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Aula Sobre M edicalização na Escola e TDAH

Texto: “Para uma crítica da medicalização na educação” Marisa Eugênia


Melillo Meira

**Medicalização não é o mesmo que medicação de doenças


 Este artigo analisa criticamente o processo crescente de medicalização
da vida cotidiana e suas expressões contemporâneas no campo da
educação escolar à luz dos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural.
 MEDICALIZA ÇÃO é o processo por meio do qual são deslocados para o
campo médico problemas que fazem parte do cotidiano dos indivíduos.
Desse modo, fenômenos de origem social e política são convertidos em
questões biológicas, próprias de cada indivíduo.
 A medicalização da vida cotidiana, capaz de transformar sensações
físicas ou psicológicas normais (tais como insônia e tristeza) em sintomas
de doenças (como distúrbios do sono e depressão), vem provocando
uma verdadeira “epidemia ” de diagnósticos.
 Os progressos tecnológicos, os quais permitem a produção de
equipamentos e testes capazes de fazer diagnósticos de indivíduos que
ainda não apresentam sintomas de doenças, aliados a alterações
contínuas dos valores de referência utilizados para se diagnosticar
doenças, têm como consequência principal a transformação de grandes
contingentes de pessoas em pacientes potenciais.
 Essa “epidemia” de diagnósticos produz na mesma escala uma “epidemia”
de tratamentos, muitos dos quais altamente prejudiciais à saúde,
especialmente nos casos em que não seriam de fato necessários.
 Tal situação é altamente vantajosa para a indústria farmacêutica, que
vem cada vez mais ocupando lugar central na economia capitalista. Os
grandes laboratórios vêm mostrando grande capacidade e eficiência na
utilização de concepções equivocadas sobre doença e doença mental,
amplamente enraizadas no senso comum, o que lhes permite alimentar
continuamente o “sonho” de resolução de todos os problemas por meio do
controle psicofarmacológico dos comportamentos humanos.
 Não se trata obviamente de criticar a medicação de doenças, nem de
negar as bases biológicas do comportamento humano.
 O que se defende é uma firme contraposição em relação às tentativas de
se transformar problemas de viver em sintomas de doenças ou de se
explicar a subjetividade humana pela via estrita dos aspectos orgânicos.
 As descobertas científicas no campo da genética e da
psicofarmacologia precisam ser compreendidas em suas necessárias
articulações com o contexto histórico concreto.
Nas palavras do autor: que diminuam a “depressão” dos indivíduos; a genética
pode determinar qual a origem cromossômica de cada suspiro, grito ou gemido
que venhamos a dar, mas o que nenhuma das duas pode fazer é criar um sujeito
moralmente responsável pelo que faz, diz ou sofre, se insistir em desconhecer ou
não discutir as razões de nossos feitos, discursos ou sofrimentos (Costa, 1994,
p.13)
 Há uma necessidade de rompermos com a esfera estreita da perspectiva
individualizante que sustenta as visões biologizantes, como condição
para entrarmos no campo da reflexão crítica sobre valores, fundamental
para a compreensão do próprio significado de saúde e doença em suas
múltiplas determinações.
Tomando como fundamento os pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural,
compreendemos que a dimensão biológica é a primeira condição para que um
indivíduo se coloque como um “candidato” à humanidade. Entretanto, a
humanização só pode se concretizar quando, em contato com o mundo objetivo e
humanizado, transformado pela atividade real de outras gerações e por meio da
relação com outros homens, o homem aprende a ser homem (Leontiev, 1978a).
É o processo de apropriação da experiência acumulada pelo gênero humano no
decurso da história social, possível apenas na relação com outros homens, que
permite a aquisição das qualidades, capacidades e características humanas e a
criação contínua de novas aptidões e funções. De modo diferente dos animais, o
homem garante suas aquisições, não se adaptando ao mundo dos objetos
humanos, mas sim se apropriando deles. A apropriação é “um processo por meio
do qual se produz na criança o que nos animais se consegue mediante a
hereditariedade: a transmissão para o indivíduo das conquistas da espécie”
(Leontiev, 1978a, p.105).
