Teresa Negreiros - Vícios

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810 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades

Dos vícios redibitórios e da sua articulação com as


cláusulas de declarações & garantias em contratos
de compra e venda de empresas
Teresa Negreiros

Este texto não teria sido escrito não fosse o incentivo que recebi da minha que-
rida Mestre e amiga Judith Martins-Costa. Conhecemo-nos na academia, há cerca
de 20 anos. Nossas “afinidades eletivas” manifestaram-se desde o primeiro encon-
tro, altura em que ambas estávamos a escrever sobre a boa-fé objetiva. De lá para
cá, na vida profissional mas não só, inúmeras têm sido as ocasiões em que nos
regozijamos mutuamente diante das manifestações, por vezes completamente
inesperadas, de uma misteriosa e permanente sintonia, capaz de desafiar a
distância e o silêncio.
Arrisco afirmar que todos os autores que participam desta tão merecida ho-
menagem, apesar de se dedicarem a áreas muito diversas do saber jurídico e de
manterem com a Judith relações de natureza também muito diversa entre si, hão
de, contudo, partilhar um sentimento idêntico: cada um, à sua maneira, está a ela
ligado por uma profunda afinidade de gostos e de ideias.
E isto, naturalmente, diz muito mais acerca da Judith do que acerca de nós –
seus alunos, colegas, leitores, fãs e amigos. Diz-nos da sua inigualável aptidão para
se tornar uma referência em todas as áreas em que atua. Diz-nos também da sua
humildade, abertura, ausência de preconceitos, curiosidade e, sobretudo, generosi-
dade para, com um entusiasmo sempre contagiante, partilhar o seu conhecimento
e as suas experiências.
Quem teve o privilégio de conviver ou trabalhar com a Judith se torna a ela
ligado por esta inspiradora sintonia – expressão máxima da sua capacidade para
criar empatias intelectuais, que só são possíveis graças à sua inteligência e sensibili-
dade ao mesmo tempo únicas e múltiplas; expressão máxima, enfim, do seu interes-
se genuíno pelo conhecimento e pelo outro (suas preferências e escolhas).
O texto a seguir, como referi, surge graças a uma conversa que tivemos em
janeiro de 2017, altura em que a Judith me desafiou para escrevermos um artigo
sobre as cláusulas de declarações e garantias em contratos de compra e venda, que
buscasse determinar a sua qualificação jurídica à luz do Direito brasileiro. Dando
seguimento àquela conversa, dei aqui um primeiro passo.
Concentrei-me neste artigo exclusivamente nos vícios redibitórios e em alguns
problemas que a articulação entre este regime e as ditas declarações e garantias pode
suscitar. É um passo pequeno, mas que julgo necessário, a caminho de uma reflexão
mais abrangente acerca da categorização dessas cláusulas no Direito brasileiro (o
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 811

tal artigo que ainda havemos de escrever…). Trata-se, sobretudo, de um texto que
visa a celebrar, uma vez mais, as nossas afinidades, pelas quais sou imensamente
grata e que espero perdurem e frutifiquem em diálogos como este, indefinidamente.

Introdução
As chamadas cláusulas de declarações e garantias – cuja denominação
tem origem no Direito anglo-saxónico representations and warranties –, são
muitas vezes o cerne da negociação dos contratos de compra e venda, sobre-
tudo quando se trata da aquisição de participações sociais de controle como
veículo de transmissão de empresas.
A problemática acerca da articulação ou possível convivência entre es-
tas cláusulas e o regime dos vícios redibitórios é um dos muitos aspectos por
explorar em torno do uso hoje generalizado destas cláusulas em contratos de
compra e venda de empresas1.
O objetivo deste artigo é demonstrar que as declarações e garantias,
apesar da sua “vocação auto-suficiente”2 em termos de alocação de riscos
entre o comprador e o vendedor, não podem, ou nem sempre devem, ser
interpretadas sem referência ao regime legal dos vícios redibitórios. E o inver-
so é igualmente verdade: também o regime do Código Civil em matéria de
responsabilidade por vícios redibitórios não está imune ao que as partes em
um contrato de compra e venda, precisamente por meio da pactuação de um
regime de responsabilidade pela não observância ou violação de declarações
e garantias, venham a livremente estabelecer.
Para tanto, iremos discorrer sobre o regime dos vícios redibitórios, tal
como estabelecido pelo Código Civil, aludindo às polêmicas sobre o seu fun-
damento dogmático, para ao final apontar situações em que este regime é
confrontado com o disposto contratualmente por meio de declarações e ga-
rantias, procurando em cada caso determinar a resposta mais adequada à luz
do nosso sistema jurídico.

1 Embora os defeitos do negócio jurídico (erro e dolo) e o princípio da boa-fé, em espe-


cial no que refere ao dever de informar, também apresentem elementos de conexão
relevantes, este artigo concentra-se especificamente no regime dos vícios redibitórios e
na sua relevância para a interpretação e aplicação das declarações e garantias inseridas
em contratos de compra e venda de participações sociais de controle, âmbito no qual
assumem uma importância fulcral.
2 A expressão é de autoria de Catarina Tavares LOUREIRO e Manuel Cordeiro FER-
REIRA. In: As cláusulas de declarações e garantias no direito português – reflexões
a propósito do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de março de 2016, pp.
15-30, p. 28 (disponível em: <http://www.uria.com/documentos/publicaciones/5143/
documento/art01.pdf?id=6819>).
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1. Vícios redibitórios – noções preliminares


Chama-se vício redibitório o defeito (vício) oculto capaz de tornar o
bem recebido ao abrigo de um contrato comutativo impróprio ao uso a que se
destina ou de lhe reduzir o valor de forma significativa.
Em linhas muito gerais, o regime dos vícios redibitórios, disciplinado nos
arts. 441 a 445 do Código Civil, institui uma garantia legal em favor de quem
recebe um bem defeituoso em virtude de contrato comutativo, facultando-
-lhe, desde que preenchidos certos pressupostos, a redibição do contrato (do
latim redhibere, que significa retomar, reaver – i.e. reaver o estado em que se
encontrava antes de celebrar o contrato) ou, caso pretenda ficar com a coisa
defeituosa, a redução da contraprestação (i.e. o abatimento do preço).
Aí se incluem todos os casos em que, por uma falha constitucional, por
um defeito de fabricação ou mesmo pelo uso (vício de durabilidade), o bem
não atende à destinação a ele atribuída específica ou normalmente, ou tem
o seu valor diminuído em razão de tal vício. Nestes casos, ocorre a quebra do
sinalagma contratual, já que deixa de existir equivalência entre a qualidade
devida e a contrapartida acordada, daí resultando uma situação de injustiça
comutativa à qual o regime dos vícios redibitórios visa a dar resposta.
Esta é precisamente a ideia central do instituto dos vícios redibitórios:
a possibilidade, em derrogação à regra do caveat emptor3, de o cumprimento
da obrigação de entregar vir a ser questionado, ainda que o bem já tenha sido
recebido pelo credor, desde que este não tivesse conhecimento da existência
do defeito no momento do recebimento da prestação (vício ou defeito ocul-
to). Neste sentido, abrindo a seção dedicada aos vícios redibitórios, dispõe o
caput do art. 441 do Código Civil: “A coisa recebida em virtude de contrato

3 Historicamente, a possibilidade de, após ter recebido e aceito o bem, vir o credor a rejei-
tá-lo, ou a exigir a redução da contraprestação, significou uma “conquista da equidade
pretoriana sobre a rigidez do direito civil” (cf. DANTAS, San Tiago. Meios de proteção
ao comprador. In: Problemas de direito positivo – estudos e pareceres. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, pp. 179-198, p. 184). Isto porque, ao receber o bem sem reservas, o
credor está, de certa forma, externando a sua intenção de o aceitar no estado em que se
encontra. Ou seja, a aceitação da entrega do bem pelo credor tem justamente o efeito
de indicar que o bem em questão está de acordo com o esperado. Afinal, se o bem não
corresponde ao esperado e não é por isso idôneo a satisfazer o legítimo interesse do cre-
dor, cabe a este rejeitá-lo desde logo. O rigor desta regra clássica, conhecida como caveat
emptor, ía ainda mais longe, imputando-se ao comprador o ônus de proceder ao prévio
exame do bem. Assim, se, por um lado, o comprador estava protegido porque lhe assistia
o direito de apenas aceitar o bem de determinada qualidade, por outro lado, cabia-lhe
o ônus de proceder com toda a cautela ao prévio exame do bem, pois a entrega deste
reputava perfeito o cumprimento da obrigação por parte do vendedor. Acima de tudo, a
máxima caveat emptor prestigiava a segurança e previsibilidade nas relações econômicas
ao impedir que vendas consumadas fossem ulteriormente questionadas.
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comutativo pode ser enjeitada por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem
imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor”. Na sequência,
o art. 442 faculta ao credor a quem interesse manter o bem a alternativa de
exigir o abatimento do preço pago pelo bem defeituoso: “Em vez de rejeitar a
coisa, redibindo o contrato (art. 441), pode o adquirente reclamar abatimen-
to do preço”.
Vale dizer: quando o ato de recepção da prestação se dá ao abrigo de um
contrato comutativo, o seu efeito exoneratório é em parte relativizado pelo
regime dos vícios redibitórios. Apenas em parte, pois que o recebimento da
prestação continua a significar, em princípio, que o credor considera o bem,
no estado em que se encontra, satisfatório, sendo que a sua inércia pelo pe-
ríodo decadencial fixado legalmente (art. 445 do Código Civil) importará a
efetiva e irremediável aceitação da prestação.
O regime dos vícios redibitórios previsto no Código Civil é, natural-
mente, muito diverso do que se encontra consagrado no Código de Defesa do
Consumidor (“CDC”) em matéria de responsabilidade por vício do produto e
do serviço (arts. 18 e ss. da Lei n. 8.078/90), o qual não é objeto do presente
artigo, que, pelo contrário, se centra na análise de questões próprias a con-
tratos firmados entre partes sofisticadas, não sujeitos ao regime especial do
CDC. Enquanto neste último existe responsabilidade por desconformidades
tanto ocultas como aparentes, ou de fácil constatação – caveat venditor – , no
Código Civil impera, em princípio, a regra da não responsabilidade do alie-
nante pelos vícios aparentes.
Assim, conforme o disposto no art. 441 do Código Civil, é próprio dos
vícios redibitórios serem ocultos, ou escondidos, tendo sido nesta medida le-
gitimamente ignorados pelo credor aquando da entrega efetiva da coisa. Da
parte do devedor, o fato de desconhecer o vício não influi sobre a garantia,
que será devida independentemente da sua boa-fé, embora seja decisivo para
o efeito de determinar o agravamento da sua responsabilidade por perdas e
danos (art. 443, 1ª parte).

2. Os mecanismos clássicos de proteção ao adquirente4:


as ações edilícias
Nos termos do disposto no Código Civil, a garantia por vícios redibi-
tórios faculta ao adquirente uma das seguintes alternativas, conjuntamente
denominadas, como já foi referido, ações edilícias: (i) ou rejeita o bem defeitu-

4 Utiliza-se o termo “adquirente” em sentido amplo para neste contexto designar o con-
tratante a quem o domínio, posse ou uso são transferidos (o “acipiente”, como designava
Clóvis Beviláqua, Direito das obrigações. Ed. Histórica, Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977,
p. 176).
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oso, assim se operando a redibição do contrato, (i.a) com a devolução do valor


pago, acrescido das despesas incorridas com a contratação se o alienante des-
conhecia sem culpa o vício, (i.b) ou com a devolução do valor pago e ainda a
indenização por perdas e danos se o alienante agiu culposamente (art. 443);
(ii) ou fica com o bem, a despeito dos vícios, exigindo no entanto um corres-
pondente abatimento do preço (ação estimatória ou actio quanti minoris – art.
442) e ainda, se for o caso, o ressarcimento das perdas e danos.
Embora a admissibilidade de uma terceira alternativa, consistente na
reparação ou mesmo na substituição da coisa, não esteja consagrada expres-
samente no Código Civil, esta deve também ser admitida: afinal, as garantias
edilícias visam a proteger (e não prejudicar) o credor, cujo interesse primá-
rio – a realização da prestação (entrega de coisa livre de vícios), tal como
originariamente pactuada – não raro se mantém intacto no curso do tempo,
possibilitando a “purga” dos vícios, tal como sucede com a purga da mora
enquanto a prestação ainda lhe for útil.
Pela mesma razão, parece-nos que o devedor, a seu turno, poderá resistir
às ações edilícias mediante a reparação do defeito ou a substituição do bem
sempre que o credor não conseguir demonstrar que tais medidas são incapazes
de satisfazer ao interesse do “comum das pessoas” que viesse a estar no seu lugar,
naquela mesma situação. Na análise acerca do direito do devedor à reparação
do bem ou à sua substituição como forma de evitar as ações edilícias, é funda-
mental não perder de vista que, conforme assinalado por Judith Martins-Costa,
atualmente “[...] a cooperação entre as partes da relação e a consideração dos
interesses de ambas as partes tomam o lugar da relação de subordinação, ao
credor, dos interesses do devedor: ambos os interesses são dignos de tutela”.
Todavia, vale ressaltar, a reexecução da prestação não impede que o adquirente
pleiteie a reparação dos danos eventualmente sofridos em razão da entrega de
um bem defeituoso nos termos do art. 443 do Código Civil.
Assim, a redibição do contrato é apenas um dos possíveis efeitos previstos
pelo regime legal, já que a garantia poderá resultar em outras medidas, como o
abatimento do preço – esta expressamente consagrada – ou até mesmo, con-
forme defendemos, a reparação ou substituição da coisa viciada, medida esta
que encontra o seu fundamento na aplicação ao regime dos vícios redibitórios
de normas e princípios que informam o regime do inadimplemento em geral5.

