Identidade Antropofágia e Identidade Nacional
Identidade Antropofágia e Identidade Nacional
Identidade Antropofágia e Identidade Nacional
RESUMO
Este artigo tem como objetivo principal pensar a noção de identidade nacional brasileira, a
partir da Antropofagia de Oswald de Andrade. Para isso, num primeiro momento tentamos
formular e re-construir uma Identidade Antropófaga, a partir dos conceitos de abertura
exogâmica e não-identidade. Em seguida, utilizamos esses conceitos para pensar uma
possível interpretação de Brasil e da identidade nacional brasileira por Oswald de Andrade.
Nossa hipótese é de que se é possível falar de uma perspectiva de Brasil e de uma identidade
nacional a partir da Antropofagia oswaldiana, ela está em íntima ligação com a noção de
identidade antropófaga, de uma identidade que é e não é.
PALAVRAS-CHAVE: Oswald de Andrade; Antropofagia; Identidade Antropófaga; Identidade
Nacional Brasileira.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo principal pensar la noción de identidad nacional brasileña,
desde la Antropofagia de Oswald de Andrade. Para eso, en un primero momento intentamos
formular y re-construir una Identidad Antropófaga, a partir de los conceptos de apertura
exogâmica y no-identidad. A continuación, utilizamos esos conceptos para pensar una posible
interpretación de Brasil y de la identidad nacional brasileña por Oswald de Andrade.
Suponemos que si es posible hablar de una perspectiva de Brasil y de una identidad nacional
a partir de la Antropofagia oswaldiana ella esta en intima ligación com una noción de identidad
antropófaga, de una identidad que es y no es.
PALABRAS-CLAVE: Oswald de Andrade; Antropofagia; Identidad Antropófaga; Identidad
Nacional Brasileña.
I
A cultura, a civilização só me interessam enquanto
sirvam de alimento, enquanto sarro, prato
suculento, dica pala, informação.
1
Graduando em Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB).
Identidade antropófaga
plasmado nas selvas tropicais em íntima ligação com a terra e com uma não-
identidade? Todo aquele que é natural ou habitante do território cujo poder está sob a
tutela da República Federativa do Brasil? Afinal, o que significa ser brasileiro?
Compartilhar uma mesma língua, um mesmo passado histórico? Se identificar com
um mesmo patrimônio cultural?
De toda forma o Brasil, nomeado através de um produto, de um comércio e de
um negócio para o desprazer daqueles que, apegados à fé, preferiam que
continuássemos a chamar-nos Santa Cruz, sempre pareceu ser um espaço
aterritorial, uma ilha descoberta por “acaso” no meio do Oceano Atlântico, que em
nenhum momento foi relacionada por Portugal como pertencente ao mesmo espaço
geográfico e continental da América Espanhola. Tudo se passa como se o Brasil
estivesse sempre à deriva, fosse em si um espaço todo a parte do restante da
América. É o mito da Ilha Brasil transposto para o Novo Mundo.2
Além do mais, o Brasil colonial parece ter sempre se revestido de uma
provisoriedade, a vida mesma estava além-mar, na Metrópole, aqui “era a terra em
que os sentenciados vinham cumprir pena, os aventureiros ganhar dinheiro e os
nobres executar as ordens do Rei ou fazer carreira”.3 De acordo com Luiz Felipe de
Alencastro “o Brasil se formou fora do Brasil”,4 é como se o país tivesse se
constituído e só pudesse pensar a si mesmo a partir de uma exterioridade e de um
descentramento. Em todo caso “é como se o brasileiro fosse uma espécie de
estrangeiro para si próprio”,5 visto e vendo-se sempre de fora e pelo Outro. Mas não
seria esse o princípio de toda identidade? O Eu só consegue se reconhecer enquanto
tal porque existe o Outro. “Je est un autre”, dizia o antropófago Rimbaud.