O social não apenas “interage” com o biológico, ele é capaz de criar novos
sistemas funcionais que engendram novas formas superiores de atividade
consciente. Como indica Vigotski (1995), é preciso compreender o
desenvolvimento humano como um processo vivo, de permanente contradição
entre o natural e o histórico, o orgânico e o social.
É a partir dessa perspectiva que vamos analisar as expressões contemporâneas
da medicalização no campo da educação.

A medicalização na educação
 O discurso da conexão entre problemas neurológicos e o não aprender
ou não se comportar de forma considerada adequada pela escola
apresenta-se de forma cada vez mais frequente no cotidiano das
escolas e dos serviços públicos e particulares de saúde para os quais se
encaminham grandes contingentes de alunos com queixas escolares.
 Nessa perspectiva se considera que crianças apresentam dificuldades
escolares por causa de disfunções ou transtornos neurológicos
(congênitas ou provocadas por lesões ou agentes químicos), as quais
interferem em campos considerados pré-requisitos para a
aprendizagem, tais como: percepção e processamento de informações;
utilização de estratégias cognitivas; habilidade motora; atenção; linguagem;
raciocínio matemático; habilidades sociais etc.
 Pesquisas realizadas pelas autoras evidenciam que tanto profissionais
da saúde quanto da educação referem-se de modo unânime a
problemas biológicos como causas determinantes do não aprender
na escola.
o Tais “explica ções”, repetidas à exaustão e frequentemente
evocadas como verdades científicas consagradas, colocam
predominantemente o foco em dois grandes temas: a desnutrição
e as disfunções neurológicas.
No que tange ao primeiro tema, Collares e Moys és dedicaram-se, em várias obras,
ao desvelamento dos mitos que estabelecem relações causais entre a
des nutrição e as dificuldades de es colarização.
 As autoras afirmam que crianças que frequentam a rede pública de ensino,
comumente rotuladas como desnutridas, são na verdade portadoras
de desnutrição leve, de 1º grau, e que não trazem nenhum tipo de
alteração para o sistema nervoso central. Além disso, as funções
neurológicas que poderiam ser afetadas pela desnutrição nem sequer
estariam presentes por volta de sete anos, não podendo, portanto, serem
admitidas como explicações plausíveis para o não aprender.
Tratemos agora do tema das disfunções neurológicas, muito mais nebuloso e
complexo que o anterior. Dentre as muitas disfunções comumente associadas ao
desempenho escolar de crianças, destacaremos os mais referidos por
profissionais da saúde e educação na atualidade: Transtorno de Déficit de
Atenção e Hiperatividade (TDAH) e o Transtorno de Oposição e Desafio (TOD).
Iniciamos com a análise da definição, dos critérios diagnósticos e do tratamento
indicado para o TDAH.

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)


 Já no final do século XIX há registros de pesquisas sobre crianças
agressivas com dificuldades de controlar seus impulsos.
 Apenas a partir da década de 1970, o interesse dos pesquisadores pelo
TDAH aumenta.
 Na década de 1990 ele se transforma em um dos principais motivos de
encaminhamento para tratamento médico e psicológico.
 Vejamos a DEFINIÇÃO DE TDAH e algumas considerações gerais sobre
sintomas, apresentadas no Manual de Diagnóstico e Estatística das
Perturbações Mentais IV Edição (DSM-IV) da Associação Americana de
Psiquiatria4:
o A característica essencial do TDAH é um padrão persistente de
desatenção e/ou hiperatividade, mais frequente e severo do que
aquele tipicamente observado em indivíduos em nível equivalente
de desenvolvimento. [...]
o Os indivíduos com esse transtorno podem não prestar muita
atenção a detalhes ou podem cometer erros por falta de
cuidados nos trabalhos escolares ou outras tarefas.
o O trabalho frequentemente é confuso e realizado sem
meticulosidade nem consideração adequada.
o Os indivíduos com frequência têm dificuldade para manter a
atenção em tarefas ou atividades lúdicas e consideram difícil
persistir em tarefas até seu término.
o Eles frequentemente dão a impressão de estarem com a mente em
outro local, ou de não escutarem o que recém foi dito. [...] Esses
indivíduos com frequência têm dificuldades para organizar tarefas
e atividades.
o As tarefas que exigem um esforço mental constante são
vivenciadas como desagradáveis e acentuadamente aversivas.