5 O fato de não necessariamente ensejarem a redibição do contrato, haja vista a existên-


cia de outras alternativas de tutela dos direitos do adquirente de bem defeituoso, como
seja o abatimento do valor da contraprestação, torna a denominação de tais vícios como
“redibitórios” algo redutora. Trata-se, contudo, de terminologia amplamente consagra-
da, inclusive, como referido, no título atribuído pelo Código Civil à seção dedicada a
esta matéria: “Dos Vícios Redibitórios”.
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Para que se verifique a responsabilidade por vícios redibitórios, estes


hão de impedir a realização do fim a que se destina o bem transacionado,
ou desvalorizá-lo. Há também pressupostos temporais a levar em conta: o
Código estabelece prazos decadenciais apertados, após os quais caduca o di-
reito do credor de redibir o contrato ou de exigir a redução no preço (art. 445
– trinta dias para móveis e um ano para imóveis), o que se justifica por razões
de segurança e previsibilidade no comércio jurídico.

3. Pressupostos das ações edilícias


Quando é que um vício existente sobre o bem transacionado dá lugar à
incidência do regime dos vícios redibitórios, acarretando a responsabilidade
do devedor? Como se verá a seguir, a responsabilidade do devedor pressupõe
que o vício seja oculto, ignorado pelo credor, e de certa gravidade.

3.1. Vício oculto: incognoscibilidade objetiva e desconhecimento


subjetivo
Para que a garantia por vícios redibitórios seja aplicável, o Código Civil
exige que o vício em questão seja oculto (o que se vincula à exigência de que
o credor não tenha ciência da existência de tal vício). Afinal, em se tratando
de vícios manifestos, o adquirente os percebeu ou deveria tê-los percebido
(não fosse a sua negligência), supondo-se, portanto, ter querido assumir os
respectivos ônus, renunciando a uma garantia que, no contexto do Código
Civil (ao contrário do que ocorre no CDC), se reputa como disponível. Nesta
linha, argumenta Pontes de Miranda: “Se o outorgado conhecer o vício do
objeto depois da conclusão do contrato e antes da recepção, a sua pretensão
à responsabilidade pelo vício do objeto extingue-se se não faz a reserva. A
reserva obsta à perda, porque a perda resultaria do silêncio”6.
Ressalte-se, contudo, que o caráter dispositivo da garantia não é absolu-
to, e deverá seguir de perto o princípio estabelecido no art. 461: “A alienação
aleatória a que se refere o artigo antecedente poderá ser anulada como dolosa
pelo prejudicado, se provar que o outro contratante não ignorava a consuma-
ção do risco, a que no contrato se considerava exposta a coisa”7.
Assim é que, havendo dolo por parte do alienante, que pré-exclui a
responsabilidade sabendo, de antemão, da existência do vício, a respectiva

6 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes. Tratado de direito privado. 2. ed. Rio de Janei-
ro: Borsoi, 1962, v. XXXVIII, p. 293.
7 Ademais, a responsabilidade por vícios redibitórios torna-se imperativa nos contratos de
adesão, quando tal responsabilidade decorrer da “natureza do contrato” (vide arts. 423 e
424 do Código Civil).
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cláusula deverá reputar-se nula. Neste sentido, ensina Pontes de Miranda: “A


cláusula de pré-exclusão da responsabilidade pelo dolo é nula”8.
Ademais, a responsabilidade por vícios redibitórios torna-se imperativa
nos contratos de adesão, quando tal responsabilidade decorrer da “natureza
do contrato” (vide art. 424).
Define-se como oculto o vício que, por antítese, é não aparente, não os-
tensivo, não reconhecível por meio de um exame com o grau de profundidade
que se espera em vista dos (des)conhecimentos técnicos do credor. Assim, é
oculto o vício que, além de subjetivamente desconhecido por parte do credor,
este não teria mesmo condições de o descobrir, já que se encontrava apenas
em germe, sem que um exame prévio, ainda que diligente, o pudesse revelar.
Com efeito, é preciso conjugar os dois aspectos: o vício deve ser oculto,
ou seja, de difícil verificação, e desconhecido por parte do credor. Neste senti-
do, o STJ teve a ocasião de lembrar que “[...] não basta que o defeito da coisa
esteja escondido. É necessário que ele seja desconhecido pelo comprador”
(STJ, 3ª Turma, REsp 299.661/RJ, Min. Humberto Gomes de Barros, v.u., j.
02.09.2004, DJ 04.10.2004).
Segundo Caio Mário da Silva Pereira, esta característica exigida como
condição para a caracterização do vício apto a desencadear a garantia, há de
ser avaliada “in abstracto, considerando-se oculto o defeito que uma pessoa,
que disponha dos conhecimentos técnicos do adquirente, ou que uma pessoa
de diligência média, se não for um técnico, possa descobrir a um exame ele-
mentar. Não se reputa oculto o defeito somente porque o adquirente o não
enxergou, visto como a negligência não merece proteção”9.
Releva, pois, avaliar, caso a caso, se o desconhecimento do credor re-
sultou da sua negligência ou se, pelo contrário, deve ser tido como um des-
conhecimento escusável, pois que mesmo uma análise diligente da situação
não seria suficiente para que o vício fosse revelado: “O defeito oculto é aquele
que, sendo desconhecido do credor, pode ser legitimamente ignorado, pois
não era detectável através de um exame diligente”10.
As condições subjetivas do credor – se é ou não um especialista – in-
fluem sobre a caracterização do vício como oculto ou aparente. Neste senti-
do, observa Jorge Cesa Ferreira da Silva: “O profissional do ramo terá, assim,
maiores dificuldades para se beneficiar da regra”11. Trata-se, pois, de uma ma-
téria de prova acerca das faculdades de percepção do credor.

8 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de, op. cit., p. 286.


9 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense,
v. III, p. 124.
10 MARTINEZ, Pedro Romano. Cumprimento defeituoso – em especial na compra e venda e
na empreitada. 1. ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 36.
11 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-fé e a violação positiva do contrato. 1. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, p. 179.
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Mesmo sendo “objetivamente” ocultos, os vícios só se configuram como


redibitórios se o credor de fato deles não tinha conhecimento: os vícios hão
de ser, pois, subjetivamente desconhecidos. Do contrário, isto é, “se deles
tiver [o adquirente] conhecimento, mesmo que não sejam aparentes, não se
pode queixar de sua presença”12.
Excepcionalmente, se o adquirente não enxerga o vício devido à sua ne-
gligência, ainda assim poderá valer-se da garantia no caso de demonstrar que
o alienante agiu de forma fraudulenta, pois se, por um lado, não se quer pro-
teger o contratante negligente, por outro, é ainda menos admissível favorecer
aquele que agiu dolosamente, com a intenção clara de iludir a contraparte
acerca das qualidades do bem.
O caráter oculto dos vícios como requisito para a aplicação da garantia
por vícios redibitórios deve existir até o momento da realização da prestação.
De fato, se no período que corre entre a celebração do acordo e a realização
da prestação principal o vício, antes oculto, se tornar aparente, então, neste
caso, devem aplicar-se as normas contidas nos arts. 235 e 236, referentes à
inexecução das obrigações:

Art. 235. Deteriorada a coisa, não sendo o devedor culpado, poderá o


credor resolver a obrigação, ou aceitar a coisa, abatido de seu preço o
valor que perdeu.
Art. 236. Sendo culpado o devedor, poderá o credor exigir o equivalente,
ou aceitar a coisa no estado em que se acha, com direito a reclamar, em
um ou em outro caso, indenização das perdas e danos.

Assim é que, vindo a se constatar o surgimento de um vício após a cele-


bração do contrato mas antes de efetuada a entrega do bem, o credor poderá
resolver o contrato ou aceitar o bem com abatimento proporcional do preço,
sendo que se a impossibilidade do cumprimento da obrigação se dever a culpa
do alienante, este estará ainda obrigado a proceder à indenização por perdas
e danos em favor do credor.
Portanto, é próprio dos vícios redibitórios que estes, já existentes no
momento da entrega do bem, até então sejam ocultos, somente vindo a se
tornar ostensivos após o recebimento da coisa pelo credor13.

12 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, op. cit., p. 124.
13 A hipótese foi examinada por Guilherme Döring Cunha Pereira, em relação a uma com-
pra e venda de lote de ações representativas do controle acionário de uma sociedade:
“Se antes da transferência [das ações] se constata uma insuficiência no ativo ou um
acréscimo do passivo, o adquirente pode simplesmente recusar as ações ou aceitá-las
exigindo ao mesmo tempo uma diminuição no preço. Não se trata aí da incidência dos
arts. 1.101 a 1.106 do Código Civil [artigos referentes aos vícios redibitórios no Código
de 1916], mas sim dos princípios mais gerais que regem a inexecução das obrigações”
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A ignorância do vício por parte do credor (outorgado) constitui, nas pa-


lavras de Pontes de Miranda, um pressuposto da responsabilidade do devedor
(outorgante):

Um dos pressupostos para a responsabilidade do outorgante pelo vício


do objeto é o de desconhecer o outorgado a existência do vício do ob-
jeto ou a sua inevitabilidade, ou a ausência de qualidade assegurada. O
momento em que tem de apurar esse conhecimento é aquele em que se
conclui o negócio14.

É que, neste caso, tendo o adquirente ciência da existência do defeito e


mesmo assim acordado a aquisição, o alienante terá cumprido perfeitamente
a sua obrigação de entregar o bem no estado em que se encontrava ao tempo
da conclusão do negócio. Mais: “como poderia o comprador alegar um vício,
que conhecia na conclusão do contrato, sem violar o princípio da boa-fé?”15.
Note-se, no entanto, que, a fim de exonerar o devedor da responsabili-
dade pelo vício, o conhecimento do credor deve ser completo, ou seja, deve o
alienante provar (a ele se impõe o onus probandi, nos termos das regras gerais
de repartição de tal ônus) que o credor tinha não só ciência do vício, mas,
igualmente, dos efeitos que tal vício seria capaz de provocar sobre a utilidade
e/ou valor do bem16.
No mesmo sentido, esclarece João Calvão da Silva:

Pelo que, se alegada e evidenciada a existência do defeito pelo compra-


dor [...], a prova de que este o conhecia ou o não podia legitimamente
ignorar na conclusão do contrato incumbirá ao vendedor [...], que assim
mostrará a conformidade da coisa entregue com a coisa prevista na com-
pra e venda17.

Por outro lado, pode acontecer o oposto, isto é: o vício ser oculto em-
bora seus efeitos, aparentes. O exemplo nos é trazido por Antonio Herman
Vasconcellos e Benjamin e, embora se reporte ao CDC, é perfeitamente

(PEREIRA, Guilherme Döring Cunha. Alienação do poder de controle acionário. 1. ed.


São Paulo: Saraiva, 1995, p. 101).

14 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado, op. cit., p. 285.
15 CALVÃO DA SILVA, João. Compra e venda de coisas defeituosas (conformidade e segu-
rança). 1. ed. Coimbra: Almedina, 2002 (reimpressão), p. 21.
16 LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones., tradução esp. de Jaime Santos BRIZ. Madrid:
Editorial Revista de Derecho Privado, t. II, 1959, p. 68.
17 CALVÃO DA SILVA, João. Compra e venda de coisas defeituosas..., op. cit., p. 21.
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adequado à conceituação do caráter oculto do vício também no âmbito do


Código Civil. Exemplifica Benjamin:
[…] o consumidor pode adquirir um televisor com vício de sintonia e,
por serem difíceis as condições de transmissão na sua região, atribuir tal
vício a este e não àquele. Aí temos que os efeitos do vício são totalmente
aparentes e o vício, em si considerado, não o é. Um técnico, com conhe-
cimento especializado, poderia, de imediato, atribuir a irregularidade na
sintonização ao produto mesmo e não às condições físicas da área. Mas
tal conhecimento não se exige do consumidor18.

