Os Retratos e A Identidade Brasileira em O Cortiço

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FACULDADE METROPOLITANAS UNIDAS - FMU

As memórias e os apagamentos na formação da identidade brasileira em:


O cortiço de Aluísio de Azevedo

Melquisedeque da Silva Romano RA: 3441252


Rozana de Jesus Lima Silva RA: 1510444
Curso: História - 5° Semestre Noturno
Prefº.: André Oliva de Teixeira Mendes

São Paulo
2021
Este trabalho tem por objetivo compreender como é representado o negro o
mestiço e a realidade racial do Brasil tendo como fonte principal de tal análise o
texto, O cortiço de Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo (1857-1913) conhecido
e hoje renomado romancista maranhense, teve como primeiro emprego a função de
caixeiro, mas aos dezenove anos influenciado pelo irmão Artur de Azevedo
ingressou na Academia Imperial de Belas-Artes no Rio de Janeiro e logo torna se
caricaturista de jornais, exemplos O Mequetrefe, Fígaro entre outros variados
trabalhos, em 1979 volta para sua cidade natal após a morte de seu pai ,o
vice-cônsul David Gonçalves de Azevedo, mesmo ano em que publica seu primeiro
romance: uma lagrimas de mulher, em 1881 publica O Mulato, romance que
inaugura o “Movimento Naturalista no Brasil”, mas é pela sua obra O Cortiço (1890)
que seu caráter naturalista fica mais evidenciado e conhecido. Para a análise da
obra supracitada foram aportados uma extensa variedade de textos que possibilitam
a discussão dos aspectos raciais brasileiros, em especial o livro de Lilia Moritz
Schwarcz, Retrato em Branco e Negro (1987), em que busca compreender como o
negro é retratado nas publicações dos jornais em São Paulo com uma possibilidade
de interpretar essas fontes e análises da autora como ferramentas e a expressão do
pensamento dominante e desse modo compreender um panorama geral de como
são retratadas as questões raciais no Brasil, assim como faremos o uso do texto de
mesma autoria, intitulado: Gilberto Freyre: Adaptação, Mestiçagem, Trópicos e
Privacidade em Novo Mundo Nos Trópico (2011), que discute de maneira fecunda
as questões raciais brasileira a partir da obra de Gylberto Freire assim como a
construção de uma identidade brasileira, é por meio da autora e do aporte de outros
textos que objetivamos traçar uma imagem construída do negro e mestiço no
decorrer do processo histórico brasileiro em paralelo a suas representações em O
cortiço, para sermos capazes de compreender por meio de tais analises como estas
representações constroem a identidade brasileira utilizando se da memória, por
meio de apagamentos e esquecimentos, pela modificação e capilarizarão das
diferentes representações do negro e mestiço que assumem a ação de apagamento
cultural e da memória do negro e mestiço para a construção de uma memória e
história higienista, na mesma chave se apresenta a construção da identidade
brasileira, pautada no apagamento e embranquecimento.
Para tal qualidade de análise se faz necessária a compreensão do contexto
histórico e realidade prática de Aluísio de Azevedo e sua obra em específico,
prioritariamente o texto de Azevedo é marcado por um estilo literário que é
precursor no Brasil, o naturalismo, sendo questão central compreender seus
aspectos e como rondam sua obra, assim como o autor o pensamento naturalista é
uma filosofia própria de sua época, e tendo em vista a metodologia criada pela
escola dos Annales e seu fundador Marc Bloch, um homem é muito mais filho de
seu tempo do que de seus próprios pais, de tal maneira poderemos compreender
em parte o pensamento e psique de Aluísio de Azevedo por meio da apreensão
destas filosofias que fazem parte de seu tempo e de sua leitura de mundo, de
maneira dialética, os pensamentos de seu tempo o atravessam mas também o
modificam, nos vale então discutir conceitos que podem ser identificados na obra o
Cortiço, como também em todo seu estilo e envergadura literária, nos vale então
traçar aquilo que constitui o naturalismo, suas influências e conceitos formativos, de
maneira a facilitar e exemplificar a discussão nos valemos deste trecho de uma
revista do ano de 1881 sobre literatura brasileira.

“Pretendemos escrever uma introdução "naturalista" à


história da literatura brasileira. Munidos dos critérios popular
e étnico para explicar o nosso caráter nacional, não
esqueceremos o critério positivo e evolucionista da nova
psicologia social quando tratarmos de notar as relações do
Brasil com a humanidade geral.” (ROMERO, Sílvio.
Introdução a história da literatura. Revista Brasileira, 2 fases,
T8, Rio de Janeiro,1881. pp. 232) & (MÉRIAN -2013. pp.175)

O naturalismo tem muitas influências externas como podemos notar no


trecho, sua intensa relação com o conceito de ciência de sua própria época, nos
levando a pensar no conceito de cientificismo, uma importação da ciência positiva,
um modelo de ciência do Século do XVIII e XIX, sendo conceitos que foram
exportados, trazidos e adaptados da Europa essa concepção de ciência é derivada
e se assim podemos chamar do pensamento moderno, mas que no Brasil assume
uma capa de conservador, nos lembrando a modernização conservadora, sendo o
último país com movimentos abolicionista, mas que teme a liberdade negra, um
movimento republicano encabeçado por antigos monarquistas, discutir as questões
raciais brasileiras torna se um trabalho árduo, pois são permeadas por um discurso
que na prática se faz diferente.

