
Reformadores, a pessoa que foi o verdadeiro precursor moderno do empréstimo a juros foi o Papa,
banqueiro da Renascença italiana, Leão X de Médicis.
[138]
De Roover op. cit., p. 80.
[139]
De Roover, op. cit., p. 80-81.
[140]
S. C. Mooney, op. cit., p. 47, citando Patrick Cleary, The Church and Usury, The Christian Book
Club of America, Hawthorne, 1972, p. 114.
[141]
S. C. Mooney, op. cit., p. 47.
[142]
Ibidem, p. 48.
[143]
Catéchisme de Heidelberg, Kerygma, Aix-en-Provence, 1986, Question 110, p. 113.
[144]
Mooney, op. cit., p. 51.
[145]
Mooney, op. cit., p. 51.
[146]
Os construtores da torre de Babel (Gn 11.1-9). Veja a queda de Babilônia descrita em Apocalipse
18.
[147]
Mooney, p, 51. Mooney aqui nos dirige um apelo à moderação diante da visão totalmente
dominadora e utilitária pregada por Francis Bacon e René Descartes, de onde veio a tecnocracia
moderna devoradora do próprio cosmos. Para conseguir isso, Bacon desviou o ensino da Bíblia relativo
ao mandato criacional de seu alvo próprio — cultivar, ordenar e manter a criação — para liberá-la à
cobiça mais desenfreada e destruidora dos homens, ao esquecer de Deus e de sua boa Lei. Veja a obra
notável de Cameron Wybrow, The Bible, Baconianism, and Mastery over Nature. The Old Testament
and its Modern Misreading, Peter Lang, Berne, 1991. Veja também o ensaio notável de Alexandre
Soljénitsyne, “Do arrependimento e da moderação”, na coleção atualíssima: Des voix sous les
décombres, Seuil, Paris, 1975, p. 110-148.
[148]
Sobre uma aplicação atualizada desses perdões pontuais de dívidas, princípios sabáticos e do
jubileu, veja o livro notável de Michael Hudson, …and forgive them their debts. Lending, Foreclosure
and Redemption from Bronze Age Finance to the Jubilee Year, ISLET Verlag, Dresden, 2018.
[149]
Pregação feita em 2009, texto revisado em 2017. As duas obras seguintes nos permitem fazer um
balanço da situação em novembro de 2018. Vincent Held, Le crépuscule de la Banque Nationale
Suisse. La déroute financière annoncée d’une institution en faillite morale, Xenia, Sion, 2017; Liliane
Held-Khawam, Dépossession. Comment l’hyperpuissance d’une élite financière met États et citoyens à
genoux, Editions Réorganisation du Monde, 2018.
[150]
Samuel H. Kellogg, The Book of Leviticus, London, s. d., p. 415-416.
[151]
Rousas John Rushdoony, Deuteronomy, Ross House Books, Vallecito, 2008, p. 432.
[152]
Martin Luther, Lectures and Deuteronomy, Concordia, St. Louis, 1960, p. 249.
[153]
Christopher Wright, Deuteronomy, Paternoster, 1996, p. 267.
[154]
Rousas Rushdoony, Deuteronomy, op. cit., p. 433.
[155]
George Lawson, Exposition of Proverbs, Kregel, Grand Rapids MI, 1980 [1829], p. 192.
[156]
George Lawson, Exposition of Proverbs, op. cit., p. 507-508.
[157]
Veja a exposição que fizemos sobre Isaías, capítulo I, na abertura do livro de Jean-Marc Berthoud,
L’Église au pied du mur: le diagnostic toujours actuel du Prophète Ésaïe, Éditions Messages, Lausanne,
2018.
[158]
Liliane Held-Kwaham, Dépossession. Comment l’hyperpuissance d’une élite financière met États
et citoyens à genoux, Éditions Réorganisation du Monde, 2018.
[159]
Veja: Êxodo 30.13; Levítico 27.25; Números 3.37.
[160]
Texto escrito em março de 2009.
[161]
Nome irônico, segundo o profeta, para Israel e para a Igreja que se tornaram apóstatas.
[162]
Os cataclismas naturais repetidos que vieram sobre os Estados Unidos em 2018 e 2019 deveriam
fazer com que seus cidadões, outrora tão cristãos, refletissem. Os seguintes versos de Eustache
Deschamps (1340-1404), que com grande compreensão testemunham a maneira pela qual se
desenvolve na história a Aliança divina, nos vêm à mente :
Príncipes, certamente os males que fazemos
Diminuem os benefícios que falamos
Para nos punir, é justo o julgamento.
Doravante, para fazer o bem, entendamos;
Amemos e sirvamos a Deus de coração:
Tudo se destrói e não se sabe como.
André Chastel, Trésors de la poésie médiévale, Club français du livre, Paris, 1959, p. 938.
[163] Conferência proferida no I Congresso Internacional. Reforma Protestante y Libertades en Europa,
Facultad de Comunicacion, Universidad de Sevilla, numa terça-feira, 31 de março de 2009, no mesmo
dia em que foi aberta em Londres a conferência dos países do G 20 dedicada à crise econômica e
financeira. Pierre Chaunu morreu no mesmo ano, em 22 de outubro de 2009, com a idade de 86 anos.