Portanto, se é verdade que não se pretende, mediante a imposição da


garantia pelos vícios redibitórios, premiar a negligência do credor, é igual-
mente verdade que tampouco se deseja premiar a esperteza ou a sorte do
devedor às custas do empobrecimento do credor. O ponto justo, isto é, o
ponto de equilíbrio é aqui, como em outras tantas situações, impossível de ser
determinado em tese ou a priori. Mas é nele que deve mirar o intérprete ao
se deparar com a análise do requisito referente ao caráter incógnito do vício.
Não é suficiente que o credor não se tenha apercebido do vício para que o
mesmo se revista do caráter de vício “objetivamente” oculto, indispensável
para que se configure como redibitório; no entanto, o caráter oculto do vício
pode existir ainda que, como lembra Benjamin no exemplo acima citado, seus
efeitos já se fizessem notar – embora, devido a certas circunstâncias, tais efei-
tos tenham sido erroneamente atribuídos a fatores exógenos, que acabaram
por “ocultar” o vício que, na verdade, era a sua causa. O que não se pode
mesmo aceitar é que o credor negligente invoque mais tarde a existência de
vício que desde logo poderia ter sido acusada.

3.2. Gravidade do vício: de minimis non curat Pretor


Finalmente, cumpre referir o requisito definido como “seriedade”, “re-
levância” ou “gravidade” do vício. O parâmetro para que se avalie o grau
mínimo de relevância do vício, a justificar o seu enquadramento como vício
redibitório ao abrigo do Código Civil capaz de ensejar a responsabilidade do
devedor, consiste na expectativa do credor, a fim de determinar se o contrato
ainda assim teria sido concluído nas mesmas condições19. Os defeitos despre-

18 BENJAMIN, Antonio Herman Vasconcellos. Comentários ao Código de Proteção ao


Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 133.
19 Trata-se do parâmetro implícito na antiga definição constante do Código Comercial,
que assim dispunha no seu art. 210: “O vendedor, ainda depois da entrega, fica respon-
sável pelos vícios e defeitos ocultos da coisa vendida, que o comprador não podia des-
cobrir antes de a receber, sendo tais que a tornem imprópria ao uso a que era destinada,
ou que de tal sorte diminuam o seu valor, que o comprador, se os conhecera, ou a não
comprara, ou teria dado por ela muito menor preço”.
820 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades

zíveis sob o ponto de vista de uma possível perturbação do equilíbrio entre


as prestações não se qualificam como redibitórios na medida em que não
chegam a comprometer o sinalagma contratual:

É preciso que a alteração ou falta sejam de tal entidade a comprometer


o equilíbrio das prestações negociais, ou, como diz Pipia, é preciso que
o vício ou defeito tenham uma tal relevância e gravidade que exerçam
direta influência sobre o equilíbrio da relação econômica ou jurídica20.

Em sentido aparentemente contrário, Scartezzini argumenta que “no


mundo moderno, de produção e consumo de massa, qualquer imperfeição,
qualquer desconformidade com o prometido, desde que não seja insignifi-
cante, pode caracterizar o vício”21. A rigor, porém, os argumentos invocados
pelo autor para que se proceda a uma (re)leitura não “tão rígida” do art. 441
remetem para a normativa do CDC, e não para a do Código Civil22.
Portanto, a diminuição do valor como requisito para a configuração do
vício redibitório há de ser apreciável. Embora o Código Civil não o explicite,
a admissibilidade da ação quanti minoris (abatimento do preço – art. 442) com
fundamento em todo e qualquer defeito, mesmo aqueles que pouco ou nada
teriam influenciado na determinação do valor do bem transferido, parece
desproporcional e injustificada face à desejável estabilidade das relações ne-
gociais entre contratantes com poder negocial presumivelmente equiparável.

4. Enquadramento dogmático dos vícios redibitórios


Estas noções preliminares acerca da configuração básica do instituto dos
vícios redibitórios permitem-nos desde logo apreender os seus traços essen-
ciais: trata-se de instituto voltado para a preservação do sinalagma contratual,
como expressão da justiça comutativa (daí serem os contratos comutativos o
seu campo privilegiado de incidência). Mas escondem as dificuldades e perple-
xidades que o seu manuseio revela na prática: “A ação redibitória, sendo uma
das primeiras que é apresentada ao estudante de Direito, suscita incertezas
que o acompanharão até o seu último dia de atividade profissional”23.

20 LIMA, Otto de Souza. Teoria dos vícios redibitórios. Tese para concurso à Cátedra de
Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1965, p. 316.
21 GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. Vícios do produto e do serviço por qualidade, quan-
tidade e insegurança – cumprimento imperfeito do contrato. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 2004, p. 167.
22 GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini, ob. cit., p. 227.
23 É Filippo de Maria quem lembra essas palavras “desconsoladas mas realistas” de Jemolo
(Azione contrattuale e azione redibitoria. In: Riv. dir. civ. 1967, II, 640 apud MARIA, Fili-
ppo de. La compravendita di azioni non quotate. Padova: CEDAM, 1994, p. 18).
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 821

Há quem defenda que a teoria dos vícios redibitórios ocupa um lugar


indefinido, situando-se entre a teoria do inadimplemento e a teoria do erro,
como há quem afirme que, na verdade, tanto o erro como o inadimplemento
servem para explicar o regime dos vícios redibitórios, um regime por natu-
reza híbrido, pois tudo vai depender da verificação, em concreto, do conte-
údo ou abrangência do contrato, invocando-se ora o inadimplemento, ora
o erro, consoante as qualidades em questão integrem ou não o programa
prestacional24.
Com efeito, muitas dúvidas existem a propósito da melhor forma de
posicionar a garantia por vícios redibitórios, hesitando-se entre o seu en-
quadramento em meio aos defeitos do negócio jurídico, às modalidades de
descumprimento contratual ou ainda como uma categoria à parte (dever au-
tônomo de garantia).
Para Serpa Lopes, a teoria dos vícios redibitórios situa-se num “não-
-lugar”, entre o erro e o inadimplemento:

[...] nesta matéria pairam a incerteza, a dificuldade e a sua própria deli-


cadeza, tanto mais quando a teoria dos vícios redibitórios [...] permanece
num campo duvidoso, situada entre a teoria do inadimplemento e a do
erro, com o risco de perder a sua autonomia, para se converter ou em
teoria do erro ou em teoria do inadimplemento25.

Estas discussões têm efeitos concretos na aplicação prática da lei, como


seja a fixação dos prazos a que está sujeito o exercício dos direitos conferidos
ao credor prejudicado. Aliás, não raro são razões de ordem prática, e não
teórica, que parecem motivar as escolhas feitas pela doutrina e pela jurispru-
dência nesta matéria. Com efeito, a qualificação sob o regime dos vícios redi-
bitórios, do erro ou do inadimplemento esteve sempre muito ligada à questão
da definição dos prazos para o exercício das pretensões associadas. Mas não
só. Mesmo com o alargamento dos prazos consagrado no Código Civil de
2002, a questão do enquadramento dogmático dos vícios redibitórios não
perdeu importância prática. Basta atentar para o fato de que, enquanto o
regime do erro é tendencialmente imperativo, o dos vícios é de caráter essen-
cialmente dispositivo, situando-se no campo da responsabilidade negocial,
no qual as partes são dotadas de autonomia para, respeitadas certas condi-
ções, autorregularem o regime da indenização aplicável26.

24 Cf. CALVÃO DA SILVA, João. Compra e venda de coisas defeituosas..., op. cit., pp. 49 e ss.
25 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. 6. ed. rev. e atual. pelo professor
José S. Santa Maria. São Paulo: Freitas Bastos Editora, v. III, p. 176.
26 Neste sentido, Judith Martins-Costa afirma: “[…] ao pactuar negócios jurídicos, as par-
tes podem, em linha de princípio, estipular cláusulas acerca da limitação ou da exclu-
822 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades

Vejamos, pois, os pontos de aproximação e de distância entre a teoria


dos vícios redibitórios frente à teoria do erro e frente à teoria da inexecução
das obrigações.

4.1. Vícios redibitórios e erro


Os autores que aproximam os vícios redibitórios do erro o fazem por
considerar que, na aquisição de um bem defeituoso, o que se verifica é uma
manifestação de vontade por parte do adquirente inquinada pelo erro quanto
às qualidades do bem. Segundo esta corrente, “a distinção entre erro-vício do
consentimento e erro-vício redibitório torna-se teoricamente um sofisma e
deve ser repudiada pela ciência”27.
Fato é, porém, que tal distinção não tem sido repudiada. Pelo contrário,
para além das distinções no plano do regime legal, apontam-se critérios cien-
tíficos para separar as hipóteses de erro das hipóteses de vícios redibitórios.
No plano do regime legal, várias são as diferenças que separam os regi-
mes do erro e dos vícios redibitórios. Por exemplo, o erro há de ser substancial
e deve necessariamente poder ser percebido pelo destinatário da declaração
(art. 138). Já no regime dos vícios redibitórios, dispensa-se o requisito da
essencialidade, bastando que sejam suficientemente graves sob o ponto de
vista de uma possível perturbação do equilíbrio entre as prestações, sendo
certo que a garantia opera mesmo que o alienante desconhecesse a existência
do defeito (art. 443, in fine, onde fica claro que a culpabilidade é pressuposto
para a responsabilidade por perdas e danos, mas não para o acionamento da
garantia). Ademais, o regime do erro tem-se por imperativo, ao passo que
o regime dos vícios redibitórios estabelecido no Código Civil tem natureza
tendencialmente supletiva (diz-se “tendencialmente” pois o caráter supletivo
pode, em certas circunstâncias específicas, não se verificar, como nos casos
abrangidos pelo art. 424 – contratos de adesão).
No plano conceitual, a fronteira entre o erro e os vícios redibitórios
pode ser traçada da seguinte forma: o erro recai sobre a base do consen-
timento, apresentando-se como uma “anomalia constitucional” do negócio
jurídico, ao passo que os vícios redibitórios recaem sobre o bem em si mesmo,

são do dever de indenizar, desde que atendido o ponto de equilíbrio entre o exercício
da liberdade individual e as necessidades sociais de proteção do lesado” (cf. Comentá-
rios ao novo código civil – do inadimplemento das obrigações. Sávio de Figueiredo Teixeira
(Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. V, t. II, p. 159).

27 GIORGI, Obligazione, apud DANTAS, San Tiago, op. cit., p. 181.


dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 823

pressupondo a existência de um contrato válido mas que ostenta uma “ano-


malia funcional”, isto é, no plano do (mau) cumprimento28.
O erro pressupõe uma caracterização subjetiva, e por isso mesmo há
hipóteses em que o erro se configura, levando à invalidação do contrato, sem
que, não obstante, o bem em si mesmo, objetivamente, apresente qualquer
defeito, ou sem que necessariamente ocorra uma perturbação no sinalagma
contratual.
Neste sentido, exemplifica Jorge Cesa Ferreira da Silva:

[...] o sujeito que compra o prédio porque julga que tem quinze aparta-
mentos, vindo a constatar que tinha, em realidade, dez, vole erradamen-
te. No entanto, se compra o prédio que tinha dez apartamentos, mas
constata após a compra que o prédio possuía rachaduras geradoras de in-
filtração, abaixo da fina camada de gesso, o caso é de vício redibitório”29.

Erro e vícios distinguir-se-iam, portanto, na medida em que a caracte-


rização do primeiro é subjetiva, pressupondo um exame acerca da represen-
tação (subjetiva) que o declarante faz da realidade (objetiva), ao passo que,
no caso dos vícios redibitórios, estes se configuram por meio da comparação
objetiva entre as características que integram o conteúdo do contrato e o es-
tado da coisa entregue. Diversamente do que ocorre no erro, o contratante
prejudicado pelos vícios redibitórios adquiriu exatamente aquilo que inten-
cionava adquirir; não existe qualquer perturbação no processo de formação
do contrato:

De fato, um defeito que surja em uma máquina qualquer, ou em algum


aparelho de precisão, não poderá ser visto como um erro do adquirente,
ou como um vício de sua vontade, na formação do contrato. Isto porque,
a máquina e o aparelho comprados foram, exata e precisamente, os que
se entregou, e, assim, não haverá qualquer vício de vontade. Mas, é evi-
dente que aquele defeito, tornando, no todo ou em parte, imprestável a
máquina ou o aparelho, não poderá permitir a subsistência do contrato.

28 MARTINEZ, Pedro Romano, op. cit., p. 38


29 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-fé e a violação positiva do contrato, op. cit., p. 184. E
ainda Paulo Luiz Neto Lôbo: “[...] a aquisição de um automóvel com ano de fabricação
diferente do ano de modelo, supondo o adquirente ser aquele idêntico ao deste, caracte-
riza erro. O automóvel novo que apresenta defeito de desempenho regular quando usa-
do, sujeita-se a vício redibitório” (LÔBO, Paulo Luiz Neto. Responsabilidade por vícios
e a construção jurisprudencial. Revista do Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1995, pp. 45-51, p. 47.
824 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades

Este, embora perfeito e válido, não poderá deixar de ser resolvido, ou de


autorizar a diminuição do preço pago30.

João Baptista Machado dedicou-se a este tema, enfatizando que o erro


se situa na fase formativa do acordo, ao passo que os vícios redibitórios decor-
rem do próprio acordo, pressupondo, logicamente, a sua válida constituição:

As normas relativas ao erro são normas materiais ou de regulamenta-


ção directa que colhem na sua hipótese o dado de facto consistente na
divergência entre a intenção e vontade real do declarante e o sentido
juridicamente válido da sua declaração – ou, por outras palavras, a diver-
gência entre a consequência jurídica negocial efetivamente querida pelo
declarante e aquela que efetivamente se produz por força dos critérios
legais relativos à interpretação e integração das declarações negociais31.

