Artigo Construindo Itans
Artigo Construindo Itans
Artigo Construindo Itans
Apresentação
1
A cidade de Pelotas (RS) é uma cidade contingente muito grande de indivíduos escravizados nos
séculos XVII-XIX, devido ao sistema produtivo das charqueadas que supriam todo o Brasil, mas
principalmente para as Minas Gerais.
2
A palavra apresenta aqui um duplo sentido que no contexto da Bacia Semântica de Gilbert Durand
(2002), é fundamental, ela é simbólica, pois trata do universo africano, que indica o lugar de viver, de
morar, a habitação que é assentada ritualisticamente para ser ocupada.
hoje e neste viés é que pretendemos dar força à investigação. A cultura material em
consonância com os dados imateriais5 da cultura é um viés ainda inexplorado desta
sociedade no passado e de seus reflexos no presente.
As escritas históricas são consolidadas pelo pensamento europeu, pela
mítica europeia sem realmente atingir o homo novus bresiliensis (DURAND, 1996, p.
200), que pensa e vive como um ameríndio afro-brasileiro. Para muitos ainda a
“escravidão surgiu no mundo desde que os homens se dividiram em classes,
podendo-se dizer que escravidão e civilização se apresentam sincronizadamente na
história” (FREITAS, 1980a, p. 12). O que podemos dizer é que esta afirmação é
simplória e evidentemente europocêntrica. Baseada nos mitos de superioridade
europeia sobre o mundo, onde a condição “natural” do escravo deveria ser
entendida.
A ideia exposta de que os civilizados escravizam e que este fator é quase
natural nas sociedades é tão marcante nas escritas de historiadores sulinos que
ensinamos nas escolas que os responsáveis pela escravidão seriam os próprios
africanos, pois absurdamente estes são afirmados até hoje como não civilizados6.
Ao estudarmos estes textos encaramos a revelação de um preconceito contínuo na
produção histórica do sul do Brasil. Décio Freitas (1980b), mesmo autor do texto
discutido acima, em contrapartida, traz uma importante compilação de textos legais
os quais davam sustentação ao processo de escravidão no Brasil e mesmo no
mundo moderno a partir do século XVI.
História esta que não revela em nada a concepção do africano que é
deslocado para cá, nem do índio submetido ou dos seus descendentes mesmo que
frutos das relações com os europeus, mas que normalmente baseia-se em modelos
5
A ideia de imaterialidade está naquilo que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
convencionou chamar de Patrimônio Imaterial, que se perpetua até o presente. Esta faceta dos
escravizados (assegurada pelos registros históricos da cultura dos indivíduos e grupos cativos) e dos
descendentes de escravizados até a atualidade é espaço de pesquisa de historiadores, etno-
historiadores, antropólogos e pretende-se de etno-arqueólogos.
6
Há que se questionar a idéia de civilização, mais do que isso há que se questionar a inexistência de
sociedades em mesmas condições de desenvolvimento na África, como na Europa e América. O mais
certo a dizer é que as culturas são diferentes, mas não há uma civilização mais civilizada que outra,
ou um grupo mais desenvolvido que o outro, cada grupo possui o seu próprio desenvolvimento
dependendo de seus fatores culturais. Não podemos mais aceitar a idéia de desenvolvido,
subdesenvolvido e em desenvolvimento. O que temos é todos em desenvolvimento sejam para as
culturas que forem. Não mais nem menos, melhor ou pior, há apenas a diferença.
7
O termo itan assim como outros de origem Yorubana (língua africana) são aqui apresentados numa
tentativa de aproximação com o pensamento que marca os valores dos escravizados, neste caso dos
afros-descedentes. O yorubá é uma língua do norte da África que é falada por aqueles que, na
literatura histórica brasileira sobre escravidão, aparecem como os Nagô. É a língua dos que vieram
nos períodos de auge da escravidão e ficaram até o final dessa, ficando o yorubá como a língua
quase que geral das casas de religião de matriz africana no Brasil.