É a partir dessa introdução que queremos pensar o Brasil e o brasileiro através
de Oswald de Andrade e da Antropofagia. Como a obra oswaldiana e, em particular, a
Antropofagia, nos ajuda a pensar o Brasil? De que forma, estando inserida no debate
acerca da identidade nacional, ela nos dá elementos para traçar uma perspectiva
brasileira de Brasil? É seguindo essas questões que este artigo se inicia explicitando
a crise das identidades e das sociedades da modernidade tardia formulada por Stuart
2
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
3
JAGUARIBE, Hélio. Idéias para a filosofia no Brasil. In: Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de
Filosofia. (Promovido pelo Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF) sob os auspícios da Reitoria da
Universidade de São Paulo). Volume Primeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1950. p. 159.
4
ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
5
ROCHA, João Cezar de Castro. Oswald em cena: o Pau-Brasil, o brasileiro e o Antropófago. In:
Antropofagia hoje? Oswald de Andrade em cena. org. de João Cezar de Castro Rocha & Jorge Ruffinelli.
São Paulo: É Realizações, 2011. p. 11.
Hall e, em seguida, expondo indícios que possam nos ajudar a pensar uma identidade
antropófaga, formulada de maneira esparsa no Manifesto Antropófago e na Revista de
Antropofagia, e como ela se reflete numa hipótese de leitura oswaldiana acerca da
identidade nacional brasileira.
Para Stuart Hall, na obra “A identidade cultural na pós-modernidade”,
principalmente a partir do século XX, inicia-se uma crise do sujeito ocidental. De
acordo com ele, mudanças estruturais das e nas sociedades fragmentaram “as
paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça, nacionalidade e
identidade”,6 provocando um declínio das velhas identidades, ligadas ao sujeito
unificado da modernidade. Tal declínio fez com que surgissem novas identidades
fragmentadas, deslocadas e descentradas, “fez surgir um sentido de perda de si”,7
sentimento de deslocamento e descentramento do sujeito em relação ao mundo e a
si mesmo. Em suma, podemos dizer que para o autor há um deslocamento identitário
de si em relação a si mesmo, que questiona a solidez, a estabilidade, a fixidez e a
unidade de uma identidade fechada. Tal deslocamento vai ao encontro da
perspectiva de que não existe uma identidade humana fixa, imutável, mas uma gama,
uma pluralidade de identidades, bem como a de que as sociedades não são
homogêneas, mas sim construídas por diferentes grupos sociais, com diferentes
demandas e formas de atuação.
Assim, Hall busca compreender como esta identidade e este sujeito
fragmentado e descentrado da modernidade tardia estão sendo colocados e
representados a partir ou em termos da sua identidade cultural e, mais
especificamente, da sua identidade nacional. Em termos gerais, Hall busca expor
como o processo de globalização tem papel fundamental no deslocamento e na
fragmentação das identidades culturais nacionais do Ocidente. Para o autor,
reconhecer esses elementos implica em conceber as Nações como “híbridos
culturais”. Ou seja, trabalha-se com a noção de que as Nações, assim como os
sujeitos e as identidades, não são um todo homogêneo, formados por uma única
matriz cultural, mas sim “mosaicos culturais”. O conjunto cultural de um país
corresponde a uma heterogeneidade, a uma mistura de culturas. Não há, portanto,
um único Brasil, mas Brasis. Existem diversas formas de se reconhecer, de pertencer
e de se identificar culturalmente.
6
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira
Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 09.
7
Idem, 2006, p. 09.
De acordo com Hall, essa nova perspectiva vem alargar e competir por espaço
com a concepção de cultura nacional do período moderno, a qual via e pensava as
culturas nacionais “como um dispositivo discursivo que representava a diferença
como identidade”,8 ou seja, buscava unificar as diferenças para representá-las como
um todo homogêneo. E aqui é interessante notarmos o “jogo” existente entre
identidade individual e identidade nacional. Na medida em que para o sujeito da
modernidade era imprescindível uma unidade fixa e indivisível, para que pudesse se
conceber e buscar uma identidade individual, entende-se, por extensão, que o
mesmo princípio de unidade fosse buscado em relação à cultura e, assim, procurasse
na homogeneidade um princípio indispensável para a identidade nacional, mesmo
que para isso tivesse que se sobrepor, através de uma identidade nacional idealizada,
à diversidade de identidade culturais existentes dentro do território nacional.
