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O OITAVO MANDAMENTO, NÃO ROUBARÁS

A economia, o roubo e a ordem da criação

Jean-Marc Berthoud
Copyright © 2020, de Editora Monergismo

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por


EDITORA MONERGISMO
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato
Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-620
www.editoramonergismo.com.br

1ª edição, 2020

Tradução: P. S. Athayde Ribeiro


Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto

PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.
Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) salvo
indicação em contrário.
O Moinho místico[1]

Moisés, vestido com uma túnica curta e os pés calçados como um escravo, se curva sobre o
funil de um moinho, no qual derrama o conteúdo de um saco de grãos que traz sobre os
ombros. Paulo, com os pés descalços, vestido como um cidadão, estende um outro saco sob
a marquise para recolher a farinha. A roda do moinho representa uma cruz incrustada num
círculo. A cruz está no centro do capitel, no qual todas as linhas seguem a curva da roda: o
corpo dos dois personagens, as dobras das suas vestimentas, arfando com o vento do
Espírito, o saco meio vazio sobre o ombro de Moisés, a barba de Paulo, o gesto de seu
braço impulsionado pelo movimento da roda e que corrige a curva oposta do seu rosto, com
testa e queixo recolhidos, nariz adunco e grandes olhos saltados.
Moisés derrama a semente bruta da Lei antiga na prensa da cruz. Por sua Paixão, Cristo
extrai a pura e fina farinha da Nova Aliança, que é recebida pelo apóstolo, liberto da
escravidão do pecado que a Lei tornava inevitável (Romanos 6.20 e 7.7), livre como um
filho de Deus e irmão de Cristo (Romanos 8.14-17). Esse é o capitel mais famoso da
basílica de Madalena, em Vézelay: o moinho místico.
À memória de uma herança:
Teólogos, filósofos, economistas e juristas
João Crisóstomo
Tomás de Aquino
Heinrich Bullinger
Pierre Viret
João Calvino
Théodore Agrippa d’Aubigné
Richard Hooker
Lancelot Andrewes
François Turrettini
Bénédict Pictet
Johann Georg Hamann
Friedrich Julius Stahl
Donoso Cortes
Robert L. Dabney
Herman Bavinck
Klaas Schilder
Hendrik G. Stoker
E. L. Hebden Taylor
Cornelius Van Til
Rousas John Rushdoony
Pierre Courthial
Sumário
Prefácio
Introdução
Capítulo I: A excelência do mandamento
Capítulo II: O conteúdo do Oitavo Mandamento: Transgredir um mandamento é
transgredir todos
Capítulo III: O espírito do Oitavo Mandamento: O amor ao dinheiro, a raiz de todos os
males
Capítulo IV: O roubo e o Natal
Capítulo V: O roubo antes do Decálogo
Capítulo VI: O Oitavo Mandamento e sua aplicação no Código da Aliança
Capítulo VII: O Código da Aliança e a reparação
Capítulo VIII: O Código da Aliança e as cauções
Capítulo IX: O oitavo mandamento e sua aplicação em Deuteronômio
Capítulo X: A usura (1)
Capítulo XI: A usura (2)
Capítulo XII: O ensino bíblico sobre balanças falsas
Capítulo XIII: Pierre Viret e uma economia sensata
Capítulo XIV: A generosidade de Deus
Capítulo XV: Abraão, o pai do dízimo
Capítulo XVI : Os três dízimos da Lei
Capítulo XVII: Os três dízimos na Nova Aliança: A prática do dízimo na Igreja de
Jerusalém
Capítulo XVIII: Os três dízimos na Igreja apostólica: As necessidades da igreja local e
da Igreja Universal
Capítulo XIX: Os dízimos na Igreja pós-apostólica: Algumas considerações práticas
Conclusão
Prefácio
Jean-Marc Berthoud

Os sermões que formam o conteúdo essencial deste livro provêm de uma


série de pregações mensais dadas ao longo de pouco mais de doze anos na
pequena Assemblée Évangélique de Sion,[2] cujo pastor chamava-se André
Rentmeister. Estes estudos foram dedicados, exclusivamente, aos Dez
Mandamentos, começando pela Torá e em seguida percorrendo toda a Bíblia.
Agradeço vivamente ao pastor Rentmeister pela grande generosidade em
possibilitar essas pregações, como também seu apoio leal, durante todos esses
anos, tornando este trabalho possível.
Dois capítulos fogem à regra, porque não constituem pregações: o terceiro
capítulo, foi uma conferência dada em um Congresso Internacional na cidade
de Sevilha, na Espanha, em 31 de março de 2009, exposição dedicada ao
tema Pierre Viret e uma economia sensata, e a conclusão desta obra,
intitulada Onde nos situamos? Uma abordagem mais ampla, que é o
resultado de uma abundante correspondência com meus editores brasileiros,
Felipe Sabino e Fabrício Tavares de Moraes, da Editora Monergismo, em
Brasília, texto publicado em seguida em inglês por Martin Selbrede, no
número de novembro-dezembro de 2017 da revista da Fundação Calcedônia,
em Vallecito, Califórnia, Faith for all of Life.
Agradeço aqui, calorosamente, a esses três amigos! Sou grato também a meus
fiéis revisores, em primeiro lugar minha esposa Rose-Marie, como também a
Olivier Udriot e, enfim, a Laurence Benoit, que aceitou fazer uma última
revisão deste livro. Também uma palavra de vivo reconhecimento ao
responsável por todas essas publicações, Pierre Benoit, de Genebra. Sem sua
dedicação incessante e grande competência, nenhuma dessas obras poderia
ter sido publicada. Um efusivo agradecimento pela bela Introdução de Jean-
Pierre Graber, autor evangélico com o qual tenho comunhão de pensamento
desde a leitura de seu livro premonitório, de 1983, dedicado aos “perigos
totalitários do Ocidente”.[3]
Para concluir, algumas palavras sobre a abordagem que caracteriza os
diversos capítulos deste livro. Desde a infância sempre tive grande respeito
pelos mandamentos da Lei de Deus, respeito que devo certamente à piedade
venturosa e corajosa de meus pais, Alexandre e Madeleine Berthoud-
Bourquin. Após minha conversão em meados da década de 1960, procurei
algumas obras que tratassem dos mandamentos de Deus. Devo assinalar aqui
duas influências formadoras: a tradição católica romana antiga sobre a ordem
do Direito natural e cristão[4]; toda a obra do grande teólogo calvinista
americano, de origem armênia, Rousas John Rushdoony (1916-2001), como
também a obra de Pierre Courthial (1914-2009), eminente doutor da Igreja de
Jesus Cristo, que tive a honra de editar.
Ocorreu-me, então, que seria útil abordar o estudo da Lei divina, resumida
em seu duplo legado, ou seja, através de toda a Bíblia e em sua aplicação à
ordem criacional como um todo. Entretanto, tinha em mente que esse estudo
da Lei divina deveria ser verdadeiramente “católico”, isto é, segundo a
totalidade da Revelação especial de Deus (a Tota Scriptura, a Bíblia inteira) e
conforme a totalidade da revelação geral de Deus (a ordem de toda a criação
de Deus e de sua providência pactual concernente a toda a história dos
homens). Essa leitura da santa Lei-Palavra de Deus deveria ser feita, não
somente pelo que nos diz a Torá, os cinco livros de Moisés, mas através dos
ensinos de toda a Bíblia, Novo e Antigo Testamentos, livros de Sabedoria,
Profetas, Históricos, Evangelho e o testemunho dos Apóstolos. Em sua
grande bondade, Deus me permitiu, em modesta medida, ao longo desses
doze anos de pregação mensais na pequena Assembleia Evangélica de Sion,
realizar o esboço de tal ambição, fazendo-me prosseguir nesses estudos sobre
o Decálogo.
Foi assim que descobri, mais e mais, como a leitura dos mandamentos justos,
santos, bons e verdadeiros de Deus, através de toda a Santa Escritura,
permitiu firmar, pela primeira vez, minha convicção sobre a realidade bíblica
dessa harmonia distinta, mas perfeitamente complementar, que existe entre a
Lei e o Evangelho, essa dupla luz, una e ao mesmo tempo diversa, que
ilumina nosso mundo em todas as suas facetas e em cada um dos aspectos de
sua realidade e que foi testemunhada com tanta eloquência na capa deste
livro, na qual podemos ver reproduzido o célebre capitel denominado Le
Moulin Mystique [O moinho místico], da Basílica Santa Maria Madalena de
Vézelay. Esta cidade da Borgonha foi também o lugar de nascimento do
célebre Doutor da Igreja Cristã, Teodoro de Beza (1519-1605), sucessor de
João Calvino (1509-1564) como Moderador da Companhia dos Pastores da
Igreja de Genebra.
Vê-se no alto, à esquerda do capitel denominado Le Moulin Mystique, Moisés
derramando a boa semente da Palavra-Lei de Deus; embaixo, à direita, está o
apóstolo Paulo recolhendo em um saco a boa farinha do Evangelho. No
coração desse quadro de pedra, de maravilhoso significado e de grande
beleza, aparece o sinal da cruz do calvário, onde foi realizada nossa salvação.
É belo ver também o casamento entre a misericórdia do céu e essa pedra da
criação, através de uma arte tão bela, tão sensível e de grande piedade, feita
na pedra por um anônimo escultor, modesto construtor dessa bela basílica
cristã.
Mas, minha gratidão e adoração, como sempre, se dirigem em primeiro lugar
e antes de tudo ao Autor celeste de todo o bem terrestre, o Único Deus, Pai,
Filho e Espírito Santo, a quem dou todo louvor, toda honra, toda adoração e
toda glória. Amém e amém!
Lausanne, 2 de fevereiro do ano da graça de 2019.
Introdução
Jean-Pierre Graber

As várias obras de Jean-Marc Berthoud surgiram como resultado de sua


conversão radical e profunda ao Deus Trinitário, Pai, Filho e Espírito Santo,
como também da corrente teológica calvinista-batista à qual pertence, de sua
teologia da aliança, de sua grande capacidade intelectual, sua vasta cultura e
formação acadêmica, de seu vigor e coragem.
Seu livro mais recente não foge à regra.
O título principal desta obra é O oitavo mandamento, não roubarás. A esse
título segue-se um enunciado que lembra muito bem o apego do autor às
normas divinas criacionais: “Os Dez Mandamentos à luz da Bíblia, uma Luz
divina para nosso tempo”. Segue-se ao título geral, algo que assinala e já
revela a extensão dessa obra e a visão teológica que a inspira: “A economia, o
roubo e a ordem da criação”.
A teologia sistemática, específica e coerente de Jean-Marc Berthoud inspira
todos os seus livros. É a teologia da aliança bíblica fundamentada sobre a
ordem criacional, anterior à queda do homem no Éden. Essa ordem,
estabelecida por Deus no momento da criação, é imutável.
No número 99 da revista “Promessas”, Jean-Marc Berthoud escreveu que “se
os Dez Mandamentos são uma síntese da ordem que o Criador e Legislador
divino deu aos homens enquanto indivíduos, da mesma forma são para os
homens que vivem em sociedade.” A lei divina não deveria ser aplicada
unicamente aos cristãos preocupados em obedecer a Deus, mas a todo
homem. Segundo Jean-Marc Berthoud, essa lei divina exerce autoridade
sobre todos os seres humanos, em todos os lugares e desde a criação. De
maneira pertinente ele mostra que o dízimo era praticado por Abraão antes da
redação dos livros do Pentateuco e antes da revelação dos Dez Mandamentos
ao povo de Israel por meio de Moisés. Antes mesmo da inscrição do 6º
mandamento nas Tábuas da Lei, a morte de Abel foi considerada como um
assassinato executado por Caim. Desde sempre, as bênçãos e as maldições —
concernentes às pessoas enquanto indivíduos, aos cristãos, aos não cristãos, à
Igreja, às coletividades de qualquer natureza ou mesmo aos Estados-nações
— dependem, em larga medida, do respeito às imutáveis leis divinas.
Logicamente, Jean-Marc Berthoud se opõe veementemente à concepção
positivista do direito, segundo a qual a legislação em vigor deve se adaptar
constantemente às evoluções culturais, societárias, sociais, políticas e
econômicas da sociedade. Esta concepção do direito foi teorizada
principalmente por Hans Kelsen. Atualmente ela é adotada por todos os
relativistas. Jean-Marc Berthoud estima, de maneira perfeitamente justificada,
que esse relativismo contribuirá para a falência de todas as civilizações que
vivem sob seu império. Essa visão lúcida sobre o nosso tempo se aproxima
daquela manifestada pelo papa Bento XVI, quando evocou “a ditadura do
relativismo que surge como a única atitude a altura do tempo em que
vivemos, atitude que não reconhece nada como definitivo e que tudo mede à
luz de seu próprio ego e de seus próprios desejos”.
É preciso ter em mente a teologia e a filosofia histórica de Jean-Marc
Berthoud para compreender melhor a trama, os desenvolvimentos, o
conteúdo e as implicações práticas de seu livro sobre o 8º mandamento.
Como deveria ser, de início Jean-Marc Berthoud definiu de maneira clara o
que é o roubo em seu sentido mais imediato. Sabe-se que esta transgressão ao
Decálogo diz respeito ao roubo do bem alheio, ao assalto, à fraude, à gestão
fraudulenta, como também ao estelionato e falsificações de qualquer
natureza. Mas, resumir-se a isso seria evidentemente muito pouco. Nada
surpreendente, Jean-Marc Berthoud dá um passo a mais quando justamente
afirma: “Tanto a avareza, que é guardar tudo para si, como a prodigalidade,
que é desperdiçar o que Deus nos deu, são graves infrações contra o espírito
desse mandamento”.
Mas sua grande capacidade de reflexão, seu apego à “Palavra de Deus-Lei” e
sua erudição levam-no para mais longe.
Ele mostra que os Dez Mandamentos se relacionam entre si e que estão, por
assim dizer, interconectados. “Quem quer que observe toda a lei, mas peque
contra um único mandamento, torna-se culpado de todos” (Tiago 2.10). Ao
fazer a exegese desse texto, tendo como ponto de partida o roubo, o autor
afirma que a transgressão do primeiro mandamento consiste em roubar de
Deus sua glória e os soberanos atributos que lhe pertencem. Poderíamos
colocar nessa categoria todas as loucuras do homem à maneira de Prometeu.
Matar alguém é o mesmo que roubar sua vida. Adulterar equivale a roubar o
esposo ou a esposa de outra pessoa. A desobediência ao décimo mandamento
— “Não cobiçarás” — resulta frequentemente em roubo. Nessa ótica,
compreendemos melhor por que “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os
males” (1 Timóteo 6.10).
Jean-Marc Berthoud lembra, igualmente, as compensações claras, mas
também sutis, em caso de roubo. Em seguida faz referência às implicações
morais, econômicas e sociais do ensino bíblico sobre os pesos e medidas
falsos.
Segundo o autor, a proibição do roubo apresenta uma dimensão positiva
ainda mais ampla que sua dimensão negativa.
Essa dimensão positiva deve primeiro incitar os cristãos a ser generosos no
que diz respeito a tempo e dinheiro, em resposta ao imenso valor que dão à
graça da salvação, que lhes foi dada pelo arrependimento e fé no sacrifício
expiatório de Jesus Cristo. Os cristãos são também chamados a refletir a
generosidade incomensurável de Deus e a oferecer a si mesmos, suas forças e
seu dinheiro “em favor de Deus e de sua Igreja, a esposa do Senhor”.
Mais adiante, Jean-Marc Berthoud assume e desenvolve o pensamento do
reformador Pierre Viret, que após declarar que o roubo não seria apenas a
subtração do bem, mas também o dano causado à propriedade do próximo,
descreveu o conteúdo positivo do 8º mandamento, como segue: em primeiro
lugar, empenhar-se para que os bens do próximo sejam conservados e, se
possível, aumentados; como também, ter como socorrer o próximo em suas
necessidades e para isso fazendo uso, em certa medida, de reservas
acumuladas. Essa atitude nobre, generosa e socialmente muito útil, decorre
do amor que devotamos a Deus e aos outros.
Após ter tratado do roubo sob a perspectiva da moral pessoal, Jean-Marc
Berthoud aborda a temática fundamental do Oitavo Mandamento numa ótica
coletiva ou comunitária.
Primeiramente, numa transição da moral pessoal para a moral coletiva, que
deveria prevalecer nas empresas, nos bancos e nas grandes instituições
financeiras internacionais, Jean-Marc Berthoud condena a usura que desgraça
muita gente.
Além disso, ele estigmatiza o próprio princípio do empréstimo a juros e isso
de uma maneira que podemos qualificar como profética e sem paralelo no
contexto histórico atual, caracterizado por uma economia fortemente
financista. Ao fazer isto, se coloca em consonância com as posições firmes
adotadas nessa matéria por Aristóteles, pela Igreja Primitiva, pelos Pais da
Igreja, pela Igreja Católica — formalmente, até o início do século vinte — e
por Lutero. Tomás de Aquino, um dos mais eminentes Pais da Igreja, chegou
mesmo a escrever que “receber juros por dinheiro emprestado é em si mesmo
injusto, porque isso é fazer com que se pague o que não existe”. Para
Calvino, ao contrário, o dinheiro é uma mercadoria como qualquer outra.
Disso deduz que o empréstimo a juros, ao contrário da agiotagem, é legítimo.
Jean-Marc Berthoud faz referência a vários textos do Pentateuco,
especialmente ao livro de Deuteronômio, para justificar seu ponto de vista.
Com vigor e pertinência, em seguida o autor indica que o marxismo-
comunismo, tanto quanto o capitalismo sem regulação, são sistemas
econômicos que, intrinsecamente, implicam um roubo coletivo, e questiona
os efeitos deletérios do Estado-Providência preconizado pela social-
democracia.
No que concerne ao coletivismo marxista, Jean-Marc Berthoud demonstra,
sem dificuldade, que esse repousa sobre o roubo da propriedade privada
desde sua origem, um roubo selvagem e brutal, quase sempre implementado
através de um confisco violento, utilizando-se frequentemente de assassinatos
em massa ou por meio de expropriações não indenizadas. Dessa forma, o
roubo original faz parte da constituição desse sistema ideológico, político e
econômico. A planificação comunista da economia fere gravemente a ordem
criacional de Deus, que engloba principalmente a propriedade privada, como
também a livre iniciativa econômica, voltada à satisfação das legítimas
necessidades pessoais e consagrada ao bem comum.
Mas o autor se opõe igualmente a um capitalismo desenfreado, no qual os
atores principais visam somente a maximização de seus lucros e ganhos
especulativos, sem nenhuma preocupação com o interesse geral, em prejuízo
de uma distribuição mais equilibrada das riquezas, geradas através do esforço
comum. Como Pierre Viret, Berthoud desaprova fortemente o
comportamento dos novos ricos, que “de maneira arrogante se gloriam na sua
nova prosperidade” e acumulam riquezas em detrimento das pessoas menos
favorecidas. Aqui, Jean-Marc Berthoud lembra, muito acertadamente, aquela
palavra vigorosa do Filho de Deus: “Mas ai de vós, ricos...” (Lucas 6.24).
O autor questiona as premissas filosóficas do capitalismo sem freios e, com
razão, recusa o pensamento de Adam Smith, segundo o qual a prosperidade
de todos resultaria da “mão invisível”, de um mecanismo científico
autorregulador, independentemente das motivações dos atores econômicos.
Jean-Marc Berthoud é bastante persuasivo quando afirma que os atos
econômicos moralmente maus não teriam como produzir bens e serviços de
qualidade e em abundância e, ao mesmo tempo, reparti-los de maneira
equânime, através de uma simples e cega virtude dos mecanismos de
mercado.
Vale a pena citar, integralmente, esta admirável passagem do livro, na qual o
autor, de maneira notável, descreve os limites e os fundamentos errados do
Estado-Providência: “Aqui vemos muito bem até que ponto a obediência
geral aos aspectos negativos, como também positivos desse mandamento (a
proibição de roubar) poderia perfeitamente substituir a benevolência
administrativa, fria e desumana — mas na realidade muito frágil — que é a
bondade fictícia desse Estado Providência que, hoje, toma o lugar que deveria
ser do amor concreto e mútuo entre homens e mulheres na sociedade. O que
chamamos de Estado social, ou o amor pseudo-providencial da administração
pública e dos serviços sociais é, na verdade, uma resposta defeituosa, frágil e
perecível às misérias do nosso mundo, que, antes de tudo, extrai toda sua
força da falência daquele amor fraternal proveniente da obediência dos
cristãos e das igrejas ao nosso oitavo mandamento “Não roubarás”. Isto não
é acidental, mas uma substituição consciente, feita pelos homens, da
providência de Deus por um Estado providencial: aquele paraíso
revolucionário que não espera mais sua realização futura”.
Jean-Marc Berthoud até mesmo se insere numa forma de modernidade
inesperada, com acentos ecológicos, quando se exprime assim a respeito do
crescimento: “A ideia de um crescimento constante e ilimitado da produção
econômica, em todas as áreas, é contrária ao que se entende como algo
benéfico e é a fonte de desestabilização de todas as ordens. O crescimento do
bem-estar material, como finalidade absoluta da atividade humana, é uma
miragem autodestrutiva”.
Dito isto, o autor insiste no fato de que o mercado, como a propriedade
privada e a moeda, enquanto meio de troca, pertencem à ordem criacional de
Deus.
Entretanto, para que o mercado, a propriedade privada e a moeda manifestem
seus efeitos positivos sobre todos os seres humanos, especialmente sobre os
menos favorecidos, devem estar sujeitos, como instituições criacionais, “às
exigências econômicas e financeiras da Lei de Deus”. Jean-Marc Berthoud
deixa particularmente claro que os seres humanos gozam de suas
propriedades privadas unicamente por delegação, ou seja, Deus permanece
como o proprietário primeiro e último de todos os bens. Isto implica que as
propriedades privadas podem, certamente, ser utilizadas para satisfazer as
necessidades legítimas de seus donos, mas também devem mirar o bem
comum, para permitir aos mais pobres, indiretamente, beneficiar-se delas,
como a própria Bíblia prescreve.
Jean-Marc Berthoud subordina o bom funcionamento de um sistema
econômico, conforme a ordem criacional divina, a uma última e importante
condição: que os proprietários dos meios de produção trabalhem, antes de
tudo, pelo bem comum e que os menos favorecidos materialmente não
cobicem a fortuna e os rendimentos dos mais ricos.
Ele não deixa nenhuma dúvida que, tanto a nível individual como coletivo, o
Oitavo Mandamento proporciona benefícios imensos! De maneira alguma
trairíamos o pensamento de Jean-Marc Berthoud se afirmássemos que ao
mesmo tempo em que ele abomina o capitalismo especulativo, também
reconhece os benefícios do capitalismo produtivo, ou ainda, que enquanto
reprova, com veemência, os conflitos sociais resultantes de cobiças e
egoísmos de uns em relação a outros, ele saúda a paz social ensejada pelo
contentamento e pela busca do bem comum de todos os autores da vida
econômica e social.
Jean-Marc Berthoud termina sua análise do Oitavo Mandamento fazendo
considerações bíblicas muito importantes sobre o dízimo. Essa preocupação
em concluir através de reflexões extraídas da teologia prática faz com que
exorte o povo de Deus a dar seu dízimo por três razões fundamentalmente
bíblicas.
Em primeiro lugar, o autor encoraja os cristãos a dar o dízimo por uma
questão de consagração pessoal a Deus, o que equivale ao dízimo da
fidelidade, isto é, o dízimo das festas. Em segundo lugar, para manter o culto
comunitário, que equivale ao exercício do dízimo de justiça do direito
levítico, dado para o sustento dos apóstolos, dos pastores, dos presbíteros ou
bispos. Finalmente, para socorrer as necessidades sociais da comunidade dos
crentes, que é o exercício do dízimo de misericórdia.
Em suas reflexões, Jean-Marc Berthoud se refere à Suma Teológica de
Tomás de Aquino. Considerando a amplitude, a profundidade e a relevância
de suas reflexões sobre o Oitavo Mandamento, pode-se dizer que o autor, do
qual acabamos de expor brevemente o pensamento, escreveu um livro
notável. Esta obra representa uma verdadeira Suma Teológica sobre o roubo,
sobre suas motivações espirituais, suas implicações individuais e coletivas,
como também sobre a necessidade do abandono desse pecado e de um
arrependimento verdadeiro.
Capítulo I: A excelência do mandamento

INTRODUÇÃO
A oitava palavra do Decálogo, ainda que seja das mais concisas, é um
mandamento divino de grande atualidade moral, política, econômica e
financeira. Porque muitos dos problemas que atualmente conhecemos no
âmbito das relações humanas, dos negócios e das finanças, da vida da cidade,
vêm do fato de ignorarmos tanto o seu conteúdo quanto suas implicações.
Mas, antes de abordar o oitavo mandamento, recordemos brevemente em que
consiste a fé cristã. A fé cristã é relativamente simples. Mas o fato de que
todos fomos, cada um à sua maneira, atingidos pelos efeitos do pecado, isso
torna sua compreensão frequentemente mais complicada.
Eis o que tão somente achei: que Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em
muitas astúcias. (Eclesiastes 7.29)[5]

Então, como resumir em poucas palavras a fé que confessamos e na qual


vivemos? Destaquemos alguns pontos fundamentais de todo cristianismo
verdadeiro:
— Todas as coisas criadas por Deus eram boas; o homem Adão foi feito bom,
como também toda a criação.
— Por causa do pecado de Adão e, consequentemente, pelo nosso próprio, o
homem está perdido, sem referências verdadeiras, longe de Deus e debaixo
de justa condenação. Isso vale para todos os homens, com exceção do Filho
de Deus, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro
homem.
— É preciso que esse homem, totalmente desviado do reto caminho,
reconheça seu estado de rebelião em relação à Lei divina e seja convencido
do seu pecado, da justiça e do juízo, pelo Espírito Santo e pela Palavra-Lei de
Deus, e verdadeiramente se arrependa.
— Pela fé dada por Deus e pelo dom do Espírito Santo, o homem deve ser
renovado em seu entendimento e em sua vontade, reconhecendo e fazendo
sua a obra redentora da encarnação e expiação do Filho de Deus, Jesus Cristo
— pelos pecados do homem — como também a ressurreição do Filho de
Deus ao terceiro dia, sua ascensão ao Pai, sua entronização em glória à sua
direita, de onde enviou o Espírito Santo, em Pentecoste. Dessa maneira, deve
ser regenerado pelo Espírito Santo (“nascido de Deus”, conforme João 1.13).
Com sua mente iluminada e vontade renovada, pode então conhecer a Deus e
voltar-se para ele e, pela graça divina, fazer o bem, ou seja, obedecer
progressivamente, cada vez mais, aos mandamentos de Deus. Assim,
voltando-se para o seu Salvador, abandona todos os seus pecados e recebe
dele o perdão e a justiça que estão em Jesus Cristo. Esta é a justificação, a
união do crente a Jesus Cristo, o Filho eterno de Deus feito homem, por meio
da fé. O crente, o eleito, é dessa maneira enxertado na natureza humana de
Cristo, pois Cristo habita nele, e torna-se membro de seu corpo, que é a
Igreja, participando assim, por sua união com Cristo, da natureza divina.
— Em consequência dessa obra de salvação tanto objetiva (em Deus) como
subjetiva (nele), o cristão, agora justificado e regenerado, pode e deve andar
em obediência aos mandamentos de Deus com uma fé crescente; é a sua
santificação.
Assim, a fé cristã pode ser resumida em dois pontos:
a) A fé em Jesus Cristo e em sua obra de salvação por nós pecadores (a
justificação);
b) A grata obediência do cristão a todos os mandamentos de Deus, em Cristo,
pela força do Espírito Santo que nos foi dado (a santificação).
É isso que aprendemos nos ensinos dos apóstolos e de Jesus Cristo, como
também nos ensinos do Antigo Testamento.

1. O APÓSTOLO PAULO AFIRMA CLARAMENTE


Porque a lei [o princípio] do Espírito de vida, em Jesus Cristo, me livrou da lei
[do princípio] do pecado e da morte. Porquanto o que fora impossível à lei [de
Moisés], no que estava enferma pela carne [o princípio de pecado e de morte em
nós], isso fez Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança da carne
pecaminosa e no tocante ao pecado; e, com efeito, condenou Deus, na carne, o
pecado, a fim de que o preceito da Lei [de Moisés] se cumprisse em nós, que não
andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. (Romanos 8.2-4)

2. O APÓSTOLO PEDRO AFIRMA A MESMA COISA


No começo de sua segunda Epístola assim ele escreveu:
Visto como, pelo seu divino poder, nos têm sido doadas todas as coisas que
conduzem à vida e à piedade, pelo conhecimento completo daquele que nos
chamou para a sua própria glória e virtude, pelas quais [por sua virtude e por sua
glória] nos têm sido doadas as suas preciosas e mui grandes promessas, para que
por elas vos torneis coparticipantes da natureza divina [nossa santificação e nossa
glorificação em Cristo], livrando-vos da corrupção das paixões que há no mundo,
por isso mesmo [em razão do dom da fé e das promessas de Deus], vós, reunindo
toda a vossa diligência, associai com a vossa fé [concedida, é uma graça de Deus]
a virtude; com a virtude, o conhecimento; com o conhecimento, o domínio
próprio; com o domínio próprio, a perseverança; com a perseverança, a piedade;
com a piedade, a fraternidade; com a fraternidade, o amor.
Porque estas coisas, existindo em vós e em vós aumentando, fazem com que não
sejais nem inativos, nem infrutuosos no pleno conhecimento de nosso Senhor
Jesus Cristo. Pois aquele a quem estas coisas não estão presentes é cego, vendo
só o que está perto, esquecido da purificação dos seus pecados de outrora. Por
isso, irmãos, procurai, com diligência cada vez maior, confirmar a vossa vocação
e eleição; porquanto, procedendo assim, não tropeçareis em tempo algum. Pois
desta maneira é que vos será amplamente suprida a entrada no reino eterno de
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. (2 Pedro 1.3-11)

Portanto, para Pedro como para Paulo, a vida cristã se resume na FÉ e na


OBEDIÊNCIA, ou seja, a justificação em Cristo e a santificação, igualmente
em Cristo. É a obra de Deus por nós, primeiramente em Cristo; depois, sua
obra em nós pela ação do Espírito de Deus. Assim, esse mesmo Espírito nos
imputa a obra de redenção (passiva) e de justiça (ativa) de Jesus Cristo, como
também nos dá a fé, renova nossa mente, nos comunica a vida divina,
restaura a força de nossa vontade para o nosso bem e nos torna capazes — em
estreita comunhão com Jesus Cristo — de obedecer, pela ação do Espírito
Santo em nós, a todos os mandamentos de Deus.
3. O APÓSTOLO JOÃO DIZ A MESMA COISA
Esta é a mensagem que dele ouvimos e transmitimos a vocês: Deus é luz; nele
não há treva alguma. Se afirmarmos que temos comunhão com ele, mas andamos
nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade. Se, porém, andarmos na luz,
como ele está na luz, temos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus,
seu Filho, nos purifica de todo pecado.
Sabemos que o conhecemos, se obedecemos aos seus mandamentos. Aquele que
diz: “Eu o conheço”, mas não obedece aos seus mandamentos, é mentiroso, e a
verdade não está nele. Mas, se alguém obedece à sua palavra, nele
verdadeiramente o amor de Deus está aperfeiçoado. Desta forma sabemos que
estamos nele: aquele que afirma que permanece nele, deve andar como ele andou.
(1 João 1.5-7; 2.3-6)

4. JESUS CRISTO TAMBÉM DIZ A MESMA COISA


Os apóstolos, evidentemente, refletem o ensino de seu Mestre. Vejamos,
ainda, o que diz aquele que os inspirou:
Se me amais, guardareis os meus mandamentos. E eu rogarei ao Pai, e ele vos
dará outro Consolador, a fim de que esteja para sempre convosco, o Espírito da
verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece; vós o
conheceis porque ele habita convosco e estará em vós... Aquele que tem os meus
mandamentos e os guarda, esse é o que me ama. E aquele que me ama será
amado por meu Pai, e eu também o amarei e me manifestarei a ele. (João 14:15-
17 e 21)
Amar a Deus, crer nele, temer desagradá-lo antes de tudo, e com gratidão
obedecer aos seus mandamentos, essa é a fonte e a plenitude da fé cristã. Esse
é o ensino de Cristo, como também dos apóstolos. Mas isso também é
verdadeiro para o Antigo Testamento. Vejamos, ainda, a conclusão da
pregação de Eclesiastes:
De tudo o que se tem ouvido, a suma é: Teme a Deus [a fé] e guarda os seus
mandamentos [a obediência]; porque isto é o dever de todo homem. Porque Deus
há de trazer a juízo todas as obras, até as que estão escondidas, quer sejam boas,
quer sejam más. (Eclesiastes 12.13-14)

5. PARA CONCLUIR NOSSA INTRODUÇÃO, VEJAMOS AINDA AS PALAVRAS DE

MOISÉS
Suas palavras têm exatamente o mesmo sentido:
Porque este mandamento que, hoje, te ordeno não é demasiado difícil, nem está
longe de ti. Não está nos céus, para dizeres: Quem subirá por nós aos céus, que
no-lo traga e no-lo faça ouvir, para que o cumpramos? Nem está além do mar,
para dizeres: Quem passará por nós além do mar que no-lo traga e no-lo faça
ouvir, para que o cumpramos? Pois esta palavra está mui perto de ti, na tua boca
e no teu coração, para a cumprires.

E Moisés conclui com estas palavras dirigidas ao povo de Deus, àqueles que
fazem parte da Aliança divina renovada:
Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a
morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua
descendência, amando o SENHOR, teu Deus, dando ouvidos à sua voz e apegando-
te a ele; pois disto depende a tua vida e a tua longevidade; para que habites na
terra que o SENHOR, sob juramento, prometeu dar a teus pais, Abraão, Isaque e
Jacó. (Deuteronômio 30:11-14 et 19-20)[6]

Todo cristão fiel deve construir sua casa, não sobre a areia da incredulidade,
mas sobre a rocha de uma fé obediente à Palavra de Deus, tomando distância
da impiedade e da desobediência.
O Oitavo Mandamento: Não roubarás
Após esta introdução, que, no conjunto das Escrituras nos relembra do elo
inseparável entre a fé em Jesus Cristo e a obediência aos mandamentos de
Deus, vamos ao estudo do oitavo mandamento, que nos diz:
Não roubarás. (Êxodo 20.15; Deuteronômio 5.19)
Tenho constatado que toda a perfeição tem limite; mas não há limite para o teu
mandamento. (Salmos 119.96)
É exatamente isso, porque esse mandamento (como de resto toda a Lei
divina) reflete precisamente o caráter santo, justo e bom do Deus verdadeiro,
cuja natureza claramente não conhece nenhum limite.
Lembremos que a Lei divina revela não somente a ordem moral, própria das
criaturas humanas, mas também as estruturas essenciais que o Criador
concedeu a todas as suas obras. Porque não se trata apenas de uma estrutura
moral conferida por Deus aos indivíduos, mas, como explica a Palavra de
Deus, essa Lei é uma ordem conferida pelo Criador à sociedade e ao universo
como um todo.
Examinemos agora o nosso texto.
Tu ne commettras pas de vol [Tu não cometerás roubo, lit.]: Êxodo
20.15 (Bible à la Colombe, 1978).
Tu ne déroberas point [Tu não roubarás, lit.]: Êxodo 20.15 (Bible
Martin, 1707).

1. O LUGAR DESSE MANDAMENTO NO DECÁLOGO


Lembremos da posição desse mandamento no conjunto das dez palavras do
Decálogo. O primeiro mandamento nos fala de um único Deus (Êxodo 20,
versículo 3); o segundo proíbe a idolatria (versículos 4-6); o terceiro trata da
rejeição aos falsos cultos, quando proíbe falar o nome de Deus em vão
(versículo 7). Esses três primeiros mandamentos referem-se ao culto que
devemos prestar a Deus. São leis relacionadas à piedade.
Em seguida, uma palavra é colocada como em posição de mediação entre os
três primeiros mandamentos, que nos falam de Deus, e os seis últimos, que
tratam da obediência que devemos a Deus em relação ao nosso próximo, no
âmbito da moral pessoal, social e criacional. Esse mandamento intermediário
diz respeito ao sábado (quarta palavra, Êxodo 20, versículos 8-11), o dia
consagrado ao culto que o homem deve dar a Deus. Para nós cristãos se trata
do domingo porque, desde a ressurreição de Cristo, entramos na nova ordem
da criação, marcada por seu novo começo — o dia da ressurreição de Jesus
Cristo — ou seja, o primeiro dia da eternidade da nova criação. A antiga
criação culminava com o descanso do sétimo dia; a nova começa pela
celebração da nova criação em Cristo, no primeiro dia da semana. Mas o
quarto mandamento é também um testemunho da ordem antiga da criação, na
qual ainda vivemos. É preciso trabalhar seis dias e descansar no sétimo, dia
de descanso que agora mudamos para o domingo, porque nossa vida diária
ainda é comandada por esse ritmo septenário divino, que ordenará nossa vida
terrestre até o fim do mundo.
Esse mandamento intermediário é seguido pelas leis que regulam nossa vida
social e moral: honra a teu pai e tua mãe — quinto mandamento — que trata
do respeito à origem de nossa vida (versículo 12). Não matarás — sexto
mandamento — que diz respeito à defesa da vida humana (versículo 13). Não
adulterarás, que trata do respeito e proteção ao casamento (versículo 14). Não
roubarás, ou seja, o respeito à propriedade (versículo 15). Não mentirás, que
é a defesa da integridade moral dos homens (versículo 16). Não cobiçarás,
que é a condenação da raiz espiritual de todo mal (versículo 17), porque é do
coração do homem, de suas cobiças, que saem todos os males e ações
condenadas pela lei de Deus.
Observe-se a ordem das sete palavras na segunda Tábua da Lei: em primeiro
lugar o culto a Deus; depois, o respeito aos pais, que são a imagem da
Trindade; em seguida a proteção da vida dos homens, imagens de Deus;
depois a proteção da aliança do casamento, fonte de renovação da imagem
divina que são os homens; enfim, a salvaguarda da propriedade, base material
de toda vida humana, de toda vida social, de toda liberdade humana.
Finalmente, é defendido o caráter sagrado da palavra empenhada e, para
terminar, a raiz de todos os males é condenada: a cobiça.

2. A EXTENSÃO DESSE MANDAMENTO


Vejamos agora a extensão do mandamento “Não roubarás”. Porque o ato de
roubar, furtar, subtrair alguma coisa, subornar, cometer estelionato, assaltar,
saquear, dilapidar, trapacear, enganar, fraudar, violar, explorar — poderíamos
ainda encontrar muitos outros sinônimos — todas essas realidades imorais
estão cobertas por esse mandamento. Basta ler os jornais, assistir à televisão,
escutar o rádio, ver as notícias pela Internet, olhar em derredor (sobretudo
para nós mesmos!), para constatar a que ponto e de que maneira se
multiplica, de forma espetacular e afrontosa, a quebra onipresente desse
mandamento. Essa desobediência à Lei divina “Não roubarás”, destrói toda a
vida em sociedade, toda a vida sadia em comunidade e aquela mútua
confiança, sem a qual a vida econômica das nações e dos povos não poderia
prosperar, se fosse dominada por um roubo universal.
Assim, a quebra desse mandamento, que proíbe roubar nosso próximo, não é
nada mais do que empobrecer os outros em proveito da nossa própria riqueza.
Esse é seu aspecto negativo, porque proíbe. O sentido positivo do
mandamento nos leva a fazer o bem, a procurar o benefício do próximo, a
trabalhar para que enriqueça com as riquezas verdadeiras, materiais e
espirituais. Isso é conseguido, em primeiro lugar, pela nossa honestidade e
correção nos negócios. Como vimos várias vezes nas longas exposições em
nossos sermões sobre o Decálogo, cada um dos mandamentos contém um
aspecto negativo (frequentemente direto, às vezes indireto, como é o caso do
quinto mandamento), porque Deus, o Legislador supremo, conhece a
natureza pecaminosa dos homens caídos. Mas contém também um aspecto
positivo, porque o oposto do que ali é proibido, é implicitamente ordenado.
Vejamos, em primeiro lugar, seu lado negativo, como explicitamente o
próprio mandamento faz. Infelizmente, os homens não estão mais no jardim
do Éden; nós, homens e mulheres, não somos mais justos e inocentes. Então,
o aspecto diretamente negativo do mandamento está ali explícito para
reprimir nossa tendência ao pecado, agora tornada “natural”. Mas esse lado
negativo do mandamento contém também uma face oculta, uma injunção
positiva. Se temos certamente de evitar o mal, precisamos também, e
principalmente, nos esforçar para fazer o bem. De fato, em primeiro lugar
deve-se obedecer ao mandamento “Não roubarás”, para não causar danos à
propriedade do próximo. Mas isso não constitui uma obediência completa a
esse mandamento se não nos esforçarmos, igualmente, para possibilitar —
entre outras atitudes, pela nossa honestidade e fidelidade — a posse de bens
materiais, a prosperidade e a felicidade real de nosso vizinho. Lembremos,
simplesmente, a ordem de Cristo segundo a qual há mais alegria em dar que
receber; há muito mais alegria em respeitar a propriedade do outro que abusá-
la, roubá-la ou destruí-la. O trabalho aumenta nossa riqueza e a dos outros; a
ociosidade destrói todo o bem.
3. A DEFINIÇÃO DA PALAVRA “ROUBAR”
Vejamos o significado da palavra “roubar”.
Em seu comentário sobre o oitavo mandamento, Pierre Viret diz o seguinte
sobre o sentido dessa palavra:
A palavra hebraica utilizada por Moisés nesse mandamento significa prejudicar ou
subtrair, ou ainda tirar e tomar uma coisa secretamente, sem que os atingidos saibam.
[7]

E acrescenta:
Se entendermos essa palavra como é usada pelas Santas Escrituras, vemos que
significa não somente tomar o bem do próximo sem que este saiba, mas também
enganá-lo e desapontá-lo de forma enganosa, em coisa que lhe pertence.[8]

Esse é o sentido essencial desse mandamento: não se deve enganar o próximo


de maneira maliciosa e dissimulada, com o intuito de roubá-lo em alguma
coisa.
Mas o mandamento tem ainda um sentido mais amplo e Tomás de Aquino
nos faz compreendê-lo:
Devemos saber que por esse preceito proíbe-se toda a forma injusta de se obter
um bem.[9]

Trata-se, então, de atribuir a esta oitava palavra do Decálogo um sentido


muito mais geral. Toda forma injusta para obter um bem é por ela proibida.
Isso inclui o roubo secreto, mas também o roubo às claras. O delito
fraudulento é condenável, mas também o banditismo, a desonestidade para
ficar com a propriedade de outro e toda espécie de trapaça e fraude.
Vejamos, ainda, outra definição dada por um dos maiores pregadores ingleses
do começo do século 17, o bispo e eminente teólogo anglicano Lancelot
Andrewes:
O direito civil define furtum ou furtare, roubo ou roubar, como a firme
apropriação dos bens de outros homens. O direito eclesiástico define o roubo
como sendo o ato de consentir em sua consumação ou de apropriar-se da
propriedade de outros. Mostraremos que, para esse mandamento, o fato de
cobiçar a propriedade de outros também deve ser considerado como uma forma
de roubo.[10]

Então, cobiçar os bens de outro já é roubar, assim como o fato de cobiçar a


mulher de outro, segundo o ensino do Sermão da Montanha, já é um ato de
adultério. A consumação do ato proibido tem início, segundo Cristo, no fato
de cobiçar! Porque do coração vêm as más ações.
A palavra “roubar”, que encontramos em Êxodo 20 — e que aparece também
na segunda versão do Decálogo em Deuteronômio 5 — na língua hebraica é
ganab e significa levar, roubar algo, roubar alguém. O substantivo geneba
significa roubo ou a coisa roubada; a palavra ganab significa também ladrão.
Este é o sentido dado por um dicionário de teologia bíblica ao ato de roubar:
Tomar o que pertence a outro sem seu conhecimento ou consentimento. O
significado é restrito a ações que permanecem secretas.[11]

Mas há duas outras palavras que são empregadas na Bíblia que exprimem a
ideia de roubo: gazal ou ashaq. Nos dois casos trata-se de uma ação violenta
pela qual alguém toma a propriedade do outro. Todas essas ações são
condenadas por esse mandamento.
O mandamento “Não roubarás” (Êxodo 20.15, Deuteronômio 5.19, Levítico
19.11), também está relacionado com a proibição de assaltar e ao ato de
apoderar-se de uma pessoa, isto é, sequestrá-la (Êxodo 21.16). A ação de
roubar e, por consequência, o próprio roubador eram alvos do maior desprezo
em Israel (Jeremias 2.26, Provérbios 6.30). Por outro lado, nos países da
África (e em outros também) a complacência com o roubo é tal que se chega
a dizer: “Ladrão é aquele que se deixa prender”. A Bíblia trata também do
caso daquele que rouba por extrema pobreza, para matar a fome. Tal ato é
considerado roubo, mas em geral o ladrão que rouba para matar a fome ou
para satisfazer as suas necessidades vitais e da sua família não é tratado com
o mesmo rigor. Evidentemente, a Bíblia condena aqueles que roubam para
satisfazer sua cobiça.

4. APLICAÇÃO DO MANDAMENTO
Em Israel, o roubo não era reprimido de maneira tão severa como em alguns
países vizinhos, nos quais a penalidade aplicada podia ser a pena de morte ou,
como ainda é o caso no direito islâmico, cortava-se a mão direita do ladrão.
Lembremos que no direito britânico da época vitoriana do século 19, algo em
torno de 130 infrações diferentes de leis, que reprimiam o roubo, eram
puníveis pelo enforcamento, isso num país que se considerava fortemente
cristão!
A lei em Israel exigia que o ladrão reembolsasse sua vítima o dobro do que
havia roubado (Êxodo 22.6). A quantia reembolsada, em razão do roubo,
aumentava proporcionalmente em função da gravidade do crime. A
compensação era paga, não sob forma de multa ao Estado, mas diretamente à
pessoa lesada. Na perspectiva do direito bíblico, obrigar o faltoso a pagar
uma quantia ao Estado ou deixá-lo apodrecer numa prisão seriam
considerados castigos monstruosos. Portanto, o ladrão devia devolver à sua
vítima o que lhe havia roubado, acrescentando o mesmo valor como
compensação. Na verdade, ele perdia exatamente a quantia que havia
esperado ganhar em seu roubo. A penalidade era dobrada (ou aumentada
ainda mais) se o ladrão tivesse matado ou vendido o animal roubado, ações
que indicavam que se tratava de roubo por negócio. No caso de roubo de
pessoa, de rapto (Êxodo 21.16) ou de roubo de objetos consagrados ao culto
(Josué 7.11, 25), a pena era bem mais pesada: o ladrão devia ser condenado à
morte. Aqui, o próprio Deus, em sua Pessoa, em seu culto e em sua imagem
— que é o ser humano — havia sido atacado pelo ato de roubar.
Esse mandamento nos mostra que o direito à propriedade, tanto familiar e
privado como comunitário, era considerado como criacional, natural, tendo
sido estabelecido pelo próprio Criador. Esse direito era cuidadosamente
protegido pela Lei de Israel, a Torá. Pode-se questionar então: “Qual a
origem do grande valor dado à propriedade e à sua proteção na Bíblia?”.
No salmo 24, versos 1 e 2, lemos estas palavras que afirmam a soberana
autoridade de Deus sobre toda a criação, propriedade do Deus Criador: “Ao
SENHOR pertence a terra e tudo o que nela se contém, o mundo e os que nele
habitam. Fundou-a ele sobre os mares e sobre as correntes a estabeleceu”.
A terra é do Senhor, isto é, foi Ele quem a fez e, em consequência, somente
Ele tem o direito de propriedade, de posse última. A terra não pertence ao
Estado nem aos grandes proprietários terrenos, nem mesmo aos simples
homens do campo, mas ao Senhor Deus e, somente depois dele, por
delegação, os homens podem possuí-la. Portanto, os homens são proprietários
por delegação e não por direito absoluto, e cada um terá de prestar contas ao
Senhor pelo uso que fez da terra colocada sob sua proteção. O livro de
Apocalipse fala do Deus que vai “[...] destruir aqueles que destroem a terra”
(Apocalipse 11.18).
Esse verso está próximo de algumas preocupações ecológicas de nossa época,
mas infelizmente, essas preocupações derivam, com demasiada frequência,
para uma impiedade ainda mais grave que a destruição da criação, ou seja,
para o panteísmo, abandonando-se ao culto de uma natureza colocada no
lugar de Deus como seu bem soberano. Entretanto, segundo a própria Bíblia,
nós somos os gestores desta terra e nunca seus proprietários absolutos, como
se fôssemos livres para dela extrair sem trégua e restrição, numa exploração
furiosa, todas as suas riquezas.
Por outro lado, os céus dos céus pertencem exclusivamente a Deus. Tendo
terminado a descrição de toda a obra da criação, o salmo 115.16 diz: “Os
céus são os céus do Senhor, mas a terra, deu-a ele aos filhos dos homens”.
Dessa forma, Deus transmite aos homens um direito de cultivar e proteger a
terra, mas esse direito depende, em última instância, Dele mesmo; um direito
que não é primário, mas delegado, cujo exercício é limitado pelas exigências
da Lei de Deus. A justificação para tal delegação de propriedade ao homem
se encontra bem expressa na ordem dada em Gênesis 1.28: “Enchei a terra e
dominai-a”.
Assim, o homem pode, pela ordem expressa de Deus, tomar posse da terra e
submetê-la, cultivá-la e fazer com que prospere. Nesse mandamento divino,
anterior à queda, se encontra o fundamento criacional e legal do direito à
propriedade privada, familiar e comunitária. Lancelot Andrewes explica as
origens históricas bíblicas da propriedade privada desta maneira:
Os Patriarcas deviam fazer a mesma coisa [encher a terra e dominá-la]. Foi o que
o próprio Noé fez. De uma maneira mais concreta, se o homem tivesse
perseverado no seu estado de inocência, todos os seres humanos, por não terem
pecado, não teriam dificuldade em satisfazer suas necessidades. Ninguém teria
problema com seus apetites desordenados ou dos outros, porque a terra seria
amplamente suficiente para todos. Mas após a entrada do pecado no mundo, uma
divisão [dos bens] tornou-se necessária [porque agora era preciso proteger a
propriedade da cobiça que tinha surgido]. E isso agradou a Deus. Porque, ainda
que essa divisão tenha sido feita em razão do mal, vemos aí como as boas leis
podem ser causadas pelo mal, criadas a partir de uma necessidade. Foi assim que
a perseguição de Abel por Caim permitiu a Sete tomar posse de uma terra e
defendê-la. Da mesma forma, depois do estabelecimento da primeira cidade
formada por Caim, à qual deu o nome de seu filho (Gênesis 4:17), os Pais foram
levados, logo após o dilúvio, a fazer mesmo. Os três filhos de Noé então
dividiram o mundo: Cão recebeu a África; Sem, a Ásia e Jafé, a Europa (Gênesis
11:31 e 13:9-11). Mais tarde, houve uma divisão parecida entre Abraão e Ló, que
escolheu a planície, enquanto Abraão contentou-se com a montanha [...].[12]
Lancelot Andrewes nos dá ainda esta ilustração esclarecedora:
Quando um prato com carne é posto sobre uma mesa, pode-se dizer, antes que a
carne seja cortada, que seu conteúdo pertence a todos. Mas uma vez a carne
cortada e servida nos pratos dos convidados, tendo cada um recebido sua parte,
não seria muito conveniente retirá-la dos pratos! Assim, no seu início, a terra
pertencia a todos os homens, porém mais tarde, cada um tomou posse de uma
parte, como disse o Senhor sobre a terra prometida: “Todo o lugar que pisar a
planta de vossos pés, vos será por possessão” (Deuteronômio 11.24).[13]

Mas, ao contrário do que afirma Andrewes, a primeira manifestação do


sentido de propriedade entre os homens não estava ligada à sua condição
pecadora, mas à ordem criacional, tanto individual como comunitária dos
homens. A alma é ontologicamente ligada ao corpo, à matéria. Os objetos
materiais, sendo naturalmente distintos uns dos outros, têm por consequência
um caráter espacialmente limitado. Assim, por sua própria natureza, o
homem é chamado a ocupar um espaço específico, daí a necessidade de todo
homem ter um lugar que lhe seja próprio. O que vale para o indivíduo, com
maior razão vale para a família e para toda a comunidade. A propriedade
individual e comunitária (e até mesmo nacional) tem, então, um caráter
natural, essencial e não acidental. O individualismo provém da cobiça e do
pecado, portanto é uma consequência da queda. A natureza humana, em si
mesma, não é contrária à vida em comunidade, mas a cobiça é. Esta se opõe à
vida em comunidade e à propriedade, que é seu fundamento material. Mas se
a existência da propriedade é anterior ao surgimento do pecado no mundo,
sua proteção legal teve início com o aparecimento da cobiça entre os homens.
Retomando a imagem de Andrewes, é perfeitamente natural, para cada um
dos convidados, assentar-se à mesa do dono da casa e considerar o conteúdo
de seu prato como sua propriedade. Mas, é antinatural, porque isso vem do
pecado, que os convidados cobicem o que está no prato de seu próximo e,
mais ainda, que queiram roubá-lo. A condição do homem antes do
surgimento do pecado permitia que cada um ao redor da mesa comesse
tranquilamente o que estava em seu prato, ou seja, administrasse sem
perturbação seus próprios bens dentro de uma comunidade harmoniosa.
Além disso, é próprio da caridade e do amor fraternal cristão querer
compartilhar o que tem em seu prato, com seu vizinho menos aquinhoado.
Por outro lado, seria tanto um pecado pessoal, como político e social, se o
dono da casa quisesse obrigar uma igualdade absoluta entre todos os
convidados, fazendo uso de uma autoridade usurpadora e tirânica. A
igualdade absoluta forçada do conteúdo de cada prato, nada mais é que o
socialismo de Estado, pecado coletivo estabelecido pelo poder do mais forte.
Pecado ainda mais grave é obrigar os convidados a aceitar que o prato de
carne, ainda não fatiado e compartilhado, seja considerado eternamente como
pertencente a todos (comunhão absoluta de bens: comunismo). O prato de
carne feito propriedade comum, rapidamente vai tornar-se alvo da cobiça de
todos e, finalmente, propriedade dos mais fortes e menos escrupulosos que
dele tomarão posse, deixando os outros convidados a morrer de fome. Além
disso, a recusa absoluta em compartilhar o que se acumulou, sem remorso,
em seu prato, de forma legítima ou não, é outra forma de pecado, ou seja, o
egoísmo liberal também chamado “avareza”. Tomar, através da força ou por
algum artifício, o que se encontra no prato do vizinho é uma outra forma de
pecado, o roubo sob todas as suas formas. Atualmente, a arte de manipular
ações — reais ou virtuais — na bolsa de valores é uma das principais formas
do banditismo público. O que vale também para a exploração abusiva das
riquezas naturais de países incapazes de se defender.[14]
Assim, foi constituída, desde o início da própria criação, essa realidade
natural delimitada da propriedade, como definida pelo mandamento Não
Roubarás. Dessa forma, os seguintes sistemas sociais podem ser
considerados como monstruosos, contrários à ordem estabelecida desde o
início, pelo Criador, para o bem de todos:
1. O comunismo: comunhão confusa de todos os bens (a comunhão de
corpos, o comunismo sexual incluído). Conduz ao reino dos mais fortes, dos
maiores criminosos, dos maiores canalhas, sobre a ordem social.
2. O socialismo: a redistribuição dos bens de maneira matematicamente igual
pela força do Estado (o amor ao próximo com o dinheiro dos outros). Trata-
se de redistribuir as riquezas da comunidade pela força, com o objetivo de
alcançar um igualitarismo material imposto pela violência do Estado.
3. O liberalismo: o estabelecimento de um individualismo absoluto. Trata-se
da acumulação egocêntrica, lícita ou ilícita, da maior parte dos bens da
sociedade por indivíduos ou grupos de indivíduos, para o benefício próprio.
A Bíblia ensina o contrário:
Que o único absoluto para o homem é o próprio Deus e sua Palavra inspirada
e escrita, que nos faz conhecê-Lo. É preciso que o homem ame a Deus de
todo seu coração, de toda sua força, de todo seu pensamento e com toda sua
alma. O “personalismo”, promovido na França por Emmanuel Mounier e
Jacques Maritain e popularizado por diversos papas romanos desde o
Vaticano II, coloca a pessoa humana individualmente — e não Deus e o bem
comum, que inclui todas as ordens da criação — no centro do universo.[15] O
homem e seus proclamados direitos tornam-se, como na queda, a medida de
todas as coisas. É o caminho aberto para toda espécie de injustiça que, a
longo prazo, resulta no totalitarismo.
Que o homem deve amar seu próximo como a si mesmo. Trata-se aqui, entre
outras coisas, de trocas legítimas, como também de partilhar caridosa e
voluntariamente os seus bens com o próximo. Isto faz com que todos sejam
obrigados a respeitar os limites específicos da propriedade pessoal,
individual, familiar e comunitária, de seu próximo. O amor ao próximo se
manifesta pela generosidade no compartilhamento dos seus próprios bens e
não dos outros!
Que a harmonia social, a concórdia entre as classes e não a luta de classes, é a
norma criaçional para a sociedade. A paz social helvética, por exemplo, o que
chamamos de a paz do trabalho é reflexo (entre muitos outros) das relações
sociais normais no interior de uma comunidade.
Esses são os benefícios que podem ser colhidos quando a oitava palavra do
Decálogo “Não roubarás”, é respeitada.
Capítulo II: O conteúdo do Oitavo Mandamento:
Transgredir um mandamento é transgredir todos

INTRODUÇÃO
Em primeiro lugar, vejamos como, ao transgredir esse mandamento,
violamos todos os outros. É o que nos lembra Tiago, o irmão do Senhor, em
sua carta:
Se vós, contudo, observais a lei régia segundo a Escritura: Amarás o teu próximo
como a ti mesmo, fazeis bem; se, todavia, fazeis acepção de pessoas, cometeis
pecado, sendo arguidos pela lei como transgressores. Pois qualquer que guarda toda a
lei, mas tropeça em um só ponto, se torna culpado de todos. Porquanto, aquele que
disse: Não adulterarás também ordenou: Não matarás. Ora, se não adulteras, porém
matas, vens a ser transgressor da lei. (Tiago 2.8-11)
Vejamos, brevemente, cada um dos dez mandamentos para entendermos que
ao roubar nosso semelhante transgredimos todos os mandamentos.
A definição mais comum de justiça é esta: “Pagai a todos o que lhes é
devido”.
Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a
quem respeito, respeito; a quem honra, honra. (Romanos 13.7)
O Decálogo está dividido em duas partes.
A Primeira Tábua diz respeito ao que devemos a Deus (Mandamentos de 1 a
4).
A Segunda Tábua diz respeito ao que devemos ao nosso próximo
(Mandamentos de 4 a 10).
Vimos nos estudos anteriores — sobre o 4º mandamento — relacionados à
guarda do sétimo dia, o sábado, que esse mandamento está ligado à Primeira
Tábua (relativa a Deus) e à Segunda Tábua (que diz respeito ao próximo).
Vejamos, agora, como o ato de roubar o próximo, ou não lhe dar o que lhe é
devido em relação aos seus bens (pessoais, humanos e espirituais), afronta
tanto a Deus como o próximo em seus direitos legítimos.
A. TRANSGREDIR UM MANDAMENTO É TRANSGREDIR TODOS
Primeira Tábua da Lei
1. Não há outros deuses
Não terás outros deuses diante de mim. (Êxodo 20.3)
Deus é o Criador de todas as coisas. Ele é nosso Criador. A ele devemos
tudo.
Pois ele mesmo é quem a todos dá vida, respiração e tudo mais. (Atos 17.25)

Esse Deus Criador, em sua providência, mostra sua bondade:


[...] fazendo o bem, dando-vos do céu chuvas e estações frutíferas, enchendo o vosso
coração de fartura e de alegria. (Atos 14.17)
Não dar graças a esse Deus, nada mais é que usurpar o que lhe é devido.
Todas as criaturas no céu, na terra e no mar deveriam declarar em alta voz,
num movimento piedoso de adoração ao Deus Criador e Redentor:
Àquele que está sentado no trono e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória, e
o domínio pelos séculos dos séculos. (Apocalipse 5.13)
Não adorar a Deus assim, não o amar de todo o coração, de toda sua força e
em seus pensamentos, é transgredir o oitavo mandamento. É roubar-lhe a
glória que lhe é devida! Ter um outro deus diante da face do Eterno é roubá-
lo.
2. Não fazer imagens de escultura
Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima
nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não as adorarás,
nem lhes darás culto; porque eu sou o SENHOR, teu Deus, Deus zeloso, que visito a
iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me
aborrecem e faço misericórdia até mil gerações daqueles que me amam e guardam os
meus mandamentos. (Êxodo 20.4-6)
Aqui vemos, claramente, que prestar culto a qualquer outra criatura é roubar a
glória devida somente a Deus. Não devemos adorar nenhuma imagem, mas
somente o verdadeiro Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. Se a única imagem
verdadeira de Deus sobre a terra é o próprio homem, que abominação é
adorar essa imagem! É o culto do homem, como medida de todas as coisas, o
Humanismo substituindo Aquele do qual o homem é apenas imagem. É amar
a foto dos seus filhos mais do que eles próprios!
Qualquer outro culto que não seja aquele que devemos dar a Deus em
Espírito e em Verdade, isto é, segundo o Espírito de Deus e sua Palavra
escrita e encarnada, é uma transgressão do mandamento “Não roubarás”.
É assim que não damos a Deus o que lhe é devido!
3. Santificar o nome de Deus
Não tomarás o nome do SENHOR, teu Deus, em vão, porque o SENHOR não terá por
inocente o que tomar o seu nome em vão. (Êxodo 20.7)
O primeiro pedido na oração do Senhor se refere explicitamente a esse
mandamento:
Santificado seja o teu nome. (Mateus 6.10)
Tomar o nome de Deus em vão (ou seja, considerá-lo como nada), não
mostrar temor, respeito, adoração, a fé e o amor que lhe são devidos, é violar
a santidade de Deus. É usurpar sua glória e atribuí-la a nada, à vaidade, a uma
efemeridade. Esse é o pecado da nossa civilização, a qual foi construída
tomando o nome de Deus em vão, tratando Deus como pessoa insignificante.
Mas são os próprios homens, como também suas obras, que se tornam vãos
quando agem assim. Hoje, essa vaidade salta aos olhos diante do colapso de
nosso sistema financeiro baseado sobre o nada — uma moeda virtual que não
tem nada de real! Podemos ver isso também no salmo 115, em sua acusação a
todos esses adoradores do nada:
Não a nós, SENHOR, não a nós, mas ao teu nome dá glória, por amor da tua
misericórdia [hesed-bondade] e da tua fidelidade [emunah-fidelidade]. Por que
diriam as nações: Onde está o Deus deles? No céu está o nosso Deus e tudo faz como
lhe agrada. Prata e ouro [dinheiro virtual = nada!] são os ídolos deles, obra das mãos
de homens. Têm boca e não falam; têm olhos e não veem; têm ouvidos e não ouvem;
têm nariz e não cheiram. Suas mãos não apalpam; seus pés não andam; som nenhum
lhes sai da garganta. Tornem-se semelhantes a eles os que os fazem e quantos neles
confiam. Israel confia no SENHOR; ele é o seu amparo e o seu escudo. A casa de Arão
confia no SENHOR; ele é o seu amparo e o seu escudo. Confiam no SENHOR os que
temem o SENHOR; ele é o seu amparo e o seu escudo. De nós se tem lembrado o
SENHOR; ele nos abençoará; abençoará a casa de Israel, abençoará a casa de Arão. Ele
abençoa os que temem o SENHOR, tanto pequenos como grandes. O SENHOR vos
aumente bênçãos mais e mais, sobre vós e sobre vossos filhos. Sede benditos do
SENHOR, que fez os céus e a terra. Os céus são os céus do SENHOR, mas a terra, deu-a
ele aos filhos dos homens. Os mortos não louvam o SENHOR, nem os que descem à
região do silêncio. Nós, porém, bendiremos o SENHOR, desde agora e para sempre.
Aleluia! (Salmos 115.1-18)
4. Respeito ao dia de repouso
Lembra-te do dia de sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás e farás toda a tua
obra. Mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu Deus; não farás nenhum trabalho,
nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu
animal, nem o forasteiro das tuas portas para dentro; porque, em seis dias, fez o
SENHOR os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por
isso, o SENHOR abençoou o dia de sábado e o santificou. (Êxodo 20.8-11)
Como vimos nas pregações sobre o quarto mandamento, a ordem para
respeitar o Sábado compartilha das duas Tábuas da Lei, ou seja, esse
mandamento diz respeito ao culto dado a Deus (Primeira Tábua) e à ordem
criacional, tanto na família como no âmbito do trabalho dos homens, e até
dos animais (Segunda Tábua). A transgressão desse mandamento implica um
duplo roubo:
1. Rouba-se a Deus o tempo de culto e adoração que deve receber (Primeira
Tábua).
2. Rouba-se dos homens e dos animais o tempo de repouso que devem gozar
(Segunda Tábua).
Segunda Tábua da Lei
5. Honrar os pais
Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o SENHOR,
teu Deus, te dá. (Êxodo 20:12)
Aqui também, a transgressão desse quinto mandamento implica um duplo
roubo:
1. Priva-se os pais do respeito que lhes é devido enquanto nossos
progenitores e educadores.
2. Priva-se-lhes do sustento que devem ter em sua velhice. Foi assim que
Cristo compreendeu esse mandamento na luta que teve de travar com os
escribas e fariseus, e contra a distorção que faziam da lei divina por suas
tradições humanas:
Interpelaram-no os fariseus e os escribas: Por que não andam os teus discípulos de
conformidade com a tradição dos anciãos, mas comem com as mãos por lavar?
Respondeu-lhes: Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas, como está
escrito: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. E
em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens. (Marcos 7.5-7
citando Isaías 29.13)
E Jesus acrescentou:
Negligenciando o mandamento de Deus, guardais a tradição dos homens. E disse-
lhes ainda: Jeitosamente rejeitais o preceito de Deus para guardardes a vossa própria
tradição. Pois Moisés disse: Honra a teu pai e a tua mãe; e: Quem maldisser a seu pai
ou a sua mãe seja punido de morte. Vós, porém, dizeis: Se um homem disser a seu
pai ou a sua mãe: Aquilo que poderias aproveitar de mim é Corbã, isto é, oferta para
o Senhor, então, o dispensais de fazer qualquer coisa em favor de seu pai ou de sua
mãe, invalidando a palavra de Deus pela vossa própria tradição, que vós mesmos
transmitistes; e fazeis muitas outras coisas semelhantes. (Marcos 7.8-13)
6. Nenhum homicídio intencional
Não matarás. (Êxodo 20.13)
É evidente que o fato de matar um homem com a intenção de destruí-lo (e
isto vale até para assassinato involuntário), é o mesmo que roubar seu bem
mais precioso, ou seja, sua vida. Isso claramente é uma transgressão do
oitavo mandamento “Não roubarás”, que estudamos. Como vimos nos
estudos sobre o sexto mandamento, para obedecer corretamente a esse
mandamento, não somente temos de deixar o mal, mas dar ao próximo o bem
que lhe devemos. A obediência à lei jamais pode simplesmente limitar-se ao
abandono do mal!
7. Não trair o cônjuge
Não adulterarás. (Êxodo 20.14)
Aqui também, a aplicação do oitavo mandamento é evidente: ao cometer
adultério, o homem ou a mulher engana seu marido ou sua esposa (e também
o marido ou a esposa da pessoa com a qual comete adultério) e priva os
cônjuges enganados de um bem precioso, isto é, da aliança conjugal. Esse é
um caso de roubo particularmente vergonhoso e escandaloso. Não foi sem
motivo que no direito hebraico, divinamente inspirado, o roubo conjugal por
adultério tenha sido punido com a pena de morte, como também o
assassinato, no qual o homem rouba do seu semelhante sua própria vida.
8. Não roubar o próximo
Não roubarás. (Êxodo 20.15)
A relação desse mandamento com o roubo de propriedade dispensa
comentários!
9. Não mentir em prejuízo do próximo
Não dirás falso testemunho. (Êxodo 20.16)
Como veremos no estudo do nono mandamento, a mentira (aqui caracterizada
em sua forma mais solene — o perjúrio diante dos tribunais) está
frequentemente ligada ao roubo. Vemos isso de maneira particularmente clara
na crise financeira atual, responsável por problemas como a falsificação, a
dissimulação e a deformação consciente e desejada de dados comerciais e
financeiros, a fim de retirar os benefícios, frequentemente de maneira
fraudulenta. Isso nos conduz ao último mandamento.
10. A cobiça
Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o
seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que
pertença ao teu próximo. (Êxodo 20.17)
Aqui nos encontramos na raiz da transgressão do oitavo mandamento (aliás,
de todos os mandamentos): a cobiça. É a cobiça dos bens dos outros (uma
atitude do coração) que motiva todos os roubos, os furtos, o ato de roubar o
que pertence a seu semelhante em todos os níveis, ou seja, desde a
falsificação do peso da balança na mercearia da vila, até aquele que falsifica o
valor do preço dos bens quando põe pra rodar a máquina de fazer dinheiro ou
provoca a expansão, sem medida, de um dinheiro virtual, imaginário, esse
crédito ex nihilo, do nada, pelos bancos centrais que reservadamente atribuem
a si mesmos os atributos de Deus.
Paulo, em seu tempo, tinha visto na cobiça a raiz de todas as transgressões
aos mandamentos de Deus (Romanos 7).
Que diremos, pois? É a lei pecado? De modo nenhum! Mas eu não teria conhecido o
pecado, senão por intermédio da lei; pois não teria eu conhecido a cobiça, se a lei não
dissera: Não cobiçarás. Mas o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, despertou
em mim toda sorte de concupiscência; porque, sem lei, está morto o pecado. Outrora,
sem a lei, eu vivia; mas, sobrevindo o preceito, reviveu o pecado, e eu morri. E o
mandamento que me fora para vida, verifiquei que este mesmo se me tornou para
morte. Porque o pecado, prevalecendo-se do mandamento, pelo mesmo mandamento,
me enganou e me matou. Por conseguinte, a lei é santa; e o mandamento, santo, e
justo, e bom. Acaso o bom se me tornou em morte? De modo nenhum! Pelo contrário,
o pecado, para revelar-se como pecado, por meio de uma coisa boa, causou-me a
morte, a fim de que, pelo mandamento, se mostrasse sobremaneira maligno.
(Romanos 7.7-13)
E terminamos esta seção citando as palavras de Jesus Cristo, tiradas da
sequência do texto de Marcos, citado acima. Cristo atacava a tradição dos
escribas e fariseus, porque eles substituíam a Palavra-Lei de Deus. Diante das
falsas regras (não bíblicas) levantadas pelos doutores judeus para inventar
novas restrições alimentares e tornar obrigatórios seus inumeráveis rituais de
purificação, Cristo diz à multidão:
Convocando, de novo, a multidão, disse-lhes: Ouvi-me, todos, e entendei. Nada há
fora do homem que, entrando nele, o possa contaminar; mas o que sai do homem é o
que o contamina. [Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça.] Quando entrou em casa,
deixando a multidão, os seus discípulos o interrogaram acerca da parábola. Então,
lhes disse: Assim vós também não entendeis? Não compreendeis que tudo o que de
fora entra no homem não o pode contaminar, porque não lhe entra no coração, mas no
ventre, e sai para lugar escuso? E, assim, considerou ele puros todos os alimentos. E
dizia: O que sai do homem, isso é o que o contamina. Porque de dentro, do coração
dos homens, é que procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os
homicídios, os adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a
blasfêmia, a soberba, a loucura. Ora, todos estes males vêm de dentro e contaminam o
homem. (Marcos 7.14-23)

B. O ESPÍRITO DO OITAVO MANDAMENTO


Com a ajuda do belo comentário de Pierre Viret sobre os Dez Mandamentos,
vamos agora procurar definir o espírito com que se deve compreender o
oitavo mandamento, “Não roubarás” (Êxodo 20.15).
Viret caracteriza de maneira positiva os cinco últimos mandamentos do
decálogo, porque para ele (como para os Reformadores do século 16), a
formulação negativa desses mandamentos contém, implicitamente, as mais
positivas prescrições, tal como a sombra manifesta a luz. Todos esses
mandamentos procuram conservar a vida social e política dos homens. O
sexto mandamento visa conservar a vida humana (não matarás); o sétimo,
preserva o casamento, instituição que deu origem a toda vida social (não
adulterarás); o oitavo, preserva a propriedade, fundamento de toda vida social
livre e responsável (não roubarás); o nono, preserva a reputação dos homens
e a manifestação da verdade na sociedade (não dirás falso testemunho);
enfim, o décimo, que busca cortar a raiz de todas as transgressões da Lei de
Deus, mostrando que, antes de tudo, o coração deve estar purificado, para
poder cumprir a boa, santa e perfeita vontade de Deus. Foi o que há muito
tempo e de maneira evangélica Davi declarou em seu grande salmo de
arrependimento, o salmo 51:
Purifica-me com hissopo, e ficarei limpo; lava-me, e ficarei mais alvo que a neve.
Faze-me ouvir júbilo e alegria, para que exultem os ossos que esmagaste. Esconde o
rosto dos meus pecados e apaga todas as minhas iniquidades. Cria em mim, ó Deus,
um coração puro e renova dentro de mim um espírito inabalável. Não me repulses da
tua presença, nem me retires o teu Santo Espírito. Restitui-me a alegria da tua
salvação e sustenta-me com um espírito voluntário. (Salmos 51.7-12)
Vejamos como Viret caracteriza o espírito desse mandamento. Nesse
mandamento:
Deus não proíbe apenas que, de alguma forma, eu cause dano aos bens de meu
próximo, mas antes de tudo ordena que eu me empenhe, por todos os meios ao meu
alcance, para conservá-los e aumentá-los; além disso, a prestar assistência e socorrê-lo
com minhas posses em suas necessidades.
E acrescenta solenemente:
Se não fizer isso, não estarei obedecendo a esse mandamento como Deus requer de
mim.[16]
Portanto, esse mandamento exige do cristão:
1) Que nada faça contra os bens do seu próximo.
2) Que se esforce para conservá-los e, se possível, aumentá-los.
3) Que tenha meios para socorrer seu próximo em suas necessidades e
dificuldades.
Dessa maneira, estamos longe do egoísmo que privilegia o liberalismo puro e
rígido (eu e somente eu!) e da caridade artificial estatizada do socialismo,
que busca concretizar seu amor tão generoso pelo próximo com o dinheiro
subtraído dos outros pelo fisco!
Viret contrasta a caridade, associada à verdadeira liberdade (o ato de amar
seu próximo como a si mesmo), com o espírito de cobiça que se manifesta
pela avareza. Ele procura a causa dessa mentalidade viciosa que leva o
homem a roubar e a encontra, antes de tudo, na falta de fé e da verdadeira
confiança num Deus misericordioso e fiel. Vejamos o que escreveu sobre
essa pobreza de espírito (o coração quebrantado e contrito de que falou Davi
no salmo 51) que, de forma singular, nos permite obedecer a esse
mandamento:
Aqueles que conhecem verdadeiramente como são, se veem inteiramente abatidos em
seus corações, não tendo confiança em si mesmos, nem em sua riqueza ou em
qualquer outra criatura, mas somente no único Deus e em suas riquezas. Porque, qual
é a força de nossa cobiça e avareza, senão o desconhecimento da pobreza que há em
nós e das riquezas que temos em Deus, e dos meios para obtê-las e utilizá-las? Essa
ignorância é tanto a causa da desconfiança que temos em Deus como da confiança que
temos em nós mesmos, a qual não teríamos, se não desconfiássemos de Deus; e não
desconfiaríamos dele, se verdadeiramente soubéssemos que não podemos obter
qualquer bem, senão de suas mãos.[17]
Viret mostra em seguida que o que destrói esse espírito de cobiça e avareza é
estar contente com o que Deus nos dá, seja a pobreza ou a riqueza. E aqui
cita as palavras do apóstolo Paulo:
Digo isto, não por causa da pobreza, porque aprendi a viver contente em toda e
qualquer situação. Tanto sei estar humilhado como também ser honrado; de tudo e em
todas as circunstâncias, já tenho experiência, tanto de fartura como de fome; assim de
abundância como de escassez; tudo posso naquele que me fortalece. (Filipenses 4.11-
13)
E mostra que os ricos amam mais as riquezas que têm, do que a Deus e isso
os torna cruéis e avarentos, fazendo com que sua entrada no céu seja difícil e
problemática. Quanto aos pobres, estes amam mais as riquezas que não têm,
do que seu Senhor; o que os deixa cheios de cobiça pelos bens daqueles mais
aquinhoados do que eles próprios.
Mas ai de vós, os ricos! Porque tendes a vossa consolação. (Lucas 6.24)

Então, disse Jesus a seus discípulos: Em verdade vos digo que um rico dificilmente
entrará no reino dos céus. E ainda vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo
fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus. Ouvindo isto, os
discípulos ficaram grandemente maravilhados e disseram: Sendo assim, quem pode
ser salvo? Jesus, fitando neles o olhar, disse-lhes: Isto é impossível aos homens, mas
para Deus tudo é possível. (Mateus 19.23-26)

E no sermão da montanha, Cristo mostrou a incompatibilidade total entre o


espírito de riqueza e a pobreza de espírito:
Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao
outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às
riquezas. (Mateus 6.24)

Mas, com o Evangelho, pela soberana e bondosa graça de Deus, o que é


impossível ao homem torna-se possível. Um rico pode também alcançar a
pobreza de espírito. Isto levou o apóstolo Paulo, a respeito dos cristãos ricos
deste mundo, a escrever a seu discípulo o seguinte:
Exorta aos ricos do presente século que não sejam orgulhosos, nem depositem a sua
esperança na instabilidade da riqueza, mas em Deus, que tudo nos proporciona
ricamente para nosso aprazimento; que pratiquem o bem, sejam ricos de boas obras,
generosos em dar e prontos a repartir; que acumulem para si mesmos tesouros, sólido
fundamento para o futuro, a fim de se apoderarem da verdadeira vida. (1 Timóteo
6.17-19)
Essa bem ordenada benevolência humana sem dúvida vale muito mais do que
esse monstro administrativo, frio, ineficaz e perdulário que é o Estado
providência! Viret insiste fortemente sobre o fato de que tudo, absolutamente
tudo, nos vem de Deus.
Porque, uma vez que os bens que temos nos foram dados por Deus, não apenas para
nós, mas também para que compartilhemos com nossos irmãos, segundo a regra de
caridade que [Cristo] nos deu, não podemos negar que seríamos ladrões ao privarmos
nossos irmãos do que nos foi dado para distribuir. Porque fazendo isto, retemos o bem
de outro, da mesma maneira que o capelão de um Príncipe roubaria se tivesse retido o
dinheiro, posto em suas mãos, para dar aos pobres.[18]
Segundo Viret, podemos resumir esse ensino bíblico como segue:
O que é o roubo?
1) Não exercer caridade;
2) Roubar ativamente, secretamente ou abertamente os bens de nosso
semelhante;
3) Tudo nos vem de Deus, portanto roubar o próximo ativamente (por furto),
ou passivamente (por recusa à caridade), é roubar o próprio Deus que nos
confiou seus bens;
4) Dilapidar os próprios bens, administrando-os de maneira irresponsável ou
vivendo de maneira extravagante, é também roubar a Deus e ao próximo,
pois desses bens somos apenas administradores.
Enfim, permanecendo no exame do espírito desse mandamento, Viret nos
mostra a que ponto não somente a avareza, mas também o espírito de
prodigalidade, o desperdício com o luxo de uma vida espalhafatosa e
extravagante, são também marcas da cobiça e, portanto, fazem parte das
transgressões do mandamento que nos proíbe o roubo. Vejamos como Viret
comenta:
Como, nesse mandamento, Deus proíbe e condena a cobiça e a avareza, ordenando em
seu lugar a caridade e a generosidade, ele proíbe também o esbanjamento, isto é, o
vício que, por um lado, se opõe à avareza, mas que é igualmente contrário à
generosidade, que é uma virtude contrária a esses dois, ainda que a prodigalidade se
cubra frequentemente com o verniz da generosidade. Além disso, precisamos também
entender que Deus nos ordena a frugalidade, ou seja, o uso moderado e razoável, sem
excesso em nenhuma das partes, que se deve ter na distribuição das coisas que por ele
nos foram dadas.[19]
Temos, então, os contrastes seguintes: 1) Fé em Deus e incredulidade; 2)
Contentamento e cobiça; 3) Generosidade e avareza egocêntrica; 4)
Sobriedade e frugalidade versus prodigalidade e desperdício.
No diálogo moral e teológico de Viret, o personagem Timóteo pergunta e
Daniel responde.
Vejamos, brevemente, esse diálogo:
TIMÓTEO: Então você quer dizer que é preciso ter equilíbrio entre a avareza e o
desperdício.
DANIEL: É verdade. Porque o avarento passa da medida, poupando onde não se deve
poupar; o perdulário, ao contrário, se excede no outro extremo, gastando de qualquer
maneira. Mas o generoso, o moderado e bom administrador de sua casa, equilibra-se
entre esses dois, dando quando for preciso dar e restringindo quando for preciso
restringir. Ora, uma vez que nem o avarento, e nem o esbanjador sabem guardar essa
regra com equilíbrio, não podem evitar a avareza, que é uma das principais fontes de
roubos e, consequentemente, de vários outros tipos desse pecado. Porque a avareza
provém daquela mesma fonte de desconfiança, que procede da falta de fé em Deus. O
avarento, temendo a fome e a indigência, é induzido por essa descrença a reter o que
tem entre as mãos e, de forma avarenta, não distribui àqueles a quem devia, ou tira
para si o bem de outro em razão do medo que tem, para obter alívio e confortar-se, ao
invés de confiar em Deus. O perdulário não faz por menos, ainda que siga outro
caminho. Porque uma vez que não tem freio nem medida, não pode satisfazer o que
deveria, pois o que gastou de maneira irresponsável não pode mais ser investido em
coisa mais útil; e depois, precisa buscar em outro lugar alguma coisa a mais para
alimentar sua extravagância.
Dessa maneira, o avarento e o perdulário, por razões diferentes, privam suas
esposas e filhos do que precisariam para viver. A principal razão disso está
no fato de que tanto o avarento quanto o perdulário tomam o lugar de Deus
na administração dos seus bens, que se torna autônoma e contrária ao
mandamento que proíbe o roubo dos bens dados por Deus, para o conforto de
suas famílias e da comunidade como um todo.
O surgimento dos seguros de terra e do Estado Providência (a junção das
duas Bestas do Apocalipse) é o fruto conjugado tanto desse espírito de
avareza quanto dessa cultura de prodigalidade, como por exemplo, as
emissões massivas de crédito dos Bancos centrais baseadas em nada; o
sistema bancário de reservas fracionárias.
O desaparecimento das virtudes de caridade, de sobriedade e da
administração saudável dos negócios é o fruto direto da exclusão da vida
pessoal, familiar e pública, de toda confiança em Deus e do que decorre
normalmente dessa confiança na Providência divina, ou seja, a obediência
alegre aos mandamentos do nosso bom Pai celeste e as bênçãos materiais e
espirituais dela resultantes.
Deixarei a conclusão para Pierre Viret, que mostra como o avarento e o
perdulário são insaciáveis. Poderíamos até crer que se trata de uma descrição
dos costumes atuais e da maneira como os bancos agem!
TIMÓTEO: Há muitos que ficam desesperados e furiosos quando veem que o
dinheiro está acabando e não sabem mais de onde tirar, como frequentemente
acontece; porque ao tirar e não repor, até um mar pode ser esgotado; esvaziar com
uma mão e tomar de alguém para encher a outra é roubo. Porque o avarento, o
mesquinho e o perdulário são como um tonel furado, que jamais ficará cheio. Porque
ainda que o mesquinho e o avarento não derramem o tonel como faz o perdulário,
uma vez que jamais têm o bastante e nunca estão contentes, o que têm e o que não têm
de nada lhes aproveitará. Porque, quanto ao amor e uso que fazem da riqueza, seu
tonel não está menos furado e vazio que o do perdulário, e não são menos perigosos,
mas (ousaria dizer) ainda mais; nenhum avarento usufrui do que tem, como fazem os
perdulários; entretanto, tudo contado e calculado, não sobra grande coisa.
DANIEL: O perdulário age como se não houvesse amanhã; e o avarento, como se o
tempo não tivesse fim. O primeiro vive como se o mundo fosse acabar no dia seguinte
e por isso tivesse de gastar tudo o que tem; os avarentos vivem como se nunca fossem
morrer e a terra nunca mais lhes viesse dar seus frutos, e toda a provisão que fizeram
de uma só vez, para toda a eternidade, não seria suficiente para tanto tempo.[20]
Capítulo III: O espírito do Oitavo Mandamento: O
amor ao dinheiro, a raiz de todos os males

INTRODUÇÃO
Continuemos nossos comentários sobre os dez mandamentos. É uma longa
peregrinação e espero que isso não nos canse demasiadamente! Pudemos
notar que esses estudos possuem uma variedade muito grande. A razão disso
é que a Palavra de Deus sonda todas as coisas e o conjunto das verdades e
das realidades visíveis e invisíveis que têm relação com nossas vidas pessoais
e comunitárias se encontra no interior dos próprios mandamentos. Este é a
terceiro estudo sobre o oitavo mandamento Não roubarás.
Damos continuidade ao que havíamos começado na segunda parte do nosso
último estudo, quando falávamos do espírito do oitavo mandamento.
Nosso texto se encontra em 1 Timóteo 6.1-20.
Façamos algumas observações introdutórias.
Em nosso estudo precedente, tínhamos visto, em primeiro lugar, que a
transgressão desse mandamento implicava a transgressão de todos os outros.
Vimos que ao roubar os bens de nosso próximo, transgredimos também cada
uma das Dez Palavras dadas por Deus a Moisés no Sinai.
Em segundo lugar, começamos a examinar o espírito que caracteriza
especificamente esse mandamento. Para isso utilizamos amplamente o
comentário de Pierre Viret sobre o Decálogo, que felizmente será reeditado
por L’Age d’Homme no próximo ano.[21]
Vimos ali não apenas como a avareza, que é reter tudo para si, e a
prodigalidade, que é o desperdício do que Deus nos deu, são infrações muito
graves contra o espírito desse mandamento, mas sobretudo consideramos
como a ordem que Deus nos deu para não roubarmos tem em si um caráter
iminentemente positivo. Se seu conteúdo é negativo, isso ocorre porque
primeiramente serve para restringir a força do pecado no mundo. A aplicação
dos mandamentos não está restrita a uma função puramente “religiosa” no
seio da Igreja, para santificar os fiéis, mas também diz respeito ao
restabelecimento da ordem da criação (o cosmos) e da sociedade, o que inclui
a restrição do mal fora da Igreja. Mas, no fundo, detém um caráter
profundamente positivo, porque, antes de tudo, é preciso amar nosso próximo
e fazer-lhe bem. Fazer o bem, nos diz Paulo, não é contrário à Lei, mas seu
cumprimento! Vimos também que Pierre Viret resumia em três pontos o
conteúdo completo e positivo desse mandamento:
1. Não causar nenhum dano aos bens do próximo.
2. Empenhar-se para que seus bens fossem preservados e, se possível,
aumentá-los.
3. E enfim, ter como socorrer o próximo em suas necessidades e dificuldades
— por alguma acumulação de reservas — e para isso fazendo uso dos
próprios bens. Esse é o aspecto de complementaridade do rico em relação ao
pobre. A dialética marxista destrói essa complementaridade, porque produz
uma animosidade profunda entre eles, isto é, a luta de classes, fundamento da
dialética social. A dialética marxista tem sua raiz na visão liberal (Adam
Smith 1723-1790 e David Ricardo 1772-1823) da concorrência como
produtora de riquezas.
Aqui há três pontos sobre os quais devemos concentrar nossa atenção: a) não
fazer o mal; b) trabalhar, na medida do possível, para fazer o bem ao próximo
e c) ter como ajudar aqueles que se encontram na miséria. Aqui vemos,
perfeitamente, até que ponto a observação generalizada tanto dos aspectos
negativos como positivos desse mandamento poderia perfeitamente substituir
a benevolência administrativa, fria e desumana — e na realidade muito frágil
— que é a bondade fictícia desse Estado Providência que atualmente toma o
lugar que deveria ser do amor concreto e mútuo entre homens e mulheres na
sociedade. O que chamamos de Estado social ou amor pseudoprovidencial da
administração pública e dos serviços sociais é, na verdade, uma resposta
defeituosa, frágil e perecível, às misérias de nosso mundo, que extrai toda sua
força do desaparecimento daquele amor fraternal, que seria a obediência do
coração dos cristãos e das Igrejas ao oitavo mandamento, Não roubarás. Isso
não é acidental, mas uma substituição consciente, feita pelos homens, da
Providência de Deus pelo Estado Providência: aquele paraíso revolucionário
que não tem mais sua esperança no porvir.
Vamos, agora, dar sequência à nossa reflexão sobre este tema, isto é,
discernir bem o que caracteriza o espírito do oitavo mandamento. Faremos
isso, principalmente, utilizando textos normativos do Novo Testamento e,
mais particularmente, recorrendo aos ensinos — notemos bem —
extraordinariamente abundantes que nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo
nos deixou sobre esse mandamento e pelo ensino que inspirou o apóstolo
Paulo. De fato, o Novo Testamento nos fala abundantemente dessas questões
materiais, que para ele são de extrema importância. Mas, hoje, não
começaremos pelas palavras específicas de Cristo registradas nos Evangelhos
sobre esse ensino, mas por um texto notável do apóstolo Paulo. Somente em
seguida examinaremos, se Deus permitir, diversas passagens dos Evangelhos
sobre esse assunto.
Nossa abordagem será diferente daquela que, no passado, frequentemente
praticávamos, porque não somos obrigados a trabalhar da mesma maneira, ou
seja, tudo depende das circunstâncias, mas também dos textos que
estudamos. Em geral, antes começávamos pelo estudo do ensino do Antigo
Testamento e só depois disso voltávamos para o estudo do Novo Testamento.
Mas tendo visto o caráter particular desse mandamento, me pareceu mais
importante levar em conta o espírito que acompanha essa palavra de origem
divina, Não roubarás. E esse espírito se manifesta de uma maneira
particularmente clara no Novo Testamento e, sobretudo, no ensino de Paulo.
Será, então, por ele que começaremos, para em seguida nos voltarmos às
aplicações detalhadas e bastante precisas dessa oitava Palavra do Decálogo
que encontramos na Lei de Deus, nos Profetas e nos livros de Sabedoria.
Eis, portanto, alguns textos que ocuparão nossa atenção nas próximas
exposições.
Hoje, em primeiro lugar, vamos nos voltar para este adágio tão claro do
apóstolo Paulo: “O amor ao dinheiro é a raiz de todos os males” (1 Timóteo
6.10). O texto para nossa meditação se encontra, então, em 1 Timóteo 6.1-20.
Em seguida, falaremos sobre Mateus 6.20, no qual Cristo nos exorta a juntar
tesouros no céu.
Enfim, examinaremos a parábola do servo iníquo, Mateus 18.28: “Paga-me o
que me deves”.
Em último lugar, falaremos sobre um texto, ao mesmo tempo extraordinário
e terrível, que é o de Lucas 16.9: “Granjeai amigos com as riquezas da
injustiça”.
Esse é o extenso programa dos próximos meses. Vamos descobrir, no
decorrer do nosso trabalho, como se desenvolve a exposição deste
mandamento “Não roubarás”. Somente então, voltaremos à explicação que a
Torá, os livros de Sabedoria e os Profetas dão a esta oitava Palavra do
Decálogo. O título de nosso estudo é, portanto, o seguinte:
O amor ao dinheiro é a raiz de todos os males.[22]
Por que o apóstolo Paulo faz aqui um ataque tão veemente, tão forte ao que
chama de “o amor ao dinheiro”? Para compreender o conteúdo verdadeiro do
pensamento de Paulo, precisamos considerar, rapidamente, o conjunto dessa
passagem, isto é, os capítulos 5 e 6 de sua primeira epístola à Timóteo.
Vejamos, brevemente, o capítulo 5 que, no capítulo seguinte, deságua nessa
exortação tão vigorosa. Após ter dirigido duas exortações bastante genéricas
a Timóteo sobre a atitude que devia ter para com os velhos e jovens, idosas e
mulheres jovens (1 Timóteo 5.1-2), Paulo dá alguns conselhos morais
precisos e concretos em primeiro lugar às viúvas (versos 3-16), depois aos
homens idosos, responsáveis pela direção da Igreja (versos 17-22) e,
concluindo suas exortações éticas, faz referência às relações entre escravos e
senhores (1Tm 6.1-2). Foi assim que introduziu novas considerações por uma
exortação dirigida àqueles que estão sob o jugo da escravidão — poderíamos
dizer proletários — isto é, homens que não possuíam outro bem para sua
sobrevivência senão sua própria mão e que, consequentemente, são
totalmente dependentes de seus senhores.
Leiamos, então, nosso texto:
Todos os servos que estão debaixo de jugo considerem dignos de toda honra o próprio
senhor, para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados. Também os
que têm senhor fiel não o tratem com desrespeito, porque é irmão; pelo contrário,
trabalhem ainda mais, pois ele, que partilha do seu bom serviço, é crente e amado.
“Ensina”, diz Paulo à Timóteo, “e recomenda estas coisas”.
Trata-se, então, da importância que Paulo dá à atitude dos subordinados para
com seus superiores.
Se alguém ensina outra doutrina e não concorda com as sãs palavras de nosso Senhor
Jesus Cristo e com o ensino segundo a piedade, é enfatuado, nada entende, mas tem
mania por questões e contendas de palavras, de que nascem inveja, provocação,
difamações, suspeitas malignas, altercações sem fim, por homens cuja mente é
pervertida e privados da verdade, supondo que a piedade é fonte de lucro. [Retira-te
do meio deles.][23] De fato, grande fonte de lucro é a piedade com o contentamento.
Porque nada temos trazido para o mundo, nem coisa alguma podemos levar dele.
Tendo sustento e com que nos vestir, estejamos contentes. Ora, os que querem ficar
ricos caem em tentação, e cilada, e em muitas concupiscências insensatas e
perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e perdição. Porque o amor do
dinheiro é raiz de todos os males; e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé e a si
mesmos se atormentaram com muitas dores.
Paulo prossegue nas instruções dirigidas a seu discípulo amado, Timóteo:
Tu, porém, ó homem de Deus, foge destas coisas; antes, segue a justiça, a piedade, a
fé, o amor, a constância, a mansidão. Combate o bom combate da fé. Toma posse da
vida eterna, para a qual também foste chamado e de que fizeste a boa confissão
perante muitas testemunhas. Exorto-te, perante Deus, que preserva a vida de todas as
coisas, e perante Cristo Jesus, que, diante de Pôncio Pilatos, fez a boa confissão, que
guardes o mandato imaculado, irrepreensível, até à manifestação de nosso Senhor
Jesus Cristo; a qual, em suas épocas determinadas, há de ser revelada pelo bendito e
único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores; o único que possui
imortalidade, que habita em luz inacessível, a quem homem algum jamais viu, nem é
capaz de ver. A ele honra e poder eterno. Amém!
E voltando ao tema sobre o perigo das riquezas, Paulo conclui:
Exorta aos ricos do presente século que não sejam orgulhosos, nem depositem a sua
esperança na instabilidade da riqueza, mas em Deus, que tudo nos proporciona
ricamente para nosso aprazimento; que pratiquem o bem, sejam ricos de boas obras,
generosos em dar e prontos a repartir; que acumulem para si mesmos tesouros, sólido
fundamento para o futuro, a fim de se apoderarem da verdadeira vida. E tu, ó
Timóteo, guarda o que te foi confiado, evitando os falatórios inúteis e profanos e as
contradições do saber, como falsamente lhe chamam, pois alguns, professando-o, se
desviaram da fé. A graça seja convosco. (1 Timóteo 6.1-21)

Que Deus nos abençoe na leitura de sua Palavra.


A análise, mais ou menos detalhada de nosso texto, será dividida em sete
pontos, sendo que o primeiro será o mais longo.
Em primeiro lugar, faremos uma introdução, na qual examinaremos a atitude
que devem ter os escravos em relação aos seus senhores, isto é, a grande
importância que Paulo dá à hierarquia social. A hierarquia pertence à ordem
do mundo que certamente foi atingida pelo pecado, mas que faz parte da
Providência de Deus.
Num segundo ponto, falaremos do ganho verdadeiro e do ganho enganoso.
Em terceiro lugar, faremos algumas observações sobre o que é o dinheiro.
Em quarto lugar, examinaremos as ordens que Paulo dá a Timóteo.
Em quinto lugar, nos debruçaremos por um momento sobre a doxologia,
aquele louvor magnífico dirigido a Deus, que acabamos de ler.
Em sexto lugar, veremos os conselhos que Paulo dá aos cristãos ricos.
E em sétimo lugar, finalizaremos pela exortação que Paulo faz a Timóteo e
também a cada um de nós: “Guarda o depósito”.
Não estudaremos o texto em seu conjunto e nem mesmo em detalhes, porque
isso nos levaria longe demais. Vamos nos ater à questão que tem relação
central com o oitavo mandamento e que é o título desta pregação: “O amor ao
dinheiro é a raiz de todos os males”.

1. A CONDIÇÃO DOS ESCRAVOS E A IMPORTÂNCIA DO RESPEITO ÀS HIERARQUIAS

SOCIAIS

Todos os servos que estão debaixo de jugo considerem dignos de toda honra o próprio
senhor, para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados. (v. 1)

Não sei se você percebe, como eu percebo, o caráter extraordinário dessa


afirmação para o nosso contexto. Citarei apenas um texto de um comentarista
ortodoxo grego do começo do século 20, Apostolos Makrakis, que nos faz
compreender o sentido verdadeiro desse versículo.
Os servos, sob o jugo da escravidão, quando tornavam-se cristãos, isto é, filhos de
Deus e irmãos em Cristo, em razão disso não ficavam livres dos seus deveres como
escravos, mas lhes era ensinado a cumprir fiel e sinceramente seus deveres, como
também a virtude da humildade e o respeito que deveriam ter pelo direito de seus
senhores sobre eles. Eles deviam considerar seus donos como dignos de toda honra,
ainda que esses fossem pagãos, para que o nome de Deus e o ensino de Cristo não
fossem blasfemados, em razão de um comportamento que levasse à subversão da
ordem social existente.[24]

Atualmente, quase que em todo lugar, reina o desejo de enriquecimento, a


vontade de emancipação, de libertar-se do jugo conjugal, do jugo do
trabalho, do jugo eclesial, até do jugo da ordem natural criacional. Vemos
apenas o desejo de lutar por sindicatos, por pressão política, através de toda
sorte de intrigas para conseguir riquezas e para alcançar uma igualdade
utópica, baseada na igualdade mítica dos números, a busca de uma identidade
imaginária não criacional, considerada como o fundamento de toda justiça. O
nivelamento social é próprio de todas as revoluções, porque a igualdade
propalada pelo homem se revolta contra a desigualdade manifestada pela
ação da Providência, que distribui seus dons aos homens de maneira distinta
e desigual. Hoje só se tem uma preocupação: o desenvolvimento cada vez
mais veloz de uma sociedade, já opulenta, para que todos possam igualmente
enriquecer-se; nada mais é que o reino da cobiça universal!
Mas nosso texto nos fala de coisa totalmente diferente. Sabemos que o desejo
dos homens de alcançar a riqueza, a abundância e a paz, não resultará em
nada, porque o problema que se deve resolver não é econômico nem político,
mas se encontra no coração do homem, em suas más motivações, em sua
natureza pecaminosa. Nada será mudado de maneira útil e durável apenas
modificando o exterior do homem, sua condição social, como preconizava
Jean-Jacques Rousseau. Não se muda nada neste mundo apenas lavando o
exterior do copo. Não será por manipulações psicológicas ou sociais e
políticas que a realidade em que vivemos mudará.
O texto nos diz algo verdadeiramente extraordinário. Mas, quanto a uma
transformação durável da vida social no curso da história aliancial da igreja
no mundo, há alguma coisa que tem funcionado de maneira espetacular: as
reais e duráveis transformações produzidas pela proclamação poderosa e
eficaz da Lei bíblica e do Evangelho. O Império Romano foi derrubado e
substituído pela cristandade medieval, do Ocidente e Oriente, época em que,
em grande medida, milhares de cristãos respeitaram e aplicaram, ao menos
localmente e de acordo com cada momento histórico, as leis divinas pelo
poder do Evangelho. Isso porque o coração dos homens, em todo o lugar e
em todas as épocas, havia sido transformado pelo arrependimento e pela fé
na proclamação do Evangelho. O mesmo ocorreu na época da Reforma do
século 16, que foi um avivamento poderoso que mudou a cultura de grande
parte da Europa. Os avivamentos dos séculos 18 e 19 na Inglaterra
impediram ali a manifestação de uma revolução como a ocorrida na França.
Por outro lado, esses mesmos avivamentos não puderam reprimir os efeitos
nefastos da revolução política e econômica, por estarem cegos às
necessidades de estabilidade e prosperidade da sociedade a longo prazo.
Foram a Grã-Bretanha e os Estados Unidos que se tornaram os principais
motores dessa prosperidade durável. E na Suíça, a paz do trabalho, que é
fruto do cristianismo, manteve nosso país numa tranquila prosperidade. Ora,
aqui falamos de outro caminho, sobre o qual Paulo exorta os homens mais
pobres e miseráveis a seguir. É desse caminho que Paulo fala quando se
dirige aos escravos, ou seja, o caminho da regeneração social pela reforma
interior dos homens. Em primeiro lugar, é preciso uma reforma dos corações,
seguida de uma mudança de comportamento, dos costumes e dos hábitos
sociais e, enfim, as próprias instituições são regeneradas desde seu interior.
Foi através desse caminho, tanto espiritual como social, que os cristãos —
por sua fidelidade à Lei de Deus e pela ação do Espírito Santo em seus
corações, assim como por sua aliança com Jesus Cristo e a obediência fiel a
seus mandamentos — reverteram o poder bestial do Império Romano. Mas,
diríamos em seguida, que isso foi a custo do sangue derramado dos mártires.
Queremos os frutos desse tipo de fidelidade? Ou procuramos simplesmente
as mudanças que nada mudam, produzidas por manipulações psicológicas e
espirituais, ou por manipulações sociais, políticas e revolucionárias. É aqui
que constatamos o caráter extraordinário do nosso texto:
Todos os servos que estão debaixo de jugo considerem dignos de toda honra o próprio
senhor, [que na maioria das vezes não era nem um pouco amável, mas terrivelmente
cruel] para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados. (v. 1)

Mas há também a segunda parte, a dos senhores crentes. Sabemos que em


Cristo não há mais homem ou mulher, nem judeu, grego ou bárbaro, nem
mestre ou escravo, porque todos são um em Cristo e todas as distinções
foram superadas e transformadas. No reino celeste em Jesus Cristo, já
experimentado pelo cristão em certa medida, essas distinções não existem
mais. Mas a constatação das últimas realidades não extingue, absolutamente,
as distinções sociais, nacionais, sexuais, ou seja, as penúltimas realidades,
porque é no âmbito das coisas terrestres que devemos obedecer aos
mandamentos de Deus. A confusão das realidades últimas com as penúltimas
manifesta uma pobre compreensão da ordem criacional atual e sua
glorificação futura. O desejo de precipitar o fim do mundo não leva a sério a
glória da aliança nesta dispensação. É assim que, de uma maneira concreta e
prática, todas essas distinções criacionais são mantidas. Há a esfera que diz
respeito à nossa relação celeste com Deus, na qual todos os que confiam em
Jesus Cristo estão salvos (as últimas realidades). Há também a esfera em que
atuamos nesta terra, numa obediência diária aos mandamentos de Deus (as
penúltimas realidades). O homem regenerado em Cristo participa dos dois
reinos ao mesmo tempo, ou seja, da esfera celeste e da esfera terrestre.
Os escravos cristãos que possuem senhores crentes não os menosprezem,
porque esse é o caminho mais fácil e mortal dos desejos carnais! Os cristãos
que têm pais crentes, não os menosprezem de forma alguma! Jovens cristãos
que têm idosos crentes na igreja, também não os menosprezem! É tão fácil!
Meu patrão é cristão, então posso fazer o que quero, pois, como é cristão, vai
me perdoar! De forma alguma esse é o pensamento do apóstolo Paulo. Os
que têm senhores crentes não devem menosprezá-los sob pretexto de que são
irmãos! Ao contrário! Se nosso patrão é nosso irmão em Cristo, por isso
mesmo devemos ser trabalhadores ainda mais dedicados, que servem ainda
melhor seus superiores cristãos, porque eles também são crentes e amados;
então, que os senhores cristãos recebam um serviço exemplar dos cristãos
que trabalham sob suas ordens!
Que bênção seria se os casais, as famílias, as empresas e até as igrejas
compreendessem bem essa verdade. Especialmente se a pessoa que tiver
autoridade sobre nós for cristã, menos ainda deverá ser alvo de abuso por
parte de seus subordinados. Diante do mundo, esse mau comportamento faria
com que o nome de Cristo fosse caluniado. Mas, se dentro da igreja um
cristão mostrar-se insubordinado aos presbíteros, isso não faria com que
Cristo fosse desonrado em sua própria casa? É isso que o apóstolo Paulo
ensina. Esse é o primeiro ponto doutrinário que ele transmite ao seu fiel
discípulo Timóteo.
Precisamos, então, começar pelo ensino doutrinário fiel: Isto é o que você
deve ensinar e recomendar. Paulo afirma aqui que o cristianismo não veio,
de forma alguma, para mudar a sociedade (ou mudar o mundo) por meios
carnais, por manipulações revolucionárias, sociais, psicológicas ou outras.
De maneira nenhuma. O cristianismo veio, em primeiro lugar, transformar os
homens através da obra de Cristo na cruz e por sua aplicação em nossas vidas
pela ação celestial do Espírito Santo. Isto é o que você deve ensinar e
recomendar. Se alguém ensinar qualquer outra coisa sobre o respeito que os
escravos devem ter pelos seus senhores, cristãos ou não, a igreja deve
separar-se dele. Não se trata aqui, estritamente falando, de doutrinas
fundamentais como a da Trindade, da Encarnação ou da salvação, mas de
uma questão social, que diz respeito às justas relações entre escravos cristãos
e seus senhores, cristãos ou pagãos. Se alguém pensar diferente disso, Paulo
diz, não estará andando segundo as sãs palavras do Senhor Jesus Cristo,
porque essas palavras de Paulo em nada diferem da doutrina ensinada pelo
próprio Cristo, a qual é conforme a piedade. Portanto, esse ensino é apoiado
por toda a piedade autêntica que inspira uma vida cristã verdadeira. Se
alguém se coloca contra essas palavras, que parecem tão insignificantes aos
nossos olhos igualitaristas, essa pessoa se coloca contra o ensino do próprio
Senhor Jesus Cristo. Paulo afirma, portanto, que seu ensino está na base de
toda verdadeira piedade.
Então, como avaliar a atitude dessas pessoas que desrespeitam tanto as
hierarquias criacionais? Não são somente adversárias do ensino das igrejas,
não são apenas revolucionários ou agitadores políticos manipuladores, mas
estão em oposição a Cristo, são pessoas infladas pelo orgulho. Não
conhecem, de fato, nada das realidades da vida e da doutrina cristã
testemunhadas na Bíblia. Acham que sabem alguma coisa, mas na verdade
não sabem nada. São ignorantes, pessoas agitadas pela síndrome das
discussões ociosas que não levam a nada, que não passam de disputas de
palavras. Elas discutem, à maneira rabínica (tão nominalista quanto crítica),
palavras tiradas do contexto, vazias de significado, das quais não
compreendem o sentido nem o conteúdo. Tropeçam, aqui e ali, em palavras
cujo significado bíblico não conseguem captar. São verdadeiros balões
cheios de ar, mas vazios de sentido. Tais homens estão cheios de orgulho,
mas de fato não são nada.
Paulo, então, energicamente volta-se às consequências de tal agitação
totalmente tola. Desse raciocínio oco nasce a inveja e acabamos por invejar
os outros; nasce a discórdia, pela qual um contende com o outro; a calúnia,
pela qual falamos mal dos outros; as suspeitas malignas, pelas quais
imaginamos o mal que não existe nos outros. Nesta época em que vivemos,
todos somos tentados a entrar no círculo vicioso dessas discussões
intelectualistas. Todo o mundo pode ser tentado dessa maneira e eu mesmo
tenho de lutar contra esse espírito nocivo. A vitória, agora e sempre, está em
Cristo e não em nós. Depois das suspeitas malignas vêm a contestação e a
ambição grosseira! A mente desses personagens, agitadas por toda sorte de
pensamentos doentios, está profundamente corrompida. Desprezam todo
respeito à verdade e consideram a piedade apenas como fonte de lucro. São
materialistas, com mentes mercantilistas; em primeiro lugar, por ser mais
lucrativo, está o seu interesse próprio. Procuram ascensão social, profissional
e eclesiástica. Querem sempre os primeiros lugares. É necessário tomar
distância de tais homens e tirá-los da igreja.
Gostaria de observar que o texto que temos, de maneira extraordinária,
acrescenta aqui algumas palavras que foram retiradas da maior parte das
edições gregas do Novo Testamento chamadas “ecléticas”, e essa censura
editorial não tem nada de inocente. Podemos compreender muito bem as
razões. Paulo escreve a Timóteo sobre aqueles personagens tagarelas,
ambiciosos e briguentos: “Aparta-te dos tais”. Não tenha nada com eles.
Podemos, então, sem nenhuma dificuldade, compreender por que alguns
copistas retiraram essa parte do texto.