Já a garantia edilícia decorre do contrato, ou, por outras palavras: “[…]


em toda a medida que as qualidades da coisa vendida devam considerar-se
como abrangidas pelo acordo, não se põe um problema de erro na formação
do contrato. Ao invés, […] “trata-se de uma responsabilidade ex pacto”, pelo
que a ação redibitória não traduz uma impugnação ao contrato (como é o caso
da ação de anulação com base no erro), mas, antes, o seu reconhecimento32.
Daí decorre, ainda segundo João Baptista Machado, que o regime da
garantia por vícios redibitórios tem natureza essencialmente supletiva, ad-
mitindo-se o acordo dos contratantes no sentido de excluir ou modificar tal
garantia, ao passo que “o erro está sempre do lado de fora do conteúdo nego-
cial; de modo que, tentar resolver o problema do erro por acordo seria como
perseguir a própria sombra ou tentar saltar por cima dela”33.
Contudo, ainda que seja possível, em termos lógicos e conceituais, deli-
near uma fronteira bem demarcada entre o erro e os vícios redibitórios, e daí
retirar consequências práticas relevantes – como seja o caráter imperativo do
primeiro e supletivo do segundo –, na prática as dúvidas podem avolumar-se
a ponto de levar alguma doutrina a postular a possibilidade de uma dupla
qualificação e, nesta medida, a cumulatividade dos remédios cabíveis34.

30 LIMA, Otto de Souza. Teoria dos vícios redibitórios, op. cit., p. 231.
31 MACHADO, João Baptista. Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas. In:
Obra dispersa. Braga: Scientia Ivridica. 1991, pp. 31-124, p. 55.
32 MACHADO, João Baptista, op. cit., p. 45.
33 MACHADO, João Baptista, op. cit., p. 70.
34 Neste sentido, defendia San Tiago Dantas: “A dupla configuração, numa espécie dada, do
vício e do erro, ou do erro ou do inadimplemento, conduz não à exclusão mas à cumulação
dos meios de defesa, ficando o comprador habilitado a escolher, como acima se mostrou, o
que julgar mais adequado à sua proteção” (DANTAS, San Tiago, op. cit., p. 192).
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 825

4.2. Vícios redibitórios e inadimplemento contratual


Não menos problemática é a aproximação entre vícios redibitórios e o
inadimplemento contratual, a qual se passa a examinar em seguida.

4.2.1 Unidade de fundamento teórico


Existe um fundamento próprio, autônomo, capaz de justificar a exis-
tência de uma teoria dos vícios redibitórios, ou, ao invés, a responsabilidade do
alienante pelos vícios redibitórios decorre muito simplesmente da inexecução
de uma obrigação contratual, sendo, assim, absorvida pela teoria relativa ao
inadimplemento das obrigações?
Entre nós, Paulo Luiz Neto Lôbo postula a existência de um fundamen-
to autônomo, o dever de garantia, donde deriva a responsabilidade do alienan-
te por vício apesar do cumprimento:

[...] nada é mais antinômico com a idéia de responsabilidade por vício


(dever de garantia) que a do dever de adimplemento. Deste não se cuida
porque é pressuposto daquele. Só há responsabilidade por vício onde
há adimplemento contratual. No caso, a prestação do alienante não é
viciada, porque a cumpriu com a entrega da coisa; viciado é o objeto da
prestação, até mesmo quando não há dolo ou ciência por parte de quem
a entrega35.

Veja-se bem que, de acordo com tal entendimento, o regime dos vícios
redibitórios não se reconduz a uma espécie de inadimplemento, pelo contrá-
rio, pressupõe precisamente que haja adimplemento contratual – entrega da
coisa tal qual ela é –, daí que se lhe atribua um fundamento autônomo. A
chamada teoria da garantia visa, pois, a responsabilizar o devedor apesar do
cumprimento, e não por causa do descumprimento36, sendo, neste contexto, a
garantia “encarada autonomamente, como obrigação que acresce à obrigação
essencial do contrato, em torno da qual gravita, para a reforçar, assegurando
o resultado prático da execução normal do contrato; mas sem se confundir
com a obrigação de cumprimento do direito comum dos contratos, de cujas
regras exorbita agravando a responsabilidade do devedor garante”37.
A teoria da garantia, que rejeita o enquadramento da responsabilidade
por vícios redibitórios no âmbito da teoria do inadimplemento, encontrou
certo eco em nossos tribunais:

35 LÔBO, Paulo Luiz Neto. Responsabilidade por vícios e a construção jurisprudencial,


op. cit., p. 48.
36 CALVÃO DA SILVA, João, op. cit., p. 51.
37 MACHADO, João Baptista, aludindo a Gross, op. cit., p. 107.
826 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades

No caso de vício redibitório o contrato é cumprido de maneira perfeita,


pois a coisa tem defeito oculto que a torna imprópria ao uso a que se
destina ou lhe diminui o valor. Já no caso de entrega de coisa diversa,
o contrato é descumprido, caracterizando inadimplemento, e não de-
feito oculto (TACivSP, Ap. 419.670-9, 4ª C., Rel. Walter Guilherme, j.
14.03.1990).

Conforme se pode perceber, no acórdão acima citado procurou-se dis-


tinguir o vício redibitório – caso em que o “contrato é cumprido de maneira
perfeita” – do inadimplemento contratual.
Karl Larenz rejeitava a aproximação dos vícios redibitórios à teoria do
inadimplemento contratual, contestando que o contrato que tivesse por ob-
jeto uma coisa específica pudesse considerar-se inadimplido pelo fato de a
coisa afinal ser defeituosa:

A entrega de una cosa defectuosa – siempre que se trate de cosa espe-


cífica – no implica incumplimiento parcial del deber de prestación. De
ahí que la mencionada entrega no produzca la consecuencia de que el
comprador, en cuanto sea posible, pueda exigir el cumplimiento de lo
que reste (la llamada eliminación del vicio) o que en caso de culpa del
vendedor pueda reclamar indemnización de daños por incumpliminto
según los preceptos generales, sino que únicamente le son atribuídas las
pretensiones por vicios. El fundamento de estas pretensiones, si no
radica en la infracción del deber de prestación del vendedor, puede
ser hallado en que el comprador es engañado en una aceptación o
expectativa en las que según el contrato podía confiar38.

A fim de discernir a teoria do inadimplemento da teoria dos vícios redi-


bitórios, recorria-se a um argumento alegadamente irrefutável: a coisa devida
é a coisa (específica) tal qual ela é, e não como deveria ser, pois não seria “lo-
gicamente concebível o querer que a coisa específica, na sua individualidade
espaço-temporal, seja diversa daquela que é”39.
No extremo oposto, defende-se que, pese embora existir uma diferen-
ciação no plano do regime legal aplicável, o fundamento da teoria do inadim-
plemento e da teoria dos vícios redibitórios é um só.
Isto porque o alienante estaria deixando de cumprir a sua obrigação
sempre que, em lugar de uma coisa livre de defeitos, fizesse a entrega de uma
coisa afinal defeituosa, imprópria ao uso a que se destina ou simplesmente
menos valiosa do que se poderia supor, não fosse a existência daqueles defei-
tos. Por outras palavras, a obrigação não seria satisfeita senão com a entrega

38 LARENZ, Karl, op. cit., p. 91, grifou-se.


39 CALVÃO DA SILVA, João, op. cit., p. 50.
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 827

da coisa no estado que decorre do próprio conteúdo do contrato em relação


ao padrão normal; do contrário, caracterizado estaria o inadimplemento, daí
emergindo a responsabilidade do alienante a título de vícios redibitórios.
Neste sentido, Judith Martins-Costa considera a normativa sobre os
vícios redibitórios integrada ao “modelo do inadimplemento, não havendo
razão, nem sistemática, nem axiológica, para tê-los como espécie divorciada
do regime geral”40.
De fato, quando alguém, por força de uma relação contratual, se obriga
a entregar um bem a outrem, este bem deve apresentar características e qua-
lidades em conformidade com o convencionado. Assim já apontavam autores
clássicos, como Pontes de Miranda e San Tiago Dantas:

Quem recebe o bem, objeto de negócio jurídico comutativo, recebe o


bem com as suas qualidades e o seu tamanho. Não se pode dizer que a
vontade negocial só se dirigiu à coisa tal qual é, com abstração das suas
qualidades; nem que se precise de cláusula para se tornar exigida a quali-
dade, pois que não é mais do que motivo. Ninguém quer a coisa em si,
sem atenção às suas qualidades41.
Não lhe basta [ao vendedor] entregar a coisa vendida, para dar cumpri-
mento ao encargo contratual: cumpre-lhe entregar a coisa com as carac-
terísticas previstas na declaração de vontade não só com as qualidades
ali prometidas (dicta et promissa), mas também com os requisitos indis-
pensáveis ao preenchimento do fim a que se destina42.

Parece mesmo um truísmo dizer-se que o credor não tem direito apenas
a um bem, mas a bem de certa qualidade, apto a satisfazer as suas legítimas
expectativas, conforme o convencionado. O bem aparece, aqui, não apenas
como objeto do contrato, mas como expressão da própria declaração de von-
tade. Conforme desenvolvido por João Baptista Machado, a coisa (objeto da
declaração) pode funcionar também como meio de expressão da vontade:

Como sinal ou símbolo significativo das qualidades ou préstimos essen-


ciais e próprios das coisas do seu género. Para nós, entendemos que nada
obsta a que a designação da coisa individual valha como meio de expres-
são ou significação; isto é, que ela funcione como meio ou instrumento
da declaração negocial – e, portanto, com um significado que transcende
os limites da sua individualidade concreta. Se os usos do comércio ou a

40 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo código civil. Rio de Janeiro: Forense,


2003, v. V, t. II, p. 72; no mesmo sentido, v. ainda SILVA, Jorge Cesa Ferreira da, op. cit.,
p. 199 e GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzi, op. cit., p. 132.
41 MIRANDA, F. C. Pontes de, op. cit., p. 280, grifou-se.
42 DANTAS, San Tiago, op. cit., p. 181.
828 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades

lei derem às declarações de compra e venda o significado de traduzirem


a vontade negocial de compra e venda da coisa com as qualidades e os
préstimos próprios das coisas daquele género – a coisa individualmen-
te designada não funciona (ou não funciona apenas) como objecto ou
termo de referência da declaração, mas (também) como meio de ma-
nifestação da vontade negocial, como elemento integrante da própria
declaração43.

Não se deve deixar de assinalar, no entanto, que em nosso ordena-


mento, tendo por referência o Código Civil, não existe uma regra que
categoricamente imponha a obrigação de entregar o bem livre de defeitos.
Assim é que, em matéria de compra e venda – o contrato comutativo por
excelência –, a obrigação do vendedor é descrita, no art. 481, como a de
“transferir o domínio de certa coisa”, sem que se explicite que a coisa a ser
transferida deve sê-lo livre de vícios.
Esta necessidade de descrever a obrigação do vendedor em termos mais
abrangentes, por forma a nela incluir expressamente a entrega da coisa con-
forme ao contrato, foi sentida na Alemanha. Por ocasião da reforma do Código
Civil alemão (“BGB”) em novembro de 2001, o art. 433, n. 1, passou a dispor
que “Pelo contrato de compra e venda o vendedor de uma coisa fica vincu-
lado a entregar a coisa ao comprador e a transmitir-lhe a propriedade sobre
a coisa. O vendedor deve transmitir a coisa ao comprador livre de vícios
de facto ou de direito”44. A alteração teve em vista, segundo palavras de
Claus-Wilhelm Canaris, integrante da Comissão nomeada para proceder à
reforma do BGB, justamente inserir a responsabilidade por defeitos da coisa
no sistema do inadimplemento em geral: “A conexão entre a lei de vendas e
a lei geral das obrigações foi obtida mediante a formulação de uma obrigação
legal explícita do vendedor de entregar mercadorias sem defeito em termos
de qualidade e título [...]”45. E ainda: “Desta forma, a entrega de uma coisa
defeituosa torna-se uma violação de dever, à qual se ligam – tal como no
regime geral do não cumprimento – as consequências jurídicas da resolução
e da indemnização, e bem assim, como especificidade da compra e venda, a
redução do preço”46.