Não devemos, no entanto, considerar que tal movimento é feito por acaso ou
apenas por extensão, pois falar em cultura, em identidade e em Nação é falar em
relações de poder e, consequentemente, em jogos políticos de interesses. Embora
muitas vezes os elementos culturais e os conjuntos de valores que expressamos e
compartilhamos possam se manifestar de maneira inconsciente, e se expressam de
diversas formas, aqueles a quem interessava e interessa a (re)invenção da Nação (as
elites políticas, econômicas, intelectuais e artísticas) era e é indispensável criar,
produzir, eleger e elencar símbolos e representações que, ao produzir sentidos sobre
a Nação, construam, conjuntamente, identidades por identificação e pertencimento.
Ou seja, devemos entender a cultura nacional como um discurso que, através de
símbolos e representações, constrói sentidos que influenciam na concepção e na
formação das identidades e se constitui numa das principais fontes de identidade
nacional. Logo, o que caracterizaria a brasilidade, por exemplo, seria um conjunto de
significados dados pela cultura nacional brasileira.
Assim, para Hall, “a Nação não é apenas uma entidade política, mas algo que
produz sentidos; ela é um sistema de representação cultural [...] e por ser uma
comunidade simbólica ela tem o poder de gerar um sentimento de identidade e de
lealdade”.9 Ou seja, embora socialmente os elementos culturais sejam diversos e
estejam ligados a inúmeros fatores como a comida, a língua, o meio ambiente, a
diversidade étnica, as construções materiais, as atividades imateriais, entre outros; o
processo de invenção da Nação foi caracterizado, quase sempre, pela intenção de,
8
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade, op. cit, p. 59.
9
Idem, p. 49.
através da criação de narrativas, discursos e mitos, dar uma origem sui generis à
diversidade de identidades culturais, relacionando-as diretamente ao Estado.
Em outras palavras, embora a diversidade cultural, o território e a língua sejam
os principais elementos de formação do Estado-Nação, este, na medida em que se
constitui, apropria-se desses elementos para, através de narrativas, discursos e mitos
fundadores,10 criar uma rede de representações que faça parecer que tais elementos
culturais sejam emanados dele próprio. Daí que Benedict Anderson conceituou a
Nação como uma “comunidade política imaginada”11 e Marilena Chauí como um
“semioforo-matriz-fundamental”,12 que dá à diversidade econômica, social, política e
identitária um sentido de unidade indivisa.
Neste ponto é interessante assumir o ponto de vista de Anderson, para o qual
“o que tornou possível imaginar as novas comunidades imaginadas foi uma interação
casual e explosiva entre um modo de produção e de relações de produção
(capitalismo) e uma técnica de comunicação (imprensa)”.13 Assim, se analisarmos tal
sentença a partir do cenário brasileiro podemos observar como a construção do
moderno Estado brasileiro pode ser datada a partir do final do século XIX com a
constituição da República e se consolida a partir de 1930, com o governo Vargas. O
inicio do século XX se caracteriza, portanto, pelo boom tecnológico e capitalista que,
a partir do processo de urbanização e de industrialização, principalmente do Sudeste
do país, acarretou o aumento da classe burguesa e proletária urbana, especialmente
na cidade de São Paulo, que emergia à época como locomotiva econômica do país
em decorrência da atividade cafeeira da região. Na mesma época consolida-se no
cenário nacional o importante papel assumido pela imprensa e pela literatura, que
vinham ganhando força pelo menos desde a Geração de 1870, ambas possuindo
grande influência na campanha contra a Monarquia.