2. O LUCRO VERDADEIRO E O LUCRO ENGANOSO


Precisamos, agora, abordar a questão do lucro verdadeiro e do falso. Em
primeiro lugar vejamos o lucro verdadeiro. Nosso texto nos diz: “De fato,
grande fonte de lucro é a piedade” (v. 6). A piedade é colocada como uma
fonte extraordinária de lucro, como sendo, de fato, a fonte de um grande
benefício. Tal valorização da piedade está completamente fora da nossa
mentalidade atual. Porque para nós, atualmente, o lucro é o que ganhamos
nos negócios, é o lucro legítimo proveniente da venda um pouco mais cara de
coisas que foram compradas com preço mais baixo. Como comparar esse
tipo de lucro mercantil — transformado em cifras, em dinheiro vivo — com
essa “grande fonte de lucro que é a piedade”? Essa declaração do apóstolo
Paulo pode ser bastante desagradável, se não estivermos contentes com o que
temos.
A piedade nada mais é que o lucro da vida eterna, e nosso texto nos diz que é
nossa grande fonte de lucro, desde que estejamos contentes com o que temos,
isto é, se não nos tornarmos vítimas dessa paixão universal pela prosperidade
(que atualmente, de maneira espetacular, invadiu o mundo inteiro) e pelo
acúmulo, cada vez maior, de dinheiro. Essa mentalidade mercantilista, quase
que totalmente generalizada, nos incita amar o dinheiro cada vez mais.
Temos de ascender no plano social cada vez mais. A mesma lógica também
se aplica na esfera econômica: uma empresa que não se desenvolve numa
taxa de crescimento extraordinária é considerada moribunda. Porque,
simplesmente, para o homem moderno, não é mais admissível contentar-se
com o que tem! Vejamos este comentário sobre nosso texto:
A piedade é grande fonte de lucro, porque é o meio pelo qual temos comunhão com
Cristo; nela adquirimos bênçãos futuras eternas, bens duráveis que são
acompanhados de bênçãos temporais, dadas pela Providência divina que é suficiente
para prover nossas necessidades físicas.
Vejamos o significado da palavra contentamento em grego:
A palavra grega para contentamento significa a moderação de uma alma que
permanece nos limites estreitos do que lhe é necessário e não deseja o que é
supérfluo nem a abundância.
Essa é, claramente, a motivação essencial da nossa civilização mercantilista:
adquirir sempre mais o que é “supérfluo e abundante”. É contrário a tudo o
que Paulo nos diz em sua exortação, ou seja, que estejamos contentes com o
que temos. Tal atitude de contentamento material conduz a uma grande
estabilidade social. O contrário — entregar-se a todas as formas de cobiça e
do que é “supérfluo e abundante” — conduz à desestabilização social. É o
que vemos na agitação social de nosso tempo. Tudo muda, tudo se remove,
tudo se destrói! Contentar-se com o que tem, é não ser devorado pelos
desejos estimulados por este mundo; é não ser tomado pela ambição, pela
agitação profissional, pela vontade de uma ascensão social e material a
qualquer preço, por esse câncer chamado consumismo como fonte de
tranquilidade e paz!
Então, para nos colocarmos no mesmo diapasão atual, é preciso consumir
cada vez mais e a qualquer preço. Até mesmo se fala que não há saída para
nossa crise econômica permanente senão aumentar o consumo. Mas
perguntamos: de que consumo se trata? Dessas coisas supérfluas que não são
necessárias para nossa vida? Dessas distrações, dessas diversões sem fim que
fazem somente com que nos desviemos de Deus e de toda a realidade? De
fato, é o amor frenético por ser como todo mundo. Que a Igreja de Jesus
Cristo se abstenha de seguir o espírito do mundo!
Terminamos esta seção por uma exortação vinda diretamente da boca do
nosso Senhor:
Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? Ou: Com
que nos vestiremos? Porque os gentios é que procuram todas estas coisas; pois vosso
Pai celeste sabe que necessitais de todas elas; buscai, pois, em primeiro lugar, o seu
reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. Portanto, não vos
inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o
seu próprio mal. (Mateus 6.31-34)

3. O DINHEIRO E O AMOR AO DINHEIRO


Vejamos o que o apóstolo Paulo escreveu anteriormente, nesta mesma carta,
no verso 8 do capítulo 4:
Pois o exercício físico para pouco é proveitoso, mas a piedade para tudo é proveitosa,
porque tem a promessa da vida que agora é e da que há de ser. (1 Timóteo 4.8)
A razão fundamental de tais promessas é simples. A presente vida é fugaz;
ela é limitada e de curta duração. Ainda que a vida presente tenha
importância, a vida eterna tem importância muito maior! Vejamos, ainda, o
que diz Paulo:
Porque nada temos trazido para o mundo, nem coisa alguma podemos levar dele.

E insiste:
Tendo sustento e com que nos vestir, estejamos contentes. (1 Timóteo 6.7-8)

Referindo-se à habitação, à vestimenta, à alimentação. A vestimenta inclui


também esse “revestimento” que nos protege das intempéries, ou seja, uma
casa para morar. Como viemos a este mundo, assim sairemos dele; nossa
passagem neste mundo é bastante curta. Quando somos jovens, a vida nos
parece longa; mas quando ficamos velhos, como ela parece curta! Citemos
ainda um comentarista, David Martin, que escreveu em 1707:
[...] tudo que estiver além da alimentação e da vestimenta são necessidades falsas e
supérfluas, concebidas pelos homens para contentar seus desejos, sua ambição e
avareza;[25]

Citemos, agora, Apostolos Makrakis:


Tendo alimento e com o que nos vestir, estamos satisfeitos e não procuramos mais
nada, porque o supérfluo para nós é inútil.[26]

Tomás de Aquino também pode nos ajudar nisso:


O apóstolo, no que precede, explicou que tipo de lucro convém ao cristão, isto é, a
piedade e a moderação, uma mente que se contenta com o que lhe basta. É ensinado
aqui que os que procuram o lucro inútil das riquezas se expõem a numerosos perigos
e, em primeiro lugar, indica aqueles perigos resultantes do desejo imoderado de
riquezas [...] porque o amor às riquezas é a raiz de todos os males (1 Timóteo 6.10).
[27]
Pensemos, então, no exemplo de Judas, tomado pelo amor ilícito ao dinheiro
que o levou a trair seu Senhor:
Ora, os que querem ficar ricos caem em tentação, e cilada, e em muitas
concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e
perdição. (1 Timóteo 6.9)

Esse amor por um lucro espúrio, ilícito, supérfluo, não necessário, nos
conduz à tentação, a armadilhas, a desejos insensatos e perniciosos. Os que a
ele se entregam, são levados à ruína e à perdição. Até onde compreendemos a
afirmação peremptória de Paulo de que o amor ao dinheiro está na raiz de
todos os males? Mas notemos: ele não diz aqui que o dinheiro, em si mesmo,
é a raiz de todos os males!
Podemos dar bons conselhos — como a Bíblia inteira e Paulo nos dão —
sobre a justa utilização da riqueza. Porque ser rico não é um mal em si; a
pobreza também não é uma virtude em si mesma. Além do mais, o dinheiro
não é em si mesmo um mal! Trata-se de algo necessário, especialmente hoje;
um bem absolutamente necessário para a vida em sociedade. Mas o amor ao
dinheiro, a cobiça, a transgressão do oitavo e décimos mandamentos são a
raiz de todos os males — como vimos num estudo anterior — a raiz de todas
as nossas transgressões dos mandamentos.
Lembremos que vamos tratar em seguida do décimo mandamento.
Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o
seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que
pertença ao teu próximo. (Êxodo 20.17)

Aí está o pecado da nossa civilização! A cobiça promovida pela publicidade,


pela propaganda generalizada, pelas mentiras dos chefes de Estado, como
uma virtude universal, o vício elevado ao nível da virtude, considerado
saudável, que seria o responsável infalível por assegurar a vida e a
prosperidade dos homens, pelo crescimento sem fim do amor às riquezas
deste mundo. E essa mentalidade, infelizmente, pode ser encontrada até no
interior da igreja. Mas a Igreja de Jesus Cristo tem outra coisa a nos dizer e a
dizer ao mundo! David Martin nos diz por que o amor ao dinheiro é a raiz de
todos os males. Vejamos o comentário que faz sobre nosso texto:
Em primeiro lugar, porque o amor às riquezas destrói o amor a Deus e é o ídolo
ciumento que se eleva diante dos seus olhos e sobre o seu próprio altar [Colossenses
3.5]. A avareza é idolatria, o amor ao dinheiro é idolatria e os cristãos que se
entregam a isso não são menos idólatras do que aqueles que foram condenados por
Deus em Jerusalém nos tempos de Nabucodonosor. Em segundo lugar, porque quanto
mais um coração estiver possuído e agitado pelo desejo de riquezas da terra, menos
ardor terá pelas do céu. E em terceiro lugar, o que somos capazes de fazer para nos
enriquecer? Mentimos, enganamos, damos falsos testemunhos, roubamos, oprimimos,
até mesmo podemos matar.[28]

O que Martin afirma é evidente e salta aos olhos! Isso não quer dizer que o
cristão, ou o não cristão, não possa ser rico! Mas não é permitido que ponha
o seu coração nas riquezas deste mundo. Vejamos, agora, Apostolos
Makrakis:
O amor ao dinheiro é diametralmente oposto ao amor a Deus; e como o amor a Deus é
a fonte e a causa de toda a felicidade, o amor ao dinheiro, seu contrário, é a fonte de
todos os males. Por isso Cristo falou que é impossível servir a Deus e ao dinheiro.[29]

Que Deus nos livre desse ídolo tão poderoso em nosso tempo! E que Deus
nos permita ver que este tempo, em sua organização mecanicamente
mercantilista, está organizado de maneira diametralmente oposta ao Reino de
Deus. O dinheiro e as riquezas não são maus em si mesmos, longe disso! Ao
contrário, é muito bom que existam pessoas ricas, prontas a contribuir com a
obra de Deus, a ajudar os miseráveis, a sustentar a arte de bom gosto de
forma inteligente, ou seja, uma cultura verdadeira. Porque não é papel do
Estado ajudar os miseráveis ou favorecer a cultura; mas essa é a tarefa dos
ricos, daqueles que possuem os bens deste mundo, ajudar os infelizes e as
variadas artes dos homens, a fim de que a ajuda concedida não seja o
resultado de uma simples e mecânica cifra administrativa, portanto
desumana, mas seja pessoal, o fruto do amor ao próximo, e conduza ao amor
mútuo, ao amor do pobre pelo rico, em gratidão aos seus benfeitores. Mas,
hoje, a desordem mental é tão imensa que a maior parte das pessoas tem
horror sagrado de receber favor, de ser alvo da ajuda de alguém! Esse é o
tamanho do nosso orgulho, do nosso individualismo tão independente.
Mas precisamos acrescentar aqui que o dinheiro, como meio de troca, não é
algo criado, como um cavalo, um carro ou uma propriedade! Mas é apenas
um meio de troca! Nada mais natural que, em certa medida, gostarmos do que
foi trocado, como por exemplo de uma bela pintura; mas como podemos
amar o que não passa de um meio para adquiri-la? Se tenho dez francos
suíços no bolso, posso dá-los ao dono da quitanda e receber algumas laranjas
em troca. Isto é um meio de troca, uma medida reconhecida por todos, que
corresponde ao valor do bem. Mas o bem legitimamente desejado são as
laranjas, não os dez francos. Nosso amor desmedido por esse meio de troca é
monstruoso! Por essa razão, o hábito atual, tão comum, de fazer multiplicar o
dinheiro, de fazer com que o crédito cresça de forma quase mágica, é
verdadeiramente um horror. Porque, dessa maneira se destrói o valor do
dinheiro como meio de troca e isso arruína a sociedade inteiramente e reduz
todo mundo à miséria mais terrível, salvo aqueles que emitem essa moeda
fictícia, ou que estão próximos das fontes de sua emissão. Assim, destrói-se
também a capacidade do dinheiro como meio de armazenamento de valor,
isto é, de capitalização. O dinheiro não representa mais o capital, mas é
apenas um denominador flutuante, a serviço de uma especulação desnaturada.
A especulação não é mais o capitalismo, porque o valor — o capital — não é
mais estável. Em tais condições, a moeda fictícia torna-se tão acessível que
não produz mais nenhum juros. Mas o desaparecimento do juros, maneira
iníqua de enriquecimento proibido pela Lei de Deus, não é uma melhora
moral, uma vez que é substituído pela especulação como de uma economia de
cassino, pior que a usura, ou seja, nada mais do que o roubo em grande
escala, pela falsificação da moeda, tanto pelos bancos centrais como pelos
bancos comerciais, todos elevados a um grau de poder nunca antes visto no
mundo!
O dinheiro, certamente, é um meio de troca muito útil, inventado pelo homem
para facilitar as trocas e substituir o escambo. Portanto, a moeda é um
simples meio de troca. É o meio pelo qual as coisas são medidas para se
determinar seu valor monetário. No passado, só era possível fazer comércio
através do escambo, isto é, pela troca de produtos que satisfaziam a todos. Se
eu tinha ovos e o outro tinha carne, este me passava certa quantidade de carne
e eu lhe fornecia os ovos. Era o escambo. Mas depois a situação tornou-se
mais complexa. Hoje, se preciso comprar um livro nos Estados Unidos, como
farei para pagá-lo? Não posso fazer escambo com alguma coisa que disponho
em casa! É preciso, então, um meio de troca que nos permita fixar o valor
desse livro. É o mercado que estabelece, principalmente, o valor comercial do
objeto a ser comprado e os meios de troca que permitirão efetuar, por cartão
de crédito, a troca entre francos suíços e dólares, para que o livro seja pago.
Mas cabe uma outra questão: qual é o valor desse dólar e do franco suíço?
Antigamente existia uma unidade de medida que permitia dar um valor
estável às moedas em papel ou moedas eletrônicas; era o ouro ou a prata,
materiais preciosos que tinham qualidades próprias para manter o valor
relativamente estável, isto é, fixar o valor verdadeiro das moedas. Isso porque
o ouro ou a prata são materiais raros, portanto preciosos e estáveis, ou seja,
não se degradam e podem ser divididos em peças de prata ou lingotes de
ouro, que podem ser facilmente pesados. Esses materiais serviam de
referência para a compra e venda dos produtos em livre circulação no
mercado. Eram, também, minerais raros, difíceis de ser produzidos e
extraídos da terra. Por muito tempo o ouro e a prata foram bons meios de
troca, desde que não tivessem seu conteúdo falsificado. Mais tarde, para
simplificar as trocas e o pagamento dos produtos trocados, inventaram o
título ou certificado de depósito e outros meios de troca. Finalmente,
inventaram o papel moeda como novo meio de troca, que conhecemos ainda
hoje, cujo valor era garantido por reservas de ouro ou prata depositados nos
bancos. Quando eu apresentava meu papel moeda no guichê, o Banco era
legalmente obrigado a me devolver o valor correspondente em ouro.
Mais tarde, a maior parte dos países abandonou a obrigação de reembolsar o
papel moeda pelo ouro, porque, de fato, a partir dos acordos de Bretton
Woods de 1944, o único país que tinha a obrigação de reembolsar em ouro
era os Estados Unidos, tendo o dólar se tornado a reserva para o comércio
mundial. Em última instância, no comércio internacional, tudo se pagava em
dólares. Atualmente, desde a decisão tomada em 1973 pelo presidente
americano Richard Nixon de cancelar a obrigação de reembolso em ouro dos
diversos pagamentos em dólar, essa moeda começou a flutuar de acordo com
o mercado de câmbio.
A consequência dessa decisão foi o desaparecimento de qualquer medida que
estabelecesse limite às especulações monetárias. A última fronteira no mundo
foi, de fato, a garantia constitucional do valor do franco suíço, obrigando o
Banco Nacional a reter uma reserva em ouro de 49% da massa monetária em
circulação, para garantir o valor de sua moeda. Essa garantia constitucional
foi discretamente abolida por um artigo, sobre essa questão, na nova
constituição helvética de 1999, organizada para essa finalidade. Desde então,
a desregulamentação do sistema financeiro mundial — como também da
Suíça — não teve mais limite. Consequência lógica, visto que não existia
mais nenhuma referência fixa para as diversas moedas do mundo.
Atualmente, países como a Rússia e a China procuram acumular grandes
reservas em ouro, para fazer com que suas moedas voltem à estabilidade. O
grande ganhador nesse sistema de moedas flutuantes foi o dólar americano
que, mesmo não tendo mais garantia quanto ao seu valor, permaneceu o meio
de troca internacional obrigatório. Isso lhe permitiu pagar todas as suas
faturas, as mais extravagantes e assassinas, através de dólares virtuais,
fabricados pela máquina de dinheiro, depois por meio de simples escrituras
contábeis eletrônicas do sistema bancário (fractional reserve banking), que
permitiu aos bancos multiplicar seus haveres fictícios por simples escritura
contábil. Outros países, inclusive a Suíça, outrora tão conservadora nessa
área, lançaram-se no cassino mundial das especulações monetárias e
financeiras, alimentadas pela máquina de moedas insaciável dos bancos
centrais.
O amor ao dinheiro, como dizia justamente o apóstolo Paulo, depois de seu
Mestre Jesus Cristo, é certamente a raiz de todos os males. Isso acontece
mesmo em termos de geopolítica. É evidente que não podemos servir a dois
senhores, a Deus e a Mamon, a Jesus Cristo e ao dinheiro, a Deus e ao diabo!

4. OS CONSELHOS DE PAULO A TIMÓTEO


Chegamos em nosso quarto ponto, que diz respeito às ordens que Paulo dá a
Timóteo. Trata-se dos versos 11 a 14 do capítulo 6 de sua primeira epístola a
Timóteo. Paulo dá aqui seis conselhos: 1) fuja das coisas más; 2) siga a
justiça; 3) combata o bom combate; 4) apodere-se da vida eterna; 5) confesse
a fé; 6) guarde o mandamento.

“Mas tu, ó homem de Deus”, diz Paulo ao seu amado discípulo, “foge destas
coisas, e segue a justiça, a piedade, a fé, o amor, a constância, a mansidão”.
Não se trata, então, de procurar a autorrealização, nem a felicidade a qualquer
preço; trata-se menos ainda de correr atrás da satisfação de todos os desejos,
mas fugir de tais coisas, como quem foge da peste. Então, é preciso rejeitar o
amor ao dinheiro, que é o instrumento para satisfazer todos os nossos desejos
desordenados! É claro que o cristão pode prosperar cuidando bem dos seus
negócios, com honestidade, submetendo-se aos mandamentos de Deus e
esperando a bênção do alto. Não há nenhum mal nisso! Mas não deve pôr seu
coração nas riquezas que Deus lhe deu como fruto do seu trabalho! Timóteo
devia procurar a justiça, submetendo-se à lei de Deus, como também a
piedade, o amor e o temor a Deus, tudo isso pela obediência da fé. Ele devia
colocar sua esperança em Deus e não nas realidades terrestres que são boas,
mas passageiras. Sua vida cristã devia manifestar o amor, a compaixão, a
piedade, mas sobretudo aquela paciência que suporta as provações, disciplina
que produz mansidão, esperança e grande domínio próprio.

5. DOXOLOGIA E LOUVOR A DEUS


E com tudo isso, diz Paulo a Timóteo, faça tudo o que puder para travar o
bom combate da fé, apodere-se da vida eterna. Deus nos chama para a
salvação, pura graça divina, mas devemos também nos apropriar da vida
eterna, andando de maneira que agrade a Deus. Ele dará forças para isso e
concederá a Timóteo a vida eterna, à qual foi chamado, mas agora é preciso
apoderar-se dela, diz Paulo a Timóteo, tendo já feito a boa confissão diante
de muitas testemunhas. Então Paulo lembra a confissão que Timóteo havia
feito quando foi consagrado como servo de Deus, como bispo da igreja, como
pastor. Portanto, para cumprir a obra do ministério — serviço que pertence a
cada cristão — é preciso pôr sua confiança em Deus, naquele que dá a vida a
todos os seres. E Paulo escreve a Timóteo esta bela exortação sobre o bom
combate da fé até o fim, esta magnífica doxologia de louvor a Deus:
Diante de Deus, que todas as coisas vivifica, e de Cristo Jesus, que perante Pôncio
Pilatos deu o testemunho da boa confissão, exorto-te a que guardes este mandamento
sem mácula e irrepreensível até a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo; a qual, no
tempo próprio, manifestará o bem-aventurado e único soberano, Rei dos reis e Senhor
dos senhores; aquele que possui, ele só, a imortalidade, e habita em luz inacessível; a
quem nenhum dos homens tem visto nem pode ver; ao qual seja honra e poder
sempiterno. Amém. (1 Timóteo 6.13-16)

6. CONSELHOS DE PAULO AOS RICOS


Este tópico diz respeito aos conselhos que Paulo dirige aos cristãos ricos, ao
que ele recomenda aos ricos do presente século. Ele está numa igreja de
pessoas ricas segundo o presente século. Não há nenhum mal se alcançaram a
riqueza por uma atividade honesta ou se são ricos em razão de alguma
herança. A inveja é coisa detestável, mais ainda para um cristão. Mas esses
ricos, segundo as riquezas deste mundo, têm deveres especiais. Num certo
sentido, diante da miséria que reina em grande parte do mundo, em nossa
civilização tecnicista, somos quase todos ricos. Diante de um mundo que
morre de fome, Paulo recomenda aos ricos do presente século que não sejam
orgulhosos. Que diante da pobreza de países devastados pela miséria, nós
mesmos não estejamos entre os orgulhosos, demasiadamente confiantes com
nossa abundância. Com muita frequência, o dinheiro que acumulamos —
nossos seguros de vida e de saúde, por exemplo — faz com que deixemos de
pensar na vida eterna. O mau rico dizia pra si mesmo “construirei mais um
celeiro”. Terei reservas para muitos anos. Conhecemos a história de Lázaro.
Mais! Mais! Mil seguros. Tenho muitos seguros; tenho poupança para muitos
anos; não haverá nenhum problema e tudo vai ser o melhor dos mundos. Esse
é o orgulho pelo qual os ricos deste mundo são tentados. Recomenda aos
ricos do presente século que não sejam altivos, que não ponham sua
confiança neles mesmos e sua esperança nas riquezas que perecem.
Hoje conhecemos bem essa insegurança de uma economia de cassino, da
qual se aproveitam muitas pessoas. Todas que especularam nesse vazio (e
mesmo as que não especularam) perderam tudo e essa loteria insensata não
terminou. É a realidade das incertezas do nosso mundo, da qual fala o
apóstolo. Aqui no Ocidente, essa exortação para nos contentarmos com o que
temos, sem dúvida será ainda mais necessária nos próximos anos. Colocar
nossa esperança somente em Deus, em quem não há sombra de mudança e
nenhuma incerteza por menor que seja, é a resposta ao erro dos que confiam
nas riquezas incertas, isto é, no dinheiro que capitalizamos. Ele é rico, já
dizia Pierre Courthial a um irmão italiano: “Querido amigo, nosso Deus é
rico. Muito mais rico é aquele que criou, a partir do nada, todos os tesouros
deste mundo!”.
Se tudo pertence a Deus, por que então nos preocuparmos tanto? Apresentem
suas necessidades e ele cuidará de vocês. Não são vocês filhos de Deus? Não
são da família de Deus? Seu Deus é mesquinho, avarento? Ele é um Deus
que esbanja e dilapida suas riquezas? Não! Ele administra bem tudo o que
fez. Portanto, temos de pôr nossa confiança em Deus que nos dá tudo com
abundância. Mas, como a falta de fé tem marcado toda a vida da nossa
civilização! E por que ele nos dá tudo com abundância? A resposta é de uma
beleza cristalina: para o nosso gozo. Note a maravilha que há nisso! Não é
um Deus avarento, sem generosidade. De forma alguma! Ele nos dá tudo —
em primeiro lugar seu Filho eterno — para que gozemos de forma sadia,
segundo sua boa, justa e santa Lei, e o nosso prazer esteja nisso, isto é,
primeiramente em Deus e depois em tudo que ele fez. Sim, um bom almoço,
a vida em família, um belo passeio na montanha, todas essas coisas nos
foram dadas para que nelas tenhamos prazer, porque vêm de Deus. Ele é
generoso conosco. Mas agora ele também nos diz: Sejam generosos! E aos
ricos diz, façam bem aos que sofrem, através daquilo que possuem em
abundância. Que sejam ricos em boas obras, na Igreja, para com os pobres e
infelizes, que dependem da generosidade do povo de Deus. Aqui e acolá, mas
em primeiro lugar aqui, porque não vamos começar pelo amor para com
quem está longe, mas pelo amor ao nosso próximo, ao que está ao nosso lado
e que tem necessidades. Não deixem a glória da generosidade cristã nas mãos
de uma administração impessoal de um Estado sem coração e frio. Que os
ricos sejam liberais, porque o próprio Deus é liberal. Eu posso dar a outros o
que recebi de Deus, o qual é a própria liberalidade, e ele cuidará do nosso
amanhã. Não podemos desperdiçar as riquezas que Deus nos dá! Que os ricos
sejam generosos e acumulem assim um belo e sólido tesouro para o futuro, a
fim de possuir a verdadeira vida.

7. MANTENHA O DEPÓSITO DA FÉ
O que fazemos para Deus aqui embaixo está sendo investido no Banco
Celeste, naquele céu no qual não há ferrugem nem traça que rói e menos
ainda inflação. O que fizermos de bom, isso nos seguirá; as boas obras que
temos realizado para Jesus Cristo e para os seus, nos precederão nos lugares
celestes, e será então, no último dia, a medida de nossa recompensa. Leiamos
com atenção o que nos diz o apóstolo Paulo: a fim de tomar posse da
verdadeira vida. Ó Timóteo, é assim que você guardará bem o bom depósito.
Vejam novamente esta surpreendente palavra: depósito. Um depósito é o que
fazemos quando pomos dinheiro num lugar seguro, em princípio, no banco.
Mas depositar nosso dinheiro no banco não nos livra de todo problema!
A gente se pergunta: mas o banco UBS vai se manter? O banco deveria ter
uma reserva em ouro para cobrir o que depositei. Não é uma grande soma,
mas essa cobertura o banco não tem! Os banqueiros têm medo, porque não
dispõem de cobertura para os depósitos recebidos e isso por terem gasto,
gananciosamente, mil vezes mais e talvez até mais do que possuem. Os
banqueiros têm medo de emprestar a outros bancos, porque sabem muito
bem que seu vizinho não tem melhor cobertura do que ele, e se perguntam:
tal banco teria como garantir o empréstimo que eu lhe fizer? Porque os
bancos fazem empréstimos e sustentam uns aos outros. Mas essa mutualidade
nos empréstimos, sem cobertura por fundos verdadeiros, é como uma carreira
de dominós. Se uma das peças cai, faz com que todas as outras caiam. Esse
sistema faz com que os negócios funcionem bem; ele tem permitido que o
dinheiro renda mais do que é depositado. E essa fraude universal perdura há
muito tempo! Ela vai, certamente, se acelerar, mas quanto maior a
velocidade, mais dura será a queda!
Tal incerteza deveria nos assustar, do mesmo modo que enche de pavor
aqueles que não têm esperança? Vejamos mais uma vez o que diz o apóstolo
a seu discípulo Timóteo:
Guarda o depósito — o depósito da fé é a sã doutrina — evitando os falatórios inúteis
e profanos e as contradições do saber, como falsamente lhe chamam, pois alguns,
professando-o, se desviaram da fé.

Termino com as palavras do apóstolo Paulo:


Que a graça seja convosco! Amém.
Capítulo IV: O roubo e o Natal

Ó Senhor nosso Deus, diante de ti — junto com os magos, com os pastores e


com todos os que na história do mundo têm reconhecido que o menino
nascido em Belém, concebido pelo Espírito Santo no ventre da virgem Maria,
é o verdadeiro Filho eterno de Deus — queremos te adorar por tamanha
bênção, te louvar e exprimir nossa gratidão e nossa alegria por termos sido
alcançados pelos efeitos da vinda de Deus ao mundo. Obrigado, Senhor
nosso Deus, pela salvação que nos deste por meio da vida e obra de Jesus
Cristo, Jesus de Nazaré, o Filho eterno de Deus feito homem. E queremos,
Senhor, pedir que por teu Espírito Santo nos ajudes a te adorar, como já nos
ajudaste nesta manhã. Que nos permitas expor fielmente as maravilhas da
tua salvação. Senhor, que também nos faças compreender a grandeza dessa
obra. Pedimos todas essas coisas, e já te agradecemos, no nome do Senhor
Jesus Cristo. Amém.[30]

INTRODUÇÃO

Dando sequência ao nosso estudo sobre o oitavo mandamento, Não roubarás,


e à luz de diversos textos bíblicos, relacionados com o relato sobre o Natal,
veremos que ligação pode haver entre o roubo e o nascimento de Jesus
Cristo. Colocamos a seguinte questão, a qual haveremos de responder neste
capítulo: de que maneira os homens podem roubar de Deus a glória que lhe
pertence, quando deixam de reconhecer que esse menino, nascido em Belém,
é verdadeiramente o Filho eterno de Deus? Sobretudo, vamos considerar o
contrário, isto é, como não lhe roubamos quando damos a glória devida a
Jesus Cristo, nascido em Belém! Tentaremos ver, como, por nossa fé e pela
adoração de nossos corações, podemos reconhecê-lo plenamente e dar-lhe a
honra e a glória que lhe pertencem!
Algumas palavras de introdução.
No capítulo treze da epístola de Paulo aos romanos, lemos no versículo 7:
Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto,
imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra.

A quem devemos, sobretudo, temor e honra?


Em 1 Coríntios 8.6, lemos:
Todavia, para nós há um só Deus, o Pai, de quem são todas as coisas e para quem
existimos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós
também, por ele.

É a ele que devemos a honra suprema. Ao único Deus, o Pai, Filho e Espírito
Santo. De fato, não lhe dar a honra é o mesmo que roubar o que lhe pertence.
E conhecemos a esse Deus Pai pelo seu Filho, nosso Mediador, por meio do
Espírito Santo. Lemos na epístola de Paulo aos Colossenses 1.15 a 18:
Este é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação [em sua
encarnação]; pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as
visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer
potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de todas as
coisas. Nele, tudo subsiste. Ele é a cabeça do corpo, da igreja. Ele é o princípio, o
primogênito de entre os mortos [em sua ressurreição corporal], para em todas as
coisas ter a primazia.

Como podem ver, trata-se aqui da Pessoa de Jesus Cristo, plenamente Deus e
plenamente homem. É a essa Pessoa divina, o Filho eterno de Deus, que no
tempo e no espaço de sua própria criação assumiu nossa humanidade, e a ele
somente — com o Pai e o Espírito Santo, um único Deus — devemos dar
toda a honra e toda a glória. Vejamos ainda 1 Timóteo 3.16:
Evidentemente, grande é o mistério da piedade: Aquele que foi manifestado na
carne foi justificado em espírito, contemplado por anjos, pregado entre os
gentios, crido no mundo, recebido na glória.[31]

O Natal é isso! Deus manifestou-se em carne, o Deus todo-poderoso, Deus


Filho, consubstancial, isto é, da mesma substância do Pai e do Espírito Santo,
um único Deus em três pessoas divinas. Foi esse Filho do homem, Deus
Filho, Criador, Sustentador e Governador de todas as coisas, que assumiu
nossa humanidade. E ele fez assim, para que dessa maneira sua humanidade
fosse eternamente unida a seu corpo. É assim que, por sua graça e por meio
da fé, como diz Pedro em sua segunda carta, nos tornamos “participantes da
natureza divina” (2 Pedro 1.3-4). Essa é a mensagem do Natal.
Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus!
Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos!
Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou
quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? (Romanos 11.33-
35)

De fato, somente a Deus devemos dar honra, louvor e glória. Então, se


recusarmos dar a Deus toda a honra e toda a glória, a ele roubamos,
subtraímos o que só a ele pertence, o que lhe é de direito e somente dele, isto
é, a glória e a honra! É assim que no Natal podemos nos comportar como
ladrões. Nesta manhã, último domingo do advento, dia tão próximo da festa
que comemora a vinda de Deus, do Filho de Deus entre os homens, queremos
contemplar, numa adoração comum, esse ato da encarnação divina, esse gesto
prodigioso e infinito do amor e da bondade da
[...] graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por amor de
vós, para que, pela sua pobreza, vos tornásseis ricos. (2 Coríntios 8.9)
[...] pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser
igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo,
tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si
mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que
também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo
nome. (Filipenses 2.6-9)

Mas quem foi exaltado? O Filho eterno de Deus! Mas como é possível que o
Filho eterno de Deus tenha sido exaltado na glória? O fato de compartilhar na
glória a mesma substância eterna com o Pai e com o Espírito Santo, um único
Deus, bendito eternamente, não tornaria isso impossível? Trata-se aqui da sua
humanidade; sua humanidade é que foi exaltada na glória, por ser inseparável
do Filho de Deus. Deus, o Filho, por sua encarnação, baixou até nós; com sua
ascensão foi exaltado, na sua própria humanidade, acima de todos os céus.
[...] para que ao nome de Jesus [seu nome humano] se dobre todo joelho, nos
céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor
[pela união sem confusão das duas naturezas], para glória de Deus Pai.
(Filipenses 2.10-11)

Portanto, o Natal não diz respeito apenas à vinda do Filho eterno de Deus à
terra, mas (algo ainda mais misterioso!) também ao fato de que o Filho eterno
de Deus, feito homem, cumpriu toda a vontade do Pai e subiu ao céu em sua
própria humanidade, a fim de que todo joelho se dobre e toda boca confesse
que esse Deus, feito homem, está plenamente cheio da glória de Deus, tanto
no que concerne à sua humanidade como à sua divindade.

1. AQUELES QUE NÃO ROUBARAM DO MENINO O RECONHECIMENTO DE SUA

GLÓRIA

Neste capítulo queremos contemplar esta riqueza infinita que é a encarnação


do Filho de Deus. Porque o próprio Deus, na Pessoa do Filho eterno, foi
graciosamente dado aos homens neste dia que celebramos. Então desejamos
contemplar Cristo, que saiu do ventre da virgem Maria, sob um ângulo muito
particular. Porque a humanidade desse menino, desde sua concepção pelo
Espírito Santo, está sempre unida ao Filho eterno de Deus.
Queremos meditar sobre as reações daqueles que, na Galileia e na Judeia,
foram as testemunhas desses eventos maravilhosos. Com efeito, houve dois
tipos de reações. Como bem sabemos, a maior parte do povo não lhe deu
importância. O povo de Israel foi predestinado por Deus e escolhido com o
objetivo preciso de manifestar o Messias. Quando chegou o tempo dessa
manifestação, a imensa maioria dos judeus a ignorou. Foi assim que
roubaram o que lhe era devido: a honra e a glória de Deus, manifestadas no
nascimento desse pequeno bebê.
Alguns, em muito menor número, reconheceram, com alegria, a riqueza
divina que naquele instante se manifestava ao mundo. Deram a essa pequena
criança, enfaixada e deitada numa manjedoura, a glória que lhe era devida.
Então, vamos juntos, rapidamente, percorrer os textos dos Evangelhos que
falam sobre o nascimento do Filho de Deus e, ao fazer isso, distinguiremos os
que reconheceram e adoraram a riqueza divina dada ao mundo naquele dia,
daqueles que não lhe deram honra e glória. Os primeiros obedeceram ao
mandamento “Não roubarás”; os demais o transgrediram, roubando do Filho
de Deus tudo o que lhe pertencia. Voltemo-nos, então, para os que deram
justa homenagem ao pequeno menino.
Portanto, nesta manhã faremos muitas leituras. Passarão diante dos nossos
olhos personagens que obedeceram ao oitavo mandamento. Em primeiro
lugar Zacarias e Maria, e em terceiro, Isabel, como também o bebê que estava
em seu ventre, João Batista; em seguida, José, que recebeu os pastores e os
magos; e por último, Simeão e Ana. Numa segunda parte — que será muito
breve — veremos alguns daqueles inumeráveis personagens que não foram à
Belém, nesse primeiro Natal, para dar glória ao Filho de Deus feito homem.
Entre aqueles que lhe roubaram a glória devida encontramos o rei Herodes,
os habitantes de Jerusalém, os moradores de Belém, os sacerdotes e os
escribas. Para concluir, leremos os cânticos de Maria e de Zacarias, como
também a oração de ação de graças de Simeão.

a) Zacarias
Em primeiro lugar leiamos em Lucas, capítulo 1, do verso 5 ao 25, um relato
sobre Zacarias, que comentaremos no decorrer da leitura. Veremos aqui que
Zacarias deu glória apenas parcial a Deus; por sua incredulidade, não confiou
com inteireza de coração.
Nos dias de Herodes, rei da Judeia, houve um sacerdote chamado Zacarias, do
turno de Abias. Sua mulher era das filhas de Arão e se chamava Isabel [ele fazia
parte da classe sacerdotal, da elite intelectual e da nobreza de Israel]. Ambos
eram justos diante de Deus, vivendo irrepreensivelmente em todos os preceitos e
mandamentos do Senhor.

De fato, ambos estavam entre aqueles justos como Natanael, mais tarde
mencionado por Cristo e reconhecido como um israelita sem dolo, um
homem íntegro, não hipócrita. Zacarias e Isabel faziam parte desses
remanescentes fiéis da Antiga Aliança.
E não tinham filhos, porque Isabel era estéril, sendo eles avançados em dias.

Diante dos desígnios de Deus surge novamente a impossibilidade humana, a


dificuldade insuperável que fará Zacarias tropeçar.
Ora, aconteceu que, exercendo ele diante de Deus o sacerdócio na ordem do seu
turno, coube-lhe por sorte, segundo o costume sacerdotal, entrar no santuário do
Senhor para queimar o incenso.

Cada sacerdote, segundo seu turno e em datas precisas, devia dirigir-se ao


templo para ali oferecer sacrifícios. O Lugar Santíssimo lhes era proibido,
porque esse privilégio pertencia ao Sumo Sacerdote que ali entrava uma vez
por ano. Mas Zacarias foi chamado para oferecer incenso aromático no Lugar
Santo. Cada sacerdote oferecia incenso segundo seu próprio turno. Estar
assim próximo a Deus, em nome de todo o povo, era para o sacerdote uma
grande honra.
e, durante esse tempo, toda a multidão do povo permanecia da parte de fora [isto
é, no pátio exterior], orando.

O incenso, oferecido a Deus no templo, era o sinal visível da realidade das


orações invisíveis dirigidas a Deus por todo o povo. Lembremo-nos que há
quatro séculos — Malaquias tendo sido o último profeta do Antigo
Testamento — e até esse momento preciso, não tinha mais havido
comunicação profética canônica direta, da parte de Deus, com Israel. Esses
quatro séculos de silêncio divino chegavam ao fim. Finalmente, Deus havia
lembrado do seu povo. Em sua misericórdia e compaixão, ele se voltava para
a nação de Israel para preparar ali a vinda de seu Messias, anunciado e
esperado há tantos séculos.
E eis que lhe apareceu um anjo do Senhor, em pé, à direita do altar do incenso.
Vendo-o, Zacarias turbou-se [como Maria, mais tarde], e apoderou-se dele o
temor.

Diante da aparição de um anjo poderoso, revestido da glória divina, é normal,


para um ser humano, ter medo. Quem não teria medo diante de tal glória?
Disse-lhe [acalmou-o], porém, o anjo: Zacarias, não temas, porque a tua oração
foi ouvida.

Esse velho casal, durante muitos anos, orava por um filho; talvez a paciência
de Zacarias tivesse se esgotado e deixado de orar; ou talvez não cresse mais
na resposta às suas orações. O anjo prosseguiu:
e Isabel, tua mulher, te dará à luz um filho, a quem darás o nome de João. Em ti
haverá prazer e alegria, e muitos se regozijarão com o seu nascimento.
O nascimento daquele que mais tarde seria chamado João Batista, o
precursor, que anunciaria a vinda eminente do Messias, Salvador de Israel,
profetizado na Escritura.
Pois ele será grande diante do Senhor, não beberá vinho nem bebida forte [será
separado para servir somente a Deus, como os nazireus] e será cheio do Espírito
Santo, já do ventre materno [o que veremos em seguida]. E converterá muitos dos
filhos de Israel ao Senhor, seu Deus [isto é, ao Messias, a Jesus Cristo]. E irá
adiante do Senhor no espírito e poder de Elias, para converter o coração dos pais
aos filhos, converter os desobedientes à prudência dos justos e habilitar para o
Senhor um povo preparado.

Foi assim que o anjo definiu o ministério de João Batista: preparar para esse
Senhor um povo que estivesse bem-disposto. Mas Zacarias não cria mais
nisso, o que infelizmente também acontece conosco! Nós cansamos, não
cremos mais nas promessas e duvidamos das palavras infalíveis de Deus.
Zacarias, tomado pela dúvida, não compreende que foi alvo de uma graça
prodigiosa da parte de Deus. Quando somos invadidos pelo medo nossa
adoração e a submissão que dela decorre desaparecem. Tenhamos, portanto,
grande temor de Deus. Confiemos nele, mas não temamos este mundo. Esse
temor confiante deve levar-nos ao louvor e à adoração do Senhor da glória.
Então, perguntou Zacarias ao anjo: Como saberei isto? Pois eu sou velho, e
minha mulher, avançada em dias.

O anjo não sabia disso? O anjo não tinha vindo de diante do trono de Deus
para lhe dar essa notícia maravilhosa? Para Deus não é tudo possível? Até
mesmo vencer nossa incredulidade e a esterilidade de Isabel?
Respondeu-lhe o anjo: Eu sou Gabriel [um general do exército celeste], que
assisto diante de Deus, e fui enviado para falar-te e trazer-te estas boas-novas.

Você não crê nisso? Você ainda crê na velha lei de uma natureza caída, nessa
velhice estéril da sua mulher, em sua própria velhice, mais do que no Deus
que criou todas as coisas do nada e que pode recriar tudo? Esta velha árvore
seca que sou, poderia em sua idade avançada gerar em Isabel aquele filho
esperado há tantos anos? Você esqueceu de Abraão? Você esqueceu de Sara?
Todavia, ficarás mudo e não poderás falar até ao dia em que estas coisas venham
a realizar-se; porquanto não acreditaste nas minhas palavras, as quais, a seu
tempo, se cumprirão.

Portanto, Zacarias não creu na palavra do anjo, naquela palavra divina eficaz
que jamais volta ao seu Autor sem cumprir o que lhe apraz. Mas isso não
significava indiferença ou revolta! Tratava-se de um medo totalmente
humano e de pouca fé! E medos como esse, diante dos homens, da história e
do mundo, fecham nossas bocas! Que Deus aumente nossa fé! Zacarias não
deu glória a Deus! Ele não se revoltou contra Deus, mas não o adorou diante
dos propósitos tão maravilhosos do Senhor para com ele. Dessa maneira,
roubou de Deus a glória que lhe era devida, o qual, por algum tempo, lhe
tirou a voz! Ficou mudo até que as promessas divinas sobre ele, sobre Israel e
sobre todas as nações da terra se cumprissem.
Que possamos crer em Deus com base em sua Palavra, porque todas se
cumprirão a seu tempo!
O povo estava esperando a Zacarias e admirava-se de que tanto se demorasse no
santuário. Mas, saindo ele, não lhes podia falar; então, entenderam que tivera
uma visão no santuário. E expressava-se por acenos e permanecia mudo. Sucedeu
que, terminados os dias de seu ministério, voltou para casa. Passados esses dias,
Isabel, sua mulher, concebeu...

Isabel concebeu naturalmente, como tinha sido com Sara e Ana, mãe de
Samuel. Mas essas concepções foram todas produto de milagre! Não foram
milagres como o de Maria, sem a participação masculina. Maria ficou
grávida, logo em seguida, de uma maneira totalmente sobrenatural, pois
concebeu sob o poder direto do próprio Criador.
e ocultou-se por cinco meses, dizendo: Assim me fez o Senhor, contemplando-
me, para anular o meu opróbrio perante os homens.

b) Maria
Vamos, agora, ver o que se deu com Maria, nos versos 26 a 38 de Lucas
capítulo primeiro.
No sexto mês, foi o anjo Gabriel enviado, da parte de Deus, para uma cidade da
Galileia, chamada Nazaré [o mesmo arcanjo que apareceu a Zacarias diante do
altar de incenso], a uma virgem desposada com certo homem da casa de Davi [o
Filho de Deus deveria vir da família de Davi], cujo nome era José; a virgem
chamava-se Maria. E, entrando o anjo aonde ela estava, disse: Alegra-te, muito
favorecida! O Senhor é contigo. Ela, porém, ao ouvir esta palavra, perturbou-se
muito e pôs-se a pensar no que significaria esta saudação.
Mesmo tendo mostrado surpresa por essa aparição, Maria não manifestou
incredulidade; apenas fez uma pergunta: o que isso significa? Sua fé foi mais
viva que a de Zacarias.
Mas o anjo lhe disse: Maria, não temas; porque achaste graça diante de Deus.
Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o
trono de Davi, seu pai; ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu
reinado não terá fim.

Que exaltação ao nome de Jesus Cristo! Notemos os oito pontos desse


anúncio maravilhoso: 1) Você vai engravidar; 2) Você é virgem, mas
conceberá um filho; 3) Você lhe dará o nome Jesus, que significa Deus salva;
4) Esse filho será grande; 5) Ele será chamado Filho do Altíssimo, ou seja, o
próprio Filho de Deus; 6) Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai, isto é, seria
o tão esperado Messias; 7) Ele reinará eternamente sobre a casa de Davi; 8)
Seu reino não terá fim. Que promessa verdadeiramente incrível! Mas Maria
não duvida; simplesmente crê na palavra do arcanjo Gabriel. Mas, no entanto,
lhe faz uma pergunta:
Então, disse Maria ao anjo: Como será isto, pois não tenho relação com homem
algum?
Ou seja, eu sou virgem. O que você está me dizendo não é possível, visto que
ainda não sou casada. Estou noiva de José e respeito a lei de Deus, que não
permite relações sexuais antes do casamento. Então, como isso seria
possível? Não se tratava de incredulidade, mas de uma questão simples. Que
retidão numa mulher ainda tão jovem!
Respondeu-lhe o anjo: Descerá sobre ti o Espírito Santo, e o poder do Altíssimo
te envolverá com a sua sombra.

Ou seja, o próprio Deus vai gerar em você um filho; o filho, que você levará
no ventre e do qual será mãe, vai ser gerado pelo poder criador do próprio
Espírito Santo.
Por isso, também o ente santo que há de nascer será chamado Filho de Deus.

Sim, ele será o pequeno menino de Maria, sua mãe; então, herdará
plenamente sua natureza humana; ela será sua mãe biológica; mas por sua
paternidade divina milagrosa, ele será também o Filho de Deus, isto é, Deus e
homem numa só pessoa. Para que nossa salvação fosse realizada, era preciso
que o Messias fosse ao mesmo tempo — sem mistura e sem confusão, sem
separação, sem transformação (Calcedônia 451) — Deus e homem! Ser
somente Deus não bastaria; ser somente homem, menos ainda. Era necessário
que Deus assumisse nossa natureza, a fim de levar sobre ela o nosso pecado,
a pena pelo nosso pecado, sua condenação humana, seu castigo. Mas deveria
também manifestar uma obediência humana perfeita — visando nossa justiça
— aos mandamentos de Deus. Então, era necessário que Cristo tivesse uma
dupla justiça, verdadeiramente humana, para realizar nossa salvação: a
primeira, para pagar, como homem, o castigo que nos era devido; a segunda,
para nos comunicar — imputar, é a melhor palavra — igualmente como
homem, a plena justiça de sua obediência à lei de Deus. Portanto, é
necessário receber pela fé essa dupla justiça — tanto ativa como passiva,
construtiva e punitiva — para que sejamos purificados dos nossos pecados e
revestidos, diante de Deus, de uma justiça perfeita, proveniente da obediência
de Jesus Cristo, homem.
O anjo Gabriel prossegue:
E Isabel, tua parenta, igualmente concebeu um filho na sua velhice, sendo este já
o sexto mês para aquela que diziam ser estéril.

Notem isso! Ninguém sabia. Isabel não havia contado; ela tinha guardado
essa notícia extraordinária em seu coração somente para ela, isto é, que a
estéril tinha, em sua velhice, concebido um filho de seu velho marido, já
impotente pela natureza das coisas e estava agora no seu sexto mês de
gravidez. Que encorajamento para a virgem Maria! O anjo prossegue com
seus encorajamentos:
Porque para Deus não haverá impossíveis em todas as suas promessas.

Essa deveria ser uma palavra de ordem para cada um de nós no curso deste
ano que se inicia e também para os dias que Deus nos dará ainda de vida
nesta terra:
Porque para Deus não haverá impossíveis

Mas a resposta de Maria é simplesmente maravilhosa!


Então, disse Maria: Aqui está a serva do Senhor.

Que também nós possamos dizer a cada dia: Aqui está o servo e a serva do
Senhor.
Que se cumpra em mim conforme a tua palavra.

Que possamos ter essa atitude de confiança e de fé em Deus e de segurança


de que o que Deus diz é verdadeiro, muito mais verdadeiro que todas as
realidades deste mundo — que se cumpra em mim conforme a tua palavra.
E o anjo se ausentou dela.
Em nada disso Maria roubou a honra e a glória devidas a Deus. Que também
não roubemos de Deus a sua glória, na preparação dessa festa que celebramos
todos os anos!

c) Isabel
Voltemo-nos, agora, a Isabel, nos versos 39 a 45 e depois nos versículos 46 a
56 desse capítulo tão cheio de maravilhas — naturais como sobrenaturais —
da Santa Escritura! Vocês também verão que ela em nada roubou a glória que
devia dar a essa pequena criança no ventre virginal de sua parente Maria.
Naqueles dias, dispondo-se Maria...

Isabel estava em seu sexto mês de gravidez. O anjo deixou Maria, mas o
próprio Espírito Santo veio até ela e a cobriu com sua sombra, fazendo com
que concebesse o Filho de Deus feito homem. José não sabia nada sobre isso;
estavam noivos e logo iriam casar-se. Ele era um homem justo. Ela uma
jovem pura; como poderia estar grávida?
... foi apressadamente à região montanhosa, a uma cidade de Judá.

A cidade de Nazaré encontra-se ao norte de Israel, na Galileia, nas montanhas


que dominam o oeste do lago de Genezaré. Isabel e Zacarias habitavam no
sul do país, não muito longe de Jerusalém, nas montanhas da Judeia. Então
Maria se dispôs; fez a pé esse longo caminho, da Galileia a Jerusalém, que
mais tarde seu filho faria tantas vezes ao longo do seu ministério. Lá ele
subiu uma última vez para realizar sobre a cruz o propósito para o qual veio
ao mundo: sofrer sobre a cruz por nossos pecados, obedecendo em tudo a seu
Pai para nossa salvação — eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do
mundo.
O evangelista Lucas prossegue:
Ela entrou na casa de Zacarias e saudou Isabel.

Isabel era sua parente, talvez sua tia, e elas se conheciam bem.
Ouvindo esta a saudação de Maria,

Maria entrou na casa de Isabel e a saldou. Lembremos que Isabel tem em seu
ventre um bebê de seis meses, alvo de um verdadeiro milagre, porque ela era
estéril e de idade avançada. Além dessa família, ninguém mais sabia dessa
boa notícia. Mas a criança que trazia em seu ventre estava alerta!
a criança lhe estremeceu no ventre.

Esse pequeno menino, cheio do Espírito Santo, era João Batista — o


precursor — que glorificava o Deus Filho feito homem, desde o ventre de sua
mãe. Ele também não roubou a glória devida a esse bebê! O que vale também
para sua mãe, Isabel. Naquele instante
então, Isabel ficou possuída do Espírito Santo. E exclamou em alta voz: Bendita
és tu entre as mulheres,

Vejam como Isabel dá glória a Deus; como ela não minimiza em nada a
maior bênção que poderia ser dada ao mundo, isto é, alguém ter em seu
ventre o próprio Filho de Deus. Não se tratava de uma bênção qualquer, mas
era uma graça extraordinária de Deus para Maria, vaso puro do qual a graça
de Deus se servia. Isabel, então, se voltou a esse pequeno bebê que Deus
acabara de conceber no ventre dessa prima bendita, e diz:
e bendito o fruto do teu ventre! E de onde me provém que me venha visitar a mãe
do meu Senhor?
Vejam, escutem bem! Trata-se da “mãe do meu Senhor”! Em grego, a palavra
senhor é kurios. Essa palavra significa o único Deus verdadeiro, aquele que é
o Senhor sobre todas as coisas, Senhor dos senhores, Senhor do próprio
César! Esse é o sentido exato da expressão “mãe de Deus” — theotokos em
grego — que foi dirigida a Maria na Declaração sublime do Concílio de
Calcedônia, organizado para definir a natureza desse menino e, por
necessidade, a da sua mãe. Ele é o Filho de Deus feito homem e Maria é sua
mãe, aquela que o carrega em seu ventre, tanto em sua divindade como em
sua humanidade. Não que Maria pudesse, de alguma maneira, ser a mãe da
divindade dessa criança! Ninguém jamais pensou em tal absurdo! Porque o
Filho de Deus, aquele que foi eternamente gerado do Pai, não pode ter mãe.
Não, esse pequeno menino é Deus Filho feito homem. Portanto, Maria é mãe
da humanidade de Cristo, carne de sua carne, ossos de seus ossos, sangue do
seu sangue! Mas como separar, no seio de Maria, a humanidade da divindade
do nosso Senhor e Salvador, sem incorrer em impiedade e rejeição da nossa
própria salvação? Como — erro pior ainda — confundir essas duas naturezas,
ou seja, fazer de Deus um homem e fazer desse homem o próprio Deus? Essa
humanidade está tão estreitamente ligada à divindade de Jesus Cristo que não
se trata aqui de duas pessoas, uma humana e outra divina, mas de uma única
Pessoa divina, o Senhor Jesus Cristo, Deus feito homem no ventre de Maria,
para a salvação do mundo. A criança que Maria tem em seu ventre é o
próprio Deus Filho em toda a sua glória, a qual, por algum tempo, ficou
escondida!
Isabel explicou para Maria, como também para nós, essas maravilhas que
acabara de compreender:
Pois, logo que me chegou aos ouvidos a voz da tua saudação, a criança
estremeceu de alegria dentro de mim.
O menino — lembremos que se tratava de João Batista em seu sexto mês de
gestação — que no ventre de Isabel percebeu a voz de Maria, teve seu ânimo
profético agitado e reconheceu que aquela era a mãe do seu Senhor! Vocês
creem que uma criança possa ouvir, ainda no ventre, a voz de sua mãe?
Conheço o caso de um chefe de orquestra que ao se preparar para reger um
concerto para violoncelo, que nunca havia regido nem visto a partitura ou
ouvido a música, confessou: conheço essa música, a conheço muito bem.
Falou isso à sua mãe, violoncelista profissional, que lhe respondeu: “Meu
querido, enquanto você estava em meu ventre eu estudava essa mesma
partitura e você claramente a ouvia! Agora que se prepara para reger esse
concerto você se lembrou. Nada mais normal! Você está se lembrando do que
então ouvia”. Notem como essas realidades naturais são maravilhosas! Isabel
reconheceu a voz de Maria, sua prima. Essa voz, seu filho — João Batista —
também ouviu e, por uma revelação do Espírito Santo, do qual estava cheio
naquele instante, reconheceu que se tratava da mãe do seu Senhor — do
Senhor da glória, do qual era o precursor — que se dirigia à sua mãe. Notem
como João Batista, no seio de sua mãe, dá glória a Deus. Há três meses do
seu nascimento, João Batista não roubou a glória que pertence a Deus, mas
deu graças a seu Senhor ao exultar de alegria no ventre de sua mãe. E Isabel,
em nada embaraçada pela incredulidade de seu marido Zacarias, também
exulta de alegria.
Bem-aventurada a que creu [felizes todos os que têm crido], porque serão
cumpridas as palavras que lhe foram ditas da parte do Senhor.

Vimos que o próprio João Batista glorificou a Deus no ventre de sua mãe;
Isabel, sua mãe, também glorificou a Deus. Nem um nem outro roubou do
Filho de Deus, desse pequeno embrião, ao mesmo tempo divino e humano, a
glória que lhe era devida! Teríamos a ousadia de, nesta festa de sua
natividade, recusar dar-lhe a glória?
Lemos, a partir do versículo 57, o que aconteceu depois a Isabel:
A Isabel cumpriu-se o tempo de dar à luz, e teve um filho. Os vizinhos e parentes
ouviram falar da grande bondade do Senhor para com Isabel, e todos ficaram
alegres com ela. Sucedeu que, no oitavo dia, foram circuncidar o menino e
queriam dar-lhe o nome de seu pai, Zacarias. De modo nenhum! Respondeu sua
mãe. Pelo contrário, ele deve ser chamado João.

Seu marido não podia falar. Sem dúvida Deus revelou também a Isabel que o
menino se chamaria João, como o anjo havia declarado a Zacarias no templo.
Disseram-lhe: Ninguém há na tua parentela que tenha este nome. E perguntaram,
por acenos, ao pai do menino que nome queria que lhe dessem.

Então Zacarias, renovado em sua fé, lembrando-se do que lhe havia sido
revelado pelo anjo Gabriel, pediu que lhe trouxessem algo onde escrever.
Então, pedindo ele uma tabuinha, escreveu: João é o seu nome. E todos se
admiraram. Imediatamente, a boca se lhe abriu, e, desimpedida a língua, falava
louvando a Deus.

Notem a prova, tão necessária para Zacarias como para nós! Quando
duvidamos das promessas de Deus, ele nos faz também passar pela provação
do silêncio para purificar nossos corações e renovar nossa fé. As provas têm
esse papel em nossas vidas, ou seja, é aquele fogo divino que queima tudo o
que é palha, para que possamos glorificar melhor a Deus e para nossa
salvação.

d) José
Tendo percorrido o que o Evangelho de Lucas nos diz sobre Isabel e
Zacarias, como também sobre João Batista e Maria, os quais não roubaram a
glória divina, vamos agora ao Evangelho de Mateus para considerarmos a fé
de José. Teria José dado glória àquele menino, Deus Filho feito homem, que
lhe foi dado como filho adotivo, pela visitação divina de sua esposa Maria?
Em que José teria roubado a glória pertencente ao Deus Filho feito homem?
Leiamos, então, Mateus 1, versículos de 18 a 24. Procuramos descobrir aqui
se também deram glória a Deus essas pessoas que estavam diretamente
ligadas aos eventos relacionados à vinda ao mundo desse menino. Em José,
vemos que estamos diante de uma fé talvez mais forte que a de Maria.
Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: estando Maria, sua mãe, desposada
com José, sem que tivessem antes coabitado, achou-se grávida pelo Espírito
Santo.

Vejamos os fatos. José e Maria, que viviam em Nazaré, nas montanhas da


Galileia, eram noivos, portanto, ainda não casados. Os noivados em Israel
eram um ato quase irrevogável; o prelúdio necessário antes do casamento.
Maria havia voltado a Nazaré após sua viagem até Isabel. Um dia José se deu
conta de que sua noiva estava grávida. Ele sabia que não era a causa dessa
paternidade surpreendente, então isso só podia ter acontecido pela
participação de outro homem. Esse era o drama. Em Israel, um caso como
esse de infidelidade durante o noivado era quase tão grave quanto o próprio
adultério e a pena era a mesma: morte por apedrejamento. De fato, essa era a
lei em Israel, mandamento infalível dado por Deus a Moisés. Mas José não
queria que a mulher que amava e que tinha um comportamento exemplar
fosse apedrejada. Se ela lhe tivesse contado que um anjo havia aparecido e
dito que a criança em seu ventre era obra do Espírito Santo, José teria crido?
Ele não compreendia o que se passava. Ele mesmo vivia em grande
proximidade com Deus e não podia fazer tal maldade, ainda que fosse uma
ação justa segundo a letra da lei, mas que lhe parecia uma terrível injustiça.
Como — devia questionar — essa jovem tão pura, essa moça correta, que
ama a Deus, poderia ter cometido tal ato? Como sabemos muito bem, Maria
não havia feito nada disso!
Mas José, seu esposo, sendo justo e não a querendo infamar, resolveu deixá-la
secretamente.

José não queria difamá-la, ou denunciá-la, porque os habitantes de Nazaré a


acusariam, a difamariam, zombariam dela antes de apedrejá-la. Em casos
como esse, as pessoas — mesmo as pessoas de bem — são duras, sobretudo
numa pequena cidade de bons costumes, na qual todos se conhecem. Hoje
tudo é permitido. Mas apenas há alguns anos, era muito difícil, para uma
jovem, engravidar fora do casamento. Aqui no Valais não eram apedrejadas,
mas as tratavam de maneira rude. Então, José diz a si mesmo: vou conversar
com ela e depois veremos o que fazer. Não vou casar com uma moça que
teve um filho de outro, mas também não quero que a difamem para depois ser
apedrejada. Romperei o noivado discretamente e assim ela poderá cuidar de
si mesma.
Enquanto ponderava nestas coisas, eis que lhe apareceu, em sonho, um anjo do
Senhor [...]

Para Zacarias, o anjo apareceu diante dele; para Maria, aconteceu o mesmo.
Mas para José, o anjo lhe apareceu em sonho. Quem vai crer num sonho?
[...] dizendo: José, filho de Davi, não temas receber Maria, tua mulher, porque o
que nela foi gerado é do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho e lhe porás o
nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos pecados deles.

Mas José creu! Ele creu perfeitamente nesse sonho e nas palavras do anjo.
Um anjo lhe apareceu e lhe disse: Não tema receber essa moça como sua
mulher; a criança que está em seu ventre não foi gerada por um homem, mas
pelo Espírito Santo. Mas quem já tinha ouvido falar que o Espírito Santo gera
crianças? José creu, sem hesitar, na veracidade de seu sonho e na palavra que
ouviu! A mensagem do anjo em si era ainda mais inverossímil: Maria, sua
noiva, vai ter um filho que não será seu, porque provém de Deus; você deve
dar a esse menino o nome de Jesus, que significa Deus salva! Ele salvará o
seu povo dos seus pecados. Tratava-se, nada mais nada menos, do
cumprimento de todas as profecias messiânicas de Israel. Que fé maravilhosa
de José! Ele creu! José também não roubou a glória de Deus manifestada
nesse pequeno menino, glória ainda escondida no ventre de sua noiva. Ele lhe
deu toda a glória que lhe era devida e manifestou isso em sua pronta
obediência. O evangelista Mateus comenta:
Ora, tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor por
intermédio do profeta: Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele
será chamado pelo nome de Emanuel (que quer dizer: Deus conosco). Despertado
José do sono, fez como lhe ordenara o anjo do Senhor e recebeu sua mulher.
(Mateus 1.18-24)

Vejam, esse homem, encorajado por uma fé tão simples, obedeceu ao que
ouviu em sonho da parte de Deus. Que fé dócil, como de uma criança, mas
num homem em plena maturidade! É a fé que todos nós devemos ter: crer na
Palavra de Deus! José obedeceu sem nada perguntar; ele não perguntou como
essas coisas poderiam acontecer. Nele não houve nenhuma daquelas dúvidas
que perturbaram Zacarias; sua fé parece até mais forte que a de Maria. Ele
deu a Deus a glória que lhe era devida; ele creu na palavra do anjo de Deus
visto em sonho e em nada questionou! E na sequência desse extraordinário
relato vemos um José sempre estável, que não questionou a Palavra de Deus
ao ouvi-la! Ele creu e obedeceu. Façamos o mesmo. Quando duvidarmos,
lembremos do exemplo de Zacarias, ou seja, voltemos a Deus em
arrependimento. Consideremos o exemplo de Maria e nos submetamos a
Deus sem vacilar. Tomemos o exemplo de José, isto é, creiamos e
pratiquemos a Palavra de Deus sem fraquejar, pois é nisso que se resume toda
a vida do cristão.
Vejamos, brevemente, a sequência do texto.
Após a partida dos magos — que também tinham sido advertidos por Deus
para evitar o rei Herodes — um anjo do Senhor apareceu novamente em
sonho a José e lhe disse:
Dispõe-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egito e permanece lá até que eu
te avise; porque Herodes há de procurar o menino para o matar. (Mateus 2.20)

Se prestarmos atenção às datas desses eventos veremos que os magos


chegaram a Belém depois da apresentação de Jesus no templo. Além disso,
sabemos que Herodes morreu no mesmo ano do nascimento de Jesus Cristo,
pouco depois de ter assassinado todas as crianças, com menos de dois anos,
em toda a região de Belém. Vemos que a santa família era pobre, porque para
o sacrifício de purificação de Maria foram oferecidos dois modestos
pombinhos. Portanto, os presentes trazidos pelos magos permitiram à santa
família refugiar-se no Egito.

e) Os pastores
Vejamos, ainda brevemente, o que nos diz Lucas 2.8 a 20. Os pastores
ficaram tomados de pavor, por causa da visão que também tiveram de um
anjo resplandecente que, de repente, durante a noite, apareceu nas campinas
em que guardavam seus rebanhos. Então, ouviram o anjo anunciar-lhes uma
boa notícia.
E um anjo do Senhor desceu aonde eles estavam, e a glória do Senhor brilhou ao
redor deles; e ficaram tomados de grande temor [Não ficaríamos também, diante
de tal espetáculo?]. O anjo, porém, lhes disse: Não temais; eis aqui vos trago boa-
nova de grande alegria, que o será para todo o povo: é que hoje vos nasceu, na
cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor.
O anjo, então, anunciou aos pastores — esses desprezados de Israel! — que
um Salvador lhes havia nascido; e como poderiam conferir, nascera pobre
entre os pobres, numa estrebaria em Belém, envolto em panos e deitado numa
manjedoura. Era o próprio Cristo, o Senhor! Em seguida, com o anjo
apareceu uma milícia celeste glorificando e louvando a Deus. Os pastores
também glorificaram a Deus. Sem demora, responderam à boa nova e na
mesma noite foram imediatamente à Belém, para ver o que havia sido dito
sobre esse pequeno menino. Ao encontrá-lo, alegraram-se com José e Maria
por aquele nascimento. Eles também não roubaram a glória que é devida a
esse pequeno bebê.

f) Simeão
Depois disso, temos Simeão. Leiamos Lucas 2.21 a 28.
Completados oito dias [após o nascimento] para ser circuncidado o menino,
deram-lhe o nome de Jesus, como lhe chamara o anjo, antes de ser concebido.
Passados os dias da purificação deles segundo a Lei de Moisés [após 40 dias,
para um menino — Lv 12.1-8], levaram-no a Jerusalém para o apresentarem ao
Senhor, conforme o que está escrito na Lei do Senhor: Todo primogênito ao
Senhor será consagrado; e para oferecer um sacrifício, segundo o que está escrito
na referida Lei: Um par de rolas ou dois pombinhos.

A família sendo pobre, não podia oferecer um cordeiro como sacrifício. Foi
somente após esses acontecimentos — quarenta dias após o nascimento do
Filho de Deus feito homem — que os magos chegaram a Belém trazendo os
ricos presentes.
Havia em Jerusalém um homem chamado Simeão; homem este justo e piedoso
que esperava a consolação de Israel; e o Espírito Santo estava sobre ele.
Revelara-lhe o Espírito Santo que não passaria pela morte antes de ver o Cristo
do Senhor. Movido pelo Espírito, foi ao templo; e, quando os pais trouxeram o
menino Jesus para fazerem com ele o que a Lei ordenava, Simeão o tomou nos
braços e louvou a Deus.

Notem a fé perseverante de Simeão ao dar glória a Deus pelo nascimento do


menino. O mesmo aconteceu com Ana, que permanecia no templo dia e
noite, onde jejuava e orava a Deus constantemente. Ela foi, como Simeão,
conduzida pelo Espírito, a dar honra e glória a Deus por esse pequeno
menino, que havia sido enviado ao mundo para a salvação do povo escolhido
dentre todas as nações.

f) Os magos
Vamos agora aos magos. Que história impressionante. Vieram de tão longe e
haviam crido no que Deus lhes revelara pela estrela que seguiram. Vieram,
sem dúvida, da Babilônia onde talvez circulassem as profecias de Daniel. O
que sabemos é que Deus lhes havia revelado que seguissem a estrela até
Jerusalém e, lá chegando, descobrissem em que lugar deveria nascer o rei dos
judeus, do qual haviam visto o sinal no Oriente. Essa estrela os havia
conduzido até Jerusalém, onde os escribas e doutores da Lei certamente
responderiam suas perguntas. As profecias diziam muito claramente: O Rei
de Israel deveria nascer em Belém. Para lá deviam ir. Belém ainda estava
longe? Não, somente dez quilômetros. Pouco mais de três horas de marcha.
Vão, então. Vão para ver! Mas Herodes, muito preocupado, chamou-os à
parte para lhes pedir que, em seu retorno, viessem até ele, para informá-lo
sobre o lugar onde haviam encontrado a criança, pois também queria adorá-
lo. Os magos, sempre conduzidos pela estrela, encontraram a casa — não era
mais o estábulo — onde estava o menino, pois a estrela parou sobre aquele
lugar. Eles entraram, adoraram o Filho de Deus feito homem e lhe ofereceram
preciosos presentes. Ouro, um presente real; incenso, uma homenagem
sacerdotal; e mirra, um presente que apontava para sua morte sacrificial e
sepultura. Depois, advertidos também em sonho, tomaram outro caminho
para a longa viagem de volta.
Todos esses personagens que lembramos honraram e glorificaram a Deus
com seus bens, com seu reconhecimento, mas sobretudo com seu louvor e
adoração. Que neste Natal façamos o mesmo. Que não estejamos entre
aqueles que roubam a glória de Deus, a glória que devemos dar a esse
menino. Porque ele é o Deus Filho, encarnado nesse pequeno bebê que, sob o
olhar amoroso de seus pais, se tornou homem e, em seus trinta anos
completos, assumiu plenamente a vocação prodigiosa que seu Pai lhe deu,
isto é, realizar a salvação de seu povo e de todas as nações da terra, expiando,
em seu lugar, o pecado do mundo, operando a vitória definitiva sobre a
corrupção e a morte, a carne e o mundo, destruindo assim, sobre a madeira da
cruz, o diabo e todas suas obras.

2. AQUELES QUE ROUBARAM, DAQUELA PEQUENA CRIANÇA, A GLÓRIA QUE LHE

ERA DEVIDA

Para terminar, algumas palavras sobre aqueles que não creram, aqueles que
neste primeiro Natal roubaram de Deus a glória que lhe era devida. Herodes,
que não creu, embora, é preciso ser dito, tenha considerado seriamente a
profecia por temer pela segurança do seu poder. Depois, os habitantes de
Jerusalém; ninguém dentre eles fez o curto trajeto até Belém. Nem um
sequer! No entanto, tinham compreendido muito bem que era ali que deveria
nascer o Filho de Deus. Nenhum dos escribas e fariseus se deu ao trabalho de
caminhar alguns quilômetros para adorar o Filho de Deus que acabara de
nascer, o Messias de Israel, sobre o qual haviam sondado minuciosamente as
Escrituras! Notem a apostasia de Israel! E os habitantes de Belém? Quem
deles se deu conta desse acontecimento grandioso em sua pequena vila?
Apenas alguns pobres pastores do campo se regozijaram nisso. Vejam os
sacerdotes, os escribas que conheciam a Bíblia, que a compreendiam e que,
no entanto, não tiraram proveito dessa ocasião maravilhosa, ou seja, adorar o
Deus Filho que, segundo as profecias, acabara de nascer em Belém.
Poderíamos perguntar: seria diferente em nossos dias?
Vejam, fiquei feliz em revelar muitos traços positivos nesses belos relatos.
Combatamos o lado negativo que temos em nossos corações. Não roubemos
de Deus o que lhe pertence por direito, ou seja, a glória, o louvor, a honra!
Vejam Herodes, os habitantes de Jerusalém, de Belém, os escribas, os
sacerdotes, todos aqueles que conheciam a verdade bíblica, mas
permaneceram indiferentes. Esses não deram a Deus o que lhe era devido.
Eles roubaram desse pequeno menino — o próprio Deus revestido com nossa
natureza — toda a glória que lhe deviam! Todos ali transgrediram o oitavo
mandamento. Então, que não estejamos entre aqueles que vão transgredir
esse mandamento “Não roubarás”, por qualquer que seja a incredulidade em
relação a Deus Pai, Filho e Espírito Santo. No tempo de Natal,
particularmente, rendamos graças a Deus pela vinda de seu Filho ao nosso
mundo, que em seu grande amor por nós, no primeiro Natal, se fez menino.

CONCLUSÃO

Vamos terminar lendo juntos alguns textos que poderão nos conduzir na
adoração ao Deus feito homem, ao bebê recém-nascido, deitado na
manjedoura daquele estábulo tão hospitaleiro de Belém.
Comecemos pelo cântico de Maria:
Então, disse Maria: A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se
alegrou em Deus, meu Salvador, porque contemplou na humildade da sua serva.
Pois, desde agora, todas as gerações me considerarão bem-aventurada, porque o
Poderoso me fez grandes coisas. Santo é o seu nome. A sua misericórdia vai de
geração em geração sobre os que o temem. Agiu com o seu braço valorosamente;
dispersou os que, no coração, alimentavam pensamentos soberbos. Derribou do
seu trono os poderosos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e
despediu vazios os ricos. Amparou a Israel, seu servo, a fim de lembrar-se da sua
misericórdia a favor de Abraão e de sua descendência, para sempre, como
prometera aos nossos pais. (Lucas 1.46-55)

Acrescentemos à nossa leitura o cântico de Zacarias:


Zacarias, seu pai, cheio do Espírito Santo, profetizou, dizendo: Bendito seja o
Senhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo, e nos suscitou plena
e poderosa salvação na casa de Davi, seu servo, como prometera, desde a
antiguidade, por boca dos seus santos profetas, para nos libertar dos nossos
inimigos e das mãos de todos os que nos odeiam; para usar de misericórdia com
os nossos pais e lembrar-se da sua santa aliança e do juramento que fez a Abraão,
o nosso pai, de conceder-nos que, livres das mãos de inimigos, o adorássemos
sem temor, em santidade e justiça perante ele, todos os nossos dias. Tu, menino
[isto é, João Batista], serás chamado profeta do Altíssimo, porque precederás o
Senhor, preparando-lhe os caminhos, para dar ao seu povo conhecimento da
salvação, no redimi-lo dos seus pecados, graças à entranhável misericórdia de
nosso Deus, pela qual nos visitará o sol nascente das alturas, para alumiar os que
jazem nas trevas e na sombra da morte, e dirigir os nossos pés pelo caminho da
paz. (Lucas 1.67-79)

E terminemos pelas ações de graças de Simeão:


Simeão o tomou nos braços e louvou a Deus, dizendo: Agora, Senhor, podes
despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra; porque os meus olhos já
viram a tua salvação, a qual preparaste diante de todos os povos: luz para
revelação aos gentios, e para glória do teu povo de Israel. (Lucas 2.28-32)

Notem que não falamos nesta manhã da comercialização e da paganização


cada vez maior da festa de Natal. Não falamos desse gnomo horroroso
chamado Papai Noel, que substitui atualmente o menino-Rei nas propagandas
em nossas ruas.
Mas procuramos elevar nossos pensamentos para as alturas — com corações
elevados! — a fim de contemplar a grandiosidade do dom que nos foi dado
no primeiro Natal, ou seja, o próprio Deus que desceu dos céus até nós, o
próprio Filho de Deus que se fez homem para nossa redenção e para nos
preparar para a glória que nos foi prometida em Jesus Cristo.
Temos motivos para cantar, juntos, com o coro dos anjos:
Glória a Deus nas maiores alturas,
Paz na terra
E boa vontade para com os homens!
Amém.
Capítulo V: O roubo antes do Decálogo

INTRODUÇÃO
Vejamos o caminho já percorrido até aqui em nosso estudo do oitavo
mandamento, Não roubarás.
I. A excelência desse mandamento
Lembramos do papel dos mandamentos em todo o propósito aliancial de
Deus no Antigo e Novo Testamentos, e mostramos a definição de roubo dada
pela própria Bíblia.
II. Transgredir um mandamento é transgredir todos.
Vimos que esse mandamento tem relação com todas as Dez Palavras do
Decálogo e como é transgredido pelos diversos sistemas econômicos —
liberalismo, socialismo e comunismo.
III. O espírito do oitavo mandamento
Mostramos que esse mandamento deveria ser interpretado através dos ensinos
de Cristo, nos Evangelhos, e pelas explicações dadas pelos Apóstolos.
IV. O roubo e o Natal
Aplicamos esses ensinos à vinda de Cristo no primeiro Natal, mostrando os
que na Judeia daquela época lhe deram glória, como também os que não lhe
deram, e assim roubaram de Cristo o que lhe era mais precioso: a honra e a
glória como Deus feito homem. Neste capítulo veremos o seguinte assunto: O
roubo antes do Decálogo.

O roubo antes do Decálogo


No longo percurso deste estudo, através de toda a Bíblia, sobre a aplicação
dos Dez Mandamentos a todas as circunstâncias da vida humana, tanto em
Israel como na vida dos homens de todas as tribos, clãs e nações, fizemos,
regularmente, uma exposição sobre cada um dos mandamentos antes de
terem sido formulados por Deus na Lei, no monte Sinai, pela mediação de
seu servo Moisés. O mesmo faremos para este oitavo mandamento Não
roubarás, ou seja, vamos considerar o Roubo antes do Decálogo.

1. O ROUBO NO TEMPO DOS PATRIARCAS


O ato de roubar começa com a queda. Incitados pela serpente, Eva e depois
Adão roubam de Deus a honra que lhe era devida e roubam-lhe a glória. Deus
havia dito a Adão:
E o Senhor Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente,
mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que
dela comeres, certamente morrerás. (Gênesis 2.16-17)

Mas Eva ouviu a fala falsa e mentirosa da serpente-dragão-diabo, ao invés de


ouvir a Palavra justa e verdadeira de Deus e, assim seduzida, caiu no laço do
maligno e da morte.
Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos e árvore
desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao
marido, e ele comeu. (Gênesis 3.6)

Esse foi o primeiro roubo da história humana: o roubo do fruto proibido.


Adão e Eva tomaram posse do que pertencia somente a Deus, ou seja, do
discurso original e do estabelecimento das distinções primordiais, princípios
que fundamentam a ordem da criação (a metafísica), a ordem moral (a ética)
e a ordem dogmática (a teologia). Foi assim que, de um golpe, a humanidade
caiu no mundo da mentira, do roubo e da morte.[32]
O segundo roubo testemunhado pela Bíblia foi o de Caim que, antes de tudo,
roubou de Deus a honra que lhe era devida, ao oferecer-lhe o fruto do seu
trabalho como pagamento do pecado original, como o meio de vencer a morte
e de agradar a Deus.
Aconteceu que no fim de uns tempos trouxe Caim do fruto da terra uma oferta ao
Senhor. (Gênesis 4.3)

Como se nós mesmos pudéssemos restabelecer a relação rompida com Deus e


com a criação, através de obras feitas por nossas mãos pecaminosas. Essa é a
visão pagã, ateia, pelagiana e arminiana que encontramos na expressão, tão
comum, para descrever o trabalho dos homens: ganhar a vida, Arbeit macht
frei “o trabalho liberta” (Marx, Hitler), como podemos ler em cima da porta
de entrada do campo de concentração nazista de Auschwitz. Como se nossa
vida, destruída pelo mal e pela morte, pudesse ser restabelecida por nosso
trabalho. Não, a salvação não pode vir de nossas obras falíveis e
pecaminosas; mas pela obra perfeita de Outro; pelo trabalho de outro
perfeitamente inocente e todo-poderoso; pelo trabalho de sua alma e
sofrimentos de seu corpo; pela obediência ativa e passiva de nosso Senhor
Jesus Cristo, que nos restabelece — nas engrenagens de nossa própria razão
— numa justa e saudável relação com Deus e com o mundo. O que líamos,
antigamente, em alguns sepulcros, como por exemplo “Viveu para o
trabalho!”, era um erro completo, porque nossa vida está oculta em Cristo.
Somente o seu trabalho nos salva. É pela fé nele, pela graça misericordiosa de
Deus, que recebemos a vida que vem da fonte divina, que deve transbordar
em obras de verdade, de amor e de beleza. Abel compreendeu isso. Lemos
que sua oferta, diferente da oferecida por Caim, agradou a Deus.
Abel, por sua vez, trouxe das primícias do seu rebanho e da gordura deste.
Abel havia compreendido que para a sua salvação era necessário um
sacrifício extrínseco ao homem pecador. Mais adiante, o texto nos mostra o
julgamento de Deus, favorável a Abel e desfavorável a Caim:
Agradou-se o Senhor de Abel e de sua oferta; ao passo que de Caim e de sua oferta
não se agradou. (Gênesis 4.4-5)

Sabemos o que aconteceu depois. Caim ficou irado com Deus por ele ter
rejeitado seu trabalho. Irou-se a ponto de roubar de seu irmão sua própria
vida e o matou.
Podemos caminhar por todo o livro de Gênesis e encontraremos ali diferentes
transgressões desse mandamento. Isso não deve nos surpreender, uma vez
que os Dez Mandamentos refletem:
1. O próprio caráter de Deus, sua justiça, seu amor, sua santidade e sua
verdade;
2. A ordem moral e religiosa da consciência de todos os homens criados à
imagem de Deus;
3. Até mesmo, não tememos dizer — diante de uma ciência que se pretende
objetiva, que define o objeto pela materialidade mensurável, unicamente
quantitativa, portanto, sem nenhum valor qualitativo, moral e espiritual — a
ordem do universo e do próprio cosmos.
Por diversas vezes vimos a que ponto a desordem moral dos homens acaba
afetando a própria natureza. Por isso que o primeiro esforço ecológico dos
homens devia ser lutar contra sua própria poluição moral e espiritual. Buscar
primeiro o Reino dos céus e sua justiça (ou seja, Jesus Cristo e a obediência à
sua lei), e todo o resto — o que inclui uma criação nova onde habitará a
justiça — nos será acrescentado.
Por último, consideremos o exemplo de Cam, que roubou de seu pai sua
honra, quando contemplou sua nudez e, sem o menor pudor, denunciou a seus
irmãos a vergonha paterna:
Sendo Noé lavrador, passou a plantar uma vinha. Bebendo do vinho, embriagou-se e
se pôs nu dentro de sua tenda. Cam, pai de Canaã, vendo a nudez do pai, fê-lo saber,
fora, a seus dois irmãos. (Gênesis 9.20-22)

Conhecemos a consequência funesta que teve a maldição proferida por Noé,


em razão do roubo de sua honra, tanto para Cam como para toda a sua
linhagem.
Despertando Noé do seu vinho, soube o que lhe fizera o filho mais moço e disse:
Maldito seja Canaã; seja servo dos servos a seus irmãos. (Gênesis 9.24-25)

2. O ROUBO NA FAMÍLIA DE JACÓ


Agora, queremos nos demorar um pouco mais sobre um incidente na história
patriarcal, no qual vemos a questão do roubo mais explicitamente. Não
vamos considerar o roubo, praticado por Jacó, do direito de primogenitura de
Esaú, seu irmão, que, movido por uma mente profana, fez pouco caso e a
desprezou, como também fazem nossos contemporâneos ao desprezar as
bênçãos de sua herança cristã e da aliança divina. Em vez disso, queremos
tratar das relações entre o clã de Jacó e Labão, seu sogro. Encontramos aqui a
expressão hebraica ganab, que significa roubo de forma dissimulada e astuta,
da qual demos, em nossa primeira exposição, a seguinte definição:
Tomar o que pertence a outro sem seu conhecimento ou consentimento (TWOT,
art. 364, Tomo I, p. 168).

No último período de sua vida na casa de Labão, após 14 anos de serviço


gratuito, Jacó chegou a um acordo com seu sogro para determinar seu salário
para cuidar do rebanho de seu senhor.
Labão lhe respondeu: Ache eu mercê diante de ti; fica comigo. Tenho
experimentado que o Senhor me abençoou por amor de ti. E disse ainda: Fixa o
teu salário, que te pagarei. Disse-lhe Jacó: Tu sabes como te venho servindo e
como cuidei do teu gado. Porque o pouco que tinhas antes da minha vinda foi
aumentado grandemente; e o Senhor te abençoou por meu trabalho. Agora, pois,
quando hei de eu trabalhar também por minha casa? Então, Labão lhe perguntou:
Que te darei? Respondeu Jacó: Nada me darás; tornarei a apascentar e a guardar
o teu rebanho, se me fizeres isto: Passarei hoje por todo o teu rebanho, separando
dele os salpicados e malhados, e todos os negros entre os cordeiros, e o que é
malhado e salpicado entre as cabras; será isto o meu salário. Assim, responderá
por mim a minha justiça [tsedaqah, meu caráter justo], no dia de amanhã, quando
vieres ver o meu salário diante de ti; o que não for salpicado e malhado entre as
cabras e negro entre as ovelhas, esse, se for achado comigo, será tido por furtado
[em hebraico ganab, trapaça, roubo ardiloso, engano dissimulado]. (Gênesis
30.27-33)

O que vem depois já sabemos — como Labão tirou do rebanho todas as


cabras e todas as ovelhas malhadas e salpicadas, procurando, de maneira
astuta, privar Jacó de seu justo salário, e como, graças a um sonho e à bênção
divina, Jacó enriqueceu.
Esta é a primeira vez que a palavra ganab é utilizada na Bíblia. No capítulo
31 a encontramos com frequência. Jacó, após ser enganado inúmeras vezes
por seu sogro, decidiu fugir secretamente, levando consigo suas mulheres e
filhos, todos da família de Labão. Então, lemos:
Tendo ido Labão fazer a tosquia das ovelhas, Raquel furtou os ídolos do lar que
pertenciam a seu pai. E Jacó logrou [ganab, lit.: roubou o coração] a Labão, o
arameu, não lhe dando a saber que fugia. (Gênesis 31.19-20)

Labão, então, se deu conta de que Jacó e sua família haviam fugido e os
perseguiu e alcançou. Mas Deus vela soberanamente pelo cumprimento de
sua aliança. Essa aliança passa por Jacó e se situa, pela bondosa fidelidade de
Deus, acima de todos os temores, trapaças e fraquezas dos homens. Foi então
que Deus advertiu Labão, através de um sonho, para que não fizesse nenhum
mal ao seu genro Jacó. Labão, no entanto, com raiva, interpelou o fugitivo e o
acusou de ser um ladrão trapaceiro [ganab]:
E disse Labão a Jacó: Que fizeste, que me lograste [ganab] e levaste minhas
filhas como cativas pela espada? Por que fugiste ocultamente, e me lograste
[ganab], e nada me fizeste saber? (Gênesis 31.26-27)

Depois Labão acusou Jacó de ter roubado seus deuses:


Há poder em minhas mãos para vos fazer mal, mas o Deus de vosso pai me falou,
ontem à noite, e disse: Guarda-te, não fales a Jacó nem bem nem mal. E agora
que partiste de vez, porque tens saudade da casa de teu pai, por que me furtaste
[ganab] os meus deuses? (Gênesis 31.29-30)

Jacó, primeiramente, explica sua partida secreta:


Respondeu-lhe Jacó: Porque tive medo; pois calculei: não suceda que me tome à
força [gazal: raptar, com franca violência, pelo uso da força e não da trapaça] as
suas filhas. (Gênesis 31.31)

Depois, de boa-fé, protesta sua inocência quanto ao roubo dos ídolos.


Não viva aquele com quem achares os teus deuses [isso acontecerá pouco tempo
depois com a morte de Raquel]; verifica diante de nossos irmãos o que te
pertence e que está comigo e leva-o contigo. Pois Jacó não sabia que Raquel os
havia furtado [ganab, secretamente, por trapaça, sem o conhecimento de seu pai].
(Gênesis 31.32)

Labão procurou em vão, porque sua filha havia aprendido numa boa escola e
era ainda mais trapaceira e enganadora que seu pai.
Labão, pois, entrou na tenda de Jacó, na de Lia e na das duas servas, porém não
os achou. Tendo saído da tenda de Lia, entrou na de Raquel. Ora, Raquel havia
tomado os ídolos do lar, e os pusera na sela de um camelo, e estava assentada
sobre eles; apalpou Labão toda a tenda e não os achou. Então, disse ela a seu pai:
Não te agastes, meu senhor, por não poder eu levantar-me na tua presença; pois
me acho com as regras das mulheres. Ele procurou, contudo não achou os ídolos
do lar. (Gênesis 31.33-35)
Diante da inspeção sem resultado, Jacó liberou sua ira contra o seu sogro há
muito tempo recalcada:
Vinte anos eu estive contigo, as tuas ovelhas e as tuas cabras nunca perderam as
crias, e não comi os carneiros de teu rebanho. Nem te apresentei o que era
despedaçado pelas feras; sofri o dano; da minha mão o requerias, tanto o furtado
de dia como de noite. De maneira que eu andava, de dia consumido pelo calor, de
noite, pela geada; e o meu sono me fugia dos olhos. Vinte anos permaneci em tua
casa; catorze anos te servi por tuas duas filhas e seis anos por teu rebanho; dez
vezes me mudaste o salário. (Gênesis 31.38-41)

Labão, confundido por Jacó, pede uma aliança com seu genro que fosse
selada por duas testemunhas, por uma coluna de pedra, um monte de pedras,
que eram sinais visíveis de sua palavra empenhada, visando socorro recíproco
em caso de necessidade.
O que podemos aprender com esses relatos?
1) Não somente a realidade do roubo, mas também que sua reprovação moral
e legal foi bem atestada no livro de Gênesis, muito tempo antes da entrega da
Lei no Sinai.
2) A palavra ganab utilizada, significando roubo nas duas versões do oitavo
mandamento — em Êxodo 20.15 e Deuteronômio 5.19 — já tinha esse
sentido muito tempo antes de sua utilização por Deus nas Dez Palavras. Ela
foi inscrita pelo próprio dedo de Deus sobre a pedra das Tábuas da Lei, dadas
a Moisés, para Israel e mais tarde para todas as nações da terra.
3) Mais ainda, nosso texto atesta o uso da palavra gazal (roubar com
violência) e a reprovação desse tipo de ação, considerada profundamente má.
4) Vemos nesse texto um contraste impressionante entre a retidão e
honestidade de Jacó, que serviu seu senhor e sogro — astuto e ladrão — com
total integridade, como também a atitude de Labão e Raquel, ambos
trapaceiros e ladrões. Aqui percebemos a diferença entre a fé de Abraão e o
paganismo de sua família deixada por ele no outro lado do rio Eufrates.
5) Enfim, que contraste vemos entre a fé intransigente de Jacó em Deus, o
único e verdadeiro Deus, que tem ciúme e não admite ao seu lado nenhuma
divindade rival, e o politeísmo, como o de Labão e de sua filha Raquel, que é
tolerante com tudo, até com o Deus de Israel, mas rouba e engana.

CONCLUSÃO

Três cerimônias fúnebres particulares foram celebradas, em Lausanne, numa


mesma semana do mês de janeiro de 2009.
a) Na terça-feira, dia 13 de janeiro de 2009, aconteceu uma cerimônia cristã
fiel, com uma vigorosa e clara pregação do Evangelho, a ponto de provocar a
indignação de uma senhora de uma igreja evangélica, que considerou
inadmissível que alguém pudesse chamar os cristãos à conversão num culto
fúnebre, e mais inaceitável ainda afirmar que muitos cristãos nominais não
eram regenerados.
b) Na sexta-feira, dia 14 de janeiro de 2009, uma segunda cerimônia fúnebre
foi celebrada pelo pastor dessa igreja evangélica, na qual a Bíblia não foi
aberta uma única vez, tendo sido substituída por poemas e músicas.
c) Na sexta-feira, dia 16 de janeiro de 2009, no centro funerário de nossa
cidade, aconteceu uma celebração ecumênica durante mais de duas horas, um
grande evento cultural, repleto de elogios e lembranças dirigidos ao falecido e
à sua espiritualidade artística e filosófica. A Pessoa e obra de Jesus Cristo
estavam ali totalmente ausentes. Essa celebração foi presidida por um pastor
reformado. Foi dado o direito de participar a um rabino, um padre ortodoxo e
um teólogo católico romano. Nessa celebração ecumênica assistimos ao
culto, pretensamente cristão, mais pagão de toda a nossa experiência
eclesiástica.
Segue abaixo comentário feito pelo judeu alemão Benno Jacob, grande
adversário da crítica bíblica, em relação ao nosso texto sobre roubo:
A palavra roubar tem um papel importante no relato que segue [a partir do roubo
dos ídolos por Raquel, descrito no versículo 19], particularmente na disputa entre
Jacó e Labão. Um servo que foge secretamente é sempre suspeito de ter roubado
de seu senhor alguma coisa de maneira ilegal. Labão faz algumas buscas para ver
se algo estava faltando. [...] A Bíblia chama de roubo a ação de Raquel de
maneira muito direta, manifestando assim sua reprovação. A fuga secreta de Jacó
é também tratada como um roubo, aqui como o roubo do coração de Labão. [...]
Mas no relato vemos que Labão considerou a ação de Jacó como infundada e
irracional. Diante de Labão, Jacó não tinha outra escolha, senão dissimular sua
intenção e fugir secretamente.

Claramente, nesse texto não vemos somente a reprovação moral do roubo,


mas também que os dois termos específicos que o caracterizam (ganab e
gazal), já estavam no livro de Gênesis muito tempo antes da formulação
mosaica da Lei e dos comentários contidos nos quatro últimos livros da Torá.
Capítulo VI: O Oitavo Mandamento e sua aplicação no
[33]
Código da Aliança

INTRODUÇÃO
Vejamos, em primeiro lugar, a aplicação do oitavo mandamento através da
Torá. A formulação Não roubarás [ganab em hebraico], é idêntica nas duas
versões dos Dez Mandamentos (Êxodo 20.15 e Deuteronômio 5.19).
No livro de Êxodo, a seção que vai do capítulo 20.22 a 23.19, texto chamado
de Livro da Aliança, contém uma série de mandamentos que ilustram, através
de casos concretos, a aplicação precisa das Dez Palavras do Decálogo. Essa
seção termina de duas maneiras: em primeiro lugar ela culmina na promessa
de conquista da terra de Canaã (Êxodo 23.20-33) e em seguida encerra com a
conclusão da aliança com o povo (todo o capítulo 24.1-18).[34]
Encontramos, novamente, a palavra roubar (ganab) no versículo 16 do
capítulo 21, sobre o roubo de seres humanos: aquele que raptar [ganab]
alguém e o vender ou for achado em sua posse, será morto. Mas essa seção
(21.12-36), intitulada na Bible à la Colombe [versão francesa da Escritura]
como Lois sur les coups et les blessures [Lei sobre golpes e ferimentos], trata
mais das diversas transgressões ao sexto mandamento Não matarás. Várias
passagens tratam dos variados aspectos do roubo:
— 21.1-11, leis sobre os escravos;
— 21.37 a 22.14, leis sobre a compensação que deve ser paga à pessoa lesada (não
ao Estado) por diferentes formas de roubo;
— 22.20-26, leis sobre a proteção do imigrante, da viúva e daquele que empobreceu.
Portanto, é possível demonstrar que certas passagens tratam mais
especificamente de um ou de outro mandamento, mas essa caracterização é
delicada porque, como já vimos, a transgressão de um deles claramente
implica a transgressão de outro. Assim, explorar o pobre pela usura ou por
garantias abusivas, evidentemente é roubo (oitavo mandamento), mas tais
ações levam ao assassinato, porque são na verdade um atentado à vida (sexto
mandamento) e também à família, em razão do caráter essencialmente
familiar das empresas em Israel (sétimo mandamento).
As referências ao oitavo mandamento se encontram, então, dispersas em
diferentes partes da Torá ou, mais especificamente, nos seus quatro últimos
livros. É, portanto, nesses quatro livros (Êxodo, Levítico, Números e
Deuteronômio) que devemos procurar a aplicação exata das leis relacionadas
ao oitavo mandamento. Para fazer isso, vamos seguir o comentário feito pelo
livro de Deuteronômio sobre as Dez Palavras do Decálogo, nos capítulos 12 a
26, como já fizemos muitas vezes.
Para tanto, vamos utilizar o excelente artigo do comentarista judeu Stephen
A. Kaufman, datado de 1977, intitulado La structure de la Loi du
Deutéronome [A estrutura da Lei do Deuteronômio],[35] no qual, de maneira
pioneira, desenvolve um estudo muito claro, coerente e sistemático desses
quinze capítulos dos Dez Mandamentos.
Mas tudo isso será assunto para uma segunda exposição. Agora daremos
início ao exame das aplicações do oitavo mandamento pelo estudo detalhado
do Livro da Aliança nos textos de Êxodo (20.22 a 22.19 e até o verso 33, que
diz respeito, particularmente, ao roubo e 21.1-11 e 21.37 a 22.14). Por fim,
examinaremos o ensino de Deuteronômio sobre o oitavo mandamento, como
também de Levítico e Números.
Mas antes de atacarmos nosso primeiro texto, que trata da escravidão entre os
hebreus (Êxodo 21.1-11), é preciso dizer algumas palavras sobre o que
chamamos de o Código da Aliança, inserido no livro de Êxodo após o
Decálogo. Seguiremos aqui o excelente comentário de John Durham.[36]
1) Em primeiro lugar é preciso constatar o caráter inclusivo desses capítulos,
porque essa passagem constitui um todo, possui um só pensamento, centrado
em Deus, explicitamente teocrático do começo ao fim do texto.
Primeiramente lemos:
Não fareis deuses de prata ao lado de mim, nem deuses de ouro fareis para vós
outros. (Êxodo 20.23)
E no fim encontramos estas palavras:
Não farás aliança nenhuma com eles, [os cananeus] nem com os seus deuses.
Eles não habitarão na tua terra, para que te não façam pecar contra mim; se
servires aos seus deuses, isso te será cilada. (Êxodo 23.32-33)
Toda esta seção de Êxodo constitui, então, uma unidade.
2) Assim John Durham caracteriza o Livro da Aliança:
A conclusão e o início do Livro da Aliança resumem seu objetivo e orientação,
ligando, de maneira indiscutível, toda essa parte do livro de Êxodo ao Decálogo, onde
está sua raiz. Tal como o Decálogo, o Livro da Aliança se apresenta como expressão
do que Deus espera de Israel (Êxodo 20.1-17). Os princípios diretivos, os
mandamentos e as proibições que constituem essa coleção de ordenanças (Êxodo
20.23 a 23.19) têm como alvo manter a integridade da relação de Israel com Yawé,
seu Deus.[37]

Portanto, o Livro da Aliança não é outra coisa senão a explicação e aplicação


das Palavras do Decálogo.
3) Assim, vemos que toda essa seção de Êxodo (como também de
Deuteronômio capítulos de 12 a 26, no que se refere à repetição do Decálogo
em Deuteronômio 5:2-22) nada mais é que uma sequência de comentários
sobre cada uma das Dez Palavras. Citamos ainda Durham:
O Livro da Aliança é uma espécie de regra de vida teológica, para orientar o fiel a
viver na presença de Yawé. É uma exposição e uma aplicação das Dez Palavras.[38]
4) Conclui-se que, de maneira nenhuma, esse texto foi colocado
acidentalmente, ou por simples acaso, nesse lugar do livro de Êxodo (como
pretende a crítica moderna corrosiva da Torá). Como em Deuteronômio, a
explicação dos Dez Mandamentos segue de perto sua proclamação. Durham
afirma ainda:
É também por essa razão que o Livro da Aliança não pode, de maneira nenhuma, ser
considerado como uma interrupção desse relato.
E acrescenta:
Trata-se da regra que mostra como se deve viver, para permanecer na presença de
Yawé.[39]
5) Enfim, precisamos ver como se articulam as diferentes partes desse Livro
da Aliança (Êxodo 20.23 a 23.33).
A. Leis sobre o culto (Êxodo 20.20-26), I e II Palavras (Deus único, proibição
da fabricação de ídolos).
B. Leis sobre os direitos e deveres dos servos — cidadãos hebreus (ligados ao
seu senhor, mas não escravos) (Êxodo 21.1-11), VII e VIII Palavras (defesa
da família e proibição do roubo).
C. Leis sobre a proteção da vida humana (Êxodo 21.12-36), VI Palavra
(proibição do assassinato e defesa da vida inocente).
D. Leis sobre o roubo e proteção da propriedade (Êxodo 21.37 a 22.17), VIII
Palavra (proibição do roubo, defesa da propriedade individual e comunitária).
E. Leis sobre três abominações: feitiçaria, bestialidade, idolatria (Êxodo
22.17-19); rejeição absoluta de ações caracterizadas como “abomináveis”, VI
e VII Palavras, e também as Palavras I à III (pena de morte para ações
abomináveis, destruidoras de toda santidade e vida social sadia).
F. Leis sobre pessoas carentes (Êxodo 22.21-27), VI e VIII Palavras (danos
causados à pessoa e seus bens, assassinato e roubo).
G. Leis diversas referentes a Deus, às autoridades, etc. (Êxodo 22.28-30).
H. Leis sobre o falso testemunho e proteção dos pobres (Êxodo 23.1-9), IX e
VIII Palavras (condenação da mentira e do sofrimento que causa).
I. Regras que se referem ao culto (Êxodo 23.10-33), Palavras I a IV (como
adorar a Deus corretamente).
Voltemo-nos, agora, aos textos que dizem respeito mais particularmente ao
VIII mandamento nesse Livro da Aliança:
Não roubarás. (Êxodo 20.15)
Como veremos, nosso texto não fala somente de questões relativas à
propriedade, mas também trata do casamento. Vimos por várias vezes, no
curso desta viagem através das Dez Palavras, até que ponto os mandamentos
— como também a realidade — se interconectam. A realidade é uma e assim
também é a Lei de Deus, cujas partes diversas se conectam umas com as
outras.