[...]
o Os indivíduos com este transtorno são facilmente distraídos por
estímulos irrelevantes e habitualmente interrompem tarefas em
andamento para dar atenção a ruídos ou eventos triviais. [...]
o A hiperatividade pode manifestar-se por inquietação ou remexer
-se na cadeira, por não permanecer sentado quando deveria, por
correr ou subir excessivamente em coisas quando isto é
inapropriado, por dificuldade em brincar ou ficar em silêncio em
atividade de lazer, por frequentemente estar “a todo vapor” ou
“cheio de gás” ou por falar em excesso. [...]
o Os indivíduos com este transtorno tipicamente fazem comentários
inoportunos, interrompem demais os outros, metem-se em
assuntos alheios, agarram objetos de outros, pegam coisas que
não deveriam tocar e fazem palhaçadas.
o A impulsividade pode levar a acidentes e ao envolvimento em
atividades potencialmente perigosas, sem consideração quanto às
possíveis consequências.
o DESATEN ÇÃO, HIPERATIVIDADE E IMPULSIVIDADE
 No site da Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA) o TDAH é
DEFINIDO como um transtorno neurobiológico de causas genéticas
que aparece na infância e frequentemente acompanha o indivíduo por
toda a sua vida.
 Nesse mesmo site é apresentado um questionário denominado SNAP-IV6,
cujo objetivo é auxiliar a identificação de possíveis sintomas do TDAH em
alunos e no qual constam as seguintes afirmações:
o não consegue prestar muita atenção a detalhes ou comete erros por
descuido nos trabalhos da escola ou tarefas;
o tem dificuldade de manter a atenção em tarefas ou atividades de
lazer;
o parece não estar ouvindo quando se fala diretamente com ele;
o não segue instruções até o fim e não termina deveres de escola,
tarefas ou obrigações;
o tem dificuldade para organizar tarefas e atividades; evita, não gosta
ou se envolve contra a vontade em tarefas que exigem esforço
mental prolongado;
o perde coisas necessárias para atividades (p. ex: brinquedos,
deveres da escola, lápis ou livros);
o distrai-se com estímulos externos; é esquecido em atividades do dia
a dia;
o mexe com as mãos ou os pés ou se remexe na cadeira;
o sai do lugar na sala de aula ou em outras situações em que se
espera que fique sentado;
o corre de um lado para outro ou sobe demais nas coisas em
situações em que isto é inapropriado;
o tem dificuldade em brincar ou envolver-se em atividades de lazer de
forma calma;
o não para ou frequentemente está a “mil por hora”;
o fala em excesso; responde às perguntas de forma precipitada antes
de elas terem sido terminadas; tem dificuldade de esperar sua vez;
o interrompe os outros ou se intromete (p.ex. mete-se nas
conversas/jogos)
 Após ler cada uma dessas afirmações, o professor deve escolher a opção
que considera mais adequada dentre as seguintes: nem um pouco, só um
pouco, bastante e demais.
Após a escolha das opções, as respostas são avaliadas. Casos nos quais pelo
menos seis itens sejam marcados como “BASTANTE ” ou “DEMAIS ”, nas
afirmações de 1 a 9, serão considerados indicativos de que existem mais
sintomas de desatenção que o esperado em uma criança ou adolescente.
Naqueles casos nos quais existam pelo menos seis itens marcados como
“BASTANTE ” ou “DEMAIS ”, nas afirmações de 10 a 18, isso será considerado
indicativo de que existem mais sintomas de hiperatividade e impulsividade que
o esperado em uma criança ou adolescente.
 Tanto a descrição do transtorno quanto o tipo de sintomas que sustentam o
seu diagnóstico revelam a falta de uma análise crítica sobre as relações
entre os fenômenos que ocorrem na educação e o contexto histórico-
social que a determina. Sem essa reflexão, o resultado é inevitável:
muitas crianças absolutamente normais podem iniciar uma “carreira ”
de portadores de dificuldades de aprendizagem.
 A consequência lógica desse olhar patologizante é a indicação de
tratamento das crianças com TDAH o mais cedo possível.