Por outro lado, se toda identidade pressupõe o outro, a chegada dos
imigrantes europeus e a miscelânea de línguas e culturas que com ele aportava,
10
De acordo com Marilena Chauí “O mito fundador oferece um repertório inicial de representações da
realidade, e em cada momento da formação histórica, esses elementos são reorganizados tanto do
ponto de vista de sua hierarquia interna como da ampliação de seu sentido.” CHAUÍ, Marilena de Souza.
Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000, p. 07.
11
De acordo com Anderson, “...imaginada porque mesmo os membros da mais minúscula das nações
jamais conhecerão, encontrarão ou nem sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora
todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles.” ANDERSON, Benedict. Comunidades
imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras,
2008, p. 32.
12
De acordo com Chauí “Um semióforo é um signo trazido à frente ou empunhado para indicar algo que
significa alguma coisa e cujo valor não é medido por sua materialidade e sim por sua força simbólica. É
fecundo porque dele não cessam de brotar efeitos de significação” CHAUÍ, Marilena de Souza. Brasil:
mito fundador..., op. cit, p. 09.
13
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas, op. cit, p. 78.
14
Para mais informações sobre o tema ver FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O
Brasil Republicano. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. e LAFETÁ, João Luiz. 1930: A
crítica e o modernismo. São Paulo: Editora 34, 2000.
15
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. Rio de Janeiro: Ouro
sobre azul, 2008, p. 140 e 141.
16
“O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional”.
ANDRADE, Oswald de. (1924) Manifesto da Poesia Pau Brasil. In: A Utopia Antropofágica. 4. ed. São
Paulo: Globo, 2011 (obras completas de Oswald de Andrade).
17
“Das ‘qualidades’ transmitidas que definiriam o caráter brasileiro, duas delas Bonfim (América Latina
males de origem, 1903) considera como as mais funestas: o conservantismo (busca em manter a
tradição que lhe assegura o poder; horror brasileiro a todo projeto de mudança social; conservadorismo
que dificulta o progresso social) e falta de espírito de observação (incapacidade de se analisar e
compreender a própria realidade brasileira. O abuso de chavões e aforismo consagrados (o bacharel); a
imitação do estrangeiro) ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 2. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1986, p. 25 e 26
18
“O Brasil intelectual das primeiras décadas do século XX era um Brasil trabalhado pelos mitos do bem
dizer, do patriotismo ornamental, da retórica tribunícia, contra-parte de um regime oligárquico-patriarcal”
CAMPOS, Haroldo de. Uma poética da radicalidade. In: Poesias reunidas. ANDRADE, Oswald de. 4. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974, p. 10 (obras completas Oswald de Andrade).
19
ANDRADE, Oswald de. Os dentes do dragão: entrevistas. Org. Maria Eugênia Boaventura. 2. ed. São
Paulo: Globo, 2000, p. 55 e 56 (grifo nosso).
...aos olhos dos jovens intelectuais, a homogeneidade cultural, que antes era
considerada de importância fundamental na definição de uma Identidade, surgia
agora ou como uma ilusão ou como um falso problema... diferenças étnicas e raciais,
sincretismos culturais, mistura de civilizações, eram a constante no universo social e
nada tinham a ver com atrasos relacionados a progresso ou falta de
desenvolvimento ou propensão à barbárie.20
20
Queiroz, M. I. (1989). “Identidade Cultural, Identidade Nacional no Brasil”. In: Tempo Social, 1(1), p. 34-
35.
II
21
CHAUÍ, Marilena de Souza. Brasil: mito fundador..., op. cit, p.32.
22
Idem, p.36.
23
ROUANET, Sérgio Paulo. “Manifesto Antropófago II. Oswald de Andrade” (Psicografado por Sérgio
Paulo Rouanet). In: CASTRO ROCHA, João Cezar; RUFFINELLI, Jorge. Antropofagia hoje? op. cit, p. 53.
24
NODARI, Alexandre. A posse contra a propriedade: pedra de toque do direito antropofágico.
