Teresa Negreiros - Vícios
Teresa Negreiros - Vícios
Teresa Negreiros - Vícios
Este texto não teria sido escrito não fosse o incentivo que recebi da minha que-
rida Mestre e amiga Judith Martins-Costa. Conhecemo-nos na academia, há cerca
de 20 anos. Nossas “afinidades eletivas” manifestaram-se desde o primeiro encon-
tro, altura em que ambas estávamos a escrever sobre a boa-fé objetiva. De lá para
cá, na vida profissional mas não só, inúmeras têm sido as ocasiões em que nos
regozijamos mutuamente diante das manifestações, por vezes completamente
inesperadas, de uma misteriosa e permanente sintonia, capaz de desafiar a
distância e o silêncio.
Arrisco afirmar que todos os autores que participam desta tão merecida ho-
menagem, apesar de se dedicarem a áreas muito diversas do saber jurídico e de
manterem com a Judith relações de natureza também muito diversa entre si, hão
de, contudo, partilhar um sentimento idêntico: cada um, à sua maneira, está a ela
ligado por uma profunda afinidade de gostos e de ideias.
E isto, naturalmente, diz muito mais acerca da Judith do que acerca de nós –
seus alunos, colegas, leitores, fãs e amigos. Diz-nos da sua inigualável aptidão para
se tornar uma referência em todas as áreas em que atua. Diz-nos também da sua
humildade, abertura, ausência de preconceitos, curiosidade e, sobretudo, generosi-
dade para, com um entusiasmo sempre contagiante, partilhar o seu conhecimento
e as suas experiências.
Quem teve o privilégio de conviver ou trabalhar com a Judith se torna a ela
ligado por esta inspiradora sintonia – expressão máxima da sua capacidade para
criar empatias intelectuais, que só são possíveis graças à sua inteligência e sensibili-
dade ao mesmo tempo únicas e múltiplas; expressão máxima, enfim, do seu interes-
se genuíno pelo conhecimento e pelo outro (suas preferências e escolhas).
O texto a seguir, como referi, surge graças a uma conversa que tivemos em
janeiro de 2017, altura em que a Judith me desafiou para escrevermos um artigo
sobre as cláusulas de declarações e garantias em contratos de compra e venda, que
buscasse determinar a sua qualificação jurídica à luz do Direito brasileiro. Dando
seguimento àquela conversa, dei aqui um primeiro passo.
Concentrei-me neste artigo exclusivamente nos vícios redibitórios e em alguns
problemas que a articulação entre este regime e as ditas declarações e garantias pode
suscitar. É um passo pequeno, mas que julgo necessário, a caminho de uma reflexão
mais abrangente acerca da categorização dessas cláusulas no Direito brasileiro (o
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 811
tal artigo que ainda havemos de escrever…). Trata-se, sobretudo, de um texto que
visa a celebrar, uma vez mais, as nossas afinidades, pelas quais sou imensamente
grata e que espero perdurem e frutifiquem em diálogos como este, indefinidamente.
Introdução
As chamadas cláusulas de declarações e garantias – cuja denominação
tem origem no Direito anglo-saxónico representations and warranties –, são
muitas vezes o cerne da negociação dos contratos de compra e venda, sobre-
tudo quando se trata da aquisição de participações sociais de controle como
veículo de transmissão de empresas.
A problemática acerca da articulação ou possível convivência entre es-
tas cláusulas e o regime dos vícios redibitórios é um dos muitos aspectos por
explorar em torno do uso hoje generalizado destas cláusulas em contratos de
compra e venda de empresas1.
O objetivo deste artigo é demonstrar que as declarações e garantias,
apesar da sua “vocação auto-suficiente”2 em termos de alocação de riscos
entre o comprador e o vendedor, não podem, ou nem sempre devem, ser
interpretadas sem referência ao regime legal dos vícios redibitórios. E o inver-
so é igualmente verdade: também o regime do Código Civil em matéria de
responsabilidade por vícios redibitórios não está imune ao que as partes em
um contrato de compra e venda, precisamente por meio da pactuação de um
regime de responsabilidade pela não observância ou violação de declarações
e garantias, venham a livremente estabelecer.