[164]
Pierre et Huguette Chaunu, Séville et l’Atlantique 1504-1650, Armand Colin-SEVPEN, Paris,
1955-1959, Doze volumes.
[165]
Veja Philip Wayne Powell, Tree of Hate. Propaganda and Prejudice Affecting United States
Relations with the Hispanic World, Ross House Books, Vallecito, 1985.
[166]
Pesquisas recentes desmonstraram que Pierre Viret nasceu em 1509 e não, como sempre foi dito,
em 1511. Sobre a vida de Pierre Viret veja a obra recente de Rebekah Sheats, Pierre Viret The Angel of
the Reformation, Zurich Publishing, Tallahassee, 2013, traduzida para o francês sob o título Pierre
Viret l’Ange de la Réformation, Association Pierre Viret, Lausanne 2017. Veja igualmente, Jean-Marc
Berthoud, Pierre Viret. Un géant oublié de la Réformation, Kerygma, Aix-en-Provence, 2009.
[167]
Relativo à Borgonh. [N. do T.]
[168]
Veja algumas pregações que pronunciou na Catedral de São Pedro, em Genebra, substituindo
Calvino, que estava doente: Quatre sermons français sur Esaïe 65, Payot, Lausanne, 1961, 110
páginas.
[169]
Sobre algumas discussões eclesiásticas nesses Sínodos, das quais Pierre Viret participou, veja
Philippe Denis e Jean Rott, Jean Morély (ca. 1524 – ca. 1594) et l’utopie d’une démocratie dans
l’Église, Droz, Genebra, 1993, 406 páginas.
[170]
Philippe Chareyre, La construction d’un État protestant, le Béarn au XVIe siècle, CEPB, Pau,
2010.
[171]
Jean Barnaud, Pierre Viret, sa vie et son œuvre, G. Carayol Imprimeur, Saint-Amans, p. 647.
[172]
Henri Meylan, “Une amitié au XVIe siècle: Farel, Viret, Calvin”, dans Silhouettes du XVIe siècle,
Edições da Igreja nacional do cantão de Vaud, Lausanne, 1943, p. 27-50.
[173]
Karine Crousaz, L’Académie de Lausanne entre Humanisme et Réforme (ca. 1537-1560), Tese de
Doutorado, Universidade de Lausanne, 2010, Brill, Leiden, 2011, 610 páginas. Veja também: Henri
Meylan, La Haute Ecole de Lausanne, 1537-1937, F. Rouge, Lausanne, 1937, 122 páginas; Louis
Junod et Henri Meylan, L’Académie de Lausanne au XVIe siècle, Livraria da Universidade, Lausanne,
1947, 149 páginas. Sobre a Academia de Genebra: Charles Borgeaud, Histoire de l’Université de
Genève. Tome I, L’Académie de Calvin 1559-1798, Georg, Genebra, 1900, 664 grandes páginas. A
Academia fundada por Pierre Viret, mais tarde transformada em Faculdade de Teologia, fechou suas
portas no outono de 2010 por falta de estudantes, para ser substituída por um Instituto de Ciência das
Religiões, sem conteúdo especificamente cristão, cuja tarefa não é mais formar pastores.
[174]
Karine Crousaz, citando uma carta de Teodoro de Beza a Guilherme Farel, datando de abril de
1558, registra o número de 700 estudantes, dos quais 110 bolsistas. Karine Crousaz, op. cit. p. 291.
[175]
Henri Vuilleumier, Notre Pierre Viret, op. cit., p. 142.
[176]
Uma pequena parte da imensa obra de Pierre Viret foi reeditada no século XX. Charles
Schnetzler, Henri Vuilleumier e Alfred Schroeder, Pierre Viret par lui-même, Georges Bridel,
Lausanne, 1911, 342 páginas, antologia; Jean Barnaud (Editor), Quelques lettres inédites de Pierre
Viret, G. Carayol, Saint-Amans, 1911, 156 páginas; Pierre Viret, Quatre sermons français sur Esaïe 65,
Payot, Lausanne, 1961, 108 páginas; Deux dialogues. L’Alcumie du Purgatoire ; L’Homme naturel,
Biblioteca romanda, Lausanne, 1971, 200 páginas, extratos; L’interim fait par dialogues, Peter Lang,
Berne, 1985, 365 páginas; La cosmographie infernale, Éditions de la Différence, Paris, 1991, 96
páginas, extratos. Veja a publicação maior de Pierre Viret reeditada pela Association Pierre Viret,
Pierre Viret, Instruction Chrétienne, Tome I, 2003; Tome II, 2009; Tome III, 2013, L’Âge d’Homme,
Lausanne. O Tome IV deveria ter sido publicado em 2019.
[177]
Veja a Bibliographie de l’œuvre de Pierre Viret no final do Segundo Volume da Histoire
alliancielle de l’Église dans le monde.
[178]
Volume I, 674 páginas ; Volume II, 903 páginas, Genebra, 1564. Uma parte de um terceiro
volume projetado por Viret foi publicado à parte sob o título : De la providence divine, Lyon 1565, 803
páginas. Veja esta publicação maior de Pierre Viret republicada pela Association Pierre Viret: Pierre
Viret, Instruction Chrétienne, Tome I, 2004; Tome II, 2009; Tome III, 2013, L’Âge d’Homme,
Lausanne. Le Tome IV deveria ter sido publicado em 2019.