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-graduação em Literatura, área de concentração em Teoria
Literária, linha de pesquisa Teoria da Modernidade, da Universidade Federal de Santa Catarina para
obtenção do título de Mestre. Orientador, Raúl Hector Antelo, Florianópolis, 2007.
25
SÁEZ, Oscar Calavia, “Antropofagias comparadas”. travessia – revista de literatura. n. 37. Ilha de Santa
Catarina: Editora da UFSC, jul-dez, 1998. p. 83. Apud: NODARI, Alexandre. A posse contra a
propriedade, op. cit, p. 140.
26
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia.
São Paulo: Cosac Naify, 2002.
27
Idem, p. 206. Apud NODARI, Alexandre. A posse contra a propriedade, op. cit, p. 133.
Daí que, nos rituais, o ato da devoração abre a identidade para o exterior,
guiando-se pelo que poderíamos chamar da lógica do terceiro incluído, na qual uma
coisa pode deixar de ser igual a si mesma para incorporar a diferença.28 Em outras
palavras, a identidade para os Tupis (se é que podemos falar de uma noção de
identidade tal como a concebemos) é entendida como uma “Ur-forma, uma potência
indeterminada, aberta”.29 No entanto, vale destacar que não é uma identidade
completa que se abre à devoração. Essa forma aberta deixa ao longo do ritual
“pedaços” de si, seja na mastigação das raízes com que se faz o Cauim, seja nos
cuspes e insultos que recebe do inimigo. “É somente este ser que não é mais que um
resto de si que devora o Outro. O ritual não vem fortalecer ou engrandecer uma
Identidade estabelecida. O Outro não é devorado por um Todo próprio, mas por um
resto impropriado. Eis a Identidade do antropófago: Resto + Outro”.30 Ou seja, o ritual
não vem “fechar” uma identidade, o Outro não vem complementar a identidade do
devorador, mas fazer com que esta permaneça em aberto. A possibilidade de
metamorfose, e a própria metamorfose, vem para mostrar que há sempre uma
“potência-de-ser”.
Aqui vale, no entanto, um adendo que é no fundo um cuidado às vezes até
demasiado, mas importante. As sociedades ameríndias pré-cabralinas não tinham o
verbo Ser, “daí [terem] escapado ao perigo metafísico que todos os dias faz do
homem paleolítico um cristão de chupeta, um maometano, um budista, enfim um
animal moralizado. Um sabiozinho carregado de doenças”.31 Consequentemente, elas
não trabalhavam com as noções lógicas de identidade e não contradição, o que
permitiu Oswald afirmar: “contra todos os importadores de consciência enlatada. A
existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Levy-Bruhl
estudar”,32 e que “nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós”.33 Será que
podemos falar da noção de identidade tal qual a concebemos? Afinal, como falar —
através da língua do colonizador, a partir de “um idioma gasto, pobre em
onomatopéia deturpado pelo vaivém do tempo, afastado de uma íntima e natural
28
Soma-se a isso o fato de que “o ser comido batizava o que comia. O índio adotava o nome daquele
que comera, por julgá-lo superior.” ANDRADE, Oswald de. Os dentes do dragão, op cit, p. 66.
29
NODARI, Alexandre. A posse contra a propriedade, op. cit, p. 131.
30
Idem, p. 139.
31
FREUDERICO. Revista de Antropofagia, 2° Dentição, n.I, 17 de Março de 1929.
32
ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. In: Revista de Antropofagia. Ano I, n. I, maio de 1928.
33
Idem.
34
ANDRADE, Oswald de. Os dentes do dragão, op. cit, p. 65.
35
NODARI, Alexandre. “A única lei do mundo”. In: CASTRO ROCHA, João Cezar; RUFFINELLI, Jorge.
Antropofagia hoje? op. cit, pp.455-483.
36
Idem, pp.455-483.
37
NODARI, Alexandre. A posse contra a propriedade, op. cit, p. 133.
38
“Tupy, or not Tupy that is the question” ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. In: Revista de
Antropofagia. Ano I, n. I, maio de 1928.