 Grevet, Salgado, Zeni, & Belmonte-de-Deus (2007, p. 37), por exemplo,
defendem que o tratamento seja “vigoroso e precoce”, uma vez que
consideram que o transtorno provoca alterações na conduta que se
mantêm na vida adulta, inclusive aumentando as chances de
envolvimento com atividades criminosas, já na adolescência.
Na grande maioria dos casos, o tratamento envolve a administração de um
medicamento denominado ritalina. Trata-se do metilfenidato, do grupo das
anfetaminas, que atua como um estimulante do sistema nervoso central,
potencializando a ação de duas substâncias cerebrais: a noradrenalina e a
dopamina. Atualmente existe no mercado uma nova apresentação do
metilfenidato denominada concerta.
 Na bula da ritalina, bastante extensa, constam várias informações
importantes, entre as quais destacamos: “o medicamento pode provocar
muitas reações adversas; seu mecanismo de ação no homem ainda não
foi completamente elucidado e o mecanismo pelo qual o multifenidato
exerce seus efeitos psíquicos e comportamentais em crianças não está
claramente estabelecido, nem há evidência conclusiva que demonstre
como esses efeitos se relacionam com a condição do sistema nervoso
central; a etiologia específica dessa síndrome é desconhecida e não há
teste diagnóstico específico; o diagnóstico correto requer a investigação
médica, neuropsicológica, educacional e social; pode causar
dependência física ou psíquica” (grifos nossos).
Apesar da clara e assumida complexidade do diagnóstico, da imprecisão na
própria definição do transtorno, do desconhecimento sobre todos os fatores
envolvidos na ação do medicamento sobre o sistema nervoso central e das
advertências feitas pelo próprio fabricante sobre reações adversas e riscos de
dependência, o consumo do medicamento aumenta em velocidade crescente.
 De acordo com o Instituto Brasileiro de Defesa dos usuários de
Medicamentos IDUM, nos últimos anos o consumo do metilfenidato
aumentou em 1616%. Em 2000 foram vendidas 71 mil caixas e em 2008
esse número chegou a 1.147.000 (um milhão e cento e quarenta e sete mil)
caixas.
 Além do evidente caráter ideológico da configuração dada ao transtorno,
ainda chama a atenção a total inconsistência no tratamento teórico
dos fenômenos envolvidos. Embora se coloque o foco na atenção e na
hiperatividade, tais conceitos são apresentados como dados em si, sem
nenhuma reflexão sobre seu significado.

PHC - Do ponto de vista da Psicologia Histórico-Cultural, a atenção depende


do desenvolvimento da capacidade humana de selecionar os estímulos e do
controle voluntário do comportamento, sem os quais não seria possível aos
homens desenvolver uma atividade coordenada com vistas a alcançar fins
determinados (Luria, 1991).
O caráter social do desenvolvimento da atenção foi amplamente analisado por
Vigotski. Para o autor, o indivíduo, no decorrer de sua vida, elabora uma série de
signos artificiais que lhe permitem conhecer os estímulos que o afetam, dominar
seus processos de comportamento e, portanto, assumir o controle do que faz,
sente e pensa (Vigotski, 1995).
 A atenção é uma função psicológica que deve ser constituída ao longo
de processos educativos na infância e cujo desenvolvimento depende da
qualidade dos mediadores culturais oferecidos pelos adultos (Eidt &
Tuleski, 2007b).
 Desse modo, não se trata de esperar que as crianças naturalmente
sejam atentas na escola, independente dos conteúdos, da qualidade do
trabalho pedagógico e das necessidades e possibilidades do
desenvolvimento infantil.
 É preciso que os professores auxiliem cada criança a desenvolver cada
vez mais a consciência e o controle sobre seu próprio comportamento de
tal forma que ela possa propor-se, de modo intencional e deliberado, a
focalizar sua atenção no processo de apropriação dos conteúdos
escolares.
 IMPORTATNE: É um verdadeiro contrassenso que a escola exija da
criança funções psicológicas superiores em relação às quais deveria
assumir um papel diretivo e efetivo.
 A lógica biologizante tem levado pessoas a se perguntarem “o que a
criança tem que não consegue prestar atenção?”.