43 MACHADO, João Baptista, op. cit., p. 78.


44 Tradução de Paulo Mota PINTO. In: Cumprimento defeituoso do contrato de compra e
venda – anteprojecto de diploma de transposição da directiva 1999/44/CE. 1. ed. Lisboa:
Instituto do Consumidor, 2002, p. 21, grifou-se)
45 CANARIS, Claus-Wilhelm. O novo direito das obrigações na Alemanha. In: Revista da
EMERJ. Rio de Janeiro, v. 7, n. 27, 2004, p. 121.
46 Exposição de Motivos da Reforma do BGB apud Paulo Mota Pinto, op. cit., p. 22. No
mesmo sentido, aponta Hans Schulte-Nölke: “This was a fundamental change, because
the BGB had previously drawn a sharp distinction between e.g. the buyer’s rights in the
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 829

Face ao Direito brasileiro, a obrigação de o alienante não apenas entre-


gar a coisa, mas também de a entregar conforme ao contrato (ainda que se
trate de coisa específica, uma coisa isenta de vícios ou defeitos), embora não
esteja expressamente destacada, pode ser depreendida do conceito de “mora”
(art. 394), haja vista a amplitude e a flexibilidade que, no nosso sistema, ca-
racterizam este conceito, a abarcar não somente a demora na realização da
prestação, mas, bem assim, o “modo de ser integral da prestação”47.
Com efeito, não é de todo convincente, neste contexto, dissociar a pres-
tação em si (o ato de entrega) do objeto da prestação (a coisa). Tal dissocia-
ção conduz a um artificialismo incompatível com a concepção da obrigação
como um processo dirigido ao “cumprimento da prestação concretamente
devida, presente a realização dos deveres derivados da boa-fé que se fizeram
instrumentalmente necessários para o atendimento satisfatório do escopo da
relação, em acordo ao seu fim e às suas circunstâncias”48. A prestação não
pode, pois, ser concebida abstratamente, divorciada do fim concreto a que
visa satisfazer. Os interesses do credor na prestação não se cingem à entre-
ga em si mesma, mas à entrega de certo bem, em determinada quantidade
e qualidade, e, consequentemente, o inadimplemento, quanto à prestação,
deve ser examinado com base em todas as deficiências que podem prejudicar
a satisfação desses interesses. Somente uma interpretação excessivamente li-
teral, divorciada do princípio da boa-fé e que negligenciasse o fim último da
relação obrigacional – qual seja, a satisfação do legítimo interesse do credor
– é que poderia conduzir à afirmação de que o vendedor cumpre a obrigação
de transferir o domínio da coisa ainda que mediante a entrega de uma coisa
inútil, porque defeituosa.
Neste sentido, esclarece Jorge Cesa Ferreira da Silva: “O cumprimento,
assim, só se verificará quando tanto o ato de prestar quanto o seu objeto,
estiverem em condições de satisfazer objetivamente os interesses do credor,
concretizando o fim da obrigação”49.

event of defects on the one hand, and in the event of non-performance on the other.
German law has now developed a general type of breach of contract – to be precise,
the notion even transcends contract law, and extends, as breach of duty, to the entire
law of obligations. This makes many distinctions, which had previously been necessary,
either superfluous or at least easier” (The new German law of obligations: an introduction.
Disponível em: <http://germanlawarchive.iuscomp.org/?p=357>).

47 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo código civil, op. cit., p. 225, grifou-se.
48 MARTINS-COSTA, Judith, op. cit., p. 67.
49 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-fé e a violação positiva do contrato, ob. cit, p. 201,
nota 342.
830 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades

À semelhança do regime aplicável ao inadimplemento absoluto e à


mora, o regime dos vícios redibitórios procura assegurar a tutela dos inte-
resses do credor que estejam diretamente relacionados com a realização da
prestação principal, no caso, a entrega do bem.
Por isso mesmo, aliás, não há necessidade de enquadrar os vícios redi-
bitórios fora da mora ou do inadimplemento absoluto, recorrendo-se a uma
terceira espécie de inadimplemento. De notar que em outros ordenamentos
da família romano-germânica se justifica a existência de uma terceira cate-
goria autônoma que tutelaria justamente aquelas situações lacunosas, não
apanhadas pela mora, nem pelo inadimplemento absoluto, em que o inadim-
plemento não decorre da inércia do devedor, mas de sua atuação positiva,
porém incorreta, que não satisfaz os interesses do credor relacionados com a
prestação devida.
No Direito brasileiro, porém, não se vislumbra esta mesma necessidade,
salvo para abarcar hipóteses de “inadimplemento decorrente de descumpri-
mento de dever lateral, quando este dever não tenha uma vinculação direta
com os interesses do credor na prestação”50. Isto porque o sistema jurídico
brasileiro contempla conceitos mais abrangentes tanto de mora como, pre-
cisamente, de vícios redibitórios (não circunscritos ao contrato de compra e
venda), tornando desnecessária, em relação aos deveres de prestação propria-
mente ditos, esta terceira categoria de descumprimento51.
Outro ponto de convergência está no fato de a responsabilidade pelos
vícios redibitórios estar relacionada à tutela do sinalagma funcional, pois, as-
sim como a mora ou o inadimplemento absoluto, a existência de vícios ocul-
tos rompe a correspectividade entre as obrigações convencionadas no contrato.
No entanto, não obstante esta unidade de fundamento, não se deve
olvidar que o Código Civil diferencia a responsabilidade num caso e no ou-
tro, isto é, o inadimplemento contratual gera responsabilidade cujo regime
é diferente daquele aplicável especificamente à responsabilidade por vícios
redibitórios. Impõe-se, por isso, delimitar o campo de aplicação do regime dos
vícios redibitórios face ao regime geral do inadimplemento.

4.2.2. Inadimplemento v. vícios redibitórios – distinções de


regime legal
Ao tempo em que não se vislumbrava a possibilidade de o devedor evi-
tar as clássicas ações edilícias mediante a reparação do defeito ou a substi-
tuição da coisa, a diferença entre os regimes da responsabilidade por vícios
redibitórios e por inadimplemento era mais vincada, conforme o testemunho

50 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da, op. cit., p. 266.


51 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da, op. cit., loc. cit.
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 831

de Otto de Souza Lima: “[...] a nossa legislação distingue entre inadimple-


mento contratual e responsabilidade por vícios redibitórios, subordinando-os
a regras diversas e a tratamento diferente, e dando-lhes ações de índole abso-
lutamente distintas e submetidas a outras regras e conseqüências”52.
Atualmente, porém, apesar de o Código Civil de 2002 ter reproduzido,
no tocante a este aspecto, a disciplina já constante do Código anterior, outros
mecanismos para o saneamento dos vícios passam a ser admitidos, diluindo-
-se a distância entre a responsabilidade por vícios e o inadimplemento con-
tratual. Referimo-nos, concretamente, à possibilidade de o devedor cumprir
preferencialmente a sua prestação, ainda que com atraso, afastando, desta
forma, a resolução (ação redibitória) e a revisão do contrato (quanti minoris).
Em favor desta alternativa, militam (i) os ditames da boa-fé objetiva, a exigir
que a manutenção do interesse do credor para fins de viabilizar a purga da
mora seja apreciada concretamente, mas sempre com base em critérios não
arbitrários; (ii) o princípio da conservação do negócio jurídico, que privilegia
a preservação do negócio sobre a sua extinção ou modificação; e, mais espe-
cificamente, (iii) a invocação, com recurso à analogia, do disposto no art. 144
do Código Civil.
De qualquer maneira, em que pese uma certa tendência de aproximação
dos regimes, certas distinções permanecem, especialmente no que diz respei-
to à abrangência da responsabilidade do devedor pelos danos provocados.
Este fato, constatável face ao disposto no art. 443 do Código Civil, já era
destacado por Serpa Lopes, ao observar que “as conseqüências do vício re-
dibitório, se consideradas como um resultado do inadimplemento do contra-
to, deveriam importar sempre no mais completo ressarcimento dos prejuízos
conseqüentes de tal situação, o que não acontece”53. Além disso, permanece
a distinção relativa aos prazos conferidos ao credor lesado, os quais, no âm-
bito da garantia por vícios redibitórios, são sensivelmente mais apertados dos
que os aplicáveis no âmbito do inadimplemento em geral.
Ora, se o ordenamento subtrai as hipóteses de vícios redibitórios do re-
gime geral aplicável à inexecução das obrigações, continua a ser relevante, do
ponto de vista prático, qualificar uma dada desconformidade da coisa entregue
como sendo ou não um vício redibitório, ou, por outra, como dando lugar à
responsabilidade do devedor por inadimplemento ou por vícios redibitórios54.

52 LIMA, Otto de Souza. Teoria dos vícios redibitórios, op. cit., pp. 204-205.
53 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil, v. III, op. cit., p. 177.
54 De notar que o regime diferenciado dos vícios redibitórios se revela, sob certos aspectos,
prejudicial ao credor. Basta lembrar que os prazos previstos para as ações edilícias (art.
445: 30 dias para móveis e um ano para imóveis) são mais exíguos do que os prazos
aplicáveis aos remédios disponíveis com base no inadimplemento contratual (art. 205:
10 anos, aplicando-se o prazo de prescrição da pretensão de crédito disposto no art. 205
832 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades

Além disso, em caso de vícios redibitórios, é preciso estabelecer que


o alienante tinha conhecimento do vício para atrair a sua responsabilidade
pelos danos daí decorrentes (vide art. 443), enquanto, em sede de inadimple-
mento contratual, basta que o inadimplemento seja imputável ao devedor
para que este seja obrigado a proceder ao ressarcimento das perdas e danos.

4.3. Delimitando o campo de aplicação do regime dos vícios


redibitórios face ao regime do inadimplemento
Conforme examinado no item anterior, a duplicidade de regimes implica
a necessidade de demarcar fronteiras entre os vícios redibitórios e o inadim-
plemento contratual em geral, pois é na especificidade de tais vícios que se
justifica a aplicação de um regime que o Código optou por diferenciar. Com
efeito, diante de uma hipótese de vício redibitório, as regras (gerais) atinentes
ao inadimplemento contratual deverão ser afastadas sempre que existirem re-
gras (específicas) para tal hipótese, pois estas últimas prevalecem sobre aquelas.
Para levar a cabo esta tarefa, vamos examinar, com ênfase na abordagem
jurisprudencial, duas das distinções mais usualmente invocadas no sentido
de circunscrever o regime dos vícios redibitórios: (i) a distinção entre vício
redibitório e vício de quantidade e (ii) a distinção entre vício redibitório e
aliud pro alio. Em ambos os casos, como teremos oportunidade de constatar,
o propósito que esteve na origem destas sutis (e, para alguns, enfadonhas55)
distinções era o de justificar a aplicação do regime prescricional próprio do
inadimplemento e desta forma salvaguardar o interesse do credor lesado pela
aquisição de um bem defeituoso.

4.3.1 Vícios de qualidade e vícios de quantidade


Em primeiro lugar, distinguem-se os vícios de quantidade dos vícios redi-
bitórios, já que estes últimos supõem a entrega do bem por inteiro. Afirma-se,
pois, que a entrega do bem em quantidade superior ou inferior à contratada
se enquadra, em princípio, na hipótese de inadimplemento (parcial), e não
na hipótese de vício redibitório. Isto porque, regra geral, a quantidade não se
confunde com a qualidade do bem56.

do Código Civil, visto inexistir regra específica fixando o prazo de extinção do direito
potestativo de resolver o contrato – cf. STJ, REsp n. 770.746/RJ, 3ª Turma, Rel.ª Min.ª
Nancy Andrigui, v. u., j. 05.09.2006.

55 CALVÃO DA SILVA, João. Compra e venda, op. cit., p. 102.


56 Neste sentido, João Calvão da Silva, Vício de quantidade: defeito da coisa, erro autóno-
mo e não cumprimento. In: Estudos jurídicos (pareceres), São Paulo: Almedina, p. 337.
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 833

A jurisprudência debateu o tema em torno de problemas tendo por ob-


jeto a venda de bens imóveis. Assim é que em 1951 o STF assentou que “o
desfalque na quantidade não importa em vício redibitório” (STF, RE 18.637,
2ª Turma, Rel. Min. Afranio Costa, j. 08.05.1953, DJ 02.02.1953). Daí aquela
Corte Suprema esclarecer que a falta de entrega de parte da coisa não ense-
java as ações edilícias, mas sim a ação ex empto, fundada no descumprimento
parcial:

[...] se não confundem as três ações – a redibitória, a quanti minoris e a ex


empto, as primeiras das quais se referem a vícios ocultos, que habilitam a
rejeitar a coisa vendida, ou pedir abatimento e a última, que tem como
razão a falta de entrega da coisa, no todo ou em parte (STF, RE n. 9.431
– Embs., Tribunal Pleno, Rel. Min. Mario Guimarães, j. 18.01.1952 –
trecho do voto do Min. Rocha Lagoa).

Em sentido semelhante, afirmou o Ministro Orosimbo Nonato:

As ações edilícias [...] têm o fim de rescindir a venda ou abater o preço,


ao passo que a actio ex empto mira, precipuamente, à complementação
da área e, como sucedâneo, apenas, caso seja possível, as perdas e danos
(STF, RE n. 9.431 – Embs., Tribunal Pleno, Rel. Min. Mario Guimarães,
j. 18.01.1952 – trecho do seu voto).