39
ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago, op. cit.
40
NODARI, Alexandre. A posse contra a propriedade, op. cit, p. 84.
41
Idem, p. 83.
42
NODARI, Alexandre. A posse contra a propriedade, op. cit, p.83.
43
FREUDERICO. Revista de Antropofagia, 2° Dentição, n.I, 17 de Março de 1929.
44
NODARI, Alexandre. A posse contra a propriedade, op. cit p.38.
45
“O Caminho Percorrido”. In: Ponta de lança. ANDRADE, Oswald de. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1971, p. 96 (Obras Completas Oswald de Andrade).
46
PRADO, Paulo. “Poesia Pau Brasil”. In: Poesias reunidas. ANDRADE, Oswald de. Obras Completas VII,
4° ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974, p. 67.
no livro dedicada aos poemas frutos da viagem mineira, cujo título chamou-se
“Roteiro das Minas”.47
De certo modo toda viagem pressupõe uma projeção para fora, ao exterior, a
ida ao mundo objetivo. Mas ao mesmo tempo pressupõe uma busca, o encontro com
uma identidade. Em Memórias Sentimentais de João Miramar (1924)48 a formação
humana e cultural do personagem é feita através, principalmente, de suas viagens. De
acordo com Haroldo de Campos, Miramar é “um Ulisses ingênuo, sem as manhas do
rusé personnage homérico, mas para o qual a viagem representa uma primeira
perspectiva, se bem que ainda imprecisa e indefinida, de abertura para o mundo e de
situação crítica”.49
Já no livro Serafim Ponte-Grande (1933)50 a viagem ocupa outro papel, e é
justamente no último capítulo designado “Os Antropófagos” que podemos perceber
sua influência para se pensar a noção de identidade para a Antropofagia. Após uma
revolução moral realizada no navio pelo personagem Pinto Calçudo, possível só
depois que passaram da linha do Equador, todos os integrantes do navio despem-se
de suas roupas instituindo uma “sociedade anônima de base priápica”. Fugindo do
contato policial dos portos, El Durazno e seus tripulantes passam a viver numa
sociedade utópica, se recusando a desembarcar, como a viver num estágio de
viagem constante.
Ao analisar tal cena podemos associá-la à busca por uma identidade (o ato da
viagem), mas ao mesmo tempo a uma não-identidade, a uma recusa de fechar-se
numa identidade (a recusa a desembarcar e a terminar a viagem), corroborado com o
fato de ser uma “sociedade anônima”, ou seja, sem nomes, sem um próprio. Aqui, e é
uma hipótese que levantamos, a eterna viagem revela no fundo a busca por uma não-
identidade, o antropófago é aquele que, realizando sua revolução moral, prefere a
constante busca da identidade a partir da sua negação, através de uma não-
identidade, da não afirmação de uma fixidez. Ou seja, a viagem constante, na medida
em que é a busca por uma identidade, por uma “forma”, ao mesmo tempo não
permite que essa forma se feche, mantendo a identidade aberta, pela recusa de
47
A mesma viagem rendeu diversas inspirações de pinturas a Tarsila, no quadro “O Pescador” de 1924,
é possível fazer a interpretação da semelhança que a artista faz entre os pescadores do mar e os
“pescadores do garimpo”.
48
ANDRADE, Oswald de. Memórias sentimentais de João Miramar. 2.ed. São Paulo: Globo, 2006. (Obras
completas de Oswald de Andrade).
49
CAMPOS, Haroldo de. Miramar na mira. In: Memórias sentimentais de João Miramar. Oswald de
Andrade. 2.ed. São Paulo: Globo, 2006, p. 30 (Obras completas de Oswald de Andrade)
50
ANDRADE, Oswald de. Serafim Ponte Grande. 9.ed. São Paulo: Globo, 2007. (Obras completas de
OSwald de Andrade).
em cada nova experiência e integração, ela não visa agregar novas características e
qualidades a uma identidade já formada, mas antes transformar, metamorfosear uma
identidade que não tendo uma origem, uma essência, é construída por cada
momento presente que integra, cada novo contato com aquilo e com aquele que não
sou “eu”. Ou seja, através da devoração busca-se uma não-identidade, uma recusa a
fixidez e a estabilidade de uma identidade fechada, sempre igual a si mesmo.