I. Leis sobre os direitos e obrigações dos servos vassalos — cidadãos


hebreus[40]
Leiamos nosso texto.
São estes os estatutos que lhes proporás: Se comprares um escravo hebreu, seis
anos servirá; mas, ao sétimo, sairá forro, de graça. Se entrou solteiro, sozinho
sairá; se era homem casado, com ele sairá sua mulher. Se o seu senhor lhe der
mulher, e ela der à luz filhos e filhas, a mulher e seus filhos serão do seu senhor,
e ele sairá sozinho. Porém, se o escravo expressamente disser: Eu amo meu
senhor, minha mulher e meus filhos, não quero sair forro. Então, o seu senhor o
levará aos juízes, e o fará chegar à porta ou à ombreira, e o seu senhor lhe furará
a orelha com uma sovela; e ele o servirá para sempre. Se um homem vender sua
filha para ser escrava, esta não lhe sairá como saem os escravos. Se ela não
agradar ao seu senhor, que se comprometeu a desposá-la, ele terá de permitir-lhe
o resgate; não poderá vendê-la a um povo estranho, pois será isso deslealdade
para com ela. Mas, se a casar com seu filho, tratá-la-á como se tratam as filhas.
Se ele der ao filho outra mulher, não diminuirá o mantimento da primeira, nem os
seus vestidos, nem os seus direitos conjugais. Se não lhe fizer estas três coisas,
ela sairá sem retribuição, nem pagamento em dinheiro. (Êxodo 21.1-11)
A) Notemos, em primeiro lugar, a palavra do primeiro versículo que
traduzimos por estatutos. O entendimento é de que se trata de estatutos
jurídicos. A palavra hebraica é mishpatim. No pensamento hebraico, o tema
da Lei (Torá) é tão rico que deu origem a uma grande variedade de termos,
muito precisos, para dar significado a todas as suas nuanças. Dessa forma, no
salmo 119, consagrado ao louvor de Deus, de sua graça e de sua Lei,
encontramos algo próximo a uma dezena de expressões que giram em volta
da ideia de Lei (Torá). Essa palavra mishpatim, que encontramos aqui, tem
muito a ver com isso. A palavra mishpatim se refere mais particularmente ao
aspecto jurídico da Lei, ou seja, ao direito público. Ela se relaciona, antes de
tudo, com o direito civil, penal e com sua jurisprudência. Por contraste,
quando a Bíblia deseja exprimir a ideia de uma justiça pessoal, quando se
refere à qualidade própria do homem justo, à virtude da justiça, ao exercício
do “direito de julgar”, ao comportamento justo em relação ao próximo, ela
emprega a palavra tsedeq.[41] Mas aqui se trata do direito público e por isso a
palavra mishpatim é utilizada.
B) Uma segunda observação se impõe. Estamos lidando, aqui, com a
aplicação de um princípio moral e jurídico a um caso específico, que tem
ligação tanto com o 8º mandamento Não roubarás, como com o VII
mandamento Não adulterarás. Estamos lidando com o que chamamos de
jurisprudência “casuística”, que é a ciência jurídica que trata da aplicação dos
princípios justos do direito (as Dez Palavras do Decálogo) a um caso
específico. Lembremos que o direito em sua aplicação concreta possui três
níveis:
a) em primeiro lugar os princípios diretivos — as distinções criacionais
estabelecidas pelo próprio Deus em Gênesis 1 e 2 e depois no Decálogo;
b) em seguida, a Torá nos fornece um certo número de casos normativos, que
definem de maneira concreta a aplicação desses princípios (em particular os
mandamentos Não roubarás e Não adulterarás) a casos particulares, tais
como, escravos, a possibilidade de casarem-se, roubo de animais, furto, perda
de um bem, roubo de animais emprestados ou alugados, roubo salarial,
destruição da moeda, empréstimo a juros, etc.;
c) enfim, a aplicação do princípio, normatizado pela jurisprudência casuística,
deverá ser empregado com sabedoria, e aqui vemos a aplicação de Provérbios
e dos ensinos da Sabedoria na decisão particular e concreta do Juiz sobre um
caso, de certa maneira, único.
Notemos que não se trata, unicamente, da ação dos tribunais. Todas as vezes
que queremos agir de forma justa na família, na empresa, no exército, no
clube de futebol, numa associação qualquer e, sobretudo, na Igreja de Deus,
devemos levar em conta estes três níveis: a) o princípio diretivo; b) a
aplicação precisa a um caso típico; c) a aplicação às circunstâncias
particulares individuais.
Tomemos um exemplo familiar.
Uma criança pega algum dinheiro da carteira de sua mãe sem sua
autorização. 1) Trata-se de um caso de roubo? 2) Se sim, é da mesma
natureza de um assalto a banco? 3) Como a criança vai reagir à punição que
merece pelo seu crime contra a justiça familiar (ela é muito sensível ou é dura
ou “não está nem aí”)? Somente levando em consideração todos esses
aspectos, a ação jurídica familiar dos pais poderá ser justa.
Nosso texto vem, particularmente, em nossa ajuda. Quando encontramos,
num texto hebraico, a partícula ki (que a Bíblia la Colombe traduz por
quando), estamos lidando com um caso geral subordinado à palavra ou ao
mandamento específico do Decálogo a ele relacionado. É o que vemos nos
versos 2 e 7 de Êxodo 21:
Quando (ki) comprares um escravo hebreu... (verso 2)
E no verso 7:
Quando (ki) um homem vender sua filha...

Trata-se, portanto, de dois casos específicos que serão tratados.


Mas quando se trata de especificar as circunstâncias da aplicação desse caso
geral (a compra de um escravo macho hebreu, ou a venda por um pai de sua
filha), o texto hebraico não emprega a partícula ki, mas a partícula im, que a
Bíblia la Colombe traduz corretamente por se. Então, temos:
Se (im) entrar solteiro... (verso 3); se (im) tiver uma mulher (verso 3); se (im) seu
senhor lhe der uma mulher (verso 4); se (im) o escravo afirmar que ama seu senhor
(verso 5).
O mesmo ocorre na segunda parte do nosso texto que trata da venda de uma
filha em casamento, como serva familiar.
Há uma escala de importância decrescente na formulação do mandamento: 1)
o princípio, palavra do mandamento; 2) a formulação geral com ki, quando;
3) as aplicações particulares com im, se.
Aqui temos (1) o princípio, a palavra da lei... não roubarás (2) a norma geral
— as condições que definem a compra de um servo vassalo hebreu; e (3) as
condições particulares: a) se entra como escravo solteiro; b) se entra como
escravo casado; c) se já era escravo antes de casar; d) se ama seu mestre a
ponto de permanecer toda a vida como escravo, numa situação de
dependência em relação à família do seu senhor.
Recapitulemos: 1) Primeiramente, o princípio moral e jurídico essencial é
colocado (duas palavras do Decálogo); 2) em seguida, o problema geral da
escravidão masculina é examinado; 3) enfim, analisa-se o caso particular da
venda de uma filha a um senhor para que se torne sua esposa ou concubina.
Isso nos faz compreender que as Dez Palavras do Decálogo são sempre o
ponto culminante absoluto de uma hierarquia de leis. Por exemplo, o 9º
mandamento não fala apenas de uma simples mentira em suas variadas
formas, mas destaca aquela que é a mais grave de toda mentira social, ou
seja, o falso testemunho contra alguém diante de um tribunal. Esse pecado
pode levar a que uma pessoa inocente seja injustamente condenada à morte
ou destruída moralmente. A Torá ensina que o falso testemunho deve ser
punido com a pena que seria aplicada àquele que foi falsamente acusado.
Enfim, para extrair o verdadeiro sentido desses 11 versículos que tratam dos
direitos do escravo hebreu, precisamos compreender bem o sentido da
palavra “EVED”, que a Bíblia La Colombe traduz de maneira uniforme (e
incorreta) por escravo. Vejamos o que escreveu Rousas Rushdoony sobre
isso:
A palavra hebraica EVED foi traduzida por servo, criado, escravo. Da mesma maneira, AMAH
foi traduzida por serva, doméstica, ou ainda, escrava. Mas, nem a palavra escravo, ou servo, dá o
sentido correto dessas palavras, porque nem EVED, nem AMAH correspondem exatamente às
palavras escravo ou servo.[42]

Benno Jacob, comentarista judeu da Torá, escreveu:


Uma pessoa cuja dependência de seu senhor é limitada [a seis anos] não pode ser considerada
escrava.[43]

Vejamos o que podemos extrair das indicações que nosso texto nos fornece:

a) Trata-se aqui, unicamente, da servidão dos cidadãos de Israel, dos hebreus.


b) A palavra escravo não está no texto. Trata-se do que poderíamos chamar
de servos vassalos, dedicados por um tempo a uma família.
c) É uma maneira de assistir pessoas necessitadas.
d) Um israelita podia, então, vender-se ou ser vendido e entrar numa situação
de dependência temporária por ter perdido sua condição de homem livre, mas
no entanto não era escravo permanente, como podia ser, por exemplo, um
cananeu ou um simples operário, um mercenário ou um proletário que
dependesse apenas do seu braço para viver.
e) Portanto, um israelita livre podia perder seu estado de liberdade de duas
maneiras: (i) ele podia, em razão de seu empobrecimento durável, vender-se
como trabalhador, temporariamente privado de sua liberdade; (ii) podia ser
vendido, por exemplo, quando se mostrasse incapaz de pagar a reparação
exigida por um roubo que tivesse cometido. Para um israelita, nenhum desses
dois casos era, estritamente falando, escravidão permanente, como a praticada
nas nações vizinhas.
Nosso texto se divide em duas partes:
1) O escravo hebreu homem (Êxodo 21.2-6)
2) A mulher hebreia escrava (Êxodo 21.7-11)

1) O escravo hebreu homem (Êxodo 21.2-6)


a) Um senhor hebreu compra um de seus irmãos como servo temporário. De
fato, ele não o compra como quem adquire um objeto, mas tem direito a seis
anos do seu trabalho não remunerado. O servo não será pago, mas alimentado
e abrigado gratuitamente, como retorno pelo seu trabalho, juntamente com
sua esposa e filhos. Isso configura uma situação assistencialista. Em razão do
seu erro (negligência, preguiça, etc.) ou mesmo que não tenha culpa (por
desastre natural ou social, incêndio, seca, inundação, crise econômica ou
guerra) a sanção imposta pelo mercado é respeitada e ele cai em desgraça.
Em vez de morrer de fome, o servo pode vender seis anos de sua vida de
trabalho para sobreviver com sua família. Ainda assim, é melhor, mais
humano e menos prejudicial que o desemprego. Entretanto, a sanção social e
econômica pela negligência é mantida. A saúde econômica do país não é
destruída, como acontece quando está sob o Estado Providência ou possui um
Mercado sem disciplina moral e jurídica.
b) Vende seu serviço por seis anos apenas.
[...] seis anos servirá; mas no sétimo ano, sairá forro, de graça. (verso 2).
Aqui não se trata do ano sabático, mas do princípio sabático. De maneira
diversa às nossas economias impessoais e morais (totalmente desumanas),
sejam liberais ou socialistas, no direito hebraico o infortúnio humano não é
considerado absoluto. Após seis anos de trabalho servil, o servo pode retomar
seu status de homem livre.
1) Primeiro caso:
Sairá na condição que entrou; se entrou solteiro, sozinho sairá; se era homem casado,
com ele sairá sua mulher. (verso 3).

Aqui há pleno respeito à família do homem que, temporariamente, caiu em


desgraça.
2) Segundo caso:
Quando o senhor dá uma mulher a seu servo, durante o período de sua servidão: Se o
seu senhor lhe der mulher [dentre as servas da sua casa, a qual faz parte de seus bens
num sentido mais amplo], e ela der à luz filhos e filhas, a mulher e seus filhos serão
do seu senhor, e ele sairá sozinho. (verso 4).
O homem que entrou como servo não tem o status de homem livre. Ele não
tem mais os direitos de homem livre. É um assistido temporário. Ele está
consciente de que sua posição social e legal foi rebaixada e suas decisões
decorrerão desse fato. Desejar o contrário seria como se um homem falido e
processado quisesse ainda o direito de contratar livremente. Benno Jacob
compreendeu bem essa situação:
Durante o período de servidão, o escravo não pode entrar em nenhum contrato que
exceda esse período de seis anos.[44]
O servo vassalo se submete ao seu senhor e não é mais dono de si mesmo.
Não pode mais casar-se, com a pretensão de permanecer com sua esposa
depois de libertado. Essa esposa e os filhos que lhe deu são propriedade do
seu senhor. Mas se antes da servidão já era casado, sua esposa e filhos serão
libertados com ele. Deve se acomodar à sua nova situação como servo
vassalo e evitar comprometer-se com qualquer coisa que tenha significado
jurídico. Tem de levar em conta sua posição juridicamente diminuída e
esperar até sua libertação, para depois contrair matrimônio, por exemplo.
3) Terceiro caso:
Em todas as épocas houve quem preferisse a situação de assistido à de
homem livre. No tempo de Moisés também havia homens que se
acomodavam perfeitamente à sua condição de protegidos socialmente, pelo
Estado faraônico, e desejavam permanecer como tal. Um servo vassalo
declara a seu dono:
Eu amo meu senhor, minha mulher e meus filhos, não quero sair forro. (verso 5).

Tal homem mudou de condição após ter entrado na situação de servidão.


Casou-se, mas sua esposa pertence a seu senhor. Ela lhe deu filhos; ele a
ama, como também seus filhos, por isso não deseja deixá-los. Então, prefere
permanecer nessa condição servil a voltar à situação de homem livre e ter de
renunciar à sua família. Tal decisão de renúncia voluntária definitiva de sua
condição de homem livre tem uma certa gravidade. Ela deve ser atestada
pelos magistrados da cidade (identificados com Deus — Elohim) e marcada
com um selo, ou seja, aquele que deseja perpetuar seu estado de servidão
deve ter sua orelha perfurada (marca indelével) contra o batente da porta da
casa de seu senhor.

Então, o seu senhor o levará aos juízes, e o fará chegar à porta ou à ombreira, e o seu
senhor lhe furará a orelha com uma sovela; e ele o servirá para sempre. (verso 6).

2) A mulher hebreia escrava (Êxodo 21.7-11)

Vamos, agora, ao segundo caso, ou seja, ao de uma filha vendida a uma


família e colocada sob o senhorio de seu dono.
Se um homem vender sua filha para ser escrava, esta não lhe sairá como saem os
escravos. (verso 7).

Hoje esse texto nos parece chocante. Esse sentimento é acentuado pela
tradução que temos (la Colombe), a qual utiliza a palavra escrava onde o
texto hebreu poderia ser traduzido por serva ligada à família de seu senhor.
De fato, o hebraico não parece conhecer a expressão equivalente que
nomeamos escravo. Aqui o comentário de Gispen pode tornar isso mais
claro:

De nosso ponto de vista moderno não desejamos a sorte dessas servas-escravas


hebreias, mas não devemos esquecer a intervenção de Deus através da instituição de
normas jurídicas, que visavam eliminar os abusos e restaurar o valor do casamento
monogâmico em Israel.[45]

O que quer que seja essa última afirmação, fica claro que, como em relação
ao divórcio, a lei procura aqui regulamentar para melhor, uma situação
completamente desastrosa. Vejamos o que é isso:
a) É claro que a situação da filha, vendida pelo pai para a família de um
senhor, é diferente da situação do homem hebreu, obrigado a seis anos de
trabalho servil. Ela agora faz parte dessa nova família e normalmente para
sempre.
[...] esta não lhe sairá como saem os escravos [servos vassalos]. (verso 7).

b) Ela foi claramente destinada a tornar-se a única esposa de seu senhor ou a


mulher de seu filho. Se o senhor a rejeitar, deve então facilitar seu retorno à
sua própria família.
Se ela não agradar ao seu senhor, que se comprometeu a desposá-la, ele terá de
permitir-lhe o resgate; não poderá vendê-la a um povo estranho, pois será isso
deslealdade para com ela. (verso 8).

Ele não terá o direito de vendê-la a um povo estrangeiro.

c) Se for destinada a seu filho, será tratada como todas as moças casadas de
Israel. Se for sua primeira esposa, de maneira nenhuma poderá ser lesada em
seus direitos se o filho tomar uma segunda esposa.
Mas, se a casar com seu filho, tratá-la-á como se tratam as filhas. Se ele der ao filho
outra mulher, não diminuirá o mantimento da primeira, nem os seus vestidos, nem os
seus direitos conjugais. (versos 9 e 10, veja Dt 21.15-17)

d) Se for lesada nesses três direitos — alimento, vestimentas, direitos


conjugais — será livre, sem ter de pagar nada para sair de seu estado de
servidão:
Se não lhe fizer estas três coisas, ela sairá sem retribuição, nem pagamento em
dinheiro. (verso 11)
Para terminar, vejamos o sentido dessas leis sobre o casamento através da
compra de uma serva. Benno Jacob faz a seguinte observação que se aplica
às meninas de Israel, vendidas para servir em outras famílias, antes do
casamento:
O princípio de toda essa passagem tem o casamento como vocação.[46]
E acrescenta que o pai não teria permitido a ida de sua filha para outra família
se não fosse para contrair casamento. Essa situação era completamente
diferente da situação dos escravos cananeus. Rousas Rushdoony faz as
seguintes observações muito interessantes:
Deus considerava a poligamia como uma forma inferior de casamento. A lei,
rejeitando-a totalmente como norma, a tolerava e impunha regras à sua prática.[47]
Mais adiante, escreve:
A lei de Deus dá sua proteção àqueles que carecem de quem os proteja. O casamento de
uma moça pobre, ligada à família de seu senhor, ao filho da família, era cercada de
salvaguardas legais.[48]

E acrescenta:
A Bíblia associa o exercício do poder à responsabilidade e coloca as pessoas
dependentes sob a proteção especial de Deus. [...] As disposições da lei de Deus
vão até ao ponto de associar proteção à moça pobre, ligada pela servidão à
família de seu senhor, contra todo ato abusivo da parte de seu marido. Essa moça,
vendida a seu senhor, não é menos filha de Israel, tendo direito a todos os
privilégios que essa posição lhe confere.[49]

Ao que nossas traduções chamam de status de “escravo”, a Torá, a lei de


Deus, vê todo um sistema instituído para solucionar, de maneira humana e
realista, as dificuldades que poderiam surgir, para esse ou aquele, na vida em
sociedade. Um homem pode tornar-se pobre por seus próprios erros ou por
circunstâncias que fogem ao seu controle. A penalidade por incompetência
não foi removida e pode ser que ele tenha de se vender como servo. Mas essa
servidão, ao contrário do que ocorre em nosso sistema econômico, não tem
um caráter fatal, impessoal e implacável. Ele pode sair dessa situação após
cumprir seis anos de serviço a seu senhor. A lei é humana, também, porque o
empobrecimento da família que leva o pai a vender sua filha e colocá-la
como doméstica, a livra de uma situação de miséria e lhe abre a porta para
um casamento digno. Junto ao salmista também exclamamos:
Admiráveis são os teus testemunhos; por isso, a minha alma os observa. A
revelação das tuas palavras esclarece e dá entendimento aos simples […] A tua
justiça é justiça eterna, e a tua lei é a própria verdade. Sobre mim vieram
tribulação e angústia; todavia, os teus mandamentos são o meu prazer. Eterna é a
justiça dos teus testemunhos; dá-me a inteligência deles, e viverei! (Salmo
119.129-130; 142-144)

CONCLUSÃO
Nossa conclusão terá por base algumas reflexões feitas por Rousas
Rushdoony sobre esses capítulos do livro de Êxodo que começamos a
examinar. Ele compara a Lei de Deus às leis que produziram o Estado
moderno, francamente sem Deus, acima de toda lei absoluta transcendente e
imanente, acima até mesmo dos princípios que estabeleceram a ordem da
criação:
A Lei de Deus, em sua orientação, difere das leis do Estado. A lei puramente
humana procura reformar o criminoso, enquanto que a Lei de Deus tem como
objetivo a justiça, a restauração da ordem divina [o que inclui a restauração social
do ladrão, depois de cumprida a pena, por exemplo].[50] Quando o objetivo da lei
é simplesmente a reforma do criminoso, a justiça é substituída pelo bem-estar do
homem. O resultado não pode ser outro, ou seja, uma deformação séria tanto da
sociedade como do exercício da própria justiça [...] O direito deve visar a ordem
divina e sua justiça. O alvo a ser buscado também não deve ser o interesse e o
bem-estar de gente piedosa, mas a justiça divina. O que vemos na sociedade
moderna é uma preocupação exagerada por direitos de uns e de outros, pelos
direitos dos criminosos e até pelos direitos dos animais. O resultado desse
abandono da justiça divina é o que Cornelius Van Til descrevia como: “Uma
integração descendo para o nada”.[51]

Rushdoony prossegue:
Mas a justiça e a verdade são as aspirações normais dos homens. É o que se
espera do templo e dos tribunais, da Igreja e do Estado. É difícil tirar do coração
humano esse desejo. Entretanto, quando a justiça desaparece da vida da Igreja e
das decisões dos tribunais, e a verdade torna-se pragmática, a própria sociedade é
distorcida e o corpo social entra numa via suicida a longo prazo. Então, mais
nenhuma direção sadia se manifesta no mundo e a morte que a sociedade carrega
em seu seio torna-se iminente.[52]

Para combater tal vertigem da morte temos de voltar a Deus, ao seu


Evangelho e à sua Lei, aos dois juntos e com suas distinções próprias, mas
jamais separados. Esta é a razão das inúmeras exposições que fazemos sobre
a imutável Lei divina.
Que Deus nos abençoe por sua Santa Palavra!
Amém.
Capítulo VII: O Código da Aliança e a reparação

INTRODUÇÃO
No último capítulo, iniciamos o estudo da aplicação que a própria Bíblia faz
do oitavo mandamento às realidades da vida pessoal e social dos homens.
Nesta manhã vamos prosseguir em nosso estudo do Código da Aliança no
livro de Êxodo. Anteriormente examináramos a maneira pela qual a lei divina
busca proteger a vida dos homens, até mesmo nas mais extremas situações
sociais, tal como a necessidade de vender-se como escravo ou até mesmo
vender sua filha em razão da pobreza, ou por falência, para assegurar seu
futuro. Vimos que a solução proposta para esse problema econômico e
humano dramático havia sido motivada por uma dupla preocupação: (1) Não
ignorar as realidades econômicas difíceis, ou seja, um homem podia falir por
negligência ou em consequência de circunstâncias que escapavam ao seu
controle. A Bíblia considera que, em certa medida, ele deve arcar com as
consequências e recusa também a ideia do Estado Providência moderno, que
ignora as duras realidades econômicas e instaura um assistencialismo, quase
sem controle, em relação às pessoas em dificuldade. (2) Mas a segunda
preocupação do legislador bíblico foi descartar o fatalismo econômico e
social, tão comum hoje em dia. Segundo o ensino bíblico, a penalidade por
ineficácia econômica deve ter um limite e culminar na reinserção, após seis
anos de “escravidão”,[53] da pessoa socialmente sancionada, ou seja, a
devolução de sua antiga liberdade ou sua integração definitiva, como escravo
permanente, na comunidade familiar em que se encontra, com a perda de sua
posição de cidadão livre; ou ainda, na reintegração social e familiar da
menina israelita vendida como escrava, em razão de extrema necessidade,
pelo casamento com alguém da família que a acolheu.
Antes de caminharmos mais e começarmos o estudo e a aplicação atual do
texto do Código da Aliança no livro de Êxodo, gostaríamos, brevemente, com
a ajuda do excelente exegeta israelense de origem italiana, Umberto Cassuto,
de considerar o caráter próprio das leis bíblicas que estamos estudando.
Depois de examinar cuidadosamente as leis babilônicas, assírias e hititas
correspondentes, Cassuto fez as seguintes observações:
O exame desses códigos de leis e desses documentos mostra claramente que
existia entre os povos do Oriente uma tradição legal unitária em seus elementos
de base e nos seus princípios. Essa tradição tinha sua origem na Mesopotâmia e
seus ramos se estendiam para o Norte e para o Oeste, em razão do dinamismo
conquistador da cultura mesopotâmica.[54]
Cassuto continua:
A tradição legal do antigo Oriente estava em todos os seus ramos, secular, laico e
não religioso. As fontes da lei eram, de um lado, os costumes e, de outro, a
vontade do rei. Em todos os códigos que mencionamos notamos que a lei não
decorria da vontade dos deuses. [...] Além disso, e de uma maneira geral, os
códigos não continham leis relativas aos rituais de culto ou outras questões
religiosas; seu conteúdo era, de fato, inteiramente secular.[55]

A fonte de seu direito testemunha a orientação religiosa da nação que a adota.


Assim, esses direitos seculares das civilizações, de inspiração sumeriana e
babilônica, demonstram, na realidade, que juntos, os costumes e o rei eram
seus verdadeiros deuses.[56] Isso é evidenciado pela divinização do poder real
entre os povos do Oriente Médio antigo, ideologia religiosa e política que
mais tarde foi adotada pelo próprio Império Romano. Foi em função dessa
divinização imperial que os cristãos foram duramente perseguidos ao recusar
o culto ao imperador. Hoje, quando afirmamos em nosso país que o povo é
soberano (e não Deus), adoramos, como deus, aquele que é o nosso último
ponto de referência política, o povo, ou seja, nós mesmos. É a religião
humanista “secular” (ou seja, sem Deus) do culto ao homem. Da mesma
maneira, quando afirmamos a autocriação da natureza, do universo, por
processos hipotéticos e imaginários de uma suposta evolução, proclamamos
nosso próprio panteísmo, adoramos (como aliás faziam os povos de cultura
babilônica) uma natureza ou uma matéria autocriadora.
Cassuto continua sua análise afirmando que até o direito hebraico padeceu de
uma certa secularização, de certa independência das leis, feitas pelos reis, em
relação à Torá, sistema de leis com caráter eminentemente religioso e
admiravelmente adaptado às realidades criacionais da vida social e política.
Esses indícios de secularização são sinais claros do distanciamento
progressivo da monarquia em relação ao Deus da aliança. Essa secularização
ou ateização vai resultar no julgamento de Deus sobre a monarquia que se
tornou autossuficiente. Cassuto caracteriza a natureza profunda do direito
hebraico, comparando-a com o direito de inspiração babilônica, como segue:
Quando comparamos as leis do Pentateuco com as leis dos povos vizinhos não
devemos esquecer, como têm feito os especialistas engajados nessas pesquisas,
do caráter diverso desses dois sistemas: as leis dos povos vizinhos a Israel não
foram promulgadas em nome dos deuses, mas editadas pelos reis. Por outro lado,
as leis da Torá não foram promulgadas em nome da monarquia, e nem mesmo em
nome de Moisés, como chefe de Israel, mas eram instruções religiosas e éticas
que ordenavam o direito e que provinham do próprio Deus de Israel.[57]

Tomemos um exemplo, já antecipando o que vamos dizer sobre a passagem


de Êxodo que examinaremos. Falando dessas leis específicas que
examinamos, Cassuto escreveu:
A Torá evoca essas leis para se opor ao sistema legal do código de Hamurabi,
segundo o qual o ladrão seria condenado à morte se não tivesse com o que
restituir (Hamurabi, p. 8) ou se havia roubado por arrombamento (p. 21). Por
respeito à vida humana, a Torá manifestava compaixão pela vida do ladrão. Ela
descartava a pena de morte no caso em que o ladrão fosse incapaz de restituir e a
substituía pela escravidão [como vimos anteriormente]. A Torá protegia,
também, a vida do ladrão pego (durante o dia) em flagrante delito, mas limitava
essa proteção [durante a noite] em razão da importância maior que dava à
proteção do proprietário [inocente].[58]

Vamos, agora, abordar um novo ensino da Bíblia sobre o roubo e a vida


econômica, isto é, o da reparação e da restituição. Essas noções estão no
coração de todo ensino bíblico sobre a transgressão do oitavo mandamento,
Não roubarás. A Escritura procura restaurar a responsabilidade do criminoso
quando, de maneira proporcional, o obriga a reparar seu erro em relação à
vítima de seu crime, ao invés de mandá-lo para a prisão ou obrigá-lo a pagar
uma multa ao Estado (penalidades que em geral apenas reforçam sua
tendência criminosa). Dessa forma, o ladrão repara as consequências
socialmente desastrosas, ocasionadas por sua má ação, e isso o leva à sua
reintegração social.
Digamos algumas palavras sobre a estrutura desta seção referente ao Código
da Aliança, que vai de Êxodo 21.1 a 22.14. Ela está dividida em quatro
partes:
I. Os escravos-servos vassalos hebreus. Sete Mishpatim ou ordenanças legais
(Êxodo 21.1-11) (8º mandamento).
II. Diversos casos de homicídio: Sete Mishpatim ou ordenanças legais (Êxodo
21.12-36) (6º mandamento).
III. Roubo e destruição de propriedade: Sete Mishpatim ou ordenanças legais
(Êxodo 21.37 a 22.5) (8º mandamento).
IV. Perda da caução ou de empréstimo de propriedade ou de animais: Três
Mishpatim ou ordenanças legais (Êxodo 22.6-14) (8º mandamento).[59]
O texto do Código da Aliança, que vai de Êxodo 22.15 a 23.19, contém
diversas ordenanças, das quais algumas estão diretamente ligadas ao 8º
Mandamento (22.20-26) e outras, referentes a diversos assuntos, que a ele
podem estar não diretamente ligados.

O roubo e a destruição de propriedades


Trataremos agora do terceiro ponto indicado acima, “O roubo e a destruição
de propriedades”. Esse ponto está dividido em duas seções:
I. O roubo das propriedades de outro e sua restituição-reparação (Êxodo
21.37 a 22:3).
II. A destruição das propriedades de outro e sua restituição/reparação (Êxodo
22.4-5).[60]

I. O roubo das propriedades de outro e sua restituição/reparação (Êxodo


21.37 a 22.3)
O conjunto do nosso texto contém, então, duas seções distintas e possui um
certo número de casos particulares. Em geral, as seções são introduzidas pela
expressão KI, traduzida por quando; e os casos introduzidos por IM, que a
Bíblia de La Colombe traduz por se. Leiamos, então, o texto da primeira
seção:
Se alguém furtar boi ou ovelha e o abater ou vender, por um boi pagará cinco
bois, e quatro ovelhas por uma ovelha. Se um ladrão for achado arrombando uma
casa e, sendo ferido, morrer, quem o feriu não será culpado do sangue. Se,
porém, já havia sol quando tal se deu, quem o feriu será culpado do sangue; neste
caso, o ladrão fará restituição total. Se não tiver com que pagar, será vendido por
seu furto. Se aquilo que roubou for achado vivo em seu poder, seja boi, jumento
ou ovelha, pagará o dobro. (Êxodo 22.1-4)

Esse texto suscita as seguintes observações:


1. Em primeiro lugar, a distinção entre a propriedade de um primeiro
proprietário e a de outro proprietário é bem salientada. Aqui não se trata de
comunidade de bens e menos ainda de comunismo, isto é, de confisco geral
pelo Estado.
2. Em segundo lugar, a pena pelo roubo não é a prisão (pena desconhecida
pela legislação bíblica do Antigo Testamento, mas comum no Egito, como
por exemplo, José), nem multa estatal, mas a restituição, a reparação da
vítima do roubo e dela somente.[61] Vemos, então, que não está em questão
aqui nem multa, nem reparação a favor do Estado ou da comunidade em
geral, a qual chamamos de sociedade e que é representada pelos poderes
públicos. A reparação tem a ver exclusivamente com a pessoa lesada, com
aquela que sofreu efetivamente o dano. É a vítima do crime —
frequentemente esquecida pela prática judiciária moderna e pela opinião
pública — quem deve receber a reparação e não o Estado ou a administração
judiciária.
3. Constatamos, em seguida, uma diferenciação na compensação que é dada,
de acordo com cada caso. A regra normal é a reparação em dobro:
[…] Se aquilo que roubou for achado vivo em seu poder, seja boi, jumento ou
ovelha, pagará o dobro. (verso 3)

Por que o dobro e não uma compensação simples? Porque se o ladrão


devolvesse simplesmente o que roubou, não perderia nada e não sofreria
nenhuma pena. A restituição em dobro inclui a pena legal. Mas, então, por
que devolver em dobro à pessoa roubada e não ao Estado, como fazemos?
Porque a desordem introduzida na sociedade pelo ato criminoso deve ser
reparada pala ação judicial. Pagando ao Estado, não se repara o dano causado
à pessoa roubada, que teve seus bens usurpados pelo malfeitor. A reparação
em dobro não cobre apenas o dano material, mas também o dano moral
sofrido. De fato, roubar a propriedade de outro não é somente subtrair um
bem material, mas também causar-lhe um importante dano moral. Qualquer
pessoa roubada sente que foi pessoal e moralmente atingida. Por isso deve ser
compensada.
4. Por que, então, uma compensação tão pesada (4 vezes ou 5 vezes) no caso
em que o boi e a ovelha teriam sido abatidos ou vendidos? Porque a lei
bíblica faz uma distinção entre roubo por necessidade vital e roubo por
profissão. Se alguém mata e depois vende o animal no açougue, isso prova
que faz do roubo sua profissão. A lei ataca duramente o roubo institucional e
profissional. A restituição por uma ovelha é menor do que pelo boi, em razão
de seu menor valor no mercado agrícola e de materiais. Um dos princípios da
lei bíblica é fazer com que quanto maior for o crime, tanto maior seja a pena.
É a lei da proporcionalidade de talião. Atualmente, parece que esse princípio
foi revertido, pois quanto maior é o crime, mais o criminoso será compensado
pelo Estado ou pelos Bancos Centrais. Zaqueu, o publicano de Jericó,
compreendeu muito bem isso quando resolveu devolver quatro vezes mais o
que tivesse roubado de alguém (Lucas 19.1-10).
5. Para a Bíblia, roubo é roubo, seja a pessoa pobre ou rica. Assim, quem não
é capaz de restituir o que roubou não será posto na prisão (instituição na qual
se aprende roubar melhor), mas será feito escravo numa família hebreia, por
um período limitado a seis anos. Dessa maneira se buscava sua reabilitação
moral e social, dentro de uma sociedade normal e ativa. Foi o que vimos na
nossa última exposição.
6. Agora, como explicar os versos 2 e 3a, que parecem interromper o relato
no qual é definido o roubo de animais e a compensação que se deve dar ao
prejudicado, para tratar da diferença entre matar um ladrão de dia ou de
noite? Leiamos novamente esta curta passagem:
Se um ladrão for achado arrombando uma casa e, sendo ferido, morrer, quem o
feriu não será culpado do sangue. Se, porém, já havia sol quando tal se deu, quem
o feriu será culpado do sangue. (versos 2-3a)
Alguém poderia dizer que esse mandamento deveria estar na seção anterior
(Êxodo 21.12-36), que trata das diferentes formas de homicídio. Mas, como
já observamos, a realidade humana não se presta a categorizações tão estritas
e às vezes um aspecto dessa realidade, o homicídio, invade outro aspecto, o
roubo. Examinemos esse caso um pouco mais de perto.
Trata-se de um assalto noturno em que o ladrão foi pego com a mão na bolsa
enquanto praticava o roubo após ter perfurado o muro da propriedade, feito
evidentemente de barro. O proprietário o golpeia e o mata. Mas por que o
proprietário seria inocente se o tivesse matado durante a noite, enquanto que
se o matasse durante o dia teria de pagar com vida por vida, olho por olho, ou
seja, proporcional ao dano causado? As duas ações homicidas não são as
mesmas, tanto de noite como de dia? Porque o legislador hebreu, em sua
maneira de pensar, recusa o raciocínio “igualitário”, que não leva em conta as
circunstâncias do ato. Para ele, as ações cometidas podem ter seu significado
e conteúdo mudados conforme as circunstâncias. O ato material certamente é
o mesmo, tanto de dia como de noite, ou seja, o ladrão foi morto. Mas a noite
não era como o dia, sobretudo numa época em que não havia eletricidade!
Durante a noite, o bandido, que penetrou pelos muros de uma fazenda,
oferecia grande perigo de morte ao seu proprietário. Além disso, na escuridão
o proprietário não conseguiria medir bem a potência de seus golpes e poderia
golpeá-lo muito forte e matar o assaltante de maneira involuntária. Tratava-
se, então, de um homicídio involuntário, cometido por descuido contra um
homem que se mostrava claramente perigoso. Durante o dia, não era a
mesma coisa. O proprietário estaria vendo o que fazia e podia muito bem
mensurar o poder de seus golpes. Se matasse o ladrão, teria sido porque
realmente quis e nesse caso era um assassino. É surpreendente ver como aqui
a Bíblia nos mostra que a vida do ladrão é considerada como de muito maior
valor que a de um animal ou do que o bem material roubado de seu dono.
Estamos longe das leis de um país como a Inglaterra do começo do século
19, país “cristão”, no qual a pena de morte era prevista para mais de cem
categorias de roubo.
O comentarista judeu do Êxodo, Umberto Cassuto, disse muito bem:
A fim de proteger a vida do proprietário, a lei afirma que este não comete uma
ofensa capital se matar o ladrão enquanto arromba sua propriedade à noite. A fim
de proteger a vida do ladrão, a lei prescreve que se o proprietário o matar durante
o dia será considerado assassino.[62]

Sobre a palavra hebraica tabah, abate para venda (crime vil e organizado),
outro comentarista judeu, Benno Jacob, escreveu com muita propriedade:
A Torá desejava proteger toda a vida, inclusive a do animal, porque sua nephesh
[sua alma] era um dom de Deus.[63] O homem tinha recebido autorização para
trabalhar a carne do animal e nutrir-se com ela, tal como o tribunal tinha o direito
de executar um criminoso; mas o abate gratuito, fútil e violento dos animais era
ilegal.[64]

O que excluía a matança gratuita de animais selvagens[65] e a criação de


animais confinados. Jacob caracterizou bem essa lei, como segue:
Tendo rompido o elo de confiança que existia entre ele e seu vizinho, o ladrão
que dependia, para a preservação de sua própria vida, do temor geral a Deus e da
honestidade dos homens, era obrigado a reparar seu erro. A perda material era
compensada pela devolução do objeto roubado, mas o dano moral devia também
ser reparado, e em razão disso tinha de ser indenizado pela mesma quantia.[66]
Por sua vez, Henri Cazelles comentou:
É preciso devolver ao lesado sua propriedade ou algo equivalente. Como cada
coisa é considerada não tanto por seu valor de mercado, mas em função da
importância que tem para o proprietário, na impossibilidade de devolução,
medidas muito pesadas eram aplicadas.[67]

Para concluir esta seção citaremos as palavras do comentarista da Torá, o


pastor reformado Rousas John Rushdoony, que esclarecem bem esta questão:
Portanto, o fundamento dessas leis é claro. O crime não deve compensar ao que o
comete. O velho ditado: “O crime não compensa” tem sua origem na lei bíblica. Sob o
sistema legislativo estatista moderno é evidente que o crime compensa. A lei de Deus
tem como alvo penalizar o pecador e proteger o justo, devolvendo-lhe a restituição
obrigatória.[68]

II. A destruição da propriedade de outro e sua restituição-reparação


(Êxodo 22.4-5)
Examinemos, agora, a segunda maneira de roubar, a que destrói os bens do
próximo voluntariamente ou por negligência. Leiamos nosso texto:
Se alguém fizer pastar o seu animal num campo ou numa vinha e o largar para
comer em campo de outrem, pagará com o melhor do seu próprio campo e o
melhor da sua própria vinha. Se irromper fogo, e pegar nos espinheiros, e destruir
as medas de cereais, ou a messe, ou o campo, aquele que acendeu o fogo pagará
totalmente o queimado. (versos 4-5)

Esta seção contém duas partes: (1) animais que foram soltos no campo ou na
vinha do próximo; (2) o fogo que tomou conta do campo de trigo do
próximo. Examinemos separadamente.
De início notamos a hierarquia de infrações nas duas passagens. Em primeiro
lugar (a) o homem que provoca os estragos; (b) depois, os animais; (c) e
enfim, o fogo. Vemos aqui a ordem hierárquica da criação: matéria (o fogo);
a vida animal (o gado); o homem (a imagem de Deus, portanto deve ser
responsável).
Nosso texto nos mostra, claramente, que o roubo não consiste somente na
ação voluntária de roubar as propriedades de outro, mas que o fato de causar
dano aos bens do outro, de maneira voluntária ou não, é também uma forma
de roubo. Apropriar-se do carro de outra pessoa é roubo, mas também causar
dano, por negligência ou descuido, ao veículo de outra pessoa também é uma
forma de roubo. A grande vantagem de se fazer uma leitura atenta dos
mandamentos de Deus é descobrir, nos detalhes dessas leis, como hoje
podemos, de diversas maneiras, roubar ou enganar nosso próximo. Estudo
como esse serve para revelar os pecados e os crimes camuflados de nossa
própria época. Notemos, de passagem, que nos versos 4 e 5 as palavras
hebraicas que traduzimos por danos, gado, pastar, incêndio, possuem a
mesma raiz, BA’AR, que poderíamos traduzir pela expressão devorar pelo
fogo.
1) Animais soltos no campo
Esta é a situação. Um pastor de ovelhas leva seu rebanho para pastar no
campo de um vizinho, sem autorização, causando danos e devastando o
campo ou a vinha. Para isso rompeu a cerca ou o muro que separava uma
propriedade da outra. Esse pastor não tem nenhum respeito pela propriedade
alheia. Trata-se, evidentemente, de uma infração da qual os animais não têm
culpa; mas, por outro lado, o pastor do rebanho é responsável por isso, pouco
importando se invadiu de forma voluntária ou involuntariamente. Os danos
são dobrados, porque os animais comem e pisam em tudo. Se são ovelhas ou
gado, os animais arrancam a erva que não pertence ao seu dono. Se são
cabras, comem os arbustos e até mesmo a casca das árvores. Como será
calculada a pena para isso? Uma vez que não é mais possível estimar o valor
dos danos — tudo foi devastado — o nível de compensação a ser dado ao
proprietário lesado é elevado:
[...] pagará com o melhor do seu próprio campo e o melhor da sua própria vinha.
(verso 5b).
Evidentemente que a referência aqui não é ao que havia de melhor no campo
devastado do vizinho, mas do dono do rebanho que causou o dano. Como se
trata de roubo, deve ser punido.
2) O fogo se propaga sobre a colheita (verso 6)
O segundo caso não tem o mesmo caráter voluntário, a menos que o incêndio
tenha sido provocado por vingança. Mas o texto se refere, principalmente, ao
fogo provocado para queimar as ervas daninhas e preparar a terra para uma
nova cultura e, involuntariamente, o fogo invade outro campo e devasta o
trigo vizinho prestes a ser colhido. Aqui não se trata de um rebanho que vai e
pasta no campo vizinho, mas de uma força natural, do fogo que escapa ao
controle daquele que o provocou. As observações de Benno Jacob a esse
respeito são muito pertinentes:
Aqui não é um ser vivo, um animal que foi solto no campo, mas a força da natureza,
que uma vez desencadeada segue o seu próprio caminho. O fogo em si mesmo não é
responsável pelo dano que causa, mas aquele que o provocou.
E mais adiante, acrescenta:
Aquele que acendeu o fogo fez isso sem intenção de alastrá-lo, mas tinha a obrigação
de monitorar essa força perigosa. Além de ser responsável pelos danos causados pelo
fogo, também era responsável por uma fossa, sem cobertura, na qual seu vizinho
caísse.[69]

De um lado, o texto nos fala de ervas daninhas, de arbustos espinhosos,


consequências naturais da maldição provocada pela queda (Gênesis 3) e, de
outro lado, de que são marcas que Deus produzirá quando trouxer seu
julgamento sobre o seu povo infiel. Quando esse julgamento vem sobre uma
nação, os cardos e espinhos tomam o lugar das culturas:
Sobre a terra do meu povo virão espinheiros e abrolhos, como também sobre todas as
casas onde há alegria, na cidade que exulta. (Isaías 32.13)
E invadem até mesmo os lugares de culto:
E os altos de (Bet) Áven, pecado de Israel, serão destruídos; espinheiros e abrolhos
crescerão sobre os seus altares; e aos montes se dirá: Cobri-nos! E aos outeiros: Caí
sobre nós! (Oseias 10.8)

Que descrição encontramos também aqui do retorno ao caos ecológico e


espiritual que assistimos hoje no nosso país e em todo o Ocidente!
Agora podemos nos perguntar, qual será a pena por tal negligência?
[...] aquele que acendeu o fogo pagará totalmente o queimado. (verso 6).
É muito interessante notar que o texto descreve os três aspectos da colheita:
as medas de cereais [cereais em montões], ou a messe [cereal ainda no caule], ou o
campo [o campo de cereal pronto para a colheita]. (verso 6)

Trata-se do pão como resultado do trabalho — “com o suor do teu rosto” —


do homem em sua luta diária contra os espinheiros e cardos resultantes da
queda. E da negligência do vizinho ao destruir tudo o que foi tão
penosamente conquistado! Como disse Rushdoony, citando um velho
provérbio:
Pão destruído, vidas destruídas.[70]

Isso nos lembra que precisamos lidar com as forças da natureza que Deus nos
confiou, pelo mandato criacional, com muita prudência e sabedoria. É
lamentável que, em geral, esse tipo de advertência — tão necessária
atualmente, época em que a ciência e a técnica não têm freios sobre a terra —
venha do panteísmo ecológico e, salvo alguma exceção, raramente das
igrejas.[71] O homem deve agir com prudência e sabedoria. As consequências
involuntárias de sua imprudência podem ser terríveis!

CONCLUSÃO
O primeiro texto, sobre os animais que pastam além das cercas do próximo,
nos lembra a que ponto devemos respeitar os limites estabelecidos por Deus,
tanto na esfera criacional como no âmbito dos princípios primários da moral.
No livro de Eclesiastes, lemos:
Quem abre uma cova nela cairá, e quem rompe um muro, mordê-lo-á uma cobra.
Quem arranca pedras será maltratado por elas, e o que racha lenha expõe-se ao perigo.
(Eclesiastes 10.8-9)

Aquele que transgride a lei divina Deus o julgará e o entregará à antiga


serpente, o diabo. Em seguida, com relação ao respeito que devemos ter para
com os produtos da terra que nos fazem viver, lemos em Deuteronômio estas
palavras cheias de sabedoria:
Quando sitiares uma cidade por muito tempo, pelejando contra ela para a tomar,
não destruirás o seu arvoredo, metendo nele o machado, porque dele comerás;
pelo que não o cortarás, pois será a árvore do campo algum homem, para que
fosse sitiada por ti? Mas as árvores cujos frutos souberes não se comem, destruí-
las-ás, cortando-as; e, contra a cidade que guerrear contra ti, edificarás baluartes,
até que seja derribada. (Deuteronômio 20.19-20)

Que equilíbrio e quanta sabedoria na lei divina! Ela nos exorta a não
hipotecarmos o futuro (preservando as árvores frutíferas), mas também há
lugar para as necessidades de ordem militar (utilizando as árvores que não
servem como alimento).
Podemos extrair lições semelhantes do texto sobre incêndio no campo de
trigo. O fogo pode provocar estragos terríveis quando foge ao controle de
quem o provocou e não cuidou para que não se propagasse. É o que também
nos ensina o apóstolo Tiago:
Assim, também a língua, pequeno órgão, se gaba de grandes coisas. Vede como
uma fagulha põe em brasas tão grande selva! Ora, a língua é fogo; é mundo de
iniquidade; a língua está situada entre os membros de nosso corpo, e contamina o
corpo inteiro, e não só põe em chamas toda a carreira da existência humana,
como também é posta ela mesma em chamas pelo inferno. Pois toda espécie de
feras, de aves, de répteis e de seres marinhos se doma e tem sido domada pelo
gênero humano; a língua, porém, nenhum dos homens é capaz de domar; é mal
incontido, carregado de veneno mortífero. Com ela, bendizemos ao Senhor e Pai;
também, com ela, amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus. De
uma só boca procede bênção e maldição. Meus irmãos, não é conveniente que
estas coisas sejam assim. (Tiago 3.5-10)

Se é assim na Igreja de Deus, certamente Deus mesmo vai produzir um


grande incêndio para nos queimar a todos! Ouçamos, então, essa advertência
vinda do Deus compassivo e fiel, misericordioso e tardio em irar-se, que não
deseja que o pecador pereça, mas que se arrependa e viva eternamente. Essa
advertência é mais uma vez dirigida à Igreja de Deus que, sobre toda a terra,
se entrega a uma visão puramente mundana da fé cristã, vendo apenas as
realidades deste mundo, excluindo as realidades celestes que devemos
considerar:
Agora, pois, vos farei saber o que pretendo fazer à minha vinha: tirarei a sua
sebe, para que a vinha sirva de pasto; derribarei o seu muro, para que seja pisada;
torná-la-ei em deserto. Não será podada, nem sachada, mas crescerão nela
espinheiros e abrolhos; às nuvens darei ordem que não derramem chuva sobre
ela. Porque a vinha do Senhor dos Exércitos é a casa de Israel, e os homens de
Judá são a planta dileta do Senhor; este desejou que exercessem juízo, e eis aí
quebrantamento da lei; justiça, e eis aí clamor. (Isaías 5.5-7)

Dessa maneira, Deus tirará — como fez com o Israel infiel, do qual a parcela
que permaneceu fiel, por sua fé em Jesus Cristo, tornou-se o fundamento da
Igreja — o candelabro de uma comunidade cristã local que, ao perseverar no
mal, acaba por receber o julgamento de Deus. Então, dará aquela vela
flamejante a outros, para que deem fruto para a glória de Deus.
Concluiremos com as palavras que o apóstolo Paulo dirigiu aos hebreus
dispersos pelo mundo do Império Romano e que enfrentavam as mesmas
tentações e seduções que hoje ainda sofremos, provações que já sofria o povo
de Deus no tempo do profeta Isaías. Nos termos lembrados pelos textos que
acabamos de meditar, o Senhor ainda adverte seu povo sobre o perigo de
afrouxar, de seguir a carne e conformar-se com o mundo. Que perigo
manifestar em pleno dia a vaidade de sua fé efêmera quanto ao Reino de
Deus, plantada numa terra improdutiva e estéril!
Porque a terra que absorve a chuva que frequentemente cai sobre ela e produz
erva útil para aqueles por quem é também cultivada recebe bênção da parte de
Deus; mas, se produz espinhos e abrolhos, é rejeitada e perto está da maldição; e
o seu fim é ser queimada. (Hebreus 6.7-8)

O apóstolo acrescenta estas palavras que devem ser, para cada um de nós,
motivo para nos recompor, olharmos para Jesus Cristo e retomarmos o
caminho de uma fé repleta de uma confiança vitoriosa:
Quanto a vós outros, todavia, ó amados, estamos persuadidos das coisas que são
melhores e pertencentes à salvação, ainda que falamos desta maneira. Porque
Deus não é injusto para ficar esquecido do vosso trabalho e do amor que
evidenciastes para com o seu nome, pois servistes e ainda servis aos santos.
Desejamos, porém, continue cada um de vós mostrando, até ao fim, a mesma
diligência para a plena certeza da esperança; para que não vos torneis indolentes,
mas imitadores daqueles que, pela fé e pela longanimidade, herdam as
promessas. (Hebreus 6.7-12)
Capítulo VIII: O Código da Aliança e as cauções

INTRODUÇÃO
Nossos dois últimos estudos sobre o oitavo mandamento foram dedicadas ao
estudo do que chamamos de Código da Aliança, que é uma explicação
divinamente inspirada do Decálogo que encontramos no livro do Êxodo. Essa
explicação particular da Bíblia pela Bíblia vai de Êxodo 20.22 a 23.33. Nesta
série de estudos, nos ocupamos unicamente dos textos ligados ao oitavo
mandamento Não roubarás (Êxodo 20.15).
Em nosso primeiro estudo sobre o Código da Aliança, examinamos o que a
Bíblia nos ensina sobre essas sanções econômicas, inevitáveis num mundo
caído marcado pelo reino da escassez e do pecado. Depois vimos as respostas
que a Bíblia oferece a um homem caído em desgraça financeira — por falha
pessoal ou por circunstâncias fora do seu controle — que poderia levá-lo a
vender-se como escravo vassalo, ou como servo, a um senhor. Vimos que
essa condição servil era limitada no tempo: seis anos. Em seguida
observamos que, numa comunidade familiar israelita, essa situação de
dependência, após seis anos de “servidão” — verdadeira perda de liberdade
para decidir — permitia a reabilitação social do homem caído em desgraça,
ou o reduzia permanentemente a um estado de dependência.
No segundo estudo examinamos diversos casos de roubo e as penalidades
impostas ao criminoso em razão de infrações mais ou menos graves. Vimos
que os diversos casos considerados foram tratados de maneira diferenciada e
a ênfase legal caía particularmente sobre a responsabilidade concreta daquele
que, de forma voluntária ou por negligência, havia danificado ou privado seu
próximo dos seus bens. Constatamos ali que a penalidade por roubo não tinha
esse lado brutal — pena de morte ou mutilação — que havia no direito das
nações do Oriente Médio antigo (ou da Inglaterra “cristã” do século 19), mas
consistia, essencialmente, numa reparação proporcional ao crime cometido,
que não devia ser paga ao Estado — como ocorre entre nós—– mas à pessoa
lesada.
Neste capítulo, vamos tratar do ensino contido no Código da Aliança do livro
de Êxodo no que se refere ao desrespeito às propriedades cedidas, de boa-fé,
a outra pessoa. Encontramos isso em Êxodo 22.7 a 15. Assim terminaremos o
estudo dos comentários sobre esse mandamento que encontramos no “Código
da Aliança” e, adiante, voltaremos ao ensino do oitavo mandamento em
Deuteronômio.
O Código da Aliança e as cauções (Êxodo 22.7-15)
Como é costume na casuística — a ciência dos casos legais — contida na
Torá, estamos aqui diante de diferentes situações típicas que interpretam a
palavra do Decálogo. Temos quatro: 1. A caução em relação aos objetos
(versos 7-8); 2. A caução em relação aos animais e objetos (verso 9); 3. A
guarda de animais como caução (versos 10-13); 4. A guarda de animais
emprestados ou alugados (versos 14-15).

1. A caução em relação aos objetos (versos 7-8)


Se alguém der ao seu próximo dinheiro ou objetos a guardar, e isso for furtado
àquele que o recebeu, se for achado o ladrão, este pagará o dobro. Se o ladrão não
for achado, então, o dono da casa será levado perante os juízes, a ver se não
meteu a mão nos bens do próximo.

Qual é o caso que regulamenta essa aplicação do oitavo mandamento? Trata-


se de uma situação ou de um homem que parte em viagem seguindo seu
rebanho (o deslocamento do gado para outro pasto, por exemplo), tendo
deixado objetos de valor com seu vizinho para que cuide deles. Como diz
Cazelles: “Em regime econômico pastoril, frequentemente o pastor é
obrigado a deixar seus pertences na vila. Durante sua ausência, os objetos
deixados em consignação desaparecem”. O caso geral é introduzido pela
expressão hebraica Ki, quando. Dois casos particulares são apresentados: 1.
O ladrão é encontrado. 2. O ladrão não é encontrado.
1. O ladrão é encontrado

No primeiro caso é encontrado o ladrão que roubou o dinheiro ou objetos que


haviam sido deixados sob a guarda do dono da casa; de acordo com a regra
geral uma compensação em dobro deverá ser dada ao dono dos bens
roubados. A primeira parte da compensação é a restituição dos bens roubados
ao seu proprietário. A segunda parte da compensação diz respeito aos danos
sofridos. Seria interessante aplicar esse princípio aos bancos, às seguradoras,
ou aos fundos de pensão dilapidados por uma especulação insensata,
totalmente abusiva e criminosa, do dinheiro dos poupadores.
2. O ladrão não é encontrado

No segundo caso, o ladrão não é encontrado e a suspeita recai sobre o


depositário dos bens ou dinheiro confiados. Então, a questão que se coloca é
a seguinte: como saber se a própria pessoa encarregada dos bens não se
apropriou deles? Está em questão a responsabilidade daquele a quem os bens
foram confiados. O dono da casa tinha a obrigação de proteger a propriedade
a ele confiada como se fosse sua. Então, nesse caso é impossível, ao contrário
do caso precedente no qual o ladrão era conhecido, (a) devolver o bem ao
proprietário que o confiou; e mais ainda, (b) dar uma compensação (em
dobro) ao que sofreu a perda.

É aqui que surge o princípio transcendente do juramento solene pronunciado


na presença de Deus. O que tinha a guarda dos bens se aproxima, ou mais
literalmente, se deixa aproximar de Deus, para jurar formalmente diante dele
que não roubou o que havia sido deixado, por seu vizinho, sob sua
responsabilidade. Estamos aqui diante de concepções muito fortes (a) da
palavra empenhada; (b) do caráter sagrado do juramento; (c) e da pessoa do
próprio Deus — o fiador supremo de toda justiça — no processo judiciário.
O Deus transcendente de Israel intervém diretamente de maneira imanente no
processo judiciário. Aqui seria útil lembrar que os juízes em Israel eram às
vezes identificados como deuses, equiparados à própria divindade. Henri
Cazelles nos mostra muito bem que esse temor de Deus, no plano jurídico,
era próprio de todas as nações do Antigo Oriente Médio:
A legislação, quanto ao juramento, se encontra determinada na Antiguidade por
um jus gentium (direito dos povos), direito internacional utilizado em todo o
Oriente e que fixava, em quase tudo, as mesmas modalidades de um ato religioso,
possuindo valor sob o ponto de vista civil.[72]

Isso porque não se trata de um juramento que se possa pronunciar


impunemente, uma vez que comporta maldições divinas precisas contra
aquele que ouse perjurar. A realidade da ação imanente de Deus (dos deuses)
estava presente em todas as mentes e a consciência disso era fortemente
marcada. Essa concepção foi claramente expressa no salmo 82, de Asafe:

Deus assiste na congregação divina;

Poderíamos dizer, no tribunal.


no meio dos deuses[73] estabelece o seu julgamento. (Salmos 82.1)

Em seguida vem a condenação de Deus contra aqueles a quem delegou o


direito de julgar — todo o poder vem de Deus — e que exercem a
autoridade jurídica de maneira iníqua:
Até quando julgareis injustamente e tomareis partido pela causa dos ímpios?
(Salmos 82.2)
Depois Asafe acrescenta esta exortação, este apelo para que a justiça e o
direito sejam respeitados:

Fazei justiça ao fraco e ao órfão, procedei retamente para com o aflito e o


desamparado. Socorrei o fraco e o necessitado; tirai-os das mãos dos ímpios.
(Salmos 82.3-4)

Asafe se refere a um direito do qual a justiça teria sido excluída — o direito


que prevalece em todo o Ocidente — no qual se toma a Lei de Deus em vão,
do qual o Deus transcendente e justo foi banido.

Ele fala sobre os magistrados sem direito nem lei:


Eles nada sabem, nem entendem; vagueiam em trevas; vacilam todos os
fundamentos da terra. (Salmos 82.5)

Quando a Lei de Deus e o Deus de toda justiça são esquecidos.

Eu disse: sois deuses, sois todos filhos do Altíssimo. (Salmos 82.6)

Sua autoridade foi delegada por Deus.

Todavia, como homens, morrereis e, como qualquer dos príncipes, haveis de


sucumbir. (Salmos 82.7)

Vocês que trocam o direito pela injustiça e que creem, como Eva, ser deuses
com poder em si mesmos para estabelecer o bem e o mal, o justo e o injusto,
não passam de homens mortais, que terão de prestar contas a Deus pelo
exercício do seu cargo. Enfim, o salmista clama pelo julgamento de Deus, o
Juiz supremo, o Senhor de seu povo eleito:

Levanta-te, ó Deus, julga a terra, pois a ti compete a herança de todas as nações.


(Salmos 82.8)

Como o direito moderno se distanciou de seu modelo bíblico divino! Isso


salta aos olhos daqueles que querem ver. As observações de Rousas
Rushdoony sobre esse texto são muito claras:

Vemos a menção do nome Elohim [os deuses], palavra que comumente refere-se
a Deus, mas que às vezes é utilizada em relação aos juízes, que são os agentes de
Deus na administração da justiça.

E, então, acrescenta:

Para nós, o ponto importante é que a lei e o exercício do direito são de tal
maneira considerados [por nosso texto] como pertencentes e reservados à esfera
divina que o tribunal se torna um lugar de encontro com Deus tanto quanto o
templo. Portanto, do ponto de vista bíblico, uma lei que não seja teísta não é uma
lei, e nem mesmo uma anti-lei, porque somente Deus é a fonte legítima da lei e
do direito. Segundo esse ponto de vista, a secularização [isto é, a exclusão de
Deus] da lei e dos tribunais só pode ser fonte de injustiça.[74]

Nesse sistema, no qual a justiça de Deus intervinha direta e concretamente, o


juramento que não fosse seguido de uma penalidade divina era uma prova
suficiente da inocência daquele que jurava diante dos juízes (isto é, diante de
Deus), ou seja, uma prova de que não havia roubado a propriedade ou o
dinheiro colocado sob sua responsabilidade.

2. A caução em relação aos animais e aos objetos (verso 9)

Vejamos, agora, o segundo caso, no qual esse princípio do julgamento


imanente (isto é, aqui embaixo, na terra) do Deus transcendente, se manifesta
concretamente:
Em todo negócio frauduloso. (Êxodo 22.9)

“Dabar”: ação judiciária, contestação, processo que trata de uma falha ou


transgressão.
[...] seja a respeito de boi, ou de jumento, ou de ovelhas, ou de roupas, ou de
qualquer coisa perdida, de que uma das partes diz: Esta é a coisa!
Está aqui, meu amigo, este é o objeto!

[...] a causa de ambas as partes se levará perante Deus.

As pretensões contraditórias do acusado e do reclamante serão julgadas por


Deus.
aquele a quem Deus condenar pagará o dobro ao seu próximo. (Êxodo 22.9)

Em primeiro lugar devemos notar a progressão hierárquica do caso, indo do


mais importante (o boi), ao menos importante (o objeto perdido). Benno
Jacob esclarece melhor o contexto dessa lei:
O caso acontecia quando o acusado (o que guardou o objeto) afirmava alguma
coisa que não podia ser provada por investigações ou por testemunhos. Então,
devia demonstrar que era capaz de declarar sua inocência diante do tribunal. Lá,
ele estaria diante daquele que tudo conhece, porque ele se coloca como
testemunha invisível diante dos juízes. E ali o temor de Elohim devia trazer a
verdade a lume. Porque o homem não pode, por si mesmo, sondar os corações.[75]

Neste caso o depositário nega ter recebido um bem sob sua guarda. O
proprietário do objeto afirma: o objeto é este! O detentor do objeto responde:
não é este! Como então decidir para que a justiça seja feita e o mentiroso
ladrão seja penalizado e o lesado justamente recompensado pelo dano
sofrido? Diante desse impasse jurídico era preciso ir ao Juiz supremo, ao
Deus que desde o seu tribunal celeste devia julgar sobre a terra (por ordália,
juízo de Deus) tanto o ladrão que negava seu crime como o que teria feito
uma falsa acusação de roubo contra seu próximo.[76]
Para os habitantes do Oriente Médio, que tinham ainda temor a Deus, se
entregar assim nas mãos do julgamento de Deus era um ato de extrema
gravidade. Evidentemente isso se aplicava ainda mais a Israel, povo que
conhecia o único e verdadeiro Deus. Para concluir esta seção, citamos uma
vez mais Benno Jacob:
Os bens do próximo, deixados sob sua guarda [por exemplo, nossas economias
nos bancos], são considerados como sagrados, intocáveis e não devem ser
danificados; isso servia tanto para os que eram deixados na mão do próprio
senhor [ou do banqueiro] ou na casa [ou no banco] em que exercia sua
autoridade. Isso valia para qualquer espécie de propriedade. [...] Aquele que se
apropria do bem de seu vizinho é chamado, em hebraico, de “rasha”.[77]

Que significa: “Aquele que errou”.


3. A guarda de animais como caução (Êxodo 22.10-12)
Estamos, agora, diante de um novo caso. Trata-se de animais — seres vivos
que, portanto, podem ser feridos e vir a morrer — deixados sob os cuidados
de um vizinho. São dois casos: a) o de força maior, em que o depositário é
inocente; b) e aquele em que a culpa pelo dano seria do depositário.
Comecemos pelo primeiro caso:
a) Em caso de força maior
Se alguém der ao seu próximo a guardar jumento, ou boi, ou ovelha, ou outro
animal qualquer, e este morrer, ou ficar aleijado, ou for afugentado, sem que
ninguém o veja, então, haverá juramento do Senhor entre ambos, de que não
meteu a mão nos bens do seu próximo; o dono aceitará o juramento, e o outro não
fará restituição. (Êxodo 22.10-11)

Precisamos fazer aqui algumas observações:


1. Em primeiro lugar, note a distinção que a lei faz (seguindo o relato da
criação no primeiro capítulo de Gênesis) entre matéria inanimada e seres
vivos ou animais, ou ainda, entre objetos ou coisas e animais. Diferentes
objetos exigem leis diferentes, específicas, de acordo com sua natureza. A
perda de um objeto — uma maleta, por exemplo — não tem o mesmo peso
jurídico que o sofrimento de um animal, ou mais grave ainda, de um ser
humano, nosso próximo, nosso semelhante. Muito mais grave ainda, do ponto
de vista bíblico, são as ofensas dos homens contra Deus, seu Criador. Mas,
atualmente, a isso não damos tanta importância!
2. Em segundo lugar, trata-se aqui de uma falha involuntária, sem que
ninguém tenha visto. Seria o dano causado a animais deixados em confiança,
sem que pudesse ser evitado. Como resultado o animal: a) morre; b) quebra
um membro do corpo; ou c) foi levado por invasores, sem que o fazendeiro
depositário tivesse como impedir. Como diz o provérbio: “Na
impossibilidade, ninguém é obrigado”. Como não havia testemunhas,
presume-se a inocência. Note-se até que ponto o direito da Torá insiste sobre
a distinção entre a falha involuntária (relativamente inocente) e o erro
voluntário (claramente culpado). Mas nosso texto leva em conta também o
mau coração do homem. Porque,
Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto;
quem o conhecerá? (Jeremias 17.9)

Portanto, não considera apenas a simples presunção de inocência.


3. Então, passa-se ao juramento em nome do Eterno. Para mostrar o caráter
particularmente solene desse ato, o nome santo de Yawé é pronunciado. É o
único caso no livro do Êxodo. O homem que guardou o animal presta
juramento sobre sua inocência diante de Yawé. Ele não roubou o animal
daquele que deixou o rebanho sob sua responsabilidade. É o tribunal
presidido por Deus, de maneira invisível, mas bem real, que testemunha seu
juramento solene e decide. Ninguém testemunhou o que aconteceu;
entretanto, a Testemunha invisível, que tudo vê claramente, conhece tudo. A
decisão é tomada e as penalidades são adotadas em seu nome.
4. Enfim, vemos como a palavra em Israel tinha um caráter sagrado. Neste
tempo de universalidade da mentira, isso é algo inimaginável. Marcel
Regamey, para ilustrar o caráter sagrado que a palavra dada tinha em nosso
país, notava que o mercado de animais em Orbe, há não muito tempo (antes
da Segunda Guerra), funcionava sem nenhum contrato escrito, unicamente
sobre a palavra dada. Aquele que rompesse o acordo oral era excluído para
sempre da comunidade dos comerciantes de animais. Henri Cazelles faz este
interessante comentário, que permite mensurar nossa miséria atual:
O perjúrio é raro nas sociedades primitivas; e, ainda em nossos dias, o juramento
solene no deserto [árabes do deserto] é sempre aceito.[78]

Tais costumes antigos fazem com que compreendamos melhor por que o
proprietário do animal aceitava de pronto o juramento de seu vizinho que, por
isso, não dava nenhuma compensação pelo animal perdido (verso 11).
De sua parte, Rushdoony comenta:
Aquele que guarda os animais jura que é inocente, então é perdoado por todo
dano.

E acrescenta:
O juramento então, e até recentemente, tinha um papel importante no processo.
Quando o temor a Deus era generalizado, era possível que o juramento tivesse
uma função jurídica significativa.[79]

b) A responsabilidade do depositário
Examinemos, agora, o segundo caso, ou seja, aquele em que o depositário
pode ser considerado responsável por danos sofridos pelos animais sob sua
guarda:
Porém, se, de fato, lhe for furtado [não no campo], pagá-lo-á ao seu dono. Se for
dilacerado [por um animal selvagem], trá-lo-á em testemunho disso [prova
material de sua inocência] e não pagará o dilacerado. (Êxodo 22.12-13)
No campo, qualquer coisa pode acontecer e não se exige do pastor do
rebanho a mesma atitude de Jacó, que pôs em sua própria conta as ovelhas
que eram mortas pelos animais selvagens, quando pastoreava o rebanho de
Labão:
Vinte anos eu estive contigo, as tuas ovelhas e as tuas cabras nunca perderam as
crias, e não comi os carneiros de teu rebanho. Nem te apresentei o que era
despedaçado pelas feras; sofri o dano; da minha mão o requerias, tanto o furtado
de dia como de noite. (Gênesis 31.38-39)

Também não é exigido que se aja com o mesmo heroísmo de Davi que
declarou a Saul:
Teu servo apascentava as ovelhas de seu pai; quando veio um leão ou um urso e
tomou um cordeiro do rebanho, eu saí após ele, e o feri, e livrei o cordeiro da sua
boca; levantando-se ele contra mim, agarrei-o pela barba, e o feri, e o matei. O
teu servo matou tanto o leão como o urso; este incircunciso filisteu será como um
deles, porquanto afrontou os exércitos do Deus vivo. Disse mais Davi: O Senhor
me livrou das garras do leão e das do urso; ele me livrará das mãos deste filisteu.
Então, disse Saul a Davi: Vai-te, e o Senhor seja contigo. (1 Samuel 17.34-37)

Mais ainda, a lei não exigia que o pastor morresse por seu rebanho, mas que
apenas o guardasse dos ladrões e animais selvagens tanto quanto possível.
Mas, para aquele que é o verdadeiro Pastor do rebanho, é bem diferente:
Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas. O mercenário, que
não é pastor, a quem não pertencem as ovelhas, vê vir o lobo, abandona as
ovelhas e foge; então, o lobo as arrebata e dispersa. O mercenário foge, porque é
mercenário e não tem cuidado com as ovelhas. Eu sou o bom pastor; conheço as
minhas ovelhas, e elas me conhecem a mim, assim como o Pai me conhece a
mim, e eu conheço o Pai; e dou a minha vida pelas ovelhas. Ainda tenho outras
ovelhas, não deste aprisco; a mim me convém conduzi-las; elas ouvirão a minha
voz; então, haverá um rebanho e um pastor. Por isso, o Pai me ama, porque eu
dou a minha vida para a reassumir. Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu
espontaneamente a dou. Tenho autoridade para a entregar e também para reavê-
la. Este mandato recebi de meu Pai. (João 10.11-18)
Nosso texto não exige esse espírito de sacrifício ao pastor ou ao proprietário a
quem o vizinho confiou seus rebanhos; a questão aqui é saber se o pastor é
responsável ou não pelo roubo ou dano causado aos animais. No campo
aberto presume-se que não, ou seja, o pastor não é responsável. Mas próximo
à fazenda presume-se que sim, isto é, o pastor é responsável e deveria tê-lo
guardado melhor. Se conseguir provar que a ovelha desaparecida foi morta
por um animal selvagem, então não pagará nada. Mas se não provar, terá de
compensar pelo animal perdido, mas não em dobro.

4. A guarda de animais emprestados ou alugados (versos 13-14)


Examinemos, agora, o último caso particular, no qual o código da aliança,
com precisão ainda mais refinada, destaca o grau de responsabilidade tanto
do proprietário como do locatário.
Se alguém [Ki, trata-se de uma nova seção] pedir emprestado a seu próximo um
animal, e este ficar aleijado ou morrer, não estando presente o dono, pagá-lo-á.
Se [Im, caso particular] o dono esteve presente, não o pagará; se [Im, novo caso
particular] foi alugado, o preço do aluguel será o pagamento. (Êxodo 22.13-15)

Esta nova situação geral é introduzida pela palavra Ki, quando; depois, dois
casos particulares são introduzidos por Im, se. Vejamos um e depois o outro.

Primeiro caso
Um homem do campo empresta ou aluga alguns animais a seu vizinho. O
animal que está sob a responsabilidade daquele que o alugou é ferido ou
morto na ausência do seu proprietário; nesse caso o locatário sofre as
consequências dos danos causados ao animal. A ausência do proprietário faz
com que o locatário seja o responsável pelo que aconteceu ao animal.
Consideremos um exemplo. Os avós estão cuidando de seus netos. Enquanto
os pais estão ausentes, os avós são totalmente responsáveis. Mas, se os pais
estão presentes, em primeiro lugar são os pais que têm de assumir a
responsabilidade de cuidar dos seus próprios filhos. Aqui, o locatário do
animal terá de dar uma compensação pela perda do animal, isto é, terá de
substituí-lo. Neste caso não se trata — e nem no caso precedente — de dar
uma compensação em dobro, porque não foi intencional e, portanto, não
houve dano moral. Mas neste primeiro caso, se o proprietário do animal
alugado veio ajudar seu vizinho (o locatário do animal), e ele mesmo conduz
o rebanho que sofreu o dano, pelo fato de estar presente torna-se responsável,
e não o locatário. A proximidade física do proprietário faz com que tenha a
responsabilidade primeira.
Segundo caso
Trata-se de um animal alugado, isto é, que não foi apenas emprestado; então
o preço da locação bastará como compensação pela perda do animal. Por
quê? A razão disso é simples. Ao alugar seu animal, o proprietário obtém
algum lucro nessa operação e corre, necessariamente, um risco. O que quer
que aconteça ao animal, o aluguel deve ser pago pelo locatário. O proprietário
aceita os riscos relativos ao ato comercial de locação. O proprietário aluga
um animal pelo dinheiro da locação e, como ocorre no caso de acionários de
uma empresa, tem também participação no risco. É por isso que a lei de Deus
aceita investimentos com risco ou com benefício variável (como são as ações
que capitalizam uma empresa, nas quais o acionário tem participação nos
lucros e nas perdas) mas condena a usura, na qual os juros sendo fixos e as
entradas automáticas, faz com que aquele que empresta não participe nos
riscos sofridos pelo empreendedor. Mas veremos tudo isso, se Deus quiser,
numa exposição futura.[80]
Facilmente podemos ver a sabedoria maravilhosa dessas leis quando nos
dedicamos a meditar nelas. Era isso que as nações estrangeiras notavam
quando comtemplavam a Lei que Deus havia dado a Israel. Vejamos as
palavras de Moisés sobre isso no quarto capítulo do Deuteronômio:
Eis que vos tenho ensinado estatutos e juízos, como me mandou o SENHOR, meu
Deus, para que assim façais no meio da terra que passais a possuir. Guardai-os,
pois, e cumpri-os, porque isto será a vossa sabedoria e o vosso entendimento
perante os olhos dos povos que, ouvindo todos estes estatutos, dirão: Certamente,
este grande povo é gente sábia e inteligente. Pois que grande nação há que tenha
deuses tão chegados a si como o SENHOR, nosso Deus, todas as vezes que o
invocamos? E que grande nação há que tenha estatutos e juízos tão justos como
toda esta lei que eu hoje vos proponho? (Deuteronômio 4.5-8)

Terminarei este estudo pela exortação feita por Moisés na sequência do texto
acima, dirigido ao povo de Israel, que sem dúvida alguma também nos serve:
Tão somente guarda-te a ti mesmo e guarda bem a tua alma, que te não esqueças
daquelas coisas que os teus olhos têm visto, e se não apartem do teu coração
todos os dias da tua vida, e as farás saber a teus filhos e aos filhos de teus filhos.
(Deuteronômio 4.9)

Que isso aconteça conosco. Essa é minha oração. Amém!


Capítulo IX: O oitavo mandamento e sua aplicação em
Deuteronômio
INTRODUÇÃO
Nas nossas últimas exposições sobre o oitavo mandamento Não roubarás,
vimos que o texto que segue a formulação do Decálogo em Êxodo 20 possui
uma série de casos que explicam de maneira pontual e progressiva o sentido
e a esfera de aplicação das Dez Palavras da Lei de Deus. Vimos, também,
que havia certa ordem nas explicações dadas sobre essas Dez Palavras.
Assim, o que chamamos de Código da Aliança que está no livro de Êxodo,
segundo livro da Torá, pode ser considerado como um breve comentário
sobre os Dez Mandamentos. Notamos, também, que não podemos encontrar
nesse Código da Aliança uma ordem consecutiva que reflita exatamente a
sequência encontrada nas Dez Palavras. Isso, por duas razões.
Em primeiro lugar, se a lógica humana é um fenômeno universal, os
princípios que ordenam especificamente o pensamento bíblico — de caráter
semítico — não são os mesmos que conduzem o pensamento ocidental
moderno, dependente da lógica grega e romana, como também do culto às
“ideias claras e distintas” cartesianas e do pensamento científico moderno. O
pensamento hebraico (como da maior parte das culturas pré-modernas),
possuindo um caráter profundamente lógico, é ordenado muito mais pelas
afinidades de pensamento, por ressonâncias verbais poéticas — analógicas,
tipológicas, simbólicas e metafóricas — que por uma ordem essencialmente
lógica, historicamente sucessiva, que é própria da nossa cultura ocidental
moderna, de uma mentalidade que se manifesta, por exemplo, nos esforços
legítimos para formular as teologias sistemáticas.
Em segundo lugar, essa versatilidade do pensamento hebraico na
argumentação se deve ao respeito que tem pela realidade, certamente
ordenada por Deus de maneira racional, mas isso na perspectiva de uma
diversidade de lógicas complementares, que permitem constatar que os
elementos da criação foram ordenados de maneira diversa não somente entre
eles mesmos, mas também em relação a seu Criador. Como já destacamos,
para o pensamento hebraico, a realidade forma um todo, no qual as diferentes
partes não apenas se complementam entre si, mas se conectam umas às
outras. Podemos comparar essa forma de reflexão com o que encontramos
numa grande obra musical, por exemplo numa sinfonia, na qual a harmonia
da obra se faz pelo jogo entre os diferentes temas, que retornam por vezes
através de diversas variações, mas que, em seu conjunto, formam um todo
harmonioso, repleto de sentido musical. De uma certa maneira isso vale
também para as explicações do Decálogo que descobrimos no Código da
Aliança em Êxodo. Como constatamos por diversas vezes, é assim que cada
uma das diferentes Palavras do Decálogo trata de diversos aspectos de uma
mesma realidade moral e frequentemente essas Palavras se sobrepõem
mutuamente.
Encontramos todos esses princípios do Código da Aliança do livro de Êxodo,
no livro de Deuteronômio. A segunda formulação do Decálogo
(Deuteronômio 5.1-22), como sua primeira versão em Êxodo 20, é também
precedida por um relato histórico que descreve as circunstâncias nas quais
Deus entregou, numa segunda vez e pela mediação de Moisés, as Dez
Palavras para o povo de Israel. Depois disso, essa segunda formulação do
Decálogo é também seguida de diversos capítulos, nos quais o sentido dos
Dez Mandamentos é cuidadosamente explicado e situado no quadro amplo
do pensamento jurídico, político, histórico, ético e teológico da Bíblia,
revelada aos homens pelo divino Legislador e Ordenador do mundo, através
de casos cuidadosamente escolhidos. Aqui também encontramos uma ordem
certa, uma harmonia conceitual grandiosa, como numa bela e ampla partitura
musical. Mas, notemos que essa ordem não tem nenhuma relação com aquela
lógica unívoca e binária, cartesiana ou científica que se tornou simplista, em
razão de uma maior clareza racional. Porque não se trata de uma codificação
legal puramente lógica, como é o caso dos códigos jurídicos dedutivos
modernos, que respondem a critérios de uma coerência lógica, cuja tendência
visa uma simplificação, própria do racionalismo, que afeta nossa
modernidade. Esses sistemas jurídicos não levam em conta, como faz o
direito casuístico hebraico, a complexidade jurisprudencial das realidades
humanas e sociais de todos os tempos e lugares.
O primeiro a destacar a natureza particular dos capítulos 12 a 26 de
Deuteronômio, como comentários sobre o Decálogo, foi o erudito judeu
Stephen A. Kaufman, num importante artigo publicado em 1978 nos Estados
Unidos.[81] Descobri esse estudo quando aprofundei minhas pesquisas para
estas exposições sobre o oitavo mandamento. Mas já tinha conhecimento, há
algum tempo, dessa relação do Decálogo com o comentário que o segue no
livro de Deuteronômio, graças a um estudo que Daniel Arnold, então
professor no Instituto Emaús de Saint-Légier,[82] deu no Cercle de Réflexion
Biblique [Círculo de reflexão bíblica] de Vevey, quando fiquei muito
impressionado com sua demonstração. Eu não conhecia ainda a fonte
hebraica dessa análise tão esclarecedora. Essa maneira de interpretar a
sequência disposta nos capítulos 12 a 26 de Deuteronômio se tornou
relativamente corrente graças aos trabalhos que Walter Kaiser dedicou ao
Antigo Testamento, particularmente em sua obra Toward Old Testament
Ethics [Rumo a uma ética do Antigo Testamento].[83]
Devemos notar que a divisão das passagens em Deuteronômio, explicando
cada um dos mandamentos, varia de acordo com o comentarista. Pelas razões
expostas acima, consideramos tal diversidade na divisão dos capítulos como
normal.[84]
Se o esquema geral de interpretação de Kaufman, Kaiser e outros exegetas
dos capítulos 12 a 26 de Deuteronômio nos parece totalmente apropriado, no
entanto a ele não devemos aderir de maneira estrita, muito rígida, porque as
aplicações práticas dos mandamentos são múltiplas e se sobrepõem com
frequência umas às outras. Portanto, é preciso seguir o texto de maneira
cuidadosa, extraindo de seu conjunto tudo que poderá nos ajudar para
compreender melhor os mandamentos do Decálogo. Assim devemos
proceder em relação ao Código da Aliança do livro de Êxodo; essa será
também nossa abordagem no estudo da oitava Palavra do Decálogo, através
da explicação que lhe dá o livro de Deuteronômio.
Este é o esquema para o conjunto do Decálogo proposto por Stephen
Kaufman, para interpretar os capítulos 12 a 26 de Deuteronômio, que foram
totalmente retomados por Walter C. Kaiser.
Deuteronômio 5.6-10 — 1ª e 2ª Palavras — Comentário: Deuteronômio 12.1-
31: Culto.
Deuteronômio 5.11 — 3ª Palavra — Comentário 13.1 a 14.27: Nome de
Deus.
Deuteronômio 5.12-15 — 4ª Palavra — Comentário 14.28 a 16.17: Sábado.
Deuteronômio 5.16 — 5ª Palavra — Comentário 16.18 a 18.22: Autoridade.
Deuteronômio 5.17 — 6ª Palavra — Comentário 19.1 a 22.8: Homicídio.
Deuteronômio 5.18 — 7ª Palavra — Comentário 22.19 a 23.18: Adultério.
Deuteronômio 5.19 — 8ª Palavra — Comentário 23.19 a 24.7: Roubo.
Deuteronômio 5.20 — 9ª Palavra — Comentário 24.8 a 25.4: Falso
testemunho.
Deuteronômio 5.21 — 10ª Palavra — Comentário 25.5-16: Cobiça.
De nosso ponto de vista moderno — que claramente não é o mesmo daquele
legislador do Oriente Médio chamado Moisés — um certo número de casos
incluídos nesse esquema aparentemente não tem muita relação com o
mandamento específico do Decálogo ao qual deveria referir-se. Stephen
Kaufman nos explica como devemos proceder para integrá-los na estrutura
desses capítulos de Deuteronômio, levando em conta os princípios que
determinaram o surgimento do direito nas diversas civilizações do Oriente
Médio Antigo e que encontramos, mais especificamente, na Torá, revelada
por Deus a Moisés, por volta do ano 1400 antes de Jesus Cristo. Ele definiu
cinco princípios gerais, próprios desse tipo de interpretação do direito:
Princípio 1: As leis, sem dúvida com origens variadas, foram agrupadas de
acordo com os títulos gerais.
Princípio 2: Em cada seção que forma um todo, uma unidade, as leis foram
ordenadas de acordo com princípios de prioridade bem definidos: em geral os
casos mais importantes foram colocados primeiro.
Princípio 3: As leis particulares e as seções maiores nas quais se encontram
foram ajustadas segundo um método particular do Oriente Médio Antigo, isto
é, o de encadeamento de ideias, de palavras, de frases chave e de outros
motivos semelhantes.[85] Isso tinha como alvo fornecer o que, aos olhos e
ouvidos dos antigos, era visto como transições entre os subgrupos de leis e,
frequentemente, entre os próprios grupos principais. Esse método, próprio do
pensamento semítico, foi comumente considerado como sendo o da “livre
associação de ideias”, mas tratava-se na realidade de um procedimento
literário cuidadosamente pensado e que está longe de ser algo deixado ao
sabor da livre fantasia do jurista.
Princípio 4: As unidades principais foram ordenadas segundo a ordem que
corresponde aos mandamentos do Decálogo que lhes dizem respeito.
Princípio 5: Consequentemente, os Mandamentos do Decálogo, estando já
em vigor, não deviam ser necessariamente reproduzidos nas explicações da
lei dadas em Deuteronômio,[86] o último livro do Pentateuco.
O excelente comentarista do Antigo Testamento, Walter Kaiser, em seguida a
Kaufman, escreveu:
Estou persuadido de que o Decálogo fornece a estrutura necessária para que esse
trecho de Deuteronômio seja compreendido. Na verdade, o segundo discurso de
Moisés inteiro (Deuteronômio 5 a 26) forma uma unidade literária que
demonstra, de maneira convincente, que a lei moral divina [o Decálogo] estrutura
os estatutos, as ordenanças (mishpatim) e os mandamentos de Deus.[87]
Agora é hora de considerarmos o ensino que nos dá o livro de Deuteronômio
sobre o sentido jurídico e moral do oitavo mandamento.

A explicação de Deuteronômio capítulo 23.19 a 24.7 sobre o oitavo


mandamento Não roubarás (Deuteronômio 5.19)
À medida que lemos o texto, vamos comentando. Vejamos como Stephen
Kaufman resume as seis subseções da nossa passagem.
(A) (23.19-20) Ao estrangeiro emprestarás com juros, porém a teu irmão não
emprestarás com juros, para que o SENHOR, teu Deus, te abençoe em todos os
teus empreendimentos.
(B) (23.21-23) Os votos feitos a Deus devem ser sempre honrados.
(C) (23.24-25) A liberdade de ação dos homens tem um limite estrito que
impede a apropriação da colheita de seu vizinho.
(D i) (24.1-4) A lei estabelece limites à prática do divórcio e novo
casamento.
(D ii) (24.5) Quando um homem toma uma mulher em casamento, fica
dispensado do serviço militar durante um ano e de toda obrigação exterior à
sua vida familiar para alegrar a mulher que desposou.
(E) (24.6) Jamais a mó do moinho pode ser tomada do pobre por garantia,
pois isso seria apossar-se da vida do próximo.
(F) (24.7) Se um homem inutilizou seu irmão israelita e o reduziu à
escravidão, o culpado será sentenciado à morte. O mal moral tem de ser
eliminado da vida do povo tanto quanto a lepra (altamente contagiosa) tem de
ser afastada da vida da comunidade (24.8-9).
Kaufman ressalta o caráter bastante diverso desse conjunto de leis. À
primeira vista, essas leis pouco têm a ver com o roubo. Os parágrafos (A)
sobre juros, (B) sobre os votos e (C) relativo à posse da colheita do próximo,
correspondem claramente ao mandamento que proíbe o roubo. Os parágrafos
relativos (E) à proibição de se tomar como garantia o que é essencial para a
sobrevivência de um trabalhador e (F) à inutilização de um homem para fazê-
lo escravo, podem igualmente ser vistos como uma transgressão do oitavo
mandamento. Mas, o que dizer do (D i) divórcio e (D ii) do impedimento ao
novo casal de gozar da alegria inicial do casamento? Que ligação há nisso
com a proibição do roubo? Como explicar a introdução aqui de dispositivos
legais que não têm nada a ver, aparentemente, com o roubo? Alguns têm
visto nisso uma interpolação tardia. Kaufman rejeita essa crítica reducionista
do texto e procura aplicar as regras formuladas por ele mesmo, as quais
acabamos de descrever. Vejamos como elas procedem:
(C) Diz respeito ao fato de se tomar posse, de maneira abusiva, da colheita do
vizinho. O divórcio tem também por efeito privar (por um roubo conjugal) a
esposa da fonte de sua fecundidade humana.
Isso explicaria (D i), o qual regulamenta o resultado de tais infidelidades
conjugais (formas de roubo), o divórcio.
(D ii) Trata da vida sexual de um casal recém-casado. Sua alegria não pode
ser roubada pela convocação para o campo de batalha. O amor conjugal pode
muito bem ser comparado à questão do ponto seguinte.
(E) Diz respeito às duas mós, absolutamente indispensáveis para moer grãos,
o que simbolicamente corresponderia ao marido e à mulher — como as duas
mós — indispensáveis também à alegria e fecundidade conjugais. As duas
pedras de mós colocadas uma sobre a outra são uma imagem muito comum e
descrevem a união conjugal.
Kaufman resume seu argumento assim:
A estrutura única dessa seção agora torna-se clara. Trata-se, em primeiro lugar, do
roubo da propriedade (parágrafos A, B, C); em seguida o roubo da vida em termos
metafísicos (parágrafos D e E). O roubo da vida implica o fato de que o marido, pelo
divórcio, priva sua esposa do dever conjugal que lhe deve, como também do respeito
devido à mulher repudiada. Como vimos antes — acrescenta Kaufman — o
parágrafo A está vinculado ao último parágrafo da seção precedente que trata do
adultério (e mais especificamente da prostituição); o parágrafo B depende do
parágrafo A no sentido de que os dois referem-se ao pagamento de obrigações
financeiras. Os parágrafos C a E formam uma unidade, como acabamos de ver, e F (o
roubo de pessoas) foi colocado no fim dessa seção por constituir uma transição para o
parágrafo seguinte.[88]
Vamos, agora, brevemente examinar os diferentes pontos levantados por
nossa passagem. São estes:
A. Empréstimo a juros (23.19-20)
B. Votos e contratos (23.21-23)
C. Respeito pela propriedade privada (23.24-25)
D (i) O divórcio — Respeito aos direitos da mulher divorciada (24.1-4)
D. (ii) O casamento — Respeito aos direitos da nova família (24.5)
E. Garantias mortais (24.6)
F. Roubo de pessoas (24.7)

A. Empréstimo a juros (23.19-20)


A teu irmão não emprestarás com juros, seja dinheiro, seja comida ou qualquer
coisa que é costume se emprestar com juros. (Deuteronômio 23.19)
O ensino é muito claro. Nenhum juro deve ser exigido nas relações
comerciais entre irmãos israelitas. A lista é exaustiva e não permite nenhuma
exceção. Na comunidade da aliança, a caridade deve responder às
necessidades das pessoas com dificuldade financeira, ou seja, nenhuma
relação comercial nem a assistência de um Estado pretensamente
providencial. Encontramo-nos aqui no coração do pensamento divino sobre o
propósito aliancial de Deus para com os homens. Em caso de necessidade os
empréstimos são possíveis e têm duas características.
(a) No sétimo ano tornam-se nulos; portanto, têm um caráter muito limitado
no tempo.
(b) Não devem ser concedidos a juros.
Portanto, abusar da fraqueza econômica temporária de um irmão, para disso
fazer uma fonte de lucro para si, é terminantemente proibido.
Rushdoony faz o seguinte comentário sobre essa passagem:
Os homens não estão normalmente dispostos a fazer caridade com seu dinheiro.
Essa recusa em ser generosos os conduz a uma atitude de isolamento e a pensar
somente em seus próprios interesses. Deus, aqui, combate duramente essa
tendência ao individualismo quando ordena ao povo da aliança que seja generoso
ao emprestar sem juros, a fim de responder às necessidades de seus irmãos na
aliança que são necessitados.[89]
E acrescenta:
O pensamento que anima a aliança leva a que todos se considerem como sendo
membros uns dos outros. Um pensamento cristão que rejeitasse a importância
que a aliança dá à vida dos fiéis, limitaria a religião a nada mais que uma simples
relação pessoal individual com Deus. Mas o pensamento aliancial não separa
nossa relação com Deus de nossos relacionamentos com os irmãos e dessa forma
não isola nossa fé da comunidade da aliança.[90]

E conclui:
Estando separados do Deus vivo, os homens pecadores [aqueles que estão fora da
aliança da graça] se isolam cada vez mais uns dos outros. A via verdadeira é
como uma avenida de mão dupla. Aquele que dá, encontra seu próximo no
caminho da vida e toma consciência de suas necessidades; sua ajuda torna-se
então um ato de graça, sinal de gratidão aliancial pelas bondades recebidas de
Deus. Aquele que recebe, sabe bem que Deus é o senhor tanto daquele que dá
como do dom recebido, o que particularmente exclui o empréstimo a juros. Ao
aceitar essa graça, aquele que recebe a ajuda mostra seu reconhecimento.[91]

Mas quanto ao estrangeiro, a atitude do israelita é diferente:


Ao estrangeiro emprestarás com juros. (Deuteronômio 23.20a)

Não vamos examinar aqui a questão geral da legitimidade ou não do


empréstimo a juros — assunto que deixamos para um capítulo futuro — mas
desejamos somente indicar que o texto faz uma distinção clara entre o
“irmão” e o “estrangeiro”. Essa distinção é frequentemente esquecida.
Preferimos “o amor ao que está longe” (a caridade à distância) ao “amor ao
que está perto”, ao fato concreto de responder às necessidades reais do
próximo, particularmente na família e na igreja. É disso que trata aquela frase
lapidar dita pelo apóstolo Paulo a Timóteo:
Se alguém não cuida dos seus, sobretudo de sua família, negou a fé e é pior que
um incrédulo. (1 Timóteo 5.8)

É por se entregar a esse espírito de avareza que muitas igrejas — na França e


em outros lugares — dão salários miseráveis a seus pastores, resumindo-se ao
salário mínimo do SMIC! Como Deus pode abençoar tal avareza? Moisés
rejeitou esse espírito egoísta, individualista, avarento, quando disse,
[...], porém a teu irmão não emprestarás com juros, para que o SENHOR, teu Deus,
te abençoe em todos os teus empreendimentos [...]
A razão disso é clara. Se a taxa de juros, cobrada mecanicamente sobre uma
dívida, é uma forma de assegurar para si mesmo um lucro sem produtividade
real, que está fora da esfera viva das bênçãos divinas da aliança, o mesmo
não vale para o exercício da generosidade, que é sinal de produtividade,
criatividade, bondade e amor ao próximo, o espírito de caridade que provoca
a ação abençoadora da graça de Deus tanto sobre o que é generoso como
sobre o beneficiado por essa liberalidade.
[...] para que o SENHOR, teu Deus, te abençoe em todos os teus empreendimentos
na terra a qual passas a possuir. (v. 20)

Que o mesmo aconteça conosco. Sejamos, então, generosos através de nossos


bens e dons, tanto naturais como sobrenaturais, que recebemos de Deus e
provaremos sua benevolência e fidelidade de diversas formas. Bem-
aventurados, nos fala o Sermão do Monte, os pobres de espírito — são
aqueles, entre outras coisas, que distribuem constantemente ao próximo o que
têm recebido — porque deles é o Reino de Deus, isto é, a presença constante
do Espírito Santo. Em sua pobreza, renovada constantemente por Deus,
permanecem cheios do Espírito Santo.[92]
Conclusão: é financeiramente (e espiritualmente) desastroso construir uma
economia, seja coletiva ou pessoal, tendo como alvo unicamente a obtenção
do máximo benefício! Notem como o rei Davi, o cantor de Israel, reúne
maravilhosamente bem, no salmo 15, todas essas realidades morais e sociais,
celestiais e terrestres, num belo buquê santo e harmonioso:
Quem, SENHOR, habitará no teu tabernáculo? Quem há de morar no teu santo
monte? O que vive com integridade, e pratica a justiça, e, de coração, fala a
verdade; o que não difama com sua língua, não faz mal ao próximo, nem lança
injúria contra o seu vizinho; o que, a seus olhos, tem por desprezível ao réprobo,
mas honra aos que temem ao SENHOR; o que jura com dano próprio e não se
retrata; o que não empresta o seu dinheiro com usura, nem aceita suborno contra
o inocente. Quem deste modo procede não será jamais abalado.
E o príncipe dos apóstolos não diz outra coisa:
Porque estas coisas [todas as virtudes que Pedro acabou de enumerar], existindo
em vós e em vós aumentando, fazem com que não sejais nem inativos, nem
infrutuosos no pleno conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo [o nosso
conhecimento próprio e daqueles que nos escutam]. Pois aquele a quem estas
coisas não estão presentes é cego, vendo só o que está perto, esquecido da
purificação dos seus pecados de outrora. Por isso, irmãos, procurai, com
diligência cada vez maior, confirmar a vossa vocação e eleição; porquanto,
procedendo assim, não tropeçareis em tempo algum. Pois desta maneira é que
vos será amplamente suprida a entrada no reino eterno de nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo. (2 Pedro 1.8-11)

B. Votos e contratos (23.21-23)


Vamos, agora, ao segundo ponto de nosso texto, que trata da fidelidade aos
votos pelos quais somos responsáveis diante de Deus e do nosso próximo.
Como veremos, isso implica, primeiramente, nossa fidelidade tanto para com
Deus como para conosco e nosso próximo, uma lealdade espiritual e humana
que estabelecemos ao manter a palavra que empenhamos a outro.
Quando fizeres algum voto ao SENHOR, teu Deus, não tardarás em cumpri-lo;
porque o SENHOR, teu Deus, certamente, o requererá de ti, e em ti haverá pecado
(verso 21).

Como vimos várias vezes em nosso estudo da lei, em geral ela nos apresenta,
primeiramente, o caso mais importante. Foi o que vimos, por exemplo, em
nossas exposições sobre o terceiro mandamento, Não tomarás o nome do
Senhor, teu Deus, em vão (Êxodo 20.7). O compromisso mais elevado que
um homem pode ter é com Deus. Através de um voto solene, ele se
compromete com Deus a cumprir o prometido, como reconhecimento por
uma libertação ou em razão de um pedido de oração ou de uma súplica. A
prática desses votos e sua aplicação concreta é o sinal de que aqueles que se
comprometem possuem um forte senso da proximidade imanente de Deus em
suas vidas quotidianas. O distanciamento de nossa civilização em relação a
Deus foi o que levou ao quase desaparecimento da prática desses votos. Para
fazer tal voto é preciso crer verdadeiramente no Deus da Providência e não
naquela necessidade sobre a qual a ciência e a técnica estão fundamentadas.
Então, como esse mandamento se relacionaria com as questões econômicas?
Se o voto solene de um homem é a forma mais elevada de empenhar sua
palavra diante de alguém, por outro lado há outras formas de “votos”, de
menor gravidade, que são de importância vital para a vida comum e, em
particular, em nossas relações comerciais, ou seja, o respeito estrito aos
contratos e às palavras empenhadas. Onde essas duas coisas faltam, as
relações comerciais tornam-se difíceis e terminam frequentemente em litígios
diante dos tribunais.
O texto indica, entretanto, que tais votos e contratos ou compromissos feitos
através da palavra empenhada, em casos específicos, não são de maneira
alguma obrigatórios. Podemos deles nos abster.
Porém, abstendo-te de fazer o voto, não haverá pecado em ti. (v. 22)

Mas, se fizermos um voto, quando um contrato é estabelecido, quando damos


nossa palavra e fazemos uma aliança com alguém — como no casamento —
temos de honrar o voto e manter a palavra:
O que proferiram os teus lábios, isso guardarás e o farás, porque votaste
livremente ao Senhor, teu Deus, o que falaste com a tua boca. (v. 23)

Christopher Wright, em seu excelente comentário sobre Deuteronômio,


escreveu:
O princípio de honrar, ou seja, de cumprir o que seus lábios proferiram está restrito aos
votos feitos explicitamente a Deus, em momentos de dificuldades ou por libertação. A falta
de fidelidade em suas promessas é um pecado grave, em particular para aqueles que se
dizem cristãos, porque isso transgride o terceiro e nono mandamentos.[93]

Trata-se de não tomar o nome de Deus em vão; de não dar falso testemunho;
de abandonar o jogo duplo; de não fraudar seu próximo. A aplicação à vida
dos negócios é evidente. Como os relacionamentos humanos (locais e
internacionais) seriam mais fáceis e claros se cada pessoa se empenhasse em
manter sua palavra! O Senhor Jesus Cristo a esse respeito é preciso:
Seja, porém, a tua palavra: Sim, sim; não, não. O que disto passar vem do
maligno. (Mateus 5.37)

Essa fidelidade do cristão à palavra empenhada nos negócios, em meio a


tubarões e chacais que, de sua parte, não mantêm a palavra, exige que se
espere, constantemente, na direção e proteção do Deus fiel e abençoador da
aliança. Porque Deus se agrada em abençoar e a guardar os filhos que nele
confiam, em obediência constante a seus mandamentos santos, justos e bons.
Isso é particularmente verdade no que diz respeito às ações dos cristãos no
mundo dos negócios.