[179]
Claude-Gilbert Dubois, La conception de l’histoire en France au XVIe siècle (1560-1610), Nizet,
Paris, 1977, 668 páginas.
[180]
Le monde à l’empire et le monde démoniacle fait par dialogues, Genève, 1561, 373 páginas.
[181]
Claude-Gilbert Dubois, La conception de l’histoire en France au XVIe siècle (1560-1610), p. 449.
[182]
Viret escreveu em francês reformation (sem acento agúdo), como se fazia em seu tempo e não
réformation como fazemos hoje. Porque não se tratava simplesmente de “réformer” a Igreja e a
sociedade, mas de « re-former », formá-las de novo totalmente e sobre o modelo antigo da primeira
Igreja e do ensino da Bíblia..
[183]
Claude-Gilbert Dubois, op. cit., p. 453.
[184]
Ibidem, citant Pierre Viret, Le monde à l’empire, 1580, op. cit., p. 150.
[185]
Claude-Gilbert Dubois, op. cit., p. 453.
[186]
Veja Le monde à l’empire op. cit., p. 156. Eu observei na época:
Que compreensão acurada e surpreendente do que se passa atualmente (setembro de 2008) nos Estados
Unidos relativo aos abusos do governo desse país em relação aos que Viret chamou justamente de
“ladrões e bandidos”, os Rothschilds, os Soros e os Goldman Sachs de sua época. Veja: E. L. Hebden
Taylor (1925-2006), Economics, Money and Banking: Christian Principles, The Craig Press, Nutley,
1978. Veja também os escritos do célebre economista germano-suíço Wilhelm Röpke (1899-1966).
Sobre uma análise do desenvolvimento ao longo dos últimos quatro séculos do fenômeno que atrai aqui
a atenção de Pierre Viret, veja a obra que se tornou um clássimo de George Knupffer, The Struggle for
World Power, Londres, 1971. Sobre uma atualização do controle da política americana por uma máfia
financeira amoral, veja de G. Edward Griffin, The Creature from Jekyll Island, American Opinion,
Appleton, 1994. Sobre uma descrição da maneira em que a Suíça entrou nesse sistema de especulação
financeira mundial, veja : Vincent Held, Le crépuscule de la Banque Nationale Suisse. La déroute
financière annoncée d’une institution en faillite morale, Xenia, Sion 2017. Veja também: Liliane Held-
Khawam, Dépossession. Comment l’hyperpuissance d’une élite financière met États et citoyens à genoux,
Éditions Réorganisation du Monde, 2018.
[187]
Viret de longe previa o cataclisma social e político que seria o desencadeamento inevitável de
desordens, a Revolução Francesa.
[188]
Maurice Allais, La crise mondiale d’aujourd’hui: pour de profondes réformes des institutions
financières et monétaires, Clément Juglar, Paris, 1999.
[189]
É surpreendente que não exista em francês e nem em inglês nenhuma coleção dedicada aos
principais escritos de Alexandre Soljenitsyn sobre essas questões políticas e sociais. Veja indicadas na
Bibliographie II, no fim deste volume, algumas obras políticas do grande escritor russo.
[190]
Entre muitas outras obras primas, veja muito particularmente as duas coleções de cursos de Marcel
De Corte, Économie et Morale et Principes d’un Humanisme Économique, Université de Liège, 1958 et
1965. A edição em livro desses fascículos, de grande atualidade, seria muito desejável. Veja sobre Marcel
De Corte: Danilo Castellano, L’Aristotelismo critstiano di Marcel De Corte, Pucci Cipriani – Editore,
Firenze, 1975.
[191]
Claude-Gilbert Dubois, La conception de l’histoire en France au XVIe siècle (1560-1610), p. 459.
[192]
Pierre Viret Le monde à l’empire op. cit., 1580, p. 271. Citado por Claude-Gilbert Dubois, op. cit.,
p. 461.
[193]
É surpreendente notar que tal colaboração – uma verdadeira comunhão de pensamento – pudesse
ir tão longe. Rebekah Sheats pôde constatar, em seu trabalho de publicação paralela sobre cada um dos
mandamentos do Decálogo expostos por Pierre Viret e que encontramos nos Sermões de João Calvino
dedicados ao Decálogo em Deuteronômio, até que ponto este último dependia dos ensinos éticos de seu
colega de Lausanne. Ela escreveu: “Interessantemente, enquanto examinava os sermões de Calvino
fiquei maravilhada ao ver que ele parece ter empregado o texto de Viret como base para os seus
sermões sobre o Decálogo em Deuteronômio. As similaridades entre seus sermões e os comentários de
Viret são bem impressionantes, frequentemente acompanhando pensamento após pensamento (e quase
palavra por palavra ocasionalmente). Como você sabe, Calvino pregou suas palestras em Deuteronômio
no ano seguinte à publicação original do comentário de Viret” (Carta pessoal, 6 de junho de 2018).
[194]
Robert T. Linder, The Political Ideas of Pierre Viret, p. 63.