Mais recentemente, no âmbito já da competência do STJ, o mesmo con-


ceito voltou a ser invocado:

V – O prazo prescricional de seis meses definido no art. 178, § 5º, IV


do Código Civil diz respeito às ações por vício de qualidade (vício re-
dibitório), e, não, por vício de quantidade (diferença de área) (STJ,
REsp 83.751/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ
25.08.1997; no mesmo sentido, v. REsp 22.711/SP, 4ª Turma, Rel. Min.
Barros Monteiro, DJ 19.06.1995 e REsp 7.359/SP, 3ª Turma, Rel. Min.
Dias Trindade, DJ 22.04.1991).

Contudo, esta distinção não é absoluta, sendo possível, por vezes, que a
falta ou mesmo o excesso de quantidade resultem em um vício de qualidade,
na medida em que a diferença para mais ou para menos comprometa a função
a que se destina o bem. Conforme exemplifica Pedro Romano Martinez:

A prancha de madeira, por ser demasiado grossa, não encaixa no local


a que se destinava. O objecto de prata, por não ter o peso indicado, tem
um valor de mercado inferior ao referido. A gasolina fornecida, por ter
menos octanas do que o estabelecido, não é adequada para aquele tipo
de motor.
834 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades

Sempre que a falta de quantidade, como nos casos referidos, está intima-
mente ligada com a qualidade do bem, ela é, em si, um defeito57.

Nos casos acima, a quantidade passa a integrar a qualidade por força de


disposição contratual que estabelece a função a que se destina o bem tran-
sacionado. É o que sucede, especificamente, em relação à disciplina que o
Código reserva à compra e venda de imóveis, em que a falta de quantidade
assegurada pelo vendedor – as ditas vendas ad mensuram – equivale à falta
de qualidade, dando ensejo às seguintes medidas em favor do adquirente:
complementação da área (execução específica); resolução do contrato; ou
redução do respectivo preço (cf. art. 500 do Código Civil).
Ainda em relação a imóveis, a jurisprudência procurou excluir do con-
ceito de vícios redibitórios defeitos como “trincas, fissuras e manchas de umi-
dade”, causados por “falha na impermeabilização das paredes externas do
prédio”. Segundo o Ministro Fontes de Alencar, tais defeitos “não se apresen-
tam como vícios redibitórios, inerentes à própria coisa, mas sim conseqüência
do mau cumprimento do contrato de construção, defeitos que só o transcor-
rer do tempo possibilitaria a constatação (STJ, REsp 32.676, 4ª Turma, Rel.
original Min. Athos Carneiro, Rel. designado Ministro Fontes de Alencar, j.
09.08.1993).
A distinção é confusa, excessivamente sutil, mas o objetivo visado é
muito claro: tratava-se de evitar a aplicação do art. 178, § 5º, IV, do Código
Civil de 1916, que previa o prazo decadencial de seis meses:

Defeitos decorrentes do mau adimplemento do contrato de construção,


e prejudiciais à utilização das unidades de moradia, não constituem ví-
cios redibitórios, e sua reparação pode ser exigida no prazo vintenário.
Não incidência do art. 178, § 5º, IV, do Código Civil aos casos em
que o defeito na coisa imóvel não se caracteriza como vício redibitó-
rio (STJ, REsp 32.676, 4ª Turma, Rel. original Min. Athos Carneiro, Rel.
designado Ministro Fontes de Alencar, j. 09.08.1993, grifou-se).

Percebe-se que esta distinção entre vício de quantidade e vício de quali-


dade traduz um esforço da doutrina, acolhido pela jurisprudência, com vistas
a permitir ao credor que recebe coisa defeituosa, mas que deixou de observar
os breves prazos legalmente previstos para reclamar, que ainda assim possa
agir face ao devedor.
Na Alemanha, a reforma em 2001 estabeleceu um novo regime que bus-
ca contemplar a um só tempo (i) a segurança do tráfego jurídico, (ii) o fato

57 MARTINEZ, Pedro Romano. Cumprimento defeituoso – em especial na compra e venda e


na empreitada, op. cit., p. 216.
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 835

de o devedor ter procurado cumprir a obrigação com a entrega do bem (posto


que defeituoso) e ainda (iii) o fato de o credor ter aceito o bem sem reservas,
como também (iv) não constranger o credor a um prazo demasiadamente
breve, sendo de dois anos o prazo para reclamar no caso de bens móveis e
de cinco, no caso de bens imóveis58. Ao debelar o problema na sua origem, a
reforma do BGB torna desnecessárias e datadas as distinções que, como a que
acaba de ser examinada, parecem explicar-se mais por imperativos de ordem
prática do que propriamente teórica.
O mesmo se pode dizer da distinção, de que trata o próximo item, entre
a entrega de coisa defeituosa, de um lado, e a entrega de coisa diversa (o
chamado aliud pro alio), de outro lado. Mais uma vez, a finalidade da distin-
ção parece ser a de reduzir, na prática, o âmbito de incidência do regime dos
vícios redibitórios (e seus breves prazos decadenciais), reenviando estas hipó-
teses de entrega de coisa diversa para o regime geral da inexecução. Como se
terá a oportunidade de demonstrar, assiste-se a uma tendência no sentido do
alargamento do conceito de aliud, incorporando à noção de “coisa diversa”
aspectos funcionais, concretos, numa tentativa de, ampliando a abrangência
do aliud pro alio, restringir o campo de incidência das ações edilícias em favor
das ações fundadas no não cumprimento de obrigação contratual. É o que se
passa a examinar.

4.3.2. Vícios redibitórios e aliud pro alio


Outra distinção invocada com vistas à proteção do credor que se man-
teve inerte durante o prazo de que dispunha para interpor as ações edilícias
é a que distingue entre, de um lado, a entrega de bem diverso do combinado
(aliud pro alio) e, de outro, a entrega de bem que padece de vícios de inade-
quação – i.e. vícios redibitórios.
A expressão aliud pro alio remonta ao Direito Romano: Aliud pro alio
invito creditori solvi non potest. Contra a vontade do credor, não se pode pagar
uma coisa por outra. No Direito atual, o art. 313 do Código Civil consagra o
princípio: “O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é
devida, ainda que mais valiosa”.
Assim, tem-se, de um lado, a entrega de mercadorias que diferem subs-
tancialmente das que foram contratadas e, de outro, a entrega de mercado-
rias que se enquadram perfeitamente no gênero objeto do contrato, embora
careçam de qualidades imprescindíveis ao desempenho da função que se lhes
pretende atribuir, ou cuja falta acarreta a sua desvalorização.

58 CANARIS, Claus-Wilhelm, op. cit., pp. 123-124.


836 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades

No primeiro caso, a entrega de uma coisa de espécie diversa daquela


convencionada importa em inadimplemento contratual, sendo facultado ao
credor resolver o contrato. Não se trataria, aqui, de vício redibitório.
Já no segundo caso, em que a mercadoria corresponde substancialmen-
te ao mesmo gênero que havia sido contratado, mas, concretamente, vem
a apresentar defeitos os quais, sem a desnaturar, são, contudo, impeditivos
do desempenho da sua função ou lhe retiram parte substancial de seu valor,
então, neste caso, é correto cogitar-se da existência de vícios redibitórios.
San Tiago Dantas dá-nos o exemplo do comprador que recebeu um au-
tomóvel da série 1936, em lugar do modelo de 1937, que encomendara59.
Há também o sempre citado caso da venda de quadro falso. Na verdade,
há aqui que distinguir duas situações. Em primeiro lugar, tem-se o caso em
que foi convencionada a venda de quadro genuinamente original, porém um
quadro falso foi entregue em seu lugar. Seria uma hipótese de erro, de vícios
redibitórios ou de inadimplemento contratual (aliud)? Uma vez que se estaria
entregando coisa diversa da comprada, faz sentido qualificar a hipótese como
de inadimplemento. Em segundo lugar, tome-se a hipótese em que o quadro,
objeto do negócio, era falso, muito embora o adquirente acreditasse (errone-
amente) tratar-se de um original, vindo a descobrir a verdade somente após
a entrega. Neste caso, a melhor solução é considerar esta alienação anulável
por erro (ou dolo, a depender do comportamento do alienante), pois, aqui
sim, há manifestação de uma vontade viciada. Ou seja, no primeiro caso, a
anomalia situa-se na fase de execução do contrato, ao passo que no segundo
caso a anomalia afeta a própria formação do contrato, incidindo sobre o pro-
cesso de formação da vontade do adquirente.
Na tentativa de diferenciar os vícios redibitórios do aliud pro alio, é subli-
nhado que este último só se aplica quando o bem efetivamente entregue não
corresponde em gênero, nem em espécie, ao bem prometido. Com base em
tal raciocínio, o aliud estaria configurado quando bastar para a configuração
da desconformidade a divergência em gênero e espécie entre o bem entregue e
o bem objeto do contrato, sem que seja necessário averiguar se estão ou não
presentes as qualidades esperadas ou se está ou não apto a satisfazer a finali-
dade pretendida. Se, por outro lado, a desconformidade apenas se revelar com
base nesta última avaliação, estaríamos então em face da existência de vícios
ocultos ou, eventualmente, de erro ou dolo. A propósito destas distinções,
assim se pronunciou o Tribunal de Alçada do Estado de São Paulo:

59 DANTAS, San Tiago. Problemas de direito positivo, op. cit., p. 186. Note-se que, segundo
o autor, o fato de ter havido uma encomenda já por si impede a caracterização do erro.
Se, pelo contrário, a compra tivesse sido feita diante do carro, que o comprador pensava
tratar-se de um modelo ano 37, mas que afinal era um modelo ano 36, então o caso
estaria perfeitamente enquadrado como erro de fato.
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 837

Se, em contrato de compra e venda de bem móvel, o adquirente rece-


be exatamente a coisa que tencionava adquirir e esta contém o vício
oculto que lhe prejudica o uso ou diminui o valor, caracteriza-se vício
redibitório – e não inadimplemento contratual (o adquirente recebe
outra coisa que não aquela que comprou) ou erro substancial (falta ao
objeto adquirido qualidade importante com a qual contava e que influiu
decisivamente em seu consentimento) – prescrevendo a respectiva ação
para haver a indenização devida no prazo do art. 178, § 2º, do CC (1º
TACivSP, Ap. 368.375, 6ª C., Rel. Juiz Carlos Gonçalves, j. 03.02.1987
– grifos nossos).

Contudo, há uma orientação alternativa que alarga o campo de inci-


dência do aliud para aqueles casos em que o bem entregue, muito embora
corresponda em gênero e espécie ao bem que foi objeto do negócio, possui um
defeito tão grave que o torna absolutamente imprestável.
Tal abordagem foi endossada pelo STF que, com base numa concep-
ção assim alargada do aliud pro alio, afastou a incidência dos prazos previstos
para a propositura das ações edilícias: “A prescrição do artigo 178, parágrafo
2º do Código Civil se refere à rescisão do contrato, por vício redibitório, e
não à rescisão por imprestabilidade absoluta da coisa comprada” (STF, RE
34.036, 2ª Turma, Rel. Min. Antonio Villas Boas, DJ 14.10.1958 – grifou-se).
A utilização do critério da gravidade do vício para o fim de distinguir este
da entrega de um aliud, longe de esclarecer a questão, definindo a fronteira
que separa o regime da inexecução da obrigação do regime dos vícios redi-
bitórios, antes demonstra o quão confusos estamos nesta matéria. Conforme
constata Hans Schulte Nolke: “Não existem, como é óbvio, critérios gerais
adequados para elaborar esta distinção crucial entre a entrega de bens defei-
tuosos e a entrega de um aliud”60.
Em suma, a conceituação do aliud pro alio, tanto aqui como alhures,
mostra-se controvertida, contribuindo para que a sua aplicação prática seja,
como foi visto, extremamente delicada61.