C. O respeito à propriedade privada (23.24-25)


Uma das bases de uma economia sadia é o respeito aos contratos, o respeito à
palavra empenhada, a garantia de segurança nos compromissos comerciais.
Outra base, também importante, é a inviolabilidade da propriedade privada.
Esse é o assunto do nosso próximo caso. A propriedade privada ou
comunitária, que é defendida firmemente no oitavo mandamento, é um dom
divino que, como o sábado, foi ordenado para o bem dos homens. Cristo se
dirige aqui aos fariseus, que reprovavam seus discípulos por colherem
espigas para alimento no dia de descanso:
E acrescentou: O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem
por causa do sábado. De sorte que o Filho do homem é senhor do sábado.
(Marcos 2.27)

Dito de outra forma: o homem é submetido, de maneira absoluta, ao direito


do proprietário? Ou a administração da propriedade dada por Deus aos
homens deve também servir ao bem comum, ao conjunto da comunidade.
Vejamos a resposta que dá a lei divina:
Quando entrares na vinha do teu próximo, comerás uvas segundo o teu desejo,
até te fartares, porém não as levarás no cesto.
Quando entrares na seara do teu próximo, com as mãos arrancarás as espigas;
porém na seara não meterás a foice. (v. 24 e 25)

Notemos o que afirmam essas duas aplicações casuísticas do 8º mandamento:


1) A vida econômica pertence a Deus e deve ser administrada segundo suas
leis, conforme a ordem criacional, moral e jurídica estabelecida por ele. Uma
economia sem as leis divinas é uma economia sem regras, anárquica, fora de
todo controle, estéril e finalmente autodestrutiva.
2) Todo crescimento verdadeiro (da vinha, do trigo), antes de ser o fruto de
nosso trabalho, é uma bênção de Deus. O homem tem, então, de administrar
os bens que recebeu de Deus, segundo as normas estabelecidas por ele.
3) As necessidades vitais — matar a fome, por exemplo — são uma
prioridade, mas não se deve infringir nem lesar o direito do proprietário do
campo de gozar plenamente do fruto de seu trabalho.
4) O proprietário não detém o direito absoluto sobre os bens que Deus lhe
confiou. Deus é o proprietário absoluto de sua própria criação. O homem
apenas a administra. O que aqui a lei autoriza é uma transgressão aparente ao
direito de propriedade sobre os produtos da terra; neste caso essa lei é violada
para matar a fome dos viajantes. As necessidades dos homens são então
colocadas, em certa medida, acima dos direitos “sagrados” da propriedade
privada. Esse costume era conhecido, até pouco tempo, no meio rural do
cantão de Vaud. Lá era possível colher os frutos que se conseguisse comer
enquanto estivesse na propriedade. Os Evangelhos testemunham tal prática
na Israel dos tempos de Jesus:
Por aquele tempo, em dia de sábado, passou Jesus pelas searas. Ora, estando os
seus discípulos com fome, entraram a colher espigas e a comer. (Mateus 12.1)

5) O texto de Deuteronômio é muito claro: o viajante pode colher os frutos ou


pegar algumas espigas para matar sua fome, mas não tem o direito de
recolher o fruto do trabalho de outro. Ele não pode levar seu sexto na vinha
para carregar fraudulosamente o que colheu, isto é, vindimar o campo por sua
própria conta; ele não pode meter a foice no campo de trigo e colher o que
não é fruto do seu trabalho. Isso, nos diz Moisés, seria roubo.
Vemos, novamente, o equilíbrio extraordinário que há na Lei de Deus. Ela
rejeita a doutrina “liberal” ou “capitalista” da propriedade absoluta fundiária
de utilizar as terras para seu benefício exclusivo. Ela afirma que, num
sentido, a colheita é uma provisão divina para todos aqueles que passam
pelas vinhas, pelos pomares e campos de trigo. Esse princípio é retomado
pelo direito dos pobres de colher. Mas a Torá atribui ao homem do campo,
àquele que trabalhou com o suor de seu rosto para produzir a colheita, a
propriedade primeira do fruto de seu trabalho. Ela legalmente protege esse
direito e se opõe, de maneira absoluta, a todo confisco de terra por um Estado
socialista ou comunista que se vê como a encarnação ideológica da
providência sobre a terra, visando uma equalização ilusória das riquezas.
Rousas Rushdoony nos permite, novamente, perceber o espírito realista e
benigno da Lei de Deus, ao escrever:
Esta lei não dá a ninguém o direito de tomar o que se encontra no campo de seu
próximo. Somente os viajantes famintos que passavam podiam tomar uma
quantidade bastante limitada do que havia sido produzido nesse campo. Nada
podia ser levado. O proprietário não devia ter sua colheita dilapidada por roubos.
[...] Comer do campo de outro era, portanto, um privilégio [uma lei excepcional].
Não era um direito [...]. Essa lei, juntamente com outros estatutos de Êxodo e
Deuteronômio, foi chamada, muito justamente, de “lei de misericórdia”. Os que,
insistentemente, consideram a lei de Deus dura e inflexível apenas mostram sua
ignorância. Do começo ao fim, a lei de Deus inclui inúmeros mandamentos que
exigem que pessoas muito diversas — membros da aliança ou estrangeiros —
sejam tratadas com generosidade e que sejam assistidas em suas necessidades
com benevolência.[94]

D (i) O divórcio — Respeito aos direitos da mulher divorciada (24.1-4)


Se um homem tomar uma mulher e se casar com ela, e se ela não for agradável
aos seus olhos, por ter ele achado coisa indecente nela, e se ele lhe lavrar um
termo de divórcio, e lho der na mão, e a despedir de casa; e se ela, saindo da sua
casa, for e se casar com outro homem; e se este a aborrecer, e lhe lavrar termo de
divórcio, e lho der na mão, e a despedir da sua casa ou se este último homem, que
a tomou para si por mulher, vier a morrer, então, seu primeiro marido, que a
despediu, não poderá tornar a desposá-la para que seja sua mulher, depois que foi
contaminada, pois é abominação perante o SENHOR; assim, não farás pecar a terra
que o SENHOR, teu Deus, te dá por herança. (Deuteronômio 24.1-4)

Como já tratamos esse texto longamente em nossos estudos dedicados ao


sétimo mandamento, não iremos agora considerá-lo em seus detalhes, mas
faremos apenas algumas breves observações. Vimos que essa lei (e a
seguinte) deveria, naturalmente, estar sob a tutela do sétimo mandamento
que, ao penalizar o adultério severamente, defende a família. Então, por que
foram colocadas aqui na explicação do oitavo mandamento, que diz respeito
ao roubo? Kaufman nos mostrou as ligações de encadeamento das ideias, das
palavras, das frases chave e dos motivos que estruturam nosso texto. A seção
precedente nos falava do roubo do produto da terra, do abuso de sua
fecundidade. Este parágrafo fala do roubo da fecundidade de uma esposa
perpetrado pelo marido que a rejeita. A lei sobre o divórcio procura
regulamentar e limitar tais abusos por parte dos maridos egoístas e cruéis.
O ponto seguinte (D ii) trata da proteção divina da verdadeira riqueza do
casamento, não permitindo que se roube do casal a intimidade no primeiro
ano de vida conjugal, tão importante para a consolidação de uma família
sadia, fértil, vigorosa e plenamente humana. Vemos assim, que a noção de
roubo tem um sentido mais extenso no pensamento hebraico do que no nosso.
De fato, nós, “os modernos”, temos apenas aquela maneira mecânica,
mercantil e utilitária de ver as coisas.
A lei anterior nos mostrou como, de diversas maneiras, um casamento era
destruído. Às vezes, por um problema na mulher, mas sobretudo pela atitude
deplorável do marido que tratava sua esposa como um objeto, do qual podia
descartar à vontade por “qualquer coisa inconveniente” que nela tivesse
encontrado ou imaginado. Em seguida, a esposa era tratada como um objeto
vulgar, por homens diversos, que desprezavam totalmente seus votos e o
contrato devidamente firmado pela palavra dada e a própria aliança do
casamento como sendo um monte de “pedaços de papel”. No entanto, a
esposa devia ser protegida contra o risco de abusos mais graves ainda. Não
era possível, ao primeiro marido, injuriá-la a ponto de novamente casar-se
com ela depois de havê-la rejeitado, ainda que seu segundo marido tivesse
morrido ou dela tivesse abusado tanto quanto o primeiro e em seguida a
tivesse rejeitado. O último aspecto da nossa lei diz que há um limite não
somente para os abusos cometidos por maridos egoístas e irresponsáveis, mas
também perpetrados contra a aliança divina, da qual o casamento é o sinal
visível. Por essa atitude — retomar uma esposa que havia sido previamente
rejeitada, ato pior que a primeira rejeição — a própria instituição do
casamento teria sido totalmente aviltada.

D (ii) O matrimônio — Respeito aos direitos da nova família (24.5)

O ponto seguinte nos mostra um mandamento que apoia fortemente a


consolidação da união entre marido e mulher desde os seus primeiros
começos. Leiamos:
Homem recém-casado não sairá à guerra, nem se lhe imporá qualquer encargo;
por um ano ficará livre em casa e promoverá felicidade à mulher que tomou.
(Deuteronômio 24.5)

O casal não pode ser roubado de sua maior riqueza, isto é, da fecundidade
que está na base da consolidação de sua união conjugal enquanto família.
Sabemos que os primeiros anos de uma criança são decisivos para a formação
de seu caráter. O mesmo vale para um casal. No primeiro ano de vida
conjugal, no qual as bases da futura família são assentadas, não é bom que (a)
o serviço militar ou (b) qualquer encargo público roube da família o tempo
que deve ser consagrado à construção dos fundamentos sólidos do casamento.
E assim percebemos o alcance do oitavo mandamento. Portanto, a proibição
do roubo inclui o impedimento de que o casal seja privado desse tempo
precioso, na verdade insubstituível, reservado à sua constituição primeira. No
texto há duas razões para essa isenção do marido de todo serviço militar e do
exercício de qualquer encargo público em seu primeiro ano de casamento:
1) A primeira é “em razão da família”. A edificação da família, nas melhores
condições possíveis, é considerada, pela lei de Deus, como uma riqueza —
um capital — inestimável. A família, no pensamento bíblico, tem prioridade
sobre as responsabilidades militares e públicas.
2) A segunda razão mostra a profundidade e a delicadeza de sensibilidade
afetiva e moral do legislador bíblico. Lemos aqui que, durante o primeiro ano
do casamento, o marido deve permanecer em casa para “alegrar a mulher que
tomou”. Essa alegria, na qual se empenha e usa esse tempo para oferecê-la à
esposa, redundará em bênçãos para o casal e para a família. Por outro lado, se
essa alegria estiver ausente, males futuros sobrevirão.

E. Garantias mortais (24.6)


Nosso próximo caso não diz respeito mais à destruição da unidade conjugal e
sua fecundidade, mas à destruição de seus meios de subsistência.
Não se tomarão em penhor as duas mós, nem apenas a de cima, pois se
penhoraria, assim, a vida. (Deuteronômio 24.6)

Trata-se aqui de pôr freio nas leis pretensamente “científicas” de uma


economia amoral, fundamentada unicamente na luta entre interesses
comerciais e financeiros, individualistas e reducionistas. Qual o pano de
fundo dessa lei?
Uma família se empobrece e tem de emprestar algum dinheiro para
sobreviver. Dela então se exige uma garantia que cubra essa dívida. Cada
família possuía um pequeno moinho para moer os grãos necessários para
fazer o “pão de cada dia” (Deuteronômio 24.6). Esse moinho doméstico era
feito de duas peças de pedra sobrepostas. A mó inferior era fixa e a superior
era móvel, para que no seu movimento os grãos fossem triturados. O credor
não podia, em nenhum caso, tomar como garantia essa mó doméstica
superior, instrumento absolutamente necessário para a sobrevivência da
família. Porque ao tomar a mó superior, que era facilmente destacável, o
moinho ficava totalmente inutilizado.
As garantias por dívidas são legítimas, mas não em prejuízo da sobrevivência
da família endividada. É exatamente isso que faz a política de ajuda aos
pobres, cheia de interesses e hipocrisia, que encontramos num bom número
de ONGs pelo mundo afora, que nada mais é que um disfarce para encobrir
interesses políticos e econômicos internacionais tão detestáveis. Dá-se aos
menos favorecidos uma ajuda temporária que os priva de sair da situação por
si mesmos. Por exemplo, ao lhes fornecer sementes de cereais que não podem
ser reproduzidas! Christopher Wright explica bem o significado dessa lei
mosaica:
Essa lei protege os pobres — obrigados a contrair empréstimos — de condições
que agravariam sua situação mais do que a melhorariam.[95]

F. O roubo de pessoas (24.7)


Chegamos no ponto culminante de todas as transgressões possíveis do oitavo
mandamento Não roubarás. Trata-se do roubo de seres humanos, em geral
para escravizá-los. Hoje diríamos: “Para fazer deles escravos sexuais” ou
“para retirar de seus corpos destruídos alguns órgãos aproveitáveis, para
habitantes das regiões ricas do planeta”. Trata-se aqui do único gênero de
roubo que a Torá pune com a pena de morte. A razão disso é que o objeto sob
ataque — o homem, a mulher, a criança — foi criado à imagem de Deus.
Vimos, em outras exposições, que a pena de morte era aplicada em Israel
unicamente nos casos de ataques diretos ou indiretos contra Deus e contra sua
imagem: o homem e a família.
Se se achar alguém que, tendo roubado um dentre os seus irmãos, dos filhos de
Israel, o trata como escravo ou o vende, esse ladrão morrerá. Assim, eliminarás o
mal do meio de ti. (Deuteronômio 24.7)

Os irmãos de José foram culpados desse crime quando o venderam como


escravo ao Egito. Foi esse mesmo crime que mais tarde cometeram os judeus,
quando compraram o Santo de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, pelo preço
exato de um escravo, trinta peças de prata, dinheiro dado ao patrono dos
ladrões, Judas Iscariotes, para levar o Messias de Israel à morte. Também é
desse crime que todos nos tornamos culpados, fazendo com que fosse
necessário — por causa dos nossos pecados e para realizar nossa salvação —
a venda como um escravo vil, seguida do assassinato, de nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo. Lembremos que o roubo de pessoas era praticado pelo
Estado monárquico, numa Inglaterra dita “cristã”, para fornecer, por meio da
força, marinheiros para a marinha de guerra que mantinha a força do Império
Britânico. Os cristãos huguenotes sofreram na França algo parecido ao serem
roubados pelas tropas do Rei — chamadas de “dragões” — para utilizar seus
braços como remadores nas galés reais. Na Suíça, muitos batistas, nos
séculos 17 e 18, foram presos e vendidos aos turcos pelas autoridades de
Berna, nos mercados de escravos de Gênova e Veneza, para remarem nas
galés otomanas. Os árabes, por muitos séculos, roubaram os negros, cativos
das guerras entre tribos, por toda a África Central, para em seguida vendê-los
na costa, aos comerciantes de escravos que forneciam mão de obra servil às
colônias da América e outras. Hoje ainda, o roubo de pessoas (e até de
crianças) alimenta o mercado de trabalho, o mercado sexual e de órgãos
humanos, tão cobiçados por aqueles que desejam viver por mais tempo à
custa da vida do próximo.
Terminamos com uma citação tirada do excelente comentário de Peter
Craigie relativa ao livro de Deuteronômio:
Roubar a vida — esse crime é um assassinato econômico e social, porque ainda
que a vítima não morra literalmente, ao ser vendida como escrava ela é
efetivamente cortada da família da aliança divina. Isso explica a severidade da
pena: a morte! Arrancar um homem da comunidade da aliança era o mesmo que
cortar sua parte da bênção de seu povo, na terra da promessa.[96]
Todos nós nos vendemos como escravos do diabo em razão do nosso pecado.
Foi pela vitória poderosa e eterna do nosso grande libertador Jesus Cristo
sobre o senhor de toda a escravidão, o diabo, que fomos comprados e feitos
livres. Demos-lhe a glória por tal obra de libertação, marchando fielmente em
todos os mandamentos que ele nos ensinou em sua Santa Lei-Palavra, por
Jesus Cristo e pela força que nos dá o Espírito Santo.
Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada no
céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em
nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as
coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à
consumação do século. (Mateus 28.18-20)
Amém.
Capítulo X: A usura (1)

INTRODUÇÃO
Tentaremos ver agora a aplicação concreta do mandamento “Não roubarás”
no âmbito dos negócios e das finanças. Mais especificamente, procuraremos,
nos próximos capítulos, determinar o ensino da Lei divina sobre três pontos:
(a) a usura ou o empréstimo a juros; (b) os pesos e balanças falsos, ou a
falsificação da moeda; (c) os diversos dízimos bíblicos.
No meio cristão atual é bastante incomum procurar aplicar as injunções da lei
de Deus na esfera pública.
Este é um aspecto da modernidade: a moral e a espiritualidade pertencem à
esfera pessoal, privada; a esfera pública foi abandonada ao jogo das forças
presentes, ou seja, foi privada da autoridade normativa da lei divina, lei
transcendente — vinda de Deus e que reflete a ordem que ele deu à criação
— e imanente, que nos revela também a própria ordem criacional, a ordem da
natureza e das criaturas. Essa lei divina revelada é perfeita e normativa; a lei
criacional, que dá ordem à natureza, agora imperfeita devido à desordem
produzida pelos efeitos do pecado sobre toda a criação, é reflexo da lei
divina.
Entretanto, no que concerne à prática do direito, hoje se afirma — no que
costumamos chamar de positivismo jurídico, fruto de um longo processo
histórico — que existe apenas uma lei legítima, ou seja, a lei editada pelo
legislador humano. Portanto, é o legislador humano, o rei absoluto, o povo
soberano, o ditador acima de toda a lei ou poder totalitário irresponsável, que
sozinho decide, pelo consenso de sua própria vontade autônoma em relação à
toda norma superior, o que deve ser considerado lei. A vontade soberana dos
homens torna-se a norma voluntarista do direito público. Assim, na
Faculdade de Direito da Universidade de Lausanne — cidade em que habito
— tornou-se um adágio, quase admitido por todos, que o direito positivo e a
justiça moral pertencem a esferas totalmente distintas. A técnica jurídica
científica, em tal perspectiva, não tem, portanto, nada a fazer com a moral
nem com Deus.
Uma atitude moral como essa teria horrorizado nossos ancestrais cristãos.
Para eles, o que chamavam de “direito natural” refletia necessariamente o
pensamento do Autor da natureza na boa ordem da criação. Em
consequência, toda lei positiva que se opusesse à justiça de Deus — imanente
e transcendente — só podia ser inválida, nula e não merecia o nome de
“direito”. Portanto, tais leis não podiam exigir nenhuma obediência por parte
daqueles sobre os quais esse poder tirânico procurava se impor. Tal atitude de
resistência a toda lei iníqua podemos encontrar em muitos pagãos como
Confúcio, na China, Aristóteles, na Grécia e Cícero, em Roma.
Um texto datado de 1949, redigido pelo papa Pio XII, descreve muito bem as
implicações que procuramos aqui fazer com que sejam compreendidas:[97]
É impossível observar com atenção o universo, tanto corporal como espiritual, físico e
moral, sem ser tomado por uma admiração da ordem e da harmonia que reinam nos
variados graus da escala dos seres vivos. No homem, até aquela linha que marca a
fronteira em que cessa sua atividade inconsciente [instintiva] e começam suas ações
conscientes e livres [responsáveis], essa ordem e harmonia são estritamente
percebidas, segundo as leis colocadas pelo Criador em cada ser existente. Além dessa
linha, a vontade ordenadora de Deus ainda continua; entretanto, sua atualização e seu
desenvolvimento são deixados à livre determinação dos homens, às ações que podem
se conformar ou se opor à Vontade divina.
Nessa esfera da ação consciente dos homens, consciência do bem e do mal, da ordem,
da autorização e da interdição, a vontade ordenadora do Criador se manifesta pelo
mandamento moral de Deus inscrito na natureza e na revelação, como também através
das ordens e leis editadas por uma autoridade humana legítima, seja na família, no
Estado ou na Igreja. Se a atividade humana é pautada e dirigida segundo essas
normas, ela naturalmente permanece em harmonia com a ordem universal desejada
pelo Criador.
Aqui se encontra a resposta à questão: o que distingue uma lei verdadeira da falsa? O
simples fato de o poder legislativo declarar uma regra obrigatória no Estado, não faz
dela, em si mesma, uma lei verdadeira. O critério do simples fato consumado vale
somente para aquele que é o Autor e a Norma Suprema de toda lei: Deus.
Aplicá-lo ao legislador humano, sem discriminação e de maneira definitiva, como se
sua lei fosse a norma suprema do que é justo, esse é o erro do positivismo jurídico no
sentido exato e técnico do termo. Esse erro está na raiz do absolutismo de Estado, que
não é outra coisa senão a deificação do Estado em si mesmo.[98]

Uma contrapartida a esse direito positivista autônomo se encontra nas leis


pretensamente científicas da economia, estas também substraídas das normas
divinas, naturais, criacionais e bíblicas diversas. Nessa perspectiva,
afirmamos que existem leis chamadas “científicas” ordenando a vida
econômica, que, ao imitar as leis das ciências físicas modernas, são
fundamentadas sobre o estudo estatístico dos mecanismos econômicos,
expurgados de toda ingerência de normas éticas, naturais ou bíblicas. Trata-se
da rejeição de toda e qualquer ordem criacional normativa determinante do
caráter “bom” ou “mau” dos atos econômicos humanos. E aqueles que
recusam dar à economia seu status de “ciência moral”, têm ainda a
ingenuidade de admirar-se de que a aplicação de tal sistema mecânico,
racionalista e amoral na economia, resulte não somente numa ordem social
desumanizada, mas também, a longo prazo, radicalmente ineficaz no próprio
plano econômico.
A queda recente do comunismo soviético demonstrou o absurdo de construir
uma sociedade sobre a supressão voluntária de Deus, de suas leis e da ordem
criacional. Além disso, a profunda crise econômica e social atual mostra
muito bem a perfeita inanição, a terrível insensatez em suprimir Deus e
excluir suas leis da atividade humana, como se Deus não existisse e como se
o homem não tivesse sido, por natureza, por sua própria criação, feito à
imagem do Deus justo e moral; como se não vivêssemos todos numa criação,
por todos os lados, numa ordem eminentemente moral!
Argumenta-se, por exemplo, que o acúmulo de todos os atos econômicos dos
homens (sejam morais ou imorais, pouco importa!) produziria, de maneira
automática, a felicidade econômica de todos. Trata-se da ação mecânica
denominada por Adam Smith como a mão invisível de um universo profano
— simulacro laico da Providência — que infalivelmente dirigiria ao bem
comum todas as ações dos agentes econômicos.[99] Tais modelos — pedras de
toque do orgulho – dos Iluminismos do século 18 tinham simplesmente
esquecido que essa mão invisível não é outra senão a do Deus da Aliança
divina e que ela não possui, de maneira nenhuma, um caráter amoral, porque
o Deus justo abençoa os atos justos dos homens e amaldiçoa os seus atos
iníquos. Não! É preciso que a ação econômica do homem, para que
verdadeiramente favoreça o bem comum da sociedade, se conforme, tanto na
vida privada dos homens como em sua vida pública, às normas eternas da
justiça, se desejar produzir o bem, seja econômico ou não. Todo e qualquer
outro pensamento não passa de loucura, porque esquece a unidade da criação
e a necessária ordem moral da vida humana.
Tal pensamento político e econômico “amoral” — aquele dos homens no
exercício desordenado de sua liberdade — que pretende ficar fora da esfera
das leis divinas criacionais, não era o pensamento da Igreja dos nossos
ancestrais. Foi o que pudemos ver claramente à medida que estudamos,
detalhadamente, as lições sobre o Decálogo. Grandes teólogos do passado
como João Calvino, Heinrich Bullinger, Pierre Viret, Lancelot Andrewes,
Gisbertus Voetius, Benedito Pictet, cuja herança foi retomada por pensadores
contemporâneos como E. L. Hebden Taylor, Rousas Rushdoony ou Pierre
Courthial, sempre consideraram a vida econômica sob o ângulo da vida moral
dos homens. Esses homens viam as coisas da terra como sendo todas
dependentes da Lei divina — a Tota Scriptura — que por proceder de Deus,
ordena cada aspecto da criação para a honra e glória do Criador, como
também para o bem comum de suas criaturas. Tal pensamento também era da
Ortodoxia do Oriente e, mais próximo de nós, da Igreja Católica Romana do
Ocidente, antes de sua capitulação diante do modernismo liberal subjetivista,
cético e antinomiano.
Observemos as palavras que testemunham essa tradição ortodoxa e católica,
que proclamava no século 19 o caráter necessariamente público das verdades
da lei divina, ensino que, em nossos dias, não é mais proclamado em nosso
meio cristão. Precisamos, uma vez mais, procurar julgar todas as coisas, reter
o que é bom e rejeitar toda forma de mal. Deixemos, então, que a palavra do
Monsenhor Édouard Pie, bispo da antiga vila romana de Poitiers, que no
curso da segunda metade do século 19 provou ser um digno sucessor de
Hilário de Poitiers, o corajoso e visionário doutor da Igreja que, com
Atanásio, defendeu a divindade de Jesus Cristo contra as heresias arianas do
século 4:
O Senhor nos ensina que não podem trazer ao mundo nenhum elemento de salvação
aqueles que, em plena era das luzes evangélicas, e depois da vinda plena de Jesus
sobre a terra, descartam e se retiram da fé, como se Jesus estivesse ausente.

Mons. Pio continua:


O grande perigo e o grande mal de nossas cidades, já dissemos cem vezes, é que na
ordem das coisas públicas e sociais, os fiéis, e frequentemente os padres da nossa
geração, creram que, mesmo em regiões cristãs, seria possível manter uma
neutralidade ou isenção em relação à fé cristã, como se Jesus Cristo não tivesse vindo
ou tivesse desaparecido do mundo.[100]
Seu comentarista, Étienne Cotta, explica:
A confissão de nossa fé é nossa homenagem para com a realeza de Cristo. Ela não
possui duas faces, uma pessoal e privada e outra pública — Aquele que me confessar
diante dos homens [...] (Mateus 10.32; Marcos 8.38; Lucas 12.8); [também] Jesus
reconhecerá diante de seu Pai e diante de toda a corte celeste todo aquele que o
confessar diante dos homens. De tal sorte [...] que na mesma medida que
testemunhamos seu nome, seremos medidos por ele diante de Deus Pai.[101]

Falando sobre a espada que é a Palavra de Deus, Mons. Pio escreveu:


A espada é a mais aguda e mais afiada de todas as armas e a que tem como
característica ser mais penetrante; [...] é a palavra de Deus, é a doutrina evangélica
penetrando no coração dos homens e atingindo-os até na sua vida física e terrestre.

E acrescenta, quando
[...] tomamos posse da nova vida, então, pela virtude do Verbo, somos separados das
impurezas dos autores que nos deram origem. Cortados, separados pelo corte afiado
da espada de Deus, discordamos daqueles sentimentos, se estes permanecerem nos
laços da infidelidade. E quando a luta se trava entre nossa nova vida e a antiga, se não
soubermos dar a preferência a Deus, se colocarmos o amor à família e à carne acima
do amor àquele que divinamente nos adotou, nos tornaremos indignos da herança das
bênçãos futuras.[102]

Falando da infidelidade geral de seu tempo, ele continua:


Saibam: essa infidelidade geral que vocês usam como desculpa, mais agrava do que
atenua seus erros. Diante dessa enorme apostasia, vocês deveriam declarar ainda mais
alto sua fé e tornar-se assim um exemplo e um protesto [...]. Não são apenas as
pessoas particularmente, mas os povos são chamados a prestar homenagem a Deus
afirmando sua crença [...].[103]

Mas de onde nos virá a força para tal fidelidade?


Nossa única força, nosso único apoio, é permanecermos firmes na fé, no temor a
Deus, na esperança das bênçãos eternas, apoiados sobre a misericórdia divina,
sabendo que é fiel aquele que disse: E eis que estarei convosco até a consumação dos
séculos (Mateus 28.20); e porque sentimos que habita em nós, devemos a ele todas as
nossas alegrias.[104]

Mons. Pio acrescenta:


E não neguem que a prática ostensiva do cristianismo exige, às vezes, grande
coragem. Por acaso Deus preparou seu céu para os tímidos, para os preguiçosos?
Ao contrário, o Mestre não disse que “o Reino de Deus é tomado por violência”,
e que “os violentos dele se apossam com força”? (Mateus 11.12). E João, o
discípulo do amor, sem detença não declara que “os que tremem”, que não ousam
confessar sua fé, terão a mesma sorte dos incrédulos, com os quais dividirão o
lago de fogo? (Apocalipse 21.8; João 14.27).[105]

Mons. Eduardo Pio conclui descrevendo com a maior clareza qual era o
combate de seu tempo, que hoje tornou-se ainda mais temível, em razão da
presente dominação universal do espírito da Revolução, que se tornou
mundial, contra Deus, contra sua Igreja e suas leis:
A luta travada sob nossos olhos não é nada menos, e nos confessam, que o duelo entre
a Revolução e a Igreja. A Revolução criou para a sociedade moderna um evangelho
novo [expressão utilizada por Jules Ferry em seus discursos como ministro da
Educação nacional quando apresentou o projeto de escola laica, escola sem Deus],[106]
nosso evangelho, disse ele, incompatível com o Evangelho cristão.

Mons. Pio conclui:


A Revolução, em sua essência, é a lei emanada das vontades humanas, colocada
acima de qualquer lei, até mesmo daquela que teria descido do céu. Esse é o dogma
fundamental da sociedade moderna qualquer que seja a forma política que assuma,
mas sobretudo quando se apossa da forma democrática, que é sua forma adequada, a
forma associada a seus princípios. Ora, um evangelho deve ter seus ministros: o
ministro do evangelho moderno é o Estado, ou seja, a razão privilegiada desse ou
daquele, encarregando-se do exercício do poder soberano em nome da razão coletiva,
exercendo-o de uma forma imperial ainda mais irrecusável, por ser a razão eleita pela
multidão. Diante dessa autoridade única, toda autoridade deve curvar-se; em todas as
coisas a última palavra lhe pertence; e, se diante dela se apresenta um apostolado,
mesmo que divino, que alega uma revelação divina em contradição com o dogma
declarado do Estado, esse apostolado deve ser reduzido ao silêncio e despojado de seu
poder. O povo, encarnado no Estado, tornou-se o Imperator pontifex maximus [título
do Imperador romano] do mundo moderno [...].[107]

Para lutar contra esse pensamento único, sem Deus e contra Deus, é que nos
próximos capítulos vamos nos voltar para o ensino bíblico sobre a usura, as
balanças fraudulentas e sobre os dízimos.

A) A usura
Vamos ao primeiro caso que queremos tratar: a usura ou o empréstimo a
juros. Esse assunto foi primeiramente desenvolvido no livro de Êxodo,
naquela seção (o “Código da Aliança”) que examinamos várias partes. Nosso
texto, que se refere às leis relativas aos necessitados, se encontra em Êxodo
22.21-27. Quatro casos específicos são ali tratados: (1) a exploração do
imigrante (verso 21); (2) a aflição da viúva e do órfão pela miséria (versos
22-24); (3) a importância de não aplicar juros sobre os empréstimos
concedidos aos israelitas pobres (verso 25); e (4) não tomar como garantia os
objetos necessários para a sobrevivência do pobre (versos 26 e 27).
Todos esses casos estão relacionados com pessoas economicamente
vulneráveis. Este é o texto que nos interessa:
Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre que está contigo, não te haverás com
ele como credor que impõe juros. (Êxodo 22.25)

Vejamos os diversos aspectos desse texto: (a) O empréstimo é feito a um


israelita; (b) Trata-se de um infeliz que vive em Israel; (c) O comportamento
aqui não deve ser como de um credor, isto é, que trata a questão
simplesmente como um pagamento de uma dívida comercial; (d) A
consequência: nenhum juro será exigido da pessoa.
Expliquemos melhor o sentido de algumas palavras.
Credor: em hebraico NO–SEH. Não se trata do usurário, daquele que exige
juros sobre o empréstimo, mas de um simples credor que, por dureza de
coração, exige o reembolso imediato de um empréstimo que uma pessoa
pobre lhe deve. Trata-se de um empréstimo e não de um donativo ou esmola.
Juros: há uma palavra hebraica muito utilizada para juros, ME–SHEKI, que
significa mordida. A distinção moderna entre juros (juros legítimo) e usura
(juros ilegítimo) não existe no hebraico. A ideia aqui é aquela da mordida da
serpente; no começo seu efeito parece mínimo, mas após um tempo, resulta
em morte. Vale o mesmo para a cobrança de juros. À primeira vista pode
parecer inócuo, mas com o tempo produz miséria, a bancarrota econômica e
social daquele a quem foi exigido. O espírito desse mandamento é o mesmo
que vemos no seguinte provérbio:
Quem se compadece do pobre ao SENHOR empresta,
e este lhe paga o seu benefício. (Provérbios 19.17)

Esse mesmo espírito encontramos nas palavras de nosso Senhor Jesus Cristo:
Não andeis, pois, a indagar o que haveis de comer ou beber e não vos entregueis
a inquietações. Porque os gentios de todo o mundo é que procuram estas coisas;
mas vosso Pai sabe que necessitais delas. Buscai, antes de tudo, o seu reino, e
estas coisas vos serão acrescentadas. Não temais, ó pequenino rebanho; porque
vosso Pai se agradou em dar-vos o seu reino. Vendei os vossos bens e dai
esmola; fazei para vós outros bolsas que não desgastem, tesouro inextinguível
nos céus, onde não chega o ladrão, nem a traça consome, porque, onde está o
vosso tesouro, aí estará também o vosso coração. (Lc 12.29-34)
Esse espírito cristão também se reflete nestas palavras extraídas do
Deuteronômio:
Quando entre ti houver algum pobre de teus irmãos, em alguma das tuas cidades,
na tua terra que o SENHOR, teu Deus, te dá, não endurecerás o teu coração, nem
fecharás as mãos a teu irmão pobre; 8antes, lhe abrirás de todo a mão e lhe
emprestarás o que lhe falta, quanto baste para a sua necessidade. (Deuteronômio
15.7-8)

E esta passagem acrescenta que no sétimo ano toda a dívida deveria ser
perdoada:
Guarda-te não haja pensamento vil no teu coração, nem digas: Está próximo o
sétimo ano [ano em que todas as dívidas eram perdoadas], o ano da remissão, de
sorte que os teus olhos sejam malignos para com teu irmão pobre, e não lhe dês
nada, e ele clame contra ti ao Senhor, e haja em ti pecado. Livremente [doação e
não empréstimo, porque em breve o empréstimo será perdoado], lhe darás, e não
seja maligno o teu coração, quando lho deres; pois, por isso, te abençoará
o Senhor, teu Deus, em toda a tua obra e em tudo o que empreenderes. Pois
nunca deixará de haver pobres na terra [Mateus 26.11; João 12.8];[108] por isso,
eu te ordeno: livremente, abrirás a mão para o teu irmão, para o necessitado, para
o pobre na tua terra. (Deuteronômio 15.9-11)

Como é diferente esse espírito de amor ao próximo em comparação com


aquele que anima o Estado Providência em que vivemos, que toma em nosso
lugar, na frieza de sua ação burocrática, o amor concreto que todos nós,
como cristãos, deveríamos manifestar para com o próximo que caiu na
miséria. Um excelente exegeta judeu, Benno Jacob, comenta, com muita
propriedade, essa passagem:
A ajuda não deveria limitar-se às necessidades imediatas, mas, por meio de um
empréstimo, proporcionar uma existência produtiva e independente.

E destaca a hierarquia no amor ao próximo assim:


Se os israelitas e não israelitas [poderíamos dizer, os cristãos e os não cristãos]
viessem até você para fazer um empréstimo, o israelita tinha a prioridade; se viessem
um rico e um pobre, o pobre tinha a prioridade; um pobre de sua cidade ou da cidade
vizinha, o da sua cidade tinha a preferência.[109]

Isso porque nos é exigido o amor ao próximo, não ao que está distante. E até
mesmo o Alcorão, quando ecoa a Torá e o Evangelho, nos devia corar de
vergonha:
Empreste a Deus [sejam caridosos e deem esmola] e Deus os recompensará.

E o apóstolo Paulo nos exorta no mesmo sentido:


Não vos enganeis: de Deus não se zomba; pois aquilo que o homem semear, isso
também ceifará. Porque o que semeia para a sua própria carne da carne colherá
corrupção; mas o que semeia para o Espírito do Espírito colherá vida eterna. E não
nos cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não
desfalecermos. Por isso, enquanto tivermos oportunidade, façamos o bem a todos,
mas principalmente aos da família da fé. (Gálatas 6.7-10)

O livro de Levítico elucida bem o conteúdo do nosso mandamento:


Se teu irmão empobrecer, e as suas forças decaírem, então, sustentá-lo-ás. Como
[ainda que seja] estrangeiro [GER] e peregrino [TOSHAB] ele viverá contigo. Não
receberás dele juros [ME-SHEKI (Neshek)] nem ganho [TARBITH]; teme, porém, ao
teu Deus, para que teu irmão viva contigo. Não lhe darás teu dinheiro com juros [ME-
SHEKI], nem lhe darás o teu mantimento por causa de lucro [TARBITH]. Eu sou
o SENHOR, vosso Deus, que vos tirei da terra do Egito, para vos dar a terra de Canaã e
para ser o vosso Deus. (Levítico 25.35-38)

Este capítulo de Levítico trata inteiramente do princípio de repouso dos anos


sabáticos, como também do jubileu. Já examinamos essas questões quando
tratamos do quarto mandamento, mas nos permitimos chamar sua atenção
sobre o aspecto econômico dos três repousos sabáticos: a) O sábado, o
repouso do sétimo dia da semana; b) O ano sabático, o sétimo ano, no qual
se fazia o reembolso das dívidas e o descanso da terra; c) O ano do jubileu, o
quinquagésimo ano, no qual o escravo recobrava sua liberdade e a família,
que havia vendido seus bens, retomava a posse sem pagamento.
O sistema sabático punha um freio moral e legal, religioso e social na
acumulação incontrolada das riquezas. A economia de um mercado sem
qualquer limite na aquisição de riquezas como conhecemos hoje
(progressivamente implementado desde a Renascença dos séculos 15 e 16),
simplesmente não seria possível na perspectiva do regime sabático
preconizado na Bíblia. Nada no Novo Testamento nos indica que esse
sistema, dado por Deus para a vida social e econômica dos homens, tenha
sido anulado. Vejamos as consequências:
1. O sábado obrigava os senhores a respeitar semanalmente o repouso físico e
espiritual da família, dos empregados domésticos e escravos temporários e
até mesmo dos animais.
2. O ano sabático não permitia que as dívidas vigorassem perpetuamente, as
quais eram perdoadas a cada sete anos. Essa lei também não permitia a
exploração sem limite dos campos, que eram, igualmente, colocados para
descansar no sétimo ano. 3. O jubileu tornava impossível a alienação
definitiva da propriedade familiar em Israel e assegurava também, nesse
período, o descanso em dobro das terras (49º e 50º anos), como também a
libertação dos escravos.
4. Em Israel era impensável a existência de uma vida agrícola e econômica
sem a intervenção e ação providencial de Deus, isso em função das estruturas
imutáveis da aliança de graça e de juízo.
Consideremos mais de perto os versos 35 a 38:
a) Uma primeira observação. Os versos 36 e 37 utilizam, em nossa tradução
(a Bíblia à la Colombe), as palavras juros e usura, que em nossa concepção
das coisas seriam entendidas como juros razoável, portanto legítimo e usura
exorbitante, portanto ilegítima. Não é esse, absolutamente, o sentido das duas
palavras, porque a gramática hebraica faz uso aqui de algo comum na retórica
hebraica, isto é, divide em dois uma afirmação para permitir que seu
significado seja mais preciso, mais exato e forte. De fato, a palavra que nossa
Bíblia traduz por juros é a palavra que encontramos em Êxodo 24, ME-
SHEKI (ou Neshek), que significa mordida. O juros calculado sobre o
dinheiro emprestado é, portanto, uma mordida do capital emprestado, uma
maneira de ferir o próximo, de destruí-lo. A segunda palavra utilizada nos
versos 36 e 37 é TARBITH, que significa aumento ou tornar numeroso.
Trata-se de todo o ganho, ilícito em si mesmo, sobre o capital ou sobre os
produtos emprestados, através de juros cobrados em detrimento de outro.
Veremos em nossa próxima exposição dos textos de Ezequiel (18.8,13,17 e
22.12), nos quais encontramos essas duas palavras estreitamente unidas,
naquela que é a condenação mais veemente de toda a Bíblia a toda forma de
empréstimo a juros, sejam moderados ou exorbitantes, pouco importa: que o
juro seja cobrado de um pobre ou de um rico não muda em nada a repreensão
feita pelo profeta.
b) O texto de Levítico é muito claro. A proibição não atinge apenas o irmão
hebreu, se teu irmão se tornar pobre, mas também o imigrante ou o residente
temporário (obrigatoriamente estrangeiro), a fim de que viva contigo (verso
35). O comentarista S. H. Kellogg — ainda que não veja claramente a
maneira como esse texto reúne, de forma notável, o irmão israelita, o
imigrante estrangeiro e o residente temporário pobre debaixo da mesma
proteção, apesar disso explica muito bem o conteúdo jurídico do
mandamento:
O objetivo pretendido por essa lei é impedir, tanto quanto possível, o desenvolvimento
daquela forma de pobreza que poderia levar um homem a se vender para sua
sobrevivência. Toda a dívida é, necessariamente, um fardo, particularmente para os
pobres. Mas uma dívida é um fardo mais pesado ainda quando juros são acrescentados
à dívida original e, pior ainda, juros compostos. Assim, essa lei não proíbe somente a
usura, no sentido moderno de juros excessivos, mas a cobrança do irmão israelita de
qualquer que seja a forma de juro.[110]

c) O movimento do texto é claro. Trata-se i) de um irmão ou estrangeiro


habitante do país e que se torna pobre; ii) a quem faltam recursos; iii) que
deve ser sustentado; iv) ainda que se trate de um imigrante; v) a fim de que
possa viver contigo. Em consequência, 1) não se deve exigir juro nem usura
(a mesma coisa, trata-se de uma repetição hebraica); 2) e isso por temor a
Deus.
Portanto, nenhum pagamento com juros, nenhum aumento no preço dos alimentos,
porque se trata de obedecer ao Deus abençoador, fiel, misericordioso e generoso, da
aliança pela qual Israel saiu do Egito e recebeu como herança o belo país de Canaã.
Deve-se ressaltar que Israel é o único povo do Oriente Médio Antigo a quem foi
proibido, totalmente, emprestar aos pobres com juros.[111]
E tal mandamento não se aplicaria a nós que fomos libertados, pela Nova
Aliança em Jesus Cristo, da escravidão de nossos pecados, para nos
tornarmos cidadãos do Reino de Deus? Deus não permita!
Em seu comentário sobre Levítico, Andrew Bonar explica bem o alcance do
nosso texto em relação ao Evangelho:
Você não deve dizer: não importa que eu deixe meu irmão pobre em seu presente
estado, porque logo vai receber uma ajuda melhor do que a que eu poderia lhe
dar; porque o jubileu [para nós, o Reino de Deus] vai chegar logo. Não, diz o
Senhor, nesse espaço de tempo você deve fazer tudo o que puder para ajudá-lo,
ainda que não seja um parente ou um conhecido, mas um simples residente
estrangeiro. Que ele viva com você, isto é, que prospere e possa assim viver de
maneira conveniente. Seja generoso com ele! Mas, não o ajude simplesmente
visando uma recompensa material futura (salvo aquela que receberemos na
ressurreição dos justos, cf. Lucas 14.14); nenhum empréstimo com juros e menos
ainda um aumento no preço dos alimentos fornecidos! Tema a Deus e faça tudo
por amor a ele, por obediência à sua vontade. Que a realidade de sua própria
redenção abra o seu coração para as necessidades dos outros, porque fiz você sair
do Egito.[112]

É o que também diz o livro de Provérbios:


O que guarda a lei é filho prudente, mas o companheiro de libertinos envergonha
a seu pai. O que aumenta os seus bens com juros [neshek, mordida] e ganância
[tarbith, ganho] ajunta-os para o que se compadece do pobre. O que desvia os
ouvidos de ouvir a lei (a lei divina que o exorta a agir com misericórdia), até a
sua oração será abominável. (Provérbios 28.7-9)

E o salmo 15, quando descreve o homem justo, rejeita categoricamente a


prática do ganho ilícito através de qualquer tipo de juro:
Quem, SENHOR, habitará no teu tabernáculo? Quem há de morar no teu santo
monte? O que vive com integridade, e pratica a justiça, e, de coração, fala a
verdade; o que não difama com sua língua, não faz mal ao próximo, nem lança
injúria contra o seu vizinho; o que, a seus olhos, tem por desprezível ao réprobo,
mas honra aos que temem ao SENHOR; o que jura com dano próprio e não se
retrata; o que não empresta o seu dinheiro com usura, nem aceita suborno contra
o inocente. Quem deste modo procede não será jamais abalado. (Salmos 15.1-5)

S. C. Mooney, em seu belo estudo, Usura, a destruição das nações,[113] após


haver mostrado a que ponto os empréstimos são danosos para aqueles que os
contraem, visto que
O rico domina sobre o pobre, e o que toma emprestado é servo do que
empresta. (Provérbios 22.7)
Demonstra em seguida que o ato de emprestar deveria ser a manifestação de
uma caridade atuante e não a busca de um benefício ilícito. No próximo
estudo veremos esse ponto de maneira mais detalhada. Vejamos o que
escreveu Mooney:
[...] do ponto de vista daquele que empresta, o empréstimo é um ato de caridade.
A mais alta forma de caridade é a doação que nada exige daquele que a recebe,
porque não lhe impõe nenhuma obrigação. O empréstimo é também uma forma
de caridade, porque aquele que empresta não age por interesse. Um empréstimo
pode ser descrito como o ato de prover alguma coisa a seu próximo, sob a
condição de que lhe devolva após algum tempo. Aquele que empresta dá de sua
abundância; se não tivesse nenhum bem disponível, não poderia emprestar. Se
alguém tem algum bem que não usa e há outro que dele tem necessidade,
emprestar livremente esse bem só pode ser definido como um ato de compaixão
ou de caridade. A concepção bíblica sobre o empréstimo entre irmãos exclui toda
ideia de lucro por parte de quem empresta. O empréstimo, segundo a Bíblia, não
pode ser o ato de avançar sobre o bem de outro para aumentar os seus próprios
bens. A compaixão pelo irmão em necessidade manifesta-se pela generosidade
em emprestar. Essa compaixão é destruída pelo desejo de aumentar seus bens
pela usura [e juros], ação que apenas aumenta a dependência, portanto, a
escravidão eventual do devedor.[114]

Este é o ensino de Jesus Cristo:


Se fizerdes o bem aos que vos fazem o bem, qual é a vossa recompensa? Até os
pecadores fazem isso.
E, se emprestais àqueles de quem esperais receber, qual é a vossa recompensa?
Também os pecadores emprestam aos pecadores, para receberem outro tanto.
Amai, porém, os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai, sem esperar
nenhuma paga; será grande o vosso galardão, e sereis filhos do Altíssimo. Pois
ele é benigno até para com os ingratos e maus. Sede misericordiosos, como
também é misericordioso vosso Pai. Não julgueis e não sereis julgados; não
condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados; dai, e dar-se-
vos-á; boa medida, recalcada, sacudida, transbordante, generosamente vos
darão; porque com a medida com que tiverdes medido vos medirão também.
(Lucas 6.33-38)
Antes, dai esmola do que tiverdes, e tudo vos será limpo. (Lucas 11.41)
Não temais, ó pequenino rebanho; porque vosso Pai se agradou em dar-vos o seu
reino.
Vendei os vossos bens e dai esmola; fazei para vós outros bolsas que não
desgastem, tesouro inextinguível nos céus, onde não chega o ladrão, nem a traça
consome, porque, onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração.
(Lucas 12.32-34)

Vemos aqui a preocupação em socorrer o próximo, o vizinho. Essa


proximidade local, familiar, dos clãs, tribal, enfim, nacional, produz uma
assistência de natureza orgânica ao mais fraco. Trata-se do amor ao próximo
e do reconhecimento do benfeitor por aquele que recebe a ajuda. Tal caridade
e dependência e tal espírito de reconhecimento certamente seria um horror
para a maior parte das pessoas da nossa sociedade, tão egoístas e orgulhosas,
que preferem a assistência impessoal e abstrata do Estado Providência, que
toma o lugar do temor a Deus e do amor ao próximo. Na visão bíblica não há
lugar para uma assistência estatal, mas é a família e o clã local, que por amor,
devem providenciar assistência ao próximo e aos necessitados. O comentário,
como sempre tão sólido e prático de Rushdoony continua muito pertinente:
Beneficiar-se da pobreza alheia é estritamente proibido. Os diferentes programas
de Estado de ajuda social favorizam mais a burocracia que os próprios pobres.
[...] Antigamente, o ministério em relação aos pobres era responsabilidade da
Igreja do Novo Testamento, porque os cristãos de então se viam como o
verdadeiro Israel de Deus. O diaconato foi instituído para tornar esse ministério
eficaz (Atos 6.1-4). É interessante notar que o mesmo escritor que defende a
cessação da lei, no entanto questiona se os crentes de hoje teriam o direito de
fazer menos do que foi ordenado aos crentes da antiguidade.

E Rushdoony acrescenta:
Cristo nos abriria a porta para uma obediência menor? Claro que não, mas para
uma fidelidade e poder com eficácia ainda mais verdadeira em nossa vida de
obediência.[115]

No capítulo 18 do livro de Ezequiel, encontramos a descrição de um filho que


recusa andar nos caminhos iníquos e ímpios de seu pai:
[...] não comer carne sacrificada nos altos, não levantar os olhos para os ídolos da
casa de Israel e não contaminar a mulher de seu próximo; não oprimir a ninguém,
não retiver o penhor, não roubar, der o seu pão ao faminto, cobrir ao nu com
vestes; desviar do pobre a mão, não receber usura [me-sheki, mordida] e juros
[tabith, ganho], fizer os meus juízos e andar nos meus estatutos, o tal não morrerá
pela iniquidade de seu pai; certamente, viverá. (Ezequiel 18.15-17)

O rabino J. H. Hertz comenta assim nosso texto de Levítico:


Que imenso contraste neste caso, em relação ao tratamento dado ao pobre
endividado na Roma antiga! O credor romano tinha o direito de colocá-lo em
cárcere privado, acorrentá-lo em uma viga, vendê-lo como escravo e até, se
quisesse, matá-lo. Se o devedor tivesse dívidas com vários credores, a Lei
romana das Doze Tábuas autorizava os credores a destrinchar seu corpo em
pedaços; e se um dos credores tomasse uma parte de sua pessoa
proporcionalmente maior do que teria direito, os outros credores não poderiam
reclamar nenhuma compensação.[116]

Em contraste, como nos maravilhamos com a santa, boa e justa lei divina, e
exclamamos com o salmista:
Os preceitos do Senhor são retos e alegram o coração; o mandamento do Senhor
é puro e ilumina os olhos. O temor do Senhor é límpido e permanece para
sempre; os juízos do Senhor são verdadeiros e todos igualmente, justos. São mais
desejáveis do que ouro, mais do que muito ouro depurado; e são mais doces do
que o mel e o destilar dos favos. Além disso, por eles se admoesta o teu servo;
em os guardar, há grande recompensa. (Salmo 19.8-11)

Leia também Salmos 15.5 e Provérbios 28.8.


Que o Deus misericordioso e fiel, da Aliança com seu povo Israel, nos
capacite, a nós, fiéis da Nova Aliança, a sempre amar suas leis e colocá-las
em prática e, de coração, obedecer ao nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo.
Amém.
Capítulo XI: A usura (2)

Introdução
Neste capítulo terminaremos nossa exposição sobre a usura ou empréstimo a
juros. Em nosso próximo estudo examinaremos a questão da fraude nos pesos
e medidas, o que nos levará às nossas últimas exposições sobre o oitavo
mandamento, nas quais examinaremos a questão fundamental sobre o ensino
bíblico dos dízimos e sua aplicação atual.
No último capítulo tínhamos considerado o juízo negativo que o conjunto da
Escritura faz sobre o empréstimo a juros. Agora, daremos sequência ao nosso
estudo, examinando um texto muito controverso que deixamos de lado por
demandar mais tempo. Trata-se de Deuteronômio 23.19-20. Deus às vezes
autoriza o empréstimo a juros? Se sim, por quê? Leiamos nosso texto:
A teu irmão não emprestarás com juros [me-sheki, mordida, usura; em inglês:
usury], seja dinheiro, seja comida ou qualquer coisa que é costume se emprestar
com juros [me-sheki, mordida, usura]. Ao estrangeiro emprestarás com juros,
porém a teu irmão [ach] não emprestarás com juros, para que o Senhor, teu Deus,
te abençoe em todos os teus empreendimentos na terra a qual passas a possuir.
(Deuteronômio 23.19-20)

Esse foi o principal texto utilizado, particularmente a partir da Reforma, para


justificar o empréstimo a juros no comércio e no sistema financeiro. Mas
antes de vermos o aspecto histórico desse ponto da ética, examinemos o que
diz exatamente nosso texto e qual é seu verdadeiro significado.
(1) Até aqui constatamos que todo o ensino da Bíblia apresenta a prática de
juros (ou da usura) aplicados ao dinheiro ou sobre os alimentos — ou
qualquer que seja o material emprestado — como sendo algo particularmente
danoso. Nosso texto nos lembra também que nenhuma cobrança de juro era
autorizada em relação ao irmão, seja em razão de dinheiro emprestado, ou
empréstimo de alimento, ou qualquer outra coisa. Vimos também que tal
prática era proibida não somente entre judeus, mas também para com
imigrantes e estrangeiros residentes temporários em Israel (Levítico 25.35-
38).
(2) Em seguida vem a concessão:
Ao estrangeiro [nokri] emprestarás com juros [me-sheki, mordida] porém a teu
irmão [ach] não emprestarás com juros. (Deuteronômio 23.20)

Vimos que Êxodo 22.25 proíbe, absolutamente, toda forma de empréstimo a


juros em Israel, particularmente ao pobre que está contigo. Em Levítico
25.35-37 também vimos que essa proibição incluía o estrangeiro [o ger] e o
estrangeiro residente temporário [toshab, o trabalhador temporário ou o
comerciante itinerante], ou seja, aqueles que se estabelecessem por algum
tempo em Israel como imigrantes mais ou menos permanentes. Essa
interdição havia sido confirmada pelas proibições, sem quaisquer limites, que
encontramos nos Salmos e no livro dos Provérbios:
O que aumenta os seus bens com juros [me-sheki] e ganância [tarbith, ganho
injusto, aumento] ajunta-os para o que se compadece do pobre. (Provérbios 28.8)
O que vive com integridade, e pratica a justiça, e, de coração, fala a verdade; [...]
o que não empresta o seu dinheiro com usura [me-sheki, mordida], nem aceita
suborno contra o inocente. Quem deste modo procede não será jamais abalado.
(Salmos 15.2 e 5)

A injustiça vê, rapidamente, dissipar-se os bens mal adquiridos. Os bens


adquiridos por meio de atos injustos, como o empréstimo a juros ou a usura,
serão mais tarde recolhidos pelos justos. Sobretudo, vemos a reprovação dos
juros expressa nas diversas leis, nas denúncias proferidas com veemência, em
particular pelos profetas Ezequiel e Amós, mas também por Neemias. Em
cada um desses textos vemos a condenação unânime e veemente dos autores
bíblicos a toda forma de usura ou de empréstimo a juros.
Vejamos a descrição que Ezequiel nos dá dos traços morais do pecador
endurecido, da cidade apóstata de Israel:
Eis que os príncipes de Israel, cada um segundo o seu poder, nada mais intentam,
senão derramar sangue [6º mandamento].
No meio de ti, desprezam o pai e a mãe [5º mandamento], praticam extorsões
contra o estrangeiro [6º e 8º mandamentos] e são injustos para com o órfão e a
viúva [8º mandamento].
Desprezaste as minhas coisas santas e profanaste os meus sábados [4º
mandamento e 1º, 2º e 3º mandamentos].
Homens caluniadores se acham no meio de ti, para derramarem sangue [6º e 9º
mandamentos]; no meio de ti, comem carne sacrificada nos montes e cometem
perversidade [coisas horrorosas, abominações = idolatrias]
No teu meio, descobrem a vergonha de seu pai [5º e 7º mandamentos] e abusam
da mulher no prazo da sua menstruação [7º mandamento].
Um comete abominação [adultério] com a mulher do seu próximo, outro
contamina torpemente a sua nora [7º mandamento], e outro humilha no meio de ti
a sua irmã, filha de seu pai [7º mandamento].
No meio de ti, aceitam subornos para se derramar sangue [6º e 9º mandamentos];
usura [ME-SHEKI, mordida] e lucros [TARBIT, crescimento, 8º mandamento]
tomaste, extorquindo-o; exploraste o teu próximo com extorsão [8º
mandamento]; mas de mim te esqueceste [o Decálogo inteiro], diz o Senhor Deus
[Adonai Yawé]. (Ezequiel 22:6-12)

Isaías se expressa de forma semelhante:


Eis que o Senhor vai devastar e desolar a terra, vai transtornar a sua superfície e
lhe dispersar os moradores.
O que suceder ao povo sucederá ao sacerdote; ao servo, como ao seu senhor; à
serva, como à sua dona; ao comprador, como ao vendedor; ao que empresta,
como ao que toma emprestado; ao credor [aquele que empresta a juros ou usura:
ME-SHEKI, mordida], como ao devedor [aquele que empresta a juros ou usura
ME-SHEKI, mordida].
A terra será de todo devastada e totalmente saqueada, porque o Senhor é quem
proferiu esta palavra. (Isaías 24.1-3)

E Jeremias também:
Ai de mim, minha mãe! Pois me deste à luz homem de rixa e homem de
contendas para toda a terra! Nunca lhes emprestei com usura [a juros, com
mordida ME-SHEKI], nem eles me emprestaram a mim com usura [a juros, com
mordida ME-SHEKI]; todavia, cada um deles me amaldiçoa. (Jeremias 15.10)

O profeta Amós resume nestes termos todo o horror que reina nesse povo que
se considera povo de Deus, mas que, no entanto, é tão voraz, tão ávido por
ganhar dinheiro de qualquer maneira:
Porque sei serem muitas as vossas transgressões e graves os vossos pecados;
afligis o justo, tomais suborno [corrompem-se com presentes, KOPHER, com
tonéis de vinho] e rejeitais os necessitados na porta [onde se reúne o tribunal].
Portanto, o que for prudente guardará, então, silêncio, porque é tempo mau.
Buscai o bem e não o mal, para que vivais; e, assim, o Senhor, o Deus dos
Exércitos, estará convosco, como dizeis. Aborrecei o mal, e amai o bem, e
estabelecei na porta o juízo; talvez o Senhor, o Deus dos Exércitos, se compadeça
do restante de José. (Amós 5.12-15)

(3) Então, diante de uma condenação tão unânime a esse amor ao dinheiro,
raiz de todos os males (1 Timóteo 6.10), dessa vontade de servir a Deus e a
Mamon — as riquezas (Mateus 6.24; Lucas 16.13) — diante de tudo isso
qual seria o significado da concessão colocada em Deuteronômio 23.20?
Leiamos mais uma vez nosso texto:
A teu irmão não emprestarás com juros [usura, mordida ME-SHEKI], seja
dinheiro, seja comida ou qualquer coisa que é costume se emprestar com juros.
Ao estrangeiro [NOKRI] emprestarás com juros [usura, mordida ME-SHEKI],
porém a teu irmão não emprestarás com juros, para que o Senhor, teu Deus, te
abençoe em todos os teus empreendimentos na terra a qual passas a possuir.
(Deuteronômio 23.19-20)

Em primeiro lugar podemos dizer que a palavra traduzida por estrangeiro


[NOKRI, em hebraico] tem uma conotação muito negativa. Trata-se de um
homem que é estrangeiro de fato, de uma pessoa estranha a Israel, um
desconhecido, uma pessoa não assimilada, por assim dizer, alguém que
trafega por Israel sem nenhum compromisso. Aqui não se trata de GER (o
estrangeiro estabelecido em Israel, quase um prosélito), nem de TOSHAB (o
trabalhador temporário) de Levítico 25, mas do estrangeiro que era hostil à fé
de Israel, um não israelita, um homem separado da cultura teocrática e
teonômica de Israel. A palavra NOKRI poderia se aproximar das palavras
francesas métèque [estrangeiro inassimilável] e rastaquouère [aventureiro
suspeito]. Trata-se, decididamente, de uma pessoa “estrangeira”, estranha aos
costumes e mentalidade do povo em que vive. Destacamos que, no livro dos
Provérbios, a palavra feminina NOKRIYA significa prostituta ou mulher
adúltera.[117]
Portanto, poderia tratar-se de mercadores ou comerciantes malvistos em
Israel porque eram realmente estrangeiros, tais como fenícios, sírios ou
amorreus; comerciantes de passagem por Israel para ali fazer negócios.
Então, poderíamos perguntar, por que seria permitido emprestar-lhes dinheiro
a juros, coisa em si mesma iníqua e absolutamente proibida, ação totalmente
contrária ao espírito da justiça bíblica aplicada às esferas financeira e
comercial, de maneira justa e abençoadora, própria do oitavo mandamento?
Antes de responder a essa questão, citaremos ainda um caso no qual a Bíblia
manifesta sua oposição radical a toda forma de empréstimo a juros. No livro
de Neemias, vemos que os israelitas vindos da Babilônia se entregaram a esse
tipo de comércio de dinheiro — o empréstimo a juros ou usura — com ganho
ilícito e criminoso sobre o capital emprestado a seus próprios irmãos. O relato
que citamos fala por si mesmo. Leiamos:
Foi grande, porém, o clamor do povo e de suas mulheres contra os judeus, seus
irmãos.
Porque havia os que diziam:
(a) Somos muitos, nós, nossos filhos e nossas filhas; que se nos dê trigo, para que
comamos e vivamos.
Também houve os que diziam:
(b) As nossas terras, as nossas vinhas e as nossas casas hipotecamos para
tomarmos trigo nesta fome.
Houve ainda os que diziam:
(c) Tomamos dinheiro emprestado até para o tributo do rei, sobre as nossas terras
e as nossas vinhas. No entanto, nós somos da mesma carne como eles, e nossos
filhos são tão bons como os deles; e eis que sujeitamos nossos filhos e nossas
filhas para serem escravos, algumas de nossas filhas já estão reduzidas à
escravidão. Não está em nosso poder evitá-lo; pois os nossos campos e as nossas
vinhas já são de outros. (Neemias 5.1-5)

Essa era a situação de penúria do povo hebreu que retornou do exílio. Era
particularmente difícil porque no primeiro ano, após seu retorno, seus campos
e vinhas não tinham nenhuma produção, pois não tinham sido semeados no
ano anterior. Estavam, portanto, reduzidos à miséria a ponto de serem
obrigados a emprestar dinheiro a juros (mordida) de seus próprios irmãos,
que dessa maneira os mordiam e os roubavam através de juros ilícitos (ganho
fictício) sobre as quantias emprestadas. Agora, vejamos a reação de Neemias:
Ouvindo eu, pois, o seu clamor e estas palavras, muito me aborreci.
Depois de ter considerado comigo mesmo, repreendi os nobres e magistrados e
lhes disse: Sois usurários [MASHAH = exigência, palavra próxima de ME-
SHEKI = usura, mordida], cada um para com seu irmão; e convoquei contra eles
um grande ajuntamento.
Disse-lhes: nós resgatamos os judeus, nossos irmãos, que foram vendidos às
gentes, segundo nossas posses; e vós outra vez negociaríeis vossos irmãos, para
que sejam vendidos a nós?
Então, se calaram e não acharam o que responder. Disse mais: não é bom o que
fazeis; porventura não devíeis andar no temor do nosso Deus, por causa do
opróbrio dos gentios, os nossos inimigos?
Também eu, meus irmãos e meus moços lhes demos dinheiro emprestado e trigo.
Demos de mão a esse empréstimo.
Restituí-lhes hoje, vos peço, as suas terras, as suas vinhas, os seus olivais e as
suas casas, como também o centésimo do dinheiro, do trigo, do vinho e do azeite,
que exigistes deles [MASHAH = exigência, extorsão].
Então, responderam: Restituir-lhes-emos e nada lhes pediremos; faremos assim
como dizes [...]. E toda a congregação respondeu: Amém! (Neemias 5.1-13)

Voltemos agora à nossa questão: por que o mandamento de Deuteronômio


23.20 permite ao povo hebreu emprestar com juros [usura, mordida
MESHEKI] ao estrangeiro, a um NOKRI, um estrangeiro hostil à Israel? Esta
é a explicação dada por Calvino em seu comentário sobre Jeremias:
Como os pagãos exigiam juros dos judeus, se isso não fosse recíproco, justo e
mútuo [mutuum, em latim], como diz o ditado, a condição do povo de Deus seria
pior que a dos pagãos. Assim, Deus permite a seu povo exigir juros, mas não
entre eles mesmos.[118]

Notemos que a razão dada por Calvino não diz respeito à usura em si, ou seja,
receber mais que o capital emprestado. Também não se reporta a outros
textos da Escritura que condenam toda forma de empréstimo a juros. A razão
invocada é a da necessária reciprocidade — mutualidade — em tais
transações, para que fosse respeitada a equidade entre judeus e pagãos no
exercício de ações de extorsão! Calvino aqui esqueceu completamente a
aliança de Deus com seu povo. Uma ação iníqua — a usura, o empréstimo a
juros — exercida por um povo apóstata sobre um povo cristão, de maneira
alguma poderia justificar o fato deste mesmo povo entregar-se (de forma
recíproca e em igualdade de condições) a tão grande iniquidade! Foi assim
que o historiador católico, Michael Hoffman, após ter descrito a oposição
radical de Martinho Lutero a todo empréstimo a juros,[119] descreveu a
posição bem diferente de João Calvino:
Outros pais fundadores do protestantismo foram, de sua parte, influenciados
pelos argumentos nominalistas dos casuístas romanos. Entre eles, o mais
importante foi o jurista reformado, tornado teólogo, Jean Cauvin [nome de
origem]. João Calvino (1509-1564) nisso inspirou-se no pensamento do jurista
católico francês, Charles du Moulin (1500-1556) e, particularmente no teólogo
reformado que vulgarizou o ensino de Du Moulin, François Hottman (1524-
1590). Por seu lado, o pensamento de Charles du Moulin sobre essa questão foi
influenciado pelo teólogo alemão Konrad Summenhart (1450-1502) que não
considerava que o empréstimo a juros fosse ilícito por natureza. Para ele cada
empréstimo deveria ser julgado em função das circunstâncias próprias daquele
que recebia o empréstimo. Enquanto a taxa de juros exigida fosse “razoável”, não
havia nada de imoral em se exigir juro sobre empréstimo destinado ao aumento
da produção. Assim, o católico Charles du Moulin revertia completamente o
significado da antiga proibição, chegando a afirmar que o devedor que não
pagasse juros sobre um capital produtivo, de fato roubava o credor![120]

Michael Hoffman continua:


Foi desse meio católico romano que Calvino tirou sua doutrina sobre o
empréstimo a juros. Esse defensor da autoridade única da Escritura, que não
cessou de atacar e vilipendiar os católicos porque estes colocavam a tradição no
mesmo plano da Escritura, fundamentou seu ensino econômico sobre as tradições
teóricas de juristas a respeito da equidade, ensino casuístico romano, que anulava
o que havia sido prescrito no Antigo Testamento sobre a usura. Calvino afirmou,
então, que as leis do Antigo Testamento não tinham força para constranger os
cristãos a obedecer a proibição absoluta de se exigir juros em empréstimos feitos
entre os próprios crentes. Não seria possível fazer o mesmo com as palavras de
Cristo quando tratou desse assunto no Evangelho de Lucas (6.35 e 16.11-12). Ele
recorreu, então, à distinção nominalista que já evocamos entre um juro
“moderado” e um juro “mordaz”.[121]

Hoffman prossegue:
Um mestre de Calvino, o teólogo protestante Martin Bucer (1491-1551), em seu
Tractatus de Usuris, estendeu o argumento dos nominalistas quando afirmou que
a palavra neshek, traduzida por “usura”, significava simplesmente que alguns
juros eram tão excessivos que constituíam verdadeiras “mordidas” sobre o
devedor e que somente esse tipo de juro era proibido. Depois de Bucer, o teólogo
protestante de Zurique, Heinrich Bullinger (1504-1575), escreveu: “A usura é
proibida pela Palavra de Deus quando ela acaba por morder [neshek] o próximo”.

Um crítico inglês de Bucer e de Bullinger debochava da originalidade


teológica desses teólogos em termos bastante humorísticos:
A rejeição a toda forma de juro foi julgamento geral da Igreja Cristã por
aproximadamente 1500 anos e isso sem a menor dissensão. Como, então, era
simplória essa Igreja de Jesus Cristo que nunca conseguiu enxergar a
legitimidade de uma simples cobrança de juros antes de nossa era![122]
Mas devemos procurar a fonte desses erros exegéticos em momento anterior,
na casuística talmúdica judaica. Vejamos o que escreveu, em 1713, o teólogo
inglês John Edwards sobre a maneira com que Bucer e Bullinger apenas
repetiam, como papagaios, os argumentos dos rabinos:
Os rabinos judeus distinguiam entre neshek e tarbith; o primeiro, diziam, vem de
uma palavra que significa “morder”; [...] eles consideravam, consequentemente,
que a palavra neshek se referia a uma usura abusiva que mordia e devorava o
devedor, prática que sabiam ser proibida pela Lei. [...] Mas, diziam, a outra
palavra, tarbith, que diz respeito apenas a um ganho, ou seja, a qualquer valor
que sobrepasse o principal, se refere a um tipo de usura moderada e tolerável. [...]
Mas, acrescenta John Edwards, trata-se aqui de pura fantasia, que não possui
nenhum fundamento nas Santas Escrituras, porque elas não condenam somente
neshek, mas também tarbith. No que concerne à palavra neshek é evidente que se
trata de um termo geral que engloba toda a forma de usura e que é o termo
hebraico usado para nomear essa prática e que mostra em si mesmo a gravidade
do pecado e não somente uma distinção qualquer entre diversas formas de usura.
[123]

Consideremos, agora, alguns aspectos da posição defendida por Tomás de


Aquino. No artigo I da Pergunta 78, da segunda parte da Suma Teológica,
que trata da questão da usura ou do empréstimo a juros, podemos constatar
que seu procedimento é diferente dos três reformadores, Bucer, Calvino e
Bullinger. Em primeiro lugar, vejamos a questão colocada, segundo o método
escolástico então vigente:
É pecado receber juros sobre dinheiro emprestado?
Seguindo esse método, Tomás responde a uma série de seis objeções ou
dificuldades. Mencionaremos somente as duas primeiras, que utilizam
argumentos bíblicos:
Não parece. De fato, não podemos pecar quando seguimos o exemplo de Jesus
Cristo. Ora, Jesus Cristo fala sobre isso na parábola mencionada por São Lucas:
“Na minha vinda o receberia com juros” (Lucas 19.23) se tratava de um
empréstimo a juros. Então não é pecado receber juros sobre dinheiro emprestado.
[124]

Vejamos a solução que ele dá a essa objeção:


Os juros referidos pelo Evangelho devem ser entendidos num sentido metafórico;
eles designam os bens espirituais exigidos por Deus e distribuídos a mais, para
que deles sempre façamos o melhor uso; mas isso para o nosso benefício e não de
Deus.[125]

Fica claro que o exemplo citado na parábola dos talentos é ilustrativo,


metafórico, uma imagem que fala da necessidade de multiplicar os dons
recebidos de Deus e não uma justificação do empréstimo a juros e da usura,
que não multiplica (de fato) nada.
A segunda dificuldade é a seguinte:
O salmista fala que a lei divina é perfeita (Sl 18.8), porque ela condena o pecado.
Mas a legislação deutoronômica autoriza o empréstimo a juros: A teu irmão não
emprestarás com juros, seja dinheiro, seja comida ou qualquer coisa que é
costume se emprestar com juros. Ao estrangeiro emprestarás com juros
(Deuteronômio 23.19-20). E mais, o mesmo livro inspirado faz disso uma
recompensa para os que observaram a lei: emprestarás [LAVAH, Deuteronômio
28.12 e 44] recebendo juros a muitas gentes, porém tu não tomarás emprestado.
Então, não é pecado receber juros.[126]

O domínio de Israel sobre as nações hostis não é aqui um benefício, mas um


julgamento de Deus. Será assim também quando a maldição divina cair sobre
o Israel infiel, e também cairá sobre o povo da Nova Aliança quando este
tornar-se infiel. O domínio atual dos bancos — em sua maior parte israelitas
— sobre as nações outrora cristãs, evidenciam isso claramente. É assim que
Moisés descreve o julgamento de Deus por causa da infidelidade de Israel:
O estrangeiro que está no meio de ti se elevará mais e mais, e tu mais e mais
descerás.
Ele te emprestará a ti, porém tu não lhe emprestarás a ele; ele será por cabeça, e
tu serás por cauda.
Todas estas maldições virão sobre ti, e te perseguirão, e te alcançarão, até que
sejas destruído, porquanto não ouviste a voz do Senhor, teu Deus, para guardares
os mandamentos e os estatutos que te ordenou. (Deuteronômio 28.43-45)
Notem que aqui Tomás apresenta dois dos argumentos bíblicos dos mais
fortes a favor da legitimidade do empréstimo a juros. Vejamos a resposta que
ele dá às dificuldades levantadas por esse texto de Deuteronômio:
Era proibido aos judeus cobrar juros de seus irmãos, isto é, dos outros judeus; o
que dá a entender que receber juros sobre um empréstimo, de qualquer pessoa
que se receba, é absolutamente errado. De fato, devemos olhar todo o homem
como nosso próximo e nosso irmão (Sl 35.13-14), sobretudo depois da lei
evangélica que deve reger a humanidade. O salmista (Sl 15.5) e Ezequiel, quando
falam do justo, afirmam sem restrição que o justo é aquele que não recebe usura
e juros (Ezequiel 18.17). Os judeus não foram autorizados a receber juros dos
estrangeiros porque era lícito, mas isso foi tolerado para evitar um mal maior, isto
é, o receio de que incitados pela avareza da qual eram escravos, como diz Isaías
(Is 56.11), recebessem juros dos próprios judeus [como em Neemias 5],
adoradores do verdadeiro Deus.[127]

O mesmo vemos, em Deuteronômio, sobre a autorização do divórcio, que,


como nos diz Cristo, tinha uma regulamentação contrária no começo da
criação (Mateus 19.3-9; Deuteronômio 24.1). No entanto, tinha sido
autorizado por causa da dureza do vosso coração (Mateus 19.8). Vale o
mesmo para a autorização dada por Moisés para se cobrar juros dos
estrangeiros. Tratava-se de uma acomodação bíblica ao pecado dos homens,
contrária aos princípios essenciais da lei, resumidos no mandamento que
sintetiza toda a lei: amar a Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e
de toda a sua força, e ao próximo como a si mesmo. Vejamos a conclusão de
Tomás de Aquino sobre essa segunda dificuldade:
Quanto à recompensa prometida por Deuteronômio (28.12): Emprestarás com
juros (foenerabis) a muitas nações, a palavra empréstimo (foehns) deve ser
entendida aqui no sentido lato, por empréstimo puro e simples (mutuum) [ainda
mais que a tradução da Vulgata nesse ponto está errada, pois o texto hebraico não
menciona a palavra juro].[128] A recompensa que Deus promete aos judeus é uma
abundância de riqueza tão grande que permitirá emprestar aos outros.[129]

Sua conclusão sobre esse ponto é a seguinte:


Receber juro pelo uso de dinheiro emprestado é por si só injusto, porque é exigir
o pagamento do que não existe; o que constitui, evidentemente, uma ilegalidade
contrária à justiça. Para se convencer disso é preciso lembrar que a utilização de
certos objetos se confunde com o seu consumo; assim, consumimos o vinho, do
qual nos servimos como bebida, e o trigo, do qual nos servimos como alimento.
Em trocas dessa natureza, não devemos considerar o uso do objeto à parte de sua
própria realidade, mas pelo próprio fato de admitirmos seu uso a outro, o próprio
objeto é cedido. Por isso que, para essa espécie de objetos, o empréstimo
transfere a propriedade. Então, se alguém quisesse vender separadamente o vinho
do seu uso, esse venderia duas vezes a mesma coisa, ou melhor, venderia o que
não existe. Evidentemente, essa pessoa cometeria uma injustiça.
Pela mesma razão, pecaria contra a justiça aquele que emprestasse vinho ou trigo
e exigisse duas compensações, uma a título de restituição equivalente ao objeto
em si, e outra como preço pelo seu uso (usus), daí o nome de usura (usura).
Por outro lado, há objetos cujo uso não se confunde com seu consumo. Assim, o
uso de uma casa consiste em habitá-la, não em destruí-la [como quando se come
uma fruta ou se gasta dinheiro]; pode-se, então, fazer uma distinção entre uso e
propriedade; por exemplo, vender uma casa da qual tivemos o direito de
aproveitar por algum tempo ou, ao contrário, ceder o uso da casa [alugá-la], mas
mantendo o direito à propriedade [usufruto potencial]. Por isso temos o direito de
exigir pagamento pelo usufruto [aluguel] de uma casa e depois pedir de volta a
casa cedida, como é o caso nos arrendamentos e nas locações de imóveis.

Tomás de Aquino conclui:


Quanto ao dinheiro em moedas, Aristóteles observou que foram inventadas para
facilitar as trocas; então, seu uso próprio e principal é no tocante ao consumo,
isto é, para ser gasto, porque para isso é utilizado nas compras e vendas. Em
consequência, por si só é injusto exigir pagamento pelo uso do dinheiro
emprestado; é nisso que consiste a usura [o juro]. E assim como temos de
devolver os bens adquiridos injustamente, também temos de restituir o dinheiro
recebido a título de juros.[130]

O que se destaca nessas diversas considerações é que emprestar dinheiro a


juros nunca é uma boa ação; aliás, é o que indicam as palavras hebraicas
mordida, um aumento ilegítimo do capital emprestado. Trata-se, portanto, de
um roubo efetuado por quem empresta sobre aquele que tomou emprestado,
ou seja, um roubo do credor sobre o devedor. Se o credor é pobre ou rico, se
os juros são elevados ou baixos, em nada muda o verdadeiro conteúdo da lei.
Permitir que Israel emprestasse dinheiro a juros (ou bens) aos estrangeiros
que lhes eram hostis e que, de fato, eram seus inimigos, na verdade não era
um benefício econômico, mas um ato hostil, um ato de guerra, porque é
sempre prejudicial àquele que tomou o empréstimo e terá de pagar um juro
ou juro composto — aumento progressivo da quantia devida — denominado
em hebraico, devidamente, “mordida”.
É particularmente interessante notar que, na legislação da Torá, os
estrangeiros amáveis em relação a Israel e que habitavam no meio do povo
judeu eram poupados da mesma sorte dos estrangeiros inimigos de Israel, que
podiam ser fraudados pelas medidas agressivas de extorsão econômica. Para
tomar apenas um exemplo bem conhecido, que diz muito sobre a atualidade
desse ensino da Torá que examinamos, podemos citar o domínio dos
Rothschild sobre as nações do Ocidente, desde o final das guerras
napoleônicas, que as reduziu cada vez mais — por causa da sua própria
cobiça — a um estado de dependência financeira dessa família de banqueiros.
Mas, infelizmente, essa não foi a leitura da casuística romana nominalista do
fim da Idade Média, nem de alguns dos mais eminentes Reformadores do
século 16 que, para nossa infelicidade, seguiram os erros dos casuístas de
Roma, em detrimento de uma leitura bíblica, patrística e escolástica e até
mesmo reformada da Lei de Deus.
Bucer, e depois dele Bullinger e Calvino, insistiram no fato — evidente nos
textos bíblicos que citamos — de que a proibição dos juros/usura se aplica,
em primeiro lugar, a toda a forma de exploração abusiva da miséria dos
pobres, os quais seriam reduzidos, pelo empréstimo a juros (a mesma coisa
que a usura), à pobreza mais terrível e à situação de escravidão. Depois,
Calvino e seus colegas, deixando o ensino bíblico, imaginaram uma distinção
(não bíblica, mas rabínica) entre o empréstimo usurário (a juro excessivo),
proibido aos pobres, e o empréstimo normal (a juro moderado), autorizado
nas transações comerciais, industriais e financeiras. Não é doutrinário (não
tem nenhum fundamento bíblico) e foi executado pelo próprio Calvino na
esteira da casuística romana dos séculos 15 e 16. Essa casuística fraudulenta,
aplicada à ética dos negócios, foi confirmada através de uma decisão
fundamental do papa Medici, Leão X, que mais tarde excomungou Martinho
Lutero[131]. Assim, o papa do banco dos Medici escancarou a porta para a
legitimação — os Medici possuíam, antes do surgimento dos Fugger, o
grande banco da época — da prática, universalmente aceita hoje (com
exceção de alguns bancos islâmicos), do empréstimo bancário a juros.
Citemos aqui, ainda, o historiador católico romano, Michel Hoffman:
Giovanni di Lorenzo de Medici, o Papa Leão X, alterou o dogma solene, mantido
em vigor pela Igreja Católica Romana desde sua fundação, e, como “pontífice
soberano”, declarou que a prática dos Bancos de Crédito de cobrar juros nos
empréstimos, de maneira alguma era uma ação pecaminosa, mas a fonte, de fato,
dos méritos. Toda pessoa que declarasse isso como pecado seria, declarava o
papa Medici, excomungada.[132]

Até então a usura (ou o juro), isto é, o ato de num empréstimo receber de
volta uma quantia em dinheiro a mais ou em forma de objetos, havia sido
considerada pelo cristianismo em toda parte — tanto o ortodoxo como o
católico romano — como um pecado grave e até mesmo um crime que
resultava em pesadas sanções religiosas e jurídicas. A oposição da
cristandade — desde os Pais dos primeiros séculos aos escolásticos da alta
Idade Média — eram unânimes em condenar o princípio do aumento da
quantia emprestada quando de seu reembolso. A razão disso era a distinção
(que Tomás de Aquino havia simplesmente resgatado) entre bens de consumo
(dizia-se fungíveis) e bens não consumíveis (dizia-se não fungíveis). Um bem
fungível, consumível, automaticamente se extinguiria pelo seu uso. É o caso
do dinheiro ou da comida; e era considerado que reclamar um acréscimo à
quantia emprestada seria como inventar um bem — o juro — que não tinha
nenhuma relação com o objeto da troca, o dinheiro, que era inteiramente
consumido por toda transação monetária. Todos esses desenvolvimentos nos
trazem à memória as palavras de Cristo:
Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar
ao outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e
às riquezas. (Mateus 6.24)

Há um ditado popular que expressa bem isso: “Você não pode ter [ao mesmo
tempo] a manteiga e o dinheiro da manteiga”. Por quê? Porque se você tiver a
manteiga, você já consumiu — gastou — o dinheiro (bem fungível,
consumível); se você tem o dinheiro porque não o gastou, você não pode ter a
manteiga, que também se extingue a partir do momento que você a consome.
Assim, é irracional e irreal querer possuir a manteiga, e além da manteiga, o
dinheiro, e além do dinheiro, o juro, isto é, a quantia emprestada e o valor a
mais, fictício, acrescentado a essa quantia. Porém, seria totalmente diferente
para os bens não fungíveis, não consumíveis, tais como os animais de carga,
o arado, uma casa, um apartamento, um campo, cujo empréstimo ou locação
poderia ser rentável, por um aluguel ou algo de benefício legítimo. Foi por
isso que com o desenvolvimento do comércio e das transações comerciais
desde o século 12 na Europa, algumas regras foram formuladas pelos
moralistas escolásticos, que permitiam estabelecer distinções entre bens
consumíveis e não consumíveis, entre empréstimo a juros (estritamente
proibido) e investimentos comerciais e industriais de risco, dos quais o
investidor podia esperar por ganhos, benefícios ou perdas, ligadas à
prosperidade (ou às dificuldades) da empresa, alvo de seus investimentos.
Havia quatro casos nos quais uma compensação — e não juro — podia ser,
legitimamente, esperada quando de um empréstimo. Vejamos como o
historiador belga Raymond de Roover esclarece essa questão difícil. Em seu
excelente livrinho O pensamento econômico dos escolásticos, ele escreveu o
seguinte:
Sejamos, então, precisos e comecemos fazendo a nós mesmos a pergunta
primordial: o que é usura? Atualmente entende-se por usura um juro exorbitante
e opressivo que ultrapasse de longe a taxa legal ou a exigida pelos bancos e
outras instituições de crédito. Mas NÃO era esse o significado que os
escolásticos davam à palavra usura. Segundo eles, era considerado usura [e,
portanto, condenável como um pecado ou mordida] todo o ganho derivado de um
empréstimo em razão do próprio empréstimo, ou ainda todo ganho recebido com
a intenção principal de tirar proveito de um empréstimo ou de um mutuum.[133] O
direito canônico definiu a usura como aquilo que ultrapassava a quantia principal
de um empréstimo.[134]

De Roover continua:
No fundo, todas essas definições davam na mesma e resultavam numa mesma
conclusão: a usura está relacionada somente ao empréstimo. Onde não há
empréstimo, explícito ou implícito, não pode haver usura. Dizemos explícito ou
implícito, porque é preciso distinguir entre a usura praticada abertamente
(aperta), exigida sem dissimulação no empréstimo, e a usura oculta sob a forma
de um outro contrato, que se torna então um contrato in fraudum usurarum.[135]

Assim, escreve de Roover:


Na doutrina escolástica, o caráter usurário de um contrato não depende da taxa de
juros, isto é, seja excessivo, moderado ou módico, isso não tem a menor
importância. Todo ganho [sobre um empréstimo], ainda que seja mínimo, é
usurário, uma vez que tenha sua origem no empréstimo. A utilização dada ao
dinheiro por aquele que recebeu o empréstimo também não merece nenhuma
consideração maior. Pouco importa se é emprestado ao rico ou ao pobre, a um
comerciante que o multiplique ou a um filho pródigo que o desperdice.[136]

De Roover destaca, então, que:


Foi João Calvino (1509-1564), o reformador, o primeiro [com Bucer e Bullinger]
a separar os empréstimos comerciais, sobre os quais [segundo ele] era permitido
receber juro, dos empréstimos feitos para socorrer as pessoas em dificuldade.
Estes empréstimos deviam ser gratuitos ou, melhor ainda, substituídos por
donativos, a fundo perdido. Segundo Calvino, é sobretudo neste último tipo de
empréstimo que se aplica, com toda a sua força, o preceito evangélico, Mutuum
dote nihil inde sperantes: Emprestai sem nada esperar (Lucas 6.35).[137]

Como acabamos de ver, essa distinção feita por Calvino e seus colegas
Reformadores era falsa, porque distinguia uma usura legítima nos negócios
comerciais, de uma usura ilegítima nas obras de caridade aos pobres. Eles
faziam essa distinção também nos empréstimos comerciais, isto é,
distinguiam uma usura legítima, com taxa moderada, de uma usura ilegítima,
com taxa excessiva. A distinção bíblica e eclesiástica, até então em vigor na
Igreja, distinguia de forma diferente, ou seja, fazia distinção entre a usura ou
empréstimo a juros — sempre ilegítimo — e o investimento com risco —
perfeitamente legítimo.
O pensamento de Tomás de Aquino tendia a deixar mais clara essa distinção,
como também o de João Calvino, três séculos mais tarde. Mas, enquanto o
primeiro mantinha a natureza, a essência intrínseca (isto é, ontológica) ilícita
de todo empréstimo a juros, Calvino abria a porta para uma legitimação
moral e teológica do sistema econômico moderno, que legitima o empréstimo
comercial e financeiro a juros legítimos que, segundo ele, devem ser
moderados. Calvino não via que a prática de se cobrar juros, em si mesma,
era errada, mas condenava apenas algumas de suas aplicações. Ele confundia
a essência do empréstimo com seus acidentes. De Roover explica isso assim:
A doutrina escolástica [mas também patrística e bíblica, como também de alguns
reformadores como Martinho Lutero e muitos outros reformados de confissão
anglicana] repousa sobre o princípio de que o dinheiro, sendo uma coisa fungível,
é estéril. Pecunia pecuniam non partit (dinheiro não gera dinheiro). Estritamente
falando, isso é correto, porque é certo que uma nota de dez dólares deixada no
fundo de uma gaveta não é como um casal de ratos e não produz filhotes.[138]

Para concluir, devemos então fazer a pergunta decisiva: Mas pode-se dizer o
mesmo do dinheiro investido nos negócios? Calvino afirmava que era
ilegítimo extorquir os pobres através dos juros, mas legitimava os juros
comerciais moderados. Tomás de Aquino, mais próximo do pensamento
bíblico e patrístico, afirmava (com Aristóteles) que o dinheiro — em si
mesmo — era um bem fungível, consumível, como o alimento e, portanto,
desaparecia em seu consumo e não era produtivo. Assim, todo juro cobrado
num empréstimo era uma realidade fictícia — como, num outro plano, o
dinheiro virtual criado do nada por nossos bancos centrais — e se constituía
num roubo. Porém, ainda assim, Tomás de Aquino reserva um lugar para os
benefícios provenientes de investimentos comerciais e industriais com riscos.
[...] ele o compara [o dinheiro investido na indústria e no comércio com risco] a
uma semente que, enfiada no solo, vai germinar e produzir uma colheita.[139]

De Roover pensa que nisso Tomás de Aquino se contradiz. Mas esse não é o
caso! O pensamento escolástico já havia desenvolvido uma distinção
essencial — que Calvino procura retomar de maneira muito infeliz e com
consequências desastrosas incalculáveis — entre empréstimo a juros, claro
roubo ilegítimo, e os benefícios (ou perdas) vindos de investimentos a risco
numa empresa, isto é, benefícios legítimos, que são uma participação do
investidor nos lucros e perdas da empresa; ao contrário disso, o empréstimo a
juros é um benefício imaginário, automático e sem nenhum limite no tempo
— uma verdadeira usurpação do bem do outro — sobre o dinheiro
emprestado, sem relação nenhuma com a prosperidade ou perdas daquele que
recebe o empréstimo — empreendedor ou comerciante.
S. C. Mooney resume bem toda a questão, quando cita o teólogo católico
romano, Patrick Cleary:
Se um excedente pudesse ser cobrado [num empréstimo], sua legalidade não teria
como base o contrato de mutuum [empréstimo de um bem fungível, consumível],
mas um contrato paralelo, explícito ou implícito, que permitiria ao credor uma
compensação por perdas ocasionadas por circunstâncias extrínsecas [isto é,
exteriores, como por exemplo a inflação da moeda] à natureza do contrato
principal [de empréstimo].[140]

Mooney explica:
Havia, principalmente, quatro razões que autorizavam essas compensações: (1)
Damnum emergens (perda decorrente de danos importantes); (2) Lucrum cessans
(benefício perdido); (3) Poena coventienalis (penalidade estabelecida por acordo
mútuo, essencialmente uma multa por atraso no reembolso do empréstimo); (4)
Periculum sortis (compensação pelo risco). Os teólogos tinham debatido a
questão desses títulos extrínsecos no empréstimo durante séculos, mas foi
somente no fim da Idade Média que eles encontraram aceitação geral na Igreja e
passaram a fazer parte da prática comum dos negócios.[141]

As primeiras duas formas de compensação (por danos importantes e o


benefício potencial perdido em consequência do empréstimo) eram
conhecidas sob o nome de interess, palavra latina que significa “juro” ou
pagamento compensatório. Ela está na raiz da palavra francesa intérêt, a qual
hoje tem sentido positivo e foi substituída por usura (mordida), para
descrever o pecado de se cobrar mais do que foi emprestado (= roubo).
Mooney diz muito bem:
Pagamentos compensatórios em favor de emprestadores, em princípio não são
errados, mas tornam-se errados quando retorna ao credor quantia maior do que a
emprestada.[142]

Por exemplo, quando da desvalorização da quantia emprestada pela inflação


da moeda.
A terceira forma de compensação, a penalidade por atraso de reembolso,
deixava uma grande porta aberta aos usurários. O credor estipulava que a
quantia emprestada devia ser reembolsada no dia seguinte e, como isso não
era possível, ele impunha multa por todo atraso de pagamento. Isso era um
abuso da lei pela introdução, de forma legal, mas injusta, do empréstimo a
juros. O atraso no pagamento da dívida não justifica, de maneira nenhuma, a
exigência de um acréscimo sobre o principal, isto é, sobre o dinheiro
emprestado. Se aquele que empresta sofreu outros danos em razão do atraso
do reembolso — por exemplo uma incapacidade de comprar sementes para a
semeadura — isso é outra questão.
A quarta forma de compensação é o risco incorrido. O risco incorrido por
empréstimos comerciais e industriais — participação no capital de risco (nos
lucros e nas perdas de uma empresa) — era totalmente diferente do risco
considerado pelos usurários nos empréstimos ordinários. Dessa maneira, sob
pretextos quase sempre de aparência legítima e por abusos casuísticos, cada
vez mais foi sendo liberada a prática fraudulenta de uma usura que tinha
aparência de legitimidade (ao menos, desde o século 15), mas que não
passava de uma forma de extorsão ilegal.
O catecismo de Heidelberg é nisso particularmente claro. Na questão 110: “O
que Deus proíbe no oitavo mandamento?”. Resposta:
Deus proíbe não somente o roubo e a pilhagem punidos pelo magistrado, mas
também todas as intenções e meios errados pelos quais tentamos tomar os bens
do nosso próximo, seja por violência ou trapaça, como por pesos e medidas
falsos, falsas mercadorias, moedas falsas, pela usura [ou seja, por empréstimo a
juros] ou por qualquer outro meio proibido por Deus. Ele nos proíbe também
toda avareza e todo desperdício desses dons.[143]

Mooney opõe a Cidade de Deus à cidade dos homens, Jerusalém à Babilônia.


Vale a pena citá-lo aqui:
De longe, o fator mais importante na liberalização e generalização da prática da
usura foi o crescimento do comércio, desde o final da Idade Média, e a demanda
incessante, pelo financista, do aumento do crédito. [...] Foi assim que os ganhos
legítimos provenientes das trocas e do comércio se tornaram uma tentação para
se obter, ilegalmente, ainda maiores lucros. Animados por um sentimento novo
de poder, os homens tornaram-se obcecados ao imaginar tudo que poderiam
realizar se apenas tivessem capital suficientemente disponível. Assim, perderam
de vista o que tinha sido feito dentro dos limites estabelecidos, de uma vez por
todas, pela lei de Deus.[144]

Mooney, evocando a Cidade de Deus, continua:


Na Cidade de Deus, os homens procuram, de fato, ter domínio sobre a criação,
porque essa foi a vocação que receberam de Deus. É por ele e para sua glória que
agem assim. Os corações que têm esse firme objetivo, que são instruídos por sua
lei e sustentados por sua graça, podem superar a tentação de querer agir para
obter tudo o que podem desejar, disciplinando-se em fazer apenas o que devem.
Eles julgam todas as coisas segundo um padrão justo. Se a usura [isto é, o
empréstimo a juros] lhes parecer necessária para empreender certa forma de
comércio, não são obrigados a ceder a essa necessidade econômica, porque não
podem tornar legítimo o que o próprio Deus condenou; antes disso, o caráter
ilegítimo da usura tem como efeito eliminar toda forma de ação comercial e
industrial que exija a prática do empréstimo a juros.[145]

Os habitantes da Cidade celeste sabem agir economicamente no âmbito das


bênçãos materiais e espirituais resultantes da obediência às condições da
aliança divina escritas na Lei de Deus.
Depois, Mooney examina o comportamento dos que aderem à Cidade de
Deus, oposto ao comportamento dos partidários da Cidade terrestre:
Entretanto, na cidade terrestre não ocorre o mesmo. Os habitantes da Babilônia se
sentem sós no mundo e têm de construir um nome, uma glória para si mesmos.
[146]
Precisam edificar um grande monumento à sua própria honra, porque não
conhecem lei e atribuem unicamente a si próprios a glória do que são. [O
humanismo amoral e puramente “economista”, mundial.] Então, podem decidir
por si mesmos o gênero de atividade comercial que deve prevalecer e se para isso
a usura e os juros são necessários. Se for o caso, não lhes virá à mente condenar
sua escolha, mas, ao contrário, fariam tudo o que pudessem para tornar legítima a
usura, o empréstimo a juros.

Em primeiro lugar, moralmente; em seguida, legalmente.


[...] Mas a peste da usura permanece sempre conosco. Nossa era é terrivelmente
cega e fraca. Se a igreja de hoje tivesse de procurar aqui um alvo preciso, esse
seria, sem dúvida, o de erradicar de seu seio a prática do empréstimo a juros.[147]

CONCLUSÃO

Para concluir, vamos resumir nossas observações.


O principal sentido das palavras hebraicas para juro ou usura são mordida e
aumento. Aristóteles, como Moisés, há muito tempo havia condenado esse
aumento do principal (do capital investido) como sendo uma ilusão
fraudulenta, porque, na realidade deste mundo, o dinheiro é incapaz de
aumentar, ao contrário das colheitas, do gado ou do trabalho produtivo dos
homens. O aumento do dinheiro por essa forma de especulação chamada
juros é, portanto, a sua cobrança sobre um empréstimo, que é uma ficção
mentirosa, uma ilusão, uma ação fraudulenta e criminosa. Trata-se da criação
de riquezas virtuais (isto é, não reais) a partir do NADA. Aqui o homem
assume a posição do Deus que criou todas as coisas ex nihilo, ou seja, do
nada. Portanto, os juros cobrados de empréstimos não produtivos não é outra
coisa senão pura fraude, uma extorsão, um furto, um roubo. É por essa razão
que os juros cobrados num empréstimo que, como tal, não podem produzir
nenhum aumento de capital, devem ser considerados como roubo, rapinagem
que acabará por reduzir ao estado de escravidão aquele que tomou
emprestado. Isso é particularmente evidente no que se refere aos pobres, mas
também para as nações empobrecidas; mas esse princípio se aplica
igualmente aos ricos que emprestam a juros. Os juros compostos só fazem
aumentar o roubo.
A razão disso é o caráter mecânico (sem risco), como também a duração
indeterminada do lucro proveniente do juro cobrado sobre os empréstimos de
capitais ou de bens fungíveis (consumíveis). Isso leva ao enriquecimento
contínuo do credor e ao empobrecimento progressivo daquele que empresta.
Em Israel, a Torá determinava que a dívida — sem juros — não podia durar
mais que seis anos; no sétimo ano eram todas revogadas. Toda a
possibilidade de perda definitiva da propriedade familiar era também abolida
no ano do jubileu, o quinquagésimo ano, no qual as propriedades vendidas
revertiam a seus antigos donos. A aplicação dessas leis em Israel tornava
impossível todo enriquecimento excessivo permanente no tempo. O que fazia
com que o empobrecimento não fosse eterno, irreversível, que não pudesse
ser enfrentado por aquele que tivesse caído em desgraça nem por sua família
ou sua descendência. Por um lado, aceitava-se que a vida econômica tinha em
si riscos e que os que administravam irresponsavelmente os bens que Deus
lhes havia confiado deviam ser sancionados, mas isso por um período de
tempo de cinquenta anos, que terminava no Jubileu. Portanto, o ano do
jubileu era uma realidade religiosa e econômica, que constituía um tipo da
libertação dos homens pela fé na obra redentora e histórica de Jesus Cristo.
[148]

O problema fundamental suscitado pelo empréstimo a juros é o seguinte: o


credor, quando empresta a juros — a um empresário, por exemplo — não
participa de maneira orgânica do risco da empresa. Enquanto o
endividamento persistir, o usurário será beneficiado pelos juros que, sendo
compostos e acrescentados à dívida, farão com que essa aumente
constantemente. Portanto, o credor participa apenas dos benefícios
automáticos de seu empréstimo e não dos riscos e benefícios, lucros e perdas
reais, sofridos por aqueles aos quais o dinheiro foi emprestado. É muito
diferente do acionista de uma empresa que, por seu investimento, participa —
de maneira orgânica, viva — tanto dos riscos de perda como da esperança
nos lucros do empreendedor.
A orientação essencial desse ensino contido na Torá abrange todos os juros,
todo aumento do principal, que traz o nome negativo de mordida e que nada
mais é que um roubo de um ganho imaginário a mais, acima da dívida, que o
devedor deverá reembolsar. Porque, como acabamos de ver, tanto para
Moisés como para Aristóteles, o dinheiro, como todo bem fungível, cuja
natureza é ser consumido, não é produtivo em si mesmo. Para que uma ação
seja produtiva, é necessário que envolva seres vivos, vegetais, animais ou
seres humanos criativos e capazes de empreender. Nenhum ganho pode vir
do próprio dinheiro, porque o ouro, o papel moeda ou o crédito eletrônico não
produzirão nada se os deixarmos inativos. Somente os agentes
“empreendedores” permitirão que o capital produza e o empréstimo a juros,
automático e cumulativo, não faz parte desses agentes.
Por essas razões, Cristo afirmou, muito enfaticamente, que não se pode amar
a Deus e ao dinheiro ao mesmo tempo (Mamon, as riquezas). Foi por isso que
o apóstolo Paulo tratou a cobiça, o amor ao dinheiro, como idolatria
(Colossenses 3.5) e disse, aliás, que esse amor é a raiz de todos os males (1
Timóteo 6.10). A avareza, pecado mais comum do que imaginamos, deve ser
banida do coração de todo cristão! Podemos amar os bens, como uma casa,
uma empresa, animais, cavalos, etc., sem necessariamente pecar, mas o amor
ao dinheiro — que é a medida monetariamente quantificada de todas as
outras riquezas — é o máximo da perversão espiritual, moral e econômica.
Como diz a Escritura, a cobiça equivale à idolatria, porque é como colocar a
moeda, que é a medida do valor de tudo que pode ser trocado
comercialmente, no lugar do Deus da Aliança, o único que faz crescer e
diminuir. Uma economia baseada no enriquecimento pelo juro automático
pode materialmente produzir muito, mas edificará uma civilização
intrinsecamente estéril! A razão disso é que constitui uma ruptura radical, no
plano econômico, da aliança criacional de Deus com os homens. Além disso,
a moeda, o dinheiro como meio de troca, essa pura criação humana —
simples meio de troca pelo qual se mede o valor monetário dos objetos
trocados — tornou-se, pela especulação financeira, o instrumento idólatra
apto a satisfazer todas as cobiças dos homens das coisas criadas por Deus.
Tal idolatria é condenada totalmente pelo ensino bíblico. Pedro também se
opôs com toda a força de sua autoridade apostólica a esse espírito de cobiça
(2 Pedro 2.12-14).
É o amor a Deus e a adoração santificada pela divindade, Pai, Filho e Espírito
Santo que suscita em nós uma mentalidade produtiva e que nos permite
renovar o mandato criacional, ser fecundos e dominar a criação com bondade
e justiça. Somente tal atitude, em relação a Deus e para com as condições de
sua aliança, pode dar um justo lugar aos bens tão diversos deste mundo. Isso
é verdade no que concerne ao seu valor hierárquico próprio tanto em nossa
mente como em nossa ação.
Portanto, o amor ao dinheiro acima de Deus e dos outros bens criados por ele,
os quais nos deu de forma tão liberal, é idolatria. Colocar a medida monetária
das coisas acima de tudo, conduz à construção de uma sociedade totalmente
materialista e, dessa maneira, à exclusão progressiva das normas reais, ou
seja, de tudo que possa escapar dessa medida puramente quantitativa,
mercantilista, monetária e comercial, atitude que fossiliza e que petrifica a
vida social moderna. Antes de tudo, isso exclui Deus — o bem supremo por
excelência e, por sua natureza, não mensurável — e sua aliança que abençoa
toda a realidade econômica social e política. É nessa sociedade, moldada por
uma sede de lucro e de um espírito de opulência ateia, que vivemos na Suíça
atual.
Tal mentalidade, que idolatra as riquezas e os bens sensuais e hedonistas que
Mamon nos dá, tendo por isso excluído Deus, de forma inevitável e para
preencher seus desejos, voltou-se para o acaso, próprio das especulações
financeiras. Essa mesma mentalidade, que busca um ganho fortuito como nos
cassinos, foi introduzida, desde alguns anos, em nosso país. Foi ela que nos
conduziu aos solavancos financeiros e comerciais destes últimos anos, em
particular a derrocada da Swiss-Air e o desmoronamento da UBS.[149] É o
culto ao dinheiro que, atualmente (2017), leva o Banco Nacional Suíço a
buscar uma estabilização do franco suíço, produzindo, eletronicamente ou em
papel, bilhões de francos suíços virtuais e meramente imaginários.
Trata-se da universalização do espírito de fraude, pelo efeito dominó à
Madoff. O desaparecimento virtual do empréstimo a juros pagos pelos bancos
àqueles que ali depositaram e a aquisição injusta de riquezas pela especulação
na bolsa é, de fato, uma situação moralmente ainda pior do que a que reinava
no reino da usura/juros.
Na raiz dessas catástrofes estava o descolamento progressivo das operações
bancárias de todo fundamento baseado numa realidade de valor objetivo, o
padrão ouro, por exemplo, ou a limitação rigorosa da inadimplência pela
cobertura parcial e obrigatória dos empréstimos, o que antes tinha sido a
grande força do centro financeiro suíço. No plano mundial, isso fez com que
a especulação financeira (uma forma gigantesca de jogos de azar dos
cassinos, adaptada ao sistema bancário) substituísse as funções normais dos
bancos, baseados no acúmulo das economias de seus clientes, que conduziam
a investimentos com risco, verdadeiramente produtivos.
Abordaremos, se Deus quiser, alguns aspectos desse tema no próximo mês,
quando examinarmos o ensino bíblico sobre os pesos e medidas, que,
poderemos constatar, têm o que dizer sobre a prática vergonhosa dos bancos
centrais que acabam criando dinheiro do nada, tanto para o funcionamento do
sistema de reserva fracionária bancária como pelo que chamamos de máquina
de fazer dinheiro, ou seja, pela invenção, por simples assinatura, de riquezas
tão imaginárias quanto virtuais, antes nunca concebidas.
Até a Reforma, toda a tradição cristã — com exceção da casuística da Idade
Média que findava — havia proibido cobrar qualquer juro sobre os
empréstimos. É verdade que, desde os últimos séculos da Idade Média,
diversos subterfúgios haviam sido inventados para permitir tais práticas, mas
que mantinham a proibição formal da igreja romana contra o juro. As
autoridades da igreja de Roma, por seu insaciável desejo de lucro, tiveram
um papel importante no desenvolvimento sorrateiro dessas práticas ilícitas.
Como vimos, o próprio João Calvino cometeu um erro exegético, teológico e
ético fundamental ao confundir o investimento com risco — no comércio e
na indústria — com o empréstimo a juros. O investimento capital-risco (que
podia produzir benefício, como também perdas) fazia com que o investidor
participasse, de maneira orgânica e criativa, da empresa industrial e
comercial. A usura, o empréstimo a juros, que sempre é uma mordida pelo
aumento ilícito do capital, ganho fictício que fornece benefícios automáticos
e sem limites no tempo, tornou-se desde então a realidade econômica
dominante.
O fato de Calvino ter procurado limitar (mais do que impedir) os juros nos
empréstimos, não muda em nada o alcance dessa mudança de perspectiva a
longo prazo. Em relação ao princípio em si, a brecha estava aberta e a
economia moderna muito rapidamente mergulhou no espaço agora liberado
das proibições normativas cristãs e bíblicas tradicionais. O sistema bancário
ocidental conseguiu ignorar, até o presente, com toda boa consciência, a
diferença fundamental entre a especulação financeira e os investimentos
produtivos com risco. Foi essa apostasia cristã em relação às normas éticas
comerciais e financeiras que abriu a porta para o desastre mundial da
perversão da administração do dinheiro que assistimos neste começo do
século 21. Que Deus mesmo venha em nossa ajuda, porque está mais que
provado que do homem não devemos esperar socorro!
Terminaremos citando o que o apóstolo Paulo escreveu na forma de
provérbios endereçados aos cristãos da Galácia:
Guarda-te para que não sejas também tentado. Levai as cargas uns dos outros e,
assim, cumprireis a lei de Cristo. Porque, se alguém julga ser alguma coisa, não
sendo nada, a si mesmo se engana. Mas prove cada um o seu labor e, então, terá
motivo de gloriar-se unicamente em si e não em outro. Porque cada um levará o
seu próprio fardo. Mas aquele que está sendo instruído na palavra faça
participante de todas as coisas boas aquele que o instrui. Não vos enganeis: de
Deus não se zomba; pois aquilo que o homem semear, isso também ceifará.
Porque o que semeia para a sua própria carne da carne colherá corrupção; mas o
que semeia para o Espírito do Espírito colherá vida eterna. E não nos cansemos
de fazer o bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não desfalecermos. Por isso,
enquanto tivermos oportunidade, façamos o bem a todos, mas principalmente aos
da família da fé. (Gálatas 6.1-10)
Capítulo XII: O ensino bíblico sobre balanças falsas

INTRODUÇÃO
Nossas duas últimas exposições foram dedicadas ao ensino bíblico sobre a
usura ou o empréstimo a juros. Neste capítulo daremos sequência ao nosso
exame, através da Bíblia e da Lei de Deus, dedicado às implicações atuais
relacionadas com o oitavo mandamento. Examinaremos o que diz a Palavra
de Deus sobre a utilização de balanças falsas pelos homens, com o objetivo
de roubar melhor seu próximo e, mais grave ainda, ofender seu Criador.
Veremos o que a Bíblia nos diz sobre o uso das falsas balanças e sobre a
falsificação dos pesos e medidas. Em seguida, tentaremos compreender como
essas regras, tão antigas, se aplicam às situações presentes:

1. O ensino bíblico sobre as falsas balanças e medidas na: a) Lei; b) Nos


provérbios; c) Nos profetas. 2. A aplicação atual dessas leis antigas sobre as
falsas balanças e medidas. Conclusão.
Portanto, veremos a aplicação desse ensino, sobretudo, com a ajuda dos
reformadores João Calvino, Pierre Viret e Heinrich Bullinger, como também
dos trabalhos de Rousas J. Rushdoony e de outros estudos modernos. Essa
segunda parte será, portanto, eminentemente prática.