[195]
João Calvino, Sermão CXLIV da sexta-feira, 14 de fevereiro de 1556, Deuteronômio 25, 13-19,
Opera Omnia, Volume XXVIII, p. 236.
[196]
João Calvino, Sermão CXLIV da sexta-feira, 14 de fevereiro de 1556, Deuteronômio 25, 13-19,
Opera Omnia, Volume XXVIII, p. 237.
[197]
Pierre Viret, Instruction Chrétienne en la Doctrine de la Loi et de l’Évangile, Volume I, 1564, p.
586-611. O Comentário de Viret sobre os Dez Mandamentos foi primeiro publicado em 1554 sob o
título de Exposition familière des Dix Commandements de la Loi. Uma comparação atenta dos Sermons
sur le Deutéronome proferidos por Calvino em 1556, com a Exposition familière de Pierre Viret de
1554, mostra como Calvino beneficiou-se (ainda que maneira seletiva) dos trabalhos de seu colega e
amigo de Lausanne.
[198]
Citamos aqui a edição nova feita por Arthur-Louis Hofer do Tomo Segundo de l’Instruction
chrétienne de Pierre Viret, L’Âge d’Homme, Lausanne, 2009 [1564].
[199]
Pierre Viret, Instruction Chrétienne, op. cit., Tome II, 2009, p. 619. Edição original, Instruction
Chrétienne en la Doctrine de la Loi et de l’Évangile, Volume I, 1564, p. 581.
[200]
Pierre Viret, Instruction Chrétienne, op. cit., Tome II, 2009, p. 620-621. Edição original,
Instruction Chrétienne en la Doctrine de la Loi et de l’Évangile, 1564, Volume I, p. 581-582.
[201]
Sobre toda essa questão, veja as obras citadas acima de Maurice Allais e de E. L. Hebden Taylor.
[202]
Como já observamos, o pensamento de Pierre Viret sobre essas questões sociais e políticas se
parece muito com o de Alexandre Soljenitsyn. Veja também de Marcel De Corte, Économie et Morale
(1958) e Principes d’un Humanisme Économique (1965), Universidade de Liège. Numa perspectiva
parecida, recomendamos vivamente o comentário do Oitavo Mandamento feito por Rousas John
Rushdoony em seu Institutes of Biblical Law, Volume I, Presbyterian and Reformed, Nutley, 1973, p.
448-541. Veja também os comentários de Gary North sobre Levítico 19.35-36 em seu Commentary on
Leviticus, ICE, Tyler, 1994, e o estudo de G. Edward Griffin sobre essas questões, The Creature from
Jekyll Island. A Second Look at the Federal Reserve, American Opinion, Appleton, 1995. A fonte
essencial dessa análise, que se tornou clássica, sobre o papel deletério dos Bancos Centrais na vida
econômica das nações, se encontra nos trabalhos pioneiros de Eustace Mullins, Secrets of the Federal
Reserve, 1952 seguido de, The London Connection, Bankers Research Institute, Staunton, 1993, cujo
primeiro impulso veio do poeta Ezra Pound, por muito tempo encarcerado – sem processo – depois da
Segunda Guerra, na Saint Elizabeth Mental Hospital em Washington, pelas autoridades americanas, por
sua língua particularmente perigosa quando falou à radio italiana.
[203]
Pierre Viret, Instruction Chrétienne, op. cit., Tome II, 2009, p. 622-623.
[204]
Pierre Viret, Le Monde à l’Empire, 1580 [1561], op. cit., p. 283.
[205]
Aqui está expressa a justificação do poder absoluto dos Príncipes, o potestas absoluta que a
filosofia da Idade Média tardia contrastava com o potestas ordonata, a autoridade ordenada e limitada
pela Lei de Deus e os costumes, que defende aqui Pierre Viret.
[206]
Pierre Viret Le monde à l’empire, 1580, op. cit., p. 283.
[207]
Voici que pointe ici la pensée de Machiavel.
[208]
Pierre Viret Le monde à l’empire, 1580, op. cit., p. 277.
[209]
Tailles et gabelles [em francês], taxas sobre a venda de todos os bens.
[210]
Pierre Viret Le monde à l’empire, 1580, op. cit., p. 279-280.
[211]
Pierre Viret, Le Monde à l’Empire, 1580 [1561], op. cit., p. 280.
[212]
Pierre Viret Le monde à l’empire, 1580, op. cit., p. 280-281.
[213]
Pierre Viret Le monde à l’empire, 1580, op. cit., p. 281-282.
[214]
William Cobbett, “Address to the journeymen and labourers”, Political Register, 3 November
1816. Hilary Clinton, por sua vez, não hesitou muito em considerar “deploráveis”! Testo citado por
Marie de Kergaradec em seu belo estudo, William Cobbett. L’inflation et la déflation. Contribution aux
controverses monétaires du premier quart de XIXe siècle, Tese para doutorado, Société française
d’Imprimerie et de Librairie, Poitiers, 1935, p. 17-18.