8
Neste ano o rei D. Sebastião de Portugal promulga a lei proibindo o cativeiro de índios, exceto por
“justa guerra” feita com licença do rei ou do governador do Brasil (FREITAS, 1980b, p. 11), o
problema é que este “justa guerra”, ficou sendo promovida até aproximadamente 1910, quando da
criação do Serviço de Proteção ao Índio (por Rondom), e em realidade é realizada até hoje, pois os
índios são ainda considerados animais. O exemplo disto foi recentemente demonstrado, em 2007, em
Seminário História e Meio Ambiente, realizado na Universidade de Cruz Alta, em palestra sobre a
Amazônia, o Tenente Coronel José Ricardo Pinto de Albuquerque Cavalcante (EASA-EB) afirmou
que “muitos índios na Amazônia vivem muito perto dos seres humanos”.
9
O temo “negro” dá espaço para muitas discussões, mas historicamente (Moura, 1987) a palavra tem
um sentido diferente do seu uso atual. A idéia original era marcar indivíduos que não possuíssem
alma passíveis então a escravidão. A palavra "preto", por exemplo, aparece antes do século X
identificando a cor da pele mais escura oriundos da África. Estes penetravam na península Ibérica,
nas invasões muçulmanas patrocinadas pelos seguidores de Gengis Kan, convertido ao islamismo o
invasor mongol criou um ampla região da Ásia, África e Europa sob seu domínio e de seus
descedentes. A palavra "negro" provavelmente surge no século XV com a escravização de africanos
por portugueses. Os espanhóis, porém, foram os primeiros europeus a usar africanos como
escravizados na Europa e na América, assim um primitivo sentido da palavra negro era "escravo". A
palavra é considerada ofensiva em diversos países africanos e nos Estados Unidos, onde a palavra
black literalmente corresponde à palavra preto e é usada para designar os indivíduos que se
identificam com os aspectos relacionados aos afro-descdentes, não sendo utilizada a paravra niger,
literalmente negro.
10
Ilka Boaventura Leite, do Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas da
Universidade Federal de Santa Catarina, indica que há um “desprivilegiamento, seja através da
ideologia do branqueamento, seja através das práticas de discriminação cotidianas” (LEITE, 1996, p.
9) destaca a “invisibilidade” a que a sociedade submeteu os africanos e descendentes no Brasil, e
Oliven destaca que mesmo a figura do gaúcho exclui os descendentes europeus “ela faz de modo
mais excludente ainda em relação ao negro e ao índio” (OLIVEN, 1996, p. 25).
11
É importante ver os termos que formam esta palavra, re – no sentido que já existia e que será
tomado novamente, e velação – que vem do velado, que está coberto por um véu, escondido. O
objetivo é tornar a ver o que estava escondido, atributo investigativo da arqueologia.
(história dos africanos escravizados neste caso, que é conhecido na religião) dos ara
aiyê (seres humanos) é representada pela variedade de itans, que são histórias ou
mitos, com narrativa característica (LUZ, 1995, p.36). Buscamos, conforme Fábio
Leite (2008), África Sujeito. Esta condição de sujeito de sua história coloca para o
arqueólogo e historiador brasileiro uma tarefa mais comum à antropologia brasileira
(hoje realidade no curso de Antropologia da UFPel). Os arqueólogos brasileiros
então acostumados a trabalhar com vestígios de sociedades extintas, constroem a
própria linguagem e as atribuem a objetos e fatos.
O processo de escravização e a luta contra este constituem novas histórias
que devem se referenciar nos mitos constituídos na África. Há necessidade de
reconstituir o Axé, ritualizado no axexe. É com o Axé, a força vital dos vivos, na sua
troca com o ambiente, sempre ritualizada, restabelece a história dos africanos e
descendentes12 que são sujeitos neste processo trabalhado ainda como Arqueologia
da Escravidão, mas que deve ser entendido como Arqueologia dos Escravizados.