Sendo assim se faz essencial para compreender as questões raciais


brasileira estar inteirado com os conceitos que começamos a tratar no parágrafo
acima, o determinismo é aquilo que da base a um Darwinismo social e racial, pela
construção de um conceito baseado no pensamento de Darwin a modificação a
partir da base de seu pensamento, sendo assim se pensa etnia como diferentes
“espécies” e desse modo, uma “espécie” é mais evoluída que a outra, a ciência
determinista “comprova “ que os negros são biologicamente desiguais portanto
inferiores, atribuindo a miscigenação a degeneração das raças, deste modo a
mestiçagem então seria determinante para o fracasso da nação, diferente do
darwinismo empregado no Brasil que assume variadas formas em especifico uma
que acredita que miscigenação pode trazer a solução para o “problema da
negritude” brasileira através do branqueamento racial, Aluísio bebe desta fonte, sua
concepção de determinismo atrelado ao cientificismo é muito importante pra
construção da identidade brasileira, objetivando retratar em sua obra essa mesma
formação do povo brasileiro, apontando os lugares de cada um socialmente e o que
ronda essa sociabilidade, sendo assim no Brasil se assume um caráter de
superioridade racial, uma noção de civilização contra a barbárie o que contribui
efetivamente para a desigualdade social, restando aos negros o opróbio de uma
integração deformada, pelas portas dos fundos, este pensamento colonialista da
base para a teoria do branqueamento tanto racial como cultural, através da
apropriação das culturas que por serem consideradas inferiores são ressignificadas,
construídas para representar uma cultura brasileira que no fim se mostra
excludente, modificando as de modo a tornar se coisa de branco, relegando sua
antiga relação a sarjeta, é desse modo que se dá a teoria do branqueamento, no
sentido da cor da pele e também culturalmente , aquilo que se tornou branco ou que
será dito como branco pertence a cultura brasileira e o que é negro é alienígena,
estrangeiro.

“O fato é que autores como esses advogavam (cada


um à sua maneira) teorias deterministas raciais que
entraram em voga, no Brasil, em finais do século
XIX. Com efeito, as teorias raciais só foram
absorvidas no Brasil no momento em que a abolição
da escravidão se tornava irreversível.” (SCHWARCZ
- 2011 pp.86)

Esta ação de branqueamento é herdada do pensamento colonizador, o


homem branco se coloca como contraponto a barbárie e assim assume um local de
civilizador, carrega o fardo do homem branco de colonizar e civilizar o homem
bestial, se sobrepondo a ele e demarcando seu lugar, o branqueamento então seria
a ferramenta adequada para sair do estado primitivo e alcançar a civilização, a ideia
de diluição das raças inferiores através da mistura, sendo o elemento branco,
cristão, católico, civilizado, o preponderante resultaria no clareamento não apenas
da população negra, mas também de sua cultura originária, por consequência a
construção a longo prazo de uma sociedade avançada, moderna, sinônimo de
Europa, um dos notáveis da teoria do branqueamento racial é o médico João Batista
de Lacerda, diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, foi escolhido para
representar o Brasil no I Congresso Internacional de Raças em Londres no ano de
1911, em seu artigo: Sur les metis au Brésil (Sobre os mestiços do Brasil), onde
defende a política da miscigenação positiva para o Brasil.

“Nesse ensaio, o país não era apenas caracterizado


como mestiço, como se exaltava a mudança
operante no local: " o Brasil mestiço de hoje tem no
branqueamento em um século sua perspectiva,
saída e solução". (SCHWARCZ -1994 §: 05)

Estes lugares de pertencimento estão muito claros na obra de Aluísio de


Azevedo, assim como a noção de uma degeneração na miscigenação apenas entre
as raças inferiores, se prova essencial em um momento de iminente abolição que o
local social de cada um esteja definido, o que determina este lugar é a cor da pele, a
ciência determinista da época mostra que existem diferenças entre grupos, e que
essas diferenças são a comprovação de que o negro é biologicamente inferior,
sendo assim em comparação com o branco é “natural “que vivam uma vida
desigual, desse modo o autor se propõe a escrever o mundo como o vê, mais
distante possível de seu objeto, na vanguarda do pensamento de sua época,
utilizando dos meios de comunicação e divulgação como os jornais para se informar
sobre os relatos e notícias de seu ambiente assim como sobre os movimento
filosóficos e os pensamentos de seu tempo, mesmo se propondo a uma ciência
positiva, neutra e isenta é incapaz de se distanciar de seu tempo, desse modo
retrata as contradições do mesmo. É a partir da intenção de retratar uma realidade
de maneira crua, tanto as mazelas como a beleza que nela existe que Aluísio de
Azevedo escreve suas obras, em O Cortiço tal pensamento não é diferente, o autor
busca representar em seu texto a sociedade carioca em processo de urbanização e
mutação, carregando consigo suas leituras de mundo e preconceitos, sendo assim é
o reprodutor de pensamentos que posteriormente tomaram corpo para construir
discursos modernizadores mas apegados ao conservadorismo, sendo assim tal obra
é fonte fecunda para se discutir variados aspectos da realidade brasileira no findar
do século XIX, mas nos atentando a temática do trabalho poderemos por meio das
descrições e da narrativa da obra compreende o recorte e retrato feito pelo autor,
tanto como reprodução de um pensamento de seu tempo como influência em seu
tempo.

Para começarmos uma primeira apresentação do negro retratado em O


cortiço , se faz importante evidenciar que não existe preocupação de cunho
identitário com a população negra ,a real perspectiva de integração do negro no
Brasil na verdade é uma busca por controle, subserviência e exploração contínua,
sem pretensão de equidade ou igualdade, podemos então observar através da
personagem Bertoleza, escrava de ganho que trabalhava arduamente para comprar
sua liberdade, confia o valor adquirido a João Romão, que a engana ao apresenta
uma carta de alforria falsa e a partir de então a negra acreditar ser forra, mesmo
crendo na veracidade do documento ela “naturalmente” se submete à exploração e
servidão, apesar de ser concubina de João Romão e o tenha ajudando a angariar
riqueza Bertoleza é tratada como coisa, a ela é reservado um lugar indigno de
máquina, alimentando a ideia de que o negro carrega desde o nascimento como
marca na pele a maldição de sua inferioridade ,o que legitima o discurso
escravocrata, sendo mais um dos argumentos dessa ideia do negro existir apenas
como um animal para o trabalho árduo ,sendo ele escravo ou livre este é seu lugar,
o texto de Aluísio nos traz a impressão de que e o próprio negro compreende este
lugar como seu.