[215]
Pierre Viret Le monde à l’empire, 1580, op. cit., p. 272-273, citando são Bernardo, Sermão 33º do
Cântico dos Cânticos. Veja as Œuvres Mystiques de Saint Bernard, Prefácio e tradução de Albert
Béguin, Seuil, Paris, 1953, Sermão 33º, p. 409-410. O parágrafo que cita Viret começa assim:
“Chegaram os tempos libertos, pela misericórdia de Deus, dessa dupla malícia [a perseguição e as
heresias], mas ainda sujos pelos negócios tramados à noite. Infeliz geração contaminada pelo levedo
dos Fariseus, isto é, pela hipocrisia – se é que ainda devemos chamá-la hipocrisia quando está tão
alastrada que não consegue mais se esconder e tão descarada que nem mais se preocupa. Atualmente
essa doença infecciosa ganha todo o corpo da Igreja e quanto mais se alastra, tanto menos esperança
deixa. Quanto mais penetra seu interior, tanto mais sua ação é nociva. [...] Todos são seus amigos e
seus inimigos, etc...” (página 409).
[216]
Pierre Viret Le monde à l’empire, 1580, op. cit., p. 274.
[217]
Pierre Viret Le monde à l’empire, 1580, op. cit., p. 275-276.
[218]
Pierre Viret, Le Monde à l’Empire, 1580 [1561], op. cit., p. 275.
[219]
Na época da pregação. [N. do R]
[220]
A. Housiaux, La Christologie de Saint Irénée, Presses Universitaires de Louvain, Louvain 1955,
p. 189, citando Ireneu, Contre les Hérésies, III, 18, 5a.
[221]
Tradução de Hilário. A mesma da Bible à la Colombe: “É ele quem te livra da rede do
passarinheiro”.
[222]
É o que admiravelmente mostra Heinrich Bullinger em sua obra La vieille foi, Der alte Glaube
(1537), na qual mostra que a fé redescoberta na Reforma de forma alguma é uma novidade, mas a fé
bíblica de sempre. Veja Heinrich Bullinger, Writings and Translations of Myles Coverdale: Containing
the Old Faith. A Spiritual and Most Precious Pearl. Fruitful Lessons. A Treatise on the Lord’s Supper.
Order of the Church in Denmark. Abridgement of the Enchiridion of Erasmus, Andesite Press, 2017.
[223]
A Bíblia Segond 21 traduz ferirás.
[224]
Benno Jacob, The First Book of Genesis. Augmented Edition, KATAV Publishing House, Jersey
City, 2007 [1974], p. 93.
[225]
Região mais tarde chamada Palestina.
[226]
Por esta seção, devemos muito ao estudo de R. T. Kendall, Tithing: A Call to Serious, Biblical Giving,
Zondervan, Grand Rapids, 1982, p. 47-51.
[227]
Kendall, op. cit., p. 49.
[228]
Henry Lansdell, The Tithe in Scripture (Grand Rapids: Baker, 1963).
[229]
Henry Lansdell, op. cit., p. 26.
[230]
Sobre a importância fundamental da cultura na vida de uma cidade cristã e na própria Igreja, veja
de Klaas Schilder, Christ and Culture, Premier, Winnipeg, 1977 [1947] e Henry R. Van Til, The
Calvinistic Concept of Culture, Presbyterian and Reformed, Philadelphia, 1972. Veja também o
admirável estudo do Cardeal Cardinal Giuseppe Siri, La Culture – Orthodoxie, erreurs et dangers:
Orthodoxie, fléchissements, compromis, Office International, Sion, 1962. Disponível no site
Calvinisme.ch. http://calvinisme.ch/index.php/CARDINAL_Siri_-_La_Culture
[231]
Henry Lansdell, op. cit., p. 27.
[232]
O mesmo para a santa ceia, que é a celebração da Páscoa cristã – refeição sacramental que, na
Nova Aliança, tomou o lugar da Páscoa judaica – em cada vez que a celebramos devemos nos lembrar
da morte do Senhor, até que ele venha, e não da libertação do Egito, como ainda fazem os judeus.
[233]
Scott McCarty escreveu sobre o Yom Kippour em Promesses, N° 166, fim de 2008, o que segue:
A Escritura define essa cerimônia de expiação anual pela palavra hebraica “kippourim” (Êxodo 30.10;
Levítico 16.1-34; 23.27-32; 25.9; Números 29.7-11) que significa “expiações”. A expiação é, ao
mesmo tempo, a eliminação da ofensa contra o santo Deus e a purificação do ofensor (cf. Salmos 32.1;
99.8; Oseias 14.2; Neemias 9.17). Essa doutrina veterotestamentária da expiação dos pecados é
retomada e explicada no Novo Testamento. A “ propiciação” é uma outra faceta da salvação, que
designa o apaziguamento, a pacificação com Deus através de um sacrifício (Romanos 3.24-25; 1 João
4.10). Essa pacificação (Romanos 5.1) desvia [para o seu próprio Filho amado, Jesus Cristo] sua justa
ira contra o pecador e contra o seu pecado (1 João 2.2). Assim, os dois Testamentos ensinam que a
expiação (a supressão da ofensa) e a propiciação (a supressão da cólera divina) são partes integrantes da
salvação.
[234]
Henry Lansdell, op. cit., p. 44.