Para tanto, iremos discorrer sobre o regime dos vícios redibitórios, tal
como estabelecido pelo Código Civil, aludindo às polêmicas sobre o seu fun-
damento dogmático, para ao final apontar situações em que este regime é
confrontado com o disposto contratualmente por meio de declarações e ga-
rantias, procurando em cada caso determinar a resposta mais adequada à luz
do nosso sistema jurídico.
3 Historicamente, a possibilidade de, após ter recebido e aceito o bem, vir o credor a rejei-
tá-lo, ou a exigir a redução da contraprestação, significou uma “conquista da equidade
pretoriana sobre a rigidez do direito civil” (cf. DANTAS, San Tiago. Meios de proteção
ao comprador. In: Problemas de direito positivo – estudos e pareceres. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, pp. 179-198, p. 184). Isto porque, ao receber o bem sem reservas, o
credor está, de certa forma, externando a sua intenção de o aceitar no estado em que se
encontra. Ou seja, a aceitação da entrega do bem pelo credor tem justamente o efeito
de indicar que o bem em questão está de acordo com o esperado. Afinal, se o bem não
corresponde ao esperado e não é por isso idôneo a satisfazer o legítimo interesse do cre-
dor, cabe a este rejeitá-lo desde logo. O rigor desta regra clássica, conhecida como caveat
emptor, ía ainda mais longe, imputando-se ao comprador o ônus de proceder ao prévio
exame do bem. Assim, se, por um lado, o comprador estava protegido porque lhe assistia
o direito de apenas aceitar o bem de determinada qualidade, por outro lado, cabia-lhe
o ônus de proceder com toda a cautela ao prévio exame do bem, pois a entrega deste
reputava perfeito o cumprimento da obrigação por parte do vendedor. Acima de tudo, a
máxima caveat emptor prestigiava a segurança e previsibilidade nas relações econômicas
ao impedir que vendas consumadas fossem ulteriormente questionadas.
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 813
comutativo pode ser enjeitada por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem
imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor”. Na sequência,
o art. 442 faculta ao credor a quem interesse manter o bem a alternativa de
exigir o abatimento do preço pago pelo bem defeituoso: “Em vez de rejeitar a
coisa, redibindo o contrato (art. 441), pode o adquirente reclamar abatimen-
to do preço”.
Vale dizer: quando o ato de recepção da prestação se dá ao abrigo de um
contrato comutativo, o seu efeito exoneratório é em parte relativizado pelo
regime dos vícios redibitórios. Apenas em parte, pois que o recebimento da
prestação continua a significar, em princípio, que o credor considera o bem,
no estado em que se encontra, satisfatório, sendo que a sua inércia pelo pe-
ríodo decadencial fixado legalmente (art. 445 do Código Civil) importará a
efetiva e irremediável aceitação da prestação.
O regime dos vícios redibitórios previsto no Código Civil é, natural-
mente, muito diverso do que se encontra consagrado no Código de Defesa do
Consumidor (“CDC”) em matéria de responsabilidade por vício do produto e
do serviço (arts. 18 e ss. da Lei n. 8.078/90), o qual não é objeto do presente
artigo, que, pelo contrário, se centra na análise de questões próprias a con-
tratos firmados entre partes sofisticadas, não sujeitos ao regime especial do
CDC. Enquanto neste último existe responsabilidade por desconformidades
tanto ocultas como aparentes, ou de fácil constatação – caveat venditor – , no
Código Civil impera, em princípio, a regra da não responsabilidade do alie-
nante pelos vícios aparentes.
Assim, conforme o disposto no art. 441 do Código Civil, é próprio dos
vícios redibitórios serem ocultos, ou escondidos, tendo sido nesta medida le-
gitimamente ignorados pelo credor aquando da entrega efetiva da coisa. Da
parte do devedor, o fato de desconhecer o vício não influi sobre a garantia,
que será devida independentemente da sua boa-fé, embora seja decisivo para
o efeito de determinar o agravamento da sua responsabilidade por perdas e
danos (art. 443, 1ª parte).