“É que as ruas constituíam o domínio, o espaço de


circulação por excelência dos escravos - homens, mulheres
e crianças - os "animais de trabalho" que movimentavam
todas as engrenagens da existência econômica, social e
mesmo especificamente urban da cidade. A força braçal do
escravo era a força produtiva básica da economia urbana,
na esfera da produção, sobretudo, da circulação de
mercadorias, homens e todos os elementos indispensáveis à
manutenção de uma moradia urbana (água, esgoto, víveres
etc.).” (BENCHIMOL -1992, pp. 29)

Este lugar que é social consequentemente se apresenta na prática diária,


toma a materialidade no espaço urbano assim como tinha no campo, em práticas
diferentes e representações diferentes, o escravo no campo tem seu aspecto
selvagem e bestial mais destacado , o escravo urbano -de ganho- é retratado
como mais próximo dos padrões de civilização do século XVIII, logo assume a prova
cabal da “escravidão positiva”, em seu teor civilizatório, e apresenta a “dependência”
do negro, mas ainda sim é pela lógica do mundo do trabalho, da exploração,
submetido a seu lugar de animal e ferramenta de trabalho.

‘‘Bertoleza é que continuava na cepa torta, sempre a mesma


crioula suja, sempre atrapalhada de serviço, sem domingo
nem dia santo; essa, em nada, em nada absolutamente,
participava das novas regalias do amigo; pelo contrário, a
medida que ele galgava posição social, a desgraçada fazia
se mais e mais escrava e rasteira.” (AZEVEDO -2006.
pp.146)

Tendo como base essa primeira leitura sobre o pertencimento e o imaginário


sobre o negro podemos compreender como Lilia Schwarcz e muitos outros autores
pensam sobre a concepção de modernidade brasileira do século XVIII, um
liberalismo e igualdade de fachada, os direitos jurídicos não fazem sentidos de
existir ou não, o tratar com o escravo e com as outras questões que envolvem a
vida não são feitas por meios oficiais. Sérgio Buarque nos apresenta o homem
cordial que não distingue a esfera pública da esfera privada, e sendo assim,
podemos ver nas páginas do livro de Aluísio de Azevedo um retrato, talvez mais
simplificado e diminuído do Brasil coronelista, para compreender parte essencial dos
aspectos raciais do Brasil necessitamos compreender a figura do coronel, do senhor
de escravos, do latifundiário, mas mais especificamente do empreendedor urbano,
no caso do texto em questão podemos observar na figura de João Romão, e
daqueles que dependem de seu comércio, seu cortiço, suas tinas e sua pedreira e
através das necessidades e exploração destes e de outros João Romão vai aos
poucos ascendendo socialmente, se utiliza inclusive de sua companheira de forma
inescrupulosa para alcançar seus objetivos, típico pensamento colonialista de
enriquecer em virtude da exploração alheia , e mesmo após alcançar um poder
aquisitivo muito superior ao daqueles que o cercava, sua mesquinharia não lhe
permitiu galgar nem mesmo vislumbrar seu lugar de pertencimento dentro da
sociedade, lugar de status dentro da hierarquia social, lugar este que não diz
respeito apenas a condição financeira mas a “raça” , somente após o baronato de
Miranda seu vizinho e conterrâneo é que João Romão analisa sua trajetória, e
constata que o ambiente em que ele mesmo não se permitiu viver o tornou distinto
de seu compatriota, passa então a vislumbrar seu lugar como participante da alta
sociedade que sua ganância havia ofuscado, e enxerga essa possibilidade de
reconhecimento social através de novas relações, a solução posta para tal foi a
possibilidade de estreitamento de laços com seu vizinho e por fim o casamento com
sua filha, a partir de então esse torna se o objetivo do português mesquinho e
maltrapilho, para alcançar seu lugar de direito muda seu meio de convívio social ,
sua maneira de ser, se vestir e se portar, transformando gradativamente seus
hábitos, sua moradia seus ideais reforçando a teoria de determinismo social em
que a cor da pele é o fator que delimita o espaço social , tirando de seu caminho
todos aqueles que o distanciam ou o impedem de chegar a seu lugar de
pertencimento, lugar que considera uma conquista suada, essa noção aristocrática
de trabalho ou de conquista e ascensão social deriva da existência dos explorados
por elas, daqueles que servem como máquinas, que servem para serem roubados,
não existe o aristocrata, o homem rico, de bons costumes sem a existência de um
povo explorado, desse modo, se apresenta e se confirma o retrato do negro e
mestiço como objetos, meios para o branco, para o europeu.

“Afinal, a dolorosa desconfiança de si mesmo e a terrível


convicção da sua impotência para pretender outra coisa que
não fosse ajuntar dinheiro, e mais dinheiro, e mais ainda,
sem saber para que e com que fim, acabaram azedando - lhe
de todo a alma e tingindo de fel a sua ambição e despoluindo
o seu ouro.” Fora uma besta!...pensou de si próprio,
amargurado: Uma grande besta!...Pois por que em tempo
não tratará de habituar se logo a certo modelo de viver, como
faziam tantos outros patrícios e colegas de profissão?...Por
que, como eles não aprendera a dançar? E não frequentara a
sociedade carnavalesca? [... ] Por que não habituara a
roupas finas, e com o calçado justo, e com uma bengala, e
com o lenço, com o charuto, e com o chapéu, e com a
cerveja, e com tudo que os outros usavam naturalmente, sem
precisar de privilégio para isso? Maldita economia!” Teria
gasto mais, é verdade!...Não estaria tão bem!...mas ora
adeus! estaria habilitado a fazer do meu dinheiro o que bem
quisesse!...Seria um homem civilizado!” (AZEVEDO - 2019.
pp.116,117)

Como nos revela o trecho acima existe dentro destas determinações sociais e
raciais uma ideia de superioridade partindo do conceito de civilização, colocando em
contraponto os costumes europeus e brancos contra aqueles trazidos pelos negros
ou carregados pelos mestiços também.