[235]
Seguro de velhice e de vida, mais conhecido sob a abreviação AVS, que é a coluna principal da
previdência social suíça. Visa compensar, ao menos parcialmente, a diminuição ou perda do salário em
razão da idade ou de morte. [N. do T.]
[236]
Henry Lansdell, op. cit., p. 28-29.
[237]
Dennis Wretlind, Shekels, Dollars and Sense. A Biblical Theology of Financial Stewardship,
Trafford Publishing, Victoria, 2006, p. 10-21. Trata-se de uma obra muito útil da qual devem ser
corrigidos alguns desvios dispensacionalistas.
[238]
David Martin, notas da página 117, isto é, em La Sainte Bible qui contient le Vieux et le Nouveaux
Testament expliqués par des Notes de Théologie et de Critique sur la Version Ordinaire des Églises
Réformées, revues sur les Originaux, et retouchées dans le langage, Desbordes, Mortier, Brunel,
Amsterdam, 1707.
[239]
La Bible Annotée par une société de théologie et de pasteurs. Ancien Testament, Les Livres
Historiques, I, Attinger Frères, Neuchâtel, 1889, p. 345.
[240]
Henry Lansdell, op. cit., p. 30.
[241]
Dennis Wretlind, op. cit., p. 21.
[242]
Samuel e Henry Des Marets, La Sainte Bible qui contient le Vieux et le Nouveau Testament.
Édition nouvelle, faite sur la Version de Genève, revue, et corrigée, enrichie outre les anciennes Notes,
de toutes celles de la Bible Flamande, de la plus-part de celle de M. Diodati, et de beaucoup d’autres.
Editora de Louys et Daniel Elzevier, Amsterdam, 1669, p. 96, segunda coluna, nota 26 sobre
Deuteronômio 14.28.
[243]
Livro de Tobias 1:6-9. Citado em, La Bible, tradução francesa dos textos originais por Émile Osty
com a colaboração de Joseph Trinquet, Seuil, Paris, 1973, p. 929-930.
[244]
Flavius Josèphe, Histoire ancienne des Juifs. La guerre des Juifs contre les Romains, Lidis, Paris,
1968, p. 108.
[245]
Flavius Josèphe, op. cit., p. 125.
[246]
Henry Lansdell, op. cit., p. 33. Citando Jerônimo, Commentaire sur Ézéchiel, XLV, i.
[247]
Henry Lansdell, op. cit., p. 33.
[248]
São erros antigos do dualismo marcionita e gnóstico, hoje amplamente retomado por seus
sucessores darbystas e scofieldianos, como também pelo idealismo sentimental tão corrente em todos
os meios que, implicita ou explicitamente, descartam o Antigo Testamento de sua meditação na Bíblia.
[249]
Dennis O. Wretlind, Shekels, Dollars and Sense. A Biblical Theology of Financial Stewardship,
Traffard Publishing, Victoria, 2006. Veja, particularmente, o quinto capítulo deste livro: “Financial
Stewardship in the Expanded Church of the New Testament”, p. 64-90.
[250]
John Murray, The Epistle to the Romans, Eerdmans, Grand Rapids, 1965, p. 133.
[251]
R. C. H. Lenski, The Interpretation of St. Paul’s Epistle to the Romans, Augsburg, Minneapolis,
1936, p. 772.
[252]
J. B. Lightfoot, Saint Paul’s Epistle to the Galatians, MacMillan, London, 1887, p. 217.
[253]
Essa condenação toca também as ordens católicas ditas “mendicantes”, como os franciscanos e os
dominicanos. Os servos de Deus devem ter relações com uma igreja local que atenda suas
necessidades. Veja o belo livro de Penn R. Szittya, The Antifraternal Tradition in Medieval Literature,
Princeton University Press, Princeton NJ, 1986.
[254]
R. C. H. Lenski, Romans, op. cit., p. 892. Wretlind, op. cit., p. 78.
[255]
Philip E. Hughes, Paul’s Second Epistle to the Corinthians, Eerdmans, Grand Rapids, 1962, p.
306. Citado por Wretlind, op. cit., p. 81-82. Nossa tradução.
[256]
J. B. Lightfoot, St. Paul’s Epistle to the Philippiens, Zondervan, Grand Rapids, 1953, p. 83.
[257]
Wretlind, op. cit., p. 89.
[258]
Seguimos a segunda parte da pequena brochura de Lukas Vischer, Tithing in the Early Church,
Fortress Press, Philadelphia, 1966, p. 11-30. A primeira parte dessa pequena obra, útil em razão de sua
documentação, em regra é um ataque antinomiano (do tipo barthiano) contra toda prática atual do dízimo,
como sendo uma coisa perigosa (p. 10), porque se trataria, segundo o autor, de um compromisso cristão
com o espírito de Mamon. O antinomismo barthiano de Lukas Vischer se alia, em muitos aspectos, ao de
Jacques Ellul.
[259]
Lukas Vischer, Tithing in the Early Church, Fortress Press, Philadelphia, 1966 [1959], p. 9.