 É preciso formular outro tipo de pergunta: o que na escola produz a falta de
atenção e concentração? Essa mesma problematização deve ser feita em
relação à hiperatividade.
A primeira questão a ser esclarecida é que não é possível falar de fato em
aprendizagem se não houver um aluno que participe ativamente do processo
educativo. O pensamento educacional crítico já evidenciou, de modo suficiente, a
impossibilidade de simplesmente se “depositar” o saber na “cabeça” dos alunos
nos moldes da “educação bancária”, denunciada por Paulo Freire. Entretanto, a
contraposição à pedagogia tradicional aqui defendida nada tem a ver com as
ideias escolanovistas, constitutivas do ideário construtivista que, para
superestimarem a participação dos alunos, acabam por negar a importância da
transmissão do conhecimento feita pelo professor, valorizando apenas as
aprendizagens que aqueles fazem sozinhos, de acordo com seus interesses
imediatos9.
 À luz da Psicologia Histórico-Cultural, compreendemos que a atividade
é uma categoria central, já que todo o desenvolvimento psicológico
do homem é estruturado a partir da atividade humana.
 Em consonância com o marxismo, os homens se formam no processo de
trabalho no qual produzem os meios necessários para a satisfação de suas
necessidades biológicas e também daquelas mais complexas, geradas nas
relações sociais.
 Por meio do trabalho se objetivam nos produtos que constroem,
transferindo para os objetos (materiais ou não) sua atividade física e
mental. Nesse processo de objetivação, os homens criam e transformam
continuamente a cultura humana.
 O conceito de atividade tal como foi desenvolvido, especialmente por
Leontiev (1978a, 1978b), traz inúmeras repercussões para a reflexão
crítica sobre as práticas educativas.
 Por ora, vamos nos deter apenas em uma questão que nos interessa mais
diretamente nesse momento: o aluno deve manter-se ativo no processo
educativo fundamentalmente porque essa é uma condição
indispensável à apropriação dos conteúdos escolares. Como destaca
Mello (2003), cabe ao professor dirigir intencionalmente o processo
educativo, mas este só terá sentido se as crianças puderem participar
dentro dos limites e possibilidades de sua condição de alunos.
Esclarecida a importância e o sentido da atividade dos alunos para o
desenvolvimento de propostas educacionais qualitativamente superiores, cabe
indagarmos o que seria a hiperatividade.
 Qual seria o limite existente entre um aluno que participa ativamente e
um aluno considerado hiperativo? De quais fenômenos estamos
tratando? Doenças ou desvios da norma? Transtornos ou não adaptação
à ordem estabelecida?
 Concordamos com Eidt (2004) no sentido de que há muitas semelhanças
nas descrições comportamentais de crianças e adolescentes com
diagnóstico de TDAH e daqueles considerados indisciplinados.
 Vejamos a listagem dos comportamentos indisciplinados mais
apontados pelos professores em relação a seus alunos: conversam muito,
são agitados, não ficam sentados, falam palavrões, são
agressivos/violentos (brigam, ofendem ou agridem fisicamente
colegas, professores e funcionários), respondem afrontosamente ao
professor, não se concentram nas atividades, exibem roupas ou
comportamentos considerados indecentes, fumam ou usam álcool e
drogas na escola e destroem ou danificam materiais próprios e dos
colegas ou, ainda, o patrimônio da escola.
o Qual seria efetivamente a diferença entre esses comportamentos e
os sintomas de TDAH anteriormente descritos? Em uma visão
tradicional, o sentido da disciplina é o da obediência e, dependendo
das escolas e dos professores, um mesmo comportamento pode ou
não ser considerado indisciplinado. Ou, ainda, pode ser visto como
sintoma de TDAH.
 Novamente nos deparamos, por um lado, com o tema da normatização das
condutas e, por outro, com a mesma atitude passiva de professores que
esperam que, ao entrar na escola, os alunos rompam de maneira imediata
com as formas de comportamento cotidianas, adaptem-se de modo
completo às regras e normas institucionais e apresentem-se “naturalmente”
disciplinados e silenciados.
 É evidente que não se pode realizar nenhum trabalho pedagógico sem
disciplina. Entretanto, ela é importante apenas quando construída
cotidianamente com a finalidade de se colocar a serviço da função social
da escola: socializar conhecimentos e desenvolver pensamento crítico.