“E começou a distingui-lo e respeitá-lo como não fazia a


ninguém. O prestígio e a consideração de que Jerônimo
gozava entre os moradores da outra estalagem donde vinha,
foi a pouco e pouco se reproduzindo entre os seus novos
companheiros de cortiço. Ao cabo de algum tempo era
consultado e ouvido, quando qualquer questão difícil os
preocupava. Descobriam-se defronte dele, como defronte de
um superior, até o próprio Alexandre abria uma exceção nos
seus hábitos e fazia-lhe uma ligeira continência com a mão
no boné, ao atravessar o pátio, todo fardado, por ocasião de
vir ou ir para o serviço. Os dois caixeiros da venda, o
Domingos e o Manuel, tinham entusiasmo por ele. “Aquele
é que devia ser o patrão'', diziam. É um homem sério e
destemido! Com aquele ninguém brinca!” (AZEVEDO -2019.
pp. 57)

A forma em que personagem de Jerônimo é retratado em dois diferentes


momentos de sua vida nos permitem novamente compreender como se apresenta a
diferença entre o civilizado e o bárbaro, antes de seu contato com a personagem
mulata brasileira, Rita Baiana, Jerônimo é conhecido por sua integridade moral e
superioridade diante dos demais, mas é pelo contato com este ambiente de
“inferiores”, bestial, atrasado representado pelo mestiço que se altera a vida do
europeu, com uma noção de que o homem modifica e é modificado pelo seu
ambiente, Jerônimo ao se juntar e se apropriar da cultura mestiça, se torna um
contraponto a João Romão, que sempre se pôs de maneira distante aos pobres e
mestiços do cortiço, estava presente, mas era o dono e sempre se pôs acima
daqueles seus inquilinos e se torna ainda mais austero quando se aproxima da alta
sociedade, “confirmando sua superioridade”, já Jerônimo ao ser encantado por uma
mulata, se torna igualmente desgraçado e inferior. Os dois personagens são
contraponto, pois seguem caminhos diferentes, um toma o lugar de direito,
determinado ao branco, que se confirma ao se modernizar, já o outro toma o
caminho contrário ao determinado pela sua etnia, toma o caminho do atraso, sendo
assim a propensão a se modernizar cai por terra e se torna assim um símbolo da
perdição do mestiço.

“Rita apagara-lhe a última réstia das recordações da pátria;


secou, ao calor dos seus lábios grossos e vermelhos, a
derradeira lágrima de saudade, que o desterrado lançou do
coração com o extremo arpejo que a sua guitarra suspirou! A
guitarra! Substituiu-a ela pelo violão baiano, e deu-lhe a ele
uma rede, um cachimbo, e embebedou-lhe os sonhos de
amante prostrado com as suas cantigas do norte, tristes,
deleitosas, em que há caboclinhos curupiras, que no sertão
vêm pitar à beira das estradas em noites de lua clara, e
querem que todo o viajante que vai passando lhes ceda fumo
e cachaça, sem o que, ai deles! [...] O português
abrasileirou-se para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das
extravagâncias e dos abusos, luxurioso e ciumento;
fora-se-lhe de vez o espírito da economia e da ordem; perdeu
a esperança de enriquecer, e deu-se todo, todo inteiro, à
felicidade de possuir a mulata e ser possuído só por ela, só
ela, e mais ninguém.” (AZEVEDO -2019. pp. 197)

Desse modo se pauta uma sociedade que se forma por meio da importação e
da valoração da cultura europeia, sendo assim só se pode compreender a realidade
brasileira como uma reprodução bizarra desta cultura ,com a ação do
branqueamento como uma tentativa de parecer Europeu, a existência de um
pensamento estruturalmente racista, levando a desvalorização da cultura popular
pelo fato de vir das camadas mais pobres do povo e valorizar um pensamento
colonial, relegando ao negro, ao pobre e mestiço mais um retrato, o de bestial, de
animal, como assim ainda podemos notar no trecho acima, pela maneira como se
constrói o retrato de Rita Baiana, a maneira como o autor descreve essa
personagem durante toda sua obra demonstra como o século XVIII compreende o
mestiço, neste caso ainda o retrato de Rita Baiana, mulher mestiça brasileira com
características próprias oriundas da mistura de raças, mulher alegre, sempre vulgar,
amante da dança e da bebida, festeira e promiscua com uma sensualidade nata,
aflorada e instintiva encanta e envolve qualquer homem que desejar, estereótipo
cristalizado no imaginário que atribui a mulher brasileira até os dias atuais o papel
de objeto sexual, a concepção herdeira do pensamento misógino europeu, da
demonização feminina, como tentação demoníaca, transportada para uma realidade
que associa esse conceito a questão racial, da herança colonial da sensualidade
feminina de atrair e satisfazer aos estrangeiros delimitando um espaço feminino
mestiço, erotizado dentro da sociedade, torna-se clara a herança colonial na
construção de um pensamento de Brasil como um paraíso erótico de mulatas.

“O objetivo é analisar o imaginário social do Brasil como


paraíso de mulatas, como uma construção discursiva e
performativa, que articula construções e disputas em torno da
identidade nacional, racial, de gênero e sexualidade e, muitas
vezes, configura-se como violência contra as mulheres
negras (quando aprisiona em um estereótipo de hiper
erotização, quando as conduz aos maiores números na
exploração sexual, quando silencia suas reivindicações de
outra definição identitária).” (GOMES -2009. pp. 09)

O objetivo do trabalho como já supracitado é compreender os retratos, neste


caso o da mulata hiper erotizada que se apresenta tanto no discurso do século XVIII
como parece ter reprodução no texto de Aluísio de Azevedo uma das heranças do
pensamento colonial, os das mulatas e a sensualidade empregada a elas, se
constrói como relação violenta, já no primeiro momento, tendo em vista a
empreitada dos colonos em terras americanas, é exatamente nesse momento da
história que ocorre a racialização do outro e a noção da miscigenação como
aspecto negativo do contato entre as raças, aspectos reproduzidos no texto de
Aluísio, tanto na perspectiva da erotização quando na já dita negatividade dessas
interações entre raças, Jerônimo ao cair nos “feitiços” da mestiça assume sua
derrocada, nos relembrando da concepção de pureza racial importada ao retratar
essa relação, mas contradita em outros momentos na obra.