[260]
L. Vischer, op. cit., p. 9-10.
[261]
Lukas Vischer, op. cit., p. 10. Essa atitude “existencialista” (como a de Jacques Ellul) repousa
sobre uma tendência gnóstica em diabolizar a matéria, neste caso os bens materiais, como também
rejeitar (de maneira barthiana) o caráter normativo por toda a Bíblia – Novo como Antigo Testamento –
da Lei divina. Veja as refutações muito cuidadosas a tais posições, totalmente heterodoxas, em diversos
estudos contidos na obra essencial de Pierre Courthial, Fondements pour l’avenir, Kerygma, Aix-en-
Provence, 1981.
[262]
Encontramo-nos próximos da utopia espiritualista, que defende um tipo de “pobreza totalmente
voluntária” própria dos franciscanos, os mais fanáticos.
[263]
L. Vischer, op. cit., p. 10-11.
[264]
É o que explicitamente ensina Jacques Ellul em sua Éthique de la liberté. Três volumes, Labor et
Fides, Genève, 1973-1989.
[265]
L. Vischer, op. cit., p. 12. As referências estão em Matthieu 23.23. Podemos ver práticas parecidas
no seio da Igreja de Genebra do tempo de Calvino. Elsie Anne McKee, John Calvin on the Diaconate
and Liturgical Almsgiving, Droz, Genebra, 1984 ; Elders and the Plural Ministry. The Role of
Exegetical History in Illuminating John Calvin’s Theology, Droz, Genebra, 1988.
[266]
Vischer comenta aqui: “É surpeendente constatar que a maior parte dos textos provenientes da
primeira igreja não contenham referências ao dízimo, palavra no singular, mas falem sempre de
dízimos no plural. Os Pais, aparentemente, compartilhavam a convicção do judaismo tardio [?],
segundo o qual as regras concernentes ao dízimo, contidas no Antigo Testamento, deviam ser
acrescentadas umas às outras” (L. Vischer, op. cit., p. 14, nota 28).
[267]
Lucas 21:1-4. Ireneu de Lião, Contre les hérésies, Cerf, Paris 2001, IV, 18, 2, p. 461-462. Citado
por L. Vischer, op. cit., p. 13-14.
[268]
São Cipriano, L’unité de l’Église, citado por L. Vischer, op. cit., p. 15. Trata-se, neste caso, de
nossa tradução a partir do inglês.
[269]
João Crisóstomo, Œuvres complètes de S. Jean Chrysostome, Tomo quinto, Bardes, Pont-à-Mousson,
1866, p. 313 (sobre Efésios 2.1-3). Texto citado em parte por L. Vischer, op. cit., p. 15-16.
[270]
Agostinho de Hipona, Sermons, X, 19, citado por L. Vischer, op. cit., p. 16.
[271]
Agostinho de Hipona, Sermons, LXXXV, 5. Citado por L.Vischer.
[272]
Jerônimo, Commentaire sur l’Évangile selon Matthieu, capítulo 2, verso 22. Citado por L.
Vischer, op. cit., p. 19.
[273]
João Crisóstomo, Homélies sur la Genèse, capítulo 35. Citado por L. Vischer, op. cit., p. 19.
[274] Faith for All of Life, Vallecito, November-December 2017.
[275]
Dennis C. Rasmussen, The Infidel and the Professor: David Hume, Adam Smith, and the
Friendship that Shaped Modern Thought, Princeton University Press, Princeton, NJ, 2017.
[276]
Lembremos que a descrição de toda a realidade baseava-se no pensamento de Aristóteles e, mais
tarde, no pensamento da escolástica tomista e reformada, sobre as quatro causas : a final, a formal, a
material e a eficiente.
[277]
Veja o apego de Nabote à sua vinha, herança de seus pais, diante das exigências tirânicas do rei
Acabe em 1 Reis, capítulo 21. Sobre a legislação concernente ao perdão de dívidas no Oriente Médio
antigo, assim como no ano do jubileu em Israel, veja Michael Hudson, ... and forgive them their debts.
Lending, Foreclosure and Redemption from Bronze Age Finance to the Jubilee Year, ISLET Verlag,
Dresden, 2018.
[278]
E. L. Hebden Taylor, Economics, Money, and Banking, The Craig Press, Nutley, NJ, 1978; The
Origin and Nature of Modern Capitalism, Christian Studies Center, Dordt College, 1975.
[279]
Francis Nigel Lee, Communist Eschatology. A Christian Philosophical Analysis of the Post-
Capitalist Views of Marx, Engels and Lenin, The Craig Press, Nutley, NJ, 1974.
[280]
Simon Ligier, L’adulte des milieux ouvriers, Dois Volumes. Tomo I, Essai de psychologie
sociale ; Tome II, Essai de psychologie pastorale, Les Éditions Ouvrières, 1950-1951.
[281]
As obras de Wilhelm Röpke disponíveis em francês e inglês podem ser encontradas Amazon.fr e
Amazon.com.
[282]
Jean-Marc Berthoud, L’Alliance de Dieu à travers l’Écriture sainte. Une théologie biblique,
L’Âge d’Homme, Lausanne, 2012.
[283]
Veja as obras de Pierre Courthial sobre esse assunto: Le jour des petits recommencements, Éditions
Messages, Lausanne, 2019 [1996] e De Bible en Bible, L’Âge d’Homme et Kerygma, Lausanne e Aix-
en-Provence, 2003, como também a do pastor, Richard Paquier.