4 Utiliza-se o termo “adquirente” em sentido amplo para neste contexto designar o con-
tratante a quem o domínio, posse ou uso são transferidos (o “acipiente”, como designava
Clóvis Beviláqua, Direito das obrigações. Ed. Histórica, Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977,
p. 176).
814 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades
6 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes. Tratado de direito privado. 2. ed. Rio de Janei-
ro: Borsoi, 1962, v. XXXVIII, p. 293.
7 Ademais, a responsabilidade por vícios redibitórios torna-se imperativa nos contratos de
adesão, quando tal responsabilidade decorrer da “natureza do contrato” (vide arts. 423 e
424 do Código Civil).
816 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades
12 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, op. cit., p. 124.
13 A hipótese foi examinada por Guilherme Döring Cunha Pereira, em relação a uma com-
pra e venda de lote de ações representativas do controle acionário de uma sociedade:
“Se antes da transferência [das ações] se constata uma insuficiência no ativo ou um
acréscimo do passivo, o adquirente pode simplesmente recusar as ações ou aceitá-las
exigindo ao mesmo tempo uma diminuição no preço. Não se trata aí da incidência dos
arts. 1.101 a 1.106 do Código Civil [artigos referentes aos vícios redibitórios no Código
de 1916], mas sim dos princípios mais gerais que regem a inexecução das obrigações”
818 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades
Por outro lado, pode acontecer o oposto, isto é: o vício ser oculto em-
bora seus efeitos, aparentes. O exemplo nos é trazido por Antonio Herman
Vasconcellos e Benjamin e, embora se reporte ao CDC, é perfeitamente
14 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado, op. cit., p. 285.
15 CALVÃO DA SILVA, João. Compra e venda de coisas defeituosas (conformidade e segu-
rança). 1. ed. Coimbra: Almedina, 2002 (reimpressão), p. 21.
16 LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones., tradução esp. de Jaime Santos BRIZ. Madrid:
Editorial Revista de Derecho Privado, t. II, 1959, p. 68.
17 CALVÃO DA SILVA, João. Compra e venda de coisas defeituosas..., op. cit., p. 21.
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 819
20 LIMA, Otto de Souza. Teoria dos vícios redibitórios. Tese para concurso à Cátedra de
Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1965, p. 316.
21 GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. Vícios do produto e do serviço por qualidade, quan-
tidade e insegurança – cumprimento imperfeito do contrato. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 2004, p. 167.
22 GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini, ob. cit., p. 227.
23 É Filippo de Maria quem lembra essas palavras “desconsoladas mas realistas” de Jemolo
(Azione contrattuale e azione redibitoria. In: Riv. dir. civ. 1967, II, 640 apud MARIA, Fili-
ppo de. La compravendita di azioni non quotate. Padova: CEDAM, 1994, p. 18).
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 821
24 Cf. CALVÃO DA SILVA, João. Compra e venda de coisas defeituosas..., op. cit., pp. 49 e ss.
25 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. 6. ed. rev. e atual. pelo professor
José S. Santa Maria. São Paulo: Freitas Bastos Editora, v. III, p. 176.
26 Neste sentido, Judith Martins-Costa afirma: “[…] ao pactuar negócios jurídicos, as par-
tes podem, em linha de princípio, estipular cláusulas acerca da limitação ou da exclu-
822 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades
são do dever de indenizar, desde que atendido o ponto de equilíbrio entre o exercício
da liberdade individual e as necessidades sociais de proteção do lesado” (cf. Comentá-
rios ao novo código civil – do inadimplemento das obrigações. Sávio de Figueiredo Teixeira
(Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. V, t. II, p. 159).
[...] o sujeito que compra o prédio porque julga que tem quinze aparta-
mentos, vindo a constatar que tinha, em realidade, dez, vole erradamen-
te. No entanto, se compra o prédio que tinha dez apartamentos, mas
constata após a compra que o prédio possuía rachaduras geradoras de in-
filtração, abaixo da fina camada de gesso, o caso é de vício redibitório”29.
30 LIMA, Otto de Souza. Teoria dos vícios redibitórios, op. cit., p. 231.
31 MACHADO, João Baptista. Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas. In:
Obra dispersa. Braga: Scientia Ivridica. 1991, pp. 31-124, p. 55.