“Quando deram fé estavam amigados. Ele propôs-lhe


morarem juntos e ela concordou de braços abertos, feliz em
meter-se de novo com um português, porque, como toda a
cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e
procurava instintivamente o homem numa raça superior à
sua.” (AZEVEDO - 2006.pp. 16)

Existe assim uma concepção racial em torno destas relações amorosas, e


mais que isso existe um pensamento hegemônico sobre essas relações, o negro e o
mestiço são naturalmente tidos como inferiores, um casamento entre branco e
negro não seria aceito dentro da alta classe, exemplo disso é o desfecho da
personagem Bertoleza que embora fosse concubina de João Romão quando este
aspirou a ascensão social foi imediatamente descartada, já este mesmo tipo de
casamento dentro da classe baixa não apenas é aceito como incentivado através de
políticas públicas de imigração, o aumento da população branca e as possíveis
relações entre brancos, negros e mestiços tornará o Brasil progressivamente mais
claro através dos descendestes desta miscigenação, um discurso político, com a
intencionalidade de vincular a ideia de miscigenação positiva no Brasil – como
retratado no primeiro congresso nacional de raças pelo doutor João Batista de
Lacerda propondo a possibilidade de civilização e a construção de uma raça
brasileira, uma sociedade europeia nos trópicos -, assim, existem uma variedade de
retratos e discursos sobre o mestiço, o casamento de Augusta uma branca brasileira
e Alexandre um mulato, militar, ambos pobres moradores do cortiço, embora
passem por grandes dificuldades constroem uma família numerosa, personagem –
Augusta - sempre representada como reprodutora fértil, arquétipos que ilustram bem
esta ideia, da necessidade e incentivo da miscigenação nas classes baixas para o
branqueamento e por que é uma cultura naturalmente atrelada ao retrogrado.

“— Meu marido é pobre e é de cor, mas eu sou feliz, porque


me casei por meu gosto!” (AZEVEDO -2006. pp. 75)
“Augusta ficara com a família numa das casinhas do segundo
andar, à direita; estava grávida outra vez; e à noite via-se o
Alexandre, sempre muito circunspecto, a passear ao
comprido da varanda, acalentando uma criancinha ao colo,
enquanto a mulher dentro de casa cuidava de outras. A
filharada crescia-lhes, que metia medo. “Era um no papo,
outro no saco!” (AZEVEDO -2006. pp.206)

Mais um dos retratos sobre o mestiço diz respeito a imagem do carioca


charlatão e presunçoso explicitado na figura do mulato Firmo e que encontra
lugar-comum nos dias atuais; agressivo, machista, mulherengo, violento, gastador e
boêmio, intenta sem sucesso por oito anos entrar na esfera política seu ideal de
trabalho onde ganha-se muito e trabalha se pouco, para tal utiliza se da capoeira
como ferramenta de ação política na esperança de alcançar um patamar nas
repartições públicas, lugar inalcançável para pessoas como Firmo, diante de uma
sociedade em que sua raça é estigmatizada como inferior, uma sociedade racista e
excludente que atrela o negro ao trabalho braçal, e que os utiliza apenas como
ferramenta de exploração, tal sociedade que o pinta como contraponto ao
progresso republicano, representados como a expressão da violência mestiça,
proeminente na figura de Firmo, o chefe de malta que está sempre armado com
sua navalha, com um número elevado de inimigos adquiridos ao longo de sua vida
resultado de seu temperamento criminoso, agressivo e violento oriundo de sua raça,
a morte precoce já era esperada, a culpa era atribuía ao personagem em
decorrência de seus costumes, conceito firmado pela ciência, na perspectiva da
negritude como uma patologia, pensamento cientifico presente nos periódicos da
época, que tornam se forte influência na concretização deste imaginário como
destaca Lilia Schwarcz em sua obra o Retrato em branco e negro:

“Através da “secção scientifica”, por exemplo, a Província


divulgava as principais inovações dessa área. Relatava com
destaque às conclusões do “Congresso Antropológico de
Roma “(3 de janeiro de 1886), que tinha por fim “remir o
homem do vício e do crime” e que, para tanto, determinava
que o criminoso era antes de tudo um retardado, podendo
ser subdivido em cinco categorias:” criminoso nato, criminoso
alienado, criminoso por acesso, criminoso por hábito e
criminoso por impulso ou paixão”. (SCHWARCZ -1987.
pp.106)

A partir destes conceitos de ciência que permeiam o imaginário brasileiro que


se constroem os retratos e estereótipos sobre a figura do negro, além da concepção
de sua violência inata, para a ciência o negro é um ser patológico
-psicologicamente- por essência, aspecto que Lilia Swarchz discute com qualidade
por meio dos periódicos que assumem um grande papel na difusão destes
imaginários sobre a negritude e o mestiço, são eles os publicadores e
disseminadores dos modelos de pensamento da época, mas também os
influenciados por esse modelo de ciência que enxergara a rendição dos não
“civilizados” como uma redenção de sua barbárie, a possibilidade de estar em
convívio -dominação- com os representantes da modernidade -brancos-, os negros
passariam a adquirir bons costumes, seriam civilizados.

(Aluísio sobre a consciência de Jerônimo e Rita sobre a morte de


Firmo)

“A morte do Firmo não vinha nunca a toldar-lhes o gozo da


vida; quer ele, quer a amiga, achavam a coisa muito natural.
“O facínora matara tanta gente; fizera tanta maldade; devia,
pois, acabar como acabou! Nada mais justo! Se não fosse
Jerônimo, seria outro! Ele assim o quis — bem feito!”
(AZEVEDO -2006 pp.191)

Firmo o mestiço, narrado como vadio, alguém que busca uma vida de prazer
e tem aversão ao mundo do trabalho, mesmo sendo seu lugar de origem como
parte negro que é, assim o capoeira exerce esporadicamente a ocupação de
torneiro para sustentar sua vida boemia, sempre acompanhado de seu violão
rodeados de amigos negros e mulatos que assim como ele vivem em rodas de
samba, um ritmo musical marginalizado, menosprezado, lido pelo autor de maneira
moralizadora, utilizando de seu estilo naturalista o representa como ritmo sensual,
animalesco por ser originário das classes populares maciçamente composta por
negros e mulatos, mas o samba como toda arte, é carregado de representações
simbólicas, vivencias e experiencias, hoje é um ritmo aceito pelas elites, não pelo
que representa, mas pelo seu valor monetário na dinâmica do mercado. Estes
retratos descritos por Aluísio de Azevedo podem nos revelar muito sobre um
pensamento em franco crescimento no século XVIII, a compreensão de uma
modificação de Brasil, tanto na política como na sociabilidade, compreendendo uma
integração racial, no sentido de seu branqueamento, no apagamento da sua cor, da
sua origem e cultura.