1. O ensino bíblico sobre balanças e medidas falsas


(1) O ensino da Lei
Temos dois textos na Torá que tratam, especificamente, da questão das falsas
balanças e falsos pesos e medidas.
(a) No livro de Levítico
Não cometereis injustiça no juízo, nem na vara, nem no peso, nem na
medida. Balanças justas, pesos justos, efa justo e justo him tereis. Eu sou
o Senhor, vosso Deus, que vos tirei da terra do Egito. Guardareis todos os meus
estatutos e todos os meus juízos e os cumprireis. Eu sou o Senhor. (Levítico
19.35-37)

Esse é o texto normativo fundamental da Lei, para toda questão concernente a


balanças e medidas falsificadas. Como é costume na Torá, ele começa de
maneira negativa — Não cometereis injustiça (verso 35a) — em seguida
declara o mandamento de maneira positiva — Balanças justas, pesos justos,
efa justo e justo him tereis. Notemos que ele integra diretamente essas
prescrições comerciais e financeiras nas ordenanças da justiça civil e
criminal, ou seja, os julgamentos devem ser justos (verso 35). Aqui a palavra
traduzida por “julgamento”, mishpat em hebraico, diz respeito,
particularmente, ao aspecto público do exercício da justiça, isto é, à ação dos
tribunais. Para a justiça pessoal, o que podemos chamar de virtude da justiça,
do hábito de ser justo em todas as suas ações, a Bíblia hebraica emprega a
palavra tsedek.
Essa ordenança tem um caráter completo. Trata-se de impor a obrigação de
ser justo em todas as suas transações comerciais; de fugir da injustiça em
todas os seus empreendimentos, no que se refere aos julgamentos e medidas.
Trata-se da dimensão, do peso e da capacidade. Em seguida, o texto afirma
que são os próprios objetos que têm de ser justos, isto é, balanças justas,
pesos justos, efa e him justos. Mais completo que isso não poderia ser.
Portanto, essa lei diz respeito: a. Às medidas de tamanho; b. Aos pesos; c. Às
medidas de capacidade.
Ela confirma essa proibição quando ordena, de maneira positiva, que o
israelita seja justo: a. Na utilização das balanças; b. Dos pesos; c. Do efa
(medida dos materiais sólidos); d. Do him (medida dos materiais líquidos).
A conclusão, aqui, é perfeitamente evidente: deve-se rejeitar toda injustiça e,
em consequência, ser justo em toda ação relacionada a medidas. Todas as
transações comerciais têm de ser marcadas com o selo da justiça do próprio
Deus.
O texto da lei termina com a afirmação da autoridade soberana daquele que a
editou sobre todas as ações financeiras e comerciais dos homens:
Eu sou o Senhor.

Em seguida esse Deus soberano afirma que ele mesmo é o autor da aliança da
graça que fundamenta a prática de seus mandamentos, ou seja, foi exatamente
ele quem fez Israel sair do Egito e sua Igreja da escravidão do pecado.
Eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos tirei da terra do Egito.

Nosso texto termina com a afirmação forte sobre a obrigação absoluta, para
os israelitas, de colocar em prática todas as ordenanças de Deus e, em
particular, de ser perfeitamente justo em seus negócios, nas suas relações
comerciais e financeiras. A fé cristã também começa pelo Deus soberano; ela
se manifesta pela salvação que ele operou por nós em Jesus Cristo e que
resulta, necessariamente, em nossa vida de obediência aos mandamentos de
Deus. Deus assina essa lei com o selo de sua divina autoridade: Eu sou o
Senhor. Essa é a exposição desse primeiro texto da lei.
Agora, façamos algumas observações:
(a) Notaremos que esse texto é o ponto culminante do que chamamos a lei de
santidade contida no livro de Levítico. A santidade na Bíblia não diz respeito
apenas à nossa piedade pessoal, ao culto que damos a Deus, à nossa vida
religiosa interior, mas a toda nossa vida pública e privada, inclusive a todos
os aspectos da vida dos negócios. Para simplificar, a santificação não é
unicamente um negócio de domingo — a religião — mas diz respeito a toda
nossa vida, a todos os nossos pensamentos, os nossos sentimentos e todas as
nossas ações mais quotidianas, mais corriqueiras, mais ordinárias. Não somos
cristãos gnósticos ou pietistas, super espirituais, que fazem separação (isso é
dualismo gnóstico e pietista) entre a vida religiosa e profana. Nosso Senhor é
o Senhor de toda a realidade criada, preservada e salva por ele, e nossa
obediência de fé a seus mandamentos, cumprida em Jesus Cristo e pelo poder
do Espírito Santo, diz respeito a todos os ângulos da nossa vida, tanto público
como privado.
Em seu belo comentário sobre Levítico, Samuel Kellogg diz muito bem:
Todos os que professam a fé devem, particularmente, lembrar que sem
santificação ninguém verá o Senhor e que hoje essa santidade é a mesma referida
por Deus quando deu a Israel o livro de Levítico. Essa santidade, se de um lado é
inspirada pelo temor a Deus, de outro exige do fiel que ame seu próximo como a
si mesmo.
Acrescentamos, até nos negócios. Kellogg continua:
É uma completa contradição, por exemplo, respeitar o Dia do Senhor [...] e
durante a semana misturar água no leite que se vende, falsificar medicamentos ou
guloseimas, diminuir o tamanho do metro quando se mede, apertar a balança
quando se pesa alguma coisa [e acrescentamos hoje, traficar a venda ou compra
de ações na bolsa ou jogar com dívidas hipotecárias!].
Ele comenta:
Deus detesta e até os ateus desprezam esse tipo de religião. Os que pensam assim
da religião têm uma noção muito estranha do cristianismo. Imaginam [como
gnósticos miseráveis que são] que a fé cristã não toca nos aspectos práticos da
vida ordinária dos cristãos. Não entendem que, na verdade, uma religião de
domingo não mostra o menor traço de santidade do Criador e Salvador.

O resultado:
Quando chegar o dia do julgamento de Deus — e virá sem dúvida para cada
pessoa — ele passará pela peneira de fogo todas as ações dos homens. Na
fornalha ardente do juízo de Deus, todas essas obras religiosas [pietistas e
gnósticas] serão reduzidas a pó, como o fogo faria com uma teia de aranha.[150]

Tal homem passará pela peneira e todas as suas obras religiosas juntamente
perecerão. O apóstolo Paulo escreveu aos coríntios exatamente sobre isso:
Segundo a graça de Deus que me foi dada, lancei o fundamento como prudente
construtor; e outro edifica sobre ele. Porém cada um veja como edifica. Porque
ninguém pode lançar outro fundamento, além do que foi posto, o qual é Jesus
Cristo. Contudo, se o que alguém edifica sobre o fundamento é ouro, prata,
pedras preciosas, madeira, feno, palha, manifesta se tornará a obra de cada um;
pois o Dia a demonstrará, porque está sendo revelada pelo fogo; e qual seja a
obra de cada um o próprio fogo o provará. Se permanecer a obra de alguém que
sobre o fundamento edificou, esse receberá galardão; se a obra de alguém se
queimar, sofrerá ele dano; mas esse mesmo será salvo, todavia, como que através
do fogo. (1 Coríntios 3.10-15)

(b) A segunda coisa que devemos notar aqui é que as balanças — os pesos e
as medidas justas — na época não serviam apenas para pesar ou verificar a
qualidade das mercadorias comercializadas, mas também serviam para pesar
(mensurar) dinheiro, porque as peças de moeda, longe de serem uniformes,
necessitavam que seu peso exato, em prata ou ouro, fosse aferido para
determinar o valor verdadeiro. Então, fraudar balanças e pesos implicava,
necessariamente, falsear também a moeda e, consequentemente, fraudar o
valor das mercadorias comercializadas.
Vejamos alguns textos que revelam o aspecto financeiro e monetário do uso
correto das balanças e dos pesos. Em primeiro lugar vejamos em Gênesis:
Tendo os camelos acabado de beber, tomou o homem [tratava-se do servo de
Abraão envia além do rio para procurar uma esposa para o filho de seu mestre,
Isaque] um pendente de ouro de meio siclo de peso e duas pulseiras para as mãos
dela [de Rebeca], do peso de dez siclos de ouro. (Gênesis 24.22)

Em nosso segundo exemplo trata-se de Acã que, após a derrota de Israel


contra Ai, causada por ter desobedecido a ordem absoluta dada por Deus para
não lançar mão do despojo, respondeu a Josué desta maneira:
Quando vi entre os despojos uma boa capa babilônica, e duzentos siclos de prata,
e uma barra de ouro do peso de cinquenta siclos, cobicei-os e tomei-os [...].
(Josué 7.21)
Mas onde se achará a sabedoria?
E onde está o lugar do entendimento?
O homem não conhece o valor dela,
nem se acha ela na terra dos viventes.
O abismo diz: Ela não está em mim;
e o mar diz: Não está comigo.
Não se dá por ela ouro fino,
nem se pesa prata em câmbio dela. (Jó 28.12-15)

Em cada um desses textos (e poderíamos citar muitos outros, como 1 Samuel


17.5; 43.21; 1 Reis 10.14; 1 Crônicas 28.14-18; Números 7.7-79 ; 2 Crônicas
9.13; Esdras 8.30-34, etc.), vemos que as peças de prata ou ouro — por causa
de suas formas irregulares — tinham de ser pesadas antes que se pudesse
saber seu verdadeiro valor. Assim, ao falsificar balanças ou pesos,
falsificava-se ao mesmo tempo o valor da moeda que era, no fim das contas,
determinado por balanças e pesos corretos. Veremos, na segunda parte do
nosso estudo sobre esse assunto, as implicações atuais do ensino bíblico
sobre a utilização das balanças na determinação do valor da moeda em
circulação.
(b) Deuteronômio 25.13-17
Vamos ao nosso segundo texto, que está em Deuteronômio.
Na tua bolsa, não terás pesos diversos, um grande e um pequeno. Na tua casa,
não terás duas sortes de efa, um grande e um pequeno. Terás peso integral e
justo, efa integral e justo; para que se prolonguem os teus dias na terra que te dá
o Senhor, teu Deus. Porque é abominação ao Senhor, teu Deus, todo aquele que
pratica tal injustiça. (Deuteronômio 25.13-16)

Constatamos aqui um progresso na formulação da lei. Trata-se simplesmente


de proibir a falsificação das balanças (ou pesos e medidas), com o objetivo de
fraudar o próximo, mas também impedir uma trapaça ainda maior, isto é, usar
dois tipos de medidas, dois pesos diferentes em sua bolsa, com o objetivo de
ganhar ilicitamente duas vezes, ou seja, na compra e depois na venda.
O texto exorta, em primeiro lugar, o fiel a não ter em sua bolsa dois tipos de
pesos, um pequeno e outro grande. A palavra hebraica, que traduzimos por
peso, significa pedra. Numa bolsa, o comerciante tinha pedras com pesos
específicos e fixos. Esse peso, colocado sobre um dos pratos da balança,
permitia pesar a mercadoria na compra e na venda. Mas aqui se trata de dois
pesos ou pedras que têm o mesmo valor nominal, mas um é mais pesado que
o outro. Trata-se não somente de um roubo premeditado, mas também
materialmente organizado, segundo o princípio do antigo provérbio —
aplicável a todas as nossas relações humanas — ter dois pesos e duas
medidas. Rushdoony explica a natureza da manobra desonesta, desta
maneira:
A utilização de diferentes pesos faz referência às antigas práticas de fazer uso de
pequenos ou grandes pesos conforme as circunstâncias. O fato de utilizar um
peso mais pesado para comprar uma mercadoria — uma galinha ou um bezerro
— significava receber mais do que efetivamente havia sido pago. Utilizar um
peso mais leve na venda resultava num benefício não merecido.[151]

Se duas pedras fossem marcadas com o mesmo peso, mas tivessem, de fato,
pesos diferentes, a pedra mais pesada daria a impressão de que o objeto
comprado seria mais leve do que na realidade. O peso da mercadoria seria
fraudado, porque indicaria ser mais leve do que realmente era e seria uma
fraude na compra. Se a pedra utilizada na venda fosse mais leve, a impressão
dada ao comprador seria que a mercadoria vendida era mais pesada do que
era de fato. Seria, portanto, uma fraude na venda. Tratava-se de uma ação
criminosa organizada, cuidadosamente engendrada, portanto, um crime
abominável. É o que vemos nas manobras desonestas e sofisticadas de nossos
corretores — esses verdadeiros banksters, ladrões de estrada, traficando
sobre as diversas bolsas do mundo, que fazem subir ou baixar à vontade o
preço das ações nas bolsas ou a taxa de câmbio das moedas, através de
compras ou vendas massivas. Compram para fazer subir o preço; vendem
para fazê-lo baixar. Uma vez atingido o preço desejado, vende-se (ou
compra-se massivamente) para maximizar os lucros. É a vilania financeira
em larga escala.
O mesmo valia para o uso em casa de um grande efa (uma cesta, por
exemplo, para medir a quantidade de cereais comercializados) ou de um efa
pequeno. Usava-se a cesta grande de medir se fosse compra, recebendo assim
mais do que era oficialmente indicado. Ao usar o menor efa para a venda,
vendia-se ao cliente menos do que havia oficialmente comprado. Tratava-se
também de um crime vil, pensado e organizado.
Aqui temos a última (Deuteronômio 25.13-16) da grande série das leis
dedicadas a comentários sistemáticos sobre o Decálogo. Trata-se, também, de
um comentário sobre a aplicação do décimo mandamento, que proíbe a
cobiça. Essa dupla proibição sobre pesos e medidas é seguida da ordem para
se ter pesos e efas justos e exatos. A consequência de se preservar a justiça
nos negócios é claramente indicada, isto é, a preservação de uma vida longa
no país que Deus dava a seu povo. Essa feliz consequência é natural, uma vez
que as exigências da lei de Deus correspondem à própria natureza humana, a
uma vida social justa, como também à ordem estabelecida por Deus na
criação. Agir de maneira contrária a essa lei leva à maldição, porque o Deus
de Israel, que é também dos cristãos, tem como abominável tal
comportamento e o coloca no mesmo plano da idolatria, das piores
perversões sexuais ou da desonra aos pais ou do desprezo às autoridades de
sua Igreja.
Vejamos o comentário de Lutero sobre essa lei:
Peso e medida justos têm de ser preservados na comunidade, a fim de que seu
vizinho, e mais especificamente os pobres, não sejam alvo de trapaça. Essa lei se
aplica de maneira geral a todos os negócios e contratos, a fim de que o vendedor
forneça mercadorias justas que correspondam ao dinheiro recebido. A cobiça
humana tem a capacidade de inventar abusos dos mais inimagináveis,
modificando, diminuindo, imitando e adulterando as mercadorias. Tarefa
importante do governo é velar por suprimir tais abusos e assim defender o bem
comum.[152]

De sua parte, Christopher Wright escreveu:


As práticas comerciais justas são uma das marcas essenciais de toda sociedade
humana que procura proteger os interesses de todos [...] As sanções teológicas
particulares que estudamos [as bênçãos e as maldições próprias da aliança]
chamam nossa atenção para a hierarquia dos valores, característicos do Antigo
Testamento. A mesma expressão “ser abominável ao Senhor” é aplicada às
fraudes comerciais e monetárias, à idolatria, às perversões sexuais e aos cultos
pagãos.[153]

E para concluir esta seção sobre os textos da Torá, citemos uma vez mais
aquele que é, sem dúvida, o melhor comentarista moderno da lei divina,
Rousas Rushdoony:
Pesos e medidas falsos têm por efeito deformar o tecido social. Empobrecem os
pobres e colocam numa posição social mais alta uma classe dominante desonesta.
Quando essas medidas falsas prevalecem, geralmente levam à eliminação da
classe média. As vítimas dessas injustiças comerciais, financeiras e monetárias
são, em geral, incapazes de se defender contra tais costumes iníquos. A justiça
nas transações comerciais também diz respeito a todo mundo, porque uma moeda
sadia é o sangue vivificante de todo comércio útil.[154]

(2) O ensino do livro de Provérbios


Examinaremos agora quatro textos curtos do livro de Provérbios que trazem
luz sobre a questão das falsas balanças e falsificação de medidas. Se a lei nos
dá as normas — os primeiros princípios — imutáveis que ordenam todas as
dimensões do comportamento humano, por sua vez os Provérbios nos
apresentam a sabedoria que devemos ter na aplicação das leis do Decálogo.

(a) Provérbios 11.1


Balança enganosa é abominação para o Senhor, mas o peso justo é o seu prazer.

Estamos diante de dois caminhos colocados para o


homem, isto é, o caminho da justiça e o da falsidade.
Trata-se do conflito entre o caminho estreito que, em
Cristo e pela graça do Espírito Santo, nos leva à vida
eterna, e o caminho largo do nosso pensamento autônomo
em relação a Deus e suas leis, ao darmos livre curso à
nossa vontade contaminada pelo pecado — a carne — e
que conduz à morte eterna. Trata-se, então, de uma escolha
colocada diante de nós todos os dias de nossa vida, isto é,
queremos agradar os homens ou a Deus? Para nós, o
primeiro a ser servido é Deus? Ou somos daqueles que
aceitam dois pesos e duas medidas, uma para nós mesmos
e nossos amigos e outra para aqueles — na família, nos
negócios e até mesmo na Igreja de Deus — com os quais
não concordamos?
Examinemos, brevemente, alguns detalhes próprios desse
verso do livro de Provérbios. Notemos, em primeiro lugar,
que no texto, a balança falsa, com seu funcionamento
alterado — eixo viciado que equilibra os pratos — é
colocada em paralelo aos pesos justos. Pode-se, então,
trapacear de duas maneiras: nossa lógica pode estar
viciada, distorcida por nossas paixões e cobiças — é a
balança falsa, um raciocínio torto que resulta em nossas
más ações. Ou podemos seguir o caminho largo e
espaçoso de nossas cobiças e pendores carnais, mudando
as normas do verdadeiro e falso, do bem e do mal, da
medida certa e da falsificada, ao falsificar pesos e pedras,
cujos valores para medição deveriam permanecer
imutáveis. Aqui se trata da modificação das exigências da
Lei de Deus, conforme nossa conveniência.
Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem, mal; que fazem da escuridade luz e da
luz, escuridade; põem o amargo por doce e o doce, por amargo! Ai dos que são
sábios a seus próprios olhos e prudentes em seu próprio conceito! (Isaías 5.20-
21)

Um segundo ponto que merece nossa atenção é o uso que nosso texto faz de
duas expressões que caracterizam a atitude de Deus para com a balança falsa
e peso justo. Balança falsa é um “horror ao Senhor”, diz nossa tradução. O
termo hebraico para “horror”, toebah, é mais forte do que a expressão
francesa. Essa palavra é frequentemente usada pelo profeta Ezequiel para
exprimir o desprazer total, absoluto e irremediável de Deus pela conduta
apóstata do seu povo, Israel. Toebah tem, portanto, o sentido de detestar,
aborrecer, ter horror, de ser abominável. Aplica-se de maneira bastante
uniforme aos pecados seguintes: idolatria, homossexualidade, sacrifícios
humanos (inclusive aborto), ocultismo, consumo de animais impuros,
prostituição e desonestidade nos negócios. Por outro lado, o peso justo recebe
o “favor” (conforme nossa tradução) de Deus. Aqui ainda, o termo hebraico
ratsum é muito mais forte que a palavra francesa traduzida, que significa:
prazer, delícias, favor, bênção, ter acesso, ser aceito por Deus ou pelo rei.
Deus ama a retidão; nela ele encontra o seu maior prazer e detesta, com todo
o seu ser, as balanças falsas, os pesos adulterados, a falsidade e a hipocrisia.
Nada deixa Deus mais horrorizado que a duplicidade nos pesos e medidas
praticados pelos cristãos. Deus quer a integridade do coração e de ação, a
retidão, a sinceridade em querer o bem e não a complacência carnal com seus
próprios pendores e disposições pecaminosas.
Seja, porém, a tua palavra: Sim, sim; não, não. O que disto passar vem do
maligno. (Mateus 5.37)
Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também
a eles; porque esta é a Lei e os Profetas. (Mateus 7.12)
Finalmente, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que
é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se
alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o vosso
pensamento. O que também aprendestes, e recebestes, e ouvistes, e vistes em
mim, isso praticai; e o Deus da paz será convosco. (Filipenses 4.8-9)

(b) Provérbios 16.11-12


Peso e balança justos pertencem ao SENHOR; obra sua são todos os pesos da bolsa.
A prática da impiedade é abominável para os reis, porque com justiça se
estabelece o trono.

O sábio aqui faz referência a todos os elementos próprios dos pesos e


medidas: a balança, os pratos, e os próprios pesos. Esses equipamentos de
medir devem ser todos justos, porque pertencem a Deus. Como o magistrado
representa a Deus, assim as medidas das coisas também pertencem a Deus,
como também sua Palavra, sua Lei, seu Tabernáculo, o templo e seus altares.
Daí compreendermos que a falsificação de medidas é tão grave quanto um ato
de sacrilégio. Deus é colocado aqui como a fonte e o ordenador de um
comércio que o honre por sua retidão, integridade e justiça. É interessante
constatar que os judeus guardavam o protótipo normativo de todas as suas
medidas no santuário. A palavra para peso, como já destacamos, em hebraico
significa pedra. Trata-se de pedras de peso fixo e que não podiam, como o
ferro por exemplo, estar sujeitas à ferrugem, à deterioração no decorrer do
tempo. A balança, corretamente construída e que pesa de maneira justa e
exata, pertence também a Deus, como também as pedras-pesos que medem
com exatidão as mercadorias. Esses instrumentos de medir são alvo de uma
ordem divina particular, porque Deus olha de perto seu bom ou mau uso.
George Lawson, em seu admirável comentário sobre o livro dos Provérbios,
acrescenta esta nota interessante:
Como antigamente se pesava o dinheiro, a desvalorização da moeda é aqui
considerada. Mas não somente isso. Toda forma de fraude é aqui condenada,
sobretudo aquela que se comete sob uma capa de justiça.[155]

Lembremos que no hebraico a palavra “glória”, kabod, significa literalmente


“aquilo que tem peso”. É a fraude universal de todos os tipos que faz dos
homens de nosso tempo seres tão levianos, inconsequentes, de pouco peso,
sem nenhuma solidez. A glória, o peso de glória (kabod) à qual Deus nos
destina, exige integridade e retidão em todas as nossas ações.
(c) Provérbios 20.10
Dois pesos e duas medidas, uns e outras são abomináveis ao SENHOR.

Aqui, o autor de Provérbios destaca um caso particular de fraude que


anteriormente consideramos, que se trata de usar dois pesos e duas medidas.
Essa espécie de trapaça (que no plano pessoal chamamos “hipocrisia”) para
Deus é uma abominação. George Lawson explica:
Aqui é condenado aquele que pretende observar a letra da lei, mas se opõe a seu
espírito. Se um homem guarda uma medida ou um peso para vender e outro para
comprar, ou se guarda um para vender àqueles que são mais espertos e difíceis de
ser enganados e um outro para os ingênuos e imprudentes, esse homem se expõe
ao fogo devorador da ira de Deus, como também à vingança daquele que odeia
toda injustiça, particularmente aquela que perverte os próprios instrumentos [a
balança e pesos exatos] da justiça.[156]

(d) Provérbios 20.23


Dois pesos são coisa abominável ao SENHOR, e balança enganosa não é boa.

Por quatro vezes o pecado de trapaça nos negócios é referido no livro de


Provérbios. Isso mostra até que ponto tal injustiça não é boa e como ela é
abominável ao Senhor! A vida em sociedade exige confiança mútua. A
falsificação de pesos e medidas, assim como os instrumentos que lhes são
próprios, a longo prazo torna a vida social muito difícil. Vale o mesmo para
palavras falsas por meio de manipulação hipócrita, tão corrente hoje em dia,
não somente nos negócios (as técnicas de venda forçada), mas nas relações
pessoais e até na vida da Igreja. Lembro-me de um presbítero numa igreja,
grande manipulador do pai da mentira, que friamente me disse: “A
manipulação é um dom do Espírito Santo”. Que Deus nos livre de lobos
disfarçados em cordeiros melosos!
Vamos, agora, ao ensino dos profetas.
(3) O ensino dos profetas
A Lei — os Dez Mandamentos e suas aplicações casuísticas registradas nos
livros da Torá — nos fornece a estrutura da moral ou da ética cristã. Ela deve
ser estudada à luz de toda Bíblia, Antigo e Novo Testamentos. Sua estrutura
específica se encontra nas leis casuísticas contidas nos livros da Lei, como
vimos. Ela deve ser aplicada com sabedoria e é essa a tarefa do livro de
Provérbios que acabamos de estudar. Mas, isso não é tudo. O povo de Deus,
em todas as épocas, foi seduzido pela cobiça e se afastou das leis-palavras
salvadoras de Deus. Portanto, é dever dos profetas trazê-lo de volta aos
caminhos antigos, tão claramente traçados por ele nos mandamentos da Lei-
Evangelho de Deus. É o que vamos agora fazer nesta terceira (e última) parte
de nossa exposição, com a ajuda dos profetas do Antigo Testamento.

(a) Isaías 1.21-23


Como se fez prostituta a cidade fiel! Ela, que estava cheia de justiça! Nela,
habitava a retidão, mas, agora, homicidas. A tua prata se tornou em escórias, o
teu licor se misturou com água. Os teus príncipes são rebeldes e companheiros de
ladrões; cada um deles ama o suborno e corre atrás de recompensas. Não
defendem o direito do órfão, e não chega perante eles a causa das viúvas.

Isaías continua sua profecia reportando-se ao julgamento inflexível, decidido


por Deus, contra essa cidade apóstata, a esposa do Deus da aliança, que se
tornou prostituta. Não posso aqui fazer o estudo desse capítulo, de atualidade
tão flagrante, pelo qual Isaías começa sua magnífica profecia,[157] mas
destaquemos alguns pontos que têm a ver com nosso assunto.
(1) A cidade fiel se prostituiu.
(2) A cidade cheia de justiça e retidão, onde as regras divinas eram
respeitadas — balanças íntegras e pesos exatos — tornou-se uma cidade de
assassinos, na qual o bem foi substituído pelo mal.
(3) As normas adulteradas são sintoma de desordem radical: o dinheiro é
transformado em escória, perde todo seu valor e o vinho é misturado com
água; as normas monetárias e alimentares, naturais e divinas, não são mais
respeitadas.
(4) As autoridades da cidade, antes tão fiéis, tornaram-se rebeldes a Deus e às
suas leis; rejeitaram sua aliança. Sua cobiça perdeu todos os freios e buscam a
riqueza, não importando por que meio, isto é, presentes e recompensas que
pervertem o exercício da justiça e corrompem o funcionamento normal dos
negócios. Por outro lado, não dão nenhuma importância ao sofrimento dos
miseráveis, das classes desfavorecidas, aqui simbolizadas pela viúva e pelo
órfão.[158]
(5) Tal sociedade, como nosso país, fiel até poucos anos (apesar de
imperfeito), só pode esperar pelo julgamento de Deus.
Vejamos, agora, a profecia de Ezequiel.
(b) Ezequiel 45.9-12
Assim diz o SENHOR Deus: Basta, ó príncipes de Israel; afastai a violência e a
opressão e praticai juízo e justiça: tirai as vossas desapropriações do meu povo,
diz o SENHOR Deus. Tereis balanças justas, efa justo e bato justo. O efa e o bato
serão da mesma capacidade, de maneira que o bato contenha a décima parte do
ômer, e o efa, a décima parte do ômer; segundo o ômer, será a sua medida. O
siclo será de vinte geras. Vinte siclos, mais vinte e cinco siclos, mais quinze
siclos serão iguais a uma mina para vós.[159]

Vemos o mesmo movimento feito por Isaías, mas com recomendações


precisas quanto ao restabelecimento da ordem primária de medidas (a ordem
definida acima). Aqui o profeta ataca as desordens das classes dominantes de
Israel, ou seja, a violência e a pilhagem — lembramos da violência imperial
americana e da pilhagem das riquezas do mundo pela manipulação monetária
e financeira do clã Goldman Sachs no poder nos Estados Unidos, como
também da colaboração ativa atual do nosso país nesse sistema iníquo.[160]
Em seguida o profeta apela ao retorno para Deus, à justiça e à reparação, ou
seja, livrar o povo das expropriações obtidas pela manipulação das balanças e
instrumentos de medida comerciais e ao restabelecimento da ordem nas
medidas. As que foram adulteradas devem ser restabelecidas, e
consequentemente respeitadas, em conformidade com as normas antigas de
pesos e de volume. O último verso torna-se mais compreensível se o
traduzirmos literalmente do grego da Septuaginta:
Que cinco ciclos sejam mesmo cinco ciclos e dez ciclos sejam realmente dez e
que cinquenta correspondam mesmo a uma mina.

Confúcio disse muito bem quando falou que a tarefa principal do homem de
Estado era recompor as palavras e dar o seu verdadeiro sentido. Ele podia ter
acrescentado que o mesmo deveria valer para os pesos e medidas. Depois, os
versos 13 a 17 mostram que uma das consequências mais importantes do
restabelecimento da ordem estável e exata das medidas será permitir que a
troca dos bens seja justa, o que fará com que o povo de Judá volte a ser capaz
de entregar corretamente os dízimos que pertencem a Deus. Não dar a Deus e
à sua Igreja o que lhe é devido, nos diz Malaquias (1.6-2.9), é fraudá-lo, é
roubá-lo no que lhe pertence! Nós também, gravemos em nossos corações
essas palavras de Malaquias:
Se o não ouvirdes e se não propuserdes no vosso coração dar honra ao meu
nome, diz o SENHOR dos Exércitos, enviarei sobre vós a maldição e amaldiçoarei
as vossas bênçãos; já as tenho amaldiçoado, porque vós não propondes isso no
coração. (Malaquias 2.2)

Vamos, agora, ao profeta Oseias.


(c) Oseias 12.6-8
O SENHOR, o Deus dos Exércitos, o SENHOR é o seu nome; converte-te a teu Deus,
guarda o amor e o juízo e no teu Deus espera sempre. Efraim,[161] mercador, tem
nas mãos balança enganosa e ama a opressão.

Esse texto começa lembrando a Israel (e a Igreja) que o Senhor dos exércitos
é soberano e que só ele é Deus; ele é quem comanda e a ele o povo deve
submeter-se. Ele é a lembrança e a memória verdadeira do povo de Deus, de
seu povo, a quem faz lembrar a realidade soberana de um passado aliancial
sempre presente! Portanto, ainda há esperança para Israel. Ela poderá voltar-
se para Deus. Mas, como isso será feito? Guardando “a lealdade e o direito”.
Assim se volta a Deus. Seja nos negócios ou no tribunal; na vida privada ou
na vida pública; na família ou na Igreja. Israel deve sempre esperar em Deus
e não nos truques, nos estratagemas, nos esquemas que tenta fabricar para se
dar bem, essa arte diabólica da manipulação de pessoas, da linguagem e dos
acontecimentos. Do contrário, se não retornar à aliança, Israel será para Deus
como Canaã, povo de mercadores sem escrúpulos, praticantes da
manipulação de balanças falsificadas — como aquelas fabricadas ex nihilo,
do nada, de riquezas virtuais, imaginárias — gatunagem que serve apenas
para oprimir e pilhar o mundo inteiro!
Vejamos, agora, a ameaça que Amós, porta-voz de Deus, faz contra essa
nação infiel de negociantes sem escrúpulos.
(d) Amós 8.1-8
O SENHOR Deus me fez ver isto: eis aqui um cesto de frutos de verão. E
perguntou: Que vês, Amós? E eu respondi: Um cesto de frutos de verão. Então,
o SENHOR me disse: Chegou o fim para o meu povo de Israel; e jamais passarei
por ele. Mas os cânticos do templo, naquele dia, serão uivos, diz o SENHOR Deus;
multiplicar-se-ão os cadáveres; em todos os lugares, serão lançados fora.
Silêncio! Ouvi isto, vós que tendes gana contra o necessitado e destruís os
miseráveis da terra, dizendo: Quando passará a Festa da Lua Nova, para
vendermos os cereais? E o sábado, para abrirmos os celeiros de trigo, diminuindo
o efa, e aumentando o siclo, e procedendo dolosamente com balanças
enganadoras, para comprarmos os pobres por dinheiro e os necessitados por um
par de sandálias e vendermos o refugo do trigo? Jurou o SENHOR pela glória de
Jacó: Eu não me esquecerei de todas as suas obras, para sempre! Por causa disto,
não estremecerá a terra? E não se enlutará todo aquele que habita nela?
Certamente, levantar-se-á toda como o Nilo, será agitada e abaixará como o rio
do Egito.
Deus adverte Amós, seu profeta, por uma visão do fim definitivo, final,
irremediável de Israel, das dez tribos do reino de Samaria. Como uma cesta
de frutos maduros, Israel está madura para o julgamento. Deus não tem mais
nada para ela! Os cantos no palácio se transformarão em gemidos; os
gemidos, em silêncio de morte. Os cadáveres incontáveis não terão sepultura.
Por que tamanha infelicidade? Por que um julgamento tão terrível caiu sobre
Samaria, sobre o reino das dez tribos do Norte?
A razão é simples. O país, em sua corrida frenética por riquezas (e pelos
prazeres que elas dão), engoliu o pobre, excluiu o necessitado. O amor ao
dinheiro, a sede de riquezas, a paixão pela acumulação e o prazer nos bens
deste mundo tornam-se uma obsessão irresistível, incontrolável, destruidora
de todo sentimento de humanidade, de retidão, de justiça e misericórdia.
1. As festas de Israel são um obstáculo insuportável à corrida frenética por
lucro.
2. O sábado não é mais guardado porque tornou-se um impedimento
inadmissível à circulação dos negócios.
3. Sua sede por lucro os estimula a ir ainda mais longe. Eles trabalham para
destruir os fundamentos morais de uma economia sadia quando falsificam
balanças (hoje seria a falsificação da moeda no jogo do crédito imaginário);
exploram os pobres sem pena; reduzem os necessitados à escravidão; vendem
mercadorias avariadas e alimentos vencidos.
4. Isso provoca a justa ira de Deus. Ele jamais esquecerá seu comportamento
injusto, ímpio e desumano.
5. As consequências? O país será sacudido; seus habitantes cairão em
depressão, a própria terra sofrerá consequências desses crimes, pois se
elevará e cairá, açoitada por tremores políticos e sociais terríveis.
Vemos, assim, a relação aliancial entre os atos econômicos imorais — a
falsificação das normas econômicas que conduzem a esse materialismo
universal em que o ganho se torna deus — e a decomposição social; mas
também sua relação com as desordens terríveis na própria ordem da natureza,
que não suporta tais iniquidades.[162]
(e) Miqueias 6.9-16
A voz do Senhor clama à cidade (e é verdadeira sabedoria temer-lhe o nome):
Ouvi, ó tribos, aquele que a cita. Ainda há, na casa do ímpio, os tesouros da
impiedade e o detestável efa minguado? Poderei eu inocentar balanças falsas e
bolsas de pesos enganosos? Porque os ricos da cidade estão cheios de violência, e
os seus habitantes falam mentiras, e a língua deles é enganosa na sua
boca. Assim, também passarei eu a ferir-te e te deixarei desolada por causa dos
teus pecados. Comerás e não te fartarás; a fome estará nas tuas entranhas;
removerás os teus bens, mas não os livrarás; e aquilo que livrares, eu o entregarei
à espada. Semearás; contudo, não segarás; pisarás a azeitona, porém não te
ungirás com azeite; pisarás a vindima; no entanto, não lhe beberás o
vinho, porque observaste os estatutos de Onri e todas as obras da casa de Acabe e
andaste nos conselhos deles. Por isso, eu farei de ti uma desolação e dos
habitantes da tua cidade, um alvo de vaias; assim, trareis sobre vós o opróbrio
dos povos.

Com esse texto do profeta Miqueias, chegamos à última referência, no


Antigo Testamento, sobre a falsificação das medidas comerciais e
financeiras. O castigo tornou-se inevitável, porque o mal chegou no seu
apogeu. Que mal é esse que provoca a ira de Deus? Nas casas há: 1. Tesouros
mal adquiridos; 2. Efa adulterado; 3. Balanças falsas; 4. Pesos enganosos; 5.
Ricos cheios de violência; 6. Língua cheia de engano.
Quais serão as consequências de tantas injustiças acumuladas, de pecados tão
habituais, de hábitos criminosos que se tornaram a norma, o modo de vida?
Há dez consequências; um número completo.
a) A comida não mais saciará e consumirá as entranhas daquele que comer.
b) Os alimentos guardados não poderão ser preservados, mas estragarão e
ficarão podres.
c) A espada devastará o país sem proteção divina.
d) Os campos serão semeados, mas não haverá colheitas.
e) A azeitona será prensada, mas o azeite não poderá ser vendido.
f) A uva será colhida, mas dela não será possível beber o vinho.
g) Seguindo o caminho iníquo dos reis de Israel, Omri e Acabe, seu filho —
associado que era aos sortilégios de Jezabel, sua esposa, adoradora de Baal e
assassina dos profetas de Deus — Israel será entregue à destruição.
h) Os habitantes de Samaria se tornarão a zombaria das nações.
j) Serão a vergonha do povo de Deus.
Esse é, exatamente, o caminho atualmente seguido por nossa civilização e
nosso país e as igrejas que nela se encontram não têm nada a dizer a essa
cultura criminosamente opulenta, que não tem Lei nem Deus.
Aquele que tem ouvidos ouça o que o Espírito diz às Igrejas. (Apocalipse
2.7,11,17,29; 3.6,13,22)

Que reconheça sua iniquidade, que se arrependa de seu pecado e que se volte
para Deus com todo o seu coração para ser salvo!
Amém.
[163]
Capítulo XIII: Pierre Viret e uma economia sensata

INTRODUÇÃO
Tenho o prazer de dedicar este breve memorial sobre o reformador suíço de
língua francesa Pierre Viret (Orbe, Vaud 1509 – Nérac, Navarra 1571) ao
eminente historiador protestante francês Pierre Chaunu (1923-2009) que,
juntamente com sua esposa Huguette, passou vários anos nesta cidade,
fazendo pesquisas inéditas para sua gigantesca tese de doutorado intitulada
Séville et l’Atlantique, 1504-1650 [Sevilha e o Atlântico].[164] Ele não
somente aplicou as técnicas quantitativas da escola dos Annales à história do
Império espanhol na América, mas fez mais que isso. Porque suas pesquisas
constituíram um passo fundamental na desconstrução da lenda negra de triste
memória,[165] mistificação ideológica e histórica que tornou a cultura
hispânica e sua história tão incompreensível ao povo reformado do norte da
Europa e da América de língua inglesa. Mas essa desinformação religiosa e
cultural em nenhum outro lugar foi tão notável como na história da Reforma
espanhola. Não somente a Inquisição espanhola fez tudo que estava ao seu
alcance — e seu poder era então imenso — para erradicar da consciência
deste grande país o menor traço daquele movimento de retorno à Bíblia — a
Reforma nascente que entre vocês marcou tão fortemente o Renascimento
das Letras antigas na primeira parte do século 16 — mas também conseguiu
apagar da herança Reformada europeia a memória histórica desses fatos
gloriosos de seu passado cristão.
Mas essa amnésia histórica, infelizmente, não afetou apenas seus ancestrais
reformados da Espanha. Permitam-me fazer uma pergunta: Quem,
atualmente, conhece Pierre Viret? Mesmo em Lausanne, em sua própria
pátria, país em que exerceu um ministério tão frutífero durante mais de vinte
anos, Viret foi amplamente esquecido.
1. Breve biografia de Pierre Viret
Pierre Viret nasceu em 1509 em Orbe,[166] antiga cidade romana e
burgúndia[167] situada aos pés do Jura, região hoje compreendida pelo cantão
de Vaud. Seu pai era um modesto tecelão, que junto à sua esposa, compunha
um piedoso casal católico romano. Tendo terminado sua formação básica em
sua pequena cidade, em 1527 foi para Paris, com a idade de 18 anos, para
prosseguir seus estudos objetivando o sacerdócio. Foi em Paris que cursou no
rigoroso Colégio Montaigu, fundado pelos Irmãos da Vida Comum e famoso
por alguns de seus estudantes como João Calvino e Ignácio de Loyola. Foi
nesse contexto de estudos rigorosos, iluminados pelas fogueiras dos
primeiros mártires franceses, que Pierre Viret veio a descobrir os erros
mortais da religião romana na qual havia sido ensinado, como também a
necessidade, para si mesmo, de encontrar um Salvador pessoal capaz de
libertá-lo da maldição decretada sobre o pecador, por um Deus ao mesmo
tempo justo e misericordioso.
A perseguição levou Viret a buscar refúgio em Orbe, sua cidade natal. Foi ali
que foi confrontado por sua vocação. Na primavera de 1531, Guilherme
Farel, pregador intrépido do Evangelho e agente político de Suas Excelências
de Berna, recentemente ingressado na Reforma, chamou Viret (como fez com
Calvino cinco anos mais tarde) da tranquilidade de seus estudos, fazendo com
que entrasse no campo de batalha da Reforma da Igreja, pela implantação, em
seu próprio país, do Reino de Deus. Foi assim que, com a idade de vinte e
dois anos, Viret tornou-se o pastor da pequena paróquia de Orbe, na qual teve
o privilégio de ser o instrumento da conversão de seus pais. Durante vários
anos Viret exerceu um ministério itinerante na Suíça Romanda [de língua
francesa], ao lado de Guilherme Farel (dois anos antes da chegada de
Calvino), pregando o Evangelho na cidade de Genebra.
Em 1536, o cantão de Vaud foi invadido, ostensivamente, pelo exército de
Berna, para defender Genebra das reais ameaças da Savoia. Mas essa
ofensiva era uma nova manifestação da pressão constante de Berna para
estender seu domínio territorial para o oeste. É interessante notar que por
meio dessas ambições políticas, Deus abriu diversas regiões da Confederação
Helvética à mensagem do Evangelho. Após a célebre Disputa de Lausanne,
de outubro desse mesmo ano, debate público no qual o jovem pregador de
vinte e sete anos teve um papel fundamental, Viret tornou-se o pastor
principal dessa cidade. Com exceção de curto período (1541-1542), no qual
assistiu Calvino em Genebra quando este retornou de seu exílio em
Estrasburgo, Viret exerceu durante vinte e três anos a função de pastor
principal da igreja reformada do cantão de Vaud, no qual assumiu o cargo de
pregador da Palavra de Deus, sob a mão pesada das autoridades políticas e
eclesiásticas da República de Berna. No auge de uma grande luta contra o
poder de Berna, para que a igreja tivesse a liberdade de exercer por si mesma
a disciplina sobre seu próprio rebanho, Viret, em fevereiro de 1559, foi
expulso de seu país, encontrando refúgio na cidade vizinha de Genebra.
Entre 1559 e 1561, Viret exerceu um ministério muito admirado em Genebra,
ao lado de seu grande amigo Calvino,[168] mas sua saúde frágil forçou-o a
procurar um clima mais ameno no sul da França. Tendo melhorado seu
estado de saúde, pôde retomar seu ministério e foi o instrumento de um
notável avivamento espiritual, primeiramente em Nimes e Montpellier,
depois na segunda cidade do Reino, Lyon, onde exerceu um ministério
altamente abençoado durante os primeiros anos das guerras civis. Presidiu
vários Sínodos nacionais que reuniam as igrejas reformadas da França.[169]
Terminou sua frutífera e movimentada vida como Pastor principal e
Superintendente acadêmico da Igreja Reformada do Reino de Navarra, onde
morreu em abril de 1571, com a idade de sessenta e dois anos, tendo sido
sepultado em Nérac.[170] A Rainha de Navarra, Jeanne d’Albret, escreveu
estas emocionantes palavras sobre sua morte:
Entre as grandes perdas que tive, durante e desde as últimas Guerras, a primeira
delas foi a perda do Senhor Viret, que Deus levou para si.[171]

2. O lugar de Pierre Viret na Reforma


Pierre Viret, denominado o anjo da reforma, amigo íntimo de João Calvino,
de Guilherme Farel e de Teodoro de Beza,[172] de maneira nenhuma foi um
personagem menor ou insignificante como a maior parte das histórias desse
período pode nos fazer crer. Em primeiro lugar, foi ele quem fundou, com o
apoio das autoridades de Berna, a primeira Academia Reformada. Viret
dedicou uma parte importante do seu tempo ao ensino da teologia para os
estudantes que ali ingressavam, provenientes de todos os cantos da Europa.
[173]
Essa Academia de Lausanne — e não a de Genebra como erradamente se
crê, porque esta instituição só foi criada em 1559 — foi o modelo para todas
as futuras Academias Reformadas. Quando Viret foi expulso, grande número
de estudantes nela estavam inscritos.[174]
Mas Pierre Viret, esse cristão tão doce e amável, movido por um profundo
fervor espiritual, também foi um dos grandes pregadores da Reforma. Sobre
Calvino, Teodoro de Beza escreveu: “Ninguém ensinou com maior
autoridade”. Sobre Farel, escreveu: “Ninguém trovejou mais alto do que ele”.
Mas de Viret ele disse: “Ninguém tem maior elegância quando fala”.[175]
Mas não é tudo. Além de seu imenso talento para pregar, Viret foi também
um grande e fecundo escritor. Escreveu mais de quarenta obras, algumas
delas chegando a ter quase mil páginas.[176] Viret escreveu um pequeno
número de tratados em latim, mas suas obras foram, em sua maior parte,
escritas em francês, numa linguagem familiar e compreensível a todos,
frequentemente sob a forma popular de diálogos entre personagens
claramente diferenciados e simpáticos, de modo a atingir um público de
educação escolar bastante reduzida.[177] Mas, se o estilo é agradável, o
conteúdo é profundo, o conhecimento bíblico sem falha e de uma erudição
imensa. Tudo ali transmite uma segurança notável. Sua teologia tem a marca
da solidez, com uma precisão e equilíbrio raros. A maneira com que os
diálogos são construídos — afirmações, objeções, refutações — e a síntese
doutrinária clara, sempre bíblica, bem equilibrada e expressa com autoridade,
sob uma forma popular e livre de todo jargão filosófico, lembra o método
escolástico de discussão formal absorvido aos pés de seu mestre de Filosofia
e Teologia, no Colégio de Montaigu, o escocês Jean Mair (John Major).
Pierre Viret era, indubitavelmente, com Martinho Lutero, um dos melhores
propagadores da fé cristã no século dezesseis. Mas sua profunda preocupação
em responder às necessidades espirituais do povo, jamais fez com que
rebaixasse o nível de seu ensino teológico e espiritual, como, infelizmente,
acontece hoje em dia. É impossível, no âmbito deste estudo, fazer real justiça
às notáveis realizações desse cristão extraordinário. Se seu bom amigo João
Calvino era o mestre da dogmática por excelência e príncipe dos exegetas,
devemos considerar Pierre Viret o melhor apologista e mestre da ética, de
imensa penetração do século 16. Sua obra monumental Instruction chrétienne
en la doctrine de la Loi et de l’Évangile et en la vraie philosophie et
théologie, tant naturelle que supernaturelle des chrétiens[178] [Instrução cristã
na doutrina da Lei e do Evangelho e na verdadeira filosofia e teologia, tanto
natural como sobrenatural dos cristãos] é, sem dúvida nenhuma, sua obra
teológica mais importante. Pode ser facilmente comparada, em sua mesma
categoria, à Instituição de Calvino.

3. Pierre Viret economista


Nesta breve exposição sobre a vida e obra de um dos grandes personagens da
história da Igreja (no entanto, desconhecido daqueles que se consideram, com
razão, herdeiros da Reforma), gostaria de mostrar, ainda, a extraordinária
lucidez e notável discernimento que Viret possuía, em razão do respeito que
nutria pela Lei de Deus. Num livro consagrado ao estudo do relato histórico
dos últimos anos do século 16, o erudito francês Claude-Gilbert Dubois
diligentemente se debruçou sobre a visão bíblica que Viret tinha do papel da
economia no processo histórico.[179] Ao fazer isso, trouxe à luz o notável
discernimento econômico do nosso reformador do cantão de Vaud. A análise
de Dubois se concentra sobre o estudo de uma obra prima da apologética de
Viret, Le monde à l’empire et le monde démoniacle[180] [O mundo imperial e
o mundo demoníaco]. Segundo Dubois, esse livro poderia muito bem ser
considerado como o esboço de um tratado moderno de economia, uma obra
duzentos anos antecipada no tempo. Ainda que Dubois não esteja de acordo
com o conservadorismo teocêntrico de Viret, entretanto não disfarça sua
admiração pela percepção que nosso autor possuía em relação às correntes
econômicas de sua época. Pois Viret havia constatado, com indignação, uma
oposição crescente à Lei de Deus no capitalismo monopolista anárquico que
se desenvolvia sob seus olhos, como também o desenvolvimento de uma
sociedade profundamente anticristã. No apego progressivo de muitos de seus
contemporâneos às riquezas materiais, ele compreendeu que se tratava de
uma fascinação desprovida de todo senso de mordomia e responsabilidade
para com Deus na utilização de seus próprios bens. Viret reconheceu uma
forma particularmente vil do pecado de idolatria, no qual a velocidade de
crescimento na opulência — sob uma forma extrema de liberalismo
desenfreado — era diretamente proporcional à perda de moralidade, de
sentimento religioso e, consequentemente, de todo senso de responsabilidade
social. Vejamos como Dubois exprime as preocupações de Viret sobre as
origens camufladas desses vícios públicos:
Por trás das leis escritas, supostamente criadas para governar as sociedades, essas
leis naturais, pervertidas, ocultas, acabam prevalecendo no direito e impondo,
como regras morais, as regras pervertidas de uma natureza caótica.[181]

Viret polemizou incessantemente contra as heresias da igreja de Roma e os


abusos sociais que ela criava. Mas aqui sua polêmica não é somente dirigida
contra a acumulação improdutiva de riquezas pela igreja católica, mas
também contra os evangélicos inconsistentes de sua época (os pseudo-
calvinistas) que viam no processo da reforma[182] uma libertação das
imposições históricas (morais e legais) de uma sociedade católica
parcialmente cristianizada. Os quais, tendo-se tornado protestantes muito
interessados, recusavam submeter-se a toda espécie de disciplina social e
econômica decorrente da Lei de Deus. Foi esse antinomismo sem Deus que
Viret constatou entre aqueles que chamava de cristãos disformados (em vez
de reformados), que combatia com uma ironia ácida. Ele via esse
comportamento antissocial se manifestar, muito particularmente, entre os
novos ricos, que rapidamente haviam esquecido suas origens modestas e se
gloriavam, de maneira arrogante, em sua nova prosperidade. Essa riqueza era
frequentemente adquirida em detrimento das classes menos favorecidas, que
tinham sido empobrecidas pela nova ordem econômica, largamente
fundamentada sobre a especulação monopolista. Dubois escreveu:
A indignação moral [de Viret] desemboca numa crítica perspicaz da
concentração capitalista e da dominação de classe. A aplicação imediata às
comunidades religiosas, ou seja, o ataque às riquezas da igreja, cúmplice do
sistema, se torna mais preciso; ele mira as riquezas do clero. A indignação [de
Viret] tem uma base teológica, isto é, eles traíram a pobreza dos primeiros
apóstolos; mas ela é também de ordem social, porque eles criaram a miséria e a
escravidão em torno deles. O que esse economista, apegado à teologia, reprova
na igreja é o “congelamento” de suas riquezas, ao invés de colocá-las no circuito
econômico no qual os pobres seriam beneficiados. Esse sistema egoísta vai de
encontro aos imperativos religiosos fixados para a Igreja.[183]
Leiamos o próprio Viret:
Nós lamentamos o tempo em que a Igreja era pobre, frágil, perseguida, pilhada e
devastada pelos tiranos, pelos infiéis e por seus inimigos [no Império Romano], e
governada por pobre pecadores, mas que alimentava os pobres e ninguém
passava fome. Agora ela é tão rica que ultrapassa os tesouros e a glória dos Reis e
Imperadores mundanos e é governada por esses grandes prelados, grandes deuses
terrenos que não têm mais nenhum cuidado com os pobres membros de Jesus
Cristo, sua esposa, sob qual título conseguiu essas grandes riquezas. Agora, ao
contrário, ela os pilha, come e devora.[184]

E Dubois coloca a questão:


Qual a verdadeira natureza dessa degradação que Viret percebe na história? Suas
origens profundas são de ordem teológica e estão ligadas ao pecado; suas
manifestações são de ordem moral — perversão da natureza que toma a forma
moderna de um escândalo econômico. Uma má economia, uma má divisão de
riquezas, com circuitos de mão única — no sentido da concentração — são esses
os sinais da corrupção que reina atualmente no mundo.[185]

Viret responde:
O grande mal nisso é quando a bolsa pública é pobre e os particulares são ricos.
Esse é um sinal evidente de que o regime é mau e a gestão pública é ruim e é
governada por ladrões e bandidos que fazem dela sua presa.[186]

Para Pierre Viret, tal procura por riquezas estéreis não passava de um pacto
iníquo com o Príncipe deste mundo caído, de uma idolatria, do culto à
criatura e desprezo ao Criador. Tal concentração e acumulação egoísta de
riquezas são contrárias às doutrinas bíblicas da produtividade, da mordomia,
da caridade e do sacrifício pessoal. É em si mesma um indício claro da
decadência da sociedade que aponta para um futuro de desastres sociais,
acompanhados de julgamentos divinos. Porque os mecanismos econômicos
que têm como resultado tal concentração de riqueza nas mãos de uma
oligarquia financeira, de fato prepara o caminho que leva a catástrofes de
ordem social e política que destruirão, inevitavelmente, uma classe dirigente
amoral e irresponsável.
De fato, para Viret, esse círculo vicioso de injustiça econômica resulta,
necessariamente, na revolução.[187] A opressão econômica tem sua origem
direta no desejo desordenado de acumulação de riquezas e, a longo prazo,
certamente produzirá distúrbios sociais; tal sentimento de frustração social,
quando dele se toma consciência, acaba na revolta. Entretanto, com grande
lucidez, Viret percebeu o caráter dramático desse processo negativo (e é aí
que o historiador moderno Claude-Gilbert Dubois toma um outro caminho),
pois em sua visão cristã do mundo, a sedição e a revolução não são, de forma
alguma, forças construtivas. Viret percebeu muito bem que essa nova
oligarquia se servia generosamente de sua dominação monopolista do
aparelho de Estado, para trazer para si os bens da nação inteira, perturbando
(ela também) a circulação natural das riquezas, ao desviá-las dos canais
habituais de produção e comércio. Para Viret, esse sufocamento do fluxo
econômico da produção industrial e das trocas comerciais por uma oligarquia
parasitária, devia ser combatido se quiséssemos restabelecer uma distribuição
natural e equilibrada das riquezas e dar à sociedade uma saúde econômica
verdadeira.
Portanto, Viret não era, de forma alguma, um adversário da função
econômica do mercado como regulador dos negócios e distribuidor dos bens.
Ele se oporia fortemente a toda espécie de planificação socialista da
economia ou de qualquer redistribuição comunista, pelo Estado, das riquezas
da nação. Ele teria reivindicado, apenas, que o mercado estivesse legal e
judicialmente sujeito às exigências econômicas e financeiras da Lei de Deus e
que os “ladrões e bandidos” de sua época — como aqueles que reinam
atualmente e não têm quem os freie nos sistemas bancários e nos governos de
nossas nações — fossem levados aos tribunais para ali prestar contas de suas
pilhagens e crimes econômicos. Aproveitamos a ocasião para indicar um
estudo econômico e moral contemporâneo que em muitos aspectos se
assemelha à análise feita por Viret dos problemas econômicos de seu tempo.
Trata-se de um pequeno livro de Maurice Allais, físico de renome mundial e
prêmio Nobel em economia, obra que rapidamente foi esquecida, intitulada:
La crise mondiale d’aujourd’hui: pour de profondes réformes des institutions
financières et monétaires[188] [A crise mundial atual: por profundas reformas
das instituições financeiras e monetárias]. O pensamento ético de Viret sobre
questões sociais, econômicas e políticas também, em muitos aspectos, se
assemelha ao de Alexandre Soljenitsin.[189] Seguem dois textos desse autor
que mostram a semelhança de suas preocupações com as de Pierre Viret. O
primeiro se chama “Esgotamento da cultura?”. O segundo se chama “Uma
oração”:
Tudo o que atualmente enche as ondas de um barulho lamentável e estéril, e de
suas caricaturas, de todos esses exageros que invadem nossas telas de televisão –
tudo isso passará, desaparecerá, se perderá na história como poeira esquecida. Se
o povo vai sobreviver ou perecer, isso dependerá daqueles que terão de atravessar
esta época sombria, contribuindo com seu próprio trabalho ou com a ajuda
material trazida pelo trabalho de outros, para salvar da destruição, recuperar,
consolidar e desenvolver nossa vida interior, vida do pensamento e da alma, que
é a cultura. Como me alegra viver contigo, Senhor! Como é leve crer em ti!
Quando meu espírito enfraquece ou se perde no incompreensível, quando os mais
inteligentes não veem além da noite que cai e ignoram o que terão de fazer
amanhã, tu me envias do alto a certeza clara de que tu és e agirás, de sorte que
todos os caminhos do bem não serão fechados. No auge da glória terrena, me
encontro nesse caminho que jamais teria encontrado sozinho e que, além do
desespero, me conduziste para ali, onde pude transmitir à humanidade os raios da
tua luz. E enquanto puder refleti-la, tu me darás o poder para fazê-lo. E tudo
aquilo para o que me faltou tempo, foi porque tu o confiaste a outro.

Essa afinidade de pensamento também houve entre Pierre Viret e o grande


filósofo e moralista católico belga, Marcel De Corte.[190]
Apesar de sua aberta oposição ao conservadorismo social e político de Viret,
como ao seu pessimismo cristão e também quanto aos benefícios da ação
revolucionária, Dubois, ao concluir sua análise do diagnóstico de Viret sobre
os males econômicos de seu tempo (e do nosso!), escreveu:
Entretanto, é admirável que partindo de dados teológicos bastante vagos e de
sentimentos difusos, inspirados por um complexo de frustração social mais do
que por uma reflexão objetiva sobre a teoria das quatro idades, Viret, com tanta
exatidão, precisão e perspicácia, seja para nós uma testemunha engajada — daí
seu interesse suplementar — dos novos mecanismos econômicos que regiam a
sociedade do século 16.[191]

Mas as “vagas proposições teológicas” de Viret não são tão estéreis como
Dubois imagina. Vemos nelas a maravilhosa sabedoria prática e intelectual
que muitos anos de meditação sobre a Lei de Deus podem dar, em particular
no que diz respeito às implicações econômicas da Torá. E se Viret, de um
lado, via tão bem os julgamentos de Deus contra um mundo rebelde e ingrato
como resposta às destruições produzidas pela prática do mal, por outro lado
demonstrou, de modo ainda mais claro, as bênçãos que decorrem da
obediência fiel aos mandamentos de Deus. Falando das bênçãos e
julgamentos que aconteciam diante dos seus olhos atentos, Viret escreveu:
Se considerarmos a graça que Deus nos deu pela revelação de seu Santo
Evangelho e a restauração de todo bom ensino e disciplina, podemos chamar
isso, justamente, de idade do ouro e dizer que somos os mais felizes desde a
época dos Apóstolos. Mas, ao contrário, se opusermos nossa malícia e ingratidão
à bondade de Deus, e à graça que nos apresenta, podemos dizer que estamos
numa época pior que a idade do ferro e nos julgar os mais infelizes dos homens e
que jamais estivemos sob o manto dos céus.[192]

Considerando o pensamento ético de Pierre Viret, tomamos, por exemplo, a


aplicação que ele fez da Lei de Deus às questões econômicas quotidianas,
tanto para sua época como para a nossa; e, mais particularmente, em relação à
questão da responsabilidade monetária das instituições financeiras. Para
concluir esta seção utilizaremos dois outros exemplos extraídos de seu
pensamento econômico: 1) Da criação pelo Estado de uma moeda virtual ex
nihilo, do nada e 2) Da voracidade financeira do Estado e sua ânsia em taxar
todos os aspectos da atividade humana.
Então, consideremos o que Viret tem a nos dizer sobre a criação, pelo Estado,
de uma moeda virtual e depois, numa segunda etapa, veremos sua análise
sobre a invenção e desenvolvimento, pelo Estado, desse imposto universal
sobre toda transação comercial, chamada de imposto sobre valor agregado,
conhecido pela sigla I.V.A.
4. A fabricação pelo Estado da moeda virtual, ex nihilo, criada a partir
do nada
A grande amizade de Pierre Viret com João Calvino (seu contemporâneo)
não o impediu que revelasse seus pontos de vista diferentes, ao mesmo tempo
em que dividia com Calvino as mesmas convicções sobre os pontos
essenciais da doutrina reformada.[193] Assim, a Reforma nos dá um exemplo
flagrante de como a unidade na doutrina fundamental não exclui certa
diversidade teológica. Mas o conformismo automático de uma época
afeminada não suporta, na Igreja, o desacordo sobre questões de ordem
secundária. Assim, sobre a questão de como detalhes da Lei mosaica
poderiam ser aplicadas ao nosso tempo, Viret defendia uma posição diferente
da de Calvino. Robert Linder descreve essa diferença como segue:
Ao contrário de Calvino, Viret estava totalmente disposto a estender a autoridade
da Bíblia sobre o Estado.[194]

A comparação da exegese de Viret com a de Calvino sobre textos específicos


é bastante esclarecedora. Nos seus Sermões sobre o Deuteronômio, por
exemplo, vemos que Calvino, ainda que não ignorasse as implicações
práticas detalhadas da Lei mosaica, no entanto prestava menos atenção do
que Viret a esse aspecto da Lei. Viret era, particularmente, atento ao sentido
imediato do texto e da aplicação da Lei aos problemas políticos, econômicos
e sociais de sua época. Contrastemos, brevemente, essas duas abordagens do
mesmo texto bíblico.
Na tua bolsa, não terás pesos diversos, um grande e um pequeno. Na tua casa,
não terás duas sortes de efa, um grande e um pequeno. Terás peso integral e
justo, efa integral e justo; para que se prolonguem os teus dias na terra que te dá
o SENHOR, teu Deus. Porque é abominação ao SENHOR, teu Deus, todo aquele que
pratica tal injustiça. (Deuteronômio 25.13-16)
Em primeiro lugar, consideremos as observações de Calvino no texto de seus
Sermões sobre o Deuteronômio.
Há duas coisas nas quais, sobretudo, ofendemos nosso próximo. Porque uns são
dados às fraudes e malícias para enganar e corromper; e outros aos ultrajes e
injúrias. Ora, quando se trata de malícia dissimulada, se devo escolher, a pior
delas é a falsificação de pesos e medidas. Porque é um meio para que os homens
negociem entre si sem discussão e sem barulho. Se não tivermos dinheiro para
comprar, que confusão haverá? Ora, as mercadorias são distribuídas,
frequentemente, por pesos e medidas. Portanto, quando forem falsos o dinheiro, o
peso e a medida, o elo de comunicação é rompido entre os homens; serão como
cachorros e gatos, pois não haverá mais como aproximá-los; por isso não é
preciso ficar surpreso quando nosso Senhor considera como algo detestável os
pesos e medidas falsos e quando mostra que isso é o pior e o mais detestável
roubo que alguém possa cometer. Quando um ladrão propõe em seu coração
praticar algum crime, ele se dirige apenas a um homem; é verdade que de um ele
vai para outro. Mas, sabemos que o ladrão não pode fazer tanto, pois não
consegue roubar todo mundo de uma só vez. Ora, aquele que se utiliza de pesos e
medidas falsos, ele não tem nenhuma relação com quem ele quer roubar; mas
para perverter a ordem comum, ele engana a todo o mundo de forma
generalizada, de tal maneira que isso se torna uma desumanidade. O que será da
lei? O que fará a justiça quando não houver mais integridade e lealdade naquilo
que devia auxiliar os homens a manter-se em seu estado? Portanto, temos aqui
uma lei muito necessária quando se trata de pesos e medidas.[195]

Calvino passa, então, à aplicação dessa lei ao que chama de a doutrina geral.
Por essa expressão ele se refere à aplicação às diferentes áreas da vida cristã
do princípio de integridade, que surge como pano de fundo dessa lei. As
relações comerciais são chamadas à lealdade, ao preço justo no comércio, à
compaixão pelos pobres; denuncia a hipocrisia do nosso pretenso
cristianismo, ao mesmo tempo que negligenciamos nossas obrigações para
com o próximo; denuncia a corrupção inata do homem e a necessidade de um
comportamento leal em nossas relações com as pessoas. Calvino conclui com
a seguinte nota:
Mas temamos o que aqui nos é demonstrado e cada um caminhe lealmente com
seu próximo; que aqueles que fazem comércio cuidem para ter balanças e
medidas justas, como também mercadorias pesadas honestamente e de forma
alguma falsificadas; que tudo seja feito com tal fidelidade que se saiba que há
uma lei dominando nossos corações; que não estejamos debaixo das ameaças e
punições que foram ordenadas, mas que a vontade declarada por Deus nos baste.
Que, então, isso nos valha e tenha força sobre nós para nos conduzir e corrigir.
Além disso, quando diz: Todos os que assim procedem são abominação ao
Senhor, diz assim para que os homens não se enganem com seus sofismas e
sutilezas, como sempre fazemos quando nos utilizamos de subterfúgios; aqueles
que querem astutamente enganar seu próximo, sempre farão uso de alguma cor
para maquiar seu caso. Mas ainda que os homens nos desculpem, isso de nada
valerá, pois teremos de comparecer diante do Juiz celeste.[196]

Pierre Viret procede de forma bastante diferente. Ele consagra nada menos
que cinquenta e cinco grandes páginas impressas com pequenos caracteres
em uma exposição detalhada somente do oitavo mandamento.[197] Sobre o
texto que aqui nos interessa, seus comentários cobrem seis páginas (p. 551 a
556 do Primeiro volume da edição de 1564 de sua Instrução Cristã). Em vez
de extrair lições morais desse estatuto particular, Viret se põe a estudar as
aplicações específicas desse mandamento da Lei aos diversos aspectos das
relações comerciais, isto é, ele desenvolve as aplicações casuísticas, próprias
desse estatuto bíblico. E ele faz isso de tal maneira que mesmo sendo
cuidadosamente adaptadas às condições de seu tempo e de sua cultura, suas
observações permanecem válidas para nossa época. Entretanto, suas
explicações não constituem, de forma alguma, uma deformação do
significado mosaico da lei em consideração. Notemos, em primeiro lugar, as
divisões que estabeleceu, para entender melhor o escopo dessa lei.[198] Estes
são os subtítulos que foram dados ao seu comentário: roubos cometidos no
volume, nos pesos e nas medidas das coisas vendidas ou fornecidas e como
essa forma de roubo é considerada detestável nas Santas Escrituras (p. 619); a
invenção e o uso da moeda e os falsificadores; a dimensão desse crime e o
roubo cometido por esse meio (p. 620); os ladrões e falsificadores da Palavra
de Deus e os roubos dos homens e dos seus bens por esse meio (p. 621);
aqueles que raspam as moedas e que usam moedas sabendo que são falsas e,
principalmente, aqueles que cuidam do dinheiro público (p. 622); corrupção
através de doações e comerciantes que vendem e compram o governo e os
pobres (p. 623); roubos cometidos por vendedores de mantimentos e os
perigos que representam sua alteração (p. 624); o cuidado que os
magistrados devem ter quanto aos víveres e o grande desrespeito pelos
juramentos prestados em razão disso (p. 625); o erro dos magistrados e
oficiais nessa área, pelo qual se tornam culpados de roubo e impiedades
cometidas nessas coisas (p. 626); o perigo, nessa matéria, no que diz respeito
aos médicos e farmacêuticos e a lei dada por Deus sobre pesos e medidas e
suas ameaças contra aqueles que os falsificam (p. 627).
Em seu diálogo entre Daniel e Timóteo, tratando da falsificação de pesos e
medidas, Viret escreveu:
Daniel. O roubo ali acontece quando os pesos e medidas são falsos. Porque ainda
que a essência e a matéria devam ser o que se espera e na quantidade e qualidade
requeridas, no entanto é diminuída. Porque não contém o que deveria. Segue-se,
portanto, que o que falta foi roubado daquele que recebeu a coisa. Essa espécie
de roubo é, por muitas vezes, totalmente condenada nas Santas Escrituras.
Timóteo. Ela é também muito mais frequente e comum por ser mais fácil roubar
os homens dessa maneira do que mudar a essência e o conteúdo corrompendo-os;
também porque é mais fácil perceber a adulteração, nesse tipo de corrupção, do
que o roubo nos pesos e medidas. Isso porque, quando compramos ou vendemos,
temos de confiar na maior parte dos pesos e medidas dos comerciantes com os
quais fazemos negócio, uma vez que não temos como levar pesos sempre
conosco.
Daniel. Iniquidade maior é daqueles que os falsificam, porque enganam da
maneira mais iníqua aqueles que confiam neles. Nisso eles são ladrões e
roubadores do povo.[199]
Viret aplica acertadamente essa lei aos falsificadores de moedas, uma vez que
na Antiguidade a falta de uniformidade nos pesos das moedas exigia que as
transações fossem efetuadas pesando-se o dinheiro para determinar seu valor
exato.
Daniel. Em primeiro lugar, os falsificadores de moeda são muito perigosos e
perniciosos. Porque a moeda e sua fabricação em ouro, prata e outros metais,
proporcionou aos homens fazer negócios mais facilmente e em conjunto, como
também se tornou um meio mais fácil para trocar entre si os bens que Deus lhes
deu. Porque o trânsito de mercadorias não é outra coisa senão uma troca feita
entre os homens, pela qual uns transferem aos outros o que cada um tem,
tomando do outro alguma coisa como recompensa, segundo o valor pelo qual as
coisas são negociadas. Ora, como seria ruim transportar para regiões distantes as
coisas que poderiam ser trocadas, a moeda foi colocada em seu lugar, segundo o
valor do bem, pois ela é mais fácil de ser transportada e mais apropriada do que
qualquer outra coisa para o trânsito de mercadorias. Como foi Deus quem deu
aos homens esse instrumento de troca, a fim de tornar mais fácil para uns e para
outros, aqueles que o pervertem e confundem essa ordem, ferem o bem público e
toda a sociedade humana e por isso são dignos de forte punição, tanto mais
porque provocam grande confusão entre os homens. Porque estes não podem
viver sem negociar uns com os outros. Portanto, aquele que lhes tira esse
instrumento de troca torna-se um bandido público, por cortar a garganta de toda a
comunidade dos homens e retirar, por esse meio, a confiança e a lealdade, sem a
qual a sociedade humana não pode se desenvolver nem se conservar. E assim os
homens ficam com um grande problema e numa desordem sem paralelo.
E Timóteo continua:
Ora, não há ninguém nisso que provoque maior desordem do que os
falsificadores de moeda; porque além de serem ladrões do povo, que roubam toda
a comunidade dos homens, também confundem a ordem pública, afrontando a
autoridade dos príncipes, aos quais é dado o poder para cunhar a moeda e fixar-
lhe o valor com a finalidade de manter essa ordem, a qual não poderia ser
mantida com justiça e equidade se fosse possível a cada um cunhar moeda a seu
bel prazer.[200]
Atualmente, a falsificação massiva de dinheiro tornou-se a prática corrente do
sistema bancário, conhecida pelo nome de “reserva bancária fracionária” que
permite, a cada empréstimo concedido pelo banco, acrescentar, para simples
efeito de escritura e a crédito do próprio banco, o dobro da soma emprestada.
No que concerne aos bancos centrais — a maior parte deles como se fossem
bancos privados — lhes foi dado o poder de emitir moeda quando quiserem,
apenas para efeito de escritura, criando assim montanhas de dinheiro por
simples fiat, isto é, a partir do nada, ex nihilo. Tal poder, até então, era
reservado apenas ao Criador do mundo! É dessa maneira que os bancos
emprestam aos Estados, mediante pagamento de juros, quantias virtuais
astronômicas, produzindo dívidas que alcançam somas inimagináveis! A
longo prazo, tais práticas dão origem a uma inflação destruidora.[201] A
consequência dessa expansão do crédito não é outra senão a expansão de
todas as formas de endividamento, tanto público como privado, o aumento
artificial e sem fim do crédito sem a menor cobertura, como também a
destruição do poder produtivo industrial da sociedade, pela concentração
desse capital virtual em transações puramente especulativas; enfim, ciclos de
explosão e ruína, de desenvolvimento e queda, particularmente destrutivos.
[202]

Viret teria, de um ponto de vista bíblico e criacional, muita coisa a dizer


sobre tal sistema especulativo de assalto monetário e financeiro. Vejamos sua
crítica, com aquela expressividade satírica muito atraente, peculiar de alguns
de seus escritos, aos abusos flagrantes do poder público de seu tempo, neste
pequeno, mas brilhante diálogo:
Timóteo. Parece-me que poderia ser acrescentado, entre os falsificadores de
moeda, todos os que raspam as moedas em benefício próprio, diminuindo seu
peso e devolvendo-as ao mercado, sabendo, e não por ignorância, que tiveram
seu peso diminuído e, portanto, são falsas, como é comum acontecer. Porque,
ainda que façam uso de meios diferentes daqueles utilizados pelos “falsificadores
de moedas”, no entanto seu ato resulta no mesmo fim e essencialmente é a
mesma coisa, ainda que os meios, de alguma maneira, sejam diferentes.
Daniel. Você toca num ponto no qual aqueles que manuseiam a fazenda pública
se deixam fortemente contaminar uns com os outros. Quando recebem, tomam
cuidado para não se enganar e receber moeda e outra coisa ilegítima que não seja
boa; mas quando têm de desembolsar e pagar os salários daqueles que os servem,
e à Igreja ou para o bem público, ou distribuir qualquer coisa aos pobres, Deus
sabe com que lealdade e fidelidade eles trabalham.
Timóteo. Conheci alguém que, conscientemente (penso eu), nunca fez um
pagamento inteiro àqueles a quem devia e principalmente aos pobres, sem toda
vez roubar alguma parte do salário que lhes era devido, ou da esmola que lhes
tinha sido ordenada; e isso por moeda inteiramente falsa, ou por pesos alterados e
mal colocados, sem que os pobres pudessem reclamar, mesmo sendo
manifestamente roubados e pilhados.
Daniel. Esses não são somente vigaristas e falsários, mas ladrões e assaltantes da
coisa pública, piores do que aqueles que assaltam os homens pelos bosques.
Porque o que poderiam lhes fazer de pior, senão tirar-lhes a vida?
Timóteo. No entanto, ai daqueles que não lhes paguem o que é devido sem que
seja bem contado, pesado e aprovado, diferentemente do que fazem aos outros
que não têm a coragem de resistir à sua tirania e vilania.
Daniel. Certamente.[203]
Vamos ao nosso segundo ponto, isto é, à tributação universal dos bens
colocados em circulação.

5. A invenção, pelo Estado, de um imposto universal sobre todos os


objetos colocados à venda: o Imposto sobre Valor Agregado, conhecido
pela sigla I.V.A.
Agora vamos considerar brevemente as reflexões feitas por Viret sobre o
caráter intrinsecamente predador do Estado moderno e, em particular, seu
desejo de fazer de toda atividade industrial e comercial a fonte de suas
riquezas irresponsáveis. Sua análise alia uma estrutura estritamente bíblica
(seu “pressuposicionalismo”) a uma compreensão profunda do
funcionamento da sociedade de seu tempo, como também do
desenvolvimento histórico que levou as nações da Europa, do fim da Idade
Média, à situação que se encontravam em meados do século 16 (seu
“evidencialismo”). Isso se constata por duas premissas que estão sempre
presentes em sua mente: 1) Toda realidade deve ser compreendida à luz de
uma perspectiva bíblica consequente; 2) Toda a realidade (ainda que caída),
enquanto criação divina e manifestação dos propósitos providenciais do
Criador, foi naturalmente estruturada por princípios teológicos e filosóficos
que se encontram na Bíblia.
É essa posição, tanto teonômica (no sentido amplo da expressão) como
natural (segundo a ordem imutável estabelecida por Deus desde a criação),
que permitiu a Viret analisar as estruturas econômicas e a dinâmica
sociológica e temporal da sociedade de seu tempo. Foi assim que Viret
manteve unida, com enorme habilidade e sucesso, uma análise que é, ao
mesmo tempo, teológica, espiritual, moral, filosófica, sociológica,
econômica, literária e histórica, tudo isso numa estrutura de pensamento
admiravelmente unificada e diversificada. Viret recusou toda espécie de
dualismo gnóstico, toda a oposição binária — hoje tão comum no
pensamento cristão como também no secular — entre criação e redenção,
teologia e filosofia, doutrina e história, natureza e cultura, moral e economia,
graça e lei, fé e obras e assim por diante. Onde frequentemente pensamos em
termos de oposições dualistas, seu pensamento funciona sobre o plano da
antítese justa (o bem contra o mal, a verdade contra o erro), mas também de
maneira complementar (todos os aspectos da realidade criada e da ação
providencial de Deus na história estão interligados e se relacionam
reciprocamente). É esse equilíbrio no seu pensamento — que podemos
chamar de “trinitário” — entre a unidade e a diversidade que faz com que
seus escritos, após quatro séculos, sejam tão atuais e estimulantes.
Pierre Viret apontou o instrumento fundamental através do qual o Estado
explora seus cidadãos: o “imposto sobre o sal” ou a aplicação de um tributo
universal sobre o valor agregado a todos os bens negociados no mercado. O
“imposto sobre o sal”, instituído em 1341 pelo rei da França Filipe VI de
Valois (1328-1350), em sua origem era aplicado apenas sobre o sal. Numa
análise histórica, brilhante e cheia de humor, Viret demonstra que esse
imposto sobre a venda do sal foi sendo, pouco a pouco, estendido a quase
todas as mercadorias negociadas no reino. Portanto, pode ser considerado
como o precursor do que chamamos hoje de I.V.A. O imposto sobre o valor
agregado tornou-se um instrumento flexível e particularmente eficaz nas
mãos do Estado voraz moderno, sempre e cada vez mais determinado a tirar
do cidadão.
Por “tirania”, Viret compreendia a tendência ao absolutismo das monarquias
modernas, a começar com o Santo Império Romano Germânico dos
Hohenstaufen, seguido pelas monarquias francesa, inglesa e espanhola. Nisso
elas imitavam a centralização burocrática absoluta do Império Romano. Esse
modelo político e econômico foi restabelecido no Ocidente pelas práticas da
igreja romana que, enquanto Papado imperial, governou efetivamente durante
três séculos aproximadamente a cristandade ocidental como um todo. Esse
período se estendeu, a grosso modo, dos pontificados de Gregório VII (1021-
1085) a Bonifácio VIII (1234-1303). A tendência absolutista que, desde o
século 12, atravessou toda a história da Europa ocidental, resultou na
constituição do Estado nacional revolucionário dos tempos modernos, que
culminaria nas tiranias totalitárias atuais, Estados providenciais todo-
poderosos e onipresentes, caracterizados pela socialdemocracia e oligarquia.
Mas Viret, na crítica que dirige aos abusos fiscais dos vorazes Estados
absolutistas do começo da era moderna, em nenhum instante coloca em
dúvida a ordem divina do governo institucional (Romanos 12.17 a 13.7; 1
Pedro 2.11-25), autoridade pública instituída por Deus para o bem dos
homens. Essa autoridade é limitada, no exercício de suas prerrogativas, pelas
normas soberanas da Lei bíblica, como também pelas instituições existentes e
pela legislação e jurisprudência em vigor, ainda que imperfeitas, mas
protetoras das liberdades humanas. Viret também não tirava do Estado o
direito de cobrar impostos e taxas legítimos. Sob o título de “As taxas
devidas aos príncipes e a necessária moderação em sua cobrança”, Viret
concede a palavra a Jerônimo — historiador, sociólogo, economista e teólogo
de seus Diálogos — em sua conversa com Tobias:
Jerônimo. É correto que os reis e os príncipes tenham direito a tributos e renda
para manter os seus súditos e distribuir justiça a cada cidadão, porque Deus assim
ordenou.[204]

Depois descreve a justificação bíblica das imposições feitas pelo Estado:


Jerônimo. Por essa razão ele ordena expressamente por meio do apóstolo Paulo
que se paguem impostos e tributos com boa consciência, sem nada defraudar.
(Romanos 13). E para nos dar exemplo, Jesus Cristo mesmo pagou tributo a
Cesar e ordenou que lhe fosse pago.

Em seguida advertiu seus leitores sobre o perigo de abuso por parte dos
magistrados:
Mas é preciso também que sejam sempre advertidos para que não passem da
medida. Porque, se não se contentam com o que é razoável, não sei o que
poderão alegar, senão seu próprio desejo e que lhes falta dinheiro e desejam
coletá-lo.[205] E para que não sejam obrigados a devolvê-lo, não querem que
lhes seja emprestado, mas que lhes seja dado, de bom grado ou não, por aqueles
de quem querem obter. Pois, uma vez que aqueles têm os bens em seu poder, se
quiserem deles usufruir e ser seus donos, é preciso que façam o que agrada aos
que são mais fortes do que eles e que podem extorqui-los a seu bel prazer. [...]
Mas quer emprestem ou não, esse meio de tributar os súditos e estrangeiros lhes
parece mais conveniente e mais rentável.[206]

Assim, para Viret, o direito que o magistrado tem de tributar seus súditos
não justifica, de forma alguma, uma tributação arbitrária e abusiva dos
cidadãos pelos poderes públicos. Anteriormente, Jerônimo, em resposta a
uma questão que ele mesmo havia feito a Tobias, personagem que
representa a posição sensata de um leigo católico romano atraído pelo
Evangelho, lhe perguntou:
Jérôme. Mas você sabe qual é a principal causa da tirania e extorsões feitas pelos
príncipes a seus súditos?
Tobias. Penso que são os pecados tanto de uns como de outros.

Jerônimo dá uma resposta mais completa:


Jerônimo. Se olharmos para Deus, não podemos duvidar que os pecados são a
primeira e principal causa. Mas se olharmos para os homens, são os hipócritas,
saqueadores e ladrões ao redor dos príncipes, os cortesãos que fazem com que
creiam que tudo o que desejam lhes é permitido[207] e que os corpos e bens dos
seus súditos são de sua propriedade e deles podem dispor quando desejarem,
como disporiam de um animal. Falam como se não tivessem nenhum dever para
com seus súditos e como se não tivessem prometido governá-los bem, fazendo
justiça como bons príncipes e pastores.[208]

A descrição eloquente, feita por Jerônimo, dos efeitos perversos da bajulação


de pessoas da corte provoca uma resposta brilhante de Tobias numa seção
que tem como título: “Se tudo o que é do agrado dos príncipes fosse lícito.
Taxas e impostos[209] dia a dia aumentados”. Vejamos sua réplica enérgica,
mas profundamente sensata:
Tobias. É perfeitamente certo que se é permitido a alguns é também permitido a
outros. Mas, em primeiro lugar, deve-se discutir se não é permitido a uns e nem a
outros; isso não somente em relação à Lei de Deus, mas até mesmo segundo as
leis humanas. Porque creio que não há lei humana, digna desse nome, que torne
os príncipes isentos de toda lei e lhes permita fazer tudo o que desejam e impor a
seus súditos todos os encargos que, para proveito próprio, gostariam de impor.
Porque se seus súditos fossem feitos escravos, ainda seria necessária alguma lei
entre o senhor e o servo, algum equilíbrio que moderasse todas as leis. E, por
outro lado, após um príncipe ter começado a sobrecarregar seus súditos, mais do
que o razoável, seria melhor se vivesse contente, sem ir além, e se os que viessem
depois dele, permanecessem dentro dos limites, sem agravar o que fizeram seus
predecessores. Mas, a partir do momento que começaram, não pensam mais em
aliviar o povo naquilo em que já estão por demais sobrecarregados, mas de
sobrecarregá-los ainda mais, até dominá-los totalmente.[210]
Isso leva Viret a fazer uma análise histórica detalhada do aumento do imposto
e das taxas que a monarquia francesa impunha sobre a venda de quase tudo
que era produzido. Tobias manifesta aqui a indignação do próprio Viret:
Tobias. Porque a partir do momento que a tirania começa, ela jamais diminui,
mas cresce cada vez mais. E por essa razão há príncipes e senhores que não se
contentam mais com seus tributos e rendas comuns, no sentido de limitar seu
plano e alcance, seus projetos e empreendimentos, mas apenas têm como alvo a
soma que almejam e os negócios que pretendem fazer, sem considerar se
suportam ou não e se sua renda poderá honrá-los. Mas após serem convencidos
de que são grandes príncipes, ou queiram tornar-se, considerando-se como
iguais àqueles que são maiores que eles, fazendo-se maiores do que jamais
serão, e tendo colocado tudo isso na cabeça, então consideram como poderão
aumentar seus tributos e rendas para alcançar essa grande posição que
pretendem e bancar o gasto que dela decorre.[211]
Jerônimo comenta:
Jerônimo. E em consequência disso fazem o contrário do que deveriam fazer.
Porque ao invés de limitar seu plano e projetos de acordo com a quantidade de
seus tributos e rendas ordinárias, ao contrário, querem aumentá-los fazendo
com que cheguem à altura dos planos que querem implementar e dos negócios
que querem fazer. E a partir do momento que conseguem, frequentemente
acrescentam mais coisas, tão grandes e difíceis que seu poder não pode
suportar. Por essa razão e posto que os tributos e rendas ordinárias têm limite e
não conseguem honrar somas tão altas, precisam ser obrigatoriamente
aumentados até a altura que desejam alcançar. Mas o pobre povo sabe muito
bem a que custo isso é feito.[212]
E segue uma minuciosa e rocambolesca colocação feita por Tobias —
magistral e ousada sátira econômica e social — de todos os bens visados
pelos coletores do Rei.
Tobias. Porque há vários lugares onde os pobres súditos não podem ter coisas
valendo mais que três centavos nem vender uma mercadoria insignificante, que
não seja tributada. E aqueles que inventaram isso, se mostram tão bons
administradores que não esquecem absolutamente de nada. Porque, em primeiro
lugar, se é caso de animais de criação, nada é omitido, desde os maiores,
passando pelos médios, chegando aos menores, até mesmo a um pintinho. E há
também um outro mercado, além de couros e peles, lãs e plumas e artigos que
são utilizados como vestimenta. Também é o caso das frutas, como de toda
sorte de laticínios, leite, manteiga, queijos de todos os tipos e coisas que tais,
até mesmo um ovo. Por essa razão, podemos dizer de alguns, que seriam
capazes de tosar um ovo. E porque os animais não podem viver sem comer, é
preciso tributar também o que eles comem, seja feno, palha, aveia, ou qualquer
outra coisa. Suas forragens não ficam de fora. Depois dos animais terrestres,
vão aos aquáticos e segundo a quantidade, qualidade e natureza dos peixes, o
tributo é calculado. Quanto ao fruto da terra, não são apenas o trigo e legumes
de toda espécie, ao contrário, vão dos pequenos até às peras, batatas, ameixas,
cerejas, até ao repolho, rabanete e alho-poró. Em suma, não há alho ou cebola
que se possa comprar sem que seja colocado nessa conta. Depois, ainda há a
madeira, tanto para o aquecimento e queima como para construção, segundo as
espécies e qualidades, e a juta, preparada ou não preparada. E saindo das coisas
da terra, se vai aos metais, que são extraídos do seu interior, de todos os tipos,
entre os quais as ferragens [instrumentos e armaduras de ferro] que não são
deixadas para trás. Sem contar as especiarias e as lonas de todo o tipo. Para ser
completo, é preciso dizer, tudo. Porque não há nada que possa ser considerado
tão pequeno que esteja isento de tributo. Mas sobretudo, não se come nada
salgado que não se saiba o preço.[213]

Dois séculos e meio mais tarde, no início do século 19, o inglês, grande
defensor dos pobres de seu país, William Cobbett (1763-1835), adversário
feroz da usura em todas as suas formas e da fabricação ex nihilo da moeda
pelo Banco central da Inglaterra (o Bank of England), ecoava as propostas
clarividentes, tão eloquentes e robustas de Pierre Viret. Protestando contra
os gastos abusivos do governo britânico e os altos impostos que os
alimentavam, Cobbett escreveu numa carta aos trabalhadores ingleses:
Há poucos artigos que ao comprá-los vocês não paguem imposto; sobre seus
sapatos, o sal, sua cerveja, sobre o lúpulo, o trigo, o açúcar, as velas, o sabão, o
papel, o café, o álcool, o tabaco, sobre os vidros de suas janelas, sobre as telhas
e tijolos. Sobre tudo isso e muitos outros objetos vocês pagam imposto; até
sobre o seu pão, porque tudo que entra em sua fabricação é tributado; em vários
casos o imposto é mais da metade do que vocês pagam pelo próprio objeto
comprado; e esse imposto serve, em parte, para sustentar pensionistas e
parasitas, e os bandidos da imprensa vendida tratam vocês como escória da
sociedade.[214]
Viret (como William Cobbett, em relação ao governo de seu país) discernia
muito claramente as consequências do caráter irrealista das ambições
pessoais, econômicas e políticas da monarquia francesa. O resultado disso
seria uma instabilidade social, uma cólera persistente do povo pobre contra
as classes dominantes e, enfim, a revolução. Claro, ele desaprovava tais
reações, mas percebia perfeitamente seu caráter inevitável. O mal produziria
seus efeitos, porque a manifestação dos julgamentos de Deus não poderia
ser freada. Esse transbordamento desmesurado de ambição, um dia teria sua
queda. Mas, no decorrer desses acontecimentos, a nação seria
irremediavelmente penalizada. É Teofrasto, o porta-voz historiador e
teólogo de Viret que, aqui, ao responder Eustáquio, o defensor da hierarquia
romana corrompida, exprime melhor seu pensamento:
Teofrasto. Quando ele quiser dizê-lo, o contradirei com são Bernardo, que no seu
tempo já havia dado este testemunho [sobre a hipocrisia do clero] que segue:
“Todos são amigos e todos inimigos; todos familiares queridos e todos
adversários; todos íntimos, mas nenhum deles é pacífico; todos próximos, mas
todos procuram o que serve ao seu próprio interesse. Eles são de Cristo, mas
servem ao Anticristo. Eles seguem se sentindo honrados pelos bens do Senhor,
quando eles mesmos não honram ao Senhor. Daí procede essa vestimenta de puta
que você vê todos os dias, esse hábito de malabarista de feira; a pompa e o
preparo real. Daí procede o ouro dos freios, das selas e esporas. Daí procedem as
mesas suntuosas, cheias de iguarias e bem guarnecidas, as carnes, as taças e
xícaras. Daí vêm as glutonarias e bebedeiras. Daí as harpas e clavicórdios, as
rabecas, alaúdes, cornetas e trompetes. Daí as prensas para os vinhos em
abundância e as adegas e celeiros cheios, escoando e escorregando de um para
outro. Daí os tonéis de vinhos finíssimos. Daí as sacolas cheias e recheadas.
Para essas coisas que eles querem ser os prelados das Igrejas, Diáconos,
Arcediáconos, Bispos e Arcebispos”. E, de novo, no sermão que são Bernardo
pronunciou no Sínodo dos Pastores, por um acaso não disse: “Vocês não
entregam o patrimônio da cruz de Cristo às Igrejas, mas apascentam as putas
em seus leitos. Vocês engordam os cães. Vocês não adornam os cavalos com
belas rédeas, dourando seus peitos e cabeças?”.[215]
Teofrasto, voltando sua atenção para os Príncipes, Imperadores e Reis,
assim se expressa:
Teofrasto. Porque não se importava com o povo, nem com a República, nem com
as leis, com o governo, com a justiça, nem com a salvação do reino. Toda sua
preocupação era arrecadar impostos, tirar dinheiro e encontrar um jeito de obtê-lo
para gastá-lo em seus prazeres e delícias. E atualmente, que diferença há entre ele
e nossos pastores e quase todos os príncipes da Europa, tanto seculares como
espirituais? São eles, outra coisa, senão coletores e tesoureiros que não cessam de
impor novas cargas sobre o povo pobre, que já foi comido até os ossos? Do que
se preocupam senão em sempre cobrar e recolher, sem jamais acharem que basta,
e depois gastar em todo o tipo de vaidades tanto privadas como públicas?[216]

O meio para alcançar tal objetivo? Aumentar constantemente a imposição


universal do Estado sobre tudo o que é vendido. O bom senso de Tobias
mostra claramente o lamento de um povo esmagado pelas extorsões fiscais
de seus dirigentes. Ele encontra consolo na certeza que um Deus justo e fiel
derramará, seguramente, sua terrível vingança contra as autoridades egoístas
e iníquas.
Tobias. Além disso, confesso a você que sempre devemos honrar e reverenciar
os príncipes e obedecê-los em todas as coisas que dizem respeito ao corpo e aos
bens, e que podemos fazer isso sem ir de encontro à salvação e à glória de
Deus, ainda que sejam tiranos e submetam seus súditos a grandes extorsões e
violências. Mas, isso não quer dizer que estejam cuidando bem do seu ofício e
não ofendam gravemente a Deus, e que finalmente sua terrível vingança seja
derramada sobre eles, se tratarem seus súditos não como bons príncipes, mas
como cruéis tiranos; porque como já disse sobre Jó, eles devem ter em mente
que seus súditos são homens como eles, e que todos têm o mesmo Senhor, o
qual não quer que o forte coma os fracos, e que os reis e príncipes estejam entre
os súditos como leões e lobos entre os cordeiros ou como as grandes baleias e
grandes peixes do mar que comem e devoram os peixes pequenos.[217]

Foi assim que cresceu o poder da monarquia absoluta, como também


enriqueceram os dirigentes sanguessugas, declarados ou invisíveis. Por meio
do espírito visionário e profético de Pierre Viret, nos encontramos aqui
diante de uma crítica teológica social e política digna da mais alta tradição
da herança literária da Europa cristã, tanto satírica como moral.
Conclusão: Uma economia sensata, porque bíblica e
criacional
Viret percebe, com grande lucidez, as consequências das ambições
econômicas e políticas da monarquia francesa, tanto pessoais como
totalmente irrealistas, que resultaria em convulsões sociais, num ódio
persistente contra a aristocracia dominante por parte do povo empobrecido,
enfim, na própria revolução. Ele não aprovava, é claro, tais reações violentas,
mas percebia claramente seu caráter inevitável. O mal certamente um dia iria
explodir e os julgamentos justos de Deus não poderiam ser freados. A hubris
de uma ambição desmesurada, necessariamente verá, no tempo de Deus, sua
queda irremediável. Mas no curso desse desastre, a própria nação será
dramática e talvez irremediavelmente devastada. O diagnóstico de Viret é
terrível! Vamos resumi-lo.
Tais líderes não passam de vulgares coletores de impostos. Não são movidos
por nenhuma preocupação com o bem do seu próprio povo ou com a
propriedade pública. Eles não têm nenhum respeito pelas leis do reino e não
se importam em dar uma direção sadia à sociedade pela qual foram
encarregados. Não se preocupam com a justiça, e nem com a segurança do
reino. Sua única preocupação é trazer para si mesmos todas as riquezas da
nação, a fim de sustentar seu prazer e usufruir das delícias desta vida.
E quais são os meios para alcançar esse objetivo tremendamente egoísta?
Aumentar constantemente a carga universal de impostos, recolhidos pelo
Estado, sobre a venda de todo e qualquer bem. O bom senso de Tobias
exprime o lamento universal de um povo sobrecarregado pelas extorsões
fiscais de seus governantes. Ele encontra o seu consolo na convicção de que
um Deus justo exercerá, necessariamente e a seu tempo, sua vingança terrível
sobre tais autoridades iníquas. A queixa de Tobias contra esses príncipes
tiranos foi exposta desta maneira:
[...] eles devem ter em mente que seus súditos são homens como eles, e que
todos têm o mesmo Senhor, o qual não quer que os fortes comam os fracos, e
que os reis e príncipes estejam entre os súditos como leões e lobos entre os
cordeiros, ou como as grandes baleias e grandes peixes do mar que comem e
devoram os peixes pequenos.[218]

Como concluir esta breve recordação do pensamento econômico de Pierre


Viret? Como referir-se, de maneira apropriada, ao seu bom senso econômico
e político? Como ele pôde desenvolver uma análise dos problemas
econômicos e políticos de seu tempo de maneira tão precisa e completa?
Porque sua análise possui uma precisão tão grande, seus escritos conseguem
trazer luz a muitas das dificuldades que perturbam nosso próprio tempo.
Farei algumas sugestões como resposta provisória a essas questões:
1. Viret constantemente considerava todos os ângulos da realidade sob o
ponto de vista de Deus e de acordo com a sabedoria contida em sua Palavra
infalível.
2. Essa atitude teonômica e pressuposicional provinha de sua perspectiva
profundamente bíblica. Ela era movida por um espírito plenamente católico,
ou seja, no qual eram considerados todos os aspectos da Palavra revelada de
Deus.
3. Nisso, seu pensamento teológico era muito diferente daquele que dá
suporte a essa gnose dualista moderna que sela o pensamento da igreja
contemporânea. Entre os nossos contemporâneos que se dizem cristãos há
dois polos: de um lado, uma teologia bíblica para a igreja e de outro, um
pensamento científico, autônomo em relação à Bíblia, para a realidade criada.
4. Ele compreendeu que a ordem manifestada pela Palavra escrita de Deus
revelava a mesma ordem que encontramos tanto no cosmos criado por ele
como na direção aliancial, que a providência divina dá à história humana,
pelo Senhor Jesus Cristo.
5. Ele não se opôs, mas distinguiu a natureza da graça, a criação da redenção,
a revelação geral da revelação especial, porque, para Viret, tanto a criação
como a redenção vêm do próprio Deus único, Pai, Filho e Espírito Santo. Tal
teologia, tão única quanto diversa, fez com que ele, qualquer que fosse a
deformação ou pecaminosidade nela ainda contida, considerasse cada um dos
aspectos da realidade como testemunhos caídos da bondade da ordem
criacional original, todos capazes de ser iluminados pela revelação
sobrenatural de Deus e plenamente restaurados em Jesus Cristo, pela graça
poderosa e abençoadora de seu Espírito.
6. Consequentemente, para falar a seus contemporâneos sobre Deus e seus
decretos justos e misericordiosos, Viret não se limitava, simplesmente, à
exposição fiel das Escrituras — para ele esses escritos divinos eram
absolutamente normativos — mas utilizava, em sua pregação e obras escritas,
cada aspecto da realidade criada e providencial. Assim, julgou justamente que
o conjunto da atividade cultural lhe estava disponível como um trampolim a
partir do qual o Evangelho poderia atingir a mente e o coração de seus
ouvintes. Seu ponto de partida podia ir dos provérbios e ditados populares à
toda filosofia; da poesia aos anais dos historiadores; da análise econômica à
descrição detalhada da anatomia humana e animal. Ele teve o privilégio de ter
vivido antes destes tempos “modernos”, no qual a nova ciência conseguiu
eliminar as causas finais e formais do funcionamento da própria inteligência.
Como toda coisa — sem exceção alguma (mesmo em sua condição caída!) —
tinha seu fim e sentido em Deus e era ordenada para Deus e sustentada por
ele, tudo podia ser levado cativo à verdade, para que ela mesma falasse de
Deus, desde que fosse contemplada à luz da sua Palavra inspirada e infalível.
Assim, seu pressuposicionalismo fundamental, bíblico e criacional, era a base
inabalável sobre a qual repousava sua utilização evidencialista, não
importando qual fosse o fato da criação e da história, para falar de Deus e da
imutável ordenança divina de sua criação, assim como do sentido
providencial de cada acontecimento de sua história.
7. Portanto, mesmo utilizando uma linguagem que lhe era estranha, Viret era
ao mesmo tempo profundamente “pressuposicionalista” e plenamente
“evidencialista” em seu pensamento apologético, como também em sua
pregação do Evangelho. Foi dessa maneira que trabalhou para levar cativos à
obediência de Cristo todos os pensamentos desordenados e deformados dos
homens. Tal catolicidade — a totalidade da Escritura iluminando a totalidade
da realidade criada e providencial — foi certamente a razão primeira do
sucesso imenso de sua pregação. Foi assim que pôde atingir as preocupações
de seus contemporâneos e isso numa linguagem que podiam facilmente
compreender.
8. Seu pensamento econômico era então, ao mesmo tempo, teológico e moral,
tanto histórico como sociológico, estrutural e humano. Dessa forma pôde
perceber e descrever os mecanismos das realidades econômicas e, ao mesmo
tempo, relacionar essas realidades econômicas estruturais com as
responsabilidades imediatas e a longo prazo (tanto boas como más) de todos
os agentes humanos. Esses atores humanos do processo econômico podiam
ser considerados como instrumentos morais e responsáveis, aptos a produzir
um bom fruto ou um fruto podre no seio do desenvolvimento contínuo (ou na
desintegração) da ordem social. Viret teria considerado, tanto a “mão
invisível” de Adam Smith como as “leis de ferro da ciência econômica”,
como realidades imaginárias virtuais, porque as duas ignoram o impacto
econômico aliancial das ações responsáveis, morais (ou imorais), dos agentes
humanos criados à imagem de Deus.
9. Enfim, esta reflexão teológica, inspirada, plenamente católica, que Pierre
Viret desenvolveu em tantas áreas do pensamento e dos empreendimentos
humanos, provém não somente do fato de que é intrínseca e inteiramente
bíblica, mas também porque está totalmente aberta a todas as realidades da
ordem criada e providencial de Deus. Nisso, sua forma de pensar se opunha
absolutamente ao dualismo desse pensamento binário que, desde o
nascimento da ciência moderna, no início do século 17 (e mesmo até antes,
com o nominalismo de Ockham), tornou-se o flagelo, ou melhor, o destino
funesto, em suma, a destruição da ordem criada e de toda possibilidade de
uma teologia cristã eclesial plenamente católica, que pudesse ser levantada
como uma tocha celestial no seio do que poderíamos chamar, com certa
ironia, de “civilização moderna”.
10. Na minha modesta opinião já está mais do que na hora da Igreja (e
através de seu ensino, todas as nações) finalmente escutar o que Pierre Viret
tem a nos dizer sobre os propósitos imutáveis, misericordiosos e justos de
Deus para com os homens deste tempo, tempo de grande angústia.
Capítulo XIV: A generosidade de Deus

INTRODUÇÃO
Prosseguimos com nossa peregrinação através dos mandamentos de Deus, o
que significa que procuramos definir, através do estudo de toda a Bíblia, qual
deve ser o comportamento, em todas as áreas da vida, do homem sob as
bênçãos da aliança criacional de Deus em relação a todos os homens e com
aqueles que pertencem à aliança da graça que Deus estabeleceu com seu
povo eleito.
Neste capítulo, retomamos nossa longa meditação sobre a Lei de Deus. Mas,
em razão da proximidade do Natal,[219] nos pareceu bom meditarmos sobre
um aspecto do oitavo mandamento, Não roubarás, que raramente é
examinado pelos comentaristas, isto é, a generosidade de Deus.
Sabemos que o nosso Deus exige obediência do seu povo aos mandamentos
da aliança e que ele é um Deus benigno e fiel, magnânimo e generoso, tardio
em irar-se e rico em bondade; um Deus compassivo, cuja vontade primeira
jamais foi a morte do pecador, mas seu arrependimento, seu retorno a Deus,
para que viva eternamente. Como diz Isaías, ele é um Deus para o qual a obra
de julgamento e de condenação é estranha à sua benignidade.
Essa obra de condenação, necessária e justa, é o fruto inevitável do pecado de
suas criaturas, primeiro dos anjos e depois dos homens. Essa benignidade,
essa generosidade, essa magnanimidade divina, repetimos, são antecedentes,
porque a bondade de Deus, como sua Palavra, dura eternamente. É por causa
de sua natureza generosa — não esqueçamos o amor imenso de Deus por
suas criaturas — que ele tem horror à avareza, ao roubo, ao espírito egoísta e
interesseiro do homem. É por causa da sua misericórdia e compaixão que ele
condena tão fortemente a recusa de perdão mútuo entre os homens, aquela
vontade de manter a trave nos olhos para condenar o cisco que se encontra no
olho do outro. Por isso, como vimos anteriormente, ele abomina tanto as
falsas balanças, os pesos duplos, as medidas duplas — a perversão dos dois
pesos e duas medidas — pelos quais procuramos diminuir nossos pecados
graves, ao mesmo tempo que aumentamos e denunciamos os pecadinhos dos
nossos irmãos.
Voltemos, agora, ao nosso tema: a generosidade de Deus. Nosso estudo terá
duas partes: I. A generosidade Deus através da Bíblia. II. A generosidade de
Deus no Evangelho do Natal.
Nossa conclusão consistirá em extrair, para nós mesmos, algumas aplicações
práticas.