A história da escravidão escrita foca em uma identidade nacional de fundo
europeu, oposta as influências indígena e africana inexistentes. Ensinada nas
escolas. História envolta pelo “branqueamento”13, descarta a população viva (índios
e afros) do Brasil. O contingente africano e indígena, força motriz da produção, não
participa efetivamente, com sua estrutura de pensamento, da constituição de sua
própria história no Brasil. O africano em sua dimensão sagrada, fruto das forças
cósmicas sobrenaturais (LUZ, 1995, p.113), conta os itans dos seres humanos e
sacraliza a existência, no sentido de poder repetir os seus feitos em rituais. Contar o
itan é reviver o passado e viver o presente, é dar sentido ao que acontece, baseado
no que aconteceu e possibilitando o que irá acontecer.
Os documentos escritos destes itans se perpetuaram através das vozes
daqueles povos e pela sua cultura material. A investigação em desenvolvimento
através de dois projetos14 de arqueologia já vem tornando isso uma realidade. Seus
12
Há que se definir o processo de nominação que possa ser similar aos africanos para os indígenas
escravizados, é provável que utilizaremos para tanto o Tupi, língua ampla usada no Brasil pelos
grupos para se comunicarem, similar ao Yorubá que utilizamos aqui para os africanos.
13
A idéia de branquemanto foi desenvolvida pelos teóricos das ciências sociais no final do século XIX
e início do século XX.
14
Pampa Negro – Coordenado pelo Prof. Dr. Lucio Menezes; Mapeamento arqueológico e cultural
dos objetos, lugares, manifestações e pessoas de referência às sociedades tradicionais indígenas e
afro-brasileiras na região sul do Estado do Rio Grande do Sul que coordeno.
15
Quilombo do Monjolo, em Santo Antônio da Patrulha, RS (séc. XVIII) com cerâmicas subsuperfície,
cujo tratamento de superfície remonta a tradições africanas de mesmo período na região de Angola,
datadas por Radiocarbono.
16
34 áreas com Cartas de Auto Reconhecimento da Fundação Palmares, na região de Pelotas.
17
Tese do autor Cláudio B. Carle, defendida na PUCRS, em 2005. Reproduzimos parcelas deste
texto aqui, correspondendo a parte do capítulo I – “As relações científicas e sociais para a construção
de uma nova história dos africanos no Rio Grande do Sul”. (p.14-58).
18
O termo assentamento refere aqui ao termo usado na Tese “A organização espacial dos
assentamentos de ocupação tradicional de africanos e descendentes no Rio Grande do Sul, nos
séculos XVIII e XIX” de autoria de Cláudio Carle, defendida no PPGH- PUCRS em 2005.
19
Exu – conhecido como Bará no sul é uma das figuras mais antigas do universo sacralizado animista
africano.
20
O terma aqui busca lembrar as formas de tratamento, classificatória e tipológica, usual entre os
arqueólogos.
21
Que eu acreditava devido ao Decreto Lei de Ruy Barbosa, quando ministro e secretário de Estado
dos Negócios da Fazenda e presidente do Tribunal do Tesouro Nacional, no dia 14 de dezembro de
1890, que determinou a queima e destruição de todos os documentos referentes ao elemento servil.
Isto apenas para o Ministério da Fazenda, mas o decreto foi estendido a quase todos os órgãos
públicos. No Rio Grande do Sul resultou em portaria expedida em 29 de julho de 1891 no Palácio do
Governo (GOMES et al. 1995, p.25). Segundo Paulo Moreira, informação oral na Banca de Defesa de
Tese (CARLE, 2005), esta condição é um mito, que em muitos casos justificou a não realização de
estudos sobre a temática, pois não haveria fontes para tanto, se é verdade incorri no erro mitificado.
que ser regulado pelo Estado, para não permitir que a produção escravista se
desmantelasse. Joseph Hörmeyer (1986, p.78), que veio a Província do Rio Grande
de São Pedro, em 1850, com o objetivo de preparar a propaganda para a entrada de
alemães nesta, declarara que: “Certo é que um escravo é castigado também aqui,
mas assim como um pai castiga seu filho renitente”. Cristina Nery e Gilian Lopes,
pesquisando inventários de Porto Alegre (1860 – 1880), refutam esta ideia de
castigos brandos, escravizados domésticos cujas exigências são menores
apresentam grande taxa de aleijados e doentes (1988, p. 534-535.)