“Aluísio expressa igualmente, nesse livro, com bastante


clareza, suas teses sobre a sociedade ideal do futuro: uma
república positiva e liberal, que favoreça a integração racial e
cultural com a finalidade de atingir uma civilização europeia
tropical. O mulato claro, verdadeiro protótipo do homo
brasilienses, é o eixo em torno do qual a democracia racial
brasileira deve se edificada.” -Trecho sobre a obra O mulato.
(MÉRIAN - 2013. pp.294)

Essa concepção de vadio nos permite utilizar ou adereçar a figura do


personagem de Firmo um estereótipo também relatado e denunciado nos jornais, o
da corrupção e inclinação patológica do negro ao vício em bebidas alcoólicas,
reforçando o argumento da vadiagem como também da violência, um ser carregado
de patologias, Firmo mestiço carrega em sua raça natural corrupção como podemos
notar no trecho abaixo

“Então agora, com este mulato, o Firmo, é uma


pouca-vergonha! Est’ro dia, pois você não viu? Levaram aí
numa bebedeira, a dançar e cantar à viola, que nem sei o
que parecia! Deus te livre!” (AZEVEDO -2006. pp.44-45)

Retrato recorrente nos jornais, reprodutores e construtores dessa ciência racial e


racista

“Dos crimes por herança e por alcoolismo”

“[...] É hoje supérfluo estabelecer que os criminosos tem


escrito no seu cérebro e no seu organismo os vícios
hereditários ou adquiridos, as paixões bestiais ou a
degeneração de que estão feridos [...] Os motivos são
hereditários mas também a dipsomania, a paixão das
bebidas alcoólicas... [oferecem vários exemplos que ligam
dipsomania ao uso do álcool e concluem [...] O alcoolismo é
pois a grande chaga dos povos civilizados”. (Província de
São Paulo ,29 de Novembro de 1883. (SCHWARCZ -1987.
pp.107)

O modelo de ciência da época é adaptado para a realidade brasileira,


compreende a questão racial a partir da superioridade das raças as colocando
como contrapostos uma das outras, o banco carrega um caráter positivo, evoluído e
o negro o atraso animalesco, desse modo o branqueamento é a opção mais viável
para a construção de um Brasil sem separações raciais, um Brasil evoluído, tanto
culturalmente pela aculturação e roubo da cultura destes outros povos como pela
miscigenação, a obra O cortiço carrega muitos tons dessa integração discursiva, o
apagamento da escravidão e do negro escravo, pela substituição a princípio do
homem de cor clara, e posteriormente pelo completo embranquecimento da
população, “lavando” a marca do mítico pecado de Cam (Caim bíblico) que o negro
carrega na pele, formando a sociedade liberal europeia nos trópicos.

Como adereçamos na introdução a este trabalho, se faz fecundo o uso dos


textos de Lilia Schwarz em especifico o texto: Retrato em branco e negro que pode
por meio das análises de periódicos nos revelar mais sobre as representações dos
negros no imaginário que segue o Século XVIII e XIX e quando colocados lado a
lado com as descrições de personagens de Aluísio de Azevedo nos ajuda a
identificar construções sobre o negro que não são tão explicitas na obra de Aluísio,
a ajuda se faz pelo extenso mapeamento que Schwarcz faz dos jornais em seu livro
e as aparições do personagem negro ou mulato nas publicações. De primeira vista
não é difícil de se notar uma certa coesão no modelo de pensamento dos jornais
com aqueles que fazem parte das ideias que rondam o século XVIII e XIX, os
editoriais das seções “scientíficas” nos revelam o tom cientificista que assumem tais
periódicos.

“A “sciências”, conjuntamente com todo um ideário evolutivo


e positivista, parecia nesse momento dar conta, de forma
absoluta, das diferentes questões que assolavam o país,
questionando e disputando espaços inclusive com a religião
e a Igreja, até então as grandes “fontes dos discursos
“fechados” e “competentes” da época.” (SCHWARCZ -1987.
pp.100)
Sendo assim os periódicos do texto de Lilia Schwarcz tem bases ideológicas
muito parecidas entre si, se podemos dizer uma linha de pensamento da
ascendente burguesia republicana, que como se apresentará na instauração da
república tem muito mais força no imaginário e discurso político do que na prática,
demonstrando então uma falta de coesão de discurso e prática do burgo estudante
como Schwarcz caracteriza o estado de São Paulo e como neste trabalho podemos
chamar de pensamento da elite brasileira, ou de uma crescente parte dela.

“As questões de maior relevância presentes nas outras


seções passarão então a ser trabalhadas a partir dos
editoriais não mais predominantemente pela religião, mas
através do suposto método “imparcial e racional” da ciência,
por exemplo, as causas da embriaguez, os sintomas da
loucura, o problema da vagabundagem e mesmo a questão
do suicídio:” (SCHWARCZ - 1987. pp.105)

A noção da separação social e racial permeia todo o pensamento do século XVIII e


a obra: O cortiço com toda certeza ajuda a revelar a trajetória histórica desses
pensamentos, que deram vazão para construção de conceitos que determinam a
realidade brasileira.

“Os homens não nascem iguais absolutamente. SUPPOE-SE


uma igualdade presumida pela lei sem o que não haveria lei.
Não há excepção senão para os casos pathológicos bem
constatados.” (Correio Paulistano, 17, 18, 19, 20, 21 de
dezembro de 1890) - (SCHWARCZ - 1987 pp.105 apud.
Correio Paulistano - 1890)

Como já supracitado é por meio dos conceitos da ciência do século XVIII que
se constroem os retratos sobre a figura do negro e na comparação da descrição dos
personagens do texto de Aluísio de Azevedo e das representações em jornais no
livro de Lilia Schwarcz, poderemos pensar os retratos e representações comuns que
propõem a ciência e o senso comum do século XVIII. A ciência substitui a religião
pela medicina e vê nas práticas de matrizes africanas a barbárie, os feiticeiros são
malvistos e temidos por suas práticas desconhecidas e mal-intencionadas. Tal
representação -do bruxo degenerado- assume posição tanto nos jornais como na
obra de Aluísio, no personagem retratado e intitulado como a Bruxa de nome Paula
que assume a representação da preta velha, idiota e louca ao atear fogo ao cortiço,
e um segundo relato: o dos jornais, onde o negro é mostrado como feiticeiro pelos
seus costumes de benzer e remediar doenças através de suas crenças, que em
certo aspecto é respeitada pelo senso comum mas estigmatizada, temida e posta
em xeque a todo momento, pois o negro tem a característica de não ser confiável no
imaginário destes mesmo senso comum, este estereótipo de feiticeiro é muito
comum nas histórias e contos retratados em jornais no bojo do pensamento
cientificista, que ridicularizam esta figura, assim como a religiosidade em geral,
denunciando suas práticas não racionais e retrogradas para a época.