32 MACHADO, João Baptista, op. cit., p. 45.
33 MACHADO, João Baptista, op. cit., p. 70.
34 Neste sentido, defendia San Tiago Dantas: “A dupla configuração, numa espécie dada, do
vício e do erro, ou do erro ou do inadimplemento, conduz não à exclusão mas à cumulação
dos meios de defesa, ficando o comprador habilitado a escolher, como acima se mostrou, o
que julgar mais adequado à sua proteção” (DANTAS, San Tiago, op. cit., p. 192).
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 825
Veja-se bem que, de acordo com tal entendimento, o regime dos vícios
redibitórios não se reconduz a uma espécie de inadimplemento, pelo contrá-
rio, pressupõe precisamente que haja adimplemento contratual – entrega da
coisa tal qual ela é –, daí que se lhe atribua um fundamento autônomo. A
chamada teoria da garantia visa, pois, a responsabilizar o devedor apesar do
cumprimento, e não por causa do descumprimento36, sendo, neste contexto, a
garantia “encarada autonomamente, como obrigação que acresce à obrigação
essencial do contrato, em torno da qual gravita, para a reforçar, assegurando
o resultado prático da execução normal do contrato; mas sem se confundir
com a obrigação de cumprimento do direito comum dos contratos, de cujas
regras exorbita agravando a responsabilidade do devedor garante”37.
A teoria da garantia, que rejeita o enquadramento da responsabilidade
por vícios redibitórios no âmbito da teoria do inadimplemento, encontrou
certo eco em nossos tribunais:
Parece mesmo um truísmo dizer-se que o credor não tem direito apenas
a um bem, mas a bem de certa qualidade, apto a satisfazer as suas legítimas
expectativas, conforme o convencionado. O bem aparece, aqui, não apenas
como objeto do contrato, mas como expressão da própria declaração de von-
tade. Conforme desenvolvido por João Baptista Machado, a coisa (objeto da
declaração) pode funcionar também como meio de expressão da vontade:
event of defects on the one hand, and in the event of non-performance on the other.
German law has now developed a general type of breach of contract – to be precise,
the notion even transcends contract law, and extends, as breach of duty, to the entire
law of obligations. This makes many distinctions, which had previously been necessary,
either superfluous or at least easier” (The new German law of obligations: an introduction.
Disponível em: <http://germanlawarchive.iuscomp.org/?p=357>).
47 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo código civil, op. cit., p. 225, grifou-se.
48 MARTINS-COSTA, Judith, op. cit., p. 67.
49 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-fé e a violação positiva do contrato, ob. cit, p. 201,
nota 342.
830 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades
52 LIMA, Otto de Souza. Teoria dos vícios redibitórios, op. cit., pp. 204-205.
53 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil, v. III, op. cit., p. 177.
54 De notar que o regime diferenciado dos vícios redibitórios se revela, sob certos aspectos,
prejudicial ao credor. Basta lembrar que os prazos previstos para as ações edilícias (art.
445: 30 dias para móveis e um ano para imóveis) são mais exíguos do que os prazos
aplicáveis aos remédios disponíveis com base no inadimplemento contratual (art. 205:
10 anos, aplicando-se o prazo de prescrição da pretensão de crédito disposto no art. 205
832 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades
do Código Civil, visto inexistir regra específica fixando o prazo de extinção do direito
potestativo de resolver o contrato – cf. STJ, REsp n. 770.746/RJ, 3ª Turma, Rel.ª Min.ª
Nancy Andrigui, v. u., j. 05.09.2006.
Contudo, esta distinção não é absoluta, sendo possível, por vezes, que a
falta ou mesmo o excesso de quantidade resultem em um vício de qualidade,
na medida em que a diferença para mais ou para menos comprometa a função
a que se destina o bem. Conforme exemplifica Pedro Romano Martinez:
Sempre que a falta de quantidade, como nos casos referidos, está intima-
mente ligada com a qualidade do bem, ela é, em si, um defeito57.