[284]
Tomás de Aquino, Somme théologique, La Loi ancienne, Deux volumes, IaIIae Qu 98-105, Desclée
et Cie, Paris, 1971.
[285]
Rebekah A. Sheats, Pierre Viret. L’Ange de la Réformation, Association Pierre Viret, Lausanne,
2017.
[286]
Lancelot Andrewes, The morall law expounded ... that is, the long-expected, and much-desired
worke of Bishop Andrewes upon the Ten commandments : being his lectures many yeares since in
Pembroch-Hall Chappell, in Cambridge, London, 1642.
[287]
Veja sobre Martinho Lutero, “Jésus est né Juif” [1523], Œuvres, Tome IV, Labor et Fides, Genève,
1958, p. 51-76 ; e sobre João Calvino, Réponses aux questions et objections d’un certain Juif, Labor et
Fides, Genève, 2010 [1575].
[288]
Veja a obra sempre tão atual de Alphonse Morel, Messianisme temporel et Messianisme spirituel.
Réflexions sur les idéologies contemporaines, Cahiers de la Renaissance vaudoise, Lausanne, 1988 e a de
Marcel Regamey, Évangile et politique, Cahiers de la Renaissance Vaudoise, Lausanne, 1973.
[289]
Esse consenso imanente, hoje presente em todo lugar, esteve também na alma do conceito de
“soviete” comunista. Tratava-se, originalmente, de um conselho de operários, fechado em si mesmo,
movidos por ideias progressistas. Ele tornou-se o centro do poder “soviético”. Qualquer desacordo com o
“soviete” levava, como em toda forma dinâmica de grupo, à exclusão de quem perturbasse a unidade
consensual do grupo. Essa noção está no centro do “pensamento único” ou do pensamento “politicamente
correto”, ou ainda, da novilíngua do totalitarismo de estado absoluto descrito no livro de cunho político e
altamente realista de Georges Orwell, 1984.
[290]
Jules Monnerot, Sociologie du communisme. Echec d’une tentative religieuse au XXe siècle,
Hallier, Paris, 1979 1963]; Sociologie de la Révolution. Mythologies politiques du XXe siècle.
Marxistes-léninistes et fascistes. La nouvelle stratégie révolutionnaire, Fayard, Paris, 1969.
[291]
Augusto del Noce, The Crisis of Modernity, McGill-Queen’s University Press, Montreal, 2015.
Veja também: L’irréligion occidentale, Fac-éditions, Paris, 1995 e L’époque de la sécularisation,
Syrtes, Paris, 2001.
[292]
Sobre isso veja (entre muitas obras desse autor) os dois livros clássicos de Thomas Molnar (1921-
2010), L’Utopie. Éternelle Hérésie, Beauchesne, Paris, 1967 e Twin Powers. Politics and the Sacred,
Eerdmans, Grand Rapids MI, 1988.
[293]
Veja o estudo fundamental de William C. Placher, The Domestication of Transcendance. How
Modern Thinking about God Went Wrong, Westminster John Knox Press, Louisville, KY, 1996.
[294]
Veja Cornelius Van Til, Christian Theory of Knowledge, Presbyterian and Reformed,
Philadelphia, PA, 1969 e Rousas John Rushdoony, The One and the Many. Studies in the Philosophy of
Order and Ultimacy, Ross House Books, Vallecito, CA, 2007 [1978].
[295]
“God has given Trump authority to take out Kim Jong-um”, Declaração do conselheiro evangélico
do Presidente, Information Clearing House, 8 de outubro de 2017. Extraído de um artigo
primeiramente publicado pelo Washington Post em 9 de agosto de 2017.
[296]
Agradeço ao professor Paul Wells por suas observações que facilitaram a redação deste parágrafo.
[297]
Sobre John Knox veja, particularmente, o belo estudo de Pierre Janton, John Knox (ca. 1513-
1572). L’homme et l’œuvre, Didier, Paris, 1967 e, mais particularmente, a seção intitulada “A Igreja e a
sociedade”, p. 287-358. No que diz respeito ao pensamenteo político e ético de John Knox, Pierre
Janton escreveu: “Numa sociedade na qual cada um se define por sua condição imutável, toda ruptura
da ordem instituída por Deus leva ao caos, figura da ira divina. A harmonia do mundo, como aquela
harmonia do casal, só subsiste se cada um tiver o seu devido lugar. Tanto o homem como a mulher
podem degenerar, isto é, sair de seu gênero e tornar-se “inferior aos brutos”, quando ele se afeminiza”.
Cf. Pierre Janton, John Knox (v. 1513-1572). Réformateur écossais, Cerf, Paris, 2013, p. 191.
Acrescentamos que a ordem criacional, em nossos dias ridicularizada por todos, é, verdadeiramente, “a
ordem instituída por Deus”, cuja ruptura, hoje como ontem, “leva ao caos”, que não é outra coisa senão
uma “figura da cólera divina”.
[298]
Quem não é contra nós é por nós (Marcos 9.40).
[299]
Quem não é por mim é contra mim; e que comigo não ajunta espalha (Mateus 12.30).
[300]
Esses textos foram publicados no número de maio-junho de 2018 de Faith for All of Life,
Vallecito.