“(Bragança) feiticeiro”

“Andou por aqui um sujeito preto ainda


moço(...)Será doutor? A esta pergunta respondiam uns que
sim e outros que não. É doutor effectivamente mas formado
por acclamação dos similunios pascacios. Doutor de lesmas
e caramujos dos parvos.Chamava-se Luiz de tal e tem
famma de excellente feiticeiro. Foi pena que as autoridades
não tivessem conhecimento da presença da personalidade
entre nós para o mandarem ensinar fazer mandinga aos
presos da cadeia .“ (Província de São Paulo ,16 de setembro
1885)” (SCHWARCZ -1987. pp.128)

Como relatado anteriormente nos jornais a concepção de ciência que


influência o autor de O Cortiço traça um retrato do negro como ser dependente,
como seres que não conhecem civilização e dependem do homem branco para se
manter e se civilizar, se não caem em suas inerentes patologias, o negro
dependente é também comumente representado na obra de Schwarcz.

“A seção de notícias trazia, no entanto, não só textos que se


referiam a cenas violentas. Apareciam também, e de forma
constante, artigos que relatavam a “natural” dependência do
negro, que nada podia fazer frente ao abandono ou a falta
de tutela de seu senhor” (SCHWARCZ -1987. pp.123)

Como já havíamos discutido anteriormente a compreensão de que o negro é


um ser inferior é parte do discurso cientifico assim como se fixará no imaginário
popular, Bertoleza é personagem recorrente para essa comparação, mesmo
acreditando ser forra, mesmo com o fim de sua escravidão é dependente, depende
do trabalho que faz, o trabalho que João Romão à dá para se manter sã, trabalho
igual aquele que fazia quando escrava, mas o faz de maneira inconsciente,
compreendendo-o como seu local natural, o negro pertence ao mundo do trabalho,
mas não pela imposição do mesmo, Aluísio é um antiescravista e faz sua crítica ao
movimento abolicionista e a escravidão no final de O cortiço, a morte de Bertoleza é
o claro destaque desta linha de pensamento abolicionista de Azevedo, a abolição é
uma questão política é uma pauta de posicionamento contra a monarquia e um
discurso de modernização, a inferioridade natural do negro garantiria sua
subjugação independente da lei ou não, seria até mais fácil, com o retorno
monetário, com a prática de trabalho livre e um modelo liberal e a não interferência
do Estado na nova dinâmica de trabalho.

Este binômio da civilização vs. Barbárie é presente em todo o texto de Aluísio


assim como é muito notável na historiografia do século XVIII o negro é o retrogrado,
atrasado e bárbaro, assim também o mestiço e pobre por consequência, base para
o discurso higienista com pretensão de apagar e forçar o padrão de civilidade,
carregando consigo todas as contradições possíveis, civilizado não é sinônimo de
cidadão, nem de longe, criando uma subclasse, um sub-cidadão. Estas contradições
da civilização nos moldes coloniais, se apresenta no texto de Aluísio da mesma
maneira como o discurso modernizador, O cortiço de João Romão, lotado de
representantes do atraso é contraponto a ordem, na passagem em que os policiais,
representantes da ordem estatal que ali precisam entrar para pôr ordem ao
desordenado, tal qual é a ação de João Romão, a representação da ação
modernizadora, busca dar fim ao atrasado, para a construção do novo. O Cortiço é
periférico, é o local dos trabalhadores, uma clareira de pobreza dentro da cidade
moderna do Rio de Janeiro, um bolsão de pobreza necessário para a dinâmica
urbana, mas que uma hora ou outra terá sua modernização, pela contraposição
desta ascendente classe burguesa que necessita da mão de obra dos pobres, mas
os precisa apagar e distanciar, pelo higienismo, supracitado, a retirada do que é
barbárie do centro da cidade para as periferias da urbe.

Sendo assim nos fazemos valer de mais uma e essencial discussão, derivada
da pergunta guia para este trabalho: Como as representações do negro e mestiços
na obra O cortiço de Aluísio de Azevedo em comparação a fontes dos jornais de
Schwarz contribuem para a construção de uma memória e identidade negra, para
além, a própria identidade brasileira!? O Brasil já de primeira ordem é herdeiro como
vimos de uma realidade racial muito complexa, poderemos compreender por meio
de uma análise de ideias, como as ideias positivistas contribuem para a formação
destas dinâmicas raciais e para a identidade comum do brasileiro, tais ideias
positivistas, higienistas importadas dão vazão ao mais comum discurso civilizatório,
o Brasil e suas classes dominantes assumem a pretensão de uma sociedade
europeia nos trópicos, como se propõe a teoria do branqueamento e se apresenta
essencial compreender essa dinâmica das ideias positivas como argumentação e
continuidade de um processo não só de branqueamento na prática mas também de
apagamento e substituição das memórias e destruição de culturas, como vimos,
compreender a presença de um uníssono de discursos como ferramental político
dialeticamente conectado com o tecido social ao estudar Brasil e esta temporalidade
é muito importante, e por este motivo a presença de um discurso que assume o
aspecto da modernização conservadora, um destes discursos que de maneira
dialética constroem o pensamento desta época, tal proposta de modernidade do
padrão higienista é excludente, a modernização que só é capaz de socializar a
pobreza, sendo assim o discurso é aspecto e ferramenta e/ou meio comum para tal
sociedade, estes padrões e modelos de pensamentos precisam primeiro ser
identificados e explicitados para compreendermos como se dá a dinâmica das
representações atreladas as memórias e a identidade brasileira.