1. A GENEROSIDADE DE DEUS ATRAVÉS DA BÍBLIA


(a) O amor de Deus
Toda a Bíblia ensina que um dos principais atributos de Deus é o amor.
Vejamos como o apóstolo João nos fala sobre esse amor divino:
Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor procede de Deus; e todo
aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não
conhece a Deus, pois Deus é amor. Nisto se manifestou o amor de Deus em nós:
em haver Deus enviado o seu Filho unigênito ao mundo, para vivermos por meio
dele. Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em
que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos
pecados. Amados, se Deus de tal maneira nos amou, devemos nós também amar
uns aos outros. Ninguém jamais viu a Deus; se amarmos uns aos outros, Deus
permanece em nós, e o seu amor é, em nós, aperfeiçoado. Nisto conhecemos que
permanecemos nele, e ele, em nós: em que nos deu do seu Espírito. E nós temos
visto e testemunhamos que o Pai enviou o seu Filho como Salvador do
mundo. Aquele que confessar que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece nele,
e ele, em Deus. E nós conhecemos e cremos no amor que Deus tem por nós. Deus
é amor, e aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus, nele. (1
João 4.7-16)

Por duas vezes nosso texto nos fala que Deus é amor. E fala também que esse
amor é trinitário: o amor de Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Sem a Trindade
seria inconcebível que Deus fosse amor. Como alguém pode ser amor
sozinho, num amor estéril, narcisista, voltado para si mesmo, amor do tipo,
digamos, homossexual? Porque as emoções homossexuais e de lesbianismo
não conhecem propriamente o outro, o relacionamento complementar, o
amor do outro sexo, que é ao mesmo tempo diferente e semelhante.
Se Deus é amor, seu amor se irradia primeiro no interior do Deus trino, entre
as Pessoas eternas, de uma só Essência, mas não idênticas, nas Pessoas da
Trindade divina. O Pai ama o Filho; o Filho ama o Pai. O Pai ama o Espírito
e o Espírito ama o Pai. O Filho ama o Espírito e o Espírito ama o Filho. E
tudo isso, sem nenhuma inferioridade entre as Pessoas divinas, sem começo
nem fim, desde toda a eternidade e por todas as eras futuras. É assim que
Deus é amor. Mais ainda, um Deus não 6rinitário, puramente monoteísta,
como o deus do judaísmo após a vinda de Cristo, como também do islã,
religiões apóstatas do Deus da Bíblia, de nenhuma maneira podem ser Deus
de amor. Porque nessas duas falsas divindades monoteístas há somente um
Deus solitário que só pode amar a si mesmo.
Mas, para nós, a maravilha das maravilhas é que esse amor divino não ficou
enclausurado no interior da divina Trindade. Em sua magnanimidade, em sua
imensa generosidade, esse Deus de amor, único em Três Pessoas divinas,
derramou seu amor externamente. Ele manifestou esse amor ad extra, para
com outro. Como ele fez isso? Esse amor que extravasou para além das Três
Pessoas da divina Trindade, e que é a trama dessa generosidade divina, é o
amor que estava em seu ato criador quando criou todas as coisas e que
percorre toda a Bíblia. Vejamos algumas das grandes etapas pelas quais esse
amor divino foi extravasado aos outros.
(b) A aliança da criação
Toda a obra da criação descrita nos dois primeiros capítulos de Gênesis (à
qual inúmeras passagens bíblicas se referem) é uma manifestação grandiosa e
sublime do amor exteriorizado, ad extra, da Santa Trindade. É um
transbordamento majestoso da graça divina. Leiamos o começo desse texto,
no qual brilha a glória do nosso Deus generoso:
No princípio criou [bará, verbo no singular] Deus [Elohim, plural] o céu e a terra.
(Gênesis 1.1)

Essa anomalia gramatical e lógica, os Deuses, o sujeito no plural, e criou, o


verbo no singular, indica a obra do Deus ao mesmo tempo Uno e Trino, o
Deus único em Três Pessoas. É a obra de amor criador das Três pessoas
divinas.
Os dois próximos versículos confirmam nosso argumento:
A terra, porém, estava sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e
o Espírito de Deus [o ruah, o vento do sopro, do Espírito de Deus] pairava por
sobre as águas. (Gênesis 1.2)

Nesse sopro, nesse vento, nesse Espírito, vemos a ação criadora e ordenadora
da Terceira Pessoa da Trindade. Enfim, surge em plena luz a obra do amor
do Filho de Deus, o Verbo eterno, a Palavra. Deus o Pai diz, é a Palavra
divina; o Filho eterno de Deus então fala:
Disse Deus: Haja luz; e houve luz. (Gênesis 1.3)

É a Palavra de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, que por um fiat divino criou
a luz, uma luz boa, manifestação do amor criador de Deus:
E viu Deus que a luz era boa; e fez separação entre a luz e as trevas. Chamou
Deus à luz Dia e às trevas, Noite. Houve tarde e manhã, o primeiro dia. (Gênesis
1.4-5)

O mesmo para a criação do homem. Vejamos nosso texto inspirado por Deus
em seus menores detalhes:
Também disse Deus [o Pai fala para o Filho, a Palavra]: Façamos [plural
trinitário, Pai, Filho e Espírito Santo] o homem à nossa [de novo, plural] imagem
[trinitária e una], conforme a nossa [plural] semelhança; tenha ele domínio sobre
os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda
a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra [antes da entrada brutal do
pecado, o homem é criado, o vice-rei abençoado de toda a criação]. Criou Deus,
pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus [singular, para marcar a unidade
de Deus de quem o homem é a imagem] o criou; homem e mulher os criou
[plural, para marcar a pluralidade trinitária da divindade e a unidade na
diversidade do casal humano e da família]. (Gênesis 1.26-27)

O mesmo para a criação da mulher. No domínio, no homem como vice


regente sobre a criação, vemos um reflexo dessa soberania benfazeja da
Trindade sobre todas as obras de suas mãos. Não se trata da brutalidade
baconiana e cartesiana do homem tecnológico, mestre despótico dominador
da natureza, que esmaga as boas criaturas de Deus. Maldito aquele que
destruir a criação, nos diz Apocalipse 11.18. Deus virá para destruir os que
destroem a terra!

(c) A aliança da graça: a salvação


No terceiro capítulo de Gênesis, que nos traz o relato da queda do homem e
da maldição que caiu sobre a criação em consequência disso, vemos de novo
o amor, a generosidade do Deus triúno para com o homem, agora separado
dele. Deus, com efeito, não abandona o homem em seu pecado nem por um
instante, e nem a criação em sua recente corrupção. Desde a queda de sua
criatura bem-amada, Deus vai em busca do homem perdido.
Quando ouviram a voz do Senhor Deus, que andava no jardim pela viração do
dia, esconderam-se da presença do Senhor Deus, o homem e sua mulher, por
entre as árvores do jardim. E chamou o Senhor Deus ao homem e lhe perguntou:
Onde estás? (Gênesis 3.8-9)
Sabemos o que aconteceu depois. A maldição da serpente, da mulher, do
homem e, por causa dele, de toda a criação. Mas mesmo nesses julgamentos
terríveis, Deus manifesta seu amor, sua bondade superabundante e sua
generosidade. E anunciou, ao primeiro casal, a salvação futura do gênero
humano nas palavras que dirigiu à serpente:
Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente.
Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar. (Gênesis 3.15)
Nesse texto, que se costuma chamar de protoevangelho se encontra,
resumidamente, toda a história de nossa salvação. Nos diz o texto que haverá
duas linhagens: a linhagem da mulher (da salvação culminando em Jesus
Cristo) e a linhagem da serpente (que resultou naqueles que levaram Jesus
Cristo à morte). A linhagem da serpente crucificará Cristo; a linhagem da
mulher resultará no filho de Maria, o Messias de Israel, Jesus de Nazaré,
Filho de Deus feito homem, que destruirá sobre a cruz do Gólgota todo o
poder do diabo tanto na terra como nos céus. Podemos ver, nas entrelinhas
desses versos de Gênesis 3, toda a generosidade Deus — da Trindade como
um todo — para com o gênero humano, ou seja, o Pai enviará o Filho sobre a
terra para assumir nossa natureza humana pecaminosa. O Espírito gerará o
Messias de Israel no ventre da virgem Maria. O Filho se oferecerá para pagar
o preço dos pecados de todas as nações do mundo (não mais somente do
Israel da aliança antiga) sobre o madeiro da cruz. No terceiro dia, ele
manifestará ao universo inteiro sua vitória sobre todas as forças do mal e da
morte, ressuscitando-o dentre os mortos pelo poder do todo-poderoso Deus,
Pai, Filho e Espírito Santo.
d) Toda a história da aliança de Deus testemunha essa generosidade
divina para com os homens
Apesar do endurecimento dos homens pelo pecado, Deus suscitará sempre,
entre o gênero humano, um remanescente pelo qual dará continuidade à sua
obra e preservará a linhagem da salvação. Quando do dilúvio, lemos ainda:
Disse o Senhor: Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e
o animal, os répteis e as aves dos céus; porque me arrependo de os haver feito.
(Gênesis 6.7)

Mas a misericórdia de Deus se manifesta logo:


Porém Noé achou graça diante do Senhor. (Gênesis 6.8)

E mais adiante lemos:


Eis a história de Noé. Noé era homem justo e íntegro entre os seus
contemporâneos; Noé andava com Deus. (Gênesis 6.9)

O dilúvio tendo terminado, Deus renovou com Noé a aliança da criação e da


redenção. Mas os homens, de novo, se desviaram dele.
Foi então que Deus chamou Abrão para sair de Ur, na Caldeia, para inaugurar
uma nova etapa no desenvolvimento da aliança. Aqui, ainda, vemos a
generosidade divina operando. Vejamos o que diz Gênesis 17:
Quando atingiu Abrão a idade de noventa e nove anos, apareceu-lhe o Senhor e
disse-lhe: Eu sou o Deus Todo-Poderoso; anda na minha presença e sê
perfeito. Farei uma aliança entre mim e ti e te multiplicarei extraordinariamente.
(Gn 17.1-2)

Vejam a extraordinária generosidade do Deus da aliança. Moisés continua:


Prostrou-se Abrão, rosto em terra, e Deus lhe falou: Quanto a mim, será contigo a
minha aliança; serás pai de numerosas nações. Abrão já não será o teu nome, e
sim Abraão; porque por pai de numerosas nações te constituí. Far-te-ei fecundo
extraordinariamente, de ti farei nações, e reis procederão de ti. Estabelecerei a
minha aliança entre mim e ti e a tua descendência no decurso das suas gerações,
aliança perpétua, para ser o teu Deus e da tua descendência. (Gênesis 17.2-7)

Deus prossegue, em seu plano generoso, com a descendência de Abraão,


Isaque e Jacó. Fez descer seu povo ao Egito onde se multiplicaram
extraordinariamente e depois libertou-os da servidão ao Faraó, pela mão de
Moisés. Mas Deus coloca sempre sua generosidade diante dos nossos olhos.
Vejamos o relato que nos dá o livro de Êxodo:
Decorridos muitos dias, morreu o rei do Egito; os filhos de Israel gemiam sob a
servidão e por causa dela clamaram, e o seu clamor subiu a Deus. Ouvindo Deus
o seu gemido, lembrou-se da sua aliança com Abraão, com Isaque e com Jacó. E
viu Deus os filhos de Israel e atentou para a sua condição. (Êxodo 2.23-25)

Foi então que o Senhor apareceu a Moisés na sarça ardente e o chamou para
ser o libertador de seu povo entregue à escravidão no Egito. Ao criar esse
povo, separado por ele, Deus fez com que o plano redentivo novamente
progredisse nessa aliança cujo alvo não seria outro senão a manifestação na
carne de seu Filho amado, nosso Senhor Jesus Cristo. Por sua obediência
passiva (o julgamento sofrido por nós) e ativa (sua justiça perfeita cumprida
por nós), ele realizou a salvação do mundo para manifestar uma terra nova e
novos céus no último dia, onde todo o pecado e todo sofrimento serão para
sempre abolidos e nos quais habitará a justiça.
Deus, então, chamou seu povo do Egito para a conquista da terra prometida,
como também chama a Igreja, pelo poder do testemunho de Jesus, que é o
espírito da profecia — Lei e Evangelho (Apocalipse 19.10) — para a
conquista espiritual e cultural de todas as nações da terra e para a fidelidade à
sua aliança nos países dos seus inimigos e inimigos de Deus. Estas são as
palavras que Moisés dirige a seu povo Israel e à sua Igreja (1 Pedro 2.4-10):
Porque tu és povo santo ao Senhor, teu Deus; o Senhor, teu Deus, te escolheu,
para que lhe fosses o seu povo próprio, de todos os povos que há sobre a
terra. Não vos teve o Senhor afeição, nem vos escolheu porque fôsseis mais
numerosos do que qualquer povo, pois éreis o menor de todos os povos, mas
porque o Senhor vos amava e, para guardar o juramento que fizera a vossos pais,
o Senhor vos tirou com mão poderosa e vos resgatou da casa da servidão, do
poder de Faraó, rei do Egito. Saberás, pois, que o Senhor, teu Deus, é Deus, o
Deus fiel, que guarda a aliança e a misericórdia até mil gerações aos que o amam
e cumprem os seus mandamentos. (Deuteronômio 7.6-9)

Depois as advertências da aliança são solenemente anunciadas:


E dá o pago diretamente aos que o odeiam, fazendo-os perecer; não será
demorado para com o que o odeia; prontamente, lho retribuirá. Guarda, pois, os
mandamentos, e os estatutos, e os juízos que hoje te mando cumprir.
(Deuteronômio 7.10-11)

Vemos esses dois elementos da aliança operando ao longo de toda a Bíblia: a


generosidade ilimitada de Deus para com seu povo enquanto caminha, e sua
severidade cheia de paciência, contenção e amor fiel, quando seus filhos
obstinados se desviam. Vejamos ainda o salmista cantar as bênçãos
maravilhosas do seu Deus, que também é o nosso Deus:
Amo o Senhor, porque ele ouve
a minha voz e as minhas súplicas.
Porque inclinou para mim os seus ouvidos,
invocá-lo-ei enquanto eu viver.
Laços de morte me cercaram,
e angústias do inferno se apoderaram de mim;
caí em tribulação e tristeza.
Então, invoquei o nome do Senhor:
ó Senhor, livra-me a alma.
Compassivo e justo é o Senhor;
o nosso Deus é misericordioso.
O Senhor vela pelos simples;
achava-me prostrado, e ele me salvou.
Volta, minha alma, ao teu sossego,
pois o Senhor tem sido generoso para contigo.
Pois livraste da morte a minha alma,
das lágrimas, os meus olhos,
da queda, os meus pés.
Andarei na presença do Senhor,
na terra dos viventes.
Eu cria, ainda que disse:
estive sobremodo aflito.
Eu disse na minha perturbação:
todo homem é mentiroso.
Que darei ao Senhor
por todos os seus benefícios para comigo?
Tomarei o cálice da salvação
e invocarei o nome do Senhor.
Cumprirei os meus votos ao Senhor,
na presença de todo o seu povo.
Preciosa é aos olhos do Senhor
a morte dos seus santos.
Senhor, deveras sou teu servo,
teu servo, filho da tua serva;
quebraste as minhas cadeias.
Oferecer-te-ei sacrifícios de ações de graças
e invocarei o nome do Senhor.
Cumprirei os meus votos ao Senhor,
na presença de todo o seu povo,
nos átrios da Casa do Senhor,
no meio de ti, ó Jerusalém.
Aleluia! (Salmos 116.1-19)

Há vários pontos nesse salmo que apontam para a vinda do Filho de Deus,
que foi o exemplo maior da generosidade sem limite de Deus em nosso favor.
Vejamos:
Preciosa é aos olhos do Senhor a morte dos seus santos. (Salmos 116.15)

Além da morte do seu Filho amado, qual morte poderia ter tido maior preço
aos olhos do Pai e ser o sinal maior da sua generosidade maravilhosa para
conosco?
Senhor, deveras sou teu servo, teu servo, filho da tua serva. (Salmos 116.16)

Quem, além de Jesus Cristo, seria o Servo por excelência do Senhor? Quem,
além dele, na sua humanidade, teria sido Filho daquela que, antes de todos,
foi a serva do Senhor, Maria? Vejamos sua resposta às palavras do anjo
Gabriel:
Disse, então, Maria: Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a
tua palavra. E o anjo ausentou-se dela. (Lucas 1.38)

Depois lemos esse verso surpreendente:


Quebraste as minhas cadeias. (v. 16)

Dessa maneira podemos, com e por seu Filho, oferecer ao Senhor um


sacrifício constante de gratidão por seus dons maravilhosos e, em todo
tempo, por Jesus Cristo, invocar o nome do Senhor (verso 17).
Falando da generosidade que os coríntios deviam manifestar para com seus
irmãos pobres, Paulo refere-se a Cristo como nosso exemplo divino:
Pois conheceis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez
pobre por amor de vós, para que, pela sua pobreza, vos tornásseis ricos. (2
Coríntios 8.9)

Sim, temos sido plenamente beneficiados pelas riquezas do nosso Deus, Pai,
Filho e Espírito Santo. Porque, no sacrifício sem mácula de Cristo na cruz,
ele reconciliou sua bondade com a verdade do nosso pecado:
Próxima está a sua salvação dos que o temem,
para que a glória assista em nossa terra.
Encontraram-se a graça e a verdade,
a justiça e a paz se beijaram.
Da terra brota a verdade,
dos céus a justiça baixa o seu olhar.
Também o Senhor dará o que é bom,
e a nossa terra produzirá o seu fruto.
A justiça irá adiante dele,
cujas pegadas ela transforma em caminhos. (Salmos 85.9-13)

Podemos nos perguntar: quando, então, o sol da justiça se levantará para


aqueles que temem o nome do Senhor?
Pois eis que vem o dia e arde como fornalha; todos os soberbos e todos os que
cometem perversidade serão como o restolho; o dia que vem os abrasará, diz
o Senhor dos Exércitos, de sorte que não lhes deixará nem raiz nem ramo.
(Malaquias 4.1)

Mas, para os amados de Deus, para aqueles que se beneficiam das riquezas
de sua generosidade divina, será totalmente diferente:
Mas para vós outros que temeis o meu nome nascerá o sol da justiça, trazendo
salvação nas suas asas; saireis e saltareis como bezerros soltos da
estrebaria. Pisareis os perversos, porque se farão cinzas debaixo das plantas de
vossos pés, naquele dia que prepararei, diz o Senhor dos Exércitos. (Malaquias
4.2-3)

Neste mundo de angústia e aflição, de tristeza e trevas, é tempo de nos


voltarmos para aquele sobre o qual Isaías já dizia em sua profecia tão
prodigiosamente evangélica. Vejamos como o profeta proclama, de maneira
efusiva, a imensa generosidade do nosso Senhor:
Eis aqui o meu servo, a quem sustenho; o meu escolhido, em quem a minha alma
se compraz; pus sobre ele o meu Espírito, e ele promulgará o direito para os
gentios. Não clamará, nem gritará, nem fará ouvir a sua voz na praça. Não
esmagará a cana quebrada, nem apagará a torcida que fumega; em verdade,
promulgará o direito. Não desanimará, nem se quebrará até que ponha na terra o
direito; e as terras do mar aguardarão a sua doutrina. Assim diz Deus, o SENHOR,
que criou os céus e os estendeu, formou a terra e a tudo quanto produz; que dá
fôlego de vida ao povo que nela está e o espírito aos que andam nela. (Isaías
42.1-5)
Então se dirige ao seu Filho amado, que se fez homem:
Eu, o Senhor, te chamei em justiça, tomar-te-ei pela mão, e te guardarei, e te farei
mediador da aliança com o povo e luz para os gentios; para abrires os olhos aos
cegos, para tirares da prisão o cativo e do cárcere, os que jazem em trevas. Eu sou
o Senhor, este é o meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem, nem a
minha honra, às imagens de escultura. Eis que as primeiras predições já se
cumpriram, e novas coisas eu vos anuncio; e, antes que sucedam, eu vo-las farei
ouvir. (Isaías 42.6-9)

Vejamos, agora, como floresceu a semente do Senhor. É o Evangelho do


Natal.

2. A generosidade de Deus no Evangelho do Natal


Voltemos agora para a revelação do tesouro de Deus, seu único Filho,
manifestado na carne da nossa humanidade. Deus amou seus filhos até o fim
(João 13.1) quando enviou seu Filho ao mundo, o Salvador, para que
assumisse nossa natureza humana e na cruz pagasse o preço do nosso pecado.
Notemos as novas expressões da generosidade divina nos relatos do
Evangelho segundo Lucas, no qual anunciava a vinda de nosso Senhor e
Salvador.
(a) Vejamos, em primeiro lugar, o sacerdote Zacarias (Lucas 1.5-17)
Nos dias de Herodes, rei da Judeia, houve um sacerdote chamado Zacarias, do
turno de Abias. Sua mulher era das filhas de Arão e se chamava Isabel. Ambos
eram justos diante de Deus, vivendo irrepreensivelmente em todos os preceitos e
mandamentos do Senhor. E não tinham filhos, porque Isabel era estéril, sendo
eles avançados em dias. (Lucas 1.5-7)

O Evangelho de Lucas começa com uma cena na qual o incenso remete às


cenas mais tocantes da Antiga Aliança. Dois israelitas fiéis (como foi mais
tarde Natanael, israelita em quem não havia dolo, também chamado
Bartolomeu, um dos doze apóstolos), que andavam de forma íntegra diante
de Deus, membros do remanescente fiel da nação judaica. Mas tinham sido
privados de filhos, os quais eram considerados na Bíblia como uma bênção
particular de Deus, ou seja, eram árvores secas, sem fruto, sem descendência.
Nesse deserto de uma vida sem esperança na terra, em sua imensa
generosidade Deus intervém e lhes dá um filho. Não seria um filho qualquer
e deveria ser chamado João Batista; ele seria a trombeta de Deus, seu arauto
poderoso para preparar a vinda do Messias de Israel, o Rei da Glória, o Deus
Todo-poderoso. Mas o relato continua:
Ora, aconteceu que, exercendo ele diante de Deus o sacerdócio na ordem do seu
turno, coube-lhe por sorte, segundo o costume sacerdotal, entrar no santuário do
Senhor para queimar o incenso e, durante esse tempo, toda a multidão do povo
permanecia na parte de fora, orando. (Lucas 1.8-10)

Deus, em sua generosidade, após quatro séculos de silêncio profético, se


lembra de sua aliança com Israel. O tempo, então, se cumpriu. A história
entrou em sua última era. Trata-se, portanto, do verdadeiro ponto de virada
das eras. O Senhor da glória vai entrar no mundo por Ele criado e o anjo
Gabriel é enviado a Zacarias para lhe anunciar que, como o patriarca Abraão,
ele terá um filho na sua velhice.
E eis que lhe apareceu um anjo do Senhor, em pé, à direita do altar do incenso.
(Lucas 1.11)

O céu irrompeu sobre a terra. O momento, há muito tempo preparado por


Deus para a vinda do seu Messias, está às portas:
Vendo-o, Zacarias turbou-se, e apoderou-se dele o temor. Disse-lhe, porém, o
anjo: Zacarias, não temas, porque a tua oração foi ouvida; e Isabel, tua mulher, te
dará à luz um filho, a quem darás o nome de João. Em ti haverá prazer e alegria,
e muitos se regozijarão com o seu nascimento. Pois ele será grande diante do
Senhor, não beberá vinho nem bebida forte e será cheio do Espírito Santo, já do
ventre materno. E converterá muitos dos filhos de Israel ao Senhor, seu Deus. E
irá adiante do Senhor no espírito e poder de Elias, para converter o coração dos
pais aos filhos, converter os desobedientes à prudência dos justos e habilitar para
o Senhor um povo preparado. (Lucas 1.12-17)

A plenitude da generosidade de Deus vai logo brilhar na face do mundo. O


precursor está para surgir, aquele a quem Malaquias anunciou com estas
palavras:
Eis que eu vos enviarei o profeta Elias, antes que venha o grande e terrível Dia
do Senhor; ele converterá o coração dos pais aos filhos e o coração dos filhos a
seus pais, para que eu não venha e fira a terra com maldição. (Malaquias 4.5-6)

Assim, o tempo da benignidade suprema de Deus havia chegado. Mas, como


sempre, a promessa da aliança foi acompanhada de ameaças. Promessas para
aqueles que reconhecessem a vinda do Filho de Deus, preparado pelo Elias da
Nova Aliança, João Batista. Ameaças para aqueles que recusassem a
visitação do próprio Filho de Deus. Essa promessa se encerrará perfeitamente
com a vinda do Espírito Santo em Pentecoste. As ameaças tiveram
cumprimento imediato, terrível, com a destruição do templo e da cidade de
Sião, Jerusalém, pelas legiões romanas no ano 70 da era cristã.

(b) Vejamos Maria (Lucas 1.26-45)

O anjo Gabriel, seis meses depois de sua aparição a Zacarias no templo, se


revela a Maria, na casa de seus pais, em Nazaré da Galileia. Vejamos, ainda,
as palavras do anjo dirigidas desta vez à humilde serva do Senhor. Vemos
aqui uma maravilhosa progressão da manifestação da generosidade divina,
em primeiro lugar a Maria, depois para com seu povo e para conosco
também, que ainda hoje nos reunimos para louvar, honrar e adorar o Senhor.
No sexto mês, foi o anjo Gabriel enviado, da parte de Deus, para uma cidade da
Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com certo homem da casa de
Davi, cujo nome era José; a virgem chamava-se Maria. E, entrando o anjo aonde
ela estava, disse: Alegra-te, muito favorecida! O Senhor é contigo. Ela, porém, ao
ouvir esta palavra, perturbou-se muito e pôs-se a pensar no que significaria esta
saudação.

É admirável ver a generosidade divina vir sobre essa humilde e jovem


menina, uma virgem, pura e com uma confiança plena e singela no Deus de
seus pais. Mesmo tendo ficado impressionada com aquela saudação,
contrastando com Zacarias, não se deixou tomar pelo medo. O anjo percebe
sua preocupação e procura tranquilizá-la. E como a tranquilizou! Ela
compreende que foi eleita por Deus para que se realizasse nela toda a história
da aliança divina com seus pais, ou seja, levar em seu ventre nada mais nada
menos que Deus, o Filho, feito homem. Vejamos de novo as palavras do anjo
Gabriel:
Mas o anjo lhe disse: Maria, não temas; porque achaste graça diante de Deus. Eis
que conceberás e darás à luz um filho, a quem chamarás pelo nome de Jesus.

O anjo anuncia aqui três coisas maravilhosas que são manifestações de uma
generosidade incrível da parte de Deus: i) Ela ficará grávida, mesmo ainda
virgem; ii) Ela dará à luz um filho; iii) Esse filho se chamará Jesus, que
significa em hebraico, Deus Salvador.
Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o
trono de Davi, seu pai; ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu
reinado não terá fim.

Aqui tocamos no ponto culminante de toda a história da aliança de Deus com


seu povo. O que contém nesses dois versos é qualquer coisa absolutamente
incrível. Essa jovem menina virgem ficaria grávida; ela daria à luz um filho;
esse filho se chamará Jesus. Mas o que tudo isso significa? O anjo Gabriel dá
à Maria uma resposta completa, em cinco pontos. Esse Jesus, filho de Maria,
a humilde e fiel virgem de Nazaré: a) Será grande; b) Mais que isso, ele será
chamado o Filho de Deus; c) Deus lhe dará o trono de Davi; d) Ele reinará
eternamente sobre a casa de Jacó; e) Seu reino não terá fim.
Nesse instante se vê toda a plenitude da generosidade de Deus para com os
homens. O Todo-poderoso, unindo-se pelo Espírito Santo a uma jovem
modesta da casa de Davi, vem ao mundo para realizar todas as promessas da
aliança divina com os homens. Assim se manifesta a Israel o Messias,
anunciado desde a queda e esperado por todas as gerações, da descendência
de Abraão. Os tempos se completaram; a promessa se realizou; esse é o
ponto em que toda a história do homem tomba no Reino de Deus. É o ponto
de inflexão da história.
Conhecemos bem o que vem em seguida. O anjo responde à questão simples
de Maria “Como será isto, pois não tenho relação com homem algum?”, e lhe
explica que o próprio Altíssimo a cobriria com sua sombra, como fazia o
marido em Israel, quando cobria sua esposa com seu manto. Assim, a santa
criança que ia nascer teria o nome que está acima de todo nome, o nome de
Filho de Deus. Em seguida, o anjo revela a Maria a condição de sua prima.
Isabel, que sempre havia sido estéril, verá o nascimento próximo, em sua
família, de um filho que será o precursor do Messias de Israel. Então, Maria
deixa a Galileia para ir até sua parente Isabel, que já estava no sexto mês de
sua surpreendente gravidez. Em seguida, quando Maria chega onde estava
Isabel, esta exclama em alta voz, num movimento de adoração à divina
criança gerada há pouco, por Deus, no ventre de sua jovem prima:
Bendita és tu entre as mulheres, e bendito o fruto do teu ventre! (v. 42)

E acrescenta esta exclamação maravilhosa:


E de onde me provém que me venha visitar a mãe do meu Senhor [“theotokos”,
em grego, mãe ou portadora de Deus]? (Verso 43)

(c) O cântico de Maria (Lucas 1.47-55)


Chegamos, agora, a um dos pontos mais altos da adoração humana diante da
generosidade incomensurável do Deus da aliança, benigno e fiel: o cântico de
Maria.
Então, disse Maria:
A minha alma engrandece ao Senhor,
e o meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador,
porque contemplou na humildade da sua serva.
Pois, desde agora, todas as gerações me considerarão bem-aventurada,
porque o Poderoso me fez grandes coisas.
Santo é o seu nome.
A sua misericórdia vai de geração em geração
sobre os que o temem.
Agiu com o seu braço valorosamente;
dispersou os que, no coração, alimentavam pensamentos soberbos.
Derribou do seu trono os poderosos
e exaltou os humildes.
Encheu de bens os famintos
e despediu vazios os ricos.
Amparou a Israel, seu servo,
a fim de lembrar-se da sua misericórdia
a favor de Abraão e de sua descendência, para sempre,
como prometera aos nossos pais. (Lucas 1.47-55)

Notemos que esse cântico é totalmente dedicado ao louvor da Trindade e, em


particular, do Filho de Deus feito homem, isto é, da encarnação, da vinda ao
mundo do Deus o Filho, na Pessoa divina e humana dessa pequena criança
sobre a qual sua mãe biológica e seu pai adotivo receberam ordem de chamar
pelo nome de Jesus, “Deus Salvador”. Em primeiro lugar, Maria canta a
generosidade abundante do Deus da aliança para com sua serva, bendita entre
as mulheres, porque o Senhor da glória se dignou descer, a ponto de habitar
durante os nove meses de sua gravidez no ventre maternal dessa jovem
virgem. Mas, ao contrário da prática tão frequente entre muitos crentes, Maria
de maneira nenhuma se exalta. Seu espírito, cheio de alegria por causa de
Deus, seu Salvador, e da salvação que lhe deu ao rebaixar-se a ponto de
habitar nela, explode em louvores a Deus, porque ele fez por ela grandes
coisas: escolheu sua pequenez para se glorificar; salvou sua serva — e com
ela toda a Igreja — dos efeitos eternos do nosso pecado. Foi essa
misericórdia, que se estende de geração em geração sobre aqueles que o
temem, que fez Maria dar a Deus todo o louvor. Esse será o louvor de todos
aqueles que crerão nele, que obedecerão a sua Palavra e que manifestarão
assim seu amor por Deus e pelo próximo.
Depois, Maria evoca, com grande respeito, a obra de justiça do Filho de Deus
feito homem, que logo vai habitar em sua frágil natureza de mulher: i) Ele
agiu com o seu braço valorosamente; ii) Ele dispersou os orgulhosos; iii) Ele
derribou o trono dos poderosos; iv) Ele despediu vazios os ricos.
Isso em relação a sua obra de julgamento. Mas o louvor de Maria não
termina aí. Esse Deus todo poderoso que, para a nossa salvação, nascerá
revestido de fraqueza e carregará, em sua humanidade, o pecado de seu povo,
realizou uma maravilhosa obra de justiça para os seus filhos e sua
generosidade para conosco é sem medida: a) Ele exaltou os humildes; b) Ele
alimentou os famintos; c) Ele amparou Israel, seu servo; d) Ele lembrou de
sua misericórdia; e) Ele foi fiel à sua aliança com Abraão e sua descendência,
isto é, para com todos os que tiveram e terão a mesma fé de Abraão e sua
fidelidade durará para sempre.
Como é grande, majestosa e benigna essa generosidade de Deus para com seu
povo!
Poderíamos, se nos limitássemos somente ao Evangelho de Lucas, meditar
ainda sobre a generosidade do nosso Deus, nos debruçando sobre o cântico
de Zacarias, ou sobre o cântico dos exércitos celestiais, os anjos de Belém, e
sobre os louvores a Deus do velho Simeão. Este, ao receber o bebê (e nele a
Pessoa divina e humana do Filho de Deus feito homem) em seus braços,
exclamou:
Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo,
segundo a tua palavra;
porque os meus olhos já viram a tua salvação,
a qual preparaste diante de todos os povos:
luz para revelação aos gentios,
e para glória do teu povo de Israel. (Lucas 2.29-32)

Para terminar, são esses louvores que vemos da profetiza Ana que
[...] louvava a Deus e falava de Jesus a todos os que aguardavam a redenção de
Jerusalém. (Lucas 2.38)

CONCLUSÃO

Tal generosidade de Deus para conosco — aquele que enviou seu único Filho
sobre a terra para nossa salvação – deve suscitar uma resposta generosa da
parte daqueles que foram alvo desse amor que provém do Deus de toda
misericórdia. Nossa resposta generosa deve:
(a) em primeiro lugar, manifestar-se em ações de graças e louvores a Deus,
autor de tão grande salvação;
(b) suscitar generosidade em nós, oferecendo a Deus nossos corações e nosso
tempo, nossas forças, nossos bens e nosso dinheiro para Deus e em favor de
sua Igreja, a esposa do Senhor;
(c) renovar nossa generosidade para com nossos irmãos, nosso próximo em
sua angústia, e em relação àqueles que Deus colocou acima de nós, em sua
Igreja;
(d) enfim e sobretudo, deve criar em nós uma generosidade sem limites —
setenta vezes sete exigiu Jesus ao apóstolo Pedro — no perdão que devemos
a nossos irmãos e na misericórdia que devemos a eles, porque Deus,
primeiramente, exerceu sobre nós sua misericórdia sem limites. Porque a
advertência do Senhor é solene e terrível. Se não perdoarmos os pecados de
nossos irmãos contra nós, Deus, que pagou todos os nossos pecados na cruz,
não perdoará também nossa ingratidão.
Que Deus não permita que estejamos entre esses ingratos, avarentos,
mesquinhos e egoístas que guardam tudo para si mesmos, mas que sejamos
daqueles que perseveram nessa generosidade de coração, que deve animar
nossa vocação como filhos de Deus. Sejamos daqueles que, em resposta à
infinita misericórdia do Deus Triúno para conosco, servem a Deus, dia após
dia, como pobres e miseráveis pecadores e tratemos com generosa
misericórdia nosso próximo, em gratidão a esse Deus que, tendo sido bom
para com todos os homens, nos chamou a amar não somente aqueles que nos
amam, mas até os nossos inimigos, os que nos odeiam, que nos detestam e
procuram nos destruir.
O primeiro grande doutor da Igreja dos Gauleses, Ireneu de Lião, ao
contemplar o amor de Cristo por aqueles que o crucificavam, em seu
admirável Tratado contra as heresias, escreveu estas palavras tão belas e
comoventes, pelas quais terminamos esta meditação sobre a generosidade de
Deus, o dom maravilhoso do primeiro Natal:
A longanimidade, a paciência, a misericórdia e a bondade de Cristo foram
manifestadas na Palavra do Senhor sobre a cruz: Pai, perdoa-os, porque não
sabem o que fazem (Lucas 23.34), pelas quais vemos o quanto sofreu e perdoou
aqueles que o maltratavam. Porque o Verbo de Deus nos disse Amai vossos
inimigos e orai por aqueles que vos odeiam (Mateus 5:44), ele mesmo cumpriu
essa palavra sobre a cruz quando orou pelo homem e amou aqueles que o
matavam.[220]

Que Deus nos dê a graça de fazermos o mesmo.


Capítulo XV: Abraão, o pai do dízimo

INTRODUÇÃO
Há algum tempo, quando estávamos fazendo nosso culto doméstico, eu e
Rose-Marie lemos uma passagem do profeta Jeremias e em seguida uma
curta meditação de Hilário de Poitiers sobre a exposição do salmo 119 [118].
Hilário, que, junto com Atanásio, no século 4º de nossa era, foi um
extraordinário defensor da doutrina da natureza divina de Jesus Cristo diante
da heresia ariana, era também um homem de alta espiritualidade e um pastor
muito dedicado à condução do seu rebanho na alegria que vem da obediência
a Jesus Cristo, isto é, no caminho de uma santa obediência que procura
conformar seus pensamentos, sentimentos e sua ação aos ensinos da Lei-
Palavra de Deus. Como introdução desta nova exposição sobre o oitavo
mandamento, gostaria de citar uma passagem extraída desse comentário de
Hilário, texto que nos permite melhor compreender por que devemos
constantemente meditar na lei de Deus. Exatamente isso nos ensina o salmo
primeiro:
Feliz o homem [...] que tem prazer na lei do Senhor e nela medita dia e noite!
(Salmos 1.1-2)

Vejamos o que Hilário nos diz:


O salmista sabe o quanto é útil e necessário para ele colocar-se a cada dia nas
mãos de Deus, em suas ações e em sua conduta, e isso por uma indefectível
recordação de sua lei. De fato, ele diz: Puseram um laço diante de mim, contudo
não me desviei dos teus preceitos. Ele sabe que em meio à floresta deste mundo,
muitos laços são estendidos, várias armadilhas contra sua vida são preparadas.
Nossas palavras, nossos pensamentos, nossos atos passam sempre perto dessas
redes quando surge um motivo para a cólera, um sentimento de dor, a
necessidade de uma recriminação, algum mau desejo. É dessa forma que o diabo
e seus anjos, que desde o princípio transgrediram a lei de Deus e que desde o
início são pecadores, estendem sempre as redes. Mas aquele cuja alma está nas
mãos de Deus e que jamais se esquece da sua lei, ainda que laços tenham sido
jogados ao redor dele e por todo lugar, no entanto não se desvia dos seus
preceitos. De fato, aquele que sempre pensa em Deus escapa das redes, como é
dito em outro salmo: como um pássaro libertado do laço do passarinheiro
(Salmos 124.7). E o próprio Senhor diz, pela boca do profeta: pois ele te livrará
do laço do passarinheiro e da peste perniciosa (Salmos 91.3).[221]

O assunto geral das próximas exposições, neste capítulo e nos que seguirão, é
o seguinte: Os dízimos na Bíblia. Agora trataremos de Abraão, o pai do
dízimo. Com esse tema terminaremos nossa longa investigação sobre o oitavo
mandamento e sua aplicação prática em todos os aspectos de nossa vida
pessoal, familiar, eclesiástica e social.

1. O PAI DO DÍZIMO: ABRAÃO


Prossigamos em nossa meditação sobre as implicações diversas do oitavo
mandamento, Não roubarás. Vamos, agora, considerar o que devemos, não a
nosso próximo, mas ao próprio Deus, pondo em prática esse mandamento que
nos ordena não roubar.
Como esse mandamento — Não roubarás — se aplica ao nosso
relacionamento, como cristãos, com nosso Criador e Salvador? Como
devemos nos submeter ao nosso Senhor, que é Senhor não somente da Igreja,
mas de toda a terra, ao obedecer a esse mandamento? A resposta está na
compreensão que desenvolveremos sobre o que devemos materialmente a
Deus, não como uma doação de nossa parte, mas por direito, como
testemunho visível de nossa fé e de nossa gratidão a ele. Tal estudo tem de
ser acompanhado de uma aplicação séria, consequente e alegre do ensino da
Bíblia sobre o dízimo, literalmente a décima parte do que ganhamos.
Logo de início, pensei começar este estudo imediatamente pelo exame do
ensino da Torá, pelo que ensinam os livros da lei sobre essa questão (Levítico
27; Números 18; Deuteronômio 12 e 14) e em seguida considerar as
advertências dadas pelos profetas sobre aqueles que negligenciam o que
devem a Deus de direito. Para terminar, examinaremos o ensino do Novo
Testamento sobre essa questão. O dízimo diz respeito à nossa piedade e
santificação, ao bem do nosso próximo, da sociedade e da Igreja, mas
sobretudo — e antes de tudo — a honra e a gratidão que devemos a Deus, em
resposta alegre às incontáveis bênçãos que nos dá. Mas, refletindo melhor,
me pareceu que, abordando a questão dessa maneira, entraria muito rápido na
matéria. Seria melhor começar por Gênesis, porque primeiro é preciso levar
em conta o exemplo normativo primário que a Bíblia nos dá sobre esse ponto
fundamental e delicado de nossa piedade e obediência cristã. Trata-se do
exemplo dado por nosso Pai Abraão a todos nós que estamos na fé.
De fato, como sabemos, Abraão é o pai na fé de todo verdadeiro judeu e
cristão. É o que Paulo nos mostra com detalhes em sua carta aos Gálatas.
Vejamos o que ele diz:
É o caso de Abraão, que creu em Deus, e isso lhe foi imputado para
justiça. Sabei, pois, que os da fé é que são filhos de Abraão. Ora, tendo a
Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios, preanunciou o
evangelho a Abraão: Em ti, serão abençoados todos os povos. De modo que os da
fé são abençoados com o crente Abraão. (Gálatas 3.6-9)

Assim, como nos mostra o exemplo de Abraão, a salvação é obtida pela fé


somente. Portanto, somos justificados unicamente pela fé! Mas a fé
permanece sozinha? Podemos ser justificados sem as obras produzidas pela
fé? Somos justificados por uma fé que permanece estéril, sem o fruto das
obras, sem os atos de amor a Deus e ao próximo que testemunham, aqui na
terra, a realidade celeste de nossa fé? Sobre isso ainda, Abraão nos fala com a
maior clareza. Sem que as obras produzidas por nossa fé se manifestem em
nossa vida de crente, não é possível ser salvo! Leiamos o testemunho
impactante do irmão de Jesus Cristo, Tiago, a esse respeito:
Queres, pois, ficar certo, ó homem insensato, de que a fé sem as obras é
inoperante? Não foi por obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado, quando
ofereceu sobre o altar o próprio filho, Isaque? Vês como a fé operava juntamente
com as suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se consumou, e se
cumpriu a Escritura, a qual diz: Ora, Abraão creu em Deus, e isso lhe foi
imputado para justiça; e: Foi chamado amigo de Deus. Verificais que uma pessoa
é justificada por obras e não por fé somente. (Tiago 2:20-24)

O autor da carta aos Hebreus, por sua vez, confirma tanto a posição de Paulo
como a de Tiago. Vejamos, para nossa instrução:
Pela fé, Abraão, quando chamado, obedeceu, a fim de ir para um lugar que devia
receber por herança; e partiu sem saber aonde ia. Pela fé, peregrinou na terra da
promessa como em terra alheia, habitando em tendas com Isaque e Jacó,
herdeiros com ele da mesma promessa; porque aguardava a cidade que tem
fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador. (Hebreus 11.8-10)

É isso o que ele diz sobre a fé. Então, o que são essas obras da fé, dessa fé
que se manifesta por nossa ação, essa fé que age pelo amor a Deus e ao
próximo? Vejamos uma vez mais o ensino da carta aos Hebreus:
Pela fé, Abraão, quando posto à prova, ofereceu Isaque; estava mesmo para
sacrificar o seu unigênito aquele que acolheu alegremente as promessas, a quem
se tinha dito: Em Isaque será chamada a tua descendência; porque considerou que
Deus era poderoso até para ressuscitá-lo dentre os mortos, de onde também,
figuradamente, o recobrou. (Hebreus 11.17-19)

Devemos parar por aí? Temos de nos contentar em ver Abraão apenas como
nosso pai na fé e não também como nosso pai nas obras da fé? Abraão não
tem mais nada a nos ensinar e instruir? Novamente a carta aos Hebreus nos
mostra o caminho. Abraão foi, será e continua sendo ainda hoje nosso guia,
nosso instrutor. Ele é quem vai nos instruir sobre o lugar que deve ter, na vida
do cristão, a gratidão da fé, ou seja, esse reconhecimento dirigido a Deus pela
fé, em razão de incontáveis e tão diversas bênçãos. E essa gratidão da fé,
entre outros, tem o nome de dízimo.
Vejamos, mais uma vez, o ensino maravilhoso da carta aos Hebreus, que
mostra a passagem sublime da Antiga dispensação da Aliança, para a Nova,
com uma exatidão, perfeição e beleza incomparáveis:
Porque este Melquisedeque, rei de Salém, sacerdote do Deus Altíssimo, que saiu
ao encontro de Abraão, quando voltava da matança dos reis, e o abençoou, para o
qual também Abraão separou o dízimo de tudo (primeiramente se interpreta rei
de justiça, depois também é rei de Salém, ou seja, rei de paz; sem pai, sem mãe,
sem genealogia; que não teve princípio de dias, nem fim de existência, entretanto,
feito semelhante ao Filho de Deus), permanece sacerdote perpetuamente.
Considerai, pois, como era grande esse a quem Abraão, o patriarca, pagou o
dízimo tirado dos melhores despojos. Ora, os que dentre os filhos de Levi
recebem o sacerdócio têm mandamento de recolher, de acordo com a lei, os
dízimos do povo, ou seja, dos seus irmãos, embora tenham estes descendido de
Abraão; entretanto, aquele cuja genealogia não se inclui entre eles recebeu
dízimos de Abraão e abençoou o que tinha as promessas. Evidentemente, é fora
de qualquer dúvida que o inferior é abençoado pelo superior. Aliás, aqui são
homens mortais os que recebem dízimos, porém ali, aquele de quem se testifica
que vive. E, por assim dizer, também Levi, que recebe dízimos, pagou-os na
pessoa de Abraão. Porque aquele ainda não tinha sido gerado por seu pai, quando
Melquisedeque saiu ao encontro deste. (Hebreus 7.1-10)

Como sabem muito bem — e o texto de Hebreus nos diz mais adiante — esse
Melquisedeque era uma figura, talvez mesmo uma teofania, uma
manifestação visível do próprio Senhor Jesus Cristo. É exatamente o que
explica nossa epístola, citando o versículo quatro do salmo 110:
E isto é ainda muito mais evidente, quando, à semelhança de Melquisedeque, se
levanta outro sacerdote, constituído não conforme a lei de mandamento carnal,
mas segundo o poder de vida indissolúvel. Porquanto se testifica: Tu és sacerdote
para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque.

E nosso autor acrescenta:


Portanto, por um lado, se revoga a anterior ordenança, por causa de sua fraqueza
e inutilidade (pois a lei nunca aperfeiçoou coisa alguma), e, por outro lado, se
introduz esperança superior, pela qual nos chegamos a Deus. (Hebreus 7.18-19)
Então, agora, vamos ao relato de Gênesis, o qual a carta aos Hebreus acabou
de nos apresentar: Abraão, vitorioso sobre os reis do Oriente, libertador de
Ló, alvo da bênção de Melquisedeque e, enfim, pai de todos os que dão, por
gratidão e com alegria, o dízimo a Deus, sustentando, por uma grata e alegre
obediência, a obra de Deus neste mundo de avareza e de trevas.

2. ABRAÃO, O PAI DO DÍZIMO


Para compreender melhor o texto que vamos estudar juntos nesta manhã,
precisamos recapitular, brevemente, a história de Abraão, até o momento de
seu encontro com Melquisedeque, rei de Salém, após a derrota que infligiu
aos quatro reis da Mesopotâmia, que haviam levado Ló para o cativeiro.
Pouco tempo depois do Dilúvio, os descendentes de Noé, milagrosamente
poupados desse julgamento universal pelas águas, se desviaram novamente
de Deus. Essa foi a história de Ninrode, rei que deu origem ao primeiro
império, antes daquela aventura louca que resultou na construção da Torre de
Babel. Ao multiplicar a língua, Deus colocou fim nessa nova rebelião dos
homens contra sua autoridade soberana, criando diferentes linguagens e
tornando-as mutuamente incompreensíveis. Foi assim que ele dispersou os
homens de Babel para a formação de nações, que tomaram toda a face da
terra. Entretanto, foi pelo chamado feito a Abraão para sair da Caldeia e,
assim, deixar o mundo ímpio e idólatra de Babel, na Mesopotâmia, que Deus
abriu uma nova e decisiva fase no seu plano aliancial de salvação para os
homens e nações, colocado em prática desde a queda de Adão. Esse primeiro
chamado em Gênesis 3.15 é o que chamamos de Proto-Evangelho, porque
por ele Deus, dirigindo-se então à antiga serpente, sedutora da raça humana,
anunciou essa fé antiga,[222] da salvação através da cruz de Jesus Cristo, que
infalivelmente se cumpriria nos séculos que viriam:
Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente.
Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás [no francês “esmagará”][223] o calcanhar.
(Gn 3.15)

O plano de salvação para os homens e para a criação de Deus está totalmente


delineado nessas breves palavras.
Deus assim chamou Abraão e seu pai Tera para que deixassem Ur dos
caldeus. Eles pararam em Harã, onde Tera morreu com a idade de 205 anos.
Depois disso lemos o chamado que Deus fez a Abraão:
Ora, disse o SENHOR a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu
pai e vai para a terra que te mostrarei; de ti farei uma grande nação, e te
abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção! Abençoarei os que te
abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as
famílias da terra. (Gênesis 12.1-3)

Abraão então vai, sustentado pela fé nas promessas de Deus, para o país de
Canaã, o qual, desde Harã, na Caldeia, Deus lhe havia prometido. Ele
percorreu a terra de cima a baixo e finalmente se estabeleceu no meio dela.
Foi quando sobreveio uma fome que fez com que se refugiasse,
acompanhado de seu clã já numeroso, no Egito, outra grande civilização
daquela época, tão ímpia e idólatra quanto a Mesopotâmia da qual havia
saído. Ali no Egito, cedendo ao medo, Abraão mentiu sobre sua mulher que
havia sido entregue a Faraó e introduzida em seu harém real. Mas Deus, que
olha além das fraquezas dos seus servos, graciosamente libertou Abraão e
Sara da armadilha na qual nosso patriarca havia caído e lhe devolveu Sara,
abençoando-o, enriquecendo-o e conduzindo-o na terra que lhe havia
prometido.
Retornando a Canaã, uma discussão aconteceu entre os pastores de Abraão e
de seu sobrinho Ló por causa da multiplicação dos seus rebanhos. Abraão
compreendeu então os perigos que lhe apresentavam as civilizações
sofisticadas e perversas da época e deixou Ló livre para escolher onde se
estabelecer. Ló escolheu a planície fértil onde estavam as cinco cidades
dominadas por Sodoma e Gomorra. Leiamos, ainda, o resumo que fez Moisés
sobre a separação entre Abraão e Ló, seu sobrinho:
Habitou Abrão na terra de Canaã; e Ló, nas cidades da campina e ia armando as
suas tendas até Sodoma. Ora, os homens de Sodoma eram maus e grandes
pecadores contra o SENHOR. (Gênesis 13.12-13)

Foi quando Deus renovou suas promessas a Abraão:


Disse o SENHOR a Abrão, depois que Ló se separou dele: Ergue os olhos e olha
desde onde estás para o norte, para o sul, para o oriente e para o ocidente; porque
toda essa terra que vês, eu ta darei, a ti e à tua descendência, para sempre. Farei a
tua descendência como o pó da terra; de maneira que, se alguém puder contar o
pó da terra, então se contará também a tua descendência.

Depois, Deus lhe deu a ordem para ocupar fisicamente o país:


Levanta-te, percorre essa terra no seu comprimento e na sua largura; porque eu ta
darei. E Abrão, mudando as suas tendas, foi habitar nos carvalhais de Manre, que
estão junto a Hebrom; e levantou ali um altar ao SENHOR. (Gênesis 13.14-18)

Isso fez com que o comentarista judeu do livro de Gênesis, Benno Jacob,
destacasse corretamente o seguinte:
Todas as revelações divinas feitas a Abraão ocorreram após uma separação, uma
renúncia ou um sacrifício e servem de consolação e recompensa.[224]

Como se vê por toda a Bíblia, a separação das linhagens — a linhagem de


Abel separada de Caim, Sete dos descendentes de Caim, Noé sendo separado
do primeiro mundo coberto pelo dilúvio, Abrão separado dos Caldeus — aqui
também Abraão foi colocado de um lado e Ló, de outro, juntamente com as
cidades perversas da planície. Como veremos, por uma potente invasão dos
caldeus, a antiga serpente, o diabo, parece que nesse momento da história
tinha como alvo recuperar o chefe da aliança divina, esse hebreu — palavra
que significa “aquele que vem dalém do rio”, isto é, do Eufrates — que tinha
escapado da civilização idólatra e corrompida de Ur dos Caldeus. Mas, pela
graça providencial de Deus, o diabo não conseguiu. Quatorze anos antes —
aproximadamente 1880 anos antes de Cristo — Kedorlaomer, rei do Elão
(reino a sudeste da Babilônia) havia feito uma primeira incursão militar na
região do Jordão. Esse rei submeteu as cinco cidades da planície situadas à
sudeste do Mar Morto — entre elas Sodoma e Gomorra — e lhes impôs um
tributo de vassalagem. Treze anos mais tarde, essas cinco cidades se
revoltaram, recusando pagar o tributo exigido pelo rei de Elão. No ano
seguinte, com outros três reis da Mesopotâmia, Kedorlaomer invadiu toda a
região.
Num movimento de virada, vindo do norte, contornando o país de Canaã[225]
pelo leste e subindo mais a oeste, esses quatro reis caldeus derrotaram seis
reinos, nesta ordem: os refaim, os zuzim, os emim, os horeus e enfim, do
outro lado do Jordão, os amalequitas e amorreus. Depois disso, atacaram as
cinco cidades da planície, das quais tomaram o despojo como também a Ló, o
sobrinho de Abraão, de quem fizeram prisioneiro. Citamos o relato que nos
dá o livro de Gênesis sobre essa invasão:
Tomaram, pois, todos os bens de Sodoma e de Gomorra e todo o seu mantimento
e se foram. Apossaram-se também de Ló, filho do irmão de Abrão, que morava
em Sodoma, e dos seus bens e partiram. Porém veio um, que escapara, e o contou
a Abrão, o hebreu; este habitava junto dos carvalhais de Manre, o amorreu, irmão
de Escol e de Aner, os quais eram aliados de Abrão. Ouvindo Abrão que seu
sobrinho estava preso, fez sair trezentos e dezoito homens dos mais capazes,
nascidos em sua casa, e os perseguiu até Dã. E, repartidos contra eles de noite,
ele e os seus homens, feriu-os e os perseguiu até Hobá, que fica à esquerda de
Damasco. Trouxe de novo todos os bens, e também a Ló, seu sobrinho, os bens
dele, e ainda as mulheres, e o povo. (Gênesis 14.11-16)

Não é o momento de estudarmos em detalhe esse relato, instrutivo sob todos


os aspectos, mas destaquemos alguns pontos concernentes, particularmente, a
Abrão.
1. Depois de sua passagem pelo Egito, que havia sido marcada pelo medo,
pela falta de fé e uma certa pusilanimidade, a atitude do patriarca então muda
radicalmente. Agora ele é audacioso, cheio de coragem e de confiança em
Deus.
2. Com uma tropa bem modesta, consegue derrotar o exército da potência
mais importante — tal qual o Egito — de seu tempo.
3. Foi assim que provou as magníficas promessas que acabara de receber nos
carvalhais de Manre: Deus estava com ele e isso era tudo que importava.
Como disse um escritor cristão, “Numa verdadeira democracia, um cidadão
com Deus constitui-se na maioria!”.
4. Se a linha de separação entre Abrão e Ló agora estava clara e, mais que
isso, se era notória a oposição espiritual e cultural entre aqueles que
habitavam os carvalhais de Manre e os cidadãos das cidades da planície,
contudo, Abrão não tinha esquecido suas obrigações para com seu parente Ló
e sua família.
5. Enfim, foi como um vitorioso que ele agora, mais uma vez, vai atravessar,
do sul ao norte, o país que Deus lhe havia prometido como herança. E assim
também vai vencer essa potência militar caldeia, força de ataque da
civilização ímpia e idólatra, da qual havia se separado sob a ordem de Deus e
que agora procurava (de maneira instintiva) trazer de volta esse clã, liberto
da sua dominação, para o seu domínio, procurando estender a influência de
seu império até o país de Canaã.
Voltemos, então, ao encontro decisivo de Abrão com Melquisedeque.
Leiamos o texto que descreve esse encontro memorável:
Após voltar Abrão de ferir a Quedorlaomer e aos reis que estavam com ele, saiu-
lhe ao encontro o rei de Sodoma no vale de Savé, que é o vale do Rei.
Melquisedeque, rei de Salém, trouxe pão e vinho; era sacerdote do Deus
Altíssimo; abençoou ele a Abrão e disse: Bendito seja Abrão pelo Deus
Altíssimo, que possui [Qana/Bará: Criador] os céus e a terra; e bendito seja o
Deus Altíssimo, que entregou os teus adversários nas tuas mãos. E de tudo lhe
deu Abrão o dízimo. (Gênesis 14.17-20)

Esse é Melquisedeque, sacerdote do Deus Altíssimo. Vejamos, agora, a


reação do rei de Sodoma, servo do deus de baixo, de Satanás. O rei de
Sodoma disse a Abrão:
Então, disse o rei de Sodoma a Abrão: Dá-me as pessoas, e os bens ficarão
contigo. Mas Abrão lhe respondeu: Levanto a mão ao SENHOR, o Deus Altíssimo,
o que possui [Criador: Qana, no lugar de Bará, mais comum] os céus e a terra, e
juro que nada tomarei de tudo o que te pertence, nem um fio, nem uma correia de
sandália, para que não digas: Eu enriqueci a Abrão; nada quero para mim, senão
o que os rapazes comeram e a parte que toca aos homens Aner, Escol e Manre,
que foram comigo; estes que tomem o seu quinhão. (Gênesis 14.21-24)

Algumas observações nos permitirão comparar, de um lado, a atitude de


Melquisedeque e Abrão, e do outro, a do rei de Sodoma, Bera.
1. Melquisedeque, rei de Salém, chega diante das tropas vitoriosas de Abrão
para reconfortá-los fisicamente: pão e vinho. Bera, rei de Sodoma, vem
também diante de Abrão, para reclamar o que considerava sua parte no
despojo: as pessoas.
2. Melquisedeque tem uma atitude generosa, hospitaleira. Bera manifesta seu
espírito de avareza, seu amor aos bens, reclamando o que supõe ser sua parte
no despojo de Abrão, mesmo que não tivesse nenhum direito por ter sido
totalmente derrotado pelas tropas mesopotâmicas.
3. Percebe-se aqui uma verdadeira comunhão de espírito entre Abrão e
Melquisedeque. Os dois invocam juntos o mesmo Deus Altíssimo, sinal de
que compartilhavam a mesma herança espiritual de culto ao verdadeiro Deus,
Criador dos céus e da terra, Senhor soberano dos acontecimentos neste
mundo. Longe de querer tocar, de alguma maneira, nos despojos dessa cidade
corrompida, recuperados por sua vitória, ele não quer nada com essas
riquezas malditas. Para ele, tais objetos e mesmo as pessoas, tinham um
caráter proibido.
4. Melquisedeque reconhecia que Deus havia dado aquela vitória a Abrão —
a vitória dos seus 318 valentes guerreiros com seus aliados amorreus, Aner,
Escol e Manre — sobre o imenso exército aparentemente irresistível da
Mesopotâmia.
Abrão teria compreendido esta exortação do apóstolo Paulo:
Não vos ponhais em jugo desigual com os incrédulos; porquanto que sociedade
pode haver entre a justiça e a iniquidade? Ou que comunhão, da luz com as
trevas? Que harmonia, entre Cristo e o Maligno? Ou que união, do crente com o
incrédulo? Que ligação há entre o santuário de Deus e os ídolos? (2 Coríntios
6.14-16)

Lembremos aqui que o apóstolo Paulo escreveu ao Colossenses que a


avareza é idolatria (Colossenses 3.5). Ló e Bera, com Sodoma e Gomorra e
as outras cidades da planície, estavam do lado da idolatria e da avareza.
Melquisedeque e Abrão se colocaram do lado da fé no Deus Altíssimo, da
generosidade e, mais ainda, da gratidão para com Deus. O rei de Sodoma vê
somente a Abrão e não a mão de Deus. Ele deseja obter um acordo lucrativo,
totalmente imerecido, com o vencedor dos quatro reis vindos do Oriente.
Depois dessa comparação entre as duas linhagens, a de Salém e a de Sodoma,
voltemos agora nossos olhos, mais especificamente, para Abrão, pai desse
dízimo que todos devemos a Deus. Então nos é dito:
E Abrão lhe deu [a Melquisedeque] o dízimo de tudo. (v. 20)

Destaquemos algumas coisas nessa ação surpreendente de Abrão.


Melquisedeque, a) deixou Abrão, após honrar aquele que havia libertado o
país do invasor mesopotâmico; b) tinha trazido um reconforto material — o
pão e o vinho — às tropas de Abrão; c) enquanto sacerdote do Altíssimo,
abençoou Abrão; d) bendisse esse Deus Altíssimo, que juntamente com
Abrão ele também servia, por ter dado uma vitória tão extraordinária e
milagrosa sobre aquele exército mesopotâmico imenso que, aos olhos
humanos, era invencível.
Então, Abrão lhe [a Melquisedeque] deu o dízimo de tudo. Essa foi a resposta
de Abrão em razão da bênção e das palavras de Melquisedeque. O que,
propriamente, significa essa resposta de Abrão?[226]
1. Abrão reconhece em Melquisedeque o enviado de Deus. A carta aos
Hebreus nos faz compreender que Abrão entendeu que essa figura misteriosa
era um tipo, uma imagem de Cristo. A oferta de pão e vinho, desse sacerdote
misterioso, tem para nós o sentido claro de uma prefiguração da ceia do
Senhor.
2. A resposta de Abrão não foi somente a expressão de um reconhecimento
de natureza puramente espiritual, mas também tinha um aspecto material:
Abrão lhe deu o dízimo de tudo (v. 20).
3. Abrão fez isso de maneira livre e voluntária, sem constrangimento. A lei
divina relativa ao dízimo, que devia ser calculado sobre todos os bens dados
aos israelitas pelo Deus Altíssimo, Criador e Senhor dos céus e da terra, só
foi dada a Israel no monte Sinai, mais de quatrocentos anos depois. Como
Abrão, devemos obedecer a Deus nessa área da nossa vida — o dízimo —
como também em todos os outros aspectos da obediência à Lei de Deus.
4. O texto não nos dá nenhuma indicação que nos permita acreditar que
Abrão deu o dízimo de tudo a Melquisedeque em troca de uma nova bênção.
Ele já tinha recebido de Deus a bênção, quando teve uma vitória completa e
milagrosa sobre seus inimigos. Nessa campanha contra os reis da
Mesopotâmia, Abrão conquistou todo o território que Deus lhe havia
prometido, como uma espécie de adiantamento (Gênesis 13.14-17). Essa
bênção concreta, prática e militar, tinha sido confirmada a Abrão através da
bênção dada por Melquisedeque.
Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo, que possui os céus e a terra.

Essa bênção já foi realizada por Deus:


e bendito seja o Deus Altíssimo, que entregou os teus adversários nas tuas mãos.

5. Abrão deu o dízimo de tudo, não por obrigação ou constrangimento, mas


num movimento natural (e sobrenatural) de gratidão a Deus. Foi por um
simples sentimento de profunda e sincera gratidão que Abrão ofereceu a
Melquisedeque, alegremente e de todo o coração, a décima parte de todo o
seu despojo.
6. Não somente Abrão ofereceu a décima parte do despojo voluntariamente e
num espírito de gratidão, mas o fez (nos diz Kendall) de maneira coerente e
sistemática. O que ele quis dizer por esta palavra? Citemos esse autor:
Entretanto, Abrão não deu apenas voluntariamente, mas sistematicamente. Ele
deu a décima parte de tudo. Um décimo. O dízimo. Isso exigia alguns cálculos.
Ele devia fazer isso com cuidado. Tinha de examinar cuidadosamente tudo o que
Deus lhe havia dado e calcular com precisão qual era a décima parte. [...] Não
podia ser apenas uma estimativa. Devia ser precisamente um décimo de tudo.[227]

Ele explica,
Abrão era escrupuloso e suficientemente cuidadoso para dar a décima parte de
tudo. Ele é exemplo para nós. Se seguirmos a fé de Abrão para sermos chamados
seus filhos (Gálatas 3.29), e imitarmos sua obediência para sermos chamados
amigos de Deus (Tiago 2.23), que possamos também imitar seu espírito de
gratidão para darmos com alegria (2 Coríntios 9.7). O dízimo, que devemos a
Deus, é muito diferente de uma impulsão fantasiosa ocasional.
7. Enfim, em sétimo lugar, devemos seguir Abraão quanto à finalidade para
que doamos. Ele deu o dízimo sobretudo a Melquisedeque, o sacerdote do
Deus Altíssimo, Criador e Senhor dos céus e da terra. Vimos que
Melquisedeque é, pelo menos, uma figura notável de Cristo e também o
representante de sua Igreja. Como rei de Salém, ele também prefigura Cristo.
A realeza soberana e universal de Jesus Cristo. Não podemos dar de qualquer
maneira, para qualquer lugar, para qualquer pessoa, mas com cuidado,
prudência, reflexão e oração. Ao dar nossas ofertas, devemos dá-las primeiro
à Igreja de Deus e em seguida a toda obra, em comunhão com a Igreja, que
contribua para o crescimento do Reino de Deus. Porque Cristo não é somente
Senhor soberano da nova criação, da qual a Igreja é o primeiro fruto. Mas ele
é o Rei do Reino de Deus, Rei dos céus e da terra, Rei também de todas as
nações da terra.

CONCLUSÃO
Como acabamos de ver, a instituição do dízimo entre o povo de Deus precede
a entrega da Lei no monte Sinai em aproximadamente quatrocentos anos. A
ação de Abraão diante de Melquisedeque é um exemplo que devemos seguir,
nós que vivemos pela mesma fé que tinha Abraão e que praticamos, como fez
Abraão, as obras da fé preparadas por Deus desde a criação do mundo. Vimos
também que devemos seguir o exemplo de Melquisedeque e Abraão — em
sua generosidade, gratidão e louvores que dirigiram a Deus — e não o
exemplo de Ló e Bera, rei de Sodoma, marcado pelo amor ao mundo, pela
avareza, pelo egocentrismo e pelo amor a si mesmos. Se Deus permitir,
veremos em nossa próxima exposição de que maneira a lei divina, revelada
no Sinai, se conforma exatamente ao modelo que Abraão nos oferece no que
diz respeito à nossa gratidão obediente a Deus e à Igreja de nosso Senhor
Jesus Cristo, através da entrega do dízimo, como também às obras aprovadas
por Deus.
Capítulo XVI : Os três dízimos da Lei

Introdução
No último capítulo, introduzimos nossa reflexão sobre o dízimo na Bíblia por
meio de Abraão e o dízimo que pagou a Melquisedeque sobre todo o despojo
tomado dos reis da mesopotâmia. Havíamos mostrado que, como a fé de
Abraão (Gálatas) e as obras da fé de Abraão (Tiago) são modelos para os
cristãos da Nova Aliança, o mesmo vale para a gratidão da fé — que exerceu
Abraão e sobre a qual também fala a epístola aos Hebreus — relacionada ao
dízimo que pagou a Melquisedeque, rei de Salem. Porque, como nos
explicam essas três epístolas, é essa fé de Abraão, acompanhada de suas
obras de obediência aos mandamentos e o reconhecimento das bênçãos de
Deus, que constituem os modelos para nossa vida cristã atual, para nós que
pertencemos à Nova Aliança.
Neste capítulo temos como tema “Os três dízimos da Lei”. Vamos considerar
o ensino sobre o dízimo contido em Levítico, Números e Deuteronômio. Na
exposição seguinte, dedicada ao oitavo mandamento, veremos o ensino do
Novo Testamento sobre essa questão. A exposição deste capítulo terá, então,
três partes que correspondem aos três dízimos ordenados na Torá.
I. O primeiro dízimo: o dízimo do Senhor ou o dízimo dos Levitas (Levítico
27.30-33; Números 18.20-24).
II. O segundo dízimo: o dízimo das festas (Deuteronômio 12.1-19).
III. O terceiro dízimo: o dízimo dos pobres (Deuteronômio 14.28-29).
Nossa conclusão mostrará a maneira pela qual nosso Senhor Jesus Cristo
considerou esses três dízimos, os quais ele mesmo havia ordenado a Israel
para observá-los, conforme a Lei dada a seu servo Moisés.
I. O PRIMEIRO DÍZIMO — O DÍZIMO DO SENHOR OU O DÍZIMO DOS LEVITAS
(LEVÍTICO 27.30-33; NÚMEROS 18.20-24)

Citamos, explicitamente, o texto de Levítico:


Também todas as dízimas da terra, tanto dos cereais do campo como dos frutos
das árvores, são do SENHOR; santas são ao SENHOR. Se alguém, das suas dízimas,
quiser resgatar alguma coisa, acrescentará a sua quinta parte sobre ela. No
tocante às dízimas do gado e do rebanho, de tudo o que passar debaixo do bordão
do pastor, o dízimo será santo ao SENHOR. Não se investigará se é bom ou mau,
nem o trocará; mas, se dalgum modo o trocar, um e outro serão santos; não serão
resgatados. (Levítico 27.30-33)

A primeira coisa que notamos é o caráter bastante lacônico, quase acidental,


da introdução dessa lei sobre os dízimos bem no final do livro de Levítico.
Ela surge aqui quase que como uma reflexão tardia, depois das considerações
detalhadas sobre um certo número de proibições, bem como seu possível
resgate. De fato, o versículo que segue o texto citado acima põe um ponto
final no livro de Levítico. Ele se refere ao ensino contido no livro de Levítico
como um todo:
São estes os mandamentos que o SENHOR ordenou a Moisés, para os filhos de
Israel, no monte Sinai. (Levítico 27.34)

Em seguida, a revelação da Lei de Deus prossegue no livro de Números.


Como explicar esse caráter aparentemente anódino que encontramos na
introdução dessa lei no fim do livro de Levítico? Por ter esse caráter um
pouco velado, a lei do dízimo lembra aquela que instituiu o sábado.
Lembremos o que vimos sobre a lei do sábado. O dízimo, como o sábado, de
maneira alguma foi algo inventado pelos israelitas. Examinamos longamente
o incidente descrito em Gênesis, no qual Abrão oferece o dízimo a
Melquisedeque, tipo de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, de todo o
despojo adquirido na guerra travada contra os quatro reis. Em Gênesis 28,
quando de sua partida de Canaã para a casa de seu tio Labão, no norte da
Mesopotâmia, Jacó fez um voto ao Senhor:
Fez também Jacó um voto, dizendo: Se Deus for comigo, e me guardar nesta
jornada que empreendo, e me der pão para comer e roupa que me vista, de
maneira que eu volte em paz para a casa de meu pai, então, o SENHOR será o meu
Deus; e a pedra, que erigi por coluna, será a Casa de Deus; e, de tudo quanto me
concederes, certamente eu te darei o dízimo. (Gênesis 28.20-22)

O dízimo, como os sacrifícios, a oração e a observância do sábado, a


consciência sobre os alimentos impuros e muitas outras práticas religiosas,
era um costume universalmente praticado no mundo de Abraão, de Jacó e
Moisés. Como tal, podia ser mencionado de passagem, pois era algo bem
conhecido por todos. Por isso que sua regulamentação definitiva só será
introduzida no fim do livro de Levítico. De fato, o dízimo era praticado
universalmente em todo o Oriente Médio Antigo, muito tempo antes da
chamada de Abrão para sair de Ur da Caldeia, ou seja, antes da lei ser dada
por Deus a Moisés no monte Sinai. Era, portanto, uma prática comum —
tanto no Egito e Mesopotâmia como, mais tarde, em Roma e na Grécia (e
também em muitas outras regiões do mundo) — dar o dízimo de tudo aos
deuses, para que por meio dele o culto e a remuneração dos sacerdotes
fossem garantidos.
Vejamos, agora, o que nos ensina esse texto de Levítico, que introduz nos
mandamentos da Torá de Israel a legislação sobre os dízimos. Henry
Lansdell, que escreveu o que sem dúvida é o melhor estudo sobre essa
questão, resumiu assim o conteúdo desse mandamento. Segundo ele, ali se
afirma o seguinte: (i) Um décimo do produto da terra, fosse grão ou fruta, era
devido a Deus e devia ser considerado santo (ou separado) para ele; (ii) Se
aquele que fizesse a oferenda quisesse guardar para si essa décima parte do
grão ou da fruta, podia fazê-lo pagando seu valor em dinheiro e
acrescentando um quinto ao valor pago; (iii) Um décimo dos bezerros ou um
décimo dos cordeiros (retirados do crescimento do rebanho) devia ser
colocado à parte para o Senhor; (iv) Esse dízimo de animal não podia ser
resgatado nem os animais podiam ser trocados. Mas se o proprietário, apesar
dessa proibição, tivesse a presunção de trocar o animal primogênito,
consagrado como dízimo a Deus, por outro animal em pior estado, então
ambos pertenceriam ao Senhor.[228]
Façamos agora algumas observações sobre essa lei de instituição do
dízimo: (a) Ela incidia sobre todo o crescimento natural e biológico dos bens
da terra, colocados nas mãos do agricultor. De fato, o fazendeiro trabalha
duro e firme na terra, mas é Deus quem faz crescer e prosperar a vida vegetal
e animal tratada pelo proprietário da terra. A vida da natureza biológica não
consiste, então, em um simples determinismo biológico submetido
mecanicamente às leis da natureza, da qual Deus seria metodologicamente
descartado. A imanência do mundo natural não passa de uma ficção
mentirosa da ciência moderna sem Deus. O Deus criador transcendente age
constantemente de maneira imanente — segundo os princípios da aliança
divina — no interior do mundo natural e, por sua providência, no interior da
própria história, em geral fazendo uso das leis estabelecidas por ele mesmo
— e às vezes a despeito delas — pelas quais Deus vai manifestar o
funcionamento imanente das bênçãos e das maldições de sua Aliança; (b) O
homem não é dono absoluto dos bens que lhe foram confiados por Deus, mas
apenas o administrador, e é como despenseiro da criação divina que ele
deverá prestar contas de suas obras ao seu Criador; (c) Portanto, ao
proprietário — o Criador divino — pertence, por direito, a décima parte do
produto das colheitas ou do rebanho. De maneira alguma se tratava de uma
oferta facultativa feita a Deus pelo agricultor, mas de uma dívida, de uma
obrigação. Recusar o pagamento do dízimo era nada mais que roubar a Deus,
privá-lo do que lhe pertence por direito. Ao contrário dos votos e das ofertas,
os dízimos não eram facultativos, mas obrigatórios. Portanto, negá-los a Deus
constituía uma transgressão grave do oitavo mandamento, “Não roubarás”;
(d) O desejo de transformar seu dízimo em produto comercial significava um
acréscimo de 20% sobre o valor do dízimo; (e) Trocar o dízimo de um animal
melhor por outro pior era uma forma de fraudar o que é devido a Deus e
resultava em pagamento dobrado — trapaça cometida, por exemplo, por
Ananias e Safira no livro de Atos; (f) Como a vida pertence a Deus e é ele
quem faz crescer ou perecer, multiplicando suas bênçãos para com os
homens, segundo a boa vontade de sua aliança, então ele pode abençoar,
multiplicando de forma generosa o crescimento animal ou vegetal nos
campos dos seus filhos fiéis, ou amaldiçoar, diminuindo as colheitas,
enviando a seca ou outros males da natureza ou, ainda, provocando a
esterilidade das plantas e dos animais ou a miséria da guerra; (g) Trata-se,
aqui, do dízimo diante de uma manifestação da vida em crescimento, esse
poder da criação que absolutamente se contrapõe ao empréstimo a juros, que
nada mais é que um lucro inexistente extraído de maneira mecânica e
automática, fraudulenta e ilusória, sobre o dinheiro emprestado a juro fixo,
portanto sem risco. Vemos nisso a gravidade do empréstimo a juro
automático em relação à ação vivificante da providência divina que faz
crescer (ou diminuir!) em função das bênçãos e das maldições morais e
espirituais da aliança divina. Trata-se, então, da fabricação de uma riqueza
fictícia, ou seja, de um lucro roubado do devedor a partir de uma mercadoria
que inexiste por si mesma — isto é, sem a contribuição do trabalho e da
criatividade ativa e dinâmica do homem — portanto, intrinsecamente estéril.
Aquele que empresta não faz crescer, portanto não deve, fingindo ser Deus,
receber juros inexistentes. Como também vimos, a fabricação mágica ex
nihilo — eletrônica ou por meio da emissão de moeda — de produtos
financeiros também inexistentes, é um crime de autodivinização humana, pior
ainda que o empréstimo a juros. Vemos aqui o aspecto prático da doutrina da
soberania de Deus sobre a natureza e sobre a história; nem uma, nem outra
funciona em compartimento fechado, longe do olhar atento de Deus e de sua
ação aliancial direta sobre o mundo. O poder técnico ou financeiro do homem
apóstata moderno apenas mascara por um tempo os efeitos inevitáveis, em
bênçãos ou maldições da Aliança divina, que dará a última palavra sobre as
loucuras do pecado do homem que se toma por Deus; (h) De fato, trata-se
aqui de uma legislação sobre os dízimos dentro de um contexto agrícola, mas,
por analogia, pode ser aplicada a toda forma de lucro ou benefício legítimos.
O segundo texto que trata do primeiro dízimo, aquele consagrado
explicitamente ao Senhor (o dízimo devido aos levitas), se encontra no livro
de Números. Esse texto trata do salário justo a ser pago aos levitas e
sacerdotes, ou seja, de sua renda.
Disse também o SENHOR a Arão: Na sua terra, herança nenhuma terás e, no meio
deles, nenhuma porção terás. Eu sou a tua porção e a tua herança no meio dos
filhos de Israel. Aos filhos de Levi dei todos os dízimos em Israel por herança,
pelo serviço que prestam, serviço da tenda da congregação. E nunca mais os
filhos de Israel se chegarão à tenda da congregação, para que não levem sobre si
o pecado e morram. Mas os levitas farão o serviço da tenda da congregação e
responderão por suas faltas; estatuto perpétuo é este para todas as vossas
gerações. E não terão eles nenhuma herança no meio dos filhos de Israel. Porque
os dízimos dos filhos de Israel, que apresentam ao SENHOR em oferta, dei-os por
herança aos levitas; porquanto eu lhes disse: No meio dos filhos de Israel,
nenhuma herança tereis. (Números 18.20-24)

Todo o capítulo dezoito do livro de Números trata das funções, dos deveres,
dos privilégios e das rendas do levitas e, em particular, dos sacerdotes
escolhidos entre suas classes, para servir primeiro no Tabernáculo e depois
no Templo, em Jerusalém, construído por Salomão. Lembremos que, no
período de conquista do país de Canaã, todas as tribos de Israel tinham
recebido como herança uma porção do território nacional, com exceção da
tribo de Levi, à qual havia sido dada quarenta e oito cidades, distribuídas
através de todo o país, para ser seu lugar de residência. É o que nos mostra o
capítulo trinta e cinco do livro de Números. O Senhor ali fala a Moisés,
nestes termos:
Dá ordem aos filhos de Israel que, da herança da sua possessão, deem cidades aos
levitas, em que habitem; e também, em torno delas, dareis aos levitas arredores
para o seu gado. Terão eles estas cidades para habitá-las; porém os seus arredores
serão para o gado, para os rebanhos e para todos os seus animais. Os arredores
das cidades que dareis aos levitas, desde o muro da cidade para fora, serão de mil
côvados em redor. Fora da cidade, do lado oriental, medireis dois mil côvados;
do lado sul, dois mil côvados; do lado ocidental, dois mil côvados e do lado
norte, dois mil côvados, ficando a cidade no meio; estes lhes serão os arredores
das cidades. Das cidades, pois, que dareis aos levitas, seis haverá de refúgio, as
quais dareis para que, nelas, se acolha o homicida; além destas, lhes dareis
quarenta e duas cidades. Todas as cidades que dareis aos levitas serão quarenta e
oito cidades, juntamente com os seus arredores. Quanto às cidades que derdes da
herança dos filhos de Israel, se for numerosa a tribo, tomareis muitas; se for
pequena, tomareis poucas; cada um dará das suas cidades aos levitas, na
proporção da herança que lhe tocar. (Números 35.2-8)

Quarenta e oito cidades foram dadas ao conjunto da tribo de Levi como lugar
de residência, distribuídas de maneira proporcional entre o povo de Israel,
para que ali exercessem uma autoridade tanto cultual como cultural, jurídica,
educativa e religiosa, em favor da nação como um todo. Podemos dizer que
exerciam uma função de ordem intelectual e cultural, em submissão total à lei
divina. Essas funções eram ao mesmo tempo: (a) Educativas: eles ensinavam
a Torá, primeiro aos filhos e depois a todo o povo; (b) Jurídicas: aplicavam os
mandamentos e a jurisprudência da Torá nos julgamentos das infrações
públicas da lei de Deus; (c) Culturais: eram o motor da vida intelectual,
educativa e artística da nação, que não podia, como ocorre em nossa
sociedade ímpia, ser considerada laica, secularizada, ou seja, “sem Deus e
sem Lei!”. Destacando apenas um exemplo, tornou-se quase impossível, até
mesmo nos meios tradicionalmente bíblicos, considerar que possa existir
relação das catástrofes naturais como furacões, secas, incêndios de florestas,
inundações, proliferação dramática de doenças que afetam os seres vivos,
com os julgamentos históricos pontuais de Deus sobre o crescimento da
maldade neste mundo; (d) Cultuais: os sacerdotes que oficiavam no
Tabernáculo e depois no Templo eram sorteados segundo suas famílias na
tribo de Levi. Consequentemente, o dízimo ofertado a Deus pelo povo servia
para a manutenção de toda a elite cultural e cultual da nação, porque,
evidentemente, as cidades e o pequeno território que as circundava (dois mil
côvados, aproximadamente um quilômetro, em qualquer direção) não era
suficiente para satisfazer as necessidades vitais essenciais dos levitas.
Além disso, os dízimos serviam para prover o sustento daqueles que
oficiavam exclusivamente no serviço do Tabernáculo e depois no Templo.
Trata-se aqui do sustento destinado especificamente ao que hoje
chamaríamos de “clero”, os pastores e sacerdotes que trabalham a serviço das
igrejas locais em tempo integral. Esse clero recebia do conjunto dos levitas o
que o livro de Números chama de o dízimo dos dízimos.
Disse o SENHOR a Moisés: Também falarás aos levitas e lhes dirás: Quando
receberdes os dízimos da parte dos filhos de Israel, que vos dei por vossa
herança, deles apresentareis uma oferta ao SENHOR: o dízimo dos dízimos.
Atribuir-se-vos-á a vossa oferta como se fosse cereal da eira e plenitude do lagar.
Assim, também apresentareis ao SENHOR uma oferta de todos os vossos dízimos
que receberdes dos filhos de Israel e deles dareis a oferta do SENHOR a Arão, o
sacerdote. De todas as vossas dádivas apresentareis toda oferta do SENHOR: do
melhor delas, a parte que lhe é sagrada. Portanto, lhes dirás: Quando oferecerdes
o melhor que há nos dízimos, o restante destes, como se fosse produto da eira e
produto do lagar, se contará aos levitas. Comê-lo-eis em todo lugar, vós e a vossa
casa, porque é vossa recompensa pelo vosso serviço na tenda da congregação.
Pelo que não levareis sobre vós o pecado, quando deles oferecerdes o melhor; e
não profanareis as coisas sagradas dos filhos de Israel, para que não morrais.
(Números 18.25-32)
Acabamos de citar o conjunto de textos da lei que trata da maneira como
Deus proveu, por meio dos dízimos que lhe eram consagrados, o salário da
classe eclesiástica dos levitas e, mais especificamente, as necessidades
materiais daqueles que dentre eles oficiavam no Tabernáculo e depois no
Templo. Henry Lansdell comenta Números 18.21-24 desta maneira: (i)
Nenhum produto da terra nem o menor crescimento dos rebanhos estava
isento desse dízimo universal; (ii) Aquele que ofertava, não escolhia o
destino de sua doação; (iii) Ainda que o dízimo tivesse o nome de oferta, o
ofertante não tinha direito a nenhuma recompensa; (iv) Esse dízimo era
constituído de uma quantidade fixa que não podia ser reduzida nem ofertada
de qualquer maneira. Retê-lo seria considerado por Deus como um ato de
desonestidade, um roubo (Malaquias 3.8).[229]
Podemos acrescentar as seguintes observações: (a) Tratava-se da renda da
classe levítica como um todo. Deixar de pagar o dízimo não significava
apenas privar Deus do que lhe era devido por direito, mas também privar
tanto aqueles que Deus havia colocado no serviço direto do culto em Israel,
como aqueles que promoviam — em todos os níveis e em todas as esferas —
a cultura bíblica da nação e que eram mantidos por esse meio. Não pagar o
dízimo aos levitas era o mesmo que privá-los de todo o meio de ação em
favor do bem espiritual e cultural do povo; (b) O dízimo do Senhor dado à
tribo sacerdotal cultual e cultural dos levitas era definido como pertencente a
Deus. A lei afirma a respeito dos levitas: “Aos filhos de Levi dei todos os
dízimos em Israel por herança”. Privar os levitas do dízimo era um ataque
direto a Deus, contra o serviço do culto e contra a cultura bíblica da nação:
educação, direito, herança histórica e literária, etc.; (c) Somente aqueles que
se consagravam a isso podiam se aproximar de Deus no Tabernáculo e no
Templo. De fato, o véu do Santo dos Santos foi rasgado de alto a baixo em
razão do sacrifício de Cristo sobre a cruz, e todos agora, por meio do Espírito,
têm livre acesso ao trono da graça pelo único Mediador celeste, Jesus Cristo.
Entretanto, somente os responsáveis pela Igreja Cristã dispõem de certos
privilégios espirituais — dons de Deus dados pelo Espírito Santo e próprios
dessas funções — que lhes permitem exercer sua vocação espiritual e
eclesiástica, à qual os cristãos comuns não têm acesso; (d) Aqueles que se
consagravam — os levitas e os sacerdotes — a essa vocação cultual e cultural
eram privados de terras, de rendas agrícolas, industriais ou comerciais,
próprias do ganho diário do resto da nação. Eles tinham de viver do que o
povo ofertava a Deus através do dízimo. Isso permitia aos levitas consagrar-
se inteiramente à sua vocação. De fato, Deus era sua herança. Por isso nosso
texto nos diz: “eles não receberão herança no meio dos filhos de Israel”. O
mesmo vale para o novo povo de Deus que é a Igreja. Os servos de Deus e
suas famílias e aqueles que trabalham para promover a cultura cristã da
nação, não precisam ser vítimas da avareza e da impiedade material,
monetária, financeira dos cristãos que recusam pagar os dízimos; (e)
Notemos, enfim, que se o culto e a cultura da nação, que deve promover o
clericalismo cultual e cultural do povo, não são de inspiração bíblica,
necessariamente serão antibíblicos e anticristãos, isto é, se Deus não é servido
na cultura de maneira cristã, certamente sofreremos a oposição de uma
cultura anticristã. Porque se não servirmos Jesus Cristo na esfera cultural,
seremos inevitavelmente submetidos à tirania mortal de uma cultura anticristã
e anti-humana.[230]
Vejamos, agora, como era a vida daqueles cuja vocação sacerdotal específica
os conduzia ao serviço de Deus no Tabernáculo ou no Templo. Podemos
extrair alguns ensinos do texto do livro de Números 18.25 a 32 que acabamos
de examinar: (i) O princípio geral do dízimo se aplicava também à tribo de
Levi. Do total do dízimo que recebiam do povo, os próprios levitas deviam
retirar um décimo, quantia que permitiria à classe dos sacerdotes
(principalmente os descendentes da família de Arão) sustentar o serviço
sacerdotal no Tabernáculo e depois no Templo. Vemos aqui que o ministério
pastoral, consagrado ao culto espiritual oferecido a Deus no Templo,
representava, em número, algo próximo a um décimo daqueles envolvidos na
tarefa espiritual e cultural de toda a tribo de Levi. Um décimo dos levitas —
falando em termos atuais — eram pastores ou sacerdotes em tempo integral.
Os levitas que não fossem pastores ou sacerdotes do Templo, exerciam a
função de juízes, professores, historiadores, teólogos, músicos, escritores,
artistas, etc., e todas essas funções eram, certamente, exercidas à luz e sob a
autoridade da Palavra de Deus, em conformidade com a ordem da criação e
somente para a glória de Deus. Trata-se aqui do princípio apologético
invocado pelo apóstolo Paulo em sua segunda carta ao coríntios: “Porque as
armas da nossa milícia não são carnais, e sim poderosas em Deus, para
destruir fortalezas, anulando sofismas e toda altivez que se levante contra o
conhecimento de Deus, e levando cativo todo pensamento à obediência de
Cristo” (2 Coríntios 10.5); (ii) No que diz respeito ao dízimo dos dízimos,
tratava-se exatamente de aplicar o mesmo princípio de retirada normal, como
era feito com o cereal da eira e plenitude do lagar [vinho]. Um décimo de
tudo que era recebido pelos levitas devia ser consagrado à manutenção
daqueles que serviam no Templo: como dizemos hoje, esse décimo dos
dízimos devia ser dado pelos levitas àqueles que foram consagrados, em
tempo integral, ao serviço de Deus na Igreja. O texto acrescenta que os
sacerdotes deviam receber a melhor parte dos dízimos recebidos pelos levitas,
o que nos faz pensar em Paulo quando se referiu à honra dobrada
(honorários) reservada aos presbíteros que serviam a Igreja em tempo
integral; (iii) Aqui não era o caso de estabelecer as mesmas restrições que se
aplicavam aos sacrifícios e às ofertas feitas no Templo, sobre os quais os
sacerdotes legitimamente tinham parte e não podiam ser vendidas no açougue
(como era o caso dos sacrifícios pagãos), mas consumidos no próprio lugar
do sacrifício por aqueles que oficiavam no Templo, porque essas ofertas
imoladas tinham um caráter sagrado. No que concerne ao dízimo dos dízimos,
o texto que se refere aos sacerdotes é particularmente claro: “esse é o vosso
salário” (Números 18.31). Tratava-se, de fato, da remuneração normal do
sacerdote ou do pastor atual; (iv) Enfim, nosso texto distingue bem o caráter
“profano”, por assim dizer, desse salário constituído pelo dízimo dos dízimos,
ao separá-lo das ofertas e dos sacrifícios oferecidos no Templo, considerados
“santos”. Era preciso distinguir bem um do outro a fim de que, diz nosso
texto, não profaneis as ofertas santas dos filhos de Israel e por isso não
morram ao vendê-las no açougue, por exemplo (verso 32). Isso não nos faz
lembrar a distinção que o apóstolo Paulo faz em 1 Coríntios 11.17-34, entre
as refeições comuns dos cristãos e a ceia do Senhor?
Conclusão: essas passagens de Levítico e Números, que acabamos de estudar,
nos mostram que era questão de justiça para os fiéis filhos de Israel,
consagrar a Deus e a seu serviço, cultual e cultural, a décima parte sobre o
aumento concedido pelo Senhor do fruto do seu trabalho. Era assim que Deus
sustentava, através dos dízimos a ele ofertados, aqueles que haviam sido

separados — os levitas — para trabalhar particularmente pelo progresso da


obra de Deus em todas as áreas da vida da nação de Israel.
Mas o dízimo levítico, o primeiro dízimo, o dízimo do Senhor, não era o
único dízimo em Israel. Voltemos agora nossa atenção para o segundo
dízimo, o dízimo das festas.

II. O SEGUNDO DÍZIMO — O DÍZIMO DAS FESTAS (DEUTERONÔMIO 12.1-14)


Vamos direto às duas passagens de Deuteronômio que falam
explicitamente desse segundo dízimo. Consideremos também seus contextos
precisos. Vejamos primeiro Deuteronômio 12:1-14:
São estes os estatutos e os juízos que cuidareis de cumprir na terra que vos deu o
SENHOR, Deus de vossos pais, para a possuirdes todos os dias que viverdes sobre a
terra. Destruireis por completo todos os lugares onde as nações que ides
desapossar serviram aos seus deuses, sobre as altas montanhas, sobre os outeiros
e debaixo de toda árvore frondosa; deitareis abaixo os seus altares, e
despedaçareis as suas colunas, e os seus postes-ídolos queimareis, e
despedaçareis as imagens esculpidas dos seus deuses, e apagareis o seu nome
daquele lugar. Não fareis assim para com o SENHOR, vosso Deus, mas buscareis o
lugar que o SENHOR, vosso Deus, escolher de todas as vossas tribos, para ali pôr o
seu nome e sua habitação; e para lá ireis. A esse lugar fareis chegar os vossos
holocaustos, e os vossos sacrifícios, e os vossos dízimos, e a oferta das vossas
mãos, e as ofertas votivas, e as ofertas voluntárias, e os primogênitos das vossas
vacas e das vossas ovelhas. Lá, comereis perante o SENHOR, vosso Deus, e vos
alegrareis em tudo o que fizerdes, vós e as vossas casas, no que vos tiver
abençoado o SENHOR, vosso Deus. Não procedereis em nada segundo estamos
fazendo aqui, cada qual tudo o que bem parece aos seus olhos, porque, até agora,
não entrastes no descanso e na herança que vos dá o SENHOR, vosso Deus. Mas
passareis o Jordão e habitareis na terra que vos fará herdar o SENHOR, vosso Deus;
e vos dará descanso de todos os vossos inimigos em redor, e morareis seguros.
Então, haverá um lugar que escolherá o SENHOR, vosso Deus, para ali fazer
habitar o seu nome; a esse lugar fareis chegar tudo o que vos ordeno: os vossos
holocaustos, e os vossos sacrifícios, e os vossos dízimos, e a oferta das vossas
mãos, e toda escolha dos vossos votos feitos ao SENHOR, e vos alegrareis perante
o SENHOR, vosso Deus, vós, os vossos filhos, as vossas filhas, os vossos servos, as
vossas servas e o levita que mora dentro das vossas cidades e que não tem porção
nem herança convosco. Guarda-te, não ofereças os teus holocaustos em todo
lugar que vires; mas, no lugar que o SENHOR escolher numa das tuas tribos, ali
oferecerás os teus holocaustos e ali farás tudo o que te ordeno. (Deuteronômio
12.1-14)

Estudamos bem essa passagem quando da nossa meditação sobre o sentido e


a aplicação do primeiro mandamento, na qual vimos de forma detalhada a
maneira como Israel devia adorar a Deus. Não faremos isso de novo neste
capítulo. Destaquemos, no entanto, alguns pontos dessa longa passagem.
(a) Tratava-se, em primeiro lugar, de fazer desaparecer todos os lugares em
que os habitantes idólatras do país de Canaã celebravam seus cultos ímpios.
De fato, existiam incontáveis santuários privados — como hoje ainda é o
caso, por exemplo, na Índia — em todo o país de Canaã. Todos esses lugares
de culto idólatra privados e os objetos a ele associados deviam ser rigorosa e
sistematicamente destruídos. Até os nomes dos lugares ligados a essas
práticas religiosas pagãs deviam ser banidos da linguagem dos israelitas e da
geografia de Israel; (b) O comportamento dos filhos de Israel, após sua
entrada em Canaã, devia ser rigorosamente diferente (versos 4-7) do
comportamento dos cananeus. Deus mesmo escolheria um lugar central de
culto no meio de uma das tribos e somente ali poderiam celebrar o culto e
oferecer seus sacrifícios, dízimos e ofertas. Ao pluralismo pagão refletido
pela pluralidade de divindades e seus incontáveis lugares de culto, sucederia
o culto ao único Deus e verdadeiro (a unicidade do culto sendo confirmada
pela unicidade do lugar de culto único), onde todos deveriam ir com suas
ofertas e sacrifícios. Deus mesmo escolheria esse lugar. Primeiro foi em Siló
e mais tarde, sob o reinado de Salomão, em Jerusalém; (c) No deserto, no
qual o povo de Israel estava sempre se deslocando, não era assim (versos 8-
9). Mas seria totalmente diferente quando entrassem na terra prometida. Ali
haveria apenas um único lugar para oferecer os sacrifícios, os dízimos e as
ofertas voluntárias, local em que se alegrariam juntos, em família, diante do
Senhor seu Deus (versos 10-12); (d) Os versos 13-14 são para ser lembrados:
os filhos de Israel não deviam prestar culto a Deus em todos os lugares que
vissem, mas no lugar escolhido pelo Senhor.
O ensino sobre o primeiro dízimo dava ênfase às pessoas às quais o dízimo
deveria ser pago. Como vemos, o segundo dízimo tinha outra finalidade, qual
seja:
Vos alegrareis perante o SENHOR, vosso Deus, vós, os vossos filhos, as vossas
filhas, os vossos servos, as vossas servas e o levita que mora dentro das vossas
cidades e que não tem porção nem herança convosco. (Deuteronômio 12:12)
Esse texto diz respeito à maneira e ao lugar em que o israelita devia adorar ao
Senhor, lhe oferecer corretamente seus dízimos, suas ofertas e sacrifícios.
Aqui não se tratava de justiça (dar a cada um segundo o que lhe era devido)
como no primeiro dízimo, mas de fidelidade, ou seja, tratava-se de santificar
o nome de Deus, oferecer-lhe um culto de acordo com a sua vontade, como
requer expressamente do seu povo. O terceiro dízimo, para os pobres, diz
respeito à misericórdia.
Vejamos, agora, o capítulo 14 de Deuteronômio, texto que trata mais
explicitamente ainda das festas religiosas de Israel:
Certamente, darás os dízimos de todo o fruto das tuas sementes, que ano após ano
se recolher do campo. E, perante o SENHOR, teu Deus, no lugar que escolher para
ali fazer habitar o seu nome, comerás os dízimos do teu cereal, do teu vinho, do
teu azeite e os primogênitos das tuas vacas e das tuas ovelhas; para que aprendas
a temer o SENHOR, teu Deus, todos os dias. Quando o caminho te for comprido
demais, que os não possas levar, por estar longe de ti o lugar que o SENHOR, teu
Deus, escolher para ali pôr o seu nome, quando o SENHOR, teu Deus, te tiver
abençoado, então, vende-os, e leva o dinheiro na tua mão, e vai ao lugar que o
SENHOR, teu Deus, escolher. Esse dinheiro, dá-lo-ás por tudo o que deseja a tua
alma, por vacas, ou ovelhas, ou vinho, ou bebida forte, ou qualquer coisa que te
pedir a tua alma; come-o ali perante o Senhor, teu Deus, e te alegrarás, tu e a tua
casa; porém não desampararás o levita que está dentro da tua cidade, pois não
tem parte nem herança contigo. (Deuteronômio 14.22-27)

À pergunta: o que deveria estar sujeito ao dízimo? A lei respondia: todo o


aumento de bens do israelita, culturas e rebanhos. À pergunta: a quem
deveria ser dado o dízimo? Vimos que o primeiro dízimo devia ser
consagrado a Deus, por intermédio dos seus servos os levitas. À pergunta:
onde os dízimos deveriam ser pagos? O texto de Deuteronômio, que já lemos,
responde:
Então, haverá um lugar que escolherá o SENHOR, vosso Deus, para ali fazer
habitar o seu nome; a esse lugar fareis chegar tudo o que vos ordeno: os vossos
holocaustos, e os vossos sacrifícios, e os vossos dízimos, e a oferta das vossas
mãos, e toda escolha dos vossos votos feitos ao SENHOR. (Deuteronômio 12:11)

Henry Lansdell tira algumas lições desse segundo dízimo: (i) Ele provinha da
produção anual da terra; (ii) Ele devia ser consagrado pelo ofertante, sua
família, como também pelo vizinho levita, com as primícias dos rebanhos,
mas somente no lugar escolhido por Deus para lhe celebrar um culto; (iii) O
objetivo era fazer com que o povo de Israel sempre temesse ao Senhor e se
alegrasse nele; (iv) O produto do dízimo — cereais, frutos, animais — podia
ser trocado por dinheiro, para ser utilizado no lugar central de culto, na
compra de animais para oferecer em sacrifício a Deus e alegrar-se nele; (v)
Aquele que pagava esse segundo dízimo não devia dá-lo ao tesouro, mas
comer do fruto e se alegrar diante de Deus; (vi) O pagamento desse segundo
dízimo implicava a passagem do ofertante pelo menos uma semana durante a
Páscoa, na Festa dos Tabernáculos, ou num período mais curto, na Festa das
Semanas, no lugar escolhido por Deus onde as cerimônias deviam acontecer.
[231]

Esse mesmo esquema encontramos no capítulo 16 de Deuteronômio, no qual


se descreve a celebração das três grandes festas de Israel. No que diz respeito
à Páscoa, lemos:
Nela, não comerás levedado; sete dias, nela, comerás pães asmos, pão de aflição
(porquanto, apressadamente, saíste da terra do Egito), para que te lembres, todos
os dias da tua vida, do dia [da celebração da primeira Páscoa[232]] em que saíste
da terra do Egito. (Deuteronômio 16.3)
Sobre a Festa das Cabanas ou dos Tabernáculos, no outono, a festa das
colheitas, lemos:
A Festa dos Tabernáculos, celebrá-la-ás por sete dias, quando houveres recolhido
da tua eira e do teu lagar. Alegrar-te-ás, na tua festa, tu, e o teu filho, e a tua filha,
e o teu servo, e a tua serva, e o levita, e o estrangeiro, e o órfão, e a viúva que
estão dentro das tuas cidades. Sete dias celebrarás a festa ao Senhor, teu Deus, no
lugar que o SENHOR escolher, porque o SENHOR, teu Deus, há de abençoar-te em
toda a tua colheita e em toda obra das tuas mãos, pelo que de todo te alegrarás.
(Deuteronômio 16.13-15)
Sobre a Festa das Semanas, também chamada de Pentecoste, celebrada no
começo do verão, lemos ainda nesse mesmo capítulo de Deuteronômio:
Três vezes no ano, todo varão entre ti aparecerá perante o SENHOR, teu Deus, no
lugar que escolher, na Festa dos Pães Asmos, e na Festa das Semanas, e na Festa
dos Tabernáculos; porém não aparecerá de mãos vazias perante o Senhor; cada
um oferecerá na proporção em que possa dar, segundo a bênção que o Senhor,
seu Deus, lhe houver concedido. (Deuteronômio 16.16-17)

Que ensinos podemos tirar desse segundo dízimo, o dízimo das festas?
(a) O objetivo desse dízimo tinha um caráter também religioso. Para celebrar
um culto que agradasse ao Senhor, o fiel israelita devia, três vezes por ano, se
dirigir ao lugar central de culto da nação. Esse dízimo das festas servia para
financiar, tornar materialmente possível, a peregrinação;
(b) Alguém poderia dizer que essas três peregrinações anuais eram os
períodos de férias do povo de Deus. Mas, ao contrário das férias modernas,
puramente profanas, esses períodos de férias do povo de Israel tinham como
objetivo honrar, glorificar e celebrar a Deus. Era a alegria do povo de Deus.
Elas lembravam as peregrinações religiosas que davam ritmo a toda vida
cristã da Europa na Idade Média;
(c) Se a Páscoa judaica era também caracterizada pela lembrança da
libertação da escravidão no Egito — daí vem o fato de alimentar-se do pão da
aflição, dos pães sem fermento e das ervas amargas (Deuteronômio 16.3)
(como para os cristãos a Páscoa é a lembrança da crucificação de Cristo como
lugar de libertação de nossos pecados), as outras festas — à exceção do Dia
da Expiação, o Yom Kippur, festa judaica de arrependimento, na qual o jejum
era obrigatório e que é um tipo particularmente forte da expiação do Messias,
do nosso Senhor Jesus Cristo, no Gólgota[233] — eram alegres, de grande
alegria, nas quais o povo se reunia no lugar central do culto de Israel para ali
louvar a Deus, se alegrar nele e celebrá-lo por todos os seus benefícios tão
numerosos e incomparáveis. O verso 15 desse capítulo diz isso
enfaticamente:
Sete dias celebrarás a festa ao Senhor, teu Deus, no lugar que o SENHOR escolher,
porque o SENHOR, teu Deus, há de abençoar-te em toda a tua colheita e em toda
obra das tuas mãos, pelo que de todo te alegrarás.(Deuteronômio 16.15)

Assim — exceto a lembrança dos sofrimentos enquanto eram escravos no


Egito — as festividades de Israel eram marcadas por uma alegria intensa.
(d) A obediência de Israel aos mandamentos do Deus da aliança conduzia à
bênção material e espiritual da nação, o que levava o povo do Senhor ao
louvor e a uma alegria transbordante. Contrariamente à visão moderna de um
cosmos puramente “material”, isto é, de um universo concebido unicamente
como um modelo unicamente quantitativo, físico e matemático, do qual toda
a intervenção divina direta estaria a priori excluída, a visão da ordem criada
que nos dá a Bíblia, e por consequência o cristianismo, consiste numa
realidade cósmica ao mesmo tempo estável e dinâmica; estável, porque a
ordem que Deus estabeleceu não muda, desde que Deus descansou no sétimo
dia da criação; e dinâmica, porque esse descanso está aberto, por um lado, à
bênção divina (fruto da obediência aliancial do seu povo) e, por outro lado, à
sua maldição (resultado da desobediência, também aliancial, do povo). De
fato, é essa dinâmica das bênçãos e maldições da aliança que nos permite dar
nosso dízimo a Deus sem medo de consequências prejudiciais futuras da
penúria e falta de tudo;
(e) Essas festas de contrição (a Páscoa e Yom Kippur) e de alegria
(Pentecoste e Cabanas), são figuras judaicas (tipos) dos grandes momentos de
tristeza (Sexta-feira santa) e de alegria (o Natal, a ressurreição no dia da
Páscoa, Pentecoste e Ascensão) que também dão ritmo ao ano litúrgico
cristão;
(f) Enfim, além da oferta dos dízimos e dos sacrifícios, essas três festas
nacionais de Israel davam ao israelita ocasião de fazer donativos voluntários
à Deus para exprimir de maneira mais pessoal, de forma material e alegre,
sua imensa gratidão para com Deus pelos seus benefícios inumeráveis. Essas
doações voluntárias incluíam a colheita, legalmente instituída, do que sobrava
no campo, cuja liberalidade era deixada à decisão, mais ou menos generosa,
do proprietário (por exemplo a generosidade de Boaz para com Rute, que
colhia as sobras em seu campo). Essas ofertas voluntárias incluíam toda a
amplitude de doações que podiam ser acrescentadas às primícias das
colheitas, toda a sorte de doações voluntárias, às ofertas ligadas aos votos, ao
perdão de dívidas do sétimo ano sabático, ao retorno às suas próprias terras
do escravo tornado livre no ano do jubileu. Henry Lansdell calculou que a
soma dos dízimos e dessas ofertas obrigatórias podem oscilar entre um quarto
e um terço das rendas do israelita,[234] quantia que cobria todos os custos
eclesiásticos, custos com o deslocamento para as festas, custos sociais —
AVS[235] incluído — custos jurídicos, educativos e culturais. Porque todos
esses serviços — que em nosso afastamento das leis divinas atribuímos a um
Estado Providencial, ao mesmo tempo impessoal, cego, ineficaz e indiferente,
pretensamente vestido de todo um poder de onisciência – eram cobertos pelos
dízimos e ofertas exigidos pela Torá.
Henry Lansdell descreveu assim o objetivo de todas essas ofertas:
O principal objetivo de todas essas festas era, consequentemente, promover
princípios religiosos e fornecer um momento e um lugar para a observação das
regras sociais e ofertas de sacrifícios, tudo sendo feito em gratidão a Deus por
todas as suas bênçãos, num espírito de lealdade e adoração para com ele.
Lansdell continua:
Assim, quando um israelita caía em pecado, o meio estabelecido para o perdão
era o sacrifício; se ele quisesse resgatar seus votos ou exprimir sua gratidão, isso
implicava oferecer sacrifícios. Mas todos esses sacrifícios não deviam ser
oferecidos pelo ofertante num lugar qualquer, mas na capital eclesiástica de
Israel, lugar escolhido como local onde repousava a arca da aliança, primeiro em
Siló e depois em Jerusalém.
Henry Lansdell conclui:
Dessa maneira, o israelita podia comer e se alegrar diante de Deus e festejar com
toda sua casa; o segundo dízimo, o dízimo das festas, tinha como objetivo dar os
meios para cumprir todos esses deveres.[236]

O segundo dízimo, como mostra muito bem Dennis Wretlind,[237] tinha como
objetivo inculcar no israelita a fidelidade. Vamos agora ao terceiro dízimo, o
dízimo dos pobres, o dízimo de misericórdia.