A escravidão impediu o desenvolvimento de formas produtivas mais
eficientes, mantendo a sociedade em uma estrutura fechada, pois “sendo o escravo
a base fundamental da estrutura, qualquer mudança, partindo da cúpula do sistema,
previa o fim da condição de ser escravo como último ato, ou seja, o último recurso”
(SANTOS 1991, p.72). Louis Conty (1988) já advertia que as charqueadas gaúchas
produziam menos que as uruguaias e argentinas, porque usavam escravizados em
vez de mão de obra assalariada (MAESTRI, 1984, p.66).
O Vaticano, para garantir a lucratividade, decreta o africano não-cristão um
ser sem alma22, passível de ser escravizado (SANTOS, 1991, p.74). A baixa
produção é cobrada e colocavam que isto ocorria devido a sua origem, por serem
“filhos de Cam”23. O afrodescendente não produzia mais não por ter pele escura,
mas por estar escravizado (MOURA,1987, p.40 ; SANTOS, 1991, p.112.). A taxa de
mortalidade era suprida pelo Tráfico até 185024. O escravizado era regulador social,
pois quanto mais longe da condição de escravo um cidadão se encontrava, mais alto
estaria na escala social25, o uso das mãos para o trabalho era considerado
22
Negro de alma, popularizando o termo Negro para a sua condição de escravo
23
Descendentes de Caim (na Bíblia judaico-cristã), que teria matado seu irmão e se refugiados nas
terras de Cam.
24
NERY; LOPES, 1988, p. 533; MAESTRI, 1984, p.64; o contrabando também trazia muitos
escravizados ao Brasil (MAESTRI, 1979a, p.45-46).
25
“As mulheres daqui podem ser divididas em três classes: brancas e de pouca mescla,
pertencentes à sociedade; depois, o imenso número das morenas livres que, dotadas de pouca ou
nenhuma formação, fazem de seus encantos um comércio mais ou menos descente; e, finalmente, as
escravas de todas as matizes. (...) só posso falar das primeiras dessas classes; suas mulheres são
bonitas (...) Essa classe é, nesta Província, mais numerosa e de sangue muito mais puro do que nas
outras províncias; é por isso que nos bailes em Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas, se pode ver
verdadeira guirlanda de flores vivas”. (HÖRMEYER, 1986, p.72-73); podemos perceber aqui o quão
longe estariam os homens de posse dos escravizados dentro de uma sociedade machista da época.
degradante26. Existem inúmeros registros de escravos que valiam mais que uma
propriedade, funcionando também como moeda internacional-comercial (MAESTRI,
1984, p. 25) e como indexador da economia interna (SANTOS, 1991, p. 71-72).
Chamados de africanos como uma abstração, homogeneização dos
diferentes grupos lingüísticos, divididos em dialetos e tribos, sua unidade era
combatida. Havia ainda a hierarquia entre escravizados, do boçal ao ladino, os de
ganho, os domésticos, os mineiros e os urbanos, os crioulos (nascido no Brasil) e o
africano (SANTOS, 1991, p.75). Separações que favoreciam a manutenção do
sistema. Nesta divisão nos é possível verificar através das vestimentas e os tipos de
instrumentos que portavam a cultura material destes estames criados.
No Brasil meridional as charqueadas juntavam muitos escravizados, com
jornada de trabalho de 16 horas diárias. Paravam pelo esgotamento ou pela
enfermidade (MAESTRI, 1984, p.46). A carne salgada barateava as antigas formas
de transporte do gado vivo e a produção deveria ser intensa para competir com as
saladeiras argentinas e uruguaias que, depois de 1825, passaram a usar mais
intensamente a mão de obra assalariada27. As condições de vida nestes
estabelecimentos implicavam numa vida curta e a reposição de mão de obra era
constante. Nicolau Dreys28 (1979, p. 42) considerou a charqueada um
estabelecimento penitenciário. A partir de 1850, com o fim do tráfico, os
escravizados nas charqueadas passam a ser utilizados em sua plenitude, levando a
um desgaste bem maior desta mão de obra e a derrocada deste tipo de produção no
Brasil Meridional. As charqueadas são tema central dos estudos do LAMINA da
UFPel e estão muito longe das escolas da região.