 E se pudéssemos romper com esse olhar que patologiza o sujeito
indisciplinado que se encontra na origem dos diagnósticos de TDAH e
mudássemos o foco, buscando compreender como diferentes contextos
e práticas produzem a indisciplina?
 Talvez então fosse possível trazer para o centro desse debate situações de
miséria social que produzem sentimentos de desesperança; a
disseminação de modelos violentos e “hiperativos” em todos os espaços
sociais; o desinteresse pelos problemas coletivos e a exacerbação do
individualismo; a degradação das escolas públicas; a inadequação das
propostas pedagógicas; a desvalorização dos professores; os
relacionamentos sociais opressivos e desumanizadores.
 Mas, infelizmente, estamos caminhando cada vez mais em direção ao
recrudescimento da patologização.
O Transtorno Desafiante de Oposição (TOD)
 Segundo Grevet e cols. (2007), perto de 70% dos pacientes com TDAH
apresentam maior prevalência de comorbidades do que pessoas sem o
transtorno.
 Dentre os transtornos associados, destaca-se o transtorno desafiante de
oposição (TOD), que, segundo os autores, pode ser diagnosticado em até
60% das crianças e 40% dos adultos com TDAH.
 No DSM-IV encontramos a seguinte definição desse transtorno:
o A característica essencial do TOD é um padrão recorrente de
comportamento negativista, desafiador, desobediente e hostil para
com figuras de autoridade, que persiste por pelo menos seis
meses.
o [...] os comportamentos negativistas ou desafiadores são expressados
[sic] por teimosia persistente, resistência a ordens e relutância em
comprometer-se, ceder ou negociar com adultos ou seus pares.
o O desafio também pode incluir testagem deliberada ou persistente
dos limites, geralmente ignorando ordens, discutindo e deixando de
aceitar a responsabilidade pelas más ações.
o A hostilidade pode ser dirigida a adultos ou a seus pares, sendo
demonstrada ao incomodar deliberadamente ou agredir verbalmente
outras pessoas.
 Trata-se de um transtorno disruptivo (inesperado) que leva os indivíduos a
“perderem facilmente o controle se as coisas não seguem a forma
que eles desejam”.
 Para se chegar ao diagnóstico do transtorno desafiante de oposição, o
DSM-IV recomenda que se observe a existência de pelo menos quatro
sintomas entre os que seguem:
o “encoleriza-se frequentemente; discute com adultos ou figuras de
autoridade; costuma desafiar as regras dos adultos; faz coisas
deliberadamente para aborrecer a terceiros; culpa os outros pelos
seus próprios erros; sente-se ofendido com facilidade; tem
respostas coléricas quando contrariado; é rancoroso e vingativo
quando desafiado ou contrariado” (grifos nossos).
o Apesar de recomendarem alguns cuidados na definição do
diagnóstico de TOD, Grevet e cols. (2007) não analisam os próprios
conceitos que fundamentam o diagnóstico: desafio e oposição.
 Questões vitais não são respondidas, até porque nem sequer são
formuladas. A que tipo de ordem se desobedece? Qual o conteúdo da
oposição? Que regras são desafiadas? Por que o não cumprimento das
regras tem que terminar necessariamente em discussão com os adultos?
Que relações assimétricas de poder são essas entre adultos e crianças
que apenas são capazes de produzir confronto e não diálogo? Os
sentimentos de cólera não estariam sendo produzidos pela vivência
continuada de situações de exclusão e preconceito? O que está sendo
tratado como resistência e confrontação patológica não seria a expressão
de pensamento crítico sufocado e neutralizado pela ciência já no seu
nascedouro? Que tipo de homem estamos formando? Para que sociedade?
 Tudo indica que nessa perspectiva as relações humanas entre
professores e alunos na escola são pensadas apenas a partir de
vínculos de dependência, estes sim patológicos porque
altamente produtores de frustração e alienação. A ausência de
reciprocidade e respeito mútuo impede a efetivação de
relações saudáveis e humanizadoras.