3. O TERCEIRO DÍZIMO — O DÍZIMO DOS POBRES (DEUTERONÔMIO 14:28-29)


Lemos, ainda, no livro de Deuteronômio, a instituição de um terceiro dízimo,
o dízimo dos pobres:
Ao fim de cada três anos, tirarás todos os dízimos do fruto do terceiro ano e os
recolherás na tua cidade. Então, virão o levita (pois não tem parte nem herança
contigo), o estrangeiro, o órfão e a viúva que estão dentro da tua cidade, e
comerão, e se fartarão, para que o Senhor, teu Deus, te abençoe em todas as obras
que as tuas mãos fizerem. (Deuteronômio 14:28-29)
Os comentários da Bíblia Martin de 1707 como também os da Bíblia
Anotada de 1889 são muito esclarecedores. David Martin explica:
A cada três anos, depois de pagar aos levitas os dízimos ordinários [o primeiro
dízimo, ao qual acrescentavam o segundo dízimo das festas que acabamos de
estudar], eles separavam a décima parte de tudo que tinham colhido nesse último
ano. Essa décima parte da renda do terceiro ano era doada às viúvas, aos órfãos e
a outras pessoas necessitadas.[238]
Frédéric Godet explica esse texto da seguinte maneira:
No fim de três anos, isto é, no quarto ano depois de terminada a terceira colheita,
esse dízimo devia ser tomado dos produtos do ano anterior e comido pelo
israelita e sua família, não no santuário, mas na cidade onde habitava. O que
distingue ainda este dízimo do anterior é que para a refeição na qual era
consumido eram convidados os estrangeiros e os indigentes.[239]
Henry Lansdell, conforme seu hábito, explica claramente o significado desse
terceiro dízimo, o dízimo dos pobres, que era renovado a cada três anos: (i)
Um décimo da produção do ano devia ser separado em casa; (ii) Esse dízimo
devia ser compartilhado com o levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva; (iii) O
propósito desse dízimo era a bênção do Senhor sobre a obra das mãos
daquele que dava a oferta.[240]
Wretlind, por sua vez, comenta essa lei assim:
Outro problema que existia no país de Canaã era a estratificação social, algo
corrente numa sociedade agrícola. Os pobres, os estrangeiros, os órfãos, as viúvas
e os levitas, que habitavam nas cidades de Israel, frequentemente tinham
necessidade de um socorro econômico. Através desse terceiro dízimo, Deus dava
uma solução a esse problema. A cada três anos, todo israelita dava o dízimo
sobre a produção do terceiro ano, colocando-o num depósito público onde os
pobres poderiam retirar segundo suas necessidades. O propósito de Deus era
socorrer os necessitados através dos cidadãos mais prósperos, generosidade
social que era acompanhada da bênção divina.[241]

Vemos, então, que se o primeiro dízimo tinha como alvo a justiça e o


segundo a fidelidade, o terceiro visava a misericórdia.
Alguns, por diversas razões, têm negado a existência desses três dízimos,
alegando que os últimos teriam sido substituídos pelo primeiro, ou que um
sistema de dízimos como esse teria sido muito oneroso para a cultura agrícola
dos israelitas daquela época. Esquecem que hoje, com os encargos sociais, as
taxações indiretas como o Imposto de Valor Agregado (IVA) e os abusos da
administração Estatal, aquilo que é extraído pelas garras ficais do poder
público (área que era amplamente coberta pelos dízimos em Israel) ultrapassa
facilmente, em nosso país a caminho da socialização (senão da comunicação),
os 50% da renda dos contribuintes.
Vemos, também, a que ponto os problemas sociais recebiam, da parte do
Legislador divino de Israel, soluções institucionais de imensa sabedoria.
Pensemos na instituição da colheita do que sobrava no campo, por exemplo,
que mantinha ao mesmo tempo a relação pessoal entre o pobre e os ricos, mas
também a sanção prática e econômica necessária à manutenção de uma
economia saudável, uma vez que a colheita da sobra era uma atividade mais
árdua e bem menos remuneradora que o trabalho mais exigente das colheitas.
Além disso, tais leis sociais possibilitavam a bênção divina sobre aqueles
que, segundo o mandamento de Deus, exerciam a caridade social de forma
voluntária e institucional. Como aqui estamos longe das soluções modernas
de humanitarismo sentimental ou do Estado Providência, humanismo ligado à
especulação financeira, ao acúmulo de capitais através de juros compostos, da
taxação abusiva da produção e da desumanidade do funcionário público dos
serviços da administração do Estado! Através de atos de misericórdia, o
sistema hebraico, de forma alguma um simples exercício de caridade pessoal,
mantinha entre as diversas classes da sociedade ligações vivas de
generosidade, estruturalmente impostas pela lei, e de reconhecimento dos
pobres pelas classes mais abastadas.

CONCLUSÃO — OS TRÊS DÍZIMOS BÍBLICOS


Alguns, triturando os documentos bíblicos, têm negado a existência desses
três dízimos. Parece-nos que a análise que acabamos de fazer, prova, ao
contrário, que esse triplo sistema de dízimos está exposto claramente no
conjunto dos dados bíblicos. Essa é também a conclusão de comentaristas da
grande Bíblia Elzevier de 1669:
Há intérpretes que, comparando o que aqui e acima é dito [Deuteronômio 14] nos
versos 22-23, e no capítulo 26:12 com o que foi ordenado sobre os dízimos em
Levítico 27:30 e Números 18:24, concluem que havia três espécies de dízimos: o
primeiro era ordinário, de ano a ano, para o sustento dos Levitas. O segundo,
também anual, que era levantado a cada ano, após o pagamento do primeiro, para
servir às festas sagradas, que o povo celebrava na presença do Senhor. O terceiro,
de três em três anos, que era destinado aos pobres.[242]
Para concluir, veremos que esses três dízimos — relativos ao direito (ou à
justiça), à fidelidade e à misericórdia — foram confirmados pelas palavras
do próprio Senhor Jesus Cristo. Mas dispomos, igualmente, de provas
externas à Bíblia canônica, que indicam claramente a existência desses três
dízimos. Vejamos esses textos extraídos do livro de Tobias (livro apócrifo do
Antigo Testamento), em seguida os escritos provenientes da história judaica
do primeiro século de nossa era, textos extraídos das obras de Flávio Josefo e,
enfim, do testemunho do grande comentarista patrístico da Bíblia, Jerônimo,
escrevendo no fim do século 4º.
Vejamos, em primeiro lugar, o que diz o livro de Tobias, texto escrito sem
dúvida por volta do segundo século antes de Cristo:
E eu, sozinho, ia com frequência a Jerusalém para as festas, segundo o que está
prescrito para todo o Israel, como preceito perpétuo. Com as primícias, os
primogênitos, o dízimo do gado e o resultado da primeira tosquia, corria a
Jerusalém. Dava tudo aos sacerdotes, aos filhos de Arão, para o altar, e dava o
dízimo do trigo, do vinho, do óleo, das romãs e dos figos e de outros frutos, aos
filhos de Levi que oficiam em Jerusalém [o primeiro dízimo].
Eu levava em dinheiro o segundo dízimo, seis anos seguidos, e ia gastá-lo em
Jerusalém a cada ano; dava [o terceiro dízimo] aos órfãos, às viúvas e aos
prosélitos agregados aos filhos de Israel; eu o levava e dava-lhes no terceiro ano,
e comíamos, conforme o mandamento a esse respeito na lei de Moisés e segundo
as ordens dadas por Débora, a mãe de Ananiel, nosso pai; porque meu pai tinha
morrido, deixando-me órfão.[243]

Essa obra, datada do 2º século antes de Cristo, mostra claramente a existência


dos três dízimos testemunhados na Torá.
Vejamos, agora, o que nos diz Flávio Josefo em suas obras históricas, escritas
no primeiro século da era cristã. Em suas Antiguidades judaicas, escreveu:
Na repreensão feita por Moisés à tribo de Levi, que por estar isenta de ir à guerra
(Números 35.1-8) só se ocupou com as coisas necessárias à vida e negligenciou o
serviço de Deus, ele ordenou que após a conquista do país de Canaã, deveriam
ser dadas a essa tribo quarenta e oito das melhores cidades, com todas as suas
terras, encontradas não mais distantes que dois mil côvados; e que o povo lhe
pagaria todos os anos e aos sacerdotes a décima parte dos frutos que recolhessem,
o que sempre foi fielmente observado.
É necessário falar dos sacerdotes. Moisés ordenou que dessas quarenta e oito
cidades dadas aos levitas, treze seriam dadas aos sacerdotes, como também a
décima parte dos décimos [ou seja, como vimos, o décimo dos dízimos].[244]
Mais adiante, Flávio Josefo escreveu:
Além dos dois dízimos que eram obrigados a pagar cada ano, um aos levitas e
outro para as festas sagradas, deviam pagar um terceiro, para ser distribuído aos
pobres e órfãos.[245]
Em relação a Jerônimo, Henry Lansdell escreveu:
Depois de Josefo, temos o testemunho de Jerônimo que, como as duas
testemunhas anteriores, vivia também na Palestina. Ele diz que um dízimo era
dado aos levitas, do qual um décimo ia para os sacerdotes; um segundo dízimo
servia as celebrações das festas e um terceiro era dado aos pobres.[246]
E acrescenta:
Assim também entendia Crisóstomo [em sua 64ª pregação sobre Mateus 20.27],
quando disse: “Então, o que davam os judeus? Um décimo de seus bens, depois
um outro décimo e, depois desse, um terceiro décimo” [...][247]
Para concluir, citamos as palavras do próprio Cristo, que mostram que ele
também contava três dízimos e compreendia, no que diz respeito aos dízimos,
que as coisas mais importantes da Lei deviam ser entendidas da maneira
como expusemos, porque tanto quanto Moisés, Cristo dividia os dízimos em
três. Vejamos, então, o que Cristo diz sobre os três dízimos da lei — que ele
chama as coisas mais importantes desta lei — e nos maravilhemos juntos
com a defesa feita pelo nosso Senhor das belas distinções da lei divina, diante
das astúcias hipócritas de seus interlocutores fariseus:
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque dais o dízimo da hortelã, do
endro e do cominho e tendes negligenciado os preceitos mais importantes da Lei:
a justiça, a misericórdia e a fé; devíeis, porém, fazer estas coisas, sem omitir
aquelas! Guias cegos, que coais o mosquito e engolis o camelo! (Mateus 23.23-
24)

Como longamente vimos neste artigo, o direito (ou a justiça) representa o


primeiro dízimo, devido a Deus, destinado aos levitas; a fidelidade, o
segundo dízimo, consagrado às festas; e a misericórdia, o terceiro dízimo,
devido aos pobres. Como cristãos, cidadãos da nova aliança, poderíamos
fazer menos que isso?
Amém.
Capítulo XVII: Os três dízimos na Nova Aliança: A
prática do dízimo na Igreja de Jerusalém

INTRODUÇÃO
Nos últimos capítulos tratamos de dois temas: (1) O pai do dízimo, Abraão;
(2) Os três dízimos da Lei.
Ali aprendemos, entre muitas outras coisas, dois pontos essenciais:
1. Que a prática do dízimo existia antes da revelação da Lei; que essa prática
tem seu fundamento no dízimo que Abraão pagou a Melquisedeque quando
de seu retorno vitorioso da campanha contra os reis do Oriente — para
recuperar seu sobrinho Ló — que tinham conquistado as cidades da planície
vizinha ao Mar Morto. Ali constatamos que se Abraão era o pai da fé
(Gálatas) e o pai das obras da fé (Tiago), era também o pai dessa gratidão da
fé, cuja marca visível é a prática do dízimo (Hebreus).
2. Considerando os três dízimos descritos na Torá, pudemos ver que os
dízimos normativos, ofertados pelo povo como um reconhecimento pelas
bênçãos recebidas de Deus, eram de três espécies: (i) O dízimo do Senhor,
consagrado aos levitas, que lhes fazia justiça, o dízimo de direito; (ii) O
dízimo das Festas, consagrado à celebração fiel do culto divino, o dízimo de
fidelidade e; (iii) O dízimo dos pobres, reservado para obras de caridade, o
dízimo de misericórdia. Cristo, longe de abolir esses três dízimos, confirmou
sua validade para os israelitas de seu tempo.
Esses três dízimos ordenados pela Torá são, então, mencionados — e
explicitamente confirmados por nosso Senhor Jesus Cristo — em meio ao
discurso de reprovação que dirigiu aos escribas e fariseus, registrado em
Mateus 23. Esses israelitas eram exageradamente escrupulosos, a ponto de
pagar o dízimo sobre o menor objeto que pudesse resultar em ganho, mas
esqueciam o essencial da lei divina. Vejamos de novo as palavras de Cristo:
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque dais o dízimo da hortelã, do
endro e do cominho e tendes negligenciado os preceitos mais importantes da Lei:
a justiça, a misericórdia e a fé; devíeis, porém, fazer estas coisas, sem omitir
aquelas! Guias cegos, que coais o mosquito e engolis o camelo! (Mateus 23:23-
24)

Explicávamos:
O direito [ou a justiça], representa o primeiro dízimo, devido a Deus para
sustento dos levitas; a fidelidade, representa o segundo dízimo, consagrado às
festas; e a misericórdia, o terceiro dízimo, dado aos pobres.

E terminávamos questionando o seguinte:


Como cristãos, cidadãos da Nova Aliança, poderíamos fazer menos que isso?
Antes de responder a essa questão, façamos duas últimas observações,
atentando ao ensino do Novo Testamento sobre as doações de
reconhecimento que devemos consagrar a Deus: (a) O dízimo instituído por
Abraão se refere ao sacerdócio neotestamentário de Melquisedeque,
reassumido por Jesus Cristo para a Nova Aliança; (b) Os três dízimos
prescritos pela Torá dão plena continuidade a esse ato de reconhecimento
solene que teve sua origem com Abraão. Esses três dízimos definidos pela lei
mosaica não fazem mais que expressar o que o próprio Abraão havia
instituído quando ofereceu o dízimo a Melquisedeque de todo o despojo.
Vamos, agora, ver como a Nova Aliança — inaugurada pela obediência plena
de Cristo à lei de Moisés — retoma, e mais ainda, leva à sua plenitude todo o
ensino abraâmico e mosaico no que concerne ao que devemos a Deus na
forma de dons que manifestem nosso reconhecimento pelas bênçãos
inumeráveis que derrama do céu sobre nós. Nosso estudo será dividido em
três partes que serão tratadas sucessivamente no curso desses três próximos
capítulo.
I. A prática do dízimo na Igreja de Jerusalém.
II. Os três dízimos na Igreja apostólica: as necessidades da Igreja local e da
Igreja universal.
III. Os dízimos na Igreja pós-apostólica. Algumas considerações práticas.

A prática do dízimo na Igreja de Jerusalém

Observações preliminares
A questão do dízimo (ou melhor, como já vimos, a questão dos três dízimos),
no testemunho e ensino apostólico do Novo Testamento, nos coloca diante de
uma questão que já consideramos diversas vezes, ou seja, a passagem da
antiga para a nova dispensação da aliança. De fato, há muitos anos
examinamos essa questão de maneira precisa, quando de uma exposição
consagrada ao 4º mandamento intitulado Do sábado ao domingo, estudo que,
pela graça soberana de Deus, foi dado num domingo pela manhã na Igreja
Adventista de Sion, que havia emprestado seu lugar de culto à nossa Igreja.
Assim, de novo nos encontramos necessariamente diante dessa questão
essencial e temos de enfrentá-la, ou seja, o estudo das diversas áreas da
teologia bíblica que trata da passagem da antiga aliança para a nova. Trata-se,
em particular, da passagem da Páscoa judia para a santa ceia; da circuncisão
para o batismo; da substituição do sábado pelo domingo; e enfim, o pleno
cumprimento na Igreja, corpo de Jesus Cristo entre as nações, das promessas
da aliança antiga dadas à nação de Israel.
Isso nos leva a fazer algumas observações preliminares:
1) Não se trata aqui de abolir qualquer que sejam as ordenanças da Lei de
Deus. Cristo mesmo disse explicitamente no Sermão do Monte que não tinha
vindo para abolir, mas para cumprir a lei e os profetas, isto é, levar a cabo e a
seu clímax bíblico definitivo, todo o ensino do Antigo Testamento.
2) Também não se trata de que a Igreja tenha vindo para suplantar ou
substituir Israel, como certa vez afirmou o ensino católico romano tradicional
sobre o povo de Israel. A Igreja é, claramente, o clímax, o cumprimento em
Jesus Cristo, o Messias de Israel e Chefe de sua Igreja, de todas as promessas
da Antiga Aliança dirigidas a Israel. A razão de ser de Israel não foi outra,
senão a manifestação do Messias e, por ele, de seu corpo, a Igreja de Jesus
Cristo, na qual judeus e gentios foram reconciliados. O muro que os separava
foi derrubado, como explicou claramente o apóstolo Paulo aos cristãos de
Éfeso, de origem pagã.
Portanto, lembrai-vos de que, outrora, vós, gentios na carne, chamados
incircuncisão por aqueles que se intitulam circuncisos, na carne, por mãos
humanas, naquele tempo, estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel
e estranhos às alianças da promessa, não tendo esperança e sem Deus no mundo.
Mas, agora, em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, fostes aproximados
pelo sangue de Cristo. Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um; e, tendo
derribado a parede da separação que estava no meio, a inimizade, aboliu, na sua
carne, a lei dos mandamentos [que separavam judeus e gentios, mas agora todos
reunidos na Pessoa de Cristo] na forma de ordenanças, para que dos dois criasse,
em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse ambos em um só
corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade. E,
vindo, evangelizou paz a vós outros que estáveis longe e paz também aos que
estavam perto; porque, por ele, ambos temos acesso ao Pai em um Espírito.
Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois
da família de Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas,
sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular; no qual todo o edifício, bem-
ajustado, cresce para santuário dedicado ao Senhor, no qual também vós
juntamente estais sendo edificados para habitação de Deus no Espírito. (Efésios
2.11-22)

Fora de Jesus Cristo, Israel apenas negou-se a si mesma e rejeitou o Deus de


seus pais, ou seja, apostatou. Courthial justamente intitulou um sermão, no
qual chamava a nação infiel de Israel à conversão: “A solução divina final”.
De fato, a conversão final de todos os judeus destinados à salvação em Jesus
Cristo e sua integração plena na Igreja resultaria no desaparecimento da
identidade religiosa de Israel como tal e na renovação de todas as coisas em
Cristo. Como nos diz a epístola aos Romanos, sua reintegração será, de fato,
vida entre os mortos, isto é, a ressurreição dos mortos e a restauração de
todas as coisas, o fim deste mundo que perece (Romanos 11.15 e 25-27).
3) Se a Nova Aliança é, antes de tudo, o clímax, o cumprimento, a plenitude
da antiga — e não sua abolição — certamente ela é também sua substituição.
Na Antiga Aliança, o Reino de Deus tinha sido iniciado; com a vinda do Rei,
nosso Senhor Jesus Cristo, o Reino se manifestou; com a vinda do Espírito
Santo em Pentecoste, esse Reino divino se incorporou na Igreja de Jesus
Cristo, que recebeu, então, a plenitude prometida do Espírito Santo. No
retorno de Cristo, o Senhor da Glória entrará, com sua Igreja, na plenitude do
seu reino. Seu cumprimento também levará à plena integração na Igreja,
estabelecida por Cristo, de todos os santos da antiga dispensação da aliança
com Israel. Mas, de imediato acrescentamos, o Reino presente está ainda na
condição de primícias, de promessa. Ele se manifestará em sua plenitude
quando Jesus Cristo retornar em glória.
O mesmo vale para o batismo que é superior à circuncisão, porque é a plena
circuncisão do coração pelo batismo do Espírito Santo que nos inclui, pela fé,
na morte e na ressurreição de Jesus Cristo; vale para a ceia do Senhor, que é
muito mais que a Páscoa judia, porque passamos da libertação da servidão no
Egito para a libertação da escravidão do pecado; vale para o domingo que
substitui o sábado, porque passamos do último dia da antiga criação para o
primeiro dia da nova, dia que não terá mais fim; enfim, vale para a Igreja de
Jesus Cristo que é também maior que a nação de Israel, porque em Jesus
Cristo a Igreja engloba todas as nações da terra. Agora, a única nação eleita,
da antiga dispensação da Aliança de Deus com Israel, foi multiplicada
prodigiosamente pela salvação dada aos santos de todas as nações do mundo.
Como vamos ver, vale também o mesmo para a generosidade material que
devemos exercer na Nova Aliança. Ela deve ser maior, muito mais generosa,
gloriosa, mais criativa em bens espirituais (e mesmo materiais) do que foram
os dízimos e ofertas da antiga Aliança de Deus com os homens. Com a
substituição da Antiga pela Nova Aliança, os propósitos de Deus, cumpridos
em Jesus Cristo e pela obra do Espírito Santo, chegaram a seu clímax, à
plenitude das intenções salvadoras de Deus para com seu povo agora
chamado — com o Israel de Deus — de todas as nações da terra.
4) Enfim, essa substituição, que não anula o conteúdo das disposições antigas
da aliança, mas a conduz para sua finalização, se manifesta, no entanto, com
uma mudança nas formas, nos ritos, nos sinais próprios da nova aliança: a
circuncisão é substituída pelo batismo; a páscoa judaica, pela santa ceia; o
sábado é substituído pelo domingo; Israel, única nação eleita, torna-se ela
mesma a Igreja, na qual todas as nações serão reunidas; os sacrifícios
repetidos no Templo tornam-se o sacrifício único do Cordeiro de Deus;
enfim, o próprio Templo torna-se o corpo de Jesus Cristo, que é sua natureza
humana completa e sua Igreja “corpo de Jesus Cristo”, constituído por essas
pedras vivas que são os filhos de Deus e que, chamados de todos os lugares e
em todos os tempos, edificam, pouco a pouco, no decorrer dos anos, a nova
Jerusalém que descerá perfeita do céu para reunir a Jesus Cristo os eleitos que
estiverem sobre a terra, quando soar a última trombeta no último dia.
O que são, então, esses três dízimos da Torá? Foram abolidos pelo Novo
Testamento ou foram cumpridos, transformados e chegaram à sua plenitude
perfeita, completa? É isso que vamos ver agora, em primeiro lugar no que se
refere à Igreja de Jerusalém, fundada no dia de Pentecoste. Depois, veremos
essa questão em relação à Igreja apostólica e, para terminar, em relação à
Igreja de nosso tempo.
Vamos desenvolver, aqui, dois pontos:
1) A grata generosidade dos primeiros cristãos, que se manifestava pelas
contribuições consagradas a Deus, à sua obra e aos pobres. A generosidade
manifestada pelos membros da Igreja de Jerusalém no Pentecoste, atingindo
um alegre clímax de liberalidade que jamais ocorreu na história posterior da
Igreja.
2) A Igreja de Jerusalém, composta inteiramente de judeus de nascimento ou
de judeus prosélitos, continuará por um tempo praticando as ordenanças da
Torá, da lei de Israel (entre elas os dízimos) — é o chamado período
intermediário, que vai durar até o ano 67, aproximadamente, após Jesus
Cristo.
Vejamos, em primeiro lugar, a extraordinária e alegre manifestação, plena de
amor e de generosidade material, de uns para com os outros e para com a
obra de Deus em seu início, dos judeus convertidos a Cristo em Pentecoste. O
livro dos Atos descreve essa eclosão de amor celeste que caracterizou toda a
Igreja cristã em seu início:
Então, os que lhe aceitaram a palavra [o sermão de Pedro] foram batizados,
havendo um acréscimo naquele dia [no dia de Pentecoste] de quase três mil
pessoas. E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do
pão e nas orações. Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e sinais eram
feitos por intermédio dos apóstolos.

Depois, Lucas acrescenta:


Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas
propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém
tinha necessidade. Diariamente perseveravam unânimes no templo [participavam
sempre das cerimônias do Templo e punham em prática as disposições da Torá],
partiam pão de casa em casa [onde também celebravam a liturgia cristã] e
tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus e
contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o
Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos. (Atos 2.41-47)
Era como se o céu tivesse descido sobre a terra. O Reino de Deus eclodiu
entre os homens. A vontade divina se cumpria sobre a terra como no céu.
Notemos que essa generosidade sem limite, completamente diferente do
comunismo ou do igualitarismo socialista, tinha um caráter voluntário e era a
expressão alegre de uma imensa gratidão a Deus pela salvação.
Notemos, também, como essa generosidade satisfazia as exigências da Torá
quanto aos três dízimos, pois foram colocados em prática num só movimento.
Eles cumpriam o que Jesus definiu como o propósito dos dízimos: [...] o
direito [ou a justiça], a misericórdia e a fidelidade (Mateus 23.24).
Em primeiro lugar o direito, isto é, dar a cada um o que é devido, provia as
necessidades dos apóstolos (primeiro dízimo).
Em segundo lugar, a misericórdia tinha seu cumprimento, isto é, os ricos
compartilhavam seus bens com os pobres (terceiro dízimo).
Por fim, a fidelidade (o segundo dízimo) que permitia celebrar corretamente o
culto no lugar desejado por Deus. Eles prestavam-lhe culto a cada dia no
Templo (não mais somente três vezes por ano!), para ali louvar e adorar a
Deus, como exigiam as prescrições cerimoniais da Torá.
Uma segunda passagem, que encontramos em Atos capítulo quatro, nos
mostra bem a grandeza dessa generosidade em ação:
Da multidão dos que creram era um o coração e a alma. Ninguém considerava
exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía; tudo, porém, lhes era
comum. Com grande poder, os apóstolos davam testemunho da ressurreição do
Senhor Jesus, e em todos eles havia abundante graça. Pois nenhum necessitado
havia entre eles, porquanto os que possuíam terras ou casas, vendendo-as,
traziam os valores correspondentes e depositavam aos pés dos apóstolos; então,
se distribuía a qualquer um à medida que alguém tinha necessidade.

Depois, o relato de Lucas nos mostra dois casos concretos: o de um homem


íntegro e justo, Barnabé, que:
[...] tendo vendido um campo que possuía, trouxe o preço e o depositou aos pés
dos apóstolos. (Atos 4.32-37)

E o de Ananias e Safira que, em sua hipocrisia, procuravam parecer mais


generosos do que realmente eram. Ananias:
Entretanto, certo homem, chamado Ananias, com sua mulher Safira, vendeu uma
propriedade, mas, em acordo com sua mulher, reteve parte do preço e, levando o
restante, depositou-o aos pés dos apóstolos. Então, disse Pedro: Ananias, por que
encheu Satanás teu coração, para que mentisses ao Espírito Santo, reservando
parte do valor do campo? Conservando-o, porventura, não seria teu? E, vendido,
não estaria em teu poder? Como, pois, assentaste no coração este desígnio? Não
mentiste aos homens, mas a Deus. Ouvindo estas palavras, Ananias caiu e
expirou, sobrevindo grande temor a todos os ouvintes. (Atos 5.1-5)

A Igreja crescia dia a dia. As necessidades dos fiéis aumentavam e os


apóstolos eram obrigados a se ocupar mais e mais com tarefas diaconais,
deixando de se ocupar com sua tarefa principal de pregar a Palavra de Deus.
Em Atos 6, vemos como as tarefas, até então indistintas, relativas ao primeiro
dízimo (o direito — sustento dos levitas-apóstolos) e ao terceiro dízimo (a
misericórdia) começaram a se diferenciar.
Ora, naqueles dias, multiplicando-se o número dos discípulos, houve
murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas deles estavam
sendo esquecidas na distribuição diária. Então, os doze convocaram a
comunidade dos discípulos e disseram: Não é razoável que nós abandonemos a
palavra de Deus para servir às mesas. Mas, irmãos, escolhei dentre vós sete
homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, aos quais
encarregaremos deste serviço; e, quanto a nós, nos consagraremos à oração e ao
ministério da palavra. (Atos 6.1-4)

Foi assim que os dízimos começaram a se diferenciar, em particular o


primeiro dízimo (o dos levitas-apóstolos) do terceiro (o da misericórdia em
relação aos pobres). Mesmo que aqui não seja feita explicitamente nenhuma
menção aos dízimos, vemos que a estrutura das ofertas retomava
naturalmente a forma que tinha sob a lei. Assim constatamos que na primeira
Igreja havia uma verdadeira continuidade nas práticas da Antiga Aliança
quanto à expressão de reconhecimento material dos fiéis para com Deus, por
todos os seus benefícios. Essa continuidade vai de Abraão a Moisés, depois
de Moisés a Jesus Cristo e, enfim, de Cristo a seus apóstolos. Mas
constatamos, igualmente, um desenvolvimento que passa do único dízimo de
todo o despojo oferecido por Abraão a Melquisedeque, aos três dízimos da
Torá.
Tratava-se do dízimo dos levitas, que cobria não somente o serviço do
tabernáculo e do templo (o dízimo dos dízimos levítico), mas que tinha
também o propósito de financiar os atos jurídicos, administrativos e
educativos que faziam parte das atividades da tribo de Levi; em seguida, o
dízimo das festas, consagrado ao correto culto divino; e, finalmente, o dízimo
dos pobres, dízimo da misericórdia. Com a vinda da nova aliança, esses três
dízimos adquirem uma amplitude desconhecida em Israel, em razão de uma
poderosa expressão de gratidão do povo de Jesus Cristo por sua salvação, lhe
respondendo com uma generosidade sem limites. É o que claramente vemos
nos ensinos do próprio Senhor Jesus Cristo:
Bem-aventurados os pobres de espírito [em Lucas, lemos: Bem-aventurados os
pobres], porque deles é o reino dos céus. (Mateus 5.3 e Lucas 6.20)

Jesus mesmo explica o sentido dessa bem-aventurança:


Não podeis servir a Deus e às riquezas. Por isso, vos digo: não andeis ansiosos
pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo,
quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo,
mais do que as vestes? [...] Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que
comeremos? Que beberemos? Ou: Com que nos vestiremos? Porque os gentios é
que procuram todas estas coisas; pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de
todas elas; buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas
estas coisas vos serão acrescentadas. Portanto, não vos inquieteis com o dia de
amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal.
(Mateus 6.24-34)
E ao jovem rico que perguntou a Jesus o que precisava fazer para herdar a
vida eterna, Cristo respondeu:
E Jesus, fitando-o, o amou e disse: Só uma coisa te falta: Vai, vende tudo o que
tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu; então, vem e segue-me. Ele,
porém, contrariado com esta palavra, retirou-se triste, porque era dono de muitas
propriedades. Então, Jesus, olhando ao redor, disse aos seus discípulos: Quão
dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas! (Marcos 10.21-23)

Mas para Zaqueu foi diferente. Estando em cima de uma árvore para ver
Jesus passar, o Senhor o viu e ocorreu o que segue:
Quando Jesus chegou àquele lugar, olhando para cima, disse-lhe: Zaqueu, desce
depressa, pois me convém ficar hoje em tua casa. Ele desceu a toda a pressa e o
recebeu com alegria. Todos os que viram isto murmuravam, dizendo que ele se
hospedara com homem pecador. Entrementes, Zaqueu se levantou e disse ao
Senhor: Senhor, resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e, se nalguma
coisa tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais. Então, Jesus lhe
disse: Hoje, houve salvação nesta casa, pois que também este é filho de Abraão.
Porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido. (Lucas 19.5-10)

Conclusão
Paulo, no capítulo 12 da epístola aos Romanos, recapitula a exigência
evangélica feita ao cristão para que se ofereça inteiramente a Deus, nestes
termos:
Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso
corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional.
E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da
vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade
de Deus. (Romanos 12.1-2)
Capítulo XVIII: Os três dízimos na Igreja
apostólica: As necessidades da igreja local e da Igreja
Universal

INTRODUÇÃO
É impressionante notar que se nos Evangelhos Cristo fala duas vezes sobre o
dízimo (Mateus 23.23, registrado também por Lucas 11.42 e 18.12), o mesmo
não ocorre nas epístolas, nos Atos dos Apóstolos ou no Apocalipse, com
exceção apenas de uma passagem (Hebreus 7.2-9) que estudamos em nossa
primeira exposição e que tratou do dízimo ofertado por Abraão a
Melquisedeque. Fora isso, não temos mais nada. Mas isso significa que o
Novo Testamento não tem nada a nos dizer sobre os dízimos, como os vemos
nos livros da antiga disposição da Aliança?
Por exemplo, o texto de Malaquias, relacionado ao nosso assunto, não teria
mais nada a ensinar ao cristão da Nova Aliança? Vejamos, no entanto, a
exortação do último profeta do Antigo Testamento:
Porque eu, o Senhor, não mudo; por isso, vós, ó filhos de Jacó, não sois
consumidos. Desde os dias de vossos pais, vos desviastes dos meus estatutos e
não os guardastes; tornai-vos para mim, e eu me tornarei para vós outros, diz o
Senhor dos Exércitos; mas vós dizeis: Em que havemos de tornar? Roubará o
homem a Deus? Todavia, vós me roubais e dizeis: Em que te roubamos? Nos
dízimos e nas ofertas. Com maldição sois amaldiçoados, porque a mim me
roubais, vós, a nação toda.

Na sua bondade fiel, o Deus da Aliança exorta, incansavelmente, seu povo


rebelde a voltar para ele:
Trazei todos os dízimos à casa do Tesouro, para que haja mantimento na minha
casa.
Trata-se aqui de três dízimos: o do direito, o da fidelidade e o da
misericórdia. As promessas e as ameaças da Aliança de Deus teriam sido
abolidas por aqueles que hoje não veem continuidade aliancial através de
toda a Bíblia?
E provai-me nisto, diz o SENHOR dos Exércitos, se eu não vos abrir as janelas do
céu e não derramar sobre vós bênção sem medida. (Malaquias 3:7-10)

Tal texto não teria mais nada a dizer ao povo de Deus, à Igreja de Jesus
Cristo, simplesmente porque o Novo Testamento não fala explicitamente, isto
é, expressamente, nominalmente, sobre os nossos três dízimos, do direito, da
fidelidade e da misericórdia? (Mateus 23.23). As promessas e as ameaças da
Aliança de Deus teriam sido abolidas? Paulo, então, teria perdido tempo e
escrito em vão essa exortação à Timóteo sobre o valor eterno e atual de toda a
Escritura (Tota Scriptura)?:
Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para
a correção, para a educação na justiça. (2 Timóteo 3.16)

Que Deus nos livre!


Aqui é preciso, de novo, refutar os erros, muito comuns na leitura da BíbliA,
[248]
de cristãos que há muito tempo deveriam saber que: 1. Toda a Bíblia —
isto é, toda em suas partes, Tota Scriptura — É igualmente inspirada por
Deus. Toda a Bíblia é útil para a instrução dos cristãos e da Igreja, a fim de
que a obedeçam inteiramente; 2. De maneira alguma é necessário que um
ensino do Antigo Testamento seja explicitamente (ou mesmo implicitamente)
repetido no Novo Testamento para ser aplicável ao cristão e à Igreja da Nova
Aliança; 3. Se um texto da Bíblia não foi modificado, adaptado, abolido pelo
próprio Deus, num lugar ou noutro das Escrituras canônicas, é temerário,
para o homem, ali tocar! Falando do livro da profecia (isto é, da Bíblia
inteira, Palavra do próprio Deus), João, no seu Apocalipse, escreveu:
Eu, a todo aquele que ouve as palavras da profecia deste livro, testifico: Se
alguém lhes fizer qualquer acréscimo, Deus lhe acrescentará os flagelos escritos
neste livro.
E acrescentou:
E, se alguém tirar qualquer coisa das palavras do livro desta profecia, Deus tirará
a sua parte da árvore da vida, da cidade santa e das coisas que se acham escritas
neste livro. (Apocalipse 22.18-19)

Lembremos que a palavra heresia significa escolha e, consequentemente, o


herege é aquele que escolhe o que lhe agrada na Bíblia, descartando o que
não lhe agrada. Queremos ser, verdadeiramente, hereges, ou seja, queremos
fazer parte daqueles que escolhem nas Escrituras, para sua eterna perdição, o
que lhes agrada?
4. Vimos, enfim, que mesmo havendo uma progressão aliancial na revelação,
isso não significa um desenvolvimento redutivo, mas cumulativo, crescente
em força, em luz e sabedoria.
A Revelação sempre nos traz algo a mais e melhor à medida que se
desenvolve progressivamente através da Escritura. Ela não recua e não dá
meia volta! Jamais ela vai do mais para o menos! A Cruz é maior que o
sacrifício de animais, a Igreja é maior que o Templo, a ceia é maior que a
Páscoa judaica, o batismo é maior que a circuncisão, o primeiro dia da
semana é mais que o sábado, Jesus Cristo é bem maior que Abraão e Moisés.
É isso que constatamos no ensino bíblico sobre os dízimos, desde Abraão até
Moisés, de Moisés aos Evangelhos e, enfim, dos Evangelhos à Igreja de
Jerusalém. Houve algum recuo quando passamos da Igreja de Jerusalém para
a Igreja apostólica? Deus não permita!
Vejamos, agora, o ensino sobre os três dízimos que está nas epístolas
apostólicas. Ali também vemos não um recuo ou empobrecimento, mas um
desenvolvimento de maior amplitude e com uma precisão ainda maior.
Vamos seguir aqui o ensino de um autor recente, Dennis Wretlind que, apesar
de uma certa orientação teológica dispensacionalista, mesmo assim percebeu
perfeitamente o fiel ensino apostólico[249] sobre os três dízimos da Torá. Esse
autor dividiu sua análise sobre os dons e sobre a generosidade cristã, contidos
nas epístolas apostólicas, em três categorias que coincidem exatamente com
os três dízimos!
1) Os cristãos doam para aliviar as necessidades sociais da comunidade dos
crentes, isto é, praticam o dízimo de misericórdia (Mateus 23.23).
2) Os cristãos doam para manter o culto comunitário, que equivale à prática
do dízimo de justiça, do direito levítico (Mateus 23.23), ou seja, para
sustentar os apóstolos, pastores e doutores, os presbíteros ou bispos. Trata-se
do dízimo dos levitas.
3) Os cristãos doam para exprimir sua consagração pessoal a Deus. Equivale
à prática do dízimo de fidelidade, o dízimo das festas (Mateus 23.23).
Examinemos os pontos seguintes na ordem colocada por Wretlind: A. A
responsabilidade dos cristãos em relação às necessidades da Igreja local; B. A
responsabilidade dos cristãos pelo desenvolvimento da obra missionária.

A. A RESPONSABILIDADE DOS CRISTÃOS EM RELAÇÃO ÀS NECESSIDADES DA IGREJA


LOCAL

1) O dízimo de misericórdia
O amor seja sem hipocrisia. [...] compartilhai as necessidades dos santos; praticai
a hospitalidade. (Romanos 12.9 e 13)
Os cristãos devem carregar os fardos uns dos outros, ou seja, entre outras
coisas, devem estar atentos às necessidades práticas de seus irmãos na
comunidade local. Assim John Murray (um comentarista calvinista escocês)
comentou esse texto (verso 13):
O sentido disso é que devemos nos identificar com as necessidades dos santos e
fazer de sua privação como se fosse nossa.[250]

Ou seja, devemos amar nosso próximo como a nós mesmos, sofrer com os
que sofrem. Por sua vez, R. C. H. Lenski (um comentarista luterano
confessional americano de origem alemã) escreveu:
Manifestar sua comunhão com os santos em suas necessidades não é outra coisa
senão compartilhar suas necessidades e contribuir para que sua situação melhore.
[251]

Na sua primeira carta a Timóteo, Paulo faz a seguinte exortação aos ricos,
pela qual os estimula a manifestar caridade para com os pobres:
Exorta aos ricos do presente século que não sejam orgulhosos [crendo ser
superior aos outros], nem depositem a sua esperança na instabilidade da riqueza
[seu capital, seus seguros, sua conta bancária, seus imóveis e propriedades], mas
em Deus, que tudo nos proporciona ricamente para nosso aprazimento; que
pratiquem o (1) bem, sejam (2) ricos de boas obras, (3) generosos em dar e
prontos a (4) repartir; que (5) acumulem para si mesmos tesouros, sólido
fundamento para o futuro [sem risco de crise bancária nem inflação], a fim de se
apoderarem da verdadeira vida [não a nossa pretensa qualidade de vida pouco fiel
à Bíblia, frágil e medíocre]. (1Tm 6.17-19)

Paulo exorta os ricos (e quem hoje no Ocidente não é rico, em comparação


com a miséria de grande parte do planeta?): (1) para que não sejam
orgulhosos; (2) para que não ponham sua esperança na instabilidade das
riquezas, por exemplo, nas especulações do mercado de risco, como a Bolsa
de Valores; (3) mas que, nas próprias coisas materiais, esperem em Deus; (4)
porque Deus é generoso e nos dá todas as coisas com abundância para o
nosso prazer; (5) para que essa generosidade de Deus seja, então, nosso
modelo; (6) e ela nos leve à prática das boas obras; (7) à liberalidade e à
generosidade; (8) a acumular tesouros nos céus, onde está nossa vida
verdadeira, da qual, desde já, devemos nos apropriar pela prática da
generosidade e bondade.
Essa bela exortação ecoa as palavras de Jesus Cristo, dirigidas a todos nós
que participamos desse pequeno rebanho de Deus:
Não temais, ó pequenino rebanho; porque vosso Pai se agradou em dar-vos o seu
reino. Vendei os vossos bens e dai esmola; fazei para vós outros bolsas que não
desgastem, tesouro inextinguível nos céus, onde não chega o ladrão, nem a traça
consome, porque, onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração.
(Lucas 12.32-34)

Vemos aqui, de um lado, o caráter efêmero das riquezas deste mundo —


inflação, crises econômicas e financeiras, produção de trilhões em dinheiro
imaginário, virtual, manipulação de mercados, todo o tipo de especulação,
fraudes de toda espécie, roubos legais, loterias e cassinos, usura e
empréstimos a juros, roubos e corrupção, etc., e, de outro lado, a relação,
como de causa e efeito, entre nossa generosidade aqui na terra e a
recompensa para nós preparada nos céus. Ao contrário do que pensa a nossa
civilização, o terceiro céu, no qual Deus reina em sua glória — o númeno de
Emmanuel Kant ou de Karl Barth, por exemplo — não está longe da terra
para aqueles que temem a Deus.
Muitos outros textos poderiam ser citados, os quais encorajam os crentes a
exercer uma misericórdia prática, em primeiro lugar para com seus irmãos em
necessidade, como também para com seu próximo carente qualquer que seja.
A própria existência do Exército de Salvação e do Estado Providência são
indicações da falência nas Igrejas — hoje como antigamente — desse amor
generoso e lúcido aos pobres, que foi uma das marcas mais fortes da Igreja
apostólica.
2) O dízimo aplicado na manutenção do culto comunitário
Trata-se aqui, lembremos, do dízimo de direito (ou de justiça) — que
consistia em dar aos levitas o que lhes era de direito. O texto chave se
encontra no sexto capítulo de Gálatas:
Mas aquele que está sendo instruído na palavra [lit. o catecúmeno] faça
participante de todas as coisas boas aquele que o instrui.

Depois dessa ordem formal vêm as advertências:


Não vos enganeis: de Deus não se zomba; pois aquilo que o homem semear, isso
também ceifará. Porque o que semeia para a sua própria carne [isto é, para sua
satisfação pessoal egoísta ou familiar] da carne colherá corrupção [isto é,
destruição, a morte]; mas o que semeia para o Espírito [trata-se aqui dos três
dízimos — misericórdia, justiça e fidelidade] do Espírito colherá vida eterna.

Vemos Paulo, aqui, juntando-se a Tiago: sem as obras da fé, que de maneira
visível fazem tocar nossa fé invisível e oculta, não há nenhuma esperança de
salvação. A segurança da salvação, sem a manifestação das obras decorrentes
da salvação, não passa de ilusão enganosa!
E não nos cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não
desfalecermos. Por isso, enquanto tivermos oportunidade, façamos o bem a
todos, mas principalmente aos da família da fé. (Gálatas 6.6-10)

A estrutura do texto é fácil de discernir. Em primeiro lugar vem a exortação


dirigida aos cristãos da Galácia para que atendam às necessidades de seus
pastores, doutores e apóstolos. Depois, uma advertência é dada, a qual lembra
o texto de Malaquias que acabamos de ler. Enfim, o ensino é estendido à
provisão feita aos necessitados, primeiro aos cristãos e, em seguida, também
aos pagãos. Lightfoot, em seu comentário sobre a carta aos Gálatas, mostra
isso muito bem:
Falei da necessidade de carregar os fardos uns dos outros [Gálatas 5.13-14]. Mas
há uma aplicação especial dessa regra. Prover as necessidades práticas,
temporais, daqueles que os instruem em Cristo.[252]

Encontramos, novamente, essa mesma preocupação na Primeira Carta de


Paulo a Timóteo:
Devem ser considerados merecedores de dobrados honorários [nota da bíblia La
Colombe: uma “remuneração em dobro, honorários em dobro”] os presbíteros
que presidem bem, com especialidade os que se afadigam na palavra e no ensino.
Pois a Escritura declara: Não amordaces o boi, quando pisa o trigo
[Deuteronômio 25.4]. E ainda: O trabalhador é digno do seu salário [Lucas 10.7].
(1Tm 5.17-18)

Isso condena as Igrejas que não pagam corretamente (ou nem mesmo
pagam!) seus pastores.[253] A exigência aqui não é simplesmente de um
salário mínimo, mas de um tratamento honroso, que permita ao pastor
assumir todos os seus inúmeros e variados compromissos do ministério
pastoral, sem estar constantemente preocupado com suas finanças.
3) O dízimo manifesta a consagração do fiel a Deus
Em Hebreus 13, lemos ainda esta importante exortação para que a igreja local
caminhe bem, fruto de uma consagração real dos fiéis:
Por meio de Jesus, pois, ofereçamos a Deus, sempre, sacrifício de louvor, que é o
fruto de lábios que confessam o seu nome.
Em seguida o autor (sem dúvida o apóstolo Paulo) faz uma aplicação prática
dessa gratidão que o cristão deve ter a Deus:
Não negligencieis, igualmente, a prática do bem e a mútua cooperação; pois, com
tais sacrifícios, Deus se compraz.

E o apóstolo passa diretamente aos deveres morais dos fiéis para com os
pastores:
Obedecei aos vossos guias e sede submissos para com eles; pois velam por vossa
alma, como quem deve prestar contas, para que façam isto com alegria e não
gemendo; porque isto não aproveita a vós outros. (Hebreus 13.15-17)

B. A RESPONSABILIDADE DAS IGREJAS LOCAIS PARA COM AS NECESSIDADES DA

IGREJA UNIVERSAL
Passemos, agora, da responsabilidade dos cristãos para com a igreja local,
para os seus deveres em relação à obra missionária da Igreja como um todo.
Vemos, particularmente, esse senso de responsabilidade das igrejas locais em
relação à Igreja universal, na prática da Igreja de Antioquia.
1) O dízimo de misericórdia entre as igrejas
Durante todo um ano, Barnabé e Paulo exerceram um ministério
particularmente frutífero em Antioquia. A generosidade missionária desses
cristãos testemunha isso abundantemente. Leiamos o relato que Lucas nos dá:
Naqueles dias, desceram alguns profetas de Jerusalém para Antioquia, e,
apresentando-se um deles, chamado Ágabo, dava a entender, pelo Espírito, que
estava para vir grande fome por todo o mundo, a qual sobreveio nos dias de
Cláudio. Os discípulos, cada um conforme as suas posses, resolveram enviar
socorro aos irmãos que moravam na Judeia; o que eles, com efeito, fizeram,
enviando-o aos presbíteros por intermédio de Barnabé e de Saulo. (Atos 11.27-
30)

Esse texto narrativo, extraído do livro de Atos, nos mostra algumas coisas
sobre a vida prática da Igreja apostólica.
(a) Eles estavam atentos às necessidades concretas das igrejas irmãs.
(b) Os discípulos, isto é, os membros da igreja, decidiram fazer alguma coisa
em resposta àquelas necessidades.
(c) O amor os motivava. O amor, nós sabemos, é a obediência aos
mandamentos de Deus. Trata-se aqui mais precisamente do dízimo de
misericórdia. Mas não simplesmente de um dízimo separado todos os anos,
como ordenava a Torá, em um fundo comum destinado aos pobres, mas de
um movimento de amor que ia além do simples dízimo trienal. Cada um dava
conforme suas posses, diz o texto. O que comanda aqui é o amor ao próximo.
Mas, notemos, não ao preço do empobrecimento de si mesmo, do prejuízo de
sua própria vida material. Menos, ainda, do endividamento por ter socorrido
as necessidades dos outros! Trata-se de amar seu próximo como a si mesmo e
não mais do que a si mesmo. O amor sacrificial vai muito além desse
exemplo.
(d) Não se trata, unicamente, de simples intenções. Os cristãos de Antioquia
põem imediatamente em prática sua generosidade.
(e) Essa obra de caridade intereclesial era o resultado das inciativas pessoais
dos discípulos, dos membros da Igreja de Antioquia, mas, no entanto, tem um
caráter oficial. Dois doutores, Barnabé e Paulo, são encarregados de levar
esses donativos aos presbíteros da Igreja de Jerusalém. Portanto, não se trata
de uma caridade de pessoa a pessoa simplesmente, mas tem um caráter
eclesial, institucional.
Vemos um segundo exemplo dessa caridade entre igrejas no capítulo 15 da
epístola aos Romanos. Paulo escreve de maneira urgente aos cristãos de
Roma sobre as necessidades dos cristãos da Judeia e os exorta, como segue:
Mas, agora, estou de partida para Jerusalém, a serviço dos santos. Porque
aprouve à Macedônia e à Acaia levantar uma coleta em benefício dos pobres
dentre os santos que vivem em Jerusalém.

Veja como os novos convertidos da Macedônia e da Acaia foram tocados


pela pobreza de seus irmãos de Jerusalém, os quais tinham doado tudo para
que, após Pentecoste, a obra de Deus na Judeia tivesse um início poderoso.
Mas agora estão na miséria. Paulo, então, faz uma justificação teológica sobre
essa caridade cristã para com a Igreja de Jerusalém, a mãe de todas as igrejas:
Isto lhes pareceu bem, e mesmo lhes são devedores; porque, se os gentios têm
sido participantes dos valores espirituais dos judeus, devem também servi-los
com bens materiais. Tendo, pois, concluído isto e havendo-lhes consignado este
fruto, passando por vós, irei à Espanha. (Romanos 15.25-28)

R. C. H. Lenski comenta o caráter dessa caridade que ligava entre si os


cristãos das diversas igrejas:
A Igreja mãe e todas as igrejas filhas nos longínquos países pagãos — em sua
maior parte vindas do paganismo – eram intimamente unidas por uma estreita
comunhão. Por esse ato de caridade fraternal, sua unidade seria fortalecida. O
fato que aqui esses cristãos tenham sido voluntários nessa ação faz todo sentido.
O aspecto mais honroso desses donativos era a manifestação e o exercício de uma
verdadeira comunhão espiritual.[254]

Enquadrando-se nos dízimos abraâmicos e mosaicos, essa generosidade dos


cristãos na Nova Aliança não podia ser menor que a dos crentes da Antiga
Aliança. Eles não somente tinham sido beneficiados, em Jesus Cristo, por
uma generosidade divina ainda maior que a dos seus predecessores, mas
também pelo dom do Espírito Santo em Pentecoste. A generosidade de sua
resposta, às necessidades das outras igrejas, devia ser tão expressiva quanto à
obra de salvação realizada a seu favor pelo imenso trabalho missionário
dessas igrejas.
Na primeira carta de Paulo aos Coríntios (1 Coríntios 16.1-4), ele novamente
lembra essa oferta em favor dos cristãos de Jerusalém. Entretanto, foi na sua
segunda carta, nos capítulos 8 e 9, que ele fez menção a isso de maneira mais
ampla. Depois de dar várias instruções sobre essa coleta — detalhes que no
momento não temos tempo de examinar — Paulo outra vez justifica a
generosidade cristã daqueles que se consagram a honrar os três dízimos da
Nova Aliança, ou seja, o dízimo para as obras de misericórdia, o dízimo
consagrado ao sustento ministerial e o dízimo cristão de consagração pessoal.
De fato, escreveu Paulo aos coríntios, aquele que semeia pouco, pouco
colherá e o que semeia com abundância, colherá com abundância.
Esse é o princípio: muito semear (certamente não menos que o dízimo!)
resulta em colheita abundante! Mas Paulo deixa a decisão, sobre o que o
discípulo de Jesus deve doar, à liberdade do amor cristão, porque aqui não se
tratava apenas do dízimo como obrigação, mas também dessa generosidade
associada ao que se deve doar além do dízimo, realidade que já existia no
Antigo Testamento:
Cada um contribua segundo tiver proposto no coração, não com tristeza ou por
necessidade; porque Deus ama a quem dá com alegria.

Podemos, agora, nos perguntar por que os cristãos deviam separar seus bens
com alegria? Porque consideramos o valor imenso da bondade de Deus para
conosco, reconciliando-nos consigo mesmo por seu amor incompreensível e
salvando-nos do castigo eterno que merecíamos, por causa dos nossos
pecados.
Paulo, então, evoca a generosidade do Deus da aliança para com aqueles que,
de bom coração, doam à obra de Deus e ao próximo em sua aflição.
Precisamos lembrar, constantemente, que não fomos colocados por Deus num
universo fechado, no qual as leis mecânicas, pretensamente “científicas” de
uma economia impulsionada por um rigor implacável, reinariam como mestre
absoluto. Mas muito ao contrário, nos encontramos num universo plenamente
aberto à transcendência divina, no qual Deus, em sua fidelidade à aliança,
intervém constantemente, de maneira imanente, para que os ímpios lhe
prestem conta, mas, sobretudo, para agir, em sua misericórdia infinita, em
favor dos seus, como vemos:
Deus pode fazer-vos abundar em toda graça [também bênçãos materiais!], a fim
de que, tendo sempre, em tudo, ampla suficiência, superabundeis em toda boa
obra, como está escrito: Distribuiu [suas doações], deu aos pobres, a sua justiça
permanece para sempre. Ora, aquele que dá semente ao que semeia e pão para
alimento também suprirá e aumentará a vossa sementeira e multiplicará os frutos
da vossa justiça.

Paulo concluiu essa passagem surpreendente mostrando o fruto espiritual de


tal generosidade material:
[...] enriquecendo-vos, em tudo [pelo exercício alegre de sua grata liberalidade],
para toda generosidade, a qual faz que, por nosso intermédio, sejam tributadas
graças a Deus. Porque o serviço desta assistência não só supre a necessidade dos
santos, mas também redunda em muitas graças a Deus.

E mais, essa generosidade fará com que Deus seja ainda mais glorificado em
sua Igreja por todos os seus santos. Paulo concluiu com um magnífico cântico
de ação de graças:
Visto como, na prova desta ministração, glorificam a Deus pela obediência da
vossa confissão quanto ao evangelho de Cristo e pela liberalidade com que
contribuís para eles e para todos, enquanto oram eles a vosso favor, com grande
afeto, em virtude da superabundante graça de Deus que há em vós. Graças a Deus
pelo seu dom inefável! (2 Coríntios 9.8-15)

Concluímos esta seção sobre a caridade entre as igrejas com um belo


comentário do teólogo calvinista anglicano, Philip Edgcumbe Hughes:
Por suas ações, os coríntios manifestaram a verdadeira unidade e a verdadeira
catolicidade da Igreja. É verdade, eles exercem seu serviço de misericórdia para
com os crentes de Jerusalém, mas ao fazer isso, servem aos crentes em todos os
lugares. Não há cisma, ruptura no corpo de Cristo, a Igreja. Aquele que serve um
membro, com isso serve todo o corpo (veja 1 Coríntios 12.25 ss.). As relações
entre uma igreja local e outra igreja são sempre relações dentro da Igreja
universal. Essa bela noção é, aqui, parte integrante do pensamento do Apóstolo.
Isso explica a grande importância que ele dá a essa coleta, como que
manifestando um verdadeiro espírito ecumênico, espírito cristão que não conhece
mais nenhum muro de separação, seja de raça, de língua, de cor ou de cultura
entre aqueles que, pela fé em Jesus Cristo, foram feitos membros da casa de Deus
e coerdeiros da glória celeste (veja Efésios 2.11 ss.).[255]

2) O dízimo em favor do desenvolvimento missionário do culto cristão


Não era apenas a ação de misericórdia entre as igrejas que preocupava os
apóstolos, em seu ensino sobre a aplicação dos três dízimos da Torá na vida
das igrejas da Nova Aliança. Havia o dever de atender às necessidades
materiais dos trabalhadores da seara, em razão da expansão missionária da
obra de Deus. De fato, foi por essa participação dos Filipenses na expansão
do cristianismo que Paulo deu graças a Deus:
Dou graças ao meu Deus por tudo que recordo de vós, fazendo sempre, com
alegria, súplicas por todos vós, em todas as minhas orações, pela vossa
cooperação no evangelho, desde o primeiro dia até agora. (Filipenses 1.3-5)

Mais adiante e na mesma epístola Paulo explica melhor essa cooperação no


evangelho. Tratava-se, em primeiro lugar, do sustento material em favor do
apóstolo, por seu trabalho:
Alegrei-me, sobremaneira, no Senhor porque, agora, uma vez mais, renovastes a
meu favor o vosso cuidado; o qual também já tínheis antes, mas vos faltava
oportunidade. (Filipenses 4.10)

Paulo referia-se a um interesse já antigo dos filipenses por sua obra


missionária, como em seguida podemos ver nesse capítulo. Numa
manifestação de gratidão, ele traz à lembrança dos filipenses:
E sabeis também vós, ó filipenses, que, no início do evangelho, quando parti da
Macedônia, nenhuma igreja se associou comigo no tocante a dar e receber, senão
unicamente vós outros; porque até para Tessalônica mandastes não somente uma
vez, mas duas, o bastante para as minhas necessidades. (Filipenses 4.15-16)

Em Filipenses, capítulo 1, a expressão vossa cooperação no evangelho se


refere explicitamente à participação financeira que os filipenses tinham na
pregação de Paulo através de seu sustento material e espiritual. O
comentarista inglês J. B. Lightfoot exprime isso muito bem:
Aqui, como o texto mostra, essa expressão [vossa cooperação no evangelho] se
refere à cooperação dos Filipenses no sentido mais amplo, ou seja, na sua
participação na obra do apóstolo, fosse pela simpatia ou pelo sofrimento ou pela
atividade prática. Ao mesmo tempo, os donativos em dinheiro, que constituíam
um aspecto notável dessa cooperação, parecem estar muito presentes na mente do
apóstolo.[256]

Os filipenses tinham compreendido bem a importância da igreja local no


sustento daqueles que tinham a tarefa de fazer avançar a proclamação do
Evangelho pela obra missionária pioneira. Como disse Wretlind:
Filipenses, capítulo 4, nos mostra que a Igreja universal, composta de inúmeras
igrejas locais, recebeu de Deus a responsabilidade e o mandato de prover as
necessidades financeiras daqueles que trabalhavam para fazer avançar a
proclamação do Evangelho.[257]

3) O dízimo como manifestação da consagração do fiel a Deus na


evangelização
Falando do recolhimento de ofertas para a evangelização, Paulo escreveu aos
coríntios:
Como, porém, em tudo, manifestais superabundância, tanto na fé e na palavra
como no saber, e em todo cuidado, e em nosso amor para convosco, assim
também abundeis nesta graça [a coleta].

Paulo acrescenta que isso era um sinal de consagração da igreja à obra de


Deus. De fato, tratava-se do culto racional do cristão, que não é outro senão
oferecer-se a si mesmo (com seus bens) para o avanço da obra de Deus. E
para mostrar o caráter de amor voluntário dessa obra de gratidão a Deus,
Paulo acrescenta:
Não vos falo na forma de mandamento, mas para provar, pela diligência de
outros, a sinceridade do vosso amor.

E coloca a razão que fundamenta o amor dos que estão engajados na obra de
Deus, no próprio amor de Jesus Cristo por nós.
Pois conheceis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez
pobre por amor de vós, para que, pela sua pobreza, vos tornásseis ricos. (2
Coríntios 8.7-9)
Manifestai, pois, perante as igrejas, a prova do vosso amor e da nossa exultação a
vosso respeito na presença destes homens. (2 Coríntios 8.24)

Os cristãos de Corinto, por sua generosidade em exercer a misericórdia para


com os pobres de Jerusalém, longe de ser empobrecidos por isso, haveriam
de ter abundância. Buscando em primeiro lugar o reino de Deus, receberiam
tudo que precisavam. E Paulo, evocando o profundo sentido espiritual do
sustento material que recebeu para fazer progredir a proclamação vitoriosa do
Evangelho, escreveu a seus colaboradores filipenses na obra de Deus:
[...] porque até para Tessalônica mandastes não somente uma vez, mas duas, o
bastante para as minhas necessidades.

E afirma:
Não que eu procure o donativo, mas o que realmente me interessa é o fruto que
aumente o vosso crédito. Recebi tudo e tenho abundância; estou suprido, desde
que Epafrodito me passou às mãos o que me veio de vossa parte como aroma
suave, como sacrifício aceitável e aprazível a Deus. E o meu Deus, segundo a sua
riqueza em glória, há de suprir, em Cristo Jesus, cada uma de vossas
necessidades. Ora, a nosso Deus e Pai seja a glória pelos séculos dos séculos.
Amém! (Filipenses 4.16-20)
Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? Ou:
Com que nos vestiremos? Porque os gentios é que procuram todas estas coisas;
pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas elas; buscai, pois, em
primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão
acrescentadas. Portanto, não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã
trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal. (Mateus 6.31-34)
Capítulo XIX: Os dízimos na Igreja pós-apostólica:
Algumas considerações práticas

INTRODUÇÃO
No último capítulo tratamos do seguinte tema: Os três dízimos na Igreja
apostólica. Primeiramente nos referimos aos três dízimos na vida interna das
igrejas; depois, consideramos um segundo aspecto: a responsabilidade das
igrejas locais pelas necessidades da Igreja universal. Então, tratamos destes
três pontos:
1) Do dízimo de misericórdia entre as igrejas, quando examinamos bem a
questão da célebre coleta organizada pelo apóstolo Paulo em favor das igrejas
da Judeia, particularmente a de Jerusalém, que passavam grande necessidade.
2) Do dízimo em favor do desenvolvimento missionário do culto cristão.
3) Do dízimo como manifestação de consagração do fiel a Deus na
evangelização.
Agora, vamos considerar os dois pontos seguintes que permitirão concluir
esta série dedicada aos dízimos bíblicos:
A. O ensino da Igreja, dos primeiros séculos, sobre a prática dos dízimos e da
generosidade cristã.
B. Considerações práticas sobre a generosidade cristã, sobre os dízimos e
sobre a expressão concreta de nossa gratidão para com Deus por sua graça
inefável.

A. O ensino da Igreja dos primeiros séculos sobre a prática do dízimo e


da generosidade cristã[258]
(1) O ensino de Lukas Vischer
Queremos agora examinar a maneira pela qual esse ensino que, como
abundantemente constatamos, permeia toda a Bíblia e que foi recebido como
norma pela Igreja Cristã após o fechamento do Cânon das Escrituras
Apostólicas.
Lukas Vischer, teólogo liberal de Basileia, que por muito tempo trabalhou
para o Conselho Ecumênico das Igrejas, escreveu um pequeno livro intitulado
O dízimo na Igreja Primitiva, no qual defende uma posição teológica sobre
esse assunto, combatida em todas as nossas exposições. Ali ele ensina que a
graça do Novo Testamento teria abolido a Lei do Antigo e que o ensino da
Bíblia sobre os dízimos não teria mais lugar na prática da Igreja Cristã pós-
apostólica e, em particular, na vida das igrejas contemporâneas. Entretanto,
utilizaremos amplamente esse texto de Lukas Vischer, em razão da
documentação cuidadosa que traz, relacionada com a prática do dízimo (ou
dos dízimos) na vida da Igreja Cristã dos primeiros séculos. Esses fatos
históricos contradizem completamente a orientação errada do seu próprio
ensino. Assim, podemos imitar os israelitas do tempo de Moisés, que
partiram do Egito levando o despojo dos egípcios! Então, pilhemos os
tesouros patrísticos recolhidos com tanto cuidado por nosso teólogo neo-
ortodoxo.
A posição francamente “comunista” de Lukas Vischer serve de antídoto
teológico a seus erros. Por lealdade ao nosso autor, citemos, em primeiro
lugar, a posição aberrante defendida por Vischer. Vejamos o que escreveu
quanto à prática do dízimo no Novo Testamento:
No Novo Testamento, o pagamento do dízimo não tem nenhum verdadeiro
significado. Ele é mencionado de maneira ocasional, como fazendo parte da
piedade legalista judaica.
Vischer acrescenta:
Jesus acusou os fariseus de pagar o dízimo com uma exatidão cheia de escrúpulos
[de fato, Jesus os acusou por não compreenderem nada, nem o dízimo, nem a fé
bíblica em si mesma!] enquanto ignoravam os elementos importantes da lei. O
fariseu em pé, no Templo, afirmava em sua oração: Dou o dízimo de tudo que
ganho (Lucas 18.12). Além dessas duas passagens, há alguns comentários sobre
esse assunto a propósito de Gênesis 14.17-20, em Hebreus 7. Em nenhuma outra
parte o Novo Testamento trata de um dízimo anual; nem Cristo, nem seus
discípulos tinham o menor conhecimento de tal exigência.[259]

Vischer justifica sua cegueira, tanto no que diz respeito ao sentido dos textos
aos quais se refere, como em relação à oposição perversa que levanta entre o
Antigo e o Novo Testamento, a lei e a graça, nos seguintes termos:
Esse silêncio não é acidental, mas está na própria raiz da mensagem do
Evangelho. Tudo o que Cristo disse sobre possuir e dar se fundamenta em
pressupostos que tornam totalmente impossível para ele a adoção do
mandamento sobre o dízimo.

Então, Vischer revela o caráter ideológico, político e socialmente


“comunista” de seu próprio pensamento, como segue:
De fato, Cristo põe em dúvida a possibilidade, para o cristão, de guardar para si o
que possui materialmente, por menor que seja. Consequentemente, Cristo não
podia permitir que regras precisas fossem estabelecidas que determinassem o uso
que faríamos de nossos bens.[260]

E acrescenta, como justificação bíblica e teológica dessa estranha posição,


estas palavras surpreendentes:
Ele [Cristo] mostra que as riquezas [não a cobiça das riquezas] são, elas mesmas,
um perigo para a fé. Um homem pode tornar-se tão dependente de seus bens que
não conseguirá mais confiar em Deus com todo seu coração. Ele se sente, então,
seguro, e dessa maneira passa a crer que tem poder sobre os outros, e torna-se
egoísta e dominador. Ao mesmo tempo que as riquezas perturbam o amor que
devemos ter pelo próximo, elas separam os homens uns dos outros e são uma
barreira à comunhão plena. Na perspectiva de Jesus, os bens têm em si mesmos o
caráter próprio de um ídolo. Portanto, podem tornar-se objetos de fé para os
homens. Podem transformar a liberdade em inquietude e ser um obstáculo para o
amor. Portanto, isso tem a ver com nossa obediência ao primeiro mandamento
[Não terás outros deuses diante de mim, Êxodo 20.3 e Deuteronômio 5.7] que
nos liberta totalmente de todo espírito de escravidão em relação às nossas posses.
Em certas circunstâncias, Jesus pode até exigir que abandonemos totalmente o
que temos. Por essa razão, ele enviou seus discípulos sem nada. Eles deviam
pregar o Evangelho num espírito de total confiança em Deus, sem se apoiar em
nenhuma daquelas coisas que trazem segurança aos homens. Sua pobreza devia,
então, manifestar a todos que eles viviam inteiramente daquilo que Deus lhes
proporcionava.[261]

Haveria muito o que dizer sobre esse texto que mistura habilmente o que é
verdadeiro e o que é falso. Como é o caso de toda heresia, do conjunto do
testemunho bíblico, Vischer faz escolhas muito convenientes, extraindo
textos que convêm e excluindo tudo que seja contrário à sua tese sobre a fé
comunitária (comunista!) e super espiritual, que procura impor. A essência do
seu pensamento tem um caráter especificamente gnóstico. Ele procura
demonizar os bens materiais, as riquezas e, dessa maneira, deificar a pobreza,
[262]
como se os bens que Deus nos dá não fossem, na realidade, coisas boas,
de origem divina, dos quais não pudéssemos fazer uso legítimo, como ofertar
a Deus e à sua obra, por exemplo, conforme o ensino bíblico sobre os três
dízimos; ou, ao contrário, fazer mau uso deles, utilizando-os para a nossa
própria satisfação egoísta; ou ainda, dilapidando vergonhosamente os bens
que o Senhor nos confiou. Porque Deus nos dá esses bens para que, em
primeiro lugar, façamos uso deles de forma legítima; depois, para que os
utilizemos para o bem do nosso próximo; e, por fim, para o bem da Igreja e
do Reino de Deus. Cada um desses usos legítimos dos nossos bens terá, de
diversas maneiras e por fim último, a glória de Deus. Lukas Vischer, como
bom gnóstico que parece ser, nega ao mesmo tempo a bondade da criação (os
bens, as riquezas), sua boa origem criacional e a perfeita atualidade dos
ensinos do Antigo Testamento e, em particular, os da Lei de Deus, da Torá,
especificamente aqueles relacionados com os dízimos bíblicos.
Esse ponto de vista, tanto dualista como gnóstico — ensino que o autor
atribui, de maneira blasfema e totalmente imprópria, ao nosso Senhor Jesus
Cristo —, o conduz a conclusões concretas e práticas e ao mesmo tempo
utópicas e nefastas. Vejamos, de acordo com os escritos do próprio Lukas
Vischer, o ensino que foi, por vários anos, o mesmo ensino do Conselho
Ecumênico das Igrejas, organismo eclesiástico no qual ele teve uma atuação
importante: 1) Esse ponto de vista não deixa nenhum espaço para qualquer
dízimo cristão; 2) Mais ainda, exigir o dízimo aos cristãos é considerado
perigoso; 3) Isso nos leva a concluir que o problema com Mamon estaria
resolvido se o cristão não desse o dízimo; 4) Jesus teria aprofundado de tal
maneira o problema relacionado à posse de “bens” — note o termo bens! —
que não devemos considerar favoravelmente qualquer que seja o ensino do
Antigo Testamento sobre os dízimos; 5) Enfim, e para concluir, Vischer
afirma que [...] a vontade de Deus não pode ser cumprida pelo pagamento do
dízimo.[263]
Não há o que possa ser mais contrário à lei de Deus e ao espírito de toda a
revelação bíblica. Podemos concluir — com um Jacques Ellul por exemplo,
eminente e falso doutor protestante, se de fato for! — que a obediência à Lei
de Deus pelos cristãos os levaria a tomar sobre si a marca do Anticristo.[264]
Para nós é evidente que Jesus Cristo (e toda a Bíblia, que é sua Palavra
infalível) vê as coisas de forma totalmente diferente. Não são as riquezas que
seriam más em si mesmas, mas o amor às riquezas, a dependência das
riquezas, a idolatria dos bens deste mundo, em resumo, o fato de colocar a
criatura — aqui as riquezas — no lugar do Criador. Portanto, o problema não
está na matéria, nas riquezas, nos bens, mas no coração do homem, em sua
cobiça (a transgressão do Décimo Mandamento). No Evangelho segundo
Marcos lemos estas palavras que elucidam muito bem nosso assunto:
Então, lhes disse: Assim vós também não entendeis? Não compreendeis que tudo
o que de fora entra no homem não o pode contaminar, porque não lhe entra no
coração, mas no ventre, e sai para lugar escuso? E, assim, considerou ele puros
todos os alimentos. E dizia: O que sai do homem, isso é o que o contamina.
Porque de dentro, do coração dos homens, é que procedem os maus desígnios, a
prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios, a avareza, as malícias, o
dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Ora, todos estes males
vêm de dentro e contaminam o homem. (Marcos 7.18-23)
(2) Os dízimos na Igreja pós-apostólica
Não nos demoremos muito nas deficiências teológicas e bíblicas do livrinho
de Lukas Vischer, mas vejamos o que contém de mais positivo. Ele apresenta
inúmeras citações dos Pais dos primeiros séculos da Igreja, que atestam
claramente a prática dos diferentes dízimos pelos discípulos de Cristo,
introduzidos na vida cristã pela pregação dos apóstolos e seus sucessores.
Como foi o caso na Igreja de Jerusalém — e isso desde seus primeiros dias
— os cristãos consagraram seus bens para o serviço do Senhor e amor ao
próximo, o que para eles era como doar-se a si mesmos a Deus. Exatamente o
que Cristo havia pedido ao jovem rico (Marcos 10.21). Portanto, o sacrifício
exigido do jovem rico não era único nem exclusivo a esse texto. Mas o que
nos interessa aqui é o fato de que Lukas Vischer reconhece claramente a
adoção, pela primeira igreja, do ensino da Bíblia sobre os dízimos, quando
escreveu:
Por outro lado, é preciso notar que a igreja antiga tinha também adotado o
mandamento do dízimo. Várias normas da Igreja do Oriente mencionam a
obrigação de dar o dízimo, quantia constituída de uma taxa paga aos profetas, aos
padres e ao clero em geral [trata-se do dízimo do direito e da fidelidade], e outra
quantia que representava um capital destinado ao sustento dos pobres,
miseráveis, viúvas e órfãos [tratava-se do dízimo de misericórdia].[265]

Em seguida, Lukas Vischer mencionou várias citações dos Pais da Igreja que
refutam suas próprias teorias não bíblicas, sobre a prática dos dízimos no
Antigo Testamento pela primeira igreja. Sigamos passo a passo. Vejamos o
que escreveu Ireneu (130-200 d.C.):
Portanto, o gênero de obrigações não foi abolido: havia obrigações lá [entre os
judeus], havia aqui também [na igreja]. Somente a espécie foi alterada: não é
mais por escravos, mas por homens livres que é feita a oferta. Se, de fato, há
somente um único e mesmo Senhor, menos ainda a oferta teria um caráter
próprio dos escravos [judeus] e um caráter próprio dos homens livres [cristãos],
para que até nas ofertas se manifestasse a marca distintiva da liberdade, porque
nada é supérfluo ou carente de significado para com ele. Por isso, aqueles
queriam consagrar o dízimo [literalmente, “os dízimos”][266] dos seus bens,
enquanto estes, que compartilham da liberdade, põem tudo que têm para a obra
do Senhor, dando alegre e generosamente os menores bens, porque têm maior
esperança; a viúva pobre lançando aqui toda a sua subsistência no tesouro de
Deus.[267]

Assim, Ireneu não via nenhuma ruptura entre as exigências da Torá e as do


Evangelho, mas (como vimos muitas vezes) o Evangelho não é outro senão o
fruto alegre, último e completo de toda a antiga Aliança da graça.
Vejamos, agora, Cipriano (200-258 d.C.):
Então [na Igreja de Jerusalém], vendiam suas casas e suas propriedades,
acumulavam um tesouro no céu, ofertavam aos apóstolos o produto da venda
para ser distribuído aos pobres. Mas hoje, não damos nem mesmo um décimo do
nosso patrimônio e ainda que o Senhor nos ordene vender, mais compramos e
aumentamos nossos bens.[268]
Vejamos, agora, João Crisóstomo:
Ah, que infelicidade! Infeliz aquele que não exerce a prática de dar esmola! A
esmola era um dever na antiga lei. Tornou-se ainda maior sob a nova lei. De fato,
se no tempo em que se permitiam as posses temporais era natural e desejável que
se tomasse todo o cuidado para que a esmola e o socorro dos pobres fosse um
preceito rigoroso, esse dever deve ser julgado como uma obrigação ainda mais
estreita, no tempo em que ser pobre é uma das virtudes fundamentais. É
necessário que eu detalhe a amplitude das coisas rigorosamente impostas aos
judeus? Eles davam a décima parte de seus bens e depois disso um segundo
dízimo para as obras de misericórdia, como socorro aos órfãos, às viúvas e aos
prosélitos. Não faz muito tempo me falaram da generosidade de alguém que,
prodigiosamente, havia dado a décima parte de seus bens. Na verdade, é uma
vergonha que o fato de alguém ofertar mais que o décimo, algo que não era nem
notado entre os judeus, seja considerado extraordinário entre os cristãos! Havia
muito temor, entre os judeus, de omitir o pagamento do dízimo! Que não
tenhamos nada a temer sob o Evangelho! Acrescentaria que a desordem da
bebedeira o exclui do céu para sempre.[269]
Agostinho de Hipona (354-430 d.C.) escreveu:
Cristo disse: se sua justiça não exceder a justiça dos escribas e fariseus vocês não
entrarão no reino dos céus (Mateus 5.20). [...] Eu dou o dízimo de toda a minha
renda (Lucas 18.12). Entretanto, quando vocês me dão somente um por cento,
vocês se vangloriam como se tivessem feito alguma coisa formidável.[270]

Agostinho se pergunta: Quanto é preciso dar aos pobres? Ele reconhece que
podemos guardar tudo que precisamos e até mesmo além do necessário para
prover nossas necessidades. Mas acrescenta:
Então, doemos uma porção precisa. Mas que porção? Um décimo. Os escribas e
os fariseus davam os dízimos. Irmãos, precisamos corar de vergonha, pois esses
homens pelos quais Cristo não tinha ainda derramado seu sangue, davam o
dízimo. Os escribas e fariseus davam seus dízimos. Portanto, vocês não deviam
imaginar que levar pão aos pobres seja uma obra extraordinária, pois isso
representa apenas um milésimo de seus bens. Não condeno isso, mas ao menos
façam o mesmo que eles.[271]

Jerônimo (342-420 d.C.), comentando Mateus 22.21, escreveu:


Deem a Cesar as coisas que pertencem a Cesar, isto é, os dízimos, as primícias,
as contribuições e os sacrifícios, como Cristo pagou o imposto por Ele mesmo e
por Pedro e deu a Deus o que lhe pertence, cumprindo a vontade do Pai.[272]

Vischer termina citando Crisóstomo, quando comentava Gênesis 14.20:


E Abrão lhe deu [a Melquisedeque] o dízimo de tudo. Então, Abrão se tornou o
mestre de todos; ele nos ensinou que devemos manifestar generosidade e trazer
os primeiros frutos do que Deus nos dá.[273]

B. Algumas considerações práticas sobre a generosidade cristã, sobre os


dízimos e sobre a expressão real de nossa gratidão para com Deus por
sua graça inefável
(1) As primícias pertencem a Deus
As primícias dos frutos da tua terra trarás à Casa do Senhor, teu Deus. (Êxodo
23.19)
Consagra-me todo primogênito; todo que abre a madre de sua mãe entre os filhos
de Israel, tanto de homens como de animais, é meu. (Êxodo 13.2)
Não tardarás em trazer ofertas do melhor das tuas ceifas e das tuas vinhas; o
primogênito de teus filhos me darás. Da mesma sorte, farás com os teus bois e
com as tuas ovelhas. (Êxodo 22.28-29)

As primícias das colheitas, os primogênitos dos animais e o filho primogênito


pertencem a Deus. Esse princípio da vida cultual de Israel também deve ser
aplicado aos dízimos cristãos. O que isso quer dizer? Que ao consagrarmos
nossos dízimos a Deus para a obra de seu Reino (que, como vimos, ultrapassa
em muito o simples serviço do culto cristão), para os que estão em penúria e
para o ministério da Igreja, esses donativos não devem estar em último lugar
na lista de nossas faturas a serem pagas, mas no primeiro! Quando pagamos
primeiro todas as outras contas, e só depois damos para Deus o que restou, a
parte de Deus sempre será a mais magra. A regra, então, é clara: primeiro
pagar o que devemos a Deus e ele proverá o resto. Deus deve ser o primeiro a
ser servido. “Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e
todas estas coisas vos serão acrescentadas!” (Mateus 6.33). Reparem bem o
sentido espiritual desse texto e o que dele decorre: “Quem é fiel no pouco
também é fiel no muito; e quem é injusto no pouco também é injusto no
muito” (Lucas 16.10).
Colocar Deus em primeiro lugar, de acordo com o mandamento “não terás
outros deuses diante de mim” (Êxodo 20.3), fará com que naturalmente
também coloquemos cada um dos outros aspectos da nossa vida em seu
devido lugar. No início, poderá parecer que, ao consagrarmos ao menos dez
por centos de nossas rendas a Deus, nunca cumpriremos esses dois objetivos.
Mas descobriremos o contrário. Muitas despesas supérfluas deixarão de
existir em nosso orçamento e, mais importante ainda, descobriremos que
nossa vida estará escancarada, dali para frente, para receber as bênçãos
divinas. Em primeiro lugar na área espiritual, mas veremos que a esfera
material de nossas vidas também não escapará das bênçãos imerecidas de
Deus para conosco.

(2) Contar com a bênção de Deus


Uma segunda coisa a observar é que, num cosmos plenamente aberto à ação e
à intervenção aliancial de Deus, podemos ali esperar o derramamento da
bênção divina — ainda que essa bênção seja às vezes acompanhada de
sofrimento e de provas. Essa bênção é consequência de nossa obediência fiel
às cláusulas da aliança, em particular no que diz respeito ao que devemos dar
a Deus. Isso é particularmente verdadeiro no que se refere a nossos dízimos e
ofertas. Vejamos o ensino de sabedoria que o livro de Provérbios nos dá:
Confia no SENHOR de todo o teu coração e não te estribes no teu próprio
entendimento. Reconhece-o em todos os teus caminhos, e ele endireitará as tuas
veredas. Não sejas sábio aos teus próprios olhos; teme ao SENHOR e aparta-te do
mal; será isto saúde para o teu corpo e refrigério, para os teus ossos. Honra ao
SENHOR com os teus bens e com as primícias de toda a tua renda; e se encherão
fartamente os teus celeiros, e transbordarão de vinho os teus lagares. (Provérbios
3.5-10)

A Torá não fala outra coisa. Referindo-se ao ano sabático, o sétimo ano e ano
do perdão das dívidas em Israel, Moisés escreveu em Deuteronômio:
Quando entre ti houver algum pobre de teus irmãos, em alguma das tuas cidades,
na tua terra que o Senhor, teu Deus, te dá, não endurecerás o teu coração, nem
fecharás as mãos a teu irmão pobre; antes, lhe abrirás de todo a mão e lhe
emprestarás o que lhe falta, quanto baste para a sua necessidade. Guarda-te não
haja pensamento vil no teu coração, nem digas: Está próximo o sétimo ano, o ano
da remissão, de sorte que os teus olhos sejam malignos para com teu irmão
pobre, e não lhe dês nada, e ele clame contra ti ao Senhor, e haja em ti pecado.
Livremente, lhe darás, e não seja maligno o teu coração, quando lho deres; pois,
por isso, te abençoará o Senhor, teu Deus, em toda a tua obra e em tudo o que
empreenderes. Pois nunca deixará de haver pobres na terra; por isso, eu te
ordeno: livremente, abrirás a mão para o teu irmão, para o necessitado, para o
pobre na tua terra. (Deuteronômio 15.7-11)
3) Dar com alegria
Acabamos de ler no livro da Antiga Aliança: “Livremente, lhe darás, e não
seja maligno o teu coração, quando lho deres!”. Além disso, toda a Bíblia nos
ensina que precisamos ser generosos, de coração e na prática, como Deus é
generoso; temos de dar com alegria. No Sermão da Montanha, Jesus Cristo
nos exorta assim:
Dá a quem te pede e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes.
(Mateus 5.42)

Que é um eco do salmo 37:


O ímpio pede emprestado e não paga;
o justo, porém, se compadece e dá.
Aqueles a quem o SENHOR abençoa possuirão a terra;
e serão exterminados aqueles a quem amaldiçoa.
O SENHOR firma os passos do homem bom
e no seu caminho se compraz. (Salmos 37.21-23)

E o salmista acrescenta:
Fui moço e já, agora, sou velho,
porém jamais vi o justo desamparado,
nem a sua descendência a mendigar o pão.
É sempre compassivo e empresta,
e a sua descendência será uma bênção. (Salmos 37.25-26)

Vejamos ainda, no livro da Nova Aliança, o apóstolo Paulo se dirigindo aos


presbíteros da Igreja de Éfeso:
Agora, pois, encomendo-vos ao Senhor e à palavra da sua graça, que tem poder
para vos edificar e dar herança entre todos os que são santificados. De ninguém
cobicei prata, nem ouro, nem vestes; vós mesmos sabeis que estas mãos serviram
para o que me era necessário a mim e aos que estavam comigo. Tenho-vos
mostrado em tudo que, trabalhando assim, é mister socorrer os necessitados e
recordar as palavras do próprio Senhor Jesus: Mais bem-aventurado é dar que
receber. (Atos 20.32-35)

E o mesmo Paulo escreveu aos Coríntios, que sob a influência de falsos


doutores contestavam violentamente seu ministério, estas palavras cheias de
encorajamento:
E isto afirmo: aquele que semeia pouco, pouco também ceifará; e o que semeia
com fartura com abundância também ceifará. Cada um contribua segundo tiver
proposto no coração, não com tristeza ou por necessidade; porque Deus ama a
quem dá com alegria. Deus pode fazer-vos abundar em toda graça, a fim de que,
tendo sempre, em tudo, ampla suficiência, superabundeis em toda boa obra, como
está escrito: Distribuiu, deu aos pobres, a sua justiça permanece para sempre.
Ora, aquele que dá semente ao que semeia e pão para alimento também suprirá e
aumentará a vossa sementeira e multiplicará os frutos da vossa justiça. (2
Coríntios 9.6-10)

(4) Uma generosidade proporcional à renda


Os cristãos da Macedônia haviam doado, na coleta para Jerusalém, além do
que era possível. Paulo exorta os cristãos de Corinto à generosidade, citando
o exemplo dos macedônios:
Também, irmãos, vos fazemos conhecer a graça de Deus concedida às igrejas da
Macedônia; porque, no meio de muita prova de tribulação, manifestaram
abundância de alegria, e a profunda pobreza deles superabundou em grande
riqueza da sua generosidade. Porque eles, testemunho eu, na medida de suas
posses e mesmo acima delas, se mostraram voluntários, pedindo-nos, com muitos
rogos, a graça de participarem da assistência aos santos. E não somente fizeram
como nós esperávamos, mas também deram-se a si mesmos primeiro ao Senhor,
depois a nós, pela vontade de Deus. (2 Coríntios 8.1-5)

Paulo coloca os cristãos da Macedônia como exemplo e modelo de zelo e


generosidade para os coríntios. Vejamos rapidamente os aspectos elogiáveis e
motivadores que o apóstolo destaca desses novos cristãos tão consagrados,
fiéis e generosos.
(1) Em primeiro lugar, Paulo indica que toda ação generosa desses cristãos é
uma manifestação da soberana graça de Deus neles. O Espírito Santo agiu
com grande poder nessas igrejas.
(2) Não se tratava de cristãos, poderíamos dizer, burgueses, que viviam com
todo conforto, que davam o que havia sobrado de supérfluo. Mas ao
contrário, eram crentes que haviam passado por grandes tribulações. Essa
palavra grega tripalium, que traduzimos por “tribulação”, refere-se à tortura
cruel da perseguição pelo uso de instrumentos que arrebentavam as juntas do
corpo, puxando-as em várias direções até rasgá-lo. Portanto, em sua profunda
pobreza, tinham manifestado uma alegria transbordante, que se derramava em
rica liberalidade.
(3) Davam segundo suas possibilidades; não constrangidos, mas
voluntariamente e com manifesta boa vontade. De forma alguma sua
generosidade era a expressão de uma obrigação “legalista” forçada. Mas
vinha de um coração alegre e grato a Deus, muito além do esperado. Esses
cristãos da Macedônia davam além de suas possibilidades, porque contavam
com o Deus que proveria todas as suas necessidades. Eles mesmos haviam
insistido com Paulo para que lhes fosse permitido participar do socorro aos
santos de Jerusalém.
(4) Enfim, e isto é essencial, o que levou a todo esse impulso de amor para
com irmãos desconhecidos foi o fato deles mesmos, pela vontade de Deus,
antes de tudo, darem-se ao Senhor. Depois, então, manifestaram seu amor
para com o apóstolo Paulo, que foi para eles o instrumento abençoado,
escolhido por Deus para sua salvação.
Paulo, em seguida, voltou-se para os coríntios que, após mostrarem grande
desejo e entusiasmo por essa obra de misericórdia, haviam relaxado seu zelo.
Vejam com que tato Paulo exorta cada um dos cristãos da igreja de Corinto.
[...] recomendar a Tito que, como começou, assim também complete esta graça
entre vós. (2 Coríntios 8.6)

Paulo prosseguiu com muito cuidado e delicadeza, mas, notemos também,


com uma extraordinária firmeza:
Como, porém, em tudo, manifestais superabundância, tanto na fé e na palavra
como no saber, e em todo cuidado, e em nosso amor para convosco, assim
também abundeis nesta graça. (2 Coríntios 8.7)

Em seguida Paulo se contém, a fim de não lhes dar a impressão de que está
abusando de sua autoridade apostólica para impor sua vontade. E continua:
Não vos falo na forma de mandamento, mas para provar, pela diligência de
outros, a sinceridade do vosso amor. (2 Coríntios 8.8)

Ele os encoraja a perseverar no bem; a levar a termo a coleta que haviam


começado com tanta disposição:
Completai, agora, a obra começada, para que, assim como revelastes prontidão
no querer, assim a leveis a termo, segundo as vossas posses. (2 Coríntios 8.11)

Em seguida ele os exorta a ter uma atitude pensada, a não agir por impulso,
como talvez tivessem agido em seu primeiro entusiasmo. Então, Paulo os
leva a fazer considerações com bom senso:
Porque, se há boa vontade, será aceita conforme o que o homem tem e não
segundo o que ele não tem. (2 Coríntios 8.12)

Ele termina manifestando aos cristãos de Corinto que não se trata aqui de
exercer uma generosidade impensada, mas de agir com sabedoria, não para
sua própria ruína, mas para que certa igualdade espiritual e material possa se
manifestar entre os cristãos com experiências diferentes:
Porque não é para que os outros tenham alívio, e vós, sobrecarga; mas para que
haja igualdade, suprindo a vossa abundância, no presente, a falta daqueles, de
modo que a abundância daqueles venha a suprir a vossa falta, e, assim, haja
igualdade, como está escrito: O que muito colheu não teve demais; e o que
pouco, não teve falta. (2 Coríntios 8.13-15)

(5) Dar com discernimento


Mas não basta dar: (a) as primícias de nossas rendas; (b) contar com as
bênçãos de Deus; (c) dar com alegria e; (d) dar de forma proporcional a
nossos recursos.
Em primeiro lugar, notemos que seria inútil dar, se não dermos com
discernimento. O que isso quer dizer? Não se deve dar sem avaliar para
quem, onde, ou para que obra. Se a pessoa a quem se dá, se a obra que
apoiamos não agrada a Deus, o que dermos se perderá totalmente, porque de
maneira nenhuma demos a Deus. Portanto, antes de doarmos o que quer que
seja, devemos nos assegurar de que a pessoa ou a obra que desejamos apoiar
glorifique, verdadeiramente, a Deus. Por falta de discernimento, por
entusiasmo impulsivo, com frequência e de maneira escandalosa
desperdiçamos dinheiro e bens que dispomos (que Deus nos confiou), doando
sem discernir. Então, devemos refletir bem e orar muito antes de doar. Temos
de nos informar, cuidadosamente, sobre as convicções e orientações
espirituais da obra que desejamos apoiar. Administrar os bens que Deus nos
deu é coisa muito séria, como nos ensina a parábola dos talentos e das minas.
Devemos fazer a nós mesmos a pergunta fundamental: Onde doar? A Bíblia,
por seu ensino sobre a importância dos três dízimos, nos explica de maneira
precisa. Atentando para o ensino de Moisés, de Jesus Cristo, da igreja de
Jerusalém, da igreja apostólica e da igreja dos primeiros séculos, devemos
consagrar essas doações às coisas mais importantes, indicadas pelo ensino da
lei bíblica sobre os dízimos: (1) a justiça, (2) a misericórdia, e (3) a
fidelidade, sem, é claro, esquecer o resto (Mateus 23.23).
(1) Assim, as ofertas do cristão devem estar relacionadas com as
necessidades dos levitas, isto é, com aqueles da igreja local e com a obra
missionária dessa igreja. Lembremos que a obra dos levitas, tanto em Israel
como hoje, é muito mais que a celebração do culto no Tabernáculo e em
Jerusalém. Todas as obras educativas, jurídicas, culturais dos cristãos estão
também cobertas, tanto na Nova como na Antiga Aliança, pelo dízimo
levítico. Somente o dízimo dos dízimos dos levitas era pago por eles para
sustentar as necessidades dos sacerdotes e do culto em Jerusalém ou no
tabernáculo. Esse primeiro dízimo não cobria somente, e a priori, as
necessidades da igreja local e de seus mestres, mas todas as obras falsamente
chamadas de “paracristãs” ou “para-eclesiásticas” e que glorificam também a
Deus ao proclamar, por seu engajamento prático, o testemunho de Jesus que é
o espírito da profecia (Apocalipse 19.10).
(2) Em seguida, há o dízimo de misericórdia que era separado a cada três
anos e que sustentava toda a obra de caridade cristã, isto é, o socorro às
viúvas abandonadas, aos órfãos, aos estrangeiros, aos infelizes, aos doentes e
às pessoas sem recursos.
(3) Enfim, o cristão deve pensar, em seu tempo de férias, nas festas judaicas
celebradas em Jerusalém. Mas hoje, esse tempo de repouso do cristão não
deve ser reservado apenas ao seu legítimo descanso e diversão, mas também
à renovação de sua fé, segundo o ensino dado na Palavra de Deus. Isso inclui
o sustento de acampamentos cristãos, de conferências cristãs, de obras
missionárias cristãs, de obras em favor da juventude e de outras faixas etárias
que podem acrescentar muito nas férias dos filhos de Deus. Tudo isso diz
respeito ao dízimo da fidelidade.

CONCLUSÃO: CONFIAR NUM DEUS GENEROSO, SÁBIO E TODO-PODEROSO


Como em todas as coisas, o centro de nossa obediência na questão do que
devemos a Deus e às suas obras aqui na terra — como também ao nosso
próximo vulnerável — repousa, antes de tudo, sobre nossa fé, sobre nossa
confiança em Deus. Porque Deus, na ação de sua providência, é grande em
sua generosidade para com toda a sua criação, e para com todas as suas
criaturas, especialmente para com seus filhos, membros do corpo que é a
Igreja, participantes da Nova Aliança que estabeleceu na cruz do Gólgota
com seu povo eleito e por sua ressurreição dentre os mortos.
Como deve ser, terminaremos esta série de exposições sobre o oitavo
mandamento Não roubarás, e mais particularmente sobre o ensino da
Escritura quanto aos dízimos bíblicos, pelas palavras do próprio Senhor e
Salvador Jesus Cristo. Porque ele é o fundador dessa Aliança e quem a
aperfeiçoa em nós pelo seu Espírito, até seu cumprimento perfeito no último
dia. Portanto, estas são as palavras do Deus feito homem, dirigidas a todos os
que se dizem dele e querem andar em sua comunhão:
Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar
ao outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e
às riquezas. Por isso, vos digo: não andeis ansiosos pela vossa vida, quanto ao
que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo, quanto ao que haveis de
vestir. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo, mais do que as vestes?
Observai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros;
contudo, vosso Pai celeste as sustenta. Porventura, não valeis vós muito mais do
que as aves? Qual de vós, por ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado ao
curso da sua vida? E por que andais ansiosos quanto ao vestuário? Considerai
como crescem os lírios do campo: eles não trabalham, nem fiam. Eu, contudo,
vos afirmo que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer
deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é
lançada no forno, quanto mais a vós outros, homens de pequena fé? Portanto, não
vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? Ou: Com que nos
vestiremos? Porque os gentios é que procuram todas estas coisas; pois vosso Pai
celeste sabe que necessitais de todas elas; buscai, pois, em primeiro lugar, o seu
reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. Portanto, não
vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta
ao dia o seu próprio mal. (Mateus 6.24-34)
Conclusão

Onde nos situamos?