26
“O costume do país proíbe as mulheres brasileiras a se mostrar na rua sem acompanhante, assim
como aos homens a carregar qualquer pacote, mesmo um livro, na rua: para isso existem os negros.
Esse costume é tão enraizado que, por exemplo, ninguém entre as ordenanças dos oficiais das
tropas alemãs quis conduzir um cavalo pelas ruas ou carregar água ou bagagem, vendo-se os oficiais
obrigados a pagar escravos para esses serviços” (1850) (HÖRMEYER, 1986, p. 65).
27
CORSETTI, 1985, p. 91 - O autor questiona esta colocação, também feita por Fernando Henrique
Cardoso, pois buscando o historiógrafo argentino Hector Pérz Brignoli, em sua tese de doutoramento,
afirma que uma grande seca que assolou o pampa, de 1830 a 1832, e o bloqueio francês de 1838 a
1839, provocaram a estagnação da industria saladeira, após sua expansão em 1820. Em 1840 quem
passou a dominar o mercado, sobre a hegemonia de Buenos Aires foram Santa Fé, Corrientes e
Entre Rios - mesmo que neste período o charque caia muito em relação a exportação de lã. Berenice
Corsetti acredita que faltou base documental a Fernando Henrique Cardoso para fazer esta
afirmação.
28
DREYS, Nicolau Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul, citado por
MAESTRI, 1979a, p 42
POSTURA.
Todo o escravo de qualquer condição, que seja, que for, encontrado
na Rua depois do toque de recolher, isto é, depois das 9 horas da
noite de o 1o de Abril ao ultimo de Setembro, e das 10 horas do 1o de
Outubro ao ultimo de Março, sem bilhete de licença de seu Senhor,
ou da pessoa, a cujo encargo estiver, será preso pelas Patrulhas, ou
Guardas de Policia, e conduzido a Prisão Publica desta Cidade, onde
será castigado com vinte e cinco açoites pela primeira vez, e com
cincoenta em cada uma das reincidencias. E para que conste se
lavrou o presente Edital, que será publicado pela Imprensa, afim de
ter a Postura transcriptas a sua execução da data delle em diante -
Porto Alegre em sessão Extraordinaria, de 5 de janeiro de 1836 - O
Presidente, Marcos Alves Pereira Salgado - O Secretário Libanio
Pereira da Silva.
29
MAESTRI, 1984, p. 52 – 47; anúncios só no Jornal O Mensageiro que circulou entre 1835 e 1836.
Tipo: “Quem tiver escravos para alugar para serviço de roça procure João Caetano Ferraz, morador
o
na Rua de Praia, para effectuar o ajuste” ( N 4, Sexta Feira, 13 de novembro de 1835); a maioria das
africanos e afro-descendentes vendidas tinham de 12 a 17 anos e eram para os serviços domésticos.
30
Irmandade da Santa Casa de Misericórdia (ISCM), 1994 – 81; existem casos de africanos e
descendentes livres que também deveriam executar estes serviços.
31
MAESTRI, 1990, pp. 699 - 701 - 703 - 705; ISCM, 1994, p. 51.
si’ dentro da cidade. Se encontrado com faca, punhal ou qualquer arma era
castigado. A maioria dos castigos era prisão ou multa (MAESTRI, 1984, p.49). Aqui
vemos uma substituição de funções; os capatazes e feitores iam aos poucos sendo
substituídos pela força policial (Paulo MOREIRA,1995, p.54). As compras de
alforrias geravam inúmeras contradições dentro do sistema. Roberto dos Santos, ao
catalogar uma série de inventários, encontrou um fato curioso em
34
FAUSTINO, 1991, p.98; MAESTRI, 1979b, 1979a 1984, 1988 , 1990; SANTOS, 1991; MOURA,
1987; NERY, 1988; GOMES et al. 1995.
senhores. Muitos, com certeza, sabiam que poderiam ser recapturados, mas todo o
gasto valia a pena, pois nada perderiam. O máximo seria pagar com a vida, mas ou
morria na senzala (inválido, de doença, de fome) ou morria buscando a liberdade.