III
Mário de Andrade
(“O poeta come amendoim”)
Nós não somos, nem queremos ser, brasileiros, nesse sentido político-internacional:
brasileiros-portugueses, aqui nascidos, e que, um dia, se insurgiram contra seus
próprios pais. Não. Nós somos americanos, filhos do continente América; carne e
inteligência a serviço da alma da gleba.58
54
COSTA, Oswaldo. Revista de Antropofagia, 2°. Dentição, n° IV – 07 de abril de 1929.
55
VELLOSO, Mônica. “Modernismo e a questão nacional”. In: O Brasil Republicano: o tempo do
liberalismo excludente da Proclamação da República à Revolução de 1930. Org. FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 374.
56
HELENA, Lucia. Totens e tabus da modernidade brasileira: símbolo e alegoria na obra de Oswald de
Andrade. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1985. p. 37-38.
57
ANDRADE, Oswald. Schema ao Tristão de Athayde. In: Revista de Antropofagia. Ano I, n. 5, setembro
de 1928.
58
ANDRADE, Oswald de. Os dentes do dragão, op. cit, p. 66.
59
MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
60
LESTRINGANT, Frank. O Canibal: Grandeza e decadência. Trad. Mary Murray Del Priore. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 1997. p. 151.
61
ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. In: Revista de Antropofagia. Ano I, n. I, maio de 1928.
62
ANDRADE, Oswald de. Os dentes do dragão, op. cit.
63
Idem, p. 65.
64
Ibidem.
65
JAPY-MIRIM. Revista de Antropofagia. 2° Dentição; n.II. 24 de março de 1929.
66
De acordo com Oswald a Antropofagia pretendia “reabilitar o índio não catequizado e o seu
extraordinário espírito edênico. De outro lado, ativar a ligação racial com os nossos elementos vindos de
fora tirados o governador geral e o catequista.” ANDRADE, Oswald de. Os dentes do dragão, op. cit, p.
61.
67
VIANA, Oliveira. “Populações meridionais do Brasil: Populações rurais do centro-sul”. IN: “Intérpretes
do Brasil”. Coord. Seleção e prefácio, Silviano Santiago – Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2. Edição, 2002.
1. v. - (Biblioteca luso-brasileira; série brasileira), p. 978.
68
Idem, p. 988.
69
Idem, p. 1076.
no entanto, que a Antropofagia não é totalmente apegada às raízes, ela não busca
uma brasilidade xenofóbica, uma afirmação identitária fechada, pelo contrário: vê na
devoração do Outro, na constante possibilidade de ser diferente do que se é o caráter
mesmo do processo nacionalizador. Daí que para pensar uma possibilidade de
Identidade Nacional a partir de Oswald e da Antropofagia seja necessário assumir o
ponto de vista da exterioridade e do descentramento. De acordo com Oswald quem
vê de fora, vê melhor, afinal na medida em que a identidade não é a busca por uma
essência, centrada e própria, é a partir desses dois elementos que é possível
conhecer melhor de onde se vem e a si próprio, daí a importância das viagens, do
nomadismo. E aqui é interessante notarmos um aspecto dialético e não menos
contraditório entre a relação sujeito e terra. Embora insista na ligação do antropófago
com a terra América, com o Novo Mundo, e busque os elementos mesmos do Brasil
brasileiro, Oswald não deixa de exaltar a importância da infixidez, da exogamia, da
abertura ao exterior.