60 NOLKE, Hans Schulte. The new German law of obligations: an Introduction, pp.1-6, p.
3: “There are, of course, no suitable general criteria for making this crucial distinction
between the delivery of defective goods and the delivery of an aliud”. Disponível em:
<http://germanlawarchive.iuscomp.org/?p=357>.
61 Este ponto foi argutamente salientado por María Martínez Martínez, em seus comentá-
rios ao acórdão do Tribunal Superior, de 21 de outubro de 2005, que considerou como
aliud pro alio, e não como vício redibitório, a entrega de azeite cuja composição química
indiciava a utilização de outros óleos que não exclusivamente o de oliva, desta forma
impedindo que o comprador, ao revender a mercadoria, fizesse jus a um determinado
benefício econômico outorgado no âmbito da legislação comunitária aplicável às ex-
portações de azeite de oliva (MARTÍNEZ María Martínez. “Aliud pro alio” versus vicios
ocultos en compraventa mercantil de cosa genérica (aceite de oliva)”. Comentarios de senten-
838 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades

4.4. A convergência dos regimes sob o conceito de


conformidade
Diante da insegurança gerada pelas dificuldades suscitadas por essas dis-
tinções, na Alemanha passou-se a reunir sob um regime único quer a entrega
de coisa diversa, quer a de coisa em quantidade inferior, quer ainda a de coisa
defeituosa. Com efeito, o BGB é expresso ao equiparar a entrega de coisa di-
versa ou em quantidade inferior à entrega de coisa defeituosa (vide § 434, n.
3, do BGB), o que, aliás, é coerente com a opção naquele sistema de integrar
a garantia dos vícios redibitórios no regime do inadimplemento em geral.
Muito antes, já a Convenção de Viena das Nações Unidas sobre
Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG, na sigla
em inglês) eliminara a concorrência de diversos (e fragmentados) regimes
em favor de um regime único (convergente) de responsabilidade em razão
da desconformidade do produto entregue. Conforme o disposto no art. 35 da
CISG, o vendedor tem a obrigação de entregar as mercadorias em conformi-
dade com o contrato, fixando-se um conceito de conformidade abrangente
quer da qualidade, quer da quantidade, do tipo e demais características das
mercadorias que, de acordo com a finalidade a que estas se destinam, deverão
estar presentes sob pena de se caracterizar o descumprimento da obrigação:

Seção II. Conformidade das mercadorias e direitos ou pretensões de


terceiros
Artigo 35
(1) O vendedor deve entregar mercadorias que pela quantidade, qualida-
de e tipo correspondam às previstas no contrato e que tenham sido em-
baladas ou acondicionadas de acordo com a forma prevista no contrato.
(2) Salvo se as partes tiverem convencionado outra coisa, as mercadorias
só estão conformes ao contrato, se:
(a) forem adequadas às finalidades para as quais seriam usadas habitual-
mente mercadorias do mesmo tipo;
(b) forem adequadas a qualquer finalidade especial expressa ou tacita-
mente levada ao conhecimento do vendedor no momento da conclusão
do contrato, a não ser que resulte das circunstâncias que o comprador
não confiou na competência e apreciação do vendedor, ou que não era
razoável da sua parte fazê-lo;

cias, nulidad de los actos jurídicos. Disponível em: <http://www.codigo-civil.info/nulidad/


lodel/document.php?id=153>, afiliación: Universidad de Zaragoza). Ainda no Direito
espanhol, consulte-se Verónica San Julián Puig, El objeto del contrato. Aranzadi, 1996,
pp. 303 e ss. No Direito italiano, vide Paolo Marta, Garanzia per vizi e aliud pro alio: ana-
lisi di un cambiamento in atto. Disponível em: <http://www.dirittoepiemonte.it/articoli/
aliud_proalio.htm>.
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 839

(c) possuírem as qualidades de mercadorias que o vendedor apresentou


ao comprador como amostra ou modelo;
(d) forem embaladas ou acondicionadas na forma habitual para as mer-
cadorias do mesmo tipo ou, na falta desta, de um modo adequado a con-
servá-las e a protegê-las.
(3) O vendedor não é responsável, nos termos das alíneas (a) a (d) do
parágrafo anterior, por qualquer falta de conformidade das mercadorias
que o comprador conhecia ou não podia ignorar no momento da con-
clusão do contrato.

Esta “síntese ou fusão da garantia por vícios e das sanções comuns da


obrigação de entrega” merece os maiores elogios de João Calvão da Silva62.

Há aqui, portanto, um conceito amplo e uniforme de falta de confor-


midade, englobante das diferentes espécies de inadimplemento da obri-
gação de entrega e da clássica garantia por vícios da coisa, seja coisa
genérica seja coisa específica, que dispensa a enfadonha distinção entre
vícios, falta de qualidade e aliud pro alio – o que não se afigura desprovido
de interesse dada a ausência de critério indiscutível, distintivo de tais
conceitos63.

Entre nós, a superação da distinção entre o regime dos vícios redibi-


tórios e o aliud pro alio faz-se sentir no âmbito do CDC, que traz um regime
único para a responsabilidade do fornecedor de produto ou serviço em razão
dos defeitos apresentados. Pode-se dizer que o CDC consagrou um regime
geral de responsabilidade do fornecedor pela desconformidade do produto ou
serviço prestado, de tal maneira que pouco importa se foi entregue um pro-
duto defeituoso ou um produto totalmente diverso daquele previsto, pois, em
todo caso, não só o fundamento da responsabilidade é o mesmo, mas também
o próprio regime aplicável, inclusive no que diz respeito aos prazos cabíveis.
O CDC também simplificou a questão ao reunir sob a mesma disciplina
a responsabilidade em razão do defeito de qualidade e a decorrente do defeito
de quantidade.
Por isso, há quem diga que, com o advento do CDC, torna-se ainda mais
obscura a distinção entre os vícios redibitórios e o inadimplemento contratu-
al: “O espaço aberto à prestação in natura, ou o alargamento da proteção dos
casos de vícios aparentes, bem demonstram que as fronteiras dissociativas do
inadimplemento e dos vícios, se não se apagam definitivamente, pelo menos
se atenuam de modo considerável”64.

62 CALVÃO DA SILVA, João. Compra e venda…, op. cit., p. 101.


63 CALVÃO DA SILVA, João. Compra e venda…, op. cit., p. 102.
64 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da, op. cit., p. 199.
840 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades

Contudo, as relações comutativas regidas pelo Código Civil (em oposi-


ção ao CDC) estão sujeitas ao regime específico dos vícios redibitórios, que,
dada a sua especialidade, prevalece sobre o regime do inadimplemento em
geral. Assim, as distinções acima, que procuram restringir o âmbito de aplica-
ção do regime das ações edilícias, não perderam a sua razão de ser.
A não ser que se opte pela tese da cumulatividade das ações edilícias
com as que resultam do inadimplemento. Tal entendimento era o defendido
por Carvalho de Mendonça, que não concorda que “os remedios do adqui-
rente contra os vicios da cousa se resumam nas duas acções edilicianas. Além
dellas cabe ao adquirente a acção commum por inexecução das obrigações do
contrato, ao menos no caso de dólo, no de garantia expressa de qualidades
ou ausência de vícios”65. Outros autores, como San Tiago Dantas, admi-
tem mesmo a possibilidade de certas situações concretas se sujeitarem a uma
“dupla configuração”, o que justificaria a cumulação dos meios de defesa à
disposição do credor lesado, que tanto poderia, seguindo esta lógica, invocar
o regime dos vícios redibitórios como o do inadimplemento, ou do erro66.

5. A responsabilidade por vícios redibitórios face à pactuação


de declarações e garantias em contratos de compra e venda de
participações sociais
É neste contexto de dúvida acerca da articulação (ou mesmo sobre-
posição) entre o regime legal próprio dos vícios redibitórios e os regimes do
inadimplemento e do erro que se torna ainda mais importante, na prática, de-
finir contratualmente a alocação de riscos entre as partes em um contrato de
compra e venda, estabelecendo longas e detalhadas “declarações e garantias”
prestadas, sobretudo, pela parte vendedora, bem como as consequências que
a sua não observância suscitam.
São ainda especialmente úteis as cláusulas de declarações e garantias
em contratos de compra e venda de participações sociais tendo em conta que
poderiam levantar-se dúvidas acerca da aplicabilidade do regime dos vícios
redibitórios em casos, por exemplo, de ulterior revelação de um passivo não
revelado até ocorrer a transmissão da participação. É que, a rigor, a existência
de um passivo oculto não afeta o uso das quotas ou das ações da socieda-
de que foram adquiridas, mas apenas o seu valor. Assim, embora entre nós
prevaleça o entendimento de que se enquadram no conceito de vícios redi-
bitórios os passivos descobertos após a alienação do controle societário não

65 CARVALHO DE MENDONÇA, M. I. Doutrina e prática das obrigações. São Paulo:


Francisco Alves e cia., t. II, § 700, p. 389, grifou-se.
66 DANTAS, San Tiago, op. cit., p. 188.
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 841

obstante o objeto do contrato ser as participações sociais e não a empresa67,


fato é que tornar esta garantia expressa e regulada contratualmente constitui
um mecanismo valioso para proteger os interesses do adquirente.
Estas cláusulas são, também por isso, típicas em contratos de compra
e venda de participações sociais de controle, e estipulam, em geral, que a “a
empresa objeto da operação é conduzida de acordo com as exigências legais
e com as melhores práticas de mercado, que a empresa adquirida é titular de
todos os ativos necessários à condução das atividades sociais, e que a venda
das ações ou quotas não encontra restrições de caráter legal ou contratual”68.
Em particular, assumem especial relevância as declarações e garantias concer-
nentes à precisão e à veracidade das demonstrações financeiras e contábeis
da sociedade-alvo, à inexistência de passivos ocultos, enfim, concernentes à
situação patrimonial, laboral, fiscal e jurídica, em geral, da empresa, dada a
sua relevância para a determinação do valor de mercado da sociedade-alvo e,
portanto, do preço acordado.
Ressalta desde logo a função informativa das declarações do vendedor
sobre a empresa objeto da venda e, correlata a esta função informativa, a
função de atribuição de responsabilidade ao vendedor, assegurada pelas ga-
rantias que este presta, no caso de tais declarações virem a se revelar inexatas
ou imprecisas.
Não tendo uma única função e, por outro lado, podendo tais cláusulas
remeter para consequências ou remédios os mais diversos, com configurações
virtualmente ilimitadas, pois dependentes do concreto programa contratual
livremente pactuado pelas partes, a natureza jurídica das cláusulas de de-
clarações e garantias é um tema aberto a múltiplas interpretações. Não por
acaso, aquelas mesmas dúvidas antes referidas acerca do enquadramento dos
vícios redibitórios no quadro geral do inadimplemento (relativo, portanto, à
fase executiva do negócio), ou como dever de garantia ou, ainda, como causa
de anulação do contrato por uma falha constitutiva (isto é, erro ou dolo rela-
tivo à fase estipulativa do negócio)69 também são pertinentes quando se trata
de definir a qualificação jurídica destas cláusulas.
Assim, pense-se na hipótese de os contratantes estipularem que deter-
minados fatos objeto das declarações e garantias inseridas no contrato foram
essenciais para que os compradores decidissem avançar com o negócio. Neste

67 Cf., por exemplo, COMPARATO, Fábio Konder e SALOMÃO FILHO, Calixto. O


poder de controle na sociedade anônima. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 275 e PE-
REIRA, Guilherme Döring. Alienação do poder de controle acionário, São Paulo: Saraiva,
1995, p. 99.
68 BOTREL, Sergio. Fusões & aquisições. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 279.
69 São expressões de João Baptista Machado. In: Acordo negocial e erro na venda de
coisas defeituosas, Obra dispersa, op. cit., pp. 40 e 41.
842 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades

caso, estaríamos no campo de um defeito quanto à própria constituição do


negócio jurídico70. Por outro lado, se neste mesmo contrato são estabelecidas
as consequências que resultam de eventual inexatidão destas declarações,
afastando-se a possibilidade da anulação do contrato e prevendo-se, ao invés,
uma limitação para o dever de prestar imposto ao vendedor, neste caso nos
aproximaríamos da responsabilidade contratual consequente ao inadimple-
mento de uma obrigação.
Fábio Castro Russo abordou o tema em sua dissertação de mestrado e
concluiu que se trata de “obrigações de garantia que apenas em sentido im-
próprio poderão ser incumpridas, pois têm por objeto uma mera assunção do
risco (ou um “binómio sujeição-expectativa”) e não um comportamento, de
resto sendo a culpa do vendedor irrelevante”71.
Na realidade, será sempre imprescindível compreender o sentido e o al-
cance destas cláusulas à luz do programa contratual como um todo, sem que
nos pareça possível predeterminar, em abstrato, a sua qualificação jurídica.
Por esta mesma razão, tampouco será possível definir a priori a validade destas
cláusulas face aos regimes legais com que necessariamente interagem, antes
sendo necessário um exame casuístico e concreto.
A propósito do exemplo referido acima, Catarina Tavares Loureiro e
Manuel Cordeiro Ferreira observam o seguinte:

Nestes casos, sem surpresa, haverá que averiguar até que ponto o com-
prador se encontrava ou não em situação de erro e assumia a possibilida-
de de determinada coisa não apresentar certas qualidades.

70 É a posição defendida por Claudia Lorena Escandón Lozano, Efectos de la inexacti-


tud o falta de veracidad de la causa expresada en el contrato. Tese de Mestrado, ICESI,
Cali, 2015, disponível em; <https://repository.icesi.edu.co/biblioteca_digital/bits-
tream/10906/79108/1/T00445.pdf>. Para a autora, à luz do Direito colombiano as
declarações e garantias remetem para estipulações acessórias às obrigações principais,
podendo constituir-se na causa determinante de um negócio: “[…] dichas representa-
ciones incluidas en un contrato son prueba de los hechos que indujeran a las partes a
celebrar el contrato, luego afectan directamente su perfeccionamiento e influyen en su
voluntad para formalizarlo” (p. 1). Contesta, portanto, a recondução das declarações e
garantias ao regime do cumprimento/incumprimento da obrigação.
71 RUSSO, Fábio Castro, op. cit., p. 136. Idêntico enquadramento dogmático foi acolhido
pelo Supremo Tribunal de Justiça português, concluindo por isso que: “A violação da
cláusula de garantia não gera um dever de indemnizar na aceção do regime legal da res-
ponsabilidade civil, mas apenas um dever de prestar em sentido estrito, correspondente
à diferença entre o valor económico-financeiro da sociedade garantido pelo vendedor
através de contas apresentadas e o seu valor real, que teria determinado o preço do
negócio” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n. 4915/04.9TVLSB.L1.S1, de 1º de
março de 2016, p. 2).
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 843

Em todo o caso, e ainda que o regime contratual das declarações e ga-


rantias não possa, quanto a nós, afastar a aplicabilidade de outras figu-
ras na medida em que os requisitos de que depende a sua aplicação se
encontrem verificados, essas cláusulas poderão desempenhar também aí
um papel importante na reconstituição da vontade das partes e na deter-
minação do objeto pretendido pelo comprador”72.