Uma abordagem mais ampla [274]

Adam Smith (1723-1790), o pai da economia moderna sem Deus, era um


presbiteriano escocês, um expoente do Iluminismo do século XVIII, que era a
expressão de uma civilização que apostatou do cristianismo. Ele foi grande
amigo do filósofo David Hume (1711-1776)[275] que não temia declarar
publicamente seu ateísmo numa Escócia ainda profundamente calvinista. Por
sua teoria da “mão invisível”, Adam Smith colocou o bem e o mal econômico
em nível de igualdade (Gênesis 2.15-17). Ele afirmava que, nas transações
econômicas, o fato de uma ação ser boa (honesta) ou má (desonesta), não
produziria nenhum efeito negativo sobre o bem econômico que
proporcionaria à sociedade e aos atores econômicos. A destruição da
sociedade por tais atos econômicos nefastos não poderiam ter, segundo ele,
nenhuma consequência economicamente negativa. Assim, para Adam Smith
todos os atores econômicos se beneficiariam naturalmente dessa confusão
maléfica entre o bem e o mal, porque a riqueza das nações não mais
aumentaria em consequência das bênçãos da aliança divina, mas pela ação
livre desse pretenso “mecanismo científico”, chamado de “mercado”, que
neutralizaria as consequências nefastas das ações econômicas moralmente
más. Dessa forma, Adam Smith substituía a ação aliancial oculta da
providência moral de Deus, por um mecanismo “científico” automático, de
caráter inteiramente amoral. O mesmo aconteceu com as ciências biológicas.
A Palavra, que é nosso Senhor Jesus Cristo — com o Pai e o Espírito Santo
— Criador, Ordenador e Sustentador de todas as coisas na esfera das ciências
da vida, foi substituída por um processo semelhante à “mão invisível” de
Adam Smith, pretensamente científico, chamado “evolução”. Mas essa
suposta evolução, tanto quanto a “mão invisível” de Adam Smith, não possui
existência objetiva.
(1) Nenhuma água pura pode vir de uma fonte impura
Tanto Eugen Böhm von Bawerk (1851-1914) quanto Karl Marx (1818-1883)
foram discípulos de David Ricardo (1772-1823) que também seguiu os
passos de Adam Smith. Cada um desses economistas (como ocorreu na esfera
biológica com Charles Darwin [1809-1882]) afirmava que a economia devia
ser estudada segundo os métodos das ciências físicas, considerados como o
modelo redutor por excelência, apropriado a todas as disciplinas “científicas”.
Notemos que essas ciências foram constituídas a partir de Francis Bacon
(1561-1626), René Descartes (1596-1650) e Galileo Galilei (1564-1642),
tendo como base a exclusão de Deus, enquanto causa final do universo, e da
Palavra de Deus (a Bíblia), substituída pela linguagem das matemáticas como
sua causa formal.[276]
Essa opção metodológica produziu uma nova visão do cosmos, também
pretensamente “científica”, privada da presença de Deus e de qualquer outro
significado senão o da quantidade, daquilo que é mensurável. Charles Darwin
fez um passeio semelhante pela biologia. Adam Smith e seus sucessores
fizeram o mesmo na esfera econômica. Citemos o exemplo do célebre físico
francês, Pierre-Simon de Laplace (1749-1827) que, à pergunta feita por
Napoleão (1769-1821) “Que lugar Deus possui em seu sistema?”, respondeu:
“Senhor, não tenho necessidade dessa hipótese”. E por seu lado, Galileu foi
condenado pelo Cardeal Robert Bellarmin (1542-1621) e pelo Santo Ofício
não por suas hipóteses científicas tão audaciosas, mas por ter afirmado,
referindo-se às ciências físicas, que os matemáticos entendiam que elas eram
superiores à Bíblia.
As ciências econômicas, como estudo da ação humana na esfera da produção
e da troca de bens, necessariamente são colocadas entre as ciências morais,
portanto responsáveis diante de Deus e das leis criacionais imutáveis e éticas,
estabelecidas por ele. Esses apóstatas do cristianismo que acabamos de
destacar, ou seja, Galileu, Hume, Adam Smith, Ricardo, Darwin, Bawerk e
tutti quanti, excluíram Deus de sua visão de criação e lançaram sua lei para
fora do nosso universo, desta natureza criada, ordenada e sustentada por ele!
Essa mudança não foi outra coisa senão a multiplicação ao infinito do pecado
de Adão, do pecado original, isto é, o desejo de estabelecer por si mesmo a
diferença entre o bem e o mal; o desejo de fundamentar, por si mesmo, de
maneira autônoma em relação ao Criador e à ordem imutável de sua criação,
os primeiros princípios do universo.
Foi em relação a essa ordem da criação que Herman Dooyeweerd (1894-
1977), filósofo holandês de convicções reformadas e seu discípulo anglicano
E. L. Hebden Taylor (1925-2006) trabalharam pelo restabelecimento do
ensino cristão, segundo o qual existe, de fato, uma ordem criada para a
ciência econômica e essa ordem estável da natureza foi infalivelmente
confirmada pela Lei moral e jurídica de Deus.
(2) Considerações sobre a propriedade privada, a usura e o mercado
Ambos, Eugen Böhm von Bawerk (1851-1914) e Karl Marx (1818-1883)
foram discípulos de David Ricardo (1772-1823). Este último, por sua vez,
andou nos passos de Adam Smith. Esses economistas — com Charles Darwin
[1809-1882] na esfera da biologia — estavam convencidos de que o estudo
da economia devia ser conduzido segundo os métodos das ciências físicas e
matemáticas, único modelo apropriado a todas as disciplinas aceitas como
“científicas”. Essas ciências foram constituídas — isso a partir de Francis
Bacon (1561-1626), de René Descartes (1596-1650) e de Galileo Galilei
(1564-1642) — sobre a exclusão metodológica tanto da causa final, Deus,
como da Palavra escrita e infalível de Deus que é a causa formal — o sentido
— do estudo do universo. Foi esse método único que resultou na visão
“científica” de um cosmos hipotético, do qual Deus e todo o sentido expresso
pela linguagem das palavras havia desaparecido. Charles Darwin fez isso na
biologia e Adam Smith, com sua escola, fez o mesmo nas ciências
econômicas.
A ciência econômica, enquanto estudo da ação humana na produção e na
troca de bens, é, necessariamente, uma ciência moral que deve sua existência
a Deus e às suas leis éticas e criacionais. Foi em relação a essa ordem da
criação que Herman Dooyeweerd e E. L. Hebden Taylor felizmente nos
lembraram que existe uma ordem criada para a economia (como para todas as
ciências) e que essa ordem pode ser conhecida pela inteligência humana —
como pudemos constatar ao longo deste livro — e é constantemente
confirmada pela Lei de Deus.
(3) Considerações relacionadas com a propriedade privada, a usura e o
mercado
Tendo exposto a premissa criacional e moral da ciência econômica, é bom
prosseguirmos com nossa reflexão, examinando alguns exemplos de
fenômenos econômicos (positivos ou negativos) como a propriedade privada,
o empréstimo a juro e o mercado. Todos esses encontram-se no âmbito das
instituições criadas por Deus, como também a moeda estabelecida sobre a
base de um valor estável e real. De fato, a moeda como meio de troca é
também uma instituição da ordem criacional. Mas, como vimos claramente, o
uso da moeda requer meios e bases estáveis para funcionar, de forma que não
seja prejudicial à própria economia. Sem tal base e restrições (por exemplo, a
possibilidade de ser trocada por ouro ou ter como garantia a apreciação
correta da riqueza econômica nacional), a moeda produzirá desordens com
consequências desastrosas para a sociedade como um todo. De fato, a
ausência de limites ao crédito, sempre crescente, disponível aos agentes
econômicos, só fará com que aumente a riqueza dos mais ricos, através de
uma especulação delinquente, como de cassinos transformados em bancos
centrais. Isso levará, também, à destruição do nível de vida da população em
geral (os pobres muito particularmente, mas também a classe média),
produzindo inflação, que corre o risco de tornar-se, ao longo do tempo,
incontrolável, apesar das medidas profiláticas virtuais dos bancos centrais.
Consideremos a proibição bíblica de se cobrar juros sobre os variados tipos
de empréstimos. Até o Renascimento, toda a tradição cristã sobre a usura
imprimia sobre esse ponto (junto com uma parcela importante do pensamento
pagão antigo) o selo da ordem criacional, isto é, o dinheiro não criava
dinheiro. Essa interdição era um reflexo da lei moral, ou seja, a cobrança de
juros, sob qualquer aspecto, não passava de uma forma de delinquência e o
juro composto era considerado, em muitos casos, como uma forma de
homicídio.
A existência da propriedade privada — uma instituição tão antiga quanto a
família — e sua utilização devem ser regidas de acordo com o conteúdo da
ordem criacional, isto é, pelas normas da Lei de Deus. Para destacar apenas
um exemplo, a lei do jubileu tornava muito difícil a acumulação ilimitada de
terras. De fato, a legislação sabática sobre a posse de terras — sem a qual
teriam sido alienadas definitivamente — ordenava sua restituição às famílias
no ano do jubileu a cada cinquenta anos, pois essas terras eram consideradas
como heranças intocáveis.[277] Assim, a perda, por uma família, de sua
herança de terras, não podia ir além do limite temporal de cinquenta anos ou
duas gerações. O pecado (ou a infelicidade) dos pais, não podia cair
automaticamente sobre os filhos de maneira permanente! A lei era um
instrumento jurídico que permitia a restauração social.
Além disso, é preciso notar que depois da Lei de Moisés, a propriedade
privada individual não era absoluta em si mesma, porque trazia, para a
sociedade, algumas obrigações mais amplas como, por exemplo, o direito aos
pobres de colher as sobras após a colheita ou o filho mais velho ter sua parte
dobrada na herança, vantagem que era acompanhada de obrigações
específicas. Entre elas estava a responsabilidade que o primogênito devia
assumir de cuidar dos pais em sua velhice, como também de outros membros
vulneráveis do grupo familiar.
Nesse sentido, a propriedade familiar (e não simplesmente “individual”) não
tinha apenas um caráter “privado”, mas trazia consigo certa responsabilidade
em relação ao bem comum, ou seja, para com o conjunto da comunidade.
O mercado era, também, uma instituição de ordem criacional, porque era ele
que tornava possível a distribuição das riquezas, tanto pela troca de
mercadorias e bens como através de pagamento. Porém, nessa perspectiva
bíblica, o mercado não pode ficar isento de toda e qualquer forma de
regulamentação normativa. Mas deve ser governado pelas leis formuladas
explicitamente na Torá, que foram fixadas com precisão, pela Bíblia, em todo
o seu ensino. Assim, o mercado também deve ser governado por regras que
impeçam a penetração de produtos lesivos, como, por exemplo, os narcóticos
e medicamentos defeituosos e prejudiciais; ou ainda, a utilização do mercado
por redes criminosas de pornografia e pedofilia, deveria ser fortemente
fiscalizada e reprimida. Os produtos no mercado devem ter também uma
regulamentação apropriada quanto à qualidade, sobretudo na área da
alimentação e de medicamentos.
A liberdade para enriquecer-se através de uma especulação estéril, porque
não produz nenhum bem — mentalidade de cassino universalmente aceita —
devia ser proibida por lei. A qualidade da fonte monetária (e a quantidade das
emissões!) também deveria ser controlada, a fim de manter estável a moeda
em circulação. Na Bíblia, a falsificação de balanças e pesos é considerada
como um grave crime, porque implica não somente o roubo sofrido pelo
vendedor ou comprador extorquido, mas tem também por efeito falsificar a
qualidade da moeda colocada em circulação, cujo valor, originalmente, era
determinado pelo peso. A utilização de uma moeda assim falsificada tinha
consequências desastrosas para a economia como um todo.
A livre impressão de papel moeda pelos bancos centrais nacionais deve
também ser vista como uma atividade criminosa maior, condenação que
incide também sobre a multiplicação dos bens das instituições bancárias pela
prática do sistema de reserva fracionária. Por trás de todas essas restrições se
encontra a noção de um crescimento legítimo limitado, marcado pela própria
natureza do mundo biológico. A ideia de um progresso constante e ilimitado
da produção econômica em todas as esferas é contrária ao próprio bem e é a
fonte de todos os tipos de instabilidade. O crescimento do bem estar material,
como finalidade absoluta da atividade humana, é uma miragem
autodestruidora.

(4) A verdadeira liberdade em oposição à falsa


A afirmação bíblica de que “a verdade vos libertará” exclui a afirmação
corrente segundo a qual é “o exercício da liberdade intelectual que vos
conduzirá à verdade”. De forma totalmente contrária, o culto à liberdade (o
“liberalismo” sob todas suas formas), leva os homens, a longo prazo, a
tornarem-se escravos de suas “livres paixões” e das mentiras inevitavelmente
criadas pelo desejo de justificá-las racionalmente.
Sobre todas essas questões, recomendamos vivamente o estudo notável de E.
L. Hebden Taylor sobre a economia do ponto de vista bíblico: A economia, o
dinheiro e os bancos.[278] Devemos acrescentar aqui uma referência ao
trabalho de Francis Nigel Lee (1934-2011), cuja obra maior, A escatologia
comunista,[279] examina com atenção, à luz da Lei-Palavra de Deus, a tradição
revolucionária moderna. Enfim, a economia não deve ser entendida de
maneira isolada das mais variadas necessidades da sociedade. Ela não pode
ser encarada adequadamente a partir de um ponto de vista econômico único e
estrito como o da eficácia e do rendimento máximo.[280]
Wilhelm Röpke (1899-1966),[281] o célebre economista alemão, que passou
parte importante de sua vida adulta na Suíça, refere-se a esse tema utilizando-
se de uma conversa muito instrutiva que teve, no começo da Segunda Guerra
mundial, com seu colega, Ludwig von Mises (1881-1973), na época o chefe
da famosa “escola austríaca” de pensamento econômico. Ambos, então,
ensinavam no Institut Universitaire de Hautes Études Internationales de
Genève [Instituto Universitário de Estudos Internacionais Avançados de
Genebra].
Numa tarde, esses dois eminentes economistas caminhavam na periferia de
Genebra e se encontraram próximos a um conjunto de hortas familiares. Von
Mises, imediatamente, levantou a questão do valor econômico de uma
atividade tão pouco rentável, demonstrando, através de estatísticas que tinha
em mãos, a produtividade bem maior de uma cultura de legumes em grande
escala.
Röpke protestou energicamente: Em seus cálculos você considerou apenas
(disse a seu colega) os custos diretos de produção, assim como aqueles
referentes à venda e à distribuição desses produtos do campo. Você ignorou,
completamente, tanto os benefícios como os custos ocultos. Você não
compreende como a vida levada nas fábricas, pela maior parte dos operários,
nas quais praticam uma forma mecanicamente repetitiva de trabalho
industrial, os debilita e também os destrói? Não percebe que isso não passa
de uma forma moderna de escravidão? Essas hortas familiares não produzem
apenas uma alimentação sadia para esses trabalhadores e suas famílias, mas
funcionam também como um efeito estabilizador para esses trabalhadores da
indústria, tanto no plano físico como no psíquico. E isso, compensando a
tristeza de sua vida profissional, produz consequências benéficas e positivas
sobre sua saúde, prevenindo com isso a depressão, doenças e o absenteísmo.
Trabalhadores com boas condições de saúde física e moral reduzem
consideravelmente os gastos ocultos de nossas sociedades complexas. Tudo
isso leva a uma importante diminuição dos gastos públicos invisíveis nos seus
cálculos. Esses custos e benefícios substanciais são completamente
esquecidos em cálculos puramente econômicos.
Röpke duvidava ter convencido nosso grande economista, patrono
incontestável da Escola Austríaca, não somente sobre o caráter humanamente
benéfico dessas hortas familiares, mas também no que se referia às reduções
de custos sociais importantes que implicavam o conjunto da sociedade.

(5) A necessidade de uma aplicação bíblica bem informada


Talvez seja interessante que o leitor saiba que esta série de estudos sobre o
oitavo mandamento faz parte de cento e vinte pregações, aproximadamente,
que tratam do Decálogo como um todo. Os Dez Mandamentos são
examinados sistematicamente:
(1) através da explicação de seu contexto legal, tal como se encontra nas leis
casuísticas que a eles se referem no conjunto da Torá;
(2) através da prudência de sua aplicação a casos particulares, como nos
ensina a literatura sapiencial bíblica;
(3) por sua aplicação prática, como nos indica o ensino dos profetas, como
também a sabedoria divina de nosso Senhor Jesus Cristo;
(4) e enfim, através do ensino moral dos Apóstolos.
Todos esses dados bíblicos foram aplicados com cuidado a inúmeras
realidades morais e jurídicas, próprias da nossa vida atual, tanto no plano
individual como social.
O princípio fundamental por trás dessa vasta pesquisa é a aliança de Deus
com Adão antes da queda. Essa é a base do desenvolvimento da aliança
através da Bíblia, a aliança antiga que culminou
(a) no sangue derramado por nosso Salvador na cruz;
(b) na vinda de seu reino com sua ressurreição, sua ascensão, sua
entronização à mão direita do Pai;
(c) e no envio, por Jesus Cristo, do Espírito Santo à Igreja no dia de
Pentecoste, um ato soberano do Pai e do Filho de Deus, que marcou a vinda
do Reino de Deus sobre a terra.
Esse é o tema central de minha obra, A aliança de Deus através da santa
Escritura: Uma teologia bíblica.[282]
Assim, na obra central da reconstrução cristã — tal como indicava claramente
John Knox (1514-1572) no século XVI — no que se refere a toda bendita
influência que a Igreja exerce sobre a sociedade, o lugar de destaque deve ser
dado a Jesus Cristo. Esse ponto crucial foi reconhecido e muito bem
destacado na obra de Pierre Courthial (1914-2009), como também por Rousas
John Rushdoony (1916-2001). A imputação ao cristão da justiça da Lei de
Deus, perfeitamente realizada por nós pela obediência, tanto ativa (seu
cumprimento) como passiva (sua expiação) de Jesus Cristo, nos abre o
caminho para nossa própria obediência, em Cristo e por Cristo e pela ação do
Espírito Santo em nós, a todos os mandamentos de Deus, tais como devem
ser compreendidos à luz da Escritura como um todo (Tota Scriptura).
Portanto, não é correto falar de uma “visão cristã do mundo” ou até mesmo
de uma “visão do mundo”, porque este mundo está sob a autoridade do
Maligno e como tal não pode submeter-se a Deus. No entanto, existe uma
grande possibilidade de bênção para este mundo caído, através da obediência
aliancial fiel de cada Igreja local à toda Lei de Deus. Esse também foi o
ensino do grande teólogo calvinista holandês, Klaas Schilder (1890-1952).
Por outro lado, em certa medida, Rushdoony acabou perdendo a esperança
numa Igreja que se tornou infiel e, a seus olhos, quase irreformável, e passou
a enfatizar a restauração da família cristã, algo certamente de importância
vital, como também a essa outra realidade essencial que é a educação e a
instrução cristã das crianças, em conformidade com a lei divina e com a
ordem da criação, tanto nos lares cristãos — educação em casa — como nas
escolas confessionais fiéis. Mas devemos, sobretudo, nos lembrar do papel
central que, em seu ensino, a Bíblia dá à Igreja na instauração do Reino de
Deus. Para atingir esse objetivo, a Igreja tem de retornar à catolicidade
verdadeira (a palavra grega katholikos significa “segundo o todo”).[283] Aqui,
catolicidade diz respeito à Escritura, à Lei e ao Evangelho, juntos e unidos,
mas sem confusão. O papel central da igreja local é muito claro no livro do
Apocalipse, em particular no que concerne a seu papel central nas cartas às
sete Igrejas. Os capítulos dois e três têm importância fundamental em todo
esse livro. A vitória na batalha contra este mundo mau, que oprime toda a
criação, se fundamenta na fidelidade de cada igreja local à regra católica da
fé. Assim, em seu testemunho, a Igreja será vitoriosa em sua aplicação de
todo o conselho de Deus — Lei e Evangelho — às realidades deste mundo.
Esse fiel testemunho terá como resultado final manifestar a vinda do Reino de
Deus neste mundo, através dos sofrimentos da perseguição. A vinda de Jesus
Cristo no último dia libertará todos os aspectos da presente criação de sua
servidão à vaidade e à corrupção do pecado, para inaugurar então os novos
céus e a nova terra, onde a justiça habitará para sempre.
(6) O princípio do Tota Scriptura
A Igreja tem de retornar ao princípio esquecido do Tota Scriptura. Isso é o
que nos ensina Apocalipse 19.10, quando nos fala do “testemunho de Jesus
Cristo que é o Espírito da profecia”. Esse “Espírito da profecia” é a aplicação
profética da Lei de Deus aos pecados da Igreja (Apocalipse 2 e 3) e do
mundo — os capítulos 10 e 11 de Apocalipse nos descrevem,
simbolicamente, esse combate. Isso se vê, de maneira particularmente clara
nesses capítulos, no ministério das duas testemunhas que representam a Igreja
através de toda a história, como “a coluna e baluarte da Verdade”.
É o que procuram explicar meus sermões dedicados ao estudo bíblico dos
mandamentos de Deus. Um dos objetivos desses trabalhos, desenvolvidos ao
longo de doze anos, foi demonstrar que Lei e o Evangelho, ainda que
realidades bem distintas, não são opostos entre si na Escritura. Devemos
discernir (a partir do testemunho detalhado da Bíblia) o que na Lei — contida
no Novo e no Antigo Testamentos — permanece aplicável diretamente à era
da Igreja (a era da vinda do Reino de Deus). Por outro lado, temos de
descartar dessa aplicação direta aquilo que corresponde exclusivamente ao
Israel étnico-histórico, em particular os elementos da lei cerimonial que,
sendo figuras da obra redentora de Jesus Cristo, são aplicados apenas
indiretamente (tipologicamente) à Igreja. Devemos fazer o mesmo quanto à
chamada lei “civil” que dizia respeito apenas à Israel histórica, antes do
cumprimento da salvação por Jesus Cristo, como por exemplo, a proibição de
se casar fora dos limites étnicos da nação santa.
Para citar um exemplo extraído da lei civil, consideremos a proibição do
casamento fora das fronteiras religiosas e geográficas da nação de Israel. O
objetivo dessa lei era preservar a identidade aliancial da nação judaica até o
cumprimento da Antiga Aliança pela vinda do Messias e seu sacrifício sobre
a cruz e, depois disso — com o início da pregação da Lei e do Evangelho
pelo resto fiel de Israel, a primeira Igreja — a todas as nações da terra. Nesse
caso, a transposição para a Igreja dessa ordenança da Lei civil de Israel —
que proibia todo casamento fora das fronteiras religiosas da nação — levou à
proibição aos cristãos, pela Nova Aliança, do casamento fora da fé.
Na tarefa de discernir na Lei civil o que é aplicável às nações levadas a Jesus
Cristo do que antigamente era aplicado à Israel histórica — enquanto
esperava a vinda do Messias — o Tratado da Lei da Suma teológica de
Tomás de Aquino (1225-1274) constitui uma contribuição surpreendente.
Isso é particularmente o caso no que diz respeito ao tratamento — de um
entendimento bíblico surpreendente e quase sempre negligenciado — que deu
em seu Tratado da lei antiga, totalmente dedicado à lei civil da Torá.[284]
O que devemos fazer é mostrar como a Lei, em sua aplicação, progride
paralelamente ao desenvolvimento da própria Aliança. Essa progressão da
Aliança resultou na manifestação do Messias de Israel e, no presente, na
soberania crescente de Cristo sobre as nações no curso da História. Pouco a
pouco essa dominação se realizou, ao longo das eras, através do ministério
espiritual e da prática de sua Igreja na pregação do Evangelho-Lei de Deus —
tanto a Lei como o Evangelho — a todas as nações. De fato, cada uma em
seu tempo, todas as nações da terra devem assumir, em sua própria vida
cultural e histórico-religiosa, os efeitos do anúncio da Lei e do Evangelho.
Foi essa dupla mensagem que a Igreja proclamou às nações ao longo dos
séculos. Assim, todas as nações serão levadas — como foi Israel no passado
— cativas à obediência de Jesus Cristo, que se manifestará então como seu
Rei celeste e terrestre. Mas, infelizmente, devemos reconhecer que essas
nações, tendo uma vez conhecido seu Senhor — como primeiro fez Israel —
o negarão, o rejeitarão e apostatarão da fé cristã. No retorno de Jesus Cristo, o
que restou da Igreja viva — o que o Apocalipse chama de “acampamento dos
santos” ou a “cidade bem-amada de Deus”, dispersa como está sobre toda a
terra — será confrontado pelo apogeu do mal, os exércitos de Gogue e
Magogue, da Grande Babilônia (Apocalipse, capítulos 18 e 20). São esses
que o Senhor destruirá para sempre pela glória — terrível para os ímpios e
gloriosa para os fiéis — do seu aparecimento.

(7) Como a verdade ultrapassa a barreira das línguas


Uma jovem cristã americana chamada Rebekah A. Sheats, descobriu Pierre
Viret (1509-1571) através do entusiasmo de Tom Ertl por esse Reformador.
Tom Ertl era diretor do Zurich Publishing, em Tallahassee, na Flórida. Essa
paixão foi suscitada pela visita de Tom Ertl à La Proue, livraria que dirigi por
muito tempo em Lausanne. Rebekah, então, tomou a decisão de aprender
francês e tornou-se rapidamente uma das melhores especialistas, de língua
inglesa, desse maravilhoso Reformador do cantão de Vaud. Ela chegou a
escrever uma bela biografia de Pierre Viret (atualmente traduzida para o
francês[285]) e traduziu várias de suas obras, inclusive seu comentário
detalhado sobre os Dez Mandamentos, um dos melhores entre as obras com
herança cristã. Esse último acaba de ser publicado, juntamente com pregações
de João Calvino sobre o mesmo tema, nas Edições Psalm 78 Ministries,
numa série de pequenos fascículos.
Aqui também devemos destacar Friedrich Julius Stahl (1802-1861) e seu
ensino notável sobre a Lei, tanto do ponto de vista bíblico e histórico como
jurídico, cujas obras foram editadas pelas Edições WordBridge. Essas obras
vão fazer com que se descubra o trabalho realizado por Ruben Alvarado, em
sua tradução do alemão para o inglês, de alguns escritos jurídicos de Stahl.
Enfim, Lancelot Andrewes (1555-1626), que podemos chamar de pai da
Versão Autorizada de 1611 da Bíblia inglesa “King James”, escreveu,
quando jovem (1593), um comentário também notável sobre o Decálogo. Há
alguns anos atrás, pude obter a edição original (1642) dessa obra. É uma
bênção que esse livro esteja atualmente disponível numa edição não muito
cara.[286]
(8) O Islão, a apostasia e os caminhos do monismo e do sincretismo
Isso nos leva a considerar uma outra questão essencial, que é o islã e seu
pensamento unívoco. Sem a menor dúvida, o islã é uma manifestação do
anticristo, como é também o judaísmo da cabala, do talmude e do sionismo.
Todos eles se erguem contra o Messias, contra a Bíblia e contra a ordem da
criação. O que vale também para essas manifestações de ódio a Deus e a
Cristo que são as formas diversas de apostasia cristã, em particular da igreja
romana, papista e modernista, do liberalismo protestante, como também de
certos aspectos do dispensacionalismo israelófilo, do iluminismo carismático
pentecostal e do antinomismo nominalista evangélico. Todos se caracterizam
por uma rejeição à normas doutrinárias dos Símbolos da Igreja antiga e suas
Confissões de Fé provenientes da Reforma, isto é, dos Universais — a
doutrina e os dogmas — sobre os quais foram estruturados a revelação
especial, que é a Bíblia, como também a revelação geral da ordem criacional.
Esse caráter profundamente anticristão do islã, do judaísmo talmúdico e da
Roma papal era muito claro para os Reformadores do século XVI e seus
sucessores do século XVII.[287]
A apostasia sempre confunde o poder espiritual com o temporal.[288] Esse é
claramente o que ocorre hoje no que diz respeito a essa tirania política e
cultural “consensual” — uma religiosidade política secularizada com caráter
socio democrático e oligárquico, sob o qual vivemos.[289] Tal mistura entre o
espiritual e o temporal está no coração de toda a forma de totalitarismo, que
pode ser doce (Admirável mundo novo de Aldous Huxley) ou violento (o
livro 1984 de George Orwell). Foi por essa razão que o notável historiador e
sociólogo francês Jules Monnerot (1909-1995)[290] comparou o comunismo e
o socialismo, o nazismo e o fascismo — essas ideologias modernas das
“religiões laicas” — ao monismo político-religioso unívoco do islã.
Essa mesma lucidez vemos nos escritos do grande pensador político-
filosófico italiano, Augusto del Noce (1910-1989), em particular na sua obra
póstuma, A crise da modernidade, publicada em 2015 no Canadá.[291] Então,
não devemos imitar o monismo do islã em nossa tarefa de reconstrução,
como quase sempre é o caso do messianismo utopista mundano — os
fanáticos “espirituais” de todas as épocas. No que nos concerne, pensemos
nos chamados dominionistas, que esquecem o caráter próprio do cristianismo
quando, por sua tendência pelagiana unívoca, aplicam, por meios carnais,
políticos e diretos,[292] as leis do Reino de Deus à vida atual de nossas
sociedades. Mas o dominionismo está longe de ser o único movimento
protestante seduzido pela tentação de aplicar a Bíblia de maneira direta —
binária e unívoca — aos acontecimentos públicos. Pensemos na teologia da
libertação; na teologia feminista; nas diversas teologias étnicas e racistas,
negras, brancas ou amarelas! Elas não são nada mais que ilustrações da
herança terrivelmente nociva do pensamento do patriarca dessa forma de
pensamento binário, Pierre de la Ramée (1515-1572) — ilustrada pelo
“Vocês estão conosco ou contra nós” do segundo presidente Bush. O mesmo
De la Ramée que no século XVII tornou-se tão popular junto aos Puritanos e
cujos métodos simplificadores e simplistas foram prolongados por essa
mentalidade dita “fundamentalista”, muito particularmente nos Estados
Unidos.
Está claro que onde quer que a Bíblia e, particularmente a Lei de Deus,
afirme o que podemos chamar de “oposições binárias e dualistas legítimas”,
como aquelas que opõem o bem contra o mal ou a verdade contra o erro, tais
mandamentos têm de ser estritamente seguidos. Mas isso não significa, de
maneira nenhuma, que seja legítimo impor a tais contraposições noéticas
(relacionadas ao conhecimento do que é verdadeiro) e morais (do que é justo
e injusto) um quadro filosófico simplista, falsificado por sua orientação
unívoca ou equivocada, que culmina na visão totalmente errada de um
monismo ou de um dualismo absolutos.
(9) A resposta bíblica ao monismo e ao dualismo
Não podemos jamais esquecer que a ótica apropriada para que os homens
recebam o pensamento divino (em particular no que se refere à ordem da
criação, tanto no plano bíblico como filosófico) é aquela da acomodação
divina de João Calvino [1509-1564] e Klaas Schilder [1890-1952]), da
analogia entre o céu e a terra (de Tomás de Aquino [1225-1274]) e da
condescendência de Deus para com nossa fraqueza (do pensamento
Patrístico e Ortodoxo).[293] O entendimento bíblico do modelo trinitário, quer
se trate do um e do múltiplo, do universal e do particular, afirma que cada
um desses dois termos possui igualmente, no Deus Trinitário, um caráter
definitivo. O um e o múltiplo são ambos distintos e igualmente absolutos.
Portanto, de forma alguma são opostos entre si e nem se confundem
mutuamente. Então, não há oposição (nem confusão) entre os dois, mas
complementaridade, como Cornelius Van Til e Rousas Rushdoony
corretamente ensinaram.[294]
No contexto do nosso pensamento teológico e filosófico humano, isso indica
que, se as diversas realidades do mundo criado e da revelação divina devem
ser diferenciadas, entretanto não são opostas à maneira do dualismo binário
gnóstico. Assim, por exemplo, o Antigo Testamento não deve ser colocado
em oposição ao Novo, a Igreja ao Estado, os universais aos particulares, a
forma à matéria, a graça à lei, a divindade de Cristo à sua humanidade, os
homens às mulheres, o intelecto às emoções, os operários aos patrões, o
corpo à alma, a matéria à vida biológica e assim por diante. Cada um desses
elementos criados tem seu papel a desempenhar; ele é ao mesmo tempo
particular e diferenciado na ordem que engloba toda a criação. Mas,
enfatizemos mais uma vez, essa aplicação do um e do múltiplo a todas as
coisas, não nega, de maneira nenhuma, a oposição fundamental do bem
contra o mal ou da verdade contra o erro e à mentira.
Consideremos um exemplo recente, que é um exercício extraordinário de
lógica racionalista, tão binária quanto unívoca, que mostra os perigos de tais
simplificações intelectuais e bíblicas. Trata-se de uma declaração pública de
Robert Jeffress, pastor titular da Primeira Igreja Batista (“Batistas do Sul”)
em Dallas. Qualquer que seja a prudente sabedoria desse discurso político (ou
falta de sabedoria!) e a importância da questão que será aqui tratada (ou de
sua inutilidade!), o argumento do pastor Jesffress não é somente falso
logicamente, mas traz em si implicações políticas extremamente perigosas.
Robert Jeffress, pastor de uma mega igreja no Texas, é um dos conselheiros
evangélicos do Presidente Trump. Foi quem pregou no dia de sua posse. Esse
pastor publicou, em agosto de 2017, uma declaração na qual afirmava que o
Presidente dos Estados Unidos detém a autoridade moral necessária para
eliminar, segundo sua própria vontade, um tirano como o chefe da Coreia do
Norte, Kim Jong-un. Citamos aqui as palavras do próprio pastor Jeffress:
Quando a Bíblia levanta a questão da maneira pela qual devemos tratar os
malfeitores, em particular na epístola de Paulo aos Romanos, ela é clara: Deus
dotou os dirigentes políticos de todo poder, do qual podem fazer uso livremente
onde quer que lhes pareça necessário – inclusive o de fazer a guerra – a fim de
cessar o mal.

Jeffress acrescentou: “No caso da Coreia do Norte, Deus deu a Trump toda a
autoridade necessária para eliminar Kim Jong-um”.
Numa conversa telefônica, Jeffress afirmou que foi levado a fazer essa
declaração após Trump ter declarado que, se as ameaças da Coreia do Norte
contra os Estados Unidos persistissem, Pyongyang “conheceria um fogo e um
furor jamais visto pelo mundo.”
A passagem bíblica referida por Jeffress — Romanos 13.1-7 — segundo ele
dá ao governo a autoridade necessária para impedir que os malfeitores
causem destruição. Jeffress interpretou esse texto desta maneira:
Isso dá ao governo [...] o poder de fazer tudo o que for necessário – o que inclui o
assassinato, a pena capital ou qualquer que seja o duro castigo, para impedir as
ações de malfeitores como Kim Jong-un.[295]

Façamos, aqui, uma observação complementar. Jamais devemos esquecer a


distinção entre discernimento e julgamento. Somente Deus julga os homens e
devemos deixar que sua ira se manifeste no tempo determinado por ele e
pelos meios que escolher, seja por sua ação soberana direta ou por meio da
autoridade a quem delegar tal poder. Esse poder, estabelecido por Deus para
essa tarefa, deve ser exercido dentro dos limites da jurisdição que ele mesmo
explicitamente estabeleceu. Além disso, é preciso notar que a segunda parte
de Romanos 12 não pode ser separada do início de Romanos 13, porque elas
se complementam.
Devemos também lembrar, como fazia Pierre Courthial, que há uma
diferença importante entre o senso moral pessoal do cristão e a moralidade
que deve prevalecer no ambiente público. O exercício da autoridade exige,
em alto grau daquele que a exerce, um senso do bem moral comum, isto é, da
comunidade como um todo. Não se trata então, no exercício do poder, de
uma simples extrapolação direta (unívoca e binária), no âmbito público, do
pensamento moral pessoal do cristão como simples indivíduo. Alguns grupos
cristãos chegam mesmo, em sua impaciência escatológica, a confundir todas
essas distinções, usurpando assim a autoridade do próprio Senhor, tomando
seu lugar como Juiz supremo. É o que, manifestamente, ocorre aqui no que
concerne ao pastor Robert Jeffress. O apóstolo Paulo nunca recomendou tal
transformação radical das estruturas sociais e políticas, porque, como John
Knox compreendia muito bem, o Reino de Deus é o fermento na massa e não
a explosão da própria massa![296]
Toda a noção de respeito aos detalhes da Lei de Deus e à esfera de jurisdição
política, própria de cada magistrado, desapareceu inteiramente da citação que
acabamos de fazer de Robert Jeffress. Entretanto, não podemos, sem incorrer
em grande perigo, ignorar as mediações bíblicas e criacionais, ou seja, (1) da
ordem criacional, que inclui a política; (2) das Escrituras, Lei e Evangelho;
(3) e, antes de tudo, da encarnação de Cristo, sem a qual, no que se refere à
sua justiça, é perfeitamente impossível fazer o bem; (4) e finalmente, a
mediação da Igreja, que reside no poder e na vida de seus membros
regenerados, como em seu ensino verdadeiramente bíblico. Ao fazer a
escolha por uma aplicação política direta, imediata e unívoca, totalmente
simplista e sem verdadeira sabedoria, apenas manifestamos nossa
incompreensão flagrante das leis de Deus e de sua aplicação aos problemas
políticos da sociedade, pondo de lado todas as inúmeras mediações que
inspiram a sabedoria e a prudência.
Tal ação, por sua aplicação “direta” (“fundamentalista” e “rameana” [de
Ramée]) dos textos bíblicos aos problemas políticos, passa ao largo da
natureza ordenada, limitada e hierárquica do exercício aliancial da autoridade
humana e da maneira com que o próprio Deus age na sociedade, a qual está,
ao mesmo tempo, sob Seu julgamento e os efeitos de suas bênçãos, de sua
paciência e de sua misericórdia. Segue um resumo dos sábios argumentos que
John Knox dirigiu à Regente do Reino da Escócia:
Sem a ação mediadora de homens espiritualmente transformados pela
regeneração divina, realizada pela Palavra e aplicada pelo Espírito Santo, nada de
efetivo se cumprirá no que se refere ao crescimento do Reino de Deus sobre a
terra.

Em outras palavras, não devemos de maneira alguma imitar “esses islâmicos


fanáticos”, ainda que se apresentem diante de nós sob disfarces evangélicos
ou reformados.
Entretanto, John Knox não hesitou em se engajar com vigor e de maneira
prática na tarefa de edificar o Reino, utilizando para isso o que restava da
herança feudal cristã em sua pátria escocesa, que ainda se encontrava
mergulhada nos fundamentos culturais saudáveis, presentes no coração da
sociedade de sua época.[297]

(10) O fim do totalitarismo


O totalitarismo (em contradição com as afirmações do Concílio de
Calcedônia de 451) é sempre a manifestação de uma confusão do temporal
com o espiritual, do criacional com o divino, como vemos na mistura (ou na
separação) herética das duas naturezas de Jesus Cristo, divina e humana,
distintas e unidas em uma só Pessoa divina. Por isso que homens como
Hitler, Lênin, Stalin, Mao e Pol Pot (e semelhantes a eles, inclusive os socio-
democratas de hoje), todos trabalharam para destruir as instituições da nação,
a fim de se apropriar de um Estado tornado indefeso, para exercer o poder
sem restrições e limitações, absolutamente livre de todo obstáculo
institucional. Numa escala maior, trata-se do “Estado sou eu” do Rei Luís
XIV e de sua visão de um Reino da França perfeitamente unido, ambição que
se resume numa palavra de ordem imperial muito conhecida: “Um Rei, uma
Fé, uma Lei”.
Aqui, Dietrich Bonhoeffer nos propõe uma distinção muito útil entre último e
penúltimo, que também encontramos em John Knox. Reformar a Igreja
(coluna e baluarte da verdade) e restaurar o cristão, pessoalmente e em
família, sobre uma Fé sólida, ancorada na autoridade da Tota Scriptura, a Lei
e o Evangelho, essa foi a tarefa prioritária do Reformador escocês, John
Knox. Essa foi sua preocupação “última”. Para ele, o resto — as realidades
“penúltimas”, o restabelecimento da ordem divina na vida da cidade, por
exemplo — viria naturalmente, uma vez que as coisas “últimas” fossem
estabelecidas no coração e na vida dos cristãos.
Nessa perspectiva, a seus olhos era importante respeitar a herança cristã e
feudal de sua pátria escocesa, manifestada historicamente nos frutos
permanentes de vidas autenticamente cristãs de homens e mulheres
santificados da Escócia medieval. Isso também fazia parte das realidades
“penúltimas”. “Se não são contra nós são por nós”,[298] diz o Evangelho. Mas
Knox não tinha nenhuma paciência com os erros mortais da igreja de Roma,
para quem todos deviam ser inteiramente extirpados. Tratava-se, aqui, das
realidades “últimas”: “Quem não é por mim é contra mim”, disse Jesus
Cristo.[299]
Para Knox, os cristãos que permanecessem fiéis à Lei e ao Evangelho nos
diversos aspectos de suas vidas, em alguma medida e por sua própria
presença, acabariam por santificar a sociedade em que viviam. Isso seria feito
pelo exercício constante das virtudes cristãs. Estas, lembremos, não
correspondem a uma moral da vontade humana, autônoma em relação a
Deus, mas ao caráter justo de cristãos levados à maturidade, que conseguem
obedecer aos mandamentos de Deus de forma — poderíamos dizer — cada
vez mais “natural”, à medida que crescem na santificação (2 Pedro 1.3-11).
No fim, vencerão o mundo. Não por sua própria força (virtus, força), mas
pela fé e pela manifestação, neles mesmos, dessa força divina que é de Cristo
e do Espírito de Deus, a qual age em seus corações em meio à fraqueza
humana. Não pode restar nenhuma dúvida que tal vitória prática e espiritual
dos cristãos terá um efeito desestabilizador sobre os poderes demoníacos
invisíveis, cuja influência sobre a sociedade será, dessa maneira,
consideravelmente reduzida.
Mas Knox sabia muito bem que a vitória do fiel neste vale de lágrimas seria
sempre a vitória da fé e da esperança (não da vista e nem do sucesso imediato
e constante), e que essa batalha seria persistente, face a uma oposição sempre
crescente e cada vez mais presente até o fim. Assim, o reino de Deus
aumentará de maneira cumulativa, exponencial, tanto na terra como no céu,
em todos os lugares onde pedras vivas sejam colocadas nas muralhas
gloriosas da Jerusalém celestial. Com cada geração sobre esta terra, o poder
crescente do mundo mau desaparece no esquecimento desse sheol reservado
aos condenados, na espera terrível que levará, no final de todas as coisas, à
completa destruição de toda espécie de mal, porque aí então terá sido atingido
— como Sodoma e Gomorra — o clímax de sua perversidade. No fim de
tudo, Cristo virá com todos os seus santos, tanto eleitos como os anjos, para
destruir totalmente o Dragão, as duas bestas, o sheol e a própria morte. Com
eles perecerão todos aqueles que não receberam o selo da vida eterna dado a
todos que creem no Senhor Jesus Cristo e que, em consequência, obedecem
aos mandamentos de Deus.
No entanto, não devemos exagerar a separação entre a Igreja militante (que
está ainda sobre a terra) e a Igreja triunfante (que já está no céu). Como nos
mostra o livro de Apocalipse, todos, na terra e nos céus, participarão dessa
batalha. A Igreja é una, no céu e na terra, e as orações dos santos são de todos
os fiéis, tanto no céu como aqui embaixo (Apocalipse 6.9-11; 7.13-17; 8.1-6).
Ainda hoje, essas orações piedosas fazem o braço do julgamento de Deus
mover-se sobre a terra. É esse o caso neste instante — não podemos disso ter
a menor dúvida — das calamidades naturais (da aliança divina) que caem
repetidamente sobre a República tirânica americana, de forma terrível e feroz,
que só pode vir da mão de um Deus justo que, por sua ação retributiva,
chama ainda os homens ao arrependimento e à vida.
Tais orações, elevadas ao céu pelos eleitos — que louvam o Deus vivo,
Senhor de justiça e de misericórdia — no passado arrasaram, totalmente,
impérios possuídos por uma crueldade inominável! Essa intercessão da
Igreja, tanto no céu como na terra, dirigida a Deus Pai, pelo Espírito — por
meio do nosso único Intercessor celeste, Jesus Cristo — sempre cumpre, no
tempo próprio, o propósito de Deus, até o dia em que a oração fervorosa da
Igreja introduzirá na terra o julgamento final de Deus sobre um mundo que
vai alcançar, como no tempo de Noé e no apogeu das perversões das cidades
da planície, o ápice da maldade, da impiedade e da iniquidade. Essa
iniquidade universal conhecerá a exceção maravilhosa desse “acampamento
dos santos”, dessa “cidade amada por Deus”, esse remanescente que se
encontra hoje ainda sobre a terra, na espera de ser recolhido na arca eterna de
Deus, a Jerusalém que virá do alto com Jesus Cristo.

NOTA FINAL, de Martin Selbrede (Chalcedon Foundation)


O eminente pensador reconstrucionista suíço, Jean-Marc Berthoud, com toda
razão é considerado “o Rushdoony suíço”. A Chalcedon Foundation está
preparando um número da Faith for All of Life, que deverá ser publicado em
2018 e que será dedicado à sua contribuição na defesa da fé.[300]
Ver a América e a teologia americana pelos olhos de um cristão europeu
pode, às vezes, chocar. Berthoud considera certas questões de um jeito que os
leitores americanos lúcidos não estão muito habituados. Berthoud não está
automaticamente de acordo com Dr. R. J. Rushdoony sobre todos os
elementos de seu pensamento (por exemplo, sobre a usura, sobre certos
aspectos da escatologia, etc.). Por exemplo, sua defesa da teonomia é
matizada para não minar o princípio do um e do múltiplo (isso em resposta à
questão: Como conseguir uma sociedade governada pela lei de Deus?).
Berthoud se dá conta que os fins não podem justificar os meios. Isso significa
que os meios que utilizamos devem ser submetidos a todo o conselho de
Deus e escolhidos em consequência disso. Ao permitir que façamos tais
perguntas, tendo como pano de fundo suas vastas e diversificadas pesquisas,
Berthoud trabalha para que haja uma melhor compreensão e aplicação da
nossa fé. Algumas das suas ideias podem suscitar controvérsia e devem
encorajar nossos leitores a utilizar sua sabedoria ao considerá-las. Ideias
importantes precisam ser publicadas e seus autores ouvidos, apesar das
discordâncias que possamos ter sobre detalhes pontuais. As ideias de Jean-
Marc Berthoud estão inseridas nos critérios que o próprio Dr. R. J.
Rushdoony colocava em ação, ao considerar Jean-Marc Berthoud tanto um
amigo como um guerreiro de Cristo e irmão.

[1]
Michel Zink, “Le Moulin mystique. À propos d’un chapiteau de Vézelay: figures allégoriques dans
la prédication et dans l’iconographie romanes”, Annales, 1976, XXXI, 3, p. 481. Vézelay vit naître
Théodore de Bèze (1519-1605). Ce chapiteau exprime admirablement sa théologie du salut.
[2]
A primeira dessas exposições sobre o oitavo mandamento foi feita em 21 de setembro de 2008 e a
última em 20 de junho de 2010.
[3]
Os perigos totalitários do Ocidente: Uma tentativa de se identificar e analisar as causas e os
processos que podem conduzir as sociedades ocidentais ao totalitarismo, La Pensée Universelle, Paris,
1983.
[4]
A antiga doutrina social católica romana, anterior ao Vaticano II, ainda tinha a forte marca dos
ensinos bíblicos da Lei de Deus. Desde então, os Direitos do Homem reinam sem obstáculo nos
ensinos sociais e políticos dessa comunidade religiosa.
[5]
Em geral usamos a Bible à la Colombe. Além da Bíblia à la Colombe, outras traduções serão
assinaladas quando necessário. Outras versões traduzem “astúcias” por: “razões” (Osty) ; “dicursos”
(Martin); “cálculos” (Jerusalém); “complicações” (TOB); “artimanhas” (Rabbinat).
[6]
Veja a utilização desse texto pelo apóstolo Paulo em Romanos 10.5-11.
[7]
Pierre Viret, Instruction chrétienne en la Doctrine de la Loi et de l’Evangile, Volume I, Jean Rivery,
Genebra, 1564, p. 569. Nova edição, L’Age d’Homme, Lausanne, 2009, Tomo Segundo, p. 596.
[8]
Ibidem.
[9]
Tomás de Aquino, Os mandamentos, Nouvelles Éditions Latines, Paris, 1970, p. 195.
[10]
Lancelot Andrewes, An Exposition of the Ten Commandments, Richard Cotes, London, 1642, pp.
786-787. Esse notável comentário foi redigido por Lancelot Andrewes no fim do século XVI, mas só
foi publicado após a morte do autor. Está novamente disponível na Amazon.com: Lancelot Andrewes,
The Moral Law Expounded, EEBO Éditions Proquest, 2010. Lancelot Andrewes foi um dos mais
notáveis dirigentes da Comissão real encarregada por James I para traduzir a Bíblia para o inglês que
resultou na Authorised King James Version de 1611.
[11]
R. Laird Harris, Gleason L. Archer, Bruce K. Waltke, Theological Wordbook of the Old Testament,
Moody Press, Chicago, 1980, Article 64, p. 168. Os dados lexicográficos acima provêm desse excelente
dicionário.
[12]
Lancelot Andrewes, op. cit., p. 787. Veja a respeito dessa divisão do mundo entre Sem, Cão e Jafé
na obra pioneira de Bill Cooper, After the Flood, New Wine Press, Norwich, 1995, como também na
de Arthur C. Custance, Genesis and Early Man, Zondervan, Grand Rapids MA, 1975 et Noah’s Three
Sons. Human History in Three Dimensions, Zondervan, Grand Rapids MA, 1975.
[13]
Ibidem.
[14]
Andrewes, Ibidem.
[15]
Julio Meinvielle, Critique de la conception de Maritain sur la personne humaine, Éditions Iris,
Librairie Française, 1993 [Buenos Aires, 1948]
[16]
Pierre Viret, Instruction chrétienne en la Loi et l’Évangile, op. cit. [edição de 1564], Tomo I, p.
567.
[17]
Viret, op. cit., p. 567.
[18]
Viret, op. cit., p. 570.
[19]
Viret, op. cit., p. 573.
[20]
Viret, op. cit., p. 574-575.
[21]
Pierre Viret, Instruction chrétienne, Tome Segundo, Exposition sur les Dix Commandements de la
Loi donnée de Dieu par Moïse, L’Âge d’Homme, Lausanne, 2009, [1564], 846 p.
[22]
Alguns traduzem “uma raiz de todos os males”. Segue a tradução feita pela Bible Martin: “Porque
a raiz de todos os males não é outra senão a cobiça das riquezas”.
[23]
O Texto Recebido mantém aqui um elemento que foi retirado de nossas Bíblias: retira-te do meio
deles.
[24]
Apostolos Makrakis, Interpretation of the Entire New Testament, Orthodox Christian Educational
Society, Chicago, 1950, Volume Two, p. 1735-1736.
[25]
David Martin, Bible, op. cit., 1707, Tome II, p. 377c.
[26]
Apostolos Makrakis, op. cit., Tome II, p. 1737.
[27]
Tomás de Aquino, Os Mandamentos, Nouvelles Éditons Latines, Paris, 1970, p. 195-207.
[28]
David Martin, Bible, op. cit., 1707, Tomo II, p. 377c.
[29]
Apostolos Makrakis, op. cit., Tomo II, p. 1737.
[30]
Oração proferida antes da pregação do dia 21 de dezembro de 2008. Texto revisado em julho-
agosto de 2018.
[31]
Versão de Louis Segond, 1910 [no texto francês original].
[32]
Recomendamos a leitura das obras do filósofo existencialista russo Léon Chestov (1866-1938), que
constantemente lembra como foi importante para o homem comer do fruto proibido do conhecimento
autônomo (tanto de Deus como da ordem criada) do bem e do mal.
[33] Veja Henri Cazelles, Études sur le Code de l’alliance, Letouzey et Ané, Paris, 1946.
[34]
James B. Jordan, The Law of the Covenant. An Exposition of Exodus 21-25, Institute for Christian
Economics, Tyler TX, 1984.
[35]
Stephen A. Kaufman, “The Structure of the Deuteronomic Law”, Maarav, 1, 2, 1979, pp. 105-158.
http://www.maarav.com/issue1_2.shtml ; Daniel Arnold, “Le génie de la Loi Mosaïque”. Capítulo 4
de Vivre l’éthique de Dieu, Edição Emmaüs, Saint-Légier, 2010, p. 31-40. Enfim o capítulo 8 de
Walter C. Kaiser, “The Law of Deuteronomy”, em Toward Old Testament Ethics, Zondervan, Grand
Rapids, 1991, p. 127-137.
[36]
John I. Durham, Exodus, Word Book Publisher, Waco TX, 1987, p. 336-337.
[37]
Ibid., p. 336.
[38]
Ibid., p. 337.
[39]
Ibid.
[40]
Ao contrário do que faz entender a tradução La Colombe que utilizamos, não se trata aqui de
escravos, mas de uma servidão do tipo feudal, na qual o servo prometia fidelidade sem restrição ao seu
Senhor, recebendo em contrapartida sustento e proteção. Portanto, guardadas as proporções, em lugar
de escravidão, mais apropriado seria chamar de servidão.
[41]
Veja os belos estudos de Henri Baruk, Tsedek, Droit hébraïque et Science de la Paix, Zikarone,
Paris, 1970 ; Tsedek : where modern science is examined and where it is attempted to save man from
physical and spiritual enslavement, Swan House Publications, 1972 ; Henri Baruk e Maurice Bachet,
Le Test Tsedek. Le jugement moral et la délinquance, Presses Universitaires de France, Paris, 1950.
[42]
Rousas John Rushdoony, Exodus, Ross House Books, Vallecito CA, 2004, p. 291.
[43]
Benno Jacob, The Second Book of the Bible, Exodus, KTAV Publishing House, Hoboken NJ, 1992,
p. 611.
[44]
Benno Jacob, The Second Book of the Bible, Exodus, KTAV Publishing House, Hoboken NJ, 1992,
p. 615.
[45]
W. H. Gispen, Exodus, Zondervan, Grand Rapids MI, 1982, p. 209.
[46]
Benno Jacob, op. cit., p. 621.
[47]
Rousas J. Rushdoony, Exodus, op. cit., p. 292.
[48]
Ibid., p. 293.
[49]
Ibid., p. 293-294.
[50]
Segundo nosso costume, os colchetes indicam uma intervenção da redação.
[51]
Rousas J. Rushdoony, Exodus, op. cit., p. 311.
[52]
Ibid., p. 313.
[53]
Como vimos, trata-se de um vassalo, de uma relação quase familiar.
[54]
Umberto Cassuto, A Commentary on the Book of Exodus, The Magnes Press, The Hebrew
University, Jerusalem, 1967 [1961], p. 259.
[55]
Umberto Cassuto, Exodus, op. cit., p. 260.
[56]
Eugene Combs and Kenneth Post, The Foundations of Political Order in Genesis and the
Chandogya Upanisad, The Edwin Mellen Press, Lewiston/Queenston, 1987. Esses autores nessa obra
fazem uma abordagem parecida, mas utilizando-se do pensamento hindu. Veja o estudo bem
documentado do economista muito conhecido, Michael Hudson, sobre o perdão pontual de dívidas nas
legislações do Oriente Médio antigo e, em particular, na prática do Jubileu em Israel. Michael Hudson,
…and forgive them their debts. Lending, Foreclosure and Redemption from Bronze Age Finance to the
Jubilee Year, ISLET Verlag, Dresden, 2018.
[57]
Cassuto, p. 262.
[58]
Ibidem, p. 281-282.
[59]
Esse último ponto será objeto de nossa próxima exposição.
[60]
A perda da caução ou de bens emprestados ou de animais (Êxodo 22.6-17) será examinada, se Deus
quiser, numa próxima vez.
[61]
Veja a obra fundamental (editada recentemente) de Jean La Placette, Traité de la Restitution. Où
l’on trouvera la résolution des cas de conscience qui ont du rapport à cette matière, Éditions Pierre
Thierry Benoit, Genève 2012 [1696] (Podendo ser encomendada em Lulu.com).
[62]
Umberto Cassuto, Exodus, op. cit., p. 283.
[63]
Veja Gênesis 9.3-4: “Tudo o que se move e vive ser-vos-á para alimento; como vos dei a erva
verde, tudo vos dou agora. Carne, porém, com sua vida [nephesh -alma], isto é, com seu sangue, não
comereis”.
[64]
Benno Jacob, Exodus, op. cit., p. 679.
[65]
A. A. Pienaar, Histoire d’une famille de lions, Stock, Paris, 1941.
[66]
Benno Jacob, Exodus, op. cit., p. 679.
[67]
H. Cazelles, Le code de l’alliance, op. cit., p. 64.
[68]
Rousas Rushdoony, Exodus, op. cit., p. 308.
[69]
Benno Jacob, Exodus, op. cit., p. 686.
[70]
Rushdoony, Exodus, op. cit., p. 309.
[71]
Exceção notável, o site ecológico cristão de Calvin Beisner, Cornwall Alliance,
https://cornwallalliance.org/about/who-we-are/
[72]
Henri Cazelles, Études sur le Code de l’Alliance, op. cit., p. 68. Veja também a página 69.
[73]
Elohim aqui; trata-se de magistrados, daqueles que exercem a justiça.
[74]
Rousas J. Rushdoony, Exodus, op. cit., p. 311.
[75]
Benno Jacob, Exodus, op. cit., p. 691.
[76]
Examinaremos esse último ponto quando considerarmos o 9º Mandamento: Não dirás falso testemunho
(Êxodo 20.16), numa futura publicação.
[77]
Benno Jacob, Exodus, op. cit., p. 692.
[78]
Henri Cazelles, op. cit., p. 71.
[79]
Rousas Rushdoony, Exodus, op. cit., p. 312.
[80]
Na verdade é mesmo o contrário, porque o empréstimo a juros é sempre ilícito, uma vez que aquele
que empresta sempre cobra um juro fixo (automático e mecânico), seja o resultado financeiro positivo
ou negativo para quem emprestou. O empréstimo a juros, sendo um ganho imutável, assegurado
mecanicamente e sem risco, é a nagação da história, da Providência divina — bênção ou maldição — e,
em consequência, da própria Aliança de Deus.
[81]
Stephen A Kaufman, “The Structure of the Deuteronomic Law”, Maarav, 1, 2, 1979, pp. 105-158.
http://www.maarav.com/issue1_2.shtml Voyez: Stephen A. Kaufman, The Structure of the
Deuteronomic Law, Western Academic Press, Santa Monica CA, 1979.
[82]
Daniel Arnold, “Le génie de la Loi Mosaïque”. Capítulo 4 de Vivre l’éthique de Dieu, Éditions
Emmaüs, Saint-Légier, 2010, p. 31-40.
[83]
Walter C. Kaiser, “The Law of Deuteronomy:, Toward Old Testament Ethics, Zondervan,
Academie Books, Grand Rapids MI, 1983, Capítulo 8, p. 127-137
[84]
Veja também John H. Walton, “Deuteronomy. An Exposition of the Spirit of the Law”, Grace
Theological Journal 8.2, 1987, p. 213-25.
http://faculty.gordon.edu/hu/bi/ted_hildebrandt/OTeSources/05-Deuteronomy/Text/Articles/Walton-
Deut-GTJ.htmBruce Baugus, “Deuteronomy and the Decalogue”, Reformation 21,
http://www.reformation21.org/blog/2015/02/deuteronomy-and-the-decalogue.php
[85]
Shalom M. Paul, Studies in the Book of the Covenant in the Light of Cuneiform and Biblical Law,
Wipf and Stock, Eugene OR, 2006 [1970], p. 106.
[86]
Stephen Kaufman, op. cit., p. 115.
[87]
Walter Kaiser, Toward Old Testament Ethics, op. cit., p. 129.
[88]
Parágrafo que trata da lepra. Stephen Kaufman, op.cit., p. 116.
[89]
Rousas J. Rushdoony, Deuteronomy, Ross House Books, Vallecito CA, 2008, p. 355.
[90]
Rousas J. Rushdoony, op. cit., p. 356.
[91]
Rousas J. Rushdoony, op. cit., p. 358.
[92]
Alexandre Soljenitsyn, respondendo a um cristão evangélico que lhe perguntou: “Senhor
Soljenitsyne, você ora?”. Ele, muito supreso, levantou os braços e depois respondeu: “Você quer dizer,
falar com Deus? Mas ele está continuamente presente!”.
[93]
Christopher Wright, Deuteronomy, Paternoster Press, Leicester, 1996, p. 253.
[94]
Rousas J. Rushdoony, Deuteronomy, op. cit., p. 363-364.
[95]
Rousas J. Rushdoony, Deuteronomy, op. cit., p. 363-364.
[96]
Peter C. Craigie, The Book of Deuteronomy, Eerdmans, Grand Rapids MI, 1976, p. 307.
[97]
A propósito de Pio XII, sigamos o conselho de Paulo: “[…] examinai todas as coisas, retende o que
é bom ; abstenhai-vos de toda forma de mal” (1 Tessalonissenses 5.21; seguindo o exemplo dos
Bereanos que examinavam as Escrituras todos os dias, para ver se as coisas eram, de fato, assim (Atos
17.11).
[98]
John C. H. Wu, Fountain of Justice. A Study in the Natural Law, Sheed and Word, New York,
1955, p. 15-16. Sobre uma visão protestante dessas realidades, veja (entre outras) as obras de E. L.
Hebden Taylor e de Rousas John Rushdoony.
[99]
Trata-se aqui do pensamento do célebre economista liberal, Adam Smith e do seu amigo ateu,
David Hume.
[100]
Étienne Catta, Saint Hilaire et le Cardinal Pie, Éditons du Cèdre, Paris, 1970, p. 138.
[101]
Catta, Hilaire et Pie, op. cit., p. 139.
[102]
Catta, op. cit., p. 140.
[103]
Catta, op. cit., p. 158.
[104]
Catta, op. cit., p. 158.
[105]
Mgr Pie, Œuvres, Tome 10, Oudin, Paris, 1887, pp. 78-79.
[106]
Vejamos, ainda, o cônego Étienne Catta citando o Monsenhor Pio que comenta aqui os discursos
de Jules Ferry, o qual afirmou peremptoriamente que: “… toda consciência deve concordar com o
ensino indiscutível desse regulador soberano [que é o Estado laico, sem Deus], toda a manifestação
doutrinária em desacordo com o evangelho do Estado [sem Deus], todo o católico que escuta e segue a
Igreja é um faccioso [para Jules Ferry, o porta-voz infalível do Estado laico]. Ele escreveu que ninguém
pode servir a dois senhores, porque amará um e desprezará o outro. Ora, segundo nosso evangelho [sem
Deus, de Jules Ferry], o Estado é o único senhor, aos olhos de quem tudo mais deve ficar cego”. E o
Monsenhor Pio escreveu sobre as palavras que citou: “Nenhuma dessas palavras me pertence, Senhores
[…]; todas elas podem ser justificadas por citações extraídas das discussões destes últimos dias”
(Étienne Catta, Saint Hilaire et le cardinal Pie, p., 173, citando Monsenhor Pio, Œuvres, Tome 10,
Oudin, Paris, 1887, p. 26-27).
[107]
Catta, Saint Hilaire et le cardinal Pie, op. cit., p. 172-173.

[108]
Jesus: os pobres, sempre os tendes convosco, mas a mim nem sempre me tendes.
[109]
Benno Jacob, The Second Book of the Bible. Exodus, Kav Publishing, Hoboken, 1992, p. 706.
[110]
S. H. Kellogg, The Book of Leviticus, Hodder and Stoughton, London, s. d., p. 496. Como
indicamos acima, essa lei não se aplica apenas ao irmão israelita !
[111]
G. J. Wenham, The Book of Leviticus, Eerdmans, Grand Rapids, 1979, p. 321-322.
[112]
Andrew Bonar, Leviticus, Banner of Truth, Edinburgh, 1972 [1846], p. 463-463.
[113]
S. C. Mooney, Usury. Destroyer of Nations, Theopolis, Warsaw, 1988, p. 13-14.
[114]
Mooney, op. cit., p. 13-14.
[115]
Rousas Rushdoony, Leviticus, Ross House Books, Vallecito, 2005, p. 363-364.
[116]
J. H. Hertz, The Pentateuch and Haftorahs, Soncino Press, London, 1962, p. 534.
[117]
Theological Word Book of the Old Testament (TWOT), op. cit., p. 590. Veja Provérbios 2.16;
5.20; 6.24.
[118]
João Calvino, Leçons sur les livres des Prophètes Jérémie et Ezéchiel, Amsterdam, 1567, p. 170.
Citado por Eric Kerridge, Usury, Interest and the Reformation, Ashgate, Aldershot, 2002, p. 16. Sobre
uma defesa da posição de João Calvino veja, André Biéler, La pensée économique et sociale de Calvin,
Georg, Genève, Capítulo V. “As atividades econômicas”, Seção 6, “Os banqueiros e o empréstimo a
juros”, p. 453-476. 1961. Sobre as fontes, na casuística escolástica católica romana tardiva, da
justificação relativa por João Calvino de algumas formas de empréstimo a juros, veja a obra
fundamental de Michael Hoffman, Usury in Christendom. The Mortal Sin that Was and Now is Not,
Independent History and Research, Cœur d’Alene, 2013. Michael Hoffman mostra também a que ponto
a perspectiva Tomista e Aristoteliana estava sempre presente em Martinho Lutero e em alguns teólogos
anglicanos de convicções reformadas.
[119]
Veja a obra de Michael Hoffman citada acima (páginas 183-186) sobre a oposição bíblica
intransigente – de inspiração largamente tomista e aristoteliana – de Martinho Lutero sobre toda a
forma de empréstimo a juros. “Trade and Usury” (1524), Luther’s Works, Muhlenberg Press, Volume
45, 1962. Martin Luther, “Du commerce et de l’usure” (1524), Œuvres, Tome IV, Labor et Fides,
Genève, 1958, p. 119-144.
[120]
Charles du Moulin, Tractatus contractum et usurarum de 1547.
[121]
Michael Hoffman, op. cit., p 186-187.
[122]
Michael Hoffman, op. cit., p 189.
[123]
John Edwards, Theologia Reformata, Londres 1713, Volume II, p. 547-548. Reprint Gale ECCO,
2010. Texto citado por Michael Hoffman, op. cit., p 188.
[124]
Tomás de Aquino, Suma Teológica, A Justiça, Tome III, 2a-2ac, Questões 67-79, Desclée et Cie,
Paris, 1935, p. 208. Veja Tomás de Aquino, Opuscules de saint Thomas d’Aquin, Sete volumes,
Opúsculo LXXII, “Sobre as usuras em geral e os contratos usurários”, Volume sete, Louis Vivès, Paris,
1858, p. 566-661.
[125]
Tomás de Aquino, La Justice, op. cit., p. 213.
[126]
Thomas d’Aquin, Somme Théologique, La Justice, op. cit., p. 208-209.
[127]
Thomas d’Aquin, La Justice, op. cit., p. 213-214.
[128]
“Em Deuteronômio 28.12 e 44, a palavra hebraica para emprestar é LAVAH, que pode significar
estar bem junto à, ou se converter espiritualmente, ou emprestar. O desejo de emprestar é sinal de uma
generosidade cheia de graça (Sl 112 .5). Emprestar é sinônimo de dar. ‘As carências ou o estado de
pobreza, que levam ao dever de emprestar, indicam a ausência da bênção divina (Deuteronômio 28.44),
enquanto que a capacidade para emprestar caracteriza uma prosperidade que vem de Deus’
(Deuteronômio 28,12)”, Theological Wordbook of the Old Testament, op. cit., p. 1087/1088.
[129]
Thomas d’Aquin, La Justice, op. cit., p. 213-214.
[130]
Thomas d’Aquin, La Justice, op. cit., p. 211-212.
[131]
Sobre isso veja as páginas escritas pelo lúcido historiador católico romano, Michael Hoffman,
“The Protestant Reformation Pro and Contra Usury” em Usury in Christendom. The Mortal Sin that
Was and Now is Not. A Study of the Rise of the Money Power in the West, Independent History and
Research, Cœur d’Alene ID, 2013, p. 183-161.
[132]
Leão X na Bula de 4 de maio de 1515, Concilli in décima sessione super materia Montis Pietatis,
na décima sessão do Quinto Concílio de Latrão, acontecido em Roma de 1512 a 1517, Michael
Hoffman, Usury in Christendom, op. cit., p. 141.
[133]
Mutuum : Empréstimo de consumo. Contrato pelo qual uma pessoa (o credor) confia (credere)
certa quantidade de dinheiro ou de outra coisa consumível a outra pessoa (o devedor), que promete
restituir, em data fixa, uma mesma quantidade, natureza e qualidade da coisa emprestada. Ou ainda,
Mutuum, simples empréstimo de um objeto consumível, de dinheiro (um capital, por exemplo), que
será reembolsado pelo devedor na quantidade exata.
[134]
Raymond de Roover, La pensée économique des scolastiques, Doctrines et méthodes, Vrin, Paris,
1971.
[135]
Ibidem, p. 77-78.
[136]
De Roover, op. cit., p. 78.
[137]
Ibidem, p. 78-79. Como mostra, de maneira decisiva, Michael Hoffman, apesar dos erros dos
Reformadores, a pessoa que foi o verdadeiro precursor moderno do empréstimo a juros foi o Papa,
banqueiro da Renascença italiana, Leão X de Médicis.
[138]
De Roover op. cit., p. 80.
[139]
De Roover, op. cit., p. 80-81.
[140]
S. C. Mooney, op. cit., p. 47, citando Patrick Cleary, The Church and Usury, The Christian Book
Club of America, Hawthorne, 1972, p. 114.
[141]
S. C. Mooney, op. cit., p. 47.
[142]
Ibidem, p. 48.
[143]
Catéchisme de Heidelberg, Kerygma, Aix-en-Provence, 1986, Question 110, p. 113.
[144]
Mooney, op. cit., p. 51.
[145]
Mooney, op. cit., p. 51.
[146]
Os construtores da torre de Babel (Gn 11.1-9). Veja a queda de Babilônia descrita em Apocalipse
18.
[147]
Mooney, p, 51. Mooney aqui nos dirige um apelo à moderação diante da visão totalmente
dominadora e utilitária pregada por Francis Bacon e René Descartes, de onde veio a tecnocracia
moderna devoradora do próprio cosmos. Para conseguir isso, Bacon desviou o ensino da Bíblia relativo
ao mandato criacional de seu alvo próprio — cultivar, ordenar e manter a criação — para liberá-la à
cobiça mais desenfreada e destruidora dos homens, ao esquecer de Deus e de sua boa Lei. Veja a obra
notável de Cameron Wybrow, The Bible, Baconianism, and Mastery over Nature. The Old Testament
and its Modern Misreading, Peter Lang, Berne, 1991. Veja também o ensaio notável de Alexandre
Soljénitsyne, “Do arrependimento e da moderação”, na coleção atualíssima: Des voix sous les
décombres, Seuil, Paris, 1975, p. 110-148.
[148]
Sobre uma aplicação atualizada desses perdões pontuais de dívidas, princípios sabáticos e do
jubileu, veja o livro notável de Michael Hudson, …and forgive them their debts. Lending, Foreclosure
and Redemption from Bronze Age Finance to the Jubilee Year, ISLET Verlag, Dresden, 2018.
[149]
Pregação feita em 2009, texto revisado em 2017. As duas obras seguintes nos permitem fazer um
balanço da situação em novembro de 2018. Vincent Held, Le crépuscule de la Banque Nationale
Suisse. La déroute financière annoncée d’une institution en faillite morale, Xenia, Sion, 2017; Liliane
Held-Khawam, Dépossession. Comment l’hyperpuissance d’une élite financière met États et citoyens à
genoux, Editions Réorganisation du Monde, 2018.
[150]
Samuel H. Kellogg, The Book of Leviticus, London, s. d., p. 415-416.
[151]
Rousas John Rushdoony, Deuteronomy, Ross House Books, Vallecito, 2008, p. 432.
[152]
Martin Luther, Lectures and Deuteronomy, Concordia, St. Louis, 1960, p. 249.
[153]
Christopher Wright, Deuteronomy, Paternoster, 1996, p. 267.
[154]
Rousas Rushdoony, Deuteronomy, op. cit., p. 433.
[155]
George Lawson, Exposition of Proverbs, Kregel, Grand Rapids MI, 1980 [1829], p. 192.
[156]
George Lawson, Exposition of Proverbs, op. cit., p. 507-508.
[157]
Veja a exposição que fizemos sobre Isaías, capítulo I, na abertura do livro de Jean-Marc Berthoud,
L’Église au pied du mur: le diagnostic toujours actuel du Prophète Ésaïe, Éditions Messages, Lausanne,
2018.
[158]
Liliane Held-Kwaham, Dépossession. Comment l’hyperpuissance d’une élite financière met États
et citoyens à genoux, Éditions Réorganisation du Monde, 2018.
[159]
Veja: Êxodo 30.13; Levítico 27.25; Números 3.37.
[160]
Texto escrito em março de 2009.
[161]
Nome irônico, segundo o profeta, para Israel e para a Igreja que se tornaram apóstatas.
[162]
Os cataclismas naturais repetidos que vieram sobre os Estados Unidos em 2018 e 2019 deveriam
fazer com que seus cidadões, outrora tão cristãos, refletissem. Os seguintes versos de Eustache
Deschamps (1340-1404), que com grande compreensão testemunham a maneira pela qual se
desenvolve na história a Aliança divina, nos vêm à mente :
Príncipes, certamente os males que fazemos
Diminuem os benefícios que falamos
Para nos punir, é justo o julgamento.
Doravante, para fazer o bem, entendamos;
Amemos e sirvamos a Deus de coração:
Tudo se destrói e não se sabe como.
André Chastel, Trésors de la poésie médiévale, Club français du livre, Paris, 1959, p. 938.
[163] Conferência proferida no I Congresso Internacional. Reforma Protestante y Libertades en Europa,
Facultad de Comunicacion, Universidad de Sevilla, numa terça-feira, 31 de março de 2009, no mesmo
dia em que foi aberta em Londres a conferência dos países do G 20 dedicada à crise econômica e
financeira. Pierre Chaunu morreu no mesmo ano, em 22 de outubro de 2009, com a idade de 86 anos.
[164]
Pierre et Huguette Chaunu, Séville et l’Atlantique 1504-1650, Armand Colin-SEVPEN, Paris,
1955-1959, Doze volumes.
[165]
Veja Philip Wayne Powell, Tree of Hate. Propaganda and Prejudice Affecting United States
Relations with the Hispanic World, Ross House Books, Vallecito, 1985.
[166]
Pesquisas recentes desmonstraram que Pierre Viret nasceu em 1509 e não, como sempre foi dito,
em 1511. Sobre a vida de Pierre Viret veja a obra recente de Rebekah Sheats, Pierre Viret The Angel of
the Reformation, Zurich Publishing, Tallahassee, 2013, traduzida para o francês sob o título Pierre
Viret l’Ange de la Réformation, Association Pierre Viret, Lausanne 2017. Veja igualmente, Jean-Marc
Berthoud, Pierre Viret. Un géant oublié de la Réformation, Kerygma, Aix-en-Provence, 2009.
[167]
Relativo à Borgonh. [N. do T.]
[168]
Veja algumas pregações que pronunciou na Catedral de São Pedro, em Genebra, substituindo
Calvino, que estava doente: Quatre sermons français sur Esaïe 65, Payot, Lausanne, 1961, 110
páginas.
[169]
Sobre algumas discussões eclesiásticas nesses Sínodos, das quais Pierre Viret participou, veja
Philippe Denis e Jean Rott, Jean Morély (ca. 1524 – ca. 1594) et l’utopie d’une démocratie dans
l’Église, Droz, Genebra, 1993, 406 páginas.
[170]
Philippe Chareyre, La construction d’un État protestant, le Béarn au XVIe siècle, CEPB, Pau,
2010.
[171]
Jean Barnaud, Pierre Viret, sa vie et son œuvre, G. Carayol Imprimeur, Saint-Amans, p. 647.
[172]
Henri Meylan, “Une amitié au XVIe siècle: Farel, Viret, Calvin”, dans Silhouettes du XVIe siècle,
Edições da Igreja nacional do cantão de Vaud, Lausanne, 1943, p. 27-50.
[173]
Karine Crousaz, L’Académie de Lausanne entre Humanisme et Réforme (ca. 1537-1560), Tese de
Doutorado, Universidade de Lausanne, 2010, Brill, Leiden, 2011, 610 páginas. Veja também: Henri
Meylan, La Haute Ecole de Lausanne, 1537-1937, F. Rouge, Lausanne, 1937, 122 páginas; Louis
Junod et Henri Meylan, L’Académie de Lausanne au XVIe siècle, Livraria da Universidade, Lausanne,
1947, 149 páginas. Sobre a Academia de Genebra: Charles Borgeaud, Histoire de l’Université de
Genève. Tome I, L’Académie de Calvin 1559-1798, Georg, Genebra, 1900, 664 grandes páginas. A
Academia fundada por Pierre Viret, mais tarde transformada em Faculdade de Teologia, fechou suas
portas no outono de 2010 por falta de estudantes, para ser substituída por um Instituto de Ciência das
Religiões, sem conteúdo especificamente cristão, cuja tarefa não é mais formar pastores.
[174]
Karine Crousaz, citando uma carta de Teodoro de Beza a Guilherme Farel, datando de abril de
1558, registra o número de 700 estudantes, dos quais 110 bolsistas. Karine Crousaz, op. cit. p. 291.
[175]
Henri Vuilleumier, Notre Pierre Viret, op. cit., p. 142.
[176]
Uma pequena parte da imensa obra de Pierre Viret foi reeditada no século XX. Charles
Schnetzler, Henri Vuilleumier e Alfred Schroeder, Pierre Viret par lui-même, Georges Bridel,
Lausanne, 1911, 342 páginas, antologia; Jean Barnaud (Editor), Quelques lettres inédites de Pierre
Viret, G. Carayol, Saint-Amans, 1911, 156 páginas; Pierre Viret, Quatre sermons français sur Esaïe 65,
Payot, Lausanne, 1961, 108 páginas; Deux dialogues. L’Alcumie du Purgatoire ; L’Homme naturel,
Biblioteca romanda, Lausanne, 1971, 200 páginas, extratos; L’interim fait par dialogues, Peter Lang,
Berne, 1985, 365 páginas; La cosmographie infernale, Éditions de la Différence, Paris, 1991, 96
páginas, extratos. Veja a publicação maior de Pierre Viret reeditada pela Association Pierre Viret,
Pierre Viret, Instruction Chrétienne, Tome I, 2003; Tome II, 2009; Tome III, 2013, L’Âge d’Homme,
Lausanne. O Tome IV deveria ter sido publicado em 2019.
[177]
Veja a Bibliographie de l’œuvre de Pierre Viret no final do Segundo Volume da Histoire
alliancielle de l’Église dans le monde.
[178]
Volume I, 674 páginas ; Volume II, 903 páginas, Genebra, 1564. Uma parte de um terceiro
volume projetado por Viret foi publicado à parte sob o título : De la providence divine, Lyon 1565, 803
páginas. Veja esta publicação maior de Pierre Viret republicada pela Association Pierre Viret: Pierre
Viret, Instruction Chrétienne, Tome I, 2004; Tome II, 2009; Tome III, 2013, L’Âge d’Homme,
Lausanne. Le Tome IV deveria ter sido publicado em 2019.
[179]
Claude-Gilbert Dubois, La conception de l’histoire en France au XVIe siècle (1560-1610), Nizet,
Paris, 1977, 668 páginas.
[180]
Le monde à l’empire et le monde démoniacle fait par dialogues, Genève, 1561, 373 páginas.
[181]
Claude-Gilbert Dubois, La conception de l’histoire en France au XVIe siècle (1560-1610), p. 449.
[182]
Viret escreveu em francês reformation (sem acento agúdo), como se fazia em seu tempo e não
réformation como fazemos hoje. Porque não se tratava simplesmente de “réformer” a Igreja e a
sociedade, mas de « re-former », formá-las de novo totalmente e sobre o modelo antigo da primeira
Igreja e do ensino da Bíblia..
[183]
Claude-Gilbert Dubois, op. cit., p. 453.
[184]
Ibidem, citant Pierre Viret, Le monde à l’empire, 1580, op. cit., p. 150.
[185]
Claude-Gilbert Dubois, op. cit., p. 453.
[186]
Veja Le monde à l’empire op. cit., p. 156. Eu observei na época:
Que compreensão acurada e surpreendente do que se passa atualmente (setembro de 2008) nos Estados
Unidos relativo aos abusos do governo desse país em relação aos que Viret chamou justamente de
“ladrões e bandidos”, os Rothschilds, os Soros e os Goldman Sachs de sua época. Veja: E. L. Hebden
Taylor (1925-2006), Economics, Money and Banking: Christian Principles, The Craig Press, Nutley,
1978. Veja também os escritos do célebre economista germano-suíço Wilhelm Röpke (1899-1966).
Sobre uma análise do desenvolvimento ao longo dos últimos quatro séculos do fenômeno que atrai aqui
a atenção de Pierre Viret, veja a obra que se tornou um clássimo de George Knupffer, The Struggle for
World Power, Londres, 1971. Sobre uma atualização do controle da política americana por uma máfia
financeira amoral, veja de G. Edward Griffin, The Creature from Jekyll Island, American Opinion,
Appleton, 1994. Sobre uma descrição da maneira em que a Suíça entrou nesse sistema de especulação
financeira mundial, veja : Vincent Held, Le crépuscule de la Banque Nationale Suisse. La déroute
financière annoncée d’une institution en faillite morale, Xenia, Sion 2017. Veja também: Liliane Held-
Khawam, Dépossession. Comment l’hyperpuissance d’une élite financière met États et citoyens à genoux,
Éditions Réorganisation du Monde, 2018.
[187]
Viret de longe previa o cataclisma social e político que seria o desencadeamento inevitável de
desordens, a Revolução Francesa.
[188]
Maurice Allais, La crise mondiale d’aujourd’hui: pour de profondes réformes des institutions
financières et monétaires, Clément Juglar, Paris, 1999.
[189]
É surpreendente que não exista em francês e nem em inglês nenhuma coleção dedicada aos
principais escritos de Alexandre Soljenitsyn sobre essas questões políticas e sociais. Veja indicadas na
Bibliographie II, no fim deste volume, algumas obras políticas do grande escritor russo.
[190]
Entre muitas outras obras primas, veja muito particularmente as duas coleções de cursos de Marcel
De Corte, Économie et Morale et Principes d’un Humanisme Économique, Université de Liège, 1958 et
1965. A edição em livro desses fascículos, de grande atualidade, seria muito desejável. Veja sobre Marcel
De Corte: Danilo Castellano, L’Aristotelismo critstiano di Marcel De Corte, Pucci Cipriani – Editore,
Firenze, 1975.
[191]
Claude-Gilbert Dubois, La conception de l’histoire en France au XVIe siècle (1560-1610), p. 459.
[192]
Pierre Viret Le monde à l’empire op. cit., 1580, p. 271. Citado por Claude-Gilbert Dubois, op. cit.,
p. 461.
[193]
É surpreendente notar que tal colaboração – uma verdadeira comunhão de pensamento – pudesse
ir tão longe. Rebekah Sheats pôde constatar, em seu trabalho de publicação paralela sobre cada um dos
mandamentos do Decálogo expostos por Pierre Viret e que encontramos nos Sermões de João Calvino
dedicados ao Decálogo em Deuteronômio, até que ponto este último dependia dos ensinos éticos de seu
colega de Lausanne. Ela escreveu: “Interessantemente, enquanto examinava os sermões de Calvino
fiquei maravilhada ao ver que ele parece ter empregado o texto de Viret como base para os seus
sermões sobre o Decálogo em Deuteronômio. As similaridades entre seus sermões e os comentários de
Viret são bem impressionantes, frequentemente acompanhando pensamento após pensamento (e quase
palavra por palavra ocasionalmente). Como você sabe, Calvino pregou suas palestras em Deuteronômio
no ano seguinte à publicação original do comentário de Viret” (Carta pessoal, 6 de junho de 2018).
[194]
Robert T. Linder, The Political Ideas of Pierre Viret, p. 63.
[195]
João Calvino, Sermão CXLIV da sexta-feira, 14 de fevereiro de 1556, Deuteronômio 25, 13-19,
Opera Omnia, Volume XXVIII, p. 236.
[196]
João Calvino, Sermão CXLIV da sexta-feira, 14 de fevereiro de 1556, Deuteronômio 25, 13-19,
Opera Omnia, Volume XXVIII, p. 237.
[197]
Pierre Viret, Instruction Chrétienne en la Doctrine de la Loi et de l’Évangile, Volume I, 1564, p.
586-611. O Comentário de Viret sobre os Dez Mandamentos foi primeiro publicado em 1554 sob o
título de Exposition familière des Dix Commandements de la Loi. Uma comparação atenta dos Sermons
sur le Deutéronome proferidos por Calvino em 1556, com a Exposition familière de Pierre Viret de
1554, mostra como Calvino beneficiou-se (ainda que maneira seletiva) dos trabalhos de seu colega e
amigo de Lausanne.
[198]
Citamos aqui a edição nova feita por Arthur-Louis Hofer do Tomo Segundo de l’Instruction
chrétienne de Pierre Viret, L’Âge d’Homme, Lausanne, 2009 [1564].
[199]
Pierre Viret, Instruction Chrétienne, op. cit., Tome II, 2009, p. 619. Edição original, Instruction
Chrétienne en la Doctrine de la Loi et de l’Évangile, Volume I, 1564, p. 581.
[200]
Pierre Viret, Instruction Chrétienne, op. cit., Tome II, 2009, p. 620-621. Edição original,
Instruction Chrétienne en la Doctrine de la Loi et de l’Évangile, 1564, Volume I, p. 581-582.
[201]
Sobre toda essa questão, veja as obras citadas acima de Maurice Allais e de E. L. Hebden Taylor.
[202]
Como já observamos, o pensamento de Pierre Viret sobre essas questões sociais e políticas se
parece muito com o de Alexandre Soljenitsyn. Veja também de Marcel De Corte, Économie et Morale
(1958) e Principes d’un Humanisme Économique (1965), Universidade de Liège. Numa perspectiva
parecida, recomendamos vivamente o comentário do Oitavo Mandamento feito por Rousas John
Rushdoony em seu Institutes of Biblical Law, Volume I, Presbyterian and Reformed, Nutley, 1973, p.
448-541. Veja também os comentários de Gary North sobre Levítico 19.35-36 em seu Commentary on
Leviticus, ICE, Tyler, 1994, e o estudo de G. Edward Griffin sobre essas questões, The Creature from
Jekyll Island. A Second Look at the Federal Reserve, American Opinion, Appleton, 1995. A fonte
essencial dessa análise, que se tornou clássica, sobre o papel deletério dos Bancos Centrais na vida
econômica das nações, se encontra nos trabalhos pioneiros de Eustace Mullins, Secrets of the Federal
Reserve, 1952 seguido de, The London Connection, Bankers Research Institute, Staunton, 1993, cujo
primeiro impulso veio do poeta Ezra Pound, por muito tempo encarcerado – sem processo – depois da
Segunda Guerra, na Saint Elizabeth Mental Hospital em Washington, pelas autoridades americanas, por
sua língua particularmente perigosa quando falou à radio italiana.
[203]
Pierre Viret, Instruction Chrétienne, op. cit., Tome II, 2009, p. 622-623.
[204]
Pierre Viret, Le Monde à l’Empire, 1580 [1561], op. cit., p. 283.
[205]
Aqui está expressa a justificação do poder absoluto dos Príncipes, o potestas absoluta que a
filosofia da Idade Média tardia contrastava com o potestas ordonata, a autoridade ordenada e limitada
pela Lei de Deus e os costumes, que defende aqui Pierre Viret.
[206]
Pierre Viret Le monde à l’empire, 1580, op. cit., p. 283.
[207]
Voici que pointe ici la pensée de Machiavel.
[208]
Pierre Viret Le monde à l’empire, 1580, op. cit., p. 277.
[209]
Tailles et gabelles [em francês], taxas sobre a venda de todos os bens.
[210]
Pierre Viret Le monde à l’empire, 1580, op. cit., p. 279-280.
[211]
Pierre Viret, Le Monde à l’Empire, 1580 [1561], op. cit., p. 280.
[212]
Pierre Viret Le monde à l’empire, 1580, op. cit., p. 280-281.
[213]
Pierre Viret Le monde à l’empire, 1580, op. cit., p. 281-282.
[214]
William Cobbett, “Address to the journeymen and labourers”, Political Register, 3 November
1816. Hilary Clinton, por sua vez, não hesitou muito em considerar “deploráveis”! Testo citado por
Marie de Kergaradec em seu belo estudo, William Cobbett. L’inflation et la déflation. Contribution aux
controverses monétaires du premier quart de XIXe siècle, Tese para doutorado, Société française
d’Imprimerie et de Librairie, Poitiers, 1935, p. 17-18.
[215]
Pierre Viret Le monde à l’empire, 1580, op. cit., p. 272-273, citando são Bernardo, Sermão 33º do
Cântico dos Cânticos. Veja as Œuvres Mystiques de Saint Bernard, Prefácio e tradução de Albert
Béguin, Seuil, Paris, 1953, Sermão 33º, p. 409-410. O parágrafo que cita Viret começa assim:
“Chegaram os tempos libertos, pela misericórdia de Deus, dessa dupla malícia [a perseguição e as
heresias], mas ainda sujos pelos negócios tramados à noite. Infeliz geração contaminada pelo levedo
dos Fariseus, isto é, pela hipocrisia – se é que ainda devemos chamá-la hipocrisia quando está tão
alastrada que não consegue mais se esconder e tão descarada que nem mais se preocupa. Atualmente
essa doença infecciosa ganha todo o corpo da Igreja e quanto mais se alastra, tanto menos esperança
deixa. Quanto mais penetra seu interior, tanto mais sua ação é nociva. [...] Todos são seus amigos e
seus inimigos, etc...” (página 409).
[216]
Pierre Viret Le monde à l’empire, 1580, op. cit., p. 274.
[217]
Pierre Viret Le monde à l’empire, 1580, op. cit., p. 275-276.
[218]
Pierre Viret, Le Monde à l’Empire, 1580 [1561], op. cit., p. 275.
[219]
Na época da pregação. [N. do R]
[220]
A. Housiaux, La Christologie de Saint Irénée, Presses Universitaires de Louvain, Louvain 1955,
p. 189, citando Ireneu, Contre les Hérésies, III, 18, 5a.
[221]
Tradução de Hilário. A mesma da Bible à la Colombe: “É ele quem te livra da rede do
passarinheiro”.
[222]
É o que admiravelmente mostra Heinrich Bullinger em sua obra La vieille foi, Der alte Glaube
(1537), na qual mostra que a fé redescoberta na Reforma de forma alguma é uma novidade, mas a fé
bíblica de sempre. Veja Heinrich Bullinger, Writings and Translations of Myles Coverdale: Containing
the Old Faith. A Spiritual and Most Precious Pearl. Fruitful Lessons. A Treatise on the Lord’s Supper.
Order of the Church in Denmark. Abridgement of the Enchiridion of Erasmus, Andesite Press, 2017.
[223]
A Bíblia Segond 21 traduz ferirás.
[224]
Benno Jacob, The First Book of Genesis. Augmented Edition, KATAV Publishing House, Jersey
City, 2007 [1974], p. 93.
[225]
Região mais tarde chamada Palestina.
[226]
Por esta seção, devemos muito ao estudo de R. T. Kendall, Tithing: A Call to Serious, Biblical Giving,
Zondervan, Grand Rapids, 1982, p. 47-51.
[227]
Kendall, op. cit., p. 49.
[228]
Henry Lansdell, The Tithe in Scripture (Grand Rapids: Baker, 1963).
[229]
Henry Lansdell, op. cit., p. 26.
[230]
Sobre a importância fundamental da cultura na vida de uma cidade cristã e na própria Igreja, veja
de Klaas Schilder, Christ and Culture, Premier, Winnipeg, 1977 [1947] e Henry R. Van Til, The
Calvinistic Concept of Culture, Presbyterian and Reformed, Philadelphia, 1972. Veja também o
admirável estudo do Cardeal Cardinal Giuseppe Siri, La Culture – Orthodoxie, erreurs et dangers:
Orthodoxie, fléchissements, compromis, Office International, Sion, 1962. Disponível no site
Calvinisme.ch. http://calvinisme.ch/index.php/CARDINAL_Siri_-_La_Culture
[231]
Henry Lansdell, op. cit., p. 27.
[232]
O mesmo para a santa ceia, que é a celebração da Páscoa cristã – refeição sacramental que, na
Nova Aliança, tomou o lugar da Páscoa judaica – em cada vez que a celebramos devemos nos lembrar
da morte do Senhor, até que ele venha, e não da libertação do Egito, como ainda fazem os judeus.
[233]
Scott McCarty escreveu sobre o Yom Kippour em Promesses, N° 166, fim de 2008, o que segue:
A Escritura define essa cerimônia de expiação anual pela palavra hebraica “kippourim” (Êxodo 30.10;
Levítico 16.1-34; 23.27-32; 25.9; Números 29.7-11) que significa “expiações”. A expiação é, ao
mesmo tempo, a eliminação da ofensa contra o santo Deus e a purificação do ofensor (cf. Salmos 32.1;
99.8; Oseias 14.2; Neemias 9.17). Essa doutrina veterotestamentária da expiação dos pecados é
retomada e explicada no Novo Testamento. A “ propiciação” é uma outra faceta da salvação, que
designa o apaziguamento, a pacificação com Deus através de um sacrifício (Romanos 3.24-25; 1 João
4.10). Essa pacificação (Romanos 5.1) desvia [para o seu próprio Filho amado, Jesus Cristo] sua justa
ira contra o pecador e contra o seu pecado (1 João 2.2). Assim, os dois Testamentos ensinam que a
expiação (a supressão da ofensa) e a propiciação (a supressão da cólera divina) são partes integrantes da
salvação.
[234]
Henry Lansdell, op. cit., p. 44.
[235]
Seguro de velhice e de vida, mais conhecido sob a abreviação AVS, que é a coluna principal da
previdência social suíça. Visa compensar, ao menos parcialmente, a diminuição ou perda do salário em
razão da idade ou de morte. [N. do T.]
[236]
Henry Lansdell, op. cit., p. 28-29.
[237]
Dennis Wretlind, Shekels, Dollars and Sense. A Biblical Theology of Financial Stewardship,
Trafford Publishing, Victoria, 2006, p. 10-21. Trata-se de uma obra muito útil da qual devem ser
corrigidos alguns desvios dispensacionalistas.
[238]
David Martin, notas da página 117, isto é, em La Sainte Bible qui contient le Vieux et le Nouveaux
Testament expliqués par des Notes de Théologie et de Critique sur la Version Ordinaire des Églises
Réformées, revues sur les Originaux, et retouchées dans le langage, Desbordes, Mortier, Brunel,
Amsterdam, 1707.
[239]
La Bible Annotée par une société de théologie et de pasteurs. Ancien Testament, Les Livres
Historiques, I, Attinger Frères, Neuchâtel, 1889, p. 345.
[240]
Henry Lansdell, op. cit., p. 30.
[241]
Dennis Wretlind, op. cit., p. 21.
[242]
Samuel e Henry Des Marets, La Sainte Bible qui contient le Vieux et le Nouveau Testament.
Édition nouvelle, faite sur la Version de Genève, revue, et corrigée, enrichie outre les anciennes Notes,
de toutes celles de la Bible Flamande, de la plus-part de celle de M. Diodati, et de beaucoup d’autres.
Editora de Louys et Daniel Elzevier, Amsterdam, 1669, p. 96, segunda coluna, nota 26 sobre
Deuteronômio 14.28.
[243]
Livro de Tobias 1:6-9. Citado em, La Bible, tradução francesa dos textos originais por Émile Osty
com a colaboração de Joseph Trinquet, Seuil, Paris, 1973, p. 929-930.
[244]
Flavius Josèphe, Histoire ancienne des Juifs. La guerre des Juifs contre les Romains, Lidis, Paris,
1968, p. 108.
[245]
Flavius Josèphe, op. cit., p. 125.
[246]
Henry Lansdell, op. cit., p. 33. Citando Jerônimo, Commentaire sur Ézéchiel, XLV, i.
[247]
Henry Lansdell, op. cit., p. 33.
[248]
São erros antigos do dualismo marcionita e gnóstico, hoje amplamente retomado por seus
sucessores darbystas e scofieldianos, como também pelo idealismo sentimental tão corrente em todos
os meios que, implicita ou explicitamente, descartam o Antigo Testamento de sua meditação na Bíblia.
[249]
Dennis O. Wretlind, Shekels, Dollars and Sense. A Biblical Theology of Financial Stewardship,
Traffard Publishing, Victoria, 2006. Veja, particularmente, o quinto capítulo deste livro: “Financial
Stewardship in the Expanded Church of the New Testament”, p. 64-90.
[250]
John Murray, The Epistle to the Romans, Eerdmans, Grand Rapids, 1965, p. 133.
[251]
R. C. H. Lenski, The Interpretation of St. Paul’s Epistle to the Romans, Augsburg, Minneapolis,
1936, p. 772.
[252]
J. B. Lightfoot, Saint Paul’s Epistle to the Galatians, MacMillan, London, 1887, p. 217.
[253]
Essa condenação toca também as ordens católicas ditas “mendicantes”, como os franciscanos e os
dominicanos. Os servos de Deus devem ter relações com uma igreja local que atenda suas
necessidades. Veja o belo livro de Penn R. Szittya, The Antifraternal Tradition in Medieval Literature,
Princeton University Press, Princeton NJ, 1986.
[254]
R. C. H. Lenski, Romans, op. cit., p. 892. Wretlind, op. cit., p. 78.
[255]
Philip E. Hughes, Paul’s Second Epistle to the Corinthians, Eerdmans, Grand Rapids, 1962, p.
306. Citado por Wretlind, op. cit., p. 81-82. Nossa tradução.
[256]
J. B. Lightfoot, St. Paul’s Epistle to the Philippiens, Zondervan, Grand Rapids, 1953, p. 83.
[257]
Wretlind, op. cit., p. 89.
[258]
Seguimos a segunda parte da pequena brochura de Lukas Vischer, Tithing in the Early Church,
Fortress Press, Philadelphia, 1966, p. 11-30. A primeira parte dessa pequena obra, útil em razão de sua
documentação, em regra é um ataque antinomiano (do tipo barthiano) contra toda prática atual do dízimo,
como sendo uma coisa perigosa (p. 10), porque se trataria, segundo o autor, de um compromisso cristão
com o espírito de Mamon. O antinomismo barthiano de Lukas Vischer se alia, em muitos aspectos, ao de
Jacques Ellul.
[259]
Lukas Vischer, Tithing in the Early Church, Fortress Press, Philadelphia, 1966 [1959], p. 9.
[260]
L. Vischer, op. cit., p. 9-10.
[261]
Lukas Vischer, op. cit., p. 10. Essa atitude “existencialista” (como a de Jacques Ellul) repousa
sobre uma tendência gnóstica em diabolizar a matéria, neste caso os bens materiais, como também
rejeitar (de maneira barthiana) o caráter normativo por toda a Bíblia – Novo como Antigo Testamento –
da Lei divina. Veja as refutações muito cuidadosas a tais posições, totalmente heterodoxas, em diversos
estudos contidos na obra essencial de Pierre Courthial, Fondements pour l’avenir, Kerygma, Aix-en-
Provence, 1981.
[262]
Encontramo-nos próximos da utopia espiritualista, que defende um tipo de “pobreza totalmente
voluntária” própria dos franciscanos, os mais fanáticos.
[263]
L. Vischer, op. cit., p. 10-11.
[264]
É o que explicitamente ensina Jacques Ellul em sua Éthique de la liberté. Três volumes, Labor et
Fides, Genève, 1973-1989.
[265]
L. Vischer, op. cit., p. 12. As referências estão em Matthieu 23.23. Podemos ver práticas parecidas
no seio da Igreja de Genebra do tempo de Calvino. Elsie Anne McKee, John Calvin on the Diaconate
and Liturgical Almsgiving, Droz, Genebra, 1984 ; Elders and the Plural Ministry. The Role of
Exegetical History in Illuminating John Calvin’s Theology, Droz, Genebra, 1988.
[266]
Vischer comenta aqui: “É surpeendente constatar que a maior parte dos textos provenientes da
primeira igreja não contenham referências ao dízimo, palavra no singular, mas falem sempre de
dízimos no plural. Os Pais, aparentemente, compartilhavam a convicção do judaismo tardio [?],
segundo o qual as regras concernentes ao dízimo, contidas no Antigo Testamento, deviam ser
acrescentadas umas às outras” (L. Vischer, op. cit., p. 14, nota 28).
[267]
Lucas 21:1-4. Ireneu de Lião, Contre les hérésies, Cerf, Paris 2001, IV, 18, 2, p. 461-462. Citado
por L. Vischer, op. cit., p. 13-14.
[268]
São Cipriano, L’unité de l’Église, citado por L. Vischer, op. cit., p. 15. Trata-se, neste caso, de
nossa tradução a partir do inglês.
[269]
João Crisóstomo, Œuvres complètes de S. Jean Chrysostome, Tomo quinto, Bardes, Pont-à-Mousson,
1866, p. 313 (sobre Efésios 2.1-3). Texto citado em parte por L. Vischer, op. cit., p. 15-16.
[270]
Agostinho de Hipona, Sermons, X, 19, citado por L. Vischer, op. cit., p. 16.
[271]
Agostinho de Hipona, Sermons, LXXXV, 5. Citado por L.Vischer.
[272]
Jerônimo, Commentaire sur l’Évangile selon Matthieu, capítulo 2, verso 22. Citado por L.
Vischer, op. cit., p. 19.
[273]
João Crisóstomo, Homélies sur la Genèse, capítulo 35. Citado por L. Vischer, op. cit., p. 19.
[274] Faith for All of Life, Vallecito, November-December 2017.
[275]
Dennis C. Rasmussen, The Infidel and the Professor: David Hume, Adam Smith, and the
Friendship that Shaped Modern Thought, Princeton University Press, Princeton, NJ, 2017.
[276]
Lembremos que a descrição de toda a realidade baseava-se no pensamento de Aristóteles e, mais
tarde, no pensamento da escolástica tomista e reformada, sobre as quatro causas : a final, a formal, a
material e a eficiente.
[277]
Veja o apego de Nabote à sua vinha, herança de seus pais, diante das exigências tirânicas do rei
Acabe em 1 Reis, capítulo 21. Sobre a legislação concernente ao perdão de dívidas no Oriente Médio
antigo, assim como no ano do jubileu em Israel, veja Michael Hudson, ... and forgive them their debts.
Lending, Foreclosure and Redemption from Bronze Age Finance to the Jubilee Year, ISLET Verlag,
Dresden, 2018.
[278]
E. L. Hebden Taylor, Economics, Money, and Banking, The Craig Press, Nutley, NJ, 1978; The
Origin and Nature of Modern Capitalism, Christian Studies Center, Dordt College, 1975.
[279]
Francis Nigel Lee, Communist Eschatology. A Christian Philosophical Analysis of the Post-
Capitalist Views of Marx, Engels and Lenin, The Craig Press, Nutley, NJ, 1974.
[280]
Simon Ligier, L’adulte des milieux ouvriers, Dois Volumes. Tomo I, Essai de psychologie
sociale ; Tome II, Essai de psychologie pastorale, Les Éditions Ouvrières, 1950-1951.
[281]
As obras de Wilhelm Röpke disponíveis em francês e inglês podem ser encontradas Amazon.fr e
Amazon.com.
[282]
Jean-Marc Berthoud, L’Alliance de Dieu à travers l’Écriture sainte. Une théologie biblique,
L’Âge d’Homme, Lausanne, 2012.
[283]
Veja as obras de Pierre Courthial sobre esse assunto: Le jour des petits recommencements, Éditions
Messages, Lausanne, 2019 [1996] e De Bible en Bible, L’Âge d’Homme et Kerygma, Lausanne e Aix-
en-Provence, 2003, como também a do pastor, Richard Paquier.
[284]
Tomás de Aquino, Somme théologique, La Loi ancienne, Deux volumes, IaIIae Qu 98-105, Desclée
et Cie, Paris, 1971.
[285]
Rebekah A. Sheats, Pierre Viret. L’Ange de la Réformation, Association Pierre Viret, Lausanne,
2017.
[286]
Lancelot Andrewes, The morall law expounded ... that is, the long-expected, and much-desired
worke of Bishop Andrewes upon the Ten commandments : being his lectures many yeares since in
Pembroch-Hall Chappell, in Cambridge, London, 1642.
[287]
Veja sobre Martinho Lutero, “Jésus est né Juif” [1523], Œuvres, Tome IV, Labor et Fides, Genève,
1958, p. 51-76 ; e sobre João Calvino, Réponses aux questions et objections d’un certain Juif, Labor et
Fides, Genève, 2010 [1575].
[288]
Veja a obra sempre tão atual de Alphonse Morel, Messianisme temporel et Messianisme spirituel.
Réflexions sur les idéologies contemporaines, Cahiers de la Renaissance vaudoise, Lausanne, 1988 e a de
Marcel Regamey, Évangile et politique, Cahiers de la Renaissance Vaudoise, Lausanne, 1973.
[289]
Esse consenso imanente, hoje presente em todo lugar, esteve também na alma do conceito de
“soviete” comunista. Tratava-se, originalmente, de um conselho de operários, fechado em si mesmo,
movidos por ideias progressistas. Ele tornou-se o centro do poder “soviético”. Qualquer desacordo com o
“soviete” levava, como em toda forma dinâmica de grupo, à exclusão de quem perturbasse a unidade
consensual do grupo. Essa noção está no centro do “pensamento único” ou do pensamento “politicamente
correto”, ou ainda, da novilíngua do totalitarismo de estado absoluto descrito no livro de cunho político e
altamente realista de Georges Orwell, 1984.
[290]
Jules Monnerot, Sociologie du communisme. Echec d’une tentative religieuse au XXe siècle,
Hallier, Paris, 1979 1963]; Sociologie de la Révolution. Mythologies politiques du XXe siècle.
Marxistes-léninistes et fascistes. La nouvelle stratégie révolutionnaire, Fayard, Paris, 1969.
[291]
Augusto del Noce, The Crisis of Modernity, McGill-Queen’s University Press, Montreal, 2015.
Veja também: L’irréligion occidentale, Fac-éditions, Paris, 1995 e L’époque de la sécularisation,
Syrtes, Paris, 2001.
[292]
Sobre isso veja (entre muitas obras desse autor) os dois livros clássicos de Thomas Molnar (1921-
2010), L’Utopie. Éternelle Hérésie, Beauchesne, Paris, 1967 e Twin Powers. Politics and the Sacred,
Eerdmans, Grand Rapids MI, 1988.
[293]
Veja o estudo fundamental de William C. Placher, The Domestication of Transcendance. How
Modern Thinking about God Went Wrong, Westminster John Knox Press, Louisville, KY, 1996.
[294]
Veja Cornelius Van Til, Christian Theory of Knowledge, Presbyterian and Reformed,
Philadelphia, PA, 1969 e Rousas John Rushdoony, The One and the Many. Studies in the Philosophy of
Order and Ultimacy, Ross House Books, Vallecito, CA, 2007 [1978].
[295]
“God has given Trump authority to take out Kim Jong-um”, Declaração do conselheiro evangélico
do Presidente, Information Clearing House, 8 de outubro de 2017. Extraído de um artigo
primeiramente publicado pelo Washington Post em 9 de agosto de 2017.
[296]
Agradeço ao professor Paul Wells por suas observações que facilitaram a redação deste parágrafo.
[297]
Sobre John Knox veja, particularmente, o belo estudo de Pierre Janton, John Knox (ca. 1513-
1572). L’homme et l’œuvre, Didier, Paris, 1967 e, mais particularmente, a seção intitulada “A Igreja e a
sociedade”, p. 287-358. No que diz respeito ao pensamenteo político e ético de John Knox, Pierre
Janton escreveu: “Numa sociedade na qual cada um se define por sua condição imutável, toda ruptura
da ordem instituída por Deus leva ao caos, figura da ira divina. A harmonia do mundo, como aquela
harmonia do casal, só subsiste se cada um tiver o seu devido lugar. Tanto o homem como a mulher
podem degenerar, isto é, sair de seu gênero e tornar-se “inferior aos brutos”, quando ele se afeminiza”.
Cf. Pierre Janton, John Knox (v. 1513-1572). Réformateur écossais, Cerf, Paris, 2013, p. 191.
Acrescentamos que a ordem criacional, em nossos dias ridicularizada por todos, é, verdadeiramente, “a
ordem instituída por Deus”, cuja ruptura, hoje como ontem, “leva ao caos”, que não é outra coisa senão
uma “figura da cólera divina”.
[298]
Quem não é contra nós é por nós (Marcos 9.40).
[299]
Quem não é por mim é contra mim; e que comigo não ajunta espalha (Mateus 12.30).
[300]
Esses textos foram publicados no número de maio-junho de 2018 de Faith for All of Life,
Vallecito.

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