Nossa hipótese de leitura aqui é de que Oswald inverte a lógica colonial e
imperial, tanto dos viajantes que com suas literaturas escreviam sobre o Brasil, bem
como dos próprios intelectuais brasileiros que viam nos elementos europeus a “saída”
para o Brasil ser uma Nação, ter um “povo”, atingir a modernização e a civilização.
Por muito tempo, e mais acentuado entre nós no século XIX, a América no geral e o
Brasil no particular sempre contaram com viajantes, naturalistas, pintores e toda sorte
de letrados que vinham para escrever e descrever o que viam em terras do Novo
Mundo. Inevitavelmente esse olhar do Outro, vindo de fora, geralmente da Europa, e
por isso considerado mais culto, mais civilizado, moldou e formou uma identidade e
uma perspectiva não só daqueles que aqui estavam, mas a própria imagem e
característica brasileira no exterior. Devido à grande vontade de nossas elites
econômicas e intelectuais de parecer e se fazer europeu, fomos ao longo dos anos
sendo definidos e nos definindo pelo olhar de quem vinha de fora e nos dizia o que e
como éramos, fazendo com que se formasse assim uma identidade através do olhar
do Outro sobre nós. Nos parece que Oswald e o Modernismo invertem essa lógica:
agora somos nós que olhamos para nós mesmos para nos descrever, somos nós que
saímos do Brasil, que viajamos para outros cantos do mundo, mas não para nomear
ou dar uma identidade ao outro, não para ‘fugir’ do que aqui está, mas para olharmos
para nós mesmos sobre outra perspectiva. Em contato com o Outro, “diferente de
nós”, conseguiríamos olhar mais para nossas especificidades, para o que nos faz
brasileiros e americanos. De certa forma é como se precisássemos assumir o ponto
70
ROUANET, Sérgio Paulo, “Manifesto Antropófago II”, op. cit, p.53
71
Em um momento de sua obra, Hall (2006) diz que em toda parte estão emergindo identidades culturais
que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição; para o autor as sociedades estão retirando
seus recursos de diferentes tradições culturais e que suas identidades são o produto de cruzamentos e
misturas culturais. Estão associadas diretamente a essas “novas” sociedades o que Hall chama de
identidades traduzidas, entendendo por tradução o processo pelo qual passam identidades que são
obrigadas a negociar com as novas culturas com as quais vêm a ter contato. Essas identidades, no
entanto, não são totalmente assimiladas por essas culturas, pois elas mantêm a identidade que as liga a
sua terra natal mantendo assim vínculos e noções de pertencimento com seus lugares de origem e suas
tradições, mas sem uma expectativa de retorno ao passado (HALL, idem, p. 87-89). Assim é interessante
notar que embora Hall associe esse processo a um momento recente da história das sociedades
européias, não podemos negar que essa foi sempre a regra nos países colonizados, principalmente no
Brasil. Ou seja, é inegável o fato que a sociedade e a cultura brasileira nunca foram fixas, estiveram
sempre em transição tirando seus recursos justamente de diversas tradições e culturas. Embora nossas
elites, sempre com os olhos para a Europa, desejassem que assimilássemos cada vez mais seus
elementos, seus padrões culturais e étnicos e buscassem através disso transplantar uma
homogeneidade capenga, pois inexistente, toda tentativa desse tipo exigia um reajuste e uma adaptação
quando introduzida neste lado dos trópicos. Em todo caso gostaríamos de enfatizar que a adaptação e a
assimilação de diversos elementos culturais é uma das principais características da cultura brasileira.
Assim o que torna nossa cultura “original” não é seu caráter unitário, sua pureza cultural ou étnica, mas
que ela tem a capacidade de adaptar o elemento externo ao elemento local, como que introduzindo a
partir deste um elemento diferenciador. Ou seja, a cultura brasileira não seria a mera transposição de
elementos culturais díspares, mas a adaptação destes aos elementos e as características locais. Sem
que percam totalmente suas identidades de origem, é como se, além das diferenças culturais,
pudéssemos reconhecer as misturas, reconhecer um transculturalismo que antecede ao
multiculturalismo.
72
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