Com efeito, por via da pactuação destas cláusulas busca-se uma maior
previsibilidade para a resolução de disputas contratuais acerca do regime le-
gal a aplicar a uma situação de fato envolvendo a “desconformidade” da coisa
entregue em um contrato de compra e venda. Daí Arnold Wald afirmar que
“essas cláusulas visam estender e reforçar a proteção dada ao comprador”
para depois concluir que “a sua violação submete o vendedor a todas as con-
sequências do inadimplemento contratual”73.
O resultado perseguido pelos contratantes que pactuam declarações e ga-
rantias parece ser, portanto, o de afastar o regime típico dos vícios redibitórios,
permitindo a aplicação de um regime autônomo (no sentido de autossuficien-
te) de alocação de riscos entre os contratantes. É que, no silêncio do contrato,
e caso a coisa vendida apresentasse defeitos ocultos, seria aplicável o dever de
garantia tal como definido pelo regime de responsabilidade específico estabele-
cido para os vícios redibitórios. Já com a estipulação expressa de garantias sobre
as características do bem é o próprio perímetro da prestação objeto do contra-
to que está em causa, pelo que, não estando tais características presentes, o
credor pode acionar a garantia que reforça o cumprimento da prestação, sem
necessidade de discutir os pressupostos da responsabilidade por vícios redibitó-
rios. Quando, ao invés, são expressamente estipuladas declarações e garantias,
o cumprimento da obrigação principal passa a pressupor inequivocamente a
entrega da coisa tal qual é garantido que ela seja.
Contudo, não há que se falar necessariamente de um regime garantís-
tico autossuficiente e fechado em si mesmo, estabelecido por meio da pac-
tuação de declarações e garantias que funcionam numa base de “haja o que
houver”74. Antes, tais cláusulas não podem ser interpretadas e aplicadas em

72 Catarina Tavares Loureiro e Manuel Cordeiro Ferreira, op. cit., p. 29.


73 WALD, Arnoldo. Dolo acidental do vendedor e violação das garantias prestadas. In:
Revista dos Tribunais, v. 949/2014, p. 95, 2014, p. 2. E ainda, a seguir: “[…] a violação da
garantia de qualidade se configura com o inadimplemento das declarações e garantias
que vinculam contratual e objetivamente as partes” (op. cit., p. 5).
74 É a expressão de Mario Júlio de Almeida Costa retomada por Fábio Castro Russo. Das
cláusulas de garantia nos contratos de compra e venda de participações sociais de con-
trolo. In: Direito das Sociedades em Revista, 2010, pp. 115-136, p. 132 e citada pelo Su-
premo Tribunal de Justiça de Portugal no acórdão n. 4915/04.9TVLSB.L1.S1, de 1º de
março de 2016.
844 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades

abstrato, senão com referência ao sistema legal em concreto no qual a sua


própria validade assenta. Ou seja, embora as declarações e garantias detalha-
damente negociadas em contratos de compra e venda de participações sociais
busquem muitas vezes estabelecer um regime contratual de alocação de risco
e de responsabilidade automático e exaustivo, o fato é que o regime legal não
deixa por isso de ser relevante, verificando-se uma articulação inevitável en-
tre a lei e o contrato, quer no plano do exame acerca da validade destas cláu-
sulas, quer no plano da sua interpretação supletiva quando forem lacunosas e
o intérprete for levado a recorrer à lei para suprir tais lacunas (deverá, neste
caso, recorrer ao regime do inadimplemento ou dos vícios?).
Com efeito, o regime legal ele próprio se baseia numa ótica de equilíbrio
contratual, o que desde logo obriga a que as declarações e garantias sejam um
elemento essencial para a reconstituição do programa contratual; a seu turno,
o contrato está inserido num sistema legal, devendo por isso respeitar os limites
deste mesmo sistema e dele se socorrer para a sua melhor interpretação.
Exemplos não faltam para ilustrar o quão problemática pode ser esta
interdependência entre, de um lado, o regime contratualmente fixado por meio
da técnica da estipulações de declarações e garantias e, de outro, os remédios
legalmente estabelecidos para situações de fato idênticas às previstas no contrato.
Pense-se, por exemplo, nas cláusulas que definem um prazo para o exer-
cício dos direitos do comprador caso as declarações e garantias não corres-
pondam à realidade (“survival period”). Como é que tais cláusulas interagem
com as normas previstas pelos arts. 445, § 1º (o prazo só começa a contar
quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, desde
que respeitados os limites máximos de 180 dias, em se tratando de bens mó-
veis, e de um ano, para os imóveis) e 446 (não correrão os prazos do artigo
antecedente na constância de cláusula de garantia; mas o adquirente deve
denunciar o defeito ao alienante nos 30 dias seguintes ao seu descobrimento,
sob pena de decadência).
Parece-nos que deve prevalecer o regime contratualmente estabelecido,
seja ele de reforço, seja de diminuição da garantia legal, uma vez assente na
liberdade contratual consubstanciada, neste caso, na forma como os con-
tratantes decidiram distribuir os riscos do negócio. Contudo, a disposição
contratual deixará de poder ser invocada se comprovado o dolo do vendedor,
isto é, na hipótese de o vendedor ter prestado declaração que sabia falsa,
com o propósito justamente de enganar o comprador. Neste caso, uma vez
caracterizado o dolo, então entrar-se-á no domínio dos defeitos do negócio
jurídico e da responsabilidade extracontratual, impondo-se ao vendedor o
dever de indenizar cabalmente o comprador pelos danos causados por este
ter confiado na veracidade da declaração75.

75 Cf. MARTINS-COSTA, Judith. Os regimes do dolo civil no direito brasileiro: dolo


antecedente, vício informativo por omissão e por comissão, dolo acidental e dever de
indenizar. In: Revista dos Tribunais, 923, set. 2012, pp. 115-143, p. 136.
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 845

Outra situação potencialmente controversa refere-se a cláusulas que,


no contexto das declarações e garantias, atribuem determinadas consequ-
ências ao conhecimento/desconhecimento dos contratantes acerca de fatos
referentes ao objeto do contrato. Conforme foi examinado acima, é próprio
dos vícios redibitórios serem ocultos, ou escondidos, tendo sido nesta medida
legitimamente ignorados pelo credor aquando da entrega efetiva da coisa.
Da parte do devedor, o seu conhecimento determina o agravamento da sua
responsabilidade por perdas e danos (art. 443, 1ª parte).
Imagine-se, assim, hipótese em que o comprador sabia, ou deveria sa-
ber, que uma determinada declaração feita pelo vendedor não correspondia
à realidade. Poderá ainda assim invocar a cláusula contratual para exigir do
vendedor que lhe entregue a prestação (normalmente pecuniária) pactuada
no contrato como consequência de a declaração não ser verdadeira?
Na ausência de cláusula contratual, em contratos de compra e venda de
empresas no contexto dos quais é tipicamente exigido do comprador que se
informe sobre o objeto do contrato (a chamada due diligence), certos defeitos
reputam-se aparentes e nesta medida impedem a invocação do regime dos
vícios redibitórios. Mas e se, pelo contrário, o devedor houver declarado,
por exemplo, um certo volume médio de vendas que se vem a revelar falso?
Poderá o vendedor nesta hipótese invocar o regime dos vícios redibitórios
para afastar qualquer responsabilidade com base no fato de que o comprador
sabia, ou deveria saber, haja vista a due diligence realizada, o verdadeiro vo-
lume de vendas? O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendeu que
não caberia ao comprador qualquer abatimento do preço ou indenização uma
vez que, a despeito de o contrato referir como característico do seu objeto
o volume médio de vendas, a inexatidão do número ali referido poderia ter
sido facilmente detectada pelo comprador, a quem foram facultados todos os
registros contábeis da sociedade76.

76 Cf. TJRS. Apelação Cível AC 70062890413. Data de publicação: 06.07.2015. Ementa:


Apelações cíveis. Direito privado não especificado. Compra e venda de ponto comer-
cial. Vício redibitório. Alegação da autora de que adquiriu ponto comercial (venda de
gás) com vício redibitório, consubstanciado na informação errônea acerca do volume
médio de vendas. Prova nos autos a indicar que a autora, antes da compra, teve acesso
franqueado às informações contábeis da ré, o que descaracteriza a ocorrência do vício
redibitório. Diferença no volume de vendas, ademais, que não é suficiente para presumir
que a autora, empresa do ramo, se estivesse ciente das informações contábeis, não teria
realizado o negócio ou aceitado o preço. Afastada a tese do vício redibitório, mantém-se
hígida a dívida da autora com a ré, relativa ao saldo devedor da compra e venda. Verba
honorária mantida, por atender aos critérios do art. 20, § 3º , CPC . Apelações despro-
vidas (Apelação Cível n. 70062890413, 11ª Câmara Cível, TJRS, Rel. Luiz Roberto
Imperatore de Assis Brasil, j. 1º.07.2015).
846 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades

Em sentido algo diverso, recente acórdão do Supremo Tribunal de


Justiça de Portugal entendeu que “a cláusula de garantia não se reconduz a
qualquer obrigação de comportamento, mas à assunção do risco da descon-
formidade entre a situação declarada e a real situação das sociedades objeto
do negócio”, pelo que os vendedores respondem “de forma automática, isto
é, independentemente da verificação dos pressupostos da responsabilidade
civil – fato ilícito, culpa ou dano – por qualquer divergência entre o declarado
contratualmente e a realidade, desde que abrangida pela cláusula de garan-
tia”, o que sugere que no caso de existir garantia contratual assegurando a
qualidade do bem, mesmo na hipótese de o credor não se ter apercebido da
discrepância entre o declarado e a realidade devido à sua negligência, nem
por isso o devedor poderia exonerar-se do dever de prestar que lhe advém por
força de expressa disposição contratual 77.
Não nos parece, contudo, que estas questões possam ser resolvidas em
abstrato, estando antes fortemente atadas às circunstâncias de cada caso,
não só aos fatos em concreto, mas, também, ao programa contratual como
um todo, e aqui tampouco será suficiente interpretar a disposição que refira,
como no exemplo acima, o volume médio de vendas isoladamente, antes
sendo necessário interpretá-la como parte do sistema de alocação de riscos
contratualmente estabelecido.
Além disso, cumpre ainda atentar que, diante de uma hipótese de defei-
to do negócio jurídico (quer de erro, quer, por maioria de razão e conforme já
referido, de dolo), é muito duvidoso que o regime contratual possa sobrepor-
-se, afastando a possibilidade de invocar as consequências legalmente estabe-
lecidas para o caso de se configurar vício na fase formativa do negócio, pois
neste caso já não estaremos no plano da normal distribuição dos riscos do
negócio entre os contratantes, mas de uma renúncia ao direito de o anular
com base em erro ou dolo, o que não nos parece dever ser permitido à luz do
nosso Direito.

Conclusão
Como dito no início, deu-se aqui um primeiro passo no tratamento do
tema das cláusulas de declarações e garantias face a regimes legais de pro-
teção ao adquirente, em particular o regime de responsabilidade por vícios
redibitórios. Outras tantas situações poderiam ser trazidas para esta reflexão,
revelando a complexidade em torno do funcionamento destas cláusulas no
Direito brasileiro e a importância, muitas vezes negligenciada na prática, de
as partes, ao procederem à redação de tais cláusulas com o objetivo de colma-

77 Cf. Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, acórdão n. 4915/04.9TVLSB.L1.S1, de 1º


de março de 2016, Rel. Fernando do Vale., v.u., pp. 1-37, p. 4.
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 847

tar as insuficiências da tutela ex lege e de promover a adaptação de tal tutela


ao caso concreto, atentarem para o sistema jurídico no qual tais cláusulas
estão inseridas e do qual necessariamente retiram a sua validade.
Esta reflexão é tanto mais relevante quando, como é notório, não raro
a redação destas cláusulas reproduz acriticamente modelos de contratos ela-
borados com referência a uma matriz jurídica completamente diversa, como
sejam os ordenamentos da família da common law.
Procurou-se, portanto, demonstrar que a articulação entre a tutela ex
lege e a tutela contratual opera de uma forma circular (e não puramente biná-
ria). Se é verdade que as declarações e garantias pactuadas livremente pelas
partes não podem ser interpretadas sem referência ao regime legal aplicável a
cada caso, igualmente essencial é reconhecer que tais disposições contratuais
têm um papel fundamental na determinação do programa contratual (e do
seu específico equilíbrio), o que a seu turno terá um impacto decisivo na de-
limitação dos pressupostos de aplicação do regime legal.

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