Tendo em vista estes conceitos e as representações discutidas durante todo


o estender do trabalho, poderemos compreender que esta concordância entre os
discursos possibilitaram um processo histórico de formação nacional nos mais
diversos aspectos, de primeira ordem a idealização de uma nacionalidade e nação
brasileira é claramente excludente, tem por padrão uma realidade que não é a
brasileira, mas em busca de traçar uma narrativa ou uma memória que seja capaz
de dar liga e unificar e de tal modo constituir de maneira “abrangente” toda a
sociedade brasileira, Gylberto Freyre junto a muitos outros pensadores se encarrega
de buscar a identidade do Brasil, a nós as intencionalidades do texto de Freyre ou o
próprio texto não são de primeira ordem importante, mas as leituras que são feitas e
o uso de tais conceitos cunhados por Freyre - Casa Grande e Senzala - se tornam
centrais para nossa discussão, pois assumem a posição argumentativa de um
discurso revisionista e que legitima a escravidão, leitura feita por Schwarcz que nos
valemos e concordamos assim a autora propõe que Freyre tem a intenção assim
como outros autores de traçar uma identidade brasileira, constituindo assim uma
espécie de história ou narrativa da formação do Brasil, neste caso uma
interpretação das estruturas e conjunturas que dão bases as relações sociais e
raciais brasileiras possibilitando ao texto de Gylberto Freyre o uso argumentativo
para a construção de um discurso que compreende não só as relações da
escravidão mas também a história da mesma como branda ou até mesmo positiva,
retornando a noção de civilização, em que o homem branco tem o fardo e fez um
bem ao homem negro ao civiliza ló, em que o negro não seria capaz de sobreviver
ou se manter sem a tutela do homem branco, argumento verificado pela ciência da
época, este é sentido a noção de uma escravidão leve, discurso a uma naturalidade
da sobreposição do homem branco. Um dos aspectos que mais nos chamam
atenção nestas leituras e discurso sociopolítico é um de seus usos ferramentais, em
um processo de apagamento em que estes pensamento tomam corpo no tecido
social, e também como uma ideologia dominante, servindo assim como
instrumentos de apagamento, apagando a violência da escravidão, apagando a
cultura do pobre e negro e a marginalizando, no mesmo momento de apaga, a
substitui, assimila e modifica, usando-a como argumento na formação de uma
identidade brasileira embranquecida e distorcida, mesma identidade que busca
Freyre, Buarque e alguns outros autores da década de trinta. Mais um aspecto da
leitura de Schwarcz sobre o texto de Freyre que nos interessa é sua compreensão
sobre a miscigenação, dando se como positiva, Gylberto Freyre da corpo a este
pensamento ao discutir tal constituição da população brasileira, criando uma cola,
uma unidade racial que se dá pelo velamento do tom da pele, a noção de que pela
mistura e não binaridade tonal não existiriam conflitos intensos, a miscigenação no
mesmo sentido e mais intensamente pela apropriação da cultura civilizada europeia,
uma ligação de embranquecimento cultural, é assim que a obra de Freyre é usada,
como um modelo de brasileiro, que não precisa ser necessariamente de pele clara,
mas que deve carregar consigo aquilo que une seu povo, que é ordeiro, cordato,
povo que “não” carrega raízes africanas ou seu passado “bárbaro”, que é civilizado
agora, assim qualquer pessoa que não se encaixe nesse padrão de brasileiro, por
meio dessa nova cultura ou da própria miscigenação, não é brasileiro, assim a
formação do estado nação brasileiro se encarrega de dar liga por meio da
colonização a um ambiente a princípio caótico, usando dos apagamentos, assim a
não existência de um apartheid pode ser explicado pela própria miscigenação
permitindo pensar um Brasil sem conflitos raciais neste discurso, apagando a luta
negra, apagando sua cultura e se apropriando dela, a democracia racial é uma das
grandes ferramentas dessa constituição de nação e de sua identidade, estes
apagamentos e esquecimentos constituem a realidade que vivemos, as
contradições de nossa própria identidade, uma identidade baseada na miscigenação
positiva, no apagamento dos conflitos, na não identificação cultural do negro
consigo mesmo e suas raízes, concepção de unidade que mais exclui e que
quando inclui é pela porta de trás e assim se forma a idealizada civilização europeia
nos trópicos. Tais representações raciais exploradas no decorrer do trabalho e que
se fazem presente em O cortiço são parte destes discursos de apagamento, tais
representações substituem a realidade racial e se cristalizam no imaginário e no
tecido social de maneira dialética quando reproduzidas por influência acabam por
construir também tais discursos, a concepção do negro violento, preguiçoso e
alcoólatra substitui e apaga a luta negra pela liberdade física, cultura e religiosa,
fazem parte destas ferramentas de discurso e construção de identidade, forçando
uma identidade distorcida ao negro, a de não pertencimento ao Brasil, o
afastamento cultural e racial e que contraditoriamente terá sua cultura e presença
diluída -embranquecida- na formação desta identidade brasileira, novamente não
sendo capaz de se identificar com a mesma.

Por fim, como uma última possibilidade, nos valemos de uma alegoria
pensada por nós, que usa como base os últimos parágrafos da obra: O cortiço, em
que Aluísio de Azevedo faz questão de criticar o movimento abolicionista e sua
hipocrisia e consequentemente a manutenção da estatização da escravidão, mas
também escreve um final para Bertoleza, que para nós - não uma alegoria do
próprio Azevedo - mas uma percepção nossa sobre sua obra. O final de Bertoleza é
a morte, assim como discutimos durante todo o trabalho, o apagamento -morte- de
sua memória, concretizando tanto a tentativa de apagamento na história como o que
intencionava João Romão, dar cabo de Bertoleza, assim como da memória que
tinha dela se pudesse que os outros personagens também tinham, assim Bertoleza
representa mais uma vez o que é retrógrado, a própria escravidão, que se apaga
para dar vazão ao novo, ao moderno, o progresso, representado por João Romão e
seus novos costumes, nesse sentido agora sim como um possível pleito de Azevedo
que positivista e seguidor da ciência escreve alegoricamente um desejo político e
social de apagamento da mão de obra escrava e do passado retrógrado brasileiro
pela substituição do urbano, novo, moderno capitalismo, este discurso político de
apagamento, higienizador, eugenista é presente e recorrente tanto na obra de
Azevedo como nas estruturas da sociedade brasileira até hoje.

Referências Bibliográficas

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