Estamos diante da total ausência de crítica! Estamos pedindo às crianças
que prestem atenção em tudo o que lhes é apresentado, mesmo que esses
conteúdos não façam o menor sentido! E, ainda mais: que não se irritem
com nada disso, mesmo que por vezes a situação lhes pareça insuportável!

Finalizando
O tema da exclusão social nos põe diante de um conjunto grande de incertezas
em relação à sociedade contemporânea e à nossa capacidade de sair do
abismo que elas representam.
Mas, na angústia que o motiva, representa também a demanda de uma
compreensão positiva e libertadora das causas e características dos problemas
que a consciência social assinala, teme e questiona. O que pede, portanto, o
trabalho intelectual crítico em relação à prática social e política fundada na
estreiteza e nas deturpações dessa concepção limitada e limitante. E pede,
também, às ciências sociais o desvendamento dos conteúdos do projeto potencial
que encerra, coisas que o senso comum não tem tido condição de fazer”. J. S.
Martins (2002, p. 12-13)
A constatação e análise crítica do aumento crescente do processo de
medicalização da educação, bem como a identificação de suas manifestações
contemporâneas são fundamentais, porém ainda insuficientes. É preciso ir além e
compreender a que demandas sociais ela vem atender, desvelando tanto o
processo de produção dos fenômenos do não aprender e não se comportar na
escola, quanto os fatores que determinam sua identificação por profissionais da
saúde e da educação como sintomas de doenças e transtornos.
A medicalização constitui-se em um desdobramento inevitável do processo de
patologização dos problemas educacionais que tem servido como justificativa
para a manutenção da exclusão de grandes contingentes de crianças pobres que,
embora permaneçam nas escolas por longos períodos de tempo, nunca chegam
a se apropriar de fato dos conteúdos escolares.
Como destaca Bourdieu (1997), esse processo de “exclusão do interior” garante a
manutenção da exclusão dos mais pobres e se apresenta como uma das formas
contemporâneas importantes de produção da miséria social. Crianças e jovens
das camadas populares continuam a ser eliminados. Entretanto, ocorre uma
diferença fundamental:
essa eliminação é adiada, já que se mantêm na escola os excluídos potenciais.
Para esses “marginalizados por dentro”, a escola permanece como uma espécie
de “terra prometida” ou uma miragem que se mantém sempre presente no
horizonte, mas que recua à medida que tentam se aproximar dela.
Como explicar essa situação absolutamente evidente nas estatísticas
educacionais? Qual seria a explicação para o fato de que os alunos
permanecem na escola, mas não aprendem? A resposta que vem sendo dada
de diferentes formas é clara: nem todas as crianças reuniriam as condições
necessárias para aprender os conteúdos escolares. A escola é para todos, mas
nem todos podem aproveitar essa oportunidade em decorrência de problemas
individuais. Essa é a essência da patologização e o ponto de partida para a
consolidação do processo de medicalização.
Em síntese, a escola não cumpre sua função social de socialização do saber e
produz problemas que serão tratados como demandas para a saúde em
diferentes espaços sociais (escolas, serviços públicos de saúde, saúde mental e
assistência social, consultórios etc.).
A humanidade produziu inúmeras possibilidades de desenvolvimento, entretanto a
grande maioria dos indivíduos encontra-se submetida a processos de
empobrecimento material e espiritual. É nessa situação que se encontram as
crianças e jovens cujas capacidades de desenvolvimento são aprisionadas nas
redes da patologização que se tecem a muitas mãos no interior das escolas.
O impedimento de acesso das crianças pobres aos bens culturais é parte de um
processo de ocultação da produção e reprodução das desigualdades sociais e,
por isso, exige um trabalho intelectual crítico, capaz de realizar rupturas
epistemológicas e desenvolver novos posicionamentos em relação à sociedade e
à educação.
A Psicologia tem que se comprometer de fato com o rompimento com a
patologização, tomando como objeto de ação e reflexão o encontro entre os
alunos e a educação e contribuindo para que a escola cumpra seu papel social
(Meira, 2003, 2007). Essa é uma tarefa que envolve uma atitude de permanente
avaliação crítica da realidade e a articulação de elaborações teóricas que se
constituam em indicativos para a organização consciente e deliberada de ações
com vistas à garantia de condições que permitam o máximo desenvolvimento
possível dos indivíduos.

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