59 DANTAS, San Tiago. Problemas de direito positivo, op. cit., p. 186. Note-se que, segundo
o autor, o fato de ter havido uma encomenda já por si impede a caracterização do erro.
Se, pelo contrário, a compra tivesse sido feita diante do carro, que o comprador pensava
tratar-se de um modelo ano 37, mas que afinal era um modelo ano 36, então o caso
estaria perfeitamente enquadrado como erro de fato.
dos vícios redibitórios e da sua articulação ... • teresa negreiros 837
60 NOLKE, Hans Schulte. The new German law of obligations: an Introduction, pp.1-6, p.
3: “There are, of course, no suitable general criteria for making this crucial distinction
between the delivery of defective goods and the delivery of an aliud”. Disponível em:
<http://germanlawarchive.iuscomp.org/?p=357>.
61 Este ponto foi argutamente salientado por María Martínez Martínez, em seus comentá-
rios ao acórdão do Tribunal Superior, de 21 de outubro de 2005, que considerou como
aliud pro alio, e não como vício redibitório, a entrega de azeite cuja composição química
indiciava a utilização de outros óleos que não exclusivamente o de oliva, desta forma
impedindo que o comprador, ao revender a mercadoria, fizesse jus a um determinado
benefício econômico outorgado no âmbito da legislação comunitária aplicável às ex-
portações de azeite de oliva (MARTÍNEZ María Martínez. “Aliud pro alio” versus vicios
ocultos en compraventa mercantil de cosa genérica (aceite de oliva)”. Comentarios de senten-
838 parte v • o canteiro de obras : pactos , contratos , práticas negociais , sociedades
Nestes casos, sem surpresa, haverá que averiguar até que ponto o com-
prador se encontrava ou não em situação de erro e assumia a possibilida-
de de determinada coisa não apresentar certas qualidades.
Com efeito, por via da pactuação destas cláusulas busca-se uma maior
previsibilidade para a resolução de disputas contratuais acerca do regime le-
gal a aplicar a uma situação de fato envolvendo a “desconformidade” da coisa
entregue em um contrato de compra e venda. Daí Arnold Wald afirmar que
“essas cláusulas visam estender e reforçar a proteção dada ao comprador”
para depois concluir que “a sua violação submete o vendedor a todas as con-
sequências do inadimplemento contratual”73.
O resultado perseguido pelos contratantes que pactuam declarações e ga-
rantias parece ser, portanto, o de afastar o regime típico dos vícios redibitórios,
permitindo a aplicação de um regime autônomo (no sentido de autossuficien-
te) de alocação de riscos entre os contratantes. É que, no silêncio do contrato,
e caso a coisa vendida apresentasse defeitos ocultos, seria aplicável o dever de
garantia tal como definido pelo regime de responsabilidade específico estabele-
cido para os vícios redibitórios. Já com a estipulação expressa de garantias sobre
as características do bem é o próprio perímetro da prestação objeto do contra-
to que está em causa, pelo que, não estando tais características presentes, o
credor pode acionar a garantia que reforça o cumprimento da prestação, sem
necessidade de discutir os pressupostos da responsabilidade por vícios redibitó-
rios. Quando, ao invés, são expressamente estipuladas declarações e garantias,
o cumprimento da obrigação principal passa a pressupor inequivocamente a
entrega da coisa tal qual é garantido que ela seja.
Contudo, não há que se falar necessariamente de um regime garantís-
tico autossuficiente e fechado em si mesmo, estabelecido por meio da pac-
tuação de declarações e garantias que funcionam numa base de “haja o que
houver”74. Antes, tais cláusulas não podem ser interpretadas e aplicadas em
Conclusão
Como dito no início, deu-se aqui um primeiro passo no tratamento do
tema das cláusulas de declarações e garantias face a regimes legais de pro-
teção ao adquirente, em particular o regime de responsabilidade por vícios
redibitórios. Outras tantas situações poderiam ser trazidas para esta reflexão,
revelando a complexidade em torno do funcionamento destas cláusulas no
Direito brasileiro e a importância, muitas vezes negligenciada na prática, de
as partes, ao procederem à redação de tais cláusulas com o objetivo de colma-