Anúncios indicam que os escravizados fugitivos buscavam a fronteira35. A
maioria dos escravizados que fugiam era do sexo masculino, estando na faixa etária
entre os 18 e 40 anos. A fuga era gerada pelo fato de serem escravizados. Na luta
pela liberdade qualquer oportunidade era boa. Assim, o escravizado “fugia, fugia,
fugia”. Levando o que vestiam, o melhor do baú de seu senhor, usava seus pés, nos
barcos que bem sabia manejar, sós ou acompanhado, fugiam. Sem certeza e
segurança de estar livre em qualquer área, com exceção dos países vizinhos que,
na década de 50 do século XIX, já haviam libertado os escravizados, empregando
os “fujões” como peões ou trabalhadores assalariados.
A preocupação com a fuga já data de 18 de abril de 1798, quando criado o
cargo de Capitão do Mato. Mandavam marcar com um “F” a cabeça dos
escravizados encontrados em quilombos (GOMES et al., 1995, p.28). Existiam
problemas para as fugas em massa: a diversidade étnica, a dispersão geográfica, a
vigilância, a polícia, os Guardas Nacionais, a denúncia, o controle ideológico da
Igreja, entre outros. Sant-Hilaire notava que os mais valentes soldados de Artigas
eram africanos e afrodescendentes fugitivos. As fugas podiam posteriormente levar
a formação de “mocambos” e “quilombos”36.
Mario Maestri, publicou, em 1988, alguns depoimentos de ex-escravos que
conheceram estes momentos de fuga. O depoimento do cativo Antônio Cabinda
relata o convite feito a Maria Mina para fugir para um quilombo. Delatado pela cativa,
procura desmentir a escravizada, lançando suspeitas sobre o comportamento moral
da mesma. O outro é o depoimento de Mariano Santos, ex-escravo de fazenda no
Paraná:
35
O Jornal o Mensageiro é um bom exemplo, em 37 números de tiragem aparecem 11 anúncios de
fuga de escravizados, com idades de 8 até a faixa de vinte poucos anos.
36
MAESTRI, 1979a, p. 80-89; SANTOS, 1991, p.75.
38
poeta do século XIX, sobre a vida nos quilombos (MOURA,1987, p.42).
Envolto por este dilema reproduzimos ainda os velhos textos nas escolas e
com eles tentamos cumprir as legislações que querem coibir os processos de
discriminação. Mas o que temos até agora é discriminação na escrita e na forma de
entender os africanos e descendentes, indígenas, quilombolas sociedades
tradicionais e outros grupos. A continuidade da percepção racional e europeia
destas realidades manterá a discriminação, há que se reescrever tudo e respeitar as
formas de pensar destes ainda discriminados. É um grande trabalho, então
começamos humildemente este trabalho no LAMINA-UFPel.
Referências
CONTY, Louis. A escravidão no Brasil. Rio de Janeiro: Casa Ruy Barbosa, 1988.
FAUSTINO, Gitibá G. O negro gaúcho e suas origens. In: TRIUMPHO, Vera (Org.)
Rio Grande do Sul. Aspectos da Negritude. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1991. p.
97-103.
LEITE, Ilka B. Apresentação. In: LEITE, Ilka B. (Org.) Negros no sul do Brasil.
Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996. p. 9-10.
MAESTRI, Mário. J. O Escravo Africano no Rio Grande do Sul. In: DACANAL, José
H.; GONZAGA, Sergius (Org.). RS: Economia e Política. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1979b. p. 29-54.
MOURA, Clóvis. Quilombos e Rebelião Negra. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
(Tudo é História - v. 12).
NERY, Cristina D.; LOPES, Gilian. Relação Senhor - Escravo. Véritas, Porto Alegre,
PUCRS, v. 33, n. 132, p. 533 - 535, 1988.
SANTOS, Roberto dos. O Negro no Rio Grande do Sul: uma realidade além do mito.
In: TRIUMPHO, Vera (Org.). Rio Grande do Sul Aspectos da Negritude. Porto
Alegre: Martins Livreiro, 1991. p. 107 – 114.